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Ariovaldo Ramos

UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL


São Paulo - 2005

Missão Integral
Agradecimentos

1) A Igreja Batista de Água Branca, por ter promovido a Sema-

na de Atualização Ministerial/2004; 2) Sônia Daniel, pelo trabalho de

degravação das palestras da SAM; 3) Judith Ramos, por ter atuado

como consultora editorial; 4) A Luka Moreira, que preparou os origi-

nais 5) A editora Mundo Cristão pela iniciativa de publicar um título

Ariovaldo Ramos sobre um assunto pouco lembrado pelas editoras.)

Ariovaldo Ramos nasceu


em 01.01.56. Se converteu ao
evangelho aos 16 anos na Igreja
Metodista Livre do Jardim Paraventi
em Guarulhos, SP.
Cursou Teologia na Faculdade
Metodista Livre e Filosofia na
Universidade de São Paulo (não
concluído).
É casado com Judith, pai da Myrna
(19 anos) e da Rachel (19 anos). É
missionário da Sepal, pastor da
Comunidade Cristã Reformada e
membro da equipe pastoral da
Igreja Batista da Água Branca ambas
em São Paulo. Preside há Visão
Mundial do Brasil e é membro do
Consea - Conselho de Segurança
Alimentar da Presidência da
República ligado ao Programa Fome
Zero.
Escreveu o livro Nossa Igreja
Brasileira publicado pela Editora
Hagnos e é colunista do site
Teologia Brasileira.

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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
Sumário

INTRODUÇÃO – SERVIR A DEUS NO MUNDO: ...................................................... 3


A Voz do Terceiro Mundo ......................................................................... 3
Responsabilidade Social Cristã .................................................................. 4
A Igreja como Sinalizadora do Reino ......................................................... 7
Servir a Deus no Mundo .......................................................................... 8
CAPÍTULO 1 – O MOVIMENTO ‘EVANGELICAL’: TEOLOGIA NA PERIFERIA DO MUNDO ....... 11
Os Evangelicals e Lausanne 74 ................................................................. 11
Evangelho e Contexto ............................................................................. 12
Os Evangelicals no Brasil ......................................................................... 13
CAPÍTULO 2 – PASSANDO A IGREJA A LIMPO: UM POUCO DE HISTÓRIA ...................... 14
Teologia da Esperança e Teologia da Libertação .......................................... 14
O Regime Militar .................................................................................... 15
A Teologia da Prosperidade ...................................................................... 16
CAPÍTULO 3 – MISSÃO INTEGRAL I: UM ITINERÁRIO ........................................... 19
O Pecado na Perspectiva da Missão Integral ............................................... 20
O Fracasso das Tentativas Humanas ......................................................... 22
CAPÍTULO 4 – MISSÃO INTEGRAL II: O REINO DE DEUS COMO CHAVE HERMENÊUTICA ... 24
A Queda, o Sacrifício de Cristo e a Criação Provisória ................................... 24
O Reino de Deus, a História e o Futuro do Homem ..................................... 25
A Nova Humanidade ............................................................................... 27
Cristo, o homem coletivo ......................................................................... 29
EPÍLOGO – O REINO DE DEUS E A NOVA HUMANIDADE ......................................... 31
A Lei e a Salvação do Homem .................................................................. 31
Santidade como Ausência de Mistura ........................................................ 32
Santidade e a Nova Humanidade .............................................................. 34
Apêndice: O Pacto de Lausanne ............................................................... 36
Bibliografia ............................................................................................ 43

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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
Introdução – Servir a Deus no Mundo:
Uma Releitura do Pacto de Lausanne

A Voz do Terceiro Mundo


O Pacto de Lausanne foi resultado do 1o Congresso Internacio-
nal de Evangelização Mundial, realizado em 1974 na cidade suíça do
mesmo nome. O congresso reuniu teólogos, pastores, missionários e
lideranças cristãs de 150 países. Ao todo, estavam presentes ao even-
to 2.750 pessoas. Organizado pela Billy Graham Association, o con-
gresso passou por significativas mudanças em sua orientação ainda
durante a fase de planejamento. Alguns meses antes do congresso ter
se reunido, os principais oradores enviaram o texto de suas palestras
aos organizadores do congresso. Teólogos do chamado mundo subde-
senvolvido também enviaram suas contribuições, e a semelhança en-
tre os seus diagnósticos e entre as suas conclusões acabaram por dar
o tom do congresso, pondo em curso, também no arraial conservador,
um processo de pensar teológico a partir da periferia da história.
Estamos na década de setenta, a Guerra Fria está no auge e
ditaduras haviam se espalhado pelos países do terceiro mundo.1 Na
América Latina e na África, regiões do planeta com alta concentração
de pobres, as desigualdades sociais são imensas e a democracia, rare-
feita. Os teólogos se perguntam: O que Deus tem a dizer a um povo
cuja liberdade foi usurpada e que teve sua dignidade negada? Como se
fala de Jesus a pessoas que vivem em favelas e lutam para não morrer
de fome? Quais são as boas notícias para quem a miséria interditou
mesmo os menores dos sonhos? As respostas estavam a caminho e
estão na origem do que tempos depois se chamou de missão integral.
O Pacto de Lausanne (no final do livro, encontra-se a íntegra
do documento) veio à luz como resultado do choque de duas visões:
de um lado, estavam os teólogos dos países do primeiro mundo, de
idéias conservadoras e ênfase na conversão pessoal e no progresso
espiritual e moral do crente. Do outro, enfileiravam-se os teólogos
terceiromundistas, que conviviam com a miséria, a fome, a violência
das grandes cidades, os regimes de exceção, a opressão econômica,
o “apartheid” e a falta de perspectiva. As diferenças logo se fizeram
sentir. Em conferências anteriores, as igrejas do primeiro mundo
sempre impuseram sua visão. Em Lausanne veio a mudança e a voz
dos cristãos das nações pobres se fez ouvir pela primeira vez: o ser
humano não está no vácuo, suspenso no éter ou protegido dentro de
uma bolha. Ele vive numa sociedade, com suas promessas e contra-
dições, sua história, sua cultura, sua economia e sua política. De
fato, Lausanne foi a primeira e última vez em que isso aconteceu,
porque no congresso seguinte, que foi realizado em Manilla, nas Fili-
pinas, o primeiro mundo retomou o controle. Mas as coisas já não
eram as mesmas. Uma mudança havia se processado. Era impossível
apagar Lausanne 1974.

1
Esse era o termo para descrever as nações em desenvolvimento na época,
abandonado somente na década passada.
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Missão Integral
Responsabilidade Social Cristã
O Pacto de Lausanne está dividido em 15 seções, além de um
breve texto introdutório. Como ouvi de Ziel Machado, então, secretário
da Aliança Internacional de Estudantes Evangélicos, no Brasil, Aliança
Bíblica Universitária (ABU), “Missão Integral é uma resposta missiológica
a partir do Reino de Deus”, assim, o pacto é uma proposta de
evangelização que tem como ponto de partida as demandas dos opri-
midos, a partir de uma dada compreensão do Reino de Deus. Vejamos
a quinta seção, “Responsabilidade Social Cristã”, que diz:
Afirmamos que Deus é o Criador e Juiz de todos os
homens. Portanto, devemos partilhar o seu interesse
pela justiça e pela reconciliação em toda a sociedade
humana, e pela libertação dos homens de todo tipo de
opressão. Porque a humanidade foi feita à imagem e
semelhança de Deus, toda pessoa, sem distinção de
raça, religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade
possui uma dignidade intrínseca em razão da qual deve
ser respeitada e servida, e não explorada. Aqui tam-
bém nos arrependemos da nossa negligência e de ter-
mos algumas vezes considerado a evangelização e a
ação social mutuamente excludentes. Embora a recon-
ciliação com o homem não seja reconciliação com Deus,
nem a ação social evangelização, nem a liberação po-
lítica salvação, afirmamos que a evangelização e o
envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso
dever cristão. Pois ambos são necessárias expressões
de nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, do
nosso amor pelo próximo e da nossa obediência a Je-
sus Cristo. A mensagem da salvação implica também
uma mensagem de juízo sobre toda forma de aliena-
ção, de opressão e de discriminação, e não devemos
ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer
que existam. Quando as pessoas recebem Cristo, nas-
cem de novo em seu reino e devem procurar não só
evidenciar mas também divulgar a retidão do reino em
meio a um mundo. A salvação que alegamos possuir
deve nos transformar na totalidade de nossas respon-
sabilidades pessoal e social. A fé sem obras é morta.
O texto acima ecoa a pregação de João Batista, repetida por
Jesus no início do seu ministério: “Daí por diante, passou Jesus a pre-
gar e a dizer: ‘Arrependei-vos, porque está próximo o reino de Deus”
(Mt 4:17). É preciso fazer uma distinção entre o que João Batista que-
ria dizer com essa frase e o significado que ela ganhou na boca do
Nazareno. Para o primeiro, significava a vinda do Messias e seu reino;
na prédica de Jesus, se referia não apenas à sua própria chegada,
como o enviado de Deus, mas ao surgimento de um novo povo e um
novo reino. Embora sutil, a diferença entre os dois significados tem
conseqüências diversas. João Batista anunciava o arrependimento como
preparação para receber o Reino de Deus. Em Jesus, anunciava-se a
inauguração de um novo tempo e um novo desfecho para a história da
humanidade. O que vem, então, a ser o Reino de Deus? Para os con-
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temporâneos de Jesus, significava a chegada do Messias prometido
pelos profetas e a libertação de Israel do jugo estrangeiro e o conse-
qüente domínio global da nação de Israel.
O Reino, entretanto, não veio segundo as expectativas vigen-
tes, o Messias não era um general era um sacrifício e o seu Reino, mais
do que uma ação que toca a política, é uma nova consciência, uma
nova maneira de existir como indivíduo e como humanidade. Vamos
dar uma passada d’olhos no texto que, provavelmente, alimentou os
sonhos daquele povo, porém, procurando por outros caminhos de com-
preensão:
O senhor [o rei] teve uma visão na qual viu uma está-
tua enorme, de pé, bem na sua frente. A estátua era
brilhante, mas metia medo. A cabeça era de ouro puro,
o peito e os braços eram de prata, a barriga e os qua-
dris eram de bronze, as pernas eram de ferro, e os
pés eram metade de ferro e metade de barro. Enquan-
to o senhor estava olhando, uma pedra se soltou de
uma montanha, sem que ninguém a tivesse empurra-
do. A pedra caiu em cima dos pés da estátua e os
despedaçou. Imediatamente, o ferro, o barro, o bron-
ze, a prata e o ouro virara pó [...] O vento levou tudo
embora, sem deixar nenhum sinal. Mas a pedra cres-
ceu e se tornou uma grande montanha, que cobriu o
mundo inteiro. (Dn 2:31-35)
Na interpretação mais comum, a estátua representa a suces-
são dos reinos na história, que teve início com o domínio dos babilônios,
que foram sucedidos pelos medo-persas, e estes pelos gregos, até
chegar ao Império Romano. Este se dividiu, por fim, em nações fortes
e fracas. E a pedra? Ela representa o Reino de Deus, cujo poder jamais
se extinguiria:
“No tempo desses reis, o Deus do céu fará aparecer um
reino que nunca será destruído, nem será conquistado
por outro reino. Pelo contrário, esse reino acabará com
todos os outro e durará para sempre” (v. 44).
De que modo podemos entender essa narrativa? É possível ver
na estátua as sucessivas tentativas humanas de resolver as contradi-
ções da história sem levar em conta os desígnios divinos e, na pedra, a
resposta de Deus para a superação dos dilemas humanos.
Parece não haver muita dúvida quanto ao fato de que, a visão
de Nabucodonosor fala de uma sucessão na história. Não só fala dessa
seqüencialidade, como apresenta um conceito progressivo de história,
um certo propósito na mesma, o conceito de que a história caminha
numa espécie de espiral que avança, mais do que numa linearidade
simples, porque o encadeamento apresentado aponta, até a abrupta
chegada da pedra, para mais do mesmo.
A história, entretanto, tem conteúdo, naquele sonho está de-
senhado todo o caminho da humanidade e, mais que mero rodízio de
reinos, numa dança cruel sob o signo da opressão, onde há troca de
pares, mas não de lógica, está contida todas as tentativas da humani-
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dade o nosso dilema, e está contido em duas versões: a da estátua e a
da pedra. A estátua é a versão que ignora Deus na busca de soluções,
e a pedra é a que apresenta Deus a fonte das possíveis soluções.
O nosso dilema pode ser sintetizado nas três perguntas que
têm norteado toda a nossa produção, em todos os campos do conhe-
cimento: Quem somos nós (de onde viemos, por que e para que)? Que
fazemos com a riqueza que retiramos do planeta? Como fazemos para
viver juntos?
Na versão estátua, para responder a primeira pergunta, propu-
semos um sem número de filosofias e criamos a mesma magnitude de
religiões, contudo, não conseguimos nos livrar do vazio existencial, do
desespero e do suicídio. Já, como resposta para a questão sobre a
riqueza, tentamos de tudo, desde o escambo (a simples troca de mer-
cadorias) até a moderna sociedade de consumo, passando por várias
tentativas de socialismo, e não conseguimos nos livrar da fome, da
miséria, da exploração do homem pelo homem, da injustiça social. E,
na busca de solucionar a terceira questão, caminhamos desde o clã
primitivo até as sociedades democráticas mais desenvolvidas, passan-
do por vários modelos de sociedade, e não conseguimos nos livrar da
guerra, da violência urbana, do homicídio.
Na versão pedra, a resposta para a primeira questão afirma
que somos de Deus criaturas, sua imagem, que nele vivemos, que sua
vontade é o padrão de normalidade do universo, e que é nessa pers-
pectiva que devemos viver, tendo a Jesus de Nazaré como exemplo;
esta vida, entretanto, só é possível por meio do reconhecimento do
sacrifício de Cristo, numa aliança com ele, sob a habitação e condução
do Espírito Santo. A segunda questão é respondida pela evocação do
termo solidariedade como responsabilidade pelo outro, que lhe reco-
nhece o mesmo direito à dignidade, o que provoca a partilha, de modo
que ninguém detenha duas túnicas, como disse João Batista, enquan-
to todos não tiverem, pelo menos, uma, de maneira que quem colheu
demais não acumule para esbanjamento, para que, o que colheu de
menos não passe por necessidade, que o trabalhador seja o primeiro a
participar do fruto de seu trabalho, da mesma forma que o boi deve ser
o primeiro a comer do trigo que debulha; enfim, o trabalho e o seu
resultado deve ser de todos e para todos. Como solução para a terceira
questão, o proposto é a fraternidade, tratar o outro como gostaria de
ser tratado, reconhecer a todos como “o próximo”, principalmente,
aquele que mais necessita do outro, reconhecendo na humanidade
uma só família interdependente, de fato, tendo na humanidade uma só
pessoa, de modo que todo e qualquer tipo de segregação e de discri-
minação seja banida do relacionamento humano.
Embora, o dilema humano possa ser resumido nessas três ques-
tões, uma quarta preocupação veio à tona nestes últimos tempos: O
que fazemos para reverter o processo de destruição que deflagramos
no planeta? A versão estátua não está conseguindo encontrar resposta
para essa angustia, principalmente, porque qualquer proposição terá
de passar pela revisão do modelo de progresso adotado desde a revo-
lução industrial do séc. XIX; o Reino, por sua vez, desde tempos perdi-
dos na memória, tem insistido que a administração do planeta,
6 delegada,por Deus, à humanidade, implica na promoção de um jar-
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dim, pois, logo após ter delegado ao ser humano a responsabilidade
para cuidar da Terra, colocou-nos num jardim, dando-nos, assim, o
modelo: deveríamos transformar nosso “habitat” num jardim com tudo
o que essa figura significa: uma beleza comunitária, fruto de sinergia,
uma beleza mais intensa do que a simples soma dos componentes do
jardim, uma beleza solidária, os mesmos nutrientes deveriam ser dis-
tribuídos segundo a necessidade de cada um dos espécimes, uma be-
leza inclusiva, deveria congregar todas as espécies e todos os fenôme-
nos, uma beleza fraterna, todos deveriam se submeter à contenção
para que o sol, a chuva e todos os elementos necessários à sobrevi-
vência com qualidade fossem garantidos a todos. Um jardim onde o
ser humano fosse, simultaneamente, jardineiro e parte do jardim. Se a
proposta da pedra tivesse sido assumida, teríamos uma outra concep-
ção e operacionalização do progresso. Com coragem, talvez, ainda dê
tempo.
Em termos práticos, o Reino de Deus se expressa na solidarie-
dade, na fraternidade e na devoção. Pela devoção, ele responde à
busca humana pelo sentido da vida: Quem somos? Somos de Deus e
para ele devemos viver, o que só conseguimos por meio da rendição
incondicional a Jesus Cristo e da submissão total ao Espírito Santo.
Pela fraternidade, o Reino de Deus supera toda diferença com base na
raça, cor, credo religioso e posição política: fazemos aos outros o que
gostaríamos que fizessem a nós se estivéssemos no lugar deles. Final-
mente, pela solidariedade, o Reino de Deus resolve as desigualdades
sociais e econômicas: “quem tiver duas túnicas, que reparta com o que
não tem, e quem tiver alimentos, que faça da mesma maneira” (Lc
3:11). O Reino de Deus é, portanto, a solução divina para o dilema
humano, que se resume em saber quem somos, o que fazemos com a
riqueza do planeta e como devemos viver em sociedade. A questão
seguinte consiste em saber quem encarna esse projeto?
Na história recente, tivemos o colapso dos estados socialistas
que tentaram transpor o marxismo para a realidade. O fracasso do
comunismo deveu-se, em grande parte, ao fato de que nunca houve
um povo capaz de encarnar com fidelidade os postulados da teoria
marxista. O mesmo teria acontecido com o Reino de Deus se ele não
tivesse encontrado na igreja um povo para lhe dar concretude. Não
basta dizer que o Reino de Deus é uma proposta de solidariedade,
fraternidade e devoção. Isso é um conceito extraordinário. Mas quem
vive isso? Onde encontramos esse ideal de sociedade? A resposta de-
veria ser: na Igreja. A resposta é a igreja.

A Igreja como Sinalizadora do Reino


A igreja é, portanto, a comunidade daqueles que foram chama-
dos a encarnar as virtudes e os valores do Reino de Deus. Nela toma
forma a sociedade ideal, o projeto de humanidade desejado por Deus.
A missão da igreja é, então, deixar que o Reino de Deus tome forma
nela e por meio dela. Nunca é demais ressaltar que o Reino de Deus
não se confina às fronteiras da “ekklesia”. Tem nela sua maior expres-
são, é certo, mas se “espalha por todo o mundo”, como diz o texto de
Daniel. Nesse sentido, a igreja é ao mesmo tempo semente e sinal do
Reino de Deus. Para ser sinal, porém, ela mesma precisa ser esse
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reino. A força do seu discurso vem do seu testemunho: ela faz o que
prega e prega o que faz. A igreja torna o Reino de Deus em realidade
histórica, logo concreta e visível.
O desafio proposto por Lausanne consiste precisamente nisto:
a igreja deve ser a comunidade daqueles que partilham com Deus o
desejo por justiça, fraternidade entre os homens e amor e serviço aos
fracos e oprimidos do mundo. A igreja é, portanto, a comunidade dos
homens que lutam ao lado de Deus pela libertação de seus semelhan-
tes de toda forma de opressão, seja econômica, política, cultural ou
religiosa. O Reino de Deus encarna-se nos cristãos, no modo como
vivem, trabalham, amam e servem. Os cristãos são chamados a viver
de tal modo que seu exemplo denuncie e condene a opulência dos que
têm muito, a miséria dos que não têm nada e a indiferença dos primei-
ros pela sorte dos últimos. A igreja proclama o Reino da igualdade –de
condições, possibilidades e perspectivas:
Neste tempo presente, a vossa abundância supra a
falta dos outros, para que também a sua abundância
supra a vossa falta, e haja igualdade, como está escri-
to: “O que colheu não teve de mais; e o que pouco,
não teve de menos.” (2 Co 8:15)
A lógica do Reino de Deus assenta-se no princípio da solidarie-
dade, do amor e do serviço mútuos. Ir contra isso é atentar contra a
vontade de Deus. O egoísmo mina e destrói o que devia nos irmanar, a
saber: o fato de termos sidos criados pelo mesmo e gracioso Deus,
que com amor e justiça a todos acolhe e sustenta. É preciso lembrar,
porém, que o caminho dessa igualdade não é trilhado, de acordo com
a Bíblia, por decreto ou coação, mas por coerência: assim agimos,
porque assim cremos. Em termos práticos, significa: aquele a quem
sobra há de se compadecer – solidária, voluntária e amorosamente –
daquele que nada tem. Para o cristão, significa se exercitar na partilha
dos bens e dons para que o necessitado escape da miséria. Por meio
da ação, do envolvimento e da doação de seus recursos o cristão cria
uma possibilidade e um ambiente novos para que o outro tenha sua
dignidade restituída. O Reino de Deus é uma sociedade onde todos
trabalham para todos, se ocupam com todos e servem a todos:
Da multidão dos que creram era um coração e a alma.
Ninguém considerava sua nem uma das coisas que
possuía; tudo, porém, lhes era comum [...] Pois ne-
nhum necessitado havia entre eles, porquanto os que
possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os
valores correspondentes e depositavam aos pés dos
apóstolos; então, se distribuía a qualquer um à medi-
da que alguém tinha a necessidade. (At 4:32-35)2

Servir a Deus no Mundo


Esses são os marcos, digamos, missiológicos, da igreja. E an-
tes que nos acusem de transformar o evangelho em engenharia social,
é bom lembrar que foi o próprio Jesus quem definiu esses marcos:
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Ver Também Atos 2:42-47.
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Depois que lhes lavou os pés, e tomou as suas vestes,
e se assentou outra vez à mesa, disse-lhes: “Entendeis
o que vos tenho feito? Vós me chamais Mestre e Se-
nhor e dizeis bem, porque eu sou. Ora, seu, Senhor e
Mestre, vos lavei os pés, vós deveis também lavar os
pés uns dos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para
que, como eu vos fiz, façais vós também’. (Jo 13:12-
15)
É isso que significa “servir a Deus no mundo”: a igreja encarna
um modo novo de viver como gente e de viver com gente. É a nova
humanidade. Ser sal e luz do mundo é anunciar essa nova humanida-
de. Para a igreja, sua forma de viver já é em si mesma uma denúncia
de que existe algo de errado com a “velha humanidade”. Se não há
dignidade, se as leis só valem para os pobres, se a mulher é violentada
em seus direitos, se minorias (étnicas, religiosas e sexuais) são confi-
nadas em “guetos”, se o sistema prisional embrutece e desumaniza,
se os ricos se escondem atrás dos altos muros dos seus condomínios
fechados e se protegem em carros blindados, se a sociedade, como
um todo, infecciona e putrefa, então os cristãos são chamados a rever-
ter esse processo de necrose.
A responsabilidade social3 dos cristãos, para voltar ao Pacto,
não é um ato de caridade. Nem deve servir para apaziguar consciênci-
as insones. O mundo não precisa de nossas esmolas. Ser socialmente
responsável é, em primeiro lugar, termos consciência de que a missão
da igreja é “servir a Deus no mundo”; em segundo lugar, é assumir-
mos nosso papel de sinalizadores do Reino de Deus, encarnando seus
valores: solidariedade, fraternidade e devoção; em terceiro lugar, é
sermos coerentes, isto é, viver a fé do “modo digno da vocação a que
fomos chamados”; por fim, é sabermos que a única recompensa a que
podemos almejar é ouvir do Senhor: “Vinde, benditos de meu Pai,
possuí por herança o Reino que vos está preparado desde a fundação
do mundo” (Mt 25:34b).
A missão da igreja é, portanto, transformar o conceito de soci-
edade do Reino de Deus em realidade e denunciar aquilo que não
expressa esse conceito. É, também, estender o amor que já é comum
entre nós a todos os homens à nossa volta. A propósito, o imperador
romano Juliano, pós Constantino, inimigo declarado dos cristãos, em
carta a um amigo, dizia destes que “cuidavam bem dos seus pobres, e
que se não bastasse cuidarem bem dos deles, cuidam bem dos nossos
também”. Serviço talvez seja a palavra que melhor traduza essa atitu-
de: serviço a Deus por meio do serviço ao próximo. É óbvio que o
serviço nasce da compaixão, e esta da identificação, ou seja, nos com-
padecemos daqueles com quem nos identificamos. E Jesus se identifi-
cou, acima de tudo, com os pobres e oprimidos deste mundo. Não
devemos, no entanto, limitar nosso conceito de serviço à ajuda imedi-
ata com comida, dinheiro ou outro bem material, o que nunca deve ser
excluído. Serviço, como a teologia da missão integral o entende, é
antes de tudo uma nova forma de viver, de reaprender a ser gente e a

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O termo ganhou na última década um outro sentido, associado às iniciativas
9 das empresas para melhorar a vida das comunidades onde elas estão instaladas e a
projeto mantidos com dinheiro doado às ONGs que os geram.
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viver com gente. Daí se poder dizer que a igreja alimenta, cura e
transforma as pessoas: alimenta com a Palavra e o pão, cura com
amor e
aceitação e transforma pelo exemplo, mas, também, trabalha para a
cura da sociedade, pelo serviço fraterno, pela parceria com outros
segmentos na luta por dignidade e justiça social, por democracia
participativa, pelo empoderamento da sociedade civil, pela sustenta-
ção dos direitos humanos.
Embora o texto de Lausanne que estamos comentando diga
que ação social não é evangelização, é aceitável esperar que a esta
tenha como conseqüência natural a outra. Posto de outro modo, agir
socialmente é ser coerente com o que se acredita e prega – a salvação
dos homens. Mas o que significa ser salvo? Um ser humano salvo é
alguém que foi arrancado do inferno e teve o inferno arrancado dele.
Salvação envolve, de uma maneira ou de outra, o resgate da dignidade
das pessoas. Ser salvo significa, portanto, que a pessoa tem seus dons
e talentos desenvolvidos, venceu sobre seus traumas e vícios e teve
suas feridas (físicas e emocionais) curadas. Salvação é, também, a
superação da miséria, do desemprego, da alienação, da marginalidade,
da violência e da indignidade. A questão aqui não é saber se se vai do
homem à suas circunstâncias ou vice-versa. Embora, como diz o Pacto,
insistmos, ação social e evangelização não sejam a mesma coisa, a
primeira é também uma forma válida de começar. Porque se começa-
mos por mudar as circunstâncias do indivíduo, porque, também, há
pecado estrutural, isso vai deixando cada vez mais claro para ele que,
se suas circunstâncias mudam, ele também é chamado a mudar. Se,
por outro lado, fazemos o caminho inverso –indo do indivíduo para as
suas circunstâncias–, outra vez fica claro para ele, indivíduo, que a
mudança que se processa nele deve se estender às suas circunstânci-
as. É claro que, historicamente, a igreja sempre optou por começar
pelo indivíduo, e daí ir para as circunstâncias. Mas isso não inviabiliza
o caminho contrário.
Por último, servir a Deus no mundo pode ser ilustrado com a
história do menino que devolvia águas-vivas ao mar. Alguém passou e
disse a ele: “Olha, garoto, desista porque você não vai conseguir de-
volver ao mar todas as águas-vivas que vieram dar aqui na praia.” O
menino, então, respondeu: “Eu sei que não vou conseguir devolver
todas, mas para os que eu conseguir devolver eu terei feito alguma
diferença.”

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Capítulo 1 – O Movimento ‘Evangelical’:
Teologia na Periferia do Mundo

O movimento “evangelical” está em alta outra vez. Em recente


artigo na revista Ultimato, o bispo anglicano Robison Cavalcante disse
que a missão integral está ressuscitando e com ela a teologia dos
“evangelicals”. Para aqueles envolvidos com a ação social da igreja,
essa é uma boa notícia. Muitos de nós, no entanto, são de uma gera-
ção que não viu o nascimento desse movimento há trinta anos.

Os “Evangelicals” e Lausanne 74
“Evangelical” foi a rubrica dada, por falta de nome melhor, aos
que abraçaram o conjunto de propostas apresentadas no congresso
pelos teólogos dos países do terceiro mundo. Na década de setenta, a
corrente conservadora do pensamento protestante encontrava-se na
defensiva. Na esfera geopolítica, havia a preocupação com o desfecho
da Guerra Fria, que se somava ao medo com o avanço do comunismo
nos países terceiromundistas e à novidade da teologia da libertação,
corrente teológica de tintas marxistas. O congresso foi pensado, em
parte, como uma reação a essas tendências. Para os conservadores, a
igreja precisava responder ao que ela identificava como “ameaças” à
fé cristã. Mas aí veio a surpresa. Os teólogos dos países periféricos do
capitalismo – principalmente da África e da América Latina – trouxe-
ram para o congresso uma visão radicalmente nova sobre a missão da
igreja. O sinal amarelo já havia se acendido, como dissemos, quando
as contribuições desses teólogos começaram a chegar às mãos da co-
missão que redigiria o Pacto (o documento final do congresso). De
maioria conservadora, os organizadores mostraram-se intrigados com
as questões que seus colegas do terceiro mundo traziam para o deba-
te. É preciso lembrar que o congresso era patrocinado pela Billy Graham
Association, uma entidade que representava o que havia de mais con-
servador no pensamento teológico protestante naqueles dias. Não que-
remos diminuir a importância do ministério daquele que é reconheci-
damente o maior evangelista do século passado, mas apenas consta-
tar um fato.
Apesar do propósito, inicialmente, conservador, houve o reco-
nhecimento de que os teólogos do “Terceiro Mundo” falavam a partir
de suas experiências em seus próprios países. Era preciso ouvir o que
eles tinham a dizer. Significava que, finalmente, a teologia conservado-
ra reconhecia que, diante de uma realidade que se impunha – não
podiam mais ignorar o que estava acontecendo nos países fora da
Europa e da América do Norte. Significava, também, o reconhecimento
da teologia que se produzia na periferia do mundo capitalista. No cam-
po neo-liberal, a teologia da libertação já havia feito europeus e ame-
ricanos ouvirem um discurso diferente daquele a que estavam acostu-
mados seus ouvidos. Agora, era o bastião conservador do protestan-
tismo que era tomado de assalto. Pode-se dizer, que uma mudança
silenciosa, porém, de importância capital, estava em curso.
No início, o movimento “evangelical” surgiu como uma corren-
te missiológica dentro do protestantismo. Pouco a pouco, ela foi inva-
dindo outras áreas da teologia protestante, mantendo, porém, sua
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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
vocação missionária. Daí seus formuladores serem até hoje associados
à missão integral. A propósito, Missão Integral é o nome do agora
clássico livro de René Padilha, um dos principais articuladores dessa
forma de pensar a evangelização, uma das mais importantes contribui-
ções para o Congresso de Lausanne. Podemos afirmar que a proposta
da missão integral foi a grande contribuição dada pelos “evangelicals”
ao Congresso de Lausanne, quiçá ao pensamento evangélico como um
todo.

Evangelho e Contexto
O movimento “evangelical” é missiológico porque se concentra
na forma e no alcance da evangelização. Os “evangelicals” dão redo-
brada ênfase ao contexto do evangelizado, o que implica dizer que não
se pode evangelizar uma pessoa sem considerar a realidade que a
cerca. O contexto social, econômico, político, cultural e religioso
condiciona o modo como as pessoas pensam, sentem e agem. Ignorar
essa verdade passou a ser o maior pecado da igreja. Não podemos,
por exemplo, entrar numa favela para evangelizar um morador como
se ele não estivesse naquele lugar. Porque a primeira coisa que o evan-
gelho vai questionar é a submoradia. Ele dirá que ela desumaniza. Dirá
que o Reino de Deus denuncia como pecadora uma sociedade que
empurra os mais pobres para esses depósitos coletivos de gente. Dirá,
ainda, que o cristão não pode aceitar isso passivamente. E dirá, por
fim, que é preciso reagir, lutar para mudar o “contexto” do evangelizado,
acabar, enfim, com a subvida!
Para o evangelical, o evangelho não é um discurso religioso –
Jesus não veio instituir uma nova religião. Veio para mudar o homem
e o contexto em que ele está. O evangelho é o resgate da humanidade
e, com ela, da história, da cultura, da economia, da política e das
relações sociais. O Reino de Deus é ao mesmo tempo o resgate do
homem e a instauração de uma nova sociedade. Portanto, a primeira
coisa que a proposta da missão integral questiona é a subvida. Ela diz:
“Existe algo de errado aqui. Por que um ser humano está vivendo
nessas condições? Deus não criou o homem para viver assim. Está
errado. Temos que mudar isso!” O “evangelical” não fica contente,
apenas, por que o sujeito despossuído se converteu. Ele não diz: “Tudo
bem, ele mora numa submoradia ao lado de um esgoto a céu aberto,
tem bala perdida voando pra tudo quanto é lado, mas pelo menos ele
tem Jesus e vai para o céu. Afinal de contas, seria pior, depois de viver
nesse inferno, continuar nele na eternidade” É impossível não perce-
ber o quanto há de cinismo nesse tipo de discurso – cristãos sinceros
não estão imunes à tentação de optar pela acomodação no lugar de se
comprometer com a mudança. Para o “evangelical”, porém, o homem
não é uma alma aprisionada num corpo que precisa ser salva deste
vale de lágrimas. Jesus veio salvar o homem por inteiro, corpo incluí-
do.
A proposta da missão integral retoma, assim, a unidade origi-
nal do homem. Ele não é, como acreditam os espiritualistas e mesmo
alguns cristãos, um espírito encarnado, que com a morte desencarna e
ganha a desejada liberdade. Para a missão integral, a morte é a ruptu-
ra do que foi criado como indivisível. Perder o corpo é, para o homem,
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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
perder a própria humanidade, deixar de ser aquilo para o qual foi cria-
do. Defender a teoria, ademais helenista, da imortalidade da alma não
é cristão. Na tradição judaico-cristã, o homem é uma unidade –corpo e
espírito– indivisível. Como cristãos, professamos a imortalidade do
homem todo, não apenas de sua alma. Fosse o contrário, teríamos que
riscar da Bíblia a ressurreição do corpo.

Os “Evangelicals” no Brasil
No Brasil, o movimento evangelical chegou cerca de oito anos
depois de Lausanne 74. A Visão Mundial e a ABU (Aliança Bíblica
Universitária) e a VINDE (Visão Nacional de Evangelização), ONG fun-
dada e liderada pelo Pr. Caio Fábio D’Araújo Filho, tomaram a iniciativa
de trazer para o país a “visão de Lausanne”. Em pouco tempo, os livros
de John Stott ganhavam tradução para o português, as principais pa-
lestras do congresso eram publicadas e congressos no “espírito de
Lausanne” se multiplicavam Brasil a fora. Nesses eventos, falavam
nomes como Manfredo Grellert (Diretor Executivo da Visão Mundial),
Robison Cavalcante (Pastor Anglicano), Dieter Brepol (Secretário Geral
da ABU) Caio Fábio D’Araújo Filho (Pastor da Igreja Presbiteriana do
Brasil e Presidente da VINDE) e Valdir Steuernagel (Pastor Luterano).
O marco decisivo foi o Congresso Brasileiro de Evangelização, realiza-
do em 1983 na cidade de Belo Horizonte. Até então restrita a uns
poucos iniciados, a missão integral passou ali à agenda da igreja evan-
gélica brasileira.
Para os evangélicos que na época estavam nos bancos dos
seminários e universidades brasileiros, a proposta da missão integral
surgiu como uma terceira via às opções do fundamentalismo das igre-
jas históricas e da teologia da libertação. Tornara-se possível engajar-
se nas lutas sociais sem abrir mão das bases da fé protestante.
A década de oitenta foi a “fase de ouro” da teologia da missão
integral no Brasil, com várias lideranças surgindo em todo país decidi-
das a encarnar o “espírito de Lausanne”. Mas os ventos começaram a
soprar em outra direção e, súbito, a igreja evangélica brasileira foi
invadida pela onda neopentecostal, e a teologia da prosperidade fez
sua estréia triunfante no cenário protestante nacional. A teologia da
missão integral foi aos poucos sendo empurrada para fora do debate e
voltou a ser a voz de uma minoria que “clama no deserto”. Mas se não
conseguiu mudar a teologia da igreja brasileira, essa voz pelo menos
obrigou os evangélicos a abrir os olhos – e, em mais de um sentido, os
bolsos – para as questões sociais. Hoje, muitas igrejas incluem em
suas agendas o cuidado aos necessitados, seja na forma de doação de
cestas básicas, serviços odontológicos, assistência jurídica, alfabetiza-
ção de adultos ou clínicas para dependentes químicos. Não foi a revo-
lução que se esperava. Porém, visto trinta anos depois, o progresso foi
imenso. Isso sem levarmos em conta uma geração inteira de homens e
mulheres que se alimentou da visão dos evangelicals e que hoje está
na liderança da igreja. Esses líderes carregam e preservam o legado de
Lausanne. Neles a proposta da missão integral tem uma voz. Porque
ser “evangelical” é ter uma identidade. Significa crer nas verdades
bíblicas que os pais da igreja nos transmitiram, sem fechar os olhos e
o coração para o sofrimento no mundo, pelo contrário, apresentando-
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se como parte da solução para o mesmo.
Ariovaldo Ramos
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Missão Integral
Capítulo 2 – Passando a Igreja a Limpo:
Um Pouco de História

A igreja evangélica brasileira passou, num espaço de pouco


mais de quarenta anos, a partir da década de 60, por profundas mu-
danças, cujas reais – e, em muitos sentidos - devastadoras conseqüên-
cias ainda se farão sentir por muitos anos, fruto das teologias que
abraçou.

Teologia da Esperança e Teologia da Libertação


A década de sessenta assistiu ao surgimento da primeira teolo-
gia genuinamente latino-americana – a teologia da libertação. Pela
primeira vez na história do mundo ocidental, uma corrente teológica
relevante era produzida fora da Europa e dos Estados Unidos. A Amé-
rica Latina passou a ser vista, então, como uma das fontes teológicas
do mundo cristão. E mais: sua influência se fez sentir para além dos
muros da academia. Até então, os latino-americanos sempre estive-
ram no lado consumidor, com o agravante de que tudo o que nos che-
gava, principalmente do continente europeu, passava antes pelos Es-
tados Unidos, que resultava no adicionamento de elementos que não
estavam presentes na formulação original. Éramos, portanto, meros
depositários de um saber teológico produzido em outros países, cuja
cultura e sociedade em nada se pareciam com as nossas. As teologias
que aqui aportavam, portanto, não levavam em conta nossa realidade
nem os problemas enfrentados pela igreja latino-americana.
A obra que marcou a nossa passagem de consumidores de
teologia para produtores dela foi escrita como tese de doutorado pelo
presbiteriano Rubens Alves, hoje mais conhecido como psicanalista e
pedagogo. Da Esperança foi o primeiro livro a formular o que mais
tarde viria a ser chamado de teologia da libertação. O título foi escolhi-
do pelo editor porque o teólogo da moda era o alemão Jürgen Moltmann,
autor de Teologia da Esperança. Moltmann foi o primeiro teólogo pro-
testante a fazer uso da sociologia como ferramenta de análise da rea-
lidade para produzir uma teologia. Tradicionalmente, cabia à filosofia
esse papel.
Sabidamente, a reflexão teológica se apoia num tripé: a Bíblia,
a tradição da igreja e a análise da realidade. O objetivo é responder, a
partir das Escrituras e da tradição, aos problemas e desafios postos
pela realidade. Quando confrontada com o mundo, a teologia faz a
seguinte pergunta: O que é a história, a política, a cultura, a ética, a
moral? Opera-se um corte, necessariamente provisório e parcial, pois
a teologia não se quer e nem se pretende infalível – só Deus sabe
todas as coisas e só a ele a realidade se mostra por inteiro. Da pers-
pectiva humana, a realidade aparece fragmentada: o que vemos é
uma parte do todo que nos escapa. O que a teologia sabe e descreve
é, portanto, um ponto de vista. Até então, era a filosofia que fornecia
os “óculos” com os quais se produzia esse ponto de vista. Escolhia-se
uma abordagem filosófica, isto é, aquela que o teólogo entendia ser a
mais adequada para seus objetivos. Não há o que se admirar nesse
parcialismo. Afinal de contas, a neutralidade científica nunca passou
mesmo de um mito.
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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
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Missão Integral
Sua teologia foi rotulada apropriadamente com o mesmo título
de seu livro mais famoso. Mas a teologia da libertação não é uma
versão mais radical da teologia da esperança. É verdade que Rubem
Alves também fez uso da teoria marxista, mas as semelhanças param
aí. Da Esperança vai além do caminho trilhado por Moltmann. A teolo-
gia da libertação é uma teologia eminentemente latino-americana. A
realidade de que parte e as conclusões a que chega são muito diferen-
tes da realidade e conclusões do teólogo alemão. A teologia da liberta-
ção tornou-se, com o tempo, uma corrente dentro da igreja católica
romana latino-americana. Entre seus propugnadores, encontram-se,
entre outros, Gustavo Gutierrez, Jon Sobrinho, Juan Luis Segundo, José
Comblin, Enrique Dussel, Arturo Paoli e João Batista Libânio.
A voga libertacionista conheceu seu apogeu nas conferências
de Puebla, México (l980), e San Domingos, República Dominicana (l990).
Embora as linhas gerais do movimento tivessem sido lançadas em
Medelín, Colômbia (1968), foi em Puebla que surgiu a fórmula “opção
preferencial pelo pobre”, que se tornou sinônimo de teologia da liber-
tação. Os teólogos da libertação defendiam que Jesus havia escolhido
os pobres como destinatários das promessas do Reino de Deus. Se ele,
o pobre de Deus, escolheu os pobres deste mundo, sua igreja devia
fazer o mesmo. E não há como negar que a relação entre pobreza e fé
aparece com destaque na pregação e no ministério de Jesus. Não de-
morou, entretanto, para que os teólogos da libertação se tornassem
alvo da Congregação para a Fé e a Doutrina, órgão do Vaticano capita-
neado pelo cardeal Joseph Ratzinger, representante da corrente con-
servadora da igreja católica e principal opositor das idéias
libertacionistas.

O Regime Militar
A despeito de em seu início ter sido formulada por um brasilei-
ro, a teologia da libertação demorou a se popularizar em nosso país. A
explicação para esse atraso está no clima político que se instalou no
Brasil com o golpe militar de 64. Por duas décadas, as liberdades civis
estiveram sob constante ameaça. Líderes da oposição foram presos.
Alguns acabaram mortos; outros, forçados ao exílio. A imprensa era
censurada e todos que ousavam divergir do regime eram forçados ao
silêncio. O argumento dos fuzis podia não ser sutil, mas era infalivel-
mente eficaz. O Brasil se fechou para o mundo e a nação mergulhou
num período de incertezas, angústia e medo. Os anos que se seguiram
ao golpe estão entre os mais tristes da nossa história. Nem mesmo a
breve pseudo bonança experimentada com o “milagre econômico” nos
anos setenta – tida como a maior realização dos militares – diminui o
travo que ainda hoje sentimos ao lembrar aquele período.
No começo da década de oitenta, porém, o regime militar deu
sinais de exaustão e começou a se falar em abertura. Foram os anos
da distensão, termo que designa a volta gradual da democracia ao
país, o que se consumou com a eleição de um presidente civil depois
de vinte anos de militares no poder. Tancredo Neves morreu antes de
assumir o cargo, para o qual foi alçado seu vice, José Sarney. Esse foi
o contexto em que a teologia da libertação começa a se popularizar no
Brasil. Por aqui, o mais destacado teólogo da libertação é o ex-frade
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Ariovaldo Ramos
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franciscano Leonardo Boff, silenciado duas vezes pelo Vaticano, que
considerava sua teologia “subversiva”. Na mesma época, chegava até
nós também a proposta da missão integral, logo vista pelos evangéli-
cos “engajados” como uma alternativa à corrente libertacionista. Não
houve necessariamente um embate entre as duas correntes, embora
alguns dos defensores da missão integral vissem com desconfiança a
excessiva coloração marxista que adquiriu a teologia da libertação.
Para nossos fins, é suficiente notar que a teologia da missão
integral nunca foi uma versão “evangélica” da teologia da libertação.
As duas são expressões diferentes e autônomas do fazer teológico
latino-americano. Além do que, jamais pretenderam suplantar uma à
outra. Ao contrário, enriqueceram-se mutuamente por meio do debate
de idéias. A missão integral defende que o serviço aos necessitados é
parte da pregação do evangelho. Advoga, ainda, que o cristão deve
lutar pela dignidade humana, pela justiça social, pela humanização das
relações econômicas e pela moralização na política. Nesse sentido, a
teologia da missão integral serve como um contraponto à teologia da
libertação. De fato, ela se posiciona entre a alienação da teologia
fundamentalista e a postura mais revolucionária da teologia da liberta-
ção, ainda que haja entre os pregadores da missão integral defensores
de algum tipo de revolução social. O grande diferencial da missão inte-
gral é o engajamento nas questões políticas, econômicas e sociais,
sem contudo renegar o legado dos reformadores. Ela mantém-se fiel
às suas origens bíblicas e históricas ao mesmo tempo em que convoca
o crente a “servir a Deus no mundo”.

A Teologia da Prosperidade
Os anos oitenta viram também o aparecimento no Brasil de
uma corrente teológica que magnetizou a mente de uma geração intei-
ra de líderes evangélicos. A teologia da prosperidade surgiu nos Esta-
dos Unidos na época em que os americanos optaram, na guerra fria,
pelo enfrentamento de modelos econômicos. E deu certo. O mundo
assistiu entre atônito e extasiado à desintegração do bloco comunista.
Em 1989, o Muro de Berlim veio abaixo e a economia de mercado
invadiu os países do leste europeu.
Mas o triunfo do capitalismo não significou que o ocidente se
livraria tão cedo do sentimento de culpa que sua opulência despertava
nas consciências mais sensíveis. A teologia da prosperidade resolveu
isso com um malabarismo teológico de fazer inveja aos escolásticos.
Com base numa interpretação enviesada e distorcida da Bíblia, ela
isenta o capitalismo de qualquer culpa diante de Deus. A acumulação
de riquezas tem na teologia da prosperidade uma defesa quase
irrefutável. Na ótica de seus formuladores, Deus premia aqueles que
buscam o enriquecimento material com redobrada tenacidade.
Travestida de verdade revelada, a teologia da prosperidade subverte o
evangelho e põe em xeque nossa herança protestante. Infelizmente,
essa corrente encontrou ampla acolhida no mundo editorial brasileiro.
Com raras exceções, as editoras evangélicas inundaram o mercado
com obras que propagandeiam os “milagres” do Movimento da Fé,
como também é chamada a escola doutrinária iniciada pelo americano
Kenneth Hagin, autor dos best-sellers A autoridade do Crente e Com-
16
preendendo a Unção.
Ariovaldo Ramos
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Missão Integral
Restrita no início restrita ao campo neopentecostal da igreja
evangélica brasileira, a teologia da prosperidade se espalhou rapida-
mente entre nós. Entra-se numa igreja e lá está um sujeito pregando
mensagens mais próximas da auto-ajuda do que da teologia dos
reformadores. O que há de errado com isso? Em primeiro lugar, porque
é a instrumentalização do evangelho em defesa do capitalismo. Em
segundo lugar, porque sanciona a ética de Mamon e diz: “Bem-aventu-
rados os que buscam a riqueza, porque Deus estará do lado deles!” Em
terceiro lugar, porque diz, na prática, que não se deve ajudar os po-
bres; fazê-lo seria premiar a falta de fé: se você está na miséria, é
porque não tem fé. Os pobres seriam os piores ateus!
Com o perdão da ironia, essa é a teologia que os capitalistas
pediam a Deus. Uma teologia que dissesse que Deus ama o rico, que
não se deve condenar o amor ao dinheiro como uma coisa suja e que
“investir” em Deus é um grande negócio, porque o retorno é garantido.
A perversão do evangelho pela teologia da prosperidade não parou aí.
“O povo não quer ouvir falar de renúncia e sofrimento pela causa do
Reino”, adverte um pastor. Para os teólogos da prosperidade, a cruz
tornou-se uma vergonha. O crente vai ao templo para ouvir uma pala-
vra positiva, para cima; anela por uma mensagem de refrigério, de
bênção. Falar de arrependimento e conversão, de abnegação e renún-
cia seria trair sua confiança e frustrar sua expectativa, acabam por
pregar nas entrelinhas de suas mensagens.
O mundo editorial não foi, porém, o único a contribuir para a
ascensão da teologia da prosperidade. Da noite para o dia, os canais
de televisão passaram a abrigar em suas grades programas apresenta-
dos por estrelas do movimento. O poder do meio amplificou o efeito, e
não demorou para que a teologia da prosperidade ganhasse status de
“pensamento oficial” da igreja evangélica brasileira, tamanha sua in-
fluência e de seus líderes. Um dos mais destacados representantes da
corrente da prosperidade, R. R. Soares declarou, em recente entrevis-
ta à revista Eclésia, preferir “mil vezes pregar a teologia chamada da
prosperidade do que a teologia do pecado, da mentira, da derrota, do
sofrimento”. O triunfalismo esnobe dos arautos da prosperidade emer-
ge na afirmação: “Não creio (sic) na miséria. Essa história é conversa
de derrotados. São todos um bando de fracassados, cujas igrejas são
um verdadeiro fracasso”. E desafia: “Todo mundo que está na derrota
tem que aprender correndo a tomar posse da benção, senão vai conti-
nuar na derrota e dando péssimo testemunho. Esse negócio de falar
que Deus é bom mas não cura, não liberta, não prospera (sic), que
bondade é essa?”.4 É evidente que os teleavangelistas brasileiros be-
beram na fonte dos popstars evangélicos norte-americanos.
Vista retrospectivamente, a década de oitenta marcou uma di-
visão de águas na igreja evangélica brasileira. Duas correntes teológi-
cas se enfrentaram no Brasil –uma nascida aqui na América Latina,com
nossa cooperação; outra, dos Estados Unidos. A duas se enfrentaram
na luta pela mente dos evangélicos, mas não resta dúvida do para
onde a balança pendeu. Não se pode falar, contudo, de fracasso da

4
“Evangelho de Resultados”, entrevista publicada na edição de Junho de 2001
17 da revista Eclésia., pp. 24 e ss. O missionário R.R.Soares, é fundador e presidente da
Igreja Internacional da Graça.
Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral

missão integral. Parte dos mais relevantes representantes do protes-


tantismo brasileiro migrou gradativamente para a missão integral –
uns plenamente, outros com certa reserva. Um dado ao mesmo tem-
po preocupante e animador é o fato de que os evangélicos experi-
mentaram, nessa mesma década, um crescimento extraordinário. O
lado animador é que demograficamente vamos saindo do gueto das
seitas: hoje somos mais de 25 milhões de evangélicos de diferentes
confissões e denominações. Estamos nas comunicações (editoras,
jornais, rádios e canais de tevê), na política (como parlamentares e
em cargos executivos) e à frente de empresas bem sucedidas. Ser
evangélico deixou de ser um estigma. O avanço maior foi na seara
neopentecostal, muito embora tenha sido igualmente significativo o
aumento dos históricos –principalmente dos batistas– no mesmo
período. O lado preocupante é que esse crescimento se deu de for-
ma tão rápida que não houve tempo de formar pastores em número
suficiente para atender a súbita demanda. Pior, os que foram ordena-
dos não possuíam formação teológica adequada. Esse descaso com
a preparação de ministros cobra hoje seu preço: uns lêem pela
cartilha da prosperidade, ou fazem concessões ao sincretismo religio-
so do brasileiro e saem por aí pregando heresias, outros se tornam
arautos do evangelho auto-ajuda, aquele que substitui a fé pelo pen-
samento positivo. O resultado é uma igreja que se afastou da Refor-
ma e da Bíblia. Uma igreja que perdeu sua identidade e corre o risco
de se tornar irrelevante em futuro não muito distante. Infelizmente,
o crescimento se deu às expensas do empobrecimento da fé protes-
tante.

18
Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
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Missão Integral
Capítulo 3 – Missão Integral I:
Um Itinerário

Em Lausanne, os teólogos dos países periféricos do capitalis-


mo levaram os seus pares do primeiro mundo a reconhecer que a
evangelização não podia ignorar o contexto do evangelizado. Antes
confinada à alma, a salvação agora se estendia às circunstâncias que
cercam o homem, que passou a ser visto em todas as suas facetas.
Essa abordagem ganhou a rubrica de “holística”. Como se processou
essa mudança? Como se chegou à missão integral? Para os teólogos
da missão integral, a indagação parte de uma questão mais fundamen-
tal: De que lado Deus está? Como vimos antes, a primeira resposta a
essa pergunta foi dada pela teologia da libertação. Para os teólogos da
libertação, Deus estava do lado dos oprimidos. Eles viam a teologia
como ato segundo, ao passo que o ato primeiro seria a própria liberta-
ção (política, antes de tudo). De orientação marxista, a teologia da
libertação via os movimentos populares como aliados e colocava ênfa-
se na luta de classes.
A teologia da missão integral respondeu à mesma pergunta
sem abrir mão das bases bíblicas e históricas da fé cristã: a salvação
em Cristo, a conversão pessoal, a vida comunitária e a busca da
santificação. Ênfases muito caras ao mundo evangélico. O risco de
transformar o evangelho em discurso político sempre existiu. Resistir a
essa tentação é mérito da missão integral. Por outro lado, ela não
renunciou à tarefa de responder aos desafios do seu tempo. Isso signi-
ficava –e anda significa– trazer para o debate questões sociais,
econômicas e políticas que a teologia protestante tradicional sempre
ignorou. Seria oportuno lembrar, aqui, que a Reforma nasceu em meio
a uma crise institucional que se mostrou de conseqüências mundiais.
Reformadores, como Zwínglio, chegaram a pegar em armas. Este, ali-
ás, morreu no campo de batalha segurando um machado de duas lâmi-
nas! Tivemos ainda a revolução dos puritanos na Inglaterra, que luta-
ram para promover mudanças institucionais em seu país.
Com o passar dos séculos, porém, a teologia protestante foi
aos poucos abandonando sua veia radical e se tornou mais dialógica.
Com o advento do pietismo no século XVIII, ganhou destaque uma
visão individualista da vida cristã. A fé se tornou uma questão de foro
íntimo e o encontro pessoal com Cristo passou a ser a condição exigida
para os que se candidatavam ao discipulado. Esse movimento, infeliz-
mente, abriu caminho para o individualismo que veio a marcar a teolo-
gia protestante nos séculos seguintes. Perdeu-se, assim, a dimensão
social presente nos primórdios da Reforma. Mas não se deve, apenas,
lamentar esses desvios. Afinal de contas, a teologia se alimenta preci-
samente desses vários momentos, em que a reflexão busca responder
às questões do seu tempo. É sempre bom lembrar que a teologia não
é sagrada; sagradas são as Escrituras. A teologia é, portanto, esse
pensar a partir da Bíblia, da tradição e do diálogo com o mundo à sua
volta.
A missão integral resgata, assim, uma longa tradição. Retoma
uma visão do homem e da história há muito esquecida. Para entender-
mos sua contribuição à história do pensamento protestante, vamos
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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
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Missão Integral
examinar os conceitos de pecado e salvação, que para os teólogos da
missão integral tem uma abrangência maior. Tomaremos dois textos
da Bíblia: um se encontra em Gênesis 3:17-19; o outro, em Daniel
2:41. Já tivemos oportunidade de comentar neste trabalho a narrativa
do sonho do rei Nabucodonosor. Vamos recapitular o que dissemos
antes, com a vantagem de que o leitor possui agora mais informações
para lidar com as questões que o texto levanta.

O Pecado na Perspectiva da Missão Integral


O texto de Gênesis narra:
E a Adão disse: ‘Visto que atendeste a voz de tua mu-
lher e comeste da árvore que eu te ordenara não co-
messes, maldita é a terra por tua causa; nem fadigas
obterás dela o sustento durante os dias de tua vida.
Ela produzirá cardos e abrolhos, e tu comerás a erva
do campo. No suor do rosto comerás o teu pão, até
que tornes à terra, pis dela foste formados; porque tu
és pó e ao pó tornarás.
O filósofo espanhol Ortega y Gasset, autor do clássico da soci-
ologia A Rebelião das Massas, afirmou: “Eu sou eu e as minhas cir-
cunstâncias”. A frase é significativa porque deixa claro que o que so-
mos é definido pelo que existe à nossa volta e vice-versa. Essa ênfase
na contextualização é um dos pilares da missão integral. De forma
mais elaborada, podemos dizer que a existência não se dá no vácuo,
fora das condições sociais, econômicas, políticas e culturais. Ortega y
Gasset está dizendo que “eu sou como sou por causa das circunstânci-
as que me cercam e estas são como são por causa do que eu sou”. A
tautologia aqui é só aparente. No texto bíblico que estamos examinan-
do, afirma-se a mesma coisa: o homem mudou e com ele suas circuns-
tâncias. A terra (as circunstâncias) é maldita porque o homem desobe-
deceu a lei de Deus e se tornou pecador. A queda mudou a nossa
natureza e, por extensão, a natureza ao nosso redor. O princípio da
morte passou a atuar em nós e em tudo que existe à nossa volta. A
queda adquire, aqui, dimensões cósmicas.
Por que um simples ato humano afetou a criação nessas pro-
porções? A resposta está no relato da criação. O que temos ali? Deus
inicia sua obra e vai criando um cenário para a aparição da vida no
universo. Finalmente, o processo é coroado com a criação do homem.
O elo entre o homem (o ápice da vida) e o universo criado por Deus é
a base do equilíbrio que prevalecia antes da queda: “Viu Deus tudo
quanto fizera, e eis que era muito bom” (Gn 1:31). A rebelião contra
Deus introduziu no universo um elemento (a morte) de instabilidade. A
maldição que Deus revela estar agora sobre a terra (“maldita é a terra
por tua causa”) significa que a criação inteira foi afetada pela escolha
do homem. Ele não atraiu apenas um problema sobre si, mas conde-
nou o universo a conviver com um fator de desequilíbrio.
O conceito tradicional de pecado – transgressão de uma lei,
desvio moral – deve ser reexaminado. Ele não considera as implica-
ções cósmicas da queda. É preciso abandonar a idéia de que o pecado
é uma coisa confinada ao homem e que se resolve, apenas, com o
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Ariovaldo Ramos
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Missão Integral
arrependimento e a conversão pessoais. Antes, é “toda a criação, a um
só tempo, que geme e suporta angústias até agora” (Rm 8:22). Expli-
ca-se desse modo a ênfase neotestamentária no “novo céu e nova
terra”. Trata-se de um resgate cósmico, que não se restringe ao indiví-
duo, mas inclui suas circunstâncias. Se o princípio da morte que a
queda introduziu na criação atua no homem e no universo, é lógico
esperar que a salvação inclua tanto um quanto o outro. O texto de
Romanos é emblemático. Diz:
A ardente expectativa da criação aguarda a revelação
dos filhos de Deus. Pois a criação está sujeita à vaida-
de, não voluntariamente, mas por causa daquele que a
sujeitou, na esperança de que a própria criação será
redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade
da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que a
criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até
agora. (Rm 8:19-22)
Obviamente que não estamos defendendo que o pecado não
seja a quebra de uma lei divina. Claro que é. Nosso ponto é outro. O
pecado, na visão da missão integral, deixa de ser uma coisa meramen-
te moral, a transgressão de regras de comportamento, para se confi-
gurar como uma ruptura radical, cujas conseqüências vão muito além
da corrupção dos costumes. Voltamos a dizer: a queda do homem é a
queda do universo. O moralismo que associa o pecado unicamente a
comportamentos –“não matarás, não furtarás, não cobiçarás”– limita
nossa compressão da queda. O pecado é um princípio que leva o ho-
mem a constantemente transgredir a lei de Deus e estende seus efei-
tos a todo o universo. Esse conceito nos permite inferir que, se a que-
da foi integral (afetou tudo), a salvação também o é (resgata tudo). O
argumento da missão integral a favor de uma evangelização que dê
conta do contexto do homem (suas circunstâncias) sustenta-se
exatamente nessa inferência. Se o pecado tem tal abrangência, a sal-
vação tem, no mínimo, a mesma abrangência. Essa linha de argumen-
tação amplifica nossa visão do evangelho. Para a missão integral, o
anúncio das boas novas do Reino afeta o homem e as suas circunstân-
cias. Portanto, se o pecado é um princípio que atua no homem e nas
suas circunstâncias, o evangelho não pode se limitar ao primeiro e
ignorar as últimas.
“Maldita é a terra por tua causa!” Essas palavras ecoam pelos
séculos como a maior tragédia a atingir a raça humana. O mal como
princípio entrou no universo e atua de forma independente da ação
humana. É o mesmo princípio que está por detrás, por exemplo, do
surgimento de vírus e bactérias mortais, doenças como o câncer e a
Aids e da morte física de todos os seres vivos. Ademais, a condenação
veemente do pecado se aplica tanto ao indivíduo quanto à sociedade.
Daí porque a missão integral dirige seu discurso também contra as
estruturas da morte que atacam e corroem o tecido social: a burocra-
cia e a tecnocracia fria, a desfaçatez dos políticos, a corrupção das
polícias, o desmatamento criminoso da Amazônia, as rebeliões nos
presídios e nas febens e o estado paralelo nos morros do Rio são todos
exemplos do processo de necrose desencadeado pela queda. O mote
da teologia da missão integral é “o evangelho todo, para o homem
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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
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Missão Integral
todo e para todos os homens”. Agora podemos acrescentar “em todas
as circunstâncias”. Porque a idéia é resgatar o homem e suas circuns-
tâncias.

O Fracasso das Tentativas Humanas


Quando comentamos a narrativa do sonho do rei Nabucodonosor
no início deste livro, a ênfase foi sobre a pedra que destrói a estátua.
Dissemos que a pedra representa o Reino de Deus e que a igreja é o
povo que o encarna. Dissemos, ainda, que a estátua representa as
tentativas humanas de resolver o dilema humano e que a sua destrui-
ção marca o início do domínio do povo da pedra –a igreja. Desta vez,
nos concentraremos na estátua.
Como dissemos antes, a exegese consagrou a interpretação de
que na estátua temos a sucessão de reinos na história. Ela aponta para
o futuro e para a conclusão da história como nós a conhecemos. É
evidente o viés escatológico dessa interpretação. Queremos, no en-
tanto, ressaltar o aspecto crítico do texto, o que significa dizer que na
estátua temos a síntese do fracasso das tentativas humana de resolver
seus dilemas à revelia da vontade de Deus. Uma ilustração dessa tese
são os modos de produção e organização social e política que se suce-
deram ao longo da história da civilização ocidental: comunismo,
escravagismo, feudalismo, capitalismo e socialismo. Todos esses siste-
mas fracassaram em seus esforços para criar um mundo perfeito. A
lição é: não existe nada que o homem crie sem o evangelho que não
seja, ao fim e ao cabo, apenas e tão somente revolta contra Deus. O
evangelho não se resume, portanto, à mensagem de salvação do indi-
víduo. Ele coloca tudo sob suspeição: o indivíduo, a sociedade, as ide-
ologias, os valores, as relações econômicas, os sistemas políticos etc,
etc. Nada escapa ao seu exame crítico.
Por outro lado, com a pedra chegam uma nova economia, uma
nova política, uma nova sociedade e um novo sistema de valores. Se a
estátua representa os sistemas erigidos pelo homem na vã tentativa
de resolver seus dilemas, a pedra por sua vez deflagra um processo de
ruptura com tudo que a precedeu. A nova ordem que ela instaura tem
o mesmo objetivo das tentativas anteriores –resolver os dilemas hu-
manos–, mas parte de outras bases. Daí porque o evangelho deve ir
mais longe e transformar o indivíduo e suas circunstâncias. Um evan-
gelho que não contemple isso é um evangelho pregado pela metade.
Um evangelho que ignora que o mal está tanto nos indivíduos quanto
nas estruturas que estes constróem é um evangelho pregado pela
metade. Se mudamos os indivíduos, temos que mudar suas circuns-
tâncias também. Se tudo está contaminado, então tudo tem que ser
mudado. Muda nossa relação com Deus, com o próximo, com o poder,
com o dinheiro, com o trabalho, com a história, com o prazer etc, etc.
Mudam, enfim, o homem e o mundo à sua volta. Por outro lado, se as
circunstâncias não mudam, então é valido questionar o que aconteceu
com os indivíduos.
Porque a missão integral tem essa visão do pecado, ela se
lança na tarefa de reconstruir tudo a partir de um novo paradigma: o
Reino de Deus. Por ser o novo paradigma, o Reino é também o padrão
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contra o qual tudo é julgado. Nada escapa à sua crítica, seja um mode-
lo social, econômico, político, ético ou religioso. Esse é o cerne do
argumento da missão integral: tudo precisa ser revisto à luz do novo
paradigma. Daí porque se nós mudamos o indivíduo, mas deixamos
intactas suas circunstâncias, perpetuamos o estado de pecado. Se tudo
está maculado, logo tudo está sob suspeição. Entende-se, agora, por-
que o evangelho e o Reino de Deus exigem um transformação radical.

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Capítulo 4 – Missão Integral II:
O Reino de Deus como Chave Hermenêutica

Até aqui, deve ter ficado claro ao leitor que a missão integral
opera uma mudança radical em nossa definição de pecado: substitui o
conceito moralista da teologia tradicional pelo mais abrangente de tra-
gédia cósmica: a queda atingiu o homem e tudo que estava ligado a
ele. O princípio da morte se apoderou de toda a criação – homem e
universo incluídos. Mas no que isso implica? Vamos supor que um imenso
meteoro atingisse nosso planeta e erradicasse a raça humana da terra,
exatamente como aconteceu com os dinossauros 65 milhões de anos
atrás. Pois bem. Mesmo que nenhum homem tivesse restado, ainda
assim o universo inteiro precisaria de salvação. Se o pecado teve impli-
cações cósmicas, a solução divina para a restauração da humanidade
caída se estende necessariamente a todo o restante da criação.

A Queda, o Sacrifício de Cristo e a Criação Provisória


Quando se olha para a criação é perceptível que Deus se ante-
cipou ao que iria acontecer no Éden. No Apocalipse, está dito que na
nova Jerusalém “já não haverá noite: ninguém mais precisará da luz
da lâmpada, nem da luz do sol, porque o Senhor Deus brilhará” (Ap
22:5). Ora, se Deus em sua sabedoria queria um mundo sem essa
alternância, por que teria ele criado um mundo com noite e dia antes
que a queda se consumasse? Porque em sua presciência sabia de an-
temão que a queda frustraria, temporariamente, seu desejo original de
um mundo perfeito. O universo que herdamos é, portanto, uma cria-
ção provisória, já na perspectiva da salvação holística. Para que a mor-
te – que entrou no mundo em decorrência da queda – não significasse
o fim de tudo, Deus criou um universo capaz de conviver com ela: onde
a primavera, símbolo da ressurreição, sucede inverno, marcado pela
realidade da morte!
O que a Bíblia narra, portanto, é uma história de resgate do
homem e do universo todo: Deus fez o mundo já sabendo que a nossa
escolha colocaria em risco toda a criação. Então, ele providenciou um
meio –o sacrifício de Cristo, “conhecido antes da fundação do mundo”
(1 Pe 1:20)– para que a queda não pusesse fim a tudo. Antes que a
história tivesse início, o Filho se sacrificou pela criação, porque qual-
quer medida que tivesse de ser tomada para impedir que a morte fosse
o fim de tudo, teria de ser tomada antes que ela irrompesse na histó-
ria:
Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de
toda a criação; pois, nele, foram criadas todas as coi-
sas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis,
sejam tronos, sejam soberanias, que principados, quer
potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele.
Ele é antes de todas coisas. Nele, tudo subsiste. (Cl
1:15-17)
O sacrifício de Jesus Cristo, lá na eternidade e antes que Deus
tivesse criado é o que sustenta o universo até que a redenção final se
consuma.
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Ariovaldo Ramos
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O sacrifício do Cristo preexistente explica a manutenção de
nossa existência e a de todo o universo. Por isso, a missão integral não
pode ser reduzida a mera ação social. A proposta “evangelical” recupe-
ra uma dimensão esquecida do evangelho – seu compromisso com o
resgate das circunstâncias do indivíduo – históricas e cósmicas – ao
mesmo tempo em que explica a existência do mal e da morte.
O Reino de Deus é a chave hermenêutica para entender a his-
tória da salvação. Sem essa visão de conjunto – o sacrifício, a criação,
a queda, a chegada do Reino, a redenção, a igreja e a consumação dos
tempos – a compreensão dessa história, numa perspectiva de missão
integral, fica prejudicada.

O Reino de Deus, a História e o Futuro do Homem


Essa abordagem tem duas vantagens. A primeira, é permitir
que vejamos o Reino de Deus e a igreja como fatores de mudança na
história, ou seja, mostrar que não estamos à deriva e que a história
tem um telos (propósito). A segunda é ressaltar o papel de condutor
da história que Deus assumiu aos se revelar – primeiro, na história do
povo judeu; depois, na pessoa de Jesus. A missão integral parte do
pressuposto de que Deus se revelou na história e que nela entrou para
resgatar a humanidade. De fato, quando Deus decidiu criar apesar da
queda e sacrificar seu Filho para que aquela não pusesse fim ao seu
projeto, ele estava se comprometendo com o destino da humanidade.
O Reino de Deus significa a irrupção na história de uma nova
economia, uma nova política, uma nova ética e uma nova forma dos
homens se relacionarem uns com os outros. Com a chegada do Reino
de Deus, mudam os valores e as pessoas. E muda também o sentido
da história. Com isso queremos dizer que o Reino de Deus é a força
que passa a orientar tudo que os homens fazem, mesmo que eles não
se dêem conta disso:
Disse-lhes outra parábola: “O reino dos céus é seme-
lhante ao fermento que a uma mulher tomou e escon-
deu em três medidas de farinha, até ficar tudo levedado”
(Mt 13:33)
E ainda:
Outra parábola lhes propôs: “O reino dos céus é seme-
lhante a um grão de mostarda, que um homem tomou
e plantou no seu campo; o qual é, na verdade, a me-
nor de todas as sementes, e, crescida, é maior do que
as hortaliças, e se faz árvore, de modo que as aves do
céu vêm aninhar-se nos seu ramos” (Mt 13:33)
Não estamos à deriva! Deus está no controle e não temos ra-
zão para temer pelo futuro. A despeito de o mundo estar em convul-
são, o Reino de Deus continua sua marcha inexorável rumo à realiza-
ção do projeto divino para a sua criação. Os textos que citamos apon-
tam para essa realização. Não existe, portanto, motivo para duvidar-
mos de que Deus levará seu plano a termo. Isso não significa, contu-
do, que a igreja deve apenas assistir passiva ao desenrolar da história.
Antes, ela é chamada a participar das mudanças.
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Ariovaldo Ramos
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Missão Integral
E mais: no Reino de Deus, a lógica dos relacionamentos se
inverte. Quando Jesus diz:
Sabeis que os governadores dos povos os dominam e
que os maiorais exercem autoridades sobre eles. Não
é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-
se grande entre vós, será esse que vos sirva; e quem
quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal
como o Filho do Homem, que não veio para ser servi-
do, mas para servir e dar a sua vida em resgate de
muitos (Mt 20:25-28),
ele está questionando as relações de poder na sociedade. Ser-
viço é o princípio que deve prevalecer na política. A crítica se estende
também à economia:
Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem campo a cam-
po, até que não haja mais lugar, e ficam como únicos
moradores no meio da terra (Is 5:8),
Desta vez, a condenação se dirige contra a avareza e à opulên-
cia, à posse exclusiva dos bens terrenos e ao acumulo indecente de
riquezas. No Reino de Deus, nossas posses devem servir para reduzir o
sofrimento dos despossuídos deste mundo. Jesus adverte:
Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra,
onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões es-
cavam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesou-
ros no céu, onde a traça nem a ferrugem corrói, e onde
ladrões não escavam, nem roubam; porque, onde está
teu tesouro, aí estará também o teu coração (Mt 6:19-
21).
No Reino de Deus, o trabalho também está a serviço do próxi-
mo. Não é para produzir acumulação, mas para socorrer os mais ne-
cessitados:
Aquele que furtava não furte mais; antes, trabalhe, fa-
zendo com as próprias mãos o que é bom, para que
tenha com que acudir ao necessitado. (Ef 4:28)
A ética do Reino de Deus é a ética da partilha:
Então, as multidões o interrogavam, dizendo: “O que
havemos, pois, de fazer?” Respondeu-lhes: “Quem ti-
ver duas túnicas, reparta com quem não tem; e quem
tiver comida, faça o mesmo. (Lc 3:10 e 11)
Por fim, no Reino de Deus o homem se sabe totalmente depen-
dente da Providência:
Não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que
haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo, quan-
to ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o
alimento, e o corpo, mas do que as vestes? Observais
as aves do céu: não semeiam, nem colhem, nem ajun-
tam em celeiros; contudo, vosso Pai celeste as susten-
ta [...] Considerai como crescem os lírios do campo:
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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
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eles não trabalham, nem fiam. Eu, contudo, vos afirmo
que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como
qualquer deles [...] Portanto, não vos inquieteis [...]
pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas
[essas coisas]. (Mt 6:25-32)

A Nova Humanidade
O Reino de Deus contém, portanto, a nova humanidade, cujo
modelo é Jesus de Nazaré. Perguntamos: o que é ser gente? Resposta:
é ser como Jesus. A conversão ao Reino de Deus é a conversão a esse
modelo, à nova humanidade. Quando dizemos às pessoas que devem
se arrepender, não estamos pensando numa reforma moral ou de com-
portamento apenas. Conversão é mudança de modelo, adoção de ou-
tra mentalidade:
Não vos conformeis com este século [mentalidade],
mas transformai-vos pela renovação de vossa mente,
para que experimenteis qual seja a boa , agradável e
perfeita vontade de Deus. (Rm 12:1 e 2).
E mais:
E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as
coisas antigas já passaram; eis que tudo se fez novo.
(2 Co 5:17)
Finalmente:
Quanto ao trato passado, vos despojeis do velho ho-
mem [a humanidade caída], que se corrompe segundo
as concupiscência [sedução] do engano, e vos revistais
do novo homem [a humanidade restaurada], criado
segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da
verdade. (Ef 4:22-24)
Em todos esses textos, a ênfase não está na mudança do com-
portamento moral do indivíduo – muito embora isso também seja uma
conseqüência desejável e esperada da conversão–, mas na nova hu-
manidade, cujo modelo, é Jesus, e que toma forma em nós pela ação
da graça e do Espírito Santo. De fato, na perspectiva da missão inte-
gral, a evangelização está preocupada com o que leva os homens a
serem como são. A ênfase é ontológica, e não moral. Queremos saber
o que está por trás do comportamento, a natureza (essência) dos indi-
víduos. O objetivo não é reformar as pessoas moralmente, mas que
elas nasçam de novo, isto é, que mudem de natureza dominante. Essa
é a condição para entrar no Reino de Deus:
Em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo,
não pode ver o reino de Deus [...] Quem não nascer da
água e do espírito não pode entrar no reino de Deus.
(Jo 3:3-5)
Se, por um lado, a nova natureza é resultado da ação da graça
e do Espírito Santo, a nova humanidade, por outro, é resultado do agir
dos homens e mulheres que nasceram de novo. A nova sociedade não
se faz por decreto, mas pela oração, pelo serviço ao próximo e pela
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UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
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luta contra as estruturas da morte que dominam o mundo. A igreja de
Cristo é, portanto, a comunidade dos que oram, servem e lutam. O
Reino de Deus é feito de homens, de gente. Daí porque no evangelho
temos uma nova antropologia. Nos perguntamos outra vez: Quem é o
homem? O que e como é ser gente? Novamente a resposta é: ser
gente é ser como Jesus de Nazaré. Ele é o nosso modelo de humanida-
de. Ao seguir o Nazareno aprendemos outra vez como ser gente do
jeito que Deus sonhou que fôssemos quando nos criou. O ethos do
Reino de Deus se funda na liberdade em Cristo e na submissão à von-
tade de Deus. Aqui, liberdade e submissão não são termos excludentes,
mas as duas faces de uma mesma moeda: somos livres para servir –ao
próximo e, por meio do serviço a ele, também a Deus. Como nos ensi-
na o apóstolo João:
Nisto sabemos que estamos nele [Jesus]: aquele que
diz que permanece nele, esse deve também andar [vi-
ver] como ele andou [...] Aquele que diz estar na luz e
odeia [deixa de servir] a seu irmão, até agora está nas
trevas [a velha humanidade]. Aquele que ama a seu
irmão permanece na luz [a nova humanidade], e nele
não há nenhum tropeço (1 Jo 2:5b; 9 e 10). [...] Nisto
são manifestos os filhos de Deus [o novo homem] e os
filhos do diabo [o homem sob o domínio da queda]:
todo aquele não pratica a justiça não procede de Deus,
nem aquele que não ama [serve] a seu irmão (1 Jo
3:10) [...] Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a
sua vida por nós; e devemos dar nossa vida pelos ir-
mãos. Ora, aquele que possuir recursos deste mundo,
e vir seu irmão padecer necessidade, e fechar-lhe o
seu coração, como pode permanecer nele o amor de
Deus? (1 Jo 3:16 e 17)
O dictum de Jesus “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida;
ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14:6) expressa os mesmos
princípios que encontramos igualmente nos quatro evangelhos: pri-
meiro, Jesus é o caminho porque é por meio dele que chegamos à
nova humanidade; segundo, é a verdade porque só nele temos o mo-
delo dessa nova humanidade; terceiro, é a vida porque é ele quem nos
comunica o poder para vivemos a nova humanidade; por fim, ir ao Pai
é entrar no Reino dos que comungam com Jesus a mesma filiação –
“Mas a todos quantos o receberam [o Verbo], dei-lhes o poder serem
feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome” (Jo 1:12).
Portanto, quando pregamos o evangelho e omitimos da nossa
pregação a política, a economia, a ética e a antropologia do Reino,
estamos reduzindo as boas-novas da salvação a um catálogo de pre-
ceitos morais –“não matarás, não roubarás, não adulterarás”. Desse
modo, esvaziamos o evangelho do seu conteúdo radical, contestador,
crítico, tornando-o anódino, cujo impacto numa sociedade relativista
será nulo. Se, por outro lado, optamos pelo caminho inverso, então
nossas palavras serão outra vez ouvidas e a ação da igreja no mundo
voltará a fazer a diferença.

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UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
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Missão Integral
Cristo, o homem coletivo
Antes de concluirmos este capítulo, comentaremos, brevemen-
te, um texto da carta do apóstolo Paulo aos Efésios:
Porque ele [Jesus] é a nossa paz, o qual de ambos fez
um; e, tendo derribado a parede de separação que es-
tava no maio, a inimizade, aboliu, na sua carne [huma-
nidade de Jesus], alei dos mandamentos na forma de
ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo,
um novo homem [a nova humanidade], fazendo a paz,
e conciliasse ambos num só corpo com Deus, por inter-
médio da cruz, destruindo por ela a inimizade. (Ef 2:14-
16)
Pois bem. Na encarnação, Cristo assumiu a humanidade por
inteiro. Logo, sua morte na cruz é a morte de toda a humanidade. Do
mesmo modo, é a humanidade toda que ressuscita com Cristo. Assim,
a escolha que as pessoas fazem na conversão é se vão ou não continu-
ar na humanidade. Os mistérios da encarnação do Filho de Deus e da
sua ressurreição permanecem como os dois pilares do cristianismo.
Nisso a fé cristã é única, pois só ela diz que Deus se humanizou e só ela
afirma a ressurreição do corpo. No corpo de Cristo, isto é, na sua
humanidade, a humanidade recuperou a unidade perdida com a que-
da. Em Cristo, a humanidade volta a ser um homem coletivo. Quando
Jesus Cristo retorna para o Pai, ele carrega a humanidade inteira no
seu corpo: o Filho que encarnou volta para o seu lugar na Trindade (Fl
2:5-8). Podemos dizer que a humanidade de Cristo depois da ressur-
reição é maior do que sua humanidade antes dela. Nesse sentido, o
Ressurrecto é maior do que o Encarnado.
No evangelho de João, Jesus ensina:
Em verdade vos digo: se o grão de trigo, cain-
do na terra, não morrer, fica ele só; mas, se
morrer, produz muito fruto. (Jo 12:24)
O resultado da ressurreição é que, com Cristo, todos voltam ao
Pai. E não apenas voltam com ele, mas nele. Na oração sacerdotal de
Jesus, lemos:
É por eles que eu rogo [a nova humanidade personifi-
cada nos discípulos]; não rogo pelo mundo [a humani-
dade caída], mas por aqueles que me deste, porque
são teus; ora, todas as minhas coisas são tuas, e as
tuas coisas são minhas; e, neles, eu sou glorificado
[...] Pai santo, guarda-os no teu nome, que me deste,
para que eles [os discípulos] sejam um, assim como
nós [a Trindade]. (Jo 17:9-11)
Jesus volta para o Pai como homem coletivo – a cabeça e os
membros–, cujas partes se articulam e permanecem coesas. Na metá-
fora da igreja como corpo, Paulo afirma:
Porque assim como num só corpo temos muitos mem-
bros, mas nem todos os membros tem a mesma fun-
ção, assim também nós, conquanto muitos, somos um
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UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
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só corpo em Cristo e membros uns dos outros (Rm
12:4 e 5) [...] E pôs todas as coisas debaixo dos pés
[de Cristo] e, para ser o cabeça sobre todas as coisas,
o deu à igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daque-
les que a tudo enche em todas as coisas. (Ef 1:22 e 23)
Daí porque, quando oramos e dizemos “Pai nosso”, não é o
indivíduo que ora - mesmo que a oração seja feita na privacidade do
nosso quarto, quando estamos sozinhos–, mas o corpo de Cristo, isto
é, o homem coletivo, toda a igreja, que se dirige a Deus! Oramos de
dentro de um corpo que é composto por muitos (1 Co 12:12). Por isso,
nunca oramos sozinhos, mas em Cristo e a partir dele e do seu corpo –
a igreja.
Aonde tudo isso nos leva? Em primeiro lugar, a reconhecer que
se anunciamos Jesus como Rei –e ele o é– temos, também, que anun-
ciar seu Reino – e, por conseqüência, sua política, sua economia, sua
ética e o arcabouço de propostas que traz em sua formulação. Em
segundo lugar, a igreja só pode anunciar o Reino se ela mesma já
experimentá-lo na sua vida comunitária (Jo 13:35; Tg 1:22-25). Em
terceiro lugar, os homens precisam ver na igreja a nova humanidade.
Precisamos dizer a eles que é possível, sim, viver como Jesus viveu (1
Jo 2:6) e amar como ele amou (Jo 13:1; 34). Por último, precisamos
chamar os homens a entrar no Reino, fazendo-lhes outra vez o convite
amoroso de Jesus:
“Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobre-
carregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu
jugo e aprendei de mim que sou manso e humilde de
coração; e acharei descanso para a vossa alma. Por-
que o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve. (Mt
11:28-30)
O que Jesus Cristo faz na igreja e por meio dela é, portanto,
reconstruir a humanidade. Daí porque não podemos ficar indiferentes
à sorte do outro. Temos que ser coerentes e nos importar com os
famintos das cidades e do campo e com os sem-teto que são empurra-
dos para as favelas; temos que nos importar com os encarcerados que
são embrutecidos pelo sistema prisional do país e com os meninos e
meninas que fumam crack na cracolância; temos que nos importar
com os milionários que se tornam reféns da sua própria riqueza e do
medo de perdê-las e com as meninas que engravidam ainda na adoles-
cência; temos, enfim, que nos importar com todos porque Deus se
importa com todos. Se o amor de Deus é inclusivo, o nosso também
tem que ser. Isso é ser coerente. Isso é ser o novo homem. Isso é ser
cristão.

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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
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Epílogo – O Reino de Deus e a Nova Humanidade

Retomaremos, aqui, a discussão sobre o Reino de Deus e a


nova humanidade. Nosso objetivo agora é explorar mais algumas pos-
sibilidades. Se o Reino de Deus é a chave hermenêutica para entender
a história da salvação, o homem é a chave para entender o Reino de
Deus.

A Lei e a Salvação do Homem

Vamos começar com a narrativa da disputa de Jesus com os


fariseus sobre o sábado que se encontra no evangelho de Marcos:
Ora, aconteceu atravessar Jesus, em dia de sábado,
as searas, e os discípulos, ao passarem, colhiam espi-
gas. Advertiram-no os fariseus: “Vê! Por que fazem o
que não é lícito aos sábados?” Mas ele lhes respon-
deu: “Nunca lestes o que fez Davi, quando se viu em
necessidade e teve fome, ele e os seus companheiros?
Como entrou na Casa de Deus, no tempo do sumo
sacerdote Abiatar, e comeu os pães da proposição, os
quais não é lícito comer, senão aos sacerdotes, e que
também aos que estavam com ele?” E acrescentou:
“O sábado foi estabelecido por causa do homem, e
não o homem por causa do Sábado; de sorte que o
Filho do Homem é senhor também do sábado.” (Mc
2:23-28; par. Mt12:1-7)
Como se sabe, por mais de uma vez Jesus se envolveu em
discussões com os fariseus sobre a lei de Moisés. O que incomodava
seus interlocutores era o fato de Jesus sempre devolver suas pergun-
tas de uma maneira que os obrigava a rever suas idéias. Aqui não é
diferente. Ao relatar o episódio de Davi e seus companheiros, Jesus
questiona a interpretação que os fariseus fazem da guarda do sábado.
E arremata: “O Filho do Homem é senhor também do sábado.” Para
Jesus, a lei –isto é, os mandamentos dados por Deus a Israel– também
faz parte da ação salvadora de Deus. Jesus inverte a lógica do raciocí-
nio dos fariseus e diz que a lei está a serviço do homem e não o
contrário. Essa distinção tem um papel importante para a nossa com-
preensão da relação entre o Velho e o Novo Testamento, isto é, entre
a lei e a graça.
Para a missão integral, o Reino de Deus centra-se no resgate
da humanidade. Daí porque Jesus pode dizer que a lei deve estar a
serviço das pessoas e não o contrário. Para ele, o homem é o valor
supremo. Isso não significa, porém, que podemos dispensar a lei divi-
na ou, o que é pior, argumentar que o cumprimento dela depende
exclusivamente da nossa vontade. Claro que não! O ponto aqui é ou-
tro. Contrariando a interpretação mais aceita, a lei não foi feita para
preservar Deus, mas para salvar o homem. Paradoxalmente, ao criar a
lei, Deus pensava no resgate da humanidade. Em seus planos, mesmo
a lei tem uma dimensão soterológica. Nosso desafio agora é dar con-
teúdo à salvação. O que, afinal, significa ser salvo? De que o homem é
31 salvo?
Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
Segundo a teologia tradicional, somos salvos do pecado e da
danação eterna. Já tivemos oportunidade de mostrar que essa é uma
visão reducionista da salvação, porque parte da idéia de que pecado é
um desvio moral e que se converter é viver de acordo com os preceitos
morais da fé cristã. Para a missão integral, no entanto, salvação envol-
ve muito mais do que livrar os homens do inferno: envolve, acima de
tudo, devolver-lhes sua humanidade. Nosso argumento é que a queda
conspurcou nossa essência. Já não expressamos a imago Dei em sua
pureza original, porque no Éden um elemento antidivino mesclou-se a
ela. A fim de compreendermos o alcance dessa tragédia, vamos exa-
minar o conceito de santidade como ele aparece na Bíblia.

Santidade como Ausência de Mistura


Santidade é, antes de qualquer coisa, ausência de mistura. Na
primeira carta de Pedro, lemos:
Por isso, cingindo o vosso entendimento, sede sóbrios
e esperai na graça que vos está sendo trazida na reve-
lação de Jesus Cristo. Como filhos da obediência, não
vos amoldeis às paixões que tínheis anteriormente na
vossa ignorância; pelo contrário, segundo é santo aque-
le que vos chamou, tornai-vos santos também vós
mesmos em todo o vosso procedimento, porque está
escrito: “Sede santos, porque eu sou santo.” (1 Pe 1:13-
16)
A primeira coisa que aprendemos nesse texto é que se a deso-
bediência resultou na queda, a obediência restitui-nos o estado origi-
nal. A segunda coisa que o apóstolo Pedro nos ensina é que Deus é
santo –isto é, puro e sem mistura. Logo, se ele nos chama para sermos
santos, isso só pode significar uma coisa: recuperar o estado de pure-
za que tínhamos antes da queda. O ser sem mistura é o que distingue
o homem antes da queda do homem depois dela. Não é só uma ques-
tão de terminologia, muito embora nossa fixação moralista condicione
a leitura que fazemos da Bíblia. A propósito, é útil lembrar que foi a
influência do estoicismo e do neoplatonismo nos autores cristãos dos
três primeiros séculos da nossa era que resultou nessa confusão
conceitual. Reeducar nossa mente a pensar com categorias ontológicas
–ao invés de categorias morais– é parte da tarefa da missão integral.
Pois bem. Ser santo como Deus é não implica a busca por um
estado de perfeição moral. A Bíblia nos diz que a santidade de Deus
significa a ausência de mistura em seu ser (Tg 1:16-18), o que também
se aplica aos homens. Na primeira carta de João, lemos:
Ora, a mensagem que, da parte dele, temos ouvido e
vos anunciamos é esta: que Deus é luz, e não há nele
treva nenhuma. Se, porém, andarmos na luz, como
ele está na luz, mantemos comunhão uns com os ou-
tros, e os sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de
todo o pecado. (1 Jo 1:5-7)
Luz aqui é a metáfora que João emprega para falar da ausência
de mistura –nossa condição antes da queda. Logo, estar na luz é
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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
sinônimo de ser puro, sem mistura. A presença de treva, por outro
lado, significa exatamente o oposto –isto é, ser misturado, impuro. O
cristão experimenta esse estado de pureza por causa do sangue de
Jesus, que “nos purifica de todo pecado”. Ser sem mistura, isto é, puro,
é resultado da ação do sacrifício de Jesus na cruz. A morte de Jesus
significa, portanto, a possibilidade de sermos outra vez seres sem mis-
tura. A mesma idéia aparece em outro trecho da mesma carta:
Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a
ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato,
somos filhos de Deus. Por essa razão, o mundo não
nos conhece, porquanto não o conheceu a ele mesmo.
Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se
manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que,
quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele,
porque haveremos de vê-lo como ele é. E a si mesmo
se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim
como ele é puro. Todo aquele que pratica o pecado
também transgride a lei, porque o pecado é a trans-
gressão da lei. Sabeis também que ele se manifestou
para tirar os pecado, e nele não existe pecado. Todo
aquele que vive pecando não o viu, nem o conheceu.
(3:1-6)
A idéia de santidade como ausência de mistura aparece aqui
de forma mais elaborada. Primeiro, João diz que nossa filiação divina é
fruto do amor de Deus e que é essa condição que nos opõe ao mundo
(v. 1). Segundo, o apóstolo faz uma distinção entre a nossa condição
atual de filhos de Deus e o que seremos no futuro quando Jesus voltar
(v.2a). Essa tensão entre o agora e o ainda não ressalta a dinâmica do
processo de santificação. Quando este se completar, seremos como
Deus porque “haveremos de vê-lo como ele é” (v. 2b) E como ele é?
Ele é sem mistura. A condição para vê-lo é sermos nós mesmos sem
mistura. Posto de outro modo, significa dizer que, uma vez concluído
o processo da nossa santificação, veremos Deus face a face porque
seremos, nós também, seres sem mistura. Terceiro, João diz que é
essa esperança –ver Deus como ele é– que nos faz avançar rumo ao
estado de pureza (v. 3). Quarto, ele nos lembra que pecado é a trans-
gressão da lei (v. 4). Ora, se a lei, como dissemos antes, também está
a serviço da salvação do homem –devolver a ele seu estado original de
pureza–, então pecar é ir na direção oposta, isto é, ser com mistura. O
apóstolo diz, então, que Jesus “se manifestou para tirar os pecados” –
restaurar em nós o estado original de pureza–, e que “nele [Jesus] não
existe pecado” –Jesus é como Deus, também sem mistura (v. 5). Por
fim, João nos diz que quem “permanece em Jesus”, quem “o viu e o
conheceu” deixa de pecar (v. 6).
Resta-nos, agora, entender a presença do mal na criação. No
evangelho de João, Jesus diz: “Já não falarei muito convosco, porque
aí vem o príncipe do mundo; e ele nada tem em mim. (Jo 14:30).
Sabemos que o “príncipe do mundo” é o diabo. Como podemos, então,
entender a frase de Jesus? A interpretação mais provável é que a ex-
pressão “ele [o diabo] nada tem em mim” signifique “o diabo não
encontrará nenhum ponto de apoio em mim”. Jesus está imune à ação
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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
de Satanás porque nele o humano não está misturado. Somente quem
é misturado –todos nós, obviamente– pode dar lugar ao diabo. E mais:
nossa humanidade só será inteiramente restaurada quando deixarmos
de ser seres misturados. Posto de outro modo, seremos verdadeira-
mente homens quando não restar mais nada em nossa natureza que
possa servir de apoio ao maligno. Enquanto isso não acontece, deve-
mos vigiar (Mt 26:41) e resistir (Tg 4:7).
Nossa condição atual é, portanto, de seres híbridos, marcados
pela contradição. Por um lado, possuímos atributos divinos, que nos
foram comunicados por Deus. Por outro, carregamos em nós a semen-
te da rebelião: o divino e o antidivino convivem em nós lado a lado. A
ambivalência dos nossos pensamentos, emoções e atos tem sua ori-
gem no embate entre essas duas tendências.
Porque somos seres com mistura, expressamos mais do que
Deus –fomos criados à sua imagem e semelhança–; expressamos tam-
bém o mal que persiste em nossa natureza caída. Ser santo, portanto,
significa caminhar na direção da humanidade sem mistura, da supera-
ção das nossas contradições, da restauração do estado original de pu-
reza que experimentávamos antes da queda. Salvação é, então, ir na
direção da não-contradição, da santidade, da ausência de mistura. O
desafio do cristão é expressar, ao mesmo tempo, o máximo possível de
Deus e o menos possível do diabo que ele puder. Ser homem é, no
sentido mais próprio da palavra, expressar Deus na inteireza do nosso
ser. Seremos cada vez mais homens à medida que avançamos na direção
do estado original de pureza. Posto de outro modo, sabemos que
estamos recuperando nossa humanidade se a cada dia mais de Deus –
o ser sem mistura por excelência– é visto em nós.

Santidade e a Nova Humanidade


O Reino de Deus contém a comunidade dos seres humanos
não misturados
Ser santo é ir em direção à nova humanidade, a comunidade
dos homens e mulheres que reconquistaram sua condição de seres
sem mistura. Logo, santificação é recuperar no homem a capacidade
de expressar o divino sem mistura. Se a queda significou, como temos
dito, a perda da pureza original, a santificação é o processo de recupe-
ração dessa mesma pureza. Mas o que deflagra esse processo?
Em muitas igrejas, o conceito de santidade está associado a
“usos e costumes”. Desenha-se um comportamento –por exemplo, o
corte e o tamanho do cabelo, as roupas aceitas e as condenadas, os
passatempos permitidos, as palavras e os gestos interditados etc, etc–
e espera-se a adesão incondicional do crente a ele. Foi precisamente
esse modelo de santidade –baseado em sanções– que Jesus conde-
nou nos fariseus (Mt 16:5-12; Mc 7:1-13). A mudança que se espera
aconteça no cristão não é de ordem moral –embora, como já disse-
mos, isso também seja desejável e esperado. A santidade que temos
em mente ocorre pela substituição gradual da nossa humanidade mis-
turada pela humanidade sem mistura de Cristo (Gl 2:19 e 20; Fp 1:23),
nosso modelo e alvo (ref: “deixando as coisas velhas para trás, sigo
para o alvo que é Cristo”; Cristo” Ef 4:13 e 14). Dito de outro modo, é
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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
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Missão Integral
no processo de santificação que a velha humanidade –o ser híbrido–
dá lugar à nova –o ser sem mistura (Cl 3:5-11; 2 Co 5:17).
Sole Deo gloria

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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
Apêndice: O Pacto de Lausanne

Introdução
Nós, membros da Igreja de Jesus Cristo, procedentes de mais de
150 nações, participantes do Congresso Internacional de
Evangelização Mundial, em Lausanne, louvamos a Deus por sua
grande salvação, e regozijamo-nos com a comunhão que, por graça
dele mesmo, podemos ter com ele e uns com os outros. Estamos
profundamente tocados pelo que Deus vem fazendo em nossos dias,
movidos ao arrependimento por nossos fracassos e dasafiados pela
tarefa inacabada da evangelização. Acreditamos que o evangelho são
as boas novas de Deus para todo o mundo, e por sua graça,
decidimo-nos a obedecer ao mandamento de Cristo de proclamá-lo a
toda a humanidade e fazer discípulos de todas as nações. Deseja-
mos, portanto, reafirmar a nossa fé e a nossa resolução, e tornar
público o nosso pacto.

1. O propósito de Deus

Afirmamos a nossa crença no único Deus eterno, Criador e Senhor


do Mundo, Pai, Filho e Espírito Santo, que governa todas as coisas
segundo o propósito da sua vontade. Ele tem chamado do mundo
um povo para si, enviando-o novamente ao mundo como seus servos
e testemunhas, para estender o seu reino, edificar o corpo de Cristo,
e também para a glória do seu nome. Confessamos, envergonhados,
que muitas vezes negamos o nosso chamado e falhamos em nossa
missão, em razão de nos termos conformado ao mundo ou nos
termos isolado demasiadamente. Contudo, regozijamo-nos com o
fato de que, mesmo transportado em vasos de barro, o evangelho
continua sendo um tesouro precioso. À tarefa de tornar esse tesouro
conhecido, no poder do Espírito Santo, desejamos dedicar-nos
novamente.

2. A autoridade e o poder da Bíblia

Afirmamos a inspiração divina, a veracidade e autoridade das


Escrituras tanto do Velho como do Novo Testamento, em sua
totalidade, como única Palavra de Deus escrita, sem erro em tudo o
que ela afirma, e a única regra infalível de fé e prática. Também
afirmamos o poder da Palavra de Deus para cumprir o seu propósito
de salvação. A mensagem da Bíblia destina-se a toda a humanidade,
pois a revelação de Deus em Cristo e na Escritura é imutável.
Através dela o Espírito Santo fala ainda hoje. Ele ilumina as mentes
do povo de Deus em toda cultura, de modo a perceberem a sua
verdade, de maneira sempre nova, com os próprios olhos, e assim
revela a toda a igreja uma porção cada vez maior da multiforme
sabedoria de Deus.

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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
3. A unicidade e a universalidade de Cristo

Afirmamos que há um só Salvador e um só evangelho, embora exista


uma ampla variedade de maneiras de se realizar a obra de
evangelização. Reconhecemos que todos os homens têm algum
conhecimento de Deus através da revelação geral de Deus na
natureza. Mas negamos que tal conhecimento possa salvar, pois os
homens, por sua injustiça, suprimem a verdade. Também rejeitamos,
como depreciativo de Cristo e do evangelho, todo e qualquer tipo de
sincretismo ou de diálogo cujo pressuposto seja o de que Cristo fala
igualmente através de todas as religiões e ideologias. Jesus Cristo,
sendo ele próprio o único Deus-homem, que se deu uma só vez em
resgate pelos pecadores, é o único mediador entre Deus e o homem.
Não existe nenhum outro nome pelo qual importa que sejamos sal-
vos. Todos os homens estão perecendo por causa do pecado, mas
Deus ama todos os homens, desejando que nenhum pereça, mas
que todos se arrependam. Entretanto, os que rejeitam Cristo
repudiam o gozo da salvação e condenam-se à separação eterna de
Deus. Proclamar Jesus como “o Salvador do mundo” não é afirmar
que todos os homens, automaticamente, ou ao final de tudo, serão
salvos; e muito menos que todas as religiões ofereçam salvação em
Cristo. Trata-se antes de proclamar o amor de Deus por um mundo
de pecadores e convidar todos os homens a se entregarem a ele
como Salvador e Senhor no sincero compromisso pessoal de
arrependimento e fé. Jesus Cristo foi exaltado sobre todo e qualquer
nome. Anelamos pelo dia em que todo joelho se dobrará diante dele
e toda língua o confessará como Senhor.

4. A natureza da evangelização
Evangelizar é difundir as boas novas de que Jesus Cristo morreu por
nossos pecados e ressuscitou segundo as Escrituras, e de que, como
Senhor e Rei, ele agora oferece o perdão dos pecados e o dom
libertador do Espírito a todos os que se arrependem e crêem. A
nossa presença cristã no mundo é indispensável à evangelização, e o
mesmo se dá com aquele tipo de diálogo cujo propósito é ouvir com
sensibilidade, a fim de compreender. Mas a evangelização
propriamente dita é a proclamação do Cristo bíblico e histórico como
Salvador e Senhor, com o intuito de persuadir as pessoas a vir a ele
pessoalmente e, assim, se reconciliarem com Deus. Ao fazermos o
convite do evangelho, não temos o direito de esconder o custo do
discipulado. Jesus ainda convida todos os que queiram segui-lo e
negarem-se a si mesmos, tomarem a cruz e identificarem-se com a
sua nova comunidade. Os resultados da evangelização incluem a
obediência a Cristo, o ingresso em sua igreja e um serviço
responsável no mundo.

5. A responsabilidade social cristã

Afirmamos que Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens.


Portanto, devemos partilhar o seu interesse pela justiça e pela
conciliação em toda a sociedade humana, e pela libertação dos
37 homens de todo tipo de opressão. Porque a humanidade foi feita à
Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
imagem de Deus, toda pessoa, sem distinção de raça, religião, cor,
cultura, classe social, sexo ou idade possui uma dignidade intrínseca
em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada.
Aqui também nos arrependemos de nossa negligência e de termos
algumas vezes considerado a evangelização e a atividade social
mutuamente exclusivas. Embora a reconciliação com o homem não
seja reconciliação com Deus, nem a ação social evangelização, nem
a libertação política salvação, afirmamos que a evangelização e o
envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever cristão.
Pois ambos são necessárias expressões de nossas doutrinas acerca
de Deus e do homem, de nosso amor por nosso próximo e de nossa
obediência a Jesus Cristo. A mensagem da salvação implica também
uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, de opressão
e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a
injustiça onde quer que existam. Quando as pessoas recebem Cristo,
nascem de novo em seu reino e devem procurar não só evidenciar
mas também divulgar a retidão do reino em meio a um mundo
injusto. A salvação que alegamos possuir deve estar nos
transformando na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e
sociais. A fé sem obras é morta.

6. A Igreja e a evangelização

Afirmamos que Cristo envia o seu povo redimido ao mundo assim


como o Pai o enviou, e que isso requer uma penetração de igual
modo profunda e sacrificial. Precisamos deixar os nossos guetos
eclesiásticos e penetrar na sociedade não-cristã. Na missão de
serviço sacrificial da igreja a evangelização é primordial. A
evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o evangelho
integral ao mundo todo. A igreja ocupa o ponto central do propósito
divino para com o mundo, e é o agente que ele promoveu para
difundir o evangelho. Mas uma igreja que pregue a Cruz deve, ela
própria, ser marcada pela Cruz. Ela torna-se uma pedra de tropeço
para a evangelização quando trai o evangelho ou quando lhe falta
uma fé viva em Deus, um amor genuíno pelas pessoas, ou uma
honestidade escrupulosa em todas as coisas, inclusive em promoção
e finanças. A igreja é antes a comunidade do povo de Deus do que
uma instituição, e não pode ser identificada com qualquer cultura em
particular, nem com qualquer sistema social ou político, nem com
ideologias humanas.

7. Cooperação na evangelização

Afirmamos que é propósito de Deus haver na igreja uma unidade


visível de pensamento quanto à verdade. A evangelização também
nos convoca à unidade, porque o ser um só corpo reforça o nosso
testemunho, assim como a nossa desunião enfraquece o nosso
evangelho de reconciliação. Reconhecemos, entretanto, que a
unidade organizacional pode tomar muitas formas e não ativa
necessariamente a evangelização. Contudo, nós, que partilhamos a
mesma fé bíblica, devemos estar intimamente unidos na comunhão
uns com os outros, nas obras e no testemunho. Confessamos que o
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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
nosso testemunho, algumas vezes, tem sido manchado por
pecaminoso individualismo e desnecessária duplicação de esforço.
Empenhamo-nos por encontrar uma unidade mais profunda na
verdade, na adoração, na santidade e na missão. Instamos para que
se apresse o desenvolvimento de uma cooperação regional e
funcional para maior amplitude da missão da igreja, para o
planejamento estratégico, para o encorajamento mútuo, e para o
compartilhamento de recursos e de experiências.

8. Esforço conjugado de Igrejas na evangelização

Regozijamo-nos com o alvorecer de uma nova era missionária. O


papel dominante das missões ocidentais está desaparecendo
rapidamente. Deus está levantando das igrejas mais jovens um
grande e novo recurso para a evangelização mundial, demonstrando
assim que a responsabilidade de evangelizar pertence a todo o corpo
de Cristo. Todas as igrejas, portando, devem perguntar a Deus, e a
si próprias, o que deveriam estar fazendo tanto para alcançar suas
próprias áreas como para enviar missionários a outras partes do
mundo. Deve ser permanente o processo de reavaliação da nossa
responsabilidade e atuação missionária. Assim, haverá um crescente
esforço conjugado pelas igrejas, o que revelará com maior clareza o
caráter universal da igreja de Cristo. Também agradecemos a Deus
pela existência de instituições que laboram na tradução da Bíblia, na
educação teológica, no uso dos meios de comunicação de massa, na
literatura cristã, na evangelização, em missões, no avivamento de
igrejas e em outros campos especializados. Elas também devem
empenhar-se em constante auto-exame que as levem a uma
avaliação correta de sua eficácia como parte da missão da igreja.

9. Urgência da tarefa evangelística

Mais de dois bilhões e setecentos milhões de pessoas, ou seja, mais


de dois terços da humanidade, ainda estão por serem evangelizadas.
Causa-nos vergonha ver tanta gente esquecida; continua sendo uma
reprimenda para nós e para toda a igreja. Existe agora, entretanto,
em muitas partes do mundo, uma receptividade sem precedentes ao
Senhor Jesus Cristo. Estamos convencidos de que esta é a ocasião
para que as igrejas e as instituições para-eclesiásticas orem com
seriedade pela salvação dos não-alcançados e se lancem em novos
esforços para realizarem a evangelização mundial. A redução de
missionários estrangeiros e de dinheiro num país evangelizado
algumas vezes talvez seja necessária para facilitar o crescimento da
igreja nacional em autonomia, e para liberar recursos para áreas
ainda não evangelizadas. Deve haver um fluxo cada vez mais livre de
missionários entre os seis continentes num espírito de abnegação e
prontidão em servir. O alvo deve ser o de conseguir por todos os
meios possíveis e no menor espaço de tempo, que toda pessoa
tenha a oportunidade de ouvir, de compreender e de receber as boas
novas. Não podemos esperar atingir esse alvo sem sacrifício. Todos
nós estamos chocados com a pobreza de milhões de pessoas, e
conturbados pelas injustiças que a provocam. Aqueles dentre nós
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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
que vivem em meio à opulência aceitam como obrigação sua
desenvolver um estilo de vida simples a fim de contribuir mais
generosamente tanto para aliviar os necessitados como para a
evangelização deles.

10. Evangelização e cultura

O desenvolvimento de estratégias para a evangelização mundial


requer metodologia nova e criativa. Com a bênção de Deus, o
resultado será o surgimento de igrejas profundamente enraizadas
em Cristo e estreitamente relacionadas com a cultura local. A cultura
deve sempre ser julgada e provada pelas Escrituras. Porque o
homem é criatura de Deus, parte de sua cultura é rica em beleza e
em bondade; porque ele experimentou a queda, toda a sua cultura
está manchada pelo pecado, e parte dela é demoníaca. O evangelho
não pressupõe a superioridade de uma cultura sobre a outra, mas
avalia todas elas segundo o seu próprio critério de verdade e justiça,
e insiste na aceitação de valores morais absolutos, em todas as
culturas. As missões, muitas vezes têm exportado, juntamente com o
evangelho, uma cultura estranha, e as igrejas, por vezes, têm ficado
submissas aos ditames de uma determinada cultura, em vez de às
Escrituras. Os evangelistas de Cristo têm de, humildemente, procurar
esvaziar-se de tudo, exceto de sua autenticidade pessoal, a fim de se
tornarem servos dos outros, e as igrejas têm de procurar transformar
e enriquecer a cultura; tudo para a glória de Deus.

11. Educação e liderança


Confessamos que às vezes temos nos empenhado em conseguir o
crescimento numérico da igreja em detrimento do espiritual,
divorciando a evangelização da edificação dos crentes. Também
reconhecemos que algumas de nossas missões têm sido muito
remissas em treinar e incentivar líderes nacionais a assumirem suas
justas responsabilidades. Contudo, apoiamos integralmente os
princípios que regem a formação de uma igreja de fato nacional, e
ardentemente desejamos que toda a igreja tenha líderes nacionais
que manifestem um estilo cristão de liderança não em termos de
domínio, mas de serviço. Reconhecemos que há uma grande
necessidade de desenvolver a educação teológica, especialmente
para líderes eclesiáticos. Em toda nação e em toda cultura deve
haver um eficiente programa de treinamento para pastores e leigos
em doutrina, em discipulado, em evangelização, em edificação e em
serviço. Este treinamento não deve depender de uma metodologia
estereotipada, mas deve se desenvolver a partir de iniciativas locais
criativas, de acordo com os padrões bíblicos.

12. Conflito espiritual

Cremos que estamos empenhados num permanente conflito


espiritual com os principados e postestades do mal, que querem
destruir a igreja e frustrar sua tarefa de evangelização mundial.
Sabemos da necessidade de nos revestirmos da armadura de Deus e
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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
combater esta batalha com as armas espirituais da verdade e da
oração. Pois percebemos a atividade no nosso inimigo, não somente
nas falsas ideologias fora da igreja, mas também dentro dela em
falsos evangelhos que torcem as Escrituras e colocam o homem no
lugar de Deus. Precisamos tanto de vigilância como de discernimento
para salvaguardar o evangelho bíblico. Reconhecemos que nós
mesmos não somos imunes ao perigo de capitularmos ao
secularismo. Por exemplo, embora tendo à nossa disposição
pesquisas bem preparadas, valiosas, sobre o crescimento da igreja,
tanto no sentido numérico como espiritual, às vezes não as temos
utilizado. Por outro lado, por vezes tem acontecido que, na ânsia de
conseguir resultados para o evangelho, temos comprometido a nossa
mensagem, temos manipulado os nossos ouvintes com técnicas de
pressão, e temos estado excessivamente preocupados com as
estatísticas, e até mesmo utilizando-as de forma desonesta. A igreja
tem que estar no mundo; o mundo não tem que estar na igreja.

13. Liberdade e perseguição

É dever de toda nação, dever que foi estabelecido por Deus,


assegurar condições de paz, de justiça e de liberdade em que a
igreja possa obedecer a Deus, servir a Cristo Senhor e pregar o
evangelho sem impedimentos. Portanto, oramos pelos líderes das
nações e com eles instamos para que garantam a liberdade de
pensamento e de consciência, e a liberdade de praticar e propagar a
religião, de acordo com a vontade de Deus, e com o que vem
expresso na Declaração Universal do Direitos Humanos. Também
expressamos nossa profunda preocupação com todos os que foram
injustamente encarcerados, especialmente com nossos irmãos que
estão sofrendo por causa do seu testemunho do Senhor Jesus.
Prometemos orar e trabalhar pela libertação deles. Ao mesmo
tempo, recusamo-nos a ser intimidados por sua situação. Com a
ajuda de Deus, nós também procuraremos nos opor a toda injustiça
e permanecer fiéis ao evangelho, seja a que custo for. Não nos
esqueçamos de que Jesus nos previniu de que a perseguição é
inevitável.

14. O poder do Espírito Santo

Cremos no poder do Espírito Santo. O pai enviou o seu Espírito para


dar testemunho do seu Filho. Sem o testemunho dele o nosso seria
em vão. Convicção de pecado, fé em Cristo, novo nascimento cristão,
é tudo obra dele. De mais a mais, o Espírito Santo é um Espírito
missionário, de maneira que a evangelização deve surgir
espontaneamente numa igreja cheia do Espírito. A igreja que não é
missionária contradiz a si mesma e debela o Espírito. A
evangelização mundial só se tornará realidade quando o Espírito
renovar a igreja na verdade, na sabedoria, na fé, na santidade, no
amor e no poder. Portanto, instamos com todos os cristãos para que
orem pedindo pela visita do soberano Espírito de Deus, a fim de que
o seu fruto todo apareça em todo o seu povo, e que todos os seus
dons enriqueçam o corpo de Cristo. Só então a igreja inteira se
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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
tornará um instrumento adequado em Suas mãos, para que toda a
terra ouça a Sua voz.

15. O retorno de Cristo

Cremos que Jesus Cristo voltará pessoal e visivelmente, em poder e


glória, para consumar a salvação e o juízo. Esta promessa de sua
vinda é um estímulo ainda maior à evangelização, pois lembramo-
nos de que ele disse que o evangelho deve ser primeiramente
pregado a todas as nações. Acreditamos que o período que vai
desde a ascensão de Cristo até o seu retorno será preenchido com a
missão do povo de Deus, que não pode parar esta obra antes do
Fim. Também nos lembramos da sua advertência de que falsos
cristos e falsos profetas apareceriam como precursores do Anticristo.
Portanto, rejeitamos como sendo apenas um sonho da vaidade
humana a idéia de que o homem possa algum dia construir uma uto-
pia na terra. A nossa confiança cristã é a de que Deus aperfeiçoará o
seu reino, e aguardamos ansiosamente esse dia, e o novo céu e a
nova terra em que a justiça habitará e Deus reinará para sempre.
Enquanto isso, rededicamo-nos ao serviço de Cristo e dos homens
em alegre submissão à sua autoridade sobre a totalidade de nossas
vidas.

Conclusão
Portanto, à luz desta nossa fé e resolução, firmamos um pacto sole-
ne com Deus, bem como uns com os outros, de orar, planejar e tra-
balhar juntos pela evangelização de todo o mundo. Instamos com
outros para que se juntem a nós. Que Deus nos ajude por sua graça
e para a sua glória a sermos fiéis a este Pacto! Amém. Aleluia!

[Lausanne, Suíça, 1974]

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Ariovaldo Ramos
UM OLHAR SOBRE A MISSÃO INTEGRAL
São Paulo - 2005

Missão Integral
Bibliografia
Albert NOLAN. 1999. Jesus Antes do Cristianismo. 3a ed. São Paulo:
Paulus Editora
Ariovaldo RAMOS. 2000. Igreja. E eu com isso? – Compreendendo a
igreja para poder vivê-la. São Paulo: Editora Sepal.
C. René PADILHA. 1992. Missão Integral – Ensaios sobre o Reino e a
Igreja. São Paulo:FTL-B e Temática Publicações.
Dietriech BONHÖEFFER. 1959. Letter and Papers from the Prision.
London: Fontana Books (Collins)
E. P. SANDERS. 1993. The Historical Figure of Jesus.
Harmondsworth, Middlesex: Allan Lane (Penguin Press).
Gehard LOHFINK. 1988. Como Jesus Queria as Comunidades – A
Dimensão Social da Fé Cristã. São Paulo: Paulinas
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in Ethics and Politics. Louisville, Kentuky: Westnister John Knox
Press
Valdir STEUERNAGEL (ed). 1992. A Serviço do Reino – Um Compên-
dio sobre a Missão Integral da Igreja. Belo Horizonte: Missão Edi-
tora

b)

1
Esse era o termo para descrever as nações em desenvolvimento
na época, abandonado somente na década passada.
2
Ver também At 2:42-47.
3
O termo ganhou na última década um outro sentido, associado às
iniciativas das empresas para melhorar a vida das comunidades onde
elas estão instaladas e a projetos mantidos com dinheiro doado às
ONGs que os gerem.
4
“Evangelho de Resultados”, entrevista publicada na edição de Ju-
nho de 2001 da revista Eclésia., pp. 24 e ss. O missionário R. R. Soa-
res, é fundador e presidente da Igreja Internacional da Graça.

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