Você está na página 1de 299

Redimindo a ciência

Uma abordagem teocêntrica

Vern S. Poythress
Poythress mostra como o entendimento apropriado da teologia bíblica
possibilita não somente uma, mas muitas harmonizações críveis das verdades
bíblicas e científicas. Ao longo do caminho, ele provê uma defesa profunda
da teoria do design inteligente como um programa viável de pesquisa
científica. Seu exame da beleza matemática inerente ao universo fornece uma
razão convincente adicional para reconhecer a sabedoria e o design
subjacentes à realidade física.
— STEPHEN C. MEYER, diretor do Centro de Ciência e Cultura do Discovery
Institute

Com doutorados no Novo Testamento e em matemática, e comprometido


solidamente com a teologia reformada ortodoxa, Vern Poythress está
qualificado de modo singular para escrever sobre a teologia da ciência.
Ademais, ele é um dos mais profundos teólogos que escrevem na atualidade.
Ao ler este livro, você se maravilhará em como a perspectiva bíblica ilumina
o trabalho da ciência. Poythress lida, é claro, com todas as questões
tradicionais entre a Bíblia e a ciência, como os dias de Gênesis. Mas ele
também mostra que a cosmovisão bíblica é essencial para o próprio trabalho
científico, pois a lei científica não é nada mais que a lei do Deus da Escritura.
Este é de longe o livro mais importante que você lerá sobre o assunto. Eu o
recomendo sem reservas.
— JOHN FRAME, professor de Teologia Sistemática e Filosofia no Reformed
Theological Seminary (Orlando).

Nesta obra altamente original e de profundidade destacada, Vern Poythress


demonstra quão natural é a parceria entre a ciência e o cristianismo. Usando
exemplos de uma variedade de disciplinas científicas, dr. Poythress prescreve
como a ciência e a fé cristã podem interagir de modo a beneficiar e incentivar
o avanço científico e teológico.
— FAZALE RANA, vice-presidente de Science Apologetics, Reasons to Believe

No movimentado mercado de estudos sobre teologia e ciência este livro


preenche uma lacuna. Ele oferece não só a perspectiva teológica enraizada na
Reforma histórica, mas também atende a estratégias de interpretação de
textos bíblicos sobre a natureza e a história subjacentes à doutrina, mas
deixados muitas vezes fora do diálogo. A abordagem do autor é repleta de
nuanças, balanceada e aberta.
— JITSE VAN DER MEER, professor de Biologia e História e Filosofia da
Ciência no Redeemer University College, Ancaster (Ontário, Canadá).

Teologia sólida se encontra com ciência sólida neste livro enquanto Vern
Poythress nos mostra como ver a beleza do caráter de Deus revelado em tudo
que os cientistas estudam no universo criado. Uma análise fascinante,
abrangente, profunda, e de leitura muito fácil, de todos os ramos da ciência
moderna de uma das maiores mentes no mundo cristão atual.
— WAYNE GRUDEM, professor pesquisador de Teologia e Bíblia, Phoenix
Seminary, Scottsdale (Arizona)

Redimindo a ciência será bem recebido por todo cristão reflexivo. A análise
de Vern Poythress do relacionamento entre a ciência e a fé procede de uma
confissão aberta e sem qualificações da crença em Cristo, mediante seu
testemunho pessoal, a avaliação lúcida da natureza da ciência, a análise
cuidadosa da Escritura e a reflexão honesta sobre o estado atual do debate.
Este é um livro sobre teologia criacional e teologia bíblica, bem como sobre
apologética e instrução pastoral. Poythress demonstra o caráter revelacional
do mundo à nossa volta, especialmente na afirmação de que as “leis” da
ciência são nada mais que descrições da obra soberana do Deus todo-sábio e
todo-poderoso. Ele expõe os pressupostos não examinados da empreitada
científica moderna, mostrando que ela, como qualquer cosmovisão, dispõe,
na base, de uma natureza religiosa. Ele provê uma exegese cuidadosa e
inteligente dos textos relevantes da Escritura, em especial de Gênesis 1-9, ao
demonstrar que os cristãos podem pensar com racionalidade sobre a
empreitada científica sem comprometer suas mais caras convicções bíblicas.
Acima de tudo, Poythress conduz os leitores para além dos detalhes e
obstáculos do debate entre a ciência e a fé no nosso Senhor Jesus Cristo — a
consumação da redenção e da ciência. Os cristãos comprometidos com a
implementação da Grande Comissão e do mandato cultural encontrarão em
Redimindo a ciência um recurso muito útil para seus esforços.
— T. M. MOORE, pastor de ministérios de ensino da Cedar Springs
Presbyterian Church, Knoxville (Tennessee); autor de Consider the Lilies: A
Plea for Creational Theology [Olhai para os lírios: um clamor pela teologia
criacional]
Copyright @ 2006, de Vern S. Poythress
Publicado originalmente em inglês sob o título
Redeeming Science: A God-Centered Approach
pela Crossway Books – um ministério de publicações Good News Publishers,
Wheaton, Illinois, 60187, EUA.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por


EDITORA MONERGISMO
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620
www.editoramonergismo.com.br

1ª edição, 2019

Tradução: Guilherme Cordeiro


Revisão: Felipe Sabino de Araújo Neto e Rogério Portella
Capa: Bárbara Lima Vasconcelos

PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo indicação em contrário.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Poythress, Vern S.

Redimindo a ciência: uma abordagem teocêntrica / Vern S. Poythress, tradução Guilherme Cordeiro — Brasília,
DF: Editora Monergismo, 2019.

Título original: Redeeming Science: A God-Centered Approach

ISBN 978-85-69980-96-4

1. Religião e ciência 2. Bíblia e ciência I. Título


CDD 261
Para minha esposa
DIANE
Sumário
Introdução: A ciência se mistura com as pessoas
1. Por que os cientistas precisam acreditar em Deus? Os atributos divinos da
lei científica
2. O papel da Bíblia
3. Conhecimento procedente da autoridade de quem?
4. Criação
5. Perguntas sobre Gênesis 1 e a ciência
6. O ensino de Gênesis 1
7. Avaliação da ciência moderna sobre a idade da Terra
8. Avaliação das teorias sobre a idade da Terra
9. Os pontos de vista sobre o dia de 24 horas e a criação madura
10. A teoria do dia analógico e da estrutura
11. O papel da humanidade na ciência
12. O papel de Cristo como redentor na ciência
13. A palavra de Deus na ciência
14. Verdade na ciência e na vida
15. Debates sobre a realidade: o caráter do conhecimento científico
16. Experiência comum do mundo em relação à teoria científica
17. A relação da criação à recriação
18. O mistério da vida
19: A origem de novos tipos de vida: design inteligente
20. Deus e aparatos físicos
Introdução: A ciência se mistura com as pessoas
Quando as pessoas ficam sabendo do meu amor à ciência e matemática,
alguns reagem com entusiasmo, mas outros com temor: “Não é o meu caso!”
ou “eu odiava matemática”.
Embora eu me classifique com os entusiastas, simpatizo com o resto. Em
algum lugar no meio do caminho, muitas pessoas começaram a temer a aula
de matemática ou ciência, e provavelmente isso só piorou com o tempo. Elas
não entendiam bem o que ocorria e só podiam resolver os problemas com
muito esforço ou nem conseguiam. Nada mata a satisfação como o fracasso.
É claro, isso acontece parcialmente pela razão de as pessoas diferirem em
habilidades. Algumas preferem a ciência, outros a literatura, a história ou
arte. “Vida que segue”.

A IMPORTÂNCIA DA RESPOSTA INTELIGENTE


No entanto, creio que este é o mundo de Deus, e que a ciência, literatura e
arte refletem a sabedoria divina de modo semelhante. Mesmo que tivermos
pouca aptidão pessoal em uma área em particular, podemos crescer na
apreciação e admiração do que pessoas habilidosas fazem e o que elas
experimentam.
Hoje o mundo experimenta o impacto contínuo da ciência, das ideias
científicas e dos frutos tecnológicos da ciência. Quer você goste dela ou não,
todos temos que lidar com ela no nível prático.
Assim, surge a questão: “Este é realmente o mundo de Deus? Ou tudo isso se
reduz a matéria, energia e movimento?”. E se este é o mundo de Deus, como
ele se relaciona à ciência?
Eu mesmo sou crente em Jesus Cristo. Então preciso me perguntar como a fé
cristã se relaciona com a ciência. As pessoas frequentemente pensam que a
ciência se opõe à fé. A ciência, como se diz, mostra que o universo tem
bilhões de anos de idade, ao passo que a Bíblia afirma ter ele apenas uns
milhares de anos. E algumas pessoas afirmam que a ciência demonstra a
impossibilidade dos milagres sobrenaturais.
Este pensamento em termos antagônicos aparece não somente entre não
cristãos, mas também entre alguns cristãos. Às vezes encontro cristãos que
temem a ciência por pensarem nela como oposta ao cristianismo. A ideia da
oposição é bem disseminada, mas se baseia em uma história cultural que
distorceu o entendimento das pessoas sobre a ciência.
Quero aumentar nossa apreciação da ciência como ela deve ser, uma ciência
que pode servir como caminho para louvar a Deus e servir ao próximo. Você
já viu um programa sobre a natureza na TV que acompanhava a história de
filhotes de raposa ou a vida das lontras? Frequentemente o comentário verbal
de um programa desses nos convida a admirar a “natureza” ou a “mãe
natureza” como fonte de sabedoria, cuidado e beleza. Mas devemos
reconhecer ali a sabedoria, cuidado e beleza de Deus. A cosmovisão
teocêntrica restaura a resposta correta, que louva o Deus que criou a natureza
e cuida dela.

MINHA HISTÓRIA
Logo depois de começar a frequentar as aulas, fascinei-me pela aritmética.
Praticar a soma parecia brincar em um país das maravilhas, porque a
operação ocorria com muita precisão, estabilidade e consistência. Mostrava
seu enorme poder, por ser possível adicionar grandes cifras e obter números
ainda maiores, e continuar assim até onde desejasse. (Eu não sabia, mas
experimentava o deslumbre com o infinito.) Os números agiam como mágica,
na medida em que as operações realizadas no papel correspondiam com
perfeição ao que eu podia descobrir ao colocar 13 bolinhas de gude com
outras 15.
Meu interesse se expandiu mais tarde para incluir a ciência e matemática da
mais alta ordem. Estava fascinado com a regularidade, confiabilidade e
beleza do que via. Encontrei um tipo de descanso na constância das leis
físicas, na sua precisão e harmonia.
Segui o interesse e me graduei no California Institute of Technology e ao me
tornar doutor em Matemática na Universidade de Harvard. Em seguida,
ensinei matemática no Fresno State College (hoje California State University,
Fresno) antes de me voltar para meu segundo interesse: Bíblia e teologia.
Com o passar dos anos, para onde foram minha fascinação e senso de
mistério com a ciência? Em certa medida, ele continuou comigo. Eu ainda
gostava de ler a Scientific American. Mas o aprendizado começou a diminuir
a fascinação e o mistério. Em alguma medida, suponho que isso seja
inevitável. O aprendizado traz familiaridade e a familiaridade pode produzir
falta de atenção ou mesmo tédio.
Mas outras forças estavam agindo também. A ciência ensinada hoje é
influenciada pela ideologia da “objetividade”, que prefere jogar para debaixo
do tapete a experiência de fascínio, deleite, beleza e mistério pessoais. O
entusiasmo não é comunicado como deveria para a nova geração e, assim,
não se vê o ponto. A ciência se reduz a um jogo em que aprendemos regras
sem sentido para resolver problemas artificiais colocados nos testes dos
professores. Ou se torna nada mais que uma ferramenta pragmática pela qual
produzimos aparelhos que trazem conforto, entretenimento e status. Ou, para
quem se destaca na ciência, é uma plataforma para demonstrar poder e
conquistas intelectuais. Onde está a visão para o mundo todo que nos levaria
a apreciar o significado humano da ciência?
O meu filho estuda seções cônicas nas aulas de matemática do ensino médio.
Eu acho o assunto muito bonito, ele não; e não entende o motivo. Eu lhe
perguntei se o professor ou o livro-texto fornecia alguma justificativa ou
sentido para a matéria. Não. Se o professor fosse perguntado, diria: “Estamos
fazendo isso porque é parte do currículo”. Essa evasiva parece significar:
“Não tem um sentido real, trata-se apenas da decisão arbitrária das
autoridades que elaboraram o currículo”. Essa falta de propósito não produz
um bom ambiente de aprendizado, a despeito do fato de o próprio professor
possuir amor genuíno ao assunto e um compromisso com o ensino.
Minha mulher e eu observamos o problema com meu filho bem antes. Por
volta da terceira série, ele estava estudando biologia e memorizava a
terminologia científica referente às partes da folha ou às divisões do reino
animal. Ele não estava pesquisando o comportamento dos animais, só
memorizava. Fiquei tão perplexo com essa visão maltratada da ciência que
senti meus olhos fugindo em vergonha. Eu me peguei dizendo paralisado: “A
ciência de verdade não é assim. A ciência verdadeira significa explorar e se
aventurar”. E agora, com mais maturidade, eu poderia adicionar: “E, de
tempos em tempos, depois de uma escalada longa e cansativa, podemos ter
um vislumbre da beleza de Deus de tirar o fôlego”.
Eu queria ver meu filho ler histórias sobre como as abelhas constroem os
favos e comunicam o local de novas fontes de néctar, ou como os polvos
capturam as presas, ou sobre a formação dos diamantes. Que ele aproveite a
escrita semelhante a um programa da natureza, sempre que sua turma não
pudesse conseguir uma apresentação efetiva de multimídia. Que ele também
experimente algo do entusiasmo da descoberta científica. Que ouça a história
da produção da primeira vacina para a catapora e da descoberta da penicilina.
Que a turma vá para o campo e observe o trabalho das formigas. Que eles
capturem alguns bichos-de-conta (tatus-bolas) e descubram o que gostam de
comer. Que cortem algumas sementes grandes para ver o que há dentro,
reguem algumas e observem-nas crescer. Que desmontem um relógio de
corda antigo e tentem entender como ele funciona. E que não façam disso um
projeto de “laboratório” em que todos devem chegar aos mesmos resultados
predeterminados!
Alegro-me em dizer que houve alguns pontos altos na educação científica
posterior do meu filho. Na sexta série, a turma montou foguetes de brinquedo
que voaram uns 150 metros acima do chão. A sétima série fez uma viagem de
campo para um vale em que eles cavaram um xisto e o abriram para encontrar
fósseis.
Precisamos reformar o pensamento sobre a ciência. E precisamos fazê-lo em
escala global, ao encarar nosso conceito sobre o tipo de mundo em que
vivemos e nosso papel nele. A civilização ocidental perdeu a visão do
objetivo unificado, com exceção, talvez, dos objetivos superficiais do prazer,
da prosperidade e tolerância. Perdemos a trajetória como civilização e as
universidades se tornaram multiversidades sem o centro. As escolas regulares
são um pouco melhores. O atmosfera diz: “Trabalhe nessas tarefas
aparentemente sem sentido agora, de forma que você possa ir para a
faculdade, conseguir um bom emprego e viver o sonho americano de uma
casa grande com dois carros e uma TV de plasma”. O mal-estar em relação à
ciência e seu significado são apenas elementos do mal-estar maior acerca da
falta de sentido à nossa volta.
Assim, estamos tomando uma longa rota, repensando o sentido da ciência. E
realizo esse processo de reconsideração como cristão. Eu precisaria de outro
livro para apresentar o argumento sobre a veracidade da fé cristã e da Bíblia
como Palavra de Deus. Escrevo este texto principalmente para os cristãos que
já creem nisso. Entretanto, eu creio serem elas relevantes para todos, pois as
verdades básicas sobre Deus e a ciência são relevantes para todos. Mesmo
que não seja um cristão, você pode se interessar em saber como a fé cristã
interage com a empreitada científica. Não, a fé não resulta no tipo de
antagonismo sugerido pelo pensamento popular. Sim, ela pode nos livrar da
onda de falta de sentido.
1. Por que os cientistas precisam acreditar em Deus? Os
atributos divinos da lei científica[1]
Todos os cientistas, incluindo agnósticos e ateus, creem em Deus. Eles
precisam disso para realizar seu trabalho.
Pode parecer revoltante incluir agnósticos e ateus nessa afirmação ampla.
Mas, por suas ações, as pessoas às vezes mostram que, em certo sentido,
acreditam no que professam não crer. Bakht, um filósofo védico hindu, pode
dizer que o mundo é uma ilusão. Mas ele não anda no meio da rua bem em
frente a um ônibus em movimento. Sue, uma relativista radical, pode afirmar
não existir a verdade. Mas ela viaja calmamente em um avião a 9 mil metros
do chão, cujo voo seguro depende das verdades imutáveis da aerodinâmica e
da mecânica estrutural.[2]
E os cientistas? Creem em Deus? Precisam crer? A cultura moderna popular
transmite muitas vezes a ideia contrária: a ciência se opõe à crença cristã
ortodoxa. Recitações do conflito de Galileu e do julgamento de Scopes
ganharam status mítico e recebem reforço mediante promoções vocais da
evolução materialista.
Historiadores da ciência apontam que a ciência moderna surgiu no contexto
da cosmovisão cristã e foi nutrida e sustentada por essa visão.[3] Mesmo que
fosse assim antes, a ciência dos séculos XX e XXI parece se sustentar sem o
auxílio de qualquer consideração teísta. Com efeito, muitos consideram Deus
apenas o “Deus das lacunas”, o Deus a quem as pessoas invocam apenas para
explicar as lacunas da ciência moderna. Quando ocorrem avanços científicos
e mais lacunas se tornam sujeitas à explicação, o papel de Deus diminui. O
natural expulsa a necessidade do sobrenatural.[4]
FOCO NA LEI CIENTÍFICA
A situação parece diferente se nos recusarmos a nos confinar ao Deus “das
lacunas”. De acordo com a Bíblia, ele está envolvido nas áreas em que a
ciência dá o melhor de si: áreas que envolvem eventos regulares e previsíveis,
padrões repetitivos e algumas vezes descrições matemáticas exatas. Em
Gênesis 8.22, Deus promete:
Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e
inverno, dia e noite.
Esta promessa geral sobre as regularidades terrenas é suplementada por
muitos exemplos particulares:
Dispões as trevas, e vem a noite, na qual vagueiam os animais da selva. (Sl 104.20)
Fazes crescer a relva para os animais e as plantas, para o serviço do homem, de sorte
que da terra tire o seu pão (Sl 104.14)
Ele envia as suas ordens à terra, e sua palavra corre velozmente; dá a neve como lã e
espalha a geada como cinza. Ele arroja o seu gelo em migalhas; quem resiste ao seu
frio? Manda a sua palavra e o derrete; faz soprar o vento, e as águas correm.
(Sl 147.15-18)
As regularidades descritas pelos cientistas são consistem nas determinações e
ações de Deus. Pela palavra dada a Noé, ele se compromete a governar as
estações. Com sua palavra ele governa a neve, o gelo e o granizo. Os
cientistas descrevem as regularidades na palavra de Deus que rege o mundo.
A chamada lei natural é na verdade a lei de Deus ou a palavra de Deus,
descrita com imperfeição e de forma aproximada por pesquisadores humanos.
O trabalho da ciência depende do fato de existirem regularidades no mundo.
Sem elas não haveria nada no final para ser estudado. Os cientistas dependem
não só das regularidades com que já estão acostumados, como do
comportamento regular dos aparelhos de medição, mas também no postulado
da ocorrência de outras regularidades a serem descobertas nas respectivas
áreas de pesquisa. Os cientistas precisam manter a esperança de encontrar
regularidades adicionais, ou desistiriam das explorações mais recentes.
(Devo dizer aqui que me concentrando nas ciências naturais ou “exatas”,
como a física, química, geologia, biologia e astronomia. Em certa medida,
observações similares se mantêm para as “ciências humanas”, como
psicologia, antropologia, linguística e sociologia. Todavia, o estudo dos seres
humanos apresenta desafios adicionais, pela forma que o entendimento geral
de alguém sobre a natureza da humanidade influencia vitalmente a
investigação. Ao me concentrar nas regularidades, também ponho em
segundo plano os estudos “históricos”, como o estudo da história passada e
do universo de larga escala [cosmologia], a história passada da vida
[paleobiologia], a história passada da terra [geologia histórica] etc. Esses
estudos dependem do pressuposto de regularidades, mas também lutam para
entender vários eventos irrepetíveis, como a origem da primeira célula ou a
origem dos primeiros seres humanos. Nós nos concentraremos mais adiante
na questão de unicidade versus repetibilidade [Capítulo 13]. Consideraremos
a questão da origem nos Capítulos 18 e 19.)
CRENÇA NAS LEIS CIENTÍFICAS
Quais são essas regularidades? Por 5 anos consecutivos um passarinho
aparece e constrói um ninho no mesmo galho. Mas no sexto ano nenhum
passarinho aparece. Isso mostra uma “regularidade” do tipo apropriado? Pode
ser uma questão de coincidência. Os cientistas se preocupam em observar
passarinhos e a construção de seus ninhos. Mas, a longo prazo, eles não se
satisfazem com observações de mera coincidência. Eles querem saber se a
recorrência é de algum modo compulsória, se ocorre de acordo com um
princípio explicativo geral.[5] Os princípios são chamados de diferentes
formas: “lei natural”, “lei científica”, “teoria”. Algumas dessas regularidades
podem ser exata e quantitativamente descritas para cada caso (dentro de
poucos limites de erro), enquanto outras são regularidades estatísticas que
vêm à luz só quando um grande número de casos são examinados juntos.
Todos os cientistas creem na existência dessas regularidades. Em todos os
casos, de modo independente das crenças professas, os cientistas sabem, na
prática, que as regularidades estão “por aí”. No fim, todos eles são “realistas”
no que concerne às leis científicas.[5] Os cientistas apenas descobrem essas
leis, eles não as inventam. De outra forma, por que todo o trabalho, tédio e
frustração da experimentação? Apenas dê um palpite, invente algo novo e
fique famoso!
Bem, essas regularidades são... regulares. E ser regular significa ser regulado.
Envolve regula (regra). O Webster’s Ninth New Collegiate Dictionary
[Dicionário Webster][6] captura bem a ideia ao definir “regular” como
“formado, construído, arranjado ou ordenado de acordo com alguma regra lei,
princípio ou tipo estabelecidos”. A ideia da lei ou regra é intrínseca ao
conceito de “regularidade”. Assim é natural usar a palavra “lei” em descrever
teorias e princípios científicos bem-estabelecidos. Os cientistas falam das leis
de Newton, Boyle, Dalton, Mendel e Kirchhoff. Todos os cientistas creem e
dependem da existência de leis científicas.
APLICABILIDADE UNIVERSAL DA LEI CIENTÍFICA
Quais as características deve uma lei científica possuir para consistir numa
lei? Mais uma vez nos concentramos na prática científica em lugar de suas
especulações metafísicas. Perguntamos: “Sem levar em consideração a
filosofia professada, o que os cientistas fazem na prática?”. Como o
relativista espera que o avião voe, o cientista espera que as leis se sustentem.
Os cientistas consideram as leis universais no tempo e no espaço. As leis de
Kirchhoff os sobre circuitos elétricos se aplicam apenas a circuitos elétricos,
não a outros tipos de situação. Mas elas se aplicam em princípio a circuitos
elétricos em qualquer tempo e em qualquer lugar. Às vezes, é claro, os
cientistas descobrem limitações em formulações anteriores. Algumas leis,
como as leis de Newton, não são de fato universais, mas se aplicam com
precisão apenas a uma situação restrita como o movimento de baixa
velocidade de objetos largos e massivos.[7] À luz do conhecimento posterior,
diríamos que as leis de Newton sempre foram só uma aproximação do padrão
real de regularidade ou lei no mundo. Modificamos as leis de Newton, ou
incluímos uma restrição específica à baixa velocidade na formulação das leis.
Assim dizemos que elas se aplicam a todos os tempos e lugares onde essas
restrições se mantêm.
Assim, no próprio conceito da lei, existe uma expectativa que inclui todos os
tempos e lugares. Isso quer dizer que a lei, se realmente é uma lei formulada
e qualificada corretamente, se mantém para todos os tempos e todos os
lugares. Os termos clássicos são onipresença (todos os lugares) e eternidade
(todos os tempos). A lei possui esses dois atributos conferidos pela tradição
clássica a Deus. Em sentido técnico, a eternidade divina normalmente é
concebida “acima” ou “além” do tempo. Mas os termos “acima” e “além” são
metafóricas e apontam para mistérios. Há, na verdade, um mistério análogo
com respeito à lei. Se a “lei” é universal, não está ela, em algum sentido,
“além” das particularidades do tempo ou do espaço? Além disso, na
cosmovisão bíblica, Deus não está apenas “acima” do tempo no sentido de se
não submeter às limitações da experiência finita do tempo que afetam as
criaturas; ele está “no” tempo no sentido de agir no tempo e interagir com as
criaturas.[8] De forma semelhante, a lei está “acima” do tempo pela
universalidade, mas “no” tempo dada sua aplicabilidade a cada situação
particular.
ATRIBUTOS DIVINOS DA LEI
Os atributos da onipresença e eternidade são só o começo. Em um exame
acurado, outros atributos divinos parecem pertencer às leis científicas.
Considere. Se uma lei se mantém por todos os tempos, pressupomos tratar-se
da mesma lei para todos os tempos. A lei não muda com a passagem do
tempo. Ela é imutável. A suposta “lei”, alterada com o tempo, não é uma
“lei” verdadeira, e sim a fase temporária de uma regularidade mais alta ou
ampla capaz de explicar a mudança ao nível menor. A regularidade maior e
universal é a lei. O próprio conceito de lei científica preconiza a
imutabilidade.
Em seguida, o caráter das leis é, no fundo, conceitual. Não se enxerga
literalmente a lei, apenas os efeitos dela no mundo material. A essência da lei
é imaterial e invisível, mas conhecida pelos efeitos. Da mesma forma, a
essência de Deus é imaterial e invisível, mas é conhecido por seus atos no
mundo.
As leis reais, em oposição às aproximações dos cientistas a seu respeito,
também são absoluta e infalivelmente verdadeiras. A veracidade também é
um atributo divino.[9]
O poder da lei
Em seguida, considere o atributo do poder. Os cientistas formulam leis como
descrições das regularidades observadas. As regularidades estão primeiro no
mundo, antes de os cientistas fazerem suas formulações. A formulação
científica humana segue os fatos e depende deles. No entanto, os fatos
precisam se conformar à regularidade mesmo antes de o cientista formular a
descrição. Uma lei ou regularidade precisa se manter em toda uma série de
casos. O cientista não pode forçar a questão ao inventar uma lei e então forçar
o universo a se conformar a ela. Na verdade, o universo conforma às leis já
atuantes nele: as leis são descobertas, não inventadas. Elas já precisam estar
lá e se manter. Devem deter autoridade. Sendo universais de fato, não são
violadas. Nenhum evento escapa a seu “alcance” ou domínio. O poder dessas
leis reais é absoluto, na verdade, infinito. Na linguagem clássica, a lei é
onipotente (“todo-poderosa”).
Se a lei é onipotente e universal, então não há exceções. Assim, concluímos
que os milagres são impossíveis por representarem violações da lei? Na
verdade, os milagres estão em harmonia com o caráter de Deus. Eles ocorrem
de acordo com a palavra divina que prediz e decreta. Por meio de Moisés,
Deus verbalmente predisse a ocorrência das pragas no Egito e então as fez
acontecer. Por meio da palavra de Deus anunciada pelo do profeta Eliseu,
uma fonte de água se tornou saudável:
Então, saiu ele ao manancial das águas e deitou sal nele; e disse: Assim diz o SENHOR:
Tornei saudáveis estas águas; já não procederá daí morte nem esterilidade. Ficaram,
pois, saudáveis aquelas águas, até ao dia de hoje, segundo a palavra que Eliseu tinha
dito. (2Rs 2.21,22)
A lei real, a palavra de Deus, faz os milagres acontecerem. Os milagres
podem ser incomuns e surpreendentes, mas não violam a lei divina. Eles
violam algumas expectativas e opiniões humanas. Mas esse é um problema
nosso, não de Deus. Como as leis de Newton são limitadas a aproximações de
baixa velocidade, também o princípio de que machados não flutuam é
limitado pela qualificação, “exceto quando Deus em resposta a uma
necessidade especial e a palavra do profeta faz o contrário” (e.g., 2Rs 6.5,6).
A lei é transcendente e imanente. Ela transcende as criaturas do mundo ao
exercer poder sobre elas, conformando-as a seus ditados. É imanente no que
toca e mantém em seu domínio mesmo os menores partículas do mundo.[10] A
lei transcende os aglomerados galácticos e está sempre presente na dança
cromodinâmica de quarks e glúons no seio de um único próton.
Transcendência e imanência são características divinas.
O caráter pessoal da lei
Muitos cientistas agnósticos e ateus estarão aqui à procura de uma rota de
fuga. Parece que o conceito principal da lei científica começa a se assemelhar
de forma suspeita e muito parecida com a ideia bíblica de Deus. A fuga mais
óbvia, e a que resgatou muitos do desconforto espiritual, é negar o caráter
pessoal da lei científica. Ela só se encontra ali como algo impessoal.
As pessoas tentaram essas rotas em todas as eras. Elas construíram ídolos,
substitutos para Deus, Nos tempos antigos, os ídolos muitas vezes consistiam
em estátuas como representações de divindades, como Posídon, o deus do
mar, ou Marte, o deus da guerra. Hoje, no mundo ocidental, somos mais
sofisticados. Os ídolos agora tomam a forma de construções mentais de um
deus ou um substituto de Deus. O dinheiro e o prazer se tornaram ídolos. Da
mesma forma, pode a “humanidade” ou a “natureza” receber a lealdade
última de alguém. As “leis científicas”, quando consideradas impessoais, se
tornam outro substituto de Deus. No entanto, nos tempos antigos e hoje, os
ídolos se conformam à imaginação de quem os faz. Os ídolos possuem
semelhanças suficientes com o verdadeiro Deus para serem plausíveis, mas
diferem de forma a permitir-nos conforto e satisfação para manipular os
substitutos que construímos.
Na verdade, um olhar mais de perto na lei científica mostra que essa rota de
fuga não é realmente plausível. A lei implica um legislador. Alguém precisa
pensar a lei e impô-la, a fim de a tornar efetiva. Todavia, se algumas pessoas
resistirem a esse movimento direto para a personalidade, poderemos nos
mover de modo mais indireto.
Na prática, os cientistas creem com paixão na racionalidade da lei cientifica.
Não estamos lidando com um número surdo irracional, totalmente
inexplicável e insondável, mas com a ideia da lei que em algum sentido é
acessível ao entendimento humano. A racionalidade é o sine qua non da lei
científica. Mas, como sabemos, a racionalidade pertence às pessoas, não a
rochas, árvores e criaturas subpessoais. Se a lei é racional, como presumem
os cientistas, então ela também é pessoal.
Os cientistas também presumem que as leis podem ser articuladas, expressas,
comunicadas e entendidas por meio da linguagem humana. O trabalho
científico inclui não apenas o pensamento racional, mas a comunicação
simbólica. Agora, o original, a lei “lá fora”, não é conhecida por ser escrita ou
enunciada em linguagem humana. Entretanto, precisa ser expressa na
linguagem da nossa descrição secundária. Precisa ser traduzível em não
apenas uma, mas em muitas línguas humanas. Podemos representar
restrições, qualificações, definições e contextos para a lei por meio de
cláusulas, frases, parágrafos explanatórios e explicações contextuais na
linguagem humana.
A lei científica é sem dúvida como um enunciado humano na habilidade de
ser gramaticalmente articulada, parafraseada, traduzida e ilustrada. A lei é
compatível com o enunciado e a linguagem. E a complexidade dos
enunciados encontrados entre os cientistas, bem como entre os seres humanos
em geral, não é duplicada no mundo animal.[11] A linguagem é de uma das
características definidoras que separa o homem dos animais. A linguagem,
como a racionalidade, pertence às pessoas. Segue-se que a lei científica é, em
essência, pessoal.[12]
A incompreensibilidade da lei
Ademais, a lei é cognoscível e incompreensível em sentido teológico. Isto é,
nós conhecemos verdades científicas, mas no meio do conhecimento
permanecem profundidades veladas e questões sem resposta sobre as próprias
áreas que mais conhecemos.
A cognoscibilidade das leis está intimamente relacionada à sua racionalidade
e imanência, mostrada na acessibilidade de seus efeitos. Experimentamos a
incompreensibilidade pelo fato de o aumento do entendimento científico só
nos levar a questões mais profundas: “Como isso pode ser?” e “Por que esta
lei em lugar de tantas outras maneiras que a mente humana pode imaginar?”.
A profundidade e o mistério das descobertas científicas só pode produzir
temor, sim, adoração, se não tivermos nossa percepção embotada com
arrogância (Is 6.9,10).
Estamos divinizando a natureza?
Mas agora precisamos considerar uma objeção. Ao afirmar que as leis
científicas possuem atributos divinos, estamos divinizando a natureza? Isto é,
estamos tomando algo a partir do mundo criado e alegando de forma
equivocada sua divindade? Não são as leis científicas parte do mundo criado?
Não deveríamos classificá-las como criação e não como o Criador?[13]
Suspeito que a especificidade das leis científicas, sua óbvia referência ao
mundo criado, tornou-se uma ocasião para muitos de nós inferirmos que
essas eis são parte do mundo criado. Mas tal inferência é claramente inválida.
O discurso que descreve a borboleta não é em si a borboleta ou parte da
borboleta. O discurso que se refere ao mundo criado não é de modo
necessário parte ontológica do mundo a que se refere.
Ademais, lembremo-nos de que falamos de leis reais, não apenas de opiniões
ou aproximações humanas. As leis reais são, de fato, a palavra de Deus,
específicas sobre como o mundo das criaturas deve funcionar. A chamada
“lei” é apenas o discurso, a ação e a manifestação de Deus no tempo e no
espaço. O erro aqui não consiste na divinização da natureza, mas na recusa a
reconhecer que a lei é a lei de Deus, nada menos que o discurso divino.
Confronta-se Deus.
A ideia principal de que a lei é divina não só é mais antiga que a ascensão da
ciência moderna; é mais antiga que a ascensão do cristianismo. Mesmo antes
da vinda de Cristo, as pessoas notaram uma regularidade profunda no
governo do mundo e se debateram com o sentido dela. Gregos (em especial
os estoicos) e judeus (com o destaque de Fílon) desenvolveram especulações
sobre o logos, a “palavra” ou “razão” divina por trás do que se observava.[14]
Além disso, os judeus tinham o Antigo Testamento com a revelação do papel
da palavra de Deus na criação e na providência. Nesse contexto, João 1.1
proclama: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo
era Deus”. João responde às especulações de seus dias com uma revelação
surpreendente: a Palavra (logos) que criou e sustenta o universo não só é uma
pessoa divina “com Deus”, mas o mesmo Ser que se encarnou: “E o Verbo se
fez carne” (1.14).
Deus disse: “Haja luz” (Gn 1.3). Ele se referiu à luz como parte do mundo
criado. Precisamente por essa referência, sua palavra tem poder divino para
trazer a criação à existência. O efeito na criação aconteceu em um tempo
particular. O plano para a criação, encontrado na palavra de Deus, é eterno.
Da mesma forma, o discurso de Deus para nós na Bíblia se refere a variadas
partes do mundo criado, mas o discurso (em distinção às coisas a que se
refere) é divino em poder, autoridade, majestade, justiça, eternidade e
verdade.[15] A analogia com a encarnação deve nos dar uma indicação. A
segunda pessoa da Trindade, a eterna Palavra de Deus, se tornou homem na
encarnação, mas não cessou de ser Deus. Da mesma forma, quando Deus fala
e diz o que ocorre no mundo, suas palavras não cessam de ter o poder divino
e imutabilidade que lhe pertencem. Pelo contrário, elas permanecem divinas
e, além disso, possuem o poder de especificar a situação das questões criadas.
A palavra de Deus permanece divina quando se torna lei, um direcionamento
específico a respeito do mundo criado.
A bondade da lei
É a lei boa? Ah, aqui entramos em alguns problemas. Muitas pessoas dizem
que os males no mundo são o maior obstáculo para crer em Deus.[16] A
pesquisa de Larson e Witham sobre os cientistas e a religião menciona a
citação de Albert Einstein: “Na luta pelo bem ético, os mestres da religião
precisam ter a capacidade de desistir da doutrina de um Deus pessoal”.[17]
Mas não é assim tão simples. Pode-se apelar ao bom padrão bem a fim de
julgar má uma situação existente. Ao fazê-lo, apelamos ao padrão além dos
limites do mundo empírico. Apelamos a um padrão, a uma lei. Desistir da
ideia de lei moral equivale a desistir da própria base da crítica do mal. Assim,
a lei moral é indispensável para o argumento ateísta, mas pressupõe ao
mesmo tempo o absoluto. Esse absoluto, a fim de nos obrigar e nos manter
responsáveis, precisa ser pessoal. Só a resposta bíblica fornece clareza. O
caráter de Deus é a fonte última da lei moral. O homem feito à imagem de
Deus conhece a lei, mas se rebelou contra ela (Rm 1.32). Os males existentes
são consequências dessa rebelião. Não culpe moralmente Deus, mas o
homem.
A bondade de Deus é demonstrada mais claramente na lei moral. Mas para
muitas pessoas modernas, influenciadas por Kant e a história de ideias
subsequente, a lei moral é radicalmente subjetivada e separada da lei física ou
lei científica. A fim de engajar cientistas de modo mais direto, precisamos
voltar a considerar a lei científica.
Indicações sutis da bondade divinas podem ser vistas no conceito de lei
científica. Pode-se colocar dessa maneira: os cientistas esperam que “as leis
da natureza” sejam algumas vezes sutis, mas nunca perversas. A lei não faz
truques, ao se esconder deliberadamente e apresentar resultados anômalos
para confundir o pesquisador. A “natureza” joga com honestidade. Ou, de
maneira mais profunda, Deus “joga honestamente”. Todos os cientistas, para
continuarem com sanidade em sua pesquisa, precisam crer que as leis do
universo “jogam honestamente” com eles. Existe certa bondade fundamental,
em lugar de perversidade, na maneira em que os resultados surgem da
investigação científica.
A beleza da lei
As leis científicas, em especial as leis “profundas”, são belas. Há muito os
cientistas encontraram o caminho entre hipóteses e modelos baseados sem
parte nos critérios de beleza e simplicidade. Por exemplo, a lei de Newton
sobre a gravitação e as leis de Maxwell sobre o eletromagnetismo são
matematicamente simples e belas. E os cientistas sem dúvida esperam que
novas leis, bem como antigas, mostrem beleza e simplicidade. Por quê? A
beleza das leis científicas demonstra a beleza do próprio Deus. Embora a
beleza não tenha sido um tópico favorito nas exposições clássicas da doutrina
de Deus, a Bíblia nos mostra o Deus profundamente belo. Ele se manifesta na
beleza do design do tabernáculo, na poesia dos salmos e na elegância das
parábolas de Cristo, bem como na beleza moral da vida de Cristo.
A beleza do próprio Deus é refletida no mundo que ele criou. Estamos mais
acostumados a ver beleza em objetos particulares dentro da criação, como
uma borboleta, uma alta montanha ou uma campina coberta de flores. Mas a
beleza também é mostrada na forma simples e elegante de algumas das mais
básicas leis físicas, como a lei de Newton para a força, F = ma, ou a fórmula
de Einstein que relaciona massa e energia, E = mc². Por que essas leis
elegantes deveriam existir? A beleza também é mostrada na harmonia entre
diferentes áreas da ciência e a harmonia entre matemática e ciência de que os
cientistas dependem sempre que usam uma fórmula matemática para
descrever um processo físico.
A retidão da lei
Outro atributo divino é a justiça. A justiça de Deus se mostra
preeminentemente na lei moral e na retidão moral de seus juízos, isto é, nas
recompensas e punições baseadas na lei moral. Mas a lei moral, como temos
observado, se encontra fora da área de foco especial dos cientistas. A retidão
divina aparece na lei física, na lei científica?
Os traços são de alguma forma menos óbvios, mas ainda presentes. As
pessoas podem tentar desobedecer às leis físicas, e quando elas o fazem,
sofrem por isso. Se alguém tentar desobedecer à lei da gravidade ao pular de
um edifício, pois sofrerá as consequências Há uma tipo de justiça intrínseca
na maneira em que as leis levam às consequências.
Além disso, a retidão divina está intimamente relacionada com a adequação
de seus atos. É adequado ao caráter da identidade de Deus que adoremos
somente a ele (Êx 20.3). É adequado ao caráter dos seres humanos, feitos à
imagem divina, imitar a Deus guardando o sábado (Êx 20.8-11). As ações
humanas correspondem de forma adequada às ações divinas.
Além do mais, as punições precisam ser proporcionais. A morte é a pena
adequada ou correspondente ao homicídio (Gn 9.6). “Porque o Dia do
SENHOR está prestes a vir sobre todas as nações; como tu fizeste, assim se fará
contigo; o teu malfeito tornará sobre a tua cabeça” (Ob 15). A punição é
proporcional ao crime. Há uma adequação simétrica entre a natureza do crime
e a punição que lhe é proporcional.[18] Na área da lei física não lidamos com
crimes e punições. Todavia, a retidão se expressa em simetrias, ordenação,
“adequação” ao caráter da lei. As simetrias ocorrem de modo fascinante por
todo o mundo natural. As leis fundamentais da física possuem profunda
conexão com as simetrias fundamentais: espaço, tempo, mudança e paridade.
A “adequação” da lei, esperada pelos cientistas, talvez esteja relacionada de
forma íntima à beleza. Os atributos de Deus estão envolvidos entre si e se
implicam, de forma que a beleza e a justiça estão intimamente relacionadas.
O mesmo ocorre com área da lei física. As leis são belas, “adequadas” e
demonstram retidão.
O aspecto trinitário da lei
A lei científica reflete especialmente o caráter trinitário de Deus? Os filósofos
algumas vezes declaram que se pode inferir a existência de Deus, mas não
seu caráter trinitário, com base do mundo à nossa volta. O texto de
Romanos 1.18-21 indica que os incrédulos conhecem a Deus, mas o quanto
eles sabem? Não vou me concentrar nessa questão bastante difícil,[19] prefiro
refletir no que se pode discernir sobre o mundo uma vez absorvido o ensino
bíblico sobre Deus.
A lei científica é uma forma da palavra de Deus. Desse modo, ela reflete a
afirmação trinitária de João 1.1, que identifica a segunda pessoa da Trindade
como a Palavra eterna de Deus. Em João, Deus, o Pai, é o emissor da Palavra,
e Deus, o Filho, é a Palavra pronunciada. O texto de João 1 não menciona
explicitamente o Espírito Santo. Contudo, as Escrituras anteriores associam o
Espírito ao “sopro” de Deus que leva sua palavra adiante. “Os céus por sua
palavra se fizeram, e, pelo sopro de sua boca, o exército deles” (Sl 33.6). A
palavra hebraica aqui para sopro é ruach, a mesma palavra usada com
regularidade para designar o Espírito Santo. De fato, a designação da terceira
pessoa da Trindade como Espírito (ruach no hebraico) já sugere a associação
que se torna mais explícita em Salmos 33.6; Semelhantemente, Ezequiel 37
lida com três diferentes sentidos para a palavra hebraica ruach, a saber,
“espírito” (37.5,10), “ventos” (37.9) e “Espírito” (37.14). A visão de
Ezequiel 37 claramente representa o Espírito Santo como o fôlego de Deus
que penetra nos seres humanos para lhes conceder vida. Assim, as três
pessoas da Trindade estão presentes de formas distintas quando Deus fala a
Palavra. As três pessoas estão portanto, sempre presentes na lei científica —
uma forma da palavra de Deus.
Podemos lidar com a questão de outra maneira. Dorothy Sayers observa com
precisão que a experiência de um autor humano ao escrever um livro contém
analogias profundas com o caráter trinitário de Deus.[20] O ato criativo de um
autor ao escrever imita a ação de Deus ao criar o mundo. Deus cria de acordo
com sua natureza trinitária. Um autor humano cria com uma Ideia, Energia e
Poder, correspondendo de forma misteriosa ao envolvimento das três pessoas
na criação. Sem traçar as reflexões de Sayers em detalhe, podemos observar
que o ato divino de criar envolve de fato as três pessoas. Deus, o Pai, é o
originador, Deus, o Filho, age como a Palavra eterna (Jo 1.1-3), e se envolve
com as palavras de comando emitidas por Deus (“Haja luz”, Gn 1.3). Deus, o
Espírito, paira por sobre as águas (Gn 1.3). O texto de Salmos 104.30 afirma:
“Envias o teu Espírito, eles são criados, e, assim, renovas a face da terra”.
Além disso, a criação de Adão envolve o sopro de Deus que alude à presença
do Espírito (Gn 2.7). Embora a relação entre as pessoas da Trindade seja
profundamente misteriosa, e ainda que as três pessoas estejam envolvidas em
todas as ações de Deus para com o mundo, pode-se distinguir os diferentes
aspectos da ação pertencentes em caráter preeminente a cada pessoa.
As leis científicas fluem da atividade criativa de Deus, o “Autor” da criação.
A atividade das três pessoas está, portanto, implícita no próprio conceito de
lei científica. Primeiro, a lei envolve a racionalidade que implica a coerência
de um plano. Isto corresponde ao termo “ideia” de Sayers, representando o
plano do Pai. Segundo, a lei envolve uma articulação, uma especificação,
uma expressão do plano, com respeito a todos os particulares do mundo. Isso
corresponde ao termo “energia” ou “atividade” de Sayers, e representa a
Palavra — a expressão do Pai. Terceiro, a lei consiste na manutenção de
coisas responsáveis à lei, a aplicação concreta às criaturas, fazendo-as
responder à lei como se espera. Isso corresponde ao termo “poder” de Sayers,
a representação do Espírito.[21]
Podemos ver um reflexo da Trindade de ainda outra forma ao usar as
categorias já desenvolvidas nas meditações teológicas trinitárias sobre o
caráter de Deus e sua palavra. De acordo com o pensamento trinitário, a
unidade e diversidade no mundo refletem a unidade e diversidade originais
em Deus. Primeiro, Deus é único. Ele conta com um plano unificado para o
mundo. A universalidade da lei científica reflete essa unidade. Deus também
é três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Essa diversidade no ser de
Deus é então refletida na diversidade do mundo criado.[22] As muitas
instâncias a que uma lei se aplica expressam essa diversidade. Além do mais,
a unidade e a diversidade são expressas de outra forma. A unidade do plano
divino tem relação íntima com o Pai, a primeira pessoa da Trindade, que é a
origem deste plano. O Filho, ao se encarnar, expressa a particularidade da
manifestação no tempo e no espaço. Ele é, como se fosse, uma representação
de Deus. Assim ele é análogo, na encarnação, ao fato de que a lei universal se
expressa em instâncias particulares.
DEUS SE MOSTRA
Essas relações são sugestivas, mas não precisamos desenvolver mais esse
ponto. É suficiente observar que, na realidade, o que as pessoas designam “lei
científica” é de fato divina. Falamos sobre Deus em si e sua revelação pessoal
por meio do governo do mundo. Os cientistas precisam crer em uma lei
científica a fim de continuar seu trabalho. Quando analisamos a verdadeira
identidade dessa lei científica, encontramos que o cientistas são
constantemente confrontados com o próprio Deus, o Deus trinitário, e não
raro dependem daquele que é e do que ele faz em conformidade com sua
natureza divina. Ao pensar sobre lei, os cientistas seguem os pensamentos de
Deus.[23]
MAS OS CIENTISTAS CREEM?
Mas os cientistas creem em tudo isso? Sim e não. A situação já foi descrita na
Bíblia:
… porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus
lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder,
como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio
do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são,
por isso, indesculpáveis. (Rm 1.19,20)
Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos.
Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite.
(Sl 19.1,2)
Eles conhecem a Deus e dependem dele. Todavia, pelo fato de esse
conhecimento ser doloroso em sentido moral e espiritual, eles também o
suprimem e distorcem:
… porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe
deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-
se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram
a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem
como de aves, quadrúpedes e répteis. (Rm 1.21-23)
Nesta era, as pessoas não fazem mais ídolos sob a forma de imagens físicas.
Seu próprio conceito de “lei científica” é uma inversão idólatra do
conhecimento de Deus. Elas ocultam de si mesmas o fato de essa “lei” ser
pessoal e de elas serem responsáveis diante dele. Ou substituem a palavra
“natureza”, personificando-a enquanto falam com elogios acerca das obras da
“mãe natureza”. Todavia, elas se esquivam do conhecimento da
transcendência divina sobre a natureza.
Mesmo em sua rebelião, as pessoas continuam dependentes da permanência
de Deus ali. Elas mostram por seus atos continuam a crer em Deus. Cornelius
Van Til compara essa situação a um incidente que viu em um trem, onde uma
garotinha que sentava no colo de seu avô lhe deu um tapa na face.[24] O
rebelde precisa depender de Deus e “sentar em seu colo”, mesmo para poder
se engajar em uma rebelião.
NÓS, CRISTÃOS, CREMOS?
A culpa, penso eu, não está inteiramente do lado dos incrédulos. A culpa
também se encontra entre os cristãos. Os cristãos algumas vezes adotam um
conceito não bíblico de Deus que o põe fora do caminho de assuntos comuns.
Nós mesmos pensamos na “lei científica” ou “lei natural” como um tipo de
mecanismo cósmico, ou de relojoeiro impessoal, que administra o mundo na
maior parte do tempo, enquanto Deus está de férias. Deus vem e age raras
vezes por meio de milagres. Mas isso não é bíblico: “Fazes crescer a relva
para os animais” (Sl 104.14); “dá a neve como lã” (Sl 147.16).[25] Não nos
esqueçamos disso. Se nós mesmos recuperássemos uma doutrina robusta do
envolvimento de Deus no cuidado diário do mundo em detalhes, nós nos
encontraríamos em uma posição muito melhor para dialogar com cientistas
ateus que dependem do mesmo cuidado.
PRINCÍPIOS PARA O TESTEMUNHO
A fim der usar a situação como ponto de partida para o testemunho,
precisamos manter em mente uma série de princípios.
Primeiro, a observação de que Deus subjaz ao conceito de lei científica não
precisa ter a mesma forma das provas teístas tradicionais, pelo menos como
elas são entendidas com frequência. Não tentamos levar as pessoas a
conhecer um Deus totalmente novo para elas. Pelo contrário, sabemos que os
cientistas já conhecem a Deus como um aspecto da experiência humana na
empreitada científica. Isso coloca o foco não no debate intelectual, mas em
ser plenamente humano no contexto da pesquisa científica.[26]
Segundo, os cientistas negam Deus no mesmo contexto em que dependem
dele. Afinal, a negação divina flui não flui de falhas intelectuais ou na
impossibilidade de visualizar todo o caminho até a conclusão do
encadeamento de um raciocínio silogístico, mas de uma falha espiritual.
Somos rebeldes contra Deus e não o serviremos. Como consequência,
sofremos sob a sua ira (Rm 1.18), o que resulta em efeitos intelectuais,
espirituais e morais. Os que rebelam contra Deus são “tolos”, de acordo com
Romanos 1.22.
Terceiro, é humilhante para os intelectuais a exposição como tolos, e é ainda
mais humilhante, mesmo psicologicamente insuportável, ser exposto como
culpado de rebelião contra a bondade divina. Podemos esperar que os
ouvintes lutem contra o emprego tremendo de energia intelectual e espiritual
para obter um resultado tão insuportável.
Quarto, o próprio evangelho, com a mensagem de perdão e reconciliação
mediante Cristo, oferece o único remédio que pode encerrar de uma vez a luta
contra Deus. Mas ele traz consigo a humilhação extrema: minha restauração
procede inteiramente de Deus, de fora de mim — a despeito de minhas
habilidades cheias de vaidade e ao invés delas. Como ápice de tudo, tão
perverso era eu que foi necessário o preço da morte do Filho de Deus para a
realização do meu resgate.
Quinto, abordar os cientistas dessa forma constitui uma batalha espiritual.
Incrédulos e idólatras são cativos ao engano satânico (1Co 10.20; 2Ts 2.9-12;
2Tm 2.25,26; Ef 4.17-24; Ap 12.9). Eles não serão livres do cativeiro de
Satanás a não ser que Deus os solte (2Tm 2.25,26). Precisamos orar a Deus e
depender do poder divino, e não da engenhosidade do argumento, da
eloquência e da persuasão humanos (1Co 2,1-5; 2Co 10.3-5).
Sexto, participamos desse encontro como igualmente pecadores. Os cristãos
também se tornaram culpados por serem cativos à idolatria em que a lei
científica é considerada impessoal. Nese cativeiro, consideramos triviais os
benefícios e belezas da ciência, que deveriam nos encher de gratidão e louvor
a Deus.
A abordagem ao testemunho baseada nesses princípios se desenvolve de
forma diferente de diversas outras modalidades dirigidas aos intelectuais? É o
que me parece.
AMPLIAÇÃO DA AUDIÊNCIA
Até agora temos focado nos cientistas como recipientes em potencial do
testemunho cristão. Mas que implicações podemos extrair para lidar com o
público mais amplo?
No mundo tecnológico, todos dependem dos produtos da ciência e
tecnologia. As pessoas confiam em algumas das ferramentas de tecnologia o
suficiente para depender delas. Elas confiam nelas não só para obter
informações sobre o mundo em geral, mas também para a própria
preservação da própria vida. Nem todos viajam em aviões, mas a maioria das
pessoas viaja de tempos em tempos em automóveis de alta velocidade e a
maioria compra comida em supermercados que apresentam o ponto final de
uma grande corrente de etapas tecnológicas na produção e distribuição de
alimentos.
Assim, o então nos protege do desastre? O testemunho bíblico é claro: Deus.
Contemplamos dia a dia o governo providencial de Deus. Deus faz “o bem”
(At 14.17). As maravilhas das plantas em crescimento manifestam a
fidelidade de Deus enquanto ele fala sua palavra às plantas. Essas maravilhas
de longa data são agora complementadas por maravilhas da química que
criam fertilizantes e pesticidas; as maravilhas da ciência do solo informam e
aconselham os agricultores; as maravilhas da biologia ao cultivar e modificar
geneticamente as plantas; as maravilhas da complexidade tecnológica em
colher, processar, enviar e empacotar a produção.
Os cientistas necessariamente lidam todos os dias e a todo o momento com o
caráter eterno e a onipotência da lei científica, que se encontra bem diante de
seus olhos. Mas o resto de nós percebe a fidelidade de Deus manifestada de
modo mais comum na confiabilidade do aparato tecnológico procedente da
ciência. Tomamos por certa a confiabilidade de nossas fontes alimentícias;
cremos que a comida crescerá todos os anos e cremos que a comida nutrirá
sem nos envenenar.
REGRESSO AOS ATRIBUTOS DE DEUS
Em certa medida, então, os atributos da lei científica são visíveis mesmo a
pessoas comuns usufruem dos benefícios da tecnologia. Elas creem que os
produtos tecnológicos funcionarão da mesma forma em qualquer tempo e em
qualquer lugar. Assim, em princípio, creem na constância da tecnologia. E
também acreditam, por implicação, que as leis por trás da tecnologia são
constantes. É claro, a pessoa de conhecimento mediano pode ou não estar
inteirada dos detalhes das leis científicas por trás de um produto tecnológico
em particular. Todavia, mesmo que ela não conhece as leis até os detalhes,
crê que mesmo nos detalhes elas permanecem constantes. A constância
garante a constância do funcionamento do produto tecnológico governado
pelas leis. A torradeira continua a torrar o pão porque a eletricidade continua
a produzir calor de acordo com as leis constantes. A constância da lei em
tanto tempo quanto o espaço aponta para a eternidade e onipresença das leis.
É claro, a pessoa comum pode estar menos ciente da implicação da
eternidade e da onipresença. Ela não é um teórico a testar os limites
máximos, teorizar sobre explosões de raios gama em galáxias distantes ou
sobre reações nucleares no sol. Ela é bem mais pragmática e se importa com
a constância das leis no escopo prático do seu mundo e crê nelas.
Contudo, na verdade, pode-se fazer uma observação semelhante sobre o
conceito tradicional da eternidade e onipresença de Deus. Os ensinos da
Bíblia se concentram em sentido primário no mundo da pessoa comum dentro
de sua visão limitada de tempo e espaço. Em sentido primário, a Bíblia não
pede às pessoas que creiam na eternidade e onipresença como abstrações
teóricas, mas que confiem em Deus na prática por meio de sua conduta na
vida. Os atributos da eternidade e onipresença são generalizações teóricas
desta experiência prática. Daí, a pessoa comum, no mundo bíblico,
corresponder à pessoa comum hoje que crê que a torradeira vai torrar o pão; o
teólogo teórico que fala da eternidade e onipresença corresponde ao cientista
teórico que fala das leis de caráter genérico e perfeito.
A providência divina afeta ambas as esferas. Assim, os atributos divinos da
lei científica oferecem uma plataforma para o testemunho às pessoas comuns
e aos cientistas.
2. O papel da Bíblia

Agora precisamos considerar a relação entre duas diferentes fontes de


verdade: a Bíblia e a ciência.
Como vimos no Capítulo 1, a ciência pode ser corrompida pela idolatria. Os
cientistas dependem de Deus quando realizam seu trabalho. Ao mesmo
tempo, muitos cientistas consideram a lei impessoal. Assim, substituem o
Deus pessoal, descrito na Bíblia, por um substituto impessoal, descrito em
Romanos 1.18-31. Eles, assim, criam um ídolo de acordo com sua
imaginação.
A Bíblia lida da forma correta com as tentações à idolatria. Assim, ela se
dirige à prática da ciência moderna. De que outras formas pode a Bíblia ser
pertinente à ciência? E de que maneiras a ciência é pertinente para entender a
Bíblia? Pode a ciência moderna também criticar a Bíblia? Com certeza,
algumas pessoas hoje tentam criticar a Bíblia e usar a ciência como base
crítica. Essas atitudes são legítimas? Quem baseia sua posição inteiramente
no mundo moderno poderia supor a legitimidade óbvia dessa crítica. Todavia,
a pessoa que baseia sua posição pela instrução bíblica segue na outra direção
e suscita questões críticas sobre o mundo moderno.
Então o que a Bíblia diz sobre o relacionamento? O ensino bíblico sobre a
revelação divina nos estrutura para a reflexão. Grosso modo, a revelação
consiste em “algo revelado por Deus ao homem”.[27] Nessa categoria geral, os
teólogos falam da revelação geral e da revelação especial. A revelação geral
é o que Deus mostra a todos os seres humanos mediante suas ações na
criação e na providência. A revelação especial é o que Deus mostra por meio
da instrução redentora na Bíblia.[28]
O salmo 19 exibe ambos os tipos de revelação:
[1] Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas
mãos.
[2] Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite.
[3] Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som;
[4] no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos
confins do mundo. Aí, pôs uma tenda para o sol,
[5] o qual, como noivo que sai dos seus aposentos, se regozija como herói, a percorrer
o seu caminho.
[6] Principia em uma extremidade dos céus, e até à outra vai o seu percurso; e nada
refoge ao seu calor.
[7] A lei do SENHOR é perfeita e restaura a alma; o testemunho do SENHOR é fiel e dá
sabedoria aos símplices.
[8] Os preceitos do SENHOR são retos e alegram o coração; o mandamento do SENHOR é
puro e ilumina os olhos.
[9] O temor do SENHOR é límpido e permanece para sempre; os juízos do SENHOR são
verdadeiros e todos igualmente, justos.
[10] São mais desejáveis do que ouro, mais do que muito ouro depurado; e são mais
doces do que o mel e o destilar dos favos.
[11] Além disso, por eles se admoesta o teu servo; em os guardar, há grande
recompensa.
[12] Quem há que possa discernir as próprias faltas? Absolve-me das que me são
ocultas.
[13] Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; então, serei
irrepreensível e ficarei livre de grande transgressão.
[14] As palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis na tua
presença, SENHOR, rocha minha e redentor meu!
Os versículos 1 a 6 demonstram a revelação divina por meio da criação e da
providência. Os versículos 7 a 11 se concentram na revelação por meio da lei
outorgada a Israel. A primeira delas, a revelação geral, tem uma relação clara
com a ciência e o estudo do mundo externo. A segunda, a revelação especial,
possui uma relação mais próxima da Bíblia e ao estudo bíblico na teologia.
Assim, a teologia da revelação encontrada na Bíblia provê uma maneira de
enxergar a relação entre a ciência e a Bíblia.
Mas agora precisamos ser cuidadosos. Muito depende da nossa concepção de
revelação. Por exemplo, Immanuel Kant argumentou que os fenômenos do
mundo jamais poderiam revelar a Deus de forma direta, mas os seres
humanos consideravam a ideia de Deus indiretamente necessária como base
da moralidade prática. Segundo Kant, Deus não se “revela”, exceto de forma
redefinida. As ideias de Kant exerceram influência tremenda nos últimos
duzentos anos, bem além de quem está ligado diretamente com seus escritos.
Muitas pessoas comuns adquiriram da cultura circundante a firme convicção
de que o mundo não pode do modo como eu o descrevo. Segundo o
pensamento delas, “o mundo moderno” nos mostrou que Deus, caso exista, é
inacessível e também o caráter impossível da revelação.
Todavia, a distância histórica crescente do tempo de Kant, e em especial a
mudança em direção ao pós-modernismo, tem tornado mais evidente, de
forma gradual, que as suposições iniciais de Kant sobre o mundo já
pressupunham o que precisava ser demonstrado. Considere um exemplo
específico. De acordo com Êxodo 19 e 20, Deus falou no monte Sinai com
voz audível ao povo de Israel e entregou os Dez Mandamentos (v. esp.
Êx 20.1,18,19; Dt 5.22-27). Pelo fato de eu acreditar na Bíblia, creio que
esses acontecimentos de fato aconteceram como foram descritos. Mas agora
mesmo temos uma questão diferente, a saber, se é possível Deus agir dessa
forma. A filosofia de Kant responde com um não. De acordo com Kant, os
fenômenos como o trovão e a voz na montanha ainda são fenômenos deste
mundo, e são o objeto de investigação científica — não fontes diretas da
verdade religiosa.
Mas para fazer essa afirmação, Kant precisa saber bastante sobre a natureza
do mundo e a natureza de Deus. Ele precisa saber não só se Deus existe, mas
como ele se relaciona ao mundo; precisa saber se Deus escolheu ou não fazer
um discurso do céu, como Êxodo 20 descreve. Kant também precisa saber
sobre a natureza e limitações da razão humana e, mais em sentido mais amplo
sobre a natureza da capacidade humana para conhecer a Deus. Ademais, ele
presume que o funcionamento da mente humana no tempo presente é normal,
em vez de estar presa ao pecado e à rebelião contra Deus. Assim, ele precisa
se valer de uma ontologia, uma teoria sobre o tipo de mundo em que estamos.
E, por mais paradoxal que seja, a ontologia escolhida por ele excede os
limites da capacidade alegada para a razão humana!
Também precisamos ter cautela no entendimento da relação entre os dois
tipos de revelação: geral e especial. Por exemplo, algumas pessoas
argumentam que a Bíblia responde às perguntas: “quem” e “por quê?”. A
ciência responde às questões sobre “como?”. Por serem tipos radicalmente
diferentes de perguntas, elas jamais podem conflitar de fato. Ainda que essa
posição conte com algumas vantagens, ela é simples demais.[29] Com certeza,
a Bíblia não ensina de forma direta detalhes sobre química. Todavia, ela
menciona o mundo físico. E ao falar diretamente sobre a revelação geral,
oferece uma estrutura para entender as coisas com as quais a ciência se
ocupa.
REVELAÇÃO E DISCURSO DIVINO
Primeiro, precisamos considerar o termo revelação, que possui vantagens e
desvantagens. Embora a palavra revelação tenha se tornado um termo técnico
e comum na teologia acadêmica, uma terminologia análoga não é comum na
própria Bíblia. O salmo 19, onde começamos a pensar sobre a revelação geral
e a revelação especial, usa a palavra “revela” no versículo 2. Mas a maioria
do salmo fala sobre a comunicação verbal. A “lei do SENHOR” (v. 7), “o
testemunho do SENHOR” (v. 7) e “os preceitos do SENHOR” (v. 8) designam a
comunicação verbal de Deus. Os versículos subsequentes continuam esse tipo
de descrição da revelação especial. Sem dúvida, a Bíblia é comunicação
verbal, então esse tipo de descrição se encaixa na segunda metade do salmo.
Mas a linguagem da comunicação verbal se estende também à primeira parte
do salmo: “Os céus declaram a glória de Deus, e o firmamento anuncia a
obra das suas mãos” (v. 1). Mesmo a palavra “revelar” no versículo 2 traduz
o radical do verbo hebraico ḥwh[RP1], que significa “contar, declarar”,[30] um
sentido que parece indicar uma associação com a comunicação verbal.
Outras partes da Bíblia confirmam este padrão. Em Gênesis 1, Deus cria pelo
falar. “Disse Deus: Haja luz; e houve luz” (Gn 1.3). O texto de Salmos 33.6
resume o padrão: “Os céus por sua palavra se fizeram, e, pelo sopro de sua
boca, o exército deles”. Acontecimentos providenciais acontecem mediante a
palavra de ordem de Deus:[31]
Ele envia as suas ordens à terra, e sua palavra corre velozmente; dá a neve como lã e
espalha a geada como cinza [...] Manda a sua palavra e o derrete (Sl 147.15,16,18)
Quando falamos da “palavra de Deus”, podemos pensar imediatamente na
Bíblia. E a Bíblia é a palavra de Deus. Mas a própria Bíblia indica que Deus
fala palavras sobre a criação e a providência, e nem todas essas palavras estão
registradas com detalhes na Bíblia.[32] As palavras de Deus governam o
mundo de forma absoluta, como Lamentações 3.37, 38 indica:
Quem poderá falar e fazer acontecer, se o SENHOR não o tiver decretado? Não é da
boca do Altíssimo que vêm tanto as desgraças como as bênçãos? (NVI)
Em lugar de revelação geral e especial, poderíamos nos referir muito bem
sobre os discursos geral e especial de Deus.[33]
Que diferença a terminologia alternativa faz? Em certo sentido, pouca
diferença. A realidade é a mesma; ao longo dos séculos, os teólogos têm
usado sempre a palavra revelação como termo geral. A própria palavra
revelação conta com uma vantagem: é mais vaga e ampla. Pode então nos
lembrar que quando Deus vem ao encontro com o homem, ele pode falar e
também fornecer evidências visuais de sua presença, ou de outro tipo, como
os trovões, relâmpagos e a espessa nuvem no monte Sinai (Êx 19). A
revelação, como termo geral, engloba todos os fenômenos visuais e
auditivos, bem como a voz de Deus ao pronunciar os Dez Mandamentos
(Êx 20.1-17).
Se quisermos, podemos então mencionar a revelação verbal e a revelação
não verbal. A revelação verbal é o que Deus diz à humanidade, ou a uma
parcela da humanidade na linguagem humana. A revelação não verbal é o
que Deus mostra aos seres humanos por outros meios além da linguagem
humana.[34] Contudo, essas duas modalidades não podem ser separadas com
rigidez. A experiência no monte Sinai mostra que os dois tipos de revelação
costumam se complementar, e cada um forma um contexto que ajuda a
entender o outro. A comunicação verbal nos ajuda a entender quem Deus é, e
quem é aquele que se mostra nos espetaculares trovões e relâmpagos. O
trovão e o relâmpago ajudam a demonstrar a autoridade e poder do Deus que
comunica os Dez Mandamentos. Se não houvesse uma amostra espetacular, e
as pessoas tivessem ouvido apenas uma voz bem comum e de timbre
humano, os duvidosos poderiam escarnecer e afirmar se tratar da voz de
Moisés, pois ele teria inventado tudo aquilo.
Inferimos de outras passagens bíblicas que a palavra de comando de Deus
produziu o trovão, o relâmpago e a nuvem. Daí a inteireza é um efeito das
palavras divinas. Todavia, só parte disso tem caráter verbal explícito e forma
com que alcança o povo ao pé do monte: a saber, a voz de Deus a pronunciar
os Dez Mandamentos.
Agora chegamos a uma das limitações da palavra revelação. Ela falha em
indicar grande parte da Bíblia destaca o discurso divino, não só quando
discute a comunicação verbal à humanidade, mas quando menciona os
acontecimentos na criação e na providência. Ademais, a palavra revelação
sugere revelação a seres humanos. Uma das definições dicionarizadas
comuns é “algo revelado por Deus ao homem”.[35] Ela é limitada aos seres
humanos. Mas a palavra de Deus a dirigir a criação e a providência não é tão
limitada. Deus governa o mundo inteiro por meio de suas palavras de ordem,
não só os seres humanos. Por exemplo, as palavras “Haja luz” aparecem em
Gênesis 1.3. Como parte de Gênesis 1.3, elas foram escritas para Israel e para
nós. Todavia, Gênesis 1.3 descreve um tempo anterior à existência dos seres
humanos, quando Deus emitiu a ordem pela primeira vez. Nesse tempo ele
não se dirigiu a seres humanos, pois eles não existiam. Assim, essas palavras
consistem em revelação? A questão não é apropriada porque a nossa palavra
moderna revelação não foi feita para iluminar o caso.
Segundo, a palavra revelação sugere a alguns só a categoria estrita de
revelação miraculosa, a divulgação de verdades que seriam totalmente
incognoscíveis de outra forma. Por exemplo, ao profetizar a vinda do
Messias, Isaías 9.6, 7 menciona acontecimentos futuros sobre os quais os
seres humanos não poderiam saber de outra forma. A predição de Isaías é
“revelação” no sentido estrito. A Bíblia também fala, no entanto, sobre
muitos fatos que podem ser conhecidos por outras fontes. A passagem de
2 Reis 13.12 se refere a registros “escritos no Livro das Crônicas dos Reis de
Israel” (não confunda com os nossos livros de 1 e 2 Crônicas, que focam em
Judá). Essas “Crônicas” eram registros provavelmente semioficiais e não
inspirados, compilados por escribas que serviram sob os reis desse período.
Pode-se aprender dessas fontes “seculares” algo da mesma informação
encontrada em 1 e 2 Reis. Quando essa informação comum ocorre em
1 e 2 Reis, nós a designamos revelação? Creio que devemos fazê-lo, a fim de
enfatizar que Deus o diz.
Ou, de novo, os evangelhos registram acontecimentos que as testemunhas
oculares observaram por meios comuns. Então são os evangelhos “revelação”
nesses pontos? Ou o termo “revelação” engloba apenas predições sobre a
segunda vinda e outras informações humanamente inacessíveis? A
ambiguidade da palavra “revelação” é potencialmente problemática. Em
contraste, se mencionarmos o “discurso de Deus” torna-se perfeitamente
claro que Deus é livre para falar sobre o futuro desconhecido, ou sobre o
passado, que muitas vezes pode ser conhecido por outros meios. A autoridade
do que Deus diz permanece a mesma. Os evangelhos são a palavra de Deus e
seu anúncio esclarece a ambiguidade potencial sobre sua autoridade.
A palavra revelação também cria um problema quando as pessoas lhe
imputam a ideia da necessidade de convencer a audiência. Algumas pessoas
afirmam que “trata-se de revelação genuína apenas se revela, isto é, só se
alguém recebe de forma efetiva a verdade que se desejou transmitir”. Nessa
linha de raciocínio, a Bíblia não é “revelação” enquanto permanecer na
estante, só quando alguém a pega e lê. E mesmo quando alguém lê, ainda não
é revelação até ser entendida. Se ser entendida, não é revelação. E quando se
entende, a “revelação” real é na verdade o processo pessoal de entender.
Assim, de acordo com esse raciocínio, a Bíblia é em alguns momentos apenas
um canal do processo de revelação. Mesmo no momento da compreensão, o
processo é “revelação”, a mensagem na página não é. E assim segue o
pensamento neo-ortodoxo sobre a revelação.
Quando se muda o tema para o discurso de Deus, corta-se esse subterfúgio.
Jesus disse: “Quem me rejeita e não recebe as minhas palavras tem quem o
julgue; a própria palavra que tenho proferido, essa o julgará no último dia”
(Jo 12.48). Jesus não usou aí a terminologia “revelação”; o ponto é bem mais
claro. “Quem [...] não recebe as minhas palavras” não recebeu a verdade. As
palavras de Jesus não “passaram por ele”. Nada lhe foi “revelado” com uma
recepção apropriada e agradecida. Não houve “revelação” no sentido peculiar
do termo. Contudo, “a própria palavra que eu tenho proferido, essa o julgará
no último dia”. A palavra permanece ali, e permanece como o padrão pelo
qual ele é julgado, quer o tenha recebido ou não. A vantagem é óbvia de falar
sobre o discurso de Deus, em vez da “revelação”, é o esclarecimento de que
Deus fala mesmo quando nenhum ser humano ouve de forma adequada. A
fala de Deus não se tornou menor só porque um ser humano fechou os
ouvidos. Na verdade, a palavra de Deus retém o poder de julgar o ser humano
por ter fechado os ouvidos e não recebido as palavras.
Não podemos tratar aqui das interações extensivas com a compreensão neo-
ortodoxa da Escritura. A neo-ortodoxia apela para a Bíblia como apoio; no
final, seu argumento é falho.[36] Sem repetir desnecessariamente os
argumentos dos meus antecessores, mantenho o entendimento clássico e
ortodoxo da Bíblia: a Bíblia é palavra de Deus na estante e quando é lida.
Essa afirmação não quer dizer que os elementos físicos, o papel e a tinta, são
a palavra de Deus; ao contrário, a mensagem registrada no papel e na tinta é a
palavra de Deus.[37] Interpretar a Bíblia pode apresentar muitos desafios, e
como seres humanos cometemos muitos erros inocentes (mais
frequentemente) e com intenção pecaminosa. A palavra de Deus, conhecida
pelo Espírito Santo, permanece o juiz de nossas falhas.
A PALAVRA DE DEUS
Assim, a Bíblia é a palavra de Deus. Ela foi escrita na linguagem humana e
escrita com o propósito primário de nos instruir, guiar, repreender e corrigir a
fim de podermos crescer e servir a Deus de modo aceitável: “Toda a Escritura
é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção,
para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e
perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16,17).
No entanto, como vimos, a Bíblia não contém todas as palavras já
pronunciadas por Deus ou as que ele vai falar. Jesus falou muitas palavras
quando esteve na terra. Todas elas eram palavra de Deus, mas não foram
registradas na Bíblia (Jo 21.25). Além disso, Deus fala palavras não dirigidas
primariamente a seres humanos, como as palavras que direcionam o
derretimento da neve e da geada em Salmos 147.18. Podemos designar essas
declarações palavras de Deus que controlam o mundo.
Todo discurso de Deus se harmoniza com seu caráter. Deus é justo, santo,
puro e verdadeiro. Como consequência, seu discurso é justo, santo, puro e
verdadeiro (cf. Sl 12.6; Pv 30.5). Essas características pertencem às palavras
que governam a criação e a providência e às palavras dirigidas a seres
humanos na Bíblia. Sendo Deus coerente consigo mesmo, não há desarmonia
entre os dois tipos de palavras.
LIDAR COM DISCREPÂNCIAS APARENTES
Aonde isso nos leva? “Tudo bem”, alguém pode dizer, “e todas as
discrepâncias entre a ciência moderna e a Bíblia?”. Se as palavras de Deus se
harmonizam, só podem existir discrepâncias aparentes. Confiar em Deus
significa crer que ele sabe mais do que nós, mesmo quando problemas
parecem surgir. Deus disse a Abraão para sacrificar seu filho Isaque, ainda
que antes prometesse a Abraão que Isaque era o descendente por meio de
quem Deus cumpriria seus propósitos. Parecia uma contradição, mas Abraão
não desistiu da fé (Hb 11.17-19).
Confiar em Deus não implica a negação de dificuldades ou sua ignorância
completa e sim lidar com as dificuldade de acordo com a orientação e a
verdade providas por Deus.
Reconhecer quem somos como seres humanos nos traz algum alívio. O texto
de Gênesis 1.26-28 afirma nossa criação à imagem divina. Assim, esperamos
entender, pelo menos em parte, a mente de Deus e compreender o que ele diz.
Buscamos entender suas afirmações na Bíblia. E procuramos entender o que
diz ao governar o mundo na criação e por meio da providência. Entretanto, os
dois tipos de entendimento são parciais e sujeitos à correção. Somos finitos e
pecadores. Nossa finitude significa que nosso alcance dos caminhos de Deus
é incompleto. Nossa pecaminosidade acarreta a distorção da verdade a nosso
favor. Transformamos o conhecimento divino em idolatria; tornamo-nos
deuses de lata que, à semelhança de Adão e Eva, desejam julgar Deus e
formar nosso próprio entendimento, de modo independente de sua instrução
quanto ao caráter verdadeiro ou não da proibição de nosso ato (v. Gn 3.1-6).
Finitude e pecaminosidade atuam na interpretação da Bíblia e na
interpretação do mundo, estudada pelos cientistas. Na vida, a interpretação da
Bíblia é sempre parcial e incompleta, e algumas vezes claramente falsa,
causada pela distorção obstinada. Os desejos das pessoas as levam a
encontrar na Bíblia o que decidiram encontrar ali, ou que elas esperam
confirmar seus desejos.
A mesma verdade se encontra no trabalho científico. A interpretação do
mundo e a exploração no desenvolvimento da teoria científica nunca têm fim.
Por princípios, as teorias científicas estão sujeitas à revisão. Algumas vezes,
os desejos das pessoas as levam a encontrar explicações que se harmonizam
com seus desejos e com a cosmovisão que os reforça. Os cientistas, como
todos nós, são pecadores que esperam confirmar seus desejos.
Como vimos, a ciência não é uma empreitada “neutra”: ela pressupõe a lei
científica, o que pressupõe Deus. As pessoas servem a Deus ou servem a uma
divindade falsa. O tipo de deus que servem influencia suas expectativas sobre
os tipos de leis que imaginam encontrar. Assim, a entrada de preconceitos
não é apenas um erro ocasional e acidental, mas um problema difuso. É tão
difundido quanto o pecado no coração.
Assim, quando encontrarmos discrepâncias entre a Bíblia e a ciência,
procuramos pelo ponto em que nos desviamos. Em algum lugar alguém
interpretou de forma equivocada a Escritura, o mundo do estudo científico,
ou ambos. A tarefa de lidar com discrepâncias pode não ser fácil, pois não
sabemos de antemão onde estão nossos erros. O erro ocorreu ao ignorar a
contraprova, leituras alternativas da evidência, explicações alternativas ou
apenas ao se deixar levar pela atmosfera em que pressupostos materialistas
excluíram a priori algumas alternativas?
Em certa medida, os mesmos problemas nos confrontam em uma área mais
estrita de pesquisa. Na Bíblia, os ensinos de um versículo algumas vezes
parecem contradizer os ensinos de outro. Esses casos merecem um tratamento
paciente e individual, pois não sabemos à primeira vista o que deu errado no
nosso entendimento. Da mesma forma, às vezes, as teorias científicas não se
harmonizam de forma completa. Einstein percebeu que as equações de
Maxwell sobre o eletromagnetismo não se harmonizavam com a mecânica
newtoniana. Seu exame da discrepância levou à revisão da teoria de Newton.
Em 2006, a teoria de campo quântico não se harmoniza com a relatividade
geral, porque a teoria de campo quântico demanda uma estrutura fixa de
espaço e tempo, ao passo que a relatividade geral requer mudanças contínuas
na estrutura de espaço e tempo influenciados pela matéria e energia. Ninguém
ainda sabe resolver com certeza a discrepância de maneira completamente
satisfatória. Contudo, os físicos não deixam de crer que as leis da física são
autoconsistentes e harmoniosas em princípio.
A chave para a solução inteligente das discrepâncias pode se dar em qualquer
lugar. Ela pode estar nos detalhes das evidências, na revisão sutil ou radical
de um pressuposto não examinado, em alguma nova teoria superior à antiga,
em uma cosmovisão que distorce o entendimento ou nos efeitos conjuntos de
mais de uma área.
No caso de discrepâncias aparentes entre a Bíblia e a ciência, precisamos
estar prontos para reexaminar o nosso pensamento sobre a Bíblia e a ciência.
Não precisamos presumir rápido demais que o erro se encontra
especificamente em um lado. No mundo atual, encontramos pessoas sempre
prontas a presumir a correção da ciência e a incorreção da Bíblia. Ou, ao
contrário, outros presumem estar a Bíblia sempre certa e a ciência moderna
errada.
Todavia, a Bíblia está sempre certa, e deve ser confiada nesse sentido. Da
mesma forma, a palavra de Deus a respeito da providência está sempre certa e
é fidedigna. Mas a ciência moderna, como interpretação humana da
providência divina, pode cometer erros. Nossa interpretação da providência
pode precisar de revisão. E nossa interpretação da Bíblia pode precisar de
revisão.
Os oponentes de Galileu afirmaram que ele precisava estar errado sobre o
movimento do sol e da terra. Sua alegação consistia em dizer que a Bíblia
ensinava com nitidez a imobilidade da terra. Na verdade, os oponentes
estavam bem preocupados em preservar a filosofia aristotélica e isso, acima
de tudo, precisava de um reexame crítico.[38] Mas seria também apropriado
reexaminar os versículos da Bíblia, para ver se eles ensinavam de fato o que
essas pessoas imaginavam. No caso, o reexame das passagens bíblicas sobre
a imobilidade da terra mostra que eles se dirigem a nós em termos da vida
comum, não de teorias científicas esotéricas. Na vida e experiência comuns, a
terra permanece fixa sob dos nossos pés quando andamos em cima dela![39]
Ler a Bíblia como afirmação técnica de uma teoria científica significa lê-la
com equívoco.
PRIORIDADE ONTOLÓGICA DA PALAVRA PROVIDENCIAL DE DEUS
Diremos, então, que no caso de discrepâncias daremos peso idêntico à Bíblia
e à ciência? Não, não tão rápido. Não devemos tratar as duas áreas como
simétricas.
Em certo sentido, a palavra de Deus governa a criação e a providência é
fundamental, pois antecede as palavras especiais na Bíblia e forma o
ambiente indispensável para que a Bíblia faça sentido. Primeiro, Deus, por
sua palavra de comando, cria um mundo e o homem nele. Só depois ele
dirige uma comunicação verbal especial a Adão e à sua posteridade.
Ademais, se devo ler a Bíblia, eu mesmo primeiro preciso vir à existência,
pelo poder da palavra providencial de Deus.
Sua palavra providencial precisa me sustentar, e precisa manter meu
crescimento quando aprendo a língua inglesa (ou qualquer outro idioma).
Deus também sustenta os aspectos físicos do livro que leio e o funcionamento
dos olhos que utilizo para ler. Podemos dizer que, assim, a palavra
providencial de Deus forma a fundação ontológica e epistemológica da vinda
da sua palavra na Escritura.
PRIORIDADE LINGUÍSTICA NA BÍBLIA
Além disso, a Escritura conta com uma prioridade linguística e redentora.
Ela possui prioridade linguística, pois vem a nós na linguagem humana. Em
contrapartida, não temos acesso às palavras providenciais de Deus em
linguagem humana. Sabemos que Deus também fala na criação, pois disse:
“Haja luz” (Gn 1.3). Mas não temos indícios de que esse discurso se dê na
linguagem humana. Em Gênesis 1.3, a fala de Deus é representada no
hebraico, traduzida em linguagem humana, caso você prefira. Entretanto,
Deus não indica o uso de hebraico, inglês, uma linguagem angélica ou uma
língua divina, própria e exclusiva, quando falou pela primeira vez. No caso
de Gênesis 1.3, há pelo menos uma representação em hebraico. Não
dispomos do registro bíblico de palavras específicas no caso de muitas outras
outros vocábulos usados para governar o mundo criado. Não sabemos em
detalhes o que ele disse ou que língua usou para pronunciá-las. Neste exato
momento, o vento sopra os galhos de uma árvore que observo através da
minha janela. O vento obedece à palavra de Deus (Sl 147.18) que lhe ordena
soprar. Mas o que Deus está dizendo? Não escuto palavras, ouço o vento.
Ouço e observo só os efeitos das palavras. Não tenho acesso imediato às
palavras divinas, ao passo que disponho desse acesso com a Bíblia. Ali estão
as palavras, registradas com papel e tinta.
Assim, contamos com a disponibilidade da palavra de Deus na Bíblia, ao
contrário do que acontece com a palavra de Deus sobre o vento. Se eu fizesse
um estudo científico do vento, poderia tentar inferir a palavra de Deus. Ou
seja, posso inferir algumas leis, talvez as leis da aerodinâmica que regem o
vento. Todavia, trata-se de uma inferência, uma aproximação. Opino, em
parte, com base na melhor evidência específica e nos tipos de leis que
considero as melhores explicações da evidência. Sem dúvida, minhas
avaliações sobre o tipo de leis são influenciadas por quem considero ser
Deus. Entretanto, se eu for honesto e humilde, também admitirei que essa
descrição das leis é minha. Ela representa minha descrição humana, minha
aproximação humana. Dessa forma, a Bíblia conta com um tipo de
supremacia linguística por ser a palavra de Deus, não apenas uma
aproximação humana da palavra, uma opinião sobre a palavra baseada no
acúmulo de observações sobre seus efeitos. Minha formulação linguística das
leis da aerodinâmica é falível; a Bíblia, como comunicação linguística, não é
falível.
Nesse aspecto, as formulações de um cientista humano são mais próximas de
um comentário da Bíblia que da própria Bíblia. O comentário, como produto
humano, é falível; a Bíblia é infalível. Contudo, mesmo isso não captura em
as diferenças. O comentarista bíblico humano trabalha a partir da mensagem
inicial na Bíblia que já é linguagem humana. Outros comentaristas e pessoas
comuns podem comparar o comentário com o texto original e julgar por si
mesmas o valor do comentário. Em contrapartida, quando formulamos as leis
da aerodinâmica, não se dispõe do original linguístico com que comparar as
formulações humanas.[40] É como se só tivéssemos comentários, sem o texto
original conhecido sobre o qual comentamos. Na verdade, a analogia com
comentários se desfaz por completo, porque os comentários dependem na
essência da interação com o texto original na linguagem humana.
Também devemos distinguir a revelação geral sobre Deus da informação
sobre as formas detalhadas de seu governo sobre o mundo por meio de sua
providência. O texto de Romanos 1.18-23 afirma que a existência de Deus e
vários aspectos do seu caráter são “manifestos” (1.19) e “claramente se
percebem” (1.20). Não se diz que os detalhes sobre a forma de seu governo
são claros. Na verdade, grande parte do conhecimento sobre a natureza não é
tão claro de imediato, precisa ser pesquisado com diligência e paciência. A
ciência tomou um bom tempo para chegar ao entendimento presente, e
mesmo agora sua tarefa ainda não está completa. Em conformidade, o
discurso de Deus a Jó em Jó 38—41 chama a atenção de Jó para quão pouco
ele conhece de fato sobre esses detalhes.
PRIORIDADE REDENTORA DA BÍBLIA
A Bíblia também possui uma prioridade em relação à palavra divina
providencial na função redentora. Deus formulou a Bíblia para ajudar os
pecadores a se voltarem a ele e crescerem em santidade. “... as sagradas
letras, que podem tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo Jesus.
Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão,
para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus
seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.15-17).
Do mesmo modo, o texto de Salmos 19.7-11 e o salmo 119, que se
concentram na palavra divina registrada, privilegiam o papel da palavra na
iluminação e purificação: “A lei do SENHOR é perfeita e restaura a alma”
(Sl 19.7). Em contrapartida, Romanos 1.18-31 indica que a revelação geral
comporta um tipo de conhecimento de Deus que deixa as pessoas sem
desculpas (1.20,21); todavia, elas suprimem a verdade (v. 18) e transformam
seu conhecimento em idolatria (v. 23). É normal a revelação geral trazer o
pecado à luz, tornando as pessoas mais culpadas (“indesculpáveis”, v. 20).
Em contrapartida, Deus formulou a Bíblia de forma específica com a função
de vencer o pecado, incluindo os pecados intelectuais corruptores da verdade.
[41]

Somos pecadores e rebeldes por natureza. Precisamos da Bíblia. João Calvino


compara corretamente a Escritura a lentes, através das quais somos
habilitados a ler a instrução da revelação geral:
Ainda que no espelho de Suas obras, com quão grande clareza Se represente o
Senhor, não apenas a Si [Próprio], mas também a Seu imortal Reino, como é,
entretanto, nossa obtusidade, sempre lerdos nos havemos para com tão perspícuas
evidências, assim que sem proveito [nos] efluam.[42]
Exatamente como [se dá com] pessoas idosas, [...] ajudadas porém, pela interposição
de lentes, começarão a ler de forma distinta. Assim a Escritura, coletando-nos na
mente conhecimento de Deus de outra sorte confuso, dissipada a escuridão, mostra-
nos em diáfana clareza o Deus verdadeiro.[43]
A palavra de Deus na providência e sua palavra na Escritura são de todo
verdadeiras e fidedignas. Porém, entendemos mal uma palavra se não
contamos com a outra. Crescemos com o entendimento confiável só quando a
Bíblia desempenha o papel central na dissipação das teias do pecado.
Contudo, por causa do prestígio da ciência moderna, experimentamos a
tentação forte de imaginar que não precisamos de fato da Bíblia para entender
o mundo natural, ou que ela desempenha um papel menor e incidental.
Assim, podemos dedicar mais algum tempo à reflexão mais detalhada sobre
algumas formas do pecado na corrupção do conhecimento humano.
3. Conhecimento procedente da autoridade de quem?

Quanto de atenção devemos prestar às opiniões comuns da nossa cultura?


Ao pensar sobre a lei científica e a revelação, já cheguei a conclusões
distintamente opostas sobre grande parte do mundo moderno. Como
resultado, muitas pessoas podem ter perdido a paciência comigo. Elas
pensam: “Essas conclusões não podem estar certas, porque elas contradizem
o que quase todos nós acreditamos”. Hoje, a maioria das pessoas presume
que os cientistas agem de modo independente de compromissos religiosos. E
em certo sentido o fazem. Na vida privada, os cientistas podem manter uma
variedade de conceitos religiosos. Eles podem ser cristãos, agnósticos, ateus,
budistas, hindus ou qualquer outra coisa que você pensar. Contudo, quando
lidam com a ciência, parecem operar em harmonia entre si.
A REALIDADE DE DEUS
Cumpre-nos, entretanto, transformar essa imagem com vários tipos de
observações. A mais importante delas diz respeito ao próprio Deus. Deus
existe de fato, quer as pessoas concordem quer não.[44]
Ademais, Deus se recusa a ser confinado em alguma parte da esfera privada,
pois está presente e ativo nos assuntos públicos. Ele se encontra em ação
constante, por meio do governo providencial do mundo. Ele julga as pessoas
por atos públicos e privados. Deus não é apenas uma página em branco que
podemos preencher com quaisquer ideias que tenhamos a seu respeito. Seu
caráter é específico, como já percebemos nos atributos divinos da lei
científica: onipresença, eternidade, imutabilidade, onipotência e assim em
diante. Deus é o Deus trinitário da Bíblia. O mesmo Deus que se revela na
Bíblia em toda a sua especificidade também se revela na lei científica.
Todavia, ele não só se revela. Os cientistas precisam depender e, de fato, o
fazem, de quem Deus é na prática científica. Se a prática científica é
incoerente com os conceitos religiosos particulares dos cientistas, então só
temos uma inconsistência. O que não se tem é a ciência neutra no que diz
respeito à crença religiosa.
COMPROMISSO RELIGIOSO NO SECULARISMO PÓS-MODERNO
A segunda em importância, precisamos olhar com suspeita para o ambiente
secularista moderno à nossa volta.[45] A vida moderna é diversificada e
complicada. Então, no que se segue, preciso simplificar um pouco e dar umas
pinceladas mais genéricas.
O secularismo moderno, como movimento social e filosofia de vida, tem
produzido um tipo de atmosfera em que parece natural confinar a religião à
opinião particular. A fim de que as pessoas de conceitos religiosos diversos
convivam em harmonia, parece conveniente as pessoas “guardarem a religião
para si mesmas”. Normalmente se pensa: “não atrapalhe a fluência tranquila
da ciência, do comércio ou da educação trazendo à tona questões religiosas
que só dividem”. Essa atmosfera influencia a todos, de forma que as pessoas
não mais se perguntam se há um conflito entre sua religião e a prática
pública. Elas vivem confortavelmente com essa incoerência, porque todos o
fazem.
Mas é só considerar alguns cenários hipotéticos em que o secularismo é
ameaçado diretamente por outros sistemas de crença para perceber a
vacuidade da alegação da neutralidade religiosa. Considere o animismo. Uma
forma de animismo alega que espíritos variados, bons ou maus, habitam em
lugares específicos e em objetos específicos. Há um espírito no antílope e
outro na árvore. Sendo assim, o antílope ou a árvore é, em alguns aspectos,
sagrado. Talvez devamos deixar o antílope sozinho. Ou talvez, com as
técnicas corretas para propiciar os espíritos, pode-se matar um antílope para
se alimentar dele mas não usar sua pele, à qual o espírito do antílope se
refugia quando o animal é morto. Esse tipo de animismo é obviamente
incompatível com a ciência experimental. Um animista não pode conduzir
experimentos científicos pela incapacidade conceder a si mesmo permissão
para manipular o mundo natural à vontade. Ele não considera a prática
científica segura em sentido espiritual.
O secularista típico pressupõe o equívoco do animismo, não pela verificação
pessoal, mas porque todos na sociedade secular moderna se comportam de
maneira que lhe assegura que o animismo está errado. Todavia, a própria tese
do erro do animismo é um conceito religioso. Ele faz uma aposta sobre coisas
sagradas, fora do aspecto físico. O secularista não é secular de fato, isto é,
independente da religião, mas faz uma aposta religiosa, ainda que seja
negativa — relativa à inexistência de espíritos segundo os animistas. Ele o
faz sem ter examinado os fatos de maneira desinteressada, por ser uma pessoa
que se deixa influenciar com facilidade.
Ademais, o secularismo oculta os próprios interesses religiosos ao afirmar
não dispor deles. Ele reforça esta meia-verdade ao tolerar em seu meio uma
pequena minoria de malucos e excêntricos, incluindo-se animistas. A
pequena minoria de animistas pode praticar as seus conceitos animistas com
tranquilidade em particular. Como indivíduos, eles também podem exercer
sua liberdade cívica da abstenção da prática científica em paz. Ao criar um
espaço para os malucos, o secularismo demonstra a alegada tolerância e
neutralidade religiosa e desse modo confirma suas alegações e plausibilidade
para as pessoas.
Contudo, suponha que o número de animistas crescesse, se tornasse a maioria
e exercesse sua vontade política ao negar financiamento federal para a
ciência. Os secularistas ficariam felizes? Não. Na verdade, bem antes que
essa situação pudesse se desenvolver, os secularistas que controlam a mídia e
a educação pública soariam o alarme e tomariam medidas para transformar os
filhos dos animistas em “bons cidadãos”, isto é, pessoas que sabem manter o
animismo em particular. Entretanto, insistir na manutenção do animismo em
particular significa negar na prática que os espíritos estão de fato por aí, pelo
menos da maneira concebida por seus pais. A educação e a mídia inculcam
um sistema de crenças de natureza religiosa ao ensinar que o animismo (pelo
menos no sentido tradicional) está equivocado.
Considere agora a interpretação Shankara do hinduísmo vedanta. De acordo
com Shankara, Brâman, a realidade suprema, é uno e, em algum sentido,
idêntico à alma humana individual. O mundo material é “maia”, ilusão, irreal
em relação a Brâman, mas “relativamente real como manifestação do Brâman
real”.[46] O objetivo da vida humana é o conhecimento de Brâman. De acordo
com essa visão, a ciência é de pouco ou nenhum valor, por se concentrar por
inteiro no mundo da ilusão.
Os secularistas modernos possuem uma relação com o hinduísmo Shankara
análoga à considerada sobre o animismo. Para começar, eles implicitamente
rejeitam Shankara pela prática de se lançar no mundo da “ilusão”. A ação
demonstra na prática que eles já decidiram de antemão sobre o equívoco de
Shankara. Decidiram não olhar as afirmações de Shankara e analisá-las,
apenas seguem a multidão no ambiente moderno.
Como ocorre com o animismo, também aqui os secularistas toleram na
sociedade a pequena minoria de aderentes das visões de Shankara. Mas esses
conceitos são “privatizados” com cuidado,[47] isto é, confinados à privacidade
de indivíduos ou famílias; o tabu secularista moderno contra a religião na
esfera pública exerce forte pressão sobre a minoria para que guarde seus
conceitos para si. Mas é claro que a pressão da desaprovação moral só pode
surgir do compromisso religioso prévio com a convicção de que o mundo
material não é ilusório, e sim a realidade primária. Mais uma vez, o
“secularismo” depende de um envolvimento religioso prévio.
Ademais, da mesma forma que ocorre com o animismo, os secularistas
começariam a atacar os conceitos de Shankara caso eles se difundissem muito
e seus adeptos obtivessem significativo controle político.
HIPOCRISIA MORAL NO SECULARISMO PÓS-MODERNO
O secularismo também mostra seu fundamento religioso nos
pronunciamentos morais. A cosmovisão secularista depende do compromisso
moral com a tolerância, o pluralismo político, o apoio estatal contínuo à
ciência e educação pública. Mas o secularismo literal, em e por si mesmo,
não pode produzir nenhuma base moral absoluta para a moralidade. Na
verdade, o pensamento secular contemporâneo costuma minar alegações
morais absolutas: ele equipara a moralidade à opinião pessoal[48] a fim de
apoiar a sociedade em que as pessoas podem diferir sobre opiniões morais e
ainda conviver em paz.
Mesmo assim, os compromissos morais do secularismo recebem em segredo
um status sagrado. A tolerância, o pluralismo político e assim em diante, são
compromissos morais. Seriam eles também meras opiniões? Na prática, não.
Se fossem apenas “opiniões”, todo o esquema entraria em colapso, pois nesse
caso a opinião sobre a correção do fascismo ou do animismo teria a mesma
importância do ponto de vista sobre a correção do pluralismo. Na prática, o
secularismo demanda confiança e fé dos próprios compromissos morais.
Pode-se ver o problema ao lidar com formas fanáticas de islã no Oriente
Próximo. Segundo esses fanáticos, a imposição do governo islâmico é a
solução moral e religiosa correta. A tolerância religiosa e o pluralismo
político não fazem sentido, são uma parte da decadência da modernidade.
Diante dessas afirmações, o secularista pós-moderno pluralista pode dizer
com toda a eloquência a seu dispor que a intolerância religiosa é errada. Ao
mesmo tempo, ele não possuiu base para fazer sua denúncia moral, pois, de
acordo com os seus dogmas, a moralidade é uma questão de opinião pessoal.
E se encontrássemos uma opinião social diferente no Oriente Próximo? Isso
também seria certo “para eles”.
O CRISTIANISMO NO AMBIENTE SECULARISTA
E como o cristianismo transita no ambiente secularista? As relações entre a fé
cristã e o secularismo moderno são complexas, em parte porque o
secularismo emergiu do passado cristão e ainda se agarra a alguns
fundamentos morais desse passado.
A Bíblia ensina que o homem foi feito à imagem divina, sendo uma criatura
moralmente responsável. Ela também deixa claro que o compromisso
religioso e a lealdade genuína a Deus fluem do coração, e não devem ser
compelidos por pressão humana. Por isso a cosmovisão bíblica promove a
tolerância religiosa e política.[49] Sim, a história passada do cristianismo
mostra instâncias vergonhosas de intolerância, mas elas conflitam com os
verdadeiros princípios morais articulados na Bíblia.
A tolerância cristã não quer dizer que todos os pontos de vista são igualmente
corretos. Ao contrário, significa que as visões equivocadas dos outros devem
ser toleradas, por respeito à imagem divina e ao modo de Deus lidar com as
outras pessoas em amor. O secularismo distorce a tolerância encontrada na
Bíblia em um tipo de tolerância desenraizado que tenta, na prática, suprimir a
influência da religião na vida.
Terá o secularismo distorcido também nossa concepção da ciência? A ciência
moderna teve origem em sociedades que defendiam uma cosmovisão
basicamente cristã.[50] As doutrinas cristãs da criação e providência garantem
que o mundo opera de acordo com a racionalidade divina. Por ter sido o
homem criado à imagem divina, a racionalidade de Deus é acessível a nós e
inteligível a nós ao menos em parte. Por isso há esperança de descobertas e
progressos científicos. E por Deus ter concedido ao homem o domínio sobre
o mundo, a tarefa de estudar o mundo é legítima (contrariando o animismo) e
frutífera (contrariando o hinduísmo monista Shankara).
O pensamento secularista moderno sobre a ciência sobrepujou os conceitos
sobre a racionalidade divina, a competência humana e o domínio humano,
Todavia, da mesma forma que aconteceu com a ideia de tolerância, também
aqui o secularismo arranca as ideias de suas origens religiosas e lhes dá
feição própria. A racionalidade divina foi transformada na racionalidade da
lei científica, agora concebida como impessoal. A competência humana não é
mais uma dádiva divina, mas um fato bruto da vida assumido com
pragmatismo.
Como vimos no Capítulo 1, a prática científica continua carente do conceito
de Deus na concepção das leis científicas. Contudo, o secularismo também
transforma em um substituo idólatra a fim de evitar consequências espirituais
dolorosas. Ao contrário do mito secularista, a ciência, na prática, é inata e
religiosa: ela serve a Deus ou à idolatria. Um dos fatores da idolatria é o
engano. Neste caso, a idolatria esconde de si mesma sua condição.
A CORRUPÇÃO E REDENÇÃO DA MENTE
Vemos agora que o ambiente moderno oferece uma série de meias-verdades e
enganos? Cristãos e não cristãos absorveram as meias-verdades, ao menos
parcialmente, e creram nelas. Até que se dê um passo atrás e sejam
formuladas as perguntas corretas, segue-se a multidão de modo inconsciente.
Os pressupostos comuns da maioria à nossa volta exercem grande influência.
[51]
Essa influência é reforçada pelo poderoso prestígio da educação pública e
dos meios de comunicação de massa.
O mito do progresso, um elemento desse ambiente, sussurra para nós que, por
percebermos o progresso tecnológico, devemos progredir no conhecimento e
na sabedoria social, sendo desnecessário perguntar se a sociedade atual pode
ter perdido ou distorcido a verdade. Além das forças sociais incitantes à
conformidade, existem forças pessoais: o meu orgulho diz que tudo vai bem e
que não sou culpado de idolatria.
Lidamos com que os teólogos designam “efeitos noéticos do pecado” — os
efeitos do pecado na mente e no conhecimento humano.[52] Vejamos algumas
passagens bem conhecidas da Escritura:
Isto, portanto, digo e no Senhor testifico que não mais andeis como também andam os
gentios, na vaidade dos seus próprios pensamentos, obscurecidos de entendimento,
alheios à vida de Deus por causa da ignorância em que vivem, pela dureza do seu
coração (Ef 4.17,18).
... porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe
deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-
se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram
a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem
como de aves, quadrúpedes e répteis (Rm 1.21-23).
O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do
que a luz; porque as suas obras eram más. Pois todo aquele que pratica o mal aborrece
a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem arguidas as suas obras
(Jo 3.19,20).
Mesmo quando se está parcialmente ciente desse problema desesperador, o
orgulho humano tenta inventar um remédio apenas humano. Quando nos
equivocamos, esforçamo-nos para achar a saída do problema. Com poder
mental suficiente, podemos triunfar sobre o engano e vir à luz (como o
iluminismo desejava). Mas esse tipo de orgulho humano é só outra forma de
idolatria.[53] Adoramos nossa mente e nossos poderes racionais. Podemos sair
de uma forma de idolatria e caímos em outra, mais profunda e disfarçada.
Sobrepujar o engano em certo ambiente social já é difícil; preterir os enganos
do próprio coração é impossível para a humanidade:
E os que ouviram disseram: Sendo assim, quem pode ser salvo? Mas ele respondeu:
Os impossíveis dos homens são possíveis para Deus (Lc 18.26,27).
Preparando-me para escrever este texto, li uma boa quantidade de livros sobre
ciência, filosofia da ciência e Bíblia e ciência. Como esperava, encontrei
muita coisa boa. Todavia, mesmo em livros escritos por cristãos, raras vezes
encontrei uma expressão contundente da profundeza do nosso problema com
o conhecimento.
A verdade é que a mente de todos nós foi corrompida pelo pecado. Não
apenas um pouco, e sim de maneira profunda, até as profundezas que
podemos perceber, e além. E não apenas de maneira grosseira, para facilitar a
percepção de onde erramos, mas de modo sutil, detalhado e invisível. Se
acharmos que conseguimos saber e apreciar até onde erramos, ainda nos
enganamos também nesse ponto.
Precisamos desesperadamente de Deus para nos salvar do poço do qual não
podemos sair. E Deus agiu. Enviou Cristo com sua sabedoria e nos chamou
para nos dirigirmos a Cristo a fim de obtermos misericórdia. Jesus tomou
sobre si na cruz a punição de nossos pecados. Deus o ressuscitou dentre os
mortos e ele apareceu a muitas pessoas, confirmando a veracidade de suas
afirmações (1Co 15.3-8). Ele vive até hoje e reina no céu (Ap 1.18). Quando
clamamos a Deus por misericórdia, baseados na obra de Cristo por nós, ele
nos concede o Espírito e nos ensina (1Co 2.12). Outorga-nos a Bíblia como
sua palavra para nos contar a verdade. Então, maravilhosamente, como
resultado do dom divino concedido a quem se dirigiu a ele à procura de
ajuda, “temos a mente de Cristo” (1Co 2.16). Sim, nós ainda somos assolados
pela corrupção, na mente e em nossos atos, mas fomos resgatados do
“império das trevas e [...] transport[ados] para o reino do Filho do seu amor,
no qual temos a redenção, a remissão dos pecados” (Cl 1.13,14).
Já ouço alguém dizer: “Isso diz respeito à vida espiritual, não à vida
científica”. Ah, a própria dicotomia entre vida “espiritual” e “científica”
mostra a influência contínua do engano secularista. A prática normal da
ciência moderna é idólatra. A ciência é uma forma de “vida espiritual”, e uma
forma corrompida e culpada nesse ponto. Toda a nossa vida está cativa ao
pecado e ao engano, até que Cristo nos livre. E a livertação será incompleta
nesta vida, de forma que precisamos continuar a crescer e trabalhar nele
(Fp 2.12,13; 1.6).
Não apreciamos de verdade os dons que Deus nos deu até nos
conscientizarmos da maneira mais profunda de quão desesperadora é nossa
situação como pecadores e rebeldes contra Deus. Quando constatamos nosso
desespero, conscientizamo-nos também da bondade divina ao nos resgatar.
De modo particular, passamos a apreciar a Bíblia.
Afirmei em outro lugar que a Bíblia é plenamente a palavra de Deus, a
despeito das objeções que continuam a ser levantadas pela incredulidade.[54]
Não repetirei a argumentação aqui. Também afirmo que o Espírito Santo
precisa interpretar a Bíblia para nós a fim de que a entendamos
genuinamente.
Agora precisamos levar em conta dois fatos adicionais:
Primeiro, como seres humanos caídos e pecadores, não estamos em posição
de fazer um juízo acurado e independente do caráter da Bíblia e de sua
veracidade. Não somos juízes neutros; inevitavelmente entenderemos mal a
verdade. Quem tenta proferir um juízo independente apenas demonstra a falta
de autoconhecimento.
Segundo, necessitamos desesperadamente da Bíblia como parte do remédio
contra a corrupção mental e espiritual. Precisamos de instrução divina, não só
de instrução pura e livre de nossa corrupção pessoal e social, mas de
instrução que servirá para nos purificar em sentido pessoal, social e política.
A Bíblia possui as duas propriedades: pureza (Sl 12.6; 19.8,9) e poder
purificador (Sl 19.7-14; 2Tm 3.16,17), Depois de exaltar o caráter da lei
divinas nesses dois aspectos, o salmo 19 também confessa a necessidade de
sua aplicação pessoal:
Além disso, por eles se admoesta o teu servo; em os guardar, há grande recompensa.
Quem há que possa discernir as próprias faltas? Absolve-me das que me são ocultas.
Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; então, serei
irrepreensível e ficarei livre de grande transgressão. As palavras dos meus lábios e o
meditar do meu coração sejam agradáveis na tua presença, SENHOR, rocha minha e
redentor meu! (Sl 19.11-14)
Por causa da nossa necessidade, precisamos responder ao que Deus diz na
Bíblia com submissão. Há alguns anos, Gerhard Maier argumentou que a
mentalidade crítica para com a Bíblia era incompatível com o caráter da
Escritura como revelação divina.[55] Da mesma forma, a mentalidade crítica é
incompatível com a necessidade humana. Ninguém pode receber a
profundidade da purificação que carece se mantiver um espírito
independente, pois a própria independência consiste em uma reduto
importante para o pecado.
Por não aceitar a dicotomia secularista entre ciência pública e espiritualidade
privada, talvez não precise afirmar crer na necessidade de a Bíblia reformar a
ciência como qualquer outra área da vida. Não podemos permitir que nenhum
ponto da existência se torne um reduto do pecado, distante, de forma secreta e
invisível, do escrutínio e da purificação provenientes de Deus.
Contudo, agora surge o medo. Alguém diz: “A submissão à Bíblia, com sua
cosmovisão ultrapassada, destruirá a ciência”. O medo propicia uma série de
tipos de resposta.
Primeira, resta ver o que a Bíblia tem de verdade em si, e com que tipo de
cosmovisão lidamos de fato: ela pode ser bem diferente das afirmações e
impressões ingênuas a seu respeito.
Segunda, suponha por amor ao argumento que a Bíblia destrua a ciência
como a conhecemos. Em princípio, o resultado poderia ser uma outra forma
de ciência, ou uma método redimido de ciência, ou um retorno à era pré-
científica. A última opção, a era pré-científica, incita mais medo nas pessoas,
mas o uso artificial para amedrontá-las oculta as outras possibilidades.
Terceira, encaremos o fato: tememos o que a Bíblia nos causará caso a
levemos totalmente a sério. O medo da Bíblia é uma forma de temor dos
caminhos divinos. Tememos que Deus não seja bom para nós, não tão bom
quanto como na eventualidade de nossa manutenção do controle. Se o
retivermos, pelo menos nas áreas fundamentais, poderemos nos assegurar de
bons resultados, pois não haverá segurança se nos abandonarmos por inteiro
às mãos de Deus.
Esse medo é apenas incredulidade. Representa a recusa a confiar em Deus e,
ao invés disso, confiar em nós mesmos. É um espelho da queda, quando
Adão e Eva se recusaram a confiar em Deus, e imaginaram saber o que era
melhor para si (Gn 3.1-6). Isso também é idolatria: a idolatria em que o
homem se torna seu próprio Deus e adora a si mesmo.
Muitos discordarão da minha visão, pois distinguem a confiança em Deus e
da confiança na Bíblia. Dirão que confiar em Deus é bom, mas confiar na
Bíblia sem restrições não é tão bom.
Para mim, esse tipo de conversa implica que a Bíblia não é de fato a palavra
de Deus, pelo menos, não sem qualificações. Talvez ela contenha a palavra
de Deus. Talvez se torne a palavra de Deus para algumas pessoas em algumas
ocasiões, enquanto experimentam a Deus quando a leem. Talvez ela
testemunhe de Cristo, que é a palavra de Deus. E assim o argumento segue.
Existem variantes na neo-ortodoxia e em outras posições. As discussões
continuam entre os teólogos, sem sinais de concordância.
Não me proponho a repetir aqui minha defesa do entendimento ortodoxo da
inspiração e da autoridade da Escritura. Em vez disso, quero observar o
dilema prático criado pela não confiança plena na Bíblia.
Alguém declara que deseja confiar em Deus. Mas quem é Deus? O coração
nos engana e constrói ídolos. Como saberemos especificamente em quem
confiar, a não ser que tenhamos palavras específicas de promessa, instrução e
repreensão deste Deus? “Confiar em Deus” se torna algo vazio a não ser que
existam formas específicas de confiar. Essas maneiras são determinadas por
nós, independentemente de revelação especial? Então podemos fazer com que
elas se adequem aos desejos do nosso coração obscuro. Ou elas foram
determinadas externamente para nós, por meio de uma revelação especial e
específica? O que seria essa revelação especial? A Bíblia, você diz? Então se
aceita a Bíblia com confiança ou se escolhe e filtra seu conteúdo, de forma
que ainda se controla, com dissimulação, cada requisito que a Bíblia ameaçar
impor a nós. O controle sobre a revelação ainda não é discipulado; consiste
ainda na independência autônoma em que Adão incorreu quando se rebelou.
Alguns teólogos defendem conceitos destoantes da autoridade bíblica com
grande esperteza e acuidade. A esperteza pode ser impressionante. Todavia,
ainda não sinaliza a compreensão do problema: necessitamos
desesperadamente de orientação divina pura e iluminadora. Nos conceitos
deficientes, onde está uma apreciação dos efeitos noéticos do pecado? Onde
se encontra a proposta concreta quanto aos meios práticos, oferecidos por
Deus, para nos redimir a mente dessa bagunça? Sem confiar na Bíblia “por
completo”, a qual padrão devo submeter a cultura moderna para ser avaliada?
Os conceitos deficientes da Bíblia me deixam à mercê da cultura moderna. A
única conclusão deve ser: a cultura moderna não é idólatra, ou que a idolatria
não é ruim, ou não precisamos de fato ter a mente resgatada, ou não aprouve
a Deus nos conceder a solução. Alguém precisa conhecer bastante para fazer
essas asseverações. Considero que só alguém muito crédulo as afirmaria.
MEDO DO FUNDAMENTALISMO
Podemos olhar brevemente para mais um medo que afasta as pessoas da
confiança na Bíblia. Elas temem se tornar “fundamentalistas”, ou serem
rotuladas fundamentalistas.
Mas o que é fundamentalismo e por que as pessoas o acham tão ruim? Nós,
na verdade, falamos sobre uma variedade de tipos de pessoas e de definições
possíveis do termo “fundamentalismo”. Não é fácil fazer a análise. Mesmo
assim, vamos começar com o óbvio. Na vida, os cristãos continuam a incorrer
em pecados. O pecado é sutil, profundo e difícil de erradicar. Tornar-se
cristão muda o coração e da pessoa remove a penalidade do pecado, mas não
retira a sutileza e a profundidade do poder do pecado de forma total.
Alguns desses pecados pertencem a toda uma cultura, quando esta endossa
uma prática pecaminosa e se recusa a designá-la pecado. Temos um caso
particular disso na prática científica de converter a lei científica em um
substituto impessoal para Deus.
Alguns pecados pertencem de modo mais específico a várias subculturas
cristãs. A natureza do pecado torna isso previsível. Assim, o não cristão, ao
observar de fora a subcultura cristã, muitas vezes pode observar o pecado
com mais clareza que quem se encontra nela. Os não cristãos veem muitos
cristãos pecando. Portanto, os cristãos são considerados hipócritas e isso se
torna um sinal ruim contra a fé cristã.
O que há de tão ruim contra os fundamentalistas? Ouço um coro de objeções:
“Eles são ignorantes, julgadores, intolerantes”. Por amor ao argumento,
vamos supor que seja verdade. Se isso ocorrer, serão eles piores que muitas
outras pessoas ignorantes, julgadoras e assim por diante? Pode-se dar a
resposta: “São, sim, porque eles se acham melhores”. Então adicionemos a
acusação de presunção e hipocrisia. Além disso, vamos especificar que a
ignorância da qual o objetor fala não é a ignorância inocente, por mera falta
de informação, mas a ignorância culpável, que rejeita oportunidades de
aprendizado.
Pecado é pecado, entre cristãos e não cristãos. Então o que isso prova? Prova
pouco a não ser que venha com a suspeita de que a Bíblia teve parte na
produção do problema. E há um grão de verdade aqui. Conhecer a verdade
que Deus nos concedeu na Escritura pode nos tentar a sentir orgulho,
superestimar nosso entendimento, ou emitir juízos apressados sem saber o
suficiente. (Às vezes, porém, os efeitos são majorados pelos de fora, que na
avaliação dos cristãos colocam na mesa seus próprios padrões deficientes
sobre o que é dogmático e intolerante e assim em diante.) A Bíblia pode se
tornar ocasião para um pecado sutil, profundo e perigoso. Mas isso apenas
confirma o ensino da Bíblia sobre a seriedade do pecado. Como
Romanos 7.11-13 observa:
Porque o pecado, prevalecendo-se do mandamento, pelo mesmo mandamento, me
enganou e me matou. Por conseguinte, a lei é santa; e o mandamento, santo, e justo, e
bom. Acaso o bom se me tornou em morte? De modo nenhum! Pelo contrário, o
pecado, para revelar-se como pecado, por meio de uma coisa boa, causou-me a morte,
a fim de que, pelo mandamento, se mostrasse sobremaneira maligno.
O que Romanos 7 diz sobre o papel da lei pode ser difundido em um
princípio aplicável também ao uso geral da palavra divina. Mesmo que seja
um bem em si, a palavra de Deus pode multiplicar o pecado, quando as
pessoas a distorcem ou se orgulham de entendê-la.
A objeção dos pecados dos fundamentalistas também mostra que os objetores
possuem um padrão sobre o pecado. Contudo, eles contam com uma base
para justificar o padrão? Talvez o consista apenas em sua preferência pessoal.
Se não for assim, e ele representar algo absoluto, eles correm o mesmo risco
de soberba que os cristãos que creem na Bíblia, pois podem fazer, entre
outras coisas, juízos apressados. A hipocrisia não é de propriedade exclusiva
dos cristãos que creem na Bíblia.
A objeção também mostra quão sutil e sério é o pecado ao mostrar que pode
capturar quem está mais certo de ter escapado dele em sentido moral. Assim,
qual a solução para esse perigo mortal? Majore o perigo ao máximo, como o
objetor faz, e isso proverá mais evidências da necessidade de usar a Bíblia
para erradicar o perigo.
Podemos erradicar o orgulho?
Pode o objetor prover uma solução alternativa? A doce razoabilidade do
secularismo iluminista o faz? Alguns acham que sim. No entanto, o mais
comum é as pessoas apresentarem uma resposta de longo prazo baseada na
educação. Ensine as crianças com tolerância e as afaste do fundamentalismo,
de tal forma que a próxima geração esteja livre desse modo de pensar
opressor e perigoso.
Entretanto, as dificuldades surgem. Primeira, ainda que a educação possa
desviar as crianças de estilos de pensamento e vida considerados perigosos,
ela erradicará a tendência existente no coração humano ao orgulho, ao
egocentrismo e à confiança exagerada nas próprias visões? Se os problemas
dos fundamentalistas abrem uma janela no coração humano, eles revelam que
as profundezas da perversidade não são erradicadas com facilidade.
Segunda, embora essa abordagem educacional secularista pareça paciente e
civil, ela possui um fundo mais escuro: propõe suprimir os oponentes
fundamentalistas não pela discussão amigável em busca da verdade, mas pelo
uso do poder e das verbas estatais para encher uma geração de crianças
vulneráveis com propaganda. A propaganda nas escolas pregará a tolerância
e, por implicação, os erros do fundamentalismo. O poder e o dinheiro tirarão
dos fundamentalistas a oportunidade de ter meios equivalentes para ensinar
seus conceitos particulares aos próprios filhos ou os difundir. Esse
procedimento parece dizer: “Nós os toleraremos em caráter temporário, e
garantiremos, pelo poder político, que tomaremos conta da mente de seus
filhos e os educaremos contra os ensinamentos de seus pais”. A tolerância se
tornou intolerância. Quem abomina a opressão oprime mesmo assim. Quem
abomina o dogmatismo se torna dogmático. Quem afirma que todo o
conhecimento é incerto e até diz não haver verdade absoluta, confia de modo
absoluto na habilidade de usar o poder político, e formula um sistema
educacional compulsório que alega resolver os problemas morais. (V., no
final deste Capítulo, o excurso sobre educação pública.) Ela supõe a
capacidade de diagnosticar as piores fraquezas por trás das falhas humanas;
na verdade, são propostos meios alternativos de salvação, formas de resgatar
dos males do coração humano. Isso equivale a uma religião alternativa.
A natureza humana é estranha. Não só é estranha, mas também mais oculta e
enganosa do que as pessoas imaginam: “Enganoso é o coração, mais do que
todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?” (Jr 17.9).
Escárnio
Outras razões, menos dignas, se apresentam como motivos de temor de as
pessoas se tornarem fundamentalistas. Talvez elas temam sofrer a humilhação
e escárnio dos intelectuais, que tornaram zombar dos fundamentalistas um
esporte. O “fundamentalismo” na cultura popular se tornou um termo para
escárnio, condenação e desaprovação moral jogado sobre qualquer cristão
que crê na Bíblia.
Elas também temem porque querem passar a ideia de que creem na vida da
mente, não na vida de submissão a um livro. Os adeptos da abordagem
histórico-crítica da Escritura também argumentavam crer na vida da mente, e
que a alternativa de submissão envolvia o “sacrifício do intelecto” ou da
mente. Gerhar Maier replicou que a revelação demandava não o sacrifício da
mente, mas o sacrifício do orgulho.[56] Há orgulho suficiente por aí para cada
um de nós se arrepender, incluindo o orgulho dos intelectuais e a ignorância
de alguns crentes na Bíblia.
Dentre todos os conceitos negativos prevalecentes sobre crentes na Bíblia,
proponho esta tese impalatável: quaisquer que sejam suas faltas (e elas
podem ser muitas), os crentes na Bíblia acertaram e todo o resto errou em um
ponto crucial: confiar na Bíblia como a palavra de Deus, como um aspecto da
confiança mais fundamental em Cristo, é a maneira correta de encontrar
alívio do pecado. Alvin Plantinga, ainda que discordando dos criacionistas de
terra-jovem, enfatiza as áreas consensuais:
Os cientistas do criacionismo científico estão errados (penso eu), mas alguns deles são
mesmo assim admiráveis. Seu objetivo é a fidelidade à fé cristã e ao Senhor; eles são
o seu melhor para isso, muitas vezes a um custo pessoal considerável. (Eles não
gostam de ser chamados fundamentalistas ignorantes; nem se alegram no resto do
ridículo e desaprovação lhes direcionada pelo establishment científico.) Acabo por
achar que eles estão equivocados; mas seus erros, para mim, são muito menos
importantes que os erros de muitos daqueles, os Dawkins e Provines e Sagans deste
mundo a título de exemplo, que caçoam deles. É bem mais importante deixar claro
que o Senhor criou os céus, a terra e tudo que eles contêm do que saber que ele não o
fez 10.000 anos atrás. Discordo dos cientistas do criacionismo científico e, como a
maioria dos outros acadêmicos, não gosto do escárnio e descrédito que se recebe por
estar associado a eles; mas em um nível mais profundo eu me sinto bem mais próximo
deles em sentido espiritual e intelectual que de seus desprezadores culturais. Os
cristãos que discordam deles deveriam tratá-los como irmãos cristãos que, talvez por
excesso de zelo, erram em algum ponto de certa importância; mas os cristãos não
deveriam tratá-los como párias intelectuais ou se juntar ao coro cultural que expressa
escárnio, menosprezo e desdém por eles.[57]
O ambiente intelectual lança uma série de objeções contra a confiança
irredutível do fundamentalista na Bíblia. “Mostramos que este tipo de
confiança envolve uma falsa adoração ou devoção à Bíblia”. “Mostramos que
só Cristo merece confiança e a Bíblia a tem na medida que testemunha de
Cristo”. “Mostramos que isso significa suicídio intelectual”. “Mostramos que
problemas hermenêuticos tornam essa abordagem impraticável”. A todas
essas objeções, respostas extensas são possíveis.

Há, no entanto, um problema mais básico. Todas essas objeções falham ao
lidar com meu ponto. Elas não entendem que eu proponho o método
historicamente testado e endossado pela Bíblia de acreditar para que eu possa
entender, e não a abolição do intelecto. Reformamos os conceitos modernos
com base no ensino da Escritura. Reformamos até mesmo as nossas ideias
sobre o que a Bíblia ensina, pois, da mesma forma, elas próprias são parciais
e sujeitas à reforma.
Confiamos que Deus sabe mais do que nós para nos guiar e não nos
aproximamos da Bíblia com todos os tipos de objeções e resistências, mas
com a expectativa de que Deus nos ensinará. Aproximamo-nos com fé. Sem
dúvida, essa fé não procede de um vácuo. Ela vem de Deus (Ef 2.8,9). Ele
nos concede a fé quando abre os nossos olhos para que saibamos quem Cristo
é e o que ele fez misericordiosamente para nos resgatar. A partir dessa
convicção fundamental e de coração, aumenta a confiança no que ele diz na
Bíblia.[58]
O pensamento moderno, em contrapartida, supõe haver algo mais confiável
que a Bíblia — sejam os pronunciamentos da ciência moderna, o insight
sobre a alegada idolatria que ocorre ao se confiar na Bíblia, a dicotomia entre
Cristo e a Bíblia, ou o alegado princípio hermenêutico que faz da Bíblia uma
voz incerta. Todas essas afirmações procedem do ambiente moderno, como
muitos agora bem sabem, e são condicionadas historicamente por nossa
cultura e história. Assim, segundo os princípios modernistas e pós-
modernistas, precisamos sujeitá-los a análise crítica.
A BÍBLIA COMO FONTE DE REDENÇÃO INTELECTUAL
Proponho que nunca escaparemos do círculo de pecado a não ser que
tenhamos a palavra pura de Deus como padrão de crítica, em lugar da razão
ou de valores autônomos e insights procedentes apenas do homem. Todas as
outras propostas representam engajamentos religiosos alternativos, até
mesmo religiões alternativas.[59] Quando ouvirmos a pura palavra de Deus,
descobriremos que o mundo moderno está cheio de idolatrias sutis sob a
forma de alternativas religiosas; dentre elas se encontra a de tentar receber a
orientação fundamental da ciência a fim de encontrar o sentido do mundo.
Em muitos aspectos, como já sugeri e continuarei a fazer mais à frente neste
livro, a ciência é algo bom. Mas, como a idolatria na ciência moderna mostra,
ela não é perfeitamente pura. Nem, por causa do foco limitado no mundo
físico, provê realmente os recursos para responder em caráter definitivo às
grandes questões sobre moralidade, sentido da vida e assim em diante.
Algumas pessoas podem estender esse alcance da ciência com ousadia para
uma filosofia de vida, mas a extensão ousada torna as conclusões ainda mais
sujeitas às influências distorcidas de uma agenda oculta.
Ou, no estilo do modernista, alguém pode tentar se salvar pela acuidade
hermenêutica.[60] Alguns pós-modernistas nos recomendam apenas a
vivermos em paz, buscando a admissão de que cada pessoa ou grupo
representa só mais uma opinião e que ninguém realmente sabe, nenhum ser
humano possui um ponto de vista divino. Mas não há meio-termo para
negociar propostas alternativas para o caminho da salvação. O pós-moderno
oferece apenas mais uma proposta tão religiosa e exclusivista quanto
qualquer outra, pois rejeita implicitamente o exclusivismo das alegações
bíblicas. A Bíblia reivindica ser a palavra de Deus e, portanto, oferece um
ponto de vista divino. A Bíblia também promete que o Espírito Santo vem
para interpretar a Bíblia para nós, superando assim problemas interpretativos.
A interpretação não prospera em sentido primário pela acuidade intelectual,
mas pela obra de nos salvar do pecado de forma que vejamos o que a Bíblia
diz. Sem superar a finitude humana, acabamos por conhecer a Deus e
conhecer a verdade sobre Deus. Não conhecemos a verdade em caráter
exaustivo, nem é o nosso conhecimento livre da contaminação do pecado.
Mas conhecemos o suficiente para tomar o próximo passo na condução da
vida, incluindo a existência intelectual e hermenêutica. Grande parte da
hermenêutica pós-moderna propõe a dependência primária da sofisticação
hermenêutica, e então nós, ao invés de Deus, nos tornamos a fonte de nossa
salvação.
Eu, portanto, pretendo examinar como o mundo é visto e como a ciência é
vista, quando levamos o conteúdo da Bíblia a sério e quando ouvimos em
obediência com a convicção de que esta é a instrução de Deus. Descreverei
esta abordagem como construtiva de uma cosmovisão cristã, ou que segue a
ela.[61] Muitos cristãos autoproclamados podem diferir. (Os “cristãos” se
encontram hoje em uma grande desordem.) Contudo, levando-se em
consideração o que a Bíblia diz ser, só esta abordagem se harmoniza com o
compromisso completo de ser seguidor de Cristo.
Deve ficar claro, contudo, que estou ainda “no meio do caminho”, como
todos os seres humanos falíveis estão no meio do caminho. Progredimos por
vai e vem, e cometemos erros, alguns inocentes, muitos devidos ao pecado.
Os não cristãos às vezes estão certos quando reclamam da soberba e do
dogmatismo arrogante que mancha a história passada do cristianismo. Não
ofereço minhas reflexões como a resposta final, mas como passos em direção
à luz, sobre os quais outros podem não apenas construir mas também se
deparar com a necessidade de algumas correções à luz da Escritura. Eu
poderia prefaciar todas as minhas afirmações com a qualificação: “bem, neste
momento, considero...”, para lembrar os leitores de minha falibilidade. Mas
isso seria tedioso e, penso, redundante.
EXCURSO: O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO PÚBLICA
Neste capítulo suscitei o problema da educação pública, controlada pelo
Estado. Na presente forma, nos Estados Unidos, ela tende a impor o
secularismo. O secularismo é uma cosmovisão completa e sua abordagem da
lei científica é intrinsicamente religiosa, pois troca a Deus por uma visão
idólatra da lei científica. Ademais, como vimos, ela exclui as interpretações
minoritárias como o animismo e a interpretação Shankara do hinduísmo
védico. A educação pública controlada pelo Estado oprime quem discordam
de sua cosmovisão.
Mas isso é exclusividade do secularismo? Não têm todos o mesmo problema
quando se trata da educação controlada pelo Estado? Os pais naturalmente
querem que seus filhos sejam ensinados em conformidade com suas crenças.
No entanto, a educação controlada pelo Estado não pode agradar a todos os
pais ao mesmo tempo: quem crê em padrões morais absolutos e quem crê na
moralidade como o produto de escolhas e opiniões pessoais. Não pode
agradar quem crê na impessoalidade da lei científica e quem crê ser ela é a
palavra pessoal de Deus. Não pode agradar quem crê ser o universo produto
do acaso e a evolução apenas física e quem crê ser ele criação divina. Nos
cursos de ciência política, não pode agradar conservadores e esquerdistas em
sentido político.
Em um ponto anterior na história dos Estados Unidos, a educação controlada
pelo Estado tendia a atrair o consenso protestante amplo como seu principal
fulcro religioso. Na Europa, a educação era influencia pelas igrejas estatais.
Essas abordagens oprimiam todos os tipos de minorias religiosas, bem como
ateus e agnósticos. Hoje, nos EUA e em alguma medida na Europa, a
educação controlada pelo Estado é orientada pela ideologia secularista e se
opõe à interferência religiosa e pontos de vista minoritários que exigiriam
uma abordagem diferente sobre questões como a lei científica e os padrões
morais. As vítimas da opressão mudaram, mas o problema geral não
desapareceu.
Não posso desenvolver mais o assunto aqui, mas me parece que o remédio
moral próprio não é, como muitos cristãos poderiam desejar, a reintrodução
de menos hostilidade à Bíblia e ao cristianismo em escolas controladas pelo
Estado, mas a introdução do controle e da escolha parental reais na educação.
Como se encontra agora, por causa do sistema tributário para sustentar a
educação, só os muito ricos podem se dar ao luxo de enviar os filhos a
escolas de sua escolha.[62] Vouchers escolares, ou melhor, créditos tributários
para a educação da escolha dos pais, pode prover um alívio que forneça ao
pai médio a escolha real. E com a escolha vem o controle do tipo de
cosmovisão e abordagem educacional a criança receberá. Mas há um preço
político: precisamos desistir da esperança de usar o poder estatal para impor
nossos pontos de vista aos filhos dos outros.
4. Criação
Podemos agora considerar o ensino bíblico sobre a criação. O primeiro
capítulo de Gênesis[63] e outros textos bíblicos que partem de suas premissas
são os fundamentadores da doutrina geral da criação. É preciso entender a
criação a fim de compreender o caráter do mundo e a natureza da ciência
moderna. As alegadas discrepâncias entre Gênesis 1 e os relatos científicos
sobre a origem de todas as coisas fazem de Gênesis 1 um teste importante
sobre como tratamos a relação entre a ciência e a Bíblia.
Com esse propósito, precisamos de um exame cuidadoso e meticuloso de
Gênesis 1. Felizmente, vários comentários acadêmicos de boa qualidade vêm
nos auxiliar. Naturalmente, pontos menores de discordância ainda existem,
mas em geral posso recomendar os comentários de Kidner, Wenham,
Hamilton e Collins.[64] Os quatro comentaristas são evangélicos, aproximam-
se de Gênesis com a convicção se ser ele a palavra de Deus outorgada por
meio de escritores humanos. Mediante um agente humano inspirado por
Deus, Deus escreveu um livro com autoridade divina para nos instruir. Ele
também escreveu às pessoas do antigo Oriente Médio e Gênesis falou de
forma compreensível às pessoas desse período. Outros comentaristas, da
convencional tradição “histórico-crítica”, podem prover insights individuais e
anotações úteis aqui e ali. Mas, por terem abandonado a convicção de que
Gênesis é a palavra de Deus, sua interpretação de Gênesis julga mal seu autor
e caráter no nível mais fundamental.
Seria cansativo e desnecessário para repetir o que tais comentários já
realizaram. Devo, portanto, resumir neste capítulo alguns dos pontos
principais e então nos próximos capítulos prosseguir de onde eles chegaram,
considerando questões teológicas e científicas mais amplas, às quais os
comentários devotam menos espaço.
UM DEUS
O que Gênesis 1 ensina? Primeiro, há somente um Deus. Ele governa e
controla completamente o mundo, sem lidar com a “competição” ou
“interferência” de outros deuses. O mundo criado não oferece resistência à
sua vontade; faz o que ele diz.
Muitos leitores cristãos modernos da Bíblia tendem a tomar esses pontos
como certos. Mas no contexto do antigo Oriente Médio, Gênesis 1 apresentou
uma mensagem radical e surpreendente. No antigo Oriente Médio, o
politeísmo proliferava. O Antigo Testamento repetidas vezes advertiu Israel a
não seguir “outros deuses, nenhum dos deuses dos povos que houver à roda
de ti” (Dt 6.14). Josué colocou o desafio: “Porém, se vos parece mal servir ao
SENHOR, escolhei, hoje, a quem sirvais: se aos deuses a quem serviram vossos
pais que estavam dalém do Eufrates ou aos deuses dos amorreus em cuja terra
habitais. Eu e a minha casa serviremos ao SENHOR” (Js 24.15).
RELATOS SOBRE AS ORIGENS PROVENIENTES DO ANTIGO ORIENTE MÉDIO
A literatura do antigo Oriente Médio incluía relatos e tradições sobre a
Criação (e.g., Enuma Elish; Epopeia de Atrahasis) e o Dilúvio (e.g., a
Epopeia de Gilgamesh; a Epopeia de Atrahasis também inclui o dilúvio).[65]
Esses relatos existiam em uma atmosfera bem diferente do pensamento
moderno. A maioria das pessoas do antigo Oriente Médio cria em muitos
deuses e adorava mutios deuses. Os relatos que eles escreveram descreviam a
interação de muitos deuses. O leitor pode pular esta seção se os mitos
politeístas não lhe agradarem. Eles me desgostam e parecem abomináveis,
mas incluo aqui um resumo de seu enredo a fim de mostrar algo sobre a
atmosfera que circundava os israelitas nos tempos do Antigo Testamento.
Na Epopeia de Atrahasis,[66] os deuses subordinados reclamam do pesado
trabalho designado pelo deus principal, Enlil. Por causa desse problema, o
concílio de deuses propõe que Beletili/Mami, a deusa do nascimento, deveria
fazer o homem para “suportar a labuta dos deuses” (I.191). Ela afirma
precisar da ajuda de outro deus, Enki, que então se propõe a fazer banhos
purificadores para o primeiro, sétimo e décimo quinto dia do mês (I.206).
Weila, um deus com personalidade, é morto com o intuito de que “todos os
deus possam ser limpos em uma imersão” (I.209). Da carne e sangue de
Weila, Nintu mistura “argila”, em que os deuses cospem (I.234). O registro
também menciona o “espírito” (I.230), aparentemente derivado do deus
morto, que se torna um aspecto do homem produzido pela argila.
Em Enuma Elish,[67] Apsu e Tiamat (a deusa da água) são os deuses pai e mãe
originais. Eles dão à luz a uma série de deuses. Quando os deuses se tornam
barulhentos demais, eles se reunem em conselho, e Apsu decide destruí-los.
Contudo, sua conspiração se torna conhecida por outro deus, Ea. Usando um
feitiço, Ea adormece Apsu e o mata. Ea e sua consorte Damkina dão à luz a
Marduk, o deus padroeiro da Babilônia.
Tiamat, enraivecida com a morte de Apsu, reúne outros deuses e aponta
Kingu como chefe, usando um feitiço, e vai à guerra. Ela produz seres
demoníacos, a víbora, o dragão e a esfinge como auxílios na batalha. Nenhum
deus conseguia lhe resistir até Marduk aceitar encontrá-la. Entretanto, como
condição, ele pede aos deuses que lhe concedam a liderança suprema, com o
que concordam. Marduk prepara o arco, a flecha e o bsatão, além dos ventos
e do dilúvio. Ele encontra Tiamat, transporta-se pelo vento quando ela abre a
boca e dispara uma flecha que entra por sua boca, estoura o ventre e parte o
coração dela. Em seguida, prende os seguidores e assistentes demoníacos que
lhe pertenciam. Marduk esmaga o crânio de Tiamat com o bastão. Ele o parte
em dois e uma parte se transforma no céu. A barriga se torna o zênite (ponto
celestial acima da cabeça). Coloca guardiães em seus postos de forma que
suas águas não escapem. As ordens de Marduk estabelecem as constelações e
fases lunares.
Marduk propõe à assembleia de deuses que ele deveria fazer o homem para
aliviar a labuta dos deuses. Para esse propósito, um dos deuses precisa ser
morto. Será Kingu, o organizador da rebelião. Eles partem os vasos
sanguíneos de Kingu e de seu sangue moldam a humanidade. Marduk divide
a assembleia de deuses em duas e aponta metade para cuidar do céu e a outra
parte da terra. Os deuses se propõem a honrar Marduk construindo um
santuário para ele. Eles moldam tijolos por um ano inteiro e constroem a
Babilônia como santuário.
GÊNESIS 1—3 NO CONTEXTO CULTURAL
O relato bíblico em Gênesis 1—3 mostra alguns pontos de contato com esses
dois relatos do antigo Oriente Médio. Mas as diferenças se destacam. Em
contraste aos deuses crassos, imorais e briguentos do politeísmo, destaca-se a
obra majestosa, ordenada e incontestada do único Deus verdadeiro. Em vez
de criar o homem para servir às necessidades dos deuses insatisfeitos, Deus
cria o homem por pura generosidade, abençoando-o e cuidando dele.
Desordem e sofrimento procedem da queda e apostasia humanas, não da
desordem dos deuses conflitantes. O homem não procede de pedaços de um
deus assassinado, mas do pó da terra, ao qual Deus infunde forma e vida.
Gordon Wenham conclui: “Ele [Gn 1] não significa apenas a demitologização
dos relatos orientais de criação babilônicos e egípcios; ao contrário,
representa o repúdio polêmico desses mitos”.[68]
Wenham resume a força dos contrastes em Gênesis:
[Se Gn 1—11 apresenta] a natureza do verdadeiro Deus como única, onipotente,
onisciente e boa, em oposição às deidades falíveis, caprichosas e fracas que povoavam
o resto do mundo antigo; se, além disso, ele se preocupa em mostrar que a
humanidade é central no plano divino, não um plano B; se, por fim, quer mostrar que
a condição humana procede da própria desobediência e, de fato, está fadada a piorar
sem a intervenção divina, então Gênesis 1—11 expõe uma imagem do mundo
contrastante com o otimismo politeísta da antiga Mesopotâmia eo o secularismo
humanista do mundo moderno.
Gênesis é, assim, um desafio fundamental às ideologias dos seres humanos
civilizados, do passado e presente, que gostam de supor que seus esforços serão
suficientes para os salvar no final. Gênesis 1—11 declara que a humanidade está
desesperada caso os indivíduos estejam distantes de Deus. A sociedade humana se
desintegrará onde a lei divina não for respeita e a misericórdia divina não implorada.
Contudo, Gênesis, tão pessimista sobre a humanidade sem Deus, é fundamentalmente
otimista, porque Deus criou os seres humanos à sua imagem e revelou seu ideal para a
humanidade no início do tempo. Mediante a obediência de Noé e seu sacrifício, o
futuro da humanidade foi assegurado. O cumprimento supremo dos ideiais do Criador
para a humanidade é garantido pela promessa feita aos patriarcas.
Assim, são essas as preocupações prevalentes de Gênesis. É importante mantê-las em
mente no estudo dos detalhes. Embora as questões históricas sejam predominantes
quando se lida com o texto, é duvidoso que o autor as tivesse em mente e se deve,
portanto, ser cauteloso ao procurar respostas para a questões com que ele não se
preocupa. Gênesis versa, em sentido primário, sobre o caráter e os propósitos de Deus
para com a humanidade caída. Tomemos cuidado quanto a permitir que nossos
interesses nos distraiam da mensagem principal do livro, de forma que perdemos o
que o Senhor, nosso criador e redentor, nos diz.[69]
Do ponto de vista puramente literário, não parece que Gênesis 1 usa de forma
direta um relato politeísta específico ou interage com ele. Ao contrário, lida
com uma atmosfera politeísta mais ampla que a encontrada em todos os
relatos partilhados pelos pagãos. Ao ensinar o monoteísmo estrito, repudia
toda a atmosfera do antigo Oriente Médio.[70]
CRIAÇÃO SEM MATÉRIA PRÉ-EXISTENTE
A sujeição completa da criação a Deus não deixa lugar para qualquer coisa
lhe ser coeterna. Não há uma “matéria primordial” incriada que estava lá
desde o início. O começo em Gênesis 1.1 é o início absoluto.
Gênesis 1 naturalmente foca em questões teológicas proeminentes no antigo
Oriente Médio; ele não se dirige de forma direta a especulações filosóficas
sobre a ultimidade da matéria. A mensagem de Gênesis declara com nitidez a
supremacia e o controle divinos sobre tudo. Assim, em sentido teológico,
leva-nos a concluir que Deus controla o ser e origem de tudo, bem como os
desenvolvimentos mais mundanos que trazem ordem a situações antes
desordenadas.
Menciono o ponto porque uma discussão considerável ocorre sobre
Gênesis 1.1, 2, sobre a mesma questão.[71] Alguns intérpretes sugerem que
Gênesis 1.1, 2 deveria ser traduzido assim: “Quando Deus começou a criar os
céus e a terra, a terra estava sem forma”.[72] Assim, essa interpretação deixa
em aberto a questão da procedência da terra. Ela já se encontrava ali quando
Deus começou a criar? Talvez já estivesse ali por toda a eternidade; então
Deus teria começado a criar usando o material pré-existente. Mas a estrutura
gramatical da sequência de orações no hebraico indica que Gênesis 1.1 não é
uma oração subordinada, como essa interpretação exigiria.[73] Assim essa
interpretação precisa ser rejeitada.
Outros pensam que Gênesis 1.1 é um título para o todo de Gênesis 1. Ele
afirma de forma geral que Deus criou os céus e a terra; então Gênesis 1.2—
3.31 explica a criação mais extensamente. Mas esta interpretação de novo
deixa aberta a questão sobre de onde a “terra” e o “abismo” vieram. Eles só
estavam ali, sem maiores explicações. Esse entendimento, por sua vez, deixa
em aberto a questão sobre se a terra e o abismo representam uma “matéria-
prima” que é em si incriada, mas que passa por um processo de formação e
estruturação durante os seis dias da semana da criação.
Outros intérpretes, contudo, pensam que Gênesis 1.1 não equivale a um
título, mas à primeira etapa de todo o processo. O versículo 1 anuncia o ato
inicial da criação de todo o mundo. Todavia, o resultado se encontra
inicialmente informe. A seguir, ele passa pelo processo de desenvolvimento e
coordenação nos versículos 2 a 31. Essa interpretação me parece a melhor,
em parte porque, de outra forma, a “terra” que aparece no versículo 2 não
teria explicação.
Alguns intérpretes apontam que em outras passagens do Antigo Testamento
“os céus e a terra” designam céus e terra que já passaram por estruturação e
estão formados (v., p. ex., 2.1). Concluem então que o mesmo é verdade para
1.1. A expressão “os céus e a terra” precisa, desse modo, representar o cosmo
no estado formado e então 1.1 é uma afirmação geral ou título da totalidade
de Gênesis 1. Contra essa visão, precisa-se permitir alguma flexibilidade no
uso da linguagem. O começo da criação envolve uma situação única e
informe. Do que mais poderia ser o mundo no estado informe chamado? O
hebraico não possui uma única palavra equivalente a “universo”. Em
contrapartida, designa-se o todo pelo par “céu(s) e terra”.[74] Afirma-se,
assim, que Deus criou tudo que há. Assim, concluo que Gênesis 1.1 descreve
o ato originário da criação a partir do nada.[75]
Mesmo que essa interpretação não esteja correta, o resto de Gênesis 1 mostra
o controle divino amplo. Então, inferimos que o controle se estende ao
próprio ser das coisas controladas. Outras passagens bíblicas excluem com
nitidez a ideia de uma matéria-prima eterna ao declarar a abrangência total do
ato da criação: “Pois, nele [a segunda pessoa da Trindade], foram criadas
todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam
tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado
por meio dele e para ele” (Cl 1.16; cp. 1Co 8.6).[76]
À luz do Novo Testamento, sabemos que Deus é um só em três pessoas.
Gênesis 1.2 já menciona o “Espírito de Deus” pairando por sobre as águas. E
Deus realiza a criação pela palavra. Em João 1.1, a Palavra é identificada
como uma pessoa distinta (“com Deus”), e como Aquele que se tornou carne
(1.14). As três pessoas participam na criação do mundo, embora esse mistério
seja gradualmente revelado mediante o progresso da revelação, culminando
no Novo Testamento.
IMPLICAÇÕES DA DOUTRINA DA CRIAÇÃO
Estamos agora prontos para expor algumas implicações da doutrina básica da
criação:
1. A unidade de Deus implica unidade, ordem e harmonia no mundo por ele
criado. No politeísmo, os deuses interagem de uma maneira semicaótica e
ameaçam fazer do caos um aspecto permanente da experiência prática. Se um
deus intervém em certo ponto, os efeitos dependerão da “lei” ou agenda dessa
divindade particular. Mais tarde, surge outro deus com outra agenda. As leis
mudam da mesma forma. O curso do mundo é imprevisível. O politeísmo não
oferece uma base para as leis estáveis, permanentes e exploráveis pela
ciência. Em contrapartida, o monoteísmo bíblico oferece o fundamento para a
confiabilidade e constância da lei. O Deus autoconsistente com um propósito
autoconsistente governa o mundo inteiro. Os cientistas podem pesquisar o
mundo com a esperança de desvelar a consistência da governo de Deus.
2. No politeísmo as limitações no poder de qualquer deus, ou mesmo de todos
os deuses tomados em conjunto, dão ao mundo certa independência. Os
politeístas descreviam a intervenção dos deuses de tempos em tempos, aqui e
ali, mas também concebiam a continuidade do mundo no próprio caminho,
com certa independência quando os deuses se preocupavam com outras
questões. Em contraste com isso, na cosmovisão bíblica Deus está constante e
intimamente envolvido com o mundo e o mundo está jaz sob seu controle
absoluto. O mundo não é semi-independente. Mais uma vez, isso tem
implicações para a ciência. O mundo independente poderia demonstrar sinais
de irracionalidade em muitos pontos; mas o mundo governado pelo Deus
racional, pessoal e onipotente da Escritura mostrará a racionalidade do seu
propósito. Um cientista pode esperar entender algo dos propósitos divinos,
em lugar de ter de desistir dessa possibilidade por ser o mundo
fundamentalmente irracional.
3. Não há uma matéria-prima eterna. A sujeição completa do mundo a Deus
demanda o senhorio divino pleno. Em conformidade com seu senhorio, nós,
seres humanos, somos chamados à submissão a ele. Não precisamos temer
alegados senhores rivais, aos quais seríamos tentados a propiciar de outra
forma.
Eliminar a matéria-prima também afasta a irracionalidade fora do escopo do
plano divino. A eliminação da irracionalidade fornece base firme para a
ciência.
4. Por ter sido o mundo inteiramente criado e submetido a Deus, ele não é
semidivino, não vonsiste em uma emanação de Deus que participa do seu ser.
O mundo não deve ser adorado. Gênesis 1 proclama com clareza que o sol, a
lua e as estrelas foram criados por Deus, o que contradiz o pensamento
cultural circundante de que eram divinos. Dessa forma, a doutrina da criação
“dessacraliza” a criatura. A criatura é criatura, não divina, embora proclame a
divindade de quem a criou. Assim, diferente dos animistas que temem
desapontar os espíritos nas árvores, os cristãos pesquisam o mundo criado
sem medo.
5. A criação é um livre ato de Deus. Ou seja: Deus não precisava criar nada.
Tendo decidido criar, ele fez o mundo de forma coerente com seu caráter.
Contudo, ele também fez escolhas sobre o mundo que não era forçado a
fazer. Gênesis 1 não diz isso com todas as palavras, mas se trata de uma
implicação decorrente da afirmação geral da soberania e do controle divinos.
Deus pronunciou ordens que trouxeram à existência luz e plantas e assim em
diante. Por conseguinte, ele falou essas palavras e não muitas outras que
poderia ter pronunciado e escolheu criar exatamente o que fez.
A liberdade divina reafirma seu senhorio sobre a criação. Mas ela também
tem implicações para a ciência. Os cientistas não podem esperar deduzir o
caráter do mundo com detalhes apenas dos primeiros princípios. Eles não o
poderiam fazer mesmo que os primeiros princípios envolvessem o que
conhecem de Deus. Dada a criação divina livre, desse jeito e não de outroo,
precisamos sair e observar o que ele decidiu criar, em lugar de deduzir o que
se alega que ele precisava ter criado.
Aqui se encontram o fundamento da ciência experimental e o estímulo a ela,
e a necessidade de testar as teorias com experimentos. Ao mesmo tempo,
sendo Deus racional e cognoscível, as teorias, como especulações racionais
sobre o que Deus poderia ter feito, são tão pertinentes quanto os
experimentos. O caráter de Deus é livre (exigindo assim o experimento) e
imutável (exigindo reflexão racional da nossa parte).
6. Os atos da criação tomaram lugar no tempo, muito tempo atrás, e agora
estão terminados. Deus descansou no sétimo dia (Gn 2.2). Sabemos de outras
partes da Escritura que Deus continua a atuar na providência (Sl 147.13-18)
com milagres e atos redentores (Jo 5.17). Mas os atos da criação em
Gênesis 1 não continuam a ocorrer. Deus criou a luz no primeiro dia. Ele não
precisa fazê-la de novo (embora sustente o mundo e nos traga luz pela
providência). Ele criou o homem e não precisa fazer isso de novo, embora em
sentido subordinado faça todo novo bebê que vem ao mundo (Sl 139.14-16).
A finalização da criação possui uma conexão importante com a ciência. Se
Deus continuasse a produzir novos tipos de criaturas, ou talvez promulgasse
novas leis, seria difícil sustentar a ciência ao longo do tempo. As leis divinas
pareceriam mudar o tempo todo e, da mesma forma, o cientista precisaria
mudar o tempo todo para acompanhar o passo. A permanência da ordem atual
das coisas é importante para que a ciência não seja frustrada ao ter suas regras
modificadas.
7. A criação é o fundamento do governo divino providencial e contínuo sobre
o mundo. Os seis dias agora passaram e a obra de Deus de governar o mundo
também acontece no presente. Os atos da criação possuem uma relação
continuada com os atos presentes de governo. Por exemplo, Deus criou as
plantas no terceiro dia: “A terra, pois, produziu relva, ervas que davam
semente segundo a sua espécie e árvores que davam fruto, cuja semente
estava nele, conforme a sua espécie” (Gn 1.12). As plantas vieram à
existência em resposta à palavra de Deus. Mas a leitura cuidadosa da palavra
de Deus mostra que a palavra tem dois aspectos. Primeiro, a palavra de Deus
causou o primeiro florescer de novas plantas. Segundo, a palavra de Deus
descreve e governa o florescimento contínuo das plantas. A referência
explícita à semente indica que Deus forma o padrão permanente de
reprodução das plantas para produzir mais delass “conforme a sua espécie”.
No quinto dia, Deus ordena: “Sede fecundos, multiplicai-vos” às criaturas
marinhas (1.22). Esse comando governa com clareza as criaturas marinhas até
hoje. Deus as criou no princípio e colocou ordens permanentes para a sua
propagação por muitas gerações. Elas ainda obedecem a essas ordens.
A harmonia entre a criação e a providência demonstra de mais um modo a
harmonia entre o plano e governo de Deus. Para os propósitos da ciência, ela
diz que o funcionamento das coisa agora se harmoniza com o que elas são de
verdade. A lei divina que as rege agora não é um plano B, imposto ao que foi
criado no princípio com um propósito radicalmente diferente. Ao contrário, a
lei é uma expressão do propósito original de Deus.
5. Perguntas sobre Gênesis 1 e a ciência

Agora consideramos áreas específicas de conflito em potencial entre


Gênesis 1 e a ciência moderna. Encontramos pelo menos três questões
principais: 1) cosmovisão; 2) a idade da terra; e 3) a origem das coisas vivas.
A primeira delas, cosmovisão, diz respeito à diferença entre a visão cristã do
mundo, com Deus como Criador e uma série de conceitos modernos que
alteram a doutrina de Deus ou negam sua existência ou relevância. Alguns
pontos de vista alternativos, como o islã, alegam depender da revelação
divina. Mas não podemos entrar nesse tipo de debate detalhado no livro que
se concentra na ciência. Basta dizer que a Bíblia é a palavra de Deus e que
afirmações concorrentes de autoridade revelacional são falsos.
A COSMOVISÃO DO NATURALISMO EVOLUTIVO
Mais perto de nossa discussão estão os pedidos reconvencionais dependentes
em parte do prestígio da ciência. Um em particular merece atenção. O
naturalismo evolutivo expande a teoria biológica da evolução para a
cosmovisão completa que oferece respostas para as grandes questões sobre o
sentido e destino:
▪ Quem governa? Deus não existe ou é irrelevante.
▪ De onde viemos? A evolução sem propósito originou a raça humana além das outras
espécies vivas.
▪ Para onde vamos? Para o pó e a morte. Mais tarde, a raça humana evoluirá até algo
não humano, ou super-humana, ou se extinguirá. No fim, o aumento de entropia e
diminuição de energia útil disponível para trabalho implicarão na extinção de todas as
formas de vida.
▪ Por que estamos aqui? Para propagar a espécie. No entanto, a totalidade do universo
é desprovida de propósito e a vida humana, na dimensão cósmica, não tem sentido.
Esses pontos de vista vão bem além das pesquisas de registros fósseis,
embriologia e genética. Na verdade, elas envolvem vastas suposições
metafísicas e religiosas. Os pressupostos são religiosos por versarem sobre a
existência e natureza de Deus. Contudo, por causa de vários fatores na
sociedade contemporânea, o naturalismo evolutivo tende a gozar o prestígio
da ciência e seus fundamentos metafísicos tendem a ser assumidos sem
questionamento. Também vemos a tendência de usar a mesma palavra,
“evolução”, de várias maneiras distintas.
1) A microevolução descreve as mudanças observáveis que acontecem dentro
de um gênero ou espécie vivo enquanto se reproduz no decorrer de gerações,
em particular quando as pressões ambientais de sobrevivência levam a
mudanças. A manipulação genética de animais e plantas e a aquisição de
resistência antibiótica por meio de bactérias oferecem exemplos claros dessas
alterações. Os cientistas muitas vezes chamam essas mudanças “evolução”,
mas poderíamos também chamá-las “adaptação”, se não as quisermos
confundir com outros sentidos da palavra “evolução”.
2) A macroevolução descreve a hipótese de que as alterações de um tipo de
ser vivo para outro bem diferente (por exemplo, com um plano base diferente
para a organização corporal) podem acontecer pelo acúmulo de mudanças
microevolutivas durante um grande número de gerações. Sob a influência da
cosmovisão materialista, presume-se comumente que essas mudanças não são
direcionadas com inteligência ou um propósito amplo.
3) A origem evolutiva da vida descreve a hipótese de que o primeiro ser vivo
surgiu de uma série de etapas graduais que contavam com uma probabilidade
razoável segundo leis físicas e químicas. Exclui-se a reunião súbita de uma
célula inteira — de seus átomos constituintes ou de moléculas orgânicas
disponíveis.
4) O naturalismo evolutivo descreve a cosmovisão materialista já definida
acima.
O naturalismo evolutivo representa uma cosmovisão explícita, com respostas
às grandes questões sobre o sentido do mundo. Suas respostas contradizem o
ponto de vista disposto na Bíblia e competem com ela. Como cosmovisão, o
naturalismo evolutivo não conta com evidências para o apoiar, apenas um
enorme salto da observação de que as leis naturais podem explicar algumas
coisas para a conclusão da existência exclusiva do mundo material. Ao apelar
à ciência e à lei científica, ele depende da lei e, como vimos (Capítulo 1), isso
equivale a depender de Deus. Essa posição é incoerente, mas goza de
prestígio de suas associações com os sucessos da ciência e também do grande
número de pessoas proeminentes que a sustentam.
Os três outros usos da palavra evolução precisam ser avaliados em separado.
A microevolução acontece o tempo todo no presente, e ela não está em
discussão. A macroevolução é mais problemática, pois representa uma
extrapolação ousada da microevolução. Sua plausibilidade depende de muitos
fatores culturais e como científicos, incluindo a presença ou ausência de
várias explicações alternativas. Permanece uma boa diferença entre o ponto
de vista que afirma serem as alegadas etapas na evolução guiadas pela
inteligência divina e o conceito que exclui qualquer orientação desse tipo.[77]
As discussões sobre a origem evolutiva da vida geraram várias hipóteses,
mas passar do ambiente terrestre sem vida até a alta organização
característica mesmo da bactéria mais simples representa um salto tremendo.
[78]

Livros inteiros discutem a macroevolução e a origem evolutiva da vida. Não


propomos duplicar um terreno já bem coberto em outros lugares. Mais
adiante olharemos para as suposições e estruturas que circundam a teoria
evolutiva.
A IDADE DA TERRA
A idade do planeta apresenta um teste de caso importante quando se lida com
a relação entre a Bíblia e a ciência. A ciência predominante hoje estima que a
idade da terra é de cerca de 4,5 bilhões de anos e a idade do universo, por
volta de 14 bilhões de anos. Mas Gênesis 1 descreve a criação do mundo por
Deus em seis dias.
O livro de Bernard Ramm The Christian View of Science and Scripture [A
visão cristã da ciência e da Escritura], publicado em 1954, examinou este e
outros problemas sobre a relação entre a Bíblia e a ciência moderna.[79] Desde
a publicação do livro de Ramm, a ciência continuou a avançar e mudar. O
mais interessante é que a forma das alternativas básicas para explicar a
relação entre a ciência e a Bíblia mudou muito pouco. Listaremos essas
alternativas uma a uma, e então procederemos à avaliação.[80]
Dias de 24 horas
O conceito de dia de 24 horas[81] propõe que os seis dias da criação de
Gênesis 1 duram cada um deles 24 horas. Por si mesmo, ele oferece uma
interpretação de Gênesis 1, mas não a interpretação da ciência moderna. Por
isso, a fim de lidar com a ciência moderna, ele precisa ser combinado com
uma explicação dos resultados científicos. A maneira comum oferecida é a
geologia do Dilúvio.
Geologia do Dilúvio
A geologia do Dilúvio diz que a grande maioria dos estratos geológicos,
incluindo quase todos os estratos com fósseis, derivam-se do Dilúvio de Noé.
Assim se mantém que a geologia predominante está radicalmente enganada
ao associar datas de milhões de anos a muitos dos estratos.
Teoria “apenas religiosa”
A teoria “apenas religiosa” alega que a Bíblia versa só sobre questões
“religiosas”, e não sobre fatos científicos. As alegadas discrepâncias surgem
porque as pessoas julgaram mal o propósito da Bíblia.
Teoria de criação local
A teoria da criação local, na forma comum, diz que Gênesis 1.1 descreve o
ato da criação originária de Deus. Então, em Gênesis 1.2, trocamos para um
território limitado no Oriente Médio, que foi destruído. Gênesis 1.3-31
descreve os atos de Deus de restauração e recriação nessa área local limitada.
Gênesis 1 se harmoniza com a ciência moderna ao ser interpretado como
referência apenas a esse local.
Teoria de criação madura
A criação madura[82] descreve a criação do universo em um curto período
(provavelmente seis dias de 24 horas); o ponto final da criação consistiu na
situação de ter a aparência de idade consistente. Ela foi criada amadurecida.
A teoria aponta para Adão como o exemplo principal. Deus criou Adão já
adulto e maduro. Todavia se um pesquisador examinasse o corpo de Adão,
não sabendo de sua origem verdadeira, poderia achar que Adão contava (por
exemplo) 23 anos de vida. Adão tinha um umbigo, assim como teriam os
seres humanos posteriores, cuja origem incluiria a gestação no ventre.[83] As
árvores no jardim do Éden aparentavam maturidade, e teriam anéis nos
troncos a partir dos quais o cientista poderia inferir sua idade. Todavia, ela
consistiria no “tempo ideal”, um tempo irreal projetado retroativamente na
mente do cientista quando examinou o resultado amadurecido.
Teoria da lacuna
A teoria da lacuna diz que o ato de criação originária descrito em Gênesis 1.1
foi seguido por uma catástrofe em 1.2 e uma recriação em 1.3-31. O
versículo 2 deve ser lido assim: “E a terra se tornou sem forma e vazia”. Uma
grande quantidade de tempo passou entre os versículos 1, 2, em que os dados
da geologia podem se encaixar.
Teoria do dia-era
A teoria do dia-era, ou “concordismo de dia-era”[84] diz que os “dias” em
Gênesis 1 não são dias de 24 horas, mas longos períodos, correspondendo a
muitos casos a milhões de anos na escala geológica de tempo. Ela apela ao
fato de que em alguns contextos a palavra “dia” pode designar um período
mais longo, com na expressão “o dia do SENHOR”.
Teoria do dia intermitente
A teoria do dia intermitente[85] diz que cada dia descrito em Gênesis 1 dura
24 horas, mas existem grandes intervalos entre eles. A atividade criativa
descrita em Gênesis 1 acontece entre os dias. Por exemplo, o dia descrito no
versículo 13 (o “terceiro dia”) recai após a criação de terra seca e plantas e
antes da criação dos corpos celestiais.
Teoria do dia revelatório
A teoria de dia revelatório[86] diz que Deus revelou a Moisés (ou quem quer
que seja o autor de Gênesis) as verdades sobre criação em um período de seis
dias na vida de Moisés. Os dias são, assim, dias literais de 24 horas, mas são
dias na vida de Moisés, não os períodos em que Deus agiu para criar.
Conceito de estrutura
O conceito de estrutura[87] (também chamado hipótese de estrutura) diz que
os seis dias proveram a estrutura literária para demonstrar os atos de criação.
Os atos são atos reais no espaço e no tempo, mas a estrutura de dias não
oferece informação sobre a duração do tempo nem sobre a sequência relativa
aos acontecimentos.
Teoria do dia análogo
A teoria do dia análogo[88] diz que Gênesis 1 dispõe de uma analogia entre a
obra de Deus e a obra humana. Deus trabalha seis dias e então descansa no
sétimo dia. O homem deve imitar o padrão ao observar o sábado (Êx 20.11).
As obras divinas são atos reais (históricos) de Deus no tempo e no espaço.
Mas a obra de Deus é análoga à obra humana, ao invés de ambos estarem no
mesmo nível.
Consistente com essa analogia, o uso da palavra dia para Deus e o homem
estabelece uma analogia, não uma identidade. Assim, os dias da criação
possuem uma duração não especificada e formam a base para a imitação
análoga da parte do homem. Essa visão difere do conceito do dia-era
principalmente por não apelar aos outros sentidos léxicos da palavra dia
(heb., yom) como vocábulo isolado, e afirma que a passagem inteira envolve
uma analogia. A analogia, se presente, não pertence estritamente à palavra
dia, mas a toda a passagem.
6. O ensino de Gênesis 1

Agora precisamos empreender uma avaliação das várias interpretações de


Gênesis 1. Como a faremos? Como criaturas finitas e pecaminosas. Deus nos
chama a confiar no que ele diz na Bíblia. Nossa interpretação bíblica é
falível, a ciência moderna é falível e nossa interpretação da ciência é falível.
Precisamos nos submeter a Deus e, ao mesmo tempo, sermos humildes em
relação ao nosso entendimento. Se percebermos uma discrepância aparente,
não saberemos a procedência do problema de imediato. A culpa é das
interpretações ruins da Bíblia ou das interpretações ruins da ciência ou de
ambas? Ademais, nosso conhecimento é parcial. Cremos que Deus tem as
respostas. Mas em algumas circunstâncias nós mesmos não temos as
respostas.
Nessa situação, a resposta possível pode se destacar como a correta. Ou pode
ser que nenhuma resposta satisfatória seja apresentada e devamos esperar
algo melhor. Ou várias respostas podem ser atrativas, enquanto outras podem
ser excluídas com alguma confiança. A persistência de vários pontos de vista
alternativos, mesmo entre os que têm em alta conta a autoridade bíblica,
sugere que sejamos cautelosos e admitamos nossas limitações e as limitações
de toda a empreitada científica.
Podemos, no entanto, começar e tentar excluir as opções menos plausíveis.
Para isso, precisamos atentar ao ensinamento da Bíblia e às fontes possíveis
de problemas na empreitada científica.
DISCERNIR O ENSINO BÍBLICO
Que tipo de ensinamento Deus nos concede em Gênesis 1? Que tipo de
comunicação temos aqui? Apresentam-se dois extremos. Por um lado,
algumas pessoas consideram Gênesis 1 irremediavelmente primitivo e,
portanto, de pequeno valor, exceto talvez em alguma área estritamente
“religiosa”. Por outro lado, outros leem Gênesis 1 quase como se fosse uma
descrição científica dos acontecimentos, ainda que seja pequena e abreviada.
Ambos os pontos de vista são incapazes de tratar Gênesis 1 com cuidado no
contexto bíblico genuíno.[89]
Gênesis 1 chega ao fim com a descrição do sexto dia da criação, mas ela não
conclui o relato. O sétimo dia em 2.1-3 encerra o ciclo. Então começa uma
série de seções de história genealógica, cada uma se abrindo com uma
expressão semelhante a “estas são as gerações de…”:
Estas são as gerações do céu e da terra quando foram criados... (2.4; TB)
Este é o livro das gerações de Adão. (5.1; ACF).
Estas são as gerações de Noé (6.9; ACF).
Estas, pois, são as gerações dos filhos de Noé (10.1; ACF).
Estas são as gerações de Sem (11.10; ACF).
E estas são as gerações de Tera (11.27; ACF).
Estas, porém, são as gerações de Ismael (25.12; ACF).
E estas são as gerações de Isaque (25.19; ACF).
E estas são as gerações de Esaú (36.1; ACF).
Estas são as gerações de Jacó (37.2; ACF).
As duas primeiras seções, Gênesis 1.1—2.3 e 2.4—4.26, se sobrepõem aos
acontecimentos que mencionam. Algumas pessoas veem discrepâncias aqui e
falam de dois relatos distintos da criação.[90] Mas quando lido como o todo
literário, Gênesis não demonstra discrepância real. O primeiro relato é
organizado mais em sentido taxonômico, nos termos dos vários tipos de
criaturas feitos por Deus. O segundo relato foca na criação do homem e é
organizado primeiramente em sentido teleológico, isto é, do ponto de vista do
propósito. A criação do homem surge no começo do relato e então ouvimos
de vários outros aspectos primários nos termos de seus propósitos em relação
ao homem e às formas com que podem servir às necessidades humanas. Deus
faz o jardim e as árvores para a alimentação e a alegria do homem; o ouro de
Havilá deve ser usado por ele; os animais são criaturas subordinadas,
enquanto que a mulher é criada como sua semelhante, de forma que ele não
fique sozinho.
O segundo relato abre, como observamos, com a primeira notícia da história
genealógica: “Estas são as gerações do céu e da terra quando foram
criados...” (2.4; TB). Essa estruturação de Gênesis o mantém no conjunto
como um todo literário. Agora, a parte posterior de Gênesis registra
incidentes na vida de Abraão, Isaque, Jacó e José — incidentes que soam
como acontecimentos na vida real. As partes posteriores da Bíblia confirmam
que os leitores antigos entendiam os patriarcas como pessoas reais e que os
incidentes registrados de fato haviam ocorrido.
Os céticos dizem hoje que essas descrições talvez sejam lendas ou invenções,
com pouco ou nenhum cerne histórico. Argumentam que, provavelmente, os
acontecimentos foram registrados por escrito só muito depois de sua
ocorrência. Entretanto, não se sabe quando os acontecimentos foram
registrados pela primeira vez. É bem possível que os registros tenham sido
feitos em um período bem antigo, mesmo antes da totalidade de Gênesis ter
sido escrita. Na verdade, o conteúdo de quase todo o livro de Gênesis poderia
ter sido registrado por José, filho de Jacó. Na condição de governante no
Egito e recipiente da revelação divina, ele detinha os recursos para produzir
tal obra. Registros mais antigos, como os dele, poderiam ser usados por
Moisés. Desde que se reconheça a autoridade divina de Gênesis, não são
muito importantes as fontes humanas envolvidas na composição.
Além disso, a passagem de tempo não é um obstáculo para a memória de
Deus. O Deus todo-poderoso da Bíblia pode preservar a lembrança de
acontecimentos por gerações, se ele assim desejar, ou mesmo revelar outra
vez as verdades para uma nova geração, caso assim queira. O ceticismo em
relação aos patriarcas pressupõe o ceticismo para com o Deus da Bíblia.
USO DO TERMO “MITO”
Os céticos também rotulam partes da Bíblia como “mito”. No entanto, “mito”
é uma palavra bem escorregadia. Ela pode significar qualquer registro não
científico de como o mundo veio a ser e também qualquer relato que envolva
a ação de deuses ou personagens super-humanos. Na linguagem comum,
conota algo inventado ou inverídico. É conveniente para os céticos introduzir
sorrateiramente esse sentido quando desejam fazê-lo.
É melhor, então, não usar esse termo escorregadio. Se o fizermos, que o
usemos com consciência. (Abaixo usarei no sentido popular: um relato
inventado que inclui personagens super-humanos.) Talvez queiramos
considerar relatos que envolvam as ações de seres super-humanos — deuses
ou heróis super-humanos. Esses relatos ocorreram no mundo antigo e eles
costumavam ser do tipo fantástico e politeísta. Todavia, a questão central
permanece: “Como saber se os deuses ou heróis super-humanos existiram de
verdade?”. Os ouvintes dos relatos poderiam manter uma série de atitudes
possíveis. Os filósofos gregos questionaram a validade de alguns relatos
antigos sobre os deuses gregos. Quem sabe se, séculos antes, alguns céticos
também questionaram os relatos mesopotâmicos, cananeus e egípcios. Não se
sabe ao certo. No entanto, de forma mais característica, as pessoas do Oriente
Médio aceitavam a existência real dos deuses, como provado sua disposição
em tempos de desespero de até mesmo oferecer um filho em sacrifício à
divindade (Lv 18.21; 2Rs 16.3; Sl 106.38). Ao chamar esses relatos sobre
deuses antigos de “mitos”, nós, na atualidade, somos da opinião de que esses
deuses eram ilusórios. Os relatos eram falsos. Contudo, eram falsificações de
algo verdadeiro. Os deuses falsos falsificam o Deus verdadeiro e substituem
o culto ao Deus verdadeiro por um culto substituto, corrupto. Mas eles são
próximos o suficiente da verdade para seduzir as pessoas em direção à
falsidade.
Assim, encontramos deformações idolátricas do conhecimento de Deus nos
relatos pagãos sobre os deuses, que todos os seres humanos confrontam
mediante a revelação geral (Rm 1.18-32). Deus nos concedeu a história
verdadeira, que nos liberta da falsificação. As pessoas hoje têm notado
algumas similaridades entre a Bíblia e o Antigo Oriente Médio, e algumas
delas concluíram que a história bíblica também é inventada, “mítica”.
Contudo, as similaridades nos relatos procedem das semelhanças naturais
entre a verdade e suas falsificações. Os céticos negligenciam essa
possibilidade ao concluir que tudo no Oriente Médio Antigo é
necessariamente falso.
Então concluo que lidamos com acontecimentos reais em Gênesis, não relatos
inventados. A presença da ação divina em um relato não muda seu caráter
para um “mito”, mas nos instrui com propriedade sobre o envolvimento de
Deus no mundo. O ceticismo moderno sobre a descrição bíblica da ação
divina na verdade descansa na suposição de que o Deus da Bíblia não existe.
FOCO E SELETIVIDADE EM GÊNESIS
Gênesis nos conta, então, acontecimentos reais. Mas mostra grande
seletividade e restrição nos assuntos que cobre. As partes posteriores de
Gênesis focam quase inteiramente na vida dos patriarcas: Abraão, Isaque,
Jacó e os filhos de Jacó. Gênesis 10—11 descreve a multiplicação e dispersão
dos seres humanos depois do dilúvio, mas então Gênesis se concentra
estritamente na linhagem de Tera e Abraão, que numericamente constituiu
uma pequenina parte do todo. A organização genealógica em Gênesis destaca
de forma nítida Isaque e Jacó e não as linhagens colaterais de Ismael e Esaú.
Encontramos aqui, não a história geral do antigo Oriente Médio, mas uma
história teológica centrada no compromisso pactual especial de Deus com
Abraão e seus descendentes. Mesmo a história de Abraão, Isaque e Jacó não
oferece uma biografia completa. Ela destaca um pequeno número de
acontecimentos que representam momentos principais e decisivos.
Além disso, Gênesis nem sempre oferece um relato organizado puramente
linear em sentido cronológico. Por exemplo, ele trata da linhagem de Ismael
de uma vez só, até a sua morte (Gn 25.17) e então, dois versículos depois
(25.19) toma a linhagem de Isaque do começo ao mencionar seu nascimento,
já descrito antes (21.2,3). Sem dúvida, há um grau de arranjo tópico.
Como já notamos, Gênesis 2.4-24 descreve alguns dos mesmos
acontecimentos de Gênesis 1. Gênesis 2.4-24 não apresenta todos os
acontecimentos em ordem cronológica. Por exemplo, Gênesis 2.8 e 2.15
dizem que Deus “pôs” o homem no jardim do Éden. Esses dois versículos
aparentam ser descrições do mesmo acontecimento. Entre eles estão a
descrição do crescimento das árvores (2.9) e informações sobre o cenário
mais amplo (2.10-14), Ademais, Gênesis 2.4-24 e Gênesis 1.1—2.3 são
seletivos: cada um inclui alguns detalhes que o paralelo não menciona
explicitamente. Gênesis 1.27 proclama que Deus fez o homem macho e
fêmea. Mas não descreve como ele o fez. Só em Gênesis 2 aprendemos que
Deus fez o homem do pó da terra (2.7) e usou a costela de Adão para fazer
Eva (2.22).
GÊNESIS 1—2 EM RELAÇÃO AO ORIENTE MÉDIO ANTIGO
Precisamos também levar em conta o fato de que Deus fez Gênesis ser escrito
no ambiente do Oriente Médio Antigo. Como vimos no Capítulo 4, esse
ambiente incluía pessoas que contavam e escreviam relatos fantásticos sobre
as origens do mundo, incluindo distorções politeístas das culturas politeístas.
Os antigos leitores israelitas reconheciam de imediato que Gênesis 1—2
contradizia o politeísmo difuso e suas distorções do conceito da criação.
Precisamos, então, levar a sério o caráter de Gênesis 1—2. Ele não se dirige
diretamente a questões que lhe fazemos a partir do ambiente científico
moderno. Ele se dirige ao mundo antigo, com suas questões sobre como
seriam os deuses e o papel deles em trazer o mundo ao estado presente.
LINGUAGEM COMUM
Então não devemos nos surpreender ao descobrir que Gênesis 1—2 não
emprega a linguagem científica moderna. Se o fizesse, os antigos recipientes
originários não entenderiam o texto. Esse não era o propósito do texto. Ele se
dirige a nós usando “linguagem fenomênica” — a linguagem das aparências,
a linguagem comum — para descrever como as coisas parecem para o ser
humano médio.[91] O que nós vemos? O solo está embaixo, o céu está em
cima e o sol se levanta e se põe. Até hoje falamos do nascer e pôr do sol,
mesmo que os astrônomos nos tenham dito que a terra gira e o sol fica
parado.
Falamos errado quando dizemos que o sol se põe? Não, falamos a verdade.
Não alegamos oferecer uma nova teoria astronômica, apenas falamos no
contexto da experiência comum, “fenomênica”. Na verdade, o uso dessa
linguagem comum dá ao texto de Gênesis grande poder de comunicação e
relevância universal. As pessoas de todas as culturas, em qualquer lugar e
século, veem a terra embaixo e sol em cima. Mas nem todas as culturas
conhecem a ciência moderna, com o uso pesado de ferramentas técnicas,
experimentais e matemáticas.
Ao usar a linguagem comum, Deus fala por meio de Gênesis a todas as
culturas. Elas podem entender o que Gênesis diz e o que o texto afirma é
completamente verdadeiro. Não é verdadeiro só na maneira em que se dirige
às necessidades imediatas no Oriente Médio Antigo, mas é verdadeiro em
todos os tempos e lugares. Além disso, pelo fato de Gênesis se concentrar no
nível da experiência comum, possui relevância direta para as pessoas nas
experiências cotidianas de todas as culturas e situações, não apenas para as
pessoas que lidam com a ciência ou são muito influenciadas por ela. É
importante observar que em Gênesis Deus não propõe nenhuma teoria
científica técnica em específico, de forma que possamos apreciar o que Deus
de fato faz, a saber, expor a verdade para todas as pessoas em todos os
lugares. Deus demonstrou sabedoria profunda ao nos dar tudo que nós como
seres humanos caídos realmente precisamos saber.
João Calvino faz uma observação semelhante sobre Gênesis 1:
Pois, a meu ver, este é um princípio certo, que nada aqui [em Gn 1] é tratado senão a
forma visível do mundo. Quem deseja aprender astronomia e outras artes recônditas,
que vá a outro lugar. Aqui o Espírito de Deus deseja ensinar todos os homens sem
exceção; e portanto o que Gregório declara com falsidade e em vão a respeito de
estátuas e imagens é verdadeiramente aplicável à história da criação, a saber, que é o
livro dos incultos.[92]
Assim, a Bíblia não nos apresenta, de jeito nenhum, uma teoria técnica e
científica sobre o sistema solar. Ela não oferece nenhuma teoria moderna nem
antiga. Apresenta-nos a linguagem comum como maneira de falar que não é
“teoria” nem “científica”, apenas algo comum. “Teoria” e “ciência” implicam
o uso de ferramentas técnicas, experimentais e matemáticas e isso nos
predispõe a ter expectativas errôneas.
IMPOSIÇÃO DE UMA LEITURA TÉCNICA
Podemos encontrar a tendência de ler a Bíblia com expectativas técnicas em
algumas discussões sobre as “águas sobre o firmamento” em Gênesis 1.7.
John C. Whitcomb, Jr. e Henry M. Morris propõem que essas águas
formaram “um grande toldo de vapor ao redor da terra”, que mais tarde
proveu uma parte da água no dilúvio nos dias de Noé.[93] Outros pensam que
se tratava de um toldo de gelo que derreteu para prover o dilúvio. Todavia,
Salmos 148.4 fala das “águas que estão acima do firmamento” como algo
ainda existente quando o salmista escreveu, bem depois do dilúvio. Além
disso, Gênesis 1, dirigindo-se a pessoas que viviam bem depois do dilúvio,
precisa ser interpretado de forma que faça sentido para essas pessoas. Elas
não contavam com uma teoria científica elaborada sobre o mundo pré-
diluviano. Quando liam Gênesis 1, precisavam que ele descrevesse coisas que
elas eram capazes de identificar. Salmos 148.4 confirma que as “águas que
estão acima do firmamento” lhes era algo conhecido.
Calvino pensa que isso se refere às nuvens.[94] Ou pode ser uma referência à
experiência da chuva procedente do alto.[95] A água da chuva estava lá em
cima antes de descer. A pessoa comum, no mundo antigo, poderia não saber
os detalhes científicos, como o fato de que o vapor de água existe em forma
invisível antes de se condensar em nuvens ou chuva. Os detalhes são
irrelevantes para o propósito de Gênesis 1.
Ademais, os leitores céticos da Bíblia às vezes tentam forçar um sentido
técnico sobre Gênesis 1. Eles atribuem à Bíblia uma “ciência” errônea e
primitiva. Por exemplo, alguns alegam ensinar a Bíblia que a água da chuva
fica retida por uma barreira sólida de céu. A água desce do céu quando Deus
abre “as janelas dos céus”, que são concebidas como placas sólidas que ele
separa. Mas os antigos bem sabiam que a chuva vinha das nuvens:
os céus gotejaram, sim, até as nuvens gotejaram águas. (Jz 5.4)
Desfizeram-se em águas as nuvens... (Sl 77.17; TB)
... a nuvem que traz chuva serôdia (Pv 16.15)
Estando as nuvens cheias, derramam aguaceiro sobre a terra... (Ec 11.3)
... às nuvens darei ordem que não derramem chuva sobre ela. (Is 5.6)
Em 1 Reis 18.44 o servo de Elias vê “uma nuvem pequena como a palma da
mão do homem”, indicando a vinda da chuva.
Toda a linguagem sobre as janelas (Gn 7.11; 8.2) é uma metáfora, como se vê
do fato de que em Malaquias 3.1 Deus abre “as janelas dos céus” para
derramar uma bênção. Em 2 Reis 7.2 o postulado principal era que o Senhor
“faria janelas no céu” para prover trigo e cevada. Entendido literalmente, ele
seria inconsistente com as janelas já estando lá para providenciar a chuva!
Essa linguagem não nos dá uma teoria quase científica, mas uma figura
colorida. Algum tempo atrás eu mesmo ouvi um conhecido (não um
acadêmico bíblico) descrever uma experiência em que, como ele dissera, “os
céus foram abertos” e um forte aguaceiro desceu.
Com isso em mente, vamos retornar ao relato do Dilúvio em Gênesis 7—8.
No início do dilúvio, Gênesis 7.11, 12 diz: “As janelas dos céus se abriram, e
houve chuva sobre a terra quarenta dias e quarenta noites” (ARC). Mesmo as
pessoas sabendo que a chuva vinha das nuvens, eles não sabiam
necessariamente o que supria as nuvens com água. E a quantidade de água
vertida no dilúvio foi realmente notável. Retrata-se, portanto, como se
alguém abrisse um buraco no texto e derramasse baldes e baldes. Mais tarde,
em Gênesis 8.2: “Fecharam-se as fontes do abismo e as janelas do céu” (TB),
terminando o aguaceiro. A segunda parte do versículo explica a mesma coisa
sem usar a figura das janelas: “Foram retidas do céu as copiosas chuvas”
(TB).
Podemos receber mais esclarecimentos ao perguntar: o que é esse “céu” a que
Gênesis se refere? Em Gênesis 1.6 Deus fez “uma expansão” (ARC) (“o
firmamento” na ARA) e o chamou de “Céus” (1.8). (As palavras céus e céu
em português traduzem a mesma palavra hebraica, shamayim.) Mais tarde, no
versículo 15, os luzeiros celestiais estão “na expansão dos céus” (ARC) (no
hebraico, shamayim). Isto é, eles estavam no céu. A palavra para “céu” no
hebraico pode denotar o céu físico (como faz em Gn 1.15; v. tb. Gn 15.5). É o
local de onde a chuva vem (como em Gn 8.2). A terra de Canaã “da chuva
dos céus beberá as águas” (Dt 11.11). Se Deus se ira, é dito: “feche ele os
céus, e não haja chuva” (Dt 11.17). Na bênção, “O SENHOR te abrirá o seu
bom tesouro, o céu, para dar chuva à tua terra no seu tempo…” (Dt 28.12).
Veja também 2 Samuel 21.10; 1 Reis 8.35; Salmos 104.13; Isaías 55.10; e
Jeremias 10.13
A mesma palavra para “céu” pode também denotar o céu invisível onde Deus
está rodeado por anjos: “Olha desde a tua santa habitação, desde o céu, e
abençoa o teu povo, a Israel” (Dt 26.15). “Ouve no céu, lugar da tua
habitação” (1Rs 8.30). Mas em Gênesis 1.15 se refere ao céu físico e é mais
natural tomar a referência anterior em Gênesis 1.8 da mesma forma. As águas
debaixo mais tarde se juntam para formar “Mares” (Gn 1.10). As “águas
acima dos céus” são, então, a fonte da chuva, como são no dilúvio e nas
passagens em Deuteronômio e nos demais lugares. Nenhuma explicação
científica e técnica é fornecida.
Na verdade, no discurso de Deus a Jó, aponta-se que Jó não sabe os mistérios
sobre a chuva, a neve e a geada (Jó 38.22,25-30). Tornar “as águas acima dos
céus” em uma linguagem técnica contradiz abertamente as próprias
afirmações de Deus sobre os limites no conhecimento antigo. A Bíblia
descreve o que uma pessoa comum poderia observar no céu, acima de sua
cabeça, quando a chuva caía.[96]
PROTOCIÊNCIA ENTRE OS BABILÔNIOS
Os babilônios desde um período bem primitivo tinham especialistas que
devotavam sua atenção ao céu. Eles desenvolveram uma expertise técnica
que os capacitou a calcular os períodos da lua e mais tarde prever eclipses do
sol e da lua.[97] Predizer eclipses não é fácil e representa uma conquista bem
impressionante no mundo antigo. Essa especialidade técnica não era
exatamente como a ciência moderna. Seu conhecimento não “deslanchou” e
cresceu exponencialmente, expandindo-se para incluir mais e mais em seu
escopo. Mas ainda tinha afinidades com as direções técnicas da ciência
moderna. Como a ciência moderna, concentrava-se nos fenômenos, incluindo
detalhes quantitativos e não se contentava apenas com explicações
metafísicas ou teleológicas bem gerais. Era um tipo de protociência.
Na Mesopotâmia antiga, os cálculos astronômicos — o que existia de mais
próximo da “ciência” —pertenciam a uma subcultura diferente dos antigos
relatos da criação. Os relatos da criação da Mesopotâmia não se interessavam
por cálculos, precisão técnica ou relatos técnicos dos mecanismos dos
fenômenos astronômicos; ao contrário. O Enuma Elish nos conta que o zênite
é obtido a partir do umbigo da deusa Tiamat, embora não pareça diferente de
qualquer outra parte do céu. O mesmo relato declara que a terra foi feita de
metade do cadáver de Tiamat. Mas nenhum agricultor babilônico esperava
descobrir os restos do fígado de Tiamat ou do osso do seu dedo na terra e
então alterar suas técnicas agrícolas por conta disso. Os relatos babilônicos e
sumérios não contêm “ciência”, nem mesmo antiga protociência. Tampouco
eles apresentam algum substituto para a ciência a fim de preencher a lacuna,
porque a Babilônia já contava com um tipo de protociência. A Babilônia
dispunha de especialistas em cálculos astronômicos.
A orientação do Enuma Elish era diferente: fornecer um relato amplo e
panorâmico de como os deuses, os seres humanos e o mundo surgiram há
muito tempo, e o tipo de relações mútuas mantidos por eles agora. No
entanto, as pessoas deveriam procurar em outro lugar informações técnicas
sobre o curso presente do funcionamento do mundo.
Gênesis 1—3, como indicamos, não se baseia em relatos politeístas; na
verdade, os repudia. Ao fazê-lo, porém, os cálculos astronômicos babilônicos
não são repudiados nem endossados de forma direta. Não se fala de
astronomia nesse gênero. Como os relatos politeístas concorrentes, ele
descreve “o cenário mais amplo”. Responde às grandes questões sobre o
mundo, formuladas pelas pessoas a fim de se orientar sobre o sentido da
própria vida, do mundo à sua volta, do caráter de Deus, dos ídolos e da
relação deles com a humanidade. Os cálculos protocientíficos ficam só de um
lado, como parte de uma pequena subcultura especializada nesse cenário mais
amplo.
Indiretamente, Gênesis 1 nos dá uma indicação do papel que o cálculo
astronômico pode tomar. No quarto dia, quando Deus fez os corpos celestiais,
ele especificou: “Sejam eles para sinais, para estações, para dias e anos”
(1.14). A palavra divina de ordem especifica que os corpos celestiais servirão
como cronometristas. Em particular, o sol controla as alterações entre luz e
trevas, dia e noite, que formam um único dia. O sol e as estrelas juntos
indicam o curso de um ano. Então, de forma indireta, o estudante de
astronomia é convidado a vir e observar os movimentos dos corpos celestes e
tentar discernir ainda com mais precisão como Deus os comanda a se mover e
como eles demarcarão o tempo. Indiretamente, Gênesis 1 leva ao
desenvolvimento e à afirmação do papel do cálculo na protociência antiga. A
protociência desempenha um papel subordinado no “cenário mais amplo”: a
relação entre Deus, o homem e o mundo exposta por Gênesis 1—3.
A CONTRIBUIÇÃO DE GÊNESIS 1
Agora devemos enfatizar de novo que o grande cenário de Gênesis 1 não é
ciência nem seu substituto, e os críticos cometem um erro sobre o gênero
literário quando o tratam assim. Em particular, Gênesis 1.7 não provê
nenhum detalhe científico, técnico sobre a natureza das “águas sobre o
firmamento”. João Calvino mostra a maneira de lidar com esse tipo de
linguagem quando considera Salmos 148.4:
Não há fundamento para a conjetura elaborada por alguns de que há águas
depositadas acima dos quatro elementos. E, quando o salmista fala sobre essas águas
acima dos céus, é evidente que está pensando na descida da chuva. Imaginar que
existe um oceano suspenso nos céus, no qual as águas são permanentemente
depositadas, equivale a apegar-se estritamente demais à letra das palavras
empregadas. Sabemos que Moisés e os Profetas falam ordinariamente em um estilo
popular, adaptado à apreensão inferior. Seria absurdo tentar reduzir o que dizem às
normas da filosofia…[98]
A referência de Calvino às “normas da filosofia” é próxima à “filosofia
natural” que mais tarde se desenvolveu na ciência moderna. Calvino percebe
a diferença entre falar “em um estilo popular”, a fim de se dirigir a pessoas
comuns e falar para se dirigir a questões técnicas dentro da “filosofia” ou
ciência.
7. Avaliação da ciência moderna sobre a idade da Terra

Também precisamos olhar de forma crítica para a ciência moderna. Este


mundo é povoado por seres humanos falíveis, corrompidos pelo pecado.
Quando fazem ciência, não deixam de ser falíveis e pecaminosos. Além
disso, como vimos no Capítulo 1, as crenças sobre a lei científica sempre
jazem no pano de fundo da prática da ciência. Essas crenças básicas
pressupõem que a lei seja um produto de Deus. Entretanto, a idolatria
corrompe a visão das pessoas sobre Deus e daí seu conceito sobre a lei. Não
se pode presumir que os produtos científicos sejam todos completamente
inválidos porque os cientistas ainda trabalham no mundo de Deus, com uma
concepção da lei científica dependente de Deus. Ainda assim, não se pode
presumir a validade plena dos produtos da ciência. Não só são os cientistas
falíveis, mas também a idolatria corrompe a prática científica pela distorção
da concepção da lei científica.
Então encontramos a mistura de bem e mal. Nenhuma receita simples nos
capacita a realizar essa filtragem. Nós mesmos, os pretensos filtros,
permanecemos falíveis e pecadores. Às vezes a ciência pode fornecer
produtos muito bons a despeito dos pressupostos falhos de seus praticantes.
Às vezes não. Precisamos apenas olhar e fazer o melhor possível.
EVIDÊNCIA CIENTÍFICA DA TERRA VELHA
A ciência predominante afirma que a Terra tem cerca de 4,5 bilhões de anos e
que todo o universo tem cerca de 14 bilhões de anos. Eu a chamo “ciência
predominante” porque alguns cristãos se esforçam para produzir uma
alternativa, a “ciência da criação” — segundo a qual a Terra e o universo
vieram à existência há alguns milhares de anos.[99] Chamarei essas pessoas
“criacionistas da Terra jovem”.[100]
Vamos nos concentrar primeiro na ciência predominante. Ela apela para qual
evidência? A evidência procede em sentido primário da geologia e
astronomia. A predominante afirma que as formações geológicas contêm
rochas formadas milhões de anos atrás. Os astrônomos afirmam que ao
extrapolarmos retroativamente a partir dos movimentos presentes das
galáxias distantes, chegamos ao período de cerca de 14 bilhões de anos atrás,
quando a matéria e a energia do presente universo visível estavam
concentradas em uma região bem pequena de espaço, da qual se moveram
para fora explosivamente em um Bigue-Bangue. Assim o universo se
expandiu gradualmente até atingir o tamanho presente.
Uma discussão extensa sobre a evidência geológica pode ser encontrada em
Davis A. Young, Creation and the Flood: An Alternative to Flood Geology
and Theistic Evolution [Criação e o dilúvio: uma alternativa à geologia do
dilúvio e à evolução teísta].[101] A evidência é complexa e a sua interpretação
também a é. Podemos apenas resumi-la aqui e sugerir aos leitores
interessados a discussão de Young.
Por um bom tempo, os defensores da abordagem da Terra jovem alegam que
os cientistas hegemônicos datavam as rochas por fósseis e datavam os fósseis
pelas rochas, de forma que todo o sistema era circular. Essa afirmação perdeu
alguma plausibilidade com o desenvolvimento da datação radiométrica.
A datação radiométrica usa medições de quantidades mínimas de variados
isótopos radioativos e seus produtos de decaimento, com a taxa conhecida de
decaimento dos isótopos, para estimar a idade das rochas em que os isótopos
são encontrados. A datação de Carbono-14 é um dos métodos mais famosos,
mas algumas vezes leva a datas comprovadamente incorretas, por isso não
pode ser efetivamente usada para estimar datas acima de dezenas de milhares
de anos. A meia-vida do Carbono-14 é apenas de 5.700 anos.[102] Em
contrapartida, a datação urânio-chumbo (U-Pb) promete alcançar o passado
distante, pois os dois principais isótopos de urânio, U235 e U238, têm meias-
vidas de 700 milhões de anos e 4,5 milhões de anos, respectivamente. Os
defensores da terra jovem já apontaram problemas com este e outros métodos
de datação radioativa, mas é muito difícil desacreditar o método rubídio-
estrôncio (Rb-Sr).[103]
A evidência astronômica procede de várias fontes. O argumento mais
conhecido envolve extrapolar retroativamente observações que indicam o
movimento das galáxias mais distantes para longe de nós em uma taxa quase
proporcional à sua distância de nós. Essa extrapolação leva à origem em
cerca de 14 bilhões de anos atrás causada pela explosão de uma fonte muito
condensada (o Bigue-Bangue).
Uma série de pressupostos, e uma série de balanceamentos de indícios,
adentram a teoria cosmológica do Bigue-Bangue. Assim se pode escolher
algo mais simples. As galáxias distantes e observáveis por telescópios estão à
distância de até bilhões de anos-luz. Isso significa que leva bilhões de anos
para a luz dessas galáxias viajar de lá até aqui. Para a estarmos observando
agora, ela precisa ter começado a viagem há bilhões de anos. Daí, de acordo
com o ponto de vista predominante, o universo possui bilhões de anos de
idade.
A precisão das estimativas de distância das galáxias longínquas pode ser
questionada. Então, considere a galáxia de Andrômeda (também chamada a
Grande Nebulosa em Andrômeda), uma galáxia vizinha distante cerca de
2 milhões de anos-luz (um ano-luz, a distância que a luz viaja em um ano, é
cerca de 9 trilhões de quilômetros).[104] Mesmo essa distância é grande
demais para uma teoria terra jovem das origens, pois sugere que a galáxia de
Andrômeda, como agora a observamos, conta com mais de 2 milhões de
anos. Mesmo dentro da Via Láctea, lidamos com distâncias de até 100 mil
anos-luz, o que ainda é demais para os criacionistas da Terra jovem, que
normalmente sustentam uma origem do planeta a menos de 20 mil anos.
Whitcomb e Morris afirmam: “Toda teoria cosmológica ainda é muito
especulativa”.[105] No entanto, a distância até a galáxia de Andrômeda não é
tão especulativa. Sim, muitas inferências contribuem para as estimativas de
distâncias, mas o mesmo é verdade para estimativas da distância até a Lua.
[106]
A ciência, pela natureza do caso, sempre é provisória, sempre sujeita à
revisão. Mas esse truísmo geral não nos ajuda de forma concreta a interpretar
o sentido da luz estelar de Andrômeda ou das estrelas mais distantes da Via
Láctea.
A RESPOSTA DA TERRA JOVEM
Os criacionistas da Terra jovem deram um pouco de atenção a esses
problemas astronômicos, mas até esse ponto as coisas ainda são
rudimentares, no mínimo. Podemos considerar quatro propostas “radicais”
diferentes para lidar com esses problemas.
Primeiro, Whitcomb e Morris citam um artigo por Parry Moon e Domina
Eberle Spencer, que propõe regras especiais para a viagem da luz por grandes
distâncias.[107] Mas o artigo não oferece nada semelhante a uma astronomia
alternativa completa; só obteve sucesso na proposição de uma teoria muito
especulativa que lida com uma parcela de dados sobre estrelas binárias.
Segundo, Barry Setterfield e Walter T. Brown argumentam que a velocidade
da luz diminui com o tempo.[108] Baseados em registros de medidas
retroativos a 1675, Barry Setterfield argumenta a respeito da diminuição de
5,7 quilômetros por segundo de 1675 até 1728, e 2,5 quilômetros por segundo
de 1880 a 1924 e assim sucessivamente.[109] Mas há muitos problemas com
essa proposta.[110] Em primeiro lugar, as medidas anteriores a 1900 eram
menos precisas, de forma que não se podem extrair bons dados desse período
mais antigo. Segundo, as extrapolações de Setterfield para antes de 1675 são
muito especulativas, a não ser que saibamos por que a velocidade da luz está
mudando (o que “a dirige”?). Terceiro, as mudanças são pequenas demais
para servir para explicar a galáxia de Andrômeda, a não ser que se postulem
mudanças enormes no passado mais distante. Na verdade, Setterfield “postula
que no tempo da criação a velocidade da luz era 5 X 10¹¹ (500 bilhões de
vezes) mais rápida do que agora”,[111] especulação muito audaciosa. Quarto,
segundo a teoria física atual, a velocidade da luz está ligada a tantos
processos físicos que mesmo pequenas mudanças no valor podem exercer
efeitos físicos disruptivos enormes, a não ser que sejam balanceados
precisamente por mudanças correspondentes exatas em outras constantes
físicas fundamentais e processos físicos. Até agora, a mudança postulada na
velocidade da luz não nos oferece nenhuma teoria física nova, apenas a vaga
esperança de que alguma teoria mais tarde esteja próxima.
Terceiro, D. Russell Humphreys emprega a teoria geral da relatividade a fim
de tentar “re-escalar” o tempo até o Bigue-Bangue.[112] Mas ele aplica mal a
matemática da relatividade geral e não percebe que, de todo modo, a
relatividade geral não afetaria de modo significativo as estimativas de tempo
para galáxias próximas como a galáxia de Andrômeda.[113]
Quarto, James B. Jordan sugere que a velocidade da luz pode ser bem maior
além das vizinhanças da Terra e do Sol, mas não respalda sua sugestão.[114]
Precisamos exercer circunspeção ao avaliar abordagens como as acima. As
últimas duas abordagens, propostas respectivamente por D. Russell
Humphreys e James Jordan, de fato não ajudam. As outras duas são
especulativas ao extremo e hoje não explicam nada mais que algumas partes
dos dados. Como seres humanos finitos, deveríamos admitir, em princípio, a
possibilidade de uma revisão radical ou transformação da ciência atual. Mas
deveríamos também ser honestos sobre o estado de coisas presente. Por
exemplo, Paul Nelson e John Mark Reynolds, representantes da teoria da
Terra jovem, afirmam com franqueza:
Os criacionistas recentes deveriam humildemente concordar que a sua visão é, no
momento, implausível em bases puramente científicas.[115]
Em oposição a essa declaração humilde, alguns criacionistas da Terra jovem
tendem a apresentar abordagens especulativas com mais peso ou atenção que
elas merecem. Alguns continuam a repetir linhas de argumentação já
desacreditadas.[116] Aqueles com experiência nas áreas em questão precisam
avaliar a situação de forma justa; e os desprovidos de experiência não podem
superestimar a própria competência ou depender apenas do juízo do
fornecedor do relatório mais favorável. Sim, os cristãos desejam estimular a
fé dos crentes e desafiar a ausência de fé dos incrédulos. Mas usar meios
menos que honestos não honra a Deus, nem realiza bem o trabalho na prática,
pois as pessoas inquiridoras cedo ou tarde descobrirão que o relatório
fantasioso anterior era uma distorção.
Alguém pode desistir da questão e recorrer à desconfiança geral da
astronomia ou da física. Pensa-se: “Algo está errado na astronomia moderna,
mas não se sabe o quê”. Talvez. A ciência, como dissemos, está sujeita à
revisão. Mas precisamos ser cuidadosos. Não se deve descartar a ciência
como algo inútil. Ela interage com a lei de Deus e a lei de Deus governa o
mundo. O ponto culminante da ciência descobre as maravilhas e belezas da
lei de Deus e as leva a seu louvor. Não devemos tomar medidas apressadas
que nos ceguem para alguma demonstração da sabedoria e beleza de Deus.
Na verdade, os criacionistas da Terra jovem não rejeitam toda a ciência. Eles
usam métodos científicos, pressupostos científicos e teorias científicas em
muitos casos em que esperam que ela os ajudará a encaixar as coisas na
figura da Terra jovem. Assim surge a questão: “Sobre que bases você lança
suspeita sobre uma área, a astronomia galática, ainda que não encontre falhas
sérias nela, e não sobre outra área?”.
Na verdade, os criacionistas da Terra jovem possuem uma solução possível
bem próxima, em seus próprios escritos. Whitcomb e Morris postulam que,
no terceiro dia, o solo foi criado com a “aparência” de mais idade para a
nutrição das primeiras plantas e as próprias plantas foram criadas com a
aparência de mais tempo.[117] Tudo bem. Então o mesmo princípio, se
verdadeiro, pode facilmente ser aplicado à astronomia. O estado presente das
estrelas tem aparência de mais idade. Suponhamos que seja assim: a
aparência. A luz estelar da galáxia de Andrômeda foi criada em progresso,
como se tivesse um milhão de anos. Por que não? É misterioso que
Whitcomb e Morris permitam essa opção quando Deus cria plantas e peixes,
e então, subitamente, voltam-se para explicações absurdas e improváveis
quando se trata de astronomia.
Para concluir: a luz da galáxia de Andrômeda e a luz das galáxias distantes
mostra que o universo tem a aparência de mais idade. Ou se trata apenas da
aparência, como a criação madura do corpo de Adão, ou o universo é de fato
antigo, de forma que os astrônomos provavelmente estão certos em nos
apresentar a data de cerca de 14 bilhões de anos.
Como a informação afeta nossa avaliação de diferentes teorias sobre a idade
da Terra?
8. Avaliação das teorias sobre a idade da Terra

Havendo primeiro olhado de forma mais geral para Gênesis 1 e a evidência


científica, agora nos propomos a avaliar teorias específicas com o fim de as
harmonizar. Descrevemos com brevidade as teorias no Capítulo 5, sem dar
muita evidência a favor ou contra. Agora procedemos à análise da evidência
mais específica e avaliação das teorias. Por conveniência, não tomaremos as
teorias na ordem em que aparecem no Capítulo 5 e no livro de Bernard
Ramm; descartaremos, em primeiro lugar, as teorias menos plausíveis.[118]
Então, nos capítulos 9 e 10, consideraremos as teorias mais atraentes com
detalhes.
TEORIA “APENAS RELIGIOSA”
De acordo com a teoria “apenas religiosa”, a Bíblia lida apenas com questões
de “religião”, não com temas científicos. A teoria “apenas religiosa” ganha
alguma plausibilidade porque o relato bíblico em Gênesis 1—3 de fato enfoca
o cenário mais amplo. Ele oferece uma alternativa ao politeísmo em vez de se
ocupar primariamente com os detalhes técnicos. Entretanto, a teoria “apenas
religiosa” compartimentaliza com muita velocidade a religião e a ciência. É
limpinha, simplória e apressada demais. Como vimos, a cosmovisão do
naturalismo evolutivo se esconde no prestígio da ciência, mas constitui uma
“religião” alternativa no sentido de oferecer respostas às grandes questões,
respostas que contradizem as respostas bíblicas. Ademais, a Bíblia vez após
vez demonstra sua preocupação com acontecimentos no espaço e no tempo.
Cristo se encarnou e andou nas colinas da Palestina. A crucificação e a
ressurreição aconteceram no espaço e no tempo. A alegada “ciência” pode
afirmar a impossibilidade da ressurreição. Mas ao fazê-lo, carrega
pressupostos filosóficos infundados e secretos sobre a natureza do mundo, a
causação e os milagres. A Bíblia chama os cristãos a desenvolver um
conceito da ciência que não elimine os milagres de antemão e de forma
automática.
TEORIA DA CRIAÇÃO LOCAL
A teoria da criação local declara que, embora Gênesis 1.1 possa ser uma
afirmação geral sobre a criação do universo, o texto de Gênesis 1.3-31
descreve a obra criativa de Deus em um pequeno território, concentrado no
jardim do Éden.
Entretanto, a linguagem de Gênesis 1.1-3 não apresenta uma indicação de
uma grande mudança da criação geral para uma área específica. É verdade
que a palavra hebraica para “terra” [em sentido mais global] (’erets) também
pode significar “terra” no sentido de uma área menor. Todavia, a totalidade
de Gênesis encaixa a história de Abraão e dos patriarcas em um cenário mais
amplo, que inclui as outras nações (Gn 10.1—11.9; 12.3). Gênesis 1 fornece
o cenário mais geral de todos. Portanto, Gênesis como conjunto literário
indica que o escopo de Gênesis 1 é universal. As passagens posteriores de
Salmos e do Novo Testamento, baseadas em Gênesis, parecem presumir essa
universalidade.
Também vimos que Gênesis 1 se dirige aos ouvintes antigos, sem as
informações astronômicas modernas sobre o tamanho do universo. Gênesis 1
se dirige a eles em linguagem comum, das aparências, e fala sobre coisas que
eles podem ver a seu redor. Esse foco no direcionamento leva naturalmente
ao foco no espaço, nos arredores com que a pessoa comum está acostumada.
Não encontraremos um discussão sobre buracos negros, galáxias distantes, o
núcleo metálico da terra ou organismos unicelulares. Gênesis 1 envolve um
tipo de “localização” à experiência israelita antiga. Mesmo assim, ainda
inclui um motivo universal. Deus é o criador e o soberano de tudo — tudo
que é visível aos olhos dos israelitas, mas também de qualquer coisa: “todas
as coisas [...] visíveis e invisíveis”, como Paulo corretamente diz ao expandir
Gênesis 1 (Cl 1.16).
Concluo que a criação local falha como teoria completa, mas contém um grão
de verdade sobre o enfoque de Gênesis para os leitores israelitas.
TEORIA DA LACUNA
A teoria de lacuna postula a existência de uma grande lacuna de tempo entre
os versículos 1 e 2 de Gênesis 1. Gênesis 1.1 descreve a criação inicial e
inclui a maior parte das eras geológicas. Depois disso, Deus destruiu a ordem
do mundo antigo, talvez por causa da queda de Satanás, e recriou a ordem do
mundo no começo em 1.3; Ou talvez a destruição da terra por Deus tenha
sido confinada a uma região menor perto do Éden, o que nos leva de volta à
teoria da criação local.[119]
Já eliminamos a teoria da criação local. A teoria de lacuna também sofre com
o fato de que quer ler 1.2 com o sentido: “E a terra se tornou sem forma e
vazia”. A construção no hebraico começa com e (waw), seguido pelo
substantivo para “terra”, seguido por um tempo perfeito do ver ser (radical
hebraico hyh). Essa construção no hebraico normalmente indica uma
circunstância anexa em lugar da linha principal de ação de um relato. A
tradução “a terra estava sem forma” é apropriada.
A teoria de lacuna também sofre com a implausibilidade de ter de afirmar que
o escritor de Gênesis dedicou só um versículo à obra de suma importância da
criação originária e, na sequência, um capítulo inteiro à obra de restauração.
Dada a centralidade da doutrina da criação em toda a Bíblia, isso é muito
improvável.
Entretanto, a teoria de lacuna também possui um grão de verdade em si. O
texto de Gênesis 1.1, 2 descreve a situação anterior ao começo do primeiro
dia. Não se indica quanto tempo passou antes da criação da luz no primeiro
dia. Possivelmente, um grande período poderia estar envolvido. Essa falta de
informação sobre o tempo não resolve, contudo, todas as discrepâncias entre
a ciência e a Bíblia, já que os relatos científicos do passado parecem
descrever alguns dos mesmos acontecimentos que os mencionados em
Gênesis 1.3-31.
TEORIA DO DIA INTERMITENTE
A teoria do dia intermitente alega que a maior parte da atividade criativa de
Deus aconteceu em períodos longos entre os seis dias, que são dias de
24 horas. É verdade que Gênesis não afirma explicitamente que os dias se
seguem sem intervalos. Cada nova seção é aberta com a s palavras: “e disse
Deus”, o que teoricamente poderia descrever acontecimentos muito
posteriores aos anteriores. Ademais, o versículo final em cada seção tem a
forma: “Houve tarde e manhã, o [...] dia”. Não encontramos indicação
explícita sobre se o “dia” é o tempo em que Deus agiu, ou o tempo no final
do período de sua atuação.
Assim, a análise puramente gramatical e mecânica de Gênesis 1 não pode
excluir a possibilidade teórica dessa interpretação. Mas quando pensamos na
relevância mais ampla do que a totalidade de Gênesis afirma, este conceito
perde a plausibilidade.
Em primeiro lugar, considere o padrão por inteiro. Deus executa as obras de
criação durante seis dias. No final dos seis dias, ele finda e descansa no
sétimo dia e o faz santo (2.3). Os leitores israelitas sem dúvida veriam aqui o
padrão de seis dias de trabalho, seguido por um dia de descanso, e pensariam
na própria celebração do sábado. Êxodo 20.8-11 faz a conexão explícita:
Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás e farás toda a tua
obra. Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus; não farás nenhum trabalho,
nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu
animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro; porque, em seis dias, fez o
SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por
isso, o SENHOR abençoou o dia de sábado e o santificou.
A analogia entre o dia do trabalho do Senhor e do trabalho israelita se
sustenta só se o Senhor tiver trabalhado durante seis dias, como os israelitas
trabalhavam seis dias. Nos dois casos, o trabalho ocorre durante os dias, não
nos grandes intervalos entre os dias. Esta observação já resulta em uma
dificuldade enorme para a teoria do dia intermitente.
Mas também encontramos algumas dificuldades subordinadas. Segundo a
teoria, na verdade, Deus trabalha primariamente nos intervalos entre os dias
listados. Cada intervalo pode conter um número bem grande de dias comuns.
E, segundo essa visão, uma vez que o Sol e a Lua foram criados para marcar
os tempos, esses dias terão a aparência razoavelmente normal. Há muitos dias
entre o dia 4 e o dia 4. Então como pode o dia 5 ser chamado dia 5 e não o
dia de número 72.510.338? O que é tão especial no dia de número 72.510.338
que o destaca para uma menção especial? Se os “dias” marcados de modo
especial não incluem mais a obra principal da criação, achamos difícil saber o
motivo de seu destaque. Eles são supérfluos. A única razão que podemos
encontrar para sua menção é produzir um padrão para ser imitado pelo
homem no sábado. Assim, a celebração do sábado se fundamenta em uma
artificialidade e ameaça se tornar artificial.
Considere também a analogia entre o trabalho divino e o trabalho humano. Se
Deus trabalha nos intervalos, por analogia, o israelita pode trabalhar nos dias
de intervalo entre os dias listados de modo especial. É só uma questão de
serem especialmente listados ou não. Esse tipo de raciocínio mina o
mandamento do sábado.
Assim, a teoria de dia intermitente não funcionará.
TEORIA DO DIA REVELATÓRIO
A teoria do dia revelatório declara que Deus revelou o relato da criação a
Moisés em seis dias distintos da vida de Moisés. Essa teoria oferece uma
forma engenhosa de harmonização, mas nada no texto de Gênesis 1 indica
que os dias pertencem à vida de Moisés. Essa teoria também possui o efeito
de enfraquecer a força do mandamento do sábado — que preconiza a
imitação de Deus — não sobre imitar Moisés. Não, os seis dias em Gênesis 1
são seis dias em que Deus trabalha. A teoria de dia revelatório fracassa.
PONTOS DE VISTA MAIS ATRAENTES
As pontos de vista remanescentes, a teoria do dia-era, do dia de 24 horas, da
criação madura, do dia analógico e da estrutura possuem mais vantagens e
precisamos discuti-las com mais detalhes.
TEORIA DO DIA-ERA
A teoria do dia-era propõe que cada “dia” em Gênesis 1 representa um longo
período, talvez milhões de anos. Muitos defensores da visão do dia-era
apontam que yom, a palavra hebraica, conta com mais de um significado. Ela
pode designar um dia de 24 horas: “E, no oitavo dia, se circuncidará ao
menino a carne do seu prepúcio” (Lv 12.3). Também pode designar o período
de luz durante o dia de 24 horas, isto é, o dia em oposição à noite: “Chamou
Deus à luz Dia” (Gn 1.5). Pode designar um período com caráter especial: “o
grande dia do SENHOR” (Sf 1.14), “dia de indignação” (Sf 1.15), “dia da
trombeta” (Sf 1.16). Expressões como “naquele dia” (Sf 3.11) e “até ao dia
de hoje” (Gn 19.37) provavelmente transmitem a ideia semelhante de um
período de duração não especificada. “Naquele dia” significa “naquele
tempo”: o tempo pode ser razoavelmente curto, mas não se limita a um dia de
24 horas. Gênesis 2.4 também fala do que aconteceu “no dia em que o
SENHOR Deus fez a terra e os céus”, (ARC); “dia” cobre todo o período de seis
dias! A visão do dia-era usa essa evidência a seu favor.
A visão do dia-era está certa sobre o fato de Gênesis 1.5 e 2.4 usarem a
palavra “dia” em sentidos distintos. Mas cada um dos seis dias possui um
número associado e cada um vem junto à afirmação “Houve tarde e manhã, o
segundo [ou terceiro, etc.] dia”. A menção de “tarde” e “manhã” resulta na
associação com a tarde e manhã dos dias israelitas comuns. Além disso, o
fato de haver exatamente seis dias, seguidos do sétimo em que Deus
descansa, sem dúvida lembrariam os leitores israelitas do padrão sabático de
seis dias de trabalho e um de descanso. Deus confirma a impressão de
maneira explícita em Êxodo 20.11: “Porque, em seis dias, fez o SENHOR os
céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por
isso, o SENHOR abençoou o dia de sábado e o santificou”.
O contexto de Gênesis 1 conecta a palavra “dia” (hebraico yom) à experiência
comum dos israelitas, que experimentavam a tarde e a manhã e que
trabalhavam durante o dia e descansam à noite. Em contrapartida, na forma
usual, a teoria do dia-era depende da afirmação de que em Gênesis 1 a
palavra dia literalmente significa “um longo período”.[120] A afirmação é
inválida e a teoria do dia-era (na forma usual) deve, portanto, ser rejeitada.
Todavia, a visão de estrutura e a teoria do dia analógico não podem ser
descartadas com tanta facilidade. As duas abordagens reconhecem o
relacionamento do relato dos dias da criação com a semana de trabalho do
homem. Mas consideram a relação uma analogia e não uma identidade.
9. Os pontos de vista sobre o dia de 24 horas e a criação
madura

Em contraste com a teoria do dia-era, a do dia de 24 horas tem a seu favor o


fato de tomar a palavra dia no sentido que se harmoniza com o contexto do
padrão sabático. De acordo com ela, os dias de Gênesis duraram 24 horas,
como os dias humanos de trabalho e descanso duram 24 horas.
A teoria do dia de 24 horas nos dá uma posição clara a respeito a Gênesis 1.
Mas por si só não nos diz como interagir com a ciência moderna. Da mesma
forma, ela precisa ser suplementada com uma recomendação sobre a ciência.
CONHECIMENTO ADEQUADO PARA A VIDA COMUM
Algumas pessoas podem decidir que não precisam de nenhuma
suplementação. Elas não se preocupam com nenhum dos pontos de vista
apresentados pela ciência moderna. Na prática, lidam com isso
tranquilamente. Creem ter entendido Gênesis 1 da forma certa e concluem
que algo deu errado no tratamento científico predominante do passado
distante. Contudo, não as preocupa o que exatamente deu errado. Elas ainda
podem viver a vida de forma comum.
Em vários aspectos ela é bem razoável. Segundo uma cosmovisão cristã, os
seres humanos são finitos e falíveis. Eles não podem conhecer tudo e, na
verdade, não precisam conhecer tudo. Deus nos assegura na Bíblia que ele
conhece tudo e governa o mundo de uma forma compassiva para com seres
humanos, em especial os que confiam nele (Sl 37.3; 115.9; 125.1). O Senhor
cuida deles de forma que eles possam o servir sem conhecer tudo.
Na verdade, para propósitos comuns não precisamos conhecer detalhes
técnicos sobre a origem do mundo. Precisamos ter o grande cenário sobre
quem Deus é, quem nós somos, o que deu errado com o mundo (pecado),
como remediar o errado (redenção), como servir a Deus e pelo que podemos
esperar. Também, no mundo muito influenciado pela ciência e tecnologia,
precisamos ter alguma ideia de como usá-las. Mas na utilização prática, a
grande parte da ciência moderna e da tecnologia se preocupa com o que
acontece agora, não o que aconteceu no passado distante. Pouco importa se o
universo se originou 6 mil ou 14 bilhões de anos atrás. A maior parte da
ciência e da tecnologia se concentra em como o universo funciona agora. O
importante é o uso do meu carro e telefone.
O texto de Gênesis 1—3 fornece um direcionamento importante,
precisamente ao prover uma estrutura importante; dá-no os meios para captar
o grande cenário. Coloca o Deus todo-poderoso como a origem soberana de
tudo. Provê o início substancial para a doutrina de Deus, da natureza, do
homem, do pecado e do sábado. Dá-nos uma base clara para o padrão
sabático semanal. Mas além da questão do sábado, o que mais ganhamos ao
pensar que Deus criou o mundo no espaço de 144 horas, em lugar de
24 horas, uma hora, 48 horas ou 3 anos — ou alguns bilhões de anos? Para
falar a verdade, não muito. A quantidade exata de tempo não faz diferença
em sentido teológico.[121]
Em termos de teologia básica, várias das principais interpretações de Gênesis
possuem o mesmo resultado. Com a teoria do dia de 24 horas, da criação
madura, da estrutura e do dia analógico, todas afirmam as mesmas verdades
teológicas sobre Deus, natureza, homem e o sábado.
Mas ainda permanecem algumas questões do momento. Como nos dirigimos
a quem absorveu as ideias das origens associadas à ciência dominante? Uma
forte atmosfera cultural alimenta a impressão de que a Bíblia é “primitiva” e
“ultrapassada” e que “a ciência moderna provou que a Bíblia não é
confiável”. Como nos dirigimos aos cristãos que começaram a duvidar e
como nos dirigimos a não cristãos que usam a ciência moderna como
desculpa se afastar do cristianismo ortodoxo que crê na Bíblia?
Questões mais abrangentes acompanham essas questões práticas. Sentimos a
pressão da ciência moderna e da cultura circundante para comprometer nosso
entendimento de Gênesis? Impomos a Gênesis uma interpretação que faz
concessões a qualquer coisa moderna? Então estamos em um declive
escorregadio onde podemos deslizar até comprometer a realidade do
nascimento virginal, a ressurreição de Cristo e sua segunda vinda corporal.
Ou será que uma interpretação muito metafórica de Gênesis 1—3 retira o
papel central que Deus lhe atribuiu ao nos dar uma grande narrativa?
Algumas pessoas sentem a tentação tentação de se comprometerem com o
mundo a fim de obter a aprovação dele e não serem desprezadas e zombadas
por seu “fundamentalismo”. Ou talvez se comprometam porque não
conhecem outras opções interpretativas de Gênesis e da ciência.
Não obstante, as tentações também surgem em outras direções. Outras
pessoas podem se congratular por sua pureza ao rejeitar esses
comprometimentos. A teoria de 24 horas se torna uma medalha de honra ao
mérito, provando-lhes a pureza. E se torna um meio de rejeitar o naturalismo
evolutivo da forma mais óbvia e vigorosa. Estamos cansados de ser
arrastados e espancados pela cultura circundante e aqui está um lugar onde
vamos nos erguer e mostrar como o mundo está completamente errado. A boa
determinação de permanecer fiel a Deus sem importar o custo pode ser
combinada com o orgulho pecaminoso e autocongratulação sobre quão bem
nos saímos!
Ou, para algumas pessoas, escolher o que parece a interpretação “óbvia” é a
maneira mais fácil de escapar. Elas não querem lutar com questões difíceis.
Então vamos exercer um pouco de cautela com nossas motivações. Todos
passamos por tentações, às vezes em áreas inesperadas. Vamos nos lembrar
de que uma teoria não se torna falsa por falhas morais ou espirituais de seus
defensores. Ainda precisamos tratar cada teoria de acordo com seus méritos.
Assim, o que dizer sobre da teoria do dia de 24 horas? Quando interagimos
com relatos científicos das origens, precisamos de algo a mais. O suplemento
padrão é a geologia do dilúvio, que, ao contrário da geologia predominante,
diz que a maioria dos estratos geológicos derivam do dilúvio. Nós a
discutimos com brevidade no capítulo anterior. Entretanto, ela ainda não
responde os argumentos astronômicos. A astronomia predominante diz que a
luz estelar de galáxias distantes leva milhões de anos para chegar até aqui.
Poderíamos dizer apenas que não sabemos como, mas que em algum lugar a
astronomia comete erros graves. Por causa do caráter provisório da ciência,
isso permanece teoricamente possível. A teoria da criação madura parece
bem mais atraente. Os criacionistas da Terra jovem já empregam a ideia de
criação madura em alguns casos. Então por que não aqui?
A VISÃO DE CRIAÇÃO MADURA
Assim, sugiro que a teoria da criação madura oferece um suplemento atrativo
ao dia de 24 horas. Ela retém as principais vantagens da teoria do dia de
24 horas, ao afirmar que Deus criou o universo em de 6 dias de 24 horas.
Suplementa essa visão com uma explicação clara e simples das conclusões da
astronomia moderna. O universo aparenta ter 14 bilhões de anos de idade
porque Deus o criou amadurecido. Além disso, o universo é coerentemente
maduro, no sentido de que estimativas de idade derivadas de métodos
diferentes chegam a resultados semelhantes. Esta coerência faz certo sentido.
Deus criou Adão maduro. Por que não pensar que Adão era coerentemente
maduro? Parece um pouco monstruoso pensar que Adão poderia ter um
coração que, testado, seria de 20 anos de idade e uma mão com rugas que a
fizessem parecer ter cem anos de idade.
Agora a mesma abordagem pode ser aplicada à geologia. Se as rochas
parecem ter milhões de anos de idade segundo a datação rubídio-estrôncio
(Rb-Sr), podemos dizer que aparentam ser maduras. Talvez toda a estrutura
geológica da terra seja coerentemente madura. Quando os fósseis se
encontram em estratos mais antigos, a idade associada é de aparência
coerente. Então os fósseis não representam os restos de animais ou plantas
que estavam realmente vivos milhões de anos atrás. Eles representam uma
estrutura madura coerente que mostra como Deus poderia ter agido, milhões
de anos atrás, se ele tivesse começado então a criar e extinguir variados tipos
de animais por longos períodos. Se cremos na teoria da criação madura,
podemos crer que essa criação é totalmente consistente e coerente. É claro, o
Deus soberano tem o direito de deixar sinais inconsistentes de idade e
juventude. Mas ele também tem o direito de fazer o mundo coerente e em
alguns aspectos a coerência faz mais sentido. Se algumas criaturas serã
produzidas em estado maduro, como Adão, por que não fazer tudo da mesma
forma?
Mas nem todos gostam da ideia de criação madura. As pessoas levam
objeções de diferentes tipos.
Objeção 1: a teoria da criação madura implica que Deus nos enganou
Primeiro, estaria Deus “jogando de forma honesta” conosco ao tornar a
criação a madura? Estaria ele nos enganando ao “falsificar” um universo
artificial, que nos faz pensar que as coisas são antigas? Não temos o direito
ou a sabedoria de questionar a Deus. Deus decide o que quer fazer. Então
precisamos ter cuidado ao tentar impor a Deus nossos padrões sobre como
pensamos que ele deve fazer. Em vez disso, devemos aceitar o que ele realiza
pelos padrões dele.
As pessoas ainda podem encontrar um problema aqui. Elas não querem
contestar o fato de o próprio Deus ser o padrão último do que é certo. Nem
querem contestar o direito dele de fazer o que lhe aprouver. Mas a ideia da
criação madura ameaça produzir uma dúvida em sua mente. Se Deus fizesse
algo desse tipo, que parece enganoso, como confiar nele em outras áreas?
Olhar de perto para o exemplo de Adão resolve essas questões. Suponha que
Deus tenha criado Adão com um corpo com a aparência de cerca de 22 anos
de idade. Qual o problema nisso? Se Eva examinasse o corpo de Adão, ou se
Adão examinasse Eva, Deus os estaria “enganando” sobre a evidência
aparente de idade? Não. Por que pensaríamos assim? No caso de Eva, Deus
aparentemente indicou a Adão, por meio de palavras diretas ou outros meios,
que ele havia criado Eva a partir da costela de Adão. Adão disse: “…chamar-
se-á varoa, porquanto do varão foi tomada” (Gn 2.23b). Adão viu uma
mulher madura diante de si, mas ele não foi induzido ao erro de penar que ela
vivera de fato vinte e poucos anos.
Por que Adão não errou a idade verdadeira de Eva? De alguma forma, ele já
contava com uma doutrina da criação madura. Talvez Deus a tenha explicado
diretamente a ele. Contudo, Adão contava também com evidências indiretas.
Ele já dera nome os animais (Gn 2.19,20). Adão deve ter percebido que suas
experiências com os animais eram parte do começo do mundo. E ele não vira
nenhum animal semelhante a Eva antes do sono profundo. Então Eva, ele
poderia concluir, havia sido recém-criada.
Se Adão contava com a sensação de os animais serem novos, ele teria uma
doutrina da criação madura a respeito deles. Ele viu animais adultos, mas
entendeu que eles haviam acabado de ser criados.
Na verdade, Adão ou qualquer outro seres humano posterior erraria a idade
apenas se presumisse que a idade aparente era a real. Essa suposição não é
necessária, como mostra a resposta inicial de Adão a Eva. A suposição vem à
tona somente se primeiro negarmos a possibilidade da criação madura. A
negação presume mais do que sabemos. Não estávamos por perto quando
Deus criou as plantas e os animais. Assim, como sabemos se ele os criou
maduros ou não? Não sabemos. Na verdade, se a leitura do dia de 24 horas de
Gênesis 1 estiver correta, Deus buscou em Gênesis nos informar que a Terra
é jovem de verdade. Só quem rejeita esse ensino pode ser enganar com a
idade real.
Considere outro exemplo de idade aparente. Já que o jardim do Éden era um
jardim saudável, parece lógico inferir que ele tinha um solo normal e
saudável. O solo, como agora sabemos, contém matéria orgânica em
decomposição de plantas mortas. Bactérias e criaturas que habitam o solo
como minhocas desenvolvem essa matéria e contribuem ao tornar saudável o
solo em que novas plantas crescem. Então o solo no jardim teria a matéria
orgânica e as bactéria necessárias, mesmo que Deus na verdade preparasse o
jardim e o solo durante alguns segundos ou horas, e não nos muitos anos que
levariam para gerar esse solo por processos graduais.[122]
No entanto, surge agora uma objeção com mais nuanças: as estruturas
maduras não são o problema, mas os registros ou traços de acontecimentos
anteriores e aparentes do passado irreal (ideal) são o problema. Esse tipo de
objeção reconhece que Adão e Eva foram criados maduros e que outros itens,
como o solo no jardim do Éden e as árvores do jardim, poderiam ser criadas
maduras. A estrutura madura não é intrinsecamente enganosa. Mas para o
objetor ainda parece enganosa que uma estrutura contenha em si evidências
que aparentam apontar para acontecimentos passados específicos. Por
exemplo, se Adão teve umbigo, apontaria para um acontecimento específico:
quando recém-nascido, seu cordão umbilical teria sido cortado.[123] A
presença do umbigo seria enganosa — um sinal de trânsito apontando para
um desvio que na verdade era só uma rua sem saída. Da mesma forma, a
matéria orgânica em decomposição no solo, como um pedaço de uma folha
de carvalho, seria enganosa porque sem dúvida apontaria para
acontecimentos anteriores relativos ao crescimento da folha em algum lugar e
à queda da folha no chão. As árvores no jardim do Éden já estariam
crescidas. Mas o objetor não aceitaria anéis no tronco que indicassem a
sucessão de estações ou um nó onde um galho caiu, pois isso apontaria com
dolo para acontecimentos irreais do passado irreal.
Em resposta, observaremos em primeiro lugar que a analogia do sinal de
desvio se esquece de uma distinção importante. Um sinal de desvio, como um
tipo de extensão simbólica da linguagem humana, envolve o compromisso
humano de expressar um significado simbólico. Sabemos seu significado.
Mas o anel na árvore ou a folha caída não é parte do sistema simbólico
humano. Possui significado no plano de Deus, mas esse sentido permanece
escondido em Deus até um ser humano discernir o sentido e a verdade sobre
a base do anel da árvore. Sentido e verdade, como realidades repletas de
símbolos, precisam ser inferidas e as inferências sempre dependem de uma
série de pressupostos e de uma estrutura interpretativa. Pelo fato de esses
pressupostos e estruturas serem questionados quando a teoria da criação
madura postula um mundo recém-criado e maduro. A criação madura diz
que, dada a doutrina da criação, não podemos invocar os pressupostos usuais
quando se examianam alegados indícios do passado remoto.
Segundo, levando em consideração o que sabemos dos caminhos de Deus no
governo providencial do mundo presente, não é fácil separar as estruturas
maduras e acontecimentos passados específicos que levaram a elas. No
mundo presente, as estruturas maduras, como as árvores, derivam-se de
estágios anteriores de menor maturidade: o carvalho provém de uma árvore
mais jovem, que procede de um rebento, que surge do primeiro renovo, que
vem de uma bolota. A transição entre os diferentes estágios acontece por
vários acontecimentos específicos: germinação da bolota, crescimento das
raízes, movimento da água e dos nutrientes nas raízes e assim em diante. Em
quase qualquer estrutura madura, inferimos estágios anteriores da estrutura e
acontecimentos específicos anteriores. Maturidade significa maturidade como
a que normalmente surge de uma série de estágios e acontecimentos
anteriores.
Parece cque o objetor, em contrapartida, não pode de fato aceitar a criação
madura; em invés disso se apega apenas à criação de uma estrutura complexa.
Essa estrutura então não teria registro dentro de si de uma história passada.
De acordo com esse modelo, Deus criou Adão ou uma árvore, mas sem a
idade aparente coerente. A idade aparente apontaria para estruturas anteriores
e para acontecimentos anteriores, e o objetor não pode aceitar o último. Daí,
se o solo no jardim do Éden foi recentemente criado, não poderia ser como o
solo normal de hoje, contendo pedaços de matéria orgânica em
decomposição, parte do qual seria identificado com clareza como derivação
de coisas vivas e específicas do passado. Se uma árvore no Éden fosse
cortada, ela não teria anéis no tronco.
Quando Jesus transformou água em vinho em Caná na Galileia (Jo 2.1-11), o
vinho tinha o gosto idêntico ao produto das uvas. Presumivelmente, seria uma
estrutura complexa. Mas poderia conter quaisquer células de uva ou células
de fermento ou fragmentos de células? As células conteriam DNA, e o DNA
capacitaria, com sua assinatura peculiar, um cientista a inferir de qual vinha
procedeu o vinho. Ele então inferiria acontecimentos passados como o
colheita das uvas, sua prensa, a operação do fermento com a maturação e
assim por diante.
O objetor agora parece estar em um dos braços do dilema. Ele pode alegar
que a bebida em Caná da Galileia só tinha o gosto de vinho, mas não tinha a
estrutura complexa interior que incluiria os restos de células de fermento.
Mas isso significaria negar que Deus pode criar sem mediação estruturas
complexas em um momento. (Mas e a criação de Adão?) Assim, suponha que
o vinho possa conter DNA de células de fermento de verdade. Nesse caso,
parece que estruturas maduras (células de fermento) e acontecimentos
passados aparentes podem ser inferidos delas (crescimento e divisão
celulares). Concluo, então, que a distinção estrita entre estruturas complexas
e estruturas maduras com o passado ideal é implausível.
Os cientistas atuais muitas vezes pesquisam o passado usando os
pressupostos de que todas as idades aparentes precisam ser reais. Eles
presumem que Deus (ou o substituto idólatra de Deus) precisa ter agido no
passado exatamente da mesma forma que observam em operação agora.
Todavia, mais uma vez, isso significa presumir mais do que sabem. O
“engano” não ocorre porque Deus enganou pessoas inocentes, mas porque as
pessoas ignoraram Gênesis e enganaram a si mesmas sobre o quanto
conhecem de Deus e o quanto conhecem sobre seus caminhos no passado.
Elas presumiram desde o início que a criação madura é falsa.[124] Um pouco
de humildade ajudaria.
Objeção 2: A criação madura implicaria falsamente que a morte precedeu a
queda
A segunda objeção ao conceito da criação madura diz respeito à presença da
morte antes da queda. A teoria da criação madura na forma consistente diz
que fósseis mais antigos pertencem a um passado projetado. Eles são o efeito
de uma criação com maturidade coerente. Entretato, os fósseis indicam a
ocorrência da morte nesse passado projetado. A presença da morte parece
estar em desarmonia com a pronúncia de que a criação era “muito boa”
(Gn 1.31), e com as afirmações escriturísticas posteriores de que a morte veio
mediante um homem, Adão (Rm 5.12; 1Co 15.21; Gn 3.19).
Uma resposta possível poderia ser que a morte dos animais vista em fósseis
mais antigos não são reais, apenas parte do passado projetado. Segundo a
teoria da criação madura, não havia sofrimento ou morte reais antes do tempo
de Adão e Eva, já que o passado projetado é apenas projetado (ideal), não
real. Mas ainda há um problema em potencial. O passado projetado ainda
parece indicar o tipo de mundo que poderia ter existido se Deus o tivesse
criado de forma genuína em um ponto anterior. E indica o tipo de mundo em
que Adão e Eva foram introduzidos. Parece razoável inferir que, se Adão e
Eva não tivessem caído, eles teriam testemunhado a morte de animais, porque
o tipo de mundo em que viviam era coerente com o próprio passado
projetado. Assim, o potencial para a morte humana ainda produz um
problema. O que dizemos sobre a morte animal? As afirmações bíblicas
posteriores falam sobre a morte humana. Deus criou o homem para ter
comunhão consigo e gozar a vida na presença de Deus para sempre, como a
árvore da vida nos lembra (Gn 2.9; 3.22). Para o homem, a morte quebrou
esse propósito original. A morte humana adentrou como um horror e uma
maldição. A morte espiritual, na forma de separação e alienação de Deus, está
no cerne da presente condição humana. E a morte espiritual arrasta a morte
física também.
Todavia, os animais e as plantas não gozam o mesmo status exaltado que o
homem. Na verdade, mais tarde, Deus concede autoridade explícita ao
homem para matar animais e se alimentar deles, mas não matar um
semelhante, um ser humano (Gn 9.3,6). Algumas pessoas pensam que o
direito de matar animais é apropriado só no mundo caído, mas não sabemos.
Deus criou o homem à sua imagem, em distinção dos animais. Os animais
sem dúvida pertencem a uma categoria inferior. Além disso, a concessão
anterior à queda de que o homem se alimente de plantas (Gn 1.29) acarreta
em alguns casos a morte dos produtos vegetais.
O salmo 104 alude repetidas vezes à criação em Gênesis 1, e inclui detalhes
que envolvem a morte animal:
Os leõezinhos rugem pela presa e buscam de Deus o sustento (Sl 104.21)
Todos estes [todas as criaturas marinhas e provavelmente criaturas terrestres também]
esperam de ti que lhes dês de comer, a tempo (Sl 104.27, TB) [“de comer” aqui
precisa incluir peixes grandes comendo peixes pequenos; este versículo descreve o
controle providencial de Deus sobre a ordem presente, não um passado vegetariano].
Se ocultas o rosto, eles [animais] se perturbam; se lhes cortas a respiração, morreme
voltam ao seu pó (Sl 104.29).
Os versículos do salmo 104 não são decisivos, já que o escritor humano
descreve a provisão providencial de Deus para os animais no mundo após a
queda. Pode-se ainda imaginar que a situação diferisse radicalmente antes da
queda. Mas o salmo 104 tece também pensamentos sobre a criação e
providência e não indica uma descontinuidade radical entre a ordem criada e
a providência contínua (exceto na questão do pecado humano, v. 35). O
salmista mostra sua avaliação positiva da providência de Deus no
versículo 33: “Cantarei ao SENHOR enquanto eu viver; cantarei louvores ao
meu Deus durante a minha vida”. Ele louva a Deus por suprir leões com suas
presas. O salmo não sugere nem por um momento que os hábitos alimentares
carnívoros dos leões sejam algo “ruim”.[125]
Concluo que não temos base firme para dizer que a morte animal teve início
após a queda do homem. Mais uma vez, precisamos nos precaver de ditar a
Deus o tipo de mundo que ele deveria criar. Ele precisava ser “muito bom”
aos olhos dele; isso não equivale a dizer que necessita corresponder ao que
alguns de nós podem considerar ideal.[126]
Objeção 3: a teoria da criação madura torna ilegítima a pesquisa científica
Davis A. Young levanta a terceira objeção, a saber: a criação madura tornaria
ilegítima a pesquisa científica do passado distante. Segundo a teoria da
criação madura, datas projetas antes da criação são só aparentes; elas são
“tempo ideal”, pois o tempo nunca existiu. Young afirma ser ilegítimo
navegar cientificamente no tempo ideal.[127] Ele aponta que na criação madura
“as leis naturais teriam a essência diferente na semana da criação da
encontrada agora”.[128]
Primeiro, seria melhor que Young tivesse dito que as palavras de Deus
governaram o mundo de maneira diferente na semana da criação. Essa
formulação nos ajuda a manter a visão do governo de Deus do mundo. Deus
de fato agiu de modo diferente em pontos da semana da criação, como
demonstra a criação de Eva a partir da costela de Adão. A palavra de Deus
governa as irregularidades que agora vemos e as palavras extraordinárias da
criação.
Em um nível fundamental, Young quer que tudo seja da mesma forma na
semana da criação e mais tarde. Essa mesmice ou continuidade garantiria que
a pesquisa científica no período passado poderia proceder segundo os
mesmos princípios científicos usados para avaliar o governo providencial de
Deus agora.
É possível sentir simpatia por esse desejo. No entanto, a criação de Eva o
frustra. Na verdade, qualquer ato sobrenatural de Deus, considerado
inexplicável quando se apela à sua forma comum de governar, é
decepcionante. Em nenhum lugar da Escritura Deus promete ter trabalhado
no passado de forma a acomodar perfeitamente os desejos dos cientistas! A
ressurreição de Cristo e a promessa de sua segunda vinda frustram os desejos
de alguns cientistas de que tudo sempre seja “o mesmo”. Estão em risco aqui
concepções científicas, conceitos sobre milagres e que Deus pode ou não
pode fazer a fim de permitir a formação da ciência. Existe aqui um grande
tópico, ao qual dedicaremos sa atenção mais adiante. Por enquanto, basta
dizer que Young não pode validar os pressupostos de que “leis naturais”
tenham sido sempre as mesmas na semana da criação.[129] Ele não pode,
portanto, prover o fundamento sólido para a pesquisa científica no passado
dessa forma.
Ironicamente, a própria teoria de criação madura oferece o fundamento que
Young não pode prover. S Suponha que, no final dos seis dias da criação, o
mundo esteja coerentemente maduro. Por não podermos descobrir os detalhes
de como Deus agiu nos seis dias, e por sabemos que sua ação diferiu de como
ele age agora, não podemos reconstruir o curso real e detalhado dos
acontecimentos (além do resumo apresentado por Gn1). Não obstante, a
limitação não diz respeito ao cientista. O cientista estuda o produto completo.
Pelo fato de o produto estar coerentemente maduro, o cientista pode estudar a
coerência com alegria e confiança. Adão poderia inferir o “tempo ideal” da
idade de Eva coerentemente ao examinar suas unhas e pele. Todas as fontes
comporiam a figura coerente. Da mesma forma, o cientista pode encontrar
uma figura astronômica coerente em que o universo tem 14 bilhões de ano no
tempo ideal.
Considere uma ilustração posterior. Davis Young nos conta que ele estudou
“rochas de um bilhão de anos do norte de Nova Jersey [...] nos últimos anos”.
[130]
Ele reclama que, segundo a criação madura, “estou perdendo meu tempo
ao falar sobre magma e metamorfismo, pois essas rochas foram na verdade
criadas em um instante”.[131] Mas ele não está perdendo tempo. Todo seu
esforço faz muito sentido como pesquisa dos processos que ele observa no
tempo ideal. A coerência dos processos no tempo ideal é também um aspecto
da demonstração da sabedoria de Deus e Young faz uma contribuição
genuína ao estudar essa sabedoria.
Objeção 4: a teoria da criação madura mina o dilúvio.
A quarta e última objeção alega que a aplicação da teoria da criação madura à
geologia mina o ensino bíblico sobre o dilúvio. Lembre-se de que a geologia
e a astronomia predominantes apresentam argumentos em prol de uma idade
muito avançada. A geologia afirma ter a terra 4,5 bilhões de anos para a terra,
e a astronomia alega ter o universo todo cerca de 14 bilhões de anos. Na
astronomia, a teoria da criação madura funciona bem, porque explica os
resultados astronômicos coerentes. Pode a visão de criação madura também
funcionar para explicar as idades aparentemente grandes das rochas?
A explicação mais direta é dizer que essas idades geológicas, como as idades
astronômicas, são todas idades aparentes, isto é, idades do passado projetado
que nunca existiu de fato. Essa explicação funciona para explicar com
coerência as descobertas da geologia predominante. Mas ela explica o
dilúvio? Se um dilúvio tivesse coberto o globo inteiro presumivelmente
deixaria muitos depósitos notáveis nas rochas e esses depósitos ocorreriam
em tempo real, no tempo de Noé, não só no tempo ideal do passado apenas
“projetado”. Então onde estão esses depósitos, se o que os geólogos
observam se encontra, na maior parte, “no tempo ideal”?
Quando tentamos relacionar o dilúvio à ciência, confrontamos as duas
principais questões interpretaivas, a saber: a extensão do dilúvio e seu
funcionamento. Quase todos os criacionistas da Terra jovem pensam que o
dilúvio bíblico cobriu toda a terra (“dilúvio universal”). Já os criacionistas de
Terra antiga normalmente consideram ter coberto o dilúvio uma área mais
limitada do Oriente Médio Antigo (“dilúvio local”). Também confrontamos
questões sobre o funcionamento do dilúvio. Deus agiu de modo espetacular e
miraculoso, bem fora do comum? Ou ele usou processos comuns, que se
uniram exatamente no momento certo e da forma certa para produzir o
dilúvio?
Dependendo de nossas respostas a essas perguntas, podemos decidir ou não
que se pode esperar que o dilúvio tenha deixado resultados concretos e
específicos nos estratos geológicos de hoje.
Tomemos a segunda questão primeiro, a questão do funcionamento do
dilúvio. Deus agiu de forma altamente miraculosa durante todo o dilúvio, ou
talvez só no começo?
O que conta como miraculoso? Como vimos no Capítulo 1, a palavra de Deus
governa tudo que acontece: o comum e o extraordinário. Depois do dilúvio,
Deus prometeu a Noé que não deixaria de haver sementeira e ceifa (Gn 8.22).
As estações são comuns, repetidas, regulares. Deus também prometeu a
ressurreição de Cristo, algo incomum e irrepetível (Lc 9.22). Sua palavra
controla os dois tipos de acontecimentos. O milagre não é a violação da
chamada “lei natural” que existe independentemente de Deus. Em vez disso,
o milagre se conforma com exatidão à “lei” real, a lei disposta pela palavra de
Deus. Então como se diferencia o milagre da providência comum? A
diferença é em parte de grau, na medida em que os milagres são
extraordinários e os outros acontecimentos são comuns (“providência”). Em
muitos casos os milagres também desempenham um papel importante ao
cumprir a redenção e confirmar a autoridade dos mensageiros especiais de
Deus: profetas e apóstolos.
Os milagres são demonstrações verdadeiramente extraordinárias do poder
divino. Deus pode usar às vezes alguns meios bem comuns para os executar.
Na travessia do mar Vermelho: “Então, Moisés estendeu a mão sobre o mar,
e o SENHOR, por um forte vento oriental que soprou toda aquela noite, fez
retirar-se o mar, que se tornou terra seca, e as águas foram divididas”
(Êx 14.21) . Deus cumpriu sua profecia sobre a morte de Acabe de forma
chocante quando alguém “entesou o arco, e atirando ao acaso” acertou a
flecha bem por entre as juntas da armadura de Acabe (1Rs 22.34). Deus pode
escolher agir sem meios humanamente discerníveis, se assim desejar. Mas a
ação lhe pertence quando ele utiliza o forte vento oriental quanto a pessoa
que disparou a esmo.
O que dizer sobre o dilúvio? É claramente um grande acontecimento redentor
e de juízo. Noé e sua família foram salvos, enquanto que o mundo ímpio
circundante foi condenado à morte. A Escritura posterior indica que Noé e o
dilúvio são um tipo ou uma figura preliminar do juízo final: “Assim como foi
nos dias de Noé, será também nos dias do Filho do Homem” (Lc 17.26; v.
2Pe 3.6). Essa linguagem implica que o dilúvio foi um “milagre”, no sentido
amplo do termo. No entanto, Deus o realizou por meios comuns ou de
maneira completamente extraordinária e inefável que nunca podemos
reconstruir? Não sabemos. Gênesis não diz. Depois do dilúvio, a promessa
dada a Noé sobre a semeadura e a ceifa garante uma regularidade geral:
“Enquanto permanecer a terra” (Gn 8.22). A regularidade garantida oferece a
base para a ciência, que estuda as regularidades. Mas a promessa em
Gênesis 8.22 cobre o período do dilúvio em diante. Nada se diz sobre o
próprio dilúvio, nem sobre o tempo antes do dilúvio.
Se o funcionamento do dilúvio é de todo incompreensível, nenhuma teoria
científica pode esperar capturá-lo. O dilúvio resta para sempre além do
alcance da ciência. O que, então, encontrariam os cientistas quando
examinassem as rochas deixadas para trás? Poderiam encontrar o puro caos,
tal que ninguém poderia entendê-lo. Tanto geólogos do dilúvio quanto
geólogos de tendência predominante pensam ter encontrado ordem e uma
explicação para boa parte. Evidentemente, Deus não escolheu agir de modo a
deixar para trás o caos completo.
Segundo, pode-se achar que o dilúvio deixou para trás uma criação madura,
da mesma forma que a criação madura no fim dos seis dias de criação. Esta
alternativa é menos especulativa que se pode pensar, pois a Bíblia fornece
indicações de que o dilúvio representa um padrão de destruição e recriação.
Por assim dizer, o dilúvio devolve ao mundo a situação vazia das águas de
Gênesis 1.2. O Senhor então procede ao “recriar” o mundo ordenado. Para o
novo mundo, Deus repete em Gênesis 9.1-4, 7 alguns mandamentos da
primeira criação. Pedro pega o tema no contexto do Novo Testamento,
quando descreve o “antigo” mundo, antes do dilúvio:
... de longo tempo, houve céus bem como terra, a qual surgiu da água e através da
água pela palavra de Deus, pela qual veio a perecer o mundo daquele tempo, afogado
em água. Ora, os céus que agora existem e a terra, pela mesma palavra, têm sido
entesourados para fogo (2Pe 3.5-7)
O mundo primeiro, pré-diluviano, “surgiu da água” e então retornou à água
(“afogado em água”), e esse processo forma um paralelo com os céus e terra
presentes, embora eles um dia perecerão com fogo.
Se, então, a situação depois do dilúvio é de um “novo mundo”, ele pode ser
um mundo maduro e ostentar de novo a aparência de mais idade. O mesmo
raciocínio que apoiou a criação madura apoiará a possiblidade do “novo
mundo” maduro depois do dilúvio.
Na prática, os cristãos não concordam sobre como lidar com a evidência das
rochas. Eles se encontram, na maioria, em dois campos. Os geólogos do
dilúvio pensam que grande parte das formações rochosas existentes são
derivadas do dilúvio, enquanto que os geólogos Terra velha pensam que as
formações rochosas possuem milhões de anos de idade. Ambos presumem
que o dilúvio tenha resultado de meios comuns. Eu afirmo que o último
pressuposto não precisa ser válido.
Entretanto, ele pode ser válido, ou parcialmente válido. Deus pode usar meios
comuns, mesmo quando obtém resultados redentores bem extraordinários.
Precisamos ir e olhar.
dilúvio universal ou local?
Então passamos para a segunda questão sobre o dilúvio. Foi ele universal
(cobrindo toda a face do globo) ou local (cobrindo uma área limitada no
Oriente Médio Antigo)? Se foi universal, e se Deus usou meios comuns,
então essa catástrofe imensa deveria deixar muitas marcas de sua passagem.
Sugeriria que os geólogos do dilúvio estão no caminho certo, mesmo que no
presente sintam dificuldades de explicar algumas pontos.
A linguagem de Gênesis 6—9 repetidas vezes usa a abrangente palavra
todo(a):
... todo ser vivente havia corrompido o seu caminho na terra. (6.12)
Porque estou para derramar águas em dilúvio sobre a terra para consumir toda carne
em que há fôlego de vida debaixo dos céus; tudo o que há na terra perecerá. (6.17)
“De tudo o que vive, de toda carne...” (6.19)
E de modo ainda mais forte:
E as águas prevaleceram excessivamente sobre a terra; e todos os altos montes que
havia debaixo de todo o céu foram cobertos. (7.19, ARC).
Pereceu toda carne que se movia sobre a terra... (7.21).
Muitos leitores atuais consideram a linguagem como afirmação
inquestionável do dilúvio universal. Pode-se perceber o motivo. Todavia,
retrocedamos um passo e consideremos as diferenças entre leitores atuais e os
antigos. Nós, leitores atuais, já lemos a passagem com alguma bagagem.
Podemos ter visto imagens da terra tiradas por satélites. Podemos ter visto
modelos em que a terra é uma esfera com continentes desenhados nela. Para
nós, a palavra terra significa “o globo”, a bola redonda que repousa no
espaço.
Essa imagem na verdade produz tensão com Gênesis 6—8. Em 7.19: “Todos
os altos montes que havia debaixo de todo o céu foram cobertos”, e 6.17
menciona: “fôlego de vida debaixo dos céus”. Se “céus” significa o espaço
sideral ou mesmo a atmosfera da terra, seria estranho dizer que a bola sólida
da terra está “debaixo” do espaço sideral. Ao contrário, ele a cerca por todos
os lados.
Assim, o que Gênesis 7.19 quer dizer? Precisamos aplicar o mesmo
raciocínio utilizado em Gênesis 1. Esse texto, como João Calvino apontou,
dirige-se à pessoa comum, ao “inculto”. Não se propõe a ensinar astronomia
ao especialista, mas ensina a teologia da criação à pessoa comum. Do mesmo
modo, Gênesis 6—9 se dirige à pessoa comum — em particular, à pessoa
comum no antigo Oriente Médio. A pessoa comum não pensa em termos “do
globo”. Esse é um conceito alheio.[132] A “terra”, ’erets (em hebraico),
significa a terra sob os pés. Na verdade, em alguns contextos designa uma
extensão limitada de terra: “este é o que rodeia toda a terra [’erets] de Havilá,
onde há ouro” (Gn 2.11, ARC); “toda a terra [’erets] de Cuxe” (Gn 2.13,
ARC); “Nesse tempo os cananeus habitavam essa terra [’erets]” (i.e., na terra
da Palestina que Abraão estava atravessando, Gn 12.6). Quando Gênesis fala
da terra em contraste com o céu, a “terra” se estende mais que em qualquer
“território”. Mas o “céu” não deve ser feito equivalente ao espaço sideral em
que o globo está inserido. Ao contrário, a linguagem ainda é mais comum,
completamente “fenomênica”. “Céu” é o que você vê em cima da cabeça, o
céu físico (e algumas vezes inclui o trono invisível de Deus, totalmente
inacessível à viagem humana). Os montes estão de fato debaixo do céu, isto
é, abaixo do céu físico. “Tudo na terra” significa tudo que existe na superfície
da terra. E o contexto qualifica ainda mais, porque se preocupa com animais,
não com plantas, que se recuperam do dilúvio sem a ajuda de Noé (Gn 8.11;
9.3b). “Tudo” pode não ser literalmente tudo, mas “tudo pertinente à
discussão”. Em suma, toda a descrição bíblica do dilúvio se dirige à pessoa
comum, a fim de mostrar a essa pessoa o que ela poderia ver e experimentar
caso estivesse ali nos dias de Noé.
Deus, antes de tudo, se dirigiu ao povo que vivia no Oriente Médio Antigo.
Mas ele também formulou a Bíblia para se dirigir a pessoas em todas as
culturas mundiais, por ter planejado que o evangelho se espalharia por todas
as nações e que as pessoas dessas nações se tornariam discípulas (Mt 28.18-
20). Pessoas de todas essas culturas precisam ouvir Gênesis. É apenas um
preconceito moderno pensar que Deus precisaria adotar o ponto de vista
técnico da ciência moderna. Não, ele pode falar de modo comum. Esse modo
de falar não só é completamente verdadeiro, mas é mais adequado para falar a
todas as pessoas, já que não demanda que elas primeiro aprendam a ciência
moderna.
O solo está sob nossos pés e o céu, acima. Em meio a essa situação, vem o
dilúvio. A água cobre a “terra” — tanta terra quanto se podia ver. Gênesis
não falando sobre “o globo”. Ele se refere àquela terra. Até onde e terra se
estende e até onde foram as águas? Longe o suficiente para cobrir “tudo”, isto
é, tudo que estava no escopo da experiência da pessoa comum. A Bíblia não
diz de que forma as águas cobriram todo o globo ou somente uma área
extensa do Oriente Médio — suficiente para varrer todos os seres humanos,
que no tempo de Noé ainda não haviam se espalhado por toda a terra
(Gn 11.8,9).
Mas o que dizer de cobrir “todos os altos montes” (Gn 7.19)? Isso incluiria o
monte Ararate (8.4), que na geografia de hoje é bem alto. As águas cobriram
os montes por um período considerável. E a água “se nivela”, de forma que
não permaneceria junta em um único lugar, ela se espalharia o máximo
possível. Pode-se inferir que a água precisaria cobrir o globo, mesmo que
Gênesis não o diga diretamente.
Aqui são utilizados dois pressupostos. Primeiro, presume-se o funcionamento
dos processos mecânicos comuns no dilúvio, de forma que a água poderia
continuar, segundo seu comportamento comum, “nivelando-se” e se
espalhando de maneira cada vez mais igual. Supõe-se que a água retenha as
mesmas propriedades físicas exibidas hoje. Essa é uma suposição natural,
mas se Deus agiu de modo sobrenatural, não podemos dizer com certeza até
que ponto ele poderia suspender as regularidades naturais. Segundo, crê-se
que a “água” em questão está toda em forma líquida. Mas como se sabe
disso? Não é possível que, nas montanhas, pudéssemos encontrar neve, geada
e gelo? A água poderia cobrir a área e destruir a vida dos animais, quer
tomasse forma líquida quer sólida. O escoamento posterior das águas
(Gn 8.3) pode incluir o derretimento.
Gênesis 6—9 nos dá uma imagem em larga escala do dilúvio e seus efeitos.
Mas mantém o ponto principal, concentrado em Noé. Os seres humanos e os
animais fora da arca morreram. Não fornece uma informação clara sobre a
forma exata que as águas tomaram no topo das montanhas.
Concluo, portanto, que Gênesis 6—9 por si só não indica exatamente quão
extenso foi o dilúvio. Ele cobriu uma área extensa — o “mundo” comum das
pessoas comuns do Oriente Médio Antigo. Possivelmente cobriu o globo
todo, mas Gênesis não faz dessa possibilidade uma certeza. Como
consequência, precisamos olhar para outras partes do mundo, alerta para mais
informações que podem aparecer ali.
Gênesis 6—9 assim deixa aberta a questão de os geólogos predominantes ou
do dilúvio estarem certos. Que cada um desenvolva sua teoria, tentando
entender mais e mais e veremos quem se sai melhor em longo prazo.[133] Para
a maioria das pessoas que conhecem os detalhes técnicos, parece que na
atualidade os geólogos predominantes estão se dando melhor na explicação
técnica, em parte porque a área chave de datação radiométrica os apoia
(Capítulo 7).
Os próprios geólogos do dilúvio poderiam estar dispostos a admitir isso, não
fosse o fato de que considerarem a necessidade de manter algum tipo de
geologia diluviana a fim de sustentar a verdade da Bíblia. Por conta de sua
interpretação bíbliva e do pressuposto de que Deus usou meios comuns para
originar o dilúvio, penso que eles estão certos em manter sua abordagem.
Porém, quando uma abordagem enfrenta dificuldades, pode ser mais sábio
dar um passo para trás e reexaminar os pressupostos iniciais. Os pressupostos
iniciais — a suposição de que a Bíblia inequivocamente ensina o dilúvio de
extensão global e a suposição de que Deus usou meios comuns — podem ser
suspeitos.
Na verdade, adotamos esses pressupostos com tanta facilidade porque
absorvemos demais da cosmovisão moderna. Vivendo de acorco com esse
ponto de vista, consideramos natural que todos imaginem a “terra” como o
globo terrestre e consideramos as regularidades científicas atuais
absolutamente permanentes por isso, elas seriam aplicadas ao dilúvio.
Quando retornamos à Bíblia e deixamos que ela nos liberte de algumas
limitações da cosmovisão moderna, reconheceremos que as duas suposições
são só isso — suposições. Elas são naturais e plausíveis, mas não
necessariamente verdadeiras.
10. A teoria do dia analógico e da estrutura

Agora precisamos considerar a teoria do dia analógico.[134] Ela diz que Deus
criou o mundo em seis dias de trabalho, seguidos de descanso, mas que esses
dias de obra divina oferecem uma analogia aos dias de trabalho humano, em
lugar de uma identidade.
Claramente temos uma analogia entre o trabalho divino e o trabalho humano,
como o padrão de seis dias indica e como o mandamento do sábado em
Êxodo 20.8-11 confirma. O trabalho divino se dá em seis dias e cada dia tem
associado consigo o refrão “e houve tarde e manhã, o terceiro [ou segundo,
ou quarto, etc.] dia”. Claro que a teoria dos dias de 24 horas diria: Por que
não deveríamos pensar nessa analogia como essencialmente uma identidade,
pelo menos no que diz respeito à extensão dos dias? Não é essa a
interpretação “óbvia”?
Primeiro, mesmo que algumas pessoas pensem que a extensão de 24 horas é
“óbvia”, o texto não afirma diretamente quão longos os dias foram em termos
de mensuração humana comum. Ele usa a palavra dia (hebraico yom), e inclui
as palavras associadas “tarde” e “manhã”. Isso tudo contribui para apontar a
analogia entre o trabalho de Deus e o padrão sabático humano, mas não prova
que a analogia é uma identidade
O SÉTIMO DIA EM GÊNESIS 2.2, 3
Em seguida, o texto nos apresenta uma informação que realmente introduz
problemas para a interpretação de dias de 24 horas. Gênesis 1.1—2.3 não
inclui apenas seis dias, mas sete. O sétimo dia não inclui mais trabalhos
realizados por Deus, mas é descrito como o dia em que Deus “descansou [...]
de toda sua obra, que tinha feito” (2.2). Desse modo Deus “abençoou o dia
sétimo e o santificou” (2.3).
Que tipo de descanso Gênesis 2.2 descreve? Isso significa que Deus cessou
de governar o universo? De jeito nenhum. A segunda pessoa da Trindade
“sustenta todas as coisas pela palavra do seu poder” (Hb 1.3), a descrição do
governo contínuo do mundo, dia a dia, mesmo minuto a minuto. Deus não é
uma divindade do deísmo que cria e então se afasta. Ele continua a governar
o universo. Então o que cessa? Ele cessa os atos da criação. Gênesis 2.3 diz
isso, ao notar que Deus “descansou de toda a sua obra, que Deus criara e
fizera”. Não diz, “toda sua obra”, com universalidade perfeita, mas sua obra
na criação.
Deus fez o homem e jamais precisou fazê-lo pela segunda vez. Deus de fato
traz à existência todo ser humano que vem ao mundo (Sl 139.13-16). Mas ele
o faz providencialmente, usando os meios do pai e da mãe e da gestação no
ventre.[135] Em contrapartida, a criação originária de Adão e Eva foi única.
Ele não apenas trouxe à existência um homem e uma mulher, mas também a
raça humana. Ele estabeleceu de uma vez por todas o fundamento dos
desenvolvimentos subsequentes na raça humana. No quarto dia, ele criou o
sol e a lua, e agora eles estão permanentemente aí e não precisam ser
recriados. Criou diferentes tipos de animais. Estando aí os diferentes tipos,
Deus não precisa continuar a criar novos tipos todo dia ou algo de gênero.[136]
Portanto, o “descanso” de Gênesis 2.2 quer dizer “descanso de atos de
criação”. A criação está acabada (2.1), Deus não precisa recomeçar mais atos
de criação. Já chegamos ao ponto terminal permanente. Como consequência,
o descanso continua para sempre. Assim, como entendemos as passagens
indicativas de que Deus ainda “trabalha”? Jesus, ao justificar sua obra de cura
no dia de sábado, declarou: “Meu Pai trabalha até agora e eu trabalho
também” (Jo 5.17). Sua afirmação não conflita com Gênesis 2.1-3. Ele se
refere em sentido primário aos atos de redenção, e não aos atos de criação e
pode, talvez, incluir também os atos de providência — mas esses claramente
não pertencem ao mesmo nível dos atos da criação originária.
Em sentido teológico, o plano de Deus inclui não só redenção e providência,
mas a vinda de “novos céus e nova terra” (Ap 21.1; v. Is 65.17). A redenção
em Cristo inclui a “nova criação” (2Co 5.17; Gl 6.15; v. Rm 8.19-23).
Contudo, as reflexões posteriores na Bíblia não negam a conclusão da
primeira criação em Gênesis 1. É um erro importá-las para Gênesis 2.1-3,
porque falam em um plano diferente da primeira criação. “... foram acabados
os céus e a terra”, segundo Gênesis 2.1 e nesse contexto o “descanso” nos
versículos 2 e 3 é o descanso daí em diante.[137]
Qual a duração do sétimo dia? Por alguns anos eu pensei que o sétimo dia
poderia ter só 24 horas. O descanso divino continua, mas o sétimo dia é
apenas o primeiro dia em que Deus começa a descansar.[138] Agora creio que
essa interpretação não funciona bem em sentido teológico. O dia não se
encontra ali apenas com uma associação livre com o descanso divino. O dia
possui bênção e santidade especiais “porque nele descansou de toda a sua
obra” (2.3). O descanso divino é o padrão do descanso humano (Êx 20.8-11).
Conceber a duração do descanso divino por muitos “dias”, sendo o sábado
apenas o primeiro, quebra a analogia principal necessária a Êxodo 20.8-11,
não só para validar o único dia do descanso humano, mas para validar a
santidade do dia. Antes de tudo, a santidade pertence ao descanso divino, não
à santidade do dia. A santidade se estende até o dia por ser o dia do descanso
de Deus. O dia precisa da conexão íntima com o descanso e nesse dia o
homem descansa porque Deus descansou nele. Assim, concluo: pelo fato de o
descanso divino continuar para sempre, o dia do descanso de Deus também
permanece para sempre.[139] O sétimo dia, a fim de merecer sua consagração e
santidade, deve se conectar intimamente ao descanso de Deus.
Deixe-me explicar de outra forma. Suponha que Gênesis dissesse
explicitamente que Deus trabalhou em seis dias de 24 horas e, na sequência,
deixou de criar durante um dia de 24 horas; depois disso, reiniciou com mais
atos de criação. Com certeza faria sentido consagrar um único dia especial
para o homem imitar a Deus ao descansar durante um dia. Mas agora
suponha que, ao invés disso, Gênesis dissesse que Deus trabalhou seis dias
de 24 horas, então parou de criar por dois meses e então recomeçou com mais
atos criativos. Faria sentido, então, para Deus consagrar só o primeiro dia do
período total em que ele descansou, devendo o homem celebrar um dia a cada
sete? Por que um dia em lugar de um mês ou dois meses? E se não dois
meses, por que não dois dias, uma semana ou três horas? A seleção de um dia
de 24 horas parece carecer de motivo.
Precisamos reconhecer que Deus pode fazer o que ele quiser, e devemos
obedecer seus mandamentos mesmo que não entendamos sua fundamentação.
Entretanto, Gênesis 2.1-3 e Êxodo 20.8-11 não apresentam apenas o
mandamento sabático para o descanso; estão apresentam a fundamentação
desse mandamento. O sábado está repleto de sentido para israelitas não só
porque Deus lhes ordena o descanso, mas por lhes mostrar que o descanso
imita o descanso dele. Eles o estão imitando, o que ocorre em parte por terem
sido criados à imagem dele (v. tb. Êx 31.17). Desassociar a ideia de “dia” da
ideia de descanso rompe com esse significado e torna o sábado israelita
parecido com algo imposto artificialmente. Isso se contrapõe ao teor de
Gênesis 2.1-3 e Êxodo 20.8-11.
Essas consequências inaceitáveis se seguem apenas se presumirmos a
necessidade de correspondência exata em extensão mensurável entre os dias
da atividade divina e a nossa. Se os dois forem somente analógicos, os
problemas desaparecem. A analogia providencia uma base firme do sábado
israelita, como fornece a base dos anos sabáticos e do jubileu em Levítico 25.
[140]

Deus descansa para sempre da obra inicial da criação, pois ela está “acabada”
(2.1). O homem descansa apenas de forma preliminar no sétimo dia, porque
sua obra ainda não está acabada. Ele recomeçará seu trabalho no primeiro dia
da próxima semana. Contudo, todo o seu trabalho se dirige para o tempo do
descanso absoluto e final, do qual Hebreus fala: “Portanto, resta um repouso
para o povo de Deus. Porque aquele que entrou no descanso de Deus,
também ele mesmo descansou de suas obras, como Deus das suas.
Esforcemo-nos, pois, por entrar naquele descanso” (Hb 4.9-11).
O texto de Hebreus menciona o descanso final: entraremos nele na
consumação — os novos céus e a nova terra (Ap 21.1—22.5). O descanso
sabático final continua para sempre. As pequenas celebrações dos sábados
humanos apontam para esse grande “dia”. O descanso humano no dia de
24 horas não faz recordar apenas o descanso divino de criar, mas também
aponta para frente em direção ao “dia” final de descanso. Essa referência
prospectiva claramente conduz a uma analogia em lugar de à identidade pura.
O descanso agora é preliminar e parcial (ainda realizamos obras de
necessidade e de misericórdia). E ele termina depois de 24 horas. O sábado
consumado envolve o descanso final, completo e contínuo — não na forma
de inatividade, mas no descanso de trabalhos particulares direcionados à
fecundidade e domínio — a que os seres humanos se dedicam na vida.
Podemos dizer que o descanso sabático humano de 24 horas antecipa o
descanso final dos seres humanos, bem como imita o descanso final de Deus,
no qual já entramos (Hb 4.10). Essa antecipação envolve a analogia à
realidade para que aponta, em vez da pura identidade de extensão.
Desse modo, o sétimo dia de Deus em Gênesis 2.2, 3 não tem fim. Ele não
conta com 24 horas. Sendo assim, é analógico e não idêntico ao dia humano
de 24 horas. Ora, se o sétimo dia é analógico e não idêntico, toda a estrutura é
inegavelmente analógica. Todo o padrão dos seis dias de trabalho de Deus e o
descanso no sétimo formam um padrão analógico ao trabalho e descanso
humano.
TARDE E MANHÃ
Mesmo o detalhe sobre tarde e manhã encontra uma interpretação atraente da
teoria do dia analógico. C. John Collins aponta para Salmos 104.23: “Sai o
homem para o seu trabalho e para o seu encargo até à tarde”.[141] É dito “até à
tarde”. Os israelitas trabalham durante a luz do dia e, no entardecer,
mudanças acontecem. Surgem animais noturnos: “Dispões as trevas, e vem a
noite, na qual vagueiam os animais da selva” (v. 20). O homem não mais
trabalha, mas o que ele faz? Ele vem para casa, descansa e dorme. Na
verdade, o descanso acontece não só no sétimo dia, mas também em pedaços
menores, a saber, a cada noite dos seis dias de trabalho.
Acontece que todo esse padrão de trabalho e descanso entre os seres humanos
reflete o padrão originário de Deus. Deus trabalhou para criar coisas distintas
em cada um dos seis dias. Ele descansou no sétimo dia. Mas a linguagem de
tarde e manhã também indica uma pausa entre o trabalho de cada dia. Gênesis
retrata o trabalho divino durante um período durante cada dia, mas no final
do período de trabalho, “houve tarde”, marcando o fim do trabalho, “e houve
manhã”, marcando o fim da pausa no trabalho. O período humano de
descanso durante a noite reflete as pausas entre os dias de trabalho em
Gênesis 1.
A versão King James (KJV) traduz essas expressões de forma diferente: “E a
tarde e a manhã foram o primeiro dia” (Gn 1.5; do mesmo modo para os dias
subsequentes). Essa composição de palavras faz parecer como se a tarde e
manhã juntas compõem ou definem o primeiro dia (tanto quando poderíamos
dizer que o dia e a noite formam um dia). Nessa interpretação, a sentença da
KJV no final do versículo 5 define e resume o período em que os
acontecimentos dos versículos antecedentes aconteceram. Mas a KJV
traduziu mal o hebraico, que literalmente diz: “e foi tarde e foi manhã, dia
um”. O versículo contêm duas ocorrências, em lugar de uma, do verbo foi
(hebraico hayah). A segunda ocorrência, separando “tarde” de “manhã” faz
impossível tomar os dois termos juntos e os fazer equivalentes a “o primeiro
dia”. O erro na KJV foi corrigido por traduções mais recentes. O versículo
deveria dizer “e houve tarde e houve manhã, o primeiro dia”; ou, como Derek
Kidner diz: “... traduza como: ‘veio tarde e veio manhã’”.[142] Cada um dos
seis dias começa com o trabalho de Deus, não com “tarde”. A “tarde” vem
depois do trabalho. O hebraico introduzindo a expressão “e houve tarde”
normalmente indica sucessão narrativa, e é dessa forma nesse caso.
Muitas pessoas pensam que a “tarde” é mencionada porque os judeus
pensavam que o dia de 24 horas teria início em uma tarde e findaria na tarde
seguinte, diferente da contagem atual, que conta um dia da meia-noite até a
meia-noite seguinte. Entretanto, há dificuldades nessa sugestão. Na verdade,
a informação sobre o pensamento judaico é complexa. Os judeus podiam na
manhã ou na tarde como começo, dependendo da situação.[143] Além disso, a
interpretação parece tornar a expressão “houve tarde e houve manhã” quase
supérflua. A resposta do leitor pode ser: “É claro que houve tarde e que
houve manhã, porque isso é o que forma um dia. Por que você está nos
dizendo o óbvio?”. Já essa expressão culminante torna a adição importante à
descrição se, de fato, significa o descanso divino temporário entre os dias de
trabalho. A figura de pausa dá sentido e validade ao descanso humano
temporário entre os dias de trabalho.[144]
O JARDIM DE DEUS
A analogia entre o trabalho divino e humano ocorre em outros pontos
também. Considere o trabalho de Deus ao plantar o jardim do Éden:
E plantou o SENHOR Deus um jardim no Éden, na direção do Oriente, e pôs nele o
homem que havia formado. Do solo fez o SENHOR Deus brotar toda sorte de árvores
agradáveis à vista e boas para alimento... (Gn 2.8,9)
Deus plantou um jardim e fez as árvores brotarem. Mais tarde ele colocou
Adão no jardim do Éden “para o cultivar e guardar” (Gn 2.15), e gozar dos
frutos (2.16).
Deus comissiona Adão a ser jardineiro. Mas o próprio Deus foi o primeiro
jardineiro, ao plantar e fazer as coisas brotarem. A ação de Deus na
“jardinagem” oferece a base analógica para Adão imitar. Adão, feito à
imagem de Deus, se torna “uma imagem” ativa de Deus ao continuar o
projeto de jardinagem. Pode-se inferir que Adão também deveria guardar um
padrão de seis dia de trabalho e um de descanso, em imitação ao padrão de
Deus. Em ambos os casos, precisamos da analogia e não da identidade. Adão
não é Deus nem semidivino. Ele não pode criar novos tipos de árvores.
Entretanto, na estrutura dada por Deus, ele pode imitar a jardinagem divina
no nível de subordinação.
Na verdade, a transcendência de Deus e seu grande poder e majestade se
destacam em Gênesis 1—2 com tanta força quanto a posição exaltada que o
homem ocupa como imagem divina. O homem foi criado à imagem divina e
deve, portanto, imitar a Deus, mas sempre em um nível subordinado, como
criatura e não como Criador. As obras de Deus de criação, em sua majestade,
pertencem a uma ordem inteiramente diferente das obras humanas de
imitação. Um aspecto da transcendência divina é que as obras de Deus são
analógicas às humanas; e que a analogia se estende ao caráter dos dias.
Olhe de novo para a jardinagem divina. Para um ser humano plantar árvores e
fazê-las crescer toma dias, meses e mesmo anos. Quanto dura para Deus? Se
a analogia com a jardinagem de Deus fosse uma identidade, tomaria Deus
tanto tempo quanto. Toma anos para ele, usando os meios comuns de sua
providência. Mas Deus, como Deus, não é confinado ao comum. Talvez o
jardim passe a existir de forma instantânea. Não, a linguagem de 2.9 diz que
Deus fez as árvores brotarem, o que sugere a passagem de tempo. Mas quanto
tempo? Anos? Ou uns poucos minutos? Não podemos dizer porque as ações
de Deus são analógicas, não idênticas, às do jardineiro humano. Deus e
homem não se encontram no mesmo nível. Não obstante, da mesma forma, os
dias da semana do trabalho de Deus são análogos ao tempo necessário ao ser
humano. Afirmar seu caráter idêntico impõe a Gênesis uma direção que ele
não endossa e causa um conflito real com o sétimo dia e a analogia da
jardinagem.
Pode-se escolher pressionar a linguagem sobre os seis dias e insistir que eles
precisam ser dias de 24 horas. Mas é possível também escolher pressionar a
linguagem sobre o sétimo dia e argumentar que todos os dias são
indefinidamente longos. Pode-se escolher pressionar a linguagem sobre a
jardinagem divina e então concluir que o jardim precisa ter passado a existir
depois de muitos anos. Os três movimentos pressionam um pedaço da
linguagem para nos prover uma informação específica demais sobre a
extensão de tempo. O processo resulta em respostas diferentes e
contraditórias, informando-nos da pressão da linguagem além de sua intenção
original. As três peças nos fornecem uma analogia, não uma identidade.
FOCO EM RELÓGIOS OU EM EXPERIÊNCIA INTERATIVA
Deveríamos também considerar abordagens culturais diferentes quanto ao
tempo. As culturas diferem de formas assustadoras na atitudes para com o
tempo.[145] Dentre essas diferenças estão a pontualidade e “observar o
relógio”. Primeira, as pessoas podem focar na passagem “objetiva” de tempo
como mostrada em um relógio. Podemos chamá-la orientação por relógio.
Segunda, elas podem se concentrar em um tempo mais subjetivo e interativo
que experimentam nos ritmos dos acontecimentos humanos. Os seres
humanos interagem entre si em grupos sociais ou interagem com coisas
criadas, como na celebração de um casamento ou no cultivo de um campo.
Essas interações envolvem agrupamentos naturais com início, meio e fim das
experiências e dos projetos humanos. Podemos designar esse foco orientação
interativa.[146] Todos os seres humanos estão cientes em alguma medida dos
dois tipos de orientação. Muitos possuem experiências interativas onde
“perdem a noção do tempo” e então percebem de súbito que o relógio já está
mais adiantado que o esperado.
Culturas diferentes podem dar prioridade a uma dessas orientações ou à
outra. Talvez elas possam mesclar as duas formas. Nas sociedades pré-
industriais, a prioridade pertence à orientação interativa.[147] A reunião
começa não só quando o relógio bate as nove (pode não haver relógios), mas
quando todos estão ali e possuem tempo para conversar. A reunião dura, não
por uma hora, mas até que os participantes “terminem”, isto é, quando as
pessoas estão satisfeitas com sua experiência social conjunta.
Sociedades pós-industriais, em contrapartida, tendem a seguir mais o relógio
(embora ainda existam diferenças variadas sobre o costume e pontos de vistas
diferentes). A cultura americana possui forte orientação pelo relógio. Alguém
diz: “Desculpe, tenho de sair para me encontrar com o Jim às 11h10” (“e ele
espera que eu não me atrase mais que 5 minutos”). Experiências sociais
podem começar e terminar de forma abrupta, porque o relógio governa os
pontos terminais. E o tempo do relógio é mais implacável que os ritmos
óbvios da natureza. No mundo antigo, antes da chega dos relógios mecânicos,
experimentava-se o ritmo das estações e o ritmo do dia e da noite, mas não o
ritmo mecânico do tique-taque do relógio.
Como tudo isso se aplica a Gênesis 1? Se formos a Gênesis 1 com a
orientação pelo relógio, focaremos primariamente em quanto tempo durou, de
acordo com a medição do relógio. Mas se formos a Gênesis 1 pela orientação
interativa, procuraremos a ocorrência de fatos importantes e seu sentido
social humano. Os seres humanos não aparecem na cena até o sexto dia da
semana da criação. Contudo, nos dias antecedentes, Deus estava em cena,
trabalhando em um ritmo semelhante ao do trabalho humano. O trabalhador
humano naturalmente se identifica com esse ritmo, em especial se sabe ter
sido feito à imagem divina. Ele sabe de imediato quanto tempo durou: seis
dias, ou seja, seis ciclos de trabalho e descanso semelhantes aos humanos,
seguidos do sétimo dia de descanso mais longo. O padrão que o impressiona
é o ritmo de trabalho, não o tique-taque do relógio. Esses dias em Gênesis 1
são realmente dias, porque correspondem ao ritmo humano. (Comentaremos
melhor sobre a realidade dos dias no Capítulo 16.) A equivalência a quantos
tique-taques do relógio é uma questão secundária. Nós, em contrapartida,
tendemos a pressionar na questão do tique-taque do relógio, porque essa
orientação é um grande fator na nossa cultura.
Na verdade, a orientação pelo relógio se destaca até quando alguns
defensores da teoria do dia de 24 horas dizem que os dias de Gênesis 1 foram
“dias comuns”. De que forma eles foram “comuns”? Em termos dos
acontecimentos nesses dias, eles estavam dentre os mais extraordinários de
toda a história! Alguém com a orientação interativa nunca os designaria
“comuns”. O termo pode se aplicar apenas se já estivermos comprometidos
de maneira bem completa e unilateral com a orientação pelo relógio. A
pessoa que se vale do termo principal “comum” alega que os dias foram
comuns pelo tempo do relógio.
MEDIÇÃO DE TEMPO
Precisamos ainda lidar com a questão de como Gênesis 1 fazia sentido para
quem vivia nos termos da orientação interativa. Elas ainda chegariam às
mesmas conclusões? Para responder a essa questão, precisa-se considerar
primeiro o que se quer dizer com um dia de 24 horas, e como alguém se
propõe a medir a extensão do tempo. A dificuldade que nos confronta é que a
medição no leva de volta ao padrão objetivo de medição, independente dos
ritmos corporais humanos e da interação social. O interesse na medição exata,
segundo um padrão mecânico, caracteriza a orientação pelo relógio, não a
orientação interativa.
Então suponha que continuemos a pressionar pela medição da extensão de
tempo, segundo o padrão orientado pelo relógio. Suponha que pudéssemos
viajar até o Israel antigo e ainda reter o próprio interesse cultural “excessivo”
em tique-taques de relógio. Os israelitas não teriam relógios mecânicos, então
a medição por um relógio mecânico literalmente não faz sentido.[148] Mas se
nós ainda nos preocupássemos com a medição exata, como podemos
encontrar rotas alternativas possíveis?
No quarto dia da criação, Deus supriu meios de medição. Ele criou o sol, a
lua e as estrelas “para fazerem separação entre o dia e a noite; e sejam eles
para sinais, para estações, para dias e anos” (1.14). Também ouvimos que os
corpos celestiais foram feitos “para governarem o dia e a noite” (1.18). O
leitor israelita de Gênesis 1 podia entender com facilidade que o sol
controlava (“governava”) a oscilação do dia e da noite, e os tornava
“separados”, no sentido de que um se seguia ao outro sem mistura alguma.
As épocas, os dias e os anos indicam quando os israelitas celebrariam os
festivais especiais como a Páscoa e a Festa das Cabanas. O sol marca o
padrão dos dias e a posição das estrelas relativas ao sol marca os anos,
enquanto que a lua marca os meses nos quais os festivais acontecem. Juntos,
esses corpos celestiais funcionam como marcadores de tempo, dizendo aos
israelitas onde se encontram no ciclo de dias, meses e anos. Aqui estão ritmos
naturais para demarcar o tempo.
Agora suponha termos pedido ao leitor israelita para calcular o tempo exato
transcorrido na semana da criação. Ele pode nos dizer: “Sete dias. Gênesis 1
conta os dias e esses dias correspondem a meu trabalho em seis dias, seguido
por um dia de descanso”. Mas esta resposta não nos satisfaria, porque ele
pode estar falando a nós do ponto de vista da orientação interativa. Os ritmos
de trabalho e descanso são o que lhe importam. Assim, precisamos pressioná-
lo a medir o tempo por algum meio “objetivo”, um meio desconectado dos
interesses humanos interativos.
Quando a medição exata de tempo importa, o israelita registra usando o
“antiquado” e universal método do sol, lua e estrelas. Mas Deus os colocou
em seu lugar e os fez funcionar de maneira só no começo do quarto dia. Não
faz sentido questionar “quanto tempo duraram os três primeiros dias por uma
medição externa e objetiva”, porque não há uma maneira óbvia de medir o
tempo. Os seres humanos não existiam, de tal forma que ninguém pode
apelar nem mesmo à passagem de tempo mais “psicológica”, intuitiva e
humana. Os marcadores de tempo celestiais antigos não existiam também. A
única resposta razoável é que tomava três dias em termos de orientação
interativa, isto é, em termos de ritmos de trabalho. Mas essa não é uma
resposta para a pergunta moderna. A Bíblia simplesmente não apresenta a
resposta, porque não se dirige à nossa questão atual, orientada pelo relógio.
Encontramos uma barreira aqui porque somos criatura, não o Criador. O
Criador, por meio de suas obras nos seis dias da criação, não só criou a raça
humana, mas proveu o ambiente estável em que podemos viver, trabalhar,
comer e descansar. Nesse ambiente funcionamos com alguma habilidade,
embora as coisas tenham se desregrado com a queda. Todavia, quando
tentamos formular a questão sobre os detalhes técnicos da extensão da
semana da criação, deparamo-nos com um movimento para fora desse
ambiente seguro e estável. Agimos como se pudéssemos sair de nós mesmos,
quase, como uma divindade, e observar as obras de criação sem a ajuda de
qualquer ambiente humano. De forma mais significativa, queremos observar,
medir e registrar a extensão, sem usar os aparelhos de medição temporal
providos por Deus apenas no ambiente criado estável. Pode-se fazê-lo? É
possível tentá-lo sem ignorar as limitações como criaturas?
Essas reflexões nos trazem de volta ao antigo ponto: Deus é o Criador e nós
não. Isso postula a última barreira à possibilidade de pensarmos como se
observássemos a obra da criação do lado de fora. Sabemos o que Deus fez na
criação, porque ele nos disse e explicou na Escritura. Mas sempre sabemos o
que sabemos como criaturas, como seres humanos feitos à imagem de Deus,
mas nós não somos divinos.
Conhecemos por analogia. Deus é o Pai supremo, nós somos pais humanos
por imitação e por analogia. Deus é o Rei, e nós temos reis humanos por
analogia. Assim em diante. A analogia em cada caso é real, válida e
verdadeira. Mas não podemos ir além da analogia como se nos tornássemos
divinos e conhecêssemos a Deus diretamente em seu nível. O mesmo, sugiro,
ocorre com a tentativa de entender os dias da criação. Entendemos, mas
entendemos como criaturas. E isso significa que o mistério permanece. Em
particular, o mistério do sétimo dia mostra que os dias de Deus não
necessariamente possuem extensões mensuráveis idênticas aos dias humanos
comuns medidos pelo tempo do relógio. Deus não nos concedeu informações
precisas e específicas sobre a extensão do tempo pelo relógio de qualquer um
dos seis dias de seu trabalho.[149] Os seis dias podem todos ter a duração de
dias de 24 horas, quando medidos pela velocidade da luz ou algum outro
padrão moderno “objetivo”; mas eles também podem não ser. A passagem
em Gênesis não diz.
Assim, quando alguns defensores da teoria do dia de 24 horas afirmam contar
com informação específica sobre a extensão dos dias, eles não conseguem
ouvir o que Gênesis diz e não diz. Eles desejam honrar a palavra de Deus e
seguir a Deus com sinceridade aonde quer que ela os leve, mas não fazem
plena justiça à passagem. Em harmonia com a teoria do dia analógico, a
passagem ensina apenas que Deus fez o mundo em seis dias, mas não fornece
detalhes sobre a medição exata dos dias por algum padrão objetivo e não
humano.
A TEORIA DA ESTRUTURA
A teoria do dia analógico pode ser considerada variante da teoria da estrutura.
Em consonância com a teoria do dia analógico, ela afirma que os seis dias de
Gênesis 1 são dias do trabalho de Deus análogos — não idênticos — aos dias
humanos comuns. Mas, em contraste com a abordagem de dias analógicos, os
defensores[150] da teoria de estrutura falam do padrão de seis dias como uma
“estrutura literária” que organiza os atos de criação. Os principais
proponentes da teoria da estrutura declaram que ela faz muito sentido.[151]
Contudo, sua mensagem intencional pode nem sempre ser entendida. Para
alguns o rótulo “estrutura literária” sugere algo completamente artificial e
estranho ao conteúdo, os atos reais da criação. Mas se a estrutura é artificial,
ela tira a força da relevância do padrão sabático para o homem. O homem, ao
observar o padrão sabático, parece imitar uma ilusão, um artifício literário.
Além disso, desde o seu desenvolvimento, alguns cristãos — não os
proponentes originários da teoria —[152] tentam redefinir ou alargar a visão e
transformá-la em uma estrutura ampla que inclua pontos de vista que não dão
tanto peso a Gênesis 1. Eles tratam a passagem como uma afirmação muito
vaga e geral de que Deus criou tudo.
A teoria da estrutura argumenta que a sucessão de dias representa um
agrupamento lógico, tópico e estrutural, em lugar da sucessão cronológica.
(Mas reconhece algum grau de cronologia: o homem foi criado por último e o
sétimo dia se segue aos outros seis.)[153] Em tese, ela é possível. Todavia, o
agrupamento tópico não exclui a possibilidade de sucessão cronológica.
Podemos ter ambas, em lugar de escolher entre elas. Derek Kidner observa
com perspicácia:
Para o presente autor, a marcha dos dias é um progresso majestoso demais para não
comportar nenhuma implicação de sequência ordenada; também parece
demasiadamente sutil adotar uma visão da passagem que desconte uma das
impressões primárias que ela faz no leitor comum. É um relato, não só uma
afirmação.[154]
Mas Kidner também nos lembra de que devemos ver como Gênesis 1 é
seletivo:
Como toda narração, demanda-se a escolha do ponto de vista e do material a ser
incluído e do método narrativo. Em cada um desses, a simplicidade é a preocupação
dominante. Usa-se a linguagem do cotidiano; as coisas são descritas pela aparência;
os panoramas do relato são arrojados, livres de exceções que distraem e qualificações,
sem agrupar coisas correlacionadas (de forma que árvores, por exemplo, antecipam
seu lugar cronológico a fim de serem classificadas com vegetação) para obter um
grande desenho em que as demandas de sequência de tempo e tópicas controlam a
apresentação e o todo revela o Criador e a preparação de um lugar para nós.[155]
A impressão intuitiva do progresso cronológico em Gênesis 1 surge em parte
de detalhes que implicam a progressão lógica. A terra seca precisa aparecer
no dia 3 antes das plantas terrenas no dia 3. A “expansão” (“firmamento”)
criada no dia 2 precisa estar ali a fim de que os luzeiros sejam postos na
expansão no dia 4 e a fim de que os pássaros “voem [...] sobre a face da
expansão dos céus” (ARC) no dia 5. O mar e a terra, a partir do dia 3,
fornecem o habitat das criaturas marinhas e terrestres nos dias 5 e 6. As
plantas do dia 3 providenciam alimento para os animais no dia 6 (Gn 1.30).
Toda a narrativa dá a impressão de um projeto bem planejado. Em nenhum
lugar, é claro, Gênesis diz explicitamente que A deve ser anterior a B. Mas o
acúmulo de instâncias de progressão natural deixa a sensação firme de um
movimento cronológico geral.
Prefiro a teoria do dia analógico à da estrutura porque ela retém um senso de
progressão cronológica e afirma a realidade da estrutura de sete dias como
padrão para o homem imitar. (Um debate mais amplo sobre a da teoria da
estrutura pode ser encontrado no Apêndice 1.) Se concedermos que o
agrupamento em dias pode ignorar exceções e agrupar questões interligadas,
descobriremos que sua ordem corresponde, grosso modo, à ordem de
acontecimentos nos principais relatos científicos. Edwyn Bevan, sem manter
o conceito clássico da inspiração, observa: “... em princípio eles [os estágios
de Gn 1] parecem antecipar o relato científico atual com um lampejo notável
de imaginação”.[156]
NOVA ANÁLISE DAS TEORIAS DIFERENTES
Embora eu tenha expressado preferência pela teoria do dia analógico, devo
também enfatizar que mais de uma teoria oferece abordagens com algumas
vantagens. A teoria do dia de 24 horas, da criação madura, do dia-era, do dia
analógico e da estrutura afirmam as principais verdades teológicas de
Gênesis 1—2. E todas elas tentam fazer uma exegese responsável dos
detalhes de Gênesis 1—2, embora algumas não sejam tão bem-sucedidas
quanto as outras. Em particular, a teoria do dia-era possui fraquezas ao
afirmar que dia realmente significa um período indefinido, da mesma forma
que na expressão “o dia do SENHOR”. Se a palavra dia foi usada como
analogia em Gênesis 1, ela continua no capítulo inteiro, e não se restringe
apenas à palavra dia. Quando a teoria do dia-era admite isso, ela se
transforma na teoria do dia analógico.
De nodo semelhante, quando a teoria do dia de 24 horas versa sobre questões
da ciência moderna, ela tende a se tornar a teoria da criação madura. A teoria
da estrutura se torna a teoria do dia analógico caso admita que Gênesis 1
contém certa progressão cronológica. As mudanças de um ponto de vista para
outro nos deixam com duas teorias atrativas: a da criação madura e a do dia
analógico. Considero a teoria do dia analógico a mais forte das duas,
principalmente porque a criação madura presume rápido demais a duração de
24 horas dos dias, se fossem medidos por algum instrumento técnico. Ela não
percebe quão forte é a evidência exegética em Gênesis 1—2 para a relação
analógica em lugar da idêntica entre os dias de Deus e os do homem.
A teoria da criação madura permanece uma posição teoricamente possível.
Mas ela procede quase toda da convicção de que cada dia durou 24 horas. Se,
de fato, a Bíblia ensinasse com clareza dias de 24 horas, Deus nos diria que
não devemos ser enganados pela idade aparente no universo mais do que
devemos ser enganados pela idade aparente em Adão e Eva quando foram
criados. Na verdade, a leitura cuidadosa de Gênesis 1—2 mostra que Deus
não indica a extensão dos dias por algum instrumento técnico; em
contrapartida, alguns fatores de Gênesis 1—2, como o sétimo dia do descanso
divino sem fim, realmente nos alertam a não fazermos inferências rápidas.
Assim, Deus em nenhum lugar nos diz que, se olharmos de volta no tempo,
olharemos para o “tempo ideal” ou para uma projeção passada irreal. Sem
essa premissa, a teoria da criação madura deixa de ser atrativa. Com base na
fidelidade geral de Deus e seu convite para explorarmos o mundo que ele
criou, temos uma boa razão para crer que as idades aparentes, encontradas na
astronomia, são também as idades reais. Isto é, elas são reais do ponto de
vista das preocupações técnicas e calculistas da astronomia e da ciência
moderna. Entretanto, a realidade inclui muitas dimensões — dentre as quais
a teoria da orientação interativa humana. Retomaremos o ponto no
Capítulo 16.
11. O papel da humanidade na ciência

E o papel dos seres humanos na ciência?


Pelo fato de os seres humanos terem caído e continuarem a se rebelar contra
Deus, os produtos da atividade humana sofrem corrupção. A corrupção pode
ser sutil ou séria, como na corrupção que ocorre quando os cientistas
praticam idolatria ao trocam o Deus da Bíblia, cuja palavra é lei, pelo
conceito impessoal de uma lei autônoma e autossuficiente.
Precisamos ter cuidado na reflexão sobre a própria natureza da ciência. O que
as pessoas presumem estar “obviamente” certo sobre a ciência pode não ser
assim. Os triunfos intelectuais e técnicos evidentes da ciência tendem a nos
fazer aceitar sem reflexão qualquer coisa que se disfarce sob o nome de
ciência — como no caso da filosofia do naturalismo evolutivo (Capítulo 5). A
ciência de fato nos oferece triunfos impressionantes. No entanto, sob essa
impressão podem jazer rupturas da espessura de um fio cabelo que
representam falhas sérias no pensamento em longo prazo. E algumas
impressões podem ter se desenvolvido a despeito do que se pensa sobre a
ciência, e não por causa dela. Como se viu no Capítulo 1, os cientistas na
prática creem em Deus a despeito dos protestos contrários. Eles conquistam
sucesso com base nesta crença.
O PAPEL DO HOMEM EM GÊNESIS 1—2
Em Gênesis 1.26-30, Deus cria o homem à sua imagem e lhe dá domínio
sobre plantas e animais. Em 2.15, Deus coloca o homem no jardim do Éden
para o “cultivar e guardar”. Juntas, essas passagens concedem ao homem
responsabilidades e privilégios significativos em relação a Deus e à ordem
criada. Primeira, o homem foi feito à imagem de Deus. Ele é criatura, não o
Criador, e assim é subordinado a Deus. Ao mesmo tempo, criado à imagem
divina, ele é como Deus de várias formas. Gênesis 1.26, 27 nos convida a
refletir como o homem se assemelha a Deus. Ele é uma pessoa, capaz de
falar, pensar, ouvir e responder a Deus em oração. A lista poderia ser
expandida. Além disso, Deus fez do homem um governante subordinado ao
seu governo. Embora o domínio não defina a totalidade do ser à imagem
divina, consiste obviamente uma das maneiras pelas quais o homem é como
Deus e o imita.
Deus indica com clareza a superioridade humana sobre animais e plantas. Ao
mesmo tempo, o homem não possui liberdade ilimitada para explorar o que
lhe foi confiado. Afinal, ele um mordomo que precisa responder a Deus sobre
o uso dos dons e privilégios concedidos. A restrição colocada sobre a árvore
do conhecimento do bem e do mal produz uma lembrança concreta da
responsabilidade mais ampla do homem de responder a Deus (Gn 2.16,17).
Ademais, o privilégio humano de imitar a Deus implica também a reprodução
da liberalidade e bondade divinas. Como Deus abençoou o homem com um
ambiente agradável, o próprio homem em seu domínio deve ser um tipo de
mestre que valoriza as criaturas sob seu cuidado.
Poderíamos, se desejássemos, obter algumas implicações para as discussões
atuais sobre ecologia e conservação. Gênesis 1—2 repudia os extremos
modernos. o texto não insere o homem na natureza de forma que ele seja só
mais uma espécie, sem nenhum privilégio. O homem é especial. Seu caráter
especial não consiste na inteligência superior, mas no status de criatura feita à
imagem divina. Por isso não adoramos a natureza ou colocamos os animais
no mesmo nível do homem. De modo diverso de algumas pessoas que
querem deixar a natureza completamente intocada, podemos domesticar com
confiança os animais ou plantar um jardim que altera a região selvagem
intocada.
Gênesis repudia o conceito de que o homem possui carta branca para fazer o
que lhe agradar e satisfizer seus desejos a qualquer custo. Deus cuida da
criação; ele não a explora. O homem precisa ser imitador de Deus. Sem
dúvida o homem pode usar os frutos das árvores para sua nutrição (Gn 2.16),
mas seu objetivo em geral é servir e glorificar a Deus, não apenas servir aos
próprios desejos. Seu objetivo não deve ser servir aos desejos que se
perverteram após a queda! O “domínio” de Gênesis 1.28 deve ser entendido
como processo repleto de reflexão e cuidado, não algo sem coração, brutal e
esmagador. Gênesis 1—2 repudia a perversão pecaminosa do domínio
expresso pela exploração destrutiva.
Podemos também ver que Gênesis 1—2 estimula a devoção humana a
objetivos múltiplos em lugar da fartura material. Deus mostra sua majestade
no mundo criado (Sl 19.1-6). O homem ao honrar a Deus objetiva exaltar a
glória divina. O homem não serve a si mesmo, mas a Deus. Então ele adorna
o mundo, para demonstrar a beleza de Deus. Ele torna as plantas frutíferas
para demonstrar a fecundidade e liberalidade divinas. Ele pratica a justiça
para com outros seres humanos a fim de demonstrar a justiça de Deus. Ele faz
máquinas que demonstram o poder divino. Isso não representa objetivos
separados e competitivos, mas aspectos diferentes do mesmo objetivo geral.
Assim, as máquinas devem melhorar a vida humana, mas não ao preço da
beleza.
Não passemos tão rápido para a discussão atual da ciência. Precisamos
considerar com cuidado a figura bíblica do papel dos seres humanos.
Gênesis 1-2 apresenta o fundamento, o começo para a compreensão das
tarefas humanas. Contudo, é apenas o começo. O texto contém as primeiras
palavras de instrução de Deus ao homem, seguidas de outras palavras. Deus
intencionava que o homem vivesse em comunhão consigo, e a comunhão
incluiria um diálogo contínuo. Mesmo depois da queda ter erigido uma
barreira, Deus continuou a falar. No final, não deveríamos tentar derivar todo
o nosso entendimento das tarefas humanas apenas de Gênesis 1-2, porque
Gênesis 1-2 nunca teve a intenção de permanecer sozinho como a explicação
total.
DESENVOLVIMENTO SUBSEQUENTE NA HISTÓRIA
A queda se interpôs de forma que nunca veremos como a história da
humanidade deveria ter se desenvolvido. Sabemos que os seres humanos
teriam se multiplicado e inferimos que seu domínio cresceria em extensão e
profundidade. Mas o que se vê na história subsequente é sempre corrompido
pelo pecado. Como ilustramos na consideração da idolatria na ciência, a
rebelião e o pecado infectam de formas sutis mesmo a melhor e mais
admirável obra humana. O pecado a infecta de tal modo que algumas vezes a
transforma em horror repulsivo, como no caso da crueldade humana.
Tendo em mente os efeitos do pecado, podemos ainda extrair algumas
conclusões razoáveis sobre os objetivos. A entrada do pecado não destrói
totalmente a humanidade, nem anula a tarefa de dominar e cuidar da criação.
Deus mostra sua graça mesmo em Gênesis 3 ao conceder a promessa de
redenção, bem como ao se refrear de destruir Adão e Eva por completo de
forma imediata. Depois do dilúvio, Deus prometeu continuar um padrão
regular e providencial no mundo:
Enquanto durar a terra, não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e
inverno, dia e noite (Gn 8.22).
Ele também renovou o domínio humano bem como o mandamento dado na
criação para serem fecundos e se multiplicarem:
Abençoou Deus a Noé e a seus filhos e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos e
enchei a terra. Pavor e medo de vós virão sobre todos os animais da terra e sobre
todas as aves dos céus; tudo o que se move sobre a terra e todos os peixes do mar nas
vossas mãos serão entregues. Tudo o que se move e vive ser-vos-á para alimento;
como vos dei a erva verde [referência a Gn 1.29], tudo vos dou agora (Gn 9.1-3).
Gênesis 4-11 apresenta pelo menos algumas indicações de como o domínio
humano se -desenvolveria. Gênesis 4-5 distingue a linha piedosa de Abel e
Sete da linha ímpia de Caim. Abel era “pastor de ovelhas”, exercendo assim
domínio sobre o mundo animal. Caim era “lavrador”, dominava uma parte do
mundo vegetal, bem como o solo. é interessante que a linhagem de Caim
demonstra um progresso ulterior em relação ao domínio. Caim construiu uma
cidade que recebeu o nome de seu filho (4.17). Ele expressou domínio na
arquitetura. Jabal, seu descendente, “foi o pai daqueles que habitam em
tendas e possuem gado” (4.20), sugestão da expansão pecuária em escala bem
maior que a de Abel. Jubal “foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta”
(4.21), o que implica não só no desenvolvimento da música, mas no
desenvolvimento de instrumentos musicais, que exige uma medida de
habilidade técnica. O domínio conduz a habilidades em manufatura.
Tubalcaim foi “artífice de todo instrumento cortante, de bronze e de ferro”
(4.22), indicador do crescimento na metalurgia. Gênesis 2.12 menciona ouro,
bdélio e pedra de ônix em Havilá, perto do Éden, já demonstrando a provisão
divina para o homem e sugerindo um possível desenvolvimento em que o
homem usaria essas provisões. Sob Tubalcaim, o desenvolvimento começa a
acontecer.
A proeminência da obra de domínio dentre os descendentes de Caim pode
fazer os leitores se perguntarem se Gênesis condenar o domínio. Afinal, a
linha de Caim lidera a corrupção nos dias de Noé (Gn 6.1-8). Todavia, o
mandamento originário para dominar (Gn 1.28) e a participação do justo
Abel em guardar ovelhas, indica que o impulso do domínio representa a
continuação da criação originariamente boa. A corrupção decorrente do
pecado não desloca por completo a criação, mas a distorce em direções
horrendas.
A obra técnica alcança um tipo de ápice com a torre de Babel (Gn 11.1-9).
“Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue até
aos céus” (11.4): Vê-se aqui a ilustração vívida não só do desenvolvimento
de poderosas capacidades humanas, mas também da distorção pecaminosa
das boas capacidades. A habilidade de construir uma cidade ou torre é uma
boa dádiva de Deus na criação. As pessoas a distorcem ao usá-la de maneira
orgulhosa (“e tornemos célebre o nosso nome”), ao desejar alcançar o divino
(“cujo tope chegue até aos céus”) e ao tentar reverter a dispersão —a
consequência natural da obediência ao mandamento de encher a terra (1.28).
Deus lhes frustra o desígnio e eles abandonam a construção (11.8). O
fracasso ilustra o que pode acontecer também a projetos humanos posteriores
provenientes do impulso de dominar.
Esses projetos envolvem o desenvolvimento da habilidade humana. Vemos
aqui as técnicas de artesãos, não o conhecimento elaborado da ciência
moderna. Contudo há afinidades entre ambos.
Os artesãos permanecem práticos, focados nos materiais particulares com que
trabalham. Eles costumam não montam projetos de larga escala e de reflexão
intelectual pura. Mas encontram maneiras novas e melhores de usar materiais,
como na produção de bronze e ferro. Encontram formas de melhorar a
tonalidade e certa facilidade para dedilhar a harpa ou tocar a flauta. O
agricultor encontra maneiras de lavrar, semear, carpir e cultivar plantas
produtoras de melhores lavouras. O pecuarista encontra maneiras de tratar e
alimentar os animais com eficiência e os criar para produzir um gado mais
robusto na próxima geração. Nos bons tempos, um pouco dessa habilidade
pode ser acumulada por várias gerações, enquanto os mestres instruem
aprendizes. De tempos em tempos, o desafio de melhorar conduz à
experimentação com os materiais. E se tentarmos um novo material no
instrumento musical? E se, ao forjar metais, tentamos uma mistura diferente
de materiais iniciais ou uma técnica diferente ao aquecer e moldar o metal?
O desenvolvimento do artesanato ainda não produz ciência na forma
moderna. Mas o aspecto experimental o traz mais perto da ciência que à
prática de reflexão teorética isolada do experimento. O mundo é derivado do
plano divino, não diretamente da mente humana. Então precisamos sair e
observar o mundo feito por Deus, não só deduzir mentalmente o que Deus
“deve” ter feito.
ENTENDER O MUNDO DE DEUS
Gênesis 1—2 inclui na estrutura a atenção ao papel das capacidades mentais e
verbais humanas. A agricultura procede da garantia de que as sementes se
reproduziriam “segundo a sua espécie” (1.11,12). O agricultor precisa
entender este princípio. Quem planta uma semente de maçã terá uma
macieira, não uma laranjeira. Quem semeia aveia obtém aveia. Os
agricultores dependem o tempo todo da palavra criativa de Deus, que
estabeleceu essa regularidade e da fidelidade divina à própria palavra
enquanto mantém a regularidade ano após ano. Com o passar do tempo, eles
descobrem que se pode melhorar as culturas mediante a seleção da melhor
semente para o próximo plantio. O princípio em Gênesis 1, “segundo a sua
espécie”, acaba se aplicando em certa medida mesmo a uma única espécie,
quando se tenta produzir a próxima geração de boas culturas. Do mesmo
modo, os pecuaristas dependem do fato de as ovelhas gerarem cordeiros que
crescem até se tornarem ovelhas. De forma direta ou indireta, os
trabalhadores dependem da palavra de Deus que governa o mundo vegetal,
animal e mineral.
A dependência estimula a reflexão humana na palavra divina de comando. O
homem deve “pensar os pensamentos de Deus após ele”.[157] Ele precisa
pensar assim a fim de desenvolver mestria e habilidade ao lidar com as
plantas, os animais e o ambiente. E por ter Deus feito o homem à sua
imagem, o homem possui a habilidade fundamental de pensar. Sua mente e
linguagem vêm de forma automática com a capacidade de obter algum
entendimento de Deus, de “estar na mesma extensão de onda”, pois a sua
mente é “como” a de Deus. Ao mesmo tempo, o homem é uma criatura, não
o Criador, e todo o seu pensamento depende de Deus.
Podemos ver o homem exercer seus privilégios ao pensar e falar em
Gênesis 2.19, 20 — quando dá nomes os animais. Ao fazê-lo, imita a Deus,
que também nomeara: Deus chamou a luz Dia e as trevas Noite (Gn 1.5).
Nomear é um exercício de autoridade e soberania.
É possível que Adão tenha apenas designado sons aleatórios a fim de criar
nomes. Entretanto, na cultura hebraica dar um nome indica algo sobre a coisa
nomeada. O nome de Adão para Eva tinha significado próprio (“E deu o
homem o nome de Eva a sua mulher, por ser a mãe de todos os seres
humanos”, Gn 3.20). Os nomes dados por Deus ao Dia e à Noite certamente
têm significado. Deus altera o nome de Abrão para “Abraão”, isto é, “pai de
numerosas nações”, para selar sua promessa de muitos descendentes
(Gn 17.6). Ele altera o nome de Sarai para “Sara”, significando “princesa”, no
mesmo contexto (v. 15). O nome Jesus, que significa “o Senhor salva”, foi
dado “porque ele salvará o seu povo dos pecados deles” (Mt 1.21).
Assim, quando Adão dá nomes em Gênesis 2.19, 20, devemos pensar em
nomes descritivos, não apenas sons arbitrários. Se Adão o fez, ele precisou
prestar atenção aos animais. Foi necessário verificar que tipo de animal era
cada um e, em particular, inteirar-se de que nenhum animal lhe seria uma
companhia adequada (2.20). Isso demanda discernimento, talvez estudo. No
entanto, comparativamente, estamos ainda no começo. Adão, também
criatura, não sabe de tudo e precisa crescer em conhecimento. Os nomes
talvez ressaltassem características óbvias que distinguem um animal do outro,
mas não seriam descrições completas. Eles consistem no início da atenção
aos detalhes, descrição e classificação. Todas essas funções continuam nos
primeiros anos do desenvolvimento da biologia na forma plenamente
científica moderna. Adão é o primeiro “cientista”, por assim dizer, embora
sua ciência nesse ponto fosse rudimentar.
Já mencionamos o artesanato. A obra de Adão de dar nomes é reflexiva e
verbal, sem ligação com a arte de criar com as mãos. Na verdade, esses dois
aspectos são complementares. Deus fez o homem para agir como profeta, rei
e sacerdote.[158] Os termos e os ofícios específicos de profeta, rei e sacerdote
aparecem de forma plenamente diferenciada apenas mais tarde. Entretanto, as
funções em sentido amplo já se encontram aqui no princípio. Deus fala a
verdade e exerce a função profética. Ele governa e exercendo a função real.
Abençoa o que fez e exerce a função sacerdotal. Adão, o portador da imagem
divina, imita a Deus no nível da criatura. Ele fala e pensa, e funciona como
profeta. Governa sobre os animais e cultiva o jardim, e funciona como rei.
Oferece seu culto a Deus e por meio do seu trabalho abençoa os outros seres
humanos, seus semelhantes que se seguirão a ele, e assim funciona como
sacerdote. Essas funções se sobrepõem. Como Deus governa o mundo pela
fala, Adão pode exercer autoridade sobre os animais (função real) ao nomeá-
los (função profética).
O artesanato representa primariamente uma atividade de realeza. O homem
remodela a estrutura e a organização das coisas. Nomear, por sua vez,
envolve a fala, o pensamento e a compreensão, o que se encaixa melhor com
a função profética. Eles existem em harmonia. Até hoje vemos uma divisão
de trabalho entre ciência experimental — que envolve a interação de realeza
com o aparato experimental —, e a ciência teórica, que envolve a interação
profética — as pessoas pensam sobre a racionalidade da palavra de Deus que
governa os experimentos. Os dois lados precisam de boa interação. De outro
modo, a ciência experimental perderia uma contribuição valiosa de novas
ideias brilhantes que sintetizam e organizam as observações experimentais,
além de sugerir novas direções para os experimentos. Por sua vez, a ciência
teórica, desassociada do experimento, acaba em especulação infrutífera onde
ninguém sabe qual teoria está certa, porque as teorias nunca foram
verificadas.
A tecnologia como aplicação da ciência dá continuidade à obra real do
artesão. Feita da forma correta, objetiva louvar a Deus e abençoar os
recipientes e usuários da tecnologia, dando sequência à função sacerdotal.
Adão foi um bom introdutor da ciência. Ele e seus descendentes poderiam ter
feito uma boa continuação, crescendo com força cada vez maior no
entendimento do mundo de Deus. No entanto, a queda interveio. Em lugar de
humildemente investigar os caminhos de Deus, Adão e Eva decidiram ser
“como Deus” (3.5). Eles preferiram não se submeterem à instrução divina e
decidiram por si sós o que fazer em relação à árvore. A atitude autônoma e
independente de Deus já corrompeu o âmago da ciência. Ele não ama a Deus,
assim não se encontra mais desejoso de lhe entender os caminhos. O homem
se separou de Deus como fonte originária de instrução, afastando-se da
atitude de humildade e paciência —importante para a ciência.
Também existem efeitos secundários. Pessoas como Abel morrem sem
transmitir o conhecimento obtido. Guerras, destruição, morte e fome dão às
pessoas pouco tempo para realizar qualquer tipo de reflexão paciente e
extensa sobre questões científicas. Grandes bibliotecas perecem no fogo ou
em ruína. A fim de obter poder, as pessoas escondem o conhecimento em
lugar de compartilhá-lo.
Por fim, a idolatria corrompe o impulso profético e real de entender e
explorar. Os politeístas evitam a ciência, pois o politeísmo não lhes permite
encontrar ordem racional. Eles pensam que o mundo se origina em parte da
interação irracional de deuses mesquinhos. Os animistas evitam a ciência
com medo de ofender os espíritos. Os budistas se afastam da ciência porque a
meditação esvazia a mente como caminho para o nirvana.
O SALOMÃO CIENTISTA
De todas as nações do mundo, Deus escolheu Abraão e prometeu ser o Deus
dele e de sua descendência (Gn 17.7). O Oriente Médio Antigo do tempo de
Abraão era cheio de politeísmo, o que minou um dos fundamentos para a
ciência, a saber, a confiança humana em uma ordem mundial unificada. Deus
se revelou a Abraão e à sua descendência como o único Deus verdadeiro, o
Criador do céu e da terra, providenciando assim a plataforma que possibilitou
o crescimento da ciência. O que aconteceu? A descendência de Abraão
flertou de novo e de novo com o politeísmo dos vizinhos. Isso não lhe foi útil.
E quando o povo era pouco em número, ou sofria no Egito, não havia
ambiente favorável à ciência. Depois da Conquista sob Josué, o Período dos
Juízes foi caótico. Por fim, Davi estabeleceu um reino seguro mediante uma
série de guerras.
O tempo de Salomão viveu o resultado da paz e da segurança. O reinado do
filho de Davi consistiu em uma oportunidade única. Salomão conhecia o
verdadeiro Deus e teve paz. Mais significativamente ainda, o Senhor lhe
concedeu grande sabedoria (1Rs 3.12). A sabedoria respondeu ao pedido de
Salomão de saber como governar o povo, uma preocupação prática por
habilidade prática. O foco não é puramente teórico ou intelectual. Vemos o
fruto não só no relato da decisão de Salomão sobre o filho da prostituta
(1Rs 3.16-28), mas no livro de Provérbios. Esse livro revela sabedoria sobre a
natureza e a conduta do homem. É prático, pé no chão, mais repleto de
“adágios” que um trabalho científico de caráter social da atualidade. Ele não
se ocupa com estatísticas, metodologia de pesquisa, qualificações técnicas
para exceções. É um começo. No início já ultrapassa a ciência social moderna
em um aspecto, a saber, o cerne correto: “O temor do SENHOR é o princípio do
saber” (Pv 1.7).
As conquistas de Salomão mostram o fruto do dom de Deus da sabedoria:
Deu também Deus a Salomão sabedoria, grandíssimo entendimento e larga
inteligência como a areia que está na praia do mar. Era a sabedoria de Salomão maior
do que a de todos os do Oriente e do que toda a sabedoria dos egípcios. Era mais
sábio do que todos os homens, mais sábio do que Etã, ezraíta, e do que Hemã, Calcol
e Darda, filhos de Maol; e correu a sua fama por todas as nações em redor. Compôs
três mil provérbios, e foram os seus cânticos mil e cinco. Discorreu sobre todas as
plantas, desde o cedro que está no Líbano até ao hissopo que brota do muro; também
falou dos animais e das aves, dos répteis e dos peixes. De todos os povos vinha gente
a ouvir a sabedoria de Salomão, e também enviados de todos os reis da terra que
tinham ouvido da sua sabedoria. (1Rs 4.29-34)
O texto afirma que versou sobre árvores, animais, pássaros, répteis e peixes.
Isso se parece com o início da ciência descritiva. Talvez o discurso de
Salomão tenha usado os animais apenas como ilustrações do comportamento
humano, de modo que Provérbios 6.6 urge o preguiçoso a “ir ter com a
formiga”. Mesmo esse uso ilustrativo requer alguma observação do mundo
animal ou vegetal. Todavia, a linguagem de 1Reis 4.29-34 parece descrever
um foco bem mais concentrado em plantas e animais, e não só para ilustrar a
vida humana. A discussão de Salomão sobre plantas e animais parece
complementar os três mil provérbios com observações sobre a vida humana.
A sabedoria, no Oriente Médio Antigo, incluía o conhecimento não só sobre
a vida humana, mas também sobre o mundo natural. Deus desafiou Jó sobre a
respeito de sua sabedoria ao lhe fazer perguntas sobre os segredos da
natureza (Jó 38.4—41.34).
Até onde sei, Salomão não contava com muitos aparatos experimentação
técnica. Mas a ciência não teve início com o financiamento atual dos
aparatos. Isso ocorreu de modo gradual. O início da biologia moderna incluiu
muito trabalho dedicado à observação e classificação detalhada de animais e
plantas (esp. Lineu, cujo sistema de classificação continua em uso hoje, com
modificações e melhoramentos apropriados). As afirmações de Salomão
podem muito bem ter começado a explorar essa direção.
Mas, como Provérbios, as afirmações de Salomão pode também ter incluído
observações divertidas sobre características impressionantes do
comportamento animal. As formigas são tão trabalhadoras (Pv 6.6). E os
lagartos humildes entram nos palácios do rei (Pv 30.28).
Deus criou os animais não só para que os classifiquemos, mas para que
possamos nos alegrar com eles e talvez nos divertirmos. A ciência moderna
com o foco unilateral na classificação, causalidade e estruturas mecânicas
conquistou muito; mas podemos também apreciar as ilustrações e as
metáforas providas pelo mundo animal. Eles também integram o arranjo
divino. Na verdade, o fascínio exercido pelos animais e que nos atrai para a
pesquisa detalhada de seus caminhos procede em parte de suas características
divertidas e impressionantes, que despertam a curiosidade. O bom professor
inclui esse lado e não se detém apenas em generalidades. Além disso, ele
honra a Deus ao fazê-lo, porque Deus se revela nas particularidades e nos
detalhes divertidos e belos bem como nas generalidades.
Então Salomão, de certo modo, era um “cientista”. Ele não contava com os
imensos acúmulos de informações das ciências modernas atuais, mas foi um
começo. Foi um bom começo, como se pode perceber da admiração que ele
causou em seus dias (1Rs 4.34). Infelizmente, também foi o fim! O trabalho
de Salomão não passou para seus sucessores. Nos últimos anos, Salomão se
desviou da devoção anterior ao Senhor. Em decorrência disso, o Senhor
pronunciou seu juízo e dividiu o reino em dois, após a morte de Salomão
(1Rs 11.9-12). Israel não provou outra vez a paz e a sabedoria tidas nos dias
de Salomão.
O tempo de Salomão mesmo assim nos deixa um registro importante. Dá-nos
uma imagem do que poderia ser, mesmo que em miniatura — uma pequena
ilustração do início. Salomão demonstra a possibilidade e a legitimidade da
ciência — mais do que isso, ela é uma bênção a ser buscada. Como Salomão,
deveríamos buscar a sabedoria que só Deus pode conceder. A sabedoria
inclui o entendimento do mundo de Deus. Admiramos corretamente a ciência
e desejamos a sabedoria que ela oferece. A visão cristã do mundo afirma a
legitimidade e o valor da ciência de forma enfática e mostra que, longe de se
opor à ciência, a Bíblia estimula as pessoas piedosas, por intermédio do amor
divino, à aproximação e ao amor à sabedoria de Deus e a gostar de refletir
sobre as maravilhas do mundo de Deus. Fazê-lo pode honrar a Deus, e se
feito com competência pode até atrair causar admiração e maravilhamento em
pessoas que desconhecem o verdadeiro Deus revelado apenas a Israel.
EXPERIÊNCIA PESSOAL
Posso falar em nível pessoal? Vejo que a ciência oferece uma janela
maravilhosa para a contemplação da sabedoria de Deus. Ela fornece
exibições extraordinariamente belas e sábias e profundas da glória divina.
Amei aprender ciência e matemática no ensino médio, na faculdade e na pós-
graduação. Nem todos gostam delas, eu sei, mas acho que quase todos o
fariam se pudessem superar as dificuldades acadêmicas e enxergar o mundo
com olhos cristãos.
Eu agora ensino o Novo Testamento. Mas continuo a amar a ciência e leio a
seu respeito. Bem entendida, é uma maneira de crescer em amor a Deus.
Infelizmente, não parece ser assim para muitos e por isso eu também escrevo
este livro. Ouça o salmista exultar enquanto ele reflete sobre o que vê:
Que variedade, SENHOR, nas tuas obras! Todas com sabedoria as fizeste; cheia está a
terra das tuas riquezas. Eis o mar vasto, imenso, no qual se movem seres sem conta,
animais pequenos e grandes. Por ele transitam os navios e o monstro marinho que
formaste para nele folgar. Todos esperam de ti que lhes dês de comer a seu tempo [...]
A glória do SENHOR seja para sempre! Exulte o SENHOR por suas obras! Com só olhar
para a terra, ele a faz tremer; toca as montanhas, e elas fumegam. Cantarei ao
SENHOR enquanto eu viver; cantarei louvores ao meu Deus durante a minha vida
(Sl 104.24-27,31-33)
Como de praxe, o salmista descreve o nível da aparência comum de forma
que os outros possam tomar parte sem dificuldade em sua alegria e
admiração. Mas a ciência, entendida da forma correta, aumenta a alegria e a
admiração. Toda a ciência versa sobre descobrir a mente de Deus.
LIMITAÇÕES HUMANAS
Por mais espetacular que a ciência atual seja, ela ainda está sujeita às
limitações, pois os seres humanos realizam essa tarefa. Somos finitos e
falíveis e, depois da queda, pecadores. A visão cristã do mundo provê um
espaço claro para a ciência, mas também indica alguns limites. Por não
sermos como Deus, nunca sabemos como ele sabe. Não conhecemos tudo e o
que conhecemos permanece na maior parte dos casos provisório. A ciência,
como observamos, não ouve diretamente a palavra de Deus, mas reflete sobre
os efeitos da palavra divina. As construções dos cientistas sobre as leis
científicas não são as próprias leis, apenas uma aproximação ou a melhor
opinião a respeito delas.
A Bíblia também fornece limites de tempo e espaço para a reflexão humana.
Em alguns aspectos, Gênesis 8.22 provê a base para a ciência, porque garante
a ordem estável de acontecimentos: “não deixará de haver sementeira e ceifa,
frio e calor, verão e inverno, dia e noite”. Mas também coloca uma
qualificação: “Enquanto durar a terra”. A promessa tem início nítido a partir
do tempo em que Deus a faz para Noé. O dilúvio ocorrido antes rompeu
muitas das regularidades comuns, o que torna a promessa muito mais
preciosa.
A promessa também se concentra no nível dos acontecimentos comuns e se
direciona a pessoas comuns, como vimos nos casos de Gênesis 1—3 e
Gênesis 6—8. Ela não toca de forma direta nas preocupações dos cientistas a
respeito dos detalhes técnicos. Mesmo assim, é sugestiva. Parece indicar que
Deus governará todo o mundo de forma consistente desde os dias de Noé até
o fim do mundo presente. Daí, convida os cientistas a proceder com
confiança na pesquisa sobre como Deus governa o mundo nesse período com
regularidade.
Entretanto, também é preciso afirmar com clareza que Deus pode agir
miraculosamente sempre que escolher fazê-lo, em qualquer momento desse
período. O dilúvio ocorreu logo antes da promessa de 8.22, como um
lembrete gigante não só do poder de Deus, mas do direito dele de fazer o que
bem entender. A promessa de regularidade em 8.22 não envolve a servidão
de Deus ao homem, como se Deus nunca pudesse fazer nada fora do comum.
Deus permanece o Deus pessoal. Sua forma de governar o mundo é pessoal,
não se trata de um mecanismo. Não se trata de Deus “intervir” de fora para
alterar o mecanismo que funcionando de forma autossuficiente; tal
mecanismo não existe. Deus governa o mundo, incluindo suas características
aparentemente mecânicas: “fazes crescer a relva para os animais” (Sl 104.14).
Seus propósitos são racionais e também pessoais. A racionalidade dele
transcende a nossa. Ele possui um propósito bom e racional para ressuscitar
Cristo dentre os mortos, mesmo que (podemos dizer precisamente porque!) a
ressurreição não seja o curso normal das coisas.
Vamos pensar de novo sobre Gênesis 8.22. Deus promete a regularidade das
estações. Isso nos dá confiança de que a ciência pode descobrir regularidades
aplicáveis em todo o período do dilúvio até a segunda vinda. Mas o que falar
sobre o período antes do dilúvio? Podemos estender a pesquisa científica
retroativa no tempo também? Por si mesma, a promessa em Gênesis 8.22 não
dá uma garantia. Mas enquanto olhamos Gênesis 4.1—5.32, parece um
mundo em muitos aspectos semelhante ao mundo depois da queda. Então
podemos provisoriamente achar que o dilúvio constituiu um juízo em que
Deus usou meios comuns, pelo menos na maior parte. O dilúvio marcou a
destruição e a recriação de um ponto de vista temático, teológico, mas pode
ou não ter envolvido uma ruptura radical das leis científicas descobertas pela
ciência moderna. A descrição em Gênesis 7—8 não indica as regularidades
interrompidas por Deus no dilúvio. Para descobrir mais, podemos observar
rochas antigas. A observação conduz a discussões sobre geologia do dilúvio,
geologia predominante e geologia de criação madura, que já cobrimos
(Capítulo 9). Até mesmo a geologia da criação madura, que considera que os
geólogos estudam o “tempo ideal” ou “idade aparente”, garante que eles
possam se engajar de modo frutífero no estudo quando usam pressupostos
científicos comuns. As outras duas abordagens, a geologia do dilúvio e a
geologia predominante, acham que, na área de leis físicas, Deus governa o
mundo basicamente da mesma forma desde a criação até o dilúvio.
Essa conclusão também faz sentido teológico. A despeito do fato de o dilúvio
parecer, em alguns aspectos, uma “recriação”, não se trata de uma criação do
nada (ex nihilo). Deus preservou Noé e sua família e os animais na arca.
Assim podemos, ao contrário, afirmar que o dilúvio é uma figura em pequena
escala ou um modelo de recriação, mas não se trata literalmente de uma
recriação em escala total. E como poderia ser, se o sol, a lua e as estrelas não
foram afetados? O dilúvio acontece em seguida dentro da ordem criada mais
ampla, estabelecida por Deus em Gênesis 1. A ordem criada retém a
regularidade de Gênesis a Apocalipse: “enquanto durar a terra”.
Mas ainda não está claro se Deus agiu da mesma forma nos seis dias da
criação como o vemos agir mais tarde, no final dos seis dias. A teoria da
criação madura responde que ele não o fez, e muitos dos adeptos cristãos da
ciência predominante acham que ele o fez. Não podemos saber com certeza.
Isso é parte de nossas limitações como criaturas. Não estávamos ali quando
Deus criou o mundo (Jó 38.4). Vivemos firme e completamente dentro do
ambiente cujo estabelecimento foi completado por Deus. Não podemos ditar
a ele o que precisa ser feito no estabelecimento. A criação madura pode estar
certa. Ou a teoria predominante pode estar certa. Que diferença faz?
Diferença prática nenhuma, pois a teoria de criação madura diz que os
cientistas estudam uma idade aparente. Para os propósitos científicos
práticos, a idade aparente funciona exatamente como a idade real.
Só importa saber tudo sobre como Deus criou se pensarmos na necessidade
de obter o conhecimento absoluto. Dizemos a nós mesmos: “Precisamos
saber, e não ser levados pelas limitações onerosas que nosso ambiente pode
ter temporariamente imposto a nós”. Por trás disso, há uma fala rebelde.
Queremos ter conhecimento divino e ficar infelizes com a situação em que
Deus, com sua sabedoria, nos colocou. Digo em resposta: “Limite sua
ambição, humilhe-se, relaxe e aceite que você é uma criatura. Tudo bem não
saber, se Deus não nos deu como saber. É suficiente que ele saiba e cuide do
resto”.
Podemos também ter limitações no espaço. Gênesis se concentra no “mundo”
do Oriente Médio Antigo. Gênesis 1, embora dê ao homem domínio sobre
plantas e animais, não lhe concede domínio sobre o sol, a lua e as estrelas. O
espaço sideral está além do alcance da ciência? Podemos pensar assim. Os
antigos supunham que as regiões acima seguiam leis diferentes das regiões
abaixo. Deus poderia ter feito dessa forma. Mas outra vez temos de ir e ver.
Não podemos ditar a Deus que o espaço sideral é o mesmo ou que será
diferente. Dados detalhados dos movimentos dos planetas e os dados sobre os
movimentos de corpos terrestres capacitaram Newton a concluir com ousadia
que os dois seguiam as mesmas leis em um nível fundamental da análise. A
astronomia moderna desenvolveu melhor os pontos de vista de Newton.
Precisamos considerar esse desenvolvimento um dom extra de Deus. Deus
não precisava nos dado leis físicas comuns aos dois campos, mas ele o fez.
Tanto mais deveríamos honrar sua glória, demonstrada na beleza e
consistência dessas leis.
Por fim, temos limitações quando progredimos no tempo. Gênesis 8.22 inclui
a limitação: “Enquanto durar a terra”. Sabemos mais tarde pelas Escrituras
que a terra não permanece para sempre. Deus promete “novos céus e nova
terra” (Ap 21.1). A descrição transcende a experiência presente, de forma que
suspeitamos que ela possa envolver novas leis físicas ou a transformação das
leis presentes de modo que nenhum ser humano pode antecipar.
Os cientistas modernos, que analisam o cosmo, traçaram um caminho
próprio. Eles falam com confiança a respeito de bilhões, até mesmo trilhões,
de anos no futuro. Afirmam que o sol mais tarde se esgotará e se tornará uma
nova. Muito depois disso, toda a energia útil será dissipada sob a forma de
calor; ela se disseminará de tal maneira que não fará nenhum trabalho útil.
Eles predizem a “morte térmica” do universo, que também envolverá a
extinção de todas as coisas vivas como conhecidas.
Como eles sabem o que vai acontecer? Extrapolaram o futuro longínquo com
base nas leis fundamentais da física. Mas o que são essas leis? Elas são as
descrições feitas por cientistas sobre como Deus governa o mundo agora, na
esfera física. A postulação dessas leis presume a presença de Deus
(Capítulo 1). Ainda assim alegam que Deus não pode fazer outra coisa no
futuro distante.
Na verdade, a expressão “enquanto durar a terra” apresenta uma barreira
impenetrável, além da qual esses cientistas não podem ver ou extrapolar. A
extrapolação futura passa para o “tempo ideal”, uma irrealidade. Perguntamo-
nos o que iria acontecer se os mesmos processos físicos continuassem a
funcionar de modo indefinido. Todavia, do ponto de vista cristão, sabemos
que a extrapolação é apenas uma questão conjectural, pois o pressuposto da
continuidade é inválido.
PENSAMENTO CRISTÃO E NÃO CRISTÃO
A extrapolação até o futuro distante nos dá um bom exemplo da diferença
entre o pensamento cristão e não cristão.[159] Cristãos e não cristãos são na
prática inconsistentes. Há muitas formas de cosmovisões e compromissos
religiosos e não religiosos. Há formas de teísmo fora do cristianismo (o islã,
por exemplo) e há formas de panteísmo, panenteísmo, politeísmo e
espiritismo, bem como variados compromissos ateístas. Em prol da
simplicidade e contraste, consideremos duas posições em uma forma “pura”
ou idealizada, a saber, cristianismo consistente e ateísmo consistente.
O cristão espera pela segunda vinda de Cristo. O ateísta espera pela
continuação sem fim do universo — como ele é agora. Segundo esse
conceito, não pode haver segunda vinda. Eis uma diferença decisiva. Mas
para entender como a ela surge e opera, precisamos ir mais devagar.
O cristão aprendeu da Bíblia sobre a verdadeira natureza de Deus e sobre o
fato de que ele rege o mundo segundo sua palavra. A imanência (presença) de
Deus no mundo, incluindo a criação do homem à sua imagem e a revelação
redentora e graciosa de si mesmo a nós em Cristo nos dá confiança de que
podemos conhecer a Deus e vir a entender em parte seus caminhos ao
governar o mundo. Assim, o cristão de fato lida com a ciência moderna com
a confiança de que ela consiste em observar como Deus governa. O cristão
pode extrapolar para o futuro baseado na constância de Deus e a fidelidade de
Deus à própria palavra.
Todavia, o cristão também sabe que ele não é Deus e não lhe pode ditar como
agir. Deus é transcendente e imanente. O cristão sabe de Gênesis 8.22 e
outras passagens que o mundo presente não durará para sempre no futuro. O
tempo da segunda vinda de Cristo trará a transformação radical e a ruptura da
ordem presente. Portanto, toda extrapolação para além desse tempo se torna
um “tempo ideal”, uma discussão de como as coisas pareceriam se Deus
postergasse a segunda vinda até um período posterior.
O ateu também usa pressupostos sobre as leis divinas para o mundo, mas eles
diferem dos pressupostos cristãos. É comum o ateu dizer que as leis são
impessoais. Que efeito isso tem em seu pensamento sobre o futuro do
universo? Isso significa que o ateu imagina que o sistema presente continuará
indefinidamente, sem interrupção.
No entanto, se as leis realmente fossem impessoais, elas sequer seriam leis.
Poderiam ser qualquer coisa. A irracionalidade está no fundo do pressuposto.
Se as “leis” vieram do vácuo, por que deveríamos ter qualquer esperança de
que correspondam ao que a mente humana pode pensar ou imaginar? É como
se uma planta na terra tentasse alcançar o pensamento de um ser humano, ou
pior, o pensamento de um marciano. Por que devemos esperar que o sol se
erguerá amanhã, só porque o vimos antes? Talvez as leis prevalentes na
memória humana mudem e nossa memória do passado esteja completamente
sem fundamentos. Ou, caso nossa memória esteja sem problemas, talvez as
leis mudem amanhã. Talvez a luz nunca retorne ou uma abóbora iluminada
de Halloween substitua o sol! Uma vez abandonada a ideia do Deus pessoal e
fidedigno, pouco falta para que nossos pesadelos mais estranhos aconteçam.
O ateu precisa ignorar essa dificuldade e crer a despeito de seu entendimento
das leis. Além disso, o ateu precisa saber que não há outras leis pertinentes à
extrapolação em que ele se baseia.
Deixe-me ilustrar. Na termodinâmica, entropia é um conceito técnico usado
para medir a quantidade de desordem em um sistema. A Segunda Lei da
Termodinâmica diz que em um sistema físico fechado, a entropia nunca
diminui, e o sistema com entropia inicialmente baixa tende a evoluir em um
sistema de alta entropia.
Assim, se então tomarmos todo o universo visível e o tratarmos como um
sistema fechado, prediremos que ele aumentará em entropia até alcançar um
estado final de entropia muito alta, o que tomará a forma da “morte térmica”
— a energia estará uniformemente distribuída e indisponível para o trabalho
útil. Muito antes desse ponto terminal, os seres humanos não terão energia
disponível para sustentar a vida. É uma figura tenebrosa.
Entretanto, quais pressupostos incidem nessa conclusão? Um exemplo é a
presunção de que todo o universo visível consiste em um sistema fechado.
Isso é verdadeiro? O universo não está “fechado” à ação divina. O ateu se
protegeu com a expressão “sistema físico fechado”, o que foca na causalidade
física em operação no mundo criado. Todavia, mesmo no nível estritamente
físico, não se pode dizer o que acontece nas bordas distantes do universo
visível, porque só se pode observar a essa distância de forma turva. E não se
pode garantir que a “visão” de alguém seja capaz de detectar todos os tipos
possíveis de contribuição física. Nem pode garantir a inexistência de
contribuições pequenas e difusas por perto, pois são tão pequenas que
escapam da medição. Algumas décadas atrás, alguns cientistas na verdade
sustentaram um “estado estacionário” do universo em que átomos de
hidrogênio ou partículas elementares poderiam ser criadas do nada em um
ritmo bem lento por todo o cosmo visível.
Segundo, suponha que outra lei afete a Segunda Lei da Termodinâmica.
Suponha, por exemplo, que outra lei diga que a entropia tende a aumentar nos
primeiros estágios de expansão do universo visível, mas que lentamente a
tendência ao aumento seja desacelerada, ou mesmo revertida. A
desaceleração pode ser tão gradual que ainda não foi detectado e não será
detectado até o futuro distante.
Terceiro, suponha que outra “lei” diga que o universo é controlado por um
Deus pessoal. Este Deus normalmente valida a Segunda Lei da
Termodinâmica, mas, sempre que agrada a seus propósitos pessoais e
racionais, ele faz o comportamento do universo diferir da Segunda Lei.
A maior parte dos cientistas ateus reagiria de forma bem diferente à terceira
sugestão. As duas primeiras sugestões podem ser encaixadas no pressuposto
ateísta geral das leis impessoais, enquanto a terceira não se encaixa. Mas a
reação forte mostra que o ateu afirma pressupostos sobre a natureza da lei.
Como ele sabe que esses pressupostos estão certos? Ele viu “por trás do véu”
e verificou não haver Deus pessoal e que as leis são impessoais? Ele precisa
alegar saber o que na verdade não sabe.
Além disso, como pode um ateu julgar o que é provável entre possíveis leis
diferentes? É possível julgar probabilidades como o lançamento de dados,
porque já pensamos em seu governo parcial por leis específicas. Mas como
julgamos quão provável é o universo consistir em um sistema físico fechado
ou que a Segunda Lei da Termodinâmica um dia se reverta? Se conhecemos a
Deus e sabemos que fomos feitos à sua imagem, temos alguma esperança de
poder em muitos casos opinar sobre o que é mais provável. Mas sem ter Deus
por trás das possibilidades de leis específicas que poderíamos imaginar, como
saber? O ateu pode estar disposto a admitir que não pode saber se perdeu
algum fato importante em sua extrapolação. Na teoria, ele admite suas
limitações. Mas sem Deus ele parece não ter uma maneira de avaliar a
extensão das limitações e se tem a menor chance de estar certo.
Hoje se sabe que a Segunda Lei da Termodinâmica é mais complicada que
meu resumo acima. Não deveríamos dizer literalmente que a entropia nunca
diminui, mas que estatisticamente ela quase nunca o faz — e que quaisquer
decréscimos pequenos e passageiros logo serão superados e revertidos. Mas
como sabemos se outras leis ainda estão por trás das estatísticas? Alguma lei
desconhecida influencia a estatística de forma que, no decorrer do tempo, a
expressão descritiva “quase nunca” se mostrará cada vez menos precisa? Ou
podemos imaginar que Deus possa provocar uma exceção estatística em uma
situação particular para cumprir seus propósitos pessoais?
Cristãos e ateus concordam que a Segunda Lei da Termodinâmica mais ou
menos se sustenta. Mas a aparente “concordância” é forrada por diferenças
que surgem por concepções diferente sobre o conceito da lei. Uma ideia mais
ampla de lei sempre está por trás da estrutura de pressupostos que orienta a
consideração de uma lei em particular e o juízo de sua aplicabilidade, em
particular na aplicabilidade além dos limites mais comuns e conhecidos.
Podemos resumir algumas diferenças ao afirmar cristãos e ateus podem ter
pontos de vista diferentes da sobre a transcendência e a imanência da lei. Para
o cristão, a transcendência e imanência da lei expressam a transcendência e
imanência do Deus pessoal. O Deus pessoal é cognoscível por nós, criados à
sua imagem. Daí a possibilidade de obter conhecimento genuíno da lei. A
partir da confiança na fidelidade de Deus e no conhecimento de seus
propósitos mais amplos, podemos fazer boas estimativas sobre como suas leis
poderiam se aplicar mesmo em casos onde extrapolamos. Sempre temos a
qualificação de que apenas Deus é Deus, não nós. Ele transcende nosso
conhecimento e pode nos surpreender.
Para um ateu, a transcendência leva à irracionalidade vazia. Por que deveriam
existir leis e por que deveriam ser elas acessíveis ao homem? Por que deveria
a mente humana se harmonizar com as leis impessoais lá fora? Na verdade,
Deus cria a mente humana e ordena as leis, mas o ateu não admite isso. O
ateu imagina que as leis só estão ali, contra um pano de fundo de
inexplicabilidade. Há uma irracionalidade última que transcende as próprias
leis.
Ao mesmo tempo, o ateu precisa conhecer as leis físicas de alguma forma, o
que significa que as leis precisam ser acessíveis à sua mente. Elas precisam
conter algum tipo de imanência. Quando tomou conhecimento das leis, o ateu
precisou conhecê-las com perfeição e de forma exaustiva, a fim de extrapolá-
las até o infinito. O ateu conhece em algum nível o caráter provisório de toda
a ciência, mas afirma o que sabe como se o conhecesse de forma absoluta e
cabal. Se a lei é impessoal, então talvez seja subpessoal e, assim, caiba no
alcance do domínio humano. (Note que o ateu ainda depende da confiança
dada por Deus e do impulso em direção ao domínio.) O ateu então pode fingir
para si ter alcançado um domínio total e divino. Ele compreendeu tudo que
pode ser compreendido, ou pelo menos tudo que precisa ser compreendido,
com precisão quase infinita. A precisão infinita é necessária porque mesmo
pequenos erros iniciais resultam em diferenças imensas quando extrapolada a
trilhões de anos no futuro. A impessoalidade da lei habilita o ateu a se sentir
capaz de “ficar por cima”, subjugar e reivindicar precisão infinita.
É possível perceber as tensões aqui. A afirmação da impessoalidade da lei
resulta em uma falsa transcendência da lei que então faz a lei inacessível. A
afirmação de conhecer a lei com perfeição também envolve a falsa
imanência, porque a ciência é provisória. Nem a versão da transcendência e
da imanência do ateu realmente funciona.[160] Mas elas são próximas o
suficiente para cooperar a fim de criar uma ilusão, porque os conceitos
verdadeiros da transcendência e imanência de Deus são distorcidos em uma
direção idólatra e se refletem na transcendência e imanência da lei divina.
A forma precisa da distorção idólatra influencia o conceito que as pessoas
têm das leis. Os animistas, como vimos, não se dedicam à pesquisa científica,
porque temem ofender os espíritos. Os espíritos criam a situação em que as
leis provavelmente não existem, mas, se existissem, seriam inacessíveis. Já o
pensamento científico moderno costuma distorcer a lei a fim de torná-la
subpessoal. Por ser subpessoal, não se pode dialogar com ela ou parar de
cooperar. Ela faz o que ele quer: controla o universo sobre o qual o ateísta
agora se assenta como senhor.
O pensamento ateu possui dois efeitos sutis. Primeiro, torna o ateu um
idólatra, responsável pela própria rebelião contra Deus a despeito de saber a
verdade. Podemos pensar que o lado humano e pessoal é só um efeito, mas a
forma idólatra de pensar também surte efeito sobre outras áreas do
conhecimento. O ateu se persuade de que o mundo continuará
indefinidamente no futuro por meio da operação das mesmas leis físicas. Seu
resumo científico do sentido das leis difere do resumo cristão, porque a
impessoalidade da lei distorce seu juízo.
12. O papel de Cristo como redentor na ciência

O pecado infectou os seres humanos. Ele infecta todo ser humano nascido no
mundo e os infecta profundamente. Infecta a mente e os produtos da mente,
incluindo a ciência. Como encontramos um remédio?
O CUMPRIMENTO DO DOMÍNIO POR CRISTO
Precisamos de redenção na ciência porque a ciência, como empreitada
humana, apresenta os efeitos do pecado. O pecado sob a forma de idolatria,
bem como formas pequenas de pecado entre os cientistas profissionais, como
ciúmes, rivalidade e falsificação ocasional de evidências, afetam o caráter do
trabalho científico. Na verdade, pelo fato de o conceito pessoal sobre a lei
científica formar a estrutura orientadora do trabalho cotidiano da ciência, a
corrupção idólatra da lei científica infecta o trabalho científico de modo
extensivo. Os efeitos mais devastadores ocorrem quando são sutis. Os não
cristãos não cogitam com perversão total, mas pensam com um conceito
distorcido da lei que ainda está próximo da verdade e toma emprestados
elementos da verdade.
A Bíblia indica que Deus não ficou indiferente diante de nossa miséria; ele
enviou a redenção por meio de Cristo: “Porque, se nós, quando inimigos,
fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho, muito mais,
estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida” (Rm 5.10).
Deus não enviou um livro de receitas ou uma filosofia, mas seu Filho. E seu
Filho não se manteve distante das pessoas necessitadas. Ele se tornou
homem. Comeu com publicanos e pecadores.
A abrangência completa da redenção provê respostas a todos os danos da
queda, incluindo o domínio humano. Depois da queda, o homem continua a
ter impulsos em direção ao domínio, mas esses impulsos são distorcidos pela
megalomania e opressão dos semelhantes. O verdadeiro domínio precisa de
restauração.
O Novo Testamento indica que Cristo veio como o último Adão, alguém
semelhante a ele. Jesus fez o que Adão falhou em fazer e se tornou o lídera da
nova humanidade (Rm 5.12-21; 1Co 15.12-28,42-49). Muitas passagens
repetem a linguagem de domínio adâmico do salmo 8 e a aplicam a Cristo:
“Todas as coisas sujeitaste debaixo de seus pés” (Hb 2.7,8; Sl 8.6; 1Co 15.24-
28; Ef 1.22).[161] Jesus Cristo é a segunda pessoa da Trindade, o Deus de toda
a eternidade. As passagens em questão dizem algo sobre sua humanidade.
Como homem, ele ressurgiu dentre os mortos. Como homem, ascendeu ao
Pai. Como homem, recebeu domínio do Pai como recompensa de sua obra.
Em Efésios 1.22, a linguagem sobre domínio ecoa a linguagem do salmo 8
sobre domínio adâmico e segue imediatamente após a ressurreição de Cristo e
a sua sessão à destra do Pai:
... o qual exerceu ele em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos e fazendo-o sentar à
sua direita nos lugares celestiais, acima de todo principado, e potestade, e poder, e
domínio, e de todo nome que se possa referir não só no presente século, mas também
no vindouro. E pôs todas as coisas debaixo dos pés e, para ser o cabeça sobre todas as
coisas, o deu à igreja... (Ef 1.20-22)
No versículo seguinte, Paulo indica que Cristo “a tudo enche a todas as
coisas” (1.23). A linguagem de encher ecoa o mandamento de Gênesis 1.28
“enchei a terra”. Cristo por meio de sua ascensão e do reino cumpriu ambos
os aspectos do mandato criacional em Gênesis 1.28 — o aspecto envolvendo
encher a terra, e o outro sobre o exercício de domínio (“enchei a terra e
sujeitai-a…”).
Cristo também indica esse triunfo nas palavras bem-conhecidas da Grande
Comissão: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto,
fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28.18,19). “Toda a autoridade”
indica o domínio completo. O domínio serve como fundamento da difusão
universal do evangelho e do discipulado. Ele envolve submissão e obediência
a este detentor de autoridade. Em outras palavras, o discipulado enche a terra
com seres humanos à imagem de Deus.
Podemos nos perguntar se a linguagem da autoridade pertence à natureza
divina ou à humana de Cristo. Com respeito à natureza divina, Cristo é Deus
e governa todo o universo desde toda a eternidade (Hb 1.3a). Sua autoridade
é completa e universal. A Grande Comissão pressupõe a realidade de sua
divindade. Mas o enfoque não parece estar aqui, e sim na natureza humana. O
texto diz: “Toda autoridade me foi dada”. A comcessão da autoridade do Pai
pertence naturalmente aos acontecimentos da ressurreição, ascensão e
entronização de sua natureza humana à destra do Pai. Atos 2.33, por
exemplo, fala de Jesus “tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo”
em conexão com a ascensão. Os dons do Pai se seguem como consequência e
recompensa das conquistas efetuadas na carne, em particular a crucificação e
ressurreição. Em Mateus 28.18, 19, a concessão de autoridade também é a
base da missão: “Ide, portanto...”. A palavra “portanto” também sugere que a
autoridade é “dada” no momento da ascensão. O triunfo de Cristo na carne,
em sua natureza humana, conduz à recompensa e consequente missão na
terra. (Note que o reino presente de Cristo à destra de Deus é tanto o reino do
Filho, a segunda pessoa da Trindade, e um reino que cumpre a promessa
sobre o filho humano de Davi que reinaria [Is 9.6,7; At 13.33,34]. Jesus
retém a sua natureza humana em seu estado exaltado.)
A Grande Comissão também inclui o aspecto de “encher a terra”. Em sua
afirmação conclusiva, Cristo diz: “Eis que estou convosco todos os dias até à
consumação do século”. A expressão “convosco” indica sua presença e
indiretamente sugere que ele em pessoa “enche” o mundo. Mas também
vemos um “enchimento” progressivo. Mediante o progresso da Grande
Comissão, Cristo “encherá” o mundo com seus discípulos, com quem ele está
presentede modo especial. Ele irá, portanto, encher o mundo com eles como
seus representantes e embaixadores.
Com certeza, o cumprimento do mandato criacional (ou cultural) chegou de
forma surpreendente, a saber, por meio do feito de um único homem. Mas
este único homem representa a nova humanidade e por meio da união com
ele outros também exercem o domínio universal: “E, juntamente com ele
[Cristo], [Deus] nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares celestiais em
Cristo Jesus” (Ef 2.6). A linguagem de estar “sentado” à destra de Deus
implica autoridade e governo. A posição celestial do assento implica que o
governo é universal. Do mesmo modo, em Apocalipse, Cristo promete uma
posição de governo, mas agora é no futuro: “ Ao vencedor, dar-lhe-ei sentar-
se comigo no meu trono, assim como também eu venci e me sentei com meu
Pai no seu trono” (Ap 3.21).
Com Efésios 2.6, a linguagem de governança de Apocalipse 3.21 mostra o
bem-conhecido padrão já/ainda não da escatologia do Novo Testamento. Por
ter Jesus triunfado, seu povo já toma parte do seu triunfo. Mas as implicações
do triunfo ainda estão se desenrolando, de tal forma que temos esperanças
ainda a serem realizadas o futuro, ainda por vir. O cumprimento
característico de dois polos se aplica ao chamado mandato cultural de
Gênesis 1.28, o mandato de encher a terra e subjugá-la. A tarefacomeçou a
ser cumprirda em Cristo como cabeça representativa da nova humanidade.
Mas ainda está por vir sua completa realização nos membros individuais da
nova humanidade.
A questão do mandato cultural é importante para nossos propósitos porque
inclui o chamado para exercer domínio. E o domínio, como temos visto,
inclui a pesquisa científica.
Mas agora, já que Cristo cumpriu o mandato cultural, a pesquisa científica
precisa ser repensada. Se o mandato já foi cumprido em todos os aspectos,
teríamos de dizer que a ciência já está no fim. Sua tarefa acabou. Mas a ideia
dúplice de “já” e “ainda não” quer dizer que algo ainda pode ter restado. O
que resta de todo modo flui do que já foi cumprido. Isto é, o mandato
cultural, e com ele a tarefa da pesquisa científica, ainda se aplica a seres
humanos, mas ele se dirige a eles de uma forma nova, já que Cristo
completou o mandato em seu triunfo representativo.
O cumprimento do mandato cultural por Cristo se expressa não só na esfera
real de governo, mas na esfera profética de sabedoria e entendimento. De
acordo com Efésios 1.21, 22, Cristo governa sobre tudo, como último Adão
(“debaixo dos pés” ecoando Sl 8.6). Esse é o aspecto real. Mas ele também
possui toda a sabedoria: “... o mistério de Deus, Cristo, em quem todos os
tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos”. (Cl 2.2,3). Esse é o
aspecto profético. Cristo se compara a Salomão, de forma a indicar sua
superioridade mesmo sobre a grande sabedoria de Salomão:
A rainha do Sul se levantará [i.e., a rainha de Sabá mencionada em 1Rs 10.1-13], no
Juízo, com esta geração e a condenará; porque veio dos confins da terra para ouvir a
sabedoria de Salomão. E eis aqui está quem é maior do que Salomão. (Mt 12.42;
Lc 11.31).
Cristo é o Salomão final. Salomão só nos deu uma figura, só o gosto
preliminar do que poderia ser. No final, ele falhou. Fracassou por conta de
seus pecados. Ele era um “tipo” ou pré-figura do que viria por meio de
Cristo, seu maior descendente.
CRISTO, O CIENTISTA FINAL
A sabedoria pertence a Cristo de maneira inata com respeito à natureza
divina. Como Deus, ele conhece tudo desde o começo. Mas a comparação
com Salomão mostra que ele também é sábio de maneira consumada com
respeito à natureza humana. Então, de novo, devemos relacionar sua
sabedoria ao mandato cultural e à tarefa da ciência. O cientista busca a
sabedoria e o domínio relativos ao mundo natural. Cristo, por sua posição de
governo e sabedoria, conquistou as duas coisas de modo pleno. Em termos
fortes: Cristo é o cientista final e arquetípico!
No entanto, minha afirmação sobre Cristo não deve transformar nosso
entendimento de Cristo; em vez disso, deve transformar nosso entendimento
da ciência. A corrupção e a idolatria na ciência se manifestam em especial no
fato de os cientistas raras vezes perceberem sua necessidade de Cristo na
esfera da ciência. A ciência precisa de redenção porque transforma a lei
científica em um ídolo (Capítulo 1). Só Cristo pode prover a redenção:
“E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro
nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12).
“Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai
senão por mim” (Jo 14.6).
“…sem mim nada podeis fazer” (Jo 15.5).
A redenção da ciência, pelo que parece, não acontece apenas com uma
“mágica” distante e arbitrária que move uma varinha e conserta o que está
errado. Ela ocorre quando Cristo se torna nossa sabedoria e nosso governante,
e conquista o que falhamos por causa do pecado. Daí em diante, então, nossas
conquistas seguem os passos dele. Como em questões de santificação
pessoal, também com respeito à ciência, nos tornamos imitadores em
comunhão com Cristo. A ciência na terra se torna um processo de conhecer a
Cristo (Fp 2.8-10) e de participar mais profundamente de sua sabedoria.
Ou isso é que deveria ser. E talvez seja o que de fato ocorre em alguns casos,
com cientistas cristãos devotos (ainda que eles mesmos estejam aquém do
ideal). Contudo, isso não parece ocorrer hoje com a maioria dos cientistas
praticantes. Assim, como podem eles um dia ter sucesso? Como pode a
ciência avançar? Como já vimos no Capítulo 1, os cientistas prosperam em
grande medida a despeito de si mesmos! Eles prosperam ao continuar crendo
em Deus e em seus pressupostos sobre a lei científica, ao mesmo tempo em
que negam e descreem. Agora precisamos estender essa observação para
incluir não só Deus, o Pai, mas Deus, o Filho — o Deus Encarnado como
Redentor.
A redenção alcançada por Cristo rendeu fruto. Ele concede bênçãos mesmo a
quem ainda permanece em rebelião consigo. Por causa da rebelião, não
merecemos ter a habilidade e a capacidade herdada das gerações passadas
assim abençoadas. Não merecemos o tempo livre e a prosperidade
necessários para construir um aparato de medição sofisticado, nem o tempo
livre e professores nos ajudando a estudar e desbravar as camadas de teorias
científicas mais sofisticadas pouco a pouco. Se, ainda assim, temos benefícios
quando merecemos o contrário, recebemos uma bênção redentora. Isso não
significa que nós mesmos como indivíduos recebemos a salvação pessoal de
Cristo mediante a fé. No caso dos não cristãos, há um tipo de sombra dessa fé
na confiança que se pode receber e usar sem merecer — embora nossa
confiança seja distorcida pela ingratidão e orgulho.
SABEDORIA
Acima de tudo, como parte da bênção divina sobre quem não merece, os
cientistas recebem sabedoria. Nem todos possuem a sabedoria salvadora para
conhecer a Cristo em nível pessoal e se submeterm a ele. Mas o que têm,
receberam: “Aquele que aos homens dá conhecimento não tem sabedoria? O
SENHOR conhece os pensamentos do homem, que são pensamentos vãos”
(Sl 94.10,11). O contexto da afirmação de Salmos 94.11 parece geral. Não só
o Senhor ensina o conhecimento salvífico a algumas pessoas, mas todo o
conhecimento delas provém do Senhor. O conhecimento advém do ensino do
Espírito Santo: “Na verdade, há um espírito no homem, e o sopro do Todo-
Poderoso o faz sábio” (Jó 32.8). A expressão “espírito no homem”, com “e”
minúsculo, indica o espírito humano. Mas o original hebraico não tinha letras
maiúsculas ou minúsculas. Além disso, a linha paralela, “o sopro do Todo-
Poderoso” indica que o entendimento humano depende de uma origem e
dádiva divinas. Quer a primeira linha designe o espírito humano quer não, a
segunda linha sugere que o Espírito divino, o Espírito Santo, está por trás do
dom de conhecimento dado ao espírito humano.
Deus realmente nos dá todo o conhecimento que temos? Algumas pessoas
podem estar dispostas a dividir o conhecimento em duas partes: uma de fonte
sobrenatural e a outra natural. Quando Deus fala do topo do monte Sinai, essa
é a fonte sobrenatural de conhecimento. Quando o cientista trabalha com
experimentos, ou imagina as implicações de uma equação da física, ou deriva
as implicações de uma teoria da química, recebe conhecimento da natureza.
Há, então, duas fontes distintas aqui? Sim, podemos receber instrução de
mais de uma forma, e a fonte sobrenatural como o monte Sinai se destaca
como algo espetacular e inexplicável.
Entretanto, as fontes menos espetaculares e mais explicáveis também são
derivadas de Deus. Ele governa sobre o comum e o extraordinário. Sustenta o
aparato experimental com suas propriedades. Ele também é o Senhor da
lógica, dos próprios processos de raciocínio usados pelos seres humanos. A
origem da lógica está na autoconerência de Deus e em sua lealdade a si
mesmo. A lógica se derrama sobre o mundo por meio de Deus, o Filho, a
Palavra de Deus, Como a Palavra, ele é a razão divina por trás do mundo e o
original refletido por toda a razão humana. Ele é a sabedoria de Deus, de
acordo com Colossenses 2.3.
Na verdade, o prólogo do Evangelho de João, quando designa Cristo a
Palavra (grego logos) pode estar aludindo não só às palavras pronunciadas
por que Deus ao criar o mundo, mas também ao pensamento grego sobre a
ordem racional que rege o mundo. A palavra grega logos, traduzida por
“palavra” (NVI) em João 1.1-14 pode designar não só uma expressão verbal,
mas também uma norma ou razão. Os estoicos especulavam sobre a razão
como um princípio não só da mente humana, mas também como o
supprimento da lei da natureza.[162]
Não só o que parecer acidental, mas também o necessário é derivado do
plano de Deus. O que parece acidental procede da liberdade da escolha de
Deus enquanto ele cria e governa o mundo. O de aparência necessária é
necessário por refletir a autocoerência do caráter divino. Assim a própria
necessidade, incluindo as necessidades da lógica, demonstra o caráter de
Deus.[163]
Cientistas cristãos e ateus, dependem do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A
dependência do Pai se dá como fonte da lei estável. Do Filho — a Palavra do
Pai e a verdadeira Lei do universo — a verdadeira fonte de racionalidade e
lógica. Também dependem dele para prover, mediante seu sacrifício, os
benefícios e as bênçãos que não merecem. E dependem do Espírito Santo
para lhes ensinar. Mas os ateus não se conscientizam dessa dependência.
Assim, confirmamos a verdade expressa pelo apóstolo Paulo em um de seus
sermões aos pagãos:
... o qual, nas gerações passadas, [Deus] permitiu que todos os povos andassem nos
seus próprios caminhos; contudo, não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo,
fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo o vosso
coração de fartura e de alegria (At 14.16,17).
Deus também concede chuva, comida e vários confortos e prazeres mesmo às
pessoas que não o reconhecem e se rebelaram contra ele. Deus é “benigno até
para com os ingratos e maus” (Lc 6.35), “... porque ele [Deus] faz nascer o
seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5.45).
Podemos agora estender esse princípio à área da ciência. Deus concede
insights científicos e sucesso científico e tecnológico mesmo a quem se
rebela contra ele. Ganhamos o que não merecemos.
13. A palavra de Deus na ciência

Que papel a palavra de Deus desempenha na ciência? Na verdade, ela


desempenha um papel central. No Capítulo 1, vimos que a ciência estuda a
palavra de Deus que governa o mundo. A expressão “lei científica” significa
de fato a palavra de Deus, ou a formulação de um cientista humano sobre sua
aproximação da palavra original e divina.
CONHECER A DEUS
Quanto mais se conhece um ser humano, mais pode se prever o que ele fará,
ou o tipo de coisa que pode fazer. Do mesmo modo, quanto mais se conhece
a Deus, mais se pode prever como ele governa o mundo. Desse modo mais se
prediz ou descobre sobre as leis científicas.
Assim, não estarão os cristãos em melhor posição para prever ou descobrir as
leis científicas? Como os não cristãos podem fazê-lo? Os não cristãos
continuam a conhecer a Deus e depender dele, mesmo quando verbalmente o
negam. Assim, eles são capazes de ter alguma noção do que Deus pode fazer.
Eles podem adivinhar de antemão a forma provável que uma lei científica
pode tomar.
Podemos colocar de outra forma. Sendo o homem criado à imagem divina, o
homem pensa “como Deus” pela própria natureza. Seus pensamentos de
alguma forma imitarão a Deus mesmo sem estar consciente do processo. Por
isso, os não cristãos fazem progressos na ciência porque vivem no mundo de
Deus, em que a lei se conforma à racionalidade divina e porque a mente das
pessoas se conforma à racionalidade de Deus.
Todavia, os conceitos distorcidos sobre Deus, ou o substituto idólatra para
Deus sob a forma de um alei científica impessoal, podem provocar efeitos
deletérios sutis, como no caso de predições amplas sobre o futuro do
universo. Ademais, se os praticantes da ciência se desviassem demais da
crença na racionalidade da lei, a ciência poderia sofrer um dano mais sério,
como se pôde ver quando consideraramos as dificuldades postuladas pelo
estudo científico para um animista ou um aderente do hinduísmo védico de
Shankara.
TRANSCENDÊNCIA DE DEUS E SURPRESA
Sabemos que mesmo os seres humanos não são perfeitamente previsíveis.
Nenhum dos dois é Deus. A transcendência divina proclama: “Meus
pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os
meus caminhos, diz o SENHOR, porque, assim como os céus são mais altos do
que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos
caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos”
(Is 55.8,9). A superioridade de Deus significa que a ciência leva em conta o
trabalho, a inspiração e as dádivas divinas, não só o saber humano.
Os cristãos que estudam a Bíblia conhecem melhor a Deus. Eles podem ter
alguma vantagem nas suposições de como Deus governa o mundo. Mas a
Bíblia, como João Calvino nos lembra, se dirige à pessoa comum, não às
perguntas do especialista em ciência. A Bíblia se concentra em nos contar
sobre como Deus agiu ao executar a salvação. Todas as informações contidas
nela são verdadeiras. Todavia, a Bíblia pode não nos contar os detalhes de
como Deus governa o mundo por meio de sua providência.
Mesmo assim, ela nos dá algumas indicações do desafio de entender as obras
de Deus na providência. Em Jó 38—41, Deus desafia a sabedoria de Jó e a
habilidade de julgar o que Deus deveria fazer em sua vida ao perguntar se Jó
entende a criação e providência divina: a medição da terra (38.5), a separação
estável entre mar e terra seca (38.8-11), a vinda de neve e saraiva (38.22) e
assim em diante. Indiretamente, ele sugere que entender essas coisas pode ser
desafiador e complexo.
A Bíblia também indica que o papel especial que a segunda pessoa da
Trindade tem na criação e na providência ao designá-la Palavra (Jo 1.1-3).
Contra o pano de fundo da narrativa de Gênesis 1, o título “Palavra” indica
que a segunda pessoa da Trindade ficava por trás das palavras particulares de
comando faladas por Deus em Gênesis 1. Deus governa o mundo com sua
sabedoria (Pv 8.22-31). A seguir, o Novo Testamento revela que o Filho é a
incorporação da sabedoria (1Co 1.30; Cl 2.3).
Podemos obter essa sabedoria e entender a fundo o governo de Deus sobre o
mundo? Ela pode ser alcançada em parte. Mas a palavra divina sobre o
governo só pode ser compreendida como expressão daquele que é a Palavra,
que é Deus e estava com Deus (Jo 1.1). A palavra do governo de Deus é ao
mesmo tempo uma palavra comandada por Deus, o Pai, e uma palavra em
união com Deus, o Filho: “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém
conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”
(Mt 11.27). No fim, a relação entre o Pai e o Filho é “revelada” em parte, mas
permanece um mistério incompreensível. Sabemos e entendemos, mas
sabemos em parte; não “compreendemos” no sentido de dominar o tema.
Senso esse o caso relativo ao Filho e ao Pai, o tema concernente ao governo
do mundo pela palavra de Deus se deriva dele, emitido pelo Pai em união
com o Filho. Daí, a incompreensibilidade da palavra divina. Compreender o
mundo seria compreender a sabedoria da palavra de Deus — que excede à
compreensão.
MILAGRE
O que se deve pensar sobre a ocorrência de milagres? Já discutimos essa
questão com brevidade no Capítulo 1. Alguns milagres, como a ressurreição
de Cristo, são totalmente inexplicáveis quando se usam as leis científicas
atuais. Outros, como a divisão das águas do mar Vermelho, usaram meios,
como “um forte vento oriental que soprou toda aquela noite” (Êx 14.21), mas
ainda parece quase impossível por meios comuns. Ainda os de outro tipo,
como a flecha que feriu Acabe (1Rs 22.34) não parecem demandar nenhuma
exceção às leis científicas conhecidas, são “coincidências” controladas por
Deus.
A Bíblia nos mostra esses milagres por razões teológicas. Eles apresentam
Deus em ação de maneiras surpreendentes e extraordinárias para trazer
salvação ou juízo, para demonstrar seu poder e fidelidade, e suscitar temor e
maravilhamento nos observadores humanos. Não importa muito exatamente
como Deus realizou seus atos; o importante é que ele os fez. Assim, embora
Êxodo 14.21 mencione em um ponto que Deus usou um forte vento oriental,
outras descrições não mencionam o detalhe, apenas afirmam a ação:
“Repreendeu o Mar Vermelho, e ele secou” (Sl 106.9).
Deus é livre para agir de forma comum ou para realizar sua obra com meios
extraordinários. Os teólogos usam as terminologias “causa primária” e “causa
secundária”. Deus causa primária permanece ativo ao suscitar todos os
acontecimentos no mundo, comuns e extraordinários. Mas no caso de
acontecimentos comuns, ele age em conjunto com causas secundárias. Como
Salmos 104.14 diz: “Fazes crescer a relva para os animais”. No crescimento
da relva Deus é a causa primária. Mesmo assim, os cientistas podem
investigar muitas causas secundárias: a maneira em que a água e os nutrientes
viajam pelo solo até as raízes e à relva, e como a fotossíntese acontece de
forma a converter a energia da luz em energia química para sustentar a vida.
Em outros casos, Deus pode agir à parte de qualquer causa secundária, como
na criação inicial do mundo (Gn 1.1).[164]
Muitas pessoas da atualidade supõem que “a ciência refutou o miraculoso”.
Depende do conceito pessoal de ciência. Se, como os materialistas modernos
creem, o mundo é nada mais que átomos em movimento, nada alem de uma
máquina em que não há Deus, então os milagres em sentido bíblico são
impossíveis. Se algo estranho acontece, pode permanecer inexplicável, mas é
só estranho, não um ato divino. Já na cosmovisão cristã, a lei científica é a
melhor descrição humana para se aproximar da palavra de Deus que rege o
mundo. A palavra divina governa a regularidade das estações, da noite e do
dia. Mas ela também governa os casos excepcionais: neles, Deus pode se
desviar da regularidade até então observada. Atos especiais de salvação ou
juízo fornecem a razão especial para Deus se desviar do comum. O desvio é
tão racional quanto a racionalidade dele continuar a governar o mundo de
forma regular a maior parte do tempo.[165]
Todas as obras de Deus se harmonizam com racionalidade em um plano
unificado para o mundo inteiro e a totalidade da história. Seu objetivo, “na
dispensação da plenitude dos tempos” é “fazer convergir nele [Cristo] [...]
todas as coisas, tanto as do céu como as da terra” (Ef 1.10). Como o plano
completo se harmoniza está nas mãos dele. Em muitos casos pode significar
que as mesmas regularidades gerais, observadas pelos cientistas, se aplicam
também a acontecimentos incomuns. A flecha que alvejou Acabe pode ter
obedecido com perfeição às leis comuns da mecânica e aerodinâmica. O
dilúvio pode ter ocorrido de acordo com todas as leis usuais da mecânica,
hidrodinâmica e meteorologia. Alguns dos acontecimentos ainda nos seis dias
da criação podem ter envolvido o uso do que hoje conhecemos por leis como
meios para alcançar o fim determinado por Deus.
Todavia, precisamos sempre manter a qualificação: depende de Deus. Ela não
destrói a ciência, apenas aumenta seu caráter provisório. Sabemos o
suficiente para servir a Deus no mundo. Contudo, não temos nenhuma
garantia divina de que podemos conhecer tudo que pode ser conhecido sobre
as origens pelo progresso científico.
GOVERNO DIVINO PLENO

Os leitores já podem perceber o que penso: Deus governa o mundo por sua
palavra de forma ampla. Ele governa o grande pano de fundo e os detalhes.
Nada lhe escapa. A palavra divina inclui em seu escopo não só as
regularidades gerais e os padrões abrangentes, também a sucessão de dia e
noite. Sob seu controle se encontram, além disso, os detalhes — como a
flecha que acertou Acabe em uma abertura entre as peças de sua armadura.
Dois versículos diferentes afirmam diretamente a completude do governo de
Deus:
nele [Cristo], digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o
propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade...
(Ef 1.11)
Quem é aquele que diz, e assim acontece, quando o Senhor o não mande? Acaso, não
procede do Altíssimo tanto o mal como o bem? (Lm 3.37,38)
Esses versículos são confirmados por uma série de outros que mostram o
controle divino sobre muitos eventos específicos: acontecimentos em geral
(Ne 9.6; Sl 103.19; Dn 4.34,35; At 17.28; Rm 11.36; Ef 4.6; Cl 1.17; Hb 1.3);
o mundo físico (Gn 41.32; Êx 9.26; Sl 104; Is 40.12; Am 4.7; Na 1.3;
Mt 5.45; At 14.17); animais (Sl 104.21; 136.25; Dn 6.22; Mt 6.26; 10.29);
nações (Js 21:44; Jz 6.1; 1Cr 16.31; Sl 33.10; 47.7; 75.6,7; Is 10.5; 40.15;
Dn 2.21; 4.17; Am 3.6; Hc 1:.6); seres humanos individuais (Ed 8.31;
Jó 14.9; Sl 34.7; 37.23; 118.6; 139.16; Pv 16.9; 20.24; 21.1; 29.13; Is 64.8;
Jr 10.23; Dn 3.17; Jo 9.3; At 18.9; Tg 4.15); atos humanos livres (Êx 12.36;
Ed 6.22; 7.6; Jr 7.27; Ez 11.19,20; 36.27; Fp 2.13); atos humanos
pecaminosos (Gn 45.5; 50.20; Êx 21.13; 1Sm 2.24,25; 2Sm 12.11,12;
16.21,22; 1Rs 12.15; Jo 19.11; At 2.23; 3.18; 4.27,28; Ap 17.17); obra do
“acaso” (Jó 36.32; Pv 16.33; Jn 1.7; At 1.24-26); o diabo e seus anjos
(1Sm 16.14; 1Rs 22.20-23; Jó 1.6,7; 2Ts 2.9-11); e desastres (Is 45.7;
Lm 3.38; Am 3.6; Rm 8.28).
A questão mais difícil trata das ações pecaminosas das pessoas más. Como
podem elas estar sob o controle divino sem impugnar sua bondade?[166]A
crucificação de Cristo oferece a resposta. Herodes e Pôncio Pilatos agiram de
acordo com a inclinação de seu coração: eles foram responsáveis e culpados
por condenar um homem inocente. Mas também é verdade que eles fizeram
“tudo o que a tua mão e o seu plano predeterminaram” (At 4.28). Os teólogos
reformados apresentam uma discussão mais extensiva de outras questões, ao
afirmar que podemos confrontar aqui um dos muitos mistérios que a grandeza
incompreensível de Deus apresenta à mente humana.[167] Devemos aceitar o
ensino bíblico sem tentar rebaixar Deus ao nosso nível, dominando a ideia do
governo de Deus e tentando forçar a realidade nos confins da mente humana.
Direi um pouco mais sobre a responsabilidade humana no próximo capítulo.
No entanto, uma debate mais extenso pode tomar um livro inteiro.
CONTINGÊNCIA
O governo de Deus sobre as generalidades significa que as leis científicas
procedem dele. As regularidades vistas vêm da palavra de Deus, que as
especifica. Mas também precisamos considerar as particularidades. Deus
movimenta sua mão no universo apenas de modo geral, sem envolvimento
com as particularidades? O exemplo da flecha que feriu Acabe indica o
contrário. Na verdade, os versículos listados acima, com muitos outros,
indicam que Deus controla os detalhes bem como as generalidades ou
regularidades. Ele criou Adão e Eva, não só a “humanidade”. Ele formou
Davi no ventre de sua mãe e determinou o número de seus dias (Sl 139.13-
16). O governo divino sobre as particularidades é importante como expressão
da magnitude de sua soberania e de seu cuidado com as pessas, não apenas no
amplo curso do desenvolvimento histórico de toda uma civilização: “Não se
vendem dois pardais por um asse? E nenhum deles cairá em terra sem o
consentimento de vosso Pai. E, quanto a vós outros, até os cabelos todos da
cabeça estão contados” (Mt 10.29,30).
As particularidades afetam a ciência. No século XIX, pessoas impressionadas
com as regularidades se inclinaram na direção do determinismo mecanicista
pleno. Alguns (sendo LaPlace o mais famoso) alegaram que o
comportamento de todo o universo poderia ser calculado com exatidão,
bastava contar com informações suficientes sobre as posições e velocidades
de todas as partículas individuais.
No século XX, porém, a mecânica quântica parece ter colocado, para muitos
intérpretes, uma barreira permanente no caminho do determinismo físico. O
cálculo exato é impossível, não apenas por causa de limitações da medição,
mas porque a mecânica quântica afirma que acontecimentos contingentes de
nível quântico são intrinsicamente contingentes e probabilísticos. Não há
como, mesmo em princípio, prever um único acontecimento contingente,
apenas médias estatísticas de muitos acontecimentos. Esses eventos
singulares ocorrem em nível microscópico. Entretanto, as pequenas
disparidades iniciais aumentam com o tempo, de forma o batimentos das asas
de uma borboleta na América do Sul pode selar a diferença entre o tempo
chuvoso ou ameno um mês depois no Hemisfério Norte.
O controle divino sobre as particularidades, incluindo as contingências,
garante que as próprias contingências ainda pertençam a seu plano. Isso
garante que os acontecimentos contingentes em nossa vida e no curso das
civilizações não surpreendem nem frustram a Deus. E se as contingências
acabassem de outro modo e os pais de minha mãe nunca se encontrassem? E
se um tiro perdido ou uma infecção tivesse acertado George Washington nos
primeiros estágios da Guerra da Independência (dos EUA) e, como
consequência, os ingleses a tivessem vencido? São muitas as possibilidades e
Deus detém o controle de todas. Não há uma pedaço de poeira extraviado ou
uma molécula independente no universo.
O controle de Deus também garante que o cientista pode estudar a
racionalidade de padrões mesmo nas áreas do mundo físico em que a
contingência parece mínima. Pode-se dizer que a contingência não é
contingente para Deus, pois ele a planejou. Pelo fato de a fissão particular de
um átomo radioativo ter sido planejada, sem dúvida ela aconteceria quando
ocorreu. Não obstante, a certeza pertence só a Deus, não a nós — criaturas
finitas. A mecânica quântica mostra que os seres humanos jamais contarão o
conhecimento físico completo ou a previsibilidade plena. Assim, a mecânica
quântica dá testemunho da distinção entre Criador e criatura, e as limitações
de criaturas.
REGULARIDADE, EXCEÇÕES E A QUESTÃO DOS ACONTECIMENTOS REPETÍVEIS
A totalidade do domínio divino provê a base firma para a ciência, de forma
que o mundo, até os mínimos detalhes, se conforma perfeitamente à palavra
do governo de Deus. Nenhum detalhe se encontra apenas “ali”, fora do
propósito ou controle de Deus. A incompreensibilidade de Deus implica que
a ciência precisa reter seu caráter provisório. Podemos conhecer a verdade e
devemos reconhecer que em cada verdade sobre o mundo de Deus também
existem mistérios.
Além disso, se concebermos as regularidades como a preocupação principal
da ciência, o foco nas generalidades se estreita mais que a palavra de Deus.
Ela não se propõe a estudar a palavra de Deus completamente, apenas os
aspectos direcionados às regularidades. As singularidades dos
acontecimentos particulares, como a crucificação e a ressurreição de Cristo,
permanecem além de seu escopo, mesmo que também sejam controladas de
forma total pela palavra divina.
Na verdade, embora algumas pessoas tentem definir a “ciência” em sentido
mais rigoroso exclusivamente como o estudo das regularidades, a curiosidade
humana não se satisfaz só com as generalidades. Por exemplo, interessamo-
nos pelo passado, mesmo que o passado seja composto de muitos
acontecimentos que nunca serão repetidos exatamente da mesma forma. A
ciência física não se concentra na história humana, mas conta com
subdivisões que focam no passado de processos físicos. Assim, temos a
geologia histórica — que tenta reconstruir a história passada das rochas —, a
biologia histórica — a tentativa de reconstruir o passado de animais e plantas.
Há também a cosmologia histórica (embora seja designada assim raras vezes)
— que procura reconstruir o passado de larga escala do universo e das
galáxias.
Nos casos da astronomia e cosmologia, embora muitas questões permaneçam
sem respost sobre o tempo imediatamente após o Bigue-Bangue, muitas
subáreas menos desafiadoras possuem explicações boas e razoavelmente
coerentes. Elas se harmonizam ou com a teoria da criação madura, do dia
analógico ou com outras teorias que propõem ter Deus levado mais que seis
dias de 24 horas nos atos originários da criação.
No caso da biologia histórica, contudo, encontramos uma dificuldade. Os
principais cientistas não cristãos acham provável que a vida tenha se
originado de uma vez. Temos aqui um acontecimento único e que não pode
ser reproduzido com facilidade em um laboratório moderno. Aqui, a
influência da cosmovisão e da concepção da lei afeta de maneira mais direta.
Se alguém é materialista, se sua cosmovisão alega existir apenas a matéria em
movimento, então se “sabe” que a “protocélula” autorreplicadora veio a
existirr de alguma forma. Espera-se, em parte pela defesa dos pressupostos
materialistas, que isso “de alguma forma” envolva uma série de etapas, todas
com probabilidade não muito baixa. Mesmo que a probabilidade geral seja
muito baixa, o fato ocorreu. Coisas estranhas acontecem. Interpreta-se o
evento de acordo com o materialismo. De alguma forma, as leis impessoais
devem fornecer alguma explicação, pois não há outro modo de esclarecer o
ocorrido de acordo com a cosmovisão materialista.
Em contrapartida, admita-se a crença na origem da primeira protocélula e dos
acontecimentos em todo o universo exatamente de acordo com a palavra de
Deus. A palavra divina especifica as regularidades e quaisquer exceções.
Levam-se em conta as regularidades quando são examinados números amplos
de acontecimentos. Mas esse consistiu em um acontecimento único e não há
como afirmar com certeza como Deus o fez. Talvez ele tenha usado as
regularidades ou realizado algo excepcional e inexplicável.
Se Deus fez algo excepcional na primeira vez que a vida foi criada, talvez ele
tenha relaizado algo excepcional ao criar outros tipos de vida. A origem de
cada novo grande tipo de planta ou animal pode ter representado um tipo de
ponto de virada decisivo e jamais repetido. Aqui de novo, depara-se com um
acontecimento único, em lugar de um padrão geral replicável em laboratório.
Deus criou diferentes tipos de vida com múltiplos atos distintos de criação,
usando só materiais não vivos na construção? Ou Deus modificou a vida já
existente e criada antes?
Percebe-se que a introdução da possibilidade de exceções altera a natureza de
juízos sobre o passado, especialmente nos casos em que nos confrontamos
com eventos ocorridos uma única vez. O passado da astronomia contém
muitos acontecimentos que dizem respeito à origem de estrelas individuais ou
galáxias que nunca se repetem, mas se repetem de forma similar com outras
estrelas. Então se pode encontrar certa regularidade. Podemos esperar que, ao
aplicar as leis físicas presentes e os modelos matemáticos, mostremos de
modo aproximado o que aconteceu.
A primeira aparição de novos tipos de coisas vivas nos confronta com um
desafio mais difícil, pois não se pode dizer de antemão exatamente quão
similares são os acontecimentos distintivos que envolvem as novas aparições.
Com base no entendimento do começo do século XX e no papel da
informação contida no DNA e no RNA, suspeita-se que cada introdução de
um grande novo tipo envolveu a incorporação de informações. Mas não se
tratava da mesma informação em cada caso. Poderia cada situação envolver a
exceção das regularidades do governo de Deus? Caso mantenhamos a
cosmovisão cristã, não se pode excluir essa possibilidade de antemão. Ou
talvez, se soubéssemos o suficiente, poderíamos observar padrões regulares
ao examinar a origem de vários e novos tipos. Assim, é possível pensar nos
termos da regularidade semelhante à lei que rege os muitos exemplos da
origem de novos tipos. O estudo da origem de novos tipos não equivale de
forma exata a olhar para a ciência moderna conduzida em um laboratório
moderno com acontecimentos repetíveis.
Retornaremos à consideração da origem de coisas vivas com detalhes no
Capítulo 19.
14. Verdade na ciência e na vida

Podemos agora expandir nossa visão além da ideia das regularidades e da lei
científica ao considerar acontecimentos particulares irrepetíveis.
Como vimos no capítulo anterior, Deus governa completamente. Ele
determina as regularidades e os particulares. As regularidades nos levam à
discussão da lei científica. Mas o que dizer das particularidades? O que são?
Nenhuma lei geral é suficiente para explicar a maçã específica na minha
geladeira ou para explicar Napoleão. Leis gerais são pertinentes para entender
maçãs e elas explicam alguns aspectos dos particulares. Todavia, elas nunca
explicam absolutamente tudo. Toda vez que explicamos como a maçã chegou
à minha geladeira, acabamos por expandir a tarefa, por termos de esclarecer
os acontecimentos antecedentes à nossa história; como a maçã cresceu
exatamente em uma árvore e como o colhedor de maçãs a recolheu e assim
por diante. As leis gerais não bastam por si mesmas.
A palavra de Deus unifica os dois aspectos, o geral e o particular. Ela
especifica ambos. Fala para especificar generalidades, como ao prometer que
a semeadura e a colheita não cessarão (Gn 8.22) e para especificar
particulares, como ao predizer a morte de Acabe em batalha (1Rs 22.20) ou a
dispersão dos discípulos no tempo da crucificação de Jesus (Mt 26.31 ao citar
Zc 13.7). O aspecto generalizador da palavra de Deus leva ao estudo
científico das leis científicas. O aspecto particularizador leva a quê?
Aparentemente, conduz a verdades comuns sobre os acontecimentos e o
estado das coisas comuns. Acabe morreu na batalha de Ramote-Gileade; os
discípulos se dispersaram quando Jesus foi preso.
A palavra de Deus especifica esses acontecimentos e o estado das coisas; isto
é, ela especifica a verdade sobre o mundo. Por conta do caráter total do
governo divino, a especificação é total e a verdade é total. Toda verdade é o
que Deus especificou por meio de sua palavra.
ATRIBUTOS DIVINOS DA VERDADE
No Capítulo 1 descobrimos que a lei de Deus possui atributos divinos, porque
é Deus falando. Do mesmo modo, a verdade possuiu atributos divinos,
porque é Deus falando. Na verdade, apenas nos expandimos além da área da
lei para incluir a menção das particularidades por Deus. Na cosmovisão
cristã, a origem da verdade não procede em primeiro lugar dos seres humanos
que observam o mundo. A verdade existe na mente divina e no plano de
Deus, mesmo antes da fundação do mundo. Verdade, pode-se dizer, é o
conhecimento de Deus. ela inclui o que ele sabe de si mesmo, que certamente
é divino, e o que ele sabe sobre o mundo e está incluído em seu plano. Seu
plano é total, de forma que toda a verdade está em seu plano ou em seu
autoconhecimento. Toda a verdade é divina. Já deveríamos ter suspeitado
disso quando Jesus afirmou: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”
(Jo 14.6). E em outro lugar: “A tua [de Deus] palavra é a verdade” (Jo 17.17).
Esses versículos de João se concentram na verdade redentora. Mas não
deveríamos nos surpreender com a aplicação do princípio, de forma mais
ampla, a qualquer verdade.
Apressamo-nos para adicionar que o conhecimento humano da verdade é
limitado e não divino. O ponto de vista humano não define a verdade, porque
Deus, não o homem, é o padrão da verdade e sua origem.
Podemos passar por todos atributos divinos e verificar se eles se estendem
para incluir não só a lei, mas a verdade.
Onipresente e eterno
Em primeiro lugar, considere a onipresença. As leis são as mesmas em todos
os lugares, pela própria natureza da lei. O mesmo não é tão óbvio a respeito
das verdades particulares, em oposição às gerais. Cada situação distinta conta
com viabilidade e verdades próprias. No momento, é verdade que estou
sentado em uma cadeira no meu escritório; minha esposa, em contraste, pode
estar em pé em casa. Entretanto, se é verdade que estou sentado em uma
cadeira, também é verdade para minha esposa que está em casa que estou
sentado. A verdade descreve uma situação em uma localização particular no
tempo e no espaço. Mas a verdade assim afirmada é verdade em qualquer
localização que escolhamos afirmá-la.
Precisamos prestar atenção ao tempo e ao espaço para determinar o que
alguém quer dizer. “Eu estou sentado” depende de a quem o “eu” se refere e
ao tempo em vista. Se descobrirmos o tempo e as circunstâncias, podemos
dizer que a afirmação é de fato verdadeira. Assim, a afirmação, entendida
como referência a um tempo e um lugar em particulares, é verdade em
qualquer lugar que escolhamos ir. A verdade nos segue em todo lugar; ela
está presente em todo lugar.
E a verdade está presente em todos os tempos no futuro. O passado pode
parecer mais questionável, caso o mundo permita a contingência genuína. O
ser humano situado no passado não pode predizer de antemão se eu estou
sentado agora ou não. Todavia, se amanhã às 16 horas eu estiver sentado, é
verdade hoje que amanhã às 16 horas eu estarei sentado. Não parecemos
capazes de escapar da impressão de que se algo é verdade, então é verdade!
E, pelo menos para a forma comum de pensar, esta mesmice não
impossibilita a existência de decisões humanas contingentes.
A verdade, então, é eterna. Precisamos distinguir entre a eternidade que
significa perpetuidade dentro do tempo da eternidade que significa estar de
alguma forma “acima” do tempo? Na discussão sobre a lei, a diferença entre
os dois é difícil, de fato, impossível de compreender plenamente. Mas
podemos suspeitar que a verdade é eterna. Ela não está sujeita à mudança. Ela
é imutável.
Imaterial e invisível
Em seguida, a verdade é imaterial e invisível. Vemos que a maçã é vermelha.
Não vemos com nossos olhos físicos a verdade de que a maçã é vermelha.
Sabemos isso. A conclusão também é aparente do fato de eu saber a verdade
de que a maçã é vermelha mesmo quando paro de olhar para a maçã. O
caráter da verdade é ideacional, não físico.
Onipotente
Em seguida, considere o atributo de poder. Será que a verdade exerce poder
sobre o mundo? Observo uma maçã vermelha e digo: “Isto é uma maçã
vermelha madura”. Se o que digo realmente é verdade, corresponde ao estado
de coisas no mundo. Na verdade, corresponde com perfeição, não no sentido
de afirmar tudo em detalhes exaustivos, mas no sentido de não ser deficiente
ou incorreto no que diz. A correspondência entre a verdade e o mundo é
perfeita, e sugere que um determina o outro perfeitamente. A determinação
perfeita significa controle perfeito, poder perfeito. Mas qual determina o
outro? Será que a verdade determina o mundo ou o mundo determina a
verdade?
À primeira vista, muitas pessoas podem pensar que o mundo determina a
verdade. Na experiência humana, observamos o mundo e da observação
descobrimos a verdade a seu respeito. A ordem em nossa experiência se
movimenta do mundo para a verdade. Mas outra pessoa pode ter observado a
maçã antes de mim. E ainda uma terceira pessoa pode ter predito o
amadurecimento da maçã a partir de observações ainda anteriores, que
precedem a aparência de vermelhidão.
A predição humana, é claro, é falível. Mas depende de regularidades no
mundo. Assim retornamos à questão de regularidades, ou verdades gerais, e
elas parecem preceder qualquer caso particular que se conforma à
regularidade. A regularidade governa uma instância em particular, não o
contrário.
Ademais, sempre sabemos as verdades no contexto de outras verdades, que
dão significado a qualquer verdade particular. Conhecemos o que o
“vermelho” é, em parte das experiências anteriores com maçãs. A verdade de
“esta maçã é vermelha” não possui um significado isolado, apenas relativo ao
conhecimento de maçãs e cores vermelhas. O conhecimento por si mesmo
pressupõe regularidades de tipos bem básicos que significam haver maçãs e
que certas características conhecidas nos permitem (talvez com erros
ocasionais) reconhecer uma maçã quando vemos uma e agrupá-la com outras
instâncias do mesmo tipo. A relação entre um universal (“maçã”) e um caso
particular (“esta maçã”) pressupõe regularidades gerais e particulares que as
manifestam.[168] Assim a verdade particular “esta maçã é vermelha” pode ser
alcançada apenas se for coerente com outras verdades, sobre outras maçãs e
outros exemplos de cor vermelha. Esta verdade goza de harmonia com outras
verdades.
A harmonia é anterior a qualquer outra instância particular dentro da
harmonia, na medida em que as instâncias não podem criar a harmonia por si
mesmas. Isso implica que, pelo menos em algum nível, a verdade é anterior
ao caso particular. O caso particular se conforma à verdade, em lugar d o
contrário. Então a verdade possui poder sobre o mundo. E o poder é perfeito,
o que quer dizer onipotente. Por ser Deus a verdade, tudo que ele cria se
conforma à verdade.
Nossa hesitação sobre a onipotência da verdade decorre de nossa formulação
da verdade ser de fato secundária. No entanto, a verdade existe antes de a
formularmos. A origem da verdade está na mente divina. Essa verdade, a
verdade que pertence a Deus, possui poder sobre o mundo.
Transcendente e imanente
A verdade é transcendente e imanente. Em particular, quando pensamos na
harmonia de várias verdades, a harmonia transcende qualquer situação. Ao
mesmo tempo, aplica-se à situação, de forma que é imanente em sua
aplicação.
Pessoal
A verdade possui muitos dos atributos clássicos de Deus. A conclusão não
deveria surpreender, se percebermos que a verdade é uma expressão da
palavra divina. A palavra de Deus controla não só as generalidades, como
vimos no caso da lei científica, mas as particularidades, isto é, os casos de
verdade particular sobre situações particulares.
Como no debate anterior sobre a lei científica no Capítulo 1, muitos tentam
evitar reconhecer Deus mediante a negação de seu caráter pessoal. No caso
da verdade, alegam ser ela impessoal, em vez de pessoal. Ela só “está aí” de
alguma forma.
Assim, aqui, como ocorreu com a lei, pode-se observar em resposta que a
verdade é racional. Demonstramos sua racionalidade quando a alcançamos
com a mente; e pressupomos sua racionalidade quando buscamos a verdade e
esperamos de antemão que ela se encaixe em nossa mente. A verdade
também é semelhante à língua, na medida em que pode ser expressa em
línguas humanas. Essas duas características, racionalidade e expressão em
linguagem, pertencem aos seres humanos como pessoas. Ainda que alguns
neguem isso em teoria, nosso tratamento prático da verdade como racional e
alcançável em sentido linguístico afirma seu caráter pessoal.
Verdade e o mundo
A mesma preocupação surge aqui como na lei científica: estaríamos
“deificando” um aspecto do mundo. Deus criou o mundo e cada coisa criada
é finita e limitada. Mas a verdade sobre ela não é limitada da mesma forma.
A verdade permanece para sempre, ao passo que o animal criado perece
depois de um tempo. A verdade transcende o mundo, algo particularmente
evidente quando focamos na unidade expressa na harmonia entre muitas
verdades particulares.[169] Essa unidade não pode ser explicada como o
produto de qualquer fato no mundo.
Justa, boa, pura, amorosa e generosa
Podemos agora considerar os atributos morais de Deus, como justiça e
bondade — atributos de verdade. Nossa consideração anterior da lei científica
(Capítulo 1) preteriu a moralidade. A lei científica trata de regularidades do
mundo material, não do mundo moral. Todavia, a verdade pertence aos dois
mundos. Por exemplo, o mandamento “Não furtarás” expressa uma verdade
moral: a verdade de que os seres humanos não devem furtar. Cada princípio
moral, ou mandamento, também é uma verdade sobre padrões morais. A
verdade é justa, boa, pura, amorosa e generosa porque expressa a justiça,
bondade, pureza, amor e generosidade gozados pelos princípios morais.[170]
É claro que se pode escapar desta conclusão ao negar a existência de qualquer
tipo de padrão moral absoluto. Alguns círculos pós-modernos comumente o
negam. Mas isso é inconsistente. Como o cientista precisa crer em Deus na
prática real da ciência, também o ser humano comum precisa crer na
moralidade quando reage com indignação moral. A pessoa que acabou de ser
roubada ou ofendida reage com uma condenação moral instintiva, mesmo que
seu relativismo moral teórico lhe diga não haver motivo para sua reação.
Ademais, a reação pressupõe padrões morais absolutos, não relativos, já que
a condenação do ladrão e do ofensor não espera para perguntar se a outra
pessoa possui uma cultura ou ambiente diferentes, em cujo contexto ela
estaria perfeitamente justificada pela ação. A condenação moral pode com
certeza fazer juízos incorretos por causa da falibilidade dos seres humanos.
Errada ou não, ela pressupõe a aplicação dos padrões a outra pessoa, não só a
si.
Vemos aqui os efeitos inescapáveis do conhecimento humano continuado de
certo e errado. Mesmo em meio à rebelião contra Deus, as pessoas continuam
a conhecê-lo e a seus padrões morais:
Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais
coisas praticam, não só as fazem, mas também aprovam os que assim procedem
(Rm 1.32).
Quando, pois, os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade
com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da
lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus
pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se... (Rm 2.14,15)
A VERDADE COMO TESTEMUNHA DIVINA
Em suma, os seres humanos defrontam Deus e seus atributos sempre que
defrontam a verdade, pois a verdade é o que Deus pensa e especifica em sua
palavra. A verdade é um aspecto inescapável do pensamento e discurso;
assim, Deus é inescapável. Nosso conceito de verdade pressupõe Deus e a
afirmação de qualquer verdade particular pressupõe Deus. Como os
incrédulos escapam? Eles creem em um Deus de verdade e ao mesmo tempo
eles suprimem a verdade em injustiça (Rm 1.18): “... porquanto, tendo
conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram
graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-
se-lhes o coração insensato” (Rm 1.21).
Pode-se agora entender melhor a situação dos relativistas que negam existir a
verdade ou outros relativistas que negam a acessibilidade da verdade. A
atmosfera secular moderna já ensinou às pessoas a suspeitar da
transcendência. Quando observam pontos morais cegos e a ignorância em
variadas sociedades humanas, elas podem concluir não haver rota para
transcendência. Negam a transcendência e então a verdade. A negação de
Deus e da verdade caminham juntas.[171]
RESPONSABILIDADE HUMANA
O controle divino sobre a verdade pode parecer para alguns afetar
indevidamente a liberdade humana. Se toda a verdade pertence a Deus, qual é
o espaço deixado para a independência humana? “... nele [Deus] vivemos, e
nos movemos, e existimos” (At 17.28).
Já consideramos no Capítulo 13 um pouco da evidência bíblica da soberania
total de Deus. Creio que a soberania é real e que a responsabilidade humana
também é real. A relação entre as duas envolve um mistério por causa das
limitações de nossa mente finita. Preciso deixar para outras pessoas o debate
mais completo, pois essas questões podem preencher volumes inteiros.[172]
Que as considerações a seguir bastem para o nosso contexto.
Primeira, quando afirmamos que a verdade possui atributos divinos e,
portanto, pertence à esfera de Deus, afirmamos com convicção a
incompreensibilidade da verdade como um aspecto da incompreensibilidade
divina. A responsabilidade humana, como uma questão da verdade, também é
incompreensível.
Segunda, é literalmente sem sentido tentar pensar na verdade ou no sentido
fora do plano, da sabedoria e da palavra de Deus. A responsabilidade humana
possui significado em relação à sabedoria divina. A remoção da
responsabilidade humana do controle de Deus a prova de significado. O
resultado seria então a evaporação de ideias significativas da humanidade e
da responsabilidade.
Terceira, a plenitude da verdade inclui muitas facetas. Considere o caso em
que certa manhã eu escolho uma gravata azul listrada em lugar de uma
gravata azul xadrez. Deus afirma, como parte de sua verdade, que eu vista a
gravata azul listrada. Ele também afirma que eu escolha vestir essa gravata.
Minha escolha é tão real quando o ato de vestir a gravata. Deus afirma um
estado de coisas (eu visto a gravata). Ele também afirma conexões causais
entre os estados de coisas. Eu visto a gravata agora porque mais cedo eu a
vesti; e mais cedo a vesti porque escolhi assim fazer.
Considere um exemplo crucial. Na misericórdia de Deus ele ordena que eu
seja salvo; também ordena os meios pelos quais eu serei salvo. “Todo que ele
creia não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). João 3.1 é verdade
divina, e afirma uma conexão inquebrável entre meios e fins, escolhas
humanas (“todo que ele creia”) e salvação (“tenha a vida eterna”). Todas
essas afirmações são verdadeiras, e são verdadeiras porque Deus as afirma
como parte de seu plano. A afirmação divina e a verdade de Deus, entendidas
de forma correta, não minam a responsabilidade humana, elas a apoiam. Os
problemas surgem só quando se tenta reduzir o sentido do mundo a um
aspecto. Se o reduzirmos aos destinos apontados por Deus, chegaremos ao
fatalismo. Se o reduzirmos às decisões apontadas pelo homem, chegaremos
ao orgulho humano por termos sido sãos o suficiente para nos salvarmos.[173]
Quarta, como observamos antes (Capítulo 13), Deus, a causa primária, não
compete com causas secundárias no mundo. Quando Deus usa um “forte
vento oriental” (Êx 14.21) para secar o mar, ele de fato o usa e o vento
oriental sopra, mas em níveis diferentes. O controle divino das questões
humanas afirma a realidade das causas secundárias dos seres humanos e do
ambiente.
Quinta, suspeito que algumas pessoas se incomodam com a ideia do controle
divino pela razão errada. Elas imaginam a liberdade humana como liberdade
independente de Deus. Mas essa “independência” pode estar perigosamente
perto do desejo de Adão e Eva do desejo de e tornarem independentes quando
comeram do fruto proibido: Satanás prometeu: “Como Deus, sereis
conhecedores do bem e do mal” (Gn 3.5).
Se pensarmos a respeito, até as pessoas da Trindade não agem “com
independência” umas das outras. Com respeito ao ministério encarnado, Jesus
disse: “Em verdade, em verdade vos digo que o Filho nada pode fazer de si
mesmo, senão só aquilo que vir fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o
Filho também do mesmo modo o faz.” (Jo 5.19). “As palavras que eu vos
digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as
suas obras” (Jo 14.10). O Filho não liga para a “independência”. Cada pessoa
da Trindade só age em harmonia com as outras.
Agora, o que dizer dos seres humanos? Será que eles agem de modo
independente de Deus? Possuem mais “liberdade” que o Filho? Seria
blasfemo pensar assim. A liberdade com o sentido independência consiste na
forma errada de pensar. Ela não se encontra na Bíblia e o caráter da liberdade
na Trindade sugere que, na verdade, o conceito de independência procede da
fonte mais nefasta!
15. Debates sobre a realidade: o caráter do
conhecimento científico

A filosofia moderna da ciência tem discutido extensamente o caráter do


conhecimento científico. Não podemos entrar em todos os detalhes dos
debates, mas podemos explorar com brevidade como uma cosmovisão cristã
se aplica à discussão. Com esse fim, precisamos simplificar; agrupamos as
principais interpretações sobre as cinco categorias principais: realismo,
idealismo, empirismo (incluindo o operacionalismo), pragmatismo e
relativismo pós-moderno.[174]
PRINCIPAIS INTERPRETAÇÕES OU ESCOLAS
O realista diz que a ciência descreve propriedades reais do mundo “lá fora”.
O conhecimento científico corresponde objetivamente às realidades do
caráter do mundo objetivo. O realista “crítico”, em distinção do realista
ingênuo, reconhece o caráter enganoso das aparências e que a ciência, na
prática, sempre é provisória e sujeita à revisão. No entanto, a ciência busca
uma descrição e explicação verdadeiras. Embora não possamos ter certeza
absoluta de suas descrições em algum caso particular, seguimos em busca da
verdade, e algumas descrições são verdadeiras sobre os fatos lá fora. Por
exemplo, descrevemos a matéria composta por átomos unidos por ligações
químicas, porque existem átomos e eles são mantidos por ligações químicas.
Em contrapartida, o idealista afirma que a ciência descreve a aparência das
coisas de acordo com a organização natural efetuada pela mente humana.
Nunca se alcança a “coisa em si”, o que está lá fora, apenas o que já está
organizada por nossa percepção e formas de pensar. Assim, o que acontece
na ciência? Uma descrição na ciência pode ser verdadeira como uma
representação dessa percepção já organizada. Descreve-se a matéria
composta por átomos por ser a forma razoável de pensar ao organizar os
fenômenos; contudo, os átomos não podem ser verdadeiramente considerados
existentes lá fora porque nunca os alcançamos, apenas seus efeitos em nível
fenomênico.
O empirista diz que a ciência estuda os acontecimentos e fenômenos da
percepção imediata e que as construções teóricas da ciência não descrevem
diretamente entidades reais, mas são um modo conveniente de resumir os
padrões nos dados empíricos.
Segundo o empirismo estrito, átomos são uma ficção conveniente para
organizar nosso pensamento sobre fenômenos em reações químicas.
Afirmações científicas, quando analisadas com propriedade, são de fato
afirmações sobre a regularidade nos fenômenos, não sobre a existência de
entidades metafísicas como os átomos.
Este ponto de vista contava com mais plausibilidade antes dos instrumentos
pelos quais se pode projetar visualmente a imagem de um único átomo. No
século XIX, ninguém podia “ver” átomos, e deduzia-se muito das
proporcionalidade constantes vistas em reações químicas ou no
comportamento dos gases. Afirmava-se a existência dos átomos, mas não
podiam ser vistos. Os empiristas apontavam com acerto que o postulado era
apenas uma proposição. Não podia ser rigorosamente provado. Daí era
possível afirmar com plausibilidade que os átomos seriam uma ficção
conveniente para explicar proporcionalidades. Agora, com microscópicos de
força atômica, podemos construir a imagem de um único átomo ou de um
pequeno número de átomos. As afirmações dos empiristas estritos sobre a
ficcionalidade dos átomos perderam a plausibilidade.
O pragmatista diz que a ciência não oferece conhecimento direto do mundo
como ele é, só uma ferramenta prática, ou meios, para alcançar o domínio
técnico do mundo. O valor da ciência está inteiramente no sucesso prático.
O relativista pós-moderno diz que a ciência é um produto social de grupos
com certa unidade social de propósito e base de conhecimento. O
“conhecimento” é relativo a um grupo, e grupos baseados em tipos diferentes
de pressupostos surgiram com um “conhecimento” diferente. Não há jeito de
avaliar grupos incomensuráveis.
A PLAUSIBILIDADE DO REALISMO CRÍTICO
À primeira vista, o realismo crítico aparenta mais compatibilidade com a
cosmovisão cristã. Cremos que Deus criou um mundo, não só os seres
humanos. O mundo é real. Deus nos criou de tal forma que podemos
conhecê-lo e conhecer seu mundo (criado à imagem divina). A realidade do
mundo e de Deus exclui outras posições. Em particular, o relativismo poderia
ser atrativo se não houvesse o Deus que consiste no padrão último e pode
avaliar grupos humanos com pontos de vista contrapostos. Idealismo,
empirismo e pragmatismo pareceriam inadequadamente restritivos ao não nos
permitir o conhecimento do mundo real lá fora. Eles confinam a ciência aos
fenômenos organizados pelo homem ou a dados empíricos e suas
regularidades.
Ademais, na prática a maioria dos cientistas tende a ser realista. Idealismo,
empirismo, pragmatismo e relativismo pós-moderno possuem o ar de
reflexões filosóficas retrógradas em relação à ciência e pronunciam com base
em insight filosófico o que tudo precisa significar. Mas o cientista médio se
vale mais do senso comum e crê só estudar o mundo exterior.
As três abordagens não realistas possuem dificuldades práticas e sérias em
alguns pontos. O relativismo pós-moderno possui poucas formas de justificar
o sucesso estupendo da ciência, em particular nas aplicações tecnológicas. Se
a verdade é de todo relativa a algum grupo humano, por que deveria o rádio
transistor funcionar em todas as culturas humanas? E como a afirmação sobre
o caráter relativo da verdade pode ser universalmente verdadeiro?
O empirismo e o pragmatismo sofreram um obstáculo quando foi investigada
no começo do século XX a estrutura interna do átomo e descobriram-se
evidências crescentes, em muitas direções diferentes, que confirmaram serem
os átomos entidades distintas, não apenas ficção conveniente. No século XIX,
enquanto os dados sobre os átomos permaneceram nas fronteiras da ciência,
eles podiam ser interpretados de forma empírica. Podia-se afirmar que o
conceito dos átomos representava apenas uma ficção conveniente, por serem
poucas as formas de testar a ideia de maneira direta. Todavia, no século XXI,
com a ciência plenamente consolidada, os dados são interpretados de forma
realista e coerente. O processo sugere que o empirismo é plausível em uma
área particular da ciência até a ciência progredir o suficiente para manter
confirmações oriundas de várias direções.
É difícil sustentar o idealismo por causa de como o mundo “dialoga”
conosco. Não é possível impor teorias ao mundo, ou opinar de uma só vez o
que o mundo fenomênico pode ser, com base no que a organização de nossa
psique nos diz. Em vez disso, sai-se a campo e mediante a experimentação
descobre-se como o mundo é de fato. Ademais, o idealismo, com algum
apoio da filosofia de Immanuel Kant, sofreu um obstáculo sério com a teoria
da relatividade geral. Kant presumiu que a geometria espacial consistia em
uma imposição da mente humana ao mundo. A geometria representava o
ditado da intuição humana. Entretanto, a teoria da relatividade geral
descobriu que o mundo atual apresentava sinais de geometria não euclidiana
(fora do padrão, do ponto de vista da tradição kantiana), que confundiram a
intuição humana.
Então se trata de uma vitória inequívoca do realismo crítico? Ele parece
vencer quando olhamos só para as deficiências das posições concorrentes.
Mesmo assim, não sejamos tão apressados. O estudo científico da percepção
aponta formas claras em que a capacidade humana de perceber de fato molda
o que vê. Uma série de ilusões de ótica demonstra que a retina e o cérebro
processam muitos padrões recebidos antes de eles chegarem à consciência.
Pode-se tomar como ilustração a experiência de assistir a um filme.
Experimenta-se o movimento contínuo na tela, quando na verdade a análise
cuidadosa do mecanismo do projetor cinematográfico revela mostrar a tela
uma série de figuras discretas e distintas com tanta velocidade que não se tem
consciência da discrição. Será que o idealismo ganha uma nova vida para a
afirmação desse fenômeno — percebe-se só o que já foi conformado ao
recipiente humano?
Ou considere a experiência de assistir a um show na televisão. Quando
ficamos à distância normal da tela de televisão com boa recepção, parecemos
ver uma figura contínua. Mas investigando a tela com uma lente de
ampliação nos mostra que ela é composta de pontos discretos coloridos.
Assim, o senso de continuidade é uma ilusão imposta pelo processo de
percepção?
Considere o terceiro exemplo. A despeito das pessoas cegas ou daltônicas, os
seres humanos enxergam o mundo em cores. A cor existe por causa da
organização da retina (em particular, as células-cone ou receptores de cor) e
do cérebros. Os morcegos “enxergam” à noite usando o sonar, não luz
visível. E se “víssemos” como morcegos ou “víssemos” usando luz
infravermelha? O mundo seria “visto” de forma diferente. Então o que é
“real”? É o mundo da cor contemplado à luz do dia, o mundo em preto e
branco percebido no crepúsculo ou o mundo que percebido pelo morcego na
noite totalmente escura?
O realista crítico pode responder de duas maneiras: dizer que todos esses
níveis são “reais” e que a realidade é “estratificada”, com conexões
complexas entre os níveis.[175] Esta abordagem se harmoniza com a
cosmovisão cristã. Mas, como a segunda alternativa, o realista crítico pode
responder que as complexidades da percepção apoiam o aspecto “crítico” do
realismo crítico. Pelo realismo crítico, vamos além de nossas impressões
iniciais. O “real” é o mundo como a ciência o descreve.
Se o realista crítico tomar a segunda rota, pode-se então perguntar: “Qual
ciência e em qual estágio histórico?”. A vermelhidão da maçã, que
pensávamos ser real, torna-se, em investigação ulterior, um fenômeno do
olho e do cérebro. O cientista nos diz que esses fenômenos são causados pela
realidade, a saber, as ondas de luz com comprimento de onda na parte
vermelha do espectro. Mas a ciência continua a avançar. Com a vinda da
teoria especial da relatividade, as ondas se tornam não ondas estáveis
(chamadas “éter”), mas ondas de descrição matemática complicada. A
descrição passa por transformações ao mudar entre “sistemas inerciais”
diferentes (i.e., estados diferentes de movimento para o observador da luz).
As ondas que antes pareciam “reais” se tornam “fenômenos” que o
observador particular pode medir e que muda quando se escolhe outro
observador em movimento com velocidade diferente.[176] De acordo com o
efeito Doppler, mesmo a cor da luz pode mudar dependendo da velocidade do
observador!
Com o advento da mecânica quântica,[177] as equações de luz que parecem
“reais” foram deslocadas com a teoria dos fótons, ou corpúsculos de luz,[178] a
“realidade” por trás dos “fenômenos”. Além disso, os átomos — “reais” do
ponto de vista de um engenheiro químico comum — tornam-se “fenômenos”
por trás dos quais há a realidade da descrição mecânica quântica de elétrons
difusos ao redor de um núcleo.
Como saber ter alcançado um nível “último” de descrição? Como saber se a
mecânica quântica não será, por sua vez, sucedida por algo que explica os
fenômenos com mais profundidade?
A mecânica quântica é particularmente problemática, porque Erwin
Schrödinger e Werner Heisenberg desenvolveram duas versões diferentes. As
duas abordagens depois se tornam matematicamente equivalentes; no entanto,
eles usaram dois pontos de partida muito diferentes, que sugeriam duas
interpretações filosóficas distintas. A abordagem de Schrödinger sugeria a
interpretação mais realista, porque ele representava um eléctron como uma
onda difundida ao redor de um núcleo atômico (mas a onda em questão
envolvia números complexos em lugar de números reais, o que ainda seria
incômodo para o realista convencional!). Ademais, ao desenvolver a equação
ele usou uma orientação intuitiva de uma figura realista de movimento de
onda ao redor do núcleo central de um átomo — desenvolvida antes por
Louis de Broglie. Em contrapartida, Heisenberg representava um elétron com
matrizes infinitas que simbolizavam quantidades experimentalmente
observáveis. O modelo de Heisenberg era mais semelhante ao empirismo. Na
verdade, Max Born e Heisenberg usaram de forma deliberada o empirismo na
busca da formulação correta, porque perceberam que o elétron não se
comportava como uma partícula macroscópica “real” — com posição e
impulso fixos.
Em suma, a representação matemática de Schrödinger parece apoiar a
interpretação realista, a de Heisenberg apoia a interpretação empirista. A
situação deveria perturbar realistas e empiristas, pois a equivalência
matemática das duas abordagens sugere que não haver diferença, ou pelo
menos que não podemos dizer, sobre qual delas representa a “realidade”.
Talvez a pergunta esteja errada. Ou talvez as equações da mecânica quântica
sejam a “realidade” e o elétron não seja nada mais que um rótulo conveniente
para a unidade conceitualizada nas equações (um ponto de vista mais
idealista).
REALIDADE COERENTE DA COSMOVISÃO CRISTÃ
Quando cremos que a palavra de Deus governa completamente o mundo,
temos um ponto de vista a partir do qual podemos começar a lidar com esses
dilemas. A palavra de Deus governa os fenômenos (foco empirista) e nossas
ideias sobre os fenômenos (foco idealista). Ele governa as regularidades dos
fenômenos (foco na lei) e quaisquer “realidades” que podem ainda estar
escondidas de nós (foco realista). Deus governa o uso prático dos fenômenos
(foco pragmatista) e as variações na percepção que podem ocorrer entre
grupos diferentes de pessoas (foco pós-moderno relativista). Ele governa as
diferenças de percepção entre quem enxerga as cores e os daltônicos, e entre
seres humanos e morcegos. Pelo fato de Deus ser sábio e de sua palavra
incorporar a sua sabedoria, todas essas coisas são significativas e “reais” em
algum sentido. Então por que deveríamos debater essas questões?
O REAL
[início tabela p. 203]
A palavra de Deus governa
{maçã vermelha, base humana neural em cones e cérebro, visão daltônica,
visão sonar dos morcegos, luz como ondas eletromagnéticas; luz como
corpúsculos quânticos, descrição matemática em mecânica quântica, teoria
futura “mais última”
[fim tabela p. 203]
Herman Dooyeweerd provê uma sugestão útil em suas reflexões sobre o
reducionismo.[179] Se as pessoas não reconhecem a Deus como origem de
tudo, ainda precisam lutar para explicar a coerência do mundo de Deus.
Assim, substituem Deus por um ídolo. No pensamento moderno, o ídolo é
muitas vezes intelectual: o princípio que alguém defende como a coisa mais
profunda sobre o mundo, e o resto do mundo deve ser explicado em seus
termos. O mundo é reduzido a um princípio ou um número de princípios
intimamente relacionados com uma única área da vida.[180]
Então encontramos tentativas de reduzir tudo ao aspecto material-físico,
biológico, psicológico ou social. O relativismo pós-moderno parece uma
redução ao aspecto social. (Ou em algumas formas envolve uma redução ao
aspecto linguístico, porque a linguagem é usada como ferramenta pela qual
observamos a relatividade de todos os pontos de vista humanos). O
empirismo parece uma redução à experiência sensível. O pragmatismo se
assemelha a uma redução ao aspecto técnico ou pragmático. O idealismo tem
a aparência de uma redução ao aspecto mental, psicológico ou perceptivo.
O realismo crítico é reducionista? Depende do que se quer dizer com isso.
Caso signifique apenas que há um mundo lá fora sobre o qual se pode
conhecer algo, então muitas cosmovisões fazem essa afirmação sem resolver
de fato as questões importantes. Caso signifique a necessidade de ultrapassar
a vermelhidão da maçã a fim de se chegar ao “real”, reduz-se o mundo a
qualquer ciência contemporânea, ou suposta ciência última, que diria estar no
fundo.[181]
A cosmovisão cristã mantém, em certo sentido, que o mundo não tem
“fundo”. A doutrina da criação a partir do nada (ex nihilo) nega a existência
da “matéria prima” eterna.[182] Jamais existiu “ali” nenhum tipo de matéria
antes de Deus começar a trabalhar. em vez disso, Deus criou tudo, não só a
estrutura no topo da matéria prima previamente existente. E Deus criou tudo
por sua palavra. A palavra introduziu a estrutura e o significado. A lei de
Deus é a estrutura continuada para o mundo. O mundo não possui
independência última da palavra ou lei de Deus, mas é totalmente dependente
dela. Entender o mundo não significa entender a matéria prima, pois isso não
existe. Significa entender o mundo governado pela palavra divina. E isso só
pode significar entender a palavra de Deus, pois essa palavra é a sabedoria
que dá racionalidade a tudo que vemos.
Em particular, quando se contempla a vermelhidão de uma maçã, vê-se com
exatidão o que a palavra de Deus especifica que se deve observar: um
fenômeno determinado pela palavra divina. E quando se pensa nisso, é tudo o
que se vê. Ao fazê-lo, observa-se a “realidade”, isto é, algo ordenado por
Deus, concorde com seus propósitos. O cientista também lida com realidade
ao refletir sobre ondas de luz e átomos. Todos os níveis consistem na
“realidade” por serem governados pela palavra de Deus coerente e sábia.[183]
Assim, como é possível nos enganarmos na análise do mundo? Nós nos
movemos entre esses níveis de realidade com confiança, porque Deus
governa a todos coerentemente. Às vezes a coerência toma formas
surpreendentes, como no caso da ilusão de ótica. De fato, percebe-se um
movimento contínuo quando assistimos a um filme e esse movimento
contínuo é real de acordo com a ordem divina. Então se encontra uma
surpresa mediante a observação dos detalhes técnicos das operações do
projetor. Sua operação também é real. O que se experimenta ao assistir ao
filme corresponde de modo complexo às figuras discretas no celuloide.
Alguém erra se imagina que a correspondência deva ser simples e direta: se
um nível conta com um movimento de aparência contínua, o outro também
deve ser assim.
As formas e os níveis da realidade são mantidos juntos pela coerência da
palavra divina, não pela artificialidade de tentar reduzir uma realidade em
outra. “Ele [o Filho] é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste” (Cl 1.17).
SUPERAÇÃO DE TEORIAS ANTERIORES
A apreciação da realidade multidimensional pode também explicar casos em
que a ciência posterior superou teorias científicas anteriores. O sistema
heliocêntrico de Copérnico substituiu o sistema geocêntrico de Ptolomeu. Os
dois sistemas reconhecem o padrão geral de movimento cíclico dos planetas.
Mesmo depois de substituído, o sistema de epiciclos de Ptolomeu continuou a
demonstrar uma correlação razoável entre cálculos matemáticos e
localizações físicas no céu. O sistema não estava errado ao notar as
correlações; mas foi simplista, e até certo ponto esteve errado, ao postular a
correlação direta entre a matemática dos epiciclos e a posição em três
dimensões.
Considere outro exemplo. Em um ponto anterior, alguns químicos pensaram
que na combustão a substância chamada “flogisto” escapava da substância
combustível no ar. Só depois de um esforço considerável eles abandonaram
essa teoria e adotaram outra — em que o oxigênio do ar era combinado com a
substância combustível. Eles estavam corretos em pensar em termos de um
elemento especial (“flogisto”), cujo comportamento seria análogo a outros
elementos químicos. Mas opinaram exatamente o contrário da verdade ao
postular que a combustão envolve a perda de um elemento no ar. Eles
perceberam a correlação e reverteram uma peça crucial ao tentar explicar os
detalhes. Mesmo a teoria anterior já contava com um grau significativo de
contato com a realidade.[184] Todavia, o entendimento precisava ser refinado a
fim de explicar os detalhes das correlações variadas entre elementos
químicos, formas variadas de combustão, o comportamento de componentes
gasosos no processo e a quantidade de elementos envolvidos em reações
variadas.
AFIRMAÇÃO DO COMUM
É importante afirmar a realidade de nossa experiência comum de maçãs.
Porém, depreciamos, com sutileza ou não, o nível comum de vivência. Nele,
esforçamo-nos e lutamos com grande parte do drama humano: amor e ódio,
riquezas e pobreza, lealdade e traição, adoração e apostasia. O drama humano
consiste em uma ilusão ou um vapor, uma bolha de espuma acidental
originada do oceano real da realidade inferior e descrita de modo científico?
Terá Deus nos concedido a beleza do pôr do sol ou só a confluência acidental
de efeitos no cérebro decorrente de causas físicas e únicas mas irreais? É a
beleza real ou é uma fraude que só nos mostra “epifenômenos” — uma
superfície cujo sentido real jaz sob a análise científica da luz como radiação
eletromagnética e cones e bastonetes na retina e processamento neural no
córtex visual?
A beleza é real; é a manifestação da beleza de Deus que fez o mundo para
refletir sua beleza. De tempos em tempos as pessoas reconhecem a beleza
real na experiência comum. Um dos meus amigos, quando mais jovem,
impressionou-se um dia de maneira tão intensa com a beleza de um campo
que se sentiu compelido à adoração. Entretanto, ele ainda não sabia que havia
alguém para adorar!
A beleza também aparece em explorações técnicas na ciência. Desde cedo na
minha vida eu me sinto fascinado pela beleza da matemática e, depois, da
física e de outras ciências. Essa beleza me atraiu ao estudo. Stephen Jay
Gould, ao terminar o último livro sobre a teoria evolucionista com
considerações mais pessoais, expressou com eloquência sua fascinação com o
mundo vivo e sua história, demonstrando seu deleite de forma também a
indicar a beleza por ele percebida:
... dificilmente um historiador natural, morto ou vivo, já falhou em localizar seu
deleite principal nos quebra-cabeças amáveis, a beleza encantadora e a complexidade
excruciante e intratabilidade de organismos reais em lugares de verdade. Nó nos
tornamos historiadores naturais porque amamos os dinossauros nos museus,
revolvemos o quintal em busca de besouros ou cheiramos as flores de uma centena de
deleites particulares. Assim, ansiamos saber os princípios gerais de como a extinção
em massa ajuda a elaborar os padrões da história da vida e a razão particular pela qual
Pete, o Protoceratope, pereceu nas areias do Gobi — e não nos satisfazemos até sabê-
los.
... nó nos importamos [com a vida de Charles Darwin] pela mesma razão pela qual
amamos ocapis, deleitamo-nos com a evidência fóssil de trilobitas e lamentamos a
morte do dodó. Nó nos importamos porque os amplos acontecimentos deveriam
acontecer, e acabaram por acontecer de certa forma. Algo indizivelmente santo, não
sei dizer de outra fora, subjaz à nossa descoberta e confirmação dos detalhes reais que
formam nosso mundo e também, nas áreas de contingência, asseguram minúcias de
sua construção na maneira que o conhecemos, e não de outra maneira em um trilhão
delas...[185]
A cosmovisão cristã, ao discernir o papel fundamental da palavra governante
de Deus, nos habilita a afirmar com confiança não só a realidade da beleza na
ciência, mas a realidade da experiência humana comum em todas as suas
texturas. A beleza do pôr do sol é real e não mera consequência “acidental”
das propriedades da luz, da atmosfera e do nosso sistema visual. Na verdade,
o nível “comum” goza uma centralidade no propósito total de Deus. Nele, e
não em outro lugar, vemos, ouvimos e entendemos os grandes pontos de
virada no plano de Deus, a saber: criação, queda, redenção e consumação. O
homem de fato goza um tipo de centralidade, qualquer que seja seu tamanho
físico em comparação ao tamanho de um superaglomerado de galáxias ou
qualquer que seja sua localização no terceiro planeta de um sol comum em
algum lugar de um braço espiral de uma típica galáxia em espiral.
Deus dignifica o homem ao fazê-lo à sua imagem e lhe conceder o domínio
de um governante subordinado. Por meio da encarnação de Cristo e de seus
atos redentores, Deus torna um homem, Jesus Cristo, o ponto central por
meio do qual todo o universo é governado e alcançará seu objetivo (Ef 1.10).
Uma opinião humana é especial, não só porque, do ponto de vista prático,
precisamos nos preocupar com o próximo passo da ação humana, mas porque
o próprio Deus nos dá significância.
VANTAGENS E DESVANTAGENS NAS CINCO ESCOLAS
Em contrapartida a este ponto de vista não redutivo, muitas pessoas pensam
no progresso da ciência como o encontro do fim do mundo. Elas esperam
alcançar alguma visão divina que deixe para trás, como menos que “real”, a
vermelhidão da maçã e as cores do pôr do sol. Desejam a análise final que
exponha o esqueleto, a estrutura do mundo, sobre a qual todo o resto foi
construído.
Nosso problema é espiritual. Como pecadores (e aqui me incluo), não
queremos um mundo assim, porque Deus nos confronta de maneira
avassaladora. Assim, queremos nos distrair com nossos ídolos. Do ponto de
vista da afirmação não redutiva da coerência completa, percebem-se
vantagens e desvantagens em cada uma das cinco escolas já delineadas. Com
esse fim, precisamos simplificar as escolas de novo.
Primeiro, o realismo postula a prioridade metafísica do mundo externo em
relação ao mundo do pensamento. Como bons experimentalistas, precisamos
sair e descobrir como o mundo é. O idealismo, em contraste, postula certa
prioridade metafísica do pensamento contra o mundo externo. As categorias
de pensamento já estão ali e experimentamos o mundo em uma estrutura já
existente.
Assim, qual é de fato anterior: o mundo externo (como crê o realismo) ou o
mundo do pensamento (como o idealismo crê)? Para responder com certeza,
precisamos distinguir o Criador da criatura. Em sentido metafísico, o mundo
antecede o pensamento humano, pois Deus criou o mundo e na sequência
criou o homem para ter lugar nele. Já o pensamento de Deus é
metafisicamente anterior ao mundo, pois seu plano (seus pensamentos)
existia mesmo antes de criar o mundo. O homem criado à imagem divina
pode, de algumas maneiras, acessar os pensamentos de Deus. Então ele
experimenta indiretamente algo da prioridade do pensamento sobre o
acontecimento. Realismo e idealismo estão ao mesmo tempo certos e errados,
porque falham em reconhecer a posição distinta do Criador.
O empirismo dá prioridade epistêmica (em conhecimento) à experiência
sensível humana. O pragmatismo dá prioridade epistêmica ao processo
prático de predição e manipulação do ambiente. Essas prioridades fazem
certo sentido para os seres humanos, pois em nossa finitude não podemos
afirmar dogmaticamente o que está “no fundo”, além das aparências e da
prática. Os propósitos práticos e o conhecimento total andam juntos em Deus,
sem “prioridade”.
O pós-modernismo dá prioridade epistêmica ao caráter distintivo de
indivíduos e grupos diferentes. “Verdade” só é verdade para um indivíduo
particular ou um grupo particular e pode diferir quando se passa para outro
grupo. Em contaste, o idealismo dá prioridade à comunalidade da
racionalidade em todos os seres humanos. Entretanto, Deus criou os seres
humanos como indivíduos e membros da humanidade; não precisamos
priorizar o que é comum e distintivo.
[início tabela p. 209]
A palavra de Deus governa
indivíduos distintos
(individualismo pós-moderno)
grupos distintos
(coletivismo pós-moderno)
racionalidade comum
(ponto de vista idealista)
[fim tabela p. 209]
A coerência completa implicada pela unidade do plano divino também
envolve a coerência entre diferentes pontos de vistas ou ênfases pessoas para
entender o mundo de Deus. Falei sobre o princípio da coerência entre pontos
de vista em certa extensão em Teologia sinfônica, livro de minha autoria, e as
obras de John Frame apresentam exemplos extensos.[186] Os quatro evangelho
apresentam com ênfases diferentes a pessoa e obra de Cristo. Mas, entendidos
da forma correta, eles se harmonizam. Cristo é o grande rei da descendência
de Davi (Mateus) quanto o revelador do Pai (João).
Considere outro exemplo de harmonização. Com a cosmovisão cristã,
encontramos harmonia entre diferentes aspectos da ética. A perspectiva
normativa se concentra em normas, leis ou padrões de certo e errado. A
perspectiva pessoal salienta as atitudes e motivações que dirigem o
comportamento. A perspectiva situacional destaca o que ajuda na prática em
uma situação, ao promover a glória de Deus.[187] Porque Deus emite as
normas, governa as pessoas e governa a situação, os três existem em
harmonia. Todavia, o pensamento não cristão, não tendo Deus como fonte
última para tudo, tende a polarizar e tratar um dos extremos como último. A
ética deontológica começa com normas, a ética existencial com pessoas e
ética utilitarista com situações.
As três perspectivas sobre a ética guardam semelhanças com as cinco escolas
e seus pontos de vista sobre a ciência. O realismo, preocupado com as leis
reais lá fora, se concentra nas normas (as leis) e na situação em que elas se
aplicam. O idealismo se fixa nos pensamentos — que o conecta à perspectiva
pessoal. O empirismo destaca a experiência sensível — que o conecta à
perspectiva pessoal. O pragmatismo realça a prática no mundo — que o
conecta à perspectiva situacional. Ele traz o homem de volta à terra ao
observar que Deus criou o criou para encher a terra e subjugá-la: duas tarefas
práticas; nenhuma delas garante que o homem tomará conhecimento de
algum esqueleto ontológico final — caso isso exista. Por fim, o relativismo
pós-moderno pode ser considerado uma forma de idealismo que valoriza a
diversidade entre os seres humanos.
Na cosmovisão cristã, os cinco “ismos” pertencem juntos à perspectiva do
plano único de Deus. Nenhum deles faz sentido sem os outros. Os seres
humanos precisam estar ali para fazer ciência e pensar sobre a teoria
científica. A ciência sem pessoas é mero vapor. Os seres humanos existem de
forma diversa e una, como o pós-modernismo gostaria de nos lembrar. Aliás,
a ciência requer algo que as pessoas investiguem: o mundo externo com
regularidade de lei (realismo) e dados particulares que podemos organizar
com propósitos práticos (empirismo e pragmatismo). Não se escolhe entre
essas perspectivas, elas são escolhidas juntas como opções frutíferas. Ao
mesmo tempo, ninguém escolhe nenhuma delas nas formas não cristãs —
nelas elas são contrapostas entre si, ou elas permanecem incertas se o homem
deve proceder como se tivesse mente autônoma ou como criatura submissa a
Deus.
A OFERTA DE UNIDADE DO REALISMO CRÍTICO
Pelo fato de o realismo crítico aparentar crescer em popularidade, posso dizer
mais uma palavra sobre ele. Como já observamos, muito depende do
significado atribuído ao termo. “Realismo crítico” significa apenas que o
mundo externo existe e conhecemos verdades a seu respeito (a parte do
“realismo”)? A parte “crítica” significa que somos finitos e às vezes somos
enganados?
O realismo crítico pode atrair as pessoas apenas por parecer oferecer algum
tipo de terreno comum. Mas a comunalidade é conquistada pela inconstância.
A definição vaga deixa de lado questões cruciais sobre qual tipo de atitude
“crítica” tomamos e que tipo de “realismo” mantemos. Será que o realismo
vive em um mundo feito por Deus? Ou Deus é irrelevante ou inexistente?
Que tipo de Deus ou substituto de Deus cremos quando se passa a considerar
a lei científica?
E o que falar do aspecto “crítico”? Será que o criticismo pressupõe o caráter
normal ou caído da mente humana?
A atratividade do terreno comum cresce quando se espera poder alcançar a
cooperação pacífica por meio dele. Será que pode haver paz? Alcançar a paz
é um aspecto da conquista da “salvação”, o cumprimento da mais profunda
esperança humana. Questões sobre caminhos verdadeiros e falsos de salvação
jazem no pano de fundo sempre que se busca um objetivo tão exaltado como
a paz, mesmo que a concebamos como parcial e provisória. Paz no sentido
mais pleno foi dada por Cristo e por mais ninguém: “Estas coisas vos tenho
dito para que tenhais paz em mim. No mundo, passais por aflições; mas tende
bom ânimo; eu venci o mundo.” (Jo 16.33). A paz perfeita surge com sua
vinda e de nenhum outro modo.
Ao mesmo tempo, Cristo traz divisão entre quem o segue e as pessoas que
não o seguem:
Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois vim
causar divisão entre o homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua
sogra. Assim, os inimigos do homem serão os da sua própria casa. Quem ama seu pai
ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha
mais do que a mim não é digno de mim; e quem não toma a sua cruz e vem após mim
não é digno de mim. (Mt 10.34-38).
Cristo demanda lealdade absoluta e essa é uma pílula amarga para os
pecadores engolirem. O Novo Testamento é, portanto, realista sobre os
aspectos ofensivos de sua mensagem. Não podemos evitar a ofensa da cruz
(1Co 1.18-30) ou a ofensa envolvida na submissão ao senhorio de Cristo. A
exclusividade das afirmações bíblicas também causa ofensa. Se aparentamos
ter uma unidade menor que a unidade em Cristo, isso decorre da não
exposição ainda das questões mais profundas.
“Todavia”, o questionador replica, “a unidade já existe na ciência. O cristão e
o não cristão trabalham lado a lado, cada um fazendo uma contribuição”.
Sim, a unidade existe, por assim dizer, porque todos os cientistas precisam
acreditar em Deus (Capítulo 1). Mas eles o fazem a despeito de si mesmos. A
unidade não precisa de fato do realismo crítico, pois as pessoas com crenças
muito bizarras, incluindo o idealismo, empirismo, pragmatismo, relativismo e
o materialismo simples, podem já cooperar, mesmo sendo felizes e
inconsistentes com suas crenças. Mesmo assim, de formas sutis, a
inconsistência de crer e não crer afeta o curso da ciência. De acordo com a
definição comum, o realismo crítico não ajuda a incoerência de modo
fundamental, porque a solução precisa da redenção provida por Cristo.
Por fim, considere a atmosfera que o realismo pode produzir. Alguns escritos
realistas extravasam uma atmosfera de normalidade e sanidade. Sendo assim,
eis uma vantagem e uma desvantagem. A maioria das pessoas, na maior parte
do tempo, pretende agir na esfera do que é normal e são. Sabe da existência
do mundo externo e do conhecimento dele. A discussão realista pode nos
reassegurar ao nos mostrar as falácias e deficiências das abordagens
alternativas, “estranhas”.
Sim, outros tratamentos demonstram falhas diversas. No entanto, eu me
pergunto se alguns realistas, antes de dar as costas às falhas, apreciam de
modo suficiente a motivação de outras pessoas para a adoção de métodos tão
estranhos e deficientes. Simpatizo muito com esses outros, pois suspeito que
lá no fundo eles se encontram descontentes com o “normal”. Algo está
radicalmente errado, eles sentem desespero. Segue-se a normalidade se a
normalidade é promissora para fornecer o que se quer. Todavia, se o mundo
está desesperadamente doente e a normalidade aparenta não estar ciente
disso, se a própria normalidade demonstra sintomas de doenças, as pessoas
procuram alternativas. Elas se tornam radicais. E quanto mais desesperado o
mundo se tornar, mais desesperadas serão as opções. Os realistas são como
gerentes burgueses e contentes de fábricas, enquanto os radicais são como os
visionários que conspiram em uma revolução comunista sangrenta. Sinto
certa simpatia; penso que os radicais estão certos de se sentirem desesperados
(Capítulo 4); lamento, porém, que o desespero possa irromper de modo a
agravar a doença (o derramamento de sangue na revolução). Essa é a natureza
do pecado. Cristo veio trazer o verdadeiro remédio para o pecado por meio de
sua morte e ressurreição.
MÚLTIPLAS PERSPECTIVAS
Assim, acaba-se afirmando as cinco escolas diferentes, conquanto não sejam
tomadas de forma inalterada e, sim, tratadas como perspectivas sobre a
ciência, ou mesmo como perspectivas sobre a totalidade da vida. Por
exemplo, redefine-se e se remodela o relativismo pós-moderno ao se largar o
relativismo que abre mão de descobrir a verdade e continua a afirmar a
diversidade ordenada por Deus nos modos de expor a verdade — quer essa
diversidade seja vista nos quatro Evangelhos, ou nas interpretações de
Schrödinger e Heisenberg sobre a mecânica quântica, ou no contraste entre
começar com as capacidades humanas (idealismo) e com as leituras de
ponteiros em instrumentos (uma forma de empirismo).
De fato, a diversidade do pensamento humano não representa apenas um
subterfúgio frustrante; no aspecto mais positivo, reflete a diversidade
originária das pessoas da Trindade. O Deus único conhece toda a verdade e
garante sua unidade e estabilidade. Ao mesmo tempo, o Pai conhece todas as
coisas ao conhecer o Filho; e o Filho conhece todas as coisas ao conhecer o
Pai. Assim, podemos ver a diversidade nas pessoas da Trindade.[188]
O reconhecimento de múltiplas perspectivas nos capacita a entender um
pouco da diversidade dos “níveis” com que podemos analisar a percepção da
maçã vermelha. Podemos afirmar o valor da experiência humana comum e
dos modos especiais de análise apresentados pela ciência. Afirmamos nossa
experiência visual comum e podemos também estudar cientificamente os
processos celulares e neurológicos envolvidos na visão humana. Estudamos a
física da luz ou olhamos para a luz sob o ponto de vista da relatividade
especial, da teoria quântica ou, talvez, mesmo a partir de outras teorias a
serem desenvolvidas. Esses pontos de vista são como perspectivas diferentes
sobre o mundo. Eles não estão isolados entre si. Por meio do mundo comum
aprendemos a ciência e expandimos o mundo comum enquanto
desenvolvemos a capacidade de ocupar mais pontos de vista especializados
que a ciência oferece. Esses pontos de vista especializados, entendidos da
forma correta, também levam a afirmar a realidade do que experimentamos
no mundo comum.
16. Experiência comum do mundo em relação à teoria
científica

Podemos agora refletir sobre a relação da experiência humana comum da


teorização científica.
A REVOLUÇÃO COPERNICANA
Considere a luta experimentada pelas pessoas para se ajustarem à astronomia
moderna. O que aconteceu quando Copérnico afirmou ser o Sol era o centro
do sistema solar?[189] Antes, o astrônomo grego Ptolomeu (séc. II d.C.)
estabelecera que o sol, a lua, as estrelas e todos os planetas viajavam em
órbitas ao redor de uma terra estacionária. Então Nicolau Copérnico (1473-
1543) postulou que a terra rotacionava no seu eixo: a terra quanto os planetas
viajavam ao redor do sol, o centro. As estrelas poderiam ser consideradas
fixas em relação ao sol. Tycho Brahe (1546-1601) apresentou uma teoria
conciliadora em que o sol viajava ao redor da terra fixa e todos os outros
planetas ao redor do sol.
Nos dias Copérnico ainda não existiam telescópios. Assim, as observações
astronômicas da época não contavam com a precisão de hoje e não era fácil,
do ponto de vista científico, afirmar a teoria mais promissora. A perspectiva
de Copérnico resultou em uma simplificação, mas isso, em lugar de qualquer
precisão claramente superior, consistia no principal argumento a seu favor.
[190]

A questão podia ter permanecido uma disputa técnica entre astrônomos se


não ameaçasse o pensamento mais amplo do mundo. Em sentido sócio-
cultural, alguns se preocupavam que ela pudesse incitar as pessoas a
questionar a tradição, ameaçando assim o status quo.[191] Filosoficamente,
algumas pessoas a consideravam uma ameaça o papel central do homem no
cosmo, ao deslocar a terra do centro. Em sentido religioso, algumas pessoas
viram nela uma ameaça à autoridade bíblica, pois pensavam ser uma
declaração bíblica a mobilidade do sol (“Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e
volta ao seu lugar, onde nasce de novo” Ec 1.5) e a imobilidade da terra
(“Firmou o mundo, que não vacila”, Sl 93.1).
DIFERENÇAS DE PERSPECTIVA
A teoria de Copérnico ameaçou de fato o status quo, sem dúvidas. Quanto às
outras questões, em retrospectiva é muito mais fácil perceber que a disputa
negligenciou a consideração de diferenças de perspectiva, isto é, diferenças
na estrutura do surgimento das questões. A Bíblia se dirige à pessoa comum,
e adota a linguagem comum de como as coisas aparecem. O sol de fato se
levanta e o solo permanece estável sob nossos pés (Ec 1.5; Sl 93.1).[192] Em
contrapartida, o astrônomo formula questões recônditas sobre os movimentos
dos corpos celestiais relativos uns aos outros. Ele toma a perspectiva do
especialista e do investigador dos detalhes quantitativos sobre
posicionamentos. O filósofo pergunta se o homem goza de um papel central
no cosmo, e essa questão difere de o homem gozar de uma posição central do
ponto de vista do espaço astronômico. Essa distinção, contudo, poderia
alcançar com facilidade pessoas que esperavam a correspondência simples
entre localização espacial e importância.
O QUE É REAL?
Assim, observar as diferenças em perspectiva, nos provê a solução parcial.
Todavia, ela repousa no pano de fundo da questão sobre a realidade. A
astronomia copernicana parecia minar o senso ingênuo das pessoas sobre o
que é real. Ameaçava leitores bíblicos e a visão filosófica da humanidade
porque algumas pessoas tentavam encontrar em uma única fonte todas as
respostas sobre o “fundo” do mundo. Elas se sentiam tentadas a considerar a
astronomia copernicana uma afirmação capaz de prover a análise absoluta,
que desceria às profundezas — à natureza “real” das coisas — em oposição à
sua aparência. Esse tipo de busca por últimas palavras ontológicas se perde
por não encontrar descanso no caráter de Deus e de sua palavra. Deus, ao
mesmo tempo, torna reais todas as perspectivas. A longo prazo, a busca pelo
condição última nos força à escolha entre perspectivas; assim, certa
perspectiva é final e nos fornece nossa ontologia, as outras são apenas
derivativas e, talvez, até mesmo ilusórias.
Nos dias de Copérnico, se as pessoas insistissem em encontrar a ontologia
última, produziam uma guerra entre filosofia, ciência e a Bíblia. Uma vez
começada a guerra, cada posição poderia reivindicar a apresentação da
ontologia última. A filosofia, depois de proclamar a centralidade do homem,
quer derrubar a astronomia ao alegar que ela consiste apenas em um jogo
ilusório com números, uma especulação infrutífera em prol da simplicidade
matemática. Ou a astronomia, ao proclamar o caráter último do insight
científico, derruba a filosofia como um conceito espacialparoquial e denuncia
a Bíblia como ultrapassada ou preocupada apenas com questões “espirituais”.
Ou os defensores da Bíblia a entendem de forma reducionista. A seguir,
proclamam a exclusividade da percepção comum e condenam a impiedade
dos astrônomos que não se submetem a ela nem realizam sua pesquisa em
conformidade com o “claro ensino” da Bíblia.
Hoje o debate não se fixa mais sobre a posição do sol. Mesmo assim,
tentações de um tipo particular permanecem em jogo. Os defensores da Bíblia
podem se convencer cedo demais de saberem o que a Bíblia quer dizer. Eles
podem não prestar atenção às diferenças de perspectiva entre o conceito
comum da Bíblia e a opnião técnica do cientista. Por sua vez, o s amantes da
ciência podem converter a ciência em uma cosmovisão materialista que lhes
fornece, como supõem, as respostas ontológicas finais. Então eles derrubam a
Bíblia e a filosofia.
Será que a análise científica em termos de ondas de luz é mais definitiva que
a percepção de uma maçã vermelha por um ser humano? Primeiro se deve
perguntar: “Mais definitiva para quais propósitos e em que contexto?”. Em
seguida, pode-se responder a questão geral de ultimacidade: “Não, nenhum
dos dois é definitivo”. A realidade possui muitos níveis e os seres humanos
possuem muitas perspectivas legítimas.
É engraçado que mesmo o relato sobre Copérnico e a posição do sol ainda
não chegou ao final. Sim, a o ponto de vista de Copérnico alcançou a
supremacia, primeiro entre os cientistas, depois em sentido mais amplo. Por
causa dos triunfos impressionantes da ciência ao longo de décadas e séculos,
e sua influência continuada na cultura geral, quase todas as pessoas que
frequentaram a escola no mundo civilizado aceitam que a terra gira em torno
de si mesma e orbita ao redor do sol.
DESENVOLVIMENTOS NO SÉCULO XX
Mas esse não é o fim do relato. A astronomia do século XX descobriu que o
sol não é imóvel. Ele percorre uma órbita bem larga ao redor do centro da Via
Láctea. A Via Láctea, por sua vez, não se encontra em uma localização
particularmente central, apenas em um ponto entre muitas galáxias locais e
distantes. Ela se move em relação ao aglomerado local de galáxias. O sol não
é imóvel nem o centro; não há centro.
O conceito copernicano, e depois a visão newtoniana, presumiram que, por
trás dos fenômenos, havia um espaço e tempo absolutamente fixos em termos
dos quais o movimento planetário acontecia. O pressuposto era conveniente,
mas falho. Albert Einstein, com a teoria da relatividade geral (1916) mostrou
que matematicamente as equações de movimentos eram transformáveis de
um estado de movimento para outro, de modo que nenhum estado era
intrinsicamente mais fixo que outro.[193] Não existia nenhum espaço absoluto
ou tempo absoluto, apenas o entrelaçamento de espaço e tempo de modo
dependente do estado de movimento e da aceleração do observador. Daí, o
ponto de vista do observador ao nível da superfície na terra era tão definitivo
quanto, matematicamente, o ponto de vista onde o sol está fixo, ou onde o
centro da Via Láctea estava fixo. A pessoa comum, que aceita o sol como o
centro estacionário do sistema solar, não está a um passo da fase da ciência
que supera a própria ideia de fixar algo como estacionário. Quem considera a
Bíblia cientificamente ultrapassada, porque trata o solo como fixo, acaba ela
própria sendo ultrapassada pela ciência![194]
Entretanto, não devemos tentar vindicar a Bíblia dessa forma com a teoria
científica mais atual. A teoria mais atual pode ela própria se tornar
ultrapassada mais tarde. Em lugar disso, precisamos reconhecer que a Bíblia
descreve a perspectiva da linguagem comum e da observação humana
comum. E, sugiro, precisamos reconhecer o caráter perspectivo de qualquer
teoria científica, ao nos mostrar uma realidade maravilhosa na sabedoria de
Deus, mas não a realidade substituta da realidade comum ou ontologicamente
definitiva.[195]
A INDISPENSABILIDADE DO COMUM
A realidade do comum é digna de nota. Todo adulto com funções mentais
razoáveis e com o corpo funcionando normalmente conhece por intuitição, ao
fazer uso do corpo, que se encontra no centro do mundo espacial, o auditório
e tátil por ele percebido. Ele vê o mundo da perspectiva do próprio corpo. Ele
sabe disso de modo inevitável e indispensável. Deixar de sabê-lo o colocaria
sua existência em perigo. Sem entender a própria localização espacial, ele
não seria capaz de julgar o perigo de colocar o corpo na frente de um carro
em movimento ou ultrapassar os limites seguros de um grande edifício.
O mundo da percepção corporal pessoal de alguém está conjugado no
entendimento humano aos mundos de outros seres humanos com quem
estamos em comunhão. Pela imaginação, pela comunicação humana e pela
experiência de ocupar posições espaciais múltiplas em tempos diferentes,
entendemos habitar um mundo comum partilhado com outros seres no tempo
e no espaço. Todavia, a comunalidade não apaga ou substitui a
individualidade da posição corporal. As duas se complementam. Para
entender o mundo comum da humanidade, construímos sobre o mundo
individual da percepção. Essas experiências ocorrem todas sob o controle
providencial de Deus. A palavra divina especifica e garante que teremos
experiências desses tipos. As experiências são reais na medida em que
representam o efeito intencional e significativo da palavra de Deus.
Na ciência viemos a entender novas perspetivas sobre o muito pequeno, o
muito grande, localizações espaciais bem diferentes, formas de vida bastante
diversas e correlações entre a matemática e o mundo físico. As novas
perspectivas necessariamente dependem da percepção comum como ponto de
partida. Corretamente entendidas, elas crescem a artir do comum, em lugar de
substituir ou minar a realidade comum. É preciso uma ideologia poderosa
para manter, ao contrário de nossas intuições mais profundas, que o “real” é
só o que a ciência descobre. E ainda a ideologia é tão forte em nosso tempo
que muitas vezes nos oculta o óbvio: a realidade da existência corporal
humana. Em um caso extremo de negação, podemos mesmo nos analisar até
a não existência prática, ao alegar, em sentido materialista, que nossa
experiência consciente é pouco melhor que a ilusão elaborada por sinais
elétricos no cérebro.
ULTIMIDADE NAS PERSPECTIVAS SOBRE O TEMPO
Observações semelhantes se mantêm para duas perspectivas diferentes sobre
o tempo. Por um lado, a ciência proclama que o universo conta 14 bilhões de
anos. Por outro lado, a Bíblia, segundo uma interpretação, diz que o universo
só tem alguns milhares de anos. Mas vimos (Capítulo 10) que as divergências
se devem em parte a diferenças culturais entre a orientação pelo relógio e a
orientação interativa. A orientação pelo relógio significa a orientação
mecânica da medição do tempo com números objetivos. Combinada com a
extrapolação científica do tempo do relógio em direção ao passado, a cifra
alcança 14 bilhões de anos. Contudo, a orientação interativa interpreta a
ocorrênca da criação em seis dias de ritmo semelhante ao humano com
trabalho e descanso.
As pessoas presumem que a ciência nos apresenta a realidade. O que a
ciência nos mostra de fato é real; mas é só um aspecto da realidade, uma
perspectiva, à qual se chega naturalmente quando, com coerência e zelo
extremos, buscamos a orientação pelo relógio e suas medições quantitativas.
A forma humana comum e interativa de olhar para os ritmos temporais, o
modo conhecido de todas as culturas pré-científicas, ainda é válida aos olhos
de Deus e devemos, portanto, abrir os olhos para seu alcance da realidade. A
realidade não se reduz ao foco científico, mas é ricamente controlada pela
sabedoria de Deus em sua palavra. Os ritmos humanos ainda oferecem uma
forma válida de olhar para a história da criação! Em certo sentido, porque
eles são humanos, porque os ritmos humanos pertencem aos ritmos naturais
do corpo, eles permanecem mais importantes aos sentidos humanos comuns
que as reflexões técnicas da ciência, por mais belas que elas sejam na sua
esfera.
Deus criou de verdade o mundo em seis dias. Ou seja: quando falamos em
termos humanos cotidianos, e pensamos em termos dos ritmos humanos de
trabalho e descanso, estamos certos ao dizer que Deus criou o mundo em seis
dias, pois pensamos nesses dias em uma orientação interativa. Só na esfera
técnica da orientação consistente do relógio e de cálculos desenvolvemos
outra perspectiva complementar sobre o tempo. Nessa esfera, em que se
define o “tempo” de um jeito incomum e preciso, que o separa dos ritmos
humanos, obtemos a figura de 14 bilhões de anos.
Copérnico e Einstein forneceram belas perspectivas técnicas para as
necessidades das reflexões científicas sobre o espaço. Os cálculos científicos
modernos sobre o tempo apresentam do mesmo modo belas perspectivas
técnicas para as necessidades das reflexões científicas sobre o tempo. Em
nenhum caso deveríamos pensar de forma reducionista que essas perspectivas
técnicas derrubam a percepção humana comum, ou a experiência de tempo
como um ritmo humano de trabalho e descanso.[196]
ESQUIVA DA IDEOLOGIA DE REDUÇÃO DO SIGNIFICADO
No caso do espaço e do tempo, a ideologia chamada reducionismo filosófico
promove a ilusão de que a ciência substitui e nega a experiência humana
comum. A ideologia alega que as percepções humanas sobre o caráter fixo da
terra e os ritmos temporais de Gênesis 1 são “irreais”. Entretanto, essa
ideologia está errada.
Deus é rico em sabedoria e dota os seres humanos com fartura, abençoando-
os com a riqueza da experiência humana comum e a riqueza das perspectivas
técnicas da ciência (At 14.17; Tg 1.17). A riqueza nos convida a dar graças.
Mas somos rebeldes e ingratos. Substituímos a riqueza divina por um
substituto falsificado, na forma de algo abstrato e impessoal, o princípio da
lei científica ou da matéria, do qual todo o resto precisa fluir de modo
impessoal. Então sentimos a necessidade de postular que alguma “realidade”
no mundo precisa oferecer a explicação final para a experiência humana e
reduzir a experiência humana até algo “mais profundo” por trás disso,
tornando-a assim irreal. A ideologia do reducionismo filosófico flui de uma
raiz corrupta, da elaboração humana de ídolos.
Quase chegamos ao final da linha. Deus criou o mundo em seis dias. Isso não
contradiz a ciência técnica, porque o dizemos do ponto de vista da orientação
interativa. A orientação interativa, enraizada nas profundezas da experiência
corporal humana, concentra-se por instinto no conteúdo de acontecimentos
diários. Os dias são dias por causa do seu conteúdo de acontecimentos. As
pessoas de variadas culturas pré-industriais, ao longo dos séculos, leem
Gênesis 1 e o entendem dessa forma porque usaram a orientação interativa de
forma natural demais. Elas estavam certas ao entender o texto assim. Esse
entendimento se harmoniza naturalmente com a ciência moderna uma vez
que entendamos a diferença entre as perspectivas: a orientação pelo relógio,
na ciência, e a orientação interativa pela experiência humana, comum às
culturas pré-industriais.
Estamos quase, mas não exatamente, dizendo o mesmo que o ponto de vista
moderno dos dias de 24 horas. O ponto de vista dos dias de 24 horas difere do
ponto de vista mais antigo e pré-científico de uma forma sutil, mas profunda.
Na forma comum, ele adota a orientação pelo relógio e se preocupa com a
aplicação da medição quantitativa do relógio aos dias.[197] Alguém pode se
perguntar se essa perspectiva se entregou inconscientemente à primazia
filosófica da orientação científica moderna em relação à medição precisa e
quantitativa do tempo. Em outras palavras, ela pode ter engolido um
pressuposto ideológico e filosófico que, com fervor, quer evitar!
HUMILDADE
Talvez haja em tudo isso outra lição sobre a natureza da Bíblia. Ao usar a
linguagem fenomênica, a orientação interativa, e o foco no mundo como
aparece à percepção humana normal, Deus tornou Gênesis 1 acessível. Não
só os israelitas antigos, as pessoas em muitas culturas diferentes podem
entender Gênesis. Elas não precisam se tornar antes “modernas” ou
“científicas”. Ademais, todas as variadas culturas do mundo precisam
entender Gênesis, como meio de escape da idolatria e das falsas religiões que
oferecem outros relatos de deuses e do mundo. Então Deus mostra grande
sabedoria na maneira como escreveu Gênesis.
De fato, na média, as pessoas de culturas pré-científicas provavelmente
entendem melhor grande parte de Gênesis 1 que pessoas sob forte influência
da modernidade. As pessoas da atualidade trazem a Gênesis uma estrutura
mental carregada. Espera-se que Gênesis “se adeque” ao prestígio da ciência
moderna ao imitá-la e oferecer o mesmo tipo de explicação quantitativa,
precisa e mecânica. Se falhar em fazê-lo, o texto é considerado primitivo,
antiquado e inferior. No seu sangue se infiltrou o orgulho do mundo moderno
pela superioridade de suas conquistas tecnológicas e epistemológicas, o
orgulho da superioridade da modernidade em relação a seus predecessores.
As pessoas hoje acham difícil se humilhar para aceitar o caráter comum da
percepção humana e o caráter comum da experiência humana no corpo ainda
pode ser uma profunda realidade. A decisão divina de se dirigir ao homem
comum, para se dirigir às pessoas na fragilidade corpórea de seu mundo
imediatamente “vivido”, pode representar sabedoria, não ingenuidade. Mas
pode as pessoas hoje o percebem?
O orgulho interfere no entendimento. As pessoas hoje realmente não
entendem Gênesis. Não por seu caráter intrinsicamente inacessível; ao
contrário, precisamente porque é acessível demais! É humilhantemente
acessível. Por essa exata razão o texto perde o brilho para quem se apega ao
próprio orgulho.
Como observamos (Capítulo 1), as pessoas podem se tornar ser escravizadas
por vários ídolos do interior de sua mobília mental. Neste caso, o ídolo em
questão é a própria modernidade, reforçada por uma cosmovisão que presume
terem as explicações científicas modernas tornado obsoleta a percepção
comum, em lugar de adicionar dimensões extras para além do comum.
A pessoa da atualidade que se orgulha da superioridade da própria sabedoria
fica enredada pelas simplicidades da Bíblia. O dito da Escritura se prova
verdadeiro: “Ele apanha os sábios na própria astúcia deles” (1Co 3.19). Se
você insistir em ser sábio aos teus próprios olhos (Pv 3.7), você alcançará
uma posiçãoem que terá a satisfação deliciosa de conhecer com certeza que a
própria leitura moderna da Escritura, ancorada nos triunfos da cosmovisão
moderna, é superior às trevas de ignorância de todas as gerações anteriores.
Mas nesse mesmo triunfo você se provará um tolo, uma marionete da
ideologia moderna e, mais devastador, uma marionete do próprio orgulho.
Em outras palavras, a Bíblia está repleta de armadilhas que Deus colocou
para os orgulhosos.
17. A relação da criação à recriação
Que recursos a Bíblia oferece para pensar sobre a ciência? Já vimos alguns
deles. A doutrina bíblica da soberania de Deus e da palavra de Deus provê a
estrutura para a ciência (Capítulos 1 e 13). O ensino bíblico sobre o homem e
suas tarefas apresenta pontos importantes para reflexão (Capítulo 11). O
ensino sobre Cristo possui implicações para a redenção da ciência
(Capítulo 12). O ensino bíblico sobre o pecado e seus efeitos na empreitada
humana possui implicações para a questão dos efeitos noéticos do pecado na
obra intelectual da ciência. Devemos ainda olhar em outras direções? O
ensino bíblico sobre a sabedoria é significativo; contudo, para nossos
propósitos ele precisa ser levado em conta junto com a doutrina da palavra de
Deus e a doutrina da verdade (Capítulo 14).
CRIAÇÃO E RECRIAÇÃO REDENTORA
A Bíblia se concentra em se dirigir a pessoas comuns e em nos ensinar o
remédio para o pecado. Todavia, sugiro eu, a Bíblia possui pelo menos mais
uma forma de nos fornecer insights sobre a estrutura para fazer ciência, a
saber, mediante a conexão entre criação e redenção. A criação decorreu da
obra do Deus trino. O Filho de Deus, que é a imagem divina, exerceu um
papel como mediador de toda a obra de criação.
Este [o Filho] é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; pois,
nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis,
sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por
meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste (Cl 1.15-17).
Logo depois dessa passagem maravilhosa, o apóstolo Paulo descreve a obra
de Cristo como mediador da redenção:
Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos,
para em todas as coisas ter a primazia, porque aprouve a Deus que, nele, residisse
toda a plenitude e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele,
reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus
(Cl 1.18-20).
Alguns paralelos tentadores nos convidam a comparar os dois tipos de
mediação. Os termos “nele”, “primogênito”, “todas as coisas” e “céus/terra”
conectam os dois, bem como relações mais sutis entre o sustento da criação e
a reconciliação redentora da criação alienada. Mediação na criação forma
uma das basese garante a mediação efetiva na recriação. Conexões
semelhantes entre criação e redenção podem ser encontradas em João 1,
Apocalipse 21 e Hebreus 1.1-3.
Assim, com certeza, o que aprendemos de Cristo na redenção permanece
pertinente quando refletimos sobre a criação. Mas como é pertinente? Não é
fácil dizer, já que a incompreensibilidade de Deus e a incompreensibilidade
das relações trinitárias, nos deixa precavidos contra a dedução simplista do
que Deus planejou fazer na criação.
A correlação entre criação e recriação redentora não surge no Novo
Testamento sem antecedentes no Antigo Testamento. Vimos como o
salmo 19 possui partes que refletem sobre a revelação geral (baseada na
criação) e na revelação especial (pertencente à redenção). O salmo 148
conclama o louvor na base da bondade criacional e redentora de Deus. Isaías
antecipa a renovação da ordem criada como um aspecto do fruto da redenção
(Is 65.17-25). O texto de Provérbios 8 estabelece a conexão entre a sabedoria
pela qual Deus criou o mundo e a sabedoria necessária para conduzir a vida
humana.
O tabernáculo de Moisés também inclui motivos criacionais e redentores em
uma unidade impressionante (Êx 25—40). Comentei sobre o tabernáculo em
certa extensão em The Shadow of Christ in the Law of Moses [A sombra de
Cristo na lei de Moisés][198] e indico este livro anterior para o debate mais
amplo do que aqui esboçaremos.[199]
Quando Deus deu seus planos a Moisés para o tabernáculo, ele o descreveu
como “um santuário, para que eu possa habitar no meio deles” (Êx 25.8). É
um lugar onde Deus se aproxima de Israel e Israel de Deus. Mas ele fez essas
provisões na situação em que o pecado ainda bloqueava o caminho à
santidade de Deus. Preocupações com a redenção obviamente dominam a
descrição. Ao mesmo tempo, a instrução diz: “Vê, pois, que tudo faças
segundo o modelo que te foi mostrado no monte” (Êx 25.40). O tabernáculo
replica um padrão. Assim, o padrão não é arbitrário; trata-se do padrão da
habitação de Deus nos céus (e na montanha, quando Deus desce para se
encontrar com Moisés ali).
Mais tarde na história, Deus comissionou Salomão para erigir o tempo, que
replica muitas características do tabernáculo mosaico em escala maior.
Salomão demonstrou o entendimento da correspondência entre a habitação de
Deus nos céus e a habitação na terra ao, na dedicação do templo, mencionar
os “céus, lugar da tua habitação” (1Rs 8.30,39,49). Ao mesmo tempo ele
afirma que o nome de Deus (representação de sua presença) estará no templo
terrestre (1Rs 8.29). O livro de Hebreus comenta explicitamente a relação
entre a “cópia” do tabernáculo e o original celestial (Hb 9.11,23-28).
As características específicas no tabernáculo sugerem reminiscências do céu.
Os querubins na tampa da arca são cópias ou imagens das criaturas angelicais
vivas que servem Deus no céu (Êx 25.18,22). Mais querubins tecidos nas
cortinas guardam o caminho até a presença de Deus no Santo dos Santos
(Êx 26.31). A mesa com pão em cima relembra Israel da provisão de Deus do
maná, que veio “dos céus” (Êx 16.4). O candelabro, com suas luzes, relembra
as luzes do céu. O sol, a lua e os cinco planetas visíveis podem até mesmo
corresponder ao número sete das sete lâmpadas!
Assim, o tabernáculo oferece um tipo de modelo em miniatura da habitação
macrocósmica de Deus nos céus. E embora Deus seja descrito como que
reside nos céus, os céus não o contêm: “Eis que os céus e até o céu dos céus
não te podem conter, quanto menos esta casa que eu edifiquei” (1Rs 8.27).
Em um sentido mais amplo, o universo inteiro é habitação de Deus. “... não
encho eu os céus e a terra? — diz o SENHOR” (Jr 23.24). Outras passagns das
Escrituras descrevem a criação dos céus e da terra como a construção de uma
casa: “Deus é o que edifica as suas câmaras no céu e a sua abóbada fundou na
terra” (Am 9.6); “Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da
terra?” (Jó 38.4); “Sobre que estão fundadas as suas bases ou quem lhe
assentou a pedra angular...?” (Jó 38.6). Não só o céu, mas o universo como
um todo corresponde à casa-modelo do tabernáculo.
O Novo Testamento mostra como essas linhas de pensamento se unem em
Cristo. Quando João diz: “No princípio era [...] a Palavra” (NVI), ele evoca o
pano de fundo de Gênesis 1 com a expressão “No princípio”. A criação
acontece pela Palavra, de acordo com João 1.3: “Todas as coisas foram feitas
por intermédio dele”. Esta afirmação sobre a criação forma o pano de fundo
da obra redentora de Cristo, em que o restante de João se concentra. João 1.4
fala da Palavra como a luz em sentido redentor, contra o pano de fundo da luz
da criação em Gênesis 1.3. Mais tarde em João 1, a vinda de Jesus Cristo em
carne é comparada ao tabernáculo do Antigo Testamento: “E o Verbo se fez
carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória”
(Jo 1.14). A palavra para “habitou” (grego eskenosen) evoca pensamentos
sobre a tenda no deserto e a menção da glória alude ao fato de a glória divina
ter aparecido a Israel em conexão com o tabernáculo. O corpo de Jesus
também é comparado ao templo (Jo 2.19-22). O tabernáculo, como a própria
criação, foi construído de acordo com a palavra divina. Por trás das palavras
particulares de instrução está a Palavra eterna que João 1.1-18 contempla. A
Palavra,o próprio Deus (Jo 1.1), é a fonte da criação, recriação, do
tabernáculo e de todos os casos em que Deus habitou com o homem.
IMAGENS
A ideia de copiar ou fazer imagens se apresenta de maneira destacada no
tabernáculo. A totalidade do tabernáculo é uma cópia ou imagem da
habitação macrocósmica de Deus no mundo. De forma mais particular,
representa uma imagem do céu. O Santo dos Santos, o Santíssimo Lugar,
oferece algo próximo da figura da habitação imediata de Deus entre os seres
celestiais, os querubins. A cortina de separação entre o Santíssimo Lugar do
Santo Lugar corresponde de forma natural ao céu azul, que oculta a presença
divina invisível nos lugares celestiais. O Lugar Santo “faz uma imagem” do
Santíssimo Lugar em um nível menor de santidade, e o pátio além “faz uma
imagem” da santidade dos dois outros lugares em um nível ainda menor de
santidade.
A ideia de fazer imagens não desaparece em João 1; na verdade, ela se
destaca de formas sutis na afirmação de que a Palavra é a fonte de todas as
imagens: “A vida estava nele, e a vida era a luz dos homens” (Jo 1.4). É
preciso permitir que esse versículo em João seja lido em conjunto com o
restante do texto em que, para João, “vida” e “luz” são temas importantes.
Mais diantes, Jesus anuncia ser a vida (Jo 14.6) e a luz do mundo (Jo 8.12;
9.5). Ele é isso em um sentido redentor: ele concede vida aos espiritualmente
mortos e luz a quem se encontra em trevas espirituais (Jo 5.24; 8.12; 9.39).
No entanto, o contexto imediatamente anterior, em João 13, menciona a
criação. Assim, pensamos na criação da luz no primeiro dia e na criação da
vida no terceiro, quinto e sexto dias. João então nos convida a perceber que a
fonte de luz e vida em ambos os sentidos está na Palavra: luz e vida. Ele não
é só quem traz luz e vida, como se essas coisas lhe fossem até estranhas. Em
vez disso, ele é luz e vida. A luz e a vida na ordem criada refletem sua luz e
vida originais.
Este padrão, então, constitui uma forma de formação de imagens. Jesus, a
Palavra, é luz e vida em si mesmo. Ele também apresenta uma imagem de sua
luz e vida ao criar luz e vida neste mundo. E concede uma imagem de sua luz
e vida aos que o seguem para a redenção.
A linguagem sobre a “palavra” demonstra um padrão análogo. A segunda
pessoa da Trindade é a Palavra originária. As palavras da criação, “haja luz”,
são imagens dela. As palavras de redenção, dadas na instrução terrena de
Jesus, são do mesmo modo imagens.
IMAGENS FEITAS EM TEOFANIAS
A vinda de Cristo à terra foi antecipada no Antigo Testamento não só pelo
símbolo do tabernáculo, mas também por meio das descrições bíblicas de
teofanias, isto é, aparições de Deus.[200] Em tempos especiais, Deus apareceu
aos seres humanos usando demonstrações visuais espetaculares. Ele surgiu a
Abraão em forma humana (Gn 18.1ss.), a Moisés na sarça ardente (Êx 3.1-6),
aos israelitas na nuvem e no trovão no monte Sinai (Êx 19.16-25), e a
Ezequiel em uma visão elaborada (Ez 1).
Ezequiel 1 mostra formas em que um tipo mais amplo de criação de imagens
pode operar. Grosso modo, a teofania em Ezequiel 1 possui três camadas. A
camada mais externa é uma nuvem de tempestade (1.4). Então há quatro seres
viventes e as rodas associadas (1.5-25). Por último, no centro está um trono
com uma figura humana nele (1.26-28). Diversas características se repetem
em cada camada: fogo (1.4,13,27), metal brilhante (1.4,7,27), uma voz ou
som (1.24,25; 1.28; 9.3,4). Cada uma dessas caraterísticas sugere algo
relacionado ao caráter de Deus. O fogo propõe o fogo do juízo consumidor de
Deus (v. Hb 12.29). O metal brilhante sugere o brilho da santidade divina e a
firmeza de seu julgamento. A voz indica a habilidade de falar e pronunciar o
juízo (v. Ap 1.15). Essas características se encaixam no teor geral do
julgamento que aparece na primeira parte de Ezequiel.
Assim, as teofanias revelam algo sobre Deus ao mesmo tempo que
permanecem misteriosas e nos tornam cientes da transcendência divina. A
revelação de Deus acontece em parte por meio de demonstrações físicas:
fogo, nuvem, luz, movimento e som. A própria demonstração física reflete
algo dos atributos divinos e, nesse aspecto, podemos dizer que faz uma
imagem de Deus. Como alguns dos outros casos da formação de imagens,
elas são parciais. Afinal, as teofanias no Antigo Testamento apontam para a
teofania grande e permanente, a aparição de Deus na pessoa de Cristo:
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua
glória, glória como do unigênito do Pai (Jo 1.14)
Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai? (Jo 14.9).
As pequenas imagens são imagens do Filho, que é perfeito e a imagem plena
(Cl 1.15).
A seu modo, essas pequenas imagens no Antigo Testamento são até
espetaculares e extraordinárias. Contudo, elas também apontam para algo
comum. Fenômenos como a tempestade trovejante no monte Sinai nunca
deveriam se repetir. Contudo, elas também nos lembram de tempestades
trovejantes comuns. O fogo e os relâmpagos e os trovões no monte Sinai
revelavam o poder, a majestade e a santidade de Deus de forma única. Mas
também podemos afirmar que uma tempestade trovejante comum revela o
poder e a majestade e a santidade de Deus? Com certeza o faz, em particular
depois que fomos ensinados sobre Deus por meio do monte Sinai. Os
acontecimentos no monte Sinai, precisamente por revelarem a Deus com
intensidade, podem nos despertar para o que acontece em um nível menos
intenso em uma tempestade trovejante comum.
Considere outro exemplo, o do fogo. O fogo no monte Sinai revelou a
santidade divina e relembrou Israel de sua habilidade de consumir a
profanidade. Será que o fogo comum reflete a mesma verdade? Ou considere
a luz. A Bíblia diz: “Deus é luz, e nele não há treva nenhuma” (1Jo 1.5). No
contexto, dá-se destaque, em primeiro lugar, à pureza ética de Deus. Mas
também sugere sua habilidade de buscar o que está escondido e o expor:
O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do
que a luz; porque as suas obras eram más. Pois todo aquele que pratica o mal aborrece
a luz e não se chega para a luz, a fim de não serem arguidas as suas obras. Quem
pratica a verdade aproxima-se da luz, a fim de que as suas obras sejam manifestas,
porque feitas em Deus (Jo 3.19-21; v. tb. Ef 5.8-14).
A luz brilhante nas teofanias obviamente representa esta característica divina.
Mas a mesma, em um nível menor, se dá com a luz comum, porque a luz
comum é ela própria um reflexo e lembrete da luz que ocorreu no contexto
extraordinário da teofania. Assim, quando em Gênesis 1.3 Deus criou a luz,
ele criou algo que reflete ou é uma imagem de si mesmo.
Segundo Romanos 1, as coisas criadas revelam o caráter de Deus:
Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua
própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo
percebidos por meio das coisas que foram criadas (Rm 1.20).
Tudo que Deus fez demonstra o poder do Deus que o fez. Mas ao olhar para
as teofanias, podemos dizer mais. Algumas coisas específicas, como a luz e
as tempestades e o fogo, não só refletem a verdade geral de que Deus é o
Criador, como ilustram ou refletem aspectos específicos do caráter divino. É
claro, também afirmamos que elas são reflexos criados. Corretamente
entendidas, elas não levam à adoração da criatura, mas do Criador que as fez.
A REALIDADE DIVINA E O CONHECIMENTO HUMANO DE DEUS
Podemos refletir, por um momento, na relação entre a realidade divina e o
conhecimento humano. O ensino bíblico sobre a transcendência e imanência
de Deus implica que podemos ter verdadeiro conhecimento de Deus
(imanência) e que o nosso conhecimento é parcial, limitado e derivativo, ao
passo que o conhecimento de Deus é completo, ilimitado e original
(transcendência).[201] Precisamos tomar cuidado para guardar a autenticidade
do conhecimento de Deus e nossa subordinação como criaturas a Deus, o
Criador. Esses princípios se aplicam sempre que descrevemos a Deus, ou
quando descrevemos as relações entre as pessoas da Trindade, ou quando
descrevemos as ações de Deus no mundo.
Podemos ilustrar isso com a afirmação de que Deus é o rei do universo. Ao
fazê-la, usamos uma analogia entre Deus e reis humanos. Deus é semelhante
e diferente de reis humanos. Se dissermos que Deus é um rei exatamente
como um rei humano, nós o reduzimos ao nível da criatura e negamos sua
transcendência. Suponha, porém, que digamos ser ele completamente
diferente de um rei humano e que a palavra rei, quando usada para Deus. tem
um sentido não relacionado aos reis humanos. Portato, o termo rei não é
melhor que uma palavra sem sentido, como glak. Ela não significa nada, e de
fato não se diz nada definido sobre Deus. Ele permanece desconhecido e
então negamos sua imanência.
Quando a Bíblia descreve Deus como rei, ela não segue nenhum desses
extremos inaceitáveis. O contexto bíblico nos faz entender que Deus é o
Criador, muito maior que um rei humano; ele não está no mesmo nível. Mas
a Bíblia quer dizer algo ao afirmar ser Deus é o rei. Ela claramente pretende
comunicar que Deus é como um rei humano e que podemos aprender sobre
Deus com a comparação. A palavra rei não funciona em caráteer unívoco, ao
dizer exatamente o mesmo a respeito de Deus e do homem (fazendo de Deus
uma criatura). Nem ela funciona de forma equívoca, ao dizer duas coisas
diferentes e sem relação (tornando a palavra rei inútil e incognoscível). Em
vez disso, ela funciona em sentido análogo, dependendo da comparação
estabelecida pelo próprio Deus como significativa.
Na verdade, em vários lugares a Bíblia nos dá maiores indicações sobre a
natureza da analogia. Deus criou o homem à sua imagem e lhe concedeu o
domínio, segundo Gênesis 1. A capacidade do domínio humano é derivada do
domínio divino e da sua decisão de dar ao homem essa capacidade. Ademais,
Deus em sua providência aponta seres humanos específicos para posições de
autoridade governamental (Sl 75.7; Dn 2.21; Rm 13.1). Deus designa
autoridades humanos a partir de sua autoridade. Assim, o uso da palavra rei
para se referir a Deus e a seres humanos não se dá por apenas um acidente de
linguagem. Descansa na analogia genuína entre Deus e homem. Há primeiro
a analogia geral procedente da criação do homem à imagem divina. Então
temos a analogia específica entre a autoridade divina e a autoridade do ser
humano, designado poe Deus. Se começarmos, como muitas pessoas fazem,
do nível terreno, pode-se alegar que os seres humanos são literalmente reis,
ao passo que Deus é rei só em sentido estendido, metafórico. Todavia,
quando nos lembramos de que o uso da palavra rei depende da analogia já
existente, podemos muito bem reverter a ordem do pensamento. Deus é o rei
originário, o rei humano é apenas uma sombra, cópia ou imagem.
Do mesmo modo, Deus é o Pai originário: ele é Pai do Filho. Os pais
humanos são cópias, imagens da paternidade divina. Deus não é “pai” no
mesmo nível do pai humano; mas ele é um pai, na verdade, o Pai supremo, e
nossa linguagem permanece com sentido quando o chamamos Pai. (De novo,
trata-se de linguagem analógica). O Filho também é a Palavra, de acordo com
João 1.1. A “Palavra” não está no mesmo nível das palavras humanas. Mas
ainda faz sentido dizer que ele é a Palavra. Na verdade, em sentido
ontológico ele é a Palavra originária: as palavras e os discursos humanos são
imagens.
Cristo é a imagem do Deus invisível (Cl 1.15). Como em outros casos, a
palavra imagem funciona em sentido analógico. É semelhnte à relação da
imagem na criação, como a relação entre Deus e o homem feito à sua
imagem, ou entre Adão e Sete, que tinha como imagem seu pai, Adão. E
então um corpo inanimado, como uma pedra ou uma bola de borracha, pode
ser uma “imagem” das posições, movimentos e forças de um ser humano.
Assim, pode-se confiar que se vê uma analogia genuína aqui. O cético pode
negar a existência da analogia, mas ele não diria que a palavra imagem —
usada para designar um corpo físico — não tem nenhuma ligação com a
palavra imagem — para designar a criação do homem. Precisamos responder
que, pelo fato de entender Deus por meio de relações analógicas, a palavra
imagem, quando aplicada a Deus, se relaciona de fato às ligações analógicas
percebidas na criação. Precisamos afirmar a distinção entre Criador e criatura
(transcendência); mas igualmente precisamos afirmar a acessibilidade de
Deus pelo homem, a criatura (imanência),ma acessibilidade dependente de
Deus ter estabelecido analogias reais e diversas na criação que testificam seu
caráter e ostentam sua marca.
O faro de o homem ser feito à imagem de Deus é claramente, e de longe, o
exemplo mais notável do testemunho na criação do Deus que o fez. Mas por
que não deveria o testemunho se estender em nível derivativo e atenuado a
outras criaturas? Plantas e animais formam “imagens” da vida divina ao
produzir uma geração à sua imagem. Por que não deveríamos esperar que
mesmo algo inanimado forme uma imagem sobre o caráter de Deus? E de
fato isso ocorre, como vimos nas ilustrações com o trovão, a luz e as nuvens.
REALIDADE
Qual é a luz “real” ou a vida ou a palavra “verdadeira”? A palavra “real”
deveria acender um alerta vermelho. Como vimos no Capítulo 15, no mundo
cuja ontologia é definida em caráter exaustivo pela palavra divina, todas as
coisas que se conformam a essa palavra são “reais”. A “realidade” acaba
sendo algo rico, maravilhoso e multidimensional. A luz física é real; a “luz”
redentora da revelação é real e a fonte de luz na segunda Pessoa é real. A
atmosfera moderna pode nos tentar a descrever um ou mais desses níveis
como “apenas” metafóricos, em tom depreciativo. Contuco, precisamos de
uma teologia da linguagem e de uma teologia da metáfora que eliminnem o
elemento depreciativo.[202] A linguagem humana é uma imagem da Palavra e,
como tal, aponta para algo profundo. Uma metáfora dada por Deus não é
“apenas” uma metáfora, mas uma reelação desas coisas profundas.
Em outras palavras, do ponto de vista ontológico, a luz, a vida e a palavra
originais são a Palavra eterna, o Filho do Pai. As manifestações terrenas são
reflexos “metafóricos” designados por Deus para nos mostrar de verdade o
que é real. Elas revelam o Filho, sua fonte, como uma janela revela a
paisagem além. Pode-se olhar o vidro da janela ou se pode olhar pela janela,
como o observador quiser. Todavia, a analogia é imperfeita, pois a janela é
algo criado, distinto da paisagem criada, ao passo que a luz e a vida e a
palavra neste mundo existem só para serem sustentadas por aquele que é a
Luz, a Vida e a Palavra originais que as concedeu.
A luz neste mundo não tem “substância” independente da Luz originária, é
totalmente dependente dela. Ela é tão transparente à Luz incriada que não
podemos distinguir as duas? Sim, podemos distingui-las. Neste mundo, a luz
possui relações físicas, matemáticas e estéticas que podemos descrever em
detalhes e sujeitar à análise. A Luz incriada é luz de fato, mas não se sujeita à
“decomposição” em relações analíticas. Assim, ele também é Luz, Palavra,
Verdade, Sabedoria, Pão e Vinho, de forma que podemos pensar nas relações
com outros sentidos depois de tudo. Todo o sentido reside no governo da
verdadeira Sabedoria divina.
A criação de Deus é real e distinta dele. Contudo, ela não é independente de
Deus. Deus governa o mundo que ele criou e também o mundo demonstra
muitos reflexos do seu caráter.
18. O mistério da vida
Agora vamos considerar uma área particular de pesquisa científica, a
biologia. Como de costume, a Bíblia não apresenta informações técnicas ao
pesquisador. Entretanto, ela é confiável e verdadeira no que diz e oferece uma
estrutura em que a pesquisa pode prosseguir.
TIPOS DE PLANTAS E ANIMAIS
Deus indica especificamente em Gênesis 1 ter ele criado as plantas no
terceiro dia, as árvores e os peixes no quinto dia e os animais terrestres no
sexto dia. Deus concedeu ao homem domínio sobre plantas e animais
(1.28,29) e distinguiu dos dois ao indicar que os animais receberam as plantas
como alimento.
Gênesis também indica que esses seres vivos surgem “segundo a sua
espécie”. A repetição da expressão confirma o que os israelitas podiam ver à
sua volta: plantas e animais pertencem a classes distintas. Encontramos
ovelhas, bodes e camelos, mas não animais intermediários — metade bode e
metade camelo. A Palavra de Deus revela a ordem e a divisão no mundo. A
ordem entre os animais integra a organização total do mundo.[203] Além disso,
a reprodução acontece segundo as linhas estabelecidas pela Palavra de Deus:
“A terra, pois, produziu relva, ervas que davam semente segundo a sua
espécie e árvores que davam fruto, cuja semente estava nele, conforme a sua
espécie” (Gn 1.12). Cada planta gera um tipo particular de semente, “semente
segundo a sua espécie”, ou um fruto particular. Os israelitas sabiam que a
semente dava origem a novas plantas e árvores, de acordo com a espécie
particular. Sementes de aveia levam à colheita de plantas de aveia em
crescimento. O padrão é levado até o mundo animal também. Ovelhas
nascem de ovelhas. O mandamento “Sede frutíferos e multiplicai-vos”
dirigido às criaturas aquáticas presume que a ocorrência da multiplicação
segundo as espécies mencionadas pela Palavra divina. Daí, a Palavra de Deus
especifica e controla não só o ato originário da criação, mas também o padrão
continuado de crescimento e reprodução de acordo com as espécies. Israel
precisa reconhecer que todos os dias, enquanto agricultores e pecuaristas
cultivam safras e gados, eles dependem da fidelidade de Deus à sua Palavra.
Assim, a instrução divina em Gênesis 1 possui funções práticas. Cintudo,
como seres humanos crescem em conhecimento e continuam a refletir sobre
os animais e as plantas, Gênesis também fornece indicações para o início da
classificação taxonômica de animais e plantas. A palavra “espécies” não pode
ser equacionada com espécie ou gênero ou família ou qualquer outro termo
posterior usado na classificação taxonômica técnica. É mais um termo geral,
mais comum para denotar o que israelitas comuns podiam observar: um bode
é, em muitos aspectos, mais semelhante a outro bode que a cachorros ou
ratos; e bodes geram mais bodes como eles próprios.
Na verdade, os israelitas observadores descobririam que o princípio da
reprodução segundo espécies aplica-se em um sentido alterado mesmo dentro
de uma única espécie. Se for escolhida a melhor semente ou os melhores
bodes para reproduzirem a próxima geração, mais provavelmente serão
obtidos bons resultados. Pela seletividade no decorrer do número de
gerações, pode-se produzir uma variedade distinta dentro de uma espécie.
Todavia, uma reclamação surge de imediato: o relato de Gênesis 1 parece
“errar” a classificação ao agrupar todas as criaturas aquáticas juntas, em lugar
de classificar baleias e golfinhos em separado com os mamíferos. O cientista
classifica baleias e golfinhos com mamíferos, enquanto classifica peixes
ósseos separadamente e crustáceos e mariscos e esponjas em outros grupos.
O cientista pode também reclamar que os morcegos deveriam ser
classificados com os mamíferos em lugar dos pássaros. Gênesis, contudo,
agrupa todas as criaturas voadoras juntas. Mas na verdade não há nada errado
com a classificação de Gênesis. Mais uma vez ajuda pensar na distinção entre
a linguagem comum da observação da linguagem técnica e das preocupações
técnicas da ciência. A Bíblia não interrompe aqui sua grande narrativa para
lidar com cada exceção possível. No nível mais comum baleias, golfinhos e
morcegos não são “exceções”, pois baleias e golfinhos vivem no mar e os
morcegos voam no ar. Os animais não são agrupados em termos de
similaridades técnicas, morfológicas ou genéticas, mas em termos da óbvia
similaridade de habitat. O israelita primitivo poderia presumir com facilidade
que a semelhança de habitat dita a similaridade em todos os outros níveis.
Deus é cheio de surpresas e mais tarde o pesquisador detalhista descobre que
baleias e golfinhos se encontram entre as surpresas. O estudo técnico
adiciona uma camada adicional de riqueza ao entendimento da Palavra divina
que rege as espécies. Mas ela não mina as diferenças óbvias de habitat ou
outras características.
IMAGENS FEITAS NA VIDA
Quando os animais se reproduzem “segundo sua espécie”, eles produzem
outros animais que se parecem e se comportam com os progenitores e os
ascendentes. Eles produzem cópias ou semelhanças de si mesmos. Todo o
padrão lembra-nos da feitura de imagens que vimos no tabernáculo. Assim,
caso proceda, qual a ligação disso com a confecção de imagens?
Em Gênesis 1 “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus
o criou” (Gn 1.27). No mínimo isso quer dizer que o homem foi feito como
Deus. E vimos circunstâncias em que o homem se assemelha a Deus. O
homem é como Deus no domínio concedido por Deus ao homem, na
habilidade de usar a linguagem e nomear os animais.
Gênesis 5.1-3 toma a linguagem de Gênesis 1, ao olhar para a posteridade de
Adão:
Este é o livro da genealogia de Adão. No dia em que Deus criou o homem, à
semelhança de Deus o fez; homem e mulher os criou, e os abençoou, e lhes chamou
pelo nome de Adão, no dia em que foram criados. Viveu Adão cento e trinta anos, e
gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem, e lhe chamou Sete.
Sete foi gerado “à sua semelhança, conforme a sua imagem”, uma descrição
que claramente ecoa a criação do homem à imagem divina, conforme a sua
semelhança. Adão não é Deus, mas ele imita a Deus em um nível criado ao
produzir “conforme a sua imagem”. No contexto isso significa à semelhança
de Adão, não à semelhança de Deus. Entretanto, como Gênesis 5.1 afirmara
que Deus fez Adão à semelhança divina, Sete também foi feito à semelhança
de Deus. Na verdade, infere-se com facilidade que todos os descendentes
demonstrarão o mesmo padrão — confirmado por
[204]
Gênesis 9.6, 1 Coríntios 11.7 e outras passagens.
O homem foi distinguido de todos os animais ao ser feito à imagem divina.
Contudo, nessa própria distintividade também se percebe ironicamente uma
semelhança, pois os animais se reproduzem “segundo a sua espécie”. O texto
nunca diz em muitas palavras que o homem se reproduz segundo a sua
espécie. Mas a reprodução “conforme a sua imagem” é bem similar. A
humanidade não é só mais um tipo de animal, no nível de outros animais —
assim evitar a expressão “segundo a sua espécie” é uma boa medida. Mas a
ideia é similar, similar o suficiente para sugerir que, mesmo os animais não
estando no nível da humanidade, eles espelham a humanidade no nível
inferior. Podemos dizer que a reprodução animal reflete a reprodução
humana? Gênesis 1 não descreve o relacionamento entre homem e animal de
forma explícita. Apenas o sugere, e quanto mais as pessoas começam a olhar
para os aspectos biológicos da reprodução entre os animais, mais perceberão
analogias chocantes entre homens e animais.
Se a reprodução animal reflete a reprodução humana, a imagem se dá de
qualquer outra forma? O comportamento animal é uma imagem do humano?
Só é preciso observar os macacos para se divertir com as semelhanças. A
fisiologia animal é uma imagem da fisiologia humana? Explorações dos
órgãos e organização corporal mostram muitas semelhanças entre humanos e
primatas e mais amplamente entre humanos e mamíferos. Deveríamos ser
mais gratos por essas analogias quando se fala do tratamento de doenças
humanas. Muitas hipóteses sobre doenças humanas e tratamentos para podem
ser testados em animais primeiro por causa das semelhanças entre animais e
humanos.
Portato, as imagens feitas entre animais são análogas às imagens feitas entre
seres humanos. Isso implica que os animais são apenas uma imagem do
homem, que é a imagem real? Não. O s animais possuem existência e
integridade própriaa. Eles são, afinal, uma criação de Deus e não do homem.
Deus reflete sua própria vida incriada nas coisas que faz. Uma das maneiras
de demonstrar sua glória é por meio do mistério da vida criada na terra —
fauna e flora. Como devemos pensar sobre os reflexos de Deus no mundo
criado? Deus é distinto da criação. Não misturamos ou confundimos o
Criador com as criaturas. A vida incriada de Deus é distinta da vida criada
das criaturas. Mas Deus mostra algo de si na criação e deixar reflexos de seu
caráter e atividade, não só no homem — a coroa da criação —, mas em outras
criaturas também. Isso porque há analogias entre a vida e a reprodução
animais e a vida e reprodução entre seres humanos. Animais e homens
refletem, à sua maneira, o caráter e a vida de Deus.
As imagens, ou de forma mais ampla, os relacionamentos analógicos, se
estendem por muitos aspectos do mundo biológico. Mesmo no nível
molecular, DNA e proteínas mostram analogias surpreendentes. Podemos
comparar o DNA e as proteínas contidas em células de diferentes tipos de
animais e plantas e eles mostram similaridades notáveis. Por exemplo, o
citocromo C, uma proteína envolvida no metabolismo celular, corre em
células por quase todo o reino das plantas e animais, incluindo bactérias. Mas
a sequência exata de aminoácidos a formar a proteína difere quando se passa
de um grupo taxonômico para outro.
A replicação do DNA na divisão celular é um tipo de reprodução de um
original. A cópia é uma “imagem” do DNA original. A réplica do DNA em
nível molecular é análoga à réplica de uma célula por divisão celular. A
divisão celular é análoga à réplica do animal por meio de reprodução,
sexuada ou assexuada. Todos os casos de réplica são formas de fazer
imagens.
De onde procede essa confecção de imagens? Não perguntamos sobre causas
materiais, mas sobre o padrão que expressa a ideia. A reprodução humana
reflete a criação do homem à imagem divina. A origem está em Deus e é
claro que na sua Palavra ele controla a expressão da ideia entre humanos e
animais e plantas. Mas fazer imagens não é só uma ideia na mente divina.
Expressa a realidade última do ser divino, na medida em que o Filho é a
imagem originária do Pai (Cl 1.15; Hb 1.3). A revelação do Filho vem depois
do material veterotestamentário sobre a criação. Todavia, a realidade
desvelada precede e fundamenta a criação. Deus fez o homem à sua imagem,
porque, mesmo antes da criação do homem, o Pai amou o Filho, que era a sua
imagem. Deus fazer o homem espelhava ou refletia o Filho, a imagem
originária.
Contudo, a dessemelhança também nos confronta. O Filho foi “gerado, não
feito”, como o Credo Niceno nos lembra. O homem foi feito, feito como
criatura. Em contraste, o Filho é eterno. Assim, porque dizemos que foi
“gerado”? “Gerado” em uso comum descreve a relação entre o pai e o filho
dentre seres humanos. Adão gerou Sete. Em linguagem mais moderna,
dizemos que ele foi seu pai (Gn 5.3). Quando usamos o termo “pai” ou
“gerar” com respeito a Deus, obviamente o usamos de modo analógico.
Temos a base clara da analogia no fato de Adão ter sido pai de Sete, e este era
“à sua semelhança”, claramente imitando a Deus, o pai de Adão “à sua
imagem”, que imita o Filho sendo a imagem do Pai. A origem dessas
imitações está no Pai — o Pai do Filho —, cuja vida trinitária é o original
dessas derivações.
A Bíblia indica que o Pai enviou o Filho ao mundo para nascer da virgem
Maria (Gl 4.4; cf. Mt 1.18,23). A linguagem sobre “enviar” o Filho implica
que ele era o Filho em relação ao Pai mesmo antes de vir ao mundo na
encarnação. Quando se tornou homem e nasceu da virgem Maria, seu
nascimento especial demonstrou e confirmou ser ele o eterno Filho. O que
aconteceu no tempo e no espaço na encarnação nos foi uma janela para
entender quem o Filho era: a saber, o Filho do Pai. A encarnação sem um pai
humano refletia a relação eterna de Deus Pai ao Filho. Sublinhamos o caráter
do reflexo de relacionamentos eternos quando dizemos que o Pai gera
eternamente o Filho. O Credo Niceno fala de Cristo como “o unigênito Filho
de Deus, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, Luz da
Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado não feito, de uma só
substância com o Pai”. A palavra gerado indica que o Pai gera ou é pai do
Filho eternamente. Confessamos isso não porque entendemos, mas por que
assim indicamos que a encarnação mostra quem Deus é, e quem eternamente
foi, a saber, o Pai que se relaciona como Pai do Filho no poder do Espírito
Santo (Mt 1.18; Lc 1.35). Deus demonstra seu caráter verdadeiro nas relações
trinitárias por meio do acontecimento único e singular da encarnação.
Assim, com reverência e mistério, podemos dizer que Deus não é
eternamente imóvel ou inativo, mas eternamente ativo. O Pai ama o Filho e o
Filho ama o Pai (Jo 3.35; 14.31). O Pai é Pai do Filho e o Filho rende seu
serviço Filial ao Pai. O Pai se reflete no Filho e o Filho é imagem do Pai,
como é belamente expresso no contexto redentor: “Em verdade, em verdade
vos digo que o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão só aquilo que vir
fazer o Pai; porque tudo o que este fizer, o Filho também do mesmo modo o
faz” (Jo 5.19). A atividade eterna do Pai com o Filho por meio do Espírito
produziu uma imagem no tempo quando Deus criou o homem à sua imagem.
O homem, como filho criado, precisa imitar o Filho, a imagem original; o
homem precisa imitar o Pai que o fez como imagem. E ele imita esse a
confecção da imagem no ponto culminante ao também fazer imagens, Adão
foi pai de um filho. Que conquista mais exaltada poderia ter o homem que
produzir uma nova criatura: ela própria é uma imagem de Deus!
“Porque assim como o Pai tem vida em si mesmo, também concedeu ao Filho
ter vida em si mesmo” (Jo 5.25). O contexto da afirmação em João é
redentor. Mas, como sempre, podemos inferir que o princípio se estende à
criação. Por toda a eternidade, o Pai tem vida em si mesmo; ele é Pai do Filho
como sua imagem; portanto, o Filho também tem vida em si mesmo.
Entretanto, Adão recebe vida, mas, por ser criatura, não tem vida “em si
mesmo”; ele é capaz de propagar vida à Sete apenas por viver e se mover e
existir em Deus (At 17.28). A vida e sua propagação têm sua fonte em Deus.
Deus não só controla e ordena a vida; ele a controla e ordena em imitação de
si mesmo. Ele é o Deus vivo (Mt 16.16; etc.); possui vida divina. Assim,
reflete a própria vida na vida do mundo. Ele ama o Filho e, por amor, produz
imagens de amor por todo o mundo. Ele ama o Filho e o impulso desse amor
ativo dá às criaturas, como uma imagem de si mesmo, o poder criado de
amar, agir e ser pai.
Os atos de fazer imagens e copiá-las ocorrem de modo especial no mundo
biológico, o mundo da vida. Na verdade, a biologia hoje possui alguns termos
especiais para tais padrões. Analogia significa “correspondência de função
entre partes anatômicas de estrutura e origem diferentes”, enquanto
homologia significa “semelhança em estrutura entre partes de organismos
diferentes devido à diferenciação evolutiva da mesma parte ou de parte
correspondente de um ancestral remoto”.[205] A segunda definição, pelo
menos como usualmente entendida, presume o princípio evolutivo da
descendência de um ancestral comum, mas esse não é o nosso ponto no
momento. Deus, por meio de sua Palavra, designou analogias entre tipos
diferentes de organismos, bem como o princípio da reprodução segundo a
espécie dentro de cada um dos tipos de organismo. Ademais, analogias se
mostram em níveis diferentes. Os organismos se reproduzem, ou produzem
imagens de si mesmos. As células de um organismo multicelular se dividem e
produzem imagens. O DNA se replica e produz imagens. Os processos de
replicação são semelhantes entre si em diversos tipos de organismos e, assim,
espelham-se um ao outro. Vários outros processos da vida orgânica, além de
processos diretamente reprodutivos, se espelham entre espécies diferentes
bem como dentro de uma espécie.
Além disso, a descoberta do DNA e do RNA nos confronta com a
informação biológica. A informação codificada na sequência particular de
nucleotídeos em uma molécula particular de DNA ou RNA contém a receita
para construir uma proteína com uma sequência exatamente especificada de
aminoácidos. Qualquer célula viva, como uma fábrica, manufatura proteínas
usando a informação “de planejamento” contida no DNA da célula. A
informação parece análoga à “informação” originária na palavra de Deus. O
processamento da informação na célula parece análoga aos meios usados por
Deus usou na criação para desenvolver o produto conforme à sua palavra. A
palavra de Deus especifica a “manufatura” de uma coisa criada. A célula
contém em sua informação molecular um tipo de análogo criado ou uma
imagem da Palavra incriada.
Se desejarmos, podemos traçar pequenas imagens da Palavra eterna no
mundo. Começamos pela segunda pessoa da Trindade que “estava com Deus
e era Deus” mesmo “no princípio” (Jo 1.1). As palavras específicas de Deus
para criar a luz, os animais e as plantas são como imagens da Palavra
originária. Deus também fala palavras aos seres humanos. E os seres
humanos falam palavras entre si, todas em imitação da fala originária de
Deus.
E os animais? Os animais não usam línguas para se comunicar. Eles emitem
sons e chamados, mas eles representam só uma comunicação rudimentar em
comparação com a linguagem humana. Contudo, mesmo aqui, não podemos
dizer que esses chamados são distantemente análogos à linguagem humana?
Os chamamentos animais e a linguagem humana refletem, cada um em seu
nível, a linguagem divina. Descobrimos que alguns animais se comunicam
não com sons audíveis, mas por outros meios: as abelhas se comunicam
usando uma dança especial, enquanto as formigas se comunicam com sinais
químicos. São imagens opacas da palavra de Deus.
Células individuais se comunicam quimicamente em uma grande variedade
de formas, que ainda estamos no processo de descoberta. A comunicação
celular mais notável nos animais superiores procede do sistema nervoso, que
também desempenha um papel central evidente na ação e reação humanas.
Em uma única célula, vários sistemas de comunicação portam informações
para dentro e para fora da membrana celular, para dentro e para fora do
núcleo, e subsistemas especializados podem controlar o formato da célula,
seu processo de divisão e seus subsistemas de produção química. O DNA e o
RNA comunicam o conteúdo de suas informações.
Todos esses padrões são pequeninas imagens da Palavra de Deus. Eles
demonstram a sabedoria do Pai — sabedoria conectada ao Filho, a Sabedoria.
Podemos admirar e louvar a Deus pela atividade misteriosa e fecundidade da
vida na medida em que ela se mostra no nível da vida comum e como vem
nas salas de estar em fascinantes programas de TV sobre a natureza. Podemos
admirá-lo e o louvar ainda mais quando, com cuidado microscópico,
examinamos os detalhes e vemos as imitações intrincadas da vida de Deus
traçadas nos detalhes. O mundo biológico nos convida a adorar a Deus: Pai,
Filho e Espírito.
O ESPÍRITO CONCEDE VIDA
Que papel o Espírito Santo desempenha? Lembramos que o Espírito Santo
pairava por sobre as águas em preparação às obras de criação (Gn 1.2). No
Novo Testamento, o Espírito Santo possui um papel distinto de conceder vida
redentora.
Se, porém, Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado,
mas o espírito é vida, por causa da justiça. Se habita em vós o Espírito daquele que
ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus
dentre os mortos vivificará também o vosso corpo mortal, por meio do seu Espírito,
que em vós habita (Rm 8.10,11).
O Espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos tenho
dito são espírito e são vida (Jo 6.63, TB)
O texto de Ezequiel 37 profetiza a vivificação ao descrever uma visão sobre
um vale de ossos secos. Os ossos secos recebem vida quando Ezequiel
profetiza a eles e lhes sobrevém o fôlego, significando a doação do Espírito:
“Porei em vós o meu Espírito, e vivereis...” (Ez 37.14). Na verdade,
Ezequiel 37 joga com três sentidos da palavra hebraica ruach, que pode
significar “fôlego”, “vento” ou “Espírito” (ou “espírito”, o espírito humano).
O Espírito é retratado como o fôlego de Deus, que vem e sopra vida em
corpos mortos. A figura é reminiscente de Gênesis 2.7: “Formou o SENHOR
Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o
homem passou a ser alma vivente”.
A energia do Espírito Santo na vida redentora, na nova criação, espelha a
energia usada por Deus ao trazer vida ao homem. Podemos inferir que a vida
da criação vem do Espírito. Jó 32.8 provê a confirmação: “Na verdade, há um
espírito no homem, e o sopro do Todo-Poderoso o faz sábio”. No hebraico
“espírito” é a mesma palavra (ruach) normalmente usada para o Espírito
Santo. A tradução em português (ARA) está certa em não capitalizar
“espírito”. O versículo fala do espírito “no homem”, apontando para o
espírito humano. A linha seguinte coloca o espírito humano em conexão com
“o sopro do Todo-Poderoso”, indicando que o próprio Deus energiza o
entendimento humano. Ele o faz por meio do “fôlego”, ao sugerir a presença
e atividade do Espírito Santo.
A Bíblia repetidas vezes distingue o Deus Criador das criaturas. Deus é Deus
e o Espírito Santo é Deus. O espírito humano do homem não é Deus.
Contudo, Deus também está presente na criação e sua presença e poder tocam
o mais íntimo da vida do homem, incluindo seu espírito. Sem o Espírito
Santo nos sustentando, morreríamos de pronto: “Se Deus pensasse apenas em
si mesmo e para si recolhesse o seu espírito e o seu sopro, toda a carne
juntamente expiraria, e o homem voltaria para o pó” (Jó 34.14,15). O texto de
Salmos 104.30 estende o princípio para além dos seres humanos e o aplica
aos animais: “Envias o teu Espírito, eles [animais] são criados, e, assim,
renovas a face da terra”. “Renovas a face da terra” se refere à produção de
vegetação. Então a nova vida animal e a nova vida vegetal surgem a partir do
envio divino do Espírito para trazer tudo isso à vida.
Para o homem, a vida está associada com o fôlego. Deus deu o “fôlego de
vida” a Adão em Gênesis 2.7. O salmista observa sobre os homens: “Sai-lhes
o espírito, e eles tornam ao pó; perecem todos os seus desígnios” (Sl 146.4).
“O Espírito de Deus me fez, e o sopro do Todo-Poderoso me dá vida”
(Jó 33.4). O fôlego vem de Deus, em especial do Espírito de Deus. Assim,
parecemos ter na criação uma série de “imagens” ou reflexos da vida em
Deus.
Primeiro, Deus tem vida em si mesmo. Ele se mostra, em especial, a fonte de
vida por meio de seu Espírito, que é vida (Rm 8.10). Segundo, a vida do
Espírito vem aos seres humanos, de forma que eles respiram. Seu fôlego
reflete o fôlego do Espírito. Terceiro, animais, como refletores da vida divina
e análogos à vida humana, são criaturas que respiram. Quando os animais
morreram no Dilúvio: “Tudo o que tinha fôlego de vida em suas narinas, tudo
o que havia em terra seca, morreu” (Gn 7.22). Quarto, mesmo as plantas
derivam sua vida do Espírito. Depois da primeira metade de Salmos 104.30
mencionar Deus enviando o seu Espírito, a segunda metade diz: “Renovas a
face da terra” — uma descrição da renovação da flora. Os cientistas agora
descobriram que as plantas superiores possuem um sistema “respiratório”.
Embora a respiração não aconteça por meio do movimento muscular ativo,
canais de ar (“estômatos”) nas folhas deixam o ar entrar e uma troca química
de oxigênio e dióxido de carbono acontece de forma análoga aos animais. As
células individuais precisam se engajar em um processo semelhante de
respiração, ou de modo mais geral, no consumo metabólico de energia a fim
de manter a vida. A evidência do cuidado de Deus e a presença de seu
Espírito doador de vida está em todas as coisas à nossa volta, incluindo as
pequenas imagens de “fôlego”.
INTENCIONALIDADE NA VIDA
Temos visto, então, como a reprodução, o armazenamento e a comunicação
de informação, e o fôlego (de forma mais geral, o metabolismo) oferecem
imagens analógicas da vida original incriada de Deus. Outros processos em
coisas vivas também oferecem analogias. Considere toda a área de propósitos
e objetivos. Deus age com propósitos para alcançar objetivos. O objetivo
supremo do Pai é glorificar o Filho e o objetivo supremo do Filho é glorificar
o Pai (Jo 13.31,32; 17.4,5). Esses objetivos supremos são desenvolvidos nos
objetivos subordinados de Deus em suas obras de criação e providência. A
dinamicidade da vida divina se expressa em uma ação orientada por objetivos
na criação.
Os seres humanos, em imitação a Deus, também formulam objetivos e se
propõem a alcançá-los. Só pela atenção aos objetivos envolvidos podemos
entender como outros seres humanos constroem casas, escrevem livros e
cuidam da agricultura. Animais e plantas, embora não aparentem ter planos
conscientes a longo prazo, também agem de forma direcionada por objetivos
para preservar a vida e crescer e reproduzir. Não é popular na biologia
moderna oficial reconhecer objetivos, mas cientistas e divulgadores populares
da ciência inevitavelmente acabam usando explicações com objetivos por
serem obviamente parte do padrão da vida e uma chave muito importante
para entender a vida no nível comum.
Como sempre, a cosmovisão cristã rejeita a ideia de que essa aparente busca
por objetivos é apenas ilusória. Como Michael Polanyi demonstrou anos
atrás, mesmo a análise de máquinas feitas por homens requer uma referência
a propósito.[206] Só ao saber para que uma máquina foi feita (seu propósito)
podemos dizer se ela está intacta ou quebrada, funcionando ou parada, efetiva
ou inefetiva, eficiente ou ineficiente. Princípios semelhantes se mantêm
quando olhamos para organismos vivos, uma única célula viva ou mesmo
para as máquinas moleculares de uma célula.
Quando falamos dessa forma, não tentamos reviver uma filosofia de
vitalismo que diz que uma força de vida fantasmagórica aparece nas coisas
vivas além disso, às forças químicas e físicas comuns. As análises químicas e
físicas são válidas e descobrem verdades reais com suas análises. Entretanto,
a palavra de Deus possui muitas dimensões, e controla não só ações físicas e
químicas, mas as atividades distintas de coisas vivas, com propósitos segundo
o seu plano, propósitos que o homem pode discernir em parte por ter sido
criado à imagem divina.
Descrições de propósito complementam descrições de energia física, em vez
de postular outro tipo de energia no mesmo nível. Suponha que Sally entre no
carro para ir trabalhar. Podemos escolher focar nas atividades físicas,
químicas e mecânicas envolvidas nas contrações musculares de Sally e seu
movimento corporal. Ou podemos focar no propósito de Sally, a saber, ir
trabalhar. As duas formas de observar Sally são complementares. O propósito
de Sally não é uma forma extra de energia física ou movimento físico. Ele
fica ao lado do aspecto físico como uma explicação em outro nível. Do
mesmo modo, em nível celular, podemos observar os cromossomos de uma
célula se duplicarem e se alinharem em um eixo central em preparação à
divisão celular. Podemos focar nas forças físicas e nos processos químicos
envolvidos em duplicar os cromossomos e os alinhar. Ou podemos focar no
propósito, e dizer que a célula se preparando para se dividir. As duas análises
são verdadeiras, mas em níveis diferentes. Resistimos à redução do físico ao
propósito ou do propósito ao físico, porque a palavra de Deus é rica o
suficiente para atribuir sentido e estrutura distintos a ambos.
PODER E CONTROLE NAS COISAS VIVAS
O conceito de propósito possui conexões com padrões de controle nas coisas
vivas. Para alcançar o propósito pelo qual algo vivo foi designado, é preciso
controlar processos subordinados dentro de si e no ambiente. O controle
executa um propósito. Pode-se, portanto, traçar analogias entre níveis
diferentes de controle.
Primeiro, Deus controla todos os acontecimentos segundo o seu plano.
“... segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho
da sua vontade” (Ef 1.11). “Quem é aquele que diz, e assim acontece, quando
o SENHOR o não mande? Acaso, não procede do Altíssimo tanto o mal como o
bem?” (Lm 3.37,38). O Filho de Deus exerce controle para executar o plano
do Pai. “A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou
e realizar a sua obra.” (Jo 4.34). Seres humanos, tendo recebido domínio de
Deus, controlam as criaturas que se encontram abaixo deles. Os animais
controlam não só o próprio corpo, mas sua comida, e interagem de maneiras
complexas para exercer algum controle do ambiente: fazendo ninhos e tocas,
caçando presas, cavando para encontrar sementes e assim por diante. As
plantas controlam seu crescimento de forma ordenada e os processos
reprodutivos. Mesmo células individuais controlam seu formato e a
composição química de seu protoplasma.
AVALIANDO A EVOLUÇÃO
Quando se leva a sério a demonstração da glória do Pai, do Filho e do
Espírito na vida, levantam-se questões sobre a teoria evolutiva moderna.
Distinguimos antes três sentidos de evolução (Capítulo 5). Microevolução
descreve pequenas variações de ocorrência observável de geração em
geração, mediante a operação de mutação, seleção natural[207] e seleção
controlada por humanos na reprodução. Macroevolução descreve a hipótese
de que a operação da microevolução por um grande número de gerações
produziu de um pequeno começo, provavelmente uma única protocélula
inicial, toda a panóplia de vida que observamos hoje. Naturalismo evolutivo
descreve a cosmovisão materialista que apela à macroevolução como apoio.
Já rejeitamos o naturalismo evolutivo. Agora iremos focar na teoria
macroevolutiva.
A teoria usa evidências a seu favor na forma de analogias e homologias. Na
embriologia, nos fósseis, na genética, na morfologia e na análise molecular,
encontramos analogias entre organismos. As analogias são tão disseminadas
e impressionantes que apontam para a ancestralidade comum de uma única
origem no passado remoto. Ou será que não? Ao seguir uma cadeia de
raciocínio colocada em movimento pela Bíblia, chegamos à explicação
alternativa: as analogias se derivam do padrão comum no próprio Deus. O
padrão é espelhado e refletido e replicado inúmeras vezes ao refletir a única
Palavra eterna nas palavras de Deus com respeito ao mundo da vida. As
analogias mostram um design comum por um designer comum.
E o registro fóssil? Os defensores da macroevolução argumentam que os
fósseis demonstram o padrão de uma árvore evolutiva (embora permaneçam
lacunas graves entre os ramos importantes). De onde veio o padrão da árvore,
se não da ancestralidade comum? Pode-se oferecer mais de uma resposta. Em
contraste à resposta macroevolutiva convencional, observe-se apenas que
Deus planejou o padrão; não se trata de uma ilusão. Uma única árvore viva
possui galhos e ramos menores e ramos maiores e um tronco que em muitos
aspectos são a imagem um do outro. O crescimento da árvore mostra o
padrão de ramificações que replicam o crescimento da única haste originária.
E se o padrão da vida pelas eras geológicas espelha a vida em escala menor, a
vida de uma árvore? Então se torna mais um exemplo de uma imagem feita.
[208]

O motivo de se fazer imagem mostra que podemos organizar toda a evidência


citada em prol da teoria evolutiva na estrutura de design. Deus planejou toda
a vida, dos detalhes microscópicos às maiores reviravoltas. Ele usou um
padrão para o design — a si mesmo. O Pai é Pai do Filho como sua imagem.
Em harmonia com isso, Stephen Jay Gould disse: “Algo quase indizivelmente
santo [...] subjaz à nossa descoberta e confirmação dos reais detalhes que
fizeram o nosso mundo”.[209]
CAUSAS SECUNDÁRIAS
Agora precisamos voltar à observação de que Deus, como causa primária,
governa as causas secundárias, e as causas secundárias não competem com a
causa primária como se estivessem no mesmo nível (Capítulo 13).
Afirmamos que Deus planeja toda a vida, até os menores particulares: este
besouro em particular, não apenas a espécie maior da qual este besouro é um
representante. A Bíblia faz várias afirmações como ao comentar que Deus
governa a vida e a morte de animais individuais:
Se ocultas o rosto, eles [os animais] se perturbam; se lhes cortas a respiração, morrem
e voltam ao seu pó. Envias o teu Espírito, eles são criados, e, assim, renovas a face da
terra (Sl 104.29,30).
O salmo neste ponto descreve o sustento providencial dos animais por Deus.
Assim, a “criação” mencionada não é a de Gênesis 1, mas a criação da nova
geração de animais individuais, depois de a geração mais velha, em grande
parte, morrer. Do mesmo modo, o salmista descreve o cuidado de Deus ao
criá-lo como indivíduo:
Pois tu formaste o meu interior, tu me teceste no seio de minha mãe.Graças te dou,
visto que por modo assombrosamente maravilhoso me formaste; as tuas obras são
admiráveis, e a minha alma o sabe muito bem (Sl 139.13,14)
Em termos teológicos, dizemos que Deus age como causa primária para a
criação de novos animais ou um novo ser humano individual, mas ele traz o
resultado por meio de causas secundárias, isto é, os processo normais de
conceito, gestação e nascimento.
EXCEÇÕES NOS MEIOS PARA PRODUZIR NOVOS INDIVÍDUOS
Será que as causas secundárias sempre operam da mesma forma ao fazer
novos indivíduos? Elas não operaram no caso do nascimento de Cristo, pois
ele nasceu de uma virgem (Mt 1.18-25). Elas não operaram no caso de Eva,
porque ela foi feita da costela de Adão (Gn 2.21-23).
Podemos encontrar pessoas que discutem essas exceções; isto é, elas negam o
nascimento virginal de Cristo e a criação especial de Eva. Deveríamos
esperar essa reação na época dominada pela ciência, porque a cultura
contemporânea tende a interpretar a “ciência” como a implicação de leis
impessoais que não admitem exceções. Em contrapartida, quando as leis são
generalidades sobre o governo do Deus pessoal, a estrutura da ciência muda
de forma radical e as respostas são dadas de modo diferente.
Uma exceção é apropriada no caso de Cristo, porque ele é o único Filho de
Deus. E, como Adão, ele é o começo de uma nova raça, a humanidade
renovada da “nova criação” (2Co 5.17). A exceção não resulta em absurdo,
mas racionalmente entra em coerência com o plano do Deus pessoal. A
exceção também é apropriada ao caso de Eva, por ter sido a primeira mulher.
Se Adão tivesse sido deixado sozinho, nos seres humanos não poderiam
surgir ainda usando o curso normal das causas secundárias. Por último, a
exceção é apropriada no caso de Adão, porque ele é o primeiro homem.
CRIAÇÃO DE EVA A PARTIR DA COSTELA DE ADÃO
Eva realmente proveio de uma costela de Adão? Alguns intérpretes preferem
a interpretação figurada da costela. Então precisamos olhar com mais cuidado
para o sentido de Gênesis 2.21, 22. Consideraremos Henri Blocher
representante da interpretação figurada (embora ele se recuse a ser
dogmático).[210]
Primeiro, Blocher afirma que a declaração de Paulo em 1 Coríntios 11.8, “e
sim a mulher, do (ek) homem” não exige a interpretação literal. E explica:
Há tipos diferentes de causalidade e que o apóstolo tem em mente pode ser exemplar
ou final. Poderia-se dizer perfeitamente que a mulher é ‘do’ (ek) homem se ele
desempenhou o papel de protótipo e se Deus criou a mulher por causa da necessidade
masculina dela. A conclusão emerge sozinha de Gênesis 2, mesmo que o texto não
revele o método detalhado do procedimento divino.[211]
Blocher não se expressa de modo convincente aqui. Em 1 Coríntios 11.8
Paulo esperava que os leitores enxergassem sua alusão a Gênesis 2. Dada a
alusão e o fato de Gênesis 2.21, 22 representar Eva fisicamente derivada de
Adão, os leitores precisam pensar nessa figura concreta, não na ideia vaga de
um protótipo ou a necessidade masculina. A questão permanece: a figura
concreta em Gênesis 2.21, 22 funciona de forma literal ou figurada. Mesmo
que funcione de forma totalmente figurada apenas para expressar a relação
íntima da mulher com o homem e o propósito divino de satisfazer a
necessidade do homem, ela serve ao ponto teológico de Paulo em
1 Coríntios 11.8. Paulo não precisa fazer uma afirmação sobre o caráter literal
ou figurado, pode apenas se referir à figura de Gênesis 2.21, 22 a fim de
extrair as próprias inferências teológicas legítimas. Não penso, portanto, que
1 Coríntios 11.8 seja por si só um texto decisivo, mas não pelas razões que
Blocher apresenta.
Na sequência, Blocher diz:
O autor [de Gn 2] brinca com o sentido duplo de costela, que também quer dizer
‘lado’ e portanto ‘alter ego’. Os árabes aparentemente usavam a expressão ‘ele é a
minha costela’ querendo dizer que ‘ele é meu amigo íntimo’. Usamos um jogo de
linguagem semelhante quando nos referimos à ‘melhor parte’ de alguém.[212]
Ele se equivoca várias vezes aqui. Para começar, a parte do “alter ego” em
diante deveria ser cortada, por carecer de fundamentação sólida. “Lado” não
significa nem implica “alter ego”, mesmo em inglês. E o hebraico não
corresponde necessariamente ao árabe ou ao inglês. Os dados do hebraico
bíblico não fornecem uma base firme para essas associações.
A palavra hebraica em questão, tsela‘, de fato possui dois sentidos: “costela”
e “lado”. O sentido de “costela” ocorre no Antigo Testamento só em
Gênesis 2.21, 22, em outros lugares encontramos o “lado” da arca (Êx 25.12),
do tabernáculo (Êx 26.20) e do altar (Êx 27.7). Também encontramos a
palavra usada para se referir a câmaras laterais ou alguma parte adjacente do
templo (1Rs 6.5,6; Ez 41.5), a quadros (suportes em formato de costela?) da
parede do templo (1Rs 6.15,16) e ao lado (ou cume?) de uma colina
(2Sm 16.13).[213]
O comentário de Victor P. Hamilton expressa dúvidas sobre a propriedade do
sentido de “costela” para Gênesis 2.21, 22, pois ele não ocorre em nenhum
outro lugar do Antigo Testamento.[214] Todavia, ele ocorre no hebraico
rabínico posterior para se referir às costelas dos animais.[215] Ademais, o outro
sentido possível, “lado”, não se encaixa em Gênesis 2.21, 22, onde Deus
“tomou uma das suas costelas/lado e fechou o lugar com carne”. A descrição
demanda algo menor que um lado inteiro. Daí, a palavra significar “costela”
aqui, como no hebraico posterior. Na verdade, não é tão certo que a palavra
hebraica sequer tenha o sentido de “lado” no contexto mais estrito que
designa parte do corpo. Todos os casos existentes nesse contexto têm o
sentido de “costela”. A palavra tem o sentido de “lado” quando se aplica a
uma construção ou a uma peça de mobília.
Devemos notar também que nenhuma das passagens bíblicas em questão
contém qualquer sugestão de uso metafórico ou figurado, nada como a
“melhor parte” de Blocher. Em teoria, é possível o sentido figurado; mas não
há evidência linguística sólida para ele, e se o sentido da passagem é
figurado, a figura quase certamente pertence à toda a passagem, não só ao
termo “costela”.
A atratividade da interpretação figurada de fato emerge de considerações
teóricas. Blocher cita Matthew Henry:
Deus não fez a mulher “da sua cabeça para dominar sobre ele, nem de seu pé para ser
pisada por ele, mas do seu lado para ser igual a ele, debaixo de seu braço para ser
protegida e perto do seu coração para ser amada”.[216]
Teologicamente, Henry descreve o papel da mulher de modo aceitável e com
cores ricas, e Gênesis 2 com certeza pode sugeri-las. Mas as conclusões
teológicas não minam a fisicalidade da figura originária. Como o ato sexual
humano significa comunhão pessoal plena, não apenas união física, da
mesma forma o modo de Deus de criar contém significados sobre a natureza
da mulher então criada, mas nenhuma observação prejudica a realidade do
aspecto físico. Na verdade, pode-se mesmo questionar se algumas pessoas
fogem do aspecto físico para a interpretação totalmente figurada devido ao
embaraço platônico com o aspecto físico, como se fosse algo indigno do
envolvimento direto de Deus ou irrelevante para entender o cerne real da
personalidade humana.
Assim, concluo que embora Gênesis 2.21, 22 termine em mistério, o texto de
fato indica algo sobre os meios pelos quais Deus fez Eva. Ele usou meios
naturais, a saber, o sono profundo e a costela. Eles não eram os meios
normais que vemos hoje atuantes na reprodução.
CRIAÇÃO INICIAL DE ESPÉCIES
Eva, a primeira mulher, é como nenhuma outra mulher e certamente não é
como um animal. Sua criação é única. Já vimos paralelos analógicos entre
seres humanos e animais e plantas. Então precisamos levantar a questão sobre
a criação do primeiro bode e do primeiro burro terem sido únicas de forma
análoga. Teria Deus operado sem meios comuns ou se valido deles de forma
incomum, que não podemos antecipar e não podemos vislumbrar? Não
sabemos. Com certeza nada em Gênesis exclui meios incomuns.
Os evolucionistas predominantes não podem estar certos ao afirmar de
antemão que os processos envolvidos na criação das plantas e dos animais
são “naturais” no sentido de serem plenamente inteligíveis à luz dos
processos comuns de reprodução? Quando os evolucionistas bloqueiam
exceções de antemão, eles agem com dogmatismo pelo qual eles não podem
apresentar nenhuma base racional. Eles possuem apenas a crença no
materialismo ou a crença em outras possibilidades impossíveis ou na falta de
consciência dos pressupostos anteriores na tradição científica, cujo fluxo eles
seguem.
A Bíblia abre a possibilidade de que outros casos possam, como o de Eva,
envolver processos incomuns. Podemos dizer mais? A Bíblia contém
informações positivas sobre como Deus criou os variados tipos de plantas e
animais?
PONTOS DE VISTA ALTERNATIVOS SOBRE A ORIGEM DE ESPÉCIES DIFERENTES
Ao analisar Gênesis 1, os cristãos desenvolveram três pontos de vista
diferentes sobre a origem das plantas e dos animais. O criacionismo por fiat
diz que Deus criou cada espécie diferente em um momento e que o processo
inteiro da criação de espécies transcorreu em um curto período (comumente,
6 dias de 24 horas). O criacionismo progressivo admite que os atos de
criação podem estar disseminados em milhões de anos, mas as espécies
distintas ainda vieram a existir por meio de atos especiais e distintos de
criação. A terceira opinião afirma que Deus usou os meios normais de
reprodução durante milhões de anos para trazer mudanças graduais, o que
levou às espécies existentes hoje. Este ponto de vista é chamado evolução
teísta.[217] A evolução teísta concorda quase completamente com a história
factual geral da vida postulada pelos evolucionistas não teístas. Já os
evolucionistas teístas podem dizer que os não teístas estão corretos a respeito
dos fatos; entretanto, a mão de Deus supervisou todo o processo de mudança
gradual em formas de vida ao longo dos milênios.
Na mente de muitos, a palavra “evolução” se tornou intimamente associada à
cosmovisão antiteísta do naturalismo evolutivo. “Evolução teísta”, portanto,
parece uma contradição de termos. Precisamos de um rótulo melhor, talvez
uma “produção gradual divinamente controlada de espécies de vida”.
Todavia, “evolução teísta” é o rótulo tradicional, de forma que continuarei a
usá-lo, com o entendimento de que não se deve importar o secularismo ao
rótulo por causa da palavra “evolução”. “Evolução teísta” é apenas uma
designação conveniente para a posição que considera ter Deus usado meios
comuns no passado. Alguns evolucionistas teístas admitiriam que a criação
de Adão e Eva por Deus pode ter sido uma exceção. A admissão de exceções
parece sábia para mim, não só pelas particularidades fornecidas pela Bíblia ao
descrever a criação de Eva, mas também porque a transcendência divina
implica que ele tem o poder de agir de modo excepcional. Nós, criaturas, não
sabemos de antemão quando o fará.
Assim, o debate interessante não versa sobre a possibilidade abstrata do que
Deus pode fazer, mas acerca do que ele provavelmente deve ter feito na
maioria dos casos, dado o testemunho da Escritura e a evidência que os
cientistas podem explorar.
Se a criação ocorreu em 6 dias de 24 horas ou qualquer período
razoavelmente pequeno, não houve tempo suficiente para o surgimento dos
diferentes tipos de vida por variação reprodutiva normal. Possivelmente,
Deus poderia ter acelerado bastante o processo descrito pelos evolucionistas
teístas. Isso parece improvável. Portanto, o conceito dos 6 dias de 24 horas
leva a maioria das pessoas a adotar a criação da vida por fiat. Ainda temos
que lidar com a evidência fóssil e isso nos leva de volta à discussão sobre a
geologia diluviana e da criação madura. O ponto de vista da criação madura
pode dizer que os fósseis pertencem ao “tempo ideal”, mas a questão ainda
confronta o cientista sobre como retratar melhor o desenvolvimento no tempo
ideal, o que mostra processos análogos aos do tempo real. Portanto, mesmo
na situação com tempo ideal, somos deixados com um debate entre criação
progressiva e evolução teísta.
O argumento contra a evolução teísta observa que Gênesis 1 retrata a criação
de forma surpreendentemente simples. Deus falou e aconteceu. A origem das
plantas, dos animais e de todo o resto se dá pelo mero enunciado da palavra
de Deus. Por exemplo, Gênesis 1 não menciona os meios pelos quais Deus
trouxe à existência o sol, a lua ou as estrelas. Então podemos concluir que
esses meios não existiram.
Contudo, esse raciocínio é falacioso. Ausência de menção não implica
ausência de existência. Por exemplo, Êxodo 15 e Salmos 106.9, ao
descreverem a saída do Egito, não mencionam os meios criados e usados para
dividir as águas. “Repreendeu o mar Vermelho, e ele secou” (Sl 106.9);
“Com o resfolgar das tuas narinas, amontoaram-se as águas” (Êx 15.8). Mas
Êxodo 14.21 menciona um “forte vento oriental”. O mero silêncio sobre o
vento em uma passagem não elimina a possibilidade de que outra passagem
mencione o vento. O silêncio sobre os meios permite a concentração mais
efetiva no ponto principal: Deus o fez. Quer ele tenha usado um meio
particular, quer outro, ou nenhum, tudo isso é completamente secundário. É
assim com Gênesis 1. Gênesis 1 apresenta o ponto principal: Deus o fez. Não
nos diz como. Gênesis 1.26-28 também afirma que Deus criou o homem, mas
não adiciona os detalhes dados em Gênesis 2.7, que ele usou um meio
comum, isto é, o pó, ao fazê-lo.[218]
Desse modo, concluo que Gênesis 1 se harmoniza com a criação por fiat.
Sim, Deus poderia criar cada tipo de animal em um instante, por sua palavra.
Mas também se harmoniza com a evolução teísta, porque não ensina ter Deus
usado meios. Em vez disso, ele sobre os meios a fim de se concentrar no
ponto principal.
Outras pessoas rejeitam a evolução teísta com base na linguagem em
Gênesis 1 sobre as espécies. Cada espécie de planta ou animal se reproduz
segundo sua espécie. Esse pronunciamento sugere que cada espécie está
permanentemente fixada pela palavra de Deus e nunca poderia evoluir
gradualmente para outra espécie. Aqui, de novo, precisamos de cautela sobre
como lemos Gênesis 1. Como pessoas modernas, interessadas na ciência,
viemos a Gênesis 1 já com questões científicas sobre a evolução em mente.
Mas Gênesis 1 se dirigia a leitores israelitas, que não formulavam essas
questões. Eles sabiam que sementes de aveia geravam plantas de aveia e
bodes nascem de bodes. Gênesis 1 lhes mostrou que Deus estabelecera essa
ordem e que eles poderiam depender dela. Como sempre, Gênesis 1 se dirige
aos “incultos” (homens modernos e pré-modernos) e fala à experiência
comum em vez das tecnicalidades surgidas com a ciência avançada. Ela diz,
com efeito, que se pode contar com a fixidade das espécies ao lidar com a
próxima geração e a geração depois dela. Não afirma o que pode ocorrer ou
não durante milhões de anos de gerações. Talvez possa haver uma derivação
gradual ou uma divisão de uma espécie em duas com características e
habitats um pouco diferentes. Ou talvez não. Talvez as coisas sejam muito
fixas, não importa quantas gerações passem no futuro. A Bíblia de fato não
diz se é de um jeito ou do outro.
Como em outras áreas, a Bíblia não responde diretamente todas as nossa
possíveis questões técnicas. Ela nos dá a grande figura, dizendo-nos sobre
Deus, o homem e o pecado. E convida a humanidade, como parte do
exercício do domínio e da exploração da sabedoria de Deus, para ir lá fora e
ver. Descobrir como Deus governa o mundo de forma detalhada: “A glória de
Deus é encobrir as coisas, mas a glória dos reis é esquadrinhá-las.” (Pv 25.2)
Por exemplo, descubra os limites da reprodução. A reprodução de cachorros
leva a nada mais que cachorros; e se a reprodução é muito interna e restrita, a
prole pode ser menos saudável, mais delicada e pode mostrar mais efeitos
colaterais indesejáveis. Sabemos isso porque o fizemos. Poderíamos ter esse
palpite de antemão, mas ele não é tão bom quanto o resultado concreto, em
parte por ser Deus transcendente e nossos palpites nem sempre
corresponderem à sua palavra.
Ou vá e olhe os fósseis. Séculos antes, quando os fósseis chamaram a atenção
humana, as pessoas não tinham certeza do que observavam. Seriam restos de
animais mortos muito tempo atrás ou apenas padrões estranhos em umas
rochas? Poderíamos ter o palpite de antemão de que Deus criou outros tipos
de plantas e animais agora extintos?[219] Que padrões encontramos nos
animais extintos que mostram semelhanças com as espécies vivas hoje e
diferenças delas? Há quanto tempo viveram? E a questão controversa atual,
como Deus trouxe à existência todas as espécies? Por meios ou sem eles? O
registro fóssil sugere um tipo de resposta mais provável que outro?
PROSSEGUINDO COM O CONHECIMENTO IMPERFEITO
Os cristãos defendem uma variedade de posições na leitura de Gênesis 1—2 e
nas conclusões a respeito da ciência e evolução. Precisamos viver com o fato
de que todas as nossas interpretações a princípio são falíveis. Mas também
somos obrigados a agir com base no que cremos ensinar Gênesis 1—2. Tenho
indicado como entendo Gênesis 1—2 ao expressar minha preferência pela
perspectiva do dia analógico. Dada essa linha, Gênesis 1—2 não especifica
uma extensão particular por tempo de relógio para a totalidade dos atos da
criação. Como já argumentei, o texto também não nos fornece muitos
detalhes sobre os meios que Deus pode ou não ter usado ao criar as plantas e
os animais. Isso deixa em aberto as três opções principais: criacionismo por
fiat, criacionismo progressivo e evolução teísta (contanto que admitamos
exceções). Podemos provisoriamente decidir por um ponto de vista só ao
examinar a evidência fora da Escritura, isto é, derivada da revelação geral e
do mundo regido por Deus.
Hoje, a evidência nas áreas da biologia e geologia histórica é gigantesca.
Livros inteiros são dedicados a isso, argumentando em prol de um dos três
pontos de vista, ou em prol da visão evolutiva sem o benefício da evolução
especificamente teísta.[220] Por causa da quantidade gigantesca de evidência,
não posso entrar nos detalhes aqui. Mas podemos preparar o terreno para a
avaliação sábia. Ao avaliar a evidência, a cosmovisão cristã deveria ter um
papel orientador. Sabemos que as cosmovisões influenciam o caráter da
ciência, em parte pela influência sobre o conceito de alguém sobre a lei
científica. Então é preciso avaliar a evidência criticamente. Precisa-se
perceber que o naturalismo evolutivo confunde a figura, ao conceder
preconceitos aos ideologicamente compromissados com ele. Dentre os
oponentes do naturalismo, pode resultar um tipo de preconceito reverso
contra qualquer coisa que tenha ligação com a evolução, incluindo a evolução
teísta.
AVALIAÇÃO DA MACROEVOLUÇÃO
Nos detalhes, a disputa se concentra em maior parte na macroevolução, isto
é, a hipótese de que as grandes diferenças dos tipos de plantas e animais
foram alcançadas no passado por meio de processos normais e graduais de
reprodução e seleção durante várias gerações. Não se discute a
microevolução (pequenas variações dentro de uma espécie). O naturalismo
evolutivo não deve ser apenas discutido, mas rejeitado com vigor.
O que dizer da macroevolução? O registro fóssil é fragmentado, com lacunas
entre grandes tipos diferentes. As pessoas já compromissadas com a
macroevolução, por motivos filosóficos ou por ter sido aceita pelos cientistas
predominantes, preenchem as lacunas ao postular a existência de formas
intermediárias, ou alguma explicação gradualista. Devemos suspeitar, porque
a atmosfera atual, na cultura geral e na subcultura científica, inclui o
pressuposto de não haver exceções (regularidade fechada) ou da permissão de
nenhuma exceção por questão de “princípio científico” (veja o debate sobre o
naturalismo metodológico no Capítulo seguinte). Os pressupostos
predeterminam a resposta.
Todavia, não abracemos rápido demais a alternativa (algum tipo de
criacionismo progressivo) sem parar para observar se ela tem dificuldades
próprias. Às vezes as pessoas operam aqui com o dualismo impróprio entre
causas primárias e secundárias, de forma que uma exclui a outra. Assim, a
reprodução comum (com causas secundárias) não envolve Deus e apenas um
ato extraordinário de criação (sem causas secundárias) mostra sua existência,
cuidado e envolvimento. Essa visão admite pressupostos não bíblicos sobre a
causação secundária. Os pressupostos pressionam as pessoas a nem procurar
por causas secundárias. A acusação vem dos defensores da evolução de que
desistimos cedo demais de procurar pela explicação. Dizer que Deus fez
assim e parar aí não nos apresenta a explicação científica, na verdade faz a
ciência terminar. Há um grão de verdade aqui. Mas é só meia-verdade,
porque precisamos não parar de afirmar ter Feus agido assim. Talvez existam
causas secundárias comuns pelas quais ele o fez. E mesmo que não haja,
Deus tem razões para o que faz e podemos ser capazes de discernir o padrão
que nos dá algum entendimento das razões dele.
A partir da cosmovisão cristã, deveríamos afirmar que, em princípio, Deus
poderia criar animais de firma instantânea ou gradual, como escolhesse. Ele
poderia usar uma forma de vida pré-existente como ponto de partida, como
usou a costela de Adão para criar Eva. Quer ele tenha usado meios comuns
ou extraordinários permanece uma questão secundária. Devemos evitar
artificialmente colocar pressão na ciência para preferir o extraordinário. Mas
também devemos evitar nos fechar com a suposição de que precisamos
excluir o extraordinário. Na verdade, dada a atmosfera atual na ciência que
quer proibir o extraordinário, alguma pressão na outra direção é
apropriada!
19: A origem de novos tipos de vida: design inteligente
Como os novos tipos de coisas vivas se originaram? Vieram à existência por
meio da evolução gradual ou por um ato súbito de criação direta da parte de
Deus? Ao considerar essas questões, precisamos avaliar o movimento
chamado design inteligente,[221] que usa o conceito da complexidade
irredutível.
COMPLEXIDADE IRREDUTÍVEL
Em síntese, a complexidade irredutível descreve um sistema com muitas
partes coordenadas e necessárias para o funcionamento do sistema.[222]
Michael Behe apresenta como ilustração a ratoeira tradicional comum. A
ratoeira precisa de cinco partes em um arranjo coordenado, ou não pegará
nenhum rato (não possui funcionamento efetivo). Em seguida, oferece
exemplos de maquinário celular, como o flagelo bacteriano, com
coordenação semelhante de partes. Esses sistemas são complexos, pois
envolvem um número de partes coordenadas. São irredutíveis, no sentido de
que não podem ser reduzidos a um sistema mais simples, ao eliminar uma ou
mais partes e ainda funcionar como planejado.
Exemplos de complexidade irredutível são um problema para o gradualismo
darwinista. Ele postula que a ordem presente das coisas vivas se originou no
decorrer de milhões de anos a partir de uma única protocélula (ancestralidade
comum). Ademais, afirma que as mudanças de uma geração para a outra
foram graduais[223] e as diferenciações existentes aconteceram por meio da
morte seletiva dos “menos adaptados” de cada geração.
O gradualismo darwinista poderia produzir uma máquina complexa de forma
gradual, se uma parte produzisse algum benefício e se fosse adicionando a
segunda parte que produz benefício maior e assim sucessivamente. Durante
um período, a seleção do “mais apropriado” exclui todo o resto, a não ser um
sistema com todas as partes no devido lugar. Todavia, um sistema com
complexidade irredutível não permite a construção gradual, porque o sistema
nem sequer funciona até todas as partes estarem presentes e nos devidos
lugares, prontas para cooperar.
Um designer inteligente, em contrapartida, pode construir um sistema
irredutivelmente complexo, dada a sua capacidade de conjugar as partes uma
a uma por seleção inteligente, sabendo o produto final a que se dirige.
Então como surgiu o primeiro flagelo bacteriano? Sabe-se que Deus o fez
surgir, mas como? Não temos conhecimento. Podemos nunca saber, pois os
acontecimentos se deram muito tempo atrás e porque os fósseis não deixaram
evidências moleculares detalhadas. Assim, todos contam apenas com um
palpite.
Entretanto, o exemplo ainda se mostra valioso por revelar a influência da
ideologia na ciência. A ideologia naturalista quer excluir de antemão a
possibilidade de que o flagelo tenha sido composto por design inteligente. O
rótulo comum aplicado a ele é naturalismo metodológico, que precisa ser
debatido.
A ATMOSFERA DA CIÊNCIA
Primeiro precisamos considerar mais amplamente a atmosfera de suposições
que adentram a ciência.
A ciência busca a verdade sobre o mundo físico e explora suas regularidades.
Contudo, ela também envolve a participação dos seres humanos, como
indivíduos e grupos, que desenvolvem um ambiente e uma atitude em relação
às coisas da ciência. A conceito de ciência não é fixado de uma vez por todas
por sua missão, mas pode mudar de acordo com a cosmovisão dominante
trabalhada pelos cientistas.[224] A mudança veio ao longo dos séculos, de
Copérnico até agora.
Muitos dos primeiros cientistas eram cristãos fiéis, e as pessoas cujos
conceitos religiosos pessoais se desviavam do cristianismo ortodoxo ainda
viviam na atmosfera em que era natural pensar nas leis científicas como
produtos do Criador sábio e racional. Eles algumas vezes falaram sobre Deus
mesmo nos debates científicos.
Agora vemos uma situação em que os cientistas cristãos, judeus, agnósticos
ou ateus trabalham juntos em muitas especialidades; todavia,
majoritariamente, deixam de trazer Deus ao debate. E o fim do debate aberto
também pode afetar a maneira em que se tenta fazer a ciência avançar. Deixa-
se de falar não só sobre Deus, mas mesmo de se pensar nele como a origem
das leis. Passa-se a crer na impessoalidade das leis.
NATURALISMO METODOLÓGICO COMO GUIA
As pessoas possuem um termo para designar essa situação: naturalismo
metodológico. Grosso modo, o naturalismo metodológico afirma que a
ciência se conduz e deve continuar a se conduzir com o pressuposto de que
nas áreas investigadas todos os acontecimentos particulares e todos os
padrões gerais ocorrem segundo leis gerais que, para propósitos práticos,
podem ser consideradas impessoais; e mesmo que haja exceções, é melhor as
ignorar em prol da continuidade da missão da ciência.
O naturalismo metodológico pode ser convertido na mente de algumas
pessoas em naturalismo ontológico ou metafísico — o ponto de vista segundo
o qual inexiste deus pessoal e há apenas o domínio físico. Por razões
filosóficas e religiosas, algumas pessoas usam o naturalismo metodológico
como degrau em direção ao naturalismo ontológico. Todavia, os dois são
logicamente distintos. O naturalismo metodológico propõe mais
moderadamente uma restrição prática ao tipo de hipóteses que os cientistas
podem considerar, baseada em parte no argumento pragmático de que a
restrição ajudará a ciência progredir em lugar de se deter em pequenos
atalhos infrutíferos. Uma série de pessoas mantêm que a ciência por
definição possui um compromisso firme com a exclusão do sobrenatural.[225]
O que dizer do naturalismo metodológico? Primeiro é preciso reconhecer a
existência de conceitos variados do naturalismo metodológico, por isso
algumas pessoas podem não concordar com minha definição. Não é fácil
delimitar exatamente o que as pessoas querem dizer com o termo. Para
ilustrar a dificuldade, consideremos o ponto de Robert T. Pennock.[226]
Pennock apresenta o naturalismo metodológico ao observar em primeiro
lugar sua distinção do naturalismo ontológico. Em seguida:
O naturalista metodológico não estabelece um compromisso direto com a imagem do
que acontece no mundo [em contraste ao naturalista ontológico, que o faz], mas na
verdade a um conjunto de métodos como uma forma confiável de descobrir o mundo
— normalmente os métodos das ciências naturais e talvez extensões contínuas a eles
— e de modo indireto as descobertas desses métodos. Uma característica importante
da ciência é que suas conclusões são refutáveis com base em novas evidências, então
quaisquer alegações provisórias substanciais feitas pelos naturalistas metodológicos
estão sempre abertas à revisão ou abandono com base em novas evidências contrárias.
Por causa do comprometimento do naturalista metodológico relativo ao bom método
investigativo para descobrir o mundo empírico, mesmo os métodos específicos estão
abertos à mudança e melhoramento; a ciência pode adotar novos métodos promissores
e refinar os existentes caso forneçam uma garantia indiciária melhor.[227]
Pode-se ver nessa descrição uma boa parte que se encaixa bem na
cosmovisão cristã, desde que se admita interpretá-la do jeito que melhor
aprouver. Como um todo, a descrição apresenta um tom pragmático, prático.
Adota-se o que quer que funcione. Afirma-se com vigor o caráter provisório
da ciência e a habilidade de se ajustar a novas evidências — as duas se
harmonizam com a cosmovisão cristã. Em contraste, há o perigo de ser uma
definição tão frouxa que exclui muito pouco.
Na origem da citação, Pennock critica os proponentes do design inteligente.
Entretanto, a passagem em questão pode facilmente admitir a pesquisa
baseada no design inteligente. O design inteligente, como uma nova adição,
só precisa demonstrar que apresenta “extensões contínuas” aos métodos
científicos atuais. Mas o que conta como “contínuo”? A ciência pode adotar
“novos métodos promissores”, segundo Pennock, mas o que conta como
“promissores”? Preconceitos a favor do conceito impessoal de uma lei podem
ser aceitos sob a designação aparentemente inocente de prática científica
atual, de forma que se adiciona a condição de que o novo precisa ser contínuo
com esse tipo de ciência, e precisa ser promissor.
Pennock argumenta mais tarde que o design inteligente não pode ser
frutífero, pois interrompe todas as tentativas de fornecer uma explicação
naturalista.[228] Isto é, se alguém diz que Deus criou o flagelo por meio de um
ato sobrenatural especial, isso significa o fim da exploração científica. A
origem do flagelo permanece para sempre fora dos limites da ciência. Mas
não é necessariamente assim que os proponentes do design inteligente
entendem suas propostas; Dembski propõe formas para o design apoiar um
programa de pesquisas positivo.[229] Pennock foi apenas incapaz de imaginar
como um desenvolvimento positivo do design inteligente pode ser frutífero
em sentido científico?
Um pouco depois, Pennock se torna mais específico ao questionar: “Será que
a ciência faz avançar o princípio metodológico ao não apelar a poderes
sobrenaturais ou à agência divina como autoridade?”.[230] A questão é se
alguém apela à agência sobrenatural ou divina. Pennock crê que a ciência não
deve recorrer a esse apelo. Neste ponto Pennock é influenciado por partes
anteriores de seu livro, onde tende a juntar todas as formas de “criacionismo”
como uma só e ver o design inteligente como uma variação nova, mas pouco
diferente, de um tema antigo. Mas o “design inteligente” na verdade não quer
dizer “design feito por Deus”. Quer dizer design feito por uma inteligência,
seja humana, extraterrestre, angélica ou divina. Francis Crick, um dos
descobridores da estrutura do DNA, propôs que a vida foi inicialmente
implantada na terra por alienígenas, precisamente por não poder entender
como ela teria surgido sem uma intervenção inteligente.[231] Tal visão envolve
o design inteligente, mas de todo modo coerente com o naturalismo
ontológico. Com certeza, os defensores atuais do design inteligente creem
que Deus foi o autor do design em questão. Mas sua proposta não requer uma
crença tão específica. Daí, Pennock não pode fugir da questão: a vida na terra
é produto de design inteligente apenas ao excluir o sobrenatural.
EXCLUIR O SOBRENATURAL?
Consideremos o aspecto sobrenatural. Pennock argumenta que a ciência
precisa excluir o sobrenatural e o divino porque suas observações dependem
de uma “regularidade em forma de lei”:
A regularidade em forma de lei é o verdadeiro cerne da cosmovisão naturalista e dizer
que algum poder é sobrenatural significa, por definição, declarar que ele pode violar
leis naturais. Assim, quando Johnson [Philip E. Johnson, um proponente do design
inteligente] argumenta que a ciência deveria admitir poderes e inteligências
sobrenaturais, ele alega que se deveria admitir seres acima da lei (uma posição
certamente estranha para um advogado tomar). Sem a restrição da regularidade em
forma de lei, a inferência indiciária indutiva desaparece. A experimentação repetível e
controlada, por exemplo [...] não seria possível sem a suposição metodológica de que
entidades sobrenaturais não interviram para negar regularidades naturais da lei.[232]
É interessante Pennock usar a expressão “a cosmovisão naturalista” e não a
de “metodologia naturalista”. A expressão “cosmovisão naturalista” soa
como se implicasse o naturalismo ontológico. Nesse caso, Pennock admite
que deve se ter o naturalismo ontológico para apoiar o naturalismo
metodológico na ciência. Se não for o naturalismo ontológico puro, que
enfaticamente nega a existência do sobrenatural, deve ao menos se ter o
naturalismo prático, que nega com ênfase a influência ativa do sobrenatural.
Nossa suposição é que tenha sido apenas um erro de digitação.
Os pontos cruciais seguem-se à citação. No argumento, Pennock apresenta
pressupostos questionáveis sobre o sobrenatural e o natural que garantem
suas conclusões. Ele diz que “por definição” o sobrenatural “pode violar leis
naturais”. Ao fazê-lo, não leva em conta a cosmovisão genuinamente cristã.
Na cosmovisão cristã, como vimos, “as leis naturais” são um apelido de
Deus, que nunca é violado. Todas as exceções às regularidades observadas
pelos humanos possuem propósito racional no plano de Deus e tudo se
conforma à sua palavra.
Pennock também supõe que se admitirmos exceções, “a inferência indiciária
indutiva pode desaparecer”. Ao contrário, a inferência indiciária indutiva se
baseia na fidelidade divina manifesta em sua palavra (lembre-se de Gn 8.22).
Pennock pode pensar que, caso admitamos exceções, elas são apenas
irracionais e que todo o aspecto sobrenatural é irracional, de modo a destruir
a inferência. Se for assim, ele não leva em conta a racionalidade de Deus —
sempre envolvida em suas ações.
Não se deve pedir demais de Pennock. Pode ser que ele responda, em parte, a
teístas que presumiram erroneamente a dicotomia entre a ação divina e a
causação física.[233] Ele está parcialmente certo: deve-se pensar com muito
cuidado sobre o papel do sobrenatural. Dependendo de sua compreensão, ele
pode ou não levar ao fim prematuro da tentativa de entender como algo no
passado ocorreu por conta de causas físicas imanentes.[234]
Ademais, Pennock representa outros que têm se debatido com as mesmas
questões. Em um artigo que Pennock cita o “uniformismo”, Stephen Jay
Gould pensa de maneira semelhante. A intervenção divina iria significar “a
suspensão das leis naturais” e a inferência indutiva precisa excluir exceções.
[235]

CAUSAS SECUNDÁRIAS E DEUS COMO CAUSA PRIMÁRIA


Não se pode ter certeza de todos os pressupostos de Pennock ou Gould. Para
muitas pessoas, no entanto, esse tipo de raciocínio é atrativo pelo pressuposto
de haver só um modo de causalidade:[236] se algo ocorre por causas
antecedentes no mundo invisível, isso exclui “o sobrenatural”; já o
sobrenatural exclui causas antecedentes no mundo físico. Todavia, a Bíblia
contradiz essa forma de pensar no nível mais básico. Deus é o Criador, não só
outra causa finita no mundo. Ele não é um ser ao lado de outros seres em um
nível comum. Deus “faz todas as coisas conforme o conselho de sua vontade”
(Ef 1.11), não só aquelas coisas que atualmente parecem miraculosas ou
inexplicáveis. “Fazes crescer a relva para os animais...” (Sl 104.14).
Portanto, há séculos os teólogos distinguem as causas primárias das
secundárias.[237] Deus é a causa primária do crescimento da relva. As causas
secundárias incluem os movimentos da água e dos minerais no solo, a luz do
sol, e a multidão de processos químicos e bióticos que ocorrem na grama.
Uma não exclui a outra. Deus age e alcança seus propósitos por meio de
causas secundárias, que ele ordena e controla. Encontram-se sob seu controle
os resultados (acontecimentos específicos) e os meios (causas secundárias).
Os teólogos chamam isso de concorrência (do latim, concursus), a operação
conjunta de causas primárias e secundárias.[238]
Usando Jó 1-2, podemos incluir a operação de seres angelicais também. Os
filhos e as filhas de Jó morreram porque “... se levantou grande vento do lado
do deserto e deu nos quatro cantos da casa, a qual caiu sobre eles, e
morreram” (Jó 1.19). O grande vento agiu como causa secundária. Jó atribuiu
a Deus a causação primária: “o SENHOR o deu e o SENHOR o tomou; bendito
seja o nome do SENHOR!” (Jó 1.21). O texto afirma que Jó estava certo em
suas palavras: “Em tudo isto Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma”
(1.22). O livro de Jó também revela que Satanás teve uma participação nisso:
“Eis que tudo quanto ele [Jó] tem está em teu poder [Satanás]” (1.12). Mais
tarde, quando o Senhor dá permissão com respeito ao corpo de Jó, o texto
explicitamente diz que “Então, saiu Satanás da presença do SENHOR e feriu a
Jó de tumores malignos” (2.7). Satanás, podemos dizer, serve como causa
terciária e sobrenatural dos tumores de Jó, em paralelo a Deus como causa
primária e quaisquer causas secundárias que um médico poderia ter visto a
partir dos tumores. Às vezes, então, até três causas diferentes se perfilam,
cada uma em um nível diferente, e nenhuma exclui as outras.
Da mesma forma, podemos olhar para o Dilúvio. Claramente Deus é a causa
primária. Deus também usa causas secundárias em alguns pontos, como
quando a água é usada para afogar as pessoas e os animais fora da arca.
Talvez a causação primária de Deus está em concurso em todos os pontos
com a causação secundária, de tal forma que podemos ser capazes de
entender o Dilúvio usando leis científicas atuais. Mas talvez não. Pode ser
que Deus tenha usado meios incomuns e agido de forma oposta às
regularidades atuais. A pesquisa científica tem razões para esperar entender.
Mas ela não pode exigir que entenda.
O entendimento cristão da transcendência, da imanência e da racionalidade
de Deus influencia as expectativas aqui.[239] Por ser a racionalidade de Deus
análoga à nossa, podemos esperar entendê-la (uma implicação da imanência
divina). Pelo fato de Deus ser transcendente, sua racionalidade ultrapassa a
nossa e ele pode nos surpreender (como no caso da ressurreição de Cristo).
Devemos também ser influenciados pelo senso da finitude humana e da
necessidade de humildade. Não podemos deixar a teologia fora da discussão.
Nem pode Pennock ou qualquer outro, porque a transcendência e a imanência
da lei formam o próprio fundamento sobre o qual o edifício da ciência é
construído. Pennock usa pressupostos sobre Deus, a lei e o sobrenatural que
podem parecer pressupostos genéricos inofensivos para o raciocínio
filosófico, mas elas clamam por resposta de questões teológicas importantes
sobre transcendência e imanência.
TEOLOGIAS E COSMOVISÕES
Só basta agora perguntar: “A teologia de quem usamos para determinar nosso
conceito de Deus, da transcendência e imanência?”. Pode ser uma teologia
baseada na instrução bíblica ou pode ser um substituto, uma teologia
falsificada baseada parcialmente em um teísmo vago ou em sobras
emprestadas dos resquícios culturais da influência cristã. Então isso pode ser
combinado com uma doutrina de lei impessoal e da racionalidade completa
da lei em princípio. Mas subjacente à doutrina de lei impessoal está a
irracionalidade completa, porque não tem meios de explicar o fato de que há
a lei em vez do caos completo.[240]
Poderíamos simplificar a tarefa caso pudéssemos nos confinar a duas opções
simples: permitimos repetidas “interferências” sobrenaturalistas com
regularidades ou as proibimos. Infelizmente, as coisas não são tão simples. A
ciência depende do conceito de lei científica e regularidade. Existem tantos
conceitos sobre a lei quanto há variações no conceito de Deus ou deuses.
Confrontamos um espectro multidimensional de opções, incluindo não só
variações do deísmo clássico ou panteísmo de Spinoza,[241] mas politeísmos,
animismos, espiritismos, gnosticismos e materialismos.
Esses sistemas diferem no que pensam existir: eles se diferenciam em
“ontologia”. As diferenças inevitavelmente exercem efeito na ciência porque
a ontologia justifica a metodologia. O animismo, por exemplo, frustra o
método científico, pois os espíritos podem interferir de forma aleatória com
os experimentos. A ciência precisa, portanto, rejeitar o animismo como opção
ontológica, não apenas como proposta metodológica, a fim de poder começar
a trabalhar. Não só o animismo, mas qualquer tipo de ontologia caótica ou
semicaótica ameaça superar a ordem pelo caos e, assim, já é rejeitada na
prática pelos cientistas.[242]
Então podemos focar em ontologias ordenadas, isto é, cosmovisões que
creem na ordem regular aberta à investigação humana. Essa ampla coleção
pode ser subdividida em dois subgrupos, regularidade fechada e
regularidade aberta. A regularidade aberta não admite exceções à operação
das leis concebidas de forma impessoal. O materialismo ontológico estrito é
um exemplo da regularidade fechada. A regularidade aberta permite
exceções, mas restringe de alguma forma suas ocorrências. (Sem a restrição,
voltamos às ontologias caóticas ou semicaóticas). Variados tipos de teísmo,
por exemplo, podem restringir as exceções ao dizer que as exceções de
frequência mais geral permanecem baixas, e que cada exceção possui uma
boa razão na mente da divindade (ele não arma confusões desnecessárias de
vez em quando só por diversão!). A promessa divina em Gênesis 8.22 dá aos
cristãos uma base para confiar na regularidade.
Os seres humanos nunca podem saber o suficiente para ter certeza da
regularidade fechada. Como se pode saber que as leis não têm exceções, sem
conhecimento exaustivo ou revelação divina? O sistema de regularidade
fechada também costuma excluir a possibilidade da revelação. Assim,
Pennock precisa admitir a possibilidade ontológica da regularidade aberta. O
naturalismo metodológico precisa admitir ontologias de regularidade fechada
e aberta, e não acabar com a discussão prematuramente.
Agora, suponha que o cientista se depare com uma anomalia.[243] O
naturalismo metodológico precisa tratar a anomalia como se não fosse uma
exceção, mas como se ela se conformasse às leis.
Pennock alega ser essa a única rota sensível: de outra forma se desiste muito
rápido da tarefa de tentar entender racionalmente. Tenta-se trazer a anomalia
subjugada ao poder das leis conhecidas, suas extensões ou modificações.
Sim, há muito bom senso aqui. Mas e se as anomalias se acumularem?
Michael Behe acumula exemplos de “complexidade irredutível” na
microbiologia, que parecem estar além do alcance do processo darwinista de
seleção gradual.[244] Pergunta-se então o que a ciência deveria fazer: insistir
que os exemplos de complexidade sejam explicados totalmente à parte das
leis físicas já conhecidas? Ou deveria admitir a explicação em termos de
design? E se admitirmos o design, seria apenas o design de extraterrestres ou
também o design de Deus ou anjos?
Se somos cientistas, somos confrontados por dilemas. Suponha que tenhamos
dado a primeira resposta: a explicação pode acontecer só na estrutura de leis
físicas conhecidas. Ou a explicação verdadeira precisa ser encontrada dessa
forma ou não. Se afirmarmos o “precisa”, alegaremos tacitamente uma
regularidade fechada. Pensamos já saber que a complexidade irredutível é na
verdade redutível. Pensamos saber que não há exceções reais usando as leis
existentes. Assim acabamos no naturalismo ontológico. E também excluímos
a possibilidades de inteligências extraterrestres ou outros tipos de
explicações. Esse fim não só é dogmático; também contraria o caráter
provisório da ciência e sua disposição costumeira de reconhecer as próprias
limitações.
Então, talvez, a verdadeira explicação da complexidade irredutível esteja fora
do que podemos encontrar com o naturalismo metodológico, isto é, a
explicação em termos de causas secundárias. Se isso se mostrar a explicação
correta, ganha-se entendimento. Até aqui, tudo bem. Mas e se não chegarmos
à explicação satisfatória? Então automaticamente bloqueamos a possibilidade
de a explicação verdadeira estar em outro lugar? Será que seguimos o
naturalismo metodológico até o fim, mesmo que ele não leve sempre à
verdadeira explicação? Essa resposta é insatisfatória porque ameaça converter
a ciência em um jogo artificial. “Joga-se” ao entender o mundo. Agora é só
um jogo, pois sempre soubemos que as regras adotadas podem levar às vezes
só a explicações incorretas. O naturalismo metodológico desse tipo
desvaloriza a ciência.
Então somos deixados com a segunda resposta à questão acima. Deve-se
admitir a explicação em termos de design. Ou talvez buscamos para ainda
outro tipo de explicação. É compreensível Pennock desprezar o design como
alternativa, pois considera que ele acaba com a explicação racional ou o
sopesar racional das evidências. Entretanto, seus argumentos obtiveram
sucesso em rejeitar só as ontologias caóticas, não a regularidade aberta (nem
extraterrestre). Ademais, o design possui racionalidade própria. No caso do
design divino, ele também pode incluir causas secundárias à causa primária.
Assim, a pesquisa científica não acaba.
Os cientistas lidam com anomalias aqui e ali durante toda a prática da ciência.
Como questão prática, eles não podem perder tempo em busca de explicação
para todas as anomalias — ou seriam sempre jogados de um pequeno
problema para outro. Eles precisam temporariamente “jogar fora” a maioria
das anomalias para continuar trabalhando — quer as anomalias representem
exceções “reais” à lei (regularidade aberta) ou não. Mas quando se confronta
um padrão inteiro de anomalias de natureza semelhante, pode ser algo digno
de análise. Se essas anomalias não sucumbirem com facilidade à estrutura
atual, faz-se uma busca mais ampla e se aumenta a ousadia nas hipóteses.
Ninguém pode dizer de antemão quando as anomalias oferecem a indicação
de um entendimento mais profundo. Ninguém pode dizer de antemão
exatamente que tipo de hipóteses podem se mostrar mais frutíferas.
No final, o apelo ao naturalismo metodológico não resolverá com mágica o
desafio do movimento do design inteligente. Já vimos as opções: 1) O
naturalismo ontológico realmente oculta o naturalismo ontológico subjacente,
que pensa já saber o mundo em que vivemos (incluindo a exclusão de
extraterrestres); 2) O naturalismo metodológico se torna a regra do jogo em
vez da busca pela verdade; 3) O naturalismo metodológico falsamente alega
saber de antemão que pensar em termos do design pode nunca levar ao maior
entendimento; 4) O naturalismo metodológico é só uma receita crua para o
que os cientistas fazem sob condições comuns, até se depararem com
anomalias sem harmonização com as explicações naturalistas atuais. Todavia,
eles são livres para explorar outros tipos de hipóteses quando lidam com
anomalias. Aqui, o naturalismo se dissolve ao admitir a incapacidade de
excluir dogmaticamente explicações fora da estrutura atual; 5) Explica-se
tudo dizendo que Deus fez assim (que é verdade por si só), mas sem
perguntar como ele pode ter feito. A última posição é rejeitada por Pennock
como inadequada para a tarefa da ciência. No entanto, rejeitar essa posição
não leva a rejeitar a melhor forma do design inteligente.
Em suma, quando confrontamos o desafio do movimento do design
inteligente, o naturalismo metodológico se decompõe em várias opções, e
nenhuma delas oferece uma base sólida para excluir a hipótese do design.
Como vimos, os cientistas compreensivelmente demonstram preferência por
primeiro considerar os vários tipos de explicação que cabem sem problemas
na estrutura de explicação e entendimento atuais das leis científicas. Os
cientistas querem conduzir seus programas de pesquisa em paz. Quando as
anomalias acumulam, não se pode excluir dogmaticamente as explicações
que transitam em território desconhecido, incluindo o território do design
inteligente. Nessa situação, o apelo simples ao naturalismo metodológico não
ajuda no debate. Na formulação anterior do livro de Pennock,[245] o
naturalismo metodológico era vago demais para apresentar alguma ajuda;
caso se tente o fazer menos vago, ele está repleto de pressupostos metafísicos
infundados que minam seu valor.
Além disso, o naturalismo metodológico sempre foi incoerente porque ser um
defensor secreto de Deus para repelir a ameaça da irracionalidade e governar
o mundo de modo a garantir as regularidades observadas na lei científica.
Ainda assim o naturalismo metodológico está próximo da verdade, porque
Deus convida as pessoas, feitas à sua imagem, a explorar as regularidades.
Deus, como causa primária, não evapora as causas secundárias. Não podemos
nos revestir de qualquer certeza divina que Deus não fará exceções ao curso
normal das coisas, mas temos razões para explorar o curso normal.
LUTA CONTÍNUA
Confrontados com o desafio do design inteligente, os cientistas vão combater
entre si acerca de hipóteses alternativas e estruturas explicativas, como eles se
enfrentaram em algumas das revoluções científicas anteriores, catalogadas
por Thomas Kuhn. Algumas vezes as lutas serão vigorosas. Assim a ciência
se desenvolve quando explicações competem entre si. Em muitos aspectos, a
luta com o design inteligente não difere muito das anteriores. Mas ela produz
maiores tensões por pelo menos cinco fatores:
1) Cosmovisões materialistas, quase-materialistas e hedonistas cresceram em
popularidade em parte com base na teoria darwinista macroevolutiva, usando
como ponto de partida a cosmovisão do naturalismo evolutivo (Capítulo 5).
As questões da cosmovisão envolvem o público e os compromissos religiosos
das pessoas com religiões convencionais ou substitutos ideológicos modernos
da religião. O envolvimento do público significa que o desejo de reter ou
obter poder aquecem os debates mais que o normal. Dinheiro e bolsas de
pesquisa e meios de subsistência estão em jogo.
2) As diferenças entre as cosmovisões ameaçam romper a unidade da ciência,
se os naturalistas ontológicos (regularidade fechada) diferirem em perspectiva
de quem afirma algum tipo de regularidade aberta.
3) Os efeitos das diferenças entre as cosmovisões são mais sentidos em parte
pela diferença em conceito de lei científica. Será que o pensamento humano
se aproxima da lei pessoal de Deus? Nesse caso, precisamos admitir a
possibilidade de encontrar exceções às nossas expectativas. Ou as leis são
impessoais e absolutamente imunes à exceção? Assim, a ideia da lei
impessoal se torna um substituto de Deus, um falso deus. Um conflito nessa
área ameaça o compromisso das pessoas com seu deus.
4) Cientistas convencionais consideram o conflito a recapitulação das lutas
anteriores entre ciência e religião, e consideram que a religião deforma,
suprime e mutila a ciência por conta do dogmatismo ignorante. A luta não
ocorre como o embate contra outros cientistas com “boas intenções e
equivocados”, mas a luta contra a barbárie.
5) O design inteligente questiona os pressupostos fundamentais da ciência
convencional atual ao perguntar se o programa reducionista de interpretação
da biologia nos termos da química, a química em termos da física e a física
em termos da matemática são adequados à natureza do mundo.
RETORNANDO AO FLAGELO
Podemos ilustrar as tensões ao retornamos ao design do flagelo. Caso se
excluam os extraterrestres, o naturalista ontológico precisa dizer que o
flagelo surgiu do gradualismo evolutivo, pois essa é a única coisa admissível
à sua cosmovisão e ontologia. “Precisa haver outra explicação gradualista”,
ele diz, “e não a descobrimos ainda”. Ele precisa fazer essa afirmação mesmo
sem ter evidências positivas; e ele está de frente para a evidência negativa da
complexidade irredutível, que sugere a impossibilidade de o maquinário ter
surgido gradualmente. Ele age por fé na ontologia.
O naturalista metodológico costuma afirmar que na ciência não é preciso
formular questões para invocar o design. Contudo, o flagelo pede uma
explicação. Torna-se mais fácil perceber que o naturalismo metodológico —
que não admite exceção nem oculta o naturalismo ontológico — propõe um
jogo para banir certos tipos de perguntas, em lugar de seguir aonde quer que a
evidência conduza.[246]
DESIGN E ACASO
Então como o flagelo pode ter surgido? O teísmo cristão robusto implica na
confissão de que Deus o fez. Ele criou os variados tipos de bactérias e os
flagelos pertencentes a cada tipo. Mas como? A Bíblia estimula a humildade:
admitimos não saber.
Todavia, podemos imaginar. Imaginemos por um momento, a fim de
demonstrar um pouco mais a influência da ideologia. Podemos imaginar uma
criação puramente instantânea, por fiat, em que a bactéria inteira surge em
um único momento — todos os seus átomos criados a partir do nada.
Ou Deus apareceu em uma teofania, como a coluna de nuvem e fogo no
deserto do Sinai, e por meio do poder da nuvem giratória juntou os átomos e
moléculas em uma bactéria em poucos segundos? Então, em lugar de criar
átomos extras, ele juntou os átomos já criados em um ponto anterior? Aqui
ele usa um meio: o átomo previamente criado.
Ou suponha não ter havido teofania. O observador veria apenas átomos se
juntando aqui e ali para formar uma bactéria completa em poucos segundos.
A opção é interessante, porque poderia acontecer nos limites das leis físicas
conhecidas. Elas não especificam em si mesmas a localização anterior de
cada átomo. Apenas nos dizem como se espera que os átomos se comportem.
O observador ateu pode dizer que foi “por acaso”, eles só “calharam” de se
juntar no tempo e lugar certos. É algo muito improvável se as probabilidades
forem calculadas. Em média, não ocorreria nem mesmo uma vez em um
trilhão de universos, em toda sua expansão, mesmo que cada universo
contasse com o tempo de vida de um trilhão de anos. Mas não viola nenhuma
lei física conhecida pelos materialistas.
Contudo, não precisamos usar como exemplo mesmo essa improbabilidade.
Suponha que Deus já tenha criado as bactérias sem o flagelo. Ele escolhe
uma espécie de bactérias. Por séculos a espécie se reproduz. Em um ponto,
Deus garante que uma seção do DNA é “acidentalmente” duplicada de forma
que a descendência carregará duas cópias dessa seção de DNA. A segunda
cópia, porém, não tem uma seção de começo, de modo a não produzir
proteína. O DNA que não funciona gradualmente entra em mutação com a
passagem das gerações pela substituição “acidental” de bases particulares.
Deus garante que essas mutações graduais levem ao à totalidade da
informação genética necessária para produzir o flagelo. Essa informação
inclui não só a informação para produzir as proteínas do flagelo completo,
mas o equivalente às instruções “de montar” para garantir que as proteínas se
juntarão na configuração correta, no mesmo lugar. Quando tudo está pronto,
Deus, por algumas funções a mais, “liga” a informação genética de tal modo
para manufaturar proteínas e juntá-las no flagelo completo.
O processo é completamente gradual. Nenhuma etapa do processo possui
uma probabilidade tão pequena. Todas cooperam de acordo com os
fenômenos conhecidos que ocorrem nas mutações bacterianas. O defensor
típico da macroevolução estaria satisfeito? O processo ainda desafia o
pensamento darwinista, pois o darwinismo não admite o gradualismo “por
design” ou direcionado. Admite que as bactérias com flagelos podem evoluir
sem nenhum sentido para se tornarem flagelos melhores, porque aqueles com
flagelos de melhor funcionamento sobreviverão até a próxima geração. Aqui,
no entanto, o flagelo não existe até o último passo. As etapas individuais
podem ser consideradas sem sentido. Todavia, o acúmulo de tantas etapas,
antes do surgimento de qualquer vantagem na adaptabilidade, diminui a
credibilidade da explicação “naturalista”. Esse tipo de cenário ilustra o ponto
feito sobre a complexidade irredutível. Se o flagelo é irredutivelmente
complexo, qualquer cenário com sua construção envolve tomar passos de
antemão que já antecipam o final.
A maioria dos evolucionistas, penso, responderia que esse tipo de cenário
deve ser eliminado das considerações, não por ser literalmente impossível,
mas pela improbabilidade em demasia. Se as leis fossem de fato impessoais,
sua eliminação do cenário seria razoável.
Para ser mais preciso, devemos distinguir entre leis deterministas e
indeterministas. As leis deterministas permitem quase a predição certa do
resultado: “O sol vai nascer amanhã”;[247] “A trajetória de uma bola de gude
no vácuo terá uma forma parabólica, segundo as leis de movimento de
Newton”.[248] Outras leis governam os acontecimentos por acaso: eles
permanecem imprevisíveis: “Se você arremessar uma moeda mil vezes, o
resultado será cara quase metade das vezes”. Na verdade, o controle de Deus
se estende aos dois tipos de acontecimentos e ao dois tipos de lei.
No cenário imaginário, a informação para construir o flagelo gradualmente se
dá em conformidade total às leis deterministas. A menor mutação se
conforma às leis indeterministas também, pois elas não podem, por definição,
predizer um único acontecimento. A totalidade da mutação não parece se
conformar, pois a probabilidade da ocorrência de todos os acontecimentos é
baixa demais.[249]
REDUNDÂNCIA EM SISTEMAS BIOLÓGICOS
Ainda somos bem-vindos a explorar meios gradualistas possíveis para evitar
a estimativa de baixa probabilidade. Niall Shanks tenta essa rota ao analisar a
redundância nos sistemas biológicos.[250] Alguns deles apresentam certa
“complexidade redundante”. Poderiam perder uma parte e ainda continuar a
funcionar porque a função da única parte é duplicada por uma proteína
alternativa ou uma rota química alternativa. Como isso é pertinente?
Para facilitar o argumento, suponha que o flagelo bacteriano seja composto
das partes distintas A, I, M, N, Q, U e Á (na verdade, muito mais partes que
essas são necessárias). Quando arranjadas em uma configuração, elas formam
um conjunto funcional, que podemos representar assim: MÁQUINA. Se
removermos uma das letras da palavra MÁQUINA, ela não é mais uma
palavra escrita corretamente. Da mesma forma, se removermos uma das
partes do flagelo bacteriano, ele não funciona mais para impulsionar a
bactéria. Mesmo que tenhamos quase todas as partes menos uma, MÁQUIN,
o resultado não dá nenhuma vantagem. Não é factível, portanto, explicar
como todas as partes M, Á, Q, U, I, N e A poderiam ser produzidas e
arranjadas pelo processo evolutivo que gradualmente aumenta a
funcionalidade e a adaptabilidade.
Suponha, agora, que postulamos um estágio mais antigo, “redundante”, com
as partes M, Á, Q, U, I, N, A e “a”. A letra “a” representa uma proteína
distinta de “A”, mas capaz de cumprir pelo menos parte do papel dela. Então
a combinação “MÁQUINA + a” ainda seria funcional. Se, por causa de uma
mutação, a bactéria perdesse a habilidade de produzir a parte A, ainda teria
uma máquina em funcionamento na forma de MÁQUINa. Pode-se facilmente
imaginar a transição gradual de “MÁQUINA + a” para MÁQUINa ou
MÁQUINA. Na verdade, podemos imaginar a possibilidade de existirem às
vezes redundâncias múltiplas: “MÁQUINA + a + m” poderia perder algumas
partes e ainda se tornar uma máquina funcional MÁQUINA ou mÁQUINA
ou MÁQUINa ou mÁQUINa.
A observação de fato demonstra que uma máquina irredutivelmente
complexa com as partes M, Á, Q, U, I, N e A poderia ter evoluído de modo
gradual de uma máquina redundante com partes adicionais a ou m ou ambas.
Essa etapa na verdade é razoavelmente fácil, porque a perda da redundância
significa perda de informação. A parte difícil é obter mais informações.
Agora, porém, suponha que postulamos um estágio anterior em que a bactéria
tinha a configuração MÁQUINA + a. A máquina redundante MÁQUINA + a
poderia, por sua vez, ter evoluído de forma gradual de uma máquina com
partes MÁQUINa — ainda uma máquina em funcionamento. A etapa é um
pouco mais traiçoeira, pois envolve a adição da nova parte A. Se A representa
uma única proteína, ela já contém uma quantidade avassaladora de
informações. Portanto, será preciso explicar como a proteína pode ser obtida
pouco a pouco. Isso poderia ser feito pelo processo de “exaptação”, que
descreve a situação hipotética em que a proteína A com uma função existente
em outro ponto de uma célula ou organismo é adequada ao novo trabalho:
funcionar como parte do flagelo MÁQUINA.
Agora obtém-se a figura hipotética em que MÁQUINa se torna
MÁQUINA + a, que se torna MÁQUINA. Esse processo ajuda? Não, porque
o ponto de partida hipotético, MÁQUINa, ainda é irredutivelmente
complexo. A máquina não funcionará sem todas as partes ali. A barreira da
complexidade irredutível se ergue quando tentamos explicar como máquinas
complexas, que não funcionam até que várias partes já estejam nos devidos
lugares, poderiam ter evoluído. A questão principal não gira em torno de
quais as partes exatas: A ou “a” substituta “a”.
Shanks, seguindo Alexander G. Cairns-Smith, usa a analogia do arco de volta
perfeita feito de pedras.[251] Aparentemente é impossível construir o arco de
modo gradual, pode ser edificado com o uso de andaimes removíveis mais
tarde. Por analogia, uma máquina biológica complexa poderia ser construída
com “andaimes” extras. Mais tarde, os andaimes desapareceriam — estando
completa a construção, os andaimes seriam redundantes.
A ilustração demonstra de fato a importância da questão da redundância (os
andaimes extras). No caso do arco, entretanto, os andaimes são postos ali por
um designer humano inteligente que objetiva de forma deliberada a
construção do arco. O análogo no gradualismo evolutivo sem design teria de
descobrir uma forma pela qual, em todos os pontos de adição de peças de
andaimes e peças do arco, a funcionalidade prática do todo é aumentada. Esse
é o cerne do problema: arcos e andaimes não realizam nenhuma função
arquitetônica útil até o todo estar quase completo. Eles precisam de design
inteligente. O mesmo serve para máquinas irredutivelmente complexas.
Shanks imagina ter solucionado o problema da complexidade irredutível ao
introduzir a redundância, mas não o fez. A analogia do arco e a presença da
complexidade redundante não solucionam os problemas apresentados por
máquinas complexas que requerem muitas partes a fim de realizar alguma
função útil. O gradualismo darwinista precisa obter uma função útil em cada
um dos estágios anteriores, quando existem pouquíssimas partes. De outro
modo, elas seriam descartadas.
Deve-se, portanto, proceder a outro estágio de hipóteses. Suponha que
MÁQUINA surgiu de uma máquina redundante anterior, a saber,
MÁQUINA + a, que por sua vez veio de MÁQUINa. A parte “a” contém
uma capacidade multifuncional. Pode, de maneira atrapalhada, tomar parte da
função de N. Daí, MAQUIa, sem N, poderia ainda existir como uma máquina
a funcionar de forma atrapalhada. Por um processo semelhante,
estabelecemos a hipótese de que MÁQUIa pode vir da máquina redundante
MÁQUIa + i, procedente da MÁQUIa. A parte “i” também é multifuncional,
capaz de tomar a função de U. Então se obtém uma máquina em
funcionamento na forma de MÁQia. Agora o processo gradual tem mais
esperanças, por contarmos com menos partes.
Michael Behe já antecipou este tipo de possibilidade no livro inicial sobre a
complexidade irredutível.
Mesmo que um sistema seja irredutivelmente complexo (sem a possibilidade de ter
sido produzido de modo direto), não se pode excluir definitivamente a possibilidade
da rota indireta com mais circuitos. Quando a complexidade de um sistema em
interação aumenta, probabilidade dessa rota indireta cai bastante.[252]
No fim, há ainda três problemas com a proposta acima usando MÁQUINA.
Primeiro: de modo geral, é mais difícil encontrar partes multifuncionais que
partes monofuncionais. De fato, pode ser impossível. Segundo: pode haver
um ponto em que nenhum jeito pode ser encontrado para produzir sucesso
funcional com um pequeno número de partes. Terceiro: tudo isso é
hipotético. Até agora, quando olhamos para o flagelo, não sabemos se partes
como “a” ou “i” sequer poderiam existir, muito menos se elas de fato
existiram. Essa série de palpites sem fundamento é melhor que o “palpite” do
design inteligente? Qual é mais provável?
PROBABILIDADES PARA O FLAGELO E PARA UM PROCESSO JUDICIAL
Lidamos com esse tipo de situação probabilística na vida cotidiana. O
tribunal exige que a culpa seja estabelecida “além da dúvida razoável”. Não
diz “com certeza absoluta”. Muitas situações ainda admitiriam explicações
exageradas. O advogado de defesa diz: “Meu cliente não o assassinou. Eles
tiveram uma discussão acalorada e ele, por acaso, tinha uma arma na mão.
Apontou a arma para ameaçar a vítima e no meio da discussão puxou o
gatilho, mas não queria causar nenhum mal”. O júri acreditaria? É uma
situação possível, mas não constitui uma dúvida razoável.
Assim, o critério de dúvida razoável se aplica ao flagelo? Deus governa o
mundo com regularidade. As regularidades se estendem ao tribunal e à
bactéria. Isto é, elas se estendem de fato a situações que envolvem
probabilidades. Temos certeza de que não seremos convencidos pela retórica
sedutora do advogado de defesa desesperado. Podemos depender de Deus em
questões desse tipo bem como em questões científicas. Todavia, Deus não
garante que o júri bom e consciente ficará imune a equívocos. A justiça
divina é perfeita, pois Deus sabe de tudo. A justiça humana nunca será
perfeita. Podemos condenar uma pessoa quando a culpa está “além da dúvida
razoável” não por sabermos que não existem exceções, mas por ser nosso
dever dar o melhor de nós. Comprometemo-nos entre dois extremos:
condenar pessoas a despeito de sérias dúvidas e produzimos muitas
condenações errôneas; o outro extremo é deixar inumeráveis culpados
escapar da punição por dúvidas bizarras sobre alternativas de probabilidade
muito baixa.
Do mesmo modo, em relação ao flagelo, podemos cometer um erro na
avaliação de seu surgimento. Podemos condenar o inocente ou libertar o
culpado. E se usarmos o critério de “dúvida razoável”? À primeira vista,
parece que o arranjo instantâneo da informação total sobre o flagelo ou a
construção gradual da informação sem nenhuma funcionalidade benéfica para
ele, é uma explicação totalmente implausível do ponto de vista das causas
secundárias. As duas opções são colocadas na categoria de algo que sabemos
não ocorrer. Esse raciocínio parece favorecer a explicação mais alinhada com
a evolução teísta. Ele diria que de alguma forma inda desconhecida, Deus fez
uma adição ao flagelo mediante um processo gradual que envolveu
benefícios crescentes em adaptabilidade. Talvez haja uma rota através de
MÁQia a MÁQUIa até MÁQUINA.
Entretanto, dificuldades ainda confrontam a evolução teísta. Fomos além da
primeira vista do flagelo. Para usar a analogia do tribunal, observamos com
cuidado a cena do crime e já eliminamos a maioria das explicações. Não
temos evidências da existência de máquinas em funcionamento com MÁQia,
nem mesmo sabemos como poderia existir uma parte como “i” ou “a”. A rota
postulada de MÁQia a MÁQUIa a MÁQUINA não é mais que um palpite
desesperado, talvez tão improvável quanto o arranjo hipotético da informação
sem funcionalidade.
Volte ao tempo de Darwin. Seria razoável que um teísta, ao observar as
evidências consideradas por Darwin, fizesse uma extrapolação ousada e
chegar ao palpite de que Deus pode ter criado todas as espécies (com
possíveis exceções) por meios graduais. Ainda seria uma extrapolação ousada
que precisaria ser descartada. O flagelo não parece ser descartado com
facilidade. Quando tentamos visualizar como Deus o fez e ainda ficarmos nos
limites da evolução teísta, acabamos com relatos curiosamente similares aos
do advogado de defesa desesperado. Por que não tentar contar o relato em
que Deus, como um designer humano inteligente, organiza as partes e as
une?
Deus, porém, não é como um designer humano. Ele é a causa primária, não a
secundária. Os naturalistas metodológicos podem reclamar que quando
invocamos Deus, misturamos níveis causais e assim fugimos da explicação
“científica”. Mas pense de novo. O designer humano, ao ajuntar e organizar
as partes da máquina, não age de forma contrária às leis físicas deterministas.
As moléculas, a força de seus dedos e as contrações dos músculos funcionam
de forma comum. A intencionalidade humana é misteriosa. Não é uma
“causa” no mesmo nível das causas físicas imediatas que impactam uma parte
da máquina. O ser humano planeja, antecipa e elabora o formato final da
máquina. Então ele age no mundo externo onde usa causas secundárias
comuns. Seu planejamento e intencionalidade são como uma causa primária
em relação às causas secundárias, embora evidentemente também tenha
Deus, por sua vez, como causa primária.
Assim, a analogia do designer humano de fato ajuda. Rejeitamos como
bizarra a figura em que partes de uma ratoeira ou uma máquina complexa se
juntam de maneira aleatória em um lixão para formar a máquina. Aceitamos
com tranquilidade a junção das mesmas partes, sob o controle das mesmas
leis gerais da física, quando entra a intenção humana. A intenção humana dá
alta probabilidade ao resultado que, de outra forma, teria uma probabilidade
risivelmente baixa.
Podemos estimar as probabilidades apenas com algum conhecimento da
situação estimada. Se uma máquina complexa necessita de 10 partes, e
afirmarmos que as 10 partes foram jogadas aleatoriamente em um lixão com
a área de 10.000 m2, podemos estimar a probabilidade muito baixa para
encontrarmos um dia depois tudo bem conectado e formando uma máquina.
Se nos disserem que um ser humano pretende visitar o lixão à noite e as
colocar juntas em uma máquina, a estimativa de probabilidade precisa ser
completamente revisada. As probabilidades são traiçoeiras, pela dependência
do conhecimento anterior. Coisas estranhas podem acontecer, porque o
conhecimento anterior pode não contar com alguma informação crucial.
Descobrimos que o homem acusado de assassinato atuava na cena de um
filme. A munição da arma era de festim. Sem o ator saber, um membro do
equipe, com rancor da vítima, colocou cartuchos de verdade. Agora que
contamos com esse conhecimento adicional, a probabilidade de o acusado ser
culpado muda de forma radical.
Um raciocínio análogo se aplica ao caso em que Deus cria o flagelo
bacteriano? Faz diferença sabermos de antemão as intenções de Deus?
Provavelmente sim. Contudo, na verdade, conhecemos as intenções divinas
só depois de observar o resultado, o flagelo completo.
A analogia entre Deus e o designer humano ainda ajuda. Quando o ser
humano constrói um motor, podemos seguir dois níveis de causas: focar nas
causas secundárias que envolvem movimentos físicos e química. Ao analisar
com cuidado a parte metálica em particular pode-se deduzir não só a fábrica
produtora, também o depósito mineral de onde veio o minério de ferro.
Suponha, entretanto, que tentemos explicar apenas por meio de causas
secundárias como todo o motor se juntou em um único lugar. Não
conseguiremos. As causas físicas existem ao longo de todo o trajeto, na
forma de pressões dos dedos humanos, máquinas ou dedos robóticos
programados por um ser humano. Esse tipo de cadeia causal é complexo
demais para seguir e parece improvável até a invocação de uma causa
“primária”: o designer ou organizador humano.
Os cientistas se sentem um pouco desconfortáveis quando abandonam a
tentativa de explicar o motor apenas com causas secundárias, isto é, físicas e
químicas.[253] Não há nada anticientífico em reconhecer às limitações da
explicação química quando confrontados pela organização humana de um
motor. Poderia a mesma conclusão se dar por analogia quando consideramos
a organização divina do primeiro flagelo? Preferir a visão da “ciência” pode
nos inclinar a preferir um tipo de explicação, ou querer deslegitimar uma
opção. Mas não podemos dizer a Deus de antemão como ele deveria ter feito.
PERMANECENDO EM ABERTO
Não creio haver uma única resposta correta sobre o flagelo. Precisamos
reconhecer a dificuldade. As pessoas podem se deixar levar por seus desejos
e serem levadas a fazer uma escolha quando deveriam ter a mente mais
aberta. Os cientistas cristãos e não cristãos desejam entender. O desejo os
inclina a esperar que a origem do flagelo envolva transições de alta
probabilidade entre mutações “comuns” e adaptabilidade crescente. Assim,
com informação cumulativa suficiente, podemos ser capazes de traçar com
alguns detalhes como Deus fez surgir o primeiro flagelo.
Os apologistas e participantes das guerras culturais desejam contar com
argumentos para desafiar a ideologia prevalente do materialismo dentro e fora
do mundo da ciência. O desejo os inclina a esperar que Deus tenha feito o
flagelo surgir por uma situação estranha de baixa probabilidade, que nunca
conseguiremos reconstruir.
Ou, talvez, possa surgir a terceira alternativa via, inconcebível no estado
presente da ciência. Poderíamos ver um padrão comum a vários casos de
complexidade irredutível, e o padrão poderia sugerir algo sobre as rotas de
baixa probabilidade por meio das quais as configurações complexas surgiram
no início. Por analogia com o designer humano ao montar a máquina,
podemos aprender sobre o designer para dar um bom palpite sobre como ele
procedeu. Podemos descobrir o envolvimento de meios que não chegam à
afirmação inacreditável de que 10 peças da máquina se juntaram do dia para a
noite no lixão sem nenhuma orientação inteligente.
De qualquer modo que se resolva a longo prazo, opino que o naturalismo
metodológico convencional na ciência precisa mudar, por mais doloroso que
seja para quem detém hoje o poder cultural. Em particular, deve-se dar
espaço cultural à hipótese do design inteligente, como alternativa razoável
para exploração, em vez de estigmatizá-lo como muitos vigias culturais o
fazem. O naturalismo metodológico prevalente oculta o naturalismo
ontológico — uma suposição metafísica infundada e religiosa — ou exclui
artificialmente algumas respostas como fora dos limites de antemão, mesmo
que possam estar certas. As duas opções jazem sobre fundamentos
defeituosos. Agora que são desafiadas abertamente pelo movimento do
design inteligente, só a desonestidade ou a supressão da livre troca de opinião
pode ocular a inadequação desse cativeiro ideológico sem o método científico
atual.
20. Deus e aparatos físicos
Agora vamos considerar as implicações da cosmovisão cristã para o estudo
do mundo físico, incluindo coisas não vivas.
O padrão de confecção de imagens se estende a coisas não vivas, como se dá
com os seres vivos? Deus fez o homem à sua imagem, ao passo que plantas e
animais foram feitos “segundo as suas espécies” (Gn 1.21,26,27; 5.1). O
homem é singular dentre as criaturas da terra. Contudo, como vimos no
Capítulo 18, plantas e animais, ao se reproduzirem segundo as suas espécies,
são análogos a Adão, que se torna pai do filho à sua imagem (5.3). A
reprodução, o processo principal entre os seres vivos, resulta em mais seres
vivos “à imagem” dos pais. Ainda respeitando a singularidade humana,
podemos dizer que a reprodução biológica também nos oferece um processo
de imagens.
A reprodução, no sentido comum, não se estende a coisas não vivas. Contudo
as coisas não vivas partilham algumas propriedades físicas gerais com os
seres vivos, a saber, as propriedades investigadas pela física e química. A
ideia de fazer imagens se repete nessa área? Possivelmente sim, como
expressão ainda mais atenuada do princípio das imagens.
IMAGENS EM COISAS NÃO VIVAS NA TEOFANIA
Na verdade, já vimos exemplos de imagens em coisas não vivas em conexão
no debate anterior sobre teofanias (Capítulo 17). Trovões, fogo, luz e nuvens
aparecem em conexão com teofanias. Eles também surgem na vida comum e
mesmo aqui eles refletem alguns aspectos específicos do caráter de Deus. Da
mesma forma, os tronos dos reis terrenos refletem o trono original de Deus
como símbolo de seu poder e autoridade. As joias na terra refletem o
esplendor brilhante como joias na teofania (Ap 4.3) e esse esplendor por sua
vez reflete a beleza divina. Casas e templos na terra refletem a habitação de
Deus no céu e isso, por sua vez, reflete a habitação original de Deus em si
mesmo, expressa na habitação mútua das pessoas da Trindade (Jo 17.21). O
caráter doador de vida de Deus é refletido na água da vida na teofania em
Apocalipse 22.1, 2. De forma subordinada, reflete-se na água comum na
terra. O sol, fonte de luz, reflete o brilho originário de Deus (v. Ap 21.23). E
assim sucessivamente. Quando nossos olhos são abertos, podemos ver muitos
reflexos do caráter divino. A Bíblia usa uma variedade de imagens e sugere
muitos desses reflexos.
PROPORÇÕES
O tabernáculo, como vimos no Capítulo 17, continha um número de relações
de imagem. Podemos considerar as medidas como exemplo específico de
imagens no tabernáculo. Várias de suas características mostram proporções
simples. O Santo Lugar tem a mesma largura que o Santo dos Santos, mas
seu comprimento é duas vezes maior. A mesa com a exposição dos pães tem
dimensões de 2 cúbitos de comprimento, 1 cúbito de largura e 1,5 cúbito de
altura (Êx 25.23). Isto é, as dimensões são 2 por 1 por 1,5. Comprimento e
largura estão na proporção de 2 por 1. Largura e altura estão na proporção de
1 por 1,5, a mesma razão de 2 por 3. Comprimento e altura estão na
proporção de 2 por 1,5, o mesmo que 4 por 3. O pátio do tabernáculo tinha o
comprimento de 100 cúbitos e a largura de 50, de novo a razão de 2 por 1. O
pátio multiplica por 5 as dimensões do Santo Lugar, com o comprimento de
20 cúbitos e a largura de 10 cúbitos.
O que devemos fazer com isso? Talvez haja razões práticas para algumas
dimensões. Elas parecem razoáveis para o uso humano. Os comprimentos
simples, em termos de cúbitos, são mais fáceis de medir. As simetrias
também sugerem beleza e harmonia. Considere ue o mais exterior dos dois
espaços, o Santo Lugar, possui a santidade atenuada em comparação ao Santo
dos Santos. O Santo dos Santos é a imagem do lugar da habitação de Deus.
Assim, o Santo Lugar é um tipo de imagem da imagem: proporcional ao
espaço mais interior que ele representa. A proporcionalidade consiste na
expressão do princípio de confecção de imagens.
O israelita poderia reconhecer que o princípio da confecção de imagens é
mais amplo que a incorporação principal na natureza humana, no homem
como feito à imagem divina. Ela se expressa de uma forma atenuada em
animais, plantas e agora em objetos sem vida: a estrutura espacial do
tabernáculo.
Lembre-se também de que o simbolismo no tabernáculo sugere a relação
entre as diversas “habitações” de Deus: dentre elas entre a “casa
macrocósmica” do universo e a “casa microcósmica” do tabernáculo (v.
Capítulo 17).
Quando o israelita contemplava a casa macrocósmica, poderia se perguntar se
ela mostrava belezas e harmonias semelhantes. O mundo todo, o
macrocosmo, apresenta simetrias ou harmonias numéricas?
Se olharmos estritamente para o caráter espacial do mundo, começaremos a
explorar a geometria. Quando os gregos o faziam, como Pitágoras,
encontravam relacionamentos profundos nas proporções, o que fez algum
deles pensarem que harmonias matemáticas consistiam na chave do universo.
Agora, contudo, estamos focando nos aspectos físicos do mundo, não só na
matemática. Uma área assim é a música. Os gregos descobriram
proporcionalidades simples no caráter das harmonias musicais. Comecemos
pelas cordas da lira. Se pegarmos duas cordas e a segunda corda tiver metade
do comprimento da primeira, e a colocarmos sob a mesma tensão da
primeira, ela produz uma nota uma oitava acima. A simples
proporcionalidade no comprimento: 1 para 2, produz a harmonia simples em
notas musicais.
Na verdade, pode-se dizer mais. A nota uma oitava acima possui a frequência
fundamental de vibração 2 vezes mais alta que a nota original. As frequências
se relacionam entre si em uma razão de 1 para 2 — a origem do som
harmonioso. Nossos ouvidos e o processamento mental do som possuem um
senso de proporcionalidade embutido. Usando a notação musical padrão,
podemos retratar a razão com uma simples ilustração:
{Ilustração do piano e da partitura [p. 287]}
A primeira nota é o dó médio, a segunda é o dó uma oitava acima. As notas
podem também ser tocadas ao mesmo tempo, produzindo um acorde
oitavado.
As proporcionalidades podem ocorrer de forma mais ampla. As outras notas
nas escalas e nas melodias também são relacionadas a proporcionalidades. Na
verdade, as cordas que soam mais harmoniosas ao ouvido são as que
produzem proporcionalidades mais simples nas frequências. A ilustração
abaixo mostra acordes comuns e as proporcionalidades relacionadas:
{Ilustração de partitura [p. 288]}
O primeiro acorde (mais à esquerda na ilustração) é o acorde oitavado, Como
vimos, a frequência da nota mais alta é o dobro da frequência da nota mais
baixa, resultando na proporcionalidade de 1 para 2 (1:2). O próximo acorde é
uma quinta maior, também uma harmonia importante, com a razão da
frequência de 2:3. A seguinte, uma quarta maior, tem a proporcionalidade de
3:4. Na sequência, a terceira maior, com a proporcionalidade de 4:5. A
terceira menor é 5:6. A segunda maior conta com a proporcionalidade de 8:9,
que não soa mais tão harmoniosa. Por fim, a sexta maior, o acorde mais à
direita, tem a proporcionalidade 3:5.[254]
Acordes mais complexos mostram proporcionalidades adicionais. Por
exemplo, o acorde de dó maior, consistindo em um dó, um mi e um sol em
harmonia, envolve as razões de 4:5:6. Se tomarmos um acorde de sol maior
— um sol, um si e um ré — consiste nas mesmas proporções: 4:5:6. As
progressões de acorde mais simples muitas vezes vão do dó maior ao sol
maior, ou do sol maior ao dó maior, ou alguma outra sequência que envolve a
relação de um quinto maior. A proporção entre dó e sol é de 2:3. Assim as
progressões de acorde utilizam proporcionalidades simples:
{2ª ilustração de partitura [p. 288]}
Ouvimos harmonias naturais quando escutamos esses acordes e progressões
de acordes. Dissonâncias também podem ser encaixadas na figura, pois são
ouvidas como desarmonias que desejamos dissolver em harmonia. Em tudo
isso, não nos conscientizamos das proporcionalidades numéricas simples
subjacentes nos acordes. Todavia, os efeitos das proporções estão embutidos
no cérebro de forma que ele detecta as proporções. Ouvimos harmonia e
beleza, ou às vezes dissonância que clama por resolução. Ao fazê-lo,
respondemos à beleza e harmonia de Deus. A harmonia é refletida nas
proporções do tabernáculo e também nas proporções musicais. Ademais, o
movimento de dissonância até a harmonia parece análogo ao movimento
mais geral do caos à ordem — o movimento que vimos acontecer na criação
divina do mundo e na recriação como resposta ao caos introduzido pelo
pecado.
Poderíamos considerar outros ecos de proporcionalidades na música, mas
vamos tornar nossa atenção para outras áreas.
PROPORÇÕES NO TEMPO E ESPAÇO
Mesmo antes de os gregos descobrirem as proporcionalidades na música, os
astrônomos começaram a explorar as proporcionalidades no movimento dos
corpos celestiais. Deus fundamentou essa possibilidade ao criá-los. Em
Gênesis 1 Deus indica que as luzes celestiais funcionam para demarcar o
tempo: “E sejam eles para sinais, para estações, para dias e anos” (Gn 1.14).
O primeiro e mais fundamental nível teórico, nem sequer merecendo o nome
de teoria, apenas observa as regularidades óbvias governadas pelos corpos
celestiais. O sol traz o dia em ciclo regular. A lua demarca a divisão em
meses. De modo mais complexo, a posição do sol ao nascer e se por, bem
como as posições das estrelas, demarcam os ciclos do ano.
Os israelitas precisavam saber algo sobre os dias, meses e anos, porque Deus
lhes ordenou a celebração de festivais em certos períodos fixos. Por exemplo,
o sacrifício matinal acontecia uma vez por dia (Nm 28.4), o sábado uma vez a
cada sete dias (Lv 23.3), a Páscoa uma vez por ano, no décimo quarto dia do
primeiro mês (Lv 23.5), e no começo de cada mês acontecia o toque das
trombetas e a apresentação de ofertas especiais (Nm 10.10; 28.11). Todo
israelita poderia observar que Deus estabeleceu para seu benefício a
correlação regular entre as posições espaciais dos corpos celestes e os tempos
em que acontecimentos específicos ocorreram.
Considere como as coisas pareceriam para um israelita, quando examinava os
céus e começava a pensar nas correlações entre o tempo e a posição dos
corpos celestiais. A correlação mais óbvia liga o sol ao ciclo diário. Um ciclo
de sol perfaz um dia. Sete ciclos do sol demarcam sete dias. E dentro do dia,
a posição do sol no céu mostra o tempo do dia, a base do relógio solar. As
correlações estabelecem a proporcionalidade entre o movimento do sol e a
passagem do tempo. A rotação completa do sol marca um dia; duas rotações
marcam dois dias e assim sucessivamente. Há correlação entre rotações e
dias. Pode-se perceber também a correlação entre a posição do sol no céu e a
hora do dia.
Agora, lembre-se de que o tabernáculo mostra proporcionalidades simples
nas dimensões físicas. Também havia algumas instâncias de correlações entre
tempo e espaço. O ciclo de sete dias na semana correspondia ao arranjo
espacial de sete lâmpadas no candelabro. O tabernáculo, como modelo
microcósmico divino, sugeria que as proporcionalidades poderiam ocorrer
também na casa macrocósmica de Deus, o universo. A regularidade no
movimento do sol confirmou o palpite.
Agora temos a proporcionalidade entre a posição espacial do sol e a
passagem do tempo. Isso sugere que proporcionalidades podem surgir
também em relação a outros corpos celestiais. E elas aparecem. A lua varia
em posição e aparição de forma que se repete com regularidade no ciclo de
29,5 dias. A posição das estrelas e aposição do sol no nascente e poente varia
de forma mais complicada que se repete a cada ano, isto é, a cada 365,25 dias
(aproximadamente).
Observações desse tipo oferecem um desafio ao estudo dos movimentos dos
corpos celestiais com precisão cada vez maior. A matemática precisa se
desenvolver a fim de lidar com partes fracionadas e números grandes. A
geometria precisa desenvolver meios de representar e analisar o movimento
em três dimensões.
A primeira aproximação diz que o sol e a lua movem em círculo. O sol tem
um ciclo que dura um dia, enquanto que a lua tem um ciclo relativo à posição
do sol de 29,5 dias. A intersecção do círculo com o horizonte e o ângulo da
inclinação em relação ao horizonte variam de acordo com a época do ano.
Vamos chamar esse estágio de desenvolvimento de nível 2 de teoria.
O desenvolvimento da matemática e da observação detalhada mostra algumas
complexidades, em particular sobre o movimento dos planetas. O cálculo
matemático considerável se tornou necessário para alcançar o nível detalhado
obtido pelos babilônios e, mais tarde, pelos gregos. No nível 3 da teoria,
concebido por Ptolomeu, os movimentos dos corpos celestiais podem ser
representados por círculos associados a círculos menores ou “epiciclos”. Um
grande círculo centrado na terra gira a uma taxa constante. Para o ponto fixo
na circunferência do círculo em rotação podemos imaginar a associação do
centro do círculo menor, que gira em ritmo próprio, que pode diferir do
círculo principal. Se a aproximação alcançada pela representação não se
provar suficientemente boa, podemos associar ainda o terceiro círculo,
produzindo um epiciclo no epiciclo e assim sucessivamente.
Deus forneceu por meio dos corpos celestiais um ponto de partida natural
para a física, em especial a mecânica do movimento. O movimento comum
na terra experimenta a influência da fricção, bem como a influência do vento
e da pressão atmosférica, que apresentam obstáculos para entender a
simplicidade subjacente, descoberta por Galileu e Newton. Os corpos
celestiais, em contrapartida, se movimentam sem os efeitos da fricção ou da
atmosfera. Eles, portanto, mostram simplicidade e regularidade de forma
mais direta no nível imediatamente visível.
As pessoas que vivem hoje podem observar ainda mais as proporcionalidades
na esfera terrestre, pois superamos ou ignoramos os efeitos da fricção.
Imaginemos a viagem em um carro a um lugar distante. Na primeira hora
viajamos 50 milhas (c. 80km). Na segunda hora viajamos outras 50 milhas,
com o total de 100 milhas. No final da terceira hora viajamos 150 milhas. E
assim sucessivamente. Fazemos uma tabela para resumir a viagem:
[Início da ilustração p. 291]
TEMPO: 1h 2h 3h 4h 5h
DISTÂNCIA: 50 milhas 100 milhas 150 milhas 200milhas 250 milhas
[Fim da ilustração p. 291]
A tabela expressa a proporcionalidade que liga tempo e distância. Cada hora
corresponde a outras 50 milhas. Dizemos que o carro viaja a 50 milhas por
hora ao longo da distância toda. A proporcionalidade constante entre tempo e
distância leva ao conceito de velocidade, definida como a razão entre
distância e tempo.
Agora podemos olhar a uma situação semelhante em que a velocidade varia.
Imagine que estamos em um avião na pista. As turbinas do avião chegam à
potência máxima e o piloto solta os freios. O avião começa a transitar pela
pista de forma cada vez mais rápida. Podemos registrar a viagem na segunda
tabela:
[Início da 2ª ilustração p. 291]
TEMPO 0s 1s 2s 3s 4s
DISTÂNCIA 0ft./s 2ft./s 4ft./s 6ft./s 8ft./s
[Fim da 2ª ilustração p. 291]
O avião começa do repouso, isto é, viajando a 0 pé por segundo (ft./s).
Depois de um segundo, ele viaja a 2 pés por segundo (cerca de 0,6 m por
segundo). Depois de dois segundos, ele viajando a 4 pés por segundo. E
assim sucessivamente. Descobrimos haver proporcionalidade regular entre
tempo e velocidade. A proporcionalidade leva à ideia de aceleração. A
aceleração pode ser definida como a mudança na velocidade por unidade de
tempo. No exemplo do avião, ele acelera à taxa de 2 pés por segundo por
segundo. A repetição da frase “por segundo” parece estranha no início, mas é
precisa. A velocidade é medida em unidades como pés por segundo ou
metros por segundo. A aceleração lida com a mudança da velocidade por
unidade de tempo. A cada segundo a velocidade se torna 2 pés por segundo
mais rápida. A taxa de mudança é portanto de 2 pés por segundo, a cada
segundo, ou 2 pés por segundo, por segundo.
O mundo à nossa volta oferece uma série de exemplos de proporcionalidade.
O próprio conceito de velocidade está embutido na ideia da
proporcionalidade entre distância e tempo. O conceito foi estimulado pela
observação do movimento do sol e da lua. E pode ser estendido para analisar
o movimento de um carro ou avião. Então passamos a aceitar o conceito de
aceleração, que aplica uma análise análoga em situações de alteração da
velocidade. Os conceitos de velocidade e aceleração são próximos dos
fundamentos do estudo de toda a área da física. Agora vamos considerar o
desenvolvimento da física na forma moderna.

[1]
Este capítulo apareceu originalmente numa forma diferente em Vern S. Poythress, “Why
Scientists Must Believe in God”, Journal of the Evangelical Theological Society 46/1
(March 2003): 111-23.
[2]
A obra de Gregory L. Bahnsen sobre o autoengano (“A Conditional Resolution of the
Apparent Paradox of Self- Deception”, tese de doutorado, University of Southern
California, 1979) ajudou a mostrar como as pessoas manuseiam esses casos paradoxais.
Elas creem em certa proposição e também acreditam (como crença de segunda ordem) que
não acreditam nela. Eles ocultaram da consciência o que suas ações continuam a revelar a
outros. Para agir, dependem tacitamente das verdades sobre o mundo, mas verbal e
conscientemente não creem no que fazem. Esse modelo é útil. Entretanto, a incredulidade e
a rebelião, como manifestações do pecado, produzem efeitos profundos na natureza
humana, incluindo as questões intelectuais e práticas. Daí qualquer explicação humana da
evasão da verdade resta parcial.
[3]
Reijer Hooykaas, A religião e o desenvolvimento da ciência moderna (Brasília: Editora
da UnB, 1988); Stanley L. Jaki, The Road of Science and the Ways of God (Chicago:
University of Chicago Press, 1980); Jaki, The Origin of Science and the Science of Its
Origin (South Bend: Regnery-Gateway, 1979); Nancy R. Pearcey; Charles B. Thaxton, A
alma da ciência: fé cristã e filosofia natural (São Paulo: Cultura Cristã, 2005); Charles E.
Hummel, The Galileo Connection: Resolving Conflicts Between Science and the Bible
(Downers Grove: InterVarsity, 1986).
[4]
Por volta de 1999, Edward J. Larson e Larry Witham conduziram uma pesquisa sobre as
crenças dos cientistas e compararam os resultados com pesquisas similares de James H.
Leuba em 1914 e 1933. Encontraram poucas mudanças, a não ser quanto à impressão de
que a ciência é uma força secularizante. Do total, 48% criam em Deus nos dias de Leuba e
hoje Mas também perceberam que a “elite” dos cientistas americanos, representada pela
National Academy of Science, continham uma porcentagem mais alta de descrença, mais
de 90% dos que responderam (“Scientists and Religion in America”, Scientific American
281/3 [September 1999]: 88-93).
[5]
Roy Bhaskar distingue com cuidado a “leis causais” dos “padrões de eventos” (Bhaskar,
Reclaiming Reality: A Critical Introduction to Contemporary Philosophy [London/New
York: Verso, 1989], p. 16). “Leis causais” correspondem ao que chamo “princípio
explicativo geral”; “padrões de eventos” podem derivar-se da coincidência. Mesmo quando
um padrão resulta da operação direta das leis, ele não é idêntico às leis. Trata-se de uma
instância do efeito das leis. Contudo, nenhuma separação rígida é possível, pois nenhum
padrão, coincidente ou não, pode ser reconhecido pelo ser humano a não ser sob o pano de
fundo da racionalidade da palavra divina. Precisamos ter duas distinções em ordem: entre a
palavra de Deus e o conhecimento humano dessa palavra; e entre a palavra de Deus e as
coisas e os eventos que ela controla. Também precisamos reconhecer que a ciência envolve
mais de um nível de descrição e explicação. Juntar esses dados sobre a construção do ninho
de um passarinho envolve um nível mais elementar que a análise da base neurológica dos
instintos de construção de ninhos. V. a discussão posterior nos Capítulos 13-15.
[5]
Para uma discussão sobre realismo e as alternativas a ele, v. cap. 15.
[6]
Springfield: Merriam-Webster, 1987.
[7]
Mas nem tão massivos; entramos em outras limitações quando os campos gravitacionais
são fortes.
[8]
John M. Frame, The Doctrine of God (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 2002), p.
543-75. [Em português: A doutrina de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2014)].
[9]
Encontrei recentemente um pensamento paralelo em Paul Davies, que menciona a
eternidade, universalidade e onipotência da lei (The Mind of God: The Scientific Basis for a
Rational World [New York: Simon & Schuster, 1992], p. 82-3). A seguir, Davies então
parte para outras direções, sem expandir a lista de atributos divinos.
[10]
Na visão bíblica transcendência e imanência, v. John M. Frame, The Doctrine of the
Knowledge of God (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1987), esp. p.13-5 [Em
português: A doutrina do conhecimento de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)]; e
Doctrine of God, esp. p. 107-15.
[11]
Chamados e sinais animais mimetizam certos aspectos limitados da linguagem humana.
Os chimpanzés podem ser ensinados a responder a símbolos com sentido. Mas isso ainda
está bem longe da gramática complexa e do sentido da linguagem humana. V., e.g.,
Stephen R. Anderson, Doctor Dolittle’s Delusion: Animals and the Uniqueness of Human
Language (New Haven: Yale University Press, 2004).
[12]
Na habilidade de passar por transformações e reformulações, as leis científicas também
mostram uma analogia da linguagem humana para representar perspectivas múltiplas. Para
saber mais sobre o caráter linguístico das leis científicas, v. Vern S. Poythress, “Science as
Allegory”, Journal of the American Scientific Affiliation 35/2 (1983): 65-71; “Newton’s
Laws as Allegory”, Journal of the American Scientific Affiliation 35/3 (1983): 156-61;
“Mathematics as Rhyme”, Journal of the American Scientific Affiliation 35/4 (1983): 196-
203.
[13]
Conforme a Bíblia (esp. Gn 1), mantemos que Deus e o mundo criado são distintos.
Deus não deve ser identificado com a criação ou qualquer parte dela, nem é a criação
“parte” de Deus. A Bíblia repudia todas as formas de panteísmo e panenteísmo.
[14]
Veja R. B. Edwards, “Word”, in: Geoffrey W. Bromiley et al., orgs., The International
Standard Bible Encyclopedia (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), 4 vols., vol. 4, p. 1103-7, e
a literatura associada.
[15]
Sobre o caráter divino da palavra de Deus, v. Vern S. Poythress, God-Centered Biblical
Interpretation (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1999), p. 32-6.
[16]
Larson; Witham, “Scientists and Religion”, p. 90-1.
[17]
Ibid.
[18]
V. a discussão estendida sobre punição justa em Vern S. Poythress, The Shadow of
Christ in the Law of Moses (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1995), p. 119-249.
[19]
Veja o capítulo seguinte, onde lidamos com algumas questões sobre o relacionamento
entre as diferentes fontes do conhecimento humano.
[20]
The Mind of the Maker (New York: Harcourt, Brace, 1941), esp. p. 33-46. [Em
português: A mente do Criador (São Paulo: É realizações, 2015), p. 47-56]
[21]
V. tb. John Milbank, The Word Made Strange: Theology, Language, Culture (Oxford:
Blackwell, 1997), sobre as raízes trinitárias da comunicação.
[22]
Veja Cornelius Van Til, The Defense of the Faith, 2. ed., rev. (Philadelphia:
Presbyterian & Reformed, 1963), p. 25-6.
[23]
V. ibid., p. 31-50.
[24]
Eu não sei onde está esse relato no meio impresso. Sobre a dependência divina dos, v.
Cornelius Van Til, The Defense of the Faith, 2. ed. (Philadelphia: Presbyterian &
Reformed, 1963); e a exposição por John M. Frame, Apologetics to the Glory of God: An
Introduction (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1994) [Em português: Apologética
para a glória de Deus: uma introdução (São Paulo: Cultura Cristã, 2011)].
[25]
V. tb. a discussão de Poythress, “Science as Allegory”.
[26]
Uma reflexão muito valiosa sobre os fundamentos da apologética se encontra na
tradição da apologética transcendental fundada por Cornelius Van Til. Veja Van Til,
Defense of the Faith; e Frame, Apologetics to the Glory of God.
[27]
Webster’s Ninth New Collegiate Dictionary (Springfield: Merriam-Webster, 1987).
[28]
Veja Louis Berkhof, Systematic Theology, 4. ed. (Grand Rapids: Eerdmans, 1941), p.
37. Na verdade, entende-se normalmente a “revelação especial” de forma mais ampla. Rla
inclui a comunicação verbal de Deus não registrada na Escritura, como as palavras do
ministério de ensino terreno de Jesus que não foram incluídas em nenhum evangelho.
Inclui os atos redentivos de Deus, como os milagres no tempo da saída do Egito e na vida
terrena de Jesus. É consideravelmente difícil oferecer uma definição do que precisamente
distingue a revelação especial da geral. Pode-se tentar dizer que a revelação especial é a
revelação redentiva. Entretanto, o discurso de Deus a Adão antes da queda (Gn 1.28-30;
2.16,17), que precede o início da redenção, é normalmente classificado como revelação
especial. Em sentido menos estrito, todas as obras de Deus subsequentes à queda são
“redentivas”, pois todas servem indiretamente para promover o objetivo da redenção
cósmica última. Considere outra rota. Pode-se tentar dizer que a revelação geral é comum,
enquanto a revelação especial é extraordinária. Mas a diferença entre o comum e o
extraordinário é uma questão de grau; assim, essa definição falha em nos fornecer uma
distinção estrita. Ou se pode tomar o gancho do termo “geral”, e definir a revelação geral
como a que vem a todas as pessoas em todos tempos. Essa tentativa chega perto da solução,
embora a ênfase esteja no fato de a revelação especial vir inicialmente a pessoas
particulares em tempos e lugares específicos, nunca a todo o mundo. Mas ela desconsidera
o caráter irrepetível da história. Todo ato providencial particular de Deus, como ordenar
uma tempestade em particular ou uma bênção particular de saúde a uma pessoa específica,
devem contar como “especial” — mais inclusivo que o desejos dos teólogos. Nossos
propósitos não carecem de uma distinção precisa. Na prática, preocupamo-nos com a
relação entre a Escritura e o conhecimento derivado da natureza.
[29]
Note a avaliação de John Jefferson Davis: “Apesar de a linha interpretativa dos “dois
reinos” poder contar com a vantagem aparente de evitar conflitos entre a ciência e a
religião, ela tem o grande defeito de traçar a distinção forte demais entre duas áreas da
experiência humana. Embora os escritores bíblicos e os cientistas modernos claramente
possuam linguagens, métodos e propósitos muito diferentes, todos eles se referem ao
mundo físico compartilhado e existente fora da subjetividade do falante” (The Frontiers of
Science and Faith: Examining Questions from the Big Bang to the End of the Universe.
Downers Grove: InterVarsity, 2002, p. 13; v. tb. Del Ratzsch, Science and Its Limits: The
Natural Sciences in Christian Perspective [Downers Grove: InterVarsity, 2000], p. 141-59).
[30]
Francis Brown, S. R. Driver; C. A. Briggs, orgs., A Hebrew and English Lexicon of the
Old Testament. Oxford: Oxford University Press, 1953.
[31]
Pode-se objetar que este tipo de descrição é apenas metafórica ou antropomórfica. Não
posso discutir de forma mais extensa neste livro o tipo de abordagem que descarta ou
recategoriza a verdade bíblica ao apelar para as alegadas limitações da linguagem humana.
(Mas v. John M. Frame, “God and Biblical Language”, in: John Warwick Montgomery,
org., God’s Inerrant Word [Minneapolis: Bethany, 1974], p. 159-77; e Vern S. Poythress,
“Adequacy of Language and Accommodation”, in: Earl D. Radmacher; Robert D. Preus,
orgs., Hermeneutics, Inerrancy, and the Bible [Grand Rapids: Zondervan, 1984], p. 351-
76.) É suficiente dizer que o objetor precisa quase possuir um ponto de vista divino a fim
de conhecer a natureza da metáfora. Não contamos a descrição final dos caminhos de Deus
na linguagem. Essas descrições são verdadeiras precisamente ao nos mostrarem as
analogias entre o discurso humano e divino.
[32]
Gn 1.3 e Sl 147.15-18 obviamente nos dão uma amostra; dela se pode inferir um
conjunto bem maior.
[33]
Alguns leitores podem achar que meu foco na fala divina é unilateral. Em certo sentido,
é. Uso a fala divina como perspectiva sobre a totalidade da atividade de Deus. Podemos
fazê-lo com proveito, desde que nos lembremos de que a Bíblia nos oferece também outras
perspectivas complementares. Entendidas da forma correta, os insights alcançados por uma
perspectiva enriquecem, mas não contradizem o que vem à mente a partir da segunda
perspectiva. V. uma discussão maior em Vern S. Poythress, Symphonic Theology: The
Validity of Multiple Perspectives in Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1987) [Em
português: Teologia sinfônica: a validade de múltiplas perspectivas em teologia (São
Paulo: Vida Nova, 2016)]. Precisamos também distinguir a palavra de Deus governando os
céus (como em Gn 1) do que os próprios céus “declaram” em Sl 19.1. A palavra de Deus é
a realidade mais fundamental por trás das mensagens que vêm das coisas que ele criou.
[34]
Em sentido técnico, devemos adicionar à nossa lista a revelação verbal e não verbal aos
anjos.
[35]
Webster’s Ninth New Collegiate Dictionary.
[36]
Para a exposição mais completa do ensino bíblico sobre o discurso de Deus e interação
crítica com a neo-ortodoxia, v. John M. Frame, “God and Biblical Language”; e “Scripture
Speaks for Itself”, in: God’s Inerrant Word, p. 178-200.
[37]
Para a explicação cabal do meu posiçionamento, o leitor pode consultar Vern S.
Poythress, God-Centered Biblical Interpretation (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed,
1999).
[38]
V. a discussão em Charles Hummel, The Galileo Connection: Resolving Conflicts
Between Science and the Bible (Downers Grove: InterVarsity, 1986); e Richard J.
Blackwell, Galileo, Bellarmine, and the Bible (Notre Dame: University of Notre Dame
Press, 1991).
[39]
Veja Vern S. Poythress; Wayne A. Grudem, The Gender-Neutral Bible Controversy
(Nashville: Broadman & Holman, 2000), p. 177-9; v. tb. a discussão maior sobre a
“linguagem fenomenológica” em Bernard Ramm, The Christian View of Science and
Scripture (Grand Rapids: Eerdmans, 1954), p. 67-9.
[40]
A ausência da preservação dos autógrafos dos livros bíblicos continua a gerar objeções.
Sobre o papel único do autógrafo, v. Meredith G. Kline, The Structure of Biblical Authority
(Grand Rapids: Eerdmans, 1972). Não podemos restaurar os autógrafos de maneira
infalível em todos os pontos, mas, na prática, as doutrinas ensinadas na Bíblia estão bem
estabelecidas, pois são ensinadas em mais de uma passagem. Tudo isso ainda opera na
esfera de comunicação linguística.
[41]
Também devemos notar que a palavra de Deus na Bíblia pode funcionar para condenar
e iluminar: “Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se
cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus” (Rm 3.19).
[42]
As institutas ou tratado da religião cristã, trad. Waldyr Carvalho Luz, 1. ed. São Paulo:
Casa Editora Presbiteriana, 1984, 1.5.11, p. 77.
[43]
Ibid., 1.6.1, p. 84.
[44]
Note a insistência na “verdade verdadeira” sobre Deus na abordagem popular de
Francis Schaeffer, The God Who Is There: Speaking Historic Christianity into the
Twentieth Century (Chicago: InterVarsity, 1968) [Em português: O Deus que intervém: o
abandono da verdade e as trágicas consequências para a nossa cultura, 3. ed. (São Paulo:
Cultura Cristã, 2017)].
[45]
Sobre o contexto social da ciência, v. Richard C. Lewontin, Biology as Ideology: The
Doctrine of DNA (New York: HarperCollins, 1993). Sobre a influência das cosmovisões,
v. Nancy Pearcey, Total Truth: Liberating Christianity from Its Cultural Captivity
(Wheaton: Crossway, 2004) [Em português: Verdade absoluta: libertando o cristianismo
do seu cativeiro cultural (Rio de Janeiro: CPAD, 2006)].
[46]
The Encyclopedia Americana. Danbury: Americana, 1978, 30 vols., vol. 14, p. 213.
[47]
Uso os termos “privatizar” e “privatização” com base em Os Guinness, The
Gravedigger File: Papers on the Subversion of the Modern Church (Downers Grove:
InterVarsity, 1983), que por sua vez os aprendeu da sociologia da religião: Peter Berger,
The Sacred Canopy: Elements of a Sociological Theory of Religion (Garden City:
Doubleday, 1967) [Em português: O dossel sagrado: elementos para uma teoria
sociológica da religião (São Paulo: Paulinas, 1985)]. Note a crítica à religião dissimulada
em John Milbank, Theology and Social Theory: Beyond Secular Reason (Oxford:
Blackwell, 1993).
[48]
Veja Pearcey, Total Truth, para a explicação mais completa de como isso se deu.
[49]
As leis do AT que proíbem a blasfêmia e a falsa profecia são um caso especial,
pertencentes a Israel como povo santo e apontavam para a santidade da igreja do NT (que
deve excluir dentre seus membros quem ainda não se arrependeu do pecado). As leis do AT
não se aplicam aos arranjos políticos modernos. A igreja exerce sua disciplina por meios
espirituais, não com punições físicas. Debato extensamente a questão em Vern S.
Poythress, The Shadow of Christ in the Law of Moses (Phillipsburg: Presbyterian &
Reformed, 1995), esp. no cap. 10.
[50]
Nancy R. Pearcey; Charles B. Thaxton, The Soul of Science: Christian Faith and
Natural Philosophy (Wheaton: Crossway, 1994) [Em português: A alma da ciência: fé
cristã e filosofia natural (São Paulo: Cultura Cristã, 2005)]. Ocorreram, é claro, conquistas
intelectuais e tecnológicas na antiga Babilônia, China, Egito e Grécia. Mas o florescimento
e a multiplicação do conhecimento científico pertence ao tempo da Renascença em diante.
[51]
Isto é, há influência comunitária sobre o que conta como conhecimento. A história
dessa influência é relatada pela sociologia do conhecimento: Peter L. Berger; Thomas
Luckmann, The Social Construction of Reality: A Treatise in the Sociology of Knowledge
(New York: Doubleday, 1966) [Em português: A construção social da realidade: tratado
em sociologia do conhecimento (Petrópolis: Vozes, 1985)].
[52]
Cornelius Van Til afirmou repetidas vezes que a cosmovisão não cristã pressupõe
fundamentalmente que a mente humana conhecida agora consiste no padrão normal. A
cosmovisão cristã crê na queda do homem e afirma que a mente humana no tempo presente
é anormal e desfigurada pelo pecado. V., p. ex., Cornelius Van Til, A Survey of Christian
Epistemology (s.l.: Den Dulk Christian Foundation, 1969).
[53]
Veja Vern S. Poythress, “Christ the Only Savior of Interpretation”, Westminster
Theological Journal 50/2 (1988): 305-321.
[54]
Vern S. Poythress, God-Centered Biblical Interpretation (Phillipsburg: Presbyterian &
Reformed, 1999), esp. o cap 2, p. 47, n. 1; John M. Frame, “God and Biblical Language”,
in: John Warwick Montgomery, org., God’s Inerrant Word (Minneapolis: Bethany, 1974),
p. 159-77; e Frame, “Scripture Speaks for Itself”, in: God’s Inerrant Word, p. 178-200.
[55]
The End of the Historical-Critical Method (St. Louis: Concordia, 1977).
[56]
Ibid., p. 54.
[57]
“Evolution, Neutrality, and Antecedent Probability: A Reply to McMullin and Van
Till”, Christian Scholars Review 21 (1991/1992): 90.
[58]
V., p. ex., Westminster Theological Seminary, The Infallible Word: A Symposium
(Philadelphia: Presbyterian & Reformed, 1946); Benjamin Breckinridge Warfield, The
Inspiration and Authority of the Bible (Philadelphia: Presbyterian & Reformed, 1967) [Em
português: A inspiração e autoridade da Bíblia (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)].
[59]
As considerações de Herman Bavinck sobre a esperança de transcender as diferenças
religiosas ainda são pertinentes: “Embora não possamos endossar as interpretações de
Lessing, certamente é compreensível que muitos teóricos se unam a ele em buscar abrigo
na posição de indiferentismo e tentem consolar-se com a ideia de que não importa em que
se crê, desde que se tenha uma vida boa. Mas esse consolo logo se evapora. Juntamente
com o fato de que a religião simplesmente não se permite ser colocada de lado, o estudo de
etnologia mostra que a humanidade é tão dividida sobre moralidade e justiça quanto sobre
religião [...] Nenhuma ciência, por mais que seja ‘desprovida de pressupostos’, é ou será
capaz de desfazer essa divisão e produzir, na vida de todas as nações e povos, unidade nas
mais básicas convicções do coração. Se tiver de haver unidade, ela só será alcançada na
forma de missão: somente a unidade religiosa é capaz de produzir a unidade espiritual e
intelectual da humanidade. Enquanto prevalecer a divergência na religião, a ciência
também será incapaz de alcançar o ideal de unidade” (Reformed Dogmatics. Grand Rapids:
Baker, 2003, 2 vols., vol. 1, p. 298-9) [Em português: Dogmática Reformada, trad. Vagner
Barbosa (São Paulo: Cultura Cristã, 2012), vol. 1, p. 298-9].
[60]
Tal ponto é feito com certa extensão em Poythress, “Christ the Only Savior of
Interpretation”.
[61]
Para mais sobre cosmovisões, v. Pearcey, Total Truth.
[62]
Ou os muito determinados podem se propor a educarem suas crianças em casa
(homeschooling). Eu agradeço pelo homeschooling ser permitido nos Estados Unidos. Mas
é uma grande injustiça o fato de que seus praticantes ainda vejam seus impostos serem
usados para as escolas públicas, enquanto eles pagam de seus próprios bolsos com tempo e
dinheiro para suas atividades de homeschooling.
[63]
Na verdade, a narrativa de criação de abertura vai de Gn 1.1—2.3, Gn 2.4-25 então foca
na criação do homem e o jardim do Éden.
[64]
Derek Kidner, Genesis: An Introduction and Commentary, Tyndale Old Testament
Commentary (Downers Grove: InterVarsity, 1967) [Em português: Gênesis: Introdução e
comentário (São Paulo: Vida Nova, 3006)]; Gordon Wenham, Genesis 1—15, Word
Biblical Commentary (Waco, Tex.: Word, 1987), vol. 1; Victor P. Hamilton, The Book of
Genesis: Chapters 1—17, New International Commentary on the Old Testament (Grand
Rapids: Eerdmans, 1990); C. John Collins, Genesis 1—4: A Linguistic, Literary, and
Theological Commentary (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 2006). Pode-se
consultar também com bom proveito C. John Collins, Science and Faith: Friends or Foes?
(Wheaton: Crossway, 2003), que oferece menos detalhes exegéticos técnicos, e devota
mais espaço a questões hermenêuticas, teológicas e científicas. O livro de Collins fornece
um complemento útil a este livro em muitos pontos.
[65]
O material egípcio é complexo; v. “Report of the Committee to Study the Views of
Creation”, Minutes of the Seventy-First General Assembly of the Orthodox Presbyterian
Church (Willow Grove: Orthodox Presbyterian Church, 2004), p. 276-7, 292-4. Disponível
em: https://opcgaminutes.org/wp-content/uploads/2018/04/2004-GA-71-red.pdf, acesso
em: 22/7/2018.
[66]
Veja W. G. Lambert; A. R. Millard, Atra-hasis: The Babylonian Story of the Flood
(Oxford: Oxford University Press, 1969). No meu resumo, solucionei alguns pontos
obscuros.
[67]
James B. Pritchard, org., Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament
(Princeton: Princeton University Press, 1950), p. 60-72.
[68]
Genesis, p. 9. Mas Collins, Genesis 1—4, cap. 9, e Umberto Cassuto, A Commentary on
the Book of Genesis (Jerusalem: Magnes, s.d.), vol. 1, p. 7, corretamente apontam que o
efeito polêmico é indireto. Gênesis 1 é antes de tudo um relato positivo dos atos criativos
de Deus.
[69]
Ibid., liii.
[70]
“Isso não quer dizer que o escritor de Gênesis nunca tenha ouvido ou lido a Epopeia de
Gilgamesh: essas tradições integravam a intelectualidade daquele tempo no Oriente Médio
da mesma forma que a maioria das pessoas hoje tem uma noção da Origem das espécies de
Darwin, mesmo sem nunca a ter lido” (ibid., xlviii).
[71]
V. ibid., p. 11-5; Collins, Genesis 1—4, cap. 4.
[72]
V. n. marginal na versão RSV.
[73]
Collins, Science and Faith, p. 67; Edward J. Young, “The Relation of the First Verse of
Genesis One to Verses Two and Three”, Westminster Theological Journal 21 (1959): 138-
9.
[74]
“É característico de muitas linguagens descrever a totalidade de algo em termos de seus
extremos, por exemplo, ‘bom e ruim’ [...] Aqui temos um exemplo desse uso para definir o
universo” (Wenham, Genesis, p. 15).
[75]
V. a discussão adicional em Collins, Science and Faith, p. 66-8.
[76]
Para discussão adicional da criação a partir do nada (ex nihilo), v. John M. Frame, The
Doctrine of God (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 2002), p. 298-302; e Paul Copan;
William Lane Craig, Creation Out of Nothing: A Biblical, Philosophical, and Scientific
Exploration (Grand Rapids: Baker, 2004).
[77]
Para uma visão geral das dificuldades com uma macroevolução não guiada, v. Philip E.
Johnson, Darwin on Trial (Downers Grove: InterVarsity, 1991) [Em português: Darwin no
banco dos réus (São Paulo: Cultura Cristã, 2008)]; Michael Denton, Evolution: A Theory
in Crisis (Bethesda: Adler & Adler, 1985); Michael Behe, Darwin’s Black Box: The
Biochemical Challenge to Evolution (New York: Free Press, 1996) [Em português: A caixa
preta de Darwin: o desafio da bioquímica à teoria da evolução (Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1997)]; atualizado com considerações de teoria da informação em William A.
Dembski, No Free Lunch: Why Specified Complexity Cannot Be Purchased Without
Intelligence (Lanham/Boulder/New York/Oxford: Rowman & Littlefield, 2002). Os
defensores da evolução são muitos. Podemos citar como exemplos Robert T. Pennock,
Tower of Babel: The Evidence Against the New Creationism (Cambridge: MIT, 1999);
Kenneth R. Miller, Finding Darwin’s God (New York: Cliff Street, 1999); Stephen J.
Gould, The Structure of Evolutionary Theory (Cambridge: Harvard University Press,
2002).
[78]
Charles Thaxton; Walter Bradley; Roger Olsen, The Mystery of Life’s Origin:
Reassessing Current Theories (New York: Philosophical Library, 1984); Denton,
Evolution, p. 249-73; Dembski, No Free Lunch, p. 179-80; Fazale Rana; Hugh Ross,
Origins of Life: Biblical and Evolutionary Models Face Off (Colorado Springs: NavPress,
2004).
[79]
Grand Rapids: Eerdmans, 1954. A discussão sobre a idade da terra é encontrada às p.
173-229.
[80]
Por conveniência, segui a ordem da lista de Ramm (ibid., p. 173-229), mas coloquei
geologia do Dilúvio acima na lista a fim de dispô-la próxima à visão do dia de 24 horas,
com que normalmente é associada. Deixei de usar a teoria de Ramm de catástrofes
sucessivas porque não ser mais usada amplamente.
[81]
Ramm o rotula “visão literal ingênua” (ibid., p. 173). Mas “ingênua” é um rótulo
desapropriado, já que nem todos de seus aderentes são ingênuos.
[82]
Ramm rotula esta visão “pró-crônica ou de tempo ideal” (ibid., p. 192).
[83]
Daí a teoria também ser designada “teoria omphalos”, da palavra grega para umbigo.
[84]
Ramm rotula esta visão “Dia-era ou dia-divino, ou concordismo” (ibid., p. 211). Ela
também já foi designada “teoria do dia-geológico” (ibid.).
[85]
Esta abordagem não é incluída na lista de Ramm. Para saber mais sobre ela, v. Robert
C. Newman, Genesis One and the Origin of the Earth (Downers Grove: InterVarsity,
1977).
[86]
O último itrm na lista de Ramm é intitulado “Dia pictórico e concordismo moderado”.
Pelo fato de esse título abranger alguns conceitos distintos, escolhemos subdividi-lo.
[87]
Veja Arie Noordtzij, Gods Woord en der Eeuwen Getuigenis (Kampen, Netherlands:
1924); Nicolaas H. Ridderbos, Is There a Conflict Between Genesis 1 and Natural Science?
(Grand Rapids: Eerdmans, 1957); Meredith G. Kline, “Space and Time in the Genesis
Cosmogony”, Perspectives on Science and Christian Faith 48/1 (1996): 2-15. V. tb.
Meredith G. Kline, “Because It Had Not Rained”, Westminster Theological Journal 20
(1958): 146-57; Mark D. Futato, “Because It Had Rained: A Study of Gen 2:5-7 with
Implications for Gen 2:4-25 and Gen 1:1—2:3”, Westminster Theological Journal 60/1
(1998): 1-21. A exposição pactual de W. Robert Godfrey sobre Gn 1 mostra uma afinidade
com a hipótese de estrutura, mas questiona alguns de afirmações exegéticas técnicas em
Kline (Godfrey, God’s Pattern for Creation: A Covenantal Reading of Genesis 1
[Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 2003]). O “Report of the Committee to Study the
Views of Creation”, Minutes of the Seventy-First General Assembly ... of the Orthodox
Presbyterian Church (Willow Grove: Orthodox Presbyterian Church, 2004), p. 251,
classifica Godfrey sob a teoria de dia análogo, discutida abaixo.
[88]
A teoria é mais bem representada por C. John Collins, “Reading Genesis 1:1—2:3 as an
Act of Communication: Discourse Analysis and Literal Interpretation”, in: Joseph Pipa, Jr.;
David Hall, orgs., Did God Create in Six Days? (Taylors: Southern Presbyterian, 1999), p.
131-51; v. tb. C. John Collins, Science and Faith : Friends or Foes? (Wheaton: Crossway,
2003), esp. o cap. 5. Algo do tipo parece ter sido antecipado por Herman Bavinck: “Os dias
da criação são os dias em que Deus trabalhou. Pelo trabalho, resumido e renovado seis
vezes, ele preparou toda a terra e transformou o caos no cosmo. No mandamento sabático,
este padrão é ordenado a nós também. Como foram com Deus, também para o homem os
seis dias de trabalho devem ser seguidos por um dia de descanso” (In the Beginning :
Foundations of Creation Theology. Grand Rapids: Baker, 1999, p. 126). Edward J. Young
também manteve uma visão semelhante: “Uma questão que os cristãos gostam de falar é
sobre a duração desses dias. Não é muito proveitoso o fazer, pela simples razão de que
Deus não revelou o suficiente a nós para dizer muito sobre isso [...] Os primeiros três dias
não são dias solares como conhecemos hoje [...] E a obra do terceiro dia parece sugerir que
houve algum processo e que o que aconteceu ocorreu num período mais longo do que vinte
e quatro horas” (In the Beginning: Genesis Chapters 1 to 3 and the Authority of Scripture.
Edinburgh/Carlisle: Banner of Truth, 1976, p. 43). O “Report of the Committee to Study
the Views of Creation” classifica Herman Bavinck e E. J. Young como apoiadores da
“conceito de dia de duração não especificada”, não muito diferente do conceito de dia
análogo.
[89]
Sobre a história da interpretação dos dias da criação, v. Robert Letham, “‘In the Space
of Six Days’: The Days of Creation from Origen to the Westminster Assembly”,
Westminster Theological Journal 61/2 (1999): p. 147-74. Um debate adicional a partir do
conceito de dias de 24 horas pode ser encontrado em J. Ligon Duncan III; David W. Hall,
“The 24-Hour View”, in: David G. Hagopian, org., The Genesis Debate: Three Views on
the Days of Creation (Mission Viejo: Crux, 2001), p. 47-52 (com respostas nas p. 68-70,
89-90, 99-106); e do conceito do dia-era em Hugh Ross, Creation and Time: A Biblical and
Scientific Perspective on the Creation-Date Controversy (Colorado Springs: NavPress,
1994), p. 16-24.
[90]
Não podemos entrar em uma discussão detalhada da hipótese documentária. Eu
recomendo aos leitores os comentários em Gênesis por Wenham, Hamilton e Kidner.
[91]
Sobre linguagem “fenomênica”, v. Bernard Ramm, The Christian View of Science and
Scripture (Grand Rapids: Eerdmans, 1954), p. 67-9; John Calvin, Commentaries on the
First Book of Moses, Called Genesis, trad. John King (Grand Rapids: Eerdmans, 1948,
reimp.), 2 vols., vol. 1, p. 79-80. Tomás de Aquino diz: “Moisés, acomodando-se ao povo
inculto, seguiu as coisas como aparecem aos sentidos” (Herman Bavinck, In the Beginning:
Foundations of Creation Theology [Grand Rapids: Baker, 1999], p. 120; citando Summa
Theologica, 1.70.4).
[92]
Genesis, vol. 1, p. 79-80. V. tb. as considerações de Calvino ao comentar Gn 1.16:
“Moisés estabelece dois grandes luzeiros; mas os astrônomos provam, por razões
conclusivas, que a estrela de Saturno, que, pela grande distância, parece a menor de todas, é
maior que a Lua. Eis a diferença: Moisés escreveu em estilo popular coisas que, sem
instrução, todas as pessoas comuns, dotadas de senso comum, são capazes de entender; mas
os astrônomos investigam com grande labuta o que quer que a sagacidade da mente
humana possa compreender. Mesmos assim este estudo não deve ser reproduzido, nem esta
ciência condenada, porque alguns frenéticos costumam rejeitar o que quer que seja
desconhecido a eles. Pois a astronomia não é apenas prazeirosa, mas também muito útil de
se conhecer: não pode se negar que esta arte desvela a sabedoria admirável de Deus.
Portanto, como os homens engenhosos que se esforçaram neste assunto devem ser
honrados, também os que têm tempo de lazer e capacidade não deveriam negligenciar este
tipo de exercício. Nem quis Moisés nos afastar desta busca ao omitir coisas tais peculiares
à arte; mas, por ter sido ordenado mestre de incultos e rudes e cultos, ele não poderia
cumprir seu ofício de outra forma senão ao descer ao método mais grosseiro de instrução.
Tivesse ele falado de coisas geralmente desconhecidas, os incultos poderiam ter usado
como desculpa que tais assuntos estavam além de sua capacidade. Em último lugar, já que
o Espírito de Deus aqui abre uma escola comum para todos, não surpreende que ele escolha
assuntos mais inteligíveis para todos. Se o astrônomo investiga a respeito das reais
dimensões das estrelas, ele verá que ali é menor do que Saturno; mas isso é algo abstruso,
pois se aparenta algo diferente à vista. Moisés, portanto, prefere adaptar seu discurso ao
uso comum” (p. 86-7).
[93]
The Genesis Flood: The Biblical Record and Its Scientific Implications. Philadelphia:
Presbyterian & Reformed, 1961, p. 229, 240.
[94]
Genesis, vol. 1, p. 80-1; semelhantemente Agostinho, The Literal Meaning of Genesis
(De Genesi ad litteram), 2.7; S. Basílio, Hexaemeron, 3.8.
[95]
Tomás de Aquino parece favorecer uma visão semelhante a isso quando ele disse que o
“firmamento” ou “céu” podem ser “aquela parte da atmosfera onde as nuvens passam por
condensação”, e “as águas que estão acima do firmamento são as mesmas que, quando
evaporaram e levadas acima na atmosfera, são a fonte de chuva” (Summa theologiae, New
York: Blackfriars & McGraw-Hill; London: Eyre & Spottiswoode, 1964], 1a. q. 68, 1, p. 75;
e 1a. q. 68, 2, p. 79) [Em português: Tomás de Aquino, Suma teológica (São Paulo:
Loyola, 2002).]
[96]
Afirma-se às vezes que a linguagem bíblica se ergue no pano de fundo da “cosmologia”
antiga que postulava águas subjacentes, depois uma terra sólida, depois um domo sólido de
“firmamento” para o céu, depois um mar acima desse firmamento (Paul H. Seely, “The
Firmament and the Water Above. Part I: The Meaning of raqia‘ in Gen 1:6-8”,
Westminster Theological Journal 53 [1991]: 227-240; “The Firmament and the Water
Above. Part II: The Meaning of ‘The Water Above the Firmament’ in Gen 1:6-8”,
Westminster Theological Journal 54/1 [1992]: 31-46; “The Geographical Meaning of
‘Earth’ and ‘Seas’ in Genesis 1:10”, Westminster Theological Journal 59 [1997]: 231-55;
“Noah’s Flood: Its Date, Extent, and Divine Accommodation”, Westminster Theological
Journal 66 [2004]: 291-311). Em primeiro lugar, o Oriente Médio Antigo não dispunha de
uma “cosmologia antiga” unificada, e sim de diversos registros — sumérios, babilônicos,
egípcios e hititas — contraditórios em alguns pontos, mas mesmo assim com algumas
semelhanças.
Gênesis 1, como observamos, demonstra algumas semelhanças com esses registros, mas
repudia os relatos pagãos ao apresentar uma opção monoteísta. Agora , por amor ao
argumento, suponhamos que se possa destilar desses relatos pagãos misturados um cerne
de suposições compartilhadas também pelos antigos hebreus. A Bíblia, de todo modo,
descreve as coisas que os hebreus (e também outros leitores) poderiam ver por si próprios.
Supor que o texto ensina visões cosmológicas técnicas é confundir o texto com a totalidade
do que os seus leitores podem ter crido.
Além disso, a interpretação cosmológica moderna dos relatos antigos pode às vezes impor
a ele uma preocupação com o fisicalismo não pertencente a esse tipo de literatura no
ambiente cultural antigo. Por exemplo, a ideia de que o firmamento é literalmente sólido é
infirmada pela afirmação em Gênesis 1.17: Deus dispôs os luzeiros “na expansão
[firmamento] dos céus” (ARC). Se os luzeiros no céu fossem literalmente embutidos em
algo sólido, não poderiam se mover da forma como obviamente fazem. Talvez algumas
pessoas antigas pudessem enxergar o óbvio, bem como serem céticas sobre alegadas
implicações fisicalistas de relatos cosmogônicos pagãos.
[97]
The Encyclopaedia Britannica, 11. ed. (Cambridge/New York: The University Press,
1910) vol. 2, p. 809c.
[98]
Comentário ao livro de Salmos, São Paulo: Fiel, 2009, vol. 4, p. 586.
[99]
John C. Whitcomb, Jr.; Henry M. Morris, The Genesis Flood: The Biblical Record and
Its Scientific Implications (Philadelphia: Presbyterian & Reformed, 1961) oferece um tipo
de documento fundante. A pesquisa em andamento se centraliza no Institute for Creation
Research, que publica o periódico The Creation Research Society Quarterly.
[100]
Esta terminologia não deve ser confundida com o termo mais geral “criacionista”, que
pode ser usado para descrever alguém que crê ter Deus exercido o papel decisivo na origem
das coisas vivas, em oposição ao conceito de que as coisas vivas se originaram por
processos sem propósito e por mero acaso.
[101]
Grand Rapids: Baker, 1977. V. tb. Brent Dalrymple, The Age of the Earth (Stanford:
Stanford University Press, 1991); e a literatura citada em C. John Collins, Science and
Faith: Friends or Foes? (Wheaton: Crossway, 2003), p. 249-50, 397-8.
[102]
A meia-vida de um isótopo radioativo equivale à quantidade de tempo que leva para
exatamente para metade do isótopo decair. Depois de duas meias-vidas (11.400 anos para o
carbono-14), somente 1/4 do original restará e depois de três meias-vidas, somente restará
1/8. Depois de muitas meias-vidas, a quantidade remanescente se torna pequena demais
para prover a medição acurada.
[103]
Young, Creation and the Flood, p. 185-93, 215-7. V. tb. a discussão mais recente em
Collins, Science and Faith, p. 247-53.
[104]
A galáxia de Andrômeda é oficialmente rotulada M31 (número de Messier) e
NGC 224. Uma pesquisa de internet trará com facilidade muitas informações e lindas
fotografias.
[105]
Genesis Flood, p. 370. Mas nos anos que se passaram desde que Whicomb e Morris
escreveram Genesis Flood (1970), alguns aspectos da teoria cosmológica receberam apoio
de dados empíricos detalhados. A linguagem de Genesis Flood pode, portanto, precisar de
reavaliação.
[106]
A maneira mais simples de estimar a distância até a lua é por “triangulação”. Duas
pessoas simultaneamente medem o ângulo exato entre uma estrela e um fator fixo na Lua,
usando dois pontos de vista bastante separados, A e B, no globo. A diferença entre as duas
medidas, combinada com a estimativa da distância entre os pontos A e B na Terra, permite
o cálculo da extensão dos três lados do triângulo composto por A, B e o fator fixo na Lua.
Sa mesma forma, as medidas do ângulo de uma estrela próxima em dois pontos opostos na
órbita da Terra ao redor do Sol permitem uma triangulação para calcular a distância da
estrela.
[107]
Genesis Flood, p. 370, citando “Binary Stars and the Velocity of Light”, Journal of
the Optical Society of America 43 (August 1953): 639.
[108]
Barry Setterfield, The Velocity of Light and the Age of the Universe (Adelaide:
Creation Science Association, 1983); Walter T. Brown, In the Beginning: Compelling
Evidence for Creation and the Flood, 6. ed. (Phoenix: Center for Scientific Creation, 1995).
V. discussão em Douglas F. Kelly, Creation and Change: Genesis 1.1—2.4 in the Light of
Changing Scientific Paradigms (Fearn, Ross-shire: Christian Focus, 1997), p. 144-55.
[109]
Citado em Kelly, Creation and Change, p. 145.
[110]
Para uma avaliação crítica, v. ibid., p. 153-5.
[111]
Ibid., p. 146.
[112]
Starlight and Time: Solving the Puzzle of Distant Starlight in a Young Universe
(Colorado Springs: Master, 1994).
[113]
Pelo fato de as velocidades relativas de nosso sistema solar e da galáxia de Andrômeda
serem pequenas se comparadas à velocidade da luz e por não existirem campos
gravitacionais gigantes na linha de visão de Andrômeda, a relatividade especial e a geral
não afetam significativamente as estimativas de tempo para a luz vir de Andrômeda. Para
um debate maior sobre Humphreys, veja: http://www.reasons.org/resources/
apologetics/unravelling.shtml?main, e um mais técnico
http://www.trueorigins.org/rh_fackmcin1.pdf.
[114]
Creation in Six Days: A Defense of the Traditional Reading of Genesis One (Moscow:
Canon, 1999), p. 193, escreve: “Não há uma boa razão para pensar que a velocidade da luz
é a mesma em todos os pontos do universo. A luz pode viajar bem mais rapidamente entre
estrelas e ainda mais rápido entre as galáxias; isto é, a luz pode viajar com velocidade
muito maior longe de ‘poços de gravidade’ como o Sol e a Terra”. Ele não providencia
notas de rodapé ou indica fontes.
O leitor com pouco conhecimento de física e astronomia pode se perguntar: “Como podem
os cientistas ter boas razões para firmar seus pontos de vista se eles mesmos não viajaram
no espaço interestelar para verificar?”. Os cientistas o fazem por inferência. Os astrônomos
possuem coleções enormes de razões inferenciais que o leitor pode ignorar. Para citar uma:
em 1977, a NASA lançou duas sondas espaciais, Voyager I e Voyager II, em órbitas que as
levariam além de Netuno para o espaço profundo. Já que em 2004 a Voyager I estava mais
de duas vezes mais distante da Terra que Plutão. Tanto a Voyager I quanto a Voyager II
ainda transmitiam dados científicos até a Terra e, nas partes anteriores da jornada, elas
transmitiram fotos de Júpiter, Saturno, Urano e Netuno (v.
http://voyager.jpl.nasa.gov/mission/mission.html e
http://voyager.jpl.nasa.gov/neptune.html). O campo gravitacional do Sol é bem mais fraco
em Netuno que na órbita da Terra e o campo solar na órbita da Rerra é, por sua vez, bem
mais fraco que o campo na superfície da Terra. Qualquer mudança na velocidade da luz
seria detectada imediatamente no tempo necessário para os sinais (carregados por radiação
eletromagnética viajando na velocidade da luz) irem da Terra para um satélie e depois de
volta à Terra.
Na verdade, a teoria da relatividade geral, que depende da velocidade da luz, provou-se
mais exata numericamente que qualquer teoria física conhecida. O sistema pulsar binário
PSR 1913+16 localizado na constelação de Áquila, está uns de 20 mil anos-luz de distância
da Terra. Previsões da relatividade geral sobre este sistema correspondem a dados
experimentais em uma parte em 100 trilhões (1 em 100.000.000.000.000) e os dados
procedem de campos gravitacionais muito altos (o “fundo” de poços gravitacionais
profundos; v. Roger Penrose, Shadows of the Mind: A Search for the Missing Science of
Consciousness [Oxford: Oxford University Press, 1994], p. 227-30; v. tb.
http://astrosun2.astro.cornell.edu/academics/courses//astro201/ psr1913.htm). Sim, é
sempre possível, em tese, que a teoria esteja radicalmente errada e haja alguma explicação
diferente para os dados. Mas não há outra explicação no horizonte para lidar com os dados
nesse nível de precisão.
São essas algumas das muitas razões pelas quais os físicos pensam que a velocidade da luz
é constante.
[115]
“Young Earth Creationism”, in: J. P Moreland e John Mark Reynolds, eds., Criação e
evolução: 3 pontos de vista (São Paulo: Vida, 2006)]; citado por Collins in Science and
Faith, p. 239 (v. tb. p. 395). Collins destaca que “nem todos os criacionistas da Terra jovem
concordam com essa avaliação”, mas também aponta outros que mostram uma cautela
semelhante (p. 239).
[116]
Collins aponta a webpage
http://www.answersingenesis.org/Home/Area/faq/dont_use.asp, “Arguments We Think
Creationists Should NOT Use”, que aconselha as pessoas não usarem nenhum dos
argumento dessa lista específica (Science and Faith, p. 395).
[117]
Genesis Flood, p. 232-3.
[118]
Os leitores desejosos de explorar os detalhes das teorias menos plausíveis podem
consultar Bernard Ramm, The Christian View of Science and Scripture (Grand Rapids:
Eerdmans, 1954), p. 173-232.
[119]
Para o debate mais amplo da teoria de lacuna, v. John S. Feinberg, No One Like Him
(Wheaton: Crossway, 2001), p. 584-7. Ele também lida com outra teoria relacionada, mas
diferente: “Pre-Genesis 1 Creation Theory” (ibid., p. 582-4).
[120]
Henri Blocher faz a mesma observação quando rejeita a teoria do dia-era (que designa
“teoria concordista”): “O uso metafórico de uma palavra como ‘dia’ é uma função de estilo
que não pode ser confundida com a presença do sentido amplo [como ‘longo período’]
dentre os sentidos usuais da palavra” (In the Beginning: The Opening Chapters of Genesis.
Downers Grove: InterVarsity, 1984, p. 44).
[121]
É claro que ao considerarmos as implicações de uma passagem particular ou uma
doutrina particular na Bíblia, sempre existe a questão teológica adicional de a Bíblia ser
completamente verdadeira e se pode confiar nela toda. Sim, ela é confiável. Essa é uma
razão por que vale a pena entender com cuidado o que ela diz. Além de nos dar uma Bíblia
confiável, Deus fez provisão mesmo para quem entende mal alguns detalhes. Em
particular, se alguém entende erroneamente a duração ou o caráter dos dias em Gênesis,
isso por si só não conduz a um desastre em outras grandes áreas teológicas.
Algumas pessoas são atraídas pela ideia de Deus criar o mundo em um período
relativamente curto porque parece magnificar o poder de Deus com mais dramaticidade e
porque seria potencialmente útil na apologética para confrontar incrédulos com uma
evidência clara do poder divino. Simpatizo com essas atrações. Contudo, primeiro, cabe a
Deus, e não a nós, decidir como ele vai criar e quanto tempo vai levar. Ele pode ter razões
além do que podemos entender. Segundo, se um período menor é preferível a um maior,
um único período de 24 horas, ou mesmo menos, não magnificaria o poder de Deus ainda
mais do um período de seis dias? O argumento a favor da superioridade do tempo curto
para a criação parece provar demais. Terceiro, com respeito à apologética, os incrédulos já
possuem bastante evidência a partir da providência comum de Deus (At 14.17). Eles não
têm desculpas para a rebelião (Rm 1.19-21). Deus pode, se desejar, oferecer ainda mais
evidência de um tipo mais dramático (Lc 16.30,31). Mas isso cabe a ele.
Meu ponto básico se mantém: a teologia da criação, e a teologia do controle e bondade de
Deus demonstradas na criação, permanecem fundamentalmente as mesmas,
independentemente de quão curto ou longo seja o tempo para os variados atos de criação.
[122]
Os criacionistas de Terra jovem como John C. Whitcomb, Jr. e Henry M. Morris
afirmam o ponto sobre o solo em The Genesis Flood: The Biblical Record and Its Scientific
Implications (Philadelphia: Presbyterian & Reformed, 1961), p. 233.
[123]
Como foi indicado antes, um dos rótulos da teoria da criação madura, a saber, a teoria
omphalos (da palavra grega para umbigo), especificamente afirma que Adão teria um
umbigo.
[124]
Ouve-se a objeção de que se não podemos confiar em inferências sobre a idade, como
podemos saber que o universo não surgiu há um minuto, junto com nossas memórias? Na
verdade, esse é um problema para os incrédulos, não para os cristãos. O incrédulo não pode
saber mesmo, sem depender em secreto da fidelidade divina. Em contraste, os cristãos
sabem, a partir da Bíblia, que Deus deseja que a revelação geral e a revelação especial ajam
em harmonia. Ouvimos a palavra divinas nas Escrituras e sabemos a partir delas que o
mundo teve um longo passado e que Deus governa o mundo com fidelidade. Essa
segurança garante a realidade do passado (até o tempo da criação) e a integridade de nossas
memórias.
[125]
C. John Collins aponta essa contribuição de Salmos 104.21 em Science and Faith:
Friends or Foes? (Wheaton: Crossway, 2003), p. 154.
[126]
V. a discussão adicional sobre a morte animal em Collins, Science and Faith, p. 152-
160. Precisamos também lembrar que, embora a criação seja “muito boa”, ela está a
caminho da consumação que será ainda melhor.
[127]
Creation and the Flood: An Alternative to Flood Geology and Theistic Evolution
(Grand Rapids: Baker, 1977), p. 53-5. O título da primeira das duas seções neste ponto lê:
“A impossibilidade e ilegitimidade da investigação científica na doutrina da criação
madura”.
[128]
Ibid., 53.
[129]
V. a discussão abaixo sobre a teoria da estrutura, que tenta usar Gn 2.5,6 para
estabelecer a medida de uniformidade na lei nos dias da criação.
[130]
Creation and the Flood, p. 54.
[131]
Ibid.
[132]
Será que o conceito da Terra como globo ocorre em Jó 26.7: “Ele estende o norte
sobre o vazio e faz pairar a terra sobre o nada”? Ou talvez ocorre em Is 40.22: “Ele é o que
está assentado sobre a redondeza da terra”? Lembre-se de que a Bíblia foi formulada para
se dirigir a pessoas comuns no Oriente Médio Antigo e, no final, às pessoas de todas as
outras culturas, não só às culturas tecnológicas modernas. Para fazê-lo, usa linguagem
descritiva comum. “A terra” é o que a pessoa vê embaixo, estendendo-se até o horizonte.
Quando Jó 26.7 diz que Deus “faz pairar a terra sobre o nada” quer dizer que a terra não
precisa de apoio em cima. Jó 26.7 não especifica se a terra na sua maior extensão possível
tem a forma de uma esfera ou de um bloco ou de um plano. Só se nós hoje já tivermos na
mente a imagem de um globo esférico, leremos isso como se estivesse no texto. De modo
semelhante, em Is 40.22 a “redondeza” da terra é o horizonte, que se estende para o lado
com o formato redondo. As pessoas hoje, quase automaticamente, fazem equivaler a
palavra redondeza à forma circular do globo. Mas isso é porque já têm em mente a imagem
do globo. Esses dois casos mostram quão fácil é para alguém hoje importar uma conceito
moderno do planeta Terra como um globo ou ler as passagens como se estivessem em um
texto que não fala de fato dessa forma, mas a pessoas comuns viventes em várias culturas.
[133]
Eles já trabalham nessa questão há séculos. Davis Young provê uma útil história das
tentativas feitas para harmonizar o relato do dilúvio com a evidência geológica (The
Biblical Flood: A Case Study of the Church’s Response to Extrabiblical Evidence [Grand
Rapids: Eerdmans, 1995]). Paul H. Seely menciona a evidência mais recente que produz
ainda mais problemas para a geologia diluviana (“Noah’s Flood: Its Date, Extent, and
Divine Accommodation”, Westminster Theological Journal 66 [2004]: 291-311, esp. p.
298-303).
[134]
Esta abordagem é exposta por C. John Collins, “Reading Genesis 1:1—2:3 as an Act
of Communication: Discourse Analysis and Literal Interpretation”, in: Joseph Pipa, Jr.;
David Hall, orgs., Did God Create in Six Days? (Taylors: Southern Presbyterian, 1999), p.
131-51; Science and Faith: Friends or Foes? (Wheaton: Crossway, 2003), p. 77-96; e
Genesis 1—4: A Linguistic, Literary, and Theological Commentary (Phillipsburg:
Presbyterian & Reformed, 2006). Minha explicação não concorda com a de Collins em
todos os pontos, mas ainda pertence à mesma categoria geral.
[135]
A concepção e o nascimento de Cristo envolvem outra exceção; mas mesmo aí vemos
o envolvimento de Maria como mãe humana.
[136]
Precisamos temporariamente deixar de lado as disputas sobre microevolução e
macroevolução e analisar o ponto principal de Gn 1.
[137]
Algumas pessoas argumentam que Deus teve de recomeçar o trabalho para responder à
queda humana, que (talvez) tenha ocorrido no primeiro dia da semana. Todavia, 1) não
sabemos em que dia da semana a queda ocorreu; 2) depois da queda, Deus começa a obra
da redenção — isso não equivale a recomeçar a criação; 3) a descrição completa de Gn 2.1-
3 apresenta o padrão de seis-para-um, derivado da criação; portanto, independe da queda
posterior no pecado. Da mesma forma, a queda não deve ser importada na nossa definição
do sétimo dia.
[138]
Esta posição é representada no “Report of the Committee to Study the Views of
Creation”, Minutes of the Seventy-First General Assembly ... of the Orthodox Presbyterian
Church (Willow Grove: Orthodox Presbyterian Church, 2004), p. 218-9.
[139]
Note a afirmação de Agostinho do sétimo dia eterno: “Ora o sétimo dia não tem
crepúsculo. Não possui ocaso porque Vós o santificastes para permanecer eternamente.
Aquele descanso com que repousastes no sétimo dia, após tantas obras excelentes e
sumamente boas — as quais realizastes sem fadiga — significa-nos, pela palavra da Vossa
Escritura que também nós depois dos nossos trabalhos que são bons porque no-los
concedestes, descansaremos em Vós, no sábado da Vida Eterna” (Confissões, 13.36.51).
John Murray comenta: “Há uma presunção mais forte em favor da interpretação deste
sétimo dia não como um que terminou em certo ponto na história, mas que todo o período
subsequente ao fim do sexto dia é o sábado de descanso aludido em Gênesis 2.2” (Murray,
Principles of Conduct : Aspects of Biblical Ethics. Grand Rapids: Eerdmans, 1957, p. 30).
V. tb. Henri Blocher, In the Beginning : The Opening Chapters of Genesis (Downers
Grove: InterVarsity, 1984), p. 44, 56-7; Franz Delitzsch, A New Commentary on Genesis
(Edinburgh: T. & T. Clark, 1888), p. 110; e Johannes Oecolampadius: “se você agora
prestar atenção à natureza divina [i.e.,[i.e., o descanso de Deus ao invés do humano] o
sétimo dia continuará para sempre” (D. Io. Oecolampadii in Genesim Enarratio . Basil,
1536, p. 27b, comentando em Gn 2.2). O latim de Oecolampadius é o seguinte: “Nam
operatur, & dum operatur quiescit, quandoquidem sola sua voluntate & verbo rem omnem
perficit. Si ipsam divinam naturam attenderis, dies ille septimus nunc semper durabit. Nos
juxta nostrum modum intelligendi septem dies facimus, apud ipsum tamen uno momento
quodammodo comprehenduntur. Non possumus divina illa nostris corporeis comparare.
Apud Ioannem habemus dictum: Pater meus usque operatur, & ego operor. Hic: Quievit.
Illa facile possunt conciliari. Quievit deus ne nova opera conderet. Operatur, quia dedit
illam virtutem rebus parturiendi fructus suos, ut initio decrevit, quae omnia suo verbo
contingunt. Ita in ipso sumus & movemur”.
[140]
Alguns críticos da teoria do dia analógico se preocupam que mencionar uma
“analogia” dissolva o caráter histórico da obra de Deus. Não, não dissolve. O padrão de
Lv 25 — anos sabáticos e jubileu — ilustram o tipo de analogia que temos em vista.
Períodos mais longos (períodos de anos e semanas de anos) são análogos aos menores,
períodos de sete dias. Os períodos são reais e as atividades de trabalho, descanso e
libertação que acontecem neles são também reais — mesmo que os detalhes do tipo de
descanso e trabalho difiram, dependendo de olharmos a dias ou anos ou semanas de anos.
Da mesma forma, Gn 1 indica que o homem deve imitar a Deus em muitos aspectos,
incluindo não só o exercício de domínio, mas no padrão de trabalho e descanso. Nos
detalhes, porém, o homem não trabalha da mesma forma que Deus faz, nem realiza as
mesmas tarefas na mesma ordem precisa.
No caso dos anos sabáticos, a Bíblia especifica quanto tempo está envolvido quando o
período em questão é medido pelos movimentos dos corpos celestiais. No caso dos dias da
criação, não temos esta especificação. Mas a nossa falta de conhecimento detalhado sobre a
medição de tempo não destrói o caráter genuíno da analogia.
[141]
V. a discussão mais ampla da teoria de dia analógico em Collins, “Reading Genesis
1:1—2:3”; Collins, Science and Faith, p. 77-96.
[142]
Genesis: An Introduction and Commentary, Tyndale Old Testament Commentary.
Downers Grove: InterVarsity, 1967, p. 47 [Em português: Gênesis: introdução e
comentário (São Paulo: Vida Nova, 1991)].
[143]
Sl 104.23 oferece um exemplo onde a manhã começa um dia de trabalho, que é
seguida pela tarde. Para saber mais discussão, v. H. R. Stroes, “Does the Day Begin in the
Evening or Morning”, Vetus Testamentum 16 (1966): p. 460-75; citado por Kidner,
Genesis, p. 47.
[144]
Para um valioso debate posterior sobre os “dias”, v. Collins, Science and Faith, p.
360-7.
[145]
Edward T. Hall, The Silent Language (Garden City: Doubleday, 1959), esp. p. 23-41;
Robert Levine, A Geography of Time (New York: HarperCollins, 1997); Robert Levine;
Ellen Wolff, “Social Time: The Heartbeat of Culture”, in: E. Angeloni, org., Annual
Editions in Anthropology 88/89 (Guilford: Dushkin, 1988), p. 78-81.
[146]
Robert Levine observa: “Uma das diferenças mais significativas no ritmo da vida é se
as pessoas usam a hora do relógio para agendar o começo e o fim de atividades ou se as
atividades são acontecem segundo sua própria agenda espontânea. Essas duas abordagem
são conhecidas, respectivamente, como viver pelo tempo do relógio e viver pelo tempo do
evento” (Geography of Time, p. 82). Levine e Wolff falam do “tempo do relógio” e do
“tempo social” (“Social Time”, p. 79), V. tb. Robert Lauer, Temporal Man: The Meaning
and Uses of Social Time (New York: Praeger, 1981). Apresentei minha própria
terminologia ao falar sobre a orientação pelo relógio e orientação interativa. Todavia, a
diferença é reconhecida por vários autores que se valem de terminologias variadas.
[147]
V., p. ex., Levine, Geography of Time, p. 81-100: “a vida pelo tempo de relógio está
claramente em dissonância com quase toda a história de que se tem registro” (p. 81-2).
[148]
“Precisamos não simplificar demais a imagem das culturas antigas. Algumas delas,
antigas e contemporâneas, não nos proveram nenhuma aparelhagem especial para medição
de tempo além do movimento do sol, da lua e das estrelas. Mesmo nessas culturas, o
movimento do sol e a oscilação do dia e da noite servem de pano de fundo não humano e
objetivo, tornando as pessoas conscientes de que o tempo transcende seus horizontes
individuais e sociais.
No Oriente Médio Antigo, uma casta profissional de sacerdotes e sábios desenvolveu o
interesse mais focado nam medição de tempo. Tão cedo quanto o Império Antigo no Egito
(2600-2200 a.C.) a noite consistia em 12 subdivisões baseadas na ascensão de algumas
estrelas e o dia, da mesma forma, era subdividido em 12 porções, que podiam ser medidas
grosseiramente por um relógio de sol ou de água” (The Encyclopaedia Britannica.
Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1963, vol. 8, p. 49-50). “Relógios de água no Egito em
cerca de 1400 a.C. consistiam em ‘recipientes no formato de baldes’ com um pequeno
buraco no fundo e com marcações do lado de dentro para cada uma das 12 partes do dia”
(Ibid., vol. 5, p. 903). “Havia marcações diferentes para cada mês, porque o tempo total de
luz do dia variava com a época do ano. Assim, o interesse não consistia principalmente na
medição absoluta e exata de intervalos de tempo, mas na divisão prática do dia e da noite
em subunidades convenientes. Essa forma de repartir o dia e a noite em 12 subunidades se
espalhou do Egito para o mundo greco-romano, levando à terminologia para hora (latim
hora; grego hora). O relógio mecânico de escapamento surgiu depois na Europa medieval.
De cerca 1290 em diante há menção de relógios com badaladas públicas, o mais antigo está
na Inglaterra (de 1386) na catedral de Salisbury” (Ibid., vol. 5, p. 933).
Em suma, no Oriente Médio, e depois no Império Romano e na Europa medieval, vemos
alguma experiência profissional relativa ao conceito de medição objetiva do tempo. As
pessoas comuns estar acostumadas com as ideias básicas (em especial na Europa medieval
tardia, se um relógio de catedral informa as horas para a cidade toda!). Todavia, o tempo
medido pelo relógio não dominava ou controlava as práticas culturais, o que ocorreria no
compasso mais natural dos ritmos humanos de trabalho e descanso.
[149]
Quem afirma a teoria do dia de 24 horas pode responder que, é claro, não podemos
sair de nossa condição e conhecer diretamente quanto tempo os dias duraram. Sabemos
porque Deus nos disse “dias”. Deus, que não está sujeito às nossas limitações, sabe; e se ele
sabe, pode nos contar. Concordo com a maior parte desta resposta; mas ela erra em dois
pontos cruciais. Primeiro, não podemos ficar fora da condição de criatura a fim de obter o
ponto de vista divino da linguagem analógica e determinar com precissão todos os pontos
da analogia. Isto é, não podemos especificar exatamente como os dias da obra divina da
criação são como os nossos dias humanos de trabalho, não mais do que podemos
especificar exatamente como a Paternidade de Deus se assemelha à paternidade humana.
Nos dois casos podemos ter um começo e especificar alguns pontos da analogia. Mas
nunca evitamos o mistério.
Segundo, temos dificuldades insolúveis ao tentar especificar para nós o significado de
“extensão de tempo” dos dias 1 a 3 quando tentamos calculá-lo com algum padrão objetivo
de medição. Construímos a partir de Gn 1 por várias etapas quando tentamos alcançar a
precisão. E não podemos alcançar a precisão a não ser que tenhamos um padrão público e
claro de medição para aplicar — movimentos de corpos celestiais, relógios de corda, senso
psicológico humano da passagem do tempo, relógios de celso, velocidade da luz, ou
qualquer outro meio. Isso é parte de nossa condição criada. Se concedermos que o universo
operou segundo as leis científicas atuais nos seis dias da criação, então teremos
fundamentos para extrapolar retroativamente e obter estimativas de tempo. Mas esse
pressuposto de constância das leis nos seis dias é algo que o criacionista da Terra jovem
normalmente nega.
Podemos colocar de outra forma. O que é um “dia” sem o sol? Quando tiramos o sol, não
ficamos com a atividade laboral seguida de descanso? Então esse padrão de trabalho
seguido do descanso é uma analogia intrínseca para entender “dia”.
Terceiro, como já observamos, as pessoas tendem hoje a impor a Gn 1 o preconceito forte a
favor da orientação pelo relógio, em lugar da orientação interativa; portanto, elas perdem
por completo o fato de Gênesis parecer falar aos israelitas usando a orientação interativa,
concentrada no ritmo humano de trabalho e descanso. Os sete dias realmente são sete dias,
com tardes e manhãs depois dos primeiros seis dias. Não há ilusão aqui. Mas o adepto da
orientação pelo relógio se sente ameaçada a não ser que possa saber de quantos tiques de
relógios estamos falando.
É claro que mesmo as pessoas cuja cultura estimula em sentido primário a orientação
interativa com o tempo estão cientes do padrão de dia e noite governado pelo sol. Para elas,
o termo “dia” se associa ao ritmo de trabalho e descanso e ao ritmo do movimento do sol.
Mas a narrativa de Gn 1 fala da situação em que o “luzeiro maior” não existiu até o quarto
dia. Só resta o sentido interativo para entender o padrão dos três primeiros dias. A presença
do sentido interativo nos primeiros três dias também nos convida a estender seu sentido
como predominante nos dias remanescentes. Daí, instintivamente, os leitores antigos não se
concentram na questão da extensão do tempo medida pelo relógio.
[150]
V. esp. Nicolaas H. Ridderbos, Is There a Conflict Between Genesis 1 and Natural
Science? (Grand Rapids: Eerdmans, 1957); Meredith G. Kline, “Because It Had Not
Rained”, Westminster Theological Journal 20 (1958): p. 146-57; “Space and Time in the
Genesis Cosmogony”, Perspectives on Science and Christian Faith 48/1 (1996): p. 2-15;
note a resposta ao artigo de Kline “Because It Had Not Rained” em Derek Kidner,
“Genesis 2:5, 6: Wet or Dry?” Tyndale Bulletin 17 (1966): p. 109-14. V. tb. a discussão
adicional sobre a visão de estrutura em apêndice 1.
[151]
V., em particular, Lee Irons; Meredith G. Kline, “The Framework View”, in: David G.
Hagopian, org., The Genesis Debate: Three Views on the Days of Creation (Mission Viejo:
Crux, 2001), p. 217- 56, esp. p. 236-47, que rende o padrão de dias como representação
analógica do “registro superior” da habitação de Deus no céu invisível dos anjos. Esta
elaboração não estava presente no desenvolvimento inicial da visão de estrutura por Arie
Noordtzij e N. H. Ridderbos.
[152]
Ibid., p. 220.
[153]
Ibid., p. 221.
[154]
Genesis, p. 54-5.
[155]
Ibid., p. 55
[156]
“The Religious Value of Myths in the Old Testament”, in: Samuel H. Hooke, In the
Beginning (Oxford: Oxford University Press, 1947), p. 161; citado em Kidner, Genesis, p.
55. Muitas pessoas se preocupam com o fato de o sol, a lua e as estrelas terem sido criados
no quarto dia porque não parece se encaixar no relato científico predominante. Alguns
intérpretes dizem que os corpos celestiais na verdade foram criados muito antes, mas Deus
“fez com que funcionassem” como agora o fazem ao remover uma camada espessa de
neblina e nuvens que antes os ocultava da terra. Mas no contexto de Gn 1, o verbo chave
fez (hebraico ‘asah) não significa apenas “fazer funcionar”. Sem dúvida inclui ou implica a
ideia de criação real ou “fazer”. Em Gn 1.26, onde Deus se propõe a “fazer” o homem,
encontramos a palavra hebraico ‘asah, “fazer”, Então em Gn 1.27, onde Deus “criou o
homem”, encontramos o verbo especial para “criar” (hebraico bara’). Em Gn 1.21: “Criou
[hebraico bara’], pois, Deus os grandes animais marinhos”. No v. 25, “e fez [hebraico
‘asah Deus os animais selváticos”. No contexto de Gn 1, não há muita diferença nas
implicações dos dois verbos hebraicos.
Sugiro que a diferença de ponto de vista entre os leitores antigos e atuais nos ajuda a
entender. O que é o Sol? Para o leitor informado pela ciência planetária, é uma grande bola
de plasma de hidrogênio,m cujo centro quente gera energia termonuclear. Segundo a
ciência dominante, o Sol existia antes mesmo de a vida vegetal mais primitiva surgir na
terra. Mas o que “o luzeiro maior” (Gn 1.16) quer dizer para o leitor antigo? Como o resto
de Gn 1, é uma linguagem fenomênica. “O luzeiro maior” é o disco brilhante de luz que os
seres humanos veem no céu. O fenômeno visual apenas não existia na terra até a atmosfera
ser limpa. Deus realizou o fenômeno no quarto dia.
Os leitores atuais possuem dificuldades aqui principalmente por causa de uma cosmovisão
associada à ciência moderna (e em alguma medida de pensamento filosófico herdado de
Aristóteles) ter nos dado concepções distorcidas sobre a realidade. Segundo o ponto de
vista típico da atualidade, a bola de plasma de hidrogênio a 150 milhões de quilômetros de
distância da terra é real; o disco visível no céu é mera aparência. Discordo. V. minha
análise sobre o que é real no Cap. 16.
Na verdade, ao escolher se concentrar no sol como fenômeno visível, a saber um disco
brilhante, Deus pode se dirigir às pessoas de todas as culturas do mundo. Elas podem
observar o Sol como um disco. Em contrapartida, se a Bíblia escolhesse falar do Sol como
uma bola de plasma de hidrogênio a 150 milhões de quilomêtros de distância, a informação
só não seria hermética para quem contasse com a informações especiais derivadas da
ciência moderna. Assim, a Bíblia permanece culturalmente universal, ao passo que que um
ponto de vista científico atual (embora verdadeiro o suficiente em sua esfera) não conta
com relevância cultural. Embora a Bíblia pareça tola para quem se orgulha do
conhecimento moderno especial, ela é incrivelmente sábia, pois entendemos os propósitos
de Deus (1Co 1.18-31).
[157]
Cornelius Van Til usa particularmente a expressão “pensar os pensamentos de Deus
após ele” para enfatizar a presença e a dependência de Deus: “Contra isso [o pensamento
autônomo moderno sobre a ciência], o cristianismo sustenta que Deus é o criador de todos
os fatos. Não há, portanto, fato bruto nenhum. Assim, o pensamento de Deus é colocado
por trás de cada fato. Desse modo, o pensamento humano está sujeito ao pensamento de
Deus na interpretação de cada fato. Não há um único fato que o homem possa interpretar
corretamente sem referência a Deus como o criador. O homem não pode verdadeiramente
aplicar a categoria de causalidade a fatos sem o pressuposto de Deus. Deus causou todos os
fatos encontrados em certas relações entre si. O homem precisa buscar descobrir essa
relação” (Christian-Theistic Evidences. Philadelphia: Westminster Theological Seminary
syllabus, 1961, p. 86). V. tb. The Defense of the Faith, 2. ed. (Philadelphia: Presbyterian &
Reformed, 1963), p. 31-50.
[158]
Van Til, Christian-Theistic Evidences, p. 117.
[159]
Para uma reflexão detalhada sobre as diferenças, v. Cornelius Van Til; John M. Frame,
The Doctrine of the Knowledge of God (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1987) [Em
português: A doutrina do conhecimento de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)].
[160]
Para um debate mais amplo dos conceitos cristão e não cristão da transcendência e
imanência, v. Frame, Doctrine of the Knowledge of God.
[161]
Dan McCartney, “Ecce Homo: The Coming of the Kingdom as the Restoration of
Human Vicegerency”, Westminster Theological Journal 56/1 (1994): p. 1-21.
[162]
V., p. ex., T. Rees, “Stoics”, in: James Orr et al., orgs., The International Standard
Bible Encyclopedia (Chicago: Howard-Severance, 1930), 5 vols., vol. 5, p. 2855.
[163]
V. a discussão em Vern S. Poythress, “Reforming Ontology and Logic in the Light of
the Trinity: An Application of Van Til’s Idea of Analogy”, Westminster Theological
Journal 57 (1995): 187-219.
[164]
V. o debate adicional no Capítulo 14.
[165]
De Herman Bavinck: “Por essa razão, o milagre não é a violação da lei natural e a
intervenção na ordem natural. Do lado de Deus é um ato em que Deus não age de forma
mais imediata e direta — como sua causa — que em qualquer ocorrência comum e, no
conselho de Deus e no plano do mundo, ocupa um lugar mais ordenado e harmonioso que o
fenômeno natural” (In the Beginning: Foundations of Creation Theology. Grand Rapids:
Baker, 1999, p. 250).
[166]
Para um debate mais amplo sobre o problema do mal, v., p. ex., C. John Collins, The
God of Miracles (Wheaton: Crossway, 2000), p. 156-62.
[167]
Para um debate extenso e atual, v. o excelente livro de John M. Frame, A doutrina de
Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2014). A doutrina de Deus influencia a teologia da ciência
de muitas formas, não só no ponto da soberania divina, de forma que todo o livro oferece
um pano de fundo útil para nós.
[168]
Isto ilustra a famosa questão de universais e particulares, ou entre o um (o universal) e
o muitos (os particulares), a que Cornelius Van Til dedicou muita atenção. Veja Cornelius
Van Til, The Defense of the Faith, 2. ed. (Philadelphia: Presbyterian & Reformed, 1963); A
Survey of Christian Epistemology (s.l.: den Dulk Christian Foundation, 1969).
[169]
O pensamento de Gregório de Nissa é semelhante: “Pelo fato de Deus ter feito todas as
coisas em sabedoria, não há limite à sua sabedoria (pois “seu entendimento”, diz a
Escritura, “é infinito” [Sl 147.5]), o mundo que está delimitado por limites próprios não
pode conter dentro de si o registro da sabedoria infinita” (Answer to Eunomius’ Second
Book, in: Philip Schaff; Henry Wace, orgs., A Select Library of Nicene and Post-Nicene
Fathers of the Christian Church, 2nd series. Grand Rapids: Eerdmans, 1979, reimp.,
14 vols., vol. 5, p. 262. Da mesma forma, William Young afirma os atributos divinos da
verdade, baseando sua visão em Agostinho [Foundations of Theory (Nutley: Presbyterian &
Reformed, 1967), p. 105-6; Agostinho, Soliloquia 2.2; De Libero Arbitrio, 2.12-15;
Anselmo, De Veritate 1, 9.]).
[170]
É claro, os seres humanos podem machucar outros verbalmente pelo uso intempestivo
e de má-fé da verdade. Nesses casos, a falha moral pertence ao ser humano, não à verdade
em si. Precisamos falar “a verdade em amor” (Ef 4.15) se queremos nos conformar às
verdades morais sobre o falar.
[171]
Stephen Prickett parece ter chegado a conclusões semelhantes ao analisar o sentido:
“Se, parece seguir o argumento, regredirmos o suficiente sobre o sentido, mesmo além dos
ditados cotidianos da razão, ciência ou direito, encontramos apenas ceticismo humano ou
metafísica, em outras palavras, Deus. Se, como Stein e Hart parecem concordar, o sentido
está garantido por Deus em sentido último, não precisamos do ‘santo Graal’ dos teólogos,
uma ‘prova’ para Deus. O próprio conceito de ‘prova’ é sem sentido sem Deus” (Narrative,
Religion, and Science: Fundamentalism Versus Irony, 1700-1999. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002, p. 220).
[172]
V., p. ex., John M. Frame, The Doctrine of God (Phillipsburg: Presbyterian &
Reformed, 2002), p. 119-59 [Em português: A doutrina de Deus (São Paulo: Cultura Cristã,
2014)].
[173]
V. o debate sobre o reducionismo no Capítulo 15. John Jefferson Davis (The Frontiers
of Science and Faith: Examining Questions from the Big Bang to the End of the Universe
[Downers Grove: InterVarsity, 2002]) expressa insatisfação com os “problemas”
envolvidos no entendimento calvinista tradicional da predestinação (p. 59). Seus instintos
ao rejeitar soluções reducionistas em outros pontos do livro poderiam lhe servir bem aqui,
pois ele poderia ter observado que os alegados problemas com a certeza de salvação e a
oferta do evangelho procedem de abordagens reducionistas sobre o sentido da verdade
divina.
[174]
V. discussão adicional em J. P. Moreland, Christianity and the Nature of Science: A
Philosophical Investigation (Grand Rapids: Baker, 1989), p. 139-212. O que designo
“empirismo”, Moreland subdivide em “fenomenalismo” (A. J. Ayer e positivismo lógico) e
“empirismo construtivo” (Bas C. van Fraassen).
[175]
Se entendi bem, esta é a posição de Roy Bhaskar, Scientific Realism and Human
Emancipation (London: Verse, 1986), p. 92: “... explicação e redescrição de extratos mais
profundos da realidade. No processo contínuo da ciência, enquanto margens mais
profundas e amplas da realidade se tornam conhecidas...”. Da mesma forma, Alister
McGrath afirma a realidade estratificada (A Scientific Theology [Grand Rapids: Eerdmans,
2001-2003], 3 vols., vol. 3, p. 82-4). Acerca do “realismo crítico dialético”, v. Alan G.
Padgett, Science and the Study of God: A Mutuality Model for Theology and Science
(Grand Rapids: Eerdmans, 2003), esp. o cap. 2.
[176]
Pode-se ler sobre a mudança em qualquer exposição popular da relatividade. V., p. ex.,
Barry Parker, Einstein’s Brainchild: Relativity Made Relatively Easy! (Amherst:
Prometheus, 2000). Para um debate mais completo e histórico, v. A. d’Abro, The Evolution
of Scientific Thought from Newton to Einstein, 2. ed. (New York: Dover, 1950).
[177]
Albert Einstein propôs a Teoria Especial sa Relatividade em 1905. A primeira
contribuição em direção à mecânica quântica apareceu alguns anos antes, na apresentação
de Max Planck em 1901 sobre radiação. Ao mencionarmos a relatividade primeiro, temos
as datas invertidas? Analiso como os cientistas descreveriam a maçã vermelha usando
teorias coerentes e bem-construídas. A relatividade especial veio a ser de uma só vez em
1905 como uma teoria completa. Em contrapartida, a teoria quântica cresce aos poucos
com a adição de pedaços avulsos, até chegar à síntese mais satisfatória em 1925-1926
(Schrödinger, Heisenberg e Dirac). E mesmo a síntese precisou de mais desenvolvimento
da eletrodinâmica quântica a fim de explicar de modo mais completo o caráter da luz. Veja
A. d’Abro, The Rise of the New Physics: Its Mathematical and Physical Theories (New
York: Dover, 1951). A introdução não técnica às ideias básicas da mecânica quântica se
encontra em J. C. Polkinghorne, The Quantum World (London: Longman, 1984); Nancy R.
Pearcey; Charles B. Thaxton, The Soul of Science: Christian Faith and Natural Philosophy
(Wheaton: Crossway, 1994), cap. 9 [Em português: A alma da ciência: fé cristã e filosofia
natural (São Paulo: Cultura Cristã, 2005)].
[178]
Minha explicação ainda simplifica. Estes “corpúsculos” de luz não são de todo
corpusculares de modo correspondeente às intuições comuns sobre bolas de golfe e de
gude. Elas demonstram uma interrelação complexa de propriedades de onda e partícula,
não integradas a figura intuitiva baseada em bolinhas de gude ou ondas de água.
[179]
No crepúsculo do pensamento ocidental: estudos sobre a pretensa autonomia do
pensamento filosófico, trad. Guilherme Vilela Ribeiro; Rodolfo Amorim Carlos de Souza
(São Paulo: Hagnos, 2010).
[180]
Sobre a tendência de alguns cientistas de reduzir sociedades a indivíduos e indivíduos
a genes, v. tb. Richard C. Lewontin, Biology as Ideology: The Doctrine of DNA (New
York: HarperCollins, 1993).
[181]
O realismo crítico de Roy Bhaskar fala sobre a “realidade estratificada” para
reconhecer os vários níveis de análise trabalhados pela ciência. Em princípio, a experiência
humana cotidiana poderia ser um desses níveis. Mas o prestígio da ciência nos tenta a
degradar a experiência cotidiana como mero acidente derivado do arranjo do sistema
nervoso humano. O “real” é o que a ciência encontra em suas construções teóricas mais
profundas e tudo se reduz a esse nível. “Na cultura moderna atribui-se à ciência a
autoridade intelectual para definir como o mundo realmente é” (Nancy Pearcey, “You
Guys Lost”, in: William A. Dembski, org., Mere Creation: Science, Faith and Intelligent
Design [Downers Grove: InterVarsity, 1998], p. 74).
[182]
John Milbank reflete: “Não há nada, para Basílio, ‘por trás’ das aparências, ‘uma base
para a base’ e a natureza é incompreensível porque ‘tudo é sustentado pelo poder do
criador’” (The Word Made Strange: Theology, Language, Culture. Oxford: Blackwell,
1997, p. 98, e a discussão circundante no cap. 4).
[183]
Debates sobre realismo e antirrealismo não raro se concentram principalmente no
status de entidades teóricas, como átomos, elétrons e campos magnéticos. Por levar a sério
a negação da “matéria prima”, mudo o foco das “entidades” para a palavra de Deus: a
palavra de Deus especifica a estrutura e o sentido. Átomos, eléctrons e campos magnéticos
são significativos em uma rede de significado e certos níveis estratificados de explicação
científica. Todos esses sentidos na obra científica humana refletem alguns aspectos da
palavra divina ao governar por completo o mundo. Os sentidos são assim “reais”. Da
mesma forma, maçãs e cachorros são significativos em uma rede de significados da vida
comum. Toda a realidade crítica é constituída por redes de sentido especificadas pela
palavra criacional de Deus.
[184]
Sobre conhecimento como contato com a realidade, em lugar da correspondência
perfeitamente precisa, v. Esther Meek, Longing to Know (Grand Rapids: Baker, 2003).
[185]
The Structure of Evolutionary Theory. Cambridge: Harvard University Press, 2002,
p. 1338, 1342. Veremos a teoria macroevolucionista nos Capítulos 18 e 19; meu ponto aqui
não é discutir a teoria; mas o teorista, que sabe haver beleza.
[186]
Vern S. Poythress, Teologia sinfônica: a validade das múltiplas perspectivas em
teologia (São Paulo: Vida Nova, 2016)]; John M. Frame, Perspectives on the Word of God:
An Introduction to Christian Ethics (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1990); The
Doctrine of God John (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 2002) [Em português: A
doutrina de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2014)]; The Doctrine of the Knowledge of
God (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1987) [Em português: A doutrina do
conhecimento de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)]; v. tb. Vern S. Poythress, God-
Centered Biblical Interpretation (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1999).
[187]
Veja Frame, Perspectives on the Word of God.
[188]
Poythress, Symphonic Theology, p. 47-51; God-Centered Biblical Interpretation, p.
36-47.
[189]
Faço essa simplificação porque Copérnico no início apresentou seu ponto de vista
apenas como hipótese e como uma forma de simplificar o modelo matemático dos planetas.
Ele foi cauteloso e não mencionou o sol literalmente no centro.
[190]
Na verdade, o fracasso de Tycho Brahe ao observar paralaxes (pequenas variações) na
posição das estrelas em períodos diferentes do ano parecia infirmar a teoria copernicana.
Ninguém nesse tempo imaginava que as estrelas se encontrariam a trilhões de quilômetros
(The Encyclopaedia Britannica [Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1963], vol. 2, p. 645).
[191]
Alister McGrath aponta a relação entre a rejeição de Galileu e as polêmicas religiosas:
“[a controvérsia] deve ser colocada no antigo e amargo debate [...] entre o protestantismo e
o catolicismo sobre esse fato constituir uma inovação ou recuperação do cristianismo
autêntico. A ideia da imutabilidade da tradição católica se tornou um elemento integral da
polêmica católica contra o protestantismo [...] A interpretação que ele [Galileu] apresentou
jamais aparecera antes, e foi considerada, só por essa razão, errada” (Science and Religion:
An Introduction. Oxford: Blackwell, 1999, p. 14). V. tb. Richard J. Blackwell, Galileo,
Bellarmine, and the Bible (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1991).
[192]
Também, é possível que o salmo 93 fale em tom metafórico sobre o “mundo” da
atividade humana, usando figuras das atividades físicas (ou estabilidade). De qualquer
forma, é um erro lê-lo como se afirmasse uma teoria científica particular sobre a posição da
terra.
[193]
A teoria especial da relatividade (1905) construiu a equivalência matemática
apropriada entre estados de movimento diferentes sem aceleração. A teoria geral estendeu o
princípio para incluir estados acelerados e estados dentro de campos gravitacionais.
[194]
Mesmo isto não é o fim da discussão, porque a teoria da relatividade geral pode ser
interpretada de mais de uma forma. Alvin Plantinga observa: “Pode-se também interpretar
a teoria da relatividade como nada mais que uma receita para traduzir um quadro de
referências a outro; tomada dessa forma, ela não faz pronunciamentos sobre a existência de
um quadro em repouso absoluto. Tomada assim, a afirmação da existência desse quadro é
até consistente consigo; talvez o quadro em descanso absoluto seja encontrado na maneira
que Deus vê as coisas. (Portanto, pode ser que, na medida exata em que a demonstração
violenta seguir, a terra seja afinal o centro do universo!)” (“Evolution, Neutrality, and
Antecedent Probability: A Reply to McMullin and Van Till”, Christian Scholars Review 21
[1991/1992]: 92n8.)
[195]
Para mais sobre as perspectivas, v. Symphonic Theology: The Validity of Multiple
Perspectives in Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1987). [Em português: Teologia
sinfônica: a validade das múltiplas perspectivas em teologia (São Paulo: Vida Nova,
2016)].
[196]
Hoje, para algumas pessoas, a cifra de 14 bilhões de anos pode também parecer uma
questão de percepção humana comum. Contudo, na verdade, nosso entendimento de longos
períodos é o produto de uma educação complexa na sociedade moderna. O ritmo corporal
de trabalho e descanso é comum aos seres humanos em todos os lugares, dado o caráter
intrínseco ao corpo humano de sono e descanso. Em contrapartida, o conceito de ano é
mais complexo, sendo relacionado na maioria das sociedades pré-modernas à sucessão de
estações. A ideia de um bilhão não é alcançável de imediato. É preciso primeiro do
conceito de dezena, a seguir, do conceito de multiplicação e, então, do conceito de atos
sucessivos de multiplicação. Assim, um bilhão pode ser definido como dez vezes dez vezes
dez — ao todo, oito multiplicações. Isso precisa ser aprendido com um processo complexo.
Todavia, na sociedade moderna, depois de aprendido, ele se torna algo “comum” pela
repetição. Tudo isso demonstra o quanto os conceitos científicos e matemáticos, como o
conceito do bilhão, penetraram na mente moderna. É preciso certo esforço para perceber
que esses conceitos não são simples nem comuns à natureza humana. Deus em sua
sabedoria designou a Bíblia para se dirigir aos seres humanos em todos os lugares, não só a
quem integra as sociedades modernas.
[197]
Basílio e Ambrósio mencionaram “24 horas” no contexto de homilias sobre os dias da
criação (J. Ligon Duncan; David W. Hall, “The 24-Hour View”, in: David G. Hagopian,
org., The Genesis Debate: Three Views on the Days of Creation [Mission Viejo: Crux,
2001], p. 47; de Basílio, Hexaemeron 2.8, in : J. P. Migne et al., org., Patriologia Graecae
[Paris, 1857-1866] vol. 29, p. 50-2; trad. em inglês em Philip Schaff; Henry Wace, orgs., A
Select Library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church [Grand Rapids:
Eerdmans, 1978], 14 vols., vol. 8, p. 64-5; Ambrósio, Hexaemeron 1.10.37, in: J. P. Migne
et al., org., Patrologia latina [Paris 1878-1890], vol. 14, p. 155; trad. em inglês em
Hermigild Dressler et al., orgs., The Fathers of the Church [New York: Catholic University
of America Press, 1961], vol. 42, p. 42). Mas para entender afirmações de fora da cultura
moderna, é preciso prestar atenção à diferença entre a orientação pelo relógio e a orientação
interativa. Quais as associações de sentido do termo “hora”? O sentido pertence ao
contexto moderno? Então a predominância da ciência e da orientação pelo relógio na
prática cultural definem a “hora” em referência última a um padrão de medição
cientificamente preciso, calculável, objetivo e não humano. Ou será que o sentido pertence
ao contexto antigo? No Império Romano, com certeza, havia alguma capacidade de
medição com relógios de água e o costume de dividir o dia natural em 12 partes. Mas onde
os ritmos predominantes são interativos e o tempo nas divisões menores e maiores têm
laços próximos com a atividade humana, “hora” e “dia” ainda são associados a ritmos
humanos conhecidos. Egípcios e romanos dividiram o dia natural em doze “horas”, mas a
“hora” desse dia, para o romano, significava a décima segunda parte do tempo de luz do
dia, quer o tempo total de luz fosse longo ou pequeno quando medido por algum relógio
mecânico. Se considerdas pela orientação moderna, pelo relógio, essas “horas” do dia
natural eram mais longas no verão que no inverno, pois o dia natural era mais longo no
verão. No verão, a “hora” do dia seria mais longa do a “hora” da noite. Quando medida
pelo relógio, a “hora” no dia natural no verão em Roma seria mais longa que a “hora” no
dia natural no Egito, porque o dia natural dura mais em Roma — posicionada mais ao
norte. Sem dúvida, todo o sistema antigo ainda está intimamente relacionado aos ritmos
humanos comuns, não se baseando em aparatos de medição de tempo recônditos,
científicos, objetivos, precisos e quantitativos.
[198]
Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1995, reimp., p. 3-117, esp. p. 9-40.
[199]
Meredith G. Kline, Images of the Spirit (Grand Rapids: Baker, 1980), também
forneceu insumos úteis.
[200]
A conexão entre teofania e a formação de imagens foi explorada antes por Kline,
Images of the Spirit.
[201]
Para um debate mais extenso do conhecimento divino em relação à transcendência e à
imanência, v. John M. Frame, The Doctrine of the Knowledge of God (Phillipsburg:
Presbyterian & Reformed, 1987), p. 11-40 [Em português: A doutrina do conhecimento de
Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)].
[202]
Para uma introdução à linguagem e metáfora, v. Vern S. Poythress, God-Centered
Biblical Interpretation (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1999).
[203]
Sobre o tema de ordem, v. Henri Blocher, In the Beginning: The Opening Chapters of
Genesis (Downers Grove: InterVarsity, 1984), p. 70-4.
[204]
Algumas pessoas argumentam que o homem perdeu a imagem divina na queda; mas é
difícil escapar da implicação de Gn 5.1-3, sem falar de 1Co 11.7; o homem permanece
imagem de Deus em algum sentido. Na Bíblia, não encontramos ainda a expressão
“imagem de Deus” como termo teológico plenamente técnico; na verdade, como parte de
afirmações mais amplas sobre o caráter do homem, que ainda imita a Deus em alguns
aspectos, mesmo em meio ao pecado. Sobre termos técnicos, v. Vern S. Poythress,
Symphonic Theology: The Validity of Multiple Perspectives in Theology (Grand Rapids:
Zondervan, 1987), p. 55-82 [Em português: Teologia sinfônica: a validade de múltiplas
perspectivas em teologia (São Paulo: Vida Nova, 2016)].
[205]
Webster’s Ninth New Collegiate Dictionary (Springfield: Merriam-Webster, 1987).
[206]
Sobre a irredutibilidade do propósito à mera física, v. Michael Polanyi, Personal
Knowledge: Towards a Post-Critical Philosophy (Chicago: University of Chicago Press,
1958), p. 327-80.
[207]
“Seleção natural” descreve o processo pelo qual alguns, se não todos, descendentes de
uma geração sobrevivem para reproduzir os descendentes da próxima geração. Os
sobreviventes se reproduzem e são mais bem adaptados ao ambiente.
[208]
Estranhamente, Stephen Jay Gould conclui seu livro monumental sobre teoria
evolutiva aludindo nas duas orações finais à sabedoria e à árvore da vida: Darwin, diz ele,
estava “vestindo a estrutura do seu pensamento naquela apoteose da conquista humana — a
sabedoria, que o Livro de Provérbios, citando o mesmo ícone que Darwin dois milênios
mais tarde pegaria emprestado, chamado de etz chayim, a árvore da vida. ‘O alongar-se da
vida está na sua mão direita’, pois ‘É árvore de vida para os que a alcançam, e felizes são
todos os que a retêm’” (The Structure of Evolutionary Theory. Cambridge: Harvard
University Press, 2002, p. 1343; v. Pv 3.18)
[209]
Ibid., p. 1342.
[210]
In the Beginning, p. 100: “Ainda que outras referências das Escrituras não resolvam a
questão, recusamo-nos a ser dogmáticos; se alguém insiste no sentido literal, não
objetamos; que ele se garanta vendo a riqueza simbólica da explicação!” Outros, além de
Blocher, mantêm visão semelhante; foco nele por oferecer razões mais explícitas.
[211]
Ibid., p. 99.
[212]
Ibid. No original francês, Blocher tem moitié, mas também provê a expressão inglesa
better half (melhor parte).
[213]
Francis Brown; S. R. Driver; C. A. Briggs, orgs., A Hebrew and English Lexicon of
the Old Testament (Oxford: Oxford University, 1953), p. 854; Ludwig Koehler; Walter
Baumgartner, The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament (Leiden/New
York/Köln: Brill, 1996), 5 vols., vol. 3, p. 1030.
[214]
The Book of Genesis: Chapters 1—17, New International Commentary on the Old
Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 178.
[215]
Marcus Jastrow, A Dictionary of the Targumim, the Talmud Babli and Yerushalmi,
and the Midrashic Literature (New York: Pardes, 1950).
[216]
Commentary on Holy Scripture (1708-1710) apud In the Beginning, p. 99-100.
[217]
Um debate sobre esses pontos de vista pode ser encontrado em: Bernard Ramm, The
Christian View of Science and Scripture (Grand Rapids: Eerdmans, 1954), p. 253-93.
[218]
Defendendo a criação por fiat, J. Ligon Duncan e David W. Hall citam Herman
Witsius em tom de concordância: “... porque já que eles [os profetas e o próprio Deus]
expressamente declaram que Deus SOZINHO estende os céus, eles excluem qualquer outra
causa de qualquer tipo; e já que eles adicionaram que Deus estende a terra POR SI MESMO,
somos ensinados que isso é um ato imediato, em que nenhuma causa, nem mesmo uma que
é instrumental e que opera por poder derivado de outro, possui qualquer lugar” (Herman
Witsius, Sacred Dissertations on What Is Commonly Called the Apostles’ Creed.
Escondido: Den Dulk Christian Foundation, 1993, reimp., p. 198; citado com algumas
variações em “The 24-Hour View”, in: David G. Hagopian, org., The Genesis Debate:
Three Views on the Days of Creation [Mission Viejo: Crux, 2001], p. 59-60). A Escritura
em questão vem de Is 44.24. Witsius mantém que a adição das palavras “sozinho" e “por si
mesmo” (só “sozinho” na ARA) excluem todas as causas secundárias. Witsius não
pretende excluir o uso de materiais anteriormente disponíveis que o próprio Deus fez (p.
196; v. Gn 1.6-10). Mas há uma explicação alternativa para Is 44.24 (e seu companheiro,
Jó 9.8). Uma expressão hebraica semelhante para “sozinho” (hebraico lbad com sufixo
pronominal) é usada em outro lugar ao descrever as maravilhas de Deus. Salmos 136.4 diz
“ao único que opera grandes maravilhas…” A primeira “maravilha” que o salmo então
descreve o fazer dos céus (v. 5) e então o estender da terra (v. 6). Também inclui o dividir
das águas do Mar Vermelho (v. 13), onde já vimos que Deus usou um “forte vento
oriental” como uma causa secundária (Êx 14.21). No contexto, “único” não exclui de fato
toda a causação secundária, mas afirma que somente Deus é Deus, e que somente ele tem o
poder de fazer essas maravilhas, ao contrário dos ídolos e ao contrário das insignificantes
habilidades dos seres humanos. Lê-se no versículo 18 do salmo 72 uma forma semelhante:
“Bendito seja o SENHOR Deus, o Deus de Israel, que só ele opera prodígios” . O contexto
imediato no salmo não especifica de forma óbvia qualquer “prodígio”. Convida-nos a
pensar amplamente sobre todos os prodígios que Deus faz — na criação, nos milagres e no
cuidado providencial — de uma forma semelhante à ampla enumeração no salmo 136.
Anteriormente, o salmo 72 menciona misericórdias particulares para com os necessitados e
pobres (v. 12-14). Deveriam elas estar inclusas nos “prodígios”? Ademais, a preocupação
de reconhecer e servir o Senhor somente ocorre em uma série de lugares: “Pois tu és grande
e operas maravilhas; só tu és Deus!” (Sl 86.10; v. tb. Dt 4.35; 1Sm 7.3,4; Ne 9.6; Sl 83.18;
Is 2.11,17; 37.16,20). Esses versículos confirmam que , na cultura dos israelitas, o perigo
real não era uma tentação de ficar fascinado com causas secundárias, mas parar de confiar
em Deus e colocar a confiança em deuses falsos ou na habilidade humana, quer própria
quer de outrem (Sl 146.3-5). Assim, Is 44.24 proclama o poder único de Deus, mas não fala
de jeito nenhum sobre se Deus usou causas secundárias. Herman Bavinck confirma a
propriedade deste tipo de linguagem ao usar “por si mesmo” ao descrever a providência:
“Assim como ele criou o mundo por si mesmo, assim também ele preserva e o governa por
si mesmo. Embora Deus aja por causas secundárias, isto não deve ser interpretado de uma
maneira deísta para significar que elas vêm entre Deus e os efeitos com suas consequências
e as separam dele. “A provisão imediata de Deus sobre tudo estende ao exemplar da
ordem’” (In the Beginning: Foundations of Creation Theology. Grand Rapids: Baker, 1999,
p. 250; Bavinck cita Tomás de Aquino, Summa theologicae 1 Q 22, Art. 3; Q 103, Art. 6; Q
103, Art. 2; e Summa contra gentiles, 3:76ss.).
[219]
De acordo com a hipótese da criação madura, os fósseis podem nos levar ao tempo
ideal, mas as mesmas perguntas permanecem quando tentamos entender os padrões de
evidência no tempo ideal.
[220]
Como introdução, v. Michael Denton, Evolution: A Theory in Crisis (Bethesda: Adler
& Adler, 1985); Philip E. Johnson, Darwin no banco dos réus (São Paulo: Cultura Cristã,
2008); e para o foco especializado no design inteligente e na complexidade irredutível,
Michael Behe, A caixa preta de Darwin: O desafio da bioquímica à teoria da evolução (Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008); William A. Dembski, No Free Lunch: Why
Specified Complexity Cannot Be Purchased Without Intelligence (Lanham/Boulder/New
York/Oxford: Rowman & Littlefield, 2002). Para a defesa da macroevolução sem lacunas,
v., p. ex., Gould, Structure of Evolutionary Theory.
[221]
O movimento do design inteligente produziu uma quantidade significativa de livros
até agora. Um dos mais antigos e inovadores foi Phillip E. Johnson, Darwin on Trial
(Downers Grove: InterVarsity, 1991) [Em português: Darwin no banco dos réus (São
Paulo: Cultura Cristã, 2008)]. V. tb. Johnson, Evolution as Dogma: The Establishment of
Naturalism (Dallas: Haughton, 1990); Michael Behe, Darwin’s Black Box: The
Biochemical Challenge to Evolution (New York: Free Press, 1996) [Em português: A caixa
preta de Darwin: O desafio da bioquímica à teoria da evolução (Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2008)]; e William A. Dembski, No Free Lunch: Why Specified Complexity
Cannot Be Purchased Without Intelligence (Lanham/Boulder/New York/Oxford: Rowman
& Littlefield, 2002); The Design Revolution: Answering the Toughest Questions About
Intelligent Design (Downers Grove: InterVarsity, 2004); William A. Dembski, org., Mere
Creation: Science, Faith and Intelligent Design (Downers Grove: InterVarsity, 1998). Para
um relato histórico, v. Thomas Woodward, Doubts About Darwin: A History of Intelligent
Design (Grand Rapids: Baker, 2003).
[222]
Veja Behe, Darwin’s Black Box. Dembski, No Free Lunch, introduz a ideia mais geral
de “informação complexa especificada” ou “complexidade especificada”. O conceito de
Behe lida especificamente com máquinas biológicas. O conceito de Dembski procura
incluir máquinas biológicas, mas também explora a questão do design de forma muito mais
ampla, incluindo a detecção do design inteligente em textos, artefatos arqueológicos,
investigações criminológicas e sinais possíveis de civilizações extraterrestres. Os dois
conceitos, de Behe e Dembski, não devem ser confundidos. Parece-me que o conceito de
Dembski de informação complexa especificada é amplo demais para meus propósitos, pois
a informação complexa especificada incluiria não só as máquinas biológicas
irredutivelmente complexas de Behe, mas também sistemas biológicos redutivelmente
complexos que pelo menos poderiam ter se conjugado “de modo gradual”, por meio de
uma série de etapas em que cada uma resultaria em uma funcionalidade crescente (v., p.
ex., as próprias considerações de Dembski em No Free Lunch, p. 212, 343ss.). Por isso, o
conceito de Dembski não lida bem a questão a fim de focar na razoabilidade do
gradualismo darwinista.
[223]
George Gaylord Simpson, “Uniformitarianism: An Inquiry into Principle, Theory, and
Method in Geohistory and Biohistory”, in: M. K. Kecht; W. C. Steere, orgs., Essays in
Evolution and Genetics in Honor of Theodosius Dobzhansky (New York: Appleton-
Century-Crofts, 1970), p. 72-81. Simpson nota que a mutação gradual pode resultar em
efeitos somáticos amplos; mas a maioria deles é letal (p. 80). O gradualismo admite tais
efeitos de larga escala, mas ainda postula sua origiem em pequenas diferenças nas
condições iniciais no tempo anterior (p. ex., quando uma única mutação ocorreu).
[224]
Thomas S. Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, 5. ed. (São Paulo: Perspectiva
S.A, 1997), oferece uma exploração pertinente da atmosfera social em que a ciência se
desenvolve. V. tb. Richard C. Lewontin, Biology as Ideology: The Doctrine of DNA (New
York: HarperCollins, 1993).
[225]
“Qualquer dependência de uma força sobrenatural, de um Criador interveniente no
mundo natural por processos sobrenaturais, não é ciência” (Michael Ruse, “Witness
Testimony Sheet, McLean v. Arkansas”, in: But Is It Science? Buffalo: Prometheus, 1998,
p. 300-1). “Por definição, a ciência não pode considerar explicações sobrenaturais [...]
Assim, se um indivíduo tenta explicar certo aspecto do mundo natural por meio da ciência,
precisa agir como se não houvesse forças sobrenaturais em atuação nele” (Eugenie Scott,
“Creationism, Ideology, and Science”, Annals of the NY Academy of Science 775 [June 24,
1996]). Del Ratzsch me indicou essas citações.
[226]
Tower of Babel: The Evidence Against the New Creationism (Cambridge/London:
MIT, 1999), p. 189-96.
[227]
Ibid., p. 191.
[228]
Ibid., p. 194-7.
[229]
Veja Dembski, No Free Lunch, p. 311-79. Para ser justo com Pennock, deve-se notar
que o livro de Dembski é de 2002 e não estava disponível quando Pennock escrevia. O
movimento do design inteligente ainda está se desenvolvendo e Pennock não poderia
antecipar as direções positivas que o movimento pode sugerir para pesquisa. Mesmo assim,
já em 1996 Michael Behe bem distintamente tinha abordado a preocupação de Pennock ao
distinguir a pesquisa de eventos repetidos, onde se podee seguramente assumir regularidade
e eventos de uma vez por todas, como a origem da primeira célula, que pode envolver
exceções a regularidades conhecidas (Behe, Darwin’s Black Box, p. 241-3; v. Woodward,
Doubts About Darwin, p.166-70).
[230]
Tower of Babel, p. 194.
[231]
Francis Crick; Leslie E. Orgel, “Directed Panspermia”, Icarus 19 (1973): p. 341-6.
[232]
Tower of Babel, p. 195.
[233]
No contexto imediato do seu livro, Pennock responde mais explicitamente a Johnson,
Evolution as Dogma; e Johnson, Darwin on Trial. Mas o “criacionismo”, como movimento
mais amplo, está no pano de fundo. Ademais, os livros de Johnson, pelo foco nas fraquezas
do naturalismo, não disseram muito sobre a abordagem teísta alternativa positiva.
[234]
V. tb. Behe, Darwin’s Black Box, p. 241-3, que aborda exatamente esta questão.
[235]
“Is Uniformitarianism Necessary?”, American Journal of Science 263 (March 1965):
223-8: “Ele [Lyell, um dos primeiros desenvolvedores da geologia] postulou outro tipo
bem diferente de uniformidade: afirmava a invariabilidade das leis naturais no espaço-
tempo como condição necessária à contenda de que a referência só precisava ser feita a
processos observáveis ao explicar mudanças passadas. A força principal da proposição
consistia na eliminação da explicação sobrenatural dos fenômenos materiais; pois a
uniformidade nega a intervenção divina (a suspensão das leis naturais) e afirma que a
elucidação da história primeva pertence ao domínio da ciência não, como Buckland poderia
preferir, a uma investigação quase-teológica mais adequada a provar a graça de Deus que
entender os processos naturais” (p. 224). Contudo, a suposição da invariância espacial e
temporal das leis naturais é de modo algum exclusiva da geologia já que se torna uma
garantia para a inferência indutiva que, como Bacon mostrou quase quatrocentos anos
atrás, é o modo básico de raciocinar na ciência empírica. Sem assumir a invariância
espacial e temporal, não temos base para extrapolar do conhecido até o desconhecido e,
portanto, nenhum jeito de alcançar conclusões gerais de um número finito de observações
(p. 226). Pode-se notar que a linguagem sobre “invariância espacial e temporal” oculta uma
ambiguidade. Em uma interpretação, apenas reitera nosso ponto (cap. 1): a lei divina é
onipresente (invariante no espaço) e eterna (invariante no tempo). Gould corretamente
observa que a invariância caracteriza toda a ciência, não só a geologia (p. 227). Assim,
parece Usar uma tautologia. Contudo, na cosmovisão cristã, esse tipo de invariância
deveria ser coerente com a ação diferente de Deus em circunstâncias especiais, como o
caráter coerente de um ser humano o pode levar a ações excepcionais em circunstâncias
especiais. Uma raposa com a experiência prévia de ser perseguida por cães de caça pode
agir excepcionalmente quando se vê perseguida de novo a fim de tentar despistar os cães.
Tudo depende do tipo de “invariância” que se tem em vista. Na prática, os leitores vão
tomá-la como o tipo de invariância que pode ser postulada usando leis impessoais. A
discussão oculta a diferença de conceito entre a visão cristã e a ateísta sobre a lei científica.
Gould está certo em suspeitar dos séculos passados, quando o postulado do catastrofismo
divinamente governado (primeira causa) serviu como alternativa à explicação por meio de
causas secundárias. Mas o triunfo de um tipo de explicação nesses casos não conduz ao
triunfo universal, a não ser que se introduza secretamente um conceito de lei impessoal.
George Gaylord Simpson, em um artigo mais longo, tem espaço para se dedicar ao debate
mais extenso e com nuanças do uniformitarianismo e se concentra corretamente na questão
“preternatural”: a teoria de Hutton [sobre a história geológica] incluía eventos catastróficos,
mas ele os considerou naturalistas e atualistas, isto é, excluindo o miraculoso ou
preternatural e envolvendo só causas secundárias, definidas como forças agora existentes
na natureza (“Uniformitarianism”, p. 48). A discussão de Simpson é bem precisa na
expressão “envolvendo só causas secundárias”. Hutton, um teísta, favorecia as causas
secundárias por razões heurísticas: prometiam prover a explicação para além do fato bruto
de que Deus fizera assim. Note a discussão sobre causas secundárias abaixo.
[236]
Alguém pode se perguntar sobre se a forma de pensar de alguns oponentes do design
inteligente não caiu na mesma armadilha. O mundo inteiro, não só as peças do maquinário
celular que aparentam ter passado pelo design, foi planejado por Deus. O design não
pertence a uma parte só porque não descobrimos um jeito melhor de explicar quando se
apela às leis científicas atuais. Na verdade, as próprias leis científicas constituem o caso
primário de design. O design se mostra não só em um caso particular, como um flagelo
bacteriano, mas em uma lei, como a conservação de energia. Uma vez que entendamos
profundamente que Deus governa o mundo inteiro, começamos a ver que tudo testifica dele
e vemos em todo lugar evidências de seu design. A incredulidade falha em vê-lo, não por
falta de evidência, mas porque a incredulidade suprime a verdade sobre Deus (Rm 1.18-
23), crucial para reconhecer a evidência. Com certeza, as partes que aparentam design e
não podem ser explicadas facilmente pela base naturalista podem se provar particularmente
úteis no debate apologético. Mas deve se ter cuidado para não dar a impressão de que a
incredulidade é inocente até ser confrontada por evidências especiais, como a do design do
flagelo bacteriano. William Dembski, por exemplo, mostra algum cuidado em sua
discussão. Ele distingue claramente um produto que passou por design e do qual podemos
detectar clara evidência de design (No Free Lunch, p. 23, 114). Dembski, ademais, está
justificado ao explorar as maneiras pelas quais a atividade de design divino pode ser como
uma atividade humana, em virtude da criação à imagem de Deus. Contudo, mais poderia
ser dito. Um teólogo poderia desejar que a distinção ontológica entre Criador e criatura
como designers recebesse atenção mais detida e que Dembski tivesse apontado a presença
total do design de Deus. Mas é preciso respeitar o propósito limitado do livro de Dembski.
[237]
Esta terminologia é útil. Mas ela pode ser abusada ao sugerir que, porque usamos uma
palavra comum “causa”, os dois tipos de causa existem no mesmo nível, o que então mina
todo o ponto da distinção.
[238]
John M. Frame, The Doctrine of God (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 2002),
p. 287-8 [Em português: A doutrina de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2014)]; Herman
Bavinck, In the Beginning: Foundations of Creation Theology (Grand Rapids: Baker,
1999), p. 229-60, esp. p. 248-56.
[239]
Sobre transcendência e imanência, v. John M. Frame, The Doctrine of the Knowledge
of God (Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1987), esp. p. 13-8 [Em português: A
doutrina do conhecimento de Deus (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)].
[240]
O ponto de Deus suprir o fundamento para a racionalidade é feito repetidas vezes em
Cornelius Van Til, The Defense of the Faith, 2. ed. (Philadelphia: Presbyterian &
Reformed, 1963); v. tb. John M. Frame, Apologetics to the Glory of God: An Introduction
(Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1994) [Em português: Apologética para a glória
de Deus: uma introdução (São Paulo: Cultura Cristã, 2011)].
[241]
Pennock (Tower of Babel, p. 190, 192) menciona o deísmo e Spinoza, mas não explora
as diferenças entre as visões diferentes.
[242]
Pennock coloca no pano de fundo a influência do naturalismo ontológico na prática
real da ciência. Ele cuidadosamente distingue o naturalismo ontológico do metodológico a
fim de defender o último. Mas se pode duvidar quão bem os cientistas separam os dois na
prática. Compromissos ontológicos sempre influenciam o juízo de alguém sobre quais
linhas de pesquisa explorar. Por exemplo, se fantasmas não existem, é infrutífero investigá-
los; ao invés disso, investiga-se a psicologia de pessoas que imaginam existirem fantasmas.
Pelo fato de Pennock manter com firmeza e exclusividade o princípio metodológico,
admite que fantasmas podem existir: “Isto não quer dizer, todavia, que as coisas que agora
pensamos ser sobrenaturais necessariamente o são. Quem sabe se, por exemplo, os
fantasmas existem de modo diferent de nossa visão fictícia deles, caso eles se submetam à
lei natural. Nesse caso, poderíamos ter aprendido algo novo sobre o mundo natural (que
pode exigir revisar as teorias atuais) e na verdade não encontramos nada de fato
sobrenatural” (Tower of Babel, p. 389, n. 36). Pennock presume por conveniência que
“nossa visão fictícia [dos fantasmas]” inclui imunidade da lei natural. Mas pode-se duvidar
da precisão disso. Algumas pessoas veem os fantasmas como personalidades, muito como
seres humanos em corpo, mas tendo uma aparência gasosa e poderes finitos análogos aos
dos seres humanos. Eles presumivelmente se veriam sujeitos a muitas leis (por não serem
infinitamente poderosos), de maneira análoga aos seres humanos. O cientista
contemporâneo típico se oporia ao uso de verbas para a investigação de fantasmas, não por
crer que seja, imunes à lei natural, mas por acreditar que eles não existem. Predominam os
fatores ontológicos, em lugar dos metodológicos. Em poucas palavras, a metodologia
jamais opera no vácuo. Ela se justifica com o pano de fundo de pressupostos ontológicos.
[243]
Sobre o papel chave das anomalias na ciência normal e na revolução científica, v.
Kuhn, Structure of Scientific Revolutions.
[244]
Darwin’s Black Box.
[245]
Tower of Babel, p. 191, citado anteriormente.
[246]
Alan Padgett recomenda um estudo interdisciplinar nesse caso (Science and the Study
of God: A Mutuality Model for Theology and Science [Grand Rapids: Eerdmans, 2003],
p. 84). Ele o compara a um caso hipotético em que os astrônomos descobrem sinais de
inteligência extraterrestre e pedem a ajuda de antropólogos e linguistas para analisar os
sinais. Da mesma forma, pesquisadores celulares podem requisitar um estudo
interdisciplinar de sinais de vida inteligente em uma célula. Sim, tal resposta parece
razoável. Ao lidar com novos desafios, as fronteiras exatas entre as disciplinas pouco
importam. A expansão dos limites da astronomia, da biologia ou a interação interdisciplinar
pode funcionar; depende muito das eficiências relativas. Mais tarde talvez surgisse a
subdisciplina chamada “estudo da inteligência no sistema solar X” ou “estudo do design
inteligente do interior da célula” que utilizaria uma série de recursos. Tudo isso é
secundário. A questão primária é se podemos razoavelmente esperar detectar inteligência e,
se sim, como. Os defensores do design inteligente afirmam a disponibilidade de muitas
evidências; contudo, por razões ideológicas, pessoas ligadas à ciência e fora dela lutam
muito para não encarar a evidência. A atmosfera reinante hoje quer enterrar a questão
primária e desligitimizá-la com o mantra: isso está “fora dos limites da ciência”. Ao mesmo
tempo, a mesma atmosfera quer dizer a sociólogos, teólogos e outras partes interessadas
que nada pertinente a seus campos foi descoberto na célula. A reação é bem diferente do
que seria, digamos, da descoberta de um sinal carregando informações do espaço sideral.
Suspeita-se, portanto, que a ideologia domina a cena.
[247]
Mmesmo essa “lei” tem uma exceção: “A não ser que Cristo retorne antes de
amanhã”.
[248]
Aqui ignoramos o fato da possibilidade do encontro de uma indeterminação irredutível
no nível quântico, que poderia em tese afetar ocorrências macroscópicas.
[249]
Pode-se ser mais preciso sobre a questão da baixa probabilidade. Se alguém
embaralhar repetidas vezes as 52 cartas de um baralho e então olhar para a ordem exata
resultante das cartas em todo o baralho. Qualquer ordem particular das cartas possui uma
probabilidade bem pequena; contudo alguma ordem de fato ocorrerá. O que torna diferente
a situação do flagelo é que o resultado possui informação especificada complexa, como
Dembski afirma em No Free Lunch. O resultado com informação genética específica do
flagelo é semelhante a embaralhar as cartas e descobrir que os quatro naipes foram
separados e que as cartas de cada naipe foram arrumadas exatamente em ordem ascendente.
Esse resultando seria a evidência do embaralhamento traiçoeiro ou alguma outra
intervenção de designer inteligente do resultado.
[250]
God, the Devil, and Darwinism: A Critique of Intelligent Design Theory (Oxford:
Oxford University Press, 2004), p. 180-90.
[251]
Ibid., p. 184.
[252]
Darwin’s Black Box, p. 40. Agradeço a Del Ratzsch por ter chamado minha atenção
para este ponto.
[253]
Simpson observa corretamente: “A causação histórica do prédio Empire State decorreu
de uma espécie animal [i.e., seres humanos]” (“Uniformitarianism”, p. 87). Na prática, os
princípios biológicos estritos são suplementados pelo conhecimento da intencionalidade
humana, que, como notamos, não se encontra no mesmo nível.
[254]
Tecnicamente, a situação com os acordes é mais complicada. Em pianos e alguns
outros instrumentos, a afinação procura manter o “temperamento” igual, isto é, o ajuste que
capacita o instrumento a tocar qualquer partitura. O ajuste é um tipo de meio-termo entre
partituras que tentam criar exatamente a mesma “distância” musical para cada meia-etapa:
a proporcionalidade de 21/12 = 1.059463... Isto obviamente não é simples, mas os acordes
produzidos por ele ainda estão bem próximos das razões simples dos acordes ideais e são
captados pelo ouvido humano como acordes harmônicos simples.

[RP1]Mantenha, por favor, como eu deixei. Mesmo no original inglês a transliteração da


primeira letra está imprecisa.

Você também pode gostar