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Reitora Márcia Abrahão Moura

Vice-Reitor Enrique Huelva

EDITORA

Diretora Germana Henriques Pereira

Conselho editorial Germana Henriques Pereira


Fernando César Lima Leite
Beatriz Vargas Ramos Gonçalves de Rezende
Carlos José Souza de Alvarenga
Estevão Chaves de Rezende Martins
Flávia Millena Biroli Tokarski
Izabela Costa Brochado
Jorge Madeira Nogueira
Maria Lidia Bueno Fernandes
Rafael Sanzio Araújo dos Anjos
Verônica Moreira Amado
As conferências Gifford proferidas na
Universidade de St. Andrews em 2003

Peter van Inwagen


Tradução e prefácio à edição brasileira
Sérgio Miranda
Equipe editorial
Preparação e revisão Ana Alethéa Osório
Diagramação Cláudia Dias
Capa Wladimir de Andrade Oliveira (arte sobre foto de Greg Montani)

The problem of evil: the Gifford lectures delivered in the University of


St. Andrews in 2003
© Peter van Inwagen 2006
Tradução © ABFR 2016

Editora Universidade de Brasília


SCS, quadra 2, bloco C, nº 78, edifício OK,
2º andar, CEP 70302-907, Brasília, DF
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da Editora.

O problema do mal: as conferências The problem of evil: the Gifford lectures


Gifford proferidas na Universidade de delivered in the University of St. Andrews
St. Andrews em 2003 foi publicado origi- in 2003  was originally published in English
nalmente em inglês em 2006. Esta tra- in 2006. This translation is published by
dução foi publicada em acordo com a arrangement with Oxford University Press.
Oxford University Press e é de respon- ABFR is solely responsible for this trans-
sabilidade exclusiva da ABFR. A Oxford lation from the original work and Oxford
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quaisquer erros, omissões, imprecisões any erros, omissions or inaccuracies or
ou ambiguidades nesta tradução nem ambiguities in such translation or for any
por quaisquer perdas decorrentes dela. losses caused by reliance thereon.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília

Impresso no Brasil
Para Lisette
SUMÁRIO
Prefácio à edição brasileira.........................................................9

Apresentação..............................................................................37

Conferência 1 | O problema do mal e o argumento do mal..............45

Conferência 2 | A ideia de Deus.................................................77

Conferência 3 | O fracasso filosófico...........................................111

Conferência 4 | O argumento global do mal................................141

Conferência 5 | O argumento global do mal (continuação)............175

Conferência 6 | O argumento local do mal..................................211

Conferência 7 | O sofrimento dos animais irracionais..................241

Conferência 8 | A ocultação de Deus...........................................283

Referências............................................................................313

Índice de assuntos....................................................................321
P REFÁCIO À EDIÇÃO
BRASI LEI RA
Sérgio Miranda1

Os problemas tratados neste livro são problemas filosóficos e teo-


lógicos antigos, envolvendo Deus, os seres humanos e a realidade do
mal, sobre o qual refletiram muitos filósofos e teólogos do passado,
entre os quais Agostinho, Tomás de Aquino e João Calvino, cientistas
como Charles Darwin, além de intelectuais e artistas como Dostoiévski
e Ingmar Bergman. Mas isso não quer dizer que o problema tenha
sido resolvido, que a discussão tenha se esgotado ou o tema perdido
interesse, e que não possa haver mais contribuições originais. Este livro,
O problema do mal: as conferências Gifford proferidas na Universidade de
St. Andrews em 2003, de Peter van Inwagen, mostra que o problema do
mal é uma questão em aberto que merece consideração, como também
exemplifica o tipo de contribuição original que os filósofos contemporâ-
neos da religião, em particular os filósofos da tradição analítica, podem
oferecer para a sua solução.
O cerne do livro é a discussão dos argumentos que estabelecem os
problemas do mal e da ocultação de Deus. O seu objetivo é defender o
teísmo mostrando que esses argumentos ateístas fracassam. Com esse
objetivo em vista, van Inwagen propõe nos capítulos iniciais um modelo

1
Professor associado da Universidade Federal de Ouro Preto.
O problema do mal | Peter van Inwagen

atraente para avaliar o sucesso ou fracasso da argumentação filosófica em


geral e dos argumentos ateístas em particular, o modelo do debate forense.
Nesse tipo de debate, as defesas do teísmo, entendidas como histórias
coerentes ou mesmo epistemicamente possíveis (isto é, possíveis dado
o nosso conhecimento atual) nas quais são apresentadas as razões que
justificariam Deus permitir a ocorrência do mal ou que explicariam
a sua ocultação, acabariam minando a força das evidências contra o
teísmo, levando um júri de agnósticos neutros, um grupo de pessoas
não inclinadas nem para o ateísmo e nem para o teísmo, a recusar a
conclusão dos argumentos ateístas e a dar um veredito favorável a Deus.
A disposição dos capítulos centrais do livro segue a proposta do
autor de distinguir o argumento global dos argumentos locais do mal.
Para estabelecer a conclusão ateísta de que Deus (provavelmente) não
existe, o argumento global do mal parte de uma premissa genérica sobre
a quantidade massiva de males horrendos no mundo. Os argumentos
locais do mal, por sua vez, partem de premissas que afirmam a ocorrên-
cia de um mal particular gratuito, especificamente de um horror para o
qual aparentemente não haveria razão para Deus permiti-lo. Portanto,
a proposta deste livro de distinguir esses dois tipos de argumentos é
útil como fio organizador da discussão do problema do mal, pois esses
argumentos, tendo premissas diferentes, exigirão respostas diferentes.
No debate sobre o argumento global do mal, que compreende
os capítulos 4 e 5, van Inwagen segue uma linha de pensamento que
remonta a Agostinho e apresenta uma defesa do livre-arbítrio.2 Central

2
O termo “defesa do livre-arbítrio” foi introduzido pelo filósofo norte-americano Alvin Plan-
tinga para diferenciar a sua resposta ao problema do mal das teodiceias tradicionais como

10
Prefácio | Sérgio Miranda

nesse tipo de defesa é a afirmação de que o livre-arbítrio é um bem


maior que Deus incluiu na Criação e os males que encontramos neste
mundo remontam ao mau uso que os seres humanos fizeram desse
poder. A fim de responder a algumas objeções comuns feitas contra
esse tipo de defesa, van Inwagen desenvolve uma defesa do livre-arbítrio
estendida, que incorpora à defesa do livre-arbítrio simples certos elemen-
tos característicos de grandes religiões mundiais como o cristianismo,
em particular a rebelião dos seres humanos, o afastamento de Deus e a
consequente ruína do mundo, além da proposta divina de reconciliação.
O tratamento dos problemas locais do mal e do sofrimento dos
animais não racionais, respectivamente nos capítulos 6 e 7, desenvol-
vem as contribuições mais originais de van Inwagen para a discussão
do problema do mal. Essas contribuições estão relacionadas às atuais
discussões filosóficas da noção de vagueza, dos paradoxos sorites e da
epistemologia da modalidade. Decerto, o domínio completo dessas
discussões não é uma condição necessária para a leitura e plena com-
preensão das propostas deste livro; contudo, situar essas propostas em
um quadro filosófico mais amplo pode ser útil para a compreensão das
partes centrais da argumentação nesses dois capítulos.

a teodiceia agostiniana, também centrada no livre-arbítrio humano. Contudo, note que a


diferença entre uma teodiceia do livre-arbítrio e uma defesa do livre-arbítrio não diz respeito
ao conteúdo, mas sim ao propósito do autor de apresentar a verdade da questão sobre a exis-
tência de Deus e a realidade do mal, no caso das teodiceias, ou apenas uma versão coerente ou
epistemicamente possível das razões de Deus para permitir a ocorrência do mal, no caso das
defesas (a diferença entre a defesa do livre-arbítrio e a teodiceia do livre-arbítrio é discutida
por Alvin Plantinga em seu livro Deus, a liberdade e o mal, São Paulo: Vida Nova, 2012, e no
capítulo 1 deste livro; para a discussão crítica da tradição agostiniana de teodiceia, veja John
Hick, O mal e o deus do amor, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2018).

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O problema do mal | Peter van Inwagen

Vagueza

Os argumentos locais do mal partem de uma premissa envolvendo


um mal particular horrendo e aparentemente gratuito que ocorre no
mundo; na sequência, afirmam que Deus, sendo onipotente, pode-
ria ter evitado esse mal e, sendo perfeitamente bom, deveria fazer
justamente isso; finalmente, avançam para a conclusão de que Deus
não existe. É comum responder a esse tipo de argumento com o ataque
à premissa de que o mal particular em questão é gratuito; pode-se, por
exemplo, apresentar alguma razão que justificaria Deus permitir esse
mal ou mesmo argumentar que não estamos em uma posição epistê-
mica favorável para avaliar se o mal em questão é realmente gratuito.
Em sua resposta, van Inwagen segue uma via diferente. Em sua opinião,
não haveria a obrigação divina de eliminar cada um dos casos de mal
particular horrendo e aparentemente gratuito, mesmo que esteja no
poder de Deus evitar a ocorrência de todos eles. Essa resposta original
de van Inwagen apela para elementos comuns nas discussões filosóficas
sobre a vagueza e os paradoxos sorites.
Consideremos primeiro a vagueza. Expressões como “... é careca”,
“... é alto” ou “... é um monte”, que atribuem propriedades ou classificam
indivíduos, são as expressões mais comumente associados à vagueza.
Temos também algumas intuições sobre esse fenômeno. Pode-se ini-
cialmente entender que uma pessoa fala de modo vago quando o que ela
diz é muito genérico, ambíguo, ou carece de um contexto ou parâmetro
de avaliação adequado, e essa pode ser até a maneira usual de entender
a vagueza. Contudo, seria um erro identificar o fenômeno da vagueza

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Prefácio | Sérgio Miranda

investigado pelos filósofos com problemas de generalidade, ambiguidade


ou ausência de um contexto ou parâmetro de avaliação adequado.
Considere o caso da generalidade. Por um lado, se alguém pedir que
você diga um número maior do que 10, essa pessoa usa uma expressão
genérica que não determina um único número e, dadas as possibilidades
infinitas de resposta, você pode ficar sem saber exatamente o que dizer;
no entanto, ela traça uma linha precisa entre duas classes e deixa claro
em qual delas você deve buscar o número desejado. Por outro lado, se
alguém pedir que você diga qual é a menor quantidade de grãos de areia
que forma um monte de areia, você também ficaria sem saber exatamente
o que dizer, mas não porque essa pessoa usou uma expressão genérica e
você pode oferecer uma infinidade de respostas, pois, afinal de contas,
ela pediu para você dizer o número mínimo de grãos de areia em um
monte de areia; na verdade, você nem sequer saberia o que conta como
uma resposta correta e todas elas pareceriam arbitrárias.
Também não é apropriado identificar o problema da vagueza com
os problemas colocados pelo uso de expressões ambíguas, isto é, expres-
sões às quais são associados mais de um significado, como “banco”,
“canto” ou “vela”. Essa identificação talvez seja feita porque tanto o uso
de expressões vagas quanto de expressões ambíguas gera algum tipo de
dúvida. A frase “Moe caminhou até o banco”, por exemplo, pode deixar
o ouvinte em dúvida quanto ao paradeiro de Moe, pois Moe pode ter
caminhado até o banco comercial, que fica na rua principal, ou até o
banco do parque, situado em outro canto da cidade. Do mesmo modo,
se alguém pedir para você separar um conjunto de pessoas famosas
em dois grupos, um primeiro de pessoas que são carecas e o segundo
de pessoas que são não carecas, você pode ficar em dúvida sobre como

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O problema do mal | Peter van Inwagen

proceder em alguns casos; com efeito, você pode ter total segurança
sobre os grupos aos quais pertencem o ator Patrick Stewart e o cantor
Steven Tyler, mas ainda ter sérias dúvidas sobre o grupo ao qual pertence
o filósofo pós-moderno Peter Sloterdijk, que não é obviamente careca
e nem obviamente cabeludo.
No entanto, parece claro que as expressões vagas podem ter um
sentido unívoco; a pergunta “Peter é careca?” não envolve ambigui-
dade, e se houver alguma dificuldade nesse ponto, ela tem outra fonte.
Além disso, se os problemas da vagueza e os problemas da ambiguidade
fossem os mesmos, eles teriam o mesmo tipo de solução. Os problemas
com as expressões ambíguas podem geralmente ser contornados com
a introdução de informações adicionais, mas isso não acontece com os
problemas colocadas pelo uso de expressões vagas. Se o ouvinte adquire
a informação de que Moe precisava pagar algumas contas e retirar
dinheiro no banco ou o falante aponta em direção ao parque quando
diz “Moe caminhou até o banco”, ele não precisa ficar indeciso quanto
ao paradeiro de Moe. O mesmo não acontece com a vagueza: se ficamos
indecisos se Peter é careca ou não, nenhuma informação adicional (sobre
o número de fios de cabelos na cabeça de Peter, por exemplo) poderá
resolver o problema que a vagueza de “careca” coloca.
Aparentemente, a introdução de um contexto específico ou a colo-
cação de um parâmetro pode ajudar-nos a resolver os problemas de
vagueza. Mas essa é só uma aparência. Considere “... é alto”, que também
é um predicado vago. Se colocarmos todos os atletas brasileiros que par-
ticiparam das Olimpíadas de 2016 enfileirados de acordo com a altura,
teremos, em uma ponta, a ginasta Flávia Saraiva, com apenas 1,33m, na
outra, Nenê, pivô da seleção de basquete, com 2,13m. Ninguém duvida

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Prefácio | Sérgio Miranda

que Nenê seja alto ou que Flávia Saraiva não seja alta. Mas o que dizer
do Serginho, da seleção de vôlei, que tem 1,84m? Ele pode ser consi-
derado um atleta alto? Eu não saberia responder. Note que o problema
não é resolvido com a especificação de um contexto ou a introdução
de um parâmetro como “alto para um jogador da seleção brasileira de
vôlei”. Nesse caso, diríamos que Serginho não é alto, porém teríamos de
enfrentar o problema de determinar se Murilo, jogador da seleção bra-
sileira de vôlei com 1,90m de altura, pode ser considerados alto ou não.
A vagueza e os problemas que ela coloca não podem ser identifi-
cados com problemas de generalidade, ambiguidade ou dependência
de um contexto ou parâmetro; mas note que há outras característi-
cas definidoras da noção de vagueza que podem ser identificadas nos
exemplos que oferecemos e são elas que conduzirão aos problemas que
interessam aos filósofos mais de perto.
Em primeiro lugar, os conceitos e predicados vagos têm casos fron-
teiriços, ou seja, há um conjunto de casos em relação aos quais é indeter-
minado se o conceito se aplica ou não a esses casos. Esse seria o caso de
Peter Sloterdijk, em que ficamos em dúvida quanto a sua classificação
como careca ou não careca, mesmo reconhecendo os casos claros de
careca e não careca (Patrick Stewart e Steven Tyler); o mesmo pode-
mos dizer a respeito de Serginho e de Murilo (depois da introdução do
parâmetro), que ficamos em dúvida quanto a classificá-los como atletas
altos ou não altos, mesmo reconhecendo os casos claros de alto e não
alto (Nenê e Flávia Saraiva).
Os conceitos e predicados vagos também não colocam limites preci-
sos, ou seja, não podemos dizer exatamente onde traçar um limite entre
os casos aos quais esses conceitos se aplicam e aqueles casos aos quais

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O problema do mal | Peter van Inwagen

eles não se aplicam. Essa característica da vagueza é patente no con-


traste de monte de areia, expressão vaga que não coloca um limite entre
as quantidades de areia que formam um monte e aquelas quantidades
que não chegam a um monte, com número maior do que 10, expressão
genérica que introduz um limite preciso. Essa característica é também
evidente na dificuldade de traçar uma linha entre os carecas e não
carecas ou entre os atletas altos e não altos.
Uma terceira característica interessante dos predicados e concei-
tos vagos é a tolerância, ou seja, esses predicados e conceitos admitem
variações mínimas que não interferem na aplicação deles. Por exemplo,
se admitimos que Nenê, com 2,13m é alto, um milímetro a menos não
deveria mudar o nosso veredicto, e, portanto, admitiremos que um atleta
com 2,129m também é alto; e se admitimos que Flávia Saraiva não é
alta, um milímetro a mais não deveria mudar o nosso veredicto, e, por-
tanto, admitiremos que um atleta com 1,331 também não é alto. E se
admitirmos que Patrick Stewart, que tem n fios de cabelo na cabeça, é
careca, um fio a mais de cabelo na cabeça não deveria fazer diferença
no nosso veredicto, e, portanto, admitiríamos que um pessoa com n+1
fios de cabelo na cabeça também é careca; e se admitirmos que Steve
Tyler, que tem m fios de cabelo na cabeça, não é careca, um fio a menos
de cabelo na cabeça não deveria fazer diferença no nosso veredicto, e,
portanto, uma pessoa com m-1 fios de cabelo na cabeça não é careca.
É essa tolerância que provoca os paradoxos sorites.

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Prefácio | Sérgio Miranda

Sorites

Estamos diante de um paradoxo quando encontramos um argu-


mento que parece ser válido e ter premissas verdadeiras, mas, ao mesmo
tempo, ter uma conclusão que é aparentemente inaceitável. Há diversas
formas argumentativas que estabelecem os paradoxos sorites, sendo a
mais simples delas aquela que envolve premissas condicionais (expressões
do tipo “se ..., então ...”). Ela é a seguinte:

¬Fa1
¬Fa1 → ¬ Fa2
¬Fa2 → ¬ Fa3
...
¬Fan-1 → ¬ Fan
______________________

∴ ¬Fan

Vamos interpretar F como o predicado “... é um monte”, a letra


“a” como “grão de areia” e o subscrito numérico denota a quantidade
de grãos. Os símbolos “¬” e “→ ” são os símbolos da negação e da
condicional. A primeira premissa do argumento condicional introduz
a proposição óbvia de que 1 grão de areia não é um monte de areia.
A segunda é a condicional afirmando que se 1 grão de areia não é um
monte de areia, então 2 grãos de areia não são um monte de areia. Somos
aqui tolerantes: um grão de areia a mais não deve fazer diferença na
nossa avaliação. As premissas seguintes têm a mesma forma condicional

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O problema do mal | Peter van Inwagen

e fazem o mesmo tipo de afirmação; a aplicação do princípio de que


um grão de areia a mais não deve fazer diferença na nossa avaliação
leva-nos a entender que elas seriam também verdadeiras. Ora, a apli-
cação sucessiva de regras de inferência elementares sobre as premissas
acarreta a conclusão, que deveria, portanto, ser verdadeira, para qualquer
quantidade n de grãos de areia. Ora, se n = 10.000, a nossa conclusão
não pode ser verdadeira, mesmo se derivada corretamente de premissas
que parecem verdadeiras. Temos então um paradoxo.
Para resolver o paradoxo, podemos proceder do seguinte modo.
Sabemos que um argumento pode ser avaliado quanto à validade e
quanto à solidez, ou seja, quanto à correção e aplicação das regras
e princípios utilizados no argumento e quanto à verdade das suas pre-
missas. Portanto, podemos resolver o paradoxo negando a correção das
inferências realizadas para derivar a conclusão ou negando a verdade
das premissas do argumento condicional. Outra maneira de lidar com o
paradoxo é admitir que as premissas do argumento são verdadeiras e as
regras adequadas, aceitar a conclusão e assumir as consequências disso.
Muitas soluções dos paradoxos sorites propostas pelos filósofos nos
últimos anos exigem mudanças significativas nas regras de inferência
da lógica clássica ou de princípios lógicos como o princípio de biva-
lência (segundo o qual toda proposição é verdadeira ou falsa), quando
não entram em conflito direto com as nossas intuições sobre o uso de
predicados e conceitos vagos.
Neste livro, van Inwagen não discute com detalhe nenhuma des-
sas soluções dos paradoxos sorites, mencionando brevemente a solução
epistêmica defendida por Timothy Williamson, para quem pelo menos

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Prefácio | Sérgio Miranda

uma das premissas do argumento mencionado anteriormente é falsa,


mesmo que não possamos saber qual delas.
Na verdade, o interesse de van Inwagen na vagueza e nos argu-
mentos que introduzem os paradoxos sorites não é avançar uma solução
para esses paradoxos, mas construir um tipo de argumento similar aos
argumentos dos sorites com o objetivo de contrapor uma premissa dos
argumentos locais do mal.
Os argumentos locais do mal têm esta forma:

1) Se o evento M não tivesse ocorrido, o mundo não seria pior;


2) O evento M ocorreu (e foi um horror);
3) Se um criador moralmente perfeito tivesse deixado um horror
fora do mundo e esse mundo não se tornasse pior do que seria
com esse horror (se a eliminação do horror não levasse a um
mal maior ou impedisse um bem maior), ele teria deixado esse
horror fora do mundo;
4) Se um criador onipotente criou o mundo, ele era capaz de deixar
o evento M fora do mundo;

Portanto:
5) Não há um criador onipotente e moralmente perfeito.

Alguns ajustes simples poderiam deixar o argumento válido;


portanto, sugere van Inwagen, ao criticar o argumento, o teísta deve
preferencialmente visar a sua solidez, atacando a verdade de alguma
premissa. As defesas mais comuns atacam a premissa 1), sugerindo que
a exclusão de males deste mundo acarretaria a perda de algum bem que

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O problema do mal | Peter van Inwagen

Deus visou na criação. A originalidade da resposta de van Inwagen aos


argumentos locais do mal está justamente no deslocamento do ataque
ao argumento local do mal da premissa 1) para a premissa 3): do fato
de que a eliminação de M não torna um mundo pior ou leva à perda
de um bem maior e de que Deus é capaz de impedir a ocorrência ou
eliminar M não se segue que Deus tem de deixar M fora deste mundo;
talvez Deus não tenha escolha nesse caso.
A base do ataque de van Inwagen à premissa 3) dos argumentos
locais do mal está na recusa de um princípio moral ao qual Deus supos-
tamente deveria se submeter. Em sua forma mais geral o princípio é este:

Se uma pessoa pode evitar um determinado mal sem acar-


retar a perda de um bem maior ou permitir um mal maior,
então ela deve impedir esse mal.

Empregando um padrão argumentativo similar àquele utilizado


na colocação dos paradoxos sorites e recorrendo às características dos
predicados vagos da admissibilidade de casos de fronteira, da ausência de
limites precisos e da tolerância, van Inwagen argumenta que o princípio
pode levar à paralisia, uma vez que certas decisões práticas poderiam
ser repetidamente questionadas com base nele. Particularmente em
relação ao caso divino, o argumento levaria à conclusão de que Deus
deveria eliminar todo o mal a fim de realizar os seus propósitos na cria-
ção, particularmente o propósito de reconciliar-se com a humanidade.
Portanto, tanto em relação a certas decisões práticas quanto no caso
divino, o princípio seria inaceitável. Confrontado com uma situação
envolvendo a vagueza, Deus, assim como nós mesmos fazemos algumas

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Prefácio | Sérgio Miranda

vezes, faz uma escolha arbitrária, traçando uma linha entre os males que
serão permitidos e aqueles que serão evitados (ou melhor, traçando uma
linha entre os males que podem ocorrer e aqueles que serão evitados,
deixando ao acaso a seleção dos males que efetivamente ocorrerão),
porém ele não poderia fazer diferente.

Epistemologia modal

Um problema especial é colocado pelo sofrimento dos animais


irracionais em um mundo pré-adâmico. Nesse caso, a defesa do livre-
-arbítrio não tem um papel relevante na justificação de Deus para
permitir o mal, uma vez que não haveria aí seres humanos que fizessem
um mau uso do livre-arbítrio. De forma geral, nenhuma teodiceia ou
defesa relacionada ao benefício humano parece adequada no caso dos
animais sencientes não racionais no mundo pré-adâmico. Em resposta
a esse tipo difícil de problema do mal, van Inwagen desenvolve uma
defesa bastante original que ele chama de defesa da antirregularidade.
O solo dessa defesa é a epistemologia da modalidade.
De modo geral, a Epistemologia (também conhecida como
Teoria do Conhecimento) é a área da filosofia dedicada à investigação
da natureza, da extensão e as fontes do conhecimento e da justificação
epistêmica. Em particular, a Epistemologia da modalidade é a área da filo-
sofia interessada no conhecimento de um conjunto restrito de proposi-
ções, particularmente aquelas que envolvem modalidades aléticas, que
caracterizam o modo como uma proposição é verdadeira ou falsa. Nesse
caso, o epistemólogo está interessado no conhecimento de proposições
complexas que atribuem necessidade e possibilidade a outras proposições,

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O problema do mal | Peter van Inwagen

tanto verdadeiras como falsas; por exemplo, “2 + 2 = 4” é necessário, “água é


H2O” é necessário, “Patrick Stewart é cabeludo” é possível, “Há uma máquina
de movimento perpétuo” é impossível, etc. O epistemólogo da modalidade
procura responder a perguntas sobre a extensão e fonte do conhecimento
e da justificação dessas proposições modais. Podemos saber que uma pro-
posição é necessariamente verdadeira, necessariamente falsa ou possível de ser
verdadeira ou falsa? Sempre estamos em condição de conhecer o status modal de
qualquer proposição? Como chegamos a saber que uma proposição é necessária
ou possível? Afinal que mecanismos geram convicção ou justificação para as
nossas reivindicações de conhecimento de proposições envolvendo modalidades?
Esses são exemplos das questões que o epistemólogo da modalidade
procura responder na sua investigação. Como acontece com a maioria
das questões filosóficas, encontraremos muitas respostas diferentes para
elas, mesmo que durante muito tempo tenha prevalecido um consenso.
Tradicionalmente, os filósofos identificaram a extensão do campo do
necessário com a extensão do campo do a priori: se p era uma proposição
necessária, então teria de ser possível saber que p de modo a priori, de
modo independente da experiência sensível; simetricamente, se p era
conhecível a priori, ou seja, se pudéssemos saber que p de modo inde-
pendente da experiência sensível, então p seria necessária.
Os modos de conhecimento a priori de uma proposição podem variar
de um autor para outro, podendo envolver análises conceituais, raciocínios
lógicos e dedutivos ou intuições intelectuais, mas o dogma da identificação
do necessário com o a priori era consensual. Kant, por exemplo, afirma
na Crítica da razão pura:

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Prefácio | Sérgio Miranda

Interessa aqui encontrar uma característica por meio da qual


o conhecimento puro possa ser diferenciado do conheci-
mento empírico. A experiência nos ensina que algo é cons-
tituído de um determinado modo, mas não que não possa ser
diferente. Primeiramente, se encontrarmos uma afirmação tal
que ela seja ao mesmo tempo pensada com a sua necessidade,
então ela é um juízo a priori [...] (KANT, 1998, p. 45).

Nessa famosa passagem, Kant claramente afirma que a experiên-


cia pode oferecer apenas um conhecimento do que é contingente, pois
ela nos ensina que algo é constituído de um determinado modo, mas não
que não possa ser diferente, e não nos dá um conhecimento do que é
necessário, ou seja, de que alguma coisa é de certo modo e não poderia
ser diferente. O conhecimento de que p é uma proposição necessária
decorreria, por exemplo, de análise conceitual, como quando sabemos
que a proposição Todos os corpos são extensos é necessariamente verdadeira
ao considerar a extensão parte do nosso conceito de corpo, ou quando
sabemos que as proposições da aritmética ou das ciências naturais são
necessárias por meio de um intrincado raciocínio envolvendo conceitos
do entendimento e formas da intuição sensível estruturando o mundo
dos fenômenos. Seja como for, para Kant, no século XVIII, assim como
para Frege no século XIX, e para os positivistas lógicos no século XX,
só há conhecimento a priori do necessário.
Não menos famosa do que a passagem citada de Kant sobre a
necessidade é esta passagem de Hume sobre o que é possível:

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O problema do mal | Peter van Inwagen

O contrário de toda questão de fato [ou seja, uma proposi-


ção que não é estabelecida por raciocínio dedutivo] é ainda
possível, porque não pode jamais implicar contradição e
é concebido pela mente com a mesma facilidade e clareza
como se conformasse à realidade. (HUME, 1999, p. 108,
grifo meu).

Essa passagem segue imediatamente às declarações de Hume sobre


o que ele chama de relações de ideias, que seriam proposições necessárias
estabelecidas só por meio de raciocínio dedutivo. Ele oferece como
exemplo de relações de ideias a proposição da aritmética que três vezes
cinco é a metade de 30 e a proposição da geometria que o quadrado da
hipotenusa é igual à soma do quadrado dos dois lados. O filósofo sustenta
ainda que haveria um conjunto de proposições diferentes das relações
de ideias, chamadas de questões de fato, que não seriam estabelecidas por
meio de raciocínio dedutivo. Além disso, e esse é o ponto dessa passagem
citada, Hume sustenta que as afirmações contrárias de cada questão de
fato seriam possíveis, porque podemos concebê-las como se elas se con-
formassem com a realidade. O exemplo que ele irá oferecer de questão
de fato é a afirmação de que o sol se levantará amanhã, cuja contrária pode
ser concebida sem contradição (ou seja, sem acarretar que duas proposições
quaisquer p e ¬ p sejam ao mesmo tempo verdadeiras); nesse sentido, de
acordo com o filósofo, é possível que o sol não se levante amanhã.
A aprioricidade do necessário e a conceptibilidade do possível foram
tratadas como teses seguras até pouco tempo. De uma só vez, alguns
autores no século passado colocaram em xeque essas duas teses por
meio de um raciocínio que nos leva a pensar que algumas proposições

24
Prefácio | Sérgio Miranda

seriam necessárias e estabelecidas de modo a posteriori por meio de


investigação empírica.
Consideremos uma passagem de Kripke na qual ele discorre sobre
a necessidade da proposição que afirma a identidade de Héspero e
Fósforo:

[...] Usamos “Héspero” como nome de certo corpo e


“Fósforo” como nome de certo corpo. Usamos essas expres-
sões como nomes desses corpos em qualquer outro mundo
possível. Se eles realmente são o mesmo corpo, então em
qualquer mundo possível temos de usá-las como nomes
desse objeto. E assim em qualquer outro mundo possível
será verdadeiro que Héspero é Fósforo. Assim, duas coisas
são verdadeiras: primeiramente, que não conhecemos a
priori que Héspero é Fósforo, e não estamos em posição de
descobrir a resposta exceto empiricamente. Em segundo
lugar, isso é assim porque poderíamos ter evidência quali-
tativamente indistinguível da evidência que temos e deter-
minar a referência dos dois nomes pelas posições de dois
planetas no céu, sem que os planetas fossem os mesmos.
(KRIPKE, 1980, p. 104).

De acordo com Kripke, usamos “Héspero” e “Fósforo” como


designadores rígidos, ou seja, expressões que nós usamos para falar do
planeta Vênus não só nas circunstâncias atuais, mas também em toda
e qualquer circunstância possível (é evidente que, em outras circuns-
tâncias, outras pessoas, ou as nossas “contrapartes”, podem usar esses

25
O problema do mal | Peter van Inwagen

nomes de maneira diferente). Quando os nomes “Héspero” e “Fósforo”


foram introduzidos na linguagem, as evidências disponíveis deixavam
em aberto se os dois nomes se referiam ao mesmo planeta: os nomes
foram introduzidos com base no aparecimento de um astro de manhã
e de um astro à tarde. Essa evidência não seria distinguível da evidência
que se poderia ter em uma situação na qual “Héspero” e “Fósforo” fossem
introduzidos para designar dois astros distintos. No entanto, a suple-
mentação da evidência por meio da investigação empírica e descoberta
astronômica exclui a possibilidade de que Héspero não seja Fósforo:
“Héspero é Fósforo”, sendo verdadeira, é uma proposição necessária,
dada a necessidade da relação de identidade.
A ideia de Kripke de que há expressões que designam rigidamente,
como também, e principalmente, as teses essencialistas defendidas pelo
autor, foram bastante controversas, mas hoje em dia já deixaram de ser
novidade. Desenvolver esses pontos, contudo, vai além do propósito
deste prefácio; importante para nós agora é o seguinte esquema pro-
posto para estabelecer a necessidade e excluir a possibilidade (note que
a necessidade de A exclui a possibilidade de ¬A):

1) Se A é verdadeiro, é necessário que A;


2) A é verdadeiro;
3) Logo, é necessário que A.

A primeira premissa do argumento introduziria um tipo de propo-


sição conhecível a priori envolvendo a atribuição de propriedades que
as coisas teriam e não poderiam deixar de ter sem deixar de ser o que
são – propriedades como ter uma determinada constituição física, certa

26
Prefácio | Sérgio Miranda

origem, pertencer a um tipo natural – ou afirmando a identidade. Assim,


saberíamos a priori que se a água for realmente H20, ela é necessariamente
H20; saberíamos a priori que se A é filho de B, A é necessariamente filho
de B; saberíamos a priori que se Sócrates é um ser humano, Sócrates neces-
sariamente é um humano; como também saberíamos de modo a priori
que se Héspero é Fósforo, Héspero é necessariamente Fósforo. Por sua vez,
a segunda premissa é uma descoberta empírica: sabemos por meio da
experiência qual é a constituição molecular da água, assim como sabe-
mos por meio da experiência a verdade de cada antecedente das primei-
ras premissas dos raciocínios com a forma similar ao nosso argumento
anterior. Segue-se uma conclusão que é tanto necessária, dado a nossa
compreensão das predicações essencialistas e da relação da identidade
na primeira premissa do argumento, quanto a posteriori, visto que a
conclusão depende também da segunda premissa que é estabelecida
pela experiência.
Esse resultado entra em conflito com a perspectiva tradicional que
identifica o campo da necessidade e do a priori; mas não é menos
embaraçoso para a compreensão tradicional que faz da conceptibilidade
uma via para a possibilidade. Pode-se fácil e claramente conceber sem
contradição que uma proposição p não é o caso: imagine um mundo de
fantasia no qual Sócrates não é humano, mas sim uma xícara falante,
ou que a água não é H20 e tenha uma composição química diferente;
contudo, dado que a necessidade de p equivale a não possibilidade de
não p, nenhuma dessas proposições que concebemos como verdadeiras
é possível de ser verdadeira.
Esse raciocínio coloca em xeque a perspectiva tradicional sobre
o modo como conhecemos as proposições modais, reabrindo para os

27
O problema do mal | Peter van Inwagen

filósofos contemporâneos o campo de investigação da epistemologia


da modalidade. Atualmente, existem muitas propostas de explicação do
nosso conhecimento modal, porém nenhuma delas será adotada neste
livro. Na verdade, van Inwagen apresenta críticas a algumas delas, como
a objeção de circularidade contra a proposta de Timothy Williamson
de identificar o mecanismo gerador de crenças em proposições envol-
vendo modalidade com o mecanismo que proporciona conhecimento
contrafactuais, ou seja, conhecimento de condicionais subjuntivas como
se A fosse o caso, então B seria o caso. Em vez de procurar explicar o conhe-
cimento modal e se comprometer com alguma teoria, van Inwagen
ressalta os limites do conhecimento de proposições modais, defendendo
uma posição conhecida como ceticismo modal.
Como entender essa posição? Na apresentação do ceticismo modal
no seu artigo Modal epistemology, ele afirma que há um parentesco
entre o seu ceticismo e o ceticismo de Montaigne e Sexto Empírico
e contrasta-o com o ceticismo cartesiano. Sem dúvida, há diferenças
notáveis entre o ceticismo modal de van Inwagen e o ceticismo pirrônico
(como a diferença do alcance e propósitos do ceticismo), mas há tam-
bém semelhanças de família, como a característica do cético pirrônico
ressaltada por Sexto Empírico nesta passagem:

Quando dizemos que os céticos não têm crenças, não


entendemos “crença” no sentido em que alguém diria,
falando de modo geral, que acreditar é anuir a algo; pois
os céticos dão assentimento aos sentimentos forçados
sobre eles pelas aparências [...] Diremos que eles não têm
crenças no sentido em que alguém diria que a crença é

28
Prefácio | Sérgio Miranda

assentimento a algum objeto obscuro de investigação nas


ciências; pois os pirrônicos não dão assentimento a algo
obscuro. (SEXTO EMPÍRICO, 2000, p. 6).

Enquanto a dúvida cartesiana envolveria indiscriminadamente


casos cotidianos e teóricos, podendo ser lançada tanto sobre a existên-
cia de objetos materiais ao redor, como mesas e cadeiras, quanto sobre
a existência de buracos negros ou realidades abstratas, como números
ou universais, o cético pirrônico suspende o juízo e não tem crenças
somente a respeito daquilo que ultrapassa o nível da experiência comum,
assentindo às crenças do dia a dia como toda a gente.
Nesse sentido, o cético pirrônico poderia aceitar a separação dos
objetos da crença (proposições) em dois conjuntos, o primeiro deles
formado de “proposições do senso comum”, que envolveriam asser-
ções sobre o que nos é imediatamente dado na experiência comum, e
outro de “proposições teóricas”, envolvendo asserções sobre coisas que
ultrapassam as questões práticas do dia a dia e o nível das aparências,
propondo suspender o juízo só em relação às proposições desta última
classe. Da mesma forma, a proposta do ceticismo modal de van Inwagen
distingue duas classes de proposições, as proposições modais envolvendo
asserções mais próximas do cotidiano, por um lado, e as proposições
modais que vão muito além das preocupações e questões práticas da
vida cotidiana, por outro.
Que proposições pertenceriam a esta última classe? Em Modal
epistemology, o artigo de van Inwagen no qual ele apresenta a sua posi-
ção cética, essas proposições são aquelas envolvendo modalidade, em
particular a possibilidade, que figuram como premissas em argumentos

29
O problema do mal | Peter van Inwagen

filosóficos. Os exemplos que ele oferece desses argumentos são o argu-


mento a favor da existência de Deus, em particular o argumento ontoló-
gico em sua versão cartesiana, que envolve a proposição de que é possível
haver um ser perfeito, o argumento a favor da imaterialidade do eu, que
envolve a proposição de que é possível que eu exista e nada material exista,
e o argumento do mal, que envolve a proposição de que é possível que
uma vasta quantidade de sofrimento gratuito exista.
A tese principal do artigo está nesta passagem:

Estou convencido de que seja o que for que nos capacita


a determinar o status modal de proposições ordinárias
sobre questões do dia a dia, esse método ou mecanismo
ou técnica ou instrumento ou sistema de intuições, ou
seja como for que ele seja denominado, não serve para
determinar o status modal de proposições remotas das pre-
ocupações da vida cotidiana. Também estou convencido de
que não há um mecanismo ou técnica ou instrumento ou
sistema de intuições que nos capacita a fazer isso. (VAN
INWAGEN, 1998, p. 76).

Há efetivamente um método ou mecanismo ou técnica ou instru-


mento ou sistema de intuições confiável para determinar o status modal
de determinadas proposições. No ceticismo modal de van Inwagen não
se coloca em questão a avaliação modal de proposições estabelecidas por
meio de reflexão lógica, de análise conceitual ou de prova matemática.
Sabemos que proposições desse tipo são necessárias, quando estabe-
lecidas, ou impossíveis, caso seja provado o contrário, porém nunca

30
Prefácio | Sérgio Miranda

possíveis. Também não se coloca em questão a avaliação modal de


proposições relacionadas a questões práticas do cotidiano. Considere
um exemplo. Estou assistindo ao futebol na TV e o meu time leva um
gol no início da partida, pergunto então a mim mesmo: “É possível que
o meu time vença?”. Nesse caso, estou raciocinando sobre possibilida-
des e certamente não terei dificuldade para responder a essa pergunta.
Outro exemplo. Estou organizando os livros que estão guardados em
caixas espalhadas no chão do escritório e me pergunto: “É possível
colocar todos eles nas estantes?”. Essa também é uma questão que posso
responder sem dificuldade. Também posso responder sem dificuldade
a perguntas sobre a possibilidade de proposições acerca do passado ou
do futuro. Trump poderia ter perdido as eleições norte-americanas? Parece
que ele poderia ter perdido as eleições. E em 2017 alguém se pergunta
angustiado: Tempos sombrios virão? Alguns esperam que não, outros
torcem para que sim, mas ninguém duvida que isso seja possível.
Questões desse tipo são abundantes, e geralmente obtêm respostas
satisfatórias, quero dizer, respostas que podemos admitir com uma boa
margem de segurança; contudo, seja qual for o mecanismo que gere
essa segurança, ele parece não ser confiável quando nos perguntamos
sobre as proposições “teóricas” envolvidas nos raciocínios filosóficos
com proposições modais.
Ainda na passagem citada anteriormente, van Inwagen dá a enten-
der que não seria plausível que a natureza ou mesmo Deus tenha nos
proporcionado um mecanismo confiável de produção de conhecimento
de proposições modais – exclusivo e especial – para que possamos fazer
filosofia e especular sobre possibilidades que vão muito além dos fins
práticos da vida cotidiana. A analogia com o olho humano é nesse ponto

31
O problema do mal | Peter van Inwagen

instrutiva: assim como o olho humano é confiável para fazer coisas


importantes para os fins evolutivos da nossa espécie, como determinar
a distância de determinados objetos para caçar e evitar predadores,
ele não é confiável para coisas que não são imediatamente relevantes
para os fins evolutivos da espécie, como observar galáxias distantes.
Da mesma forma, os mecanismos de produção do conhecimento modal,
mesmo que sejam confiáveis em relação aos casos mais próximos do
dia a dia, não funcionariam de maneira confiável em relação a questões
especulativas da metafísica.
Por que isso é assim? A sugestão de van Inwagen é que, ao avaliar
o status de proposições modais, podemos conceber um cenário no qual
avaliamos se a proposição em questão poderia ser aí verdadeira. Quando
me pergunto se a minha mesa poderia ser colocada em outro canto da
sala, concebo todo um cenário alternativo no qual a mesa está no outro
canto da sala, mas note que esse novo cenário permanece muito próximo
do cenário real e efetivo no qual a minha mesa se encontra. Quando
nos perguntamos sobre o status modal de proposições que se distanciam
muito das questões cotidianas, teríamos de conceber um cenário no qual
essas proposições fossem verdadeiras e, caso seja preciso, como geral-
mente acontece por causa da distância do cenário real e efetivo que seria
preciso criar para avaliar a proposição em questão, teríamos de imaginar
um cenário com uma boa quantidade de detalhes, e isso, completa van
Inwagen, nunca é feito nos casos envolvendo as proposições filosóficas,
e talvez não possa ser exequível devido à complexidade do trabalho.
Considere a possibilidade de haver vacas roxas. Todos nós consegui-
mos imaginar uma vaca roxa, na verdade imagino agora um pasto cheio
de vacas roxas. Mas é possível haver vacas roxas? Segundo van Inwagen,

32
Prefácio | Sérgio Miranda

para avaliar essa possibilidade seria preciso detalhar o cenário no qual


há vacas roxas; por exemplo, seria preciso descrever a estrutura genética
das vacas, identificar genes que determinam a cor delas, sugerir uma
história de como esses genes sofreriam mutações e assim por diante.
Dificilmente essa tarefa pode ser realizada agora; certamente, podemos
esperar que essa história seja algum dia contada; contudo, enquanto ela
não for contada, o correto é suspender o nosso juízo em relação a possibi-
lidade de vacas serem roxas. O mesmo raciocínio deve ser aplicado na
consideração das proposições envolvidas nos argumentos filosóficos que
afirmam a possibilidade da existência de um ser perfeito, de eu existir e
não existir a matéria, ou de haver o mal gratuito em um mundo criado
por Deus. Podemos descrever um cenário com detalhe suficiente a fim
de avaliar se essas proposições são possíveis? Caso não possamos des-
crever o cenário com riqueza de detalhe suficiente, o correto, conforme
o cético modal, é suspender o juízo em relação a elas.
A defesa da antirregularidade apresentada no capítulo 7 deste livro
adota o ponto de vista do cético modal para lidar com o problema do
sofrimento das criaturas sencientes em um mundo pré-adâmico, seja
adotando uma política de cautela em relação a concepções de utopias
hedonistas que divergem muito do mundo atual, seja na consideração
das razões para pensar que a irregularidade massiva de um mundo
não seria um mal tão grande quanto o sofrimento dos animais em um
mundo pré-adâmico.
***
O último capítulo do livro discute o problema da ocultação de Deus,
particularmente o argumento de que a existência de Deus só é aceitável
com base em evidência manifesta da sua presença, porém não haveria

33
O problema do mal | Peter van Inwagen

essa evidência. Aqui a resposta não difere significativamente da resposta


dada ao problema global do mal e van Inwagen constrói sua defesa
ressaltando o plano de reconciliação de Deus com os seres humanos.
O grande mérito do capítulo é colocar de forma precisa a discussão sobre
o problema da ocultação.
De modo geral, a leitura deste livro é agradável, a linguagem é
relativamente simples e cotidiana, e não há sérios obstáculos para a
compreensão do pensamento do autor. Mas que o leitor não se engane.
Van Inwagen propõe muitas definições e análises, estabelece várias
distinções sutis, coloca todos os argumentos de forma canônica, discute
objeções a premissas e respostas a essas objeções, sempre transitando com
desenvoltura por diferentes campos da filosofia contemporânea, particu-
larmente a metafísica e a epistemologia, e apelando em vários momentos
(mesmo que não seja explicitamente) a procedimentos, técnicas e teorias
dessas duas áreas. Portanto, este é um livro típico de filosofia analítica da
religião, que engaja o leitor em um exercício intelectual intenso e leva-o
à descoberta de novos problemas, à ampliação de horizontes e ao com-
promisso de sustentar alguma posição. Nesse sentido, a publicação desta
obra sobre o problema do mal pela Associação Brasileira de Filosofia
da Religião (ABFR), com o apoio generoso da Fundação Templeton,
contribui muito para a divulgação da filosofia analítica da religião no
Brasil e o desenvolvimento das pesquisas nessa área.

Referências

HUME, D.  An Enquiry concerning Human Understanding. Oxford: Oxford


University Press, 1999.

34
Prefácio | Sérgio Miranda

KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. Hamburgo: Felix Meiner, 1998.

KEEFE, R. Theories of Vagueness. Cambridge: Cambridge UP, 2000.

KEEFE, R.; SMITH, P. (Ed.) Vagueness: a reader. Cambridge: MIT


Press, 1996.

KRIPKE, S. Naming and necessity. Oxford: Blackwell, 1980.

SAINSBURY, R. M. Paradoxes. Cambridge: Cambridge UP, 2009.

SEXTO EMPÍRICO. Outline of Scepticism. Cambridge: Cambridge Uni-


versity Press, 2000.

VAIDYA, A. The epistemology of modality. The Stanford Encyclopedia


of Philosophy, winter 2016. Edited by Edward N. Zalta. Disponível em:
<https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/modality-episte-
mology/>. Acesso em: 31 maio 2017.

VAN INWAGEN, P. Modal epistemology. Philosophical Studies,


Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, v. 92, p. 67-84, 1998.

WILLIAMSON, T. Vagueness. Londres: Routledge, 1994.

______. Philosophical knowledge and knowledge of counterfactuals.


BEYER, C.; BURRI, A. (Ed.). Philosophical knowledge: its possibility and
scope. Amsterdã: Rodopi, 2007.

35
AP RESEN TAÇÃO
Peter van Inwagen

Estas conferências foram proferidas na Universidade de St. Andrews


nos meses de abril e maio de 2003. É difícil encontrar palavras que expri-
mam exatamente a minha gratidão aos membros da St. Andrews pela
oportunidade que me ofereceram. Depois de esboçar e descartar diversas
expressões mais elaboradas de gratidão, direi apenas que sou realmente
muito grato pela honra que me concederam. Também sou grato a muitos
membros da universidade por tudo o que fizeram para tornar a minha
estadia na St. Andrews bem agradável e produtiva, e pela acolhida amável
que eu, minha esposa Lisette e minha enteada Claire tivemos. Agradeço
especialmente ao professor Alan Torrance, à professora Sarah Broadie,
ao professor John Haldane e ao doutor Peter Clark (diretor da Escola de
Estudos Filosóficos e Antropológicos). Gostaria de agradecer também às
audiências das conferências pelos comentários criteriosos e pelas questões,
muitas das quais espero ter respondido (mesmo que inadequadamente)
neste livro. Essas respostas estão nas notas de rodapé; elas raramente
aparecem como revisões do texto original das conferências. Finalmente,
agradeço aos dois leitores que receberam da Oxford University Press
o esboço do manuscrito deste livro. Procurei responder aos problemas
que eles encontraram em certos pontos (e respondi a alguns dos seus
comentários e sugestões mais gerais) nas notas e no texto.
Ao preparar o texto das conferências para publicação, não procurei
torná-lo diferente do que era: um texto escrito para ser lido em voz alta
O problema do mal | Peter van Inwagen

para o público (com esta qualificação: no processo de revisão, algumas


“conferências” ficaram longas demais para serem lidas no tempo que a
tradição acadêmica estabelece como razoável para uma conferência). Mui-
tas passagens no texto original foram reescritas, mas todas as revisões são
do tipo que eu mesmo teria feito antes de proferir as conferências – se
eu estivesse então pensando mais claramente.
Muito do que se encontra neste livro e que não fazia parte das confe-
rências originais está nas notas de rodapé. As conferências foram escritas
para uma audiência geral (em oposição a uma audiência de filósofos).
Algumas notas são simplesmente pensamentos que não poderiam ser
encaixados no texto sem “quebrar o ritmo”. Muitas delas (além das cita-
ções de livros e de artigos) são para os filósofos. Aconselho os leitores
que não são filósofos a ignorar essas notas (exceto se encontrarem uma
inserção de rodapé em uma passagem em que algo que digo pareça
sujeito a questionamentos óbvios; eles podem encontrar as suas questões
discutidas na nota).
Não resumirei no prefácio o conteúdo das conferências. O sumário
já traz essa informação, e a primeira conferência oferece um panorama
do conteúdo de todas elas.
As referências são apresentadas de forma resumida nas notas.
Para referências completas, veja a seção de obras citadas. As citações dos
Salmos são do Livro de oração comum. As demais citações bíblicas são da
Bíblia King James, exceto quando outra versão da Bíblia for especificada.

South Bend, Indiana


Agosto de 2005

38
Apresentação

Conferência 1
O problema do mal e o argumento do mal

Nessa conferência, defendo minha abordagem do problema do


mal: minha decisão de abordar o problema do mal por meio do exame
do argumento do mal. Estabeleço a distinção entre vários “problemas
do mal” diferentes e vários “argumentos do mal” diferentes. Examino
criticamente a afirmação de que há um problema do mal abrangente,
um problema com o qual se confrontam teístas e ateístas, e concluo que
essa afirmação é falsa.

Conferência 2
A ideia de Deus

Apresento uma lista mais ou menos tradicional dos “atributos


divinos” e concluo que essa lista é uma tentativa de detalhar a noção
anselmiana de “algo em relação a que nada maior pode ser conce-
bido”. Defendo que o conceito de Deus deve ser entendido no sentido
anselmiano e que é implausível supor que “algo em relação a que nada
maior pode ser concebido” não tenha algum dos atributos da lista tradi-
cional. Coloco e tento responder esta questão: em que medida é possível
revisar a lista tradicional dos atributos divinos sem substituir com isso
o conceito de Deus por um conceito diferente?

39
O problema do mal | Peter van Inwagen

Conferência 3
O fracasso filosófico

A minha tese nessas conferências é que o argumento do mal é


um fracasso. Mas quando é que um argumento filosófico fracassa?
Proponho que um argumento filosófico fracassa se não passar em um
determinado teste. Esse teste é a capacidade do argumento de receber
assentimento dos membros de uma audiência neutra que ouviu uma
apresentação ideal desse argumento. Ou seja: este é apresentado por
um proponente ideal para uma audiência ideal formada por indivíduos
que inicialmente não teriam a tendência a aceitar nem a rejeitar sua
conclusão; o proponente desenvolve o argumento na presença de um
crítico ideal que tenha sido instruído para apontar para uma audiência
de “agnósticos ideais” qualquer fraqueza que o argumento porventura
possa ter. Se – dado tempo suficiente – esse proponente for incapaz de
usar o argumento para convencer a audiência de que a conclusão deve
ser admitida, o argumento é um fracasso.

Conferência 4
O argumento global do mal

O argumento global do mal parte de uma premissa sobre a tota-


lidade do mal (primariamente, o sofrimento) que realmente existe.
Tendo examinado e rejeitado a opinião comum de que é moralmente
criticável tratar o argumento do mal como “só mais um argumento
filosófico”, imagino esse argumento sendo apresentado a uma audiên-
cia de agnósticos ideais e o início de uma discussão entre Ateísta, um

40
Apresentação

proponente idealizado do argumento, e Teísta, um crítico idealizado


do argumento. A ideia de uma “defesa”, ou seja, uma história na qual
aparecem Deus e todos os males que efetivamente existem, apresentada
não como verdadeira, mas sim como “verdadeira, até onde se sabe”, é
introduzida nesse ponto. Represento Teísta empregando uma versão da
“defesa do livre-arbítrio”, uma história de acordo com a qual os males
do mundo resultam do mau uso do livre-arbítrio.

Conferência 5
O argumento global do mal (continuação)

Começo com o exame de três teses filosóficas sobre o livre-arbítrio,


cada uma das quais, se verdadeira, refutaria ou colocaria dificuldades para
a tentativa do Teísta de responder ao argumento do mal empregando
a defesa do livre-arbítrio: a primeira tese afirma que o livre-arbítrio é
compatível com o determinismo; a segunda afirma que um ser onisciente
sabe como os indivíduos agiriam livremente em situações contrafactuais;
finalmente, a terceira afirma que o livre-arbítrio é incompatível com a
presciência divina. Depois de discutir como o Teísta pode mostrar que
essas teses são duvidosas (a defesa do livre-arbítrio não exige que elas
sejam refutadas), passo à consideração de uma das flechas mais pon-
tiagudas na aljava do Ateísta, “o mal natural” –, o sofrimento devido
a eventos naturais que não são causados por atos da vontade humana,
sejam eles livres ou não. Represento o Teísta empregando uma versão
da defesa do livre-arbítrio que supõe uma separação primordial entre
nossos ancestrais longínquos e Deus, e defendendo a conclusão de que,
de acordo com essa história, o sofrimento dos seres humanos causado,

41
O problema do mal | Peter van Inwagen

por exemplo, por enchentes e terremotos, pode também ser causado


remotamente pelo mau uso do livre-arbítrio. Convido a audiência a
considerar cuidadosamente se os “agnósticos ideais” reagiriam a essa
história dizendo: “Essa história é verdadeira, até onde sabemos”.

Conferência 6
O argumento local do mal

Os argumentos locais do mal não partem de uma premissa sobre


“todos os males do mundo”, mas sim de uma premissa sobre um único
evento horrível. Esses argumentos têm esta forma: “Se houvesse um
Deus, isto não teria acontecido” (obviamente, há muitos eventos nos
quais esse argumento poderia ser baseado. Todavia, visto que a “lógica”
deles é a mesma, coloco todos eles sob a rubrica “o argumento local do
mal”). Defendo a conclusão de que, mesmo se os argumentos do Teísta
nas duas conferências anteriores forem indisputavelmente corretos, eles
não refutam o argumento local, que é um argumento de um tipo bem
diferente. Mas proponho que, se a resposta do Teísta ao argumento
global for admitida, ela fornece os materiais para a construção de uma
réplica ao argumento local do mal. Essa réplica, surpreendentemente,
assenta-se em consequências da vagueza parecidas com aquelas consi-
deradas nas discussões filosóficas dos paradoxos sorites.

42
Apresentação

Conferência 7
Os sofrimentos dos animais irracionais

Visto que havia organismos não racionais mas sencientes muito


antes da existência de seres humanos, a defesa do livre-arbítrio não
pode explicar o sofrimento desses organismos (houve um tempo em
que poderia ter sido possível dizer que os sofrimentos dos animais
irracionais eram devidos inteiramente à corrupção da natureza, que
foi uma consequência dos nossos primeiros ancestrais terem se sepa-
rado de Deus. Obviamente, isso não é mais possível). Apresento uma
defesa (que não tem relação com a defesa do livre-arbítrio) que visa a
explicar os sofrimentos dos animais irracionais pré-humanos e todos os
sofrimentos mais recentes dos animais irracionais que não podem ser
atribuídos ao mau uso humano do livre-arbítrio. Finalmente, considero
alguns problemas que se colocam para qualquer pessoa que (como eu)
emprega essa defesa ou a defesa do livre-arbítrio.

Conferência 8
A ocultação de Deus

Algumas vezes, o problema do mal é visto como um caso especial


de um problema mais geral, a aparente ausência de Deus do mundo, a
convicção que algumas pessoas de vez em quando têm de que, se Deus
existe, ele está “oculto”. Nessa conferência, coloco esta questão: o que se
quer dizer, o que se poderia querer dizer, quando se diz que Deus está
oculto? A resposta é baseada na compreensão do atributo divino da
onipresença. A consideração das implicações da onipresença mostra que

43
O problema do mal | Peter van Inwagen

pode haver apenas um sentido em afirmar que Deus está “oculto”: Deus
não apresenta aos seres humanos (ou apresenta só a uns poucos deles)
evidência indubitável da sua existência na forma de “sinais e milagres”.
O fato de Deus não apresentar a todos os seres humanos evidência
suficiente sugere um argumento contra a existência de Deus que tem
a mesma forma do argumento global do mal: “Se houvesse um Deus,
ele apresentaria a todos os seres humanos evidência indubitável da sua
existência na forma de sinais e milagres. Mas não há tal evidência. Logo,
Deus não existe”. Apresento uma resposta a esse argumento paralela
à minha resposta ao argumento global do mal nas conferências 4 e 5.

44
CONFERÊNCIA 1
O problema do mal e o argumento do mal

Como a maioria dos conferencistas passados, consultei o testamento


de Lorde Gifford e as conferências já realizadas em seu nome. O tópico
das conferências financiadas pelo legado de Lorde Gifford teria de ser:

Teologia Natural no sentido amplo desse termo,


ou seja, “O Conhecimento de Deus, o Infinito, o Todo,
a Causa Primeira e Exclusiva, a Substância Singular e
Única, o Ser Único, a Realidade Única, a Existência Única,
o Conhecimento da sua Natureza e dos seus Atributos,
o Conhecimento das relações dos homens e de todo o
universo com Deus, o Conhecimento da Natureza, do
Fundamento da Ética ou Moral e de todas as Obrigações
e Deveres que decorrem disso”. 1

Além disso...

Desejo que os conferencistas tratem o seu tema estrita-


mente como uma ciência natural, a maior de todas as ciên-
cias possíveis, de fato, em certo sentido, a única ciência, a

1
Veja Jaki (1987, p. 66-76). A passagem citada está na p. 72.
O problema do mal | Peter van Inwagen

ciência do Ser Infinito, sem referência a ou independente-


mente de qualquer revelação especial excepcional ou assim
chamada “milagrosa”. Desejo que ela seja vista do mesmo
modo que a astronomia ou a química.2

Não sou um caso atípico entre os conferencistas Gifford por achar


que sou incapaz de cumprir essas condições. Não posso cumpri-las
porque, em minha opinião, não existe teologia natural; no mínimo,
não existe teologia natural se ela for entendida como uma ciência que
deriva conclusões sobre um ser infinito – uma substância perfeita, causa
primeira e exclusiva de todas as coisas – dos dados dos sentidos, e
deriva essas conclusões com a mesma segurança com a qual a ciên-
cia natural deriva dos dados sentidos conclusões sobre estrelas anãs
vermelhas e fotossíntese. Não tenho, como Kant pensou que tivesse,
razões gerais e teóricas para acreditar que a teologia natural, assim
definida, seja impossível. O fato é que jamais vi a teologia natural ser
realizada com sucesso – e sei que eu não sei como fazer isso. Recebi
uma educação filosófica padrão e encontrei muitos argumentos que,
se fossem tão persuasivos quanto os argumentos nas ciências naturais
algumas vezes conseguem ser, estabeleceriam a teologia natural como
uma atividade próspera. Contudo, depois de examinar esses argumentos
individualmente, depois de considerar o mérito de cada um deles, per-
cebi que nenhum deles confere o tipo de suporte para suas conclusões

2
Jaki (1986, p. 74). Devo dizer que várias obiter dicta no testamento de Lorde Gifford sugerem
que não seria a sua intenção que o conteúdo das conferências que ele financiaria devesse ser
entendido de modo tão restrito como essas duas citações, tomadas isoladamente, implicam.

46
O problema do mal e o argumento do mal

que os argumentos dos astrônomos e químicos algumas vezes – de fato,


frequentemente – conferem às suas conclusões. E essa situação é apenas
um caso especial desta verdade geral deprimente sobre a qual terei algo
a dizer na terceira conferência: nenhum argumento filosófico que se
tenha proposto para apoiar uma tese substancial é capaz de conferir o
mesmo tipo de suporte para sua conclusão que os argumentos científicos
com frequência conferem às suas conclusões. (E a teologia natural é no
mínimo uma parte da filosofia).
Mas sobre o que falarei se estas conferências forem mais do que
simplesmente violar os termos propostos no testamento de Lorde Gif-
ford? Eu poderia falar sobre os argumentos aos quais aludi (por exemplo,
o argumento ontológico ou o argumento cosmológico) e tentar mostrar
os seus pontos fracos e fortes (pois acredito que eles têm não só pontos
fracos, mas têm pontos fortes também). Se fizesse isso, eu seria tão fiel
às condições de Lorde Gifford quanto a maioria dos conferencistas
Gifford conseguiram ser. Mas decidi tentar algo diferente. Discutirei o
argumento do mal, o argumento mais importante contra a existência
de um Ser cuja existência e atributos são assuntos da teologia natu-
ral. Portanto, meu tópico geral é o que poderia ser chamado (como
tem sido chamado – acredito que o termo foi inventado por Alvin
Plantinga) de “ateologia natural”. Não falarei como um proponente
da ateologia natural, mas sim como um dos seus críticos. Eis uma
primeira abordagem da asserção da minha conclusão: o argumento do
mal é um fracasso. Entendo que essa seja uma primeira abordagem
porque há muitas coisas que se poderia querer dizer quando se diz
que um argumento é um fracasso. O que eu quero dizer quando digo

47
O problema do mal | Peter van Inwagen

que um argumento é um fracasso é tão complexo que reservarei uma


conferência inteira (a terceira) para explicar detalhadamente.
Como uma primeira abordagem do método destas conferências, eu
diria que pretendo usar os recursos da razão natural e não dizer nada
que pressuponha qualquer revelação especial. Assim, penso que não
seja exagero dizer que o tópico destas conferências pertence à teologia
natural, embora não à teologia natural no sentido restrito de Lorde
Gifford. Não tentarei estabelecer nenhuma conclusão substancial sobre
Deus; quero apenas avaliar certo tipo de argumento contra a existência
de Deus e, obviamente, um ser pode muito bem não existir mesmo se
certo argumento contra a sua existência for o maior fracasso imaginável.
Porque não quero estabelecer nenhuma conclusão sobre Deus, não posso
afirmar que estas conferências pertençam à teologia natural no sentido
de Lorde Gifford. Além disso, não posso afirmar que os meus argumen-
tos sejam uma contribuição, mesmo que modesta ou indireta, à ciência
da teologia natural. A minha tentativa de mostrar que o argumento do
mal é um fracasso não confere – e não sustento que confira – o tipo de
garantia a essa tese que, por exemplo, uma demonstração matemática
de um erro irreparável em uma suposta prova confere à tese de que a
prova é malsucedida.
No entanto, há aspectos destas conferências que não podem ser
descritos como teologia natural, mesmo no sentido fraco desse termo.
Em muitos pontos, levantarei a questão de como encarar de uma pers-
pectiva cristã tudo o que digo a respeito do argumento do mal. No curso
da discussão, contarei várias “histórias assim mesmo” sobre a coexistên-
cia de Deus e do mal. E colocarei questões como estas: qual é a relação
das “histórias assim mesmo” com a narrativa cristã? Alguma dessas

48
O problema do mal e o argumento do mal

histórias seria idêntica ao que o cristianismo diz sobre o mal? Elas


seriam acarretadas pelo que o cristianismo diz sobre o mal – seriam
abstrações da explicação cristã do mal? Elas seriam sugeridas, mas não
estritamente acarretadas, pela explicação cristã do mal? Alguma dessas
histórias é consistente com a explicação cristã do mal? (Não quero
sugerir pelo ordenamento dessas questões que há a explicação cristã do
mal; se há ou não tal explicação, isso faz parte do que é perguntado).
Visto que essas “histórias assim mesmo” funcionam essencialmente
como contraexemplos para avaliar a solidez de um argumento, não
há qualquer motivo para eu ficar desconcertado se algumas delas, ou
mesmo todas elas, forem inconsistentes com a doutrina cristã. (Certa
vez, Buridano apresentou um contraexemplo a uma determinada regra
de inferência modal que envolvia a tese de que Deus nunca criou coisa
alguma. Dificilmente seria uma boa contribuição à discussão lembrar
que a tese é inconsistente com o Credo Niceno).3 Ainda assim, a ques-
tão da relação das minhas histórias com a narrativa cristã, a narrativa
cristã da salvação, é uma questão interessante, e tenho a intenção de
considerá-la. Desejo agora ressaltar que, quando considerá-la, não estarei
engajado na teologia natural, seja em qual sentido for.

3
De acordo com Alvin Plantinga, que não apresenta uma citação. Veja Plantinga (1974, p. 58).
A regra é “possivelmente, tudo é F; portanto, tudo é possivelmente F”. O contraexemplo é
este: entenda “é F” como “é Deus”; suponha que Deus jamais tenha criado qualquer coisa;
então “tudo é Deus” é uma proposição verdadeira; mas, embora a nossa suposição seja falsa,
ela é possivelmente verdadeira; “possivelmente, tudo é Deus” é, portanto, verdadeira (verdadeira
de fato, verdadeira no mundo atual); mas “tudo é possivelmente Deus” é falsa (no mundo
atual) porque há (no mundo atual) criaturas e nenhuma delas é possivelmente Deus.

49
O problema do mal | Peter van Inwagen

De todo modo, esse é um ponto menor, pois o que eu disse sobre


o cristianismo e as histórias que contarei é uma digressão. Eis algo
mais importante. Nesta conferência, falarei sobre a relação das discus-
sões filosóficas do argumento do mal (como aqueles que considerarei)
com o tópico que é o título destas conferências: o problema do mal.
Em minha opinião, essa discussão pertence mais à teologia no sentido
doutrinal restrito do que à teologia natural. Volto a atenção para esse
tópico teológico.
A palavra “mal”, quando ocorre em expressões como “o argumento
do mal” ou “o problema do mal”, significa “coisas más”. Qual é, pois, o
problema do mal; qual é o problema das coisas más? Isso é muito difí-
cil de dizer. Os filósofos – principalmente os filósofos analíticos – que
dizem escrever sobre o problema do mal, geralmente querem dizer que
escrevem sobre o argumento do mal. (Há duas antologias de trabalhos
sobre o argumento do mal, ambas amplamente usadas como livros de
referência pelos filósofos analíticos da religião, que levam a expressão
“problema do mal” no título: The problem of evil e The problem of evil:
selected readings).4 Para os filósofos, o problema do mal parece ser prin-
cipalmente o problema de avaliar o argumento do mal; podemos dizer
ainda que os filósofos veem o problema do mal como um problema
filosófico com o qual se confrontam os teístas, um problema resumido
nesta questão: “como você pode continuar a acreditar em Deus diante do
argumento do mal?”. Ou ainda, “como você responderia ao argumento

4
A primeira antologia foi editada por Marilyn e Robert Adams, e a segunda por Michael L.
Peterson. Concedo que vários textos na parte I da coletânea de Peterson não tratam especi-
ficamente do argumento do mal.

50
O problema do mal e o argumento do mal

do mal?”. Um filósofo poderia até oferecer algo nessa direção como uma
definição de “o problema do mal”. Porém a sua definição seria muito
limitada para dar conta do modo como a maioria das pessoas usa essa
expressão. Suspeito que essa definição filosófica de “o problema do mal”
seja muito restrita simplesmente porque ela é uma definição, pois uma
definição confere um sentido definido à expressão definida e, do meu
ponto de vista, a expressão “o problema do mal” não tem um sentido
definido. Desse modo, portanto, qualquer definição de “o problema do
mal” irá deturpar o seu significado.5
Penso que a razão seja esta: há realmente muitos problemas dife-
rentes, problemas intimamente relacionados uns aos outros, mas que
mesmo assim são significativamente diferentes entre si, que têm sido
agrupados sob a rubrica “o problema do mal”. A expressão é usada para
se referir coletivamente a essa família de problemas (podemos dizer que
esses problemas formam uma família porque a associação entre eles não
é casual: esses problemas são, como disse, intimamente relacionados uns
aos outros). Qualquer tentativa de dar um sentido preciso à expressão
“o problema do mal”, qualquer tentativa de identificá-la com algum
problema filosófico ou teológico “único e bem definido”, ou com um
problema de qualquer natureza único e bem definido, entra em conflito
com esse fato.

5
Eu não sei bem as consequências desse fato, mas há outras três expressões envolvendo
“o problema de” que supostamente são nomes padrões de problemas filosóficos famosos:
“o problema dos universais”, “o problema do livre-arbítrio”, e “o problema da relação men-
te-corpo”, que, como “o problema do mal”, não têm um significado definido: nenhum deles
é o nome de um problema filosófico único e bem definido.

51
O problema do mal | Peter van Inwagen

No entanto, o que disse é abstrato demais para transmitir muita


coisa. Tentarei dizer algo mais sobre o modo como concebo o perten-
cimento a essa família de problemas. A família pode ser dividida em
duas subfamílias: a subfamília dos problemas práticos e a dos pro-
blemas teóricos. Com a expressão “problemas práticos do mal”, não
me refiro ao problema de como responder ao mal quando o encon-
tramos em nossas vidas, ou melhor, refiro-me só a uma minoria dos
problemas que satisfazem a essa descrição. Eles são problemas que os
teístas enfrentam quando se deparam com o mal; e com “deparar-se
com o mal” quero dizer primariamente “deparar-se com algum mal
particular”.6 Com “problemas que os teístas enfrentam” quero dizer
problemas sobre o modo como as suas crenças, atitudes e ações relacio-
nadas a Deus serão afetadas pelo encontro com o mal. Os problemas
práticos do mal podem ser ainda divididos em problemas pessoais e
pastorais. Um problema pessoal surge tipicamente quando o próprio
indivíduo, ou alguém próximo, sofre um infortúnio terrível; ou, menos
tipicamente, quando o indivíduo subitamente tem conhecimento de
um evento terrível na esfera pública que não o afeta diretamente, mas
que atrai sentimentos humanos gerais de compaixão. (Os dois casos
historicamente mais salientes são as reações ao terremoto ocorrido
em Lisboa e ao Holocausto por parte dos contemporâneos ou quase

6
“Primariamente” porque o que chamo de “deparar-se com o mal” é usualmente, em quase
todos os casos, estar diante de um mal particular; mas se imaginamos uma situação, e situa-
ções como essa não são desconhecidas, em que os males do mundo subitamente tornam-se
“reais” para o teísta – uma situação em que o teísta não aprende nenhum fato novo sobre os
males do mundo, mas os fatos que ele sempre conhecera adquirem uma nova significação
horrível para ele –, esse também seria um caso do que chamo de “deparar-se com o mal”.

52
O problema do mal e o argumento do mal

contemporâneos desses eventos que não foram diretamente afetados


por eles). Problemas pastorais são problemas enfrentados por aqueles
que, em virtude de seus ofícios clericais ou de outra relação com uma
pessoa, veem a si mesmos como responsáveis pelo bem-estar dessa
pessoa quando ela se depara com o mal do jeito que descrevi há pouco.
Problemas pessoais do mal levantam questões como estas: o que devo
acreditar a respeito de Deus, posso continuar a amá-lo e a confiar nele,
como agir em relação a ele diante disso tudo que aconteceu? Problemas
pastorais levantam esta questão: qual orientação espiritual devo dar a
uma pessoa que se colocou as questões práticas sobre a sua relação com
Deus depois de sofrer algo terrível?
Outras distinções são possíveis no interior dessas categorias.
Poder-se-ia, por exemplo, dividir os problemas pessoais em problemas
que surgem de um infortúnio da própria pessoa (esse foi o caso de Jó)
e problemas que surgem do infortúnio alheio. (Mesmo para a pessoa
mais altruísta, esses dois problemas podem ter características muito
diferentes). Mas voltemos a atenção para o problema teórico.
Proponho dividir os problemas teóricos do mal em apologéticos
e doutrinais. Problemas doutrinais são problemas enfrentados pelos
teólogos: qual será o ensinamento cristão – ou judeu ou muçulmano
– sobre o mal? Quais são as opiniões sobre a origem e o lugar do mal
no mundo adequadas para os cristãos – ou para os judeus ou para os
muçulmanos? Problemas doutrinais são problemas criados pelo fato de
que quase todos os teístas admitem alguma teologia bem elaborada e
compreensiva que vai muito além da mera asserção da existência de um
Criador todo-poderoso e beneficente. As tentativas teístas de explicar
os males do mundo têm de ser colocadas dentro dos limites impostos

53
O problema do mal | Peter van Inwagen

pelas teologias mais amplas que eles admitem. É em conexão com os


problemas doutrinais que surgem as “teodiceias”. Uma teodiceia – a
expressão foi criada por Leibniz; ela é a conjunção das palavras gregas
para “Deus” e “justiça” – é uma tentativa de “justificar os caminhos de
Deus para os homens”. Ou seja, uma teodiceia é a tentativa de apresen-
tar a verdade sobre a questão, ou uma parte ampla e significativa dessa
verdade, a respeito da razão de Deus para permitir a existência do mal,
o mal que, aparentemente, não é distribuído conforme o merecimento.
Uma teodiceia não é só a tentativa de responder à objeção de que os
caminhos de Deus são injustos: ela é a tentativa de mostrar a justiça dos
caminhos de Deus. Mas uma resposta doutrinal ao mal não precisa ser
uma teodiceia. Posso estar errado, mas acredito que nunca uma teodiceia
foi endossada por uma denominação ou igreja cristã importante. E até
onde sei, nunca uma denominação ou igreja cristã importante proibiu os
seus membros de especular sobre a teodiceia – embora todas as deno-
minações e igrejas cristãs importantes tenham (praticamente, se não de
modo literal) afirmado que uma teodiceia tem de satisfazer determina-
das condições (por exemplo, a teodiceia não pode negar a soberania de
Deus e nem afirmar que a matéria tem uma tendência inerente ao mal).
Os problemas apologéticos surgem em duas situações: quando o
fato do mal é usado pelos inimigos do teísmo como base de um ata-
que intelectual “externo” ao teísmo; quando os próprios teístas, sem
a motivação dos seus inimigos, encontram-se perturbados por não
saberem se um Criador onipotente e amoroso permitiria realmente a

54
O problema do mal e o argumento do mal

existência do mal.7 O problema apologético é mais intimamente conec-


tado ao argumento do mal do que os outros problemas. De fato, ele
é o problema do que dizer em resposta ao argumento do mal; ele é o
problema com o qual se depara quem, seja por qual motivo for, vê a si
mesmo como responsável pela defesa do teísmo ou do cristianismo ou
de qualquer outra religião teísta. O crente ordinário, o cristão comum,
a quem se pergunta como pode continuar a acreditar em Deus diante
de todo o mal que há no mundo, pode se contentar em dizer algo como
o seguinte: “O que dizer sobre coisas como essas é um problema para
os especialistas. Eu só preciso assumir que há alguma boa razão para
todos os males do mundo e que certamente a entenderemos algum dia”.
No entanto, obviamente, mesmo se essa resposta for aceitável no dia a
dia, ela não pode ser dada no auditório de conferências da St. Andrews.
O filósofo ou o teólogo que se ocupa de problemas apologéticos
não é obrigado a construir uma teodiceia. Se os apologistas do teísmo
ou de qualquer religião teísta pensam que sabem qual é a verdade sobre
a existência do mal, eles podem, obviamente, apelar para essa suposta
verdade em suas tentativas de expor o que eles veem como a fraqueza
do argumento do mal. Porém os apologistas não precisam acreditar
que eles sabem, ou que qualquer pessoa saiba, a verdade a respeito
de Deus e do mal. Afinal, o apologista está em uma posição análoga
àquela de um advogado de defesa que busca criar uma “dúvida razoável”

7
Eu distinguiria o caso mencionado na nota anterior, o caso do teísta para quem os males do
mundo em certo ponto adquirem uma nova significação horrível, do caso do teísta que em
certo ponto passa a acreditar que a existência do mal coloca um desafio intelectual para suas
crenças.

55
O problema do mal | Peter van Inwagen

na mente dos jurados acerca da culpabilidade do acusado. (No nosso


caso, o apologista buscaria criar uma dúvida razoável sobre a solidez do
argumento do mal). E os advogados podem levantar dúvidas razoáveis
apresentando aos jurados histórias que acarretam a inocência dos seus
clientes e explicam a evidência da acusação sem afirmar que eles mesmos
acreditam que essas histórias são verdadeiras.8
Tipicamente, os apologistas lidam com o argumento do mal apre-
sentando o que eles chamam de “defesas”. Em relação ao conteúdo,
uma defesa não é necessariamente diferente de uma teodiceia. De fato,
uma defesa e uma teodiceia podem ser verbalmente idênticas. Cada
uma delas é, formalmente falando, uma história na qual Deus e o mal
coexistem. A diferença entre uma defesa e uma teodiceia não diz res-
peito ao conteúdo, mas sim ao propósito de cada uma delas. A teodiceia
é uma história contada como a verdade da questão; uma defesa é uma
história que, conforme o narrador, pode ser verdadeira ou não, mas que,
o narrador sustenta, tem alguma característica desejável que não acarreta
a verdade – talvez (dependendo do contexto) a consistência lógica ou
a possibilidade epistêmica (verdade até onde se sabe).
Nesse sentido, as defesas são muito comuns nas cortes de justiça,
nos textos de história, na ciência. Eis um exemplo científico. Alguém

8
De fato, um apologista poderia privadamente acreditar que sabe a verdade envolvida na situa-
ção de um Deus onipotente e amoroso permitir que o mal exista, e ainda assim considerar essa
verdade inapropriada para propósitos apologéticos. Esse apologista seria como um advogado
de defesa que pensasse que a verdade envolvida na evidência que parece demonstrar a culpa
do seu cliente era tão complexa e intrincada que poderia ser melhor para o seu cliente se ele
evitasse mencioná-la e contasse em vez dela uma história simples e plausível que, embora
fosse realmente falsa, a acusação, no entanto, fosse incapaz de contraditar.

56
O problema do mal e o argumento do mal

alega que o olho humano é muito complexo para ser um produto da


interação de mutações aleatórias com a seleção natural. A professora
Hawkins, uma apologista da teoria darwinista da evolução, conta uma
história de acordo com a qual o olho humano, ou os olhos dos ancestrais
dos seres humanos, resulta de uma operação combinada desses dois
fatores. Ela espera que a sua audiência reaja a essa história dizendo algo
como “Parece que a evolução funcionaria assim mesmo. O olho pode ter
tido exatamente a história evolutiva relatada na história de Hawkins”.
Hawkins não apresenta sua história como a explicação do curso efetivo
da evolução, e ela não a toma como uma prova de que o olho humano
é o produto da interação de mutações aleatórias com a seleção natural.
A história visa apenas refutar um argumento contra a teoria darwinista
da evolução: o argumento de que a teoria é falsa porque inconsistente
com um fato observado, a existência do olho humano.
Se o problema apologético é responder ao argumento do mal,
deve-se admitir que não há só um problema apologético, pois não há,
de fato, só um argumento do mal. E argumentos diferentes para a
mesma conclusão podem, obviamente, exigir respostas muito dife-
rentes. Consideremos agora as formas diferentes que um argumento
do mal pode assumir.
Muitos filósofos distinguem o argumento “lógico” do mal do argu-
mento “indiciário”, “epistêmico” ou “probabilístico”. O primeiro tipo
de argumento busca estabelecer que a existência do mal é logicamente
inconsistente com a existência de Deus, enquanto o segundo busca
mostrar que a existência do mal é uma evidência forte e cogente contra
a existência de Deus, ou que qualquer pessoa ciente da existência do
mal deveria atribuir uma probabilidade muito baixa para a existência

57
O problema do mal | Peter van Inwagen

de Deus. Porém essa não é uma distinção muito útil – quero dizer, a
distinção entre as versões lógica e indiciária do argumento do mal – e
não me preocuparei com ela. Para mim, mais importante é a distinção
entre o que chamarei de “argumento global do mal” e os vários “argu-
mentos locais do mal”. Uma premissa do argumento global do mal é
que o mundo contém o mal, ou, talvez, que o mundo contém uma
enorme quantidade do mal verdadeiramente horrível. A outra premissa
é (ou as outras premissas do argumento conjuntamente acarretam) que
um Deus benevolente e todo-poderoso não permitiria a existência do
mal – ou de uma enorme quantidade do mal verdadeiramente horrível.
Os argumentos locais do mal são argumentos que apelam para males
particulares – o Holocausto, por exemplo, ou a morte de um cervo, não
observada por qualquer ser humano, em um incêndio florestal – e pros-
segue com a afirmação de que um Deus benevolente e onipotente não
teria permitido que esse mal particular ocorresse. Em minha opinião, os
argumentos locais não são apenas apresentações do argumento global do
mal que usam um determinado expediente retórico (apresentando um
caso particular para estabelecer um ponto geral); eles são tão diferentes
do argumento global que, mesmo se uma pessoa tiver uma resposta
bem-sucedida ao argumento global, ela ainda não teria necessaria-
mente – ela não teria por isso – uma resposta bem-sucedida a qualquer
argumento local do mal. Portanto, o problema de como responder aos
argumentos locais do mal é potencialmente distinto do problema de
como responder ao argumento global do mal. E esse é o caso (afirmo)
mesmo se realmente houver algo que se pode chamar de “o problema de
como responder aos argumentos locais do mal”. Não é imediatamente
evidente que há esse problema, pois mesmo se Deus existir e, para cada

58
O problema do mal e o argumento do mal

mal particular, Deus tiver uma boa razão para permitir esse mal, não se
segue que haveria uma fórmula geral que poderia gerar, para cada mal
particular, a razão de Deus para permiti-lo quando as características
essenciais desse mal fossem conectadas à fórmula. Mas suponha que essa
fórmula exista. O que quero dizer é que, mesmo se essa fórmula existir,
não se pode esperar que uma explicação, uma explicação que seja correta,
do fato de Deus permitir a existência de uma enorme quantidade do mal
verdadeiramente horrível gere o enunciado dessa fórmula – ou alguma
conclusão a respeito de qualquer mal particular. Entendo que alguém
poderia saber ou pensar que sabe por que Deus permitiu a existência de
grandes quantidades de mal no mundo que ele criou e não fazer ideia
da razão de Deus para permitir o Holocausto – ou qualquer outro mal
particular. A meu ver, a seguinte posição é logicamente consistente: o
fato de haver uma enorme quantidade do mal verdadeiramente horrível
não mostra que não há Deus, mas o Holocausto mostra que não há
Deus, e teria sido suficiente para mostrar que não há Deus mesmo se
não houvesse outros males. O meu ponto aqui é lógico e não depende da
enormidade talvez única do Holocausto. Eu faria a mesma observação
em relação a um cervo que sofre uma morte horrível e prolongada em
um incêndio florestal sem que qualquer ser humano chegue a ter ciência
disso: mesmo se Deus tiver uma razão perfeitamente boa para permitir a
existência de uma enorme quantidade de mal verdadeiramente horrível,
não se segue que ele tem ou poderia ter uma boa razão para permitir
que esse cervo em particular sofra do modo como sofreu. Nestas con-
ferências, portanto, considerarei o argumento global do mal, por um
lado, e os muitos e variados argumento locais do mal, por outro, como

59
O problema do mal | Peter van Inwagen

apresentando obstáculos intelectuais para a crença teísta, que devem


ser considerados separadamente.
Outras distinções poderiam ainda ser feitas. Há, por exemplo, a
famosa distinção entre o mal “moral” e o mal “natural” ou “físico”, males
que aparentemente apresentam desafios distintos para o defensor do
teísmo. Há o problema do sofrimento dos animais (isto é, o problema
do sofrimento dos animais não humanos) que é comumente visto como
um problema diferente do problema do sofrimento humano. Discutirei
essas e outras distinções em vários pontos destas conferências. O meu
propósito nessas observações iniciais tem sido o de ressaltar algumas das
coisas muito diferentes que se poderia querer dizer com “o argumento
do mal”, e de enfatizar o fato de que elas realmente são coisas diferentes.
Tendo dito essas coisas, tendo dito que há muitos argumentos do mal
e, em consequência disso, que há muitos problemas apologéticos do
mal, devo avisar que vou ignorar com frequência o que disse e, sem
uma desculpa melhor do que o desejo de manter simples a estrutura
das minhas frases, falarei do “argumento do mal” e do “problema do
mal”. Mas o que eu vier a falar pode ser facilmente revisado a fim de
acomodar a minha posição oficial.
O foco principal destas conferências incidirá sobre o que chamei
de problema apologético do mal. Tentarei avaliar o argumento do mal e
apresentar as minhas razões para considerar esse argumento um fracasso
(em um sentido que explicarei no momento oportuno).9 Qual é a relação

9
Para uma abordagem muito diferente do problema do mal, veja Horrendous evils and the
goodness of God, de Marilyn Adams. Nesse livro, Adams discute o problema puramente inte-
lectual considerado nestas conferências e muitos outros problemas conectados à confiança

60
O problema do mal e o argumento do mal

da minha discussão do problema apologético com o problema do mal


nas suas outras formas – com os problemas pessoais do mal ou com os
problemas pastorais? A resposta é que os diversos problemas do mal,
mesmo que distintos, formam uma família e são intimamente relacio-
nados entre si. (Eles são separáveis em categorias como as que venho
propondo somente por um ato de abstração intelectual. Na prática, nos
casos concretos, eles se misturam; pode-se dizer que eles se reforçam
mutuamente). E algo de valor que se possa dizer em resposta a um des-
ses problemas provavelmente tem implicações não triviais para o que se
possa dizer em resposta aos outros. Logo, entendo que o que eu disser
sobre o problema de saber se os males do mundo oferecem algum tipo
de argumento cogente contra a existência de Deus terá ramificações
para o que eu, ou alguém que aceite o que eu disser, diria em resposta
aos outros problemas que o mal coloca para os crentes.
Eu mesmo não direi nada a respeito desses outros problemas.
Primeiramente, sou, por natureza, a pessoa errada para essa tarefa.
Se uma mãe de luto por seu filho que morreu de leucemia me per-
guntasse “Como Deus pôde fazer isso?”, o meu primeiro impulso seria
responder “Mas você sabia que outras crianças, filhos e filhas de outras
mães, também morreram de leucemia. Você estava inclinada a aceitar

em Deus e os piores males na sua criação. Acho que o livro dela não é persuasivo (em relação
a sua tendência geral e às suas principais teses; penso que Adams está certa sobre muitos
outros pontos relativamente menores, mas não sem importância), mas ele é infinitamente
fascinante.Para outra discussão importante – e também muito diferente – do problema do
mal, veja as Conferências Stob de Eleonore Stump intituladas Faith and the problem of evil
[veja também de Eleonore Stump o mais recente Wandering in darkness: narrative and the
problem of suffering, Oxford: Clarendon Press, 2010 (N.T.)]

61
O problema do mal | Peter van Inwagen

que Deus tem de ter tido uma boa razão nesses casos. E não vê que
é irracional ter uma resposta diferente quando é o seu próprio filho
que morre de leucemia?”. Vejo claramente que essa seria uma coisa
muito cruel e estúpida de se dizer, e mesmo eu não diria isso realmente.
Todavia, eu teria de reprimir esse impulso, e essa é a razão por que sou
a pessoa errada para responder à questão daquela mãe. E se o que eu
estivesse inclinado a dizer fosse uma coisa estúpida e cruel de se dizer,
seria também estúpido e cruel responder à questão dela com algum tipo
de “história assim mesmo” sobre o porquê de um Deus amoroso e todo-
-poderoso permitir que tais coisas aconteçam, mesmo se for concedido
que, em outro contexto, essa história seja uma refutação brilhante do
argumento do mal.10 Apesar disso, penso que há uma conexão impor-
tante entre as discussões teóricas do argumento do mal e o lamento
e o desespero real que acompanham a vida neste mundo. Talvez um
exemplo mostre um pouco dessa conexão.
Um componente da “história assim mesmo” que será o núcleo da
minha resposta ao argumento do mal é o seguinte: muitas coisas hor-
ríveis que acontecem no curso da vida humana não têm explicação; elas
apenas acontecem e, fora as considerações sobre a causa eficiente, não

10
O mesmo ponto se aplica àqueles que pensam que eles estão de posse de uma teodiceia:
seria uma coisa estúpida e cruel para, digamos, Leibniz dizer à mãe que a morte da criança
seria um componente do melhor de todos os mundos possíveis, ou para Pope dizer a ela
que tudo o que é, é bom. E essas respostas não seriam estúpidas e cruéis porque se baseiam
em uma teodiceia falsa: mesmo se – per impossibile, eu diria – a morte da criança fosse um
componente do melhor de todos os mundos possíveis, seria uma coisa estúpida e cruel res-
ponder à angústia da mãe contando a ela essa verdade. Que algo seja verdadeiro e, para usar
um termo técnico da filosofia da linguagem, conversacionalmente relevante, não significa
que tenha de ser dito.

62
O problema do mal e o argumento do mal

há resposta para a questão sobre o porquê de elas acontecerem; elas


não são partes do plano de Deus para o mundo; elas não têm sentido.
Publiquei anteriormente uma versão dessa “história assim mesmo”,11 e
recebi a seguinte resposta de um clérigo, o Dr. Stephen Bilynskyj (com
a permissão do Dr. Bilynskyj, cito uma parte da carta que ele me enviou
depois de ler o que eu tinha escrito):

Como pastor, acredito que algum tipo de perspectiva sobre


a providência que permita o acaso genuíno é essencial no
aconselhamento daqueles que enfrentam o que costumo
chamar de “problema prático do mal”. Uma pessoa aflita
precisa ser capaz de confiar na direção de Deus para a sua
vida e para o mundo, sem ter de tornar Deus diretamente
responsável por todos os eventos que ocorrem. Penso que a
mensagem do Evangelho não seja que tudo o que acontece
tem algum propósito. Em vez disso, a mensagem seria que
o poder de Deus é capaz de usar e transformar qualquer
evento por meio da graça de Jesus Cristo. Assim, uma
pessoa pode cessar a busca infrutífera por razões para o que
acontece, e buscar a força que Deus oferece para viver com
o que acontece. Essa abordagem é bem diferente de sim-
plesmente assumir, de maneira fideísta, que há razões para
todos os eventos, mas somos incapazes de conhecê-las.12

11
Veja van Inwagen (1988).
12
Em algum ponto da sua carta, Bilynskyj diz que os cristãos aos quais coisas terríveis aconte-
cem frequentemente “se esgotam” tentando encontrar significado nelas. Aprender que uma

63
O problema do mal | Peter van Inwagen

A relevância de uma discussão teórica do argumento do mal para o


problema pastoral do mal é ou pode ser esta: ela pode oferecer materiais
que o pastor pode usar no seu ofício. É excessivo e inadequado exigir da
resposta de um filósofo ou teólogo ao argumento do mal que ela seja
uma leitura adequada para uma mãe que perdeu o filho. No entanto,
embora não se possa exigir, pode-se ao menos esperar que ela seja uma
leitura recomendável para um pastor que tem o dever de atender a
pessoas como essa mãe que perdeu o filho. E essa expectativa, conforme
a minha própria experiência, pode algumas vezes ser cumprida.
Nestas conferências, não direi nada que leve à realização dessa
expectativa. Acredito que não seria aconselhável fazer isso. Se fosse
tentar dizer algo que pudesse ser “imediatamente” útil para os crentes
comuns que sofreram algum mal horrível ou a pastores que aconselham
esses crentes, eu certamente não seria bem-sucedido: eu nem daria ao
argumento do mal o seu devido valor intelectual e nem diria algo que
fosse de alguma ajuda para um cristão aflito. A tarefa que me proponho
é puramente intelectual. Farei a única coisa relacionada com o problema
do mal para a qual não sou manifestadamente desqualificado. Tentarei
mostrar que o argumento do mal é um fracasso.
Volto a atenção agora para o tópico do mal. Disse que a palavra “mal”
nas expressões “o problema do mal” e “o argumento do mal” significava
simplesmente “coisas más”. E o que disse é correto. Esse é o significado

coisa terrível não tem significado pode ser uma libertação para os cristãos – obviamente,
não uma libertação do fardo da desgraça, mas uma libertação de um falso fardo que uma
perspectiva errada sobre as relações de Deus com os males do mundo acrescentou ao fardo
das suas desgraças.

64
O problema do mal e o argumento do mal

da palavra naquelas expressões. Mas por que usar essa palavra? A palavra
“mal” não sugere uma ideia mais restrita? (Considere expressões fami-
liares como “o império do mal” e “o eixo do mal”). Essa palavra não
traz à mente Sauron e seus vassalos ou pelo menos Heinrich Himmler
e Pol Pot? Gore Vidal foi tão longe a ponto de sugerir que a ideia de
que há o mal é uma invenção cristã, que o mal, assim como o pecado, é
um bicho-papão imaginário que a igreja impôs à humanidade crédula.
Seja qual for a plausibilidade que essa tese possa ter em um mundo
que acaba de passar pelo século XX, seguramente não foi intenção de
Gore Vidal sugerir que a ideia de que coisas más acontecem foi uma
invenção de Paulo ou dos patriarcas da Igreja. É evidente que um dos
significados de “mal” é “a extrema dimensão da depravação moral”, espe-
cialmente quando há o gozo na crueldade sistemática e a indiferença
ao sofrimento decorrente das próprias ações. Nesse sentido, a palavra
“mal” é reservada para coisas como os campos de concentração, a decisão
governamental de desenvolver cepas do vírus Ebola para fins militares
ou a produção de pornografia infantil. A palavra deve ser entendida
nesse sentido nas famosas frases de Hannah Arendt “o mal radical” e
“a banalidade do mal”.
Que “mal” tenha esse significado é óbvio, mas qualquer dicionário
de citações dá outro significado dessa palavra: “um mal necessário”,
“o menor de dois males”, “o mal que os homens fazem”, “basta a cada dia
o seu próprio mal” [Mt 6:34]. Quer dizer, o significado que “mal” tem
na expressão “o problema do mal” é um dos seus significados comuns.
Nesse sentido, “mal” é “coisa má”, e o substantivo denota o conjunto
do que é qualificado como mau. A expressão “o problema do mal” não

65
O problema do mal | Peter van Inwagen

significa nada mais do que “o problema que a existência real de coisas


más coloca para os teístas”.
Que o problema do mal seja exatamente o problema que a existên-
cia real de coisas más coloca para os teístas, é um ponto bem simples.
Mas ele tem sido negligenciado ou negado por muitas pessoas. John
Mackie, em sua clássica apresentação do argumento do mal, menciona
um caso em que esse ponto é ingenuamente negligenciado:

O problema do mal, no sentido que usarei a expressão,


é um problema somente para quem acredita que há um
Deus onipotente e totalmente bom. [...] Isso é óbvio; eu
menciono esse ponto apenas porque ele é algumas vezes
ignorado pelos teólogos, que algumas vezes afastam a for-
mulação do problemas dizendo “Mas e você? Você conse-
gue resolver o problema?”.13

Se o que Mackie diz é verdade, há, ou houve, teólogos que aceitam,


ou aceitaram, a seguinte tese:

Há um certo problema filosófico ou teológico, o problema


do mal, com o qual se confrontam tanto teístas quanto
não teístas. Quando os teístas se confrontam com o pro-
blema, eles se confrontam com esse problema colocado
nos seguintes termos: como o mal pode existir se Deus é

13
Mackie (1955). A passagem citada está na p. 25 na coletânea de Adams e Adams.

66
O problema do mal e o argumento do mal

perfeitamente bom? E o ateísta se confronta com o mesmo


problema, porém colocado de uma forma diferente.

Esses teólogos, sejam eles quais forem, certamente estão confu-


sos. O problema “geral” que eles invocam simplesmente não existe.
Pois como seria esse problema? Ele não seria o problema de explicar
a existência do mal. Para um ateísta, a questão “por que coisas más
acontecem?” é tão fácil de responder que não merece ser chamada de
“problema”. E, além disso, mesmo se os ateístas ficassem sem saber
como explicar a existência do mal, é difícil ver por que essa incapacidade
deveria causar dificuldades especiais para eles, pois jamais se supôs que
a existência de coisas más fosse incompatível com o ateísmo. Nenhum
ateísta tem uma boa explicação do porquê da aceleração da expansão
do universo, mas esse não é um fato que causa dificuldades especiais
para o ateísta enquanto ateísta, pois ninguém supõe que a aceleração
da expansão do universo seja incompatível com o ateísmo. O mesmo
não se pode dizer da posição teísta em relação à explicação da exis-
tência do mal, pois muitas pessoas pensam que a existência de coisas
más é incompatível com o teísmo, e há um argumento bem conhecido,
que os próprios teístas dizem que tem de ser respondido, a favor dessa
conclusão.
Uma fonte da confusão dos teólogos mencionados por Mackie
é sem dúvida a ambiguidade da palavra “mal”, que, como vimos, tem
no mínimo dois significados: “coisas más” e “a dimensão extrema da
depravação moral”. Usemos o termo de Hannah Arendt “mal radical”
para exprimir de forma não ambígua este último significado. Pode ser
que haja um problema de algum tipo – filosófico, teológico, psicológico,

67
O problema do mal | Peter van Inwagen

antropológico – a respeito do mal radical, e que esse problema se coloque


tanto para teístas quanto para ateístas. Suponha a distinção entre o mal
radical e o mal “comum”. (O mal comum envolve coisas diversas como
torcer o pé, o terremoto de Lisboa e Tamerlão empilhando os crânios
dos inimigos). Pode ser que, embora os ateístas não tenham dificuldade
de explicar a existência do mal comum, eles não possam explicar facil-
mente a existência do mal radical. Visto que uso a expressão “pode ser” e
concedo esse ponto para avançar a argumentação, não preciso defender
que a distinção entre o mal radical e o mal comum seja real e importante
e nem que a existência do mal radical (diferentemente da existência do
mal comum) coloca algum tipo de problema para os ateístas.14 Poderia

14
Eis a defesa de uma tese diferente (cito com a permissão de Alvin Plantinga um parágrafo
de uma carta dele):

Estou inclinado a acreditar que há um duplo problema do mal para os ateístas. Em primeiro
lugar, acredito que não há o certo e o errado e, por isso, não há o mal, se o teísmo for falso.
(Sei muito bem que o teísmo, se verdadeiro, é necessário). Em segundo lugar, mesmo se isso
não fosse verdade (mesmo se houvesse o certo e o errado, dado o ateísmo), o naturalismo
não pode acomodar o mal genuinamente horrível, como nos casos similares à “escolha de
Sofia”. O problema não é só que não podemos explicar como as pessoas chegam a esse nível
de depravação em termos de ignorância, luta pela sobrevivência, o cérebro reptiliano, etc.
(embora seja verdade que não podemos oferecer uma explicação nesses termos); mas sim
que não poderia haver o mal nesse nível se o naturalismo fosse verdadeiro. (Se o naturalismo
fosse verdadeiro, as pessoas poderiam encarar essas coisas como exibindo o nível de mal que
elas atualmente exibem; mas elas estariam erradas). O mal pode atingir esse grau apavorante
somente se algo como a história cristã for verdadeira: há uma pessoa divina que mostrou um
amor impensável na Cruz (encarnação e redenção) a fim de entregar um formidável benefício
(um benefício que supera toda descrição e imaginação) a criaturas que voltaram as costas
para ela; mas alguns de nós, como Satã, assumem como sendo o nosso fim explícito destruir
e desfigurar o que Deus ama, e promover e devotar a nós mesmos ao que Deus odeia (como
o Satã do Paraíso Perdido [de Milton]). Há um nível de mal que somente esse tipo de ação
e de caráter podem atingir; e esse nível não é possível em um universo naturalista.

68
O problema do mal e o argumento do mal

haver pessoas que dizem não haver uma distinção moral importante
a ser feita entre o Holocausto e, por exemplo, a destruição romana
de Cartago ao fim das Guerras Púnicas. E pode haver pessoas que
dizem que, embora exista de fato uma diferença moral qualitativa entre
os dois eventos, os ateístas, mesmo assim, podem facilmente explicar
tanto a ocorrência do primeiro quanto a ocorrência do segundo evento.
Eu simplesmente examino, hipoteticamente, as consequências de supor,
em primeiro lugar, que a distinção pode ser feita e que ela é impor-
tante e, em segundo, que uma explicação da existência do mal radical
coloca para o ateísta uma dificuldade prima facie. Se essas suposições
são corretas, um determinado problema a respeito do mal – o problema
de explicar a existência do mal radical – se coloca tanto para teístas
quanto para ateístas. O que quero dizer é o seguinte: se há realmente
um “problema do mal radical”, ele tem pouco a ver com o problema
do mal. Talvez tenha algo a ver, mas não muito. 15 Apesar disso, há
uma conexão terminológica óbvia entre os dois problemas. Um dos
significados da palavra “mal” é “mal radical” – e esse significado não
é um significado qualquer; este tem sido o significado primário da
palavra por vários séculos. Se “o problema do mal” não fosse o nome

Penso que Anthony Burgess disse algo similar – do ponto de vista de um católico não pra-
ticante – quando escreveu: “Não há uma explicação A. J. P. Taylorista para o que aconteceu
na Europa Oriental durante a guerra” (citado por Martin Amis em Koba, o terrível, p. 196).
15
Uma analogia poderia ser a relação entre, por um lado, os problemas filosóficos sobre o que
os metafísicos chamam de “liberdade” quando estão discutindo as bases ontológicas da res-
ponsabilidade moral e, por outro, os problemas filosóficos sobre o que os filósofos políticos
chamam de “liberdade” quando estão discutindo os limites que um estado deveria colocar
nas ações dos seus cidadãos. O que essas duas classes de problemas têm em comum? Talvez
elas tenham algo em comum, porém não muita coisa.

69
O problema do mal | Peter van Inwagen

estabelecido de um problema filosófico ou teológico antigo sobre um


Criador benevolente e onisciente e a criação que contém uma gama
enorme de coisas muito más, a expressão seria um nome excelente para
um problema que hoje em dia, sob pena de confusão, temos de chamar
por outro nome – como “o problema do mal radical”. Acho plausível
supor que a ambiguidade da palavra “mal” tenha algo a ver com a con-
fusão do teólogo de Mackie de que algo chamado “o problema do mal”
se coloca tanto para teístas quanto para ateístas.
Chamei os teólogos de Mackie de ingênuos. Chamei-os assim por-
que julguei que a confusão deles era verbal e que eles caíram nela porque
não pensaram ou não pensaram direito. Mas eles não estão sozinhos na
crença de que há um abrangente problema do mal. (Direi que as pessoas
que aceitam a tese de que há um problema propriamente chamado de
“o problema do mal” que se coloca tanto para teístas quanto para ate-
ístas acreditam em um “abrangente problema do mal”). Os teólogos de
Mackie são acompanhados pela filósofa Susan Neiman, que defendeu
essa opinião em Evil in the modern thought. (Neiman pensa que o que
ela faz é filosofia. Prefiro chamar de “História da mentalidade europeia”.
Mas tenho uma concepção mais austera da filosofia). Em minha opi-
nião, Neiman cai, como os teólogos de Mackie, em confusão. Mas não
descreveria a confusão dela como “ingênua”. Eu diria que ela cai em
confusão por excesso de confiança. Neiman não confundiu um problema
que essencialmente envolve Deus com outro problema que não tem
conexão essencial com Deus. A sua opinião é que os teístas do final
do século XVIII, que buscaram reconciliar a bondade de Deus com a
ocorrência do terremoto de Lisboa, e os filósofos recentes, a maioria
deles europeus, que vêm o Holocausto e outros horrores do século XX

70
O problema do mal e o argumento do mal

como um problema filosófico fundamental, enfrentam o mesmo pro-


blema, embora, por causa das suas situações históricas diferentes, esse
problema assuma formas distintas para cada um desses grupos de
pensadores. (A minha referência a esses dois grupos de pensadores
não deve ser entendida como implicando que Neiman pensa que além
deles nenhum outro pensador se confrontou com o que ela chama de
“problema do mal”. Entender as respostas dos diferentes filósofos ao
abrangente problema do mal, assim pensa Neiman, é a chave que abre
a porta pela qual toda a história da filosofia moderna pode ser vista sob
uma nova perspectiva). A crença em um abrangente problema do mal
leva Neiman a fazer observações como a seguinte:

A discussão contemporânea analítica do problema do


mal... permanece confinada ao campo marginalizado da
filosofia da religião. Assim, a discussão histórica, quando
ocorre, foca muito em Leibniz e Hume, que trataram o
problema do mal dentro do discurso religioso tradicional.
(NEIMAN, 2002, p. 290).

Mas qual é o abrangente problema do mal que Hume e Leibniz e


Nietzsche e Levinas enfrentam (cada um deles da sua própria perspec-
tiva histórica)? Não acho que as tentativas desses filósofos de colocar e
explicar esse problema sejam fáceis de entender, porém a ideia básica é
algo como o seguinte (as palavras são minhas):

O mal ameaça a significação. O mal ameaça a nossa capaci-


dade de ver o mundo em que estamos como compreensível.

71
O problema do mal | Peter van Inwagen

O terremoto de Lisboa apresentou aos cristãos do final do


século XVIII um problema intratável a respeito do signi-
ficado da existência, e os campos de concentração tiveram
nos pensadores pós-religiosos um efeito comparável ou aná-
logo. O problema do mal é o problema de como encontrar
significado em um mundo em que tudo é tocado pelo mal.

Eu não direi nada sobre o projeto maior de Neiman de estudar as


várias respostas ao “problema do mal” com o objetivo de oferecer um
novo entendimento da história da filosofia moderna. Falarei apenas
da sua tese de que há um abrangente problema do mal. Penso que
os argumentos de Neiman para apoiar essa conclusão exprimem um
excesso de confiança. Eles não parecem ser mais do que ilustrações do
fato de que geralmente chegamos à conclusão de que duas coisas têm
características comuns se elevamos o nível de abstração alto o bastan-
te.16 (Como David Berlinski disse certa vez, comentando a aplicação
desse método, “Certo, e o que um homem faz quando pula sobre uma

16
Eis um exemplo simples de como uma pessoa que adota esse método poderia relatar a
descoberta de que os problemas considerados por dois filósofos seriam os mesmos. “Jack
do século XVIII pensa que a existência é compreensível somente se há um Deus e pensa
que o terremoto de Lisboa é prima facie incompatível com a existência de Deus. Portanto,
ele acredita que o mal (na forma do terremoto de Lisboa) é uma ameaça prima facie à
compreensibilidade da existência. Jill do século XXI pensa que a existência é compreensível
somente se o comportamento humano é inteligível e pensa que o Holocausto é prima facie
incompatível com a inteligibilidade do comportamento humano. Portanto, ela acredita que o
mal (na forma do Holocausto) é uma ameaça prima facie à compreensibilidade da existência.
Assim, Jack e Jill estão ocupados com o mesmo problema filosófico – que claramente têm
formas de algum modo diferentes”.

72
O problema do mal e o argumento do mal

valeta e o que o ganso canadense faz quando migra são a mesma coisa.
Em cada caso, o pé de um organismo afasta-se da terra, move-se no
ar durante um tempo e, finalmente, o seu pé mais uma vez entra em
contato com a terra.”).17
Eu sou só um filósofo analítico ingênuo. (Espero que não seja tão
ingênuo como os teólogos de Mackie, mas ingênuo ainda assim). Como
vejo as coisas, o problema do mal é o que sempre foi, um problema
sobre Deus e o mal. Não há um problema do mal que seja maior e
mais abrangente e se manifesta como um problema teológico em um
determinado período histórico e como um problema que pertence ao
pensamento pós-religioso em outro período.18 Realmente não sei como
argumentar a favor dessa conclusão, porque não sei como poderia entrar
em uma discussão racional com alguém que consideraria inclusive se
negar a isso. É claro para mim que qualquer pessoa que diga as coisas
que Neiman diz tem um pensamento tão diferente do meu que, se essa
pessoa e eu tentássemos, cada um com a maior das boas vontades, iniciar
uma conversa sobre haver ou não um abrangente problema do mal, o
único resultado seria duas pessoas falando de coisas diferentes. O que
chamo de “o problema do mal” envolve essencialmente Deus, e qualquer

17
Cito de memória. Não lembro mais onde li isso. Peço desculpas ao Dr. Berlinski se citei de
modo incorreto o que ele disse.
18
Não tenho nada a dizer sobre o valor filosófico de textos de Nietzsche e dos pensadores
contemporâneos que Neiman lê como contribuições à longa discussão do problema abran-
gente do mal. Não tenho nada a dizer sobre o valor interpretativo de tentar ler esses textos
como tentativas de enfrentar a ameaça da compreensibilidade da existência colocada pelo
mal radical. A minha única tese é que simplesmente não é verdade que os autores desses
textos (por um lado) e os autores da Teodiceia e das partes X e XI dos Diálogos sobre a Religião
Natural (por outro) estariam engajados em um projeto comum.

73
O problema do mal | Peter van Inwagen

problema que alguém chame de “problema do mal” é, se não envolver


Deus, tão remoto do “meu” problema que os dois problemas não têm
nada em comum. (Talvez tenham algo em comum, mas muito pouco).
Se alguém insistir para eu dizer algo em defesa dessa tese, eu poderia
citar algumas palavras que Newman usou em um contexto diferente: a
minha tese é verdadeira “pela razão óbvia de que uma ideia não é outra
ideia”. Ou, para citar outro clérigo, “tudo é o que é, e não outra coisa”.19
Costuma-se dizer que o maior benefício que Oxford confere aos seus
filhos e filhas é que eles não têm medo do óbvio. Parece que gozo
desse benefício sem os incômodos do posto. É óbvio que a tentativa de
Neiman de identificar um abrangente problema do mal com o qual, de
certo modo, se confronta Leibniz na Teodiceia e, de um modo diferente,
Nietzsche em Jenseits von Gut und Böse é malsucedida, e ela tem de ser
malsucedida, porque esse problema não existe.20

19
Eu posso tentar dizer algo para apoiar essa ideia. Imagine um mundo em que a história do
pensamento europeu seja parecida com a história do pensamento europeu do nosso mundo,
porém com estas diferenças menores: nesse mundo, o problema filosófico tradicional da
coexistência de Deus e das coisas más é conhecido como “o problema das coisas más”;
nesse mundo, a expressão “o problema do mal” foi inventada no século XXI por pensadores
pós-religiosos como um nome para seja qual o for o problema que eles pensam ser colocado
pelo mal radical. Qual seria a plausibilidade da tese de Neiman nesse mundo? (Como é
que ele poderia ser sequer colocado?). Ainda assim, a história intelectual europeia nesse
mundo não diferiria em nenhum aspecto importante da história intelectual europeia no
mundo atual: os pensadores europeus no mundo atual e os pensadores europeus no mundo
imaginário usaram uma palavra de forma diferente.
20
Um leitor da Oxford University Press fez uma sugestão interessante. Ele sugere que há uma
família de problemas inter-relacionados na ontologia dos valores que poderia ser chamado
de “o problema metafísico do bem e do mal”. (Os filósofos que discutem esse problema ten-
tariam responder a questões como “O que são o bem e o mal?” e “Poderia haver um mundo
que contivesse o bem, mas não o mal? – isso ao menos seria metafisicamente possível?”).

74
O problema do mal e o argumento do mal

O problema do mal é um problema sobre Deus e os males, tanto


os males comuns quanto os males radicais, que, assim acredito, são uma
característica saliente do mundo que ele criou. Nestas conferências,
discutirei esse problema. Na próxima conferência, discutirei esse Deus
cuja não existência é supostamente provada pelo argumento do mal.

O leitor prossegue sugerindo que o problema metafísico do bem e do mal se coloca tanto
para teístas como para ateístas, embora, sem dúvida, os teístas e ateístas verão o problema
de forma muito diferente.Isso pode estar certo. E se estiver certo, pode ser que o problema
tradicional do mal e o problema metafísico do bem e do mal se sobreponham de maneira
considerável. (Por exemplo, a tentativa de um ateísta de formular o argumento do mal ou
as tentativas do teísta de responder ao argumento do mal incorporam teses que seriam pro-
priamente avaliadas no campo do problema metafísico do bem e do mal). De todo modo,
o problema do mal não é um caso especial do problema metafísico do bem e do mal: o
problema do mal não é a “forma” que o problema metafísico do bem e do mal aparece para
o teísta. Além disso, seria errado dizer que, porque o ateísta precisa encontrar uma solução
para o problema metafísico do bem e do mal – suponha que seja assim para a sequência do
argumento –, o ateísta, assim como o teísta, precisa encontrar uma solução para o problema
do mal. Permanece verdadeiro, permanece uma verdade simples e óbvia, que a existência do
mal (a existência de coisas más) coloca pelo menos uma ameaça prima facie ao teísmo e não
coloca nem mesmo uma ameaça prima facie ao ateísmo.

75
CONFERÊNCIA 2
A ideia de Deus

Disse que nesta conferência eu iria “discutir esse Deus cuja não
existência é supostamente provada pelo argumento do mal”. O meu
propósito é dizer como um indivíduo teria de se parecer para ser Deus,
para contar como Deus, para ter os atributos, as qualidades, as proprie-
dades, as características ou os traços que são os componentes do conceito
de Deus. Mas isso pode ser feito de modo imparcial? As pessoas que
dizem acreditar em Deus não discordam sobre os seus atributos? Quem,
afinal, dirá quais são as características que Deus supostamente possui?
Responderei a essas questões com uma proposta que não me parece
arbitrária. A proposta é esta: a lista das propriedades que deveriam ser
incluídas no conceito de Deus são exatamente as propriedades que em
comum são atribuídas a Deus por judeus, cristãos e muçulmanos – as
propriedades que os seguidores dessas religiões concordariam em dizer
que são propriedades que pertencem a Deus.1

1
Por que considerar só o Oriente Médio ou só as religiões abraâmicas? Por que não as religiões
orientais? A resposta curta é esta: por causa das conexões históricas íntimas entre as três reli-
giões abraâmicas, é plausível supor que o significado que os seus adeptos conferem à palavra
“Deus” – quando falam português – seja o mesmo. Agora suponha um adepto de alguma
religião oriental que dissesse, em português, “Os adeptos da minha religião, assim como eu
mesmo, acreditam em Deus, mas não pensamos, assim como pensam os judeus, cristãos e
muçulmanos, que Deus é uma pessoa; encaramos Deus, em vez disso, como um primeiro
princípio impessoal”. Penso que seria plausível sustentar que a pessoa que diz isso traduz
alguma palavra do hindi ou do páli ou do sânscrito por “Deus” quando deveria traduzi-la
O problema do mal | Peter van Inwagen

Devo agora qualificar o que disse. Se fizermos uma lista de


propriedades seguindo o método proposto, essa lista conterá proprie-
dades que pertenceriam a Deus de modo contingente ou acidental:
a propriedade de ter falado com Abraão, por exemplo. Assim, vamos
restringir a nossa lista às propriedades que judeus, cristãos e muçulma-
nos concordarão que são propriedades de Deus independentemente
de tudo o que acontecer – propriedades que pertencem a Deus inde-
pendentemente das contingências da história, independentemente, na
verdade, de haver ou não a história, independentemente da existência
do mundo criado e, enfim, independentemente de qualquer estado de
coisas contingente. Desse modo, a nossa lista de propriedades definido-
ras do conceito de Deus será uma lista das suas propriedades essenciais
– embora, obviamente, ela não seja uma lista completa das propriedades
essenciais de Deus.
A segunda qualificação é a seguinte. Refiro-me com a expressão
“judeus, cristãos e muçulmanos” aos judeus, cristãos e muçulmanos que
atingiram um alto grau de reflexão filosófica e teológica; pois algumas
das propriedades na lista que proporei são propriedades das quais a
maioria dos crentes nunca terá ouvido falar. (Não levo a sério a ideia de
que “o Deus dos filósofos”, o portador dos atributos da minha lista, não
é o Deus da Bíblia ou o Deus do crente comum. Essa ideia não é mais
plausível do que a ideia – de Eddington – de que “a mesa dos físicos”
não é a mesa do catálogo de móveis ou a mesa que se tem em casa).

de outro modo. (E por que não dizer isso, se a história da palavra que ele traduz por “Deus”
não tem conexão com a história dessa palavra ou com a história de theos ou elohim?).

78
A ideia de Deus

Penso que eu tenha de acrescentar uma terceira qualificação.


Refiro-me com a expressão “judeus, cristãos e muçulmanos” aos “judeus,
cristãos e muçulmanos que viveram antes do século XX”. Se você ficou
admirado com essa qualificação, convido-o a examinar duas citações de
escritos de um teólogo de reputação considerável, que ocupou a cadeira
de teologia de uma grande universidade. Deliberadamente, não vou
identificá-lo. Mas asseguro que ele é real e que as citações são precisas.

Ver Deus como um tipo de objeto descritível ou conhecível em


contraste conosco seria ao mesmo tempo uma degradação de Deus
e um sério erro categorial.
É um erro, pois, encarar as qualidades atribuídas a Deus (por exem-
plo, asseidade, santidade, onipotência, onisciência, providência, amor,
autorrevelação) como características [...] de um ser particular.

Essas palavras quase não têm sentido. E na medida em que têm


sentido, querem dizer “Deus não existe”.2 E é precisamente porque uma
quantidade considerável de teólogos dos últimos cem anos não concor-

2
Há não muito tempo atrás, qualquer pessoa que dissesse ser um erro encarar x como F
estaria dizendo, e todos entenderiam que ela estaria dizendo, que x não é F. Há não muito
tempo atrás, se você usasse a expressão “o objeto externo à nossa frente”, as pessoas olha-
riam estarrecidas e perguntariam o que você quer dizer com isso. Há não muito tempo
atrás, qualquer pessoa que dissesse que os itens em certa lista de propriedades não seriam
características de um ser particular teria significado com isso, e todos entenderiam que ela
teria significado com isso, que nada teria as propriedades especificadas na lista. Há não
muito tempo atrás, qualquer pessoa que dissesse que nada tem as propriedades da lista “assei-
dade, santidade, onipotência, onisciência, providência, amor, autorrevelação” se descreveria
orgulhosamente como ateísta.

79
O problema do mal | Peter van Inwagen

daria com essa opinião que excluo qualquer referência a eles do meu
critério. Portanto, proponho encontrar as propriedades a serem incluídas
em nossa definição de Deus perguntando quais são as propriedades que
os filósofos e teólogos judeus, cristãos e muçulmanos em 1900 ou antes
teriam concordado em afirmar que são propriedades que pertencem
essencialmente a Deus. (Essa era a minha inclinação inicial. Porém
Richard Swinburne apontou que os teólogos no século XIX também
disseram coisas bem estranhas sobre Deus, e depois de refletir tive de
concordar com ele. Por segurança, talvez devêssemos retroceder até
1800. Suponho que eu teria também de pedir desculpas aos muçulmanos
por incluí-los sem necessidade em meu juízo histórico. Há acusações
sérias que podem ser feitas contra uma parte da teologia muçulmana
do século XX, mas certamente a crítica de propor um significado para a
palavra “Deus” que permite aos ateístas que ocupam cadeiras de teologia
falar como se fossem teístas não é uma delas).
Apresentarei a lista que afirmo poder ser derivada seguindo o
método proposto e discutirei cada item individualmente. Farei então
algumas observações sobre a lista como um todo. Essas observações
responderão a duas questões: a lista é só uma lista casual, um amontoado
de acidentes históricos, ou há um princípio unificador que explica o fato
de que a lista contém os itens particulares que contém e não outros?
Em que medida essa lista (e a explicação que darei de cada um dos seus
membros) seria, por assim dizer, aberta à revisão?
A lista que podemos obter seguindo o método proposto é muito
rica. Em minha opinião, ela contém as seguintes propriedades. Primei-
ramente, Deus é

80
A ideia de Deus

Uma pessoa.

Com “pessoa” quero dizer um ser a quem se pode dirigir, no sen-


tido mais direto e literal do termo – um ser a quem se pode chamar
de “Tu”. (Obviamente, é possível se dirigir de forma não direta e não
literal a algo não pessoal, como uma flor ou uma urna ou uma cidade.
Chamamos o processo de “personificação”). Aqui, não tenho a inten-
ção de oferecer uma análise do conceito de pessoa – seja o que for que
possa ser uma análise. Quero apenas fixar o conceito de pessoa, tornar
claro qual dos nossos conceitos estou exprimindo com essa palavra,
como alguém que diz: uso a palavra “conhecimento” para me referir
ao conhecimento proposicional e não ao conhecimento por contato
direto; mas não como alguém que diz: com “conhecimento” quero dizer
crença verdadeira justificada não anulada. Se eu fosse conjecturar como
o conceito de pessoa deveria ser analisado, diria algo muito extenso que
provavelmente começaria assim: uma pessoa é um ser consciente com
crenças, desejos e valores, capaz de pensamento abstrato... e assim por
diante. No entanto, encararia qualquer análise de “pessoa” como pro-
visória, sujeita a revisão, do mesmo modo que se mostrou necessário
revisar a análise de “conhecimento” em termos de crença verdadeira
justificada. Nada nesta conferência ou nas demais conferências desta
série dependerá de uma análise particular da noção de pessoalidade.
Incluo esse atributo em minha lista (e ele é de fato redundante, uma
vez que muitos atributos da minha lista só poderiam pertencer a uma
pessoa) simplesmente para deixar claro que encaro como uma parte do
conceito de Deus – assim como o fazem os judeus, cristãos e muçul-
manos – que ele não pode ser pensado como impessoal, como Brahma

81
O problema do mal | Peter van Inwagen

ou o Tao ou a Ideia Absoluta ou a História Dialética ou, para descer a


um nível bem mais popular, a Força.
Alguns dos meus sofisticados colegas do Departamento de Filo-
sofia de Notre Dame encaram a ideia de que Deus é uma pessoa como
bastante crua, ou talvez até errônea. E não falo aqui de ateístas disfarça-
dos, como o teólogo que mencionei anteriormente; falo de tomistas pios
e ortodoxos (ou pelo menos de pessoas com um nível alto de tomismo
no sangue). Porém jamais fui capaz de entender o porquê dessa opinião.
Eles mesmos se dirigem a Deus em prece, portanto têm de considerá-lo
uma pessoa no sentido que proponho. Suspeito que eles adotam uma
análise da noção de pessoalidade que eu rejeitaria.
Alguém pode perguntar como posso considerar Deus uma pessoa
se, como cristão, devo concordar que “há uma Pessoa do Pai, outra do
Filho, e outra do Espírito Santo”. Um teólogo mais sofisticado sorrirá
ao ouvir essa questão e dirá a quem pergunta que “pessoa” é um termo
técnico na teologia trinitária e não significa o que significa ordinaria-
mente; ele então dirá que sem dúvida é no sentido ordinário da palavra
que van Inwagen diz que Deus é uma pessoa – não que ele aprove a
minha aplicação a Deus de termos ordinários que se aplicam aos seres
humanos, mas ele irá me oferecer essa escapatória de uma óbvia contra-
dição. Porém não tomarei essa via para escapar da aparente contradição.
Em minha opinião, “pessoa” na teologia trinitária significa exatamente
o que quero dizer com esse termo – um ser a quem se pode dirigir, um
“Tu” – e é esse teólogo mais sofisticado que se confunde. Em relação à

82
A ideia de Deus

questão “um Deus, três Pessoas” – bem, ela está além do âmbito destas
conferências.3
Antes de deixar o tópico da pessoalidade de Deus, devo dizer algo
sobre o sexo – não o sexo no sentido vulgar da palavra, não o intercurso
sexual, porém o dimorfismo sexual –, o que as pessoas cada vez mais,
para o meu extremo aborrecimento, chamam de “gênero”. Ainda não
dissemos oficialmente, porém, como todos sabem, Deus não ocupa
lugar no espaço e, desse modo, ele não pode ter uma estrutura física; no
entanto, ter um sexo, ser masculino ou feminino, é, entre outras coisas,
ter uma estrutura física. Logo, Deus não tem sexo. É literalmente falso
que Deus é masculino e literalmente falso que Deus é feminino. O que
quero fazer agora é responder a esta questão: o que dizer do pronome
“ele” que venho utilizando? Esse problema não é colocado por alguma
característica da natureza de Deus, mas sim por uma característica da
língua portuguesa, na qual os únicos pronomes pessoais na terceira
pessoa do singular são “ele” e “ela”. Seria bom se o português tivesse um
pronome pessoal na terceira pessoa do singular que fosse neutro quanto
ao sexo e que também fosse aplicável a pessoas. (Muitas linguagens
têm um pronome assim). O português tem pronomes neutros quanto
ao sexo que são aplicados só a pessoas, como, por exemplo, “alguém”,
“ninguém” e “quem”, mas carece de pronomes pessoais na terceira pessoa
do singular que tenham essas características desejáveis. (Alguns dos

3
Sobre o que penso da relação entre a proposição “Deus é uma pessoa” e a proposição “Em
Deus há três pessoas”, veja os meus ensaios “And yet They are not three Gods but one God”,
“Not by confusion of substance but by unity of person”, e “Three persons in one being: on
attempts to show that the doctrine of the trinity is self-contradictory”.

83
O problema do mal | Peter van Inwagen

nossos contemporâneos mais esclarecidos propuseram um sistema de


“pronomes divinos”, mas acho muito difícil me adaptar ao uso de prono-
mes artificiais criados só com esse propósito). As únicas possibilidades
reais são chamar Deus de “ele” ou “ela”, e ambos os pronomes colocam
problemas sérios. No final das contas, chamar Deus de “ele” traz consigo
a implicação de que Deus é masculino. Isso é falso e reforça preconceitos
históricos. Obviamente, chamar Deus de “ela” traz consigo a implica-
ção de que Deus é feminino. Essa implicação não reforça preconceitos
históricos, porém (além de ser falsa) coloca a seguinte dificuldade: o
gênero masculino é um tipo de opção pré-selecionada no maquinário
da gramática portuguesa – acredito que se possa exprimir essa ideia
dizendo que “no português, ‘masculino’ é um gênero não marcado”,
porém posso ter entendido mal o sentido de “marcado”. De todo modo,
a realidade é a seguinte: quando se fala português, o uso do gênero
feminino sempre chama a atenção nos casos em que não há uma base
para esse uso na natureza da coisa sobre a qual se fala, enquanto o uso
do gênero masculino algumas vezes não, não se a coisa sobre a qual se
fala for uma pessoa. O português, portanto, é uma língua sexista, mas,
infelizmente, isso não pode ser mudado por decreto, por boas intenções
ou por um ato de vontade. Ora, nem todos os problemas têm solução.
Vou chamar Deus de “ele”, mas se alguém quiser chamar Deus de “ela”,
não vou me importar com isso.
O que disse basta para uma explicação do atributo de “pessoa”. Volto
a atenção para itens mais familiares na lista das propriedades definidoras
de Deus. A primeira é realmente muito familiar. Deus é

84
A ideia de Deus

Onipotente (ou todo-poderoso).

Uma definição frequente da onipotência afirma que um ser onipo-


tente pode fazer qualquer coisa que seja logicamente possível. Tenho
duas dificuldades com essa definição. A primeira delas é controversa; tal-
vez só eu tenha essa dificuldade, mas não posso ignorá-la por isso. Ela é
a seguinte: não entendo a ideia de possibilidade lógica. Entendo (e acre-
dito) na possibilidade absoluta ou metafísica, mas, até onde vejo, dizer
que uma coisa é logicamente possível é dizer algo sem significado. Não
nego que o conceito de impossibilidade lógica tenha significado: algo é
logicamente impossível se for impossível de modo incondicional, abso-
lutamente ou metafisicamente impossível, e se a sua impossibilidade
puder ser demonstrada só com o uso dos recursos da lógica. Mas o que é
a possibilidade lógica? Poder-se-ia dizer que algo é logicamente possível
se não for logicamente impossível. Mas isso causa perplexidade. Afinal,
por que o fato de que não se pode mostrar com o uso dos recursos mui-
tos limitados da lógica que uma coisa é impossível mostraria que ela é
em algum sentido possível? Um procedimento estritamente euclidiano
para realizar a trissecção do ângulo é impossível. Esse procedimento é
tão impossível quanto qualquer outra coisa pode ser impossível. Ele não
existe em nenhum mundo possível. Mas a lógica apenas não é suficiente
para estabelecer essa impossibilidade, e se o logicamente possível com-
preendesse tudo que não é logicamente impossível, então a trissecção
do ângulo seria “logicamente possível”. Ou seja, a possibilidade lógica
não seria um tipo de possibilidade. Mas não quero perder mais tempo

85
O problema do mal | Peter van Inwagen

com esse ponto.4 Suponha que seja concedido que os meus escrúpulos
quanto à possibilidade lógica sejam bem fundados. Não poderíamos
acomodá-lo simplesmente dizendo que a onipotência é o poder de fazer
tudo o que for metafisicamente possível? Parece que sim. No entanto,
teríamos ainda de enfrentar a segunda dificuldade que mencionei, que
não é nada controversa. Ela é a seguinte: a maioria dos teístas afirma que
há atos metafisicamente possíveis que Deus é incapaz de realizar. Dois
exemplos bem conhecidos são mentir e quebrar promessas. Ao contrário
da trissecção do ângulo, mentir e quebrar promessas são metafisicamente
possíveis. (Não sei quanto a você, mas tenho visto mentiras e quebras
de promessas por aí). Mas é dito com frequência que Deus é incapaz
de fazer qualquer uma dessas coisas, pois, embora para uma pessoa
qualquer mentir ou quebrar uma promessa seja metafisicamente pos-
sível, é impossível para Deus mentir ou quebrar suas promessas. Vamos
supor que os filósofos e os teólogos que dizem que é metafisicamente
impossível para Deus mentir e quebrar as suas promessas estão certos.
Segue-se da tese deles que Deus não é onipotente? De acordo com a
definição proposta, sim. Contudo, o modo como o caso foi descrito
sugere imediatamente outra definição, uma definição que encontramos
frequentemente nas obras de teologia filosófica, uma definição proposta
para responder exatamente às dificuldades que estamos considerando:
dizer que Deus é onipotente quer dizer que ele pode fazer qualquer
coisa tal que é metafisicamente possível que ele faça essa coisa.

4
Para saber mais sobre esse tópico, veja van Inwagen (1977, p. 375-395; 1998, p. 67-84; 1995,
p. 11-21).

86
A ideia de Deus

Essa definição responde às duas dificuldades que mencionei, mas


ela tem os seus próprios problemas. O mais importante é este: ela não
nos diz o que Deus pode fazer. Outro modo de colocar esse ponto seria
dizer que, pelo menos até onde podemos julgar, pode haver dois seres,
cada um deles é capaz de fazer tudo o que for metafisicamente possível
para ele mesmo fazer, porém um deles é muito mais poderoso do que
o outro. Por exemplo, suponha que Deus exista, que Deus seja capaz
de fazer tudo o que for metafisicamente possível para ele fazer, e que a
criação ex nihilo está entre as coisas que são metafisicamente possíveis
para ele fazer. Suponha, além disso, que Deus crie um ser, Demiurgo,
que, embora muito poderoso para os padrões humanos, é incapaz de
fazer muitas das coisas que Deus pode fazer. Por exemplo, ele é incapaz
de criar coisas ex nihilo. E Demiurgo é essencialmente incapaz de creatio
ex nihilo: mesmo Deus não poderia conferir a ele esse poder, pois, por
necessidade metafísica, Demiurgo carece do poder de criar a partir de
nada. E o mesmo vale para cada poder que Demiurgo não tenha: ele
carece deles por necessidade metafísica. (Nesse aspecto, Demiurgo é
diferente dos seres humanos: todos nós temos incapacidades que são
metafisicamente acidentais. Por exemplo, embora eu seja incapaz de
tocar oboé, eu teria sido capaz de tocar esse instrumento musical se o
curso da minha vida tivesse sido diferente; quase toda a gente é inca-
paz de falar a língua do povo Navajo, porém ninguém é essencialmente
incapaz de falar essa língua; todas as pessoas cegas enxergam em outros
mundos possíveis). Contudo, nesse caso, se ser onipotente é ser uma
pessoa capaz de fazer tudo o que for metafisicamente possível para
ela fazer, Demiurgo é onipotente. Mas esse é realmente um resultado
estranho se compararmos Demiurgo com Deus, que é capaz de fazer

87
O problema do mal | Peter van Inwagen

muito mais coisas do que ele. E isso demonstra – você entenderá esse
ponto se pensar sobre a questão por um momento – que a defini-
ção de onipotência proposta não nos diz o que um ser onipotente é
capaz de fazer.5 Esse é um ponto importante que se deve ter em mente
na discussão do argumento do mal. Considere a seguinte discussão
imaginária. Um teísta responde ao argumento do mal alegando que,
embora os males do mundo aflijam Deus de maneira profunda, ele foi
incapaz de impedir no começo os males que são uma característica tão
saliente do mundo, sendo agora incapaz de remover qualquer um deles.
“Mas pensei que Deus fosse onipotente”. “Claro que Deus é onipotente.
O caso é que é metafisicamente impossível para ele criar um mundo
que não contenha coisas más, e é metafisicamente impossível para ele
interferir seja como for no funcionamento do mundo depois que ele o
criou. Mas ele é capaz de fazer tudo o que é metafisicamente possível
para ele fazer – portanto, ele é onipotente”.
Seria um projeto muito interessante tentar oferecer uma definição
satisfatória de onipotência. (Em seu ensaio Omnipotence, Peter Geach
defendeu a tese de que esse projeto é fadado ao fracasso, e que os
cristãos deveriam abandonar a tentativa de dar um sentido filosófico
para a noção de um Deus que pode fazer tudo. Os cristãos, conforme
Geach, deveriam, em vez disso, dizer que Deus é todo-poderoso: ou seja,
Deus é, por necessidade, a única fonte de poder de cada ser além dele
mesmo. Seja qual for o mérito dessa sugestão, ressalto que a afirmação

5
Compare com o que diz Aquino na Suma Teológica I, q. 25, art. 3: “Mas dizer que Deus pode
tudo o que é possível à potência divina é um círculo vicioso. Pois seria dizer que Deus é oni-
potente porque pode tudo o que pode”.

88
A ideia de Deus

“Deus é todo-poderoso”, entendida do modo que Geach a entende,


não nos diz nada sobre o que Deus é capaz de fazer. Um ser que fosse
capaz de só criar seixos, por exemplo, poderia, dado um arranjo ade-
quado da situação, ser todo-poderoso no sentido de Geach. E um ser
que foi incapaz de impedir, e que agora é incapaz de remover, os males
do mundo seria da mesma forma um ser todo-poderoso). Não tenta-
rei oferecer agora uma definição de onipotência. Esse é um problema
difícil, e a discussão desse problema nos levaria para o território ame-
açador da metafísica técnica. Assumirei nestas conferências que temos
algum tipo de compreensão pré-analítica da noção de onipotência e
justificarei o meu emprego desse conceito, mesmo sem uma definição
adequada, ressaltando que não ter à minha disposição uma definição
adequada de onipotência não torna a minha tarefa, a tarefa de tentar
mostrar que o argumento do mal fracassa, mais simples. Afinal, são
os filósofos que empregam o argumento do mal, e não os seus críticos,
que fazem asserções sobre o que Deus é capaz de fazer ou seria capaz
de fazer se ele existisse. As asserções dos críticos sobre as capacidades
de Deus são sempre negações: os críticos, quando dizem algo sobre as
capacidades de Deus, estão sempre preocupados em negar que Deus
possa fazer alguma das coisas que as várias premissas do argumento
implicam que ele possa fazer. Em minha discussão do argumento do
mal, aceitarei qualquer asserção que comece com “Deus pode...” ou
“Deus poderia ter...” – exceto se a coisa que se diz que Deus é capaz
de fazer implique uma impossibilidade metafísica. (Afinal – apesar de
Descartes –, seja o que for que a expressão “onipotente” signifique, a pro-
posição de que Deus não pode fazer X é consistente com a proposição
de que ele é onipotente, dado que X seja metafisicamente impossível).

89
O problema do mal | Peter van Inwagen

Obviamente, não proponho simplesmente afirmar que certos atos que se


alegue serem atos que Deus é capaz de realizar envolvem uma impossibi-
lidade metafísica; proponho apresentar argumentos para essa afirmação.
Aquino, na famosa discussão sobre a onipotência que citei na nota
8, diz que “seja o que for que implique uma contradição, não está no
âmbito da onipotência divina”, e tenho mais ou menos seguido a sua
posição. (Mais ou menos, mas mais próximo do menos do que do mais:
a noção de impossibilidade metafísica é mais rica do que a noção de
“implicar uma contradição”). Obviamente, há outra concepção mais
forte de onipotência, defendida famosamente por Descartes. De acordo
com essa concepção, Deus é capaz de fazer tudo, incluindo (Descar-
tes concorda) criar duas montanhas que se tocam na base e não têm
nenhum vale entre elas.6 Não discutirei essa concepção “forte” de onipo-
tência, que me parece ser obviamente incoerente – incoerente porque a
capacidade (o conceito que é exprimido por frases da forma “x é capaz
de fazer y”) é exatamente o poder de escolher entre estados de coisas
possíveis, de determinar qual de vários estados de coisas incompatíveis
serão efetivos. Mas farei agora uma promessa. O nosso interesse no atri-
buto da onipotência nestas conferências tem relação com o papel que ele
desempenha no argumento do mal. Quando finalmente tivermos tempo

6
Nesse ponto, ajudo um pouco Descartes. A pergunta que ele realmente colocou (carta a
Arnauld, 29 de julho de 1648) foi se Deus “pode fazer uma montanha sem vale”. Porém,
obviamente, se Deus quer fazer uma montanha sem vale, ele precisa apenas colocar a mon-
tanha que ele fez no meio de uma planície. Assumo que as palavras usadas no texto não
descaracterizam o que Descartes tinha em mente. Não entrarei em uma intricada disputa
acadêmica sobre o que Descartes queria dizer ao propor que Deus “cria verdades eternas”.
O meu interesse está na teoria “forte” na onipotência e nas implicações dessa teoria, e não
na questão se Descartes realmente defendeu ou não essa teoria.

90
A ideia de Deus

de discutir o argumento do mal, mostrarei que o argumento não é nem


mesmo levemente plausível se Deus for onipotente no sentido “forte”
ou “cartesiano”. (Quando entendermos o porquê disso, provavelmente
encararemos o fato de que o argumento do mal pode ser respondido
nesses termos se Deus for onipotente no sentido forte ou cartesiano
como sendo mais uma consequência absurda de entender a onipotência
de Deus nesse sentido). Volto a atenção agora para o próximo “atributo
divino” em nossa lista. Deus é

Onisciente.

Esta é a definição padrão de onisciência: um ser é onisciente se, e


somente se, ele sabe o valor de verdade de todas as proposições. Outra
definição da onisciência, que prefiro por razões diversas, diz que um ser
é onisciente se, para toda proposição, ele acredita ou nessa proposição ou
na sua negação, e é metafisicamente impossível que ele tenha crenças
falsas.7 Essa segunda definição faz uma afirmação mais forte do que a

7
Nesse ponto, sigo o uso filosófico comum e falo de “acreditar” em proposições. Sinto-me
forçado a pedir desculpas por isso, mesmo que seja só a mim mesmo. Não me sinto confor-
tável com esse uso; eu preferia falar de aceitar ou assentir a proposições – ou hipótese, teses,
premissas... (Essa preferência é inteiramente uma questão de costume linguístico. Nenhum
ponto filosófico está envolvido) Os meus escrúpulos – que suprimi no texto, porque esse
modo de falar tem certas vantagens estilísticas – poderia ser acomodado deste modo: um
ser é onipotente se, para toda proposição, ele aceita ou essa proposição ou a negação dela, e
é metafisicamente impossível para ele aceitar uma proposição falsa.

91
O problema do mal | Peter van Inwagen

primeira a favor do ser onisciente, mas trata-se de uma afirmação que


o teísta aceitaria de bom grado a favor de Deus.8
A existência de um ser onisciente levanta um problema filosófico
muito famoso: se há um ser onisciente, ele sabe que, quando eu for
interrogado amanhã, mentirei, ou sabe que, quando eu for interrogado
amanhã, contarei a verdade. Como, pois, posso escolher livremente entre
mentir e contar a verdade? (Ou, nos termos da segunda definição: se há
um ser onisciente, ele acredita que, quando eu for interrogado amanhã,
mentirei, ou acredita que, quando eu for interrogado amanhã, contarei
a verdade; e é metafisicamente impossível para ele ter crenças falsas.
Como, pois, posso escolher livremente entre mentir e contar a verdade?)
Deixo a discussão desse problema para a quinta conferência, na qual ele
surgirá naturalmente. (Ele surgirá em conexão com a famosa resposta
ao argumento do mal conhecida como “defesa do livre-arbítrio” – visto
que, independente das virtudes ou dos vícios que essa defesa possa ter,
ela não funcionará se os seres humanos não tiverem livre-arbítrio).
Além de ser onipotente e onisciente, Deus é

8
Alguns filósofos disseram que se eu acreditar que, e.g., eu mesmo estou com fome, o conteúdo
da minha crença é uma proposição na primeira pessoa que somente eu posso acreditar ou
aceitar (veja a nota anterior). Se isso for verdade, então a segunda definição da onisciência
(e talvez a primeira também; mas isso não é tão claro) enfrenta uma dificuldade óbvia. Não
vou discutir essa dificuldade que encaro como puramente técnica – além disso, em minha
opinião, a dificuldade é só aparente, e pode ser vista como sendo só aparente quando as frases
que exprimem crenças na primeira pessoa do singular são entendidas corretamente.

92
A ideia de Deus

Moralmente perfeito (perfeitamente bom).

Ou seja, Deus não tem defeitos morais. Segue-se que ele não está
sujeito a nenhum tipo de crítica moral. Se alguém disser algo com a
forma “Deus fez x e foi errado para Deus fazer x”, essa pessoa tem de
estar enganada: ou Deus não fez de fato x, ou não foi errado para Deus
fazer x. (Decerto, visto que Deus é muito diferente dos seres huma-
nos e encontra-se em relações muito diferentes com as coisas criadas
daquelas relações nas quais os seres humanos se encontram, o que seria
um defeito moral em um ser humano ou uma ação má praticada por
um ser humano não é automaticamente um defeito moral em Deus ou
uma ação má praticada por Deus. Por exemplo, suponha que um ser
humano inflija dor em outros seres humanos – sem consultá-los – a fim
de produzir o que em seu julgamento é um grande bem. Muitos de nós
veriam isso como uma ação moralmente má, mesmo se ele realmente
estiver certo sobre as consequências a longo prazo da dor que inflige.
Vamos supor que esse juízo seja correto. O meu ponto é que não se segue
da correção desse juízo que seria errado para Deus infligir dor nos seres
humanos – ou nos anjos ou em bestas – sem o consentimento deles a
fim de produzir um bem maior. De todo modo, esses juízos precisam
ser examinados individualmente com muito cuidado e devemos levar
em consideração tanto as diferenças entre Deus e os seres humanos
quanto as suas similaridades.)
Deus é também

93
O problema do mal | Peter van Inwagen

Eterno.

Esse atributo é muito frequentemente mencionado nos cânticos e


na liturgia; que Deus tenha esse atributo, parece ser emocionalmente
muito importante para os crentes – provavelmente por causa do nosso
pesar em relação à transitoriedade dos seres humanos. Cito um trecho
do salmo 90 (aqueles que frequentam a igreja, familiarizados com o
próprio salmo, conhecerão a sua paráfrase métrica feita pelo reverendo
Isaac Watts, o cântico que começa com “O God our help in ages past”):

2
Antes que as montanhas fossem geradas, ou a terra e o
mundo criados, tu és Deus desde a eternidade, e o mundo
sem fim [...]
4
Pois milhares de anos são em tua visão como o dia de
ontem, vendo o que é passado como uma vigília à noite.9

É sabido que os teístas entendem a eternidade de Deus de dois


modos: ele sempre existiu e sempre existirá; ele está fora do tempo.
Discutirei brevemente essas duas concepções da eternidade quando
discutir o livre-arbítrio e a presciência divina em conexão com a defesa
do livre-arbítrio. Um atributo intimamente relacionado a esse é que
Deus é

9 2
Before the mountains were brought forth, or ever the earth and the world were made, thou art
God from everlasting, and world without end [...]4 For a thousand years in thy sight are but as
yesterday, seeing that is past as a watch in the night.

94
A ideia de Deus

Imutável.

Ou seja, os seus atributos e outras propriedades importantes não


podem mudar – nas palavras do cântico de Watts, ele é “por incontáveis
anos o mesmo”. Obviamente, se Deus está no tempo, e se ele está ciente
do mundo em mudança, como tem de estar, algumas das suas proprie-
dades, no sentido amplo de “propriedade”, no sentido de “Cambridge”,
terão de sofrer mudança com a passagem do tempo: no ano de 45 a. C.,
ele sabia que Júlio César estava vivo e, no ano de 43 a. C., ele não tinha
mais essa propriedade. No entanto, para usar a linguagem da metafísica,
as suas propriedades intrínsecas ou não relacionais não mudam e nem
podem mudar com o tempo: tornamo-nos velhos e grisalhos e tornamo-
-nos mais (ou menos) sábios; na maturidade, o idealismo da juventude
é substituído pelo cinismo, ou a nossa imprudência juvenil dá lugar à
prudência; passamos da crença para a descrença, ou vice-versa; nada na
natureza de Deus corresponde à mutabilidade que caracteriza a existên-
cia humana e a existência de todas as coisas dadas aos sentidos. (O que
dizer de passagens como “Então o Senhor arrependeu-se de ter feito
o homem” [Gn 6:6]? Bem, o meu tópico não é hermenêutica bíblica).
Um dos atributos divino é o análogo espacial da eternidade. Deus é

Onipresente.

Obviamente, dizer que Deus é onipresente é dizer que Deus está


em todos os lugares:

95
O problema do mal | Peter van Inwagen

Sou um Deus de perto, disse o Senhor, e não um Deus


de longe? Poderá alguém esconder-se sem que eu o veja?,
pergunta o Senhor. Não sou eu aquele que preenche os
céus e a terra? ( Jr 23:23-4).

Presumivelmente, foram textos como esse que levaram à descrição


de Haeckel do Deus judaico-cristão como um “vertebrado gasoso”.
Há algumas questões filosóficas sérias relacionadas com o chiste de
Haeckel: como Deus “preenche” os céus e a terra – ele faz isso como
um fluido que a tudo permeia, tal como o éter da física do século XIX?
Em que sentido Deus está “em todos os lugares”? Não discutirei agora
essas questões importantes. O atributo da onipresença aparecerá em
nossa discussão da seguinte questão (e foi assim mesmo que algumas
pessoas colocaram o atributo em discussão): “Por que Deus se esconde
de nós? – Por que ele é um Deus absconditus?”. Será melhor para o
desenvolvimento da minha exposição adiar a discussão da onipresença
até colocarmos essa questão na conferência final.
No momento, quero notar apenas que a onipresença, seja o que for
esse atributo, é incompatível com Deus ter uma estrutura espacial ou
física (e, portanto, com Deus ser masculino ou feminino).
E qual é a nossa relação com esse ser onipotente, onisciente, eterno,
imutável e onipresente? Obviamente, ele é o nosso criador e nós, como
os céus e tudo o mais além dele mesmo, somos obra das suas mãos:

No Princípio, Deus criou os céus e a terra. E a terra era


sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o

96
A ideia de Deus

Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. Disse


Deus: “Haja luz”, e houve luz. (Gn 1:1-3).

Pois assim diz o Senhor, que criou os céus, ele é Deus; que
moldou a terra e a fez, ele a fundou; não a criou como um
caos, mas a formou para ser habitada. (Is 45: 18).

Creio em um só Deus, Pai Todo-poderoso, criador do céu


e da terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis. (Credo
Niceno, Livro de oração comum).

Dizer que Deus é o criador de todas as coisas além dele mesmo não
é dizer que ele formou essas coisas a partir de uma matéria pré-existente,
como o artesão cósmico do Timeu [de Platão]. Se há um Deus, então
nunca houve um caos de matéria-prima que existia independentemente
do seu poder e da sua vontade, esperando por uma eternidade de anos
até que ele imprima uma forma nela. Esse não poderia ser o caso, pois,
se há um Deus, nada existe ou poderia existir independentemente da
sua vontade ou independentemente do seu poder criativo. Deus cria as
coisas, incluindo o fundamento, ontologicamente falando. A sua criação
é, como se costuma dizer, ex nihilo. E mesmo ele, em sua onipotência,
não é capaz de engendrar uma coisa e deixá-la sem nenhuma conexão
com ele, pois uma coisa que existe, mesmo por um instante, indepen-
dente do poder criativo de Deus é tão impossível como um vertebrado
gasoso ou um objeto invisível que tem uma sombra. Esse fato – quero
dizer, esse fato conceitual – é algumas vezes enfatizado quando se diz
que Deus não é só o criador de tudo, mas também o mantenedor de tudo;

97
O problema do mal | Peter van Inwagen

mas essa é só uma ênfase, pois mantenedor está incluído no significado


de criador – pelo menos é assim no contexto teológico.
Agora, temos de enfrentar um problema lógico menor gerado por
nosso próprio critério de pertencimento à lista dos atributos divinos;
visto que, entre outras coisas, dissemos que um atributo seria incluído
nessa lista somente se ele fosse um atributo essencial de Deus. E ser um
criador é, de acordo com as religiões abraâmicas, acidental: trata-se de
uma das propriedades que Deus não tem em certos mundos comple-
tamente bons – mundos que, felizmente para nós, não são o mundo
atual: aqueles mundos nos quais Deus jamais criou alguma coisa. Judeus,
cristãos e muçulmanos insistem que, para Deus, criar um mundo – quer
dizer, criar algo – é uma questão de livre-escolha. Nada em sua natureza
o obriga a criar. Ele não é, por exemplo, obrigado a criar em virtude
da sua perfeição moral, pois não é melhor haver criaturas do que não
haver criaturas. Poderia não ser melhor, pois todos os bens já estão
contidos – plena, perfeita e completamente – em Deus. (Na questão do
livre-arbítrio, ele não tem uma escolha entre o bem e o mal, como nós,
seres imperfeitos, temos, mas ele tem uma livre-escolha entre vários
bens alternativos, e haver coisas criadas e não haver coisas criadas é um
dos pares de alternativas bons entre os quais Deus tem uma escolha).
Contudo, se ser um criador é uma propriedade acidental de Deus, então,
de acordo com nosso critério, ela não pode aparecer na nossa lista de
atributos divinos. A solução para esse problema é simplesmente dizer
que o atributo relevante de Deus é ser

98
A ideia de Deus

O criador das coisas além dele mesmo que podem existir.

Como dizem os filósofos, Deus tem essa propriedade vacuamente


em todos os mundos possíveis em que existe e não cria nada, e não
vacuamente em todos os outros mundos possíveis em que existe; mas
Deus tem essa propriedade em todos os mundos possíveis em que existe,
e, portanto, ela é uma das suas propriedades essenciais.
Acabei de usar a frase “em todos aqueles mundos possíveis em que
ele existe”; mas há mundos possíveis em que Deus não existe? A posse
do próximo atributo em nossa lista implica que não há esse mundo.
Deus é

Necessário.

Ou seja, ele existe em todos os mundos possíveis; ele existiria inde-


pendentemente de qualquer outra coisa. Há trinta ou quarenta anos, muitos
filósofos sustentavam que o conceito de um ser necessário não fazia
sentido. É fácil refutá-los. Considere o meu caso. Eu poderia não ter
existido; sou, portanto, na linguagem da metafísica, um ser contingente.
E se o conceito de um ser contingente faz sentido, o conceito de um ser
não contingente faz sentido. Se um conceito é inteligível, o conceito de
uma coisa que não cai sob o conceito é pelo menos prima facie inteligível.
(Digo “pelo menos prima facie inteligível” porque o paradoxo de Russell
ameaça a tese geral. De qualquer modo, escrúpulos russellianos dificil-
mente parecem relevantes no caso em questão. A tese “se o conceito de
um ser contingente é inteligível, o conceito de um ser não contingente
é inteligível” não parece mais implausível do que “se o conceito de um

99
O problema do mal | Peter van Inwagen

ser pensante é inteligível, o conceito de um ser não pensante é inteligí-


vel”). Decerto, do fato de um conceito fazer sentido, não se segue que
ele seja o conceito de alguma coisa possível, que seja metafisicamente
possível para alguma coisa cair sob esse conceito. O conceito de um
método para seccionar qualquer ângulo em três usando apenas esquadro
e compasso faz sentido, mas ele é um conceito impossível. Pode ser que
o conceito de um ser necessário seja um conceito impossível. Mas essa
questão não pertence ao âmbito destas conferências.10 Devemos obser-
var que, se por necessidade conceitual Deus é um ser necessário, a
velha zombaria “mas quem criou Deus?” é conceitualmente defeituosa;
poder-se-ia igualmente perguntar quem criou os números naturais.
(O famoso aforismo de Kronecker, de acordo com o qual Deus criou
os números naturais, não pode ser visto como uma contribuição séria
para a metafísica da criação).
O item final da nossa lista de atributos divinos é este: Deus é

Único (e necessariamente assim).

Ou seja, apenas ele possui em qualquer um dos mundos possíveis


as propriedades que aparecem na nossa lista. Essa é, como dizem os
filósofos, uma asserção modal de re, ou, de modo equivalente, uma asser-
ção que envolve “identidade entre mundos possíveis”. Está bom assim,
suponho. O conceito de Deus (resumindo) é o conceito de um ser que
existe em cada um dos mundos possíveis, que tem nesses mundos os

10
Veja van Inwagen (1977, p. 375-395).

100
A ideia de Deus

atributos em nossa lista, e que é o criador necessário onipotente, onis-


ciente, eterno, imutável e onipresente que existe em todos os mundos
possíveis.
Suponho que alguém poderia objetar quando digo tal coisa ale-
gando que é um anacronismo grosseiro usar a linguagem de mundos
possíveis para descrever os atributos que historicamente têm sido atri-
buídos a Deus nas religiões abraâmicas. Rejeito essa crítica. Falar em
termos de mundos possíveis é simplesmente usar uma versão levemente
mais refinada dos idiomas modais que usamos no dia a dia; e isso é o
que sempre fizeram os filósofos e teólogos que usam conceitos modais
como contingência, necessidade, essência e acidente. Uso um refina-
mento do idioma modal comum que não é igual ao refinamento do
idioma modal comum que, por exemplo, era usado por Duns Scotus,
mas ele é um refinamento do mesmo idioma, e o seu modo de falar e
o meu são traduzíveis entre si, porque cresceram da mesma raiz e não
cresceram muito distantes um do outro. Não nego que estou dizendo
algo controverso (certamente, isso seria colocado em questão por algum
dos meus colegas de departamento em Notre Dame); o meu único
propósito é tornar claro qual é a minha réplica controversa à acusação
de anacronismo. Estaria além do âmbito destas conferências defendê-la.
Volto a atenção para duas questões que prometi responder no
começo desta conferência. A primeira é esta: há algum princípio ou
ideia geral que unifique os atributos da lista que ofereci? (Notem que
ela é, como disse antes, uma lista muito rica). A lista é – como per-
guntei retoricamente – só uma lista casual? Há algo mais do que uma
mistura de acidentes históricos? A resposta é que ela não é uma mera
mistura. Ela representa a tentativa de muitos filósofos – suponho que

101
O problema do mal | Peter van Inwagen

para a maioria deles essa tentativa não era consciente – de oferecer um


conteúdo específico para a noção anselmiana do maior ser possível, algo
em relação a que nada maior pode ser concebido, aliquid quo nihil maius
cogitari possit. Se um argumento para essa tese for exigido, peço que
considere se você pode pensar um atributo que possa ser acrescentado
à lista e tornasse um ser que possuísse os atributos da lista estendida
maior do que um ser que possua só os atributos da lista original. E peço
que considere se há algum atributo da lista que possa ser removido sem
diminuir o grau de grandeza representada pela lista. Parece óbvio que
o maior ser possível tem de ser onipotente – se supomos que a onipo-
tência é uma propriedade possível. Um ser que é capaz de, por exemplo,
criação ex nihilo é – tudo o mais sendo o mesmo – maior do que um ser
cujos poderes não chegam à criação ex nihilo. Um ser necessariamente
existente, um ser que existiria em cada circunstância possível, é – tudo
o mais sendo o mesmo – maior do que um ser contingente, um ser
que poderia não existir. E assim por diante para cada atributo da lista.
E o que poderia ser acrescentado à lista que tornasse a “grandeza ainda
maior”? Não consigo ver nada que poderia ser acrescentado à lista a fim
de tornar a grandeza ainda maior. Ao fazer essa afirmação, não quero
sugerir que nossa lista contenha todas as propriedades de Deus que
são relevantes para o grau de grandeza que ele possui. Sem dúvida, há
propriedades engrandecedoras de Deus que nenhum ser humano – ou
talvez nenhum anjo, ou mesmo nenhum ser criado possível – poderia
formar a menor ideia. E não digo que se possa afirmar que a lista con-
tenha todas as propriedades engrandecedoras que os seres humanos
podem conceber. A minha definição de ‘Deus’, como qualquer outra
definição, não é uma lista de todas as propriedades importantes, ou

102
A ideia de Deus

mesmo de todas as propriedades essenciais importantes, de uma coisa que


cai sob o conceito cujo conteúdo ela apresenta. Se defino “gato” como
um quadrúpede pequeno, gracioso e peludo do gênero Felis, não assumo
que a minha definição seja uma enumeração de todas as propriedades
essenciais dos gatos; e se chego a tanto, obviamente devo estar errado,
pois, por exemplo, todos os gatos têm essencialmente a propriedade
de ter uma estrutura química corporal baseada no carbono, e a minha
definição não diz nada sobre isso.
A segunda questão é esta: em que medida a lista é “flexível”? Em
que medida uma pessoa que se diz teísta pode modificar a lista (ou
modificar as definições e explicações que ofereci dos itens na lista) e
ainda corretamente chamar a si mesma de teísta? Penso que há certa
flexibilidade no que disse, porém não muita, e que a linha entre “ter
uma concepção diferente de Deus daquela exprimida na lista” e “usar
o termo ‘Deus’ para nomear um ser que não é propriamente chamado
assim” pode ser traçada justamente. Vejamos exemplos de alterações
propostas da lista de atributos divinos – algumas delas foram efetiva-
mente propostas, porém não cito nomes para não ter a responsabilidade
de apresentar corretamente o pensamento de um autor em particular;
considere que o meu único interesse é apresentar casos que ilustram um
determinado ponto – que caem nos dois lados dessa linha.

1) A propriedade de existir necessariamente é impossível. Portanto,


estamos, como diz Whitehead, prestando uma honraria meta-
física má concebida se atribuirmos a Deus essa propriedade.
Substituamos “existe necessariamente” por “existe a se”. Um ser
existe necessariamente se existe em todos os mundos possíveis

103
O problema do mal | Peter van Inwagen

– portanto, um ser necessário é impossível, pois, como assinalou


Hume, podemos facilmente conceber que nada existe. Mas a
realidade de um ser cuja existência é a se é consistente com a
possibilidade de nada existir.
2) Se Deus é onipotente, o problema do mal é intratável. Logo,
devemos entender que os poderes de Deus são severamente
limitados.

Em minha opinião, o teísta que propõe a primeira dessas alterações


tem sucesso em dizer que Deus não existe necessariamente, contra-
riamente ao que outras pessoas supuseram. Penso que ele está errado
– pois não penso que a existência necessária seja impossível –, mas não
acredito que o que ele diz seja conceitualmente defeituoso. O segundo
caso é diferente. Nas palavras do inarticulado juiz de J. L. Austin, o
sujeito nem sequer sabe do que fala. Digo que uma pessoa que afirma
que Deus é um ser de “poderes severamente limitados” não se refere a
nenhuma coisa – mesmo se assumirmos que Deus existe. Nenhum ser
com poderes severamente limitados poderia ser Deus, poderia cair sob
o conceito propriamente exprimido pela palavra “Deus”; nem mesmo
se esse ser fosse o maior ser que de fato existisse e tivesse criado os céus
e a terra e todas as coisas além dele mesmo.
Por que traço a divisória de tal modo que a pessoa no meu primeiro
exemplo usa o conceito “Deus” propriamente e a segunda não o faz?
A razão é que a pessoa no meu primeiro exemplo é, por assim dizer, leal
à ideia de Deus como o maior ser possível, e a pessoa do meu segundo
exemplo não é tão leal assim. Compare a negação da atribuição de
onipotência a Deus no segundo exemplo com o caso daquele teísta que,

104
A ideia de Deus

impressionado pelo Paradoxo da Pedra – “Deus pode criar um pedra tão


pesada que ele não pode levantá-la?” –, decide que a onipotência é uma
propriedade impossível. E suponha que esse teísta acredite que há um
grau de poder máximo possível, que ele define com cuidado e chama de
“semionipotência”. Ele então substitui a “onipotência” na lista original
pela “semionipotência”, e deixa o restante inalterado. Penso que essa
pessoa seja bem sucedida ao se referir a Deus quando diz que “Deus não
é onipotente, mas sim semionipotente” – porque ela também é leal à
ideia de Deus como o maior ser possível. Penso que a afirmação de que
a onipotência é uma propriedade impossível é um erro metafísico e que
a afirmação de que essa conclusão pode ser provada por um argumento
baseado no Paradoxo da Pedra é um erro lógico. E penso que o teísta que
pensa que a existência necessária é impossível cai em um erro metafísico
ao pensar desse modo e cai em um erro lógico ao pensar que isso pode
ser provado por um argumento humiano baseado na ideia de que o que
é concebível implica o que é possível. Mas o meu desacordo com essas
pessoas vai até aqui. Não as acuso de ter entendido errado o conceito
de Deus; elas têm o conceito certo – o conceito de um único ocupante
do posto “não é ultrapassado em grandeza por qualquer ser possível”.
Teístas que decidem que Deus não é onipotente simplesmente porque,
do ponto de vista deles, o fato do mal é inconsistente com a existência
de um ser bom e onipotente, e que não dizem que um ser onipotente é
intrinsicamente impossível, não dão a devida atenção à concepção de um
maior ser possível. A posição deles, eu diria, deveria ser colocada nestes
termos: o fato do mal mostra que não há Deus; apesar disso, o mundo
foi criado por um ser benevolente com poderes vastos, mas limitado, um
ser que é imensamente maior do que todos os seres criados. Nós que

105
O problema do mal | Peter van Inwagen

éramos teístas deveríamos “transferir” a esse ser as atitudes e lealdades


que incorretamente dirigíamos ao Deus que pensávamos que existia.
Colocarei minha posição sumariamente do seguinte modo.
No sentido estrito, o conceito de Deus não é o conceito formado pela
conjunção dos atributos que elenquei. No sentido estrito, o conceito
de Deus é o conceito do maior ser possível.11 A lista dos atributos
que ofereci – guiado pela questão “sobre quais características de Deus

11
Mas suponha que alguém mantenha que o maior ser possível não é – ou não seria se exis-
tisse – uma pessoa. (Um neoplatonista, ou mesmo Platão, poderia manter isso, como man-
teria, talvez, Spinoza e os idealistas absolutos britânicos). Penso que aqueles que aceitam a
explicação anselmiana do conceito de Deus como o maior ser possível pressupõem que o
maior ser possível tenha de ser uma pessoa – que obviamente o maior ser possível tenha de
ser uma pessoa. (Eu mesmo diria, sem nenhuma falsa modéstia, que sou maior do que qual-
quer não pessoa possível – simplesmente porque sou uma pessoa). Mas essa pressuposição,
algumas pessoas poderiam dizer, é uma tese metafísica substancial e, portanto, não deveria
ser pressuposta em uma definição. Outras pessoas, eu entre elas, diriam que a pessoalidade
é um componente – não negociável – do conceito de Deus. Os escrúpulos dos dois partidos
poderiam ser acomodados pela seguinte declaração. O conceito de Deus deveria ser enten-
dido deste modo: o conceito de Deus é o conceito de uma pessoa que é o maior ser possível.
(Isso não é o mesmo que dizer que o conceito de Deus é a maior pessoa possível; alguém
poderia manter que há uma maior pessoa possível e que algo não pessoal é maior do que essa
pessoa). A minha tendência é contar como ateísta qualquer um que sustente que o maior
ser possível não é pessoal. Também estaria inclinado a contar a seguinte posição como uma
forma (bastante incomum, certamente) de ateísmo: alguma pessoa (existente) possui – essen-
cialmente – o maior grau de grandeza que é metafisicamente possível e, em outro mundo
possível, outro ser diferente possui esse grau de grandeza. (Portanto, é conceitualmente
possível – o conceito de “ateísta” não exclui essa possibilidade bizarra – haver um ateísta que
acredita que o universo foi criado ex nihilo por um ser onisciente, onipotente e perfeitamente
bom que é o único exemplar dessas características em todos os mundos possíveis em que ele
existe). Em suma: o conceito de Deus é o conceito de uma pessoa cujo grau de grandeza não
pode ser ultrapassado por ou ser equivalente a nenhum outro ser possível. A frase latina de
Anselmo (aliquid quo nihil maius cogitari possit) precisa, pois, ser revisada: Deus é a pessoa
que é aliquid quo nihil amius aut aequaliter magnum cogitari possit. (Agradeço a Christopher
Hughes por me mostrar a necessidade das qualificações contidas nesta nota).

106
A ideia de Deus

concordam os judeus, os cristãos e os muçulmanos?” – é uma tentativa


de dizer como seria o maior ser possível. Essa lista é explicada pelo
fato de que teólogos judeus, cristãos e muçulmanos concordam que o
conceito de Deus é o conceito do maior ser possível (embora nem todos
eles terão tido esse pensamento explicitamente), e representa uma ten-
tativa de oferecer tanto quanto é humanamente possível um conteúdo
específico para a ideia abstrata e geral de “o maior ser possível”. Listas
alternativas dos atributos que pertenceriam ao maior ser concebível
(ou diferentes compreensões dos vários atributos na lista daquelas que
eu ofereci) são possíveis e não apontam para uma tentativa de dar à
palavra “Deus” um sentido diferente do sentido tradicional (isto é, do
seu sentido próprio) – desde que sejam realmente tentativas de oferecer
tanto conteúdo quanto possível para a ideia geral e abstrata do maior
ser possível. Se dois teólogos ou filósofos apresentam listas signifi-
cativamente diferentes dos atributos divinos, isso acontece porque, e
somente porque, eles têm ideias diferente sobre o que é metafisicamente
possível e, por isso, ideias diferentes sobre quais seriam as propriedades
do maior ser metafisicamente possível. (Desse modo, Descartes pode
propriamente acusar-me de cometer um erro metafísico quando digo
que a onipotência no sentido cartesiano é impossível e que, portanto,
não a incluirei em minha lista dos atributos divinos. Ele pode acusar-me
de cometer um erro sobre as propriedades de Deus. O que ele não pode
fazer é me acusar de ter anexado um conceito errado à palavra “Deus”.
Estou em uma posição formalmente idêntica vis-à-vis o filósofo que
afirma que eu deveria substituir por asseidade o atributo da necessidade
em minha lista). Minha posição poderia ser colocada sucintamente deste
modo: se a lista de atributos devesse oferecer uma lista absolutamente

107
O problema do mal | Peter van Inwagen

incontroversa das propriedades que pertenceriam ao conceito de Deus,


ela deveria conter apenas “é o maior ser possível”; listas longas e tradi-
cionais como a lista que ofereci representam tentativas, tentativas que
podem fracassar, de oferecer uma especificação mais ou menos com-
pleta das propriedades acessíveis à razão humana que são acarretadas
por “é o maior ser possível”.
Digo que “podem fracassar”, mas, como as coisas estão, vejo pouca
possibilidade séria de fracasso. Com uma pequena exceção, que mencio-
narei daqui a pouco. Penso que não pode haver uma objeção séria à afir-
mação de que os atributos em minha lista são acarretados por “é o maior
ser possível”. A exceção é esta: na quinta conferência, defenderei que a
definição padrão de onisciência, a definição oferecida nesta conferência,
precisa de revisão, pois, pelos termos da definição, a onisciência não seria
uma propriedade possível se os seres humanos tiverem livre-arbítrio.
Mas tratarei dos dois atributos divinos mais intimamente conectados
com o argumento do mal – a onipotência e a perfeição moral – como
componentes “não negociáveis” do conceito de Deus. (E adotarei uma
atitude intransigente similar em relação à onipresença, que aparecerá
em nossa discussão da “ocultação divina”). Ou seja, excluirei qualquer
tentativa de responder ao argumento do mal que coloque restrições ao
poder de Deus ou que de algum modo tente qualificar a sua perfeição
moral. Farei isso porque encaro a onipotência e a bondade perfeita como
obviamente acarretadas pela ideia do maior ser possível.
Acredito que tenha explicado com o devido detalhe, exatamente
no sentido relevante, o conteúdo do conceito de “Deus” – ou a minha
explicação desse conteúdo foi ao menos um bom começo. (Pode ser
que se queira acrescentar atributos à minha lista. Por exemplo, o que

108
A ideia de Deus

dizer da beneficência? Sem dúvida, essa propriedade tem uma conexão


com a perfeição moral, mas a beneficência não é obviamente acar-
retada pela perfeição moral. O que dizer da liberdade? – embora eu
tenha afirmado a liberdade de Deus em minha discussão do atributo
de “criador”, a “liberdade” não é um dos itens em minha lista de atri-
butos. E o amor? João não nos diz que Deus é amor? E o amor não é
um candidato plausível para um atributo de um aliquod quo nihil maius
cogitari possit? A princípio, não tenho nada a objetar se alguém quiser
acrescentar propriedades à minha lista, desde que elas sejam consistentes
com as outras propriedades já mencionadas aqui. Obviamente, gostaria
de dar uma olhada cuidadosa em cada candidato à admissão). Estou
principalmente interessado nestas conferências em um argumento cuja
conclusão é que não há um ser onipotente e moralmente perfeito, uma
conclusão que imediatamente acarreta que Deus não existe. Como disse
repetidamente, a minha posição é que esse argumento, o argumento
do mal, é um fracasso. Mas o que significa dizer isso? Como um argu-
mento filosófico fracassa? Tentarei responder essa questão na terceira
conferência. Nas conferências 4-7, tentarei mostrar que o argumento
do mal fracassa no sentido que explicarei na conferência 3.

109
CONFERÊNCIA 3
O fracasso filosófico

Na conferência anterior, disse que a minha intenção geral é defender


a conclusão de que o argumento do mal é um fracasso. O meu propó-
sito agora é explicar o que quer dizer chamar esse ou qualquer outro
argumento filosófico de fracasso.
Vamos, pois, entrar no tópico deprimente do fracasso filosófico.
Espero que a maioria dos filósofos acredite que ao menos um argumento
filosófico conhecido seja um fracasso. Mas o que os filósofos querem
dizer, ou o que eles deveriam querer dizer, quando chamam um argu-
mento filosófico de “fracasso”? Começo a minha tentativa de responder
a essa questão com uma observação sobre a natureza dos argumentos
filosóficos. Os argumentos filosóficos não devem ser vistos como partes
soltas de texto – como talvez as provas matemáticas possam ser vistas.
Uma prova matemática adequada, seja o que for, é no mínimo um
argumento que deveria convencer qualquer pessoa que possa seguir a
prova da verdade da sua conclusão. Não devemos pensar que os argu-
mentos filosóficos sejam assim. (A ideia de que podemos pensar desse
modo foi amavelmente ridicularizada por Robert Nozick quando ele
disse que, na juventude, pensou que o argumento filosófico ideal era
aquele que tinha a seguinte propriedade: alguém que entendesse as
suas premissas e não aceitasse a sua conclusão morreria). A ideia de
que há provas na filosofia, assim como há na matemática, é ridícula, ou
algo não muito longe disso; apesar disso, trata-se de uma ideia quase
O problema do mal | Peter van Inwagen

irresistível. Há pouco – quero dizer, fiz isso quando estava sentado no


meu escritório escrevendo essas palavras – escolhi de modo fortuito
um volume de metafísica entre os livros das minhas estantes e abri ao
acaso. Encontrei as seguintes passagens:

É melhor adiar tanto quanto possível a admissão de


elementos elusivos e opacos ao entendimento [tal como
a Matéria-Prima de Aristóteles ou o substratum de Locke]
em nossa ontologia... Para evitar esses elementos, temos
de negar que algum elemento não qualitativo deve ser
encontrado na estrutura ontológica de um indivíduo.

Notem aqui a palavra “temos”. O autor escreve como se tivesse


estabelecido a conclusão de que, se alguém encara as propriedades
de indivíduos materiais como universais, essa pessoa tem ou de acei-
tar a existência de “elementos elusivos e opacos ao entendimento” ou
aceitar uma teoria do feixe para explicar a natureza desses indivíduos.
Se você disser que pode oferecer um exemplo mais claro de um filósofo
que acredita que provou algo que tenha interesse filosófico, lembrarei
a você que eu realmente encontrei essas palavras em uma página esco-
lhida ao acaso (e se você reconhecer a passagem e pensar que quero
criticar o autor, lembrarei a você da mesma coisa). Entendo que essas
palavras são exemplos de algo absolutamente típico em textos filosó-
ficos. Todos nós escrevemos assim. Não temos outro jeito de escrever
– pelo menos não quando defendemos uma conclusão. Estas conferên-
cias mesmas oferecerão um fundo, ou até uma pletora, de exemplos da
própria concepção de argumento filosófico que busco ressaltar agora.

112
O fracasso filosófico

Essa concepção de argumento filosófico é uma “ideia quase irresistível”


porque ela é inerente ao modo como nós filósofos aprendemos a fazer
filosofia – não que eu tenha um modo alternativo de fazer filosofia para
recomendar. Afinal, somos filósofos. Bajulamo-nos dizendo que não
fazemos simples afirmações: fazemos mais do que isso, nós argumen-
tamos. Argumentar é avançar razões para acreditar em alguma coisa.
E qual seria o propósito de avançar razões para acreditar em alguma
coisa se essas razões não forem conclusivas? Que essa questão retórica
represente o modo como pensamos, ou o modo como muitas vezes
pensamos, é implicado pelo modo como tratamos as razões que apre-
sentamos. Quando escrevemos, as razões que apresentamos aos nossos
leitores parecem geralmente conclusivas para nós quando as avança-
mos – isso se mostra pelo fato de que geralmente não qualificamos
imediatamente as nossas razões para a aceitação de teses filosóficas com
alguma variante de “mas obviamente essas considerações são meramente
sugestivas, não conclusivas”.
Mas se argumentos na filosofia não têm o caráter invejável de indis-
putabilidade da prova matemática, quão bom eles serão? Há sucesso e
fracasso na argumentação filosófica? Se os argumentos filosóficos não
são provas, o que se quer dizer quando se diz que são bem-sucedidos
ou que falham? O que eu quero dizer quando afirmo que o argumento
que examinarei nestas conferências, o argumento do mal, é um fracasso?
Vamos considerar um exemplo. Suponha que alguém ofereça um
argumento para uma tese filosófica – ele pode ser um argumento para
a existência de Deus, ou para a não existência de universais, ou para a
impossibilidade da linguagem privada. Vamos entender que ele seja um
argumento para a existência de Deus. Como esse argumento poderia ser

113
O problema do mal | Peter van Inwagen

bem-sucedido ou ser um fracasso? Eis uma sugestão que encontrei no


God and other minds de Alvin Plantinga. (Não quero sugerir que Plan-
tinga endosse a sugestão). O argumento é um sucesso se começa com
premissas que quase nenhuma pessoa sã e racional duvida, e procede
por passos lógicos, cuja validade quase nenhuma pessoa sã e racional
iria contestar, até a conclusão de que Deus existe. De outro modo, ele é
um fracasso. (Digo “quase nenhuma pessoa sã e racional” por causa de
casos como este: a Primeira Via de Aquino começa com a premissa de
que algumas coisas se movem. Zenão nega que algo se mova. Não quero
dizer que o argumento de Aquino seja um fracasso, que ele seja malsu-
cedido, simplesmente porque assumiu sem argumento que o movimento
era uma característica real do mundo. E também não diria que Zenão
fosse insano ou irracional).
Só há um problema com esse padrão de sucesso filosófico: se ele
fosse aceito, quase nenhum argumento para uma tese filosófica substan-
cial contaria como um sucesso. (Digo “tese filosófica substancial” porque
concedo que há teses filosóficas menores – como a tese de que o conhe-
cimento não é simplesmente crença verdadeira justificada – para as quais
há argumentos que convenceriam qualquer pessoa racional. Chamo essa
tese de menor não porque o problema da análise do conhecimento não
seja importante, mas precisamente porque a tese não apresenta uma
análise de conhecimento; sua mensagem é apenas que uma determinada
análise fracassa. Ou suponha, como muitos supuseram, que os resul-
tados de incompletude de Gödel mostrem que os formalistas estavam
errados quanto à natureza da matemática. A tese de que o formalismo
é falso pode até ser uma tese filosófica importante, porém a importân-
cia dela deve-se ao fato de que muitas pessoas haviam pensado que o

114
O fracasso filosófico

formalismo era verdadeiro. Ela não é uma tese filosófica substancial do


mesmo modo que o formalismo é uma tese substancial. Estou inclinado
a pensar que a maioria das teses filosóficas para as quais há um argu-
mento bem-sucedido pelo padrão que estamos considerando são desse
tipo geral, teses que estabelecem que uma certa análise não funciona, ou
que uma generalização plausível tem exceções, ou que um argumento é
uma falácia lógica.) Se houvesse um argumento para uma tese filosófica
substancial que fosse um sucesso por aquele padrão, haveria uma tese
filosófica substancial tal que cada filósofo que rejeitasse a tese estaria
desinformado – não estaria ciente da existência de um certo argumento
– ou seria irracional ou louco. Há uma tese assim? Bem, eu pensava que
a tese de Church (uma tese em filosofia da matemática pouco conhecida
– tem a ver com oferecer uma definição matematicamente precisa de
um certo conceito intuitivo importante) poderia ser provada por uma
argumento que fosse bem-sucedido pelos padrões que consideramos.
Então descobri que pelo menos uma autoridade importante (László
Kalmár) tinha dúvidas sobre o caráter cogente do argumento que eu
julgava tão impressionante e estava de fato inclinado a pensar que a
tese de Church era falsa.1 Visto que eu não estava disposto a supor que
Kalmár era louco ou irracional, mudei de opinião. “De volta à estaca
zero”, pensei então. (Seja como for, a tese de Church pode ser vista com
um caso limítrofe de tese filosófica substancial).

1
KALMÁR, László. An Argument against the Plausibility of Church’s Thesis. In: HEYTING
(Ed.) 1957, p. 72-80. [O assunto é muito técnico e não é importante para a continuação
da leitura deste livro, mas o leitor interessado pode consultar: CARNIELLI; EPSTEIN.
Computabilidde, funções computáveis, lógica e os fundamentos da Matemática. São Paulo: Unesp,
2005 (N.T.)]

115
O problema do mal | Peter van Inwagen

A explicação do sucesso filosófico que examinamos coloca a barra


muito alta. Proponho abaixá-la relativizando o sucesso da argumentação
filosófica a um contexto. Eu disse há pouco que “argumentos filosóficos
não devem ser encarados como partes soltas de texto”. Com “soltas”
quero dizer “destacadas de qualquer contexto” – ou seja, quero dizer
que um argumento filosófico só deveria ser avaliado em relação às
várias circunstâncias em que ele poderia ser oferecido. Mencionarei
dois modos em que o sucesso ou o fracasso de um argumento filosófico
pode depender de contexto.
Em primeiro lugar, se um argumento deve ser considerado
bem-sucedido ou um fracasso, pode depender do propósito do filósofo
que oferece o argumento. Ele quer, por exemplo, converter a audiência
à sua conclusão? Não é sempre o caso que o propósito de um filósofo
ao oferecer um argumento seja converter. O filósofo pode francamente
admitir que é improvável convencer muitas pessoas a aceitar as suas
conclusões por meio do argumento que oferece – e não necessariamente
porque pensa que a maioria das pessoas é louca ou estúpida ou “se sente
logicamente desafiada” ou está apegada irracionalmente a uma visão
falsa do mundo. Talvez ele pense que a conclusão do argumento está em
uma área em que é muito difícil chegar a uma conclusão certa – e isso
se deve, nas palavras de Xenófanes (creio), à obscuridade da questão
ou à brevidade da vida humana. E mesmo assim o filósofo pode pen-
sar que ofereceu um o argumento muito bom. (Essa é a atitude que
tento, aparentemente sem sucesso muito evidente, cultivar em relação
aos argumentos que eu particularmente admiro). Para considerar um
tipo diferente de exemplo, há filósofos que dispensaram muito tempo
e energia com argumentos que levam a conclusões que quase todas as

116
O fracasso filosófico

pessoas aceitariam de qualquer modo. Argumentos para a existência


do mundo externo, para a existência de outras mentes, para a possibili-
dade matemática ou física de um corredor alcançar o outro... Presumo
que o propósito desses filósofos não é aumentar o número de pessoas
que aceitam as conclusões desses argumentos. (Ele não é nem mesmo
necessariamente oferecer uma base racional para coisas que as pessoas
até aqui acreditaram sem uma base racional. A minha esposa é uma
das pessoas que nem mesmo vê o porquê, evidente como é para nós
filósofos, de discutir os paradoxos de Zenão, e que, por essa razão,
jamais leu Salmon ou Grünbaum ou qualquer outro autor que escreveu
sobre esse assunto. Contudo, tenho minhas dúvidas se a crença dela
de que é possível para um corredor alcançar o outro – e estou certo
de que ela acredita nisso, embora, de fato, nunca tenha perguntado tal
coisa a ela – seria realmente um mero preconceito que carece de qual-
quer fundamento racional).
Agora o segundo tipo de consideração que ofereço para apoiar
a tese de que o sucesso de um argumento filosófico deveria ser visto
como relativo a contextos. Mesmo se o propósito de um filósofo ao
argumentar seja converter a audiência à conclusão do seu argumento, o
tipo de argumento que é melhor para realizar esse propósito dependerá
de várias características dessa audiência. Um exemplo trivial seria este:
a apresentação da Primeira Via de Aquino é adequada para uma audi-
ência de pessoas que têm crenças normais sobre a realidade do movi-
mento, mas ela não é adequada para uma audiência formada por eleátas.
Em relação à apresentação de argumentos em filosofia ou em qualquer
outro campo, parece ser bastante razoável adotar o seguinte princípio.
Suponha que uma pessoa apresente a certa audiência um argumento

117
O problema do mal | Peter van Inwagen

para a tese q, e que p seja uma das premissas do argumento; se pensar


que p é verdadeiro e for razoável supor que a sua audiência irá concordar
com a verdade de p, então ela não tem de apresentar um argumento a
favor de p – nem mesmo se souber que existem filósofos, filósofos de
uma escola não representada em sua audiência, que negam p. Poucas
obras de filosofia política começam com a refutação do solipsismo.
Vamos recuar um pouco e perguntar como essas reflexões muito
abstratas devem ser aplicadas. Como vejo a aplicação delas? Que uso
proponho fazer da ideia de que as questões sobre o sucesso de um argu-
mento deveriam ser colocados de tal modo a levar em conta o contexto
no qual o argumento é apresentado? Nestas conferências, um modo de
aplicar essa ideia seria perguntar a mim mesmo que premissas do argu-
mento que proponho examinar – o argumento do mal – poderiam ser
duvidosas para a minha audiência atual [o leitor]. Mas realmente não
sei muito sobre você e, mesmo se soubesse, não gostaria de apresentar
argumentos que fossem tão cuidadosamente ajustados às suas crenças
e preconcepções que eles poderiam ser efetivos só nesta companhia –
mesmo que ela seja especial. Estou inclinado, em vez disso, a dirigir os
meus esforços a uma meta mais geral e mais abstrata. Tentarei descre-
ver essa meta geral. Ela é mais ou menos a seguinte: perguntar a mim
mesmo que premissas do argumento do mal poderiam ser duvidosas
para os membros de uma audiência ideal – uma audiência formada por
pessoas cujas naturezas são sugeridas por aquele “observador ideal” ao
qual certas teorias éticas apelam. Contudo, ao tentar, em minha própria
mente, detalhar essa ideia, pareceu-me necessário considerar não só uma
audiência ideal, mas também uma apresentação ideal de um argumento
para essa audiência. Penso que o conceito de uma apresentação ideal

118
O fracasso filosófico

de um argumento é mais bem explicado com a suposição de que esse


argumento é apresentado no contexto de um debate ideal.
Vamos considerar primeiro o que seja um debate, pois há mais
de um modo de entender essa ideia. Quando os filósofos pensam em
um debate – ao menos é isso o que a minha experiência com filósofos
mostra –, eles usualmente pensam em duas pessoas, geralmente dois
filósofos, argumentando entre si. Nesse modelo, um debate compreende
duas pessoas que sustentam posições opostas sobre alguma questão espe-
cífica, cada uma delas buscando convencer a outra da sua própria posição
– e cada uma delas buscando evitar que ela mesma seja convencida da
posição da outra. Assim, um debate sobre a realidade dos universais, por
exemplo, seria mais ou menos assim: Norma, a nominalista, e Ronald,
o realista, estão engajados em uma troca de argumentos; o propósito
de Norma nessa troca é tornar Ronald um nominalista (e, obviamente,
impedir que Ronald a torne uma realista), e o propósito de Ronald é
tornar Norma uma realista (e, obviamente, impedir que Norma o torne
um nominalista). Esse modelo de debate sugere uma definição do que
conta para o sucesso de um argumento filosófico. Um argumento bem-
-sucedido a favor do nominalismo seria um argumento que um nomi-
nalista poderia usar para convencer um realista a aceitar o nominalismo
– e um argumento bem-sucedido a favor do realismo seria entendido
de forma parecida. Mas como entenderemos a generalidade implicada
pelas expressões “um nominalista” e “um realista”? Talvez possamos
tornar essa generalidade mais explícita e, portanto, mais clara, dizendo
o seguinte: um argumento bem-sucedido a favor do nominalismo seria
um argumento que qualquer nominalista ideal poderia usar para con-
vencer qualquer realista ideal a aceitar o nominalismo. Por nominalistas

119
O problema do mal | Peter van Inwagen

ideais entendo os nominalistas que satisfazem as seguintes condições,


ou algo que poderia ser obtido dessas condições por uma quantidade
mínima de modificações e ajustes de detalhe:
Nominalistas ideais têm a maior inteligência possível e o maior grau
de perspicácia filosófica e lógica; eles são intelectualmente honestos no
seguinte sentido: quando consideram um argumento para alguma tese,
eles fazem o melhor que podem para entender o argumento e avaliá-lo
de modo não passional.
Nominalistas ideais têm tempo ilimitado à disposição e são mais
pacientes do que o normal; estão dispostos a defender a própria posição
durante todo o tempo que for preciso, e se os seus oponentes pensam
que é necessário fazer alguma longa digressão em uma área cuja rele-
vância para o debate não é imediatamente evidente, eles irão cooperar.
(E os realistas ideais compartilham essas características com os
nominalistas ideais). Um argumento bem-sucedido para o nomina-
lismo, eu disse, seria um argumento que qualquer nominalista ideal
poderia usar para convencer um realista ideal a aceitar o nominalismo
– “poderia” no sentido em que, dados uma sala silenciosa e confortável
com quadro negro, giz e tempo suficiente, um nominalista ideal, usando
o argumento, poderia, no fim, convencer o realista ideal a aceitar o
nominalismo; ao fim da apresentação do argumento, o outrora rea-
lista teria de dizer “Tudo bem, desisto. O argumento é irretorquível.
Não há universais”. Há pouco, examinei e rejeitei a ideia de que um
argumento filosófico bem-sucedido seria um argumento cuja conclu-
são seria inferida de premissas indubitáveis por passos lógicos indis-
cutivelmente válidos. Qualquer argumento para o nominalismo que
fosse bem-sucedido de acordo com os termos desse critério rigoroso

120
O fracasso filosófico

teria o poder de convencer um realista ideal a aceitar o nominalismo.


É interessante investigar se haveria, ou poderia haver, um argumento que
convencesse qualquer realista ideal a aceitar o nominalismo, mas que não
procedesse por passos indiscutivelmente válidos a partir de premissas
indubitáveis até a sua conclusão. Não avançarei nessa direção, visto que
não irei identificar o sucesso de um argumento filosófico com o poder
de infalivelmente convencer um oponente ideal da posição para a qual
se argumenta. Minha razão para rejeitar tal identificação é a mesma
razão para rejeitar a primeira proposta de explicação do sucesso e do
fracasso filosóficos. Penso que é implausível supor que o nominalismo,
ou qualquer outra tese filosófica importante, possa ser apoiado por um
argumento com esse tipo de poder. Duvido que qualquer argumento, ou
qualquer conjunto de argumentos independentes para uma conclusão
filosófica substancial tenha o poder de convencer um oponente obsti-
nado, mesmo que ele seja racional, a aceitar essa conclusão.
Obviamente, não posso falar de argumentos desconhecidos, argu-
mentos que não conhecemos, os argumentos da filosofia do século
XXIV. Mas duvido que algum argumento até aqui descoberto pelos
filósofos tenha o poder de convencer alguma pessoa idealmente racional
e idealmente paciente da verdade de alguma tese filosófica substancial.
Embora os filósofos ideais e as circunstâncias ideais do debate que ima-
ginei não existam, aproximações razoáveis delas existiram várias vezes
em diferentes lugares e os resultados registrados do debate filosófico
parecem (ao menos a mim) depor contra a tese de que algum argumento
tenha esse tipo de poder.
Consideremos agora outra sugestão do modo como caracterizar
o sucesso de uma argumentação filosófica, uma sugestão baseada em

121
O problema do mal | Peter van Inwagen

outro modelo de debate. Não vamos pensar que um debate é uma situ-
ação envolvendo duas pessoas com opiniões opostas na qual cada uma
delas tenta convencer a outra a aceitar a sua própria opinião. Vamos
pensar no debate conforme um modelo forense. Nesse modelo, dois
representantes de posições opostas estão engajados em uma troca de
argumentos perante uma audiência, e o propósito de cada um deles não
é convencer o outro, mas, sim, convencer a audiência – uma audiência
formada de indivíduos que (em princípio) não estão comprometidos
com nenhuma das posições, embora encarem a questão “Qual das duas
posições é correta?” como uma questão interessante e importante. Essa
situação será igualmente considerada em sua forma ideal. Mantemos a
idealização dos dois debatedores e a idealização das circunstâncias do
debate concebidas na descrição do primeiro modelo.
A audiência é composta por pessoas que podemos chamar de agnós-
ticas, ou melhor, agnósticas em relação ao tópico do debate. Se o debate
versa sobre o nominalismo e o realismo (vamos continuar a usar esse
famoso debate como exemplo), cada membro da audiência não terá
uma opinião sobre haver ou não universais, e nenhuma predileção, emo-
cional ou de outro tipo qualquer, pelo nominalismo ou pelo realismo.
Em relação à tendência de aceitar uma resposta ou outra, eles verão a
questão sobre a existência dos universais como você vê o problema de
saber se o número dos abetos de Douglas no Canadá é par ou ímpar.
Mas isso não é tudo, pois sem dúvida você não tem nenhum desejo
de ver resolvida de uma vez por todas a questão sobre o número de
abetos. Os meus agnósticos não pensam assim em relação à questão
sobre a existência de universais. Eles gostariam muito de chegar a uma
opinião bem fundada sobre a existência de universais – e, de fato, caso

122
O fracasso filosófico

seja possível, gostariam de chegar ao conhecimento sobre a existência


ou não de universais. Eles não se importam com qual das duas posições,
nominalismo ou realismo, acabarão por aceitar, mas querem muito optar
por uma delas. Obviamente, atribuímos a eles o mesmo tempo livre
ilimitado e a mesma paciência sobre-humana que previamente atribu-
ímos à nossa nominalista ideal e ao nosso realista ideal – e igualmente
a mesma inteligência e alto grau de perspicácia lógica e filosófica, além
da honestidade intelectual.
Um argumento para o nominalismo será bem-sucedido – essa é
a minha proposta – se, e somente se, um nominalista ideal puder usá-lo
para convencer, convencer no final, uma audiência ideal de agnósticos
(a respeito da existência de universais) a aceitar o nominalismo. Obvia-
mente, estipula-se que o convencimento se dê nestas circunstâncias:
um realista ideal está presente durante a tentativa do nominalista de
convencer os agnósticos e empregará todos os meios racionais possí-
veis, em cada uma das etapas do debate, para bloquear a tentativa de
convencimento do nominalista.
Um pouco de reflexão irá mostrar que, nesse ponto de debate, o
nominalista tem, pelo menos formalmente, uma tarefa mais exigente
do que tem o realista. Por um lado, o nominalista tem de convencer os
agnósticos de que o seu argumento – o argumento cuja eficácia está
sendo testada – é válido e sólido. Por outro, o realista (o advogado de
defesa, pois o realismo está sendo julgado) precisa apenas lançar dúvidas
ou sobre a validade ou sobre a solidez do argumento. Ou melhor: ele
precisa apenas lançar dúvidas sobre a solidez do argumento. A questão
da validade do argumento pode ser eliminada por meio da considera-
ção de um fato óbvio: a validade formal custa muito pouco, ela sempre

123
O problema do mal | Peter van Inwagen

pode ser comprada com premissas adicionais. Portanto, vamos imaginar


que todos os argumentos que examinaremos são formalmente váli-
dos (se eles não forem válidos inicialmente, eles podem ser tornados
válidos com a adição de premissas adicionais adequadas), e o debate
é inteiramente sobre o valor de verdade das premissas do argumento
– ou, de modo mais provável, sobre o valor de verdade de alguma das
premissas do argumento. Então a tarefa do nominalista é convencer os
agnósticos de que todas as premissas do argumento são verdadeiras,
e a tarefa do realista é convencer o júri de agnósticos a dar um “vere-
dito escocês” – “não provado” – sobre uma ou mais dessas premissas.
Entendo que esse critério para o sucesso da argumentação filosófica é
perfeitamente geral e deve valer para argumentos a favor de qualquer
conclusão filosófica (controversa).
Encarar um “debate” nesses termos tem vantagens sobre encarar
um “debate” como uma situação em que dois filósofos trocam argu-
mentos e cada um tenta convencer o outro da sua própria posição.
Uma definição de sucesso filosófico baseada neste último modelo de
debate permitiria que poucos argumentos, se é que permite algum,
contassem como bem-sucedidos. Um argumento para a tese p con-
taria como bem-sucedido somente se um debatedor ideal realizasse
uma tarefa realmente muito difícil: convencer um crente determinado e
comprometido com a negação de p a acreditar em p apresentando a ele
ou ela esse argumento. Para voltar ao exemplo que venho usando, um
argumento para o nominalismo contaria como bem-sucedido somente
se um nominalista ideal convencesse um realista a aceitar o nominalismo
por meio desse argumento. Todavia, conforme a explicação de sucesso
que proponho, um argumento bem-sucedido para o nominalismo só

124
O fracasso filosófico

precisa ter o poder de convencer aqueles que não aceitam o nominalismo


e nem o realismo (e não têm predileção inicial por nenhuma dessas
teses) a aceitar o nominalismo – certamente uma tarefa mais fácil, uma
tarefa que é mais plausível supor que possa ser efetivamente realizada.
Outro ponto importante é que, no modelo do debate que endossei,
a nominalista Norma não precisa se preocupar se o realista Ronald
aceitará ou não as suas premissas. Ela é livre para empregar qualquer
premissa que ela sabe que Ronald irá rejeitar; sua única preocupação é se
a audiência de agnósticos aceitará essas premissas. Por exemplo, suponha
que Norma use a seguinte premissa: “Só podemos ter conhecimento das
coisas que podem ter influência causal sobre nós”. Pode ser que nenhum
realista, certamente nenhum realista que tenha considerado a questão a
fundo, aceitará essa premissa. Se Norma tentasse usar essa premissa em
um debate do primeiro tipo, em uma tentativa de converter o realista
Ronald ao nominalismo, provavelmente ele diria: “Ora, obviamente,
não aceito essa premissa; ela é uma petição de princípio, pois supõe a
falsidade da minha posição”. Mas em um debate concebido no modelo
forense, ele não pode dar essa resposta, pela simples razão de que o que
ele pensa é de certo modo irrelevante para a lógica do debate. Se pensar
que é um erro aceitar essa premissa, será inútil simplesmente dizer à
audiência que nenhum realista aceitaria esse princípio e que ele supõe
a falsidade do realismo. Ele terá de tentar convencer os agnósticos de
que eles deveriam rejeitar, ou pelo menos não aceitar, essa premissa.

125
O problema do mal | Peter van Inwagen

A menção da noção de “petição de princípio” traz à mente um


conceito intimamente relacionado, o conceito de “ônus da prova”.2
Quem tem o ônus da prova em um debate filosófico? Em um debate
do tipo que imaginamos, a resposta é muito clara – de fato, trivial.
O ônus da prova é de quem tenta provar algo a alguém. Se Norma
tenta convencer os agnósticos a aceitar o nominalismo, é ela quem
tenta provar algo a alguém: ela tenta provar aos agnósticos que não há

2
Os filósofos muitas vezes usam a expressão “o ônus da prova” de um modo ilustrado nesta
sentença: “O ônus da prova é do realista, e não do nominalista”. Essa sentença, até onde
vejo, parece significar, ou é usada para dizer, algo como: “O nominalismo e o realismo são
teses inconsistentes; o realismo é prima facie muito menos plausível do que o nominalismo;
portanto, na ausência de prova (ou pelo menos de um argumento bastante cogente a favor)
do realismo, toda a gente deve preferir o nominalismo ao realismo”. Chamarei esse sentido
(talvez de maneira tendenciosa) de Sentido Inútil e Vulgar de “o ônus da prova”. O Sentido
Próprio e Correto da expressão é ilustrado nesta sentença: “Nas cortes de justiça, o ônus da
prova cabe ao Estado”. Quer dizer, na corte de justiça, o Estado tem o ônus chamado de
“prova” ou “ter de provar coisas” e a defesa não tem esse ônus. Esse é o caso não porque uma
proposição como “o réu é culpado do que foi acusado” é sempre inerentemente menos plausível
do que a sua negação (afinal, esse não é sempre o caso). Esse é o caso devido a uma regra
que tem um fundamento moral e não epistemológico: a corte presume que o acusado seja
inocente até que seja provado culpado – e, em um julgamento envolvendo um júri popular,
a corte instrui aos jurados para presumir o mesmo. Em nosso debate imaginário sobre a
existência de Deus (na parte em que aparece nestas conferências, a parte em que a Ateísta
busca tornar os agnósticos camaradas ateístas apresentando-lhes o argumento do mal), o
ônus chamado de “prova” é da Ateísta – e, como é o caso do advogado de acusação na corte
de justiça, esse é o caso não porque a proposição seja inerentemente menos plausível do que
a sua negação. (Algumas pessoas dirão que é, e outras dirão que não é; seja como for, que a
conclusão do argumento da Ateísta seja menos plausível do que a sua negação, é irrelevante
para determinar quem tem o ônus da prova). Diferentemente das regras que regem os pro-
cedimentos de uma corte de justiça, no entanto, as regras que regem nosso debate não são
fundadas em considerações morais. O ônus da prova, o ônus de ter de provar certas coisas
(ou pelo menos de ter de oferecer argumentos para elas), é da Ateísta e não do Teísta (neste
ponto do debate), porque é ela e não ele quem tem a tarefa de mudar as crenças de alguém.

126
O fracasso filosófico

universais, ou, pelo menos, tenta provar que é mais razoável acreditar
que não há universais do que acreditar que há universais; que tanto
o realismo quanto o agnosticismo são posições indefensáveis e que o
nominalismo é a única posição defensável a respeito da existência de
universais. Ronald, o realista, não tenta (nesse ponto do debate) provar
nada – ou talvez tente provar apenas algo como “A minha oponente não
estabeleceu a verdade da terceira premissa do argumento dela além de
uma dúvida razoável”. Assim, trivialmente, no caso que imaginamos, o
ônus da prova é da nominalista. Obviamente, o juízo seria invertido se
Ronald estivesse tentando convencer os agnósticos a aceitar o realismo,
e a única tarefa de Norma fosse bloquear a tentativa de convencimento.
Você verá que imaginei nosso debate ideal baseado em uma certa divisão
do trabalho, ou melhor, em um certo princípio de organização dialética.
Não imaginei um nominalista e um realista simultaneamente buscando
convencer a audiência das suas respectivas posições. Nesse modo reside
a anarquia. Eu imagino um debate em que cada lado tem o seu próprio
turno. Quando é a vez de Norma, a nominalista, ela tenta convencer
os agnósticos, e o realista Ronald tenta bloquear o convencimento.
Quando é a vez de Ronald, ele tenta convencer os agnósticos, e Norma
tenta bloquear o convencimento. Porém, a fim de avaliar o sucesso de
um argumento filosófico particular, não precisamos considerar os dois
turnos. Se um argumento particular a favor do nominalismo é bem-
-sucedido, essa é uma questão que é respondida pela avaliação de quão
boa é a sua performance durante o turno da nominalista.
Portanto, temos um critério do sucesso filosófico. Um argumento
para p é bem-sucedido somente se, em circunstâncias ideais, ele puder
ser usado para convencer uma audiência de agnósticos ideais (agnósticos

127
O problema do mal | Peter van Inwagen

em relação a p) a acreditar em p – na presença de um oponente ideal


da crença em p. Essa definição tem uma forma contrafactual: ela diz
que um argumento é bem-sucedido se, e somente se, apresentá-lo em
certas circunstâncias tiver certas consequências. Poder-se-ia criticar o
critério com a alegação de que seria muito difícil – ou talvez impossível
– descobrir os valores de verdade das proposições contrafactuais relevan-
tes. A meu ver, isso é essencialmente objetar um critério de sucesso para
argumentos filosóficos dizendo que esse critério tem a consequência
de que seria muito difícil – ou talvez impossível – descobrir se certos
argumentos filosóficos são bem-sucedidos, e ter essa consequência não
parece ser um defeito em um critério de sucesso filosófico.
Tenho de admitir que minha apresentação do critério levanta mui-
tas questões, algumas das quais não posso evitar alegando limitação de
tempo. Uma delas é esta: os meus agnósticos ideais devem ser seleciona-
dos de todos os tempos e culturas – ou, pelo menos, de todos os tempos
e culturas consistentes com o fato de eles serem agnósticos de um tipo
relevante? Não, esses agnósticos devem ser selecionados do nosso tempo
e da nossa cultura; obviamente, limitar assim a seleção do júri relativiza
o nosso critério de sucesso filosófico ao nosso tempo e à nossa cultura,
pois é certamente possível que um argumento que fosse bem sucedido,
digamos, em convencer uma audiência do século XVIII de que o espaço
era infinito não seja bem sucedido com uma audiência formada por
nossos contemporâneos. Um defensor contemporâneo da possibilidade
da finitude do espaço poderia, por exemplo, apontar para o fato de que
muitos cientistas pensam que seja uma possibilidade real que o espaço
seja finito (embora ilimitado), um fato ao qual não se poderia apelar no
século XVIII. E não é paroquial da nossa parte estarmos especialmente

128
O fracasso filosófico

interessados em quais argumentos filosóficos são bem-sucedidos dado o


que sabemos hoje ou, o que é praticamente o mesmo, o que pensamos
que sabemos hoje. Afinal, sabemos muitas coisas de relevância filosófica
que não eram conhecidas na Idade da Razão ou na Idade Média ou na
Antiguidade Clássica. E sabemos que muitas das coisas que as pessoas
naqueles tempos e culturas julgavam que sabiam são falsas – e a falsidade
de muitas delas é de grande relevância filosófica.
Há uma questão importante em relação ao meu critério de sucesso
do argumento filosófico que surge com a restrição do grupo que per-
tence à audiência de agnósticos. Não poderia haver um argumento
que, por assim dizer, fosse absolutamente perfeito e conclusivo aos
olhos de Deus, mas, não obstante, não fosse bem sucedido de acordo
com meu critério por causa de alguma concepção errônea generalizada
em nosso tempo e cultura? (Obviamente, há também a possibilidade
oposta: um argumento poderia convencer a todos os que compartilham
as concepções erradas dos dias atuais, mas ser um fracasso extremo aos
olhos de Deus). As possibilidades são reais, mas, apesar disso, insisto
que o critério é interessante e útil. É interessante estabelecer que um
certo argumento foi bem-sucedido em meu sentido, mesmo se houver
algum sentido platônico profundo em que ele poderia ser um fracasso.
Há ainda uma terceira questão. Não poderia ser o caso que hou-
vesse um argumento para p que fosse bem-sucedido de acordo com o
meu critério e outro argumento, um argumento para a negação de p,
que fosse igualmente bem-sucedido? Essa possibilidade não seria um
embaraço para o meu critério? Um critério de sucesso para argumentos
filosóficos não deveria excluir a priori a possibilidade de haver dois argu-
mentos bem-sucedidos com conclusões que entram em contradição?

129
O problema do mal | Peter van Inwagen

Há realmente essa possibilidade? Há essa possibilidade somente se


supormos que um dos argumentos é desconhecido dos debatedores.
Não há contradição em supor que existe, platonicamente falando, dois
argumentos, N, um argumento para o nominalismo, e R, um argumento
para o realismo, tal que (i) se o nominalista conhecesse N e o realista
não conhecesse R, o nominalista, usando N, seria capaz de conven-
cer os agnósticos a aceitar o nominalismo, a despeito dos melhores
esforços do realista de impedir isso, e (ii) se o realista conhecesse R e
o nominalista não conhecesse N, o realista, usando R, seria capaz de
convencer os agnósticos a aceitar o realismo, a despeito dos melhores
esforços do nominalista de impedir isso. Contudo, a primeira possi-
bilidade desaparece se o realista conhecer R e, do mesmo modo, a
segunda desaparece se o nominalista conhecer N. Considere o primeiro
caso. (Não precisamos considerar o segundo: o que dissermos sobre o
primeiro se aplicará ao segundo). A nominalista Norma apresenta aos
agnósticos o argumento N, e ele seria, no fim, suficiente para conven-
cê-los a aceitar o nominalismo – se o realista Ronald não conhecer R.
Mas suponha que Ronald conhece R. Parece que ele tem então um
modo de impedir que os agnósticos deem assentimento às premissas
de N: ele precisa apenas apresentar R. Se R é um argumento que teria
sido bem-sucedido, na ausência de N, em convencer os agnósticos a
aceitar o realismo, parece então que ele deveria, na presença de N, ter
o poder de convencer os agnósticos de que pelo menos uma das pre-
missas de N pode ser falsa. (Lembrem-se de que a tarefa de Ronald
em relação a N não é convencer os agnósticos de que pelo menos uma
das premissas de N é falsa, mas somente de que pelo menos uma das
suas premissas pode ser falsa. E ele não precisa identificar uma premissa

130
O fracasso filosófico

particular ou premissas específicas de N como duvidosas; ele precisa


estabelecer que a proposição que afirma que todas as premissas de N
são verdadeiras é passível de uma dúvida razoável).
Mencionarei, mas não discutirei, um último problema para o cri-
tério de sucesso que proponho. Como esse critério pode ser aplicado
aos argumentos filosóficos com conclusões que não são duvidosas para
ninguém ou para quase ninguém – argumentos a favor da realidade
do movimento, da fiabilidade da indução ou da percepção sensível, ou
da existência de um mundo externo ou de outras mentes? Menciono
esse problema por vaidade, impedindo você de concluir que não pensei
sobre ele. Não discutirei esse problema porque sairíamos então do nosso
caminho, e o argumento que iremos considerar, o argumento do mal,
não é desse tipo.
Temos, pois, o nosso critério de sucesso e fracasso na argumentação
filosófica. O meu propósito é defender a conclusão de que o argumento
do mal deve ser julgado como um fracasso – assim penso – de acordo
com os termos muito liberais desse critério.
Vamos imaginar um debate. Duas personagens ideais, que chamarei
de “Ateísta” e “Teísta”, debatem em frente de uma audiência de agnósti-
cos ideais – e por esse termo agora entendemos os agnósticos comuns,
pessoas que nem acreditam que Deus existe e nem acreditam que Deus
não existe.3 Contudo, nossos agnósticos ideais não são meramente

3
Mas “agnóstico” não significa “alguém que não sabe se Deus existe”? Se entendermos
agnóstico nesses termos, temos de entender “alguém que não sabe se Deus existe” como
“alguém que não professa saber se Deus existe”. (No sentido mais literal de “saber se”, alguém
que sabe se Deus existe é alguém que, se Deus existe, sabe que Deus existe, e, se Deus
não existe, sabe que Deus não existe. Portanto, no sentido mais literal dessas palavras, se

131
O problema do mal | Peter van Inwagen

agnósticos. Eles são agnósticos neutros. Enquanto usava um debate


entre o nominalismo e o realismo como exemplo de debate ideal, disse
o seguinte sobre a audiência: “eles verão a questão sobre a existência dos
universais como você vê o problema de saber se o número dos abetos
de Douglas no Canadá é par ou ímpar”. Esse tipo de neutralidade não
é uma consequência do agnosticismo em si. Sou agnóstico em relação à
questão sobre a existência de seres inteligentes não humanos habitando
certo planeta a cerca de 10.000 anos-luz da terra. Ou seja, nem acre-
dito que eles existem e nem acredito que não existem. Mas tenho esta
crença: que a existência desses seres é muito improvável. (Se eu fosse um

Deus existe, nenhum ateísta sabe se Deus existe, e se Deus não existe, nenhum teísta sabe
se Deus existe). Uma pessoa que não professa saber se Deus existe é uma pessoa que está
disposta a dizer (com toda sinceridade) “Não sei se Deus existe”. E uma pessoa disposta
a dizer, com toda sinceridade, “Não sei se Deus existe” não irá acreditar que Deus existe e
nem acreditar que Deus não existe, a não ser que ela se envolva em um tipo de contradição
pragmática. E uma pessoa que nem acredita que Deus existe e nem acredita que Deus não
existe deveria estar pronta para dizer – deixando de lado considerações de prudência – “Não
sei se Deus existe”. Eu poderia apresentar argumentos para essas asserções, mas não vou
apresentá-los, pois a verdade delas não faz diferença para o meu argumento mais geral. Em
vez de defendê-las, simplesmente definirei “agnóstico” como alguém que não acredita que
– carece da crença de que – Deus existe e não acredita que – carece a crença de que – Deus
não existe. O que eu disse sobre contradições pragmáticas e questões relacionadas foi dito
apenas para defender a minha aplicação do termo “agnóstico” a pessoas simplesmente com
base no fato de que elas carecem de certas crenças – uma aplicação que algumas pessoas
podem criticar com base em considerações etimológicas. Se o sentido de “agnóstico” que
introduzi arbitrariamente é de algum modo objetável, é pelo menos claro o que eu quero
dizer com esse termo, e isso é tudo que importa. (Mas penso ter capturado o que a maioria
das pessoas de hoje querem dizer com o termo, mesmo se o que elas querem dizer não seja
tão nobre quanto o que o seu inventor, Thomas Henry Huxley, quis dizer com ele.) E, de
todo modo, minha audiência tem de ser formada de “agnósticos” exatamente nesse sentido
se quero aplicar aos argumentos contra a existência de Deus o critério de sucesso de um
argumento filosófico que apresentei.

132
O fracasso filosófico

agenciador de apostas, e se houvesse um modo de decidir essa aposta,


estaria disposto a dar qualquer vantagem a quem quisesse apostar que
esses seres existem a fim de fazer com que ele apostasse comigo e não
com um agenciador rival). Não há inconsistência se alguém diz, por um
lado, que não acredita (ou não tem a crença de) que p e, por outro, que
encara p como muito, muito provável, embora o uso geral infeliz da ideia
de “graus de crença” tenha causado certa confusão nesse ponto. Afinal,
a proposição Jill está em Budapeste e a proposição É altamente provável
que Jill esteja em Budapeste são proposições distintas, e nenhuma das duas
acarreta a outra, e é possível aceitar a segunda sem aceitar a primeira.
Suponho que a maioria dos agnósticos reais, ou seja, a maioria das
pessoas reais que professam e chamam a si mesmas de agnósticas, não
é neutra. A maioria dos agnósticos com os quais tenho discutido essas
questões pensa que é improvável que Deus exista. A relação deles com
a proposição de que Deus existe é muito parecida com a minha relação
com a proposição de que há seres inteligentes não humanos habitando
certo planeta a cerca de 10.000 anos-luz da Terra. E parece que essa
consideração sugere uma objeção possível à minha definição de sucesso
filosófico. Vamos chamar os agnósticos que pensam ser muito imprová-
vel que Deus exista de “agnósticos ponderados”. Um argumento contra a
existência de Deus, por exemplo, o argumento do mal, poderia ser um
fracasso, de acordo com o meu critério, porque ele carece de poder para
transformar agnósticos ideais (portanto neutros) em ateístas. Porém,
consistente com isso, ele poderia ter o poder de transformar agnósticos
neutros em agnósticos ponderados. Se o argumento pode fazer isso, não
é exagero dizer que ele fracassa? Em resposta a essa questão, direi apenas
que se você quiser revisar a minha definição para dar conta desse fato,

133
O problema do mal | Peter van Inwagen

não terei objeções. Na prática, contudo, essa revisão não faz nenhuma
diferença. Tentarei mostrar que o argumento do mal não tem o poder de
transformar agnósticos ideais (portanto neutros) em ateístas. Mas estou
disposto a defender a seguinte conclusão, embora não o faça explicita-
mente: se as considerações que apresentarei realmente mostrarem que
o argumento do mal é incapaz de transformar agnósticos neutros em
ateístas, essas considerações também mostrarão que o argumento do mal
é incapaz de transformar agnósticos neutros em agnósticos ponderados.
Para voltar à principal linha do argumento, Ateísta e Teísta se
enfrentam no debate em frente da audiência de agnósticos ideais.
O debate é dividido em dois turnos. Em um deles, Ateísta tenta trans-
formar os agnósticos em ateístas como ela mesma. No outro, Teísta
tenta transformar os agnósticos em teístas como ele mesmo. (Proponho
que Ateísta seja uma mulher, e Teísta, um homem. Proponho que eles
tenham sexos opostos a fim de tornar as coisas mais simples para mim:
será automaticamente claro a qual dos dois se refere o pronome da ter-
ceira pessoa do singular. Quanto à combinação do sexo com a doutrina
que escolhi – bem, suponho que de qualquer modo teria dificuldades
pela frente). Nestas conferências, só tratarei da metade do debate, a
tentativa da Ateísta de transformar os agnósticos em ateístas. E só estou
interessado na tentativa dela de convencimento com a apresentação
de um argumento particular, o argumento do mal, a uma audiência de
agnósticos. Eis uma descrição muito geral e abstrata do curso do debate.
Ateísta abre o debate apresentando o argumento do mal. (Assumiremos
que o argumento que ela apresenta é formalmente válido). Teísta busca
colocar em dúvida pelo menos uma premissa do argumento. (Obvia-
mente, um modo de “colocar em dúvida” uma proposição é mostrar

134
O fracasso filosófico

que ela é falsa, mas Teísta não precisa de tanto). E a dúvida deve surgir
na mente dos agnósticos; não é exigido que Teísta de algum modo
enfraqueça a fidelidade da Ateísta às premissas que ele busca colocar
em dúvida. Ateísta então dá a sua resposta a Teísta; talvez ela encontre
algum defeito no contra-argumento do Teísta (um defeito que os agnós-
ticos estariam dispostos a aceitar como defeito; será uma perda de tempo
para ela apontar uma coisa que ela vê como um defeito se eles também
não verem tal coisa como um defeito); talvez ela reformule o argumento
de tal modo que esse argumento reformulado escape da crítica do Teísta;
isso só depende dela mesma: ela pode dizer o que quiser. Depois disso,
Teísta responde à réplica dela da crítica que ele fez ao argumento.
E assim por diante – enquanto pelo menos um dos participantes tiver
algo a dizer. No final do debate, teremos de perguntar a nós mesmos
como os agnósticos responderão a tudo o que ouviram. Eles se tornarão
ateístas ou permanecerão agnósticos? No primeiro caso, o argumento
da Ateísta é bem-sucedido. No segundo, é um fracasso. (O que dizer se
alguns deles se convencerem a aceitar o ateísmo e alguns não se conven-
cerem? Bem, farei uma suposição idealizada: visto que os debatedores
e a audiência são representantes ideais das categorias “ateísta”, “teísta”
e “agnóstico”, e porque o debate foi conduzido sob condições ideais, a
resposta da audiência, seja ela qual for, será uniforme. As consequências
de rejeitar essa suposição seriam um tópico interessante para futuras
investigações). A minha intenção, como disse antes, é mostrar que o
argumento do mal é um fracasso conforme esse padrão.
Decerto, há argumentos bem-sucedidos, tanto no cotidiano quanto
nas ciências. Mas não conheço nenhum argumento com essa caracterís-
tica a favor de qualquer tese filosófica substancial. Odeio ter de admitir

135
O problema do mal | Peter van Inwagen

isso, seja só pela razão de que eu gostaria que alguns dos argumentos
associados ao meu nome fossem bem-sucedidos. De todo modo, tenho
de admitir que é, no melhor dos casos, altamente improvável que eles
sejam bem-sucedidos. É verdade que nenhum deles foi testado em um
debate ideal como o que imaginei, mas, para estender o ponto que esta-
beleci anteriormente, há debates que chegam perto do ideal, de tal modo
que a performance dos meus argumentos nesses debates é um indício
forte de como eles se comportariam em um debate ideal. Sei alguma
coisa sobre esses debates, e vejo a mim mesmo na posição de dizer que
parece muito improvável que meus argumentos seriam bem-sucedi-
dos em um debate ideal. Considere, por exemplo, meus argumentos
a favor da incompatibilidade do livre-arbítrio com o determinismo.4
Esses argumentos têm sido testados à medida que são apresentados
sucessivamente a várias gerações de estudantes em diferentes universi-
dades. E esse teste é uma aproximação do mundo real ao debate ideal
que imaginei. O resultado tem sido tão previsível quanto desaponta-
dor: alguns dos estudantes foram convencidos por meus argumentos,
e alguns, não. Decerto, esses estudantes não eram inicialmente neutros
em relação à questão da compatibilidade do livre-arbítrio com o deter-
minismo. E a maioria dos seminários em que esses argumentos foram
apresentados não era conduzida por um compatibilista e um incom-
patibilista. Mas as respostas diversas dos estudantes do mundo real aos
meus argumentos levaram-me a supor que a resposta de uma audiência
de agnósticos ideais a uma apresentação ideal desses argumentos seria

4
Esses argumentos estão em van Inwagen (1983).

136
O fracasso filosófico

uniforme: eles iriam permanecer, coletivamente, agnósticos na questão


da compatibilidade do livre-arbítrio com o determinismo. E todos os
argumentos filosóficos, ou pelo menos todos os que chamaram a atenção
da comunidade filosófica, têm sido testados sob circunstâncias suficien-
temente próximas das circunstâncias de um debate ideal, sendo, pois,
razoável concluir que eles fracassariam no “debate ideal”. Se algum argu-
mento filosófico a favor de uma conclusão substancial razoavelmente
bem conhecido tivesse o poder de converter à sua conclusão uma audi-
ência não tendenciosa (dado que ele tenha sido apresentado à audiência
sob condições ideais), provavelmente o assentimento a essa conclusão
seria muito mais difundido entre os filósofos do que é efetivamente o
assentimento a qualquer tese filosófica substancial.5
Se é verdade que nenhum argumento filosófico para qualquer con-
clusão substancial é bem-sucedido no sentido que proponho, segue-se
imediatamente que o argumento do mal não é bem-sucedido – dadas,

5
Se for assim, o critério que propus de sucesso e fracasso filosóficos tem a mesma consequ-
ência que os dois critérios que rejeitei: a maioria dos argumentos filosóficos para conclusões
filosóficas substanciais são fracassos, se não todos. E essa consequência foi a minha razão
para rejeitar esses critérios. Portanto, eu não deveria, por essa razão, rejeitar o critério que
propus e buscar algum critério mais liberal? Infelizmente não há um critério mais liberal.
O critério que propus é o critério mais liberal possível. (Ele é mais liberal do que os outros
dois. Ele impõe para o filósofo que busca oferecer um argumento bem-sucedido para uma
tese filosófica uma tarefa mais simples do que os outros dois, mesmo se essa tarefa for
impossível. Se for objetado que uma tarefa impossível não pode ser mais fácil do que outra
tarefa impossível, respondo que é mais fácil em um sentido óbvio convencer 90% do eleito-
rado a votar em um candidato específico do que convencer todos os eleitores a votar nesse
candidato, mesmo se, dadas as circunstâncias do caso, for impossível convencer 90% do
eleitorado a votar em um candidato específico). A minha posição, pois, é que, infelizmente,
todo argumento conhecido para uma tese filosófica substancial é um fracasso – pelo critério
de sucesso e fracasso mais liberal possível.

137
O problema do mal | Peter van Inwagen

pelo menos, duas premissas que penso que ninguém negaria: que o
argumento do mal é um argumento filosófico e que a não existência
de Deus é uma tese filosófica substancial. Se pensamos no que eu disse
há pouco sobre o modo como um argumento para a conclusão de que
o argumento do mal é (no meu sentido) um fracasso, não penso que
estejamos diante de um mau argumento. Contudo, mesmo se for um
bom argumento, ele tem uma limitação importante: não nos diz nada de
interesse filosófico a respeito do argumento do mal; não interage com o
conteúdo do argumento do mal. Eu poderia ter oferecido essencialmente
o mesmo argumento para a conclusão de que o argumento da linguagem
privada ou o argumento ontológico ou o argumento analógico para a
existência de outras mentes são fracassos. O meu projeto nestas confe-
rências é tentar convencer minha audiência de que o argumento do mal
não tem o poder de transformar agnósticos neutros idealmente racionais,
sérios, atentos e pacientes em ateístas. E quero fazer isso enfrentando
realmente o argumento. Mesmo se for verdade (como acredito que seja)
que nenhum argumento filosófico para uma conclusão substancial tem
o poder de convencer todos os membros de uma audiência ideal e ini-
cialmente neutra, não quero argumentar a partir dessa premissa. Quero
mostrar como o Teísta pode bloquear qualquer tentativa da Ateísta de
transformar a audiência de agnósticos em uma audiência de ateístas
como ela mesma. Menciono a minha tese geral sobre a incapacidade
de argumentos filosóficos produzirem uniformidade de crenças mesmo
entre aqueles que são idealmente racionais simplesmente porque penso
que ela seja uma tese plausível, e se você concordar comigo sobre esse
ponto, essa concordância o predisporá a aceitar a conclusão que defen-
derei a partir de bases diferentes.

138
O fracasso filosófico

Vamos colocar o ponto do seguinte modo. Deixe de lado por um


momento o argumento do mal e todos os outros argumentos a favor
da existência ou da não existência de Deus. Só considere argumen-
tos filosóficos a favor de conclusões substanciais que não impliquem
a existência ou a não existência de Deus – argumentos não teológi-
cos, para dar a eles um nome. E vamos também deixar de lado os
argumentos com conclusões que quase toda a gente teria acreditado
sem argumento – argumentos para a existência de outras mentes, por
exemplo, ou para a tese de que é possível alguém correr até alcançar o
outro corredor que estava à sua frente. Você pensa que algum argumento
filosófico substancial que não cai em uma dessas categorias é bem suce-
dido conforme o padrão que propus? Se sim, como você explica o fato
de que a sua conclusão é controversa? Pois certamente ela é controversa.
Deixando de lado as teses filosóficas que quase toda a gente aceitaria
sem argumento, não há teses filosóficas que sejam ao mesmo tempo
substanciais e não controversas. Se o argumento é bem-sucedido pelos
termos da minha definição, por que ele não tem o poder de produzir
maior uniformidade de opinião entre os filósofos a respeito do conteúdo
da sua conclusão do que aquela que realmente existe? Ou se ele tem
esse poder, por que ele não é exercido? Essas questões, suponho, não
têm boas respostas. E se elas não têm boas respostas, parece razoável
acreditar que nenhum argumento filosófico não teológico para uma
conclusão substancial é bem sucedido.
É plausível sustentar que a filosofia pode oferecer um argu-
mento bem-sucedido para a existência de Deus, mesmo se a filosofia
for incapaz de oferecer um argumento bem-sucedido para qualquer
outra tese substancial? Tenho de dizer que isso me parece implausível.

139
O problema do mal | Peter van Inwagen

Parece previamente muito improvável que a filosofia, em cujas depen-


dências ocorre uma grande quantidade de debates sobre questões impor-
tantes, deveria ser capaz de oferecer uma resposta decisiva a exatamente
uma delas. É implausível supor que a filosofia deva ser capaz de respon-
der à questão “Existe o livre-arbítrio?” – e mais nenhuma outra questão
filosófica substancial. É implausível supor que a filosofia deva ser capaz
de responder à questão “Pensamentos são eventos no cérebro?” – e mais
nenhuma outra questão filosófica substancial. É implausível supor que
a filosofia deva ser capaz de responder à questão “A matemática trata
de uma realidade objetiva que existe independentemente do mundo físico?”
– e mais nenhuma outra questão filosófica substancial. Espera-se ou
que a filosofia seja capaz de responder várias das questões que ela se
põe, ou que não seja capaz de responder a nenhuma delas. Há algo de
suspeito sobre o número um, sobre a unicidade. É implausível supor
que a filosofia deva ser capaz de responder à questão “Deus existe?” – e
mais nenhuma outra questão filosófica substancial. Ainda assim, coisas
altamente implausíveis, ou coisas que em um ponto da história do
pensamento pareciam altamente implausíveis, mostraram-se depois
como verdadeiras. Parecia implausível em certo momento da história
supor que a terra sólida sob os nossos pés estava em movimento, mas
constatou-se que isso era verdade. A investigação adicional dessa ques-
tão exigiria um exame detalhado dos argumentos contra a existência
de Deus – por exemplo, o argumento do mal. A minha expectativa
é que as minhas reflexões sobre o tema da argumentação filosófica o
levem à conclusão de que será surpreendente se o argumento do mal
for bem-sucedido.

140
CONFERÊNCIA 4
O argumento global do mal

Entendo que o argumento global do mal seja este (ou qualquer


outro argumento similar a este tal que os dois ficam firmes ou caem
juntos): há uma enorme quantidade de mal verdadeiramente horrendo
no mundo; se Deus existisse, não haveria essa enorme quantidade de
mal horrendo no mundo; logo, Deus não existe. (O argumento global
do mal é nomeado assim em contraste com os muitos argumentos
locais do mal, argumentos que procedem de premissas a respeito de
algum mal particular. Acredito que seja melhor discutir separadamente
o argumento global do mal e os argumentos locais do mal).
O preâmbulo do meu exame desse argumento do mal será uma
defesa da adequação moral de examiná-lo. Esse preâmbulo não trata de
um oponente imaginário, pois é comum ouvir as pessoas dizerem que
examinar o argumento do mal (em qualquer uma das suas formas), tra-
tá-lo como se ele fosse só mais um argumento filosófico, um argumento
cujas virtudes e vícios poderiam e deveriam ser pesados por uma razão
imparcial, é um sinal de insensibilidade moral – ou de pura maldade.
Pode parecer que nenhum argumento é isento de exame crítico. Pode
parecer que, se um argumento tem tanta força que torna intelectual-
mente desonesto a não consideração do argumento por parte dos que
se opõem à sua conclusão (uma característica que muitos atribuem ao
argumento do mal), então seria intelectualmente desonesto por parte
dos advogados da conclusão proibir que seus oponentes a criticassem.
O problema do mal | Peter van Inwagen

No entanto, as pessoas às quais aludi afirmam, e com muita veemência,


que é extremamente insensível (ou extremamente maldoso) examinar o
argumento do mal com um olhar crítico. John Stuart Mill, por exemplo,
em uma célebre passagem de Three Essays on Religion, afirma:

Passamos agora aos atributos morais da Divindade que são


indicados na Criação; ou (colocando o problema de uma
maneira mais ampla) à questão: que indícios dá a Natu-
reza dos propósitos do seu autor. Essa questão tem um
aspecto bem diferente para nós do aspecto que tem para
os mestres de Teologia Natural que estão comprometidos
com a necessidade de admitir a onipotência do Criador.
Não temos de enfrentar o problema impossível de recon-
ciliar a infinita benevolência e justiça com o poder infinito
no Criador de um mundo tal como este. A tentativa de
fazer essa reconciliação não só envolve uma contradição
absoluta do ponto de vista intelectual, mas também mani-
festa ao extremo o espetáculo revoltante de uma defesa
jesuítica de atrocidades morais. (MILL, 1878, p. 187).

Eis um segundo exemplo. O seguinte poema ocorre no romance


The Anti-Death League do escritor britânico Kingsley Amis (trata-se
da obra de uma das suas personagens), e dá corpo à abstrata indigna-
ção vitoriana de Mill. Ele contém várias alusões específicas àqueles
argumentos que Mill descreve como defesas jesuíticas de atrocidades
morais. O seu efeito literário depende essencialmente de colocar esses
argumentos, ou alusões a eles, na boca de Deus:

142
O argumento global do mal

A um bebê nascido sem os membros

Isso é só para mostrar a você quem é que manda.


E manterá você com os pés no chão, por assim dizer.
E tornará você forte para se levantar quando cair, por assim dizer,
E dará a você uma causa à qual abraçar, por assim dizer.
Você pode enfrentar isso corajosamente como um homem,
Ou chorar e berrar feito um bebê.
Isso é com você. Não tem nada a ver comigo.
Se levar tudo isso numa boa,
Você pode ter uma vida maravilhosa,
Com as grandes recompensas que traz a coragem,
E a beleza de aceitar a própria SORTE.
E pense o bem que fará à sua mãe e ao seu pai,
E aos avôs e às avós e a quem mais aparecer,
Parar de ser complacente.
Mas faça com que eles o batizem,
No caso de algum assassino bastardo
Decidir se livrar rapidamente de você,
O que o mandaria direto para o limbo.
Só vou sussurrar mais uma coisa no seu ouvido, se você tiver um.
Preste atenção, leve tudo isso numa boa,
E seja polido ao falar de mim.
Porque, do contrário,
Tenho muito mais coisas na minha manga,
Como leucemia e pólio,
Que, incidentalmente, você pode ter a qualquer momento

143
O problema do mal | Peter van Inwagen

Seja como for que se comporte.


Eu dei a você uma palmada de amor, certo?
Você não quer outra.
Então tenha cuidado, Jack.1

A manifestação da atitude exprimida nessas citações não é restrita


aos inimigos da cristandade. O teólogo Kenneth Surin, um cristão,
afirma em Theology and the problem of evil que qualquer pessoa que
tente reconciliar a bondade e a onipotência de Deus com males como o
Holocausto suprime sua capacidade (e a capacidade de outras pessoas)
de se opor a esses males e está, portanto, pelo menos em um sentido,
cooperando com aqueles que cometem esses males. (Penso que essa seja
a tese dele. Como acontece com muitos dos teólogos acadêmicos do
século XX, Surin escreve uma prosa que a um filósofo analítico parece
servir mais para ocultar o que se quer dizer).
Não deixo de ter alguma simpatia com autores como Mill, a per-
sonagem que escreve o poema na novela de Amis, e Surin. Há um
tipo de posição na discussão sobre Deus e o mal em relação à qual o
escárnio intelectual de Mill (discutirei o seu escárnio moral em breve)
parece totalmente apropriado, e é plausível argumentar que Surin tem

1
No poema tal como foi impresso no romance há (em função da trama: o autor ficcional do
poema era um homem erudito que queria ocultar a sua autoria) muitos erros gramaticais.
Eles não são reproduzidos aqui – apesar da opinião de Martin Amis de que eles seriam uma
parte importante do efeito pretendido do poema sobre o leitor (isto é, o efeito que Kingsley
Amis pretendia que o poema tivesse sobre os leitores de The anti-death league, 1966). Para
os argumentos de Martin Amis a favor dessa conclusão (e o poema tal como aparece origi-
nalmente no romance), veja o seu livro Experience, 2001, p. 188.

144
O argumento global do mal

razão se diz que alguém que defende essa posição está encorajando a
indiferença aos males do mundo. Tenho em mente a tese de que – em
sentido estrito e literal – o mal não existe. Pode parecer surpreendente
que alguém defenda essa ideia. Considere esta passagem famosa de
Os irmãos Karamazov:

A propósito, um búlgaro me contou em Moscou [...] sobre


os crimes cometidos pelos turcos e circassianos em todas
as partes da Bulgária por causa do medo de um levante
geral dos eslavos. Eles queimam vilas, matam, violentam
mulheres e crianças, pregam os prisioneiros nas cercas
pelas orelhas, os deixam presos até o dia seguinte, e de
manhã os enforcam... Esses turcos têm prazer também em
torturar crianças; retirar fetos dos ventres das mães, lançar
bebês no ar e pegá-los com as pontas das suas baionetas
na frente das mães.2

Como alguém pode ouvir histórias como essa e dizer que o mal
não existe? Ora, um tipo de resposta a essa questão é oferecida pelos
adeptos de algumas religiões orientais: o mal que vemos ao nosso redor
é mera aparência, ilusão, pela simples razão de que tudo o que apa-
rece, tudo o que as pessoas comuns tomam como sendo a realidade
sensível, é uma ilusão. Não considerarei essa posição. Assumo que o
que os nossos sentidos nos dizem sobre o mundo ao nosso redor é

2
Do capítulo 4 (“Rebelião”) do livro V. Ivan é quem fala. É quase obrigatório para quem
escreve sobre o problema do mal citar algo desse capítulo.

145
O problema do mal | Peter van Inwagen

razoavelmente acurado. Mas há pensadores que sustentam que o mal


é uma ilusão, mesmo que o sol e as estrelas e a torre de St. Rule não
o sejam. A ideia deles, se é que a entendo, é mais ou menos a seguinte.
Um evento como os massacres turcos na Bulgária seriam males se fos-
sem constituintes do universo. Porém eles não são constituintes do
universo. O universo como um todo não contém qualquer sinal ou
mancha de mal, mas parece a nós seres humanos como se contivesse
o mal porque o vemos de um ponto de vista limitado. Talvez uma
analogia estética seja útil para esclarecer essa ideia difícil. (Encontrei
essa analogia em um livro do filósofo Wallace Matson;3 acrescento,
contudo, que ela não caracteriza o ponto de vista dele). Muitas peças
musicais de rara beleza e extrema perfeição contêm pequenas passagens
dissonantes que soariam terríveis se fossem tocadas separadamente,
fora do contexto musical em que o compositor quis colocá-las. (O cravo
bem-temperado de Bach é um exemplo). Porém essas passagens não são
terríveis no contexto musical apropriado; elas não são o tipo de passa-
gem à qual Rossini se referiu quando disse que “Wagner tem momentos
adoráveis, mas quartos de hora medonhos”. Se forem vistas, ou melhor,
escutadas, no contexto apropriado, elas não são terríveis, mas, em vez
disso, são elementos essenciais da beleza e perfeição do todo. A ideia
que desaprovo é que os horrores e as atrocidades do nosso mundo são
os análogos morais dessas passagens dissonantes. Classicamente, essa
ideia aparece com clareza na Teodiceia de Leibniz e no Essay on Man
de Pope, em especial nas famosas linhas:

3
Matson (1967, p. 145-48).

146
O argumento global do mal

Toda a natureza é arte desconhecida de ti,


Todo acaso, direcionamento que tu não podes ver;
Toda discórdia, harmonia não compreendida;
Todo mal parcial, um bem universal;
E, apesar do orgulho, apesar da razão que engana,
Uma coisa é certa, o que é, é bom.4

(Em relação a Leibniz, se alguém disser que estou errado ao inferir


que a posição dele era a mesma de Pope, ou algo próximo a ela, não vou
retrucar. Digamos que me refiro com a expressão “Leibniz” ao Leibniz
tal como ele é comumente entendido. Mesmo se esse Leibniz for uma
ficção, ele é uma ficção influente). Não vejo como alguém pode aceitar
essa posição que parece ser totalmente fantástica. Porém não entenda
mal o que eu digo. Quero distanciar-me da calúnia vulgar que atribui
insensibilidade moral (quando não a pura maldade) a Pope – uma calú-
nia sobre a qual terei mais a dizer daqui a pouco. Eu acuso-o apenas
de erro intelectual. Mas o erro intelectual é de uma magnitude enorme
– comparável, por exemplo, ao erro intelectual do astrônomo Percival
Lowell, que acreditou que o planeta Marte fosse coberto de canais (dos
quais ele desenhou um mapa detalhado), a obra de uma civilização
antiga e decadente. Essa crença foi baseada apenas no apelo romântico
da lenda de uma antiga civilização bravamente lutando para impedir
o declínio – talvez associado a alguma ilusão de óptica. A crença de
Pope de que “o que é, é bom” pode ter sido baseada apenas no desejo

4
Pope, An Essay on Man, Epístola I, 10.

147
O problema do mal | Peter van Inwagen

de que isso fosse verdade – talvez associado à Teodiceia de Leibniz. Se


pensamos em soldados fazendo mães observarem quando lançam os
bebês delas no ar e apanham esses bebês com as pontas das baionetas,
ou na antiga prática mesopotâmica de sacrifício – jogar crianças vivas
em fornos como oferendas a Baal –, ou em uma criança que nasce
sem membros, concluiremos, assim espero, que é impossível dizer que
o mal não é real. Coisas más realmente acontecem. (Lembre-se que
por “mal” entendo simplesmente “coisas más”). Quem quer que diga,
como Pope, que chamamos certas coisas de más só porque não vemos
essas coisas sub specie aeternitatis, comete um erro muito grave. É como
dizer que, observando a dor do ponto de vista de Deus, veríamos que
ela não dói.
O que chamo de um erro muito grave (ou, em outros termos, um
erro absurdo) tem de ser cuidadosamente distinguido daquelas três
teses que não chamo de erros; e cada uma delas tem sido confundida
com esse erro.
Em primeiro lugar, temos de distinguir esse erro da tese segundo
a qual Deus retira de todo mal um bem maior – ou que ele retira da
totalidade do mal um bem maior ou bens que superam essa totalidade.
Esse pode ser ou não ser realmente o caso, mas se for o caso, daí não se
segue que o mal seja uma ilusão. Daquela tese se segue, pelo contrário,
que o mal não é uma ilusão; pois mesmo Deus não pode retirar do mal
um bem se não houver o mal.
Em segundo lugar, temos de distinguir esse erro da tese famosa de
Agostinho de que o mal não é uma coisa que existe por si, mas, em vez
disso, ele é uma privação do bem. Esse pode ser ou não ser realmente
o caso, mas se for o caso, não se segue daí que o mal seja uma ilusão.

148
O argumento global do mal

Um buraco nas calças não é uma coisa que tem existência em si, mas
é (por assim dizer) uma privação de roupa. Porém isso não significa
que o buraco seja uma ilusão. Se um buraco não é algo real, mas mera
ausência, esse sutil ponto metafísico não muda o fato de que as calças
precisam de um remendo. Afirmar que defeitos nas coisas não são em si
mesmos coisas não significa afirmar que nada seja realmente defeituoso.
Em terceiro lugar, não devemos confundir esse erro com a promessa
bíblica de que haverá um dia em que Deus irá enxugar cada lágrima.
Esse pode ser ou não ser realmente o caso, mas se for o caso, não se
segue daí que agora não haja lágrimas, como também não se segue que
as lágrimas do presente sejam derramadas sobre ilusões – não se segue
que, se pudéssemos ver as coisas como Deus as vê, veríamos que não
há motivos para chorar.
Se alguém seguir o pensamento de Leibniz/Pope sobre a realidade
do mal, então, penso, essa pessoa merece um pouco do escárnio que
Mill e os outros escritores que citei tão eloquentemente exprimem.
No entanto, insisto que o escárnio deva ser intelectual, em vez de moral.
Acreditando que “o que é, é bom”, Pope não é culpado de um erro
moral. Não digo que o erro intelectual e o erro moral não possam se
misturar. Aqueles que negam a realidade do Holocausto, por exemplo,
são culpados de ambos os tipos de erro. Mas eu diria que uma parte
importante da causa do erro intelectual dessas pessoas seria um defeito
moral previamente existente; esse erro moral levou-os a negar fatos
empiricamente estabelecidos. Não penso que Pope e Leibniz acredita-
vam que o mal fosse uma ilusão de perspectiva porque eles eram homens
maus (espero que eles não tenham sido nem melhores e nem piores
do que a maioria de nós, algo que eu não diria daquelas pessoas que

149
O problema do mal | Peter van Inwagen

negam o holocausto); penso que eles simplesmente se enganaram sobre


o modo como são as coisas. Casos similares são abundantes. Descartes,
por exemplo, acreditava que os animais não sentiam dor. Não vamos
supor que ele era culpado desse erro intelectual (e esse é um erro inte-
lectual; alguém que pensa que os animais não sentem dor engana-se
muito sobre o modo como são as coisas) por causa de algum defeito
moral que influenciou a sua teoria sobre os animais. (Esse poderia ser
o caso de uma pessoa cuja vida dependesse de causar dor em animais
e, por conta disso, julgasse conveniente acreditar que os animais não
sentem dor). Não, Descartes acreditava que os animais não sentiam dor
porque pensou ter encontrado um bom argumento a favor da sua crença.
Ele deveria ter visto que, se a proposição segundo a qual animais não
sentem dor é a conclusão de um argumento válido, pelo menos uma
das premissas do argumento deveria ser falsa. Descartes não viu isso.
Mas esse não foi um erro moral – e o mesmo deveria ser dito de Pope
e Leibniz quando erraram não admitindo a realidade do mal.
De todo modo, o escárnio de Mill e dos outros autores que citei
não é dirigido só àqueles que negam a realidade do mal. Esse escárnio é
dirigido a qualquer pessoa que hesite admitir, sem argumento adicional,
que os males deste mundo acarretam a não existência de um Deus bom
e onipotente. Contudo, quando sugerem que todos aqueles que não são
imediatamente convertidos ao ateísmo pelo argumento do mal em sua
forma mais simples são moralmente defeituosos, eles vão longe demais,
e tenho de acusá-los de desonestidade intelectual.5

5
Bem, não Surin, que, afinal, é um cristão. Não estou certo do modo como Surin supõe que um
filósofo ou teólogo cristão (ou judeu ou muçulmano) deveria responder quando um ateísta

150
O argumento global do mal

Filosofia é muito difícil. Pensar claramente por um período longo é


muito difícil. É bem mais fácil escarnecer das pessoas que discordam de
você do que enfrentar os argumentos delas. (Foi mais fácil para Voltaire
caricaturar os argumentos de Leibniz e zombar a caricatura do que
realmente enfrentá-los. E assim ele escreveu Cândido). E de todos os
tipos de escárnio que podem ser feitos contra a opinião de uma pessoa,
o escárnio moral é sem dúvida o mais seguro e o mais agradável (é mais
agradável para quem faz escárnio). Ele é o tipo mais seguro de escárnio
porque, se você quiser fazer escárnio moral com a opinião de uma pes-
soa, você pode estar certo de que qualquer outra pessoa que a princípio
estiver predisposta a concordar com você acreditará que você introduziu
uma consideração irretorquível. E você pode estar certo de que qualquer
tentativa de resposta que faça o seu oponente no debate será recusada
por uma parte significativa da sua audiência como sendo uma “racionali-
zação” – essa grande contribuição da psicologia moderna profunda para
a complacência e preguiça intelectual. O escárnio moral é o tipo mais
agradável de escárnio que se pode fazer contra aqueles que discordam
de você porque exibir a virtude – pose moral – é uma ação agradável
em qualquer circunstância e é bom ter uma desculpa para ela. Ninguém
pode me convencer de que Mill não se deliciou consigo mesmo quando

busca convencer teístas ou agnósticos de que não há um Deus apresentando o argumento


do mal e reivindicando para ele o status de uma prova da não existência de Deus. Talvez o
seguinte: o filósofo ou teólogo simplesmente “responde na fé”; ou seja, ele ou ela proclama que
é uma questão de fé que há um Deus a despeito da enorme quantidade de mal no mundo, e
então prossegue ridicularizando qualquer apologista que responda ao ateísta de uma maneira
diferente – mesmo se essa maneira não for uma teodiceia (mesmo se essa resposta consistir,
por exemplo, em apontar uma falácia lógica no argumento do ateísta).

151
O problema do mal | Peter van Inwagen

escreveu as palavras “exibe ao excesso o revoltante espetáculo de uma


defesa jesuítica de atrocidades morais”. (Talvez ele tenha se deliciado
consigo mesmo tanto que a sua atenção foi desviada da questão “Como
seria exibir um revoltante espetáculo de moderação?”).
Para as pessoas que evitam ter de responder às críticas do argumento
do mal por meio dessa pose moral, só posso dizer “Isso não me engana”.
Elas estão na mesma posição que aquela dos defensores da lei e da
ordem que, quando você exprime a suspeita de que um homem acusado
de molestar uma criança pode ter sido vítima de uma armação, diz a
você com evidente nojo que molestar uma criança é um crime hediondo
e que você está defendendo um molestador de crianças.
Defendida a adequação moral de examinar criticamente o argumento
do mal, resta fazer agora esse exame crítico. O argumento pressupõe corre-
tamente que essas duas características atribuídas a Deus não são negociáveis:
onipotência e perfeição moral. Como vimos, não é fácil dizer o que significa
a onipotência. Minha adesão não negociável a “Deus é onipotente” vem a
ser esta: nestas conferências, quando tentar responder o argumento do mal,
nunca afirmarei que Deus é incapaz de fazer uma determinada coisa, a não
ser que eu queira defender a tese de que essa coisa é intrinsicamente ou
metafisicamente impossível. (E isso a despeito do fato de haver atos intrin-
sicamente possíveis – como, por exemplo, mentir e quebrar promessas – que
o único ser onipotente é incapaz de realizar). Dizer que Deus é moralmente
perfeito é dizer que ele jamais faz o que é moralmente errado – que ele não
poderia fazer algo moralmente errado.6 A onipotência e a perfeição moral

6
Assumirei que há um padrão moral objetivo, que esse padrão aplica-se a Deus e às criaturas, e
que é possível para os seres humanos se enganarem sobre as suas exigências. Se essa suposição

152
O argumento global do mal

for errada, se não há um padrão moral objetivo, então, presumivelmente, não há a propriedade
ou atributo da “perfeição moral”. (No texto, quando digo que a perfeição moral é, de forma não
negociável, um dos atributos divinos, pressuponho que ela exista; se as palavras “perfeição moral”
denotam uma propriedade, elas denotam uma propriedade que Deus não pode possivelmente
deixar de ter). Se não houver o atributo da perfeição moral, ele, obviamente, tem de ser retirado
da lista de atributos divinos (ou seja, as palavras “perfeição moral” têm de ser deletadas da nossa
apresentação da lista de atributos divinos). Se não houver o atributo da perfeição moral, o aliquid
quo nihil maius cogitari possit não será moralmente perfeito – e não porque ele será moralmente
imperfeito, mas sim porque não haverá um atributo para ele possuir. (Nem ele e nem qualquer
outra coisa será ou moralmente perfeito ou moralmente imperfeito, pois uma coisa não pode
ser mais moralmente imperfeita se não há um padrão moral objetivo do que ela pode ser moral-
mente perfeita nesse caso.) Mas sem dúvida qualquer pessoa que se sinta forçada a remover a
“perfeição moral” da lista de propriedades que “algo” tem de ter se for algo em relação a que nada
maior pode ser concebido (tendo sido convencida por um argumento de que não haveria um
padrão moral objetivo) desejaria “substituir” a perfeição moral por algum atributo cuja existência
não pressuponha um padrão moral objetivo: “benevolente no grau mais alto possível”, talvez, ou
“exibindo amor perfeito em relação a todas as criaturas”. E sem dúvida a existência de enormes
quantidade do mal realmente horrível colocará problemas para aqueles que acreditam em um
ser onipotente que é benevolente no mais algo grau (ou cujo amor por todas as criaturas é
perfeito) que são essencialmente os mesmos problemas que surgem para aqueles que acreditam
em um ser onipotente e moralmente perfeito. Talvez eu deva dizer algo para o teísta que resiste
à ideia de que há um padrão moral objetivo que se “aplica a Deus”. Direi o seguinte. Acredito
tão fortemente quanto você na onipotência e soberania de Deus; e, como você, acredito que
ele é aliquid quo nihil mais cogitari possit. Além disso, quando afirmo essas crenças que tenho, as
palavras que uso para afirmá-las devem ser entendidas do mesmo modo que são quando você
as usa para afirmar as suas crenças. Se você diz que a tese de que há um padrão moral objetivo
que se aplica a Deus é inconsistente com as crenças que tenho professado, replicarei que nego
a inconsistência, e apontarei que sua afirmação de inconsistência é uma tese filosófica, não uma
parte da fé cristã. Afinal, Abraão disse a Deus (Gn 18:25) “Longe de ti fazer tal coisa: matar
o justo com o ímpio, tratando o justo e o ímpio da mesma maneira. Longe de ti! Não agirá
com justiça o Juiz de toda a terra?”. Se você diz que objeta só a ideia de um padrão moral que
é “externo” a Deus, replicarei que eu nem afirmo e nem nego que o padrão moral cuja exis-
tência assevero é externo a Deus, pois não tenho ideia do que é que isso significa. Afirmo que
os princípios morais gerais, se eles têm valor de verdade, são necessariamente verdadeiros ou
necessariamente falsos, e que Deus não tem escolha sobre os valores de verdade de proposições
não contingentes. Por exemplo, se for errado para Deus matar o justo com o injusto, isso é algo
em relação a que Deus não tem escolha.

153
O problema do mal | Peter van Inwagen

são componentes não negociáveis da nossa concepção de Deus. Um ser


que é o maior ser possível e é menos poderoso do que poderia ter sido (ou
que é menos poderoso do que outro ser possível poderia ter sido) é uma
contradição em termos e, do mesmo modo, é uma contradição em termos
dizer que um ser é o maior ser possível e que ele algumas vezes faz o mal.
Se o universo foi criado por um ser inteligente e se esse ser for menos do
que onipotente (e se não há outro ser que é onipotente), segue-se que
o ateísta está certo: Deus não existe. Se o universo foi criado por um ser
onipotente e se esse ser cometeu uma ação moralmente má (e se não há
outro ser onipotente que jamais comete ações moralmente más), segue-se
que o ateísta está certo: Deus não existe. Se o Criador do universo carece
ou da onipotência ou da perfeição moral, e se ele reivindica ser Deus, ele
seria ou um impostor ou estaria confuso – ele seria um impostor se dissesse
ser onipotente e moralmente perfeito, e ele seria confuso se admitisse não ser
onipotente ou não ser moralmente perfeito e ainda reivindicasse ser Deus).
Comecei esta conferência com uma apresentação simples do
argumento global do mal. Uma premissa do argumento era a seguinte
condicional: “Se Deus existisse, não haveria uma enorme quantidade
de mal horrendo no mundo”. Mas essa condicional poderia ser falsa
se o ser todo-poderoso e moralmente perfeito fosse ignorante, e não
culpavelmente ignorante, dos males. Mas isso não é uma dificuldade
para o proponente do argumento global do mal, pois Deus é, como
vimos, onisciente. O proponente do argumento simples poderia, de
fato, defender a sua premissa apelando para teses mais fracas sobre a
extensão do conhecimento de Deus do que a onisciência. Se os males
do mundo são evidência prima facie efetiva para a conclusão de que
não há um ser onipotente, moralmente perfeito e onisciente, eles são

154
O argumento global do mal

igualmente evidência prima facie efetiva para a conclusão de que não há


um ser onipotente e perfeitamente bom que tem tanto conhecimento
do que se passa no mundo quanto têm os seres humanos. A imponência
da onisciência não entra nos estágios iniciais da apresentação e dis-
cussão de um argumento do mal. A onisciência – no sentido pleno da
palavra – só se tornará importante depois, quando chegarmos à defesa
do livre-arbítrio.
É hora de voltar ao nosso prometido debate ideal, o debate entre
Ateísta e Teísta em frente da audiência de agnósticos ideais. Estamos
imaginando o estágio do debate em que a Ateísta tenta convencer os
agnósticos a abandonar o agnosticismo e se tornarem ateístas como
ela mesma e, mais especificamente, aquele estágio do debate em que
ela busca empregar o argumento global do mal para alcançar esse fim.
Ela inaugura esse estágio do debate com a apresentação do argumento
global, uma versão levemente mais elaborada que aquela que ofereci:

Deus, se ele existe, é onisciente, ou, pelo menos, sabe tanto quanto
nós seres humanos sabemos. Portanto, sabe dos males do mundo
pelo menos tanto o quanto nós sabemos, e sabemos que o mundo
contém uma enorme quantidade de mal. [Assumirei que nenhum
lado do debate pensa que a tese de Leibniz/Pope sobre o mal, a tese
de que o mal é uma ilusão devida à nossa perspectiva limitada, é
digna de algo mais do que uma breve menção]. Considere agora os
males dos quais Deus tem conhecimento. Visto que Deus é moral-
mente perfeito, ele tem de desejar que esses males não existam – a
não existência deles tem de ser o que ele quer. E um ser onipotente
pode conseguir ou realizar tudo o que quer – ou, pelo menos, tudo

155
O problema do mal | Peter van Inwagen

o que quer que seja intrinsicamente possível. E a não existência do


mal, a não existência de coisas más, é obviamente possível. Portanto,
se houvesse um ser onipotente e moralmente perfeito que soubesse
dos males dos quais temos conhecimento – bem, nesse caso, esses
males sequer teriam surgido, pois esse ser teria impedido a ocor-
rência deles. Ou se por alguma razão esse ser não impedisse que os
males surgissem, ele certamente teria removido os males logo que
ocorressem. Contudo, constatamos a existência de males de longa
duração. Portanto, temos de concluir que Deus não existe.

O que o Teísta – que concede que o mundo contém uma enorme


quantidade de mal verdadeiramente horrível – dirá em resposta? Penso
que ele poderia começar com um ponto óbvio sobre as relações entre o
que se quer, o que se pode fazer, e o que se quer, no caso, fazer:

Concedo que, em certo sentido, a não existência do mal tem de ser o


que um ser perfeitamente bom quer. Mas frequentemente não reali-
zamos estados de coisas que podemos e queremos realizar. Suponha,
por exemplo, que a mãe de Alice está morrendo com dores intensas,
e que Alice desesperadamente anseia a morte da mãe – hoje, e não
na próxima semana, ou no próximo mês. E suponha que é fácil
para Alice conseguir isso – ela pode ser médica ou enfermeira e ter
acesso fácil a recursos farmacêuticos que permitiriam a ela provocar
a morte da mãe. Segue-se que ela irá agir conforme a capacidade
que tem? É óbvio que não se segue, pois Alice poderia ter razões
para não fazer o que ela pode fazer. Dois candidatos óbvios para
essas razões são: ela pensa que seria moralmente errado; ela teme

156
O argumento global do mal

que a ação seja descoberta e que ela seja processada por assassinato.
E qualquer uma dessas razões poderia ser suficiente, do seu ponto
de vista, para contrabalançar o desejo de por um fim imediato aos
sofrimentos da mãe. Portanto, pode ser que uma pessoa tenha um
desejo muito forte e seja capaz de realizar o que deseja, mas não aja
conforme o desejo – porque tem razões para não agir que, para ela,
superam o caráter desejável do que deseja. Portanto, a conclusão de
que o mal não existe não se segue logicamente das premissas que
afirmam que a não existência do mal é algo que Deus quer e que
ele é capaz de realizar o que deseja – visto que, por tudo o que a
lógica pode nos dizer, Deus poderia ter razões para permitir que
o mal exista, razões que, do ponto de vista dele, superam o caráter
desejável da não existência do mal.

O Teísta começa a sua réplica com essas palavras. Mas ele tem
de dizer mais do que isso, pois se deixamos agora a Ateísta tomar a
palavra, ela poderia argumentar de modo prima facie plausível a favor
destas duas conclusões: que um Criador moralmente perfeito faria de
tudo para impedir o sofrimento das suas criaturas, e que o sofrimento
das criaturas poderia não ser um meio necessário para qualquer fim
almejado por um ser onipotente. Portanto, o Teísta tem de dizer algo
que torne plausível acreditar que haveria tais razões. No entanto, antes
de permitir que ele faça isso, repasso a terminologia que introduzi na
primeira conferência, que nos ajudará a entender a estratégia geral que
o Teísta seguirá na discussão das razões de Deus para permitir o mal.
Suponha que eu acredite em Deus e na real existência do
mal. Suponha ainda que eu acredite saber quais são as razões de Deus

157
O problema do mal | Peter van Inwagen

para permitir que o mal ocorra e conte a você essas razões. Então
apresentei a você uma teodiceia. (Aqui, uso “teodiceia” no sentido de
Plantinga. Vários autores, Richard Swinburne e eu mesmo entre eles,
pensaram que seria útil usar a palavra com sentido diferente. Nestas
conferências, contudo, continuarei com o uso que a obra de Plantinga
tornou mais ou menos padrão nas discussões filosóficas sobre o argu-
mento do mal). Se eu apresentar uma teodiceia e se a audiência à qual
apresento essa teodiceia julgá-la convincente, eu teria uma réplica efetiva
ao argumento do mal, pelo menos em relação a essa audiência. Mas
suponha que, embora acredite em Deus e no mal, eu não reivindique
saber quais seriam as razões de Deus para permitir o mal. Para uma
pessoa nessa posição, há um modo de responder ao argumento do mal?
Sim. Considere esta analogia.
Clarissa, uma de suas amigas, é mãe solteira, e deixa os dois filhos
pequenos sozinhos em casa por várias horas tarde da noite. Tia Harriet,
uma senhora de princípios morais severos, fica sabendo disso e declara
que Clarissa é incapaz de cuidar dos filhos. Você defende a amiga:
“Tia Harriet, não tire conclusões precipitadas. Há provavelmente uma
boa explicação para isso. Pode ser que um dos filhos estivesse doente e
ela resolveu ir até o hospital para buscar ajuda. Você bem sabe que ela
não tem telefone e nem carro, e ninguém na vizinhança dela atenderia
a campainha às duas horas da manhã”. Se você contar à tia Harriet uma
história dessas, você não diz que sabe quais são realmente as razões de
Clarissa para deixar as crianças sozinhas. E também não reivindica
ter mostrado que Clarissa é uma boa mãe. Você só mostra que o fato
que a tia Harriet aduziu não prova que Clarissa não é uma boa mãe;
o que você tenta estabelecer é que, até onde você e a tia Harriet sabem,

158
O argumento global do mal

ela teria uma boa razão para o que fez. E você não tenta estabelecer
apenas que há alguma remota possibilidade de que ela tivesse uma boa
razão. Nenhum advogado de defesa tentaria levantar dúvidas nas mentes
dos membros do júri propondo a eles que, até onde sabem, o acusado
teria um irmão gêmeo idêntico, do qual todos os registros teriam sido
perdidos, e que ele foi a pessoa que realmente cometeu o crime do qual
o seu cliente é acusado. Essa pode ser uma possibilidade – suponho que
seja uma possibilidade –, mas ela é uma possibilidade muito remota para
levantar dúvidas reais nas mentes das pessoas. O que você tenta fazer
é convencer a tia Harriet de que há uma possibilidade muito real de que
Clarissa tenha uma boa razão para deixar os filhos sozinhos; e a sua
tentativa de convencê-la disso consiste na apresentação de um exemplo
de qual poderia ser essa razão.
As respostas críticas ao argumento do mal – pelo menos as res-
postas dos filósofos – normalmente têm essa forma. Tipicamente, um
filósofo responde ao argumento do mal contando uma história, uma
história em que Deus permite que o mal exista. Obviamente, essa his-
tória representará Deus como tendo razões para permitir a existência
do mal, razões que, se o restante da história fosse verdadeiro, seriam
boas razões. Uma história dessas é chamada pelos filósofos de “defesa”.
Se eu ofereço uma história sobre Deus e o mal como uma defesa,
espero a seguinte reação da audiência: “Dada a existência de Deus, o
resto da história poderia ser verdadeiro. Não vejo qualquer razão para
excluir essa possibilidade”. Espero que a razão para essa reação deva
ser clara. Se a história que contei é verdadeira, então o argumento do
mal (qualquer versão do argumento do mal) tem uma premissa falsa.
Mais precisamente: dado que o argumento do mal seja logicamente

159
O problema do mal | Peter van Inwagen

válido (ou seja, dado que a conclusão do argumento se siga logicamente


das premissas), pelo menos uma das premissas do argumento tem de
ser falsa se a minha história, ou seja, a minha “defesa”, for verdadeira.
Portanto, se a minha audiência reagir à minha história sobre Deus e o
mal como espero que reagirá, ela tirará imediatamente a conclusão que
quero que tire: a conclusão de que, até onde ela sabe, pelo menos uma
das premissas do argumento do mal é falsa.7
Algumas pessoas, se estão familiarizadas com a condução usual
dos debates sobre os argumento do mal, podem ficar surpresas por eu
introduzir logo no início a noção de “uma possibilidade muito real”
em meu debate ficcional. Tornou-se quase um costume dos críticos do
argumento do mal discutir primeiro o assim chamado “problema lógico
do mal”, o problema de encontrar uma defesa que não precise satisfazer

7
Disse que as respostas críticas dos filósofos ao argumento do mal usualmente consistem em
apresentações de defesas. Até onde vejo, há só mais uma maneira diferente do filósofo se opor ao
argumento do mal: apresentando um argumento para a existência de Deus que seja convincente
de tal modo que as pessoas racionais que consideram ambos os argumentos cuidadosamente con-
cluam ou que uma das premissas do argumento do mal tem de ser falsa ou pelo menos que uma
ou mais premissas do argumento para a existência de Deus pode ser falsa. Em minha opinião, no
entanto, essa possibilidade não é uma possibilidade real, pois nenhum argumento conhecido para a
existência de Deus é suficientemente convincente para ser usado com esse propósito. Eu defendo
essa tese do seguinte modo. Os únicos argumentos conhecidos para a existência de Deus cujas
conclusões são inconsistentes com a conclusão do argumento do mal são as várias formas do argu-
mento ontológico. (Mesmo se os argumentos cosmológico e do desígnio, por exemplo, provarem
as suas conclusões além de toda a dúvida, poderia ser o caso que a Causa Primeira ou o Grande
Arquiteto cuja existência eles provam não fosse moralmente perfeito. Estritamente falando, um
ateísta pode consistentemente aceitar as conclusão desses dois argumentos). E todas as versões
do argumento ontológico além do “argumento modal” são irremediavelmente deficientes de um
ponto de vista lógico. Em relação ao argumento ontológico modal, não parece haver razão para
uma pessoa que não acredita “antecipadamente” em Deus aceitar a sua premissa (que a existência
de um ser necessário que possui todas as perfeições essencialmente é metafisicamente possível).

160
O argumento global do mal

nenhuma condição mais forte do que ser livre da contradição lógica


interna; depois de lidar com esse problema até ficarem satisfeitos, como
sempre ficam, os críticos seguem adiante e discutem o assim chamado
“problema indiciário (ou probabilístico) do mal”, o problema de encon-
trar uma defesa que (entre outras características desejáveis) representa,
como eu disse, uma possibilidade real. Se advogados de defesa seguissem
uma estratégia paralela nos tribunais de justiça, eles tentariam provar
primeiro que a inocência dos seus clientes é logicamente consistente
com a evidência contando histórias (apresentando “histórias alternativas
do crime”) envolvendo coisas como gêmeos separados no nascimento,
coincidências dramáticas e telepatia; e só depois de mostrar que a ino-
cência dos clientes é logicamente consistente com a evidência, eles
iriam adiante e tentariam levantar dúvidas reais sobre a culpabilidade
dos clientes nas mentes dos jurados.
Como eu disse na primeira conferência, acho essa divisão do pro-
blema artificial e inútil – mas percebo que é fácil entender por que ela
surge. Ela surge porque as primeiras tentativas de usar o argumento
do mal para provar a não existência de Deus – quer dizer, as primeiras
tentativas dos filósofos analíticos – eram tentativas de provar que a
afirmação “Deus e o mal coexistem” era logicamente autocontraditória.
E muitos filósofos – como Nelson Pike e Alvin Plantinga – tentaram
mostrar que essas supostas provas de autocontradição lógica não eram
convincentes.8 O debate evoluiu muito rapidamente desse esse estágio
lógico inicial para a discussão de uma questão muito mais interessante

8
Veja Flew (1955), Mackie (1955), McCloskey (1960), Pike (1963) e Plantinga (1965).

161
O problema do mal | Peter van Inwagen

sobre a probabilidade da verdade da afirmação de que Deus e o mal


coexistem ou sobre a racionalidade da crença nessa afirmação. Até hoje,
discussões do problema do mal tendem a recapitular esse episódio na
evolução da discussão do argumento do mal.
Visto que acho essa distinção artificial e inútil, não permitirei que
ela dite a forma que irá tomar a minha discussão do argumento do mal.
Entro direto no problema indiciário (como ele é chamado; não usarei
esse termo) sem qualquer consideração do problema lógico. Ou sem
nenhuma consideração desse problema enquanto tal, nenhuma consi-
deração dele sob a rubrica “o problema lógico do mal”. Quem conhece
a história das discussões do argumento do mal nos anos 1950 e 1960
verá que muitas das observações que faço, ou deixo a Ateísta e o Teísta
fazerem, primariamente eram feitas nas discussões do problema lógico.
Então vamos. A resposta do Teísta é uma tentativa de apresentar
uma ou mais defesas e a sua expectativa é que a reação da audiência de
agnósticos a essa defesa ou a essas defesas será dizer: “Dada a existência
de Deus, o resto da história poderia ser verdadeiro. Não vejo qualquer
razão para excluí-la”. Que forma poderia ter uma defesa plausível (uma
defesa tendo uma chance real de induzir essa reação na audiência de
agnósticos neutros seguindo um debate ideal)?
Um ponto é bastante claro: uma defesa não pode simplesmente ser
uma história sobre como Deus retira dos males deste mundo algum bem
maior, um bem que supera esses males. Uma defesa tem de incluir pelo
menos a proposição de que Deus seria incapaz de realizar o bem maior
sem permitir os males que observamos (ou alguns outros males tão maus
ou piores). E encontrar uma história da qual se possa plausivelmente
dizer que ela tem essa característica não é uma tarefa trivial. O porquê

162
O argumento global do mal

disso está na onipotência de Deus. Muitas vezes, um ser humano pode


ser desculpado por permitir ou causar certo mal se esse mal for um
meio necessário para, ou uma consequência inevitável de, algum bem
que supera esse mal – ou se for um meio necessário de impedir algum
mal maior. Um cirurgião do século XVIII que opera sem anestesia causa
uma dor inimaginável ao paciente, porém não o condenamos, porque
(pelo menos se sabemos o que ele faz) a dor é uma consequência ine-
vitável dos meios necessários para um bem que a supera – salvar a vida
do paciente, por exemplo. Mas não há desculpa para um cirurgião dos
dias de hoje que, tendo anestésicos à mão, opere sem usá-los – nem
mesmo se a operação salvar a vida do paciente e, assim, resultar em um
bem que supere a dor horrível que o paciente sofre.
Muitas das teodiceias e defesas que encontramos não dão devida
atenção a esse ponto. Muitos dos alunos na Universidade de Notre
Dame, por exemplo, parecem inclinados a dizer algo como o seguinte:
se não houvesse o mal, ninguém apreciaria a bondade das coisas que
são boas – talvez ninguém sequer tivesse consciência dessa bondade.
Essa ideia é conhecida: você jamais aprecia realmente a saúde até ficar
doente, jamais entende realmente que coisa grandiosa e bela é a amizade
até conhecer a adversidade e saber o que é ter amigos que ficam ao seu
lado durante todo o tempo – e assim por diante. A crítica óbvia dessa
defesa é tão imediatamente óbvia que tende a mascarar o ponto que me
leva a colocá-la. A crítica imediatamente óbvia é que essa defesa pode
explicar certa quantidade de, por exemplo, dor física, mas certamente
não explica o grau e a duração da dor à qual muitas pessoas estão sujei-
tas – e não explica o fato de que a muitas das pessoas que experienciam
dores físicas horríveis não parecem ser concedidos bens subsequentes

163
O problema do mal | Peter van Inwagen

dos quais elas possam gozar. Por exemplo, se os seis meses finais de
vida de um homem que morre de câncer são um capítulo contínuo de
dor excruciante, dificilmente se pode dizer que a defesa da “apreciação”
(podemos assim chamá-la) oferece uma explicação plausível da razão
de Deus para permitir que a vida de uma pessoa termine desse jeito.
(Devo admitir que essa consideração não é conclusiva: provavelmente,
os estudantes de Notre Dame acrescentariam à defesa deles a tese de
que o sofredor aprecia melhor os bens do Céu por causa dos sofrimentos
terrenos). Mas introduzi a defesa da “apreciação” na discussão – que de
outro modo não valeria a pena discutir – para fazer uma consideração
diferente. Não é de forma nenhuma evidente que um criador onipotente
precisaria permitir que as pessoas realmente experimentassem qualquer
dor ou aflição ou tristeza ou adversidade ou doença para capacitá-las a
apreciar as boas coisas da vida. Decerto, um ser onipotente poderia ser
capaz de oferecer por meios diferentes um conhecimento do mal que
os seres humanos de fato adquirem por meio de experiências amargas
de eventos reais. Um ser onipotente poderia, por exemplo, providen-
ciar que, em certo ponto da vida de cada um de nós – por alguns anos
durante a adolescência, por exemplo – ocorram pesadelos absolutamente
convincentes nos quais somos prisioneiros em algum campo de concen-
tração ou morremos de alguma doença horrível ou vemos as pessoas que
amamos sendo violentadas e assassinadas por soldados determinados
a fazer uma limpeza étnica. Se esses sonhos “valerão a pena”, isso eu
não sei. Ou seja, não sei se as pessoas no mundo em que nada de mau
acontecesse de verdade estariam em uma situação melhor tendo esses
pesadelos – se os pesadelos as levariam a apreciar as coisas boas da vida
que superam o desprazer intrínseco de tê-los. Mas parece claro que um

164
O argumento global do mal

mundo em que coisas horríveis ocorressem só em pesadelos seria melhor


do que um mundo em que as mesmas coisas horríveis ocorressem na
realidade, e que um ser moralmente perfeito deveria preferir, tudo o mais
sendo o mesmo, um mundo em que coisas horríveis fossem confinadas
aos sonhos ao mundo em que elas existissem na realidade. O que esse
exemplo visa ilustrar é que os recursos de um ser onipotente são ilimi-
tados – ou só são limitados pelo que é intrinsicamente possível – e que
uma defesa tem de levar em conta esses recursos ilimitados.
Parece-me que há uma única defesa que podemos esperar que seja
bem-sucedida; ela é a defesa do livre-arbítrio.9 Dizendo isso, coloco-me

9
Mas há outras defesas, embora nenhuma delas tenha sido tão cuidadosamente desenvolvida
ou extensamente examinada como a defesa do livre-arbítrio. Por exemplo, há a defesa de
“plenitude”: o Princípio de Plenitude requer que Deus crie todos os mundos em que o bem
supera o mal; o mundo que habitamos é um desses mundos; há muitos outros mundos criados,
em alguns dos quais o bem supera o mal muito mais decisivamente do que o faz em nosso
mundo, e em alguns dos quais ele escassamente supera o mal. Versões da defesa da plenitude
são apresentadas por Donald A. Turner no artigo “The many-universes solution to the pro-
blem of evil” (2003) e por Hud Hudson no livro The metaphysics of hyperspace, (2006). Há a
recente defesa “felix culpa” de Alvin Plantinga de acordo com a qual os males do mundo são
uma condição necessária para o imensuravelmente grandioso bem da Encarnação. (Veja o
artigo de Plantinga “Supralapsarianism, or ‘O Felix Culpa’” (2004)). Há a defesa “calvinista
radical” de acordo com a qual Deus decreta o mal a fim de que a sua glória possa ser mos-
trada na derrota final do mal; todos os seres criados que sofrem, sofrem justamente (a defesa
sustenta) porque Deus criou-os com vontades más – para demonstrar a sua glória e poder
na vitória final sobre eles –, e os sofrimentos deles são punições coordenadas às más ações
que as vontades más os levaram a realizar. (Um estudante em Notre Dame, Christopher
Green, defendeu essa posição no trabalho final de um seminário sobre o problema do mal,
e a tornou mais plausível do que eu havia inicialmente pensado. Uma versão posterior desse
trabalho, intitulada “A compatibilist-calvinist demonstrative-goods defense”, foi apresentada
em 2003 no encontro da Sociedade dos Filósofos Cristãos. Ela ainda não foi publicada).
Para o trabalho recente sobre a defesa do livre-arbítrio, incluindo o trabalho seminal de Alvin
Plantinga, veja Adams e Adams (1990), e Peterson (1992).

165
O problema do mal | Peter van Inwagen

em uma longa tradição que remonta pelo menos a Agostinho, embora eu


não me proponha, como o fazem muitos autores dessa tradição, a ofere-
cer uma teodiceia. Não digo que sei que o livre-arbítrio tem um papel
central nas razões de Deus para permitir a existência do mal. Emprego
a defesa do livre-arbítrio exatamente como uma defesa, uma história
que inclui Deus e o mal e que, dada a existência de Deus, é verdadeira
até onde se sabe. Se tenho algo a acrescentar ao que outros autores
dessa tradição disseram, isso se deve ao fato (firmemente acredito que
se trata de um fato) de que hoje entendemos melhor o livre-arbítrio
do que os filósofos e teólogos do passado. Se você conhecer a minha
obra sobre o problema do livre-arbítrio, poderá ficar surpreso com essa
afirmação, pois sempre insisti (embora nem sempre tão explicitamente
e veementemente como venho fazendo nos últimos tempos) que o
livre-arbítrio é um mistério, algo que não entendemos bem. Portanto,
não estarei dizendo que agora entendemos algo que não entendemos
melhor do que os filósofos costumavam entender? E não é uma forma
de obscurantismo argumentar a favor da conclusão de que o argumento
do mal, que é um argumento muito fácil de entender, é um fracasso
contando uma história que essencialmente envolve um mistério?

A defesa do livre-arbítrio deriva-se de Agostinho. Uma coleção bastante útil de escritos


sobre o livre-arbítrio e a origem do mal (de A Cidade de Deus e Enchiridion) é encontrada
em Melden (1955, p. 164-177).
Três tratamentos extensivos do problema do mal, todos na tradição agostiniana (ou tradição
do livre-arbítrio), são: Lewis (1940), Geach (1977) e Swinburne (1998).
[O leitor encontrará um estudo amplo e detalhado da tradição agostiniana da teodiceia em
O mal e o deus do amor, de John Hick (N. T.)]

166
O argumento global do mal

Essas são boas questões, mas também estou confiante de que


tenho boas respostas para elas. O que quero dizer quando digo que o
livre-arbítrio é um mistério é que qualquer pessoa que tenha pensado
cuidadosamente sobre o problema do livre-arbítrio e tenha chegado a
uma conclusão detalhada e sistemática o bastante para ser chamada de
teoria do livre-arbítrio tem de aceitar alguma proposição que parece
ser autoevidentemente falsa. Ou seja, quando adotamos uma teoria
do livre-arbítrio, escolhemos qual proposição aparentemente autoevi-
dentemente falsa aceitamos. E essa escolha não pode ser evitada pela
aceitação de alguma teoria do livre-arbítrio deflacionária ou “do senso
comum” ou naturalista. Pois nesse caso também escolhemos uma teoria
do livre-arbítrio e, se estou certo, escolhemos aceitar uma proposição
que parece ser autoevidentemente falsa. Mas essa é uma tese contro-
versa; quer dizer, é controverso que o livre-arbítrio seja nesse sentido
um mistério. Felizmente, o uso que farei da defesa do livre-arbítrio nes-
tas conferências não dependerá disso. Menciono a tese somente para
absolver-me da crítica de contradição, pois acredito que é consistente
dizer que o livre-arbítrio é nesse sentido um mistério e que hoje os filó-
sofos entendem o livre-arbítrio melhor do que os filósofos do passado.
Creio ter uma compreensão filosófica melhor do livre-arbítrio do que
tiveram, por exemplo, Agostinho e Aquino. Quero dizer com isso que,
embora julgue que o livre-arbítrio é um mistério impenetrável, tenho à
minha disposição uma família melhor de ideias, um conjunto de termos
técnicos não ambíguos, precisamente definidos e mais úteis relaciona-
dos ao problema do livre-arbítrio do que tinham Agostinho e Aquino.
E tenho conhecimento de todos os tipos de argumento relacionados ao

167
O problema do mal | Peter van Inwagen

livre-arbítrio que eram desconhecidos (ou só vagamente, grosseiramente


formulados) antes da década de 1960.
Em relação à crítica de obscurantismo – bem, o livre-arbítrio é uma
coisa real. (Se alguém nega que exista o livre-arbítrio, essa é uma teoria
do livre-arbítrio, ou uma parte importante de uma teoria, e ela compro-
mete os seus adeptos a uma proposição aparentemente autoevidente-
mente falsa de que o livre-arbítrio não existe). Obviamente, incluirei na
minha versão da defesa do livre-arbítrio (isto é, na versão da defesa do
livre-arbítrio que colocarei na boca do Teísta), algumas afirmações que
implicam a existência do livre-arbítrio. Em minha opinião, no entanto,
acerca de nenhuma dessas afirmações se pode dizer que sabemos que
ela é falsa ou provavelmente falsa ou que não é razoável acreditar nela.
É importante lembrar que a defesa do livre-arbítrio é uma defesa e não
uma teodiceia, e quem oferece uma defesa não é obrigado a incluir nela
só afirmações que sabe que são verdadeiras. Por exemplo, suporei que o
livre-arbítrio é incompatível com o determinismo, mas essa não é uma
tese que se sabe ser falsa. Há argumentos filosóficos que podem ser
aduzidos contra o “incompatibilismo”, mas o fato é bem acomodado em
minha metodologia, porque o Teísta introduz a ideia do livre-arbítrio
no contexto de um debate: a Ateísta é livre para chamar a atenção dos
agnósticos para esses argumentos contra o incompatibilismo.
Voltemos então ao debate. Imagino o Teísta apresentando uma
forma simples de defesa do livre-arbítrio; perguntarei na sequência o
que a Ateísta pode dizer em resposta a essa apresentação:

Deus criou o mundo e viu que era bom. Uma parte indispensável
da bondade do mundo que escolheu criar era a existência dos seres

168
O argumento global do mal

racionais: seres autoconscientes capazes de pensamento abstrato e


amor e com o poder de escolher livremente entre cursos de ação
alternativos. Certamente, essa característica dos seres racionais, a
livre-escolha ou o livre-arbítrio, é um bem. Mas mesmo um ser
onipotente é incapaz de controlar o exercício do poder da livre-
-escolha, pois uma escolha que é controlada não é ipso facto livre.
Em outras palavras, se tenho uma livre-escolha entre x e y, mesmo
Deus não pode assegurar que eu escolha x. Pedir a Deus que me
dê uma livre-escolha entre x e y e providencie que eu escolha x em
vez de y é pedir a Deus para realizar o intrinsicamente impossível;
isso é como pedir a ele para criar um quadrado redondo, um corpo
material que não tenha forma, ou um objeto invisível que tenha
sombra. Tendo esse poder de livre-escolha, alguns, ou todos os seres
humanos, abusam dele e produzem certa quantidade de mal. Porém
o livre-arbítrio é um bem tão suficientemente grande que supera
os males que resultaram e resultarão do mau uso do livre-arbítrio;
e Deus previu isso.

Devemos notar que a defesa do livre-arbítrio depende da concep-


ção tomista, oposta à concepção cartesiana, da onipotência, pois, de
acordo com Descartes, um ser onipotente pode realizar o intrinsica-
mente impossível. Mas essa não é uma objeção real à defesa do Teísta.
Ao adotar a concepção tomista da onipotência, o Teísta, de fato, torna
as coisas mais difíceis para ele mesmo – porque, na concepção cartesiana
de onipotência, é absurdamente fácil responder ao argumento do mal em
qualquer uma das suas formas. (Digo que responder ao argumento do
mal é absurdamente fácil porque a concepção cartesiana da onipotência

169
O problema do mal | Peter van Inwagen

é absurda). O cartesiano só precisa dizer que não há o mal. Certamente,


ao dizer que não há o mal, ele não precisa concordar com Leibniz e Pope,
que se recusam a dizer que há o mal. Ele pode tranquilamente dizer que
não há o mal – e também que há o mal. Afinal, se Deus pode fazer com
que o mal exista e não exista, quem poderá dizer que ele realmente não
fez exatamente isso? (Bem, Descartes diz que Deus, de fato, não tornou
proposições autocontraditórias verdadeiras, mas essa tese não é inerente
à sua teoria da onipotência). “Mas um Deus moralmente bom, mesmo
se pudesse tornar contradições verdadeiras, não faria o mal existir e o
mal não existir ao mesmo tempo; ele faria algo melhor: ele faria o mal
não existir, e não faria o mal existir; ele faria com que não houvesse
nenhum mal”. “Concordo”, replica o teodicista cartesiano, “porém isso
não depõe contra o meu argumento, pois Deus fez justamente isso”.
“Mas isso contradiz o que você disse há pouco. Você disse que Deus fez
o mal existir e o mal não existir, e agora você diz que o que ele fez foi que
não houvesse nenhum mal”. “Sim”, replica o teodicista cartesiano, “essa
é uma contradição plena. Mas não há nada de errado em afirmar uma
contradição se ela for verdadeira, e essa contradição que acabei de afirmar
é verdadeira, porque Deus a tornou uma verdade. Como você bem sabe,
Deus é onipotente”. E não há uma réplica ao teodicista cartesiano; uma
réplica é uma espécie de discurso racional, e qualquer pessoa que, como
o teodicista cartesiano, afirma a verdade de contradições, tem recursos
de sobra para tornar impossível o discurso racional sobre o argumento
do mal (ou sobre qualquer outro tópico).10 Mas vamos deixá-lo de lado

10
Note que eu não digo que a afirmação da verdade de contradições torna o debate racional
impossível. Esse pode ser ou não o caso, mas afirmar que esse é o caso não faz parte do meu

170
O argumento global do mal

e pressupor a explicação tomista da onipotência, que pelo menos torna


possível um discurso racional sobre o que um ser onipotente pode fazer.
A apresentação do Teísta da defesa do livre-arbítrio imediatamente
sugere várias objeções. Duas objeções que imediatamente ocorreriam à
maioria das pessoas são as seguintes:

Como alguém poderia possivelmente acreditar que os males deste


mundo são superados pelo bem inerente ao livre-arbítrio? Talvez o
livre-arbítrio seja um bem e superaria, nas palavras do Teísta, “certa
quantidade de mal”, mas parece impossível acreditar que ele possa
superar a quantidade de sofrimentos físicos (para não dizer nada
sobre os outros tipos de males) que realmente ocorrem no mundo.

Nem todos os males são resultados do livre-arbítrio humano.


Considere, por exemplo, o terremoto de Lisboa ou a miséria quase
inconcebível e a perda trágica de vidas humanas causadas pelo tsu-
nami asiático em dezembro de 2004. Esses eventos não são resulta-
dos de qualquer ação da vontade humana, livre ou não livre.

argumento. Lógicos paraconsistentes não precisam ficar ofendidos. Disse que alguém que
afirma a verdade de contradições tem os meios para tornar um debate racional impossível.
Alguém que afirma contradições sem dúvida afirmará outras coisas também, e algumas dessas
coisas podem impedir que ela faça uso desses “meios”. Note, contudo, que o diálogo no texto
não representa o teodicista cartesiano que afirma contradições fazendo uso do princípio de
que qualquer coisa se segue de uma contradição. Até onde vejo, ele não afirma nada, não dá
nenhum passo dialético, que poderia ser disputado pelos “amigos das verdadeiras contradições”.

171
O problema do mal | Peter van Inwagen

Em minha opinião, a forma simples da defesa do livre-arbítrio


que coloquei na boca do Teísta é incapaz de lidar com qualquer uma
dessas objeções. No melhor dos casos, a forma simples da defesa do
livre-arbítrio pode lidar com a existência de algum mal – em oposi-
ção à enorme quantidade de mal que realmente observamos –, e o
mal com o qual ela pode lidar é apenas o mal causado por ações dos
seres humanos. Acredito, no entanto, que formas mais sofisticadas da
defesa do livre-arbítrio têm mais coisas interessantes a dizer sobre a
enorme quantidade de mal no mundo e sobre esses males que não são
causados pelos seres humanos. Contudo, antes de discutir essas formas
“mais sofisticadas” da defesa do livre-arbítrio, quero examinar algumas
objeções levantadas contra a defesa do livre-arbítrio que são tão funda-
mentais que, se forem válidas, refutariam qualquer elaboração da defesa,
não importando quão sofisticada ela seja. Essas objeções têm a ver com
a natureza do livre-arbítrio. Não introduzirei essas objeções no meu
diálogo entre Ateísta e Teísta porque – em minha opinião – elas não
têm muita força, e não quero ser acusado de assassinar personagens de
ficção; a minha Ateísta tem argumentos mais interessantes à disposi-
ção. Mesmo assim, vou discutir esses argumentos. Discutirei um deles
porque ele teve um papel importante em debates antigos sobre o argu-
mento do mal. (Do meu ponto de vista paroquial, os debates “antigos”
sobre o argumento do mal aconteceram nas décadas de 1950 e 1960).
Discutirei os outros porque, embora não se possa dizer que tiveram um
papel importante no debate, eles têm certa popularidade. Visto que,
assim como o primeiro, eles envolvem problemas filosóficos sobre o
livre-arbítrio, será conveniente discuti-los em conexão com o primeiro.

172
O argumento global do mal

Começarei a próxima conferência com a discussão desses três


argumentos: primeiramente, discuto o argumento no qual se afirma que
um ser onipotente e onisciente poderia realmente determinar as livres
escolhas das suas criaturas, visto que o livre-arbítrio é compatível com
o determinismo; em segundo lugar, o argumento no qual se afirma que,
embora o livre-arbítrio e o determinismo sejam incompatíveis, Deus
é capaz de assegurar que os seres humanos livremente escolham certo
curso de ação em vez de outro sem determinar as ações deles (pois ele
teria o que se chama de “conhecimento intermediário”); finalmente, o
argumento no qual se afirma que a defesa do livre-arbítrio é logicamente
autocontraditória, visto que a onisciência de Deus é incompatível com
o livre-arbítrio.

173
CONFERÊNCIA 5
O argumento global do mal (continuação)

Eu disse na última conferência que começaria esta conferência com


a discussão de três problemas envolvendo o livre-arbítrio.
O primeiro deles surge com a afirmação de que o livre-arbítrio
é compatível com o determinismo causal estrito, ou seja, a tese de
que o passado e as leis da natureza conjuntamente determinam um
único futuro. Muitos filósofos – Hobbes, Hume e Mill são os repre-
sentantes mais ilustres dessa escola – sustentaram que o livre-arbítrio
e o determinismo eram perfeitamente compatíveis: poderia haver um
mundo no qual a cada instante o passado determinasse um único futuro
e, mesmo assim, os habitantes desse mundo seriam seres livres.1 E se os
representantes dessa escola de filosofia estão certos, a defesa do livre-
-arbítrio fracassa, pois se o livre-arbítrio e o determinismo forem com-
patíveis, então um ser onipotente pode, contrariamente à tese central da
defesa do livre-arbítrio, criar uma pessoa que tenha uma livre-escolha
entre x e y e assegurar que ela escolha x em vez de y. Os filósofos que
aceitam a compatibilidade do livre-arbítrio com o determinismo defen-
dem a tese deles deste modo: ser livre é ser livre para fazer o que se quer

1
A literatura sobre o problema do livre-arbítrio é enorme – mesmo se nos limitamos ao
trabalho recente dos filósofos analíticos. Talvez seja natural que eu recomende o meu livro
An essay on free will (1983) como um ponto de partida. Trabalhos mais recentes e amplas
referências podem ser encontrados em Ekstrom (2001), Kane (2002) e Watson (2003).
O problema do mal | Peter van Inwagen

fazer. Os prisioneiros encerrados nas suas celas, por exemplo, não são
livres porque querem sair e não podem. Uma pessoa que desesperada-
mente quer parar de fumar mas não pode não é livre pela mesma razão
– mesmo que nenhum impedimento tão concreto quanto os muros da
prisão se encontre entre ela e a vida sem nicotina. A própria expressão
“livre-arbítrio” testemunha a correção dessa análise, pois o arbítrio é a
resolução da vontade, a vontade de uma pessoa é simplesmente o que
ela quer, e o livre-arbítrio, portanto, é exatamente a resolução de uma
vontade desimpedida. Dada essa explicação do livre-arbítrio, um Criador
que queira me dar a livre-escolha entre x e y teria apenas de ajeitar as
partes do meu corpo e o meu ambiente de tal modo que as seguintes
condicionais fossem ambas verdadeiras: se quisesse x, eu teria sido capaz
de realizar esse desejo; e se quisesse y, eu teria sido capaz de realizar esse
desejo. E o Criador que queira assegurar que eu escolha x em vez de y
só precisa colocar em mim um desejo robusto de x e providenciar que
eu não tenha qualquer desejo de y. Obviamente, essas duas coisas são
compatíveis. Por exemplo, suponha que um Criador tenha colocado uma
mulher em um jardim e ordenado que ela não comesse o fruto de certa
árvore. Ele poderia ajeitar as coisas de tal modo que ela tivesse não só a
livre-escolha entre comer o fruto da árvore e não comer esse fruto, mas
também assegurar que ela não o comesse? É claro que sim. Para oferecer
a ela uma livre-escolha entre as duas alternativas, o Criador deveria
providenciar a verdade de duas coisas. Ele deveria providenciar que,
se ela quisesse comer o fruto da árvore, não haveria obstáculos (como
uma cerca enorme ou a paralisia de um membro) que a impedissem
de agir em conformidade com o desejo, e também que, se ela quisesse
não comer o fruto, nada a forçaria a agir contrariamente a esse desejo.

176
O argumento global do mal (continuação)

E para assegurar que ela não comesse o fruto, ele só teria de providen-
ciar que o desejo dela fosse não comer o fruto. Este último objetivo
poderia ser alcançado de várias maneiras; suponho que a maneira mais
simples seria dizer a ela para não comer o fruto depois de ter inculcado
nela um forte desejo de fazer tudo o que ele diz a ela para fazer e um
horror à desobediência – um horror similar ao que é experimentado
pelo agorafóbico quando chega perto de um precipício. Portanto, um
ser onipotente e onisciente poderia fazer com que cada criatura com
livre-arbítrio sempre agisse livre e corretamente, não haveria o mau uso
do livre-arbítrio, e o mal não poderia ter entrado no mundo por meio
do mau uso que as criaturas fizessem dessa dádiva. E isso é o que um ser
moralmente perfeito faria necessariamente – pelo menos assumindo que
o livre-arbítrio é um bem que um Criador moralmente perfeito desejou
incluir na criação. Portanto, a assim chamada “defesa do livre-arbítrio”
não é uma defesa afinal, pois ela é uma história impossível.
Esse é um argumento a favor da conclusão de que a defesa do livre-
-arbítrio essencialmente incorpora uma proposição falsa. Mas temos de
perguntar se a explicação do livre-arbítrio que está na base desse argu-
mento é plausível. Penso que ela não seja muito plausível. Ela certamente
gera conclusões estranhas. Considere os membros das ordens sociais
inferiores no Admirável Mundo Novo, os deltas e os épsilons. Essas
pessoas desafortunadas têm os seus desejos mais profundos escolhidos
pelos alfas, que formam o estrato social superior. O que os deltas e os
épsilons primariamente desejam é fazer o que os alfas (e os inspetores
do trabalho deles, os betas e os gamas) dizem a eles para fazer. Eles têm
esse desejo porque ele é imposto por um condicionamento pré-natal e
pós-natal. (Se Huxley escrevesse hoje, teria acrescentado a engenharia

177
O problema do mal | Peter van Inwagen

genética à lista de recursos dos alfas para determinar os desejos dos


seus escravos complacentes). É difícil dizer que seres seriam mais bem
ajustados à descrição “sem livre-arbítrio” do que os deltas e os épsilons de
Admirável Mundo Novo. Apesar disso, se a explicação compatibilista do
livre-arbítrio for correta, os deltas e os épsilons não só têm livre-arbítrio,
mas são muito mais livres do que eu e você. Cada um deles sempre faz
exatamente o que quer e, portanto, conforme a explicação compatibilista
do livre-arbítrio, cada um tem uma vida de liberdade perfeita. Obvia-
mente, o que os deltas e épsilons querem é fazer exatamente o que as
pessoas que são hierarquicamente superiores ordenam, mas a explicação
do livre-arbítrio que examinamos não diz nada sobre o conteúdo dos
desejos do agente livre: ela requer apenas que não haja um impedimento
para o agente agir de acordo com esses desejos. Decerto, os deltas e os
épsilons não são muito inteligentes e não seriam capazes de filosofar
sobre a própria condição, mas as técnicas dos alfas poderiam facilmente
ser aplicadas a pessoas muito inteligentes. É interessante perguntar a
quais conclusões elas chegariam se refletissem sobre a condição na qual
se encontram. Se você perguntar a um desses escravos complacentes,
mas muito inteligentes, “Você não vê que você obedece aos senhores só
porque o seu desejo de obedecer foi implantado por condicionamento
pré-natal e engenharia genética?”, penso que ele replicaria dizendo algo
como o seguinte: “Sim, e uma coisa boa é que eles tiveram o cuidado de
colocar em mim o desejo de que os meus desejos fossem assim formados.
Sou realmente muito afortunado: não só faço exatamente o que quero,
mas quero querer o que eu quero, e quero que o que quero seja causado
por condicionamento pré-natal e engenharia genética”. Dificilmente se
pode dizer que esse ser tem livre-arbítrio. Não tenho uma teoria sobre

178
O argumento global do mal (continuação)

o que é o livre-arbítrio – muitos filósofos têm teorias sobre o que é o


livre-arbítrio; elas têm infelizmente a desvantagem de serem erradas
–, porém vejo de modo claro que esse não é um caso de livre-arbítrio.
Portanto, o argumento que consideramos, o argumento a favor da con-
clusão de que um ser onipotente poderia determinar as livres escolhas
das suas criaturas, baseia-se em uma teoria falsa do livre-arbítrio.
Obviamente, o meu argumento para a falsidade da teoria compati-
bilista do livre-arbítrio é um argumento filosófico e, portanto, conforme
o meu próprio depoimento, inconclusivo. Mas é importante lembrar a
situação dialética em que esse argumento inconclusivo ocorre. Você deve
se lembrar de que, ao final da conferência anterior, evitei, por corte-
sia, que a Ateísta respondesse à apresentação do Teísta da defesa do
livre-arbítrio empregando algum dos três argumentos sobre o livre-
-arbítrio que agora consideramos. Mas suponha que a Ateísta tenha
uma irmã mais simples – vou chamá-la de Ateísta Rude –, que Ateísta
Rude e Teísta estejam engajados em um debate, que ela seja simples
o bastante para empregar a resposta compatibilista contra a defesa do
livre-arbítrio e, finalmente, que Teísta retruque à resposta compatibilista
mais ou menos como fiz. Agora, preste muita atenção na sequência
do debate e considere quem é que busca provar alguma coisa, a quem
se oferece a prova e em quais circunstâncias dialéticas ela é oferecida.
Ateísta Rude abriu a discussão buscando convencer os agnósticos da
verdade do ateísmo; para esse fim, ela emprega o argumento global do
mal. Teísta responde com a defesa do livre-arbítrio e afirma que essa
defesa mostra que o mal não prova que Deus não existe. A réplica da
Ateísta Rude é que a reflexão sobre a natureza do livre-arbítrio mostra
que a história chamada de “defesa do livre-arbítrio” é impossível. Teísta

179
O problema do mal | Peter van Inwagen

responde que Ateísta Rude entendeu mal a natureza do livre-arbítrio,


e oferece um argumento filosófico para essa conclusão, um argumento
que, como todo argumento filosófico, não chega a ser uma prova, mas,
apesar disso, parece plausível. Se esse for o final da discussão, parece
que o Teísta levou a melhor. Quando pensamos no caso, constatamos
que, por tudo o que disse a Ateísta Rude, a história da defesa do livre-
-arbítrio pode ser uma história verdadeira – dada a existência de Deus.
Se alguém quisesse mostrar que a história é provavelmente impossí-
vel, essa pessoa deveria mostrar que a teoria do livre-arbítrio proposta
é provavelmente verdadeira. E nem a Ateísta Rude e nem nenhuma
outra pessoa mostrou que a teoria do livre-arbítrio à qual ela apela, a
teoria compatibilista ou teoria da falta de impedimento, é verdadeira
ou provavelmente verdadeira; pois as objeções à teoria do livre-arbítrio
da falta de impedimento mostram que ela enfrenta realmente objeções
muito sérias que nunca foram adequadamente respondidas. Lembre-se
de que é Ateísta Rude e não Teísta que busca provar algo. Ela tenta
provar algo para uma audiência de agnósticos; ela busca provar que
eles deveriam parar de suspender o juízo sobre a existência de Deus
e passar a acreditar que Deus não existe. Teísta só oferece a defesa do
livre-arbítrio visando frustrar a tentativa de estabelecer essa prova. Para
a réplica da Ateísta Rude à defesa do livre-arbítrio ser bem-sucedida,
ela tem de convencer os agnósticos de que o compatibilismo é a teoria
correta do livre-arbítrio, ou, pelo menos, que o compatibilismo é uma
teoria provavelmente correta; Teísta só precisa da seguinte resposta dos
agnósticos: “Até onde sabemos, o compatibilismo não é a teoria correta
do livre-arbítrio”. E ele apresentou um caso suficientemente forte contra
a teoria compatibilista do livre-arbítrio a fim de apoiar essa resposta.

180
O argumento global do mal (continuação)

Passarei agora aos outros dois argumentos que visam estabelecer


a conclusão de que qualquer forma da defesa do livre-arbítrio deve
falhar. Eles giram em torno de velhas disputas filosóficas sobre Deus
e o livre-arbítrio. O primeiro baseia-se em uma teoria filosófica que,
ao contrário do compatibilismo, é popular entre os teístas. Ela é a teo-
ria segundo a qual há “contrafactuais de liberdade das criaturas que
são verdadeiras” – e haveria tantos delas que um ser onisciente saberia
como uma criatura com livre-arbítrio agiria livremente em qualquer
circunstância.2 Que há essas contrafactuais de liberdade das criaturas
– condicionais como “se houvesse um estrondo de trovão na hora em
que Eva decidia se comeria a maçã, então ela teria decidido livremente
não comer a maçã” –, é uma tese admitida por vários teístas, entre os
quais a maioria (se não a totalidade) dos dominicanos e dos tomistas,
os jesuítas espanhóis no século XVI e Alvin Plantinga.3 Um ateísta
poderia tentar fazer uso da tese de que há essas condicionais para refutar
a defesa do livre-arbítrio, mostrando que ela é uma história impossível.
O argumento seria uma generalização do seguinte exemplo: suponha
que a condicional do exemplo anterior – “se houvesse um estrondo
de trovão na hora em que Eva decidia se comeria a maçã, então ela
livremente teria decidido não comer a maçã” – seja verdadeira. Nesse
caso, Deus poderia ter feito Eva decidir livremente não comer a maçã.
Visto que Deus é onisciente, ele teria sabido qual seria a condicional

2
As duas discussões mais importantes sobre as contrafactuais de liberdade estão nestes dois
livros esplêndidos (porém altamente técnicos): Plantinga (1974, cap. 9) e Flint (1998, cap. 2
e 4-7).
3
Para referências das teorias tomista e jesuíta das contrafactuais de liberdade, veja Flint (1998,
cap. 2 e 4).

181
O problema do mal | Peter van Inwagen

verdadeira; para realizar aquele estado de coisas, tudo o que ele então
tinha de fazer teria sido tornar a condicional verdadeira – ou seja, pro-
duzir um estrondo de trovão no momento crucial. Adotando a técnica
ilustrada nesse exemplo como estratégia geral, ele poderia fazer com que
todas as criaturas com livre-arbítrio sempre fizessem o que fosse correto;
não haveria nenhum mau uso do livre-arbítrio e, portanto, o mal não
poderia ter entrado no mundo por meio do mau uso que as criaturas
fizeram dessa dádiva. E isso é o que um ser moralmente perfeito faria
– por necessidade – pelo menos se assumirmos que o livre-arbítrio é
um bem que um Criador moralmente perfeito teria desejado incluir na
sua criação. Portanto, a assim chamada “defesa do livre-arbítrio” não é
uma defesa afinal, pois ela é uma história impossível.
Plantinga tem uma resposta muito elaborada para esse argumento,
que depende de uma perspectiva molinista, em vez de tomista, sobre
a relação entre o poder de Deus e as contrafactuais de liberdade das
criaturas.4 (Geralmente, os tomistas sustentam que cada contrafactual
de liberdade das criaturas teria o valor de verdade que tem porque Deus
decretou que ela tivesse esse valor de verdade; Molina e seus seguidores
sustentam que, de forma contingente, certos membros do conjunto de
contrafactuais de liberdade seriam verdadeiros e outros falsos, e que
Deus se atém a certa distribuição de valores de verdade entre os mem-
bros desse conjunto, distribuição que ocorre por acaso e independen-
temente da vontade dele. Em relação à perspectiva tomista, não vejo

4
Tenho em mente a versão da defesa do livre-arbítrio (Plantinga, 1974, cap. IX, seções 7-9)
que inclui a proposição de que “toda essência individual criada sofre de depravação trans-
mundial”.

182
O argumento global do mal (continuação)

como responder aos argumentos que consideramos se supomos que


Deus decidiu o valor de verdade de cada contrafactual de liberdade).
Para resumir uma história muito longa, Plantinga sugere que, até onde
sabemos, até onde se pode dizer, pode ser o caso que a distribuição
de valores de verdade no conjunto de contrafactuais de liberdade das
criaturas ao qual Deus se atém seja, do ponto de vista de Deus, bas-
tante infeliz: as contrafactuais de liberdade das criaturas verdadeiras são
contrafactuais com antecedentes e consequentes tais que, sejam quais
forem as antecedentes que Deus torne verdadeiras, haveria, por parte
das criaturas, ações livres que provocariam o mal – supondo que Deus
cria seres livres. Eu prefiro negar a premissa que é comum aos tomistas e
molinistas, ou seja, negar que há contrafactuais de liberdade das criaturas
que são verdadeiras. A tese de que nenhuma contrafactual de liberdade
das criaturas é verdadeira é defendida por vários filósofos, entre eles
Robert Adams, William Hasker e eu mesmo.5 Aqui não direi mais
nada sobre esse assunto – principalmente porque acho a ideia de que
há contrafactuais de liberdade das criaturas verdadeiras enormemente
implausível. Deixarei a exploração adicional dos problemas relacio-
nados às contrafactuais para os filósofos que levam a possibilidade da
existência dessas contrafactuais a sério (e muitos são altamente capa-
zes – Plantinga e Flint, por exemplo). O argumento que consideramos
pode ser enfrentado com a separação de casos: ou há contrafactuais de
liberdade das criaturas verdadeiras ou não há. Se não há contrafactuais
de liberdade das criaturas verdadeiras, o argumento tem uma premissa

5
Veja Adams (1977, 1991), Hasker (1989, 2000); van Inwagen (1997).

183
O problema do mal | Peter van Inwagen

falsa; caso contrário, visto que a “hipótese de Plantinga” é verdadeira até


onde se sabe, se o conjunto de contrafactuais de liberdade das criaturas
verdadeiras não é vazio – se há algumas contrafactuais de liberdade das
criaturas que são verdadeiras –, não se segue que esse conjunto tenha
os membros adequados para Deus criar um mundo contendo criaturas
livres que nunca causam coisas más.
Agora vamos ao terceiro dos três argumentos contra a defesa do
livre-arbítrio que prometi discutir. (Nesse caso, prometi duplamente, pois
na segunda conferência mencionei brevemente o problema filosófico
no qual esse argumento se baseia e disse que iria discuti-lo em conexão
com a defesa do livre-arbítrio). Obviamente, a defesa do livre-arbítrio
acarreta que pelo menos alguns seres humanos têm livre-arbítrio. Mas a
existência de um ser que tem conhecimento do futuro é incompatível
com o livre-arbítrio, um ser onisciente tem conhecimento do futuro, e
a onisciência pertence ao conceito de Deus. Portanto, a assim chamada
“defesa do livre-arbítrio” não é uma história possível e não é uma defesa
afinal. A maioria dos teístas, assim penso, replicaria a esse argumento
tentando mostrar que a onisciência divina e o livre-arbítrio humano são
compatíveis, pois é isso o que a maioria dos teístas acredita. No entanto,
acho que os argumentos – que não discutirei – para a incompatibilidade
da onisciência com a liberdade, se não forem indisputavelmente corretos,
são, pelo menos, bem convincentes. Portanto, responderei ao argumento
dedicando-me a fazer reparos admissíveis no conceito de onisciência.
(Lembre-se que discuti a questão sobre os reparos admissíveis na lista
dos atributos divinos na segunda conferência).
Na sequência, suporei que Deus é eterno, mas temporal, que ele
não se encontra fora do tempo. Farei essa suposição por duas razões.

184
O argumento global do mal (continuação)

Primeiramente, não sei realmente como escrever coerentemente e com


detalhe sobre o conhecimento que tem um ser não temporal do que é
para nós o futuro. Em segundo lugar, parece que o problema do conhe-
cimento de Deus do que é para nós o futuro é particularmente agudo se
esse conhecimento for um conhecimento prévio, se o que do nosso ponto
de vista é o futuro for o futuro também do ponto de vista de Deus.6
Na segunda conferência, considerei duas definições da onisciência.
Vamos agora encarar o problema sob a perspectiva oferecida pela
segunda definição: um ser onisciente é um ser que, para qualquer
proposição p, acredita em p ou na negação de p, e as suas crenças não

6
O argumento padrão para a incompatibilidade da onisciência com o livre-arbítrio depende
de Deus estar “no tempo”. De maneira breve, ele é o seguinte. Se Deus sabia, e, por isso,
acreditava, em t (um momento no passado remoto) que eu mentiria amanhã, então sou capaz
de dizer a verdade amanhã somente se sou capaz ou de fazer com que Deus não tenha tido
essa crença ou que ele esteja errado. E não sou capaz de fazer nenhuma dessas coisas. Não
tenho a capacidade de fazer a primeira delas porque essa capacidade seria a capacidade de
mudar o passado. Mas se Deus é não temporal, não há um tempo em que ele acredita que
irei mentir amanhã. O fato de que ele tem essa crença é, pois, não um fato sobre o passado,
e a capacidade de fazer com que ele não tenha essa crença não é a capacidade de mudar o
passado.
Mas não é claro se supor que Deus é não temporal resolva o problema de reconciliar a onis-
ciência divina com o livre-arbítrio, pois um Deus não temporal tem o poder de revelar às
criaturas temporais – profetas – fatos sobre o que é para elas o futuro, e é possível construir
um argumento para a incompatibilidade de uma onisciência não temporal com o livre-arbítrio
humano apelando para a possibilidade de que ele exercita esse poder: a minha capacidade
de dizer a verdade (quando um profeta divinamente inspirado profetizou que irei mentir)
tem de ser uma capacidade ou de fazer com que essa profecia nunca tenha sido feita – de
mudar o passado – ou fazer com que ela fosse errada. Quaisquer que sejam os méritos que
esse argumento possa ter, no entanto, ele é certamente menos direto do que o argumento
com base na presciência de um Deus que está no tempo.

185
O problema do mal | Peter van Inwagen

podem (“não podem” refere-se aqui à impossibilidade metafísica) ser


falsas. Considere estas duas proposições:

X fará livremente A no tempo futuro t.

Y, um ser com crenças que não podem ser falsas, crê agora que X fará
A em t.

Essas proposições ou são consistentes ou são inconsistentes. Se elas


são consistentes, não há o problema da onisciência e liberdade. Supo-
nha que elas sejam inconsistentes. Nesse caso, é impossível para um ser
com crenças que não podem ser falsas acreditar agora que alguém irá
em um tempo futuro executar livremente uma ação particular. Logo,
se o livre-arbítrio existe, é impossível haver um ser onisciente. (Mais
exatamente: nenhum ser é onisciente em qualquer mundo possível em
que há agentes livres).7 Essa conclusão pareceria, pelo menos aos não
iniciados, depor não só contra a possibilidade da onisciência (dado
o livre-arbítrio), mas também contra a possibilidade da onipotência.
A razão seria esta: se as duas proposições são incompatíveis, é intrin-
secamente ou metafisicamente impossível para um ser com crenças que

7
Estou tentando evitar considerações meramente técnicas nestas conferências. Indicarei nessa
nota que essa afirmação precisa de qualificação. Pois suponha que um ser onisciente comece a
existir em t, e que, embora tenha havido agentes livre antes de t, não haveria agentes livres em
t ou depois de t. Isso parece possível. Mas a qualificação que isso exigiria é irrelevante para os
nossos propósitos, visto que jamais houve um tempo em que Deus não existia. (As seguintes
asserções pareceriam verdadeiras sem qualificação: nenhum ser eterno é sempre onisciente
em qualquer mundo possível em que há criaturas livres; se é possível haver criaturas com
livre-arbítrio, nenhum ser necessário é essencialmente onisciente.)

186
O argumento global do mal (continuação)

não podem ser falsas descobrir agora quais serão as ações livres futuras
de qualquer agente. Mas esse argumento é inválido tanto na concepção
cartesiana quanto na concepção tomista de onipotência. Um ser oni-
potente no sentido cartesiano é capaz de fazer coisas intrinsicamente
impossíveis; um ser onipotente no sentido tomista está dispensado da
exigência de ser capaz de fazer coisas intrinsecamente impossíveis. Há
aqui uma sugestão de solução para o problema do livre-arbítrio e da
presciência divina: por que não qualificar a definição padrão de onis-
ciência de modo similar ao qual Tomás de Aquino (perdoe a prolepse)
qualifica a definição cartesiana de onipotência?8 Por que não afirmar
que mesmo um ser onisciente é incapaz de saber certas coisas – das
quais o conhecimento seria um estado de coisas impossível? Poderíamos
também dizer que um ser onipotente é também onisciente se ele sabe
tudo o que é capaz de saber. Ou, como prefiro, formular a definição
de onisciência em termos de crença e impossibilidade do erro: um ser
onipotente é também onisciente se for impossível que as suas crenças
sejam erradas e ele tem crenças acerca de cada questão em relação à
qual é possível que ele tenha crenças. (Essa apresentação da definição
é complicada; talvez um exemplo possa esclarecer o que quero dizer.
Suponha que fiz hoje uma escolha livre entre mentir e dizer a verdade
e que tenha dito a verdade. Suponha que essa proposição seja logica-
mente inconsistente com a proposição segundo a qual ontem um ser
cujas crenças não podem ser erradas acreditou que hoje eu teria dito a
verdade. Desse modo, qualquer ser cujas crenças não podem ser erra-

8
Veja Swinburne (1998, p. 133-134).

187
O problema do mal | Peter van Inwagen

das não poderia ter acreditado ontem que eu teria dito hoje a verdade;
e, obviamente, ele também não poderia ter acreditado ontem que eu
mentiria. Ou seja, esse ser não poderia ter tido nenhuma crença sobre
o que eu faria livremente hoje. E se esse ser for também onipotente,
então ele era incapaz, a despeito da sua onipotência, de ter crenças sobre
o que eu livremente faria hoje. Exigir que ele tenha qualquer crença
sobre as minhas ações futuras livres seria exigir que ele faça o que é
metafisicamente impossível).
Essa qualificação da definição “padrão” de onisciência está de acordo
com o que afirmei na segunda conferência acerca das revisões admis-
síveis das propriedades em nossa lista dos atributos divinos – ou das
explicações desses atributos. Se dissermos, primariamente, que o Deus
onipotente é onisciente neste sentido – ele sabe tudo o que, em sua
onipotência, ele é capaz de saber – e, em segundo lugar, que ele não
sabe quais serão as ações livres futuras de qualquer agente, então, pelas
razões que mencionei, não caímos em contradição. Portanto, propo-
nho uma revisão da nossa definição anterior exatamente nesses termos.
Se for possível, ou melhor, se for metafisicamente ou intrinsicamente
possível, que Deus conheça o valor de verdade de qualquer proposição,
as duas definições coincidirão. Se essa coincidência não for possível,
Deus será onisciente (admitindo a explicação tomista da onipotência)
pela definição mais fraca e não será onisciente pela definição mais forte.
Porém, mesmo neste último caso, ele possuirá um conhecimento do
maior grau metafisicamente possível e, portanto, não perderá o posto
de “maior ser possível”.
Tenho de admitir que essa solução do problema do livre-arbítrio e
da presciência divina levanta novos problemas para os teístas: os teístas

188
O argumento global do mal (continuação)

não estariam comprometidos (por exemplo, em virtude das histórias


contadas sobre as ações de Deus na Bíblia) com a proposição segundo
a qual pelo menos algumas vezes Deus tem presciência das ações livres
das criaturas? Essa é uma questão muito importante. Em minha opi-
nião, a resposta é negativa, pelo menos no que diz respeito à Bíblia.9
Mas uma discussão dessa questão importante não é possível dentro do
âmbito destas conferências.
Concluo que nem um apelo à suposta compatibilidade do livre-
-arbítrio com o determinismo, nem um apelo à suposta existência de
contrafactuais de liberdade das criaturas verdadeiras, e nem um apelo à
suposta incompatibilidade entre o livre-arbítrio e a presciência divina,
podem minar a defesa do livre-arbítrio.
Retornemos à Ateísta, que, como disse, tem à disposição argumen-
tos melhores do que esses que discutimos. O que ela dirá em resposta à
defesa do livre-arbítrio? Penso que o curso de ação mais promissor que
ela pode tomar é conceder certo poder limitado à defesa do livre-arbítrio
e seguir em frente argumentando que esse poder é essencialmente limi-
tado. O melhor curso de ação que ela pode tomar é admitir que a defesa
do livre-arbítrio mostra que poderia haver, até onde se pode dizer, certa
quantidade de mal, certa quantidade de dor e sofrimento, no mundo
criado por um ser todo-poderoso e moralmente perfeito, e apresentar
o seu argumento referindo-se à quantidade e aos tipos de males que

9
Sobre esse ponto, direi o seguinte. Em cada caso em que a narrativa bíblica poderia parecer
representar Deus como conhecendo as ações livres futuras de um ser humano, ou a ação da
qual se tem um conhecimento não é de fato livre ou o conhecimento deve ser entendido
como condicional: conhecimento de quais seriam as consequências de certa livre-escolha se
ela fosse realizada.

189
O problema do mal | Peter van Inwagen

efetivamente ocorrem. O melhor curso de ação que ela pode tomar é


argumentar a favor da conclusão de que nem a versão simples da defesa
do livre-arbítrio que fiz Teísta apresentar e nenhuma elaboração dessa
defesa pode ser uma explicação plausível do mal, das coisas más, que
efetivamente existem. Na conferência anterior, mencionei dois fatos
sobre os males que efetivamente acontecem que provavelmente ocorre-
riam a qualquer pessoa que ouvisse as alegações preliminares da defesa
do livre-arbítrio: primeiramente, que a quantidade de sofrimento (e de
outros males) é enorme; além disso, que alguns males não são causados
por seres humanos e não podem, portanto, ser atribuídos ao mau uso
que as criaturas fazem do livre-arbítrio. Se esses fatos ocorreriam a
qualquer pessoa, eles ocorreriam à Ateísta. Vamos imaginar que ela os
mencione no seguinte discurso endereçado à audiência de agnósticos:

Concedo que a defesa do livre-arbítrio mostra que a mera existên-


cia desse ou daquele mal não pode ser usada para provar que Deus
não existe. Vivêssemos em um mundo em que todas as pessoas, ou
a maioria delas, sofresse de maneira relativamente mínima, e cada
caso de sofrimento pudesse ser remontado a atos errados ou tolos
dos seres humanos, você fortaleceria a sua posição dizendo a esses
estimáveis agnósticos que, até onde sabem, esses atos errados ou
tolos são atos livres, que mesmo um ser onipotente é incapaz de
determinar o resultado de uma livre-escolha, e que a existência da
livre-escolha é uma coisa suficientemente boa para superar as con-
sequências más do seu ocasional mau uso. Mas os males do mundo
tal como ele é não são realmente assim. Em primeiro lugar, a pura
quantidade de mal no mundo é totalmente opressiva. Sem dúvida,

190
O argumento global do mal (continuação)

a existência do livre-arbítrio pode valer a ocorrência de algum mal,


mas ela certamente não vale a quantidade de mal que efetivamente
encontramos no mundo. Em segundo lugar, há muitos males que não
são produtos da vontade humana, seja ela livre ou não. Terremotos e
tornados e defeitos genéticos e... bem, dificilmente se sabe até onde
ir com essa lista de males. A defesa do livre-arbítrio, portanto, é
incapaz de lidar com a quantidade de mal que efetivamente existe
ou com um dos tipos de males que realmente existe: o mal que não
é consequência de ações humanas.

Como o Teísta deve responder a esse argumento? O discurso dele


será bem longo:

A defesa do livre-arbítrio, na forma simples que apresentei, sugere


– embora não acarrete – que Deus criou os seres humanos com
livre-arbítrio, e então os deixou abandonados. Ela sugere que os
males do mundo são consequências, mais ou menos desconectadas,
de incontáveis milhões de abusos humanos do livre-arbítrio, em
grande medida desconectados. Proponho agora um tipo de enredo
que deve ser acrescentado à pura e abstrata defesa do livre-arbítrio
que apresentei. Considere a história da criação, rebelião e expulsão
do paraíso contada nos três capítulos iniciais do livro bíblico do
Gênesis. Essa história poderia ser verdadeira – quero dizer, literal-
mente verdadeira, verdadeira nos mínimos detalhes? Parece que não.
Ela contradiz o que a ciência descobriu sobre a evolução humana
e sobre a história do universo físico. Quanto a isso, dificilmente
podemos ficar surpresos, pois essa história é muito anterior a essas

191
O problema do mal | Peter van Inwagen

descobertas. A história contada no Gênesis é uma reelaboração – com


muito material original – que autores hebreus fizeram (ou, como meu
autor, van Inwagen, acredita, um autor hebreu) de elementos encon-
trados em muitas mitologias antigas do Oriente Médio. Assim como
a Eneida, ela é uma reconstrução literária de materiais retirados de
mitos e lendas e retém um forte caráter mitológico. Apesar disso, é
possível que os três capítulos iniciais do Gênesis sejam representações
mítico-literárias de eventos reais na pré-história humana. A seguinte
história é consistente com o que sabemos da pré-história humana.
O nosso conhecimento corrente da evolução humana, de fato, não
nos dá nenhuma razão particular para acreditar que ela seja falsa:

Por milhões de anos, talvez por milhares de milhões de anos, Deus


guiou o curso da evolução de tal modo a produzir primatas muito
inteligentes, os predecessores imediatos da espécie Homo sapiens.
Em um determinado momento das últimas centenas de milha-
res de anos, toda a população dos nossos ancestrais formava uma
comunidade reprodutiva pequena – com poucos milhares ou poucas
centenas ou um total ainda menor de indivíduos. Ou seja, houve
um tempo em que todos os ancestrais dos seres humanos modernos
que então viviam pertenciam a esse grupo reduzido de primatas
geograficamente reunidos. Depois de um longo período, Deus mira-
culosamente alçou os membros dessa comunidade à racionalidade.
Ou seja, ele deu a eles o dom da linguagem, do pensamento abstrato
e do amor desinteressado – obviamente, ele deu a eles também
a dádiva do livre-arbítrio. Talvez não possamos entender todas as
razões de Deus para dar o livre-arbítrio aos seres humanos, porém

192
O argumento global do mal (continuação)

eis algo muito importante que podemos entender: ele deu a eles a
dádiva do livre-arbítrio porque o livre-arbítrio é necessário para o
amor. O amor, e não só o amor erótico, implica o livre-arbítrio.10

Em “The Christian theodicist’s appeal to love” (1993), Daniel e Frances Howard-Snyder


10

defendem a posição de que essa tese, a tese de que o livre-arbítrio é necessário para o amor,
é inconsistente com a doutrina cristã. De forma sucinta, o argumento é este: de acordo
com a doutrina cristã, as Pessoas da Trindade se amam como uma questão de necessidade
metafísica; portanto, nenhuma delas tem uma escolha sobre amar ou não as outras.
Direi o seguinte como resposta. (Respondo como um cristão. Um judeu ou um muçulmano
que queira fazer uso da defesa do livre-arbítrio no texto não precisará levar em conta as
questões discutidas nesta nota. Mas eu não gostaria de pensar que a defesa que fiz Teísta
apresentar fosse inconsistente com o cristianismo). Vamos dizer que um ser ama perfeitamente
se ele tem a propriedade de amar cada coisa essencialmente. (Para cada objeto, há um tipo e
um grau de amor apropriado a esse objeto: uma mãe pode amar seu filho, seu gato, ou sua
paróquia, mas esses três amores têm de ser diferentes no tipo e no grau; do contrário, algo
está muito errado. A propriedade em questão é a propriedade de amar cada coisa de maneira
apropriada). O amor perfeito é obviamente impossível para seres finitos. Em primeiro lugar,
nenhum ser finito pode estar ciente de cada coisa, de cada possível objeto de amor. Nenhum
ser finito, além disso, pode amar uma coisa essencialmente (nem mesmo dado que essa
coisa existe). Mesmo se Jill ama Jack como uma questão de necessidade causal antecedente,
haverá, tem de haver, outros mundos possíveis em que as causas antecedentes estão arranjadas
diferentemente e no qual ( Jack existe e) Jill não ama Jack. Haverá, tem de haver, (visto que
isso é possível) mundos em que ela não ama nada e ninguém. Suponha agora que a finita
Jill ame Jack. Por que ela ama Jack? Uma dessas três coisas deve ser verdadeira. O amor dela
por Jack é uma questão de necessidade externa; o amor dela por Jack é uma questão de acaso
(ele simplesmente aconteceu: ele não tem nenhuma explicação); o amor dela por Jack é uma
questão de livre-escolha. (Sem dúvida, os sentimentos dela por Jack não serão uma questão de
livre-escolha, mas há mais no amor do que sentimentos: uma parte essencial do amor é certa
orientação da vontade). Ao dizer isso, não pressuponho que a livre-escolha seja incompatível
com a necessidade externa em si. Todas as pessoas, penso, concordarão que alguns tipos de
necessidade externa são incompatíveis com a livre-escolha. (E todas as pessoas igualmente
concordarão que alguns tipos de acaso são incompatíveis com a livre-escolha). O leitor deve
entender a “necessidade externa” e “acaso” de tal modo que “é uma questão de necessidade”,
“é uma questão de acaso” e “é uma questão de livre-escolha” dividem as explicações possíveis
do amor de Jill por Jack em três classes exaustivas e exclusivas.

193
O problema do mal | Peter van Inwagen

A conexão essencial entre o amor e o livre-arbítrio é belamente


ilustrada na declaração de Rute à sua sogra Noemi:

Não insistas comigo que te deixe e que não mais te acom-


panhe. Aonde fores, irei, onde ficares, ficarei. O teu povo
será o meu povo, e o teu deus será o meu Deus. Onde
morreres, morrerei, e ali serei sepultada. Que o Senhor me
castigue com todo o rigor, se outra coisa que não a morte
me separar de ti. (Rt, 1: 16-18)

Vamos agora voltar ao conceito de amor perfeito. Eu sustento que o amor perfeito é uma
propriedade de Deus, e, visto que ele é impossível para seres finitos e imperfeitos, criaturas,
trata-se de uma propriedade que só a Deus pertence. Porém vamos perguntar o seguinte:
como criaturas poderiam amar umas às outras (e a Deus) de um modo que melhor “imita”
o amor perfeito? Eu diria, primeiramente, que o amor das criaturas não imita melhor o
amor divino se ele é devido ao acaso: esse é o próprio oposto da necessidade que pertence ao
amor divino. O amor das criaturas melhor imitaria o amor de Deus se ele fosse uma questão
de necessidade externa? Não, porque o amor de Deus (como todas as suas propriedades)
pertence à sua essência e, portanto, vem do interior: a necessidade é interna a ele. A melhor
imitação das criaturas dessa necessidade interna é o amor que é consequência da livre-escolha,
pois esse amor vem do interior, e não é devido ao acaso. Como o amor de Deus, ele não é
nem o resultado de uma operação de forças externas (ou se ele é o resultado da operação de
forças externas, ele é assim somente à medida que todos os atos livres o são: ele é o resultado
da operação de forças externas de um modo que não viola a autonomia do amante), nem
algo que “simplesmente acontece”. Se isso for correto, é pelo menos verdade que o “melhor
tipo” de amor das criaturas, o amor que é a melhor imitação do amor perfeito nas criaturas,
envolve a livre-escolha. Isso deve ser o suficiente para a defesa do livre-arbítrio, pois explicaria
por que Deus daria aos seres humanos o livre-arbítrio mesmo a um custo tão grande. (Dado
que a diferença de valor entre o melhor tipo de amor das criaturas e outros tipos seja grande
o bastante, uma tese que pode ser tornada uma parte da defesa.) No entanto, permaneço
com a convicção de que o amor que é devido ao acaso ou à necessidade externa não é amor.
(A lógica desta última sentença é a mesma de “Love is not love that alters when it alteration
finds” [“O amor não é amor que altera quando alteração encontra”, Shakespeare, soneto 116
(N. T.)])

194
O argumento global do mal (continuação)

Essa conexão é também ilustrada nos votos que o meu criador, Peter
van Inwagen, fez quando se casou:

Eu, Peter, recebo a ti, Elisabeth, como minha esposa, para


ter e manter deste dia em diante, para melhor, para pior,
na riqueza, na pobreza, na doença e na saúde, para amar
e respeitar, até que a morte nos separe, conforme as leis
sagradas de Deus; prometo a ti a minha fidelidade.

Deus não só alçou esses primatas à racionalidade – não só fez deles o


que chamamos de “seres humanos” –, mas também os colocou em um
tipo de união mística com ele mesmo, o tipo de união que os cristãos
esperam alcançar no Céu e chamam de Visão Beatífica. Estando em
união com Deus, esses novos seres humanos, esses primatas que se
tornaram seres humanos em algum momento das suas vidas, viveram
juntos na harmonia do amor perfeito e também possuíam o que os
teólogos costumam chamar de poderes preternaturais – o que hoje
as pessoas que acreditam nesses poderes chamam de “capacidades
paranormais”. Porque viviam na harmonia do amor perfeito, nenhum
deles fazia mal aos demais. Por causa dos poderes preternaturais, eles
eram capazes de se protegerem de animais selvagens (que podiam
domesticar com um olhar), de doenças (que podiam curar com um
toque), e de eventos contingentes destrutivos (como terremotos),
que eles sabiam previamente quando ocorreriam e, portanto, eram

195
O problema do mal | Peter van Inwagen

capazes de evitar.11 Assim, não havia mal no mundo deles. E a inten-


ção de Deus era que eles jamais se tornassem decrépitos com a idade
e morressem como os seus antepassados primatas. No entanto, de
alguma forma que tem de ser misteriosa para nós, eles não estavam
contentes com esse estado paradisíaco. Eles fizeram mau uso da
dádiva do livre-arbítrio e se separaram da união que então manti-
nham com Deus.

11
Em que sentido esses eventos poderiam ser “aleatórios”? Algum evento poderia ser “uma
ocorrência aleatória” ou “devido ao acaso” em um mundo criado e mantido por um ser oni-
potente e onisciente? A minha resposta a essa questão é sim. Para uma discussão técnica dos
tópicos que essa questão envolve, veja Van Inwagen, 1988. O ponto essencial do argumento
desse ensaio é o seguinte. Primeiramente, Deus pode, se escolher, “decretar” que será o caso
que p ou [exclusivo] será o caso que q, sem decretar que será o caso que p ou decretar que
será o caso que q. Então será o caso que p ou será o caso que q, mas qual dos dois será o caso
será devido ao acaso. Por exemplo, embora Deus tenha dito, “Haja luz”, ele poderia ter dito
“Que haja luz ou trevas”. Se ele tivesse feito este decreto, então haveria luz ou trevas, e teria
sido uma questão de acaso se houvesse luz ou se houvesse trevas. Em segundo lugar, Deus
poderia ter boas razões para fazer decretos menos do que totalmente específicos – explici-
tamente decretos disjuntivos como aquele que imaginei ou decretos que são logicamente
equivalentes a disjunções como “Que haja pelo menos doze deuses principais no panteão
babilônico – mas não mais do que dezenove”. Uma razão assim seria esta: Deus não realiza
atos sem propósito, e se o número exato de fios de cabelo em minha cabeça não faz diferença
no grande esquema das coisas (uma tese bem plausível), seria sem propósito para Deus
decretar (ou de algum modo determinar) que o número de fios de cabelo em minha cabeça
será exatamente de 119.202. E se tivermos concedido que alguns estados de coisas não foram
decretados por Deus (portanto, que ele os deixou para o acaso), tem de ser concedido que a
questão “que estados de coisas Deus deixou para o acaso?” é uma questão para a especulação
teológica e filosófica. Assim, pode ser que Deus tenha deixado para o acaso questões como,
por exemplo, se uma pessoa morrerá em um desastre natural. Essa é pelo menos uma questão
sobre a qual filósofos e teólogos podem propriamente especular.

196
O argumento global do mal (continuação)

O resultado foi catastrófico: eles não só deixaram de usufruir da


Visão Beatífica, mas também passaram a enfrentar a destruição pelas
forças cegas da natureza, e ficaram sujeitos ao envelhecimento e à
morte natural. Apesar disso, eles eram muito orgulhosos para colocar
um fim à rebelião que iniciaram. Com o passar das gerações, eles se
afastaram mais e mais de Deus – na adoração a falsos deuses (uma
adoração que algumas vezes envolvia o sacrifício humano), guerras
intertribais (completada com a tortura prazerosa de prisioneiros de
guerra), assassinato, escravidão, estupro. Em certo ponto, eles per-
ceberam, ou alguns deles perceberam, que algo estava terrivelmente
errado, mas eram incapazes de fazer qualquer coisa a respeito. Depois
que se separaram de Deus, eles estavam, como um engenheiro diria,
“não operando sob as condições do projeto”. Certa mentalidade
tornou-se dominante, uma mentalidade latente nos genes que her-
daram de milhões ou mais de gerações dos seus ancestrais. Refiro-me
à mentalidade que coloca os próprios desejos e bem-estar acima
de todas as coisas, concede ao bem-estar dos próprios familiares
imediatos um status subordinado e não atribui nenhum status ao
bem-estar de qualquer outra pessoa. E essa mentalidade estava agora
casada com a racionalidade, com o poder de pensamento abstrato;
a prole desse casamento foi o ressentimento contínuo contra aqueles
cujas ações interferiam com a realização dos próprios desejos, ódio
nutrido no coração e o desejo de vingança. Os genes herdados que
produziram esses efeitos terríveis eram inofensivos quando os seres
humanos ainda tinham em suas mentes uma representação do amor
perfeito na Visão Beatífica. No estado de separação de Deus, e asso-
ciados à racionalidade, eles formam um substrato genético do que é

197
O problema do mal | Peter van Inwagen

chamado de “pecado original”: uma tendência inata ao mal contra a


qual todos os esforços humanos são vãos. Nós (ou a maioria de nós)
temos um tipo de percepção da distinção entre o bem e o mal, mas,
não importa quanto lutemos, no fim desistimos e fazemos o mal.
Em todas as culturas existem códigos morais (mais parecidos do
que algumas pessoas gostariam que acreditássemos que fossem), e os
membros de cada tribo e nação são condenados não só por códigos
morais estrangeiros, mas também pelos códigos deles mesmos. Os
únicos seres humanos que, na visão deles mesmos, consistentemente
fazem o bem, que têm a consciência sempre tranquila, são aqueles
que, como os nazistas, entregaram-se completamente ao mal, aqueles
que de forma distorcida e autoenganadora dizem o que Milton faz
o seu Satã dizer explícita e claramente: “Mal, sejas o meu Bem”.

Depois que os seres humanos se tornaram assim, Deus viu um


mundo em ruínas. (“O Senhor viu que a perversidade do homem
tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos
do seu coração era sempre e somente para o mal” (Gn 6:5)). Teria
sido justo se ele deixasse os seres humanos na ruína que fizeram
deles mesmos e do mundo. Mas Deus é mais do que um Deus da
justiça. Ele é também mais do que um Deus da misericórdia – um
Deus meramente misericordioso poderia simplesmente ter colo-
cado um fim na história humana, como um homem que atira no
seu cavalo que quebrou uma perna. Mas Deus é mais do que um
Deus da misericórdia: ele é um Deus do amor. Assim, ele nem dei-
xou a nossa espécie abandonada e nem a destruiu por misericórdia.
Em vez disso, ele iniciou uma operação de resgate. Ele colocou em

198
O argumento global do mal (continuação)

prática um plano destinado a restaurar a união que ele então tinha


com a humanidade. Essa defesa não irá especificar a natureza desse
plano de Reconciliação. As três religiões abraâmicas, o judaísmo,
o cristianismo e o islamismo, contam histórias diferentes sobre a
natureza desse plano, e não quero favorecer uma delas ao contar
uma história que, afinal de contas, não afirmo que seja verdadeira.
Mas tenho de dizer pelo menos que o plano tem esta característica
(e qualquer plano com o objetivo de restaurar a união com Deus tem
de ter esta característica): o seu objetivo é fazer com que os seres
humanos amem a Deus mais uma vez. E visto que o amor essen-
cialmente envolve o livre-arbítrio, o amor não é algo que possa ser
imposto de fora, por um puro exercício de poder. Os seres humanos
têm de escolher livremente a reunião com Deus e amá-lo, e isso é
algo que eles são incapazes de fazer por meio dos próprios esforços.
Eles têm, portanto, de cooperar com Deus. Como acontece com
muitas operações de resgate, quem resgata e aqueles que são res-
gatados têm de cooperar. Para os seres humanos cooperarem com
Deus nessa operação de resgate, eles têm de saber que precisam ser
resgatados. Eles têm de saber o que significa estar separado de Deus,
e estar separado de Deus significa viver em um mundo de horrores.
Se Deus simplesmente “eliminasse” os horrores deste mundo por
uma infindável série de milagres, ele então frustraria o seu próprio
plano de reconciliação. Se ele eliminasse os males deste mundo,
ficaríamos satisfeitos com a nossa própria sorte, e não veríamos
razão para cooperar com ele.

199
O problema do mal | Peter van Inwagen

Eis uma analogia. Suponha que Dorothy sofre de angina e o que ela
precisa fazer é parar de fumar e perder peso. Suponha que o médico
dela conheça um medicamento que eliminará a dor, mas não terá o
efeito de melhorar a saúde dela. O médico deve prescrever o medi-
camento, sabendo que se a dor for aliviada, não há a menor chance
que ela pare de fumar e perca peso? Bem, talvez a resposta seja
sim – se a paciente insistir muito nisso. Afinal de contas, Dorothy
e o médico são igualmente pessoas adultas e responsáveis. Talvez
fosse miseravelmente paternalístico recusar a oferecer o alívio para
a dor de Dorothy a fim de fazer com que ela tenha motivação para
fazer o que é vantajoso para ela mesma. Se uma pessoa está com um
humor especialmente libertário, ela poderia até dizer que alguém que
fizesse tal coisa estaria “brincando de Deus”. Não é claro, contudo,
se há algo errado quando Deus se comporta como se fosse Deus.
É no mínimo plausível supor que é moralmente admissível que
Deus permita que os seres humanos sofram se o resultado inevitável
de suprimir o sofrimento fosse privá-los de um bem muito bom, um
bem que supera o sofrimento. Em todo caso, Deus nos protege do
excesso de mal, de uma grande proporção de sofrimento que seria
uma consequência natural da nossa rebelião. Se ele não fizesse isso,
toda a história humana seria pelo menos tão má quanto o seguinte:
todas as sociedades humanas estariam no mesmo nível moral da
Alemanha nazista. (Digo “pelo menos tão má” porque realmente
não posso dizer até que ponto vai a maldade humana. O Terceiro
Reich é o meu modelo do mais baixo nível moral, mas, até onde sei,
esse modelo pode ser ingenuamente otimista. Talvez existam níveis
de horror moral que ultrapasse aquele dos nazistas. Uma lição da

200
O argumento global do mal (continuação)

Alemanha de Hitler é que os nossos avós não sabiam até que ponto
podia chegar a maldade humana; até onde sabemos, os nossos netos
poderão dizer que nós não sabíamos até que ponto podia chegar a
maldade humana). No entanto, independentemente da quantidade
de mal da qual ele nos protege, Deus tem de permitir que uma
enorme quantidade de mal ocorra se ele não quiser nos enganar sobre
o que realmente significa a nossa separação de Deus. A quantidade
de mal que ele permite que ocorra é tão grande e tão horrível que
não podemos realmente compreendê-la, especialmente se somos
pessoas da classe média europeia ou norte-americana. Apesar disso,
todos entendem que a quantidade de mal podia ser muito maior.
Os habitantes de um mundo em que os seres humanos se separaram
de Deus e ele simplesmente os abandonou veriam o nosso mundo
como um paraíso em comparação com o deles. Mas esse mal terá um
fim. Em algum momento, por toda a eternidade, não haverá mais
o sofrimento não merecido: a escuridão atual, “a era do mal”, será
lembrada no fim como uma breve tremulação no início da história
da humanidade. Todo o mal cometido pelos perversos contra os
inocentes será vingado e cada lágrima será enxugada. E se houver
ainda o sofrimento, ele será merecido: o sofrimento daqueles que se
recusam a cooperar com o grande resgate divino, daqueles que, assim
Deus permite, existem eternamente em um estado de ruína que eles
mesmos escolheram – em suma, daqueles que estão no Inferno.

Um aspecto dessa história precisa ser enfatizado com muito mais


força. (De fato, não fiz mais do que aludir a esse aspecto da histó-
ria. As alusões foram feitas com as expressões “eventos aleatórios

201
O problema do mal | Peter van Inwagen

destrutivos” e “forças cegas da natureza”). Se a história for verdadeira,


muito do mal que ocorre no mundo é devido ao acaso. E essa afir-
mação aplica-se tanto aos males causados pelos seres humanos como
aos males causados por “forças aleatórias e destrutivas da natureza”.
Pode acontecer que uma mulher seja violentada e assassinada só
porque cedeu a um impulso repentino de parar no acostamento
da estrada para consultar um mapa. Pode não haver literalmente
nada mais a dizer do que isso em resposta à questão “Por que isso
aconteceu justamente com ela?”.

De acordo com a história que contei, geralmente não há explicação


por que esse mal específico aconteceu exatamente com essa pessoa.
O que há é uma explicação por que sem nenhuma razão o mal
acontece com as pessoas. Se uma criança muito querida morre de
leucemia, pode não haver qualquer explicação da razão por que isso
aconteceu – embora haja uma explicação por que eventos desse tipo
acontecem. E a explicação é a seguinte: essa é uma parte do que sig-
nifica dizer “ser separado de Deus”. Ser separado de Deus significa
ser um brinquedo do acaso; significa viver em um mundo em que
crianças inocentes morrem horrivelmente, e até algo pior do que isso:
significa viver em um mundo em que crianças inocentes morrem
horrivelmente sem nenhuma razão; significa viver em um mundo em
que aqueles que são maus, devido à sorte, geralmente prosperam.
Para quem não quer viver em um mundo assim, um mundo em que

202
O argumento global do mal (continuação)

somos meros brinquedos do acaso, o melhor é aceitar a oferta de


Deus de uma saída deste mundo.12

Aqui termina essa história muito longa – é ainda o Teísta que


está falando –, que eu disse ser consistente com o que sabemos
da história pré-humana. Chamarei essa história de “defesa do
livre-arbítrio estendida”. Escolhi esse nome porque ela inclui a defesa
do livre-arbítrio “simples” como uma parte. Assim, uma caracte-
rística da defesa do livre-arbítrio estendida é que, mesmo um ser
onipotente, tendo alçado os nossos antepassados à racionalidade e
tendo dado a eles o livre-arbítrio, que inclui a livre-escolha entre
permanecer unido a ele em laços de amor ou voltar as costas para
ele e seguir os próprios planos e desejos, não seria capaz de asse-
gurar que eles tivessem escolhido a primeira alternativa – embora
possamos estar seguros de que ele fez tudo o que a onipotência
poderia fazer para aumentar a probabilidade de que eles tivessem
escolhido a primeira alternativa. Contudo, em sua onisciência, Deus
sabia que, mesmo com a quantidade de mal que poderia resultar
da escolha pela separação, e a consequente autodestruição das suas
criaturas – caso ela tenha de ocorrer –, a dádiva do livre-arbítrio
ainda valeria a pena. Pois a existência de uma eternidade de amor
depende dessa dádiva, e que a eternidade supera os horrores de um
período muito longo, mas, no sentido mais literal, temporário do
estranhamento divino-humano. E ele fez o que podia para manter

12
Para uma discussão ampla do papel do acaso na defesa do livre-arbítrio estendida, veja van
Inwagen (1988).

203
O problema do mal | Peter van Inwagen

os horrores do estranhamento no nível mínimo – se houver um


nível mínimo. [Aqui um parêntesis in propria persona: na próxima
conferência, defenderei a tese de que não há uma quantidade mínima
de sofrimento decorrente da nossa separação do nosso Criador que
seja consistente com o seu plano de Reconciliação. Esse ponto será
extremamente importante em conexão com o argumento local do
mal.] Pelo menos, ele tornou o estranhamento humano-divino muito
menos horrível do que poderia ter sido.

A defesa do livre-arbítrio estendida inclui a quantidade e os tipos de


males que encontramos no mundo atual, incluindo o que algumas
vezes é chamado de “mal natural”, tal como o sofrimento causado
pelo terremoto de Lisboa. (O mal natural, de acordo com a defesa
do livre-arbítrio estendida, é um caso especial de mal causado pelo
mau uso do livre-arbítrio; o fato de que os seres humanos estejam
sujeitos à destruição por terremotos é uma consequência de um mau
uso primitivo do livre-arbítrio). Afirmo que a defesa do livre-arbítrio
estendida é uma história possível (internamente consistente, pelo
menos até onde podemos ver). Afirmo ainda que, dado que o perso-
nagem central dessa história – Deus – exista, o resto da história pode
ser verdadeiro. Finalmente, podemos afirmar que, no estado atual do
conhecimento humano, poderíamos não ter razão para pensar que a
história seja falsa a não ser que tivéssemos alguma razão – uma razão
outra que a existência do mal – para pensar que Deus não existe.

Concedo que a defesa do livre-arbítrio estendida não é eficaz em


relação aos casos como o “cervo de Rowe” – os casos de sofrimento

204
O argumento global do mal (continuação)

que ocorreram antes que houvesse seres humanos ou que de algum


modo não são causalmente conectados com a escolha humana. Vou
considerar esses casos daqui a pouco. [Não vou permitir que Teísta
cumpra essa promessa. Discutirei os “horrores pré-lapsários” na
sétima conferência, mas eu mesmo apresentarei os argumentos dos
dois lados do caso, sem fingir que eles são apresentados no contexto
de um debate ideal]. Porém não é sábio tentar fazer tudo ao mesmo
tempo. Eu gostaria de passar a palavra para a Ateísta e perguntar a
ela se a minha história não tem as características que digo que tem.

Aqui termina o longo discurso do Teísta. Ele contou a história que


chama de “defesa do livre-arbítrio estendida”. O seu propósito é levantar
dúvidas nas mentes dos agnósticos a respeito de uma das premissas
do argumento do mal: precisamente a premissa condicional “se Deus
existisse, não encontraríamos enormes quantidades de males horrendos
no mundo”. O Teísta espera que, ouvindo a defesa do livre-arbítrio
estendida, os agnósticos dirão algo como o seguinte: “Se há um Deus,
o resto da história poderia ser verdadeiro. Mas então não há razão
para aceitar a premissa condicional da Ateísta. Essa premissa pode
ser verdadeira, mas também pode não ser verdadeira”. E se a expec-
tativa do Teísta for realizada, se for assim mesmo como os agnósticos
reagiriam à sua história, então, de acordo com a minha definição de
“fracasso”, o argumento global do mal é um fracasso.
Acredito que seja assim mesmo que os agnósticos reagiriam.
Sem dúvida, você deve ter questões sobre essa história. Você pode,
por exemplo, querer perguntar se uma audiência de agnósticos neutros
reagiria à história dizendo “se há um Deus, o resto dessa história poderia

205
O problema do mal | Peter van Inwagen

ser verdadeiro”. Talvez você pense que esse não seja o caso. Talvez pense
que essa história seja bizarra. Talvez você pense que os agnósticos deve-
riam reagir a ela como as pessoas normais e razoáveis de um júri rea-
giriam se Clarence Darrow tivesse tentado levantar dúvida nas mentes
delas sobre o assassinato de Bobby Franks por Leopold e Loeb contando
a elas uma história centrada na ideia de que o assassinato não havia sido
cometido por seus clientes, mas sim por seus gêmeos malignos, clones
criados com o uso da ciência de seres extraterrestres malévolos. Deverí-
amos esperar que um membro normal e razoável do júri reagisse a essa
história dizendo algo como “Darrow quer fazer com que eu acredite
que, se os seus clientes forem realmente inocentes, o resto da história
que ele nos contou pode ser verdadeiro. Bem, não penso assim. Penso
que mesmo se esses dois jovens forem inocentes do assassinato do qual
são acusados, o resto da história é certamente falso”. Tenho de dizer que
não penso que os nossos jurados racionais, os membros da audiência
de agnósticos, reagiriam à defesa do livre-arbítrio estendida de modo
similar. Os jurados no caso criminal sabem o bastante sobre como as
coisas no mundo realmente são para saber que, mesmo se os acusados
forem inocentes, a história dos “gêmeos malignos” é certamente falsa
(“certamente” no sentido de que a probabilidade da sua verdade é tão
próxima a zero que a possibilidade de que ela seja verdadeira – estri-
tamente falando, a história é possível – deve ser ignorada por qualquer
pessoa engajada em uma deliberação prática). Mas os agnósticos seriam
racionais se dissessem que a história da criação-queda-e-reconciliação
é certamente falsa mesmo se Deus existir? Talvez você pense que a
história seja certamente falsa – ela é tão improvável que a possibilidade
da sua verdade tem de ser ignorada em uma investigação intelectual

206
O argumento global do mal (continuação)

séria. Nesse caso, no entanto, talvez você pense que a existência de Deus
é muito improvável. Mas suponha agora que você seja subitamente
convertido ao teísmo, convertido à crença de que há um ser que, entre
outras coisas, é onipotente e moralmente perfeito. Você pensa que ainda
diria que a história da criação-queda-e-redenção é improvável? Se dis-
ser que sim, terei de discordar. Não é isso o que você diria. Porém não
quero dizer que, tendo sido convertido ao teísmo, você aceitaria de bom
grado a história ou pensaria que ela é mais provável do que improvável.
O que quero dizer é que você iria dizer que ela é o tipo de história que
poderia ser verdadeira, que ela representaria uma possibilidade real, que
a história seria, até onde se sabe, verdadeira.
Eis outra questão que você poderia querer perguntar: se eu acredito
na história que fiz Teísta contar. Bem, acredito em partes dela, e não
desacredito nenhuma delas. (Mesmo as partes que acredito não per-
tencem à minha própria fé; ela compreende meramente algumas das
minhas opiniões religiosas. Aquelas partes estão no mesmo nível que
a minha crença de que as ordens anglicanas são válidas). Não estou
muito certo sobre os “poderes preternaturais”, por exemplo, ou sobre a
proposição de que Deus nos protege do excesso de mal, e que o mundo
seria muito pior se não o fizesse. Mas o que eu acredito e não acredito
não vem ao caso. A história que contei constitui, lembro a você, simples-
mente uma defesa. Teísta não apresenta a defesa do livre-arbítrio como
uma teodiceia, como uma colocação da verdade a respeito da questão
envolvendo as presenças simultâneas de Deus e do mal no mundo.
E nem eu o faria se contasse a história. Teísta mantém tão somente, eu
mantenho tão somente, que a história é – dada a existência de Deus –
verdadeira até onde se sabe. E eu certamente não vejo qualquer razão

207
O problema do mal | Peter van Inwagen

para rejeitá-la. Em particular, não vejo razão para rejeitar a tese de


que uma população de nossos ancestrais tenha sido miraculosamente
alçada à racionalidade em, digamos, 13 de junho de 190.027 a. C. – ou
em outra data específica qualquer. Não é uma descoberta da biologia
evolucionária que não há nenhum evento milagroso em nossa história
evolucionária. E nem mesmo poderia ser uma descoberta da biologia
evolucionária que não há um evento milagroso em nossa história evolu-
cionária, não mais do que poderia ser uma descoberta da meteorologia
de que o tempo em Dunquerque durante aqueles dias fatídicos de 1940
não era devido a uma ação divina específica local. Qualquer pessoa
que acredita que o acontecimento da racionalidade humana ou que o
tempo em Dunquerque teve causas puramente naturais tem de acre-
ditar nisso em bases filosóficas, e não em bases científicas. Certamente,
a argumentação para essa conclusão é mais forte no caso da gênese da
racionalidade, pois sabemos muito sobre o clima e sabemos que nuvens
de chuva em Dunquerque são coisas que podem ter tido causas naturais.
E não sabemos que a racionalidade pode ter surgido por meio de causas
naturais – ou, pelo menos, não sabemos tal coisa a não ser que de algum
modo saibamos que tudo realmente tem uma causa puramente natural.
Esse é o caso porque todos aqueles que acreditam que a racionalidade
humana pode ter surgido de causas puramente naturais acreditam nisso
com base apenas neste argumento: todas as coisas têm causas puramente
naturais; os seres humanos são racionais; portanto, a racionalidade dos
seres humanos pode ter surgido de causas puramente naturais porque
ela realmente surgiu de causas puramente naturais.
Poderia ser uma descoberta da biologia evolucionária que a
gênese da racionalidade não foi um evento repentino e local, e essa

208
O argumento global do mal (continuação)

descoberta implicaria a falsidade da defesa do livre-arbítrio estendida.


Mas nenhuma descoberta dessas jamais foi feita. Se alguém, por alguma
razão, avançasse a teoria de que seres extraterrestres visitaram o planeta
terra e, por meio de uma engenharia genética impressionante, alçassem
alguma população de nossos ancestrais primatas à racionalidade em
uma única operação – algo assim ocorre no filme 2001: Uma Odisseia no
Espaço – essa teoria não poderia ser refutada por nenhum fato conhecido
da antropologia física.
Não vou fazer com que a Ateísta levante qualquer objeção científica
a essa história; eu poderia fazer isso, obviamente. Se tivesse feito, eu
teria feito com que o Teísta respondesse a esse tipo de objeção dizendo
exatamente o que disse. E não vejo como uma audiência de agnósticos
realmente imparciais encontraria qualquer barreira puramente cien-
tífica para concordar que, até onde se sabe, dado que Deus exista, o
resto da história poderia ser verdadeira. Quero reservar Ateísta para
a função de levantar objeções filosóficas, e não científicas, à defesa do
livre-arbítrio estendida. (Na sétima conferência, a conferência devo-
tada ao sofrimento dos animais, falarei mais das supostas dificuldades
científicas que a defesa do livre-arbítrio teria de enfrentar, e discutirei
algumas questões filosóficas intimamente ligadas a essas dificuldades.
Essas questões filosóficas são ramificações da seguinte questão: por que
a defesa do livre-arbítrio estendida representa a gênese da racionalidade
como um evento repentino e miraculoso? A minha discussão dessas
questões surgirá naturalmente de certas considerações a respeito dos
sofrimentos dos animais).
A questão filosófica mais importante que pode ser feita sobre
essa história é esta: suponha que, para dar sequência à argumentação, a

209
O problema do mal | Peter van Inwagen

defesa do livre-arbítrio estendida seja verdadeira. Ela justifica os males


do mundo? Coloque a questão do seguinte modo: suponha que haja um
ser onipotente e onisciente e que esse ser procedeu assim como Deus
teria procedido na defesa do livre-arbítrio estendida. Uma objeção moral
poderia ser feita contra as ações desse ser? Há alguma barreira que nos
impeça de dizer que esse ser não é apenas onipotente e onisciente, mas
também moralmente perfeito?
Na próxima conferência, considerarei o argumento que Ateísta
poderia oferecer para a conclusão de que um ser moralmente perfeito
não faria o que a defesa do livre-arbítrio estendida diz que Deus tenha
feito.

210
CONFERÊNCIA 6
O argumento local do mal

Na conclusão da conferência anterior, eu disse que na conferência


de hoje eu consideraria que tipo de argumento Ateísta poderia ofere-
cer a favor da conclusão de que um ser moralmente perfeito não faria
o que a defesa do livre-arbítrio estendida diz que Deus tenha feito.
Penso que a melhor resposta dela à defesa do livre-arbítrio estendida
seria algo assim:

Você, Teísta, pode ter contado uma história que explica a quantidade
enorme de mal no mundo, e também o fato de que grande parte
desse mal não é causada pelos seres humanos. Mas há uma objeção
ao teísmo que se baseia nos males que encontramos no mundo, e não
simplesmente no que poderia ser chamado de “fato geral do mal”.
Há um argumento baseado na gratuidade óbvia de muitos males
particulares. Apresentarei um argumento nesses termos e tentarei
convencer esses estimáveis agnósticos de que, mesmo se você tiver
respondido efetivamente ao que o nosso criador, van Inwagen, cha-
mou de “argumento global do mal”, a sua resposta a esse argumento
não é adequada para o que ele chamou de “argumentos locais do mal”.

Vamos considerar certos eventos muito maus – “horrores”, como irei


chamá-los. Eis alguns exemplos de horrores: um ônibus escolar cheio
de crianças é atingido por um deslizamento; a vida de uma mulher
O problema do mal | Peter van Inwagen

é gradualmente destruída pelo progresso da doença de Huntington;


um bebê nasce sem membros. Alguns horrores são consequências
de escolhas humanas, e alguns não são consequências dessas esco-
lhas. Porém, seja um horror particular conectado com as escolhas
humanas ou não, é evidente, pelo menos em muitos casos, que Deus
poderia ter impedido esse horror sem sacrificar qualquer bem maior
ou permitir a ocorrência de um horror ainda maior. (Se você disser
que entre as crianças no ônibus escolar poderia haver uma delas que
teria sido a contraparte de Hitler no século XXI e enormes quan-
tidades de mal foram impedidas com o acidente do ônibus escolar,
respondo que o caso é exatamente similar ao caso do cirurgião que
salva a vida do paciente amputando um dos seus membros, mas
perversamente recusa-se a usar anestésicos; o mesmo resultado bom
poderia ter sido alcançado de um modo diferente que envolvesse
muito menos sofrimento; um Deus onisciente teria sabido disso e
agido de acordo com o que sabia).

Mencionei há pouco a enorme quantidade de mal que existe neste


mundo e, certamente, é verdade que existe uma enorme quantidade
de mal neste mundo. A expressão “a quantidade de mal” sugere – e
talvez implique – que o mal é quantificável, como a distância ou o
peso. Que o mal seja quantificável pode ser falso ou ininteligível,
porém, se for verdadeiro, mesmo que ainda colocado de forma apro-
ximada, isso mostra que os horrores levantam um problema para o
Teísta que é distinto do problema colocado pela enorme quantidade
de mal. Se o mal pode ser, mesmo aproximadamente, quantificável,
como o discurso sobre quantidades de mal parece implicar, poderia

212
O argumento local do mal

ser o caso que houvesse mais mal no mundo em que ocorressem


milhares de milhões de episódios menores de sofrimento (como, por
exemplo, quando se quebra uma costela) do que em um mundo com
poucos horrores. E um criador onipotente e onisciente poderia ser
moralmente responsabilizado por criar um mundo em que houvesse
um só horror. E a razão disso é óbvia: esse horror poderia ter sido
“deixado de fora” da criação sem o sacrifício de qualquer bem maior
ou a permissão de algum horror ainda maior. E deixá-lo de fora da
criação é exatamente o que um ser moralmente perfeito teria feito;
as coisas boas que poderiam depender causalmente do horror pode-
riam – dada a onipotência e onisciência do Criador – ser assegura-
das (se não for moralmente ofensivo usar o termo nesse contexto)
por meios mais “econômicos”. Assim sendo, a pura quantidade de
mal (que poderia ser distribuída uniformemente de maneira justa)
não é o único fato sobre o mal que Teísta precisa levar em conta.
Ele também tem de levar em conta o que poderíamos chamar (de
novo, com riscos de usar uma linguagem moralmente ofensiva) de
altas doses locais de mal – ou seja, horrores. E é difícil ver como a
defesa do livre-arbítrio, mesmo elaborada, poderia oferecer um meio
de lidar com os horrores.

O exemplo famoso de Rowe de um horror, o cervo que tem uma


morte agonizante em um incêndio florestal que não foi causado, de
nenhum modo, mesmo que remoto, por seres humanos – a morte
do qual não deixa marcas que poderiam ser descobertas por seres
humanos – é um caso particularmente difícil para o Teísta. (Se o
episódio não deixa marcas, como sabemos que ele ocorreu? Bem,

213
O problema do mal | Peter van Inwagen

não estamos realmente falando que ele ocorreu, mas sobre um tipo
de evento. O nosso conhecimento da natureza e a nossa aceitação
do princípio de uniformidade da natureza torna impossível acreditar
que nenhum evento desse tipo jamais ocorreu). É certo que, não
importa quão sentimentais possamos ser em relação aos animais, esse
caso não tem muito de horror se comparado com Auschwitz, por
exemplo. Não é o grau de horror envolvido no evento que cria a difi-
culdade especial para os teístas, mas sim o seu completo isolamento
causal da existência e atividades dos seres humanos. Nenhum apelo
a considerações envolvendo o livre-arbítrio humano ou o futuro
benefício para os seres humanos pode possivelmente ser relevante
para o problema que esse caso coloca para o Teísta, ou seja, a dificul-
dade de explicar por que um ser onipotente e moralmente perfeito
permitiria que uma coisa dessas acontecesse.

Há muitos horrores, excessivamente muitos horrores, que não levam


a nenhum bem discernível – e certamente não levam a nenhum bem,
discernível ou não, que um ser onipotente poderia alcançar sem
o horror; de fato, que ele não poderia alcançar sem o sofrimento.
Eis uma história real. Um homem ataca uma mulher em um lugar
isolado. Ele subjuga a mulher, corta os braços dela na altura dos
cotovelos com um machado, violenta e deixa sua vítima sozinha
para que morra. Ela consegue de algum modo se arrastar com o
que restou dos braços até o acostamento de uma estrada, onde foi
finalmente encontrada. A mulher sobreviveu, mas experimentou
um sofrimento indescritível, e embora esteja viva, ela tem de viver
o resto da vida sem os braços e com a memória do que foi obrigada

214
O argumento local do mal

a suportar.1 Nenhum bem discernível resultou disso e é totalmente


irracional acreditar que haveria um bem que um ser onipotente não
possa realizar sem empregar o estupro e o sofrimento horrível da
mulher mutilada como um meio para realizá-lo. E se essa afirmação
for falsa, e o horror resultou em um bem que era tão intimamente
conectado com o sofrimento da mulher que mesmo um ser onipo-
tente não poderia tê-lo realizado sem o sofrimento, não se seguiria
que o bem valesse o sofrimento. (Ele teria de ser um bem grandioso
para valer tanto). Com base nessas reflexões, construirei agora uma
versão do argumento do mal, uma versão que, diferentemente da
versão que apresentei anteriormente, se refere não aos males do
mundo, mas só a esse evento. (O argumento toma como modelo o
argumento central do ensaio clássico de W. Rowe “The problem of
evil and some varieties of atheism”) Refiro-me coletivamente aos
eventos na história que acabei de contar como “Mutilação”. Eis o
argumento:

1
Essa história também foi usada por Marilyn Adams (1989; 1999). O meu uso dessa história
é independente do dela: li nos jornais os relatos iniciais do evento apavorante recontado na
história (creio que ele ocorreu em 1980) e desde então o tenho usado como exemplo em
minhas aulas de filosofia da religião. Também notarei que, embora eu e Adams usemos a
palavra “horrores”, ela usa essa palavra em um sentido técnico especial e eu não faço isso.
O sentido dela é “males nos quais a participação (cometer ou sofrer esses males) dá a uma
pessoa uma razão prima facie para duvidar se a sua vida como um todo poderia (dada a
inclusão dos males na sua vida) ser um grande bem para ela”. Não me posiciono em relação
à questão se todos ou alguns dos eventos que chamo de “horrores” têm essa característica.

215
O problema do mal | Peter van Inwagen

1) Se a Mutilação não tivesse ocorrido, se ela tivesse sido, por assim


dizer, deixada fora do mundo, o mundo não seria pior do que é. (Na
verdade, parece que o mundo seria significativamente melhor se a
Mutilação tivesse sido deixada fora dele, mas o meu argumento não
requer essa premissa).
2) A Mutilação de fato ocorreu (e foi um horror).
3) Se um criador moralmente perfeito tivesse deixado certo horror
fora do mundo e esse mundo não fosse pior do que teria sido se ele
tivesse incluído esse horror no mundo, então o criador moralmente
perfeito teria deixado o horror fora do mundo que criou – ou pelo
menos teria deixado esse horror fora do mundo se tivesse sido capaz
de fazer isso.
4) Se um ser onipotente criou o mundo, ele era capaz de deixar a
Mutilação fora do mundo (e capaz de fazer isso deixando o mundo
intacto nos outros aspectos).
5) Portanto, não há um criador onipotente e moralmente perfeito.

Não digo que esse argumento – um dos muitos “argumentos locais


do mal” – seja formalmente válido, mas é óbvio ele poderia facil-
mente ser tornado formalmente válido com o acréscimo de premissas
adicionais adequadamente escolhidas. Visto que é óbvio que todas
as premissas adicionais que seriam necessárias para tornar o argu-
mento formalmente válido seriam indiscutivelmente verdadeiras,
seria realmente pedante ir atrás dessas premissas. Você, Teísta, tem
de negar pelo menos uma das quatro premissas que apresentei; ou
você tem de mostrar que dúvidas sérias podem ser levantadas sobre
pelo menos uma delas. Mas qual?

216
O argumento local do mal

Assim fala Ateísta. Como Teísta poderia responder? Ateísta disse


que o argumento dela toma o argumento de Rowe como modelo.
Se em sua réplica Teísta tomasse como modelo as réplicas que foram
feitas pela maioria dos teístas que escreveram sobre o argumento de
Rowe, ele iria atacar a primeira premissa. Ele tentaria mostrar que, até
onde se sabe, o mundo (considerado sob o aspecto da eternidade) é
um lugar melhor por conter a Mutilação. Teísta defenderia a tese de
que, até onde se sabe, Deus tira (ou em algum momento futuro tirará)
da Mutilação algum grande bem que a supera ou ele defenderia a tese
de que Deus empregou a Mutilação como meio para impedir algum
mal maior. E ele afirmaria ainda que, até onde se sabe, o grande bem
alcançado ou o grande mal impedido não poderia ter sido alcançado ou
impedido, nem mesmo por um ser onipotente, senão por meio da Muti-
lação ou algum outro horror pelo menos tão mau quanto a Mutilação.
Não deixarei que Teísta responda a Ateísta desse modo. Acho a
premissa 1) plausível, mesmo que não esteja tão seguro a respeito dessa
premissa quanto Ateísta (ou não esteja tão seguro quanto a maioria dos
ateístas que discutiram a questão comigo). E acho até mais plausível
(na verdade, acho que é muito plausível) supor que a seguinte genera-
lização existencial de 1) seja verdadeira:

Houve, na história do mundo, pelo menos um horror tal que, se ele


não tivesse ocorrido, se ele tivesse sido, digamos assim, simplesmente
deixado fora do mundo, o mundo não seria pior do que é.

Se essa generalização for verdadeira, então, mesmo se 1) for falsa,


houve pelo menos um horror na história do mundo que Ateísta poderia

217
O problema do mal | Peter van Inwagen

usar para mostrar que o mundo não foi criado por um ser onipotente e
moralmente perfeito – dado, obviamente, que as outras três premissas
do argumento dela, devidamente ajustadas, sejam verdadeiras.
Deixarei Teísta empregar outra linha de ataque à réplica de Ateísta
à sua defesa do livre-arbítrio estendida. Vou representá-lo negando a
premissa 3), ou seja, tentando mostrar que a defesa do livre-arbítrio
estendida lança uma dúvida considerável sobre a premissa 3). A fim de
permitir a você melhor seguir o que Teísta dirá, tentarei fixar o conte-
údo essencial de 3) apresentando-o em termos de uma metáfora bem
extravagante. Imagine um criador moralmente perfeito realizando uma
verificação final do projeto em quatro dimensões do mundo que ele está
prestes a criar. Ele percebe então uma mancha de horror, reflete por
um instante e constata que se apagar esse horror e substituí-lo por algo
inócuo, preenchendo os buracos espaço-temporais para tornar as linhas
de causação contínuas (ou quase isso) no projeto revisado, um mundo
feito de acordo com o projeto revisado conterá um balanço do bem e do
mal pelo menos tão favorável quanto um mundo feito de acordo com
o projeto original. Ele percebe que há uma obrigação moral de revisar
o projeto do modo como pensou e incorporar a revisão na sua criação;
sendo moralmente perfeito, ele necessariamente revisa o projeto e cria
de acordo com o projeto revisado. (ou, para ser pedante, ele necessaria-
mente revisa o projeto e cria de acordo com o projeto revisado se ele
é capaz de revisar o projeto e criar de acordo com o projeto revisado).
A premissa 3) simplesmente diz que isso é o que tem de acontecer
quando um criador moralmente perfeito nota em seu projeto para o
mundo um horror que possa ser “editado” sem alterar significativamente
o balanço do bem e do mal representado nesse projeto.

218
O argumento local do mal

Agora que temos, assim espero, o conteúdo da premissa 3) em nos-


sas mentes de forma intuitiva e fácil de lembrar, estamos prontos para
ouvir a resposta do Teísta à réplica da Ateísta à defesa do livre-arbítrio
estendida:

Por que devemos aceitar essa premissa? Deem uma olhada na defesa
de Rowe da premissa correspondente em seu argumento, que citarei
completa:

[Essa premissa] parece exprimir a crença que é conforme


aos nossos princípios morais básicos, princípios compar-
tilhados por teístas e não teístas.2

Nessa passagem não há o que se poderia chamar de uma composição


longa de raciocínio intrincado. Ainda assim, vamos considerá-la.
Temos de perguntar o seguinte: quais são os “princípios morais
básicos ... compartilhados por teístas e não teístas”? Rowe não diz;
mas acredito que há realmente um princípio moral ao qual seria
plausível apelar para defender a premissa 3). Esse princípio moral
poderia ser colocado deste modo:

Se uma pessoa está em condição de impedir um mal, ela não deve


permitir que esse mal aconteça – exceto se permitir esse mal leve

2
Rowe (1979, p. 337 apud ADAMS; ADAMS, 1990, p. 129).

219
O problema do mal | Peter van Inwagen

a um bem que supere esse mal ou se impedir esse mal leve a outro
mal pelo menos tão mau.

(Note que esse princípio não diz que, se permitir o mal leva a um
bem que supera o mal ou impedir o mal resulta em algum mal pelo
menos tão mau, deve-se permitir que o mal ocorra – ou mesmo que
é moralmente admissível permitir que o mal ocorra).

Uma palavra sobre a frase “em condição de”. Entendo que ela impli-
que tanto “ser capaz” como “ser moralmente permitido”. Em relação
a essa última implicação, talvez – não importa o que os utilitaristas
possam dizer – não caiba a uma pessoa impedir certos males. Alguns
males ameaçadores podem ser tais que impedi-los poderia ser visto
muito mais como uma intromissão na vida de outras pessoas, um
desrespeito ao direito que as pessoas têm de se dar mal. (Lembre-se
do caso de Dorothy e seu médico do capítulo anterior). Ou impedir
certos males poderia ser presumir uma autoridade legal ou moral
que não se tem (considere o caso do policial que secretamente mata
um assassino em série que a justiça está impedida de pôr na cadeia).
Insistir no componente moral de “em condição de” é provavelmente
necessário para tornar plausível o princípio ao qual Rowe apela
(assim penso). Tendo dito isso, posso seguir adiante ignorando o
que disse, pois, ao que parece, jamais seria moralmente inadmissível
para Deus impedir um mal; pelo menos não com base na alegação
de que o assunto em questão não é da conta dele ou está fora do
âmbito da autoridade moral dele. Deus não está no mesmo nível que
nós; ele é, em vez disso, nosso Criador, e tem toda autoridade moral.

220
O argumento local do mal

O princípio moral é correto? Penso que não seja correto. Considere


este caso. Suponha que você seja um oficial de justiça com o poder
de libertar da prisão qualquer pessoa a qualquer momento. Metra-
lha foi condenado a 10 anos de prisão por assalto à mão armada.
A sentença está próxima do fim, ele entra com uma petição para sair
da prisão um dia antes. Você deve deixá-lo sair da prisão um dia
antes? O princípio que consideramos diz que sim. Um dia na prisão é
certamente um mal – se você não pensa assim, convido-o a passar um
dia na prisão. (Ou considere a reação provável de um prisioneiro que
por um atraso do julgamento do seu processo é mantido na prisão
um dia a mais do que deveria). Vamos supor que o único bem que
resulta de alguém estar na prisão seja o desencorajamento do crime.
(Essa suposição é feita para simplificar o argumento. Que ela seja
falsa não traz nenhum prejuízo). Obviamente, nove anos e 364 dias
na prisão não terá um poder de inibir assaltos à mão armada muito
diferente daquele que tem dez anos na prisão. Assim: nenhum bem
será assegurado se Metralha passar o último dia da sua condena-
ção na prisão e passar o último dia da condenação na prisão é um
mal. O princípio diz a você, oficial de justiça, que você deve deixar
Metralha sair um dia antes do prazo previsto na sentença dele. Isso
basta para mostrar que o princípio está errado, pois você não tem
essa obrigação. Mas o princípio tem dificuldades mais sérias do que
a sugerida por essa crítica simples.

Parece que, se uma ameaça de punição de n dias na prisão tem certo


poder de inibir assaltos à mão armada, n – 1 dias na prisão terá o
poder de inibir assaltos à mão armada que não é significativamente

221
O problema do mal | Peter van Inwagen

menor. Considere o poder de inibir assaltos à mão armada que


pertence à ameaça de punição com 1.023 dias na prisão. Considere
o poder de inibir assaltos à mão armada que pertence à ameaça de
punição com 1.022 dias na prisão. Há alguma diferença significativa?
Considere o poder de inibir assaltos à mão armada que pertence
à ameaça de punição com 98 dias de prisão. Considere o poder de
inibir assaltos à mão armada que pertence à ameaça de punição com
97 dias na prisão. Há alguma diferença significativa? Considere o
poder de inibir assaltos à mão armada que pertence à ameaça de
punição com um dia na prisão. Considere o poder de deter assaltos
à mão armada que pertence à ameaça de punição de nenhum dia na
prisão. Há alguma diferença significativa? (Neste último caso, parece
óbvio que não há diferença justamente porque um dia na prisão não
teria nenhum poder de inibir assaltos à mão armada).

Um pouco de reflexão mostra que, se isso for verdadeiro, como


parece ser, o princípio moral acarreta que Metralha não deveria
cumprir nenhum dia de pena na prisão. Pois suponha que Metralha
tenha entrado com um pedido para ter a sua sentença reduzida em
1 dia não na véspera de ser solto, mas sim antes de ter entrado na
prisão. Metralha encaminha a petição a você, um oficial de justiça
que aceita o princípio moral. Pela razão que foi oferecida, você tem
de concordar com a petição. Suponha agora que quando a petição
for atendida, Metralha entra com outra petição: que a sentença seja
reduzida a dez anos menos 2 dias. Essa segunda petição também
tem de ser atendida, porque não há diferença entre dez anos menos
um dia e dez anos menos dois dias em relação ao poder de inibir

222
O argumento local do mal

assaltos à mão armada. Estou certo que você já percebeu aonde isso
vai chegar. Dado que Metralha tenha tempo, energia e disposição
suficiente para entrar com 3.648 petições sucessivas, ele irá se livrar
da prisão.

Esse resultado é uma reductio ad absurdum do princípio moral que


discutimos. Como diz a sabedoria popular (e não se trata de um
compromisso entre considerações práticas e a moralidade estrita,
mas apenas de moralidade estrita), “você tem de impor um limite”.
E esse limite é arbitrário. O princípio falha precisamente porque
proíbe traçar limites moralmente arbitrários. Não há nada de errado,
ou nada que se possa determinar a priori como errado, com um
legislador que estabelece 10 anos de prisão como punição mínima
para assaltos à mão armada – a despeito do fato de que 10 anos na
prisão, considerado como uma período preciso de dias, é uma punição
arbitrária. Se um dia na terra tivesse 25 segundos a menos, a lei, sem
dúvida, seria estabelecida com os mesmos termos, e não seria nem
mais e nem menos efetiva do que de fato é; o intervalo de tempo
denotado pela expressão “10 anos” seria, no entanto, um dia menor
do que o intervalo de tempo efetivamente denotado por essa expres-
são. Quando se pensa nisso, parece óbvio que a duração das sentenças
de prisão determinadas por nossas leis dependem de acidentes da
astronomia, elas dependem do fato (em certa medida) acidental de
que usamos um sistema decimal em vez de um sistema binário ou
duodecimal de representação numérica, e de muitos outros fatores
arbitrários – como, por exemplo, a nossa preferência por números
que podem ser especificados de maneira concisa. E não há nada de

223
O problema do mal | Peter van Inwagen

errado nisso. Visto que a posição exata do limite será sempre uma
questão arbitrária (seja onde for que ele seja traçado), poderíamos
deixar que o lugar exato da sua colocação dependa parcialmente do
conjunto de preferências arbitrárias (moralmente falando) que a
natureza nos deixou.

Logo: o princípio moral é falso – ou possui um defeito no campo


dos princípios morais análogo à falsidade no campo das asserções
fatuais. Quais são as consequências da sua falsidade, do seu fracasso
como princípio moral, para o argumento local do mal? Voltemos à
defesa do livre-arbítrio estendida. Essa história explica a existência
de horrores – ou seja, a existência de horrores é uma parte da história.
Ela explica por que há horrores, mas não explica nenhum horror
particular; na verdade, ela implica que muitos horrores particulares
não têm explicação. E explicar por que há horrores não é o mesmo
que se opor ao argumento local do mal. Considerarei esse ponto em
breve, mas, antes disso, qualificarei a minha afirmação de que a defesa
do livre-arbítrio estendida explica a existência de horrores. O que é
estritamente correto é dizer que a história explica a existência do que
poderíamos chamar de horrores “pós-lapsários” – horrores que são
consequências do nosso afastamento de Deus. Ela não pode explicar
os horrores pré-lapsários (como o caso do cervo contado por Rowe,
se a morte horrível desse animal for imaginada como ocorrendo
antes de haver seres humanos). Discutirei, primeiramente, os hor-
rores pós-lapsários (como a Mutilação); somente quando terminar
essa discussão retornarei ao tópico difícil dos horrores pré-lapsários.
[Como eu disse antes, não permitirei que Teísta cumpra a promessa

224
O argumento local do mal

dele. Discutirei os horrores pré-lapsários na conferência 7, mas em


minha própria pessoa].

Uma explicação geral da existência de horrores não constitui uma


réplica ao argumento dos horrores, porque ela não nos diz qual
premissa do argumento devemos negar. Examinemos esse ponto
detalhadamente. De acordo com a defesa do livre-arbítrio estendida,
a resposta à questão “por que há horrores no mundo criado por um
Deus todo-poderoso e moralmente perfeito?” é esta:

Os seres humanos fizeram mau uso do livre-arbítrio e se separaram


de Deus e a existência de horrores é uma das consequências naturais
e inevitáveis dessa separação. Cada horror individual, no entanto,
pode ter sido devido ao acaso. Digamos que realmente todos os
horrores sejam devidos ao acaso. (Lembre-se de que a defesa do
livre-arbítrio é uma defesa, e não uma teodiceia. Mesmo se um teísta
acreditar que alguns horrores são produzidos por Deus e que em
cada caso ele tem em vista algo específico – tanto a Bíblia Hebraica
quanto o Novo Testamento implicam essas afirmações –,3 ele ainda
não tem uma razão para criticar o filósofo que apresenta como uma
defesa uma história de acordo com a qual todos os horrores individu-
ais são devidos ao acaso). Em relação ao sofrimento físico e à morte

3
Veja Is 30:27-8 e 45:7. Esta última passagem diz “Eu formo a luz e crio as trevas, promovo a
paz e causo o mal; Eu o Senhor faço todas essas coisas”. Conforme Baelz (1968, p. 64), J. S. Mill
fechou a sua Bíblia quando leu essas palavras. No Novo Testamento, veja as histórias da torre
de Siloé (Lc 13: 1-9) e do homem que nasceu cego ( Jo 9: 1-41).

225
O problema do mal | Peter van Inwagen

precoce, a rebelião contra Deus é similar a desconsiderar um aviso


muito claro, pular uma cerca e caminhar em um campo minado.
Se uma pessoa age assim, é quase uma certeza absoluta que mais
cedo ou mais tarde algo muito mau irá acontecer com ela. Quando
nos separamos de Deus, nos tornamos, como disse antes, brinquedos
do acaso. Mesmo aqueles horrores mais intimamente conectados
com o planejamento e a deliberação dos seres humanos são devidos
ao acaso. Winifrid pode ter cuidadosamente planejado o assassinato
do marido por meses, mas foi por acaso que eles se encontraram
28 anos antes. E por que Deus não impede miraculosamente cada
horror? Por que ele não providencia que o homem responsável pela
Mutilação quebre a perna um dia antes daquele dia fatídico – ou
algo assim? E por que não faz o mesmo mutatis mutandis em relação
a cada horror? Conforme a defesa do livre-arbítrio estendida, ele
não fez isso porque desse modo as suas ações frustrariam o plano de
restaurar a união original dele com os seres humanos, removendo
um motivo essencial para os seres humanos cooperarem com Deus
– ou seja, a compreensão de que há algo terrivelmente errado com
o mundo em que vivem. O melhor que poderia advir de uma pre-
venção milagrosa de cada um dos horrores que resultaram da nossa
separação de Deus seria um estado de felicidade natural perfeita
– como o estado das almas das crianças que morrem sem batismo,
conforme a teologia tradicional da Igreja Católica Romana. Mas
permitir que os horrores ocorram abre a possibilidade de um bem
sobrenatural para a humanidade infinitamente melhor do que uma
felicidade natural perfeita. A estratégia de Deus, por assim dizer,
é parecida com a estratégia observada pelo médico de Dorothy:

226
O argumento local do mal

recusar a dar a ela um medicamento que interromperia as dores em


seu peito para não frustrar o projeto de levá-la a parar de fumar e a
perder peso. (E essa estratégia é moralmente admissível no caso de
Deus, seja ela admissível ou não no caso do médico). Pode ser que
Deus impeça alguns horrores. E até onde sabemos, Deus reduz o
número de horrores deste mundo a alguma fração menor do que
a quantidade de horrores que ocorreria sem a sua ação milagrosa
específica e local. Ainda assim, ele tem de deixar que o mundo não
redimido seja um lugar horrível, pois, do contrário, o seu plano de
redenção da humanidade falhará.

Isso é o que diz a defesa do livre-arbítrio estendida. E o que ela diz,


como afirmei antes, não é uma réplica ao argumento dos horrores,
porque – em si mesma – ela não parece acarretar a falsidade de qual-
quer uma das premissas que Ateísta apresentou. Mas estamos agora
em condição de imaginar como alguém poderia responder ao convite
que ela fez ao Teísta de mostrar qual das premissas do argumento se
deve pedir que os agnósticos declarem como “não provada”.

Deus remove muitos horrores do mundo – em muitos casos, ele vê


que se interagir com o mundo só mantendo a existência a propensões
causais normais dos seus habitantes, um horror irá acontecer; então
faz mudanças locais específicas no mundo de tal modo que o que
teria acontecido não acontece, e o horror ameaçador é impedido.
Porém ele não pode remover todos os horrores do mundo, pois isso
frustraria o seu plano de se reunir com os seres humanos. E se ele
impede só alguns horrores, como ele decide qual deles impedir?

227
O problema do mal | Peter van Inwagen

Onde ele deve traçar o limite? – o limite entre os horrores ameaça-


dores que serão impedidos e aqueles horrores ameaçadores que ele
permitirá que ocorram? Sugeri que seja onde for que seja traçado,
esse limite será arbitrário. Esse ponto pode ser facilmente entendido
quando pensamos na Mutilação. Se Deus houvesse acrescentado
esse horror particular à sua lista de horrores que serão impedidos,
e apenas esse horror, o mundo, considerado em sua totalidade, não
teria sido um lugar significativamente menos horrível, e a compre-
ensão geral dos seres humanos de que eles vivem em um mundo
de horrores não teria sido significativamente diferente daquela que
realmente temos. A existência dessa compreensão geral é exatamente
o fator no seu plano para a humanidade que (de acordo com a defesa
do livre-arbítrio estendida) oferece a sua razão geral para permitir
que horrores aconteçam. Portanto, impedir a Mutilação não teria
interferido com o seu plano de restauração da perfeição original
da nossa espécie. Se a defesa do livre-arbítrio estendida for uma
história verdadeira, Deus escolheu onde traçar o limite, o limite
entre os horrores efetivos da história, que são reais, e os horrores
que são meras possibilidades evitadas, que poderiam ter sido reais.
E a Mutilação cai do lado dos “horrores efetivos da história”. Isso
mostra que o limite é arbitrário; pois se Deus tivesse traçado o limite
excluindo a Mutilação da realidade (e não tivesse excluído nenhum
outro horror da realidade), ele não teria perdido nenhum bem e não
teria permitido nenhum mal maior. Ele não tinha razão para traçar
o limite no lugar em que o traçou. E o que justifica que ele tenha
traçado esse limite como o fez? O que justifica que ele permita que
a Mutilação ocorra na realidade quando poderia tê-la excluído da

228
O argumento local do mal

realidade sem perder nenhum bem? A vítima da Mutilação não


teria uma causa moral contra Deus? Ele poderia tê-la salvado, e
não o fez; e ele nem mesmo reivindica ter alcançado um bem por
não salvá-la. Parece assim que Deus, nas palavras de C. S. Lewis,
está no banco dos réus; e se Deus está no banco dos réus, então
eu mesmo, Teísta, desempenho a função de advogado de defesa, e
vocês, agnósticos, são os jurados. Ofereço a seguinte defesa óbvia.
Não há um limite não arbitrário. Seja onde for que Deus trace o
limite, incontáveis horrores seriam deixados no mundo – o plano
divino requer a existência real de incontáveis horrores – e a vítima
ou as vítimas desses horrores fariam a mesma acusação contra ele
que imaginamos a vítima da Mutilação fazendo.

Mas vejo que Ateísta quer protestar; ela planeja contar a vocês que,
dados os termos da defesa do livre-arbítrio estendida, Deus deveria
ter permitido uma quantidade mínima de horrores consistente com
o seu projeto de reconciliação, e que é óbvio que ele não fez isso.
Ela irá contar a vocês que há um limite não arbitrário que Deus
poderia ter traçado, e ele é o limite que tem uma quantidade mínima
de horrores do lado da “realidade”. Porém esse limite não existe.
Não há uma quantidade mínima de horrores consistente com o
plano de Deus de reconciliação, porque o impedimento de qualquer
horror particular possivelmente não poderia ter efeito sobre o plano
divino. Para qualquer n, se a existência de não mais do que n horrores
é consistente com o plano de Deus, a existência de não mais do que

229
O problema do mal | Peter van Inwagen

n – 1 horrores será igualmente consistente com o plano de Deus.4


Perguntar qual é a quantidade mínima de horrores consistente com
o plano de Deus é como perguntar qual é o número mínimo de
gotas de chuva que poderiam ter caído no solo francês no século
XX que seja consistente com a França ter sido um país fértil nesse
século. A França foi um país fértil no século XX, e se Deus tivesse
impedido de chegar ao solo qualquer uma das gotas de chuva que
caiu na França no século XX, a França ainda teria sido um país fértil.
E o mesmo vale, obviamente, para duas gotas de chuva, ou mil gotas
de chuva, ou um milhão de gotas de chuva. No entanto, obviamente,
se Deus não permitisse que nenhuma gota que no século XX de fato
caiu das nuvens na França chegasse ao solo, a França teria sido um
deserto. E a França teria sido um deserto se ele tivesse permitido que
só uma gota, ou só mil gotas, ou só um milhão de gotas, chegassem
ao solo. E espero que ninguém pense haver algum número n tal que
(1) se Deus tivesse impedido de chegar ao solo n ou uma quantidade
menor de gotas que caíram na França no século XX, a França teria
sido fértil, e (2) se Deus tivesse impedido n+1 ou mais desses gotas
de atingir o solo, a França não teria sido fértil.

Espero que ninguém pense assim. Mas o conceito operativo nesse


caso é a vagueza – a vagueza da fertilidade –, e a vagueza é um tópico

4
Não se segue então que, para qualquer n, se a existência de no máximo n horrores é con-
sistente com o plano de Deus, então a existência de no máximo m horrores (em que m é
qualquer número menor do que n, incluindo 0) é consistente com o seu plano? Não: a indução
matemática é válida só para predicados precisos.

230
O argumento local do mal

tão enigmático que os filósofos que investigaram esse conceito por


longos períodos disseram coisas muito surpreendentes. Por exemplo,
filósofos muito capazes disseram que há um limite preciso entre “ser
alto” e “não ser alto”, uma altura tal que alguém que tenha essa altura
é alto e alguém que seja um milímetro mais baixo não é alto, mesmo
que ninguém saiba, e ninguém possa descobrir, precisamente onde
localizar esse limite. Desse modo, pode ser que alguém, talvez Timo-
thy Williamson, diga que há e tem de haver a quantidade menor de
gotas de chuva que poderia ter caído na França durante o século XX
consistente com a França ter sido um país fértil durante esse século.
Bem, se disser isso, essa pessoa está errada. Todavia, quero ressaltar
que qualquer teísta que aceite essa tese tem, do seu próprio ponto
de vista, um modo bem simples de responder ao argumento local
do mal: “Há uma quantidade menor de horrores tal que a existência
real de horrores nessa quantidade é consistente com a abertura dos
seres humanos à ideia de que a vida humana é horrível e que nenhum
esforço humano irá alterar esse fato. E, visto que Deus é bom, os
horrores que realmente existem – passados, presentes e futuros –
totalizam exatamente essa quantidade. Portanto, se a Mutilação não
tivesse acontecido e tudo o mais fosse o mesmo, os seres humanos
não estariam abertos à ideia de que a vida humana é horrível e que
nenhum esforço humano alteraria esse fato. A primeira premissa
do argumento local é assim falsa. Você pode achar difícil acreditar
nessa contrafactual, mas eu não acho. Afinal, acredito que há uma
quantidade menor de gotas de chuva tal que as gotas de chuva
nessa quantidade caindo na França no século XX são consistentes
com a fertilidade da França nesse século e, portanto, acredito que

231
O problema do mal | Peter van Inwagen

é impossível (embora imensamente improvável: é imensamente


improvável que a quantidade de gotas de chuva que caiu na França
no século XX seja “correta no limite”) que cada gota francesa no
século XX seja tal que, se não tivesse caído na França no século XX,
a França não teria sido fértil no século XX. Se posso acreditar nisso,
posso facilmente acreditar que se a Mutilação não tivesse ocorrido, os
seres humanos não estariam abertos às ideias de que a vida humana
é horrível e que nenhum esforço humano é capaz de alterar esse fato.
Eis uma analogia simples de proporção: um dado horror é para a
abertura dos seres humanos à ideia de que a vida humana é horrível
e que nenhum esforço humano irá alterar esse fato tal como uma
gota de chuva é para a fertilidade da França. Aqui termina a res-
posta simples prometida ao argumento local do mal. Agora que já
apresentamos essa resposta, vamos deixar de lado os filósofos que
dizem que os limites que a linguagem natural demarca são sempre
precisos, que não há vagueza, que os casos aparentes de vagueza são
de fato casos de ignorância do lugar em que se encontra o limite
preciso colocado pela linguagem natural. Vamos deixá-los e retornar
ao claro mundo do bom senso.

No claro mundo do bom senso, a razão por que Deus não impede a
Mutilação – na medida em que há um “porquê” – é a seguinte. Deus
tinha de traçar um limite arbitrário, e assim o fez. E isso é tudo o que
há para ser dito. Esse é certamente um conforto frio para a vítima.
Ou, visto que estamos meramente contando uma história, talvez
fosse melhor dizer: se essa história for verdadeira e se for conhecida a
sua verdade, esse conhecimento seria um conforto frio para a vítima.

232
O argumento local do mal

Contudo, o propósito dessa história não é dar conforto a ninguém.


O propósito não é dar um exemplo de uma história possível que
confortaria uma pessoa se ela fosse verdadeira e essa pessoa soubesse
que ela era verdadeira. Se uma criança morre na mesa de operação
no que supostamente seria uma operação de rotina e o comitê de
investigação médica julga que a morte foi devida a algum fator que
o cirurgião não poderia ter antecipado e que não houve falha do
cirurgião, isso não serve de conforto para os pais da criança. Mas não
é o propósito de um comitê de investigação médica dar conforto a
alguém; o propósito do comitê de investigação médica é, examinando
os fatos da questão, determinar se houve ou não um erro. E não é
o meu propósito ao oferecer uma defesa dar conforto, mesmo que
hipotético, a alguém. O meu propósito é determinar se a existência
de horrores acarreta que haja uma falha de Deus – ou, visto que por
definição Deus não falha, determinar se necessariamente haveria
a falha de um criador onipotente e onisciente de um mundo que
contenha horrores.

Talvez seja importante ressaltar que, conforme a defesa do livre-ar-


bítrio estendida, nós mesmos poderíamos facilmente nos encontrar
em uma situação moral parecida com a situação moral de Deus,
uma situação em que temos de traçar um limite arbitrário e permitir
que algumas coisas más aconteçam mesmo se pudermos impedi-las,
e na qual, além disso, nenhum bem advém do fato de permitir-
mos que essas coisas más aconteçam. Encontramo-nos realmente
nessa situação. Em um estado de bem-estar social, por exemplo,
usamos a taxação para desviar dinheiro da sua função econômica

233
O problema do mal | Peter van Inwagen

primária com o intuito de gastá-lo para impedir ou aliviar males


sociais. Mas quanto dinheiro, qual proporção do produto interno
bruto, devemos – ou seja, o Estado deve – empregar nesse pro-
pósito? Decerto, não devemos deixar de empregar dinheiro para
esse propósito e nem usar todo o dinheiro (uma taxação de 100
por cento sobre tudo o que se ganha e sobre todo o lucro seria o
mesmo que não ter nenhuma economia monetária). E onde traçar
o limite é uma questão arbitrária. Não importa quanto gastemos
com benefícios sociais, sempre seremos capazes de encontrar uma
pessoa ou uma família que poderia ser salva da miséria absoluta se o
estado gastasse (corretamente) mais R$500,00 do que de fato planeja
gastar. E é possível fazer um reajuste de R$500,00 no orçamento
sem que isso prejudique a economia ou cause algum outro tipo de
dano. Mas esse exemplo nos leva para o mundo real perturbador –
perturbador porque o mundo real é um mundo de complexidade
infinita, e se falamos do mundo real, jamais chegaremos ao fim da
nossa conversa, pois sempre haverá algo mais a ser dito. Desse modo,
ofereço, no lugar desse exemplo real, um exemplo filosófico artifi-
cialmente simples. Se esse exemplo não chega perto de ser algo no
mundo real, ele pode, mesmo assim, ser discutido dentro do âmbito
restrito de uma conferência como esta:

Mil crianças têm uma doença que é fatal se não for tratada. Temos
certa quantidade de um medicamento que é efetivo contra a doença.
No entanto,o medicamente é efetivo se a dose for alta o bastante.
Se distribuímos o medicamento igualmente, ou seja, se damos um
milésimo da quantidade total a cada uma das crianças, todas elas

234
O argumento local do mal

morrerão, pois a dose do medicamento será definitivamente insufi-


ciente para promover a cura. Decidimos dividir o medicamento em
n partes iguais (n sendo um número menor do que mil) e dividimos
o medicamente entre as n-crianças. (As n-crianças serão escolhidas
por sorteio, ou por outro meio “justo”). Chamemos cada uma dessas
n partes iguais de “unidade”. E como chegamos a esse número n?
Bem, chegamos a ele de algum modo – talvez ele seja o resultado
de algum tipo de cálculo de otimização; talvez nenhum cálculo de
otimização seja uma possibilidade prática, e algum expert no assunto
fez uma conjectura instruída, e n é essa conjectura. Mas temos de
chegar de algum modo ao número, pois, por necessidade lógica,
uma vez que tenhamos decidido distribuir o medicamento em doses
iguais, um certo número de crianças receberá a dose nessa proporção.
Ora, visto que n é um número menor do que mil, menor do que o
número de crianças com a doença, seja o que for que façamos, haverá
esta consequência: no máximo 999 das crianças sobreviverão; pelo
menos uma delas morrerá.

Considere agora uma das crianças que morrerá se esse plano for
levado adiante (suponha que os sorteios foram feitos, mas o medi-
camento ainda não foi distribuído); suponha que o nome da criança
seja Charlie. O nosso plano, como eu disse, é este: dar a cada uma
das n crianças uma unidade do medicamento. Mas suponha que a
mãe de Charlie proponha um plano alternativo. Ele aponta para as
n unidades do medicamento colocadas em pequenos frascos sobre
a mesa, esperando para serem distribuídas, e diz: peguem 1/n+1
unidades de cada frasco e deem n/n+1 unidades ao meu Charlie.

235
O problema do mal | Peter van Inwagen

Então cada uma das n-crianças que teria recebido uma unidade
receberá 1 – (1/n+1) unidades – que é (n+1/n+1) – (1/n+1), ou seja,
n/n+1. Se a distribuição for realizada, cada uma das n crianças, assim
como Charlie, receberá n/n+1 unidades. Representado algebrica-
mente como está, o plano dela é muito abstrato para ser facilmente
compreendido. Vamos considerar um número particular. Suponha
que n seja 100. Eis então o que acontecerá se o plano “original” de
distribuição for levado adiante: cada uma das 100 crianças receberá
uma unidade do medicamento e sobreviverá (pelo menos se 100 for
a menor quantidade suficiente); 900 crianças morrerão. E eis o que
acontecerá se o plano da mãe de Charlie for levado adiante: Charlie,
assim como cada uma das outras 100 crianças, receberá 100/101
unidades do medicamento – aproximadamente 99 por cento de
uma unidade – e sobrevive, assim como as outras 100 crianças; 899
crianças morrerão. Ou, se você assim preferir, não podemos dizer
que isso é o que teria acontecido; não podemos fazer essa afirmação
contrafactual sem qualificação. (E também não éramos capazes de
prever com certeza que todas as 100 crianças viveriam no caso ini-
cial). Mas podemos dizer que é quase certo que isso teria acontecido.
“Assim”, a mãe de Charlie argumenta, “vocês percebem que podem
evitar a morte certa de uma criança com um risco muito pequeno
para as outras; talvez sem nenhum risco, pois a conjectura de que o
valor de n devesse ser fixado como 100 era nada mais do que uma
conjectura. Se vocês fixassem o valor de n como 101, essa seria
igualmente uma boa conjectura”. Podemos tornar o argumento dela
perfeito se assumimos que para qualquer determinação do valor n,
esse número mais 1 seria igualmente uma boa determinação. Para

236
O argumento local do mal

mim, essas observações parecem bastante plausíveis; se você acha


que elas não são plausíveis, podemos sempre torná-las plausíveis
aumentando o número de crianças: suponha que não houvesse 1.000
crianças, mas sim 1.000.000, e que a melhor conjectura do valor de
n é algo em torno de 100 mil. Penso que você não achará fácil negar
a seguinte condicional: se certa quantidade de um medicamento
tem certo efeito sobre alguém, então essa quantidade menos uma
parte em 100 mil não teria um efeito significativamente diferente.

“Bem”, alguém pode dizer, “a mãe de Charlie tem razão. Mas o fato
de que ela tenha razão mostra que as autoridades não selecionaram
o melhor valor de n; n deveria ser um número maior”. Mas fiz as
minhas autoridades ficcionais escolherem o número 100 só para ter
um número concreto para ilustrar o argumento da mãe de Charlie.
Ela poderia ter apresentado essencialmente o mesmo argumento seja
qual fosse o número que as autoridades tivessem escolhido, e elas
teriam de escolher algum número. E o que as autoridades dirão à
mãe de Charlie? Elas têm ou de aceitar a proposta dela ou rejeitá-la.
Por um lado, se aceitarem a proposta dela, elas terão de lidar com
o pai de Alice, que dirá “Vocês têm 101 fracos de medicamente na
mesa, cada um deles contém a mesma quantidade de medicamento.
Chame essa quantidade de “dose”. Quero que vocês peguem 1/102
de uma dose de cada frasco e entreguem o que coletarem por esse
método para Alice”. Por outro lado, se eles rejeitarem a proposta
da mãe de Charlie, eles terão de condenar Charlie à morte sem
alcançar com isso nenhum bem. Não podemos evitar a seguinte
conclusão: não importa o que as autoridades façam, elas terão de

237
O problema do mal | Peter van Inwagen

permitir a morte de uma criança que elas poderiam ter salvado, ou


quase certamente poderiam ter salvado, sem alcançar nenhum bem
permitindo a morte da criança.

Portanto, parece claro que pode haver casos em que é moralmente


admissível para um agente permitir um mal que poderia ter impe-
dido, a despeito do fato de que nenhum bem é alcançado com isso.
Assim, se a defesa do livre-arbítrio estendida é uma história ver-
dadeira, essa é exatamente a estrutura moral da situação na qual
Deus se encontra quando contempla o mundo de horrores que é a
consequência da sua separação da humanidade. Logo, o argumento
local do mal, o argumento dos horrores, falha.

Aqui termina o discurso do Teísta em resposta à apresentação da


Ateísta do argumento local do mal – ou, mais exatamente, à apresen-
tação do argumento local do mal que apela para o horror pós-lapsário
(como a Mutilação). Em minha opinião, se a audiência de agnósticos
tiver sido convencida da resposta do Teísta ao argumento global do mal
(um grande “se”, você pode querer que eu diga), eles ficarão convencidos
com essa réplica ao argumento local.
No entanto, Ateísta tem mais uma flecha na sua aljava, a flecha
que mencionei anteriormente. Se o argumento local do mal fracassa,
ele é o argumento local com a restrição sob a qual o consideramos: ele é
baseado no horror pós-lapsário. Há que se considerar ainda a questão dos
horrores pré-lapsários, horrores como o cervo que morre horrivelmente
em um incêndio florestal muito antes de haver humanos. É certo que
animais sencientes existiam muito antes de haver animais inteligentes,

238
O argumento local do mal

e o relato paleontológico mostra, e considerações a priori relacionadas


com a uniformidade da natureza fortemente sugerem, que por muito
tempo durante o longo passado pré-humano criaturas sencientes sofre-
ram mortes agonizantes em desastres naturais (sem mencionar as mortes
agonizantes devidas a predadores, aos parasitas e às doenças). Obvia-
mente, a defesa do livre-arbítrio não pode ser estendida de tal modo a
explicar essas mortes agonizantes, pois só as criaturas inteligentes têm
livre-arbítrio, e essas mortes não podem, pois, resultar do mau uso do
livre-arbítrio.5 Pareceria que qualquer abordagem do problema do sofri-
mento animal tenha de levar em conta o fato de que animais sencientes
existiam muito antes que houvesse animais inteligentes. (Acredito que a
ciência fez apenas duas contribuição para os dados da teologia natural.
A descoberta desse fato é uma delas; a outra contribuição é a desco-
berta que o mundo físico não tem um passado infinito). Na próxima
conferência, investigaremos o problema dos sofrimentos dos animais
sencientes, mas não racionais.

5
A não ser, como sugeriu C. S. Lewis, que o sofrimento os animais pré-humanos seja atribuído
à corrupção da natureza causada pelos anjos decaídos. Discutirei brevemente essa sugestão
na conferência 7.

239
CONFERÊNCIA 7
O sofrimento dos animais irracionais

Nesta conferência, apresentarei uma defesa que explica os sofri-


mentos dos animais não humanos terrenos – “animais irracionais” –, ou
melhor, uma defesa que explica os sofrimentos dos animais irracionais
que não podem ser atribuídos às ações dos seres humanos. Visto que
os animais não humanos presumivelmente não têm liberdade, e visto
que alguns (na verdade, a maior parte) dos sofrimentos dos animais não
humanos ocorreu antes de haver seres humanos, nenhuma extensão ou
elaboração da defesa do livre-arbítrio pode explicar todo sofrimento
animal. (Ou não pode explicar todo sofrimento animal a não ser que
atribua o sofrimento dos animais irracionais às ações livres dos anjos
ou animais não humanos racionais. No final desta conferência, consi-
derarei brevemente uma versão da defesa do livre-arbítrio que tem essa
característica).
Sustento que a defesa que apresentarei, quando associada à defesa
do livre-arbítrio, será uma defesa composta que explica os sofrimentos
tanto dos seres humanos quanto dos animais não humanos, tanto dos
animais racionais ou humanos quanto dos animais meramente sen-
cientes.
Nesta conferência, deixarei de lado a referência explícita às minhas
personagens Ateísta e Teísta e ao debate em frente da audiência de
agnósticos. Apresentarei a segunda parte da minha defesa composta
usando a minha própria voz narrativa. Mas lembre-se de que o debate
O problema do mal | Peter van Inwagen

ideal permanece o meu padrão para avaliar uma defesa. Em minha


opinião, a questão que devemos observar não é o que eu, você, crentes
religiosos ou ateístas convictos pensamos de uma defesa, mas sim o que
dela pensam os agnósticos neutros genuínos (ou o que eles pensariam se
houvesse agnósticos neutros genuínos). O meu papel em relação a uma
defesa é apresentá-la da forma mais forte possível; o papel dos ateístas
é providenciar que aqueles que a avaliam se tornem cientes dos pontos
fracos dessa defesa; os agnósticos, agnósticos neutros, são aqueles que
recebem a função de avaliar a defesa.
Contarei agora uma história, uma história que, suponho, é verda-
deira até onde se sabe, uma história de acordo com a qual Deus permite
que os animais irracionais sofram (e em que a extensão do sofrimento
deles e os modos como sofrem são extensões atuais e modos atuais).
A história compreende as seguintes quatro proposições:

1) Todo mundo com criaturas sencientes de nível superior que Deus


poderia ter criado ou contém padrões de sofrimento moral-
mente equivalente àqueles do mundo atual ou é massivamente
irregular.1

1
Endosso uma ontologia modal “abstracionista”. Ou seja, aplico o termo “mundo possível”
a objetos abstratos de algum tipo – estados de coisas, talvez. (Veja Van Inwagen, 1986).
Portanto, se esse fosse um livro técnico de metafísica, eu distinguiria cuidadosamente
“o mundo atual” de “o universo” (ou “o cosmo”). Eu mostraria que, embora Deus tenha
criado o universo ex nihilo – e poderia ter criado um universo diferente ou não ter criado
nenhum universo –, o mundo atual é um objeto abstrato necessariamente existente (embora
seja atual de modo contingente), e que Deus não criou, mas atualizou esse mundo: de fato, eu
mostraria que provavelmente Deus não fez nem isso; provavelmente ele atualizou só alguns
estados de coisas “amplos” nele incluídos. Eu mostraria que, embora Deus não seja parte do

242
O sofrimento dos animais irracionais

2) Algum bem intrínseco ou extrínseco importante depende da


existência de criaturas sencientes de nível superior; esse bem é
de magnitude suficiente para superar os padrões de sofrimento
que encontramos no mundo atual.
3) Ser massivamente irregular é um defeito em um mundo, um
defeito pelo menos tão grande quanto o defeito de conter
padrões de sofrimento moralmente equivalentes àqueles do
mundo atual.
4) O mundo – o cosmo, o universo físico – foi criado por Deus.

As quatro palavras-chave dessa história podem ser explicadas do


seguinte modo.
Criaturas sencientes de nível superior são os animais conscientes do
modo como (apesar do que afirma Descartes) os mamíferos não huma-
nos superiores são conscientes.
Dois padrões de sofrimento são moralmente equivalentes se não
há razões moralmente decisivas para preferir um ao outro: se não há
razões moralmente decisivas para criar um mundo que incorpora um
padrão em vez de outro. Dizer que A e B são nesse sentido moralmente
equivalentes não é dizer que eles são comparáveis em algum sentido
interessante. Suponha, por exemplo, que o sonho de Bentham de um
cálculo hedonista universal seja uma ilusão e que não haja uma resposta

universo (nem compartilha qualquer parte com ele), ele existe no mundo atual (como existe
em todos os mundos possíveis). Neste livro, não mostrarei nenhuma dessas coisas. Ignorar
esses pontos metafísicos interessantes (no sentido de não discuti-los explicitamente; é claro
que penso neles enquanto escrevo) não enfraquecerá o meu argumento.

243
O problema do mal | Peter van Inwagen

para a pergunta se o sofrimento causado pela guerra é igual, menor


ou maior do que o sofrimento causado pelo câncer. Não se segue que
esses dois padrões de sofrimento não sejam moralmente equivalentes.
Pelo contrário: a não ser que haja uma distinção “não hedonista” moral-
mente relevante a ser feita entre um mundo que contém a guerra mas
não o câncer e um mundo que contém o câncer mas não a guerra (isto
é, uma distinção que não depende da comparação da quantidade de
sofrimento causada pela guerra e pelo câncer), segue-se que o sofrimento
causado pela guerra e o sofrimento causado pela câncer são, no sentido
técnico presente, moralmente equivalentes.
Um mundo massivamente irregular é um mundo em que as leis
da natureza falham de um modo massivo.2 Um mundo, um universo
físico, com todos os milagres relatados no Antigo Testamento e no
Novo Testamento não seria, nessa explicação, massivamente irregular,
pois esses milagres foram pequenos (se o tamanho for medido por
quantidades de matéria diretamente afetada), raros e distantes uns dos
outros. Porém um mundo seria massivamente irregular se contivesse o
seguinte estado de coisas:
Deus, por meio de séries duradouras de milagres espalhados em
toda parte, faz com que um planeta habitado pela mesma vida ani-

2
As leis da natureza falham em um mundo se algumas delas forem falsas nesse mundo. (Seja
o que for uma lei da natureza, ela é no mínimo uma proposição, e, assim, tem um valor
de verdade). Por exemplo, se “em todo sistema fechado, o momentum é conservado” é uma
lei da natureza no mundo m, e se, em m, há sistemas fechados em que o momentum não é
conservado, as leis da natureza falham em m. Para uma explicação das leis da natureza que
permite que uma proposição seja falsa em m e uma lei da natureza em m, veja van Inwagen
(1988).

244
O sofrimento dos animais irracionais

mal que encontramos na terra atual se torne uma utopia hedonista.


Nesse planeta, cervos são (como Sadraque, Mesaque e Abede-nego
[Dn 3:21-28]) salvos por anjos quando correm o risco de serem queima-
dos vivos. Parasitas e micro-organismos nocivos sofrem imediatamente
dissolução sobrenatural quando entram no corpo de um animal supe-
rior. Cordeiros são miraculosamente ocultados dos leões, e os leões são
compensados pela restrição das suas dietas que resulta dessa ocultação
por quedas fisicamente impossíveis de um maná proteico. Nesse planeta,
Deus criou cada espécie por um milagre separado ou, em vez disso,
embora todas as coisas vivas tenham evoluído de um ancestral comum,
houve uma utopia hedonista em cada estágio do processo evolutivo.
(A última alternativa implica que Deus guiou o processo evolutivo por
meio de uma sequência ampla e intricadamente coordenada de ajustes
sobrenaturais da maquinaria da natureza a fim compensar o fato de que
uma utopia hedonista não exerce nenhuma pressão seletiva).3
Seria possível para um mundo ser massivamente irregular de um
modo mais sistemático ou amplo. Um mundo que viesse a existir há
cinco minutos, repleto de memórias de um passado irreal, seria, dada
apenas essa circunstância, massivamente irregular – se realmente esse
mundo for metafisicamente possível. Um mundo em que os animais
irracionais (os animais irracionais com a estrutura física e comporta-
mentos característicos de dor dos animais irracionais atuais) não sentem

3
Nesse exemplo, assumo que a pressão seletiva é necessária se a diversificação taxonômica da
ordem exibida na biosfera terrestre deve ocorrer no curso natural dos eventos (isto é, sem
milagres). Isso é certamente verdadeiro até onde se sabe.

245
O problema do mal | Peter van Inwagen

dor seria, dada apenas essa circunstância, massivamente irregular – se


realmente esse mundo for metafisicamente possível.
Finalmente, um defeito em um mundo é uma característica de um
mundo que (independente do seu valor extrínseco em vários mundos)
seria intrinsicamente melhor sem essa característica. Os nossos quatro
termos técnicos foram então definidos.
A nossa história, a nossa defesa, compreende as proposições
1), 2), 3), e 4).4 Acredito que não tenho razão para atribuir qualquer
probabilidade ou conjunto de probabilidades a essa história. (Com esta
qualificação: se temos razão para encarar a existência de Deus como
improvável – uma razão diferente do sofrimento dos animais irracionais
–, então temos uma razão para encarar a história como improvável).
Ou seja, encaro essa situação como similar ao seguinte caso. Tirei de um
chapéu um número de 0 a 100 em um sorteio sem fraude, porém não
direi a você qual é esse número n. Coloquei em uma urna uma quan-
tidade de bolas pretas correspondendo a n e acrescentei a quantidade
de 100 – n bolas brancas. Agora: qual é a proporção de bolas na urna
que são pretas? Você não tem como responder a essa questão: nenhuma
resposta que você pudesse dar seria epistemicamente defensável: “35%”
não é melhor do que “6%”; “cerca de metade” não é melhor do que “cerca
de um quarto”; “uma grande quantidade” não é melhor do que “uma
pequena quantidade”, e assim por diante. (Mais exatamente, nenhuma
resposta é melhor do que outra resposta igualmente específica que possa
competir com ela. Decerto, uma resposta como “entre 1% e 90%” teria

4
Note que as proposições 1), 2) e 3) não contêm nenhum elemento sobrenatural e poderiam
ser admitidas sem contradição pelos mais fervorosos ateístas e naturalistas.

246
O sofrimento dos animais irracionais

uma boa chance de ser verdadeira. Mas essa resposta não é melhor
do que “entre 7% e 96%” ou “entre 4% e 6% ou entre 10% e 97%”.)
E porque você não tem como responder à questão sobre a proporção de
bolas pretas na urna, você não tem como atribuir uma probabilidade à
hipótese de que a primeira bola a ser tirada da urna será uma bola preta.5
Eis um caso menos artificial. Se você me perguntar que proporção
de galáxias além da nossa própria contém vida inteligente, provavel-
mente terei de dizer que não sei;6 para mim, nenhuma resposta que eu
pudesse oferecer seria epistemicamente defensável. A resposta poderia
ser “todas” ou “nenhuma” ou “todas, exceto algumas” ou “a metade delas”.
Não vejo uma razão para preferir uma resposta possível a essa questão
a qualquer outra resposta que possa competir com ela. (Ou esse é o
meu julgamento, um julgamento baseado no que sei. Eu poderia estar
errado sobre as implicações do que penso saber, porém, nesse caso, eu
estaria errado sobre quase tudo o mais). E se estou certo em pensar que
não posso dizer que proporção de galáxias contém vida inteligente, não
tenho como atribuir uma probabilidade à hipótese de que uma dada
galáxia, uma que fosse escolhida ao acaso, contém vida inteligente.

5
Se pedissem a você para atribuir uma probabilidade à hipótese “A primeira bola retirada será
uma bola preta” antes que o número fosse retirado do chapéu, você saberia qual probabilidade
atribuir: ela seria a média das cento e uma probabilidades que seriam escolhidas no sorteio:
(0/100 + 1/100 + 2/100 + ... 100/100) / 101; isto é, 0.5. Contudo, a tese afirmada no texto é
que depois que o número foi sorteado você não tem como atribuir uma probabilidade a essa
hipótese.
6
Para tornar o caso mais realista, eu diria “galáxias da mesma idade e tipo como a nossa própria
Via Láctea”. É improvável que galáxias muito “jovens” sejam habitadas, e o mesmo é verdade
a respeito de galáxias muito antigas que pertencem a vários tipos especificáveis.

247
O problema do mal | Peter van Inwagen

Em minha opinião, a nossa relação epistêmica com a defesa que


apresentei é como as relações epistêmicas ilustradas por meus exemplos.7
Ela é como a sua relação epistêmica com a hipótese de que a primeira
bola retirada será uma bola preta ou a minha relação com a hipótese de
que a Galáxia X, escolhida ao acaso, contém vida inteligente.8 Ou seja,
não temos como responder a esta questão: dado que Deus exista, quão
provável é que os outros componentes da defesa sejam verdadeiros?

7
Essa afirmação requer qualificação. Alguém poderia objetar que cada uma das quatro pro-
posições que formam a nossa defesa é necessariamente verdadeira ou necessariamente falsa,
enquanto as proposições que figuram em nossos exemplos são contingentes. Ofereço, pois,
um novo exemplo que envolve uma proposição não contingente. Considere certa conjectura
matemática: que há o maior inteiro que tem a propriedade F. Suponha que todos os mate-
máticos que entendem plenamente o que está envolvido nessa conjectura não estão dispostos
a aderir à verdade ou à falsidade dela – que nenhum deles tem uma inclinação para dizer
que ela é verdadeira ou que ela é falsa. Assim, o leigo que sabe disso não está em condição
de atribuir uma probabilidade à conjectura. Poder-se-ia, obviamente, dizer que, porque a
conjectura é necessariamente verdadeira ou necessariamente falsa, o leigo está em condição de
excluir muitas atribuições de probabilidade – de fato, todas, exceto 0 e 1. (E poder-se-ia ir em
frente afirmando que o mesmo seria verdade acerca da nossa defesa). Em certa compreensão
da probabilidade (“objetivista” em oposição à “probabilidade subjetiva”), isso é correto. (Nesta
nota e no texto, tenho sido deliberadamente vago sobre o tipo de probabilidade sobre o qual
falo – simplesmente com o fim de evitar o que seria a meu ver uma digressão desnecessária).
Mas o seguinte ponto é válido, e ele é o único que importa: o leigo deveria estar disposto
a dizer acerca da conjectura “Até onde sei, ela é verdadeira, e, até onde sei, ela é falsa. Sou
completamente neutro em relação ao valor de verdade dela”.
8
Os dois exemplos têm estruturas isomórficas. Suponha que a urna contenha tantas bolas
quanto o número de galáxias. (O número de bolas na urna é irrelevante para a força do
exemplo). Suponha que o deus que prepara a urna atribua uma galáxia a cada bola, e que ele
torna uma bola branca se ela corresponde a uma galáxia habitada e preta se ela corresponde a
uma galáxia inabitada. Uma urna preparada dessa maneira seria, do ponto de vista de alguém
em nossa condição epistêmica a quem se pediu para atribuir probabilidade a “A primeira
bola retirada será uma bola preta”, indistinguível de uma urna contendo o mesmo número
de bolas em que a proporção de bolas pretas foi escolhida por sorteio aleatório.

248
O sofrimento dos animais irracionais

Teríamos razão para rejeitar a defesa se tivéssemos razão para acre-


ditar que um ser onipotente poderia criar um mundo – um mundo
que não fosse massivamente irregular – no qual criaturas sencientes
de nível superior habitassem uma utopia hedonista. Existe uma razão
para pensar que um ser onipotente poderia criar um mundo com essa
característica? Suponha que as únicas razões que uma pessoa poderia
ter para acreditar que é impossível para um ser onipotente criar um
mundo com certa característica seriam razões que ela adquiriu no curso
de uma tentativa séria de “projetar” um mundo com essa característica.
Vamos pensar como se pode fazer isso. Como uma pessoa pode levar
em frente a tarefa de projetar um mundo?
Para projetar um mundo, uma pessoa deveria começar com a des-
crição detalhada das leis da natureza que governam esse mundo – e
ela não deveria se esquecer de incluir na descrição que faz das leis os
valores dos parâmetros numéricos que nelas ocorrem, parâmetros como
a constante de estrutura fina e a constante de gravitação universal.
(As formulações atuais dos físicos das teorias quânticas de campos e da
teoria geral da relatividade oferecem um padrão do “detalhe” exigido).
Ela deveria seguir em frente e descrever as condições limítrofes sob
as quais as leis operam: a topologia espaço-temporal do mundo, sua
densidade média como uma função do tempo, sua entropia inicial, o
número de famílias de partículas que seriam encontradas, e assim por
diante. Então ela deveria contar com detalhes convincentes a história
da evolução cósmica nesse mundo: a história do desenvolvimento de
objetos gigantescos como galáxias e estrelas e de objetos minúsculos
como átomos de carbono. Finalmente, ela teria de contar uma história
da evolução da vida. Essas histórias, obviamente, têm de ser coerentes,

249
O problema do mal | Peter van Inwagen

dada a especificação que ela fez das leis e das condições limítrofes.
A não ser que ela proceda desse modo, o que ela afirmar sobre o que é
intrinsecamente ou metafisicamente possível – e assim o que afirmar
sobre as “opções” de um ser onipotente ao criar um mundo – será total-
mente subjetivo e, portanto, sem valor.9
O nosso próprio universo oferece o único modelo que temos para
essa formidável tarefa de projetar um mundo.10 (Até onde sabemos, em
cada mundo possível que exige algum grau de complexidade, as leis
da natureza são as leis atuais, ou, pelo menos, têm a mesma estrutura
das leis atuais. Realmente, existem físicos com inclinação filosófica que
acreditam que há só um conjunto possível de leis da natureza, e é epis-
temicamente possível que eles estejam certos). O nosso universo – apa-
rentemente – evoluiu de uma singularidade inicial de acordo com certas
leis da natureza. Essas leis poderiam ser deterministas? E se forem,
não teria sido possível para um ser onipotente e onisciente ter cuida-
dosamente selecionado um estado inicial do universo como o nosso
de tal modo a tornar uma eventual utopia hedonista universal inevi-
tável? Bem, há este ponto: se um mundo evolui de uma singularidade,
ele não tem um estado inicial. Para criar um mundo que tenha um
estado inicial e, como o nosso, pareça ter evoluído de uma singularidade,
um criador onipotente teria de criar esse mundo ex nihilo em algum
momento “repleto com memórias de um passado irreal” (mesmo que
breve). E, como disse antes, esse seria um caso de irregularidade mas-

9
Sobre esse tópico, veja van Inwagen (1998).
10
Sobre os fatos do nosso mundo que poderiam ser apreciados por alguém engajado em projetar
um mundo, veja Rees (2000).

250
O sofrimento dos animais irracionais

siva. Mas vamos deixar de lado esse ponto e assumir que, se as leis da
natureza são deterministas, um ser onipotente poderia ter “sintonizado”
o estado inicial do universo a fim de produzir, com o tempo, uma utopia
hedonista. Um ser onipotente poderia ter igualmente feito com que
as leis da natureza fossem indeterministas? Não há nenhuma garantia
disso. Se as leis da natureza forem indeterministas, então, até onde
sabemos, qualquer estado inicial do mundo que permitisse a existência
eventual de animais complexos, não importando quão cuidadosamente
selecionado fosse esse estado, poderia (se o mundo fosse deixado entre-
gue à própria sorte depois de criado) eventualmente ser sucedido por
estados que envolvessem enormes quantidade de sofrimento. Portanto,
uma criação determinista parece ser a única opção de um criador que
deseja fazer um mundo que contenha animais complexos que nunca
sofrem: mesmo se só uma proporção mínima de estados iniciais pos-
síveis do mundo gerasse o resultado desejado, mesmo se só um deles o
fizer, ele poderia escolher criar um mundo com esse estado inicial. Mas
um mundo determinista (um mundo determinista com organismos
complexos como os organismos do mundo atual) é possível? Temos
uma razão para pensar que um mundo determinista é possível? Essas
questões levantam mais questões, que na maioria das vezes não podem
ser respondidas. Apesar disso, os seguintes fatos parecem relevantes
para qualquer tentativa de respondê-las, e sugerem que há pelo menos
uma boa razão para pensar que um mundo determinista que contém
a vida complexa – ou qualquer tipo de vida – pode não ser possível.
A vida depende da química, e a química depende de átomos, e os
átomos dependem da mecânica quântica (classicamente falando, um
átomo não pode existir: os elétrons de um átomo “clássico” se move-

251
O problema do mal | Peter van Inwagen

riam em espiral em direção ao centro, perdendo a sua energia potencial


na forma de radiação eletromagnética até colidirem com o núcleo)
e, conforme a “interpretação de Copenhague”, que é a interpretação
da mecânica quântica defendida pela maioria dos físicos, a mecânica
quântica é essencialmente indeterminista. Se as leis da natureza forem
quantum-mecânicas, é improvável que um ser onipotente possa ter
“sintonizado” o estado inicial de um universo como o nosso a fim de
tornar uma eventual utopia universal causalmente inevitável. Pareceria
ser quase certo que, devido à indeterminação quantum-mecânica, um
universo que fosse uma duplicata do nosso quando o nosso universo
tinha, digamos, 10-45 segundos de idade poderia ter evoluído em um
universo muito diferente do nosso universo presente.
Como disse, o nosso universo é o único modelo que temos de como
um universo poderia ter sido projetado. E esse universo tem seus mistérios.
Os próprios estágios iniciais de expansão do cosmo (o inacreditável instante
durante o qual as leis da natureza operaram sob condições de perfeita sime-
tria), a formação das galáxias, e a origem da vida na Terra são, no estágio
atual do conhecimento natural, mistérios profundos. Apesar disso, parece
razoável assumir que todos esses processos envolveram só a operação das
leis da natureza.11 Uma coisa importante que é conhecida sobre a evolução
do universo até o seu estágio presente é que esse tem sido um processo
rigidamente estruturado. Um grande número de parâmetros físicos tem
aparentemente valores arbitrários tal que se esses valores tivessem sido

11
No entanto, duvido se a gênese da racionalidade envolveu apenas as operações das leis da
natureza. Direi algo sobre as minhas razões para o ceticismo nesse ponto posteriormente
nesta conferência.

252
O sofrimento dos animais irracionais

só um pouco diferentes (muito, muito pouco diferentes), o universo não


conteria a vida, e a fortiori não conteria nenhuma vida inteligente. Um ponto
similar aplica-se a algumas das condições limítrofes sob as quais essas leis
operam: a entropia do universo no começo, por exemplo. Pode ou não ser
o “propósito” do cosmo ser uma arena em que a evolução da vida inteli-
gente tenha lugar, mas é certamente verdadeiro que essa evolução ocorreu,
e que se o universo tivesse sido diferente em um grau inimaginavelmente
mínimo, ela não ocorreria. O meu propósito ao citar esse fato – é razoável
acreditar que se trata de um fato – não é produzir uma versão renovada do
Argumento do Desígnio. Em vez disso, a minha intenção é sugerir que
(pelo menos, até onde sabemos) só em um universo muito parecido com o
nosso a vida inteligente, ou, de fato, qualquer tipo de vida, poderia se desen-
volver por meio de operações das leis da natureza, não suplementadas por
milagres. E a evolução natural da vida senciente superior em um universo
como o nosso essencialmente envolve o sofrimento, ou há razões para se
acreditar nisso. Os mecanismos subjacentes à evolução biológica podem ser
exatamente o que muitos biólogos parecem supor que sejam – a produção
de novos genes por mutação aleatória e a seleção de fundos genéticos por
pressão ambiental – ou eles podem ser mais sutis. Mas ninguém, creio,
levaria a sério a ideia de que os animais sub-humanos mais evoluídos, os
precursores evolucionários imediatos dos seres humanos, poderiam ter evo-
luído naturalmente sem haver centenas de milhões de anos de sofrimento
ancestral. (Se estou errado e realmente há pessoas que levam essa ideia a
sério, mesmo elas têm de admitir que é verdadeiro até onde sabemos que a dor
é um componente essencial da evolução de organismos sencientes de nível
superior. E essa concessão será suficiente para o nosso argumento). A dor
parece ser um componente indispensável do processo evolutivo depois que

253
O problema do mal | Peter van Inwagen

os organismos atingiram certo estágio de complexidade.12 E, até onde sabe-


mos, a quantidade de dor que os organismos experimentaram no mundo
atual, ou alguma quantidade moralmente equivalente a essa quantidade,
é necessária para a evolução de animais conscientes. Concluo que a pri-
meira parte da nossa defesa é verdadeira até onde sabemos: cada mundo
que Deus poderia ter feito com criaturas sencientes de nível superior ou
contém padrões de sofrimento moralmente equivalente àqueles do mundo
atual ou é massivamente irregular.13

12
Para a evidência em apoio a essa tese, se evidência é necessária, veja Philip Yancey e Paul
Brand, The gift of pain (1997). Paul Brand é o médico que descobriu que a lepra (hanseníase)
não “apodrece a carne”, como se pensou por muito tempo. A doença, em vez disso, destrói
os nervos que transmitem sinais de dor ao cérebro de muitas partes do corpo da vítima,
particularmente das mãos e dos pés; o que observadores tomaram como carne podre era a
carne que havia sido enfaixada e comprimida (sem a intenção, pelos próprios “donos”, que,
incapazes de sentir dor, não tinham ciência do que estavam fazendo a si mesmos) até que
lesões se desenvolvessem.
The Gift of Pain é sobre a “função” da dor humana, mas – dado que os autores estejam certos
sobre a dor humana – é difícil não concluir que a dor tenha a mesma função nas economias
fisiológicas de macacos e castores. Eu recomendo particularmente aos leitores deste livro a
discussão dos autores (p. 191-197) do “porquê da dor machucar tanto” – ou seja, a apresentação
deles de evidência empírica convincente para a tese de que sinais de danos periféricos inci-
pientes que não sejam particularmente desagradáveis (uma buzina estridente, por exemplo)
ou sejam só levemente desagradáveis (um choque elétrico suave, por exemplo) são meios
ineficazes de proteger um organismo de se ferir inadvertidamente.
13
Muitos críticos do teísmo dão grande importância ao “desperdício” ou à “prodigalidade”
encontrados na natureza e que é sem dúvida uma consequência necessária de um processo
evolutivo em que a seleção natural tem um papel significativo. (Considere, para ter só um
exemplo, as incontáveis espécies – classes, ordens, e mesmo alguns filos – que desapareceram
“sem herdeiros”. Todas as modificações inteligentes que o tempo e o acaso operaram no
material genético dessas espécies desapareceram: milhares de soluções engenhosas e úteis
para problemas de design biológico foram, digamos assim, acidentalmente deletadas do disco
rígido da natureza). Esse desperdício e prodigalidade deveriam ser considerados como um
aspecto dos “padrões de sofrimento no mundo atual”.

254
O sofrimento dos animais irracionais

Vamos considerar agora o segundo componente da defesa: algum


bem importante intrínseco ou extrínseco depende da existência de
criaturas sencientes de nível superior; esse bem tem magnitude sufi-
ciente para superar os padrões de sofrimento contidos no mundo atual.
Não é difícil de acreditar (não é mesmo?) que um mundo que fosse
como a Terra era pouco antes do aparecimento dos seres humanos
contivesse uma quantidade de bem intrínseco maior e, de fato, permi-
tisse um balanço mais favorável de bens e males do que um mundo em
que não houvesse organismos superiores a vermes. (O que não quer
dizer que não poderiam existir mundos sem a vida inteligente que
contivesse um balanço ainda melhor de bens e males – digamos, um
mundo contendo os mesmos organismos, mas significativamente menos
sofrimento). E então há a questão do valor extrínseco. Uma consideração
que imediatamente surge é esta: a vida inteligente – criaturas feitas à
imagem e semelhança de Deus – não poderia evoluir diretamente de
vermes e ostras; os precursores evolutivos imediatos de animais inteli-
gentes têm de possuir sensibilidade de nível superior.
Vejamos agora o terceiro componente da nossa defesa: ser massiva-
mente irregular é um defeito em um mundo, um defeito pelo menos tão
grande quanto o defeito de conter padrões de sofrimento moralmente
equivalentes àqueles contidos no mundo atual. Devemos lembrar que
uma defesa não é uma teodiceia, e que não é preciso mostrar que é plau-
sível supor que a irregularidade massiva é um defeito em um mundo, um
defeito tão grave que criar um mundo contendo o sofrimento animal
moralmente equivalente ao sofrimento animal do mundo atual é um
preço razoável a pagar para evitá-lo. O que preciso mostrar é só que até
onde se sabe esse juízo é correto.

255
O problema do mal | Peter van Inwagen

O terceiro componente da defesa é objetável somente se temos


alguma razão prima facie para acreditar que os sofrimentos atuais dos
animais irracionais são um defeito mais grave em um mundo do que
seria a irregularidade massiva. Temos essa razão? Parece-me que não
temos. Para começar, parece que a irregularidade massiva é um defeito
em um mundo. Um ponto menor a favor dessa tese é o testemunho
de deístas e outros pensadores que desaprovaram o miraculoso com a
alegação de que qualquer grau de irregularidade em um mundo é um
defeito, um tipo de coisa improvisada e detestável indigna do poder e
da sabedoria de Deus. Presumivelmente, esses pensadores encarariam
a irregularidade massiva como um defeito muito grave. E talvez essa
reação seja acertada. Parece ser correto dizer que Deus não inclui-
ria mais irregularidade na criação do que o necessário. Um segundo
ponto é que muitos, se não todos, mundos massivamente irregulares não
são apenas massivamente irregulares, mas são também massivamente
enganadores. Isso é obviamente verdadeiro a respeito de um mundo
que agora se parece com o mundo atual, mas que tenha começado a
existir apenas há cinco minutos, ou de um mundo que se parece com
o mundo atual, mas em que os animais irracionais não sentem dores.
(E não é surpreendente que mundos massivamente irregulares devam
ser massivamente enganadores, porque as nossas crenças sobre o mundo
dependem em larga medida dos nossos hábitos de tirar conclusões que
são baseadas na suposição de que o mundo é regular). Mas é plausível
supor que o engano e, a fortiori, o engano massivo, é inconsistente com
a natureza de um ser perfeito. Esses pontos, contudo, não são mais do
que sugestivos e, mesmo se chegarem a uma prova, provariam apenas
que a irregularidade massiva é um defeito; eles não provariam que a

256
O sofrimento dos animais irracionais

irregularidade massiva seria um defeito comparável ao sofrimento atual


dos animais irracionais. De todo modo, uma prova não é exigida: a
questão é se há evidência prima facie para a tese de que os sofrimentos
atuais dos animais irracionais são um defeito mais grave no mundo do
que a irregularidade massiva.
Vamos imaginar um filósofo, Frank, que quer estabelecer evidência
prima facie para essa tese. A quais considerações ele poderia apelar?
Suponho que ele teria de se apoiar em suas intuições morais ou, mais
geralmente, em suas intuições de valor. Ele teria de se ver em condição
de afirmar: “Pensei nesses dois estados de coisas – os sofrimentos atu-
ais dos animais irracionais e a irregularidade massiva – e comparei-os
cuidadosamente. O meu julgamento refletido é que o primeiro é pior
do que o segundo.” Esse julgamento supõe que esses dois estados de
coisa sejam, no sentido explicado antes, comparáveis: um deles é pior do
que o outro, ou, em vez disso, eles têm o mesmo valor (ou “desvalor”).
Não é claro para mim que há uma razão para supor que esse seja o caso.
E se esse não for o caso, então, como vimos, pode-se plausivelmente
sustentar que os dois estados de coisas são moralmente equivalentes,
e o criador não poderia ser acusado por razões morais de escolher um
deles em vez do outro. Mas vamos supor que os dois estados de coisas
sejam comparáveis. Nesse caso, se o juízo de valor de Frank deve ser
confiável, ele possui (e, presumivelmente, a maioria das pessoas tam-
bém) uma faculdade que o capacita a julgar corretamente os valores
relativos de estados de coisas com magnitudes literalmente cósmicas,
estados de coisas, além disso, que de nenhum modo são (como alguns
estados de coisas de magnitude cósmica podem ser) conectados com
os interesses práticos dos seres humanos. Mas por que Frank deveria

257
O problema do mal | Peter van Inwagen

supor que as inclinações dele – por que qualquer pessoa deveria supor
que as inclinações dela – para fazer julgamentos sobre o valor relativo
de vários estados de coisas são guias confiáveis para os verdadeiros
valores relativos de estados de coisas de magnitude cósmica que não
têm conexão com os negócios da vida humana? As intuições de uma
pessoa sobre o valor são ou um presente de Deus ou um produto da
evolução ou socialmente inculcadas ou derivadas de uma combinação
dessas fontes. Por que deveríamos supor que qualquer uma dessas fon-
tes nos daria meios de fazer julgamentos de valor corretos em relação
a questões que não têm nada a ver com os interesses práticos da vida
cotidiana? (Como eu disse na Conferência 4, penso que temos de ser
capazes de falar de julgamentos de valor corretos se o argumento do mal
tem alguma plausibilidade. Um eminente filósofo da biologia disse em
algum lugar que Deus, se existisse, seria indescritivelmente malevolente
por ter criado um mundo como o nosso mundo e, em outro lugar, que a
moralidade é uma ilusão à qual nos sujeitamos por causa da vantagem
evolutiva que a sujeição a ela confere. Essas duas teses não me parecem
formar uma posição coerente.).14 Quando coloquei a questão “Como
uma pessoa pode levar em frente a tarefa de projetar um mundo?”, eu
(com efeito) defendi uma forma de ceticismo modal: as nossas intuições
modais, nas quais sem dúvida devemos confiar quando nos dizem que a
mesa poderia ter sido colocada no outro lado da sala, não são confiáveis
em questões como, por exemplo, se um universo em que houvesse cria-
turas sencientes superiores que não sofressem poderia ser um universo

14
Em minha opinião, é justo compará-lo a um cientista cristão que acredita que todas as
doenças são ilusões e que fumar cigarros causa câncer de pulmão.

258
O sofrimento dos animais irracionais

“regular”.15 E não seria surpreendente se esse fosse o caso. Assumindo


que há “questões de fato modais”, por que deveríamos assumir que
Deus ou a evolução ou o treinamento social nos daria acesso a fatos
modais, cujo conhecimento não tem nenhum interesse para ninguém
exceto para o filósofo que faz metafísica? Deus ou a evolução nos deu
a capacidade para avaliar tamanho e distância usando os olhos, o que
é muito útil para caçar mamutes e dirigir carros, mas que não tem
uso na astronomia. Parece que uma restrição análoga aplica-se à nossa
capacidade de fazer julgamentos modais. Como podemos estar seguros
que uma restrição análoga não se aplica também à nossa capacidade
de fazer julgamentos de valor? A minha posição é que não podemos
estar seguros e que, até onde sabemos, os julgamentos de valor que as
pessoas são inclinadas a fazer sobre questões cósmicas não relacionadas
aos interesses da vida cotidiana não são confiáveis. (Não que as nossas
inclinações nessa área sejam uniformes. Eu mesmo não tenho qualquer
inclinação para escolher um lado ou outro quando se coloca a questão
de a irregularidade massiva ou as enormes quantidades de sofrimento
animal serem um defeito mais grave no mundo. Suspeito que outras
pessoas tenham essa inclinação. Se elas não têm, então prego para con-
vertidos). Mas então não há evidência prima facie para a tese de que os
sofrimentos atuais dos animais irracionais constituem um defeito mais

15
A minha resposta a essa questão contém a seguinte afirmação: a não ser que se proceda assim,
as afirmações de alguém sobre o que é intrinsicamente possível – e as afirmações de alguém
sobre as opções de um ser onipotente ao criar o mundo – seriam inteiramente subjetivas, e,
portanto, sem valor. Ao dizer isso, acabo defendendo um ceticismo modal, porque “proce-
der desse modo” não é algo que alguém já tenha feito; e nem é algo que é possível fazer no
presente.

259
O problema do mal | Peter van Inwagen

grave no mundo do que a irregularidade massiva. Ou, pelo menos, não


há evidência que seja fundada em nossas intuições de valor. Porém no
que mais essa evidência poderia se fundar?
Essas considerações têm a ver com a desutilidade intrínseca, com a
comparação da desutilidade intrínseca de estados de coisas. Ha também
a questão da desutilidade extrínseca. Quem dirá quais seriam os efeitos
de criar um mundo massivamente irregular? Quem dirá que coisas de
valor intrínseco poderiam ser impossíveis em um mundo massivamente
irregular? Nós não podemos dizer. Eis um exemplo de consideração que,
até onde sei, pode ser relevante para essa questão. Os cristãos geral-
mente sustentam que em algum momento Deus transmitirá o governo
do mundo à humanidade. Um mundo massivamente irregular seria
um tipo de mundo que poderia ser “transmitido”? Talvez um mundo
massivamente irregular se dissolvesse imediatamente no caos se um
ser infinito não fizesse constantes ajustes nele. De novo, não podemos
dizer. Se alguém sustenta que tem boas razões para acreditar que nada
de grande valor depende do mundo ser regular, temos de perguntar a
essa pessoa por que ela pensa que está em condição de saber uma coisa
dessas. Poderíamos lembrar a ela do conselho de humildade epistêmica
que foi dado a Jó do meio da tempestade:

Prepare-se como simples homem;


Vou fazer-lhe perguntas,
E você me responderá.
Onde você estava quando lancei
os alicerces da terra?
Responda-me, se é que você sabe tanto.

260
O sofrimento dos animais irracionais

Talvez você saiba,


pois você já tinha nascido!
Você já viveu tantos anos!

Você pode amarrar


as lindas Plêiades?
Pode afrouxar as cordas do Órion?

Você conhece as leis dos céus?


Você pode determinar
O domínio de Deus sobre a terra?16

Recomendei um ceticismo modal e moral extremo (ou, como


alguém poderia colocar, a humildade modal e moral) em questões não
relacionadas com os interesses da vida cotidiana. Se esse ceticismo for
aceito, então não temos razão para aceitar a proposição de que um ser
onisciente e onipotente será capaz de arranjar as coisas de tal modo que
o mundo contenha seres sencientes e não contenha nenhum padrão
de sofrimento moralmente equivalente àquele do mundo atual. Mais
precisamente, não temos razão para supor que um ser onisciente e
onipotente poderia fazer isso sem criar um mundo massivamente irre-
gular; e, até onde sabemos, ou a desutilidade, intrínseca ou extrínseca,
da irregularidade massiva em um mundo é maior do que a desutilidade
intrínseca que é uma consequência de conter enormes quantidades de

16
Essa “citação” não é uma passagem contínua, mas uma seleção de versos espalhados de Jó 38
(versos 3, 4, 21, 31, 33).

261
O problema do mal | Peter van Inwagen

sofrimento animal ou, em vez disso, a desutilidade da irregularidade


massiva e a desutilidade de conter enormes quantidades de sofrimento
animal são incomparáveis.
O que eu disse até aqui é, ou visa ser, uma defesa, uma resposta ao
argumento global do sofrimento animal, uma resposta ao argumento
cuja premissa é o fato de que o sofrimento animal existe. Considere-
mos agora o argumento local, o argumento (qualquer argumento) cuja
premissa é a existência de algum episódio particular em que um animal
irracional sofre.
Vamos começar notando que dois padrões de sofrimento podem ser
moralmente equivalentes mesmo se eles forem comparáveis e um deles
envolver menos sofrimento do que o outro. Que isso seja assim pode ser
mostrado pela reflexão sobre algumas considerações relacionadas com
a vagueza, reflexões similares às nossas reflexões sobre a vagueza na
conferência anterior. Como ressaltei naquela conferência, não há uma
razão moralmente decisiva para preferir o aprisionamento por dez anos
menos um dia como pena por assalto à mão armada a um período de
dez anos, a despeito dos fatos indubitáveis que essas duas penalidades
teriam o mesmo efeito inibidor e que a primeira é uma pena mais leve
do que a segunda. E pode ser que, para qualquer quantidade de sofri-
mento que de algum modo sirva ao propósito de Deus, alguma quan-
tidade menor de sofrimento teria servido para esse propósito também.
Portanto, pode ser que Deus teve de escolher alguma quantidade de
sofrimento como a quantidade contida no mundo atual, e poderia, de
modo consistente com seus propósitos, ter escolhido qualquer uma de
uma enorme coleção de quantidades menores e maiores, e que os mem-
bros dessa enorme coleção de quantidades alternativas de sofrimento

262
O sofrimento dos animais irracionais

sejam moralmente equivalentes. (De modo similar, um legislador tem


de escolher alguma penalidade mínima para o assalto à mão armada
e – pense nas penalidades como períodos de aprisionamento medidos
em minutos – tenha de escolher entre os membros de uma enorme
coleção de penalidades moralmente equivalentes). Ou pode ser que
Deus tenha decretado, em relação a essa enorme coleção de quantida-
des moralmente equivalentes e alternativas de sofrimento, que algum
membro dessa coleção deveria ser a quantidade atual de sofrimento, mas
deixou para o acaso decidir qual deles seria a quantidade de sofrimento
efetivamente existente.17
Na conferência anterior, vimos que pode ser moralmente necessá-
rio para Deus traçar um limite arbitrário no conjunto de males ame-
açadores ou possíveis ou potenciais que separasse aqueles males que
efetivamente ocorrerão daqueles que serão evitados. E vimos que, se
esse for realmente o caso, abre-se um caminho para uma resposta ao
argumento local do mal a qualquer pessoa que tenha satisfatoriamente
respondido ao argumento global do mal. Seja o assunto o sofrimento
dos seres humanos ou o sofrimento dos animais irracionais, a lógica
do caso é a mesma. Se os teístas conhecem uma história que explica
por que, em geral, Deus permite que os animais irracionais sofram (eu
ofereci essa história), eles podem responder a qualquer argumento local
do mal que seja baseado em um caso particular de sofrimento no mundo
sub-humano deste modo: mesmo se nenhum bem advém do caso de
sofrimento citado no argumento, a ocorrência desse evento não depõe

17
Para uma discussão de Deus “deixar coisas para o acaso”, veja van Inwagen (1988).

263
O problema do mal | Peter van Inwagen

contra a existência de um ser onipotente e moralmente perfeito; pois


pode ser que o Criador do mundo onipotente e moralmente perfeito
tenha tido de traçar um limite moralmente arbitrário no conjunto de
males ameaçadores e que o caso de sofrimento que o argumento cita
cai do lado da “atualidade” do limite que ele traçou.
Mas o que eu disse é muito abstrato. Vamos considerar um caso
concreto que ilustra essas observações abstratas. Vamos considerar um
caso famoso que mencionei ou ao qual aludi várias vezes, o caso do cervo
de Rowe. (Imaginaremos – Rowe não diz isso – que a morte horrível
do cervo aconteceu muito antes que houvesse seres humanos). Rowe
afirma, em primeiro lugar, que um ser onipotente e onisciente poderia
ter impedido o sofrimento do cervo sem com isso perder algum bem
maior ou permitir algum mal tão mau ou pior e, em segundo lugar, que
um ser onisciente, onipotente e totalmente bom teria impedido o sofri-
mento do cervo – a não ser que não pudesse fazer isso sem perder algum
bem maior ou permitir um mal tão mau ou pior do que o sofrimento
do cervo. Seja o que dissermos sobre a primeira das duas premissas afir-
madas por Rowe, parece óbvio que, se Deus tem alguma boa razão para
permitir que o mundo contenha o sofrimento dos animais irracionais, e
se há alternativas de quantidades de (intenso) sofrimento moralmente
equivalentes que serviriam igualmente ao propósito de Deus, então
a segunda premissa pode ser falsa. Deus, todos concordarão, poderia
miraculosamente ter impedido o incêndio, ou miraculosamente ter sal-
vado o cervo, ou miraculosamente ter feito com que a sua agonia fosse
rapidamente aliviada com a morte. E – concederei esse ponto para levar

264
O sofrimento dos animais irracionais

a argumentação em frente18 – se tivesse feito isso, a ação de Deus não


teria excluído um bem significativo ou permitido um mal significativo.
Porém o que dizer de centenas de milhões (no mínimo) de incidentes
similares que certamente ocorreram durante a longa história da vida?
Bem, concedo que ele poderia ter impedido qualquer um deles, ou dois,
ou três... sem excluir qualquer bem significativo ou permitir qualquer
mal significativo. Mas ele poderia ter impedido todos eles? Não, não
necessariamente. Pois se Deus tem alguma boa razão para permitir que
os animais irracionais sofram, essa boa razão não serviria para impedir
todos os casos de sofrimento. Pode não haver um número mínimo de
casos de sofrimento intenso que Deus poderia permitir sem perder
o bem que dependa do sofrimento dos animais irracionais – assim
como não há a menor sentença que um legislador pode estabelecer
como sendo a penalidade para assalto a mão armada sem que haja a
perda do bem do desencorajamento efetivo. Portanto, pode ser que o
cervo tenha sofrido simplesmente porque os seus sofrimentos caíram
do lado da “atualidade” do limite particular no conjunto de casos pos-
síveis de sofrimento que Deus escolheu. Portanto, se os teístas podem
contar uma história de acordo com a qual Deus tem uma boa razão para
permitir os sofrimentos dos animais irracionais, se eles têm uma defesa
que pode ser usada com sucesso para contestar o argumento global do
sofrimento dos animais, eles não precisam ficar desconcertados por

18
E também porque estou fortemente inclinado a pensar que ele seja uma verdade. Mais pre-
cisamente (pois o caso é, por natureza, imaginário, e perguntar se ele tem essa característica
é, pois, como perguntar se Lady Macbeth tinha três filhos), estou fortemente inclinado a
pensar que houve casos em que os animais irracionais que existiram muito antes que houvesse
seres humanos morreram em agonia e “nenhum bem adveio disso”.

265
O problema do mal | Peter van Inwagen

que não são capazes de dizer que um bem maior poderia depender
de algum caso particular de sofrimento animal. Pode ser que eles não
vejam que bem poderia ter essa característica pela simples razão de que
nenhum bem possível tem essa característica; mas, como vimos, um
Deus moralmente perfeito poderia ter permitido esse caso particular
de sofrimento mesmo que nenhum bem advenha dele.19
Considerarei agora algumas questões levantadas pela defesa que
tenho usado para contestar o argumento global do sofrimento animal
e algumas possíveis objeções a essa defesa.
Começarei observando que não apresento uma justificação para
o fato de que a minha defesa “total”, a defesa composta, compreenda
duas partes bem diferentes. Se é Deus que permite os sofrimentos dos
animais irracionais e dos seres humanos, parece-me que não é implau-
sível supor que ele tenha uma razão para permitir os sofrimentos dos
animais irracionais e outra razão, inteiramente diferente, para permi-
tir os sofrimentos dos seres humanos. Isso me parece plausível por-
que os seres humanos são radicalmente diferentes de todos os outros
animais terrestres, incluindo os primatas mais inteligentes. Podemos

19
Poderia ser que, por exemplo, o mundo seja “aproximadamente regular” (o “oposto” de “massi-
vamente irregular”: “aproximadamente regular” está para “massivamente regular” assim como
“muito alto” está para “muito baixo”), e que esse é um grande bem. Sem dúvida, o mundo
ainda teria sido aproximadamente regular se Deus tivesse miraculosamente salvado o cervo.
E, portanto, se a regularidade é um grande bem “em jogo” nesse caso (e a irregularidade o
único mal), nenhum bem seria alcançado (e nenhum bem impedido) permitindo-se que o
cervo sofra e morra. Se, no entanto, Deus tivesse miraculosamente eliminado todos os casos
de sofrimento intenso do mundo natural, o bem da regularidade aproximada teria sido
perdido. E esse bem teria sido perdido se ele tivesse eliminado todos exceto um deles, todos
exceto dois deles, todos exceto três deles...

266
O sofrimento dos animais irracionais

compartilhar 98% de nosso DNA (ou o percentual sugerido mais


recentemente, seja qual for) com os chimpanzés, mas os 2% restantes
formam o substrato genético de um abismo enorme. Pode ser surpre-
endente que sejamos tão diferentes dos chimpanzés se o nosso DNA
é (como me foi dito) mais similar ao DNA deles do que o DNA dos
ursos cinzentos é similar ao DNA dos ursos-de-kodiak; porém o fato
é que somos diferentes. O mundo é cheio de surpresas. Afinal, somos
nós, seres humanos, ou alguns de nós, que ficamos surpresos com esse
fato. Os chimpanzés – talvez você já tenha notado isso – não estão em
condição de ficar surpresos por esse fato que nos surpreende.
Embora esse não seja estritamente o nosso propósito, indicarei
que uma defesa em duas partes, uma defesa que trata de maneira dife-
rente os sofrimentos dos animais irracionais e os sofrimentos dos seres
humanos, é consonante com a perspectiva cristã do sofrimento mais
comum. Por um lado, os cristãos tipicamente sustentam que o sofri-
mento humano não é parte do plano de Deus para o mundo, mas existe
porque esse plano foi desviado. Por outro:

Trazes trevas, cai a noite,


Quando os animais da floresta vagueiam.
Os leões rugem à procura da presa,
buscando de Deus o alimento,
mas ao nascer do sol eles se vão,
e voltam a deitar-se em suas tocas. (Sl 104: 20-22)

267
O problema do mal | Peter van Inwagen

Esse e muitos outros textos bíblicos implicam que todo o mundo


natural sub-racional procede conforme o plano de Deus (exceto na
proporção que os seres humanos corromperam a natureza). E como o
salmista nos diz em seu cântico de louvor à ordem que Deus estabeleceu
na natureza, isso inclui o fenômeno da predação.20

No entanto, pode-se ficar admirado com quanta dor é sentida pelas vítimas de predadores.
20

Eis uma famosa passagem do primeiro capítulo do Missionary travels (1860) de David
Livingstone:
Quando colocava as balas, ouvi um grito. Assustado, olhei em volta, e vi um leão se prepa-
rando para saltar sobre mim. Eu estava um pouco acima; ele agarrou o meu ombro quando
saltou, e nós dois caímos no chão juntos. Urrando horrivelmente próximo ao meu ouvido, ele
sacudiu-me como um cão de caça sacode um rato. O golpe produziu um estupor similar ao
que parece ser sentido por um camundongo depois do primeiro golpe de um gato. Ele causou
uma espécie de devaneio, em que não havia mais sentimento de dor nem de terror, embora
eu estivesse bem consciente de tudo o que acontecia. Foi como o que os pacientes sob a
influência do clorofórmio descrevem, que veem toda a operação, mas não sentem o bisturi.
Essa condição singular não foi resultado de um processo mental. O golpe aniquilou o medo,
e não permitiu nenhum sentimento de horror ao ver em volta a besta. Esse estado peculiar
é provavelmente produzido em todos os animais mortos por carnívoros; e se for assim, ele
é uma providência de nosso Criador benevolente para diminuir a dor da morte.
O eminente neurocientista Vilayanur S. Ramachandran diz em suas Conferências Reith o
seguinte sobre esse incidente:
Pense na história de Livingstone sendo atacado por um leão. Ele viu o seu braço ser arrancado
[o ferimento de Livingstone não foi tão mau assim, mas o osso do seu braço foi esmagado
e ele sofreu cortes profundos e sérios dos dentes do leão. – PvI], mas não sentiu dor e nem
medo. Ele se sentiu como se estivesse separado de si mesmo, vendo tudo o que acontecia.
A propósito, a mesma coisa acontece com soldados em batalha e algumas vezes até com
mulheres sendo violentadas. Durante essas emergências medonhas, o córtex cingulado ante-
rior, parte dos lobos frontais, torna-se extremamente ativo. Isso inibe ou temporariamente
desliga a sua amígdala e outros centros emocionais límbicos, assim você suprime potencial-
mente emoções que desabilitam como a ansiedade e o medo – temporariamente. Mas ao
mesmo tempo, o córtex cingulado anterior o torna extremamente alerta e vigilante, e assim
você pode realizar a ação apropriada.

268
O sofrimento dos animais irracionais

De todo modo, a defesa composta que ofereci levanta – pelo próprio


fato de que eu a ofereci – uma questão óbvia. Por que a minha defesa
precisa ser uma defesa composta? Por que tive o trabalho de considerar a
longa e elaborada defesa do livre-arbítrio estendida se eu tinha a defesa
da “antirregularidade” (vamos chamá-la assim) à disposição? Afinal, os
seres humanos são animais sencientes. Se a defesa da antirregularidade
explica satisfatoriamente os sofrimentos dos animais sencientes sub-
-racionais, por que ela não explica satisfatoriamente os sofrimentos dos
animais sencientes racionais, dos seres humanos?
Tenho duas coisas a dizer em resposta a essa questão. Primeira-
mente, assim me parece, os sofrimentos dos seres humanos são males
piores do que os sofrimentos dos animais irracionais. E não é só para
mim que as coisas parecem ser assim. Quase todos os seres humanos
concordam que, embora o sofrimento dos animais seja uma coisa má,
os sofrimentos dos seres humanos devem ser impedidos, se não hou-
ver outro jeito, ao custo do sofrimento animal – mesmo uma grande
quantidade de sofrimento animal. Obviamente, nem toda a gente con-
corda – Peter Singer, por exemplo, não concordaria. Ainda assim, esse
julgamento que fiz não é idiossincrático. De fato, parece-me que o
sofrimento dos seres humanos, a totalidade de sofrimento atual dos
seres humanos, é tão pior do que o sofrimento dos animais irracionais,
a totalidade do sofrimento atual dos animais irracionais, que, embora eu
esteja totalmente convencido de que não sei se um padrão de sofrimento

As Conferências Reith são apresentadas pela BBC Radio 4. Essa passagem é da Conferência
5, “Neuroscience – the New Philosophy”. O texto da Conferência pode ser encontrado em:
<http//www2.thny.bbc.co.uk/radio4/reith2003/lecture5.shtml>.

269
O problema do mal | Peter van Inwagen

como o sofrimento atual dos animais irracionais é um defeito moral


mais grave em um mundo do que a irregularidade massiva, não estou
disposto a dizer que não tenho ideia se o padrão do sofrimento efetivo
nos seres humanos é um defeito moral mais grave em um mundo do
que a irregularidade massiva. Na verdade, estou inclinado a negar essa
tese; estou inclinado a dizer que o mero impedimento da irregularidade
massiva não pode ser uma justificação suficiente para o sofrimento
atual dos seres humanos. (E há ainda esta observação a ser feita: tem
havido tão poucos seres humanos, em comparação com o número de
criaturas sencientes vivas que existem e existiram, que não é evidente que
um mundo em que todo o sofrimento humano fosse miraculosamente
impedido seria um mundo massivamente irregular).
Em segundo lugar, suponha que, contrariamente ao que estou incli-
nado a pensar, a defesa da antirregularidade não ofereça uma boa razão
para pensar que nenhuma objeção moral poderia ser feita com sucesso
contra um criador onipotente de um mundo contendo o sofrimento
humano na quantidade e dos tipos que encontramos no mundo atual.
Ter mais do que uma defesa não prejudica ninguém. O advogado de
defesa que tem uma história que anula a evidência aparentemente con-
denatória da acusação faz bem o seu serviço. Mas o advogado de defesa
que tem duas dessas histórias plausíveis – histórias diferentes, histórias
que não sejam variações triviais de um mesmo tema – faz melhor ainda.
(Esse tipo de caso, diga-se de passagem, mostra que uma defesa não
precisa ser provável, dada a existência de Deus e do mal e dado o que
é conhecido pela audiência de agnósticos. Se Teísta tiver dez defesas,
defesas logicamente inconsistentes umas com as outras, a probabili-
dade média dessas defesas dada qualquer proposição não poderia ser

270
O sofrimento dos animais irracionais

maior do que 10%. Mas seria bom, do ponto de vista do Teísta, ter dez
defesas independentes, a despeito do fato de que isso acarretaria uma
probabilidade média baixa para as defesas individuais).
Poder-se-ia também argumentar que há certa tensão entre a defesa
da antirregularidade e a defesa do livre-arbítrio estendida, visto que a
defesa da antirregularidade implica que há pelo menos evidência prima
facie contra Deus empregar um milagre em certa ocasião, e a defesa do
livre-arbítrio estendida acarreta que a elevação dos nossos ancestrais não
humanos imediatos ao status humano ou racional foi um evento miracu-
loso. Porém esse argumento tem pouca força, pois a elevação dos nossos
ancestrais primitivos à racionalidade poderia acontecer em um mundo
que contivesse muito pouca irregularidade miraculosa. De fato, ela exi-
giria nada mais do que uma transformação do genótipo ou fenótipo de
uns poucos ou de poucas centenas ou, no máximo, de poucos milhares
de organismos. Poder-se-ia perguntar por que a defesa do livre-arbítrio
estendida precisa postular que a gênese da racionalidade humana requer
a intervenção divina. Há duas razões. Primeiramente, os seres humanos
e os animais irracionais são, como observei, radicalmente diferentes.
Há um abismo entre nós e os primatas superiores. Acho difícil acreditar
que esse abismo foi superado pelos mecanismos comuns da evolução
no tempo em que efetivamente foi superado. Independentemente de
quando os primeiros primatas racionais passaram a existir, é claro que
os nossos ancestrais de um milhão de anos atrás eram meros animais,
não mais racionais do que os chimpanzés e gorilas atuais, e um milhão
de anos não é muito tempo para o desenvolvimento evolutivo de algo
radicalmente novo. De modo similar, acho difícil acreditar em um pale-
ontologista que me diz que, em algum momento na história da vida,

271
O problema do mal | Peter van Inwagen

houve um organismo com os olhos comparáveis àqueles dos pássaros e


mamíferos atuais, e que, meramente há um milhão de anos, os ancestrais
desse organismo não tinham nenhum aparato visual, nem mesmo pon-
tos fotossensíveis. A julgar por algumas observações imprudentes que
ouvi, penso que alguns defensores do naturalismo filosófico se sentem
um pouco desconfortáveis com o curto prazo em que o abismo entre
a não racionalidade e a racionalidade foi superado – ao contrário dos
teístas, no entanto, eles não têm uma alternativa para a suposição de que
o abismo foi superado por mecanismos naturais dentro desse prazo e,
de algum modo, eles se dão por satisfeitos com essa situação.
Mas essa não é a minha razão primária para atribuir uma origem
miraculosa à racionalidade humana na defesa do livre-arbítrio esten-
dida. (Porque, embora me pareça muito difícil ver como a racionalidade
humana poderia ter tido uma origem puramente natural, não posso
dizer que é evidente que ela não teve essa origem. O mundo, particu-
larmente o mundo biológico, é muito complexo, e é arriscado chegar a
conclusões sobre ele com base em argumentos a priori. Quando penso
nisso, tenho de dizer que até onde sei a racionalidade teve uma origem
puramente natural. E penso que eu poderia esperar – penso que Teísta
poderia esperar – que uma audiência de agnósticos neutros concordaria
comigo nesse ponto. Portanto, se houver ganho com a inclusão na defesa
do livre-arbítrio da proposição segundo a qual a racionalidade teve
uma origem natural, não haveria qualquer impedimento para se fazer
isso). A minha razão primária é que a plausibilidade da história seria
enormemente reduzida se ela não representasse a gênese da racionali-
dade como um evento repentino e pontual. Se a história representasse
a gênese da racionalidade como um evento longo e vago, um evento

272
O sofrimento dos animais irracionais

compreendendo milhares de gerações, ela abriria caminho para Ateísta


levantar todos os tipos de questões difíceis sobre a plausibilidade da
história. Eis a minha descrição da elevação miraculosa da humanidade
à racionalidade:

... houve um tempo em que cada ancestral dos seres


humanos modernos que então vivia era um membro de
um grupo de primatas pequeno e geograficamente unido
... Deus tomou os membros desse grupo reprodutivo e
miraculosamente alçou-os à racionalidade. Ou seja, ele
deu a eles os dons da linguagem, do pensamento abstrato
e do amor desinteressado – e, obviamente, a dádiva do
livre-arbítrio.

A história prossegue contando-nos como esses novos primatas


humanos abusaram da dádiva do livre-arbítrio e, de certo modo, toma-
ram violentamente a Criação para si e tentaram direcioná-la para os pro-
pósitos deles. Mas suponha que eu, ou Teísta, tivesse contado a história
deste modo: nunca houve uma primeira geração de seres humanos; a
gênese da racionalidade humana foi um evento gradual que durou cente-
nas de milhares de anos; mas os nossos ancestrais eram definitivamente
racionais no ano de 190.000 a.C.; no dia 26 de fevereiro do ano 187.282
a.C., eles se rebelaram contra Deus – e suponha que a história fosse a
mesma a partir desse ponto. Se eu fosse Ateísta e ouvisse essa versão da
história contada aos agnósticos, teria todo tipo de questão aguda para
colocar. Por exemplo, perguntaria: “Quando houve a rebelião edênica,
já havia seres humanos racionais há milhares de anos. O que aconteceu

273
O problema do mal | Peter van Inwagen

a todos esses seres racionais? Para onde foram? Eles não podem ter
morrido, pois, de acordo com a nossa história, a morte humana é uma
consequência da rebelião”. Teísta poderia responder que, depois de certo
período de vida no Paraíso, durante o qual eles se casaram e constituí-
ram famílias, os seres humanos edênicos foram elevados a outro modo
de existência; nas palavras de Tolkien, “removidos para sempre dos
círculos do mundo”. Essa réplica poderia salvar a coerência da história,
porém não remove o seu elemento miraculoso, pois a passagem da
existência paradisíaca para a existência transcendente seria um evento
miraculoso. E o problema era supostamente o elemento miraculoso
na história. Ou Teísta poderia dizer que os primeiros seres humanos
não foram para lugar nenhum. Eles jamais morreram, e a população
humana cresceu de poucas centenas de indivíduos para muitos milhões
(no tempo da rebelião). Mas isso traz dificuldades empíricas. (Um vasto
depósito de partes de esqueletos humanos mais ou menos do mesmo
período não indicaria as mortes dos que participaram da rebelião e dos
seus descendentes imediatos?) E qualquer revisão que se proponha da
defesa do livre-arbítrio estendida que, como as duas que considera-
mos, representa a gênese da racionalidade como um evento vago e sem
contornos definidos colocará um problema mais fundamental do que
aqueles que mencionei. Se a gênese da racionalidade foi um evento vago,
teria de ter havido um período longo, muito longo, em que os nossos
ancestrais não eram nem totalmente racionais e nem simples animais
irracionais. Ateísta certamente perguntará que papel essas criaturas
“intermediárias” tiveram no plano de Deus para a humanidade. E ela irá
pedir a Teísta para dizer à audiência em que ponto eles se tornaram não
sujeitos à morbidez – em que ponto eles pararam de morrer da forma

274
O sofrimento dos animais irracionais

como morreram os seus ancestrais puramente animais. A gênese da não


morbidez, se não a gênese da racionalidade, foi um evento repentino e
pontual? Afinal, um organismo ou envelhece e morre, ou não envelhece
e não morre.
No geral, a história parece levantar menos problemas na forma
em que fiz Teísta contá-la na quinta conferência. Ou seja, colocam-se
menos problemas se a nossa história apresenta a gênese da raciona-
lidade ocorrendo em uma única geração. E é difícil ver como, se isso
aconteceu, isso poderia ter sido outra coisa além de um milagre. (Quem
pensa que uma “súbita” gênese da racionalidade poderia ter acontecido
no curso natural da evolução pode, se quiser, introduzir uma disjunção
na história: em certo ponto, uma população de nossos ancestrais subi-
tamente tornou-se racional, ou miraculosamente ou como resultado de
operações de causas puramente naturais. Penso que essa disjunção não
é uma grande contribuição para a história, mas algumas pessoas podem
pensar que sim.) É necessário ressaltar, também, que mesmo se uma
gênese pontual da racionalidade não precisar envolver um milagre, a
condução dos nossos primeiros ancestrais à união com Deus tem de ser
certamente miraculosa. Esse milagre poderia incomodar menos algu-
mas pessoas do que a miraculosa transformação genética e fisiológica
do organismo humano, mas essa, acredito, é uma reação não filosófica.
A condução de um indivíduo, vamos chamá-lo de Adão, à união com
Deus tem de envolver algum tipo de rearranjo da matéria que compõe
Adão. Se Adão estiver, por natureza, em um estado apropriado para a
união com Deus, uma réplica perfeita de Adão estará também nesse
estado. E um rearranjo miraculoso da matéria é um rearranjo miraculoso

275
O problema do mal | Peter van Inwagen

da matéria, seja o seu efeito a racionalidade ou a capacidade de entrar


em uma união com Deus.
Essa é a razão por que a história que fiz Teísta contar contém um
milagre – ou dois milagres (ou dois milagres vezes n, onde n é o número
de seres humanos que foram alçados à racionalidade e à Visão Beatífica).
Esses milagres estão na história porque (em meu julgamento) a história
seria menos plausível sem eles. Mas, como afirmei, mesmo a totalidade
desses milagres não é comparável ao enorme conjunto de milagres que
(de acordo com a defesa da antirregularidade) seria preciso para manter
uma utopia hedonista por centenas de milhões de anos.
Depois de ter respondido a essas objeções à defesa da antirregu-
laridade, podemos colocar a questão de quais alternativas haveria para
essa defesa. Deixando de lado a tese endossada por várias religiões
orientais e pelos Idealistas Absolutos de que o mundo espaço-temporal
e os objetos individuais e as relações causais são ilusões (e que o sofri-
mento dos animais não racionais é, portanto, uma ilusão, como, de fato,
os próprios animais irracionais), e deixando de lado também a ideia
cartesiana absurda de que os animais não humanos não sentem dor,
conheço duas alternativas.
A primeira delas é a sugestão de C. S. Lewis de que só pode haver
dor no mundo natural pré-humano por causa dos anjos caídos que
corromperam a natureza.21 (Nesse caso, a defesa do livre-arbítrio pode
explicar o sofrimento dos animais irracionais, pois a sugestão é, obvia-
mente, que o livre-arbítrio angélico é um grande bem, e que um ser

21
Lewis (1940, p. 121-124).

276
O sofrimento dos animais irracionais

onipotente não é mais capaz de assegurar o resultado da livre-escolha


angélica do que o resultado de uma livre-escolha humana). Não levo
a sugestão de Lewis tão a sério a ponto de ser capaz de conjecturar de
modo confiável quão plausível ela pareceria a uma audiência de agnós-
ticos neutros. Tenho de conceder, no entanto, que a minha reação a
essa sugestão é, pelo menos parcialmente, um produto de convicções
teológicas que a audiência de agnósticos não compartilharia. Estou
convencido de que o ensino da Bíblia é que o mundo natural é e sempre
foi, desconsiderando os efeitos que os seres humanos caídos tiveram
sobre ele, assim como Deus o criou. (Veja, por exemplo, o Salmo 104,
citado anteriormente nesta conferência, e as notas que se seguiram a essa
citação). E não vejo como aplicar algo como a defesa do livre-arbítrio
estendida ao caso dos anjos de um modo consistente com a teologia
cristã padrão que aceito; pois, conforme essa teologia, os anjos caídos
ficarão para sempre nesse estado, e Deus não tem um plano de redenção
para eles. Talvez o meu descontentamento com a defesa da “corrupção
angélica da natureza” esteja enraizado em uma tendência moral análoga
àquela do advogado de defesa que fica relutante em minimizar a evidên-
cia da acusação contando uma história (não como a verdade, mas como
uma possibilidade real) que ele mesmo vê como falsa. No entanto, há
uma objeção que poderia ser feita contra a defesa da corrupção angélica
que não se baseia na teologia. A defesa da antirregularidade inclui a
seguinte proposição: os precursores imediatos dos seres humanos não
poderiam ter evoluído naturalmente sem muitos milhões de anos de
sofrimento ancestral. E essa proposição é verdadeira até onde se sabe:
de fato, penso que ela seja extremamente plausível. Portanto, de modo
correspondente, acho implausível supor que os sofrimentos dos animais

277
O problema do mal | Peter van Inwagen

pré-humanos sejam devidos às ações de anjos maus (mesmo supondo


– como faço – que esses seres existam). Estou inclinado a pensar que
uma audiência de agnósticos neutros compartilharia da minha reação.
Em segundo lugar, há um argumento devido ao professor Geach,
que acha que o problema do sofrimento dos animais irracionais não
é efetivamente um problema. Geach afirma que nós, seres humanos,
temos de nos preocupar com o sofrimento dos animais irracionais (em
um conjunto de casos circunscritos de modo restrito: não temos obri-
gação de dedicar as nossas vidas a salvar lebres de raposas ou a acabar
com a nossa “guerra genocida com os ratos”), porque nós e os animais
irracionais compartilhamos a mesma natureza animal, e podemos assim
sentir empatia com eles e, portanto, podemos ter certas obrigações
morais (muito limitadas) com eles. Mas Deus não é um animal e não
pode sentir dor e, portanto, pode não sentir empatia com o sofrimento
dos animais; logo, ele não tem uma obrigação moral de eliminar ou
diminuir o sofrimento deles.22
Esse argumento parece ter dois defeitos.
Em primeiro lugar, ele prova demais: se ele mostra que Deus não
tem obrigação de eliminar ou minimizar os sofrimentos dos animais
irracionais, um argumento exatamente paralelo mostra que ele não tem
obrigação de eliminar ou minimizar os sofrimentos físicos dos seres
humanos. Geach escreve:
Deus não é um animal como são os homens, e se ele não muda os
seus planos a fim de impedir a dor e sofrimento dos animais, ele não

22
Veja Geach (1977, p. 79-80).

278
O sofrimento dos animais irracionais

viola com isso quaisquer empatias naturais como fez o Dr. Moreau.
Nessa questão, só a imaginação antropomórfica permite-nos acusar
Deus de crueldade (GEACH, 1977, p. 80).
Mas não vejo por que alguém que aceita esse argumento não acei-
taria também o seguinte argumento: Deus não é um animal como são
os homens, e se ele não muda os seus planos a fim de impedir a dor
e o sofrimento dos seres humanos, ele não viola com isso quaisquer
empatias naturais como fez Hitler. Nessa questão, só a imaginação
antropomórfica permite-nos acusar Deus de crueldade.23

Em 1973, ouvi Geach proferir uma série de conferências que continha muito do material que
23

depois foi publicado em Providence and evil (1977). Se a minha memória não me engana,
nessas conferências ele apresentou um argumento que não aparece no livro, um argumento
que responde exatamente essa questão. O argumento, como eu o lembro, era este, ou algo
parecido com este:
Os seres humanos e os animais irracionais compartilham a mesma natureza animal; os seres
humanos podem, portanto, ter empatia com os animais irracionais e, consequentemente, estão
sujeitos a (algumas severamente limitadas) obrigações morais em relação ao bem-estar deles.
Deus e os seres humanos compartilham a mesma natureza racional; Deus pode, portanto,
ter empatia com os seres humanos e, consequentemente, está sujeito a (algumas severamente
limitadas) obrigações morais em relação ao bem-estar deles. Porém nenhuma natureza é
comum a Deus e aos animais irracionais e, consequentemente, Deus não pode ter empatia
com eles e, portanto, não é sujeito a obrigações morais a respeito do bem-estar deles.
(A primeira e a terceira sentenças desse argumento correspondem proximamente ao argu-
mento do texto. É a segunda sentença que “responde exatamente a essa questão”). Se esse
é o argumento de Geach ou não, não vem ao caso. Seja qual for o mérito que o argumento
tenha, ele nem sequer reivindica ter mostrado que uma obrigação de cuidar de algum modo
dos sofrimentos físicos dos seres humanos está entre as obrigações a respeito do bem-estar
humano à qual se diz que Deus está sujeito. E, de fato, o oposto parece ser verdadeiro:
independentemente de quanto Deus possa ter empatia com aqueles aspectos da condição
humana que envolvem apenas a nossa natureza racional, ele não pode ter empatia com os
nossos sofrimentos físicos, e (se o argumento ampliado é correto) não pode ser sujeito a
qualquer obrigação moral fundada na empatia com o sofrimento físico.

279
O problema do mal | Peter van Inwagen

Em segundo lugar, o argumento assume que, se Deus tem uma


obrigação moral de remover ou diminuir os sofrimentos dos animais
irracionais, essa obrigação tem de ser fundada na empatia. Mas por que
tem de ser assim? O sofrimento de um animal superior é intrinseca-
mente uma coisa má, e a incompatibilidade do sofrimento físico com
a natureza divina não é uma barreira para Deus saber que isso é ver-
dade. Seguramente, isso é suficiente para colocá-lo sob uma obrigação
moral de eliminar ou minimizar os sofrimentos de animais superiores
(certamente, uma obrigação prima facie, ou seja, uma obrigação que
pode ser anulada por alguma consideração adicional). Ou, se essa con-
sideração não for evidente para você, devido, talvez, a considerações a
respeito das diferenças entre Deus e as criaturas, tem de ser pelo menos
evidente que o fato de que certo ser não pode sentir empatia com o
sofrimento físico não mostra que esse ser não está sob uma obrigação
prima facie de eliminar ou diminuir o sofrimento físico. Se mesmo isso
não for evidente, convido-o a considerar uma analogia. Em um futuro
distante, os seres humanos visitam um planeta orbitando a estrela Epsi-
lon Eridani, e descobrem que ele é habitado por uma espécie de seres
racionais. Estabelecemos uma comunicação com os Eridenses, mas só
com grande dificuldade e com muita incerteza sobre o que está sendo
comunicado, porque eles são muito (claro!) diferentes. Mas estamos
certos de uma coisa, pelo menos: que eles com insistência nos avisaram
para não lançar qualquer quantidade significativa de gás argônio na
atmosfera deles. Se fizermos isso, eles nos dizem, algo muito mau irá
acontecer com eles. Tentamos entender a natureza dessa coisa má, mas
as afirmações sobre ela que entendemos são em grande parte negativas:
ela não envolve um sofrimento físico ou doença ou fome ou diminuição

280
O sofrimento dos animais irracionais

da população deles ou diminuição da capacidade mental deles – de fato,


para cada coisa má que pensamos, ficamos sabendo que não é sobre
essa coisa ou algo de algum modo similar a ela (além do fato de serem
coisas más) que eles falam. O Eridenses insistem, contudo, que é uma
coisa má cuja maldade é tão objetiva quanto a maldade do sofrimento
físico em larga escala. (Não é o caso, ele nos asseguram, que as religiões
deles pregam que o argônio é um gás “impuro” ou alguma coisa que
seja “subjetiva” ou dependa de alguma contingência cultural). Suponha
que acreditemos neles. Devemos então nos ver como seres sob uma
obrigação moral (prima facie, pelo menos) de não lançar argônio na
atmosfera deles? E não é claro que essa obrigação moral não se basearia
em empatia? (Se lançamos argônio na atmosfera e os Eridenses então
disserem “Ora, vocês fizeram isso, e aquela coisa má da qual avisamos
vocês aconteceu conosco” poderíamos não ter nenhuma empatia com
eles). Não é claro que a obrigação surge do fato de que acreditamos que
o lançamento de gás na atmosfera deles faria com que algo muito mau
acontecesse com os Eridenses?
Portanto, nenhuma das duas alternativas à defesa da antirregu-
laridade – nem a defesa da corrupção angélica da natureza e nem a
defesa da não empatia divina com os animais irracionais – é satisfató-
ria. A minha convicção é que a defesa mais promissora na questão dos
sofrimentos dos animais irracionais é a defesa da antirregularidade.
Mas quão plausível ela seria para uma audiência de agnósticos neutra?
Essa é uma questão que deixarei para você responder.

281
CONFERÊNCIA 8
A ocultação de Deus

Começarei apresentando um argumento para você considerar:


Se Deus existir, seria muito importante para nós, seres humanos,
sabermos disso. Dada a sua onisciência, Deus teria conhecimento de
quão importante seria para nós sabermos que ele existe; dada a sua per-
feição moral, Deus agiria de acordo com esse conhecimento oferecendo
evidência indisputável da sua existência. Paulo reconheceu isso quando
disse (Rm 2: 18-23) que as blasfêmias dos pagãos seriam indesculpáveis
porque Deus realmente tinha oferecido à humanidade evidência indis-
putável da sua existência – simplesmente colocando a humanidade em
um mundo em que, para citar um texto que podemos estar seguros da
aprovação de Paulo, os céus declaram a glória de Deus e o firmamento
proclama a obra das suas mãos [Sl 19:1]. Mas Paulo estava enganado
ao pensar que temos essa evidência. Parece bastante claro que não a
temos e nunca a teremos, pois aqueles que são imparciais sabem que
os céus silenciam sobre a glória de Deus e o firmamento não mostra
nada da obra das mãos de Deus. Portanto, a ausência de evidência para
a existência de Deus deveria nos levar ao ateísmo, e não meramente ao
agnosticismo.
O problema do mal | Peter van Inwagen

Esse argumento tem similaridades com argumento global do mal.1


Ele afirma que, se Deus existir, o mundo, devido à perfeição moral,
conhecimento e poder divinos, teria certas características observáveis;
em seguida, afirma que o mundo pode ser visto como não tendo essas
características; e conclui que Deus não existe. De certo modo, é um
argumento do mal, pois, se Deus existir, então o fato de uma criatura
racional ser ignorante da existência divina é um mal. Poder-se-ia tam-
bém dizer que esse argumento coloca um famoso problema teológico
chamado de “problema da ocultação de Deus” ou “problema da ocultação
divina” como o argumento do mal coloca o problema do mal. Todavia,
mesmo que o problema da ocultação de Deus seja um famoso problema
teológico, ele não é tão famoso quanto o problema do mal; talvez nem
toda a gente esteja familiarizada com o problema da ocultação de Deus
ou nem sequer terá ouvido falar dele.2 Por isso, dedicarei algum tempo
à exposição desse problema. Como acontece com o problema do mal,

1
Esse argumento não apela para a validade de “Ausência de evidência é evidência da ausência”
como um princípio epistemológico geral. E isso é uma vantagem, pois o princípio é um erro:
não temos evidência para a existência de um planeta habitado na galáxia M31, porém esse
fato não é evidência para a não existência desse planeta. Para uma discussão desse princípio
e argumentos para a não existência de Deus que se baseiam nele, veja Van Inwagen (2005).
Se o presente argumento apela para algum princípio epistemológico geral, ele é este princípio
óbvio: se uma proposição é tal que, se ela fosse verdadeira, teríamos evidência da sua ver-
dade, e se estivéssemos cientes de que ela tem essa propriedade, e se não tivermos evidência
da verdade dela, então esse fato, o fato de que não temos evidência para a verdade dela, é
evidência (conclusiva) da sua falsidade.
2
Aqueles que quiserem aprender mais sobre o problema da ocultação de Deus deveriam
consultar Howard-Snyder; Moser (2002). A presente conferência é uma versão estendida da
minha própria contribuição a essa coletânea, intitulada “What is the problem of the hiddenness
of God?”.

284
A ocultação de Deus

o problema da ocultação de Deus é mais mencionado do que afirmado


de maneira precisa. Os teólogos com frequência se referem a ele como
se fosse claro do que se trata, mas os seus escritos sobre o assunto
nem sempre tornam totalmente claro qual é o problema em discussão.
Em alguns autores é difícil distinguir o problema da ocultação de Deus
do problema do mal. Os autores que tenho em mente introduzem o
problema da ocultação de Deus com reflexões que seguem a seguinte
linha de raciocínio. O mundo é repleto de coisas terríveis e não vemos
uma resposta de Deus quando essas coisas terríveis acontecem: dos
céus não despenca fogo sobre os nazistas, a inundação feroz não muda
o curso antes de arrasar um vilarejo pacato, a criança com paralisia
continua paralítica.
Apesar disso, penso que é possível fazer uma distinção intuitiva
entre o que é naturalmente sugerido com as palavras “o problema da
ocultação divina” e o que é naturalmente sugerido pelas palavras “o
problema do mal”. Posso imaginar mundos em que não seria correto
ou natural dizer que Deus estaria “oculto”, mas no qual o mal seria um
problema tão grave para os teístas quanto é no mundo atual.
Imagine, por exemplo, que cada judeu ou judia condenado a perecer
no Holocausto tivesse, algumas semanas antes da morte dele ou dela, a
visão momentânea de um serafim, um ser de indescritível esplendor, que
recitasse o Salmo 91 em hebraico. Os condenados que recebiam essas
visões, comparando notas, constatavam que elas eram claramente con-
sistentes. Judeus cultos entendiam as palavras do serafim perfeitamente.
Judeus menos instruídos reconheciam os salmos e entendiam pedaços e
partes deles, assim como teriam entendido se eles fossem recitados na
sinagoga. Outros, menos instruídos, reconheciam a linguagem como

285
O problema do mal | Peter van Inwagen

o hebraico bíblico, e diziam coisas como “Parece poesia – talvez um


salmo”. Alguns poucos judeus completamente secularizados sequer
reconheciam a linguagem, porém davam uma explicação do aspecto
visual da aparição consistente com as explicações oferecidas por outros
judeus, e diziam que a aparição falava a eles em uma linguagem que
eles não entendiam. (Mas aquelas vítimas do Holocausto que não eram
judias conforme a Lei, mas eram judias conforme as leis nazistas de
raça, não tinham essas visões; algumas delas, no entanto, tinham outras
visões, de um tipo que descreverei daqui a pouco). Essas visões ocor-
reram, porém isso foi tudo. Nada mais teria acontecido: nenhuma vida
foi salva, nenhum incidente brutal foi mitigado de algum modo. Com a
exceção das visões, o Holocausto aconteceu exatamente como aconteceu
no mundo atual. Imaginemos ainda que muitas outras vítimas de males
horrendos em nosso mundo imaginário, vítimas de males horrendos em
toda a história registrada desse mundo, tenham recebido, pouco antes
do sofrimento e morte delas, “sinais” análogos ou comparáveis na forma
de visões incorporando imagens religiosas – de fato, cada vítima per-
tencia a alguma tradição cultural envolvendo imagens religiosas que ela
podia reconhecer e interpretar. Parece que, nesse mundo imaginário, o
problema do mal não é menos premente do que no nosso, mas nele não
há “o problema da ocultação de Deus”. Ou pelo menos podemos dizer
isto: se a existência das visões é geralmente conhecida dos habitantes
do mundo imaginário, autores como os que em nosso mundo falam do
problema da “ocultação de Deus” não usarão essa expressão (em vez
disso, talvez falem da “passividade de Deus”).
Portanto, o problema do mal e o problema da ocultação de Deus não
são idênticos. Mas este último é essencialmente ligado ao sofrimento

286
A ocultação de Deus

e outras formas de mal? Ele existiria ou poderia existir em um mundo


sem sofrimento? Penso que tentar responder a essa questão irá nos
ajudar a entender o que é o problema da ocultação de Deus. Vamos
imaginar um mundo sem sofrimento – não um mundo em que toda a
gente goza da Visão Beatífica, mas um mundo tão parecido com o nosso
(como ele é no presente) quanto o permite a ausência de sofrimento.
Chamarei esse mundo de “utopia secular”, porque o meu modelo para
esse mundo é exatamente aquele futuro das cidades de alabastro não
tornadas sombrias pelas lágrimas humanas que os secularistas tanto
desejam.
No mundo que imagino, os seres humanos são benevolentes, e
a natureza é gentil. Não há dor física, ou há muito pouca dor (só o
suficiente para lembrar as pessoas de tomar cuidado para que não
se machuquem). Não há morte prematura, seja por violência, aci-
dente ou morte. De fato, não há coisas como violência ou doença, e
acidentes nunca são sérios. (Os habitantes desse mundo têm uma velhice
vigorosa e morrem tranquilamente em suas camas quando estão bem
acima dos 100 anos de idade – e o medo da morte é desconhecido).
Ninguém é aleijado ou mentalmente retardado ou mentalmente dese-
quilibrado ou mesmo um pouco neurótico. Não há preconceito racial ou
preconceito de qualquer outro tipo. Ninguém é feio ou deformado. Cada
indivíduo recebe o que precisa para as necessidades físicas e o conforto
– mas grande riqueza e luxo são desconhecidos, assim como a pobreza.
Bens de consumo são produzidos de tal modo a não causar violência
à natureza: os habitantes humanos e não humanos do mundo vivem

287
O problema do mal | Peter van Inwagen

em perfeita harmonia.3 Cada indivíduo tem um trabalho interessante


e recompensador, e esse trabalho é apropriadamente recompensado
com respeito e, quando é apropriado, admiração. Ninguém inveja as
posses dos outros. Não há mentira ou quebra de promessa ou traição ou
corrupção – não há realmente nada em relação a que ser corrupto, pois
não há leis e nem dinheiro, e não há essencialmente qualquer forma de
governo. Se há alguma infelicidade nesse mundo, ela surge apenas em
casos como estes: Alfred está apaixonado por Beatrice, mas Beatrice está
apaixonada por Charles; Delia devotou a vida dela a provar a Conjectura
de Goldbach, e Edward publicou uma prova dessa conjectura quando
Delia estava perto de estabelecer a prova. E mesmo nesses casos, todos
os indivíduos envolvidos comportam-se com perfeita racionalidade e
maturidade, mantendo, desse modo, a infelicidade resultante em um
nível irredutivelmente mínimo (e usualmente temporário).
Vamos supor que nesse mundo, como em nosso, algumas pessoas
acreditam em Deus – em um criador e mantenedor do mundo necessa-
riamente existente, onisciente, onipotente e onipresente. (Os habitantes

3
Aqueles que pensam que os sofrimentos dos animais não humanos que não são relacionados
aos atos dos seres humanos são relevantes para o problema da ocultação de Deus podem se
sentir à vontade para imaginar que o nosso mundo inventado é um mundo em que os animais
irracionais no estado da natureza jamais sofrem. Como eu disse na conferência anterior, não
é fácil imaginar com detalhe um mundo biologicamente rico sem o sofrimento animal, a
não ser que ele seja imaginado como um mundo de milagres espalhados em toda parte – um
mundo em que, por exemplo, os cervos são sempre miraculosamente salvos de incêndios
florestais. Quem recorre a uma vasta coleção de milagres tem de tomar cuidado para fazer
com que eles passem “despercebidos” (pelo menos nas épocas e lugares em que há seres
humanos para notá-los), porque se esses milagres forem obviamente milagres, o propósito de
tentar imaginar uma utopia em que se poderia colocar “o problema da ocultação de Deus”
seria comprometido.

288
A ocultação de Deus

do nosso mundo inventado teriam dificuldade de compreender o con-


ceito de “perfeição moral” – porém, caso você pudesse fazê-los enten-
der esse conceito, os teístas entre eles não hesitariam em atribuir a
perfeição moral a Deus.) E como em nosso mundo, algumas pessoas
acreditam que não há esse ser. Nesse mundo, alguém, talvez um ateísta,
poderia colocar a questão da ocultação divina? Parece que sim. Penso
que podemos imaginar um diálogo em que o problema seja colocado,
um diálogo, por assim dizer, “mais puro” do que aquele que podemos
imaginar acontecendo no nosso mundo, mais puro porque nenhum dos
participantes jamais conheceu ou ouviu falar de algum mal horrendo.

Ateísta. Esse seu Deus – por que ele se oculta? Por que ele não apa-
rece claramente de tal modo que possamos vê-lo?

Teísta. A sua questão não faz nenhum sentido. Deus é onipresente.


Ou seja, ele está totalmente presente em todos os lugares e local-
mente presente em nenhum lugar. Uma coisa é localmente presente
em um lugar (ou seja, em uma região do espaço) se ela ocupa ou faz
uso ou preenche esse lugar. E Deus não ocupa nem um lugar parti-
cular (como fazem os gatos e as montanhas) nem todos os lugares
(como faria o éter, se existisse). Ele está totalmente presente em
todos os lugares à medida que a totalidade do ser de Deus é refletida
no poder que mantém em existência cada coisa espacial em todos os
lugares do universo físico de um momento para outro. Similarmente,
poderíamos dizer que Rembrandt não está localmente presente em
nenhum lugar em Aristóteles contemplando o busto de Homero e total-
mente presente em todos os lugares dessa pintura. (Mas a analogia

289
O problema do mal | Peter van Inwagen

é imperfeita, visto que objetos tridimensionais e relações espaciais


“na” pintura são ficcionais, ilusórios ou imaginários, enquanto são
– obviamente – reais no universo físico). Só uma coisa localmente
presente pode refletir luz, e assim só uma coisa localmente presente
pode ser visível. Só uma coisa localmente presente pode excluir
outras coisas do espaço que ocupa, e assim só uma coisa localmente
presente pode ser tangível. E só uma coisa visível ou tangível pode
“se mostrar”. Alguém que queira que “Deus se mostre” não entende
o conceito de Deus. Colocar essa pergunta é como demandar que
Rembrandt “se mostre” na pintura. A queixa “Não posso encontrar
Deus em nenhum lugar do mundo” é tão deslocada quanto a queixa
“Não posso encontrar Rembrandt em nenhum lugar de Aristóteles
contemplando o busto de Homero”.4

Ateísta. Entendo, mas se ele não pode se mostrar estando presente


no mundo, por que ele não se mostra por meio dos efeitos das suas
ações ou das coisas que estão presentes no mundo?

Teísta. Você não me ouviu. Tudo no mundo é “efeito” de Deus.


Ele “se mostra por meio dos efeitos das suas ações” no mundo assim

4
Posso imaginar alguém no mundo atual (um leitor deste livro) protestando: “Esse argumento
metafísico confunde o Deus dos Filósofos com o Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Pois o profeta
Isaías diz (45: 15): Verdadeiramente tu és um Deus que se esconde, ó Deus de Israel, o Sal-
vador”. Em minha opinião, no entanto, Isaías está simplesmente chamando a atenção para o
fato de que Deus revelou-se só aos Hebreus, e não às grandes noções do Egito e do Crescente
Fértil. (Na Vulgata, a passagem de Isaías 45:15 é tornada “Vere, tu es Deus absconditus, Deus
Israel, Salvator”. Essa é a fonte da expressão “Deus absconditus” – “o Deus oculto” – que
frequentemente recorre nas discussões do problema da ocultação de Deus).

290
A ocultação de Deus

como Rembrandt “se mostra por meio dos efeitos das suas ações”
nas suas pinturas.

Ateísta. Essa resposta soa bem, mas eu não sei se ela não passa de
um palavreado vazio. O que quero não são “efeitos gerais”, mas,
permita-me usar essa expressão, “efeitos especiais”. Na sua concepção
da relação de Deus com o mundo, tudo pareceria ser exatamente
o mesmo, existindo ou não existindo Deus – e não diga que isso é
como dizer que uma das pinturas de Rembrandt pareceria a mesma,
existindo ou não existindo Rembrandt! Isso seria demais para mim.
Permita-me colocar o problema do seguinte modo. Comprei um dos
telescópios modais inventados pelo grande metafísico Saul Kripke e
observei outros mundos possíveis. Em um deles, tive o vislumbre do
seguinte argumento, em um livro de um filósofo chamado Tomás de
Aquino (evidentemente, um ateísta pleno como eu mesmo):

Objeção 2. Ademais, o que pode ser realizado por poucos


princípios não se realiza por muitos. Ora, parece que tudo
o que é observado no mundo pode ser realizado por meio
de outros princípios, pressuposta a inexistência de Deus,
porque o que é natural encontra seu princípio na natureza,
e o que é livre, na razão humana ou na vontade. Logo, não
é necessário afirmar que Deus existe. [ST I, q. 2, art. 3]

Esse argumento é irretorquível? Não se deve realmente acreditar na


existência de uma entidade não observável a não ser que a existência
dela seja necessária para explicar algum fenômeno observado?

291
O problema do mal | Peter van Inwagen

Teísta. O que você procura então é um evento particular, um evento


que não seja causado por qualquer ação humana, a ocorrência do qual
resista a qualquer explicação natural ou científica e que seja eviden-
temente a obra de alguém tentando enviar aos seres humanos uma
mensagem ou um sinal cujo conteúdo seria que Deus existe? O que
dizer do rearranjo das estrelas no céu formando a frase “Eu sou o
que Eu sou”? [Ex 3:14] Seria satisfatório?

Ateísta. Sim, plenamente.

Teísta. Você não quer demais, não é mesmo? Acontece que posso
oferecer algo do tipo que você quer. A minha religião é chamada
de julianismo, em homenagem à sua fundadora, Júlia, a maior das
profetizas e autora de O Livro de Júlia e mais quarenta volumes de
sermões chamados de As Palavras de Julia. A mensagem dela era tão
importante que Deus deu a ela um período de vida três vezes maior,
como sinal de uma graça especial e para assegurar que os seus ensi-
namentos tivessem chance de assentar raízes profundas. Júlia viveu
326 anos. E todos os fisiologistas concordam que é fisiologicamente
impossível um ser humano viver 326 anos. A vida sobrenaturalmente
longa de Júlia tem de ser, pois, um sinal de Deus.

Ateísta. Sem dúvida, o que você contou seria muito impressionante se


tivesse realmente acontecido. Mas quando Júlia viveu e como vocês
julianos sabem que ela realmente viveu tanto tempo?

292
A ocultação de Deus

Teísta. Júlia viveu cerca de 2.000 anos atrás. Sabemos da vida longa
de Júlia e de muitas outras coisas sobre ela porque os fatos da bio-
grafia dela estão cuidadosamente descritos nos Relatos Sagrados da
Igreja Juliana, que foram derivados originalmente de testemunhas
oculares.

Ateísta. Perdoe-me, mas sou cético. Mesmo se descontarmos a


possibilidade de fraude ou de simples erros fatuais por parte das
“testemunhas oculares”, temos de conceder que histórias podem
ser distorcidas quando passam de boca a boca. À medida que as
histórias passam de um narrador ao outro, as pessoas inconscien-
temente introduzem novos elementos ou modificam detalhes na
história. Essas distorções menores podem se acumular e, com o
tempo, a acumulação dessas distorções pode mudar uma história
a ponto de transformá-la em uma história diferente. Você sabe
que isso acontece. No mês passado, havia rumores em Nápoles de
uma terrível tragédia ocorrida na Ásia – uma mulher havia perdido
um dedo em um acidente de trabalho! Houve alvoroço na cidade.
Mas quando a poeira baixou, constatou-se que o que realmente
aconteceu foi que a mulher asiática, distraída, esmagou feio o dedo
em uma parte do maquinário no qual trabalhava. O dedo, obvia-
mente, foi curado em uma semana. Assim, visto que sabemos por
experiência que histórias podem ser distorcidas de maneira fantás-
tica – veja a ideia de alguém perder um dedo! – e visto que sabemos
por experiência que nunca foi relatado na era moderna que alguém
tenha vivido até 150 anos, o mais razoável é supor que, embora Júlia
possa ter realmente chegado a uma idade incrivelmente avançada, ela

293
O problema do mal | Peter van Inwagen

certamente não viveu 326 anos; o mais razoável é supor que o que
a experiência nos diz acontecer com frequência aconteceu também
nesse caso (ou seja, a história cresceu à medida que foi contada; e
ela teve muito tempo para crescer), e o que a experiência nos diz
nunca acontecer não acontece.5

Teísta. O que você diz parece ser o seguinte. Você afirma que se Deus
quer tornar a sua existência crível para os seres humanos, ele tem de
fazer com que um sinal particular e inegável ocorra em algum lugar
do mundo espaço-temporal. Mas quando você ouve uma história
de um evento que teria sido um sinal se tivesse realmente ocorrido,
você se recusa, com base em considerações epistemológicas gerais,
a acreditar na história.

Ateísta. A minha posição não é tão extrema assim, ou tão irracional


quanto você faz parecer. Considere o seu primeiro exemplo hipo-
tético. Se as estrelas no céu fossem subitamente rearranjadas de tal
modo a formar a frase “Eu sou o que Eu sou”, eu acreditaria na
existência de Deus, certamente.6 Esse seria um caso claro de Deus

5
Esse argumento tem como modelo o argumento central de Hume no seu injustamente
célebre ensaio “Dos Milagres” (HUME, 1999, seção X).
6
A afirmação de Ateísta é reminiscente de uma famosa afirmação de Norwood Russell Hanson
(HANSON, 1972, p. 322):
Não sou um cara cabeça-dura. Eu seria um teísta sob algumas condições. Sou cabeça-aberta.
[...] As condições são estas: suponha que, na próxima terça-feira de manhã, logo depois do
café da manhã, todos nós neste mundo sejamos colocados de joelhos por um trovão percussivo
e extremamente alto. A neve cai, assim como as folhas das árvores, a terra treme, edifícios e
torres tombam. O céu brilha com uma luz prateada ameaçadora, e então, quando todas as

294
A ocultação de Deus

se mostrando. Nesse caso, Deus estaria dando aos seres humanos


evidência de que a Realidade contém outra inteligência além da
inteligência humana – e ela não é só uma inteligência não humana
qualquer, mas uma inteligência grandiosa o bastante para ser uma
candidata plausível ao posto de “Deus”. E, obviamente, isso – ou
algo desse tipo – é o que uma inteligência grandiosa faria se quisesse
que nós acreditássemos nela. Se, per impossibile, as figuras nas telas
de Rembrandt fossem seres conscientes e cientes dos objetos (e
somente deles) no pequeno mundo bidimensional deles, que razão
eles teriam para acreditar em Rembrandt exceto alguma coisa que
ele colocasse especialmente na pintura que não fosse parte da ordem
natural das coisas na pintura (a assinatura dele, talvez). Se não fizesse
isso, como Rembrandt poderia culpar os cidadãos da pintura por
não acreditarem nele?

Teísta. Deixe-me fazer duas observações. Em primeiro lugar, esses


sinais que você quer que Deus coloque no mundo teriam de recor-
rer periodicamente ou, depois de algumas gerações, pessoas como
você diriam que as histórias sobre os sinais cresceram à medida que
foram contadas – talvez da fonte de um fenômeno extraordinário

pessoas deste mundo olharem para cima, os céus se abrem, e as nuvens se separam, revelando
uma figura como Zeus inacreditavelmente radiante e imensa, impondo-se a nós como cem
Montes Everest. Bem ao estilo das pinturas de Michelangelo, vemos as suas sobrancelhas
misteriosamente franzidas quando a luz ilumina a sua face, então aponta para mim, e explica
de tal modo que cada homem e mulher e criança possa ouvir: “Já estou farto de sua refinada
argumentação e observações sobre usos linguísticos em questões de teologia. Pois estejas
certo, Norwood Russell Hanson, que eu certamente existo!”.

295
O problema do mal | Peter van Inwagen

que, mesmo notável, tivesse alguma explicação puramente natural.


Em segundo lugar, mesmo a história do “Eu sou o que Eu sou” não
tornaria a existência de Deus evidente para um cético suficiente-
mente determinado – pois mesmo o (aparente) rearranjo das estrelas
poderia ser obra de um ser menor do que Deus. Não podemos ima-
ginar nenhum sinal que teria de ter sido a obra de um ser necessário,
onipresente e onipotente. Qualquer sinal que se possa imaginar
poderia ser atribuído a um ser contingente e localmente presente
cujos poderes, embora muito maiores do que os nossos, seriam fini-
tos. Eu esperaria que alguém como você dissesse que, se duas hipóte-
ses explicam os dados igualmente bem, e se elas são idênticas exceto
pelo fato de que uma delas postula um ser não observável infinito e
a outra um ser não observável finito, dever-se-ia sempre preferir a
última hipótese, visto que ela realiza o mesmo trabalho explicativo
que a outra, mas é, literalmente, infinitamente mais fraca.

Ateísta. Bem, talvez você esteja certo quando diz que para ser con-
vincente os sinais teriam de recorrer periodicamente. Não vejo por
que eu não deveria fazer essa exigência e nem por que o meu argu-
mento seria enfraquecido se eu a fizesse. E quanto mais penso na
questão, mais fico inclinado a aceitar o seu segundo ponto também.
O seu argumento convenceu-me de algo imprevisto: que vocês teís-
tas inventaram um ser cuja existência ninguém pode racionalmente
acreditar, visto que a hipótese de que ele existe é de modo necessário
infinitamente mais forte do que outras hipóteses que explicariam
quaisquer observações possíveis igualmente bem. E se vocês não o
inventaram, se ele realmente existir, mesmo ele – ou qualquer outro

296
A ocultação de Deus

ser finito que ele poderia criar – não poderia nos dar evidências que
tornassem a crença em Deus racional. Se esse ser existir, ele deveria
aprovar-me por não acreditar nele, e desaprovar você por acreditar.

Vamos deixar nesse ponto o nosso diálogo e a utopia secular na


qual imaginamos que ele ocorresse, e voltemos ao mundo real. A lição
do diálogo é que o problema da ocultação de Deus, em um mundo em
que não há sofrimento real, é um problema puramente epistemológico,
ou um conjunto de problemas epistemológicos: pode-se racionalmente
acreditar em Deus em um mundo destituído de sinais e milagres?7 Sob
quais condições um ser racional acreditaria em uma história que relata
sinais e milagres? Um possível sinal ou milagre, ou possíveis sinais e
milagres, poderia tornar razoável acreditar em um Criador e Mantene-

7
Por “sinais e milagres” quero dizer milagres “visíveis”, eventos que são contravenções à ordem
natural das coisas. (“Que uma casa e um navio se elevem no ar”, escreve Hume, “é um mila-
gre visível. Que se levante uma pena, quando o vento precisa de um pouco de força para
esse propósito, é um milagre não menos real, embora quase não seja percebido por nós”).
(HUME, 1999, seção X, n. 1). Usar um termo bíblico nesse sentido não é anacronismo.
“Lei da natureza” pode ser um conceito moderno (realmente, teria sido difícil explicar a
alguém do mundo antigo o que Hume queria dizer quando disse que uma pena se levantar
com a força do vento poderia ser uma violação da ordem natural – se o vento levantou a
pena, como poderia ter faltado, em algum grau, uma força necessária para esse propósito?; o
que isso quer dizer?), mas as pessoas nos tempos bíblicos estavam cientes de que a verdade
de certos relatos acarreta a existência de violações da ordem natural, pois esses relatos são
relatos de coisas que “quase nunca acontecem”. Veja, por exemplo, a reação de Pórcio Festo
à confissão de Paulo defronte o Rei Agripa (Atos, 26: 24). Festo era um homem prático do
século primeiro, não um filósofo pós-newtoniano, porém a sua reação ao discurso de Paulo
evidencia uma posição que é tão “humiana” quanto as diferenças com Hume permitem que
seja: é mais razoável acreditar que Paulo está louco do que acreditar no que ele diz, porque
os tipos de coisas que Paulo descreveu são tipos de coisas que quase nunca acontecem – e
um homem erudito que se torna louco por sua erudição é uma coisa comum de acontecer.

297
O problema do mal | Peter van Inwagen

dor necessariamente existente, onipresente, onipotente de um mundo


de coisas localmente presentes?
Obviamente, essas questões epistemológicas têm a mesma força
no mundo real que têm na nossa utopia secular. A mais aguda delas, a
questão que quero discutir, é esta: por que Deus não nos mostra que ele
existe dando-nos sinais e milagres? Quem pensar que essa questão não
tem resposta pode apresentar um argumento para a não existência de
Deus cuja premissa é a ausência de sinais e milagres. Vimos uma versão
simples desse argumento. Eis uma versão mais elaborada – uma ver-
são que envolve um componente do conhecimento, a crença, e não o
conhecimento mesmo:

1) Se Deus existe, ele quer que todos os seres racionais finitos


acreditem na existência dele.
2) Se cada ser racional finito observasse sinais e milagres do tipo
adequado, cada ser racional finito acreditaria em Deus.
3) Portanto, há algo que Deus poderia fazer para assegurar que cada
ser racional finito acredite na existência dele.
4) Se Deus quer que todos os seres racionais finitos acreditem na
existência dele e há algo que ele pode fazer para que todos os
seres racionais finitos acreditem na existência dele, ele irá fazer
isso.
5) Mas nem todo ser racional finito acredita em Deus.

Portanto,

6) Deus não existe.

298
A ocultação de Deus

Farei duas observações sobre esse argumento, que chamarei de


“argumento doxástico”. Em primeiro lugar, ele não é formalmente válido,
mas poderia facilmente ser tornado formalmente válido, e dificilmente
parece plausível supor que alguma das premissas que seriam acrescen-
tadas para tornar o argumento formalmente válido fosse falsa. Se há
um defeito no argumento, ele tem de ser que uma ou mais premissas
do argumento que apresentei são falsas. E essas premissas parecem ser,
para dizer o mínimo, plausíveis. Certamente, é verdade que nem todas
as pessoas acreditam em Deus. Embora ninguém queira disputar essa
premissa, quero deixar claro que é quase certo que a descrença disse-
minada não seja uma coisa recente, mesmo em culturas oficialmente
cristãs. Eis algumas palavras notáveis, escritas por um Peter of Cornwall,
prior de um monastério da Ordem da Santíssima Trindade perto de
Aldgate, por volta de 1200:

Há muitas pessoas que não acreditam que Deus existe e


nem pensam que uma alma humana viva depois da morte
do corpo. Elas consideram que o universo foi sempre o
que é agora e que seja governado pelo acaso e não pela
Providência.8

8
Essas palavras são de um manuscrito que, até onde sei, não foi publicado. Elas são citadas
em Bartlett (2000). Retirei-as da resenha de um livro de John Gillingham. Eis a segunda
citação do livro feita pelo resenhista: “o materialismo simples e a descrença na vida após a
morte eram provavelmente difundidos, embora tenham deixado poucos traços nas fontes
escritas pelos clérigos e monges.” (Nenhuma indicação de página é dada na resenha).

299
O problema do mal | Peter van Inwagen

Se isso era o melhor que Deus poderia fazer na Inglaterra dos


séculos XII e XIII, pareceria que ele não estava realmente tentando!
(E, obviamente, ele não fez muito melhor desde então).
A minha segunda observação é que algumas pessoas poderiam
achar esse argumento mais persuasivo se “crença” fosse substituída nela
por “crença racional”. Se essa substituição fosse feita, as primeiras duas
premissas do argumento seriam:

Se Deus existe, ele quer que todos os seres racionais finitos acreditem
racionalmente na existência dele.

Se cada ser racional finito observasse sinais e milagres do tipo ade-


quado, cada ser racional finito acreditaria em Deus racionalmente.

Não estou certo qual das versões do argumento é mais persuasiva,


mas a minha intenção é que as minhas observações se apliquem igual-
mente às duas.
Como o Teísta pode responder a esse argumento? Proponho que a
resposta teísta seja estritamente paralela à resposta de Teísta ao argu-
mento global do mal. Ou seja, que o Teísta tente contar uma história
que tenha as seguintes consequências lógicas:

O mundo foi criado e é mantido por um ser necessário, onipre-


sente, onisciente, onipotente e moralmente perfeito – ou seja,
Deus. Há seres racionais nesse mundo, e Deus quer que esses
seres, ou alguns deles em certos momentos, acreditem na existên-
cia dele. O mundo é destituído de sinais e milagres – de “efeitos

300
A ocultação de Deus

especiais”. Ou se o mundo contém algum desses eventos, eles são


tão raros que poucas pessoas realmente observaram um deles ou
mesmo encontraram alguém que afirmasse ter observado um deles.
(Nesse último caso, entre as pessoas que Deus quer que acreditem
na existência dele estão muitas das pessoas que estão distantes no
espaço e no tempo de alguns daqueles raros sinais e milagres).

E proponho que o argumento doxástico seja julgado um fracasso


se o teísta for capaz de contar uma história com essas consequências
tal que uma audiência de agnósticos ideais (à qual o argumento doxás-
tico foi apresentado e tenta decidir se ele é convincente) responderia
a ela dizendo: “Dado que Deus exista, o resto da história pode ser
verdadeiro. Não vemos nenhuma razão para excluir essa possibilidade”.
E, obviamente, exigimos que essa reação ocorra na presença de um ate-
ísta ideal que faz tudo o que é possível para impedir essa reação, tudo
o que é possível para defender a verdade das premissas do argumento
contra as dúvidas levantadas pela história do teísta. Podemos designar
essa história usando a mesma expressão que usamos para as histórias
que tiveram um papel análogo em relação ao argumento do mal: pode-
mos chamá-la de defesa. O termo é bastante apropriado porque Deus
está, mais uma vez, no banco dos réus – a acusação é que ele não nos
dá evidência indiscutível na forma de sinais e milagres para decidir a
questão importante sobre a existência dele – e o Teísta é o advogado
de defesa. Podemos lembrar neste ponto a famosa história da réplica
de Lorde Russell a uma mulher em um jantar em Londres (ou a um
estudante americano – a história tem várias versões) que perguntou a
ele o que ele diria a Deus no dia do Juízo Final (se, contrariamente às

301
O problema do mal | Peter van Inwagen

suas expectativas, chegasse esse dia): “O Senhor não me deu evidência


suficiente.”9 A indignação do protesto post-mortem de Russel é uma
formulação da acusação que enfrenta Deus no banco de réus. Como a
defesa deve responder?
Nas discussões do argumento global do mal, o cerne de cada defesa
é uma razão (ou conjunto de razões), a razão ou as razões de Deus para
permitir a existência do mal. O mesmo deve valer para a discussão do
argumento doxástico: o cerne de cada defesa deve ser uma razão ou
razões, a razão ou razões de Deus para não oferecer à espécie humana
sinais e milagres espalhados em toda parte, e isso a despeito do fato de
que ele pensa ser muito importante que os seres humanos acreditem
na existência dele.
Tentarei apresentar uma defesa assim. Essa defesa será erguida a
partir da defesa do livre-arbítrio estendida que fiz Teísta apresentar em
nossa discussão do argumento do mal. A ideia essencial daquela defesa
era que a eliminação de todo mal do mundo por uma acumulação de
milagres locais frustraria os planos de Deus de redenção, o seu plano de
se reunir com a humanidade separada. A ideia essencial da defesa que
apresentarei em resposta ao argumento doxástico é que sinais e mila-
gres espalhados em toda parte igualmente frustrariam o plano divino
de redenção.
Começo com uma observação. Note que a proposição

9
Na versão do estudante americano, Russell prossegue dizendo: “Então Deus me disse, “Fez
muito muito bem, Bertie; você usou a mente que lhe dei. Entre no Reino dos Céus”. E você,
meu jovem, ele o mandará direto para o inferno”.

302
A ocultação de Deus

Deus quer que as pessoas acreditem na existência dele.

não acarreta a proposição

Deus quer que as pessoas acreditem na existência dele – e ele não se


importa com o porquê de alguém acreditar nele.

Na verdade, a primeira proposição é consistente com a proposição


que Deus veria a seguinte lista como apresentando três estados de coisas
em ordem de valor decrescente:

1) Patrícia acredita, pela razão A, que Deus existe.


2) Patrícia acredita que Deus não existe.
3) Patrícia acredita, pela razão B, que Deus existe.

Por exemplo, Deus querer que Patrícia acredite na sua existência


é consistente com ele ver 1) como um estado de coisas bom, 2) como
um estado de coisas mau e 3) como um estado de coisas muito pior do
que 2). (E isso seria consistente com a razão B ser uma razão episte-
micamente inobjetável para a crença em Deus: a razão B poderia ser,
do ponto de vista de alguém interessado só na justificação ou garantia,
uma razão perfeitamente boa para se acreditar na existência de Deus.)
E essa não é uma especulação indolente sobre a possibilidade lógica.
A maioria dos teístas sustenta que Deus exige muito mais de nós do
que a mera crença na existência dele. Como diz Tiago em sua epístola
“Você crê que existe Deus? Muito bem! Até mesmo os demônios creem

303
O problema do mal | Peter van Inwagen

– e tremem!” (2:19).10 Deus espera um complexo de coisas, das quais a


crença em sua existência é uma parte pequena (mesmo que essencial).
Certamente é concebível que o fato de alguém acreditar em Deus por
certa razão (porque, digamos, essa pessoa testemunhou sinais e milagres)
possa tornar difícil ou mesmo impossível para essa pessoa adquirir outras
características que Deus gostaria que ela tivesse.
Podemos tornar isso plausível? Consideremos alguns exemplos e
analogias. Vamos considerar um segundo texto do Novo Testamento.
Lembre-se da história do homem rico no Inferno no capítulo 16 do
Evangelho de Lucas. O homem rico, que na vida tratou o pobre com
negligência, está no inferno (justamente por essa razão), e suplica a
Abraão (que de algum modo é capaz de conversar com ele por um
“grande abismo”) que um mensageiro [Lázaro] seja enviado aos seus
irmãos ainda vivos, que também têm mendigos famintos em seus por-
tões suntuosos, para adverti-los que deveriam melhorar os modos antes
que fosse tarde demais. Abraão responde: “Se não ouvem Moisés e aos
Profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite alguém
dentre os mortos” (Lucas 16:31). Uma parábola notável, mas a sua
mensagem pode realmente ser verdadeira? Ou seja, pode ser verdadeiro
que o testemunho de um milagre, mesmo um milagre muito pessoal e
impressionante, não teria efeito no caráter dos valores da pessoa que o
testemunhasse, nenhum efeito sobre o tipo de pessoa que ela é? Para
que a nossa imaginação possa não ser distraída pelos artifícios literá-
rios singulares de um livro antigo, vamos imaginar uma parábola para

10
Essa é a tradução da Bíblia de Jerusalém. Eis uma tradução mais literal: “Você crê que Deus
é único? Você faz bem. Os demônios também acreditam, e tremem”.

304
A ocultação de Deus

o nosso próprio tempo. Essa parábola tem duas personagens centrais.


A primeira é o estrategista russo cuja contribuição para a causa do seu
país no Afeganistão foi a ideia brilhante de colocar minas potentes
disfarçadas como brinquedos reluzentes nas proximidades de vilarejos
suspeitos. Esse homem morre (obviamente, em sua cama) e recebe uma
recompensa apropriada na vida após a morte. Ele suplica a Abraão
para que seja permitido a ele, como o fantasma de Marley,11 visitar o
seu irmão que ainda vive (que é um general cujas forças executam a
distribuição dos “brinquedos” no Afeganistão) para avisá-lo do que
espera por ele. Nesse caso, a súplica é atendida. Ele aparece ao seu
irmão e diz a ele “Ouça, irmão, nós estávamos errados. Deus existe
e há um julgamento. Estou no Inferno por causa das coisas terríveis
que fiz. Arrependa-se e mude a sua vida e evite o meu destino infeliz”.
Qual seria o resultado disso?
Eu suporia que o melhor resultado que se poderia esperar seria
este – e lembre-se de que estamos a falar de alguém que distribuiu
minas disfarçadas de brinquedos. Esse é um homem que, nas palavras
do Sábio de Salomão, fez um pacto com a morte: ou seja, que, em sua
própria mente, negociou a extinção eterna depois da morte pelo privi-
légio de comportar-se do jeito que quisesse, com impunidade, durante
a vida.12 Um homem assim só poderia ver o que seu irmão contou a ele
como sendo má notícia – como uma criança travessa a quem se diz que

11
Há alguma evidência de que o conto A Christmas Carol [de Charles Dickens] tenha sido
influenciado por Lucas 16? Eu gostaria de saber.
12
Provérbios 1: 16 – 2: 14. A frase “eles fizeram um pacto com a morte” ocorre em Isaías
(28: 15), mas o verso, acredito, faz referência a um tipo diferente de pacto.

305
O problema do mal | Peter van Inwagen

Papai Noel não irá trazer presentes se ela se comportar conforme as


suas inclinações normais veria essa informação como uma má notícia.
A reação do general seria, ou ao menos me parece que seria, articulada
seguindo a seguinte linha de pensamento: “Parece que os meus cálculos
estavam errados. A natureza do universo é inteiramente diferente do
que pensei que fosse. Ele tem um criador pessoal, um ser de poder tão
grande que é inútil opor-se à sua vontade. Esse ser tem algumas regras
e a penalidade por desobedecê-las é terrível, e parece que essas regras
são, para dizer suavemente, inconsistentes com o tipo de vida que quero
viver. Parece que se eu matar e mutilar crianças afegãs e as famílias
dessas crianças a fim de conquistar vantagens dos meus superiores,
serei submetido a um tormento eterno. Essa é a pior notícia da minha
vida; todos os meus planos terão de ser repensados. Mas é melhor lidar
bem com isso. O que tenho de fazer é descobrir como obedecer a essas
porcarias de regras de modo que exija um mínimo de modificação dos
meus objetivos em vida”. (Esse é pelo menos um modo de reação do
general. Outra possibilidade seria a simples rebelião. O debate infernal
no Pandemonium no Canto II de Paraíso Perdido de John Milton, que
é um debate sobre o melhor meio de levar adiante uma rebelião con-
tra uma autoridade cujo poder é incomensuravelmente maior do que
o poder de qualquer outro, expõe várias possibilidades que o general
poderia querer considerar.) Se o general resolver modificar o seu com-
portamento e também os seus objetivos em resposta às más notícias
que recebeu do seu irmão falecido, não é claro se podemos esperar que
a resolução seja duradoura. O efeito dos sermões que falam do fogo
do inferno – sobre aqueles que são afetados por eles – é em geral um
arrependimento e uma tentativa de mudar de vida realmente transitó-

306
A ocultação de Deus

rios. Não deveríamos nos surpreender se nosso general, antes que fosse
tarde demais, encontrasse algum modo de convencer a si mesmo que a
visão do seu irmão foi algum tipo de ilusão, talvez um episódio psicótico
temporário, para assim expulsá-la da sua mente. Mas independente do
general continuar ou não a acreditar que o milagre que testemunhou
fosse real, esse milagre não produzirá qualquer mudança no compor-
tamento na qual Deus estivesse interessado. Ele não levará o general a
perceber que o mundo é um lugar horrível e a buscar uma saída desse
mundo horrível. Ele não o tornará um homem que acredita que o
mundo é um lugar horrível porque os seres humanos estão separados
de Deus, e que o mundo pode ser curado somente se a humanidade
se reunir com Deus. Ele não irá convencê-lo de que ele mesmo é um
horror moral, e que a sua única esperança de ser algo mais é se unir
a Deus em laços de amor. Não, o general gosta das coisas exatamente
como elas são – ou exatamente como pareciam ser antes de receber a
visita do seu irmão falecido. Ele não pensa que o mundo seja um lugar
horrível, embora ele, sem dúvida, perceba que o mundo é um lugar
horrível para muitas outras pessoas. Outras pessoas têm interesse para
ele só como instrumentos. A sua única objeção ao mundo tal como ele
o percebia antes da visita do seu irmão falecido era que ele não gozava
de bastante poder, uma deficiência que ele devotava cada minuto da
sua vida desperta para corrigir.
Pode-se generalizar essa afirmação. Se Deus fosse nos convencer da
sua existência por milagres espalhados em toda parte, essa não seria uma
boa contribuição para o seu plano de redenção. E parece-me provável
que nesse caso haveria interferência no seu plano. Se eu fosse um ateísta
ou agnóstico que testemunhasse coisas como as seguintes:

307
O problema do mal | Peter van Inwagen

As estrelas no céu formam a frase “Eu sou o que Eu sou”;


Um voz vinda de um trovão nos diz que Deus existe e que é
melhor que mudemos o nosso modo de vida;
Um exame microscópico de grãos de areia revelam que cada um
deles vem com a inscrição “Made by God” (esse exemplo divertido
é de John Leslie).

Suponho que eu deveria concluir que Deus existe – ou, pelo menos,
que algum ser ao qual eu iria me referir com “Deus” existe. (Não é certo
que eu concluiria que um ser que fosse Deus, propriamente falando,
existisse; pois, como chamei a atenção por meio das personagens da
minha história da utopia secular, qualquer série de eventos miraculosos
pode ser sempre explicada pela postulação de um ser finito com grande
poder e conhecimento). Provavelmente, eu também inferiria que o prin-
cipal plano desse ser para mim seria este: ele quer que eu acredite na
existência dele e, sem dúvida, que eu me comporte de um modo que
seja uma consequência natural desse conhecimento que adquiri. E isso
não é realmente o que Deus quer. Do ponto de vista do teísmo, ou, pelo
menos, do ponto de vista das religiões teístas – judaísmo, cristianismo
e islamismo –, é realmente verdadeiro que Deus quer que nós seres
humanos acreditemos na existência dele;13 no entanto, como muitas

13
“Pois quem dele se aproxima precisa crer que ele existe (hoti estin) e que recompensa aqueles
que o buscam” (Hebreus, 11: 6). Note que a primeira conjunta é (logicamente) redundante:
quem crê que Deus recompensa aqueles que o buscam ipso facto acredita que Deus existe.
Note também que mesmo a crença mais inclusiva – que Deus recompensa quem o busca – é
representada como tendo meramente um valor instrumental: o que tem valor intrínseco é se
aproximar de Deus.

308
A ocultação de Deus

verdades, essa verdade pode ser enganadora se for asseverada fora de


contexto. Quero que a minha esposa acredite em minha existência; se
digo isso, digo algo verdadeiro; no entanto, isso não é algo que eu diria
se não estivesse a oferecer um exemplo filosófico. O que quero é que
a minha esposa e eu permaneçamos em um conjunto de relações que,
obviamente, tem a crença dela em minha existência como um compo-
nente essencial ou uma consequência lógica. Se o meu casamento fosse
arruinado, se esse conjunto complexo de relações cessasse de existir,
ela, sem dúvida, ainda acreditaria na minha existência, mas isso, em si
mesmo, não teria valor para mim. E Deus não põe nenhum valor parti-
cular na crença de uma pessoa na existência dele, não na crença pura, não
na crença em si. O que ele valoriza é, como notei antes, um complexo
do qual a crença em sua existência é uma consequência lógica, um com-
plexo de algumas características que fiz Teísta explicar detalhadamente
na conferência 5 na descrição do plano de Deus para a reconciliação
da humanidade com ele. Não é possível, não parece ser possível, que se
Deus colocasse no mundo uma enorme coleção de milagres que ates-
tassem a existência de um poder pessoal além da natureza, essa ação
não nos transmitiria a mensagem de que o que é desejado de nós seria
simplesmente que acreditássemos que ele existe? – e nada mais? – ou
nada mais do que acreditar na existência dele e levá-la em conta como
uma característica importante da realidade, uma característica que tem
de ser incluída em todo raciocínio prático? Se for assim, a enorme
coleção de milagres não só seria inútil do ponto de vista de Deus, mas
também seria positivamente danosa, um impedimento para colocar o
seu plano de reconciliação em ação.

309
O problema do mal | Peter van Inwagen

Se for difícil ver aonde quero chegar, talvez um tipo de analogia


poderá ajudar. Há muitas proposições que Deus quer que todas as
pessoas aceitem, mas que geralmente elas não aceitam, ou geralmente
não têm aceitado no curso da história da humanidade. Uma delas seria:
“As mulheres não são intelectualmente, emocionalmente, ou espiritual-
mente inferiores aos homens”. Mas se Deus quer que todas as pessoas
aceitem essa proposição, em todas as épocas e em todos os lugares, por
que ele não ofereceu (como Russell poderia ter perguntado) mais evi-
dência disso? Por que uma voz da tempestade ou arbusto flamejante
não nos informa da verdade dessa proposição quando fazemos 18 anos?
Por que cada mulher não nasce com uma pequena marca de nascença de
bom gosto que diz (talvez na linguagem nativa dos pais) “Não intelec-
tualmente, emocionalmente, ou espiritualmente inferior aos homens”?
Se Deus tivesse feito essas coisas, ele teria mudado significativamente o
curso da história humana. Não teria havido sexismo, dominação mascu-
lina, circuncisão de clitóris, prostituição, escravidão sexual, pés-de-lótus,
purdah ou cerimônias Sati. Assim, por que Deus não “nos ofereceu
mais evidência”? Penso que parte da resposta é que ele já nos deu toda
a evidência de que precisamos ou que teríamos precisado para ficar
convencidos – para saber – que as mulheres não são intelectualmente,
emocionalmente ou espiritualmente inferiores aos homens. E essa é
simplesmente a evidência que é oferecida pela interação social humana
normal. Outra parte da resposta é que seria inútil para ele fazer tal coisa
se o seu propósito fosse uma transformação real da atitude da humani-
dade masculina decaída em relação às mulheres. O máximo que essas
evidências “externas” poderiam produzir seria um tipo de aquiescência
descontente à opinião de outrem – mesmo que esse “outrem” seja a pessoa

310
A ocultação de Deus

de Deus. (Se você duvida disso, considere como as feministas radicais de


hoje estariam dispostas a reagir se subitamente viesse a ocorrer que os
bebês do sexo masculino começassem a nascer com marcas de nascença
cientificamente inexplicáveis dizendo “o sexo superior” e bebês do sexo
feminino começassem a nascer com as marcas de nascença cientifi-
camente inexplicáveis dizendo “o sexo inferior”). O que é realmente
necessário para eliminar o sexismo não é uma aquiescência descontente
forçada pela evidência que não tem uma conexão natural com a vida
no mundo humano social. O que é necessário é uma convicção natural
que procede de nosso aparato cognitivo normal operando com dados
normais dos sentidos. O sexismo será realmente eliminado (como oposto
a reprimido) só quando todas as pessoas, usando as suas capacidades
cognitivas normais, aplicando-as aos dados da interação social cotidiana,
acreditarem na igualdade intelectual, emocional e espiritual entre os
sexos do mesmo modo que todas as pessoas acreditam na igualdade das
capacidades auditivas e visuais entre os sexos. E não seria o caso que a
evidência miraculosa da igualdade entre os sexos realmente interferiria
com a nossa capacidade de chegar à crença na igualdade entre os sexos
de maneira correta? Se muitos homens na maioria das vezes (e talvez
muitas mulheres também) acreditaram que os homens eram superiores
às mulheres, então deram um jeito de acreditar nisso em um mundo no
qual estavam realmente nadando em evidências do contrário. Portanto,
tem de ter havido algo errado com as capacidades deles de processar
os dados da experiência diária. Eles têm de ter sido epistemicamente
defeituosos (certamente, não de modo inocente como os filósofos da
natureza que acreditavam que os corpos pesados caíam mais rápido do

311
O problema do mal | Peter van Inwagen

que os leves,14 mas, sim, defeituosos epistemicamente de modo culposo,


como as pessoas que negam o Holocausto). Não pode ser o caso que essa
evidência externa miraculosa para a igualdade ente os sexos simplesmente
levantasse barreiras emocionais, como, por exemplo, ondas de ressenti-
mento sombrio entre os autoenganados, de tal modo que não haveria
esperança que eles gradualmente viessem a ouvir o que os seus sentidos
dizem a eles no curso da interação social humana cotidiana? Se houver,
como Paulo disse que havia, uma tendência natural em nós para ver a
existência, o poder e a divindade do criador do mundo nas coisas ao nosso
redor (Rm 2:20), e se muitas pessoas não veem esse poder e divindade
do criador porque não querem ver, não seria possível que grãos de areia
levando a marca “Made by God” (ou trovões articulados ou rearranjos
de estrelas com uma mensagem similar) não levantassem barreiras emo-
cionais – como, por exemplo, ondas de ressentimento sombrio entre os
autoenganados –, tais que não houvesse nenhuma esperança de que eles
eventualmente viessem a perceber o poder e a divindade de Deus nas
operações usuais e cotidianas das coisas que ele criou?

14
Se a explicação de Descartes do erro intelectual é correta, esse defeito epistêmico não foi
inocente, pois envolveu um mau uso do livre-arbítrio (porém não suponho que a explicação
dele seja correta).

312
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319
ÍNDICE DE ASSUNTOS

Se uma das conferências deste livro for devotada inteiramente ou


primariamente a um determinado tópico, e se esse fato for evidente
pelo título da conferência, esse tópico não é relacionado neste índice, a
não ser que seja discutido também em outras conferências. Nesse caso,
os números das páginas da conferência que trata desse tópico não apa-
recem no índice. “Deus” não é relacionado, pela simples razão de que
a presença de Deus nestas conferências é disseminada, assim como a
sua presença no mundo.

acaso 63,182, 193n10, 196n11, 202, 225, 247, 254n13, 263n17, 299
Adams, Marilyn M. 50n4, 60n9, 165n9, 215n1
Adams, Robert M. 50n4, 165n9, 183
agnóstico, significado de, 10
Agostinho 148
Amis, Kingsley 142, 144
Amis, Martin 69n14, 144n1
amor 68n14, 79n2, 109, 193n10, 198, 307
anselmiana, concepção de Deus
veja o maior ser possível, Deus como
Aquino, Tomás de 88n5, 90, 114, 117, 167, 187, 291
Austin, J. L. 104
O problema do mal | Peter van Inwagen

Bartlett, Robert 299n8


Berlinski, David 72, 73n17
Bíblia 78, 189, 225n3, 277, 304
Bilynskyj, Stephen S. 63n12
Brand, Paul 254n12
Burgess, Anthony 68n14, 69
Buridano, Jean 49

Church, tese de 115


conhecimento intermediário 173
veja também molinismo, tomismo (vs. molinismo)
contrafactuais de liberdade
veja conhecimento intermediário
criador, Deus como 53, 70, 96,97, 99, 109, 142, 154, 176, 213, 218

defesas 41, 56
“apreciação” 164
“plenitude”, “felix culpa”, “calvinismo radical” 165n9
livre-arbítrio, 165, 166, 167, 168, 169, 171, 172, 173, 175, 176,
177, 178, 179, 180, 181, 182, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193,

322
Índice de assuntos

194, 196, 199, 204, 205, 206, 207, 209, 210, 211, 212, 213, 214, 218, 219, 224, 225,
226, 227, 228, 229, 233, 238, 241, 269, 271, 272, 273, 274, 276, 277, 302, 312
determinismo 175
veja livre-arbítrio, compatibilidade com o determinismo
Descartes, René 90n6, 107, 150, 169, 243
veja também onipotência, concepção cartesiana da

Ekstrom, Laura Waddell 175n1


eternidade (atributo divino) 94

Flew, Antony 161n8


Flint, Thomas 181n2,3, 183

Geach, Peter 88, 89, 166n9, 278, 279n23


gênero
veja sexo e gênero
Gifford, Adam (Lorde Gifford) 45, 46-48
Gillingham, John 299n8
Green, Christopher 165n9
Grünbaum, Adolf 117

323
O problema do mal | Peter van Inwagen

Hanson, Norwood Russell 294n6


Hasker, William 183n5
Hobbes, Thomas 175
Howard-Snyder, Daniel 193n10, 284n2
Howard-Snyder, Frances 193n10
Hudson, Hud 165n9
Hughes, Christopher 106n11
Hume, David 71, 104, 175, 294n5, 297n7
Huxley, Aldous 177
Huxley, Thomas Henry 132n3

impossibilidade
veja possibilidade e impossibilidade
imutabilidade 95

Jaki, Stanley L. 46n2

Kalmár, Lásló 115


Kane, Robert 175n1

324
Índice de assuntos

Kant, Immanuel 46

Leibniz, G. W. F. 54, 62n10, 71,74, 146-151, 155, 170


leis da natureza 175, 244n2, 249-253
Leslie, John 308
Lewis, C. S. 165n9, 229, 239n5, 276, 277
Livingstone, David 268n20
livre-arbítrio (livre-escolha) 140, 166, 167, 176, 178, 184
compatibilidade com o determinismo 136, 176, 184, 185n6
compatibilidade com a presciência divina 94, 187
veja defesa do livre-arbítrio, conhecimento intermediário
Lowell, Percival 147

Mackie, J. L. 66, 67, 161n8, 70, 73


maior ser possível, Deus como 85-100, 106n11
mal
“atual” 189-190
argumento do 45-46
formas do 57
indiciário 57, 161, 162
local 58, 212, 238, 262
lógico 57
global 57

325
O problema do mal | Peter van Inwagen

como ilusão 145


significado da palavra 50, 64
moral vs. natural 60
problema do 50-75
formas do 50-57
“radical” 65-70, 73n18, 74n19
Mattson, Wallace 146
McCloskey, H. J., 161n8
Melden, A. I. 166
Mill, J. S. 142, 144, 149, 150, 151, 175, 225n3
Molina, Luís de 182
veja também molinismo
molinismo 182-183
Moser, Paul K. 284n2
mundos possíveis 87, 99, 100, 101, 103, 106n11, 193, 242n1, 250, 291

necessidade (atributo divino) 99-100


Neiman, Susan 70-74
Nozick, Robert 111

ocultação de Deus (Deus absconditus) 96, 290n4


onipotência 85-91
concepção cartesiana da 91, 107, 169, 187

326
Índice de assuntos

onipresença 95-98, 108, 289, 297


onisciência 91-92, 108, 154, 184-188, 283
ônus da prova 126n2, 127

Paulo 65, 283, 297, 312


perfeição moral 98, 108, 152-154, 283, 284, 289
pessoa, conceito de 81-84
Peter of Cornwall 299
Peterson, Michael 50, 165
petição de princípio 125-126
Pike, Nelson 161
Plantinga, Alvin 47, 49n3, 68n14, 114, 158, 161, 165n9, 181, 182,
183, 184
Pope, Alexander 62n10, 146-150, 155, 170
possibilidade e impossibilidade 85-86, 99-100
“lógica” 85-86
metafísica 85-86
veja também mundos possíveis
presciência divina
veja livre-arbítrio, compatibilidade com o determinismo
veja também onisciência
probabilidade 162, 246, 247n7, 248n8

327
O problema do mal | Peter van Inwagen

Ramachandran, Vilayanur S. 268n20


Rees, Martin 250n10
Rowe, William L. 204, 213, 215, 217, 219n2, 220, 224, 264
Russell, Bertrand 99, 301, 302n9, 310

Salmon, Wesley 117


Singer, Peter 269
Stump, Eleonore 61n9
Surin, Kenneth 144, 150n5
Swinburne, Richard 80, 158, 166n9, 187n8

teodiceias 54-56
teologia 50
trinitária 83, 193n10
veja também teologia natural
teologia natural 45-50, 142, 239
Tiago 303
tomismo (vs. molinismo) 182-183
Turner, Donald. A. 165n9

328
Índice de assuntos

unicidade (atributo divino) 100-101

vagueza 230, 232, 262


van Inwagen, Peter 63n11, 86n4, 100n10, 136n4, 183n5, 196n11,
203n12, 242n1, 244n2, 250n9, 263n17, 284n1
Vidal, Gore 65
Voltaire, François-Marie Arouet de 151

Watson, Gary 175n1


Whitehead, A. N. 103
Williamson, Timothy 231

Yancey, Philip 254n12

Zenão de Eleia 114, 117

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