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Criacionismo: ciência, religião ou ideologia?

Wendel de Holanda P. Campelo

Muitos cientistas e filósofos tendem a


tomar a oposição entre religião e ciência
como sendo o ponto central da querela
entre criacionismo e evolucionismo, no
entanto, isso é somente uma maneira
parcial de enxergar o problema. Os
criacionistas hoje em dia não estão mais
tão preocupados em rivalizar com a
ciência; digamos que eles já tenham
"evoluído" quanto a esse ponto. O que
eles querem, na verdade, é que seu
dogma religioso se torne também um
dogma científico.
Um bom exemplo disso é a teoria do "Design
Inteligente" criada como alternativa ao evolucionismo
[1]. Antes de tudo, é importante notar que não existe
propriamente um debate acadêmico real entre
criacionistas e evolucionistas, mas somente uma
tentativa, insuflada por este ambiente de pós-verdade,
de alguns seguimentos da sociedade em questionar a
validade da teoria darwiniana. Neste contexto, a fé
religiosa torna-se uma poderosa ferramenta de
desinformação, cujo apelo às crenças e às emoções são
sobrepostas à avaliação racional [2]. Em
contrapartida, muitos desqualificam o criacionismo
simplesmente como uma espécie de pseudociência ou
charlatanismo. Porém, isso é somente um modo de
atacar o problema por um viés assaz epistemológico-
normativo (e talvez dogmático), sem considerar o
importante papel da religião na sociedade.
De fato, o termo "criacionismo" ou "ciência da criação"
tem sido repetidas vezes usado pelos seus entusiastas
de maneira bastante ambígua, gerando uma confusão
entre o seu sentido religioso e o seu pretenso sentido
científico; prejudicando, inclusive, o próprio debate
que aparentemente almejam criar, pois, quando
desejam transformar o criacionismo numa ciência,
qualquer tentativa de submetê-lo a testes rigorosos
será potencialmente ofensivo para aqueles que
acreditam - por fé religiosa - conter nele alguma
verdade.
Por essa razão, proporei aqui uma distinção
entre criacionistas confessionais, isto é, aqueles que
acreditam no criacionismo religioso estritamente, sem
qualquer pretensão de torná-lo uma ciência;
e criacionistas teoréticos, isto é, aqueles que veem o
criacionismo não somente como uma doutrina
religiosa, mas como uma explicação científica sobre a
origem da vida. O segundo grupo também é conhecido
como "criacionistas científicos", mas essa definição
não me parece ser muito boa, já que seus entusiastas
frequentemente ignoram os resultados da ciência
favoráveis à teoria da evolução. Se bem que, como
argumentarei abaixo, exista uma estranha ideologia
cientificista neles, tendo em vista que veem na
explicação científica a autoridade mais adequada com
relação a todas as outras formas de compreensão
humana da realidade. Neste sentido, não é difícil
concordar que a tentativa de desenvolver uma "ciência
da criação" tem, como pano de fundo, um propósito
mais secular do que religioso.
Consequentemente, os criacionistas teoréticos não
estão propriamente reivindicando um espaço
adequado para religião dentro de uma sociedade
marcadamente secular; mas desejam, muito além
disso, ocupar espaços educacionais a fim de
apresentarem o criacionismo como uma teoria
cientificamente qualificada em alternativa ao
evolucionismo - ainda que ignorando boa parte do que
dizem atualmente os cientistas e os filósofos da
ciência.
A "ciência da criação" não é resultado do acúmulo do
que os epistemólogos chamam de progresso científico,
tampouco é parte de um programa de pesquisa da
ciência, mas é meramente uma conjectura isolada sem
qualquer eco ou expressão científica. Todavia, ressalto
que o criacionismo em si mesmo nunca precisou ser
uma ciência para quem acredita nele unicamente
através de sua fé religiosa. Além disso, tentar
submeter o credo religioso ao credo científico é uma
tarefa fadada ao fracasso. A ciência não é dona da
verdade. Aliás, os seres humanos lidam com muitas
verdades que independem do conhecimento
científico, como, por exemplo, "que todos os homens
são mortais" ou "que o sol nascerá amanhã": ambas
nunca precisaram ser submetidas a testes rigorosos
para serem aceitas. Da mesma maneira, boa parte dos
ensinamentos das religiões têm um direcionamento
ético-político que jamais requereu qualquer aval
científico para ser seguido por diferentes povos.
É evidente que qualquer pessoa deve ter seus direitos
assegurados e respeitados dentro das sociedades
democráticas para professar o credo que quiser e,
inclusive, negar o próprio credo da ciência. Se bem
que, como já notei acima, no caso do criacionismo
teorético, não existe uma forte oposição contra a
ciência. Pelo contrário, seu propósito é precisamente
ser um cientificismo anti-establishment, uma vez que
seus entusiastas veem a ciência de forma assaz
idealizada e, por essa razão, buscam sustentar suas
crenças apelando a ela, ainda que de forma bastante
imprópria. É como se o criacionismo confessional não
fosse suficiente para eles, já que enxergam
principalmente na ciência - não necessariamente na
comunidade científica - a autoridade ideal para
legitimar sua fé religiosa.
O que os criacionistas teoréticos realmente rejeitam
no conhecimento científico - o bem estabelecido! - são
alguns de seus resultados que aparentemente
contradizem seus dogmas bíblicos. Muitos deles leem
a Bíblia de maneira assaz literal e, com isso, abraçam
por completo afirmações que são, no mínimo,
problemáticas (como a tese de que a Terra teria sido
criada em 6 dias de 24 horas ou que teria por volta de
6 mil anos). Consequentemente, não seria
inapropriado dizer que o criacionismo teorético é, de
forma bastante paradoxal, um cientificismo e um
anticientificismo: apoiado, de um lado, por uma
pretensa visão científica da realidade e, de outro,
numa interpretação literalista da Bíblia que nega os
resultados da ciência. Trata-se, portanto, de uma
fusão de duas ideologias aparentemente
incompatíveis uma com a outra, mas que encontram
seu ponto de intersecção nesta pretensa ciência. É
como se seus entusiastas dissessem: se a verdade é
uma só, então, ciência e religião são basicamente a
mesma coisa!
De fato, uma das razões que tornam o pretenso debate
entre criacionismo e evolucionismo assaz aborrecido é
que não há qualquer necessidade de um crente de
seguir esse criacionismo teorético, uma vez que já
pode tranquilamente se satisfazer com a narrativa
bíblica para professar sua fé religiosa, ainda que não
de uma forma literal. Portanto, não há qualquer razão
para equiparar criacionismo e evolucionismo, tendo
em vista que isso seria quase a mesma coisa que pôr
em pé de igualdade religião e ciência, sem levar em
consideração que ambos os saberes não estão
amparados pelos mesmos pressupostos e objetivos.
Pelo contrário, cada um deles desempenha um papel
singular na vida humana que não necessariamente se
opõe, de sorte que essas aparentes "contradições"
entre fé e ciência são meramente acidentais, mas não
necessariamente substanciais.
Uma pessoa pode ser religiosa e, no entanto, não
negar os resultados da ciência. Pode, inclusive,
sustentar que se trate de dois tipos de saberes que se
complementam de forma mútua, cada qual
desempenhando o seu devido papel na vida humana.
Do mesmo modo, um cientista pode ser alguém
religioso e reconheça que os ganhos cognitivos da sua
ciência são de um escopo diferente da religião. Um dos
argumentos fortes para se aceitar tal posição é que as
leis da natureza são substancialmente diferentes dos
milagres: dada a sua dimensão transcendente, os
milagres são aceitos pela fé, enquanto as leis da
natureza são estabelecidas por meio da pesquisa
científica.É necessário considerar ainda que a
distinção entre ciência e religião não torna o saber
religioso inferior ao saber científico e vice-versa.
Isso elimina qualquer pretensão de tomar a ciência
como fonte de ateísmo e a religião como fonte de
negacionismo científico. Ao contrário, pelas razões
que já expus acima, no fim das contas, cientificismo
ateísta e religiosidade anticiência são ideologias
opostas que, no entanto, encontram guarida entre os
recentes entusiastas do criacionismo.

Por Wendel de Holanda


Outros links de apoio:
[1] Para detalhes, acessar: https://plato.stanford.edu/entries/creationism/

[2] http://anpof.org/portal/index.php/en/comunidade/coluna-anpof/2533-a-
pos-verdade-da-fe-e-da-razao

[3] https://criticanarede.com/rel_criacionismo.html

Esse texto também foi publicado na Coluna ANPOF: para conferir, basta
acessar: http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/comunidade/coluna-
anpof/2644-criacionismo-ciencia-religiao-ou-ideologia

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