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O cinzel negacionista e o martelo

conservador
Guilherme de Carvalho

Grupos conservadores negam o consenso científico sobre a participação humana nas mudanças

climáticas.| Foto: Foto-Rabe/Pixabay

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“Vemos, assim, funcionando a forma de ação que já desferiu golpes


tão destrutivos no mundo moderno: o cinzel do ceticismo acionado
pelo martelo da paixão social.” (Michael Polanyi, A Mensagem Social
da Ciência Pura).

Santo Agostinho famosamente admitiu, em suas Confissões, a


impressão de saber o que seria o tempo apenas enquanto ninguém
lhe perguntasse a respeito, e o estado de derrota diante da tarefa de
explicá-lo.

O testemunho do grande teólogo diz respeito, naturalmente, a um


profundo problema metafísico; mas, se consultarmos nossas
memórias atrás de perplexidades pessoais, encontraremos derrotas
bem mais prosaicas. Um curioso exemplo oferecido pelos cientistas
cognitivos Steven Sloman e Philip Fernbach em seu livro A Ilusão do
Conhecimento, de 2017, é o das caixas de descarga de vasos
sanitários. Estamos tão familiarizados com o dispositivo, apertando o
botão quatro ou cinco vezes por dia, que não temos dúvidas sobre a
sua operação. Até que alguém nos pergunte sobre o funcionamento
do mecanismo; e somos então apresentados a mais um vazio em
nosso saber. Aparentemente, a familiaridade esconde a ignorância.
Dizem Sloman e Fernbach:
:
“As pessoas são muito mais ignorantes do que pensam que são.
Todos nós sofremos, em maior ou menor extensão, de uma ilusão da
compreensão, uma ilusão de que compreendemos como as coisas
funcionam, quando na verdade nossa compreensão é precária.”

Cada um de nós tem a capacidade de reservar, organizar e


processar apenas um pequeno conjunto de saberes, e para
todo o resto dependemos e pressupomos o saber de outras
pessoas

Uma suposição central da ciência cognitiva moderna é a de que


realmente não sabemos muito individualmente. Cada um de nós tem
a capacidade de reservar, organizar e processar apenas um pequeno
conjunto de saberes, e para todo o resto dependemos e
pressupomos o saber de outras pessoas. Diariamente nos
associamos a elas complementando nossos saberes e tapando os
furos cognitivos mútuos, e assim acompanhamos notícias
jornalísticas, fazemos negócios, administramos nossas casas e
tomamos decisões políticas. Uma equipe de médicos com
especialidades diferentes, por exemplo, pratica a confiança mútua e
assume “prosteticamente” a experiência e conhecimento uns dos
outros durante uma cirurgia complexa. Praticamos uma “divisão
social do trabalho cognitivo”, na medida em que compartilhamos
intencionalidade e nosso espaço mental com os outros.

Mas para que isso aconteça não basta o lado “positivo” da coisa – a
capacidade de cooperação, solidariedade e a abertura para o
aprendizado mútuo. A questão, segundo esses cientistas cognitivos,
é que temos um tipo particular de viés cognitivo que nos impede de
traçar “uma linha divisória acurada entre o que está dentro e o que
está fora de nossas cabeças”. Quando estamos com pessoas com as
quais estamos cooperando, assumimos o saber delas como se fosse
“nosso”, e nossos cérebros escondem de nós, por assim dizer, que
:
nós mesmos somos ignorantes a respeito daquilo. Experimentos
psicológicos mostram que a participação em um grupo no qual
algumas pessoas sabem algo nos faz ter segurança sobre a
veracidade e confiabilidade desse saber, mesmo quando não temos
a menor capacidade de articular claramente esses saberes. Essa
seria a ilusão do conhecimento. Novamente Sloman e Fernbach:

“As pessoas tendem a viver em uma ilusão do conhecimento, e


focalizamos os indivíduos – seu poder, talentos, habilidades e
realizações – ao invés de apreciar que somos cidadãos de uma
comunidade do conhecimento. Pior, tomamos decisões – decisões
de vida menores ou maiores, assim como decisões sobre a estrutura
das nossas sociedades – que superestimam nosso conhecimento e
falhamos em reconhecer o quanto nosso conhecimento depende de
outros.”

Ilusão em termos individuais, claro; mas, quando redefinirmos o


conhecimento como uma realidade social e comunitária, não
precisaremos mais usar a linguagem forte da “ilusão”. Talvez a ilusão
seja a da autarquia cognitiva – a ideia de que só sabemos o que
sabemos individualmente, e só é válido o conhecimento de cuja
construção eu sou o responsável, e do qual eu tenho a planta-baixa.

Essa curiosa incapacidade de distinguir claramente entre o que não


sabemos e o que os amigos sabem é certamente adaptativa, em
termos evolutivos, permitindo um nível de sincronia e de
cooperação; mas não é inescapável. Outros sentimentos morais
podem nos pressionar à revolta contra autoridades, quando elas nos
parecem abusivas. Além disso, ela pode ser associada a outras
tendências também estudadas pela economia comportamental,
como o “pensamento de manada” e o “viés intragrupal”, gerando
dogmatismos e mentalidade tribal.
:
Esse fato, a respeito das funções cognitivas humanas, não pode ser
ignorado quando regulamos nossa vida intelectual comum por meio
do que poderíamos chamar de políticas cognitivas, ou políticas do
conhecimento. A natureza pode ser gentilmente conduzida, mas não
pode ser reprimida ou violentada, como se fosse um nada, uma
tabula rasa.

O ponto de termos autoridades é que essas autoridades


sejam aceitas. E os círculos críticos da tese do aquecimento
global antropogênico mostram grande dificuldade em
reconhecer autoridades científicas

Penso que a carência dessa regulação explica muito das tensões


crônicas que vemos hoje entre os círculos conservadores que
negam a crise climática, ou que negavam a gravidade da pandemia,
que alimentam o movimento antivacina ou que, em casos mais
extremos, defendem as teorias da Terra plana. Sim, é verdade que
questionar o discurso dominante da crise climática não é um erro do
mesmo nível que o terraplanismo. Mas meu ponto não é comparar os
erros. É antes discutir o espírito de alguns desses movimentos.

À superfície, a abordagem que encontramos assume ares


profundamente autárquicos. Em meus passeios pelas mídias sociais,
tenho ouvido de modo recorrente que eu, este reles teólogo, não
teria nenhum conhecimento científico técnico nem autoridade para
criticar tratamentos precoces, defender vacinas ou a teoria correta
de mudança climática, ou mesmo objetar contra a teoria do design
inteligente. Segundo esses críticos, apenas os especialistas
poderiam formar e defender opiniões a respeito.

Em um sentido essa observação é correta; quem pode falar com a


maior propriedade e autoridade é o especialista no campo. No
entanto, esse é o ponto de termos autoridades: é que essas
:
autoridades sejam aceitas. E, inegavelmente, os círculos críticos da
tese do aquecimento global antropogênico (por exemplo) mostram
grande dificuldade em reconhecer autoridades científicas.

Com a mão direita essas pessoas citam, na verdade, o currículo e a


autoridade acadêmica de especialistas que desejam subscrever,
como é o caso do professor do Departamento de Geografia da USP
Ricardo Felício, ou como foi o caso em outros debates afins; mas
com a mão esquerda desqualificam com grande rapidez qualquer
coisa parecida com um “consenso científico”, alegando que o que
vale, em ciência, é “a verdade”, a “demonstração”, o “debate” e a
“liberdade acadêmica”. E a existência de dissidentes acadêmicos
seria prova contra alegados consensos. Assim, o próprio Felício
tuitou, noutro dia desses, que o consenso produzido pelo 6.º
relatório do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) seria
“conversa para boi dormir”.

Ora, o relatório IPCC-AR6, publicado em agosto, reúne o mais amplo


e fundamentado consenso sobre a mudança climática até agora, e
confirma tendências observadas desde o primeiro relatório. O
trabalho envolveu mais de 2 mil especialistas, os maiores
climatologistas do mundo, e citou mais de 14 mil artigos científicos
revisados por pares. O resumo para formuladores de políticas
públicas contou com as reações críticas de 47 governos. Trata-se
efetivamente da ciência de ponta no assunto.

Seria esse “consenso” algo fabricado por empresas ou pela


imprensa? Tais objeções comuns são empregadas para inflar o peso
da visão dissidente. No entanto, as posições das grandes
sociedades científicas são públicas. No site da Nasa, em uma página
dedicada ao consenso científico climatológico, por exemplo,
encontra-se uma lista de 18 das maiores sociedades científicas
norte-americanas, como a American Association for the
:
Advancement of Science, a American Meteorological Society e a
American Geophysical Union, todas apoiando a tese majoritária. Essa
tese tem o apoio da Academia Nacional de Ciências dos EUA, e de
mais de 200 organizações científicas em todo o mundo. O site
também informa que 97% ou mais dos climatologistas atuantes e
academicamente produtivos hoje endossam a tese de mudança
climática antropogênica. A tese de uma grande farsa envolvendo
dezenas de milhares de cientistas, sociedades científicas,
laboratórios e revistas acadêmicas, motivada por interesses
econômicos e políticos, é simplesmente inacreditável.

Motivos políticos e suspeitas contra conspirações globais


energizam os contradiscursos. Nesse caso, a ilusão do
conhecimento é real, uma vez que a força da objeção ao
consenso científico não advém de fontes científicas

E, falando em Brasil, a autoridade de um Carlos Nobre, coordenador


do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças
Climáticas, sediado no Inpe, é certamente muito maior, considerando
sua produção e posição científica, que a de alguns dos nomes
citados como referências pelos negacionistas. Mas a essa altura,
como de costume, a mão esquerda da argumentação já está em
ação desautorizando opiniões de sociedades científicas e
defendendo a igualdade das ideias na arena pública.

A atitude autárquica e cética de muitos conservadores que desejam


desautorizar os consensos científicos sobre mudança climática pode
transmitir a impressão de uma recusa heroica do pensamento de
manada e de um esforço socrático pela autonomia do pensamento;
mas, de tudo o que sabemos sobre a natureza coletiva do
pensamento, essa posição parece muito improvável. Afirmam
Sloman e Fernbach:
:
“Porque nosso conhecimento é enredado com o dos outros, a
comunidade molda nossas crenças e atitudes. É tão difícil rejeitar
uma opinião compartilhada por nossos pares que muito
frequentemente nós nem mesmo tentamos avaliar as afirmações
com base em seus méritos. Deixamos nosso grupo pensar para nós.
Apreciar a natureza comunal do conhecimento deveria nos fazer
mais realistas sobre o que determina nossas crenças e valores.”

Dada a associação dessas posições pirrônicas com agendas


conservadoras bastante combativas e, além disso, sua associação
com outras agendas similarmente desafiadores do establishment
acadêmico, parece-me evidente que elas se mantêm por meio de
mecanismos coletivos, e não escapam deles. Esse é o caso quando
alguém espalha triunfalmente entrevistas no Jô Soares “refutando” o
consenso científico, como se a autoridade do cientista entrevistado
operasse autarquicamente. Ora, essa “autarquia” existe
psicologicamente, mas não efetivamente, e não passa de ilusão
cognitiva. Na verdade, o que se dá é a adesão a um contradiscurso
coletivo, tão comunitário quanto são as comunidades científicas.

Com a crucial diferença de que são consensos “científicos” de


comunidades não científicas. Motivos políticos e suspeitas contra
conspirações globais energizam esses contradiscursos. Nesse caso,
a ilusão do conhecimento é real, uma vez que a força da objeção ao
consenso científico não advém de fontes científicas. Isso faz desses
consensos negacionistas consensos tribais circulares e incorrigíveis,
similares às crenças mágicas dos Azande (que explicavam tudo e
nada ao mesmo tempo).

Mas vamos examinar mais de perto o retruco natural: “não seria esse
o caso, sem tirar nem pôr, dos consensos como o do IPCC?” Não, e
o parágrafo acima já mostra onde está a gritante diferença. É claro
que há interesses econômicos e políticos alimentando-se da
:
climatologia moderna. Mas o modo de combater tais interesses,
quando são perigosos ou moralmente doentes, não será pela
negação da melhor ciência, mas de um melhor uso político dela. Não
é apropriado que comunidades políticas, éticas, religiosas, artísticas
ou econômicas formem consensos paralelos negando a autoridade e
os procedimentos de comunidades profissionais e científicas nos
assuntos que pertencem a essas esferas. Diz Michael Polanyi:

“A pesquisa científica... é uma arte; é a arte de fazer certas espécies


de descobertas... a verdade é que a tradição da ciência como uma
arte só pode ser repassada pelos que a praticam. Por conseguinte,
não faz sentido uma outra autoridade substituir a opinião científica
no desempenho dessa função; e qualquer tentativa de fazê-lo
somente pode resultar em embaraçosa distorção – e se
persistentemente aplicada – na destruição mais ou menos completa
da tradição da ciência.”

Não é apropriado que comunidades políticas, éticas,


religiosas, artísticas ou econômicas formem consensos
paralelos negando a autoridade e os procedimentos de
comunidades profissionais e científicas nos assuntos que
pertencem a essas esferas

As teses do cientista e filósofo conservador Michael Polanyi sobre a


verdadeira natureza da liberdade acadêmica são excepcionalmente
iluminadoras para o nosso objeto. Contra as fantasias autarquistas,
Polanyi deixou claro que a liberdade que existe é a liberdade para
uma comunidade criativa perseguir seus fins internos e os bens que
lhe dão a razão de existir. A autonomia do indivíduo de defender
quaisquer ideias que lhe agradem nada tem que ver com a liberdade
científica. “A liberdade na ciência surge, assim, como a Lei Natural de
uma comunidade comprometida com certas convicções... A
liberdade para o indivíduo agir a seu bel-prazer, desde que respeite
:
o direito do próximo de agir da mesma maneira, desempenha
pequeno papel nessa teoria de liberdade. O individualismo particular
não é pilar importante da liberdade pública.” E na ciência, segue
Polanyi, ele também importa pouco:

“A liberdade da ciência consiste no direito de buscar a exploração


dessas crenças e de defender, sob sua orientação, os padrões da
comunidade científica... Assim se estabelece a autonomia da ciência
no Ocidente, que flui logicamente da natureza do objetivo básico e
das crenças fundamentais, aos quais se dedica aqui a comunidade
de cientistas.”

O fenômeno das comunidades científicas autoritativas, cooperando


cognitivamente com a sociedade mais ampla, que passa a “saber”
pela mediação dessas comunidades especializadas, se explica muito
bem a partir das descobertas da ciência cognitiva contemporânea.
Aqui, poderíamos dizer, os fatos da natureza humana convergem
com a experiência histórica e com os princípios cristãos da
subsidiariedade e das esferas de soberania. A confiança e respeito
aos processos internos e autorregulados das comunidades
científicas por quem não é cientista ainda é uma expressão de
pensamento coletivo e cooperação cognitiva; mas, ao contrário do
negacionismo, conduz a uma política cognitiva mais consistente com
a natureza humana.

A autonomia do indivíduo de defender quaisquer ideias que


lhe agradem nada tem que ver com a liberdade científica

Nada disso implica negar a possiblidade da independência


intelectual do indivíduo e do cientista; ele deve explorar ao máximo
essa independência em sua comunidade de ideias, jogando segundo
as regras da comunidade. No entanto, alegar “liberdades científicas
e acadêmicas” com o fim de, muitas vezes explicitamente, negar a
:
autoridade, a relevância ou mesmo a existência de comunidades
científicas, é uma espécie de golpe anticientífico. É a contradição da
liberdade tantas vezes denunciada por Michael Polanyi.

E aqui devemos denunciar claramente como as regras do jogo são


violadas: se, havendo sido derrotados no debate interno da
comunidade científica, cientistas e formadores de opinião tentam
retirar o debate técnico desse ambiente para lançá-lo na arena
pública, alegando liberdades acadêmicas e de expressão, e
energizam seu libelo com mera exploração de falhas de modelo,
suspeitas políticas e éticas e alegações conspiratórias (como o
“globalismo”), sem oferecer avanço científico substantivo, o que
temos é, claramente, o proverbial “tapetão”. Pessoas que empregam
tais estratégias, ainda que tenham títulos acadêmicos, praticam o
que poderia ser chamado de “arruaça cognitiva”.

O irônico e triste, nessa situação, é que se repita o fenômeno


testemunhado e lamentado por Michael Polanyi, quando os motivos
políticos levaram comunistas a rejeitar a ciência ocidental e a tentar
construir uma ciência marxista. Duvidando da verdade, do amor ao
conhecimento científico puro e da capacidade de autorregulação
das comunidades científicas, os soviéticos enterraram Vavilov num
gulag e alimentaram o monstro pseudocientífico do lysenkoísmo;
apenas porque a tese de Trofim Lysenko se conformava com a
agenda soviética. O cinzel do ceticismo contra a comunidade
científica foi acionado pelo martelo da paixão social comunista.

Se, havendo sido derrotados no debate interno da


comunidade científica, cientistas e formadores de opinião
tentam retirar o debate técnico desse ambiente para lançá-lo
na arena pública, temos o proverbial “tapetão”, uma “arruaça
cognitiva”
:
Claro, eu digo isso guardadas as proporções. Não quero afirmar,
nem por um momento, que os conservadores seriam culpados de
querer reprimir opiniões contrárias. Nem quero ser condescendente
com o fato público e notório de que, no campo das ciências
humanas, o ambiente vem se tornando cada vez mais tóxico para
visões conservadoras, repetindo as tendências historicamente
repressivas da esquerda. Quando a isso, reconheço que nas
humanidades a pluralidade ideológica produz comunidades de
pesquisa paralelas e concorrentes, de um modo diferente das
ciências naturais, e isso legitima, por exemplo, tradições
concorrentes em economia política ou em psicologia.

Ainda assim, a compreensível reação ao policiamento acadêmico


esquerdista vem se degenerando numa estranha e destrutiva
libertinagem intelectual, um verdadeiro mercado de suspeitas e
conspirações. Agora, uma nova direita se ergue globalmente
martelando o cinzel do ceticismo e da alegada autarquia intelectual
contra consensos científicos perfeitamente razoáveis, empregando
toda a força das paixões morais conservadoras. Se o marxismo
gerou o velho minotauro, os conservadores já estão parindo a sua
própria besta.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos


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