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A teologia de Deus e o genocídio cananeu | Walter C.

Kaiser Jr.
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6 de julho de
2016

Uma das objeções mais frequentes ao ensino veterotestamentário de um Deus justo e


amoroso é sua ordem, quando Josué entrava em Canaã com os israelitas, de exterminar
da face da terra todos os homens, mulheres e crianças pertencentes às sete ou oito
nações cananeias presentes na terra. Para muitos, o ensinamento bíblico acerca da
justiça e misericórdia de Deus é posto à prova a partir do momento em que Deus exige
tamanha condenação maciça e universal de todos os habitantes de Canaã, quando da
chegada de Israel.

Isso não quer dizer que Israel era tão superior moralmente que podiam atirar as
primeiras pedras. Ronald Goetz afirmou com certa razão que “Israel recebe ajuda
apesar de seus pecados”[1]. Porém, conforme o próprio Goetz observou, a resposta não
está na retidão imensamente maior de Israel em relação aos cananeus, mas nos níveis
crescentes de culpa acumulados por Canaã ao longo de anos e milênios, antes da época
da conquista de Josué. Portanto, sem tentar mitigar ou atenuar a ordem divina de
extirpar a população de Canaã, o texto que coloca em perspectiva toda essa questão é
Deuteronômio 9.5:

“Não é por causa da tua justiça nem da retidão do teu pecado que entras na terra delas
para possuí-la, mas é pela culpa destas nações que o Senhor, teu Deus, as expulsa da tua
frente, para confirmar a palavra que o Senhor, teu Deus, jurou a teus pais, Abraão, Isaque
e Jacó.”
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Durante todo o período dos patriarcas, da escravidão egípcia, e muitos anos adiante,
Deus aguardou que os cananeus se arrependessem e abandonassem os pecados
gradativamente acumulados contra si mesmos. Gênesis 15.16 deixa claro que, mesmo no
período de 2100 a 1800 a.C., seria prematuro Abraão, Isaque e Jacó tomar alguma
atitude, com base na promessa de Deus, invadindo Canaã e capturando-a para si
próprios, “porque a medida da maldade dos amorreus ainda não [estava] completa”.
Nosso Senhor aguardava que o “cálice de iniquidade” enchesse até a borda e
transbordasse.

A misericórdia, graça e amor de Deus fizeram com que ele agisse extremamente devagar
ao executar sua ameaça de julgamento contra Canaã. Deve-se lembrar que todas as
profecias (exceto as de caráter incondicional, dentro dos esquemas da aliança
abraâmica, davídica e da nova aliança) têm explícita ou implicitamente um “a menos
que” ou “se” e, por isso, são condicionais nas ameaças que levantam contra as nações.
“Se” Canaã se arrependesse em qualquer momento ao longo daquele período que teve
início na constatação de Noé das perversões sexuais de seu neto Canaã, à semelhança do
que demonstrava seu filho Cam (Gn 9.25), Deus teria mudado sua acusação contra
aquela nação (Jr 18.7-10). Não temos como datar o dilúvio de Noé, mas, ainda que fosse
por volta de 3500 a.C. – e Deus vigiou Canaã desde aquela data até aproximadamente
1400 ou 1300 a.C. –, Deus teria esperado mais dois milênios antes de ordenar a Josué
que destruísse os habitantes daquela terra.

Deus não corrompe a justiça (Jó 8.3), mas, sendo o Juiz de toda a terra, faz o que é justo
(Gn 18.25). O problema gira em torno da legitimidade e significado da ira divina (ira
Dei). É costumeiro os seres humanos, mortais, definirem ira ao estilo ao estilo de
Aristóteles, como “o desejo por retaliação”[2], ou como a ardente necessidade de
retribuir ao mínimo ou real dano causado contra nós. Há quem tenha definido ira como
“loucura momentânea”[3], mas foi o pai da igreja Lactâncio (segunda metade do século
III d.C.) quem a definiu como “comoção da alma se insurgindo para refrear o
pecado”[4].

No século II da era cristã, argumentos de Marcião contra o Deus do Antigo Testamento,


considerando-o como um “demiurgo” (divindade subordinada responsável pela criação
do mal), obrigaram a igreja a excomungar Marcião em 144 d.C. Tertualiano escreveu
seu Contra Marcião com o objetivo de responder a diversas das objeções marcionistas
ao Deus do Antigo Testamento. Contudo, foi a partir de De Ira Dei (“Sobre a ira de
Deus”), de Lactâncio, que se começou a responder e entender corretamente as
passagens concernentes à ira de Deus. Lactâncio escreveu:

“Quem ama o bem, por isso mesmo odeia o mal; e quem não odeia o mal não ama o bem;
pois o amor da benignidade advém diretamente do ódio do mal, e o ódio de coisas más
advém diretamente do amor da benignidade. Ninguém pode amar a vida sem abominar a
morte; e ninguém pode ter apetite pela luz sem antipatia às trevas.[5]”

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A ira e a cólera de Deus são expressões legítimas de sua abominação a tudo o que é
pecaminoso, errado, injusto, e contrário a sua natureza e ser. Deus não irrompeu em ira
por mera impetuosidade contra os cananeus, mas deu-lhes séculos e milênios para que
acertassem e corrigissem seus erros. No fim das contas, ele teve de agir; caso contrário,
não seria santo, justo correto e equânime[6].

Leia também Por que o Antigo Testamento é importante para os dias de hoje? | Walter
C. Kaiser Jr.

__________________________________

[1] Ronald Goetz, “Joshua, Calvin and Genocide”, Theology Today 32 (1975): 266.

[2] Aristóteles, De Anima 1.1. Ver a excelente discussão sobre o assunto em Abraham
Heschel, The Prophets. Nova Iorque: Harper and Row, 1962, 2:1-86, esp. 60.

[3] Horácio, Epistolae 1:2:62. Ver também J. C. Hardwick, “The Wrath of God and the
Wrath of Man”, The Hibbert Journal 39 (1940-1941): 251-261.

[4] Citado por Heschel, The Prophets, 2:82.

[5] Lactâncio, De Ira Dei, 51.

[6] Ver quatro pontos de vista sobre o assunto em Show Them No Mercy: Four Views
on God and Canaanite Genocide, ed. Stanley Gundry. Grand Rapids: Zondervan, 2003
[publicado em português com o título Deus mandou matar? 4 pontos de vista sobre o
genocídio cananeu. São Paulo: Vida, 2006]. Os defensores de cada perspectiva são C. S.
Cowles, Eugene H. Merrill, Daniel L. Gard e Tremper Longman III.

Trecho extraído da obra “O plano da promessa de Deus: Teologia Bíblica do Antigo e


Novo Testamentos”, de Walter Kaiser Jr., publicado por Vida Nova: São Paulo, 2011, p.
113-115. Traduzido por Gordon Chown e A. G. Mendes. Publicado com permissão.

Walter C. Kaiser Jr. é doutor pela Universidade Brandeis, é professor de


Antigo Testamento e presidente emérito do Seminário Teológico Gordon-
Conwell, em Massachusetts, Estados Unidos. Escritor prolífico, é um dos
mais importantes estudiosos evangélicos de Antigo Testamento.

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Qual é o tema central da Bíblia?

Diante da diversidade de autores, gêneros e contextos dos diversos livros


bíblicos, é plausível levantar essa questão? Com ela, não estaríamos impondo
sobre o texto bíblico um sistema forçado e antinatural?

A essas difíceis questões a disciplina da teologia bíblica luta para responder.


Nesta edição revista e expandida de sua clássica Teologia do Antigo
Testamento, Walter C. Kaiser Jr. propõe uma solução para tantos assuntos
incertos. Sugere que existe, sim, um centro unificador da teologia e da
mensagem da Bíblia indicado e afirmado pelas próprias Escrituras. Esse centro
é a promessa de Deus. De abrangência universal, esta promessa de vida
através do Messias envolve toda a história de salvação do Antigo e Novo
Testamentos, trazendo coesão e unidade às diferentes partes da Bíblia.

Uma vez esboçada sua proposta, Kaiser percorre cronologicamente os livros


dos dois testamentos, demonstrando como a promessa é entendida ao longo
do tempo, como os vários subtemas de cada livro se relacionam com a
promessa, e como o plano de Deus para cumprir a promessa se desenvolve
progressivamente. O plano da promessa de Deus, esta rica e esclarecedora
teologia bíblica, impactará sua mente e seu coração.

Publicado por Vida Nova.

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