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EDITORA
Impresso no Brasil
Para Lisette
SUMÁRIO
Prefácio à edição brasileira.........................................................9
Apresentação..............................................................................37
Referências............................................................................313
Índice de assuntos....................................................................321
P REFÁCIO À EDIÇÃO
BRASI LEI RA
Sérgio Miranda1
1
Professor associado da Universidade Federal de Ouro Preto.
O problema do mal | Peter van Inwagen
2
O termo “defesa do livre-arbítrio” foi introduzido pelo filósofo norte-americano Alvin Plan-
tinga para diferenciar a sua resposta ao problema do mal das teodiceias tradicionais como
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O problema do mal | Peter van Inwagen
Vagueza
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proceder em alguns casos; com efeito, você pode ter total segurança
sobre os grupos aos quais pertencem o ator Patrick Stewart e o cantor
Steven Tyler, mas ainda ter sérias dúvidas sobre o grupo ao qual pertence
o filósofo pós-moderno Peter Sloterdijk, que não é obviamente careca
e nem obviamente cabeludo.
No entanto, parece claro que as expressões vagas podem ter um
sentido unívoco; a pergunta “Peter é careca?” não envolve ambigui-
dade, e se houver alguma dificuldade nesse ponto, ela tem outra fonte.
Além disso, se os problemas da vagueza e os problemas da ambiguidade
fossem os mesmos, eles teriam o mesmo tipo de solução. Os problemas
com as expressões ambíguas podem geralmente ser contornados com
a introdução de informações adicionais, mas isso não acontece com os
problemas colocadas pelo uso de expressões vagas. Se o ouvinte adquire
a informação de que Moe precisava pagar algumas contas e retirar
dinheiro no banco ou o falante aponta em direção ao parque quando
diz “Moe caminhou até o banco”, ele não precisa ficar indeciso quanto
ao paradeiro de Moe. O mesmo não acontece com a vagueza: se ficamos
indecisos se Peter é careca ou não, nenhuma informação adicional (sobre
o número de fios de cabelos na cabeça de Peter, por exemplo) poderá
resolver o problema que a vagueza de “careca” coloca.
Aparentemente, a introdução de um contexto específico ou a colo-
cação de um parâmetro pode ajudar-nos a resolver os problemas de
vagueza. Mas essa é só uma aparência. Considere “... é alto”, que também
é um predicado vago. Se colocarmos todos os atletas brasileiros que par-
ticiparam das Olimpíadas de 2016 enfileirados de acordo com a altura,
teremos, em uma ponta, a ginasta Flávia Saraiva, com apenas 1,33m, na
outra, Nenê, pivô da seleção de basquete, com 2,13m. Ninguém duvida
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que Nenê seja alto ou que Flávia Saraiva não seja alta. Mas o que dizer
do Serginho, da seleção de vôlei, que tem 1,84m? Ele pode ser consi-
derado um atleta alto? Eu não saberia responder. Note que o problema
não é resolvido com a especificação de um contexto ou a introdução
de um parâmetro como “alto para um jogador da seleção brasileira de
vôlei”. Nesse caso, diríamos que Serginho não é alto, porém teríamos de
enfrentar o problema de determinar se Murilo, jogador da seleção bra-
sileira de vôlei com 1,90m de altura, pode ser considerados alto ou não.
A vagueza e os problemas que ela coloca não podem ser identifi-
cados com problemas de generalidade, ambiguidade ou dependência
de um contexto ou parâmetro; mas note que há outras característi-
cas definidoras da noção de vagueza que podem ser identificadas nos
exemplos que oferecemos e são elas que conduzirão aos problemas que
interessam aos filósofos mais de perto.
Em primeiro lugar, os conceitos e predicados vagos têm casos fron-
teiriços, ou seja, há um conjunto de casos em relação aos quais é indeter-
minado se o conceito se aplica ou não a esses casos. Esse seria o caso de
Peter Sloterdijk, em que ficamos em dúvida quanto a sua classificação
como careca ou não careca, mesmo reconhecendo os casos claros de
careca e não careca (Patrick Stewart e Steven Tyler); o mesmo pode-
mos dizer a respeito de Serginho e de Murilo (depois da introdução do
parâmetro), que ficamos em dúvida quanto a classificá-los como atletas
altos ou não altos, mesmo reconhecendo os casos claros de alto e não
alto (Nenê e Flávia Saraiva).
Os conceitos e predicados vagos também não colocam limites preci-
sos, ou seja, não podemos dizer exatamente onde traçar um limite entre
os casos aos quais esses conceitos se aplicam e aqueles casos aos quais
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Sorites
¬Fa1
¬Fa1 → ¬ Fa2
¬Fa2 → ¬ Fa3
...
¬Fan-1 → ¬ Fan
______________________
∴ ¬Fan
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Portanto:
5) Não há um criador onipotente e moralmente perfeito.
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vezes, faz uma escolha arbitrária, traçando uma linha entre os males que
serão permitidos e aqueles que serão evitados (ou melhor, traçando uma
linha entre os males que podem ocorrer e aqueles que serão evitados,
deixando ao acaso a seleção dos males que efetivamente ocorrerão),
porém ele não poderia fazer diferente.
Epistemologia modal
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Referências
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AP RESEN TAÇÃO
Peter van Inwagen
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Apresentação
Conferência 1
O problema do mal e o argumento do mal
Conferência 2
A ideia de Deus
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Conferência 3
O fracasso filosófico
Conferência 4
O argumento global do mal
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Apresentação
Conferência 5
O argumento global do mal (continuação)
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Conferência 6
O argumento local do mal
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Apresentação
Conferência 7
Os sofrimentos dos animais irracionais
Conferência 8
A ocultação de Deus
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O problema do mal | Peter van Inwagen
pode haver apenas um sentido em afirmar que Deus está “oculto”: Deus
não apresenta aos seres humanos (ou apresenta só a uns poucos deles)
evidência indubitável da sua existência na forma de “sinais e milagres”.
O fato de Deus não apresentar a todos os seres humanos evidência
suficiente sugere um argumento contra a existência de Deus que tem
a mesma forma do argumento global do mal: “Se houvesse um Deus,
ele apresentaria a todos os seres humanos evidência indubitável da sua
existência na forma de sinais e milagres. Mas não há tal evidência. Logo,
Deus não existe”. Apresento uma resposta a esse argumento paralela
à minha resposta ao argumento global do mal nas conferências 4 e 5.
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CONFERÊNCIA 1
O problema do mal e o argumento do mal
Além disso...
1
Veja Jaki (1987, p. 66-76). A passagem citada está na p. 72.
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2
Jaki (1986, p. 74). Devo dizer que várias obiter dicta no testamento de Lorde Gifford sugerem
que não seria a sua intenção que o conteúdo das conferências que ele financiaria devesse ser
entendido de modo tão restrito como essas duas citações, tomadas isoladamente, implicam.
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O problema do mal e o argumento do mal
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O problema do mal e o argumento do mal
3
De acordo com Alvin Plantinga, que não apresenta uma citação. Veja Plantinga (1974, p. 58).
A regra é “possivelmente, tudo é F; portanto, tudo é possivelmente F”. O contraexemplo é
este: entenda “é F” como “é Deus”; suponha que Deus jamais tenha criado qualquer coisa;
então “tudo é Deus” é uma proposição verdadeira; mas, embora a nossa suposição seja falsa,
ela é possivelmente verdadeira; “possivelmente, tudo é Deus” é, portanto, verdadeira (verdadeira
de fato, verdadeira no mundo atual); mas “tudo é possivelmente Deus” é falsa (no mundo
atual) porque há (no mundo atual) criaturas e nenhuma delas é possivelmente Deus.
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A primeira antologia foi editada por Marilyn e Robert Adams, e a segunda por Michael L.
Peterson. Concedo que vários textos na parte I da coletânea de Peterson não tratam especi-
ficamente do argumento do mal.
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O problema do mal e o argumento do mal
do mal?”. Um filósofo poderia até oferecer algo nessa direção como uma
definição de “o problema do mal”. Porém a sua definição seria muito
limitada para dar conta do modo como a maioria das pessoas usa essa
expressão. Suspeito que essa definição filosófica de “o problema do mal”
seja muito restrita simplesmente porque ela é uma definição, pois uma
definição confere um sentido definido à expressão definida e, do meu
ponto de vista, a expressão “o problema do mal” não tem um sentido
definido. Desse modo, portanto, qualquer definição de “o problema do
mal” irá deturpar o seu significado.5
Penso que a razão seja esta: há realmente muitos problemas dife-
rentes, problemas intimamente relacionados uns aos outros, mas que
mesmo assim são significativamente diferentes entre si, que têm sido
agrupados sob a rubrica “o problema do mal”. A expressão é usada para
se referir coletivamente a essa família de problemas (podemos dizer que
esses problemas formam uma família porque a associação entre eles não
é casual: esses problemas são, como disse, intimamente relacionados uns
aos outros). Qualquer tentativa de dar um sentido preciso à expressão
“o problema do mal”, qualquer tentativa de identificá-la com algum
problema filosófico ou teológico “único e bem definido”, ou com um
problema de qualquer natureza único e bem definido, entra em conflito
com esse fato.
5
Eu não sei bem as consequências desse fato, mas há outras três expressões envolvendo
“o problema de” que supostamente são nomes padrões de problemas filosóficos famosos:
“o problema dos universais”, “o problema do livre-arbítrio”, e “o problema da relação men-
te-corpo”, que, como “o problema do mal”, não têm um significado definido: nenhum deles
é o nome de um problema filosófico único e bem definido.
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“Primariamente” porque o que chamo de “deparar-se com o mal” é usualmente, em quase
todos os casos, estar diante de um mal particular; mas se imaginamos uma situação, e situa-
ções como essa não são desconhecidas, em que os males do mundo subitamente tornam-se
“reais” para o teísta – uma situação em que o teísta não aprende nenhum fato novo sobre os
males do mundo, mas os fatos que ele sempre conhecera adquirem uma nova significação
horrível para ele –, esse também seria um caso do que chamo de “deparar-se com o mal”.
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Eu distinguiria o caso mencionado na nota anterior, o caso do teísta para quem os males do
mundo em certo ponto adquirem uma nova significação horrível, do caso do teísta que em
certo ponto passa a acreditar que a existência do mal coloca um desafio intelectual para suas
crenças.
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De fato, um apologista poderia privadamente acreditar que sabe a verdade envolvida na situa-
ção de um Deus onipotente e amoroso permitir que o mal exista, e ainda assim considerar essa
verdade inapropriada para propósitos apologéticos. Esse apologista seria como um advogado
de defesa que pensasse que a verdade envolvida na evidência que parece demonstrar a culpa
do seu cliente era tão complexa e intrincada que poderia ser melhor para o seu cliente se ele
evitasse mencioná-la e contasse em vez dela uma história simples e plausível que, embora
fosse realmente falsa, a acusação, no entanto, fosse incapaz de contraditar.
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O problema do mal | Peter van Inwagen
de Deus. Porém essa não é uma distinção muito útil – quero dizer, a
distinção entre as versões lógica e indiciária do argumento do mal – e
não me preocuparei com ela. Para mim, mais importante é a distinção
entre o que chamarei de “argumento global do mal” e os vários “argu-
mentos locais do mal”. Uma premissa do argumento global do mal é
que o mundo contém o mal, ou, talvez, que o mundo contém uma
enorme quantidade do mal verdadeiramente horrível. A outra premissa
é (ou as outras premissas do argumento conjuntamente acarretam) que
um Deus benevolente e todo-poderoso não permitiria a existência do
mal – ou de uma enorme quantidade do mal verdadeiramente horrível.
Os argumentos locais do mal são argumentos que apelam para males
particulares – o Holocausto, por exemplo, ou a morte de um cervo, não
observada por qualquer ser humano, em um incêndio florestal – e pros-
segue com a afirmação de que um Deus benevolente e onipotente não
teria permitido que esse mal particular ocorresse. Em minha opinião, os
argumentos locais não são apenas apresentações do argumento global do
mal que usam um determinado expediente retórico (apresentando um
caso particular para estabelecer um ponto geral); eles são tão diferentes
do argumento global que, mesmo se uma pessoa tiver uma resposta
bem-sucedida ao argumento global, ela ainda não teria necessaria-
mente – ela não teria por isso – uma resposta bem-sucedida a qualquer
argumento local do mal. Portanto, o problema de como responder aos
argumentos locais do mal é potencialmente distinto do problema de
como responder ao argumento global do mal. E esse é o caso (afirmo)
mesmo se realmente houver algo que se pode chamar de “o problema de
como responder aos argumentos locais do mal”. Não é imediatamente
evidente que há esse problema, pois mesmo se Deus existir e, para cada
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O problema do mal e o argumento do mal
mal particular, Deus tiver uma boa razão para permitir esse mal, não se
segue que haveria uma fórmula geral que poderia gerar, para cada mal
particular, a razão de Deus para permiti-lo quando as características
essenciais desse mal fossem conectadas à fórmula. Mas suponha que essa
fórmula exista. O que quero dizer é que, mesmo se essa fórmula existir,
não se pode esperar que uma explicação, uma explicação que seja correta,
do fato de Deus permitir a existência de uma enorme quantidade do mal
verdadeiramente horrível gere o enunciado dessa fórmula – ou alguma
conclusão a respeito de qualquer mal particular. Entendo que alguém
poderia saber ou pensar que sabe por que Deus permitiu a existência de
grandes quantidades de mal no mundo que ele criou e não fazer ideia
da razão de Deus para permitir o Holocausto – ou qualquer outro mal
particular. A meu ver, a seguinte posição é logicamente consistente: o
fato de haver uma enorme quantidade do mal verdadeiramente horrível
não mostra que não há Deus, mas o Holocausto mostra que não há
Deus, e teria sido suficiente para mostrar que não há Deus mesmo se
não houvesse outros males. O meu ponto aqui é lógico e não depende da
enormidade talvez única do Holocausto. Eu faria a mesma observação
em relação a um cervo que sofre uma morte horrível e prolongada em
um incêndio florestal sem que qualquer ser humano chegue a ter ciência
disso: mesmo se Deus tiver uma razão perfeitamente boa para permitir a
existência de uma enorme quantidade de mal verdadeiramente horrível,
não se segue que ele tem ou poderia ter uma boa razão para permitir
que esse cervo em particular sofra do modo como sofreu. Nestas con-
ferências, portanto, considerarei o argumento global do mal, por um
lado, e os muitos e variados argumento locais do mal, por outro, como
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9
Para uma abordagem muito diferente do problema do mal, veja Horrendous evils and the
goodness of God, de Marilyn Adams. Nesse livro, Adams discute o problema puramente inte-
lectual considerado nestas conferências e muitos outros problemas conectados à confiança
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em Deus e os piores males na sua criação. Acho que o livro dela não é persuasivo (em relação
a sua tendência geral e às suas principais teses; penso que Adams está certa sobre muitos
outros pontos relativamente menores, mas não sem importância), mas ele é infinitamente
fascinante.Para outra discussão importante – e também muito diferente – do problema do
mal, veja as Conferências Stob de Eleonore Stump intituladas Faith and the problem of evil
[veja também de Eleonore Stump o mais recente Wandering in darkness: narrative and the
problem of suffering, Oxford: Clarendon Press, 2010 (N.T.)]
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O problema do mal | Peter van Inwagen
que Deus tem de ter tido uma boa razão nesses casos. E não vê que
é irracional ter uma resposta diferente quando é o seu próprio filho
que morre de leucemia?”. Vejo claramente que essa seria uma coisa
muito cruel e estúpida de se dizer, e mesmo eu não diria isso realmente.
Todavia, eu teria de reprimir esse impulso, e essa é a razão por que sou
a pessoa errada para responder à questão daquela mãe. E se o que eu
estivesse inclinado a dizer fosse uma coisa estúpida e cruel de se dizer,
seria também estúpido e cruel responder à questão dela com algum tipo
de “história assim mesmo” sobre o porquê de um Deus amoroso e todo-
-poderoso permitir que tais coisas aconteçam, mesmo se for concedido
que, em outro contexto, essa história seja uma refutação brilhante do
argumento do mal.10 Apesar disso, penso que há uma conexão impor-
tante entre as discussões teóricas do argumento do mal e o lamento
e o desespero real que acompanham a vida neste mundo. Talvez um
exemplo mostre um pouco dessa conexão.
Um componente da “história assim mesmo” que será o núcleo da
minha resposta ao argumento do mal é o seguinte: muitas coisas hor-
ríveis que acontecem no curso da vida humana não têm explicação; elas
apenas acontecem e, fora as considerações sobre a causa eficiente, não
10
O mesmo ponto se aplica àqueles que pensam que eles estão de posse de uma teodiceia:
seria uma coisa estúpida e cruel para, digamos, Leibniz dizer à mãe que a morte da criança
seria um componente do melhor de todos os mundos possíveis, ou para Pope dizer a ela
que tudo o que é, é bom. E essas respostas não seriam estúpidas e cruéis porque se baseiam
em uma teodiceia falsa: mesmo se – per impossibile, eu diria – a morte da criança fosse um
componente do melhor de todos os mundos possíveis, seria uma coisa estúpida e cruel res-
ponder à angústia da mãe contando a ela essa verdade. Que algo seja verdadeiro e, para usar
um termo técnico da filosofia da linguagem, conversacionalmente relevante, não significa
que tenha de ser dito.
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Veja van Inwagen (1988).
12
Em algum ponto da sua carta, Bilynskyj diz que os cristãos aos quais coisas terríveis aconte-
cem frequentemente “se esgotam” tentando encontrar significado nelas. Aprender que uma
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O problema do mal | Peter van Inwagen
coisa terrível não tem significado pode ser uma libertação para os cristãos – obviamente,
não uma libertação do fardo da desgraça, mas uma libertação de um falso fardo que uma
perspectiva errada sobre as relações de Deus com os males do mundo acrescentou ao fardo
das suas desgraças.
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O problema do mal e o argumento do mal
da palavra naquelas expressões. Mas por que usar essa palavra? A palavra
“mal” não sugere uma ideia mais restrita? (Considere expressões fami-
liares como “o império do mal” e “o eixo do mal”). Essa palavra não
traz à mente Sauron e seus vassalos ou pelo menos Heinrich Himmler
e Pol Pot? Gore Vidal foi tão longe a ponto de sugerir que a ideia de
que há o mal é uma invenção cristã, que o mal, assim como o pecado, é
um bicho-papão imaginário que a igreja impôs à humanidade crédula.
Seja qual for a plausibilidade que essa tese possa ter em um mundo
que acaba de passar pelo século XX, seguramente não foi intenção de
Gore Vidal sugerir que a ideia de que coisas más acontecem foi uma
invenção de Paulo ou dos patriarcas da Igreja. É evidente que um dos
significados de “mal” é “a extrema dimensão da depravação moral”, espe-
cialmente quando há o gozo na crueldade sistemática e a indiferença
ao sofrimento decorrente das próprias ações. Nesse sentido, a palavra
“mal” é reservada para coisas como os campos de concentração, a decisão
governamental de desenvolver cepas do vírus Ebola para fins militares
ou a produção de pornografia infantil. A palavra deve ser entendida
nesse sentido nas famosas frases de Hannah Arendt “o mal radical” e
“a banalidade do mal”.
Que “mal” tenha esse significado é óbvio, mas qualquer dicionário
de citações dá outro significado dessa palavra: “um mal necessário”,
“o menor de dois males”, “o mal que os homens fazem”, “basta a cada dia
o seu próprio mal” [Mt 6:34]. Quer dizer, o significado que “mal” tem
na expressão “o problema do mal” é um dos seus significados comuns.
Nesse sentido, “mal” é “coisa má”, e o substantivo denota o conjunto
do que é qualificado como mau. A expressão “o problema do mal” não
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Mackie (1955). A passagem citada está na p. 25 na coletânea de Adams e Adams.
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Eis a defesa de uma tese diferente (cito com a permissão de Alvin Plantinga um parágrafo
de uma carta dele):
Estou inclinado a acreditar que há um duplo problema do mal para os ateístas. Em primeiro
lugar, acredito que não há o certo e o errado e, por isso, não há o mal, se o teísmo for falso.
(Sei muito bem que o teísmo, se verdadeiro, é necessário). Em segundo lugar, mesmo se isso
não fosse verdade (mesmo se houvesse o certo e o errado, dado o ateísmo), o naturalismo
não pode acomodar o mal genuinamente horrível, como nos casos similares à “escolha de
Sofia”. O problema não é só que não podemos explicar como as pessoas chegam a esse nível
de depravação em termos de ignorância, luta pela sobrevivência, o cérebro reptiliano, etc.
(embora seja verdade que não podemos oferecer uma explicação nesses termos); mas sim
que não poderia haver o mal nesse nível se o naturalismo fosse verdadeiro. (Se o naturalismo
fosse verdadeiro, as pessoas poderiam encarar essas coisas como exibindo o nível de mal que
elas atualmente exibem; mas elas estariam erradas). O mal pode atingir esse grau apavorante
somente se algo como a história cristã for verdadeira: há uma pessoa divina que mostrou um
amor impensável na Cruz (encarnação e redenção) a fim de entregar um formidável benefício
(um benefício que supera toda descrição e imaginação) a criaturas que voltaram as costas
para ela; mas alguns de nós, como Satã, assumem como sendo o nosso fim explícito destruir
e desfigurar o que Deus ama, e promover e devotar a nós mesmos ao que Deus odeia (como
o Satã do Paraíso Perdido [de Milton]). Há um nível de mal que somente esse tipo de ação
e de caráter podem atingir; e esse nível não é possível em um universo naturalista.
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haver pessoas que dizem não haver uma distinção moral importante
a ser feita entre o Holocausto e, por exemplo, a destruição romana
de Cartago ao fim das Guerras Púnicas. E pode haver pessoas que
dizem que, embora exista de fato uma diferença moral qualitativa entre
os dois eventos, os ateístas, mesmo assim, podem facilmente explicar
tanto a ocorrência do primeiro quanto a ocorrência do segundo evento.
Eu simplesmente examino, hipoteticamente, as consequências de supor,
em primeiro lugar, que a distinção pode ser feita e que ela é impor-
tante e, em segundo, que uma explicação da existência do mal radical
coloca para o ateísta uma dificuldade prima facie. Se essas suposições
são corretas, um determinado problema a respeito do mal – o problema
de explicar a existência do mal radical – se coloca tanto para teístas
quanto para ateístas. O que quero dizer é o seguinte: se há realmente
um “problema do mal radical”, ele tem pouco a ver com o problema
do mal. Talvez tenha algo a ver, mas não muito. 15 Apesar disso, há
uma conexão terminológica óbvia entre os dois problemas. Um dos
significados da palavra “mal” é “mal radical” – e esse significado não
é um significado qualquer; este tem sido o significado primário da
palavra por vários séculos. Se “o problema do mal” não fosse o nome
Penso que Anthony Burgess disse algo similar – do ponto de vista de um católico não pra-
ticante – quando escreveu: “Não há uma explicação A. J. P. Taylorista para o que aconteceu
na Europa Oriental durante a guerra” (citado por Martin Amis em Koba, o terrível, p. 196).
15
Uma analogia poderia ser a relação entre, por um lado, os problemas filosóficos sobre o que
os metafísicos chamam de “liberdade” quando estão discutindo as bases ontológicas da res-
ponsabilidade moral e, por outro, os problemas filosóficos sobre o que os filósofos políticos
chamam de “liberdade” quando estão discutindo os limites que um estado deveria colocar
nas ações dos seus cidadãos. O que essas duas classes de problemas têm em comum? Talvez
elas tenham algo em comum, porém não muita coisa.
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Eis um exemplo simples de como uma pessoa que adota esse método poderia relatar a
descoberta de que os problemas considerados por dois filósofos seriam os mesmos. “Jack
do século XVIII pensa que a existência é compreensível somente se há um Deus e pensa
que o terremoto de Lisboa é prima facie incompatível com a existência de Deus. Portanto,
ele acredita que o mal (na forma do terremoto de Lisboa) é uma ameaça prima facie à
compreensibilidade da existência. Jill do século XXI pensa que a existência é compreensível
somente se o comportamento humano é inteligível e pensa que o Holocausto é prima facie
incompatível com a inteligibilidade do comportamento humano. Portanto, ela acredita que o
mal (na forma do Holocausto) é uma ameaça prima facie à compreensibilidade da existência.
Assim, Jack e Jill estão ocupados com o mesmo problema filosófico – que claramente têm
formas de algum modo diferentes”.
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valeta e o que o ganso canadense faz quando migra são a mesma coisa.
Em cada caso, o pé de um organismo afasta-se da terra, move-se no
ar durante um tempo e, finalmente, o seu pé mais uma vez entra em
contato com a terra.”).17
Eu sou só um filósofo analítico ingênuo. (Espero que não seja tão
ingênuo como os teólogos de Mackie, mas ingênuo ainda assim). Como
vejo as coisas, o problema do mal é o que sempre foi, um problema
sobre Deus e o mal. Não há um problema do mal que seja maior e
mais abrangente e se manifesta como um problema teológico em um
determinado período histórico e como um problema que pertence ao
pensamento pós-religioso em outro período.18 Realmente não sei como
argumentar a favor dessa conclusão, porque não sei como poderia entrar
em uma discussão racional com alguém que consideraria inclusive se
negar a isso. É claro para mim que qualquer pessoa que diga as coisas
que Neiman diz tem um pensamento tão diferente do meu que, se essa
pessoa e eu tentássemos, cada um com a maior das boas vontades, iniciar
uma conversa sobre haver ou não um abrangente problema do mal, o
único resultado seria duas pessoas falando de coisas diferentes. O que
chamo de “o problema do mal” envolve essencialmente Deus, e qualquer
17
Cito de memória. Não lembro mais onde li isso. Peço desculpas ao Dr. Berlinski se citei de
modo incorreto o que ele disse.
18
Não tenho nada a dizer sobre o valor filosófico de textos de Nietzsche e dos pensadores
contemporâneos que Neiman lê como contribuições à longa discussão do problema abran-
gente do mal. Não tenho nada a dizer sobre o valor interpretativo de tentar ler esses textos
como tentativas de enfrentar a ameaça da compreensibilidade da existência colocada pelo
mal radical. A minha única tese é que simplesmente não é verdade que os autores desses
textos (por um lado) e os autores da Teodiceia e das partes X e XI dos Diálogos sobre a Religião
Natural (por outro) estariam engajados em um projeto comum.
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Eu posso tentar dizer algo para apoiar essa ideia. Imagine um mundo em que a história do
pensamento europeu seja parecida com a história do pensamento europeu do nosso mundo,
porém com estas diferenças menores: nesse mundo, o problema filosófico tradicional da
coexistência de Deus e das coisas más é conhecido como “o problema das coisas más”;
nesse mundo, a expressão “o problema do mal” foi inventada no século XXI por pensadores
pós-religiosos como um nome para seja qual o for o problema que eles pensam ser colocado
pelo mal radical. Qual seria a plausibilidade da tese de Neiman nesse mundo? (Como é
que ele poderia ser sequer colocado?). Ainda assim, a história intelectual europeia nesse
mundo não diferiria em nenhum aspecto importante da história intelectual europeia no
mundo atual: os pensadores europeus no mundo atual e os pensadores europeus no mundo
imaginário usaram uma palavra de forma diferente.
20
Um leitor da Oxford University Press fez uma sugestão interessante. Ele sugere que há uma
família de problemas inter-relacionados na ontologia dos valores que poderia ser chamado
de “o problema metafísico do bem e do mal”. (Os filósofos que discutem esse problema ten-
tariam responder a questões como “O que são o bem e o mal?” e “Poderia haver um mundo
que contivesse o bem, mas não o mal? – isso ao menos seria metafisicamente possível?”).
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O leitor prossegue sugerindo que o problema metafísico do bem e do mal se coloca tanto
para teístas como para ateístas, embora, sem dúvida, os teístas e ateístas verão o problema
de forma muito diferente.Isso pode estar certo. E se estiver certo, pode ser que o problema
tradicional do mal e o problema metafísico do bem e do mal se sobreponham de maneira
considerável. (Por exemplo, a tentativa de um ateísta de formular o argumento do mal ou
as tentativas do teísta de responder ao argumento do mal incorporam teses que seriam pro-
priamente avaliadas no campo do problema metafísico do bem e do mal). De todo modo,
o problema do mal não é um caso especial do problema metafísico do bem e do mal: o
problema do mal não é a “forma” que o problema metafísico do bem e do mal aparece para
o teísta. Além disso, seria errado dizer que, porque o ateísta precisa encontrar uma solução
para o problema metafísico do bem e do mal – suponha que seja assim para a sequência do
argumento –, o ateísta, assim como o teísta, precisa encontrar uma solução para o problema
do mal. Permanece verdadeiro, permanece uma verdade simples e óbvia, que a existência do
mal (a existência de coisas más) coloca pelo menos uma ameaça prima facie ao teísmo e não
coloca nem mesmo uma ameaça prima facie ao ateísmo.
75
CONFERÊNCIA 2
A ideia de Deus
Disse que nesta conferência eu iria “discutir esse Deus cuja não
existência é supostamente provada pelo argumento do mal”. O meu
propósito é dizer como um indivíduo teria de se parecer para ser Deus,
para contar como Deus, para ter os atributos, as qualidades, as proprie-
dades, as características ou os traços que são os componentes do conceito
de Deus. Mas isso pode ser feito de modo imparcial? As pessoas que
dizem acreditar em Deus não discordam sobre os seus atributos? Quem,
afinal, dirá quais são as características que Deus supostamente possui?
Responderei a essas questões com uma proposta que não me parece
arbitrária. A proposta é esta: a lista das propriedades que deveriam ser
incluídas no conceito de Deus são exatamente as propriedades que em
comum são atribuídas a Deus por judeus, cristãos e muçulmanos – as
propriedades que os seguidores dessas religiões concordariam em dizer
que são propriedades que pertencem a Deus.1
1
Por que considerar só o Oriente Médio ou só as religiões abraâmicas? Por que não as religiões
orientais? A resposta curta é esta: por causa das conexões históricas íntimas entre as três reli-
giões abraâmicas, é plausível supor que o significado que os seus adeptos conferem à palavra
“Deus” – quando falam português – seja o mesmo. Agora suponha um adepto de alguma
religião oriental que dissesse, em português, “Os adeptos da minha religião, assim como eu
mesmo, acreditam em Deus, mas não pensamos, assim como pensam os judeus, cristãos e
muçulmanos, que Deus é uma pessoa; encaramos Deus, em vez disso, como um primeiro
princípio impessoal”. Penso que seria plausível sustentar que a pessoa que diz isso traduz
alguma palavra do hindi ou do páli ou do sânscrito por “Deus” quando deveria traduzi-la
O problema do mal | Peter van Inwagen
de outro modo. (E por que não dizer isso, se a história da palavra que ele traduz por “Deus”
não tem conexão com a história dessa palavra ou com a história de theos ou elohim?).
78
A ideia de Deus
2
Há não muito tempo atrás, qualquer pessoa que dissesse ser um erro encarar x como F
estaria dizendo, e todos entenderiam que ela estaria dizendo, que x não é F. Há não muito
tempo atrás, se você usasse a expressão “o objeto externo à nossa frente”, as pessoas olha-
riam estarrecidas e perguntariam o que você quer dizer com isso. Há não muito tempo
atrás, qualquer pessoa que dissesse que os itens em certa lista de propriedades não seriam
características de um ser particular teria significado com isso, e todos entenderiam que ela
teria significado com isso, que nada teria as propriedades especificadas na lista. Há não
muito tempo atrás, qualquer pessoa que dissesse que nada tem as propriedades da lista “assei-
dade, santidade, onipotência, onisciência, providência, amor, autorrevelação” se descreveria
orgulhosamente como ateísta.
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O problema do mal | Peter van Inwagen
daria com essa opinião que excluo qualquer referência a eles do meu
critério. Portanto, proponho encontrar as propriedades a serem incluídas
em nossa definição de Deus perguntando quais são as propriedades que
os filósofos e teólogos judeus, cristãos e muçulmanos em 1900 ou antes
teriam concordado em afirmar que são propriedades que pertencem
essencialmente a Deus. (Essa era a minha inclinação inicial. Porém
Richard Swinburne apontou que os teólogos no século XIX também
disseram coisas bem estranhas sobre Deus, e depois de refletir tive de
concordar com ele. Por segurança, talvez devêssemos retroceder até
1800. Suponho que eu teria também de pedir desculpas aos muçulmanos
por incluí-los sem necessidade em meu juízo histórico. Há acusações
sérias que podem ser feitas contra uma parte da teologia muçulmana
do século XX, mas certamente a crítica de propor um significado para a
palavra “Deus” que permite aos ateístas que ocupam cadeiras de teologia
falar como se fossem teístas não é uma delas).
Apresentarei a lista que afirmo poder ser derivada seguindo o
método proposto e discutirei cada item individualmente. Farei então
algumas observações sobre a lista como um todo. Essas observações
responderão a duas questões: a lista é só uma lista casual, um amontoado
de acidentes históricos, ou há um princípio unificador que explica o fato
de que a lista contém os itens particulares que contém e não outros?
Em que medida essa lista (e a explicação que darei de cada um dos seus
membros) seria, por assim dizer, aberta à revisão?
A lista que podemos obter seguindo o método proposto é muito
rica. Em minha opinião, ela contém as seguintes propriedades. Primei-
ramente, Deus é
80
A ideia de Deus
Uma pessoa.
81
O problema do mal | Peter van Inwagen
82
A ideia de Deus
questão “um Deus, três Pessoas” – bem, ela está além do âmbito destas
conferências.3
Antes de deixar o tópico da pessoalidade de Deus, devo dizer algo
sobre o sexo – não o sexo no sentido vulgar da palavra, não o intercurso
sexual, porém o dimorfismo sexual –, o que as pessoas cada vez mais,
para o meu extremo aborrecimento, chamam de “gênero”. Ainda não
dissemos oficialmente, porém, como todos sabem, Deus não ocupa
lugar no espaço e, desse modo, ele não pode ter uma estrutura física; no
entanto, ter um sexo, ser masculino ou feminino, é, entre outras coisas,
ter uma estrutura física. Logo, Deus não tem sexo. É literalmente falso
que Deus é masculino e literalmente falso que Deus é feminino. O que
quero fazer agora é responder a esta questão: o que dizer do pronome
“ele” que venho utilizando? Esse problema não é colocado por alguma
característica da natureza de Deus, mas sim por uma característica da
língua portuguesa, na qual os únicos pronomes pessoais na terceira
pessoa do singular são “ele” e “ela”. Seria bom se o português tivesse um
pronome pessoal na terceira pessoa do singular que fosse neutro quanto
ao sexo e que também fosse aplicável a pessoas. (Muitas linguagens
têm um pronome assim). O português tem pronomes neutros quanto
ao sexo que são aplicados só a pessoas, como, por exemplo, “alguém”,
“ninguém” e “quem”, mas carece de pronomes pessoais na terceira pessoa
do singular que tenham essas características desejáveis. (Alguns dos
3
Sobre o que penso da relação entre a proposição “Deus é uma pessoa” e a proposição “Em
Deus há três pessoas”, veja os meus ensaios “And yet They are not three Gods but one God”,
“Not by confusion of substance but by unity of person”, e “Three persons in one being: on
attempts to show that the doctrine of the trinity is self-contradictory”.
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A ideia de Deus
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O problema do mal | Peter van Inwagen
com esse ponto.4 Suponha que seja concedido que os meus escrúpulos
quanto à possibilidade lógica sejam bem fundados. Não poderíamos
acomodá-lo simplesmente dizendo que a onipotência é o poder de fazer
tudo o que for metafisicamente possível? Parece que sim. No entanto,
teríamos ainda de enfrentar a segunda dificuldade que mencionei, que
não é nada controversa. Ela é a seguinte: a maioria dos teístas afirma que
há atos metafisicamente possíveis que Deus é incapaz de realizar. Dois
exemplos bem conhecidos são mentir e quebrar promessas. Ao contrário
da trissecção do ângulo, mentir e quebrar promessas são metafisicamente
possíveis. (Não sei quanto a você, mas tenho visto mentiras e quebras
de promessas por aí). Mas é dito com frequência que Deus é incapaz
de fazer qualquer uma dessas coisas, pois, embora para uma pessoa
qualquer mentir ou quebrar uma promessa seja metafisicamente pos-
sível, é impossível para Deus mentir ou quebrar suas promessas. Vamos
supor que os filósofos e os teólogos que dizem que é metafisicamente
impossível para Deus mentir e quebrar as suas promessas estão certos.
Segue-se da tese deles que Deus não é onipotente? De acordo com a
definição proposta, sim. Contudo, o modo como o caso foi descrito
sugere imediatamente outra definição, uma definição que encontramos
frequentemente nas obras de teologia filosófica, uma definição proposta
para responder exatamente às dificuldades que estamos considerando:
dizer que Deus é onipotente quer dizer que ele pode fazer qualquer
coisa tal que é metafisicamente possível que ele faça essa coisa.
4
Para saber mais sobre esse tópico, veja van Inwagen (1977, p. 375-395; 1998, p. 67-84; 1995,
p. 11-21).
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A ideia de Deus
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O problema do mal | Peter van Inwagen
muito mais coisas do que ele. E isso demonstra – você entenderá esse
ponto se pensar sobre a questão por um momento – que a defini-
ção de onipotência proposta não nos diz o que um ser onipotente é
capaz de fazer.5 Esse é um ponto importante que se deve ter em mente
na discussão do argumento do mal. Considere a seguinte discussão
imaginária. Um teísta responde ao argumento do mal alegando que,
embora os males do mundo aflijam Deus de maneira profunda, ele foi
incapaz de impedir no começo os males que são uma característica tão
saliente do mundo, sendo agora incapaz de remover qualquer um deles.
“Mas pensei que Deus fosse onipotente”. “Claro que Deus é onipotente.
O caso é que é metafisicamente impossível para ele criar um mundo
que não contenha coisas más, e é metafisicamente impossível para ele
interferir seja como for no funcionamento do mundo depois que ele o
criou. Mas ele é capaz de fazer tudo o que é metafisicamente possível
para ele fazer – portanto, ele é onipotente”.
Seria um projeto muito interessante tentar oferecer uma definição
satisfatória de onipotência. (Em seu ensaio Omnipotence, Peter Geach
defendeu a tese de que esse projeto é fadado ao fracasso, e que os
cristãos deveriam abandonar a tentativa de dar um sentido filosófico
para a noção de um Deus que pode fazer tudo. Os cristãos, conforme
Geach, deveriam, em vez disso, dizer que Deus é todo-poderoso: ou seja,
Deus é, por necessidade, a única fonte de poder de cada ser além dele
mesmo. Seja qual for o mérito dessa sugestão, ressalto que a afirmação
5
Compare com o que diz Aquino na Suma Teológica I, q. 25, art. 3: “Mas dizer que Deus pode
tudo o que é possível à potência divina é um círculo vicioso. Pois seria dizer que Deus é oni-
potente porque pode tudo o que pode”.
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6
Nesse ponto, ajudo um pouco Descartes. A pergunta que ele realmente colocou (carta a
Arnauld, 29 de julho de 1648) foi se Deus “pode fazer uma montanha sem vale”. Porém,
obviamente, se Deus quer fazer uma montanha sem vale, ele precisa apenas colocar a mon-
tanha que ele fez no meio de uma planície. Assumo que as palavras usadas no texto não
descaracterizam o que Descartes tinha em mente. Não entrarei em uma intricada disputa
acadêmica sobre o que Descartes queria dizer ao propor que Deus “cria verdades eternas”.
O meu interesse está na teoria “forte” na onipotência e nas implicações dessa teoria, e não
na questão se Descartes realmente defendeu ou não essa teoria.
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A ideia de Deus
Onisciente.
7
Nesse ponto, sigo o uso filosófico comum e falo de “acreditar” em proposições. Sinto-me
forçado a pedir desculpas por isso, mesmo que seja só a mim mesmo. Não me sinto confor-
tável com esse uso; eu preferia falar de aceitar ou assentir a proposições – ou hipótese, teses,
premissas... (Essa preferência é inteiramente uma questão de costume linguístico. Nenhum
ponto filosófico está envolvido) Os meus escrúpulos – que suprimi no texto, porque esse
modo de falar tem certas vantagens estilísticas – poderia ser acomodado deste modo: um
ser é onipotente se, para toda proposição, ele aceita ou essa proposição ou a negação dela, e
é metafisicamente impossível para ele aceitar uma proposição falsa.
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O problema do mal | Peter van Inwagen
8
Alguns filósofos disseram que se eu acreditar que, e.g., eu mesmo estou com fome, o conteúdo
da minha crença é uma proposição na primeira pessoa que somente eu posso acreditar ou
aceitar (veja a nota anterior). Se isso for verdade, então a segunda definição da onisciência
(e talvez a primeira também; mas isso não é tão claro) enfrenta uma dificuldade óbvia. Não
vou discutir essa dificuldade que encaro como puramente técnica – além disso, em minha
opinião, a dificuldade é só aparente, e pode ser vista como sendo só aparente quando as frases
que exprimem crenças na primeira pessoa do singular são entendidas corretamente.
92
A ideia de Deus
Ou seja, Deus não tem defeitos morais. Segue-se que ele não está
sujeito a nenhum tipo de crítica moral. Se alguém disser algo com a
forma “Deus fez x e foi errado para Deus fazer x”, essa pessoa tem de
estar enganada: ou Deus não fez de fato x, ou não foi errado para Deus
fazer x. (Decerto, visto que Deus é muito diferente dos seres huma-
nos e encontra-se em relações muito diferentes com as coisas criadas
daquelas relações nas quais os seres humanos se encontram, o que seria
um defeito moral em um ser humano ou uma ação má praticada por
um ser humano não é automaticamente um defeito moral em Deus ou
uma ação má praticada por Deus. Por exemplo, suponha que um ser
humano inflija dor em outros seres humanos – sem consultá-los – a fim
de produzir o que em seu julgamento é um grande bem. Muitos de nós
veriam isso como uma ação moralmente má, mesmo se ele realmente
estiver certo sobre as consequências a longo prazo da dor que inflige.
Vamos supor que esse juízo seja correto. O meu ponto é que não se segue
da correção desse juízo que seria errado para Deus infligir dor nos seres
humanos – ou nos anjos ou em bestas – sem o consentimento deles a
fim de produzir um bem maior. De todo modo, esses juízos precisam
ser examinados individualmente com muito cuidado e devemos levar
em consideração tanto as diferenças entre Deus e os seres humanos
quanto as suas similaridades.)
Deus é também
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O problema do mal | Peter van Inwagen
Eterno.
2
Antes que as montanhas fossem geradas, ou a terra e o
mundo criados, tu és Deus desde a eternidade, e o mundo
sem fim [...]
4
Pois milhares de anos são em tua visão como o dia de
ontem, vendo o que é passado como uma vigília à noite.9
9 2
Before the mountains were brought forth, or ever the earth and the world were made, thou art
God from everlasting, and world without end [...]4 For a thousand years in thy sight are but as
yesterday, seeing that is past as a watch in the night.
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Imutável.
Onipresente.
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A ideia de Deus
Pois assim diz o Senhor, que criou os céus, ele é Deus; que
moldou a terra e a fez, ele a fundou; não a criou como um
caos, mas a formou para ser habitada. (Is 45: 18).
Dizer que Deus é o criador de todas as coisas além dele mesmo não
é dizer que ele formou essas coisas a partir de uma matéria pré-existente,
como o artesão cósmico do Timeu [de Platão]. Se há um Deus, então
nunca houve um caos de matéria-prima que existia independentemente
do seu poder e da sua vontade, esperando por uma eternidade de anos
até que ele imprima uma forma nela. Esse não poderia ser o caso, pois,
se há um Deus, nada existe ou poderia existir independentemente da
sua vontade ou independentemente do seu poder criativo. Deus cria as
coisas, incluindo o fundamento, ontologicamente falando. A sua criação
é, como se costuma dizer, ex nihilo. E mesmo ele, em sua onipotência,
não é capaz de engendrar uma coisa e deixá-la sem nenhuma conexão
com ele, pois uma coisa que existe, mesmo por um instante, indepen-
dente do poder criativo de Deus é tão impossível como um vertebrado
gasoso ou um objeto invisível que tem uma sombra. Esse fato – quero
dizer, esse fato conceitual – é algumas vezes enfatizado quando se diz
que Deus não é só o criador de tudo, mas também o mantenedor de tudo;
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Necessário.
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Veja van Inwagen (1977, p. 375-395).
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Mas suponha que alguém mantenha que o maior ser possível não é – ou não seria se exis-
tisse – uma pessoa. (Um neoplatonista, ou mesmo Platão, poderia manter isso, como man-
teria, talvez, Spinoza e os idealistas absolutos britânicos). Penso que aqueles que aceitam a
explicação anselmiana do conceito de Deus como o maior ser possível pressupõem que o
maior ser possível tenha de ser uma pessoa – que obviamente o maior ser possível tenha de
ser uma pessoa. (Eu mesmo diria, sem nenhuma falsa modéstia, que sou maior do que qual-
quer não pessoa possível – simplesmente porque sou uma pessoa). Mas essa pressuposição,
algumas pessoas poderiam dizer, é uma tese metafísica substancial e, portanto, não deveria
ser pressuposta em uma definição. Outras pessoas, eu entre elas, diriam que a pessoalidade
é um componente – não negociável – do conceito de Deus. Os escrúpulos dos dois partidos
poderiam ser acomodados pela seguinte declaração. O conceito de Deus deveria ser enten-
dido deste modo: o conceito de Deus é o conceito de uma pessoa que é o maior ser possível.
(Isso não é o mesmo que dizer que o conceito de Deus é a maior pessoa possível; alguém
poderia manter que há uma maior pessoa possível e que algo não pessoal é maior do que essa
pessoa). A minha tendência é contar como ateísta qualquer um que sustente que o maior
ser possível não é pessoal. Também estaria inclinado a contar a seguinte posição como uma
forma (bastante incomum, certamente) de ateísmo: alguma pessoa (existente) possui – essen-
cialmente – o maior grau de grandeza que é metafisicamente possível e, em outro mundo
possível, outro ser diferente possui esse grau de grandeza. (Portanto, é conceitualmente
possível – o conceito de “ateísta” não exclui essa possibilidade bizarra – haver um ateísta que
acredita que o universo foi criado ex nihilo por um ser onisciente, onipotente e perfeitamente
bom que é o único exemplar dessas características em todos os mundos possíveis em que ele
existe). Em suma: o conceito de Deus é o conceito de uma pessoa cujo grau de grandeza não
pode ser ultrapassado por ou ser equivalente a nenhum outro ser possível. A frase latina de
Anselmo (aliquid quo nihil maius cogitari possit) precisa, pois, ser revisada: Deus é a pessoa
que é aliquid quo nihil amius aut aequaliter magnum cogitari possit. (Agradeço a Christopher
Hughes por me mostrar a necessidade das qualificações contidas nesta nota).
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CONFERÊNCIA 3
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1
KALMÁR, László. An Argument against the Plausibility of Church’s Thesis. In: HEYTING
(Ed.) 1957, p. 72-80. [O assunto é muito técnico e não é importante para a continuação
da leitura deste livro, mas o leitor interessado pode consultar: CARNIELLI; EPSTEIN.
Computabilidde, funções computáveis, lógica e os fundamentos da Matemática. São Paulo: Unesp,
2005 (N.T.)]
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outro modelo de debate. Não vamos pensar que um debate é uma situ-
ação envolvendo duas pessoas com opiniões opostas na qual cada uma
delas tenta convencer a outra a aceitar a sua própria opinião. Vamos
pensar no debate conforme um modelo forense. Nesse modelo, dois
representantes de posições opostas estão engajados em uma troca de
argumentos perante uma audiência, e o propósito de cada um deles não
é convencer o outro, mas, sim, convencer a audiência – uma audiência
formada de indivíduos que (em princípio) não estão comprometidos
com nenhuma das posições, embora encarem a questão “Qual das duas
posições é correta?” como uma questão interessante e importante. Essa
situação será igualmente considerada em sua forma ideal. Mantemos a
idealização dos dois debatedores e a idealização das circunstâncias do
debate concebidas na descrição do primeiro modelo.
A audiência é composta por pessoas que podemos chamar de agnós-
ticas, ou melhor, agnósticas em relação ao tópico do debate. Se o debate
versa sobre o nominalismo e o realismo (vamos continuar a usar esse
famoso debate como exemplo), cada membro da audiência não terá
uma opinião sobre haver ou não universais, e nenhuma predileção, emo-
cional ou de outro tipo qualquer, pelo nominalismo ou pelo realismo.
Em relação à tendência de aceitar uma resposta ou outra, eles verão a
questão sobre a existência dos universais como você vê o problema de
saber se o número dos abetos de Douglas no Canadá é par ou ímpar.
Mas isso não é tudo, pois sem dúvida você não tem nenhum desejo
de ver resolvida de uma vez por todas a questão sobre o número de
abetos. Os meus agnósticos não pensam assim em relação à questão
sobre a existência de universais. Eles gostariam muito de chegar a uma
opinião bem fundada sobre a existência de universais – e, de fato, caso
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2
Os filósofos muitas vezes usam a expressão “o ônus da prova” de um modo ilustrado nesta
sentença: “O ônus da prova é do realista, e não do nominalista”. Essa sentença, até onde
vejo, parece significar, ou é usada para dizer, algo como: “O nominalismo e o realismo são
teses inconsistentes; o realismo é prima facie muito menos plausível do que o nominalismo;
portanto, na ausência de prova (ou pelo menos de um argumento bastante cogente a favor)
do realismo, toda a gente deve preferir o nominalismo ao realismo”. Chamarei esse sentido
(talvez de maneira tendenciosa) de Sentido Inútil e Vulgar de “o ônus da prova”. O Sentido
Próprio e Correto da expressão é ilustrado nesta sentença: “Nas cortes de justiça, o ônus da
prova cabe ao Estado”. Quer dizer, na corte de justiça, o Estado tem o ônus chamado de
“prova” ou “ter de provar coisas” e a defesa não tem esse ônus. Esse é o caso não porque uma
proposição como “o réu é culpado do que foi acusado” é sempre inerentemente menos plausível
do que a sua negação (afinal, esse não é sempre o caso). Esse é o caso devido a uma regra
que tem um fundamento moral e não epistemológico: a corte presume que o acusado seja
inocente até que seja provado culpado – e, em um julgamento envolvendo um júri popular,
a corte instrui aos jurados para presumir o mesmo. Em nosso debate imaginário sobre a
existência de Deus (na parte em que aparece nestas conferências, a parte em que a Ateísta
busca tornar os agnósticos camaradas ateístas apresentando-lhes o argumento do mal), o
ônus chamado de “prova” é da Ateísta – e, como é o caso do advogado de acusação na corte
de justiça, esse é o caso não porque a proposição seja inerentemente menos plausível do que
a sua negação. (Algumas pessoas dirão que é, e outras dirão que não é; seja como for, que a
conclusão do argumento da Ateísta seja menos plausível do que a sua negação, é irrelevante
para determinar quem tem o ônus da prova). Diferentemente das regras que regem os pro-
cedimentos de uma corte de justiça, no entanto, as regras que regem nosso debate não são
fundadas em considerações morais. O ônus da prova, o ônus de ter de provar certas coisas
(ou pelo menos de ter de oferecer argumentos para elas), é da Ateísta e não do Teísta (neste
ponto do debate), porque é ela e não ele quem tem a tarefa de mudar as crenças de alguém.
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universais, ou, pelo menos, tenta provar que é mais razoável acreditar
que não há universais do que acreditar que há universais; que tanto
o realismo quanto o agnosticismo são posições indefensáveis e que o
nominalismo é a única posição defensável a respeito da existência de
universais. Ronald, o realista, não tenta (nesse ponto do debate) provar
nada – ou talvez tente provar apenas algo como “A minha oponente não
estabeleceu a verdade da terceira premissa do argumento dela além de
uma dúvida razoável”. Assim, trivialmente, no caso que imaginamos, o
ônus da prova é da nominalista. Obviamente, o juízo seria invertido se
Ronald estivesse tentando convencer os agnósticos a aceitar o realismo,
e a única tarefa de Norma fosse bloquear a tentativa de convencimento.
Você verá que imaginei nosso debate ideal baseado em uma certa divisão
do trabalho, ou melhor, em um certo princípio de organização dialética.
Não imaginei um nominalista e um realista simultaneamente buscando
convencer a audiência das suas respectivas posições. Nesse modo reside
a anarquia. Eu imagino um debate em que cada lado tem o seu próprio
turno. Quando é a vez de Norma, a nominalista, ela tenta convencer
os agnósticos, e o realista Ronald tenta bloquear o convencimento.
Quando é a vez de Ronald, ele tenta convencer os agnósticos, e Norma
tenta bloquear o convencimento. Porém, a fim de avaliar o sucesso de
um argumento filosófico particular, não precisamos considerar os dois
turnos. Se um argumento particular a favor do nominalismo é bem-
-sucedido, essa é uma questão que é respondida pela avaliação de quão
boa é a sua performance durante o turno da nominalista.
Portanto, temos um critério do sucesso filosófico. Um argumento
para p é bem-sucedido somente se, em circunstâncias ideais, ele puder
ser usado para convencer uma audiência de agnósticos ideais (agnósticos
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3
Mas “agnóstico” não significa “alguém que não sabe se Deus existe”? Se entendermos
agnóstico nesses termos, temos de entender “alguém que não sabe se Deus existe” como
“alguém que não professa saber se Deus existe”. (No sentido mais literal de “saber se”, alguém
que sabe se Deus existe é alguém que, se Deus existe, sabe que Deus existe, e, se Deus
não existe, sabe que Deus não existe. Portanto, no sentido mais literal dessas palavras, se
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O problema do mal | Peter van Inwagen
Deus existe, nenhum ateísta sabe se Deus existe, e se Deus não existe, nenhum teísta sabe
se Deus existe). Uma pessoa que não professa saber se Deus existe é uma pessoa que está
disposta a dizer (com toda sinceridade) “Não sei se Deus existe”. E uma pessoa disposta
a dizer, com toda sinceridade, “Não sei se Deus existe” não irá acreditar que Deus existe e
nem acreditar que Deus não existe, a não ser que ela se envolva em um tipo de contradição
pragmática. E uma pessoa que nem acredita que Deus existe e nem acredita que Deus não
existe deveria estar pronta para dizer – deixando de lado considerações de prudência – “Não
sei se Deus existe”. Eu poderia apresentar argumentos para essas asserções, mas não vou
apresentá-los, pois a verdade delas não faz diferença para o meu argumento mais geral. Em
vez de defendê-las, simplesmente definirei “agnóstico” como alguém que não acredita que
– carece da crença de que – Deus existe e não acredita que – carece a crença de que – Deus
não existe. O que eu disse sobre contradições pragmáticas e questões relacionadas foi dito
apenas para defender a minha aplicação do termo “agnóstico” a pessoas simplesmente com
base no fato de que elas carecem de certas crenças – uma aplicação que algumas pessoas
podem criticar com base em considerações etimológicas. Se o sentido de “agnóstico” que
introduzi arbitrariamente é de algum modo objetável, é pelo menos claro o que eu quero
dizer com esse termo, e isso é tudo que importa. (Mas penso ter capturado o que a maioria
das pessoas de hoje querem dizer com o termo, mesmo se o que elas querem dizer não seja
tão nobre quanto o que o seu inventor, Thomas Henry Huxley, quis dizer com ele.) E, de
todo modo, minha audiência tem de ser formada de “agnósticos” exatamente nesse sentido
se quero aplicar aos argumentos contra a existência de Deus o critério de sucesso de um
argumento filosófico que apresentei.
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O problema do mal | Peter van Inwagen
não terei objeções. Na prática, contudo, essa revisão não faz nenhuma
diferença. Tentarei mostrar que o argumento do mal não tem o poder de
transformar agnósticos ideais (portanto neutros) em ateístas. Mas estou
disposto a defender a seguinte conclusão, embora não o faça explicita-
mente: se as considerações que apresentarei realmente mostrarem que
o argumento do mal é incapaz de transformar agnósticos neutros em
ateístas, essas considerações também mostrarão que o argumento do mal
é incapaz de transformar agnósticos neutros em agnósticos ponderados.
Para voltar à principal linha do argumento, Ateísta e Teísta se
enfrentam no debate em frente da audiência de agnósticos ideais.
O debate é dividido em dois turnos. Em um deles, Ateísta tenta trans-
formar os agnósticos em ateístas como ela mesma. No outro, Teísta
tenta transformar os agnósticos em teístas como ele mesmo. (Proponho
que Ateísta seja uma mulher, e Teísta, um homem. Proponho que eles
tenham sexos opostos a fim de tornar as coisas mais simples para mim:
será automaticamente claro a qual dos dois se refere o pronome da ter-
ceira pessoa do singular. Quanto à combinação do sexo com a doutrina
que escolhi – bem, suponho que de qualquer modo teria dificuldades
pela frente). Nestas conferências, só tratarei da metade do debate, a
tentativa da Ateísta de transformar os agnósticos em ateístas. E só estou
interessado na tentativa dela de convencimento com a apresentação
de um argumento particular, o argumento do mal, a uma audiência de
agnósticos. Eis uma descrição muito geral e abstrata do curso do debate.
Ateísta abre o debate apresentando o argumento do mal. (Assumiremos
que o argumento que ela apresenta é formalmente válido). Teísta busca
colocar em dúvida pelo menos uma premissa do argumento. (Obvia-
mente, um modo de “colocar em dúvida” uma proposição é mostrar
134
O fracasso filosófico
que ela é falsa, mas Teísta não precisa de tanto). E a dúvida deve surgir
na mente dos agnósticos; não é exigido que Teísta de algum modo
enfraqueça a fidelidade da Ateísta às premissas que ele busca colocar
em dúvida. Ateísta então dá a sua resposta a Teísta; talvez ela encontre
algum defeito no contra-argumento do Teísta (um defeito que os agnós-
ticos estariam dispostos a aceitar como defeito; será uma perda de tempo
para ela apontar uma coisa que ela vê como um defeito se eles também
não verem tal coisa como um defeito); talvez ela reformule o argumento
de tal modo que esse argumento reformulado escape da crítica do Teísta;
isso só depende dela mesma: ela pode dizer o que quiser. Depois disso,
Teísta responde à réplica dela da crítica que ele fez ao argumento.
E assim por diante – enquanto pelo menos um dos participantes tiver
algo a dizer. No final do debate, teremos de perguntar a nós mesmos
como os agnósticos responderão a tudo o que ouviram. Eles se tornarão
ateístas ou permanecerão agnósticos? No primeiro caso, o argumento
da Ateísta é bem-sucedido. No segundo, é um fracasso. (O que dizer se
alguns deles se convencerem a aceitar o ateísmo e alguns não se conven-
cerem? Bem, farei uma suposição idealizada: visto que os debatedores
e a audiência são representantes ideais das categorias “ateísta”, “teísta”
e “agnóstico”, e porque o debate foi conduzido sob condições ideais, a
resposta da audiência, seja ela qual for, será uniforme. As consequências
de rejeitar essa suposição seriam um tópico interessante para futuras
investigações). A minha intenção, como disse antes, é mostrar que o
argumento do mal é um fracasso conforme esse padrão.
Decerto, há argumentos bem-sucedidos, tanto no cotidiano quanto
nas ciências. Mas não conheço nenhum argumento com essa caracterís-
tica a favor de qualquer tese filosófica substancial. Odeio ter de admitir
135
O problema do mal | Peter van Inwagen
isso, seja só pela razão de que eu gostaria que alguns dos argumentos
associados ao meu nome fossem bem-sucedidos. De todo modo, tenho
de admitir que é, no melhor dos casos, altamente improvável que eles
sejam bem-sucedidos. É verdade que nenhum deles foi testado em um
debate ideal como o que imaginei, mas, para estender o ponto que esta-
beleci anteriormente, há debates que chegam perto do ideal, de tal modo
que a performance dos meus argumentos nesses debates é um indício
forte de como eles se comportariam em um debate ideal. Sei alguma
coisa sobre esses debates, e vejo a mim mesmo na posição de dizer que
parece muito improvável que meus argumentos seriam bem-sucedi-
dos em um debate ideal. Considere, por exemplo, meus argumentos
a favor da incompatibilidade do livre-arbítrio com o determinismo.4
Esses argumentos têm sido testados à medida que são apresentados
sucessivamente a várias gerações de estudantes em diferentes universi-
dades. E esse teste é uma aproximação do mundo real ao debate ideal
que imaginei. O resultado tem sido tão previsível quanto desaponta-
dor: alguns dos estudantes foram convencidos por meus argumentos,
e alguns, não. Decerto, esses estudantes não eram inicialmente neutros
em relação à questão da compatibilidade do livre-arbítrio com o deter-
minismo. E a maioria dos seminários em que esses argumentos foram
apresentados não era conduzida por um compatibilista e um incom-
patibilista. Mas as respostas diversas dos estudantes do mundo real aos
meus argumentos levaram-me a supor que a resposta de uma audiência
de agnósticos ideais a uma apresentação ideal desses argumentos seria
4
Esses argumentos estão em van Inwagen (1983).
136
O fracasso filosófico
5
Se for assim, o critério que propus de sucesso e fracasso filosóficos tem a mesma consequ-
ência que os dois critérios que rejeitei: a maioria dos argumentos filosóficos para conclusões
filosóficas substanciais são fracassos, se não todos. E essa consequência foi a minha razão
para rejeitar esses critérios. Portanto, eu não deveria, por essa razão, rejeitar o critério que
propus e buscar algum critério mais liberal? Infelizmente não há um critério mais liberal.
O critério que propus é o critério mais liberal possível. (Ele é mais liberal do que os outros
dois. Ele impõe para o filósofo que busca oferecer um argumento bem-sucedido para uma
tese filosófica uma tarefa mais simples do que os outros dois, mesmo se essa tarefa for
impossível. Se for objetado que uma tarefa impossível não pode ser mais fácil do que outra
tarefa impossível, respondo que é mais fácil em um sentido óbvio convencer 90% do eleito-
rado a votar em um candidato específico do que convencer todos os eleitores a votar nesse
candidato, mesmo se, dadas as circunstâncias do caso, for impossível convencer 90% do
eleitorado a votar em um candidato específico). A minha posição, pois, é que, infelizmente,
todo argumento conhecido para uma tese filosófica substancial é um fracasso – pelo critério
de sucesso e fracasso mais liberal possível.
137
O problema do mal | Peter van Inwagen
pelo menos, duas premissas que penso que ninguém negaria: que o
argumento do mal é um argumento filosófico e que a não existência
de Deus é uma tese filosófica substancial. Se pensamos no que eu disse
há pouco sobre o modo como um argumento para a conclusão de que
o argumento do mal é (no meu sentido) um fracasso, não penso que
estejamos diante de um mau argumento. Contudo, mesmo se for um
bom argumento, ele tem uma limitação importante: não nos diz nada de
interesse filosófico a respeito do argumento do mal; não interage com o
conteúdo do argumento do mal. Eu poderia ter oferecido essencialmente
o mesmo argumento para a conclusão de que o argumento da linguagem
privada ou o argumento ontológico ou o argumento analógico para a
existência de outras mentes são fracassos. O meu projeto nestas confe-
rências é tentar convencer minha audiência de que o argumento do mal
não tem o poder de transformar agnósticos neutros idealmente racionais,
sérios, atentos e pacientes em ateístas. E quero fazer isso enfrentando
realmente o argumento. Mesmo se for verdade (como acredito que seja)
que nenhum argumento filosófico para uma conclusão substancial tem
o poder de convencer todos os membros de uma audiência ideal e ini-
cialmente neutra, não quero argumentar a partir dessa premissa. Quero
mostrar como o Teísta pode bloquear qualquer tentativa da Ateísta de
transformar a audiência de agnósticos em uma audiência de ateístas
como ela mesma. Menciono a minha tese geral sobre a incapacidade
de argumentos filosóficos produzirem uniformidade de crenças mesmo
entre aqueles que são idealmente racionais simplesmente porque penso
que ela seja uma tese plausível, e se você concordar comigo sobre esse
ponto, essa concordância o predisporá a aceitar a conclusão que defen-
derei a partir de bases diferentes.
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O fracasso filosófico
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O problema do mal | Peter van Inwagen
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CONFERÊNCIA 4
O argumento global do mal
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O argumento global do mal
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O problema do mal | Peter van Inwagen
1
No poema tal como foi impresso no romance há (em função da trama: o autor ficcional do
poema era um homem erudito que queria ocultar a sua autoria) muitos erros gramaticais.
Eles não são reproduzidos aqui – apesar da opinião de Martin Amis de que eles seriam uma
parte importante do efeito pretendido do poema sobre o leitor (isto é, o efeito que Kingsley
Amis pretendia que o poema tivesse sobre os leitores de The anti-death league, 1966). Para
os argumentos de Martin Amis a favor dessa conclusão (e o poema tal como aparece origi-
nalmente no romance), veja o seu livro Experience, 2001, p. 188.
144
O argumento global do mal
razão se diz que alguém que defende essa posição está encorajando a
indiferença aos males do mundo. Tenho em mente a tese de que – em
sentido estrito e literal – o mal não existe. Pode parecer surpreendente
que alguém defenda essa ideia. Considere esta passagem famosa de
Os irmãos Karamazov:
Como alguém pode ouvir histórias como essa e dizer que o mal
não existe? Ora, um tipo de resposta a essa questão é oferecida pelos
adeptos de algumas religiões orientais: o mal que vemos ao nosso redor
é mera aparência, ilusão, pela simples razão de que tudo o que apa-
rece, tudo o que as pessoas comuns tomam como sendo a realidade
sensível, é uma ilusão. Não considerarei essa posição. Assumo que o
que os nossos sentidos nos dizem sobre o mundo ao nosso redor é
2
Do capítulo 4 (“Rebelião”) do livro V. Ivan é quem fala. É quase obrigatório para quem
escreve sobre o problema do mal citar algo desse capítulo.
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O problema do mal | Peter van Inwagen
3
Matson (1967, p. 145-48).
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O argumento global do mal
4
Pope, An Essay on Man, Epístola I, 10.
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O problema do mal | Peter van Inwagen
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O argumento global do mal
Um buraco nas calças não é uma coisa que tem existência em si, mas
é (por assim dizer) uma privação de roupa. Porém isso não significa
que o buraco seja uma ilusão. Se um buraco não é algo real, mas mera
ausência, esse sutil ponto metafísico não muda o fato de que as calças
precisam de um remendo. Afirmar que defeitos nas coisas não são em si
mesmos coisas não significa afirmar que nada seja realmente defeituoso.
Em terceiro lugar, não devemos confundir esse erro com a promessa
bíblica de que haverá um dia em que Deus irá enxugar cada lágrima.
Esse pode ser ou não ser realmente o caso, mas se for o caso, não se
segue daí que agora não haja lágrimas, como também não se segue que
as lágrimas do presente sejam derramadas sobre ilusões – não se segue
que, se pudéssemos ver as coisas como Deus as vê, veríamos que não
há motivos para chorar.
Se alguém seguir o pensamento de Leibniz/Pope sobre a realidade
do mal, então, penso, essa pessoa merece um pouco do escárnio que
Mill e os outros escritores que citei tão eloquentemente exprimem.
No entanto, insisto que o escárnio deva ser intelectual, em vez de moral.
Acreditando que “o que é, é bom”, Pope não é culpado de um erro
moral. Não digo que o erro intelectual e o erro moral não possam se
misturar. Aqueles que negam a realidade do Holocausto, por exemplo,
são culpados de ambos os tipos de erro. Mas eu diria que uma parte
importante da causa do erro intelectual dessas pessoas seria um defeito
moral previamente existente; esse erro moral levou-os a negar fatos
empiricamente estabelecidos. Não penso que Pope e Leibniz acredita-
vam que o mal fosse uma ilusão de perspectiva porque eles eram homens
maus (espero que eles não tenham sido nem melhores e nem piores
do que a maioria de nós, algo que eu não diria daquelas pessoas que
149
O problema do mal | Peter van Inwagen
5
Bem, não Surin, que, afinal, é um cristão. Não estou certo do modo como Surin supõe que um
filósofo ou teólogo cristão (ou judeu ou muçulmano) deveria responder quando um ateísta
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O argumento global do mal
151
O problema do mal | Peter van Inwagen
6
Assumirei que há um padrão moral objetivo, que esse padrão aplica-se a Deus e às criaturas, e
que é possível para os seres humanos se enganarem sobre as suas exigências. Se essa suposição
152
O argumento global do mal
for errada, se não há um padrão moral objetivo, então, presumivelmente, não há a propriedade
ou atributo da “perfeição moral”. (No texto, quando digo que a perfeição moral é, de forma não
negociável, um dos atributos divinos, pressuponho que ela exista; se as palavras “perfeição moral”
denotam uma propriedade, elas denotam uma propriedade que Deus não pode possivelmente
deixar de ter). Se não houver o atributo da perfeição moral, ele, obviamente, tem de ser retirado
da lista de atributos divinos (ou seja, as palavras “perfeição moral” têm de ser deletadas da nossa
apresentação da lista de atributos divinos). Se não houver o atributo da perfeição moral, o aliquid
quo nihil maius cogitari possit não será moralmente perfeito – e não porque ele será moralmente
imperfeito, mas sim porque não haverá um atributo para ele possuir. (Nem ele e nem qualquer
outra coisa será ou moralmente perfeito ou moralmente imperfeito, pois uma coisa não pode
ser mais moralmente imperfeita se não há um padrão moral objetivo do que ela pode ser moral-
mente perfeita nesse caso.) Mas sem dúvida qualquer pessoa que se sinta forçada a remover a
“perfeição moral” da lista de propriedades que “algo” tem de ter se for algo em relação a que nada
maior pode ser concebido (tendo sido convencida por um argumento de que não haveria um
padrão moral objetivo) desejaria “substituir” a perfeição moral por algum atributo cuja existência
não pressuponha um padrão moral objetivo: “benevolente no grau mais alto possível”, talvez, ou
“exibindo amor perfeito em relação a todas as criaturas”. E sem dúvida a existência de enormes
quantidade do mal realmente horrível colocará problemas para aqueles que acreditam em um
ser onipotente que é benevolente no mais algo grau (ou cujo amor por todas as criaturas é
perfeito) que são essencialmente os mesmos problemas que surgem para aqueles que acreditam
em um ser onipotente e moralmente perfeito. Talvez eu deva dizer algo para o teísta que resiste
à ideia de que há um padrão moral objetivo que se “aplica a Deus”. Direi o seguinte. Acredito
tão fortemente quanto você na onipotência e soberania de Deus; e, como você, acredito que
ele é aliquid quo nihil mais cogitari possit. Além disso, quando afirmo essas crenças que tenho, as
palavras que uso para afirmá-las devem ser entendidas do mesmo modo que são quando você
as usa para afirmar as suas crenças. Se você diz que a tese de que há um padrão moral objetivo
que se aplica a Deus é inconsistente com as crenças que tenho professado, replicarei que nego
a inconsistência, e apontarei que sua afirmação de inconsistência é uma tese filosófica, não uma
parte da fé cristã. Afinal, Abraão disse a Deus (Gn 18:25) “Longe de ti fazer tal coisa: matar
o justo com o ímpio, tratando o justo e o ímpio da mesma maneira. Longe de ti! Não agirá
com justiça o Juiz de toda a terra?”. Se você diz que objeta só a ideia de um padrão moral que
é “externo” a Deus, replicarei que eu nem afirmo e nem nego que o padrão moral cuja exis-
tência assevero é externo a Deus, pois não tenho ideia do que é que isso significa. Afirmo que
os princípios morais gerais, se eles têm valor de verdade, são necessariamente verdadeiros ou
necessariamente falsos, e que Deus não tem escolha sobre os valores de verdade de proposições
não contingentes. Por exemplo, se for errado para Deus matar o justo com o injusto, isso é algo
em relação a que Deus não tem escolha.
153
O problema do mal | Peter van Inwagen
154
O argumento global do mal
Deus, se ele existe, é onisciente, ou, pelo menos, sabe tanto quanto
nós seres humanos sabemos. Portanto, sabe dos males do mundo
pelo menos tanto o quanto nós sabemos, e sabemos que o mundo
contém uma enorme quantidade de mal. [Assumirei que nenhum
lado do debate pensa que a tese de Leibniz/Pope sobre o mal, a tese
de que o mal é uma ilusão devida à nossa perspectiva limitada, é
digna de algo mais do que uma breve menção]. Considere agora os
males dos quais Deus tem conhecimento. Visto que Deus é moral-
mente perfeito, ele tem de desejar que esses males não existam – a
não existência deles tem de ser o que ele quer. E um ser onipotente
pode conseguir ou realizar tudo o que quer – ou, pelo menos, tudo
155
O problema do mal | Peter van Inwagen
156
O argumento global do mal
que a ação seja descoberta e que ela seja processada por assassinato.
E qualquer uma dessas razões poderia ser suficiente, do seu ponto
de vista, para contrabalançar o desejo de por um fim imediato aos
sofrimentos da mãe. Portanto, pode ser que uma pessoa tenha um
desejo muito forte e seja capaz de realizar o que deseja, mas não aja
conforme o desejo – porque tem razões para não agir que, para ela,
superam o caráter desejável do que deseja. Portanto, a conclusão de
que o mal não existe não se segue logicamente das premissas que
afirmam que a não existência do mal é algo que Deus quer e que
ele é capaz de realizar o que deseja – visto que, por tudo o que a
lógica pode nos dizer, Deus poderia ter razões para permitir que
o mal exista, razões que, do ponto de vista dele, superam o caráter
desejável da não existência do mal.
O Teísta começa a sua réplica com essas palavras. Mas ele tem
de dizer mais do que isso, pois se deixamos agora a Ateísta tomar a
palavra, ela poderia argumentar de modo prima facie plausível a favor
destas duas conclusões: que um Criador moralmente perfeito faria de
tudo para impedir o sofrimento das suas criaturas, e que o sofrimento
das criaturas poderia não ser um meio necessário para qualquer fim
almejado por um ser onipotente. Portanto, o Teísta tem de dizer algo
que torne plausível acreditar que haveria tais razões. No entanto, antes
de permitir que ele faça isso, repasso a terminologia que introduzi na
primeira conferência, que nos ajudará a entender a estratégia geral que
o Teísta seguirá na discussão das razões de Deus para permitir o mal.
Suponha que eu acredite em Deus e na real existência do
mal. Suponha ainda que eu acredite saber quais são as razões de Deus
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O problema do mal | Peter van Inwagen
para permitir que o mal ocorra e conte a você essas razões. Então
apresentei a você uma teodiceia. (Aqui, uso “teodiceia” no sentido de
Plantinga. Vários autores, Richard Swinburne e eu mesmo entre eles,
pensaram que seria útil usar a palavra com sentido diferente. Nestas
conferências, contudo, continuarei com o uso que a obra de Plantinga
tornou mais ou menos padrão nas discussões filosóficas sobre o argu-
mento do mal). Se eu apresentar uma teodiceia e se a audiência à qual
apresento essa teodiceia julgá-la convincente, eu teria uma réplica efetiva
ao argumento do mal, pelo menos em relação a essa audiência. Mas
suponha que, embora acredite em Deus e no mal, eu não reivindique
saber quais seriam as razões de Deus para permitir o mal. Para uma
pessoa nessa posição, há um modo de responder ao argumento do mal?
Sim. Considere esta analogia.
Clarissa, uma de suas amigas, é mãe solteira, e deixa os dois filhos
pequenos sozinhos em casa por várias horas tarde da noite. Tia Harriet,
uma senhora de princípios morais severos, fica sabendo disso e declara
que Clarissa é incapaz de cuidar dos filhos. Você defende a amiga:
“Tia Harriet, não tire conclusões precipitadas. Há provavelmente uma
boa explicação para isso. Pode ser que um dos filhos estivesse doente e
ela resolveu ir até o hospital para buscar ajuda. Você bem sabe que ela
não tem telefone e nem carro, e ninguém na vizinhança dela atenderia
a campainha às duas horas da manhã”. Se você contar à tia Harriet uma
história dessas, você não diz que sabe quais são realmente as razões de
Clarissa para deixar as crianças sozinhas. E também não reivindica
ter mostrado que Clarissa é uma boa mãe. Você só mostra que o fato
que a tia Harriet aduziu não prova que Clarissa não é uma boa mãe;
o que você tenta estabelecer é que, até onde você e a tia Harriet sabem,
158
O argumento global do mal
ela teria uma boa razão para o que fez. E você não tenta estabelecer
apenas que há alguma remota possibilidade de que ela tivesse uma boa
razão. Nenhum advogado de defesa tentaria levantar dúvidas nas mentes
dos membros do júri propondo a eles que, até onde sabem, o acusado
teria um irmão gêmeo idêntico, do qual todos os registros teriam sido
perdidos, e que ele foi a pessoa que realmente cometeu o crime do qual
o seu cliente é acusado. Essa pode ser uma possibilidade – suponho que
seja uma possibilidade –, mas ela é uma possibilidade muito remota para
levantar dúvidas reais nas mentes das pessoas. O que você tenta fazer
é convencer a tia Harriet de que há uma possibilidade muito real de que
Clarissa tenha uma boa razão para deixar os filhos sozinhos; e a sua
tentativa de convencê-la disso consiste na apresentação de um exemplo
de qual poderia ser essa razão.
As respostas críticas ao argumento do mal – pelo menos as res-
postas dos filósofos – normalmente têm essa forma. Tipicamente, um
filósofo responde ao argumento do mal contando uma história, uma
história em que Deus permite que o mal exista. Obviamente, essa his-
tória representará Deus como tendo razões para permitir a existência
do mal, razões que, se o restante da história fosse verdadeiro, seriam
boas razões. Uma história dessas é chamada pelos filósofos de “defesa”.
Se eu ofereço uma história sobre Deus e o mal como uma defesa,
espero a seguinte reação da audiência: “Dada a existência de Deus, o
resto da história poderia ser verdadeiro. Não vejo qualquer razão para
excluir essa possibilidade”. Espero que a razão para essa reação deva
ser clara. Se a história que contei é verdadeira, então o argumento do
mal (qualquer versão do argumento do mal) tem uma premissa falsa.
Mais precisamente: dado que o argumento do mal seja logicamente
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O problema do mal | Peter van Inwagen
7
Disse que as respostas críticas dos filósofos ao argumento do mal usualmente consistem em
apresentações de defesas. Até onde vejo, há só mais uma maneira diferente do filósofo se opor ao
argumento do mal: apresentando um argumento para a existência de Deus que seja convincente
de tal modo que as pessoas racionais que consideram ambos os argumentos cuidadosamente con-
cluam ou que uma das premissas do argumento do mal tem de ser falsa ou pelo menos que uma
ou mais premissas do argumento para a existência de Deus pode ser falsa. Em minha opinião, no
entanto, essa possibilidade não é uma possibilidade real, pois nenhum argumento conhecido para a
existência de Deus é suficientemente convincente para ser usado com esse propósito. Eu defendo
essa tese do seguinte modo. Os únicos argumentos conhecidos para a existência de Deus cujas
conclusões são inconsistentes com a conclusão do argumento do mal são as várias formas do argu-
mento ontológico. (Mesmo se os argumentos cosmológico e do desígnio, por exemplo, provarem
as suas conclusões além de toda a dúvida, poderia ser o caso que a Causa Primeira ou o Grande
Arquiteto cuja existência eles provam não fosse moralmente perfeito. Estritamente falando, um
ateísta pode consistentemente aceitar as conclusão desses dois argumentos). E todas as versões
do argumento ontológico além do “argumento modal” são irremediavelmente deficientes de um
ponto de vista lógico. Em relação ao argumento ontológico modal, não parece haver razão para
uma pessoa que não acredita “antecipadamente” em Deus aceitar a sua premissa (que a existência
de um ser necessário que possui todas as perfeições essencialmente é metafisicamente possível).
160
O argumento global do mal
8
Veja Flew (1955), Mackie (1955), McCloskey (1960), Pike (1963) e Plantinga (1965).
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O problema do mal | Peter van Inwagen
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O argumento global do mal
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O problema do mal | Peter van Inwagen
dos quais elas possam gozar. Por exemplo, se os seis meses finais de
vida de um homem que morre de câncer são um capítulo contínuo de
dor excruciante, dificilmente se pode dizer que a defesa da “apreciação”
(podemos assim chamá-la) oferece uma explicação plausível da razão
de Deus para permitir que a vida de uma pessoa termine desse jeito.
(Devo admitir que essa consideração não é conclusiva: provavelmente,
os estudantes de Notre Dame acrescentariam à defesa deles a tese de
que o sofredor aprecia melhor os bens do Céu por causa dos sofrimentos
terrenos). Mas introduzi a defesa da “apreciação” na discussão – que de
outro modo não valeria a pena discutir – para fazer uma consideração
diferente. Não é de forma nenhuma evidente que um criador onipotente
precisaria permitir que as pessoas realmente experimentassem qualquer
dor ou aflição ou tristeza ou adversidade ou doença para capacitá-las a
apreciar as boas coisas da vida. Decerto, um ser onipotente poderia ser
capaz de oferecer por meios diferentes um conhecimento do mal que
os seres humanos de fato adquirem por meio de experiências amargas
de eventos reais. Um ser onipotente poderia, por exemplo, providen-
ciar que, em certo ponto da vida de cada um de nós – por alguns anos
durante a adolescência, por exemplo – ocorram pesadelos absolutamente
convincentes nos quais somos prisioneiros em algum campo de concen-
tração ou morremos de alguma doença horrível ou vemos as pessoas que
amamos sendo violentadas e assassinadas por soldados determinados
a fazer uma limpeza étnica. Se esses sonhos “valerão a pena”, isso eu
não sei. Ou seja, não sei se as pessoas no mundo em que nada de mau
acontecesse de verdade estariam em uma situação melhor tendo esses
pesadelos – se os pesadelos as levariam a apreciar as coisas boas da vida
que superam o desprazer intrínseco de tê-los. Mas parece claro que um
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O argumento global do mal
9
Mas há outras defesas, embora nenhuma delas tenha sido tão cuidadosamente desenvolvida
ou extensamente examinada como a defesa do livre-arbítrio. Por exemplo, há a defesa de
“plenitude”: o Princípio de Plenitude requer que Deus crie todos os mundos em que o bem
supera o mal; o mundo que habitamos é um desses mundos; há muitos outros mundos criados,
em alguns dos quais o bem supera o mal muito mais decisivamente do que o faz em nosso
mundo, e em alguns dos quais ele escassamente supera o mal. Versões da defesa da plenitude
são apresentadas por Donald A. Turner no artigo “The many-universes solution to the pro-
blem of evil” (2003) e por Hud Hudson no livro The metaphysics of hyperspace, (2006). Há a
recente defesa “felix culpa” de Alvin Plantinga de acordo com a qual os males do mundo são
uma condição necessária para o imensuravelmente grandioso bem da Encarnação. (Veja o
artigo de Plantinga “Supralapsarianism, or ‘O Felix Culpa’” (2004)). Há a defesa “calvinista
radical” de acordo com a qual Deus decreta o mal a fim de que a sua glória possa ser mos-
trada na derrota final do mal; todos os seres criados que sofrem, sofrem justamente (a defesa
sustenta) porque Deus criou-os com vontades más – para demonstrar a sua glória e poder
na vitória final sobre eles –, e os sofrimentos deles são punições coordenadas às más ações
que as vontades más os levaram a realizar. (Um estudante em Notre Dame, Christopher
Green, defendeu essa posição no trabalho final de um seminário sobre o problema do mal,
e a tornou mais plausível do que eu havia inicialmente pensado. Uma versão posterior desse
trabalho, intitulada “A compatibilist-calvinist demonstrative-goods defense”, foi apresentada
em 2003 no encontro da Sociedade dos Filósofos Cristãos. Ela ainda não foi publicada).
Para o trabalho recente sobre a defesa do livre-arbítrio, incluindo o trabalho seminal de Alvin
Plantinga, veja Adams e Adams (1990), e Peterson (1992).
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O argumento global do mal
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Deus criou o mundo e viu que era bom. Uma parte indispensável
da bondade do mundo que escolheu criar era a existência dos seres
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Note que eu não digo que a afirmação da verdade de contradições torna o debate racional
impossível. Esse pode ser ou não o caso, mas afirmar que esse é o caso não faz parte do meu
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O argumento global do mal
argumento. Lógicos paraconsistentes não precisam ficar ofendidos. Disse que alguém que
afirma a verdade de contradições tem os meios para tornar um debate racional impossível.
Alguém que afirma contradições sem dúvida afirmará outras coisas também, e algumas dessas
coisas podem impedir que ela faça uso desses “meios”. Note, contudo, que o diálogo no texto
não representa o teodicista cartesiano que afirma contradições fazendo uso do princípio de
que qualquer coisa se segue de uma contradição. Até onde vejo, ele não afirma nada, não dá
nenhum passo dialético, que poderia ser disputado pelos “amigos das verdadeiras contradições”.
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CONFERÊNCIA 5
O argumento global do mal (continuação)
1
A literatura sobre o problema do livre-arbítrio é enorme – mesmo se nos limitamos ao
trabalho recente dos filósofos analíticos. Talvez seja natural que eu recomende o meu livro
An essay on free will (1983) como um ponto de partida. Trabalhos mais recentes e amplas
referências podem ser encontrados em Ekstrom (2001), Kane (2002) e Watson (2003).
O problema do mal | Peter van Inwagen
fazer. Os prisioneiros encerrados nas suas celas, por exemplo, não são
livres porque querem sair e não podem. Uma pessoa que desesperada-
mente quer parar de fumar mas não pode não é livre pela mesma razão
– mesmo que nenhum impedimento tão concreto quanto os muros da
prisão se encontre entre ela e a vida sem nicotina. A própria expressão
“livre-arbítrio” testemunha a correção dessa análise, pois o arbítrio é a
resolução da vontade, a vontade de uma pessoa é simplesmente o que
ela quer, e o livre-arbítrio, portanto, é exatamente a resolução de uma
vontade desimpedida. Dada essa explicação do livre-arbítrio, um Criador
que queira me dar a livre-escolha entre x e y teria apenas de ajeitar as
partes do meu corpo e o meu ambiente de tal modo que as seguintes
condicionais fossem ambas verdadeiras: se quisesse x, eu teria sido capaz
de realizar esse desejo; e se quisesse y, eu teria sido capaz de realizar esse
desejo. E o Criador que queira assegurar que eu escolha x em vez de y
só precisa colocar em mim um desejo robusto de x e providenciar que
eu não tenha qualquer desejo de y. Obviamente, essas duas coisas são
compatíveis. Por exemplo, suponha que um Criador tenha colocado uma
mulher em um jardim e ordenado que ela não comesse o fruto de certa
árvore. Ele poderia ajeitar as coisas de tal modo que ela tivesse não só a
livre-escolha entre comer o fruto da árvore e não comer esse fruto, mas
também assegurar que ela não o comesse? É claro que sim. Para oferecer
a ela uma livre-escolha entre as duas alternativas, o Criador deveria
providenciar a verdade de duas coisas. Ele deveria providenciar que,
se ela quisesse comer o fruto da árvore, não haveria obstáculos (como
uma cerca enorme ou a paralisia de um membro) que a impedissem
de agir em conformidade com o desejo, e também que, se ela quisesse
não comer o fruto, nada a forçaria a agir contrariamente a esse desejo.
176
O argumento global do mal (continuação)
E para assegurar que ela não comesse o fruto, ele só teria de providen-
ciar que o desejo dela fosse não comer o fruto. Este último objetivo
poderia ser alcançado de várias maneiras; suponho que a maneira mais
simples seria dizer a ela para não comer o fruto depois de ter inculcado
nela um forte desejo de fazer tudo o que ele diz a ela para fazer e um
horror à desobediência – um horror similar ao que é experimentado
pelo agorafóbico quando chega perto de um precipício. Portanto, um
ser onipotente e onisciente poderia fazer com que cada criatura com
livre-arbítrio sempre agisse livre e corretamente, não haveria o mau uso
do livre-arbítrio, e o mal não poderia ter entrado no mundo por meio
do mau uso que as criaturas fizessem dessa dádiva. E isso é o que um ser
moralmente perfeito faria necessariamente – pelo menos assumindo que
o livre-arbítrio é um bem que um Criador moralmente perfeito desejou
incluir na criação. Portanto, a assim chamada “defesa do livre-arbítrio”
não é uma defesa afinal, pois ela é uma história impossível.
Esse é um argumento a favor da conclusão de que a defesa do livre-
-arbítrio essencialmente incorpora uma proposição falsa. Mas temos de
perguntar se a explicação do livre-arbítrio que está na base desse argu-
mento é plausível. Penso que ela não seja muito plausível. Ela certamente
gera conclusões estranhas. Considere os membros das ordens sociais
inferiores no Admirável Mundo Novo, os deltas e os épsilons. Essas
pessoas desafortunadas têm os seus desejos mais profundos escolhidos
pelos alfas, que formam o estrato social superior. O que os deltas e os
épsilons primariamente desejam é fazer o que os alfas (e os inspetores
do trabalho deles, os betas e os gamas) dizem a eles para fazer. Eles têm
esse desejo porque ele é imposto por um condicionamento pré-natal e
pós-natal. (Se Huxley escrevesse hoje, teria acrescentado a engenharia
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O problema do mal | Peter van Inwagen
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O argumento global do mal (continuação)
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O argumento global do mal (continuação)
2
As duas discussões mais importantes sobre as contrafactuais de liberdade estão nestes dois
livros esplêndidos (porém altamente técnicos): Plantinga (1974, cap. 9) e Flint (1998, cap. 2
e 4-7).
3
Para referências das teorias tomista e jesuíta das contrafactuais de liberdade, veja Flint (1998,
cap. 2 e 4).
181
O problema do mal | Peter van Inwagen
verdadeira; para realizar aquele estado de coisas, tudo o que ele então
tinha de fazer teria sido tornar a condicional verdadeira – ou seja, pro-
duzir um estrondo de trovão no momento crucial. Adotando a técnica
ilustrada nesse exemplo como estratégia geral, ele poderia fazer com que
todas as criaturas com livre-arbítrio sempre fizessem o que fosse correto;
não haveria nenhum mau uso do livre-arbítrio e, portanto, o mal não
poderia ter entrado no mundo por meio do mau uso que as criaturas
fizeram dessa dádiva. E isso é o que um ser moralmente perfeito faria
– por necessidade – pelo menos se assumirmos que o livre-arbítrio é
um bem que um Criador moralmente perfeito teria desejado incluir na
sua criação. Portanto, a assim chamada “defesa do livre-arbítrio” não é
uma defesa afinal, pois ela é uma história impossível.
Plantinga tem uma resposta muito elaborada para esse argumento,
que depende de uma perspectiva molinista, em vez de tomista, sobre
a relação entre o poder de Deus e as contrafactuais de liberdade das
criaturas.4 (Geralmente, os tomistas sustentam que cada contrafactual
de liberdade das criaturas teria o valor de verdade que tem porque Deus
decretou que ela tivesse esse valor de verdade; Molina e seus seguidores
sustentam que, de forma contingente, certos membros do conjunto de
contrafactuais de liberdade seriam verdadeiros e outros falsos, e que
Deus se atém a certa distribuição de valores de verdade entre os mem-
bros desse conjunto, distribuição que ocorre por acaso e independen-
temente da vontade dele. Em relação à perspectiva tomista, não vejo
4
Tenho em mente a versão da defesa do livre-arbítrio (Plantinga, 1974, cap. IX, seções 7-9)
que inclui a proposição de que “toda essência individual criada sofre de depravação trans-
mundial”.
182
O argumento global do mal (continuação)
5
Veja Adams (1977, 1991), Hasker (1989, 2000); van Inwagen (1997).
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O problema do mal | Peter van Inwagen
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O argumento global do mal (continuação)
6
O argumento padrão para a incompatibilidade da onisciência com o livre-arbítrio depende
de Deus estar “no tempo”. De maneira breve, ele é o seguinte. Se Deus sabia, e, por isso,
acreditava, em t (um momento no passado remoto) que eu mentiria amanhã, então sou capaz
de dizer a verdade amanhã somente se sou capaz ou de fazer com que Deus não tenha tido
essa crença ou que ele esteja errado. E não sou capaz de fazer nenhuma dessas coisas. Não
tenho a capacidade de fazer a primeira delas porque essa capacidade seria a capacidade de
mudar o passado. Mas se Deus é não temporal, não há um tempo em que ele acredita que
irei mentir amanhã. O fato de que ele tem essa crença é, pois, não um fato sobre o passado,
e a capacidade de fazer com que ele não tenha essa crença não é a capacidade de mudar o
passado.
Mas não é claro se supor que Deus é não temporal resolva o problema de reconciliar a onis-
ciência divina com o livre-arbítrio, pois um Deus não temporal tem o poder de revelar às
criaturas temporais – profetas – fatos sobre o que é para elas o futuro, e é possível construir
um argumento para a incompatibilidade de uma onisciência não temporal com o livre-arbítrio
humano apelando para a possibilidade de que ele exercita esse poder: a minha capacidade
de dizer a verdade (quando um profeta divinamente inspirado profetizou que irei mentir)
tem de ser uma capacidade ou de fazer com que essa profecia nunca tenha sido feita – de
mudar o passado – ou fazer com que ela fosse errada. Quaisquer que sejam os méritos que
esse argumento possa ter, no entanto, ele é certamente menos direto do que o argumento
com base na presciência de um Deus que está no tempo.
185
O problema do mal | Peter van Inwagen
Y, um ser com crenças que não podem ser falsas, crê agora que X fará
A em t.
7
Estou tentando evitar considerações meramente técnicas nestas conferências. Indicarei nessa
nota que essa afirmação precisa de qualificação. Pois suponha que um ser onisciente comece a
existir em t, e que, embora tenha havido agentes livre antes de t, não haveria agentes livres em
t ou depois de t. Isso parece possível. Mas a qualificação que isso exigiria é irrelevante para os
nossos propósitos, visto que jamais houve um tempo em que Deus não existia. (As seguintes
asserções pareceriam verdadeiras sem qualificação: nenhum ser eterno é sempre onisciente
em qualquer mundo possível em que há criaturas livres; se é possível haver criaturas com
livre-arbítrio, nenhum ser necessário é essencialmente onisciente.)
186
O argumento global do mal (continuação)
não podem ser falsas descobrir agora quais serão as ações livres futuras
de qualquer agente. Mas esse argumento é inválido tanto na concepção
cartesiana quanto na concepção tomista de onipotência. Um ser oni-
potente no sentido cartesiano é capaz de fazer coisas intrinsicamente
impossíveis; um ser onipotente no sentido tomista está dispensado da
exigência de ser capaz de fazer coisas intrinsecamente impossíveis. Há
aqui uma sugestão de solução para o problema do livre-arbítrio e da
presciência divina: por que não qualificar a definição padrão de onis-
ciência de modo similar ao qual Tomás de Aquino (perdoe a prolepse)
qualifica a definição cartesiana de onipotência?8 Por que não afirmar
que mesmo um ser onisciente é incapaz de saber certas coisas – das
quais o conhecimento seria um estado de coisas impossível? Poderíamos
também dizer que um ser onipotente é também onisciente se ele sabe
tudo o que é capaz de saber. Ou, como prefiro, formular a definição
de onisciência em termos de crença e impossibilidade do erro: um ser
onipotente é também onisciente se for impossível que as suas crenças
sejam erradas e ele tem crenças acerca de cada questão em relação à
qual é possível que ele tenha crenças. (Essa apresentação da definição
é complicada; talvez um exemplo possa esclarecer o que quero dizer.
Suponha que fiz hoje uma escolha livre entre mentir e dizer a verdade
e que tenha dito a verdade. Suponha que essa proposição seja logica-
mente inconsistente com a proposição segundo a qual ontem um ser
cujas crenças não podem ser erradas acreditou que hoje eu teria dito a
verdade. Desse modo, qualquer ser cujas crenças não podem ser erra-
8
Veja Swinburne (1998, p. 133-134).
187
O problema do mal | Peter van Inwagen
das não poderia ter acreditado ontem que eu teria dito hoje a verdade;
e, obviamente, ele também não poderia ter acreditado ontem que eu
mentiria. Ou seja, esse ser não poderia ter tido nenhuma crença sobre
o que eu faria livremente hoje. E se esse ser for também onipotente,
então ele era incapaz, a despeito da sua onipotência, de ter crenças sobre
o que eu livremente faria hoje. Exigir que ele tenha qualquer crença
sobre as minhas ações futuras livres seria exigir que ele faça o que é
metafisicamente impossível).
Essa qualificação da definição “padrão” de onisciência está de acordo
com o que afirmei na segunda conferência acerca das revisões admis-
síveis das propriedades em nossa lista dos atributos divinos – ou das
explicações desses atributos. Se dissermos, primariamente, que o Deus
onipotente é onisciente neste sentido – ele sabe tudo o que, em sua
onipotência, ele é capaz de saber – e, em segundo lugar, que ele não
sabe quais serão as ações livres futuras de qualquer agente, então, pelas
razões que mencionei, não caímos em contradição. Portanto, propo-
nho uma revisão da nossa definição anterior exatamente nesses termos.
Se for possível, ou melhor, se for metafisicamente ou intrinsicamente
possível, que Deus conheça o valor de verdade de qualquer proposição,
as duas definições coincidirão. Se essa coincidência não for possível,
Deus será onisciente (admitindo a explicação tomista da onipotência)
pela definição mais fraca e não será onisciente pela definição mais forte.
Porém, mesmo neste último caso, ele possuirá um conhecimento do
maior grau metafisicamente possível e, portanto, não perderá o posto
de “maior ser possível”.
Tenho de admitir que essa solução do problema do livre-arbítrio e
da presciência divina levanta novos problemas para os teístas: os teístas
188
O argumento global do mal (continuação)
9
Sobre esse ponto, direi o seguinte. Em cada caso em que a narrativa bíblica poderia parecer
representar Deus como conhecendo as ações livres futuras de um ser humano, ou a ação da
qual se tem um conhecimento não é de fato livre ou o conhecimento deve ser entendido
como condicional: conhecimento de quais seriam as consequências de certa livre-escolha se
ela fosse realizada.
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O argumento global do mal (continuação)
eis algo muito importante que podemos entender: ele deu a eles a
dádiva do livre-arbítrio porque o livre-arbítrio é necessário para o
amor. O amor, e não só o amor erótico, implica o livre-arbítrio.10
defendem a posição de que essa tese, a tese de que o livre-arbítrio é necessário para o amor,
é inconsistente com a doutrina cristã. De forma sucinta, o argumento é este: de acordo
com a doutrina cristã, as Pessoas da Trindade se amam como uma questão de necessidade
metafísica; portanto, nenhuma delas tem uma escolha sobre amar ou não as outras.
Direi o seguinte como resposta. (Respondo como um cristão. Um judeu ou um muçulmano
que queira fazer uso da defesa do livre-arbítrio no texto não precisará levar em conta as
questões discutidas nesta nota. Mas eu não gostaria de pensar que a defesa que fiz Teísta
apresentar fosse inconsistente com o cristianismo). Vamos dizer que um ser ama perfeitamente
se ele tem a propriedade de amar cada coisa essencialmente. (Para cada objeto, há um tipo e
um grau de amor apropriado a esse objeto: uma mãe pode amar seu filho, seu gato, ou sua
paróquia, mas esses três amores têm de ser diferentes no tipo e no grau; do contrário, algo
está muito errado. A propriedade em questão é a propriedade de amar cada coisa de maneira
apropriada). O amor perfeito é obviamente impossível para seres finitos. Em primeiro lugar,
nenhum ser finito pode estar ciente de cada coisa, de cada possível objeto de amor. Nenhum
ser finito, além disso, pode amar uma coisa essencialmente (nem mesmo dado que essa
coisa existe). Mesmo se Jill ama Jack como uma questão de necessidade causal antecedente,
haverá, tem de haver, outros mundos possíveis em que as causas antecedentes estão arranjadas
diferentemente e no qual ( Jack existe e) Jill não ama Jack. Haverá, tem de haver, (visto que
isso é possível) mundos em que ela não ama nada e ninguém. Suponha agora que a finita
Jill ame Jack. Por que ela ama Jack? Uma dessas três coisas deve ser verdadeira. O amor dela
por Jack é uma questão de necessidade externa; o amor dela por Jack é uma questão de acaso
(ele simplesmente aconteceu: ele não tem nenhuma explicação); o amor dela por Jack é uma
questão de livre-escolha. (Sem dúvida, os sentimentos dela por Jack não serão uma questão de
livre-escolha, mas há mais no amor do que sentimentos: uma parte essencial do amor é certa
orientação da vontade). Ao dizer isso, não pressuponho que a livre-escolha seja incompatível
com a necessidade externa em si. Todas as pessoas, penso, concordarão que alguns tipos de
necessidade externa são incompatíveis com a livre-escolha. (E todas as pessoas igualmente
concordarão que alguns tipos de acaso são incompatíveis com a livre-escolha). O leitor deve
entender a “necessidade externa” e “acaso” de tal modo que “é uma questão de necessidade”,
“é uma questão de acaso” e “é uma questão de livre-escolha” dividem as explicações possíveis
do amor de Jill por Jack em três classes exaustivas e exclusivas.
193
O problema do mal | Peter van Inwagen
Vamos agora voltar ao conceito de amor perfeito. Eu sustento que o amor perfeito é uma
propriedade de Deus, e, visto que ele é impossível para seres finitos e imperfeitos, criaturas,
trata-se de uma propriedade que só a Deus pertence. Porém vamos perguntar o seguinte:
como criaturas poderiam amar umas às outras (e a Deus) de um modo que melhor “imita”
o amor perfeito? Eu diria, primeiramente, que o amor das criaturas não imita melhor o
amor divino se ele é devido ao acaso: esse é o próprio oposto da necessidade que pertence ao
amor divino. O amor das criaturas melhor imitaria o amor de Deus se ele fosse uma questão
de necessidade externa? Não, porque o amor de Deus (como todas as suas propriedades)
pertence à sua essência e, portanto, vem do interior: a necessidade é interna a ele. A melhor
imitação das criaturas dessa necessidade interna é o amor que é consequência da livre-escolha,
pois esse amor vem do interior, e não é devido ao acaso. Como o amor de Deus, ele não é
nem o resultado de uma operação de forças externas (ou se ele é o resultado da operação de
forças externas, ele é assim somente à medida que todos os atos livres o são: ele é o resultado
da operação de forças externas de um modo que não viola a autonomia do amante), nem
algo que “simplesmente acontece”. Se isso for correto, é pelo menos verdade que o “melhor
tipo” de amor das criaturas, o amor que é a melhor imitação do amor perfeito nas criaturas,
envolve a livre-escolha. Isso deve ser o suficiente para a defesa do livre-arbítrio, pois explicaria
por que Deus daria aos seres humanos o livre-arbítrio mesmo a um custo tão grande. (Dado
que a diferença de valor entre o melhor tipo de amor das criaturas e outros tipos seja grande
o bastante, uma tese que pode ser tornada uma parte da defesa.) No entanto, permaneço
com a convicção de que o amor que é devido ao acaso ou à necessidade externa não é amor.
(A lógica desta última sentença é a mesma de “Love is not love that alters when it alteration
finds” [“O amor não é amor que altera quando alteração encontra”, Shakespeare, soneto 116
(N. T.)])
194
O argumento global do mal (continuação)
Essa conexão é também ilustrada nos votos que o meu criador, Peter
van Inwagen, fez quando se casou:
195
O problema do mal | Peter van Inwagen
11
Em que sentido esses eventos poderiam ser “aleatórios”? Algum evento poderia ser “uma
ocorrência aleatória” ou “devido ao acaso” em um mundo criado e mantido por um ser oni-
potente e onisciente? A minha resposta a essa questão é sim. Para uma discussão técnica dos
tópicos que essa questão envolve, veja Van Inwagen, 1988. O ponto essencial do argumento
desse ensaio é o seguinte. Primeiramente, Deus pode, se escolher, “decretar” que será o caso
que p ou [exclusivo] será o caso que q, sem decretar que será o caso que p ou decretar que
será o caso que q. Então será o caso que p ou será o caso que q, mas qual dos dois será o caso
será devido ao acaso. Por exemplo, embora Deus tenha dito, “Haja luz”, ele poderia ter dito
“Que haja luz ou trevas”. Se ele tivesse feito este decreto, então haveria luz ou trevas, e teria
sido uma questão de acaso se houvesse luz ou se houvesse trevas. Em segundo lugar, Deus
poderia ter boas razões para fazer decretos menos do que totalmente específicos – explici-
tamente decretos disjuntivos como aquele que imaginei ou decretos que são logicamente
equivalentes a disjunções como “Que haja pelo menos doze deuses principais no panteão
babilônico – mas não mais do que dezenove”. Uma razão assim seria esta: Deus não realiza
atos sem propósito, e se o número exato de fios de cabelo em minha cabeça não faz diferença
no grande esquema das coisas (uma tese bem plausível), seria sem propósito para Deus
decretar (ou de algum modo determinar) que o número de fios de cabelo em minha cabeça
será exatamente de 119.202. E se tivermos concedido que alguns estados de coisas não foram
decretados por Deus (portanto, que ele os deixou para o acaso), tem de ser concedido que a
questão “que estados de coisas Deus deixou para o acaso?” é uma questão para a especulação
teológica e filosófica. Assim, pode ser que Deus tenha deixado para o acaso questões como,
por exemplo, se uma pessoa morrerá em um desastre natural. Essa é pelo menos uma questão
sobre a qual filósofos e teólogos podem propriamente especular.
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O problema do mal | Peter van Inwagen
Eis uma analogia. Suponha que Dorothy sofre de angina e o que ela
precisa fazer é parar de fumar e perder peso. Suponha que o médico
dela conheça um medicamento que eliminará a dor, mas não terá o
efeito de melhorar a saúde dela. O médico deve prescrever o medi-
camento, sabendo que se a dor for aliviada, não há a menor chance
que ela pare de fumar e perca peso? Bem, talvez a resposta seja
sim – se a paciente insistir muito nisso. Afinal de contas, Dorothy
e o médico são igualmente pessoas adultas e responsáveis. Talvez
fosse miseravelmente paternalístico recusar a oferecer o alívio para
a dor de Dorothy a fim de fazer com que ela tenha motivação para
fazer o que é vantajoso para ela mesma. Se uma pessoa está com um
humor especialmente libertário, ela poderia até dizer que alguém que
fizesse tal coisa estaria “brincando de Deus”. Não é claro, contudo,
se há algo errado quando Deus se comporta como se fosse Deus.
É no mínimo plausível supor que é moralmente admissível que
Deus permita que os seres humanos sofram se o resultado inevitável
de suprimir o sofrimento fosse privá-los de um bem muito bom, um
bem que supera o sofrimento. Em todo caso, Deus nos protege do
excesso de mal, de uma grande proporção de sofrimento que seria
uma consequência natural da nossa rebelião. Se ele não fizesse isso,
toda a história humana seria pelo menos tão má quanto o seguinte:
todas as sociedades humanas estariam no mesmo nível moral da
Alemanha nazista. (Digo “pelo menos tão má” porque realmente
não posso dizer até que ponto vai a maldade humana. O Terceiro
Reich é o meu modelo do mais baixo nível moral, mas, até onde sei,
esse modelo pode ser ingenuamente otimista. Talvez existam níveis
de horror moral que ultrapasse aquele dos nazistas. Uma lição da
200
O argumento global do mal (continuação)
Alemanha de Hitler é que os nossos avós não sabiam até que ponto
podia chegar a maldade humana; até onde sabemos, os nossos netos
poderão dizer que nós não sabíamos até que ponto podia chegar a
maldade humana). No entanto, independentemente da quantidade
de mal da qual ele nos protege, Deus tem de permitir que uma
enorme quantidade de mal ocorra se ele não quiser nos enganar sobre
o que realmente significa a nossa separação de Deus. A quantidade
de mal que ele permite que ocorra é tão grande e tão horrível que
não podemos realmente compreendê-la, especialmente se somos
pessoas da classe média europeia ou norte-americana. Apesar disso,
todos entendem que a quantidade de mal podia ser muito maior.
Os habitantes de um mundo em que os seres humanos se separaram
de Deus e ele simplesmente os abandonou veriam o nosso mundo
como um paraíso em comparação com o deles. Mas esse mal terá um
fim. Em algum momento, por toda a eternidade, não haverá mais
o sofrimento não merecido: a escuridão atual, “a era do mal”, será
lembrada no fim como uma breve tremulação no início da história
da humanidade. Todo o mal cometido pelos perversos contra os
inocentes será vingado e cada lágrima será enxugada. E se houver
ainda o sofrimento, ele será merecido: o sofrimento daqueles que se
recusam a cooperar com o grande resgate divino, daqueles que, assim
Deus permite, existem eternamente em um estado de ruína que eles
mesmos escolheram – em suma, daqueles que estão no Inferno.
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Para uma discussão ampla do papel do acaso na defesa do livre-arbítrio estendida, veja van
Inwagen (1988).
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O problema do mal | Peter van Inwagen
ser verdadeiro”. Talvez você pense que esse não seja o caso. Talvez pense
que essa história seja bizarra. Talvez você pense que os agnósticos deve-
riam reagir a ela como as pessoas normais e razoáveis de um júri rea-
giriam se Clarence Darrow tivesse tentado levantar dúvida nas mentes
delas sobre o assassinato de Bobby Franks por Leopold e Loeb contando
a elas uma história centrada na ideia de que o assassinato não havia sido
cometido por seus clientes, mas sim por seus gêmeos malignos, clones
criados com o uso da ciência de seres extraterrestres malévolos. Deverí-
amos esperar que um membro normal e razoável do júri reagisse a essa
história dizendo algo como “Darrow quer fazer com que eu acredite
que, se os seus clientes forem realmente inocentes, o resto da história
que ele nos contou pode ser verdadeiro. Bem, não penso assim. Penso
que mesmo se esses dois jovens forem inocentes do assassinato do qual
são acusados, o resto da história é certamente falso”. Tenho de dizer que
não penso que os nossos jurados racionais, os membros da audiência
de agnósticos, reagiriam à defesa do livre-arbítrio estendida de modo
similar. Os jurados no caso criminal sabem o bastante sobre como as
coisas no mundo realmente são para saber que, mesmo se os acusados
forem inocentes, a história dos “gêmeos malignos” é certamente falsa
(“certamente” no sentido de que a probabilidade da sua verdade é tão
próxima a zero que a possibilidade de que ela seja verdadeira – estri-
tamente falando, a história é possível – deve ser ignorada por qualquer
pessoa engajada em uma deliberação prática). Mas os agnósticos seriam
racionais se dissessem que a história da criação-queda-e-reconciliação
é certamente falsa mesmo se Deus existir? Talvez você pense que a
história seja certamente falsa – ela é tão improvável que a possibilidade
da sua verdade tem de ser ignorada em uma investigação intelectual
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O argumento global do mal (continuação)
séria. Nesse caso, no entanto, talvez você pense que a existência de Deus
é muito improvável. Mas suponha agora que você seja subitamente
convertido ao teísmo, convertido à crença de que há um ser que, entre
outras coisas, é onipotente e moralmente perfeito. Você pensa que ainda
diria que a história da criação-queda-e-redenção é improvável? Se dis-
ser que sim, terei de discordar. Não é isso o que você diria. Porém não
quero dizer que, tendo sido convertido ao teísmo, você aceitaria de bom
grado a história ou pensaria que ela é mais provável do que improvável.
O que quero dizer é que você iria dizer que ela é o tipo de história que
poderia ser verdadeira, que ela representaria uma possibilidade real, que
a história seria, até onde se sabe, verdadeira.
Eis outra questão que você poderia querer perguntar: se eu acredito
na história que fiz Teísta contar. Bem, acredito em partes dela, e não
desacredito nenhuma delas. (Mesmo as partes que acredito não per-
tencem à minha própria fé; ela compreende meramente algumas das
minhas opiniões religiosas. Aquelas partes estão no mesmo nível que
a minha crença de que as ordens anglicanas são válidas). Não estou
muito certo sobre os “poderes preternaturais”, por exemplo, ou sobre a
proposição de que Deus nos protege do excesso de mal, e que o mundo
seria muito pior se não o fizesse. Mas o que eu acredito e não acredito
não vem ao caso. A história que contei constitui, lembro a você, simples-
mente uma defesa. Teísta não apresenta a defesa do livre-arbítrio como
uma teodiceia, como uma colocação da verdade a respeito da questão
envolvendo as presenças simultâneas de Deus e do mal no mundo.
E nem eu o faria se contasse a história. Teísta mantém tão somente, eu
mantenho tão somente, que a história é – dada a existência de Deus –
verdadeira até onde se sabe. E eu certamente não vejo qualquer razão
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CONFERÊNCIA 6
O argumento local do mal
Você, Teísta, pode ter contado uma história que explica a quantidade
enorme de mal no mundo, e também o fato de que grande parte
desse mal não é causada pelos seres humanos. Mas há uma objeção
ao teísmo que se baseia nos males que encontramos no mundo, e não
simplesmente no que poderia ser chamado de “fato geral do mal”.
Há um argumento baseado na gratuidade óbvia de muitos males
particulares. Apresentarei um argumento nesses termos e tentarei
convencer esses estimáveis agnósticos de que, mesmo se você tiver
respondido efetivamente ao que o nosso criador, van Inwagen, cha-
mou de “argumento global do mal”, a sua resposta a esse argumento
não é adequada para o que ele chamou de “argumentos locais do mal”.
212
O argumento local do mal
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O problema do mal | Peter van Inwagen
não estamos realmente falando que ele ocorreu, mas sobre um tipo
de evento. O nosso conhecimento da natureza e a nossa aceitação
do princípio de uniformidade da natureza torna impossível acreditar
que nenhum evento desse tipo jamais ocorreu). É certo que, não
importa quão sentimentais possamos ser em relação aos animais, esse
caso não tem muito de horror se comparado com Auschwitz, por
exemplo. Não é o grau de horror envolvido no evento que cria a difi-
culdade especial para os teístas, mas sim o seu completo isolamento
causal da existência e atividades dos seres humanos. Nenhum apelo
a considerações envolvendo o livre-arbítrio humano ou o futuro
benefício para os seres humanos pode possivelmente ser relevante
para o problema que esse caso coloca para o Teísta, ou seja, a dificul-
dade de explicar por que um ser onipotente e moralmente perfeito
permitiria que uma coisa dessas acontecesse.
214
O argumento local do mal
1
Essa história também foi usada por Marilyn Adams (1989; 1999). O meu uso dessa história
é independente do dela: li nos jornais os relatos iniciais do evento apavorante recontado na
história (creio que ele ocorreu em 1980) e desde então o tenho usado como exemplo em
minhas aulas de filosofia da religião. Também notarei que, embora eu e Adams usemos a
palavra “horrores”, ela usa essa palavra em um sentido técnico especial e eu não faço isso.
O sentido dela é “males nos quais a participação (cometer ou sofrer esses males) dá a uma
pessoa uma razão prima facie para duvidar se a sua vida como um todo poderia (dada a
inclusão dos males na sua vida) ser um grande bem para ela”. Não me posiciono em relação
à questão se todos ou alguns dos eventos que chamo de “horrores” têm essa característica.
215
O problema do mal | Peter van Inwagen
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O argumento local do mal
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O problema do mal | Peter van Inwagen
usar para mostrar que o mundo não foi criado por um ser onipotente e
moralmente perfeito – dado, obviamente, que as outras três premissas
do argumento dela, devidamente ajustadas, sejam verdadeiras.
Deixarei Teísta empregar outra linha de ataque à réplica de Ateísta
à sua defesa do livre-arbítrio estendida. Vou representá-lo negando a
premissa 3), ou seja, tentando mostrar que a defesa do livre-arbítrio
estendida lança uma dúvida considerável sobre a premissa 3). A fim de
permitir a você melhor seguir o que Teísta dirá, tentarei fixar o conte-
údo essencial de 3) apresentando-o em termos de uma metáfora bem
extravagante. Imagine um criador moralmente perfeito realizando uma
verificação final do projeto em quatro dimensões do mundo que ele está
prestes a criar. Ele percebe então uma mancha de horror, reflete por
um instante e constata que se apagar esse horror e substituí-lo por algo
inócuo, preenchendo os buracos espaço-temporais para tornar as linhas
de causação contínuas (ou quase isso) no projeto revisado, um mundo
feito de acordo com o projeto revisado conterá um balanço do bem e do
mal pelo menos tão favorável quanto um mundo feito de acordo com
o projeto original. Ele percebe que há uma obrigação moral de revisar
o projeto do modo como pensou e incorporar a revisão na sua criação;
sendo moralmente perfeito, ele necessariamente revisa o projeto e cria
de acordo com o projeto revisado. (ou, para ser pedante, ele necessaria-
mente revisa o projeto e cria de acordo com o projeto revisado se ele
é capaz de revisar o projeto e criar de acordo com o projeto revisado).
A premissa 3) simplesmente diz que isso é o que tem de acontecer
quando um criador moralmente perfeito nota em seu projeto para o
mundo um horror que possa ser “editado” sem alterar significativamente
o balanço do bem e do mal representado nesse projeto.
218
O argumento local do mal
Por que devemos aceitar essa premissa? Deem uma olhada na defesa
de Rowe da premissa correspondente em seu argumento, que citarei
completa:
2
Rowe (1979, p. 337 apud ADAMS; ADAMS, 1990, p. 129).
219
O problema do mal | Peter van Inwagen
a um bem que supere esse mal ou se impedir esse mal leve a outro
mal pelo menos tão mau.
(Note que esse princípio não diz que, se permitir o mal leva a um
bem que supera o mal ou impedir o mal resulta em algum mal pelo
menos tão mau, deve-se permitir que o mal ocorra – ou mesmo que
é moralmente admissível permitir que o mal ocorra).
Uma palavra sobre a frase “em condição de”. Entendo que ela impli-
que tanto “ser capaz” como “ser moralmente permitido”. Em relação
a essa última implicação, talvez – não importa o que os utilitaristas
possam dizer – não caiba a uma pessoa impedir certos males. Alguns
males ameaçadores podem ser tais que impedi-los poderia ser visto
muito mais como uma intromissão na vida de outras pessoas, um
desrespeito ao direito que as pessoas têm de se dar mal. (Lembre-se
do caso de Dorothy e seu médico do capítulo anterior). Ou impedir
certos males poderia ser presumir uma autoridade legal ou moral
que não se tem (considere o caso do policial que secretamente mata
um assassino em série que a justiça está impedida de pôr na cadeia).
Insistir no componente moral de “em condição de” é provavelmente
necessário para tornar plausível o princípio ao qual Rowe apela
(assim penso). Tendo dito isso, posso seguir adiante ignorando o
que disse, pois, ao que parece, jamais seria moralmente inadmissível
para Deus impedir um mal; pelo menos não com base na alegação
de que o assunto em questão não é da conta dele ou está fora do
âmbito da autoridade moral dele. Deus não está no mesmo nível que
nós; ele é, em vez disso, nosso Criador, e tem toda autoridade moral.
220
O argumento local do mal
221
O problema do mal | Peter van Inwagen
222
O argumento local do mal
assaltos à mão armada. Estou certo que você já percebeu aonde isso
vai chegar. Dado que Metralha tenha tempo, energia e disposição
suficiente para entrar com 3.648 petições sucessivas, ele irá se livrar
da prisão.
223
O problema do mal | Peter van Inwagen
errado nisso. Visto que a posição exata do limite será sempre uma
questão arbitrária (seja onde for que ele seja traçado), poderíamos
deixar que o lugar exato da sua colocação dependa parcialmente do
conjunto de preferências arbitrárias (moralmente falando) que a
natureza nos deixou.
224
O argumento local do mal
3
Veja Is 30:27-8 e 45:7. Esta última passagem diz “Eu formo a luz e crio as trevas, promovo a
paz e causo o mal; Eu o Senhor faço todas essas coisas”. Conforme Baelz (1968, p. 64), J. S. Mill
fechou a sua Bíblia quando leu essas palavras. No Novo Testamento, veja as histórias da torre
de Siloé (Lc 13: 1-9) e do homem que nasceu cego ( Jo 9: 1-41).
225
O problema do mal | Peter van Inwagen
226
O argumento local do mal
227
O problema do mal | Peter van Inwagen
228
O argumento local do mal
Mas vejo que Ateísta quer protestar; ela planeja contar a vocês que,
dados os termos da defesa do livre-arbítrio estendida, Deus deveria
ter permitido uma quantidade mínima de horrores consistente com
o seu projeto de reconciliação, e que é óbvio que ele não fez isso.
Ela irá contar a vocês que há um limite não arbitrário que Deus
poderia ter traçado, e ele é o limite que tem uma quantidade mínima
de horrores do lado da “realidade”. Porém esse limite não existe.
Não há uma quantidade mínima de horrores consistente com o
plano de Deus de reconciliação, porque o impedimento de qualquer
horror particular possivelmente não poderia ter efeito sobre o plano
divino. Para qualquer n, se a existência de não mais do que n horrores
é consistente com o plano de Deus, a existência de não mais do que
229
O problema do mal | Peter van Inwagen
4
Não se segue então que, para qualquer n, se a existência de no máximo n horrores é con-
sistente com o plano de Deus, então a existência de no máximo m horrores (em que m é
qualquer número menor do que n, incluindo 0) é consistente com o seu plano? Não: a indução
matemática é válida só para predicados precisos.
230
O argumento local do mal
231
O problema do mal | Peter van Inwagen
No claro mundo do bom senso, a razão por que Deus não impede a
Mutilação – na medida em que há um “porquê” – é a seguinte. Deus
tinha de traçar um limite arbitrário, e assim o fez. E isso é tudo o que
há para ser dito. Esse é certamente um conforto frio para a vítima.
Ou, visto que estamos meramente contando uma história, talvez
fosse melhor dizer: se essa história for verdadeira e se for conhecida a
sua verdade, esse conhecimento seria um conforto frio para a vítima.
232
O argumento local do mal
233
O problema do mal | Peter van Inwagen
Mil crianças têm uma doença que é fatal se não for tratada. Temos
certa quantidade de um medicamento que é efetivo contra a doença.
No entanto,o medicamente é efetivo se a dose for alta o bastante.
Se distribuímos o medicamento igualmente, ou seja, se damos um
milésimo da quantidade total a cada uma das crianças, todas elas
234
O argumento local do mal
Considere agora uma das crianças que morrerá se esse plano for
levado adiante (suponha que os sorteios foram feitos, mas o medi-
camento ainda não foi distribuído); suponha que o nome da criança
seja Charlie. O nosso plano, como eu disse, é este: dar a cada uma
das n crianças uma unidade do medicamento. Mas suponha que a
mãe de Charlie proponha um plano alternativo. Ele aponta para as
n unidades do medicamento colocadas em pequenos frascos sobre
a mesa, esperando para serem distribuídas, e diz: peguem 1/n+1
unidades de cada frasco e deem n/n+1 unidades ao meu Charlie.
235
O problema do mal | Peter van Inwagen
Então cada uma das n-crianças que teria recebido uma unidade
receberá 1 – (1/n+1) unidades – que é (n+1/n+1) – (1/n+1), ou seja,
n/n+1. Se a distribuição for realizada, cada uma das n crianças, assim
como Charlie, receberá n/n+1 unidades. Representado algebrica-
mente como está, o plano dela é muito abstrato para ser facilmente
compreendido. Vamos considerar um número particular. Suponha
que n seja 100. Eis então o que acontecerá se o plano “original” de
distribuição for levado adiante: cada uma das 100 crianças receberá
uma unidade do medicamento e sobreviverá (pelo menos se 100 for
a menor quantidade suficiente); 900 crianças morrerão. E eis o que
acontecerá se o plano da mãe de Charlie for levado adiante: Charlie,
assim como cada uma das outras 100 crianças, receberá 100/101
unidades do medicamento – aproximadamente 99 por cento de
uma unidade – e sobrevive, assim como as outras 100 crianças; 899
crianças morrerão. Ou, se você assim preferir, não podemos dizer
que isso é o que teria acontecido; não podemos fazer essa afirmação
contrafactual sem qualificação. (E também não éramos capazes de
prever com certeza que todas as 100 crianças viveriam no caso ini-
cial). Mas podemos dizer que é quase certo que isso teria acontecido.
“Assim”, a mãe de Charlie argumenta, “vocês percebem que podem
evitar a morte certa de uma criança com um risco muito pequeno
para as outras; talvez sem nenhum risco, pois a conjectura de que o
valor de n devesse ser fixado como 100 era nada mais do que uma
conjectura. Se vocês fixassem o valor de n como 101, essa seria
igualmente uma boa conjectura”. Podemos tornar o argumento dela
perfeito se assumimos que para qualquer determinação do valor n,
esse número mais 1 seria igualmente uma boa determinação. Para
236
O argumento local do mal
“Bem”, alguém pode dizer, “a mãe de Charlie tem razão. Mas o fato
de que ela tenha razão mostra que as autoridades não selecionaram
o melhor valor de n; n deveria ser um número maior”. Mas fiz as
minhas autoridades ficcionais escolherem o número 100 só para ter
um número concreto para ilustrar o argumento da mãe de Charlie.
Ela poderia ter apresentado essencialmente o mesmo argumento seja
qual fosse o número que as autoridades tivessem escolhido, e elas
teriam de escolher algum número. E o que as autoridades dirão à
mãe de Charlie? Elas têm ou de aceitar a proposta dela ou rejeitá-la.
Por um lado, se aceitarem a proposta dela, elas terão de lidar com
o pai de Alice, que dirá “Vocês têm 101 fracos de medicamente na
mesa, cada um deles contém a mesma quantidade de medicamento.
Chame essa quantidade de “dose”. Quero que vocês peguem 1/102
de uma dose de cada frasco e entreguem o que coletarem por esse
método para Alice”. Por outro lado, se eles rejeitarem a proposta
da mãe de Charlie, eles terão de condenar Charlie à morte sem
alcançar com isso nenhum bem. Não podemos evitar a seguinte
conclusão: não importa o que as autoridades façam, elas terão de
237
O problema do mal | Peter van Inwagen
238
O argumento local do mal
5
A não ser, como sugeriu C. S. Lewis, que o sofrimento os animais pré-humanos seja atribuído
à corrupção da natureza causada pelos anjos decaídos. Discutirei brevemente essa sugestão
na conferência 7.
239
CONFERÊNCIA 7
O sofrimento dos animais irracionais
1
Endosso uma ontologia modal “abstracionista”. Ou seja, aplico o termo “mundo possível”
a objetos abstratos de algum tipo – estados de coisas, talvez. (Veja Van Inwagen, 1986).
Portanto, se esse fosse um livro técnico de metafísica, eu distinguiria cuidadosamente
“o mundo atual” de “o universo” (ou “o cosmo”). Eu mostraria que, embora Deus tenha
criado o universo ex nihilo – e poderia ter criado um universo diferente ou não ter criado
nenhum universo –, o mundo atual é um objeto abstrato necessariamente existente (embora
seja atual de modo contingente), e que Deus não criou, mas atualizou esse mundo: de fato, eu
mostraria que provavelmente Deus não fez nem isso; provavelmente ele atualizou só alguns
estados de coisas “amplos” nele incluídos. Eu mostraria que, embora Deus não seja parte do
242
O sofrimento dos animais irracionais
universo (nem compartilha qualquer parte com ele), ele existe no mundo atual (como existe
em todos os mundos possíveis). Neste livro, não mostrarei nenhuma dessas coisas. Ignorar
esses pontos metafísicos interessantes (no sentido de não discuti-los explicitamente; é claro
que penso neles enquanto escrevo) não enfraquecerá o meu argumento.
243
O problema do mal | Peter van Inwagen
2
As leis da natureza falham em um mundo se algumas delas forem falsas nesse mundo. (Seja
o que for uma lei da natureza, ela é no mínimo uma proposição, e, assim, tem um valor
de verdade). Por exemplo, se “em todo sistema fechado, o momentum é conservado” é uma
lei da natureza no mundo m, e se, em m, há sistemas fechados em que o momentum não é
conservado, as leis da natureza falham em m. Para uma explicação das leis da natureza que
permite que uma proposição seja falsa em m e uma lei da natureza em m, veja van Inwagen
(1988).
244
O sofrimento dos animais irracionais
3
Nesse exemplo, assumo que a pressão seletiva é necessária se a diversificação taxonômica da
ordem exibida na biosfera terrestre deve ocorrer no curso natural dos eventos (isto é, sem
milagres). Isso é certamente verdadeiro até onde se sabe.
245
O problema do mal | Peter van Inwagen
4
Note que as proposições 1), 2) e 3) não contêm nenhum elemento sobrenatural e poderiam
ser admitidas sem contradição pelos mais fervorosos ateístas e naturalistas.
246
O sofrimento dos animais irracionais
uma boa chance de ser verdadeira. Mas essa resposta não é melhor
do que “entre 7% e 96%” ou “entre 4% e 6% ou entre 10% e 97%”.)
E porque você não tem como responder à questão sobre a proporção de
bolas pretas na urna, você não tem como atribuir uma probabilidade à
hipótese de que a primeira bola a ser tirada da urna será uma bola preta.5
Eis um caso menos artificial. Se você me perguntar que proporção
de galáxias além da nossa própria contém vida inteligente, provavel-
mente terei de dizer que não sei;6 para mim, nenhuma resposta que eu
pudesse oferecer seria epistemicamente defensável. A resposta poderia
ser “todas” ou “nenhuma” ou “todas, exceto algumas” ou “a metade delas”.
Não vejo uma razão para preferir uma resposta possível a essa questão
a qualquer outra resposta que possa competir com ela. (Ou esse é o
meu julgamento, um julgamento baseado no que sei. Eu poderia estar
errado sobre as implicações do que penso saber, porém, nesse caso, eu
estaria errado sobre quase tudo o mais). E se estou certo em pensar que
não posso dizer que proporção de galáxias contém vida inteligente, não
tenho como atribuir uma probabilidade à hipótese de que uma dada
galáxia, uma que fosse escolhida ao acaso, contém vida inteligente.
5
Se pedissem a você para atribuir uma probabilidade à hipótese “A primeira bola retirada será
uma bola preta” antes que o número fosse retirado do chapéu, você saberia qual probabilidade
atribuir: ela seria a média das cento e uma probabilidades que seriam escolhidas no sorteio:
(0/100 + 1/100 + 2/100 + ... 100/100) / 101; isto é, 0.5. Contudo, a tese afirmada no texto é
que depois que o número foi sorteado você não tem como atribuir uma probabilidade a essa
hipótese.
6
Para tornar o caso mais realista, eu diria “galáxias da mesma idade e tipo como a nossa própria
Via Láctea”. É improvável que galáxias muito “jovens” sejam habitadas, e o mesmo é verdade
a respeito de galáxias muito antigas que pertencem a vários tipos especificáveis.
247
O problema do mal | Peter van Inwagen
7
Essa afirmação requer qualificação. Alguém poderia objetar que cada uma das quatro pro-
posições que formam a nossa defesa é necessariamente verdadeira ou necessariamente falsa,
enquanto as proposições que figuram em nossos exemplos são contingentes. Ofereço, pois,
um novo exemplo que envolve uma proposição não contingente. Considere certa conjectura
matemática: que há o maior inteiro que tem a propriedade F. Suponha que todos os mate-
máticos que entendem plenamente o que está envolvido nessa conjectura não estão dispostos
a aderir à verdade ou à falsidade dela – que nenhum deles tem uma inclinação para dizer
que ela é verdadeira ou que ela é falsa. Assim, o leigo que sabe disso não está em condição
de atribuir uma probabilidade à conjectura. Poder-se-ia, obviamente, dizer que, porque a
conjectura é necessariamente verdadeira ou necessariamente falsa, o leigo está em condição de
excluir muitas atribuições de probabilidade – de fato, todas, exceto 0 e 1. (E poder-se-ia ir em
frente afirmando que o mesmo seria verdade acerca da nossa defesa). Em certa compreensão
da probabilidade (“objetivista” em oposição à “probabilidade subjetiva”), isso é correto. (Nesta
nota e no texto, tenho sido deliberadamente vago sobre o tipo de probabilidade sobre o qual
falo – simplesmente com o fim de evitar o que seria a meu ver uma digressão desnecessária).
Mas o seguinte ponto é válido, e ele é o único que importa: o leigo deveria estar disposto
a dizer acerca da conjectura “Até onde sei, ela é verdadeira, e, até onde sei, ela é falsa. Sou
completamente neutro em relação ao valor de verdade dela”.
8
Os dois exemplos têm estruturas isomórficas. Suponha que a urna contenha tantas bolas
quanto o número de galáxias. (O número de bolas na urna é irrelevante para a força do
exemplo). Suponha que o deus que prepara a urna atribua uma galáxia a cada bola, e que ele
torna uma bola branca se ela corresponde a uma galáxia habitada e preta se ela corresponde a
uma galáxia inabitada. Uma urna preparada dessa maneira seria, do ponto de vista de alguém
em nossa condição epistêmica a quem se pediu para atribuir probabilidade a “A primeira
bola retirada será uma bola preta”, indistinguível de uma urna contendo o mesmo número
de bolas em que a proporção de bolas pretas foi escolhida por sorteio aleatório.
248
O sofrimento dos animais irracionais
249
O problema do mal | Peter van Inwagen
dada a especificação que ela fez das leis e das condições limítrofes.
A não ser que ela proceda desse modo, o que ela afirmar sobre o que é
intrinsecamente ou metafisicamente possível – e assim o que afirmar
sobre as “opções” de um ser onipotente ao criar um mundo – será total-
mente subjetivo e, portanto, sem valor.9
O nosso próprio universo oferece o único modelo que temos para
essa formidável tarefa de projetar um mundo.10 (Até onde sabemos, em
cada mundo possível que exige algum grau de complexidade, as leis
da natureza são as leis atuais, ou, pelo menos, têm a mesma estrutura
das leis atuais. Realmente, existem físicos com inclinação filosófica que
acreditam que há só um conjunto possível de leis da natureza, e é epis-
temicamente possível que eles estejam certos). O nosso universo – apa-
rentemente – evoluiu de uma singularidade inicial de acordo com certas
leis da natureza. Essas leis poderiam ser deterministas? E se forem,
não teria sido possível para um ser onipotente e onisciente ter cuida-
dosamente selecionado um estado inicial do universo como o nosso
de tal modo a tornar uma eventual utopia hedonista universal inevi-
tável? Bem, há este ponto: se um mundo evolui de uma singularidade,
ele não tem um estado inicial. Para criar um mundo que tenha um
estado inicial e, como o nosso, pareça ter evoluído de uma singularidade,
um criador onipotente teria de criar esse mundo ex nihilo em algum
momento “repleto com memórias de um passado irreal” (mesmo que
breve). E, como disse antes, esse seria um caso de irregularidade mas-
9
Sobre esse tópico, veja van Inwagen (1998).
10
Sobre os fatos do nosso mundo que poderiam ser apreciados por alguém engajado em projetar
um mundo, veja Rees (2000).
250
O sofrimento dos animais irracionais
siva. Mas vamos deixar de lado esse ponto e assumir que, se as leis da
natureza são deterministas, um ser onipotente poderia ter “sintonizado”
o estado inicial do universo a fim de produzir, com o tempo, uma utopia
hedonista. Um ser onipotente poderia ter igualmente feito com que
as leis da natureza fossem indeterministas? Não há nenhuma garantia
disso. Se as leis da natureza forem indeterministas, então, até onde
sabemos, qualquer estado inicial do mundo que permitisse a existência
eventual de animais complexos, não importando quão cuidadosamente
selecionado fosse esse estado, poderia (se o mundo fosse deixado entre-
gue à própria sorte depois de criado) eventualmente ser sucedido por
estados que envolvessem enormes quantidade de sofrimento. Portanto,
uma criação determinista parece ser a única opção de um criador que
deseja fazer um mundo que contenha animais complexos que nunca
sofrem: mesmo se só uma proporção mínima de estados iniciais pos-
síveis do mundo gerasse o resultado desejado, mesmo se só um deles o
fizer, ele poderia escolher criar um mundo com esse estado inicial. Mas
um mundo determinista (um mundo determinista com organismos
complexos como os organismos do mundo atual) é possível? Temos
uma razão para pensar que um mundo determinista é possível? Essas
questões levantam mais questões, que na maioria das vezes não podem
ser respondidas. Apesar disso, os seguintes fatos parecem relevantes
para qualquer tentativa de respondê-las, e sugerem que há pelo menos
uma boa razão para pensar que um mundo determinista que contém
a vida complexa – ou qualquer tipo de vida – pode não ser possível.
A vida depende da química, e a química depende de átomos, e os
átomos dependem da mecânica quântica (classicamente falando, um
átomo não pode existir: os elétrons de um átomo “clássico” se move-
251
O problema do mal | Peter van Inwagen
11
No entanto, duvido se a gênese da racionalidade envolveu apenas as operações das leis da
natureza. Direi algo sobre as minhas razões para o ceticismo nesse ponto posteriormente
nesta conferência.
252
O sofrimento dos animais irracionais
253
O problema do mal | Peter van Inwagen
12
Para a evidência em apoio a essa tese, se evidência é necessária, veja Philip Yancey e Paul
Brand, The gift of pain (1997). Paul Brand é o médico que descobriu que a lepra (hanseníase)
não “apodrece a carne”, como se pensou por muito tempo. A doença, em vez disso, destrói
os nervos que transmitem sinais de dor ao cérebro de muitas partes do corpo da vítima,
particularmente das mãos e dos pés; o que observadores tomaram como carne podre era a
carne que havia sido enfaixada e comprimida (sem a intenção, pelos próprios “donos”, que,
incapazes de sentir dor, não tinham ciência do que estavam fazendo a si mesmos) até que
lesões se desenvolvessem.
The Gift of Pain é sobre a “função” da dor humana, mas – dado que os autores estejam certos
sobre a dor humana – é difícil não concluir que a dor tenha a mesma função nas economias
fisiológicas de macacos e castores. Eu recomendo particularmente aos leitores deste livro a
discussão dos autores (p. 191-197) do “porquê da dor machucar tanto” – ou seja, a apresentação
deles de evidência empírica convincente para a tese de que sinais de danos periféricos inci-
pientes que não sejam particularmente desagradáveis (uma buzina estridente, por exemplo)
ou sejam só levemente desagradáveis (um choque elétrico suave, por exemplo) são meios
ineficazes de proteger um organismo de se ferir inadvertidamente.
13
Muitos críticos do teísmo dão grande importância ao “desperdício” ou à “prodigalidade”
encontrados na natureza e que é sem dúvida uma consequência necessária de um processo
evolutivo em que a seleção natural tem um papel significativo. (Considere, para ter só um
exemplo, as incontáveis espécies – classes, ordens, e mesmo alguns filos – que desapareceram
“sem herdeiros”. Todas as modificações inteligentes que o tempo e o acaso operaram no
material genético dessas espécies desapareceram: milhares de soluções engenhosas e úteis
para problemas de design biológico foram, digamos assim, acidentalmente deletadas do disco
rígido da natureza). Esse desperdício e prodigalidade deveriam ser considerados como um
aspecto dos “padrões de sofrimento no mundo atual”.
254
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O problema do mal | Peter van Inwagen
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O sofrimento dos animais irracionais
257
O problema do mal | Peter van Inwagen
supor que as inclinações dele – por que qualquer pessoa deveria supor
que as inclinações dela – para fazer julgamentos sobre o valor relativo
de vários estados de coisas são guias confiáveis para os verdadeiros
valores relativos de estados de coisas de magnitude cósmica que não
têm conexão com os negócios da vida humana? As intuições de uma
pessoa sobre o valor são ou um presente de Deus ou um produto da
evolução ou socialmente inculcadas ou derivadas de uma combinação
dessas fontes. Por que deveríamos supor que qualquer uma dessas fon-
tes nos daria meios de fazer julgamentos de valor corretos em relação
a questões que não têm nada a ver com os interesses práticos da vida
cotidiana? (Como eu disse na Conferência 4, penso que temos de ser
capazes de falar de julgamentos de valor corretos se o argumento do mal
tem alguma plausibilidade. Um eminente filósofo da biologia disse em
algum lugar que Deus, se existisse, seria indescritivelmente malevolente
por ter criado um mundo como o nosso mundo e, em outro lugar, que a
moralidade é uma ilusão à qual nos sujeitamos por causa da vantagem
evolutiva que a sujeição a ela confere. Essas duas teses não me parecem
formar uma posição coerente.).14 Quando coloquei a questão “Como
uma pessoa pode levar em frente a tarefa de projetar um mundo?”, eu
(com efeito) defendi uma forma de ceticismo modal: as nossas intuições
modais, nas quais sem dúvida devemos confiar quando nos dizem que a
mesa poderia ter sido colocada no outro lado da sala, não são confiáveis
em questões como, por exemplo, se um universo em que houvesse cria-
turas sencientes superiores que não sofressem poderia ser um universo
14
Em minha opinião, é justo compará-lo a um cientista cristão que acredita que todas as
doenças são ilusões e que fumar cigarros causa câncer de pulmão.
258
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15
A minha resposta a essa questão contém a seguinte afirmação: a não ser que se proceda assim,
as afirmações de alguém sobre o que é intrinsicamente possível – e as afirmações de alguém
sobre as opções de um ser onipotente ao criar o mundo – seriam inteiramente subjetivas, e,
portanto, sem valor. Ao dizer isso, acabo defendendo um ceticismo modal, porque “proce-
der desse modo” não é algo que alguém já tenha feito; e nem é algo que é possível fazer no
presente.
259
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16
Essa “citação” não é uma passagem contínua, mas uma seleção de versos espalhados de Jó 38
(versos 3, 4, 21, 31, 33).
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17
Para uma discussão de Deus “deixar coisas para o acaso”, veja van Inwagen (1988).
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O sofrimento dos animais irracionais
18
E também porque estou fortemente inclinado a pensar que ele seja uma verdade. Mais pre-
cisamente (pois o caso é, por natureza, imaginário, e perguntar se ele tem essa característica
é, pois, como perguntar se Lady Macbeth tinha três filhos), estou fortemente inclinado a
pensar que houve casos em que os animais irracionais que existiram muito antes que houvesse
seres humanos morreram em agonia e “nenhum bem adveio disso”.
265
O problema do mal | Peter van Inwagen
que não são capazes de dizer que um bem maior poderia depender
de algum caso particular de sofrimento animal. Pode ser que eles não
vejam que bem poderia ter essa característica pela simples razão de que
nenhum bem possível tem essa característica; mas, como vimos, um
Deus moralmente perfeito poderia ter permitido esse caso particular
de sofrimento mesmo que nenhum bem advenha dele.19
Considerarei agora algumas questões levantadas pela defesa que
tenho usado para contestar o argumento global do sofrimento animal
e algumas possíveis objeções a essa defesa.
Começarei observando que não apresento uma justificação para
o fato de que a minha defesa “total”, a defesa composta, compreenda
duas partes bem diferentes. Se é Deus que permite os sofrimentos dos
animais irracionais e dos seres humanos, parece-me que não é implau-
sível supor que ele tenha uma razão para permitir os sofrimentos dos
animais irracionais e outra razão, inteiramente diferente, para permi-
tir os sofrimentos dos seres humanos. Isso me parece plausível por-
que os seres humanos são radicalmente diferentes de todos os outros
animais terrestres, incluindo os primatas mais inteligentes. Podemos
19
Poderia ser que, por exemplo, o mundo seja “aproximadamente regular” (o “oposto” de “massi-
vamente irregular”: “aproximadamente regular” está para “massivamente regular” assim como
“muito alto” está para “muito baixo”), e que esse é um grande bem. Sem dúvida, o mundo
ainda teria sido aproximadamente regular se Deus tivesse miraculosamente salvado o cervo.
E, portanto, se a regularidade é um grande bem “em jogo” nesse caso (e a irregularidade o
único mal), nenhum bem seria alcançado (e nenhum bem impedido) permitindo-se que o
cervo sofra e morra. Se, no entanto, Deus tivesse miraculosamente eliminado todos os casos
de sofrimento intenso do mundo natural, o bem da regularidade aproximada teria sido
perdido. E esse bem teria sido perdido se ele tivesse eliminado todos exceto um deles, todos
exceto dois deles, todos exceto três deles...
266
O sofrimento dos animais irracionais
267
O problema do mal | Peter van Inwagen
No entanto, pode-se ficar admirado com quanta dor é sentida pelas vítimas de predadores.
20
Eis uma famosa passagem do primeiro capítulo do Missionary travels (1860) de David
Livingstone:
Quando colocava as balas, ouvi um grito. Assustado, olhei em volta, e vi um leão se prepa-
rando para saltar sobre mim. Eu estava um pouco acima; ele agarrou o meu ombro quando
saltou, e nós dois caímos no chão juntos. Urrando horrivelmente próximo ao meu ouvido, ele
sacudiu-me como um cão de caça sacode um rato. O golpe produziu um estupor similar ao
que parece ser sentido por um camundongo depois do primeiro golpe de um gato. Ele causou
uma espécie de devaneio, em que não havia mais sentimento de dor nem de terror, embora
eu estivesse bem consciente de tudo o que acontecia. Foi como o que os pacientes sob a
influência do clorofórmio descrevem, que veem toda a operação, mas não sentem o bisturi.
Essa condição singular não foi resultado de um processo mental. O golpe aniquilou o medo,
e não permitiu nenhum sentimento de horror ao ver em volta a besta. Esse estado peculiar
é provavelmente produzido em todos os animais mortos por carnívoros; e se for assim, ele
é uma providência de nosso Criador benevolente para diminuir a dor da morte.
O eminente neurocientista Vilayanur S. Ramachandran diz em suas Conferências Reith o
seguinte sobre esse incidente:
Pense na história de Livingstone sendo atacado por um leão. Ele viu o seu braço ser arrancado
[o ferimento de Livingstone não foi tão mau assim, mas o osso do seu braço foi esmagado
e ele sofreu cortes profundos e sérios dos dentes do leão. – PvI], mas não sentiu dor e nem
medo. Ele se sentiu como se estivesse separado de si mesmo, vendo tudo o que acontecia.
A propósito, a mesma coisa acontece com soldados em batalha e algumas vezes até com
mulheres sendo violentadas. Durante essas emergências medonhas, o córtex cingulado ante-
rior, parte dos lobos frontais, torna-se extremamente ativo. Isso inibe ou temporariamente
desliga a sua amígdala e outros centros emocionais límbicos, assim você suprime potencial-
mente emoções que desabilitam como a ansiedade e o medo – temporariamente. Mas ao
mesmo tempo, o córtex cingulado anterior o torna extremamente alerta e vigilante, e assim
você pode realizar a ação apropriada.
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O sofrimento dos animais irracionais
As Conferências Reith são apresentadas pela BBC Radio 4. Essa passagem é da Conferência
5, “Neuroscience – the New Philosophy”. O texto da Conferência pode ser encontrado em:
<http//www2.thny.bbc.co.uk/radio4/reith2003/lecture5.shtml>.
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O problema do mal | Peter van Inwagen
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O sofrimento dos animais irracionais
maior do que 10%. Mas seria bom, do ponto de vista do Teísta, ter dez
defesas independentes, a despeito do fato de que isso acarretaria uma
probabilidade média baixa para as defesas individuais).
Poder-se-ia também argumentar que há certa tensão entre a defesa
da antirregularidade e a defesa do livre-arbítrio estendida, visto que a
defesa da antirregularidade implica que há pelo menos evidência prima
facie contra Deus empregar um milagre em certa ocasião, e a defesa do
livre-arbítrio estendida acarreta que a elevação dos nossos ancestrais não
humanos imediatos ao status humano ou racional foi um evento miracu-
loso. Porém esse argumento tem pouca força, pois a elevação dos nossos
ancestrais primitivos à racionalidade poderia acontecer em um mundo
que contivesse muito pouca irregularidade miraculosa. De fato, ela exi-
giria nada mais do que uma transformação do genótipo ou fenótipo de
uns poucos ou de poucas centenas ou, no máximo, de poucos milhares
de organismos. Poder-se-ia perguntar por que a defesa do livre-arbítrio
estendida precisa postular que a gênese da racionalidade humana requer
a intervenção divina. Há duas razões. Primeiramente, os seres humanos
e os animais irracionais são, como observei, radicalmente diferentes.
Há um abismo entre nós e os primatas superiores. Acho difícil acreditar
que esse abismo foi superado pelos mecanismos comuns da evolução
no tempo em que efetivamente foi superado. Independentemente de
quando os primeiros primatas racionais passaram a existir, é claro que
os nossos ancestrais de um milhão de anos atrás eram meros animais,
não mais racionais do que os chimpanzés e gorilas atuais, e um milhão
de anos não é muito tempo para o desenvolvimento evolutivo de algo
radicalmente novo. De modo similar, acho difícil acreditar em um pale-
ontologista que me diz que, em algum momento na história da vida,
271
O problema do mal | Peter van Inwagen
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O sofrimento dos animais irracionais
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O problema do mal | Peter van Inwagen
a todos esses seres racionais? Para onde foram? Eles não podem ter
morrido, pois, de acordo com a nossa história, a morte humana é uma
consequência da rebelião”. Teísta poderia responder que, depois de certo
período de vida no Paraíso, durante o qual eles se casaram e constituí-
ram famílias, os seres humanos edênicos foram elevados a outro modo
de existência; nas palavras de Tolkien, “removidos para sempre dos
círculos do mundo”. Essa réplica poderia salvar a coerência da história,
porém não remove o seu elemento miraculoso, pois a passagem da
existência paradisíaca para a existência transcendente seria um evento
miraculoso. E o problema era supostamente o elemento miraculoso
na história. Ou Teísta poderia dizer que os primeiros seres humanos
não foram para lugar nenhum. Eles jamais morreram, e a população
humana cresceu de poucas centenas de indivíduos para muitos milhões
(no tempo da rebelião). Mas isso traz dificuldades empíricas. (Um vasto
depósito de partes de esqueletos humanos mais ou menos do mesmo
período não indicaria as mortes dos que participaram da rebelião e dos
seus descendentes imediatos?) E qualquer revisão que se proponha da
defesa do livre-arbítrio estendida que, como as duas que considera-
mos, representa a gênese da racionalidade como um evento vago e sem
contornos definidos colocará um problema mais fundamental do que
aqueles que mencionei. Se a gênese da racionalidade foi um evento vago,
teria de ter havido um período longo, muito longo, em que os nossos
ancestrais não eram nem totalmente racionais e nem simples animais
irracionais. Ateísta certamente perguntará que papel essas criaturas
“intermediárias” tiveram no plano de Deus para a humanidade. E ela irá
pedir a Teísta para dizer à audiência em que ponto eles se tornaram não
sujeitos à morbidez – em que ponto eles pararam de morrer da forma
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21
Lewis (1940, p. 121-124).
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Veja Geach (1977, p. 79-80).
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viola com isso quaisquer empatias naturais como fez o Dr. Moreau.
Nessa questão, só a imaginação antropomórfica permite-nos acusar
Deus de crueldade (GEACH, 1977, p. 80).
Mas não vejo por que alguém que aceita esse argumento não acei-
taria também o seguinte argumento: Deus não é um animal como são
os homens, e se ele não muda os seus planos a fim de impedir a dor
e o sofrimento dos seres humanos, ele não viola com isso quaisquer
empatias naturais como fez Hitler. Nessa questão, só a imaginação
antropomórfica permite-nos acusar Deus de crueldade.23
Em 1973, ouvi Geach proferir uma série de conferências que continha muito do material que
23
depois foi publicado em Providence and evil (1977). Se a minha memória não me engana,
nessas conferências ele apresentou um argumento que não aparece no livro, um argumento
que responde exatamente essa questão. O argumento, como eu o lembro, era este, ou algo
parecido com este:
Os seres humanos e os animais irracionais compartilham a mesma natureza animal; os seres
humanos podem, portanto, ter empatia com os animais irracionais e, consequentemente, estão
sujeitos a (algumas severamente limitadas) obrigações morais em relação ao bem-estar deles.
Deus e os seres humanos compartilham a mesma natureza racional; Deus pode, portanto,
ter empatia com os seres humanos e, consequentemente, está sujeito a (algumas severamente
limitadas) obrigações morais em relação ao bem-estar deles. Porém nenhuma natureza é
comum a Deus e aos animais irracionais e, consequentemente, Deus não pode ter empatia
com eles e, portanto, não é sujeito a obrigações morais a respeito do bem-estar deles.
(A primeira e a terceira sentenças desse argumento correspondem proximamente ao argu-
mento do texto. É a segunda sentença que “responde exatamente a essa questão”). Se esse
é o argumento de Geach ou não, não vem ao caso. Seja qual for o mérito que o argumento
tenha, ele nem sequer reivindica ter mostrado que uma obrigação de cuidar de algum modo
dos sofrimentos físicos dos seres humanos está entre as obrigações a respeito do bem-estar
humano à qual se diz que Deus está sujeito. E, de fato, o oposto parece ser verdadeiro:
independentemente de quanto Deus possa ter empatia com aqueles aspectos da condição
humana que envolvem apenas a nossa natureza racional, ele não pode ter empatia com os
nossos sofrimentos físicos, e (se o argumento ampliado é correto) não pode ser sujeito a
qualquer obrigação moral fundada na empatia com o sofrimento físico.
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281
CONFERÊNCIA 8
A ocultação de Deus
1
Esse argumento não apela para a validade de “Ausência de evidência é evidência da ausência”
como um princípio epistemológico geral. E isso é uma vantagem, pois o princípio é um erro:
não temos evidência para a existência de um planeta habitado na galáxia M31, porém esse
fato não é evidência para a não existência desse planeta. Para uma discussão desse princípio
e argumentos para a não existência de Deus que se baseiam nele, veja Van Inwagen (2005).
Se o presente argumento apela para algum princípio epistemológico geral, ele é este princípio
óbvio: se uma proposição é tal que, se ela fosse verdadeira, teríamos evidência da sua ver-
dade, e se estivéssemos cientes de que ela tem essa propriedade, e se não tivermos evidência
da verdade dela, então esse fato, o fato de que não temos evidência para a verdade dela, é
evidência (conclusiva) da sua falsidade.
2
Aqueles que quiserem aprender mais sobre o problema da ocultação de Deus deveriam
consultar Howard-Snyder; Moser (2002). A presente conferência é uma versão estendida da
minha própria contribuição a essa coletânea, intitulada “What is the problem of the hiddenness
of God?”.
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3
Aqueles que pensam que os sofrimentos dos animais não humanos que não são relacionados
aos atos dos seres humanos são relevantes para o problema da ocultação de Deus podem se
sentir à vontade para imaginar que o nosso mundo inventado é um mundo em que os animais
irracionais no estado da natureza jamais sofrem. Como eu disse na conferência anterior, não
é fácil imaginar com detalhe um mundo biologicamente rico sem o sofrimento animal, a
não ser que ele seja imaginado como um mundo de milagres espalhados em toda parte – um
mundo em que, por exemplo, os cervos são sempre miraculosamente salvos de incêndios
florestais. Quem recorre a uma vasta coleção de milagres tem de tomar cuidado para fazer
com que eles passem “despercebidos” (pelo menos nas épocas e lugares em que há seres
humanos para notá-los), porque se esses milagres forem obviamente milagres, o propósito de
tentar imaginar uma utopia em que se poderia colocar “o problema da ocultação de Deus”
seria comprometido.
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A ocultação de Deus
Ateísta. Esse seu Deus – por que ele se oculta? Por que ele não apa-
rece claramente de tal modo que possamos vê-lo?
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4
Posso imaginar alguém no mundo atual (um leitor deste livro) protestando: “Esse argumento
metafísico confunde o Deus dos Filósofos com o Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Pois o profeta
Isaías diz (45: 15): Verdadeiramente tu és um Deus que se esconde, ó Deus de Israel, o Sal-
vador”. Em minha opinião, no entanto, Isaías está simplesmente chamando a atenção para o
fato de que Deus revelou-se só aos Hebreus, e não às grandes noções do Egito e do Crescente
Fértil. (Na Vulgata, a passagem de Isaías 45:15 é tornada “Vere, tu es Deus absconditus, Deus
Israel, Salvator”. Essa é a fonte da expressão “Deus absconditus” – “o Deus oculto” – que
frequentemente recorre nas discussões do problema da ocultação de Deus).
290
A ocultação de Deus
como Rembrandt “se mostra por meio dos efeitos das suas ações”
nas suas pinturas.
Ateísta. Essa resposta soa bem, mas eu não sei se ela não passa de
um palavreado vazio. O que quero não são “efeitos gerais”, mas,
permita-me usar essa expressão, “efeitos especiais”. Na sua concepção
da relação de Deus com o mundo, tudo pareceria ser exatamente
o mesmo, existindo ou não existindo Deus – e não diga que isso é
como dizer que uma das pinturas de Rembrandt pareceria a mesma,
existindo ou não existindo Rembrandt! Isso seria demais para mim.
Permita-me colocar o problema do seguinte modo. Comprei um dos
telescópios modais inventados pelo grande metafísico Saul Kripke e
observei outros mundos possíveis. Em um deles, tive o vislumbre do
seguinte argumento, em um livro de um filósofo chamado Tomás de
Aquino (evidentemente, um ateísta pleno como eu mesmo):
291
O problema do mal | Peter van Inwagen
Teísta. Você não quer demais, não é mesmo? Acontece que posso
oferecer algo do tipo que você quer. A minha religião é chamada
de julianismo, em homenagem à sua fundadora, Júlia, a maior das
profetizas e autora de O Livro de Júlia e mais quarenta volumes de
sermões chamados de As Palavras de Julia. A mensagem dela era tão
importante que Deus deu a ela um período de vida três vezes maior,
como sinal de uma graça especial e para assegurar que os seus ensi-
namentos tivessem chance de assentar raízes profundas. Júlia viveu
326 anos. E todos os fisiologistas concordam que é fisiologicamente
impossível um ser humano viver 326 anos. A vida sobrenaturalmente
longa de Júlia tem de ser, pois, um sinal de Deus.
292
A ocultação de Deus
Teísta. Júlia viveu cerca de 2.000 anos atrás. Sabemos da vida longa
de Júlia e de muitas outras coisas sobre ela porque os fatos da bio-
grafia dela estão cuidadosamente descritos nos Relatos Sagrados da
Igreja Juliana, que foram derivados originalmente de testemunhas
oculares.
293
O problema do mal | Peter van Inwagen
certamente não viveu 326 anos; o mais razoável é supor que o que
a experiência nos diz acontecer com frequência aconteceu também
nesse caso (ou seja, a história cresceu à medida que foi contada; e
ela teve muito tempo para crescer), e o que a experiência nos diz
nunca acontecer não acontece.5
Teísta. O que você diz parece ser o seguinte. Você afirma que se Deus
quer tornar a sua existência crível para os seres humanos, ele tem de
fazer com que um sinal particular e inegável ocorra em algum lugar
do mundo espaço-temporal. Mas quando você ouve uma história
de um evento que teria sido um sinal se tivesse realmente ocorrido,
você se recusa, com base em considerações epistemológicas gerais,
a acreditar na história.
5
Esse argumento tem como modelo o argumento central de Hume no seu injustamente
célebre ensaio “Dos Milagres” (HUME, 1999, seção X).
6
A afirmação de Ateísta é reminiscente de uma famosa afirmação de Norwood Russell Hanson
(HANSON, 1972, p. 322):
Não sou um cara cabeça-dura. Eu seria um teísta sob algumas condições. Sou cabeça-aberta.
[...] As condições são estas: suponha que, na próxima terça-feira de manhã, logo depois do
café da manhã, todos nós neste mundo sejamos colocados de joelhos por um trovão percussivo
e extremamente alto. A neve cai, assim como as folhas das árvores, a terra treme, edifícios e
torres tombam. O céu brilha com uma luz prateada ameaçadora, e então, quando todas as
294
A ocultação de Deus
pessoas deste mundo olharem para cima, os céus se abrem, e as nuvens se separam, revelando
uma figura como Zeus inacreditavelmente radiante e imensa, impondo-se a nós como cem
Montes Everest. Bem ao estilo das pinturas de Michelangelo, vemos as suas sobrancelhas
misteriosamente franzidas quando a luz ilumina a sua face, então aponta para mim, e explica
de tal modo que cada homem e mulher e criança possa ouvir: “Já estou farto de sua refinada
argumentação e observações sobre usos linguísticos em questões de teologia. Pois estejas
certo, Norwood Russell Hanson, que eu certamente existo!”.
295
O problema do mal | Peter van Inwagen
Ateísta. Bem, talvez você esteja certo quando diz que para ser con-
vincente os sinais teriam de recorrer periodicamente. Não vejo por
que eu não deveria fazer essa exigência e nem por que o meu argu-
mento seria enfraquecido se eu a fizesse. E quanto mais penso na
questão, mais fico inclinado a aceitar o seu segundo ponto também.
O seu argumento convenceu-me de algo imprevisto: que vocês teís-
tas inventaram um ser cuja existência ninguém pode racionalmente
acreditar, visto que a hipótese de que ele existe é de modo necessário
infinitamente mais forte do que outras hipóteses que explicariam
quaisquer observações possíveis igualmente bem. E se vocês não o
inventaram, se ele realmente existir, mesmo ele – ou qualquer outro
296
A ocultação de Deus
ser finito que ele poderia criar – não poderia nos dar evidências que
tornassem a crença em Deus racional. Se esse ser existir, ele deveria
aprovar-me por não acreditar nele, e desaprovar você por acreditar.
7
Por “sinais e milagres” quero dizer milagres “visíveis”, eventos que são contravenções à ordem
natural das coisas. (“Que uma casa e um navio se elevem no ar”, escreve Hume, “é um mila-
gre visível. Que se levante uma pena, quando o vento precisa de um pouco de força para
esse propósito, é um milagre não menos real, embora quase não seja percebido por nós”).
(HUME, 1999, seção X, n. 1). Usar um termo bíblico nesse sentido não é anacronismo.
“Lei da natureza” pode ser um conceito moderno (realmente, teria sido difícil explicar a
alguém do mundo antigo o que Hume queria dizer quando disse que uma pena se levantar
com a força do vento poderia ser uma violação da ordem natural – se o vento levantou a
pena, como poderia ter faltado, em algum grau, uma força necessária para esse propósito?; o
que isso quer dizer?), mas as pessoas nos tempos bíblicos estavam cientes de que a verdade
de certos relatos acarreta a existência de violações da ordem natural, pois esses relatos são
relatos de coisas que “quase nunca acontecem”. Veja, por exemplo, a reação de Pórcio Festo
à confissão de Paulo defronte o Rei Agripa (Atos, 26: 24). Festo era um homem prático do
século primeiro, não um filósofo pós-newtoniano, porém a sua reação ao discurso de Paulo
evidencia uma posição que é tão “humiana” quanto as diferenças com Hume permitem que
seja: é mais razoável acreditar que Paulo está louco do que acreditar no que ele diz, porque
os tipos de coisas que Paulo descreveu são tipos de coisas que quase nunca acontecem – e
um homem erudito que se torna louco por sua erudição é uma coisa comum de acontecer.
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Portanto,
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8
Essas palavras são de um manuscrito que, até onde sei, não foi publicado. Elas são citadas
em Bartlett (2000). Retirei-as da resenha de um livro de John Gillingham. Eis a segunda
citação do livro feita pelo resenhista: “o materialismo simples e a descrença na vida após a
morte eram provavelmente difundidos, embora tenham deixado poucos traços nas fontes
escritas pelos clérigos e monges.” (Nenhuma indicação de página é dada na resenha).
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Se Deus existe, ele quer que todos os seres racionais finitos acreditem
racionalmente na existência dele.
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9
Na versão do estudante americano, Russell prossegue dizendo: “Então Deus me disse, “Fez
muito muito bem, Bertie; você usou a mente que lhe dei. Entre no Reino dos Céus”. E você,
meu jovem, ele o mandará direto para o inferno”.
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10
Essa é a tradução da Bíblia de Jerusalém. Eis uma tradução mais literal: “Você crê que Deus
é único? Você faz bem. Os demônios também acreditam, e tremem”.
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11
Há alguma evidência de que o conto A Christmas Carol [de Charles Dickens] tenha sido
influenciado por Lucas 16? Eu gostaria de saber.
12
Provérbios 1: 16 – 2: 14. A frase “eles fizeram um pacto com a morte” ocorre em Isaías
(28: 15), mas o verso, acredito, faz referência a um tipo diferente de pacto.
305
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306
A ocultação de Deus
rios. Não deveríamos nos surpreender se nosso general, antes que fosse
tarde demais, encontrasse algum modo de convencer a si mesmo que a
visão do seu irmão foi algum tipo de ilusão, talvez um episódio psicótico
temporário, para assim expulsá-la da sua mente. Mas independente do
general continuar ou não a acreditar que o milagre que testemunhou
fosse real, esse milagre não produzirá qualquer mudança no compor-
tamento na qual Deus estivesse interessado. Ele não levará o general a
perceber que o mundo é um lugar horrível e a buscar uma saída desse
mundo horrível. Ele não o tornará um homem que acredita que o
mundo é um lugar horrível porque os seres humanos estão separados
de Deus, e que o mundo pode ser curado somente se a humanidade
se reunir com Deus. Ele não irá convencê-lo de que ele mesmo é um
horror moral, e que a sua única esperança de ser algo mais é se unir
a Deus em laços de amor. Não, o general gosta das coisas exatamente
como elas são – ou exatamente como pareciam ser antes de receber a
visita do seu irmão falecido. Ele não pensa que o mundo seja um lugar
horrível, embora ele, sem dúvida, perceba que o mundo é um lugar
horrível para muitas outras pessoas. Outras pessoas têm interesse para
ele só como instrumentos. A sua única objeção ao mundo tal como ele
o percebia antes da visita do seu irmão falecido era que ele não gozava
de bastante poder, uma deficiência que ele devotava cada minuto da
sua vida desperta para corrigir.
Pode-se generalizar essa afirmação. Se Deus fosse nos convencer da
sua existência por milagres espalhados em toda parte, essa não seria uma
boa contribuição para o seu plano de redenção. E parece-me provável
que nesse caso haveria interferência no seu plano. Se eu fosse um ateísta
ou agnóstico que testemunhasse coisas como as seguintes:
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O problema do mal | Peter van Inwagen
Suponho que eu deveria concluir que Deus existe – ou, pelo menos,
que algum ser ao qual eu iria me referir com “Deus” existe. (Não é certo
que eu concluiria que um ser que fosse Deus, propriamente falando,
existisse; pois, como chamei a atenção por meio das personagens da
minha história da utopia secular, qualquer série de eventos miraculosos
pode ser sempre explicada pela postulação de um ser finito com grande
poder e conhecimento). Provavelmente, eu também inferiria que o prin-
cipal plano desse ser para mim seria este: ele quer que eu acredite na
existência dele e, sem dúvida, que eu me comporte de um modo que
seja uma consequência natural desse conhecimento que adquiri. E isso
não é realmente o que Deus quer. Do ponto de vista do teísmo, ou, pelo
menos, do ponto de vista das religiões teístas – judaísmo, cristianismo
e islamismo –, é realmente verdadeiro que Deus quer que nós seres
humanos acreditemos na existência dele;13 no entanto, como muitas
13
“Pois quem dele se aproxima precisa crer que ele existe (hoti estin) e que recompensa aqueles
que o buscam” (Hebreus, 11: 6). Note que a primeira conjunta é (logicamente) redundante:
quem crê que Deus recompensa aqueles que o buscam ipso facto acredita que Deus existe.
Note também que mesmo a crença mais inclusiva – que Deus recompensa quem o busca – é
representada como tendo meramente um valor instrumental: o que tem valor intrínseco é se
aproximar de Deus.
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14
Se a explicação de Descartes do erro intelectual é correta, esse defeito epistêmico não foi
inocente, pois envolveu um mau uso do livre-arbítrio (porém não suponho que a explicação
dele seja correta).
312
REFERÊNCIAS
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Cornell University Press, 1999.
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new essays in the philosophy of religion. Cambridge: Cambridge Uni-
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Thomas V. (Ed.). Divine and human action: essays in the metaphysics
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YANCEY, Philip; BRAND, Paul. The gift of pain. Grand Rapids, Mich.:
Zondervan, 1997.
319
ÍNDICE DE ASSUNTOS
acaso 63,182, 193n10, 196n11, 202, 225, 247, 254n13, 263n17, 299
Adams, Marilyn M. 50n4, 60n9, 165n9, 215n1
Adams, Robert M. 50n4, 165n9, 183
agnóstico, significado de, 10
Agostinho 148
Amis, Kingsley 142, 144
Amis, Martin 69n14, 144n1
amor 68n14, 79n2, 109, 193n10, 198, 307
anselmiana, concepção de Deus
veja o maior ser possível, Deus como
Aquino, Tomás de 88n5, 90, 114, 117, 167, 187, 291
Austin, J. L. 104
O problema do mal | Peter van Inwagen
defesas 41, 56
“apreciação” 164
“plenitude”, “felix culpa”, “calvinismo radical” 165n9
livre-arbítrio, 165, 166, 167, 168, 169, 171, 172, 173, 175, 176,
177, 178, 179, 180, 181, 182, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193,
322
Índice de assuntos
194, 196, 199, 204, 205, 206, 207, 209, 210, 211, 212, 213, 214, 218, 219, 224, 225,
226, 227, 228, 229, 233, 238, 241, 269, 271, 272, 273, 274, 276, 277, 302, 312
determinismo 175
veja livre-arbítrio, compatibilidade com o determinismo
Descartes, René 90n6, 107, 150, 169, 243
veja também onipotência, concepção cartesiana da
323
O problema do mal | Peter van Inwagen
impossibilidade
veja possibilidade e impossibilidade
imutabilidade 95
324
Índice de assuntos
Kant, Immanuel 46
325
O problema do mal | Peter van Inwagen
326
Índice de assuntos
327
O problema do mal | Peter van Inwagen
teodiceias 54-56
teologia 50
trinitária 83, 193n10
veja também teologia natural
teologia natural 45-50, 142, 239
Tiago 303
tomismo (vs. molinismo) 182-183
Turner, Donald. A. 165n9
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Índice de assuntos
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impresso no sistema offset, sobre papel offset 75g/m²,
com capa em papel-cartão supremo 250 g/m².