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1 Coríntios 9.

16-23

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Auxílio Homilético

06/02/2000

Prédica: 1 Coríntios 9.16-23

Leituras: Jó 7.1-7 e Marcos 1.29-39

Autor: Verner Hoefelmann

Data Litúrgica: 5º Domingo após Epifania

Data da Pregação: 06/02/2000

Proclamar Libertação - Volume: XXV

Tema: Epifania

Um cristão é livre sobre todas as coisas e não está sujeito a


ninguém. Um cristão é servidor de todas as coisas e sujeito a todos.
(Lutero.)

1. O contexto (l Co 8-10)

A perícope de l Co 9.16-23 é parte de um bloco temático que


abrange os capítulos 8 a 10. Esse contexto será alvo de atenção
especial, pois oferece perspectivas importantes para o texto e ajuda
a concretizá-lo. Paulo responde nesse bloco a uma das perguntas
que lhe foi endereçada por meio de uma carta (cf. 1Co 7.1).

É possível reconstruir a pergunta a partir da resposta do


apóstolo:

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Podem os cristãos consumir a carne que foi antes dedicada a ídolos pagãos?

Trata-se, portanto, do problema de como proceder em relação


a crenças e práticas religiosas que cercam a comunidade. Alguém
tentou compreender o problema com a seguinte comparação:

É como indagar se os cristãos podem comer a carne de uma galinha


encontrada num despacho de macumba.

A comparação tem, evidentemente, alguns pontos de contato,


mas a questão de Corinto é bem mais complexa.

A consulta procede de uma comunidade fundada há cinco ou


seis anos, inserida num dos centros urbanos e mercantis mais
importantes do Império Romano. Ela estava rodeada por numerosas
religiões e templos pagãos. Escavações arqueológicas, feitas em
torno da praça central da antiga Corinto, trouxeram à luz os restos de
vários desses templos, como os dedicados a Apolo e Afrodite. Muitos
deles ocupavam amplas instalações, com numerosas salas
contíguas. Nelas se realizavam celebrações públicas e privadas: atos
cívicos, reuniões de associações de classe, eventos sociais, como a
comemoração do nascimento de um filho ou do casamento de um
parente.

A celebração de tais eventos sempre tinha, simultaneamente,


uma conotação religiosa, geralmente vinculada a refeições e ao
consumo de carne. Era impossível integrar-se plenamente à
sociedade sem participar, de certa forma, também de seu aspecto
religioso. Documentos da época mostram que anfitriões e convidados
dessas refeições pertenciam geralmente à elite social e econômica
Os pobres não tinham condições de patrocinar semelhantes ceias
2
nos templos nem recebiam convites para participar delas. Eles
consumiam carne apenas em festas religiosas de caráter público,
quando se distribuía parte da carne dos sacrifícios para as pessoas
em geral, como parte da celebração.

Na comunidade de Corinto havia posições conflitantes frente à


questão. De um lado estavam os fracos (8.9) ou os de consciência
fraca (8.7). Esses achavam que a participação em tais eventos era
incompatível com a fé cristã, pois equivalia à prática da idolatria.
Entre eles estavam alguns gentios, acostumados a participar dos
sacrifícios nos templos antes de sua conversão (8.7; 10.32). Também
alguns judeus faziam parte desse grupo (10.32). Mesmo depois de
sua adesão a Cristo, não se tinham libertado do tabu relacionado à
proibição de contato com religiões gentílicas.

De outro lado estavam as pessoas dotadas de conhecimento


(8.1,2), que em outro contexto o apóstolo chama de fortes (Rm 15.1).
Cientes e orgulhosas da liberdade gerada pelo evangelho, seu
slogan preferido dizia:

Todas as coisas me são lícitas (6.12; 10.23).

Por isso não viam problemas em continuar participando de


festas e solenidades onde se comia da carne consagrada a deuses
pagãos. Não é difícil supor quem estava entre os fortes: os poucos
cristãos sábios, poderosos e de nobre nascimento que se haviam
convertido à fé cristã (1.26). Eles se sentiam livres para participar de
tais eventos. O que pensa o apóstolo da questão? Ele constrói sua
resposta igualmente sobre o tema da liberdade, mas busca para ela
uma nova definição a partir do evangelho.

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1.1. O que convém ou não convém à liberdade cristã

A grosso modo se poderia dizer: teologicamente Paulo está com os fortes,


mas pastoralmente se coloca do lado dos fracos.

Ele distingue, ao que parece, as situações distintas ligadas ao


consumo de carne consagrada, dando a elas um tratamento
diferenciado. Uma delas é tomar parte na mesa dos demônios
(10.14-22). E provável que a expressão indique uma participação
ativa na oferenda de sacrifícios aos muitos deuses e senhores do
panteão greco-romano (8.5).

A posição de Paulo nesse caso é radical: não se pode participar


ao mesmo tempo da mesa do Senhor e da mesa dos demônios.
Participar em tal ato compromete a pessoa com uma força espiritual
alheia a Deus, violando a lealdade exclusiva que brota da
participação na mesa do Senhor. Tais deuses e senhores não têm
existência real (8.4-5), mas a adoração a eles os constitui em poderes
espirituais.

Como entender isso? O fenômeno religioso no mundo greco-


romano estava integrado ao sistema de dominação imperial. Devia
funcionar como uma espécie de garantia transcendental para a
política do Estado. A preocupação dos fracos, nesse aspecto, se
mostra, portanto, plenamente justificada. Ao proibir a participação
ativa em tais eventos e proclamar a adoração a um crucificado pelo
Império (2.2), a fé cristã denuncia a idolatria e se converte em
adversária do sistema com a sua pax deorum, a paz dos deuses.

Hm 8.1-13 e 10.23 33 se pressupõem situações diferentes. No


primeiro caso se fala de uma refeição à mesa em templo de ídolo
(8.10). Talvez se trate de um desses eventos sociais realizados em
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salas contíguas ao templo, onde se utiliza a carne consagrada
excedente, não utilizada nos banquetes sagrados, ou mesmo uma
participação passiva em tais banquetes. Parte dessa carne era
vendida nos mercados para ser consumida em casas particulares
(10.25-27). Como responde Paulo a essas duas situações?

Ele concorda teologicamente com os fortes que não há


problemas em participar de tais eventos. O panteão greco-romano
possui muitos deuses e senhores, mas em verdade existe apenas um
Deus e um só Senhor. Por isso ninguém ganha nada se come tal
carne nem perde nada se deixa de comê-la (8.4-8). Até esse ponto
Paulo parece estar reforçando o conceito de liberdade sem limites
defendido pelos fortes.

Em seguida, porém, introduz a marca da liberdade evangélica.


A filosofia estóica encorajava as pessoas a orientar-se por sua
própria consciência, sem se deixar influenciar por opiniões alheias.
Paulo, diferentemente, pede que o conhecimento dos fortes seja
limitada pelo amor (8.1-3). O conhecimento enche de orgulho e auto-
suficiência o indivíduo que o possui. Distancia-o dos ignorantes. O
amor procura os interesses coletivos e a edificação da comunidade
(10.23-24,32-33). Ou seja, Paulo propõe que o bem comum seja o
critério a nortear a conduta do cristão, mesmo que isso signifique uma
limitação ou renúncia de sua liberdade. Por isso ele pede aos fortes:
renunciem ao seu direito legítimo e à sua liberdade, caso isso se
torne motivo de tropeço para os demais.

1.2. Faça o que eu digo e o que faço

Visto desta perspectiva, o capítulo 9 está plenamente integrado


à argumentação. Se antes Paulo exortava os fortes de Corinto a
limitar seu direito e sua liberdade em consideração aos fracos, agora

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ilustra o seu pedido com o próprio exemplo. Quer que os coríntios o
imitem, assim como ele imita a Cristo (11.1).

Sua qualificação apostólica serve como um primeiro exemplo


(9.3-15). Como apóstolo, diz Paulo, tem plenos direitos de receber o
sustento das comunidades. Argumenta com cuidado em favor desse
direito (9.9-12a,13-14), porque sua autoridade está sendo
contestada: seu trabalho como fabricante de tendas poderia estar
sendo visto como uma prova de que ele mesmo reconhece sua
indignidade e inferioridade. Mas Paulo mostra que a razão do seu
trabalho é outra (9.12b,15). Seu trabalho constitui uma renúncia ao
direito de ser sustentado pelas comunidades. Assim procede para
não criar obstáculos à pregação do evangelho. Renuncia a um direito
individual porque é movido por uma causa maior, qual seja, a
pregação do evangelho que cria e edifica a comunidade.

Em seguida Paulo recorre a um segundo exemplo, desta vez


derivado de sua prática missionária (9.16-23). Ele é livre, mas se
torna voluntariamente servo de todos, para ganhar o maior número
possível de pessoas. Mas com isso já entramos de cheio na perícope
deste domingo.

2. O texto (l Co 9.16-23)

Também a sua prática missionária é expressão da liberdade


evangélica assim como Paulo a entende. O pensamento da perícope
é desdobrado da seguinte forma:

1. O fundamento da liberdade: A liberdade evangélica não inclui


a opção entre pregar ou não pregar o evangelho (vv. 16-17).

2. A liberdade como renúncia: A liberdade evangélica se


expressa no fato de poder renunciar a um direito pessoal (v. 18).

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3. A liberdade para fazer-se servo de todos: A liberdade
evangélica se expressa no fato de poder adaptar-se a circunstâncias
distintas em função do alvo que a orienta (vv. 19-23).

2.1. O fundamento da liberdade (vv. 16-17)

Paulo inicia sua exposição dizendo o que a liberdade


evangélica não significa: ela não significa a possibilidade de escolher
entre pregar ou não pregar o evangelho. Sobre o apóstolo pesa uma
obrigação. À semelhança dos profetas veterotestamentários, ele foi
tomado por um chamado irresistível de Deus, do qual não consegue
se desviar (cf. Gl 1.15). Esquivar-se dele seria o mesmo que atrair
sobre si a desgraça e o juízo de Deus.

Ao falar em obrigação, porém, o apóstolo não se refere a um


destino cego ou a uma fatalidade determinista. Fala do resultado de
uma experiência fundamental: a experiência com o poder da graça
veiculada pelo evangelho. Apesar de sua aparente fragilidade,
expressa na figura de um crucificado, o evangelho transmite o poder
e a sabedoria de Deus para a salvação dos que creem (1.18-25).

Esse crucificado esvaziou-se para assumir a forma de servo,


sendo por isso constituído como Senhor (Fp 2.5-11).

Ele é o fundamento da liberdade. Liberdade cristã se origina


nele e por ele se orienta.

Não há como renunciar a esse anúncio nem deixar de viver a


partir dele sem recair em escravidão (Gl 5.1).

Paulo se sente de tal forma comprometido com esse anúncio,


que o obedece de modo constrangido ou involuntário. Compara-se a
um despenseiro (ecônomo, no grego), ou seja, a um escravo
encarregado de administrar uma propriedade em nome de seu

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senhor, sem direito a exigir qualquer forma de retribuição. Se fosse
livre para aceitar ou rejeitar a tarefa que lhe foi destinada, poderia
reclamar um salário. Mas não é o caso, pois faz o seu trabalho como
se fosse um escravo. Não significa isso que não esteja convicto do
que faz ou que o faça sem alegria. Ao contrário, está de tal forma
convicto e alegre, que não quer e não tem como fugir da
responsabilidade que lhe foi confiada. Foi totalmente conquistado
para a causa que representa.

2.2. A liberdade como renúncia a um direito (v. 18)

Paulo não pode expressar a liberdade deixando de pregar o


evangelho, porque nesse caso estaria renunciando ao fundamento
de sua liberdade. Mas pode expressá-la no fato de renunciar ao
direito que a proclamação lhe assegura, qual seja, receber o sustento
das comunidades. O apóstolo diz que essa renúncia é o seu salário.
Estranho salário esse que consiste em renunciar ao salário merecido!

Como entender esse paradoxo? Ao referir-se ao salário que


consiste em desistir do próprio salário, o apóstolo não está
manifestando algum traço sutil de orgulho pessoal ou alguma forma
de compensação por ter perseguido a Igreja, muito menos
reivindicando alguma forma de mérito ou recompensa junto a Deus.
Essa liberdade de renunciar não vem em benefício próprio, mas está
a serviço do evangelho. Paulo renuncia à subsistência para não criar
qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo (9.12). Que tipo de
obstáculo? Há várias respostas possíveis:

1. O apóstolo quer afastar a suspeita de que possa estar


transformando a evangelização em comércio lucrativo (2 Co 2.17).
Sua postura pastoral, nesse sentido, seria uma expressão eloquente
da própria gratuidade do evangelho.

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2. Não quer sobrecarregar as comunidades com o seu
sustento, dificultando de antemão o acesso dos pobres e fracos ao
evangelho (l Ts 2.9), ou discriminando-os por não poderem colaborar.
Isso viria contra o seu propósito de ganhar o maior número possível
de pessoas para o evangelho (cf. 9.19).

3. Quer ser um exemplo corretivo para aqueles que tiram falsas


consequências do evangelho, deixando de trabalhar em face da
parúsia de Cristo e passando a viver às custas de outros (2 Ts 3.1-
13).

4. Quer sugerir aos ricos que não vivam às custas dos pobres
e escravos. Embora Paulo não o diga em parte alguma, a hipótese
faz sentido num mundo em que se despreza o trabalho manual e
braçal como coisa de escravos e indigna de pessoas livres.

5. Quer preservar a autonomia para anunciar o evangelho.


Esse parece ser o caso específico de Corinto: caso se deixasse
sustentar pelos poderosos da comunidade, Paulo sente que poderia
comprometer sua liberdade para ensiná-los ou repreendê-los. Onde
essa ameaça não existe, ele aceita a ajuda de bom grado (Fp 4.10-
20).

2.3. A liberdade para fazer-se servo de todos (vv. 19-23)

Nesse trecho Paulo apresenta uma nova face da liberdade: ela


se expressa como capacidade de adaptação a circunstâncias
distintas em função do alvo que a norteia.

O v. 19 contém a tese fundamental, elaborada nos versículos


seguintes. Ela afirma:

1. O que Paulo é: livre de todos.

2. O que ele faz com sua liberdade: faz-se servo de todos.

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3. O que pretende com sua servidão: ganhar o maior número
possível de pessoas.

1. A liberdade de Paulo não é uma conquista pessoal. Buscou-


a durante muito tempo com esforço próprio, e o que encontrou foi a
desilusão a respeito de si mesmo (Rm 7.28), respectivamente a
escravidão. Sua liberdade lhe foi presenteada no confronto com o
amor libertador de Deus. Paulo é livre porque Deus assim o tornou.
Ele é um livre libertado. Trata-se, portanto, de uma liberdade que ele
possui em Cristo (Gl 2.4), que vigora onde predomina a lei de Cristo
(9.21), respectivamente onde o Espírito do Senhor atua (2 Co 3.17).

Em nosso texto, a liberdade da qual fala o apóstolo também se


refere, evidentemente, à independência econômica que ele possui
em relação à comunidade. Livre dos laços que poderiam
comprometer a pregação do evangelho, ele pode dirigir-se a todos e
realizar sua estratégia missionária flexível em relação aos distintos
públicos. Mas também essa iniciativa não confere méritos ao
apóstolo. Ela é mero reflexo da liberdade que lhe foi outorgada por
Deus, assim como a luz da lua é mero reflexo da luz solar.

2. Da liberdade experimentada por Paulo resulta a disposição


de tornar-se servo de todos. Esse serviço se concretiza no esforço
por considerar o lugar histórico e cultural das pessoas que são alvo
do evangelho. Três exemplos servem de ilustração:

a. Os judeus - quando está entre os que vivem sob a lei de


Moisés (= os judeus), ele procede como se fosse um judeu e
estivesse debaixo da mesma lei, embora em realidade não esteja (cf.
Rm 10.4). Ele assim pode proceder porque está sob a graça e livre
da lei como meio de salvação (Rm 6.14).

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b. Os gentios - Quando está entre os que vivem sem a lei
mosaica (= os gentios), ele procede como se vivesse sem lei, embora
sua conduta seja determinada por outra lei, a lei de Cristo. Esta
consiste em levar as cargas uns dos outros (Gl 6.2) e se resume no
amor ao próximo (Gl 5.13-15; Rm 13.8-10).

c. Os fracos - Finalmente, ele se torna um fraco para com os


fracos. Hm suma, torna-se tudo para com todos.

Nesse esforço por adaptar-se às circunstâncias, alguns


detalhes merecem atenção:

1) Paulo valoriza o lugar vivencial dos que recebem o


evangelho. Este deve encarnar-se na realidade dos destinatários,
assim como Deus mesmo, em Jesus Cristo, encarnou-se numa
história e cultura concretas. Por conseguinte, não são as pessoas
que devem adaptar-se ao evangelizador, e, sim, o contrário.

2) Paulo não se torna um judeu ou gentio, e, sim, como um


judeu ou gentio. Valoriza seus costumes e princípios, mostra-se
solidário com eles, mas não renuncia à própria identidade. Está entre
eles como cristão, como pessoa sujeita à lei de Cristo. A partir disso
define a contribuição que tem a dar. Diferente do caso com os fracos:
não só se adapta a eles, mas se torna um deles. O serviço ao
evangelho que parece fraqueza, escândalo e loucura o leva a tornar-
se um fraco junto aos fracos (2.3; 4.10). É nessa fraqueza que o
poder de Deus se faz forte (2 Co 12.9).

3) A adaptação as circunstâncias possui limites. Paulo não diz,


como a lógica do texto poderia sugerir, que ele se tornou para os
fortes como um forte. Essa adaptação não é possível, porque no
entender do apóstolo eia seria uma negação do evangelho, como
indica a polêmica com os fortes de Corinto, que em sua arrogância
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fazem tropeçar os fracos pelos quais Cristo morreu (8.11). Quando
coisas essenciais estão em jogo, Paulo não só não se adapta, como
provoca publicamente o conflito em defesa da causa do evangelho
(Gl 2.11-21).

A servidão voluntário de Paulo tem objetivos claros!

Cinco vezes Paulo destaca o que pretende com a sua livre


servidão:

Ganhar o maior número possível de pessoas, ou seja, salvar (9.22).

O termo ganhar, como em l Pe 3.1, é linguagem missionária.


Ele faz lembrar que ninguém é cristão por natureza ou herança e que
é necessário confrontar as pessoas com o amor divino. Deus não tem
netos — só filhos e filhas. A fé não surge do nada. Ela é fruto da
pregação (Rm 10.17), do ensino, do exemplo da testemunha, da
solidariedade, da comunhão e de tudo aquilo que possa dar
credibilidade ao evangelho. Ganhar as pessoas não significa aliciá-
las ou subjugá-las, como muitas vezes se entendeu na história da
Igreja. Significa proporcionar a elas a experiência do poder salvador
e libertador de Deus por meio da palavra da cruz (1.18). Significa
ajudá-las a fazer a magnífica experiência da fé e a fortalecê-la
através de uma vida em comunhão, na forma do culto a Deus e do
serviço solidário de uns aos outros.

O versículo conclusivo (v. 23) desvia a vista dos que recebem


o evangelho em direção àquele que o proclama. Ao adaptar-se às
circunstâncias, Paulo não age em benefício próprio, e, sim, a serviço
tia aceitação e da efetividade do evangelho, do qual esperar tornar-
se participante (e não cooperador, como traduz Almeida). Ao salvar

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por pura graça, Deus mantém preservada a sua soberania. Ninguém
pode dispor da salvação como posse segura. Apenas enquanto
dádiva permanente e não domesticada é que o evangelho se torna
instrumento do poder salvador e libertador de Deus.

3. Reflexão a caminho da prédica

O texto oferece excelentes possibilidades para a pregação.


Corre-se com ele o risco de preparar muito mais comida do que a
fome das pessoas é capaz de desejar. Vamos por isso limitar-nos a
duas perspectivas centrais.

3.1. A liberdade cristã

A liberdade tornou-se uma das aspirações mais profundas da


civilização moderna. Qual a pessoa ou qual a sociedade que não
quer viver ou conviver em liberdade? Olhamos, por isso, com ares de
indignação e revolta para tempos antigos e recentes de nossa
história. Como foi possível que ao longo de séculos a sociedade
brasileira tivesse convivido de consciência tranquila com o regime
econômico da escravidão? Como foi possível que durante décadas
tivesse aceito regimes políticos calcados em ditaduras civis e
militares? Como puderam as pessoas conformar-se com regimes que
cerceavam sua cidadania, impingindo-lhes o medo, a repressão, a
censura, a perseguição, a tortura e a morte?

Entrementes parece que esses terrores e fantasmas foram


afugentados de volta para os seus túmulos, de onde nunca poderiam
ou deveriam ter saído. Propostas e slogans liberais se multiplicam,
oferecendo receitas para que a sociedade finalmente se emancipe e
se liberte dos cárceres que durante tanto tempo a mantiveram
prisioneira. Estamos experimentando, finalmente, os sabores e
benefícios da liberdade.
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Será mesmo? Que tipo de liberdade experimenta um pai ou
mãe desempregados ou sub-empregados? Quão livres se sentem as
pessoas que não têm acesso aos postos de saúde, aos hospitais nem
aos recursos mínimos da medicina? Que chances de viver a
liberdade possuem as crianças que não podem desenvolver o seu
potencial humano e formar uma consciência participativa e crítica?
Que condições tiveram os negros de reconstruir suas vidas a partir
da abolição da escravatura?

Os exemplos mostram que existe uma condição para o


exercício da liberdade: a garantia de direitos fundamentais.

A liberdade só pode ser plenamente exercida na presença do


direito e da justiça. É o que pensava o apóstolo Paulo ao batalhar em
favor de seus direitos junto à comunidade de Corinto. É esse também
o compromisso da Igreja que vive da mensagem por ele proclamada.
Pregação cristã não é legítima e não convence sem o simultâneo
empenho em favor dos direitos das pessoas.

Mas de onde se deriva a legitimidade desse direito, que é o


pressuposto para o exercício da liberdade?

Por sua afinidade com a palavra de Deus revelada na Bíblia,


merece lodo o respeito um código humanista como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Mas a fé cristã deriva esse direito
de uma fonte específica: Deus mesmo é a fonte do direito e, por
consequência, da liberdade. Fomos criados à sua imagem e
semelhança. Pela obra redentora e libertadora de Jesus Cristo fomos
resgatados dos poderes que nos escravizam É ele quem dá razão,
dignidade e sentido à nossa existência. Quem se coloca sob o seu
raio de ação é amparado pelo direito que dele deriva e presenteado
com a liberdade que dele provém.

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O primeiro efeito dessa liberdade presenteada é a libertação de
si mesmo.

O ser humano é curado de sua miopia que lhe permite enxergar


apenas até o próprio umbigo. A pessoa se descobre como membro
de um corpo ao qual está solidariamente vinculada. A tristeza de um
passa a ser sentida por todos. A alegria de outro contagia os demais.
Descobre-se a alegria do serviço espontâneo e voluntário e se é
amparado pela solidariedade de outros. Não existem mais escravos
para servir e senhores para ser servidos. Existem apenas pessoas
que se servem mutuamente, cada uma conforme o dom que recebeu.

Quando se tem o direito assegurado, a experiência da liberdade


é capaz de libertar o ser humano da necessidade de utilizá-lo em
benefício próprio. Foi o que se verificou com Paulo: renunciou
voluntariamente ao sustento merecido para que uma causa maior, o
evangelho, seguisse seu curso com maior eficiência. Disso nada
entendiam os fortes de Corinto. No momento em que escrevo essa
reflexão ouço falar de uma iniciativa interessante que vem sendo
exercitada numa cidade do centro-oeste brasileiro: estimulam-se
pessoas a solidarizar-se com uma família concreta das periferias,
compartilhando com ela parte do tempo, do conhecimento ou até dos
rendimentos. As pessoas que participam de tal programa não sabem
dizer quem recebe ou dá mais. Como constatou o apóstolo, há
salários, frutos de renúncia e abnegação, que não se podem medir
na forma de bens materiais.

3.2. A liberdade na missão

Paulo exercitou a liberdade cristã no campo da evangelização


e da missão. Trata-se de tema espinhoso e delicado. Talvez em
nenhum outro âmbito se tenha que contar com tanta prepotência,

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intolerância, preconceitos e exclusivismos. Que o diga a própria
história da missão cristã. Como viver a liberdade na missão ou a
missão na liberdade? O texto ajuda a definir alguns critérios.

1. O ponto de partida é insofismável: assim como Pedro e João


diante do Sinédrio (At 4.20), também Paulo não pode deixar de falar
das coisas que viu e ouviu. A tarefa para a qual foi convocado e a
mensagem da qual é portador são de tal monta, que ele se sente
constrangido e obrigado a falar. A experiência da liberdade produzida
pelo evangelho lhe é tão significativa, que ele também não quer
silenciar. Realiza sua tarefa com voluntariedade e alegria. Pelas
mesmas razões, também a Igreja não tem o direito de escolher se
deseja ou não participar da missão de Deus. Assiste-lhe apenas o
direito de indagar sobre a maneira mais adequada e legítima de fazê-
lo.

2. Que maneira é essa? A obrigação de anunciar o evangelho


não significa que se possa ou deva impô-lo às pessoas. O cristão
realiza sua tarefa como testemunha, não como comandante de um
exército invasor. O evangelho é poder de Deus, não nosso. Não se
ajuda ninguém a experimentar a liberdade por meio da imposição.
Por isso o testemunho legítimo acontece através da fala que procura
convencer, da escuta que procura entender e aprender, do exemplo
que procura comunhão, da parceria que cria solidariedade. Podemos
aprender muito do modo como Paulo se apresentou em Corinto (2.1-
5).

3. Para que o evangelho se torne realmente boa nova de


grande alegria, a palavra anunciada não só pode como deve
considerar com seriedade o contexto em que é proclamada. Paulo foi
capaz de adaptar-se a circunstâncias distintas. Tinha sensibilidade e

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bom senso para perceber que Deus também se manifesta de outros
modos na história (Rm 1.20; 2.13-16). Mas nem por isso renuncia ao
testemunho de Cristo. Serve-lhe como critério para discernir onde se
pratica verdadeiro culto a Deus e serviço autêntico ao próximo, e
onde Deus é degradado a ídolo a serviço de interesses humanos.
Onde Deus atua, ali se cria um espaço de liberdade capaz de libertar
as pessoas para o amor, o serviço mútuo e o bem comum.

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1 Coríntios 9.24-27

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Auxílio Homilético

26/01/1986

Prédica: 1 Coríntios 9.24-27

Autor: Werner Brunken

Data Litúrgica: Domingo Septuagesimae

Data da Pregação: 26/01/1986

Proclamar Libertação - Volume: XI

I — Contexto

Paulo foi confrontado em Corinto com entusiastas que usavam


a liberdade alcançada em Cristo para todo tipo de libertinagem. Não
obedeciam mais ninguém. No seu entender, uma vez justificados
pelo sangue de Cristo, tudo lhes era permitido.

O apóstolo procurou mostrar a partir do Capítulo 8 que o amor


da liberdade cristã conhece limites. Isto ele explica usando a prática
das coisas sacrificadas a ídolos — não se deve ser um tropeço para
os mais fracos. Paulo foi capaz de desistir do seu direito apostólico
(9.1-3), desistir de ser mantido financeiramente pela comunidade
(9.4-7), querendo estar livre das fofocas, como se tivesse se
aproveitando das dádivas. Procurava abster-se dos direitos para não
criar qualquer obstáculo ao Evangelho de Cristo (9.11-18). Paulo se
colocou como servo de todos para conquistar todos (9.19-23).

Tudo o apóstolo procurava viver por causa do evangelho, para


tornar-se colaborador com ele (9.23).

II — Exegese
18
O apóstolo convida a comunidade para seguir o seu exemplo
de amor. Para ilustrar este exemplo, ele usa figuras do mundo
esportivo.

V. 24 — Todos correm no estádio — mas um só leva o prêmio.


Será que só um vai alcançar o objetivo? E os outros? Paulo não se
fixa neste um, mas na necessidade de correr para alcançar o prêmio.
Apesar de o cristão saber que foi justificado pelo sangue de Jesus,
ele não pode considerar-se pronto, como se nada mais tivesse que
fazer. Quem foi atingido, transformado pelo evangelho de Cristo,
precisa continuar como o atleta em buscado objetivo final. Não pode
querer viver como os entusiastas, que acreditavam ter a certeza da
salvação e o poder do Espírito Santo — no mais deixavam o barco
correr.

Ninguém pode ignorar que o juízo de Deus é realidade (2 Co


5.10) e que todos serão julgados pelas obras. Por isso, cada um
precisa correr para alcançar o prêmio.

V. 25 — Existe uma diferença muito grande entre o atleta que


busca uma coroa que o tempo vai deteriorar e a coroa que ficara para
sempre. Conforme Ap 3.11 esta coroa é a vida eterna junto do
Senhor. Se há tanto esforço, tanto treino, tanto jejum para alcançar
um prêmio aqui nesta vida, quanto mais deve haver o esforço para
conquistar a coroa, que permanecerá para sempre.

V. 26 — Paulo não corre sem objetivo. Tudo ele faz pela certeza
de que foi aceito por Deus em Cristo Jesus. Mas esta aceitação não
o deixa imóvel. Deus o usa como seu instrumento neste mundo para
propagar e viver o evangelho até chegar no objetivo final.

É usado ainda o exemplo do lutador de boxe. Este luta por um


objetivo — vencer para receber um prémio, que também é
19
passageiro. Paulo se compara com um tal lutador — ele também quer
alcançar o prémio, mas o prêmio que permanecerá para sempre.

V. 27 — Esmurrar o seu corpo — parece ser exagerado nas


suas colocações. Partindo do termo soma no grego — ele é visto
como sendo o lugar da concupiscência, do querer para si — se Paulo
esmurra o seu corpo, ele quer expressar que nada quer para si ao
correr de encontro do alvo, mas tudo para os outros. Paulo quer viver
como cristão para todos. Q amor de Deus para com ele o leva a viver
este amor para com os outros. Paulo não quer ser desqualificado no
seu correr. Ele quer vencer — mas para vencer ele precisa desistir
do seu eu para viver para os outros.

III — Meditação

Pedindo aos coríntios que corram para alcançar o objetivo,


Paulo parte do ato salvífico de Cristo: Jesus Cristo por sua morte na
cruz, tomou sobre si todos os nossos sofrimentos e quem crê neste
acontecimento, é participante da salvação (1 Co 1.4-9,18).

Acontece, entretanto, que um grupo de pessoas se


entusiasmou com esta oferta a tal ponto, que passou a abusar desta
liberdade alcançada. Nada mais lhe era importante no
relacionamento com as pessoas: escandalizavam os outros no comer
carne destinada aos ídolos; praticavam escândalo no matrimônio (1
Co 7) — enfim, o importante era ter a certeza da aceitação por parte
de Deus. No mais a vivência diária não tinha nada a ver com a sua
fé.

Contratai maneira de vida Paulo procurou agir. Quem garante


a salvação quando não se tem mais em mente o viver diário? Mesmo

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tendo a certeza desta salvação em Cristo, não se pode esquecer que
ainda estamos à caminho entre o já da justificação e o ainda não na
eternidade de Deus. Ainda não chegamos ao alvo como vencedores.
Somos iguais aos atletas, que correm para alcançar o alvo, a coroa
incorruptível.

Este tempo de correr precisa ser aceito como tempo de prova,


lembrando o receber da coroa incorruptível. Para alcançar esta
coroa, há necessidade de evitar tudo que possa prejudicar este
objetivo. Tudo precisa ser vivido e carregado pelo amor, que é capaz
de desistir de vantagens pessoais, que possam impedir os outros de
entender e aceitar o evangelho de Cristo (8.1-9,23). Ou: impedir que
a existência social ou natural venha a sofrer por seu comportamento
(1 Co 6.1-8; 7.1-9,17-24).

Este estar a caminho precisa ser visto como tempo de luta. Esta
luta acontece com o próprio eu, que na sua liberdade cristã não aceita
qualquer tipo de abstinência. O alvo só será alcançado na medida
em que for lutado contra este inimigo. Não podemos possuir o amor
de Deus, sem ao mesmo tempo viver este amor na caminhada desta
vida. Isto significa que usemos as oportunidades da vida para desistir
de nossos aparentes direitos, a fim de viver para os outros — tudo
por causa do evangelho de Cristo. Assim alcançaremos a coroa
incorruptível.

IV — Esquema para prédica

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1 — Introdução — Viver entre o já ter e ainda não ter alcançado.
Eu posso ter a promessa de receber uma herança, mas ainda não a
consegui. Eu posso ter a promessa de emprego, mas ainda falta a
concretização. Eu posso ter a promessa de receber um presente,
mas ainda não o tenho nas mãos. Eu tenho a promessa da salvação
através da obra de Deus em Jesus Cristo, mas ainda não a consegui.
Esta é a nossa situação entre o que Jesus conquistou por nós e o
que ainda não conseguimos definitivamente — veja Fp 3.12-14.

2 — Ser cristão significa estar a caminho — É algo


desagradável ouvir do apóstolo Paulo que ainda não alcançamos o
alvo — a salvação eterna. Sabemos que a última e definitiva palavra
de Deus ainda não soou. Por isso ainda não recebemos a coroa que
não será destruída. Ninguém pode parar na boa fé que, tendo sido
batizado e confirmado, tem garantia a coroa da vida. Não podemos
ser entusiastas com o que foi conseguido. Como o atleta está a
caminho, assim também nós temos que nos considerar sempre a
caminho para conquistar definitivamente o que agora temos na fé. É
preciso, portanto, na certeza da graça recebida, continuar
movimentando-nos como o atleta para alcançar o prêmio definitivo.

3 — Ser cristão significa permanecer na luta —, Mesmo


sabendo que Cristo tomou todas as nossas dores sobre si, não
podemos deixar de lutar. E luta significa sacrifício. Quem está a
caminho sabe das dificuldades que enfrenta. O atleta faz exercícios
diários; ele passa por dietas alimentares rigorosas — tudo para
alcançar o prêmio. Do mesmo modo, quem está a caminho que Cristo
lhe conquistou, precisa estar disposto para a luta, para o sacrifício.
Com as palavras de Paulo: Fiz-me fraco para com os fracos para
ganhar os fracos (1 Co 9.22). Ele foi capaz de desistir da ajuda

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financeira dos coríntios para não prejudicar o Evangelho de Cristo.
Ele foi capaz de desistir de certos tipos de carne, para não ser
tropeço para os fracos. Paulo não aceitou o pensamento dos
entusiastas que, na sua suposta liberdade cristã, acreditavam poder
fazer o que bem entendessem. Pelo contrário, o cristão sabe dos
limites do seu agir. Justamente por ter sido justificado pelo sangue de
Jesus, ele sabe da sua luta que terá para conquistar o prêmio eterno.
Ainda não chegou lá — a caminhada continua — as lutas são
constantes (doenças, fome, desemprego, dúvidas na vida de fé) e,
sobretudo a luta contra o próprio eu, que procura a sua liberdade,
mas marginaliza o próximo.

4 — Ser cristão significa assumir responsabilidade — A fé


precisa tornar-se ativa no amor desinteressado. Fé sem obras é
morta. Não obras para conquistar um lugar na eternidade. Mas obras
que assumimos pelo amor de Cristo. Quem se diz cristão, não fica
parado. Sua caminhada está repleta pelo testemunho de sua fé em
Jesus Cristo e pelo seu servir.

Quando se trata dos pontos básicos da nossa fé, não podemos


vacilar nem retroceder. Mas quando, no relacionamento com outras
pessoas, notamos que o bom andamento do evangelho está sendo
prejudicado, aí temos que tomar atitudes condizentes com o
evangelho. Pois não queremos ser escândalo para ninguém. É nosso
desejo que muitos sejam ganhos para Cristo. Assim: querer ter razão
a todo custo, ser orgulhoso, julgar sem amor, formar grupos elitistas
— não serve para a caminhada do Cristão.

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