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Vern S. Poythress
Poythress mostra como o entendimento apropriado da teologia bíblica
possibilita não somente uma, mas muitas harmonizações críveis das verdades
bíblicas e científicas. Ao longo do caminho, ele provê uma defesa profunda
da teoria do design inteligente como um programa viável de pesquisa
científica. Seu exame da beleza matemática inerente ao universo fornece uma
razão convincente adicional para reconhecer a sabedoria e o design
subjacentes à realidade física.
— STEPHEN C. MEYER, diretor do Centro de Ciência e Cultura do Discovery
Institute
Teologia sólida se encontra com ciência sólida neste livro enquanto Vern
Poythress nos mostra como ver a beleza do caráter de Deus revelado em tudo
que os cientistas estudam no universo criado. Uma análise fascinante,
abrangente, profunda, e de leitura muito fácil, de todos os ramos da ciência
moderna de uma das maiores mentes no mundo cristão atual.
— WAYNE GRUDEM, professor pesquisador de Teologia e Bíblia, Phoenix
Seminary, Scottsdale (Arizona)
Redimindo a ciência será bem recebido por todo cristão reflexivo. A análise
de Vern Poythress do relacionamento entre a ciência e a fé procede de uma
confissão aberta e sem qualificações da crença em Cristo, mediante seu
testemunho pessoal, a avaliação lúcida da natureza da ciência, a análise
cuidadosa da Escritura e a reflexão honesta sobre o estado atual do debate.
Este é um livro sobre teologia criacional e teologia bíblica, bem como sobre
apologética e instrução pastoral. Poythress demonstra o caráter revelacional
do mundo à nossa volta, especialmente na afirmação de que as “leis” da
ciência são nada mais que descrições da obra soberana do Deus todo-sábio e
todo-poderoso. Ele expõe os pressupostos não examinados da empreitada
científica moderna, mostrando que ela, como qualquer cosmovisão, dispõe,
na base, de uma natureza religiosa. Ele provê uma exegese cuidadosa e
inteligente dos textos relevantes da Escritura, em especial de Gênesis 1-9, ao
demonstrar que os cristãos podem pensar com racionalidade sobre a
empreitada científica sem comprometer suas mais caras convicções bíblicas.
Acima de tudo, Poythress conduz os leitores para além dos detalhes e
obstáculos do debate entre a ciência e a fé no nosso Senhor Jesus Cristo — a
consumação da redenção e da ciência. Os cristãos comprometidos com a
implementação da Grande Comissão e do mandato cultural encontrarão em
Redimindo a ciência um recurso muito útil para seus esforços.
— T. M. MOORE, pastor de ministérios de ensino da Cedar Springs
Presbyterian Church, Knoxville (Tennessee); autor de Consider the Lilies: A
Plea for Creational Theology [Olhai para os lírios: um clamor pela teologia
criacional]
Copyright @ 2006, de Vern S. Poythress
Publicado originalmente em inglês sob o título
Redeeming Science: A God-Centered Approach
pela Crossway Books – um ministério de publicações Good News Publishers,
Wheaton, Illinois, 60187, EUA.
1ª edição, 2019
PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.
Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo indicação em contrário.
Poythress, Vern S.
Redimindo a ciência: uma abordagem teocêntrica / Vern S. Poythress, tradução Guilherme Cordeiro — Brasília,
DF: Editora Monergismo, 2019.
ISBN 978-85-69980-96-4
MINHA HISTÓRIA
Logo depois de começar a frequentar as aulas, fascinei-me pela aritmética.
Praticar a soma parecia brincar em um país das maravilhas, porque a
operação ocorria com muita precisão, estabilidade e consistência. Mostrava
seu enorme poder, por ser possível adicionar grandes cifras e obter números
ainda maiores, e continuar assim até onde desejasse. (Eu não sabia, mas
experimentava o deslumbre com o infinito.) Os números agiam como mágica,
na medida em que as operações realizadas no papel correspondiam com
perfeição ao que eu podia descobrir ao colocar 13 bolinhas de gude com
outras 15.
Meu interesse se expandiu mais tarde para incluir a ciência e matemática da
mais alta ordem. Estava fascinado com a regularidade, confiabilidade e
beleza do que via. Encontrei um tipo de descanso na constância das leis
físicas, na sua precisão e harmonia.
Segui o interesse e me graduei no California Institute of Technology e ao me
tornar doutor em Matemática na Universidade de Harvard. Em seguida,
ensinei matemática no Fresno State College (hoje California State University,
Fresno) antes de me voltar para meu segundo interesse: Bíblia e teologia.
Com o passar dos anos, para onde foram minha fascinação e senso de
mistério com a ciência? Em certa medida, ele continuou comigo. Eu ainda
gostava de ler a Scientific American. Mas o aprendizado começou a diminuir
a fascinação e o mistério. Em alguma medida, suponho que isso seja
inevitável. O aprendizado traz familiaridade e a familiaridade pode produzir
falta de atenção ou mesmo tédio.
Mas outras forças estavam agindo também. A ciência ensinada hoje é
influenciada pela ideologia da “objetividade”, que prefere jogar para debaixo
do tapete a experiência de fascínio, deleite, beleza e mistério pessoais. O
entusiasmo não é comunicado como deveria para a nova geração e, assim,
não se vê o ponto. A ciência se reduz a um jogo em que aprendemos regras
sem sentido para resolver problemas artificiais colocados nos testes dos
professores. Ou se torna nada mais que uma ferramenta pragmática pela qual
produzimos aparelhos que trazem conforto, entretenimento e status. Ou, para
quem se destaca na ciência, é uma plataforma para demonstrar poder e
conquistas intelectuais. Onde está a visão para o mundo todo que nos levaria
a apreciar o significado humano da ciência?
O meu filho estuda seções cônicas nas aulas de matemática do ensino médio.
Eu acho o assunto muito bonito, ele não; e não entende o motivo. Eu lhe
perguntei se o professor ou o livro-texto fornecia alguma justificativa ou
sentido para a matéria. Não. Se o professor fosse perguntado, diria: “Estamos
fazendo isso porque é parte do currículo”. Essa evasiva parece significar:
“Não tem um sentido real, trata-se apenas da decisão arbitrária das
autoridades que elaboraram o currículo”. Essa falta de propósito não produz
um bom ambiente de aprendizado, a despeito do fato de o próprio professor
possuir amor genuíno ao assunto e um compromisso com o ensino.
Minha mulher e eu observamos o problema com meu filho bem antes. Por
volta da terceira série, ele estava estudando biologia e memorizava a
terminologia científica referente às partes da folha ou às divisões do reino
animal. Ele não estava pesquisando o comportamento dos animais, só
memorizava. Fiquei tão perplexo com essa visão maltratada da ciência que
senti meus olhos fugindo em vergonha. Eu me peguei dizendo paralisado: “A
ciência de verdade não é assim. A ciência verdadeira significa explorar e se
aventurar”. E agora, com mais maturidade, eu poderia adicionar: “E, de
tempos em tempos, depois de uma escalada longa e cansativa, podemos ter
um vislumbre da beleza de Deus de tirar o fôlego”.
Eu queria ver meu filho ler histórias sobre como as abelhas constroem os
favos e comunicam o local de novas fontes de néctar, ou como os polvos
capturam as presas, ou sobre a formação dos diamantes. Que ele aproveite a
escrita semelhante a um programa da natureza, sempre que sua turma não
pudesse conseguir uma apresentação efetiva de multimídia. Que ele também
experimente algo do entusiasmo da descoberta científica. Que ouça a história
da produção da primeira vacina para a catapora e da descoberta da penicilina.
Que a turma vá para o campo e observe o trabalho das formigas. Que eles
capturem alguns bichos-de-conta (tatus-bolas) e descubram o que gostam de
comer. Que cortem algumas sementes grandes para ver o que há dentro,
reguem algumas e observem-nas crescer. Que desmontem um relógio de
corda antigo e tentem entender como ele funciona. E que não façam disso um
projeto de “laboratório” em que todos devem chegar aos mesmos resultados
predeterminados!
Alegro-me em dizer que houve alguns pontos altos na educação científica
posterior do meu filho. Na sexta série, a turma montou foguetes de brinquedo
que voaram uns 150 metros acima do chão. A sétima série fez uma viagem de
campo para um vale em que eles cavaram um xisto e o abriram para encontrar
fósseis.
Precisamos reformar o pensamento sobre a ciência. E precisamos fazê-lo em
escala global, ao encarar nosso conceito sobre o tipo de mundo em que
vivemos e nosso papel nele. A civilização ocidental perdeu a visão do
objetivo unificado, com exceção, talvez, dos objetivos superficiais do prazer,
da prosperidade e tolerância. Perdemos a trajetória como civilização e as
universidades se tornaram multiversidades sem o centro. As escolas regulares
são um pouco melhores. O atmosfera diz: “Trabalhe nessas tarefas
aparentemente sem sentido agora, de forma que você possa ir para a
faculdade, conseguir um bom emprego e viver o sonho americano de uma
casa grande com dois carros e uma TV de plasma”. O mal-estar em relação à
ciência e seu significado são apenas elementos do mal-estar maior acerca da
falta de sentido à nossa volta.
Assim, estamos tomando uma longa rota, repensando o sentido da ciência. E
realizo esse processo de reconsideração como cristão. Eu precisaria de outro
livro para apresentar o argumento sobre a veracidade da fé cristã e da Bíblia
como Palavra de Deus. Escrevo este texto principalmente para os cristãos que
já creem nisso. Entretanto, eu creio serem elas relevantes para todos, pois as
verdades básicas sobre Deus e a ciência são relevantes para todos. Mesmo
que não seja um cristão, você pode se interessar em saber como a fé cristã
interage com a empreitada científica. Não, a fé não resulta no tipo de
antagonismo sugerido pelo pensamento popular. Sim, ela pode nos livrar da
onda de falta de sentido.
1. Por que os cientistas precisam acreditar em Deus? Os
atributos divinos da lei científica[1]
Todos os cientistas, incluindo agnósticos e ateus, creem em Deus. Eles
precisam disso para realizar seu trabalho.
Pode parecer revoltante incluir agnósticos e ateus nessa afirmação ampla.
Mas, por suas ações, as pessoas às vezes mostram que, em certo sentido,
acreditam no que professam não crer. Bakht, um filósofo védico hindu, pode
dizer que o mundo é uma ilusão. Mas ele não anda no meio da rua bem em
frente a um ônibus em movimento. Sue, uma relativista radical, pode afirmar
não existir a verdade. Mas ela viaja calmamente em um avião a 9 mil metros
do chão, cujo voo seguro depende das verdades imutáveis da aerodinâmica e
da mecânica estrutural.[2]
E os cientistas? Creem em Deus? Precisam crer? A cultura moderna popular
transmite muitas vezes a ideia contrária: a ciência se opõe à crença cristã
ortodoxa. Recitações do conflito de Galileu e do julgamento de Scopes
ganharam status mítico e recebem reforço mediante promoções vocais da
evolução materialista.
Historiadores da ciência apontam que a ciência moderna surgiu no contexto
da cosmovisão cristã e foi nutrida e sustentada por essa visão.[3] Mesmo que
fosse assim antes, a ciência dos séculos XX e XXI parece se sustentar sem o
auxílio de qualquer consideração teísta. Com efeito, muitos consideram Deus
apenas o “Deus das lacunas”, o Deus a quem as pessoas invocam apenas para
explicar as lacunas da ciência moderna. Quando ocorrem avanços científicos
e mais lacunas se tornam sujeitas à explicação, o papel de Deus diminui. O
natural expulsa a necessidade do sobrenatural.[4]
FOCO NA LEI CIENTÍFICA
A situação parece diferente se nos recusarmos a nos confinar ao Deus “das
lacunas”. De acordo com a Bíblia, ele está envolvido nas áreas em que a
ciência dá o melhor de si: áreas que envolvem eventos regulares e previsíveis,
padrões repetitivos e algumas vezes descrições matemáticas exatas. Em
Gênesis 8.22, Deus promete:
Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e
inverno, dia e noite.
Esta promessa geral sobre as regularidades terrenas é suplementada por
muitos exemplos particulares:
Dispões as trevas, e vem a noite, na qual vagueiam os animais da selva. (Sl 104.20)
Fazes crescer a relva para os animais e as plantas, para o serviço do homem, de sorte
que da terra tire o seu pão (Sl 104.14)
Ele envia as suas ordens à terra, e sua palavra corre velozmente; dá a neve como lã e
espalha a geada como cinza. Ele arroja o seu gelo em migalhas; quem resiste ao seu
frio? Manda a sua palavra e o derrete; faz soprar o vento, e as águas correm.
(Sl 147.15-18)
As regularidades descritas pelos cientistas são consistem nas determinações e
ações de Deus. Pela palavra dada a Noé, ele se compromete a governar as
estações. Com sua palavra ele governa a neve, o gelo e o granizo. Os
cientistas descrevem as regularidades na palavra de Deus que rege o mundo.
A chamada lei natural é na verdade a lei de Deus ou a palavra de Deus,
descrita com imperfeição e de forma aproximada por pesquisadores humanos.
O trabalho da ciência depende do fato de existirem regularidades no mundo.
Sem elas não haveria nada no final para ser estudado. Os cientistas dependem
não só das regularidades com que já estão acostumados, como do
comportamento regular dos aparelhos de medição, mas também no postulado
da ocorrência de outras regularidades a serem descobertas nas respectivas
áreas de pesquisa. Os cientistas precisam manter a esperança de encontrar
regularidades adicionais, ou desistiriam das explorações mais recentes.
(Devo dizer aqui que me concentrando nas ciências naturais ou “exatas”,
como a física, química, geologia, biologia e astronomia. Em certa medida,
observações similares se mantêm para as “ciências humanas”, como
psicologia, antropologia, linguística e sociologia. Todavia, o estudo dos seres
humanos apresenta desafios adicionais, pela forma que o entendimento geral
de alguém sobre a natureza da humanidade influencia vitalmente a
investigação. Ao me concentrar nas regularidades, também ponho em
segundo plano os estudos “históricos”, como o estudo da história passada e
do universo de larga escala [cosmologia], a história passada da vida
[paleobiologia], a história passada da terra [geologia histórica] etc. Esses
estudos dependem do pressuposto de regularidades, mas também lutam para
entender vários eventos irrepetíveis, como a origem da primeira célula ou a
origem dos primeiros seres humanos. Nós nos concentraremos mais adiante
na questão de unicidade versus repetibilidade [Capítulo 13]. Consideraremos
a questão da origem nos Capítulos 18 e 19.)
CRENÇA NAS LEIS CIENTÍFICAS
Quais são essas regularidades? Por 5 anos consecutivos um passarinho
aparece e constrói um ninho no mesmo galho. Mas no sexto ano nenhum
passarinho aparece. Isso mostra uma “regularidade” do tipo apropriado? Pode
ser uma questão de coincidência. Os cientistas se preocupam em observar
passarinhos e a construção de seus ninhos. Mas, a longo prazo, eles não se
satisfazem com observações de mera coincidência. Eles querem saber se a
recorrência é de algum modo compulsória, se ocorre de acordo com um
princípio explicativo geral.[5] Os princípios são chamados de diferentes
formas: “lei natural”, “lei científica”, “teoria”. Algumas dessas regularidades
podem ser exata e quantitativamente descritas para cada caso (dentro de
poucos limites de erro), enquanto outras são regularidades estatísticas que
vêm à luz só quando um grande número de casos são examinados juntos.
Todos os cientistas creem na existência dessas regularidades. Em todos os
casos, de modo independente das crenças professas, os cientistas sabem, na
prática, que as regularidades estão “por aí”. No fim, todos eles são “realistas”
no que concerne às leis científicas.[5] Os cientistas apenas descobrem essas
leis, eles não as inventam. De outra forma, por que todo o trabalho, tédio e
frustração da experimentação? Apenas dê um palpite, invente algo novo e
fique famoso!
Bem, essas regularidades são... regulares. E ser regular significa ser regulado.
Envolve regula (regra). O Webster’s Ninth New Collegiate Dictionary
[Dicionário Webster][6] captura bem a ideia ao definir “regular” como
“formado, construído, arranjado ou ordenado de acordo com alguma regra lei,
princípio ou tipo estabelecidos”. A ideia da lei ou regra é intrínseca ao
conceito de “regularidade”. Assim é natural usar a palavra “lei” em descrever
teorias e princípios científicos bem-estabelecidos. Os cientistas falam das leis
de Newton, Boyle, Dalton, Mendel e Kirchhoff. Todos os cientistas creem e
dependem da existência de leis científicas.
APLICABILIDADE UNIVERSAL DA LEI CIENTÍFICA
Quais as características deve uma lei científica possuir para consistir numa
lei? Mais uma vez nos concentramos na prática científica em lugar de suas
especulações metafísicas. Perguntamos: “Sem levar em consideração a
filosofia professada, o que os cientistas fazem na prática?”. Como o
relativista espera que o avião voe, o cientista espera que as leis se sustentem.
Os cientistas consideram as leis universais no tempo e no espaço. As leis de
Kirchhoff os sobre circuitos elétricos se aplicam apenas a circuitos elétricos,
não a outros tipos de situação. Mas elas se aplicam em princípio a circuitos
elétricos em qualquer tempo e em qualquer lugar. Às vezes, é claro, os
cientistas descobrem limitações em formulações anteriores. Algumas leis,
como as leis de Newton, não são de fato universais, mas se aplicam com
precisão apenas a uma situação restrita como o movimento de baixa
velocidade de objetos largos e massivos.[7] À luz do conhecimento posterior,
diríamos que as leis de Newton sempre foram só uma aproximação do padrão
real de regularidade ou lei no mundo. Modificamos as leis de Newton, ou
incluímos uma restrição específica à baixa velocidade na formulação das leis.
Assim dizemos que elas se aplicam a todos os tempos e lugares onde essas
restrições se mantêm.
Assim, no próprio conceito da lei, existe uma expectativa que inclui todos os
tempos e lugares. Isso quer dizer que a lei, se realmente é uma lei formulada
e qualificada corretamente, se mantém para todos os tempos e todos os
lugares. Os termos clássicos são onipresença (todos os lugares) e eternidade
(todos os tempos). A lei possui esses dois atributos conferidos pela tradição
clássica a Deus. Em sentido técnico, a eternidade divina normalmente é
concebida “acima” ou “além” do tempo. Mas os termos “acima” e “além” são
metafóricas e apontam para mistérios. Há, na verdade, um mistério análogo
com respeito à lei. Se a “lei” é universal, não está ela, em algum sentido,
“além” das particularidades do tempo ou do espaço? Além disso, na
cosmovisão bíblica, Deus não está apenas “acima” do tempo no sentido de se
não submeter às limitações da experiência finita do tempo que afetam as
criaturas; ele está “no” tempo no sentido de agir no tempo e interagir com as
criaturas.[8] De forma semelhante, a lei está “acima” do tempo pela
universalidade, mas “no” tempo dada sua aplicabilidade a cada situação
particular.
ATRIBUTOS DIVINOS DA LEI
Os atributos da onipresença e eternidade são só o começo. Em um exame
acurado, outros atributos divinos parecem pertencer às leis científicas.
Considere. Se uma lei se mantém por todos os tempos, pressupomos tratar-se
da mesma lei para todos os tempos. A lei não muda com a passagem do
tempo. Ela é imutável. A suposta “lei”, alterada com o tempo, não é uma
“lei” verdadeira, e sim a fase temporária de uma regularidade mais alta ou
ampla capaz de explicar a mudança ao nível menor. A regularidade maior e
universal é a lei. O próprio conceito de lei científica preconiza a
imutabilidade.
Em seguida, o caráter das leis é, no fundo, conceitual. Não se enxerga
literalmente a lei, apenas os efeitos dela no mundo material. A essência da lei
é imaterial e invisível, mas conhecida pelos efeitos. Da mesma forma, a
essência de Deus é imaterial e invisível, mas é conhecido por seus atos no
mundo.
As leis reais, em oposição às aproximações dos cientistas a seu respeito,
também são absoluta e infalivelmente verdadeiras. A veracidade também é
um atributo divino.[9]
O poder da lei
Em seguida, considere o atributo do poder. Os cientistas formulam leis como
descrições das regularidades observadas. As regularidades estão primeiro no
mundo, antes de os cientistas fazerem suas formulações. A formulação
científica humana segue os fatos e depende deles. No entanto, os fatos
precisam se conformar à regularidade mesmo antes de o cientista formular a
descrição. Uma lei ou regularidade precisa se manter em toda uma série de
casos. O cientista não pode forçar a questão ao inventar uma lei e então forçar
o universo a se conformar a ela. Na verdade, o universo conforma às leis já
atuantes nele: as leis são descobertas, não inventadas. Elas já precisam estar
lá e se manter. Devem deter autoridade. Sendo universais de fato, não são
violadas. Nenhum evento escapa a seu “alcance” ou domínio. O poder dessas
leis reais é absoluto, na verdade, infinito. Na linguagem clássica, a lei é
onipotente (“todo-poderosa”).
Se a lei é onipotente e universal, então não há exceções. Assim, concluímos
que os milagres são impossíveis por representarem violações da lei? Na
verdade, os milagres estão em harmonia com o caráter de Deus. Eles ocorrem
de acordo com a palavra divina que prediz e decreta. Por meio de Moisés,
Deus verbalmente predisse a ocorrência das pragas no Egito e então as fez
acontecer. Por meio da palavra de Deus anunciada pelo do profeta Eliseu,
uma fonte de água se tornou saudável:
Então, saiu ele ao manancial das águas e deitou sal nele; e disse: Assim diz o SENHOR:
Tornei saudáveis estas águas; já não procederá daí morte nem esterilidade. Ficaram,
pois, saudáveis aquelas águas, até ao dia de hoje, segundo a palavra que Eliseu tinha
dito. (2Rs 2.21,22)
A lei real, a palavra de Deus, faz os milagres acontecerem. Os milagres
podem ser incomuns e surpreendentes, mas não violam a lei divina. Eles
violam algumas expectativas e opiniões humanas. Mas esse é um problema
nosso, não de Deus. Como as leis de Newton são limitadas a aproximações de
baixa velocidade, também o princípio de que machados não flutuam é
limitado pela qualificação, “exceto quando Deus em resposta a uma
necessidade especial e a palavra do profeta faz o contrário” (e.g., 2Rs 6.5,6).
A lei é transcendente e imanente. Ela transcende as criaturas do mundo ao
exercer poder sobre elas, conformando-as a seus ditados. É imanente no que
toca e mantém em seu domínio mesmo os menores partículas do mundo.[10] A
lei transcende os aglomerados galácticos e está sempre presente na dança
cromodinâmica de quarks e glúons no seio de um único próton.
Transcendência e imanência são características divinas.
O caráter pessoal da lei
Muitos cientistas agnósticos e ateus estarão aqui à procura de uma rota de
fuga. Parece que o conceito principal da lei científica começa a se assemelhar
de forma suspeita e muito parecida com a ideia bíblica de Deus. A fuga mais
óbvia, e a que resgatou muitos do desconforto espiritual, é negar o caráter
pessoal da lei científica. Ela só se encontra ali como algo impessoal.
As pessoas tentaram essas rotas em todas as eras. Elas construíram ídolos,
substitutos para Deus, Nos tempos antigos, os ídolos muitas vezes consistiam
em estátuas como representações de divindades, como Posídon, o deus do
mar, ou Marte, o deus da guerra. Hoje, no mundo ocidental, somos mais
sofisticados. Os ídolos agora tomam a forma de construções mentais de um
deus ou um substituto de Deus. O dinheiro e o prazer se tornaram ídolos. Da
mesma forma, pode a “humanidade” ou a “natureza” receber a lealdade
última de alguém. As “leis científicas”, quando consideradas impessoais, se
tornam outro substituto de Deus. No entanto, nos tempos antigos e hoje, os
ídolos se conformam à imaginação de quem os faz. Os ídolos possuem
semelhanças suficientes com o verdadeiro Deus para serem plausíveis, mas
diferem de forma a permitir-nos conforto e satisfação para manipular os
substitutos que construímos.
Na verdade, um olhar mais de perto na lei científica mostra que essa rota de
fuga não é realmente plausível. A lei implica um legislador. Alguém precisa
pensar a lei e impô-la, a fim de a tornar efetiva. Todavia, se algumas pessoas
resistirem a esse movimento direto para a personalidade, poderemos nos
mover de modo mais indireto.
Na prática, os cientistas creem com paixão na racionalidade da lei cientifica.
Não estamos lidando com um número surdo irracional, totalmente
inexplicável e insondável, mas com a ideia da lei que em algum sentido é
acessível ao entendimento humano. A racionalidade é o sine qua non da lei
científica. Mas, como sabemos, a racionalidade pertence às pessoas, não a
rochas, árvores e criaturas subpessoais. Se a lei é racional, como presumem
os cientistas, então ela também é pessoal.
Os cientistas também presumem que as leis podem ser articuladas, expressas,
comunicadas e entendidas por meio da linguagem humana. O trabalho
científico inclui não apenas o pensamento racional, mas a comunicação
simbólica. Agora, o original, a lei “lá fora”, não é conhecida por ser escrita ou
enunciada em linguagem humana. Entretanto, precisa ser expressa na
linguagem da nossa descrição secundária. Precisa ser traduzível em não
apenas uma, mas em muitas línguas humanas. Podemos representar
restrições, qualificações, definições e contextos para a lei por meio de
cláusulas, frases, parágrafos explanatórios e explicações contextuais na
linguagem humana.
A lei científica é sem dúvida como um enunciado humano na habilidade de
ser gramaticalmente articulada, parafraseada, traduzida e ilustrada. A lei é
compatível com o enunciado e a linguagem. E a complexidade dos
enunciados encontrados entre os cientistas, bem como entre os seres humanos
em geral, não é duplicada no mundo animal.[11] A linguagem é de uma das
características definidoras que separa o homem dos animais. A linguagem,
como a racionalidade, pertence às pessoas. Segue-se que a lei científica é, em
essência, pessoal.[12]
A incompreensibilidade da lei
Ademais, a lei é cognoscível e incompreensível em sentido teológico. Isto é,
nós conhecemos verdades científicas, mas no meio do conhecimento
permanecem profundidades veladas e questões sem resposta sobre as próprias
áreas que mais conhecemos.
A cognoscibilidade das leis está intimamente relacionada à sua racionalidade
e imanência, mostrada na acessibilidade de seus efeitos. Experimentamos a
incompreensibilidade pelo fato de o aumento do entendimento científico só
nos levar a questões mais profundas: “Como isso pode ser?” e “Por que esta
lei em lugar de tantas outras maneiras que a mente humana pode imaginar?”.
A profundidade e o mistério das descobertas científicas só pode produzir
temor, sim, adoração, se não tivermos nossa percepção embotada com
arrogância (Is 6.9,10).
Estamos divinizando a natureza?
Mas agora precisamos considerar uma objeção. Ao afirmar que as leis
científicas possuem atributos divinos, estamos divinizando a natureza? Isto é,
estamos tomando algo a partir do mundo criado e alegando de forma
equivocada sua divindade? Não são as leis científicas parte do mundo criado?
Não deveríamos classificá-las como criação e não como o Criador?[13]
Suspeito que a especificidade das leis científicas, sua óbvia referência ao
mundo criado, tornou-se uma ocasião para muitos de nós inferirmos que
essas eis são parte do mundo criado. Mas tal inferência é claramente inválida.
O discurso que descreve a borboleta não é em si a borboleta ou parte da
borboleta. O discurso que se refere ao mundo criado não é de modo
necessário parte ontológica do mundo a que se refere.
Ademais, lembremo-nos de que falamos de leis reais, não apenas de opiniões
ou aproximações humanas. As leis reais são, de fato, a palavra de Deus,
específicas sobre como o mundo das criaturas deve funcionar. A chamada
“lei” é apenas o discurso, a ação e a manifestação de Deus no tempo e no
espaço. O erro aqui não consiste na divinização da natureza, mas na recusa a
reconhecer que a lei é a lei de Deus, nada menos que o discurso divino.
Confronta-se Deus.
A ideia principal de que a lei é divina não só é mais antiga que a ascensão da
ciência moderna; é mais antiga que a ascensão do cristianismo. Mesmo antes
da vinda de Cristo, as pessoas notaram uma regularidade profunda no
governo do mundo e se debateram com o sentido dela. Gregos (em especial
os estoicos) e judeus (com o destaque de Fílon) desenvolveram especulações
sobre o logos, a “palavra” ou “razão” divina por trás do que se observava.[14]
Além disso, os judeus tinham o Antigo Testamento com a revelação do papel
da palavra de Deus na criação e na providência. Nesse contexto, João 1.1
proclama: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo
era Deus”. João responde às especulações de seus dias com uma revelação
surpreendente: a Palavra (logos) que criou e sustenta o universo não só é uma
pessoa divina “com Deus”, mas o mesmo Ser que se encarnou: “E o Verbo se
fez carne” (1.14).
Deus disse: “Haja luz” (Gn 1.3). Ele se referiu à luz como parte do mundo
criado. Precisamente por essa referência, sua palavra tem poder divino para
trazer a criação à existência. O efeito na criação aconteceu em um tempo
particular. O plano para a criação, encontrado na palavra de Deus, é eterno.
Da mesma forma, o discurso de Deus para nós na Bíblia se refere a variadas
partes do mundo criado, mas o discurso (em distinção às coisas a que se
refere) é divino em poder, autoridade, majestade, justiça, eternidade e
verdade.[15] A analogia com a encarnação deve nos dar uma indicação. A
segunda pessoa da Trindade, a eterna Palavra de Deus, se tornou homem na
encarnação, mas não cessou de ser Deus. Da mesma forma, quando Deus fala
e diz o que ocorre no mundo, suas palavras não cessam de ter o poder divino
e imutabilidade que lhe pertencem. Pelo contrário, elas permanecem divinas
e, além disso, possuem o poder de especificar a situação das questões criadas.
A palavra de Deus permanece divina quando se torna lei, um direcionamento
específico a respeito do mundo criado.
A bondade da lei
É a lei boa? Ah, aqui entramos em alguns problemas. Muitas pessoas dizem
que os males no mundo são o maior obstáculo para crer em Deus.[16] A
pesquisa de Larson e Witham sobre os cientistas e a religião menciona a
citação de Albert Einstein: “Na luta pelo bem ético, os mestres da religião
precisam ter a capacidade de desistir da doutrina de um Deus pessoal”.[17]
Mas não é assim tão simples. Pode-se apelar ao bom padrão bem a fim de
julgar má uma situação existente. Ao fazê-lo, apelamos ao padrão além dos
limites do mundo empírico. Apelamos a um padrão, a uma lei. Desistir da
ideia de lei moral equivale a desistir da própria base da crítica do mal. Assim,
a lei moral é indispensável para o argumento ateísta, mas pressupõe ao
mesmo tempo o absoluto. Esse absoluto, a fim de nos obrigar e nos manter
responsáveis, precisa ser pessoal. Só a resposta bíblica fornece clareza. O
caráter de Deus é a fonte última da lei moral. O homem feito à imagem de
Deus conhece a lei, mas se rebelou contra ela (Rm 1.32). Os males existentes
são consequências dessa rebelião. Não culpe moralmente Deus, mas o
homem.
A bondade de Deus é demonstrada mais claramente na lei moral. Mas para
muitas pessoas modernas, influenciadas por Kant e a história de ideias
subsequente, a lei moral é radicalmente subjetivada e separada da lei física ou
lei científica. A fim de engajar cientistas de modo mais direto, precisamos
voltar a considerar a lei científica.
Indicações sutis da bondade divinas podem ser vistas no conceito de lei
científica. Pode-se colocar dessa maneira: os cientistas esperam que “as leis
da natureza” sejam algumas vezes sutis, mas nunca perversas. A lei não faz
truques, ao se esconder deliberadamente e apresentar resultados anômalos
para confundir o pesquisador. A “natureza” joga com honestidade. Ou, de
maneira mais profunda, Deus “joga honestamente”. Todos os cientistas, para
continuarem com sanidade em sua pesquisa, precisam crer que as leis do
universo “jogam honestamente” com eles. Existe certa bondade fundamental,
em lugar de perversidade, na maneira em que os resultados surgem da
investigação científica.
A beleza da lei
As leis científicas, em especial as leis “profundas”, são belas. Há muito os
cientistas encontraram o caminho entre hipóteses e modelos baseados sem
parte nos critérios de beleza e simplicidade. Por exemplo, a lei de Newton
sobre a gravitação e as leis de Maxwell sobre o eletromagnetismo são
matematicamente simples e belas. E os cientistas sem dúvida esperam que
novas leis, bem como antigas, mostrem beleza e simplicidade. Por quê? A
beleza das leis científicas demonstra a beleza do próprio Deus. Embora a
beleza não tenha sido um tópico favorito nas exposições clássicas da doutrina
de Deus, a Bíblia nos mostra o Deus profundamente belo. Ele se manifesta na
beleza do design do tabernáculo, na poesia dos salmos e na elegância das
parábolas de Cristo, bem como na beleza moral da vida de Cristo.
A beleza do próprio Deus é refletida no mundo que ele criou. Estamos mais
acostumados a ver beleza em objetos particulares dentro da criação, como
uma borboleta, uma alta montanha ou uma campina coberta de flores. Mas a
beleza também é mostrada na forma simples e elegante de algumas das mais
básicas leis físicas, como a lei de Newton para a força, F = ma, ou a fórmula
de Einstein que relaciona massa e energia, E = mc². Por que essas leis
elegantes deveriam existir? A beleza também é mostrada na harmonia entre
diferentes áreas da ciência e a harmonia entre matemática e ciência de que os
cientistas dependem sempre que usam uma fórmula matemática para
descrever um processo físico.
A retidão da lei
Outro atributo divino é a justiça. A justiça de Deus se mostra
preeminentemente na lei moral e na retidão moral de seus juízos, isto é, nas
recompensas e punições baseadas na lei moral. Mas a lei moral, como temos
observado, se encontra fora da área de foco especial dos cientistas. A retidão
divina aparece na lei física, na lei científica?
Os traços são de alguma forma menos óbvios, mas ainda presentes. As
pessoas podem tentar desobedecer às leis físicas, e quando elas o fazem,
sofrem por isso. Se alguém tentar desobedecer à lei da gravidade ao pular de
um edifício, pois sofrerá as consequências Há uma tipo de justiça intrínseca
na maneira em que as leis levam às consequências.
Além disso, a retidão divina está intimamente relacionada com a adequação
de seus atos. É adequado ao caráter da identidade de Deus que adoremos
somente a ele (Êx 20.3). É adequado ao caráter dos seres humanos, feitos à
imagem divina, imitar a Deus guardando o sábado (Êx 20.8-11). As ações
humanas correspondem de forma adequada às ações divinas.
Além do mais, as punições precisam ser proporcionais. A morte é a pena
adequada ou correspondente ao homicídio (Gn 9.6). “Porque o Dia do
SENHOR está prestes a vir sobre todas as nações; como tu fizeste, assim se fará
contigo; o teu malfeito tornará sobre a tua cabeça” (Ob 15). A punição é
proporcional ao crime. Há uma adequação simétrica entre a natureza do crime
e a punição que lhe é proporcional.[18] Na área da lei física não lidamos com
crimes e punições. Todavia, a retidão se expressa em simetrias, ordenação,
“adequação” ao caráter da lei. As simetrias ocorrem de modo fascinante por
todo o mundo natural. As leis fundamentais da física possuem profunda
conexão com as simetrias fundamentais: espaço, tempo, mudança e paridade.
A “adequação” da lei, esperada pelos cientistas, talvez esteja relacionada de
forma íntima à beleza. Os atributos de Deus estão envolvidos entre si e se
implicam, de forma que a beleza e a justiça estão intimamente relacionadas.
O mesmo ocorre com área da lei física. As leis são belas, “adequadas” e
demonstram retidão.
O aspecto trinitário da lei
A lei científica reflete especialmente o caráter trinitário de Deus? Os filósofos
algumas vezes declaram que se pode inferir a existência de Deus, mas não
seu caráter trinitário, com base do mundo à nossa volta. O texto de
Romanos 1.18-21 indica que os incrédulos conhecem a Deus, mas o quanto
eles sabem? Não vou me concentrar nessa questão bastante difícil,[19] prefiro
refletir no que se pode discernir sobre o mundo uma vez absorvido o ensino
bíblico sobre Deus.
A lei científica é uma forma da palavra de Deus. Desse modo, ela reflete a
afirmação trinitária de João 1.1, que identifica a segunda pessoa da Trindade
como a Palavra eterna de Deus. Em João, Deus, o Pai, é o emissor da Palavra,
e Deus, o Filho, é a Palavra pronunciada. O texto de João 1 não menciona
explicitamente o Espírito Santo. Contudo, as Escrituras anteriores associam o
Espírito ao “sopro” de Deus que leva sua palavra adiante. “Os céus por sua
palavra se fizeram, e, pelo sopro de sua boca, o exército deles” (Sl 33.6). A
palavra hebraica aqui para sopro é ruach, a mesma palavra usada com
regularidade para designar o Espírito Santo. De fato, a designação da terceira
pessoa da Trindade como Espírito (ruach no hebraico) já sugere a associação
que se torna mais explícita em Salmos 33.6; Semelhantemente, Ezequiel 37
lida com três diferentes sentidos para a palavra hebraica ruach, a saber,
“espírito” (37.5,10), “ventos” (37.9) e “Espírito” (37.14). A visão de
Ezequiel 37 claramente representa o Espírito Santo como o fôlego de Deus
que penetra nos seres humanos para lhes conceder vida. Assim, as três
pessoas da Trindade estão presentes de formas distintas quando Deus fala a
Palavra. As três pessoas estão portanto, sempre presentes na lei científica —
uma forma da palavra de Deus.
Podemos lidar com a questão de outra maneira. Dorothy Sayers observa com
precisão que a experiência de um autor humano ao escrever um livro contém
analogias profundas com o caráter trinitário de Deus.[20] O ato criativo de um
autor ao escrever imita a ação de Deus ao criar o mundo. Deus cria de acordo
com sua natureza trinitária. Um autor humano cria com uma Ideia, Energia e
Poder, correspondendo de forma misteriosa ao envolvimento das três pessoas
na criação. Sem traçar as reflexões de Sayers em detalhe, podemos observar
que o ato divino de criar envolve de fato as três pessoas. Deus, o Pai, é o
originador, Deus, o Filho, age como a Palavra eterna (Jo 1.1-3), e se envolve
com as palavras de comando emitidas por Deus (“Haja luz”, Gn 1.3). Deus, o
Espírito, paira por sobre as águas (Gn 1.3). O texto de Salmos 104.30 afirma:
“Envias o teu Espírito, eles são criados, e, assim, renovas a face da terra”.
Além disso, a criação de Adão envolve o sopro de Deus que alude à presença
do Espírito (Gn 2.7). Embora a relação entre as pessoas da Trindade seja
profundamente misteriosa, e ainda que as três pessoas estejam envolvidas em
todas as ações de Deus para com o mundo, pode-se distinguir os diferentes
aspectos da ação pertencentes em caráter preeminente a cada pessoa.
As leis científicas fluem da atividade criativa de Deus, o “Autor” da criação.
A atividade das três pessoas está, portanto, implícita no próprio conceito de
lei científica. Primeiro, a lei envolve a racionalidade que implica a coerência
de um plano. Isto corresponde ao termo “ideia” de Sayers, representando o
plano do Pai. Segundo, a lei envolve uma articulação, uma especificação,
uma expressão do plano, com respeito a todos os particulares do mundo. Isso
corresponde ao termo “energia” ou “atividade” de Sayers, e representa a
Palavra — a expressão do Pai. Terceiro, a lei consiste na manutenção de
coisas responsáveis à lei, a aplicação concreta às criaturas, fazendo-as
responder à lei como se espera. Isso corresponde ao termo “poder” de Sayers,
a representação do Espírito.[21]
Podemos ver um reflexo da Trindade de ainda outra forma ao usar as
categorias já desenvolvidas nas meditações teológicas trinitárias sobre o
caráter de Deus e sua palavra. De acordo com o pensamento trinitário, a
unidade e diversidade no mundo refletem a unidade e diversidade originais
em Deus. Primeiro, Deus é único. Ele conta com um plano unificado para o
mundo. A universalidade da lei científica reflete essa unidade. Deus também
é três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Essa diversidade no ser de
Deus é então refletida na diversidade do mundo criado.[22] As muitas
instâncias a que uma lei se aplica expressam essa diversidade. Além do mais,
a unidade e a diversidade são expressas de outra forma. A unidade do plano
divino tem relação íntima com o Pai, a primeira pessoa da Trindade, que é a
origem deste plano. O Filho, ao se encarnar, expressa a particularidade da
manifestação no tempo e no espaço. Ele é, como se fosse, uma representação
de Deus. Assim ele é análogo, na encarnação, ao fato de que a lei universal se
expressa em instâncias particulares.
DEUS SE MOSTRA
Essas relações são sugestivas, mas não precisamos desenvolver mais esse
ponto. É suficiente observar que, na realidade, o que as pessoas designam “lei
científica” é de fato divina. Falamos sobre Deus em si e sua revelação pessoal
por meio do governo do mundo. Os cientistas precisam crer em uma lei
científica a fim de continuar seu trabalho. Quando analisamos a verdadeira
identidade dessa lei científica, encontramos que o cientistas são
constantemente confrontados com o próprio Deus, o Deus trinitário, e não
raro dependem daquele que é e do que ele faz em conformidade com sua
natureza divina. Ao pensar sobre lei, os cientistas seguem os pensamentos de
Deus.[23]
MAS OS CIENTISTAS CREEM?
Mas os cientistas creem em tudo isso? Sim e não. A situação já foi descrita na
Bíblia:
… porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus
lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder,
como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio
do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são,
por isso, indesculpáveis. (Rm 1.19,20)
Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos.
Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite.
(Sl 19.1,2)
Eles conhecem a Deus e dependem dele. Todavia, pelo fato de esse
conhecimento ser doloroso em sentido moral e espiritual, eles também o
suprimem e distorcem:
… porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe
deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-
se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram
a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem
como de aves, quadrúpedes e répteis. (Rm 1.21-23)
Nesta era, as pessoas não fazem mais ídolos sob a forma de imagens físicas.
Seu próprio conceito de “lei científica” é uma inversão idólatra do
conhecimento de Deus. Elas ocultam de si mesmas o fato de essa “lei” ser
pessoal e de elas serem responsáveis diante dele. Ou substituem a palavra
“natureza”, personificando-a enquanto falam com elogios acerca das obras da
“mãe natureza”. Todavia, elas se esquivam do conhecimento da
transcendência divina sobre a natureza.
Mesmo em sua rebelião, as pessoas continuam dependentes da permanência
de Deus ali. Elas mostram por seus atos continuam a crer em Deus. Cornelius
Van Til compara essa situação a um incidente que viu em um trem, onde uma
garotinha que sentava no colo de seu avô lhe deu um tapa na face.[24] O
rebelde precisa depender de Deus e “sentar em seu colo”, mesmo para poder
se engajar em uma rebelião.
NÓS, CRISTÃOS, CREMOS?
A culpa, penso eu, não está inteiramente do lado dos incrédulos. A culpa
também se encontra entre os cristãos. Os cristãos algumas vezes adotam um
conceito não bíblico de Deus que o põe fora do caminho de assuntos comuns.
Nós mesmos pensamos na “lei científica” ou “lei natural” como um tipo de
mecanismo cósmico, ou de relojoeiro impessoal, que administra o mundo na
maior parte do tempo, enquanto Deus está de férias. Deus vem e age raras
vezes por meio de milagres. Mas isso não é bíblico: “Fazes crescer a relva
para os animais” (Sl 104.14); “dá a neve como lã” (Sl 147.16).[25] Não nos
esqueçamos disso. Se nós mesmos recuperássemos uma doutrina robusta do
envolvimento de Deus no cuidado diário do mundo em detalhes, nós nos
encontraríamos em uma posição muito melhor para dialogar com cientistas
ateus que dependem do mesmo cuidado.
PRINCÍPIOS PARA O TESTEMUNHO
A fim der usar a situação como ponto de partida para o testemunho,
precisamos manter em mente uma série de princípios.
Primeiro, a observação de que Deus subjaz ao conceito de lei científica não
precisa ter a mesma forma das provas teístas tradicionais, pelo menos como
elas são entendidas com frequência. Não tentamos levar as pessoas a
conhecer um Deus totalmente novo para elas. Pelo contrário, sabemos que os
cientistas já conhecem a Deus como um aspecto da experiência humana na
empreitada científica. Isso coloca o foco não no debate intelectual, mas em
ser plenamente humano no contexto da pesquisa científica.[26]
Segundo, os cientistas negam Deus no mesmo contexto em que dependem
dele. Afinal, a negação divina flui não flui de falhas intelectuais ou na
impossibilidade de visualizar todo o caminho até a conclusão do
encadeamento de um raciocínio silogístico, mas de uma falha espiritual.
Somos rebeldes contra Deus e não o serviremos. Como consequência,
sofremos sob a sua ira (Rm 1.18), o que resulta em efeitos intelectuais,
espirituais e morais. Os que rebelam contra Deus são “tolos”, de acordo com
Romanos 1.22.
Terceiro, é humilhante para os intelectuais a exposição como tolos, e é ainda
mais humilhante, mesmo psicologicamente insuportável, ser exposto como
culpado de rebelião contra a bondade divina. Podemos esperar que os
ouvintes lutem contra o emprego tremendo de energia intelectual e espiritual
para obter um resultado tão insuportável.
Quarto, o próprio evangelho, com a mensagem de perdão e reconciliação
mediante Cristo, oferece o único remédio que pode encerrar de uma vez a luta
contra Deus. Mas ele traz consigo a humilhação extrema: minha restauração
procede inteiramente de Deus, de fora de mim — a despeito de minhas
habilidades cheias de vaidade e ao invés delas. Como ápice de tudo, tão
perverso era eu que foi necessário o preço da morte do Filho de Deus para a
realização do meu resgate.
Quinto, abordar os cientistas dessa forma constitui uma batalha espiritual.
Incrédulos e idólatras são cativos ao engano satânico (1Co 10.20; 2Ts 2.9-12;
2Tm 2.25,26; Ef 4.17-24; Ap 12.9). Eles não serão livres do cativeiro de
Satanás a não ser que Deus os solte (2Tm 2.25,26). Precisamos orar a Deus e
depender do poder divino, e não da engenhosidade do argumento, da
eloquência e da persuasão humanos (1Co 2,1-5; 2Co 10.3-5).
Sexto, participamos desse encontro como igualmente pecadores. Os cristãos
também se tornaram culpados por serem cativos à idolatria em que a lei
científica é considerada impessoal. Nese cativeiro, consideramos triviais os
benefícios e belezas da ciência, que deveriam nos encher de gratidão e louvor
a Deus.
A abordagem ao testemunho baseada nesses princípios se desenvolve de
forma diferente de diversas outras modalidades dirigidas aos intelectuais? É o
que me parece.
AMPLIAÇÃO DA AUDIÊNCIA
Até agora temos focado nos cientistas como recipientes em potencial do
testemunho cristão. Mas que implicações podemos extrair para lidar com o
público mais amplo?
No mundo tecnológico, todos dependem dos produtos da ciência e
tecnologia. As pessoas confiam em algumas das ferramentas de tecnologia o
suficiente para depender delas. Elas confiam nelas não só para obter
informações sobre o mundo em geral, mas também para a própria
preservação da própria vida. Nem todos viajam em aviões, mas a maioria das
pessoas viaja de tempos em tempos em automóveis de alta velocidade e a
maioria compra comida em supermercados que apresentam o ponto final de
uma grande corrente de etapas tecnológicas na produção e distribuição de
alimentos.
Assim, o então nos protege do desastre? O testemunho bíblico é claro: Deus.
Contemplamos dia a dia o governo providencial de Deus. Deus faz “o bem”
(At 14.17). As maravilhas das plantas em crescimento manifestam a
fidelidade de Deus enquanto ele fala sua palavra às plantas. Essas maravilhas
de longa data são agora complementadas por maravilhas da química que
criam fertilizantes e pesticidas; as maravilhas da ciência do solo informam e
aconselham os agricultores; as maravilhas da biologia ao cultivar e modificar
geneticamente as plantas; as maravilhas da complexidade tecnológica em
colher, processar, enviar e empacotar a produção.
Os cientistas necessariamente lidam todos os dias e a todo o momento com o
caráter eterno e a onipotência da lei científica, que se encontra bem diante de
seus olhos. Mas o resto de nós percebe a fidelidade de Deus manifestada de
modo mais comum na confiabilidade do aparato tecnológico procedente da
ciência. Tomamos por certa a confiabilidade de nossas fontes alimentícias;
cremos que a comida crescerá todos os anos e cremos que a comida nutrirá
sem nos envenenar.
REGRESSO AOS ATRIBUTOS DE DEUS
Em certa medida, então, os atributos da lei científica são visíveis mesmo a
pessoas comuns usufruem dos benefícios da tecnologia. Elas creem que os
produtos tecnológicos funcionarão da mesma forma em qualquer tempo e em
qualquer lugar. Assim, em princípio, creem na constância da tecnologia. E
também acreditam, por implicação, que as leis por trás da tecnologia são
constantes. É claro, a pessoa de conhecimento mediano pode ou não estar
inteirada dos detalhes das leis científicas por trás de um produto tecnológico
em particular. Todavia, mesmo que ela não conhece as leis até os detalhes,
crê que mesmo nos detalhes elas permanecem constantes. A constância
garante a constância do funcionamento do produto tecnológico governado
pelas leis. A torradeira continua a torrar o pão porque a eletricidade continua
a produzir calor de acordo com as leis constantes. A constância da lei em
tanto tempo quanto o espaço aponta para a eternidade e onipresença das leis.
É claro, a pessoa comum pode estar menos ciente da implicação da
eternidade e da onipresença. Ela não é um teórico a testar os limites
máximos, teorizar sobre explosões de raios gama em galáxias distantes ou
sobre reações nucleares no sol. Ela é bem mais pragmática e se importa com
a constância das leis no escopo prático do seu mundo e crê nelas.
Contudo, na verdade, pode-se fazer uma observação semelhante sobre o
conceito tradicional da eternidade e onipresença de Deus. Os ensinos da
Bíblia se concentram em sentido primário no mundo da pessoa comum dentro
de sua visão limitada de tempo e espaço. Em sentido primário, a Bíblia não
pede às pessoas que creiam na eternidade e onipresença como abstrações
teóricas, mas que confiem em Deus na prática por meio de sua conduta na
vida. Os atributos da eternidade e onipresença são generalizações teóricas
desta experiência prática. Daí, a pessoa comum, no mundo bíblico,
corresponder à pessoa comum hoje que crê que a torradeira vai torrar o pão; o
teólogo teórico que fala da eternidade e onipresença corresponde ao cientista
teórico que fala das leis de caráter genérico e perfeito.
A providência divina afeta ambas as esferas. Assim, os atributos divinos da
lei científica oferecem uma plataforma para o testemunho às pessoas comuns
e aos cientistas.
2. O papel da Bíblia
Agora precisamos considerar a teoria do dia analógico.[134] Ela diz que Deus
criou o mundo em seis dias de trabalho, seguidos de descanso, mas que esses
dias de obra divina oferecem uma analogia aos dias de trabalho humano, em
lugar de uma identidade.
Claramente temos uma analogia entre o trabalho divino e o trabalho humano,
como o padrão de seis dias indica e como o mandamento do sábado em
Êxodo 20.8-11 confirma. O trabalho divino se dá em seis dias e cada dia tem
associado consigo o refrão “e houve tarde e manhã, o terceiro [ou segundo,
ou quarto, etc.] dia”. Claro que a teoria dos dias de 24 horas diria: Por que
não deveríamos pensar nessa analogia como essencialmente uma identidade,
pelo menos no que diz respeito à extensão dos dias? Não é essa a
interpretação “óbvia”?
Primeiro, mesmo que algumas pessoas pensem que a extensão de 24 horas é
“óbvia”, o texto não afirma diretamente quão longos os dias foram em termos
de mensuração humana comum. Ele usa a palavra dia (hebraico yom), e inclui
as palavras associadas “tarde” e “manhã”. Isso tudo contribui para apontar a
analogia entre o trabalho de Deus e o padrão sabático humano, mas não prova
que a analogia é uma identidade
O SÉTIMO DIA EM GÊNESIS 2.2, 3
Em seguida, o texto nos apresenta uma informação que realmente introduz
problemas para a interpretação de dias de 24 horas. Gênesis 1.1—2.3 não
inclui apenas seis dias, mas sete. O sétimo dia não inclui mais trabalhos
realizados por Deus, mas é descrito como o dia em que Deus “descansou [...]
de toda sua obra, que tinha feito” (2.2). Desse modo Deus “abençoou o dia
sétimo e o santificou” (2.3).
Que tipo de descanso Gênesis 2.2 descreve? Isso significa que Deus cessou
de governar o universo? De jeito nenhum. A segunda pessoa da Trindade
“sustenta todas as coisas pela palavra do seu poder” (Hb 1.3), a descrição do
governo contínuo do mundo, dia a dia, mesmo minuto a minuto. Deus não é
uma divindade do deísmo que cria e então se afasta. Ele continua a governar
o universo. Então o que cessa? Ele cessa os atos da criação. Gênesis 2.3 diz
isso, ao notar que Deus “descansou de toda a sua obra, que Deus criara e
fizera”. Não diz, “toda sua obra”, com universalidade perfeita, mas sua obra
na criação.
Deus fez o homem e jamais precisou fazê-lo pela segunda vez. Deus de fato
traz à existência todo ser humano que vem ao mundo (Sl 139.13-16). Mas ele
o faz providencialmente, usando os meios do pai e da mãe e da gestação no
ventre.[135] Em contrapartida, a criação originária de Adão e Eva foi única.
Ele não apenas trouxe à existência um homem e uma mulher, mas também a
raça humana. Ele estabeleceu de uma vez por todas o fundamento dos
desenvolvimentos subsequentes na raça humana. No quarto dia, ele criou o
sol e a lua, e agora eles estão permanentemente aí e não precisam ser
recriados. Criou diferentes tipos de animais. Estando aí os diferentes tipos,
Deus não precisa continuar a criar novos tipos todo dia ou algo de gênero.[136]
Portanto, o “descanso” de Gênesis 2.2 quer dizer “descanso de atos de
criação”. A criação está acabada (2.1), Deus não precisa recomeçar mais atos
de criação. Já chegamos ao ponto terminal permanente. Como consequência,
o descanso continua para sempre. Assim, como entendemos as passagens
indicativas de que Deus ainda “trabalha”? Jesus, ao justificar sua obra de cura
no dia de sábado, declarou: “Meu Pai trabalha até agora e eu trabalho
também” (Jo 5.17). Sua afirmação não conflita com Gênesis 2.1-3. Ele se
refere em sentido primário aos atos de redenção, e não aos atos de criação e
pode, talvez, incluir também os atos de providência — mas esses claramente
não pertencem ao mesmo nível dos atos da criação originária.
Em sentido teológico, o plano de Deus inclui não só redenção e providência,
mas a vinda de “novos céus e nova terra” (Ap 21.1; v. Is 65.17). A redenção
em Cristo inclui a “nova criação” (2Co 5.17; Gl 6.15; v. Rm 8.19-23).
Contudo, as reflexões posteriores na Bíblia não negam a conclusão da
primeira criação em Gênesis 1. É um erro importá-las para Gênesis 2.1-3,
porque falam em um plano diferente da primeira criação. “... foram acabados
os céus e a terra”, segundo Gênesis 2.1 e nesse contexto o “descanso” nos
versículos 2 e 3 é o descanso daí em diante.[137]
Qual a duração do sétimo dia? Por alguns anos eu pensei que o sétimo dia
poderia ter só 24 horas. O descanso divino continua, mas o sétimo dia é
apenas o primeiro dia em que Deus começa a descansar.[138] Agora creio que
essa interpretação não funciona bem em sentido teológico. O dia não se
encontra ali apenas com uma associação livre com o descanso divino. O dia
possui bênção e santidade especiais “porque nele descansou de toda a sua
obra” (2.3). O descanso divino é o padrão do descanso humano (Êx 20.8-11).
Conceber a duração do descanso divino por muitos “dias”, sendo o sábado
apenas o primeiro, quebra a analogia principal necessária a Êxodo 20.8-11,
não só para validar o único dia do descanso humano, mas para validar a
santidade do dia. Antes de tudo, a santidade pertence ao descanso divino, não
à santidade do dia. A santidade se estende até o dia por ser o dia do descanso
de Deus. O dia precisa da conexão íntima com o descanso e nesse dia o
homem descansa porque Deus descansou nele. Assim, concluo: pelo fato de o
descanso divino continuar para sempre, o dia do descanso de Deus também
permanece para sempre.[139] O sétimo dia, a fim de merecer sua consagração e
santidade, deve se conectar intimamente ao descanso de Deus.
Deixe-me explicar de outra forma. Suponha que Gênesis dissesse
explicitamente que Deus trabalhou em seis dias de 24 horas e, na sequência,
deixou de criar durante um dia de 24 horas; depois disso, reiniciou com mais
atos de criação. Com certeza faria sentido consagrar um único dia especial
para o homem imitar a Deus ao descansar durante um dia. Mas agora
suponha que, ao invés disso, Gênesis dissesse que Deus trabalhou seis dias
de 24 horas, então parou de criar por dois meses e então recomeçou com mais
atos criativos. Faria sentido, então, para Deus consagrar só o primeiro dia do
período total em que ele descansou, devendo o homem celebrar um dia a cada
sete? Por que um dia em lugar de um mês ou dois meses? E se não dois
meses, por que não dois dias, uma semana ou três horas? A seleção de um dia
de 24 horas parece carecer de motivo.
Precisamos reconhecer que Deus pode fazer o que ele quiser, e devemos
obedecer seus mandamentos mesmo que não entendamos sua fundamentação.
Entretanto, Gênesis 2.1-3 e Êxodo 20.8-11 não apresentam apenas o
mandamento sabático para o descanso; estão apresentam a fundamentação
desse mandamento. O sábado está repleto de sentido para israelitas não só
porque Deus lhes ordena o descanso, mas por lhes mostrar que o descanso
imita o descanso dele. Eles o estão imitando, o que ocorre em parte por terem
sido criados à imagem dele (v. tb. Êx 31.17). Desassociar a ideia de “dia” da
ideia de descanso rompe com esse significado e torna o sábado israelita
parecido com algo imposto artificialmente. Isso se contrapõe ao teor de
Gênesis 2.1-3 e Êxodo 20.8-11.
Essas consequências inaceitáveis se seguem apenas se presumirmos a
necessidade de correspondência exata em extensão mensurável entre os dias
da atividade divina e a nossa. Se os dois forem somente analógicos, os
problemas desaparecem. A analogia providencia uma base firme do sábado
israelita, como fornece a base dos anos sabáticos e do jubileu em Levítico 25.
[140]
Deus descansa para sempre da obra inicial da criação, pois ela está “acabada”
(2.1). O homem descansa apenas de forma preliminar no sétimo dia, porque
sua obra ainda não está acabada. Ele recomeçará seu trabalho no primeiro dia
da próxima semana. Contudo, todo o seu trabalho se dirige para o tempo do
descanso absoluto e final, do qual Hebreus fala: “Portanto, resta um repouso
para o povo de Deus. Porque aquele que entrou no descanso de Deus,
também ele mesmo descansou de suas obras, como Deus das suas.
Esforcemo-nos, pois, por entrar naquele descanso” (Hb 4.9-11).
O texto de Hebreus menciona o descanso final: entraremos nele na
consumação — os novos céus e a nova terra (Ap 21.1—22.5). O descanso
sabático final continua para sempre. As pequenas celebrações dos sábados
humanos apontam para esse grande “dia”. O descanso humano no dia de
24 horas não faz recordar apenas o descanso divino de criar, mas também
aponta para frente em direção ao “dia” final de descanso. Essa referência
prospectiva claramente conduz a uma analogia em lugar de à identidade pura.
O descanso agora é preliminar e parcial (ainda realizamos obras de
necessidade e de misericórdia). E ele termina depois de 24 horas. O sábado
consumado envolve o descanso final, completo e contínuo — não na forma
de inatividade, mas no descanso de trabalhos particulares direcionados à
fecundidade e domínio — a que os seres humanos se dedicam na vida.
Podemos dizer que o descanso sabático humano de 24 horas antecipa o
descanso final dos seres humanos, bem como imita o descanso final de Deus,
no qual já entramos (Hb 4.10). Essa antecipação envolve a analogia à
realidade para que aponta, em vez da pura identidade de extensão.
Desse modo, o sétimo dia de Deus em Gênesis 2.2, 3 não tem fim. Ele não
conta com 24 horas. Sendo assim, é analógico e não idêntico ao dia humano
de 24 horas. Ora, se o sétimo dia é analógico e não idêntico, toda a estrutura é
inegavelmente analógica. Todo o padrão dos seis dias de trabalho de Deus e o
descanso no sétimo formam um padrão analógico ao trabalho e descanso
humano.
TARDE E MANHÃ
Mesmo o detalhe sobre tarde e manhã encontra uma interpretação atraente da
teoria do dia analógico. C. John Collins aponta para Salmos 104.23: “Sai o
homem para o seu trabalho e para o seu encargo até à tarde”.[141] É dito “até à
tarde”. Os israelitas trabalham durante a luz do dia e, no entardecer,
mudanças acontecem. Surgem animais noturnos: “Dispões as trevas, e vem a
noite, na qual vagueiam os animais da selva” (v. 20). O homem não mais
trabalha, mas o que ele faz? Ele vem para casa, descansa e dorme. Na
verdade, o descanso acontece não só no sétimo dia, mas também em pedaços
menores, a saber, a cada noite dos seis dias de trabalho.
Acontece que todo esse padrão de trabalho e descanso entre os seres humanos
reflete o padrão originário de Deus. Deus trabalhou para criar coisas distintas
em cada um dos seis dias. Ele descansou no sétimo dia. Mas a linguagem de
tarde e manhã também indica uma pausa entre o trabalho de cada dia. Gênesis
retrata o trabalho divino durante um período durante cada dia, mas no final
do período de trabalho, “houve tarde”, marcando o fim do trabalho, “e houve
manhã”, marcando o fim da pausa no trabalho. O período humano de
descanso durante a noite reflete as pausas entre os dias de trabalho em
Gênesis 1.
A versão King James (KJV) traduz essas expressões de forma diferente: “E a
tarde e a manhã foram o primeiro dia” (Gn 1.5; do mesmo modo para os dias
subsequentes). Essa composição de palavras faz parecer como se a tarde e
manhã juntas compõem ou definem o primeiro dia (tanto quando poderíamos
dizer que o dia e a noite formam um dia). Nessa interpretação, a sentença da
KJV no final do versículo 5 define e resume o período em que os
acontecimentos dos versículos antecedentes aconteceram. Mas a KJV
traduziu mal o hebraico, que literalmente diz: “e foi tarde e foi manhã, dia
um”. O versículo contêm duas ocorrências, em lugar de uma, do verbo foi
(hebraico hayah). A segunda ocorrência, separando “tarde” de “manhã” faz
impossível tomar os dois termos juntos e os fazer equivalentes a “o primeiro
dia”. O erro na KJV foi corrigido por traduções mais recentes. O versículo
deveria dizer “e houve tarde e houve manhã, o primeiro dia”; ou, como Derek
Kidner diz: “... traduza como: ‘veio tarde e veio manhã’”.[142] Cada um dos
seis dias começa com o trabalho de Deus, não com “tarde”. A “tarde” vem
depois do trabalho. O hebraico introduzindo a expressão “e houve tarde”
normalmente indica sucessão narrativa, e é dessa forma nesse caso.
Muitas pessoas pensam que a “tarde” é mencionada porque os judeus
pensavam que o dia de 24 horas teria início em uma tarde e findaria na tarde
seguinte, diferente da contagem atual, que conta um dia da meia-noite até a
meia-noite seguinte. Entretanto, há dificuldades nessa sugestão. Na verdade,
a informação sobre o pensamento judaico é complexa. Os judeus podiam na
manhã ou na tarde como começo, dependendo da situação.[143] Além disso, a
interpretação parece tornar a expressão “houve tarde e houve manhã” quase
supérflua. A resposta do leitor pode ser: “É claro que houve tarde e que
houve manhã, porque isso é o que forma um dia. Por que você está nos
dizendo o óbvio?”. Já essa expressão culminante torna a adição importante à
descrição se, de fato, significa o descanso divino temporário entre os dias de
trabalho. A figura de pausa dá sentido e validade ao descanso humano
temporário entre os dias de trabalho.[144]
O JARDIM DE DEUS
A analogia entre o trabalho divino e humano ocorre em outros pontos
também. Considere o trabalho de Deus ao plantar o jardim do Éden:
E plantou o SENHOR Deus um jardim no Éden, na direção do Oriente, e pôs nele o
homem que havia formado. Do solo fez o SENHOR Deus brotar toda sorte de árvores
agradáveis à vista e boas para alimento... (Gn 2.8,9)
Deus plantou um jardim e fez as árvores brotarem. Mais tarde ele colocou
Adão no jardim do Éden “para o cultivar e guardar” (Gn 2.15), e gozar dos
frutos (2.16).
Deus comissiona Adão a ser jardineiro. Mas o próprio Deus foi o primeiro
jardineiro, ao plantar e fazer as coisas brotarem. A ação de Deus na
“jardinagem” oferece a base analógica para Adão imitar. Adão, feito à
imagem de Deus, se torna “uma imagem” ativa de Deus ao continuar o
projeto de jardinagem. Pode-se inferir que Adão também deveria guardar um
padrão de seis dia de trabalho e um de descanso, em imitação ao padrão de
Deus. Em ambos os casos, precisamos da analogia e não da identidade. Adão
não é Deus nem semidivino. Ele não pode criar novos tipos de árvores.
Entretanto, na estrutura dada por Deus, ele pode imitar a jardinagem divina
no nível de subordinação.
Na verdade, a transcendência de Deus e seu grande poder e majestade se
destacam em Gênesis 1—2 com tanta força quanto a posição exaltada que o
homem ocupa como imagem divina. O homem foi criado à imagem divina e
deve, portanto, imitar a Deus, mas sempre em um nível subordinado, como
criatura e não como Criador. As obras de Deus de criação, em sua majestade,
pertencem a uma ordem inteiramente diferente das obras humanas de
imitação. Um aspecto da transcendência divina é que as obras de Deus são
analógicas às humanas; e que a analogia se estende ao caráter dos dias.
Olhe de novo para a jardinagem divina. Para um ser humano plantar árvores e
fazê-las crescer toma dias, meses e mesmo anos. Quanto dura para Deus? Se
a analogia com a jardinagem de Deus fosse uma identidade, tomaria Deus
tanto tempo quanto. Toma anos para ele, usando os meios comuns de sua
providência. Mas Deus, como Deus, não é confinado ao comum. Talvez o
jardim passe a existir de forma instantânea. Não, a linguagem de 2.9 diz que
Deus fez as árvores brotarem, o que sugere a passagem de tempo. Mas quanto
tempo? Anos? Ou uns poucos minutos? Não podemos dizer porque as ações
de Deus são analógicas, não idênticas, às do jardineiro humano. Deus e
homem não se encontram no mesmo nível. Não obstante, da mesma forma, os
dias da semana do trabalho de Deus são análogos ao tempo necessário ao ser
humano. Afirmar seu caráter idêntico impõe a Gênesis uma direção que ele
não endossa e causa um conflito real com o sétimo dia e a analogia da
jardinagem.
Pode-se escolher pressionar a linguagem sobre os seis dias e insistir que eles
precisam ser dias de 24 horas. Mas é possível também escolher pressionar a
linguagem sobre o sétimo dia e argumentar que todos os dias são
indefinidamente longos. Pode-se escolher pressionar a linguagem sobre a
jardinagem divina e então concluir que o jardim precisa ter passado a existir
depois de muitos anos. Os três movimentos pressionam um pedaço da
linguagem para nos prover uma informação específica demais sobre a
extensão de tempo. O processo resulta em respostas diferentes e
contraditórias, informando-nos da pressão da linguagem além de sua intenção
original. As três peças nos fornecem uma analogia, não uma identidade.
FOCO EM RELÓGIOS OU EM EXPERIÊNCIA INTERATIVA
Deveríamos também considerar abordagens culturais diferentes quanto ao
tempo. As culturas diferem de formas assustadoras na atitudes para com o
tempo.[145] Dentre essas diferenças estão a pontualidade e “observar o
relógio”. Primeira, as pessoas podem focar na passagem “objetiva” de tempo
como mostrada em um relógio. Podemos chamá-la orientação por relógio.
Segunda, elas podem se concentrar em um tempo mais subjetivo e interativo
que experimentam nos ritmos dos acontecimentos humanos. Os seres
humanos interagem entre si em grupos sociais ou interagem com coisas
criadas, como na celebração de um casamento ou no cultivo de um campo.
Essas interações envolvem agrupamentos naturais com início, meio e fim das
experiências e dos projetos humanos. Podemos designar esse foco orientação
interativa.[146] Todos os seres humanos estão cientes em alguma medida dos
dois tipos de orientação. Muitos possuem experiências interativas onde
“perdem a noção do tempo” e então percebem de súbito que o relógio já está
mais adiantado que o esperado.
Culturas diferentes podem dar prioridade a uma dessas orientações ou à
outra. Talvez elas possam mesclar as duas formas. Nas sociedades pré-
industriais, a prioridade pertence à orientação interativa.[147] A reunião
começa não só quando o relógio bate as nove (pode não haver relógios), mas
quando todos estão ali e possuem tempo para conversar. A reunião dura, não
por uma hora, mas até que os participantes “terminem”, isto é, quando as
pessoas estão satisfeitas com sua experiência social conjunta.
Sociedades pós-industriais, em contrapartida, tendem a seguir mais o relógio
(embora ainda existam diferenças variadas sobre o costume e pontos de vistas
diferentes). A cultura americana possui forte orientação pelo relógio. Alguém
diz: “Desculpe, tenho de sair para me encontrar com o Jim às 11h10” (“e ele
espera que eu não me atrase mais que 5 minutos”). Experiências sociais
podem começar e terminar de forma abrupta, porque o relógio governa os
pontos terminais. E o tempo do relógio é mais implacável que os ritmos
óbvios da natureza. No mundo antigo, antes da chega dos relógios mecânicos,
experimentava-se o ritmo das estações e o ritmo do dia e da noite, mas não o
ritmo mecânico do tique-taque do relógio.
Como tudo isso se aplica a Gênesis 1? Se formos a Gênesis 1 com a
orientação pelo relógio, focaremos primariamente em quanto tempo durou, de
acordo com a medição do relógio. Mas se formos a Gênesis 1 pela orientação
interativa, procuraremos a ocorrência de fatos importantes e seu sentido
social humano. Os seres humanos não aparecem na cena até o sexto dia da
semana da criação. Contudo, nos dias antecedentes, Deus estava em cena,
trabalhando em um ritmo semelhante ao do trabalho humano. O trabalhador
humano naturalmente se identifica com esse ritmo, em especial se sabe ter
sido feito à imagem divina. Ele sabe de imediato quanto tempo durou: seis
dias, ou seja, seis ciclos de trabalho e descanso semelhantes aos humanos,
seguidos do sétimo dia de descanso mais longo. O padrão que o impressiona
é o ritmo de trabalho, não o tique-taque do relógio. Esses dias em Gênesis 1
são realmente dias, porque correspondem ao ritmo humano. (Comentaremos
melhor sobre a realidade dos dias no Capítulo 16.) A equivalência a quantos
tique-taques do relógio é uma questão secundária. Nós, em contrapartida,
tendemos a pressionar na questão do tique-taque do relógio, porque essa
orientação é um grande fator na nossa cultura.
Na verdade, a orientação pelo relógio se destaca até quando alguns
defensores da teoria do dia de 24 horas dizem que os dias de Gênesis 1 foram
“dias comuns”. De que forma eles foram “comuns”? Em termos dos
acontecimentos nesses dias, eles estavam dentre os mais extraordinários de
toda a história! Alguém com a orientação interativa nunca os designaria
“comuns”. O termo pode se aplicar apenas se já estivermos comprometidos
de maneira bem completa e unilateral com a orientação pelo relógio. A
pessoa que se vale do termo principal “comum” alega que os dias foram
comuns pelo tempo do relógio.
MEDIÇÃO DE TEMPO
Precisamos ainda lidar com a questão de como Gênesis 1 fazia sentido para
quem vivia nos termos da orientação interativa. Elas ainda chegariam às
mesmas conclusões? Para responder a essa questão, precisa-se considerar
primeiro o que se quer dizer com um dia de 24 horas, e como alguém se
propõe a medir a extensão do tempo. A dificuldade que nos confronta é que a
medição no leva de volta ao padrão objetivo de medição, independente dos
ritmos corporais humanos e da interação social. O interesse na medição exata,
segundo um padrão mecânico, caracteriza a orientação pelo relógio, não a
orientação interativa.
Então suponha que continuemos a pressionar pela medição da extensão de
tempo, segundo o padrão orientado pelo relógio. Suponha que pudéssemos
viajar até o Israel antigo e ainda reter o próprio interesse cultural “excessivo”
em tique-taques de relógio. Os israelitas não teriam relógios mecânicos, então
a medição por um relógio mecânico literalmente não faz sentido.[148] Mas se
nós ainda nos preocupássemos com a medição exata, como podemos
encontrar rotas alternativas possíveis?
No quarto dia da criação, Deus supriu meios de medição. Ele criou o sol, a
lua e as estrelas “para fazerem separação entre o dia e a noite; e sejam eles
para sinais, para estações, para dias e anos” (1.14). Também ouvimos que os
corpos celestiais foram feitos “para governarem o dia e a noite” (1.18). O
leitor israelita de Gênesis 1 podia entender com facilidade que o sol
controlava (“governava”) a oscilação do dia e da noite, e os tornava
“separados”, no sentido de que um se seguia ao outro sem mistura alguma.
As épocas, os dias e os anos indicam quando os israelitas celebrariam os
festivais especiais como a Páscoa e a Festa das Cabanas. O sol marca o
padrão dos dias e a posição das estrelas relativas ao sol marca os anos,
enquanto que a lua marca os meses nos quais os festivais acontecem. Juntos,
esses corpos celestiais funcionam como marcadores de tempo, dizendo aos
israelitas onde se encontram no ciclo de dias, meses e anos. Aqui estão ritmos
naturais para demarcar o tempo.
Agora suponha termos pedido ao leitor israelita para calcular o tempo exato
transcorrido na semana da criação. Ele pode nos dizer: “Sete dias. Gênesis 1
conta os dias e esses dias correspondem a meu trabalho em seis dias, seguido
por um dia de descanso”. Mas esta resposta não nos satisfaria, porque ele
pode estar falando a nós do ponto de vista da orientação interativa. Os ritmos
de trabalho e descanso são o que lhe importam. Assim, precisamos pressioná-
lo a medir o tempo por algum meio “objetivo”, um meio desconectado dos
interesses humanos interativos.
Quando a medição exata de tempo importa, o israelita registra usando o
“antiquado” e universal método do sol, lua e estrelas. Mas Deus os colocou
em seu lugar e os fez funcionar de maneira só no começo do quarto dia. Não
faz sentido questionar “quanto tempo duraram os três primeiros dias por uma
medição externa e objetiva”, porque não há uma maneira óbvia de medir o
tempo. Os seres humanos não existiam, de tal forma que ninguém pode
apelar nem mesmo à passagem de tempo mais “psicológica”, intuitiva e
humana. Os marcadores de tempo celestiais antigos não existiam também. A
única resposta razoável é que tomava três dias em termos de orientação
interativa, isto é, em termos de ritmos de trabalho. Mas essa não é uma
resposta para a pergunta moderna. A Bíblia simplesmente não apresenta a
resposta, porque não se dirige à nossa questão atual, orientada pelo relógio.
Encontramos uma barreira aqui porque somos criatura, não o Criador. O
Criador, por meio de suas obras nos seis dias da criação, não só criou a raça
humana, mas proveu o ambiente estável em que podemos viver, trabalhar,
comer e descansar. Nesse ambiente funcionamos com alguma habilidade,
embora as coisas tenham se desregrado com a queda. Todavia, quando
tentamos formular a questão sobre os detalhes técnicos da extensão da
semana da criação, deparamo-nos com um movimento para fora desse
ambiente seguro e estável. Agimos como se pudéssemos sair de nós mesmos,
quase, como uma divindade, e observar as obras de criação sem a ajuda de
qualquer ambiente humano. De forma mais significativa, queremos observar,
medir e registrar a extensão, sem usar os aparelhos de medição temporal
providos por Deus apenas no ambiente criado estável. Pode-se fazê-lo? É
possível tentá-lo sem ignorar as limitações como criaturas?
Essas reflexões nos trazem de volta ao antigo ponto: Deus é o Criador e nós
não. Isso postula a última barreira à possibilidade de pensarmos como se
observássemos a obra da criação do lado de fora. Sabemos o que Deus fez na
criação, porque ele nos disse e explicou na Escritura. Mas sempre sabemos o
que sabemos como criaturas, como seres humanos feitos à imagem de Deus,
mas nós não somos divinos.
Conhecemos por analogia. Deus é o Pai supremo, nós somos pais humanos
por imitação e por analogia. Deus é o Rei, e nós temos reis humanos por
analogia. Assim em diante. A analogia em cada caso é real, válida e
verdadeira. Mas não podemos ir além da analogia como se nos tornássemos
divinos e conhecêssemos a Deus diretamente em seu nível. O mesmo, sugiro,
ocorre com a tentativa de entender os dias da criação. Entendemos, mas
entendemos como criaturas. E isso significa que o mistério permanece. Em
particular, o mistério do sétimo dia mostra que os dias de Deus não
necessariamente possuem extensões mensuráveis idênticas aos dias humanos
comuns medidos pelo tempo do relógio. Deus não nos concedeu informações
precisas e específicas sobre a extensão do tempo pelo relógio de qualquer um
dos seis dias de seu trabalho.[149] Os seis dias podem todos ter a duração de
dias de 24 horas, quando medidos pela velocidade da luz ou algum outro
padrão moderno “objetivo”; mas eles também podem não ser. A passagem
em Gênesis não diz.
Assim, quando alguns defensores da teoria do dia de 24 horas afirmam contar
com informação específica sobre a extensão dos dias, eles não conseguem
ouvir o que Gênesis diz e não diz. Eles desejam honrar a palavra de Deus e
seguir a Deus com sinceridade aonde quer que ela os leve, mas não fazem
plena justiça à passagem. Em harmonia com a teoria do dia analógico, a
passagem ensina apenas que Deus fez o mundo em seis dias, mas não fornece
detalhes sobre a medição exata dos dias por algum padrão objetivo e não
humano.
A TEORIA DA ESTRUTURA
A teoria do dia analógico pode ser considerada variante da teoria da estrutura.
Em consonância com a teoria do dia analógico, ela afirma que os seis dias de
Gênesis 1 são dias do trabalho de Deus análogos — não idênticos — aos dias
humanos comuns. Mas, em contraste com a abordagem de dias analógicos, os
defensores[150] da teoria de estrutura falam do padrão de seis dias como uma
“estrutura literária” que organiza os atos de criação. Os principais
proponentes da teoria da estrutura declaram que ela faz muito sentido.[151]
Contudo, sua mensagem intencional pode nem sempre ser entendida. Para
alguns o rótulo “estrutura literária” sugere algo completamente artificial e
estranho ao conteúdo, os atos reais da criação. Mas se a estrutura é artificial,
ela tira a força da relevância do padrão sabático para o homem. O homem, ao
observar o padrão sabático, parece imitar uma ilusão, um artifício literário.
Além disso, desde o seu desenvolvimento, alguns cristãos — não os
proponentes originários da teoria —[152] tentam redefinir ou alargar a visão e
transformá-la em uma estrutura ampla que inclua pontos de vista que não dão
tanto peso a Gênesis 1. Eles tratam a passagem como uma afirmação muito
vaga e geral de que Deus criou tudo.
A teoria da estrutura argumenta que a sucessão de dias representa um
agrupamento lógico, tópico e estrutural, em lugar da sucessão cronológica.
(Mas reconhece algum grau de cronologia: o homem foi criado por último e o
sétimo dia se segue aos outros seis.)[153] Em tese, ela é possível. Todavia, o
agrupamento tópico não exclui a possibilidade de sucessão cronológica.
Podemos ter ambas, em lugar de escolher entre elas. Derek Kidner observa
com perspicácia:
Para o presente autor, a marcha dos dias é um progresso majestoso demais para não
comportar nenhuma implicação de sequência ordenada; também parece
demasiadamente sutil adotar uma visão da passagem que desconte uma das
impressões primárias que ela faz no leitor comum. É um relato, não só uma
afirmação.[154]
Mas Kidner também nos lembra de que devemos ver como Gênesis 1 é
seletivo:
Como toda narração, demanda-se a escolha do ponto de vista e do material a ser
incluído e do método narrativo. Em cada um desses, a simplicidade é a preocupação
dominante. Usa-se a linguagem do cotidiano; as coisas são descritas pela aparência;
os panoramas do relato são arrojados, livres de exceções que distraem e qualificações,
sem agrupar coisas correlacionadas (de forma que árvores, por exemplo, antecipam
seu lugar cronológico a fim de serem classificadas com vegetação) para obter um
grande desenho em que as demandas de sequência de tempo e tópicas controlam a
apresentação e o todo revela o Criador e a preparação de um lugar para nós.[155]
A impressão intuitiva do progresso cronológico em Gênesis 1 surge em parte
de detalhes que implicam a progressão lógica. A terra seca precisa aparecer
no dia 3 antes das plantas terrenas no dia 3. A “expansão” (“firmamento”)
criada no dia 2 precisa estar ali a fim de que os luzeiros sejam postos na
expansão no dia 4 e a fim de que os pássaros “voem [...] sobre a face da
expansão dos céus” (ARC) no dia 5. O mar e a terra, a partir do dia 3,
fornecem o habitat das criaturas marinhas e terrestres nos dias 5 e 6. As
plantas do dia 3 providenciam alimento para os animais no dia 6 (Gn 1.30).
Toda a narrativa dá a impressão de um projeto bem planejado. Em nenhum
lugar, é claro, Gênesis diz explicitamente que A deve ser anterior a B. Mas o
acúmulo de instâncias de progressão natural deixa a sensação firme de um
movimento cronológico geral.
Prefiro a teoria do dia analógico à da estrutura porque ela retém um senso de
progressão cronológica e afirma a realidade da estrutura de sete dias como
padrão para o homem imitar. (Um debate mais amplo sobre a da teoria da
estrutura pode ser encontrado no Apêndice 1.) Se concedermos que o
agrupamento em dias pode ignorar exceções e agrupar questões interligadas,
descobriremos que sua ordem corresponde, grosso modo, à ordem de
acontecimentos nos principais relatos científicos. Edwyn Bevan, sem manter
o conceito clássico da inspiração, observa: “... em princípio eles [os estágios
de Gn 1] parecem antecipar o relato científico atual com um lampejo notável
de imaginação”.[156]
NOVA ANÁLISE DAS TEORIAS DIFERENTES
Embora eu tenha expressado preferência pela teoria do dia analógico, devo
também enfatizar que mais de uma teoria oferece abordagens com algumas
vantagens. A teoria do dia de 24 horas, da criação madura, do dia-era, do dia
analógico e da estrutura afirmam as principais verdades teológicas de
Gênesis 1—2. E todas elas tentam fazer uma exegese responsável dos
detalhes de Gênesis 1—2, embora algumas não sejam tão bem-sucedidas
quanto as outras. Em particular, a teoria do dia-era possui fraquezas ao
afirmar que dia realmente significa um período indefinido, da mesma forma
que na expressão “o dia do SENHOR”. Se a palavra dia foi usada como
analogia em Gênesis 1, ela continua no capítulo inteiro, e não se restringe
apenas à palavra dia. Quando a teoria do dia-era admite isso, ela se
transforma na teoria do dia analógico.
De nodo semelhante, quando a teoria do dia de 24 horas versa sobre questões
da ciência moderna, ela tende a se tornar a teoria da criação madura. A teoria
da estrutura se torna a teoria do dia analógico caso admita que Gênesis 1
contém certa progressão cronológica. As mudanças de um ponto de vista para
outro nos deixam com duas teorias atrativas: a da criação madura e a do dia
analógico. Considero a teoria do dia analógico a mais forte das duas,
principalmente porque a criação madura presume rápido demais a duração de
24 horas dos dias, se fossem medidos por algum instrumento técnico. Ela não
percebe quão forte é a evidência exegética em Gênesis 1—2 para a relação
analógica em lugar da idêntica entre os dias de Deus e os do homem.
A teoria da criação madura permanece uma posição teoricamente possível.
Mas ela procede quase toda da convicção de que cada dia durou 24 horas. Se,
de fato, a Bíblia ensinasse com clareza dias de 24 horas, Deus nos diria que
não devemos ser enganados pela idade aparente no universo mais do que
devemos ser enganados pela idade aparente em Adão e Eva quando foram
criados. Na verdade, a leitura cuidadosa de Gênesis 1—2 mostra que Deus
não indica a extensão dos dias por algum instrumento técnico; em
contrapartida, alguns fatores de Gênesis 1—2, como o sétimo dia do descanso
divino sem fim, realmente nos alertam a não fazermos inferências rápidas.
Assim, Deus em nenhum lugar nos diz que, se olharmos de volta no tempo,
olharemos para o “tempo ideal” ou para uma projeção passada irreal. Sem
essa premissa, a teoria da criação madura deixa de ser atrativa. Com base na
fidelidade geral de Deus e seu convite para explorarmos o mundo que ele
criou, temos uma boa razão para crer que as idades aparentes, encontradas na
astronomia, são também as idades reais. Isto é, elas são reais do ponto de
vista das preocupações técnicas e calculistas da astronomia e da ciência
moderna. Entretanto, a realidade inclui muitas dimensões — dentre as quais
a teoria da orientação interativa humana. Retomaremos o ponto no
Capítulo 16.
11. O papel da humanidade na ciência
O pecado infectou os seres humanos. Ele infecta todo ser humano nascido no
mundo e os infecta profundamente. Infecta a mente e os produtos da mente,
incluindo a ciência. Como encontramos um remédio?
O CUMPRIMENTO DO DOMÍNIO POR CRISTO
Precisamos de redenção na ciência porque a ciência, como empreitada
humana, apresenta os efeitos do pecado. O pecado sob a forma de idolatria,
bem como formas pequenas de pecado entre os cientistas profissionais, como
ciúmes, rivalidade e falsificação ocasional de evidências, afetam o caráter do
trabalho científico. Na verdade, pelo fato de o conceito pessoal sobre a lei
científica formar a estrutura orientadora do trabalho cotidiano da ciência, a
corrupção idólatra da lei científica infecta o trabalho científico de modo
extensivo. Os efeitos mais devastadores ocorrem quando são sutis. Os não
cristãos não cogitam com perversão total, mas pensam com um conceito
distorcido da lei que ainda está próximo da verdade e toma emprestados
elementos da verdade.
A Bíblia indica que Deus não ficou indiferente diante de nossa miséria; ele
enviou a redenção por meio de Cristo: “Porque, se nós, quando inimigos,
fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho, muito mais,
estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida” (Rm 5.10).
Deus não enviou um livro de receitas ou uma filosofia, mas seu Filho. E seu
Filho não se manteve distante das pessoas necessitadas. Ele se tornou
homem. Comeu com publicanos e pecadores.
A abrangência completa da redenção provê respostas a todos os danos da
queda, incluindo o domínio humano. Depois da queda, o homem continua a
ter impulsos em direção ao domínio, mas esses impulsos são distorcidos pela
megalomania e opressão dos semelhantes. O verdadeiro domínio precisa de
restauração.
O Novo Testamento indica que Cristo veio como o último Adão, alguém
semelhante a ele. Jesus fez o que Adão falhou em fazer e se tornou o lídera da
nova humanidade (Rm 5.12-21; 1Co 15.12-28,42-49). Muitas passagens
repetem a linguagem de domínio adâmico do salmo 8 e a aplicam a Cristo:
“Todas as coisas sujeitaste debaixo de seus pés” (Hb 2.7,8; Sl 8.6; 1Co 15.24-
28; Ef 1.22).[161] Jesus Cristo é a segunda pessoa da Trindade, o Deus de toda
a eternidade. As passagens em questão dizem algo sobre sua humanidade.
Como homem, ele ressurgiu dentre os mortos. Como homem, ascendeu ao
Pai. Como homem, recebeu domínio do Pai como recompensa de sua obra.
Em Efésios 1.22, a linguagem sobre domínio ecoa a linguagem do salmo 8
sobre domínio adâmico e segue imediatamente após a ressurreição de Cristo e
a sua sessão à destra do Pai:
... o qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos e fazendo-o sentar à
sua direita nos lugares celestiais, acima de todo principado, e potestade, e poder, e
domínio, e de todo nome que se possa referir não só no presente século, mas também
no vindouro. E pôs todas as coisas debaixo dos pés e, para ser o cabeça sobre todas as
coisas, o deu à igreja... (Ef 1.20-22)
No versículo seguinte, Paulo indica que Cristo “a tudo enche a todas as
coisas” (1.23). A linguagem de encher ecoa o mandamento de Gênesis 1.28
“enchei a terra”. Cristo por meio de sua ascensão e do reino cumpriu ambos
os aspectos do mandato criacional em Gênesis 1.28 — o aspecto envolvendo
encher a terra, e o outro sobre o exercício de domínio (“enchei a terra e
sujeitai-a…”).
Cristo também indica esse triunfo nas palavras bem-conhecidas da Grande
Comissão: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto,
fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28.18,19). “Toda a autoridade”
indica o domínio completo. O domínio serve como fundamento da difusão
universal do evangelho e do discipulado. Ele envolve submissão e obediência
a este detentor de autoridade. Em outras palavras, o discipulado enche a terra
com seres humanos à imagem de Deus.
Podemos nos perguntar se a linguagem da autoridade pertence à natureza
divina ou à humana de Cristo. Com respeito à natureza divina, Cristo é Deus
e governa todo o universo desde toda a eternidade (Hb 1.3a). Sua autoridade
é completa e universal. A Grande Comissão pressupõe a realidade de sua
divindade. Mas o enfoque não parece estar aqui, e sim na natureza humana. O
texto diz: “Toda autoridade me foi dada”. A comcessão da autoridade do Pai
pertence naturalmente aos acontecimentos da ressurreição, ascensão e
entronização de sua natureza humana à destra do Pai. Atos 2.33, por
exemplo, fala de Jesus “tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo”
em conexão com a ascensão. Os dons do Pai se seguem como consequência e
recompensa das conquistas efetuadas na carne, em particular a crucificação e
ressurreição. Em Mateus 28.18, 19, a concessão de autoridade também é a
base da missão: “Ide, portanto...”. A palavra “portanto” também sugere que a
autoridade é “dada” no momento da ascensão. O triunfo de Cristo na carne,
em sua natureza humana, conduz à recompensa e consequente missão na
terra. (Note que o reino presente de Cristo à destra de Deus é tanto o reino do
Filho, a segunda pessoa da Trindade, e um reino que cumpre a promessa
sobre o filho humano de Davi que reinaria [Is 9.6,7; At 13.33,34]. Jesus
retém a sua natureza humana em seu estado exaltado.)
A Grande Comissão também inclui o aspecto de “encher a terra”. Em sua
afirmação conclusiva, Cristo diz: “Eis que estou convosco todos os dias até à
consumação do século”. A expressão “convosco” indica sua presença e
indiretamente sugere que ele em pessoa “enche” o mundo. Mas também
vemos um “enchimento” progressivo. Mediante o progresso da Grande
Comissão, Cristo “encherá” o mundo com seus discípulos, com quem ele está
presentede modo especial. Ele irá, portanto, encher o mundo com eles como
seus representantes e embaixadores.
Com certeza, o cumprimento do mandato criacional (ou cultural) chegou de
forma surpreendente, a saber, por meio do feito de um único homem. Mas
este único homem representa a nova humanidade e por meio da união com
ele outros também exercem o domínio universal: “E, juntamente com ele
[Cristo], [Deus] nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares celestiais em
Cristo Jesus” (Ef 2.6). A linguagem de estar “sentado” à destra de Deus
implica autoridade e governo. A posição celestial do assento implica que o
governo é universal. Do mesmo modo, em Apocalipse, Cristo promete uma
posição de governo, mas agora é no futuro: “ Ao vencedor, dar-lhe-ei sentar-
se comigo no meu trono, assim como também eu venci e me sentei com meu
Pai no seu trono” (Ap 3.21).
Com Efésios 2.6, a linguagem de governança de Apocalipse 3.21 mostra o
bem-conhecido padrão já/ainda não da escatologia do Novo Testamento. Por
ter Jesus triunfado, seu povo já toma parte do seu triunfo. Mas as implicações
do triunfo ainda estão se desenrolando, de tal forma que temos esperanças
ainda a serem realizadas o futuro, ainda por vir. O cumprimento
característico de dois polos se aplica ao chamado mandato cultural de
Gênesis 1.28, o mandato de encher a terra e subjugá-la. A tarefacomeçou a
ser cumprirda em Cristo como cabeça representativa da nova humanidade.
Mas ainda está por vir sua completa realização nos membros individuais da
nova humanidade.
A questão do mandato cultural é importante para nossos propósitos porque
inclui o chamado para exercer domínio. E o domínio, como temos visto,
inclui a pesquisa científica.
Mas agora, já que Cristo cumpriu o mandato cultural, a pesquisa científica
precisa ser repensada. Se o mandato já foi cumprido em todos os aspectos,
teríamos de dizer que a ciência já está no fim. Sua tarefa acabou. Mas a ideia
dúplice de “já” e “ainda não” quer dizer que algo ainda pode ter restado. O
que resta de todo modo flui do que já foi cumprido. Isto é, o mandato
cultural, e com ele a tarefa da pesquisa científica, ainda se aplica a seres
humanos, mas ele se dirige a eles de uma forma nova, já que Cristo
completou o mandato em seu triunfo representativo.
O cumprimento do mandato cultural por Cristo se expressa não só na esfera
real de governo, mas na esfera profética de sabedoria e entendimento. De
acordo com Efésios 1.21, 22, Cristo governa sobre tudo, como último Adão
(“debaixo dos pés” ecoando Sl 8.6). Esse é o aspecto real. Mas ele também
possui toda a sabedoria: “... o mistério de Deus, Cristo, em quem todos os
tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos”. (Cl 2.2,3). Esse é o
aspecto profético. Cristo se compara a Salomão, de forma a indicar sua
superioridade mesmo sobre a grande sabedoria de Salomão:
A rainha do Sul se levantará [i.e., a rainha de Sabá mencionada em 1Rs 10.1-13], no
Juízo, com esta geração e a condenará; porque veio dos confins da terra para ouvir a
sabedoria de Salomão. E eis aqui está quem é maior do que Salomão. (Mt 12.42;
Lc 11.31).
Cristo é o Salomão final. Salomão só nos deu uma figura, só o gosto
preliminar do que poderia ser. No final, ele falhou. Fracassou por conta de
seus pecados. Ele era um “tipo” ou pré-figura do que viria por meio de
Cristo, seu maior descendente.
CRISTO, O CIENTISTA FINAL
A sabedoria pertence a Cristo de maneira inata com respeito à natureza
divina. Como Deus, ele conhece tudo desde o começo. Mas a comparação
com Salomão mostra que ele também é sábio de maneira consumada com
respeito à natureza humana. Então, de novo, devemos relacionar sua
sabedoria ao mandato cultural e à tarefa da ciência. O cientista busca a
sabedoria e o domínio relativos ao mundo natural. Cristo, por sua posição de
governo e sabedoria, conquistou as duas coisas de modo pleno. Em termos
fortes: Cristo é o cientista final e arquetípico!
No entanto, minha afirmação sobre Cristo não deve transformar nosso
entendimento de Cristo; em vez disso, deve transformar nosso entendimento
da ciência. A corrupção e a idolatria na ciência se manifestam em especial no
fato de os cientistas raras vezes perceberem sua necessidade de Cristo na
esfera da ciência. A ciência precisa de redenção porque transforma a lei
científica em um ídolo (Capítulo 1). Só Cristo pode prover a redenção:
“E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro
nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12).
“Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai
senão por mim” (Jo 14.6).
“…sem mim nada podeis fazer” (Jo 15.5).
A redenção da ciência, pelo que parece, não acontece apenas com uma
“mágica” distante e arbitrária que move uma varinha e conserta o que está
errado. Ela ocorre quando Cristo se torna nossa sabedoria e nosso governante,
e conquista o que falhamos por causa do pecado. Daí em diante, então, nossas
conquistas seguem os passos dele. Como em questões de santificação
pessoal, também com respeito à ciência, nos tornamos imitadores em
comunhão com Cristo. A ciência na terra se torna um processo de conhecer a
Cristo (Fp 2.8-10) e de participar mais profundamente de sua sabedoria.
Ou isso é que deveria ser. E talvez seja o que de fato ocorre em alguns casos,
com cientistas cristãos devotos (ainda que eles mesmos estejam aquém do
ideal). Contudo, isso não parece ocorrer hoje com a maioria dos cientistas
praticantes. Assim, como podem eles um dia ter sucesso? Como pode a
ciência avançar? Como já vimos no Capítulo 1, os cientistas prosperam em
grande medida a despeito de si mesmos! Eles prosperam ao continuar crendo
em Deus e em seus pressupostos sobre a lei científica, ao mesmo tempo em
que negam e descreem. Agora precisamos estender essa observação para
incluir não só Deus, o Pai, mas Deus, o Filho — o Deus Encarnado como
Redentor.
A redenção alcançada por Cristo rendeu fruto. Ele concede bênçãos mesmo a
quem ainda permanece em rebelião consigo. Por causa da rebelião, não
merecemos ter a habilidade e a capacidade herdada das gerações passadas
assim abençoadas. Não merecemos o tempo livre e a prosperidade
necessários para construir um aparato de medição sofisticado, nem o tempo
livre e professores nos ajudando a estudar e desbravar as camadas de teorias
científicas mais sofisticadas pouco a pouco. Se, ainda assim, temos benefícios
quando merecemos o contrário, recebemos uma bênção redentora. Isso não
significa que nós mesmos como indivíduos recebemos a salvação pessoal de
Cristo mediante a fé. No caso dos não cristãos, há um tipo de sombra dessa fé
na confiança que se pode receber e usar sem merecer — embora nossa
confiança seja distorcida pela ingratidão e orgulho.
SABEDORIA
Acima de tudo, como parte da bênção divina sobre quem não merece, os
cientistas recebem sabedoria. Nem todos possuem a sabedoria salvadora para
conhecer a Cristo em nível pessoal e se submeterm a ele. Mas o que têm,
receberam: “Aquele que aos homens dá conhecimento não tem sabedoria? O
SENHOR conhece os pensamentos do homem, que são pensamentos vãos”
(Sl 94.10,11). O contexto da afirmação de Salmos 94.11 parece geral. Não só
o Senhor ensina o conhecimento salvífico a algumas pessoas, mas todo o
conhecimento delas provém do Senhor. O conhecimento advém do ensino do
Espírito Santo: “Na verdade, há um espírito no homem, e o sopro do Todo-
Poderoso o faz sábio” (Jó 32.8). A expressão “espírito no homem”, com “e”
minúsculo, indica o espírito humano. Mas o original hebraico não tinha letras
maiúsculas ou minúsculas. Além disso, a linha paralela, “o sopro do Todo-
Poderoso” indica que o entendimento humano depende de uma origem e
dádiva divinas. Quer a primeira linha designe o espírito humano quer não, a
segunda linha sugere que o Espírito divino, o Espírito Santo, está por trás do
dom de conhecimento dado ao espírito humano.
Deus realmente nos dá todo o conhecimento que temos? Algumas pessoas
podem estar dispostas a dividir o conhecimento em duas partes: uma de fonte
sobrenatural e a outra natural. Quando Deus fala do topo do monte Sinai, essa
é a fonte sobrenatural de conhecimento. Quando o cientista trabalha com
experimentos, ou imagina as implicações de uma equação da física, ou deriva
as implicações de uma teoria da química, recebe conhecimento da natureza.
Há, então, duas fontes distintas aqui? Sim, podemos receber instrução de
mais de uma forma, e a fonte sobrenatural como o monte Sinai se destaca
como algo espetacular e inexplicável.
Entretanto, as fontes menos espetaculares e mais explicáveis também são
derivadas de Deus. Ele governa sobre o comum e o extraordinário. Sustenta o
aparato experimental com suas propriedades. Ele também é o Senhor da
lógica, dos próprios processos de raciocínio usados pelos seres humanos. A
origem da lógica está na autoconerência de Deus e em sua lealdade a si
mesmo. A lógica se derrama sobre o mundo por meio de Deus, o Filho, a
Palavra de Deus, Como a Palavra, ele é a razão divina por trás do mundo e o
original refletido por toda a razão humana. Ele é a sabedoria de Deus, de
acordo com Colossenses 2.3.
Na verdade, o prólogo do Evangelho de João, quando designa Cristo a
Palavra (grego logos) pode estar aludindo não só às palavras pronunciadas
por que Deus ao criar o mundo, mas também ao pensamento grego sobre a
ordem racional que rege o mundo. A palavra grega logos, traduzida por
“palavra” (NVI) em João 1.1-14 pode designar não só uma expressão verbal,
mas também uma norma ou razão. Os estoicos especulavam sobre a razão
como um princípio não só da mente humana, mas também como o
supprimento da lei da natureza.[162]
Não só o que parecer acidental, mas também o necessário é derivado do
plano de Deus. O que parece acidental procede da liberdade da escolha de
Deus enquanto ele cria e governa o mundo. O de aparência necessária é
necessário por refletir a autocoerência do caráter divino. Assim a própria
necessidade, incluindo as necessidades da lógica, demonstra o caráter de
Deus.[163]
Cientistas cristãos e ateus, dependem do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A
dependência do Pai se dá como fonte da lei estável. Do Filho — a Palavra do
Pai e a verdadeira Lei do universo — a verdadeira fonte de racionalidade e
lógica. Também dependem dele para prover, mediante seu sacrifício, os
benefícios e as bênçãos que não merecem. E dependem do Espírito Santo
para lhes ensinar. Mas os ateus não se conscientizam dessa dependência.
Assim, confirmamos a verdade expressa pelo apóstolo Paulo em um de seus
sermões aos pagãos:
... o qual, nas gerações passadas, [Deus] permitiu que todos os povos andassem nos
seus próprios caminhos; contudo, não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo,
fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo o vosso
coração de fartura e de alegria (At 14.16,17).
Deus também concede chuva, comida e vários confortos e prazeres mesmo às
pessoas que não o reconhecem e se rebelaram contra ele. Deus é “benigno até
para com os ingratos e maus” (Lc 6.35), “... porque ele [Deus] faz nascer o
seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5.45).
Podemos agora estender esse princípio à área da ciência. Deus concede
insights científicos e sucesso científico e tecnológico mesmo a quem se
rebela contra ele. Ganhamos o que não merecemos.
13. A palavra de Deus na ciência
Os leitores já podem perceber o que penso: Deus governa o mundo por sua
palavra de forma ampla. Ele governa o grande pano de fundo e os detalhes.
Nada lhe escapa. A palavra divina inclui em seu escopo não só as
regularidades gerais e os padrões abrangentes, também a sucessão de dia e
noite. Sob seu controle se encontram, além disso, os detalhes — como a
flecha que acertou Acabe em uma abertura entre as peças de sua armadura.
Dois versículos diferentes afirmam diretamente a completude do governo de
Deus:
nele [Cristo], digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o
propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade...
(Ef 1.11)
Quem é aquele que diz, e assim acontece, quando o Senhor o não mande? Acaso, não
procede do Altíssimo tanto o mal como o bem? (Lm 3.37,38)
Esses versículos são confirmados por uma série de outros que mostram o
controle divino sobre muitos eventos específicos: acontecimentos em geral
(Ne 9.6; Sl 103.19; Dn 4.34,35; At 17.28; Rm 11.36; Ef 4.6; Cl 1.17; Hb 1.3);
o mundo físico (Gn 41.32; Êx 9.26; Sl 104; Is 40.12; Am 4.7; Na 1.3;
Mt 5.45; At 14.17); animais (Sl 104.21; 136.25; Dn 6.22; Mt 6.26; 10.29);
nações (Js 21:44; Jz 6.1; 1Cr 16.31; Sl 33.10; 47.7; 75.6,7; Is 10.5; 40.15;
Dn 2.21; 4.17; Am 3.6; Hc 1:.6); seres humanos individuais (Ed 8.31;
Jó 14.9; Sl 34.7; 37.23; 118.6; 139.16; Pv 16.9; 20.24; 21.1; 29.13; Is 64.8;
Jr 10.23; Dn 3.17; Jo 9.3; At 18.9; Tg 4.15); atos humanos livres (Êx 12.36;
Ed 6.22; 7.6; Jr 7.27; Ez 11.19,20; 36.27; Fp 2.13); atos humanos
pecaminosos (Gn 45.5; 50.20; Êx 21.13; 1Sm 2.24,25; 2Sm 12.11,12;
16.21,22; 1Rs 12.15; Jo 19.11; At 2.23; 3.18; 4.27,28; Ap 17.17); obra do
“acaso” (Jó 36.32; Pv 16.33; Jn 1.7; At 1.24-26); o diabo e seus anjos
(1Sm 16.14; 1Rs 22.20-23; Jó 1.6,7; 2Ts 2.9-11); e desastres (Is 45.7;
Lm 3.38; Am 3.6; Rm 8.28).
A questão mais difícil trata das ações pecaminosas das pessoas más. Como
podem elas estar sob o controle divino sem impugnar sua bondade?[166]A
crucificação de Cristo oferece a resposta. Herodes e Pôncio Pilatos agiram de
acordo com a inclinação de seu coração: eles foram responsáveis e culpados
por condenar um homem inocente. Mas também é verdade que eles fizeram
“tudo o que a tua mão e o seu plano predeterminaram” (At 4.28). Os teólogos
reformados apresentam uma discussão mais extensiva de outras questões, ao
afirmar que podemos confrontar aqui um dos muitos mistérios que a grandeza
incompreensível de Deus apresenta à mente humana.[167] Devemos aceitar o
ensino bíblico sem tentar rebaixar Deus ao nosso nível, dominando a ideia do
governo de Deus e tentando forçar a realidade nos confins da mente humana.
Direi um pouco mais sobre a responsabilidade humana no próximo capítulo.
No entanto, uma debate mais extenso pode tomar um livro inteiro.
CONTINGÊNCIA
O governo de Deus sobre as generalidades significa que as leis científicas
procedem dele. As regularidades vistas vêm da palavra de Deus, que as
especifica. Mas também precisamos considerar as particularidades. Deus
movimenta sua mão no universo apenas de modo geral, sem envolvimento
com as particularidades? O exemplo da flecha que feriu Acabe indica o
contrário. Na verdade, os versículos listados acima, com muitos outros,
indicam que Deus controla os detalhes bem como as generalidades ou
regularidades. Ele criou Adão e Eva, não só a “humanidade”. Ele formou
Davi no ventre de sua mãe e determinou o número de seus dias (Sl 139.13-
16). O governo divino sobre as particularidades é importante como expressão
da magnitude de sua soberania e de seu cuidado com as pessas, não apenas no
amplo curso do desenvolvimento histórico de toda uma civilização: “Não se
vendem dois pardais por um asse? E nenhum deles cairá em terra sem o
consentimento de vosso Pai. E, quanto a vós outros, até os cabelos todos da
cabeça estão contados” (Mt 10.29,30).
As particularidades afetam a ciência. No século XIX, pessoas impressionadas
com as regularidades se inclinaram na direção do determinismo mecanicista
pleno. Alguns (sendo LaPlace o mais famoso) alegaram que o
comportamento de todo o universo poderia ser calculado com exatidão,
bastava contar com informações suficientes sobre as posições e velocidades
de todas as partículas individuais.
No século XX, porém, a mecânica quântica parece ter colocado, para muitos
intérpretes, uma barreira permanente no caminho do determinismo físico. O
cálculo exato é impossível, não apenas por causa de limitações da medição,
mas porque a mecânica quântica afirma que acontecimentos contingentes de
nível quântico são intrinsicamente contingentes e probabilísticos. Não há
como, mesmo em princípio, prever um único acontecimento contingente,
apenas médias estatísticas de muitos acontecimentos. Esses eventos
singulares ocorrem em nível microscópico. Entretanto, as pequenas
disparidades iniciais aumentam com o tempo, de forma o batimentos das asas
de uma borboleta na América do Sul pode selar a diferença entre o tempo
chuvoso ou ameno um mês depois no Hemisfério Norte.
O controle divino sobre as particularidades, incluindo as contingências,
garante que as próprias contingências ainda pertençam a seu plano. Isso
garante que os acontecimentos contingentes em nossa vida e no curso das
civilizações não surpreendem nem frustram a Deus. E se as contingências
acabassem de outro modo e os pais de minha mãe nunca se encontrassem? E
se um tiro perdido ou uma infecção tivesse acertado George Washington nos
primeiros estágios da Guerra da Independência (dos EUA) e, como
consequência, os ingleses a tivessem vencido? São muitas as possibilidades e
Deus detém o controle de todas. Não há uma pedaço de poeira extraviado ou
uma molécula independente no universo.
O controle de Deus também garante que o cientista pode estudar a
racionalidade de padrões mesmo nas áreas do mundo físico em que a
contingência parece mínima. Pode-se dizer que a contingência não é
contingente para Deus, pois ele a planejou. Pelo fato de a fissão particular de
um átomo radioativo ter sido planejada, sem dúvida ela aconteceria quando
ocorreu. Não obstante, a certeza pertence só a Deus, não a nós — criaturas
finitas. A mecânica quântica mostra que os seres humanos jamais contarão o
conhecimento físico completo ou a previsibilidade plena. Assim, a mecânica
quântica dá testemunho da distinção entre Criador e criatura, e as limitações
de criaturas.
REGULARIDADE, EXCEÇÕES E A QUESTÃO DOS ACONTECIMENTOS REPETÍVEIS
A totalidade do domínio divino provê a base firma para a ciência, de forma
que o mundo, até os mínimos detalhes, se conforma perfeitamente à palavra
do governo de Deus. Nenhum detalhe se encontra apenas “ali”, fora do
propósito ou controle de Deus. A incompreensibilidade de Deus implica que
a ciência precisa reter seu caráter provisório. Podemos conhecer a verdade e
devemos reconhecer que em cada verdade sobre o mundo de Deus também
existem mistérios.
Além disso, se concebermos as regularidades como a preocupação principal
da ciência, o foco nas generalidades se estreita mais que a palavra de Deus.
Ela não se propõe a estudar a palavra de Deus completamente, apenas os
aspectos direcionados às regularidades. As singularidades dos
acontecimentos particulares, como a crucificação e a ressurreição de Cristo,
permanecem além de seu escopo, mesmo que também sejam controladas de
forma total pela palavra divina.
Na verdade, embora algumas pessoas tentem definir a “ciência” em sentido
mais rigoroso exclusivamente como o estudo das regularidades, a curiosidade
humana não se satisfaz só com as generalidades. Por exemplo, interessamo-
nos pelo passado, mesmo que o passado seja composto de muitos
acontecimentos que nunca serão repetidos exatamente da mesma forma. A
ciência física não se concentra na história humana, mas conta com
subdivisões que focam no passado de processos físicos. Assim, temos a
geologia histórica — que tenta reconstruir a história passada das rochas —, a
biologia histórica — a tentativa de reconstruir o passado de animais e plantas.
Há também a cosmologia histórica (embora seja designada assim raras vezes)
— que procura reconstruir o passado de larga escala do universo e das
galáxias.
Nos casos da astronomia e cosmologia, embora muitas questões permaneçam
sem respost sobre o tempo imediatamente após o Bigue-Bangue, muitas
subáreas menos desafiadoras possuem explicações boas e razoavelmente
coerentes. Elas se harmonizam ou com a teoria da criação madura, do dia
analógico ou com outras teorias que propõem ter Deus levado mais que seis
dias de 24 horas nos atos originários da criação.
No caso da biologia histórica, contudo, encontramos uma dificuldade. Os
principais cientistas não cristãos acham provável que a vida tenha se
originado de uma vez. Temos aqui um acontecimento único e que não pode
ser reproduzido com facilidade em um laboratório moderno. Aqui, a
influência da cosmovisão e da concepção da lei afeta de maneira mais direta.
Se alguém é materialista, se sua cosmovisão alega existir apenas a matéria em
movimento, então se “sabe” que a “protocélula” autorreplicadora veio a
existirr de alguma forma. Espera-se, em parte pela defesa dos pressupostos
materialistas, que isso “de alguma forma” envolva uma série de etapas, todas
com probabilidade não muito baixa. Mesmo que a probabilidade geral seja
muito baixa, o fato ocorreu. Coisas estranhas acontecem. Interpreta-se o
evento de acordo com o materialismo. De alguma forma, as leis impessoais
devem fornecer alguma explicação, pois não há outro modo de esclarecer o
ocorrido de acordo com a cosmovisão materialista.
Em contrapartida, admita-se a crença na origem da primeira protocélula e dos
acontecimentos em todo o universo exatamente de acordo com a palavra de
Deus. A palavra divina especifica as regularidades e quaisquer exceções.
Levam-se em conta as regularidades quando são examinados números amplos
de acontecimentos. Mas esse consistiu em um acontecimento único e não há
como afirmar com certeza como Deus o fez. Talvez ele tenha usado as
regularidades ou realizado algo excepcional e inexplicável.
Se Deus fez algo excepcional na primeira vez que a vida foi criada, talvez ele
tenha relaizado algo excepcional ao criar outros tipos de vida. A origem de
cada novo grande tipo de planta ou animal pode ter representado um tipo de
ponto de virada decisivo e jamais repetido. Aqui de novo, depara-se com um
acontecimento único, em lugar de um padrão geral replicável em laboratório.
Deus criou diferentes tipos de vida com múltiplos atos distintos de criação,
usando só materiais não vivos na construção? Ou Deus modificou a vida já
existente e criada antes?
Percebe-se que a introdução da possibilidade de exceções altera a natureza de
juízos sobre o passado, especialmente nos casos em que nos confrontamos
com eventos ocorridos uma única vez. O passado da astronomia contém
muitos acontecimentos que dizem respeito à origem de estrelas individuais ou
galáxias que nunca se repetem, mas se repetem de forma similar com outras
estrelas. Então se pode encontrar certa regularidade. Podemos esperar que, ao
aplicar as leis físicas presentes e os modelos matemáticos, mostremos de
modo aproximado o que aconteceu.
A primeira aparição de novos tipos de coisas vivas nos confronta com um
desafio mais difícil, pois não se pode dizer de antemão exatamente quão
similares são os acontecimentos distintivos que envolvem as novas aparições.
Com base no entendimento do começo do século XX e no papel da
informação contida no DNA e no RNA, suspeita-se que cada introdução de
um grande novo tipo envolveu a incorporação de informações. Mas não se
tratava da mesma informação em cada caso. Poderia cada situação envolver a
exceção das regularidades do governo de Deus? Caso mantenhamos a
cosmovisão cristã, não se pode excluir essa possibilidade de antemão. Ou
talvez, se soubéssemos o suficiente, poderíamos observar padrões regulares
ao examinar a origem de vários e novos tipos. Assim, é possível pensar nos
termos da regularidade semelhante à lei que rege os muitos exemplos da
origem de novos tipos. O estudo da origem de novos tipos não equivale de
forma exata a olhar para a ciência moderna conduzida em um laboratório
moderno com acontecimentos repetíveis.
Retornaremos à consideração da origem de coisas vivas com detalhes no
Capítulo 19.
14. Verdade na ciência e na vida
Podemos agora expandir nossa visão além da ideia das regularidades e da lei
científica ao considerar acontecimentos particulares irrepetíveis.
Como vimos no capítulo anterior, Deus governa completamente. Ele
determina as regularidades e os particulares. As regularidades nos levam à
discussão da lei científica. Mas o que dizer das particularidades? O que são?
Nenhuma lei geral é suficiente para explicar a maçã específica na minha
geladeira ou para explicar Napoleão. Leis gerais são pertinentes para entender
maçãs e elas explicam alguns aspectos dos particulares. Todavia, elas nunca
explicam absolutamente tudo. Toda vez que explicamos como a maçã chegou
à minha geladeira, acabamos por expandir a tarefa, por termos de esclarecer
os acontecimentos antecedentes à nossa história; como a maçã cresceu
exatamente em uma árvore e como o colhedor de maçãs a recolheu e assim
por diante. As leis gerais não bastam por si mesmas.
A palavra de Deus unifica os dois aspectos, o geral e o particular. Ela
especifica ambos. Fala para especificar generalidades, como ao prometer que
a semeadura e a colheita não cessarão (Gn 8.22) e para especificar
particulares, como ao predizer a morte de Acabe em batalha (1Rs 22.20) ou a
dispersão dos discípulos no tempo da crucificação de Jesus (Mt 26.31 ao citar
Zc 13.7). O aspecto generalizador da palavra de Deus leva ao estudo
científico das leis científicas. O aspecto particularizador leva a quê?
Aparentemente, conduz a verdades comuns sobre os acontecimentos e o
estado das coisas comuns. Acabe morreu na batalha de Ramote-Gileade; os
discípulos se dispersaram quando Jesus foi preso.
A palavra de Deus especifica esses acontecimentos e o estado das coisas; isto
é, ela especifica a verdade sobre o mundo. Por conta do caráter total do
governo divino, a especificação é total e a verdade é total. Toda verdade é o
que Deus especificou por meio de sua palavra.
ATRIBUTOS DIVINOS DA VERDADE
No Capítulo 1 descobrimos que a lei de Deus possui atributos divinos, porque
é Deus falando. Do mesmo modo, a verdade possuiu atributos divinos,
porque é Deus falando. Na verdade, apenas nos expandimos além da área da
lei para incluir a menção das particularidades por Deus. Na cosmovisão
cristã, a origem da verdade não procede em primeiro lugar dos seres humanos
que observam o mundo. A verdade existe na mente divina e no plano de
Deus, mesmo antes da fundação do mundo. Verdade, pode-se dizer, é o
conhecimento de Deus. ela inclui o que ele sabe de si mesmo, que certamente
é divino, e o que ele sabe sobre o mundo e está incluído em seu plano. Seu
plano é total, de forma que toda a verdade está em seu plano ou em seu
autoconhecimento. Toda a verdade é divina. Já deveríamos ter suspeitado
disso quando Jesus afirmou: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”
(Jo 14.6). E em outro lugar: “A tua [de Deus] palavra é a verdade” (Jo 17.17).
Esses versículos de João se concentram na verdade redentora. Mas não
deveríamos nos surpreender com a aplicação do princípio, de forma mais
ampla, a qualquer verdade.
Apressamo-nos para adicionar que o conhecimento humano da verdade é
limitado e não divino. O ponto de vista humano não define a verdade, porque
Deus, não o homem, é o padrão da verdade e sua origem.
Podemos passar por todos atributos divinos e verificar se eles se estendem
para incluir não só a lei, mas a verdade.
Onipresente e eterno
Em primeiro lugar, considere a onipresença. As leis são as mesmas em todos
os lugares, pela própria natureza da lei. O mesmo não é tão óbvio a respeito
das verdades particulares, em oposição às gerais. Cada situação distinta conta
com viabilidade e verdades próprias. No momento, é verdade que estou
sentado em uma cadeira no meu escritório; minha esposa, em contraste, pode
estar em pé em casa. Entretanto, se é verdade que estou sentado em uma
cadeira, também é verdade para minha esposa que está em casa que estou
sentado. A verdade descreve uma situação em uma localização particular no
tempo e no espaço. Mas a verdade assim afirmada é verdade em qualquer
localização que escolhamos afirmá-la.
Precisamos prestar atenção ao tempo e ao espaço para determinar o que
alguém quer dizer. “Eu estou sentado” depende de a quem o “eu” se refere e
ao tempo em vista. Se descobrirmos o tempo e as circunstâncias, podemos
dizer que a afirmação é de fato verdadeira. Assim, a afirmação, entendida
como referência a um tempo e um lugar em particulares, é verdade em
qualquer lugar que escolhamos ir. A verdade nos segue em todo lugar; ela
está presente em todo lugar.
E a verdade está presente em todos os tempos no futuro. O passado pode
parecer mais questionável, caso o mundo permita a contingência genuína. O
ser humano situado no passado não pode predizer de antemão se eu estou
sentado agora ou não. Todavia, se amanhã às 16 horas eu estiver sentado, é
verdade hoje que amanhã às 16 horas eu estarei sentado. Não parecemos
capazes de escapar da impressão de que se algo é verdade, então é verdade!
E, pelo menos para a forma comum de pensar, esta mesmice não
impossibilita a existência de decisões humanas contingentes.
A verdade, então, é eterna. Precisamos distinguir entre a eternidade que
significa perpetuidade dentro do tempo da eternidade que significa estar de
alguma forma “acima” do tempo? Na discussão sobre a lei, a diferença entre
os dois é difícil, de fato, impossível de compreender plenamente. Mas
podemos suspeitar que a verdade é eterna. Ela não está sujeita à mudança. Ela
é imutável.
Imaterial e invisível
Em seguida, a verdade é imaterial e invisível. Vemos que a maçã é vermelha.
Não vemos com nossos olhos físicos a verdade de que a maçã é vermelha.
Sabemos isso. A conclusão também é aparente do fato de eu saber a verdade
de que a maçã é vermelha mesmo quando paro de olhar para a maçã. O
caráter da verdade é ideacional, não físico.
Onipotente
Em seguida, considere o atributo de poder. Será que a verdade exerce poder
sobre o mundo? Observo uma maçã vermelha e digo: “Isto é uma maçã
vermelha madura”. Se o que digo realmente é verdade, corresponde ao estado
de coisas no mundo. Na verdade, corresponde com perfeição, não no sentido
de afirmar tudo em detalhes exaustivos, mas no sentido de não ser deficiente
ou incorreto no que diz. A correspondência entre a verdade e o mundo é
perfeita, e sugere que um determina o outro perfeitamente. A determinação
perfeita significa controle perfeito, poder perfeito. Mas qual determina o
outro? Será que a verdade determina o mundo ou o mundo determina a
verdade?
À primeira vista, muitas pessoas podem pensar que o mundo determina a
verdade. Na experiência humana, observamos o mundo e da observação
descobrimos a verdade a seu respeito. A ordem em nossa experiência se
movimenta do mundo para a verdade. Mas outra pessoa pode ter observado a
maçã antes de mim. E ainda uma terceira pessoa pode ter predito o
amadurecimento da maçã a partir de observações ainda anteriores, que
precedem a aparência de vermelhidão.
A predição humana, é claro, é falível. Mas depende de regularidades no
mundo. Assim retornamos à questão de regularidades, ou verdades gerais, e
elas parecem preceder qualquer caso particular que se conforma à
regularidade. A regularidade governa uma instância em particular, não o
contrário.
Ademais, sempre sabemos as verdades no contexto de outras verdades, que
dão significado a qualquer verdade particular. Conhecemos o que o
“vermelho” é, em parte das experiências anteriores com maçãs. A verdade de
“esta maçã é vermelha” não possui um significado isolado, apenas relativo ao
conhecimento de maçãs e cores vermelhas. O conhecimento por si mesmo
pressupõe regularidades de tipos bem básicos que significam haver maçãs e
que certas características conhecidas nos permitem (talvez com erros
ocasionais) reconhecer uma maçã quando vemos uma e agrupá-la com outras
instâncias do mesmo tipo. A relação entre um universal (“maçã”) e um caso
particular (“esta maçã”) pressupõe regularidades gerais e particulares que as
manifestam.[168] Assim a verdade particular “esta maçã é vermelha” pode ser
alcançada apenas se for coerente com outras verdades, sobre outras maçãs e
outros exemplos de cor vermelha. Esta verdade goza de harmonia com outras
verdades.
A harmonia é anterior a qualquer outra instância particular dentro da
harmonia, na medida em que as instâncias não podem criar a harmonia por si
mesmas. Isso implica que, pelo menos em algum nível, a verdade é anterior
ao caso particular. O caso particular se conforma à verdade, em lugar d o
contrário. Então a verdade possui poder sobre o mundo. E o poder é perfeito,
o que quer dizer onipotente. Por ser Deus a verdade, tudo que ele cria se
conforma à verdade.
Nossa hesitação sobre a onipotência da verdade decorre de nossa formulação
da verdade ser de fato secundária. No entanto, a verdade existe antes de a
formularmos. A origem da verdade está na mente divina. Essa verdade, a
verdade que pertence a Deus, possui poder sobre o mundo.
Transcendente e imanente
A verdade é transcendente e imanente. Em particular, quando pensamos na
harmonia de várias verdades, a harmonia transcende qualquer situação. Ao
mesmo tempo, aplica-se à situação, de forma que é imanente em sua
aplicação.
Pessoal
A verdade possui muitos dos atributos clássicos de Deus. A conclusão não
deveria surpreender, se percebermos que a verdade é uma expressão da
palavra divina. A palavra de Deus controla não só as generalidades, como
vimos no caso da lei científica, mas as particularidades, isto é, os casos de
verdade particular sobre situações particulares.
Como no debate anterior sobre a lei científica no Capítulo 1, muitos tentam
evitar reconhecer Deus mediante a negação de seu caráter pessoal. No caso
da verdade, alegam ser ela impessoal, em vez de pessoal. Ela só “está aí” de
alguma forma.
Assim, aqui, como ocorreu com a lei, pode-se observar em resposta que a
verdade é racional. Demonstramos sua racionalidade quando a alcançamos
com a mente; e pressupomos sua racionalidade quando buscamos a verdade e
esperamos de antemão que ela se encaixe em nossa mente. A verdade
também é semelhante à língua, na medida em que pode ser expressa em
línguas humanas. Essas duas características, racionalidade e expressão em
linguagem, pertencem aos seres humanos como pessoas. Ainda que alguns
neguem isso em teoria, nosso tratamento prático da verdade como racional e
alcançável em sentido linguístico afirma seu caráter pessoal.
Verdade e o mundo
A mesma preocupação surge aqui como na lei científica: estaríamos
“deificando” um aspecto do mundo. Deus criou o mundo e cada coisa criada
é finita e limitada. Mas a verdade sobre ela não é limitada da mesma forma.
A verdade permanece para sempre, ao passo que o animal criado perece
depois de um tempo. A verdade transcende o mundo, algo particularmente
evidente quando focamos na unidade expressa na harmonia entre muitas
verdades particulares.[169] Essa unidade não pode ser explicada como o
produto de qualquer fato no mundo.
Justa, boa, pura, amorosa e generosa
Podemos agora considerar os atributos morais de Deus, como justiça e
bondade — atributos de verdade. Nossa consideração anterior da lei científica
(Capítulo 1) preteriu a moralidade. A lei científica trata de regularidades do
mundo material, não do mundo moral. Todavia, a verdade pertence aos dois
mundos. Por exemplo, o mandamento “Não furtarás” expressa uma verdade
moral: a verdade de que os seres humanos não devem furtar. Cada princípio
moral, ou mandamento, também é uma verdade sobre padrões morais. A
verdade é justa, boa, pura, amorosa e generosa porque expressa a justiça,
bondade, pureza, amor e generosidade gozados pelos princípios morais.[170]
É claro que se pode escapar desta conclusão ao negar a existência de qualquer
tipo de padrão moral absoluto. Alguns círculos pós-modernos comumente o
negam. Mas isso é inconsistente. Como o cientista precisa crer em Deus na
prática real da ciência, também o ser humano comum precisa crer na
moralidade quando reage com indignação moral. A pessoa que acabou de ser
roubada ou ofendida reage com uma condenação moral instintiva, mesmo que
seu relativismo moral teórico lhe diga não haver motivo para sua reação.
Ademais, a reação pressupõe padrões morais absolutos, não relativos, já que
a condenação do ladrão e do ofensor não espera para perguntar se a outra
pessoa possui uma cultura ou ambiente diferentes, em cujo contexto ela
estaria perfeitamente justificada pela ação. A condenação moral pode com
certeza fazer juízos incorretos por causa da falibilidade dos seres humanos.
Errada ou não, ela pressupõe a aplicação dos padrões a outra pessoa, não só a
si.
Vemos aqui os efeitos inescapáveis do conhecimento humano continuado de
certo e errado. Mesmo em meio à rebelião contra Deus, as pessoas continuam
a conhecê-lo e a seus padrões morais:
Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais
coisas praticam, não só as fazem, mas também aprovam os que assim procedem
(Rm 1.32).
Quando, pois, os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade
com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da
lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus
pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se... (Rm 2.14,15)
A VERDADE COMO TESTEMUNHA DIVINA
Em suma, os seres humanos defrontam Deus e seus atributos sempre que
defrontam a verdade, pois a verdade é o que Deus pensa e especifica em sua
palavra. A verdade é um aspecto inescapável do pensamento e discurso;
assim, Deus é inescapável. Nosso conceito de verdade pressupõe Deus e a
afirmação de qualquer verdade particular pressupõe Deus. Como os
incrédulos escapam? Eles creem em um Deus de verdade e ao mesmo tempo
eles suprimem a verdade em injustiça (Rm 1.18): “... porquanto, tendo
conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram
graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-
se-lhes o coração insensato” (Rm 1.21).
Pode-se agora entender melhor a situação dos relativistas que negam existir a
verdade ou outros relativistas que negam a acessibilidade da verdade. A
atmosfera secular moderna já ensinou às pessoas a suspeitar da
transcendência. Quando observam pontos morais cegos e a ignorância em
variadas sociedades humanas, elas podem concluir não haver rota para
transcendência. Negam a transcendência e então a verdade. A negação de
Deus e da verdade caminham juntas.[171]
RESPONSABILIDADE HUMANA
O controle divino sobre a verdade pode parecer para alguns afetar
indevidamente a liberdade humana. Se toda a verdade pertence a Deus, qual é
o espaço deixado para a independência humana? “... nele [Deus] vivemos, e
nos movemos, e existimos” (At 17.28).
Já consideramos no Capítulo 13 um pouco da evidência bíblica da soberania
total de Deus. Creio que a soberania é real e que a responsabilidade humana
também é real. A relação entre as duas envolve um mistério por causa das
limitações de nossa mente finita. Preciso deixar para outras pessoas o debate
mais completo, pois essas questões podem preencher volumes inteiros.[172]
Que as considerações a seguir bastem para o nosso contexto.
Primeira, quando afirmamos que a verdade possui atributos divinos e,
portanto, pertence à esfera de Deus, afirmamos com convicção a
incompreensibilidade da verdade como um aspecto da incompreensibilidade
divina. A responsabilidade humana, como uma questão da verdade, também é
incompreensível.
Segunda, é literalmente sem sentido tentar pensar na verdade ou no sentido
fora do plano, da sabedoria e da palavra de Deus. A responsabilidade humana
possui significado em relação à sabedoria divina. A remoção da
responsabilidade humana do controle de Deus a prova de significado. O
resultado seria então a evaporação de ideias significativas da humanidade e
da responsabilidade.
Terceira, a plenitude da verdade inclui muitas facetas. Considere o caso em
que certa manhã eu escolho uma gravata azul listrada em lugar de uma
gravata azul xadrez. Deus afirma, como parte de sua verdade, que eu vista a
gravata azul listrada. Ele também afirma que eu escolha vestir essa gravata.
Minha escolha é tão real quando o ato de vestir a gravata. Deus afirma um
estado de coisas (eu visto a gravata). Ele também afirma conexões causais
entre os estados de coisas. Eu visto a gravata agora porque mais cedo eu a
vesti; e mais cedo a vesti porque escolhi assim fazer.
Considere um exemplo crucial. Na misericórdia de Deus ele ordena que eu
seja salvo; também ordena os meios pelos quais eu serei salvo. “Todo que ele
creia não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). João 3.1 é verdade
divina, e afirma uma conexão inquebrável entre meios e fins, escolhas
humanas (“todo que ele creia”) e salvação (“tenha a vida eterna”). Todas
essas afirmações são verdadeiras, e são verdadeiras porque Deus as afirma
como parte de seu plano. A afirmação divina e a verdade de Deus, entendidas
de forma correta, não minam a responsabilidade humana, elas a apoiam. Os
problemas surgem só quando se tenta reduzir o sentido do mundo a um
aspecto. Se o reduzirmos aos destinos apontados por Deus, chegaremos ao
fatalismo. Se o reduzirmos às decisões apontadas pelo homem, chegaremos
ao orgulho humano por termos sido sãos o suficiente para nos salvarmos.[173]
Quarta, como observamos antes (Capítulo 13), Deus, a causa primária, não
compete com causas secundárias no mundo. Quando Deus usa um “forte
vento oriental” (Êx 14.21) para secar o mar, ele de fato o usa e o vento
oriental sopra, mas em níveis diferentes. O controle divino das questões
humanas afirma a realidade das causas secundárias dos seres humanos e do
ambiente.
Quinta, suspeito que algumas pessoas se incomodam com a ideia do controle
divino pela razão errada. Elas imaginam a liberdade humana como liberdade
independente de Deus. Mas essa “independência” pode estar perigosamente
perto do desejo de Adão e Eva do desejo de e tornarem independentes quando
comeram do fruto proibido: Satanás prometeu: “Como Deus, sereis
conhecedores do bem e do mal” (Gn 3.5).
Se pensarmos a respeito, até as pessoas da Trindade não agem “com
independência” umas das outras. Com respeito ao ministério encarnado, Jesus
disse: “Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer de si
mesmo, senão só aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o
Filho também do mesmo modo o faz.” (Jo 5.19). “As palavras que eu vos
digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as
suas obras” (Jo 14.10). O Filho não liga para a “independência”. Cada pessoa
da Trindade só age em harmonia com as outras.
Agora, o que dizer dos seres humanos? Será que eles agem de modo
independente de Deus? Possuem mais “liberdade” que o Filho? Seria
blasfemo pensar assim. A liberdade com o sentido independência consiste na
forma errada de pensar. Ela não se encontra na Bíblia e o caráter da liberdade
na Trindade sugere que, na verdade, o conceito de independência procede da
fonte mais nefasta!
15. Debates sobre a realidade: o caráter do
conhecimento científico
[1]
Este capítulo apareceu originalmente numa forma diferente em Vern S. Poythress, “Why
Scientists Must Believe in God”, Journal of the Evangelical Theological Society 46/1
(March 2003): 111-23.
[2]
A obra de Gregory L. Bahnsen sobre o autoengano (“A Conditional Resolution of the
Apparent Paradox of Self- Deception”, tese de doutorado, University of Southern
California, 1979) ajudou a mostrar como as pessoas manuseiam esses casos paradoxais.
Elas creem em certa proposição e também acreditam (como crença de segunda ordem) que
não acreditam nela. Eles ocultaram da consciência o que suas ações continuam a revelar a
outros. Para agir, dependem tacitamente das verdades sobre o mundo, mas verbal e
conscientemente não creem no que fazem. Esse modelo é útil. Entretanto, a incredulidade e
a rebelião, como manifestações do pecado, produzem efeitos profundos na natureza
humana, incluindo as questões intelectuais e práticas. Daí qualquer explicação humana da
evasão da verdade resta parcial.
[3]
Reijer Hooykaas, A religião e o desenvolvimento da ciência moderna (Brasília: Editora
da UnB, 1988); Stanley L. Jaki, The Road of Science and the Ways of God (Chicago:
University of Chicago Press, 1980); Jaki, The Origin of Science and the Science of Its
Origin (South Bend: Regnery-Gateway, 1979); Nancy R. Pearcey; Charles B. Thaxton, A
alma da ciência: fé cristã e filosofia natural (São Paulo: Cultura Cristã, 2005); Charles E.
Hummel, The Galileo Connection: Resolving Conflicts Between Science and the Bible
(Downers Grove: InterVarsity, 1986).
[4]
Por volta de 1999, Edward J. Larson e Larry Witham conduziram uma pesquisa sobre as
crenças dos cientistas e compararam os resultados com pesquisas similares de James H.
Leuba em 1914 e 1933. Encontraram poucas mudanças, a não ser quanto à impressão de
que a ciência é uma força secularizante. Do total, 48% criam em Deus nos dias de Leuba e
hoje Mas também perceberam que a “elite” dos cientistas americanos, representada pela
National Academy of Science, continham uma porcentagem mais alta de descrença, mais
de 90% dos que responderam (“Scientists and Religion in America”, Scientific American
281/3 [September 1999]: 88-93).
[5]
Roy Bhaskar distingue com cuidado a “leis causais” dos “padrões de eventos” (Bhaskar,
Reclaiming Reality: A Critical Introduction to Contemporary Philosophy [London/New
York: Verso, 1989], p. 16). “Leis causais” correspondem ao que chamo “princípio
explicativo geral”; “padrões de eventos” podem derivar-se da coincidência. Mesmo quando
um padrão resulta da operação direta das leis, ele não é idêntico às leis. Trata-se de uma
instância do efeito das leis. Contudo, nenhuma separação rígida é possível, pois nenhum
padrão, coincidente ou não, pode ser reconhecido pelo ser humano a não ser sob o pano de
fundo da racionalidade da palavra divina. Precisamos ter duas distinções em ordem: entre a
palavra de Deus e o conhecimento humano dessa palavra; e entre a palavra de Deus e as
coisas e os eventos que ela controla. Também precisamos reconhecer que a ciência envolve
mais de um nível de descrição e explicação. Juntar esses dados sobre a construção do ninho
de um passarinho envolve um nível mais elementar que a análise da base neurológica dos
instintos de construção de ninhos. V. a discussão posterior nos Capítulos 13-15.
[5]
Para uma discussão sobre realismo e as alternativas a ele, v. cap. 15.
[6]
Springfield: Merriam-Webster, 1987.
[7]
Mas nem tão massivos; entramos em outras limitações quando os campos gravitacionais
são fortes.
[8]
John M. Frame, The Doctrine of God (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 2002), p.
543-75. [Em português: A doutrina de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2014)].
[9]
Encontrei recentemente um pensamento paralelo em Paul Davies, que menciona a
eternidade, universalidade e onipotência da lei (The Mind of God: The Scientific Basis for a
Rational World [New York: Simon & Schuster, 1992], p. 82-3). A seguir, Davies então
parte para outras direções, sem expandir a lista de atributos divinos.
[10]
Na visão bíblica transcendência e imanência, v. John M. Frame, The Doctrine of the
Knowledge of God (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1987), esp. p.13-5 [Em
português: A doutrina do conhecimento de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)]; e
Doctrine of God, esp. p. 107-15.
[11]
Chamados e sinais animais mimetizam certos aspectos limitados da linguagem humana.
Os chimpanzés podem ser ensinados a responder a símbolos com sentido. Mas isso ainda
está bem longe da gramática complexa e do sentido da linguagem humana. V., e.g.,
Stephen R. Anderson, Doctor Dolittle’s Delusion: Animals and the Uniqueness of Human
Language (New Haven: Yale University Press, 2004).
[12]
Na habilidade de passar por transformações e reformulações, as leis científicas também
mostram uma analogia da linguagem humana para representar perspectivas múltiplas. Para
saber mais sobre o caráter linguístico das leis científicas, v. Vern S. Poythress, “Science as
Allegory”, Journal of the American Scientific Affiliation 35/2 (1983): 65-71; “Newton’s
Laws as Allegory”, Journal of the American Scientific Affiliation 35/3 (1983): 156-61;
“Mathematics as Rhyme”, Journal of the American Scientific Affiliation 35/4 (1983): 196-
203.
[13]
Conforme a Bíblia (esp. Gn 1), mantemos que Deus e o mundo criado são distintos.
Deus não deve ser identificado com a criação ou qualquer parte dela, nem é a criação
“parte” de Deus. A Bíblia repudia todas as formas de panteísmo e panenteísmo.
[14]
Veja R. B. Edwards, “Word”, in: Geoffrey W. Bromiley et al., orgs., The International
Standard Bible Encyclopedia (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), 4 vols., vol. 4, p. 1103-7, e
a literatura associada.
[15]
Sobre o caráter divino da palavra de Deus, v. Vern S. Poythress, God-Centered Biblical
Interpretation (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1999), p. 32-6.
[16]
Larson; Witham, “Scientists and Religion”, p. 90-1.
[17]
Ibid.
[18]
V. a discussão estendida sobre punição justa em Vern S. Poythress, The Shadow of
Christ in the Law of Moses (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1995), p. 119-249.
[19]
Veja o capítulo seguinte, onde lidamos com algumas questões sobre o relacionamento
entre as diferentes fontes do conhecimento humano.
[20]
The Mind of the Maker (New York: Harcourt, Brace, 1941), esp. p. 33-46. [Em
português: A mente do Criador (São Paulo: É realizações, 2015), p. 47-56]
[21]
V. tb. John Milbank, The Word Made Strange: Theology, Language, Culture (Oxford:
Blackwell, 1997), sobre as raízes trinitárias da comunicação.
[22]
Veja Cornelius Van Til, The Defense of the Faith, 2. ed., rev. (Philadelphia:
Presbyterian & Reformed, 1963), p. 25-6.
[23]
V. ibid., p. 31-50.
[24]
Eu não sei onde está esse relato no meio impresso. Sobre a dependência divina dos, v.
Cornelius Van Til, The Defense of the Faith, 2. ed. (Philadelphia: Presbyterian &
Reformed, 1963); e a exposição por John M. Frame, Apologetics to the Glory of God: An
Introduction (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1994) [Em português: Apologética
para a glória de Deus: uma introdução (São Paulo: Cultura Cristã, 2011)].
[25]
V. tb. a discussão de Poythress, “Science as Allegory”.
[26]
Uma reflexão muito valiosa sobre os fundamentos da apologética se encontra na
tradição da apologética transcendental fundada por Cornelius Van Til. Veja Van Til,
Defense of the Faith; e Frame, Apologetics to the Glory of God.
[27]
Webster’s Ninth New Collegiate Dictionary (Springfield: Merriam-Webster, 1987).
[28]
Veja Louis Berkhof, Systematic Theology, 4. ed. (Grand Rapids: Eerdmans, 1941), p.
37. Na verdade, entende-se normalmente a “revelação especial” de forma mais ampla. Rla
inclui a comunicação verbal de Deus não registrada na Escritura, como as palavras do
ministério de ensino terreno de Jesus que não foram incluídas em nenhum evangelho.
Inclui os atos redentivos de Deus, como os milagres no tempo da saída do Egito e na vida
terrena de Jesus. É consideravelmente difícil oferecer uma definição do que precisamente
distingue a revelação especial da geral. Pode-se tentar dizer que a revelação especial é a
revelação redentiva. Entretanto, o discurso de Deus a Adão antes da queda (Gn 1.28-30;
2.16,17), que precede o início da redenção, é normalmente classificado como revelação
especial. Em sentido menos estrito, todas as obras de Deus subsequentes à queda são
“redentivas”, pois todas servem indiretamente para promover o objetivo da redenção
cósmica última. Considere outra rota. Pode-se tentar dizer que a revelação geral é comum,
enquanto a revelação especial é extraordinária. Mas a diferença entre o comum e o
extraordinário é uma questão de grau; assim, essa definição falha em nos fornecer uma
distinção estrita. Ou se pode tomar o gancho do termo “geral”, e definir a revelação geral
como a que vem a todas as pessoas em todos tempos. Essa tentativa chega perto da solução,
embora a ênfase esteja no fato de a revelação especial vir inicialmente a pessoas
particulares em tempos e lugares específicos, nunca a todo o mundo. Mas ela desconsidera
o caráter irrepetível da história. Todo ato providencial particular de Deus, como ordenar
uma tempestade em particular ou uma bênção particular de saúde a uma pessoa específica,
devem contar como “especial” — mais inclusivo que o desejos dos teólogos. Nossos
propósitos não carecem de uma distinção precisa. Na prática, preocupamo-nos com a
relação entre a Escritura e o conhecimento derivado da natureza.
[29]
Note a avaliação de John Jefferson Davis: “Apesar de a linha interpretativa dos “dois
reinos” poder contar com a vantagem aparente de evitar conflitos entre a ciência e a
religião, ela tem o grande defeito de traçar a distinção forte demais entre duas áreas da
experiência humana. Embora os escritores bíblicos e os cientistas modernos claramente
possuam linguagens, métodos e propósitos muito diferentes, todos eles se referem ao
mundo físico compartilhado e existente fora da subjetividade do falante” (The Frontiers of
Science and Faith: Examining Questions from the Big Bang to the End of the Universe.
Downers Grove: InterVarsity, 2002, p. 13; v. tb. Del Ratzsch, Science and Its Limits: The
Natural Sciences in Christian Perspective [Downers Grove: InterVarsity, 2000], p. 141-59).
[30]
Francis Brown, S. R. Driver; C. A. Briggs, orgs., A Hebrew and English Lexicon of the
Old Testament. Oxford: Oxford University Press, 1953.
[31]
Pode-se objetar que este tipo de descrição é apenas metafórica ou antropomórfica. Não
posso discutir de forma mais extensa neste livro o tipo de abordagem que descarta ou
recategoriza a verdade bíblica ao apelar para as alegadas limitações da linguagem humana.
(Mas v. John M. Frame, “God and Biblical Language”, in: John Warwick Montgomery,
org., God’s Inerrant Word [Minneapolis: Bethany, 1974], p. 159-77; e Vern S. Poythress,
“Adequacy of Language and Accommodation”, in: Earl D. Radmacher; Robert D. Preus,
orgs., Hermeneutics, Inerrancy, and the Bible [Grand Rapids: Zondervan, 1984], p. 351-
76.) É suficiente dizer que o objetor precisa quase possuir um ponto de vista divino a fim
de conhecer a natureza da metáfora. Não contamos a descrição final dos caminhos de Deus
na linguagem. Essas descrições são verdadeiras precisamente ao nos mostrarem as
analogias entre o discurso humano e divino.
[32]
Gn 1.3 e Sl 147.15-18 obviamente nos dão uma amostra; dela se pode inferir um
conjunto bem maior.
[33]
Alguns leitores podem achar que meu foco na fala divina é unilateral. Em certo sentido,
é. Uso a fala divina como perspectiva sobre a totalidade da atividade de Deus. Podemos
fazê-lo com proveito, desde que nos lembremos de que a Bíblia nos oferece também outras
perspectivas complementares. Entendidas da forma correta, os insights alcançados por uma
perspectiva enriquecem, mas não contradizem o que vem à mente a partir da segunda
perspectiva. V. uma discussão maior em Vern S. Poythress, Symphonic Theology: The
Validity of Multiple Perspectives in Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1987) [Em
português: Teologia sinfônica: a validade de múltiplas perspectivas em teologia (São
Paulo: Vida Nova, 2016)]. Precisamos também distinguir a palavra de Deus governando os
céus (como em Gn 1) do que os próprios céus “declaram” em Sl 19.1. A palavra de Deus é
a realidade mais fundamental por trás das mensagens que vêm das coisas que ele criou.
[34]
Em sentido técnico, devemos adicionar à nossa lista a revelação verbal e não verbal aos
anjos.
[35]
Webster’s Ninth New Collegiate Dictionary.
[36]
Para a exposição mais completa do ensino bíblico sobre o discurso de Deus e interação
crítica com a neo-ortodoxia, v. John M. Frame, “God and Biblical Language”; e “Scripture
Speaks for Itself”, in: God’s Inerrant Word, p. 178-200.
[37]
Para a explicação cabal do meu posiçionamento, o leitor pode consultar Vern S.
Poythress, God-Centered Biblical Interpretation (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed,
1999).
[38]
V. a discussão em Charles Hummel, The Galileo Connection: Resolving Conflicts
Between Science and the Bible (Downers Grove: InterVarsity, 1986); e Richard J.
Blackwell, Galileo, Bellarmine, and the Bible (Notre Dame: University of Notre Dame
Press, 1991).
[39]
Veja Vern S. Poythress; Wayne A. Grudem, The Gender-Neutral Bible Controversy
(Nashville: Broadman & Holman, 2000), p. 177-9; v. tb. a discussão maior sobre a
“linguagem fenomenológica” em Bernard Ramm, The Christian View of Science and
Scripture (Grand Rapids: Eerdmans, 1954), p. 67-9.
[40]
A ausência da preservação dos autógrafos dos livros bíblicos continua a gerar objeções.
Sobre o papel único do autógrafo, v. Meredith G. Kline, The Structure of Biblical Authority
(Grand Rapids: Eerdmans, 1972). Não podemos restaurar os autógrafos de maneira
infalível em todos os pontos, mas, na prática, as doutrinas ensinadas na Bíblia estão bem
estabelecidas, pois são ensinadas em mais de uma passagem. Tudo isso ainda opera na
esfera de comunicação linguística.
[41]
Também devemos notar que a palavra de Deus na Bíblia pode funcionar para condenar
e iluminar: “Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se
cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus” (Rm 3.19).
[42]
As institutas ou tratado da religião cristã, trad. Waldyr Carvalho Luz, 1. ed. São Paulo:
Casa Editora Presbiteriana, 1984, 1.5.11, p. 77.
[43]
Ibid., 1.6.1, p. 84.
[44]
Note a insistência na “verdade verdadeira” sobre Deus na abordagem popular de
Francis Schaeffer, The God Who Is There: Speaking Historic Christianity into the
Twentieth Century (Chicago: InterVarsity, 1968) [Em português: O Deus que intervém: o
abandono da verdade e as trágicas consequências para a nossa cultura, 3. ed. (São Paulo:
Cultura Cristã, 2017)].
[45]
Sobre o contexto social da ciência, v. Richard C. Lewontin, Biology as Ideology: The
Doctrine of DNA (New York: HarperCollins, 1993). Sobre a influência das cosmovisões,
v. Nancy Pearcey, Total Truth: Liberating Christianity from Its Cultural Captivity
(Wheaton: Crossway, 2004) [Em português: Verdade absoluta: libertando o cristianismo
do seu cativeiro cultural (Rio de Janeiro: CPAD, 2006)].
[46]
The Encyclopedia Americana. Danbury: Americana, 1978, 30 vols., vol. 14, p. 213.
[47]
Uso os termos “privatizar” e “privatização” com base em Os Guinness, The
Gravedigger File: Papers on the Subversion of the Modern Church (Downers Grove:
InterVarsity, 1983), que por sua vez os aprendeu da sociologia da religião: Peter Berger,
The Sacred Canopy: Elements of a Sociological Theory of Religion (Garden City:
Doubleday, 1967) [Em português: O dossel sagrado: elementos para uma teoria
sociológica da religião (São Paulo: Paulinas, 1985)]. Note a crítica à religião dissimulada
em John Milbank, Theology and Social Theory: Beyond Secular Reason (Oxford:
Blackwell, 1993).
[48]
Veja Pearcey, Total Truth, para a explicação mais completa de como isso se deu.
[49]
As leis do AT que proíbem a blasfêmia e a falsa profecia são um caso especial,
pertencentes a Israel como povo santo e apontavam para a santidade da igreja do NT (que
deve excluir dentre seus membros quem ainda não se arrependeu do pecado). As leis do AT
não se aplicam aos arranjos políticos modernos. A igreja exerce sua disciplina por meios
espirituais, não com punições físicas. Debato extensamente a questão em Vern S.
Poythress, The Shadow of Christ in the Law of Moses (Phillipsburg: Presbyterian &
Reformed, 1995), esp. no cap. 10.
[50]
Nancy R. Pearcey; Charles B. Thaxton, The Soul of Science: Christian Faith and
Natural Philosophy (Wheaton: Crossway, 1994) [Em português: A alma da ciência: fé
cristã e filosofia natural (São Paulo: Cultura Cristã, 2005)]. Ocorreram, é claro, conquistas
intelectuais e tecnológicas na antiga Babilônia, China, Egito e Grécia. Mas o florescimento
e a multiplicação do conhecimento científico pertence ao tempo da Renascença em diante.
[51]
Isto é, há influência comunitária sobre o que conta como conhecimento. A história
dessa influência é relatada pela sociologia do conhecimento: Peter L. Berger; Thomas
Luckmann, The Social Construction of Reality: A Treatise in the Sociology of Knowledge
(New York: Doubleday, 1966) [Em português: A construção social da realidade: tratado
em sociologia do conhecimento (Petrópolis: Vozes, 1985)].
[52]
Cornelius Van Til afirmou repetidas vezes que a cosmovisão não cristã pressupõe
fundamentalmente que a mente humana conhecida agora consiste no padrão normal. A
cosmovisão cristã crê na queda do homem e afirma que a mente humana no tempo presente
é anormal e desfigurada pelo pecado. V., p. ex., Cornelius Van Til, A Survey of Christian
Epistemology (s.l.: Den Dulk Christian Foundation, 1969).
[53]
Veja Vern S. Poythress, “Christ the Only Savior of Interpretation”, Westminster
Theological Journal 50/2 (1988): 305-321.
[54]
Vern S. Poythress, God-Centered Biblical Interpretation (Phillipsburg: Presbyterian &
Reformed, 1999), esp. o cap 2, p. 47, n. 1; John M. Frame, “God and Biblical Language”,
in: John Warwick Montgomery, org., God’s Inerrant Word (Minneapolis: Bethany, 1974),
p. 159-77; e Frame, “Scripture Speaks for Itself”, in: God’s Inerrant Word, p. 178-200.
[55]
The End of the Historical-Critical Method (St. Louis: Concordia, 1977).
[56]
Ibid., p. 54.
[57]
“Evolution, Neutrality, and Antecedent Probability: A Reply to McMullin and Van
Till”, Christian Scholars Review 21 (1991/1992): 90.
[58]
V., p. ex., Westminster Theological Seminary, The Infallible Word: A Symposium
(Philadelphia: Presbyterian & Reformed, 1946); Benjamin Breckinridge Warfield, The
Inspiration and Authority of the Bible (Philadelphia: Presbyterian & Reformed, 1967) [Em
português: A inspiração e autoridade da Bíblia (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)].
[59]
As considerações de Herman Bavinck sobre a esperança de transcender as diferenças
religiosas ainda são pertinentes: “Embora não possamos endossar as interpretações de
Lessing, certamente é compreensível que muitos teóricos se unam a ele em buscar abrigo
na posição de indiferentismo e tentem consolar-se com a ideia de que não importa em que
se crê, desde que se tenha uma vida boa. Mas esse consolo logo se evapora. Juntamente
com o fato de que a religião simplesmente não se permite ser colocada de lado, o estudo de
etnologia mostra que a humanidade é tão dividida sobre moralidade e justiça quanto sobre
religião [...] Nenhuma ciência, por mais que seja ‘desprovida de pressupostos’, é ou será
capaz de desfazer essa divisão e produzir, na vida de todas as nações e povos, unidade nas
mais básicas convicções do coração. Se tiver de haver unidade, ela só será alcançada na
forma de missão: somente a unidade religiosa é capaz de produzir a unidade espiritual e
intelectual da humanidade. Enquanto prevalecer a divergência na religião, a ciência
também será incapaz de alcançar o ideal de unidade” (Reformed Dogmatics. Grand Rapids:
Baker, 2003, 2 vols., vol. 1, p. 298-9) [Em português: Dogmática Reformada, trad. Vagner
Barbosa (São Paulo: Cultura Cristã, 2012), vol. 1, p. 298-9].
[60]
Tal ponto é feito com certa extensão em Poythress, “Christ the Only Savior of
Interpretation”.
[61]
Para mais sobre cosmovisões, v. Pearcey, Total Truth.
[62]
Ou os muito determinados podem se propor a educarem suas crianças em casa
(homeschooling). Eu agradeço pelo homeschooling ser permitido nos Estados Unidos. Mas
é uma grande injustiça o fato de que seus praticantes ainda vejam seus impostos serem
usados para as escolas públicas, enquanto eles pagam de seus próprios bolsos com tempo e
dinheiro para suas atividades de homeschooling.
[63]
Na verdade, a narrativa de criação de abertura vai de Gn 1.1—2.3, Gn 2.4-25 então foca
na criação do homem e o jardim do Éden.
[64]
Derek Kidner, Genesis: An Introduction and Commentary, Tyndale Old Testament
Commentary (Downers Grove: InterVarsity, 1967) [Em português: Gênesis: Introdução e
comentário (São Paulo: Vida Nova, 3006)]; Gordon Wenham, Genesis 1—15, Word
Biblical Commentary (Waco, Tex.: Word, 1987), vol. 1; Victor P. Hamilton, The Book of
Genesis: Chapters 1—17, New International Commentary on the Old Testament (Grand
Rapids: Eerdmans, 1990); C. John Collins, Genesis 1—4: A Linguistic, Literary, and
Theological Commentary (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 2006). Pode-se
consultar também com bom proveito C. John Collins, Science and Faith: Friends or Foes?
(Wheaton: Crossway, 2003), que oferece menos detalhes exegéticos técnicos, e devota
mais espaço a questões hermenêuticas, teológicas e científicas. O livro de Collins fornece
um complemento útil a este livro em muitos pontos.
[65]
O material egípcio é complexo; v. “Report of the Committee to Study the Views of
Creation”, Minutes of the Seventy-First General Assembly of the Orthodox Presbyterian
Church (Willow Grove: Orthodox Presbyterian Church, 2004), p. 276-7, 292-4. Disponível
em: https://opcgaminutes.org/wp-content/uploads/2018/04/2004-GA-71-red.pdf, acesso
em: 22/7/2018.
[66]
Veja W. G. Lambert; A. R. Millard, Atra-hasis: The Babylonian Story of the Flood
(Oxford: Oxford University Press, 1969). No meu resumo, solucionei alguns pontos
obscuros.
[67]
James B. Pritchard, org., Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament
(Princeton: Princeton University Press, 1950), p. 60-72.
[68]
Genesis, p. 9. Mas Collins, Genesis 1—4, cap. 9, e Umberto Cassuto, A Commentary on
the Book of Genesis (Jerusalem: Magnes, s.d.), vol. 1, p. 7, corretamente apontam que o
efeito polêmico é indireto. Gênesis 1 é antes de tudo um relato positivo dos atos criativos
de Deus.
[69]
Ibid., liii.
[70]
“Isso não quer dizer que o escritor de Gênesis nunca tenha ouvido ou lido a Epopeia de
Gilgamesh: essas tradições integravam a intelectualidade daquele tempo no Oriente Médio
da mesma forma que a maioria das pessoas hoje tem uma noção da Origem das espécies de
Darwin, mesmo sem nunca a ter lido” (ibid., xlviii).
[71]
V. ibid., p. 11-5; Collins, Genesis 1—4, cap. 4.
[72]
V. n. marginal na versão RSV.
[73]
Collins, Science and Faith, p. 67; Edward J. Young, “The Relation of the First Verse of
Genesis One to Verses Two and Three”, Westminster Theological Journal 21 (1959): 138-
9.
[74]
“É característico de muitas linguagens descrever a totalidade de algo em termos de seus
extremos, por exemplo, ‘bom e ruim’ [...] Aqui temos um exemplo desse uso para definir o
universo” (Wenham, Genesis, p. 15).
[75]
V. a discussão adicional em Collins, Science and Faith, p. 66-8.
[76]
Para discussão adicional da criação a partir do nada (ex nihilo), v. John M. Frame, The
Doctrine of God (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 2002), p. 298-302; e Paul Copan;
William Lane Craig, Creation Out of Nothing: A Biblical, Philosophical, and Scientific
Exploration (Grand Rapids: Baker, 2004).
[77]
Para uma visão geral das dificuldades com uma macroevolução não guiada, v. Philip E.
Johnson, Darwin on Trial (Downers Grove: InterVarsity, 1991) [Em português: Darwin no
banco dos réus (São Paulo: Cultura Cristã, 2008)]; Michael Denton, Evolution: A Theory
in Crisis (Bethesda: Adler & Adler, 1985); Michael Behe, Darwin’s Black Box: The
Biochemical Challenge to Evolution (New York: Free Press, 1996) [Em português: A caixa
preta de Darwin: o desafio da bioquímica à teoria da evolução (Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1997)]; atualizado com considerações de teoria da informação em William A.
Dembski, No Free Lunch: Why Specified Complexity Cannot Be Purchased Without
Intelligence (Lanham/Boulder/New York/Oxford: Rowman & Littlefield, 2002). Os
defensores da evolução são muitos. Podemos citar como exemplos Robert T. Pennock,
Tower of Babel: The Evidence Against the New Creationism (Cambridge: MIT, 1999);
Kenneth R. Miller, Finding Darwin’s God (New York: Cliff Street, 1999); Stephen J.
Gould, The Structure of Evolutionary Theory (Cambridge: Harvard University Press,
2002).
[78]
Charles Thaxton; Walter Bradley; Roger Olsen, The Mystery of Life’s Origin:
Reassessing Current Theories (New York: Philosophical Library, 1984); Denton,
Evolution, p. 249-73; Dembski, No Free Lunch, p. 179-80; Fazale Rana; Hugh Ross,
Origins of Life: Biblical and Evolutionary Models Face Off (Colorado Springs: NavPress,
2004).
[79]
Grand Rapids: Eerdmans, 1954. A discussão sobre a idade da terra é encontrada às p.
173-229.
[80]
Por conveniência, segui a ordem da lista de Ramm (ibid., p. 173-229), mas coloquei
geologia do Dilúvio acima na lista a fim de dispô-la próxima à visão do dia de 24 horas,
com que normalmente é associada. Deixei de usar a teoria de Ramm de catástrofes
sucessivas porque não ser mais usada amplamente.
[81]
Ramm o rotula “visão literal ingênua” (ibid., p. 173). Mas “ingênua” é um rótulo
desapropriado, já que nem todos de seus aderentes são ingênuos.
[82]
Ramm rotula esta visão “pró-crônica ou de tempo ideal” (ibid., p. 192).
[83]
Daí a teoria também ser designada “teoria omphalos”, da palavra grega para umbigo.
[84]
Ramm rotula esta visão “Dia-era ou dia-divino, ou concordismo” (ibid., p. 211). Ela
também já foi designada “teoria do dia-geológico” (ibid.).
[85]
Esta abordagem não é incluída na lista de Ramm. Para saber mais sobre ela, v. Robert
C. Newman, Genesis One and the Origin of the Earth (Downers Grove: InterVarsity,
1977).
[86]
O último itrm na lista de Ramm é intitulado “Dia pictórico e concordismo moderado”.
Pelo fato de esse título abranger alguns conceitos distintos, escolhemos subdividi-lo.
[87]
Veja Arie Noordtzij, Gods Woord en der Eeuwen Getuigenis (Kampen, Netherlands:
1924); Nicolaas H. Ridderbos, Is There a Conflict Between Genesis 1 and Natural Science?
(Grand Rapids: Eerdmans, 1957); Meredith G. Kline, “Space and Time in the Genesis
Cosmogony”, Perspectives on Science and Christian Faith 48/1 (1996): 2-15. V. tb.
Meredith G. Kline, “Because It Had Not Rained”, Westminster Theological Journal 20
(1958): 146-57; Mark D. Futato, “Because It Had Rained: A Study of Gen 2:5-7 with
Implications for Gen 2:4-25 and Gen 1:1—2:3”, Westminster Theological Journal 60/1
(1998): 1-21. A exposição pactual de W. Robert Godfrey sobre Gn 1 mostra uma afinidade
com a hipótese de estrutura, mas questiona alguns de afirmações exegéticas técnicas em
Kline (Godfrey, God’s Pattern for Creation: A Covenantal Reading of Genesis 1
[Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 2003]). O “Report of the Committee to Study the
Views of Creation”, Minutes of the Seventy-First General Assembly ... of the Orthodox
Presbyterian Church (Willow Grove: Orthodox Presbyterian Church, 2004), p. 251,
classifica Godfrey sob a teoria de dia análogo, discutida abaixo.
[88]
A teoria é mais bem representada por C. John Collins, “Reading Genesis 1:1—2:3 as an
Act of Communication: Discourse Analysis and Literal Interpretation”, in: Joseph Pipa, Jr.;
David Hall, orgs., Did God Create in Six Days? (Taylors: Southern Presbyterian, 1999), p.
131-51; v. tb. C. John Collins, Science and Faith : Friends or Foes? (Wheaton: Crossway,
2003), esp. o cap. 5. Algo do tipo parece ter sido antecipado por Herman Bavinck: “Os dias
da criação são os dias em que Deus trabalhou. Pelo trabalho, resumido e renovado seis
vezes, ele preparou toda a terra e transformou o caos no cosmo. No mandamento sabático,
este padrão é ordenado a nós também. Como foram com Deus, também para o homem os
seis dias de trabalho devem ser seguidos por um dia de descanso” (In the Beginning :
Foundations of Creation Theology. Grand Rapids: Baker, 1999, p. 126). Edward J. Young
também manteve uma visão semelhante: “Uma questão que os cristãos gostam de falar é
sobre a duração desses dias. Não é muito proveitoso o fazer, pela simples razão de que
Deus não revelou o suficiente a nós para dizer muito sobre isso [...] Os primeiros três dias
não são dias solares como conhecemos hoje [...] E a obra do terceiro dia parece sugerir que
houve algum processo e que o que aconteceu ocorreu num período mais longo do que vinte
e quatro horas” (In the Beginning: Genesis Chapters 1 to 3 and the Authority of Scripture.
Edinburgh/Carlisle: Banner of Truth, 1976, p. 43). O “Report of the Committee to Study
the Views of Creation” classifica Herman Bavinck e E. J. Young como apoiadores da
“conceito de dia de duração não especificada”, não muito diferente do conceito de dia
análogo.
[89]
Sobre a história da interpretação dos dias da criação, v. Robert Letham, “‘In the Space
of Six Days’: The Days of Creation from Origen to the Westminster Assembly”,
Westminster Theological Journal 61/2 (1999): p. 147-74. Um debate adicional a partir do
conceito de dias de 24 horas pode ser encontrado em J. Ligon Duncan III; David W. Hall,
“The 24-Hour View”, in: David G. Hagopian, org., The Genesis Debate: Three Views on
the Days of Creation (Mission Viejo: Crux, 2001), p. 47-52 (com respostas nas p. 68-70,
89-90, 99-106); e do conceito do dia-era em Hugh Ross, Creation and Time: A Biblical and
Scientific Perspective on the Creation-Date Controversy (Colorado Springs: NavPress,
1994), p. 16-24.
[90]
Não podemos entrar em uma discussão detalhada da hipótese documentária. Eu
recomendo aos leitores os comentários em Gênesis por Wenham, Hamilton e Kidner.
[91]
Sobre linguagem “fenomênica”, v. Bernard Ramm, The Christian View of Science and
Scripture (Grand Rapids: Eerdmans, 1954), p. 67-9; John Calvin, Commentaries on the
First Book of Moses, Called Genesis, trad. John King (Grand Rapids: Eerdmans, 1948,
reimp.), 2 vols., vol. 1, p. 79-80. Tomás de Aquino diz: “Moisés, acomodando-se ao povo
inculto, seguiu as coisas como aparecem aos sentidos” (Herman Bavinck, In the Beginning:
Foundations of Creation Theology [Grand Rapids: Baker, 1999], p. 120; citando Summa
Theologica, 1.70.4).
[92]
Genesis, vol. 1, p. 79-80. V. tb. as considerações de Calvino ao comentar Gn 1.16:
“Moisés estabelece dois grandes luzeiros; mas os astrônomos provam, por razões
conclusivas, que a estrela de Saturno, que, pela grande distância, parece a menor de todas, é
maior que a Lua. Eis a diferença: Moisés escreveu em estilo popular coisas que, sem
instrução, todas as pessoas comuns, dotadas de senso comum, são capazes de entender; mas
os astrônomos investigam com grande labuta o que quer que a sagacidade da mente
humana possa compreender. Mesmos assim este estudo não deve ser reproduzido, nem esta
ciência condenada, porque alguns frenéticos costumam rejeitar o que quer que seja
desconhecido a eles. Pois a astronomia não é apenas prazeirosa, mas também muito útil de
se conhecer: não pode se negar que esta arte desvela a sabedoria admirável de Deus.
Portanto, como os homens engenhosos que se esforçaram neste assunto devem ser
honrados, também os que têm tempo de lazer e capacidade não deveriam negligenciar este
tipo de exercício. Nem quis Moisés nos afastar desta busca ao omitir coisas tais peculiares
à arte; mas, por ter sido ordenado mestre de incultos e rudes e cultos, ele não poderia
cumprir seu ofício de outra forma senão ao descer ao método mais grosseiro de instrução.
Tivesse ele falado de coisas geralmente desconhecidas, os incultos poderiam ter usado
como desculpa que tais assuntos estavam além de sua capacidade. Em último lugar, já que
o Espírito de Deus aqui abre uma escola comum para todos, não surpreende que ele escolha
assuntos mais inteligíveis para todos. Se o astrônomo investiga a respeito das reais
dimensões das estrelas, ele verá que ali é menor do que Saturno; mas isso é algo abstruso,
pois se aparenta algo diferente à vista. Moisés, portanto, prefere adaptar seu discurso ao
uso comum” (p. 86-7).
[93]
The Genesis Flood: The Biblical Record and Its Scientific Implications. Philadelphia:
Presbyterian & Reformed, 1961, p. 229, 240.
[94]
Genesis, vol. 1, p. 80-1; semelhantemente Agostinho, The Literal Meaning of Genesis
(De Genesi ad litteram), 2.7; S. Basílio, Hexaemeron, 3.8.
[95]
Tomás de Aquino parece favorecer uma visão semelhante a isso quando ele disse que o
“firmamento” ou “céu” podem ser “aquela parte da atmosfera onde as nuvens passam por
condensação”, e “as águas que estão acima do firmamento são as mesmas que, quando
evaporaram e levadas acima na atmosfera, são a fonte de chuva” (Summa theologiae, New
York: Blackfriars & McGraw-Hill; London: Eyre & Spottiswoode, 1964], 1a. q. 68, 1, p. 75;
e 1a. q. 68, 2, p. 79) [Em português: Tomás de Aquino, Suma teológica (São Paulo:
Loyola, 2002).]
[96]
Afirma-se às vezes que a linguagem bíblica se ergue no pano de fundo da “cosmologia”
antiga que postulava águas subjacentes, depois uma terra sólida, depois um domo sólido de
“firmamento” para o céu, depois um mar acima desse firmamento (Paul H. Seely, “The
Firmament and the Water Above. Part I: The Meaning of raqia‘ in Gen 1:6-8”,
Westminster Theological Journal 53 [1991]: 227-240; “The Firmament and the Water
Above. Part II: The Meaning of ‘The Water Above the Firmament’ in Gen 1:6-8”,
Westminster Theological Journal 54/1 [1992]: 31-46; “The Geographical Meaning of
‘Earth’ and ‘Seas’ in Genesis 1:10”, Westminster Theological Journal 59 [1997]: 231-55;
“Noah’s Flood: Its Date, Extent, and Divine Accommodation”, Westminster Theological
Journal 66 [2004]: 291-311). Em primeiro lugar, o Oriente Médio Antigo não dispunha de
uma “cosmologia antiga” unificada, e sim de diversos registros — sumérios, babilônicos,
egípcios e hititas — contraditórios em alguns pontos, mas mesmo assim com algumas
semelhanças.
Gênesis 1, como observamos, demonstra algumas semelhanças com esses registros, mas
repudia os relatos pagãos ao apresentar uma opção monoteísta. Agora , por amor ao
argumento, suponhamos que se possa destilar desses relatos pagãos misturados um cerne
de suposições compartilhadas também pelos antigos hebreus. A Bíblia, de todo modo,
descreve as coisas que os hebreus (e também outros leitores) poderiam ver por si próprios.
Supor que o texto ensina visões cosmológicas técnicas é confundir o texto com a totalidade
do que os seus leitores podem ter crido.
Além disso, a interpretação cosmológica moderna dos relatos antigos pode às vezes impor
a ele uma preocupação com o fisicalismo não pertencente a esse tipo de literatura no
ambiente cultural antigo. Por exemplo, a ideia de que o firmamento é literalmente sólido é
infirmada pela afirmação em Gênesis 1.17: Deus dispôs os luzeiros “na expansão
[firmamento] dos céus” (ARC). Se os luzeiros no céu fossem literalmente embutidos em
algo sólido, não poderiam se mover da forma como obviamente fazem. Talvez algumas
pessoas antigas pudessem enxergar o óbvio, bem como serem céticas sobre alegadas
implicações fisicalistas de relatos cosmogônicos pagãos.
[97]
The Encyclopaedia Britannica, 11. ed. (Cambridge/New York: The University Press,
1910) vol. 2, p. 809c.
[98]
Comentário ao livro de Salmos, São Paulo: Fiel, 2009, vol. 4, p. 586.
[99]
John C. Whitcomb, Jr.; Henry M. Morris, The Genesis Flood: The Biblical Record and
Its Scientific Implications (Philadelphia: Presbyterian & Reformed, 1961) oferece um tipo
de documento fundante. A pesquisa em andamento se centraliza no Institute for Creation
Research, que publica o periódico The Creation Research Society Quarterly.
[100]
Esta terminologia não deve ser confundida com o termo mais geral “criacionista”, que
pode ser usado para descrever alguém que crê ter Deus exercido o papel decisivo na origem
das coisas vivas, em oposição ao conceito de que as coisas vivas se originaram por
processos sem propósito e por mero acaso.
[101]
Grand Rapids: Baker, 1977. V. tb. Brent Dalrymple, The Age of the Earth (Stanford:
Stanford University Press, 1991); e a literatura citada em C. John Collins, Science and
Faith: Friends or Foes? (Wheaton: Crossway, 2003), p. 249-50, 397-8.
[102]
A meia-vida de um isótopo radioativo equivale à quantidade de tempo que leva para
exatamente para metade do isótopo decair. Depois de duas meias-vidas (11.400 anos para o
carbono-14), somente 1/4 do original restará e depois de três meias-vidas, somente restará
1/8. Depois de muitas meias-vidas, a quantidade remanescente se torna pequena demais
para prover a medição acurada.
[103]
Young, Creation and the Flood, p. 185-93, 215-7. V. tb. a discussão mais recente em
Collins, Science and Faith, p. 247-53.
[104]
A galáxia de Andrômeda é oficialmente rotulada M31 (número de Messier) e
NGC 224. Uma pesquisa de internet trará com facilidade muitas informações e lindas
fotografias.
[105]
Genesis Flood, p. 370. Mas nos anos que se passaram desde que Whicomb e Morris
escreveram Genesis Flood (1970), alguns aspectos da teoria cosmológica receberam apoio
de dados empíricos detalhados. A linguagem de Genesis Flood pode, portanto, precisar de
reavaliação.
[106]
A maneira mais simples de estimar a distância até a lua é por “triangulação”. Duas
pessoas simultaneamente medem o ângulo exato entre uma estrela e um fator fixo na Lua,
usando dois pontos de vista bastante separados, A e B, no globo. A diferença entre as duas
medidas, combinada com a estimativa da distância entre os pontos A e B na Terra, permite
o cálculo da extensão dos três lados do triângulo composto por A, B e o fator fixo na Lua.
Sa mesma forma, as medidas do ângulo de uma estrela próxima em dois pontos opostos na
órbita da Terra ao redor do Sol permitem uma triangulação para calcular a distância da
estrela.
[107]
Genesis Flood, p. 370, citando “Binary Stars and the Velocity of Light”, Journal of
the Optical Society of America 43 (August 1953): 639.
[108]
Barry Setterfield, The Velocity of Light and the Age of the Universe (Adelaide:
Creation Science Association, 1983); Walter T. Brown, In the Beginning: Compelling
Evidence for Creation and the Flood, 6. ed. (Phoenix: Center for Scientific Creation, 1995).
V. discussão em Douglas F. Kelly, Creation and Change: Genesis 1.1—2.4 in the Light of
Changing Scientific Paradigms (Fearn, Ross-shire: Christian Focus, 1997), p. 144-55.
[109]
Citado em Kelly, Creation and Change, p. 145.
[110]
Para uma avaliação crítica, v. ibid., p. 153-5.
[111]
Ibid., p. 146.
[112]
Starlight and Time: Solving the Puzzle of Distant Starlight in a Young Universe
(Colorado Springs: Master, 1994).
[113]
Pelo fato de as velocidades relativas de nosso sistema solar e da galáxia de Andrômeda
serem pequenas se comparadas à velocidade da luz e por não existirem campos
gravitacionais gigantes na linha de visão de Andrômeda, a relatividade especial e a geral
não afetam significativamente as estimativas de tempo para a luz vir de Andrômeda. Para
um debate maior sobre Humphreys, veja: http://www.reasons.org/resources/
apologetics/unravelling.shtml?main, e um mais técnico
http://www.trueorigins.org/rh_fackmcin1.pdf.
[114]
Creation in Six Days: A Defense of the Traditional Reading of Genesis One (Moscow:
Canon, 1999), p. 193, escreve: “Não há uma boa razão para pensar que a velocidade da luz
é a mesma em todos os pontos do universo. A luz pode viajar bem mais rapidamente entre
estrelas e ainda mais rápido entre as galáxias; isto é, a luz pode viajar com velocidade
muito maior longe de ‘poços de gravidade’ como o Sol e a Terra”. Ele não providencia
notas de rodapé ou indica fontes.
O leitor com pouco conhecimento de física e astronomia pode se perguntar: “Como podem
os cientistas ter boas razões para firmar seus pontos de vista se eles mesmos não viajaram
no espaço interestelar para verificar?”. Os cientistas o fazem por inferência. Os astrônomos
possuem coleções enormes de razões inferenciais que o leitor pode ignorar. Para citar uma:
em 1977, a NASA lançou duas sondas espaciais, Voyager I e Voyager II, em órbitas que as
levariam além de Netuno para o espaço profundo. Já que em 2004 a Voyager I estava mais
de duas vezes mais distante da Terra que Plutão. Tanto a Voyager I quanto a Voyager II
ainda transmitiam dados científicos até a Terra e, nas partes anteriores da jornada, elas
transmitiram fotos de Júpiter, Saturno, Urano e Netuno (v.
http://voyager.jpl.nasa.gov/mission/mission.html e
http://voyager.jpl.nasa.gov/neptune.html). O campo gravitacional do Sol é bem mais fraco
em Netuno que na órbita da Terra e o campo solar na órbita da Rerra é, por sua vez, bem
mais fraco que o campo na superfície da Terra. Qualquer mudança na velocidade da luz
seria detectada imediatamente no tempo necessário para os sinais (carregados por radiação
eletromagnética viajando na velocidade da luz) irem da Terra para um satélie e depois de
volta à Terra.
Na verdade, a teoria da relatividade geral, que depende da velocidade da luz, provou-se
mais exata numericamente que qualquer teoria física conhecida. O sistema pulsar binário
PSR 1913+16 localizado na constelação de Áquila, está uns de 20 mil anos-luz de distância
da Terra. Previsões da relatividade geral sobre este sistema correspondem a dados
experimentais em uma parte em 100 trilhões (1 em 100.000.000.000.000) e os dados
procedem de campos gravitacionais muito altos (o “fundo” de poços gravitacionais
profundos; v. Roger Penrose, Shadows of the Mind: A Search for the Missing Science of
Consciousness [Oxford: Oxford University Press, 1994], p. 227-30; v. tb.
http://astrosun2.astro.cornell.edu/academics/courses//astro201/ psr1913.htm). Sim, é
sempre possível, em tese, que a teoria esteja radicalmente errada e haja alguma explicação
diferente para os dados. Mas não há outra explicação no horizonte para lidar com os dados
nesse nível de precisão.
São essas algumas das muitas razões pelas quais os físicos pensam que a velocidade da luz
é constante.
[115]
“Young Earth Creationism”, in: J. P Moreland e John Mark Reynolds, eds., Criação e
evolução: 3 pontos de vista (São Paulo: Vida, 2006)]; citado por Collins in Science and
Faith, p. 239 (v. tb. p. 395). Collins destaca que “nem todos os criacionistas da Terra jovem
concordam com essa avaliação”, mas também aponta outros que mostram uma cautela
semelhante (p. 239).
[116]
Collins aponta a webpage
http://www.answersingenesis.org/Home/Area/faq/dont_use.asp, “Arguments We Think
Creationists Should NOT Use”, que aconselha as pessoas não usarem nenhum dos
argumento dessa lista específica (Science and Faith, p. 395).
[117]
Genesis Flood, p. 232-3.
[118]
Os leitores desejosos de explorar os detalhes das teorias menos plausíveis podem
consultar Bernard Ramm, The Christian View of Science and Scripture (Grand Rapids:
Eerdmans, 1954), p. 173-232.
[119]
Para o debate mais amplo da teoria de lacuna, v. John S. Feinberg, No One Like Him
(Wheaton: Crossway, 2001), p. 584-7. Ele também lida com outra teoria relacionada, mas
diferente: “Pre-Genesis 1 Creation Theory” (ibid., p. 582-4).
[120]
Henri Blocher faz a mesma observação quando rejeita a teoria do dia-era (que designa
“teoria concordista”): “O uso metafórico de uma palavra como ‘dia’ é uma função de estilo
que não pode ser confundida com a presença do sentido amplo [como ‘longo período’]
dentre os sentidos usuais da palavra” (In the Beginning: The Opening Chapters of Genesis.
Downers Grove: InterVarsity, 1984, p. 44).
[121]
É claro que ao considerarmos as implicações de uma passagem particular ou uma
doutrina particular na Bíblia, sempre existe a questão teológica adicional de a Bíblia ser
completamente verdadeira e se pode confiar nela toda. Sim, ela é confiável. Essa é uma
razão por que vale a pena entender com cuidado o que ela diz. Além de nos dar uma Bíblia
confiável, Deus fez provisão mesmo para quem entende mal alguns detalhes. Em
particular, se alguém entende erroneamente a duração ou o caráter dos dias em Gênesis,
isso por si só não conduz a um desastre em outras grandes áreas teológicas.
Algumas pessoas são atraídas pela ideia de Deus criar o mundo em um período
relativamente curto porque parece magnificar o poder de Deus com mais dramaticidade e
porque seria potencialmente útil na apologética para confrontar incrédulos com uma
evidência clara do poder divino. Simpatizo com essas atrações. Contudo, primeiro, cabe a
Deus, e não a nós, decidir como ele vai criar e quanto tempo vai levar. Ele pode ter razões
além do que podemos entender. Segundo, se um período menor é preferível a um maior,
um único período de 24 horas, ou mesmo menos, não magnificaria o poder de Deus ainda
mais do um período de seis dias? O argumento a favor da superioridade do tempo curto
para a criação parece provar demais. Terceiro, com respeito à apologética, os incrédulos já
possuem bastante evidência a partir da providência comum de Deus (At 14.17). Eles não
têm desculpas para a rebelião (Rm 1.19-21). Deus pode, se desejar, oferecer ainda mais
evidência de um tipo mais dramático (Lc 16.30,31). Mas isso cabe a ele.
Meu ponto básico se mantém: a teologia da criação, e a teologia do controle e bondade de
Deus demonstradas na criação, permanecem fundamentalmente as mesmas,
independentemente de quão curto ou longo seja o tempo para os variados atos de criação.
[122]
Os criacionistas de Terra jovem como John C. Whitcomb, Jr. e Henry M. Morris
afirmam o ponto sobre o solo em The Genesis Flood: The Biblical Record and Its Scientific
Implications (Philadelphia: Presbyterian & Reformed, 1961), p. 233.
[123]
Como foi indicado antes, um dos rótulos da teoria da criação madura, a saber, a teoria
omphalos (da palavra grega para umbigo), especificamente afirma que Adão teria um
umbigo.
[124]
Ouve-se a objeção de que se não podemos confiar em inferências sobre a idade, como
podemos saber que o universo não surgiu há um minuto, junto com nossas memórias? Na
verdade, esse é um problema para os incrédulos, não para os cristãos. O incrédulo não pode
saber mesmo, sem depender em secreto da fidelidade divina. Em contraste, os cristãos
sabem, a partir da Bíblia, que Deus deseja que a revelação geral e a revelação especial ajam
em harmonia. Ouvimos a palavra divinas nas Escrituras e sabemos a partir delas que o
mundo teve um longo passado e que Deus governa o mundo com fidelidade. Essa
segurança garante a realidade do passado (até o tempo da criação) e a integridade de nossas
memórias.
[125]
C. John Collins aponta essa contribuição de Salmos 104.21 em Science and Faith:
Friends or Foes? (Wheaton: Crossway, 2003), p. 154.
[126]
V. a discussão adicional sobre a morte animal em Collins, Science and Faith, p. 152-
160. Precisamos também lembrar que, embora a criação seja “muito boa”, ela está a
caminho da consumação que será ainda melhor.
[127]
Creation and the Flood: An Alternative to Flood Geology and Theistic Evolution
(Grand Rapids: Baker, 1977), p. 53-5. O título da primeira das duas seções neste ponto lê:
“A impossibilidade e ilegitimidade da investigação científica na doutrina da criação
madura”.
[128]
Ibid., 53.
[129]
V. a discussão abaixo sobre a teoria da estrutura, que tenta usar Gn 2.5,6 para
estabelecer a medida de uniformidade na lei nos dias da criação.
[130]
Creation and the Flood, p. 54.
[131]
Ibid.
[132]
Será que o conceito da Terra como globo ocorre em Jó 26.7: “Ele estende o norte
sobre o vazio e faz pairar a terra sobre o nada”? Ou talvez ocorre em Is 40.22: “Ele é o que
está assentado sobre a redondeza da terra”? Lembre-se de que a Bíblia foi formulada para
se dirigir a pessoas comuns no Oriente Médio Antigo e, no final, às pessoas de todas as
outras culturas, não só às culturas tecnológicas modernas. Para fazê-lo, usa linguagem
descritiva comum. “A terra” é o que a pessoa vê embaixo, estendendo-se até o horizonte.
Quando Jó 26.7 diz que Deus “faz pairar a terra sobre o nada” quer dizer que a terra não
precisa de apoio em cima. Jó 26.7 não especifica se a terra na sua maior extensão possível
tem a forma de uma esfera ou de um bloco ou de um plano. Só se nós hoje já tivermos na
mente a imagem de um globo esférico, leremos isso como se estivesse no texto. De modo
semelhante, em Is 40.22 a “redondeza” da terra é o horizonte, que se estende para o lado
com o formato redondo. As pessoas hoje, quase automaticamente, fazem equivaler a
palavra redondeza à forma circular do globo. Mas isso é porque já têm em mente a imagem
do globo. Esses dois casos mostram quão fácil é para alguém hoje importar uma conceito
moderno do planeta Terra como um globo ou ler as passagens como se estivessem em um
texto que não fala de fato dessa forma, mas a pessoas comuns viventes em várias culturas.
[133]
Eles já trabalham nessa questão há séculos. Davis Young provê uma útil história das
tentativas feitas para harmonizar o relato do dilúvio com a evidência geológica (The
Biblical Flood: A Case Study of the Church’s Response to Extrabiblical Evidence [Grand
Rapids: Eerdmans, 1995]). Paul H. Seely menciona a evidência mais recente que produz
ainda mais problemas para a geologia diluviana (“Noah’s Flood: Its Date, Extent, and
Divine Accommodation”, Westminster Theological Journal 66 [2004]: 291-311, esp. p.
298-303).
[134]
Esta abordagem é exposta por C. John Collins, “Reading Genesis 1:1—2:3 as an Act
of Communication: Discourse Analysis and Literal Interpretation”, in: Joseph Pipa, Jr.;
David Hall, orgs., Did God Create in Six Days? (Taylors: Southern Presbyterian, 1999), p.
131-51; Science and Faith: Friends or Foes? (Wheaton: Crossway, 2003), p. 77-96; e
Genesis 1—4: A Linguistic, Literary, and Theological Commentary (Phillipsburg:
Presbyterian & Reformed, 2006). Minha explicação não concorda com a de Collins em
todos os pontos, mas ainda pertence à mesma categoria geral.
[135]
A concepção e o nascimento de Cristo envolvem outra exceção; mas mesmo aí vemos
o envolvimento de Maria como mãe humana.
[136]
Precisamos temporariamente deixar de lado as disputas sobre microevolução e
macroevolução e analisar o ponto principal de Gn 1.
[137]
Algumas pessoas argumentam que Deus teve de recomeçar o trabalho para responder à
queda humana, que (talvez) tenha ocorrido no primeiro dia da semana. Todavia, 1) não
sabemos em que dia da semana a queda ocorreu; 2) depois da queda, Deus começa a obra
da redenção — isso não equivale a recomeçar a criação; 3) a descrição completa de Gn 2.1-
3 apresenta o padrão de seis-para-um, derivado da criação; portanto, independe da queda
posterior no pecado. Da mesma forma, a queda não deve ser importada na nossa definição
do sétimo dia.
[138]
Esta posição é representada no “Report of the Committee to Study the Views of
Creation”, Minutes of the Seventy-First General Assembly ... of the Orthodox Presbyterian
Church (Willow Grove: Orthodox Presbyterian Church, 2004), p. 218-9.
[139]
Note a afirmação de Agostinho do sétimo dia eterno: “Ora o sétimo dia não tem
crepúsculo. Não possui ocaso porque Vós o santificastes para permanecer eternamente.
Aquele descanso com que repousastes no sétimo dia, após tantas obras excelentes e
sumamente boas — as quais realizastes sem fadiga — significa-nos, pela palavra da Vossa
Escritura que também nós depois dos nossos trabalhos que são bons porque no-los
concedestes, descansaremos em Vós, no sábado da Vida Eterna” (Confissões, 13.36.51).
John Murray comenta: “Há uma presunção mais forte em favor da interpretação deste
sétimo dia não como um que terminou em certo ponto na história, mas que todo o período
subsequente ao fim do sexto dia é o sábado de descanso aludido em Gênesis 2.2” (Murray,
Principles of Conduct : Aspects of Biblical Ethics. Grand Rapids: Eerdmans, 1957, p. 30).
V. tb. Henri Blocher, In the Beginning : The Opening Chapters of Genesis (Downers
Grove: InterVarsity, 1984), p. 44, 56-7; Franz Delitzsch, A New Commentary on Genesis
(Edinburgh: T. & T. Clark, 1888), p. 110; e Johannes Oecolampadius: “se você agora
prestar atenção à natureza divina [i.e.,[i.e., o descanso de Deus ao invés do humano] o
sétimo dia continuará para sempre” (D. Io. Oecolampadii in Genesim Enarratio . Basil,
1536, p. 27b, comentando em Gn 2.2). O latim de Oecolampadius é o seguinte: “Nam
operatur, & dum operatur quiescit, quandoquidem sola sua voluntate & verbo rem omnem
perficit. Si ipsam divinam naturam attenderis, dies ille septimus nunc semper durabit. Nos
juxta nostrum modum intelligendi septem dies facimus, apud ipsum tamen uno momento
quodammodo comprehenduntur. Non possumus divina illa nostris corporeis comparare.
Apud Ioannem habemus dictum: Pater meus usque operatur, & ego operor. Hic: Quievit.
Illa facile possunt conciliari. Quievit deus ne nova opera conderet. Operatur, quia dedit
illam virtutem rebus parturiendi fructus suos, ut initio decrevit, quae omnia suo verbo
contingunt. Ita in ipso sumus & movemur”.
[140]
Alguns críticos da teoria do dia analógico se preocupam que mencionar uma
“analogia” dissolva o caráter histórico da obra de Deus. Não, não dissolve. O padrão de
Lv 25 — anos sabáticos e jubileu — ilustram o tipo de analogia que temos em vista.
Períodos mais longos (períodos de anos e semanas de anos) são análogos aos menores,
períodos de sete dias. Os períodos são reais e as atividades de trabalho, descanso e
libertação que acontecem neles são também reais — mesmo que os detalhes do tipo de
descanso e trabalho difiram, dependendo de olharmos a dias ou anos ou semanas de anos.
Da mesma forma, Gn 1 indica que o homem deve imitar a Deus em muitos aspectos,
incluindo não só o exercício de domínio, mas no padrão de trabalho e descanso. Nos
detalhes, porém, o homem não trabalha da mesma forma que Deus faz, nem realiza as
mesmas tarefas na mesma ordem precisa.
No caso dos anos sabáticos, a Bíblia especifica quanto tempo está envolvido quando o
período em questão é medido pelos movimentos dos corpos celestiais. No caso dos dias da
criação, não temos esta especificação. Mas a nossa falta de conhecimento detalhado sobre a
medição de tempo não destrói o caráter genuíno da analogia.
[141]
V. a discussão mais ampla da teoria de dia analógico em Collins, “Reading Genesis
1:1—2:3”; Collins, Science and Faith, p. 77-96.
[142]
Genesis: An Introduction and Commentary, Tyndale Old Testament Commentary.
Downers Grove: InterVarsity, 1967, p. 47 [Em português: Gênesis: introdução e
comentário (São Paulo: Vida Nova, 1991)].
[143]
Sl 104.23 oferece um exemplo onde a manhã começa um dia de trabalho, que é
seguida pela tarde. Para saber mais discussão, v. H. R. Stroes, “Does the Day Begin in the
Evening or Morning”, Vetus Testamentum 16 (1966): p. 460-75; citado por Kidner,
Genesis, p. 47.
[144]
Para um valioso debate posterior sobre os “dias”, v. Collins, Science and Faith, p.
360-7.
[145]
Edward T. Hall, The Silent Language (Garden City: Doubleday, 1959), esp. p. 23-41;
Robert Levine, A Geography of Time (New York: HarperCollins, 1997); Robert Levine;
Ellen Wolff, “Social Time: The Heartbeat of Culture”, in: E. Angeloni, org., Annual
Editions in Anthropology 88/89 (Guilford: Dushkin, 1988), p. 78-81.
[146]
Robert Levine observa: “Uma das diferenças mais significativas no ritmo da vida é se
as pessoas usam a hora do relógio para agendar o começo e o fim de atividades ou se as
atividades são acontecem segundo sua própria agenda espontânea. Essas duas abordagem
são conhecidas, respectivamente, como viver pelo tempo do relógio e viver pelo tempo do
evento” (Geography of Time, p. 82). Levine e Wolff falam do “tempo do relógio” e do
“tempo social” (“Social Time”, p. 79), V. tb. Robert Lauer, Temporal Man: The Meaning
and Uses of Social Time (New York: Praeger, 1981). Apresentei minha própria
terminologia ao falar sobre a orientação pelo relógio e orientação interativa. Todavia, a
diferença é reconhecida por vários autores que se valem de terminologias variadas.
[147]
V., p. ex., Levine, Geography of Time, p. 81-100: “a vida pelo tempo de relógio está
claramente em dissonância com quase toda a história de que se tem registro” (p. 81-2).
[148]
“Precisamos não simplificar demais a imagem das culturas antigas. Algumas delas,
antigas e contemporâneas, não nos proveram nenhuma aparelhagem especial para medição
de tempo além do movimento do sol, da lua e das estrelas. Mesmo nessas culturas, o
movimento do sol e a oscilação do dia e da noite servem de pano de fundo não humano e
objetivo, tornando as pessoas conscientes de que o tempo transcende seus horizontes
individuais e sociais.
No Oriente Médio Antigo, uma casta profissional de sacerdotes e sábios desenvolveu o
interesse mais focado nam medição de tempo. Tão cedo quanto o Império Antigo no Egito
(2600-2200 a.C.) a noite consistia em 12 subdivisões baseadas na ascensão de algumas
estrelas e o dia, da mesma forma, era subdividido em 12 porções, que podiam ser medidas
grosseiramente por um relógio de sol ou de água” (The Encyclopaedia Britannica.
Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1963, vol. 8, p. 49-50). “Relógios de água no Egito em
cerca de 1400 a.C. consistiam em ‘recipientes no formato de baldes’ com um pequeno
buraco no fundo e com marcações do lado de dentro para cada uma das 12 partes do dia”
(Ibid., vol. 5, p. 903). “Havia marcações diferentes para cada mês, porque o tempo total de
luz do dia variava com a época do ano. Assim, o interesse não consistia principalmente na
medição absoluta e exata de intervalos de tempo, mas na divisão prática do dia e da noite
em subunidades convenientes. Essa forma de repartir o dia e a noite em 12 subunidades se
espalhou do Egito para o mundo greco-romano, levando à terminologia para hora (latim
hora; grego hora). O relógio mecânico de escapamento surgiu depois na Europa medieval.
De cerca 1290 em diante há menção de relógios com badaladas públicas, o mais antigo está
na Inglaterra (de 1386) na catedral de Salisbury” (Ibid., vol. 5, p. 933).
Em suma, no Oriente Médio, e depois no Império Romano e na Europa medieval, vemos
alguma experiência profissional relativa ao conceito de medição objetiva do tempo. As
pessoas comuns estar acostumadas com as ideias básicas (em especial na Europa medieval
tardia, se um relógio de catedral informa as horas para a cidade toda!). Todavia, o tempo
medido pelo relógio não dominava ou controlava as práticas culturais, o que ocorreria no
compasso mais natural dos ritmos humanos de trabalho e descanso.
[149]
Quem afirma a teoria do dia de 24 horas pode responder que, é claro, não podemos
sair de nossa condição e conhecer diretamente quanto tempo os dias duraram. Sabemos
porque Deus nos disse “dias”. Deus, que não está sujeito às nossas limitações, sabe; e se ele
sabe, pode nos contar. Concordo com a maior parte desta resposta; mas ela erra em dois
pontos cruciais. Primeiro, não podemos ficar fora da condição de criatura a fim de obter o
ponto de vista divino da linguagem analógica e determinar com precissão todos os pontos
da analogia. Isto é, não podemos especificar exatamente como os dias da obra divina da
criação são como os nossos dias humanos de trabalho, não mais do que podemos
especificar exatamente como a Paternidade de Deus se assemelha à paternidade humana.
Nos dois casos podemos ter um começo e especificar alguns pontos da analogia. Mas
nunca evitamos o mistério.
Segundo, temos dificuldades insolúveis ao tentar especificar para nós o significado de
“extensão de tempo” dos dias 1 a 3 quando tentamos calculá-lo com algum padrão objetivo
de medição. Construímos a partir de Gn 1 por várias etapas quando tentamos alcançar a
precisão. E não podemos alcançar a precisão a não ser que tenhamos um padrão público e
claro de medição para aplicar — movimentos de corpos celestiais, relógios de corda, senso
psicológico humano da passagem do tempo, relógios de celso, velocidade da luz, ou
qualquer outro meio. Isso é parte de nossa condição criada. Se concedermos que o universo
operou segundo as leis científicas atuais nos seis dias da criação, então teremos
fundamentos para extrapolar retroativamente e obter estimativas de tempo. Mas esse
pressuposto de constância das leis nos seis dias é algo que o criacionista da Terra jovem
normalmente nega.
Podemos colocar de outra forma. O que é um “dia” sem o sol? Quando tiramos o sol, não
ficamos com a atividade laboral seguida de descanso? Então esse padrão de trabalho
seguido do descanso é uma analogia intrínseca para entender “dia”.
Terceiro, como já observamos, as pessoas tendem hoje a impor a Gn 1 o preconceito forte a
favor da orientação pelo relógio, em lugar da orientação interativa; portanto, elas perdem
por completo o fato de Gênesis parecer falar aos israelitas usando a orientação interativa,
concentrada no ritmo humano de trabalho e descanso. Os sete dias realmente são sete dias,
com tardes e manhãs depois dos primeiros seis dias. Não há ilusão aqui. Mas o adepto da
orientação pelo relógio se sente ameaçada a não ser que possa saber de quantos tiques de
relógios estamos falando.
É claro que mesmo as pessoas cuja cultura estimula em sentido primário a orientação
interativa com o tempo estão cientes do padrão de dia e noite governado pelo sol. Para elas,
o termo “dia” se associa ao ritmo de trabalho e descanso e ao ritmo do movimento do sol.
Mas a narrativa de Gn 1 fala da situação em que o “luzeiro maior” não existiu até o quarto
dia. Só resta o sentido interativo para entender o padrão dos três primeiros dias. A presença
do sentido interativo nos primeiros três dias também nos convida a estender seu sentido
como predominante nos dias remanescentes. Daí, instintivamente, os leitores antigos não se
concentram na questão da extensão do tempo medida pelo relógio.
[150]
V. esp. Nicolaas H. Ridderbos, Is There a Conflict Between Genesis 1 and Natural
Science? (Grand Rapids: Eerdmans, 1957); Meredith G. Kline, “Because It Had Not
Rained”, Westminster Theological Journal 20 (1958): p. 146-57; “Space and Time in the
Genesis Cosmogony”, Perspectives on Science and Christian Faith 48/1 (1996): p. 2-15;
note a resposta ao artigo de Kline “Because It Had Not Rained” em Derek Kidner,
“Genesis 2:5, 6: Wet or Dry?” Tyndale Bulletin 17 (1966): p. 109-14. V. tb. a discussão
adicional sobre a visão de estrutura em apêndice 1.
[151]
V., em particular, Lee Irons; Meredith G. Kline, “The Framework View”, in: David G.
Hagopian, org., The Genesis Debate: Three Views on the Days of Creation (Mission Viejo:
Crux, 2001), p. 217- 56, esp. p. 236-47, que rende o padrão de dias como representação
analógica do “registro superior” da habitação de Deus no céu invisível dos anjos. Esta
elaboração não estava presente no desenvolvimento inicial da visão de estrutura por Arie
Noordtzij e N. H. Ridderbos.
[152]
Ibid., p. 220.
[153]
Ibid., p. 221.
[154]
Genesis, p. 54-5.
[155]
Ibid., p. 55
[156]
“The Religious Value of Myths in the Old Testament”, in: Samuel H. Hooke, In the
Beginning (Oxford: Oxford University Press, 1947), p. 161; citado em Kidner, Genesis, p.
55. Muitas pessoas se preocupam com o fato de o sol, a lua e as estrelas terem sido criados
no quarto dia porque não parece se encaixar no relato científico predominante. Alguns
intérpretes dizem que os corpos celestiais na verdade foram criados muito antes, mas Deus
“fez com que funcionassem” como agora o fazem ao remover uma camada espessa de
neblina e nuvens que antes os ocultava da terra. Mas no contexto de Gn 1, o verbo chave
fez (hebraico ‘asah) não significa apenas “fazer funcionar”. Sem dúvida inclui ou implica a
ideia de criação real ou “fazer”. Em Gn 1.26, onde Deus se propõe a “fazer” o homem,
encontramos a palavra hebraico ‘asah, “fazer”, Então em Gn 1.27, onde Deus “criou o
homem”, encontramos o verbo especial para “criar” (hebraico bara’). Em Gn 1.21: “Criou
[hebraico bara’], pois, Deus os grandes animais marinhos”. No v. 25, “e fez [hebraico
‘asah Deus os animais selváticos”. No contexto de Gn 1, não há muita diferença nas
implicações dos dois verbos hebraicos.
Sugiro que a diferença de ponto de vista entre os leitores antigos e atuais nos ajuda a
entender. O que é o Sol? Para o leitor informado pela ciência planetária, é uma grande bola
de plasma de hidrogênio,m cujo centro quente gera energia termonuclear. Segundo a
ciência dominante, o Sol existia antes mesmo de a vida vegetal mais primitiva surgir na
terra. Mas o que “o luzeiro maior” (Gn 1.16) quer dizer para o leitor antigo? Como o resto
de Gn 1, é uma linguagem fenomênica. “O luzeiro maior” é o disco brilhante de luz que os
seres humanos veem no céu. O fenômeno visual apenas não existia na terra até a atmosfera
ser limpa. Deus realizou o fenômeno no quarto dia.
Os leitores atuais possuem dificuldades aqui principalmente por causa de uma cosmovisão
associada à ciência moderna (e em alguma medida de pensamento filosófico herdado de
Aristóteles) ter nos dado concepções distorcidas sobre a realidade. Segundo o ponto de
vista típico da atualidade, a bola de plasma de hidrogênio a 150 milhões de quilômetros de
distância da terra é real; o disco visível no céu é mera aparência. Discordo. V. minha
análise sobre o que é real no Cap. 16.
Na verdade, ao escolher se concentrar no sol como fenômeno visível, a saber um disco
brilhante, Deus pode se dirigir às pessoas de todas as culturas do mundo. Elas podem
observar o Sol como um disco. Em contrapartida, se a Bíblia escolhesse falar do Sol como
uma bola de plasma de hidrogênio a 150 milhões de quilomêtros de distância, a informação
só não seria hermética para quem contasse com a informações especiais derivadas da
ciência moderna. Assim, a Bíblia permanece culturalmente universal, ao passo que que um
ponto de vista científico atual (embora verdadeiro o suficiente em sua esfera) não conta
com relevância cultural. Embora a Bíblia pareça tola para quem se orgulha do
conhecimento moderno especial, ela é incrivelmente sábia, pois entendemos os propósitos
de Deus (1Co 1.18-31).
[157]
Cornelius Van Til usa particularmente a expressão “pensar os pensamentos de Deus
após ele” para enfatizar a presença e a dependência de Deus: “Contra isso [o pensamento
autônomo moderno sobre a ciência], o cristianismo sustenta que Deus é o criador de todos
os fatos. Não há, portanto, fato bruto nenhum. Assim, o pensamento de Deus é colocado
por trás de cada fato. Desse modo, o pensamento humano está sujeito ao pensamento de
Deus na interpretação de cada fato. Não há um único fato que o homem possa interpretar
corretamente sem referência a Deus como o criador. O homem não pode verdadeiramente
aplicar a categoria de causalidade a fatos sem o pressuposto de Deus. Deus causou todos os
fatos encontrados em certas relações entre si. O homem precisa buscar descobrir essa
relação” (Christian-Theistic Evidences. Philadelphia: Westminster Theological Seminary
syllabus, 1961, p. 86). V. tb. The Defense of the Faith, 2. ed. (Philadelphia: Presbyterian &
Reformed, 1963), p. 31-50.
[158]
Van Til, Christian-Theistic Evidences, p. 117.
[159]
Para uma reflexão detalhada sobre as diferenças, v. Cornelius Van Til; John M. Frame,
The Doctrine of the Knowledge of God (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1987) [Em
português: A doutrina do conhecimento de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)].
[160]
Para um debate mais amplo dos conceitos cristão e não cristão da transcendência e
imanência, v. Frame, Doctrine of the Knowledge of God.
[161]
Dan McCartney, “Ecce Homo: The Coming of the Kingdom as the Restoration of
Human Vicegerency”, Westminster Theological Journal 56/1 (1994): p. 1-21.
[162]
V., p. ex., T. Rees, “Stoics”, in: James Orr et al., orgs., The International Standard
Bible Encyclopedia (Chicago: Howard-Severance, 1930), 5 vols., vol. 5, p. 2855.
[163]
V. a discussão em Vern S. Poythress, “Reforming Ontology and Logic in the Light of
the Trinity: An Application of Van Til’s Idea of Analogy”, Westminster Theological
Journal 57 (1995): 187-219.
[164]
V. o debate adicional no Capítulo 14.
[165]
De Herman Bavinck: “Por essa razão, o milagre não é a violação da lei natural e a
intervenção na ordem natural. Do lado de Deus é um ato em que Deus não age de forma
mais imediata e direta — como sua causa — que em qualquer ocorrência comum e, no
conselho de Deus e no plano do mundo, ocupa um lugar mais ordenado e harmonioso que o
fenômeno natural” (In the Beginning: Foundations of Creation Theology. Grand Rapids:
Baker, 1999, p. 250).
[166]
Para um debate mais amplo sobre o problema do mal, v., p. ex., C. John Collins, The
God of Miracles (Wheaton: Crossway, 2000), p. 156-62.
[167]
Para um debate extenso e atual, v. o excelente livro de John M. Frame, A doutrina de
Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2014). A doutrina de Deus influencia a teologia da ciência
de muitas formas, não só no ponto da soberania divina, de forma que todo o livro oferece
um pano de fundo útil para nós.
[168]
Isto ilustra a famosa questão de universais e particulares, ou entre o um (o universal) e
o muitos (os particulares), a que Cornelius Van Til dedicou muita atenção. Veja Cornelius
Van Til, The Defense of the Faith, 2. ed. (Philadelphia: Presbyterian & Reformed, 1963); A
Survey of Christian Epistemology (s.l.: den Dulk Christian Foundation, 1969).
[169]
O pensamento de Gregório de Nissa é semelhante: “Pelo fato de Deus ter feito todas as
coisas em sabedoria, não há limite à sua sabedoria (pois “seu entendimento”, diz a
Escritura, “é infinito” [Sl 147.5]), o mundo que está delimitado por limites próprios não
pode conter dentro de si o registro da sabedoria infinita” (Answer to Eunomius’ Second
Book, in: Philip Schaff; Henry Wace, orgs., A Select Library of Nicene and Post-Nicene
Fathers of the Christian Church, 2nd series. Grand Rapids: Eerdmans, 1979, reimp.,
14 vols., vol. 5, p. 262. Da mesma forma, William Young afirma os atributos divinos da
verdade, baseando sua visão em Agostinho [Foundations of Theory (Nutley: Presbyterian &
Reformed, 1967), p. 105-6; Agostinho, Soliloquia 2.2; De Libero Arbitrio, 2.12-15;
Anselmo, De Veritate 1, 9.]).
[170]
É claro, os seres humanos podem machucar outros verbalmente pelo uso intempestivo
e de má-fé da verdade. Nesses casos, a falha moral pertence ao ser humano, não à verdade
em si. Precisamos falar “a verdade em amor” (Ef 4.15) se queremos nos conformar às
verdades morais sobre o falar.
[171]
Stephen Prickett parece ter chegado a conclusões semelhantes ao analisar o sentido:
“Se, parece seguir o argumento, regredirmos o suficiente sobre o sentido, mesmo além dos
ditados cotidianos da razão, ciência ou direito, encontramos apenas ceticismo humano ou
metafísica, em outras palavras, Deus. Se, como Stein e Hart parecem concordar, o sentido
está garantido por Deus em sentido último, não precisamos do ‘santo Graal’ dos teólogos,
uma ‘prova’ para Deus. O próprio conceito de ‘prova’ é sem sentido sem Deus” (Narrative,
Religion, and Science: Fundamentalism Versus Irony, 1700-1999. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002, p. 220).
[172]
V., p. ex., John M. Frame, The Doctrine of God (Phillipsburg: Presbyterian &
Reformed, 2002), p. 119-59 [Em português: A doutrina de Deus (São Paulo: Cultura Cristã,
2014)].
[173]
V. o debate sobre o reducionismo no Capítulo 15. John Jefferson Davis (The Frontiers
of Science and Faith: Examining Questions from the Big Bang to the End of the Universe
[Downers Grove: InterVarsity, 2002]) expressa insatisfação com os “problemas”
envolvidos no entendimento calvinista tradicional da predestinação (p. 59). Seus instintos
ao rejeitar soluções reducionistas em outros pontos do livro poderiam lhe servir bem aqui,
pois ele poderia ter observado que os alegados problemas com a certeza de salvação e a
oferta do evangelho procedem de abordagens reducionistas sobre o sentido da verdade
divina.
[174]
V. discussão adicional em J. P. Moreland, Christianity and the Nature of Science: A
Philosophical Investigation (Grand Rapids: Baker, 1989), p. 139-212. O que designo
“empirismo”, Moreland subdivide em “fenomenalismo” (A. J. Ayer e positivismo lógico) e
“empirismo construtivo” (Bas C. van Fraassen).
[175]
Se entendi bem, esta é a posição de Roy Bhaskar, Scientific Realism and Human
Emancipation (London: Verse, 1986), p. 92: “... explicação e redescrição de extratos mais
profundos da realidade. No processo contínuo da ciência, enquanto margens mais
profundas e amplas da realidade se tornam conhecidas...”. Da mesma forma, Alister
McGrath afirma a realidade estratificada (A Scientific Theology [Grand Rapids: Eerdmans,
2001-2003], 3 vols., vol. 3, p. 82-4). Acerca do “realismo crítico dialético”, v. Alan G.
Padgett, Science and the Study of God: A Mutuality Model for Theology and Science
(Grand Rapids: Eerdmans, 2003), esp. o cap. 2.
[176]
Pode-se ler sobre a mudança em qualquer exposição popular da relatividade. V., p. ex.,
Barry Parker, Einstein’s Brainchild: Relativity Made Relatively Easy! (Amherst:
Prometheus, 2000). Para um debate mais completo e histórico, v. A. d’Abro, The Evolution
of Scientific Thought from Newton to Einstein, 2. ed. (New York: Dover, 1950).
[177]
Albert Einstein propôs a Teoria Especial sa Relatividade em 1905. A primeira
contribuição em direção à mecânica quântica apareceu alguns anos antes, na apresentação
de Max Planck em 1901 sobre radiação. Ao mencionarmos a relatividade primeiro, temos
as datas invertidas? Analiso como os cientistas descreveriam a maçã vermelha usando
teorias coerentes e bem-construídas. A relatividade especial veio a ser de uma só vez em
1905 como uma teoria completa. Em contrapartida, a teoria quântica cresce aos poucos
com a adição de pedaços avulsos, até chegar à síntese mais satisfatória em 1925-1926
(Schrödinger, Heisenberg e Dirac). E mesmo a síntese precisou de mais desenvolvimento
da eletrodinâmica quântica a fim de explicar de modo mais completo o caráter da luz. Veja
A. d’Abro, The Rise of the New Physics: Its Mathematical and Physical Theories (New
York: Dover, 1951). A introdução não técnica às ideias básicas da mecânica quântica se
encontra em J. C. Polkinghorne, The Quantum World (London: Longman, 1984); Nancy R.
Pearcey; Charles B. Thaxton, The Soul of Science: Christian Faith and Natural Philosophy
(Wheaton: Crossway, 1994), cap. 9 [Em português: A alma da ciência: fé cristã e filosofia
natural (São Paulo: Cultura Cristã, 2005)].
[178]
Minha explicação ainda simplifica. Estes “corpúsculos” de luz não são de todo
corpusculares de modo correspondeente às intuições comuns sobre bolas de golfe e de
gude. Elas demonstram uma interrelação complexa de propriedades de onda e partícula,
não integradas a figura intuitiva baseada em bolinhas de gude ou ondas de água.
[179]
No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do
pensamento filosófico, trad. Guilherme Vilela Ribeiro; Rodolfo Amorim Carlos de Souza
(São Paulo: Hagnos, 2010).
[180]
Sobre a tendência de alguns cientistas de reduzir sociedades a indivíduos e indivíduos
a genes, v. tb. Richard C. Lewontin, Biology as Ideology: The Doctrine of DNA (New
York: HarperCollins, 1993).
[181]
O realismo crítico de Roy Bhaskar fala sobre a “realidade estratificada” para
reconhecer os vários níveis de análise trabalhados pela ciência. Em princípio, a experiência
humana cotidiana poderia ser um desses níveis. Mas o prestígio da ciência nos tenta a
degradar a experiência cotidiana como mero acidente derivado do arranjo do sistema
nervoso humano. O “real” é o que a ciência encontra em suas construções teóricas mais
profundas e tudo se reduz a esse nível. “Na cultura moderna atribui-se à ciência a
autoridade intelectual para definir como o mundo realmente é” (Nancy Pearcey, “You
Guys Lost”, in: William A. Dembski, org., Mere Creation: Science, Faith and Intelligent
Design [Downers Grove: InterVarsity, 1998], p. 74).
[182]
John Milbank reflete: “Não há nada, para Basílio, ‘por trás’ das aparências, ‘uma base
para a base’ e a natureza é incompreensível porque ‘tudo é sustentado pelo poder do
criador’” (The Word Made Strange: Theology, Language, Culture. Oxford: Blackwell,
1997, p. 98, e a discussão circundante no cap. 4).
[183]
Debates sobre realismo e antirrealismo não raro se concentram principalmente no
status de entidades teóricas, como átomos, elétrons e campos magnéticos. Por levar a sério
a negação da “matéria prima”, mudo o foco das “entidades” para a palavra de Deus: a
palavra de Deus especifica a estrutura e o sentido. Átomos, eléctrons e campos magnéticos
são significativos em uma rede de significado e certos níveis estratificados de explicação
científica. Todos esses sentidos na obra científica humana refletem alguns aspectos da
palavra divina ao governar por completo o mundo. Os sentidos são assim “reais”. Da
mesma forma, maçãs e cachorros são significativos em uma rede de significados da vida
comum. Toda a realidade crítica é constituída por redes de sentido especificadas pela
palavra criacional de Deus.
[184]
Sobre conhecimento como contato com a realidade, em lugar da correspondência
perfeitamente precisa, v. Esther Meek, Longing to Know (Grand Rapids: Baker, 2003).
[185]
The Structure of Evolutionary Theory. Cambridge: Harvard University Press, 2002,
p. 1338, 1342. Veremos a teoria macroevolucionista nos Capítulos 18 e 19; meu ponto aqui
não é discutir a teoria; mas o teorista, que sabe haver beleza.
[186]
Vern S. Poythress, Teologia sinfônica: a validade das múltiplas perspectivas em
teologia (São Paulo: Vida Nova, 2016)]; John M. Frame, Perspectives on the Word of God:
An Introduction to Christian Ethics (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1990); The
Doctrine of God John (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 2002) [Em português: A
doutrina de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2014)]; The Doctrine of the Knowledge of
God (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1987) [Em português: A doutrina do
conhecimento de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)]; v. tb. Vern S. Poythress, God-
Centered Biblical Interpretation (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1999).
[187]
Veja Frame, Perspectives on the Word of God.
[188]
Poythress, Symphonic Theology, p. 47-51; God-Centered Biblical Interpretation, p.
36-47.
[189]
Faço essa simplificação porque Copérnico no início apresentou seu ponto de vista
apenas como hipótese e como uma forma de simplificar o modelo matemático dos planetas.
Ele foi cauteloso e não mencionou o sol literalmente no centro.
[190]
Na verdade, o fracasso de Tycho Brahe ao observar paralaxes (pequenas variações) na
posição das estrelas em períodos diferentes do ano parecia infirmar a teoria copernicana.
Ninguém nesse tempo imaginava que as estrelas se encontrariam a trilhões de quilômetros
(The Encyclopaedia Britannica [Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1963], vol. 2, p. 645).
[191]
Alister McGrath aponta a relação entre a rejeição de Galileu e as polêmicas religiosas:
“[a controvérsia] deve ser colocada no antigo e amargo debate [...] entre o protestantismo e
o catolicismo sobre esse fato constituir uma inovação ou recuperação do cristianismo
autêntico. A ideia da imutabilidade da tradição católica se tornou um elemento integral da
polêmica católica contra o protestantismo [...] A interpretação que ele [Galileu] apresentou
jamais aparecera antes, e foi considerada, só por essa razão, errada” (Science and Religion:
An Introduction. Oxford: Blackwell, 1999, p. 14). V. tb. Richard J. Blackwell, Galileo,
Bellarmine, and the Bible (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1991).
[192]
Também, é possível que o salmo 93 fale em tom metafórico sobre o “mundo” da
atividade humana, usando figuras das atividades físicas (ou estabilidade). De qualquer
forma, é um erro lê-lo como se afirmasse uma teoria científica particular sobre a posição da
terra.
[193]
A teoria especial da relatividade (1905) construiu a equivalência matemática
apropriada entre estados de movimento diferentes sem aceleração. A teoria geral estendeu o
princípio para incluir estados acelerados e estados dentro de campos gravitacionais.
[194]
Mesmo isto não é o fim da discussão, porque a teoria da relatividade geral pode ser
interpretada de mais de uma forma. Alvin Plantinga observa: “Pode-se também interpretar
a teoria da relatividade como nada mais que uma receita para traduzir um quadro de
referências a outro; tomada dessa forma, ela não faz pronunciamentos sobre a existência de
um quadro em repouso absoluto. Tomada assim, a afirmação da existência desse quadro é
até consistente consigo; talvez o quadro em descanso absoluto seja encontrado na maneira
que Deus vê as coisas. (Portanto, pode ser que, na medida exata em que a demonstração
violenta seguir, a terra seja afinal o centro do universo!)” (“Evolution, Neutrality, and
Antecedent Probability: A Reply to McMullin and Van Till”, Christian Scholars Review 21
[1991/1992]: 92n8.)
[195]
Para mais sobre as perspectivas, v. Symphonic Theology: The Validity of Multiple
Perspectives in Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1987). [Em português: Teologia
sinfônica: a validade das múltiplas perspectivas em teologia (São Paulo: Vida Nova,
2016)].
[196]
Hoje, para algumas pessoas, a cifra de 14 bilhões de anos pode também parecer uma
questão de percepção humana comum. Contudo, na verdade, nosso entendimento de longos
períodos é o produto de uma educação complexa na sociedade moderna. O ritmo corporal
de trabalho e descanso é comum aos seres humanos em todos os lugares, dado o caráter
intrínseco ao corpo humano de sono e descanso. Em contrapartida, o conceito de ano é
mais complexo, sendo relacionado na maioria das sociedades pré-modernas à sucessão de
estações. A ideia de um bilhão não é alcançável de imediato. É preciso primeiro do
conceito de dezena, a seguir, do conceito de multiplicação e, então, do conceito de atos
sucessivos de multiplicação. Assim, um bilhão pode ser definido como dez vezes dez vezes
dez — ao todo, oito multiplicações. Isso precisa ser aprendido com um processo complexo.
Todavia, na sociedade moderna, depois de aprendido, ele se torna algo “comum” pela
repetição. Tudo isso demonstra o quanto os conceitos científicos e matemáticos, como o
conceito do bilhão, penetraram na mente moderna. É preciso certo esforço para perceber
que esses conceitos não são simples nem comuns à natureza humana. Deus em sua
sabedoria designou a Bíblia para se dirigir aos seres humanos em todos os lugares, não só a
quem integra as sociedades modernas.
[197]
Basílio e Ambrósio mencionaram “24 horas” no contexto de homilias sobre os dias da
criação (J. Ligon Duncan; David W. Hall, “The 24-Hour View”, in: David G. Hagopian,
org., The Genesis Debate: Three Views on the Days of Creation [Mission Viejo: Crux,
2001], p. 47; de Basílio, Hexaemeron 2.8, in : J. P. Migne et al., org., Patriologia Graecae
[Paris, 1857-1866] vol. 29, p. 50-2; trad. em inglês em Philip Schaff; Henry Wace, orgs., A
Select Library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church [Grand Rapids:
Eerdmans, 1978], 14 vols., vol. 8, p. 64-5; Ambrósio, Hexaemeron 1.10.37, in: J. P. Migne
et al., org., Patrologia latina [Paris 1878-1890], vol. 14, p. 155; trad. em inglês em
Hermigild Dressler et al., orgs., The Fathers of the Church [New York: Catholic University
of America Press, 1961], vol. 42, p. 42). Mas para entender afirmações de fora da cultura
moderna, é preciso prestar atenção à diferença entre a orientação pelo relógio e a orientação
interativa. Quais as associações de sentido do termo “hora”? O sentido pertence ao
contexto moderno? Então a predominância da ciência e da orientação pelo relógio na
prática cultural definem a “hora” em referência última a um padrão de medição
cientificamente preciso, calculável, objetivo e não humano. Ou será que o sentido pertence
ao contexto antigo? No Império Romano, com certeza, havia alguma capacidade de
medição com relógios de água e o costume de dividir o dia natural em 12 partes. Mas onde
os ritmos predominantes são interativos e o tempo nas divisões menores e maiores têm
laços próximos com a atividade humana, “hora” e “dia” ainda são associados a ritmos
humanos conhecidos. Egípcios e romanos dividiram o dia natural em doze “horas”, mas a
“hora” desse dia, para o romano, significava a décima segunda parte do tempo de luz do
dia, quer o tempo total de luz fosse longo ou pequeno quando medido por algum relógio
mecânico. Se considerdas pela orientação moderna, pelo relógio, essas “horas” do dia
natural eram mais longas no verão que no inverno, pois o dia natural era mais longo no
verão. No verão, a “hora” do dia seria mais longa do a “hora” da noite. Quando medida
pelo relógio, a “hora” no dia natural no verão em Roma seria mais longa que a “hora” no
dia natural no Egito, porque o dia natural dura mais em Roma — posicionada mais ao
norte. Sem dúvida, todo o sistema antigo ainda está intimamente relacionado aos ritmos
humanos comuns, não se baseando em aparatos de medição de tempo recônditos,
científicos, objetivos, precisos e quantitativos.
[198]
Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1995, reimp., p. 3-117, esp. p. 9-40.
[199]
Meredith G. Kline, Images of the Spirit (Grand Rapids: Baker, 1980), também
forneceu insumos úteis.
[200]
A conexão entre teofania e a formação de imagens foi explorada antes por Kline,
Images of the Spirit.
[201]
Para um debate mais extenso do conhecimento divino em relação à transcendência e à
imanência, v. John M. Frame, The Doctrine of the Knowledge of God (Phillipsburg:
Presbyterian & Reformed, 1987), p. 11-40 [Em português: A doutrina do conhecimento de
Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)].
[202]
Para uma introdução à linguagem e metáfora, v. Vern S. Poythress, God-Centered
Biblical Interpretation (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1999).
[203]
Sobre o tema de ordem, v. Henri Blocher, In the Beginning: The Opening Chapters of
Genesis (Downers Grove: InterVarsity, 1984), p. 70-4.
[204]
Algumas pessoas argumentam que o homem perdeu a imagem divina na queda; mas é
difícil escapar da implicação de Gn 5.1-3, sem falar de 1Co 11.7; o homem permanece
imagem de Deus em algum sentido. Na Bíblia, não encontramos ainda a expressão
“imagem de Deus” como termo teológico plenamente técnico; na verdade, como parte de
afirmações mais amplas sobre o caráter do homem, que ainda imita a Deus em alguns
aspectos, mesmo em meio ao pecado. Sobre termos técnicos, v. Vern S. Poythress,
Symphonic Theology: The Validity of Multiple Perspectives in Theology (Grand Rapids:
Zondervan, 1987), p. 55-82 [Em português: Teologia sinfônica: a validade de múltiplas
perspectivas em teologia (São Paulo: Vida Nova, 2016)].
[205]
Webster’s Ninth New Collegiate Dictionary (Springfield: Merriam-Webster, 1987).
[206]
Sobre a irredutibilidade do propósito à mera física, v. Michael Polanyi, Personal
Knowledge: Towards a Post-Critical Philosophy (Chicago: University of Chicago Press,
1958), p. 327-80.
[207]
“Seleção natural” descreve o processo pelo qual alguns, se não todos, descendentes de
uma geração sobrevivem para reproduzir os descendentes da próxima geração. Os
sobreviventes se reproduzem e são mais bem adaptados ao ambiente.
[208]
Estranhamente, Stephen Jay Gould conclui seu livro monumental sobre teoria
evolutiva aludindo nas duas orações finais à sabedoria e à árvore da vida: Darwin, diz ele,
estava “vestindo a estrutura do seu pensamento naquela apoteose da conquista humana — a
sabedoria, que o Livro de Provérbios, citando o mesmo ícone que Darwin dois milênios
mais tarde pegaria emprestado, chamado de etz chayim, a árvore da vida. ‘O alongar-se da
vida está na sua mão direita’, pois ‘É árvore de vida para os que a alcançam, e felizes são
todos os que a retêm’” (The Structure of Evolutionary Theory. Cambridge: Harvard
University Press, 2002, p. 1343; v. Pv 3.18)
[209]
Ibid., p. 1342.
[210]
In the Beginning, p. 100: “Ainda que outras referências das Escrituras não resolvam a
questão, recusamo-nos a ser dogmáticos; se alguém insiste no sentido literal, não
objetamos; que ele se garanta vendo a riqueza simbólica da explicação!” Outros, além de
Blocher, mantêm visão semelhante; foco nele por oferecer razões mais explícitas.
[211]
Ibid., p. 99.
[212]
Ibid. No original francês, Blocher tem moitié, mas também provê a expressão inglesa
better half (melhor parte).
[213]
Francis Brown; S. R. Driver; C. A. Briggs, orgs., A Hebrew and English Lexicon of
the Old Testament (Oxford: Oxford University, 1953), p. 854; Ludwig Koehler; Walter
Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament (Leiden/New
York/Köln: Brill, 1996), 5 vols., vol. 3, p. 1030.
[214]
The Book of Genesis: Chapters 1—17, New International Commentary on the Old
Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 178.
[215]
Marcus Jastrow, A Dictionary of the Targumim, the Talmud Babli and Yerushalmi,
and the Midrashic Literature (New York: Pardes, 1950).
[216]
Commentary on Holy Scripture (1708-1710) apud In the Beginning, p. 99-100.
[217]
Um debate sobre esses pontos de vista pode ser encontrado em: Bernard Ramm, The
Christian View of Science and Scripture (Grand Rapids: Eerdmans, 1954), p. 253-93.
[218]
Defendendo a criação por fiat, J. Ligon Duncan e David W. Hall citam Herman
Witsius em tom de concordância: “... porque já que eles [os profetas e o próprio Deus]
expressamente declaram que Deus SOZINHO estende os céus, eles excluem qualquer outra
causa de qualquer tipo; e já que eles adicionaram que Deus estende a terra POR SI MESMO,
somos ensinados que isso é um ato imediato, em que nenhuma causa, nem mesmo uma que
é instrumental e que opera por poder derivado de outro, possui qualquer lugar” (Herman
Witsius, Sacred Dissertations on What Is Commonly Called the Apostles’ Creed.
Escondido: Den Dulk Christian Foundation, 1993, reimp., p. 198; citado com algumas
variações em “The 24-Hour View”, in: David G. Hagopian, org., The Genesis Debate:
Three Views on the Days of Creation [Mission Viejo: Crux, 2001], p. 59-60). A Escritura
em questão vem de Is 44.24. Witsius mantém que a adição das palavras “sozinho" e “por si
mesmo” (só “sozinho” na ARA) excluem todas as causas secundárias. Witsius não
pretende excluir o uso de materiais anteriormente disponíveis que o próprio Deus fez (p.
196; v. Gn 1.6-10). Mas há uma explicação alternativa para Is 44.24 (e seu companheiro,
Jó 9.8). Uma expressão hebraica semelhante para “sozinho” (hebraico lbad com sufixo
pronominal) é usada em outro lugar ao descrever as maravilhas de Deus. Salmos 136.4 diz
“ao único que opera grandes maravilhas…” A primeira “maravilha” que o salmo então
descreve o fazer dos céus (v. 5) e então o estender da terra (v. 6). Também inclui o dividir
das águas do Mar Vermelho (v. 13), onde já vimos que Deus usou um “forte vento
oriental” como uma causa secundária (Êx 14.21). No contexto, “único” não exclui de fato
toda a causação secundária, mas afirma que somente Deus é Deus, e que somente ele tem o
poder de fazer essas maravilhas, ao contrário dos ídolos e ao contrário das insignificantes
habilidades dos seres humanos. Lê-se no versículo 18 do salmo 72 uma forma semelhante:
“Bendito seja o SENHOR Deus, o Deus de Israel, que só ele opera prodígios” . O contexto
imediato no salmo não especifica de forma óbvia qualquer “prodígio”. Convida-nos a
pensar amplamente sobre todos os prodígios que Deus faz — na criação, nos milagres e no
cuidado providencial — de uma forma semelhante à ampla enumeração no salmo 136.
Anteriormente, o salmo 72 menciona misericórdias particulares para com os necessitados e
pobres (v. 12-14). Deveriam elas estar inclusas nos “prodígios”? Ademais, a preocupação
de reconhecer e servir o Senhor somente ocorre em uma série de lugares: “Pois tu és grande
e operas maravilhas; só tu és Deus!” (Sl 86.10; v. tb. Dt 4.35; 1Sm 7.3,4; Ne 9.6; Sl 83.18;
Is 2.11,17; 37.16,20). Esses versículos confirmam que , na cultura dos israelitas, o perigo
real não era uma tentação de ficar fascinado com causas secundárias, mas parar de confiar
em Deus e colocar a confiança em deuses falsos ou na habilidade humana, quer própria
quer de outrem (Sl 146.3-5). Assim, Is 44.24 proclama o poder único de Deus, mas não fala
de jeito nenhum sobre se Deus usou causas secundárias. Herman Bavinck confirma a
propriedade deste tipo de linguagem ao usar “por si mesmo” ao descrever a providência:
“Assim como ele criou o mundo por si mesmo, assim também ele preserva e o governa por
si mesmo. Embora Deus aja por causas secundárias, isto não deve ser interpretado de uma
maneira deísta para significar que elas vêm entre Deus e os efeitos com suas consequências
e as separam dele. “A provisão imediata de Deus sobre tudo estende ao exemplar da
ordem’” (In the Beginning: Foundations of Creation Theology. Grand Rapids: Baker, 1999,
p. 250; Bavinck cita Tomás de Aquino, Summa theologicae 1 Q 22, Art. 3; Q 103, Art. 6; Q
103, Art. 2; e Summa contra gentiles, 3:76ss.).
[219]
De acordo com a hipótese da criação madura, os fósseis podem nos levar ao tempo
ideal, mas as mesmas perguntas permanecem quando tentamos entender os padrões de
evidência no tempo ideal.
[220]
Como introdução, v. Michael Denton, Evolution: A Theory in Crisis (Bethesda: Adler
& Adler, 1985); Philip E. Johnson, Darwin no banco dos réus (São Paulo: Cultura Cristã,
2008); e para o foco especializado no design inteligente e na complexidade irredutível,
Michael Behe, A caixa preta de Darwin: O desafio da bioquímica à teoria da evolução (Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008); William A. Dembski, No Free Lunch: Why
Specified Complexity Cannot Be Purchased Without Intelligence (Lanham/Boulder/New
York/Oxford: Rowman & Littlefield, 2002). Para a defesa da macroevolução sem lacunas,
v., p. ex., Gould, Structure of Evolutionary Theory.
[221]
O movimento do design inteligente produziu uma quantidade significativa de livros
até agora. Um dos mais antigos e inovadores foi Phillip E. Johnson, Darwin on Trial
(Downers Grove: InterVarsity, 1991) [Em português: Darwin no banco dos réus (São
Paulo: Cultura Cristã, 2008)]. V. tb. Johnson, Evolution as Dogma: The Establishment of
Naturalism (Dallas: Haughton, 1990); Michael Behe, Darwin’s Black Box: The
Biochemical Challenge to Evolution (New York: Free Press, 1996) [Em português: A caixa
preta de Darwin: O desafio da bioquímica à teoria da evolução (Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2008)]; e William A. Dembski, No Free Lunch: Why Specified Complexity
Cannot Be Purchased Without Intelligence (Lanham/Boulder/New York/Oxford: Rowman
& Littlefield, 2002); The Design Revolution: Answering the Toughest Questions About
Intelligent Design (Downers Grove: InterVarsity, 2004); William A. Dembski, org., Mere
Creation: Science, Faith and Intelligent Design (Downers Grove: InterVarsity, 1998). Para
um relato histórico, v. Thomas Woodward, Doubts About Darwin: A History of Intelligent
Design (Grand Rapids: Baker, 2003).
[222]
Veja Behe, Darwin’s Black Box. Dembski, No Free Lunch, introduz a ideia mais geral
de “informação complexa especificada” ou “complexidade especificada”. O conceito de
Behe lida especificamente com máquinas biológicas. O conceito de Dembski procura
incluir máquinas biológicas, mas também explora a questão do design de forma muito mais
ampla, incluindo a detecção do design inteligente em textos, artefatos arqueológicos,
investigações criminológicas e sinais possíveis de civilizações extraterrestres. Os dois
conceitos, de Behe e Dembski, não devem ser confundidos. Parece-me que o conceito de
Dembski de informação complexa especificada é amplo demais para meus propósitos, pois
a informação complexa especificada incluiria não só as máquinas biológicas
irredutivelmente complexas de Behe, mas também sistemas biológicos redutivelmente
complexos que pelo menos poderiam ter se conjugado “de modo gradual”, por meio de
uma série de etapas em que cada uma resultaria em uma funcionalidade crescente (v., p.
ex., as próprias considerações de Dembski em No Free Lunch, p. 212, 343ss.). Por isso, o
conceito de Dembski não lida bem a questão a fim de focar na razoabilidade do
gradualismo darwinista.
[223]
George Gaylord Simpson, “Uniformitarianism: An Inquiry into Principle, Theory, and
Method in Geohistory and Biohistory”, in: M. K. Kecht; W. C. Steere, orgs., Essays in
Evolution and Genetics in Honor of Theodosius Dobzhansky (New York: Appleton-
Century-Crofts, 1970), p. 72-81. Simpson nota que a mutação gradual pode resultar em
efeitos somáticos amplos; mas a maioria deles é letal (p. 80). O gradualismo admite tais
efeitos de larga escala, mas ainda postula sua origiem em pequenas diferenças nas
condições iniciais no tempo anterior (p. ex., quando uma única mutação ocorreu).
[224]
Thomas S. Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, 5. ed. (São Paulo: Perspectiva
S.A, 1997), oferece uma exploração pertinente da atmosfera social em que a ciência se
desenvolve. V. tb. Richard C. Lewontin, Biology as Ideology: The Doctrine of DNA (New
York: HarperCollins, 1993).
[225]
“Qualquer dependência de uma força sobrenatural, de um Criador interveniente no
mundo natural por processos sobrenaturais, não é ciência” (Michael Ruse, “Witness
Testimony Sheet, McLean v. Arkansas”, in: But Is It Science? Buffalo: Prometheus, 1998,
p. 300-1). “Por definição, a ciência não pode considerar explicações sobrenaturais [...]
Assim, se um indivíduo tenta explicar certo aspecto do mundo natural por meio da ciência,
precisa agir como se não houvesse forças sobrenaturais em atuação nele” (Eugenie Scott,
“Creationism, Ideology, and Science”, Annals of the NY Academy of Science 775 [June 24,
1996]). Del Ratzsch me indicou essas citações.
[226]
Tower of Babel: The Evidence Against the New Creationism (Cambridge/London:
MIT, 1999), p. 189-96.
[227]
Ibid., p. 191.
[228]
Ibid., p. 194-7.
[229]
Veja Dembski, No Free Lunch, p. 311-79. Para ser justo com Pennock, deve-se notar
que o livro de Dembski é de 2002 e não estava disponível quando Pennock escrevia. O
movimento do design inteligente ainda está se desenvolvendo e Pennock não poderia
antecipar as direções positivas que o movimento pode sugerir para pesquisa. Mesmo assim,
já em 1996 Michael Behe bem distintamente tinha abordado a preocupação de Pennock ao
distinguir a pesquisa de eventos repetidos, onde se podee seguramente assumir regularidade
e eventos de uma vez por todas, como a origem da primeira célula, que pode envolver
exceções a regularidades conhecidas (Behe, Darwin’s Black Box, p. 241-3; v. Woodward,
Doubts About Darwin, p.166-70).
[230]
Tower of Babel, p. 194.
[231]
Francis Crick; Leslie E. Orgel, “Directed Panspermia”, Icarus 19 (1973): p. 341-6.
[232]
Tower of Babel, p. 195.
[233]
No contexto imediato do seu livro, Pennock responde mais explicitamente a Johnson,
Evolution as Dogma; e Johnson, Darwin on Trial. Mas o “criacionismo”, como movimento
mais amplo, está no pano de fundo. Ademais, os livros de Johnson, pelo foco nas fraquezas
do naturalismo, não disseram muito sobre a abordagem teísta alternativa positiva.
[234]
V. tb. Behe, Darwin’s Black Box, p. 241-3, que aborda exatamente esta questão.
[235]
“Is Uniformitarianism Necessary?”, American Journal of Science 263 (March 1965):
223-8: “Ele [Lyell, um dos primeiros desenvolvedores da geologia] postulou outro tipo
bem diferente de uniformidade: afirmava a invariabilidade das leis naturais no espaço-
tempo como condição necessária à contenda de que a referência só precisava ser feita a
processos observáveis ao explicar mudanças passadas. A força principal da proposição
consistia na eliminação da explicação sobrenatural dos fenômenos materiais; pois a
uniformidade nega a intervenção divina (a suspensão das leis naturais) e afirma que a
elucidação da história primeva pertence ao domínio da ciência não, como Buckland poderia
preferir, a uma investigação quase-teológica mais adequada a provar a graça de Deus que
entender os processos naturais” (p. 224). Contudo, a suposição da invariância espacial e
temporal das leis naturais é de modo algum exclusiva da geologia já que se torna uma
garantia para a inferência indutiva que, como Bacon mostrou quase quatrocentos anos
atrás, é o modo básico de raciocinar na ciência empírica. Sem assumir a invariância
espacial e temporal, não temos base para extrapolar do conhecido até o desconhecido e,
portanto, nenhum jeito de alcançar conclusões gerais de um número finito de observações
(p. 226). Pode-se notar que a linguagem sobre “invariância espacial e temporal” oculta uma
ambiguidade. Em uma interpretação, apenas reitera nosso ponto (cap. 1): a lei divina é
onipresente (invariante no espaço) e eterna (invariante no tempo). Gould corretamente
observa que a invariância caracteriza toda a ciência, não só a geologia (p. 227). Assim,
parece Usar uma tautologia. Contudo, na cosmovisão cristã, esse tipo de invariância
deveria ser coerente com a ação diferente de Deus em circunstâncias especiais, como o
caráter coerente de um ser humano o pode levar a ações excepcionais em circunstâncias
especiais. Uma raposa com a experiência prévia de ser perseguida por cães de caça pode
agir excepcionalmente quando se vê perseguida de novo a fim de tentar despistar os cães.
Tudo depende do tipo de “invariância” que se tem em vista. Na prática, os leitores vão
tomá-la como o tipo de invariância que pode ser postulada usando leis impessoais. A
discussão oculta a diferença de conceito entre a visão cristã e a ateísta sobre a lei científica.
Gould está certo em suspeitar dos séculos passados, quando o postulado do catastrofismo
divinamente governado (primeira causa) serviu como alternativa à explicação por meio de
causas secundárias. Mas o triunfo de um tipo de explicação nesses casos não conduz ao
triunfo universal, a não ser que se introduza secretamente um conceito de lei impessoal.
George Gaylord Simpson, em um artigo mais longo, tem espaço para se dedicar ao debate
mais extenso e com nuanças do uniformitarianismo e se concentra corretamente na questão
“preternatural”: a teoria de Hutton [sobre a história geológica] incluía eventos catastróficos,
mas ele os considerou naturalistas e atualistas, isto é, excluindo o miraculoso ou
preternatural e envolvendo só causas secundárias, definidas como forças agora existentes
na natureza (“Uniformitarianism”, p. 48). A discussão de Simpson é bem precisa na
expressão “envolvendo só causas secundárias”. Hutton, um teísta, favorecia as causas
secundárias por razões heurísticas: prometiam prover a explicação para além do fato bruto
de que Deus fizera assim. Note a discussão sobre causas secundárias abaixo.
[236]
Alguém pode se perguntar sobre se a forma de pensar de alguns oponentes do design
inteligente não caiu na mesma armadilha. O mundo inteiro, não só as peças do maquinário
celular que aparentam ter passado pelo design, foi planejado por Deus. O design não
pertence a uma parte só porque não descobrimos um jeito melhor de explicar quando se
apela às leis científicas atuais. Na verdade, as próprias leis científicas constituem o caso
primário de design. O design se mostra não só em um caso particular, como um flagelo
bacteriano, mas em uma lei, como a conservação de energia. Uma vez que entendamos
profundamente que Deus governa o mundo inteiro, começamos a ver que tudo testifica dele
e vemos em todo lugar evidências de seu design. A incredulidade falha em vê-lo, não por
falta de evidência, mas porque a incredulidade suprime a verdade sobre Deus (Rm 1.18-
23), crucial para reconhecer a evidência. Com certeza, as partes que aparentam design e
não podem ser explicadas facilmente pela base naturalista podem se provar particularmente
úteis no debate apologético. Mas deve se ter cuidado para não dar a impressão de que a
incredulidade é inocente até ser confrontada por evidências especiais, como a do design do
flagelo bacteriano. William Dembski, por exemplo, mostra algum cuidado em sua
discussão. Ele distingue claramente um produto que passou por design e do qual podemos
detectar clara evidência de design (No Free Lunch, p. 23, 114). Dembski, ademais, está
justificado ao explorar as maneiras pelas quais a atividade de design divino pode ser como
uma atividade humana, em virtude da criação à imagem de Deus. Contudo, mais poderia
ser dito. Um teólogo poderia desejar que a distinção ontológica entre Criador e criatura
como designers recebesse atenção mais detida e que Dembski tivesse apontado a presença
total do design de Deus. Mas é preciso respeitar o propósito limitado do livro de Dembski.
[237]
Esta terminologia é útil. Mas ela pode ser abusada ao sugerir que, porque usamos uma
palavra comum “causa”, os dois tipos de causa existem no mesmo nível, o que então mina
todo o ponto da distinção.
[238]
John M. Frame, The Doctrine of God (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 2002),
p. 287-8 [Em português: A doutrina de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2014)]; Herman
Bavinck, In the Beginning: Foundations of Creation Theology (Grand Rapids: Baker,
1999), p. 229-60, esp. p. 248-56.
[239]
Sobre transcendência e imanência, v. John M. Frame, The Doctrine of the Knowledge
of God (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1987), esp. p. 13-8 [Em português: A
doutrina do conhecimento de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)].
[240]
O ponto de Deus suprir o fundamento para a racionalidade é feito repetidas vezes em
Cornelius Van Til, The Defense of the Faith, 2. ed. (Philadelphia: Presbyterian &
Reformed, 1963); v. tb. John M. Frame, Apologetics to the Glory of God: An Introduction
(Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1994) [Em português: Apologética para a glória
de Deus: uma introdução (São Paulo: Cultura Cristã, 2011)].
[241]
Pennock (Tower of Babel, p. 190, 192) menciona o deísmo e Spinoza, mas não explora
as diferenças entre as visões diferentes.
[242]
Pennock coloca no pano de fundo a influência do naturalismo ontológico na prática
real da ciência. Ele cuidadosamente distingue o naturalismo ontológico do metodológico a
fim de defender o último. Mas se pode duvidar quão bem os cientistas separam os dois na
prática. Compromissos ontológicos sempre influenciam o juízo de alguém sobre quais
linhas de pesquisa explorar. Por exemplo, se fantasmas não existem, é infrutífero investigá-
los; ao invés disso, investiga-se a psicologia de pessoas que imaginam existirem fantasmas.
Pelo fato de Pennock manter com firmeza e exclusividade o princípio metodológico,
admite que fantasmas podem existir: “Isto não quer dizer, todavia, que as coisas que agora
pensamos ser sobrenaturais necessariamente o são. Quem sabe se, por exemplo, os
fantasmas existem de modo diferent de nossa visão fictícia deles, caso eles se submetam à
lei natural. Nesse caso, poderíamos ter aprendido algo novo sobre o mundo natural (que
pode exigir revisar as teorias atuais) e na verdade não encontramos nada de fato
sobrenatural” (Tower of Babel, p. 389, n. 36). Pennock presume por conveniência que
“nossa visão fictícia [dos fantasmas]” inclui imunidade da lei natural. Mas pode-se duvidar
da precisão disso. Algumas pessoas veem os fantasmas como personalidades, muito como
seres humanos em corpo, mas tendo uma aparência gasosa e poderes finitos análogos aos
dos seres humanos. Eles presumivelmente se veriam sujeitos a muitas leis (por não serem
infinitamente poderosos), de maneira análoga aos seres humanos. O cientista
contemporâneo típico se oporia ao uso de verbas para a investigação de fantasmas, não por
crer que seja, imunes à lei natural, mas por acreditar que eles não existem. Predominam os
fatores ontológicos, em lugar dos metodológicos. Em poucas palavras, a metodologia
jamais opera no vácuo. Ela se justifica com o pano de fundo de pressupostos ontológicos.
[243]
Sobre o papel chave das anomalias na ciência normal e na revolução científica, v.
Kuhn, Structure of Scientific Revolutions.
[244]
Darwin’s Black Box.
[245]
Tower of Babel, p. 191, citado anteriormente.
[246]
Alan Padgett recomenda um estudo interdisciplinar nesse caso (Science and the Study
of God: A Mutuality Model for Theology and Science [Grand Rapids: Eerdmans, 2003],
p. 84). Ele o compara a um caso hipotético em que os astrônomos descobrem sinais de
inteligência extraterrestre e pedem a ajuda de antropólogos e linguistas para analisar os
sinais. Da mesma forma, pesquisadores celulares podem requisitar um estudo
interdisciplinar de sinais de vida inteligente em uma célula. Sim, tal resposta parece
razoável. Ao lidar com novos desafios, as fronteiras exatas entre as disciplinas pouco
importam. A expansão dos limites da astronomia, da biologia ou a interação interdisciplinar
pode funcionar; depende muito das eficiências relativas. Mais tarde talvez surgisse a
subdisciplina chamada “estudo da inteligência no sistema solar X” ou “estudo do design
inteligente do interior da célula” que utilizaria uma série de recursos. Tudo isso é
secundário. A questão primária é se podemos razoavelmente esperar detectar inteligência e,
se sim, como. Os defensores do design inteligente afirmam a disponibilidade de muitas
evidências; contudo, por razões ideológicas, pessoas ligadas à ciência e fora dela lutam
muito para não encarar a evidência. A atmosfera reinante hoje quer enterrar a questão
primária e desligitimizá-la com o mantra: isso está “fora dos limites da ciência”. Ao mesmo
tempo, a mesma atmosfera quer dizer a sociólogos, teólogos e outras partes interessadas
que nada pertinente a seus campos foi descoberto na célula. A reação é bem diferente do
que seria, digamos, da descoberta de um sinal carregando informações do espaço sideral.
Suspeita-se, portanto, que a ideologia domina a cena.
[247]
Mmesmo essa “lei” tem uma exceção: “A não ser que Cristo retorne antes de
amanhã”.
[248]
Aqui ignoramos o fato da possibilidade do encontro de uma indeterminação irredutível
no nível quântico, que poderia em tese afetar ocorrências macroscópicas.
[249]
Pode-se ser mais preciso sobre a questão da baixa probabilidade. Se alguém
embaralhar repetidas vezes as 52 cartas de um baralho e então olhar para a ordem exata
resultante das cartas em todo o baralho. Qualquer ordem particular das cartas possui uma
probabilidade bem pequena; contudo alguma ordem de fato ocorrerá. O que torna diferente
a situação do flagelo é que o resultado possui informação especificada complexa, como
Dembski afirma em No Free Lunch. O resultado com informação genética específica do
flagelo é semelhante a embaralhar as cartas e descobrir que os quatro naipes foram
separados e que as cartas de cada naipe foram arrumadas exatamente em ordem ascendente.
Esse resultando seria a evidência do embaralhamento traiçoeiro ou alguma outra
intervenção de designer inteligente do resultado.
[250]
God, the Devil, and Darwinism: A Critique of Intelligent Design Theory (Oxford:
Oxford University Press, 2004), p. 180-90.
[251]
Ibid., p. 184.
[252]
Darwin’s Black Box, p. 40. Agradeço a Del Ratzsch por ter chamado minha atenção
para este ponto.
[253]
Simpson observa corretamente: “A causação histórica do prédio Empire State decorreu
de uma espécie animal [i.e., seres humanos]” (“Uniformitarianism”, p. 87). Na prática, os
princípios biológicos estritos são suplementados pelo conhecimento da intencionalidade
humana, que, como notamos, não se encontra no mesmo nível.
[254]
Tecnicamente, a situação com os acordes é mais complicada. Em pianos e alguns
outros instrumentos, a afinação procura manter o “temperamento” igual, isto é, o ajuste que
capacita o instrumento a tocar qualquer partitura. O ajuste é um tipo de meio-termo entre
partituras que tentam criar exatamente a mesma “distância” musical para cada meia-etapa:
a proporcionalidade de 21/12 = 1.059463... Isto obviamente não é simples, mas os acordes
produzidos por ele ainda estão bem próximos das razões simples dos acordes ideais e são
captados pelo ouvido humano como acordes harmônicos simples.