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M.

James Sawyer

UMA INTRODUÇÃO À

TEOLOGIA
Das questões preliminares, da vocação e do labor teológico

Tradução
E stevan F. Kirschner

Vida
C apítulo 7

termo “teologia” é amplo em sua abrangência. Em seu emprego mais extenso, ele

0 é aplicado a qualquer tópico que esteja de alguma forma relacionado com Deus e
com as coisas divinas. Ouvimos falar da “teologia da educação cristã”, da “teologia do mi­
nistério urbano” a até de uma “teologia da arquitetura de igreja”. Em cada caso, a disciplina
emquestão tenta de algum modo aplicar os princípios das Escrituras a áreas específicas da
vida. Num sentido mais formal, referimo-nos a todas as áreas do estudo que dizem respeito
às Escrituras, sua interpretação e sua aplicação como domínio dos estudos teológicos.

Divisões do estudo teológico

Em vista de nossos propósitos, presumimos que as disciplinas teológicas formais


(teologia bíblica, teologia histórica e teologia sistemática) constroem sobre o funda­
mento lançado pelas disciplinas dos idiomas bíblicos, contextos, arqueologia e exegese.

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UMA INTRODUÇÃO À TEOLOGIA

O processo teológico começa com a teologia bíblica , que sintetiza os resultados mais
amplos do processo exegético num todo coerente. O passo seguinte no processo, de
uma perspectiva lógica, é a teologia histórica , que envolve o estudo do desenvolvimento
da compreensão teológica ao longo da história da Igreja. O último estágio do processo
é a teologia sistemática , que sintetiza os resultados de todo o processo num todo coe­
rente e contextualiza a verdade de Deus na língua, categorias e formas de pensamento
compreensíveis aos contemporâneos. Como vimos nos capítulos anteriores, a tarefada
teologia jamais acaba, porque a situação contemporânea é diferente de época para época
e de cultura para cultura.
Cada uma das disciplinas teológicas formais tem um foco, história e método diferen­
tes, que devem ser compreendidos se quisermos entender plenamente a disciplina.

A. TEOLOGIA BÍBLICA

A teologia bíblica é uma divisão dos estudos teológicos que procura apre­
sentar o desdobramento progressivo do ensino das várias eras e autores da
Bíblia em suas formas de pensamento, categorias e contexto histórico, em vez
de impor ao texto bíblico as divisões da teologia sistemática. Como disciplina,
é descritiva e sintética, em vez de analítica.

Antes de discutir a teologia bíblica, é importante perceber que o termo “teologia


bíblica” é usado em dois sentidos diferentes: no sentido “técnico”, como na definição
anterior, e no sentido popular.
Teologia bíblica, no sentido popular, é a que costum a ser utilizada por pregado­
res, professores e cristãos dedicados à exposição de uma doutrina ou de um sistema
de doutrinas, apoiados apenas cm textos derivados das Escrituras. Os protestantes
cvangelicais, particularm ente, insistem cm que sua teologia deva ser bíblica. Assim,
cristãos reformados, wesleyanos, luteranos, dispensacionalistas e pentecostais ale­
gam possuir uma teologia bíblica pura. Contudo, em bora concordem nas questões
básicas, essas “teologias bíblicas” estão em conflito umas com as outras em pontas
significativos. Todas afirm am que a Bíblia é sua fonte e autoridade fundam ental, mas
as diferenças m ostram que outros fatores influenciaram as doutrinas e as conclusões
desses sistemas.

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As divisões do estudo teológico

Em gerações passadas, esse método de estudo teológico foi chamado de “dogmática


bíblica”. A dogmática bíblica é um método que faz parte da disciplina da teologia siste­
mática (em vez de teologia bíblica no sentido técnico), como há alguns séculos. Como
método, a dogmática bíblica é apriorística e dedutiva, em vez de indutiva e excgética.
A dogmática bíblica deduz dogmas das Escrituras e depois os arranja num sistema
a priori humanamente planejado. Dessa forma, diferentemente da teologia bíblica, a
dogmática bíblica não apresenta as formas de pensamento das próprias Escrituras.
Apesar da alegação de ser uma “teologia bíblica”, tal sistema, na verdade, deriva suas
categorias e sua organização da filosofia e da tradição eclesiástica. A “teologia bíblica”, no
sentido mais específico do termo, não pode ultrapassar a própria Bíblia em relação às fon­
tes, nem mesmo a fonte de categorias e de organização. Ela é indutiva e exegética em sua
metodologia. Na form a ideal , é uma síntese em alto grau do processo exegético, de forma
que a teologia bíblica trata unicamente do próprio ensino dos escritores sagrados em suas
categorias conceituais, não se estendendo nem mesmo às implicações lógicas legítimas
desse ensino. Quando nos debruçamos sobre o texto, não podemos pressupor que o autor
ou seus leitores tenham refletido sobre todas as implicações de suas afirmações ou que as
tenham reconhecido intuitivamente. Dessa forma, rigorosamente falando, não podemos
fazer dessas implicações uma parte da teologia bíblica. No entanto, essa asserção de modo
algum nega que a fé e a prática do povo de Deus, em qualquer geração cm que as Escrituras
foram produzidas, fossem mais abrangentes que a informação que o texto nos apresenta.
A teologia bíblica, por sua natureza, nos irá proporcionar uma teologia do mínimo
de qualquer autor ou período, em vez de uma teologia do máximo.' No entanto, convém
lembrar que a teologia do mínimo é a única autoridade inspirada para a qual podemos
apelar em definitivo.
As únicas implicações com as quais a teologia bíblica se envolve são as que foram de­
senvolvidas historicamente pelos escritores bíblicos no progresso da revelação, e mesmo
aqui devemos ter o cuidado de não ler revelação e conclusões mais recentes de modo
retroativo, até chegar ao pensamento e o ensino dos autores e textos antigos.
Para os que afirmam usar somente as Escrituras como fonte de sua teologia, sob a
cobertura do lema sola scriptura,2 esta advertência foi dada há um século:1

1 V. cap. 5.
: Como já foi observado, essa interpretação da sola scriptura não é fiel à mensagem da Reforma. Trata-se,
na verdade, do que Donald B loesch rotula de nuda scriptura (op. cit., p. 193).

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UMA INTRODUÇÃO ÀTEOLOGIA

O sistema de teologia que ansiosamente se confina a um suposto material


bíblico, negligenciando o material apresentado pela filosofia, ciência, literatura,
arte, religiões comparadas, história da doutrina, símbolos, liturgias e pela vida
da Igreja, pela consciência piedosa do indivíduo ou pela sociedade cristã, tem
de ser extremamente falho, não científico e incapaz, compensando seus defeitos
com um apelo às Escrituras e com a alegação de ser bíblico. Nenhum dos gran­
des teólogos sistemáticos, desde os tempos mais antigos, propôs algo assim. Essa
tem sido a saída dos fracos pietistas da Alemanha e do movimento evangelical
mais estrito do Reino Unido e da América do Norte, fadados à derrota e à des­
truição, por operar em linhas tão estreitas.·'

1. A natureza da teologia bíblica

Como disciplina, a teologia bíblica está preocupada com “o que a Bíblia significou
para seus primeiros ouvintes. Não lhe interessa a questão normativa: “O que a Bíblia
significa hoje?”, para os ouvintes do século X X I.1 Esse é o domínio da teologia sistemá­
tica. A teologia bíblica é, pois, por natureza, descritiva e histórica. Seu alvo é organizar
e apresentar o ensino da Bíblia nas categorias utilizada pelos escritores sagrados, em
contraste com a teologia sistemática, que organiza o material bíblico em categorias que
parecem lógicas para nós e até mesmo necessárias, mas que não são as formas de pen­
samento das Escrituras.
A teologia bíblica está acima do processo exegético, que trata dos detalhes de um
texto em todas as suas particularidades. Ela sintetiza os resultados da exegese num todo
compreensivo, fornecendo-nos um quadro da revelação de Deus em seu contexto ori­
ginal. Já se reconhece há algum tempo que a teologia bíblica funciona como disciplina
reguladora entre a exegese e a sistemática (teologia sistemática), para assegurar que o
teólogo sistemático não tome os resultados de uma única passagem ou de um grupo de
passagens como normativo, enquanto ignora o contexto mais amplo das perspectivas
bíblicas e a natureza contextualizada da revelação das Escrituras.

' B riggs , Charles Augustus. The Study of Holy Scripture. New York: Scribner, 1899. p. 596.
1 Krister Stendaiil destaca esse ponto ao distinguir a teologia bíblica da teologia sistemática em seu
artigo clássico: Biblical Theology, Contemporary. In: C rim , Keith R.; B ut trick , Geoge A. (Eds.).
Interpreter’s Bible Dictionary. Nashville: Abingdom, 1981. 1:419.

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As divisões do estudo teológico

2. A teologia bíblica e outras disciplinas teológicas

A teologia bíblica está localizada no meio das outras disciplinas teológicas. Como
disciplina, ela é sintética , juntando os resultados da exegese de todo material bíblico.
Como síntese do estudo analítico preliminar, ela toma os vários segmentos do ensino
bíblico e os unifica em temas dominantes que podem ser traçados ao longo do texto bí­
blico sem forçar uma unidade de perspectiva artificial sobre o material bíblico diverso.
Ela se situa como uma disciplina intermediária entre a exegese e a sistemática e ao lado
da teologia histórica.

a. Exegese

0 teólogo e dogmático de Princeton B. B. Warfield observa:

A tarefa da teologia bíblica [...] é a tarefa da coordenação dos resultados


espalhados da exegese contínua num todo concatenado, com referência a um
único livro das Escrituras, ou a um conjunto de livros relacionados, ou ao todo
da estrutura das Escrituras.5

A exegese é absolutamente vital e é o principal alicerce de todas as outras discipli­


nas teológicas. É por natureza analítica e detalhada. Ela se concentra nos detalhes e no
significado dos detalhes. Realizada de forma correta, a exegese faz que o exegeta “preste
mais atenção nas árvores que 11 a floresta”. Assim, metodologicamente, a exegese como
exegese não se ocupa das perspectivas mais amplas. Os detalhes com os quais trabalha
têmimportância vital, mas não apresentam uma visão global. Isso vem depois, na teolo­
giabíblica c sistemática, nas quais os detalhes são encaixados num todo mais abrangente.
Feita de maneira adequada, a exegese não se opõe à síntese: pelo contrário, ela envolve a
reunião dos detalhes da passagem à luz de percepções exegéticas obtidas.
Nesse sentido, o exegeta passa adiante os resultados de seu trabalho para o teólogo
bíblico, cuja tarefa é distribuir as descobertas exegéticas em seu contexto apropriado no
mapa bíblico-teológico mais amplo. Embora essa descrição se concentre nas distinções
entre as disciplinas da exegese e da teologia bíblica, na prática o exegeta cumprirá duas

5 The Idea of Systematic Ί heology. In: D a v i s , John Jefferson (Org.). The Necessity' of Systematic Theology.
Grand Rapids: Baker, 1978. p. 144.

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UMA INTRODUÇÃO A TEOLOGIA

funções: de exegela e de teólogo bíblico. Dependendo do nível de competência e de


interesse do exegeta, ele permitirá que a teologia bíblica informe sua exegese e, muitas
vezes, correlacionará os resultados de seu estudo com o todo.

b. Estudos críticos

Durante os dois últimos séculos, o estudo crítico do texto reinou soberano nos cír­
culos não conservadores. Questões sobre autoria, fontes, redatores e coisas semelhantes
ocuparam esses estudiosos. Nesse processo, a mensagem da Bíblia quase sempre se perde.
O relacionamento entre a teologia bíblica e os estudos críticos é tangencial, pois a teo­
logia bíblica se interessa pelo texto bíblico do modo em que ele chegou até nós. Nesse
sentido, a teologia bíblica é canônica cm sua perspectiva, em contraste com o aspecto
crítico, ou seja, ela toma o texto canônico como determinado, cm vez de tentar enxergá­
-lo por trás, a fim de conhecer sua formação e desenvolvimento.

c. Teologia histórica

Semelhantemente à teologia bíblica, a teologia histórica é uma disciplina descritiva,


mas, enquanto a teologia bíblica se ocupa da revelação divina conforme consta nas Escri­
turas, a teologia histórica descreve a apropriação progressiva dessa revelação por parte
da Igreja. Da perspectiva metodológica, a teologia histórica envolve a tarefa descritiva de
relatar como as gerações anteriores enxergavam o material bíblico e o assimilavam dentro
de cada contexto histórico.

d. Teologia sistemática

B. B. Warfield reconhecia o papel vital que a teologia bíblica desempenhava no pro­


cesso teológico. Apesar de se ouvir em alguns círculos que a teologia sistemática deve
ser baseada (diretamente) na exegese, Warfield observa:

A relação da teologia bíblica com a teologia sistemática é baseada numa visão


verdadeira de sua função. A teologia sistemática não está baseada nos resultados
diretos e primários do processo exegético, e sim nos resultados finais e completos
da exegese exibidos na teologia bíblica. Não é, portanto, a exegese propriamente
dita, mas a teologia bíblica que fornece o material para a sistemática. [...) A teolo­
gia bíblica não é, portanto, rival da sistemática, nem mesmo um produto paralelo

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As divisões do estudo teológico

do mesmo corpo de informação que a exegese fornece: é a base e a fonte da sis­


temática. A teologia sistemática [...] usa a informação individual produzida pela
exegese, numa palavra, não em sua forma natural nem independentemente para
si mesma, mas somente depois de essas informações terem sido trabalhadas na
teologia bíblica e receberem dela sua coloração finai e os tons sutis de significado.
Ou seja, somente em seu verdadeiro sentido e depois que a exegese tiver dado sua
última palavra a respeito delas. Assim como alcançamos nossa concepção mais
refinada e verdadeira da pessoa e da obra de Cristo não pela tentativa tosca de
combinar os detalhes espalhados de sua vida e ensino como nos são apresentados
nos Hvangelhos — uma colcha de retalhos de sua vida e de sua doutrina — , porém
muito mais racionalmente e com muito mais sucesso por captar a concepção plena
de Mateus sobre Jesus, depois a de Marcos, a de Lucas e, por fim, a de João e de
combinar essas quatro concepções num todo coerente, assim também obtemos
nossa mais verdadeira sistemática não por trabalhar de uma só vez as afirmações
dogmáticas separadas na Bíblia, mas ao combiná-las na devida ordem e propor­
ção, conforme se apresentam nas várias teologias das Escrituras."

3. A origem e a necessidade da teologia bíblica como disciplina

a. Continuidade e descontinuidade entre o leitor e o texto bíblico

A natureza do material bíblico é a d hoc — isto é, foi escrito, em geral, para suprir
as necessidades de uma comunidade de té. O único escritor do NT que esteve próximo
de apresentar o que normalmente se considera teologia foi Paulo. Ele argumentava seu
caso, tentando persuadir por uma forma de raciocínio que conclamava o leitor a reco­
nhecer a validade do que estava sendo apresentado, em vez de simplesmente apresentar
seu material na forma de princípios. Ainda assim, as cartas de Paulo são também ad
hoc: não apresentam um sistema de pensamento coerente plenamente desenvolvido. Até
mesmo em seu escrito mais “teológico”, Romanos, os interesses de Paulo são imediatos
epastorais, e não reflexivos.

5. A resposta medieval: a tradição viva

Como disciplina, a teologia não se origina diretamente das Escrituras. l)e fato, ela
não tomou uma configuração formal até o aparecimento do escolasticismo, no auge da

s Ibid., p. 145-146.

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UMA INTRODUÇÃO ÀTEOLOGIA

Idade Média. O surgimento da teologia como disciplina veio por influência da filosofia
grega. A Bíblia, é claro, forneceu o material para a reflexão, mas os princípios do pensa­
mento disciplinado — os meios e os modos de reflexão — derivaram da filosofia. Com o
surgimento da teologia na Idade Média, os teólogos não tentaram conscientemente “pen­
sar os pensamentos de Deus” como se fossem distintos dos pensamentos deles. Isso só
aconteceria em séculos posteriores. Em vez disso, eles pensavam pensamentos próprios,
reconhecendo que eram os pensamentos das Escrituras e de seus autores. A razão para essa
premissa era que os teólogos presumiam uma dupla continuidade entre eles próprios e os
escritores bíblicos: uma continuidade de material na forma das Escrituras e uma continui­
dade de tradição viva, que ligava o teólogo medieval diretamente ao mundo da Bíblia.
O cristianismo medieval não reconhecia sua distância histórica com o mundo da
Bíblia. Essa falta de distanciamento pode ser vista vividamente na arte medieval, que
retrata cenas bíblicas em cenários e indumentária da era medieval. Às vezes, personali­
dades medievais eram misturadas com personagens da Bíblia. A Bíblia e suas histórias
eram bem conhecidas e faziam parte da religião viva daquele período.'

c. A ruptura da Reforma

Os reformadores insistiam em que as Escrituras eram a única base e norma para a


vida e o pensamento cristão, em contraste com a autoridade da tradição viva da Igreja
católica romana contemporânea. O fracasso em sujeitar a tradição às Escrituras resultara
em abusos intoleráveis na vida da Igreja. Somente as Escrituras podiam julgar, corrigir,
purificar e renovar a vida da Igreja, mas essa insistência rompeu corn a continuidade
da tradição viva, que era vista como uma continuação da Bíblia. Os reformadores reco­
nheciam a Bíblia como historicamente distante, e não contemporânea, da vida da Igreja
medieval. Os teólogos não podiam mais pensar pensamentos próprios e considerá-los
numa relação de continuidade com a Bíblia. Eles deviam pensar conscientemente os
pensamentos dos escritores bíblicos e então interpretar as Escrituras para a vida diária
do cristão. João Calvino e Martinho Lutero cumpriram essa tarefa com grande esmero
em seus comentários, e Calvino fez isso sistematicamente em suas Institutas da religião
cristã. Esse processo de interpretação tentava restabelecer o senso de proximidade com
a Bíblia, que fora perdido ao se interromper a continuidade da tradição.

Cf. Hendrikus B oi-rs , What Is New Testament Theology? Philadelphia: Portress, 1979. p. 15-18.

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As divisões do estudo teológico

A insistência dos protestantes em que a teologia não devia ser apenas alicerçada
sobre a Bíblia com o sua fonte, mas também fundam entada nela conceitualmente pro­
duziu uma crise na metodologia teológica. Por sua natureza, a Bíblia não podia forne­
cer as categorias formais de pensamento sobre as quais um sistema teológico pudesse
ser construído. Assim, a filosofia como disciplina não podia ser sacrificada a favor
da Bíblia. Contudo, a própria disciplina era estranha à perspectiva bíblica. Essa crise
afetou tanto o catolicism o quanto o protestantismo. Na época, o catolicismo, embora
rejeitasse a sola scriptura da Reforma, concordava com o protestantismo em que a teo­
logia deve ser fundamentada na Bíblia. Esse foi o período da construção de sistemas.
Protestantes e católicos produziram teologias em inentem ente “bíblicas”, ou seja, as
declarações eram apoiadas por textos bíblicos. Contudo, ao produzir essas teologias
“baseadas biblicam ente”, passou-se a tratar as Escrituras como um livro anistórico que
caiu do céu, expressando a verdade atemporal de Deus, que podia ser compreendida
pelo estudante treinado. O trabalho do teólogo era, portanto, tratar a Bíblia como seu
livro-fonte de fatos. Uma vez que Deus era o autor dos fatos, existia uma harmonia
natural entre todas as partes das Escrituras, e esses fatos foram organizados e expostos
sistematicamente, de alguma forma.
Uma vez que as categorias formais não podiam ser baseadas na Bíblia, muitos teólo­
gos insistiam em que suas teologias eram simplesmente derivadas do arranjo natural do
material bíblico. Desses sistemas de doutrina deduzidos das Escrituras, outras verdades
também eram deduzidas. Metodologicamente, os escolásticos protestantes inverteram a
prática da primeira geração de reformadores c retornaram à metodologia escolástica da
Igreja medieval. É importante observar que o texto não era visto como literatura com ­
posta de vários gêneros ou condicionado historicamente à época em que foi produzido.
0 sistema reinava supremo, e em geral todas as verdades eram consideradas igualmente
importantes. Negar uma verdade do sistema era visto por alguns como uma negação de
todo o sistema, uma vez que as verdades eram entendidas como inexoravelmente inter­
ligadas. Por isso, ao construir seus sistemas, os dogmáticos tinham pouca ou nenhuma
consideração pelo contexto literário ou pela situação histórica à qual o texto se referia.
Devemos também observar que o pietismo, surgido como uma reação ao escolasti-
cismo intelectual luterano, opunha-se ao trabalho dos dogmáticos. Filipe Jacó Spener
denunciou o fato de que Lutero expulsou o escolasticismo pela porta da frente, e seus
sucessores ortodoxos o deixaram entrar pela porta dos fundos.

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UMA INTRODUÇÃO À TEOLOGIA

O reconhecimento de que a teologia não podia ser totalmente fu n dam en tada na


Bíblia, enquanto a disciplina era, de certo modo, derivada da filosofia, serviu de estímu­
lo para o estudo crítico da Bíblia como documento histórico e para o aparecimento da
disciplina formal da teologia bíblica. O surgimento do pensamento crítico, porém, não
ocorreu no vácuo.

d. O lluminismo: a remoção do método escolástico

A devastação das guerras religiosas da Europa, no início da década de 1600, em que


príncipes lutaram, cada um reivindicando autoridade divina, produziu um contexto
e uma necessidade de ter uma suprema corte de apelação que não fosse a mediação
da Igreja nem a revelação interpretada por ela. Em resposta a essa necessidade, sur­
giu o lluminismo. O racionalism o já reinava, em virtude da metodologia escolástica.
Bastou um pequeno passo para se transform ar a razão, de ferramenta de organização
e de apresentação da verdade, em árbitro da verdade.
Os primórdios do estudo crítico8 da Bíblia vieram com o labor de um sacerdote cató­
lico, Richard Simon (1638-1712). Ele foi o pioneiro no trabalho da crítica literária do NT,
mostrando que os títulos dos Evangelhos não faziam parte do texto, que o “final longo”
de Marcos (16.9-20) e a passagem da mulher adúltera (João 7.53— 8.11) não constavam
dos manuscritos mais antigos. Essas constatações, quase universalmente aceitas nos dias
atuais, seja por conservadores, seja por liberais, foram rejeitadas na época por protes­
tantes e católicos. De qualquer forma, Simon tornou-se o pai da investigação crítica do
texto das Escrituras. Ele derivou uma implicação da expressão sola scriptura , o lema
que posicionou a Bíblia contra o pensamento contemporâneo como meio de renovara
Igreja. Essa separação, porém, também possibilitou fazer da própria Bíblia um objeto de
investigação, dando assim origem à crítica histórica.
A teologia bíblica como disciplina surgiu na Alemanha, como produto da batalha en­
tre o racionalismo e o sobrenaturalismo.9 O campo de batalha para ambos os lados eram

8 Uma excelente história do método histórico-crítico é: H a r r i s v i i . i .r , Roy A.; S c n d b e r g , Walter. 'lhe


Bible in Modern Culture. Grand Rapids: Eerdmans, 1995.
5 Um panorama detalhado do desenvolvimento da teologia bíblica é Gerhard H a s e l , Old Testament

Theology: Basic Issues in the Current Debate, ed. rev., Grand Rapids: Eerdmans, 1991 |Teologia
do Antigo Testamento: questões fundamentais no debate atual. Rio de Janeiro: Juerp, 1987], e New
Testament Theology: Basic Issues in the Current Debate, Grand Rapids: Eerdmans, 1978 [Teologia

230
As divisões do estudo teológico

as Escrituras, e cada lado procurava apresentar a Bíblia de uma perspectiva própria.


Nesse contexto, tornou-se vital distinguir o ensino das Escrituras das interpretações a
elas impostas pelos vários grupos disputantes. Entre os sobrenaturalistas, havia a ten­
dência de comparar o ensino das Escrituras com as doutrinas recebidas da Igreja, com a
finalidade de corrigir c purificar a doutrina da Igreja. Entre os racionalistas , as teologias
bíblicas eram também elaboradas pela perspectiva antissobrenaturalista.
A origem da teologia bíblica, como disciplina separada, está essencialmente ligada à
distinção fundamental feita primeiramente em 1787 por Johann Philipp Gabler. Gabler
insistia em que o princípio histórico distinguia a teologia bíblica da dogmática. Seu pro­
grama estava fundamentado cm duas premissas: 1) existe uma distinção entre a Palavra
de Deus revelada nas Escrituras e as próprias palavras das Escrituras; 2) a teologia bíblica
não deve ser encontrada nos escritos bíblicos, mas derivada deles. Ao propor esses prin­
cípios fundamentais, ele separou formalmente a disciplina da teologia bíblica da teologia
dogmática/sistemática e a tornou independente. Seu alvo era reafirmar a Bíblia como a
base de toda a teologia, enquanto a dogmática, baseada na Bíblia, se tornaria o ápice e o
produto final do processo teológico.
Gabler percebeu que a Bíblia fornecia ao estudante uma religião, um ensino divino
entregue por escrito, em vez de uma teologia. A religião era simples, enquanto a teologia
era bastante desenvolvida e sutil. Como tal, elas faziam oposição uma à outra, mas ainda
assim a teologia devia ser baseada na religião. Gabler fundamentou seu método em três
considerações:

1. A inspiração devia ser deixada do lado de fora da equação, pelo fato de que o Espí­
rito de Deus não havia anulado nos escritores sagrados a habilidade de entender
nem a percepção natural das coisas. O fator crucial não é a autoridade divina,
mas a perspectiva do autor.
2. ü trabalho da teologia bíblica reconhece que os escritores sagrados apresentam
mais que uma única perspectiva, de modo que as perspectivas dos vários autores
devem ser cuidadosamente organizadas, relacionadas a conceitos gerais e com ­
paradas umas com as outras.

do Novo Testamento: questões fundamentais no debate atual. Rio de Janeiro: Juerp, 1988], Essas
obras formam a base do resumo a seguir.

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UMA INTRODUÇÃO À TEOLOGIA

3. Uma vez que a teologia bíblica é uma disciplina histórica, ela é, por definição,
obrigada a “distinguir entre os diversos períodos da antiga e da nova religião”
e, ao fazer isso, deve investigar quais idéias são aplicáveis hoje e quais não têm
validade para nossa época.10

A tarefa da teologia bíblica era fazer mediação entre a religião apresentada no texto
das Escrituras, por um lado, e a tarefa da dogmática, por outro lado, tornando-se a base
para a última. Era a transformação da religião bíblica num sistema teológico que forne­
cia a base para a dogmática.
Os estudos do NT divergiam dos estudos do AT no início do século X IX , e, por in­
fluência de Georg Lorenz Bauer, surgiu a teologia do NT como disciplina. Ele declara:

A teologia bíblica deve scr um desenvolvimento — puro e depurado de todos


os conceitos alheios — da teoria religiosa dos judeus antes de Cristo e de Jesus e
seus apóstolos, um desenvolvimento que se traça a partir dos escritos dos escrito­
res sagrados, apresentado conforme os vários períodos e os vários pontos de vista
e níveis de entendimento que refletem."

Bauer era um dedicado praticante do método histórico-crítico, e a disciplina desen­


volvida depois dele pressupunha esse método.
A teologia do NT alcançou como disciplina sua forma plenamente desenvolvida em
E C. Baur, cuja influência levou a escola de Tübingen (Alemanha) à proeminência nos
estudos neotestamentários. Além de insistir no método histórico, Baur trabalhava da pers­
pectiva da dialética hegeliana aplicada à História. Ele via o cristianismo antigo envolvido
numa luta entre o cristianismo judaico, representado por Pedro, e o cristianismo gentílico,
representado por Paulo. A síntese que daí emergiu foi o protocatolícismo.1’ Esse período
foi fértil para o desenvolvimento dos estudos do NT. Surgiram numerosas teologias do NT,
escritas de várias perspectivas — crítica, liberal, intermediária e conservadora.

lu H a sel , Gerhard. New Testament Theology: Basic Issues in the Current Debate, p. 23.

11 Apud KOmmel , Werner G. The New Testament: A History of the Investigation of Its Problems. Trad.
S. McClean Gilmour e I Ioward C. Kee. Nashville: Abingdon, 1972. p. 105.
12 O protocatolícismo não deve ser confundido com o catolicismo romano, cujo aparecimento foi so­
mente no período inicial da Idade Média.

232
As divisões do estudo teológico

Embora a maioria dos avanços no desenvolvimento da teologia bíblica tenha vindo da


erudição crítica, muitos estudiosos conservadores importantes deram sua contribuição.
Entre eles, estão Johann A. Bcngcl, Johann T. Beck e Johann C. K. von Hofmann, que foi
o pioneiro do conceito de Heilsgeschichte (história da salvação). A contribuição de von
Hofmann foi chamada de “o desenvolvimento teológico mais frutífero do século X IX ”.13
0 representante mais importante da teologia biblica desse período foi Adolf Schlatter,
geralmentc reconhecido como sendo da mesma classe que os estudiosos bíblicos libe­
rais dominantes, Baur, Wilhelm Wrede, Wilhelm Bousset e Rudolf Bultmann. Schlatter
é associado com a perspectiva da Heilsgeschichte na teologia bíblica e argumenta que
o ateísmo inerente do método histórico-crítico é ilegítimo. Além disso, ele argumenta
queo método é inadequado para estabelecer a teologia do NT: o teólogo e o historia­
dor não podem ser observadores objetivos neutros, pois a mensagem chega às pessoas
como algo a ser crido. Nessas questões, Schlatter antecipou o debate entre os estudiosos
do AT Otto Kissfeldl e Walther Eichrodt na década de 1920. O que Schlatter rejeitava
não era a história como tal, mas a premissa naturalista da historiografia moderna com
sua pressuposição de um Universo do tipo “sistema fechado” e a premissa liberal de um
imanentismo radical que negava a transcendência divina.
Num nítido contraste com o método de Schlatter, estava Wilhelm Wrede, que figura
como representante da escola da história das religiões. No final do século XIX, a disci­
plina como um todo havia sido engolida pela abordagem da história das religiões.
Durante o século XX , um nome dominou a teologia do NT e os estudos do NT em
geral: Rudolt Bultmann, que apresentou uma síntese com muitos pontos importantes.

• Ele adotou a pesquisa puramente histórica da escola da história das religiões.


• Ele seguiu uma “escatologia consistente”.
• Ele estava comprometido com o método histórico-crítico.
• Ele pressupôs o existcncialismo de M artin Heidegger.
• Ele tentou “demitologizar” o NT para o mundo moderno. Ao adotar a pressuposição
de que o homem moderno não pode mais aceitar os “mitos” encontrados no NT, ele
procurou reinterpretar esse mito de modo existencial para o ouvinte moderno.14

'·’ Hashl, Gerhard. New Testament Theology: Basic Issues in the Current Debate, p. 37.
" Ibid., p. 55.

233
UMA INTRODUÇÃO À TEOLOGIA

Depois da morte de Bultmann em 1976, surgiu uma “escola pós-bultmanniana” de


estudos do NT.

4. O movimento de teologia bíblica

O desafio representado por Karl Barth e pela neo-ortodoxia à teologia liberal do­
minante produziu um novo interesse pela Bíblia e pela teologia. Essa reação, por sua
vez, deu origem ao chamado “movimento de teologia bíblica”,15 identificado com preo­
cupações tais como fazer distinção entre o pensamento grego e o hebraico, contemplar
as Escrituras em seu contexto cultural e tentar identificar o eixo unificador da Bíblia.
Como movimento, desenvolveu-se simultaneamente com a neo-ortodoxia e entrou em
declínio como força na teologia norte-americana na década de 1960. Gerhard Hasel
acredita que o fracasso do movimento deveu-se ao fato de ter surgido do liberalismo e
pretender corrigi-lo internamente. O fracasso foi consequência da ligação básica com as
tendências, padrões de pensamento e métodos da teologia liberal.16

5. As divisões da teologia bíblica

Nesta exposição, usamos um pincel largo, reconhecendo que a realidade c muito


mais complexa que este resumo.

a. Teologia do AT

O propósito maior da teologia do AT é traçar a revelação progressiva de Deus nas


Escrituras desde os primórdios, demonstrando como o conteúdo do entendimento
cresceu através dos séculos. A teologia do AT mapeia os temas e idéias ao longo dos
séculos, observando as repetições dc conceitos, bem como o aumento da compreensão,
mostrando como Deus progressivamente foi acrescentando conteúdo à revelação no
decorrer da História. Durante o século XX , surgiu um grande número dc tcologias do
AT, procurando explicar o AT como um todo por meio dc um único tema unificador.
Assim como os teólogos sistemáticos tentam apresentar seu material em torno dc idéias
centrais organizadoras, os teólogos do AT procuraram organizar o material bíblico em
torno de temas como a aliança ou o Reino. Contudo, como já foi observado, esses lemas
não são sobrepostos ao material: eles surgem do próprio material. O fato de tantos

V. o cap. 15, “Neo-ortodoxia”.


Movimento de teologia bíblica. In: E i.wfxl , Walter A. (Org.). Enciclopédia histórico-tcológica da
igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1990. v. 2, p. 577-562.

234
As divisões do estudo teológico

teólogos terem proposto diferentes centros ou princípios organizadores é prova da difi­


culdade de descobrir um centro suficientemente abrangente.

b. Teologia do NT

A teologia do NT começa com as perspectivas de vários autores do NT e da singularidade


de cada um deles. Um aspecto-chave aqui é o reconhecimento de que o NT não é “plano” em
sua perspectiva. Pelo contrário, cada autor enxerga seu assunto de uma perspectiva única.
Podemos comparar essas perspectivas às facetas de um diamante, cada uma rcfratando a luz
da revelação divina de modo levemente diferente, uma vez que a refração concede profundi­
dade e cor às várias perspectivas. Assim, por exemplo, enquanto Paulo apresenta a salvação
com base em categorias legais, como adoção, justificação e reconciliação, João vê a sal­
vação como vida e explica a verdade com base nessa perspectiva. Portanto, a teologia do NT
que se pretenda completa incluirá perspectivas como a teologia de Paulo, a teologia de João,
ateologia de Pedro, a teologia dos Evangelhos sinópticos, e assim por diante.

6. Questões na teologia bíblica


a. Unidade e diversidade

Um problema crucial ao se fazer teologia bíblica é a tensão entre a unidade c a diver­


sidade do material bílrlico. Estudiosos antissobrenaturalistas enxergam o texto como uma
simples coleção de material religioso e histórico que documenta as concepções religiosas
emevolução, em Israel e na Igreja. Eles negam qualquer unidade fundamental no material
bíblico, interpretando a diversidade de perspectiva como contradição. Os que veem o texto
como revelação divina consideram essa opção inaceitável e, embora reconheçam a diver­
sidade do texto, insistem em que deve haver uma unidade abrangente no material bíblico.
Deus é a fonte de todo o material e o autor de toda a verdade. Eles afirmam a pressuposição
de que, em última análise, a verdade não pode contradizer a verdade.

b. A questão do método

Embora o alvo da teologia bíblica seja simples, os meios para alcançar esse alvo são
sempre complexos. Na verdade, não existe um método universalmente reconhecido e
aceito. Muitos métodos são empregados por vários teólogos bíblicos, desde os métodos
sintético, analítico, da história das religiões, diacrônico, da crítica da tradição, cristoló-
gico, e confessional até o multiplex.17

I! Cf. Gerhard Hasel , ibid., p. 580-581.

235
UMA INTRODUÇÃO À TEOLOGIA

B. TEOLOGIA HISTÓRICA

Teologia histórica é a disciplina que investiga a compreensão progressiva


do cristianismo e da verdade da revelação divina na vida, no coração, na ado­
ração e no pensamento da humanidade. Como no caso da teologia bíblica,
sua tarefa é descritiva, pois se relaciona com o passado como passado. A te­
ologia histórica procura responder à pergunta: "0 que as gerações passadas
compreendiam e ensinavam com referência à fé cristã e por que entendiam e
ensinavam dessa forma?"

1. A natureza da teologia histórica e a história da doutrina

ü estudo da história da doutrina compartilha um começo recente com os campos rela­


cionados à teologia do Antigo e do NT. Todos tiveram sua origem no final do século XVII,
na época do surgimento da moderna historiografia e da conscientização histórica.
Johann S. Scmler, um historiador da Igreja e crítico bíblico alemão, demonstrou, era
1762, que a história da doutrina deveria ser separada da história eclesiástica. Antes de
Sender, as doutrinas eram percebidas como estáticas, tanto pelos protestantes quanto
pelos católicos. No entanto, Sender concluiu que a história era um elemento em movi­
mento que estava constantemente mudando:

A essência do dogma é apenas mudança incansável. A história para [Sender]


é governada pelos poderes arbitrários da subjetividade. [...] Sua obra representa
o primeiro exame crítico do cristianismo primitivo e do desenvolvimento do
dogma. É baseada na pressuposição de que o cristianismo pode ser considerado
um simples fenômeno histórico a ser estudado historicamente, sem pressupo­
sições dogmáticas, e sua manifestação histórica deve ser analisada no contexto
de seu ambiente histórico.18

Foi especificamente durante o século X IX , com o surgimento do movimento român­


tico e da filosofia hegeliana, que a história e o pensamento teológicos foram visualizados
como dinâmicos. Enwicklung (desenvolvimento) tornou-se a palavra-chave da mentali­
dade alemã do século X IX e continuou a exercer influência sobre os estudos teológicos

18 Cunliffe-Jones, Hubert (Org.). A History of Christian Doctrine. Philadelphia: Portress, 1978. p. 6.

236
As divisões do estudo teológico

desde aquela época. Antes disso, tanto os teólogos católicos romanos quanto os protes­
tantes viam seus sistemas teológicos como estáticos, como se tivessem emergido direta­
mente do NT, assim como Minerva era vista emergindo da cabeça dc Zeus, totalmente
crescida e armada para a batalha. Foi o cardeal John Henry Newman19quem influenciou
de modo especial a popularização do conceito de desenvolvimento da doutrina.
A teologia histórica é uma disciplina híbrida que deriva tanto da teologia quanto da
História. F.sse híbrido reconhece que forças históricas e sociológicas estão envolvidas
na forma em que as questões são elaboradas e as respostas são dadas, mas a teologia
histórica não faz que as respostas sejam absorvidas pelo aspecto sociológico. Em vez
disso, embora reconheça os fatores contingentes envolvidos, a teologia histórica está
preocupada com o conteúdo das crenças apresentadas como intrinsecamente cristãs.
Segundo Hubert Cunliffe-Jones, “o historiador ideal da teologia cristã deve estar profun­
damente alicerçado na verdade do evangelho e envolvido na vida da Igreja, igualmente
à vontade nos campos da história e da filosofia, e capacitado com os poderosos dons da
exposição”.20 Além disso,

o historiador da teologia cristã deve estar atento ao contexto cultural dos teó­
logos c das proposições que ele investiga e registra. Toda teologia é formulada
num contexto cultural. Fatores culturais influenciaram a teologia de teólogos no
passado de maneiras que os próprios teólogos nem sempre percebiam.21

2. 0 desenvolvimento da teologia histórica

Wilhelm Muenscher, discípulo de Semler e teólogo do Iluminismo, é chamado de “o


pai da moderna história do dogma”.22 Assim como no caso da teologia bíblica, a tarefa

” V. cap. 9, para conhecer melhor a contribuição de Newman. Kmbora a perspectiva de Newman tivesse
como objetivo explicar mudanças dentro do catolicismo, a ideia subjacente de que a doutrina é dinâ­
mica e se desenvolve com o tempo é reconhecida por todos nesse campo dc estudo.
8 A History of Christian Doctrine, p. 17.
!l Ibid., p. 17.
J! N e v e , J. L ; H e ic k , O. W. A History of Christian Thought. Philadelphia: United Lutheran Publication
House, 1943. v. 1, p. 6. Cf. Wilhelm M uenscher , Handbuch der christlichen Dogmengeschichte, 4 v.
(1797-1809); Lehrbuch der christlichen Dogmengeschichte (1811).

237
UMA INTRODUÇÃO ÀTEOLOGIA

da teologia histórica é descritiva, não crítica. A Igreja deu à sua fé uma forma fixa no
dogma. Contudo, pelo menos da perspectiva protestante, a falibilidade do dogma deve
ser reconhecida como axiomática. O dogma da Igreja e também as doutrinas propostas
pelas várias escolas e mestres devem sujeitar-se à autoridade final das Escrituras.

Provar a harmonia ou a desarmonia do dogma [ou doutrina] com essas


cortes de apelação não é o ofício da história das doutrinas, e sim da dogmáti­
ca e da teologia prática. Pode-se exigir somente da história das doutrinas que
apresente os argumentos citados como evidência pelos defensores originais de
determinada doutrina. História não é crítica histórica.

Além disso, devemos compreender que não existe dogma divino. O dogma/
doutrina é a resposta de fé humana à revelação divina. Como resposta humana,
existe sempre a possibilidade de mistura com o erro. “Com base nesse princípio,
será possível reconhecer o caráter cristão e bíblico das idéias sustentadas pelos
concílios de Niceia e Calcedônia [...] embora não seja possível aprovar toda a
terminologia empregada por eles.”2'

Outro nome proeminente no desenvolvimento da disciplina é Ferdinand Christian


Baur. Apesar de ser mais lembrado como estudioso do NT, Baur produziu também uma
história do dogma em cinco volumes, que a contemplam em dois aspectos: 1) discernir
os tatos em seu contexto real, do modo em que foram afirmados, por testemunhas fiéis;
2) interpretar esses fatos de acordo com seu desdobramento interno.
Assim como em sua obra sobre a crítica do NT, Baur aplicou a dialética hegeliana do
progresso à informação missionária, mas a idéia de um desenvolvimento cresceu além
de suas raízes hegelianas.
O maior historiador da doutrina ou do dogma foi Adolf von Harnack (morto em
1932). Sua obra History o f Dogma continua sendo a mais importante no campo da his­
tória da doutrina. Foi ele quem introduziu a ideia de que o dogma se originou com a
infusão do helenismo na Igreja antiga. O campo da história da doutrina é dominado,
sem surpresa, pela erudição alemã. Das obras traduzidas para o inglês, as seguintes são
especialmente úteis:25

25 Seiíburü, Reinhold. Text-Book of the History of Doctrines. Trad. Charles E. Hays. Grand Rapids:
Baker, 1952. p. 20-21.

238
As divisões do estudo teológico

Karl Rudolf H acen bach , A History o f Christian Doctrines [História das doutri­
nas cristãs] (traduzida em 1881).

Adolf von H arnack , History of Dogma [História do dogma] (traduzida entre


1897-1900).

Johann August Wilhelm N ea n d er , History o f Christian Dogmatics [História da


dogmática cristã] (traduzida em 1858).

Reinhold S ef.be r g , The History o f Doctrines [História das doutrinas] (traduzida


cm 1896, 1898).

Entre as obras norte-americanas, seis se destacam:

George Park F isc h e r , History o f Christian Doctrine [História da doutrina cristã]


(1886).

Otto W. H e ic k , A History o f Christian Thought [Uma história do ensino cristão]


(1965).

Arthur Cushman M c G iepert , History of Christian 'thought [História do ensino


cristão] (1932-1933).

Jaroslav P ku k a n , A History o f Christian Thought [Uma história do ensino cris­


tão], 5 v. (1971-1989).

Willian G. T. Shhdd, History o f Christian Dogma [História do dogma cristão]


(1889).

H. C. S h eld o n , History of Christian Doctrine (História da doutrina cristã]


(1886).

3. História do dogma ou história da doutrina?

a. Dogma

Embora os lermos “dogma” e “doutrina” sejam usados de modo intercambiável, eles


não são sinônimos. “Dogma” é derivado do grego dokeo (“parecer”). Até mesmo no pró­
prio NT, está associado às descobertas de um grupo eclesiástico (Atos 16.4, dogmata).
Seeberg diz:

O termo teológico, dogma, designa ou uma doutrina eclesiástica ou toda


a estrutura de tais doutrinas, i.e., o sistema doutrinário da igreja. Uma vez que

239
UMA INTRODUÇÃO À TEOLOGIA

dogma é a expressão formal da verdade sustentada por toda a Igreja, ou por


uma igreja específica, a Igreja espera seu reconhecimento por parte dos mem­
bros, c [...] e de seus mestres principais. Aplicamos o termo, dogma, [...] ape­
nas às proposições que alcançaram caráter eclesiástico. [...] Bmbora a forma
do dogma seja o resultado do trabalho da teologia, seu conteúdo é derivado
da fé comum da Igreja.21

Da mesma forma, Hcick observa, “o termo ‘dogma é aplicado às afirmações defini­


tivas da Igreja”.25

No sentido técnico, o termo “dogma” refere-se ao estudo das afirmações dos credos
e confissões. F, o estudo do desenvolvimento do pensamento teológico desde os pri-
mórdios, no período imediatamente pós-apostólico e a época dos pais apostólicos, até
a formulação final dos credos. A maioria dos cristãos admite a existência de um cerne
fundamental de afirmações dogmáticas reconhecido por todas as tradições cristãs. Esse
cerne de afirmações emana dos quatro primeiros concílios ecumênicos da Igreja, come­
çando por Niceia (325) e indo até Calcedônia (451). Por tradição, o Credo apostólico c o
Credo de Atanásio são também reverenciados, contudo nenhum dos dois tem a chancela
oficial do consenso doutrinário da Igreja antiga. Além desses credos básicos, diferentes
comunhões esboçam suas convicções de credo de forma sectária, a formulação final
variando de acordo com a comunhão específica.

Entre os ortodoxos do Oriente, a dogmática culmina com o Segundo Concilio de


Niceia, em 787. A teologia ortodoxa não admite nenhum desenvolvimento ou esclare­
cimento posterior desde aquela data. De todas as comunhões cristãs, é a que preserva
imutável há mais tempo a teologia e a liturgia da Igreja antiga.

Diferentemente da ortodoxia oriental, a dogmática católica romana continua a se


desenvolver através dos séculos e, embora suas afirmações mais recentes estejam incor­
poradas aos pronunciamentos do Concilio Vaticano II (1963-1965), o desenvolvimento
da doutrina dentro do catolicismo é um processo permanente e, por princípio, nunca
foi interrompido.

Ibid., p. 19.
- Neve, J. L.; I I eick , O. W. Op. cit., v. 1, p. 3.

240
As divisões do estudo teológico

No luteranismo, a dogmática termina com a Fórmula de concórdia (1580). Desde aque­


laépoca, tem havido muita discussão teológica, mas nenhuma alteração nos credos.
A dogmática reformada encontra sua expressão clássica nas conclusões do Sínodo
de Dort (1519), que foi convocado para responder à Remonstrância , apresentada pelo
crescente grupo dos arminianos. Esse foi o único sínodo internacional das igrejas re­
formadas e, portanto, o único credo verdadeiramente reconhecido como universal na
tradição reformada. As igrejas de fala inglesa nas tradições reformadas veem a Confissão
de Westminster ( 1649) como autoridade. Elas mantêm outras confissões em alta estima,
como a Segunda confissão helvética, mas num sentido mais estrito esses dois últimos
documentos não são considerados afirmações dogmáticas, uma vez que não são formal­
mente reconhecidos por toda a tradição reformada.
Pelikan observa que “uma doutrina, uma vez form ulada [não] deixa de desen­
volver-se e torna-se fixa; nem m esm o o dogma da Trindade ficou totalm ente inerte
desde sua adoção e clarificação”.26 Assim, devemos olhar para além das form ulações
dogmáticas em nosso estudo e exam inar não apenas as afirm ações dos credos, mas
também as form ulações doutrinárias desenvolvidas desde o pronunciam ento dos
credos.

b. Doutrina

O termo “doutrina” ( didaskalia , 1Timóteo 4.16) é quase universalmente traduzido


por “ensino” no NT. É mais abrangente em sentido que “dogma”. A “doutrina” reflete a
ideia de algo ensinado, sustentado ou apresentado como verdadeiro, ou apoiado por um
mestre, uma escola de pensamento ou um grupo. )á o “dogma” abrange apenas os ensi­
nos contidos nas confissões da Igreja. As doutrinas são, portanto, muito mais diversas e
podem ser bem mais detalhadas que as afirmações dogmáticas.
Um exemplo bem visível da diferença entre dogma e doutrina se vê no fato dc
que as igrejas confessionais (reform ada, luterana e católica romana) possuem dog­
mas, enquanto os batistas, as igrejas independentes e as tradições das igrejas livres
emgeral não reconhecem dogmas, mas afirm am doutrinas. Boa parte das tradições

!i The Christian Tradition: A History of the Development of Doctrine. Chicago: University of Chicago
Press, 1971-1989. v. l,p . 5.

241
UMA INTRODUÇÃO À TEOLOGIA

não litúrgicas não reconhece form alm ente a autoridade dos antigos credos ecumê­
nicos, em bora afirm e a teologia neles contida. Apenas a Bíblia é reconhecida como
autoridade.

C. TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Teologia sistemática é "o ramo do estudo teológico que segue um esquema


p ro je ta d o p e lo h o m e m , ou uma ordem de desenvolvimento/apresentação da
doutrina que tenta incorporar em seu sistema toda a verdade acerca de Deus
ed e seu Universo, de qualquer fonte" (B. B. Warfield, gritos nossos).

Já aprendemos bastante acerca da natureza da teologia sistemática na exposição so­


bre a tarefa do teólogo, no capítulo 2. Em vez de repetir grande parte daquele material,
iremos “preencher as lacunas” com outros detalhes e observações. Como foi visto no
capítulo 2, existem diferentes concepções de tarefa teológica. Em geral, a tarefa é vista
sob um de três enfoques — sapientia , scienlia e orthopraxis.27 A visão que se tem da tarefa
teológica irá moldar a Gestalt da teologia produzida.
Uma teologia que tenha a scientia como sua visão básica tentará produzir um enten­
dimento abrangente da realidade. Essa compreensão, mesmo não sendo uma “catedral
da mente” conforme entendida pelos sistemas escolásticos, produzirá em cada caso um
paradigma de realidade que tentará conscientemente integrar conhecimento das Escri­
turas, história, ordem criada, ciências exatas e sociais, tradição e experiência com o ob­
jetivo de oferecer um panorama abrangente de uma realidade teocêntrica. Um teólogo
contemporâneo nessa categoria é Wolfhart Pannenberg, cuja teologia está sob a rubrica
de “revelação como história”.
Entretanto, se a teologia é concebida na modalidade de sapientia (consciente ou in­
conscientemente), o foco se voltará para a presença viva de Deus. Um exemplo contem­
porâneo dessa modalidade de concepção teológica é a teologia narrativa, que procura
levar o leitor para dentro do paradigma bíblico de realidade por meio da história bíblica,
cm contraste com a entrada por um sistema teológico mais tradicional.

V. figura 2.1 no cap. 2.

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