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A persistência das atitudes

!
Jerry Fodor

Sonho de uma Noite de Verão, Acto 3, Cena 2.

Entram Demétrio e Hérmia.

DEMÉTRIO: Por que censuras quem tanto te ama?


Guarda tamanho azedume para o teu inimigo.

HERMIA: Pela censura me fico agora, mas pior trato te devia;


Pois receio que me tenhas dado motivo para te amaldiçoar.
Se mataste Lisandro enquanto este dormia,
Pisando o seu sangue, mergulha no abismo,
E mata-me também.
Não era o Sol tão fiel ao dia
Quanto ele a mim; afastar-se-ia furtivamente
De Hérmia adormecida? Acreditarei nisso quando
Se rasgue toda a Terra; e a Lua
Possa deslizar pelo centro, e assim contrariar
Ao irmão o meio-dia com os antípodas.
Que mais não pode ser senão que o assassinaste;
Outro rosto não tem o assassino; tão mórbido, tão sinistro.

Muito bonito. E também muito plausível; uma amostra convincente (embora


informal) de inferência teórica implícita e não demonstrativa.
Deixando de parte muitos lemas, eis como a inferência deve ter ocorrido: Hérmia
tem razões em primeira mão para acreditar que é amada por Lisandro. (Lisandro
disse-lhe que a ama — repetidamente e em elegantes iambos — e as inferências a
partir do que as pessoas afirmam sentir para o que efectivamente sentem são,
ceteris paribus, fidedignas.) Mas se Lisandro ama de facto Hérmia, então, a fortiori,
Lisandro quer bem a Hérmia. Mas se Lisandro quer bem a Hérmia, então Lisandro
não abandona voluntariamente Hérmia durante a noite numa floresta escura. (Pode

! .14!
haver leões. «Não há mais temerosa ave bravia do que o vosso leão em vida.») Mas
Hérmia foi, na verdade, abandonada por Lisandro. Logo, não o foi voluntariamente.
Logo, foi involuntariamente abandonada. Logo, é plausível que algum mal tenha
sucedido a Lisandro. Às mãos de quem? Plausivelmente, às mãos de Demétrio.
Pois Demétrio é o rival de Lisandro pelo amor de Hérmia, e pressupõe-se que os
rivais amorosos não querem bem uns aos outros. Especificamente, Hérmia acredita
que Demétrio acredita que um Lisandro vivo é um impedimento a que ele (Demétrio)
consiga conquistar o amor dela (Hérmia). Além disso, Hérmia acredita
(correctamente) que se x quer que P, se x acredita que não-P a menos que Q, se x
acredita que x pode fazer que Q, então (ceteris paribus) x tenta fazer que Q. Além
disso, Hérmia acredita (mais uma vez, correctamente) que, em geral, as pessoas
conseguem fazer que suceda aquilo que querem fazer que suceda. Portanto:
sabendo tudo isto e acreditando-o, Hérmia infere que talvez Demétrio tenha morto
Lisandro. E nós, o público, que sabemos o que Hérmia sabe e aquilo em que
acredita e que partilhamos, mais ou menos, as suas perspectivas acerca da
psicologia dos amantes e rivais, compreendemos como ela chegou a esta
inferência. Compadecemo-nos.
Na verdade, Hérmia está completamente enganada. Demétrio está inocente e
Lisandro vivo. A teoria intricada que liga crenças, desejos e acções — a teoria
implícita em que Hérmia se baseia para compreender o que Lisandro fez e o que
Demétrio pode ter feito; e na qual nos baseamos para compreender a inferência que
Hérmia faz; e na qual se baseia Shakespeare para prever e manipular as nossas
compaixões («desconstrução» o tanas, já agora) — esta teoria, não prevê quaisquer
intervenções nocturnas de fadas caprichosas. Sem que Hérmia saiba, um elfo
errante saltou por cima da cláusula ceteris paribus e estragou-lhe a inferência
plausível. «A razão e o amor raramente andam juntos, hoje em dia: tanto mais
lamentável que alguns vizinhos honestos não os tornem amigos.»
Admitindo, porém, que a teoria falha de vez em quando, — e não apenas quando
intervêm fadas — quero ainda assim realçar 1) com que frequência funciona, 2)
quão profunda é, e 3) quanto dependemos realmente dela. A psicologia de senso
comum da crença/desejo tem-se encontrado recentemente sob grande pressão
filosófica e é possível duvidar da possibilidade de a salvar, perante os géneros de
problemas que os seus críticos têm levantado. Há, todavia, uma questão prévia: a

! .1*!
de o esforço de tentar salvá-la valer ou não a pena. Esta é a questão com a qual
proponho que comecemos.

COM QUE FREQUÊNCIA FUNCIONA

Hérmia compreendeu mal; o seu amante não era tão fiel quanto supunha. As
relações que temos uns com os outros são mediadas por aplicações da psicologia
do senso comum, e quando as previsões desta falham, as relações desfazem-se. É
provável que a desordem daí resultante se manifeste publicamente e seja bastante
perceptível.

HÉRMIA: Pela noite me amaste; porém pela noite me deixaste;


Por que então me deixaste, — Ó, os deuses não o permitam! —
Deliberadamente, terei de o acreditar?

LISANDRO: Sim, por minha vida,


E não mais te desejei ver.
Perde portanto a esperança…

Este género de coisa é excelente no teatro; os êxitos da psicologia do senso


comum, por contraste, são ubíquos e — por essa mesma razão — praticamente
invisíveis.
A psicologia do senso comum funciona tão bem que desaparece. É como aqueles
míticos automóveis Rolls Royce cujos motores são selados ao abandonarem a
fábrica; só que aquela é melhor porque não é mítica. Alguém que não conheço
telefona para o meu gabinete em Nova Iorque a partir — por exemplo — do Arizona.
«Gostaria de dar uma palestra aqui na próxima Terça-feira?» são as palavras que
profere. «Sim, obrigado. Chegarei ao vosso aeroporto no voo das 15:00» são as
palavras que dou em resposta. É tudo o que acontece, mas é mais do que o
suficiente; o ónus restante da previsão comportamental — colmatar o hiato entre
locuções e acções — é rotineiramente tratado pela teoria. E a teoria funciona tão
bem que vários dias mais tarde (ou semanas mais tarde, ou meses mais tarde, ou
anos mais tarde; pode-se variar o exemplo a gosto) e a muitos milhares de
quilómetros de distância, ali estou no aeroporto e ali está ele para se encontrar

! .)1!
comigo. Ou se não apareço, a probabilidade de a teoria ter fracassado é menor do
que a probabilidade de a companhia aérea ter tido algum problema. Não é possível
afirmar, em termos quantitativos, até que ponto a psicologia do senso comum nos
permite coordenar com êxito os nossos comportamentos. Mas tenho a impressão de
que nos entenderemos muito bem; não raro muito melhor do que lidamos com
máquinas menos complexas.
O detalhe importante — mais uma vez — é que a teoria a partir da qual obtemos
este extraordinário poder previsivo é apenas a boa e velha psicologia de senso
comum da crença/desejo. É isso que nos diz, por exemplo, como inferir as intenções
das pessoas a partir dos sons que fazem (se alguém profere a fórmula verbal
«Chegarei ao vosso aeroporto no voo das 15:00», então, ceteris paribus, a pessoa
tenciona chegar a esse aeroporto no voo das 15:00) e como inferir o comportamento
das pessoas a partir das suas intenções (se alguém tenciona chegar ao aeroporto
no voo das 15:00, então, ceteris paribus, irá ter o género de comportamento
susceptível de resultar na sua chegada àquele lugar, naquele momento, a menos
que haja problemas mecânicos ou intervenção divina). E tudo isto funciona não só
com pessoas cuja psicologia o leitor conhece intimamente: os seus amigos mais
chegados, digamos, ou o seu querido cônjuge. Funciona com perfeitos
desconhecidos; pessoas que não reconheceria se as encontrasse na rua por acaso.
E não funciona apenas em condições laboratoriais — onde se pode controlar as
variáveis em interacção — mas também e, na verdade, principalmente, em
condições de campo, em que tudo aquilo que você sabe acerca das fontes de
variação é o que a psicologia do senso comum lhe diz acerca delas. Notável. Se nos
saíssemos tão bem com as previsões meteorológicas, nunca molhávamos os pés; e
no entanto a etiologia do clima, por comparação às causas do comportamento, tem
seguramente de ser uma brincadeira de crianças.
Sim, mas então e todos aqueles ceteris paribus? Começo a divagar:
Os filósofos por vezes argumentam que a aparência de adequação previsiva,
decorrente das generalizações da psicologia do senso comum, é espúria. Pois,
segundo afirmam, mal começamos a tornar explícitas estas generalizações, vemos
que é preciso salvaguardá-las aqui e ali com cláusulas ceteris paribus; salvaguardá-
las aqui e ali de maneira que as tornam trivialmente incapazes de ser infirmadas.
«Falsas ou vácuas» é a acusação.

! .))!
Considere-se a revogabilidade de «se alguém profere a fórmula verbal “Chegarei ao
vosso aeroporto no voo das 15:00” então essa pessoa tenciona chegar ao vosso
aeroporto no voo das 15:00». Esta generalização não se verifica se, por exemplo, o
falante está a mentir; ou se está a usar a locução como um exemplo (de uma
afirmação falsa, digamos); ou se é um utente monolingue de Urdu, que proferiu
aquela frase por acaso; ou se está a falar durante o sono; ou […] seja o que for.
Podemos, obviamente, defender a generalização da maneira usual; podemos
afirmar que «inalteradas as condições, se alguém profere a fórmula verbal
“Chegarei ao vosso aeroporto no voo das 15:00”, então essa pessoa tenciona
chegar ao aeroporto no voo das 15:00». Mas talvez isto não signifique mais do que:
«se alguém afirma que tenciona estar lá, então essa pessoa tenciona estar lá — a
menos que não tencione fazê-lo». É claro que isto é, sem dúvida, previsivamente
adequado; nada que aconteça o infirmará; nada que aconteça o pode fazer.
Muitos filósofos parecem deixar-se convencer por este género de argumento; no
entanto, mesmo à primeira vista, seria surpreendente se valesse alguma coisa.
Afinal, usamos as generalizações da psicologia do senso comum para prever o
comportamento uns dos outros; e as previsões mostram-se — quase sempre —
correctas. Mas como pode isso ser se as generalizações em que baseamos as
previsões são vazias?
Tendo a pensar que aquilo que se alega acerca da dependência implícita da
psicologia do senso comum perante condições ceteris paribus patentes é na
verdade uma propriedade perfeitamente geral das generalizações explícitas em
todas as ciências especiais; em todos os esquemas explicativos empíricos, quer
dizer, além da física básica. Considere-se a seguinte verdade modesta da geologia:
um rio sinuoso erode a sua margem exterior. «Falsa ou vácua»; assim poderia
argumentar um filósofo. «Entendamo-la literalmente — como uma generalização
estritamente universal — e é decerto falsa. Pensemos no exemplo em que o clima
se altera e o rio congela; ou em que o mundo acaba; ou em que alguém constrói
uma barragem; ou em que alguém constrói uma muralha de betão na margem
exterior; ou em que a chuva pára e o rio seca […] ou seja o que for. Podemos,
obviamente, defender a generalização da maneira usual — acrescentando-lhe uma
condição ceteris paribus: «inalteradas as condições, um rio sinuoso erode a sua
margem exterior.» Mas talvez isto nada mais signifique do que «Um rio sinuoso
erode a sua margem exterior — a menos que não o faça.» Isto, obviamente, não

! .)"!
tem como não ser previsivamente adequado. Nada que aconteça o infirmará; nada
que aconteça o pode fazer.
Evidentemente, algo correu mal. Pois a afirmação «Inalteradas as condições, um rio
sinuoso erode a sua margem exterior» não é falsa nem vácua e não significa «Um
rio sinuoso erode a sua margem exterior — a menos que não o faça.» A história de
como as generalizações das ciências especiais conseguem ser simultaneamente
salvaguardadas e informativas (ou, se o leitor preferir, de como conseguem
sustentar contrafactuais apesar de terem excepções) é, suponho, bastante longa.
Contar essa história é em parte esclarecer por que temos, de todo em todo, ciências
especiais; por que não temos apenas física básica. É também em parte esclarecer
como funciona a idealização em ciência. Pois seguramente que a afirmação
«Ceteris paribus, um rio sinuoso erode a sua margem exterior» significa mais ou
menos «Um rio sinuoso erode a sua margem exterior em qualquer mundo
nomologicamente possível no qual se satisfaça as idealizações operativas da
geologia.» Não há dúvida de que, em geral, isto é mais forte do que «P em qualquer
mundo em que não não-P». Pelo que, como parece, se a psicologia do senso
comum depende das suas condições ceteris paribus, também a geologia depende.
Há então uma semelhança superficial entre o modo como as generalizações
implícitas funcionam na psicologia do senso comum e o modo como as
generalizações explícitas funcionam nas ciências especiais. Mas talvez esta
semelhança seja meramente superficial. Donald Davidson é famoso por ter
argumentado que as generalizações da ciência real, ao contrário daquelas que
subjazem às explicações de senso comum da crença/desejo, são «perfectíveis».
Nas ciências reais, mas não nas intencionais, podemos (pelo menos em princípio)
livrar-nos das condições ceteris paribus enumerando efectivamente as condições
sob as quais as generalizações supostamente se verificam.
Segundo este critério, todavia, a única ciência real é a física básica. Pois
simplesmente não é verdade que possamos, mesmo em princípio, especificar as
condições sob as quais — digamos — as generalizações geológicas se verificam
desde que nos atenhamos ao vocabulário da geologia. Ou, de um modo menos
formal, as causas das excepções às generalizações geológicas não são,
tipicamente, elas próprias acontecimentos geológicos. Experimente e veja: «Um rio
sinuoso erode as suas margens exteriores a menos, por exemplo, que o clima se
altere e o rio seque.» Mas «clima» não é um termo da geologia; tão-pouco o são «o

! .).!
mundo acaba», «alguém constrói uma barragem», e incontáveis outras descrições
exigidas para especificar os géneros de coisas que podem correr mal. Tudo o que
podemos dizer que adiante alguma coisa é: Se a generalização não se verificou,
então, de alguma maneira, é forçoso que as idealizações operativas não tenham
sido satisfeitas. Mas assim também sucede na psicologia do senso comum: se a
pessoa não apareceu quando tencionava fazê-lo, então algo deve ter corrido mal.
As excepções às generalizações de uma ciência especial são tipicamente
inexplicáveis a partir do ponto de vista (isto é, no vocabulário) daquela ciência. Essa
é uma das coisas que faz dela uma ciência especial. Mas, obviamente, pode ainda
assim ser perfeitamente possível explicar as excepções no vocabulário de outra
ciência qualquer. No caso mais familiar, o leitor «desce» um ou mais níveis e usa o
vocabulário de uma ciência mais «básica». (A corrente não percorreu o circuito
porque os terminais estavam oxidados; ele já não reconhece objectos familiares
devido a um acidente cerebral. E por aí em diante.) A disponibilidade desta
estratégia é uma das coisas que o arranjo hierárquico das nossas ciências nos
proporciona. De qualquer modo, para resumir a coisa, o mesmo padrão que se
verifica para as ciências especiais parece verificar-se igualmente para a psicologia
do senso comum. Por um lado, as suas cláusulas ceteris paribus são inelimináveis
do ponto de vista dos seus recursos conceptuais específicos. Mas, por outro lado,
não temos — até agora, pelo menos — qualquer razão para duvidar que se as pode
suprimir com o vocabulário de alguma ciência mais básica (a neurologia, digamos,
ou a bioquímica; na pior das hipóteses, a física).
Se o mundo é de todo em todo descritível como um sistema causal fechado, é-o
apenas no vocabulário da nossa ciência mais básica. Daqui nada se segue com que
um psicólogo (ou um geólogo) tenha de se preocupar.
Paro de divagar. A lição até agora é que a adequação previsiva da psicologia do
senso comum está para além da discussão racional; tão-pouco há qualquer razão
para supor que a obtemos fazendo batota. Se o leitor quer saber onde o meu corpo
físico estará na próxima Quinta-feira, a mecânica — afinal, a melhor ciência que
temos acerca de objectos de dimensões médias e reputadamente bastante boa
neste campo — não tem qualquer utilidade para si. De longe, a melhor maneira de o
descobrir (normalmente, na prática, a única maneira de o fazer) é perguntar-me!

A PROFUNDIDADE DA TEORIA

! .)'!
É tentador considerar a psicologia do senso comum meramente como uma colecção
de truísmos como os que aprendemos em pequenos: que uma criança que se
queimou tem medo do fogo, que todos gostam de quem gosta dos outros, que o
dinheiro não compra a felicidade, que o reforço afecta a taxa de resposta, e que o
caminho para o coração de um homem passa pelo seu estômago. Nada disto,
concordo, vale a pena preservar. Todavia, como até o exemplo simples esboçado
atrás permite esclarecer, a subsunção em lugares-comuns não é a forma típica de
explicação na psicologia do senso comum. Ao invés, quando se torna explícitas tais
explicações, considera-se amiúde que exibem a «estrutura dedutiva» tão
característica da explicação na ciência real. Há aqui duas partes: as generalizações
subjacentes da teoria são definidas sobre inobserváveis e conduzem a estas
previsões pela repetição e interacção em vez da instanciação directa.
Hérmia, por exemplo, não é tola nem behaviorista; está perfeitamente ciente de que
o comportamento de Demétrio é causado pelos seus estados mentais e que o
padrão de tal causalidade é tipicamente intricado. Não há, em particular, quaisquer
generalizações plausíveis e que sustentam contrafactuais, com a forma (x) (y) (x é
um rival de y) # (x mata y). Nada similar é remotamente verdadeiro; nem mesmo
ceteris paribus. Ao invés, a generalização que Hérmia considera operativa — a que
é verdadeira e sustenta contrafactuais — tem de ser algo como Se x é rival de y,
então x prefere a derrota de y, inalteradas as condições. Este princípio, todavia,
nem sequer menciona o comportamento; conduz a previsões comportamentais, mas
apenas através de muitas pressuposições adicionais acerca de como as
preferências das pessoas podem afectar as suas acções em dadas situações. Ou
antes, como provavelmente não há generalizações que liguem as preferências às
acções independentemente das crenças, Hérmia deve estar a apoiar-se numa teoria
implícita de como as crenças, preferências e os comportamentos interagem; nada
menos do que uma teoria implícita da decisão.
É um facto profundo acerca do mundo que as generalizações etiológicas mais
poderosas se aplicam a causas inobserváveis. Tais factos moldam a nossa ciência
(é bom que o façam!). O facto de muitas das generalizações de uma teoria
subsumirem interacções entre inobserváveis constitui assim um teste à sua
profundidade. À luz deste teste, a nossa meteorologia do senso comum, implícita,
não é presumivelmente uma teoria profunda, visto que em grande medida consiste

! .)/!
em generalizações empíricas do género «vermelho no poente, noite boa e manhã
excelente». Correspondentemente, o raciocínio que intervém nas aplicações da
meteorologia do senso comum provavelmente envolve não muito mais do que a
instanciação e o modus ponens. (Sendo tudo isto assim, talvez não surpreenda que
a meteorologia do senso comum não funcione muito bem.) A psicologia do senso
comum, por contraste, é aprovada no teste. Toma por adquirido que o
comportamento explícito surge no fim de uma cadeia causal cujos elos são
acontecimentos mentais — por isso inobserváveis — e que podem ser
arbitrariamente longos (e arbitrariamente perversos). Como Hérmia, somos todos —
num sentido bastante literal, espero — mentalistas e realistas natos; e assim
permanecemos até que a má filosofia desaloje o senso comum.

A SUA INDISPENSABILIDADE

Não temos, na prática, qualquer alternativa ao vocabulário da explicação psicológica


do senso comum; não temos qualquer outra maneira de descrever os nossos
comportamentos e as suas causas se queremos que os nossos comportamentos e
as suas causas se subsumam em quaisquer generalizações, de que tenhamos
conhecimento, que sustentem contrafactuais. Isto, mais uma vez, é difícil de ver
devido à sua proximidade.
Por exemplo, há alguns parágrafos atrás, mencionei que a generalização
psicológica do senso comum, as pessoas geralmente fazem o que dizem que farão,
preenche uma lacuna entre uma troca de locuções («Gostaria de vir dar uma
palestra […]», «Estarei no vosso aeroporto Quinta-feira […]») e os consequentes
comportamentos dos falantes (a minha chegada ao aeroporto, a presença dele lá
para me receber). Mas isto não exprime plenamente a argumentação a favor da
indispensabilidade da psicologia do senso comum, visto que sem ela nem sequer
podemos descrever as locuções como fórmulas verbais (para não falar na descrição
dos comportamentos subsequentes como tipos de actos). Palavra é uma categoria
psicológica. (É, na verdade, irredutivelmente psicológica, tanto quanto se sabe; não
há, por exemplo, quaisquer propriedades acústicas que todos os espécimes do
mesmo tipo verbal, e só os espécimes do mesmo tipo verbal, tenham de partilhar.
Na verdade, surpreendentemente, não há quaisquer propriedades acústicas que

! .)3!
todos os espécimes plenamente inteligíveis do mesmo tipo verbal, e só os
espécimes plenamente inteligíveis do mesmo tipo verbal, tenham de partilhar.
Razão pela qual a nossa melhor tecnologia é de momento incapaz de construir uma
máquina de escrever à qual possamos ditar textos.)
No ponto em que as coisas estão — para sermos claros — não temos vocabulário
para especificar tipos de acontecimentos que satisfaçam as seguintes condições:

1. O meu comportamento ao proferir «Estarei aí na Quinta-feira […]» conta


como um tipo de acontecimento Ti.
2. A minha chegada ao local na Quinta-feira conta como um acontecimento do
tipo Tj.
3. «Acontecimentos do tipo Tj decorrem de acontecimentos do tipo Ti» é
verdadeira, ainda que latamente e sustenta contrafactuais.
4. As categorias Ti e Tj não são irredutivelmente psicológicas.

Pois as únicas taxonomias conhecidas que satisfazem as condições 1 a 3


reconhecem tipos de acontecimentos como a fórmula verbal «Estarei aí na Quinta-
feira», ou afirmando que se estará no local na Quinta-feira, ou realizando o acto de
se encontrar com alguém no aeroporto; pelo que não satisfazem a condição 4.
Os filósofos e os psicólogos costumavam sonhar com uma aparelhagem conceptual
alternativa, na qual o inventário do senso comum dos tipos de comportamentos é
substituído por um inventário de tipos de movimentos; as generalizações da
psicologia que sustentam contrafactuais mostrariam então a contingência destes
movimentos sobre as variáveis ambientais e/ou orgânicas. Não há como negar,
suponho, que o comportamento é de facto contingente sobre variáveis ambientais e
orgânicas; no entanto as generalizações não estavam disponíveis. Porquê? Há uma
resposta canónica: é porque o comportamento consiste em acções e as acções
classificam cruzadamente os movimentos. A generalização é a de que a criança que
se queimou evita o fogo; mas o movimento que constitui o acto de evitar depende
de onde está a criança, de onde está o fogo […] e por aí, desoladoramente, em
diante. Se quer saber que generalizações subsumem um acontecimento
comportamental, tem de saber a que tipo de acção este pertence; saber a que tipo

! .)+!
de movimento pertence normalmente não ajuda. Isto para mim é verdade de
evangelho.
Pressupõe-se em geral que esta situação tem de ser remediável, pelo menos em
princípio. Afinal, as generalizações de uma física completa subsumiriam,
presumivelmente, cada movimento de cada coisa, portanto os movimentos dos
organismos inter alia. Assim, se esperarmos o tempo suficiente, teremos afinal
generalizações que sustentam contrafactuais, que subsumem os movimentos dos
organismos nesta descrição. Presumivelmente, Deus já as tem.
Isto, todavia, é um pouco enganador. Pois, as (putativas) generalizações da física
(putativamente) completa aplicar-se-iam aos movimentos dos organismos enquanto
movimentos, mas não enquanto movimentos de organismos. A física,
presumivelmente, faz tão pouco uso das categorias da macrobiologia como das
categorias da psicologia; dissolve o sujeito do comportamento bem como o próprio
comportamento. O que resta são átomos no vazio. A subsunção dos movimentos
dos organismos — e de tudo o mais — pelas generalizações da física que
sustentam contrafactuais não garante por isso que há qualquer ciência cuja
ontologia reconhece os organismos e os seus movimentos. Isto é: a subsunção dos
movimentos dos organismos — e de tudo o mais — pelas leis da física não garante
que há quaisquer leis acerca dos movimentos dos organismos enquanto
movimentos ou organismos. Tanto quanto se sabe — exceptuando, talvez, um
pouco da psicologia dos reflexos clássicos — não há tais leis; e não há qualquer
razão metafísica para supor que há alguma177.1
De qualquer maneira, tudo isto é treta. Mesmo se a psicologia fosse em princípio
dispensável, isso não seria um argumento para dispensá-la. (Talvez a geologia seja
dispensável em princípio; todo o rio é um objecto físico, afinal. Seria essa uma razão
para supor que os rios não são um tipo natural? Ou que «os rios sinuosos erodem
as suas margens exteriores» é falsa?) O que é relevante para a psicologia do senso

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
)++
Talvez haja leis que relacionam os estados cerebrais de organismos com os seus movimentos. Mas, por
outro lado, talvez não haja, visto que parece inteiramente possível verificarem-se as conexões legiformes entre
estados cerebrais e acções em que, como é habitual, as acções classificam cruzadamente os movimentos. Isto é,
talvez, o que seria de prever mediante reflexão. Será que esperaríamos realmente que o estado cerebral que
causa as locuções de «aro»(dog) em espécimes de «aro» fosse o mesmo que as causa em espécimes de
«aromático» (dogmatic)? E quanto a locuções da (sequência fonética) [empedokliz lipt] quando falamos inglês e
quando falamos alemão?

! .)4!
comum ser ou não digna de defesa é a sua dispensabilidade de facto. E aqui a
situação é absolutamente clara. Não fazemos ideia de como nos explicarmos
perante nós próprios, excepto num vocabulário saturado pela psicologia da
crença/desejo. É-se tentado pelo argumento transcendental: O que Kant afirmou a
Hume acerca dos objectos físicos aplica-se, mutatis mutandis, às atitudes
proposicionais; não podemos abdicar delas porque não sabemos como o fazer.2178
Pelo que talvez seja melhor tentar preservá-las. Preservar as atitudes — vindicar a
psicologia do senso comum — significa mostrar como se pode ter (ou, no mínimo,
mostrar que se pode ter) uma ciência respeitável cuja ontologia reconheça
explicitamente estados que exibem os géneros de propriedades que o senso
comum atribui às atitudes. O resto deste livro é acerca disto. Esta empreitada
pressupõe, contudo, algum consenso acerca de que géneros de propriedades o
senso comum atribui efectivamente às atitudes. O pouco que resta deste capítulo é
acerca disso.

A ESSÊNCIA DAS ATITUDES

Como sabemos se uma psicologia é ou não uma psicologia da crença/desejo?


Como sabemos, em geral, se as atitudes proposicionais estão entre as entidades
reconhecidas pela ontologia de uma dada teoria? Questões destas levantam
disputas familiares e desconcertantes sobre a identificação interteórica. Como se
distingue a eliminação da redução e da reconstrução? Será verdade que não existe
tal coisa como a matéria desflogistada, ou será que «desflogistação» é apenas outra
palavra para descrever a oxidação? Mesmo os behavioristas tinham dificuldade em
decidir se queriam negar a existência do mental ou afirmar a sua identidade com o
comportamental. (Por vezes faziam ambas, em frases sucessivas. Ah, naqueles
tempos é que sabiam ser despreocupados.)
Proponho que estipulemos. Considerarei uma psicologia como sendo de senso
comum acerca das atitudes — na verdade, em termos de as sancionar — no caso

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
178
Consistindo o problema dos argumentos transcendentais, todavia, em não ser óbvio por que uma teoria não
pode ser ao mesmo tempo indispensável e falsa. Não gostaria de comprar uma dedução transcendental das
atitudes se o preço a pagar fosse o operacionalismo.

! .)*!
de postular estados (entidades, acontecimentos, seja o que for) que satisfaçam as
seguintes condições:

I. São semanticamente avaliáveis.


II. Têm poderes causais.
III. As generalizações implícitas da psicologia de senso comum da crença/desejo
aplicam-se-lhes em grande medida.

Na verdade, parto do princípio que I, II e III são as propriedades essenciais das


atitudes. Isto parece-me intuitivamente plausível; se a si não, paciência. Afigura-se-
me vulgar discutir por causa de intuições.
Uma palavra sobre cada uma destas condições.

I. AVALIAÇÃO SEMÂNTICA

As crenças pertencem ao tipo de coisas que são verdadeiras ou falsas; os desejos


pertencem ao tipo de coisas cuja realização se frustra ou se realiza; os palpites
pertencem ao tipo de coisas que se verifica estarem certas ou erradas; e assim
sucessivamente. Pressuporei que aquilo que torna uma crença verdadeira (/falsa) é
algo acerca da sua relação com o mundo extrapsicológico (e não, por exemplo, algo
acerca da sua relação com outras crenças; a menos que se trate de uma crença
acerca de crenças). Por isso, afirmar de uma crença que é verdadeira (/falsa) é
avaliar essa crença em termos da sua relação com o mundo. Chamarei
«semânticas» a tais avaliações. De igual modo, mutatis mutandis, com os desejos,
palpites, e por aí em diante.
O facto de as atitudes serem semanticamente avaliáveis trata-se, como comentei no
prefácio, de um quebra-cabeças acerca de crenças, desejos, e coisas semelhantes;
quase nada mais o é. (As árvores não o são; os números não o são; as pessoas
não o são. As proposições são-no [pressupondo que há tais coisas], mas isso não é
surpreendente; as proposições existem para ser aquilo para que apontam as
atitudes de crença e desejo.) Veremos, mais à frente neste livro, que é sobretudo a
avaliabilidade semântica das crenças e desejos que os coloca em sarilhos
filosóficos — e que uma defesa da psicologia da crença/desejo tem de ser uma
defesa dessa avaliabilidade.

! ."1!
Por vezes referir-me-ei ao conteúdo de um estado psicológico em vez de à sua
avaliabilidade semântica. Estas duas ideias estão intimamente interligadas.
Considere-se — para mudar de peça — a crença de Hamlet, de que o seu tio matou
o seu pai. Essa crença tem um certo valor semântico; em particular, é uma crença
verdadeira. Porquê verdadeira? Bom, porque corresponde a um determinado facto.
Que facto? Bom, o facto de o tio de Hamlet ter morto o pai de Hamlet. Mas por que
determina esse facto a avaliação semântica da crença de Hamlet? Por que não o
facto de dois ser um número primo, ou o facto de Demétrio não ter morto Lisandro?
Bom, porque o conteúdo da crença de Hamlet é que o seu tio matou o seu pai. (Se
preferir, a crença «exprime a proposição» de que o tio de Hamlet matou o pai
deste.) Se sabe qual o conteúdo de uma crença, então sabe o que é que no mundo
determina a avaliação semântica de uma crença; é assim, no mínimo, como as
noções de conteúdo e avaliação semântica se ligam.
Nesta fase, não me proponho afirmar muito mais acerca do conteúdo; chegará o
momento para isso. Basta acrescentar que as atitudes proposicionais têm os seus
conteúdos essencialmente: a maneira canónica de discriminar uma atitude é afirmar
a) que género de atitude é (uma crença, um desejo, um palpite, ou seja o que for);
b) qual é o conteúdo da atitude (que o tio de Hamlet matou o pai deste; que 2 é um
número primo; que Hérmia acredita que Demétrio tem aversão a Lisandro; ou seja o
que for). No que se segue, nada contará como uma psicologia da atitude
proposicional — como uma redução ou reconstrução ou vindicação da explicação
de senso comum da crença/desejo — se não reconhecer estados que podem ser
individuados desta maneira.

II. PODERES CAUSAIS

A explicação psicológica do senso comum está profundamente comprometida com


pelo menos três géneros de causalidade mental: a causalidade dos estados mentais
sobre o comportamento; a causação de estados mentais por acontecimentos
ambientais que se interpõem (por «estimulação próxima», como por vezes dizem os
psicólogos); e — em certos aspectos as etiologias psicológicas do senso comum
mais interessantes — a causalidade dos estados mentais entre si. Como exemplo
do último género, o senso comum reconhece cadeias de pensamento como
espécies de acontecimentos mentais complexos. Uma sequência de pensamento é

! .")!
presumivelmente uma cadeia causal em que um estado mental semanticamente
avaliável dá lugar a outro; um processo que amiúde termina na fixação da crença.
(Isto, como o leitor recordará, é o género de coisa em que Sherlock Holmes era
supostamente muito bom.)
Toda a psicologia realista acerca do mental reconhece ipso facto os poderes
causais do mesmo179.3 Os filósofos de tendência «funcionalista» sustentam mesmo
que os poderes causais de um estado mental determinam a sua identidade (que o
facto de um estado mental, por exemplo, ser o estado de acreditar que Demétrio
matou Lisandro, consiste apenas em ter uma multidão característica de relações
causais potenciais e efectivas). Esta posição é de algum interesse para nós, dado
que, se é verdadeira — e se também é verdade que as atitudes proposicionais têm
os seus conteúdos essencialmente — segue-se que os poderes causais de um
estado mental determinam de alguma maneira o seu conteúdo. Não acredito,
todavia, que isto seja verdade. Falaremos mais tarde acerca disto.
O importante por agora é o seguinte: é característico da psicologia de senso comum
da crença/desejo — e portanto de qualquer teoria explícita que me disponho a
encarar como uma vindicação da psicologia de senso comum da crença/desejo —
atribuir conteúdos e poderes causais às mesmíssimas coisas mentais que considera
semanticamente avaliáveis. Hamlet tem a crença de que Cláudio matou o seu pai —
a mesmíssima crença que é verdadeira ou falsa em virtude dos factos acerca da
morte do seu pai — o que causa o seu comportamento tão desagradável perante
Gertrude180 .

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
179
Negar o envolvimento etiológico dos estados mentais era efectivamente o programa do behaviorismo; é o que
os behavioristas «lógicos» e os «eliminacionistas» tinham em comum. Assim, por exemplo, sustentar — como
fez Ryle, mais ou menos — que os estados mentais são espécies de disposições é recusar certificar literalmente a
causalidade de explicações psicológicas como «Fê-lo com a intenção de a agradar», ou, quanto a isso, «A dor de
cabeça fê-lo gemer», para não falar em «A mera ideia de dar uma palestra deixa-o doente». (Para discussão, ver
Fodor, «Something on the State of the Art», Introdução a Representations, Cambridge, Massachusetts: MIT
Press, 1981).
180
Alguns filósofos têm ideias bastante fixas no que diz respeito a impor aqui uma distinção objecto/estado (ou
talvez objecto/acontecimento), de modo que aquilo que tem poderes causais são instanciações de tipos de
estados mentais. (por exemplo, Hamlet acreditar que Cláudio matou o seu pai), mas as coisas que têm valores
semânticos são proposições (por exemplo, a proposição de que Cláudio matou o pai de Hamlet). A ideia é que
parece estranho afirmar que o acreditar em P, por parte de Hamlet, é verdadeiro, mas que parece normal afirmar
que a crença de Hamlet em P é verdadeira.
Não estou convencido de que esta distinção me irá preocupar a longo prazo, visto que parecer estranho é o
menor dos meus problemas e a longo prazo espero querer passar de todo em todo sem proposições. Porém, se o
leitor é susceptível no que diz respeito à ontologia, por mim tudo bem. Nesse caso, a ideia do texto devia ser: a
psicologia da crença/desejo atribui propriedades causais às mesmíssimas coisas (a saber, instanciações de certos
tipos de estados mentais) aos quais atribui objectos proposicionais. A implicação etiológica no seu

! .""!
Na verdade, há um aspecto mais profundo a salientar. Não se trata apenas de,
numa psicologia de atitudes proposicionais, atribuir conteúdo e poderes causais às
mesmas coisas. Acontece também que, tipicamente, as relações causais entre
atitudes proposicionais, de alguma maneira, conspiram para respeitar as suas
relações de conteúdo e disso dependem muitas vezes as explicações da
crença/desejo. Hamlet acreditava que alguém matara o seu pai porque acreditava
que Cláudio matara o seu pai. O facto de ter a segunda crença explica o facto de ter
a primeira. Como? Bom, presumivelmente através de uma generalização causal
como «se alguém acredita em Fa, então ceteris paribus acredita em !x (Fx)». Esta
generalização especifica uma relação causal entre dois tipos de estados mentais
escolhidos por referência às proposições que exprimem (à forma lógica destas);
pelo que temos o padrão usual de uma atribuição simultânea de conteúdo e poderes
causais. A ideia aqui, todavia, é que os conteúdos dos estados mentais que a
generalização causal subsume estão eles próprios semanticamente relacionados;
Fa acarreta !x (Fx), pelo que, evidentemente, o valor semântico da segunda crença
não é independente do valor semântico da crença anterior.
Ou então, compare-se o padrão de raciocínio implícito atribuído a Hérmia no início
deste capítulo. Sugeri que ela tem de se apoiar decisivamente numa generalização
causal semelhante a esta: «Se x quer que P, e x acredita que não-P a menos que
Q, e x acredita que está em seu poder fazer que Q, então ceteris paribus x tenta
fazer que Q.» O senso comum parece sustentar muito claramente que algo assim é
verdadeiro e que sustenta contrafactuais; daí que se tenha explicado a tentativa de
x fazer que Q se se mostra que x tinha crenças e desejos do género que a
generalização especifica. O que é absolutamente típico é a) um apelo a relações
causais entre estados mentais semanticamente avaliáveis como parte essencial da

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

comportamento perante Gertrude e o ter como objecto uma certa crença, a saber, que a proposição de que
Cláudio matou o seu pai, aplicam-se ambos ao acto de acreditar, por parte de Hamlet, que Cláudio matou o seu
pai. Se então consideramos semanticamente avaliável o estado de Hamlet acreditar que Cláudio matou o seu pai
(ou do acontecimento que consiste na instanciação desse estado), podemos aceitá-lo como uma abreviação para
uma maneira mais precisa de falar. O estado S tem o valor semântico V se S tem por objecto uma proposição
cujo valor é V.
Subentende-se que nada nesta brincadeira ontológica progride minimamente no sentido de remover os quebra-
cabeças acerca da intencionalidade. Se (na minha maneira de falar) é metafisicamente preocupante que as
crenças e desejos sejam semanticamente avaliáveis embora as árvores, pedras e números primos não o sejam, é
igualmente preocupante em termos metafísicos (na maneira ortodoxa de falar) que os espécimes de crenças
tenham objectos proposicionais enquanto as árvores, pedras e os números primos não têm.
"

! .".!
explicação; b) a existência de relações de conteúdo entre os estados mentais a que
se apelou.
Veja-se as recorrentes letras semânticas; funcionam precisamente para restringir as
relações de conteúdo entre os estados mentais que a generalização subsume.
Assim, a menos que, num dado caso, o que x quer é o mesmo que x acredita que
não pode ter sem Q, e a menos que aquilo que x acredita que se exige para P seja
o mesmo que ele procura provocar, a generalização não é satisfeita e a explicação
não funciona. É auto-evidente que os princípios explicativos da psicologia do senso
comum alcançam a generalidade quantificando sobre agentes (o silogismo «prático»
pretende aplicar-se, ceteris paribus, a todos os x). Mas é significativo que também
alcancem a generalidade abstraindo sobre conteúdos («Se quer P e acredita que
não-P a menos que Q […] tentará fazer que Q», independentemente do que sejam
P e Q). A última estratégia só funciona porque, muito frequentemente, os mesmos
P e Q — os mesmos conteúdos — reaparecem em estados mentais causalmente
relacionados; isto é, apenas porque é muito frequente as relações causais
respeitarem as relações semânticas.
Este paralelismo entre poderes causais e conteúdos engendra o que é seguramente
um dos factos mais impressionantes acerca da mente cognitiva, como a concebe a
psicologia de senso comum da crença/desejo: a frequente semelhança entre
sequências de pensamento e argumentos. Aqui, por exemplo, temos Sherlock
Holmes a fazer aquilo em que é bom, no final de «The Speckled Band»:

Reconsiderei imediatamente a minha posição […] tornou-se-me claro que qualquer


perigo que ameaçasse um ocupante da sala não poderia vir da janela ou da porta. A
minha atenção desviou-se rapidamente, como já observei, para este ventilador, e
para a corda da sineta que pendia junto à cama. A descoberta de que esta era uma
imitação e de que a cama estava presa ao chão, deu imediatamente lugar à
suspeita de que a corda estava ali como uma ponte para algo passar pelo buraco e
chegar à cama. A ideia de uma cobra ocorreu-me de imediato e quando a uni ao
meu conhecimento de que o Doutor dispunha de uma reserva de criaturas
provenientes da Índia senti que estava provavelmente na pista certa.

A passagem pretende ser um pedaço de psicologia reconstrutiva: uma história


compacta da sequência de estados mentais que levaram Holmes primeiro a

! ."'!
suspeitar, depois a acreditar, que o doutor fez o que fez com a sua cobra de
estimação. O que aqui nos interessa, portanto, é o facto de a história de Holmes não
ser apenas psicologia reconstrutiva. Cumpre uma dupla tarefa, visto que também
serve para juntar premissas para inferir plausivelmente a conclusão de que o doutor
fez o que fez com a cobra. Porque a sua sequência de pensamentos é como um
argumento, Holmes espera que Watson se deixe convencer pelas considerações
que, quando ocorreram a Holmes, causaram a sua própria convicção. O que liga o
aspecto de história causal da narrativa de Holmes ao seu aspecto de plausibilidade
inferencial é o facto de os pensamentos que fixam a crença de que P fornecerem,
bastante amiúde, uma justificação razoável para acreditar que P. Não fosse isto
assim — não houvesse esta harmonia geral entre as propriedades semânticas e as
propriedades causais dos pensamentos, de maneira que, como Holmes afirma
noutra história, «uma inferência verdadeira sugere invariavelmente outras» — não
haveria afinal grande interesse em pensar.
Tudo isto levanta uma série de questões filosóficas; que géneros de relações de
conteúdo se preserva ao certo nas generalizações que subsumem casos típicos de
causalidade da crença/desejo? E — em muitos aspectos uma questão mais difícil —
como pode a mente estar construída de tal maneira que tais generalizações se lhe
aplicam? Que género de mecanismo pode ter estados que ao mesmo tempo estão
ligados semântica e causalmente e são tais que as conexões causais respeitam as
conexões semânticas? É a intratabilidade de tais questões que faz muitos filósofos
perderem a esperança na psicologia do senso comum. Mas, evidentemente, o
argumento dá para os dois lados: se o paralelismo entre conteúdo e relações
causais é, como parece, um facto profundo acerca da mente cognitiva, então a
menos que possamos salvaguardar a noção de conteúdo, há um facto profundo
acerca da mente cognitiva que a nossa psicologia não conseguirá captar.

III. GENERALIZAÇÕES PRESERVADAS

O que afirmei até agora equivale em grande medida ao seguinte; uma psicologia
explícita que vindica explicações de senso comum da crença/desejo tem de permitir
a atribuição de conteúdo a um estado mental causalmente eficaz e tem de
reconhecer as explicações comportamentais em que generalizações abrangentes se

! ."/!
referem a (ou quantificam sobre) conteúdos dos estados mentais que subsumem.
Acrescento agora que as generalizações que são reconhecidas ao vindicar a teoria
não podem ser doidas do ponto de vista do senso comum; os poderes causais das
atitudes têm de ser, mais ou menos, o que o senso comum supõe que são. Afinal, a
psicologia do senso comum não será vindicada a menos que se mostre mais ou
menos verdadeira.
Não tenho, todavia, uma lista de compras com generalizações do senso comum que
têm de ser honradas por uma teoria se esta se quer comprometer ontologicamente
com atitudes proposicionais bona fide. Muito do que o senso comum acredita acerca
das atitudes tem seguramente de ser falso (muito do que o senso comum acredita
acerca de seja o que for tem seguramente de ser falso). Na verdade, esperamos
que se prove haver muito mais coisas na mente — e muito mais bizarras — do que
o senso comum sonha que haja; de contrário, que graça tem fazer psicologia? Os
indícios sugerem, e têm-no feito desde Freud, que esta esperança será
abundantemente gratificada. Por exemplo, contrariamente ao senso comum, parece
que muito do que há na mente é inconsciente; e contrariamente ao senso comum,
parece que muito do que há na mente é não é aprendido. Mantenho a compostura,
continuo senhor de mim.
Por outro lado, há muita psicologia do senso comum da qual não temos — pelo
menos até agora — razão para duvidar, e a qual os adeptos das atitudes
detestariam abandonar. Assim, é difícil imaginar uma psicologia da acção
comprometida com as atitudes mas que não reconhece quaisquer relações causais
semelhantes entre crenças, desejos e intenções comportamentais (as «máximas»
dos actos) como as teorias da decisão explicam. De igual modo, é difícil imaginar
uma psicolinguística (para o português) que atribui crenças, desejos, intenções
comunicativas e coisas semelhantes aos falantes/ouvintes mas não implica uma
infinidade de teoremas reconhecivelmente semelhantes a estes:

• «Demétrio matou Lisandro» é a fórmula verbal canonicamente usada para


comunicar a crença de que Demétrio matou Lisandro.
• «O gato está na carpete» é a fórmula verbal canonicamente usada para
comunicar a crença de que o gato está na carpete.

! ."3!
• «Demétrio matou Lisandro ou o gato está na carpete» é a fórmula verbal
canonicamente usada para comunicar a crença de que Demétrio matou Lisandro ou
o gato está na carpete.

e por aí em diante, indefinidamente. Na verdade, é difícil imaginar uma


psicolinguística que apela às atitudes proposicionais dos falantes/ouvintes do
português para explicar o seu comportamento verbal mas que não implica que eles
conhecem pelo menos um de tais teoremas para cada frase da sua linguagem. Pelo
que há já uma quantidade infinita de senso comum para a psicologia vindicar.
O essencialismo autoconfiante está filosoficamente na moda esta semana. Há
pessoas aqui e acolá com Perspectivas Muito Fortes («intuições modais», como
lhes chamam) acerca de poder ou não haver gatos num mundo em que todos os
felinos domésticos são robôs marcianos, e de poder ou não haver Homero num
mundo em que ninguém escreveu a Odisseia ou a Ilíada. Bom para eles; a sua
condição epistémica é invejável, mas eu próprio não aspiro a ela. Simplesmente não
sei quanta psicologia do senso comum teria de ser verdadeira para haver crenças e
desejos. Digamos, alguma no mínimo; preferencialmente muita. Como não tenho
quaisquer dúvidas de que muita é verdadeira, esta não é uma questão que me faça
passar noites em branco.

TRM

A tese principal deste livro pode agora ser colocada da seguinte maneira: Não
temos razões para duvidar — na verdade, temos razão de peso para acreditar —
que é possível ter uma psicologia científica que vindique a explicação de senso
comum da crença/desejo. Mas embora essa seja a minha tese, não me proponho
argumentar a favor desta de uma maneira tão abstracta. Pois há já no campo uma
teoria (mais ou menos) empírica que, do meu ponto de vista, é interpretada
razoavelmente como estando ontologicamente comprometida com as atitudes e que
— mais uma vez, do meu ponto de vista — é muito provavelmente
aproximadamente verdadeira. Se estou certo quanto a esta teoria, ela é uma
vindicação das atitudes. Como, além disso, é a única coisa deste tipo que há por aí
(é a única proposta para uma psicologia científica da crença/desejo neste campo),

! ."+!
defender os pressupostos do senso comum acerca das atitudes e defender esta
teoria acabam por ser o mesmo empreendimento; «extensionalmente», como se diz.
Esta, em todo o caso, é a estratégia que seguirei: argumentarei que as objecções
dos géneros das que os filósofos levantaram recentemente contra a explicação da
crença/desejo não são conclusivas (para não dizer mais) contra a melhor teoria
vindicativa presentemente disponível. O resto deste capítulo é portanto dedicado a
um esboço de como esta teoria trata as atitudes e por que o seu tratamento das
atitudes parece tão promissor. Como esta história é já bastante bem conhecida
tanto nos círculos filosóficos como psicológicos, proponho-me ser rápido.
O que estou aqui a vender é a Teoria Representacional da Mente (daí TRM). No
centro desta teoria está o postulado de uma linguagem do pensamento: um conjunto
infinito de «representações mentais» que funcionam simultaneamente como
objectos imediatos de atitudes proposicionais e como os domínios dos processos
mentais. Mais precisamente, a TRM é a conjunção das duas afirmações seguintes:

Afirmação 1 (a natureza das atitudes proposicionais):


Para qualquer organismo O, e para qualquer atitude A perante a proposição P, há
uma relação («computacional»/«funcional») R e uma representação mental MP tais
que
MP significa que P, e
O tem A sse [se e só se] O sustenta R perante MP

(Veremos dentro em breve que é preciso diluir um pouco a bicondicional; mas não
de uma maneira que afecte muito o espírito da proposta.)
A fronteira entre a clareza e a afectação é muito ténue. Uma maneira mais rude mas
mais inteligível de colocar a afirmação 1 seria a seguinte: acreditar que assim e
assado é ter um símbolo mental que significa que assim e assado como um
espécime na sua cabeça, de uma certa maneira; é ter tal espécime «na sua caixa
da crença», como por vezes direi. Correspondentemente, esperar que assim e
assado é ter um espécime desse mesmo símbolo mental instanciado na sua
cabeça, mas de uma maneira diferente; é tê-lo instanciado «na sua caixa da
esperança». (A diferença entre ter o espécime numa caixa ou na outra corresponde
à diferença entre os papéis causais das crenças e desejos. Falar em caixas da
crença e coisas semelhantes como abreviaturas para representar as atitudes como

! ."4!
estados funcionais é uma ideia que se deve a Steve Schiffer.) E assim para cada
atitude que se possa sustentar perante uma proposição; e assim para toda a
proposição perante a qual se pode sustentar uma atitude.

Afirmação 2 (a natureza dos processos mentais):


Os processos mentais são sequências causais de instanciações de representações
mentais.

Uma sequência de pensamentos, por exemplo, é uma sequência causal de


instanciações de representações mentais que exprimem as proposições que são os
objectos dos pensamentos. A uma primeira aproximação, pensar «Vai chover; por
isso vou para dentro» é ter uma instanciação de uma representação mental que
significa Vou para dentro causada, de uma certa maneira, por uma instanciação de
uma representação mental que significa Vai chover.
É tudo, no que se refere à formulação da TRM.
Penso que há algumas razões para acreditar que a TRM pode ser mais ou menos
verdadeira. A melhor razão é que uma ou outra versão da TRM subjaz a
praticamente toda a investigação psicológica corrente sobre a actividade mental, e a
melhor ciência que temos é ipso facto a nossa melhor estimativa daquilo que há e
de que é feito. Há colegas meus em filosofia que não acham persuasivo este género
de argumento. Fico corado por eles. (Para uma discussão detalhada de como a
TRM molda o trabalho corrente sobre cognição, ver Fodor, 1975, especialmente o
capítulo I. Para uma discussão da conexão entre a TRM e o Realismo Intencional de
senso comum — e alguns argumentos que, dado o segundo, a primeira é
praticamente obrigatória — ver o Apêndice, Fodor, 1987.)
Mas temos uma razão para suspeitar de que a TRM possa ser verdadeira mesmo
pondo de parte os detalhes do seu êxito empírico. Observei há pouco que há um
impressionante paralelismo entre as relações causais entre estados mentais, por um
lado, e as relações semânticas que se verificam entre os seus objectos
proposicionais, por outro; e que propriedades muito profundas do mental — como,
por exemplo, que as sequências de pensamento preservam em grande medida a
verdade — dependem desta simetria. A TRM sugere um mecanismo plausível para
esta relação, o que é algo que nenhuma explicação anterior da actividade mental
conseguiu fazer. Proponho que se explicite isto um pouco; ajuda a esclarecer

! ."*!
precisamente por que a TRM tem um lugar tão central na maneira como os
psicólogos hoje pensam acerca da mente.
O truque é combinar a postulação de representações mentais com a «metáfora do
computador». Os computadores mostram-nos como conectar propriedades
semânticas a propriedades causais para símbolos. Assim, se ter uma atitude
proposicional envolve a instanciação de um símbolo, então podemos obter alguma
vantagem ao conectar propriedades semânticas com propriedades causais para
pensamentos. A este respeito, penso que houve realmente algo como um
importante progresso intelectual. À parte os detalhes técnicos, este é — do meu
ponto de vista — o único aspecto da ciência cognitiva contemporânea que
representa um avanço fundamental sobre as versões do mentalismo que foram as
suas predecessoras setecentistas e oitocentistas. O que estava errado exactamente
com o associacionismo, por exemplo, foi ter-se provado não haver maneira de fazer
uma vida mental racional emergir a partir dos géneros de relações causais entre
pensamentos que as «leis da associação» reconheciam. (Ver as páginas finais de
Ulysses de James Joyce para uma — presumivelmente involuntária — paródia da
perspectiva contrária.)
Aqui, no esboço mais rudimentar, é como a nova história supostamente decorre:
liga-se as propriedades causais de um símbolo às suas propriedades semânticas
por via da sua sintaxe. A sintaxe de um símbolo é uma das suas propriedades
físicas de ordem superior. Numa primeira aproximação metafórica, podemos pensar
na estrutura sintáctica de um símbolo como uma característica abstracta da sua
forma181.5 Porque, para todos os efeitos, a sintaxe reduz-se à forma, e porque a
forma de um símbolo é uma potencial determinante do seu papel causal, é
razoavelmente fácil ver como poderia haver ambientes em que o papel causal de
um símbolo se correlaciona com a sua sintaxe. É fácil, quer dizer, imaginar
espécimes de símbolos interagindo causalmente em virtude das suas estruturas
sintácticas. A sintaxe de um símbolo pode determinar as causas e efeitos das suas

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
)4)
! Qualquer propriedade nómica de espécimes de símbolos, contudo — qualquer propriedade em virtude de
cuja posse satisfazem leis causais — serviria, em princípio, igualmente bem. (Assim, por exemplo, a estrutura
sintáctica podia realizar-se através de relações entre estados electromagnéticos em vez de relações entre formas;
como, na verdade, sucede nos computadores reais.) Esta é a ideia da doutrina funcionalista segundo a qual, em
princípio, se pode fazer uma mente a partir de quase tudo.
"

! ..1!
instanciações de uma maneira muito semelhante ao modo como a geometria de
uma chave determina que cadeados abrirá.
Mas hoje sabemos pela lógica moderna que certas relações semânticas entre
símbolos podem, por assim dizer, ser «imitadas» pelas suas relações sintácticas; a
teoria da demonstração, quando a observamos distanciadamente, é acerca disso.
Assim, dentro de certos limites bem conhecidos, a relação semântica que se verifica
entre dois símbolos, quando a proposição expressa por um é implicada pela
proposição expressa pelo outro, pode ser imitada por relações sintácticas em virtude
das quais um dos símbolos é derivável do outro. Podemos portanto construir
máquinas que tenham, mais uma vez dentro de limites bem conhecidos, a seguinte
propriedade:

" As operações da máquina consistem inteiramente em transformações de


símbolos;
" Ao realizar estas operações, a máquina é sensível apenas a propriedades
sintácticas dos símbolos;
" As operações que a máquina realiza sobre os símbolos são inteiramente
confinadas à alteração das suas formas.

No entanto a máquina está concebida de tal modo que transformará um símbolo


noutro se, e só se, as proposições expressas pelos símbolos que são transformados
se encontram em determinadas relações semânticas — por exemplo, a relação que
as premissas sustentam perante a conclusão num argumento válido. Tais máquinas
— computadores, evidentemente — simplesmente são ambientes em que a sintaxe
de um símbolo determina o seu papel causal de uma maneira que respeita o seu
conteúdo. Penso que isto é uma ideia perfeitamente formidável; não menos porque
funciona.
Espero que seja claro como isto supostamente se relaciona com a TRM e o
compromisso ontológico com as representações mentais. Os computadores são
uma solução para o problema de intermediar as propriedades causais dos símbolos
e as suas propriedades semânticas. Assim, se a mente é um género de
computador, começamos a ver como se pode ter uma teoria dos processos mentais
que seja bem-sucedida onde todas as tentativas anteriores falharam, literalmente,
de um modo abjecto; uma teoria que explique como pode haver relações de

! ..)!
conteúdo não arbitrárias entre pensamentos causalmente relacionados. Mas,
evidentemente, terá de haver representações mentais para que esta proposta
funcione. Ao conceber computadores, alinha-se o papel causal com o conteúdo
explorando paralelismos entre a sintaxe de um símbolo e a sua semântica. Mas
essa ideia não adiantará muito à teoria da mente a menos que haja símbolos
mentais: particulares mentais que tanto tenham propriedades semânticas como
propriedades sintácticas. Tem de haver símbolos mentais porque, resumidamente,
só os símbolos têm sintaxe, e a nossa melhor teoria disponível dos processos
mentais — na verdade, a única teoria dos processos mentais que não se sabe que é
falsa — precisa da imagem da mente como uma máquina movida pela sintaxe.
Afirma-se por vezes contra a psicologia de senso comum da crença/desejo, por
parte daqueles que a admiram menos do que eu (ver em especial Churchland, neste
volume), que se trata de uma teoria «estéril»; uma teoria da qual se pode dizer que
não progrediu muito desde Homero e que não progrediu de todo desde Jane
Austen. Sem dúvida que há um sentido em que esta acusação é injustificada; a
psicologia do senso comum pode ser ciência implícita, mas não é, de ponto de vista
algum, investigação científica implícita. (O que os romancistas e poetas fazem não
conta como investigação segundo os critérios austeros em causa.) Se, resumindo,
queremos avaliar o progresso, temos de olhar não para a teoria do senso comum
implícita mas para o melhor candidato à sua vindicação explícita. E aqui o progresso
foi enorme. Não se trata apenas de sabermos um pouco acerca da memória e da
percepção (enquanto meios de fixação da crença) e um pouco acerca da linguagem
(enquanto meio de comunicação da crença); veja-se qualquer texto canónico de
psicologia. A verdadeira proeza é estarmos (talvez) à beira de resolver um grande
mistério acerca da mente: como podem os seus processos causais ser
semanticamente coerentes? Ou, se preferir um estilo mais solene: Como é
mecanicamente possível a racionalidade?1826 Note-se que este género de problema
nem sequer pode ser formulado, muito menos resolvido, a não ser que suponhamos
— como a psicologia de senso comum da crença/desejo quer que façamos — que
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
)4"
!O que não equivale a negar que haja (hum!) certas dificuldades técnicas residuais. (Ver, por exemplo, a Parte
4 de Fodor, The Modularity of Mind [Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1983].) Uma teoria da
racionalidade (isto é, uma teoria da nossa racionalidade) tem de explicar não só a «coerência semântica» dos
processos de pensamento em abstracto mas também a nossa capacidade de sacar os próprios géneros de
inferências racionais que fazemos. (Tem de explicar a nossa capacidade de fazer ciência, por exemplo.)
Nenhuma teoria semelhante estará disponível por esta altura, na semana que vem.

! .."!
há estados mentais que têm simultaneamente conteúdos semânticos e papéis
causais. Uma boa teoria é aquela que nos leva a fazer perguntas para as quais há
respostas. E reciprocamente, ceteris paribus.
Ainda assim, a TRM não servirá exactamente na formulação rudimentar
apresentada atrás. Proponho terminar este capítulo com um toque de verniz.
Segundo a afirmação 1, a TRM exige simultaneamente o seguinte:

Para cada instanciação de uma atitude proposicional, há uma instanciação de uma


relação correspondente entre um organismo e uma representação mental.

Para cada instanciação dessa relação, há uma instanciação correspondente de uma


atitude proposicional183.

Isto é, todavia, demasiado forte; a equivalência falha em ambas as direcções.


Como na verdade seria de esperar, dada a nossa experiência noutros casos em que
a ciência explícita congrega os instrumentos conceptuais do senso comum. Por
exemplo, como toda a gente observa, simplesmente não é verdade que a química
identifique cada amostra de água com uma amostra de H2O; não, pelo menos, se a
noção operativa de água for a de senso comum, segundo a qual aquilo que
bebemos, onde navegamos e com o qual enchemos as nossas banheiras, satisfaz
requisito. O que a química faz é reconstruir as categorias do senso comum naquilo
que a própria teoria identifica como os casos nucleares; a água quimicamente pura
é H2O. A infrequência ecológica de tais casos nucleares não é, evidentemente, um
argumento contra a afirmação de que a ciência química vindica a taxonomia do
senso comum: o senso comum tinha razão acerca de haver um material como a
água, razão acerca de haver água no rio Douro e razão mais uma vez em ser a
água, naquilo que bebemos, que sacia a nossa sede. O senso comum nunca
afirmou que a água no rio Douro é quimicamente pura; «quimicamente pura» não é
uma expressão do vocabulário do senso comum.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
)4.
! Porque não quero preocupar-me com a ontologia da mente, evitei afirmar que o TRM é uma tese da
identidade. Mas o leitor pode fazê-lo se estiver para aí inclinado.

! ...!
De um modo exactamente similar, a RTM vindica a psicologia do senso comum para
o que a RTM identifica como os casos nucleares; nestes casos, o que o senso
comum considera instanciações de atitudes proposicionais são na verdade
instanciações de uma relação entre um organismo e uma representação mental. Os
outros casos — onde se tem ou instanciações de atitudes sem a relação ou
instanciações de relações sem as atitudes — são tratados pela teoria como
derivativos. Tudo isto é, repito, exactamente o que seria de esperar do precedente
científico. Não obstante, os filósofos fizeram uma barulheira horrível por causa disso
ao discutir a vindicação das atitudes (ver a controvérsia sobre a «representação
explícita» — ou outra — das gramáticas, recentemente levada a cabo por Stabler,
E., «How are Grammars Represented?» e Demopoulos, N., e Matthews, R., «On the
Hypothesis that Grammars are Mentally Represented», ambos em Behavioral and
Brain Sciences, 3, 1983), entre outros. Assim, consideremos brevemente os
detalhes. Fazê-lo levará a um aperfeiçoamento da afirmação 1, o que será tanto
melhor.

Exemplo 1. Atitudes sem Representações Mentais

Eis um exemplo de Dennett:

Numa conversa recente com o criador de um programa de xadrez, ouvi a seguinte


crítica a um programa rival: «Pensa que deve fazer sair a rainha antecipadamente.»
Isto atribui uma atitude proposicional ao programa, de uma maneira muito útil e
previsiva, pois como o criador passou a explicar, pode-se normalmente contar com
a perseguição à rainha ao longo do tabuleiro. Mas em nenhum dos muitos níveis de
representação explícita que se encontra naquele programa se instancia
explicitamente algo que seja remotamente sinónimo de «devo fazer sair a minha
rainha antecipadamente». O nível de análise a que a observação do criador
pertence descreve características do programa que são, de uma maneira
completamente inocente, propriedades emergentes dos processos computacionais
que têm «realidade concepcional». Não vejo razão para acreditar que a relação
entre a crença/discurso e o discurso do processo psicológico serão mais directos
(Dennett, 1979, p. 107; ver também Matthews, R., «Troubles with
Representationalism», Social Research, 51(4), 1984).

! ..'!
Note-se que o problema levantado por Dennett não é apenas o de parte daquilo que
o senso comum considera como as nossas atitudes proposicionais ser disposicional.
Não é como a preocupação de poder agora afirmar que acredito numa
consequência abstrusa da teoria dos números — na qual, em termos de senso
comum, nunca sequer pensei — porque eu aceitaria a demonstração do teorema se
ma mostrassem. É verdade, evidentemente, que as crenças meramente
disposicionais não podem corresponder a instanciações ocorrentes de relações com
representações mentais, e a afirmação 1 tem portanto de ser reformulada. Mas o
problema é superficial, visto que a revisão relevante da afirmação 1 seria bastante
óbvia; isto é, que para cada crença ocorrente há uma instanciação ocorrente de
uma representação mental, que lhe corresponde; e para cada crença disposicional
há uma disposição correspondente para instanciar uma representação mental.
Isto deixaria em aberto uma questão que surge independentemente das nossas
perspectivas acerca da TRM: a saber, quando são verdadeiras as atribuições de
crenças disposicionais? Suponho que se podia razoavelmente identificar as nossas
crenças disposicionais com o fechamento das nossas crenças ocorrentes sob
princípios de inferência que se aceita explicitamente. E se é um pouco vago
exactamente que crenças pertencem a tal fechamento, a TRM pode aceitar isso.
Enquanto disposicionais, as atitudes não desempenham qualquer papel causal em
processos mentais efectivos; só as atitudes ocorrentes — no que a isso diz respeito,
só quaisquer coisas ocorrentes — são causas efectivas. Pelo que a TRM pode
permitir-se ser um pouco operacionalista acerca de crenças meramente
disposicionais (ver Lycan, William G., «Tacit Belief», em Bogdan, R., (org.) Belief:
Form, Content and Function, Clarendon Press, 1986) desde que assuma uma
posição intransigente acerca de crenças ocorrentes.
Todavia, mais uma vez, o problema levantado no texto de Dennett não é deste
género. Não é que o programa acredite potencialmente em «fazer sair a rainha
antecipadamente». A ideia de Dennett é que o programa funciona efectivamente
com base neste princípio; mas não em virtude de qualquer instanciação de qualquer
símbolo que o exprima. E o xadrez não é, evidentemente, o único caso deste
género. O compromisso comportamental com o modus ponens, ou com a regra
sintáctica da dinâmica das expressões interrogativas, pode indicar que estes se

! ../!
encontram registados na escrita cerebral. Mas não precisa de o fazer, dado que,
como os filósofos por vezes afirmam, pode-se observar estas regras mas não segui-
las literalmente.
No exemplo de Dennett, temos uma atitude que, por assim dizer, emerge da sua
própria implementação. Esta forma de apresentar as coisas pode sugerir uma
maneira de salvaguardar a afirmação 1: a máquina não representa explicitamente
«fazer sair a rainha antecipadamente», mas pelo menos podemos supor que
representa de facto, explicitamente, regras do jogo mais detalhadas (as que Dennett
afirma terem «realidade concepcional»). Para estas regras, pelo menos, uma versão
forte da afirmação 1 seria assim satisfeita. Mas essa sugestão também não
funciona. Nenhum dos princípios segundo os quais um sistema computacional
funciona precisa de ser explicitamente representado por uma fórmula instanciada no
dispositivo; não há garantia de que o programa de uma máquina será explicitamente
representado na máquina da qual é o programa. (Ver Cummins, R., «The Internal
Model of Psychological Explanation», Cognition and Brain Theory, 5(3), 1982;
grosso modo, a ideia é que para qualquer máquina que computa uma função ao
executar um algoritmo explícito, existe outra máquina — com um «programa
incorporado» na estrutura — que computa a mesma função mas não executando
um algoritmo explícito.) Assim, poder-se-á perguntar, o que traz a «metáfora do
computador» à TRM afinal?
Há mesmo uma questão de princípio aqui — a qual por vezes se lê (ou interpreta)
no diálogo entre Aquiles e a Tartaruga, de Lewis Carroll: nem todas as regras de
inferência das quais depende um sistema computacional podem ser representadas
apenas explicitamente no sistema; algumas delas têm de ser, como se diz,
«realizadas no hardware». De contrário a máquina não funciona de todo em todo.
Um computador em que os princípios de funcionamento só são representados de
uma maneira explícita é exactamente como um quadro negro em que se escreveu
os princípios. Tem o problema de Hamlet: quando se liga a coisa, nada acontece.
Como tudo isto é claramente correcto e provavelmente importante, surge a questão
de como formular a TRM de maneira a que os casos em que os programas são
incorporados na estrutura da máquina [hardwired] não contem como infirmações da
afirmação 1. Regressaremos a isto momentaneamente; primeiro consideremos:

Exemplo 2: Representações Mentais sem Atitudes

! ..3!
Em primeiro lugar, a TRM vai buscar aos computadores a receita para mecanizar a
racionalidade: usar uma máquina que funciona à base de sintaxe para explorar
paralelismos entre as propriedades sintácticas e semânticas dos símbolos. Algumas
— mas não todas — as versões da TRM vão buscar mais do que isto; não só uma
teoria da racionalidade mas também uma teoria da inteligência. Segundo esta
história, o comportamento inteligente explora tipicamente uma «arquitectura
cognitiva» constituída por hierarquias de processadores de símbolos. No topo de tal
hierarquia pode estar uma capacidade muito complexa: resolver um problema, fazer
um plano, proferir uma frase. Na base, todavia, estão apenas os géneros de
operações ininteligentes que as máquinas de Turing podem executar: apagar
símbolos, armazenar símbolos, copiar símbolos, e o resto. Preencher os níveis
intermédios equivale a reduzir — analisar — uma capacidade inteligente a um
complexo de capacidades estúpidas; daí para um tipo de explicação da anterior.
Eis um exemplo característico de um tipo de teoria representacional semelhante:

Esta é a maneira como atamos os sapatos. Há um homenzinho que vive na nossa


cabeça. O homenzinho tem uma biblioteca. Quando agimos com a intenção de atar
os sapatos, o homenzinho vai buscar um volume intitulado Atar os Sapatos. No
volume estão coisas como: «Pegue na ponta esquerda livre do atacador com a mão
esquerda. Cruze a ponta esquerda livre do atacador sobre a ponta direita livre do
atacador[…]», etc […] Quando o homenzinho lê «pegue na ponta esquerda livre do
atacador com a mão esquerda», imaginamo-lo a telefonar ao mestre de oficinas
responsável por agarrar nos atacadores. Este começa a supervisionar aquela
actividade de uma maneira que é, essencialmente, uma versão microcósmica da
acção de atar os sapatos. Na verdade, pode-se imaginar o mestre de oficinas a
dirigir um destacamento de escravos assalariados, cujas funções incluem: procurar
representações de inputs visuais por indícios de atacadores, emitir ordens para
flectir e contrair os dedos da mão esquerda, etc. (Fodor, 1981, Capítulo 2, pp. 63-
64).

No topo encontram-se os estados que podem muito bem corresponder às atitudes


proposicionais que o senso comum está disposto a reconhecer (saber como atar os
sapatos, saber acerca de atar sapatos). Mas nos níveis inferiores e médios tem

! ..+!
forçosamente de haver muitas operações de processamento de símbolos que não
correspondem a coisa alguma que as pessoas — por oposição aos seus sistemas
nervosos — alguma vez façam. Estas são as operações a que Dennett chamou
sistemas computacionais «subpessoais»; e embora satisfaçam a formulação
presente da afirmação 1 (na medida em que envolvem instanciações causalmente
eficazes de representações mentais), no entanto não é claro que correspondam a
qualquer coisa que o senso comum consideraria como uma instanciação de uma
atitude. Mas como formularemos a afirmação 1 de maneira a evitar a infirmação por
processos de informação subpessoais?

VINDICAÇÃO DA VINDICAÇÃO

Há um sentido em que objecções destes géneros à afirmação 1 não me parecem


muito sérias. Como observei atrás, a vindicação da explicação da crença/desejo
pela TRM não exige que cada um dos casos que o senso comum considera uma
instanciação de uma atitude orresponda à instanciação de uma representação
mental ou vice-versa. Apenas se exige que tais correspondências se verifiquem nos
casos que a própria teoria vindicadora considera nucleares. Por outro lado, seria
melhor que a TRM fosse capaz de discriminar quais os casos que considera
nucleares. A química pode considerar o rio Douro em grande medida irrelevante
para a confirmação de «a água é H2O»; mas apenas porque fornece razões
independentes para negar que o que está no rio Douro é uma amostra
quimicamente pura. Seja do que for!
Assim, quais são os casos nucleares para a TRM? A resposta devia ser clara a
partir da afirmação 2. Segundo a afirmação 2, os processos mentais são sequências
causais de transformações de representações mentais. Segue-se que as
instanciações de atitudes têm de corresponder a instanciações de representações
mentais quando aquelas — as instanciações de atitudes — são episódios de
processos mentais. Se os objectos intencionais de tais instanciações causalmente
eficazes de atitudes não são explicitamente representados, então a TRM é
simplesmente falsa. Repito, por uma questão de ênfase: se a ocorrência de um
pensamento é um episódio num processo mental, então a TRM está comprometida
com a representação explícita do seu conteúdo. O mote é portanto «Nada de
Causalidade Intencional sem Representação Explícita».

! ..4!
Note-se que esta maneira de escolher os casos nucleares harmoniza-nos com os
alegados contra-exemplos. A TRM afirma que o conteúdo de uma sequência de
atitudes que constitui um processo mental tem de ser expressa por instanciações
explícitas de representações mentais. Mas as regras que determinam o rumo da
transformação destas representações — modus ponens, a dinâmica das expressões
interrogativas, «fazer sair a rainha antecipadamente», ou seja o que for — não
precisam elas próprias alguma vez de ser explícitas. Podem ser emergentes a partir
de procedimentos de implementação explicitamente representados, ou a partir de
estruturas de hardware, ou ambos. Grosso modo: segundo a TRM, os programas —
correspondendo às «leis do pensamento» — podem ser explicitamente
representados; mas as «estruturas de dados» — correspondendo aos conteúdos
dos pensamentos — têm de o ser.
Assim, no caso de Dennett, a regra «fazer sair antecipadamente» pode ou não ser
expressa por um símbolo «mental» (/linguagem de programação). Isso depende de
como a máquina funciona exactamente; especificamente, depende de o acto de
consultar a regra ser ou não um passo nas operações da máquina. Depreendo que
na máquina que Dennett tem em mente, não o é: albergar o pensamento «é melhor
fazer sair a rainha antecipadamente» nunca constitui um episódio da vida mental
daquela máquina.1848 Mas então o conteúdo intencional deste pensamento não
precisa de ser explicitamente representado em coerência com a verdade de «nada
de causalidade intencional sem representação explícita». Por contraste, as
representações do tabuleiro — dos estados de jogo efectivos ou possíveis — sobre
as quais as computações da máquina se definem têm de ser explícitas,
precisamente porque as computações da máquina são definidas sobre elas. Estas
computações constituem os «processos mentais» da máquina, pelo que ou são
sequências causais de representações explícitas, ou a teoria representacional do
jogo do xadrez simplesmente não se aplica à máquina. Resumindo: restringir a
nossa atenção ao estatuto das regras e programas pode fazer parecer que a
metáfora do computador é neutra a respeito da TRM. Mas quando pensamos na
constituição dos processos mentais, a conexão entre a ideia de que estes são

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
184
Como Dennett, pressuponho para efeitos de argumentação que a máquina tem pensamentos e processos
mentais; nada depende disto, visto que podíamos, evidentemente, ter feito a mesma discussão acerca de pessoas.

! ..*!
computacionais e a ideia de que há uma linguagem do pensamento torna-se
imediatamente vísivel185.9
E quanto aos exemplos subpessoais, em que se tem instanciações de
representações mentais sem instanciações de atitudes? As explicações de senso
comum da crença/desejo são vindicadas se a psicologia científica estiver
ontologicamente comprometida com crenças e desejos. Mas não se exige também
que o inventário das atitudes proposicionais da psicologia popular acabe por esgotar
um tipo natural. Seria espantoso se o fizesse; como podia o senso comum saber
tudo isso? O que é importante acerca da TRM — o que faz da TRM uma vindicação
da psicologia intuitiva da crença/desejo — não é o facto de discriminar um tipo
coextensional às atitudes proposicionais. É o facto de a TRM mostrar como os
estados intencionais podiam ter poderes causais; precisamente o aspecto do
realismo intencional de senso comum que parecia mais desconcertante do ponto de
vista metafísico.
A física molecular vindica a taxonomia intuitiva dos objectos de dimensões médias
em líquidos e sólidos. Mas o tipo mais próximo dos líquidos que a física molecular
reconhece inclui algo daquilo que o senso comum não reconheceria; vidro, por
exemplo. E depois?
Está arrumada a TRM; está também arrumado este capítulo. À primeira vista há
uma argumentação forte a favor da explicação de senso comum da crença/desejo.
O senso comum seria vindicado se uma boa teoria da mente mostrasse estar
comprometida com entidades que — como as atitudes — são ao mesmo tempo
semanticamente avaliáveis e etiologicamente implicadas. A TRM parece uma boa
teoria da mente que tem esse compromisso; pelo que se a TRM é verdadeira, o
senso comum está vindicado. Subentende-se que a TRM precisa de montar uma
argumentação empírica; precisamos de boas explicações, independentemente
confirmadas, dos processos mentais como sequências causais de transformações
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
185
Podemos agora ver o que dizer acerca da velha história filosófica sobre a lei de Kepler. Alega-se que a
metodologia intencionalista permite a inferência a partir de «o comportamento de x obedece à regra R» para «R
é uma regra que x representa explicitamente». O suposto incómodo é que isto permite a inferência a partir de
«os movimentos dos planetas respeitam a lei de Kepler» para uma versão astronómica da LHM [Hipótese da
Linguagem Mental].
Mas na verdade não se pressupõe qualquer princípio semelhante. O que garante a hipótese de que R é
explicitamente representada não é o mero comportamento concordante com R; é uma etiologia segundo a qual R
figura como conteúdo de um dos estados intencionais cujas instanciações são causalmente responsáveis pelo
comportamento de x. E, como é óbvio, não faz parte da narrativa etiológica acerca dos movimentos dos planetas
que a lei de Kepler lhes ocorra à medida que estes acontecem."

! .'1!
de representações mentais. A psicologia cognitiva moderna dedica-se, na sua
quase totalidade, à concepção e confirmação de tais explicações. Para o que nos
interessa agora, tomarei tudo isso por verdadeiro. O restante deste livro é acerca de
dúvidas sobre a TRM que dependem dos seus pressupostos semânticos. Isto é
terreno familiar para os filósofos e os nativos estão cada vez mais inquietos.

! .')!

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