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CASIMIRO
ESTENDAIS
Crónicas
Ficha Técnica
Título: Estendais
Autora: Gisela Casimiro
Capa: Rui Garrido
Fotografia da capa: Gisela Casimiro
ISBN: 9789722132121
Editorial Caminho, SA
uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
© Editorial Caminho, 2023
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
www.caminho.leya.com
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Índice
Capa
Ficha Técnica
Prefácio
Introdução
Pedro
Gardénias Brancas
Biquíni cor-de-rosa
Bálsamo
Ti Coelho
Sob o sol cruel
Nunca mais fiz o pino
Trinta dias de silêncio
Luto
Domingo
Ardósia
Sophia
Herberto Hélder
No metro do Chiado à espera da Carlota
Pequeno-almoço
Dificuldades em Tessalónica
Carla
Estendais
Tenho tido sempre um amanhã
Lavar a dignidade à mão
A Teresa hoje não veio
Quinta-feira de espiga
Lia Pereira
Preto é cor
Gelado de banana
Uma palmada no rabo
Lúcia-lima
Às oito tenho de estar no quartel
Tangerinas
My fair lady
De mulher pra mulher
A menina gosta de ler?
Posso dar-te um beijinho?
O momento baixo do feminismo
Memórias descritivas
Júlio
Titanic
Eu também
Partir o pente
Um espectáculo, digo eu!
Uma gota de glitter
Diários Turcos (I)
Diários Turcos (II)
Black mirror, Black face
Mercúrio retrógrado
Sem anestesia possível
Tupperware
Precipícios interiores
Nê
Trapezista temporária
Flores de Paris
O lugar das estacas
Um lugar à mesa
Beleza feia
Eu sou ela
Sem título
Nada de especial
À deriva e sem motor
Tempo de partida
Rapariga com tatuagem de Pégaso
Velhos conhecidos
Xico
A vida sexual das orquídeas
Vida nova
Chegámos até aqui
A jóia pesa conforme o uso
Segundo cérebro (I)
Inserir nome de família
Concerto para peluches número 2
Olá, mãe!
Segundo cérebro (II)
Delivery / O parto
A quem possa interessar
Segundo cérebro (III)
Prefácio
«O coração desarruma tudo
na ânsia de se fazer maior.»
Em verdade vos digo. Tempos houve em que as histórias da Gisela, tal
como as de Jesus antes dela, começavam assim. Por brincadeira, marca de
estilo, mas possivelmente também porque, numa rede social onde nunca
sabemos ao certo quem pescará as nossas palavras, há sempre quem se
pergunte: mas estas coisas acontecem-lhe mesmo?
Quem, como a Gisela, vive na cidade, e quem compreende que a cidade
tem gente dentro, sabe que sim. E acredita que uma conversa com um
desconhecido pode ser o ponto alto de um dia até então cinzento (a única
cor em que há cães mas não pessoas, «mas quase que nem isso», como com
premência observa em «Ardósia»).
*
Em Estendais, colecção revista e melhorada das muitas histórias que
nós, os seus amigos, lhe conhecemos e adivinhamos, a Gisela fala de
rapazes com o coração entre os pulmões, sobre pais & pássaros, sobre «as
delicadas e duras coisas simples de todos os dias». Ela é, como outrora se
usou dizer, local e global, íntima e partilhável, é pele e é tamanho. Dias há,
sussurra-nos a certo ponto deste diário aberto aos olhos do mundo, em que
a pele é, toda ela, um alvo. E também há dias em que diminuir é o único
caminho para crescer («sinto[-me] pequena, o que é bom, acho, porque se
diminuir o suficiente pode ser que consiga mesmo começar de novo»,
escreve em «Tenho tido sempre um amanhã»). Mas não há dias em que não
se pense como nasceram – sem noção, sem conhecimento, sem intenção? –
as «grandes coisas feias» que nos dizem desde o recreio da escola. Ou
como a palavra «carapinha» é simultaneamente tão próxima e tão
estrangeira.
Do seu sofá a Gisela avista gatos, figos e a solidão escolhida. Da sua
caneta cita, com respeito e maravilha, Herberto Helder e Sophia, Rihanna e
Mary Poppins, Henrique Mendes e Marie Kondo – mentira, a pequena
musa nipónica da arrumação sou eu quem a evoca, por todas as obras de
«destralhamento» que, com as palavras, a Gisela opera no seu coração.
Em todas as histórias, a Gisela está em si, buscando o outro. «Fiz de
perder o meu ofício», resume algures. «Às vezes perco tempo a observar as
pessoas e perco uma boa fotografia», observa noutra página. «E a menina,
escreve sobre Portugal ou sobre África?», perguntam-lhe no metro. «Sobre
o mundo», responde. Sobre o seu mundo, acrescento eu. Um mundo com
tanto sentir como saber, onde quem tem um livro, mesmo que pouco mais,
tem tudo.
A Gisela torce sempre para que quem corre apanhe os seus autocarros, e
só por isso teria sempre um lugar neste meu coração, tão diagonalmente
automobilizado como o seu.
A sua escrita pode ser limpa e clara, como os dias de sol que tanto a
alimentam, mas as suas pausas e palavras sugerem mistério e pedem novas
leituras. A Gisela é livre, mas a sua prosa merece ser apanhada – em
verdade vos digo.
Lia Pereira
Introdução
Possibilidade, portal e passagem
Roubaram a porta do meu prédio. Assim que aconteceu, soube que
começaria um texto assim: roubaram a porta do meu prédio. Dá vontade de
entrar em pormenores, e fi-lo de viva voz, tendo recebido as mais diversas
reacções, da incredulidade ao medo, ao riso, durante quase duas semanas
de périplo, enquanto uma porta nova não era instalada. Porém, não será
esta declaração, por si só, uma história completa? Roubaram a porta do
meu prédio. Uma forma insólita de começar um novo ano. Uma de muitas
metáforas da minha vida e das mais bonitas.
Sempre gostei que me contassem histórias, sempre me preocupei, quis
saber e me interessei pelos detalhes, pelo começo, pelo final das coisas.
Também a continuação me deve ter interessado, quem sabe mais do que
qualquer outra parte, pois é a partir disso que escrevo, não é? Do cerne, do
coração, do estômago, do amor, da observação de estendais e pessoas.
Talvez um dia tudo se desmorone completamente. No futuro distópico
não parece haver lugar para bibliotecas, livros, contadores de histórias.
Parece não haver grande preservação da memória, como não há natureza e
como quase não há gente. Comecei com cartas e diários. Agora estou aqui.
Um livro é uma cápsula do tempo? Pode uma cápsula do tempo expirar?
Enquanto escrevo, penso nas imagens de prédios na Turquia e na Síria que
vi tombar e quebrar como espinhas de peixe após um terramoto recente.
Penso no sentido de tudo isto, no porquê de criar e insistir em ver a beleza
quando a destruição não pára. São as pessoas e as histórias que me têm
feito continuar neste mundo e acreditar nele.
Estes Estendais, este formato vidas-aos-elementos, é o que melhor
permite prolongar a missão de habitar intencionalmente, em plena
vulnerabilidade, a ternura complexa das nossas diferenças, o que fica
depois do fim, o que nos prende e liberta. Se a escrita é o que me permite
recomeçar, quem vive as coisas comigo faz-me querer falar sobre elas. Só
tenho para mostrar, para contar, as pessoas que me aconteceram.
Os textos finalmente reunidos são um conjunto de inéditos e outros,
publicados em jornais, revistas e portais impressos e online como: Hoje
Macau, Buala, Contemporânea e Gerador.
Há um documentário, ligado a uma peça de teatro com o mesmo nome,
da qual sou uma das muitas mulheres co-criadoras: Set the table. Num
momento do filme falo de como, após ter sido esta contadora, esta guardiã
de histórias toda a vida, me preocupa chegar ao fim da minha existência e
ninguém me ter conhecido verdadeiramente. Quando vi o filme pela
primeira vez, não me lembrava já de ter dito isso, sobretudo de uma forma
tão triste.
A escrita é uma disciplina solitária, como foi uma parte tão longa da
minha vida. Um dia desaparecerei, mas poderão encontrar-me aqui. É onde
venho para me reconhecer, para lembrar-me de que nunca estive realmente
só. Quer tenha ou não escrito o vosso nome, quer se recordem ou não de
mim, quer se reconheçam ou não nestas não-ficções, saibam que nos
cruzámos, uma vez ou muitas, e que de algum modo eu reparei em vocês, e
ainda vos trago comigo. Que estes textos sejam possibilidade, portal e
passagem.
Gisela Casimiro
Pedro
Não é como nos filmes. Nem sequer é como nos livros. A minha vida
tem tido muito de ambos. Eram 14h55 quando ouvi a voz do meu irmão
pela primeira vez. Tinha doze anos quando ouvi falar dele e vi uma
fotografia sua pela primeira vez, ainda o Henrique Mendes era vivo. Quero
com isto dizer que não é como na televisão. Ele também tinha doze anos
porque nascemos no mesmo ano. Tenho trinta e um anos. Ele vai fazer trinta
e um nesta próxima quinta-feira. És mais velha do que eu, diz-me. E eu
penso, também nesta família és o irmão do meio. Penso mas não o digo.
Nunca soube o que dizer durante todos estes anos. Fazemos tantas perguntas
um ao outro. Todas as que não ousámos fazer aos nossos pais, que nos
despejaram este peso sem filtros e sem grandes explicações, com gritos,
com variadas formas de violência. Pergunta se acho que teria sido melhor,
mais fácil, se nos tivéssemos conhecido na altura. Não sei, respondo, acho
que não, e não consigo explicar mas sei que não. Tento explicar e parece-me
que ou não faço sentido, ou estou a falar de mais, ou de menos, ou a repetir-
me demasiado. No fundo sei a resposta. Mas como se põem anos em dia
num espaço de poucas horas? A culpa não é dele. Ouvi isto tantas vezes.
Também não é minha, retorqui outras tantas. As sombras que se adensaram
desde esse dia. Consigo dizer muito pouco.
Fala-me dos irmãos, dos vivos e dos que faleceram. Da namorada, da
família dela. Diz que vou gostar dela. Mostra-me fotos de todos. Fala da
mãe, do pai que conheceu, do padrasto que se lhe seguiu. De como cresceu.
E do que gosta. Do que não gosta. Dos amigos. Do lugar onde cresceu. Das
coisas que fez. Das coisas por que passou. Do que viu e que, tal como eu,
nunca deveria ter visto. Ou sentido. Ouvido. Do trabalho. De Londres e da
Guiné. De como foi conhecer o pai que partilhamos, e a minha mãe, e a
minha, a nossa, irmã. O resto da família. Quer saber de mim. Falo. Diz,
muito sério, que sente que devo ter passado por momentos muito difíceis.
Ainda só lá estamos há quinze minutos, talvez nem tanto. A minha rigidez
contrasta com o sofá. Digo-lhe que sim. Há algo de solene em tudo isto.
Não me sinto, não sei o que sinto. Tem as mãos grandes, como eu. É mais
escuro. Diz que sou parecida com a minha mãe. Desde sempre toda a gente
diz que ele é parecido com o meu pai. Sorri muito, como eu. Fuma. Está
nervoso, como eu. À nossa volta, famílias e grupos de amigos jantam.
Penso no que seremos um para o outro. Se seremos. Falo do meu último ano
e meio, que mais parecem cinco. De como fiquei chocada quando me
mandou a primeira mensagem; de como era, mais do que sempre fora,
demasiado para conseguir lidar na altura. Peço desculpa. Falo do aniversário
do ano passado, quando ele desmarcou à última hora, e de mil outras coisas
que não cabem em lado nenhum. Estou muito crescida e estou muito
pequenina e a vida vem em golfadas que os pulmões parecem não conseguir
aceitar. O coração desarruma tudo na ânsia de se fazer maior. Falamos dele.
Refere-se-lhe como o pai, ou o meu pai e diz, o nosso, desculpa. É natural,
digo. Diz, estive lá no aniversário do nosso pai. Corrijo, foi no dia seguinte.
Eu estive lá no dia anterior. O do aniversário. Diz que me mandou uma
mensagem, aquela à qual não respondi. Respondo que lhe mandei uma
antes. Dois meses antes. Precisamente dois meses antes. Não lhe digo que,
na altura, achava que não me livraria do maior susto da minha vida, e que
não queria adiar mais isto, com medo de desaparecer sem conhecê-lo. Não
respondi, pois não? Respondo que não. Era domingo. Chorei tanto, nesse
dia. Tive-lhe tanta raiva, nesse dia. Tanta mágoa. Mas ele não sabe. Não
sabemos quase nada, mas já sabemos mais do que alguma vez soubemos.
Respondo que fiquei... Não consigo falar. Pede desculpa. Estende a mão
sobre a mesa. Estendo a minha. Olhamo-nos longamente. Hoje conheci o
meu irmão. Jantei com o meu irmão. Dividi um crumble de maçã com o
meu irmão. Tomei café com o meu irmão. Conheci um amigo do meu
irmão. Beijei o meu irmão. Abracei o meu irmão. Ri com o meu irmão.
Estive em silêncio com o meu irmão. Esperei pelo metro com o meu irmão.
Conversei com o meu irmão sobre detalhes e sobre banalidades, sobre as
grandes coisas e sobre as nossas batalhas. Hoje fomos mais do que tudo o
que nos separou até então. Hoje ouvi o meu irmão dizer o meu nome. E eu
acho que nem disse o dele, mas hoje aceitei o meu irmão.
Gardénias Brancas
Nunca gostei de me sentar na parte de trás do autocarro. Já desde os
tempos de escola parecia ser o lugar reservado (reivindicado por eles, até)
aos rufias, mal-comportados e barulhentos. Ao longo dos anos, sempre
preferi as primeiras filas e os primeiros lugares, na sala de aula e nos
transportes públicos. Ando de transportes quase todos os dias, já sem regras
muito definidas sobre a parte da frente ou o fundo, mas hoje reflicto muito
mais sobre o lugar que ocupo, interior e exterior.
Outro dia respondi a um anúncio para uma curta-metragem. Enviei duas
fotografias, o clássico rosto e corpo inteiro, e algumas informações. Em
resposta, ouvi que gostaram muito do meu look, e que havia um outro papel
para o qual queriam que eu lesse: o de senhora da limpeza, cleaning lady (é
uma curta norte-americana), empregada, governanta, como quiserem
chamar. Talvez alguns ainda sejam do tempo em que se dizia criada. Eu não
sou malcriada, e como encontro sempre algo de positivo em tudo, lembrei-
me de imediato da empregada mais famosa retratada por uma negra: a
Mammy, de E Tudo o Vento Levou. Foi este papel que arrecadou o primeiro
Óscar alguma vez ganho por um afro-americano. Entre o Óscar de
McDaniel e o de Whoopi Goldberg, a segunda a ganhar o prémio de melhor
actriz secundária, passariam cinquenta anos.
Este meio século é maior do que o espaço temporal que separa a primeira
modelo negra a encerrar um desfile Chanel vestida de noiva, Alek Wek, da
segunda, Adut Akech Bior. Este ano, contudo, Karl Lagerfeld voltaria a
estar nas bocas do mundo pois, em mais de um século de existência,
finalmente a marca contratou o seu primeiro modelo negro, Alton Mason.
Confesso, envergonhada, que nunca pensei muito nos modelos negros
masculinos: onde estariam, se teriam trabalho. Talvez estivesse muito
ocupada a olhar para Naomi Campbell, detentora de tantas primeiras vezes
(primeira modelo negra a aparecer na capa das Vogue inglesa e francesa, e
na revista Time) numa carreira que, por momentos, quando era muito nova,
pensei seguir. Ser a primeira pessoa a conseguir algo, quando isso acarreta
uma afirmação muito maior do que a pessoal, é uma responsabilidade
agridoce. Quando se trata de minorias étnicas, ainda mais. Sandra Oh foi,
também em 2018, a primeira actriz de descendência asiática nomeada para
um Emmy, prémio que existe há setenta anos. Ser o segundo ou o terceiro
ainda pesa muito, sobretudo se os intervalos entre os feitos forem de
décadas. Cada conquista é um peso e um bálsamo, um evento e uma
revolução, um movimento ou a promessa de mais lugares, visibilidade e
igualdade. Hattie McDaniel fez história num hotel segregado, não podendo
sentar-se no mesmo lugar que os seus pares. Por não se ter assumido
politicamente e ter feito papéis estereotipados, foi criticada pela
comunidade negra, ao que respondeu celebremente que poderia ser uma
empregada e ganhar sete dólares por dia ou fazer de empregada e ganhar
setecentos dólares por semana. Sobre o escândalo de Kevin Hart, e a
apresentação dos prémios da Academia, alguém disse que Hart não deveria
pedir desculpa novamente por declarações do passado, pelas quais se
achava já redimido, pois a Academia nunca o fez em relação a McDaniel. O
tempo passa, mas a hipocrisia não. Se o tivesse, poderia marcar os dias no
calendário Pirelli 2018, totalmente protagonizado por negros, com temática
de Alice no País das Maravilhas e até um coelho preto.
Aguardo o resultado do casting. Nunca trabalhei nas limpezas, mas sou
obcecada por elas. Acredito que é impossível não sorrir e abanar a cabeça
ao passar por uma cabo-verdiana a falar alegremente ao telemóvel com
alguma amiga, enquanto faz o seu trabalho. Se perceberem crioulo, ainda
melhor: têm a experiência completa. O cliché é real e a luta também.
Acredito em ter flores no cabelo, em vida e na morte, como foi expresso por
McDaniel enquanto desejo fúnebre. McDaniel, que era filha de antigos
escravos, e fez o papel de uma; McDaniel, a actriz de vestido azul e
gardénias no cabelo, cuja presença em determinados lugares dependia de
chamadas, pedidos e favores, devido às leis da altura, e que nem assim pôde
assistir à estreia do seu filme. McDaniel, que tinha um agente branco, e
também foi a primeira actriz negra a ter o seu próprio programa de rádio,
lutou para que os negros pudessem viver na zona das famílias brancas em
Los Angeles. McDaniel, cujo prémio físico, na altura ainda não uma
estatueta, se perdeu e nunca foi recuperado. McDaniel, com uma estrela no
passeio da fama mas rejeitada no cemitério que escolhera. McDaniel, que
sabia quem era quando as câmaras deixavam de gravar e que fez inúmeros
papéis sem ser creditada por eles. Hattie fez a sua escolha e o seu papel num
mundo muito mais fechado do que o de hoje. Talvez pudéssemos todos dar
mais a cada causa, ou talvez nos vejamos sujeitos a ter de fazer o que
abominamos em prol de facilitar as coisas para quem vier depois. Para
dizer: estou aqui. Para que outros não tenham de fazer o mesmo.
Gostaria que fossem precisas cada vez menos autorizações para existir.
Mas também gostaria que fizéssemos tão mais do que isso. Gostaria de
definir o meu lugar e o meu papel. Gostaria de fazer a empregada da
limpeza na curta, mas só porque sei que também o faria fora da tela, se
precisasse de sobreviver, e que isso não me define, nem define o meu valor.
Às vezes, antes de podermos servir a causa, ou para podermos servir-nos
melhor uns aos outros, temos de nos servir a nós mesmos primeiro.
Ninguém o disse melhor do que Daniel Faria: «Não acredito que cada um
tenha o seu lugar. Acredito que cada um é um lugar para os outros.» Ele era
mais de magnólias, mas sei que teria entendido a beleza das gardénias
brancas.
Biquíni cor-de-rosa
Queria escrever sobre desilusão. Uma desilusão que não precisa de ser
grande para me deixar sem palavras. Basta-lhe ser profunda ou, a mim,
sensível. Vir em pequenas doses ou em formato familiar. Familiar, não
económico, porque quem desilude não poupa. Não deveríamos medir a
nossa noção de normalidade pelo grau de desilusão que os outros nos
causam. Mas há dias assim.
Era extremamente bonita. Foi um jogo de quatro em linha que nos
aproximou. Ela perdeu demasiadas vezes, com demasiada facilidade.
«Troca para as amarelas», sugeri. Alguém, da mesma idade, apenas uns
meses mais velho, gozava-a, «Usa a inteligência», ria-se, com as
gargalhadas cristalinas como só quem nos conhece desde sempre pode ter
perante a nossa desgraça sem nos magoar. A partir dali a sorte mudou, com
a sorte que basta imaginarmos para que surja. Ou talvez apenas começasse a
apanhar-lhe o jeito. Mais tarde, perdi a conta aos litros de água que me
atirou para cima, numa guerra claramente desleal. Fez de mim o que quis.
Puxou-me as pernas, trepou para os meus ombros, abraçou-me com força.
Pediu que lhe apanhasse o cabelo ao alto. Perguntou se era casada, e se
gostaria de ter filhos. Se conhecia pessoas famosas. Se sabia nadar. Falou-
me dos gatos, perguntou onde morava, fez-me rir muito. Mostrámos fotos
uma à outra. Invejei-lhe o biquíni cor-de-rosa, tão mais giro do que o meu.
Falou-me dos dois actuais namorados à frente do ex. Pediu-me que lhe
tirasse fotos, que brincasse com ela. Tinha, sem o saber, o nome que me
desarmará sempre. Os olhos verdes como as árvores.
Mais tarde, choraria abraçada à mãe. Um choro dorido, que eu não
conseguia compreender, de início. Despedi-me dela. Perguntaram-lhe se
queria ficar, e chorou ainda com mais força. Voltei para o meu lugar na
relva. Ela chegou pouco depois. «Senta-te, e conta-me os teus problemas»,
disse-lhe. E ela contou. As pernas cruzadas, o vestido rosa e branco, as
mãos que arrancavam pequenos fios do chão, as lágrimas a regar tudo.
Falou com a grandeza que já tem, crescida como foi obrigada a ser. Nunca
nos tínhamos visto antes, e como era difícil alcançar numa golfada tudo o
que ela me dizia do alto dos seus quase onze anos. Falou do pai e da família
dele, do padrasto e do quanto a mãe sofrera daquela vez em que se
separaram e o quão receosa vivia com medo de que isso se repetisse. Do
medo que tinha de que a mãe morresse. Nunca nos tínhamos visto antes, e
eu já não suportava vê-la assim, era como se também eu a tivesse conhecido
desde sempre. O meu braço deslizou para trás das costas dela, e a minha voz
embargada procurou, na sua impotência, algo de sensato para dizer. Há
muito que não sentia assim tão minha a dor de outra pessoa. E que pessoa.
«São coisas assim que tornam o coração vulnerável», escreveu o poeta.
Sempre houve crianças nos seus versos. Espero que sempre as haja na
minha vida. Queria escrever sobre desilusão. Daquela que nos esmaga e
silencia. Mas mais tarde ou mais cedo voltará a ser domingo e haverá luz. E
tudo terá passado.
Bálsamo
Há dias em que nos expomos ainda mais do que o habitual. Dias em que
alguém nos magoa, com ou sem intenção. Dias em que parecemos ter um
alvo nas costas. Dias em que a pele é, toda ela, um alvo. Dias que já são
semanas e meses a tentar quebrar-nos e a conseguir, ou quase. Dias em que
finalmente saímos do único refúgio que temos com vontade de nunca mais
voltar, como tantos já fizeram ou ameaçam fazer, com vontade de dizer:
«Pronto, ganharam.» Que alguém esteja feliz, mesmo se à custa do coração
alheio. Dias em que nos perguntamos, «mas quem é que me conhece,
mesmo?» E, ainda, «como é possível que ninguém aqui me conheça afinal,
se eu sou tão transparente?» Não somos impunes, sabemos as nossas falhas
melhor do que ninguém, torturamo-nos constantemente, exigimos
demasiado de nós mesmos, mas isso não dá a outros o direito de nos fazer
sentir como se não tivéssemos valor. E, no entanto, é isso o que acontece.
Dias em que a ansiedade nos leva ao limite. A nós, que temos limites quase
ilimitados. Dias dos quais esperamos muito pouco, e mesmo esse pouco nos
é tirado. Dias em que nos sentimos invisíveis por um lado e o bobo da corte
por outro. Dias em que queremos desaparecer de vergonha e de tristeza,
apesar dos esforços de duas ou três âncoras bem-intencionadas. Dias sobre
os quais já nem escrevemos para tentar enganar a memória. Mas depois,
depois há dias em que alguém por quem já não esperávamos dessa vez,
vem. E na verdade nada muda. Amanhã teremos, depois de outra noite de
insónia, de recomeçar com a dignidade um pouco menos intacta, o sorriso
um pouco mais fechado, o olhar mais cabisbaixo, até que eventualmente
voltamos a ser quem somos, alguém de quem os outros podem ou não
gostar, alguém que ri alto, ri muito, fala muito, chora muito, luta muito,
sonha muito, ama muito.
Mas falava de regressos. Falava de reencontros. Falava de um momento
que imaginei e receei centenas de vezes. Falava de ter mudado e de não
querer aceitar isso. De ter enfrentado o meu espelho mais duro e ter
sobrevivido e mesmo assim ainda recusar reconhecer uma parte ínfima que
fosse, primeiro por medo, depois por estupidez, talvez até por orgulho.
Como se o tempo pudesse, realmente, ser remendado. Como se a negação
fosse mais do que isso. Falava de ti. Dos olhos brilhantes e dos ombros
estreitos cuja altura uso para medir a minha. Das milhares de t-shirts pretas
que já compraste e que usas como uma segunda pele. Do sorriso sincero. Do
riso que tantas vezes fez coro com o meu. Da mãe e dos irmãos, do pai. Das
reticências que adoras usar mas que nunca tens quando ages. Do amigo que
uma vez me desafiou a entrar num avião para te ver e eu não podia. Da
minha irmã. Da amiga pela qual perguntaste. De tudo o que tem acontecido.
Das coincidências. Dos momentos mais baixos. Do momento em que tudo
mudou para melhor. Das grandes mudanças e das coisas que não se
recuperam. Falava de continuares a ser uma das minhas pessoas preferidas e
de como nada vai mudar isso. Falava de não me sentir tão bem há algum
tempo. Falava de tempo. Deste-me tempo e chocolate quente num dia muito
frio por dentro. Estás em todos os meus livros porque sou melhor por ter-te
conhecido. Já me disseram muitas coisas, desde as realmente maravilhosas
às realmente abomináveis. Tu sabes. Eu contei-te. Até nós já trocámos
palavras duras e silêncios amargos.
Passou muito tempo. Ninguém diria, se nos visse. Dois minutos contigo e
tenho outra vez vinte e dois anos e uma felicidade de desenho animado.
Agora estamos nos trinta e moramos em países diferentes mas o que é a
distância, afinal? O que é o tempo, afinal? E o que é a amizade, afinal,
senão isto mesmo? Foram tuas as palavras mais bonitas que alguém me
disse: «Qualquer pai gostaria de ter uma filha como tu.» Era de tarde e eu ia
apanhar o comboio. Estava sol. Contigo estava sempre sol. Esperaste muitos
comboios comigo. Tu andavas sempre de autocarro.
Passaram oito anos. Hoje não havia música, ou se havia eu não a ouvia.
Disseste-me sítios onde moraste, onde trabalhaste e onde jogaste basquete, e
eu disse que sabia tanta coisa sobre ti mas não essas. Pedi, horrorizada, que
parasses de falar no que fizeste nos anos noventa e tu disseste que serias
sempre um miúdo. E, por falar em miúdos, só o teu irmão para fazer
dezanove anos. Disseste-me o quanto gostavas de conduzir, as saudades que
tinhas de fazê-lo, e eu respondi que era a primeira vez que andava de carro
contigo. Rimos. Hoje levaste-me a casa sem eu ter de dizer onde era. O que
eu não disse é que já tinha chegado. Disseste, eu andei nesta escola. Ali foi
onde tive o primeiro trabalho. Eu respondi, já valeu a pena ter vindo viver
para aqui. Tu disseste, «Estás na mesma». Era o que eu mais precisava de
ouvir neste mundo.
Ti Coelho
O Ti Coelho não me reconheceu, quando nos encontrámos, por acaso, na
quarta-feira. Apenas fingiu que sim. «Parece que me lembro, menina, mas
não estou a ver de onde...» Nalgum lugar da sua memória, talvez acreditasse
no que eu lhe dizia, que nos conhecíamos do Kiwi, o restaurante que ele
teve durante muitos anos na Antero de Quental, e onde eu almocei e tomei
café quase todos os dias durante pouco mais de um ano, já a crise ditara que
se não abrisse à hora de jantar. A crise dele e da esposa, por quem tive
receio de perguntar, num dos anos em que eu mais dinheiro ganhei. A
minha crise era outra, então. Comida simples, boa e barata, era só descer um
pouco e atravessar a estrada. Actinidia deliciosa. A Ariana diz que é a fruta
mais bonita e sinto-me tentada a concordar. Havia um grupo de amigos que
ocupava a maior parte do espaço a um dia fixo da semana desde há muitos
anos. Sempre quis ter essa rotina com alguém, conheço quem tenha e acho
saudável. É bonito, quando a amizade é um hábito, porque, de facto,
parecemos cada vez mais desabituados uns aos outros. Muitas conversas,
reuniões, alguns dramas e piadas, sempre que o Ti Coelho fazia traduções
do latim, mas dizia não saber o que o carpe diem na tatuagem de alguém
significava. Nunca ouvi falar nisso, dizia. Pois é, ele não se lembrava de
mim. Não propriamente. Não do modo que faria com que me abordasse
com a rapidez e a alegria com que eu o fiz. Não do modo como fez um
rapaz na outra semana, quando eu estava a olhar para o horário da roda
gigante no Marquês e uma voz confirmou o que eu dizia à Diana, que a roda
já estava fechada. Na altura, foi natural o que sorrimos naqueles segundos.
Podia ter sido no dia anterior, termos ido trabalhar, ou sair com os amigos,
ou voltar para casa a pé. Podia ter sido no dia anterior que ele decidiu ir
para casa em vez de ir ver uma amiga que, na realidade, já cá não estava,
que já não era ela. Podia ter sido no dia anterior ao churrasco da Petra.
Podia ter sido no dia anterior o meu aniversário, a vela num queque e a
prenda, um livro sobre viagens em África, para eu estar «mais em contacto»
com as minhas origens. Podia ter sido no dia anterior ao carro da Tânia ficar
sem bateria. Podia ter sido no dia anterior a eu ter começado a levar a
máquina para todo o lado, mas eu não via o Cláudio há sete ou oito anos.
Mas não pensei nisso quando vi o Ti Coelho. E eu não o via, a ele, há cinco
anos. Ele ainda era ele. Mas depois percebi que não podia esperar que me
reconhecesse. Porque aquela rapariga que o Ti Coelho conheceu não era
nada parecida comigo. Eu sabia que era eu. Mas quase mais ninguém sabia.
Essa é a diferença. Para um, eu nunca fui. Para outro, eu nunca deixei de
ser. Como explicamos a alguém que, só agora, de fugida, num corredor de
um edifício no hospital onde eu nunca tinha entrado, é que está, realmente, a
ver-nos pela primeira vez? E que, mesmo assim, ainda falta? Eu não era eu,
poderia ter dito. Naquele ano não fui eu que vim, foi tudo o que me
aconteceu em anos anteriores. Mas o tempo estava a contar, ele tinha
pessoas à espera e eu também, apenas não aquelas com quem ele esperava
que estivesse tudo bem. Não lhe disse que não sabia se estava. Não lhe disse
tudo o que tinha mudado. Talvez daqui a uns anos nos reencontremos e ele
não me reconheça de todo. Talvez eu apenas lhe sorria sem dizer nada e lho
perdoe. Talvez os quilos pesem mais do que os anos, na memória de
alguém. Na minha, sei que sim. Talvez haja coisas impossíveis de esquecer
mas das quais nos possamos ir lembrando cada vez pior, mesmo se vivemos
nelas a vida toda. Ou quase. Talvez seja a única forma de nos mantermos
sãos. Poderia ter explicado isso, também, mas ultimamente tenho aprendido
muito sobre o que é preciso ou não dizer, que é como quem diz, tenho
aprendido muito sobre mim, que eu ainda vou ser.
Sob o sol cruel
Foi ontem à tarde. Cheguei atrasada, subi as escadas rolantes bem
devagarinho, ou melhor, deixei que elas me transportassem, subi as escadas-
não-rolantes abanando a cabeça, arrependida mais uma vez. Olhei e não o
vi. Liguei-lhe, disse-lhe onde estava, vi-o passar por mim sem me ver, pus-
lhe a mão nas costas e ele virou-se para me cumprimentar. Segurou-me na
mão com aquela mão áspera, grossa, de quem sempre trabalhou com as
mãos. Dois beijos e um abraço rápido e a fraqueza total.
Comecei a chorar como uma criança pequena ali, no meio da confusão
habitual de um sábado à tarde no Chiado, e aquele homem a querer
confortar-me. Só conseguia pensar no que pensariam as pessoas que
conseguissem aperceber-se de alguma coisa. Só conseguia pensar que era
uma pessoa menos forte do que queria e do que julgava. Senti-me como
aquelas pessoas que vemos na tv constantemente a reverem os seus
familiares ao final de tantos anos, sobre as brancas e artificiais luzes do
estúdio, e pensei que havia uma diferença; essas pessoas reviam pessoas de
quem gostavam, procuravam anos e anos na esperança de rever um amigo
ou uma mãe, tio ou irmã. Eu tinha ali o meu pai, que não via há quatro anos,
de quem nunca gostei, que já odiei, até, de quem nunca senti o mínimo de
saudades, de quem desisti era ainda criança. Eu tinha ali o estranho mais
próximo e fisicamente mais parecido comigo (mãos e pés grandes, o nariz, a
altura, o sinal debaixo do braço esquerdo, que já a avó carregava também)
que havia na minha vida e chorava chorava chorava sem consolo possível e
sem saber porquê.
A minha irmã não quis ir, e como eu a compreendo. Eu também não
queria. Até há uns meses eu nem tinha o número dele ou ele o meu. Quando
a minha mãe me disse que ele o queria, quando ela me tentou convencer a
encontrar-me com ele senti-me tão zangada que chorei – parece que é algo
que faço com muita frequência. Fui adiando (até decidir telefonar-lhe,
passei semanas inteiras a ignorar os telefonemas dele), sempre adiando este
reencontro.
Eu tinha uma pergunta a martelar-me a cabeça, um «Porquê? Porquê
agora, para quê, com que intenção?», e não a coloquei ontem. Foi tudo
muito enervante e estranho e silencioso, com perguntas muito triviais e
respostas sucintas. Podemos viver mais de vinte anos na mesma casa com
alguém e conhecer somente o seu pior lado. Podemos ser a única pessoa que
o conhece. É muito complicado. Foi muito complicado estar ali na Rua
Anchieta a percorrer as bancas de livros em segunda mão com ele. Foi
muito complicado fazer fila à porta da gelataria, lendo por cima do ombro
as mensagens que um moço italiano trocava com uma signorina para me
distrair da tensão do momento. Foi muito complicado descer a pé até ao
Cais do Sodré, rumo ao carro, com um gelado enorme a derreter-se mão
abaixo. Foi muito complicado lidar com todas as vezes que ele me fez festas
na mão, no cabelo e nas costas. Foi muito complicado ele ter querido dar-
me boleia até à Amadora, e termos andado perdidos, e tê-lo apresentado à
minha amiga com A grande: «O teu pai é tão novo.» Foi muito complicado
mas foi pacífico. Não foi como todas as vezes com a minha mãe, agressivo,
violento, a afogarmo-nos no passado - isso ainda está por resolver.
Um dia de cada vez, com lentidão extrema, sem expectativas da outra
parte, porque eu nunca poderei tê-las. Não acredito que as pessoas mudem,
nem vou começar a acreditar agora. Aprendi a aceitar que os meus pais são
o que são, que são como são. Ele nunca soube que entre mim e a minha
irmã nunca o tratámos por pai, mas sim por «ele». Agora chama-nos filhas e
isso revolta-me um bocado. É complicado. Mas hoje sei que já não carrego
aquele fardo odioso em mim, hoje sei que ele nunca mais vai poder tirar-me
o muito ou pouco que conquistei sozinha. Hoje sei que não é só o meu
passado que me define. Hoje sei que se calhar até não sou assim tão fraca.
Hoje estou mais em paz. Isto não me tirou nada, mas talvez me devolva
alguma coisa.
Nunca mais fiz o pino
Estou a ler Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie. Podia dizer que
estou a gostar muito, que me identifico com a protagonista, que o
recomendo. Já disse isto de outros livros. Hoje é um dia como tantos outros,
não estou particularmente sensível, mas talvez isso não importe quando, tal
como o tema, se é sensível. E este livro está repleto de momentos e temas
sensíveis. Até agora tudo bem, só que estava aqui muito sossegada e quando
dei por mim lá soltei umas lágrimas valentes entre a página 281 e a 283.
Sobretudo nesta última. Lembrei-me de, na escola primária, antes daquela
vez em que queria fazer um pino-ponte e caí de costas e me doeu horrores e
nunca mais fiz nem pinos nem rodas nem pontes (ah! mais um trauma),
estar precisamente a fazer o pino, com outras raparigas, umas do mesmo
ano e outras mais velhas, e de algumas estarem a ver quanto tempo
aguentavam. Alguém disse, «Se ficares assim demasiado tempo o sangue
vai todo para a cabeça e ficas vermelha.» E esse mesmo alguém olhou para
mim e disse, «Tu não sei como ficas». E mesmo com a memória que tenho
há coisas que fui aprendendo a esquecer, mas esta não foi uma delas. Com
tudo o que se está a passar nos EUA, e com tudo o que ainda se passa em
tantos sítios e ninguém faz disso notícia, não podia deixar de falar nisto.
Porque as grandes coisas feias começam com comentários destes. Pequenas
coisas ditas sem noção, sem conhecimento, por vezes até sem intenção. Em
tenra idade, infelizmente muitas vezes não são mais do que projecções da
vida familiar, do que se ouve e observa por parte dos mais velhos, e é
assustador pensar que isso possa ser um legado. A verdade é que há
demasiadas situações destas, facilmente desdramatizadas e banalizadas, que
afectam quem é alvo delas para sempre. Como uma farpa impossível de
tirar, que nos esforçamos para esquecer e que qualquer pequena pancada faz
doer. Podia falar sobre isto, sobre estes pequenos, grandes e cortantes
traumas, e sobre quão pouco o mundo mudou realmente neste aspecto a
noite toda, mas não quero. Já começo a deixar demasiada coisa por concluir
porque por mais que fale, continuo sem palavras para tanta... Isso.
Trinta dias de silêncio
Há seis meses esta segunda-feira calhou a um domingo. Era 29 de Junho,
estava um dia bonito e eu acordei com 95% das minhas coisas noutra
cidade. Ao mesmo tempo, continuava a ter esses mesmos 95% de coisas ali,
naquele código postal que viera habitar há cerca de um ano mas que já
conhecia bem há três. Só que essas não eram as minhas coisas. Eram as
nossas coisas. Desse dia recordo tudo. A tosta e o café ingeridos com
demasiada estranheza para quem não jantara ou dormira na noite anterior,
os velhos nas suas rotinas plácidas, o exterior tão igual a si mesmo. E
ninguém que soubesse. Ninguém que me olhasse com pena, ou compaixão,
ou compreensão, ou reprovação. Chegaste, a t-shirt vermelha e o rosto
fechado. A mesma pergunta repetida milhares de vezes, «Tens alguma coisa
para me dizer?», e a resposta de sempre. Não. Ou tenho, mas não isso. Ou
tenho, mas não quero dizer porque não é o que está em causa, pelo menos
para mim.
Tirei-te uma fotografia, a última, às escondidas, as unhas redondas e os
ombros pontiagudos. O teu rosto impassível. O permanecer impossível.
Lemos o jornal e a revista em silêncio. Voltámos e eu coloquei tudo à porta.
Recusei a tua ajuda. Recusei esperar pelo táxi ali. Foste fumar um cigarro e
eu abracei uma pedra que não me abraçou de volta. Foi na cozinha. Eu
gostava muito da nossa cozinha. Disse, não acredito que vais deixar-me ir
embora assim. E tu não disseste nada.
Desci, e desta vez não me senti a perder as forças como no dia anterior,
quando subi e desci as escadas dolorosamente para carregar o carro. Desci e
desta vez não chorei com um pé a impedir que a porta do prédio se fechasse.
Desci e desta vez não apareceu nenhum vizinho para testemunhar a minha
vergonha. Desci e desta vez não tinha a melhor amiga para me fazer uma
festa e dizer-me que fosse corajosa, que iria conseguir. Não. Desta vez desci
e não voltei uma hora mais tarde, como no dia anterior, porque a despedida
já estava feita. Desta vez desci e olhei para trás para ver se estarias à janela,
mas não estavas. Desta vez desci, fiz um telefonema breve e, antes que o
carro virasse a esquina, comecei a chorar. Talvez devesse dizer, continuei a
chorar. Porque era uma constante há já demasiado tempo. Mas agora era um
choro diferente, por isso talvez tenha sido mesmo um começo. O começo de
mais de trinta dias de dilúvio interior e exterior.
Alguém disse, «Vai haver dias em que vais achar que as lágrimas já
secaram e vai haver dias em que vais achar que estás a afogar-te nelas».
Chorei no supermercado. Chorei no trabalho. Chorei à porta do frigorífico.
Chorei em todas as divisões da casa. Chorei à mesa do jantar. Chorei
quando finalmente te devolvi as chaves e nem sequer estavas lá. Chorei
quando vi a lista de compras em cima da mesa da cozinha e chorei quando a
completei com o que faltava e risquei o que já havia. Chorei quando tirei
uma fotografia a essa estúpida lista. Chorei na rua. Chorei nos transportes.
Chorei porque durante dois meses e meio as chaves que trazia e as portas
que elas abriam não eram minhas. Chorei em casa dos meus pais. Chorei de
dia, de tarde, de noite. Chorei em silêncio e chorei demasiado alto. Chorei
para cima das cartas a que nunca respondeste. Chorei ao telefone. Chorei
entre mensagens.
Os dias passaram demasiado devagar, com cada hora a ser sentida como
um ferro em brasa. Falei contigo, falei com estranhos, falei com amigos,
falei comigo mesma. Pensei que não iria sobreviver. Fiz um calendário para
me disciplinar. Recomecei-o vezes sem conta. E, depois, um dia, parei de
chorar. E a esse juntou-se outro, e outro, e ainda outro. Comecei outro
calendário. Agora tinha dois, e era uma prisioneira à espera do dia em que
pudesse sair livre. Livre de ti, de nós, de tudo o que nunca fomos nem
viríamos a ser. Livre do que éramos mas que não chegava. Trinta dias sem
lágrimas, o primeiro. Trinta dias de silêncio, o segundo. Num bloco com
toureiros e bailarinas de flamenco que a minha tia me deu quando foi a
Madrid por dois ou três dias. Seis meses são muitos dias. Dias de mudanças,
dias de zangas, de gargalhadas, de afirmação. De desolação. Dias de
aprendizagem e dias de retrocesso. Dias em que te vejo e me lembro de tudo
o que tive coragem de fazer por amor a ti. Dias em que te vejo e sei que não
era ali que eu pertencia. Dias de trabalho, de ansiedade, dias em que a
comida não me soube a nada. Dias em que não sabia o que fazer. Dias de
vazio e de serenidade. Dias de leitura. Dias de passeio e de liberdade. Dias
comigo, como nunca tive na vida. Dias em que perdi peso. Dias em que
recomecei vez após vez a minha vida. Dias de dúvida e dias de medo. Dias
em que nem conseguia falar e dias em que só queria falar. Dias em que tive
de ganhar coragem para desfazer as malas com medo de desfazer-me a mim
mesma. Dias em que tive de aceitar a minha nova realidade. Dias melhores,
que vieram.
Luto
Hoje acordei à hora de sempre. Para a luz de sempre. Para o rio de
sempre. Com o sorriso de sempre. Subi para a balança, como sempre. Ri-me
com o que ela disse, e não me dizia há um mês. Na verdade, o que ela disse,
hoje, não me dizia há anos, mas na altura eu não reparei. Era ainda o tempo
em que as coisas, quando surgiam, se deixavam ficar e não passavam. Eu
não as deixava passar. Tudo era pedra e subida e a erosão, invertida. Mas
não agora. Agora eu gosto da balança, do equilíbrio, da mudança. Gosto
sobretudo de perder. Fiz de perder o meu ofício. Uma e outra e outra vez
ainda. Coisas, pessoas, cidades, trabalho. Medos, dúvidas, cabelo, um dente,
a maior parte de um órgão interno e uma lasca do osso da bacia. E a mim.
Até a mim perdi. Sobretudo a mim. E, quando alguém faz o seu próprio luto
tantas vezes quantas eu fiz, as flores são sempre frescas, talvez por não
serem colhidas por mãos alheias, e a coroa está sempre posta, não sobre o
peito, mas sobre a cabeça. Mesmo nos dias em que pareço tê-la deixado em
casa.
Domingo
Os últimos dias têm sido passados sobretudo à volta de uma mesa, ou
será assim que me recordarei deles mais tarde. Mesas onde toda a gente já
se conhece e eu não conheço quase ninguém, mesas onde só eu conheço
toda a gente, mesas com vinte pessoas e mesas com cinco e mesas com dez.
Mesas onde falta alguém e mesas às quais se senta quem já não
esperávamos mas cuja presença nos aquece. Mesas onde se fala de tudo ou
não se fala de nada, como se se tivesse estado ali sentado desde sempre.
Mesas com gatos e mesas com bebés. Mesas com telefonemas e mensagens
e cadeiras que não condizem. Mesas ampliadas e mesas reduzidas. Mesas
fartas e mesas com quase nada. Mesas inventadas e mesas improvisadas.
Mesas silenciosas e barulhentas na medida perfeita.
Outra noite, alguém veio desde o rio segurando uma caixa com metade
de uma pizza lá dentro. Chegando à calçada, subindo pela parte mais
íngreme, colocou-a em cima da cabeça, em perfeito equilíbrio até casa,
passando por estradas e escadas e prédios e dando uma e outra volta sobre si
mesma, apenas pela piada. Deve correr-me nas veias este dom de equilibrar
coisas como quem vai para o mercado vender, disse. Depois, lembrou-se de
que era assim, a segurar livros apenas com a cabeça que, antigamente pelo
menos, se treinava a postura das princesas. Então as mulheres que vão a pé
para o mercado todos os dias sempre foram princesas e talvez até mais do
que isso. Certamente mais do que isso, porque as mulheres não se medem
aos pares de sapatos nem aos tamanhos dos pés descalços.
Mas falava eu de uma caixa de pizza com metade lá dentro. Que em nada
me pesava. Ou quase nada. Foi-me oferecida mas não a provei no momento.
Não era minha, mas era a metáfora perfeita para tudo o que senti nas
últimas semanas. Que estava pela metade. A meio gás, a meio dia, a meia
página, a meia paz, a meia luz. Na noite seguinte, a metade de pizza
desapareceu. Na mesa restaram uma flor vermelha, oferecida, um cacho de
bananas, dois bolos de coco, uma caixa de plástico com bolachas de água e
sal e ainda a presença de quem já faz tão parte que nem precisa de estar para
que eu me sinta acompanhada.
As inquietações nem sempre podem ser comidas, e o meu estômago está
muito longe do que costumava ser. Não vou a casa dos meus pais há algum
tempo e tenho saudades dessa que é a melhor e maior cozinha, com a
melhor cozinheira, a melhor luz, as mais alegres e tristes histórias. Não
tenho ido porque sei que a minha irmã agora faz as refeições noutra
cozinha, noutro país. Tem-me custado usar a palavra casa para um lugar
onde ela não esteja, mas depois ela manda uma mensagem com algo que me
faz rir e o meu coração sossega. Ou alguém vem de muito longe só para
estar comigo. Ou alguém vai buscar-me à mesa onde estou sozinha e me
senta à sua.
Outro dia atravessei a estrada e fui a uma casa onde não ia há muitos
anos. Uma casa onde sempre fui sozinha, eram anos muito negros e eu
sentia-me sempre de luto. Estava lá tanta gente, quando cheguei. Quando
saí, tão mais leve, já não restava quase ninguém. Desta vez não escrevi, não
li, fiquei ali apenas a fazer o que faço tantas vezes, vergada por um peso
quase igual ao que perdi. Mas não é só isso o que me tem vergado. A
bondade, sobretudo a bondade inesperada, deita-me abaixo e ergue-me
sempre mais alta por dentro. Aquela já não é a minha casa há muito tempo,
mas ainda é. Saí de lá a rir (como alguém disse outro dia que nasci) por uma
pequena porta secreta que dava para as traseiras, depois de ter pensado,
«Não acredito que fiquei presa outra vez.» Eu tinha vindo de uma outra
casa, também tão familiar, a que regressei este ano. Alguém me disse,
«Normalmente invejo o seu ar tão bem-disposto, mas ultimamente tem um
ar carregado.» E alguém me disse, «Vê como agora está mais bonita, agora
que já não está a chorar?» Professores. Este ano aprendi que se pode
regressar de tudo, até da desilusão profunda. Este ano ganhei, perdi e
recuperei pessoas de quem gosto muito, e agora tenho vindo a perdê-las,
novamente, um bocadinho, e da maneira certa, porque estão a fazer de tudo
para serem mais felizes e isso dá-me tanta coragem, mesmo que agora
tenhamos de encontrar novas mesas às quais nos sentarmos.
Há bocado, estava a preparar-me para voltar a sair, mas alguém disse,
«Vamos beber o nosso café?». Vamos. E fiquei. Alguém mais se juntou.
Alguém chorou muito a esta mesa. Alguém riu muito. Alguém comeu e
alguém leu poesia. Alguém cantou as músicas da sua adolescência e da sua
comédia romântica preferida. Alguém leu a sua revista de sempre. Alguém
lavou a loiça. Pus a tocar a Sparrows over Birmingham. Alguém disse,
«Parece o fim de uma série, nós aqui e esta música a tocar, é tão fixe». E
disse para a gata, com um sorriso, «E tu também fazes parte da série». O sol
inundava tudo, o rio brilhava. Era domingo e estávamos em casa. Em
família. Mas talvez tudo isto seja só a minha cabeça a ter um formato e
pensamentos estranhos.
Ardósia
Encontro folhas e raminhos minúsculos quando tiro a roupa, acabada de
chegar, espantada por tê-los esquecido assim que se depositaram em mim,
apesar do vento, e de não mais os ter sentido. Não sou tão compreensiva
com as pedrinhas que, desde há um ano, pareço ter mais e mais vezes nos
sapatos, nos de ténis e nos outros. As pedrinhas, agora. Desde sempre, as
pestanas, aquele fio de cabelo preso ao bâton, uma linha pendurada, a
etiqueta por cortar.
Uns casam, outros ficam noivos, outros dão as boas-vindas à primeira
filha (parabéns). Eu colo mais folhas de ardósia na parede, escrevo, penso
que vou precisar de mais ardósia, amaldiçoo o giz de fraca qualidade, ou
talvez seja a força do que desperta em mim aquilo que anoto e que, espero,
venha a ter qualidade. Descubro um brilhante num sítio secreto, sorrio e
espero que dali não saia. Penso que tenho de fazer as pazes com uma pessoa
e desiludir outra. Não posso adiar mais a segurança social, e preciso que me
emprestem livros.
O rapaz com cancro que trabalha em teatro (e que mais tarde conhecerei
e descobrirei que não tem cancro e sim alopecia, como eu, mas a ex-mulher
afinal sim, tem cancro e ambos uma filha) não apareceu hoje. Havia um
cachorro novo, castanho, e um cinzento, adulto. Donos diferentes. Fiz festas
ao primeiro, porque o segundo já lá não estava. Há quase todos os tons para
pessoas que há para cães, se pensarmos até nas manchas. O cinzento é a
excepção mas quase que nem isso, não é? O empregado do quiosque deseja
bom apetite aos estrangeiros e pergunta se está tudo bem com os seus
pedidos, mas não aos de cá. Às vezes perco tempo a observar as pessoas e
perco uma boa fotografia, mas prefiro uma boa história. Sou melhor nisso,
de qualquer modo. Já faço quase tudo o que me propus. Falta a questão
maior, mas agora é diferente. E teimarei em continuar a ver o brilhante
mesmo se ele sair de lá.
Sophia
Quando era miúda, tinha por hábito coleccionar poemas nos meus
cadernos (era obcecada por folhas de papel reciclado, e colagens; na capa
deste ainda resiste uma folha de árvore... de plástico). Whitman, Neruda,
Octavio Paz, Gastão Cruz, Ramos Rosa (lembro-me de estar nas escadas da
escola com uma amiga e tentarmos ler Ramos Rosa em brasileiro, ideia
dela, foi uma risota pegada) e tudo a que conseguisse deitar a mão. Mas a
pessoa que começou isto – isto dos poemas, entenda-se, pois o resto
começou assim que vi um livro pela primeira vez – foi Sophia de Mello
Breyner. A par de Pessoa, claro, mas Pessoa é um deus e uma mulher é
diferente. E esta era muito humana nas coisas que escrevia; não escrevia
para parecer bem, e não deixava de parte nem a beleza nem a fealdade do
mundo. Eu era adolescente e os poemas dela tocavam-me profundamente,
era como se dissesse: se há dor, que a sintamos, que a expressemos, mas
mais tarde ou mais cedo vai haver também felicidade, e devemos tratá-la da
mesma forma.
Herberto Hélder
Não sei. Não consigo ir procurar nem ler poemas. Há muitos anos uma
amiga emprestou-me a sua obra completa, que foi ficando e ficando até se
tornar minha. O primeiro que procurei foi o Tríptico, porque me tinha
apaixonado já por ele. Porque se plantou de forma indelével em mim e
porque me influenciaria muito, muito. Depois, apaixonei-me pelo Aos
amigos, e desejei que para além da parte dolorosa, também não me faltasse
o talento. Ou a compreensão, porque a sua poesia e a de Fiama sempre me
pareceram as mais difíceis, as mais eruditas. Grandes livros muito lidos mas
lidos com cautela e respeito e admiração e maravilha. Por isso, não preciso
de muito para recordar algo que está sempre presente.
Há pouco, quando uma amiga me deu a notícia, nos cinco minutos depois
de me mentalizar, e depois de uma breve choradeira, o que recordei foi parte
da conversa com um amigo, em que, não percebendo nada do que eu dizia,
soltou um «Volta, Herberto Hélder, estás perdoado!», o que muito me fez
rir. Por isso, são essas as palavras que, agora, faço minhas. Volta, Herberto
Hélder. Para esse lugar de silêncio. De paixão.
No metro do Chiado à espera da Carlota
Há algum tempo que o observava: o olhar antigo, pequeno, semicerrado
mas doce, a cadela esticada mas confortável, quando se sentou ao meu lado,
depois de ter falhado mais do que uma vez a tarefa de fotografá-lo. Um dos
rapazes que costumam estar por ali a dançar veio fazer uma festa. Depois,
uma criança. Depois, a amiga de quem estava à espera e que chegou
segundos antes da mudança de lugar. A cadela derretida, sonolenta,
pachorrenta. Ela dorme assim porque é muito ligada a mim, ela dorme
comigo, não é qualquer cão que se deixa estar nesta posição. Os cães e os
gatos dormem dezoito horas por dia, não, dezasseis. Hoje em dia temos de
confiar mais nestes do que nos de duas patas. Sobretudo nos que estão na
Assembleia. É uma vergonha. Ontem uma senhora pediu-me 60 cêntimos, e
estava bem vestida. Eu dei, até dei um pouco mais, porque acho que se a
pessoa pede é porque precisa mesmo. Não sabia que o Chiado era um poeta,
está escrito naquela placa ali atrás, eu pensava que era um nome qualquer.
Eu adorava ler o António Aleixo mas agora os livros parece que estão a
perder qualidade. Artistas há muitos, mas depois acabam todos na miséria.
Tem aqui uma. Ai sim? A menina escreve? Sim, ela escreve e eu sou a musa
dela. Ai sim? Não és nada, não é nada, não acredite. Pois, artistas há muitos
mas só há um Camões. Um amigo meu acordava a meio da noite para ir
escrever e não se esquecer das coisas, então arranjei-lhe um gravador.
Acontece-lhe escrever a meio da noite? Eu desenho mas não estou em
condições de desenhar. Hoje até trouxe a cadeira para me equilibrar mas não
consegui. Nisto chega a cadela para o lado e mostra-nos o seu bloco de
desenho, as folhas soltas. Esta é a minha fase exótica, explica. E estas aqui
são aguarelas. Tulipas e mais tulipas e mãos que parecem pés e bolbos e
arabescos. Não chegamos ao fim do bloco pois aparece outra amiga.
Sorrisos e desejos mútuos de felicidades. Quando nos despedimos ainda me
pergunta, e a menina, escreve sobre Portugal ou sobre África? Hesito. Sobre
o mundo, respondo.
Pequeno-almoço
Todos os dias começam com a batalha contra o frasco de mel,
cristalizado como a minha vida parece às vezes. Eu, a quem mãe e irmã
chamaram de Mulher Hércules, porque abria todos os frascos difíceis, vejo-
me agora obrigada a subterfúgios como libertar o ar com uma faca. Um
golpe a fingir no metal. Um substituto da força que parece ter escorrido para
fora quando ninguém estava a olhar. Isto nunca te aconteceria, este forçar da
vida no sentido dos ponteiros do relógio. Primeiro, porque quando
adivinhas as horas, as adiantas sempre. Depois, porque nunca fechas
completamente frascos, gavetas, malas. Talvez porque também não fechas o
coração. Prometo deixar alguns frascos mal fechados, espalhados por aí, à
espera do teu doce regresso.
Dificuldades em Tessalónica
Eu sei que custa a acreditar, mas há três anos, este dia foi de emoções
difíceis, de muito calor e sol abrasador. Há quatro anos que eu não via nem
falava com uma pessoa que agora não consigo descrever senão como sendo
muito importante para mim. Isto é só uma nota, na altura escrevi o que tinha
a escrever sobre o assunto. Eu quero é falar de ontem à noite. Quatro
lugares, mas sobretudo os dois últimos. Um amigo fez-me chorar. Não sabia
que tinha reparado realmente em mim. Uma amiga perguntou se eu estava
bem, e disse que concordava com o rapaz que tem o coração no meio dos
pulmões. Uma rapariga veio ter comigo para dançar e acabou a segurar o
meu braço por um lado e o do meu amigo do outro, como uma criança, a
cabeça encostada naquele conforto sobre o qual a Beth Orton já cantou. É a
minha vida, disse eu. Não, é a nossa vida, corrigiu ele.
Ela voltou para o balcão e para a sua companhia original, sem que eu
conseguisse de todo entender o que me disse. Mais tarde, alguém compraria
flores para dar a uma pessoa, alguém atiraria esse mesmo ramo de flores aos
pés de outra pessoa e alguém as roubaria delicadamente a uma outra pessoa
ainda. Alguém perdeu por momentos uma camisola com cheiro a casa e
alguém tinha um chapéu de chuva com nuvens em céu azul. Um rapaz fez
um gesto que eu não compreendi logo. Disse, estou a oferecer-te um ramo
de orquídeas. E repetiu o gesto. Eu acho que quase nunca ninguém oferece
orquídeas, reais ou imaginárias. Ou talvez não a mim. Há muitos anos,
quando alguém me ofereceu flores pela primeira vez, detestei que o tivesse
feito, talvez por não poder assumi-las, e fiz saber isso mesmo. Muito tempo
depois, guardei uma única rosa vermelha, oferecida, durante anos, num
caderno que não cheguei a estrear. Este ano desfiz a rosa e transformei-a
noutra coisa. Um outro, pediu-me o ramo emprestado e com salamaleques
vários mo ofertou, uma e outra vez. Nunca te ofereceram flores assim, disse.
Mais alguém me tocou no braço. Segurava uma moeda de cinco
cêntimos, apanhada do chão. Sem falar, perguntou se era minha. Não era.
Hesitou e, então, guardou-a no bolso. Mais tarde, dir-me-ia, este é o meu
irmão mais velho, a quem eu já vira várias vezes. O chão pegajoso, os
estranhos, a música por vezes duvidosa, o fumo e as luzes serão sempre
perfeitos, se permitirem ver quem não víamos há muito tempo, ou conhecer
alguém que nos beija a mão e nós a ele, e nos deseja o que desejamos para
nós mesmos. É preciso ser-se uma pessoa muito bonita para, sendo alérgico
a flores, não deixar de oferecê-las a quem tanto as merece. Por algum
motivo, lembrei-me da história de Hans Christian Andersen (fui confirmar,
achava que era dos irmãos Grimm) sobre a menina que vendia fósforos no
Inverno. Talvez por também estas flores serem vermelhas, como de resto o
meu vestido de hoje. Mas desde que haja flores a passar de mão em mão,
flores na pista de dança, flores atrás da orelha ou na casa de um botão,
ramos a fingir de taco de basebol ou de espada para condecorar cavaleiros
de uma ordem inventada no momento, essas flores com elásticos e
remendos de fita cola, como se para serem naturais e plásticas ao mesmo
tempo, acabará sempre tudo bem.
Carla
Há um ano, neste dia, não fui trabalhar, porque tinha acabado de ficar
sem trabalho, uma decisão que não foi minha. Também fiquei, nessa
semana, sem uma parte importante mas temporária na minha vida, e essa
decisão sim, foi minha. Mas nesse dia, há um ano, nada disso importava
assim tanto. Fui a um dos meus sítios preferidos com a minha pessoa
preferida, com quem passei o dia. Muitas coisas mudaram entretanto. Mas
nada mudou entre nós porque nada vai mudar entre nós. Mesmo quando
tudo pareceu mudar entre nós: não, nada mudou entre nós.
Ninguém me faz rir tanto. Não há ninguém com quem eu goste tanto de
partilhar uma refeição ou ver um filme. Não há ninguém que perceba tão
bem o meu sentido de humor nem com quem tenha tantos ataques de riso.
Não há ninguém que se vista tão bem, a quem o cabelo curto fique tão bem,
quando o comprido já ficava a matar. Não há ninguém com quem eu prefira
estar e melhor do que fazer coisas contigo, só estar contigo e não fazer
absolutamente nada. Esta miúda cresceu e um dia dei por mim a pensar no
quanto a admiro e no quanto gostaria de ser como ela. No que ela já
conquistou e ainda vai conquistar. No quão inteligente e generosa ela é. A
minha melhor amiga.
Ainda no outro dia eu mudei e tu nunca olhaste para mim sem ser com
amor. Ainda no outro dia eras uma de duas raparigas no primeiro dia de
aulas num curso dominado por homens. Ainda no outro dia montaste e
desmontaste aparelhos electrónicos só por diversão. Ainda no outro dia
vimos os Ficheiros Secretos no escuro, no sofá da sala, tu com os olhos
fechados e eu a ter de espreitar por entre os dedos para contar-te o que
acontecia. Ainda no outro dia caíste da cama, bateste com a cabeça e eu
desatei a rir e só depois perguntei se estavas bem. Ainda no outro dia
brincámos à Sailor Moon saltando de sofá em sofá. Ainda no outro dia eu li
as legendas para tu ouvires porque não sabias ler. Ainda no outro dia estava
eu, a pequena eu, a pedir a alguém invisível e a quem via toda a gente a
pedir tudo que me desse uma irmã. És bonita e corajosa e tens bom coração.
Desde 1989 que sou muito mais feliz. O meu Abril és tu. Porque tu mudaste
a minha vida.
Estendais
Perder o comboio por dois minutos, perceber que, de qualquer modo,
deixei o passe em casa, subir, deixar o guarda-chuva, arriscando nova molha
como a de ontem, e contrariando os bons ensinamentos de Mary Poppins e
da sua herdeira, Rihanna. Ao descer, passar como habitualmente pela casa
ao nível da rua onde está sempre uma velhota de muletas e porta
entreaberta, num lusco-fusco permanente. «Menina, não se importa de me
pendurar esta manta, não? Tenho ali mais uma, acha que hoje já não
chove?» Claro que não me importo, até já perdi o comboio. Estendi uma,
depois a outra. Após uns dedos de prosa, desejei-lhe um bom domingo. A
mim, desejou que Nosso Senhor me desse muita saúde e paz e sorte. E não
sabe ela o amor que tenho aos estendais e às pessoas.
Tenho tido sempre um amanhã
Estou a ouvir músicas lamecho-sentimentalóides que ouvia aos 15 anos.
Não me apetece ouvir mais nada. Tenho muitas coisas para dizer mas estou
calada como tudo, não vale a pena dizer que não são minhas, a incapacidade
e a impossibilidade. A responsabilidade. Pelo menos a maior parte. Há
bocado olhei para os meus sapatos e ocorreu-me que poderia ter calçado
umas meias brancas, se as tivesse, assim numa de Michael Jackson ou
Audrey Hepburn. Mas só para mim. Apesar de não ser grande fã da
combinação preto, branco, vermelho. Mas foram as cores de hoje.
Tenho tido sempre um amanhã e nem sempre lhe tenho feito justiça.
Ultimamente, quase nunca. Ontem voltei a pegar num livro que a Clarinha
me ofereceu, dos muitos que já me ofereceu ao longo dos anos, e do qual
me leu umas boas passagens numas escadas quaisquer perto da RR, no
tempo em que lá trabalhava e ainda almoçávamos juntas pelo menos uma
vez por semana. Isto tudo deve querer dizer que me sinto pequena, o que é
bom, acho, porque se diminuir o suficiente pode ser que consiga mesmo
começar de novo.
Lavar a dignidade à mão
Não sei ler o futuro mais do que sei jogar às cartas. Às vezes demoro-me
sobre o fundo da chávena mas quase nunca acrescento leite ao chá. A última
vez foi contigo. O café conforta-me mas vivo bem sem ele, faz parte da
lista, das milhares de listas que faço a toda a hora. Abril voltou e, com ele, a
lista daquilo de que devo privar-me, até porque não me custa, e porque
gosto mais de mim quando o faço. Ou porque Abril tem que ser. Talvez seja
uma forma de Quaresma pessoal, no meu próprio tempo. A cruz pesa o
mesmo, eu é que estou um bocadinho mais leve. Talvez mais forte, até.
Reparo que fazemos muitas vezes listas para o que falta, mas não para o que
já temos. Ou dessas desistimos tão mais cedo.
Ontem falava com alguém sobre quedas, por oposição a falar comigo
mesma sobre quedas e, depois, vimos alguém escorregar e cair. Durante o
que pareceu ser demasiado tempo, ninguém se mexeu. O segredo, toda a
gente sabe, e também essa rapariga o sabia, está em sermos sempre nós os
primeiros a rir. Chove muito e eu penso em ti porque já é outra vez
segunda-feira. Isto era para ser um poema, mas hoje não vi nenhum estendal
que merecesse a pena.
Fiz duas máquinas de roupa. Não sei como se tiram as manchas de café,
solúvel ou não, mas queria dizer-te que foi contigo que bebi o melhor dos
últimos tempos, por ser tão horrível e tão caro e por estar frio e por haver
tantas pessoas sem vergonha na cara. Mas tu lavas a dignidade à mão, com a
maior das delicadezas, à temperatura interna de quem tem um olhar límpido
sobre as coisas que nos torcem por dentro. As tuas mãos tão frias outro dia,
mas nunca deixas de dizer coisas que me dão gargalhadas para a semana
inteira. Os teus bolsos tão vazios e, no entanto, encontraste jóias de família
para me emprestar. Há tanto tempo que não ia buscar uma criança à escola.
Também ela escorregou, lembras-te? Sei bem como danças, sapatos de
veludo ou não, mas nesse dia chegámos finalmente a outro lugar. Agora
existem menos símbolos entre nós por decifrar, e eu não tenho quase nada
para te dar, e o que digo por vezes parece repetitivo, mas aparece: prometo
ficar contigo a ver a roupa secar.
A Teresa hoje não veio
«A Teresa hoje não veio», responde, finalmente, entre croissants mistos e
meias de leite, a uma cliente que me parece demasiado condescendente,
com os seus «Então, hoje está sozinho?», «Demore o tempo que for
preciso», «Se precisar de ajuda» e, ainda, «Eu só quero um café». Ele pôs
um aviso na porta, há uns meses. Fechado para obras, mas não eram obras
e sim uma doença. Fechado para obras interiores, portanto. Não sei o que se
abateu neste lugar que tudo e todos parecem estar em obras. Quando abriu,
estava tudo aparentemente igual. Explicações precisavam-se.
Ele tem um rosto redondinho e simpático. O lugar em si não é nada de
especial, nem a qualidade, e os preços não ajudam. Há muitos turistas,
contudo, talvez mais do que nos outros três cafés da rua. Devo lá ter entrado
umas cinco vezes, num ano, e tudo me ficou sempre aquém do que
esperava, excepto naquele domingo de Agosto em que acabou por chover
muito mas que, ainda de manhã, depois de uma grande desilusão, me juntei
às quatro tagarelas do costume e, por momentos, me senti em casa no café
do senhor Jorge.
Hoje voltei, sozinha. Não buscava nada. A mala carregada de cadernos e
blocos e até o diário em que há muito deixei de escrever, como quem finge
que é feliz, por fim. Não consegui escrever nada. Um casal, na mesa do
lado, sorria muito, sorria demasiado até para mim. Ou para mim por estes
dias. A dignidade ainda pode ser definida por levar uma chávena aos lábios,
mastigar calmamente o que está no prato, fazer pausas e aguardar
pacientemente, quando a vontade real é tão diferente. Não é o conforto das
coisas que são mesmo ali, na nossa rua, por baixo de casa. Tive sempre
cafés a segundos de casa, excepto na primeira, na mais importante e que
parte de mim vai habitar sempre. Não, não é esse conforto. Não quando as
calças até já voltaram a cair, como sempre acontecia antes de, naquele
tempo, no tempo em que. Talvez eles, os turistas, só me sorrissem porque
ajudei a traduzir o que os gestos apenas pareciam confundir mais. Dois pães
de leite e um xadrez.
Talvez eu devesse voltar mais vezes. Sozinha ou acompanhada. Com
música ou sem ela. Com cadernos ou sem eles. Talvez eu devesse voltar
mais vezes, porque também eu tenho grande dificuldade em fazer as coisas
simples de todos os dias. As pequenas e fundamentais coisas simples de
todos os dias. As que mudam alguma coisa. As que nos movem. As
delicadas e duras coisas simples de todos os dias. As que fazem o dia e o
coração avançar. Talvez eu devesse voltar, pedir qualquer coisa e ignorar a
cadeira que ele desarrumou esta manhã para se aproximar de mim e que se
esqueceu de colocar no lugar. Talvez possamos conversar sobre os dois
vasos que o vento derrubou outro dia, na minha cozinha. Talvez eu lhe fale
da minha orquídea, das ideias que tenho quando passo a ferro, dos botões
que vou reencontrando e que nunca costuro de volta. Só para começar.
Quinta-feira de espiga
O trabalho ficava num lugar ermo, e estávamos atrasados para o último
autocarro da noite, que já era sempre no dia seguinte, mas ele foi à frente e,
quando virei a curva, lá estava o transporte, e ele, e as pessoas que não me
conheciam de lado nenhum. Senti um misto de vergonha e alegria enquanto
fingia que ainda conseguia correr. Algum tempo depois, quando fizemos a
última viagem, em silêncio desagradável, era de dia, e não dissemos palavra
um ao outro desde então.
Torço sempre para que todos os que correm apanhem os seus autocarros,
comboios, barcos. Todas as noites, no transbordo, o maquinista de cada
linha fica mais uns momentos na plataforma. Há pouco, quedei-me a ver
uma mulher que levava um balão anil a flutuar preso à mão. Era mesmo
anil. Nunca nada é anil, mas o balão dela, sim. O vestido era azul, do azul
do meu.
Não anda ninguém à minha procura. Deixei uma pétala vermelha no
banco quando me levantei, e outra à porta da estação, e a flor amarela que
se partiu e coloquei atrás da orelha também há muito se perdeu, mas não faz
mal porque, já depois de as ter comprado, a florista perguntou, «Quer levar
mais umas papoilas?» E, antes que eu respondesse, juntou mais três ou
quatro ao molho, sem mexer no preço do ramalhete. Ele tem um feitio de
merda, quase nunca fala comigo quando está longe, e ele vive muito longe,
e está sempre a trabalhar. Mas, daquela vez, foi e depois voltou só para me
ver. Ora, entendes agora por que é que, quando me disseste, eu acreditei?
Hoje saí de casa com um bolso enorme, vazio. Voltei com um ramo de
flores e uma conversa que vai durar muito mais do que elas. Duas mãos que
me compreenderam, e um abraço de despedida que eu adiei ao máximo,
mas que soube tão bem quando me foi dado.
(Eu moro já ali e tenho guarda-chuva, obrigada. A tinta é da cor da folha
mas eu consigo ler, obrigada. Os dias por vezes custam mas eu vou viver
muito tempo, obrigada.)
Lia Pereira
Como sempre, ninguém me pediu explicações. A minha mãe disse-me
várias vezes que gostaria de ter sido meteorologista. Talvez haja alguma
relação com o número de vezes que choro. Sei que estou a tornar-me a
minha mãe quando dou por mim a abraçar e a beijar as orquídeas, naquela
que é a relação mais longa que já tive com uma planta. Caseira, sim, pois há
anos que estou numa relação com todos os jardins, se não do mundo, pelo
menos de Lisboa.
Quando era miúda, deixava sempre a minha parte preferida do que quer
que estivesse no prato para último. Media quase milimetricamente a
quantidade de sumo final a dividir com a minha irmã, e uma vez ia
morrendo quando a minha avó me pediu uma colherada de mousse de
chocolate, mãe e irmã também à mesa, eu que era a única que ainda tinha o
seu nome gravado espiritual e emocionalmente numa taça. Não era uma
questão de egoísmo ou de fome, nem sequer de gula. Era o que era, talvez
um feitio demasiado dado a preciosismos.
Há quem não consiga comer se a comida não for bonita, ou não estiver
arrumada no prato. Há quem coma um elemento de cada vez até terminar e
só depois passe para o seguinte. Há quem não consiga suportar o som ou a
visão de quem lambe os dedos depois de comer e há quem não suporte ver
os utensílios a serem usados para funções que não as que servem
originalmente, sobretudo quando os que as servem parecem estar
ansiosamente à espera.
Há muitos meses, não me recordo se foi ainda este ano, acho que sim, a
falta de memória alheia começa a afectar-me, tenho de começar a dar-me
com pessoas só da minha idade, já que do meu tamanho está difícil, dizia eu
que há muitos meses fui almoçar, e não sei porquê, agora começo a achar
que foi ainda durante o ano passado, com um amigo, e creio ter pedido
frango, com os habituais acompanhamentos, batata, salada, arroz? Não
importa. Pedi, e tentei comer, e não consegui. Sim, foi no ano passado,
agora sei. O meu amigo comeu, bebeu, e eu não bebi e pouco ou nada comi.
E já sabia que não iria conseguir, e fiquei a olhar o prato com culpa e
vergonha e ele fez, de repente, aquilo que eu durante muitos anos só vi a
minha mãe fazer, ir ao meu prato e tirar comida, acho que é uma coisa de
pais e de pássaros, pelo menos associo sempre essa imagem ao que vemos
na Natureza, uma intimidade muito delicada e própria, algo que não
permitiríamos ou faríamos a qualquer pessoa, algo que sempre me deu o
que pensar. Mas tudo na vida me deu sempre para pensar, não é verdade?
A naturalidade com que certos gestos que, de outro modo, seriam
invasivos, é feita, gestos tão espontâneos, gestos que ficam, gestos de quem
quer ajudar, pode ser comovente. Como daquela vez (e vou andar para a
frente e para trás no tempo) em frente à estação de Santa Apolónia em que
uma outra pessoa pediu dois hambúrgueres, era de manhã já, quase seis da
manhã, em Dezembro, e acho que também havia batatas, e ele comeu tudo e
eu comi o que consegui, que, creio, ter sido 80%, e perguntei se ele queria
mais e ele disse que não, e depois olhou-me bem nos olhos e disse, «Não
tens de comer tudo se não quiseres. Podes deixar, se não conseguires». E foi
uma das coisas mais bonitas que alguém me disse, porque eu sabia que ele
compreendia precisamente o que eu estava a sentir. E então deixei ficar o
resto.
Dezembro do ano passado. Foi, agora sim, agora sei precisar bem, foi
então que houve esse almoço de que falava ao início, numa das semanas
mais importantes de sempre. Um pouco antes, contudo, fui com a miúda dos
frascos mal fechados à Graça, lanchar, e pedimos a nossa habitual meia de
leite, e pães de Deus, com manteiga, aquecidos. Bebi a meia de leite, e comi
metade do meu pão. Parte de mim já sabia que não iria conseguir dar conta
do resto, como parte de mim já sabia que ela não se ficaria pelo que acabara
de comer. Eu ainda arrisquei uma dentada na metade, e isso já foi arriscar
demasiado. Foi quando ela me perguntou: «Vais comer isso?» E eu sorri em
menos tempo do que ela demorou a atacar.
Voltemos agora há uns anos, quando eu vivia com ele na segunda casa, a
terceira da minha vida, e saí num domingo para passear com duas amigas, e
uma delas me roubou uma colher de gelado num deslizar para cima que me
ficou preso à memória. Às vezes temos de amar sem autorização.
*
(Não é só porque ela tem sempre vestidos tão bonitos, que não consigo
imaginar ficarem tão bem a mais ninguém. Ou porque é a dona do meu gato
preferido. Não é só porque ela tem as melhores histórias, mesmo se pensa o
mesmo a meu respeito. Não é pelos inúmeros lanches formidábeis de
domingo em que há sempre framboesas e um sofá onde cabem todos os
assuntos. Não é porque ela tem dois tupperware meus em casa e eu, dois
livros preciosos que me emprestou. Não é só pela prenda de Natal
maravilhosa que me deu, ou porque está sempre aqui, ou no trabalho, ou no
Pingo Doce, onde por acaso nunca fomos juntas, para mim. Não é porque
falamos a erudita e especialíssima língua dos apanhados TVI e RTP Porto,
uma língua que, se mais pessoas falassem, certamente seriam mais felizes.
Não é só porque lhe trocam tantas vezes o nome, a ela que gostaria de
chamar-se Ivani Flora. É porque, para além de tudo isto, que já é tanto, com
o seu sorriso, o seu estilo, a sua maneira de falar e de ouvir, a sua
generosidade, o seu olhar, o seu humor, o seu amor à música e às
andorinhas e às pessoas, ela acabou por tornar-se uma das minhas preferidas
no mundo. E sei que, como eu, muitas pessoas sentem o mesmo. Meu
Mundo não é só uma canção do nosso querido Otto, a primeira que lhe ouvi,
mostrada por ti. Meu mundo é, também, onde tu estás. E todos os meus
pacotinhos de açúcar são para ti.)
Preto é cor
Depois do transbordo no Marquês, estava preparada para sair da
carruagem no Campo Grande, mas uma mulher (t-shirt preta, cabelo curto
encaracolado mas não muito curto nem muito encaracolado, mais baixa e
vários tons mais escura do que eu) estava mesmo à minha frente, na
plataforma, a querer entrar. Eu li o que dizia a sua t-shirt, olhámo-nos muito
seriamente durante um momento mesmo especial antes de desatarmos
ambas a rir e, depois, ajustámo-nos para que eu conseguisse sair e, ela,
entrar. Tudo isto durou uns segundos, e eu estou outra vez atrasada mas,
quando estas coisas me acontecem, eu, que não tenho uma vida perfeita, que
não sou perfeita nem estou rodeada de pessoas perfeitas, sinto-me muito
próxima da perfeição possível. E penso que a vida é boa. E que eu a mereço
assim, deste jeito em particular.
Gelado de banana
Não sei bem por onde começar. Sei que cortei às rodelas as quatro
bananas que tinha para aqui e as coloquei dentro de um saco no congelador.
A receita recomenda que assim permaneçam de um dia para o outro, ou pelo
menos durante três horas. Depois, é suposto trabalhá-las com o
liquidificador, no meu caso com a varinha mágica e, depois de atingida a
consistência desejada, polvilhá-las com canela. E comer. Enquanto espero,
falemos então das coisas que acontecem de um dia para o outro, ou em três
horas.
A minha cabeça guarda muitas coisas, demasiadas até. Digo que é a
minha cabeça mas não há distinção. Pouca coisa me estará na cabeça sem
ter passado antes pelo coração. Como quando escrevo poesia, e repito o
mesmo poema em vários cadernos e os guardo em ficheiros, formatos e
plataformas distintas, para não os perder. Quem convive comigo sabe que o
meu discurso tem várias camadas e que deslizo de umas para as outras
constantemente durante a mesma conversa, por isso a minha cronologia em
nada tem a ver com as aulas de História a que assisti durante oito anos mas
sim com as inúmeras séries de investigação criminal a que assisti a vida
inteira. Pontinhos e pontinhos e um fio vermelho a ligar tudo em voltas
infinitas. Mesmo assim, há coisas em que deixo de pensar. Por vezes, até
pessoas.
Sexta, encontrei uma dessas pessoas num lugar onde eu nunca tinha ido.
Uma pessoa que vive ali perto, para quem certamente aquele sofá seria, já,
familiar. Uma pessoa que me olhou e eu olhei de volta, em silêncio. E cada
um continuou a sua vida, como de resto desde a última vez que nos
víramos. Eu não senti nada. No meio de uma semana tão agitada, tão
povoada, não senti nada. Porque eu não precisava desse reencontro para
saber coisa alguma. Mas, antes, há muito tempo, quando essa pessoa me
disse as piores coisas que um homem pode dizer a uma mulher, e eu
demorei meses a recuperar disso, tudo o que eu queria era provar que ele
não tinha razão, mesmo sabendo que não tinha e, ao fazer isso, quase deixei
que me destruísse uma pessoa já de si em ruínas. Tirei uma foto ao sofá,
onde depois me sentei, com ele já vazio. E não me faltava nada. E não me
doía nada.
Está sol e a vizinha tem um gato novo, branco e cor de café com leite, a
juntar ao Soares, o cão filosófico que todos os dias sobe para a cadeira e
observa o nascer e o pôr do sol e, ainda, à tartaruga e ao gato preto vadio
que dorme ora nos telhados ora na manta vermelha. Se eles convivem todos
tão bem, quem somos nós para não os imitarmos? Agora tenho de sair mas,
quando voltar, espero que a máquina tenha parado de lavar e que o gelado
de banana esteja pronto. Eu estou.
Uma palmada no rabo
O mercado estava apinhado; ela ficou na fila e pediu que me sentasse e
guardasse um lugar. As mesas eram de piquenique merendeiro. Deixei
espaço no meio e ocupei a ponta esquerda, as duas senhoras do lado direito
já tinham terminado a sobremesa mas não a conversa. Foi quando eles
chegaram. Ela perguntou se podia sentar-se ali, claro que sim, e o marido
foi para uma das várias barraquinhas buscar comida.
Nunca nos tínhamos visto mas, à medida que o tempo foi passando, não
conseguia largar a ideia de que os conhecia do meu trabalho de há uns anos.
Ou talvez fosse só esta amizade instantânea forjada na brasa de sardinhas e
chouriços em finais de Julho. O meu marido convenceu-me a vir não sei
como, vou ficar com o cabelo a cheirar a sardinhas, amanhã tenho o
baptizado da minha netinha, ainda nem decidi o que vou vestir, engordei
dez quilos, não gosto de me ver com nada. O quê, menina, já pesou isso
tudo? Não consigo imaginar. Está tão bem agora, assim. Pois, os meus
vizinhos já me conhecem das caminhadas, agora nem temos feito, mas
depois do jantar até sabe bem. Na verdade eu gosto muito de fazer
levantamento de pesos, e fiz ginástica a vida toda, por isso é que sou assim
muito direitinha. Um ano, ela tem um ano. E é longe, ainda por cima. É em
Porto de Mós. Estou a fazer dieta há um mês, eu hoje não era para vir aqui,
mas tínhamos lá um estufadinho para comer e ele é muito esperto, não lhe
apetecia, então disse para virmos e já ia pegar no carro, quando vivemos a
cinco minutos daqui, sim, pelo menos consegui que viesse a pé, mas já viu,
agora vai comer e beber o que não deve, e eu depois também acabo por
fazer o mesmo, eu já lhe disse que estou de dieta. Mas, sabe, o açúcar agora
já não me faz diferença. Não lhe diga que eu lhe contei, mas é que ele tem
cancro e felizmente agora está tudo bem, mas houve aí um tempo muito
complicado, soubemos isto a duas semanas do casamento do meu filho,
ainda bem que eu já tinha comprado tudo, porque... Se for a ver as fotos não
estou a sorrir em nenhuma. Eu nem tentei disfarçar, menina, não conseguia.
E amanhã vou para lá, aquela gente ainda por cima cheia de peneiras, uma
pessoa tem de ir como deve ser, pensei levar o vestido de linho cor de
salmão, mas aquilo fica muito amassado e se calhar é mais do dia-a-dia,
pois, os acessórios ajudam não é? Já disse que não quero aparecer em
nenhuma fotografia amanhã. Eu também tive um problema de saúde, olhe,
uma chatice, era ele e eu... Ioga não gosto. Uma corda? Mas vivendo aqui
onde é que eu compraria uma corda? (Isto interessou particularmente as
outras duas senhoras, que também detestavam correr.) Ah sim, sim, nessas
lojas também devem ter. Aí vem ele.
Ele trouxe dois tabuleiros com sangria, uma gigante e uma de tamanho
regular, e disse-lhe, enquanto pegava na maior e começava a beber, «Trouxe
assim porque não sabia qual é que preferias». Ela, «Vê a tua sorte, estás
aqui rodeado de mulheres». Ele ofereceu-nos, a mim e às outras duas
vizinhas, das sardinhas, do pão, da salada. «Obrigada, a minha amiga já aí
vem, está ali na fila, a ser atendida.»
Quando ela chegou, sentou-se ao lado dele. Estamos aqui a falar de
dietas. Não, que horror, nós estamos aqui para comer. Ele concordou. Então
ainda bem que estão os dois desse lado, porque nós daqui gostamos de
exercício e dieta. No palco, o rancho dançava vários viras. Olhem aqueles
dois velhotes ali, ainda estão para as voltas, são muitos anos a virar um com
o outro. Estás aí a falar e não deixas as meninas verem a dança com os paus.
Ah, são daí? Eu gosto muito desses lados.
A minha amiga tirou um cigarro e perguntou se ele se importava que
fumasse. Ele disse que não, e contou que, quando era mais novo, e ainda
fumava e só fumava cachimbo, ia a lojas em que se vendia o tabaco em
frascos, e se podia deixar o nome e encomendar misturas personalizadas,
em Londres ou em Nova Iorque. Deixei de fumar de um dia para o outro. Se
quiser deixar, menina, diga aos seus amigos que deixou de fumar, depois
não vai ter coragem de fazê-lo à frente deles para não passar por mentirosa,
aconselhou.
Conversámos muito, entre os seis. Depois, eles foram embora, ela com
alguns ciúmes mas muito amorosa. Eu disse-lhe, esqueça a dieta amanhã.
Segunda-feira começa de novo. E apareça nas fotos, um dia a sua neta vai
querer olhar para elas e ver a avó. Desejámos saúde uns aos outros.
Seguiram abraçados e comentávamos o quão belos eram estes dois, estava
eu de costas quando a minha amiga exclamou, «Ele acaba de lhe dar uma
palmada no rabo! Também quero isto para a minha vida!» Rimos.
Lúcia-lima
Ela é tonta, pelo que por vezes tem tonturas. As últimas valeram-lhe uma
queda das escadas, em casa, e uma entorse que a obrigou a andar
acompanhada por uma muleta e a ter de ficar de perna levantada a semana
toda, a refilar e a ver os programas da manhã e da tarde nos canais
nacionais. Mas a preocupação dela, hoje, num dia tão especial mas
trabalhoso, era que as amoras ainda estavam verdes, quando pela mesma
altura, o ano passado, já tinha apanhado montes delas, muitas das quais
acabariam no meu estômago ainda recém-operado, que as elegeu como o
que melhor lhe soube até hoje, já passado todo este tempo.
O ano passado obrigou-me a abrir a mala enquanto roubava ramos de
lúcia-lima para me dar e os enfiava lá dentro. Hoje, ao fim do dia, apareceu
com um, que desde então me perfuma a mala e o sorriso e, em breve, me
confortará o estômago. Tenho a sorte de ter pessoas e também animais,
assim, na minha vida. Lembrei-me de Farrusco, o gatão mais lindo de todos,
que visitei aquando da sua queda do terceiro andar, e que veio mancando
com a sua pata entalada até subir para o meu colo, num gesto que me
preocupou e comoveu. Eles caem, são uns tontos, mas depois tomam conta
de mim e dão-me tanto amor. Vamos evitar quedas nos próximos tempos,
por favor. De resto, também o meu colo está sempre aqui para vocês.
Às oito tenho de estar no quartel
Começo sempre por algo de que não me recordo bem para exprimir algo
que o tempo não me deixará esquecer. Já não sei se foi durante The Killers
ou algures em Chemical Brothers que a Marta se riu e me fez uma festa no
cabelo, em alusão a um episódio caricato que se passou naquele multibanco
ao pé da estátua do Pessoa. Vínhamos de um concerto no Teatro do Bairro
e, depois de uma pizza manhosa, já não éramos colegas de casa, agora só ou
agora mais amigas, fomos ao multibanco. Na fila, à nossa frente e por todos
os lados, na verdade, jovens bêbados, uns mais melancólicos que outros.
Uns mais expressivos do que outros, mais atentos. Eu trazia as mãos nos
bolsos, onde as mantive quando senti alguém a tocar-me o cabelo. Uma mão
estranha, uma festa de cima abaixo, e uma voz sorridente que perguntou:
«Estou a incomodar-te?» Enquanto eu virava o rosto. «Não sei, o que
achas?» Sorri, sem mexer o corpo, só virando a cabeça. Entretanto ela
continuou a afagar-me a melena. Mas por que é que me lembrei dessa noite,
que penso ter sido de sábado, como agora? Porque voltou a acontecer.
Despedi-me, dizendo: «Às oito tenho de estar no quartel.» (Essa história
fica para outro dia.) De caminho para a saída, passei novamente pela
barraca das batatas fritas, e desta vez parei. Pré-pagamento de um lado,
levantamento do outro. De um lado, um de três rapazes gritou, «Família!»
na minha direcção, iniciando depois um monólogo sobre se eu estava ou
não acompanhada e sobre como não podia deixar de estar, não, claro, uma
rapariga como eu, uma «prima», não podia não estar acompanhada.
A caixa para as batatas era também o bar. Do outro lado, alguém me
tocou o cabelo. Um rapaz, para gáudio do amigo:
– Posso tocar o teu cabelo? (Já estava a tocar)
– Não.
– É tão fofinho. Só mais uma vez.
– Não acredito que isto me está a acontecer...
– Só as pontas, vá lá. Eu posso pagar-te uma bebida se quiseres.
– Eu só quero batatas fritas e ir para casa.
– A sério, é que o teu cabelo...
– Queres ver que estou a passar ao lado de um grande negócio, em que
simplesmente me sento nalgum sítio, quieta, enquanto as pessoas me tocam
o cabelo?
– Pode ser? A sério, queria mesmo.
– Eu não sou Jesus Cristo e não vou curar nada em ti só por tocares o
meu cabelo.
– Não precisas de ser assim.
E nisto, de repente, aparece uma mulher que se enfia pelo meio de nós e
pede uma água com urgência porque alguém está a sentir-se mal. E ela
vinha cheia de maionese por algum motivo, que de estar no braço dela
passou para o meu braço e para o meu sobretudo. E enquanto lhe davam a
água, e os rapazes de um lado e de outro pagavam as suas cervejas, e eu me
limpava com lenços de papel e toalhitas, e mandava mensagem à Marta a
pedir socorro, e a mulher se ia embora, comentei com o rapaz do bar que
estava na hora de toda a gente ir para casa. Suspirou longamente.
Em jeito de despedida, o outro voltou à carga. Agora, uma festa no braço.
Não. Não. Não. Espaço pessoal. Espaço pessoal. Espaço pessoal. Fiz um
desenho invisível. Foi embora zangado, indignado com a minha má
educação, com a minha ingratidão, pois se me estava a valorizar, a querer
agradar, a celebrar o meu cabelo e toda a diversidade, bio ou não, aí contida.
E eu, que abanei muito o capacete esta noite, voltei a pensar em Chemical
Brothers e em como comentei com a Marta que alguns gráficos pareciam o
interior da minha cabeça. E em como hoje não pus creme no cabelo antes de
sair de casa. E no miúdo em Moçambique de quem ela me falou que andava
sempre com um pente enfiado na cabeça. Como é que disseste que se
chamava? Nando? E em como alguém que me é muito próximo outro dia
cortou o cabelo e me falou do medo de estar a rarear. E em como eu podia
ter dito que apesar desta juba tenho alopecia desde criança e o meu cabelo
demora imenso tempo a crescer (mesmo assim há pessoas que demoram
mais) e às vezes até tenho pesadelos em que encontro peladas, e em como o
óleo de rícino é fixe. E em como o meu casaco é da Zara e repele a água e
não tem disparates escritos como o da Melania, e como agora estou quase
em casa e me doem mais as costas do que as pernas, e como é difícil estar
sóbrio num mar de bêbados e como é difícil ter carapinha quando nunca
usamos a palavra carapinha e como ela nos soa estranha quer dita por um de
nós quer por quem a não tem, e como não nos dignificam nos museus nem
nos festivais de música, aparentemente nem na vida real, porque
continuamos a ser atracções.
Mas tenho mesmo de estar às oito no quartel, por isso é melhor ficar por
aqui, antes que comece a divagar sobre o salgueiro-chorão no pátio da
minha escola primária de cujos ramos nos baloiçávamos sem parar e em
como isso tem o seu quê de nostalgia emotivo-capilar.
*
PS: Há máscaras capilares caseiras quer com cerveja quer com maionese,
não há?
Tangerinas
À mesa, duas pessoas tomam o pequeno-almoço. É chegada a vez das
tangerinas, após o café e o pão e o bolo. Os sorrisos duram a refeição
inteira, duram para lá da mesa, das cadeiras, do momento. Eu começo a
descascar a minha primeiro, e penso, fiozinho branco a fiozinho branco, que
vou dar-lha, uma tangerina inteira e doce e pronta. Ele começa entretanto e
num instante descasca a sua, dá-lhe uma dentada. Não perco a coragem. A
tangerina desaparece como que por magia. Diz, vou ensinar-te a descascar
tangerinas mais depressa. Mas mas mas... Esta era para ti, confesso. Rio-
me.
É como quando o meu pai viaja e, em cada telefonema, pergunta à minha
mãe o que ela fez para o almoço e para o jantar. Esta é a pergunta mais
importante, esteja ele na Madeira, em Inglaterra ou na Suécia. A minha mãe
queixa-se, mas no fundo adora. A saudade é isto.
Semanas depois, ele viaja. Eu fico aqui. Na primeira e única ida ao
supermercado desses dias, ao passar por elas compro tangerinas que não
consigo comer. Porque eu não as comprei por ter fome, comprei porque me
lembram dele, comprei porque não sei o que fazer com as mãos, comprei
para que me façam companhia, para que suportem o meu olhar até que o
meu amor regresse.
My fair lady
Falava-se de chinesices, outro dia, ao jantar. Alguém que estivera na
China várias vezes e há muito tempo que não visitava, partilhava histórias.
Outro alguém, de relação muito próxima com esse país, e que acabara de
regressar de lá, lembrou-se de uma prenda que me trouxera, um creme,
como não poderia deixar de ser, vindo de alguém que adora produtos de
beleza. Uma embalagem linda, que era mesmo a minha cara. Comecei a
procurar algo que entendesse e li: «Peony... whitening... nutrition...
vanishing... cream?!» Assim mesmo, devagar, em voz alta, atónita.
Olhámos uns para os outros entre o riso e o embaraço, mas acabou por
perdurar o primeiro. Às vezes não há, realmente, má intenção. Às vezes
algo que poderia ofender, ser um faux pas e que leva alguém a pedir
desculpa e a sentir vergonha, não é mais do que o resultado de como
estamos todos trocados e insatisfeitos connosco mesmos e, por conseguinte,
com tudo o resto. São as culturas que temos. Hoje um amigo falava sobre
como o símbolo da Casa do Preto, em Sintra, pertenceria tão bem ao museu
do racismo: um preto de libré, em modo criado. Quem sabe uma instalação
de vídeo do anúncio de Restaurador Olex não ficasse bem nesse mesmo
museu, em looping? É que os tempos parecem ter mudado tanto e tão pouco
ao mesmo tempo. Mas já tenho visto pretos de cabeleira loira e brancos de
carapinha. E, de volta ao creme, mesmo que a minha amiga tivesse
reparado, qual é a probabilidade de encontrar um creme que não seja deste
tipo quando há uma clara (no pun intended) obsessão asiática em ser,
literalmente, porcelana? Há milhares de artigos sobre este tema. Mas hoje
só queria deixar isto aqui porque é uma história engraçada e sem maldade, e
isso faz falta.
Lembrei-me do icónico Mimo, da TMN, e da How to disappear
completely, dos Radiohead. O humor serve o propósito que lhe quisermos
dar, como tudo o resto. Com humor, consigo medir e gerir as sensibilidades,
a tolerância e a paciência. E felizmente não é para com as pessoas que me
rodeavam nessa noite, ao jantar, que preciso de defesas. Tudo bem ali. Eu
gosto de peónias e de prendas e, por enquanto, posso dizer que o aroma e a
textura do creme são agradáveis. Não sei quanto tempo demorará até atingir
o nível Snow White/My Fair Lady, sobretudo com estas temperaturas que
nos assolam (talvez devesse sair à rua de sombrinha ou arranjar quem ma
levasse). Mas já sabem, se deixarem de me ver...
De mulher pra mulher
Passei no super que foi o do desenrasque e das crónicas durante quase
três anos de vizinhança. Pingo Doce de Santa Apolónia, aquele lugar onde
encontras amigos e vizinhos que ainda perguntam, chocados, «Mas por que
é que estás aqui?, este super é horrível», enquanto embalam carinhosamente
garrafas de vinho até à caixa, sempre a reclamar. Pequeno ou grande, mais
ou menos turístico, com mais ou menos glúten e opções bio de produtos
feitos, colhidos e embalados por anjos felizes e puros, um supermercado é
certamente um dos sítios mais agradáveis para se estar este Verão, sobretudo
se a secção dos frescos for a primeira a saudar-nos. Na caixa, o senhor atrás
de mim pergunta à moça, uma africana bem bonita de sorriso afável, se a
outra está a funcionar. Ela diz que sim, ele segue e a cara familiar desabafa
comigo, «Não sei por que é que se juntam todos aqui, eu bem sei que sou
gira...» E simpática, acrescento. Entre trocos e trocas, pergunto se está tudo
bem. Sorrimos. Estava grávida, da última vez que a vi. Digo que mudei de
casa e por isso não tenho lá ido. Diz por sua vez, «Ah, mas está bem mais
magra. Acho, acho, muito mais». Eu bem digo que os supermercados são
dos melhores sítios para se estar este Verão.
A menina gosta de ler?
«A menina gosta de ler?» Era sempre assim, na pequena cidade onde os
meus pais vivem desde sempre, que as Testemunhas de Jeová se me
dirigiam. E não podia dizer que não. Era como se eles soubessem, na
verdade. Como se eu trouxesse um sinal no rosto, emitisse uma frequência
que os fizesse abordar-me constantemente, todos os dias, mais do que uma
vez por dia. Ou talvez o fizessem com toda a gente, talvez encarassem todos
os transeuntes como se vendo-os pela primeira vez.
Sempre aos pares, para ser mais difícil dizer não, ou talvez apenas para
se fazerem companhia uns aos outros, quem sabe. Nunca perguntei. E nunca
perguntei de volta: «O senhor, gosta? E a senhora, lê muito?» Talvez
devesse tê-lo feito. Na esquina do muro do jardim público, algures no
passeio de caminho para algum lugar, esta pergunta, e a mão estendida com
uma ou duas revistas, que por vezes aceitava e outras vezes, não. Quando
aceitava, lia sempre, por inteiro ou pelo menos a maior parte, com o filtro
necessário. Porque a menina gosta muito, muito de ler. Mas às vezes fazia o
gesto de rejeição com a mão, outras vezes parava e ouvia. Outras vezes
fugia para o outro lado da estrada. Lembrei-me disto outro dia quando
(estava a menina cheia, cheia de pressa) saltei do autocarro 728 em Santa
Apolónia, em passada larga e decidida rumo a casa quando algo me chamou
a atenção. Alguém, na verdade. Um homem, faixa dos quarenta anos, sem-
abrigo, deitado relaxadamente debaixo da larga ombreira da porta, manta
até à cintura, pernas levantadas, cigarro fumegante, paz no rosto, paz no
corpo. Voltei atrás. «Olá, posso saber o que está a ler?» Por curiosidade,
porque para mim as capas de livros são um empecilho às relações humanas,
porque afinal o que quer que fosse que eu ia fazer podia esperar, encontrei
alguém como eu, alguém que gosta de ler. «Claro», responde. Uma autora
de que eu nunca ouvira falar, nem do seu livro. Para ele também era
novidade. Contou-me a história: uma mulher que acordava todos os dias
julgando que era criança ainda, com a memória de criança, quando na
verdade já era casada, e as dificuldades que isso lhe causava, e ao marido, e
ao médico e demais pessoas em redor. «Se quiseres, passa aí daqui a dois ou
três dias e eu empresto-te.» Perguntei como arranjava os livros, disse que
lhe davam, ou comprava, mas que também já lhe tinham roubado muitos. O
amor aos livros, aquele sorriso leve que nem a barba por fazer escondia, o ar
de quem poderia estar em casa, no quentinho, sem poluição, sem o passar
de pessoas estranhas, apressadas ou indiferentes, sem barulho, o estar num
mundo só seu a que mais ninguém tem acesso a menos que traga um livro
ao colo, ou ao peito, a familiaridade com que me tratou por tu, e a
disponibilidade para me emprestar livros, fizeram com que me esquecesse
do resto durante aqueles momentos.
Há muito tempo, na paragem, eu fotografei a sua casa, a mala de viagem
feita e arrumada e o cartão ao lado, bem dobrado. Tudo no sítio. Como
quem faz a cama. Mas sem cama e casa e sem tudo. Talvez ainda com
muito. Quem tem um livro tem tudo. Talvez até tenha muito. E talvez, agora
que eu mudei de casa, e já vivo menos de malas de viagens e sacos, e
consegui finalmente arrumar os livros, seja tempo de pegar nuns quantos,
apanhar o 728 após o trabalho e ir visitá-lo.
Posso dar-te um beijinho?
Do sofá avisto gatos, figos e a solidão escolhida.
A liberdade de tantas possibilidades e dizer não, não me apetece e não,
não vou. Mas isto são conversas em que eu faço todas as vozes, com mais
ou menos gestos, que importa isso, o efeito lúdico é o mesmo ou até mais
prazeroso. Os figos ainda não estão bons e os gatos são os da vizinha (e na
verdade mais de si mesmos), não me tornei aquela senhora de há uns anos,
perto do hospital da Cruz Vermelha, que tinha vários, e nomes e vozes para
cada um, tradição que herdou de sua mãe. A liberdade de pequenos luxos
como dormir até me fartar (e eu farto-me facilmente de dormir) ou ver,
imagine-se só, três episódios seguidos de uma série. Ou duas. Filmes, de
animação ou não. Luxos. Arrumar e desarrumar, doar e deitar fora, guardar
e resgatar. De pensar (nunca me farto), sobretudo nos pequenos nadas. De
decidir, de desistir, de repensar. De fazer planos ou tentar e aceitar, quer se
realizem ou não. De estar bem assim, na praia, a ler, ou em casa, a ler. Mas
de vez em quando é preciso sair, mais que não seja para fazer umas
pequenas compras tontas pré último dia férias e perpetuar rituais de pouca
dura. Atravessar a estrada conta como sair de casa, afinal não é como abrir a
porta da cozinha e ir lá atrás, ao quintal.
Pergunta – Por que é que a rapariga atravessou a estrada?
Demorei mais do que precisava lá dentro, e parei à saída, não sei bem
porquê. Estava sol. Ela pediu desculpa, perguntou onde morava, se eu ia
para aquele lado, e apontou para a esquerda. Não, eu vivo mesmo aqui.
Continuou a falar. Eu trazia um saco e ela, dois. Peguei neles e lá fomos,
afinal eu não tinha mesmo nada para fazer. Melhor, eu só tinha nada para
fazer. Vira-a algures no corredor, momentos antes. Explicou que se sentira
mal, tensão baixa, e não queria arriscar ir para casa assim, que sabia que não
devia carregar tanto peso, mas. Corroborei.
*
Lembrei-me de uma mulher que, há muitos anos, nunca mais a vi,
costumava carregar sacos e sacos pesadíssimos, vinda, imagino, de casa,
para a estação de comboios, e vice-versa, passando talvez nalguma feira
pelo caminho (sacos enormes que nunca percebi bem o que traziam), e
frequentemente pedia ajuda a transeuntes para carregarem os mesmos.
Calhou-me, calhou à minha irmã, e deve ter calhado a metade da população
lá da terra. E como era difícil dizer que não, e como era difícil carregá-los
sem acrescentar o peso extra do julgamento, da crítica, dos motivos e das
admoestações, dirigidas a ela e a nós próprios que, no fundo, não saíam da
nossa cabeça. Alguém sabe se Sísifo tinha com quem falar? Talvez se
tivesse safado melhor se tivesse conhecido esta mulher. Ou não, ou não.
*
Esta moça queria ajuda só até atravessar a estrada. Mas fomos andando
mais um pouco e depois mais uns metros e ela morava, afinal, tão perto
como duas ruas ao lado da minha. Cinco meses de gravidez, fez no sábado,
ontem. Pensava que seria um rapaz mas afinal vem aí uma garota. Falámos
de hérnias, de preparações, de desmaios, de esforços, de tamanhos, de
barrigas e de alegrias. Em quase tempo nenhum. Nunca nos tínhamos visto,
ou melhor, reconhecido. No fim, apresentou-se e eu a ela. Perguntou, posso
dar-te um beijinho? E aceitei, e deu, e ainda houve um curto e sentido
abraço, e os votos normais, de que tudo (lhes) corresse bem. Esforço
mínimo pode ser o que nós quisermos, pode dar-nos um sorriso enorme.
*
Se calhar nunca mais nos cruzamos, se calhar agora vamos esbarrar
(delicadamente) a cada dois dias. Se calhar ainda descubro que ela é tão de
Cabo Verde quanto eu. Não importa. Podemos sair de casa sem grandes
expectativas ou expectativas algumas de real contacto humano, numa altura
em que toda a gente promete, e agenda, e sente, e quer, e lamenta, e tenta, e
ignora, e marca, e desmarca, e acena, e emoji, e zanga, e ama e agradece e
volta a lamentar muito mas não sai do messenger, quanto mais de casa. Mas
estamos todos aí, cheios de possibilidade de acontecer uns aos outros. Não é
por acaso que lhe chamam o conforto de estranhos. Muitas vezes, prefiro-
os. Muitas vezes, estes minúsculos encontros quotidianos são feitos
exactamente à nossa medida, e a pessoa pensa que fizemos algo incrível por
ela e na verdade foi ao contrário.
Resposta – Para voltar a casa mais leve.
Entretanto as férias acabam, o contraste regressa, a doçura permanece.
Aguardo os figos e, no fundo, talvez ainda os amigos.
O momento baixo do feminismo
Outro dia, numa festa, havia uma panela de cachupa, gigante para
padrões europeus, tamanho standard para padrões africanos, na mesa.
Alguém quis transportá-la, e alguém quis ajudar. Deram dois passos. A
primeira, que ia de costas, tropeçou num banco onde estavam objectos que
quase caíram, perdeu um chinelo e ficou de pé descalço na terra. A outra,
que já tinha sujado o vestido a comer de um prato de plástico que se lhe
derreteu na mão, derramando cachupa para o colo, viu o mesmo vestido ser
levantado na parte de trás, preso nas garras do gato residente, no momento
em que uma amiga decidiu que lhe queria pegar. Nisto, entre interjeições,
risos e maldições, chega um rapaz, silencioso e funcional, pega sozinho na
panela que elas ainda carregavam, e vai para dentro. Felizmente ainda havia
uma panelinha pequena (podemos sempre contar com os vegetarianos),
transportável, para equilibrar as coisas. Uma outra amiga, activista e
feminista, chegou e o seu comentário foi: «Ainda bem que eu não estava
aqui para ver isto.» Foi o piripiri metafórico a compensar o real, que não
havia. Deixo aqui esta pequena nota, não vá o Kusturica querer pegar nas
nossas vidas um dia e realizar o «Panela grande, panela pequena».
Memórias descritivas
Falta um mês para o meu aniversário. Finalmente mudei a minha morada
no banco, mas não me tenho sentido em casa senão quando estou fora.
Comecei mais uma vez a carta que não consigo escrever e sempre acaba no
lixo. Fiz um bolo de limão e saí sem saber bem se para ir comprar açúcar
em pó ou para resolver a minha vida. Não me lembro da última vez que
passei roupa a ferro. Algumas pessoas diriam que isso faz de mim mais
normal, mas é verdade que tinha sempre epifanias quando o fazia. Deixei
dois rolos a revelar, ao fim de onze meses. Quando estiverem prontos talvez
eu também esteja. Comprei açúcar e farinha. Liguei ao meu irmão. Ontem
soube que a mãe dele faleceu. E fiquei muito triste, apesar de não saber
quase nada sobre ela. Então finalmente liguei à minha própria mãe. Recebi
uma mensagem do destinatário da carta que não escrevi. E decidi submeter
uma candidatura cujo prazo termina hoje às 23h59. Isto ia a algum lado mas
está a ficar tarde e tenho um almoço para celebrar a entrega de tese de uma
amiga, e nem a cobertura se vai fazer sozinha nem as memórias descritivas
das minhas fotografias se vão escrever sozinhas.
Júlio
«It has been a beautiful fight. Still is.»
Bukowski
Em memória de Júlio Ávila
A mercearia chinesa da minha rua fechou. Não aceitavam cartão, nem de
pagamento nem de desconto. Mas sorriam sempre, embora nunca
perguntassem pelo contribuinte na factura. É verdade que, nos últimos
tempos, já só lá ia para comprar melancia, quartos de, a noventa e nove
cêntimos o quilo e todo o sabor do mundo. Um sabor rosa-vivo simples, a
única coisa que me apetecia, por vezes, comer. Melancia que levei para
casa, para o trabalho, para a praia. Que comi sozinha e partilhei. Triângulos
e triângulos de consolo e doçura. Arestas, faces e vértices que não
magoavam, e de que era segura a repetição. Não sei o que dizer mais do que
sei o nome da tua avó, que te ofereceu melancia cortada aos cubos no que
agora lhe deve parecer ter sido ainda outro dia. Não tenho avós há muito
tempo, e pergunto-me se a tua terá ouvido falar da Björk, que também sabe
uma ou outra coisa sobre melancias. E lágrimas.
Conseguiste. Que o carro passasse na inspecção. Conseguiste. Que a vida
deixasse de passar por ti e te magoasse. Tu tentaste e não falhaste.
Aprendeste o nó que desfez os teus, não importa se nos deixou um
permanente. Ninguém deveria poder dizer que nos desapontaste.
Contigo fui turista e visitei uma igreja, partilhei a mesa do almoço, a
vista do miradouro do Outeiro da Memória, a melhor amiga, uma grande
moca, gargalhadas, o teatro, a escrita, o peso da vida. Trazias uma t-shirt
azul no dia em que te conheci. Letras em degradê laranja e amarelo, calções
e chinelos. Éramos quatro. Mesmo nessas fotografias desfocadas,
continuamos a ser quatro. Eu estou do lado de cá, mas senti-me em casa
convosco. Lembro-me de não estar bem, de ser a única desabituada à
altitude. Lembro-me de que, no último ano, todos quiseram deixar de estar
aqui, tentaram e quase conseguiram. E pergunto-me se algum dia vocês,
desculpa – se eles se vão habituar à vida. Pergunto-me se alguém mais vai
conseguir. E dou por mim a rever conversas e a enviar mensagens e a querer
marcar viagens. Quem me dera ter voltado aí. Agora sei que nunca vou sair.
Os pêsames pesam. Os meus sentimentos também. Seremos sempre
demasiado novos para estas coisas. Ser millennial não nos dá um certificado
de saber lidar consigo mesmo ou com os outros, com o quão pouco sabemos
uns dos outros e sobre nós mesmos. Vivemos em excesso de informação
não relevante e em carência de quase tudo o resto. Vivemos em estado de
depressão e de distracção, mas tu sabias estas coisas. Tu sabias de ti. Tu
prestavas atenção.
Saber muito pouco de alguém e ainda assim ser de repente a pessoa em
quem mais pensamos, e isto servir para nós e para os outros. Ir de casa para
o trabalho, da terapia para os medicamentos, de mal a pior, de millennial a
memorial. Deixar de ter um nome para passarmos a ser também um evento,
uma descrição, uma memória. Fazer um testamento real para a persona
virtual. Estar sempre a um ecrã de distância das nossas pessoas preferidas,
até de nós mesmos. Sim, porque deveríamos saber ser uma das nossas
pessoas preferidas. Tu certamente o és, serás para muitos, serás para
sempre.
Onze, catorze, quinze, dezasseis. Um dia para nascer e três para morrer.
Mil novecentos e oitenta e seis. Dois mil e dezoito. Abril, Outubro e trinta e
dois anos e meio entre eles. Nasceste, cresceste, viveste, morreste. Tu
estiveste aqui. Tu estavas, realmente, vivo. Ficaste mais quando foste
embora, tu que já eras tão grande. Tu não desapareceste. Obrigada por tudo
o que escreveste.
Esperamos que as pessoas que gostam do Júlio encontrem algum
conforto ao visitar o seu perfil, para relembrar e celebrar a sua vida.
It has been a beautiful life. Still is.
Titanic
No primeiro dia, ela leva-me para o escritório e fecha a porta à chave
atrás de si, apesar dos dois seguranças do lado de fora, sorridentes e
prestáveis. Na verdade, lembram mais polícias do que outra coisa. A casa
tem vigilância 24 horas por dia, explica. A nossa conversa interrompida por
gritos e risos vindos do corredor e, depois, por batidas cada vez mais fortes
e pedidos cada vez mais desesperados de um dos rapazes tentando entrar.
Como se fosse arrombar a porta. Como se fosse a coisa mais importante,
mais urgente do mundo, entrar por aquela sala adentro. Para quê?
Explicações, justificações e desculpas enquanto alterna o que nos trouxe
ali com pedidos para que se acalme, e espere. Nada. Ele continua e,
eventualmente, consegue entrar. Parece perturbado por alguma coisa ou
alguém. Parece encurralado, tentando escapar. Parece em perigo, a precisar
de ser salvo.
Ela pergunta, finalmente, o que é que ele quer, e ele responde
conseguindo-o: um abraço. Aquele rapaz, nos seus treze anos e quase um e
oitenta de altura, caracóis dourados e olhos claros, capaz de tamanha
brutalidade para com uma porta, apenas exige, apenas quer do mundo um
abraço. Assino os papéis.
Gostas de mim?
Silêncio. Ouviria esta pergunta dezenas de vezes por dia nas próximas
semanas. Pijama polar azul, olhar fixo sobre a rua, à espera de ver os outros
regressar, com telemóveis novos nos bolsos ou mais uma expulsão da
escola. A mesma força bruta e incomensurável de antes. Força essa que o
levaria a passar dois dias no hospital, ao partir a cabeça de propósito contra
uma janela, por querer visitar um dos companheiros, que lá está por doença.
Sempre a mesma pergunta e, quanto mais ele a coloca, maior a tendência
para passar do silêncio ao sim, e de essa resposta passar de conveniente a
verdadeira.
Claro que gosto de ti.
Desço para a rua. Nas escadas ecoa um assobio cujo dono eu ainda não
sei reconhecer. Ao tema, sim: My heart will go on, de Céline Marie
Claudette Dion.
Tenho tempo antes de começar. Como um gelado na praça, nas únicas
vezes talvez em que não reparo em ninguém. Dois euros, três sabores à
escolha e natas. Quero esvaziar a cabeça ou ganhar coragem. Estar
preparada. Como se fosse possível.
Há sempre futebol quando venho. Dois ou três fazem questão de estar em
casa nesses finais de tarde. Ocupam o sofá, mandam os outros calar. Sento-
me a ver com eles. Nos intervalos, jogam hóquei de mesa. Noutra noite,
participarei numa peça de teatro sem guião e sem público, repetida
incansáveis vezes. Perucas brilhantes, de cores extravagantes, e vozes feitas
grossas para a ocasião, muita gesticulação e um médico louco, que nos
persegue no lusco-fusco. É suposto que nos deixemos vencer por um
destino cruel ao som de gargalhadas maléficas. Há um rapaz de quem toda a
gente me fala, mas o tempo passa e não nos cruzamos. Parece que ninguém
sabe o que fazer com ele e, como se comporta, deixam-no no que julgam ser
em paz. Entretanto, deixo-me ficar naquilo com os dois irmãos: um joga no
computador (carros), enquanto ouve rap tuga sobre como é difícil a vida nas
ruas. Ensurdecedora, pelos vistos. O outro, o que me ofereceu chocolates
uma vez, lê a Bíblia. Às vezes não sabe dela e não sossega enquanto um dos
outros não a descobre e lha devolve. Normalmente, está no andar de cima,
onde nunca chegarei a ir. Quando volto, na semana seguinte, ele já não está
lá. Foi transferido para outro lugar. Na parede, nas mesas, vestígios da festa
de despedida do dia anterior: fotografias a cores dos rapazes e da equipa,
felizes. Bolos, sandes, frango de churrasco, sumo. Agora foi-se o líder.
Agora que íamos ouvir música, escrever e rever canções juntos. Agora que
eu lhe ofereci o meu pin do Muhammad Ali. Agora que eu estava a tentar
convencê-lo a regressar à escola. Agora que eu o fizera sorrir, e falar-me
dos temas do rap que fazia e da rapariga de quem gostava. Agora que volta
a ser um nome suspirado por todos os adultos e recordado respeitosamente
por todos os miúdos.
Eu não sei o que fazer e, como tal, escolho o que sempre faço nessas
situações: um bolo. A oito mãos, impacientes e conflituosas, curiosas e
inexperientes, que vão seguindo as minhas indicações com mais ou menos
nuvens de farinha no ar. Mas isto não é sobre o bolo, embora eu espere que
as cabeças que surgem à porta com olhar de gula, desprezo e maldizer,
sejam compreensíveis caso não esteja como querem. É, ainda, a estreia do
forno que não consigo entender de imediato como funciona. Ajudam-me.
Ainda há muito por fazer e por limpar.
Alguns recebem telefonemas da família. Outros, encontram-na nos que
ali trabalham e estão presentes todos os dias. Alguém suspira. Alguém
comenta o quão nova era a casa ainda agora e o quão destruída vai ficando a
cada dia, conforme as energias negativas, de que me dizem estar cheios, vão
sendo libertadas. «Se eles puderem roubar-te, não vão hesitar.» Quem
confiará em quem primeiro? Há um momento de tensão, e outro, e outro.
Alguém separa adulto e adolescente. Em breve, ela, a adulta, estará de
baixa, oferta da casa. Mas voltará. Voltará sempre, porque entende. Porque
escolheu estar ali.
«Quem és tu?» Apresentam-me. Apresento-me. «Deve ser a nova
estagiária.» Já no sofá, em sossego, continua: «Tens filhos?» Respondo.
«Não te preocupes, miúda, um dia ainda vais ser mãe.» E mal tenho tempo
de processar isto quando regressam os outros, como quem tivesse estado à
escuta: «Vieste buscá-lo? És a tia dele?» Contam-me que uma ex-
funcionária tentou adoptá-lo mas não conseguiu a aprovação. Queria levá-lo
de novo para a terra onde nasceu, mas acabou por desistir. «Era a
oportunidade de ele sair daqui. Vai sempre depender de alguém. Não sei o
que vai ser dele.» Ele. Tenho carinho por ele.
Quando vou a casa dos meus pais, na semana seguinte, resgato o
velhinho 20 000 Léguas Submarinas. No quarto, lemos juntos, à vez.
Confessa, «às vezes tenho uma escuridão dentro de mim». Daí a Bíblia.
Tem medo, e um dos sorrisos mais bonitos que já vi. À nossa volta, posters
e mais posters do filme Titanic, o seu preferido. Vê-o todos os dias. Chora
sempre. Convida-me para o seu aniversário, daí a dois dias. Deixo-o
descansar.
Saímos os três para a noite fria. Estou de totós, que outro dia aprendi
dizer-se Maria-Chiquinha, no Brasil. «Pareces a Harley Quinn.» Fico a
olhar para ele e digo a mim mesma: disfarça, não queres que deixe de
pensar que és fixe. Continuamos a volta ao bairro. Estão a aprender a dar a
quem precisa. Levam comida para quem a não tem. Eles que já têm tão
pouco, e de quem apenas se espera o pior. Mas a verdade é que perto, longe,
onde quer que estejamos, tornam-se facilmente os nossos miúdos
preferidos. Mesmo quando se peidam sem pudor e evitam tomar banho por
tanto tempo quanto possível. Mesmo se o autismo, a delinquência, o
abandono, a deficiência. Ah, rapazes perdidos. Fosse o mundo assim tão
puro.
Eu também
«No outro dia chamaram-me bitch e eu sorri.» De cada vez que uma
mulher nos conta algo assim existe, certamente e no mínimo, uma história
semelhante que devemos partilhar. A geografia pode muito pouco contra o
que vai no íntimo das gentes, e a fronteiras, muros, géneros e espaços
pessoais é fácil e conveniente, tantas vezes, ultrapassar.
*
Muitas vezes não me lembro do que aconteceu. Quer dizer, não penso no
que aconteceu, não me surge de repente ao cair a chuva ou ao ouvir uma
canção. Sempre tive uma memória demasiado boa até para o meu próprio
bem. Não do género fotográfico, pelo menos não completamente, não só: a
memória das emoções, da roupa que trazia vestida, de uma ou outra frase
que seria insignificante para a maioria das pessoas, mas que se cravou no
meu inconsciente talvez para o resto da vida (as frases sim, essas surgem
sempre que lhes apetece, não tenho qualquer controlo sobre elas). Isto é
diferente, talvez seja o meu próprio corpo a repelir essa memória com todas
as suas forças. Porém, ela nunca mais poderá ser completamente apagada,
e de vez em quando abre-se essa gaveta do meu cérebro (nunca poderia
guardar essa memória no coração, já teria morrido por esta altura) ou
talvez não, porque se seguiram outras tão más ou piores.
*
«Are you interested in writing a book?», foi uma das muitas perguntas
feitas por um grupo de senadores homens, brancos, a Anita Hill, professora
universitária e activista negra, em 1991, aquando do processo que abriu
contra o candidato nomeado para o Supremo Tribunal Clarence Thomas,
que viria a ser confirmado juiz, o segundo negro a ocupar um dos cargos
mais importantes do país. Negro e negra em lados opostos da justiça, ambos
a fazerem história em simultâneo. Este nunca foi o plano. Estamos quase no
final de 2018, e continuamos de costas voltadas em relação a isto.
*
Eu deveria ter uns sete ou oito anos. Estava na escola primária e já fazia
o percurso entre casa e escola sozinha, embora acompanhada por colegas
de turma a maior parte do caminho. Mas eu estava a falar de quando
andava na terceira classe. Costumava ir a casa de uma familiar que ficava
num bairro a uns quinze ou vinte minutos a pé de nossa casa, brincar com
as filhas dela. Elas eram mais velhas do que eu, e na verdade uma delas
não era mesmo filha, mas era tratada como tal. Ela tinha, ainda, dois
filhos. Todos eram mais velhos do que eu uns bons anos. Era sobretudo
para não ficar sozinha em casa, para me livrar de sarilhos e do
aborrecimento.
*
«Estou bem triste.» Assim começa uma mensagem de voz tremida.
Pouco importa se vem de uma rapariga bonita. «Eu vinha do trabalho hoje,
às sete da manhã, e três homens começaram a dizer-me coisas, a chamarem-
me de puta, vadia, a fazer gestos obscenos. Deviam estar bêbados. Entrei
em pânico e comecei a gritar com eles também. Fiquei muito agoniada e
comecei a chorar. Eu estava tão feliz, o trabalho tinha corrido bem, apesar
de cansativo. Agora vou ficar com medo, agora vou ficar a olhar para todo o
lado para ver se vem alguém.»
*
Ele devia ter uns quinze anos. Raramente penso nisto. É só mais uma das
coisas que não posso alterar. A maior parte das vezes nem me lembro que
aconteceu. Chamava-me ao quarto dele, conversava comigo e dizia que
gostava de mim. Fazia-me deitar no chão e deitava-se em cima de mim.
Tocava-me, fazia pressão sobre mim e tentava, constantemente, chegar mais
longe, e como não conseguia, ficava zangado. Lembro-me muito bem de
ter-se rido de mim quando, uma vez, fui até à janela e comecei a recitar os
nomes dos meus colegas de turma. Uma das irmãs dele, uma vez, espreitou
pelo buraco da fechadura, e disse que sabia o que estávamos a fazer, e que
ia contar, mas não o fez. Eu mesma nem sei porque não o fiz. Por medo,
talvez. Medo do que todos iriam dizer e pensar. Eu não percebia bem o que
se passava, acho que parte de mim via aquilo como uma forma de afecto.
*
É o homem alto e forte com equipamento de ténis completo à porta do
campo que fica ao lado de um supermercado onde vais tantas vezes após a
escola, e que faz esperas e tenta falar contigo. É o funcionário da junta que
varre as ruas e vai deixando pequenos bilhetes caídos no chão, pequenas
cartas que entenderá certamente serem de amor para a tua amiga com doze
anos, como tu; mais tarde é a história da tua prima aos catorze, e um vizinho
e amigo da família. É a tua colega de faculdade num parque de
estacionamento, e a amiga dela também, e contar-te isto na esplanada num
dia de sol e alguma coisa gelar-te por dentro e te privar de empatia para com
ela, como quem diz, faz parte, calha a todas, quem nunca. É aquela rapariga
de há muito tempo, e o irmão e o segredo partilhado e calado por todas as
irmãs. É a pessoa que admiras e respeitas e te diz todas as coisas que sempre
quiseste ouvir sobre o teu trabalho, mas que momentos depois tenta beijar-
te. É a pessoa que te procura para uma colaboração, mas após uma série de
observações intrusivas se propõe ir contigo para casa ao fim de um jantar
que, para ti, era apenas de trabalho; é ainda aquela pessoa que justifica, «Se
calhar ele estava só muito apaixonado». E chegas a casa e rebentas num
pranto e não consegues dormir, e a vida do outro segue como se nada fosse.
É a actriz que se defende não se afastando, chocando e tentando reverter o
nojo. É o actor que fala de aguentar o assédio porque são apenas três dias de
filmagens, e lutou muito por aquilo, e tem de pagar as contas, e terá o
trabalho para mostrar e para se consolar. É quem te julga e recorda que
ninguém te apontou uma arma à cabeça, e que és uma desilusão. É quem
fala mal de ti e acha que não tens direito a uma voz porque mandaste nudes
a este e àquele e ao outro, ou porque és gay, ou porque és latina, ou asiática,
ou trabalhadora do sexo, ou todas as anteriores. É a mulher de Thomas,
deixando uma mensagem de voz a Hill em 2010 a exigir um pedido de
desculpas. Ou o senador Alan Thompson a perguntar, ainda em 1991, «Why
in God’s name would you ever speak to a man like that the rest of your
life?»
*
Já era adulta quando falei nisso a alguém pela primeira vez. A vida por
vezes é muito cruel. Foi um alívio quando a família toda se mudou para
Inglaterra. Nunca mais os vi, e ainda bem. Mas nada tira o amargo de
maçã podre. Temos tendência para relevar a fruta quando ela está tocada,
cortamos e deitamos fora o que estiver manchado, ou oxidado, ou podre.
Não queremos, não gostamos de desperdiçar nada, mas naquele caso eu
não podia ficar com uma parte e esperar que o todo não estivesse
envenenado. Era uma situação da qual só poderiam resultar mais vítimas, e
assim deixei-me ser a única. Porque a vergonha e a culpa nos fazem sentir
que estamos sós, que ninguém quer saber ou acreditar, que somos,
realmente, putas, desmerecedoras de compaixão e merecedoras de todas as
coisas más, sortudas por haver quem nos queira, mesmo se pela força,
mesmo se desta forma, porque nós começámos tudo isto apenas por
existirmos.
*
Há pessoas que pedem desculpa e há pessoas que não. Há pessoas que se
fecham para o mundo e para os outros e passam a viver como se fossem de
cristal. Pessoas que se calam e pessoas que não o fazem. Há pessoas que se
magoam mais e se desassociam de si, e entram num pesadelo de miséria e
promiscuidade, em detrimento da sua já frágil condição. Que deixam de
acreditar em si para acreditar no gaslighting do outro. Para alguns é
compulsão e doença, para outros um momento menos brilhante, toldado
pelo ego e por algum álcool à mistura. Concluo que será sempre demasiado
cedo para poder chegar a qualquer conclusão, a não ser a de que
continuamos sem saber como lidar, como conviver uns com os outros, como
amar, como respeitar, como entender.
*
«And I can’t explain; it takes an expert in psychology to explain how that
can happen, but it can happen, because it happened to me», disse ela, ainda
em 1991. E os Sonic Youth responderam: «I believe Anita Hill.» Eu
também, eu também.
Partir o pente
A minha irmã acha que eu deveria cortar o cabelo, logo agora que recebe
mais elogios que nunca. Divertida, faz-me sinais de uma tesoura invisível,
sorri e oferece-se, «Se quiseres eu corto». Não tenho usado muito os
bigoudis que dela herdei quando decidiu cortar o longo cabelo bem
curtinho, há uns anos. Agora, tem uma afro invejável, com tons entre o loiro
e o castanho. Uma vez, numa loja de acessórios, dei por ela a experimentar
uma peruca. Retorquiu, «O que foi? Sempre quis saber como ficaria se
fosse loira.» É difícil cabermos, e aos nossos cabelos, por inteiro na mesma
selfie, mas ambas continuamos, cada uma num país, a lidar com estranhos
que insistem em tocá-los. Suspiro. Da raiz até às pontas.
*
Vejo vídeos sobre como fazer a transição capilar, reeducar o cabelo, fazer
o big chop total ou parcial, para ter uma só textura, para desintoxicar e
recuperar o meu verdadeiro eu. Na série Insecure, Issa Rae e as amigas
mudam frequentemente de penteado. Em This is Us, igualmente. Parece
fácil e acessível. Em Keeping up with the Kardashians, a royalty da reality
tv americana é adepta de extensões e perucas. Muitas vezes, a sua origem é
indiana ou vietnamita: as primeiras doam o cabelo ao templo milionário e as
segundas usam-no para sobreviver e alimentar as famílias mais algum
tempo.
*
Cabelo curto, comprido, desfrisado e natural, tranças, caracóis, liso e
ondulado: já tive de tudo um pouco, embora nunca o tenha pintado senão de
preto. Pouco original, bem sei. No processo, parti muitos pentes, dentes de
pentes, cabos de pentes, como qualquer africana ou afrodescendente que se
preze.
*
Penso que não tenho mais paciência para isto do que para usar
maquilhagem. Deixei de desfrisar o cabelo há dois anos, depois voltei a
fazê-lo, e já só o fazia uma vez por ano, no momento de maior desespero e
embaraço, quando o pente ameaçava partir-se novamente, após logradas
tentativas de domesticação. Arrependo-me e penso, agora vou ter de
começar de novo. No entanto, trouxe recentemente do supermercado uma
escova eléctrica. Apesar de ter um ferro de alisar e uma varinha de
encaracolar, que raramente uso. Não tenho secador mas sei que, por uma
vez, a explicação não cabe a Freud.
Se folheio a Poesia Toda, descubro em Herberto Helder Na cerimónia da
puberdade feminina (dos índios Cunas, Panamá). A mesma inclui tesouras,
cabaças, água e aguardente, lenços, mulheres e raparigas. Muitas vezes sinto
saudades de ter tranças. Permanecem na memória como um ritual sagrado e
moroso, em frente à televisão, com pequenas pausas e muita paciência,
perfeição e minuciosidade das mãos maravilhosas da minha mãe e da minha
tia.
*
Passaram dois anos desde o lançamento do icónico álbum de Solange, A
seat at the table, e do hino Don’t touch my hair. Este single, que obriga a
reflectir para além do já expressivo título, assenta muito bem num mundo
em que o cabelo continua a ser motor de vítimas e de agressores, com mais
ou menos silêncio e assumir de responsabilidades e preconceitos. O
responder a uma pergunta que raras vezes é feita. Uma resposta pacífica
para um gesto tantas vezes agressivo, se não físico, certamente mental e
emocional. A artista explica «Don’t touch my hair / When it’s the feelings I
wear». Nada parece faltar a Solange. E nós sentamo-nos à mesa para pensar
e lutar com ela.
*
Também em 2016, a ginasta olímpica Gabby Douglas foi criticada,
sobretudo na comunidade afro-americana, pelo seu cabelo que, segundo os
comentadores, se apresentou desleixado durante as competições. Gabby,
uma jovem adulta digna de admiração, cedeu naturalmente perante tais
reacções, quando deveria estar feliz, a celebrar a sua prestação e a medalha
de ouro, a primeira ganha por uma afro-americana naquela categoria.
Início de 2018: uma mulher de nome Essie Grundy processa a cadeia de
supermercados Walmart por suposta segregação de produtos de cabelo e
pele destinados à comunidade afro-americana, guardados à chave num
armário, como em Portugal vemos tantas vezes com produtos não conotados
racialmente, mas que talvez tenham mais tendência a serem alvo de furtos,
como artigos de higiene pessoal.
*
Se ando por livrarias ou supermercados, por todo o lado encontro
Becoming, de Michelle Obama. A internet delira e ergue as mãos ao céu em
júbilo pela sua cabeleira, em estreia natural e encaracolada na capa da
revista Essence. Não foi assim há tanto tempo que os Obama deixaram a
Casa Branca e o levantar de sobrancelhas que as tranças das suas
descendentes causaram. Não foi assim há tanto tempo que, de Beyoncé,
ouvimos «I like my baby heir with baby hair and afros».
*
E se 2016 parece ter sido um dos anos capilares de maior relevo, a uma
fotografia de Barack, de cabeça baixa, permitindo a um menino que lhe
tocasse no cabelo para descobrir se seria igual ao seu, o devemos. Sou fã de
Michelle, mas pergunto: por que é que o cabelo encaracolado não agraciou
antes a capa da sua biografia, em vez da revista, e se manteve politicamente
correcto, já depois da presidência? Talvez o mundo deva mais a Michelle do
que o contrário. Talvez Michelle guarde o seu cabelo natural para a
intimidade; talvez tenha sido este o seu sacrifício. Os Egípcios deixavam
crescer o cabelo enquanto viajavam. Talvez Michelle, não tendo ainda
chegado ao fim da viagem, apenas agora tenha conseguido fazer uma pausa
para pensar. Talvez a sua pequena evolução pessoal e capilar ainda venha a
tempo de ser uma revolução, talvez ela não seja o seu cabelo (bem, não
mais do que qualquer um de nós, pelo menos) e estejam certas as culturas
que acreditam que o cabelo é uma das moradas da alma e também o estejam
as primeiras-damas que se protegem atrás dele. Talvez este experimentar
constante, numa altura em que toda a gente se policia, seja apenas mais uma
forma de aprendermos a suportar o nosso próprio peso.
Um espectáculo, digo eu!
No caminho para a paragem, onde se cruzam eléctricos e autocarros,
distraída e com sono, quase piso a passadeira ainda a ser pintada de fresco.
Há operários, cones de sinalização, luzes amarelas e coletes reflectores.
Alguns metros à frente, os homens do lixo fazem a recolha. Levo a mão à
cabeça para ter a certeza de que não trouxe um capacete em vez do gorro.
Fico confusa por momentos; poderia julgar que o ensaio acabara e que já
não estava em directo do grande auditório do CCB, onde o público aguarda
o início de mais uma criação da mala voadora e, sim, na rua, em Lisboa. O
autocarro chega e a viagem é feita aos solavancos. O cheiro a frango assado
que o passageiro sentado atrás de mim devora torna tudo mais real. É o
descanso do trabalhador, a marmita tradicional, o piquenique em
movimento para quem ainda tiver forças para comer a esta hora da noite.
As últimas semanas foram intensas e exigentes, e nesta viagem que
nunca começa para todos ao mesmo tempo, apenas termina, encontramo-
nos cada vez mais lado a lado para ensaiar, jantar quando conseguimos,
fumar um cigarro, tocar piano a quatro mãos, apertar um botão da camisa ou
acertar colarinhos no último segundo, mandar calar, matar os colegas cem
vezes na nossa cabeça, apenas para depois com eles dançar em conjunto
entre cada cena, fazer rir e trocar histórias, para desesperar e zangar. Temos
pouco tempo e, no entanto, há sempre tempo para atrasos, faltas, momentos
de diva, para ficar doente, mudar de ideias, perder e reaver objectos,
habituar-se a que tudo mude todos os dias e mais do que uma vez por dia,
cortar e acrescentar cenas, cimentar e criar amizades, e ainda cobiçar todo o
guarda-roupa do director artístico. Não importa como se chegou aqui, agora
estamos juntos nisto.
*
Sábado de tarde: turistas e locais passeiam, fotografam, lancham e
apanham sol, como sempre ou talvez com maior fervor, pois afinal é um
feriado religioso. Técnicos fazem greve, como é de seu direito. O
espectáculo é cancelado. Sucedem-se as mensagens, telefonemas, suspiros e
brados de revolta, tristeza, desilusão e frustração. Como manda o figurino,
há uma reunião de última hora com quem de direito e com direito a
explicação, que sabe naturalmente a pouco, sabe talvez a algum do material
usado na construção do cenário. Existe solidariedade de parte a parte, só
tenho pena de que o «crítico» não tenha escolhido o dia de hoje para vir ao
teatro. Provavelmente teria apreciado mais esta versão. Fausto não é para
todos, não agrada a todos (de qualquer um dos lados do palco, pois
acreditem que é possível fazer um espectáculo de que não se gosta) mas é,
inegavelmente, sobre todos e dá um lugar e visibilidade a todos. Sou
suspeita mas, pessoalmente, é isso o que me interessa na arte. E o respeito
por quem trabalha, claro. Em Fausto, trabalhou-se e aprendeu-se muito.
*
Um coro, um rancho e um stripper entram num palco... Ganhamos mais
do que perdemos. Para trás ficam lantejoulas, folhos, escudos, luvas e
cacetetes, azulejos e leques, camas de hospital e os vinte e cinco anos do
Centro Cultural de Belém. Fica a festa possível, sem esquecer que são as
pessoas que fazem as instituições. As recentes greves demonstram isso,
sejamos estivadores ou actores na tv ou no teatro. Ou todas as profissões
que estes últimos representam, por vezes até fora do blueroom. Alguém
disse que a ambição é necessária para a realização. Eu penso nos
Apanhados TVI e RTP e em maquilhagem que serve para nos fazer parecer
que estamos sem maquilhagem e, de algum modo, tudo isto parece fazer
sentido.
*
Conto, para que vocês acreditem. Talvez este seja o final, o único final
possível. Mais irónico e genial do que qualquer um de nós poderia ter
criado intencionalmente. Nós, a equipa, saímos de malas e bagagens como
tantas vezes estivemos em cena. Talvez a arte não imite a vida, apenas a
amplifique, pois em Fausto houve manifestações, revoluções, feridos e
queimados, migrantes e desempregados. Talvez esta greve tenha o seu quê
de justiça poética, não houvesse também um grupo de juízes em cena. Mas
agora é hora de arrumar tudo, apagar as luzes, apanhar novo eléctrico, novo
autocarro, e voltarmos a ser as pessoas de todos os dias, sem fronteiras e
quase sem limites. Caótica e elegantemente, como um povo e uma família
de artistas que se preze.
Uma gota de glitter
Tenho um trabalho de casa e queria que João Barrento o fizesse por mim.
Estou a ler o seu conjunto de crónicas, Uma seta no coração do dia, cujo
belíssimo título me recorda Huxley e o seu Brave new world: «Words can
be like X-rays, if you use them properly – they’ll go through anything. You
read and you’re pierced.» Gostaria de pensar que serei uma escritora melhor
depois de ler Barrento, cujo A chama e as cinzas aguarda a sua vez na
minha pilha de livros, recomendação do meu amigo Ricardo Falcão. Mas
não venho falar de Barrento, nem de Huxley, e sim de Mariah Carey, que
ouço muitas, muitas, mas mesmo muitas vezes enquanto leio ou faço outra
coisa qualquer. Há alguns anos, imaginei uma Batalha dos Advérbios,
Aldous Huxley vs Mariah Carey. Huxley: expressionlessly, startlingly,
imploringly, inconspicuously, revoltingly, reassuringly, terrifyingly,
despairingly, patronizingly, piercingly. Carey: abandonedly, painstakingly,
consequently, incessantly, inadvertently, unendingly, threateningly,
convincingly, subconsciously, consequently. A meu ver, Carey ganha. Mas
talvez porque eu sou uma assumida freak de Mariah Carey, que o é,
claramente, de vocabulário. Quem nunca acordou e se preparou
energicamente para um novo dia ao som de Emotions ou rodopiou pela
cozinha de braços estendidos desafinando melancolicamente I still believe?
Quem nunca chorou ao som de Petals, I don’t wanna cry, Love takes time
ou se sentiu melhor depois de ouvir Someday, Everything fades away,
Obsessed ou Everytime you need a friend? O escritor islandês Sjón disse,
numa entrevista: «We should not be afraid to work with the things that
impressed us when we were at our most impressionable. [...] Very few of us
grow up in a castle and have private tutors who teach us Greek before noon
and Latin in the afternoon and then we take piano classes and learn about
classical painting or something. All of us come to culture through trash.
And there are so many people who are embarrassed about what excited
them. If you came to storytelling through the Spice Girls, then this is how
you got introduced to storytelling. Work with it.»
Eu cresci a ouvir Spice Girls e Sade (The best of Sade é o álbum que ouvi
mais vezes em toda a minha vida), mas também Tabanka Djaz, Os Tubarões
e Bob Marley. Não sei tocar piano mas gostava. Carey não cresceu num
castelo, mas tornou-se a moça pobre por quem um príncipe se apaixona e a
leva para o seu reino onde vivem até ela sair da discográfica. E então a
moça pode começar a ser feliz quase para sempre e, até, comprar o piano do
seu ícone, Marilyn Monroe, cujo nome inspiraria o da sua filha ou versos
das suas canções mais recentes. Um dos meus temas preferidos de Carey é
Make it happen, poderosamente autobiográfico e inspirador, e um pequeno
mantra para todos os dias, os difíceis e os outros, relembrando que persistir
é preciso, mas não sem uma fé que por acaso partilhamos, e nos mantém
por cá quando tudo se desmorona. Para muitos, os que sabem ou não negam
saber quem ela é, Mariah será uma diva pop louca, gasta, irrelevante e
irritante, com decotes exagerados e uma obsessão por sapatos
(compreensível, para quem conhece a sua história). Para muitos mais ainda,
um ícone merecedor de um movimento como o recente #justiceforglitter,
empenhados como estavam os seus fãs em fazer chegar ao primeiro lugar
um álbum que, após ter sido um fracasso, tal como o filme de que era banda
sonora, se tornou um objecto de culto, com a sua vibe de anos oitenta, talvez
pensado à frente do seu tempo. Só o amor dos fãs para destronar o álbum
mais recente de número um por outro mais antigo. Mariah a vencer Mariah,
ou será Bianca, o seu alter ego que encontramos nos vídeos de Heart
breaker com Jay Z e do seu remix com Snoop Dogg no papel de noivo e Da
Brat e Missy Elliott como madrinhas? Heart breaker que, originalmente, foi
pensado para ser parte de Glitter, mas cuja inclusão no álbum anterior,
Rainbow, se tornou uma benesse na época mais sombria da carreira da
cantora, compositora, produtora, actriz e, agora também, mãe. Crescer com
Mariah Carey é conhecer Mariah Carey e conhecê-la é, sem dúvida aceitá-la
e amá-la até ao fim dos nossos dias, perdoando todas as falhas e celebrando
todos os intermináveis sucessos. Num mundo em que já não restam muitas
das lendas originais, tendo perdido Aretha Franklin (uma das suas principais
influências) ainda tão recentemente, e com as demais figuras míticas tão
perto da terceira idade, Carey, que viu partir tantos dos seus talentosos
amigos da velha escola, com quem colaborou ao longos de décadas, estará,
talvez, aos quarenta e oito anos, a meio caminho de algum lugar (ainda
mais) importante. Nomeada, com outra das suas amigas próximas, Missy
Elliott, e inspirações, Chrissie Hynde, para o Songwriters Hall of Fame,
lutou sempre para ser vista como a escritora de canções que é, sendo que
escreveu todos os seus temas, excepto as covers e o dueto com Trey Lorenz,
I’ll be there, e When you believe, dueto com Whitney. Temos outras grandes
cantoras também autoras de muitos dos seus sucessos (pessoalmente,
destaco Tori Amos, Kate Bush, Alanis Morissette e Fiona Apple, esta última
creditada por Diddy como uma das que mais o influenciou), mas só Mariah
ultrapassou Elvis enquanto artista solo com o maior número de canções a
chegar ao primeiro lugar. À sua maneira, lutou para que houvesse esse
reconhecimento e multidimensionalidade, a par com o que era dado tão
facilmente a outros, bastando que fossem homens ou, sendo mulheres,
tocassem regularmente algum instrumento. Ora, Mariah assume tocar mal o
piano e poucas vezes a vemos dançar, em palco ou num videoclip. Mas esta
é a mulher que uniu o pop com o hip hop e o rap e será, ainda, quem melhor
continua a fazê-lo. Num mundo de artistas como Ariana Grande (também
capaz de fazer o whistle de Minnie Riperton, que começou a carreira com
covers de Carey no Youtube até ser descoberta, assídua colaboradora de
Minaj e, infelizmente, também com um atentado terrorista a marcar a sua
carreira), não podemos esquecer que foi Carey a primeira grande artista a
colaborar com uma ainda pouco conhecida Nicki e a incluí-la no vídeo,
antes mesmo de Minaj ter lançado o seu álbum de estreia, e ainda longe do
estatuto que depois se lhe atribuiu de rainha do rap, discussões no American
Idol à parte. Não podemos esquecer que Mariah teve um mega hit com o
título Shake it Off dois anos antes de Taylor Swift, e que só não chegou ao
primeiro lugar porque, bem, Mariah já lá estava com a canção que seria a
sua segunda a ser considerada canção da década. Nem tão pouco podemos
esquecer que Glitter foi lançado no pior dia possível, o dia do atentado
contra as torres gémeas, que mudaria o mundo para sempre, e que também
Carey lida com doença mental e insónia desde tenra idade, tendo demorado
muito para assumir e, consequentemente, tratar a sua bipolaridade. Mas
Carey tem sentido de humor e como tal teve gémeos, tem um alter ego, dois
álbuns a lutar pelo primeiro lugar e será das artistas com maior número de
colaborações de sempre, o que demonstra a sua generosidade e
adaptabilidade não apenas social mas também musical. De Luther Vandross
a Boyz II Men, de Skrillex a Slick Rick (a quem todo e qualquer rapper terá
ido buscar alguma coisa) e Ty Dollar Sign (no mais recente e delicioso
álbum, Caution) a Pharrell Williams, Sean «Puffy» Combs, Jermaine Dupri
e Mobb Deep nos primórdios da sua carreira, sem esquecer a mítica e
disruptiva colaboração com Ol’ Dirty Bastard, Mariah fez e cantou de tudo
e com todos, destacando sempre o seu amor por Wu Tang Clan e o quanto
aprendeu com Bone Thugs-n-Harmony.
*
Anitta, a actual mandante do funk brasileiro, inspirou-se no look de
Carey que agracia a capa de Rainbow para sua fantasia do Carnaval que aí
vem, à guisa do que Beyoncé tem feito com as suas homenagens a Lil’ Kim
ou Toni Braxton no Instagram. Beyoncé, que será talvez a única das
cantoras actuais que Carey menciona em entrevistas, afirma, «Diva is a
female version of a hustler». Quando lhe perguntaram sobre Jennifer Lopez,
Carey respondeu «I don’t know her», o que ao longo do tempo se tornou
uma piada e até merchandising, tomando agora a forma de «I still don’t
know her», cortesia de antigas disputas causadas por supostos roubos de
ideias para canções da Columbia Records já depois da saída de Carey, e
para beneficiar Lopez.
A eterna rainha do Natal, talvez tudo o que Carey queira este ano seja
esse reconhecimento como autora/escritora. Cantora de origens mistas, filha
de um casal em que o pai era negro com raízes venezuelanas e a mãe
branca, com origens irlandesas, Mariah (a terceira filha de um casamento
mal visto pela sociedade da altura, cujo preconceito criaria tensões que
levariam ao divórcio) nunca se considerou branca, embora tenha lidado,
nem sempre bem, com essa one drop de sangue negro, e embora tivesse
lutado para aceitar-se e ser aceite, quando a sua aparência branca com voz
negra foi usada para mass appeal. Quando se libertou finalmente, a
borboleta de Nova Iorque pôde mostrar as suas influências, que iam desde
Jimmy Hendrix a Def Leppard ou à sua mãe, cantora de ópera. O que é um
ídolo? Pode Mariah, a cantora que mais me ensinou sobre gangster music,
que chegou a alguns número um primeiro nos tops de R&B, antes das
demais tabelas, ser definida como um ídolo pop, quando tem canções para
todos os sentimentos e situações possíveis, abrangendo uma miríade de
géneros? Definitivamente, não.
*
Receamos sempre o dia em que os nossos ídolos vão deixar-nos. Tal
como outros, também chorei Cohen, Bowie, Prince. Mas quando
desapareceram Jackson e Houston, foi pela obsessivamente perfeccionista
Carey que temi. Se estivermos vivos tempo suficiente, tudo pode,
eventualmente, acontecer-nos. Carey não falhou as polémicas do playback,
dos colapsos nervosos em público, dos casamentos falhados, dos dramas
familiares, das cirurgias e flutuações de peso, dos excessos que um sucesso
fora de série parece sempre acarretar, numa proporção assustadora de tão
directa. Mas também não falhou a redenção que We belong together ou seu
aclamado papel em Precious lhe trouxeram. A par de Britney, com a devida
salvaguarda do que as diferencia, mas que continua a ter fãs eternos e
também passou por um escrutínio que quebraria o mais forte de nós, Mariah
será talvez um dos poucos casos de real morte e ressurreição nesta indústria
que esquece, permite e perdoa tão mais e mais rapidamente a homens,
geralmente com agravantes bem mais negros do que os que estas duas
figuras alguma vez poderão ter (veja-se Chris Brown ou R. Kelly e os
recentes comportamentos preocupantes de Drake em relação a menores).
Falando em comparações, recordemos o que disse a saudosa Houston
(com quem poderíamos fazer um paralelismo com Amy Winehouse ou
Lady Gaga): «Mariah is Mariah», e talvez isso seja a única e a melhor coisa
que alguém pode esperar de si mesmo e dos outros. Haverá luta mais dura,
importante e recompensadora do que a de nos conhecermos e superarmos?
Talvez a humanidade e a imperfeição sejam, a par do carisma e da centelha
divina das suas vozes, o que faz um ícone. Como diz o ditado, it takes one
to know one e, se Houston é The Voice, Carey é The most. Agora, se me dão
licença, vou voltar a João Barrento, um outro tipo de ícone, pois ainda tenho
muito que aprender.
Diários Turcos (I)
O que é que jantámos na nossa primeira noite em Istambul? Pizza. Very
typical. Na recepção, um senhor chama-me umas seis vezes pelos nomes do
meio, como se fossem um só e ele não conseguisse ler nem o meu primeiro
nem o meu último nome.
Chego, sento-me no sofá contemplando a hora de jantar.
*
– Então, Gisela, que fazes?
– Estou apenas...
– Estás a rir sozinha?
*
Estava a olhar para o telemóvel. Éramos cinco à mesa. Alguém me
chamou. Levantei o rosto e duas pessoas queriam oferecer-me uvas. Uma
tinha duas, roubadas à que tinha umas dez num cachito. Sem saber o que
fazer, perante aqueles olhares ansiosos e braços estáticos, aceitei tudo. Um
outro interveniente disse, de quem tinha mais, «Ele só queria oferecer-te
um». Rimos. La Fontaine revisitado.
*
Nos lavabos públicos, rapazes adolescentes e homens descalçam-se e
lavam os pés, recolhendo os casacos pendurados à saída. Em sua casa, Zafer
dispensa-nos de descalçar os sapatos, por cortesia. Chove e faz frio, mas
nem isso impede os gatos de frequentarem a universidade à noite. Somos
revistados à entrada dos museus e dos centro comerciais. Fotografo a Lígia
no meio de oito chineses, cinco de um lado e três do outro, todos sentados e
ela no meio. Quase todos me olham ao mesmo tempo sem combinar e sem
desviar a atenção, como se nos conhecêssemos. Fotografo a Lígia a
descalçar-se cinco vezes por entre túmulos e mesquitas; por vezes há um
extintor ou uma roseira a compor o quadro. Dizem-nos: «Quero saber a
vossa religião. São cristãs? Porque eu sou muçulmano mas não sou um
terrorista.» Mais tarde, numa escola, perguntar-me-ão se sou muçulmana.
Mais tarde, numa igreja e numa escola, alguém levará a mão ao peito em
vez de no-la apertar, deixando-nos penduradas e perplexas. Zafer disse-me,
ontem: «Ainda não te sentiste estrangeira aqui.»
*
À hora de almoço:
*
– Isto é tão bom, lembra-me algo.
– É leite condensado cozido.
– Pois é.
– Comemos quando alguém morre.
– Então... Quem morreu?
*
Finalmente cedo e digo, numa sessão escolar e em turco, que İsmet Özel
(cuja obra desconheço) é o maior poeta turco. A multidão vibra. Yaya diz-
me, através de notas num bloco que ainda tenho, que Rıdvan lhe confessou
que quer casar comigo, porque o fiz feliz ao dizer esta frase que me vinha
repetindo há dias. Há uma foto do momento preciso em que leio essa frase e
rio: é uma das melhores fotos desta viagem.
*
No aeroporto:
– Eventualmente todos os turcos vão embora.
– Excepto tu.
*
No palácio:
– É pá, a bandeira e todas estas luas lembram a Sailor Moon, não achas?
– Pois é.
*
Ao fim de um tempo teríamos de ceder às casas de banho à la Bairro
Alto. Nem sei como demorámos cinco dias a atingir este marco.
*
Domingo a Turquia fez anos. Segunda, fiz eu.
*
Já me perguntaram algumas vezes se estou aborrecida. Normalmente é
quando me calo. Ou há pouco, porque estava em pé lá na rede expressos
enquanto fazíamos tempo. Acho que é isso que querem dizer porque fazem
a pergunta ao contrário, perguntam, “Estás a aborrecer-nos?”. Espero que
não. Respondo que nunca me aborreço e que dentro da minha cabeça estou
sempre bastante entretida. A Esra, a nossa intérprete, anui com a cabeça e
sorri, acho que começa a conhecer-me.
*
No autocarro para Gaziantep, agora somos nove, (comento com a Lígia
que isto é a Sete Rios cá do sítio) sentados à espera que parta, e estou a
tagarelar fluentemente, como sempre. Dizem-me, «Esta avó...» e eu penso,
deve querer que eu me cale, afinal só se ouve a minha voz, «... Diz que te
ama». Gargalhada geral, e a senhora vai repetindo os seus afectos
instantâneos em turco. Vão ser umas lindas seis horas de viagem.
*
Novos diálogos de Konya:
– Este catering só no Alfa.
– Wifi no expresso para Melgaço.
*
A Lígia bate-me ao de leve no ombro. Passa-me um phone. Notorious B.
I. G., «Big Poppa». Gosto desta miúda. Estamos um pouco lost in
translation, tempo e espaço. Já não sabemos bem que dia da semana é nem
que horas são em Portugal. Ao telefone a minha amiga diz que são quatro
da tarde. Aqui, sete. Não há horário de Inverno, só o Inverno em si. No
meio de nenhures, paramos rapidamente pela segunda vez. Desta vez
saímos. O rapaz das uvas não fala inglês. Oferece-me o maço. Eu não fumo,
digo (pensava que já teriam reparado por esta altura, considerando que sou
realmente a única que não fuma). Porquê?! Pergunta um outro. Ouvem-se
tambores. Dizem-me que é uma celebração, uma despedida, um rapaz vai
para o exército, como é costume aqui quando aos vinte ainda não se foi para
a universidade. WC Bayan é casa de banho das senhoras. Dão-me uma
moeda para a mão. A sério? Olá, Santa Apolónia nos anos 90, com porteiro
e guichet nos lavabos. Por algum motivo agora só me apetece ouvir Beatles:
«Here, there and everywhere.» Seguimos caminho.
Diários Turcos (II)
Se já te estavas a dar bem com uma pessoa, imagina quando ela te mostra
uma foto sua num tractor, precisamente o que falta à tua colecção. A Lígia
escreve um poema sobre um gato que conheceu numa livraria. Quem deu
colo a quem não é certo.
*
Em verdade vos digo, num sítio onde é preciso passar por vários
detectores ao longo do dia, tenho sorte que os ganchos de cabelo não os
façam apitar. Há pessoas que tentam acalmar-se a si mesmas. Eu digo isso
ao meu cabelo.
*
Esta noite:
– Olha, vem aí a minha sobremesa preferida!
– Portanto vamos comer a sobremesa dos mortos novamente.
*
No carro, a Lígia olha para a minha mala.
– Bem, cabe aí tudo.
– Muitos anos a jogar Tetris.
*
Passei os primeiros três ou quatro dias de cabelo apanhado num carrapito
composto. Agora que o soltei, passo os dias a tentar que ele caiba nas fotos
e não tape ninguém. No dia seguinte, bantu knots.
*
Na última escola, em Gaziantep, uma miúda diz-me:
– O teu cabelo é muito bonito.
– Obrigada. Fiz isto a mim mesma.
*
Estamos a jantar no sítio mais pomposo de sempre quando reparo que
cravos ornam a mesa. Explico o 25 de Abril. Brincamos com Oxalá e
Insha’Allah. Mistura-se turco, húngaro, inglês, português e árabe. Alguém
escreve «Saramago é o maior da Europa.» Já de Pessoa diz-se, pelo tradutor
no telemóvel, «Eu leio o livro inquieto».
*
Doze pessoas no carro. Perguntam-me, «Museu da cidade ou café?».
Café, respondo após uma ligeira pausa. Suspiram todos de alívio e alguém
agradece. Explico que é só porque não quero que estejam tristes, porque eu
adoro museus e, verdade seja dita, estamos SEMPRE a beber café e chá e
café e chá de novo. Eles, OS ONZE, fumam fumam e eu morro morro, mas
pronto. Reúno uma colecção de maços de tabaco turcos, com imagens super
suaves e diferentes das dos maços portugueses. Atento também no lindo
cinzeiro com cravos e no facto de, depois de termos acabado o café,
perguntarem se queremos chá. What else? Este é o ciclo da vida. Chá, café,
chá, café. Uma vez por outra água e iogurte.
*
Novos diálogos de Gaziantep:
Eu: Então diga-me, há quanto tempo diria que é inspirado por plástico de
bolhas?
Ele: Diria que há uns cinco, seis anos.
*
No carro, discutimos a relação entre poesia e bolhas, sabão e plástico.
Em mais um aeroporto, o rapaz das uvas oferece-me cigarros pela segunda
vez. Muito engraçado. «Se alguma vez precisares de cigarros ou de plástico
de bolhas, conta comigo.» Rio-me.
*
De manhã,
– Cá estamos nós a passar outra vez a Lx Factory cá do sítio.
*
Hora de almoço,
– Isto é tão feio. Parece Odivelas.
*
Tarde,
– Esta zona é mais Mem Martins. Só faltam as marquises.
– Aqui, Azeitão.
– Olha, afinal até há marquises.
*
Ao almoço,
– Isto é a casa do Sporting, não é? Ou melhor, a churrasqueira do Campo
Grande.
– O verde até é o mesmo.
– Pizzas em vez de frangos.
*
Depois de almoço,
– Olha este túnel, consigo imaginar a câmara do lado direito e, ali, parece
o Estádio José Alvalade.
– Um estádio em forma de bola.
*
Duas horas depois,
– Gisela! (há uma moça que está sempre a rir - sim, mais do que eu – e
está sempre a dizer o meu nome de uma forma quase cantada, mas com o Gi
a soar Ri) Vamos beber café!
– Para sempre?!
*
Ao jantar:
– Isto é chocolate?
– Sim.
– É muito bom. Como se chama?
– Pudim.
– A sério? Eu aqui à espera de algum nome impronunciável e vocês
chamam a isto pudim?!
*
Como as primeiras castanhas do ano numa banca de rua, mas a
iluminação led de Santa Apolónia ainda não chegou aqui. De regresso a
casa, bem mais roliça, sonharei três vezes que regresso a este país, e em
cada uma delas trago mais pessoas comigo. O que ficou por dizer é porque
não se sentiu. Ou foi dito por todas as pessoas que nos leram, a nós,
estrangeiros, durante aqueles dias em escolas, igrejas, cafés e universidades.
Porque há coisas que se sentem em conjunto. Às vezes mando fotos da
Ponte 25 de Abril e quase engano os meus amigos turcos. Outro dia, na
Áustria, comentava com alguém que Istambul e Lisboa são muito parecidas.
Essa pessoa disse, muito chocada, que Istambul lhe lembrava mais Nova
Iorque. Na volta ambas temos razão. Lembra-nos um lugar de sonho, onde
nos sentimos em casa.
E o que é que jantámos na nossa última noite em Istambul? Jardineira,
pois claro. Very, very typical. «Merhaba! Merhaba! Merhaba», já dizia a
Amália.
Black mirror, Black face
Sou uma pessoa sensível. Tive, durante a maior parte da minha vida, um
estômago de avestruz e uma pele que nunca me deu trabalho excepto pela
cor que tenho. Não sou muito picuinhas com os produtos de beleza. A regra
de ouro é hidratação completa, de cima a baixo, todos os dias. Aquele
antigo ditado português que diz: put the cream, sabem? Sou discreta na
minha sensibilidade, mesmo quando é a pele a sofrer. Mas a verdade é que a
minha pele, o meu rosto, raras vezes são tela para maquilhagem, embora
goste da dita e aprecie vê-la bem aplicada. Não tenho quase nenhuma, pelo
menos comparando com a maioria das mulheres (e alguns homens), e
guardo-a para ocasiões especiais; nunca faço uma make completa, escolho
sempre as coisas mais básicas, e só tive uma embalagem de base na vida.
Talvez por isso me recorde demasiado bem da primeira vez que fui
maquilhada por uma amiga, antes de uma saída à noite; depois, por uma
conselheira de beleza numa loja da especialidade (achei que não parecia eu
em nenhuma das vezes), por maquilhadoras profissionais, que também
trabalham em teatro, antes de participar num programa de televisão (adorei).
Talvez seja como habituarmo-nos a ouvir a nossa voz gravada, melhora com
o tempo. Não impede que saiba quais são as tendências, que conheça a linha
de produtos de palete inclusiva de Rihanna, ou assista aos populares vídeos
da Vogue, em que podemos ver celebridades como Pablo Vittar aplicar
maquilhagem em dez ou quinze minutos (que nunca o são realmente, com
todo o fast forward e as coisas que a dita diz já ter feito antes de começar a
gravar).
O Carnaval passou. Este ano não o celebrei, mas reflecti bastante sobre.
O melhor foi ver as fotos e vídeos dos filhos dos amigos, mascarados, e os
filhos dos desconhecidos, nos comboios, na rua, em todo o lado. O pior foi
ver escolas, como no caso de Matosinhos, em que professores e demais
funcionários se mascararam de negros e, inclusive, foram dadas indicações
aos alunos para irem vestidos como tal. É o negro ainda uma coisa, e coisa
tão passível de ser objectificada e banalizada, que pode ser descaracterizada
assim tão gratuitamente? Como pode uma criança africana ou
afrodescendente ir para a escola de negro, quando é negra o tempo todo e,
mesmo se calha esquecer-se por um momento, e a achar-se apenas humana,
a própria escola a recorda, limita, ostraciza?
Finalmente comprei uma máscara de carvão activado, algo que há muito
me suscitava curiosidade, por este ingrediente ser agora usado em tudo e
para tudo; confesso que, também, por me lembrar o black face. Em frente ao
espelho, apliquei a dita seguindo meticulosamente as instruções da
embalagem e, depois, removi-a, lentamente e sempre na mesma direcção.
Saiu quase inteira. Pousei aquele retrato dermatológico na bancada do
lavatório e pensei, eis a minha black face. A minha amiga Diana chama-lhe
mask face (ela entende muito de maquilhagem). Achei o termo interessante,
bem melhor que black face. Não conheço, de facto, nenhum negro, nem
aqueles descritos como tendo um tom de pele preto-azulado, cuja
fisionomia seja sequer próxima da daquele rosto inanimado que me olhava.
Deitei-a fora e retive esta palavra: máscara.
Ainda se crê, em pleno 2019, que ser negro é uma fantasia para usar nos
três dias de Carnaval ou no Halloween. Pinta-se a cara porque dá menos
trabalho do que pintar também as mãos e o resto, afinal nem é preciso
prestar-se a tamanha cerimónia, isto é uma coisa temporária, o resultado
fica à vista de todos, literalmente in your face. Agora sou negra, agora já
não sou. Obrigada, água micelar. Obrigada, toalhita desmaquilhante. Se eu,
por nunca usar maquilhagem, me esqueço dela quando a tenho, da minha
identidade nunca me dispo nem esqueço. Se, há uns anos desamiguei uma
antiga colega do secundário por ter postado fotos, no seu Facebook, em que
ela e uma colega de trabalho se mascaravam de negras, com caras pintadas
de preto ou castanho-escuro, perucas afro e nomes a quererem-se tribais,
exóticos ou impronunciáveis, para completar os figurinos, hoje já não o
faço. Outro dia, no espaço de minutos, vi uma foto de perfil de alguém
mascarado de índio, a qual lhe mereceu inúmeros elogios e, depois, a foto
de três pessoas, uma das quais conheço, vestidas de negras, não menos
caricaturadas e caricatas do que a polémica vestimenta berbere de Madonna
há uns meses numa cerimónia de prémios. Em sua defesa, a rainha da pop
disse «I love my dress». E ninguém pode acusar Madonna de racismo,
afinal tem mais filhos adoptivos (4, negros, do Malawi) do que biológicos
(2).
Eu também sei que essas pessoas, as mascaradas no meu feed, adoram
negros, adoram índios, e até têm amigos que são. Mas ofendem, insultam.
Provavelmente mais por ignorância do que por qualquer outro motivo.
Teimosia, também. Como se a afronta, por não ser intencional, tivesse de
ser tolerada por quem é dela alvo. Poderia encontrar uma falsa lógica nestes
episódios que mais lembram a série Black Mirror, por estas pessoas nunca
terem convivido com membros da comunidade indígena e os mesmos lhes
parecerem uma qualquer criação romanesca. Mas qual a desculpa para todas
as outras etnias? As que andam por todo o lado? Ou não se repara nelas
excepto quando se tenta, e mal, imitar quem nos parece ser e se quer
considerar «todos iguais»? Os mesmos que continuamos a tratar de formas
diferentes. Porque se o nosso primo ou a nossa avó não são um disfarce,
porque é que mais alguém seria? E nós, somos? Ou vocês, que eu sendo
negra já o sou, claramente. Acredito que temos de continuar a educar-nos
uns aos outros, a explicar de forma mais ou menos directa o porquê de
índios e negros não serem fantasias de Carnaval (existe, no youtube, um
vídeo excelente de Fernanda Carlone, que recomendo, por responder à
pergunta «O que é o black face e qual é o mal?», que muitas pessoas ainda
fazem). Acredito que temos de denunciar, reportar, criticar. Acredito que
aceitar a diferença é aceitar uma opinião diferente também, ainda que seja
sobre a nossa/vossa boa intenção.
Recentemente, a Gucci retirou do mercado uma camisola de gola alta que
subia até ao nariz, deixando um buraco na boca, delineada como se por um
grosso batom vermelho. A Burberry achou engraçado criar uma linha de
hoodies com nós de forca como colares. O público não entendeu a piada.
Katy Perry criou uma linha de sapatos com caras africanas, negras e, arrisco
dizer, albinas também, inspiradas talvez em peças de arte do continente. A
Prada tinha um porta-chaves também considerado racista, a velha
dicotomia macaco/negro. Ninguém viu o mal em nenhum destes produtos
até terem sido postos à venda, talvez por não haver pessoas negras em
posições suficientemente relevantes ou, de todo, nestas empresas, que se
revoltassem e demonstrassem o porquê de serem ofensivos. O público, no
entanto, não perdoa, e a ameaça de boicote é real. O problema começa bem
antes da criação: começa na contratação de conselheiros e designers de
outras etnias, numa indústria ainda predominantemente branca, que possam
interromper a sequer criação de tais peças e inspirar uma criatividade
histórica, social e culturalmente consciente. Um outro problema é a compra
e venda, a brancos, de marcas de sucesso criadas por africanos, que o fazem
como forma de acabar com a concorrência, no entanto aniquilando também
marcas para todos em prol da continuação da expansão de marcas apenas
para alguns. A responsabilidade é de todas as partes, pois o que afecta uma
minoria afecta todas, e as minorias têm de saber que um legado é mais
importante do que um lucro imediato.
Daqui a uns dias faço outra máscara. E quando é que eu posso trocar a
minha pele por outra? Não que eu quisesse. Seria mais fácil? Com certeza.
Seria melhor? Não. O melhor de cada um é o que cada um já é ou pode vir a
ser. Eu não serei mais caucasiana do que alguma vez terei olhos azuis (os
sapatos de Katy Perry têm-nos, curiosamente). No seu poema «A woman
speaks», Audre Lorde termina com «I am woman / and not white.» Que é
como quem diz, há outras cores para seres humanos, e há outras cores para
géneros. Há outras possibilidades para fantasias. Há, também, a necessidade
de estarmos em contacto com a realidade, pois ela dura bem mais do que
uma qualquer efeméride. Se o Carnaval é cultura e tradição, convém
lembrar que ser-se humano não o é menos. Algumas homenagens não são
senão hipocrisias e o perpetuar de histórias que são muito diferentes
conforme quem as conta. No próximo ano, se carnavalar não ofenda. O
tempo passado em frente ao espelho a mascarar-se de alguém que nem
existe talvez possa ser passado a olhar o outro e a tentar conhecer, ouvir,
estar lá para quem é, não duvidem, bem real. Há coisas que não podemos
nem devemos mudar. Mas façamos algo por aquelas que estão nas nossas
mãos, nos nossos rostos e, sobretudo, nas nossas vozes e consciências.
Porque há coisas que não podemos nem devemos aceitar.
Mercúrio retrógrado
Bati com a cabeça. Bati e bati com força, não figurativa mas literalmente,
o que prova que, a ser um recurso estilístico, a realidade nada tem de
estiloso. O mesmo devem ter pensado os donos das gargalhadas altíssimas
que ouvi após o embate, o qual entortou a haste direita dos óculos e me
deixou com a visão turva por instantes. Era de noite, estava distraída, olhar
preso num jornal que alguém deixou num banco da paragem (mãe, pai, por
que me abandonaram, vulgo ensinaram a ler?!), e com um saco de papel do
McDonald’s na mão, que é como quem diz, quase mereceste levar com o
mupi, que não teve culpa nenhuma e já lá estava. Gostaria de um dia ter a
minha cara em todas as paragens de autocarro, locais esses de que sou
membro diamante, mas talvez esta não seja a forma mais eficiente. Também
gostaria de ir ao supermercado usando vestidos Valentino, mas isso fica
para outra crónica. Eram já quase onze da noite, chegara à paragem onde o
tempo de espera era de trinta e cinco minutos e, para fazer tempo, fora
comprar comida. No restaurante, o atendimento atrasado, funcionários
discutiam entre si, clientes discutiam com a gerente, motoristas de serviço
de entrega suspiravam e bufavam. Eu rezava para não perder outro
autocarro, enquanto comia os nuggets mais tristes de sempre. Mas eu ia tão
bem no meu vegetarianismo quase totalitário, que talvez tenha sido o
karma, ou então o único, o temido, o incorrigível mercúrio retrógrado. Na
paragem, com uma dor crescente do lado mais afectado pela pancada, ainda
me parecia ouvir a risota alheia, em eco, cada vez menos sonante, mas ainda
no ar. Cheguei ao meu destino rapidamente e, em menos de vinte minutos,
estava despachada de mais uma burocracia que, espero eu, tenha sido a
final. Novo compasso de espera na paragem ao fundo da curva, perto da
rotunda. Desta vez, não estava sozinha mas com um casal, cujo odor
corporal me fez rezar novamente, com todas as forças, mas não as
suficientes para aspirar mais ar, que o autocarro não demorasse muito.
Chegada a casa, caí na cama, não sem antes recordar que nesse mesmo dia,
numa entrevista feita em minha casa, faltaram os microfones, que ficaram
do outro lado do rio, que uma peça de equipamento se estragou, que alguém
se atrasou quase uma hora, que outro alguém combinou para as 15 horas
com alguém que achou ter marcado às 16 horas, entre outras confusões e
falhas de comunicação. No dia seguinte, antes de seguir em viagem para
Londres e de lá para Hong Kong e Macau, tentei ir a um multibanco
específico, que permitisse depositar dinheiro: nada feito. Durante o voo,
tentei ver um filme ou ouvir música, no entanto o meu ecrã não deixou, por
mais resets que a tripulação fizesse. Pedi novos headphones pois os meus
não funcionavam. Precisei de paracetamol pois a dor de cabeça passou de
forte a insuportável, de subtil a um galo. Um galo português em Macau,
algo a que os meus amigos, por algum motivo, parecem achar demasiada
piada. Pelo menos encontrei dinheiro na rua duas vezes seguidas, no espaço
de uma hora. Tentei comprar comida e nenhum dos terminais do café
aceitava o meu cartão, o que me obrigou a ir levantar o bonito dinheiro
destas terras. No hotel descobri, ao tentar aceder ao wifi, que me pede o
número do quarto e o apelido, que o meu último nome é, agora, o de solteira
da minha mãe. Há algo de curioso em telefonar a estranhos para descobrir
em quem nos tornámos. Antes, no controlo de passaportes, o funcionário
perguntou-me várias vezes se eu era eu, qual o meu nome, a data de
nascimento. Apontou para a fotografia, depois escondeu-a. Sim, eu sou essa
pessoa. Essa daí sou eu, sim. O meu passaporte é de 2017, cabelo esticado,
desfrisado, comprido. Cortei o cabelo nem há uma semana (sim, a minha
irmã convenceu-me finalmente e fi-lo eu mesma, pela primeira vez na vida,
em casa), já não o desfriso há mais de um ano e meio, perdi peso e voltei a
usar óculos que tirei, como mandam os scans biométricos. O sinal no rosto,
esse, é o mesmo de sempre. Ainda assim, parecia não ser suficiente. Lá o
convenci, talvez por ter-me oferecido para mostrar outros documentos,
embora talvez isso apenas o confundisse mais, pois no cartão de cidadão o
meu cabelo também está bastante diferente. Lembrei-me de quando
trabalhava num edifício no Areeiro, e ia ao mesmo café todos os dias. Num
dia em que fui de cabelo apanhado em vez de solto, a dona não me
reconheceu logo. Ri-me sozinha ao lembrar-me de uma amiga que passou
por mim na rua, na semana em que voltei a usar óculos, sem perceber que
era eu. Nova afronta ao meu nome, quando o vejo com um g em vez de um
c no novamente malogrado apelido. Quem claramente percebe disto é uma
das moças do hotel, cujo nome adorei: Bet Si. I see what you did there.
Mercúrio volta a estar directo dia 28 de Março, mas é certo e sabido que os
seus efeitos se sentem bastante tempo antes e depois da sua vinda. Gisela
Casimiro was marked safe during the first Mercury Retrograde of 2019,
após ter sofrido o que julgou serem os seus efeitos todos em apenas vinte e
quatro horas. É com alívio e já sem galo que de vós me despeço, desejando
a todos um trânsito planetário seguro, e até aos próximos dois. Qualquer
coisa, sabem de quem é a culpa.
Sem anestesia possível
Quando entrei, pediram que me deitasse, baixasse a saia, levantasse a
camisola e virasse o rosto para a parede. O médico não tinha como saber
que eu já conhecia cada uma daquelas agulhas desde o dia anterior, do
Youtube. Vai sentir um frio, uma sensação gelada, do spray anestesiante. As
nádegas a descoberto, os olhos fechados. Vou começar. Um jogo de
adivinhação sobre a minha carne, um-dó-li-tá. Imaginei uma mão aberta e
uma faca a saltar por entre os dedos, tentando acertar no vazio. Primeiro,
não doía, era apenas uma impressão enervante. Tentava não pensar nos
meus pais na sala de espera. A minha mãe tentara entrar, mas fora impedida.
Preferi assim. Peço desculpa, mas tenho de encontrar o lugar exacto da
anestesia. Primeiro não doía, mas depois já não era um jogo afinal, ele fazia
a agulha saltar vezes sem conta, aparentemente sem ritmo ou destino, até
que encontrou o que buscava, e eu percebi que a anestesia era só para a
carne, como é que eu não pensei nisso, como poderia não me doer o osso,
como é que eu não previ isto, como é que eu. Peço desculpa. Peço desculpa.
Peço desculpa.
Pensava que conseguia fazer isto sem chorar. Sem gritar. Não é só a
agulha. Quem nunca levou uma injecção no rabo? Ninguém me estava a dar
nada. Eu vim aqui para me tirarem uma parte de mim. Talvez para depois
me tirarem a minha vida, ou o que eu acho que tenho de meu, e de vida.
Vim aqui para me cravarem uma agulha o mais fundo possível, eu que já
tive tantas agulhas espetadas em mim nestes últimos anos, que viro sempre
o rosto para o lado e que, quando finalmente não quis fazê-lo, fui obrigada.
Vim aqui para sentir alguma coisa a ser aspirada de dentro de mim, de um
lugar secreto onde nunca ninguém me tocara. Tente pensar em alguma coisa
agradável. Tentei, tanto. Estava um dia tão bonito. A praia. A minha irmã.
Procurei-a em vão. Nem ela me poderia valer naquele momento. Mais tarde,
dir-me-ia que a mãe entrou pelo quarto a chorar e a anunciar que eu iria
morrer. A nossa mãe, sempre tão dramática, hipocondríaca, fatalista. Mas eu
ainda não sabia, ainda estava ali na sala pequena, dividida em duas por uma
cortina branca, tudo era branco, os ossos são brancos...
Estou aqui deitada como se fosse um chão de calçada portuguesa e o
médico está a picar, picar, picar e finalmente eu consigo ouvir e sentir o
meu osso a partir, este som é o meu osso a partir, quero que isto pare, eu que
nunca parti nada, nem a cabeça, não literalmente pelo menos, de órgãos
partidos só sei mesmo do coração, como é que se sobrevive a isto, uma
fractura interna, é disto que falam quando falam disso, e agora a agulha
aspira qualquer coisa e então é isto um mielograma e então é isto uma
biópsia. A voz tremia, crescia numa sucessão de ais que eu cada vez
controlava menos, e no entanto não me mexia. Não podia. É tão difícil
respirar enquanto se sofre. Também isto me escapara. Esta simples noção,
este malabarismo íntimo que eu julguei ter dominado a vida toda e que,
agora, ficava provado por agulha mais carne mais osso mais medula que,
afinal, eu nada sabia. Não havia Mário Viegas a recitar Armindo Mendes
Carvalho. Ai a dor que tenho aqui!
A enfermeira sentou-se aos meus pés. Segurou-me na mão esquerda,
braço estendido. Devo tê-la agarrado de volta, com uma força que me
escapava por todos os outros lados. Um anjo que eu não via mas que
visitava a minha cama, como Jesus no conto do Eça. Minha querida, tenha
calma, já não falta muito, como se chama? Hesitei. Pela primeira vez na
minha vida, durante segundos, eu não me lembrava do meu nome. Sentia-
me prestes a perder os sentidos. Solucei uma vez mais, e disse. Consegui
dizer o meu nome. Depois, acabou.
Limpeza, um penso, portou-se muito bem, vai ficar tudo bem. Daqui a
duas semanas saberá os resultados, se houver alguma coisa antes nós
dizemos. Esperar e sofrer, sempre. Fiquei em silêncio. Agora deixe-se estar
deitada de barriga para cima uns quinze ou vinte minutos, já venho ver
como está.
Olhei o tecto, incapaz de mais. Atrás da cortina, uma voz feminina com
sotaque espanhol dizia, Vai sentir uma sensação fria, vou aplicar um spray.
Momentos depois, um velho, Ai minha Nossa Senhora. Ai minha Nossa
Senhora. Chorei por ele. Ai pobre daquele velhinho.
Vieram buscar-me. Percebi, então, que coxeava. Tantas primeiras vezes
em tão pouco tempo. Levaram-me para uma sala com cadeirões e sentei-me.
Reconheci pessoas da sala de espera, o velhote que estava com o filho, um
outro homem, a moça grávida. A televisão ligada mas ninguém lhe prestava
atenção. Deve haver algum estudo que comprove que o zumbido de uma
televisão ligada no canal mais desinteressante possível acalma os nervos
físicos e burocráticos dos pacientes, como deve haver um estudo a
comprovar o contrário.
Eu tinha parado de chorar. Mas havia uma rapariga à minha frente, muito
pálida, careca, a quem vieram dar um pequeno-almoço líquido. Ela estava
cansada e tinha covas debaixo dos olhos. Fechou-os várias vezes, e
dormitava de vez em quando. Quando as enfermeiras saíram, a minha e a
dela, quando eu olhei bem em volta, um homem de pijama e pantufas, a
rapariga grávida, os outros, mas sobretudo a rapariga careca, chorei como
nunca antes. Pensei, não vamos todos sobreviver. Pensei, eu não vou
sobreviver, eu vou morrer mesmo, estou doente, quantas vezes pode alguém
escapar, quantos exames feitos e quantas certezas do que não tenho e iguais
incertezas sobre o que tenho, quanto tempo mais posso aguentar sem a má
notícia derradeira.
Chorava de medo, vergonha, desespero e dor, e já todos deveriam ter
passado pelo mesmo, pois ninguém disse nada, como se eu ali não estivesse,
ou estivesse tão calma e seca como eles, e talvez eles estivessem pior, até.
Eu ainda não tenho nada, posso não ter nada, até podemos todos sobreviver,
tens de aprender com isto, nada te ensinou mais na vida do que isto, vais
morrer. O tempo passado num hospital, qualquer que seja a situação, é o
mais próximo do Inferno que podemos experienciar.
Não fui trabalhar. Mandei uma foto do meu rabo à minha irmã. Sentia-
me enjoada e fraca. O que dormi pareceu-me pouco. A viagem de carro de
casa dos meus pais para a minha foi difícil, com uma respiração consciente
e forçada para evitar vomitar a todo o custo. Coxeei durante uma semana,
tempo que demorei a conseguir deitar-me novamente de barriga para cima.
Quando deixei de precisar de pensos, apenas um ponto ínfimo mostrava que
algo se passara, e era difícil dar com ele à primeira, por mais vezes que me
visse ao espelho. Como se nada fosse. Como se tivesse sido um sonho. Mas
não tem sido isso a minha vida? Tanta ironia. E eu tão pequenina.
Tupperware
«O amor é um alimento», recorda-me o Facebook nas suas memórias.
Quem o diz, num vídeo, é Gustavo Santos, o guru que todos amamos odiar.
Ontem, no comboio para casa dos meus pais, uma rapariga contava, ao
telefone: «Sabes aquela marmita? A minha mãe encheu-a de salsichas e
molho.» Eu própria regressei coleccionando mais um tápáruére, como se diz
em bom português, com doce de coco, consequência da última ida da minha
mãe à Guiné. É uma verdade universal que os ditos, pertencentes a alguém
que seja mãe, devem ser estimados e devolvidos imaculados, o mais
depressa possível, sob ameaça de desencadear várias pequenas guerras
familiares à escala mundial. Recordo uma amiga ter-me levado dois, certa
vez, um com uma inscrição a marcador preto onde se lia que o dito lhe
pertencia, a ordenar «favor devolver» e outro, da sogra, que já lho pedira há
bastante tempo e que ela, julgando-o perdido, suspirou de alívio ao saber
que ainda existia. Devolvi-lhe as caixas com almôndegas que tinha feito
nesse dia.
Se, para alguém que adora livros e ainda os empresta, não há nada pior
do que não os reaver (excepto dobrarem os cantinhos de páginas que não
marcámos), é também verdade que é por nunca devolvermos alguns que a
nossa biblioteca ganha contornos mais interessantes. Por três vezes comprei
e emprestei um dos meus preferidos, A balada do café triste, de Carson
McCullers, e lhes perdi o rasto. Paz à alma dos Contos Completos de
Truman Capote e à versão bilingue do Book of Longing, de Leonard Cohen.
Anos passados, encontrei este último em versão original na estante de
alguém que me é querido, e trouxe-o apenas para, uma hora depois declarar,
insolente, que não lho devolveria. Mas ele deixa. O amor, tal como os
tupperwares, também pode ser rastreado, perdido, devolvido mas nunca de
igual modo, não importa se numa caixa de gelado de tamanho familiar
usada para congelar malaguetas ou num daqueles dos bons, com abertura
para deixar escapar o vapor e que vedam tão bem que quase não
conseguimos abri-los. Cresci com uma mãe que é a melhor cozinheira que
conheço e de quem de momento tenho três caixas em casa. Mas vou
encontrando outras que não reconheço logo: a de tampa azul da Andrea, o
frasco de vidro da Lilit, o de tampa amarela do Daveed. Vou-me
apercebendo de quanto da nossa memória afectiva está contida nessas
caixinhas e frascos. Lembro-me de ter deixado um saco com o meu melhor
tupperware, de sopa, à porta de um rapaz que amei muito e durante muito
tempo. Foi a primeira vez que o fiz. Como um gato que nos recebe com um
pássaro ou rato morto na boca e o deposita a nossos pés. Gestos de amor,
delicados. Rituais e oferendas, sacrifícios. Afectos por vezes recíprocos,
tupperware muitas vezes não recuperáveis. Lembro-me de voltar de casa
dos meus pais com uma das comidas preferidas do meu namorado da altura,
feita pela minha mãe, e de ele a ter devorado sorridente, mandando recados
elogiosos para ela, que ainda nem sabia que ele existia.
O prazer de preparar refeições para a semana e ver aquele amontoado de
caixinhas cheias de segredos e coisas boas, acalma e é demasiado bom,
sobretudo para quem tem algum transtorno obsessivo-compulsivo. Sim,
porque também cozinho para mim, para conforto próprio. Outro dia saí com
sopa e bolo (eu juro que cozinho muitas outras coisas) para uma amiga que
estava muito doente. Desta vez, pedi que passasse o que trouxera para
outros recipientes ou pratos, ela lavou-os e eu trouxe-os de volta comigo.
Talvez eu esteja em estágio para a maternidade sem o saber. Certamente já
passei demasiado tempo a tentar fazer coincidir tampas e caixas, no armário
e na vida (se nunca partilharam casa, não sabem como é difícil conseguir
harmonia e coordenação de recursos). Mas quero com isto dizer que voltei
com bem mais do que levei, e nem me refiro a chás arménios e colombianos
ou a uma conserva maravilhosa. Regressei a casa sabendo que ainda agora
lá estava, e é esse o motivo pelo qual vou continuar sempre a demonstrar, da
maneira como o fizeram comigo, o que é para mim o amor. Um alimento,
uma partilha, uma delícia. Na mochila, em sacos, nas mãos, na poesia de
e.e. cummings, carregamo-nos uns aos outros, aos nossos corações e às
nossas boas intenções e más interpretações. Uma e outra vez nos
transportamos do frigorífico para a mesa, para o aprofundar de laços, para
celebrações demasiado íntimas para caberem em algum lado. Mas nós bem
que tentamos. Home is where ___________’s (insert person you love here)
tupperware is.
Precipícios interiores
«Lembro-me de ter pensado que
há coisas que só se engolem
com muita fome e uma flor à frente.
Mas ele era um sem-abrigo ainda jovem
qualquer dia
já nem vai precisar da flor.»
And.Tecedeiro
É a terceira ida ao supermercado este mês. A música ajuda, sempre e em
tudo. Bolsos e carteira vazios. Contas bancárias por onde nem o vento
passa. As botas escorregadias por já não terem capas nas solas. A mala a
precisar de ser cosida. A mala e a vida. Ou ela a si mesma. Pensava que era
uma mulher, e a constatação de que esteve numa dolorosa aula de ioga nas
últimas vinte e quatro horas acrescenta dez centímetros ao seu já maltratado
ego. A fome é um precipício interior, erguido a medo, desolação, desespero.
Quando chegamos ao limite ou ao que julgamos ser o nosso limite, eis que
descobrimos os alheios e, sobretudo, a falta deles.
No autocarro, o cheiro do pão ainda quente. Outro dia, ao telefone, dois
estranhos discutiam o que se conseguia comprar no supermercado com seis
euros. Alguém, do lado de lá, dizia ser «Muita coisa». A estranha do lado de
cá, com ironia, respondia, «Eu sei muito bem o que dá para comprar com
esse dinheiro». Seguiu-se um «Nada», mudo. Mas ela sabe, afinal faz somas
na calculadora do telemóvel a cada produto que escolhe, não vá o dinheiro
tecê-las. Um após o outro devora três dos quatro pães que estão no saco.
Armazenar é preciso, mas todos os dias se gasta, e a reposição não chega a
ser feita em tempo útil.
Está cansada. Cansada de precisar, de depender, de não ter. Cansada de
malabarismos financeiros nos quais o saldo acaba sempre negativo.
Cansada de adiar, de adiar-se. De fazer planos e falhar-lhes. Cansada de
falhar a si mesma. De não poder ser aquela com quem se pode contar. De
falhar aos outros, mesmo se eles não o sabem ainda. A negação caminha de
mão dada com a prostração. Raramente se permite chorar. Mas há dias em
que não suporta a própria vida, dias em que não sabe quem é esta pessoa
que se mantém por cá, que tem sempre um sorriso sincero para dar, que por
vezes quase parece esquecer-se da situação em que vive. Que não quer
preocupar ninguém, que guarda os desabafos até ao último momento.
Jardineira, panados de peru com massa, coelho com batatas fritas, peito
de frango com esparguete. Poderia ser a lista de pratos do dia num qualquer
restaurante, mas são parte da ementa privada que a colega do lado lhe tem
trazido para o almoço. Comemos fora, estamos habituados a que sejam
outros a preparar a nossa comida. Então, por que é tão estranho que alguém
no-la traga? É a tal da vergonha. A paralisante vergonha da necessidade. A
gratidão tem o mesmo efeito. Porque nunca parece suficiente. Porque a
sentimos de tal modo que nem sabemos como expressá-la. A lista continua.
Café, bananas, pêras, maçãs. A gratidão caminha lado a lado com a culpa e
o pensar no que pertence e poderia, poderá, será que faz?, falta a outros. A
culpa pelo sacrifício alheio é uma das mais corrosivas. Corrói mais do que
dias corridos a sopa de pacote e pacotes de ketchup (surripiados de um
restaurante de fast food), do que as noites em que vai para a cama sem
jantar. Quando vivemos sozinhos, tudo dura mais tempo, não é assim?
A delicadeza de quem, para além de tão grande gesto de compaixão,
ainda nos pergunta se gostamos disto ou daquilo, para nos dar a escolher,
como se fôssemos da sua própria família. A delicadeza emudece, emociona,
transforma. Há um precipício, mas não temos de atirar-nos dele. Muitos o
carregam dentro de si e andam no meio de outros, em igual ou pior situação,
e nada que os distinga porque a fome é isso mesmo, uma ameaça que
demora muito a deixar-se ver. Há um precipício. Há mãos que nos agarram
no último momento. Às vezes essas mãos são bem pequenas mas pertencem
a alguém de coração gigante. Eu espero que haja sempre alguém que nos
encontre. Há um precipício mas não temos de ceder. Podemos sentar-nos à
sua beira e, com sorte, na relva. Com sorte, haverá flores. Com sorte, dias
melhores.
Nê
30-01-2019
Mostro-lhe o meu livro pela primeira vez. Observa-o muito atentamente.
Olha-me, pergunta: «És tu, a Gisela Casimiro?», como se esse ser impresso
fosse um alter-ego e não eu mesma, a pessoa que para ela é a Gisela,
apenas, mas também «A» Gisela. Respondo que sim. Diz que acha o livro
bonito. Não há nada melhor do que ir buscar uma criança à escola. Pelo
menos para mim, que as não tenho. Hoje, a «minha» está calada. Pergunto
como está, nada bem, uma dor num dente que manteve secreta desde o
acordar, achando que iria passar. Levo-a ao lugar de que toda a gente gosta,
o Kaffeehaus, e após muito torcer o nariz, lá se delicia vezes sem conta com
a limonada de framboesa, sem gelo nem rodela de limão. Água a rodos.
Hoje não há bolo para ninguém, tal é a dor, até de comer, mas fica a
descrição do mítico sachertorte, promessa para a sua segunda visita. Mais
tarde, abraçadas a ver Ladybug, à espera da mãe, pergunta a minha idade.
Creio que se vai esquecendo, de vez em quando, ou é o tempo que se vai
esquecendo de nós, deixando o que nos liga cada vez mais forte, uma
ternura que nunca ganha pó, talvez apenas umas rosinhas brancas há muito
tempo, ou uma única, cor-de-rosa, desta vez; amigas de longa data que, sem
se verem há muito tempo, ainda ontem estiveram juntas nalguma realidade
paralela. Mas depois os cabelos: tão longos como não me lembro de alguma
vez ter visto. Quando lhe digo que são trinta e quatro, deleito-me com um
«És muito nova». É por isso que gosto tanto de conversar contigo, Nê.
23-01-2017
Falávamos de balões. Sobrara um, laranja, perdido na minha mala, que a
Nê encheu pelo caminho. Falávamos de balões com vias lácteas e com
orelhas, os balões da nossa infância. Ela, que ainda a vive, disse que, em
casa, têm balões em forma de coração. A mãe observou, «Mas os corações
rebentam com muita facilidade». E eu respondi, «Infelizmente, não só em
sentido metafórico».
04-10-2016
Não sei como é que ela conseguiu, mas estávamos ambas em pé e a Nê
fez-me festas na cabeça. Os que não têm seis anos vão dizer que foi por
causa das escadas, mas não estavam lá, pois não? Depois, espetou o
indicador ao de leve na minha barriga e apontou para a sua, já de camisola
levantada. Tenho de voltar ao exercício físico, disse-lhe. Podes vir fazer
educação física na minha escola. Achas que ninguém iria notar? Agora
temos lá uma tartaruga bebé, ela é tão fofa, estamos sempre a olhar para ela.
E já tem nome? Não. Têm de votar e depois decidir. Vou chamar-lhe Gisela.
Vai ser a tua cópia. Não, vai ser a minha homónima. Entre homónimos,
doppelgangers e sósias, contou-me de duas gémeas amigas, não me recordo
agora os nomes, mas uma era a da camisola rosa e, outra, a da camisola
azul. Coitadas, nunca mudavam de roupa? Ou vestiam sempre a mesma
cor? E se trocassem de camisola, como é que fazias? Falámos da natação,
do piano, do Daniel, da professora de inglês e de como ela descobriu,
durante a apanhada (diferente da do meu tempo, agora apanha-se mesmo)
que é mais forte do que um rapaz do quarto ano. Quando nos despedimos,
pediu que a levasse comigo; abraçada a mim, dizia, não vais sair daqui, vou
colar-me a ti. Menos cabelo, num corte que lhe fica tão bem, menos dentes,
num sorriso que, num dia como o de hoje, especialmente como o de hoje, eu
não esperava ver e que ela tem sempre para me dar. Ouvi, quando cheguei, a
Catarina dizer, olha ali a Gisela. E a Nê, mesmo à minha frente, olhava para
todos os lados e perguntava, ainda sem me ver, onde, onde? No meio de
muitos abraços, ouvi, a minha filha está a olhar para uma das suas pessoas
preferidas. Ela também é uma das minhas. Nunca quero esquecer as coisas
bonitas que ela me diz. E só agora percebi o tanto que ainda tinha para lhe
contar. Não sei como, mas tenho ali uma grande amiga. Duas, na verdade. E
que saudades eu já tinha.
19-07-2016
Outro dia,
– Gisela, qual é o teu vestido preferido?
– Não sei, Nê, eu...
– Eu acho que é esse que tens agora, porque já te vi muitas vezes com
ele.
No mesmo dia,
«Quando tu me conheceste eu já tinha seis anos. Eu pensava que riqueza
era ter muito dinheiro mas riqueza afinal é ser inteligente. Ó Gisela, tu
disseste que ias para a natação, já começaste? Eu não sei por que é que o
laranja é uma fruta e uma cor.»
(E eu só consigo dizer «Ó Nê tu és linda».)
25-06-2016
Das manhãs felizes, com encontros combinados que se sobrepõem aos
casuais e tudo resulta em bonita sintonia. E há lá coisa que nos desarme
mais do que, depois de sermos cumprimentados com um longo abraço,
recebermos um outro, assim do nada, inesperado, ainda melhor do que o
primeiro? Talvez nas crianças coisa alguma venha do nada. A Nê vem da
Catarina, em parte. Ela disse à filha que os cockers são cães de veludo.
Algum tempo antes, o Fred disse, «As minhas referências Disney são
limitadas. Por isso é que eu sou são».
Trapezista temporária
O MEU CORPO