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Table of Contents

Parte 1 — PROBLEMAS BÁ SICOS NA INVESTIGAÇÃ O DAS GRANDES QUESTÕ ES

1. As grandes questõ es sobre a vida

2. A Bíblia como um recurso

3. Abordagens opostas à filosofia

Parte 2 — METAFÍSICA: O QUE EXISTE?

Parte 2 — METAFÍSICA: O QUE EXISTE?

4. Filosofias inadequadas

5. A metafísica cristã

Parte 3 — PERSPECTIVAS

Parte 3 — PERSPECTIVAS

6. Apresentando as perspectivas

7. Multiperspectivismo

8. Perspectivas sobre Deus

9. Perspectivas sobre o mundo

10. Perspectivas através da linguagem

11. Implicaçõ es para a teologia

Parte 4 — EXEMPLOS DE ANÁ LISE METAFÍSICA

Parte 4 — EXEMPLOS DE ANÁ LISE METAFÍSICA

12. A metafísica de uma maçã

13. A metafísica da caminhada

14. A metafísica de um marca pá gina

15. Perspectivas em combinaçã o

Parte 5 — OUTRAS SUBDIVISÕ ES DA FILOSOFIA


Parte 5 — OUTRAS SUBDIVISÕ ES DA FILOSOFIA

16. É tica

17. Epistemologia

18. A alma, a mente e a psicologia

19. Ló gica

20. Estética

21. Ramos especializados da filosofia

Parte 6 — INTERAGINDO COM FILOSOFIAS DEFEITUOSAS

Parte 6 — INTERAGINDO COM FILOSOFIAS DEFEITUOSAS

22. O desafio das filosofias

23. Immanuel Kant

24. Edmund Husserl

25. Filosofia analítica

Conclusã o

Apêndice A

Apêndice B

Apêndice C

Bibliografia
1
 

 
 
 
REDIMINDO A FILOSOFIA
UMA ABORDAGEM TEOCÊ NTRICA
À S GRANDES QUESTÕ ES

 
 
 
 
 
VERN S. POYTHRESS
 
 
 

 
Na forma caracteristicamente sensata e cativante do autor, este volume faz uma
contribuiçã o oportuna e bem-vinda ao antigo debate sobre a relaçã o entre a filosofia e a
teologia cristã . Ao fazê-lo, fornece um argumento só lido e convincente de que as questõ es
bá sicas que a filosofia coloca encontram suas respostas fundamentais apenas na Bíblia, a
Palavra escrita de Deus. Em meio a tantos pensamentos confusos hoje sobre esses assuntos,
recomendo Redimindo a filosofia a todos os que se preocupam em levar “cativo todo
pensamento à obediência de Cristo”.
 
― Richard B. Gaffin Jr. , Professor emérito de Teologia Bíblica e Sistemá tica, Westminster
Theological Seminary, Pensilvâ nia, EUA.
 
Poythress acertou de novo. Este livro contém uma grande quantidade de novas ideias e um
cuidadoso trabalho filosó fico cristã o. É a integraçã o mais clara que Poythress faz entre a
linguística, filosofia e exegese. Certamente este livro contém as aná lises mais incisivas de
maçã s e marcadores que você encontrará . O ponto, claro, é que todas as coisas no mundo
de Deus refletem a riqueza do Deus triú no.
 
― John M. Frame , Professor emérito de Teologia Sistemá tica e Filosofia, Reformed
Theological Seminary, Orlando, EUA.
 
Assuntos de filosofia sã o muitas vezes complexos e carregados de questõ es desafiadoras.
Os cristã os se perguntam se devem evitar completamente a filosofia e simplesmente ficar
com a Bíblia, ou se há algo que se pode ganhar a partir do estudo filosó fico. Empregando a
metodologia teoló gica de John Frame, o Dr. Poythress escreveu uma ú til pesquisa
introdutó ria sobre a relaçã o entre a filosofia e os ensinamentos da Escritura.
 
― J. V. Fesko , Deã o acadêmico e professor de Teologia Sistemá tica e Histó rica,
Westminster Theological Seminary, Califó rnia, EUA.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Copyright © 2014, de Vern S. Poythress

Publicado originalmente em inglês sob o título

Redeeming Philosophy: A God-Centered Approach to the Big Questions

pela Crossway

1300 Crescent Street, Wheaton, Illinois, 60187, EUA.

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por

EDITORA MONERGISMO
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP 70.760-620

www.editoramonergismo.com.br

1ª ediçã o, 2019

Traduçã o: Marcelo Herberts

Revisã o: Felipe Sabino de Araú jo Neto e Fabrício Tavares de Moraes

Capa: Bá rbara Lima Vasconcelos

PROIBIDA A REPRODUÇÃ O POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕ ES, COM INDICAÇÃ O DA FONTE.

Todas as citaçõ es bíblicas foram extraídas da versã o Almeida Revista e Atualizada (ARA) salvo indicaçã o em contrá rio.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Poythress, Vern S.

Redimindo a filosofia: uma abordagem teô centrica às grandes questõ es / Vern S. Poythress, traduçã o Marcelo Herberts — Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019.

Título original: Redeeming Philosophy: A God-Centered Approach to the Big Questions

ISBN: 978-85-69980-98-8

1. Filosofia cristã 2. Teologia 3. Cristianismo I. Título

CDD 230

 
 
 
 

 
 
 

1
 
A John Frame,
meu professor, colega e amigo.
 

1
 

Sumário
Parte 1 — PROBLEMAS BÁ SICOS NA INVESTIGAÇÃ O DAS GRANDES QUESTÕ ES
1. As grandes questõ es sobre a vida
2. A Bíblia como um recurso
3. Abordagens opostas à filosofia
Parte 2 — METAFÍSICA: O QUE EXISTE?
4. Filosofias inadequadas
5. A metafísica cristã
Parte 3 — PERSPECTIVAS
6. Apresentando as perspectivas
7. Multiperspectivismo
8. Perspectivas sobre Deus
9. Perspectivas sobre o mundo
10. Perspectivas através da linguagem
11. Implicaçõ es para a teologia
Parte 4 — EXEMPLOS DE ANÁ LISE METAFÍSICA
12. A metafísica de uma maçã
13. A metafísica da caminhada
14. A metafísica de um marca pá gina
15. Perspectivas em combinaçã o
Parte 5 — OUTRAS SUBDIVISÕ ES DA FILOSOFIA
16. É tica
17. Epistemologia
18. A alma, a mente e a psicologia
19. Ló gica
20. Estética
21. Ramos especializados da filosofia
Parte 6 — INTERAGINDO COM FILOSOFIAS DEFEITUOSAS
22. O desafio das filosofias
23. Immanuel Kant
24. Edmund Husserl
25. Filosofia analítica
Conclusã o
Apêndice A
Apêndice B
Apêndice C
Bibliografia
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Parte 1
 
PROBLEMAS BÁSICOS NA INVESTIGAÇÃO DAS
GRANDES QUESTÕES
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
1. As grandes questões sobre a vida
 
 

A vida tem grandes questõ es: quem somos nó s, como seres humanos? O que é ú nico sobre a
condiçã o de ser humano? Nossa existência tem um propó sito, o mundo tem um propó sito?
Como devemos conduzir nossa vida? O que sã o padrõ es morais, e de onde eles vêm? Por
que existe alguma coisa? Qual é a natureza do mundo? Como sabemos de alguma coisa?
Existe um Deus? Existem muitos deuses? Existe uma vida apó s a morte? Como ela é?

Na histó ria do mundo ocidental, os filósofos têm buscado investigar algumas dessas
grandes questõ es sobre a natureza do mundo. A palavra filosofia vem da palavra grega
philosophia , que significa “amor à sabedoria”. Os filó sofos buscam sabedoria,
especialmente sabedoria sobre as grandes questõ es. [1]

Um agrupamento de grandes questões

Os filó sofos têm considerado uma série de grandes questõ es. Ao longo dos séculos, a
filosofia desenvolveu um nú mero considerá vel de subdisciplinas que enfocam um conjunto
menor de questõ es. Três das principais subdivisõ es sã o a metafísica, epistemologia e ética
filosó fica. (Mais tarde vamos considerar brevemente algumas outras subdivisõ es também.)
[2]

A metafísica estuda questõ es sobre a existência: por que existe alguma coisa? E qual é a
natureza do que existe? A epistemologia estuda a natureza do conhecimento: o que é
conhecimento? Como viemos a saber o que sabemos? Quando podemos ter certeza de que
sabemos algo (em vez de ter uma crença equivocada)? A ética filosó fica estuda as questõ es
de certo e errado: o que sã o padrõ es morais? Sã o eles universais? De onde eles vêm?

Por que se preocupar com essas questõ es? Elas importam? As questõ es sobre ética sã o
importantes porque o certo e o errado afetam o bem-estar da humanidade. O assassinato é
errado? O roubo é errado? Mentir é errado? Se sim, por quê? Se nã o, como evitamos que as
relaçõ es sociais se desintegrem em lutas contínuas? Os padrõ es morais sã o absolutos ou
variam de acordo com a cultura? E como descobrimos o que é certo e errado? As questõ es
éticas afetam claramente a forma como conduzimos nossa vida e como nossa vida se
harmoniza ou colide com a vida dos outros.

E quanto à s outras duas subdivisõ es da filosofia, a saber, metafísica e epistemologia? Elas


importam? Ou essas duas á reas sã o apenas matérias de interesse acadêmico, sem impacto
significativo na vida comum? A metafísica considera questõ es sobre o que existe. Isso inclui
a questã o de Deus. Deus existe? Se existe, que tipo de Deus ele é? Ele nos considera
moralmente responsá veis? Nossas respostas podem fazer uma grande diferença.

A metafísica e a epistemologia, como sã o tradicionalmente estudadas, podem parecer


assuntos formidá veis. Se as pessoas comuns começam a ler algumas das discussõ es mais
técnicas na metafísica, podem ver seu interesse ficar para trá s e mesmo desaparecer. As
discussõ es lhes podem parecer distantes, irrelevantes ou difíceis de entender. Mas alguns
dos problemas são relevantes. Como ressaltamos, a questã o de Deus faz uma grande
diferença. E até as respostas a questõ es mais especializadas podem influenciar nossa visã o
do mundo como um todo. Portanto, vale a pena considerar como essa á rea afeta nossa
visã o do mundo e nossa visã o da vida.

Para ilustrar, consideremos um tipo de metafísica que tem influência em nossos dias. No
mundo ocidental, muitas pessoas da intelligentsia acham que o mundo consiste em matéria,
movimento e energia. De acordo com essa visã o, coisas mais complexas, como rochas e
á rvores, animais e pessoas, sã o construídas a partir de interaçõ es e arranjos complexos da
matéria. Mas a natureza ú ltima do mundo é material. Essa visã o é chamada de materialismo
. É um tipo de posiçã o metafísica , isto é, uma visã o sobre a natureza ú ltima das coisas. Os
filó sofos têm debatido a metafísica por séculos, e o materialismo em uma forma ou outra
tem sido uma das opçõ es oferecidas no debate desde a época dos antigos gregos.

Essa posiçã o faz alguma diferença? Faz, porque, quando é mantida de forma consistente,
fala acerca de nó s mesmos. Ela diz que cada um de nó s é um arranjo complexo de á tomos
em movimento. Qualquer significado pessoal que queiramos ter, devemos inventar por nó s
mesmos, pois o universo como um todo nã o tem propó sito. O universo apenas é o que é. Ele
é matéria em movimento.

É uma imagem sombria. E, embora algumas pessoas se esforçam para seguir o


materialismo de forma consistente, outras consideram o materialismo inteiramente
ameaçador em sua desolaçã o. Com uma parte da sua mente elas podem acreditar que a
matéria e o movimento estã o na base de tudo, mas se esforçam para acrescentar camadas
extras de significado pessoal sobre a camada fundacional. Tanto as pessoas que seguem o
materialismo de forma consistente quanto as pessoas que acrescentam camadas extras
estã o pensando metafisicamente . Ambas têm crenças sobre a natureza ú ltima do mundo.
As pessoas que acrescentam camadas extras estã o sugerindo que essas camadas existem
dentro de um quadro metafísico total da natureza das coisas. Mas será que elas estã o certas
em acrescentar as camadas extras? Os materialistas durõ es poderiam acusá -las de viverem
vidas de ilusã o e de se recusarem a encarar a realidade.

As pessoas que acreditam em Deus têm ainda outra forma de crença metafísica. Elas estã o
dizendo que a matéria e o movimento nã o sã o tudo. Elas acreditam que Deus existe e que
Deus criou a matéria e o movimento — e também camadas extras. Elas diriam que os
materialistas estã o ignorando muitas dimensõ es da realidade, incluindo o pró prio Deus. E
diriam que, quando as pessoas acrescentam camadas extras de sua pró pria escolha, estã o
perdendo o caminho e os significados de Deus ao tentarem substitui-los pelas suas pró prias
noçõ es.

Muitas outras pessoas nã o pensam na metafísica explicitamente . Elas nã o se preocupam


com isso, mas apenas vivem sua vida. Ainda assim, sã o frequentemente influenciadas, até
mesmo fortemente influenciadas, pelas visõ es metafísicas que estã o “no ar”, que pairam à
volta como parte da atmosfera intelectual do mundo moderno. Muitas pessoas que nã o
ponderam sobre a filosofia do materialismo sã o influenciadas pelo materialismo,
particularmente quando desponta entre as pessoas que interpretam a teoria da evoluçã o
como uma forma de filosofia materialista. [3]

Laços através da epistemologia

Por fim, e quanto à epistemologia? A epistemologia, como viemos a saber, estuda as coisas.
Essa subdivisã o da filosofia pode parecer a menos relevante. Mas ela tem laços com as
outras duas. As pessoas discordam na metafísica — se Deus existe; se tudo pode ser
reduzido a matéria e movimento; se, como pessoas, nó s sobrevivemos à morte física. As
divergências levam a perguntas sobre o conhecimento; por exemplo, como sabemos se a
matéria é a natureza ú ltima do mundo? E como sabemos se Deus existe?

Algumas pessoas temem que talvez nunca possamos sabê-lo. Algumas correntes no
pensamento pó s-moderno têm-se tornado radicalmente céticas. Elas sugerem que nã o
podemos saber o que é verdade, mas que devemos nos esforçar para nos arrastar junto ao
que parece funcionar melhor para nó s.

Os padrõ es morais têm laços semelhantes com a epistemologia. Ainda que existam padrõ es
morais absolutos, será que podemos saber que eles existem e podemos saber no que
consistem? Como sabemos?

Na verdade, as questõ es sobre como viemos a saber as coisas interagem com as questõ es
sobre metafísica e ética. Por exemplo, suponhamos que Suelen se torne cética em suas
reflexõ es sobre o conhecimento. Ela pode decidir que nã o consegue saber as respostas para
as questõ es bá sicas em metafísica e ética. Ela diz a si mesma que poderia muito bem parar
de desejar o que nunca poderá ter. Assim, sua posiçã o epistemoló gica, isto é, o ceticismo,
fez com que ela desistisse de pensar em metafísica e ética.

Suponha, por outro lado, que ela tenha uma forte confiança na razã o humana e pense que a
razã o é a principal fonte para o conhecimento. Ela pode acreditar que a reflexã o racional ou
o diá logo platô nico podem lhe dar as respostas metafísicas e éticas que ela procura. Ela
também pode esperar que a reflexã o racional esclareça a natureza dos padrõ es morais. Ao
tomar essa visã o sobre o papel central da razã o na epistemologia, Suelen já assumiu
tacitamente que os padrõ es morais têm um cará ter basicamente racional. E a natureza
metafísica do mundo deve ter um cará ter racional para que seja acessível pelo seu uso da
razã o. Assim, as visõ es de epistemologia de Suelen afetaram suas expectativas sobre a
moralidade e a metafísica.

Ou suponha que ela pense que a experiência repetida, a experiência dos sentidos, é a
principal fonte de conhecimento. Entã o, de certa forma, ela tratará a experiência dos
sentidos como se fosse a base metafísica ú ltima do mundo — talvez nã o do mundo como
ele realmente é, mas do mundo como ela o percebe.
 
Laços através da metafísica
 

Por outro lado, as respostas à s questõ es metafísicas têm uma influência sobre a
epistemologia e a ética. Suponha que Suelen tenha encontrado o que considera ser
respostas fundamentais sobre a natureza do mundo. O mundo a inclui; assim, ela também
chegou a algumas respostas sobre sua pró pria natureza como ser humano. Com respostas
desse tipo, ela já percorreu um longo caminho para responder como ela, enquanto ser
humano, pode interagir com o mundo de tal forma que possa obter conhecimento.
Por exemplo, se Suelen acredita, como uma verdade metafísica, que Deus existe, ela pode
argumentar que Deus fez tanto ela quanto o mundo ao seu redor e que Deus a equipou com
uma capacidade de conhecer este mundo, pois lhe deu uma mente e criou uma harmonia
intrínseca entre ela e o mundo. Ou suponha que ela tenha chegado a conclusõ es
materialistas sobre a natureza do mundo. Provavelmente acreditará que ela é um produto
da evoluçã o darwiniana sem propó sito. A evoluçã o a equipou com a capacidade de
sobreviver, e a capacidade de conhecer é um subcomponente da capacidade mais
fundamental de sobreviver.

As visõ es metafísicas de Suelen também têm implicaçõ es para a ética. Se ela acredita que
Deus existe, pode facilmente concluir que Deus é a fonte ú ltima dos padrõ es morais. Se ela
é uma darwinista materialista, pode concluir que a moralidade é uma ilusã o psíquica para
nos refrear de destruir uns aos outros e acabar com a raça.

 
Subdivisões da filosofia como perspectivas
 

Na verdade, podemos tratar a metafísica, epistemologia e ética como subdivisõ es que


oferecem perspectivas umas sobre as outras. Por exemplo, comecemos com a metafísica.
[4]

A metafísica responde à s questõ es sobre o que existe. Um conjunto completo de respostas


incluiria aquelas sobre se o conhecimento existe e qual é a sua natureza. Assim a metafísica,
num sentido abrangente, inclui a epistemologia como uma subdivisã o. Da mesma forma, a
metafísica deve incluir respostas sobre se existem padrõ es morais. Se existem, ela deve
especificar que relaçã o eles têm conosco, como seres humanos que existem. E assim a
metafísica deve na realidade incluir respostas para as questõ es éticas. Logo, quando
usamos o termo metafísica de forma abrangente e o deixamos responder a todos os tipos
de questõ es sobre a existência, ele se torna uma perspectiva que inclui dentro de si as
outras duas subdivisõ es, epistemologia e ética.

Também podemos ver a epistemologia como uma perspectiva sobre as outras duas
subdivisõ es. Se a epistemologia lida com o que sabemos, também lida com o que sabemos
sobre a natureza das coisas, e assim inclui a metafísica. Ela inclui o que sabemos sobre os
padrõ es morais e éticos, e assim inclui a ética.

Finalmente, podemos tratar a ética como uma perspectiva sobre as outras duas
subdivisõ es. A ética inclui questõ es sobre o que devemos acreditar. O que devemos
acreditar sobre a natureza das coisas é metafísica. O que devemos acreditar sobre o
conhecimento é epistemologia. Nã o podemos realmente fazer progresso na metafísica ou
na epistemologia sem padrõ es de como devemos proceder ao examinar essas subdivisõ es.
E os padrõ es sã o padrõ es éticos. Por outro lado, nã o podemos fazer progresso na ética sem
alguma noçã o de como chegaríamos ao conhecimento de padrõ es morais. E esse processo
de chegar ao conhecimento é o domínio da epistemologia.
Assim, todas as três subdivisõ es — metafísica, epistemologia e ética — oferecem
perspectivas umas sobre as outras. Em muitos aspectos elas pressupõ em umas à s outras.
Embora possamos nos concentrar temporariamente em apenas uma subdivisã o dentro da
filosofia, as outras espreitam em segundo plano. Respostas preliminares sobre a ética
guiam o que fazemos na metafísica e na epistemologia. Da mesma forma, respostas na
metafísica influenciam a epistemologia e a ética, e respostas na epistemologia influenciam a
metafísica e a ética.

Nã o podemos num só livro cobrir igualmente todas as três grandes á reas. Assim, na maior
parte de nossa discussã o iremos nos concentrar na metafísica. Mas reconhecemos as
influências das outras duas subdivisõ es em nosso trabalho. Além disso, o que dizemos
[5]

na á rea da metafísica tem implicaçõ es frutíferas na epistemologia, na ética e ainda em


outras subdivisõ es da filosofia. Ao trabalhar mais completamente em uma das á reas, espero
dar aos leitores uma boa ideia de como seria trabalhar também nas outras á reas. E quando
terminarmos nossas reflexõ es sobre a metafísica, também poderemos chamar a atençã o
para recursos excelentes que já existem na epistemologia e na ética — assim como em
outros assuntos filosó ficos.

1
 

2. A Bíblia como um recurso


 
 

Queremos explorar como obter respostas sobre a natureza das coisas. Mas nossas
respostas irã o diferir da maior parte da histó ria da filosofia, pois estamos buscando
respostas da Bíblia, e nã o meramente tentando raciocinar por conta pró pria. O ensino da
Bíblia tem implicaçõ es sobre como respondemos as grandes questõ es.

Por que deveríamos ouvir a Bíblia mais do que qualquer outro livro? A Bíblia reivindica ser
a pró pria palavra de Deus dirigida a nó s. Ela faz uma reivindicaçã o das mais importantes.
Mas deveríamos crer nela? Em nossos dias se levantam vozes céticas. Nã o podemos
considerar todas as questõ es céticas sem fazer um longo desvio, o que resultaria em outro
livro. Eu prefiro direcionar os leitores a obras existentes que abordam as questõ es dos
céticos. [6]
Independentemente se você aceita ou nã o que a Bíblia é a Palavra de Deus,
convido-o a ver como ela fornece respostas à s grandes questõ es.

Um resumo do ensino bíblico


Quando ouvimos a Bíblia, descobrimos muitas coisas. Aqui podemos apenas resumir alguns
dos ensinos mais centrais. A Bíblia revela que existe um só Deus, que criou o mundo inteiro,
incluindo a nó s como seres humanos. Mas nossos primeiros pais se rebelaram contra ele.
Desde entã o, todos nó s estamos mergulhados em rebeliã o, e é preciso que Deus venha nos
resgatar. No cerne do plano de Deus para o resgate está Jesus Cristo. Deus Pai enviou Cristo
ao mundo para nos resgatar do pecado e da rebeliã o e suas consequências. Cristo realizou
sua obra na Terra, morreu pelos nossos pecados e ressuscitou dos mortos. Ele agora reina
no céu até o tempo futuro, quando irá inaugurar um novo céu e uma nova terra livre do
pecado e de seus efeitos (Ap 21.1).

De acordo com a Bíblia, Cristo é o ú nico Redentor e é a fonte de redençã o para todos
quantos confiam nele. Ele realizou nossa redençã o quando morreu na cruz e ressuscitou no
terceiro dia para uma nova vida (Rm 4.25). Na cruz ele suportou a puniçã o pela nossa
rebeliã o contra Deus (1Pe 2.24) e realizou assim para nó s a reconciliaçã o com Deus. O que
ele realizou entã o se aplica a nó s como indivíduos e como uma comunidade (a igreja).
Cristo envia o Espírito Santo para operar uma transformaçã o em nó s. Ele também nos
instrui através da Bíblia, que foi escrita sob a inspiraçã o e poder do Espírito Santo, de modo
que é a sua palavra. [7]

A Bíblia nos chama a colocar nossa fé em Cristo para sermos salvos do julgamento de Deus
sobre a nossa rebeliã o (At 16.31; Rm 10.9-10). Ela nos diz para seguirmos a Jesus Cristo,
nos tornarmos seus discípulos e nos submetermos ao seu ensino. (Devemos deixar aos
livros de teologia um resumo mais extenso do ensino bíblico.) [8]

Seguir a Cristo significa atentar-se ao que ele diz na Bíblia. Quando seguimos o ensino dela,
ela transforma nosso pensamento: “Nã o se amoldem ao padrã o deste mundo, mas
transformem-se pela renovaçã o da sua mente, para que sejam capazes de experimentar e
comprovar a boa, agradá vel e perfeita vontade de Deus” (Rm 12.2, NVI). Essa
transformaçã o significa que o nosso pensamento é redimido, incluindo nosso pensamento
sobre as grandes questõ es. Assim, podemos dizer que a filosofia deve ser redimida à
medida que recebemos a instruçã o de Cristo e seguimos os seus caminhos.

Mas nem todos acreditam que Jesus Cristo é o ú nico Salvador e que o ensino da Bíblia é
verdadeiro e confiá vel. Se nã o confiamos no que a Bíblia diz, qual é a alternativa? Algumas
pessoas seguem outras religiõ es. Algumas pessoas tentam raciocinar por conta pró pria.
Este ú ltimo curso de açã o é predominante na filosofia ocidental. Antes de tentarmos
responder a algumas das grandes questõ es, devemos entender as principais diferenças
entre a Bíblia e a filosofia ocidental. Mas essas diferenças nos oferecem um assunto vasto e
podem consumir um livro inteiro. Teremos de simplificar e nos limitar a alguns pontos
bá sicos.[9]

Filósofos pesquisando de forma autônoma


A histó ria da filosofia ocidental remonta à Grécia e, em especial, a Só crates, Platã o e
Aristó teles. Esses três homens foram antecedidos por ainda outros filó sofos: Tales,
Anaximandro, Herá clito, Parmênides, os sofistas e outros. Os antigos filó sofos gregos
variavam entre si nas opiniõ es, mas todos buscavam obter sabedoria sobre a natureza do
mundo. Nessa busca eles usavam a razã o humana, mas nã o recorriam à revelaçã o divina
especial na Bíblia. Eles queriam pensar sobre as coisas e queriam que seu raciocínio fosse
independente de Deus ou dos deuses. Esse desejo de independência pode ser chamado de
autonomia , que significa “lei pró pria”. Os filó sofos gregos buscavam usar a razã o como sua
pró pria lei e guia, independente de Deus. [10]

Eles agiam assim em parte porque a cultura grega como um todo tinha uma percepçã o
confusa sobre a divindade. Os gregos eram politeístas, pois criam em muitos deuses. Eles
pensavam que Zeus era o deus supremo ou o pai dos deuses; mas em relaçã o aos outros
deuses, Zeus ainda era limitado. Nenhum desses deuses merecia confiança. Assim, se uma
pessoa buscasse chegar à verdade fundamental, que recursos teria, à exceçã o de sua
pró pria inteligência?

Seres humanos conhecendo Deus

Podemos entender por que os antigos filó sofos desistiram dos deuses gregos, pois esses
deuses eram moralmente indignos da sua lealdade. Mas a Bíblia tem algo mais a dizer.
Romanos 1.20-23 indica que todos os seres humanos conhecem Deus:

Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como


também a sua pró pria divindade, claramente se reconhecem, desde o
princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas.
Tais homens sã o, por isso, indesculpá veis; porquanto, tendo conhecimento de
Deus, nã o o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se
tornaram nulos em seus pró prios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o
coraçã o insensato. Inculcando-se por sábios , tornaram-se loucos e mudaram
a gló ria do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem
corruptível, bem como de aves, quadrú pedes e répteis.

Os seres humanos conhecem Deus em virtude da criaçã o. Mas suprimem o conhecimento.


Eles se voltam para “imagem”, isto é, ídolos. É o que acontecia na Grécia antiga.

Quando Cristo veio ao mundo, veio para redimir as pessoas de todos os seus pecados,
incluindo os pecados de servir a ídolos em vez de a Deus e os pecados de suprimir a
verdade sobre Deus. Se queremos libertaçã o, precisamos ir até ele.
 

O papel da Bíblia

Quando Cristo opera em nó s uma mudança através do Espírito Santo, passamos a crer na
Bíblia cada vez mais e a entendê-la cada vez melhor. A partir da Bíblia, aprendemos que
Deus criou os seres humanos em um estado de bondade ou integridade (Gn 1-2). Os seres
humanos nã o estavam desde sempre suprimindo a verdade, se rebelando contra Deus e
tentando escapar do seu senhorio.

Mesmo quando os seres humanos eram íntegros, Deus pretendia que eles nã o vivessem
independentemente dele. Ele nos criou para termos comunhã o consigo. Ele falou com os
seres humanos em Gênesis 1.28-30 e 2.16-17. Seus discursos revelavam quem ele era e
também quais eram seus padrõ es para as açõ es humanas. Ele disse a Adã o que nã o
comesse da ú nica á rvore especial no jardim do É den, a “á rvore do conhecimento do bem e
do mal” (Gn 2.17). Deus também indicou, na forma de resumo, as tarefas nas quais os seres
humanos deveriam se envolver (Gn 1.28-30). Deus pretendia que o pensamento humano se
atentasse ao que ele dizia na comunicaçã o verbal, digerindo e honrando isso.

A primeira comunicaçã o foi oral. Mas posteriormente Deus escreveu os Dez Mandamentos
em forma escrita (Ê x 24.12; Dt 5.22). Entã o comissionou Moisés para escrever muito mais
(Dt 31.24-26). Essa escrita inicial era a primeira parte de um cânon escrito, ou padrã o, que
deveria guiar e instruir as pessoas que pertenciam a Deus. A Bíblia é o câ non em forma
completa. [11]
Muito mais poderia ser dito, mas nã o precisamos buscar os detalhes. Como o
livro da instruçã o de Deus, a Bíblia fornece respostas importantes para a vida humana e
para o significado humano.

1
 

3. Abordagens opostas à filosofia


 
 

Podemos ver uma diferença nítida entre a maneira como a maioria dos filó sofos escolhem
buscar a sabedoria e a maneira que estamos propondo. Existem, de fato, vá rios pontos
notá veis de diferença.

Antítese

Primeiro, há uma diferença no coraçã o. A Bíblia indica que Cristo envia o Espírito Santo
para dar ao seu povo escolhido um “coraçã o novo” (Ez 36.26). Como resultado, eles
desejam obedecer a Deus em vez de se rebelar contra ele — o que faziam antes. Eles se
veem amando a Deus, compreendendo e amando o que a Bíblia diz ao invés de sentir que
ela nã o faz sentido ou que suas ideias lhes sã o desagradá veis. Deus levou a uma mudança
fundamental, uma mudança da rebeliã o a nível do coraçã o contra Deus, e de um desejo de
independência dele, para um amor a nível do coraçã o por Deus.

À s vezes as pessoas usam a expressã o nascer de novo para descrever uma experiência
subjetiva de mudança ou renovaçã o. E, de fato, o Espírito Santo opera a renovaçã o (Jo 3.3-
8). Mas essa renovaçã o é mais profunda do que podemos ver ou sentir. Além disso, as
pessoas podem ter experiências religiosas de mudança que ainda estã o aquém da
renovaçã o espiritual que a Bíblia descreve. A Bíblia está falando da verdadeira mudança
que o Espírito Santo opera no coraçã o de uma pessoa e nã o simplesmente de bons
sentimentos ou de uma experiencia religiosa vaga. Nem todo mundo que alega ter nascido
de novo realmente nasceu de novo, no sentido bíblico. As pessoas que nascem de novo sã o
também chamadas de regeneradas (praticamente um sinô nimo para nascer de novo ).

As pessoas regeneradas sã o diferentes das nã o regeneradas. A diferença é fundamental,


nã o superficial. As primeiras amam a Deus, enquanto as outras ainda estã o em rebeliã o.
Aquelas desejam se submeter ao que Deus diz na Bíblia, ao passo que as outras nã o. Umas
desejam obedecer a Deus, enquanto as outras nã o. Aquela crê em Cristo para a salvaçã o,
enquanto a outra nã o. Chamarei, portanto, as pessoas nã o regeneradas de incrédulas ,
significando que elas nã o creem em Cristo. Elas, todavia, creem em alguma coisa — seja em
outra religiã o, no naturalismo, no ateísmo, ou talvez apenas nelas pró prias. Há um
contraste ou antítese radical entre os dois tipos de pessoas. E essa antítese afeta como elas
pensam e como raciocinam, pois aquela pessoa quer pensar em submissã o a Deus,
enquanto a outra nã o.

Essa antítese é real, mas é combinada com as inconsistências e falhas prá ticas de ambos os
lados. Nesta vida, as pessoas regeneradas ou crentes nã o estã o totalmente livres do pecado.
E os pecados que permanecem incluem pecados intelectuais. Nem seu pensamento, nem
suas atitudes, nem seu comportamento sã o consistentemente íntegros.

Por outro lado, os incrédulos, em seus coraçõ es, nã o sã o consistentes com seu
comprometimento em oposição a Deus. Afinal, eles ainda sã o imagem de Deus, e Deus ainda
lhes manifesta bons dons a ele, incluindo dons intelectuais. Eles nã o sã o tã o ruins quanto
poderiam ser, enquanto os crentes nã o sã o tã o bons quando poderiam ser. Na verdade,
alguns incrédulos podem ser pessoas muito morais e admirá veis, do ponto de vista de seu
comportamento externo. Elas podem ser gentis no falar e retas no agir. Mas suas boas açõ es
ainda estã o contaminadas com o amor pró prio. Sua motivaçã o subjacente ainda é corrupta.
No fundo elas nã o estã o servindo a Deus, mas servindo a si pró prias — talvez ao seu
orgulho, talvez à sua reputaçã o, talvez ao seu conforto (por exemplo, podem querer uma
consciência confortá vel).

Exceto no período medieval, a maioria dos filó sofos ocidentais nã o tem sido composta de
cristã os totalmente comprometidos tentando “leva[r] cativo todo pensamento à obediência
de Cristo” (2Co 10.5). Alguns podem ter chamado a si pró prios de cristã os. Mas nossa
discussã o sobre a regeneraçã o deixa claro que o verdadeiro cristianismo, que significa
seguir a Cristo como Senhor, nã o é meramente uma questã o de dar a si mesmo o nome de
cristã o ou de passar pelo rito cristã o do batismo. O verdadeiro cristianismo começa com a
obra do Espírito Santo no coraçã o de uma pessoa.

Portanto, os produtos do pensamento dos filó sofos sã o mistos. Até mesmo dos filó sofos nã o
cristã os resultam algumas percepçõ es positivas, pois eles usufruem das boas dá divas de
Deus. Ainda vivem no mundo de Deus e nã o podem escapar do fato de que sã o feitos à
imagem de Deus. Eles querem ser autô nomos, mas nã o conseguem, pois sã o continuamente
dependentes de Deus. Há por parte deles uma pretensa autonomia, uma luta pela
independência que é continuamente frustrada pela presença de Deus.

Os bons produtos dos nã o cristã os sã o à s vezes chamados de produtos da graça comum . Os


produtos vêm da graça porque todos nó s somos culpados de pecado e rebeliã o e nã o
merecemos as coisas boas que recebemos de Deus. A palavra comum é usada para indicar
que Deus distribui esses dons tanto para crentes como para incrédulos:

… porque ele [Deus] faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre
justos e injustos. (Mt 5.45)

… contudo, [Deus] nã o se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo


o bem, dando-vos do céu chuvas e estaçõ es frutíferas, enchendo o vosso
coraçã o de fartura e de alegria. (At 14.17)

Podemos ver que a graça comum de Deus inclui, em princípio, nã o apenas dons físicos
como o envio da chuva, mas também dons intelectuais. Deus deu a algumas pessoas
percepçõ es aguçadas sobre o mundo. Portanto, a filosofia incrédula contém excelentes
percepçõ es. Por outro lado, os filó sofos que sã o cristã os produzem reflexõ es que sã o
inevitavelmente heterogêneas, pois os cristã os ainda nã o estã o livres do pecado.

Submissão à comunicação de Deus na Bíblia

Uma segunda grande diferença entre os dois tipos de pessoas é que os crentes e os
incrédulos diferem no seu uso da Bíblia. Os crentes estã o prontos para receber sua
instruçã o com fé. Os incrédulos nã o. Mais uma vez, existem mesclas. Os crentes podem ser
assaltados por dú vidas. Ou podem resistir pecaminosamente a um ensino específico da
Bíblia por certo tempo porque lhes é desagradá vel. Os incrédulos podem ver algumas
coisas atraentes na Bíblia que estã o dispostos a aceitar.
Mas ainda há uma diferença elementar. Na raiz, suas atitudes sã o diferentes. Os crentes
reconhecem que seu pró prio coraçã o e seus pensamentos precisam da redençã o em relaçã o
ao pecado e ao desejo de serem autô nomos e serem seus pró prios deuses. Eles repudiam a
prá tica de simplesmente seguir as inclinaçõ es de sua pró pria mente e agir com
superioridade sobre a Bíblia sempre que desejarem. Eles percebem que precisam da
instruçã o da Bíblia e que Deus designou a Bíblia para ser um meio pelo qual o coraçã o e a
mente das pessoas sã o progressivamente renovados. Os incrédulos, por outro lado,
acreditam que seu pensamento já é basicamente correto. Eles acham que nã o precisam se
submeter à Bíblia. Eles querem decidir independentemente da Bíblia — querem
autonomia.

Normalidade ou anormalidade do pensamento humano

Os crentes acham que o presente estado de coisas, incluindo o estado da mente humana, é
anormal . Ele está arruinado pela queda no pecado e pelos efeitos do pecado. Os incrédulos,
por outro lado, acham que o presente estado da mente humana é normal.

Essas diferenças afetam a filosofia. Tornou-se praticamente uma regra fundamental para a
prá tica da filosofia no mundo ocidental a impossibilidade de se apelar à Bíblia — e
tampouco a nenhuma outra fonte religiosa — para autoridade. Só se deve apelar à razã o.
Na minha opiniã o, essa regra fundamental demonstra uma rebeliã o desastrosa contra o
Deus do Universo. A vontade de Deus é que devemos usar a Bíblia. Já estaremos nos
rebelando se sugerirmos que sabemos melhor e nos recusamos a usar a orientaçã o de
Deus.

Táticas na discussão com os incrédulos

Os filó sofos que sã o cristã os poderiam dizer em resposta que, em seu pró prio pensamento,
eles querem se submeter a Deus, mas nã o apelam à Bíblia quando fazem filosofia porque
outras pessoas que nã o sã o cristã s estã o participando da conversa.

Essa situaçã o precisa ser resolvida. Podemos de fato, da totalidade do que estamos
pensando, distinguir tá ticas de curto alcance para a comunicaçã o. Mas quando nos
envolvemos em conversas com incrédulos, precisamos tomar cuidado para nã o cair no erro
de supor que estamos todos pensando da mesma forma. Nã o estamos. As regras bá sicas sã o
diferentes para os cristã os, pois estamos debaixo do senhorio de Cristo. Nunca estamos
“fora de serviço”. Tudo o que dizemos ou pensamos deve estar servindo a Cristo. Nã o
somos religiosamente neutros em parte do tempo. Nem os incrédulos.

Se sabemos que nã o estamos pensando da mesma forma, faz sentido, a certa altura, dar a
conhecer as diferenças no processo de nossa conversa a fim de que nossos interlocutores
nã o nos entendam mal. Em outras palavras, permitindo a oportunidade, é melhor falarmos
sobre a diferença que Cristo faz em nosso pensamento. E se ele nã o faz diferença, é melhor
voltarmos para considerar o que Romanos 12.2 diz sobre a transformaçã o da nossa mente.

Além disso, se estamos preocupados com os incrédulos como pessoas integrais e nã o


apenas estritamente preocupados com pontos de debate, devemos refletir sobre como
podemos lhes explicar que eles nunca virã o a conhecer a verdade corretamente se nã o
tiverem comunhã o com Deus. Devemos dizer que essa comunhã o renovada vem através de
Cristo. Devemos indicar que o Cristo de quem falamos é o Cristo descrito na Bíblia e que se
revela na Bíblia. Assim, a Bíblia deve entrar na discussã o à medida que tentamos resgatar
os filó sofos incrédulos de sua supressã o da verdade e rebeliã o contra Deus.

Simplesmente continuar a conversa usando apenas a razã o pode facilmente sugerir aos
incrédulos que a razã o encontra-se num estado perfeito quando autônoma , quando nã o
estamos ouvindo a Bíblia. Corremos o risco de transmitir uma impressã o falsa.

A tradiçã o da apologética pressuposicional, como exposta por Cornelius Van Til, tem-me
sido particularmente ú til para entender esses pontos, e eu a recomendo para aqueles que
querem saber como conduzir conversas com os incrédulos. Nã o podemos aprofundar
[12]

neste livro todas as dimensõ es desses desafios apologéticos. Mas quero desenvolver um
ponto bá sico. É extremamente importante se somos ou nã o seguidores de Cristo. A
orientaçã o do nosso coraçã o é importante. É importante se ouvimos a Bíblia. É importante
declararmos os nossos compromissos. É importante se pensamos que a razã o opera de
maneira autô noma.

Podemos dizer isso de outra maneira. Suponha que um cristã o queira participar de um
diá logo filosó fico num contexto moderno. Ele precisa considerar duas questõ es. Primeiro,
precisa perguntar se as regras bá sicas da discussã o na filosofia o proíbem de raciocinar da
forma como ele está comprometido a raciocinar, isto é, com Deus falando na Escritura
como seu instrutor e guia. Em segundo lugar, deve perguntar se nã o deve primeiro tomar
algum tempo e usar a Bíblia para encontrar respostas para as grandes questõ es levantadas
pelos filó sofos. Só depois de ter alcançado alguma clareza em sua pró pria mente — e pureza
de pensamento em comunhã o com a pureza de Deus — é que ele estará numa posiçã o
razoá vel para se envolver no diá logo sem comprometer suas crenças, caindo no mesmo
padrã o de raciocínio autô nomo que as regras bá sicas tentam impor sobre ele.

Buscando respostas

Outros livros na tradiçã o da apologética pressuposicional têm lidado extensivamente com a


maneira como conduzimos discussõ es com incrédulos de diferentes tipos. Novamente nã o
passaremos por esse conteú do aqui. Em vez disso, queremos buscar clareza mental para
nó s mesmos como crentes. Queremos empregar todos os recursos da Bíblia para buscar
conhecimento. A pró pria Bíblia nos encoraja a fazer uma busca que tenha em vista Deus e
sua instruçã o, ao invés de seguir uma rota autô noma:
 

O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria . (Sl 111.10)

O temor do SENHOR é o princípio do conhecimento , mas os insensatos


desprezam a sabedoria e a disciplina. (Pv 1.7, NVI)

Os incrédulos podem pensar que somos insensatos, pois para eles só se pode encontrar
sabedoria na autonomia. Eles nã o confiam na palavra de Deus na Bíblia e, portanto, nã o
estã o confiantes de que estamos antes crescendo na sabedoria do que a deixando. De fato,
aos seus olhos parecemos estar abandonando a sabedoria no processo mesmo de nos
submeter à Bíblia sem questionar o que ela diz. Eles dirã o que somos “acríticos” e
“dogmá ticos”. Mas, é claro, eles por sua vez sã o acríticos e dogmá ticos em seu compromisso
com a autonomia. Nã o nos deixemos desencorajar pelas críticas que já pressupõ em um
modo de vida oposto ao que encontramos em Cristo.

Este livro, portanto, é escrito basicamente para os cristã os. Queremos ver o que a Bíblia
ensina e aonde Deus nos leva com seu ensino, em vez de debater interminavelmente sobre
nossos compromissos bá sicos em comparaçã o com os compromissos bá sicos dos nã o
cristã os. Se você nã o é cristã o, ainda é bem-vindo para ler, é claro. Você pode aprender
como é ser um cristã o na busca de sabedoria. E ao longo do caminho poderá encontrar
percepçõ es individuais das quais acabe gostando e outras das quais acabe nã o gostando.
Pode ser que Deus o confronte ao longo do caminho e você seja transformado. Mas nã o
estou escrevendo basicamente com o leitor nã o cristã o em vista, e estaremos em busca da
verdade com base em pressuposiçõ es cristã s, que em alguns pontos sã o muito diferentes
das formas usuais do mundo.

Estamos aptos a enfrentar as grandes questões?

Os filó sofos vêm debatendo as grandes questõ es há séculos. Na maior parte, os debates
continuam. Filó sofos individuais podem ter suas pró prias convicçõ es. Mas na maioria dos
casos nã o há consenso. E dado o nú mero de séculos que se passaram, há pouca esperança
de consenso. (Uma exceçã o é a á rea da ló gica, onde parece haver uma boa dose de
concordâ ncia.) Dadas as dificuldades, podemos, nó s como cristã os, esperar fazer uma
contribuiçã o? Nã o seria presunçoso um cristã o comum tentar superar séculos de filosofia
conduzida por algumas das mentes mais brilhantes do mundo ocidental?

Seria presunçoso se o cristã o fosse operar pelas mesmas regras bá sicas de todo mundo.
Mas nó s nã o temos as mesmas regras bá sicas. Nó s podemos ir e estudar a Bíblia.
Creio que é chegada a hora de os cristã os fazerem uma reconsideraçã o significativa da
filosofia — uma redenção da filosofia, se você preferir. Nas ú ltimas décadas, vá rios cristã os
que sã o apologistas e filó sofos profissionais têm preconizado uma abordagem
distintamente cristã para fazer filosofia. Mas ainda há muito a ser feito.
[13]

Em 1987 John Frame já indicava a direçã o a seguir quando discutiu brevemente a filosofia
em sua obra A doutrina do conhecimento de Deus . Lá ele diz:

Para mim é difícil traçar uma aguda distinçã o entre a teologia cristã e a filosofia cristã .
Geralmente se entende filosofia como uma tentativa de entender o mundo em suas
características mais amplas e gerais. Ela inclui a metafísica, ou a ontologia (o estudo do ser,
do que “é”), a epistemologia (o estudo do conhecimento), e a teoria dos valores (ética,
estética, etc.). Se alguém procurar desenvolver uma filosofia verdadeiramente cristã ,
certamente irá fazer isso sob a autoridade da Escritura, e assim estará aplicando a Escritura
à s questõ es filosó ficas. Fazendo isso, ele estará fazendo teologia, conforme a nossa
definiçã o. A filosofia cristã é, pois, uma subdivisã o da teologia. Além disso, visto que a
filosofia se ocupa da realidade num sentido amplo, abrangente, pode-se muito bem tomar
como sua tarefa “aplicar a Palavra de Deus a todas as á reas da vida”. Essa definiçã o torna a
filosofia idêntica à teologia, nã o uma subdivisã o desta.[14]

John Frame segue em frente para indicar que ainda pode haver uma diferença de foco. Um
filó sofo pode se concentrar mais na revelaçã o de Deus através da natureza, enquanto o
teó logo se concentra mais na revelaçã o especial na Escritura. Entretanto, cada um deve
levar em conta os dois tipos de revelaçã o. Nã o há uma distinçã o nítida entre a filosofia
cristã e a teologia cristã .

Essa surpreendente sobreposiçã o implica que a Bíblia tem muitas coisas pertinentes a
dizer para as perguntas que os filó sofos tradicionalmente têm feito. O principal problema é
que muitos filó sofos nã o se atentam! Ou melhor, pode ser que eles deixam de prestar
atençã o porque nã o confiam no que a Bíblia diz.

Inconsistências entre os cristãos

Agora vamos retornar à questã o das inconsistências. Os cristã os, como já dissemos, sã o à s
vezes inconsistentes com os seus compromissos mais bá sicos. Esse princípio se aplica a
mim enquanto escrevo este livro. Eu ainda luto com pecados, alguns dos quais sã o sutis e
de alguns dos quais nã o estou ciente. Eles podem afetar meu pensamento, bem como meu
coraçã o e meu comportamento. Assim, embora a Bíblia seja a palavra infalível de Deus,
meus pensamentos nã o sã o. Como todos os produtos humanos, o que eu escrevo precisa
ser pesado e peneirado.

Idealmente, o pesar e peneirar ocorrem por comparaçã o com a Bíblia como nosso padrã o
de avaliaçã o (At 17.11). Eu espero fazer progressos porque estou ouvindo a Bíblia. Mas
também me esforço para construir sobre as percepçõ es e dons dos crentes que vivem ao
meu redor e daqueles das geraçõ es anteriores. Também presto atençã o aos incrédulos, pois
eles recebem percepçõ es através da graça comum. Se eu lograr êxito, aqueles que leem este
livro podem continuar a construir e melhorar o que eu fiz. Eles podem, portanto, mover-se
para além. E se encontrarem erros ou falhas, devem evitá -los à medida que avançam. É
assim que o Senhor continua a abençoar o seu povo através das geraçõ es.

1
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Parte 2
 
METAFÍSICA: O QUE EXISTE?
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
4. Filosofias inadequadas
 
 

Agora nos voltamos especificamente para a á rea da filosofia chamada metafísica, que
investiga a natureza das coisas. As respostas aqui fazem diferença. Podemos ilustrar isso
considerando primeiro algumas respostas nã o cristã s.

Materialismo

Já mencionamos o materialismo . O materialismo diz que o mundo, em seu nível mais


bá sico, consiste de matéria, movimento e energia. Quaisquer outras camadas consistem de
interaçõ es e arranjos complexos da matéria.

Essa visã o tem grandes dificuldades. Como indicamos anteriormente, ela solapa a
importâ ncia das pessoas. De acordo com o materialismo, as pessoas sã o meras interaçõ es
complexas de partículas materiais. Essa visã o tende a evaporar a importâ ncia da ética. Por
exemplo, suponhamos que Carol seja materialista. Ela pode querer ser gentil com as outras
pessoas. Mas o que Carol vai dizer se, ao encontrar Joe, ele fala que quer dominar ou
esmagar as outras pessoas para cumprir o princípio evolutivo da sobrevivência dos mais
aptos? É a moralidade apenas uma questã o de preferência subjetiva, de forma que Carol
prefere um tipo de comportamento e Joe outro?

O materialismo moderno geralmente acompanha a versã o materialista da evoluçã o


bioló gica, que diz que a evoluçã o é um processo sem propó sito. Nã o há Deus para criar os
seres humanos de uma só vez; nem há um Deus que poderia trabalhar gradualmente para
trazer os seres humanos à existência a partir de ancestrais animais. O processo da evoluçã o
nã o tem nenhum significado humano para ele, a menos que criemos um em nossas
imaginaçõ es. Num cená rio como esse, Joe pode admitir que a evoluçã o produziu
sentimentos de bondade em Carol, mas também pode argumentar que a evoluçã o fez dele o
que ele é. A evoluçã o nã o justifica suas açõ es nem mais nem menos do que justifica as de
Carol. Portanto, é difícil ver como Carol pode justificar quaisquer padrõ es morais reais em
oposiçã o a meras preferências que sã o na verdade expressõ es moralmente neutras de
nossos hormô nios e neurô nios.
O materialismo tem mais dificuldades com respeito ao entendimento das ideias da mente e
da consciência. O materialismo diz que os neurô nios e as interaçõ es químicas em nosso
corpo controlam totalmente o comportamento humano. A consciência é uma ilusã o ou uma
expressã o sobressalente e involuntá ria do que os neurô nios subjacentes estã o fazendo —
do que a matéria está fazendo. A evoluçã o sem propó sito só se importa com a
sobrevivência e, portanto, com o funcionamento vantajoso dos neurô nios. Ela nã o se
importa com a consciência como uma camada extra.

Descobrimos, contudo, que podemos pensar sobre o que vamos fazer. E esse elemento de
“pensar sobre ” é difícil de correlacionar com a sobrevivência. Nossos neurô nios têm de
reagir à nossa situaçã o para que possamos sobreviver. Mas a consciência poderia estar
pensando sobre a lua ou sobre abstraçõ es matemá ticas ao mesmo tempo em que os
neurô nios estivessem reagindo a um leã o à espreita. Nã o há nenhuma garantia de que
existiria alguma correlaçã o causal entre a consciência e o leã o. Na verdade, nã o pode existir
uma correlaçã o causal, pois todas as causas operam ao nível dos neurô nios. De acordo com
o materialismo estrito, a consciência é uma completa ilusã o ou uma camada extra que nã o
causa nada. Sem uma correlaçã o causal, nã o há nenhuma razã o para suspeitar que a
consciência tem alguma conexã o com a verdade. Consequentemente, nã o temos nenhuma
razã o para suspeitar que o materialismo como uma crença é verdadeiro. [15]

O uno e o múltiplo

O materialismo também tem uma dificuldade com o problema clá ssico do uno e do
mú ltiplo. Esse problema incomoda muitas filosofias. Em que consiste o problema? O mundo
contém tanto unidade (o uno) quanto diversidade (o mú ltiplo). Ele contém muitos seres
humanos e uma humanidade. Contém muitos cachorros e uma espécie, a espécie de
cachorro. Por quê? E qual é a relaçã o ú ltima entre os dois, entre a unidade e a diversidade?
O problema do uno e do mú ltiplo suscita a pergunta: o que é anterior, o uno ou o mú ltiplo, a
unidade ou a diversidade? No nível mais fundamental, o mundo é uma coisa ou muitas
coisas? E como o uno se relaciona com o mú ltiplo?

O materialismo moderno retrata o universo como composto de muitas partículas ( bits ) de


matéria. Assim, a princípio parece que o seu ponto de partida fundamental é com o
mú ltiplo, isto é, com as muitas partículas. Ao mesmo tempo, as muitas partículas caem em
classes regulares. Todos os elétrons sã o iguais, todos os pró tons sã o iguais. A semelhança é
uma expressã o de unidade. De onde vem a unidade? Por que todos os elétrons sã o iguais?

Neste ponto, o materialismo moderno apelaria à física das partículas elementares. Um


físico poderia dizer que todos os elétrons sã o iguais porque todos obedecem à s mesmas leis
físicas. Se assim for, parece que as leis físicas, que expressam unidade, sã o anteriores à
diversidade de elétrons distintos. Como entã o os muitos elétrons passam a existir através
de um conjunto de leis físicas? Como o mú ltiplo vêm do uno?
Um físico poderia dizer que as leis físicas, em seu significado interno, já preveem a
possibilidade de muitos elétrons. Mas isso nã o é uma explicaçã o completa. Mera
possibilidade nã o é o mesmo que realidade. Equaçõ es, por si só , nã o produzem matéria.
Como, entã o, as muitas partículas de matéria vêm à existência?

Se pudermos de alguma forma superar esse problema, outras formas do problema do uno e
do mú ltiplo ainda nos confrontam. Para a sua expressã o, as leis físicas dependem da
matemá tica, que depende do conceito de múltoplo que está envolvido nos nú meros. De
onde vêm os nú meros? Qual é a relaçã o do uno e do mú ltiplo nos nú meros? E por que o
mundo da matéria, que é conceitualmente distinto do mundo dos nú meros, concorda com o
mundo dos nú meros? Aqui temos outro tipo de diversidade — a diversidade expressa na
distinçã o entre dois “mundos”: o “mundo” do nú mero e o “mundo” da matéria. Também
temos unidade, ou seja, a coerência entre os dois. Por quê?

Um materialista poderia reconstituir nosso conhecimento dos nú meros retroativamente


até nossa experiência com maçã s e laranjas distintas. Mas essa distinçã o nas maçã s é um
exemplo dentre muitos, baseada nas muitas partículas de matéria nas maçã s. Voltamos à
matéria. A diversidade na matéria deriva da diversidade nas leis, e a diversidade nas leis
deriva da diversidade nos nú meros, e a diversidade nos nú meros deriva da diversidade na
matéria. Estamos apenas andando em círculos. Nesse nível o materialismo realmente nã o
oferece nenhuma explicaçã o ú ltima da unidade ou diversidade nem uma explicaçã o de por
que existe matéria, com unidade e diversidade, e por que existem leis, com sua unidade e
diversidade.

Tales

Podemos ver os problemas bá sicos da filosofia de maneira ainda mais simples se


considerarmos um argumento anterior da filosofia grega. O antigo filó sofo grego Tales
supostamente disse que “tudo é á gua”. Essa proposta tem dificuldades parecidas com as
que já vimos no materialismo moderno. (De fato, Tales nos fornece uma versã o antiga do
materialismo.) A visã o de Tales tem dificuldades tanto para explicar a existência das
pessoas como para justificar o uno e o mú ltiplo. A dificuldade com as pessoas é a habitual.
Como as pessoas surgiram e como podem ter sentido se tudo começou com a á gua? Sem um
Deus pessoal ou deuses para trazer pessoas humanas à existência, como podemos entender
a singularidade das pessoas? Como podemos ter moralidade se começamos com uma base
materialista? E como Tales pode saber que tudo é á gua se ele e tudo o mais se reduz a á gua?

O problema do uno e do mú ltiplo também assola a tese de Tales. A tese aparentemente


afirma partir da “á gua” como a “coisa” ú nica inicial. Mas, se essa coisa é genuinamente una,
como ela pode se diferenciar? Como podemos obter muitas coisas distintas de muitos tipos
diferentes? Se tudo é á gua, aparentemente devemos concluir que tudo permanece á gua, e
entã o estamos dizendo que “á gua é á gua”. Temos uma “explicaçã o” que nã o explica.
Ou suponha que partimos de mú ltiplo em vez de uno. É possível interpretar a afirmaçã o
enigmá tica de Tales como significando que devemos partir com pensamentos sobre a
diversidade de “todas” as coisas. Todas as coisas, quando as observamos em sua
diversidade, têm de alguma forma á gua como uma unidade subjacente. Mas no que consiste
essa unidade que une toda a diversidade? Deve ser uma unidade que já esteja de alguma
forma em cada coisa; assim, nã o é “á gua” no sentido literal do termo. O que parece
estarmos dizendo é que “tudo é tudo”. Mais uma vez, temos de nos perguntar se realmente
estamos explicando alguma coisa.

Platão

De acordo com Platã o, outro filó sofo grego, forma e matéria constituem a estrutura mais
bá sica do mundo. As formas sã o objetos abstratos eternos do pensamento. A ideia do bem
deve ser a mais fundamental, enquanto que outras ideias incluem beleza, justiça, piedade e
virtude. Essas ideias ou “formas” sã o imperfeitamente expressas nos casos da beleza ou
justiça na Terra. Por exemplo, a ideia eterna e abstrata de um cavalo é expressa nos cavalos
específicos que nó s observamos. As expressõ es na Terra sã o diferenciadas porque todas
elas têm matéria em si. A forma, como a forma de um cavalo, fornece a unidade ú ltima,
enquanto a matéria, que é moldada pela forma, resulta na pluralidade de muitos cavalos.

Assim como as duas filosofias que acabamos de considerar, a abordagem de Platã o tem
dificuldade para explicar as pessoas. O universo começa puramente com coisas impessoais
— as formas sã o imateriais, abstratas e, portanto, impessoais. Além disso, a matéria é
concreta e impessoal. Assim, o significado pessoal evapora. Platã o pensava que toda alma
humana tinha preexistência eterna. De certa forma, isso é como tornar a pró pria alma
divina ou deificada. Mas cada alma deve encontrar seu significado e sua satisfaçã o no
conhecimento e na contemplaçã o das formas, que sã o impessoais. O que é pessoal é na
verdade engolido num mundo impessoal.

Platã o também tinha um problema com o uno e o mú ltiplo. Cada forma, como a forma de
um cavalo, é uma em relaçã o à s suas muitas corporificaçõ es materiais, os cavalos
específicos. Mas por que o mú ltiplo diferem uns dos outros se sã o todos produtos de uma
forma? A diferença só pode ser interpretada como uma imperfeiçã o. Mas de onde vem a
imperfeiçã o? E como a matéria, concebida como eternamente existente, se relaciona com as
formas?

Platã o ofereceu uma histó ria mitoló gica sobre um demiurgo, uma figura deificada (uma
espécie de deus finito) que fazia coisas individuais copiando as formas. Mas de onde veio o
demiurgo, e por que seu trabalho era imperfeito? Nã o está claro se Platã o pretendia que
sua histó ria fosse tomada como uma descriçã o real ou como um tipo de mito para
expressar algo além da expressã o. Em qualquer dos casos, ela deixa a questã o do uno e do
mú ltiplo sem uma explicaçã o definitiva, porque o demiurgo precisa ser explicado: ele é um
ser que aparentemente é distinto tanto da matéria como das formas, e todavia tem relaçõ es
significativas com ambas. Sua existência e seus relacionamentos já pressupõ em a unidade e
a diversidade, em vez de explicá -las. [16]

Politeísmo

Se nó s vemos as deficiências das filosofias que tomam a matéria, a forma ou alguma coisa
impessoal (á gua?) como fundamental, podemos considerar se os pontos de partida
personalistas sã o melhores. O politeísmo grego é um desses exemplos. Os antigos gregos
acreditavam em muitos deuses: Zeus, rei dos deuses e deus do tempo; Afrodite, deusa do
amor; Ares, deus da guerra; Poseidon, deus do mar; e outros. De acordo com essa visã o, os
deuses sã o pessoais. Isso ajuda a transmitir algum significado à s pessoas humanas. Mas se
há muitos deuses, as pessoas humanas se encontram em lealdades divididas, separadas em
vá rias direçõ es pela agenda conflitante dos diferentes deuses. Ademais, nenhum dos
deuses é supremo, e eles praticam imoralidades que os tornam indignos de uma lealdade
moral.

Além disso, o problema do uno e do mú ltiplo nã o é realmente resolvido. Os deuses sã o


muitos, mas o que os une? O destino é uma força impessoal subjacente que perpassa todos
eles. Ele traz uma certa unidade. Mas qual é a relaçã o entre o destino e os deuses? E visto
que o destino é impessoal, ele solapa o significado pessoal.

Se as filosofias e cosmovisõ es nã o cristã s nã o têm respostas satisfató rias, qual é o caminho


cristã o? Agora nos voltaremos para considerar a instruçã o positiva da Bíblia sobre a
natureza das coisas.

1
 

5. A metafísica cristã
 
 

Agora vamos considerar a metafísica a partir do ponto de vista cristã o. A metafísica estuda,
em suas características mais bá sicas ou fundamentais, o que existe. Alguns poderiam dizer
que ela estuda o ser .
Entã o, o que existe? A Bíblia nos diz em seus versículos iniciais. Deus sempre existe. No
princípio ele criou o mundo. O mundo existe porque Deus o trouxe à existência. Deus é o
Criador, enquanto o mundo e todas as coisas nele sã o criados. Deus nã o deve ser
confundido com o mundo. Ele nos chama para o adorarmos e nã o a qualquer criatura (Ê x
20.3-6). Os teó logos, em sintonia com isso, falam da “distinçã o Criador-criatura”.

Podemos agora prosseguir com detalhes mais específicos. O livro de John Frame, A doutrina
do conhecimento de Deus , se concentra em epistemologia, nã o em metafísica. Contudo,
[17]

as duas estã o relacionadas. Na parte 1, seu livro discute “Os objetos do conhecimento”. Os
objetos do conhecimento sã o as coisas como elas sã o. E Frame nos diz o que elas sã o: Deus,
o mundo e nó s mesmos. É isso.

Evidentemente, nó s mesmos somos criaturas de Deus, e assim, se tratamos a palavra


mundo de forma ampla, ele nos inclui. Assim, temos Deus e o mundo. O mundo é tudo o que
Deus criou, incluindo nó s mesmos. Mas por causa do papel especial que cada um de nó s
desempenha no pró prio conhecimento, é conveniente para Frame distinguir entre o
indivíduo e o mundo ao seu redor. Podemos também distinguir entre os seres humanos
como um grupo e tudo o mais na criaçã o, por causa do papel especial que os seres humanos
desempenham (Gn 1.26-30).

Como Frame sabe que essas três coisas — Deus, o mundo e nó s mesmos — existem? Ele
nã o diz explicitamente, mas está claro que ele sabe. A Bíblia menciona todas as três. [18]

Assim, temos um começo. Mas o que mais podemos dizer?

Mais a saber

Os seres humanos sã o finitos. Eles nã o sabem tudo. E com o tempo podem crescer em
conhecimento. Podemos, portanto, preencher cada vez mais detalhes sobre Deus, sobre o
mundo e sobre nó s mesmos à medida que avançamos no tempo. O processo continua
enquanto permanecermos neste mundo.

A Bíblia tem um papel fundamental no processo, pois é a comunicaçã o de Deus a nó s. Como


já observamos, Deus jamais pretendeu que os seres humanos vivessem pela mera
observaçã o do mundo. Mesmo antes da queda no pecado, Deus lhes falou. E a Bíblia é uma
continuaçã o do seu discurso, agora disponível onde quer que seja traduzida.

A Bíblia tem um papel no processo em que Deus nos redime do pecado, incluindo os
pecados intelectuais. Assim, ao longo da nossa vida na Terra, precisamos continuar a usar a
orientaçã o da Bíblia em todas as á reas da vida. Mas também é verdade que podemos
aprender pela observaçã o do mundo e pela comunicaçã o com os outros seres humanos. A
ciência, as humanidades e as artes podem nos trazer bênçã os. Elas contêm muitos
benefícios da graça comum. Mas visto que estã o contaminadas pelo pecado, precisamos
testá -las usando a Bíblia como nossa linha de prumo.
Colocando de outra forma, o que a Bíblia diz sobre o mundo fornece um começo em vez de
um fim. A pró pria Bíblia atribui tarefas à humanidade: “… multiplicai-vos, enchei a terra e
sujeitai-a; dominai” (Gn 1.28). Incluída neste programa está uma tarefa de exploraçã o
científica, que Adã o começou quando deu nome aos animais (Gn 2.19-20). Os seres
[19]

humanos devem descobrir e aprender muito mais sobre Deus e seu mundo do que sabiam
no começo. Idealmente, eles fazem essa exploraçã o em serviço a Deus, com amor por Deus
(Dt 6.5) e em comunhã o com Deus. Essa comunhã o inclui a recepçã o fiel e a confiança na
comunicaçã o verbal que Deus dá aos seres humanos.

Tipos de criaturas

Gênesis 1-2 fornece instruçõ es fundamentais para guiar o aprendizado humano sobre o
mundo. Como vimos, podemos começar dizendo que existem Deus, o mundo e nó s mesmos.
Gênesis 1 dá entã o mais detalhes. Ele indica que Deus criou a luz (Gn 1.3). Deus também fez
vá rias regiõ es distintas: o firmamento, chamado de céu (1.8, NVI); a parte seca, chamada de
terra (1.10, NVI); e o conjunto das á guas, chamado de mares (1.10). [20]
Ele também criou
tipos específicos de criaturas que habitam essas regiõ es. Fez vá rias plantas, que se
reproduzem “de acordo com as suas espécies” e crescem na terra seca (1.11-13, NVI). No
quarto dia fez o sol, a lua e as estrelas nos céus (1.14-19). As criaturas do mar povoam as
á guas, e as aves voam sob o firmamento dos céus (1.20-23). Os animais terrestres vagam
pela terra (1.24-25). Por fim, para coroar tudo, ele fez a humanidade à sua imagem (1.26-
30).

Esses atos criativos de Deus fizeram um começo maravilhoso. E temos um começo


maravilhoso para o nosso conhecimento quando ouvimos, submissos, a palavra de Deus.
Sabemos que Deus fez todos esses tipos de coisas e que podemos admirar sua sabedoria,
poder e bondade demonstrados no que ele fez (Rm 1.20).

Hoje em dia muitas pessoas se perguntam sobre a relaçã o de Gênesis 1 e 2 com a descriçã o
científica moderna. Elas podem ser céticas. Podem pensar que Gênesis 1 e 2 representam
apenas um relato obsoleto e primitivo das origens. Mas Gênesis 1 e 2 na verdade fornece
uma base para a ciência ao indicar que (1) o mundo tem ordem por causa do plano e poder
de Deus; (2) nó s, como seres humanos, fomos comissionados a crescer em entendimento e
domínio; e (3) porque somos feitos à imagem de Deus, podemos ter confiança de que, de
um modo fundamental, nossa mente está em sintonia com a mente de Deus. É claro que
podemos cometer erros ou ter visõ es distorcidas, mas ainda podemos ter uma confiança
subjacente de que o conhecimento é possível e que, pela graça de Deus, ele pode tornar-se
acessível.

Assim, temos esperança de entender o mundo. Nossa mente está em sintonia com o cará ter
do mundo porque Deus fez tanto o mundo como nó s mesmos. Se interpretadas
corretamente, a ciência e a Bíblia se encaixam. Trabalhar os detalhes requer paciência,
[21]
mas obtemos um melhor entendimento do que se tivéssemos uma ciência sem uma base
profunda.

Também podemos ver de que forma a Bíblia afirma a importâ ncia dos seres humanos como
pessoas. Somos feitos à imagem de Deus e temos a capacidade de ouvir Deus e ter
comunhã o com ele porque Deus é pessoal. O cará ter eternamente pessoal de Deus forma o
fundamento ú ltimo para o significado das pessoas finitas que ele criou.

Gênesis 1 nos oferece um resumo compacto. Ele indica que existem muitos tipos de plantas
e animais, mas nã o nos dá todos os detalhes. É um relato escasso. Podemos notar que
[22]

ele nã o menciona os anjos. Passagens posteriores na Bíblia suprem detalhes indicando que
os anjos existem (Mt 28.2). Espíritos malignos também existem; eles foram originalmente
criados como anjos bons, mas decaíram (Jd 6). Um relato mais completo também poderia
ter mencionado plantas marinhas, como as algas. Utilizando microscó pios, acrescentamos
agora ao nosso conhecimento a noçã o de animais e plantas microscó picos (por exemplo,
algas unicelulares). A expansã o do conhecimento humano para incluir esses novos tipos de
criaturas é consistente com o papel de Gênesis 1-2 em nos dar um começo para a
investigaçã o humana.

Gênesis 1 e 2 indicam que Deus criou o mundo como um todo ordenado, que exibe o poder
de Deus. Dado o seu poder, podemos ver que é possível que ele tenha criado outros mundos
dos quais nada sabemos — outros universos. É possível porque Deus é infinito em poder.
Mas nã o sabemos de outros mundos nem precisamos saber. A Bíblia nos instrui em um
nível mais prá tico. Como um relato escasso, ela se limita ao que precisamos saber quando
começamos a interagir com o nosso mundo.

Também é possível que Deus tenha criado seres vivos em outros lugares no universo. Mais
uma vez, nã o sabemos. Os cientistas se perguntam se finalmente encontrarã o algum ser
vivo em Marte, ou talvez até numa das luas de Jú piter ou Saturno. Ou quem sabe haveria
vida em outro sistema planetá rio em torno de alguma estrela distante? Isso é com Deus. Ele
pode criar qualquer tipo de vida que desejar. Os pró prios capítulos 1 e 2 de Gênesis nã o
pretende ser exaustivo, mas é programá tico. É um resumo escasso, escrito para incluir
leitores e ouvintes, tanto doutos quanto indoutos, em todas as culturas.

Múltiplas perspectivas na ordem criada

Algumas pessoas têm visto com desconfiança a organizaçã o em Gênesis 1, queixando-se de


que alguns tipos de seres vivos sã o omitidos e outros supostamente “classificados
erroneamente”. Já discutimos a questã o das omissõ es. Gênesis 1 nã o alega ser completo. E
quanto à suposta classificaçã o errô nea? Baleias e golfinhos sã o classificados junto de outras
criaturas marinhas em Gênesis 1.20-23 e aparentemente pertencem aos “peixes do mar”
em Gênesis 1.28. No entanto, eles nã o sã o peixes, mas mamíferos. Nã o há dificuldade real
aqui, pois Gênesis 1 está classificando os animais de acordo com a localizaçã o — mar, céu
ou terra —, em vez de desenvolver uma taxonomia técnica como a que encontramos nos
desenvolvimentos científicos posteriores.

Além do mais, a palavra hebraica traduzida como “peixe” pode ser mais flexível que o nosso
uso técnico moderno da palavra peixe . Ela também poderia ser usada como uma parte do
todo em Gênesis 1.28, que fala do peixe como representativo de um grupo maior que inclui
todas as criaturas do mar. Tendo em vista seu propó sito de se dirigir a muitas pessoas de
muitas culturas, a Bíblia usa apropriadamente as palavras de uma maneira comum e
flexível.

As descriçõ es em Gênesis 1 ilustram um uso da perspectiva . Gênesis 1 indica que Deus


criou muitos tipos distintos de animais e plantas. Mas também agrupa os animais por sua
localizaçã o, nã o pela taxonomia técnica moderna, como já observamos. Os seres humanos
podem escolher que tipo de descriçã o e que tipo de classificaçã o podem apresentar. Deus,
ao falar com os seres humanos, também faz escolhas. Cada escolha de um tipo de descriçã o
apresenta uma perspectiva sobre o mundo dos animais.

Também devemos notar que a Bíblia como um todo contém mú ltiplas passagens que
discutem a criaçã o. Essas passagens nos dã o mú ltiplas perspectivas dentro da pró pria
Bíblia.

Por exemplo, considere a relaçã o entre Gênesis 1.1-2.3 e Gênesis 2.4-25. Sem entrar numa
aná lise completa, [23]
podemos observar que Gênesis 1 nos oferece uma descriçã o que
classifica os principais tipos de criaturas. Ela é cronoló gica e taxonô mica. Gênesis 2.4-25,
em contraste, apó s uma breve descriçã o de uma situaçã o relativamente nã o formada nos
versículos 4-6, começa com a criaçã o do homem. Tudo o mais é explicado em relaçã o ao
homem. Deus cria outras coisas em resposta à s necessidades humanas. Assim, Gênesis 2.4-
25 é orientado para os propó sitos das coisas criadas, especialmente em relaçã o ao homem.
Ele é teleológico , ou orientado para um propó sito, em vez de cronoló gico e taxonô mico.

Naturalmente, há uma grande quantidade de semelhanças entre as duas narrativas e algum


grau de foco comum. Em Gênesis 2.4-25 surge algum interesse taxonô mico quando Adã o dá
nome aos animais em 2.19-20 e o interesse cronoló gico aparece quando Deus responde à
falta de uma auxiliadora para o homem ao fazê-lo cair em sono pesado e criar entã o a
mulher. Contudo, o foco dominante é proposital, como destaca o Novo Testamento ao
comentar Gênesis 2 dizendo que “também o homem nã o foi criado por causa da mulher , e
sim a mulher, por causa do homem ” (1Co 11.9). A expressã o por causa de indica a presença
de propó sito.

A Bíblia também contém passagens sobre a criaçã o que se baseiam em Gênesis 1. Entre as
principais passagens estã o Jó 38-41, Sl 104 e 148, Jo 1.1-5, Rm 1.18-23 e Cl 1.15-17.[24]

Todas essas passagens têm uma unidade. Todas afirmam o absoluto de um só Deus e sua
soberania sobre a criaçã o. Todas pressupõ em uma distinçã o entre o Criador e as criaturas
que ele fez. Mas podemos observar diferenças na textura, que surgem de diferentes
interesses e diferentes focos.

1
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Parte 3
 
PERSPECTIVAS
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
6. Apresentando as perspectivas
 
 

Podemos explorar ainda mais as diferenças entre as vá rias passagens introduzindo três
perspectivas que ajudam a destacar as diferenças. Tenho em mente as três perspectivas de
John Frame sobre ética, que precisam de uma breve explicaçã o.

Três perspectivas sobre ética

Ao analisar as questõ es éticas, John Frame usa três perspectivas complementares: a


perspectiva normativa , a perspectiva situacional e a perspectiva existencial . A
[25]

perspectiva normativa enfoca as normas , a saber, os mandamentos de Deus. Ela pergunta:


o que Deus me manda fazer? A perspectiva situacional enfoca a situaçã o. Ela pergunta:
Dada a minha situaçã o, que açõ es minhas podem melhor promover a gló ria de Deus e a
bênçã o do meu semelhante? A perspectiva existencial olha para a pessoa. Quais sã o os
meus motivos? Quais atitudes e açõ es sã o motivadas pelo amor?

Dentro de uma abordagem biblicamente fundamentada, essas três perspectivas sã o


perspectivas sobre o mesmo todo. Cada uma leva à s demais. Cada uma implica as demais e
cada uma pressupõ e as demais. Elas se harmonizam intrinsecamente.

Vejamos de que forma. Deus declara as normas; Deus criou e governa a situaçã o; Deus
criou as pessoas na situaçã o. Deus é um Deus e há , portanto, harmonia. Além disso, cada
uma das perspectivas, quando corretamente entendida, leva à s demais. Deus nos manda
amar o pró ximo. Sua ordem é uma norma para nó s. Ela está em foco quando usamos a
perspectiva normativa. O mandamento de amar o pró ximo nos leva a examinar nossos
motivos — o motivo deve ser o amor. A preocupaçã o com os motivos implica que devemos
nos engajar na perspectiva existencial. Quando Deus nos manda amar o pró ximo, isso
também implica que devemos olhar para a situaçã o do pró ximo. Devemos considerar,
dadas as circunstâ ncias, do que ele mais precisa e o que o beneficiaria. O pró prio Deus,
através dos seus mandamentos, faz com que nos engajemos na perspectiva situacional.

Por outro lado, se começamos com a perspectiva situacional, devemos notar que Deus é a
pessoa mais importante na nossa situaçã o. Precisamos descobrir o que ele deseja e o que
lhe agrada. E assim somos levados à perspectiva normativa, na qual consideramos os
mandamentos de Deus como uma expressã o dos seus desejos. E também consideramos o
restante da Escritura, pois sua instruçã o fornece um contexto dado por Deus para entender
seus mandamentos e seu cará ter mais profundamente. A perspectiva situacional também
leva à perspectiva existencial, porque nó s mesmos como atores vivemos dentro da
situaçã o, e a açã o eticamente boa em nossa situaçã o inclui as açõ es que têm as motivaçõ es
corretas.

Usando as perspectivas sobre ética

Com esse pano de fundo, podemos classificar as passagens sobre a criaçã o. As três
perspectivas se interligam e interpenetram, de modo que no fim todas as três preocupaçõ es
estã o presentes em todos os discursos. Contudo, em termos de proeminência, podemos
observar diferenças. Podemos dizer que Gênesis 1.1-2.3 e Gênesis 2.4-25 exibem uma
perspectiva situacional sobre a criaçã o. Eles estabelecem os tipos de criaturas que Deus fez,
e o fazem em prosa em vez de poesia (embora a prosa seja elevada em estilo).

Jó 38-41, Salmos 104 e Salmos 148 sã o todas passagens poéticas e todas envolvem atitudes
humanas mais diretamente. Ao envolver atitudes humanas, demonstram uma perspectiva
existencial sobre a criaçã o. Dentro dessa ênfase existencial, podemos ver mais variaçõ es. Jó
38-41 é principalmente um discurso direto de Deus, desafiando a presunçã o e expondo,
para nossa admiraçã o, o alcance da sabedoria de Deus, que ultrapassa o nosso
entendimento. Salmos 104 é um profundo louvor. Salmos 148 chama a pró pria criaçã o a se
envolver no louvor. Com certa hesitaçã o, podemos sugerir que, dentro da orientaçã o
amplamente existencial de todos os três poemas, Jó 38-41 tem um enfoque existencial mais
intenso, que exige que os seres humanos se confrontem com a revelaçã o neles presente.
Salmos 104 tem um enfoque mais situacional, na medida em que percorre muitos detalhes
que têm correlaçõ es ó bvias com os eventos dos seis dias de Gênesis 1. Salmos 148 tem um
enfoque mais normativo, pois ordena o louvor.

Joã o 1.1-5 e Colossenses 1.15-17 representam uma perspectiva situacional, na medida em


que apresentam novamente a exposiçã o em prosa. Mas, em vez de enfocarem o mundo que
Deus criou, as passagens se concentram mais no Deus que o criou. Elas articulam como a
segunda pessoa da Trindade tem um papel distintivo na criaçã o do mundo.

Por fim, Romanos 1.18-23 representa uma perspectiva normativa. Enfoca a violaçã o das
normas — o pecado — na resposta humana à revelaçã o criadora de Deus.

Quando tomadas em conjunto, essas passagens enfatizam o fato de que a obra criadora de
Deus e as criaturas que dela resultam podem ser descritas a partir de uma série de
perspectivas complementares. Essas perspectivas, quando corretamente entendidas, nã o
estã o em tensã o umas com as outras. As passagens posteriores se baseiam em Gênesis 1-2,
em vez de apresentarem alternativas que lhe sã o contraditó rias. Um quadro unificado da
criaçã o emerge quando consideramos todas as passagens juntas. Existe unidade. Existe
diversidade também, pois o significado da criaçã o só se mostra mais plenamente ao
entendimento humano quando visitamos todas as passagens.
Também começamos a entender como as passagens nã o apenas reforçam umas à s outras,
mas também aprofundam umas à s outras. Gênesis 1 exige implicitamente uma resposta
humana de louvor e adoraçã o a Deus. Mas podemos ver mais claramente e profundamente
com que essa resposta deve se parecer quando lemos Salmos 104. Gênesis 1 implica
implicitamente que devemos confiar no Deus que criou nó s e o mundo, mesmo quando nã o
podemos entender por que Deus está trazendo alguma calamidade. Jó 38-41 torna a
implicaçã o mais explícita e aprofunda nossa apreciaçã o dela. Gênesis 1 já indica que Deus
criou o mundo pela fala. Joã o 1.1-5 e Colossenses 1.15-17 indica a profundidade trinitá ria
por trá s do que Gênesis 1 descreve.

O significado das perspectivas

Visto que começamos a usar as mú ltiplas perspectivas de maneira integral em nossas


reflexõ es, vale a pena dizer algo mais sobre as perspectivas. Mú ltiplas perspectivas
[26]

inevitavelmente surgem porque Deus criou mú ltiplos seres humanos. Os seres humanos
sã o semelhantes uns aos outros porque sã o feitos à imagem de Deus. Mas eles também sã o
diferentes uns dos outros. A Bíblia fala especificamente sobre algumas das diferenças
quando discute os dons espirituais em 1 Coríntios 12-14 (veja também Rm 12.3-8; Ef 4.7-
16). Há uma variedade de dons dentro do corpo de Cristo. 1 Coríntios 12 compara a
variedade de pessoas à variedade de ó rgã os que compõ em um ú nico corpo físico. Cada
ó rgã o tem sua pró pria funçã o, e todos os ó rgã os trabalham juntos dentro de um corpo
unificado.

Uma maior diversidade

Essa diversidade dentro do corpo de Cristo reflete uma diversidade maior entre os seres
humanos em geral. Somos diferentes uns dos outros. Somos altos ou baixos. Temos
diferentes idades. De maneira sutil, também temos diferentes interesses e pensamos de
formas diferentes. [27]
Uma pessoa se identifica mais existencialmente com Salmos 104 e
148, que louvam a Deus pela criaçã o. Outra pessoa se identifica mais existencialmente com
Gênesis 1, que classifica a criaçã o. Ainda outra se identifica com Joã o 1.1-5, porque gosta de
pensar sobre profundidade teoló gica.

Podemos inclusive ver como Deus pode levantar pessoas com diferentes dons e diferentes
interesses e usar essas pessoas como seus instrumentos para escrever sua palavra, como
agora a encontramos nas vá rias passagens, Gênesis 1, Jó 38-41, Salmos 104, e assim por
diante.

 
Raízes na Trindade

Os seres humanos estã o unidos assim como sã o diversificados. Todos os seres humanos
estã o unidos por seres feitos à imagem de Deus. Eles compartilham uma humanidade
comum, e a humanidade comum inclui muitos detalhes: capacidade de adorar, capacidade
de usar a linguagem, capacidade de pensar, características físicas comuns, e assim por
diante. Os seres humanos também mostram diversidade. Cada indivíduo é ú nico. Temos
unidade na diversidade e diversidade na unidade de uma humanidade. Essa unidade na
diversidade é uma imitaçã o ou reflexo criacional da Trindade. A Bíblia ensina que existe um
só Deus. Ele tem unidade porque é uno. A Bíblia também indica que existem três pessoas na
Divindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Cada uma das três pessoas é distinta das outras
duas. Assim, há diversidade em Deus, a diversidade das três pessoas.

A unidade e a diversidade sã o igualmente ú ltimas. Joã o 1.1-3 mostra que há um só Deus


desde o princípio e que Deus Pai e Deus Filho (o Verbo) sã o distintos um do outro desde o
princípio (“o Verbo estava com Deus”). A unidade nã o surge depois da diversidade, como se
Deus iniciasse como três pessoas independentes que, em algum momento, concordaram em
combinar seus esforços e se tornar uma só . E a diversidade tampouco surge depois da
unidade, como se Deus iniciasse como uma unidade puramente indiferenciada e depois se
dividisse em três ou se manifestasse de três maneiras (o erro do modalismo ).

Assim, Deus existe em unidade e diversidade. Deus criou o homem à sua imagem. Nã o é de
surpreender, portanto, que os seres humanos existam em unidade e diversidade. Contudo,
também devemos insistir que Deus e o homem nã o estã o no mesmo nível. A unidade e
diversidade de Deus sã o ú nicas. As pessoas da Trindade residem umas nas outras de
maneira ú nica. A relaçã o entre as pessoas da Trindade é em ú ltima aná lise misteriosa para
nó s, pois nã o somos Deus e nã o compreendemos Deus de forma abrangente.

As pessoas humanas podem ter comunhã o umas com as outras. Marido e mulher podem se
unir e se tornar “uma só carne” (Gn 2.24). Marido e mulher têm formas refletidas de
unidade e diversidade. Efésios 5.32 (NVI) até mesmo diz, acerca da unidade de marido e
mulher, que “este é um mistério profundo”. Mas é uma unidade misteriosa entre duas
criaturas distintas, cada uma das quais considerada moralmente responsá vel (Gn 3.11-19).
A misteriosa habitaçã o das pessoas da Trindade é mais profunda e intensa. Nã o encontra
um paralelo perfeito com coisa alguma que vemos no mundo criado. Deus é Criador e é
ú nico.

Também podemos observar uma distinçã o de perspectivas entre as pessoas da Trindade.


Uma das passagens importantes fala das pessoas distintas como se conhecendo
mutuamente: “Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho, senã o o Pai; e
ninguém conhece o Pai, senã o o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11.27).
O Pai conhece o Filho. Visto que o Filho é o pró prio Deus, ao conhecer o Filho o Pai conhece
todas as coisas. Ele o faz a partir da perspectiva pessoal de ser o Pai. Da mesma forma, o
Filho conhece o Pai. Por conhecê-lo, conhece todas as coisas. Ele o faz a partir da
perspectiva pessoal de ser o Filho.
Nenhuma passagem paralela exata existe com respeito ao Espírito Santo. Mas uma
passagem chega perto: “… porque o Espírito a todas as coisas perscruta , até mesmo as
profundezas de Deus. Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senã o o seu
pró prio espírito, que nele está ? Assim, também as coisas de Deus, ninguém as conhece ,
senã o o Espírito de Deus” (1Co 2.10-11). Aqui podemos ver que o Espírito Santo
compreende os pensamentos de Deus e, portanto, compreende Deus. Ele o faz a partir da
sua perspectiva pessoal de ser o Espírito Santo.

Assim, dentro de Deus existem três perspectivas pessoais sobre o conhecimento: a


perspectiva do Pai, a perspectiva do Filho e a perspectiva do Espírito Santo. Essas três
pertencem a um só Deus. O Espírito conhece Deus ao conhecer os pensamentos de Deus. O
Pai conhece Deus ao conhecer o Filho e o Espírito Santo. O conhecimento de todas as três
pessoas concorda, pois todas as três conhecem Deus e conhecem todos os pensamentos de
Deus. Há perfeita harmonia entre as três pessoas, mas também uma distinçã o de pessoas.
Logo, há também uma distinçã o de perspectivas pessoais sobre o conhecimento.

Perspectivas entre os seres humanos

O cará ter de Deus é ú nico. Mas os seres humanos refletem em seu conhecimento a unidade
e diversidade do conhecimento de Deus. Todos os seres humanos podem compartilhar
conhecimento. Por exemplo, de acordo com Romanos 1.21, todos eles conhecem Deus.
Além disso, como cada ser humano é distinto, cada um tem sua pró pria perspectiva pessoal
sobre o conhecimento. É ele — enquanto distinto de qualquer outro ser humano — que
conhece Deus. Cada pessoa em sua singularidade conhece Deus de uma maneira
singularmente texturizada, de acordo com quem ela é como pessoa.

John Frame faz uma distinçã o ú til entre dois usos da palavra perspectiva .[28]
No uso amplo,
perspectiva é o ponto de vista de um ser humano em distinçã o ao de outros. Cada ser
humano tem uma perspectiva devido à sua individualidade. Em segundo lugar, num sentido
estrito, a palavra perspectiva se refere a formas específicas nas quais um ú nico ser humano
pode escolher temporariamente tratar de um determinado assunto. No segundo sentido,
um ú nico indivíduo pode usar mú ltiplas perspectivas.

Entre os seres humanos, vemos limitaçõ es no conhecimento. Algumas pessoas conhecem


verdades que outras nã o conhecem. Portanto, há uma distinçã o no conteú do do
conhecimento.

Também podemos ver distinçõ es na textura. Considere mais uma vez nossos exemplos de
Gênesis 1, Jó 38-41, Salmos 104, Salmos 148 e Joã o 1.1-5. Algumas pessoas têm uma
apreciaçã o mais profunda pela poesia, a exemplo do que encontramos em Jó e nos Salmos.
Seu conhecimento, em alguns aspectos, é texturizado poeticamente. Contudo, elas ainda
podem falar e compartilhar com pessoas que apreciam mais a teologia da prosa de Joã o 1.1-
5. [29]
Deus planejou e produziu a unidade e diversidade entre os seres humanos que observamos
hoje. A diversidade se torna dolorosa e contenciosa quando o pecado entra, pois o pecado
produz contenda, inimizade, ó dio, egoísmo e dissensã o. Mas a unidade e diversidade dentro
do corpo redimido de Cristo (1Co 12) mostram que alguns tipos de diversidade nã o sã o
inatamente pecaminosos. Na verdade, sã o bons e trazem deleite. Deus os aprova. Deus
aprova as diversidades no conhecimento que acabamos de descrever, desde que sejam
libertas das distorçõ es do pecado.

O problema do uno e do múltiplo

O cará ter de Deus oferece a explicaçã o final para o problema do uno e do mú ltiplo. No
pró prio Deus, a unicidade de Deus nã o é anterior à s três pessoas nem as três pessoas
anteriores à unicidade de Deus. Como Deus é um em três e três em um, também é capaz de
criar, de acordo com a sua vontade, um mundo que tem unidades e diversidades. Sua
vontade tem unidade e diversidade, de acordo com a unidade e diversidade do pró prio
Deus, e assim a expressã o de sua vontade dentro da criaçã o reflete a harmonia do uno e do
mú ltiplo em Deus.

Unidade monolítica versus trinitária

Essa interaçã o de unidade e diversidade sugere mais implicaçõ es para como entendemos o
objetivo da filosofia. No passado, a filosofia muitas vezes tinha como objetivo uma
descriçã o ú nica, monolítica e final da realidade. Na metafísica ela buscava uma
compreensã o ú nica, monolítica e final da natureza das coisas. Mas as diversidades entre os
seres humanos, juntamente com a diversidade presente nas passagens bíblicas sobre a
criaçã o, radicalmente minam a plausibilidade desse objetivo. A Bíblia, por sua afirmaçã o da
unidade de Deus e da unidade da verdade de Deus, nos encoraja a crescer em
conhecimento e aprender com os outros. Mas o objetivo nã o é a unidade monolítica em que
cada pessoa é exatamente igual a todas as outras, sem diversidade. O objetivo é aumentar a
unidade do tipo certo pelo aumento da diversidade do tipo certo. Todas as passagens
[30]

bíblicas sobre a criaçã o nos dã o uma metafísica. De certo modo, nos dã o cinco, seis ou mais
metafísicas diferentes, todas em harmonia umas com as outras.

Para colocar de outra forma, Deus é o Deus trinitá rio. Em contrapartida, a visã o religiosa
chamada unitarismo diz que Deus é um, nã o três. Segundo o unitarismo, nã o há
diferenciaçã o de pessoas. O unitarismo é uma religiã o falsa, pois contradiz as declaraçõ es
de Deus sobre si mesmo na Bíblia. Ele se reflete no nível das criaturas quando queremos
uma descriçã o ú nica, monolítica e final da realidade, sem nenhuma diversidade. Esse desejo
é de cará ter unitário , nã o biblicamente trinitá rio.
Podemos ver mais um exemplo de unidade na diversidade nos evangelhos. Os quatro
evangelhos da Bíblia — Mateus, Marcos, Lucas e Joã o — têm quatro autores humanos
distintos. Eles nos dã o quatro perspectivas sobre Cristo e sua vida. As perspectivas se
harmonizam, mas diferem na seleçã o de eventos que os autores narram e diferem na
ênfase. Mateus enfatiza o judaísmo de Jesus — ele é o rei dos judeus. Lucas enfatiza o
ministério de Jesus aos necessitados, os socialmente marginalizados. Joã o enfatiza Jesus
como o revelador do Pai. Todos eles sã o verdadeiros. Mas diferem na textura. Exploramos
mais profundamente essa unidade e diversidade em outro lugar. [31]

Original e derivativo

A Trindade é a fonte ú ltima da unidade e diversidade. As formas de unidade e diversidade


dentro deste mundo nos oferecem reflexõ es criadas da unidade e diversidade original na
Trindade. Esse cará ter original de Deus significa que Deus é o arquétipo . Arquétipo é um
padrã o original que é refletido em outra coisa para a qual ele é um modelo. O reflexo do
original é à s vezes chamado de éctipo . Assim, em sua natureza trinitá ria, Deus é o
arquétipo da unidade e diversidade. As ocorrências de unidade e diversidade dentro deste
mundo sã o éctipos.

7. Multiperspectivismo
 
 

Uma vez que vamos usar perspectivas para responder à s grandes questõ es, incluindo
especialmente as questõ es sobre a natureza das coisas (metafísica), devo falar mais sobre o
significado das perspectivas e como seu uso veio a se desenvolver historicamente numa
abordagem chamada multiperspectivismo .

O que é multiperspectivismo? O multiperspectivismo aparece como um aspecto


[32]

característico em praticamente todos os escritos de John M. Frame. Recentemente, o


pró prio Frame escreveu uma pequena obra, A Primer on Perspectivalism [Uma cartilha
sobre o perspectivismo], que resume suas principais características. Vamos nos
[33]

concentrar no multiperspectivismo de Frame, mas com um olhar no contexto maior.


 
 
Características do multiperspectivismo
 
O conhecimento humano surge no contexto da finitude humana. Qualquer ser humano em
particular sempre conhece e experimenta a verdade a partir do ponto de vista de quem ele
é. Ele tem uma perspectiva . Pode aprender com os outros ouvindo com simpatia o que
[34]

eles entendem a partir de seus diferentes panos de fundo ou perspectivas. A diversidade


dos seres humanos leva a uma diversidade de perspectivas. Frame afirma tanto as
limitaçõ es de qualquer perspectiva humana finita quanto o absoluto do conhecimento de
Deus. “Ele [o perspectivismo] pressupõ e o absolutismo [o absoluto do ponto de vista de
Deus].” A presença de Deus implica que a verdade é acessível aos seres humanos e que
[35]

há uma diferença entre a verdade e a falsidade. Dessa maneira, Frame é um “absolutista”,


nã o um relativista. Mas ele nos convida a levar a sério as percepçõ es e diferenças de ênfase
que surgem quando se vê um assunto específico a partir de mais de um ponto de vista.

Além de mostrar um interesse mais amplo em diversas perspectivas humanas, Frame


[36]

introduz o uso de tríades perspectivistas e afirma sua relaçã o com o cará ter trinitá rio de
Deus. [37]

Frame usa basicamente duas tríades. Para discutir o senhorio de Deus ele usa a tríade de
autoridade, controle e presença. Como Senhor, Deus tem autoridade sobre nó s, exerce
controle sobre nó s e está presente para nó s. Cada um desses três aspectos do senhorio de
Deus pode servir como uma perspectiva sobre quem Deus é e como ele se relaciona
conosco. Essas três perspectivas estã o envolvidas umas nas outras e cada uma ajuda a
definir e aprofundar nossa compreensã o das outras duas. Todos os três aspectos do
senhorio estã o envolvidos em todas as relaçõ es de Deus com suas criaturas. [38]

Para discutir ética, Frame usa outra tríade de perspectivas, a saber, as perspectivas
normativa, situacional e existencial. Recorde que a perspectiva normativa enfoca as
[39]

normas , a lei de Deus e as expressõ es divinas dos seus padrõ es éticos para os seres
humanos. A perspectiva situacional enfoca a situaçã o em que um ser humano deve agir e se
esforça para discernir quais açõ es promovem a gló ria de Deus dentro dessa situaçã o. A
perspectiva existencial enfoca as pessoas e seus motivos, particularmente o motivo central
do amor.

Mais uma vez, essas três estã o envolvidas umas nas outras. As normas de Deus nos dizem
para prestar atençã o à situaçã o — em particular, à s necessidades dos outros ao nosso
redor. As normas também nos dizem para prestar atençã o à s nossas atitudes (existencial).
Da mesma forma, a situaçã o nos incita a prestar atençã o à s normas, pois Deus é a pessoa
mais importante em nossa situaçã o e o que ele deseja importa supremamente. A situaçã o
também nos incita a prestar atençã o à s pessoas na situaçã o. Nossas pró prias atitudes
devem ser inspecionadas por causa do seu potencial de mudar a situaçã o para o bem ou
para o mal.

Porque Deus é o Senhor de todas as coisas, essas perspectivas se harmonizam em princípio.


Deus promulga as normas; Deus controla a situaçã o; Deus criou as pessoas humanas à sua
imagem. Mas numa situaçã o caída de pecado, os seres humanos têm distorçõ es em seu
conhecimento ético, e o uso de uma perspectiva pode ajudar a corrigir as distorçõ es que as
pessoas introduziram no contexto de outra perspectiva.

O multiperspectivismo praticado por John Frame difere decisivamente das visõ es


relativistas que sã o à s vezes chamadas de “perspectivismo”. [40]
Frame realiza seu trabalho
de forma autoconsciente dentro da estrutura de um compromisso cristã o. Ele é um
seguidor de Cristo e está empenhado em levar “cativo todo pensamento à obediência de
Cristo” (2Co 10.5). [41]
A Bíblia tem um papel central no multiperspectivismo de Frame, pois
ele acredita que é a palavra infalível de Deus [42]
e que Deus a designou especificamente
como um meio para nos instruir e nos libertar do pecado, incluindo o pecado intelectual. A
Bíblia é o guia infalível para examinar ideias e separar a verdade do erro no processo de
usar diferentes perspectivas.
 
 
O multiperspectivismo em relação à fé reformada
 

Como o multiperspectivismo se relaciona com a fé reformada? Frame é reformado em sua


teologia e passou sua carreira ensinando em seminá rios reformados. Como o seu
[43]

multiperspectivismo se encaixa em seu compromisso com as verdades incorporadas nas


confissõ es reformadas? Nos primeiros dias, algumas pessoas se preocupavam se o
multiperspectivismo nã o levaria ao relativismo e se era compatível com a teologia
reformada tradicional. Com o tempo, o crescente corpo de escritos deixou claro que Frame
está se baseando na ortodoxia reformada e defendendo-a vigorosamente, em vez de flertar
com o espírito da época. Frame está de fato comprometido com o absolutismo de Deus e
nã o com o relativismo do pensamento nã o cristã o.

Mas no estilo teoló gico a abordagem de Frame parece sutilmente diferente de alguns
escritos teoló gicos dos séculos passados. Qual é a relaçã o? Será que o multiperspectivismo
e a fé reformada simplesmente existem lado a lado, sem nenhuma relaçã o direta? Será que
um é dependente do outro? Eles ajudam um ao outro?

Podemos tentar responder essas questõ es de duas maneiras: ou examinando as origens do


multiperspectivismo, ou examinando a sua forma contemporâ nea. Olhemos primeiro as
origens.
 
 
Origens do multiperspectivismo
 

O multiperspectivismo de Frame

Desde o início de seu ensino em sala de aula no Seminá rio Teoló gico Westminster na
Filadélfia, John Frame mobilizou suas principais tríades de perspectiva. Quando me tornei
estudante no Westminster em 1971, Frame já usava como principal ferramenta pedagó gica
a tríade para o senhorio (autoridade, controle e presença) e a tríade para a ética
(normativa, situacional e existencial). [44]
Essas tríades tinham ó bvias afinidades com
doutrinas da teologia reformada clá ssica.

A tríade para o senhorio obviamente se ligava à antiga ênfase calvinista na soberania de


Deus. Mas a tríade também foi projetada para expressar aspectos do modo como Deus se
relacionava, tanto em suas palavras como em seus atos, com os seres humanos. A tradiçã o
reformada clá ssica estava acostumada a falar sobre a relaçã o de Deus com os seres
humanos como uma aliança. A autoridade entra na aliança de Deus conosco porque
[45]

Deus é o criador legítimo da aliança e nó s devemos nos submeter à sua autoridade. Deus
controla a relaçã o pactual tanto protegendo seu povo como punindo e disciplinando as
violaçõ es pactuais. Deus está presente através de sua aliança ao inaugurar e sustentar uma
relaçã o de intimidade pessoal entre Deus e o homem. Assim, a tríade de Frame para o
senhorio pode ser vista como uma reexpressã o de alguns dos temas clá ssicos da teologia da
aliança na tradiçã o reformada. [46]

A influência de Cornelius Van Til

A tríade de Frame para a ética é derivada diretamente do livro Christian Theistic Ethics
[É tica teísta cristã ], de Cornelius Van Til. Em todos os seus livros, Van Til deixava claro
[47]

seu pró prio compromisso só lido com a teologia reformada como a base de todo o seu
empreendimento. Em seu livro sobre ética, ele enfatiza o cará ter ú nico da ética cristã em
contrapartida a todas as formas de ética nã o cristã . Segundo Van Til, os cristã os, uma vez
que possuem um coraçã o regenerado e um compromisso de seguir a Cristo, têm uma
abordagem inerentemente antitética a todos os tipos de pensamento autô nomo e ética
autô noma. [48]
O pensamento autô nomo deriva de um coraçã o nã o regenerado e nã o está
disposto a se submeter aos caminhos de Deus. Na visã o de Van Til, a ética cristã é distintiva
em seu objetivo, padrã o e motivaçã o. Van Til mostrou como esses três — objetivo, padrã o e
motivaçã o — se encaixam coerentemente dentro de uma abordagem cristã .

Esse trabalho de Van Til lançou a base para o perspectivismo de Frame. O pró prio Van Til
nã o deu o passo de dizer que os três aspectos — objetivo, padrã o e motivaçã o — poderiam
servir de perspectivas uns aos outros. Mas chegou perto do perspectivismo ao enfatizar a
coerência desses aspectos e seu mú tuo reforço. Coube a Frame, como discípulo de Van Til,
desenvolver as percepçõ es de Van Til na forma de um perspectivismo totalmente
articulado. O objetivo, quando usado como uma perspectiva de toda a ética, se tornou a
perspectiva situacional de Frame. O padrã o se tornou a perspectiva normativa. E a
motivaçã o se tornou a perspectiva existencial. A perspectiva existencial também tem sido
à s vezes chamada de perspectiva “pessoal”, para distingui-la enfaticamente do
existencialismo francês. O perspectivismo de Frame cresceu, portanto, dentro do solo da
teologia reformada e da apologética reformada de Cornelius Van Til.

Eu sugeriria que a apologética de Van Til contribuiu também de outra maneira, menos
direta. A ênfase de Van Til na antítese entre o pensamento cristã o e o nã o cristã o encorajou
seus seguidores a estarem, em seu pensamento, dispostos a abrir novos caminhos. A
antítese implica que eles nã o devem simplesmente adotar de segunda mã o algum sistema
nã o cristã o de ética filosó fica e em seguida fazer pequenos ajustes para tentar usá -lo dentro
de uma estrutura cristã .

Podemos ilustrar mais especificamente a singularidade do pensamento cristã o na á rea da


ética. Frame apontou que a ética nã o cristã tende a assumir uma de três principais formas.
[49]
Os sistemas éticos deontológicos partem de normas absolutas e baseiam todo o resto
nelas. Esses sistemas devem sua plausibilidade à priorizaçã o da perspectiva normativa. Os
sistemas éticos existencialistas partem da primazia do indivíduo — sua vontade e suas
decisõ es pessoais. Eles priorizam a perspectiva existencial. Por fim, os sistemas éticos
teleológicos e utilitários partem do objetivo de maximizar o prazer e o bem-estar humanos.
Eles priorizam a perspectiva situacional. Todos os três tipos de abordagens se recusam a
reconhecer o Deus cristã o. Assim, todos os três acabam exaltando uma perspectiva como
uma espécie de substituto para Deus e sua autoridade. Essa perspectiva é forçada a se
tornar a fonte monolítica de tudo o mais. Em contraste, os cristã os podem reconhecer o
Deus verdadeiro como o autor das normas (através de sua palavra), o Criador das pessoas e
o governador da situaçã o.

Portanto, a abordagem cristã pode afirmar uma harmonia intrínseca entre as três
perspectivas. Ela nã o precisa criar artificialmente uma fonte de ética autô noma e gerada
pelo homem ao tornar uma perspectiva superior e lhe dar um papel divino. Em vez disso,
uma abordagem cristã afirma que somente Deus é Deus. Essa afirmaçã o, bá sica para a fé
cristã , permite que os cristã os se recusem a criar substitutos de Deus na forma de um
favorecimento de fontes filosó ficas para o pensamento ético. E permite aos crentes afirmar
que, por causa da autoridade e controle soberanos de Deus, as perspectivas normativa,
existencial e situacional se harmonizam.

A influência da teologia bíblica na tradição de Geerhardus Vos

John Frame também reconhece a influência da teologia bíblica no desenvolvimento do seu


pensamento teoló gico e seu programa: “Recordo minha ênfase, na Primeira parte, à
excelência senhorial da aliança; aquilo era teologia bíblica. O método teoló gico bíblico é
proeminente em minhas obras A Doutrina da Palavra de Deus e A Doutrina de Deus ”. Ou [50]

seja, toda a estrutura do pensamento de Frame sobre o “senhorio da aliança”, incluindo sua
tríade de perspectivas envolvendo a autoridade, controle e presença de Deus, é “teologia
bíblica”. Por “teologia bíblica”, Frame quer dizer teologia bíblica na tradiçã o de Geerhardus
Vos, o estudo da “ história dos procedimentos de Deus para com a criaçã o”. Frame cita
[51]

Vos e seus sucessores, como Edmund P. Clowney, Meredith G. Kline e Richard B. Gaffin Jr.,
todos os quais desenvolveram seu pensamento dentro da estrutura da teologia reformada.
Frame escreve como um teó logo sistemá tico, mas reconhece a necessidade de a teologia
[52]

sistemá tica ser sensível à s dimensõ es da Escritura destacadas na teologia bíblica. [53]
Como o pensamento de Frame sobre o senhorio da aliança reflete a teologia bíblica? Ao
discutir o senhorio da aliança, ele pretende apontar para o rico material da pró pria Bíblia
acerca das relaçõ es pactuais de Deus com a humanidade, com Israel e com a igreja tanto no
Antigo quanto no Novo Testamentos. As categorias de Frame de autoridade, controle e
presença, assim como o termo-mestre Senhor , pretendem invocar a riqueza da histó ria da
revelaçã o especial. Por exemplo, a autoridade, controle e presença sã o manifestos na
criaçã o do mundo por Deus em Gênesis 1. Deus tem a autoridade e o direito de trazer a
criaçã o à tona. Ele controla perfeitamente o que gera através de suas vá rias obras durante
os dias da criaçã o. Está presente através do Espírito Santo, que “pairava por sobre as
á guas” (Gn 1.2). Além disso, Deus mostra sua autoridade, controle e presença na interaçã o
com Adã o e Eva em Gênesis 2-3 e nas relaçõ es com Noé, Abraã o, Moisés, e assim por diante.
As categorias de Frame têm uma flexibilidade que nos permite ver como elas estã o agindo
em todas as manifestaçõ es do senhorio de Deus e em toda a riqueza das relaçõ es pactuais
através do Antigo Testamento.

A flexibilidade das categorias está lado a lado de sua capacidade de funcionar como
perspectivas. Uma categoria técnica fortemente circunscrita como “oferta queimada” tem
grande especificidade em termos de significado e uso. Se a usamos fora de sua esfera
estrita, só a usamos de maneira lú dica ou metafó rica. Em contraste, a tríade do senhorio de
Frame tem a flexibilidade embutida em si. Essa flexibilidade é em muitos casos mais
característica da teologia bíblica do que da teologia sistemá tica tradicional. A flexibilidade
embutida permite uma fá cil extensã o das categorias em perspectivas. Por exemplo, tudo o
que Deus faz, quer seja, quer nã o, explicitamente rotulado por nó s como uma
demonstraçã o de sua presença, inevitavelmente envolve sua presença. A presença se torna
uma perspectiva na medida em que é característica de todas as passagens da Bíblia que
envolvem de fato Deus.

Por exemplo, Deus está presente para recompensar os justos e punir os ímpios, como
promete em Salmos 1.5-6. Deus está presente ouvindo os apelos e gemidos daqueles de que
falam os salmos de afliçã o, como os Salmos 3, 4, 5 e 6. Deus está presente na vida de Davi,
para protegê-lo das tentativas de Saul de matá -lo. Deus está presente com Jeremias, para
sustentá -lo em meio à reaçã o hostil dos seus contemporâ neos. Poderíamos multiplicar os
exemplos.

Usos mais amplos das múltiplas perspectivas

Em suma, a teologia reformada como um todo, a apologética reformada de Cornelius Van


Til e a teologia bíblica de Geerhardus Vos tiveram importante influência e ofereceram
importante encorajamento para o desenvolvimento do multiperspectivismo de Frame. Mas
o pano de fundo reformado era necessário para o desenvolvimento? Meu relato até este
ponto pode sugerir que era. Mas dentro do multiperspectivismo também encontramos uma
preocupaçã o em ouvir com simpatia outras perspectivas. Logicamente, essa preocupaçã o
abraça perspectivas de pessoas que ocupam outras correntes da tradiçã o cristã . Poderiam
outras tradiçõ es cristã s desenvolver um multiperspectivismo? [54]

Aqui também a apologética de Van Til faz uma contribuiçã o positiva. Van Til dá uma ênfase
nã o apenas na antítese , mas também na graça comum . [55]
A doutrina da graça comum diz
que Deus mostra misericó rdia e dá bênçã os até aos rebeldes, e as bênçã os que Deus dá
podem incluir vá rias percepçõ es humanas para a verdade. Essas percepçõ es chegam aos
nã o cristã os. Quã o maior, entã o, será nossa esperança de que Deus dará bênçã os e
percepçõ es aos cristã os, incluindo os cristã os que estã o fora da tradiçã o reformada! Deus
concede bênçã os nã o porque nossa teologia já é absolutamente perfeita, mas a partir de sua
graça, que dá com base na perfeiçã o de Cristo.

Todo cristã o genuíno foi regenerado por meio da obra do Espírito Santo e se tornou “nova
criaçã o” (2Co 5.17, NVI; veja Jo 3.1-8; Ef 4.22-24). O Senhor renova a mente de todos os
crentes e os coloca no caminho da justiça, incluindo o pensamento reto. Mas todos nó s
somos inconsistentes e ainda retemos resquícios de maneiras pecaminosas de pensar.
Precisamos nos ajudar mutuamente com os pecados uns dos outros. E Deus continua a nos
abençoar de maneiras que nã o merecemos. Assim, em princípio, se o multiperspectivismo é
de fato uma abordagem vá lida, qualquer cristã o em qualquer lugar pode receber
percepçõ es do Senhor que o conduzam a uma abordagem multiperspectivista.

Na verdade, o mandamento “amará s o teu pró ximo como a ti mesmo” (Mt 22.39) leva nessa
exata direçã o. Se você ama seu pró ximo, está disposto a ouvi-lo com simpatia. E se ouve,
começa a entender sua perspectiva. Talvez você encontre algum pensamento errô neo. Mas
também encontra algumas percepçõ es positivas. Quando você encontra percepçõ es,
incorpora a perspectiva do pró ximo em seu pró prio pensamento e tem entã o duas
perspectivas em vez de uma. Num nível bá sico, as pessoas ouvem com simpatia o tempo
todo, seja no casamento e na família, no trabalho ou na educaçã o. O multiperspectivismo
pode ser visto como pouco mais do que uma descriçã o e codificaçã o autoconsciente de
alguns dos processos que sã o inatos ao amor ao pró ximo.

Em particular, as missõ es transculturais cristã s sempre envolveram mú ltiplas perspectivas.


Um cristã o que passe da cultura norte-americana para a chinesa tem uma perspectiva
norte-americana com a qual começa. À medida que ele aprende mais sobre a cultura
chinesa, aprende sobre como as coisas se parecem de um ponto de vista chinês e também
norte-americano. Ele tem entã o duas perspectivas.

Da mesma forma, o aconselhamento cristã o baseado na Bíblia envolve mú ltiplas


perspectivas. O conselheiro tem sua perspectiva, que deve estar baseada no conhecimento
maduro da Escritura. Ele ouve o aconselhado com simpatia e tenta entender seu
pensamento, seu sentimento e sua perspectiva. O conselheiro gradualmente desenvolve a
compreensã o de uma segunda perspectiva, a perspectiva do aconselhado, e em seguida se
esforça para trazer a verdade de Deus na Escritura à situaçã o do aconselhado.

Deus é a fonte ú ltima para qualquer percepçã o que recebemos sobre mú ltiplas
perspectivas. Ele pode nos dar uma percepçã o de sú bito, num momento, num piscar de
olhos. Mas frequentemente Deus usa meios. A pró pria Escritura, evidentemente, é um meio
primá rio. Mas Deus também usa as habilidades e percepçõ es dos outros que estã o no corpo
de Cristo. Por exemplo, John Frame aprendeu com Van Til, em vez de desenvolver seu
multiperspectivismo partindo do zero. O conselheiro cristã o aprende com o exemplo de
conselheiros mais maduros, bem como daqueles que podem se encarregar de instrui-lo na
arte. O missioná rio estagiá rio aprende com o missioná rio veterano. Ele vê como se mover
de uma perspectiva para outra, tanto através da instruçã o em princípios gerais como
mediante a observaçã o de exemplos que incorporam os princípios.

Assim, embora seja possível, em princípio, as pessoas desenvolverem uma abordagem


multiperspectiva partindo do zero, é certamente mais fá cil fazê-lo quando se baseiam no
trabalho dos outros.
 
Meu próprio crescimento no multiperspectivismo
 
Meu pró prio crescimento no multiperspectivismo é mais um exemplo de como uma pessoa
aprende com outra. Como estudante no Seminá rio Teoló gico Westminster, fui atraído pelo
ensino de John Frame, incluindo suas dimensõ es multiperspectivistas, e o adotei para mim.

O pensamento de Frame era explicitamente multiperspectivo. Mas eu também aprendi o


pensamento multiperspectivista de Edmund Clowney, que ensinou teologia prá tica em
Westminster. Clowney nã o falava explicitamente sobre perspectivas. Mas sua abordagem
era emergentemente multiperspectivista. Como assim?

O pensamento de Clowney usava a teologia bíblica. Ele seguia os aspectos metafó ricos e
analó gicos da Escritura ao mostrar como o Antigo Testamento apontava para Cristo. O
Antigo Testamento apontava, em parte, através de tipos e sombras que, por sua vez,
apontavam analogicamente para Cristo. Assim, Clowney foi ú til para eu me adequar ao
[56]

uso de algumas categorias-chave como sacrifício, templo e realeza de maneira flexível à


medida que via as relaçõ es entre as instituiçõ es do Antigo Testamento e Cristo. Essa
flexibilidade, como observamos, está lado a lado da prá tica de perspectiva.

Clowney também adotou um ensinamento encontrado na Escritura e articulado nos


Padrõ es de Westminster, a percepçã o de que Cristo é o nosso profeta, rei e sacerdote final.
O ministério de ensino de Cristo mostrou sua obra como profeta. Sua obra de milagres
[57]

mostrou o exercício do poder e, portanto, seu reinado. Seu sacrifício na cruz mostrou sua
obra como sacerdote.

Mas enquanto eu pensava sobre essas verdades e as combinava com o uso de Clowney da
analogia e tipologia no Antigo Testamento, pareceu-me que os três tipos de obra de Cristo
nã o poderiam ser nitidamente isolados. Quando Cristo ensinava, ensinava com autoridade .
Seu ensino manifestava a reivindicaçã o de um rei. Assim, seu ensino nã o era apenas
profético, mas também real.
Quando Cristo expulsava demô nios com poder milagroso, essa era a obra de um rei. Mas ele
caracteristicamente expulsava os demô nios usando ordens verbais, que eram declaraçõ es
proféticas (Lc 4.36). Além disso, o pró prio cará ter de seus milagres revelava o cará ter de
Cristo. Os milagres indiretamente revelavam algo sobre quem ele era e o cará ter do seu
reino. Por exemplo, sua cura do paralítico em Mateus 9.2-8 mostrou que Cristo tinha poder
para perdoar pecados. O milagre ensinava algo. E se ensinava , era indiretamente profético e
também diretamente real.

Também podemos olhar para a promessa de perdoar pecados. Essa promessa de Jesus é
um pronunciamento que envolve o exercício de sua funçã o profética. Mas também
podemos observar que o perdã o vem na base da substituiçã o e do sacrifício — em ú ltima
aná lise, do sacrifício de Cristo. O perdã o envolve uma dimensã o sacerdotal. O perdã o é um
pronunciamento do perdã o de Deus, o rei. Assim, o perdã o tem uma dimensã o real. Um
milagre que proclame perdã o tem uma dimensã o profética, pois proclama perdã o. Ele tem
uma dimensã o real, pois o milagre é um exercício de poder. Também tem uma dimensã o
sacerdotal, pois o perdã o envolve a reconciliaçã o mediada por uma figura sacerdotal.
Assim, os ró tulos profeta , rei e sacerdote podem ser usados nã o apenas num sentido mais
literal, mas também como perspectivas sobre toda a obra de Cristo. Toda a obra de Cristo é
profética, no sentido de que ensina coisas sobre ele. Tudo tem o sentido de realeza, pois
Cristo sempre age com autoridade real. Tudo é sacerdotal, no sentido de que toda a obra de
Cristo faz parte do programa total de reconciliar seu povo com Deus mediante seu
sacrifício.

Assim, a partir de Edmund Clowney, eu tinha uma tríade de perspectiva que era composta
de profeta, rei e sacerdote. Essa tríade se somava à s tríades que já estava aprendendo com
Frame. Claro, a tríade de Clowney também pertencia aos Padrõ es de Westminster antes da
época de Clowney. Mas seu uso da teologia bíblica e as estruturas analó gicas desta me
encorajaram a empregar essas categorias mais antigas de maneira estendida e analó gica, e
foi apenas um passo para usá -las perspectivamente.

Tendo chegado até aqui, foi só um pequeno passo até considerar a possibilidade de tomar
quase qualquer categoria a partir da teologia bíblica e expandi-la numa perspectiva. Por
[58]

exemplo, comece com o tema do templo. Expanda-o numa perspectiva. Veja-o como uma
encarnaçã o específica do tema “Deus conosco”, que é consumado em Cristo (Mt 1.23). De
fato, Joã o indica que o tema do templo é consumado em Cristo, cujo corpo é o templo (Jo
2.21, NVI). O templo está intimamente relacionado com o tema da presença de Deus, uma
das categorias de Frame da tríade do senhorio da aliança. Se a ideia do templo é expandida
dessa forma, torna-se assim uma perspectiva sobre todas as relaçõ es de Deus conosco.

Quando cheguei em Westminster em 1971, Frame já estava trabalhando com elementos


semelhantes. Na ética ele argumentava que cada um dos Dez Mandamentos tinha seu
pró prio foco distintivo, mas que qualquer um dos mandamentos também poderia ser usado
como uma perspectiva sobre toda a nossa responsabilidade ética. [59]
Em seu curso sobre a doutrina de Deus, Frame argumentava que os grandes milagres da
Bíblia poderiam ser usados para fornecer uma perspectiva sobre a providência de Deus e
sobre o cará ter de Deus. Pedagogicamente, Frame poderia iniciar sua discussã o teoló gica
com os milagres e entã o, partindo daí, seguir para a providência, a criaçã o e depois para os
atributos de Deus.

Essa abordagem implica que milagres como as pragas no Egito, a travessia do Mar
Vermelho, os milagres de Elias e Eliseu, os milagres da vida terrena de Cristo e a
ressurreiçã o de Cristo mostram de forma particularmente intensa a autoridade, poder e
presença de Deus. Os milagres também fornecem imagens de poder redentor que podem
nos encorajar à medida que enfrentamos dificuldades em nossas pró prias circunstâ ncias.
Qualquer milagre, portanto, pode se tornar uma perspectiva do plano mais amplo de Deus
para nossa redençã o.
 
As múltiplas perspectivas na obra de Kenneth L. Pike
 
Em muitos aspectos, o multiperspectivismo de Frame se desenvolveu sob a influência da
teologia e do ensino no Seminá rio Teoló gico Westminster. Mas em minha vida recebi
[60]

mais outra influência. Começando no verã o de 1971, estudei por vá rios verõ es no Instituto
Summer de Linguística em Norman, Oklahoma (EUA), onde Kenneth L. Pike ensinou
tagmêmica, uma abordagem linguística com características multiperspectivas. Vale a pena
contar parte dessa histó ria, pois Pike desenvolveu seu multiperspectivismo mais cedo que
Frame e independentemente da influência do Seminá rio Teoló gico Westminster. E, no
[61]

fundo, os dois tipos de multiperspectivismo sã o praticamente idênticos em espírito.

Pike era um linguista cristã o que ensinou linguística na Universidade de Michigan, mas
também passou parte de sua carreira na tarefa de traduçã o da Bíblia com os tradutores
bíblicos Wycliffe e sua instituiçã o acadêmica irmã , o Instituto Summer de Linguística. O [62]

desafio de traduzir um livro rico como a Bíblia e o desafio de analisar um espectro de


línguas exó ticas sem relaçã o discernível com as línguas indo-europeias contribuíram para o
empreendimento de Pike em construir uma abordagem linguística prá tica e rica. Durante
um período de décadas, Pike desenvolveu uma abordagem chamada teoria tagmêmica, que
explicitamente incorporava mú ltiplas perspectivas. [63]

Em retrospectiva, podemos encontrar passos hesitantes em direçã o à s mú ltiplas


perspectivas desde 1947, quando Pike escreveu um livro codificando seu trabalho em
sistemas sonoros de linguagem (“fonêmica”). Para explicar de forma mais robusta a
[64]

complexidade dos padrõ es sonoros em uma infinidade de línguas do mundo, Pike teve de
equilibrar uma série de dimensõ es nesses padrõ es. Em sua aná lise podemos ver os está gios
iniciais do que mais tarde se desenvolveu em uma tríade de perspectiva: contraste,
variaçã o e distribuiçã o. Ele também dedicou atençã o ao que mais tarde veio a ser
[65]

conhecido como fenô menos de partículas, ondas e campos. Os fenô menos estavam lá e
eram reconhecidos, mas Pike ainda nã o os havia organizado pela generalizaçã o além da
á rea da fonêmica (som).
Em 1949, apó s treze anos de concentraçã o em padrõ es sonoros, Pike começou a se
concentrar nos fenô menos na á rea da gramá tica. Comparaçõ es entre padrõ es no som e
[66]

na gramá tica levaram-no a resumir os padrõ es nos termos dos três aspectos característicos
de aná lise de uma unidade linguística mencionada acima: contraste, variaçã o e distribuiçã o.
Eles formavam uma tríade de perspectiva, a primeira desenvolvida por Pike. Os três
[67]

aspectos sã o interdependentes e interligados entre si. Nos fenô menos reais do uso da
linguagem eles nã o sã o estritamente isolá veis, mas dimensõ es copresentes na funçã o total
da linguagem.

Em 1959, Pike escreveu um artigo intitulado “Linguagem como partícula, onda e campo”. [68]

Aqui, pela primeira vez, ele introduzia três “visõ es” da linguagem. Pike explicou que a
linguística poderia ver a linguagem como consistindo de partículas (uma abordagem
está tica orientada para peças distinguíveis), ondas (uma abordagem dinâ mica, olhando
para o fluxo e a influência mú tua) e campos (uma abordagem relacional, focando a
padronizaçã o sistemá tica de relaçõ es em mú ltiplas dimensõ es). Cada uma dessas
abordagens pode em princípio ser aplicada à mesma peça de linguagem, e as pessoas
percebem diferentes padrõ es ao usarem cada abordagem. Essas visõ es sã o três
perspectivas. [69]

A essa altura, Pike era um perspectivista autoconsciente, mas de que tipo? Seu pensamento
continuava a se desenvolver. Em 1967 ele estava analisando nã o apenas a linguagem, mas o
comportamento humano em geral como “trimodal”. Os três “modos” eram o modo de
[70]

característica (identidade e contraste), o modo de manifestaçã o (variaçã o) e o modo de


distribuiçã o (distribuiçã o). Ele via esses três modos como interligados. Sua abordagem
modal nã o apenas englobava as tríades anteriores, mas também desvelava outras
manifestaçõ es delas. [71]

Em 1971, quando o conheci, Pike confidenciou que achava que os modos refletiam dentro
da linguagem o cará ter trinitá rio de Deus. Os modos triá dicos eram modos três-em-um,
cada um distinto, mas cada um profundamente interligado nos outros e os tomando por
pressuposto, cada um pertencendo também ao todo unificado, que era uma unidade
linguística. Cada um era uma perspectiva sobre o todo.
 
As perspectivas em Dorothy Sayers
 
Dorothy Sayers nos dá um exemplo de pensamento de perspectiva a partir de um ponto
ainda mais antigo que Pike ou Frame. Em 1941 Sayers publicou o livro A mente do Criador .
Nessa obra, ela começa sua pró pria experiência como escritora criativa (ela escreveu
[72]

principalmente histó rias de detetive). Sayers encontra no processo da criaçã o artística uma
analogia com o cará ter trinitá rio de Deus. Ela observa que qualquer ato de criaçã o humana
tem três aspectos coinerentes, que chama de “Ideia”, “Energia” e “Poder”. “A Ideia Criativa”
é a ideia da obra criativa como um todo, mesmo antes de vir à expressã o. “Esta é a imagem
do Pai.” [73]
“A Energia Criativa” ou “Atividade” é o processo de elaborar a ideia, tanto
mentalmente como no papel. Sayers descreve isso como aquilo “que trabalha no tempo
desde o começo até o fim, com suor e paixã o… esta é a imagem da Palavra”. Em terceiro
[74]

está o “Poder Criativo”, “o significado do trabalho e seu respaldo na alma viva… esta é a
imagem do Espírito que habita nela”. [75]

Sayers também observa que cada um desses três aspectos — ideia, atividade e poder — só
é inteligível no contexto dos demais. Ela afirma a coinerência ou habitaçã o de cada um nos
demais. [76]

 
 
A forma atual do multiperspectivismo
 
O perspectivismo como uma implicação da revelação geral
 
Agora que examinamos brevemente alguns dos desenvolvimentos histó ricos do
perspectivismo, é hora de considerar o cará ter do produto. Qual é o cará ter distintivo do
multiperspectivismo?

Nossa pesquisa dos desenvolvimentos histó ricos ainda é pertinente. Uma forma de
perspectivismo relacionada ao cará ter trinitá rio de Deus apareceu de forma independente
em pelo menos três lugares diferentes: no trabalho de John Frame, no trabalho de Kenneth
Pike e no trabalho de Dorothy Sayers. A independência desses três trabalhos sugere que
Deus, como arquétipo, imprimiu imagens ectípicas de sua natureza trinitá ria na ordem do
mundo criado. [77]

Sayers e Pike derivaram muito de sua reflexã o, respectivamente, da revelaçã o geral na


criatividade artística humana e na linguagem. Ao mesmo tempo, como cristã os, Sayers e
Pike tinham o benefício da revelaçã o especial na Bíblia, que articula o cará ter trinitá rio de
Deus. Sayers e Pike indubitavelmente aprofundaram suas reflexõ es através da interaçã o
que descobriram entre o conhecimento revelacional especial da Trindade e os padrõ es de
entrecruzamento perspectivo que observavam mediante a revelaçã o geral. Ao mesmo
[78]

tempo, ambos os autores dirigem seu foco principal para o tema que vem da revelaçã o
geral. O trabalho publicado de Pike em linguística profissional raramente menciona
explicitamente seu compromisso cristã o, muito menos seu pensamento trinitá rio. Contudo,
seu trabalho mostra claros padrõ es triú nos, no uso que faz de tríades de perspectiva.
 
O papel-chave das pessoas
 
Podemos também notar o importante papel desempenhado pelo estudo das pessoas e pela
relaçã o Deus-homem em todas as instâ ncias histó ricas do perspectivismo trinitá rio.

Vejamos primeiramente o caso de Dorothy Sayers. Em um ponto inicial, ela indica


explicitamente que está trabalhando com o conceito de homem como a imagem de Deus. [79]

Ela se incumbe de entender a atividade de Deus como Criador por uma analogia com a
criatividade artística humana. No processo, desvela uma tríade perspectiva coinerente de
ideia, energia e poder. A criatividade, como uma característica das pessoas, torna-se o
principal ponto de entrada para refletir sobre a imagem de Deus, que tem a ver com o
homem como alguém pessoal. E o homem é a imagem de Deus, que é pessoal e criativo.

Em seguida, vejamos o caso de Kenneth Pike. Ele está lidando com a linguagem, que é
inatamente associada à s pessoas. Como tradutor da Bíblia, ele é repetidamente confrontado
com o fato de que Deus fala na Bíblia e de que o discurso de Deus é aná logo ao discurso
humano. Assim, ele tem diante de si uma ponte natural entre o cará ter trinitá rio de Deus e
a natureza da linguagem humana. Pike desvelou a tríade-chave de partícula, onda e campo
ao interagir com o que estava acontecendo na física das partículas elementares. Mas ao
[80]

mesmo tempo estava ciente do potencial de as pessoas, pela escolha, adotarem uma
postura na qual dirigiam sua consciência para algum aspecto de sua situaçã o. A escolha
pessoal introduz a possibilidade de mú ltiplas perspectivas. No cô mputo de Pike, as pessoas
sã o centrais: “O ponto de vista do observador é relevante para encontrar dados: nenhuma
‘coisa em si’ (isto é, à parte do observador) é discutida na teoria [a teoria tagmêmica de
Pike]”. [81]

John Frame obteve suas tríades fundamentais no contexto das pessoas. A tríade de Frame
para o senhorio da aliança vem, é claro, no contexto da aliança, que é uma relaçã o pessoal
entre Deus e o homem. A tríade para a ética surge no contexto da responsabilidade ética,
que deve ser uma responsabilidade totalmente pessoal . A tríade de Edmund Clowney de
profeta, rei e sacerdote vem no contexto de se considerar a obra de Cristo, que é uma
pessoa divina. A obra de Cristo cumpre o padrã o das vá rias pessoas no Antigo Testamento
que serviram nos papeis pessoais de profeta, rei e sacerdote.
 
A raiz trinitária do perspectivismo
 
Em retrospecto, podemos deduzir que o papel das pessoas no perspectivismo nã o é por
acaso. O perspectivismo de um tipo trinitá rio tem suas raízes ú ltimas no cará ter trinitá rio
de Deus. Deus é um Deus e é também três pessoas. A doutrina da Trindade é em si
fundamental e profundamente pessoal. Somos confrontados vigorosamente com a
necessidade do pensamento trinitá rio especialmente quando vemos o personalismo no
evangelho de Joã o. O Filho se relaciona pessoalmente com o Pai, e o Espírito é introduzido
como “outro Consolador”, que funcionará para os discípulos como o Filho (Jo 14.16, veja
também Jo 16).

As três pessoas sã o distintas uma da outra. A Bíblia descreve suas interaçõ es. O Pai envia o
Filho, e o Filho obedece ao Pai (Jo 6.38-39; 12.49; 14.31). O Pai glorifica o Filho, e o Filho
glorifica o Pai (Jo 13.31-32; 17.1-5). O Espírito fala o que ouve do Pai e do Filho (Jo 16.13-
14).

Ao mesmo tempo, todas as pessoas da Trindade estã o envolvidas em todos os atos de Deus.
O Pai criou o mundo através da Palavra (isto é, do Filho) no poder do Espírito (Gn 1.2; Sl
33.6; 104.30; Jo 1.1-3). Assim, cada pessoa nos oferece uma “perspectiva” sobre os atos de
Deus. Na verdade, entã o, cada pessoa oferece uma “perspectiva” sobre o pró prio Deus.
Através do Filho, isto é, através da perspectiva que o Filho nos dá , conhecemos o Pai: “Tudo
me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho, senã o o Pai; e ninguém conhece o
Pai, senã o o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11.27).

A revelaçã o do Pai através do Filho é possível porque o Pai habita no Filho para fazer as
suas obras:

Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai? Nã o crês que eu
estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo nã o as digo
por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas obras. Crede-
me que estou no Pai, e o Pai, em mim; crede ao menos por causa das mesmas
obras. (Jo 14.9-11)
 
A habitaçã o mú tua das pessoas na Trindade, chamada coinerência ou pericorese , é o pano
de fundo para como conhecemos o Pai através do Filho. Esse conhecimento é perspectivo .
Conhecemos o Pai através da perspectiva oferecida no Filho.

A experiência humana de perspectivas deriva de um arquétipo ú ltimo, qual seja, a


pluralidade de pessoas na Trindade e sua coinerência. A pluralidade de pessoas implica
uma pluralidade de perspectivas. A habitaçã o de pessoas na coinerência implica a
harmonia e compatibilidade de perspectivas distintas, bem como o fato de que um ponto de
partida em uma pessoa abre a porta para todas as três pessoas. Cada pessoa nos oferece
uma perspectiva sobre o todo de Deus.

Assim sendo, o arquétipo das perspectivas é a Trindade. As pessoas da Trindade se


conhecem umas à s outras (Mt 11.27). Esse conhecimento é pessoal. O Filho conhece o Pai
como pessoa, assim como conhece todos os fatos sobre a pessoa. O Filho conhece o Pai
como Pai a partir de seu ponto de vista como Filho. Assim, existem três perspectivas
arquetípicas sobre o conhecimento, as perspectivas do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Essas três sã o unas. Há um só Deus.

Essa unidade na pluralidade e pluralidade na unidade tem implicaçõ es para o


conhecimento derivativo, o conhecimento pelas criaturas. Como criaturas, temos um
conhecimento que é ectípico, um conhecimento derivativo, nã o arquetípico, o
conhecimento infinito original de Deus. O conhecimento ectípico deve inevitavelmente
mostrar o selo do seu arquétipo trinitá rio, pois todo conhecimento, se é conhecimento
verdadeiro, é conhecimento da verdade; e a verdade arquetípica é a verdade de Deus, a
verdade em sua mente. Sua verdade é manifesta na Palavra, que é a verdade no sentido
absoluto (Jo 14.6). Conhecer a verdade é conhecer a verdade daquele (o Uno) que é a
verdade, do Filho; e conhecendo a verdade do Filho, conhecemos a imagem da verdade na
mente do Pai.

Além disso, deve-se dizer, conhecemos através do ensino do Espírito Santo: “Na verdade, há
um espírito no homem, e o sopro do Todo-Poderoso o faz sá bio” (Jó 32.8). Vá rias passagens
do Novo Testamento enfatizam o papel do Espírito Santo em nos dar um conhecimento
salvífico de Deus em Cristo: “quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a
toda a verdade” (Jo 16.13). Essa promessa vem somente para aqueles que creem no Filho. O
Espírito tem um papel redentor especial para os crentes.

Ao mesmo tempo, com base em declaraçõ es mais amplas como as de Jó 32.8 (veja também
Sl 94.10), podemos inferir que o ensino redentor especial pelo Espírito tem como seu pano
de fundo mais amplo uma atividade criacional geral do Espírito em ensinar aos seres
humanos tudo o que sabem. O que o Espírito ensina nessa atividade criacional deriva da
fonte de conhecimento no Filho, que é a Palavra, a sabedoria de Deus (1Co 1.30; Cl 2.3) e a
verdade de Deus (Jo 14.6). Portanto, todo conhecimento humano tem uma estrutura
trinitá ria em sua origem.
 
O papel do homem e a centralidade de Cristo
 
Uma vez que os seres humanos sã o feitos à imagem de Deus e podem gozar de uma
comunhã o pessoal com Deus, nã o deve nos surpreender que encontramos nos seres
humanos alguns elementos aná logos mais impressionantes ao mistério trinitá rio: seu
conhecimento, sua relaçã o pactual com Deus (senhorio da aliança), sua responsabilidade
ética perante Deus (tríade de ética), sua linguagem (Kenneth Pike) e sua criatividade
artística (Dorothy Sayers). No â mago de todas essas manifestaçõ es de Deus está a mediaçã o
do Filho de Deus. Considere primeiro o tema do senhorio da aliança, conforme
desenvolvido por John Frame. Isaías prediz a vinda do servo messiâ nico para trazer
salvaçã o final e o identifica tanto como o Senhor da aliança (Is 9.6-7) como a pró pria
aliança (Is 42.6; 49.8). De forma suprema e culminante, Cristo manifesta autoridade,
controle e presença. Ele tem a autoridade de Deus (Mt 5.21-22; Lc 4.36; 5.21-24); manifesta
o controle de Deus ao curar e governar as á guas (Mt 8); é a presença de Deus, “Deus
conosco” (Mt 1.23).

Cristo também resume em sua pessoa as vá rias dimensõ es da nossa responsabilidade ética.
Sua justiça é a norma suprema, que é refletida nos pronunciamentos normativos
específicos em toda a Bíblia. Sua pessoa é o objetivo final, porque o objetivo da histó ria é
mostrar a gló ria de Deus na gló ria de Cristo (Jo 17.1-5; Ap 21.22-24). Sua pessoa é também
o motivo ú ltimo: a semelhança de Cristo é operada em nó s através do Espírito (2Co 3.18).

Cristo como a Palavra de Deus é a origem ú ltima por trá s de todas as manifestaçõ es da
linguagem (Pike). Cristo o Criador é a origem ú ltima por trá s de todas as instâ ncias de
criatividade humana (Sayers). Cristo como profeta, rei e sacerdote é o modelo ú ltimo para
as instâ ncias ectípicas de profetas, reis e sacerdotes do Antigo Testamento (Clowney).

Ao afirmar a centralidade de Cristo, nã o produzimos um cristomonismo que acabe


colapsando todo o cará ter trinitá rio de Deus numa só pessoa, ou (pior) na natureza
humana de Cristo. Antes, retemos a distinçã o de pessoas e a distinçã o das duas naturezas
de Cristo; ao mesmo tempo, afirmamos a percepçã o epistemoló gica de que qualquer um
dos temas relativos a Cristo pode ser um ponto de partida perspectivo para a meditaçã o de
modo geral.
 
Imagem
 
De acordo com Gênesis 1.26-28, o homem é feito à imagem de Deus. Mas no Novo
Testamento descobrimos algo mais: Cristo é “a imagem do Deus invisível” (Cl 1.15; veja Hb
1.3). A declaraçã o sobre Cristo ocorre no contexto de Cristo como Mediador da criaçã o, em
vez de meramente no contexto da redençã o. Assim, podemos inferir que, no ato original da
criaçã o, Adã o nã o foi simplesmente criado à imagem de Deus, mas segundo o padrã o da
imagem divina arquetípica, a saber, o Filho, a segunda pessoa da Trindade. Adã o, note-se,
também gerou Sete “à sua semelhança, conforme a sua imagem” (Gn 5.3).

Meredith G. Kline refletiu sobre essa estrutura de imagem e estendeu a ideia


metaforicamente, à maneira da terminologia flexível da teologia bíblica. [82]
As teofanias no
Antigo Testamento exibem ou “fazem imagem” de Deus em manifestaçõ es visíveis. Kline vê
uma estreita relaçã o entre a teofania, especialmente a nuvem de gló ria, e o Espírito Santo.
Mas as teofanias incluem manifestaçõ es de Deus em forma humana, como em Ezequiel
1.26-28, e em algumas das apariçõ es a Abraã o (Gn 18) e a outros (Jz 13.6,18,22). Essas
apariçõ es em forma humana certamente antecipam a encarnaçã o de Cristo, que é a
“teofania” final e permanente em forma humana. [83]
Assim, a teofania é intrinsecamente
trinitá ria. É uma revelaçã o do Pai no Filho através do Espírito. Como mais poderia ser? Se
nó s, como pecadores, estivermos perante Deus em sua santidade, morreremos (Ex 33.20-
23; Is 6.5-7). Precisamos de mediaçã o: especificamente, precisamos da mediaçã o do Filho,
em quem habita o Espírito e que envia o Espírito para nos unir a ele, Cristo.

A teofania central está no Filho, em sua encarnaçã o. Mas as teofanias do Antigo Testamento
também incluem manifestaçõ es visíveis: na luz, na nuvem, no trovã o, no fogo, numa sarça
ardente. Esses fenô menos físicos “fazem imagem” de Deus de maneira subordinada,
exibindo algo do seu cará ter. A pró pria criaçã o é descrita de uma maneira que lembra a
linguagem da teofania em Salmos 104.1-4. Assim, a pró pria criaçã o exibe o cará ter de Deus,
que é exatamente o que o apó stolo Paulo diz em Romanos:

… porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque


Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu
eterno poder, como também a sua pró pria divindade, claramente se
reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das
coisas que foram criadas. Tais homens sã o, por isso, indesculpá veis;
porquanto, tendo conhecimento de Deus, nã o o glorificaram como Deus, nem
lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus pró prios raciocínios,
obscurecendo-se-lhes o coraçã o insensato. (Rm 1.19-21)
 
A teofania, como vimos, é intrinsecamente trinitá ria e, portanto, perspectivista. Nó s vemos
o Pai no Filho. Por implicaçã o, a pró pria criaçã o exibe a marca da estrutura trinitá ria.
Embora o homem seja a imagem de Deus em um sentido ú nico, o mundo criado “imagifica”
Deus numa grande variedade de formas. Por exemplo, a nuvem que cobria o Monte Sinai e a
nuvem que preencheu o taberná culo (Ê x 40.34-38) manifestava singularmente a presença
de Deus. As nuvens comuns, por outro lado, nã o têm esse papel. Mas elas refletem tanto a
exaltaçã o quanto o mistério de Deus. O fogo na sarça ardente, o fogo no Monte Sinai e as
línguas de fogo no Pentecostes (At 2.3) eram o fogo teofânico ú nico manifestando a
presença de Deus. O fogo comum nã o é, mas ele ainda reflete Deus em seu poder de
consumir e purificar. As coisas criadas imagificam Deus, que é trinitá rio. O fogo em Atos 2.3
representa o Espírito Santo, que o Pai envia através do Filho (At 2.33; veja Ap 4.5). Assim, a
criaçã o é rica de potencial para a investigaçã o perspectivista. Contudo, as trevas dos
[84]

coraçõ es obscurecidos na idolatria impõ em barreiras à clareza e profundidade do


conhecimento.
 
 
A teologia reformada como um auxílio para o multiperspectivismo
 

O trabalho de Dorothy Sayers e de Kenneth Pike mostram que uma abordagem


multiperspectiva pode se desenvolver diretamente a partir da doutrina trinitá ria e da
revelaçã o geral. Ela nã o precisa ter uma dependência forte e direta dos distintivos da
teologia reformada. Todavia, o multiperspectivismo desfruta de afinidades com alguns dos
distintivos da teologia reformada. As afinidades sã o mais evidentes com a forma particular
de teologia reformada que fincou raízes no Seminá rio Teoló gico Westminster. Já
consideramos vá rias delas.

1. A ênfase de Van Til na antítese encoraja os alunos a pensar de maneira distintamente


cristã e a estar dispostos a romper com a maior parte do pensamento ocidental.

A antítese, claro, nã o é uma ideia exclusivamente reformada. Muitas pessoas hoje em dia
estã o acordando para as distinçõ es entre uma cosmovisã o cristã e as vá rias cosmovisõ es
nã o cristã s. Mas a teologia reformada enfatiza a radicalidade da depravaçã o nos seres
humanos caídos. A depravaçã o se estende à mente (Ef 4.17-19) e nã o apenas à vontade ou
aos há bitos do corpo. Ela afeta as profundezas da mente. E os efeitos podem ser sutis e
também evidentes. Por isso, a tradiçã o reformada oferece um solo fértil para levar a sério a
singularidade do pensamento cristã o.

Van Til também analisa maneiras nas quais os pensadores cristã os do passado caíram em
contemporizaçõ es com o pensamento nã o cristã o, incrédulo. Assim, ele encoraja os cristã os
a nã o adotarem acriticamente uma estrutura metafísica ou epistemoló gica que deva mais a
Kant, Aristó teles ou Platã o do que a Cristo.

2. Van Til enfatiza a distinçã o Criador-criatura. Essa distinçã o enfatiza o aspecto absoluto e
exclusivista das reivindicaçõ es de Deus Criador. Essa ênfase encoraja os cristã os a se
certificarem de que somente Deus receba nossa lealdade. As reduçõ es monoperspectivistas
da verdade frequentemente transformam uma perspectiva numa origem divina para todo o
resto.

Num nível, o conhecimento da distinçã o Criador-criatura é comum a todos os cristã os, nã o


apenas aos cristã os reformados. Mas a teologia reformada faz questã o de insistir no
absoluto de Deus e de tentar assegurar que toda reflexã o teoló gica permaneça coerente
com esse absoluto.

3. A distinçã o Criador-criatura também lembra aos cristã os que, na arena do conhecimento,


eles nã o precisam ser Deus ou almejar ser divinos em seu conhecimento. Os cristã os podem
assim ser livres para admitir que o que têm é apenas um conhecimento finito e que só têm
seu conhecimento da “perspectiva” de quem sã o com uma experiência finita e localizaçã o
finita. Ao mesmo tempo, visto que Deus se revela nas revelaçõ es geral e especial, e
supremamente através de Cristo, os cristã os podem estar confiantes de que têm um
conhecimento genuíno — um conhecimento de Deus e um conhecimento acerca das coisas
à sua volta.

As perspectivas humanas sã o limitadas, mas ainda assim vá lidas (até onde nã o estejam
distorcidas pelo pecado). Qualquer perspectiva cristã é coerente com a infinitude do
conhecimento divino, pois a perspectiva vem como uma dá diva de Deus. As mú ltiplas
perspectivas sã o intrinsecamente legítimas em vez de um constrangimento ou frustraçã o.
Portanto, admitir que você é uma criatura leva naturalmente ao multiperspectivismo.

Suponha, em contrapartida, que a distinçã o Criador-criatura seja abolida no pensamento


do pró prio indivíduo. Se o indivíduo acha que Deus está no mesmo nível que ele, seu
conhecimento, se de fato verdadeiro, deve ser o conhecimento de Deus. Ele deve ser Deus.
Ou deve trazer Deus até seu nível para ter certeza de que seu conhecimento é vá lido. Neste
caso, sua perspectiva é a perspectiva de Deus, pura e simplesmente, e há somente uma
perspectiva vá lida — a dele. Esse ponto de vista é o que Van Til e John Frame chamam de
“racionalismo nã o cristã o”. A mente humana reivindica autonomia absoluta e se torna o
padrã o para a verdade. Essa abordagem tem uma tendência intrínseca para o
monoperspectivismo. Exalta uma perspectiva ú nica escolhida e acaba extinguindo toda a
diversidade nas perspectivas humanas.

Quando essas alegaçõ es de cará ter divino se tornam implausíveis, como inevitavelmente
acabam sendo, o nã o cristã o se move para o polo oposto, o “irracionalismo nã o cristã o”. Ele
reconhece que nã o é Deus, que seu conhecimento nã o é infinito. Mas nã o desiste da sua
autonomia. Ainda se apega à supremacia de sua pró pria perspectiva. Em seguida cai no
ceticismo. Conclui que ninguém pode saber nada corretamente porque ninguém pode
alcançar o infinito. As mú ltiplas perspectivas se tornam entã o relativistas, como é
característico de grande parte do pensamento pó s-modernista.

O pensamento cristã o afirma a acessibilidade de Deus. O pensamento cristã o nã o é pó s-


modernista; nã o exalta irracionalmente a diversidade e abre mã o da unidade. Ao mesmo
tempo, o pensamento cristã o rejeita a confiança modernista na racionalidade humana
autô noma como um fundamento ú ltimo para a verdade. Nem o modernismo, nem o pó s-
modernismo reconhecem a distinçã o Criador-criatura. Assim, nem um nem outro
concordam com a resposta cristã , que é que podemos permanecer criaturas em submissã o
ao Criador. Deus nos dá um conhecimento real mas nã o exaustivo da verdade.

4. A teologia reformada também enfatiza a soberania abrangente de Deus. A soberania


abrangente encoraja os cristã os a afirmarem a relaçã o intrinsecamente harmoniosa entre
as diferentes perspectivas, tais como as perspectivas normativa, existencial e situacional.
Deus garante perfeita harmonia entre as perspectivas porque controla completamente
todas elas e todas as suas manifestaçõ es. Por outro lado, se estamos em dú vida sobre a
abrangência do controle de Deus, deixamos na verdade espaço para um irracionalismo
final. Se pensarmos que algo pode estar fora do controle, por pouco que seja, nã o temos
nenhuma garantia de que isso se encaixará com completa harmonia em outras dimensõ es
da verdade e da padronizaçã o que encontramos em todo o mundo do pensamento.

Especialmente quando multiplicamos o nú mero de dimensõ es que inspecionamos, a


pró pria multiplicidade das percepçõ es pode se tornar ameaçadora. Se elas nã o estã o unidas
pelo Deus que tudo controla, com um plano coerente e controlador de todas as coisas, o que
faremos? As mú ltiplas percepçõ es precisam de uma só perspectiva-mestre, uma chave-
mestre, para que estejam de fato unidas. Se nã o permitirmos a Deus controlar todos os
detalhes, provavelmente produziremos deuses substitutos. Esses deuses podem tomar a
forma de uma perspectiva-mestre que nos trará uma harmonia racionalista com base em
nossos pró prios termos autô nomos. Ou podem tomar a forma de um ceticismo que desiste
da harmonia porque pode haver caos e irracionalismo na base do que investigamos (é a
soluçã o “politeísta”).

5. A teologia bíblica na tradiçã o de Geerhardus Vos e seus sucessores no Seminá rio


Westminster introduziu categorias flexíveis e uma flexibilidade no pensamento analó gico.
Essa flexibilidade está ao lado do perspectivismo. Ao mesmo tempo, Vos afirmou a
importâ ncia de crer na revelaçã o divina e no cará ter harmonioso do plano de Deus para
toda a histó ria. Assim, a coerência entre as perspectivas é garantida de antemã o.

Essa coerência na teologia bíblica vosiana contrasta com outras formas nã o vosianas de
“teologia bíblica”: alguns tipos aberrantes de teologia bíblica podem permitir que pontos de
vista contraditó rios surjam em diferentes partes da Escritura. As contradiçõ es estã o
supostamente presentes por causa da variedade de circunstâ ncias e autores humanos. Esse
tipo de contradiçã o rompe a unidade das perspectivas e leva à negaçã o da acessibilidade do
discurso de Deus a nó s na Bíblia (2Tm 3.16). Deus é visto como ausente ou escondido na
obscuridade, em algum lugar por trá s das contradiçõ es e na variedade de perspectivas
humanas. As perspectivas perdem assim sua unidade final.

6. O ensino de Van Til enfatiza a “igual supremacia” do uno e do mú ltiplo em Deus. Deus é
um Deus em três pessoas. Em Deus, “o uno” — isto é, a unicidade de Deus — é igualmente
ú ltimo com “o mú ltiplo” — isto é, as três pessoas. Essa igual supremacia do uno e do
mú ltiplo é o fundamento final para o uno e o mú ltiplo que ocorre no nível da criatura.[85]
Por exemplo, existem muitos cã es e existe uma espécie, a espécie de cã o. Qual é a relaçã o
entre os dois? Os filó sofos têm encontrado dificuldades insuperá veis. Se o uno é anterior,
como é que surgiu o mú ltiplo? Ou, se o mú ltiplo é anterior, como é que alcançou alguma
unidade subsequente? Van Til defende que o cará ter trinitá rio de Deus é o fundamento
final que responde a esse dilema.

Esse quadro de igual supremacia é um incentivo para o pensamento multiperspectivista em


nível humano. A diversidade de seres humanos na Terra nã o é nem subordinada, nem
anterior à unidade da ú nica raça humana. (Adã o era um ú nico indivíduo, mas desde o
princípio Deus planejou que criaria uma pluralidade de seres humanos.) A diversidade de
pensamento entre os seres humanos e a diversidade de suas perspectivas nã o é nem
anterior, nem posterior à unidade de pensamento que é comum a todas as pessoas feitas à
imagem de Deus. Assim, o multiperspectivismo tem uma afinidade natural com a tese de
Van Til da igual supremacia.

Tenho formulado o tema do uno e do mú ltiplo num alto nível de generalidade. Mas ele pode
ser ilustrado. A travessia do Mar Vermelho serve como um exemplo da redençã o de Deus.
Mas é um exemplo-chave. Deus pede a Israel que relembre esse exemplo a fim de que tenha
coragem no presente (Sl 78.2-4, 12-14). E usa o êxodo como uma analogia para a redençã o
futura (Is 51.9-11). Um caso específico de redençã o (um entre muitos) se torna uma janela
ou perspectiva através da qual podemos ver o princípio geral da redençã o (o padrã o geral
que unifica os casos). Os casos sã o “o mú ltiplo”. O padrã o geral é “o uno”. O padrã o geral é
supremamente manifestado e concretizado na redençã o realizada por Cristo. Essa
redençã o uma leva a muitas “minirredençõ es” na forma de aplicaçã o dos benefícios da
redençã o a cada indivíduo. O padrã o da redençã o de Cristo também se manifesta
tipologicamente no “prenú ncio” da redençã o no êxodo do Egito.

7. O absoluto de Deus, a finitude do conhecimento humano e a multiplicidade de pontos de


vista humanos, quando tomados em conjunto, levam de maneira bastante ó bvia a afirmar
mú ltiplas perspectivas humanas e a afirmar uma harmonizaçã o intrínseca das perspectivas
humanas no conhecimento absoluto de Deus. Mas o absoluto de Deus nos leva ainda mais
longe. Seu absoluto implica sua capacidade de se tornar acessível. Como Frame observa, se
Deus controla todas as coisas e controla sua relaçã o conosco, ele pode se fazer presente e
disponível para nó s. Dentro de uma estrutura cristã , a transcendência (controle) reforça a
imanência (presença), ao invés de estar em tensã o com ela. [86]

A presença de Deus, sua acessibilidade, juntamente com sua misericó rdia demonstrada em
Cristo e o poder de seu Espírito Santo operando em nó s, nos encoraja a buscá -lo
fervorosamente. Seu absoluto implica que devemos conformar nossa mente a Deus, e nã o o
contrá rio. Esse processo de buscá -lo e conformar nossa mente a ele leva naturalmente a
apreciar o papel de Deus em nossa epistemologia. Nossa mente deve ser disposta em
conformidade com ele. Jamais podemos compreender exaustivamente a Trindade, mas a
Trindade está na raiz da nossa epistemologia. Esses pensamentos, em conjunto, levam
naturalmente a enxergar as raízes das mú ltiplas perspectivas nas relaçõ es de
conhecimento entre as pessoas da Trindade. Essas relaçõ es de conhecimento tocam na
coinerência das pessoas. A coinerência das pessoas garante a coerência das perspectivas no
mais profundo nível ontoló gico. [87]

Nã o pode haver outro fundamento ú ltimo para as perspectivas que nã o o pró prio Deus. Só
Deus é absoluto. Assim, o absoluto, um conceito-chave na teologia reformada de Deus,
serve naturalmente como um incentivo-chave para avançar o pensamento
multiperspectivista na prá tica humana, um multiperspectivismo que imita a coinerência
das pessoas na Trindade.
 
 
A teologia reformada como estando em reforma
 
O que o multiperspectivismo implica para o futuro? A finitude do conhecimento humano,
juntamente com o acesso humano a Deus em Cristo, fornece a base para o progresso. Nó s
podemos crescer. Podemos conhecer mais de Deus em Cristo (Rm 11.33-36). Usar uma
multiplicidade de perspectivas ajuda no crescimento. Esse crescimento inclui o apuraçã o
adicional do pensamento humano, que neste mundo permanece contaminado pelo pecado
e pela corrupçã o de influências nã o cristã s.

A pró pria teologia reformada, como uma tradiçã o, ainda nã o alcançou a perfeiçã o. [88]

Frame, portanto, nã o tem medo de enriquecer essa tradiçã o, e até de desafiá -la, quando
acredita estar seguindo a Escritura ao agir assim. Continuar a crescer, o que inclui
inspecionar criticamente nossa herança das geraçõ es passadas, é uma implicaçã o da
profundidade da verdade de Deus revelada na Escritura.

De fato, o multiperspectivismo oferece um desafio radical para o crescimento. Deus, no


cará ter absoluto de seu ser trinitá rio, é o fundamento ontoló gico final para a ordem criada.
E isso tem implicaçõ es para a linguagem como um todo e para os sistemas de categoria que
têm um papel no pensamento humano, incluindo o pensamento teoló gico. [89]

Em um ambiente pó s-modernista, em que o tom principal é o ceticismo e a antipatia com


reivindicaçõ es absolutistas, devemos ser cuidadosos em adotar um tom de oposiçã o ao
modernismo e ao pó s-modernismo. Ambos se comprometem com a autonomia humana. O
caminho de Cristo é o caminho do discipulado, o caminho da firme confiança em sua
instruçã o, que é encontrada na Escritura. Esse caminho nã o despreza os frutos dos séculos
de santos que se beneficiaram da Escritura. Em particular, nos beneficiamos dos santos
dentro da tradiçã o reformada, que tem sido uma ajuda importante para o florescimento do
multiperspectivismo.

Multiperspectivismo significa apreciar todas as perspectivas oferecidas pelos santos nas


geraçõ es passadas e enriquecê-las, em vez de descartá -las em nome da novidade ou da
rebeliã o. Seria loucura, assim como ingratidã o, lançar fora essa tradiçã o em favor da
modernidade ou pó s-modernidade. No processo também podemos nos apropriar, de uma
maneira multiperspectiva, de percepçõ es que surgem da graça comum tanto dentro do pó s-
modernismo como do modernismo. Mas o faremos em submissã o a Cristo, o Senhor, que é
o Deus absoluto, na unidade com o Pai e o Espírito.

1
 

8. Perspectivas sobre Deus


 
 

Podemos agora começar a empregar perspectivas sobre o que existe. Começamos com
Deus, que é o Criador, aquele cuja existência é a base para todo o resto. O livro de John
Frame A doutrina de Deus oferece uma exposiçã o abrangente. Assim, neste capítulo
[90]

podemos nos limitar a resumir e suplementar um pouco do que ele diz.

A Bíblia nos oferece muitas perspectivas sobre Deus. Deus é Pai, pastor, rei, marido (Os
2.16), fortaleza, luz e muito mais. (Para uma discussã o das perspectivas sobre o cará ter
trinitá rio de Deus, veja o apêndice B.) Consideremos uma vertente que nos ajudará a
pensar sobre nossa relaçã o com Deus: as passagens que falam de Deus como rei ou Senhor.
Como Senhor, Deus tem autoridade e poder transcendentes. Ele também exerce sua
autoridade e poder no mundo. Ao fazê-lo, se mostra imanente , ou presente, no mundo.
 
Os termos de Frame e seus significados
 

Estamos seguindo John Frame neste ponto usando sua tríade de autoridade, controle e
presença. Essa tríade de perspectivas expressa o significado do senhorio de Cristo. Seu
senhorio se expressa no relacionamento pactual entre Deus e o homem (e de maneira
subordinada na relaçã o de Deus com outras coisas que ele criou). Em seguida agrupamos a
autoridade e o controle como aspectos da transcendência, enquanto a presença é a
expressã o da imanência. Podemos escolher mais de uma maneira de falar sobre essas
coisas. O que importa é que usamos a terminologia a serviço da expressã o fiel do cará ter de
Deus, o Deus que se revela fielmente na Escritura.
 
Transcendência e imanência
 

Assim, Deus é transcendente e imanente. O pensamento filosó fico sobre Deus tem muitas
vezes concebido a transcendência e a imanência em tensã o uma com a outra. As pessoas
podem argumentar que, se Deus é transcendente, deve estar distante e inacessível; ele nã o
é imanente. Por outro lado, se ele é imanente, se está envolvido, entã o faz praticamente
parte do mundo e nã o é transcendente.
Mas o ensino bíblico sobre Deus nã o produz uma tensã o. Precisamente porque Deus tem
autoridade e poder, tem poder para agir no mundo e estar presente à s suas criaturas. Por
outro lado, sua presença é sempre a presença de alguém que é Senhor, que expressa sua
autoridade e requer nossa obediência. Sua presença faz pesar sobre nó s sua autoridade e
controle.

John Frame expressa a compatibilidade da transcendência e imanência usando um


diagrama quadrado, que veio a ser conhecido como “quadrado de Frame” (veja a figura 1).
[91]

O canto superior esquerdo (1) representa a visã o bíblica ou visã o cristã da transcendência
de Deus. Deus tem autoridade ú ltima e exerce seu controle sobre todo o mundo que ele fez.
O canto inferior esquerdo (2) representa a visã o cristã da imanência de Deus. Deus está
intimamente presente em tudo o que tem feito — especialmente com os seres humanos,
feitos à sua imagem. Sua presença expressa sua autoridade e controle, e assim nã o há
tensã o entre a imanência e a transcendência nessa visã o cristã .

O lado direito do quadrado representa a posiçã o nã o cristã sobre a transcendência e


imanência. Claro, em certo sentido existem muitas posiçõ es nã o cristã s, mas elas mostram
características em comum. Todas tentam fugir da verdadeira natureza de Deus produzindo
uma imagem substituta ou falsificaçã o que difere radicalmente da posiçã o cristã e, contudo,
apresenta semelhanças com ela que nos chamam a atençã o.
O canto superior direito (3) representa a visã o nã o cristã da transcendência. De acordo com
essa visã o, Deus é inacessível, distante e nã o envolvido. O canto inferior direito (4)
representa a visã o nã o cristã da imanência. De acordo com essa visã o, se e quando Deus se
torna envolvido com o mundo, é praticamente idêntico ao mundo e está sujeito à s mesmas
limitaçõ es que caracterizam este ú ltimo (veja a figura 2 para o quadro completo).

O panteísmo é um exemplo de visã o nã o cristã . O panteísmo diz que Deus é idêntico ao


mundo, expressando assim a imanência nã o cristã (canto 4). Ao mesmo tempo, o panteísmo
implica que Deus é impessoal; entã o ele (ou melhor, isso) acaba sendo distante e nã o
envolvido em relaçã o aos detalhes da vida de um indivíduo. Essa característica de distâ ncia
expressa a transcendência nã o cristã (canto 3).

Os defensores do materialismo nã o acreditam em um Deus pessoal. Mas a matéria em si se


torna o principal substituto de Deus. Ela imita algumas das características de Deus, ao ser
autoexistente e praticamente eterna. A matéria é impessoal e, portanto, nã o se relaciona
com as pessoas. Ela expressa assim uma transcendência nã o cristã . É também idêntica ao
mundo, expressando uma imanência nã o cristã .

No quadrado de Frame, as diagonais do quadrado representam contradiçõ es. A visã o cristã


de transcendência no canto 1 contradiz a visã o nã o cristã de imanência no canto 4. A visã o
cristã de imanência no canto 2 contradiz a visã o nã o cristã de transcendência no canto 3.
Essas contradiçõ es significam que os nã o cristã os têm uma visã o muito diferente de Deus,
ou de um substituto de Deus, dos cristã os. Eles estã o tentando escapar das reivindicaçõ es
do verdadeiro Deus.
[FTdM1]

As linhas horizontais no quadrado de Frame representam similaridades na linguagem. Uma


explicaçã o sutilmente elaborada da transcendência nã o cristã no canto 3 pode soar como a
visã o cristã da transcendência no canto 1. Ambas podem usar as mesmas palavras, como
transcendência ou exaltação . Mas os significados diferem. De maneira similar, uma
explicaçã o da imanência nã o cristã no canto 4 pode soar como a imanência cristã no canto
2. Mas os significados diferem.

Que diferença faz? A Bíblia ensina que Deus é radicalmente distinto do que ele cria. Ele é
eterno, enquanto suas criaturas nã o. É onipotente, ao passo que suas criaturas nã o o sã o. A
distinçã o entre Deus Criador e suas criaturas é uma distinçã o metafísica das mais bá sicas.
Mas o quadrado de Frame mostra que os nã o cristã os podem interpretar erroneamente a
distinçã o. Eles fazem afirmaçõ es plausíveis, e as afirmaçõ es podem se infiltrar na mente
dos cristã os também. O quadrado de Frame deixa claro que devemos ter o tipo certo de
distinçã o entre Deus e suas criaturas. A distinçã o afirma a autoridade e o controle de Deus;
nã o implica que ele esteja distante e nã o envolvido.
 
 
Implicações epistemológicas
 
Como de costume, a metafísica e a epistemologia (a natureza do conhecimento) andam
juntas. A distinçã o metafísica entre Deus e a criaçã o traz consigo implicaçõ es para a
maneira como pensamos sobre o conhecimento, tanto o conhecimento de Deus quanto o
conhecimento do mundo.

O cristã o naturalmente tem uma abordagem distintiva de conhecimento, pois Deus é o


conhecedor primordial. Deus se conhece completamente: “Tudo me foi entregue por meu
Pai. Ninguém conhece o Filho, senã o o Pai; e ninguém conhece o Pai, senã o o Filho e aquele a
quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11.27).

E quanto ao conhecimento humano ? Os seres humanos sã o criados à imagem de Deus:

Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa


semelhança . (Gn 1.26)

Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e
mulher os criou. (Gn 1.27)
 
Os seres humanos sã o criaturas inteligentes, pensantes, porque Deus os fez assim. Seu
pensamento imita o pensamento de Deus. Mas há uma diferença. Deus é o original. Seu
conhecimento é infinito e insondá vel (Sl 147.5; Is 40.28). O conhecimento humano é
derivativo e limitado.

Os seres humanos, quando muito, imitam Deus ao pensar os pensamentos de Deus apó s ele.
Qualquer verdade que conhecemos, Deus conhece primeiro. A verdade reside em primeiro
lugar na mente de Deus. Ele é a autoridade ú ltima para o conhecimento porque é
transcendente. Desse modo, quando um ser humano vem a conhecer algo, o que ele
conhece reflete a verdade de Deus. Mas isso nã o significa que a mente humana finita se
torna idêntica ao infinito de Deus. As pessoas pensam os pensamentos de Deus apó s ele
analogicamente . Seu pensamento é aná logo ao de Deus porque elas foram criadas à
imagem de Deus. Mas analogia nã o equivale a identidade.

Assim, temos dois níveis de conhecimento: conhecimento de Deus e conhecimento humano.


A maior parte da filosofia tem abordado a questã o do conhecimento como se houvesse
[92]

apenas um nível. Isso perturba todo o projeto e o coloca na direçã o errada.


 
 
Transcendência e imanência no conhecimento
 
Podemos resumir a diferença entre os pensamentos cristã o e nã o cristã o sobre o
conhecimento usando mais uma vez o quadrado de Frame. Desta vez, perguntamos como é
a transcendência e a imanência quando consideramos a questã o do conhecimento (veja a
figura 3).
O canto superior esquerdo (1) resume a visã o cristã da transcendência de Deus. A
transcendência de Deus implica que ele conhece todas as coisas e que seu conhecimento é o
padrã o para todo o conhecimento. O canto inferior esquerdo (2) resume a visã o cristã da
imanência de Deus. Deus, através de sua presença, por meio do Espírito Santo, dá
conhecimento à s pessoas. Esse conhecimento inclui o conhecimento do pró prio Deus e das
verdades sobre o mundo, verdades que Deus estabeleceu. Nosso conhecimento pode ser
verdadeiro, muito embora seja derivativo.

Consideremos agora o lado direito do quadrado. O canto superior direito (3) simboliza a
visã o nã o cristã da transcendência de Deus. Essa visã o diz que Deus é incognoscível. A visã o
nã o cristã da imanência de Deus, no canto 4, diz que nó s, como seres humanos, podemos
servir como o padrã o ú ltimo para o que pode ou nã o ser o caso e para o que conta como
conhecimento. Deus, se existe e se falamos sobre ele, deve se conformar ao nosso
conhecimento. Nosso conhecimento é tratado como se fosse ú ltimo, nã o derivativo.
 

Como de costume, as diagonais do quadrado indicam contradiçõ es. A visã o nã o cristã de


imanência (canto 4) contradiz a visã o cristã de transcendência (canto 1). Se somos o
padrã o, isso contradiz a ideia de que Deus é o padrã o. Assim também, a visã o nã o cristã de
transcendência (canto 3) contradiz a visã o cristã de imanência (canto 2). Se Deus é
incognoscível (canto 3), isso contradiz a afirmaçã o cristã de que ele realmente se fez
conhecido a nó s (canto 2).

Os lados horizontais do quadrado representam similaridades. A visã o nã o cristã de


transcendência no canto 3 pode soar como a visã o cristã de transcendência no canto 1. Ela
pode usar a mesma palavra transcendência . Ou pode dizer que Deus é misterioso e está
além da compreensã o. A visã o cristã pode dizer a mesma coisa. Mas os significados sã o
diferentes nos dois lados do quadrado. Para uma visã o cristã , nã o compreender Deus
significa que nã o o entendemos completamente, nã o o entendemos da mesma maneira que
ele se entende. Mas numa visã o nã o cristã as ideias de incompreensibilidade e mistério
podem ser mudadas para implicar que Deus é incognoscível.

Assim também, a visã o nã o cristã de imanência no canto 4 é semelhante à visã o cristã de


imanência no canto 2. Ambos os lados diriam que temos um conhecimento sobre o qual nos
baseamos. Mas numa visã o nã o cristã essa verdade é distorcida para inferir que é possível
funcionarmos como nosso pró prio padrã o ú ltimo.

Muito pesar na histó ria da filosofia poderia ser evitado mantendo-se clara a distinçã o entre
esses dois modos de pensar. A distinçã o tem relevâ ncia nã o apenas quando pensamos
sobre conhecer Deus, mas também quando pensamos sobre conhecer verdades sobre o
mundo. Em ambos os casos, nosso pensamento e nosso conhecimento devem imitar Deus,
mas no nível das criaturas, no qual reconhecemos a supremacia de Deus (canto 1).
 
Deus em si mesmo
 
Algumas pessoas se preocupam se a tríade do senhorio de Frame, ao se concentrar na
relaçã o de Deus com o homem numa aliança, faz justiça a Deus — na medida em que Deus
existe antes da existência humana e antes da criaçã o. Quando discutimos transcendência e
imanência, a mesma questã o pode surgir. Afinal, as ideias da transcendência e imanência
representam uma maneira de condensar o significado do senhorio de Deus, e o senhorio de
Deus se expressa nas relaçõ es pactuais entre Deus e o homem.

Quando nos concentramos numa aliança, estamos nos concentrando nas relações entre
Deus e as criaturas e nã o simplesmente no pró prio Deus. Por exemplo, a transcendência se
dá no relacionamento entre Deus e suas criaturas. Deus transcende a criaçã o. Deus exerce
autoridade sobre as criaturas, de modo que sua autoridade se expressa num
relacionamento. Assim também, Deus exerce controle sobre as criaturas, e seu controle
sobre o mundo também é uma forma de relacionamento entre ele e as criaturas. Por fim,
Deus é imanente na criaçã o; portanto, a imanência também expressa uma relaçã o entre
Deus e a criaçã o.

Mas Deus existe antes da criaçã o. Ele nã o precisava ter criado um mundo. Deus nã o precisa
de um relacionamento com um mundo criado para ser Deus e ser completo. A realidade da
existência eterna de Deus nos leva a perguntar o que podemos dizer sobre Deus em
distinçã o ao que dizemos sobre seus relacionamentos conosco e com o mundo. Ao falar
sobre o relacionamento de Deus conosco, realmente dissemos algo sobre Deus como ele
realmente é? Ou apenas estamos falando sobre Deus em suas relaçõ es conosco, que sã o
claramente menos fundamentais que o pró prio Deus?

Na minha opiniã o, essa preocupaçã o nã o leva em conta a maneira como o perspectivismo


funciona ou a maneira como o nosso conhecimento de Deus funciona. A tríade para o
senhorio oferece uma perspectiva — ou melhor, três perspectivas interligadas — sobre
quem Deus é, bem como sobre suas relaçõ es conosco. A tríade de Frame para o senhorio
reflete a triunidade de Deus dentro das relaçõ es divino-humanas. Ou, para colocar de outra
forma, através dos relacionamentos de Deus conosco nó s chegamos a conhecê-lo. De que
outra maneira o conheceríamos, afinal? Uma perspectiva divinamente dada sobre Deus nos
dá Deus, assim como a revelaçã o que Cristo faz do Pai nos dá conhecimento do Pai.

Deus é eternamente triú no. Tendo criado o mundo e os seres humanos nele, Deus agora se
relaciona com a humanidade de acordo com quem Deus sempre foi e é. Por exemplo, a
autoridade de Deus sobre nó s expressa, na relaçã o conosco e com o mundo, o fato do
absolutismo de Deus como o padrã o moral, o que está associado com o papel de Deus Pai
como a fonte. Deus Pai é a autoridade a quem Deus Filho responde em amor. A autoridade
de Deus tem uma realidade eterna, e nã o surge apenas no momento em que Deus cria o
mundo.

Em seguida, o controle de Deus sobre nó s expressa sua onipotência, que é uma


manifestaçã o do poder inato do Verbo eterno e do Espírito Santo. O poder de Deus existe
eternamente, nã o apenas em relaçã o a nó s. Pelo seu poder, o Pai gera eternamente o Filho.

A presença de Deus conosco expressa a onipresença de Deus, que tem uma manifestaçã o
eterna na presença das pessoas da Trindade umas à s outras (Jo 1.1), e essa presença eterna
entre as pessoas da Trindade está associada ao Espírito Santo. Deus Pai sempre foi dotado
de autoridade, Deus o Filho sempre foi todo-poderoso e Deus sempre esteve presente a si
mesmo na comunhã o das pessoas da Trindade através do Espírito Santo.

Ao contemplar os aspectos do senhorio, estamos, portanto, falando sobre Deus e nã o


meramente sobre uma sombra de Deus adequada à s criaturas. No senhorio de Deus
chegamos a conhecê-lo em sua eterna natureza trinitá ria, que é inquestioná vel, onipotente
e onipresente.

Suponha, ao contrá rio, que alguém teorize que conhecemos apenas uma sombra de Deus e
nã o o pró prio Deus. Conhecemos “Deus-em-sua-condescendência-conosco”, que nosso
teó rico diz ser apenas uma sombra da coisa real, do verdadeiro Deus. Se essa teoria
estivesse correta, seríamos idó latras, pois estaríamos adorando apenas uma sombra. Essa
consequência destró i todo o propó sito da Bíblia, que é levar-nos a conhecer e adorar o
verdadeiro Deus e nã o um substituto. A teoria sobre a sombra de Deus representa uma
forma de transcendência nã o cristã .
Por outro lado, outro teó rico pode dizer que, visto que conhecemos Deus e nosso
conhecimento é genuíno e é um conhecimento de quem Deus realmente é, nosso
conhecimento de Deus é igual ao conhecimento que Deus tem de si mesmo. Essa teoria
implicaria entã o que, para efeitos prá ticos, nosso conhecimento poderia servir como um
padrã o ú ltimo. Teríamos caído em um conceito nã o cristã o de imanência.

Ou um teó rico poderia seguir outra direçã o e dizer que, visto que tudo o que temos de
conhecimento é o conhecimento de “Deus-em-sua-condescendência-conosco”, devemos
usar esse conhecimento como se fosse ú ltimo. Mais uma vez, o teó rico nos dá um conceito
nã o cristã o de imanência no qual nosso conhecimento, para efeitos prá ticos, funciona como
um padrã o ú ltimo. Ao sugerir que “tudo o que temos” é um corpo fixo de “conhecimento”
de “Deus-em-sua-condescendência-conosco”, a teoria também pode secretamente sugerir
que nã o temos comunhã o pessoal com Deus, mas apenas comunhã o com esse alegado
corpo de “conhecimento”. O desaparecimento da comunhã o com Deus representa uma
forma de transcendência nã o cristã , em que Deus (isto é, o Deus que realmente existe, em
distinçã o do corpo de “conhecimento”) é alguém distante.

Devemos evitar as duas armadilhas, a armadilha da transcendência nã o cristã e a armadilha


da imanência nã o cristã . A comunhã o pactual com Deus, em Cristo através do Espírito, nos
dá um conhecimento que está de acordo com a nossa capacidade. Nosso conhecimento nã o
é o padrã o final (transcendência cristã ). Mas nosso conhecimento de Deus é real
(imanência cristã ).

Sabemos que Deus tem autoridade, controle e presença, os quais revelam quem ele
realmente é. Sabemos porque ele nos disse, e sua comunicaçã o, que o Espírito Santo nos
capacita a receber, realmente diz a verdade , nã o apenas uma sombra da verdade. Esse dizer
da verdade está enraizado em Cristo, a eterna verdade de Deus. [93]

De acordo com o princípio da transcendência divina, Deus nos chama como criaturas a nos
submetermos à s verdades que ele tem revelado. Se vamos além dessas verdades,
retratando por nó s mesmos um deus que é diferente do tipo de Deus que ele mesmo tem
revelado, um deus que está sempre oculto por trás da revelaçã o bíblica, ou um deus que é
em ú ltima aná lise desconhecido, estamos agindo em rebeliã o contra Deus. Estamos agindo
de acordo com um princípio nã o cristã o de imanência, no qual seguimos nosso pró prio
caminho, por mais que tentemos nos persuadir de que estamos honrando a transcendência
de Deus.

Também podemos cair em armadilhas se tentamos priorizar algumas peças da revelaçã o


bíblica. Um teó rico poderia dizer, por exemplo, que quase toda a Bíblia apresenta Deus em
seus relacionamentos conosco, mas que alguns versículos, talvez Joã o 1.1 e Ê xodo 3.14, ou
talvez 1 Timó teo 1.17, nos oferecem Deus como ele existe eternamente. Em resposta
podemos observar, em primeiro lugar, que Joã o 1.1, Ê xodo 3.14 e quaisquer outros
versículos “especiais” que uma teoria possa selecionar sã o, como todo o resto da Escritura,
uma comunicaçã o pactual adaptada a nó s, adequada à nossa capacidade como criaturas.
Toda a Escritura é adequada a nó s. O fato de ser adequada revela a eterna sabedoria de
Deus. A pró pria adequaçã o revela Deus! Quando selecionamos alguns versículos, corremos
a tentaçã o de forçar essa adequaçã o universal. A seleçã o desses versículos pode sugerir que
esses versículos, e somente eles, nos levam para além do nível de adequaçã o.

Essa teoria também nos tenta a cair na imanência nã o cristã em relaçã o a esses poucos
versículos, pois a teoria propõ e que, neles, obtemos um conhecimento mais elevado que
funciona para reger o restante das Escrituras. A teoria também cai na transcendência nã o
cristã em relaçã o a todos os outros versículos, pois implica que os outros versículos sã o
“meramente” adequados e nã o nos dã o a forma ú ltima do conhecimento, o conhecimento
“real”. Deus supostamente permanece “oculto”, “distante”, por trá s dos textos devido ao
fato de serem meramente “adequados”.

Em segundo lugar, quando selecionamos alguns versículos, corremos a tentaçã o de


depreciar o conhecimento que Deus nos dá através de muitos outros versículos. (Caímos,
por sua vez, na transcendência nã o cristã , onde minamos a confiança no conhecimento de
Deus.) Podemos negligenciar ou depreciar o fato de que o relacionamento de Deus conosco
através de qualquer versículo que ele nos fala nos dá um conhecimento de Deus e nã o
meramente um conhecimento da nossa relaçã o ou um conhecimento de um “deus-em-
relacionamento”. “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o ú nico Deus verdadeiro, e a
Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3). Conhecemos Deus através de Cristo. Cristo
encarnado é a “perspectiva” ú ltima através de quem conhecemos Deus. Através da aliança e
através de um relacionamento com Deus em Cristo, nó s o conhecemos.
 
 
Mistério
 
Antes de deixar o assunto da epistemologia, devemos enfatizar mais uma diferença entre
uma abordagem cristã e uma abordagem filosó fica secular. De acordo com um ponto de
vista cristã o, nosso conhecimento sempre envolve interaçã o pessoal com Deus. Nunca
somos mestres do processo. Uma vez que Deus desempenha um papel de liderança em
nosso conhecimento e porque nosso conhecimento de Deus envolve o mistério, todo o
nosso conhecimento inclui o mistério em todos os pontos. Só o conhecimento que Deus tem
de si nã o é misterioso. Historicamente, a filosofia ocidental tem lutado por transparência
completa, domínio completo e ausência de mistério. Em seu â mago, tem buscado um
conhecimento do tipo divino — desejando praticamente ser Deus. Esse é um eco da queda
do homem, quando desejou ser “como Deus, [conhecedor] do bem e do mal” (Gn 3.5).

1
 

9. Perspectivas sobre o mundo


 
 

Podemos agora nos voltar para considerar as perspectivas sobre o mundo. Como já
observamos, todo ser humano aplica uma ou mais perspectivas sobre o mundo. Há
mú ltiplas perspectivas porque há mú ltiplos seres humanos. E, à parte o pecado, essa
multiplicidade reflete o desígnio original de Deus. Deus a endossa.
 
 
O governo de Deus pela fala
 

Podemos refinar nossas ideias ao refletir sobre o que a Bíblia diz sobre Deus criando o
mundo e o governando providencialmente. Vamos novamente nos basear em trabalho já
feito, desta feita em meu livro Redimindo a ciência . Como ali indicado, a criaçã o e a
providência acontecem pelo falar de Deus. Por exemplo, “disse Deus: Haja luz; e houve luz”
(Gn 1.3). O discurso de Deus especifica todas as coisas. Deus especifica que certas coisas
existirã o: luz, a vastidã o do céu, o mar, a terra seca, as plantas e assim por diante. Ele
também especifica como elas existirã o. As plantas crescerã o na terra. Elas se reproduzirã o
“segundo a sua espécie” (Gn 1.12). Providencialmente, especifica a chegada da neve e gelo e
o seu derretimento:
 
Ele envia as suas ordens à terra, e sua palavra corre velozmente; dá a neve como lã e espalha a geada
como cinza. Ele arroja o seu gelo em migalhas; quem resiste ao seu frio? Manda a sua palavra e o
derrete; faz soprar o vento, e as á guas correm. (Sl 147.15-18)
 

Deus especifica todas as coisas: “Ele sustenta o Universo com a sua palavra poderosa” (Hb
1.3, NTLH).

Nã o ouvimos diretamente as palavras que Deus emite para comandar o mundo da


natureza. Algumas de suas palavras estã o registradas em Gênesis 1, mas isso é apenas uma
amostra e resumo. Claramente, há muito mais do que a Bíblia registra.

A Bíblia também indica que Deus tem palavras para nos dizer como seres humanos. A
Bíblia apresenta suas palavras em forma escrita. Deus as escreveu com o propó sito de
[94]

que ainda falaria conosco ao lermos a Escritura hoje: “Pois tudo quanto, outrora, foi escrito
para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolaçã o das Escrituras,
[ nós ] tenhamos esperança” (Rm 15.4). Tudo o que a Bíblia diz nos informa sobre o mundo.
O que ela diz é verdade, porque Deus é leal. Mas isso nã o é tudo. O discurso da Bíblia é
definitivo para o mundo, pois o discurso de Deus é original e superior ao mundo que ele
criou.
 
 
Realidade metafísica multiperspectiva
 
A Bíblia inteira, portanto, é a comunicaçã o de Deus para nó s sobre o que o mundo é e como
é. Ela é a pró pria declaraçã o metafísica de Deus. Nã o devemos igualar a palavra de Deus a
nó s na Bíblia com as palavras de comando de Deus que controlam todo o Universo. Mas
uma é semelhante à outra. Ambas sã o dotadas de autoridade. O cará ter multidimensional
do que a Bíblia diz sugere que a palavra de Deus que governa o universo também é
multidimensional. Ela especifica e define muitas dimensõ es para a realidade, nã o apenas
uma.

Se nã o somos convencidos por essa comparaçã o entre a Bíblia e as palavras de comando de


Deus para a criaçã o, podemos considerar outro caminho que leva à mesma conclusã o.
Podemos conhecer Deus; podemos entendê-lo. Mas nã o podemos compreendê-lo no sentido
pleno da palavra compreender (veja o capítulo 8). Nossa incapacidade de compreender
Deus sugere também nossa incapacidade de compreender a palavra de Deus que governa o
universo. Se nã o a compreendemos, como podemos, nã o obstante, ter um entendimento
razoá vel dela que nã o seja pela compreensã o? Como poderíamos entender sem conhecer
Deus?

Nã o podemos; devemos conhecer Deus. E como melhor podemos conhecer Deus, senã o
pelo caminho de Cristo, da maneira como Cristo nos fala na Escritura? A Escritura é nosso
instrutor natural quanto à metafísica do mundo, visto que a metafísica do mundo é
completamente determinada e especificada pelo discurso de Deus que governa o mundo; e
seu discurso ocorre em Cristo, o Verbo (Jo 1.1).

Podemos seguir ainda de outra maneira. O arquétipo da verdade está na mente de Deus.
Deus conhece toda verdade. Além disso, Cristo é a verdade (Jo 14.6). Quando Cristo diz que
é a verdade, o contexto imediato tem o foco na verdade redentora. Cristo é “o caminho, e a
verdade, e a vida” (Jo 14.6), sendo aqui os termos caminho e vida uma referência ao
caminho para a redençã o e comunhã o com Deus. Ademais, a vida aludida por Cristo nesse
versículo é a vida eterna em comunhã o com Deus.

Mas a verdade no enfoque redentor tem uma relaçã o pró xima com toda e qualquer
verdade. Cristo e o Espírito medeiam a verdade. Cristo, como o Criador do mundo e estando
em comunhã o com o Pai, é a fonte de toda e qualquer verdade. Conhecemos Cristo através
de mú ltiplas perspectivas, como é ilustrado pelos quatro Evangelhos e pelas mú ltiplas
analogias que nos instruem sobre Deus e sobre o cará ter trinitá rio de Deus. Assim, sempre
recebemos a verdade de forma multiperspectivista. Deus expressa a verdade de forma
multiperspectivista, pois tem um corpo unificado e completo de conhecimento tal como
conhecido pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo.

Concluímos, portanto, que a metafísica do mundo é exatamente o que a Bíblia diz, em todos
os seus mú ltiplos gêneros, mú ltiplos assuntos, mú ltiplas discussõ es desses mú ltiplos
assuntos e mú ltiplos pará grafos que se interligam com mú ltiplos seres humanos, os quais a
Bíblia apresenta como tendo mú ltiplas opiniõ es e mú ltiplos pontos de vista (nem todos,
evidentemente, sendo aprovados por Deus!).
O mundo é incrivelmente rico! Aproveite-o! Louve a Deus por tudo! Louve a Deus pelo que
você vê, ouve e experimenta — nã o apenas enquanto lê ou ouve a Bíblia, mas em toda a sua
experiência. Deus faz de sua experiência exatamente o que ela é como sua experiência em
toda a sua riqueza e toda a sua singularidade. Ao mesmo tempo, você pode apreciar as
experiências de outras pessoas enquanto interage com elas e em certo grau compartilha
experiências, porque elas têm ressonâ ncias e semelhanças com as suas.

Somos todos feitos à imagem de Deus. Aproveite isso! Regozije-se! A experiência será muito
mais agradá vel, é claro, quanto mais rica for sua comunhã o com o pró prio Deus, que é o
arquétipo, a fonte de toda sabedoria, alegria, riqueza e beleza que vivenciamos. Deus é
também o sustentador providencial, que nos dá nossa pró pria vida, a cada um de nó s, dia
apó s dia.

Quando descrevemos essa experiência de interaçã o com o mundo, pressupomos que antes
de tudo experimentamos a redençã o por meio de Cristo: “importa-vos nascer de novo” (Jo
3.7). Os incrédulos, como já dissemos, experimentam muitas bênçã os através da graça
comum. Mas estã o perdendo o ponto central de tudo isso. Deus nos designou para ter
comunhã o com ele. “… nosso coraçã o vive inquieto enquanto nã o repousa em vó s”. [95]

Encontramos descanso em uma vida renovada pelo Espírito Santo, perdoada do pecado e
restaurada à comunhã o com Deus. Entã o poderemos olhar o mundo com clareza. Ele é
maravilhoso na riqueza da sua estrutura. Deus mostra sua sabedoria reiteradas vezes nessa
riqueza. Ele fez um mundo rico, um mundo multidimensional, refletindo a riqueza
arquetípica de Deus. O mundo é belo porque Deus é belo.
 
 
A ciência como o padrão último?
 

E quanto à ciência? A ciência nos dá uma visã o mais ú ltima do mundo? Centenas de anos
atrá s, as pessoas podem ter sentido uma fascinaçã o por filosofias que alegavam chegar ao
fim do mundo. Agora a tendência predominante na cultura moderna é o nosso fascínio com
a ciência. A ciência, pensa-se, escava fundo até à estrutura interior do mundo. Ela nos leva
ao fundo das coisas, ou ao menos perto do fundo.

Por exemplo, algumas pessoas confiantemente nos dizem que a mesa diante de nó s nã o é
realmente só lida, mas principalmente espaço vazio, com nú cleos e elétrons rodopiando ao
redor. O sol nã o se move realmente no céu, mas a Terra é que gira e orbita o sol. O arco-íris
nã o é realmente as cores que vemos, mas fenô menos físicos que envolvem a refraçã o da
radiaçã o eletromagnética de diferentes frequências através de gotas líquidas de monó xido
de di-hidrogênio (comumente conhecido por á gua).

Em resposta, podemos observar que as ciências nos dã o perspectivas. Amiú de a ciência


fornece mú ltiplas perspectivas até mesmo dentro de um ú nico campo. Os astrô nomos, por
exemplo, podem fazer cá lculos sobre as posiçõ es relativas dos planetas partindo da Terra
ou do sol como uma origem para seus cá lculos matemá ticos. Ou podem começar da lua ou
de Marte. Qualquer um que saiba como a matemá tica funciona sabe que ela chegará a esses
mesmos resultados procedendo de cada um desses pontos de partida, pois eles estã o
relacionados uns aos outros por transformaçõ es das coordenadas. Os cá lculos podem à s
[96]

vezes ser mais fá ceis tendo uma escolha ou outra como ponto de partida, dependendo do
tipo de cá lculo. Pode-se escolher uma perspectiva.

A coerência de Deus, juntamente da coerência derivativa que ele especifica por sua palavra
de comando, garante a coerência dos pontos de vista perspectivamente relacionados. A
coerência é bela, e qualquer perspectiva oferecida na ciência é bela quando reflete a
sabedoria de Deus. Juntas, as diferentes perspectivas sã o como diferentes facetas em uma
joia. As pessoas têm com razã o fascínio e admiraçã o pela ciência, pois no seu melhor ela
reflete e demonstra a sabedoria e magnificência de Deus.

A ciência, no seu melhor, significa pensar os pensamentos de Deus apó s ele,


particularmente aqueles pensamentos de Deus que levam à s suas palavras que governam
aspectos da ordem criada. Nesse processo, somos nós que estamos pensando. A ciência
suplementa, e nã o mina, o mundo ordiná rio da experiência, porque Deus nos deu o mundo
ordiná rio, assim como os detalhes técnicos e as exposiçõ es técnicas da ciência. A explicaçã o
técnica nos fornece camadas adicionais de ricos prodígios, os quais nã o conhecíamos
simplesmente a partir da observaçã o casual comum com os nossos pró prios olhos. Elas sã o
de fato admirá veis, maravilhosas e belas, exibindo os prodígios da sabedoria, poder e
beleza de Deus.

Mas na idolatria podemos ver-nos conduzidos à direçã o errada pela maravilha e assombro
de tudo isso. E entã o damos louvor à ciência e à s explicaçõ es científicas, como se elas
mesmas fossem os deuses que fizeram o mundo. Elas nã o o sã o. O Deus real que fez o
mundo o projetou de forma que pudéssemos ver o arco-íris e ver o sol mover-se no céu. Ele
também nos deu os prazeres da exploraçã o e descoberta de mais dimensõ es, como quando
vemos matematicamente a Terra do ponto de vista do sol como centro. Esses assuntos sã o
discutidos mais detalhadamente em outro lugar. [97]

As geraçõ es anteriores podem ter sido mais propensas a achar que algum filó sofo ou
filosofia chegou ao fundamento do mundo. Uma filosofia específica forneceu uma
explicaçã o atraente e plausível que parecia ser mais definitiva e mais “só lida” do que o
mundo mutá vel e por vezes confuso da experiência comum. A plausibilidade e atratividade
vem de uma perspectiva. Por exemplo, alguns filó sofos compararam o mundo a um
organismo vivo. E a pró pria Bíblia, usando a poesia da personificaçã o, indica que existem
algumas analogias aqui. Mas as analogias com a vida e com organismos sã o apenas uma
dimensã o. Elas remontam a uma origem em Deus, que é o Deus vivo e cuja vida é refletida
nas mudanças que ele produz no mundo, incluindo os processos que ocorrem nos seres
vivos.

A filosofia empirista diz que o “fundamento” do mundo é a experiência sensorial. Isso está
certo? Trata-se de uma perspectiva. Recebemos nossa experiência diá ria no contexto de
sons, visõ es, gostos e toques. Essas sã o algumas das dimensõ es do mundo, e a Bíblia fala
sobre elas. Mas quando a Bíblia fala delas, fala também de suas conexõ es com muitas outras
dimensõ es. Nã o ouvimos simplesmente um som; ouvimos uma pessoa dizendo-nos algo.
Nã o vemos simplesmente uma mancha vermelha; vemos uma rosa. As palavras da pessoa e
a rosa vermelha sã o reais. Deus as governa e nos dá exatamente a experiência que estamos
tendo, dia a dia.

Mas e quanto aos sonhos e as ilusõ es de ó tica? Sã o eles uma exceçã o? O Deus que governa
tudo é também aquele que dá à s pessoas quaisquer sonhos e ilusõ es ó ticas que elas
experimentam. Sua experiência é uma experiência “real”. Mas, é claro, tem uma relaçã o
diferente com as outras pessoas do que a experiência normal quando está acordada. Deus
fez os sonhos para serem sonhos, em distinçã o da experiência de estar acordado, e nos dá a
sabedoria para entendermos a diferença. E há todos os tipos de sonhos, dos quais apenas
alguns podemos nos lembrar quando acordamos. As experiências extraordiná rias,
juntamente das experiências “normais”, fazem todas elas parte da riqueza de um mundo
que reflete a sabedoria e a gló ria de Deus.
 
 
Reducionismo
 

Tanto a ciência moderna quanto a filosofia antiga, quando tomadas como descriçõ es
ú ltimas, nos dã o formas de reducionismo. Elas reduzem o mundo à experiência sensorial,
ou à matéria e movimento, ou a alguma outra dimensã o fora do mundo em sua totalidade.
Quando as pessoas usam a ciência moderna dessa maneira, esta se torna um cientificismo ,
uma cosmovisã o total. Torna-se uma religiã o, porque as pessoas têm fé nele e fazem um
compromisso ú ltimo com uma ideia. Elas acham que as explicaçõ es científicas oferecem
nã o apenas uma dimensã o, mas uma descriçã o ú ltima, a camada “fundamental” do mundo.

Tanto o cientificismo como a maioria das filosofias seculares reduzem o mundo a uma
dimensã o do todo. Eles tratam todos os demais aspectos como irreais ou derivativos. Mas o
reducionismo é pobre, nã o apenas em seu lamentá vel ponto final que consiste de uma só
dimensã o, mas também em seu poder explicativo. De onde vêm as outras dimensõ es, se
assumirmos que sã o em ú ltima aná lise irreais? As explicaçõ es sempre acabam
pressupondo que sabemos algo sobre essas outras dimensõ es.

Como exemplo, considere como as pessoas tentam reduzir a vida a matéria e movimento.
As coisas vivas consistem de células, e as células consistem de moléculas, e as moléculas
consistem de á tomos, e os á tomos consistem de pró tons, nêutrons e elétrons (e, segundo a
ú ltima teoria, pró tons e nêutrons consistem de quarks ). E assim tudo “se reduz” à matéria
e leis do movimento. Ou nã o? Deus governa os elétrons, os á tomos e as moléculas. Isso é
maravilhoso, e podemos usar esse nível como uma perspectiva. Mas quando o usamos
como uma perspectiva sobre a vida, já sabemos intuitivamente como distinguir a vida da
nã o vida. E nã o fazemos a distinçã o meramente inspecionando os á tomos!
Em parte, entendemos a vida com referência aos propó sitos e funçõ es que mantêm vivos as
células e os organismos — metabolismo, divisã o celular, processamento de informaçõ es
(na fabricaçã o de DNA e proteínas), sinalizaçã o entre células, sinalizaçã o dentro de uma
célula. Décadas atrá s, Michael Polanyi salientou que nã o podemos entender uma má quina
ou uma coisa viva apenas por aná lises químicas e físicas, porque essa aná lise, embora
maravilhosa em seu pró prio nível, nunca inclui percepçõ es sobre se a má quina está
quebrada ou intacta, funcionando ou nã o funcionando. [98]
Muitas vezes sem perceber
conscientemente, os bió logos constantemente usam ideias sobre propó sito e funçã o que de
fato nã o podem ser “reduzidas” à química. Deus, por sua sabedoria, especificou a coerência
entre a química e as funçõ es distintamente bioló gicas nas células.

Nas explicaçõ es reducionistas, uma dimensã o em particular se torna um deus substituto.


Essa dimensã o, e nã o Deus, explica a riqueza do mundo. Mas isso é fantasioso. Se
deduzimos a riqueza a partir de uma dimensã o, é porque secretamente nosso
conhecimento de outras dimensõ es já viu traços delas refletidas naquela da qual partimos.
Estamos usando uma dimensã o como uma perspectiva . É uma atitude perspicaz, mas nã o
“suprema”, como se desqualificasse todas as demais perspectivas.
 
 
A fuga em relação à Deus
 

O cientificismo e a filosofia secular, entretanto, atraem pessoas. Por quê? Eles parecem dar
explicaçõ es, como já dissemos. Um substituto ou outro oferecem a ú nica maneira plausível
de dar uma explicaçã o ú ltima sem apelar a um Deus pessoal. E estando no pecado, nã o
queremos um Deus pessoal, o Deus da Bíblia, porque ele nos mantém moralmente
responsá veis e somos culpados diante dele.
 
 
Conhecimento secreto
 

O cientificismo e a filosofia secular também podem ser atraentes porque supostamente


oferecem formas de conhecimento secreto . Quando cientistas e filó sofos escrevem livros,
seu conhecimento nã o é mais completamente secreto. Mas ainda é inacessível, exceto para
o iniciado. A ciência avançada requer um estudo e treinamento prolongados e uma
considerá vel habilidade intelectual. O estudo da filosofia também requer interesse e
aptidã o intelectual. A sensaçã o de entender o que um filó sofo diz dá a uma pessoa um senso
de superioridade.

O orgulho é um pecado humano generalizado. Em certo sentido, podemos vê-lo como a raiz
de todos os pecados: Adã o e Eva demonstraram orgulho em seu pró prio julgamento
quando preferiram comer do fruto da á rvore proibida em vez de confiar no que Deus disse.
O orgulho está pró ximo do egocentrismo, em que cada um de nó s se torna seu pró prio deus
supremo. O orgulho intelectual é uma forma de orgulho, particularmente tentador a
intelectuais e pessoas que têm dons intelectuais. A pessoa inteligente acha que é capaz de
entender ciências ou filosofia, e esse entendimento lhe dá uma posiçã o superior a todas as
demais pessoas — a ralé que vive nas sarjetas da vida por nã o levantar o rosto para ver as
profundas verdades que a pessoa inteligente viu. Ah, a gló ria disso…

Mas, evidentemente, isso é uma falsa gló ria. Se a pessoa inteligente vê uma verdade que as
outras nã o veem, é porque Deus a abençoou para ser perspicaz e encontrar-se em
circunstâ ncias que lhe dã o acesso à verdade. Além disso, Deus, em sua graça comum,
enviou seu Espírito Santo para conceder a verdade (Jó 32.8). Nã o há nada de que alguém
possa se jactar (1Co 4.7; Ef 2.9). Ainda assim nos jactamos. O pecado está enraizado em nó s.
Assim também o orgulho, o egoísmo e coisas ainda mais feias. Ninguém quer pensar nessas
coisas desagradá veis, se puder evitá -lo.

O conhecimento secreto, entã o, tem uma atraçã o terrível. E quanto à Bíblia? A Bíblia nã o é
secreta. Deus a fez ser escrita para as pessoas comuns, nã o apenas para os instruídos.
Pessoas comuns, incluindo pessoas fracas, pobres e inteiramente indoutas têm acreditado
nela e depositado sua fé em Cristo. A pessoa bem-educada poderia pensar: Que ignorantes
desprezíveis e fracos sã o esses cristã os! Mas Deus odeia o orgulho humano e fecha a porta
para os orgulhosos. Ele salva os fracos e os ignó beis, em parte para trazer desgraça à queles
que acham que sã o bons demais para essa religiã o “ignorante”:

Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo nã o o conheceu por sua pró pria sabedoria, aprouve a Deus
salvar os que creem pela loucura da pregaçã o. Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos
buscam sabedoria; mas nó s pregamos a Cristo crucificado, escâ ndalo para os judeus, loucura para os
gentios; mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus
e sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sá bia do que os homens; e a fraqueza de Deus é
mais forte do que os homens. Irmã os, reparai, pois, na vossa vocaçã o; visto que nã o foram chamados
muitos sá bios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo
contrá rio, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sá bios e escolheu as coisas
fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as
desprezadas, e aquelas que nã o sã o, para reduzir a nada as que sã o; a fim de que ninguém se vanglorie
na presença de Deus. Mas vó s sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus,
sabedoria, e justiça, e santificaçã o, e redençã o, para que, como está escrito: Aquele que se gloria, glorie-
se no Senhor. (1Co 1.21-31)

 
 
Verdade aberta
 

Nã o seria interessante se Deus nos desse a Bíblia para que as pessoas fracas e ignorantes,
lendo e confiando nele através de Cristo, pudessem conhecer a natureza mais profunda do
mundo? Elas poderiam saber que o mundo é uma criaçã o multidimensional de Deus. E se,
contrariamente à s expectativas humanas, Deus deixou na escuridã o aqueles que em seu
orgulho nã o conseguem acreditar que a verdade sobre o mundo pode ser tã o aberta?
“Nã o seria interessante?”, pergunto eu. Mas nã o é apenas “interessante”. Na verdade Deus
tem feito isso acontecer num sentido fundamental. A filosofia, dissemos, busca a sabedoria.
Deus tornou Cristo nossa sabedoria (1Co 1.30). Vocês querem saber o segredo do
Universo? Venham a Cristo para terem “toda a riqueza da forte convicçã o do entendimento,
para compreenderem plenamente o mistério de Deus, Cristo, em quem todos os tesouros da
sabedoria e do conhecimento estã o ocultos” (Cl 2.2-3).

“Nã o pode ser assim tã o fá cil”, as pessoas podem dizer. De fato, para nenhum de nó s é fá cil
vir a Cristo e abandonar o orgulho. É “impossível para os homens”, como diz Jesus (Lc
18.27, NVI), porque o orgulho humano se interpõ e no caminho. “Em verdade vos digo que
publicanos e meretrizes vos precedem no reino de Deus” (Mt 21.31).

1
 

10. Perspectivas através da linguagem


 
 

A filosofia, dissemos, explora “grandes” questõ es. Uma direçã o na qual a exploraçã o pode se
dar é através da tentativa de produzir declaraçõ es muito gerais sobre a natureza do mundo.
A filosofia se torna uma operaçã o generalizadora. Podemos ver essa tendência na obra
metafísica de Aristó teles, que considerou a questã o do “ser como tal”. O que é o “ser como
tal”? Pode significar que tentamos encontrar as características mais gerais ou
características mais profundas que sã o comuns a tudo o que existe. Essa pesquisa leva
facilmente a tentativas de fazer declaraçõ es bastante gerais.
 
 
O um e os muitos em categorias
 

Vá rias dificuldades cercam essas tentativas. Uma das dificuldades mais bá sicas sobre
generalizaçã o surge da igual supremacia do uno e do mú ltiplo. O tema do uno e do mú ltiplo
está intimamente relacionado à unidade e diversidade, que discutimos anteriormente
(capítulo 4). (Baseamo-nos aqui em Van Til, que chamou a atençã o para o problema, e em
obras posteriores na tradiçã o vantiliana.) Qualquer categoria geral, como a categoria dos
cavalos, envolve um entrelaçamento do uno e do mú ltiplo. O uno é a categoria geral, ou
seja, todos os cavalos juntos ou as espécies de cavalo. O mú ltiplo sã o os muitos cavalos que
existem, seja agora, no passado ou no futuro. Deus ordena tanto o uno como o mú ltiplo e
sua relaçã o mú tua neste mundo. Assim, a decisã o de priorizar o uno — a generalizaçã o
[99]

— já distorce o cará ter do mundo que Deus criou.


A dificuldade também tem um lado prá tico. Na prá tica, aprendemos o que é um cavalo por
meio de discussõ es que podem se referir a exemplos específicos de cavalo, e aprendemos
sobre cavalos específicos, em parte, classificando os exemplos individuais como
pertencentes à categoria cavalo . Limitar-nos apenas a declaraçõ es gerais torna as coisas
pedagogicamente difíceis. E podemos realmente nã o ter certeza do que queremos dizer,
porque uma categoria geral sem vínculos com exemplos nã o é está vel. Podemos tentar
evitar a dificuldade definindo nossa nova categoria geral usando outras palavras
generalizadoras. Mas entã o essas outras palavras estarã o vinculadas a exemplos ou
definidas em termos de ainda outras palavras, e assim por diante. Nã o podemos escapar
permanentemente da necessidade de particulares — isto é, de exemplos.

A histó ria da metafísica inclui muitos casos em que parte da chave para o projeto é o uso de
categorias gerais especialmente selecionadas. Essas categorias gerais, espera-se, oferecem
uma percepçã o da estrutura “profunda” do mundo. Elas afirmam oferecer uma espécie de
aná lise ú ltima, fundacional, de como as coisas sã o. Aristó teles ofereceu uma dessas aná lises
em seu livro Categorias . [100]
Segundo Aristó teles, tudo o que nã o é composto (passível de
ser decomposto em partes separadas) é (1) substâ ncia, (2) quantidade, (3) qualidade, (4)
uma relaçã o, (5) lugar, (6) tempo, (7) postura (8) estado, (9) açã o ou (10) está sendo
afetado. [101]

Aristó teles elabora sua aná lise como um prelú dio para encaixar as categorias em
proposiçõ es. Proposiçõ es sã o declaraçõ es simples que consistem de sujeito mais predicado,
como “Só crates é homem”, ou “Todos os cã es sã o animais”. Essas proposiçõ es, por sua vez,
formam os blocos de construçã o para o raciocínio silogístico. A versã o de ló gica de
Aristó teles influencia fortemente o que ele acha ser o mais bá sico sobre o mundo.
 
 
Simplificações em Aristóteles
 

A ló gica de Aristó teles e suas categorias constituem uma reduçã o. As complexidades da


comunicaçã o na linguagem têm de ser reduzidas. Essa reduçã o é evidente no foco a um tipo
de forma de sentença, a saber, uma oraçã o simples que consiste de um sujeito, verbo de
ligaçã o ( é ) e uma expressã o predicada. E quanto a pará grafos e discursos inteiros, em que
as pessoas desenvolvem seu pensamento de maneiras mais ricas? E quanto a sentenças
complexas? E quanto a sentenças de oraçã o simples que têm vá rias partes (por exemplo,
oraçõ es bitransitivas como “Suelen deu o presente a Cheryl”)? Se seguirmos Aristó teles,
estaremos deixando essas complexidades de lado. As oraçõ es simples devem ter a forma “A
é B”, ou talvez “Todos os As sã o Bs”. Além disso, para funcionar dentro de um silogismo, os
termos — como homem , cão e animal — precisam ter significados ú nicos está veis. Devem
ser usados univocamente . Quando acrescentamos esse requisito, as dificuldades se
multiplicam, pois as linguagens naturais têm um vocabulá rio flexível.

Aqui, novamente, podemos nos basear em trabalho já existente. As dificuldades de postular


um significado perfeitamente unívoco sã o discutidas em meu livro Lógica . Essas
[102]
dificuldades estã o relacionadas à tentativa de reduzir a linguagem a uma estrutura
esquelética. Essa reduçã o oferece um tipo de perspectiva sobre a linguagem.
 
 
A palavra “cavalo” como uma perspectiva
 

Podemos ilustrar o cará ter perspectivo do processo usando o exemplo da palavra cavalo .
Essa palavra pode ser usada em um sentido amplo pelas pessoas comuns. Também pode
ser usada em um sentido mais técnico, como sinô nimo da designaçã o bioló gica mais precisa
de uma subespécie específica de animal, a saber, Equus ferus caballus , o cavalo doméstico.
Assim, temos pelo menos dois usos distintos da palavra cavalo . Cabe-nos decidir qual delas
escolhemos usar num determinado momento. Cada uma oferece uma perspectiva.

Algumas pessoas poderiam pensar que podem evitar as perspectivas e alcançar a


objetividade pura através da ciência, que desenvolve o significado técnico da palavra cavalo
como uma espécie. A espécie Equus ferus inclui cavalos selvagens, uma vez que estes podem
cruzar com cavalos domésticos. Portanto, já confrontamos a complexidade. Devido à
possibilidade de cruzamentos, a diferenciaçã o entre cavalos domésticos e cavalos selvagens
nã o é perfeitamente está vel. Também podemos nos perguntar o que fazer com cavalos que
têm defeitos físicos, ou com embriõ es de cavalos, ou com embriõ es defeituosos que
abortam, ou com cavalos geneticamente modificados cujo DNA pode ter elementos
especiais nã o encontrados em outras partes da populaçã o natural de cavalos reprodutores.
Os limites do que conta como cavalo ainda nã o sã o perfeitamente precisos. Mas, ignorando
essas dificuldades, podemos afirmar que temos uma palavra cavalo definida com precisã o.

Como obtivemos essa precisã o? Obtivemo-la usando muitas palavras. A versã o


precisamente definida da palavra cavalo nã o funciona em puro isolamento, mas como uma
espécie de símbolo condensado de uma só palavra que nos diz, através de uma
especificaçã o contextual, que ela é equivalente em significado a Equus ferus caballus . Essa
expressã o latina mais longa, por sua vez, nã o é autossuficiente quando tomada de forma
puramente isolada do resto da linguagem. Ela nos diz para buscar uma definiçã o da
extensã o de um pará grafo, ou discussã o da extensã o de um livro, sobre Equus ferus caballus
. A precisã o e estabilidade da palavra cavalo foram produzidas usando muitas palavras,
muita comunicaçã o multidimensional entre especialistas em cavalos e comunicaçã o entre
cientistas que estudam taxonomia bioló gica, fisiologia, sequenciamento de DNA e assim por
diante.

A palavra cavalo funciona como uma perspectiva sobre esse corpo maior de conhecimento.
Esse corpo maior de conhecimento também pode ser visto como oferecendo um tipo de
perspectiva sobre cavalos. Quando aprendemos sobre esse corpo de conhecimento, temos
recursos para ver os cavalos de novas maneiras.

Agora suponha que usemos a palavra cavalo nã o de uma maneira tecnicamente precisa,
mas de uma maneira mais comum. Pode-se considerar que a palavra oferece uma trilha de
significado levando a experiências prá ticas com cavalos, treinadores de cavalo, veteriná rios
de cavalo, criadores de cavalo e a discussõ es (que usam a linguagem) de raças de cavalos,
cuidado de cavalos, criaçã o de cavalos e assim por diante.

Os significados sã o um tanto complexos. A ideia de ter um significado puro e isolado que


seja perfeitamente está vel é um ideal. Podemos receber uma percepçã o perspectiva
começando com uma ú nica palavra. Mas, se observarmos cuidadosamente o que estamos
fazendo, usamos relaçõ es entre os significados. O ideal de um significado isolado, se
tomado como um indício profundo da natureza do mundo, é uma ilusã o. Os filó sofos e as
discussõ es filosó ficas podem facilmente cair vítimas dessa ilusã o, porque querem uma
verdade profunda que possa ser perfeitamente dominada isoladamente. Do ponto de vista
desse desejo filosó fico de domínio, o mundo real e a linguagem comum sobre o mundo sã o
incrivelmente “bagunçados” e impossivelmente complexos.

Estou dizendo que o mundo é complexo e a linguagem é complexa porque Deus fez assim.
Se tentarmos simplificar, estaremos deixando algo de fora. Se admitirmos a nó s mesmos
que estamos deixando muita coisa de fora, ainda poderemos alcançar algo usando uma
perspectiva. Mas o desejo de domínio do conhecimento facilmente nos seduz a pensar que
nossa perspectiva ou percepçã o é singularmente profunda.

Podemos dizê-lo de outra maneira. Deus nos deu a linguagem, e a linguagem é complexa. O
pró prio Deus fala a si mesmo em linguagem em Joã o 17, passagem em que o Filho fala ao
Pai. Assim, no contexto do falar de Deus, a linguagem é, de fato, infinitamente rica em
significado. Essa riqueza infinita tem sua origem no falar de Deus. Nó s, como seres
humanos, refletimos a riqueza em um nível finito quando nos comunicamos porque Deus
nos criou à sua imagem.

Aqui podemos nos basear em trabalhos já feitos sobre a linguagem. A linguagem reflete
[103]

o cará ter de Deus e a estrutura trinitá ria até o fim . As complexidades da comunicaçã o
humana, as complexidades dos longos discursos e a aparente simplicidade de uma ú nica
palavra refletem igualmente o mistério trinitá rio. As pessoas da Trindade habitam umas
nas outras no que é chamado de coinerência . Imagens ectípicas de coinerência ocorrem em
toda a linguagem. Uma peça nã o existe em perfeito isolamento das demais.

Na realidade dos propó sitos de Deus, as palavras e categorias lhes constituem uma riqueza.
Um filó sofo pode desejar ter uma categoria filosó fica perfeita e autossuficiente que penetre
a estrutura profunda do ser. Esse pró prio desejo estará na contramã o do que o mundo é de
fato. Desse desejo surgem algumas das falhas e movimentos reducionistas que existem no
processo de tentar possuir categorias perfeitamente está veis.

As categorias na linguagem natural irã o desapontar o desejo filosó fico de vá rias maneiras:
(1) em seus significados elas se apegam a analogias, ao invés de serem puramente
unívocas. (2) A unidade de uma categoria se interliga com a diversidade de exemplos e
casos que ilustram a categoria. (3) O significado é está vel, mas nã o perfeitamente está vel,
pois há bordas difusas e vagas. (4) A forma (incluindo som, forma escrita e forma
gramatical) e o significado se interligam. (5) O significado é colorido pelo contexto de um
discurso mais amplo e pelo contexto humano mais amplo das açõ es humanas e seu
ambiente. (6) O significado é colorido pelas pessoas que estã o envolvidas na comunicaçã o.
(7) O significado é colorido pelo compromisso religioso — quer uma pessoa seja
regenerada, quer nã o. [104]

 
 
A precisão em termos técnicos na ciência
 

As pessoas podem se perguntar se o desenvolvimento de termos tecnicamente precisos na


ciência representa uma exceçã o aos princípios que acabei de enumerar. A expressã o Equus
ferus caballus representa um desses termos técnicos. O termo oxigênio como nome para um
elemento químico é outro, assim como termos como força e aceleração na física. Ao
responder a esses desenvolvimentos, podemos notar vá rios pontos, correspondendo à s
complexidades enumeradas no pará grafo anterior.

Em primeiro lugar, os cientistas ainda usam analogias. Modelos científicos sã o uma forma
de analogia. E quando aparecem dificuldades ou anomalias, a flexibilidade que permanece
nas analogias pode ajudar no progresso.

Em segundo lugar, o uno e o mú ltiplo andam juntos. Os cientistas pretendem que suas
generalizaçõ es se apliquem a casos específicos. À parte dos casos específicos, quer sejam
experimentos científicos, quer evidências específicas do passado, quer casos hipotéticos
que podem ser pelo menos imaginados em experimentos mentais, as generalizaçõ es sã o
vazias.

Em terceiro lugar, mesmo com a precisã o adicional de termos técnicos científicos, uma
inspeçã o cuidadosa mostra imprecisõ es no significado. Por exemplo, o ró tulo técnico Equus
ferus caballus para a subespécie de cavalo doméstico deixa vago o limite entre um cavalo
doméstico e um cavalo selvagem e entre um cavalo normal e um cavalo defeituoso.
Podemos imaginar uma criatura parecida com um cavalo que se torne tã o defeituosa em
muitos aspectos a ponto de hesitarmos afirmar que ainda é inequivocamente um cavalo.

Em quarto lugar, sem forma nã o temos palavras. Nã o apenas palavras comuns; palavras
técnicas e expressõ es técnicas também dependem da unidade de forma e significado para o
seu reconhecimento e uso. De que adianta o termo técnico força , se nã o tiver uma grafia e
um som que nos permita usá -lo em uma sentença?

Em quinto lugar, o significado é colorido por um contexto mais amplo de discursos. Uma
vez que pensamos nisso, essa verdade é particularmente proeminente no caso de termos
técnicos científicos. Os cientistas desenvolvem termos tecnicamente precisos na interaçã o
com experimentos prolongados e reflexõ es teoréticas. Os termos devem sua precisã o ao
trabalho humano prolongado, envolvendo muito pensamento e muitas palavras. Os termos
sã o, em certo sentido, isolados do uso cotidiano. Mas essa mesma posiçã o de isolamento é
produzida por meio de muitas palavras, muito pensamento e muita interaçã o experimental.
E os significados nã o podem realmente ser aprendidos e entendidos adequadamente por
aprendizes, exceto por mais palavras, mais conversaçã o humana, mais pensamento e mais
interaçã o com o mundo. Assim, as palavras funcionam dentro de um contexto científico
mais amplo que sustenta sua precisã o e “isolamento”. Paradoxalmente, o dito isolamento
desses significados é um isolamento por meio de um rico contexto de significado.

Em sexto lugar, os propó sitos pessoais dos cientistas estã o sempre envolvidos. Sã o
necessá rias pessoas para ensinar a pró xima geraçã o de cientistas. Michael Polanyi foi
particularmente competente em chamar a atençã o para a dimensã o pessoal do
conhecimento e da prá tica científicos. [105]

Em sétimo lugar, o compromisso religioso dá um colorido ao conhecimento científico. Os


nã o cristã os muitas vezes consideram as leis científicas mecanismos impessoais. O cristã o
sabe que a pesquisa científica envolve pensar os pensamentos de Deus apó s ele
analogicamente e que as nossas formulaçõ es humanas se aproximam da palavra de Deus
que controla o mundo. [106]

O processo de formaçã o de termos técnicos, como mencionado no quinto ponto, é


particularmente importante. É preciso tempo, esforço e interaçã o significativa com
detalhes sobre o mundo para desenvolver termos técnicos viá veis que tenham valor prá tico
na ciência. Até o século XX, os filó sofos muitas vezes achavam que poderiam alcançar seu
objetivo se apenas refletissem com suficiente profundidade e suficiente clareza. Em
resposta, podemos observar que Deus nã o foi obrigado a criar o mundo exatamente como o
encontramos. Ele exerceu criatividade. E essa criatividade implica que devemos sair, olhar
o mundo e escavá -lo, em vez de apenas confiar no raciocínio do que deve ser o caso. O
mundo tem muitas surpresas.

Uma das surpresas, por exemplo, tem sido o surgimento da teoria da relatividade e da
teoria quâ ntica na física do século XX. Ambas as teorias tiveram o efeito de derrubar o que
muitos físicos e metafísicos julgavam ser a estrutura “ú ltima” do mundo. Em geral, os
físicos do século XIX interpretavam o mundo em termos de uma estrutura ú ltima de tempo
absoluto, espaço absoluto e partículas absolutas com energias e movimentos
absolutamente fixos. Nenhum desses aspectos da sua visã o combinava com os
desenvolvimentos do século XX.

Alguns filó sofos dos séculos XX e XXI tentaram aprender uma liçã o com isso. Eles
interagiram com os desenvolvimentos científicos. Isso é bom, mas a ciência é um vasto
empreendimento. Envolve vastas instituiçõ es, vastas quantidades de interaçã o humana,
vastas quantidades de pressupostos e princípios bá sicos, além de técnicas e motivaçõ es
pessoais transmitidas de geraçã o em geraçã o. Na melhor das hipó teses, ela é rica. E a
interpretaçã o dos seus significados é rica. Os pró prios cientistas, assim como os filó sofos da
ciência, podem facilmente ser reducionistas quando refletem sobre essa riqueza. Os
filó sofos que tentam chegar ao “fundamento” da natureza do mundo inevitavelmente
aplicam perspectivas pessoais. E mú ltiplos filó sofos geram mú ltiplas perspectivas. O
mesmo se aplica quando os cientistas filosofam sobre o significado de sua disciplina e sobre
as percepçõ es dela.
 
Perspectivas na gramática
 

A subestrutura trinitá ria da linguagem se estende nã o apenas ao significado das palavras


individuais, mas também à gramá tica. A gramá tica tem contraste, variaçã o e
[107]

distribuiçã o, em imitaçã o do cará ter trinitá rio de Deus.

A ló gica de Aristó teles pressupunha que a estrutura de oraçã o da forma “A é B” (como


exemplificado por “cã es sã o mamíferos”) era a mais simples, e a tratava como o
“fundamento”. Podemos observar que nesse nível de oraçã o, os tipos de oraçã o podem
funcionar como perspectivas umas sobre as outras. “O Pai ama ao Filho”, de Joã o 3.35, é um
exemplo de oraçã o transitiva. Oraçõ es transitivas têm seu arquétipo no amor trinitá rio.
Mas também podemos transformar as expressõ es. “O Pai é uma pessoa que ama ao Filho.”
Essa nova expressã o tem a forma gramatical “A é B”. Ou podemos considerar a expressã o
“Vamos pensar sobre o amor do Pai pelo Filho”. A expressã o “O amor do Pai pelo Filho” é
uma frase em vez de uma oraçã o. Ou considere a declaraçã o “Deus é amoroso”. Essa
declaraçã o geral está , na forma de clímax, consubstanciada no fato de que o Pai ama ao
Filho. Ou considere a declaraçã o “Deus é amor” (1Jo 4.8, 16). Essa declaraçã o também
precisa ser interpretada no contexto do nosso conhecimento de que o Pai ama ao Filho
(veja também 1Jo 4.9-21).

Como mostrarei mais adiante na discussã o da “analogia teofâ nica” para a Trindade (veja o
apêndice B), o Espírito Santo pode estar intimamente associado a um ou outro atributo
distinto de Deus. Esse princípio inclui o atributo do amor. O Espírito Santo é o Espírito do
amor:

… o amor de Deus é derramado em nosso coraçã o pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado. (Rm 5.5)

Porque nã o recebestes o espírito de escravidã o, para viverdes, outra vez, atemorizados, mas recebestes
o espírito de adoçã o, baseados no qual clamamos:  Aba, Pai. (Rm 8.15)

Visto que Deus nos adota como filhos por meio do Espírito, ele nos inclui pela graça como
objetos de amor, em analogia com o amor que o Pai tem por seu Filho.

Além disso, como em Joã o 3.34-35, o dom do Espírito, do Pai para o Filho, é a manifestaçã o
focal do amor do Pai, podemos praticamente dizer que o Espírito é o amor do Pai.

Ao tomar todas essas expressõ es juntas, podemos ver primeiro que o amor está enraizado
no cará ter trinitá rio de Deus. Em segundo lugar, a expressã o de amor de Deus por nó s,
nossa recepçã o do seu amor e nossa experiência do seu amor em nossa vida ocorrem de
maneira coerente com e estruturada pelo seu cará ter trinitá rio, assim como em harmonia
com a realizaçã o da redençã o no tempo e no espaço por meio da obra de Cristo. Em
terceiro, as vá rias expressõ es gramaticais usadas para expressar o significado do amor de
Deus se interligam umas com as outras. Todas as formas gramaticais têm raízes trinitá rias.
Todas existem em relaçã o umas com as outras. Podemos concluir que a preferência de
Aristó teles pela forma “A é B” nos dá apenas uma perspectiva dentre muitas.

Podemos também nos lembrar do princípio de que o uno e o mú ltiplo se interligam e se


unem em todo o nosso conhecimento. Isto é, conhecemos cada cavalo individual (o
mú ltiplo) no contexto de algum conhecimento da categoria geral “cavalo” (o uno), e vice-
versa. Assim também, sabemos o significado da estrutura da oraçã o geral “A é B” (o uno) no
contexto de inú meros casos (o mú ltiplo) em que encontramos essa mesma estrutura
gramatical. Entre esses casos, as verdades sobre Deus têm a primazia, porque Deus é o
original. Uma verdade como “Deus é amor”, portanto, oferece uma base para todas as
verdades particulares da forma “A é B” que falam sobre o mundo criado.

“A é B” nã o é transparente para o entendimento humano. Ao contrá rio, ele manifesta tanto


o cará ter de Deus, que nos deu a linguagem, quanto o cará ter da Trindade, que é o
arquétipo no qual a linguagem, como a experimentamos, está baseada. Mais
especificamente, reflete o padrã o que encontra sua origem em Deus, em verdades como
“Deus é amor”.

De maneira similar, a pró pria natureza de Deus na Trindade oferece o fundamento final
para formas linguísticas e gramaticais de outros tipos, nã o apenas “A é B”.

“No princípio era o Verbo , e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1.1). Esse
mistério é profundo. Nunca compreenderemos Deus. De forma derivada, o mistério da
linguagem é profundo e nunca iremos compreendê-lo.
 
 
Conclusão sobre a metafísica
 

Nã o devemos nos deixar seduzir por explicaçõ es reducionistas, quer venham dos lá bios de
cientistas, quer de filó sofos. Em Cristo “todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento
estã o ocultos” (Cl 2.3). A verdadeira sabedoria humana exulta em desfrutar de Cristo e
desfrutar de um mundo rico em reflexos da sabedoria divina e do mistério divino. Cristo, o
Logos, o Verbo de Deus, se expressa nas palavras divinas especificando plenamente a
pró pria natureza do mundo. Essa especificaçã o tem uma riqueza que supera o que
entendemos quando olhamos para a riqueza da linguagem natural. A Bíblia, ao nos dar a
pró pria linguagem de Deus, nos dá a verdadeira metafísica.

Se considerarmos que a filosofia e a metafísica estã o relacionadas basicamente à s reflexõ es


humanas posteriores, podemos dizer que a filosofia é teologia (como John Frame apontou).
A teologia, como aplicaçã o do ensino da Bíblia, fornece o que precisamos saber sobre as
grandes questõ es.
1
 

11. Implicações para a teologia


 
 

Nossa visã o da metafísica tem implicaçõ es sobre como fazemos teologia. Ao longo das eras,
a teologia tem muitas vezes se apropriado de material da filosofia. Será que essa
apropriaçã o cria dificuldades?
 
 
Bagagem filosófica
 

Por causa do dom da graça comum de Deus, os filó sofos incrédulos ainda podem nos dar
percepçõ es valiosas. Mas também podem nos dar uma bagagem ligada a um sistema
filosó fico construído em rebeliã o contra Deus. Seu sistema pode envolver reducionismos ou
reivindicaçõ es implícitas pela supremacia de uma ú nica perspectiva. Os teó logos têm
amiú de se apropriado de termos gerais importantes cujo significado foi desenvolvido pela
primeira vez no contexto da filosofia. E esse prévio desenvolvimento filosó fico pode incluir
o desejo de categorias perfeitas e o desejo de um ú nico conjunto de termos que nos deem o
“fundamento” metafísico do mundo.

Em particular, a teologia da igreja antiga mostra influências do platonismo. A teologia


tradicional desde Tomá s de Aquino frequentemente usa partes de um sistema fundamental
de categorias tomado de empréstimo da filosofia aristotélica. As pessoas que têm lido
amplamente no â mbito da teologia tradicional podem ver termos como essência e acidentes
, real e potencial , substância e qualidades e tipos de causa — causa formal , material ,
eficiente e final . Esses termos remetem a Aristó teles. Eles podem oferecer algumas
percepçõ es, se pensarmos neles como perspectivas. Mas nã o nos dã o o fundamento do
mundo. Outras perspectivas transversais sã o possíveis.
 
 
Essenciais e acidentais
 

Podemos tomar como exemplo o uso dos termos essência e acidentes . Na visã o de
Aristó teles, uma propriedade é essencial para algo se sua presença é necessá ria para esse
algo ser o que é. Uma propriedade é acidental se sua presença nã o é necessá ria, mas pode
estar aí em alguns casos e nã o em outros. Por exemplo, podemos raciocinar que, para algo
ser um cavalo, ele precisa ser orgâ nico, vivo e mamífero. Essas três propriedades sã o,
portanto, propriedades essenciais de um cavalo. Nã o é necessá rio que ele seja negro. Entã o,
ser negro é uma propriedade acidental.
Embora tenhamos usado o exemplo específico de um cavalo, o objetivo da discussã o
filosó fica é muito geral. Os termos essencial e acidental sã o muito gerais. O filó sofo espera
usar esses termos nas discussõ es em toda a parte, sobre praticamente qualquer coisa que
exista. Essa pró pria generalidade pode criar dificuldades, porque há o desejo filosó fico de
se ter a generalidade sem emaranhamento — emaranhamento na particularidade.
Confrontamos aqui a dificuldade do uno e do mú ltiplo e seu emaranhamento coinerente.

Podemos também observar que a aná lise das coisas em termos de propriedades segue a
linha de Aristó teles. Sua abordagem à ló gica tratava a forma “A é B” como a mais definitiva,
como um tipo de “fundamento” para a linguagem e para o mundo. Dentro dessa forma “A é
B”, A é tipicamente uma coisa e B uma propriedade. Esse tratamento leva a abordagens
filosó ficas nas quais o fundamento do mundo consiste em coisas ou substâ ncias (As) com
propriedades (Bs). Tal abordagem equivale apenas a uma perspectiva. Se é vista como
ú ltima, é reducionista. Ela nã o faz justiça ao cará ter derradeiro  do discurso divino e sua
riqueza.

Deixando de lado as dificuldades decorrentes dessa reduçã o, consideremos o que significa


distinguir entre propriedades essenciais e propriedades acidentais. O que chamamos de
“necessá rio” depende do contexto. Um cavalo de pau ou uma está tua de cavalo nã o
[108]

precisam ser orgâ nicos nem vivos. Assim, nesse contexto, estar vivo nã o é “necessá rio”.
Aristó teles objetaria que tal uso da palavra cavalo é equívoco. Mas por trá s dessa objeçã o
podemos satisfazer o desejo por termos unívocos, sem uma analogia embutida.

Mesmo se nos restringirmos a cavalos de carne e osso, ainda poderemos ter dificuldades. O
que dizer de um cavalo que acabou de morrer? Ainda é um cavalo? Ou é apenas o cadá ver
que sobrou de um cavalo? Certamente nã o é um cachorro, uma ovelha ou um gato. Suponha
dizermos que ainda é um cavalo, embora seja um cavalo morto. Quanto tempo ele
permanece sendo um cavalo depois de morto? Um cadá ver apodrece gradualmente e, se
deixado por tempo suficiente, nã o é mais facilmente reconhecível. Quando ele deixa de ser
cavalo? Podemos sentir que nã o existe realmente um limite exato. Depende de como
queremos usar a palavra cavalo , seja de maneira mais ampla, seja de maneira mais estrita.

Mesmo se nos restringirmos a cavalos que sã o animais vivos, podemos descobrir


dificuldades em distinguir o essencial do acidental. Suponha que temos uma raça de
cavalos, todos os quais negros. Isso implica que ser negro é necessá rio para a raça? Ou
apenas se dá o caso de todos serem negros? Suponha que pudéssemos verificar a genética
dessa raça e estabelecer que o DNA comum a essa raça praticamente garante que a
consanguinidade continuará a produzir descendentes de cor negra. Entã o, ser negro é
essencial? Talvez. Suponha que por engenharia genética possamos desligar ou mudar
apenas um gene de forma que alguns dos descendentes possam ter outras cores. Ainda
teremos a mesma raça? Quem diz?

Se tentarmos determinar os limites exatos usando as características comuns no DNA, ainda


enfrentaremos a dificuldade de que diferentes cavalos dentro da mesma raça mostrarã o
pequenas variaçõ es em alguns pontos em seu DNA. Podemos escolher definir a raça de
modo a incluir estritamente cavalos que possuam DNA correspondente em todos os pontos
em que o DNA dos cavalos vivos da raça mostre exata correspondência. Ou podemos
permitir alguma variaçã o adicional. Por causa das mutaçõ es, alguns cavalos da pró xima
geraçã o podem mostrar variaçõ es que nã o correspondem a de nenhum da geraçã o atual.

Suponha que uma mutaçã o em um ponto naturalmente produza uma descendência que nã o
é negra. Entã o, é essa descendência o começo de outra raça? Isso depende de quã o
estritamente queremos definir a raça. E, como seres humanos finitos, seremos incapazes de
prever todas as situaçõ es possíveis que poderiam representar variaçõ es na raça. Parece
que nossa perspectiva pessoal tem um papel na decisã o sobre quã o estritamente queremos
considerar o que define a raça.

O exemplo com cavalos é realmente bastante fá cil, pois as classificaçõ es bioló gicas sã o
tipicamente muito está veis neste mundo. Mas nem todas as classificaçõ es sã o igualmente
está veis. O que dizer dos diá logos de Platã o que discutem o que é bom, o que é justiça, o
que é piedade, o que é bravura, o que é amor? Dentro de cada uma dessas discussõ es
poderíamos introduzir a distinçã o entre o essencial e o acidental. O que é essencial para a
justiça, e o que é acidental no sentido de estar presente em alguns exemplos de justiça, mas
nã o em outros? Podemos dizer?

Uma questã o como essa é particularmente desafiadora porque a justiça remonta a Deus,
que é o Deus da justiça. O cará ter de Deus é a origem e arquétipo da justiça. A justiça de
Deus é coerente com sua bondade, veracidade, santidade, misericó rdia e fidelidade. Sua
fidelidade é uma fidelidade justa . Entã o, como separamos o que está unido em Deus? Como
dominamos a justiça? Para dominar a justiça, temos de conhecer Deus. E se conhecemos
Deus, o conhecemos em todos os seus atributos. Portanto, a justiça nã o é perfeitamente
separá vel. Tudo o que sabemos sobre Deus é potencialmente relevante, já que sua justiça é
uma justiça fiel e onisciente.

Se Deus especifica em pesos e medidas o que constitui justiça, nã o é essa especificaçã o


necessária para os pesos e medidas e, se necessá ria, essencial? Seria esse o caso ainda que
nem todas as características da especificaçã o fossem pertinentes à justiça em matéria de
dano pessoal? Será que a palavra essencial tem um significado perfeitamente claro?
 
 
Essenciais e acidentais com um indivíduo
 

Considere agora Sally, o cavalo, uma égua negra. Poderíamos dizer que ela é
necessariamente negra se sabemos que a produçã o da pele negra vem da constituiçã o do
seu DNA? Mas talvez a negritude seja epigenética em vez de genética. Entã o, é ainda
necessá ria? Podemos também considerar a questã o do tempo. Talvez sua pele só enegreceu
depois que ela nasceu, apesar de isso ter sido geneticamente “programado” desde o início.
Era um desenvolvimento “necessá rio”, poderíamos dizer, à luz do seu DNA. Mas e se alguns
processos deram errado em algum lugar no desenvolvimento, e o desenvolvimento nã o
seguiu seu curso normal em relaçã o à cor da pele?

Com o tempo, Sally envelhece. Os aristotélicos se inclinariam a dizer que somente o que é o
mesmo durante toda a vida dela é “essencial”. Mas no plano de Deus, nã o era essencial que
ela fosse recém-nascida e depois uma jovem potra antes de amadurecer? Portanto, esses
está gios sã o “essenciais” em algum sentido. E, dados os detalhes do plano de Deus, nã o
deveríamos dizer que foi necessá rio que ela desenvolvesse uma pata coxa em 27 de
fevereiro de 2011 porque é isso que Deus planejou? Portanto, nesse sentido, tudo o que
acontece a Sally é “essencial” — essencial do ponto de vista da necessidade do fato de que o
plano de Deus será executado na hora certa.

Em sua aná lise ló gica, Aristó teles se concentrou em verdades gerais, nã o em verdades
particulares sobre Sally. Mas as duas se interligam, por causa do entrelaçamento do uno e
do mú ltiplo. Alguns filó sofos têm afirmado que o conhecimento humano é apenas de
universais. De acordo com essa concepçã o, uma pessoa nã o pode “conhecer” Sally, pois ela
é ú nica. Mas tais alegaçõ es sã o ridículas quando vistas à luz da revelaçã o bíblica. Se o uno e
o mú ltiplo se interligam, o conhecimento sobre categorias gerais (o uno) só está disponível
em conexã o com o conhecimento do mú ltiplo. E, é claro, podemos conhecer Deus, que é uno
e ú nico.

E quanto ao contexto ambiental? Nã o seria necessá rio para a vida de um cavalo que ele
tivesse um ambiente, incluindo o solo sob as patas e coisas para comer? Essas relaçõ es sã o,
portanto, “essenciais”? Sã o “propriedades”? A palavra propriedade sugere características
adjetivas que sã o semi-independentes do ambiente. Mas uma separaçã o pura do ambiente,
do contexto, é um movimento reducionista — em ú ltima aná lise, uma ilusã o. Nã o podemos
separar perfeitamente as propriedades das relaçõ es, mais do que podemos separar Deus
em seu amor de Pai do seu amor pelo Filho.

A distinçã o aristotélica entre essência e acidentais se baseia pela graça comum na ideia da
necessidade e contingência, ambas enraizadas no cará ter de Deus e em seu plano para o
mundo. Podemos, portanto, sentir que podemos usar essas categorias em virtude da graça
comum. Todavia, uma inspeçã o mais detalhada mostra que as categorias estã o
contaminadas pelo sistema geral de Aristó teles e seu desejo de entendimento autô nomo.

Podemos sugerir que as categorias encalham porque foram introduzidas de maneira


reducionista, sem levar em consideraçã o vá rias realidades:
 
1. A presença da analogia . Ao produzir a categoria cavalo , pressupõ e-se que
temos uma ideia perfeitamente está vel de cavalo, sem a percepçã o de que se
está usando analogias com os cavalos específicos que vimos.

2. O entrelaçamento do uno e do múltiplo . O cavalo Sally pertence ao grupo de


todos os demais cavalos. Ele é um dentre muitos. O julgamento sobre a
necessidade é afetado pelo fato de estarmos nos concentrando ou nele, ou em
todos os cavalos juntos. As diferentes etapas na vida de Sally também sã o, em
certo sentido, muitas formas de Sally, todas sendo uma só Sally. Assim, o
entrelaçamento do uno e do mú ltiplo também se dá ao longo do tempo.

3. A questão da estabilidade do significado . Também facilmente pressupomos


que sabemos exatamente o que é necessidade e o que é essência,
independentemente do contexto, e o que significa ser um cavalo,
independentemente do contexto.

4. O entrelaçamento de forma e significado . A palavra cavalo traz consigo uma


histó ria, nã o sendo meramente uma ideia desencarnada, livre de qualquer
histó ria e quaisquer relacionamentos com os seres humanos e seus
ambientes.

5. O entrelaçamento de significado e contexto . O que é “necessá rio” depende


do contexto da discussã o.

6. A realidade do tempo . O que muda neste mundo é tã o significativo para o


plano de Deus para o mundo quanto o que permanece igual. [109]

Em suma, a coinerência ectípica de aspectos e perspectivas sobre Sally mata as esperanças


de se obter uma distinçã o precisa, controlada e magistral entre essência e acidentes.
 
 
Conclusão
 
Podemos generalizar a partir desse ú nico exemplo. Nã o sabemos com absoluta precisã o o
que um termo como cavalo significa. Nem sabemos o que exatamente significam os termos
essencial e acidental . Podemos ampliar o princípio para todas as palavras em linguagens
naturais. Elas têm de fato algum significado: a palavra cavalo nã o significa o mesmo que a
palavra rato . Podemos nos comunicar significativamente por causa das estabilidades que
sã o pró prias à s palavras. Mas os termos trazem imprecisõ es, relaçõ es contextuais e
relaçõ es do uno e do mú ltiplo incorporados neles — nenhum dos quais Aristó teles queria
reconhecer. O cará ter multidimensional de nossas palavras, nossos conceitos e nossa
linguagem reflete o mistério do cará ter trinitá rio de Deus. Fazemos um desserviço a nó s
mesmos se agimos como se pudéssemos dominar os significados com perfeiçã o e dominar
a linguagem que usamos. Visto que a linguagem e o pensamento sã o coerentes, o mesmo
vale para o nosso pensamento teoló gico. Sejamos circunspectos. Entendamos as origens
trinitá rias da linguagem antes de prosseguirmos com confiança. [110]

Como um aparte, esse entendimento multiperspectivista da linguagem sugere uma forma


em que os escritos de John Frame e os meus diferem em textura (nã o necessariamente em
conclusõ es prá ticas) de um tipo mais técnico de teologia que autores produziram tanto no
passado como no presente. Frame e eu preferimos nã o confiar muito na terminologia
técnica (embora reconheçamos sua utilidade e a usemos quando isso é conveniente).
Quando a discussã o teoló gica se esforça para obter uma precisã o especial e multiplica a
quantidade de terminologia técnica, ela corre o perigo de superestimar sua precisã o e
cometer erros paralelos aos de Platã o e Aristó teles. Também corre o perigo de presumir
que sua terminologia e as teses expressas usando a terminologia revelam, de maneira ú nica
e monoperspectivista, as estruturas ú ltimas de Deus e do mundo.

Algumas correntes de pensamento pó s-moderno criticam a filosofia e a teologia por


motivos semelhantes aos meus. Elas veem uma falta de perfeita firmeza de significado.
Veem analogia onde profissionais técnicos veem um uso absolutamente está vel e literalista
de termos técnicos. Veem o entrelaçamento de forma e significado. Veem a possibilidade de
outros pontos de vista de outras linguagens e culturas nos casos em que os profissionais
técnicos presumem a supremacia de sua pró pria abordagem monoperspectivista.

O pensamento pó s-moderno pode mostrar percepçõ es de graça comum nessas críticas.


Porém, nã o leva à saú de espiritual; a postura crítica desse pensamento permanece cativa
ao ideal da razã o autô noma, agora utilizada para a crítica da razã o. O pó s-modernismo
tende ao ceticismo ou ao relativismo no tocante à linguagem e à cultura, pois nã o reconhece
como a linguagem e a cultura dã o claros testemunhos da presença de Deus. Deus nos dá
estabilidade e capacidade para compreender as linguagens e culturas que ele estabeleceu e
nos fornece como dá divas e para nos comunicarmos eficazmente através delas. Embora
devamos lutar contra corrupçõ es pecaminosas desde a queda de Adã o no pecado, as
linguagens e culturas permanecem sendo dá divas que fornecem canais para o
conhecimento, em vez de barreiras que tornam o conhecimento impossível.

Devemos deixar para outros livros uma discussã o completa sobre a presença de Deus na
linguagem e na cultura e sobre como ele fornece estabilidade e conhecimento genuíno em
meio a elas. Se acreditamos em Deus, temos bons motivos para confiar na comunicaçã o
[111]

e na compreensã o da cultura.

1
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Parte 4
 
EXEMPLOS DE ANÁLISE METAFÍSICA
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
12. A metafísica de uma maçã
 
 

Vamos agora considerar alguns exemplos para ilustrar como funciona uma metafísica
multiperspectivista. Por meio de exemplos específicos, buscamos enfatizar a verdadeira
natureza da metafísica. A metafísica ú ltima do mundo deve ser encontrada no pró prio
Deus. Através de sua palavra de comando e seu governo abrangente sobre o Universo, Deus
especifica todas as dimensõ es do mundo de que desfrutamos. Devemos nos alegrar com a
generosidade de Deus e reconhecer todas as dimensõ es. Precisamos evitar imaginar que
alguma dimensã o, em vez do pró prio Deus em sua majestade e sabedoria, seja um tipo de
fundamento ú ltimo que é o mais fundamental e que de alguma forma explica tudo o mais.

De certo modo, essa abordagem é como dizer que não há nenhuma metafísica do tipo que a
maioria dos filó sofos tem buscado — nã o há nada dentro da criaçã o que sirva como
fundamento final. Nenhum sistema “ú ltimo” de categorias abstratas se estende para baixo e
torna transparentes para a razã o humana os fundamentos da existência. Isso porque a
criaçã o como um todo e cada criatura individual tem seu fundamento no plano de Deus, em
seus comandos, sua governança e sua presença. Podemos conhecer Deus, mas nã o
podemos compreendê-lo.
 
 
Uma escolha pessoal
 

Um saco de maçã s Granny Smith está sobre nossa mesa da cozinha. Pego uma para analisá -
la.

Deixe-me analisá -la de uma perspectiva em particular. Qual perspectiva? Cabe a mim
escolher. Sou um ser humano cujo ponto de vista é texturizado nã o apenas pela minha
posiçã o espacial, mas por toda a minha experiência anterior e pela individualidade da
mente. A partir de uma multiplicidade de alternativas com as quais estou familiarizado,
escolho como minha primeira perspectiva uma com a qual me sinto particularmente
confortá vel: a tríade de contraste, variaçã o e distribuiçã o. [112]
Essa tríade constitui três
perspectivas em uma. Como de costume, as três se entrelaçam. Há uma histó ria pessoal,
social e teoló gica por trá s do meu uso dessa tríade, na qual nã o precisamos entrar. [113]

Deus em sua sabedoria e majestade ordena todas as perspectivas de todos os seres


humanos, embora, é claro, nã o endosse moralmente os preconceitos pecaminosos daqueles
que têm as perspectivas. Deus conhece as perspectivas de antemã o. Seu plano para minha
maçã inclui a realidade de que ele ordenou todas as perspectivas sobre a maçã . A metafísica
da maçã , como expressã o da sabedoria de Deus, inclui em princípio todas as perspectivas.
 
 
Uma tríade de contraste, variação e distribuição
 

Primeiro, pense na perspectiva que se concentra em características contrastantes e


identificacionais. Minha maçã é diferente das demais no saco. Contrasta com elas. Eu a
medi, e ela tem cerca de 2,5 polegadas ou 6,5 centímetros de diâ metro. Ela tem uma
covinha na extremidade do pedú nculo e uma covinha mais complicada na outra
extremidade. Tem a mesma forma, tamanho e cor das outras maçã s no saco. Ainda posso
distingui-la das demais porque tem uma localizaçã o espacial distinta em relaçã o a elas e em
relaçã o à mesa. Ela também contrasta mais notavelmente com algumas maçã s vermelhas
que minha esposa comprou, pois é verde. Pertence à variedade Granny Smith de maçã s.
Também contrasta com laranjas, peras, bananas e outras frutas pela forma, textura, sabor e
estrutura interna (se a cortarmos ou mordermos). Também contrasta com itens
alimentares que nã o sã o frutas — carne, leite, suco de frutas, vegetais e assim por diante.
Contrasta com itens domésticos que nã o sã o alimentos.

Em segundo lugar, minha maçã exibe variação . Em princípio, os tipos de variaçã o incluem
variaçã o na maçã específica que escolhi, variaçã o entre todas as maçã s no saco, variaçã o
entre todas as maçã s Granny Smith e variaçã o entre todas as maçã s de todas as variedades.
Concentremo-nos na minha maçã em sua individualidade. Ela parece diferente quando
vista de diferentes â ngulos. Posso olhar diretamente para baixo a extremidade da haste, ou
vê-la de um lado com a haste voltada para cima, ou de lado com a haste voltada para baixo,
ou voltada para baixo e para um lado, ou voltada para baixo e ligeiramente para frente, e
assim por diante. Há uma grande variedade de posiçõ es rotacionais. Grosso modo falando,
a maçã tem a mesma aparência de vá rios â ngulos se eu a girar em torno do eixo passando
pela sua haste e seu cerne. Mas há pequenas variaçõ es na forma, textura e cor. Todas essas
perspectivas espaciais pertencem a uma maçã “contrastante”, distinguível.

Podemos também considerar a variaçã o no tempo. A maçã , durante um período de dias,


gradualmente amadurece. Se esperarmos tempo o bastante, ela começará a apodrecer ou
mofar. Os detalhes variam ao longo do tempo. Eu também experimento variaçã o,
dependendo se a cozinha onde ela está é iluminada por luzes de teto suspensas, somente
pela luz do sol, pela luz do sol mais luzes do teto, por nenhuma fonte de luz confinada
espacialmente (como no entardecer ou crepú sculo), ou pela quase ausência de luz (à noite,
quando eu teria de sentir a maçã para encontrá -la). A temperatura da maçã varia,
dependendo de quã o quente está a cozinha ou se coloco a maçã na geladeira.

Eu também posso experimentar a mesma maçã de outra maneira, descascando-a, cortando-


a, examinando seu cerne e suas sementes ou comendo-a. Ou posso usá -la para alimentar
um animal. Ainda podemos identificá -la como sendo a mesma maçã . Usamos basicamente
características contrastantes para essa identificaçã o. Mas também usamos nosso
conhecimento sobre variaçõ es típicas nas maçã s. Nã o nos surpreendemos se vemos algum
amadurecimento ou início de amadurecimento excessivo. Estamos confiantes de que ainda
temos a mesma maçã , apesar de sua aparência ter mudado.

Em terceiro lugar, considere a distribuição . Distribuiçã o é uma designaçã o mais precisa


para contextos estruturais que sã o muito relevantes para a interpretaçã o. Minha maçã está
perto do topo num saco de maçã s Granny Smith . O fato de ela fazer parte do saco é sua
“distribuiçã o” espacial imediata. O saco, por sua vez, está “distribuído” entre outros itens na
mesa da cozinha. A mesa está “distribuída” dentro da cozinha. A cozinha está “distribuída”
entre os cô modos da casa. Esse tipo de distribuiçã o é espacial, uma forma do que Kenneth
Pike chama de distribuição como parte de uma sequência estrutural . [114]

Existem dois outros tipos de distribuiçã o. Minha maçã está distribuída na classe de maçã s
Granny Smith no saco, que pertence por sua vez à classe de todas as maçã s Granny Smith ,
que pertence por sua vez à classe de todas as maçã s de todas as variedades. Esse tipo de
distribuiçã o é chamado de distribuição como membro de uma classe de substituição . Por
[115]

fim, minha maçã pode ser classificada por uma multiplicidade de características: tamanho,
cor, localizaçã o espacial, variedade à qual pertence a maçã , grau de maturaçã o e ser
descascada ou nã o. Cada uma dessas características pode ser vista como uma dimensã o da
descriçã o total da minha maçã . As muitas dimensõ es juntas formam um sistema de
descriçã o e classificaçã o. Minha maçã está entã o distribuída nesse sistema. Esse tipo de
distribuiçã o é chamado de distribuição como ponto em um sistema . [116]

Todas essas descriçõ es das três perspectivas — contraste, variaçã o e distribuiçã o — foram
ordenadas e especificadas por Deus desde a fundaçã o do mundo. Tudo sobre a minha maçã
está , portanto, especificado. Se outro ser humano vem e faz sua pró pria aná lise da maçã
usando as mesmas perspectivas, a aná lise pode ser ligeiramente diferente. Deus especifica
todas essas diferenças também. Ele especifica todos os detalhes de todas as perspectivas,
porque seu plano para o mundo e para sua histó ria é abrangente. Nada pega Deus de
surpresa. [117]
Minha maçã é o que é dentro do contexto do plano de Deus. Entender minha
maçã é entendê-la em relaçã o ao plano de Deus. O plano de Deus, em certo sentido, é a
“metafísica” ú ltima da maçã . Ele inclui nã o apenas o que a maçã tem em comum com todas
as demais maçã s ou todas as demais frutas, mas também tudo o que lhe é ú nico como uma
ú nica maçã , distinta de todas as demais.

Podemos ver o entrelaçamento do uno e do mú ltiplo. Há uma maçã com muitos fatos sobre
ela e muitas perspectivas que a descrevem. Há uma classe que consiste de todas as maçã s, e
cada maçã dentro da classe é uma de muitas pertencentes à classe (“distribuiçã o como
membro de uma classe de substituiçã o”).

Podemos também apreciar o entrelaçamento entre as três perspectivas, a saber, contraste,


variaçã o e distribuiçã o. As características contrastantes só sã o possíveis por meio da
variaçã o dentro de cada uma delas. Por exemplo, o diâ metro que medi, 2,5 polegadas, é
uma característica contrastante que distingue minha maçã das maçã s maiores ou menores.
Mas minha característica contrastante é apenas aproximada. É “cerca de” 2,5 polegadas. Há
uma possível variaçã o se tentarmos fazer uma mediçã o mais exata. Eu disse que minha
maçã era verde. Mas há diferentes tons de verde, mesmo entre as maçã s Granny Smith e até
mesmo em diferentes pontos na casca da mesma maçã . Os diferentes tons constituem
variaçã o.

A característica contrastante do diâ metro também existe num contexto distribucional, um


contexto em que definimos o diâ metro como uma medida em um sistema inteiro de
medidas quantitativas possíveis. A característica quantitativa “2,5 polegadas de diâ metro”
só existe, entã o, em virtude do uso da variaçã o e distribuiçã o. Ela também evoca outros
contrastes; por exemplo, o contraste dessa característica com outras características da
mesma maçã (como estar verde ou estar relativamente madura). Uma característica
contrastante, a saber, o diâ metro, contrasta com outras características possíveis que se
concentram em outras questõ es.
Em suma, uma maior atençã o a uma característica contrastante mostra que essa
característica é inteligível por causa da presença triá dica de contraste, variaçã o e
distribuiçã o nessa ú nica característica. Para sua pró pria inteligibilidade, o contraste
pressupõ e variaçã o e distribuiçã o.

Observaçõ es semelhantes se aplicam à variaçã o. Como já observamos, a maçã varia de


aparência dependendo se olhamos para baixo da extremidade da haste ou olhamos para o
lado com a haste voltada para cima, e assim por diante. Cada variante contrasta com as
demais variantes. Cada variante é definida usando contraste, variaçã o e distribuiçã o em sua
definiçã o. Por exemplo, a variante em que olhamos para a maçã de cima da extremidade da
haste tem uma variaçã o permitida na exata posiçã o acima da haste que escolhemos tomar.
Essa posiçã o contrasta com outras possíveis posiçõ es de visualizaçã o. A forma e textura da
maçã vistas de cima contrastam com a forma e textura vistas de um lado. Todos os pontos
de vista constituem um sistema de distribuiçã o que é paralelo aos sistemas de visualizar
outros objetos tridimensionais de diferentes direçõ es. A vista de cima da haste faz parte de
uma classe de distribuiçã o que consiste em vistas de vá rias distâ ncias acima da maçã .

Assim, contraste, variaçã o e distribuiçã o se entrelaçam. Cada um depende dos outros. Cada
um leva aos outros. Por exemplo, a observaçã o que enfoca a perspectiva contrastante,
quando realizada em detalhes, inclui informaçõ es sobre as perspectivas contrastantes,
variacionais e distribucionais sobre a perspectiva contrastante com a qual começamos.
 
 
A presença de Deus
 

Esse entrelaçamento é uma forma ectípica de coinerência. As pessoas na Trindade habitam


umas nas outras de maneira ú nica, arquetípica. Essa habitaçã o mú tua é a coinerência
arquetípica. A coinerência ectípica é especificada pela palavra de Deus, que é a palavra do
Pai falada através do Filho no Espírito Santo.

Podemos ver uma representaçã o mais diretamente analó gica da coinerência trinitá ria se
observarmos que a tríade que consiste em contraste, variaçã o e distribuiçã o tem uma
relaçã o pró xima com a tríade fundamental da classificaçã o, instanciaçã o e associaçã o,
introduzida como um reflexo dos papeis arquetípicos distintivos de Deus Pai, Deus Filho e
Deus Espírito Santo, respectivamente. [118]

Deus é distinto da minha maçã e de tudo o mais que fez. Mas também manifesta sua
presença na maçã . Ele manifesta os “atributos invisíveis…, assim o seu eterno poder, como
também a sua pró pria divindade”, nas “coisas que foram criadas” (Rm 1.20). A maçã
manifesta quem Deus é. O que estamos agora discutindo pode ser considerado uma outra
perspectiva: a relaçã o da maçã com Deus.

A maçã é uma construçã o sá bia, apta para a nutriçã o humana. Ela, portanto, manifesta a
sabedoria de Deus e sua bondade (“[Deus] mostrou sua bondade… com fartura e um
coraçã o cheio de alegria” — At 14.17, NVI). A palavra de Deus é divina e, portanto, reflete a
coinerência das pessoas divinas. Contraste, variaçã o e distribuiçã o no discurso divino
especificam contraste, variaçã o e distribuiçã o na maçã . Assim, nã o deveria ser uma grande
surpresa que o contraste, a variaçã o e distribuiçã o que vemos na aná lise da maçã refletem a
coinerência e unidade arquetípicas da Trindade.

O que é o “ser” de uma maçã ? A maçã deriva do discurso divino. O discurso divino
especifica nã o apenas que a maçã existirá , mas também que ela será o que é em relaçã o à s
outras maçã s e em relaçã o aos seres humanos. A palavra divina é fundacional para toda a
estrutura. Assim, a “metafísica” da maçã inclui todas as dimensõ es da especificaçã o divina.
Inclui, portanto, uma coinerência derivativa ectípica de contraste, variaçã o e distribuiçã o.
Inclui também muitos outros aspectos (como veremos abaixo).

Minha maçã é bonita. Ela reflete a beleza de Deus. Reflete sua beleza exatamente quando
aprecio a aparência da maçã . Ela reflete a beleza de Deus na coinerência ectípica do
contraste, da variaçã o e distribuiçã o e na forma como essa coinerência reflete a beleza
harmoniosa original de Deus. Ela é diferente de qualquer outra maçã , e em suas diferenças
também reflete a beleza diferencial de Deus (que está relacionada à variaçã o).
 
 
A tríade de perspectivas de partícula, onda e campo
 

Consideremos agora uma segunda perspectiva sobre a maçã , a saber, a tríade de


perspectivas de partícula, onda e campo. As três perspectivas mais uma vez se
[119]

entrelaçam. A perspectiva de partícula é a perspectiva está tica ou estacioná ria:


consideramos a maçã um todo está vel e integral, uma unidade. Ela é uma maçã . É
identificá vel como uma porçã o de fruta. Na perspectiva de onda, consideramos a maçã
como experimentando uma dinamicidade ; ela se desenvolve e muda no tempo. Cresce em
uma á rvore; é escolhida; é separada e embalada. É entregue em um supermercado. É
comprada e levada para casa. É degustada. Também podemos considerar a maçã como
tendo uma dinamicidade no espaço. Ela pode ser sacudida com as outras maçã s no saco. O
limite exato entre ela e as maçã s vizinhas pode nã o ser claro, particularmente se a pele
estiver aberta e a polpa das duas maçã s se misturar.

A perspectiva de campo se concentra nas relações . A maçã é identificá vel em relaçã o à


á rvore que a produziu e à classificaçã o bioló gica à qual pertence, em relaçã o à casa na qual
se encontra e em relaçã o à s pessoas que podem a qualquer momento decidir comê-la.

Essa tríade de perspectivas remonta a Deus, que a ordenou. Ele ordenou as capacidades
que nó s, seres humanos, temos de usar mú ltiplos focos nas aná lises. Ele ordenou que as
maçã s tenham estabilidade está tica, mudança dinâ mica e multiplicidades relacionais que
correspondam a essas perspectivas humanas. Esse cará ter multiperspectivista de uma
maçã é um aspecto de sua “metafísica”, já que é um aspecto da especificaçã o divina, que é o
fundamento ú ltimo para essa maçã . [120]

 
 
Estabilidade e tempo
 

A perspectiva de partícula sobre a maçã se concentra no que é igual. É uma espécie de


perspectiva “está tica”. A perspectiva de onda se concentra no que muda. É dinâ mica. O que
é igual em relaçã o à maçã nã o prejudica ou compete com o que muda. Os dois sã o
igualmente ú ltimos.

Podemos extrair liçõ es filosó ficas mais amplas a partir desse exemplo, liçõ es sobre a
relaçã o entre estabilidade e mudança. Para Platã o, conhecimento era o conhecimento das
formas , que eram imutá veis. Ele priorizava a estabilidade em vez da mudança. Aristó teles
tentou lidar com o desenvolvimento no tempo, em parte por sua ideia de potencial e real.
Mas a tendência de sua perspectiva ainda privilegiava a constâ ncia sobre a mudança. Essa
visã o é unilateral. No mundo de Deus, tanto a constâ ncia quanto a mudança sã o
especificadas pelo discurso de Deus. Cada uma pressupõ e a outra.

Nã o podemos apreciar a mudança exceto identificando-a como o movimento de


afastamento de um estado anterior. Quando pensamos em mudança, tacitamente confiamos
na constâ ncia de nossa memó ria e nossas ideias; por exemplo, quando observamos que a
maçã amadurece, ela ainda é a “mesma” maçã . Pressupomos a constâ ncia quando
descrevemos algo como o amadurecimento, porque o “algo” é o que percebemos como
constante. Se nã o podemos identificar uma maçã como sendo num sentido a “mesma” maçã
que observamos anteriormente, nã o podemos falar sobre mudança na maçã . Inversamente,
sempre que identificamos uma constâ ncia, pressupomos que a constâ ncia se manifesta pela
interaçã o conosco e com o mundo. Temos de ver que estamos olhando para uma maçã , e
nossa visã o é um processo no qual a maçã está interagindo com o mundo através da luz ou
do toque. A interaçã o é um tipo de mudança.

A terceira perspectiva, a perspectiva de campo, se concentra nas relaçõ es. As relaçõ es se


entrelaçam com estabilidade e com mudança. Cada uma deve estar presente para que as
outras façam sentido.

As filosofias de Platã o e Aristó teles priorizavam a essência e a está tica. Outras filosofias à s
vezes privilegiam a mudança (a filosofia do processo; a ênfase contemporâ nea na
narrativa) ou as relaçõ es (o estruturalismo). Esses movimentos sã o reducionistas. Na
verdade, sã o ilusó rios, pois escondem de si mesmos sua dependência tá cita de todas as três
perspectivas em seu cará ter entrelaçado.
 
 
A tríade de Frame para a ética
 

Nó s apenas começamos. Podemos escolher outra perspectiva sobre a maçã , distinta de tudo
que usamos até agora. Escolhemos a tríade de Frame para a ética: as perspectivas
normativa, situacional e existencial sobre a ética.
Primeiro, considere a perspectiva normativa sobre a maçã . O que Deus ordena em relaçã o à
maçã ? Sua palavra na Bíblia em nenhum lugar menciona essa maçã específica. Mas sua
palavra especifica que devemos viver de acordo com sua palavra em todas as á reas da
nossa vida. Minha vida inclui essa maçã . Entã o eu aplico o que a palavra de Deus diz a essa
nova situaçã o — a situaçã o com essa maçã . A perspectiva normativa leva naturalmente à
perspectiva situacional, em que considero a maçã como parte do meu ambiente. A
perspectiva normativa, ao enfocar a palavra de Deus na Escritura, leva ao conhecimento de
que essa maçã foi providencialmente criada por Deus. Ela é produto de uma macieira, que
faz parte da ordem das coisas vivas que Deus primeiro estabeleceu em Gênesis 1.11-13.
“Entã o disse Deus: ‘Cubra-se a terra de vegetaçã o: plantas que deem sementes e árvores
cujos frutos produzam sementes de acordo com as suas espécies’. E assim foi” (1.11).

Essa palavra inicial de Deus estabelece um padrã o permanente, que vemos continuar até
hoje. As sementes nas maçã s, quando plantadas, produzem macieiras, e as macieiras
desenvolvem maçã s (Sl 104.30). Essa percepçã o normativa leva à conclusã o de que minha
maçã , que repousa na mesa da cozinha, surgiu através da palavra de Deus, que estabelece
tanto o padrã o geral quanto as subsequentes execuçõ es e incorporaçõ es detalhadas do
padrã o em cada á rvore em particular e cada maçã em particular (Gn 1.11).

A perspectiva normativa também leva à conclusã o de que devemos louvar a Deus por sua
dá diva, o que inclui a dá diva das maçã s:
 
A gló ria do SENHOR seja para sempre! Exulte o SENHOR por suas obras! Com só olhar para a terra, ele a
faz tremer; toca as montanhas, e elas fumegam. Cantarei ao SENHOR enquanto eu viver; cantarei
louvores ao meu Deus durante a minha vida. Seja-lhe agradá vel a minha meditaçã o; eu me alegrarei no
SENHOR . Desapareçam da terra os pecadores, e já nã o subsistam os perversos. Bendize, ó minha alma,
ao SENHOR ! Aleluia! (Sl 104.31-35)
 
Louvai ao SENHOR da terra… montes e todos os outeiros, árvores frutíferas e todos os cedros. (Sl
148.7,9)
 

A perspectiva normativa, portanto, nos levou à perspectiva existencial, na qual enfocamos


nossa atitude em relaçã o à maçã . Louvado seja Deus pelas maçã s! Louvado seja Deus por
esta maçã ! Louvado seja Deus por sua sabedoria nos detalhes! Louvado seja Deus pela
beleza nesta maçã !

A tríade de Frame para a ética também leva a uma tríade relacionada aos objetos do
conhecimento. Como indicamos no capítulo 5, existem três objetos do conhecimento: Deus,
o mundo e nó s mesmos, correspondendo à s perspectivas normativa, situacional e
existencial, respectivamente. Minha maçã , como objeto criado, é um objeto pertencente ao
mundo, que é o segundo desses três objetos de conhecimento. E assim é natural usar a
perspectiva situacional ao considerar a maçã .
Mas o conhecimento da maçã vem junto com o conhecimento de Deus. Qualquer verdade
sobre a maçã é uma verdade que reside em primeiro lugar na mente de Deus. Quando
conhecemos a verdade, conhecemo-la em conexã o com o conhecimento de Deus, que é a
verdade. A verdade vem de Deus, e por isso também devemos reconhecer Deus como a
fonte. Como vimos, a maçã manifesta os atributos invisíveis de Deus, de modo que
conhecemos Deus quando conhecemos sobre a maçã .

Finalmente, conhecemos a nó s mesmos em conexã o com o conhecimento sobre a maçã . A


autoconsciência é sempre subjacente. Estamos cientes da maçã a partir de vá rias
perspectivas, que cabe a nó s escolher.

Deus criou um mundo no qual o conhecimento de Deus, do mundo e do eu estã o


correlacionados e entrelaçados. A maçã existe por ordenaçã o de Deus em relaçã o a Deus, ao
mundo e ao eu. Essas relaçõ es sã o um aspecto da “metafísica” da maçã , isto é, da descriçã o
que Deus faz da maçã .
 
 
A poesia das maçãs
 

Também podemos perguntar que mais outras associaçõ es metafó ricas ou poéticas sã o
evocadas pelas maçã s. As associaçõ es exatas variam com a cultura e com o indivíduo. Por
exemplo, no mundo ocidental temos a longa tradiçã o de que Adã o e Eva comeram uma
maçã da á rvore proibida, a á rvore do conhecimento do bem e do mal. Gênesis 3 fala do
“fruto” da á rvore. Nunca especifica que tipo de fruto era. Claro, é possível que fosse uma
maçã . Mas talvez fosse uma pera ou pêssego. Nã o o sabemos. O resto da Bíblia nunca
preenche esse detalhe. O detalhe que diz que era uma maçã surge apenas da tradiçã o
posterior, que é falível. Talvez a tradiçã o apenas remonte ao palpite de alguém, um palpite
que cresceu até se tornar um elemento fixo da literatura ocidental.

A literatura ocidental nã o é a palavra de Deus. Ela nã o tem nenhuma autoridade especial de


Deus. Mas também nã o é um mero “acidente” — nã o está fora do controle de Deus. Deus
governa toda a histó ria, incluindo a histó ria da literatura ocidental. Mas isso nã o significa
que ele endosse moralmente tudo o que há na literatura. Deus está no controle do que
acontece tanto no caso da Bíblia quanto no caso de todos os outros documentos. Dizemos
que ele ordena ou governa os resultados, incluindo cada documento que alguém já tenha
escrito. Mas a Bíblia é ú nica porque é a palavra de Deus. Deus a fala, e isso implica que ela é
dotada de autoridade e que a bondade e santidade de Deus respaldam o que ele diz nela.

Com esse entendimento, podemos considerar o significado da literatura ocidental e suas


tradiçõ es. Deus ordenou a tradiçã o ocidental sobre a maçã como parte da nossa histó ria.
Ele também ordena que nem todas as culturas terã o a mesma histó ria literá ria. Assim, pode
haver culturas que receberam a Bíblia e, portanto, sabem sobre a á rvore proibida, mas nã o
receberam a tradiçã o ocidental que sugere tratar-se a fruta de uma maçã .
Assim, a associaçã o das maçã s com a á rvore proibida é apenas uma possibilidade. Em certo
sentido, devemos associar o fruto proibido a todas as frutas que conhecemos. Nenhuma
dessas frutas é proibida para nós , é claro, pois a restriçã o original era em relaçã o a uma
á rvore especial. Deus nã o proibiu comer o mesmo tipo de fruta de uma á rvore diferente.

Muitas perguntas sobre os detalhes do fruto proibido nã o podem ser respondidas. A


incapacidade de serem respondidas é mais um lembrete de nossa finitude e da distinçã o
entre nó s e Deus. Mesmo essa limitaçã o tem uma funçã o positiva para nó s.

Podemos também ter confiança de que Deus ordena todos os tipos de pensamentos que
pertencem aos pará grafos imediatamente precedentes. Deus ordena que meu encontro
com minha maçã em particular possa levar a todos esses pensamentos. Se a maçã leva a tais
pensamentos, é porque Deus planejou desde o início que esta maçã em particular, em
distinçã o de qualquer outra, deveria ser a ocasiã o para eu desenvolver, enquanto indivíduo
distinto de quaisquer outros seres humanos, os pensamentos que acabei de desenvolver. E
as maçã s das geraçõ es anteriores foram em certo sentido a ocasiã o para desenvolver a
tradiçã o ocidental que identifica o fruto proibido como uma maçã .

Portanto, esta minha maçã , e algumas outras maçã s do passado, têm papeis específicos em
relaçã o ao fruto proibido. Deus planejou assim. Consequentemente, esses papéis para a
maçã , como parte do plano abrangente de Deus, fazem parte da “metafísica” da minha
maçã .

Para colocar de outra forma, poesia nã o é tolice. A poesia faz associaçõ es mais indiretas. Ela
“cria” associaçõ es imaginativamente, poderíamos dizer, por causa da criatividade humana.
Essa criatividade reflete a criatividade arquetípica de Deus. Nenhum ser humano é
“criativo” num sentido absoluto. Todo pensamento criativo que ele recebe é uma dá diva de
Deus (1Co 4.7). A criatividade de Deus é assim manifestada na poesia da tradiçã o ocidental
sobre uma maçã .
 
 
Poesia bíblica sobre as maçãs
 
O Cantares de Salomã o fala sobre macieiras e maçã s:
 
Qual a macieira entre as á rvores do bosque, tal é o meu amado entre os jovens; desejo muito a sua
sombra e debaixo dela me assento, e o seu fruto é doce ao meu paladar. (Ct 2.3)
 
Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs , pois desfaleço de amor. (Ct 2.5)
 
Sejam os teus seios como os cachos da vide, e o aroma da tua respiraçã o, como o das maçãs . Os teus
beijos são como o bom vinho. (Ct 7.8-9)
 
Quem é esta que sobe do deserto e vem encostada ao seu amado? Debaixo da macieira te despertei, ali
esteve tua mã e com dores; ali esteve com dores aquela que te deu à luz. (Ct 8.5)
 

Nã o sabemos ao certo se as maçã s tinham alguma associaçã o poética com amor e com ato
sexual no antigo Israel. Se nã o tinham, o Cantares de Salomã o teria o efeito de criar uma
nova associaçã o desse tipo. A doçura das maçã s representa a doçura do amor. A satisfaçã o
de comer representa a satisfaçã o do prazer do amor (Ct 5.1). O cheiro das maçã s, seja pela
sua pró pria agradabilidade, seja pela associaçã o com comer maçã s, pode sugerir uma
associaçã o com o desejo de amor (Ct 7.8). Outras associaçõ es também podem ser
despertadas. A associaçã o das maçã s com a alimentaçã o pode levar a pensar sobre o papel
da boca no ato de comer, e daí para o papel da boca no ato de beijar (“Beija-me com os
beijos de tua boca” — Ct 1.2). A poesia amiú de nã o se refere a evocar apenas uma
associaçã o estreita na forma “isso significa aquilo”. Poderia o amadurecimento das maçã s
evocar o pensamento do amadurecimento do amor?

As associaçõ es evocadas por uma maçã nã o sã o meramente intelectuais , como se


estivéssemos nos perguntando mentalmente: “Ora, que associaçõ es posso criar ao forçá -las
deliberadamente?”. As associaçõ es podem nem mesmo ser articulá veis. Como uma peça
musical em movimento, a maçã nos move sem que especifiquemos algum “pensamento” em
particular ou algum humor em particular que um poeta tentou criar. O homem é mais do
que intelecto, particularmente na interaçã o poética.

Uma abordagem multiperspectivista pode destacar a individualidade da resposta poética a


partir de um ú nico leitor ou ú nica pessoa que responda valorizando a poesia. Para você, o
que as maçã s evocam? E para mim? Como antes, Deus nã o endossa todas as respostas —
nã o endossa o pecado que habita em nó s. Mas ordena a criatividade das mentes, coraçõ es e
sentimentos humanos individuais em que as associaçõ es surgem. As associaçõ es variam de
um indivíduo para outro; elas nem sempre sã o iguais. Minha maçã , a maçã da minha
cozinha, tem um papel que nunca será repetido no plano de Deus — evocando algumas
associaçõ es à medida que penso nela e sinto seu cheiro.

Nã o tenho inclinaçã o poética; nã o sou talentoso nesse aspecto. Mas outros sã o. Deixe-os
desfrutar mais plenamente da maçã com sua criatividade mais abundante de associaçã o.
Para isso também a maçã é ordenada. A poesia, em outras palavras, faz parte da metafísica
das maçã s. O Cantares de Salomã o é uma ilustraçã o do princípio maior. Ele nos ensina
sobre a natureza do mundo.

Dentre as coisas que ele ensina estã o a importâ ncia e centralidade do amor. Quando nos
defrontamos com as deficiências em nossas pró prias tentativas de amor româ ntico, nã o
leva muito tempo para perguntar como a deficiência deve ser remediada. E entã o nos
damos conta de outra associaçã o — que o Cantares de Salomã o diz respeito, pelo menos em
parte, ao casamento do rei Salomã o (Ct 3.11). O casamento no Antigo Testamento se torna
uma metá fora do amor de Deus por Israel. E Salomã o é um tipo de Cristo, o Noivo final (Ef
5.22-33). Temos muitas associaçõ es, se quisermos segui-las.

No Cantares de Salomã o as maçã s se tornam um emblema do amor. Digo que elas “se
tornam”, mas é Deus quem ordenou esse “tornar-se”. Assim, o significado das maçã s,
mesmo a partir da criaçã o do mundo, está vinculado a esse tornar-se. Se as maçã s sã o um
emblema do amor, sã o, por movimentos posteriores de associaçã o planejados por Deus, um
emblema do amor de Deus por nó s: ele nos dá alimento. A doçura da minha maçã comunica
a doçura de Deus. E as maçã s, portanto, também sã o um emblema do amor de Cristo por
sua igreja. Esse cará ter emblemá tico é um aspecto da metafísica das maçã s. E é um aspecto
da metafísica de minha maçã , aquela em casa na cozinha.
 
 
A função da maçã nas relações pessoais
 

Objetos específicos como as maçã s existem dentro de uma teoria de relaçõ es ecoló gicas,
como os ecologistas nos dirã o. Quando uma maçã entra em relaçã o com os seres humanos,
também existe dentro de uma teia de relaçõ es pessoais entre os seres humanos. Essas
relaçõ es surgem e mudam dinamicamente de acordo com o desígnio de Deus. Ilustremos o
princípio com minha maçã em particular, a que está na mesa da cozinha.

Minha esposa comprou o saco de maçã s no supermercado. O processo da compra é um


aspecto do conhecimento inferido que tenho sobre a maçã . O processo em si pode ser
analisado por suas relaçõ es. Minha esposa expressa seu amor por mim e por nossa
[121]

família quando vai ao supermercado e quando prepara as refeiçõ es. Ela está servindo a nó s,
nã o apenas a si mesma.

O caso com a minha maçã é particularmente notá vel, porque as maçã s Granny Smith sã o
umas das minhas favoritas, mas minha esposa nã o gosta delas. Elas sã o muito azedas. Ela
prefere as variedades mais doces. Fico feliz em vê-la trazer para casa alguma variedade
vermelha para si mesma. Eu gosto de quase qualquer variedade de maçã , mas ela sabe que
gosto particularmente das Granny Smith . O fato de essas Granny Smith estarem em casa
além de outro tipo de maçã que poderíamos ambos comer é uma expressã o
particularmente notá vel de amor, aos meus olhos.

À vista disso, as Granny Smith simbolizam o amor da minha esposa por mim. Elas o fazem
no contexto de algumas circunstâ ncias bastante complexas, que sã o especiais para minha
família. Mas aí está : elas simbolizam o amor. E esse fato nos traz de volta para as maçã s do
Cantares de Salomã o. Vejo uma associaçã o entre minha maçã e o Cantares de Salomã o que
ninguém mais no mundo aprecia da mesma maneira que eu. É a minha esposa e a minha
maçã . Outras pessoas podem ter uma esposa que lhes traz para casa suas maçã s favoritas,
mas minha relaçã o com minha maçã ainda é diferente. É diferente porque eu sou quem eu
sou, e minha esposa é quem ela é, e essa maçã é o que é neste momento e neste lugar em
toda a histó ria do mundo. Ordenando tudo isso está Deus, que é quem ele é (Ê x 3.14).

Esta maçã , e nã o outra, é um emblema mais intensivo do amor de minha esposa. De acordo
com Efésios 5.22-33, minha esposa, em sua relaçã o comigo, reflete e expressa a relaçã o da
igreja com Cristo, que é uma relaçã o de amor. E o amor da igreja nã o apenas reflete o amor
de Deus, mas é também uma expressã o dele, uma vez que esse amor surge através do
poder do Espírito Santo, como sendo o Espírito de Cristo, que traz amor para a igreja e para
sua vida. É mediante o Espírito Santo que Deus possibilita minha esposa e eu nos amarmos
um ao outro. Se estamos experimentando amor no Espírito Santo, também estamos
experimentando o amor do Espírito Santo, que é o amor de Deus, no preciso momento do
nosso amor um pelo outro. Deus está presente.

Deus fez assim. Em sua sabedoria, Deus ordena as relaçõ es. Ele estabelece a ordem das
relaçõ es pessoais entre mim, ele mesmo e o Cantares conforme a palavra de Deus e o amor
de Cristo como esposo de sua noiva, a igreja. Deus ordena o relacionamento amoroso entre
mim e minha esposa. Deus também ordena maneiras particulares de expressar o amor em
momentos específicos. Maçã s, passas, romã s, incensos, aloés e toda outra profusã o de
coisas criadas que sã o mencionadas no Cantares de Salomã o podem servir de maneiras
poéticas para expressar o amor pessoal que Deus tem pelo seu povo. A metafísica da minha
maçã inclui seu papel em uma profusã o.
 
 
A tríade do senhorio de Frame
 

Por conta do papel influente desempenhado pela tríade de John Frame de perspectivas
sobre o senhorio, é apropriado que usemos essa tríade para analisar minha maçã . A tríade
consiste em três perspectivas: autoridade, controle e presença. Essas perspectivas enfocam
a natureza das relaçõ es pactuais de Deus com os seres humanos — e mais amplamente
todo o mundo criado. As três perspectivas se entrelaçam, como de costume, e cada qual é
uma perspectiva sobre as outras. Elas expressam e refletem uma coinerência trinitá ria.

Considere primeiro a perspectiva da autoridade . Deus tem autoridade sobre aqueles a


quem se refere em aliança. Sua autoridade é mostrada particularmente em mandamentos,
como os Dez Mandamentos. Deus exerce autoridade nã o apenas sobre seres humanos, mas
sobre o mundo como um todo. Ele tem autoridade para comandar o que acontece. “Disse
Deus: Haja luz; e houve luz” (Gn 1.3).

Usamos algo pró ximo dessa perspectiva ao ver a relaçã o de Deus com o mundo através do
falar. Deus fala comandos e especificaçõ es. Seu discurso tem a autoridade de determinar o
cará ter do mundo. Sua autoridade é completa. E assim podemos inferir que Deus especifica
os muitos detalhes sobre as maçã s que nã o sã o mencionados explicitamente na Bíblia.

A segunda perspectiva é o controle . Deus nã o só tem o direito de governar, como expresso


por sua autoridade. Ele realmente governa, como expresso pelo seu controle. O estado da
minha maçã em todos os seus detalhes está completamente de acordo com as
especificaçõ es estabelecidas pelo discurso de Deus. Seu controle trouxe o crescimento da
maçã em sua á rvore, seu amadurecimento, seu transporte para o supermercado, as
transaçõ es no supermercado e a posiçã o está vel da maçã no saco sobre a mesa.

A terceira perspectiva é a presença . Deus está ativamente envolvido no mundo como um


todo e no que acontece com minha maçã . As pessoas podem distorcer essa ideia da
presença como se fosse panteísmo , a crença de que Deus é idêntico ao mundo. O panteísmo
é uma distorçã o nã o cristã da doutrina da imanência divina. A Bíblia indica que Deus é
completamente distinto do mundo. Ele nã o é surpreendido em seus movimentos e
desenvolvimento. Ao mesmo tempo, ele está presente como o Senhor do mundo. Ele está
presente na maçã , nas mudanças da maçã e nas relaçõ es da maçã com o que está ao seu
redor. Encontramos Deus e conhecemos Deus na presença da maçã . Seu eterno poder e sua
natureza divina sã o revelados.
 
 
Perspectivas científicas
 

Na minha descriçã o e aná lise da maçã , usei o que poderia ser rotulado como perspectivas
da vida comum. Os seres humanos podem fazer as observaçõ es que fiz sem ter um
treinamento científico especial. Ao elaborar essas perspectivas, quero enfatizar que o
governo de Deus especifica todas elas. Ao fazê-lo, seu governo soberano produz a
realidade . As texturas dessas perspectivas nos dã o a realidade, em vez de uma ilusã o
gerada por uma realidade desconhecida.

Como poderíamos esperar de uma abordagem multiperspectivista, a afirmaçã o da


realidade dessas perspectivas nã o deprecia a realidade da investigaçã o científica técnica.
Vá rias ciências e vá rias subdivisõ es dentro das ciências nos dã o o que poderíamos chamar
de perspectivas técnicas . Essas perspectivas podem ser muito ú teis na execuçã o do
programa divino para que seres humanos exerçam domínio. Descobrimos camadas de
significado nã o imediatamente visíveis à inspeçã o casual humana. E essas camadas de
significado podem nos permitir construir novas ferramentas que aumentem nosso
domínio. Crescemos tanto em conhecimento (ciência) como em poder (tecnologia, usada
para o domínio). Tanto a ciência quanto a tecnologia crescem numa situaçã o em que os
seres humanos sã o pecaminosos. Portanto, ambos estã o sujeitos à distorçã o e ao abuso.
Mas a distorçã o é uma distorçã o do que era bom no desígnio original de Deus em um
mundo nã o caído.

Nã o devemos desprezar a ciência e a tecnologia como Deus pretendia que fossem.


Devemos, contudo, inspecionar criticamente a tecnologia e a ciência humana existentes por
causa da influência do pecado. Assim, dado o presente estado da ciência, vamos usar
algumas perspectivas técnicas ou científicas sobre a minha maçã . A ciência tem desfrutado
de um amplo desenvolvimento nos ú ltimos séculos, de modo que só podemos tocar a
superfície do que é possível.

Primeiro, considere as perspectivas quantitativa e espacial. Nó s contamos uma maçã .


Medimos seu diâ metro em polegadas ou centímetros. Consideramos sua forma espacial,
bem como a forma das sementes e do cerne dela. Podemos realizar uma descriçã o
tridimensional bastante precisa das suas partes internas, assim como da forma da sua
superfície.
Em segundo lugar, considere uma perspectiva física. Minha maçã é um objeto só lido, que
pode ser aproximadamente descrito pela mecâ nica dos objetos rígidos. Podemos descrever
massa, centro de gravidade, momento de inércia, compressibilidade e elasticidade.
Podemos, com as leis do movimento de Newton, descrever sua trajetó ria quando lançada
no vá cuo. Se falarmos de aerodinâ mica, podemos descrever o que acontece com o
movimento da maçã através de um fluido, seja no ar, na á gua ou no ó leo. Podemos
descrever as cores da maçã em termos de reflexõ es da luz em certas bandas de frequência
no espectro eletromagnético.

Em terceiro lugar, considere uma perspectiva sobre a composiçã o. Podemos descrever sua
composiçã o material no nível de partículas elementares (elétrons e quarks ) ou no nível de
partículas mais comuns (pró tons, nêutrons e elétrons).

Fazendo uma transiçã o para a química, podemos descrever á tomos individuais, moléculas e
reaçõ es bioquímicas dentro da maçã . Estaremos entã o fazendo a transiçã o para a
bioquímica e biologia molecular.

Podemos estudar a maçã como um fruto ao nível de seus tecidos e sua fisiologia. Podemos
também estudar os organismos que habitam a maçã — bactérias e fungos. Minha maçã nã o
mostra sinais de ter sido incomodada por insetos ou larvas, mas sua histó ria inclui a
possibilidade de um agricultor ter tomado medidas para protegê-la das pragas.

Também podemos estudar a maçã a partir da perspectiva da geologia. A maçã veio de uma
á rvore que cresceu no solo de uma certa localidade na Terra. Os microminerais na maçã
podem revelar algo sobre a composiçã o do solo. Informaçõ es comerciais também podem
nos dar dicas de onde as maçã s da variedade Granny Smith sã o cultivadas e onde o
supermercado provavelmente estocou suas sacas de Granny Smith .

Também podemos nos aventurar no estudo da agricultura. O que se passa no crescimento


das maçã s Granny Smith ?

Podemos nos aventurar em á reas especializadas e em á reas gerais relacionadas aos seres
humanos e sua interaçã o com as maçã s. Estamos, entã o, fazendo uma transiçã o mais para
á reas associadas à ciência social. Consideramos os veículos usados para transportar maçã s;
o sistema de transporte; o sistema econô mico; a rede de negó cios e acordos comerciais que
ligam a fazenda ao supermercado; o sistema legal, que sustenta a confiança do comércio em
receber uma recompensa pelos seus esforços; o sistema político de apoio ao sistema legal;
um sistema de abastecimento que forneça material para sustentar essas outras redes; e
assim por diante. Entender a histó ria da minha maçã em detalhes e no contexto nos leva a
interagir com todas essas á reas.

Podemos também avançar para o momento em que a maçã será comida. Podemos estudar a
fisiologia humana do sistema digestó rio e a neurologia do paladar e do olfato, que
contribuem para a apreciaçã o da minha maçã .
 
 
O poder das leis gerais
 

As aná lises técnicas e científicas enfocam padrõ es gerais de eventos e nã o minha maçã em
particular. Elas estabelecem princípios, leis ou regularidades gerais para as maçã s, para o
crescimento das maçã s e para o tratamento comercial das maçã s que estã o a caminho dos
consumidores. Os princípios gerais têm poder prá tico. Eles permitem que agricultores,
empresá rios, supermercadistas e fisiologistas botâ nicos façam planos coerentes para o
futuro. Eles constroem redes de atividades e propó sitos humanos e de suprimentos de
vá rios tipos em estruturas de apoio para facilitar o bom funcionamento da agricultura e um
sistema econô mico que forneça maçã s de maneira confiá vel a um preço razoá vel. O
conhecimento das generalidades tem maior influência para esses propó sitos do que o
conhecimento da minha maçã em toda a sua especificidade.

É tentador, devido à nossa admiraçã o por princípios gerais, achar que minha maçã nã o tem
importâ ncia. Ela é apenas ú nica. Mas temos um princípio de igual supremacia do uno e do
mú ltiplo. Essa igual supremacia vale para Deus, que é tanto um Deus quanto três pessoas.
De forma derivada, isso vale para as maçã s. Nã o chegamos ao conhecimento das
generalidades sobre as maçã s sem algumas observaçõ es e experimentos com maçã s
específicas, solos específicos e macieiras específicas. Usamos esses particulares, é claro,
para chegar a generalidades. Mas as generalidades só fazem sentido quando entendemos
que elas se aplicam a particulares. As duas estã o inextricavelmente relacionadas.

Para fins comerciais e para entendimento científico, escolhemos valorizar as generalidades.


O fato da escolha é importante. Tomamos a decisã o de ter certo tipo de foco generalizante
por causa do que valorizamos no momento. Mas podemos escolher outras coisas: talvez
fazer uma pintura de natureza morta da minha maçã ou saboreá -la enquanto é comida. Nã o
podemos comer uma generalidade.

Se, entã o, estamos pensando num desejo por uma metafísica “ú ltima”, é sá bio estarmos
cientes de nossas escolhas. Metafisicamente, o uno e o mú ltiplo sã o igualmente ú ltimos.
Quando escolhemos uma perspectiva, podemos temporariamente e para os nossos
propó sitos priorizar o uno — a generalidade. Ou, inversamente, podemos priorizar o
mú ltiplo, o que inevitavelmente fazemos quando comemos uma maçã .

Assim, as ciências nos dã o perspectivas. Elas nã o nos dã o razõ es metafísicas ú ltimas. Essa
conclusã o é obviamente verdadeira quando consideramos a multiplicidade de ciências e a
multiplicidade de perspectivas dentro de qualquer ciência. Contudo, ela tende a ser
esquecida. O materialismo filosó fico diz que o mundo é “em ú ltima aná lise” matéria,
movimento e energia. Tal afirmaçã o é de fato uma filosofia. Nã o é apenas uma “leitura” de
“resultados” ó bvios e indubitá veis da ciência. É algo previamente trazido para dentro da
ciência e depois concluído a partir dela. Em vez de seguir esse caminho, afirmamos a
realidade de todas as perspectivas vá lidas, nã o apenas das mú ltiplas perspectivas das
vá rias ciências, mas também das mú ltiplas perspectivas da vida cotidiana. Se cremos, com
base na Escritura, que Deus projetou todas as perspectivas, a metafísica multiperspectivista
descreve, de um ponto de vista humano, o que Deus fez e está fazendo.

1
 

13. A metafísica da caminhada


 
 

Como segundo exemplo, consideramos o processo da caminhada humana. O que é


caminhada? (Os leitores já satisfeitos com o exemplo da maçã podem pular para os
capítulos 15 ou 16.)
 
 
O uno e o múltiplo
 

Podemos considerar muitos exemplos de caminhada. Quem está fazendo a caminhada?


Podemos distinguir a caminhada de qualquer ser humano da caminhada de outra pessoa.
Desfrutamos de inú meros casos desse tipo de atividade. Assim, a categoria “caminhada”
tem muitos exemplos: a caminhada de Albert, a caminhada de Bá rbara, a caminhada de
Cindy e assim por diante. A relaçã o da categoria geral com os muitos exemplos é uma
relaçã o do uno com o mú ltiplo. Como de costume, ela reflete a relaçã o arquetípica do uno e
do mú ltiplo da Trindade.

Podemos também distinguir a caminhada em tempos diferentes. Vamos supor que Suelen
faça uma caminhada regular todas as manhã s. Podemos distinguir sua caminhada hoje de
sua caminhada ontem. Talvez ela vá mais longe hoje do que foi ontem. Talvez ela tenha
estirado um mú sculo na noite de ontem, de modo que seu andar na caminhada desta
manhã mostre os efeitos desse estiramento. Podemos nos concentrar na unidade de uma
pessoa, Suelen, fazendo uma caminhada regular. Podemos nos concentrar em uma
caminhada específica, a caminhada que ela faz hoje. Ou podemos nos concentrar na
diversidade das diferentes caminhadas que ela realiza dia apó s dia. A diversidade se
entrelaça na unidade. Como sempre, temos o uno e o mú ltiplo. Cada um pressupõ e o outro.

Hipoteticamente, mesmo que Suelen fizesse apenas um passeio em sua vida, poderíamos
ver sua caminhada em sua singularidade ou como um exemplo de muitas caminhadas
possíveis que poderia ter feito em outros momentos. E, certamente, sua ú nica caminhada
seria um exemplo na classe total de caminhadas realizadas por todos os outros seres
humanos em todos os tempos.
 
 
Contraste, variação e distribuição
 

Apliquemos as categorias de contraste, variaçã o e distribuiçã o como uma tríade de


perspectivas. Caminhar contrasta com outras atividades: correr, jogging , rastejar,
escorregar, nadar, remar, ler enquanto sentado, assistir à televisã o enquanto deitado e, é
claro, dormir.

Considere a variaçã o. Podemos andar depressa ou devagar, em clima frio ou quente, em


subida ou descida, em círculo ou em linha. Podemos cambalear, titubear, mancar ou andar
suavemente. Todas essas possibilidades, em sua diversidade, pertencem ao tipo unificado
de atividade conhecido como caminhada. Podemos ver o uno e o mú ltiplo. O uno é a
categoria unificada da caminhada, enquanto o mú ltiplo sã o as variaçõ es em estilo. Cada
caso representa uma forma variante de caminhada.

Considere a distribuiçã o. Como uma atividade humana, a caminhada ocorre em contextos.


Um tipo de contexto é o contexto de antes e depois. Se caminhamos do ponto A para o
ponto B, temos uma sequência que consiste de início (A), processo (caminhada) e meta (B).
Suelen pode ter uma atividade no ponto A (tomar café da manhã ), uma segunda atividade
no processo (ouvir algo num iPod ou falar ao celular enquanto caminha) e uma terceira
atividade no destino (encontrar alguém para almoçar). O propó sito de Suelen na
caminhada tem ligaçõ es com o que acontece no ponto A ou B. Ou talvez a caminhada de
Suelen seja para exercício. Com esse propó sito, ela ainda tem de se encaixar em certa
sequência temporal de atividades durante o dia. Suelen pode seguir uma ordem fixa. Ela
caminha todas as manhã s depois de se levantar e antes de tomar banho. A caminhada,
dizemos, está “distribuída” na sequência de eventos. Kenneth Pike refere a essa distribuição
como sendo parte de uma sequência estrutural .

Uma atividade de caminhada pode pertencer a duas classes maiores distintas, a depender
da finalidade. Caminhar para exercício pertence a uma classe maior de atividades físicas:
jogging , nadar, exercícios de alongamento, abdominais, flexõ es de joelhos e assim por
diante. Caminhar para ir a algum lugar pertence a uma classe maior de atividades para
chegar a algum lugar — correr e jogging poderiam fazer isso, mas também andar de
bicicleta, dirigir ou ir de ô nibus. Algumas caminhadas podem ter simultaneamente ambas
as finalidades, em cujo caso pertencem à s duas classes maiores, mas de diferentes
maneiras. Qualquer caminhada em particular está distribuída na classe de atividades de
exercício ou atividades de viagem, ou ambas. Pike chama isso de distribuição como membro
de uma classe de substituição .

Finalmente, podemos classificar as caminhadas em vá rios tipos: velocidade, duraçã o, modo


de andar, tipo de pessoa caminhando, propó sito da caminhada, clima durante a caminhada
e assim por diante. Qualquer caminhada está distribuída em uma rede multidimensional
que a classifica por mú ltiplos critérios. Pike chama isso de distribuição como um ponto num
sistema .
 
 
Entrelaçamento
 

Como sempre, contraste, variaçã o e distribuiçã o pressupõ em uns aos outros. O contraste
entre caminhar e pular num só pé, por exemplo, pressupõ e que temos uma distinçã o entre
usar o mesmo pé ou alternar o pé que toca o chã o. Essa distinçã o, por sua vez, pressupõ e
que temos pelo menos dois pés que contrastam um com o outro. A continuidade do mesmo
pé entre diferentes tempos envolve variaçã o, e cada pé tem uma distribuiçã o no espaço, no
tempo e em mú ltiplas dimensõ es de classificaçã o. Na corrida, há momentos em que os dois
pés deixam simultaneamente o chã o, enquanto na caminhada pelo menos um pé sempre
toca o chã o. Aqui temos uma característica contrastante lidando com o contato com o chã o.
Essa característica contrastante inclui variaçã o, uma vez que a quantidade de tempo
durante a qual os dois pés tocam juntos o chã o pode variar. E a distinçã o entre as duas
formas de locomoçã o depende de uma compreensã o de como os vá rios eventos sã o
distribuídos no tempo: primeiro um pé no chã o, depois o outro, entã o o primeiro pé
deixando o chã o, e assim por diante.

Contraste, variaçã o e distribuiçã o se entrelaçam, manifestando uma coinerência ectípica,


refletindo por sua vez a presença do Deus trinitá rio, que governa o caminhar. Visto que
Deus governa o mundo inteiro pela palavra do seu poder (Hb 1.3), podemos inferir que ele
governa o caminhar por sua palavra. Ao falar no Filho através do Espírito, Deus especifica
como os seres humanos caminham, em unidade e diversidade. É maravilhoso.
 
 
Hierarquia
 
A aná lise linguística de Pike introduz o termo hierarquia para descrever uma estrutura de
incorporaçã o em mú ltiplos níveis. Pike usa o conceito principalmente no contexto da
[122]

aná lise da linguagem, mas podemos devidamente aplicá -lo a uma aná lise da caminhada. [123]

O processo de caminhar está espalhado no tempo. Também pode se espalhar no espaço, se


vá rias pessoas estiverem caminhando juntas. Mas suponha que estamos nos concentrando
em uma ú nica pedestre, Suelen. Sua caminhada é precedida por outras atividades e seguida
por ainda outras. Ela se encaixa numa brecha de tempo entre outras atividades durante o
dia. Talvez sua caminhada pertença a uma unidade de tempo maior dedicada a exercícios
de mais de um tipo. A unidade de açã o que chamamos de “sua caminhada” é uma unidade
reconhecível, incorporada em uma unidade de tempo maior, “a unidade de exercícios de
Suelen”. Também podemos mencionar que é possível ver essas unidades de açã o cultural
ou da perspectiva de alguém de dentro, ou da perspectiva de alguém de fora. Suelen tem a
visã o de alguém de dentro. Mas algumas culturas nã o ocidentais podem nã o ter “unidades
de exercícios”. Elas fazem bastante atividade física durante o dia sem reservar tempo extra
apenas para os exercícios. Entã o, essas culturas veriam a unidade de exercícios de Suelen
da perspectiva de alguém de fora. [124]
Agora vamos nos concentrar na perspectiva de alguém de dentro. Suelen tem um período
de atividade unificado com características comuns e unificadoras: ela tem vá rias atividades
físicas , e essas atividades juntas têm o propó sito de um treinamento físico. Chamamos seu
treinamento físico de “unidade de exercícios”. Essa unidade de exercícios, digamos, se
encaixa num complexo maior de atividades pela manhã . Temos pois uma unidade maior, “o
horá rio de atividades da manhã de segunda a sexta” de Suelen. Essa unidade, por sua vez,
está incorporada nas atividades de todo o dia: a “programaçã o diá ria” de Suelen. A
programaçã o diá ria se encaixa em uma programaçã o semanal, e assim por diante.

Cada uma dessas incorporaçõ es envolve uma parte que se encaixa em um todo. As partes se
encaixam em todos hierarquicamente . Podemos discernir totalidades cada vez maiores e,
metaforicamente falando, podemos retratar esses todos como estando “acima” das partes
de que sã o compostos. A hierarquia é a estrutura crescente de unidades maiores acima das
menores.

Vá rias partes compõ em um todo, mas ocasionalmente a composiçã o do todo a partir das
partes pode exibir variaçã o. Por exemplo, num dia Suelen gasta a manhã toda em um
passeio especial com as crianças e nã o tem tempo para se exercitar. Neste caso, o todo é
composto de apenas uma parte principal.

Também encontramos estrutura no modo como as partes se encaixam no todo. Suelen pode
ter projetado sua unidade de exercícios para que, por uma série de atividades, exercite a
maioria dos mú sculos do corpo.

Também podemos analisar a caminhada de Suelen em termos de suas partes menores.


Talvez ela caminhe em direçã o a um ponto fixo e depois retorne, de modo que sua
caminhada tenha duas partes. Mas há também partes menores. Cada passo é uma parte. E
os passos se alternam entre pé direito e pé esquerdo. Eles movem seu corpo
[125]

progressivamente para frente.

Podemos também observar movimentos simultâ neos que ocorrem na caminhada.


Enquanto o pé direito e o esquerdo realizam movimentos alternados, o mesmo acontece
com o braço direito e o esquerdo. Pode haver alguma rotaçã o dos quadris. Tã o logo
aprendemos a caminhar, realizamos esses movimentos sem pensar. Mas as pessoas que se
recuperam de deficiências físicas podem nã o mais achá -los fá ceis. O caminhar também
pode ser desestabilizado pelo mau funcionamento do sistema de equilíbrio no ouvido
interno e do cerebelo. Poderíamos assim considerar como nosso senso de equilíbrio
funciona na caminhada.
 
 
Partícula, onda e campo
 

Em seguida, aplicamos as perspectivas de partícula, onda e campo à caminhada. Primeiro,


considere a perspectiva de partícula. A caminhada de Suelen num dado dia é um ato
unificado, que podemos considerar e discutir como um todo está vel. Ele é distinto das
atividades anteriores e posteriores.

Em segundo lugar, considere a perspectiva de onda. A caminhada de Suelen está espalhada


no tempo, e no decorrer da caminhada ela se move sucessivamente de um lugar para outro.
A caminhada se desenvolve. Se for uma longa caminhada, ela pode se cansar. Os mú sculos
da perna gradualmente aquecem. Sua respiraçã o gradualmente acelera. Se ela está sentindo
o estresse por conta de uma preocupaçã o anterior, o estresse pode gradualmente
desaparecer no decorrer da atividade física. A perspectiva de onda vê a caminhada como
um processo.

Ademais, podemos olhar tanto para o início quanto para o fim da caminhada como um
processo em vez de uma mudança brusca. A mudança de Suelen para dentro e para fora de
uma roupa de exercício pode ser um elemento regular da sua caminhada, de sorte que, se
quisermos, podemos considerar essas açõ es como parte do processo total de “fazer uma
caminhada”. Sua caminhada começa quando ela sai pela porta da frente da casa ou quando
se encaminha até a porta? Ou começa, talvez de uma forma mais séria, quando chega à rua?

Se dissermos que começa quando ela sai pela porta, ainda podemos considerar que sair
pela porta é um processo. Seu corpo gradualmente se move pela porta. O “sair pela porta”
começa quando ela toca a maçaneta da porta para abri-la, quando esta é totalmente aberta,
quando o corpo de Suelen começa a passar pela porta ou quando seu corpo está a meio
caminho de passar por ela? Quando esse processo de “sair pela porta” termina? Usando a
perspectiva de onda, podemos chamar atençã o para o limite difuso entre ela fazer sua
caminhada e as atividades que precedem ou se sucedem a isso.

Em terceiro lugar, considere a perspectiva de campo, que se concentra nas relaçõ es.
Podemos considerar a relaçã o entre a localizaçã o de Suelen com seu entorno em vá rios
pontos da caminhada. Podemos considerar a relaçã o de todo o trajeto da caminhada com a
distribuiçã o e arranjo no espaço na vizinhança. Podemos considerar a relaçã o fisioló gica
entre a atividade muscular, o aquecimento muscular, a respiraçã o e o cansaço. Podemos
caracterizar sua caminhada em comparaçã o com a de outras pessoas e em comparaçã o com
a pró pria caminhada dela em outros momentos, que pode ser mais rá pida ou mais lenta,
mais longa ou mais curta.

Como de praxe, essas três perspectivas se entrelaçam. Uma onda de movimento pressupõ e
dois pontos ou partículas está veis entre os quais o movimento ocorre. Reconhecemos uma
partícula em relaçã o a comparaçõ es com outras partículas distintas, usando assim
relacionamentos e evocando a perspectiva de campo. A perspectiva de campo, ao
considerar relaçõ es, pressupõ e partículas entre as quais as relaçõ es existem. As relaçõ es
podem sofrer mudanças, e a ideia de mudança pressupõ e a perspectiva de onda.

Todas essas complexidades na caminhada mostram a sabedoria de Deus, pela qual ele cria
uma complexidade que se encaixa harmoniosamente em unidades.
 
 
A tríade de Frame para a ética
 

A seguir, podemos aplicar a tríade de Frame para a ética à caminhada. Primeiro, usamos a
perspectiva normativa. A capacidade de caminhar é uma dá diva de Deus, pela qual devemos
louvá -lo. A palavra devemos aqui indica uma avaliaçã o normativa. Se nos comprometemos a
encontrar alguém, temos a obrigaçã o de estar lá , e caminhar pode ser uma forma de
cumprirmos essa obrigaçã o. Temos a obrigaçã o de cuidar do nosso corpo (inferida de 1Co
6.19; Ef 5.29; 1Tim 5.23), e caminhar como exercício pode ser uma forma de cumprirmos a
obrigaçã o.

Usando a perspectiva situacional, enfocamos a situaçã o de caminhar. Antes de iniciar uma


caminhada, talvez tenhamos de considerar se a vizinhança é segura. Será que o tempo
permite uma caminhada? Devemos nos agasalhar ou usar roupas leves, dependendo da
temperatura e do vento?

A perspectiva existencial se concentra nos motivos. Podemos caminhar porque somos


faná ticos por condicionamento físico e porque isso assumiu proporçõ es idó latras em nossa
vida. Por outro lado, podemos nos recusar a caminhar, ainda que precisemos de exercícios,
porque somos preguiçosos demais ou preocupados demais com outras coisas. Podemos
caminhar porque amamos ar livre e louvamos a Deus por isso. Podemos caminhar e louvar
a Deus por causa da sensaçã o de relaxamento ou bem-estar que obtemos ao caminhar.
Podemos caminhar porque amamos ar livre e louvamos o que consideramos ser uma
natureza impessoal, ou “Mã e Natureza”. Talvez caminhemos para servir ao ídolo do eu, pois
queremos ter um corpo atraente para receber admiraçã o. Podemos ter bons ou maus
motivos por baixo do que parece ser o mesmo tipo de atividade.
 
 
A poesia da caminhada
 
A palavra caminhar pode ser usada metaforicamente. Na English Standard Version a
[126]

palavra ocorre 26 vezes dentro das cartas do Novo Testamento, e em quase todas essas
ocorrências funciona como uma metá fora para a vida cristã . Por exemplo:
Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre
os mortos pela gló ria do Pai, assim também andemos nó s em novidade de vida. (Rm 6.4).
 
…a fim de que o preceito da lei se cumprisse em nó s, que nã o andamos segundo a carne, mas segundo o
Espírito. (Rm 8.4)
 
Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne. (Gl 5.16)
 

Podemos encontrar ideias semelhantes no livro de Provérbios, à s vezes com a palavra


caminho ou vereda :
 
Filho meu, não te ponhas a caminho com eles [os malfeitores]; guarda das suas veredas os pés . (Pv
1.15)
 

Salmos 1 começa com a bênçã o:


 
Bem-aventurado o homem que nã o anda no conselho dos ímpios. (Sl 1.1)
 

No livro de Atos, o cristianismo é descrito como “o Caminho”:


 
Visto que alguns deles se mostravam empedernidos e descrentes, falando mal do Caminho diante da
multidã o. (At 19.9)
 
Por esse tempo, houve grande alvoroço acerca do Caminho . (At 19.23)
 
Porém confesso-te que, segundo o Caminho , a que chamam seita, assim eu sirvo ao Deus de nossos
pais. (At 24.14)
 
Entã o, Félix, conhecendo mais acuradamente as coisas com respeito ao Caminho , adiou a causa. (At
24.22)
 

A vida cristã é como um caminhar. Ela tem um padrã o regular. Metaforicamente, segue um
“caminho” ou “vereda”, a vereda da justiça. Ela acontece pela energia, a energia do Espírito
Santo (“ andar no Espírito” — conforme Gl 5.16). Nó s que pertencemos a Cristo devemos
prestar atençã o em como agimos para nos certificar de que continuamos na direçã o certa,
seguindo a Cristo. Por outro lado, a metá fora da caminhada sugere que nã o estamos
autoconscientemente atentos a todo o momento. Depois de termos sido cristã os por um
tempo, continuamos a seguir os padrõ es e há bitos que já se desenvolveram em nó s em
prá ticas anteriores de justiça. Podemos orar, ler nossa Bíblia, servir aos outros e ir à igreja
regularmente. A caminhada continua ao longo do tempo — na verdade, em toda a nossa
vida na Terra, subsequentemente à nossa vinda inicial ao Caminho.

Assim, o movimento físico com atençã o e empenho na forma da caminhada se torna uma
metá fora para o movimento espiritual, a atividade espiritual. Além disso, para um cristã o a
caminhada física também se torna uma caminhada espiritual! Toda atividade, incluindo
toda atividade física, deve ter como sua motivaçã o mais profunda o seguir a Cristo.

Quando nos movemos através de localizaçõ es espaciais, realizamos uma das coisas mais
bá sicas e elementares que os seres humanos fazem. É adequado que essa açã o bá sica
expresse nossa lealdade a Cristo e se torne entã o um quadro para todas as açõ es. Dissemos
que a “caminhada” cristã é uma metá fora, mas também podemos vê-la como uma
sinédoque, isto é, como uma parte para o todo. A caminhada física é uma atividade entre
muitas. É uma parte da vida. Representa todo o viver. Mesmo quando estamos caminhando
fisicamente para exercício, podemos usar o tempo para orar ou louvar a Deus, ou para fazer
planos piedosos, ou apenas para apreciar o senso de movimento e ritmo que Deus nos dá
na experiência.

Podemos ver ainda mais conexõ es entre o caminhar e as realidades centrais da fé cristã . 1
Pedro 2.21 nos diz que somos chamados a sofrer com paciência, “pois que também Cristo
sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos”. A linguagem
sobre seguir “os seus passos” está pró xima da metá fora da caminhada. Devemos andar
como Cristo andou. É claro, Cristo nã o apenas deu um exemplo. Ele carregou os nossos
pecados, e ninguém mais pode fazer isso (1Pe 2.24). Ele é mais que um exemplo, mas nunca
menos que isso.

Portanto, podemos considerar a pró pria “caminhada” de Cristo enquanto ele esteve na
Terra. Cristo andou fisicamente pela Palestina. As pessoas o seguiam em volta. Os doze
discípulos o seguiram fisicamente. Ao fazê-lo, ampliaram a oportunidade de comunhã o
pessoal, e essa comunhã o solidificou seu conhecimento de Cristo e sua imitaçã o dele. Ou
pelo menos deveria. Os discípulos nã o compreenderam plenamente Cristo nem suas obras
até o Espírito Santo ter vindo sobre eles (Jo 13.7; 16.13,25).

A metá fora da caminhada nã o ocorre apenas no Novo Testamento, mas também no Antigo.
Por exemplo, Provérbios 2.20 diz acerca da pessoa que segue a sabedoria:
 
Assim, andarás pelo caminho dos homens de bem e guardará s as veredas dos justos.
 

Jesus Cristo cumpre perfeitamente essa descriçã o do Antigo Testamento. Ele cumpre de
maneira ú nica esse papel do homem justo de Salmos 1, que nã o “ anda no conselho dos
ímpios” (1.1). Assim, exatamente como na “caminhada” cristã , podemos correlacionar a
caminhada física de Cristo de um lugar para outro na Palestina com uma caminhada
espiritual no caminho da justiça.

No sentido amplo e metafó rico, toda a vida de Cristo na Terra foi uma “caminhada”. Deus
Pai enviou seu Filho no poder do Espírito Santo para realizar e desenvolver na Terra
exatamente essa caminhada (Mt. 3.17; Lc 4.16). A caminhada de Cristo é um exemplo para a
caminhada do cristã o, seguindo “os seus passos” (1Pe 2.21). Sua caminhada também
resultou em um feito ú nico de obediência, levando à sua ressurreiçã o. Sua morte e
ressurreiçã o, como a meta de sua “caminhada” na Terra, nos outorgou perdã o, justificaçã o
e vida nova.
 
[Cristo] foi entregue por causa das nossas transgressõ es e ressuscitou por causa da nossa justificação.
(Rm 4.25)
 
Se, porém, Cristo está em vó s, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito é
vida , por causa da justiça. Se habita em vó s o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os
mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso corpo
mortal, por meio do seu Espírito , que em vó s habita. (Rm 8.10-11)
 

A caminhada cristã tem uma base trinitá ria. Nossa caminhada é planejada, ordenada e
comandada por Deus o Pai: “Pois somos feitura dele [de Deus], criados em Cristo Jesus para
boas obras, as quais Deus de antemã o preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10).
Nossa caminhada ocorre segundo o padrã o de Deus Filho em sua encarnaçã o: “Fomos, pois,
sepultados com ele [Cristo] na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado
dentre os mortos pela gló ria do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida” (Rm
6.4). Nossa caminhada se dá quando somos capacitados pelo Espírito Santo, que é o
Espírito de Cristo enviado do Pai: “Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito ”
(Gl 5.25).

Visto que Cristo revela Deus de maneira ú nica e culminante, podemos inferir que sua
caminhada na Terra ocorre como uma manifestaçã o da vida eterna que o Filho compartilha
com o Pai no Espírito Santo. A vida de Cristo na Terra manifesta a vida do eterno Filho com
o Pai. Sua vida na Terra é uma caminhada . Podemos entã o dizer que a vida do pró prio Deus
é uma “caminhada”?

Nã o acho que funcione aplicar a palavra caminhar à existência eterna de Deus. Quando a
palavra caminhar descreve uma caminhada física, implica mudança de localizaçã o. Deus
preenche o universo em vez de estar “localizado”. Quando usada metaforicamente, a
palavra caminhar sugere mover-se e progredir em direçã o a um objetivo. Esse tipo de
descriçã o é adequado para a açã o humana no mundo e serve para Cristo como uma pessoa
encarnada e que possui uma natureza humana. Mas Deus em sua existência eterna nã o
precisa “alcançar” nada.

Contudo, podemos ver que a vida humana na Terra imita em alguns aspectos, no nível da
criatura, a vida eterna de Deus. Deus é o Deus vivo. Ele é eternamente ativo no amor, uma
vez que as pessoas da Trindade amam umas à s outras. Devemos evitar sugerir que o amor
de Deus é uma “conquista” ou “objetivo”, como se implicasse que um aspecto da plenitude
de ser Deus é ele nem sempre ter amado. Seu amor é uma atividade eterna. Nó s imitamos
essa atividade eterna no nível de criaturas quando crescemos no exercício do amor. Para
nó s, como criaturas, o amor em sua plenitude é um objetivo que ainda nã o alcançamos.

Além disso, uma caminhada na Terra ocorre em um ambiente. Viajamos do ponto A para o
ponto B. E viajamos por um caminho. Tanto os pontos finais quanto o caminho sã o externos
à pessoa que está empreendendo a caminhada. Mas antes da criaçã o do mundo, Deus nã o
tinha nada “externo” a si para servir como pontos finais ou como caminho.

Usando uma analogia com o caminho físico, Provérbios indica que o caminho na Terra é “a
vereda da justiça”, onde está a vida: “Na vereda da justiça, está a vida” (Pv 12.28). A vereda
da justiça na Terra obviamente reflete Deus, que é justo. O caminho da vida reflete Deus,
que é vida, vida eterna. O Filho, como a imagem eterna do Pai, manifesta a justiça e a vida.
Ele o faz na presença do Pai desde toda a eternidade, e entã o o faz na Terra em sua vida
terrena como o Deus encarnado.

Assim, a caminhada de Cristo na Terra reflete a vida original e a justiça de Deus, as quais
pertencem a Deus Pai, sã o manifestas no Filho e caracterizam o Espírito como vida (Rm
8.10). Deus nã o precisa de um ambiente criado para expressar a justiça. Ele vive e age no
“ambiente” que é o pró prio Deus. O Pai vive e ama no Espírito no caminho da justiça, e a
justiça da qual falamos consiste no Filho, que é a imagem do Pai. Essa é a açã o divina
arquetípa segundo a qual Deus molda nossa caminhada cristã . A caminhada cristã ocorre
num ambiente criado, consistindo de outros seres humanos e dos desafios das situaçõ es.
Também ocorre no “ambiente” de Deus — Deus plano do Pai, Deus padrã o do Filho e Deus
poder do Espírito. Deus tem comunhã o conosco, assim como Cristo tinha comunhã o com os
discípulos no caminho de Emaú s quando andaram com ele (Lc 24.15,28).

Deus promete andar conosco:


 
Andarei entre vó s e serei o vosso Deus, e vó s sereis o meu povo. (Lv 26.12)
 
… como ele pró prio disse: Habitarei e andarei entre eles; serei o seu Deus, e eles serã o o meu povo.
(2Co 6.16)
 

Nossa caminhada espiritual tem dimensõ es corporativas. Andamos com Deus entre nó s e
andamos com outras pessoas. Encontramos um tipo de prenú ncio dessa caminhada na
jornada do povo de Israel através do deserto (1Co 10.6,11). Andamos com Deus e também
com todos quantos pertencem a Cristo na comunhã o do seu corpo. Nó s os encorajamos em
sua caminhada, e eles nos encorajam (Rm 1.11-12; 1Ts 5.14).

Afora a pró pria Bíblia, o maior clá ssico cristã o de todos os tempos é sem dú vida O
progresso do peregrino , de John Bunyan. Toda a narrativa tem uma estrutura baseada na
analogia entre a vida cristã e a caminhada em peregrinaçã o. A peregrinaçã o começa para o
protagonista “Cristã o” na “Cidade da Destruiçã o” e termina na “Cidade Celestial”. O
peregrino cristã o caminha de A para B. A histó ria de Bunyan se baseia na analogia bíblica
da caminhada.

Desde o princípio Deus planejou que a caminhada física teria uma relaçã o analó gica (ou
relaçã o de sinédoque) com a vida. A analogia remonta ao pró prio Deus. Deus é justo, e a
autoridade de sua justiça determina o caminho de sua açã o. Deus vive e age com propó sito.
O cará ter de Deus serve como fundamento e arquétipo tanto para a vida humana como um
todo quanto para a prá tica do caminhar físico. Portanto, as relaçõ es metafó ricas na
caminhada nã o sã o menos “reais” do que outras aná lises perspectivas.
 
 
A tríade do senhorio de Frame
 
A seguir, usemos a tríade do senhorio de Frame: autoridade, controle e presença. O Senhor
Deus tem autoridade para prescrever a maneira da caminhada cristã e sua vereda. Ele tem
controle para capacitar o cristã o a realizar sua caminhada. Deus está presente ao caminhar
conosco, como acabamos de observar. Ou podemos modificar a imagem para dizer que o
Espírito Santo habita em nó s, expressando a presença de Deus em nó s (veja Jo 14.23) e é
quem nos dá poder (At 1.8; Gl 5.22-23) e nos guia com autoridade (Jo 16.13).

Também podemos aplicar a tríade de Frame à caminhada física. Deus expressa sua
autoridade em suas palavras de criaçã o e comando, que especificam a natureza da
caminhada humana. Deus expressa seu controle ao criar cada um de nó s, dando a cada um
o poder de andar e capacitando cada passo. Deus expressa sua presença ao sustentar cada
um de nó s enquanto caminhamos: “pois nele vivemos, e nos movemos , e existimos” (At
17.28).
 
 
Perspectivas científicas
 
Podemos analisar a caminhada a partir de uma série de perspectivas científicas. Como no
caso da maçã , essas perspectivas nos convidam a considerar detalhes técnicos.

Considere uma perspectiva quantitativa. Os seres humanos têm dois pés. Uma caminhada
consiste numa sequência no tempo, na qual o pé 1 e o pé 2 sã o movimentados um apó s o
outro. Temos assim um padrã o numérico (veja a figura 4).

Podemos contar o nú mero total de passos numa caminhada específica. Também podemos
contar os batimentos cardíacos que acompanham a caminhada.

Usando a perspectiva espacial, podemos descrever as posiçõ es espaciais de todas as partes


da vereda da caminhada. Podemos também descrever os movimentos tridimensionais de
cada braço, cada perna e cada pé e da rotaçã o dos quadris. Podemos descrever o
movimento dos olhos também.
Usando uma perspectiva física, podemos analisar a mecâ nica do mú sculo e do osso nos
movimentos de uma caminhada, a energia gasta durante a caminhada, as forças sobre o
pavimento e as forças sobre os vá rios mú sculos e articulaçõ es.

Usando a perspectiva da química, bioquímica e da biologia molecular, podemos estudar o


metabolismo molecular que libera a energia química do açú car para o uso dos mú sculos, a
conversã o de amido e gordura em açú car, a difusã o de oxigênio para as células musculares,
a eliminaçã o de dió xido de carbono e as reaçõ es químicas de nível molecular que ocorrem
nas células musculares individuais.

Também podemos estudar, da perspectiva da neurologia e fisiologia, a interaçã o de nervos,


mú sculos e ossos e o papel da percepçã o visual, do equilíbrio e da cinestesia na caminhada.
E podemos consultar especialistas em treinamento físico.

Considerando aspectos socioló gicos da caminhada, podemos estudar por que as pessoas
caminham, as percepçõ es sociais do valor do exercício e a interaçã o social durante
caminhadas que envolvem duas ou mais pessoas.

Podemos considerar a dimensã o econô mica, como a venda de roupas de exercício ou a


relaçã o da caminhada com a saú de e a economia da saú de, incluindo as despesas com a
recuperaçã o de lesõ es que afetam a caminhada.

Podemos até considerar a dimensã o legal da caminhada. É ilegal caminhar em muitas


rodovias principais. É legal na maioria das outras circunstâ ncias, mas atravessar fora da
faixa pode ser proibido. É ilegal caminhar em lugares que você está invadindo — embora o
ilegal nã o seja a caminhada em si, mas o fato de ter se metido na propriedade de outra
pessoa.

Assim como no caso da maçã , podemos observar que as perspectivas científicas, ao


enfocarem padrõ es gerais, podem fornecer informaçõ es ú teis e poderosas — neste caso,
informaçõ es ú teis para a saú de humana e o desenvolvimento humano. As generalidades
nos ajudam porque cada nova pessoa nã o precisa partir do zero para aprender a caminhar,
e o aprendizado mais técnico pode nos ajudar a melhorar.

As vá rias ciências nos dã o perspectivas — mú ltiplas perspectivas. Mas o mesmo acontece


com a vida comum. Deus ordena todas as texturas que percebemos a partir de todas as
perspectivas. Elas sã o todas “reais”, e em certo sentido todas significativas, porque o
conhecimento de Deus sobre elas as torna significativas.

1
 
14. A metafísica de um marcador de página s
 
 

Como um terceiro exemplo de como uma metafísica multiperspectivista funciona, podemos


analisar algo tã o simples quanto um marcador de pá gina. Eu possuo vá rios marcadores de
pá ginas que foram artisticamente projetados. Mas o marcador de pá ginas que tenho em
vista é simplesmente um cartã o de três por cinco polegadas que requisitei para esse
propó sito. Está fixado entre duas pá ginas de um livro específico que estou lendo
gradualmente.
Poderíamos percorrer a mesma lista de perspectivas que usamos nos dois capítulos
anteriores. Mas esperamos que os capítulos anteriores tenham fornecido exemplos
suficientes para muitas das perspectivas. Assim, vamos truncar nossa lista e considerar
apenas alguns.
 
 
Contraste, variação e distribuição
 

Primeiro consideramos contraste, variaçã o e distribuiçã o. Meu marcador de pá ginas


contrasta com outros objetos em minha mesa: o livro em si, canetas, panfletos, blocos de
anotaçõ es, assim como outros cartõ es de três por cinco polegadas usados para fazer
anotaçõ es. Podemos considerar a variaçã o ao longo do tempo. Com o tempo, meu marcador
de pá ginas começa a mostrar sinais de desgaste. Posso fazer nele anotaçõ es sobre o livro
que estou lendo. A adiçã o de escritos muda sua aparência — ele varia na aparência. O
cartã o de três por cinco polegadas varia na aparência dependendo do â ngulo em que olho
para ele. Se está dentro de um livro fechado, varia na aparência dependendo do quanto
sobressai à borda das pá ginas.

Se nos concentramos na classe de marcador de pá ginas em vez de no meu marcador de


pá ginas pessoal, encontramos um contraste entre marcadores de pá ginas e outros objetos.
Temos variaçã o entre os diferentes tipos de marcador de pá ginas. Alguns marcadores de
pá ginas sã o projetados especificamente — por exemplo, os marcadores de pá ginas
“artisticamente desenhados” que tenho em casa. Outros marcadores de pá ginas, entre os
quais meu cartã o de três por cinco polegadas, sã o objetos “requisitados” para essa funçã o,
mesmo nã o tendo sido originalmente projetados com esse propó sito especialmente em
mente. O pró prio termo marcador de páginas evidencia uma gama de usos aqui. Por um
lado, uma variedade artisticamente desenhada é chamada de marcador de pá ginas, ainda
que nã o esteja funcionando para marcar um lugar de um livro. Meu cartã o de três por cinco
polegadas é um marcador de pá gina num segundo sentido, em que apenas é assim
chamado porque está funcionando atualmente como um marcador de pá gina. Suponha que
eu coloque uma caneta, um lá pis ou até mesmo uma pedra entre as pá ginas de um livro
para marcar o lugar em que interrompi a leitura. Alguém poderia ver e dizer: “O que é
isso?”. E eu corretamente diria: “Ah, é o meu marcador de pá ginas”, significando que o
objeto está temporariamente funcionando como um marcador de pá ginas.

Suponha agora que tenho meu livro aberto e o viro para baixo na cadeira para manter o
lugar aberto enquanto saio brevemente. A cadeira é o meu marcador de pá ginas? Esse uso
do termo marcador de páginas me pareceria imprová vel. Contudo, se eu voltar com um
amigo e meu amigo perguntar o que o livro está fazendo ali, poderei dizer: “Ah, é o meu
marcador de pá ginas”. Com isso nã o estou querendo dizer que a pró pria cadeira é o
marcador de pá ginas, mas sim que todo o conjunto está funcionando como um tipo de
marcador de pá ginas prá tico, ou substituto funcional de um objeto físico que normalmente
teria o papel de um marcador de pá ginas.

Um marcador de pá ginas funcional nã o é necessariamente um objeto físico. Pode ser um


pequeno objeto físico ou algum outro meio de marcar uma pá gina dentro de um livro.
Geralmente fazemos isso inserindo um pequeno objeto entre as duas pá ginas. Mas temos
alternativas. Algumas pessoas dobram o canto da pá gina para marcá -la. Uma pessoa pode
até pegar um livro e inseri-lo entre as pá ginas de outro, de modo que o primeiro livro
funciona como um marcador de pá ginas para o segundo.

Em seguida, considere a distribuiçã o. Meu marcador de pá ginas está distribuído como


membro de uma classe de substituição dentro da classe de todos os meus marcadores de
pá ginas, que por sua vez está incluído na classe de todos os marcadores de pá ginas que
qualquer um possui. Meu marcador de pá ginas está distribuído como parte de uma
sequência estrutural em relaçã o à s pá ginas do livro. Ele vem, digamos, apó s a pá gina 212 e
antes da pá gina 213. Meu marcador de pá ginas está distribuído como um ponto num sistema
quando olhamos para um sistema de mú ltiplas dimensõ es que classifica vá rios tamanhos e
desenhos de marca pá ginas e classifica outros apetrechos que interagem com livros.
 
 
A poesia de um marcador de páginas
 

Podemos encontrar “poesia” num marcador de pá ginas? E essa poesia representaria um


aspecto da natureza de um marcador de pá ginas? Um marcador de pá ginas nã o oferece um
começo particularmente promissor para fluxos de poesia eloquente. Mas ainda podemos
notar associaçõ es simbó licas. Um marcador de pá ginas como o meu cartã o de três por cinco
polegadas funciona para marcar a parte que estou lendo num livro; e seu significado como
marcador de pá ginas está vinculado à sua relaçã o com o livro e minha leitura.

Entã o podemos refletir sobre minha leitura. Eu li a porçã o do livro que precede o local do
marcador de pá ginas, e nã o li a parte que sucede esse local. Eu continuo a mover o
marcador de pá ginas à medida que prossigo a leitura. A leitura em si é uma espécie de
histó ria com começo, meio e fim. Eu estou no meio.

Figurativamente falando, estou numa jornada. A jornada me transporta fisicamente pelas


pá ginas do livro. Linguisticamente, a jornada me transporta pela impressã o e frases do
livro. Isso me transporta mentalmente e espiritualmente ao desdobramento de ideias e/ou
histó rias presentes no livro. Ao final da jornada terei chegado a um destino que pretendi de
antemã o — ter lido o livro. Também posso ter chegado mental ou espiritualmente a um
destino, em que cresci através da absorçã o das ideias ou histó rias presentes no livro. Minha
jornada no pensamento faz, por sua vez, parte da “jornada” maior que constitui minha vida.

Entã o, estamos agora considerando pelo menos duas jornadas: a jornada menor de ler o
livro e a jornada maior da vida. Dentro de cada uma dessas jornadas, o marcador de
pá ginas tem um papel. Ele marca o lugar onde atualmente estou. Esse “lugar” está entre o
passado e o futuro. O passado corresponde à parte do livro que já li e à s minhas memó rias
(no presente) dessa experiência de leitura. O futuro corresponde à parte do livro que ainda
nã o li, mas pretendo ler. Meu presente corresponde ao aspecto delgado do pró prio
marcador de pá ginas. Mas esse aspecto delgado tem uma relaçã o com o passado e o futuro.

Em suma, as relaçõ es temporais em minha vida mapeiam as relaçõ es espaciais entre o


marcador de pá ginas e as pá ginas do livro. O marcador de pá ginas em si funciona como a
perspectiva existencial de Frame. Ele (o marcador de pá ginas) é eu, habitando no presente,
e que pensa no passado, presente e futuro e no domínio de Deus sobre os estes. O marcador
de pá ginas representa metaforicamente eu e as minhas relaçõ es. Como estamos falando de
analogias ou relaçõ es metafó ricas, podemos até nos aventurar a sugerir que, por analogia,
comparamos Deus com o autor do livro. Deus “escreveu” de antemã o a totalidade da minha
vida e até mesmo a totalidade da histó ria em seu “livro”, isto é, seu plano — que inclui
(como livros menores) a vida e o destino de todos os seres humanos na Terra (Ap 17.8;
20.12). Deus conhece toda a histó ria e também sabe minha localizaçã o atual na histó ria.

As pessoas podem reagir dizendo que essa minha comparaçã o é talvez pitoresca ou
interessante em seus pró prios termos, mas é uma invenção minha . Nã o tem realmente
nada a ver com o meu marcador de pá ginas, mas apenas com o que, em minha imaginaçã o,
faço do marcador de pá ginas. Transformo-o num símbolo da vida, do tempo, da memó ria e
da relaçã o de Deus com a minha vida.

Sim, de certo modo “fiz” a conexã o simbó lica. Eu a “criei” de uma certa maneira. Todo ser
humano tem uma criatividade, que é aná loga à criatividade original de Deus. Deus criou o
mundo e também poderia ter criado outros mundos. Nã o somos Deus e nã o podemos
literalmente criar um mundo, mas podemos imaginar um mundo. E podemos
imaginativamente “criar” significado ou significâ ncia dentro do mundo por meio de
associaçõ es criativas, como a que existe entre o meu marcador de pá ginas e minha vida.

Mas será que a minha criatividade pegou Deus de surpresa? Claro que nã o. Minha
criatividade é uma dá diva de Deus. Ele pensou meus pensamentos antes que eu o fizesse.
Como enfatizamos, Deus projetou o mundo e a histó ria do mundo ao nível de cada
particularidade. Ele nã o meramente projetou suas características gerais. Ele projetou a
associaçã o entre meu marcador de pá ginas e minha vida. Assim, em certo sentido, nã o
“criei” nada. Apenas vi o que estava aí, algo que nã o tinha visto antes. A realidade completa
do meu marcador de pá ginas inclui tudo o que Deus especificou sobre ele. Essa realidade
inclui a relaçã o entre meu marcador de pá ginas e minha vida, da forma como a percebi. Fiz
minhas observaçõ es sobre a relaçã o entre meu marcador de pá ginas e a vida porque Deus,
em primeiro lugar, antes do meu entendimento, criou um mundo no qual inseriu
planejadamente uma infinidade de analogias. Em outras palavras, percebi a analogia
porque ele fez uma analogia. O tempo e a histó ria pertencem ao cará ter do mundo. [127]

(Para mais aná lises sobre o marcador de pá ginas, veja o apêndice C.)

1
 

15. Perspectivas em combinação


 
 

Analisamos até agora três unidades da experiência humana: minha maçã , a caminhada de
Suelen e meu marcador de pá ginas. Todos os três podem ser analisados a partir de
mú ltiplas perspectivas.
 
 
O acrônimo CEAR
 

Também podemos contemplar categorias muito amplas nas quais essas unidades se
incluem. Uma abordagem na semâ ntica distingue quatro tipos diferentes de entidades:
coisas (“objetos”), eventos, abstratos e relaçõ es. O acrô nimo CEAR resume as quatro
categorias. Usando essa categorizaçã o, a maçã é uma coisa (C). A caminhada de Suelen é
[128]

um evento (E). Meu marcador de pá ginas é uma coisa (C), mas quando levamos em conta
sua funçã o, o significado do marcador de pá ginas está nas relaçõ es (R) com as pá ginas em
torno.

À primeira vista essas categorias podem parecer resultar em uma classificaçã o clara. Mas
uma reflexã o mais aprofundada mostra que funcionam um pouco como perspectivas. Por
exemplo, poderíamos nos perguntar o que é o amor. À primeira vista poderíamos
argumentar que é um abstrato ou uma relaçã o — se Alexandre ama Donna, Alexandre tem
uma relaçã o com Donna. Mas conhecemos o amor em parte pelo fato de as pessoas
expressarem amor em açõ es. Quando Jesus diz “amai os vossos inimigos” (Mt 5.44), nã o
quer dizer basicamente que devemos ter sentimentos calorosos de afeiçã o por eles.
Devemos orar por eles e lhes fazer o bem, e essas sã o atividades — “eventos”, na
classificaçã o CEAR. Além disso, a Bíblia diz que Deus é amor (1Jo 4.8,16). Assim, como essa
formulaçã o, o amor é uma pessoa — C na classificaçã o CEAR. Deus é a origem de todo amor
humano.
Além disso, a classificaçã o CEAR tem uma relaçã o estreita com uma tríade anterior — as
perspectivas de partícula, onda e campo. A perspectiva de partícula trata as unidades de
maneira semelhante a coisas. Faz isso nã o apenas com a minha maçã , que prontamente
classificamos como uma coisa, mas também com a caminhada de Suelen, que é um evento, e
com a relaçã o do marcador de pá ginas com o livro. Assim também, a perspectiva de onda
trata unidades como eventos que se desenvolvem no tempo. Minha maçã amadurece com o
tempo ou é comida, e quando nos concentramos nesse desenvolvimento ondulató rio, é
como se estivéssemos tratando a maçã como um evento — o evento do amadurecimento ou
o evento de ser fragmentada quando comida. Finalmente, a perspectiva de campo trata as
unidades como relacionais.
 
Minha maçã como uma perspectiva
 

Vamos agora expandir nossas aná lises anteriores de uma maçã , uma caminhada e um
marcador de pá ginas em perspectivas. Nossas reflexõ es anteriores sobre a significâ ncia
“poética” chegaram perto de criar novas perspectivas. Podemos usar minha maçã como o
ponto de partida de uma perspectiva sobre o mundo inteiro. Como? Ao considerar a poesia
da minha maçã , observamos que minha maçã pode ter simbolicamente a conotaçã o do
amor entre marido e esposa. O amor entre marido e esposa, por sua vez, conota o amor
entre Cristo e sua igreja. Esse amor se origina do amor entre as pessoas da Trindade. Deus
é amor. Toda a criaçã o e toda a histó ria expressam o amor divino.

Minha esposa comprou minha maçã no supermercado. Mas em ú ltima aná lise a maçã veio
de Deus. Ele a deu para mim. Por quê? Porque ele me ama. Minha maçã me dá uma
expressã o particular do amor que Deus mostra através do governo de Cristo em todo o
mundo (Hb 1.3). Entã o, quando entendo o significado da minha maçã , ela oferece uma
perspectiva sobre todo o mundo.

Alguém — nã o sei se era um poeta ou filó sofo — certa vez disse que se pudesse realmente
entender um objeto, entenderia o mundo. Em certo sentido isso é verdade. Mas precisamos
acrescentar dois esclarecimentos. Primeiro, o que o poeta ou filó sofo expressa como mera
possibilidade de entendimento se torna uma realidade quando passamos a conhecer Deus
por meio de Cristo. A maçã expressa a bondade de Deus e o amor de Deus em Cristo, um
amor que constitui tanto o fundamento para o mundo quanto o seu destino (Ef 1.10). Ao
entender a maçã em relaçã o a Deus, entendemos todas as coisas. Em segundo lugar, nosso
entendimento de Deus nunca se torna uma compreensão — nã o entendemos Deus
completamente nem entendemos minha maçã de maneira abrangente, no sentido mais
elementar.
 
 
A caminhada de Suelen como uma perspectiva
Da mesma forma, a caminhada de Suelen nos oferece uma perspectiva sobre Deus e o
mundo. Caminhar se torna uma metá fora para a caminhada cristã . A caminhada cristã
engloba toda a vida. Quer uma pessoa seja cristã , quer nã o, ela “caminha” pela vida. Em
toda a histó ria, a raça humana “caminha” desde os seus primó rdios até sua consumaçã o.
Além disso, até as açõ es de Deus podem ser interpretadas como uma “caminhada”, se
qualificarmos a palavra caminhar para indicar que Deus nã o precisa de um ambiente
externo a si para agir.
 
 
Meu marcador de páginas como uma perspectiva
 

Por fim, meu marcador de pá ginas pode servir como uma perspectiva sobre todas as coisas
quando usamos a analogia entre a posiçã o dele no livro e minha posiçã o na minha vida. A
raça humana como um todo tem uma histó ria, e encontramo-nos agora em um certo ponto
nessa histó ria.

Poderia o meu marcador de pá ginas servir como uma perspectiva até mesmo sobre Deus?
Deus nã o está sujeito à s limitaçõ es do tempo. Antes, sua atividade na criaçã o e providência
constitui o cará ter do tempo tal como o experimentamos. Nossa vida e nossa histó ria
acontecem por causa dos relacionamentos fundacionais existentes no pró prio Deus. Se
podemos simplificar, podemos dizer que Deus Pai é o originador em relaçã o a Deus Filho
como o executor, e em relaçã o ao Espírito Santo como o consumador. Todas as três pessoas
da Trindade realizam atos no tempo através de sua comunhã o umas com as outras, uma
comunhã o que é relacional . A relacionalidade arquetípica de Deus é o fundamento para
nossa relacionalidade ectípica, que é expressa na relaçã o entre nossa execuçã o humana da
tarefa de leitura até o ponto em que o marca pá gina reside, nossa visã o da origem da nossa
leitura no passado com o início do livro e nossa visã o do objetivo da leitura no futuro
quando terminarmos o livro. A açã o eterna de Deus no Pai gerando o Filho estabelece o
fundamento para as açõ es de Deus no tempo à medida que produz eventos no mundo que
ele criou. Nó s o imitamos quando lemos um livro e usamos um marcador de pá ginas.
 
Combinando duas perspectivas: uma maçã e uma caminhada
 

Se a minha maçã oferece uma perspectiva e a caminhada de Suelen oferece outra, também
podemos explorar a combinaçã o das perspectivas. Cada uma oferece uma perspectiva
sobre a outra. Podemos aprofundar nossa compreensã o olhando uma pelos olhos da outra.
Consideremos como poderíamos fazer isso com a minha maçã e a caminhada de Suelen.
[129]

Perspectivamente falando, minha maçã simboliza o amor. A caminhada de Suelen simboliza


a caminhada cristã . Nossa caminhada deve ser caracterizada pelo amor: “e andai em amor ,
como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nó s, como oferta e sacrifício a
Deus” (Ef 5.2). A linguagem de andar em amor, em Efésios 5.2, leva diretamente a uma
comparaçã o com o amor de Cristo que era expresso em sua “caminhada” pelo tempo em
que esteve na Terra. O amor e o sacrifício de Cristo formam o cerne da redençã o, e nunca
esgotamos a importâ ncia deles. Assim, minha maçã e a caminhada de Suellen nos dã o uma
combinaçã o frutífera.

Quando dizemos que nossa caminhada deve ser caracterizada pelo amor, estamos vendo
nossa caminhada da perspectiva do amor. Por outro lado, podemos ver nosso amor da
perspectiva da nossa caminhada. O amor deve resultar em açã o: “Filhinhos, nã o amemos de
palavra, nem de língua, mas de fato e de verdade” (1Jo 3.18). Isso equivale a dizer que o
verdadeiro amor anda .

Pouco antes de 1 Joã o 3.18 a Escritura apela ao que Cristo fez: “Nisto conhecemos o amor:
que Cristo deu a sua vida por nó s; e devemos dar nossa vida pelos irmã os” (1Jo 3.16).
Entã o, assim como em Efésios 5.2, a obra de redençã o de Cristo estabelece o fundamento
para o nosso amor ser um amor que anda.

Tiago enfatiza a mesma realidade: “Tornai-vos, pois, praticantes da palavra e nã o somente


ouvintes, enganando-vos a vó s mesmos” (Tg 1.22). “Assim, também a fé, se nã o tiver obras ,
por si só está morta” (Tg 2.17).
 
 
Combinando três perspectivas: uma maçã, uma caminhada e um marca página
 

Se tivermos conseguido aprofundar nossa compreensã o de nó s mesmos e do mundo


através da combinaçã o de duas perspectivas, podemos acrescentar uma terceira. Um
marcador de pá ginas simboliza a relaçã o entre um plano no passado, a execuçã o no
presente e a realizaçã o de um objetivo no futuro. A caminhada cristã , assim como o andar
em amor, tem um passado, presente e futuro. Ela tem sua base na obra de Cristo em seu
sofrimento, morte e ressurreiçã o. É energizada no presente pelo dom do Espírito Santo.
Aguarda com expectativa a realizaçã o da comunhã o consumada com Deus no futuro:
 
… também nó s, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando
a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo. (Rm 8.23)
 
Porque, agora, vemos como em espelho, obscuramente; entã o, veremos face a face. (1Co 13.12)
 
Nunca mais haverá qualquer maldiçã o. Nela, estará o trono de Deus e do Cordeiro. Os seus servos o
servirã o, contemplarã o a sua face, e na sua fronte está o nome dele. Entã o, já nã o haverá noite, nem
precisam eles de luz de candeia, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e reinarã o
pelos séculos dos séculos. (Ap 22.3-5)
 

Agora estamos livres para andar em amor, para servir a Deus com nosso coraçã o, porque
Cristo nos libertou. Essa liberdade é denominada o aspecto “já ” da redençã o — o
“indicativo”, pois já aconteceu e o evangelho indicativamente declara que foi consumada. A
consumaçã o de Cristo pertence ao nosso passado. Deus nos move a andar em amor, nã o
apenas pelo passado, mas também com esperança pelo futuro, que é o aspecto “ainda nã o”
da redençã o. O futuro corresponde ao nosso “imperativo”, chamado assim por termos
diretivas e mandamentos imperativos nos impulsionando para o objetivo. Nosso futuro é
nosso objetivo. Tanto o passado quanto o futuro têm relaçõ es intrincadas com o nosso
presente. Nossa caminhada atual em amor é afetada por e recebe significado de sua relaçã o
com o passado e futuro dos propó sitos de Deus.
 
 
Múltiplas perspectivas
 

Podemos multiplicar ainda mais as perspectivas?

Em 2012 a populaçã o mundial era de cerca de sete bilhõ es de pessoas. Cada uma é ú nica.
Cada pessoa tem uma formaçã o ú nica e um conjunto ú nico de experiências, dons,
esperanças e temores. Cada pessoa tem sua pró pria “perspectiva” no sentido amplo da
palavra. Cada pessoa também encontra distorçõ es em seu ser e em seu pensamento por
causa do pecado. Se todos pudéssemos ser livres do pecado, como poderíamos combinar
perspectivas? Como seria aprender, e aprender, e aprender a partir do modo como outra
pessoa vê as coisas e do que sua jornada ou caminhada lhe mostra?

Esse aprendizado seria como aprender a partir dos quatro evangelhos juntos. Os quatro
evangelhos têm muito em comum. Mas cada um também tem algumas ênfases distintivas.
Entendidas corretamente, essas ênfases se harmonizam umas com as outras. Cada ênfase
aprofunda nosso conhecimento de e apreço por Cristo e sua obra. Tomados em conjunto,
eles nos dã o uma riqueza maior do que qualquer evangelho individualmente.

Assim também, as três perspectivas de Frame sobre ética operam em harmonia umas com
as outras. Cada perspectiva afirma as outras e leva à s outras. Se parecemos encontrar
desarmonia em vez de harmonia, temos de continuar trabalhando. Nã o devemos nos
resignar quando as peças nã o se encaixam. Definitivamente nã o devemos aceitar que duas
verdades possam se contradizer mutuamente.

Consideremos mais uma vez os sete bilhõ es de pessoas na Terra. Cada pessoa, em média,
usa vá rias perspectivas diferentes durante um dia. Estamos agora pensando em
perspectivas num sentido mais estrito. Uma ú nica pessoa pode ter uma perspectiva
orientada para o trabalho enquanto está no trabalho, uma perspectiva socialmente
orientada nas interaçõ es com amigos e familiares e uma perspectiva de alimentaçã o e
companheirismo durante as refeiçõ es. Quando combinamos essa multiplicidade com a
unicidade da pessoa, obtemos 20 bilhõ es ou mais de perspectivas. Quando duas pessoas
conversam e se ouvem com genuína simpatia, temos o potencial de 20 bilhõ es vezes 20
bilhõ es de combinaçõ es possíveis, o que representa 400 bilhõ es de perspectivas.

Quando duas pessoas passam a vida inteira explorando suas mú tuas perspectivas,
podemos cogitar reuni-las em grupos maiores. Quando dois se juntam a outros dois,
obtemos 16x10 perspectivas. É suficiente para você? Nã o é suficiente, pois a sabedoria de
13

Deus abrange muito mais do que isso.

Nã o suponhamos entã o que nesta vida um especulador filosó fico poderá dissolver os
mistérios e nos dizer de uma vez por todas o que a minha maçã realmente é. [130]
Refiro-me
à minha maçã Granny Smith de 2,5 polegadas de diâ metro, que se encontra com outras
numa sacola sobre minha mesa da cozinha, demonstrando-me o amor de minha esposa,
que por sua vez me mostra o amor da igreja, que me mostra o amor de Deus pelo seu povo.
O filó sofo nã o pode me fornecer o relato monoperspectivo ú nico, definitivo e final sobre a
minha maçã , pois nã o pode fornecer um relato final do amor de Deus. Consequentemente o
filó sofo também nã o pode me falar sobre as maçã s em geral, pois o universal está
entrelaçado com o particular de acordo com o padrã o divino do uno e do mú ltiplo. O
filó sofo nã o pode especificar as características das maçã s sem o entrelaçamento destas com
a minha maçã . E assim nã o pode especificá -la sem haver sondado as profundezas do amor
de Deus, uma expressã o do amor do Pai pelo Filho no Espírito Santo.

Contudo, pela graça comum, o especulador ainda pode nos dar alimento para reflexã o. Ele
oferece uma perspectiva e devemos respeitá -lo como um ser humano feito à imagem de
Deus.
 
 
Minha análise como uma entre muitas
 

Minha pró pria aná lise da metafísica oferece apenas uma aná lise possível dentre muitas.
Oferece uma perspectiva (no sentido amplo de perspectiva). Alguém outro — qualquer
uma das sete bilhõ es de pessoas na Terra — pode legitimamente ter sua pró pria
abordagem verdadeira. Isso nã o significa, todavia, que “vale tudo”. A verdade e o erro
contrastam entre si. Todas as pessoas devem buscar conhecer Deus, que é a verdade e
repudia o erro. Mas a verdade da mente de Deus é rica. Nã o buscamos uma identidade de
perspectiva, mas a lealdade à verdade, qualquer que seja a perspectiva que uma pessoa
tenha como ponto de partida.

1
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Parte 5
 
OUTRAS SUBDIVISÕES DA FILOSOFIA
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
16. Ética
 
 

Terminamos nossa investigaçã o da metafísica. E quanto à s demais subdivisõ es da filosofia?

Para abordar detalhadamente cada uma das subdivisõ es seriam necessá rios muitos livros.
Neste livro podemos apenas esboçar as implicaçõ es. Espero que esteja claro que a Bíblia
fornece recursos para superar toda a histó ria da filosofia secular.
Ao explorar a natureza do que existe, esclarecemos que a Bíblia tem recursos para fornecer
respostas satisfató rias. Deus nos diz que tipos de coisas existem. Deus, por sua palavra de
comando, cria e sustenta todas os tipos de criaturas em sua unidade e diversidade. Deus
por natureza é trinitá rio, e o mundo que ele criou tem unidade e diversidade entrelaçadas
entre si. O mundo por natureza traz a marca da sabedoria criativa de Deus e reflete a
tripersonalidade divina na multiplicidade de suas dimensõ es. O mundo especificado pelo
discurso multidimensional de Deus é ele pró prio adequado para a aná lise
multiperspectivista. A multiplicidade de maneiras nas quais o analisamos reflete a
multiplicidade perspectivista de maneiras nas quais Deus o especificou por meio de sua
fala.

Como de praxe, a metafísica — a maneira como o mundo é — tem implicaçõ es para outras
subdivisõ es da filosofia. Consideremos primeiramente a ética, que estuda a natureza do
certo e do errado.
 
 
Perspectivas sobre ética
 

Se a metafísica é multiperspectivista, o mesmo vale para a ética. O trabalho de John Frame


sobre ética nos fornece recursos. Seu livro A doutrina da vida cristã [131]
aborda
extensivamente a á rea da ética, incluindo a ética filosó fica. O livro interage com e critica os
principais sistemas de ética filosó fica, a saber, ética deontoló gica, ética utilitarista e ética
existencialista.

Ao abordar essas questõ es, o livro de Frame depende o tempo todo da Bíblia. Usando a
Bíblia, Frame é capaz de fornecer respostas diretas e baseadas na Bíblia. Deus é o Senhor
de todas as coisas. Tomadas em conjunto, sua natureza absoluta, sua bondade e sua justiça
sã o a fonte ú ltima para os padrõ es morais. Os seres humanos sã o feitos à sua imagem, e
assim, pelo plano de Deus, têm na consciência um senso de certo e errado morais. [132]

Desde a queda no pecado esse senso pode ser e é pervertido, suprimido e por outro lado
evitado. Mas ainda está lá . Deus também governa a histó ria, de modo que o comportamento
moralmente bom ou mau tem consequências. Porque Deus nos projetou, ele sabe o que é
melhor para nó s. Os verdadeiros padrõ es morais sã o encontrados no que Deus exige na
Bíblia.

Visto que Deus é a autoridade ú ltima para os padrõ es morais, ele fornece as normas para a
ética em sua palavra. O cará ter de Deus como nossa autoridade ú ltima fornece a base para a
perspectiva normativa. A palavra de Deus fornece instruçõ es abundantes, de modo que nã o
precisamos permanecer em dú vida no tocante a respostas a questõ es éticas fundamentais,
como se o roubo é errado e por quê. Sabemos que roubar é errado porque Deus diz isso. E
sabemos por que é errado — porque viola o mandamento de Deus de nã o roubar.

Visto que Deus criou o mundo e o governa, ele também fornece a situaçã o em que vivemos.
Deus, portanto, fornece uma base para a perspectiva situacional, que se concentra nas
circunstâ ncias que nos rodeiam. De uma perspectiva situacional, podemos dar razõ es
adicionais por que faz sentido dizer que roubar é errado. Deus criou um mundo no qual a
obediência aos seus mandamentos leva à bênçã o. Um indivíduo que se abstém de roubar se
livra da responsabilidade pelo roubo, se livra de uma consciência culpada e se livra da
puniçã o que receberá se for apanhado (ou da puniçã o na vida por vir, ainda que nã o seja
apanhado nesta vida).

Nã o só o indivíduo; a sociedade também se beneficia. Uma sociedade cujos membros se


abstenham de roubar evitam a raiva, brigas, maus sentimentos, destruiçã o de propriedades
e outras consequências que o roubo tende a produzir. Essa sociedade floresce, e as pessoas
nela florescem. Elas recebem bênçã os de Deus, tanto diretamente no sentido do prazer
divino como indiretamente através de uma prosperidade material adicional.

Por fim, Deus nos criou como seres humanos que têm uma consciência e um senso de certo
e errado. Deus, portanto, fornece a base para a perspectiva existencial. Essa perspectiva nos
alerta para outras razõ es por que o roubo é errado. É errado porque nossa consciência nos
diz que é errado. Claro, nossa consciência pode estar corrompida pelo pecado e, portanto,
nã o fornece uma autoridade ú ltima. A autoridade ú ltima pertence a Deus. Uma perspectiva
existencial cristã é capaz de explicar como o senso interno de certo e errado das pessoas
contribui para a ética. Ao mesmo tempo, evita reduzir a ética aos padrõ es da consciência
humana, o que levaria ao relativismo.

Em suma, as três perspectivas de Frame para a ética — as perspectivas normativa,


situacional e existencial — trabalham juntas porque se harmonizam de acordo com o plano
de Deus. Deus ordenou todas as três através de seu controle sobre as normas, situaçõ es e
pessoas humanas. Também nos deu a capacidade, como seres humanos, de pensar sobre e
apreciar todas as três perspectivas. Podemos fazer isso porque Deus nos criou à sua
imagem. As três perspectivas se harmonizam se as usarmos adequadamente, em comunhã o
com Deus e com um apreço pela maneira na qual Deus as projetou para se entrelaçarem.

Dentro de uma abordagem baseada na Bíblia, essas três perspectivas sã o sobre o mesmo
todo. Cada uma leva à s outras. Cada uma implica as outras e cada uma pressupõ e as outras.

 
Ética não cristã
 
Em contraste, a ética filosó fica secular se encontra em enigmas. A ética deontoló gica é uma
espécie de versã o secular da perspectiva normativa. Ela se concentra em normas
transcendentes para o comportamento ético. Uma dessas normas poderia ser que você
deve fazer aos outros o que quer que façam a você. Por exemplo, você nã o deve roubar
porque nã o quer que os outros o roubem.

Mas quando essa perspectiva é desatrelada do Deus que a deu, sua conexã o com as pessoas
humanas e com a perspectiva existencial tende a se desintegrar. Por que nó s, seres
humanos, temos alguma conexã o com essas supostas normas? Por que eu deveria me
comprometer com o princípio de nã o roubar ou com o princípio mais geral de fazer aos
outros o que quero que façam a mim? Por que nã o ser, em vez disso, egoísta? Por que nã o
roubar, se puder me safar? E se alguém rouba de mim, por que nã o ir atrá s alegando o
egoísmo e nã o um princípio geral de que roubar é errado? E por que deveríamos pensar
que as normas têm alguma conexã o com a nossa situaçã o?

A ética utilitarista (e mais amplamente a ética teleoló gica, isto é, a ética baseada em
objetivos) é uma espécie de distorçã o secularizada da perspectiva situacional. A ética
utilitarista diz que devemos maximizar a “utilidade”, a soma dos benefícios para todos os
seres humanos. Mas como podemos medir a utilidade sem normas de mediçã o? Na ética
utilitarista secular a situaçã o fica isolada das normas, de modo que podemos sempre
perguntar: “Por que eu deveria me importar em maximizar a utilidade?”. A utilidade nã o
tem nenhuma “penetraçã o” deontoló gica ou normativa. Por exemplo, pode-se argumentar
que um pobre deveria ter permissã o de roubar um rico porque o pobre tem mais
necessidade de dinheiro do que o rico. De fato, algumas pessoas sã o a favor de esquemas de
“nivelamento da riqueza”. Mas outras pessoas objetariam que a necessidade relativa de um
pobre nã o torna certo ele roubar. Elas questionam, portanto, se a ética utilitarista (ou pelo
menos esta forma de ética utilitarista) está certa.

Assim também, a ética teleoló gica diz que devemos escolher nossas açõ es de modo que
levem aos melhores objetivos, aos melhores resultados. Mas quem decide quais resultados
sã o “os melhores”? E sem uma sabedoria orientada existencialmente, como um ser humano
pode julgar bem quais açõ es levam a quais objetivos?

A ética política em particular é assolada pelo que tem sido chamado de “lei das
consequências nã o intencionais”. As leis que os políticos estabelecem com boas intençõ es
têm consequências nã o intencionais. Por exemplo, uma lei reduz o limite de velocidade
para promover a segurança, mas resulta em pessoas perdendo mais tempo viajando. Uma
lei estabelece padrõ es para a educaçã o controlada pelo Estado, mas a lei frustra bons
professores que querem ensinar para o entendimento de longo prazo, em vez de
meramente para a capacidade de se sair bem em testes padronizados. Para proteger os
inquilinos, uma lei para o controle de aluguel proíbe que os proprietá rios aumentem o
aluguel mensal. Mas os proprietá rios, achando que o aumento dos preços gradualmente os
deixa com um negó cio nã o lucrativo, se recusam a manter e reparar suas propriedades
alugadas. Os locatá rios nã o sofrem de alugueis mais altos, mas acabam sofrendo de má s
condiçõ es de vida.

Por fim, a ética existencialista secular é uma distorçã o da perspectiva existencial. A ética
existencialista secular começa com o indivíduo. E como nã o reconhece Deus, o indivíduo
deve ele mesmo gerar suas pró prias normas éticas. Ele cria seus pró prios significados. Aqui
a ideia existencialista de criar a pró pria vida separa o significado existencialmente criado
de normas externas e da situaçã o.
Em contraste, a abordagem cristã de Frame tem todas as três perspectivas. Elas se
harmonizam porque um só Deus promulga as normas, cria o mundo e cria seres humanos
com um senso de moralidade. Frame também pode contribuir para resolver muitas outras
questõ es éticas especializadas, pois a Bíblia é uma fonte muito rica de instruçã o ética, tanto
diretamente por meio de mandamentos quanto indiretamente por meio de ilustraçõ es
existentes em suas porçõ es histó ricas, bem como do rico conhecimento de Deus que ela
promove. Seus princípios têm implicaçõ es para a ética da guerra, do aborto, da pobreza, da
criaçã o dos filhos, da educaçã o controlada pelo Estado, do casamento e das relaçõ es
sexuais, entre outras.

No estudo da pró pria Bíblia, vemos um tipo de interaçã o entre as três perspectivas. Os
mandamentos estã o em foco na perspectiva normativa. As partes histó ricas estã o em foco
na perspectiva situacional, o que nos ajuda a crescer na compreensã o de como as situaçõ es
exigem a incorporaçã o de princípios éticos. O pró prio Deus como um Deus pessoal está em
foco na perspectiva existencial, o que nos leva a nos concentrar nã o apenas nas pessoas
humanas e suas motivaçõ es, mas também em Deus como um Deus pessoal divino, cujo
cará ter é tanto a fonte de nossas normas quanto a motivaçã o para nossa atividade.

1
 

17. Epistemologia
 
 
Agora vejamos a epistemologia. Se o mundo é por natureza multiperspectivista, o
conhecimento é por natureza multiperspectivista. O conhecimento arquétipo de Deus é um
conhecimento tripessoal. Nosso conhecimento humano derivativo envolve mú ltiplas
perspectivas. Consequentemente, uma abordagem cristã da epistemologia é
multiperspectiva.
 
 
Perspectivas sobre epistemologia
 

John Frame desenvolve uma epistemologia cristã em seu livro A doutrina do conhecimento
de Deus . Como seu título sugere, o livro enfoca o conhecimento humano sobre Deus, em vez
do conhecimento humano do mundo. Mas os dois estã o relacionados, pois todo o
conhecimento do mundo envolve o conhecimento de Deus, como nos lembra Romanos
1.19-21. Além disso, qualquer verdade que conhecemos é uma verdade que Deus já
conhece e torna conhecida a nó s (Sl 94.10). Conhecimento sempre envolve comunhã o com
Deus, embora para um incrédulo envolva também uma luta para escapar de Deus. [133]
O livro de Frame, na verdade, discute o conhecimento do mundo assim como o
conhecimento de Deus. Frame apresenta uma teoria geral de conhecimento e nã o
[134]

simplesmente uma teoria sobre o conhecimento de Deus.

Nã o precisamos discutir aqui todos os meandros dos detalhes da abordagem de Frame, mas
podemos fornecer uma amostra introdutó ria. Frame organiza sua discussã o usando uma
tríade de perspectivas: normativa, situacional e existencial. Sã o as três perspectivas que
introduzimos em conexã o com a ética. O uso dessas perspectivas éticas é adequado na
epistemologia porque nosso conhecimento tem uma dimensã o ética. A ética inclui, em
princípio, uma consideraçã o sobre aquilo em que devemos crer.

O livro de Frame sobre epistemologia tem três partes: parte 1, “Os objetos do
conhecimento”; parte 2, “A justificaçã o do conhecimento”; e parte 3, “Os métodos do
conhecimento”. Esses três correspondem respectivamente à perspectiva situacional,
perspectiva normativa e perspectiva existencial do conhecimento. Cada uma das partes é
adicionalmente subdividida, usando parcialmente as mesmas perspectivas. Por exemplo, a
parte 1 tem três capítulos: (1) “Deus, o Senhor da aliança”; (2) “Deus e o mundo” e (3)
“Deus e os nossos estudos”. Eles correspondem respectivamente à s perspectivas
normativa, situacional e existencial. É possível fazer essa divisã o adicional porque as três
perspectivas se interpenetram. Dentro de uma perspectiva podemos, olhando de perto,
encontrar as outras duas. Assim, se considerarmos a parte 1 como um uso da perspectiva
situacional, podemos encontrar dentro dessa parte uma subdivisã o adicional baseada nas
perspectivas normativa, situacional e existencial. [135]

O conhecimento humano sempre envolve o entrelaçamento coerente das perspectivas


normativa, situacional e existencial. O conhecimento deve ser justificado; deve ter
fundamentos. Os fundamentos estã o em foco na perspectiva normativa. Em segundo lugar,
o conhecimento deve ser o conhecimento de algo, o que significa que ele deve interagir com
o mundo e requer a perspectiva situacional. Em terceiro, o conhecimento envolve nós como
pessoas. Nós somos aqueles que conhecem, o que envolve a perspectiva existencial,
enfocando as pessoas que conhecem.

Podemos usar o caso do roubo como exemplo. Julieta afirma que roubar é errado. Ela está
fazendo uma afirmaçã o normativa. Seu foco inicial está na perspectiva normativa. Se
desafiada, gostaria de poder dar justificativas para isso. As justificativas envolveriam novos
apelos a normas. As justificativas pragmá ticas apelariam para o fato de que roubar tem
consequências ruins nas sociedades humanas. Portanto, esse tipo de justificativa olha para
o mundo da sociedade e considera as liçõ es que podemos aprender sobre a situaçã o. Por
fim, na perspectiva existencial, focamos em Julieta como aquela que acredita ser errado
roubar. Seus motivos para acreditar nisso podem ser bons, maus ou mistos. Ela pode ter a
crença porque está convencida de que Deus proíbe roubar e ela se importa com a gló ria de
Deus. Ou pode acreditar nisso principalmente porque se preocupa de forma egoísta em
proteger sua pró pria propriedade e pode ver que uma proibiçã o geral contra o roubo ajuda
a protegê-la.
Como de praxe, essas três perspectivas funcionam juntas, porque Deus é o Senhor sobre
todas as coisas. Elas se entrelaçam, de modo que cada uma leva à s e inclui as outras. Por
exemplo, se partimos de nó s mesmos como conhecedores, na perspectiva existencial,
descobrimos que estamos conscientes de nó s em relaçã o a um mundo maior, e assim
encontramos dentro de nó s um reflexo da perspectiva situacional, que contempla o mundo.
Por exemplo, dentro de nó s encontramos uma convicçã o sobre o roubo. E entã o
observamos que essa convicçã o diz algo sobre qual é o comportamento adequado no
mundo como um todo.

Também estamos conscientes do fato de que, como criaturas, nã o somos os á rbitros


definitivos do mundo. Para saber corretamente, devemos nos submeter a padrõ es fora de
nó s mesmos. E assim a perspectiva existencial leva à perspectiva normativa. Quando
cremos que roubar é errado, também estamos pressupondo que há uma norma
transcendente que proíbe o roubo.

Ao mesmo tempo, temos intuiçõ es internas sobre o que podemos confiar ser verdade.
Quando estamos espiritualmente saudá veis em relaçã o a Deus, nosso senso existencial do
que podemos confiar reflete as normas reais que Deus tem para o conhecimento. A
perspectiva normativa afirma a importâ ncia da perspectiva existencial e confirma a
confiabilidade desta quando estamos numa comunhã o correta com Deus. Cremos em nosso
coraçã o que roubar é errado porque Deus nos criou com uma consciência e com um senso
de certo e errado, um dos seus aspectos sendo a convicçã o de que roubar é errado. (Mas
essa observaçã o deve ser ressalvada pelo princípio de que as pessoas podem endurecer sua
consciência e distorcer seu senso de padrõ es morais.)

Se começarmos com a perspectiva normativa, ela diz que nó s, que somos conhecedores
potenciais, devemos ser honestos e prudentes ao interagir com o mundo; assim, as normas
especificam como agimos e como devemos esperar que o mundo interaja conosco. Por
exemplo, as normas dizem que devemos ser honestos sobre os efeitos do roubo na
sociedade.

As normas incluem, portanto, especificaçõ es sobre nó s na perspectiva existencial e sobre o


mundo na perspectiva situacional. Portanto, relatos simples de conhecimento que o
reduzem a apenas um polo nã o fazem justiça ao modo como Deus ordenou que o
conhecimento deveria funcionar.

O trabalho de Frame sobre o uso de perspectivas ilumina o cará ter multidimensional da


estrutura do conhecimento, o que por sua vez forma um aspecto do cará ter
multiperspectivista do mundo tal como criado e reflete o cará ter tripessoal do Deus que o
criou. Frame, portanto, fornece uma visã o redimida do tema da epistemologia. [136]

 
 
Objetivismo e subjetivismo filosóficos
 
O trabalho de Frame evita algumas das dificuldades que atormentam as abordagens
filosó ficas seculares para o conhecimento. Por exemplo, filosofias que se inclinam a
abordagens objetivistas para o conhecimento se concentram em normas para o
conhecimento ou em dados empíricos como a base para o conhecimento. Um foco nas
normas geralmente assume a forma de racionalismo . De acordo com essa visã o, a razã o
humana serve como a principal norma para o conhecimento. As filosofias que se
concentram em dados empíricos sã o formas de empirismo . Tais filosofias usam a
perspectiva situacional como sua principal porta de entrada para o conhecimento.

Mas sem Deus as normas acabam sem nenhuma relaçã o coerente com a situaçã o. Normas
abstratas e impessoais nã o podem por si só nos dar conhecimento. Precisamos de entrada (
input ) do mundo. Para saber o que é roubar, precisamos saber algo sobre o mundo. Por
exemplo, precisamos ter alguma concepçã o de propriedade e da subtraçã o de algo que
pertence a outra pessoa. Assim, uma visã o puramente racionalista de conhecimento falha.

Inversamente, o mundo por si só nã o pode nos dar conhecimento, pois precisamos de


orientaçã o normativa para saber em que acreditar com base no que estamos observando.
Se, por exemplo, Julieta estivesse observando um mundo cheio de robô s que fossem
parecidos com seres humanos e visse um robô subtraindo um livro da casa de outro robô ,
ela teria dados empíricos, mas nenhuma base para condenar moralmente as açõ es do robô
“ladrã o”. O roubo deve ser definido nã o apenas pela observaçã o empírica, mas também
pelo uso de intangíveis, como a ideia de propriedade, a ideia de intençã o humana e a ideia
de um princípio moral (“roubar é errado”). Assim, uma visã o puramente empirista de
conhecimento falha.

E, finalmente, precisamos nó s mesmos fazer a observaçã o. As abordagens subjetivistas de


conhecimento se concentram na pessoa que acredita ou conhece. O subjetivismo enfatiza a
perspectiva existencial, mas de forma distorcida, pois a perspectiva existencial está
separada da normativa e da situacional. As crenças e o conhecimento subjetivos sã o vazios,
a menos que sejam crenças e conhecimento sobre algo, o que requer a perspectiva
situacional sobre o mundo. Julieta só pode subjetivamente acreditar que roubar é errado se
a ideia do roubo envolver relaçõ es com um mundo de açã o humana.

Por fim, as crenças sã o infundadas, a menos que sejam guiadas por normas. O roubo nã o se
torna moralmente errado só porque Julieta começa a pensar que é; ele já é, como norma.
 
 
Teorias da verdade
 

Consideremos algumas disputas adicionais que surgem na epistemologia filosó fica secular.
[137]
Uma disputa importante diz respeito à natureza da verdade. O que é a verdade? Os
filó sofos apresentam vá rias teorias concorrentes da verdade. Há também variaçõ es dentro
de cada uma das principais teorias. Limitar-nos-emos a questõ es bá sicas, ignorando
variaçõ es e outras complexidades, a fim de ilustrar a diferença entre a abordagem
multiperspectivista de Frame e as principais abordagens seculares.

As principais teorias sobre a verdade sã o a teoria da correspondência , a teoria pragmá tica e


a teoria da coerência da verdade. De acordo com a teoria da correspondência, uma
declaraçã o é verdadeira “se corresponde ao modo como as coisas realmente sã o”. Por
[138]

exemplo, é verdade que o roubo é errado apenas porque o roubo realmente é errado.

A seguir, de acordo com a teoria pragmática , uma declaraçã o é verdadeira se “funciona”,


isto é, se leva consistentemente a bons resultados na prá tica para aqueles que a consideram
verdadeira. De acordo com essa teoria, acreditar que o roubo é errado tem bons resultados
(em restringir o roubo e dar à s pessoas motivos para punir os ladrõ es). É por isso que é
verdadeira. Os pragmá ticos costumam dizer que o sucesso deve ser o sucesso a longo
prazo. Eles entendem que uma crença em particular poderia levar a uma série de sucessos
de curto alcance, e ainda assim falhar mais tarde.

Por fim, de acordo com a teoria da coerência , uma declaraçã o é verdadeira se “é coerente
com” e consistente com as demais crenças que uma pessoa possui. O roubo é errado porque
se encaixa em um sistema mais amplo de crenças morais, incluindo princípios gerais (como
“faça aos outros como gostaria que fizessem a você”), benefícios prá ticos (ajuda ao bem-
estar social) e movimentos de consciência.

Ao avaliar essas teorias, podemos notar primeiro que, em sua forma usual, elas nã o
conseguem distinguir entre Deus e as criaturas. E essa é uma grande falha, típica do
raciocínio filosó fico orientado a uma concepçã o autô noma de razã o. Todas as três teorias
assumem essencialmente uma visã o nã o cristã de imanência epistemoló gica, implicando
que a humanidade, e nã o Deus, funciona como o ú nico ponto de referência para discutir a
verdade. Supostamente, o roubo é errado simplesmente porque a “realidade”, tal como
experimentada pelos seres humanos, é de alguma forma assim, ou porque os seres
humanos acham que funciona pensar assim ou porque isso se encaixa nas outras crenças
humanas. Aparentemente, Deus nã o importa.

As teorias correm o risco de assumir uma visã o nã o cristã de transcendência também, uma
vez que as formulaçõ es das teorias deixam Deus de fora. Deus, por implicaçã o, é
irrelevante. Ele está “distante” e nã o envolvido (que é a visã o nã o cristã de transcendência).

De um ponto de vista cristã o, devemos dizer que existem duas formas de teoria da
correspondência. Numa versã o nã o cristã , a verdade corresponde a um estado de coisas no
mundo, na independência prá tica de Deus. De acordo com essa versã o, o roubo é errado
porque é na verdade errado “lá fora”. O estado de coisas é tratado como se fosse “fato
bruto” ou fato autossuficiente, em vez de depender da mente e do plano de Deus. Mas essa
versã o leva a uma dificuldade, pois nenhum ser humano é capaz de alcançar um ponto de
vista transcendente, um ponto de vista que englobe (1) a si mesmo e sua declaraçã o, (2) a
realidade do fato e (3) a correspondência entre (1) e (2). Como um nã o cristã o poderia
conhecer a correspondência em si, ou mesmo falar dela, sem pular fora de sua pele e fingir
ter um ponto de vista transcendente, endeusado? Ademais, como o fato em questã o (por
exemplo, o fato de o roubo ser errado) é tratado como independente de Deus, ele é
completamente impessoal e nã o se pode saber se ele realmente tem o cará ter que o
permitiria ser digerido por uma pessoa.

Em contrapartida, numa versã o cristã da teoria da correspondência, o que é verdade para


os seres humanos corresponde ao que é verdade de acordo com a mente de Deus, e o
conhecimento de Deus é o padrã o para a verdade. O roubo é errado porque é errado na
mente de Deus, de acordo com o julgamento moral de Deus. O conhecimento de Deus deve
ser distinguido do conhecimento humano. Os seres humanos podem conhecer a verdade
(de acordo com o princípio da imanência de Deus), mas nã o conhecem tudo; sã o limitados
situacionalmente. Além disso, nã o servem como padrã o ú ltimo; sã o limitados
normativamente. Por fim, nã o sabem da mesma maneira que Deus; sã o limitados
existencialmente.

Se nã o houvesse Deus, as limitaçõ es que existem nos seres humanos ameaçariam minar o
conhecimento. Como alguém poderia saber que o roubo é errado? Seu conhecimento
poderia falhar por causa da situação . Nã o poderia haver alguma situaçã o obscura especial,
desconhecida deles, que seria uma exceçã o ao princípio geral de que o roubo é errado? Seu
conhecimento poderia falhar porque as normas lhes escapam. Se eles conhecem uma
norma moral imperfeitamente, nã o poderia haver uma norma acima da norma, por assim
dizer, que especificasse algumas exceçõ es sobre o roubo? E o conhecimento poderia falhar
devido a limitaçõ es existenciais. Nã o seria possível a consciência dos seres humanos estar
distorcida, de modo a nã o poderem analisar corretamente se o roubo é algo errado?

Deus, ao contrá rio, sabe todas as coisas, tem autoridade em seu conhecimento e sabe
existencialmente como o conhecedor pessoal ú ltimo. Ele nã o tem os limites humanos. Se
Deus torna sua vontade conhecida na Escritura e se, além disso, temos alguma revelaçã o
geral sua através da consciência e das circunstâ ncias humanas, podemos nos apoiar em seu
conhecimento infinito e em sua provisã o graciosa para nó s. Por esse meio temos uma
resposta para a suspeita de que o cará ter limitado do nosso conhecimento mina todo
conhecimento.

A seguir, existem duas formas de teoria pragmá tica. A versã o nã o cristã olha apenas para o
que “funciona” aos propó sitos humanos limitados dentro desta vida e considera apenas o
que “funciona” para o homem, nã o para Deus. Uma versã o cristã distingue entre Deus e o
homem. Tudo o que Deus sabe se harmoniza com o que ele realiza, e ele sempre realiza o
que se propõ e a realizar.  Assim, toda verdade que Deus sabe “funciona” para Deus.

Os seres humanos, como de praxe, nã o servem como um padrã o ú ltimo. Mas o que funciona
para os seres humanos pode ser definido como o que funciona a longo prazo, e o longo
prazo inclui o julgamento final e a consumaçã o de todas as coisas. Entã o, na presença de
Deus e sob a inspeçã o do seu julgamento, veremos quais crenças desta vida “funcionam” no
sentido de passarem pelo julgamento de Deus. Esse princípio tem uma aplicaçã o ó bvia para
a questã o de se o roubo é errado. A ideia de que o roubo é errado funciona no julgamento
final, pois no julgamento final Deus confirma isso.
Por fim, considere as duas formas de teoria da coerência da verdade. Na versã o nã o cristã ,
verdade significa coerência com as demais crenças de uma pessoa. Mas isso torna a
verdade relativa à pessoa. Como Deus foi removido do cená rio, nã o há um Deus
transcendente que possa servir de juiz e padrã o sobre-humano entre as alegaçõ es de duas
pessoas diferentes, cada qual alegando ter crenças coerentes dentro do seu pró prio
sistema.

Numa versã o cristã da teoria da coerência, distinguimos Deus dos seres humanos. Toda
verdade é perfeitamente coerente dentro da mente de Deus e entre as três pessoas da
Trindade. Cristo é a verdade e é autocoerente e autoconsistente. A crença humana sobre
uma verdade em particular deve, de fato, ser coerente com outras crenças se essas crenças
também forem verdadeiras. Deus nos criou de tal maneira que filtramos as alegaçõ es de
verdade com base, em parte, no pano de fundo de outras crenças. Mas, visto que os seres
humanos nã o sã o o padrã o ú ltimo da verdade, nã o podemos simplesmente supor que todas
as demais crenças que um ser humano possui serã o sempre verdadeiras.

Entre essas crenças, todavia, há o conhecimento do Deus verdadeiro, de acordo com


Romanos 1.19-21. Os incrédulos “suprimem a verdade” (Rm 1.18, NVI). Consequentemente,
todo pensamento incrédulo é incoerente. Por exemplo, os ladrõ es sã o incoerentes na sua
convicçã o de que seu roubo é algo correto; sua convicçã o nã o combina com seu
conhecimento de Deus, o qual estã o suprimindo. Uma coerência completa incluiria nã o
apenas a coerência com tudo o que uma pessoa conscientemente sabe sobre Deus, mas
também coerência com o pró prio Deus, que a pessoa conhece. Em outras palavras, seria
coerência com toda a verdade de Deus. Claro, os seres humanos nã o sabem todas essas
verdades, e nesta vida nã o alcançam perfeita coerência. Mas uma coerência completa,
incluindo a coerência com o pró prio Deus, garantiria a veracidade da crença específica que
uma pessoa inicialmente escolheu para inspeçã o.

Um cristã o, portanto, pode ter uma versã o cristã de todas as três teorias de uma só vez.
Como pode ser isso? As três teorias sã o perspectivas umas sobre as outras.
 
• A teoria da correspondência expressa a perspectiva normativa. A verdade na mente de Deus é a
norma para peneirar a verdade tal como a concebemos. Nossas ideias sã o verdadeiras se
correspondem à norma que existe na mente de Deus.
• A teoria pragmá tica expressa a perspectiva situacional. A verdade faz diferença nos resultados no
mundo, que é o foco natural da perspectiva situacional.
• A teoria da coerência expressa a perspectiva existencial. Ela enfoca o que as pessoas creem em seus
compromissos pessoais. Esse foco é existencial, pessoal. Como todos os seres humanos conhecem Deus,
a coerência implica que as crenças devem ser coerentes com a mente pessoal de Deus; e quando fazem
isso, elas sã o só lidas e coerentes na mente dos indivíduos também.
 

As perspectivas normativa, existencial e situacional se entrelaçam. Elas conduzem umas à s


outras em vez de competirem entre si ou excluírem umas à s outras como alternativas
irreconciliá veis. Nã o podemos operar sem crenças. E as crenças sempre dependem de um
profundo senso de confiabilidade: confiabilidade de nó s mesmos e de nossa mente,
confiabilidade do mundo e confiabilidade das normas de Deus. Nem tampouco podemos
manter crenças ou crescer em crenças de maneira sadia sem interagir com o mundo e,
assim, ver o que “funciona”. Quando vemos o que está funcionando, ainda somos nós que
vemos; e somos responsá veis, sujeitos à s normas da presença de Deus, por responder com
crenças de acordo com o que funciona, isto é, com crenças que sã o coerentes com o que
funciona. Porque se trata do mundo de Deus, também podemos crer — como uma crença
que goza de coerência com nossas demais crenças sobre Deus — que Deus criou o mundo e
a nó s. Ele nos criou para que, observando o que funciona, pudéssemos realmente descobrir
como é o mundo, em cujo caso nossas crenças corresponderiam ao mundo. A coerência,
eficá cia pragmá tica e correspondência andam juntas como perspectivas.
 
 
Tipos de conhecimento
 

Podemos observar que o conhecimento humano pode ser um conhecimento de pessoas


(familiaridade), conhecimento como habilidade ( know-how ) ou conhecimento de verdades
específicas expressas em linguagem. Stephanie diz: “Eu conheço Betty” (familiaridade); “Eu
sei como enviar uma mensagem de texto” ( know-how ); “Eu sei que Paris é a capital da
França” (uma verdade). A epistemologia filosó fica secular geralmente se concentra bá sica
ou exclusivamente no conhecimento de verdades. Mas os três tipos estã o envolvidos uns
nos outros e podem servir como perspectivas uns para os outros.

O conhecimento de pessoas é o foco da perspectiva existencial. Conhecer Deus de maneira


salvífica envolve conhecer uma pessoa (Deus como um Deus pessoal), conhecer fatos sobre
ele (verdades) e começar a saber como conduzir-se de maneira piedosa no mundo ( know-
how ). Saber que Paris é a capital da França envolve saber responder uma questã o
geográ fica sobre a capital da França, o que é know-how . Também envolve saber que Deus
sabe tudo sobre Paris e providencialmente ordenou que a cidade fosse a capital da França.
Esse conhecimento sobre Deus é um aspecto de conhecê-lo pessoalmente (familiaridade).
(Os incrédulos, porém, normalmente suprimem o conhecimento pessoal de Deus.)

Stephanie também conhece a si mesma, tanto no sentido de ter uma capacidade geral de
conhecimento quanto no de saber especificamente que Paris é a capital da França. Ela
também sabe que muitos dos seus conhecidos talvez conheçam a mesma verdade. No caso
de uma verdade como o fato de que Paris é a capital da França, há um forte componente
social no conhecimento. Stephanie provavelmente aprendeu sobre Paris com uma
professora, um livro didá tico ou alguma fonte pessoal. Nesse processo, para começar com
uma verdade proposicional sobre Paris, ela tem de entender o que significa ser uma pessoa
e como pode se relacionar adequadamente com outras pessoas nas alegaçõ es de
conhecimento delas. O conhecimento de proposiçõ es desse modo pressupõ e o
conhecimento de pessoas — muito conhecimento de pessoas, acumulado num longo
processo de crescimento desde criança.
A epistemologia secular tem muitas vezes tentado isolar o conhecimento de proposiçõ es
verdadeiras para que esse conhecimento possa ser analisado minuciosamente e os filó sofos
possam talvez dominar a natureza do conhecimento. A tentativa já interpreta mal a
natureza do conhecimento, porque o conhecimento de verdades nã o pode ser isolado.
Achar que é possível fazê-lo é ocultar a presença de Deus e se envolver numa reduçã o.

No fundo, podemos suspeitar de que há motivaçõ es religiosas idó latras. O reducionismo,


como movimento intelectual, parte do desejo de se ter um substituto para Deus. Outra coisa
no lugar de Deus, a saber, o ponto final do processo de reduçã o, serve como a explicaçã o
unificadora e final. Se um filó sofo pode eliminar Deus, que é pessoal, ele pode esperar ter
um substituto impessoal, na forma de uma teoria abstrata, cujos conceitos abstratos
supostamente permitem uma reduçã o do conhecimento a um padrã o impessoal que pode
ser dominado.

Podemos notar também que o entrelaçamento de familiaridade, know-how e conhecimento


de verdades mostra a indispensabilidade do que Michael Polanyi chamou de conhecimento
tácito . Os seres humanos nã o podem trazer à plena expressã o na consciência tudo o
[139]

que sabem através da familiaridade pessoal. Se Donna conhece bem Tim, pode ser capaz de
falar longamente sobre todos os tipos de fatos que sabe a respeito de Tim, incluindo suas
peculiaridades de personalidade, maneirismos e atitudes. Mas ela sempre sabe mais —
conhece uma pessoa inteira. Da mesma forma, o know-how nã o é totalmente exprimível. O
carpinteiro que treina seu filho a martelar um prego nã o pode simplesmente lhe dar
instruçõ es verbais, por extensas que sejam. O filho é quem deve sentir o martelo e a
coordenaçã o adequada nos mú sculos do braço.

O conhecimento tá cito sempre repousa subjacente ao conhecimento mais simples, mais


explícito e mais autoconsciente de uma verdade. A presença de um conhecimento tá cito,
incluindo especialmente o conhecimento de familiaridade e o conhecimento de Deus,
frustra a meta filosó fica ideal de um conhecimento transparente através da aná lise
racional.
 
 
A justificação do conhecimento
 

A seguir, considere a discussã o filosó fica sobre a justificaçã o do conhecimento.  A tendência


predominante da filosofia analítica do século XX achava atraente uma formulaçã o em
particular: o conhecimento é uma “crença verdadeira justificada”. O que podemos dizer
sobre essa formulaçã o?

Essa formulaçã o em particular pode ser vista como uma espécie de condensaçã o da
discussã o triperspectivista de conhecimento de Frame. A palavra justificada leva à
perspectiva normativa, que enfoca a justificaçã o do conhecimento. A palavra verdadeira
leva à perspectiva situacional, que enfoca o mundo e seus estados de coisas — como as
coisas realmente sã o no mundo. A palavra crença leva à perspectiva existencial, que enfoca
uma pessoa que conhece e está crendo. No tratamento de Frame, esses três aspectos sã o
perspectivas. Todos envolvem uns aos outros e levam uns aos outros. Nenhum aspecto
pode ser isolado, e toda a discussã o do conhecimento pode estar ricamente de acordo com
a riqueza do mundo e dos seres humanos que Deus criou.

Mas podemos nos perguntar se isso se dá exatamente da mesma maneira quando a ideia de
crença verdadeira justificada é discutida nos círculos filosó ficos seculares, especialmente
no círculo da filosofia analítica. Será que esses círculos na verdade levam as pessoas a
pensar que podem isolar cada um dos três fatores separados que formam juntos o
conhecimento? E será que a formulaçã o significa a mesma coisa que dentro de um contexto
como o de Frame?

Ademais, nem todas as tradiçõ es da filosofia ocidental sã o igualmente atraídas a


formulaçõ es limitadas a uma sentença rigorosamente só lida e rígida. Assim, podemos nos
perguntar quais pressuposiçõ es subjazem à preferência por esse tipo de resposta à s
grandes questõ es sobre o conhecimento. O tipo de resposta que uma pessoa dá , bem como
a substâ ncia da resposta, revela coisas sobre a pessoa que está respondendo (veja também
o capítulo 25).

E, todavia, as pessoas que participam dizendo que o conhecimento é uma crença verdadeira
justificada              estã o muito nos bastidores. Por quê? Talvez uma tradiçã o filosó fica
anseie por uma justificativa (fortemente, pessoalmente, existencialmente) pessoal e razõ es
objetivas e religiosamente neutras para suas alegaçõ es. A filosofia analítica pode levar-nos
à tentaçã o de esconder as suposiçõ es pessoais que entram no projeto como um todo. Mas
as pessoas sã o indispensá veis para a existência mesma do projeto.

Podemos mostrar algumas das dificuldades se perguntarmos que tipo de conhecimento


estamos discutindo. Estamos discutindo o conhecimento de pessoas (familiaridade), o
conhecimento de uma habilidade ( know-how ) ou o conhecimento de verdades? O foco está
em conhecer verdades. Mas o conhecimento tá cito reside no plano de fundo: nã o podemos
tornar completamente explícitas as justificativas para nossas crenças ou mesmo o que sã o
essas crenças. Nem podemos tornar a verdade completamente explícita para nó s mesmos.
Qualquer verdade específica pressupõ e um plano de fundo tá cito. Em ú ltima aná lise,
também pressupõ e o plano de fundo da mente de Deus, que é incompreensível.

Também podemos observar que, quando lidamos com a distinçã o Criador-criatura,


introduzimos uma distinçã o que perturba o pensamento unívoco (o pensamento de um
nível) sobre o conhecimento. O que é “crença”? Depende, claro, do que queremos dizer com
crença. Crença para um ser humano ou crença para Deus? Deus tem crenças? E se
incluirmos em nosso significado a ideia de que uma pessoa que crê depende, como uma
fonte de crença, de algo que está fora de sua mente (seja o testemunho de alguém, uma
observaçã o empírica, ou apenas um palpite intuitivo)? Como Deus nã o é dependente, ele
nã o tem crenças nesse sentido particular, embora tenha, é claro, conhecimento. Assim, se
usarmos esse sentido particular da palavra crença , o conhecimento de Deus nã o é uma
crença verdadeira justificada, e toda a formulaçã o nã o funciona.
O que queremos dizer com verdadeira na fó rmula “crença verdadeira justificada”? Usamos,
como nosso ponto de referência, o conhecimento de Deus da verdade ou o conhecimento
humano? E o que significa “justificada”? Quem está fazendo a justificaçã o, Deus ou o
homem?

Cada uma dessas questõ es pode ser detalhada quando lidamos com qualquer alegaçã o
específica de conhecimento, por exemplo, se Julieta sabe que roubar é errado. Primeiro, o
que significa ela acreditar que roubar é errado? Está claro? Romanos 1.32 (NVI) indica que
mesmo os incrédulos “conhe[cem] o justo decreto de Deus” em relaçã o aos princípios
morais. Isto é, eles sabem, no fundo, que o roubo é errado porque sã o feitos à imagem de
Deus. Mas eles podem suprimir esse conhecimento. Podem aprovar prá ticas que violam a
lei moral de Deus. Podem dizer que não acreditam que o roubo é errado.

Entã o, como agem? Eles estã o presos entre o que sã o como criaturas feitas à imagem de
Deus e o que desejam ser em rebeliã o — fontes autô nomas de lei que podem especificar
que roubar nã o é errado. Sua estrutura de crença é profundamente incoerente. Mas
certamente faz sentido dizer, em certo aspecto, que eles sabem que roubar é errado e,
contudo, nã o acreditam nisso — pelo menos em suas crenças conscientes e em suas açõ es.

É verdade que o roubo é errado? Precisamos perguntar se a questã o busca encontrar um


fundamento para a verdade no mundo ou em Deus. Se é no mundo, como a moralidade
pode derivar meramente dos dados?

Uma possível resposta secular a essas questõ es seria dizer que uma discussã o sobre Deus é
irrelevante ou entende mal o significado de “crença verdadeira justificada”. A resposta
secular seguiria observando, no contexto da discussã o filosó fica, que as pessoas estã o
falando sobre crenças humanas e conhecimento humano, nã o sobre o conhecimento de
Deus. Mas, visto que o conhecimento humano é conhecimento apenas por imitaçã o do
conhecimento de Deus, Deus nã o pode ser eliminado do conceito de conhecimento. O
movimento para eliminá -lo é uma versã o da transcendência nã o cristã , que trata Deus
como irrelevante. A discussã o filosó fica também parece nos convidar a tratar a crença e o
conhecimento humanos em seus pró prios termos — como se pudéssemos, sem referência a
Deus, usar nossa pró pria mente na aná lise. Na prá tica, nossa pró pria mente se torna o
padrã o ú ltimo de julgamento, e entã o caímos na imanência nã o cristã .
 
O problema de Gettier
 

Podemos ilustrar também a aplicaçã o de mú ltiplas perspectivas considerando uma


dificuldade específica chamada de “problema de Gettier”. Partindo da formulaçã o de que o
conhecimento é “crença verdadeira justificada”, Edmund Gettier produziu em 1963 dois
contraexemplos. O segundo de seus dois contraexemplos oferece as seguintes
[140]

proposiçõ es:
 
1. Jones possui um Ford.
2. Ou Jones possui um Ford, ou Brown está em Barcelona.
 

Gettier nos convida a imaginar um cená rio em que um terceiro homem, Smith, tem boas
razõ es para acreditar na proposiçã o 1. “A evidência de Smith poderia ser que, segundo sua
memó ria, Jones sempre teve no passado um carro, e sempre um Ford, e que Jones acabara
de oferecer a Smith uma carona enquanto dirigia um Ford.” Assim, Smith está
[141]

justificado em acreditar em 1, por deduçã o também acredita na proposiçã o 2 e está


justificado em fazê-lo (pela inferência conhecida como adiçã o). Mas, como se viu mais
tarde, Jones estava dirigindo um carro alugado, e a proposiçã o 1 é falsa. A proposiçã o 2 é,
contudo, verdadeira porque, sem o conhecimento de Smith, Brown está de fato em
Barcelona. A crença de Smith na proposiçã o 2 satisfaz todas as três condiçõ es: é justificada,
é verdadeira e, claro, é a crença de Smith. Contudo, Smith nã o sabe que 2 é verdade, porque
a verdade de 2 é apenas acidental, se comparada com as razõ es ou justificaçõ es que Smith
poderia dar para acreditar em 2.

A maioria dos filó sofos reconhece que os contraexemplos de Gettier sã o convincentes. Mas
discordam sobre a melhor forma de responder a essa dificuldade. Uma resposta
[142]

possível seria simplesmente dizer que os contraexemplos de Gettier mostram que o relato
em termos de crença verdadeira justificada nã o é completo ou adequado. Ademais, talvez
nã o haja uma razã o específica por que qualquer relato condensado deveria ser completo, já
que Deus criou a nó s e o mundo de maneira complexa.

No entanto, as três perspectivas de Frame mostram que a fó rmula “crença verdadeira


justificada” traz consigo a promessa de alguma percepçã o. As três palavras correspondem
à s três perspectivas de Frame — normativa, situacional e existencial —, e juntas essas
perspectivas nos dã o uma percepçã o da natureza do conhecimento.

Se desejarmos, podemos dar um passo além e sugerir que o problema de Gettier mostra o
emaranhamento ou entrelaçamento entre justificaçã o e crença, ou melhor, entre as
perspectivas normativa, situacional e existencial sobre o conhecimento. O relacionamento
de Smith com a proposiçã o 2 é problemá tico porque as razõ es que Smith poderia dar para
sua crença nã o se entrosam completamente com o relato que daríamos da situaçã o de por
que a proposiçã o 2 é verdadeira. Ou seja, as justificaçõ es de Smith, a partir da perspectiva
normativa, nã o correspondem ao que descobrimos quando nos concentramos na
perspectiva situacional.

As razõ es correspondentes à perspectiva normativa envolvem evidências e informaçõ es


que Smith tem sobre Jones e sua conduçã o de um Ford. As crenças pessoais de Smith
correspondentes à perspectiva existencial envolvem uma síntese dessa variedade de
evidências, levando nã o apenas à conclusã o na forma da proposiçã o 1, mas também a uma
outra conclusã o na proposiçã o 2. As razõ es de Smith só apoiam a proposiçã o 2 porque
apoiam exatamente uma das proposiçõ es mais simples das quais a proposiçã o 2 é
composta. Smith acredita e sabe que a proposiçã o 1 tem esse tipo de apoio e, portanto,
também que a proposiçã o 2 tem exatamente o mesmo tipo de apoio. Na visã o de Smith, o
apoio que sua crença tem nã o está relacionado com a localizaçã o de Brown. Em
contrapartida, a situaçã o confirma a veracidade da proposiçã o 2 precisamente por apoiar a
outra proposiçã o embutida (sobre Brown), nã o aquela para a qual Smith tem as razõ es e as
crenças mais robustas.

Essa abordagem se concentra mais na questã o do tipo de justificaçõ es que Smith possui.
Mas também poderíamos nos concentrar na crença. Será que uma concepçã o de crença
mais robusta, “espessa” e perspectivamente informada ajudaria a responder ao problema?
Smith nã o acredita na proposiçã o 2 apenas de modo geral, mas no contexto de outras
crenças e conhecimentos, incluindo crenças sobre os há bitos de Jones e a consciência de
que Smith nã o faz ideia do paradeiro de Brown. Esse contexto de conhecimento pessoal,
parte do qual pode ser tá cito, qualifica a maneira em que Smith está pessoalmente
comprometido com a proposiçã o 2. Dada essa compreensã o robusta da crença de Smith, a
maneira de sua crença nã o leva à conclusã o de que a crença de Smith na proposiçã o 2 é
“crença verdadeira justificada” de uma maneira que faz plena justiça a um contexto mais
amplo de crença. Nã o é verdade que Jones possui um Ford, e este é um aspecto
indispensá vel da crença de Smith na proposiçã o 2. Se o pró prio Smith enfocasse esse
contexto de crença mais amplo e robusto, poderia acabar dizendo que, embora a
proposiçã o 2 seja verdadeira como proposiçã o abstrata, suas pró prias crenças sobre 2 nã o
sã o completamente verdadeiras, por causa do emaranhamento de complexidade que existe
em suas crenças.

Alguns filó sofos sugeriram, de fato, que acrescentemos uma quarta condiçã o: que “a
justificaçã o de uma pessoa para uma crença nã o seja derivada de uma crença falsa”. [143]

Mas essa resposta difere da minha, na medida em que nã o parece reconhecer que parte da
dificuldade está na palavra crença e na inseparabilidade desta das pessoas e do contexto de
crença. Em vez disso, a resposta “remenda” a dificuldade acrescentando coisas sobre outras
crenças, mas ainda dentro de uma estrutura em que cada crença é tratada como se pudesse
ser isolada do contexto da pessoa.

Poderíamos também sugerir que é possível introduzir um tratamento mais robusto sobre o
que significa algo ser verdadeiro. Isso requer a reduçã o a uma aná lise meramente
unidimensional da linguagem natural para usar a palavra verdadeiro com respeito a
formulaçõ es proposicionais isoladas e desincorporadas. Se Smith tivesse uma chance e
[144]

respondesse como uma pessoa plena, poderíamos ouvi-lo fazer a observaçã o de que sim, a
proposiçã o 2 se revela verdadeira, mas é verdadeira por meio de outro tipo de
correspondência com o mundo ao invés do que Smith realmente tinha em mente. Dada essa
diferença, ela nã o é verdadeira da forma que Smith achava que era e, nesse aspecto, sua
crença nã o é verdadeira, embora a pró pria proposiçã o composta o seja.

Os filó sofos também tentam remendar a teoria da crença verdadeira justificada por meio
de uma abordagem situacional. Eles sugerem que acrescentemos uma quarta condiçã o, no
sentido de que a crença em questã o nã o pode ter sua justificaçã o prejudicada pelo fato de a
pessoa chegar ao conhecimento de alguma outra verdade (como Smith vir a saber que
Jones nã o possui um Ford). Essa tentativa aborda o fato de que as verdades estã o
[145]

relacionadas umas à s outras e a formulaçõ es proposicionais. Mas ela ainda parece nos levar
à tentaçã o de tratar cada verdade específica como se fosse isolá vel tanto de outras
verdades quanto das pessoas que creem. Ela parece evitar a relaçã o perspectivista total
entre justificaçã o, verdade e crença ou entre as perspectivas normativa, situacional e
existencial sobre o conhecimento.
 
 
Confiabilismo
 

Os filó sofos também podem ser tentados a fornecer um remédio para o problema de
Gettier afrouxando o polo normativo na fó rmula, o entendimento que se tem de
justificaçã o. Em vez de justificaçã o, temos “confiabilidade”: “Para o confiabilista, nã o
importa muito se uma pessoa pode dar uma explicaçã o adequada de suas razõ es para uma
crença. O que importa é que suas crenças sejam produzidas de maneira confiá vel”. [146]

A expressã o “produzidas de maneira confiá vel” apenas leva o problema de volta à


determinaçã o de como julgamos o que é confiá vel. Poderíamos dizer que a confiabilidade é
determinada por razõ es (um enfoque normativo), pela verdade (como interaçã o confiá vel
com o mundo, um enfoque situacional) ou pela confiabilidade nos compromissos de crença
(um enfoque existencial). Mas entã o voltamos ao ponto em que começamos, com a
interaçã o de uma perspectiva normativa (tendo razõ es), uma perspectiva situacional
(interaçã o com o mundo) e uma perspectiva existencial (compromissos de crença)?
Ademais, se tentarmos isolar a produçã o confiá vel da crença do conhecimento tá cito que
uma pessoa tem das razõ es para a crença, poderemos facilmente acabar com uma crença
que é bem-sucedida porque produzida de forma confiá vel, mas na qual a pessoa que crê
nã o sabe se e por que a crença pode ser bem-sucedida, nã o tendo, portanto, motivos reais
para a crença interna em sua mente. Teremos tentado erroneamente isolar a perspectiva
normativa (confiabilidade) da perspectiva existencial (confiança na confiabilidade).
 
 
O local da justificação
 

Podemos considerar ainda outra questã o sobre a justificaçã o do conhecimento: a questã o


do “local” dessa justificaçã o. Existem pelo menos três abordagens principais. (1) O
“internalismo” diz que “a justificaçã o de uma crença pela pessoa deve ser interna à sua
mente”. [147]
Por exemplo, Julieta pode dizer que sabe que o roubo é errado porque
raciocinou, quer olhando para os efeitos na sociedade, quer apelando ao princípio geral de
que você deve “fazer aos outros o que gostaria que fizessem a você”. Ela pode fornecer
justificaçõ es para o que acredita, e essas justificaçõ es sã o “internas”: fazem parte do
aparato de sua mente. (2) O “externalismo” diz que a justificaçã o é externa à mente;
determina se a crença é “causada ou formada de maneira apropriada”. [148]
Por exemplo, o
impulso de sua consciência pode levar Julieta a acreditar que roubar é errado, mesmo nã o
podendo dar razõ es adicionais para sua crença. Nó s, como espectadores, podemos todavia
concluir que a crença de Julieta é justificada porque Deus lhe deu uma boa consciência. (3)
A “epistemologia da virtude” diz que “a chave para o conhecimento é virtude intelectual”.
As virtudes intelectuais incluem honestidade, mente aberta, diligência na investigaçã o e
[149]

outras coisas. Julieta acredita que roubar é errado porque é honesta o bastante para nã o
suprimir a voz da consciência ou a evidência das consequências sociais do roubo.

Uma rá pida inspeçã o dessas abordagens mostra ainda outro uso das perspectivas. O
internalismo, ao enfocar o que se passa na mente, representa uma perspectiva existencial.
O externalismo, ao enfocar os processos externos à mente, representa uma perspectiva
situacional. A epistemologia da virtude, ao enfocar as “virtudes” ou normas para o trabalho
intelectual, representa uma perspectiva normativa. Como de costume com as perspectivas,
cada uma exige as demais. Mas os filó sofos seculares geralmente as veem como
alternativas. Isso mais uma vez nos faz pensar se o desejo de um reducionismo ou de uma
resposta magistral à questã o leva as pessoas a ignorarem o rico contexto que há no â mbito
de qualquer perspectiva de conhecimento.
 
 
A estrutura da justificação
 
Por fim, consideremos brevemente outro problema na epistemologia: o problema sobre a
“estrutura” do conhecimento. Existe pelo menos três visõ es principais.

O fundacionalismo diz que certos tipos de conhecimento sã o “bá sicos” e nã o precisam de


justificaçã o adicional. Outro tipo de conhecimento é construído como uma superestrutura
com base na fundaçã o. Por exemplo, o empirismo é uma forma de fundacionalismo porque
diz que o conhecimento da experiência sensorial é bá sico e que tudo o mais deriva dele.
Outras formas de fundacionalismo podem afirmar que outros tipos de conhecimento sã o
bá sicos.

Como o fundacionalismo aborda uma alegaçã o específica de conhecimento, como a


alegaçã o de que o roubo é errado? Isso depende de que tipos de conhecimento sã o bá sicos.
A ideia de que roubar é errado poderia ser tratada ou como uma forma bá sica de
conhecimento (um ditado intuitivo da consciência), ou como um resultado construído com
base em muitos raciocínios sobre os benefícios sociais. Esse raciocínio sobre os benefícios
sociais, por sua vez, estaria baseado em um fundamento de conhecimento prévio sobre os
seres humanos e as sociedades, o que remeteria aos dados dos sentidos. Pelo menos para o
empirismo, os passos em direçã o aos fundamentos parariam neste ponto, pois o empirismo
entende que os dados dos sentidos sã o bá sicos.

Uma segunda visã o, o coerentismo , diz que nenhuma crença é absolutamente “bá sica” ou
fundacional. Todas as crenças sã o justificadas pela coerência com outras crenças. Já
encontramos uma abordagem parecida ao lidar com a natureza da verdade. Como isso
funciona na prá tica? Julieta acredita que o roubo é errado porque essa crença se harmoniza
com outras crenças morais, todas elas afirmando a importâ ncia de respeitar as outras
pessoas, e porque se harmoniza com as observaçõ es de Julieta sobre os benefícios sociais
de nã o roubar. A dificuldade aqui é ó bvia: como evitamos o subjetivismo, no qual as crenças
de Julieta sã o internamente coerentes em sua mente, mas podem nã o ter necessariamente
qualquer relaçã o com o mundo exterior?

Uma terceira visã o, o contextualismo , diz que só buscamos justificaçõ es para a crença
dentro de contextos relativamente específicos. Tomamos por certo a maior parte do que
acreditamos e só testamos uma ideia específica dentro do contexto em que o teste é
apropriado. Por exemplo, Julieta testa sua crença de que o roubo é errado dentro do
contexto de outros princípios morais. Ela toma por certo muitas de suas crenças sobre
outras pessoas e suas motivaçõ es e sobre as formas em que a sociedade funciona. Essas
crenças oferecem um contexto mais amplo no qual ela pode tirar conclusõ es sobre como o
roubo impacta a sociedade.
 
 
Avaliando teorias da estrutura do conhecimento
 

Ora, como podemos avaliar essas três abordagens para a estrutura do conhecimento?

De um ponto de vista cristã o, os seres humanos sã o dependentes e portanto nã o sã o o


padrã o ú ltimo para o conhecimento. Portanto, um fundacionalismo que estabeleça o
fundamento em algo no mundo ou na mente humana é idó latra — substitui Deus por
alguma coisa criada ou por algum aspecto da criaçã o. Por exemplo, o empirismo idolatra a
experiência sensorial.

Todavia, em certo sentido, o cristã o tem um “fundamento”. Deus é a fonte ú ltima do


conhecimento e também o padrã o para o conhecimento. Mas também é importante dizer
que nosso conhecimento dele é mediado pela revelaçã o. Assim, estamos sempre numa
posiçã o de dependência, no sentido de que nã o dependemos apenas do pró prio Deus, mas
também do conhecimento tá cito que Deus nos deu. Nosso conhecimento inclui
familiaridade com outras pessoas, e essa familiaridade, especialmente com pais, irmã os,
irmã s, professores e colegas de aula, tem sido ú til para nos levar ao estado de
conhecimento em que vivemos atualmente com adultos.

E quanto ao coerentismo?  O cristã o deve, é claro, rejeitar qualquer coerentismo que nunca
reconheça um padrã o derradeiro em relaçã o à s ideias em sua pró pria mente. No entanto,
também podemos ver uma ponta de verdade no coerentismo, pois o processo de crescer
desde a infâ ncia envolve uma interaçã o coerente com pais, professores e o mundo. Essa
interaçã o ocorre de acordo com o desígnio de Deus e a providência de Deus e em meio à
presença de Deus. Nossas crenças mudam e se desenvolvem à medida que interagem umas
com as outras e com as crenças daqueles que nos rodeiam. (Portanto, devemos levar em
conta a dimensã o social do conhecimento.) Nesse processo estamos interagindo com
normas divinamente dadas. Nã o estamos aprisionados em nossa pró pria “casa” de crenças,
como uma forma secular de coerentismo poderia sugerir.
Por fim, o contextualismo faz certo sentido à luz da experiência comum. Na maioria das
vezes tomamos por certas nossas crenças. Nossa inspeçã o crítica de uma ideia ou crença
em particular geralmente ocorre dentro de algum tipo de contexto limitado. O
contextualismo pode ser visto simplesmente como um tipo de observaçã o sobre a
experiência humana típica em situaçõ es comuns. Mas o contextualismo está errado se finge
que nunca fazemos questionamentos sobre as coisas de fato ú ltimas, por exemplo, a forma
como justificamos o conhecimento como um todo, em oposiçã o à forma como justificamos a
crença específica de que o roubo é errado. As pessoas, afinal de contas, têm a experiência
de fazer questionamentos cada vez mais pró ximos das questõ es finais. Se o roubo é errado,
deve ser porque existem padrõ es morais que podem ser conhecidos. Portanto, o que sã o
padrõ es morais, e como eles podem ser conhecidos? Quando Julieta acha que o roubo é
errado, está apenas ouvindo suas pró prias preferências? O contextualismo ignora essas
questõ es amplas, desiste de respondê-las ou se torna uma forma de coerentismo.

Se quisermos, podemos ver aqui um indício de que vá rias perspectivas estã o em açã o. O
fundacionalismo é como uma perspectiva de partícula, pelo menos no que diz respeito ao
conhecimento bá sico. Cada pitada de conhecimento bá sico é como uma partícula, distinta e
sem necessidade de suporte adicional. O coerentismo, ao contrá rio, é semelhante a uma
perspectiva de campo. Cada crença só faz sentido quando testada por meio de suas relaçõ es
— coerentes ou incoerentes? — com respeito a um círculo cada vez mais amplo de outras
crenças. O contextualismo também é semelhante ao campo, na medida em que apela para
contextos. Mas os contextos sã o limitados; sã o os contextos relevantes à soluçã o de
problemas “locais”. Nesse aspecto, o contextualismo sugere a soluçã o de problemas e tem
uma afinidade com a perspectiva de onda, que indaga sobre o progresso no tempo para
responder a uma questã o sobre conhecimento.

Essas três abordagens estã o na verdade associadas. Cada uma delas é um ponto de partida
perspectivo ú til para considerar a estrutura do conhecimento. Mas cada uma delas é
inadequada quando usada para ignorar as demais.
 

1
 

18. A alma, a mente e a psicologia


 
 

Num ponto inicial (Capítulo 1), mencionei a metafísica, epistemologia e ética como as
principais subdivisõ es dentro da filosofia. A Enciclopédia Britânica de 1910 nos oferece
uma lista mais abrangente de subdivisõ es: “psicologia [que aqui significa o estudo da mente
ou alma], epistemologia, ou teoria do conhecimento, e metafísica; depois ló gica, estética e
ética”.[150]
Além disso, existem algumas á reas mais especializadas, como filosofia do direito,
filosofia da religiã o, filosofia da linguagem, filosofia da histó ria e filosofia da ciência.

Vamos nos aprofundar brevemente em cada uma dessas á reas para ilustrar como uma
abordagem baseada na Bíblia fornece respostas distintivas. Comecemos com a psicologia.
 
 
A existência da alma
 

Em 1910, a Enciclopédia Britânica classificou a psicologia como uma subdivisã o da filosofia.


Mas hoje em dia a palavra psicologia é usada principalmente para descrever uma das
ciências sociais. No entanto, os filó sofos continuam a discutir algumas questõ es
fundacionais sobre a humanidade. Existe algo como a alma ? Ou somos apenas má quinas
bioló gicas? O que é a mente? É ela distinta do corpo — e, caso sim, como?

Como de costume, as visõ es metafísicas fazem diferença. Anteriormente discutimos o


materialismo, que diz que toda a realidade se reduz à matéria e movimento. Essa posiçã o
metafísica automaticamente leva à conclusã o de que nã o existe alma. Numa tentativa de ser
consistentes, alguns materialistas também negam a realidade da mente. Eles diriam ou que
a consciência é uma ilusã o, ou que é um reflexo de processos físicos neuronais subjacentes
no cérebro como um ó rgã o físico do corpo.

Numa visã o cristã , por outro lado, reconhecemos que Deus criou um mundo com muitas
dimensõ es e nos criou com muitas dimensõ es. Também sabemos, a partir de uma série de
textos explícitos da Bíblia, que os seres humanos continuam a viver espiritualmente depois
que seu corpo morre e se torna nã o funcional (Lc 16.19-31; 2Co 5.8; Fp 1.23; Ap 6.9-11). As
pessoas continuam a existir enquanto aguardam o momento da ressurreiçã o corporal (Jo
5.28-29). Assim, de um modo fundamental, nã o apenas somos mais do que corpos, como
podemos chegar a um estado em que somos algo além de corpos funcionais.

Deus nã o nos fornece detalhes sobre como as pessoas continuam a viver quando seu corpo
se desintegra. Mas isso nã o é um problema para Deus. É um problema para nó s, porque
todas as nossas informaçõ es científicas sobre o funcionamento dos corpos humanos
pertencem — como é natural — a esta vida. Se tentamos extrapolar desta vida para outra,
fazemos isso usando as imagens pertencentes a esta vida. E essas imagens nã o fornecem
detalhes sobre como a pró xima vida difere de maneiras decisivas deste mundo. É mera
arrogâ ncia afirmar que Deus nã o pode organizar as coisas de maneiras que nã o nos possam
ser concebíveis.

A instruçã o que Deus fornece sobre a vida apó s a morte tem implicaçõ es para esta vida,
pois reorienta nossa avaliaçã o do que é realmente importante e duradouro: “Nã o temais os
que matam o corpo e nã o podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer
no inferno tanto a alma como o corpo” (Mt 10.28). Isso também tem influência nas
abordagens reducionistas à natureza humana. Devemos reconhecer que os seres humanos
sã o criaturas ricas, com muitas dimensõ es em seu pensamento, suas motivaçõ es e seu
comportamento. A natureza humana nã o é redutível à matéria em movimento. Os seres
humanos sã o responsá veis perante Deus e continuam a ser responsá veis depois que
morrem.

A resistência ao reducionismo também ajuda em relaçã o à filosofia da mente. Na discussã o


filosó fica, a palavra mente pode servir quase como um sinô nimo para a alma ou para tudo
que seja significativo sobre a experiência distintamente humana, envolvendo percepçã o,
experiência dos sentidos, reflexo, consciência, emoçõ es, disposiçõ es e assim por diante.
Mas o termo mente está sujeito a um inconveniente, na medida em que pode nos tentar a
concentrar-nos inteiramente na percepçã o consciente , pondo de lado o conhecimento
tácito , o sono, os sonhos e outros aspectos da experiência humana. Somos mais do que
consciências. Temos personalidade. Temos compromissos morais. Podemos experimentar
comunhã o com Deus. Podemos conversar com Deus em oraçã o e ouvi-lo ao ler a Bíblia. As
pessoas podem ser morais ou imorais, nã o apenas em seu comportamento externo, mas
também nas disposiçõ es e desejos internos. O mundo é complexo, e as pessoas sã o
complicadas. Assim, uma filosofia da mente nã o pode captar a natureza humana em sua
plenitude.
 
 
A psicologia moderna
 

Também precisamos considerar a psicologia enquanto ciência social. Uma abordagem


cristã à psicologia — e, mais amplamente, à uma compreensã o da natureza humana — se
desenvolveu sob os auspícios do movimento chamado aconselhamento bíblico . [151]

Informados pela apologética pressuposicional de Van Til, uma série de conselheiros e


estudantes da Bíblia construíram sua pró pria abordagem baseada na Bíblia para as lutas
humanas pessoais e sua cura. Conselheiros bíblicos se apropriam de percepçõ es de graça
comum da psicologia secular, ciência cognitiva, psicoterapia, psiquiatria, neurofisiologia e
neurologia. Mas o fazem de dentro de seu pró prio quadro distintivo, baseado em
pressuposiçõ es bíblicas. E nã o fazem isso acriticamente. Eles filtram o que leem para
distinguir percepçõ es vá lidas das distorçõ es produzidas pelo pecado e por pressupostos
seculares mal fundamentados. Reconhecem a natureza rica e multifacetada das pessoas
humanas, em vez de tentarem reduzir a natureza humana ao comportamento aprendido ou
a um modelo médico.

O modelo médico para entender as funçõ es humanas é uma alternativa importante ao


aconselhamento bíblico. O modelo médico, na sua forma mais pura, diz que falhas humanas
de todos os tipos derivam de disfunçõ es bioló gicas, as quais podem se originar de genes
defeituosos, danos corporais causados pelo meio ambiente ou por organismos invasivos, de
desequilíbrios hormonais ou de disfunçõ es neuroló gicas. O modelo médico praticamente
reduz tudo à biologia. Tem uma afinidade com o materialismo filosó fico, que reduz tudo à
matéria e movimento.
Por outro lado, os conselheiros bíblicos adotam uma abordagem mais rica e
multidimensional. Eles reconhecem que temos um corpo. Sabem que os hormô nios e a
neurologia têm cada qual um papel no modo como funcionamos. Mas também sabem sobre
o pecado e a justiça, sobre a responsabilidade para com Deus e o homem. Nem sempre é
fá cil descobrir por que as pessoas fazem o que fazem, mas uma abordagem
multidimensional — ou abordagem multiperspectiva, se preferir — tem mais capacidade
de ajudar as pessoas, se é que as pessoas sã o seres metafisicamente complexos que
funcionam em muitas dimensõ es. Em contrapartida, uma abordagem bioló gica
unidimensional pode ajudar quando o problema bá sico é bioló gico, mas falhará em relaçã o
a qualquer outro tipo de fracasso e sofrimento humanos. [152]

1
 

19. Lógica
 
 

Nossa exploraçã o da metafísica também tem implicaçõ es para a ló gica. A ló gica deve levar
em conta o cará ter multiperspectivista do mundo e do conhecimento humano do mundo,
em vez de tentar reduzir a verdade a uma dimensã o. Como esse cô mputo muda nossa visã o
da ló gica?

Podemos somente tocar em alguns pontos principais aqui. Uma discussã o completa exigiria
muito mais espaço. [153]

 
 
A distinção Criador-criatura
 

Primeiro, nossa aná lise metafísica inclui a distinçã o Criador-criatura. Essa distinçã o tem
implicaçõ es para a ló gica. Devemos distinguir a ló gica de Deus das concepçõ es humanas de
ló gica. E qual é a ló gica de Deus? Deus é a fonte e o arquétipo da ló gica humana. Em ú ltima
aná lise, sua “ló gica” significa sua consistência para consigo mesmo. Essa consistência tem
muitas dimensõ es. Ele é fiel; nã o pode negar-se a si mesmo (2Tm 2.13).

A ló gica tem uma relaçã o pró xima com a racionalidade no que se refere à expressã o na
linguagem. E sabemos que Deus fala. Ele fala conosco na Escritura. Mas preeminentemente
fala em discurso eterno, em seu Verbo, o qual estava com Deus e era Deus desde o princípio
(Jo 1.1). O discurso de Deus em Deus o Filho mostra sua racionalidade, sua “ló gica”.

Os filó sofos estoicos antes do período do Novo Testamento especulavam sobre a razã o ou
“verbo” que era a suprema fonte racional por trá s da ordem observá vel no mundo. Eles
usavam a palavra grega logos para designar essa ordem natural. O Evangelho de Joã o usa a
mesma palavra logos para designar a segunda pessoa da Trindade, o divino Filho de Deus.
O Filho, como o Verbo de Deus, é a fonte da ordem no mundo criado.

Em vista de Joã o 1.1, podemos dizer que a racionalidade ou autoconsistência de Deus é


resumida no Filho, que é o Verbo ou a Ló gica de Deus. Esse Filho é uma pessoa, nã o uma
abstraçã o impessoal. Ele é incompreensível, assim como Deus é incompreensível. O amor
do Pai pelo Filho implica que o Pai será sempre fiel à racionalidade divina do Filho. Essa
pessoa, como a racionalidade de Deus, é o fundamento para a racionalidade humana.
Temos dois níveis para a ló gica, o nível divino e o humano. O nível divino, que nos é
incompreensível, é também a fonte para o nosso entendimento derivado. Nosso
entendimento inclui o entendimento humano da ló gica, que só temos como um dom de
Deus através da comunhã o com Deus Logos .

A ló gica é pessoal e tem dois níveis. Essas características fundamentais resultam em um


cará ter pessoal e de dois níveis para todo princípio ló gico, incluindo o que as pessoas têm
considerado ser os princípios mais fundamentais, como a lei da identidade (A é A), a lei da
nã o contradiçã o (uma declaraçã o nã o pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo e no
mesmo sentido) e a lei do terceiro excluído (uma declaraçã o é ou verdadeira, ou falsa). Por
exemplo, devido ao cará ter pessoal da lei em geral e da ló gica em particular, os princípios
ló gicos nã o podem ser nitidamente isolados das pessoas que os mantêm e conhecem.

Por um lado, cada pessoa traz a coloraçã o do seu pró prio entendimento. E seu pró prio
entendimento é de fato colorido nã o apenas pelo seu passado e sua experiência ordiná ria,
mas também pela sua atitude para com Deus. Será que ela reconhece que os princípios
ló gicos vêm de Deus, ou tenta imaginar que estã o apenas “lá fora” como abstraçõ es
impessoais?
 
 
Perspectivas sobre lógica
 

Assim como outros tipos de conhecimento, o conhecimento de princípios ló gicos envolve as


perspectivas normativa, situacional e existencial. Sabemos que a nã o contradiçã o é uma
norma, mas também a compreendemos vendo-a incorporada em situaçõ es ordiná rias. E
somos nós como pessoas que conhecemos e compreendemos; e é para nó s que o princípio
parece inegá vel. Somos assim constituídos como pessoas que podem compreender.
Portanto, nosso conhecimento da norma nos envolve, e nosso envolvimento constitui a
perspectiva existencial sobre a ló gica. As perspectivas normativa, situacional e existencial
interagem entre si.

A mudança para um ponto de vista cristã o, portanto, inclui uma abordagem


multiperspectiva à ló gica. Reconhecemos a relaçã o da ló gica nã o apenas com a existência
de normas para o raciocínio, mas também com nossa mente e com o mundo, um mundo
que contém inú meros casos em que os princípios ló gicos sã o verdadeiros. Reconhecemos
as relaçõ es multidimensionais da ló gica com a linguagem, com as representaçõ es espaciais,
com os computadores e com outras representaçõ es matemá ticas.

Também podemos ver que o procedimento usual, no tipo de ló gica formal que imita
Aristó teles, é reduzir a verdade a proposiçõ es isolá veis. Acontece que uma ú nica
proposiçã o nã o é realmente isolá vel, assim como uma ú nica característica de uma maçã ou
uma verdade sobre uma maçã também nã o sã o isolá veis. Uma verdade faz sentido em
relaçã o a muitas outras verdades e num contexto de conhecimento tá cito. E essas verdades
têm relaçõ es íntimas com as pessoas que as conhecem. Um reconhecimento do cará ter
multidimensional da linguagem, especialmente da linguagem divina, leva a um
reconhecimento das limitaçõ es inerentes a qualquer procedimento de expressar a verdade
em uma “linguagem” formalizada e artificialmente restrita.

Essa mudança tem implicaçõ es para todo o projeto de exploraçã o filosó fica, uma vez que a
filosofia tradicional e a filosofia analítica moderna dependem do uso da ló gica. E, para
grande parte da filosofia, a ló gica formal se tornou um modelo ideal que molda a maneira
como os filó sofos pensam sobre o conhecimento, o raciocínio e a racionalidade em geral.
Portanto, revisar a ló gica leva à revisã o da filosofia como um todo.

1
 

20. Estética
 
 

Uma das subdivisõ es restantes da filosofia é a estética .


 
 
Definindo estética
 

O que é estética? O Merriam-Webster’s New Collegiate Dictionary oferece três significados


para a palavra estética(s) ; o primeiro é “um ramo da filosofia que lida com a natureza da
beleza, da arte e do gosto e com a criaçã o e apreciaçã o da beleza”. [154]
Mas o que é “beleza”
e o que é “arte”? A discussã o ameaça tornar-se circular se dissermos que beleza é o que é
esteticamente bom ou que arte é um produto com valor estético . Na Enciclopédia Stanford
de Filosofia o artigo principal “O conceito de estética” indica que alguns filó sofos se
perguntam se o conceito é “inerentemente problemá tico”. Os filó sofos nã o concordam
[155]

com o significado do conceito.

A partir de um ponto de vista cristã o firmemente enraizado na Bíblia, que contribuiçã o


podemos dar a essa á rea? Nã o estou certo. Eu nã o tenho uma noçã o firme do que é o tema
ou de como discuti-lo de maneira proveitosa. É reconfortante saber que a Enciclopédia
Stanford de Filosofia revela dificuldades semelhantes entre outras pessoas.

 
Múltiplas perspectivas dos participantes das artes
 

Contudo, é-me permitido sugerir que uma abordagem multiperspectivista talvez seja ú til?
As pessoas geralmente têm respostas muito pessoais à arte. Duas pessoas podem
concordar sobre o conteú do bá sico do enredo de um filme, ou sobre o tema ou estilo de
uma pintura, ou sobre o gênero de uma peça musical. Também podem concordar sobre a
competência ou incompetência técnica na execuçã o de uma obra artística. Podem, todavia,
discordar enfaticamente na sua reaçã o pessoal à obra. Se a arte extrai respostas pessoais e
se a estética , seja ela o que for, está de algum modo intimamente relacionada com a arte, a
relaçã o com a arte sugere que diferentes pessoas podem ter diferentes pontos de vista
pessoais nessa á rea.

Assim, a aparência de confusã o sobre a natureza da estética pode ter uma explicaçã o
parcial na perspectiva existencial e na multiplicidade de pessoas que trazem o colorido
pessoal de sua pró pria vida na interaçã o com a estética. A falta de concordâ ncia e o
sentimento de confusã o podem na verdade sugerir algo sobre a orientaçã o existencial que
desempenha um papel-chave nessa á rea. A diversidade dada por Deus entre culturas e
entre pessoas dentro de qualquer cultura pode levar a uma diversidade saudá vel no
tratamento da estética.

Entretanto, a beleza nã o reside meramente “nos olhos de quem vê”. O observador


contempla a beleza que está “lá fora” (na situaçã o) e que está em conformidade com as
normas. Como de praxe, as perspectivas existencial, situacional e normativa se
harmonizam coerentemente. A reaçã o existencial do observador, a obra de arte está vel na
situaçã o e os padrõ es normativos de beleza e técnica funcionam juntos.

Cada pessoa pode, se desejar, produzir sua pró pria definiçã o de estética e entã o
desenvolver uma perspectiva pessoal baseada nessa definiçã o. (Mas, como de costume,
cada pessoa deve tomar cuidado para nã o incluir falsos compromissos ou suposiçõ es
dentro de seu ponto de partida.) As perspectivas mú ltiplas de mú ltiplas pessoas podem
aprimorar nosso conhecimento e apreciaçã o se pudermos nos libertar da influência funesta
do pecado.
 
 
O entrelaçamento da estética com os contextos: o tabernáculo
 

Ademais, nossas conclusõ es sobre a metafísica sugerem que, como quer que acabemos
definindo a estética, ela oferece uma dimensã o entre muitas outras à medida que
experimentamos o mundo. A capacidade artística e literá ria aparece na Bíblia na
construçã o do taberná culo. A habilidade para a construçã o é dada pelo Espírito Santo:
 
Disse entã o o SENHOR a Moisés: “Eu escolhi Bezalel, filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá , e o enchi
do Espírito de Deus , dando-lhe destreza, habilidade e plena capacidade artística para desenhar e
executar trabalhos em ouro, prata e bronze, para talhar e esculpir pedras, para entalhar madeira e
executar todo tipo de obra artesanal. (Ê x 31.1-5, NVI)

As vestes sagradas especiais que Bezalel fez para Arã o e seus filhos para o ministério no
taberná culo sã o especificamente ditas serem “para gló ria e ornamento ” (Ê x 28.2). [156]

Portanto beleza, talento artístico e capacidade artística aparecem na Bíblia como dons de
Deus. Eles nã o aparecem isoladamente, mas como parte de um projeto maior — a descriçã o
do taberná culo e sua construçã o. A “estética”, seja ela o que for, pertence a um todo maior
que possui muitas características. O mesmo vale para o templo de Salomã o, descrito em 1
Reis 5-8, a visã o do templo de Ezequiel em Ezequiel 40-48 e a nova Jerusalém em
Apocalipse 21.1-22.5.

O Novo Testamento deixa claro que o taberná culo do Antigo Testamento apontava para o
clímax da redençã o. Deus vem habitar com seu povo de maneira suprema e culminante em
Cristo. Cristo é chamado de Emanuel, “que quer dizer: Deus conosco ” (Mt 1.23). Joã o 1.14
anuncia que “o Verbo [a segunda pessoa da Trindade] se fez carne e habitou entre nó s”. A
palavra grega traduzida como “habitou” nesse versículo é incomum e alude à habitaçã o de
Deus no taberná culo do Antigo Testamento, de modo que Joã o 1.14 poderia ser mesmo
traduzido como “o Verbo se fez carne e tabernaculou entre nó s”. Joã o também indica que o
corpo de Jesus é o santuá rio final: “Ele [Jesus], porém, se referia ao santuá rio do seu corpo”
(Jo 2.21).

Assim, a arte e beleza culminantes de Deus aparecem em Cristo. Com base nisso podemos
inferir que Deus é realmente belo (como se pode ver também em Ap 4.3). Sua beleza é a
beleza original e arquetípica. As coisas belas neste mundo possuem beleza ectípica. Sua
beleza é especificada por Cristo, que é o Verbo de Deus.

Hoje em dia, a arte nem sempre envolve uma representaçã o de coisas belas, mas chama por
vezes atençã o para coisas feias. Nosso mundo hoje nã o é totalmente belo, em parte porque
sofre sob os efeitos da queda no pecado (Rm 8.20-21). Os artistas podem à s vezes escolher
representar em sua arte as tensõ es encontradas em um mundo contaminado pelo pecado.
 
 
Desenvolvimentos adicionais
 
Essas observaçõ es representam simples pontos de partida. Já confessei minha pró pria falta
de um entendimento mais profundo em estética, e por isso deixarei o trabalho para outros.
[157]

1
 

21. Ramos especializados da filosofia


 
 

Resta-nos considerar vá rios ramos especializados da filosofia: filosofia do direito, filosofia


da religiã o, filosofia da linguagem, filosofia da histó ria, filosofia da ciência e o estudo da
histó ria da filosofia. Vamos considerá -los um de cada vez.
 
 
Filosofia do direito
 
Primeiro, consideremos a filosofia do direito. O arquétipo para a lei humana é a lei de Deus.
Quando usamos o termo lei em relaçã o a Deus, podemos tratar o termo como uma
perspectiva sobre tudo o que Deus diz. Tudo o que Deus diz é, em certo sentido, “lei”, pois é
sempre o discurso assertivo do rei e legislador divino. Mas o termo lei sugere um enfoque
nos mandamentos de Deus e, mais especificamente, nos mandamentos relacionados à
conduta e vida humanas.

Subordinados aos mandamentos de Deus, temos de lidar com os mandamentos humanos


que sã o dados por legislaturas, empregadores, pais e outros revestidos de autoridade. Os
seres humanos podem promulgar mandamentos porque imitam Deus, que fez os seres
humanos à sua imagem. Esses mandamentos humanos representam um exercício de
autoridade humana, que é autorizada por Deus.

O livro de Frame A doutrina da vida cristã expõ e o assunto da autoridade humana,


especialmente sob a discussã o do quinto mandamento, que dá orientaçã o sobre o
significado e a natureza da autoridade humana. Através de suas implicaçõ es, o quinto
mandamento também fornece um contexto para a compreensã o das leis feitas pelo homem.
Tais leis sã o produzidas por autoridades humanas. Precisamos avaliá -las usando a lei de
Deus como o padrã o ú ltimo. As autoridades humanas, seja no governo civil, seja na
educaçã o, seja nos meios de comunicaçã o, seja nos negó cios, seja na família ou na igreja
têm sua autoridade porque Deus as outorgou (Rm 13.1). A realidade da outorga de Deus,
assim como a realidade dos seus padrõ es, forma o contexto para o entendimento das leis e
regulamentos nã o apenas no governo civil, mas também em outras á reas da sociedade. [158]
Em contraste, a filosofia secular tem problemas para explicar a origem da lei, pois (com
poucas exceçõ es) nã o quer apelar a Deus. Mesmo os filó sofos que apelam a Deus podem
querer evitar o apelo à Bíblia como a palavra de Deus. Mas sem tal apelo, as pró prias ideias
que têm de Deus podem se perder e eles, por sua vez, também podem se perder no modo
como avaliam a lei como um todo e os exemplos de leis específicas. Por exemplo, eles
podem atribuir a Deus seu pró prio desejo por igualdade abstrata e usar isso como um
argumento para redistribuir a riqueza. Ou um explorador rico pode se eximir dizendo a si
pró prio que aqueles que lhe sã o subordinados estã o aí por determinaçã o de Deus e podem,
portanto, ser livremente explorados.

Algumas pessoas diriam que a lei se origina meramente do consenso humano. Mas essa
visã o nã o dá a nenhum ser humano individual uma razã o moral para obedecer a uma lei da
qual discorde. É verdade, ele ainda pode obedecer por medo de má s consequências. Mas,
novamente, ele pode desobedecer, caso julgue poder safar-se.

Ademais, essa visã o nã o protege o indivíduo da tirania da maioria. O perigo dessa tirania é
evidente a partir dos exemplos histó ricos. Hitler chegou ao poder por meios
constitucionais. E muitos na sociedade alemã , levados por sua retó rica, concordaram com
os rumos políticos que Hitler escolhia. Mas a força torna algo correto? A vontade da maioria
torna algo correto? Deus diz que nã o.

Outros filó sofos poderiam tentar rastrear a origem da lei na utilidade: lei seria qualquer
coisa que ajudasse no florescimento humano. Mas existem dificuldades aqui. Mais uma vez:
essa visã o pode fornecer uma base moral adequada para a obediência individual? Nã o
poderia um indivíduo argumentar que deve trabalhar para seu pró prio florescimento
individual e nã o para o de qualquer outra pessoa? E, mais uma vez, há a ameaça de a
vontade da maioria tornar-se uma tirania. E se o florescimento da maioria pudesse ocorrer
melhor por meio da degradaçã o ou eliminaçã o da minoria? Hitler queria se livrar dos
judeus porque achava que eram um problema para a sociedade como um todo.

A partir desses simples exemplos, podemos ver como é difícil fornecer uma base adequada
para a lei se nos concentrarmos apenas no nível humano.
 
 
Filosofia da religião
 
Consideremos, em seguida, a filosofia da religiã o. De certo modo, temo-nos dedicado o
tempo todo a questõ es relacionadas à filosofia da religiã o, pois tentamos lidar em cada
ponto com a realidade de Deus. Mas, uma vez que usamos a distinçã o Criador-criatura e
porque estamos dispostos a usar a Bíblia, nosso modo de abordagem é notavelmente
diferente de boa parte da discussã o que ocorre na filosofia da religiã o.

Na ú ltima metade do século XX e no século XXI muita coisa aconteceu na filosofia analítica
da religiã o. Nã o é possível entrar em detalhes. Podemos encontrar percepçõ es fascinantes
nesse campo, mas perigos podem também se infiltrar pela porta dos fundos.
Se nã o nos atentarmos à distinçã o Criador-criatura e à nossa necessidade da instruçã o
verbal de Deus sobre si mesmo na Bíblia, corremos o risco de desviarmo-nos para um
caminho em que raciocinamos autonomamente ou, de outro modo, o de contemporizarmos
com os desejos por uma razã o autô noma. Se tentamos racionalizar o cará ter de Deus,
podemos sucumbir ao pensamento nã o cristã o acerca da imanência e transcendência de
Deus. Numa visã o nã o cristã da imanência de Deus, supõ e-se que a racionalidade humana
lida adequadamente com Deus e que Deus está no mesmo nível racional do homem. Ou,
numa noçã o nã o cristã de transcendência, Deus é inacessível e incognoscível por meios
racionais.
 
Pluralismo e exclusivismo na religião
 
Além disso, a Bíblia dá uma notá vel ênfase ao fato de que a religiã o pode ser ou verdadeira
ou falsa. Deus é o ú nico Deus verdadeiro. Em sua santidade, ele detesta a adoraçã o falsa de
substitutos para Deus. A idolatria o insulta. Além do mais, a idolatria trai o conhecimento
que todos os seres humanos, em todos os lugares, têm sobre Deus em virtude da criaçã o
(Rm 1.18-23).

A distinçã o da Bíblia entre o Deus verdadeiro e os falsos deuses, e entre a verdadeira e a


falsa religiã o, nã o se coaduna com algumas filosofias da religiã o. Se uma pessoa se devota à
racionalidade universal, sua devoçã o pode tentá -la a “nivelar” todas as religiõ es e a rejeitar
a distinçã o entre verdadeiro e falso. O pluralismo que é comum na vida moderna reforça
ainda mais essa rejeiçã o.

 
 
Filosofia da linguagem
 
Consideremos agora a filosofia da linguagem. O que podemos dizer sobre a natureza da
linguagem? Como já deixamos claro em nossa discussã o sobre metafísica, Deus fala. Ele é o
orador original ou arquetípico. Portanto, a linguagem existe em dois níveis, o nível divino e
o humano. E os dois níveis interagem de acordo com o desígnio de Deus. A linguagem como
a conhecemos nã o é meramente humana. É uma dá diva de Deus, e a dá diva expressa o
cará ter do doador. O pró prio Deus ordena todas as regularidades de todas as linguagens do
mundo através de sua determinaçã o soberana em seu discurso, especificando a natureza de
todas elas. Deus projetou as linguagens naturais como meios para ele falar conosco e nó s
com ele, nã o apenas para que pudéssemos falar com outros seres humanos. Nosso
pensamento sobre a linguagem precisa ajustar-se a essa realidade. Nã o podemos investigar
o assunto em detalhes aqui. Mas encaminho os leitores a uma discussã o em tamanho de
livro: In the Beginning Was the Word: Language — A God-Centered Approach [No princípio
era o Verbo: Linguagem – uma abordagem teocêntrica] [159]

 
 
Filosofia da história
 
O que podemos dizer sobre uma filosofia da histó ria? A Bíblia tem muito a dizer sobre a
histó ria. A Bíblia parte do princípio, com a criaçã o do mundo. Termina na consumaçã o, com
a criaçã o dos novos Céus e da nova Terra. Explica os propó sitos de Deus do princípio ao
fim. Entrementes, coloca a obra da redençã o de Cristo. Quando tomamos todas essas coisas
em conjunto, temos uma filosofia bá sica da histó ria, porque entendemos do que trata a
histó ria. [160]
Grande parte da filosofia secular da histó ria realmente expressa um
descontentamento com a imagem dada pela Bíblia, e o descontentamento leva a buscas por
um substituto que possa ser construído através do pensamento autô nomo.
 
 
Filosofia da ciência
 

E quanto à filosofia da ciência? O governo abrangente de Deus sobre o mundo tem


implicaçõ es para nosso entendimento da ciência. Mais uma vez, a distinçã o Criador-
criatura faz diferença. Nosso entendimento da ciência é subordinado e derivativo em
comparaçã o com o entendimento que Deus tem do mundo e seu governo sobre ele. Visto
que Deus governa o mundo inteiro pela sua palavra (Hb 1.3), sua palavra de comando
especifica todas as coisas sobre o mundo. As ciências humanas exploram aspectos das
regularidades que Deus outorgou em sua sabedoria. Os seres humanos engajados na
ciência estã o, portanto, pensando os pensamentos de Deus depois dele analogicamente na
á rea da ciência. Seus pensamentos e suas teorias sã o derivativos: os seres humanos dã o
seus melhores palpites e fazem suas melhores aproximaçõ es, os quais refletem as leis
reais . As leis reais sã o palavras de Deus. Podemos fazer progresso na compreensã o dos
fundamentos da ciência se partimos de Deus e do ensino da Bíblia sobre Deus. Essas
questõ es sã o abordadas mais detalhadamente no livro Redimindo a ciência . [161]

 
A história da filosofia
 

Além de todas essas subdivisõ es da filosofia, algumas classes acadêmicas na filosofia


adotam principalmente uma abordagem histó rica. O professor conduz a aula examinando
algum filó sofo em particular ou grupo de filó sofos do passado. A classe se dedica
principalmente a tentar compreender o filó sofo em vez de avaliar se ele está certo sobre
esta ou aquela questã o. Afinal, como um aluno seria capaz de dar uma resposta definitiva à
questã o do certo ou errado sem ter ele pró prio resolvido a dificuldade em questã o e, assim,
ter ele pró prio feito uma participaçã o muito significativa na filosofia?

Como um cristã o poderia responder a todo esse filosofar? Para responder detalhadamente
seriam necessá rios muitos livros. Mas os princípios gerais sã o fá ceis de resumir.
[162]

Podemos reconhecer vá rios princípios.


(1) Todos os seres humanos vivem no mundo de Deus e nã o podem deixar de conhecer
Deus (embora possam suprimir seu conhecimento de Deus — Rm 1.18).

(2) Os seres humanos recebem muitos benefícios de Deus pela graça comum, e esses
benefícios incluem benefícios intelectuais na forma de percepçõ es e conhecimentos de
muitas verdades.

(3) Por causa dos princípios 1 e 2, podemos aprender muito com os outros,
particularmente com aqueles que foram dotados ricamente por Deus.

(4) A histó ria da filosofia está repleta de casos em que os filó sofos adotam um
compromisso com a razã o autô noma e nã o conseguem distinguir a racionalidade do
Criador da racionalidade deles pró prios, como criaturas. Eles se perdem nos fundamentos.
Na raiz, seu pensamento é antitético à fé cristã .

(5) A maioria dos filó sofos falha em se submeter ao ensino das Escrituras. Até mesmo os
cristã os podem ser tentados a seguir esse caminho quando adotam as regras bá sicas da
autonomia para dialogar com os incrédulos.

(6) Separar o bom do ruim numa filosofia específica nã o é fá cil. O bom está completamente
misturado ao ruim; em parte porque até o ruim, para parecer plausível, deve falsificar algo
bom.

1
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Parte 6

 
INTERAGINDO COM FILOSOFIAS DEFEITUOSAS
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
22. O desafio das filosofias
 
 

A ideia bá sica da filosofia cristã é simples: no que quer que você esteja pensando, preste
atençã o em Deus e no que ele diz na Bíblia. Receba a instruçã o da Bíblia como a instruçã o
de Deus que lhe dá sabedoria.

É mais fá cil falar do que fazer. Mas a pró pria Bíblia oferece um recurso. A provisã o de Deus
em sua palavra é das mais valiosas, pois o discurso de Deus é puro (Sl 12.6). Nã o
precisamos peneirá -la criticamente para o bem e para o mal. Precisamos que ela nos
peneire, para nossa purificaçã o: “Santifica-os [os discípulos] na verdade; a tua palavra é a
verdade” (Jo 17.17).
 
 
O desafio da apropriação crítica
 
Interagir com filosofias anteriores nã o é simples. O pecado humano contamina todos os
trabalhos meramente humanos. Os escritos de filosofia têm algumas percepçõ es positivas
em virtude da graça comum. Mas também têm algumas distorçõ es por causa dos efeitos do
pecado sobre o pensamento humano. Separar o bom do ruim nã o é fá cil.

Os escritos de outras pessoas sã o sempre potencialmente valiosos, pois cada pessoa traz
para sua escrita a singularidade de quem ela é. Os filó sofos amiú de oferecem perspectivas
novas e criativas sobre o mundo ou sobre algum assunto dentro da filosofia. Muitos deles
sã o pessoas extraordinariamente brilhantes. Suas perspectivas podem suplementar a nossa
e, interagindo com mú ltiplas perspectivas, podemos crescer em conhecimento, em
profundidade e em sabedoria.

Podemos crescer, digo eu. Mas também podemos nos desviar do caminho. Grande parte da
histó ria da filosofia ocidental tem sido motivada pelo desejo religioso subjacente por
autonomia. Esse desejo se mostra no pró prio fato de um autor ignorar o que a Bíblia diz. Ou
ele trata a Bíblia como apenas mais uma obra humana. Parte considerá vel do trabalho
realizado em nome da filosofia tem sido aberta ou veladamente hostil à fé cristã .
 
 
As tentativas de cristãos
 
Ao longo das eras, os cristã os têm refletido sobre filosofia. Em nossos dias, podemos
trabalhar em cima do que eles fizeram. Alguns cristã os têm de fato se apercebido do
contraste entre a fé cristã e aquilo que os filó sofos oferecem e se engajado na apropriaçã o
crítica das ideias filosó ficas, ao invés de sua mera aceitaçã o. Agostinho interagiu
criticamente com a filosofia platô nica. Tomá s de Aquino interagiu criticamente com
Aristó teles.

Podemos ser gratos por essas tentativas. Mas algumas delas nã o foram críticas o bastante .
O crítico que queira (corretamente) apropriar-se de percepçõ es positivas pode ao mesmo
tempo acabar absorvendo mais do que pretende. Ele pode ser corrompido ao tempo em
que está aprendendo. John Frame discute com discernimento a questã o de se apropriar de
percepçõ es da filosofia grega antiga. Ele emite esse alerta à luz da histó ria anterior de
tentativas:

Combinar a perspectiva cristã com a grega nã o é aconselhá vel. Podemos aprender hoje com as perguntas que os
gregos fizeram, com os seus fracassos, com as percepçõ es que eles expressam em pormenores. Mas devemos
rigorosamente evitar a noçã o de autonomia racional e o esquema de forma-matéria como uma cosmovisã o
abrangente. Infelizmente durante o período medieval e além, os teó logos cristã os confiavam extensivamente no
neoplatonismo e (começando com Tomá s de Aquino) no aristotelismo. Aquino, por exemplo, distinguia entre
razã o natural (que opera à parte da revelaçã o) e fé (que complementa nossa razã o com a revelaçã o). Entã o
aludia repetidas vezes a Aristó teles como “o filó sofo” que nos guia em questõ es de razã o natural. [163]

 
 
A contribuição de Cornelius Van Til
 
Cornelius Van Til, em seu desenvolvimento da apologética pressuposicional, foi o pioneiro
de uma interaçã o crítica mais aprofundada com a filosofia. Os pró prios trabalhos de Van Til
fornecem exemplos disso, e o trabalho segue adiante entre seus seguidores.
[164] [165]

Recentemente, Frame produziu um importante trabalho ao interagir com a histó ria da


filosofia; essa obra pode servir como um recurso-chave. Nem todo mundo pode fazer
[166]

isso de forma competente. Sã o necessá rias pessoas com fé forte e dons especiais, e por
vezes estô mago forte, para se reconhecer disparates quando estes assumem formas muito
atraentes, para rejeitá -las completamente e, ainda assim, acolher até o ú ltimo fragmento de
percepçã o positiva.

1
 

23. Immanuel Kant


 
 

A título de exemplo, vejamos o caso de Immanuel Kant (1724-1804). Kant é um filó sofo [167]

complexo e sutil, e por isso consideraremos apenas uma minú scula porçã o, as linhas
iniciais de sua Crítica da razão pura :

Nã o resta dú vida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência; efetivamente, que outra
coisa poderia despertar e pô r em açã o a nossa capacidade de conhecer senã o os objetos que afetam os
sentidos e que, por um lado, originam por si mesmos as representaçõ es e, por outro lado, põ em em
movimento a nossa faculdade intelectual e levam-na a compará -las, ligá -las ou separá -las,
transformando assim a matéria bruta das impressõ es sensíveis num conhecimento que se denomina
experiência? Assim, na ordem do tempo , nenhum conhecimento precede em nó s a experiência e é com
esta que todo o conhecimento tem o seu início.

Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso nã o prova que todo ele derive da
experiência. Pois bem poderia o nosso pró prio conhecimento por experiência ser um composto do que
recebemos através das impressõ es sensíveis e daquilo que a nossa pró pria capacidade de conhecer
(apenas posta em açã o por impressõ es sensíveis) produz por si mesma, acréscimo esse que nã o
distinguimos dessa matéria-prima, enquanto a nossa atençã o nã o despertar por um longo exercício que
nos torne aptos a separá -los. [168]

Kant segue explicando que um acréscimo que venha de nossa “capacidade de conhecer” é
um conhecimento a priori , que “distingue-se do empírico , cuja origem é a posteriori , ou
seja, na experiência”. [169]
Nessa discussã o inicial, Kant já está trabalhando para estabelecer uma distinçã o entre a
contribuiçã o da mente ( a priori ) e a contribuiçã o cujas fontes estã o na experiência ( a
posteriori ). Para Kant essa distinçã o é importante para estabelecer fundamentos positivos
para o exercício da razã o na ciência e para estabelecer as limitaçõ es do escopo da razã o. O
argumento de Kant aqui desempenha um papel significativo em todo o seu sistema.
 
 
A graça comum em Kant
 
Primeiro, podemos ver um elemento de graça comum. Kant está vendo todo o projeto do
conhecimento humano a partir da perspectiva do conhecedor. Está perguntando como nó s,
sujeitos humanos, temos a experiência subjetiva que temos. Está operando de maneira
semelhante ao que Frame chamou de perspectiva existencial . Essa perspectiva é realmente
uma perspectiva sobre todas as coisas que os seres humanos conhecem, incluindo Deus.
Numa cosmovisã o cristã , a perspectiva existencial se harmoniza e entrelaça com as
perspectivas normativa e situacional. Deus (o foco da perspectiva normativa) e o mundo (o
foco da perspectiva situacional) podem ser ambos vistos da perspectiva do que nó s, como
pessoas humanas, podemos experimentar e conhecer sobre eles. É revelador ver Deus e o
mundo a partir dessa perspectiva, e John Frame faz isso (naquelas partes de A doutrina do
conhecimento de Deus que empregam a perspectiva existencial).

Kant faz o mesmo. Quando usamos uma perspectiva, notamos coisas que talvez nã o
tenhamos notado antes por meio de outras perspectivas. Experimentamos novas
percepçõ es. As observaçõ es de Kant se tornam particularmente adequadas quando
consideramos o desenvolvimento, no século XX, da psicologia experimental, da
neurociência experimental e do exame experimental das complexidades dos ó rgã os
sensoriais nos seres humanos. Descobrimos que ocorre uma enorme quantidade de
processamento fisioló gico e neuroló gico na produçã o da experiência humana. As
declaraçõ es de Kant sobre a experiência sensorial e a investigaçã o posterior do século XX
contêm muitas percepçõ es positivas que se devem à graça comum.

A dificuldade que resta é aquela que já discutimos sobre as perspectivas. Particularmente


em um contexto nã o cristã o, uma perspectiva pode ser usada como a chave exclusiva. O
usuá rio, entã o, dá a impressã o de que tudo pode ser reduzido à s dimensõ es especificadas
pela ú nica perspectiva. Em particular, Kant acha que a distinçã o entre conhecimento a
priori e conhecimento da experiência ( a posteriori ) é uma percepçã o fundamental que nos
leva à s raízes do mundo. Ele acha que tem uma distinçã o precisa e pensa
monoperspectivamente. Mas Kant acaba negando que podemos conhecer Deus, ao menos
pela “razã o pura”, e nega que podemos conhecer o mundo na forma “da coisa em si”. Deus e
o mundo sã o reduzidos à s dimensõ es da perspectiva existencial, tal como Kant a constró i.

Mesmo aqui o pensamento de Kant contém grã os de verdade. Nã o podemos conhecer Deus
da mesma maneira e na mesma profundidade que Deus se conhece. Nem tampouco
podemos conhecer o mundo na mesma profundidade que Deus. O que Kant diz é tentador,
pois ele está contrapondo percepçõ es genuínas a algumas das limitaçõ es do conhecimento
humano. Mas distorçõ es podem se insinuar. Talvez a “razã o pura” acabe sendo uma razã o
autônoma , a qual faz de si mesma um falso deus ou falso absoluto e em seguida declare que
qualquer “deus” que nã o possa se encaixar em suas expectativas para o domínio humano
no conhecimento necessariamente nã o é cognoscível.

Mas estamos nos adiantando muito, olhando para algumas das conclusõ es que surgem mais
tarde no desenvolvimento da filosofia kantiana. Nosso ponto nã o é considerar todos os
argumentos e conclusõ es em detalhes, mas ressaltar que uma interpretaçã o do significado
da perspectiva existencial no início das operaçõ es filosó ficas de Kant pode ter uma grande
influência sobre o fim. O início parece plausível porque tem grã os de verdade. Mas já no
início a natureza da perspectiva existencial pode ser mal interpretada de maneira decisiva,
ainda que sutilmente, a ponto de o leitor médio — e o pró prio Kant — nã o o perceber. As
conclusõ es sã o incorporadas no ponto de partida.
 
 
Análise de termos
 
Portanto, comecemos por analisar o argumento inicial de Kant examinando termos-chave.
Esses termos podem ter imprecisã o ou ambiguidade, o que torna possível introduzir uma
visã o distorcida da perspectiva existencial. Os termos parecem prometer nos dar a
estrutura profunda da realidade, ou pelo menos do lado epistemoló gico da realidade. Mas
eles contêm dificuldades, pois nã o sã o perfeitamente precisos.

Que termos-chave ocorrem nas linhas iniciais de Kant? Vá rios: “conhecimento”,


“experiência”, “capacidade de conhecer”, “objetos”, “[nossos] sentidos”, “representaçõ es”,
“nossa faculdade intelectual”, “ligá -las ou separá -las”, “a matéria bruta das impressõ es
sensíveis”, “[aquele] conhecimento que se denomina experiência”. Nenhuma dessas
expressõ es é definida com precisã o. Todas sã o bem gerais. Nã o estamos falando sobre o
conhecimento de Sally, o cavalo, ou das maçã s que minha esposa trouxe do supermercado
para casa. Estamos falando num alto nível de generalidade. Como conhecemos a relaçã o do
uno, o termo geral, com o mú ltiplo, as experiências específicas de cavalos e maçã s?

Pode-se observar a existência de uma tensã o ou mesmo de um enigma com relaçã o ao


significado de “conhecimento”. Tome-se a segunda frase do primeiro pará grafo da citaçã o
de Kant. Quase no fim da frase Kant nos fala sobre aquele “conhecimento que se denomina
experiência”. “Experiência” é quase um sinô nimo de conhecimento. Mas antes disso, somos
informados sobre “os objetos que afetam os sentidos”, sobre os quais a atividade do nosso
entendimento opera e trabalha, “transformando assim a matéria bruta das impressõ es
sensíveis”.
 
 
A narrativa de produzir conhecimento de objetos
 
Há uma narrativa aqui, uma histó ria de como chegamos a ter a “experiência” que constitui o
conhecimento. Existem vá rias etapas na histó ria. A histó ria começa com “os objetos que
afetam os sentidos”. Primeiro, temos “objetos”. Os objetos agem; sã o uma causa de um
efeito. Eles “afetam os sentidos”. Entã o “originam por si mesmos as representaçõ es”. O que
sã o “representaçõ es”? Talvez Kant se refira a algo parecido com conceitos mentais. Os
objetos também “põ em em movimento” alguma coisa. Outra expressã o causal, a expressã o
“põ em em movimento”, ocorre aqui. O que é posto em movimento é “a nossa faculdade
intelectual”. Essa faculdade se encarrega de “compará -las” e se engaja em “ligá -las ou
separá -las”, isto é, de ligar ou separar as representaçõ es. Mais atos causais existem aqui. Na
ú ltima parte da frase, parece haver um resumo: a atividade de entender “[transforma] a
matéria bruta das impressõ es sensíveis”. Há mais atividade causal aqui no evento de
“transformar”. O que é transformado é “a matéria bruta das impressõ es sensíveis”. O
produto que resulta desse “transformar” é que a matéria bruta é transformada ou
modificada em outra coisa, a saber, “num conhecimento que se denomina experiência”.

Uma das perguntas ó bvias é sobre “conhecimento”. Se o “conhecimento” pertence apenas à


etapa final ou produto final da narrativa, como Kant sabe de todo o resto? Como ele espera
que saibamos? Em particular, como podemos saber no que consiste “a matéria bruta das
impressõ es sensíveis” antes de ela ser “transformada” e modificada em conhecimento? Se
Kant conhece todas as etapas antes de a narrativa chegar à meta, isto é, à obtençã o de
conhecimento, talvez seja porque também temos conhecimento da experiência sensorial do
tipo que supostamente existe antes de ela ser “transformada”.

Por exemplo, as pessoas podem, por um esforço de concentraçã o, suprimir seu


conhecimento de que estã o olhando para uma maçã e considerar apenas as manchas de cor
e brilho. O efeito é algo parecido com o efeito artístico do pontilhismo, uma técnica de
pintura em que uma cena é reduzida a minú sculos pontos de cor. Mas, para “afastar
mentalmente” a presença de uma maçã e pensar apenas nas cores e em seu arranjo
espacial, é preciso uma considerá vel concentraçã o intelectual e determinaçã o. O uso da
concentraçã o intelectual parece estar em tensã o com a expressã o “matéria bruta” de Kant.
A experiência de manchas de cor e brilho nã o é literalmente “matéria bruta”, mas um efeito
intelectual bastante sofisticado de conscientemente “afastar mentalmente” todas as outras
dimensõ es da experiência e se concentrar firmemente na cor e no brilho que pertencem a
vá rios pontos no campo visual. Esse método de afastamento mental só pode ser possível
devido a profundas motivaçõ es pessoais que capacitem uma pessoa a querer olhar para a
“experiência” de uma nova maneira criativa. Da mesma forma, o estudo neuroló gico dos
nervos sensoriais e do có rtex sensorial do cérebro exige uma considerá vel potência
intelectual. Nã o é algo muito “bruto”. Entã o, quem sabe, Kant nã o pretendia seguir esse
caminho. Talvez ele dissesse que as coisas que menciona sã o conhecidas por nó s mediante
inferência.
 
 
Múltiplas suposições, múltiplas perspectivas
 
Que inferências levam à narrativa de Kant? Poderiam diferentes pessoas ter diferentes
narrativas? Ademais, poderia sua potência intelectual ser utilizada de vá rias maneiras
diferentes para produzir vá rias tentativas diferentes de analisar a vida humana até o nível
de seu esqueleto metafísico? Os empiristas querem ter peças irredutíveis da experiência
sensorial. O que querem dizer com “experiência” é a experiência anterior à nossa
“transformaçã o” dela em “objetos”. Os objetos sã o uma construçã o posterior em vez de
coisas que “afetam [nossos] sentidos”. Os idealistas querem começar com conhecimento,
conceitos ou ideias — certos tipos de entidades que existem na mente — porque nã o
acham que podemos justificá -los. De acordo com seu ponto de vista, falar sobre “matéria
bruta” é falar um absurdo, pois nã o temos acesso a ela. Eles se perguntariam se a narrativa
de Kant sobre uma busca por conhecimento nã o passa de pura especulaçã o, excedendo os
limites da razã o.

Os fisiologistas e neurologistas modernos que estudam a percepçã o humana têm suas


pró prias narrativas, que sã o perspectivas situacionais ú teis sobre o funcionamento das
partes do corpo humano. Mas será que essas narrativas têm uma prioridade metafísica
sobre tudo o mais? É o caso da narrativa de Kant? Ou podemos nó s como cristã os dizer,
como uma perspectiva, que Deus dá a minha experiência atual e me dá conhecimento dela?

O que é um “objeto”? Kant quer confinar a “experiência” à experiência dos “sentidos”.


Assim, os “objetos” que fazem parte dessa experiência só podem ser objetos sensoriais,
como cadeiras, maçã s e cavalos. Para um empirista, entretanto, a verdadeira “experiência
sensorial” consiste em manchas de cor que existem em vá rios locais: objetos como cadeiras
e maçã s sã o altamente estruturados mediante o uso de conceitos prévios de cadeiras e
maçã s. Se ignorarmos a objeçã o empirista e começarmos com cadeiras e maçã s, a
abordagem de Kant ainda será reducionista. Nó s experimentamos a presença de Deus,
embora possamos suprimi-la. Também apreciamos as ideias de outras pessoas quando as
ouvimos ou lemos seus escritos. Nó s “experimentamos” pessoas e suas ideias, nã o apenas
“sentidos”. Quando se concentra nos “sentidos”, Kant exclui Deus, a linguagem e as pessoas
desde o princípio.

Kant, portanto, já está fazendo movimentos que buscam pavimentar os caminhos que
determinarã o o que é metafisicamente derradeiro. Ele faz isso por suposiçõ es, nã o por
argumentos. As suposiçõ es estã o ocultas no vocabulá rio e na narrativa inicial. Dificilmente
há outra maneira de fazer isso, já que os filó sofos têm de usar a linguagem, e o uso da
linguagem sempre depende de suposiçõ es. Mas isso parece tã o inocente, tã o ó bvio e tã o
atraente porque faz uso de uma perspectiva — a perspectiva existencial. Ao mesmo tempo,
é um uso distorcido, pois afirma ser derradeiro em vez de parcial.
 
 
Desconstrução
 
A desconstruçã o encontrou diversã o desconstruindo narrativas como as de Kant. Os
desconstrucionistas estã o cientes de que as palavras podem escapar. Além disso, as
narrativas filosó ficas têm a bagagem conceitual da estrutura narrativa, com suas fases
típicas de desenvolvimento do enredo. Podemos catalogar algumas fases que existem no
enredo inerente à narrativa de Kant: (1) o desejo (o observador pensando “quero um
conhecimento que ainda nã o tenho”), (2) o movimento do enredo (causa e efeito, depois
mais causa e efeito, ligar ou separar — chegaremos ao nosso objetivo?), (3) teste
(“transformar… em”) e (4) resoluçã o (“aqui está ; chegamos; obtivemos conhecimento”). [170]

Os desconstrucionistas se conscientizaram da linguagem e isso os fez perceber que Kant e


outros filó sofos clá ssicos trazem consigo uma série de pressupostos. Os
desconstrucionistas têm feito algumas boas observaçõ es por conta da graça comum. Mas
deve ficar claro, quando inspecionamos a linguagem de um ponto de vista cristã o, que
temos pressupostos diferentes dos deles. [171]

Em sua discussã o subsequente na Crítica da razão pura , Kant vai além. Ele deseja
distinguir cuidadosamente entre as conquistas da mente e as conquistas alcançadas pelo
objeto. A mente e o objeto externo se tornam como dois personagens numa histó ria. Kant
avalia que efeitos pertencem a cada um dos dois “personagens”. A exemplo o personagem
de um livro de histó rias – o pai da princesa em um conto folcló rico de Vladimir Propp –, [172]

Kant quer recompensar as figuras de heró i em sua histó ria de acordo com os seus feitos.
Sua narrativa segue um enredo convencional.

Em uma cosmovisã o cristã , mente e objeto sã o correlativos; a mente está em foco com a
perspectiva existencial, e os objetos estã o em foco com a perspectiva situacional. Por causa
da coinerência ectípica, ou a mente ou o objeto podem ser usados como uma perspectiva.
Mas nã o podemos realizar uma perfeita separaçã o mental entre as contribuiçõ es de ambos.
O arquétipo para o mistério da relaçã o entre sujeito e objeto é o original divino. Deus
conhece a si mesmo. O Pai conhece o Filho. Pai e Filho sã o simultaneamente sujeito e
objeto.

1
 

24. Edmund Husserl


 
 
Edmund Husserl (1859-1938) pode servir como nosso pró ximo exemplo. Husserl é outro
filó sofo complexo, sutil e influente, e nã o podemos entrar numa ampla discussã o de sua
abordagem (ele é o pai da fenomenologia e influenciou Martin Heidegger, Maurice Merleau-
Ponty e Paul Ricoeur). Podemos ilustrar uma aná lise crítica de Husserl usando vá rios
fragmentos pequenos de sua obra central, Ideias . [173]
O primeiro fragmento é da introduçã o de Ideias : “[Para entender a fenomenologia] uma
nova maneira de ver as coisas é necessá ria, que contraste em cada ponto com a atitude
natural da experiência e do pensamento”. Essa linguagem parece prometer uma nova
[174]

perspectiva. De fato, a fenomenologia, como Husserl a desenvolve, é uma forma de


perspectiva existencial: partimos de uma pessoa e consideramos sua consciência do mundo
ao seu redor, assim como a consciência que ela tem de si mesma. Mas há muitas
perspectivas possíveis e muitas maneiras de proceder dentro de um enfoque existencial.
Mais questioná vel é a afirmaçã o de Husserl de que a “fenomenologia pura” será
apresentada como sendo “a regiã o mais fundamental da filosofia”. Parece ser a ambiçã o [175]

de encontrar a estrutura profunda do mundo.

Porque o ponto de vista fenomenoló gico é tã o diferente da “atitude natural”, Husserl se


compromete em avançar em passos graduais. O procedimento é complexo. Mas, no
processo, o que fazemos com o fato de que os termos e as discussõ es contêm analogias e
nã o sã o perfeitamente está veis? Considere as primeiras linhas do primeiro capítulo:
 
O conhecimento natural começa pela experiência e permanece na experiência. Na orientaçã o teó rica
que chamamos “natural”, o horizonte total de investigaçõ es possíveis é, pois, designado com uma só
palavra: o mundo . As ciências dessa orientaçã o originá ria sã o, portanto, em sua totalidade, ciências do
mundo. [176]

O que é “natural”? O que é “experiência”? Isso inclui a “experiência” de Deus? O que é “o


mundo”? Isso inclui Deus?

A explicaçã o segue adiante e fala sobre “percepçã o”:


 
Temos experiência originá ria das coisas físicas na “percepçã o externa”, nã o mais, porém, na recordaçã o
ou na expectativa antecipató ria; temos experiência originá ria de nó s mesmos e de nossos estados de
consciência na chamada percepção interna ou de si, mas nã o dos outros e de seus vividos na “empatia”.
“Observamos o que é vivido pelos outros” fundados na percepçã o de suas exteriorizaçõ es corporais.
[177]

 
Essa discussã o distingue entre o que é “primordial” e o que nã o é. Ao fazê-lo, prioriza certos
aspectos da “experiência”. Por que deveríamos fazer essa distinçã o, e por que deveríamos
achar que um aspecto é mais “primordial” que outro? Husserl assume, em vez de
demonstrar, a supremacia de um indivíduo e sua consciência em comparaçã o com um
grupo de pessoas e suas interaçõ es. Ele parece influenciar a discussã o em favor do
individualismo ocidental. Em resposta, alguém poderia dizer que bebês interagem com
seus pais e irmã os no processo de aprender quem sã o, aprendendo como devem interagir
socialmente e aprendendo idiomas. A interaçã o interpessoal é, nesse sentido, “primordial”
em comparaçã o com a autoconsciência adulta individual e a experiência adulta de
percepçã o.
Ademais, à medida que a retó rica de Husserl flui para dentro de nó s, corremos o perigo de
confinar a “percepçã o externa” à percepçã o sensorial . De maneira similar a Kant, podemos
reduzir a “experiência” à “experiência sensorial” e deixar de fora nossa interaçã o social
robusta com outras pessoas humanas e com Deus. Husserl fala da “percepçã o do seu
comportamento corporal” como um meio pelo qual obtemos conhecimento dos outros.
Essa expressã o parece deixar de fora a comunicaçã o linguística. Uma das chaves para
entender as outras pessoas é ouvi-las. Nã o estamos apenas ouvindo seus lá bios emitirem
sons (uma reduçã o à experiência sensorial). Estamos ouvindo pessoas.

Husserl se enreda numa certa seletividade. Essa seletividade é uma perspectiva. Sim, nó s
podemos observar que, através de sons, ouvimos as pessoas. Mas a seletividade pode voltar
para nos perseguir mais tarde. Será que produzimos o problema filosó fico do solipsismo, o
problema de outras mentes? Tendo eliminado as outras pessoas no início, podemos
recuperá -las mais tarde, ou permaneceremos prisioneiros dentro de nossa pró pria mente?
Será que pensamos estar interagindo nã o com outras pessoas, mas com nossas
“percepçõ es” e “ideias” que “constituem” “pessoas” como objetos de nossa consciência?
Podemos enfocar perspectivamente tal ponto de vista, mas ele é apenas uma perspectiva.
Tratá -lo como fundacional é uma reduçã o.

Husserl segue para discorrer um pouco mais sobre o que tem em mente quando fala sobre
“o mundo”: “O mundo é o conjunto completo dos objetos da experiência possível e do
conhecimento possível da experiência, dos objetos passíveis de ser conhecidos com base
em experiências atuais do pensamento teorético correto”. As ambiguidades aqui nã o
[178]

nos permitem dizer claramente que tipo de visã o de Deus é compatível com essas
expressõ es. Encontramo-nos com Deus na “experiência” porque ele está em toda a parte
presente no mundo — tal como entende uma visã o cristã da imanência divina?
Encontramo-nos com ele especialmente em “experiências religiosas”, certos momentos
espiritualmente intensos? Caso sim, nã o estaremos, ao descartar a experiência “religiosa”,
inconscientemente implicando que Deus está ausente na maior parte do tempo da
experiência comum?

Ou podemos nos mover na direçã o oposta. Estaria Deus ausente porque a “experiência”
está sendo concebida como a experiência das coisas criadas por si mesmas,
independentemente da presença de Deus? Ou, se Deus está presente, está ele presente de
tal maneira que podemos dominá -lo com um “pensamento teorético ordenado”, como
implicaria a imanência nã o cristã ? Ou está presente como o Senhor que governa a
“experiência”? Se nã o formos cuidadosos, uma visã o nã o cristã de transcendência e
imanência se infiltrará logo que estivermos lendo as primeiras linhas do livro. Nã o
pretendo julgar os motivos de Husserl, mas estou sugerindo o que no mínimo pode
acontecer aos leitores. Uma vez trazida uma visã o nã o cristã do “Mundo” para dentro de
uma obra, os leitores podem corromper a leitura de todo o resto do livro.

Segue Husserl:
 
Os atos cognitivos fundantes da experiência põ em o real individualmente , eles o põ em como espaço-
temporalmente existente, como algo que está neste momento do tempo, tem esta sua duração e um
conteú do de realidade que, por sua essência, podem igualmente estar em qualquer outro momento do
tempo. [179]

 
Ora, “o Real” acaba por ter uma “existência espaço-temporal”, o que aparentemente exclui
Deus. Seria essa explicaçã o adicional um estreitamento do sentido, ou simplesmente um
esclarecimento adicional do que se pretendeu dizer mais cedo nessa pá gina? Husserl
também introduz a ideia de “essência”, que é um termo-chave. O que ele significa? Esse
termo nos remete de volta à discussã o sobre essência e acidentes no capítulo 11 e sobre as
dificuldades que vêm a reboque quando nos apressamos em achar que sabemos
exatamente o que queremos dizer. A preocupaçã o de Husserl com as essências está
intimamente relacionada com seu interesse por categorias “puras”, que mais cedo
havíamos caracterizado como um ideal problemá tico.

Em suma, mesmo essa breve exploraçã o de Husserl mostra que as pá ginas iniciais de sua
discussã o contêm um cipoal de dificuldades, tã o logo começamos a fazer perguntas sobre
os significados de termos-chave. Também podemos ver seletividade na obra — a
seletividade de falar sobre a “experiência” de um modo que em larga medida ignore ou
coloque a linguagem e as relaçõ es interpessoais em segundo plano; a seletividade de “o
Mundo”, aparentemente concebido de forma independente de Deus; a seletividade na
escolha de ver “essência” como algo central; e a seletividade na alegaçã o de que a
“fenomenologia pura” é “a regiã o mais fundamental da filosofia”. Como acontece em Kant, a
construçã o dessa filosofia depende de uma linguagem que nã o assegurou seus pró prios
fundamentos.

1
 

25. Filosofia analítica


 
 
Os filó sofos da tradiçã o analítica podem até ser simpá ticos com algumas críticas de Platã o
ou Kant, mas distinguem a tradiçã o analítica como uma tradiçã o que está ciente da
linguagem e age com grande cuidado. Sim, existe certo tipo de cuidado. Mas muitas
questõ es ainda podem ser levantadas. Por exemplo, esse mesmo cuidado analítico é
exercido quando os filó sofos analíticos tentam abordar questõ es maiores? [180]

 
 
Bertrand Russell
 
Podemos tomar como exemplo Bertrand Russell. Ele realizava seu trabalho técnico dentro
da tradiçã o da filosofia analítica, mas também explorava implicaçõ es maiores. Ao discutir
algumas das implicaçõ es, diz: “É admitido como certo que o conhecimento científico, em
suas linhas gerais, deve ser aceito”. Isso parece ser de bom senso, e Russell fala mais
[181]

adiante sobre o “senso comum científico”. Russell sabe muito bem que uma busca pela
[182]

sabedoria humana nã o pode alçar voo sem suposiçõ es. A seu juízo, os produtos da ciência
oferecem o ponto de partida mais confiá vel. Portanto, construirá sobre eles. E aqui está
uma das conclusõ es a que ele chega:
 
Que o homem é o produto de causas que nã o tinham previsã o do fim que estavam alcançando; que sua
origem, seu crescimento, suas esperanças e temores, seus afetos e crenças nã o passam do resultado de
ordenaçõ es acidentais de á tomos; que nenhum fogo, nenhum heroísmo, nenhuma intensidade de
pensamento e sentimento podem preservar uma vida individual ao além-tú mulo; que todo o labor de
todas as eras, toda a devoçã o, toda a inspiraçã o, todo o brilho meridiano do gênio humano estã o
fadados à extinçã o na grande morte do sistema solar e todo o templo das conquistas humanas deve
restar inevitavelmente soterrado sob os escombros de um universo em ruínas — todas essas coisas,
ainda que nã o estejam além de qualquer controvérsia, sã o todavia quase tã o certas que nenhuma
filosofia que as rejeite pode esperar permanecer de pé. Somente no andaime dessas verdades, somente
no firme fundamento do desespero inexorá vel, é que a habitação da alma pode ser doravante erigida
com segurança. [183]

 
Em resposta, devemos certamente afirmar que a ciência moderna é um produto
maravilhoso da graça comum. Mas a confiança de Russell na ciência passa por cima de
praticamente todas as questõ es importantes sobre a natureza deste mundo. Poderia ser o
caso de que um viés religioso e premissas defeituosas estejam sob a estrutura do
secularismo do século XX na ciência? Poderia ser também que, para chegar a conclusõ es
materialistas, as pessoas correm o risco de argumentar em círculos?

Se podemos simplificar em demasia essa visã o materialista, a ciência começa com a decisã o
de enfocar o material — matéria, movimento e energia. Em seguida, obtém resultados
sobre o comportamento da matéria, movimento e energia. As pessoas se surpreendem com
os resultados e acham assim que esses resultados sã o o cerne do conhecimento. Concluem
entã o que, no fim das contas, o mundo é apenas matéria, movimento e energia. A conclusã o
decorre da natureza da decisã o original, nã o da natureza do mundo. [184]

 
A teoria dos atos discursivos
 
Ou podemos considerar a teoria dos atos discursivos. Aqui está um programa mais
modesto na tradiçã o da filosofia analítica, um programa para entender os compromissos e
as transaçõ es sociais realizadas pelo discurso humano. Podemos encontrar percepçõ es
aqui que se devem à graça comum. Também podemos ver simplificaçõ es e reduçõ es. O foco
está em frases simples, nã o no discurso complexo de mú ltiplos pará grafos. O foco está em
atos discursivos simples com propó sitos simples, nã o na comunicaçã o com propó sitos mais
complexos e multidimensionais.

Essas reduçõ es sã o relativamente inofensivas se admitimos que estamos reduzindo as


questõ es a uma ou algumas dimensõ es. Mas se tornamos a aná lise de atos discursivos um
elemento de uma plataforma filosó fica que iremos alavancar para conhecer a realidade,
temos o mesmo problema de Kant e Husserl. Nossas categorias se tornam os pilares sobre
os quais construímos a metafísica. [185]

 
 
Suposições tácitas
 
A tradiçã o da filosofia analítica tem-se ocupado com a tarefa da aná lise crítica de questõ es
filosó ficas. Mas tem-se ocupado igualmente com a aná lise crítica dos pressupostos bá sicos
de sua pró pria tradiçã o? Tem realmente levado a sério o que Michael Polanyi escreveu, ou
Hans-Georg Gadamer, ou a filosofia cosmonô mica, ou a desconstruçã o, ou o romantismo?
Essas alternativas existem por uma razã o. Aqueles que habitam nessas tradiçõ es estã o
bastante convencidos de que a filosofia analítica tem sérias deficiências em seus
fundamentos.

Os filó sofos analíticos percebem essas deficiências? Em resposta, nã o basta os filó sofos
analíticos simplesmente criticarem as alternativas com argumentos que tacitamente se
baseiem em suposiçõ es nã o verificadas pertencentes à sua pró pria tradiçã o. Se a
irracionalidade é autorrefutá vel, isso nã o significa que somente o entendimento deles da
racionalidade sobrevive.

Assim, os desafios a um filó sofo em particular ou a uma tradiçã o filosó fica mais ampla
podem surgir nã o apenas à medida que examinamos criticamente termos-chave, mas
também à medida que examinamos criticamente suposiçõ es ocultas, como as suposiçõ es
que inevitavelmente pertencem à pró pria ideia de racionalidade e à textura que o
raciocínio filosó fico vai imitar.

1
 

Conclusão
 
 
A filosofia começou como a busca pela sabedoria. A sabedoria ainda vale a pena ser
buscada. O livro de Provérbios afirma a importâ ncia da sabedoria:
 
… adquire a sabedoria , adquire o entendimento. (Pv 4.5)
 
O princípio da sabedoria é: Adquire a sabedoria ; sim, com tudo o que possuis, adquire o entendimento.
Estima-a, e ela te exaltará ; se a abraçares, ela te honrará ; dará à tua cabeça um diadema de graça e uma
coroa de gló ria te entregará . (Pv 4.7-9)
 
A Bíblia vai além desse tipo de exortaçã o e convite instruindo-nos na sabedoria. Deus fala, e
por isso o que ouvimos é a sabedoria de Deus. Essa sabedoria é resumida em Cristo (1Co
1.30; Cl 2.3), que é o Logos de Deus (1Jo 1.1).
A partir desta fonte podemos crescer em sabedoria. Obtemos respostas para as grandes
questõ es, incluindo respostas que abordam as preocupaçõ es da tradiçã o da filosofia
ocidental. Nas geraçõ es anteriores, e em trabalhos anteriores nesta geraçã o, muito já foi
feito para explicar as respostas da Bíblia de maneiras que ajudam a tornar essas respostas
claras e acessíveis. Assim, neste livro, pudemos fazer um tour rá pido que consolida o que
foi feito. Além disso, abordamos mais detalhadamente a questã o da metafísica.
Perguntamos o que existe e como isso existe. O perspectivismo trinitá rio, como
desenvolvido por John Frame e por mim, oferece recursos para ir além dos reducionismos
que sã o característicos de muitas filosofias e passar para uma filosofia saudá vel, que de
acordo com Frame pode ser definida como teologia.
 
 
Outras áreas?
 
A aprendizagem continua durante esta vida, de geraçã o em geraçã o. Aproveitamos
contribuiçõ es do passado, mas podemos sempre aprender mais, explorar mais e aprender
mais profundamente. Podemos corrigir o que achamos ter sido feito de maneira errada por
geraçõ es anteriores. Assim, o que exploramos neste livro, bem como o que foi realizado em
outros livros aqui citados, nã o nos leva a um ponto final. Espero que ofereça um começo, ao
sugerir orientaçõ es e encorajamentos para aqueles que vierem depois.
 
Porque as armas da nossa milícia nã o sã o carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas,
anulando nó s sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus, e levando cativo
todo pensamento à obediência de Cristo . (2Co 10.4-5)
 
Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a gló ria de Deus. (1Co
10.31)

1
 

Apêndice A
 
Filosofia cosmonômica
 
 
Aprendi com muitos outros para chegar ao ponto de escrever este livro. Destaquei
Abraham Kuyper, que enfatizava que Cristo é o Senhor de toda a vida. Kuyper argumentou
que os cristã os devem ter uma abordagem distintiva para os estudos acadêmicos, e estou
me esforçando para fazer o que ele almejava. Também tenho uma dívida com Cornelius Van
Til, que aprendeu com Kuyper e se tornou uma fonte mais imediata para grande parte deste
livro que guarda semelhança com o pensamento de Kuyper. A influência de John Frame
também é evidente por toda parte.
 
 
Os fundadores da filosofia cosmonômica
 
Além disso, durante os anos de 1967-1973 li literatura da tradiçã o “neokuyperiana”,
incluindo Herman Dooyeweerd (1894-1977), Dirk H. Th. Vollenhoven (1892-1978),
Hendrik van Riessen (1911-2000) e Hendrik G. Stoker (1899-1993). Esses homens
[186]

queriam construir a partir da herança de Abraham Kuyper e queriam ver o crescimento de


uma filosofia genuinamente cristã . Eles desenvolveram uma linha de pensamento que tem
sido chamada de filosofia cosmonômica . [187]
Aprendi com eles e os honro por suas
tentativas. Aprecio particularmente Vollenhoven, pois seus escritos incluem a discussã o de
uma abordagem cristã para a matemá tica e a ló gica. [188]
Ele e os outros filó sofos
cosmonô micos me desafiaram a ser totalmente cristã o em meu pensamento, incluindo
aquelas á reas que a maior parte do mundo considera ser religiosamente neutras.
 
 
Ênfases da filosofia cosmonômica
 
Quais eram algumas das ênfases da filosofia cosmonô mica?
 
As raízes religiosas do pensamento
 
Em primeiro lugar, os filó sofos cosmonô micos argumentavam que as raízes e
compromissos religiosos do coraçã o influenciam toda reflexã o teorética. Essa ideia
remonta a Kuyper, Calvino e Agostinho, que discutiram a diferença que surge por causa da
obra de regeneraçã o do Espírito Santo. Os filó sofos cosmonô micos tentavam descrever com
mais detalhes como os compromissos religiosos fundamentais influenciavam a orientaçã o
do pensamento.
 
A armadilha dos dualismos
 
Em segundo lugar, os filó sofos cosmonô micos criticavam os dualismos , oposiçõ es bipolares
artificialmente absolutizadas no pensamento. A filosofia grega tinha um dualismo de
forma-matéria. A filosofia medieval tinha um dualismo de natureza-graça. O pensamento
iluminista tinha um dualismo de ciência-liberdade. Os dualismos tipicamente surgem
porque os pensadores perderam a percepçã o da realidade de Deus, cuja unidade pessoal e
plano abrangente unificam toda a criaçã o.
 
A armadilha dos reducionismos
 
Em terceiro lugar, os filó sofos cosmonô micos criticavam todas as formas de reducionismo .
O reducionismo surge habitualmente quando os seres humanos perdem Deus de vista. Sem
Deus no quadro, eles tentam explicar todo o mundo criado reduzindo-o a uma camada
fundamental. Por exemplo, o empirismo filosó fico considera a experiência sensorial como
fundacional. Ele se empenha em “construir” tudo o mais a partir da camada fundacional da
experiência sensorial. Assim, o empirismo reduz a realidade à camada da experiência
sensorial. O psicologismo reduz toda a vida à psicologia humana. As formas reducionistas
da sociologia reduzem toda a vida à interaçã o social. O marxismo reduz a vida a estruturas
de produçã o material e economia. O materialismo ou naturalismo reduz o universo a
matéria e movimento. O idealismo reduz o universo a ideias mentais. Em contraste com
todas essas visõ es, a filosofia cosmonô mica enfatiza a riqueza irredutível e o cará ter
multidimensional do mundo criado.
Concordo com todas essas três ênfases e acredito que elas aparecem em minha pró pria
discussã o sobre metafísica.
 
A distinção de “esferas modais”
 
Em quarto lugar, na filosofia cosmonô mica a abordagem antirreducionista se combina com
a prá tica de distinguir entre “esferas modais”. De acordo com a filosofia cosmonô mica,
vá rias esferas modais distintas fazem parte do cosmo. Cada esfera modal tem seu pró prio
significado e nenhuma é reduzível a outra. Diferentes publicaçõ es cosmonô micas dã o listas
ligeiramente diferentes das esferas modais, mas eis uma comum: primeiro a esfera
quantitativa, em seguida a esfera espacial, depois a cinética, física, bió tica (relacionada à
vida orgâ nica), psíquica (sensível e sensorial), ló gica, histó rica, lingual, social, econô mica,
estética, jurídica, ética e pística (fiduciá ria, pertencente à fé e certeza). Elas vêm numa
ordem fixa, das esferas mais baixas (quantitativas) à s mais altas (písticas), como segue:
 
• pística
• ética
• jurídica
• estética
• econô mica
• social
• lingual
• histó rica
• ló gica
• psíquica
• bió tica
• física
• cinética
• espacial
• quantitativa
 
Quando comecei a ler sobre filosofia cosmonô mica, a ideia de esferas modais me interessou
imediatamente. Senti que, em alguns aspectos, ela era acessível e valiosa por conferir
concretude e especificidade ao ímpeto antirreducionista da filosofia. Ao mesmo tempo,
nenhuma das esferas era definida com precisã o — ao menos na literatura que li. Tive
dificuldade para saber se as tinha compreendido corretamente.
 
Universalidade da esfera
 
Em quinto lugar, a filosofia cosmonô mica falava da universalidade da esfera . Além de cada
esfera ter seu pró prio significado, cada esfera tem conexõ es com o resto. A filosofia
cosmonô mica usava a expressã o universalidade da esfera para descrever as conexõ es em
que uma esfera parecia refletir-se em outra. Por exemplo, uma pessoa pode representar os
nú meros espacialmente escrevendo-os um apó s outro numa linha. A esfera quantitativa é
assim refletida na esfera espacial. Essa ideia está ao lado da ideia de que cada esfera é como
um motivo ou tema inicial que pode ser usado como uma perspectiva sobre Deus, o mundo
e o eu. Assim, a filosofia cosmonô mica tem uma afinidade com o multiperspectivismo que
Frame e eu usamos. Mas nã o passa de uma afinidade. Em nosso multiperspectivismo,
seguimos nosso pró prio caminho.
 
 
As diferenças com a filosofia cosmonômica
 
E por que seguimos nosso pró prio caminho? Eu admiro a motivaçã o cristã dos filó sofos
cosmonô micos, e assim talvez seja melhor deixar em silêncio a maioria das diferenças. Mas
algumas diferenças precisam de discussã o para que nosso trabalho seja definido no
contexto do passado.
 
Usando a Bíblia
 
Uma diferença dificilmente pode escapar à vista. John Frame e eu citamos livremente a
Bíblia e esperamos que a Bíblia guie nosso pensamento sobre as grandes questõ es. Frame
até mesmo propõ e, como uma possível perspectiva, que simplesmente identifiquemos a
filosofia com a teologia. Ele e eu achamos que historicamente a filosofia tem cometido um
terrível equívoco ao excluir, na prá tica, o uso direto da Bíblia e tentar chegar a algum lugar
usando apenas o raciocínio geral. Deus jamais pretendeu que operá ssemos dessa maneira.
E apó s a Queda torna-se ainda mais crucial recebermos a instruçã o da Bíblia com toda a
mansidã o, pois ela serve para nos purificar do pecado, incluindo os efeitos pecaminosos
sobre a mente.
Devemos aplicar a Escritura a todos os aspectos da vida. Em nenhuma á rea somos livres
para ignorá -la. Nem tampouco devemos estabelecer limites de antemã o sobre o que Deus
escolherá dizer ou nã o na Escritura. A filosofia cosmonô mica corretamente enfatiza que a
Escritura é a palavra de Deus e tem uma mensagem fundamental dirigida ao nosso coraçã o.
Mas pareceu a Frame e a mim que, na prá tica, alguns dos escritos cosmonô micos
estreitaram essa “mensagem”: eles implicavam que a Escritura falava apenas ao “coraçã o” e
não a quaisquer questõ es específicas que surgissem no estudo de uma ú nica esfera modal.
Será que as pá ginas da Escritura dizem algo sobre a ressurreiçã o física do corpo (esfera
física), sobre a origem da vida humana (esfera bió tica), sobre a natureza dos padrõ es éticos
(esfera ética), sobre a historicidade do êxodo do Egito (esfera histó rica) ou sobre o
fundamento da ló gica (esfera ló gica)? Estudemos a Escritura fielmente e sigamos aonde ela
nos leva, em vez de nos achegarmos a ela com julgamentos de antemã o sobre quais
questõ es ela abordará ou nã o. [189]

Espero que tenha sido esse o desejo da filosofia cosmonô mica. Mas será que foi bem-
sucedida? Frame e eu queremos fazer isso. Temos sido bem-sucedidos? Nenhum de nó s,
como seres humanos caídos, teremos um sucesso perfeito. Outros devem peneirar o que
tivermos feito, tendo em vista servir ao nosso Mestre.
 
A distinção entre Criador e criatura
Precisamos também considerar a distinçã o Criador-criatura. Deus é Criador e é ú nico. Tudo
o que ele fez sã o pois criaturas. Todas as criaturas sã o dependentes dele e finitas. A
distinçã o entre Criador e criatura pode ser resumida no quadrado de Frame, como
discutido no capítulo 8. Esse quadrado ilustra nã o apenas como deveríamos pensar sobre
nossa relaçã o com Deus, mas também como não pensar — isto é, deveríamos evitar visõ es
nã o cristã s de Deus. É crucial que mantenhamos tanto a subordinaçã o do nosso
conhecimento ao de Deus (que é a visã o cristã da transcendência, canto 1) quanto a
autenticidade do nosso conhecimento de Deus (que é a visã o cristã da imanência, canto 2).

Nesse contexto, o status da palavra de Deus tem importâ ncia. Frame e eu enfatizamos que,
quando Deus fala, seu discurso mostra seu cará ter. Seu discurso tem sabedoria, autoridade,
retidã o, verdade e poder divinos. Quando Deus fala conosco como criaturas, estrutura seu
discurso para que este possa de fato nos alcançar. Pelo poder do Espírito Santo, podemos
chegar ao seu entendimento. Mas seu discurso nã o é meramente da natureza de criaturas . É
divino — tem atributos divinos. Nã o é um terceiro tipo de “coisa”, distinto de Deus e
distinto das criaturas. É Deus falando.

O discurso de Deus para nó s é misteriosamente mediado pelo Filho e pelo Espírito. Além
disso, quando Deus fala conosco como criaturas, utiliza meios criados, quer sejam tá buas de
pedra, quer sejam ondas sonoras vindas do Monte Sinai. Tecnicamente falando, as ondas
sonoras e as tá buas de pedra, tratadas como se fossem meramente objetos físicos, nã o sã o a
palavra de Deus. Sã o o veículo pelo qual a palavra de Deus vem a nó s. As tá buas de pedra
sã o a mídia gravada na qual Deus escreveu sua palavra permanentemente para todas as
geraçõ es. Quando a palavra de Deus vem a nó s, ouvimos Deus , nã o apenas ondas sonoras.
Quando lemos a Bíblia, ouvimos Deus; também vemos papel e tinta, mas olhamos, por
assim dizer, através do papel e da tinta para o que a Bíblia diz . O papel e a tinta nos
permitem entender as palavras e as frases e a mensagem: as palavras sã o as palavras de
Deus. [190]

A revelaçã o culminante de Deus está no Cristo encarnado. Cristo é tanto Deus como
homem, tanto Criador como criatura. Ele nã o é uma terceira coisa que nã o seja nem
Criador, nem criatura. Assim, essa revelaçã o culminante confirma o princípio de que nã o há
uma terceira coisa intermediá ria entre o Criador e a criatura.

Essas reflexõ es têm relevâ ncia nã o apenas para nossa compreensã o da Bíblia, mas também
para nossa compreensã o das palavras que Deus fala para governar a criaçã o (Hb 1.3). Essas
palavras também sã o divinas em suas características. Elas sã o a verdadeira “lei” para o
universo.

A filosofia cosmonô mica tentou lidar com a distinçã o Criador-criatura. Mas ao discutir a lei,
alguns dos escritos da filosofia cosmonô mica nã o parecem ter sido tã o claros quanto
poderiam. A filosofia cosmonô mica tem como uma de suas categorias fundamentais a ideia
de lei , uma lei “có smica” para o universo (nã o apenas a lei moral promulgada no Monte
Sinai). O status dessa lei faz diferença. É a lei divina ? É Deus falando? Ou é uma terceira
coisa? E se dissermos (como creio que não deveríamos) que é uma terceira coisa, nã o acaba
nos separando de Deus e promovendo um cená rio em que Deus ameaça ser um Deus
incognoscível por trá s da lei? Se a lei có smica é uma terceira coisa, a lei e nã o Deus se torna
a ú nica coisa à qual temos acesso real. Essa conclusã o seria contrá ria à s intençõ es mais
profundas dos fundadores da filosofia cosmonô mica. Mas tal conclusã o pode, contudo,
insinuar-se involuntariamente se nã o deixarmos claro o status da lei.

Tomemos um exemplo em particular: é a lei có smica a fonte de nossa ideia de justiça (de
acordo com a “esfera jurídica”)? É essa “justiça” um atributo do pró prio Deus, ou apenas um
produto de criatura? Se dissermos que é um atributo do pró prio Deus, ainda podemos cair
no padrã o do canto 4 do quadrado de Frame e tentar tornar Deus sujeito à s nossas noçõ es
humanas limitadas sobre o que a justiça poderia ser. Por exemplo, alguns filó sofos
argumentam que é “injusto” Deus punir Cristo pelos pecados dos outros. Eles tomam a si
mesmos, e nã o a Escritura, como seu padrã o.

Se, por outro lado, dizemos que a justiça pertence meramente à criaçã o, nossas palavras
inadvertidamente colocam Deus além da justiça. Tornamos Deus incognoscível, como no
canto 3 do quadrado de Frame. Contradizemos a Escritura, a qual diz, no discurso do
pró prio Deus, que ele é justo. Claramente, é fá cil cair em formas de pensamento nã o cristã o
sem percebê-lo. De fato, até onde nosso coraçã o ainda esteja contaminado pelo pecado,
todos nó s temos tentaçõ es nessa á rea.

A ideia de justiça é apenas um dos casos em que o desafio existe. Cada uma das esferas
modais da filosofia cosmonô mica pode ser tratada ou a partir de uma visã o cristã , ou a
partir de uma visã o nã o cristã de conhecimento. A visã o nã o cristã torna a ética, a
linguagem, a ló gica e a estrutura familiar coisas meramente do nível das criaturas. Mas se
tal fosse o caso, Deus nã o teria uma ética, nã o poderia falar, nã o poderia ser consistente e
nã o poderia ser nosso Pai. Ele seria incognoscível (canto 3). Ou a visã o nã o cristã identifica
as concepçõ es humanas de ética, linguagem, ló gica e família com o padrã o absoluto. Ela
tenta sujeitar Deus à s concepçõ es humanas, como se essas fossem ú ltimas (canto 4).

Precisamos da instruçã o das Escrituras e da obra do Espírito de Cristo para nos conduzir a
uma concepçã o totalmente cristã , na qual conheceremos Deus através da instruçã o bíblica.
Essa instruçã o nos mostra como Deus se revela verdadeiramente na revelaçã o geral,
através da justiça, ética, linguagem, ló gica, interaçã o social e todos os aspectos da vida.
[191]

Flexibilidade em relação às perspectivas

As perspectivas que John Frame e eu usamos têm afinidade com as esferas modais da
filosofia cosmonô mica. Dentro de nossa abordagem perspectiva, podemos certamente
distinguir vá rios focos, como ilustrado em minha discussã o da metafísica de uma maçã
(capítulo 12). A lista cosmonô mica comum de esferas modais oferece um valioso ponto de
partida se a virmos como uma possibilidade para uma lista de perspectivas. Mas tenho me
perguntado, desde o meu primeiro encontro com a filosofia cosmonô mica, como alguém
justificaria o fato de escolher essa lista em vez de qualquer outra. Teria ela alguma
[192]

singularidade fundacional em contraste com qualquer outra lista de mú ltiplas


perspectivas? À medida que minha apreciaçã o do valor das perspectivas foi aumentando,
incluindo possíveis perspectivas ainda nã o incluídas em uma caixa de ferramentas mental
formalmente organizada, me perguntei se uma lista fixa nã o acabaria sendo limitante. Nã o
poderíamos sempre adicionar mais perspectivas? E quanto a uma perspectiva “pedagó gica”
associada à educaçã o? Uma perspectiva “epistêmica” que reflita sobre o conhecimento e o
processo de conhecer? Uma perspectiva de “manufatura” que enfoque o fazer e o elaborar?
Uma perspectiva “informacional” que enfoque o aspecto informacional da comunicaçã o? [193]

Ademais, nã o está claro para mim o significado da alegaçã o dentro da filosofia


cosmonô mica de que há uma ordem fixa nas esferas modais, da inferior para a superior. [194]

Ao que me parece, meu uso de perspectivas abrange todas as esferas modais da filosofia
cosmonô mica, afirmando-as como possíveis perspectivas. Ao mesmo tempo, acrescento
também outras perspectivas. Essa forma de antirreducionismo me parece ir além da
filosofia cosmonô mica, pois nã o apenas cada esfera modal, mas também cada perspectiva,
em uma lista mais ampla e extensível, tem sua pró pria peculiaridade. E cada coisa criada
individualmente tem sua peculiaridade (minha maçã ). Cada equaçã o na física ou química
tem sua pró pria peculiaridade. A lista de esferas modais ajuda, pois combate muitas formas
proeminentes de reducionismo. Mas continuo preocupado se a lista é entendida como
completa. A lista deixará aberta a tentaçã o de se praticar versõ es mais sutis de
reducionismo se a reduçã o ou explicaçã o reducionista ocorrer dentro de uma ú nica esfera
modal.

A liberdade do cristão
A filosofia cosmonô mica oferece uma forma de filosofia sistemá tica. Este livro também
oferece uma forma de filosofia sistemá tica, mas é um tanto diferente por causa do seu
compromisso de afirmar mú ltiplas perspectivas. Convido as pessoas a tratarem a filosofia
cosmonô mica como uma perspectiva sobre o mundo ou talvez como vá rias perspectivas
sobrepostas e entrecruzadas — uma de Dooyeweerd, uma de Vollenhoven, uma de Stoker e
assim por diante. Isso nã o significa que a filosofia cosmonô mica é totalmente perfeita,
mesmo quando tratada como uma perspectiva. Significa apenas que ela fornece recursos,
alguns dos quais precisam talvez passar por refinamento, reforma ou remoçã o. Seus
recursos, entã o, ofereceriam um possível ponto de partida para uma perspectiva sobre o
mundo.

John Frame e eu também oferecemos uma perspectiva. Mas é admitidamente uma


perspectiva. Nã o é a ú nica compatível com a verdade. Deixemos que os outros construam
livremente suas pró prias variaçõ es, sujeitas ao ensino da Escritura.

Se estou certo em relaçã o à metafísica do mundo, outras perspectivas também, quando


desenvolvidas em obediência à palavra de Deus, podem estabelecer a verdade. A verdade
de Deus é rica o suficiente para se desdobrar cada vez mais à medida que desenvolvemos
novas perspectivas e as usamos para aprofundar nossa apreciaçã o de perspectivas mais
antigas. Nesse processo, perspectivas distintas nã o se colocam simplesmente lado a lado
como alternativas. Em vez disso, devemos nos esforçar para ver cada perspectiva através
das outras e usar uma perspectiva para aprofundar e corrigir nossa compreensã o obtida
através de outra. Afirmamos a igual supremacia da unidade e da diversidade na
[195]

verdade e da unidade e da diversidade no conhecimento da verdade. Resistimos, por um


lado, ao racionalismo reducionista do modernismo, que se volta para uma verdade
totalizada de um tipo monolítico e monoperspectivista. Resistimos, por outro lado, ao
irracionalismo reducionista do pluralismo pó s-moderno, que perde a esperança da verdade
pacífica e, em nome da coexistência pacífica, permite que reivindicaçõ es concorrentes da
verdade permaneçam lado a lado sem nenhuma unificaçã o racional. [196]

1
 

Apêndice B
 
Perspectivas sobre a Trindade
 
 
Deus nos dá nas Escrituras algumas passagens e versículos que discutem um ou outro
aspecto do seu cará ter trinitá rio. A Bíblia pressupõ e um conhecimento do cará ter de Deus
mesmo em passagens que nã o explanam isso diretamente. Devemos usar todas essas
passagens juntas à medida que crescemos em conhecimento. Cada passagem funciona
como uma perspectiva sobre Deus. A Bíblia nã o oferece um ú nico “modelo” que nos
permita captar tudo. Se tivéssemos um ú nico modelo abrangente, isso rebaixaria Deus ao
nível do nosso entendimento.
 
 
A analogia do discurso
 
Embora toda a Bíblia nos ofereça instruçõ es sobre Deus, Deus usa algumas analogias
bá sicas para expor a natureza de seu cará ter trinitá rio. Uma dessas analogias ocorre em
Joã o 1.1-5, a saber, uma analogia com o falar . A segunda pessoa da Trindade, Deus o Filho,
é chamada de o Verbo . Parte do pano de fundo é Gênesis 1, quando Deus cria o mundo
falando. Ele faz declaraçõ es específicas, como “haja luz!” (Gn 1.3). Podemos inferir que
essas declaraçõ es específicas expressam e refletem uma realidade mais profunda em Deus,
uma realidade que sempre existiu. “No princípio era o Verbo” (Jo 1.1). Joã o está dizendo
que existe um Verbo original ou arquétipo do qual as declaraçõ es específicas em Gênesis 1
sã o uma expressã o. Nó s, como seres humanos, também falamos palavras, palavras ectípicas
que imitam o discurso de Deus e derivam do padrã o de quem ele é.

Assim, temos um padrã o em que Deus é o orador arquetípico, e seu discurso arquetípico é o
Verbo, a segunda pessoa da Trindade. Quem é o orador? De forma preeminente, é Deus Pai
que se coloca como o representante de Deus. Assim, podemos dizer que Deus Pai é o
orador. A segunda pessoa da Trindade é o Verbo de que o Pai fala. E o Espírito Santo está
ativo? Joã o 1.1-5 nã o menciona o Espírito Santo explicitamente, mas em outros lugares a
Bíblia compara sua obra com o sopro de Deus (veja Ez 37.6, 9-10, 14). O Espírito Santo é o
sopro de Deus que leva o discurso ao seu destino. Podemos chamar essa analogia completa
de a perspectiva de discurso sobre a Trindade.
 
A analogia da família
 
Uma segunda passagem importante é Joã o 3.34-35. O versículo 35 diz que “o Pai ama ao
Filho, e todas as coisas tem confiado à s suas mã os”. O ato de confiar todas as coisas
expressa seu amor. A relaçã o entre as pessoas da Trindade é exposta aqui em termos de
amor — mais especificamente, amor familiar, o amor entre o Pai e o Filho. As famílias
humanas, com pais e filhos que se amam mutuamente, imitam esse amor em nível ectípico.

Mais uma vez, podemos perguntar se o Espírito Santo tem um papel. O versículo anterior,
Joã o 3.34 (NVI), indica seu papel. Ele é a dá diva: “ele [Deus] dá o Espírito sem limitaçõ es”. A
quem Deus dá o Espírito? O contexto mostra que o Pai dá o Espírito à quele descrito como
“aquele que Deus enviou”, isto é, o Filho encarnado. Essa dá diva se concentra na obra
redentora do Filho como alguém enviado à Terra. Mas Deus age na vida terrena de Cristo
de acordo com quem ele sempre é. Assim, podemos inferir que há uma entrega eterna do
Espírito: o Pai dá o Espírito ao Filho. Essa dá diva, como indicado por Joã o 3.35, expressa
amor. O Espírito, como observou Agostinho, é como o laço de amor entre o Pai e o Filho.
Portanto, temos uma analogia de família ou analogia de amor que expõ e a natureza da
Trindade.

Já podemos perceber que as designaçõ es comuns para as três pessoas da Trindade se


encaixam em nossas analogias. As designaçõ es Pai e Filho evocam claramente uma analogia
entre Deus e as famílias humanas. Nessa imagem também podemos encaixar a linguagem
sobre o Filho sendo gerado. Adã o gerou um filho, Sete (Gn 5.3). Por analogia, Deus Pai gerou
o Filho. Mas devemos fazer distinçõ es. O ato divino de gerar é o original e arquetípico, que é
imitado pelo gerar de Adã o. Em segundo lugar, a açã o de Deus é eterna. O Filho sempre
existiu, como Joã o 1.1 indica. Ele nã o é criado.

Por fim, a designaçã o “Espírito Santo” para a terceira pessoa da Trindade usa a palavra
Espírito , que ocorre em Ezequiel 37.14 na analogia entre o Espírito e o sopro. A mesma
palavra hebraica ruach pode significar “espírito” ou “sopro” (ou “vento”), a depender do
contexto. Normalmente, o contexto separa um significado exclusivamente, mas Ezequiel
37.14 retoma as ocorrências anteriores da palavra ruach com o significado de “sopro”
(37.6, 9-10). A palavra espírito incorpora em si a lembrança de uma analogia entre o
Espírito Santo e o sopro de Deus, uma analogia que pertence à analogia do discurso para a
Trindade.
 
 
A analogia teofânica
 
Um terceiro tipo de analogia é encontrado em Ezequiel 1 e outras passagens em que Deus
aparece aos seres humanos. A aparência de Deus em forma visual é chamada de teofania .
No centro da imagem, na teofania que Deus deu a Ezequiel conforme registrado em
Ezequiel capítulo 1, está uma figura semelhante a um homem sobre o trono (Ez 1.26-27).
Uma comparaçã o entre Ezequiel 1.26-27 e a aparência de Cristo em Apocalipse 1.13-16
mostra que Ezequiel 1.26-27 nos dá uma antecipaçã o ou prenú ncio da vinda de Cristo. Ela
antecipa tanto a encarnaçã o de Cristo, seu tornar-se homem, como sua glorificaçã o, tal
como ele é apresentado em Apocalipse 1.13-16. O mesmo vale para todas as teofanias no
Antigo Testamento. Todas vislumbram a vinda de Cristo, que é Emanuel, “Deus conosco”
(Mt 1.23). O pró prio Jesus confirma essa conclusã o quando diz a Filipe: “Quem me vê a mim
vê o Pai” (Jo 14.9). Assim, as teofanias no Antigo Testamento antecipam de forma
temporá ria o que vemos ser, com a encarnaçã o, permanentemente verdadeiro. O Filho
revela o Pai. Vemos o Pai através do Filho e no Filho.

O Espírito Santo tem um papel na teofania? Aspectos da teofania em Ezequiel simbolizam o


cará ter de Deus. Por exemplo, o fogo que aparece em Ezequiel 1.4, 13 e 27 simboliza a
capacidade de Deus de purificar ou consumir o mal [também traz à lembrança a presença
do fogo quando Deus se manifestou no Monte Sinai (Ê x 19.18) e a sarça ardente na qual
Deus apareceu a Moisés (Ê x 3.2)]. A funçã o do fogo no juízo é confirmada mais tarde em
Ezequiel quando brasas acesas da presença de Deus sã o lançadas sobre a cidade de
Jerusalém no julgamento (Ez 10.2). O som alto em Ezequiel 1.24 simboliza o poder de Deus
e sua capacidade de falar e é confirmado pela voz que entã o fala do trono (Ez 1.28).

Todo esse simbolismo tem uma associaçã o com o Espírito Santo. No Pentecostes, a descida
do Espírito Santo é simbolizada por línguas de fogo (At 2.3-4), um fogo teofâ nico. O som
alto em Ezequiel corresponde ao “som, como de um vento impetuoso” em Atos 2.2 (ele
também está indubitavelmente associado aos sons altos no Monte Sinai quando Deus
aparece a Israel — Ê xodo 19). O Espírito Santo capacita os apó stolos a falar sobre a
mensagem do evangelho e a falar em outras línguas. O discurso com poder corresponde ao
poder de Deus e ao discurso de Deus em Ezequiel e em outras teofanias do Antigo
Testamento.

Podemos pois começar a estender essas observaçõ es para incluir as características


tipicamente humanas que pertencem à figura humana em Ezequiel 1.26-27 e que a Bíblia
em outros lugares associa a Deus. A linguagem sobre os “olhos” de Deus indica o
conhecimento dele (2Cr 16.9; Sl 11.4; 80.14; Pv 15.3; Jr 32.19). Sua “boca” indica sua
capacidade de falar (Is 40.5). Seu “braço” e sua “mã o” indicam seu poder (Sl 44.3; Is 49.2;
Ez 8.1; 37.1; Lc 1.51). Seus “pés” indicam seu domínio (Is 60.13; 63.3). Sua “face” indica sua
presença (Ê x 33.9-11, 18-23).

A Bíblia associa cada uma dessas características de Deus ao Espírito Santo. Os olhos do
Cordeiro sã o identificados com o Espírito Santo em Apocalipse 5.6 (de Ap 1.4-5 podemos
confirmar que os “sete Espíritos [de Deus]” sã o uma referência à plenitude sétupla do
Espírito Santo). A boca de Deus é associada com seu sopro, e assim com o Espírito Santo. A
inspiraçã o do Antigo Testamento é atribuída ao Espírito Santo que fala (At 1.16). A mã o de
Deus funciona da mesma maneira que o Espírito Santo, quando comparamos Ezequiel 8.1 a
11.5. O dedo de Deus faz paralelo com o Espírito Santo quando comparamos Mateus 12.28
a Lucas 11.20 e 2 Coríntios 3.3. O poder de Deus é associado com o Espírito Santo em Lucas
1.35. A face de Deus e a presença de Deus sã o paralelos ao Espírito Santo em Salmos 51.11
e 139.7.

Podemos resumir dizendo que a Bíblia associa atributos ou características particulares de


Deus, tais como seu poder, conhecimento e capacidade de falar, ao Espírito Santo. Os
atributos se reú nem na visã o poderosa e multifacetada da figura semelhante a homem de
Ezequiel 1.26-27 e na apariçã o de Cristo em Apocalipse 1.13-16. Em sua pessoa, Cristo
combina os atributos em uma figura inteira. Além disso, a teofania revela Deus . Deus Pai é
revelado através do Filho e do Espírito. Essa apariçã o de Deus encontra seu clímax na
encarnaçã o e glorificaçã o de Cristo, o Filho. Ela é delineada ou prenunciada nas teofanias
do Antigo Testamento. Assim, a teofania nos dá um entendimento analó gico das distintas
pessoas da Trindade.

As teofanias também nos dã o uma percepçã o do que significa os seres humanos serem
feitos à imagem de Deus. Imitamos Deus falando, pensando e tendo comunhã o pessoal
(entre outras coisas). Algumas pessoas acham que imitamos Deus somente em nosso lado
“espiritual”, nã o em nosso corpo. Mas nó s nos expressamos através de nosso corpo, com
nossa boca, mã os e pés. Deus é espírito e nã o tem corpo físico (Jo 4.24). Mas temos boca
imitando sua capacidade de falar. Temos mã os imitando sua capacidade de agir. Temos
olhos imitando sua capacidade de ver. Deus fez nosso corpo e nã o meramente nosso
aspecto espiritual, imitamos quem ele é e as habilidades que possui.
 
 
A analogia histórico-redentora
 
Por fim, podemos considerar uma analogia histó rico-redentora que exponha o cará ter das
pessoas da Trindade. Estamos lidando aqui nã o tanto com uma passagem específica, mas
com um complexo mais amplo, os padrõ es das açõ es de Deus através do tempo,
estruturando o curso da histó ria. O Pai envia o Filho, que realiza a obra do Pai na Terra
através do poder do Espírito Santo. O Espírito Santo age em poder na cura (Lc 4.18), na
expulsã o de demô nios (Mt 12.28) e supremamente na ressurreiçã o de Cristo dos mortos:
“Se habita em vó s o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo
que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso corpo mortal,
por meio do seu Espírito, que em vó s habita” (Rm 8.11; cf. 1.4).

Poderíamos dizer que o Pai é o planejador; o Filho é o executor do plano do Pai; o Espírito
Santo é aquele que capacita e também o consumador que aplica os benefícios da obra do
Filho. Essa descriçã o ajuda a mostrar uma diferenciaçã o sutil de papeis entre as pessoas da
Trindade. Mas em seu esquema a descriçã o faz uma simplificaçã o, pois as pessoas da
Trindade habitam umas nas outras e participam todas as três ativamente na histó ria que
produz a redençã o. [197]

Podemos ver uma relaçã o entre a analogia histó rico-redentora e a analogia do discurso.
Falar é uma perspectiva sobre tudo o que Deus faz. Podemos dizer que Deus faz tudo pelo
discurso. Em seu discurso, Deus Pai age mais como um planejador. Deus Filho, como aquele
associado com o discurso em si, é quem coloca o plano ou pensamento em execuçã o. O
Espírito Santo, como o sopro de Deus, é aquele que leva a palavra em poder ao seu destino
e produz efeitos naqueles que a ouvem. Isso quer dizer que ele é o consumador e aquele
que capacita. Portanto, as açõ es de Deus na histó ria expressam o discurso de Deus, que tem
estrutura trinitá ria inata.

Também podemos ver a analogia histó rico-redentora como uma expressã o da analogia da
família. O Evangelho de Joã o, que enfatiza o amor entre o Pai e o Filho, é também o
Evangelho que enfatiza o envio do Filho pelo Pai para realizar a obra da redençã o. O Pai dá
o Espírito Santo ao Filho nã o apenas como uma expressã o do seu amor, mas também como
uma dá diva que permite ao Filho realizar sua obra. Assim, podemos dizer que a atividade
histó rico-redentora de Deus é uma expressã o de sua açã o em amor, que é também uma
expressã o da relaçã o Pai-Filho (no Espírito).

Por fim, a analogia histó rico-redentora expressa a analogia teofâ nica. A analogia teofâ nica
aparece de maneira mais ó bvia nas apariçõ es especiais de Deus chamadas teofanias e na
teofania permanente e culminante em Cristo como o Filho encarnado. Mas, num sentido
mais amplo, Deus “se mostra” ou se revela em todos os seus atos na histó ria. Nesses atos,
aprendemos quem é Deus, recebendo assim uma revelaçã o do cará ter do Pai. Vemos uma
obra específica de redençã o ou julgamento. No Antigo Testamento, tais obras prenunciam a
obra futura de Cristo, e no Novo Testamento manifestam ou aplicam sua obra. Tanto no
Antigo Testamento como no Novo, Deus se revela através de nossa visã o de Cristo: “Quem
me vê a mim vê o Pai” (Jo 14.9). Nessas obras, o Espírito Santo participa ativamente e torna
a obra de Cristo (em suas características específicas) metafó rica ou literalmente visíveis
aos crentes.

Assim, as três analogias primá rias de falar, amar e aparecer se entrelaçam e oferecem
perspectivas umas sobre as outras. Talvez a analogia histó rico-redentora nã o seja tanto
[198]

uma quarta analogia, mas um padrã o temporal que expressa todas as três. Qualquer das
três pode aparecer de forma mais proeminente em um ato particular, mas todas as três sã o
pressupostas. Por exemplo, os milagres de Jesus mostram sua pessoa e assim oferecem
uma aparição de redençã o — sã o teofanias. Os ensinamentos de Jesus oferecem discursos e
assim manifestam o discurso de Deus; a compaixã o de Jesus com os doentes e os excluídos
mostra amor — o amor do Pai no Espírito. Os milagres de Jesus também pressupõ em que
ele é o Filho que executa o plano do Pai de acordo com o amor que existe entre o Pai e o
Filho. Os milagres de Jesus também funcionam como uma espécie de discurso metafó rico
que explica a natureza do reino salvífico de Deus. Assim, eles pressupõ em a analogia do
discurso.

Em suma, Deus em sua divindade se torna conhecido através de analogias ou perspectivas.


E também emprega analogias ao dar a conhecer seu cará ter trinitá rio. Essas analogias nos
dã o um conhecimento real de quem Deus realmente é. Uma visã o bíblica do mundo afirma
a validade e solidez desse conhecimento, porque o pró prio Deus, em seu poder onipotente,
é seu autor, e o Espírito Santo nos esclarece a realidade desse conhecimento à medida que
opera em nó s. A ideia da analogia tem como seu arquétipo o Filho, que é a imagem do Deus
invisível (Cl 1.15).
[199]

1
 

Apêndice C
 
A estrutura de um marcador de pá ginas
 
 
Podemos ilustrar melhor a aná lise de um marcador de pá ginas, aná lise essa que iniciamos
no capítulo 14. Uma vez que o discurso divino determina a metafísica de um marcador de
pá ginas, podemos usar proveitosamente as categorias triperspectivas que foram
originalmente desenvolvidas para a aná lise do discurso verbal. Neste apêndice vamos
[200]

fazer apenas um começo. Espero que esse começo, ao menos, aumente a apreciaçã o pela
enorme complexidade e maravilha do mundo de Deus.
 
Hierarquia
 
Em nossa discussã o sobre a caminhada, introduzimos a ideia de hierarquia. Uma hierarquia
consiste de totalidades menores e maiores em que as totalidades menores estã o embutidas
nas maiores de forma estruturada. Por exemplo, a maçã é uma pequena unidade dentro do
saco de maçã s, que é uma unidade maior. O saco de maçã s é uma unidade menor entre os
vá rios itens que estã o na mesa da cozinha. E a mesa com todo o seu conteú do é uma
unidade menor dentro da cozinha como uma unidade total. Cada unidade menor está
embutida nas maiores.

Da mesma forma, o marcador de pá ginas é uma unidade menor dentro da totalidade que é
composta do livro, mais o marcador de pá ginas, mais a posiçã o física do marcador de
pá ginas num local entre duas pá ginas consecutivas. O livro mais o marcador de pá ginas é
uma unidade simples dentre os vá rios itens que estã o em minha escrivaninha. Os itens em
minha escrivaninha, juntamente com a mesa e os conteú dos das suas gavetas constituem
uma unidade maior. E essa unidade, por sua vez, pertence à unidade maior que é o meu
escritó rio. Assim, o marcador de pá ginas é um item que está incorporado em uma
hierarquia multicamada.

Existe uma hierarquia — na verdade mú ltiplas hierarquias entrelaçadas — na linguagem,


incluindo a linguagem que uso para falar sobre a hierarquia do marcador de pá ginas. Minha
linguagem com suas hierarquias imita o discurso de Deus, que especifica todas as
hierarquias.

Hierarquia é um agrupamento de incorporaçõ es, cada uma das quais sendo uma
distribuiçã o de unidades em sequência. Estas têm seu arquétipo final na Trindade, como se
pode ver do fato de que as três pessoas da Trindade formam um só Deus.
 
 
Preenchimento, proeminência e função
Uma estrutura hierá rquica pode ser triperspectivamente analisada usando-se a tríade de
preenchimento , proeminência e função (estes três sendo reflexos das visõ es de partícula,
onda e campo, conforme discutido em outro lugar). Podemos explicar melhor essas três
[201]

categorias relacionadas por meio de um exemplo. Considere o marcador de pá ginas em


relaçã o à totalidade maior constituída de livro, marcador de pá ginas e localizaçã o física no
livro. O marcador de pá ginas é um preenchedor . É um dos vá rios marcadores que podem
preencher o local entre pá ginas consecutivas.

A seguir, a proeminência se concentra na questã o de qual item ou itens possui o papel


principal em uma totalidade maior. Na estrutura de livro mais marcador de pá ginas, este
ú ltimo, junto com sua localizaçã o, é a chave para a totalidade. Sem o marcador de pá ginas,
estamos lidando com outro tipo de unidade, isto é, um livro nã o marcado. Um livro nã o
marcado nã o tem nenhuma proeminência física concedida a qualquer de suas pá ginas,
capítulos ou seçõ es dentro dele. Um livro marcado, em contrapartida, tem uma estrutura
adicional. Dentro dessa estrutura adicional, o pró prio marcador de pá ginas, juntamente
com sua localizaçã o, tem papel proeminente. As pá ginas de cada lado sã o necessá rias para
a funçã o total do marcador de pá ginas, mas dentro dessa funçã o total está o marcador de
pá ginas, e nã o as pá ginas vizinhas, que se destaca intuitivamente. E neste caso podemos até
mesmo dizer que ele se destaca fisicamente. As pá ginas vizinhas sã o identificadas primeiro
pelo marcador de pá ginas e nã o vice-versa.

Por fim, concentremo-nos na função do marcador de pá ginas. No contexto de hierarquia, a


palavra função tem um significado específico; designa a abertura vazia ou localizaçã o
estrutural preenchida pelo preenchedor. A ideia de abertura vazia é mais abstrata que a de
preenchimento ou proeminência. É um relacionamento significativo entre o que preenche a
abertura e a matéria em torno da abertura.

Podemos ilustrar o significado de abertura usando a linguagem como um exemplo. Na frase


“O menino alimentou o cachorro”, a expressã o o menino é uma locuçã o substantiva
preenchedora que preenche a abertura de sujeito. A abertura do sujeito é um espaço vazio
na sentença, a ser preenchido com o que o orador escolhe ser o sujeito da frase. O orador
poderia colocar o homem , ou Donna , ou vizinho ou alguma outra frase. De maneira similar,
a expressã o o cachorro preenche a abertura de objeto. Outros objetos — como o gato , a
cobaia ou meu peixe — também poderiam caber na mesma abertura vazia.

No caso do marcador de pá ginas, a abertura é o local entre pá ginas consecutivas. Porém,


vemos esse espaço nã o meramente como um espaço físico, mas como um possível local em
que se poderia inserir itens. O item inserido pode funcionar como um marcador de pá ginas,
ainda que nã o tenha sido especialmente projetado como um marcador de pá ginas, como
um lá pis ou outro livro. Mas os itens também podem ser inseridos com outras finalidades
ou outras funçõ es. Por exemplo, podemos colocar folhas de á rvores entre as pá ginas a fim
de pressioná -las e secá -las. A estrutura física de locais consecutivos é semelhante a ter um
ou mais marcador de pá ginas num livro. Mas, como a intençã o humana é diferente, elas nã o
estã o funcionando como marcadores de pá ginas. Assim, do ponto de vista da intençã o
humana, o “significado” da estrutura como um todo, ou seja, do livro mais as folhas
inseridas, é bem diferente do “significado” do livro mais um ou mais marcadores de
pá ginas. As folhas podem funcionar “como um marcador de pá ginas” ou podem ser
inseridas “para serem pressionadas e secadas”.
Como se dá habitualmente com as categorias triperspectivistas, o preenchimento, a
proeminência e a funçã o andam juntos. Cada um pressupõ e a presença dos demais. Um
preenchedor só é preenchedor se preenche alguma abertura e, portanto, tem uma funçã o.
Nessa abertura, o preenchedor é proeminente ou nã o proeminente em relaçã o à estrutura
maior da qual ele é um preenchedor. Da mesma forma, uma peça só será proeminente se
for proeminente como uma peça dentro de uma totalidade maior, em cuja capacidade
funcione como um preenchimento para uma abertura que tenha uma funçã o.

Podemos olhar para estes três — preenchimento, proeminência e funçã o — da perspectiva


da unidade maior na qual eles estã o incorporados em vez da perspectiva da unidade menor
que faz a incorporaçã o. No caso do marcador de pá ginas, em vez de começar com a unidade
que faz a incorporaçã o, isto é, o marcador de pá ginas, podemos começar com a unidade na
qual ele é incorporado, isto é, a totalidade que consiste do livro, mais o marcador de
pá ginas, mais o local físico do marcador de pá ginas nas pá ginas do livro. Essa totalidade
maior é uma unidade. Podemos entã o analisar a unidade por suas características
contrastivas, sua variaçã o e sua distribuiçã o. Sua distribuiçã o enfoca sua relaçã o com
unidades ainda maiores, e esse aspecto nos leva para outras direçõ es. Mas suas
características contrastivas incluem as características da estrutura interna. Ela consiste da
primeira capa do livro, das pá ginas, marcador de pá ginas, mais pá ginas e da quarta capa,
tudo isso em uma ordem física específica. Um marcador mais uma pá gina consiste
exatamente nessa estrutura, e os aspectos da estrutura sã o características da unidade
maior. Uma característica fora dessa totalidade é o pró prio marca pá gina. O marcador de
pá ginas deve assim ser entendido como um preenchedor dentro de uma funçã o definida
pela abertura mais seu papel na estrutura total que consiste da sucessã o de partes. A
relativa proeminência atribuída ao marcador de pá ginas também funciona como uma
característica da totalidade. Para entender o significado da totalidade, precisamos entender
o papel crucial e proeminente desempenhado pelo marcador de pá ginas. Do contrá rio,
poderemos cair no retrocesso de simplesmente considerar o livro mais o marcador de
pá ginas como se nã o fosse isso, mas apenas o livro mais algo estranho preso nele (talvez
puramente por acidente).

Nã o é preciso dizer que preenchimento, proeminência e funçã o têm seu arquétipo na


Trindade. Cada pessoa em relaçã o à deidade é um “preenchedor”, com funçõ es em relaçã o
à s demais pessoas. Deus Pai é a pessoa mais proeminente da Divindade e frequentemente
representa Deus como uma totalidade.
 
 
Subsistemas físicos e referenciais
 
A aná lise da linguagem pode revelar três subsistemas, a saber, os subsistemas fonoló gico,
gramatical e referencial. [202]
Em sistemas menores de significado, como o marcador de
pá ginas, a distinçã o entre subsistemas pode ser algo mais difícil de se perceber. Mas, no
[203]

caso de um marcador de pá ginas, podemos pelo menos começar. O marcador de pá ginas é


um objeto físico e goza de relaçõ es espaciais e tá teis com as pá ginas entre as quais se
encontra. As pá ginas também têm relaçõ es físicas umas com as outras pelo fato de estarem
coladas na borda ou costuradas no miolo numa ordem particular. Esse arranjo, juntamente
com as relaçõ es entre as partes nele incluídas, constitui o subsistema físico, que é aná logo
ao subsistema fonoló gico ou grafoló gico da linguagem.

O marcador de pá ginas também tem significado em relaçã o aos significados representados


pelas palavras, frases e pará grafos nas pá ginas do livro. Ele funciona para lembrar ao leitor:
“Aqui é onde você está em relaçã o aos significados criados pelo autor”. Ou talvez marque
uma posiçã o da qual o leitor pretende copiar uma citaçã o. Um ú nico leitor pode inclusive
usar vá rios marcadores de pá ginas ao mesmo tempo para marcar diferentes pá ginas de
interesse. Ou cada uma das vá rias pessoas lendo o mesmo livro em momentos sobrepostos
podem ter seu pró prio marcador de pá ginas pessoal. Vá rios marcadores de pá ginas podem
ser fisicamente diferenciados por causa de diferentes desenhos, de modo que cada leitor
pode dizer qual é o seu. Em tal caso, os marcadores de pá ginas sã o diferenciados de duas
maneiras — pela aparência e pelo significado. Porque o fato de um marcador de pá ginas ser
“meu” e outro “dela” é uma diferenciaçã o de significado que é identificada por meio de uma
diferenciaçã o subjacente na aparência. Assim, podemos detectar dois “subsistemas”
distintos de estrutura, um em aparência e um em significado. Ambos sã o sistemas, pois
cada um envolve o marcador de pá ginas e sua relaçã o com as pá ginas vizinhas e um padrã o
maior e sistemá tico acerca de como os marcadores de pá ginas funcionam em outros livros.
 
Um subsistema gramatical para marca páginas?
 
Haveria um terceiro subsistema para um marcador de pá ginas, um subsistema aná logo ao
subsistema gramatical para a linguagem? Nã o está muito claro. O subsistema gramatical
pode ser fundido com os outros dois, em vez de claramente distinguido. Todavia, se
considerarmos casos mais complexos de marcador de pá ginas, poderemos estar vendo o
início de um subsistema.

Um marcador de pá ginas plano cujos dois lados sejam idênticos só pode marcar um local
dentro do limite de duas pá ginas — a pá gina à esquerda e a pá gina à direita de onde o
marcador de pá ginas está . Um marcador de pá ginas com frente e verso distintos pode ser
usado com maior precisã o, desde que seu lado frontal esteja voltado para a pá gina em que
o leitor parou. Ou pode ser usado com menor precisã o, sem o leitor prestar atençã o à
diferença entre frente e verso. Um clipe de papel ou outro tipo de clipe pode ser usado para
marcar nã o apenas a pá gina, mas também a posiçã o na pá gina em que o leitor parou. Ou um
clipe de papel pode juntar vá rias pá ginas, talvez para marcar uma seçã o inteira do livro que
o leitor deseje copiar ou reler. Há ainda outras formas complexas de usar marcadores. As
diferentes formas de marcaçã o sã o diferentes estruturas que afetam tanto a aparência
física quanto o significado, e afetam os dois lados de maneira entrelaçada. O conjunto de
opçõ es pode ser considerado como o início de um terceiro tipo de subsistema.
 
As subdivisões segmental, transformacional e oposicionista de hierarquia
 
Para a aná lise de marcadores de pá ginas, podemos considerar brevemente mais uma forma
de subdivisã o, isto é, a subdivisã o que distingue entre as estruturas segmental,
transformacional e oposicionista em hierarquia. [204]

Primeiro, uma estrutura segmental é aquela que depende de uma ordem no espaço ou no
tempo. Se um leitor usa vá rios marcadores de pá ginas para marcar as seçõ es sucessivas do
livro ou sucessivos pontos de um argumento em desenvolvimento, a ordem dos
marcadores de pá ginas claramente faz uma diferença, pois marca a ordem dos significados
dentro do livro.

Em segundo lugar, estrutura transformacional é uma estrutura independente da ordem.


Realçar ou sublinhar é uma forma de marcaçã o geralmente empregada de maneira
independente da ordem. Um leitor pode marcar com realce ou sublinhado amarelo ou
verde todas as passagens que tratam de um ú nico tema. O tema é um significado dentro do
livro que é independente da ordem de expressã o — ou, pelo menos, o leitor está enfocando
um aspecto que é independente da ordem.

Em terceiro, a estrutura oposicionista é uma regularidade nos contrastes entre mais de um


tema ou estrutura dos outros dois tipos. Por exemplo, se um leitor usa o realce amarelo
para o tema 1 e o realce verde para o tema 2, o contraste entre os dois é chamado de
oposicionista . Se um leitor usa um sistema complexo de marcaçõ es na aná lise de um livro,
cada marcaçã o pode ser vista como um “marcador de pá ginas” num sentido amplo, e o
sistema como um todo provavelmente mostrará estruturas segmentais, transformacionais
e oposicionistas de forma entrelaçada.
 
A relevância perante Deus
 
De certo modo, esses sistemas de marcaçã o sã o criados por um leitor individual. Os leitores
sã o feitos à imagem de Deus e, portanto, têm uma criatividade na imitaçã o da criatividade
divina. Mas a criatividade também tem estrutura. O fato de podermos descrever e entender
um sistema de marcaçã o criado por outro leitor mostra que as características do sistema
podem ser compartilhadas. Na providência de Deus, esses sistemas estã o disponíveis como
possibilidades antes que qualquer leitor decida usá -los. Como de costume, a palavra de
comando de Deus especificou todas as estruturas que envolvem nã o apenas o uso real de
um marcador de pá ginas, mas também seus usos potenciais .

Discorremos sobre algumas das estruturas gerais de significado e aparência nas quais os
marcadores de pá ginas podem funcionar. Mas cada leitor pode fazer escolhas específicas
sobre quais temas deseja realçar. Ou, a seu pró prio juízo, pode atribuir uma relevâ ncia
específica a uma passagem específica do livro, uma passagem que ele separa colocando um
marcador de pá ginas. Ele pode optar por escrever uma pequena nota no marcador de
pá ginas para ser lembrado da relevâ ncia que viu na passagem. Ou pode nã o fazer nenhuma
anotaçã o, e simplesmente confiar em sua memó ria. Se nã o faz nenhuma anotaçã o e nã o diz
nada a ninguém, a relevâ ncia que ele viu pode permanecer individual. Ninguém sabe, senã o
ele e Deus. Contudo, ainda existe uma estrutura de significado, habilitada por Deus, que
está atrelada ao marcador de pá ginas no tocante ao leitor como indivíduo. Essa estrutura é
ordenada por Deus tanto em sua singularidade quanto nas características que compartilha
com outras situaçõ es em que outros leitores usam marcadores de pá ginas de maneira
idiossincrá tica.

Em virtude do fato de que as especificaçõ es de Deus fornecem a metafísica, podemos


concluir que a “metafísica” de um marcador de pá ginas inclui as complexidades de como os
seres humanos podem usar o marca pá gina com relevâ ncia. O mundo é complexo. Deus o
fez assim. As complexidades se encaixam no mundo como um todo por causa da sabedoria
do plano de Deus e nã o porque um aspecto pode ser “reduzido” a outro.

1
 
 
 

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[1]
No século XX, surgiu uma tradição de filosofia analítica que se concentra em analisar conceitos fundamentais (como o
conceito de “bem” ou o conceito de “ciência”) e em analisar usos-chave da linguagem em vá rios campos. Alguns de seus
praticantes desconfiam da capacidade humana de encontrar respostas para as “grandes” questõ es. Nosso foco nas
grandes questõ es deixa esses praticantes de lado. Veja Norman Geisler e Paul D. Feinberg, Introduction to Philosophy: A
Christian Perspective (Grand Rapids: Baker, 1980), p. 14-17 [ed. port.: Introdução à filosofia: uma perspectiva cristã (São
Paulo: Vida Nova, 2017)]; Vern S. Poythress, Logic: A God-Centered Approach to the Foundation of Western Thought
(Wheaton, IL: Crossway, 2013), apêndice F2.
[2]
Veja a parte 5. A ética pode ser vista como parte de uma subdivisão maior, a teoria do valor (axiologia), que inclui
estética e filosofia política.
[3]
Sobre a distinçã o entre a evolução como uma teoria limitada sobre o desenvolvimento bioló gico e a evoluçã o como
uma forma de filosofia materialista, veja Vern S. Poythress, Redimindo a ciência: uma abordagem teocêntrica (Brasília/DF:
Monergismo, 2019), p. 80-81 e os capítulos 18-19.
[4]
Veja John M. Frame, A History of Western Philosophy and Theology (Phillipsburg, NJ: P&R, 2015), cap. 1.
[5]
Para a epistemologia, veja John M. Frame, A doutrina do conhecimento de Deus (São Paulo: Cultura Cristã , 2010); para a
ética, veja Frame, A doutrina da vida cristã (São Paulo: Cultura Cristã , 2013).
[6]
Veja Timothy Keller, A fé na era do ceticismo: como a razão explica Deus (São Paulo: Vida Nova, 2015).
[7]
Livros inteiros abordam a discussão da natureza da Bíblia. Para argumentos de que a Bíblia é a palavra de Deus em
forma escrita, veja especialmente John Murray, “The Attestation of Scripture”, em The Infallible Word , ed. Ned B.
Stonehouse e Paul Woolley (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1946), p. 1-54; Benjamin B. Warfield, A inspiração
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Cristã , 2013).
[8]
Veja John M. Frame, Salvation Belongs to the Lord: An Introduction to Systematic Theology (Phillipsburg, NJ: P&R, 2006).
[9]
Uma introdução à histó ria da filosofia a partir de um ponto de vista cristã o pode ser encontrada em W. An drew
Hoffecker, ed., Revolutions in Worldview: Understanding the Flow of Western Thought (Phillipsburg, NJ: P&R, 2007). Para
um relato mais meticuloso, veja John M. Frame, A History of Western Philosophy and Theology (Phillipsburg, NJ: P&R,
2015).
[10]
Veja John Frame, “Greeks Bearing Gifts”, em Hoffecker, Revolutions in Worldview , p. 6-7.
[11]
Para mais informaçõ es, veja, por exemplo, Herman Ridderbos, Redemptive History and the New Testament Scriptures
(Phillipsburg, NJ: P&R, 1988); Michael J. Kruger, Canon Revisited: Establishing the Origins and Authority of the New
Testament Books (Wheaton, IL: Crossway, 2012).
[12]
Veja, por exemplo, John M. Frame, Apologética para a glória de Deus: uma introdução (Sã o Paulo: Cultura Cristã ,
2010); Cornelius Van Til, Apologética cristã , ed. William Edgar (São Paulo: Cultura Cristã , 2011); Van Til, The Defense of
the Faith , 4ª ed., ed. K. Scott Oliphint (Phillipsburg, NJ: P&R, 2008). Pode-se encontrar uma introdução simples e muito
acessível em Richard L. Pratt, Every Thought Captive: A Study Manual for the Defense of Christian Truth (Phillipsburg, NJ:
P&R, 1979).
[13]
Entre os filó sofos cristã os, Alvin C. Plantinga é proeminente, e depois dele Nicholas Wolterstorff. Outros incluem
William Lane Craig, Norman L. Geisler, J. P. Moreland, Paul Helm, Garrett J. DeWeese, K. Scott Oliphint, William Edgar, Al
Wolters, David K. Naugle, Esther L. Meek, Steven Cowan e James Spiegel. Há outros ainda, mas sã o numerosos demais para
mencionar.
[14]
John M. Frame, A doutrina do conhecimento de Deus (São Paulo: Cultura Cristã , 2010), p. 102.
[15]
Fiz uma condensaçã o de um argumento muito mais elaborado e há bil de Alvin C. Plantinga, Ciência, religião e
naturalismo: onde está o conflito? (São Paulo: Vida Nova, 2018).
[16]
Sobre Platã o, veja John M. Frame, “Greeks Bearing Gifts”, em Revolutions in Worldview: Understanding the Flow of
Western Thought , ed. W. Andrew Hoffecker (Phillipsburg, NJ: P&R, 2007), p. 18-23.
[17]
Veja também John M. Frame, A doutrina de Deus (São Paulo: Cultura Cristã , 2014), que tem um capítulo sobre
metafísica (capítulo 12, p. 175-92).
[18]
Quando recebemos com humildade o discurso que Deus faz a nó s na Bíblia, recebemos com ele uma resposta para os
enigmas filosó ficos relacionados ao solipsismo e ao “cérebro numa cuba”. Sabemos que existe um mundo externo porque
Deus nos diz, e podemos confiar em Deus. Mas como sabemos que estamos ouvindo Deus? Quando Deus fala, autentica
seu pró prio discurso, através de sua sabedoria, que reflete Deus Filho, e através do testemunho interno do Espírito Santo
que Deus infunde em nosso coraçã o. Neste ponto pode ser suscitada muita discussã o, mas devemos nos referir a outras
obras — por exemplo, John Murray, “The Attestation of Scripture”, em The Infallible Word , ed. N. B. Stonehouse e Paul
Woolley (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1946), p. 1-54.
[19]
Sobre como a ciência se encaixa no quadro bíblico global do mundo e da humanidade, veja Vern S. Poythress,
Redimindo a ciência: uma abordagem teocêntrica (Brasília/DF: Monergismo, 2019), especialmente os capítulos 1-2 e 11.
[20]
Sobre o céu, veja ibid. , p. 94-96.
[21]
Veja mais em ibid.
[22]
Sobre a comunicação em linguagem escassa, veja Vern S. Poythress, Inerrancy and the Gospels: A God-Centered
Approach to the Challenge of Harmonization (Wheaton, IL: Crossway, 2012), capítulos 7-9.
[23]
Para uma aná lise mais completa, devemos nos voltar para obras exegéticas. Veja especialmente C. John Collins, Genesis
1-4: A Linguistic, Literary, and Theological Commentary (Phillipsburg, NJ: P&R, 2006).
[24]
Poderíamos acrescentar também Salmos 8, 19 e 147, embora esses salmos também desenvolvam outros temas.
[25]
John M. Frame, Perspectives on the Word of God: An Introduction to Christian Ethics (Eugene, OR: Wipf and Stock, 1999);
Frame, A doutrina da vida cristã (São Paulo: Cultura Cristã, 2013).
[26]
Para uma discussã o mais completa, veja Vern S. Poythress, Teologia sinfônica: a validade das múltiplas perspectivas em
teologia (São Paulo: Vida Nova, 2016); Poythress, “Multiperspectivalism and the Reformed Faith”, em Speaking the Truth
in Love: The Theology of John M. Frame , ed. John J. Hughes (Phillipsburg, NJ: P&R, 2009), p. 173-200. Acesso em: 26 jan.
2012. Disponível em: <http://www.frame-poythress.org/poythress_articles/AMultiperspectivalism.pdf>, reproduzido
aqui no pró ximo capítulo; John M. Frame, “A Primer on Perspectivalism”, 14 de maio de 2008. Acesso  em: 26 jan. 2012.
Disponível em: <http://www.frame-poythress.org/frame_articles/2008Primer.htm>.
[27]
Veja Vern S. Poythress, Redimindo a sociologia: uma abordagem teocêntrica (Brasília/DF: Monergismo), capítulos 15,
17 e 26.
[28]
Frame, “Primer on Perspectivalism”, texto em que Frame fala de “perspectivismo em geral” (o uso mais amplo) e
“triperspectivismo” (o uso mais estrito).
[29]
Se quisermos, podemos ver nessa aná lise tripla dos tipos de distinçã o no conhecimento uma manifestaçã o de
perspectivas. A diferença no conteú do do conhecimento é uma diferença normativa (porque a verdade é normativa;
somos obrigados a buscá -la). A diferença na textura é uma diferença situacional. O conhecimento é diferentemente
“situado” em relaçã o a outras expressõ es vizinhas. A diferença na pessoa que tem o conhecimento é uma diferença
existencial.
[30]
John Frame alude ao valor da diversidade quando, em um contexto ligeiramente diferente, critica a suposiçã o de que
só deve haver uma organizaçã o adequada dos campos do conhecimento: “Parece-me que pode haver muitas maneiras
legítimas de organizar o assunto do universo de estudo, assim como há muitas maneiras de cortar um bolo com o
propó sito de servi-lo e como há muitas maneiras de dividir o espectro em cores a fim de propiciar descriçã o” (John M.
Frame, A doutrina do conhecimento de Deus [Sã o Paulo: Cultura Cristã , 2010], p. 107).
[31]
Poythress, Teologia sinfônica ; Poythress, Inerrancy and the Gospels: A God-Centered Approach to the Challenge of
Harmonization (Wheaton, IL: Crossway, 2012); Frame, “Primer on Perspectivalism”; Poythress, “Multiperspectivalism and
the Reformed Faith”.
[32]
O restante deste capítulo apareceu inicialmente como o ensaio de Vern S. Poythress, “Multiperspectivalism and the
Reformed Faith”, em Speaking the Truth in Love: The Theology of John M. Frame , ed. John J. Hughes (Phillipsburg, NJ: P&R,
2009), p. 173-200; ele é reimpresso aqui, levemente editado, com a permissã o do editor. As informaçõ es bibliográ ficas
foram reformatadas para o propó sito da inclusão aqui, e algumas outras pequenas alteraçõ es foram feitas para maior
clareza.
[33]
John M. Frame, “A Primer on Perspectivalism”, 14 de maio de 2008, Acesso em: 12 nov. 2008. Disponível em:
<http://www.frame-poythress.org/frame_articles/PrimerOnPerspectivalism.htm>. Uma exposição mais longa, enfocando
especialmente a ética, é encontrada em Frame, Perspectives on the Word of God: An Introduction to Christian Ethics
(Eugene, OR: Wipf and Stock, 1999). Veja também Vern S. Poythress, Teologia sinfônica: a validade das múltiplas
perspectivas em teologia (São Paulo: Vida Nova, 2016). Para o desenvolvimento do multiperspectivismo de Frame, veja
Frame, “Backgrounds to My Thought”, em Hughes, Speaking the Truth in Love .
[34]
“Porque nã o somos Deus, porque somos finitos e não infinitos, nã o podemos saber tudo de uma só vez; portanto,
nosso conhecimento é limitado a uma ou outra perspectiva” (Frame, “Primer on Perspectivalism”).
[35]
Ibid. Veja também Frame, “Backgrounds to My Thought”, p. 6.
[36]
Em A doutrina da vida cristã (São Paulo: Cultura Cristã , 2013), John Frame argumenta que cada um dos Dez
Mandamentos tem seu pró prio enfoque distintivo, mas cada um também pode ser usado como uma perspectiva sobre
toda a gama de nossas obrigaçõ es éticas. Esse argumento ilustra que Frame está ciente da possibilidade de outras
perspectivas além das tríades de perspectiva, que são mais características dos seus escritos. Veja também Frame, “Primer
on Perspectivalism”.
[37]
Frame, “Primer on Perspectival”.
[38]
Veja a extensa discussã o dessa tríade em John M. Frame, A doutrina do conhecimento de Deus (Sã o Paulo: Cultura
Cristã , 2010); e Frame, A doutrina de Deus (Sã o Paulo: Cultura Cristã , 2014).
[39]
A tríade é apresentada em Frame, Perspectives on the Word of God [Perspectivas sobre a Palavra de Deus], e seu uso é
desenvolvido extensivamente em Frame, A doutrina da vida cristã . A tríade para a ética está intimamente relacionada
com a tríade para o senhorio (Frame, “Backgrounds to My Thought”, p. 16).
[40]
Friedrich Nietzsche enfatizava a centralidade da variedade de perspectivas humanas no processo de obtenção de
conhecimento, e por essa razã o sua abordagem epistemoló gica tem sido chamada de “perspectivismo”. Werner
Krieglstein elaborou um ponto de vista chamado “perspectivismo transcendental”, que, em busca de uma verdade
superior, tenta combinar um reconhecimento das perspectivas humanas limitadas com o esforço de combinar pontos de
vista. Sua abordagem é explicitamente espiritualista, na medida em que vê a consciência como algo universal. Mas se trata
de uma forma nã o cristã de espiritualismo.
[41]
A passagem de 2 Coríntios 10.5 se tornou um princípio importante na apologética de Cornelius Van Til, uma tradiçã o
continuada na apologética de Frame.
[42]
Veja a Confissão de fé de Westminster , 1.4-5.
[43]
Frame lecionou no Seminá rio Teoló gico Westminster na Filadélfia, no Seminá rio Westminster na Califó rnia e no
Seminá rio Teoló gico Reformado em Orlando, Fló rida. Veja Frame, “Backgrounds to My Thought”.
[44]
Em 1971, Frame ensinou introdução à teologia (incluindo a teologia da Palavra de Deus), a doutrina de Deus e ética.
Suas palestras levaram a seus livros na série Teologia do Senhorio: A doutrina do conhecimento de Deus , A doutrina de
Deus , A doutrina da vida cristã e A doutrina da Palavra de Deus . Frame também menciona a influência de G. Dennis
O’Brien, um professor de filosofia cató lica em Princeton que tinha alguns elementos reminiscentes do pensamento de
perspectiva, e de George Lindbeck (“Backgrounds to My Thought”, p. 4, 11).
[45]
Veja a Confissão de fé de Westminster , 7, e o Catecismo maior de Westminster , 30-36.
[46]
Em “Backgrounds to My Thought”, p. 6-7, Frame também indica uma conexã o entre essa tríade e o tratamento que
Cornelius Van Til faz da correlaçã o entre Deus, o homem e a natureza em An Introduction to Systematic Theology:
Prolegomena and the Doctrines of Revelation, Scripture, and God , 2ª ed., ed. William Edgar (Phillipsburg: P&R, 2007).
[47]
Cornelius Van Til, Christian Theistic Ethics , In Defense of Biblical Christianity 3 (n. p.: den Dulk Christian Foundation,
1971). De acordo com Frame, a tríade de Van Til pode ser traçada retroativamente até a Confissão de fé de Westminster ,
16.7 (veja Frame, “Backgrounds to My Thought”, p. 14n12).
[48]
Veja especialmente Cornelius Van Til, The Defense of the Faith , 4ª ed., ed. K. Scott Oliphint (Phillipsburg, NJ: P&R,
2008); Van Til, A Survey of Christian Epistemology , In Defense of Biblical Christianity 2 (n. p.: den Dulk Christian
Foundation, 1969); John M. Frame, Apologética para a glória de Deus: uma introdução (Sã o Paulo: Cultura Cristã , 2010);
Frame, Cornelius Van Til: An Analysis of His Thought (Phillipsburg, NJ: P&R, 1995). Van Til se baseava em pensamentos
anteriores, especialmente de Herman Bavinck, Abraham Kuyper, Joã o Calvino e Santo Agostinho e, claro, da pró pria Bíblia.

[49]
Veja Frame, A doutrina da vida cristã , parte 2: “É tica nã o cristã ”, p. 61-138.
[50]
Frame, A doutrina do conhecimento de Deus , 225n35. Frame faz essa observaçã o no contexto de uma discussão mais
longa sobre as contribuiçõ es da teologia bíblica e os perigos do uso orgulho e imaturo dela. Veja também suas referências
em “Backgrounds to My Thought”. A doutrina da Palavra de Deus e A doutrina de Deus foram subsequentemente
publicados em português pela Editora Cultura Cristã em 2013 e 2014, respectivamente.
[51]
Frame, A doutrina do conhecimento de Deus , p. 222. Veja Geerhardus Vos, Biblical Theology: Old and New Testaments
(Grand Rapids: Eerdmans, 1948; reimpr., Eugene, OR: Wipf and Stock, 2003), p. 13 [Ediçã o brasileira: Teologia bíblica:
Antigo e Novo Testamentos (Sã o Paulo: Cultura Cristã , 2010)]. Vos expressa uma preferência pelo ró tulo “Histó ria da
revelaçã o especial” ( ibid. , p. 23); Frame prefere “histó ria da aliança” ( A doutrina do conhecimento de Deus , p. 227).
Ambos se contentam com “teologia bíblica” só porque é uma expressã o mais tradicional.
[52]
Veja Frame, A doutrina do conhecimento de Deus , p. 223n37. Num período inicial da sua carreira, Clowney, Kline,
Gaffin e Frame foram estudantes no Seminá rio Teoló gico de Westminster. E todos mais tarde lecionaram em Westminster
por um tempo. Vos permaneceu no Seminá rio Teoló gico de Princeton quando da fundaçã o do Seminá rio Teoló gico de
Westminster, em 1929, como uma dissidência de Princeton. Mas as afinidades de Vos com Westminster ainda sã o
profundas. Assim, os desenvolvimentos do perspectivismo de Frame estã o intimamente ligados a Westminster.
[53]
Ibid. , p. 212: “É especialmente importante que os teó logos sistemá ticos de hoje estejam cientes dos desenvolvimentos
na teologia bíblica, uma disciplina na qual novas descobertas estã o sendo feitas quase diariamente. Com bastante
frequência, teó logos sistemá ticos (incluindo este!) estã o com atraso em relaçã o aos teó logos bíblicos na sofisticaçã o de
sua exegese”. Frame também observa que alguns defensores da teologia bíblica se excederam ( ibid. , p. 209-12; Frame,
“Backgrounds to My Thought”, p. 18). Veja também Vern S. Poythress, “Kinds of Biblical Theology”, Westminster
Theological Journal 70, nº 1 (2008): 129-42.
[54]
Falando ainda mais amplamente, poderia o multiperspectivismo se desenvolver mesmo fora do cristianismo?
Algumas formas de “perspectivismo” surgem aqui e ali (veja a nota 9); mas o multiperspectivismo de Frame está
fundamentado em ú ltima instâ ncia na Trindade e, portanto, é possível apenas dentro do círculo da teologia trinitá ria
cristã .
[55]
Veja, por exemplo, Cornelius Van Til, Common Grace and the Gospel (Nutley, NJ: Presbyterian and Reformed, 1973).
[56]
Essa conexão analó gica já havia sido proposta nos Padrõ es de Westminster: “Este pacto [da graça], no tempo da Lei,
nã o foi administrado como no tempo do Evangelho. Sob a Lei, foi administrado por meio de promessas, profecias,
sacrifícios, da circuncisã o, do cordeiro pascal e de outros tipos e ordenanças dados ao povo judeu, tudo prefigurando
Cristo que havia de vir. Por aquele tempo, essas coisas, pela operação do Espírito Santo, foram suficientes e eficazes para
instruir e edificar os eleitos na fé do Messias prometido, por quem tinham plena remissã o dos pecados e a salvaçã o
eterna; este se chama o Antigo Testamento” [ Confissão de fé de Westminster , 7.5 (extraído de Wayne Grudem, Teologia
sistemática: atual e exaustiva (Sã o Paulo: Vida Nova, 1999), p. 1011); veja também o Catecismo maior de Westminster ,
34). Clowney desenvolveu esses temas confessionais em livros como Preaching and Biblical Theology (Grand Rapids:
Eerdmans, 1961); e Preaching Christ in All of Scripture (Wheaton, IL: Crossway, 2003). Veja também Vern S. Poythress,
The Shadow of Christ in the Law of Moses (1991; reimpressão: Phillipsburg, NJ: P&R, 1995).
[57]
Confissão de fé de Westminster , 8.1 ( Ibid. ): “Aprouve a Deus, em seu eterno propó sito, escolher e ordenar o Senhor
Jesus, seu Filho Unigênito, para ser o Mediador entre Deus e o homem, o Profeta, Sacerdote e Rei”. Veja também o
Catecismo maior de Westminster , 43-45. Frame também menciona a influência do pensamento de Clowney em seu
triperspectivismo (Frame, “Backgrounds to My Thought”, p. 15).
[58]
A ideia de usar temas bíblicos como perspectivas é desenvolvida em Poythress, Teologia sinfônica . Eu pretendia que o
título fosse outro ró tulo para o multiperspectivismo de Frame. Meu título era, creio eu, mais belo e pitoresco do que
multiperspectivismo , e eu esperava que fosse se consolidar. Mas o termo multiperspectivismo é mais precisamente
descritivo, e permaneceu assim como o ró tulo mais convencional.
[59]
Veja Frame, A doutrina da vida cristã .
[60]
Veja Frame, “Backgrounds to My Thought”, p. 15-18.
[61]
Pike mencionou para mim, em conversa pessoal, que havia lido alguns dos escritos de Cornelius Van Til. Mas nã o
tenho conhecimento de nenhuma conexã o direta entre o Seminá rio Westminster e o perspectivismo de Pike.
[62]
Veja as informaçõ es biográ ficas sobre Kenneth L. Pike em http://www.sil.org/klp/klp-bio.htm, acessado em 12 de
novembro de 2008.
[63]
O pró prio Pike conta a histó ria em Kenneth L. Pike, “Toward the Development of Tagmemic Postulates”, em
Tagmemics , vol. 2, Theoretical Discussion , ed. Ruth M. Brend e Kenneth L. Pike (The Hague/Paris: Mouton, 1976), p. 91-
127. Outros também contribuíram para o desenvolvimento, incluindo Robert E. Longacre, Evelyn, esposa de Pike, e sua
irmã Eunice. O ensaio de Pike reconhece contribuiçõ es de muitos outros.
[64]
Kenneth L. Pike, Phonemics: A Technique for Reducing Languages to Writing (Ann Arbor: University of Michigan Press,
1947).
[65]
Tecnicamente, “contraste” são mais especificamente “traços contrastivos-identificacionais” e inclui características que
ajudam a estabelecer a identidade de uma unidade em particular, assim como características que colocam essa unidade
em contraste com outras unidades semelhantes. Veja a exposiçã o em Kenneth L. Pike, Linguistic Concepts: An Introduction
to Tagmemics (Lincoln: University of Nebraska Press, 1982), p. 42-51.
[66]
Pike, “Tagmemic Postulates”, p. 94.
[67]
Ibid. , p. 96. Veja a explicaçã o totalmente desenvolvida desses conceitos em Pike, Linguistic Concepts , p. 42-65.
[68]
Kenneth L. Pike, “Language as Particle, Wave, and Field”. The Texas Quarterly 2, nº 2 (1959): 37-54; reimpressão em
Kenneth L. Pike: Selected Writings to Commemorate the 60th Birthday of Kenneth Lee Pike , ed. Ruth M. Brend (The
Hague/Paris: Mouton, 1972), p. 117-28. Uma explicaçã o mais madura das três perspectivas pode ser encontrada em Pike,
Linguistic Concepts , p. 19-38.
[69]
“Sua experiência [a experiência de um observador da linguagem] da facticidade em sua volta é afetada por suas
perspectivas” (Pike, Linguistic Concepts , p. 12). Sobre a relação das teorias linguísticas com as perspectivas humanas, veja
ibid. , p. 5-13.
[70]
Kenneth L. Pike, Language in Relation to a Unified Theory of the Structure of Human Behavior , 2ª ed. (The Hague/Paris:
Mouton, 1967).
[71]
Toda a estrutura para um sistema tagmêmico de discurso pode ser derivada analogicamente, começando com uma
tríade de perspectiva ú nica, a saber: partícula, onda e campo. Veja Vern S. Poythress, “A Framework for Discourse
Analysis: The Components of a Discourse, from a Tagmemic Viewpoint”, Semiotica 38, nº 3/4 (1982): 277-98; Poythress,
“Hierarchy in Discourse Analysis: A Revision of Tagmemics”, Semiotica 40, nº 1/2 (1982): 107-37.
[72]
Dorothy L. Sayers, A mente do Criador (Sã o Paulo: É Realizaçõ es, 2016). O pensamento de Sayers sobre a Trindade é
visível ainda mais cedo em Sayers, Zeal of Thy House (New York: Harcourt, Brace, 1937).
[73]
Sayers, A mente do Criador , p. 49.
[74]
Ibid.
[75]
Ibid.
[76]
Tomei a liberdade de reproduzir aqui dois pará grafos que também aparecem em Vern S. Poythress, In the Beginning
Was the Word: Language — A God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway, 2009).
[77]
Veja o argumento de uma base trinitá ria para a lei científica em Vern S. Poythress, Redimindo a ciência: uma
abordagem teocêntrica (Brasília/DF: Monergismo, 2019), p. 24-26 ; e a base trinitá ria para a linguagem em Poythress, In
the Beginning Was the Word .
[78]
Sobre a estreita correlaçã o e interaçã o entre as revelaçõ es geral e especial, veja Van Til, Introduction to Systematic
Theology , capítulos 6-11.
[79]
Sayers, A mente do Criador , capítulo 2, p. 39-46.
[80]
Pike, “Tagmemic Postulates”, p. 99.
[81]
Ibid. , p. 91. A inclusã o do observador por Pike é ainda mais impressionante quando contrastada com a tendência de
grande parte da teoria linguística da época em construir um sistema formal deixando as pessoas de fora.
[82]
Meredith G. Kline, Images of the Spirit (Grand Rapids: Baker, 1980).
[83]
Veja Joã o 12.41, que alude a Isaías 6.
[84]
Essa investigaçã o faz parte do ponto desenvolvido por Poythress em Redimindo a ciência .
[85]
Van Til, The Defense of the Faith , p. 47-49; Van Til, Survey of Christian Epistemology , 96; Rousas J. Rushdoony, The One
and the Many: Studies in the Philosophy of Order and Ultimacy (Nutley, NJ: Craig, 1971); Vern S. Poythress, “A Biblical View of
Mathematics”, em Foundations for Christian Scholarship: Essays in the Van Til Perspective , ed. Gary North (Vallecito, CA:
Ross House, 1976), p. 161.
[86]
Frame, A doutrina do conhecimento de Deus , p. 28-34.
[87]
Assim, o multiperspectivismo passou a servir muitas á reas: pedagogia, descoberta (heurística), eclesiologia
(diversidade de membros num só corpo), aná lise de termos conceituais (potencial para uso variá vel de um termo) e
ontologia.
[88]
A realidade da falibilidade é afirmada explicitamente na tradiçã o reformada na Confissão de fé de Westminster , 31.3:
“Todos os sínodos e concílios, desde os tempos dos apó stolos, quer gerais quer particulares podem errar, e muitos têm
errado”.
[89]
Veja Vern S. Poythress, “Reforming Ontology and Logic in the Light of the Trinity: An Application of Van Til’s Idea of
Analogy”, Westminster Theological Journal 57, nº 1 (1995): 187-219; Poythress, In the Beginning Was the Word .
[90]
John M. Frame, A doutrina de Deus (Sã o Paulo: Cultura Cristã , 2014).
[91]
John M. Frame, A doutrina do conhecimento de Deus (São Paulo: Cultura Cristã , 2010), p. 30; Frame, A doutrina de Deus
(Sã o Paulo: Cultura Cristã , 2014), p. 101.
[92]
Tecnicamente, sabemos que existe pelo menos um outro tipo de conhecimento — o conhecimento de anjos e
demô nios. Nã o sabemos muito sobre esse tipo de conhecimento — nada além do que a Bíblia nos diz. Como os anjos e
demô nios sã o criados por Deus, seu conhecimento é um conhecimento de criatura. Como tal, é fundamentalmente como o
conhecimento humano e nã o como o conhecimento original e ú nico de Deus.
[93]
Veja Frame, A doutrina do conhecimento de Deus , p. 46-47.
[94]
Veja especialmente John M. Frame, A doutrina da Palavra de Deus (São Paulo: Cultura Cristã , 2013).
[95]
Santo Agostinho, The Confessions of St. Augustine , 1.1.1, em A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the
Christian Church , ed. Philip Schaff (Grand Rapids: Eerdmans, 1979), 1:45.
[96]
Para obter o poder total do sistema de transformaçõ es, é necessá rio fazer a transiçã o para a teoria geral da
relatividade de Einstein, que admite sistemas de coordenadas aceleradas umas em relaçã o às outras. Veja Vern S.
Poythress, Redimindo a ciência: uma abordagem teocêntrica (Brasília/DF: Monergismo, 2019), p. 218.
[97]
Ibid. , capítulos 15-16.
[98]
Michael Polanyi, Personal Knowledge: Towards a Post-Critical Philosophy (Chicago: University of Chicago Press, 1958),
p. 328-31 [ed. port.: Conhecimento pessoal: por uma filosofia pós-crítica (Portugal: Inovatec, 2013)]. O que vale para as
má quinas vale também para as coisas vivas, pois estas contêm má quinas moleculares dentro de suas células. Mas, ao
contrá rio das má quinas mecâ nicas, as coisas vivas mostram um desenvolvimento orgâ nico. Assim, é ainda mais difícil
explicar as coisas vivas com base somente na química apenas do que explicar as má quinas mecâ nicas com base na
química.
[99]
Veja Vern S. Poythress, Logic: A God-Centered Approach to the Foundation of Western Thought (Wheaton, IL: Crossway,
2013), capítulo 16.
[100]
Um dos livros sobre a arte de filosofar que compõ em o Organon . [N. do T.]
[101]
“Cada palavra ou expressã o nã o combinada significa uma das seguintes coisas: — o que (ou Substâ ncia), quã o grande
(isto é, Quantidade), que tipo de coisa (isto é, Qualidade), relacionada a que (ou Relaçã o), onde (isto é, Lugar), quando (ou
Tempo), em que atitude (Postura, Posição), em que circunstâ ncia (Estado ou Condição), quão ativo, o que faz (ou Açã o),
quã o passivo, o que sofre (Afeto). Falando apenas em linhas gerais, exemplos de Substâ ncia sã o ‘homem’ e ‘cavalo’; de
Quantidade, ‘dois cô vados de comprimento’, ‘três cô vados de extensã o’ e assim por diante; de Qualidade, ‘branca’ e
‘gramatical’. Termos como ‘metade’, ‘duplo’, ‘maior’ denotam uma Relaçã o. ‘No mercado’, ‘no Liceu’ e frases congêneres
significam ‘Lugar’, enquanto ‘Tempo’ é pretendido em frases como ‘ontem’, ‘ú ltimo ano’ e assim por diante. ‘Está
mentindo’ ou ‘sentado’ significa Postura; ‘está calçado’ ou ‘está armado’ significa um Estado. ‘Corta’ ou ‘queima’, mais uma
vez, indicam Açã o; ‘é cortado’ ou ‘é queimado’, um Afeto” (Aristó teles, The Categories: On Interpretation , trad. Harold P.
Cooke, [Cambridge: Harvard University Press, 1962], 1b25-2a4).
[102]
Poythress, Logic , especialmente os capítulos 15-23.
[103]
Vern S. Poythress, In the Beginning Was the Word: Language — A God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway,
2009).
[104]
Poythress, Logic , capítulos 15-21.
[105]
Michael Polanyi, Conhecimento pessoal: por uma filosofia pós-crítica (Portugal: Inovatec, 2013).
[106]
Vern S. Poythress, Redimindo a ciência: uma abordagem teocêntrica (Brasília/DF: Monergismo, 2019), capítulo 1.
[107]
Poythress, In the Beginning Was the Word , capítulo 31.
[108]
Vern S. Poythress, Logic: A God-Centered Approach to the Foundation of Western Thought (Wheaton, IL: Crossway,
2013), capítulo 64.
[109]
A filosofia aristotélica tenta fazer alguma justiça ao tempo usando as categorias potencial e real . Mas essas
categorias sã o entã o cercadas de complexidades, de forma muito parecida com as categorias essencial e acidental .
Podemos mencionar apenas uma dificuldade: a palavra potencial pode sugerir potencial inato , como se o
desenvolvimento de um certo tipo fosse deterministicamente programado numa criatura de forma tal que o
desenvolvimento em direçã o a um objetivo final do ser “real” fosse inevitá vel, se apenas nã o houvesse interferência. No
fim, esse acaba sendo um quadro impessoal — como deve ser em Aristó teles, pois ele removeu Deus de sua cosmovisã o.
Todo o quadro é uma imagem de desenvolvimento autô nomo, nã o de um desenvolvimento em comunhã o com Deus. O
desenvolvimento é retratado como independente da presença de Deus e da possibilidade de surpresas na forma como
Deus faz com que um cavalo específico, uma á rvore específica ou um ser humano específico cresça até à maturidade.
[110]
Vern S. Poythress, Teologia sinfônica: a validade das múltiplas perspectivas em teologia (Sã o Paulo: Vida Nova, 2016);
Poythress, In the Beginning Was the Word: Language — A God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway, 2009); e
Poythress, God-Centered Biblical Interpretation (Phillipsburg, NJ: P&R, 1999); todos eles sã o escritos para ajudar no
desenvolvimento da nossa compreensã o da Bíblia sem cobri-la com bagagem filosó fica contaminada.
[111]
Poythress, In the Beginning Was the Word ; Poythress, Redeeming Sociology: A God-Centered Approach (Wheaton, IL:
Crossway, 2011).
[112]
Vern S. Poythress, In the Beginning Was the Word: Language — A God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway,
2009), capítulo 19; Kenneth L. Pike, Linguistic Concepts: An Introduction to Tagmemics (Lincoln: University of Nebraska
Press, 1982), p. 41-65. Veja também o modo de característica, o modo de manifestação e o modo de distribuiçã o em Pike,
Language in Relation to a Unified Theory of the Structure of Human Behavior , 2ª ed. (The Hague/Paris: Mouton, 1967), p.
84-97.
[113]
Vern S. Poythress, “Multiperspectivalism and the Reformed Faith”, em Speaking the Truth in Love: The Theology of
John M. Frame , ed. John J. Hughes (Phillipsburg, NJ: P&R, 2009), p. 185-87, reproduzido no capítulo 7.
[114]
Pike, Linguistic Concepts , p. 62-64. O termo sequência é apto para descrever a linearidade da fala e da escrita, mas
nã o tã o apto no caso da incorporaçã o espacial tridimensional. Um ajuste fá cil na conceituaçã o é tudo o que é necessá rio.
[115]
Ibid. , p. 62.
[116]
Ibid. , p. 65.
[117]
Sobre a soberania universal, veja, por exemplo, John M. Frame, A doutrina de Deus (Sã o Paulo: Cultura Cristã , 2014);
Vern S. Poythress, Chance and the Sovereignty of God: A God-Centered Approach to Probability and Random Events
(Wheaton, IL: Crossway, 2014).
[118]
Vern S. Poythress, “Reforming Ontology and Logic in the Light of the Trinity: An Application of Van Til’s Idea of
Analogy”, Westminster Theological Journal 57, nº 1 (1995): 187-219.
[119]
Poythress, In the Beginning Was the Word , p. 52-57; Pike, Linguistic Concepts , capítulos 3-5.
[120]
A criatividade de Kenneth Pike com perspectivas se estende além, em seu desenvolvimento de uma variedade de
focos humanos da atenção (Pike, A Unified Theory , p. 37-72, 78-81, 98-119).
[121]
Vern S. Poythress, Redeeming Sociology: A God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway, 2011), capítulo 7 e em
outros lugares.
[122]
Kenneth L. Pike, Linguistic Concepts: An Introduction to Tagmemics (Lincoln: University of Nebraska Press, 1982), p.
67-106; Pike, Language in Relation to a Unified Theory of the Structure of Human Behavior , 2ª ed. (The Hague/Paris:
Mouton, 1967), p. 565-97.
[123]
Pike, Unified Theory , p. 101, usa a hierarquia na aná lise de um jogo de futebol.
[124]
Sobre os pontos de vista de alguém de dentro e de alguém de fora, veja Vern S. Poythress, In the Beginning Was the
Word: Language — A God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway, 2009), cap. 19; Poythress, Redeeming Sociology: A
God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway, 2011), cap. 18.
[125]
Poythress, Redeeming Sociology , cap. 30.
[126]
A versã o ARA traz andar e a NVI, vivamos . [N. do T.]
[127]
Veja a discussão da histó ria em relaçã o à histó ria do mundo em Vern S. Poythress, In the Beginning Was the Word:
Language — A God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway, 2009), capítulos 13, 24-29.
[128]
John Beekman e John Callow, Translating the Word of God: With Scripture and Topical Indexes (Grand Rapids:
Zondervan, 1974), p. 68; Johannes P. Louw e Eugene A. Nida, eds., Greek-English Lexicon of the New Testament Based on
Semantic Domains , 2 vols. (New York: United Bible Societies, 1988), agrupam os “relacionais” aos resumos, havendo
assim apenas três categorias no total: “objetos”, “eventos” e “resumos” (1:vi). Pode-se ver alguma relaçã o entre as
categorias CEAR e Aristó teles. As pessoas poderiam usar CEAR como uma versã o minimalista de Aristó teles, para reduzir
o significado a categorias fixas, ou como um sistema mais flexível em que admitiriam a natureza multidimensional dos
significados.
[129]
Veja Vern S. Poythress, Teologia sinfônica: a validade das múltiplas perspectivas em teologia (Sã o Paulo: Vida Nova,
2016), capítulo 3, bem como exemplos nos livros de John Frame da fecundidade de usar uma perspectiva para aprofundar
nossa compreensão de outra.
[130]
“O ser nã o é um ‘caldo’ de imagens da qual as essências devem ser arrancadas num ato de rarefaçã o noética, por um
lado, nem um caos do nã o tematizá vel, por outro, mas uma beleza indomá vel e ilimitada em suas variaçõ es” (David
Bentley Hart, The Beauty of the Infinite: The Aesthetics of Christian Truth [Grand Rapids: Eerdmans, 2003], p. 141).
[131]
John M. Frame, A doutrina da vida cristã (Sã o Paulo: Cultura Cristã , 2013); veja também a obra mais breve de Frame
Perspectives on the Word of God: An Introduction to Christian Ethics (Eugene, OR: Wipf and Stock, 1999).
[132]
Nã o vamos debater aqui o significado da expressã o imagem de Deus . Gênesis 1.26-28 parece ter certo foco na tarefa
de domínio que os seres humanos devem exercer sobre o mundo em nome de Deus. Nesse domínio os seres humanos
estã o imitando o governo de Deus sobre o universo. Portanto, esse exercício de domínio é uma das muitas maneiras nas
quais os seres humanos sã o como Deus e imitam Deus. A natureza distinta dos seres humanos inclui muitos aspectos de
semelhança a Deus. Utilizo a expressão imagem de Deus para incluir todos esses aspectos.
[133]
Veja Vern S. Poythress, Logic: A God-Centered Approach to the Foundation of Western Thought (Wheaton, IL: Crossway,
2013), capítulo 15.
[134]
John M. Frame, A doutrina do conhecimento de Deus , p. 81-90.
[135]
Observe a discussã o explícita de Frame sobre o perspectivismo em ibid. , p. 105-106.
[136]
Note também a discussão da comunhão com Deus no ato da cogniçã o em Vern S. Poythress, Inerrancy and Worldview:
Answering Modern Challenges to the Bible (Wheaton, IL: Crossway, 2012), capítulos 19-20. Os leitores também podem
querer considerar um autor que interaja mais com leitores que ainda nã o aceitam a verdade da Bíblia: Esther L. Meek,
Longing to Know: The Philosophy of Knowledge for Ordinary People (Grand Rapids: Brazos, 2003); veja também a resenha
do livro de Meek: John M. Frame, “Review of Esther Meek’s Longing to Know ”, Presbyterian 29, nº 2 (outono de 2003),
http://www.frame-poythress.org/review-of-esther-meeks-longing-to-know/. K. Scott Oliphint interage com a
“epistemologia reformada” de Alvin Plantinga em “The Old-New Reformed Epistemology”, em Revelation and Reason: New
Essays in Reformed Apologetics , ed. K. Scott Oliphint e Lane G. Tipton (Phillipsburg, NJ: P&R, 2007), p. 207-19.
[137]
Quanto a resumos claros de vá rias disputas importantes na epistemologia, julgo ú til a obra de Steven B. Cowan e
James S. Spiegel, The Love of Wisdom: A Christian Introduction to Philosophy (Nashville, TN: B&H, 2009), p. 33-100.
[138]
Ibid. , p. 36.
[139]
Michael Polanyi, The Tacit Dimension (Garden City, NY: Anchor, 1967).
[140]
Edmund Gettier, “Is Justified True Belief Knowledge?”, Analysis 23 (1963): 121-23, acessado em 10 de dezembro de
2012, http://www.ditext.com/gettier/gettier.html; veja a discussã o em Matthias Steup, “The Analysis of Knowledge”, em
The Stanford Encyclopedia of Philosophy , outono de 2012 ed., ed. Edward N. Zalta, acessado em 20 de dezembro de 2012,
http://plato.stanford.edu/archives/fall2012/entries/knowledge-analysis/; Cowan e Spiegel, Love of Wisdom , p. 64-72.
[141]
Gettier, “Justified True Belief”.
[142]
Steup, “Analysis of Knowledge”, seçã o 2.
[143]
Cowan e Spiegel, Love of Wisdom , p. 68.
[144]
Poythress, Logic , capítulos 17-23.
[145]
Para uma formulaçã o mais precisa, veja Cowan e Spiegel, Love of Wisdom , p. 69.
[146]
Ibid. , p. 70.
[147]
Ibid. , p. 73.
[148]
Ibid.
[149]
Ibid. , p. 78.
[150]
Andrew Seth Pringle-Pattison, “Philosophy”, em Encyclopaedia Britannica , 11ª ed. (Cambridge: University of
Cambridge, 1910), 21:440.
[151]
Na primeira geraçã o, esse movimento era chamado de aconselhamento noutético pelo seu principal fundador, Jay
Adams (veja Jay Adams, Competent to Counsel: Introduction to Nouthetic Counseling [Grand Rapids: Ministry Resources
Library, 1986]). Na segunda geraçã o, as obras principais incluem David Powlison, Seeing with New Eyes: Counseling and
the Human Condition through the Lens of Scripture (Phillipsburg, NJ: P&R, 2003); Edward T. Welch, Counselor’s Guide to
the Brain and Its Disorders: Knowing the Difference between Disease and Sin (Grand Rapids: Zondervan, 1991); e Welch,
Blame It on the Brain? Distinguishing Chemical Imbalances, Brain Disorders, and Disobedience (Phillipsburg, NJ: P&R,
1998). Pode-se encontrar uma aná lise histó rica em Powlison, The Biblical Counseling Movement: History and Context
(Greensboro, NC: New Growth, 2010), uma revisã o de Powlison, “Competent to Counsel? The History of a Conservative
Protestant Anti-Psychiatry Movement” (tese de PhD, University of Pennsylvania, 1996). Existem agora muitas publicaçõ es
mais concisas que abordam problemas e desafios específicos.
[152]
O aconselhamento bíblico fornece mais recursos através de vá rios canais. Veja a bibliografia na nota 2, acima, e em
http://www.ccef.org/.
[153]
Veja Vern S. Poythress, Logic: A God-Centered Approach to the Foundation of Western Thought (Wheaton, IL: Crossway,
2013).
[154]
Merriam-Webster’s New Collegiate Dictionary , 11ª ed. (Springfield, MA: Merriam-Webster, 2008). N. do T.: O
dicioná rio Houaiss oferece quatro significados. O primeiro é: “parte da filosofia voltada para a reflexã o a respeito da
beleza sensível e do fenô meno artístico”.
[155]
James Shelley, “The Concept of the Aesthetic”, em The Stanford Encyclopedia of Philosophy , ediçã o de outono de 2009,
ed. Edward N. Zalta, acessado em 28 de janeiro 2012, http://plato.stanford.edu/archives/fall2009/entries/aesthetic-
concept/.
[156]
A NTLH traz “dignidade e beleza”. [N. do T.]
[157]
Veja Philip Graham Ryken, Art for God’s Sake: A Call to Recover the Arts (Phillipsburg, NJ: P&R, 2006); David Bentley
Hart, The Beauty of the Infinite: The Aesthetics of Christian Truth (Grand Rapids: Eerdmans, 2003); veja também as breves
observaçõ es sobre formas de arte em Vern S. Poythress, Redeeming Sociology: A God-Centered Approach (Wheaton, IL:
Crossway, 2011), capítulos 31-33. Hart se situa no contexto da ortodoxia oriental, nã o do protestantismo ortodoxo, e
entende como os cruzamentos de contexto influenciam a teologizaçã o. Minha mençã o ao seu trabalho deve ser entendida
nesse contexto. O coraçã o de Hart está no lugar certo: “Mas se a histó ria cristã há de ser oferecida ao mundo como o dom
da paz, deve ser contada em sua plenitude, sem conceder qualquer terreno à outra narrativa” ( ibid. , p. 34). No entanto, é
muito difícil uma pessoa na sociedade moderna deixar involuntariamente de conceder terreno em uma á rea ou outra.
Julgo ver certas concessõ es em Hart. Ele indubitavelmente veria concessõ es no meu trabalho. Esses perigos confirmam a
importâ ncia do uso de mú ltiplas perspectivas de mú ltiplas pessoas para a correçã o e também enriquecimento mú tuos.
[158]
Veja também Vern S. Poythress, Redeeming Sociology: A God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway, 2011),
capítulo 25.
[159]
Vern S. Poythress, In the Beginning Was the Word: Language — A God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway,
2009).
[160]
Para mais detalhes sobre histó ria, veja ibid. , capítulos 11-19, 24-29; Poythress, Redeeming Sociology , capítulos 11-
18; e Poythress, Inerrancy and Worldview: Answering Modern Challenges to the Bible , capítulos 5-6. Esses esboços podem
ser complementados por muitas obras sobre histó ria redentora, como Geerhardus Vos, Biblical Theology: Old and New
Testaments (Grand Rapids: Eerdmans, 1948; reimpressã o., Eugene, OR: Wipf and Stock, 2003); Richard B. Gaffin Jr.,
Resurrection and Redemption: A Study in Paul’s Soteriology (Phillipsburg, NJ: P&R, 1987); Edmund P. Clowney, The
Unfolding Mystery: Discovering Christ in the Old Testament (Colorado Springs, CO: NavPress, 1988).
[161]
Vern S. Poythress, Redimindo a ciência: uma abordagem teocêntrica (Brasília/DF: Monergismo, 2019).
[162]
Para uma resposta ampliada à histó ria da filosofia, veja John M. Frame, A History of Western Philosophy and Theology
(Phillipsburg, NJ: P&R, 2015).
[163]
John M. Frame, “Greeks Bearing Gifts”, em Revolutions in Worldview: Understanding the Flow of Western Thought , ed.
W. Andrew Hoffecker (Phillipsburg, NJ: P&R, 2007), p. 33.
[164]
Veja, por exemplo, Cornelius Van Til, A Survey of Christian Epistemology , In Defense of Biblical Christianity 2 (s. e.:
den Dulk Christian Foundation, 1969); Van Til, A Christian Theory of Knowledge (s. e.: Presbyterian and Reformed, 1969);
Van Til, Christianity and Barthianism (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1965); Van Til, The New Modernism: An
Appraisal of the Theology of Barth and Brunner (Nutley, NJ: Presbyterian and Reformed, 1973); Van Til, The New
Hermeneutic (Nutley, NJ: Presbyterian and Reformed, 1974).
Na minha opiniã o, o trabalho de Van Til é muito importante, porém também de difícil leitura. Van Til acredita numa
antítese entre o pensamento cristã o e o nã o cristã o, e essa antítese aparece claramente em sua aná lise das obras de
outros. Ele também acredita na graça comum, mas é mais difícil discernir, a partir de suas obras, como se apropriar
positivamente dos grã os de verdade presentes nas obras do pensamento nã o cristã o.
[165]
Veja os ensaios de John Frame sobre o assunto catalogados em “Bibliografia”, em Speaking the Truth in Love: The
Theology of John M. Frame , ed. John J. Hughes (Phillipsburg, NJ: P&R, 2009), p. 1044-45.
[166]
John M. Frame, A History of Western Philosophy and Theology (Phillipsburg, NJ: P&R, 2015).
[167]
Cornelius Van Til, Survey of Christian Epistemology , In Defense of Biblical Christianity 2 (s. e..: den Dulk Christian
Foundation, 1969), p. 106-14; Vern S. Poythress, Logic: A God-Centered Approach to the Foundation of Western Thought
(Wheaton, IL: Crossway, 2013), apêndice F1; John M. Frame, A History of Western Philosophy and Theology (Phillipsburg,
NJ: P&R, 2015).
[168]
Immanuel Kant, Crítica da razão pura , 5ª ediçã o (Lisboa: Fundaçã o Calouste Gulbenkian, 2001), p. 62.
[169]
Ibid. , p. 63.
[170]
Vern S. Poythress, In the Beginning Was the Word: Language — A God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway,
2009), capítulos 24-29.
[171]
Há muito a dizer sobre uma aná lise crítica da desconstruçã o, muito mais do que o começo que tentei desenvolver em
ibid. , Apêndice I.
[172]
Vladimir Propp, The Morphology of the Folktale , 2ª ed. (Austin: University of Texas Press, 1968), p. 79.
[173]
Edmund Husserl, Ideas: General Introduction to Pure Phenomenology (London: Allen & Unwin; New York: Humanities,
1931). [Ediçã o em português: Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica . Sã o Paulo: Idéias
e Letras, 2006.]
[174]
Ibid. , p. 43, itá licos no original.
[175]
Ibid. , p. 41.
[176]
Ibid. , p. 51, itá licos no original.
[177]
Ibid. , p. 51-52.
[178]
Ibid. , p. 52.
[179]
Ibid.
[180]
Sobre a filosofia analítica, veja também Vern S. Poythress, Logic: A God-Centered Approach to the Foundation of
Western Thought (Wheaton, IL: Crossway, 2013), apêndice F2.
[181]
Bertrand Russell, Human Knowledge: Its Scope and Limits (New York: Simon and Schuster, 1948), p. xi.
[182]
Ibid.
[183]
Bertrand Russell, “A Free Man’s Worship”, em Why I Am Not a Christian , ed. Paul Edwards (New York: Simon &
Schuster, 1957), p. 107.
[184]
Para uma discussã o aprofundada, veja Vern S. Poythress, Redimindo a ciência: uma abordagem teocêntica
(Brasília/DF: Monergismo, 2019), especialmente o capítulo 1, sobre viés religioso, e os capítulos 15-16, sobre a natureza
da realidade.
[185]
Vern S. Poythress, In the Beginning Was the Word: Language — A God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway,
2009), apêndice H.
[186]
Para uma introduçã o histó rica, veja Bernard Zylstra, introduçã o a Contornos da filosofia cristã , de L. Kalsbeek (Sã o
Paulo: Cultura Cristã , 2015). O livro de Kalsbeek pode servir como uma introduçã o bá sica à substâ ncia do pensamento de
Dooyeweerd. Veja também Roy Clouser, O mito da neutralidade religiosa (Brasília/DF: Academia Monergista, 2019); e
Jeremy G. A. Ive, “A Critically Comparative Analysis and a Trinitarian, ‘Perichoretic’ Reconstruction of the Reformational
Philosophies of Dirk H. Th. Vollenhoven and Herman Dooyeweerd” (tese de PhD, King’s College, London, 2011).
[187]
À s vezes a expressã o filosofia cosmonômica está mais estreitamente associada a Herman Dooyeweerd, que escreveu o
texto fundacional A New Critique of Theoretical Thought , 4 vols. (Amsterdam: H. J. Paris; Philadelphia: Presbyterian and
Reformed, 1955-1958; reimpr., Lewiston, NY: Edwin Mellen, 1997), em que a ideia da lei có smica de Deus desempenha
um papel principal. O título original holandês de Dooyeweerd, De wijsbegeerte der wetsidee , é traduzido literalmente “A
filosofia da lei-ideia”. (O termo cosmonômica deriva do grego kosmos , significando “mundo”, e do grego nomos ,
significando “lei”. Em termos mais modernos, podemos falar de “leis para o universo”. Ou, se a palavra universo é
inadequada porque sugere apenas o universo físico, podemos falar de “leis para o cosmo”).
[188]
Dirk H. Th. Vollenhoven, De wijsbegeerte der wiskunde van theïstisch standpunt (Amsterdam: Van Soest, 1918);
Vollenhoven, De noodzakelijkheid eener christelijke logica (Amsterdam: H. J. Paris, 1932); Vollenhoven, “Problemen en
richtingen in de wijsbegeerte der wiskunde”, Philosophia Reformata 1 (1936): 162-87; Vollenhoven, “Hoofdlijnen der
logica”, Philosophia Reformata 13 (1948): 58-118. Devo mencionar também D. F. M. Strauss e Marinus Dirk Stafleu, que se
esforçaram para aplicar a filosofia cosmonô mica à matemá tica e à física.
[189]
Representantes da filosofia cosmonô mica expressam com razão um receio de que, em seu desejo de encontrar
respostas imediatas, os leitores em busca de respostas na Bíblia podem perder de vista os propó sitos reais dela e forçá -la
a falar sobre questõ es que ela nã o aborda diretamente (essa interpretaçã o equivocada é chamada de “suposiçã o
enciclopédica” em Roy A. Clouser, “Genesis on the Origin of the Human Race”, Perspectives on Science and Christian Faith
43, nº 1 [março de 1991]: 2–13). Mas há um erro oposto: que para entender os detalhes, estimamos insuficientemente as
implicaçõ es da Escritura.
[190]
Uma discussã o adicional é encontrada em John M. Frame, A doutrina da Palavra de Deus (São Paulo: Cultura Cristã ,
2013) e Vern S. Poythress, In the Beginning Was the Word: Language — A God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway,
2009).
[191]
Essa necessidade de uma concepçã o cristã instruída pela Escritura é uma das razõ es por que tenho me proposto a
escrever livros esclarecendo o significado da transcendência e imanência de Deus em vá rias á reas: ciência [ Redimindo a
ciência: Uma abordagem teocêntrica (Brasília/DF: Monergismo, 2019)], linguagem ( In the Beginning Was the Word ),
sociedade [ Redeeming Sociology: A God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway, 2011)], ló gica [ Logic: A God-Centered
Approach to the Foundation of Western Thought (Wheaton, IL: Crossway, 2013)] e acaso [ Chance and the Sovereignty of
God: A God-Centered Approach to Probability and Random Events (Wheaton, IL: Crossway, 2014)].
[192]
Deve-se mencionar Hendrik Stoker pelo seu esforço de conceber a estrutura das esferas modais como uma dentre
vá rias estruturas transversais. Herman Dooyeweerd falou de estruturas de individualidade e entrelaçamentos encá pticos.
Assim, filó sofos cosmonô micos tentaram fazer justiça à riqueza da criaçã o. Ainda restam dú vidas sobre se poderíamos
acrescentar algo ou reestruturar a lista de esferas modais.
[193]
É possível ponderar a educação, a epistemologia, e a feitura, a elaboraçã o e o cultivo como ilustraçõ es de atividade
ligadas à esfera “histó rica”, que também tem sido chamada de esfera “técnica” ou esfera “formativa”. Mas podemos
distinguir vá rios tipos de “formaçã o” e desenvolvimento histó rico — desenvolvimento de atividades pessoais,
conhecimento pessoal, instituiçõ es, ideias, fazendas, casas, Estados-naçõ es, objetos manufaturados e objetos artísticos. Se
as distinçõ es sã o reais e nã o “redutíveis”, o que determina quantas esferas modais nó s temos? Da mesma forma, se a
comunicação inclui informaçã o, expressã o, propó sitos pessoais e alusõ es poéticas, todos os quais sendo distinguíveis
entre si, essas coisas pertencem ou nã o a uma ú nica esfera modal lingual mais ampla? A filosofia dooyeweerdiana fornece
um tipo de resposta ao nos permitir fazer distinçõ es dentro de qualquer esfera através do que chama de “antecipaçõ es” e
“retrocipaçõ es” de outras esferas e através de “estruturas de individualidade”. Mas será que o apelo a outras esferas e à
individualidade nã o deixa os estudantes propensos a adotarem um tipo de “reducionismo” que nã o faz total justiça a
distinçõ es mais refinadas? Nenhuma aná lise dissolve o mistério.
[194]
Nã o podemos entrar em todos os detalhes. O aspecto quantitativo no mundo criado é aná logo ao aspecto quantitativo
no um e três de um Deus em três pessoas. O aspecto ló gico do mundo é aná logo à autoconsistência de Deus. O aspecto
lingual no mundo é aná logo ao fato de que Deus fala e que a segunda pessoa da Trindade é o Verbo. O aspecto ético do
mundo, que deve ser caracterizado pelo amor, é aná logo ao amor entre as pessoas da Trindade. O aspecto jurídico do
mundo é aná logo ao cará ter justo de Deus. No pró prio Deus, nã o me parece fazer sentido dizer que o aspecto quantitativo
(a condição de triunidade) é anterior ou subsequente ao aspecto ético (amor) nem que o aspecto ló gico (autoconsistência)
é anterior ou subsequente ao aspecto bió tico (Deus é o Deus vivo). A origem das esferas modais no pró prio Deus torna
problemá tica a alegaçã o de que uma esfera está de alguma forma “acima” ou “abaixo” de outra.

Podemos conferir algum sentido ao superior e inferior no tocante aos principais grupos de criaturas (em distinçã o do
Criador). Plantas e animais funcionam ativamente nos níveis químico e físico de maneira aná loga à s atividades químicas e
físicas nas rochas. Além disso, as plantas e os animais são biologicamente ativos de uma forma que as coisas inanimadas
nã o o sã o. Assim, podemos dizer que essa atividade bioló gica mostra que eles sã o “superiores”?
Muitos animais interagem movendo-se e sentindo, atividades que na maior parte encontram apenas reflexos tênues na
vida das plantas. Entã o, esses animais seriam “superiores” à s plantas. A filosofia cosmonô mica se baseia nessas
observaçõ es cotidianas para inferir que a esfera psíquica, na qual muitos animais sã o subjetivamente ativos, é “superior à”
esfera bió tica, que por sua vez é superior à esfera física característica das rochas. De acordo com a filosofia cosmonô mica,
só os seres humanos sã o subjetivamente ativos nas esferas modais que estã o acima da esfera psíquica.

Uma vez que os seres humanos são ativos em todas as esferas acima da psíquica, nã o está tã o claro o que fornece a base
para o ordenamento linear das esferas superiores entre si. Os cosmonomistas dizem que as esferas superiores de algum
modo “pressupõ em” as inferiores. Mas as inferiores nã o “pressupõ em” também as superiores —a ló gica nã o pressupõ e,
enquanto foco humano, a linguagem e a histó ria humana levando ao uso e à investigaçã o de padrõ es ló gicos? Nã o
pressupõ e também ela que temos um senso de certeza (pertencente à esfera pística)?

[195]
Vern S. Poythress, Teologia sinfônica: a validade das múltiplas perspectivas em teologia (Sã o Paulo: Vida Nova, 2016),
discute o processo. John Frame e eu ilustramos isso em vá rios escritos. Talvez o mais notá vel e elaborado seja Frame, A
doutrina da vida cristã (São Paulo: Cultura Cristã , 2013).
[196]
Sobre o modernismo e pó s-modernismo, veja também as observaçõ es difusas em Poythress, In the Beginning Was the
Word .
[197]
Veja também a analogia trinitá ria em Vern S. Poythress, In the Beginning Was the Word: Language — A God-Centered
Approach (Wheaton, IL: Crossway, 2009), capítulos 24 e 25.
[198]
Alguém poderia sugerir que, na analogia do discurso o orador, o Pai é que está mais em foco (normalmente as
pessoas escutam os oradores através de palavras, em vez de se concentrarem nas palavras mesmas, como o faria um
linguista). Na analogia da família, o Espírito Santo, como a expressão do amor, está em foco; na analogia teofâ nica, o Filho,
como a imagem que aparece, está em foco. Todavia, em cada uma dessas analogias todas as três pessoas participam
ativamente. Ao receber o dom de Deus, viemos a conhecer todas as três pessoas da Trindade em sua comunhã o e
coinerência. Na analogia da família, o Espírito expressa a relaçã o entre o Pai e o Filho; na analogia do discurso, o Filho
como o Verbo viaja do orador até o destino, expressando assim a relaçã o entre o Pai e o Espírito; na analogia teofâ nica,
tanto o Filho quanto o Espírito expressam o cará ter do Pai, e assim o Pai explica a unidade deles. Qualquer dessas
analogias, para nã o dizer todas elas juntas, mostra o cará ter necessariamente trinitá rio de Deus. Deus como pessoal é
orador, amante e formador de imagem; Deus como orador tem orador, discurso e destino; Deus como amante tem
amante, amor e amado; Deus como formador de imagem tem arquétipo, imagem e cará ter. Contudo, todas essas
observaçõ es oferecem simplificaçõ es e resumos unidimensionais do mistério infinito. Quaisquer que sejam as
profundezas das limitaçõ es do nosso entendimento humano, a irradiação da gló ria de Deus em seu cará ter
necessariamente trinitá rio irradia em todas as obras de Deus, pois seu cará ter irradia primeiro na gló ria infinita do Pai, do
Filho e do Espírito, que se glorificam infinitamente (Jo 13.31-32) em comunhão eterna. Se sabemos essas coisas e ainda
assim nã o nos deleitamos nelas e na sua incompreensibilidade, somos como “o bronze que soa ou como o címbalo que
retine” (1Co 13.1). Estamos perdendo a comunhã o com Deus em meio a fatos conhecidos.
[199]
Veja Vern S. Poythress, In the Beginning Was the Word , p. 283-84; Poythress, God-Centered Biblical Interpretation
(Phillipsburg, NJ: P&R, 1999), p. 36-47.
[200]
Vern S. Poythress, “Hierarchy in Discourse Analysis: A Revision of Tagmemics”, Semiotica 40, nº 1/2 (1982): 107-37.
[201]
Ibid. ; Vern S. Poythress, In the Beginning Was the Word: Language — A God-Centered Approach (Wheaton, IL:
Crossway, 2009), capítulo 7.
[202]
Poythress, In the Beginning Was the Word , capítulo 32.
[203]
Vern S. Poythress, Redeeming Sociology: A God-Centered Approach (Wheaton, IL: Crossway, 2011), capítulos 31-33.
[204]
Para uma definiçã o geral, veja Poythress, “Hierarchy”, p. 112-20.
[FTdM1] Deus tem autoridade e controles supremos.

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