Você está na página 1de 248

GISELA

CASIMIRO
ESTENDAIS
Crónicas
Ficha Técnica
Título: Estendais
Autora: Gisela Casimiro
Capa: Rui Garrido
Fotografia da capa: Gisela Casimiro
ISBN: 9789722132121
 
Editorial Caminho, SA
uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
 
© Editorial Caminho, 2023
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
www.caminho.leya.com
www.leya.com
Índice
Capa
Ficha Técnica
Prefácio
Introdução
Pedro
Gardénias Brancas
Biquíni cor-de-rosa
Bálsamo
Ti Coelho
Sob o sol cruel
Nunca mais fiz o pino
Trinta dias de silêncio
Luto
Domingo
Ardósia
Sophia
Herberto Hélder
No metro do Chiado à espera da Carlota
Pequeno-almoço
Dificuldades em Tessalónica
Carla
Estendais
Tenho tido sempre um amanhã
Lavar a dignidade à mão
A Teresa hoje não veio
Quinta-feira de espiga
Lia Pereira
Preto é cor
Gelado de banana
Uma palmada no rabo
Lúcia-lima
Às oito tenho de estar no quartel
Tangerinas
My fair lady
De mulher pra mulher
A menina gosta de ler?
Posso dar-te um beijinho?
O momento baixo do feminismo
Memórias descritivas
Júlio
Titanic
Eu também
Partir o pente
Um espectáculo, digo eu!
Uma gota de glitter
Diários Turcos (I)
Diários Turcos (II)
Black mirror, Black face
Mercúrio retrógrado
Sem anestesia possível
Tupperware
Precipícios interiores

Trapezista temporária
Flores de Paris
O lugar das estacas
Um lugar à mesa
Beleza feia
Eu sou ela
Sem título
Nada de especial
À deriva e sem motor
Tempo de partida
Rapariga com tatuagem de Pégaso
Velhos conhecidos
Xico
A vida sexual das orquídeas
Vida nova
Chegámos até aqui
A jóia pesa conforme o uso
Segundo cérebro (I)
Inserir nome de família
Concerto para peluches número 2
Olá, mãe!
Segundo cérebro (II)
Delivery / O parto
A quem possa interessar
Segundo cérebro (III)
Prefácio
«O coração desarruma tudo
na ânsia de se fazer maior.»
Em verdade vos digo. Tempos houve em que as histórias da Gisela, tal
como as de Jesus antes dela, começavam assim. Por brincadeira, marca de
estilo, mas possivelmente também porque, numa rede social onde nunca
sabemos ao certo quem pescará as nossas palavras, há sempre quem se
pergunte: mas estas coisas acontecem-lhe mesmo?
Quem, como a Gisela, vive na cidade, e quem compreende que a cidade
tem gente dentro, sabe que sim. E acredita que uma conversa com um
desconhecido pode ser o ponto alto de um dia até então cinzento (a única
cor em que há cães mas não pessoas, «mas quase que nem isso», como com
premência observa em «Ardósia»).
*
Em Estendais, colecção revista e melhorada das muitas histórias que
nós, os seus amigos, lhe conhecemos e adivinhamos, a Gisela fala de
rapazes com o coração entre os pulmões, sobre pais & pássaros, sobre «as
delicadas e duras coisas simples de todos os dias». Ela é, como outrora se
usou dizer, local e global, íntima e partilhável, é pele e é tamanho. Dias há,
sussurra-nos a certo ponto deste diário aberto aos olhos do mundo, em que
a pele é, toda ela, um alvo. E também há dias em que diminuir é o único
caminho para crescer («sinto[-me] pequena, o que é bom, acho, porque se
diminuir o suficiente pode ser que consiga mesmo começar de novo»,
escreve em «Tenho tido sempre um amanhã»). Mas não há dias em que não
se pense como nasceram – sem noção, sem conhecimento, sem intenção? –
as «grandes coisas feias» que nos dizem desde o recreio da escola. Ou
como a palavra «carapinha» é simultaneamente tão próxima e tão
estrangeira.
Do seu sofá a Gisela avista gatos, figos e a solidão escolhida. Da sua
caneta cita, com respeito e maravilha, Herberto Helder e Sophia, Rihanna e
Mary Poppins, Henrique Mendes e Marie Kondo – mentira, a pequena
musa nipónica da arrumação sou eu quem a evoca, por todas as obras de
«destralhamento» que, com as palavras, a Gisela opera no seu coração.
Em todas as histórias, a Gisela está em si, buscando o outro. «Fiz de
perder o meu ofício», resume algures. «Às vezes perco tempo a observar as
pessoas e perco uma boa fotografia», observa noutra página. «E a menina,
escreve sobre Portugal ou sobre África?», perguntam-lhe no metro. «Sobre
o mundo», responde. Sobre o seu mundo, acrescento eu. Um mundo com
tanto sentir como saber, onde quem tem um livro, mesmo que pouco mais,
tem tudo.
A Gisela torce sempre para que quem corre apanhe os seus autocarros, e
só por isso teria sempre um lugar neste meu coração, tão diagonalmente
automobilizado como o seu.
A sua escrita pode ser limpa e clara, como os dias de sol que tanto a
alimentam, mas as suas pausas e palavras sugerem mistério e pedem novas
leituras. A Gisela é livre, mas a sua prosa merece ser apanhada – em
verdade vos digo.
Lia Pereira
Introdução
Possibilidade, portal e passagem
Roubaram a porta do meu prédio. Assim que aconteceu, soube que
começaria um texto assim: roubaram a porta do meu prédio. Dá vontade de
entrar em pormenores, e fi-lo de viva voz, tendo recebido as mais diversas
reacções, da incredulidade ao medo, ao riso, durante quase duas semanas
de périplo, enquanto uma porta nova não era instalada. Porém, não será
esta declaração, por si só, uma história completa? Roubaram a porta do
meu prédio. Uma forma insólita de começar um novo ano. Uma de muitas
metáforas da minha vida e das mais bonitas.
Sempre gostei que me contassem histórias, sempre me preocupei, quis
saber e me interessei pelos detalhes, pelo começo, pelo final das coisas.
Também a continuação me deve ter interessado, quem sabe mais do que
qualquer outra parte, pois é a partir disso que escrevo, não é? Do cerne, do
coração, do estômago, do amor, da observação de estendais e pessoas.
Talvez um dia tudo se desmorone completamente. No futuro distópico
não parece haver lugar para bibliotecas, livros, contadores de histórias.
Parece não haver grande preservação da memória, como não há natureza e
como quase não há gente. Comecei com cartas e diários. Agora estou aqui.
Um livro é uma cápsula do tempo? Pode uma cápsula do tempo expirar?
Enquanto escrevo, penso nas imagens de prédios na Turquia e na Síria que
vi tombar e quebrar como espinhas de peixe após um terramoto recente.
Penso no sentido de tudo isto, no porquê de criar e insistir em ver a beleza
quando a destruição não pára. São as pessoas e as histórias que me têm
feito continuar neste mundo e acreditar nele.
Estes Estendais, este formato vidas-aos-elementos, é o que melhor
permite prolongar a missão de habitar intencionalmente, em plena
vulnerabilidade, a ternura complexa das nossas diferenças, o que fica
depois do fim, o que nos prende e liberta. Se a escrita é o que me permite
recomeçar, quem vive as coisas comigo faz-me querer falar sobre elas. Só
tenho para mostrar, para contar, as pessoas que me aconteceram.
Os textos finalmente reunidos são um conjunto de inéditos e outros,
publicados em jornais, revistas e portais impressos e online como: Hoje
Macau, Buala, Contemporânea e Gerador.
Há um documentário, ligado a uma peça de teatro com o mesmo nome,
da qual sou uma das muitas mulheres co-criadoras: Set the table. Num
momento do filme falo de como, após ter sido esta contadora, esta guardiã
de histórias toda a vida, me preocupa chegar ao fim da minha existência e
ninguém me ter conhecido verdadeiramente. Quando vi o filme pela
primeira vez, não me lembrava já de ter dito isso, sobretudo de uma forma
tão triste.
A escrita é uma disciplina solitária, como foi uma parte tão longa da
minha vida. Um dia desaparecerei, mas poderão encontrar-me aqui. É onde
venho para me reconhecer, para lembrar-me de que nunca estive realmente
só. Quer tenha ou não escrito o vosso nome, quer se recordem ou não de
mim, quer se reconheçam ou não nestas não-ficções, saibam que nos
cruzámos, uma vez ou muitas, e que de algum modo eu reparei em vocês, e
ainda vos trago comigo. Que estes textos sejam possibilidade, portal e
passagem.
Gisela Casimiro
Pedro
Não é como nos filmes. Nem sequer é como nos livros. A minha vida
tem tido muito de ambos. Eram 14h55 quando ouvi a voz do meu irmão
pela primeira vez. Tinha doze anos quando ouvi falar dele e vi uma
fotografia sua pela primeira vez, ainda o Henrique Mendes era vivo. Quero
com isto dizer que não é como na televisão. Ele também tinha doze anos
porque nascemos no mesmo ano. Tenho trinta e um anos. Ele vai fazer trinta
e um nesta próxima quinta-feira. És mais velha do que eu, diz-me. E eu
penso, também nesta família és o irmão do meio. Penso mas não o digo.
Nunca soube o que dizer durante todos estes anos. Fazemos tantas perguntas
um ao outro. Todas as que não ousámos fazer aos nossos pais, que nos
despejaram este peso sem filtros e sem grandes explicações, com gritos,
com variadas formas de violência. Pergunta se acho que teria sido melhor,
mais fácil, se nos tivéssemos conhecido na altura. Não sei, respondo, acho
que não, e não consigo explicar mas sei que não. Tento explicar e parece-me
que ou não faço sentido, ou estou a falar de mais, ou de menos, ou a repetir-
me demasiado. No fundo sei a resposta. Mas como se põem anos em dia
num espaço de poucas horas? A culpa não é dele. Ouvi isto tantas vezes.
Também não é minha, retorqui outras tantas. As sombras que se adensaram
desde esse dia. Consigo dizer muito pouco.
Fala-me dos irmãos, dos vivos e dos que faleceram. Da namorada, da
família dela. Diz que vou gostar dela. Mostra-me fotos de todos. Fala da
mãe, do pai que conheceu, do padrasto que se lhe seguiu. De como cresceu.
E do que gosta. Do que não gosta. Dos amigos. Do lugar onde cresceu. Das
coisas que fez. Das coisas por que passou. Do que viu e que, tal como eu,
nunca deveria ter visto. Ou sentido. Ouvido. Do trabalho. De Londres e da
Guiné. De como foi conhecer o pai que partilhamos, e a minha mãe, e a
minha, a nossa, irmã. O resto da família. Quer saber de mim. Falo. Diz,
muito sério, que sente que devo ter passado por momentos muito difíceis.
Ainda só lá estamos há quinze minutos, talvez nem tanto. A minha rigidez
contrasta com o sofá. Digo-lhe que sim. Há algo de solene em tudo isto.
Não me sinto, não sei o que sinto. Tem as mãos grandes, como eu. É mais
escuro. Diz que sou parecida com a minha mãe. Desde sempre toda a gente
diz que ele é parecido com o meu pai. Sorri muito, como eu. Fuma. Está
nervoso, como eu. À nossa volta, famílias e grupos de amigos jantam.
Penso no que seremos um para o outro. Se seremos. Falo do meu último ano
e meio, que mais parecem cinco. De como fiquei chocada quando me
mandou a primeira mensagem; de como era, mais do que sempre fora,
demasiado para conseguir lidar na altura. Peço desculpa. Falo do aniversário
do ano passado, quando ele desmarcou à última hora, e de mil outras coisas
que não cabem em lado nenhum. Estou muito crescida e estou muito
pequenina e a vida vem em golfadas que os pulmões parecem não conseguir
aceitar. O coração desarruma tudo na ânsia de se fazer maior. Falamos dele.
Refere-se-lhe como o pai, ou o meu pai e diz, o nosso, desculpa. É natural,
digo. Diz, estive lá no aniversário do nosso pai. Corrijo, foi no dia seguinte.
Eu estive lá no dia anterior. O do aniversário. Diz que me mandou uma
mensagem, aquela à qual não respondi. Respondo que lhe mandei uma
antes. Dois meses antes. Precisamente dois meses antes. Não lhe digo que,
na altura, achava que não me livraria do maior susto da minha vida, e que
não queria adiar mais isto, com medo de desaparecer sem conhecê-lo. Não
respondi, pois não? Respondo que não. Era domingo. Chorei tanto, nesse
dia. Tive-lhe tanta raiva, nesse dia. Tanta mágoa. Mas ele não sabe. Não
sabemos quase nada, mas já sabemos mais do que alguma vez soubemos.
Respondo que fiquei... Não consigo falar. Pede desculpa. Estende a mão
sobre a mesa. Estendo a minha. Olhamo-nos longamente. Hoje conheci o
meu irmão. Jantei com o meu irmão. Dividi um crumble de maçã com o
meu irmão. Tomei café com o meu irmão. Conheci um amigo do meu
irmão. Beijei o meu irmão. Abracei o meu irmão. Ri com o meu irmão.
Estive em silêncio com o meu irmão. Esperei pelo metro com o meu irmão.
Conversei com o meu irmão sobre detalhes e sobre banalidades, sobre as
grandes coisas e sobre as nossas batalhas. Hoje fomos mais do que tudo o
que nos separou até então. Hoje ouvi o meu irmão dizer o meu nome. E eu
acho que nem disse o dele, mas hoje aceitei o meu irmão.
Gardénias Brancas
Nunca gostei de me sentar na parte de trás do autocarro. Já desde os
tempos de escola parecia ser o lugar reservado (reivindicado por eles, até)
aos rufias, mal-comportados e barulhentos. Ao longo dos anos, sempre
preferi as primeiras filas e os primeiros lugares, na sala de aula e nos
transportes públicos. Ando de transportes quase todos os dias, já sem regras
muito definidas sobre a parte da frente ou o fundo, mas hoje reflicto muito
mais sobre o lugar que ocupo, interior e exterior.
Outro dia respondi a um anúncio para uma curta-metragem. Enviei duas
fotografias, o clássico rosto e corpo inteiro, e algumas informações. Em
resposta, ouvi que gostaram muito do meu look, e que havia um outro papel
para o qual queriam que eu lesse: o de senhora da limpeza, cleaning lady (é
uma curta norte-americana), empregada, governanta, como quiserem
chamar. Talvez alguns ainda sejam do tempo em que se dizia criada. Eu não
sou malcriada, e como encontro sempre algo de positivo em tudo, lembrei-
me de imediato da empregada mais famosa retratada por uma negra: a
Mammy, de E Tudo o Vento Levou. Foi este papel que arrecadou o primeiro
Óscar alguma vez ganho por um afro-americano. Entre o Óscar de
McDaniel e o de Whoopi Goldberg, a segunda a ganhar o prémio de melhor
actriz secundária, passariam cinquenta anos.
Este meio século é maior do que o espaço temporal que separa a primeira
modelo negra a encerrar um desfile Chanel vestida de noiva, Alek Wek, da
segunda, Adut Akech Bior. Este ano, contudo, Karl Lagerfeld voltaria a
estar nas bocas do mundo pois, em mais de um século de existência,
finalmente a marca contratou o seu primeiro modelo negro, Alton Mason.
Confesso, envergonhada, que nunca pensei muito nos modelos negros
masculinos: onde estariam, se teriam trabalho. Talvez estivesse muito
ocupada a olhar para Naomi Campbell, detentora de tantas primeiras vezes
(primeira modelo negra a aparecer na capa das Vogue inglesa e francesa, e
na revista Time) numa carreira que, por momentos, quando era muito nova,
pensei seguir. Ser a primeira pessoa a conseguir algo, quando isso acarreta
uma afirmação muito maior do que a pessoal, é uma responsabilidade
agridoce. Quando se trata de minorias étnicas, ainda mais. Sandra Oh foi,
também em 2018, a primeira actriz de descendência asiática nomeada para
um Emmy, prémio que existe há setenta anos. Ser o segundo ou o terceiro
ainda pesa muito, sobretudo se os intervalos entre os feitos forem de
décadas. Cada conquista é um peso e um bálsamo, um evento e uma
revolução, um movimento ou a promessa de mais lugares, visibilidade e
igualdade. Hattie McDaniel fez história num hotel segregado, não podendo
sentar-se no mesmo lugar que os seus pares. Por não se ter assumido
politicamente e ter feito papéis estereotipados, foi criticada pela
comunidade negra, ao que respondeu celebremente que poderia ser uma
empregada e ganhar sete dólares por dia ou fazer de empregada e ganhar
setecentos dólares por semana. Sobre o escândalo de Kevin Hart, e a
apresentação dos prémios da Academia, alguém disse que Hart não deveria
pedir desculpa novamente por declarações do passado, pelas quais se
achava já redimido, pois a Academia nunca o fez em relação a McDaniel. O
tempo passa, mas a hipocrisia não. Se o tivesse, poderia marcar os dias no
calendário Pirelli 2018, totalmente protagonizado por negros, com temática
de Alice no País das Maravilhas e até um coelho preto.
Aguardo o resultado do casting. Nunca trabalhei nas limpezas, mas sou
obcecada por elas. Acredito que é impossível não sorrir e abanar a cabeça
ao passar por uma cabo-verdiana a falar alegremente ao telemóvel com
alguma amiga, enquanto faz o seu trabalho. Se perceberem crioulo, ainda
melhor: têm a experiência completa. O cliché é real e a luta também.
Acredito em ter flores no cabelo, em vida e na morte, como foi expresso por
McDaniel enquanto desejo fúnebre. McDaniel, que era filha de antigos
escravos, e fez o papel de uma; McDaniel, a actriz de vestido azul e
gardénias no cabelo, cuja presença em determinados lugares dependia de
chamadas, pedidos e favores, devido às leis da altura, e que nem assim pôde
assistir à estreia do seu filme. McDaniel, que tinha um agente branco, e
também foi a primeira actriz negra a ter o seu próprio programa de rádio,
lutou para que os negros pudessem viver na zona das famílias brancas em
Los Angeles. McDaniel, cujo prémio físico, na altura ainda não uma
estatueta, se perdeu e nunca foi recuperado. McDaniel, com uma estrela no
passeio da fama mas rejeitada no cemitério que escolhera. McDaniel, que
sabia quem era quando as câmaras deixavam de gravar e que fez inúmeros
papéis sem ser creditada por eles. Hattie fez a sua escolha e o seu papel num
mundo muito mais fechado do que o de hoje. Talvez pudéssemos todos dar
mais a cada causa, ou talvez nos vejamos sujeitos a ter de fazer o que
abominamos em prol de facilitar as coisas para quem vier depois. Para
dizer: estou aqui. Para que outros não tenham de fazer o mesmo.
Gostaria que fossem precisas cada vez menos autorizações para existir.
Mas também gostaria que fizéssemos tão mais do que isso. Gostaria de
definir o meu lugar e o meu papel. Gostaria de fazer a empregada da
limpeza na curta, mas só porque sei que também o faria fora da tela, se
precisasse de sobreviver, e que isso não me define, nem define o meu valor.
Às vezes, antes de podermos servir a causa, ou para podermos servir-nos
melhor uns aos outros, temos de nos servir a nós mesmos primeiro.
Ninguém o disse melhor do que Daniel Faria: «Não acredito que cada um
tenha o seu lugar. Acredito que cada um é um lugar para os outros.» Ele era
mais de magnólias, mas sei que teria entendido a beleza das gardénias
brancas.
Biquíni cor-de-rosa
Queria escrever sobre desilusão. Uma desilusão que não precisa de ser
grande para me deixar sem palavras. Basta-lhe ser profunda ou, a mim,
sensível. Vir em pequenas doses ou em formato familiar. Familiar, não
económico, porque quem desilude não poupa. Não deveríamos medir a
nossa noção de normalidade pelo grau de desilusão que os outros nos
causam. Mas há dias assim.
Era extremamente bonita. Foi um jogo de quatro em linha que nos
aproximou. Ela perdeu demasiadas vezes, com demasiada facilidade.
«Troca para as amarelas», sugeri. Alguém, da mesma idade, apenas uns
meses mais velho, gozava-a, «Usa a inteligência», ria-se, com as
gargalhadas cristalinas como só quem nos conhece desde sempre pode ter
perante a nossa desgraça sem nos magoar. A partir dali a sorte mudou, com
a sorte que basta imaginarmos para que surja. Ou talvez apenas começasse a
apanhar-lhe o jeito. Mais tarde, perdi a conta aos litros de água que me
atirou para cima, numa guerra claramente desleal. Fez de mim o que quis.
Puxou-me as pernas, trepou para os meus ombros, abraçou-me com força.
Pediu que lhe apanhasse o cabelo ao alto. Perguntou se era casada, e se
gostaria de ter filhos. Se conhecia pessoas famosas. Se sabia nadar. Falou-
me dos gatos, perguntou onde morava, fez-me rir muito. Mostrámos fotos
uma à outra. Invejei-lhe o biquíni cor-de-rosa, tão mais giro do que o meu.
Falou-me dos dois actuais namorados à frente do ex. Pediu-me que lhe
tirasse fotos, que brincasse com ela. Tinha, sem o saber, o nome que me
desarmará sempre. Os olhos verdes como as árvores.
Mais tarde, choraria abraçada à mãe. Um choro dorido, que eu não
conseguia compreender, de início. Despedi-me dela. Perguntaram-lhe se
queria ficar, e chorou ainda com mais força. Voltei para o meu lugar na
relva. Ela chegou pouco depois. «Senta-te, e conta-me os teus problemas»,
disse-lhe. E ela contou. As pernas cruzadas, o vestido rosa e branco, as
mãos que arrancavam pequenos fios do chão, as lágrimas a regar tudo.
Falou com a grandeza que já tem, crescida como foi obrigada a ser. Nunca
nos tínhamos visto antes, e como era difícil alcançar numa golfada tudo o
que ela me dizia do alto dos seus quase onze anos. Falou do pai e da família
dele, do padrasto e do quanto a mãe sofrera daquela vez em que se
separaram e o quão receosa vivia com medo de que isso se repetisse. Do
medo que tinha de que a mãe morresse. Nunca nos tínhamos visto antes, e
eu já não suportava vê-la assim, era como se também eu a tivesse conhecido
desde sempre. O meu braço deslizou para trás das costas dela, e a minha voz
embargada procurou, na sua impotência, algo de sensato para dizer. Há
muito que não sentia assim tão minha a dor de outra pessoa. E que pessoa.
«São coisas assim que tornam o coração vulnerável», escreveu o poeta.
Sempre houve crianças nos seus versos. Espero que sempre as haja na
minha vida. Queria escrever sobre desilusão. Daquela que nos esmaga e
silencia. Mas mais tarde ou mais cedo voltará a ser domingo e haverá luz. E
tudo terá passado.
Bálsamo
Há dias em que nos expomos ainda mais do que o habitual. Dias em que
alguém nos magoa, com ou sem intenção. Dias em que parecemos ter um
alvo nas costas. Dias em que a pele é, toda ela, um alvo. Dias que já são
semanas e meses a tentar quebrar-nos e a conseguir, ou quase. Dias em que
finalmente saímos do único refúgio que temos com vontade de nunca mais
voltar, como tantos já fizeram ou ameaçam fazer, com vontade de dizer:
«Pronto, ganharam.» Que alguém esteja feliz, mesmo se à custa do coração
alheio. Dias em que nos perguntamos, «mas quem é que me conhece,
mesmo?» E, ainda, «como é possível que ninguém aqui me conheça afinal,
se eu sou tão transparente?» Não somos impunes, sabemos as nossas falhas
melhor do que ninguém, torturamo-nos constantemente, exigimos
demasiado de nós mesmos, mas isso não dá a outros o direito de nos fazer
sentir como se não tivéssemos valor. E, no entanto, é isso o que acontece.
Dias em que a ansiedade nos leva ao limite. A nós, que temos limites quase
ilimitados. Dias dos quais esperamos muito pouco, e mesmo esse pouco nos
é tirado. Dias em que nos sentimos invisíveis por um lado e o bobo da corte
por outro. Dias em que queremos desaparecer de vergonha e de tristeza,
apesar dos esforços de duas ou três âncoras bem-intencionadas. Dias sobre
os quais já nem escrevemos para tentar enganar a memória. Mas depois,
depois há dias em que alguém por quem já não esperávamos dessa vez,
vem. E na verdade nada muda. Amanhã teremos, depois de outra noite de
insónia, de recomeçar com a dignidade um pouco menos intacta, o sorriso
um pouco mais fechado, o olhar mais cabisbaixo, até que eventualmente
voltamos a ser quem somos, alguém de quem os outros podem ou não
gostar, alguém que ri alto, ri muito, fala muito, chora muito, luta muito,
sonha muito, ama muito.
Mas falava de regressos. Falava de reencontros. Falava de um momento
que imaginei e receei centenas de vezes. Falava de ter mudado e de não
querer aceitar isso. De ter enfrentado o meu espelho mais duro e ter
sobrevivido e mesmo assim ainda recusar reconhecer uma parte ínfima que
fosse, primeiro por medo, depois por estupidez, talvez até por orgulho.
Como se o tempo pudesse, realmente, ser remendado. Como se a negação
fosse mais do que isso. Falava de ti. Dos olhos brilhantes e dos ombros
estreitos cuja altura uso para medir a minha. Das milhares de t-shirts pretas
que já compraste e que usas como uma segunda pele. Do sorriso sincero. Do
riso que tantas vezes fez coro com o meu. Da mãe e dos irmãos, do pai. Das
reticências que adoras usar mas que nunca tens quando ages. Do amigo que
uma vez me desafiou a entrar num avião para te ver e eu não podia. Da
minha irmã. Da amiga pela qual perguntaste. De tudo o que tem acontecido.
Das coincidências. Dos momentos mais baixos. Do momento em que tudo
mudou para melhor. Das grandes mudanças e das coisas que não se
recuperam. Falava de continuares a ser uma das minhas pessoas preferidas e
de como nada vai mudar isso. Falava de não me sentir tão bem há algum
tempo. Falava de tempo. Deste-me tempo e chocolate quente num dia muito
frio por dentro. Estás em todos os meus livros porque sou melhor por ter-te
conhecido. Já me disseram muitas coisas, desde as realmente maravilhosas
às realmente abomináveis. Tu sabes. Eu contei-te. Até nós já trocámos
palavras duras e silêncios amargos.
Passou muito tempo. Ninguém diria, se nos visse. Dois minutos contigo e
tenho outra vez vinte e dois anos e uma felicidade de desenho animado.
Agora estamos nos trinta e moramos em países diferentes mas o que é a
distância, afinal? O que é o tempo, afinal? E o que é a amizade, afinal,
senão isto mesmo? Foram tuas as palavras mais bonitas que alguém me
disse: «Qualquer pai gostaria de ter uma filha como tu.» Era de tarde e eu ia
apanhar o comboio. Estava sol. Contigo estava sempre sol. Esperaste muitos
comboios comigo. Tu andavas sempre de autocarro.
Passaram oito anos. Hoje não havia música, ou se havia eu não a ouvia.
Disseste-me sítios onde moraste, onde trabalhaste e onde jogaste basquete, e
eu disse que sabia tanta coisa sobre ti mas não essas. Pedi, horrorizada, que
parasses de falar no que fizeste nos anos noventa e tu disseste que serias
sempre um miúdo. E, por falar em miúdos, só o teu irmão para fazer
dezanove anos. Disseste-me o quanto gostavas de conduzir, as saudades que
tinhas de fazê-lo, e eu respondi que era a primeira vez que andava de carro
contigo. Rimos. Hoje levaste-me a casa sem eu ter de dizer onde era. O que
eu não disse é que já tinha chegado. Disseste, eu andei nesta escola. Ali foi
onde tive o primeiro trabalho. Eu respondi, já valeu a pena ter vindo viver
para aqui. Tu disseste, «Estás na mesma». Era o que eu mais precisava de
ouvir neste mundo.
Ti Coelho
O Ti Coelho não me reconheceu, quando nos encontrámos, por acaso, na
quarta-feira. Apenas fingiu que sim. «Parece que me lembro, menina, mas
não estou a ver de onde...» Nalgum lugar da sua memória, talvez acreditasse
no que eu lhe dizia, que nos conhecíamos do Kiwi, o restaurante que ele
teve durante muitos anos na Antero de Quental, e onde eu almocei e tomei
café quase todos os dias durante pouco mais de um ano, já a crise ditara que
se não abrisse à hora de jantar. A crise dele e da esposa, por quem tive
receio de perguntar, num dos anos em que eu mais dinheiro ganhei. A
minha crise era outra, então. Comida simples, boa e barata, era só descer um
pouco e atravessar a estrada. Actinidia deliciosa. A Ariana diz que é a fruta
mais bonita e sinto-me tentada a concordar. Havia um grupo de amigos que
ocupava a maior parte do espaço a um dia fixo da semana desde há muitos
anos. Sempre quis ter essa rotina com alguém, conheço quem tenha e acho
saudável. É bonito, quando a amizade é um hábito, porque, de facto,
parecemos cada vez mais desabituados uns aos outros. Muitas conversas,
reuniões, alguns dramas e piadas, sempre que o Ti Coelho fazia traduções
do latim, mas dizia não saber o que o carpe diem na tatuagem de alguém
significava. Nunca ouvi falar nisso, dizia. Pois é, ele não se lembrava de
mim. Não propriamente. Não do modo que faria com que me abordasse
com a rapidez e a alegria com que eu o fiz. Não do modo como fez um
rapaz na outra semana, quando eu estava a olhar para o horário da roda
gigante no Marquês e uma voz confirmou o que eu dizia à Diana, que a roda
já estava fechada. Na altura, foi natural o que sorrimos naqueles segundos.
Podia ter sido no dia anterior, termos ido trabalhar, ou sair com os amigos,
ou voltar para casa a pé. Podia ter sido no dia anterior que ele decidiu ir
para casa em vez de ir ver uma amiga que, na realidade, já cá não estava,
que já não era ela. Podia ter sido no dia anterior ao churrasco da Petra.
Podia ter sido no dia anterior o meu aniversário, a vela num queque e a
prenda, um livro sobre viagens em África, para eu estar «mais em contacto»
com as minhas origens. Podia ter sido no dia anterior ao carro da Tânia ficar
sem bateria. Podia ter sido no dia anterior a eu ter começado a levar a
máquina para todo o lado, mas eu não via o Cláudio há sete ou oito anos.
Mas não pensei nisso quando vi o Ti Coelho. E eu não o via, a ele, há cinco
anos. Ele ainda era ele. Mas depois percebi que não podia esperar que me
reconhecesse. Porque aquela rapariga que o Ti Coelho conheceu não era
nada parecida comigo. Eu sabia que era eu. Mas quase mais ninguém sabia.
Essa é a diferença. Para um, eu nunca fui. Para outro, eu nunca deixei de
ser. Como explicamos a alguém que, só agora, de fugida, num corredor de
um edifício no hospital onde eu nunca tinha entrado, é que está, realmente, a
ver-nos pela primeira vez? E que, mesmo assim, ainda falta? Eu não era eu,
poderia ter dito. Naquele ano não fui eu que vim, foi tudo o que me
aconteceu em anos anteriores. Mas o tempo estava a contar, ele tinha
pessoas à espera e eu também, apenas não aquelas com quem ele esperava
que estivesse tudo bem. Não lhe disse que não sabia se estava. Não lhe disse
tudo o que tinha mudado. Talvez daqui a uns anos nos reencontremos e ele
não me reconheça de todo. Talvez eu apenas lhe sorria sem dizer nada e lho
perdoe. Talvez os quilos pesem mais do que os anos, na memória de
alguém. Na minha, sei que sim. Talvez haja coisas impossíveis de esquecer
mas das quais nos possamos ir lembrando cada vez pior, mesmo se vivemos
nelas a vida toda. Ou quase. Talvez seja a única forma de nos mantermos
sãos. Poderia ter explicado isso, também, mas ultimamente tenho aprendido
muito sobre o que é preciso ou não dizer, que é como quem diz, tenho
aprendido muito sobre mim, que eu ainda vou ser.
Sob o sol cruel
Foi ontem à tarde. Cheguei atrasada, subi as escadas rolantes bem
devagarinho, ou melhor, deixei que elas me transportassem, subi as escadas-
não-rolantes abanando a cabeça, arrependida mais uma vez. Olhei e não o
vi. Liguei-lhe, disse-lhe onde estava, vi-o passar por mim sem me ver, pus-
lhe a mão nas costas e ele virou-se para me cumprimentar. Segurou-me na
mão com aquela mão áspera, grossa, de quem sempre trabalhou com as
mãos. Dois beijos e um abraço rápido e a fraqueza total.
Comecei a chorar como uma criança pequena ali, no meio da confusão
habitual de um sábado à tarde no Chiado, e aquele homem a querer
confortar-me. Só conseguia pensar no que pensariam as pessoas que
conseguissem aperceber-se de alguma coisa. Só conseguia pensar que era
uma pessoa menos forte do que queria e do que julgava. Senti-me como
aquelas pessoas que vemos na tv constantemente a reverem os seus
familiares ao final de tantos anos, sobre as brancas e artificiais luzes do
estúdio, e pensei que havia uma diferença; essas pessoas reviam pessoas de
quem gostavam, procuravam anos e anos na esperança de rever um amigo
ou uma mãe, tio ou irmã. Eu tinha ali o meu pai, que não via há quatro anos,
de quem nunca gostei, que já odiei, até, de quem nunca senti o mínimo de
saudades, de quem desisti era ainda criança. Eu tinha ali o estranho mais
próximo e fisicamente mais parecido comigo (mãos e pés grandes, o nariz, a
altura, o sinal debaixo do braço esquerdo, que já a avó carregava também)
que havia na minha vida e chorava chorava chorava sem consolo possível e
sem saber porquê.
A minha irmã não quis ir, e como eu a compreendo. Eu também não
queria. Até há uns meses eu nem tinha o número dele ou ele o meu. Quando
a minha mãe me disse que ele o queria, quando ela me tentou convencer a
encontrar-me com ele senti-me tão zangada que chorei – parece que é algo
que faço com muita frequência. Fui adiando (até decidir telefonar-lhe,
passei semanas inteiras a ignorar os telefonemas dele), sempre adiando este
reencontro.
Eu tinha uma pergunta a martelar-me a cabeça, um «Porquê? Porquê
agora, para quê, com que intenção?», e não a coloquei ontem. Foi tudo
muito enervante e estranho e silencioso, com perguntas muito triviais e
respostas sucintas. Podemos viver mais de vinte anos na mesma casa com
alguém e conhecer somente o seu pior lado. Podemos ser a única pessoa que
o conhece. É muito complicado. Foi muito complicado estar ali na Rua
Anchieta a percorrer as bancas de livros em segunda mão com ele. Foi
muito complicado fazer fila à porta da gelataria, lendo por cima do ombro
as mensagens que um moço italiano trocava com uma signorina para me
distrair da tensão do momento. Foi muito complicado descer a pé até ao
Cais do Sodré, rumo ao carro, com um gelado enorme a derreter-se mão
abaixo. Foi muito complicado lidar com todas as vezes que ele me fez festas
na mão, no cabelo e nas costas. Foi muito complicado ele ter querido dar-
me boleia até à Amadora, e termos andado perdidos, e tê-lo apresentado à
minha amiga com A grande: «O teu pai é tão novo.» Foi muito complicado
mas foi pacífico. Não foi como todas as vezes com a minha mãe, agressivo,
violento, a afogarmo-nos no passado - isso ainda está por resolver.
Um dia de cada vez, com lentidão extrema, sem expectativas da outra
parte, porque eu nunca poderei tê-las. Não acredito que as pessoas mudem,
nem vou começar a acreditar agora. Aprendi a aceitar que os meus pais são
o que são, que são como são. Ele nunca soube que entre mim e a minha
irmã nunca o tratámos por pai, mas sim por «ele». Agora chama-nos filhas e
isso revolta-me um bocado. É complicado. Mas hoje sei que já não carrego
aquele fardo odioso em mim, hoje sei que ele nunca mais vai poder tirar-me
o muito ou pouco que conquistei sozinha. Hoje sei que não é só o meu
passado que me define. Hoje sei que se calhar até não sou assim tão fraca.
Hoje estou mais em paz. Isto não me tirou nada, mas talvez me devolva
alguma coisa.
Nunca mais fiz o pino
Estou a ler Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie. Podia dizer que
estou a gostar muito, que me identifico com a protagonista, que o
recomendo. Já disse isto de outros livros. Hoje é um dia como tantos outros,
não estou particularmente sensível, mas talvez isso não importe quando, tal
como o tema, se é sensível. E este livro está repleto de momentos e temas
sensíveis. Até agora tudo bem, só que estava aqui muito sossegada e quando
dei por mim lá soltei umas lágrimas valentes entre a página 281 e a 283.
Sobretudo nesta última. Lembrei-me de, na escola primária, antes daquela
vez em que queria fazer um pino-ponte e caí de costas e me doeu horrores e
nunca mais fiz nem pinos nem rodas nem pontes (ah! mais um trauma),
estar precisamente a fazer o pino, com outras raparigas, umas do mesmo
ano e outras mais velhas, e de algumas estarem a ver quanto tempo
aguentavam. Alguém disse, «Se ficares assim demasiado tempo o sangue
vai todo para a cabeça e ficas vermelha.» E esse mesmo alguém olhou para
mim e disse, «Tu não sei como ficas». E mesmo com a memória que tenho
há coisas que fui aprendendo a esquecer, mas esta não foi uma delas. Com
tudo o que se está a passar nos EUA, e com tudo o que ainda se passa em
tantos sítios e ninguém faz disso notícia, não podia deixar de falar nisto.
Porque as grandes coisas feias começam com comentários destes. Pequenas
coisas ditas sem noção, sem conhecimento, por vezes até sem intenção. Em
tenra idade, infelizmente muitas vezes não são mais do que projecções da
vida familiar, do que se ouve e observa por parte dos mais velhos, e é
assustador pensar que isso possa ser um legado. A verdade é que há
demasiadas situações destas, facilmente desdramatizadas e banalizadas, que
afectam quem é alvo delas para sempre. Como uma farpa impossível de
tirar, que nos esforçamos para esquecer e que qualquer pequena pancada faz
doer. Podia falar sobre isto, sobre estes pequenos, grandes e cortantes
traumas, e sobre quão pouco o mundo mudou realmente neste aspecto a
noite toda, mas não quero. Já começo a deixar demasiada coisa por concluir
porque por mais que fale, continuo sem palavras para tanta... Isso.
Trinta dias de silêncio
Há seis meses esta segunda-feira calhou a um domingo. Era 29 de Junho,
estava um dia bonito e eu acordei com 95% das minhas coisas noutra
cidade. Ao mesmo tempo, continuava a ter esses mesmos 95% de coisas ali,
naquele código postal que viera habitar há cerca de um ano mas que já
conhecia bem há três. Só que essas não eram as minhas coisas. Eram as
nossas coisas. Desse dia recordo tudo. A tosta e o café ingeridos com
demasiada estranheza para quem não jantara ou dormira na noite anterior,
os velhos nas suas rotinas plácidas, o exterior tão igual a si mesmo. E
ninguém que soubesse. Ninguém que me olhasse com pena, ou compaixão,
ou compreensão, ou reprovação. Chegaste, a t-shirt vermelha e o rosto
fechado. A mesma pergunta repetida milhares de vezes, «Tens alguma coisa
para me dizer?», e a resposta de sempre. Não. Ou tenho, mas não isso. Ou
tenho, mas não quero dizer porque não é o que está em causa, pelo menos
para mim.
Tirei-te uma fotografia, a última, às escondidas, as unhas redondas e os
ombros pontiagudos. O teu rosto impassível. O permanecer impossível.
Lemos o jornal e a revista em silêncio. Voltámos e eu coloquei tudo à porta.
Recusei a tua ajuda. Recusei esperar pelo táxi ali. Foste fumar um cigarro e
eu abracei uma pedra que não me abraçou de volta. Foi na cozinha. Eu
gostava muito da nossa cozinha. Disse, não acredito que vais deixar-me ir
embora assim. E tu não disseste nada.
Desci, e desta vez não me senti a perder as forças como no dia anterior,
quando subi e desci as escadas dolorosamente para carregar o carro. Desci e
desta vez não chorei com um pé a impedir que a porta do prédio se fechasse.
Desci e desta vez não apareceu nenhum vizinho para testemunhar a minha
vergonha. Desci e desta vez não tinha a melhor amiga para me fazer uma
festa e dizer-me que fosse corajosa, que iria conseguir. Não. Desta vez desci
e não voltei uma hora mais tarde, como no dia anterior, porque a despedida
já estava feita. Desta vez desci e olhei para trás para ver se estarias à janela,
mas não estavas. Desta vez desci, fiz um telefonema breve e, antes que o
carro virasse a esquina, comecei a chorar. Talvez devesse dizer, continuei a
chorar. Porque era uma constante há já demasiado tempo. Mas agora era um
choro diferente, por isso talvez tenha sido mesmo um começo. O começo de
mais de trinta dias de dilúvio interior e exterior.
Alguém disse, «Vai haver dias em que vais achar que as lágrimas já
secaram e vai haver dias em que vais achar que estás a afogar-te nelas».
Chorei no supermercado. Chorei no trabalho. Chorei à porta do frigorífico.
Chorei em todas as divisões da casa. Chorei à mesa do jantar. Chorei
quando finalmente te devolvi as chaves e nem sequer estavas lá. Chorei
quando vi a lista de compras em cima da mesa da cozinha e chorei quando a
completei com o que faltava e risquei o que já havia. Chorei quando tirei
uma fotografia a essa estúpida lista. Chorei na rua. Chorei nos transportes.
Chorei porque durante dois meses e meio as chaves que trazia e as portas
que elas abriam não eram minhas. Chorei em casa dos meus pais. Chorei de
dia, de tarde, de noite. Chorei em silêncio e chorei demasiado alto. Chorei
para cima das cartas a que nunca respondeste. Chorei ao telefone. Chorei
entre mensagens.
Os dias passaram demasiado devagar, com cada hora a ser sentida como
um ferro em brasa. Falei contigo, falei com estranhos, falei com amigos,
falei comigo mesma. Pensei que não iria sobreviver. Fiz um calendário para
me disciplinar. Recomecei-o vezes sem conta. E, depois, um dia, parei de
chorar. E a esse juntou-se outro, e outro, e ainda outro. Comecei outro
calendário. Agora tinha dois, e era uma prisioneira à espera do dia em que
pudesse sair livre. Livre de ti, de nós, de tudo o que nunca fomos nem
viríamos a ser. Livre do que éramos mas que não chegava. Trinta dias sem
lágrimas, o primeiro. Trinta dias de silêncio, o segundo. Num bloco com
toureiros e bailarinas de flamenco que a minha tia me deu quando foi a
Madrid por dois ou três dias. Seis meses são muitos dias. Dias de mudanças,
dias de zangas, de gargalhadas, de afirmação. De desolação. Dias de
aprendizagem e dias de retrocesso. Dias em que te vejo e me lembro de tudo
o que tive coragem de fazer por amor a ti. Dias em que te vejo e sei que não
era ali que eu pertencia. Dias de trabalho, de ansiedade, dias em que a
comida não me soube a nada. Dias em que não sabia o que fazer. Dias de
vazio e de serenidade. Dias de leitura. Dias de passeio e de liberdade. Dias
comigo, como nunca tive na vida. Dias em que perdi peso. Dias em que
recomecei vez após vez a minha vida. Dias de dúvida e dias de medo. Dias
em que nem conseguia falar e dias em que só queria falar. Dias em que tive
de ganhar coragem para desfazer as malas com medo de desfazer-me a mim
mesma. Dias em que tive de aceitar a minha nova realidade. Dias melhores,
que vieram.
Luto
Hoje acordei à hora de sempre. Para a luz de sempre. Para o rio de
sempre. Com o sorriso de sempre. Subi para a balança, como sempre. Ri-me
com o que ela disse, e não me dizia há um mês. Na verdade, o que ela disse,
hoje, não me dizia há anos, mas na altura eu não reparei. Era ainda o tempo
em que as coisas, quando surgiam, se deixavam ficar e não passavam. Eu
não as deixava passar. Tudo era pedra e subida e a erosão, invertida. Mas
não agora. Agora eu gosto da balança, do equilíbrio, da mudança. Gosto
sobretudo de perder. Fiz de perder o meu ofício. Uma e outra e outra vez
ainda. Coisas, pessoas, cidades, trabalho. Medos, dúvidas, cabelo, um dente,
a maior parte de um órgão interno e uma lasca do osso da bacia. E a mim.
Até a mim perdi. Sobretudo a mim. E, quando alguém faz o seu próprio luto
tantas vezes quantas eu fiz, as flores são sempre frescas, talvez por não
serem colhidas por mãos alheias, e a coroa está sempre posta, não sobre o
peito, mas sobre a cabeça. Mesmo nos dias em que pareço tê-la deixado em
casa.
Domingo
Os últimos dias têm sido passados sobretudo à volta de uma mesa, ou
será assim que me recordarei deles mais tarde. Mesas onde toda a gente já
se conhece e eu não conheço quase ninguém, mesas onde só eu conheço
toda a gente, mesas com vinte pessoas e mesas com cinco e mesas com dez.
Mesas onde falta alguém e mesas às quais se senta quem já não
esperávamos mas cuja presença nos aquece. Mesas onde se fala de tudo ou
não se fala de nada, como se se tivesse estado ali sentado desde sempre.
Mesas com gatos e mesas com bebés. Mesas com telefonemas e mensagens
e cadeiras que não condizem. Mesas ampliadas e mesas reduzidas. Mesas
fartas e mesas com quase nada. Mesas inventadas e mesas improvisadas.
Mesas silenciosas e barulhentas na medida perfeita.
Outra noite, alguém veio desde o rio segurando uma caixa com metade
de uma pizza lá dentro. Chegando à calçada, subindo pela parte mais
íngreme, colocou-a em cima da cabeça, em perfeito equilíbrio até casa,
passando por estradas e escadas e prédios e dando uma e outra volta sobre si
mesma, apenas pela piada. Deve correr-me nas veias este dom de equilibrar
coisas como quem vai para o mercado vender, disse. Depois, lembrou-se de
que era assim, a segurar livros apenas com a cabeça que, antigamente pelo
menos, se treinava a postura das princesas. Então as mulheres que vão a pé
para o mercado todos os dias sempre foram princesas e talvez até mais do
que isso. Certamente mais do que isso, porque as mulheres não se medem
aos pares de sapatos nem aos tamanhos dos pés descalços.
Mas falava eu de uma caixa de pizza com metade lá dentro. Que em nada
me pesava. Ou quase nada. Foi-me oferecida mas não a provei no momento.
Não era minha, mas era a metáfora perfeita para tudo o que senti nas
últimas semanas. Que estava pela metade. A meio gás, a meio dia, a meia
página, a meia paz, a meia luz. Na noite seguinte, a metade de pizza
desapareceu. Na mesa restaram uma flor vermelha, oferecida, um cacho de
bananas, dois bolos de coco, uma caixa de plástico com bolachas de água e
sal e ainda a presença de quem já faz tão parte que nem precisa de estar para
que eu me sinta acompanhada.
As inquietações nem sempre podem ser comidas, e o meu estômago está
muito longe do que costumava ser. Não vou a casa dos meus pais há algum
tempo e tenho saudades dessa que é a melhor e maior cozinha, com a
melhor cozinheira, a melhor luz, as mais alegres e tristes histórias. Não
tenho ido porque sei que a minha irmã agora faz as refeições noutra
cozinha, noutro país. Tem-me custado usar a palavra casa para um lugar
onde ela não esteja, mas depois ela manda uma mensagem com algo que me
faz rir e o meu coração sossega. Ou alguém vem de muito longe só para
estar comigo. Ou alguém vai buscar-me à mesa onde estou sozinha e me
senta à sua.
Outro dia atravessei a estrada e fui a uma casa onde não ia há muitos
anos. Uma casa onde sempre fui sozinha, eram anos muito negros e eu
sentia-me sempre de luto. Estava lá tanta gente, quando cheguei. Quando
saí, tão mais leve, já não restava quase ninguém. Desta vez não escrevi, não
li, fiquei ali apenas a fazer o que faço tantas vezes, vergada por um peso
quase igual ao que perdi. Mas não é só isso o que me tem vergado. A
bondade, sobretudo a bondade inesperada, deita-me abaixo e ergue-me
sempre mais alta por dentro. Aquela já não é a minha casa há muito tempo,
mas ainda é. Saí de lá a rir (como alguém disse outro dia que nasci) por uma
pequena porta secreta que dava para as traseiras, depois de ter pensado,
«Não acredito que fiquei presa outra vez.» Eu tinha vindo de uma outra
casa, também tão familiar, a que regressei este ano. Alguém me disse,
«Normalmente invejo o seu ar tão bem-disposto, mas ultimamente tem um
ar carregado.» E alguém me disse, «Vê como agora está mais bonita, agora
que já não está a chorar?» Professores. Este ano aprendi que se pode
regressar de tudo, até da desilusão profunda. Este ano ganhei, perdi e
recuperei pessoas de quem gosto muito, e agora tenho vindo a perdê-las,
novamente, um bocadinho, e da maneira certa, porque estão a fazer de tudo
para serem mais felizes e isso dá-me tanta coragem, mesmo que agora
tenhamos de encontrar novas mesas às quais nos sentarmos.
Há bocado, estava a preparar-me para voltar a sair, mas alguém disse,
«Vamos beber o nosso café?». Vamos. E fiquei. Alguém mais se juntou.
Alguém chorou muito a esta mesa. Alguém riu muito. Alguém comeu e
alguém leu poesia. Alguém cantou as músicas da sua adolescência e da sua
comédia romântica preferida. Alguém leu a sua revista de sempre. Alguém
lavou a loiça. Pus a tocar a Sparrows over Birmingham. Alguém disse,
«Parece o fim de uma série, nós aqui e esta música a tocar, é tão fixe». E
disse para a gata, com um sorriso, «E tu também fazes parte da série». O sol
inundava tudo, o rio brilhava. Era domingo e estávamos em casa. Em
família. Mas talvez tudo isto seja só a minha cabeça a ter um formato e
pensamentos estranhos.
Ardósia
Encontro folhas e raminhos minúsculos quando tiro a roupa, acabada de
chegar, espantada por tê-los esquecido assim que se depositaram em mim,
apesar do vento, e de não mais os ter sentido. Não sou tão compreensiva
com as pedrinhas que, desde há um ano, pareço ter mais e mais vezes nos
sapatos, nos de ténis e nos outros. As pedrinhas, agora. Desde sempre, as
pestanas, aquele fio de cabelo preso ao bâton, uma linha pendurada, a
etiqueta por cortar.
Uns casam, outros ficam noivos, outros dão as boas-vindas à primeira
filha (parabéns). Eu colo mais folhas de ardósia na parede, escrevo, penso
que vou precisar de mais ardósia, amaldiçoo o giz de fraca qualidade, ou
talvez seja a força do que desperta em mim aquilo que anoto e que, espero,
venha a ter qualidade. Descubro um brilhante num sítio secreto, sorrio e
espero que dali não saia. Penso que tenho de fazer as pazes com uma pessoa
e desiludir outra. Não posso adiar mais a segurança social, e preciso que me
emprestem livros.
O rapaz com cancro que trabalha em teatro (e que mais tarde conhecerei
e descobrirei que não tem cancro e sim alopecia, como eu, mas a ex-mulher
afinal sim, tem cancro e ambos uma filha) não apareceu hoje. Havia um
cachorro novo, castanho, e um cinzento, adulto. Donos diferentes. Fiz festas
ao primeiro, porque o segundo já lá não estava. Há quase todos os tons para
pessoas que há para cães, se pensarmos até nas manchas. O cinzento é a
excepção mas quase que nem isso, não é? O empregado do quiosque deseja
bom apetite aos estrangeiros e pergunta se está tudo bem com os seus
pedidos, mas não aos de cá. Às vezes perco tempo a observar as pessoas e
perco uma boa fotografia, mas prefiro uma boa história. Sou melhor nisso,
de qualquer modo. Já faço quase tudo o que me propus. Falta a questão
maior, mas agora é diferente. E teimarei em continuar a ver o brilhante
mesmo se ele sair de lá.
Sophia
Quando era miúda, tinha por hábito coleccionar poemas nos meus
cadernos (era obcecada por folhas de papel reciclado, e colagens; na capa
deste ainda resiste uma folha de árvore... de plástico). Whitman, Neruda,
Octavio Paz, Gastão Cruz, Ramos Rosa (lembro-me de estar nas escadas da
escola com uma amiga e tentarmos ler Ramos Rosa em brasileiro, ideia
dela, foi uma risota pegada) e tudo a que conseguisse deitar a mão. Mas a
pessoa que começou isto – isto dos poemas, entenda-se, pois o resto
começou assim que vi um livro pela primeira vez – foi Sophia de Mello
Breyner. A par de Pessoa, claro, mas Pessoa é um deus e uma mulher é
diferente. E esta era muito humana nas coisas que escrevia; não escrevia
para parecer bem, e não deixava de parte nem a beleza nem a fealdade do
mundo. Eu era adolescente e os poemas dela tocavam-me profundamente,
era como se dissesse: se há dor, que a sintamos, que a expressemos, mas
mais tarde ou mais cedo vai haver também felicidade, e devemos tratá-la da
mesma forma.
Herberto Hélder
Não sei. Não consigo ir procurar nem ler poemas. Há muitos anos uma
amiga emprestou-me a sua obra completa, que foi ficando e ficando até se
tornar minha. O primeiro que procurei foi o Tríptico, porque me tinha
apaixonado já por ele. Porque se plantou de forma indelével em mim e
porque me influenciaria muito, muito. Depois, apaixonei-me pelo Aos
amigos, e desejei que para além da parte dolorosa, também não me faltasse
o talento. Ou a compreensão, porque a sua poesia e a de Fiama sempre me
pareceram as mais difíceis, as mais eruditas. Grandes livros muito lidos mas
lidos com cautela e respeito e admiração e maravilha. Por isso, não preciso
de muito para recordar algo que está sempre presente.
Há pouco, quando uma amiga me deu a notícia, nos cinco minutos depois
de me mentalizar, e depois de uma breve choradeira, o que recordei foi parte
da conversa com um amigo, em que, não percebendo nada do que eu dizia,
soltou um «Volta, Herberto Hélder, estás perdoado!», o que muito me fez
rir. Por isso, são essas as palavras que, agora, faço minhas. Volta, Herberto
Hélder. Para esse lugar de silêncio. De paixão.
No metro do Chiado à espera da Carlota
Há algum tempo que o observava: o olhar antigo, pequeno, semicerrado
mas doce, a cadela esticada mas confortável, quando se sentou ao meu lado,
depois de ter falhado mais do que uma vez a tarefa de fotografá-lo. Um dos
rapazes que costumam estar por ali a dançar veio fazer uma festa. Depois,
uma criança. Depois, a amiga de quem estava à espera e que chegou
segundos antes da mudança de lugar. A cadela derretida, sonolenta,
pachorrenta. Ela dorme assim porque é muito ligada a mim, ela dorme
comigo, não é qualquer cão que se deixa estar nesta posição. Os cães e os
gatos dormem dezoito horas por dia, não, dezasseis. Hoje em dia temos de
confiar mais nestes do que nos de duas patas. Sobretudo nos que estão na
Assembleia. É uma vergonha. Ontem uma senhora pediu-me 60 cêntimos, e
estava bem vestida. Eu dei, até dei um pouco mais, porque acho que se a
pessoa pede é porque precisa mesmo. Não sabia que o Chiado era um poeta,
está escrito naquela placa ali atrás, eu pensava que era um nome qualquer.
Eu adorava ler o António Aleixo mas agora os livros parece que estão a
perder qualidade. Artistas há muitos, mas depois acabam todos na miséria.
Tem aqui uma. Ai sim? A menina escreve? Sim, ela escreve e eu sou a musa
dela. Ai sim? Não és nada, não é nada, não acredite. Pois, artistas há muitos
mas só há um Camões. Um amigo meu acordava a meio da noite para ir
escrever e não se esquecer das coisas, então arranjei-lhe um gravador.
Acontece-lhe escrever a meio da noite? Eu desenho mas não estou em
condições de desenhar. Hoje até trouxe a cadeira para me equilibrar mas não
consegui. Nisto chega a cadela para o lado e mostra-nos o seu bloco de
desenho, as folhas soltas. Esta é a minha fase exótica, explica. E estas aqui
são aguarelas. Tulipas e mais tulipas e mãos que parecem pés e bolbos e
arabescos. Não chegamos ao fim do bloco pois aparece outra amiga.
Sorrisos e desejos mútuos de felicidades. Quando nos despedimos ainda me
pergunta, e a menina, escreve sobre Portugal ou sobre África? Hesito. Sobre
o mundo, respondo.
Pequeno-almoço
Todos os dias começam com a batalha contra o frasco de mel,
cristalizado como a minha vida parece às vezes. Eu, a quem mãe e irmã
chamaram de Mulher Hércules, porque abria todos os frascos difíceis, vejo-
me agora obrigada a subterfúgios como libertar o ar com uma faca. Um
golpe a fingir no metal. Um substituto da força que parece ter escorrido para
fora quando ninguém estava a olhar. Isto nunca te aconteceria, este forçar da
vida no sentido dos ponteiros do relógio. Primeiro, porque quando
adivinhas as horas, as adiantas sempre. Depois, porque nunca fechas
completamente frascos, gavetas, malas. Talvez porque também não fechas o
coração. Prometo deixar alguns frascos mal fechados, espalhados por aí, à
espera do teu doce regresso.
Dificuldades em Tessalónica
Eu sei que custa a acreditar, mas há três anos, este dia foi de emoções
difíceis, de muito calor e sol abrasador. Há quatro anos que eu não via nem
falava com uma pessoa que agora não consigo descrever senão como sendo
muito importante para mim. Isto é só uma nota, na altura escrevi o que tinha
a escrever sobre o assunto. Eu quero é falar de ontem à noite. Quatro
lugares, mas sobretudo os dois últimos. Um amigo fez-me chorar. Não sabia
que tinha reparado realmente em mim. Uma amiga perguntou se eu estava
bem, e disse que concordava com o rapaz que tem o coração no meio dos
pulmões. Uma rapariga veio ter comigo para dançar e acabou a segurar o
meu braço por um lado e o do meu amigo do outro, como uma criança, a
cabeça encostada naquele conforto sobre o qual a Beth Orton já cantou. É a
minha vida, disse eu. Não, é a nossa vida, corrigiu ele.
Ela voltou para o balcão e para a sua companhia original, sem que eu
conseguisse de todo entender o que me disse. Mais tarde, alguém compraria
flores para dar a uma pessoa, alguém atiraria esse mesmo ramo de flores aos
pés de outra pessoa e alguém as roubaria delicadamente a uma outra pessoa
ainda. Alguém perdeu por momentos uma camisola com cheiro a casa e
alguém tinha um chapéu de chuva com nuvens em céu azul. Um rapaz fez
um gesto que eu não compreendi logo. Disse, estou a oferecer-te um ramo
de orquídeas. E repetiu o gesto. Eu acho que quase nunca ninguém oferece
orquídeas, reais ou imaginárias. Ou talvez não a mim. Há muitos anos,
quando alguém me ofereceu flores pela primeira vez, detestei que o tivesse
feito, talvez por não poder assumi-las, e fiz saber isso mesmo. Muito tempo
depois, guardei uma única rosa vermelha, oferecida, durante anos, num
caderno que não cheguei a estrear. Este ano desfiz a rosa e transformei-a
noutra coisa. Um outro, pediu-me o ramo emprestado e com salamaleques
vários mo ofertou, uma e outra vez. Nunca te ofereceram flores assim, disse.
Mais alguém me tocou no braço. Segurava uma moeda de cinco
cêntimos, apanhada do chão. Sem falar, perguntou se era minha. Não era.
Hesitou e, então, guardou-a no bolso. Mais tarde, dir-me-ia, este é o meu
irmão mais velho, a quem eu já vira várias vezes. O chão pegajoso, os
estranhos, a música por vezes duvidosa, o fumo e as luzes serão sempre
perfeitos, se permitirem ver quem não víamos há muito tempo, ou conhecer
alguém que nos beija a mão e nós a ele, e nos deseja o que desejamos para
nós mesmos. É preciso ser-se uma pessoa muito bonita para, sendo alérgico
a flores, não deixar de oferecê-las a quem tanto as merece. Por algum
motivo, lembrei-me da história de Hans Christian Andersen (fui confirmar,
achava que era dos irmãos Grimm) sobre a menina que vendia fósforos no
Inverno. Talvez por também estas flores serem vermelhas, como de resto o
meu vestido de hoje. Mas desde que haja flores a passar de mão em mão,
flores na pista de dança, flores atrás da orelha ou na casa de um botão,
ramos a fingir de taco de basebol ou de espada para condecorar cavaleiros
de uma ordem inventada no momento, essas flores com elásticos e
remendos de fita cola, como se para serem naturais e plásticas ao mesmo
tempo, acabará sempre tudo bem.
Carla
Há um ano, neste dia, não fui trabalhar, porque tinha acabado de ficar
sem trabalho, uma decisão que não foi minha. Também fiquei, nessa
semana, sem uma parte importante mas temporária na minha vida, e essa
decisão sim, foi minha. Mas nesse dia, há um ano, nada disso importava
assim tanto. Fui a um dos meus sítios preferidos com a minha pessoa
preferida, com quem passei o dia. Muitas coisas mudaram entretanto. Mas
nada mudou entre nós porque nada vai mudar entre nós. Mesmo quando
tudo pareceu mudar entre nós: não, nada mudou entre nós.
Ninguém me faz rir tanto. Não há ninguém com quem eu goste tanto de
partilhar uma refeição ou ver um filme. Não há ninguém que perceba tão
bem o meu sentido de humor nem com quem tenha tantos ataques de riso.
Não há ninguém que se vista tão bem, a quem o cabelo curto fique tão bem,
quando o comprido já ficava a matar. Não há ninguém com quem eu prefira
estar e melhor do que fazer coisas contigo, só estar contigo e não fazer
absolutamente nada. Esta miúda cresceu e um dia dei por mim a pensar no
quanto a admiro e no quanto gostaria de ser como ela. No que ela já
conquistou e ainda vai conquistar. No quão inteligente e generosa ela é. A
minha melhor amiga.
Ainda no outro dia eu mudei e tu nunca olhaste para mim sem ser com
amor. Ainda no outro dia eras uma de duas raparigas no primeiro dia de
aulas num curso dominado por homens. Ainda no outro dia montaste e
desmontaste aparelhos electrónicos só por diversão. Ainda no outro dia
vimos os Ficheiros Secretos no escuro, no sofá da sala, tu com os olhos
fechados e eu a ter de espreitar por entre os dedos para contar-te o que
acontecia. Ainda no outro dia caíste da cama, bateste com a cabeça e eu
desatei a rir e só depois perguntei se estavas bem. Ainda no outro dia
brincámos à Sailor Moon saltando de sofá em sofá. Ainda no outro dia eu li
as legendas para tu ouvires porque não sabias ler. Ainda no outro dia estava
eu, a pequena eu, a pedir a alguém invisível e a quem via toda a gente a
pedir tudo que me desse uma irmã. És bonita e corajosa e tens bom coração.
Desde 1989 que sou muito mais feliz. O meu Abril és tu. Porque tu mudaste
a minha vida.
Estendais
Perder o comboio por dois minutos, perceber que, de qualquer modo,
deixei o passe em casa, subir, deixar o guarda-chuva, arriscando nova molha
como a de ontem, e contrariando os bons ensinamentos de Mary Poppins e
da sua herdeira, Rihanna. Ao descer, passar como habitualmente pela casa
ao nível da rua onde está sempre uma velhota de muletas e porta
entreaberta, num lusco-fusco permanente. «Menina, não se importa de me
pendurar esta manta, não? Tenho ali mais uma, acha que hoje já não
chove?» Claro que não me importo, até já perdi o comboio. Estendi uma,
depois a outra. Após uns dedos de prosa, desejei-lhe um bom domingo. A
mim, desejou que Nosso Senhor me desse muita saúde e paz e sorte. E não
sabe ela o amor que tenho aos estendais e às pessoas.
Tenho tido sempre um amanhã
Estou a ouvir músicas lamecho-sentimentalóides que ouvia aos 15 anos.
Não me apetece ouvir mais nada. Tenho muitas coisas para dizer mas estou
calada como tudo, não vale a pena dizer que não são minhas, a incapacidade
e a impossibilidade. A responsabilidade. Pelo menos a maior parte. Há
bocado olhei para os meus sapatos e ocorreu-me que poderia ter calçado
umas meias brancas, se as tivesse, assim numa de Michael Jackson ou
Audrey Hepburn. Mas só para mim. Apesar de não ser grande fã da
combinação preto, branco, vermelho. Mas foram as cores de hoje.
Tenho tido sempre um amanhã e nem sempre lhe tenho feito justiça.
Ultimamente, quase nunca. Ontem voltei a pegar num livro que a Clarinha
me ofereceu, dos muitos que já me ofereceu ao longo dos anos, e do qual
me leu umas boas passagens numas escadas quaisquer perto da RR, no
tempo em que lá trabalhava e ainda almoçávamos juntas pelo menos uma
vez por semana. Isto tudo deve querer dizer que me sinto pequena, o que é
bom, acho, porque se diminuir o suficiente pode ser que consiga mesmo
começar de novo.
Lavar a dignidade à mão
Não sei ler o futuro mais do que sei jogar às cartas. Às vezes demoro-me
sobre o fundo da chávena mas quase nunca acrescento leite ao chá. A última
vez foi contigo. O café conforta-me mas vivo bem sem ele, faz parte da
lista, das milhares de listas que faço a toda a hora. Abril voltou e, com ele, a
lista daquilo de que devo privar-me, até porque não me custa, e porque
gosto mais de mim quando o faço. Ou porque Abril tem que ser. Talvez seja
uma forma de Quaresma pessoal, no meu próprio tempo. A cruz pesa o
mesmo, eu é que estou um bocadinho mais leve. Talvez mais forte, até.
Reparo que fazemos muitas vezes listas para o que falta, mas não para o que
já temos. Ou dessas desistimos tão mais cedo.
Ontem falava com alguém sobre quedas, por oposição a falar comigo
mesma sobre quedas e, depois, vimos alguém escorregar e cair. Durante o
que pareceu ser demasiado tempo, ninguém se mexeu. O segredo, toda a
gente sabe, e também essa rapariga o sabia, está em sermos sempre nós os
primeiros a rir. Chove muito e eu penso em ti porque já é outra vez
segunda-feira. Isto era para ser um poema, mas hoje não vi nenhum estendal
que merecesse a pena.
Fiz duas máquinas de roupa. Não sei como se tiram as manchas de café,
solúvel ou não, mas queria dizer-te que foi contigo que bebi o melhor dos
últimos tempos, por ser tão horrível e tão caro e por estar frio e por haver
tantas pessoas sem vergonha na cara. Mas tu lavas a dignidade à mão, com a
maior das delicadezas, à temperatura interna de quem tem um olhar límpido
sobre as coisas que nos torcem por dentro. As tuas mãos tão frias outro dia,
mas nunca deixas de dizer coisas que me dão gargalhadas para a semana
inteira. Os teus bolsos tão vazios e, no entanto, encontraste jóias de família
para me emprestar. Há tanto tempo que não ia buscar uma criança à escola.
Também ela escorregou, lembras-te? Sei bem como danças, sapatos de
veludo ou não, mas nesse dia chegámos finalmente a outro lugar. Agora
existem menos símbolos entre nós por decifrar, e eu não tenho quase nada
para te dar, e o que digo por vezes parece repetitivo, mas aparece: prometo
ficar contigo a ver a roupa secar.
A Teresa hoje não veio
«A Teresa hoje não veio», responde, finalmente, entre croissants mistos e
meias de leite, a uma cliente que me parece demasiado condescendente,
com os seus «Então, hoje está sozinho?», «Demore o tempo que for
preciso», «Se precisar de ajuda» e, ainda, «Eu só quero um café». Ele pôs
um aviso na porta, há uns meses. Fechado para obras, mas não eram obras
e sim uma doença. Fechado para obras interiores, portanto. Não sei o que se
abateu neste lugar que tudo e todos parecem estar em obras. Quando abriu,
estava tudo aparentemente igual. Explicações precisavam-se.
Ele tem um rosto redondinho e simpático. O lugar em si não é nada de
especial, nem a qualidade, e os preços não ajudam. Há muitos turistas,
contudo, talvez mais do que nos outros três cafés da rua. Devo lá ter entrado
umas cinco vezes, num ano, e tudo me ficou sempre aquém do que
esperava, excepto naquele domingo de Agosto em que acabou por chover
muito mas que, ainda de manhã, depois de uma grande desilusão, me juntei
às quatro tagarelas do costume e, por momentos, me senti em casa no café
do senhor Jorge.
Hoje voltei, sozinha. Não buscava nada. A mala carregada de cadernos e
blocos e até o diário em que há muito deixei de escrever, como quem finge
que é feliz, por fim. Não consegui escrever nada. Um casal, na mesa do
lado, sorria muito, sorria demasiado até para mim. Ou para mim por estes
dias. A dignidade ainda pode ser definida por levar uma chávena aos lábios,
mastigar calmamente o que está no prato, fazer pausas e aguardar
pacientemente, quando a vontade real é tão diferente. Não é o conforto das
coisas que são mesmo ali, na nossa rua, por baixo de casa. Tive sempre
cafés a segundos de casa, excepto na primeira, na mais importante e que
parte de mim vai habitar sempre. Não, não é esse conforto. Não quando as
calças até já voltaram a cair, como sempre acontecia antes de, naquele
tempo, no tempo em que. Talvez eles, os turistas, só me sorrissem porque
ajudei a traduzir o que os gestos apenas pareciam confundir mais. Dois pães
de leite e um xadrez.
Talvez eu devesse voltar mais vezes. Sozinha ou acompanhada. Com
música ou sem ela. Com cadernos ou sem eles. Talvez eu devesse voltar
mais vezes, porque também eu tenho grande dificuldade em fazer as coisas
simples de todos os dias. As pequenas e fundamentais coisas simples de
todos os dias. As que mudam alguma coisa. As que nos movem. As
delicadas e duras coisas simples de todos os dias. As que fazem o dia e o
coração avançar. Talvez eu devesse voltar, pedir qualquer coisa e ignorar a
cadeira que ele desarrumou esta manhã para se aproximar de mim e que se
esqueceu de colocar no lugar. Talvez possamos conversar sobre os dois
vasos que o vento derrubou outro dia, na minha cozinha. Talvez eu lhe fale
da minha orquídea, das ideias que tenho quando passo a ferro, dos botões
que vou reencontrando e que nunca costuro de volta. Só para começar.
Quinta-feira de espiga
O trabalho ficava num lugar ermo, e estávamos atrasados para o último
autocarro da noite, que já era sempre no dia seguinte, mas ele foi à frente e,
quando virei a curva, lá estava o transporte, e ele, e as pessoas que não me
conheciam de lado nenhum. Senti um misto de vergonha e alegria enquanto
fingia que ainda conseguia correr. Algum tempo depois, quando fizemos a
última viagem, em silêncio desagradável, era de dia, e não dissemos palavra
um ao outro desde então.
Torço sempre para que todos os que correm apanhem os seus autocarros,
comboios, barcos. Todas as noites, no transbordo, o maquinista de cada
linha fica mais uns momentos na plataforma. Há pouco, quedei-me a ver
uma mulher que levava um balão anil a flutuar preso à mão. Era mesmo
anil. Nunca nada é anil, mas o balão dela, sim. O vestido era azul, do azul
do meu.
Não anda ninguém à minha procura. Deixei uma pétala vermelha no
banco quando me levantei, e outra à porta da estação, e a flor amarela que
se partiu e coloquei atrás da orelha também há muito se perdeu, mas não faz
mal porque, já depois de as ter comprado, a florista perguntou, «Quer levar
mais umas papoilas?» E, antes que eu respondesse, juntou mais três ou
quatro ao molho, sem mexer no preço do ramalhete. Ele tem um feitio de
merda, quase nunca fala comigo quando está longe, e ele vive muito longe,
e está sempre a trabalhar. Mas, daquela vez, foi e depois voltou só para me
ver. Ora, entendes agora por que é que, quando me disseste, eu acreditei?
Hoje saí de casa com um bolso enorme, vazio. Voltei com um ramo de
flores e uma conversa que vai durar muito mais do que elas. Duas mãos que
me compreenderam, e um abraço de despedida que eu adiei ao máximo,
mas que soube tão bem quando me foi dado.
(Eu moro já ali e tenho guarda-chuva, obrigada. A tinta é da cor da folha
mas eu consigo ler, obrigada. Os dias por vezes custam mas eu vou viver
muito tempo, obrigada.)
Lia Pereira
Como sempre, ninguém me pediu explicações. A minha mãe disse-me
várias vezes que gostaria de ter sido meteorologista. Talvez haja alguma
relação com o número de vezes que choro. Sei que estou a tornar-me a
minha mãe quando dou por mim a abraçar e a beijar as orquídeas, naquela
que é a relação mais longa que já tive com uma planta. Caseira, sim, pois há
anos que estou numa relação com todos os jardins, se não do mundo, pelo
menos de Lisboa.
Quando era miúda, deixava sempre a minha parte preferida do que quer
que estivesse no prato para último. Media quase milimetricamente a
quantidade de sumo final a dividir com a minha irmã, e uma vez ia
morrendo quando a minha avó me pediu uma colherada de mousse de
chocolate, mãe e irmã também à mesa, eu que era a única que ainda tinha o
seu nome gravado espiritual e emocionalmente numa taça. Não era uma
questão de egoísmo ou de fome, nem sequer de gula. Era o que era, talvez
um feitio demasiado dado a preciosismos.
Há quem não consiga comer se a comida não for bonita, ou não estiver
arrumada no prato. Há quem coma um elemento de cada vez até terminar e
só depois passe para o seguinte. Há quem não consiga suportar o som ou a
visão de quem lambe os dedos depois de comer e há quem não suporte ver
os utensílios a serem usados para funções que não as que servem
originalmente, sobretudo quando os que as servem parecem estar
ansiosamente à espera.
Há muitos meses, não me recordo se foi ainda este ano, acho que sim, a
falta de memória alheia começa a afectar-me, tenho de começar a dar-me
com pessoas só da minha idade, já que do meu tamanho está difícil, dizia eu
que há muitos meses fui almoçar, e não sei porquê, agora começo a achar
que foi ainda durante o ano passado, com um amigo, e creio ter pedido
frango, com os habituais acompanhamentos, batata, salada, arroz? Não
importa. Pedi, e tentei comer, e não consegui. Sim, foi no ano passado,
agora sei. O meu amigo comeu, bebeu, e eu não bebi e pouco ou nada comi.
E já sabia que não iria conseguir, e fiquei a olhar o prato com culpa e
vergonha e ele fez, de repente, aquilo que eu durante muitos anos só vi a
minha mãe fazer, ir ao meu prato e tirar comida, acho que é uma coisa de
pais e de pássaros, pelo menos associo sempre essa imagem ao que vemos
na Natureza, uma intimidade muito delicada e própria, algo que não
permitiríamos ou faríamos a qualquer pessoa, algo que sempre me deu o
que pensar. Mas tudo na vida me deu sempre para pensar, não é verdade?
A naturalidade com que certos gestos que, de outro modo, seriam
invasivos, é feita, gestos tão espontâneos, gestos que ficam, gestos de quem
quer ajudar, pode ser comovente. Como daquela vez (e vou andar para a
frente e para trás no tempo) em frente à estação de Santa Apolónia em que
uma outra pessoa pediu dois hambúrgueres, era de manhã já, quase seis da
manhã, em Dezembro, e acho que também havia batatas, e ele comeu tudo e
eu comi o que consegui, que, creio, ter sido 80%, e perguntei se ele queria
mais e ele disse que não, e depois olhou-me bem nos olhos e disse, «Não
tens de comer tudo se não quiseres. Podes deixar, se não conseguires». E foi
uma das coisas mais bonitas que alguém me disse, porque eu sabia que ele
compreendia precisamente o que eu estava a sentir. E então deixei ficar o
resto.
Dezembro do ano passado. Foi, agora sim, agora sei precisar bem, foi
então que houve esse almoço de que falava ao início, numa das semanas
mais importantes de sempre. Um pouco antes, contudo, fui com a miúda dos
frascos mal fechados à Graça, lanchar, e pedimos a nossa habitual meia de
leite, e pães de Deus, com manteiga, aquecidos. Bebi a meia de leite, e comi
metade do meu pão. Parte de mim já sabia que não iria conseguir dar conta
do resto, como parte de mim já sabia que ela não se ficaria pelo que acabara
de comer. Eu ainda arrisquei uma dentada na metade, e isso já foi arriscar
demasiado. Foi quando ela me perguntou: «Vais comer isso?» E eu sorri em
menos tempo do que ela demorou a atacar.
Voltemos agora há uns anos, quando eu vivia com ele na segunda casa, a
terceira da minha vida, e saí num domingo para passear com duas amigas, e
uma delas me roubou uma colher de gelado num deslizar para cima que me
ficou preso à memória. Às vezes temos de amar sem autorização.
*
(Não é só porque ela tem sempre vestidos tão bonitos, que não consigo
imaginar ficarem tão bem a mais ninguém. Ou porque é a dona do meu gato
preferido. Não é só porque ela tem as melhores histórias, mesmo se pensa o
mesmo a meu respeito. Não é pelos inúmeros lanches formidábeis de
domingo em que há sempre framboesas e um sofá onde cabem todos os
assuntos. Não é porque ela tem dois tupperware meus em casa e eu, dois
livros preciosos que me emprestou. Não é só pela prenda de Natal
maravilhosa que me deu, ou porque está sempre aqui, ou no trabalho, ou no
Pingo Doce, onde por acaso nunca fomos juntas, para mim. Não é porque
falamos a erudita e especialíssima língua dos apanhados TVI e RTP Porto,
uma língua que, se mais pessoas falassem, certamente seriam mais felizes.
Não é só porque lhe trocam tantas vezes o nome, a ela que gostaria de
chamar-se Ivani Flora. É porque, para além de tudo isto, que já é tanto, com
o seu sorriso, o seu estilo, a sua maneira de falar e de ouvir, a sua
generosidade, o seu olhar, o seu humor, o seu amor à música e às
andorinhas e às pessoas, ela acabou por tornar-se uma das minhas preferidas
no mundo. E sei que, como eu, muitas pessoas sentem o mesmo. Meu
Mundo não é só uma canção do nosso querido Otto, a primeira que lhe ouvi,
mostrada por ti. Meu mundo é, também, onde tu estás. E todos os meus
pacotinhos de açúcar são para ti.)
Preto é cor
Depois do transbordo no Marquês, estava preparada para sair da
carruagem no Campo Grande, mas uma mulher (t-shirt preta, cabelo curto
encaracolado mas não muito curto nem muito encaracolado, mais baixa e
vários tons mais escura do que eu) estava mesmo à minha frente, na
plataforma, a querer entrar. Eu li o que dizia a sua t-shirt, olhámo-nos muito
seriamente durante um momento mesmo especial antes de desatarmos
ambas a rir e, depois, ajustámo-nos para que eu conseguisse sair e, ela,
entrar. Tudo isto durou uns segundos, e eu estou outra vez atrasada mas,
quando estas coisas me acontecem, eu, que não tenho uma vida perfeita, que
não sou perfeita nem estou rodeada de pessoas perfeitas, sinto-me muito
próxima da perfeição possível. E penso que a vida é boa. E que eu a mereço
assim, deste jeito em particular.
Gelado de banana
Não sei bem por onde começar. Sei que cortei às rodelas as quatro
bananas que tinha para aqui e as coloquei dentro de um saco no congelador.
A receita recomenda que assim permaneçam de um dia para o outro, ou pelo
menos durante três horas. Depois, é suposto trabalhá-las com o
liquidificador, no meu caso com a varinha mágica e, depois de atingida a
consistência desejada, polvilhá-las com canela. E comer. Enquanto espero,
falemos então das coisas que acontecem de um dia para o outro, ou em três
horas.
A minha cabeça guarda muitas coisas, demasiadas até. Digo que é a
minha cabeça mas não há distinção. Pouca coisa me estará na cabeça sem
ter passado antes pelo coração. Como quando escrevo poesia, e repito o
mesmo poema em vários cadernos e os guardo em ficheiros, formatos e
plataformas distintas, para não os perder. Quem convive comigo sabe que o
meu discurso tem várias camadas e que deslizo de umas para as outras
constantemente durante a mesma conversa, por isso a minha cronologia em
nada tem a ver com as aulas de História a que assisti durante oito anos mas
sim com as inúmeras séries de investigação criminal a que assisti a vida
inteira. Pontinhos e pontinhos e um fio vermelho a ligar tudo em voltas
infinitas. Mesmo assim, há coisas em que deixo de pensar. Por vezes, até
pessoas.
Sexta, encontrei uma dessas pessoas num lugar onde eu nunca tinha ido.
Uma pessoa que vive ali perto, para quem certamente aquele sofá seria, já,
familiar. Uma pessoa que me olhou e eu olhei de volta, em silêncio. E cada
um continuou a sua vida, como de resto desde a última vez que nos
víramos. Eu não senti nada. No meio de uma semana tão agitada, tão
povoada, não senti nada. Porque eu não precisava desse reencontro para
saber coisa alguma. Mas, antes, há muito tempo, quando essa pessoa me
disse as piores coisas que um homem pode dizer a uma mulher, e eu
demorei meses a recuperar disso, tudo o que eu queria era provar que ele
não tinha razão, mesmo sabendo que não tinha e, ao fazer isso, quase deixei
que me destruísse uma pessoa já de si em ruínas. Tirei uma foto ao sofá,
onde depois me sentei, com ele já vazio. E não me faltava nada. E não me
doía nada.
Está sol e a vizinha tem um gato novo, branco e cor de café com leite, a
juntar ao Soares, o cão filosófico que todos os dias sobe para a cadeira e
observa o nascer e o pôr do sol e, ainda, à tartaruga e ao gato preto vadio
que dorme ora nos telhados ora na manta vermelha. Se eles convivem todos
tão bem, quem somos nós para não os imitarmos? Agora tenho de sair mas,
quando voltar, espero que a máquina tenha parado de lavar e que o gelado
de banana esteja pronto. Eu estou.
Uma palmada no rabo
O mercado estava apinhado; ela ficou na fila e pediu que me sentasse e
guardasse um lugar. As mesas eram de piquenique merendeiro. Deixei
espaço no meio e ocupei a ponta esquerda, as duas senhoras do lado direito
já tinham terminado a sobremesa mas não a conversa. Foi quando eles
chegaram. Ela perguntou se podia sentar-se ali, claro que sim, e o marido
foi para uma das várias barraquinhas buscar comida.
Nunca nos tínhamos visto mas, à medida que o tempo foi passando, não
conseguia largar a ideia de que os conhecia do meu trabalho de há uns anos.
Ou talvez fosse só esta amizade instantânea forjada na brasa de sardinhas e
chouriços em finais de Julho. O meu marido convenceu-me a vir não sei
como, vou ficar com o cabelo a cheirar a sardinhas, amanhã tenho o
baptizado da minha netinha, ainda nem decidi o que vou vestir, engordei
dez quilos, não gosto de me ver com nada. O quê, menina, já pesou isso
tudo? Não consigo imaginar. Está tão bem agora, assim. Pois, os meus
vizinhos já me conhecem das caminhadas, agora nem temos feito, mas
depois do jantar até sabe bem. Na verdade eu gosto muito de fazer
levantamento de pesos, e fiz ginástica a vida toda, por isso é que sou assim
muito direitinha. Um ano, ela tem um ano. E é longe, ainda por cima. É em
Porto de Mós. Estou a fazer dieta há um mês, eu hoje não era para vir aqui,
mas tínhamos lá um estufadinho para comer e ele é muito esperto, não lhe
apetecia, então disse para virmos e já ia pegar no carro, quando vivemos a
cinco minutos daqui, sim, pelo menos consegui que viesse a pé, mas já viu,
agora vai comer e beber o que não deve, e eu depois também acabo por
fazer o mesmo, eu já lhe disse que estou de dieta. Mas, sabe, o açúcar agora
já não me faz diferença. Não lhe diga que eu lhe contei, mas é que ele tem
cancro e felizmente agora está tudo bem, mas houve aí um tempo muito
complicado, soubemos isto a duas semanas do casamento do meu filho,
ainda bem que eu já tinha comprado tudo, porque... Se for a ver as fotos não
estou a sorrir em nenhuma. Eu nem tentei disfarçar, menina, não conseguia.
E amanhã vou para lá, aquela gente ainda por cima cheia de peneiras, uma
pessoa tem de ir como deve ser, pensei levar o vestido de linho cor de
salmão, mas aquilo fica muito amassado e se calhar é mais do dia-a-dia,
pois, os acessórios ajudam não é? Já disse que não quero aparecer em
nenhuma fotografia amanhã. Eu também tive um problema de saúde, olhe,
uma chatice, era ele e eu... Ioga não gosto. Uma corda? Mas vivendo aqui
onde é que eu compraria uma corda? (Isto interessou particularmente as
outras duas senhoras, que também detestavam correr.) Ah sim, sim, nessas
lojas também devem ter. Aí vem ele.
Ele trouxe dois tabuleiros com sangria, uma gigante e uma de tamanho
regular, e disse-lhe, enquanto pegava na maior e começava a beber, «Trouxe
assim porque não sabia qual é que preferias». Ela, «Vê a tua sorte, estás
aqui rodeado de mulheres». Ele ofereceu-nos, a mim e às outras duas
vizinhas, das sardinhas, do pão, da salada. «Obrigada, a minha amiga já aí
vem, está ali na fila, a ser atendida.»
Quando ela chegou, sentou-se ao lado dele. Estamos aqui a falar de
dietas. Não, que horror, nós estamos aqui para comer. Ele concordou. Então
ainda bem que estão os dois desse lado, porque nós daqui gostamos de
exercício e dieta. No palco, o rancho dançava vários viras. Olhem aqueles
dois velhotes ali, ainda estão para as voltas, são muitos anos a virar um com
o outro. Estás aí a falar e não deixas as meninas verem a dança com os paus.
Ah, são daí? Eu gosto muito desses lados.
A minha amiga tirou um cigarro e perguntou se ele se importava que
fumasse. Ele disse que não, e contou que, quando era mais novo, e ainda
fumava e só fumava cachimbo, ia a lojas em que se vendia o tabaco em
frascos, e se podia deixar o nome e encomendar misturas personalizadas,
em Londres ou em Nova Iorque. Deixei de fumar de um dia para o outro. Se
quiser deixar, menina, diga aos seus amigos que deixou de fumar, depois
não vai ter coragem de fazê-lo à frente deles para não passar por mentirosa,
aconselhou.
Conversámos muito, entre os seis. Depois, eles foram embora, ela com
alguns ciúmes mas muito amorosa. Eu disse-lhe, esqueça a dieta amanhã.
Segunda-feira começa de novo. E apareça nas fotos, um dia a sua neta vai
querer olhar para elas e ver a avó. Desejámos saúde uns aos outros.
Seguiram abraçados e comentávamos o quão belos eram estes dois, estava
eu de costas quando a minha amiga exclamou, «Ele acaba de lhe dar uma
palmada no rabo! Também quero isto para a minha vida!» Rimos.
Lúcia-lima
Ela é tonta, pelo que por vezes tem tonturas. As últimas valeram-lhe uma
queda das escadas, em casa, e uma entorse que a obrigou a andar
acompanhada por uma muleta e a ter de ficar de perna levantada a semana
toda, a refilar e a ver os programas da manhã e da tarde nos canais
nacionais. Mas a preocupação dela, hoje, num dia tão especial mas
trabalhoso, era que as amoras ainda estavam verdes, quando pela mesma
altura, o ano passado, já tinha apanhado montes delas, muitas das quais
acabariam no meu estômago ainda recém-operado, que as elegeu como o
que melhor lhe soube até hoje, já passado todo este tempo.
O ano passado obrigou-me a abrir a mala enquanto roubava ramos de
lúcia-lima para me dar e os enfiava lá dentro. Hoje, ao fim do dia, apareceu
com um, que desde então me perfuma a mala e o sorriso e, em breve, me
confortará o estômago. Tenho a sorte de ter pessoas e também animais,
assim, na minha vida. Lembrei-me de Farrusco, o gatão mais lindo de todos,
que visitei aquando da sua queda do terceiro andar, e que veio mancando
com a sua pata entalada até subir para o meu colo, num gesto que me
preocupou e comoveu. Eles caem, são uns tontos, mas depois tomam conta
de mim e dão-me tanto amor. Vamos evitar quedas nos próximos tempos,
por favor. De resto, também o meu colo está sempre aqui para vocês.
Às oito tenho de estar no quartel
Começo sempre por algo de que não me recordo bem para exprimir algo
que o tempo não me deixará esquecer. Já não sei se foi durante The Killers
ou algures em Chemical Brothers que a Marta se riu e me fez uma festa no
cabelo, em alusão a um episódio caricato que se passou naquele multibanco
ao pé da estátua do Pessoa. Vínhamos de um concerto no Teatro do Bairro
e, depois de uma pizza manhosa, já não éramos colegas de casa, agora só ou
agora mais amigas, fomos ao multibanco. Na fila, à nossa frente e por todos
os lados, na verdade, jovens bêbados, uns mais melancólicos que outros.
Uns mais expressivos do que outros, mais atentos. Eu trazia as mãos nos
bolsos, onde as mantive quando senti alguém a tocar-me o cabelo. Uma mão
estranha, uma festa de cima abaixo, e uma voz sorridente que perguntou:
«Estou a incomodar-te?» Enquanto eu virava o rosto. «Não sei, o que
achas?» Sorri, sem mexer o corpo, só virando a cabeça. Entretanto ela
continuou a afagar-me a melena. Mas por que é que me lembrei dessa noite,
que penso ter sido de sábado, como agora? Porque voltou a acontecer.
Despedi-me, dizendo: «Às oito tenho de estar no quartel.» (Essa história
fica para outro dia.) De caminho para a saída, passei novamente pela
barraca das batatas fritas, e desta vez parei. Pré-pagamento de um lado,
levantamento do outro. De um lado, um de três rapazes gritou, «Família!»
na minha direcção, iniciando depois um monólogo sobre se eu estava ou
não acompanhada e sobre como não podia deixar de estar, não, claro, uma
rapariga como eu, uma «prima», não podia não estar acompanhada.
A caixa para as batatas era também o bar. Do outro lado, alguém me
tocou o cabelo. Um rapaz, para gáudio do amigo:
– Posso tocar o teu cabelo? (Já estava a tocar)
– Não.
– É tão fofinho. Só mais uma vez.
– Não acredito que isto me está a acontecer...
– Só as pontas, vá lá. Eu posso pagar-te uma bebida se quiseres.
– Eu só quero batatas fritas e ir para casa.
– A sério, é que o teu cabelo...
– Queres ver que estou a passar ao lado de um grande negócio, em que
simplesmente me sento nalgum sítio, quieta, enquanto as pessoas me tocam
o cabelo?
– Pode ser? A sério, queria mesmo.
– Eu não sou Jesus Cristo e não vou curar nada em ti só por tocares o
meu cabelo.
– Não precisas de ser assim.
E nisto, de repente, aparece uma mulher que se enfia pelo meio de nós e
pede uma água com urgência porque alguém está a sentir-se mal. E ela
vinha cheia de maionese por algum motivo, que de estar no braço dela
passou para o meu braço e para o meu sobretudo. E enquanto lhe davam a
água, e os rapazes de um lado e de outro pagavam as suas cervejas, e eu me
limpava com lenços de papel e toalhitas, e mandava mensagem à Marta a
pedir socorro, e a mulher se ia embora, comentei com o rapaz do bar que
estava na hora de toda a gente ir para casa. Suspirou longamente.
Em jeito de despedida, o outro voltou à carga. Agora, uma festa no braço.
Não. Não. Não. Espaço pessoal. Espaço pessoal. Espaço pessoal. Fiz um
desenho invisível. Foi embora zangado, indignado com a minha má
educação, com a minha ingratidão, pois se me estava a valorizar, a querer
agradar, a celebrar o meu cabelo e toda a diversidade, bio ou não, aí contida.
E eu, que abanei muito o capacete esta noite, voltei a pensar em Chemical
Brothers e em como comentei com a Marta que alguns gráficos pareciam o
interior da minha cabeça. E em como hoje não pus creme no cabelo antes de
sair de casa. E no miúdo em Moçambique de quem ela me falou que andava
sempre com um pente enfiado na cabeça. Como é que disseste que se
chamava? Nando? E em como alguém que me é muito próximo outro dia
cortou o cabelo e me falou do medo de estar a rarear. E em como eu podia
ter dito que apesar desta juba tenho alopecia desde criança e o meu cabelo
demora imenso tempo a crescer (mesmo assim há pessoas que demoram
mais) e às vezes até tenho pesadelos em que encontro peladas, e em como o
óleo de rícino é fixe. E em como o meu casaco é da Zara e repele a água e
não tem disparates escritos como o da Melania, e como agora estou quase
em casa e me doem mais as costas do que as pernas, e como é difícil estar
sóbrio num mar de bêbados e como é difícil ter carapinha quando nunca
usamos a palavra carapinha e como ela nos soa estranha quer dita por um de
nós quer por quem a não tem, e como não nos dignificam nos museus nem
nos festivais de música, aparentemente nem na vida real, porque
continuamos a ser atracções.
Mas tenho mesmo de estar às oito no quartel, por isso é melhor ficar por
aqui, antes que comece a divagar sobre o salgueiro-chorão no pátio da
minha escola primária de cujos ramos nos baloiçávamos sem parar e em
como isso tem o seu quê de nostalgia emotivo-capilar.
*
PS: Há máscaras capilares caseiras quer com cerveja quer com maionese,
não há?
Tangerinas
À mesa, duas pessoas tomam o pequeno-almoço. É chegada a vez das
tangerinas, após o café e o pão e o bolo. Os sorrisos duram a refeição
inteira, duram para lá da mesa, das cadeiras, do momento. Eu começo a
descascar a minha primeiro, e penso, fiozinho branco a fiozinho branco, que
vou dar-lha, uma tangerina inteira e doce e pronta. Ele começa entretanto e
num instante descasca a sua, dá-lhe uma dentada. Não perco a coragem. A
tangerina desaparece como que por magia. Diz, vou ensinar-te a descascar
tangerinas mais depressa. Mas mas mas... Esta era para ti, confesso. Rio-
me.
É como quando o meu pai viaja e, em cada telefonema, pergunta à minha
mãe o que ela fez para o almoço e para o jantar. Esta é a pergunta mais
importante, esteja ele na Madeira, em Inglaterra ou na Suécia. A minha mãe
queixa-se, mas no fundo adora. A saudade é isto.
Semanas depois, ele viaja. Eu fico aqui. Na primeira e única ida ao
supermercado desses dias, ao passar por elas compro tangerinas que não
consigo comer. Porque eu não as comprei por ter fome, comprei porque me
lembram dele, comprei porque não sei o que fazer com as mãos, comprei
para que me façam companhia, para que suportem o meu olhar até que o
meu amor regresse.
My fair lady
Falava-se de chinesices, outro dia, ao jantar. Alguém que estivera na
China várias vezes e há muito tempo que não visitava, partilhava histórias.
Outro alguém, de relação muito próxima com esse país, e que acabara de
regressar de lá, lembrou-se de uma prenda que me trouxera, um creme,
como não poderia deixar de ser, vindo de alguém que adora produtos de
beleza. Uma embalagem linda, que era mesmo a minha cara. Comecei a
procurar algo que entendesse e li: «Peony... whitening... nutrition...
vanishing... cream?!» Assim mesmo, devagar, em voz alta, atónita.
Olhámos uns para os outros entre o riso e o embaraço, mas acabou por
perdurar o primeiro. Às vezes não há, realmente, má intenção. Às vezes
algo que poderia ofender, ser um faux pas e que leva alguém a pedir
desculpa e a sentir vergonha, não é mais do que o resultado de como
estamos todos trocados e insatisfeitos connosco mesmos e, por conseguinte,
com tudo o resto. São as culturas que temos. Hoje um amigo falava sobre
como o símbolo da Casa do Preto, em Sintra, pertenceria tão bem ao museu
do racismo: um preto de libré, em modo criado. Quem sabe uma instalação
de vídeo do anúncio de Restaurador Olex não ficasse bem nesse mesmo
museu, em looping? É que os tempos parecem ter mudado tanto e tão pouco
ao mesmo tempo. Mas já tenho visto pretos de cabeleira loira e brancos de
carapinha. E, de volta ao creme, mesmo que a minha amiga tivesse
reparado, qual é a probabilidade de encontrar um creme que não seja deste
tipo quando há uma clara (no pun intended) obsessão asiática em ser,
literalmente, porcelana? Há milhares de artigos sobre este tema. Mas hoje
só queria deixar isto aqui porque é uma história engraçada e sem maldade, e
isso faz falta.
Lembrei-me do icónico Mimo, da TMN, e da How to disappear
completely, dos Radiohead. O humor serve o propósito que lhe quisermos
dar, como tudo o resto. Com humor, consigo medir e gerir as sensibilidades,
a tolerância e a paciência. E felizmente não é para com as pessoas que me
rodeavam nessa noite, ao jantar, que preciso de defesas. Tudo bem ali. Eu
gosto de peónias e de prendas e, por enquanto, posso dizer que o aroma e a
textura do creme são agradáveis. Não sei quanto tempo demorará até atingir
o nível Snow White/My Fair Lady, sobretudo com estas temperaturas que
nos assolam (talvez devesse sair à rua de sombrinha ou arranjar quem ma
levasse). Mas já sabem, se deixarem de me ver...
De mulher pra mulher
Passei no super que foi o do desenrasque e das crónicas durante quase
três anos de vizinhança. Pingo Doce de Santa Apolónia, aquele lugar onde
encontras amigos e vizinhos que ainda perguntam, chocados, «Mas por que
é que estás aqui?, este super é horrível», enquanto embalam carinhosamente
garrafas de vinho até à caixa, sempre a reclamar. Pequeno ou grande, mais
ou menos turístico, com mais ou menos glúten e opções bio de produtos
feitos, colhidos e embalados por anjos felizes e puros, um supermercado é
certamente um dos sítios mais agradáveis para se estar este Verão, sobretudo
se a secção dos frescos for a primeira a saudar-nos. Na caixa, o senhor atrás
de mim pergunta à moça, uma africana bem bonita de sorriso afável, se a
outra está a funcionar. Ela diz que sim, ele segue e a cara familiar desabafa
comigo, «Não sei por que é que se juntam todos aqui, eu bem sei que sou
gira...» E simpática, acrescento. Entre trocos e trocas, pergunto se está tudo
bem. Sorrimos. Estava grávida, da última vez que a vi. Digo que mudei de
casa e por isso não tenho lá ido. Diz por sua vez, «Ah, mas está bem mais
magra. Acho, acho, muito mais». Eu bem digo que os supermercados são
dos melhores sítios para se estar este Verão.
A menina gosta de ler?
«A menina gosta de ler?» Era sempre assim, na pequena cidade onde os
meus pais vivem desde sempre, que as Testemunhas de Jeová se me
dirigiam. E não podia dizer que não. Era como se eles soubessem, na
verdade. Como se eu trouxesse um sinal no rosto, emitisse uma frequência
que os fizesse abordar-me constantemente, todos os dias, mais do que uma
vez por dia. Ou talvez o fizessem com toda a gente, talvez encarassem todos
os transeuntes como se vendo-os pela primeira vez.
Sempre aos pares, para ser mais difícil dizer não, ou talvez apenas para
se fazerem companhia uns aos outros, quem sabe. Nunca perguntei. E nunca
perguntei de volta: «O senhor, gosta? E a senhora, lê muito?» Talvez
devesse tê-lo feito. Na esquina do muro do jardim público, algures no
passeio de caminho para algum lugar, esta pergunta, e a mão estendida com
uma ou duas revistas, que por vezes aceitava e outras vezes, não. Quando
aceitava, lia sempre, por inteiro ou pelo menos a maior parte, com o filtro
necessário. Porque a menina gosta muito, muito de ler. Mas às vezes fazia o
gesto de rejeição com a mão, outras vezes parava e ouvia. Outras vezes
fugia para o outro lado da estrada. Lembrei-me disto outro dia quando
(estava a menina cheia, cheia de pressa) saltei do autocarro 728 em Santa
Apolónia, em passada larga e decidida rumo a casa quando algo me chamou
a atenção. Alguém, na verdade. Um homem, faixa dos quarenta anos, sem-
abrigo, deitado relaxadamente debaixo da larga ombreira da porta, manta
até à cintura, pernas levantadas, cigarro fumegante, paz no rosto, paz no
corpo. Voltei atrás. «Olá, posso saber o que está a ler?» Por curiosidade,
porque para mim as capas de livros são um empecilho às relações humanas,
porque afinal o que quer que fosse que eu ia fazer podia esperar, encontrei
alguém como eu, alguém que gosta de ler. «Claro», responde. Uma autora
de que eu nunca ouvira falar, nem do seu livro. Para ele também era
novidade. Contou-me a história: uma mulher que acordava todos os dias
julgando que era criança ainda, com a memória de criança, quando na
verdade já era casada, e as dificuldades que isso lhe causava, e ao marido, e
ao médico e demais pessoas em redor. «Se quiseres, passa aí daqui a dois ou
três dias e eu empresto-te.» Perguntei como arranjava os livros, disse que
lhe davam, ou comprava, mas que também já lhe tinham roubado muitos. O
amor aos livros, aquele sorriso leve que nem a barba por fazer escondia, o ar
de quem poderia estar em casa, no quentinho, sem poluição, sem o passar
de pessoas estranhas, apressadas ou indiferentes, sem barulho, o estar num
mundo só seu a que mais ninguém tem acesso a menos que traga um livro
ao colo, ou ao peito, a familiaridade com que me tratou por tu, e a
disponibilidade para me emprestar livros, fizeram com que me esquecesse
do resto durante aqueles momentos.
Há muito tempo, na paragem, eu fotografei a sua casa, a mala de viagem
feita e arrumada e o cartão ao lado, bem dobrado. Tudo no sítio. Como
quem faz a cama. Mas sem cama e casa e sem tudo. Talvez ainda com
muito. Quem tem um livro tem tudo. Talvez até tenha muito. E talvez, agora
que eu mudei de casa, e já vivo menos de malas de viagens e sacos, e
consegui finalmente arrumar os livros, seja tempo de pegar nuns quantos,
apanhar o 728 após o trabalho e ir visitá-lo.
Posso dar-te um beijinho?
Do sofá avisto gatos, figos e a solidão escolhida.
A liberdade de tantas possibilidades e dizer não, não me apetece e não,
não vou. Mas isto são conversas em que eu faço todas as vozes, com mais
ou menos gestos, que importa isso, o efeito lúdico é o mesmo ou até mais
prazeroso. Os figos ainda não estão bons e os gatos são os da vizinha (e na
verdade mais de si mesmos), não me tornei aquela senhora de há uns anos,
perto do hospital da Cruz Vermelha, que tinha vários, e nomes e vozes para
cada um, tradição que herdou de sua mãe. A liberdade de pequenos luxos
como dormir até me fartar (e eu farto-me facilmente de dormir) ou ver,
imagine-se só, três episódios seguidos de uma série. Ou duas. Filmes, de
animação ou não. Luxos. Arrumar e desarrumar, doar e deitar fora, guardar
e resgatar. De pensar (nunca me farto), sobretudo nos pequenos nadas. De
decidir, de desistir, de repensar. De fazer planos ou tentar e aceitar, quer se
realizem ou não. De estar bem assim, na praia, a ler, ou em casa, a ler. Mas
de vez em quando é preciso sair, mais que não seja para fazer umas
pequenas compras tontas pré último dia férias e perpetuar rituais de pouca
dura. Atravessar a estrada conta como sair de casa, afinal não é como abrir a
porta da cozinha e ir lá atrás, ao quintal.
Pergunta – Por que é que a rapariga atravessou a estrada?
Demorei mais do que precisava lá dentro, e parei à saída, não sei bem
porquê. Estava sol. Ela pediu desculpa, perguntou onde morava, se eu ia
para aquele lado, e apontou para a esquerda. Não, eu vivo mesmo aqui.
Continuou a falar. Eu trazia um saco e ela, dois. Peguei neles e lá fomos,
afinal eu não tinha mesmo nada para fazer. Melhor, eu só tinha nada para
fazer. Vira-a algures no corredor, momentos antes. Explicou que se sentira
mal, tensão baixa, e não queria arriscar ir para casa assim, que sabia que não
devia carregar tanto peso, mas. Corroborei.
*
Lembrei-me de uma mulher que, há muitos anos, nunca mais a vi,
costumava carregar sacos e sacos pesadíssimos, vinda, imagino, de casa,
para a estação de comboios, e vice-versa, passando talvez nalguma feira
pelo caminho (sacos enormes que nunca percebi bem o que traziam), e
frequentemente pedia ajuda a transeuntes para carregarem os mesmos.
Calhou-me, calhou à minha irmã, e deve ter calhado a metade da população
lá da terra. E como era difícil dizer que não, e como era difícil carregá-los
sem acrescentar o peso extra do julgamento, da crítica, dos motivos e das
admoestações, dirigidas a ela e a nós próprios que, no fundo, não saíam da
nossa cabeça. Alguém sabe se Sísifo tinha com quem falar? Talvez se
tivesse safado melhor se tivesse conhecido esta mulher. Ou não, ou não.
*
Esta moça queria ajuda só até atravessar a estrada. Mas fomos andando
mais um pouco e depois mais uns metros e ela morava, afinal, tão perto
como duas ruas ao lado da minha. Cinco meses de gravidez, fez no sábado,
ontem. Pensava que seria um rapaz mas afinal vem aí uma garota. Falámos
de hérnias, de preparações, de desmaios, de esforços, de tamanhos, de
barrigas e de alegrias. Em quase tempo nenhum. Nunca nos tínhamos visto,
ou melhor, reconhecido. No fim, apresentou-se e eu a ela. Perguntou, posso
dar-te um beijinho? E aceitei, e deu, e ainda houve um curto e sentido
abraço, e os votos normais, de que tudo (lhes) corresse bem. Esforço
mínimo pode ser o que nós quisermos, pode dar-nos um sorriso enorme.
*
Se calhar nunca mais nos cruzamos, se calhar agora vamos esbarrar
(delicadamente) a cada dois dias. Se calhar ainda descubro que ela é tão de
Cabo Verde quanto eu. Não importa. Podemos sair de casa sem grandes
expectativas ou expectativas algumas de real contacto humano, numa altura
em que toda a gente promete, e agenda, e sente, e quer, e lamenta, e tenta, e
ignora, e marca, e desmarca, e acena, e emoji, e zanga, e ama e agradece e
volta a lamentar muito mas não sai do messenger, quanto mais de casa. Mas
estamos todos aí, cheios de possibilidade de acontecer uns aos outros. Não é
por acaso que lhe chamam o conforto de estranhos. Muitas vezes, prefiro-
os. Muitas vezes, estes minúsculos encontros quotidianos são feitos
exactamente à nossa medida, e a pessoa pensa que fizemos algo incrível por
ela e na verdade foi ao contrário.
Resposta – Para voltar a casa mais leve.
Entretanto as férias acabam, o contraste regressa, a doçura permanece.
Aguardo os figos e, no fundo, talvez ainda os amigos.
O momento baixo do feminismo
Outro dia, numa festa, havia uma panela de cachupa, gigante para
padrões europeus, tamanho standard para padrões africanos, na mesa.
Alguém quis transportá-la, e alguém quis ajudar. Deram dois passos. A
primeira, que ia de costas, tropeçou num banco onde estavam objectos que
quase caíram, perdeu um chinelo e ficou de pé descalço na terra. A outra,
que já tinha sujado o vestido a comer de um prato de plástico que se lhe
derreteu na mão, derramando cachupa para o colo, viu o mesmo vestido ser
levantado na parte de trás, preso nas garras do gato residente, no momento
em que uma amiga decidiu que lhe queria pegar. Nisto, entre interjeições,
risos e maldições, chega um rapaz, silencioso e funcional, pega sozinho na
panela que elas ainda carregavam, e vai para dentro. Felizmente ainda havia
uma panelinha pequena (podemos sempre contar com os vegetarianos),
transportável, para equilibrar as coisas. Uma outra amiga, activista e
feminista, chegou e o seu comentário foi: «Ainda bem que eu não estava
aqui para ver isto.» Foi o piripiri metafórico a compensar o real, que não
havia. Deixo aqui esta pequena nota, não vá o Kusturica querer pegar nas
nossas vidas um dia e realizar o «Panela grande, panela pequena».
Memórias descritivas
Falta um mês para o meu aniversário. Finalmente mudei a minha morada
no banco, mas não me tenho sentido em casa senão quando estou fora.
Comecei mais uma vez a carta que não consigo escrever e sempre acaba no
lixo. Fiz um bolo de limão e saí sem saber bem se para ir comprar açúcar
em pó ou para resolver a minha vida. Não me lembro da última vez que
passei roupa a ferro. Algumas pessoas diriam que isso faz de mim mais
normal, mas é verdade que tinha sempre epifanias quando o fazia. Deixei
dois rolos a revelar, ao fim de onze meses. Quando estiverem prontos talvez
eu também esteja. Comprei açúcar e farinha. Liguei ao meu irmão. Ontem
soube que a mãe dele faleceu. E fiquei muito triste, apesar de não saber
quase nada sobre ela. Então finalmente liguei à minha própria mãe. Recebi
uma mensagem do destinatário da carta que não escrevi. E decidi submeter
uma candidatura cujo prazo termina hoje às 23h59. Isto ia a algum lado mas
está a ficar tarde e tenho um almoço para celebrar a entrega de tese de uma
amiga, e nem a cobertura se vai fazer sozinha nem as memórias descritivas
das minhas fotografias se vão escrever sozinhas.
Júlio
«It has been a beautiful fight. Still is.»
Bukowski
Em memória de Júlio Ávila
A mercearia chinesa da minha rua fechou. Não aceitavam cartão, nem de
pagamento nem de desconto. Mas sorriam sempre, embora nunca
perguntassem pelo contribuinte na factura. É verdade que, nos últimos
tempos, já só lá ia para comprar melancia, quartos de, a noventa e nove
cêntimos o quilo e todo o sabor do mundo. Um sabor rosa-vivo simples, a
única coisa que me apetecia, por vezes, comer. Melancia que levei para
casa, para o trabalho, para a praia. Que comi sozinha e partilhei. Triângulos
e triângulos de consolo e doçura. Arestas, faces e vértices que não
magoavam, e de que era segura a repetição. Não sei o que dizer mais do que
sei o nome da tua avó, que te ofereceu melancia cortada aos cubos no que
agora lhe deve parecer ter sido ainda outro dia. Não tenho avós há muito
tempo, e pergunto-me se a tua terá ouvido falar da Björk, que também sabe
uma ou outra coisa sobre melancias. E lágrimas.
Conseguiste. Que o carro passasse na inspecção. Conseguiste. Que a vida
deixasse de passar por ti e te magoasse. Tu tentaste e não falhaste.
Aprendeste o nó que desfez os teus, não importa se nos deixou um
permanente. Ninguém deveria poder dizer que nos desapontaste.
Contigo fui turista e visitei uma igreja, partilhei a mesa do almoço, a
vista do miradouro do Outeiro da Memória, a melhor amiga, uma grande
moca, gargalhadas, o teatro, a escrita, o peso da vida. Trazias uma t-shirt
azul no dia em que te conheci. Letras em degradê laranja e amarelo, calções
e chinelos. Éramos quatro. Mesmo nessas fotografias desfocadas,
continuamos a ser quatro. Eu estou do lado de cá, mas senti-me em casa
convosco. Lembro-me de não estar bem, de ser a única desabituada à
altitude. Lembro-me de que, no último ano, todos quiseram deixar de estar
aqui, tentaram e quase conseguiram. E pergunto-me se algum dia vocês,
desculpa – se eles se vão habituar à vida. Pergunto-me se alguém mais vai
conseguir. E dou por mim a rever conversas e a enviar mensagens e a querer
marcar viagens. Quem me dera ter voltado aí. Agora sei que nunca vou sair.
Os pêsames pesam. Os meus sentimentos também. Seremos sempre
demasiado novos para estas coisas. Ser millennial não nos dá um certificado
de saber lidar consigo mesmo ou com os outros, com o quão pouco sabemos
uns dos outros e sobre nós mesmos. Vivemos em excesso de informação
não relevante e em carência de quase tudo o resto. Vivemos em estado de
depressão e de distracção, mas tu sabias estas coisas. Tu sabias de ti. Tu
prestavas atenção.
Saber muito pouco de alguém e ainda assim ser de repente a pessoa em
quem mais pensamos, e isto servir para nós e para os outros. Ir de casa para
o trabalho, da terapia para os medicamentos, de mal a pior, de millennial a
memorial. Deixar de ter um nome para passarmos a ser também um evento,
uma descrição, uma memória. Fazer um testamento real para a persona
virtual. Estar sempre a um ecrã de distância das nossas pessoas preferidas,
até de nós mesmos. Sim, porque deveríamos saber ser uma das nossas
pessoas preferidas. Tu certamente o és, serás para muitos, serás para
sempre.
Onze, catorze, quinze, dezasseis. Um dia para nascer e três para morrer.
Mil novecentos e oitenta e seis. Dois mil e dezoito. Abril, Outubro e trinta e
dois anos e meio entre eles. Nasceste, cresceste, viveste, morreste. Tu
estiveste aqui. Tu estavas, realmente, vivo. Ficaste mais quando foste
embora, tu que já eras tão grande. Tu não desapareceste. Obrigada por tudo
o que escreveste.
Esperamos que as pessoas que gostam do Júlio encontrem algum
conforto ao visitar o seu perfil, para relembrar e celebrar a sua vida.
It has been a beautiful life. Still is.
Titanic
No primeiro dia, ela leva-me para o escritório e fecha a porta à chave
atrás de si, apesar dos dois seguranças do lado de fora, sorridentes e
prestáveis. Na verdade, lembram mais polícias do que outra coisa. A casa
tem vigilância 24 horas por dia, explica. A nossa conversa interrompida por
gritos e risos vindos do corredor e, depois, por batidas cada vez mais fortes
e pedidos cada vez mais desesperados de um dos rapazes tentando entrar.
Como se fosse arrombar a porta. Como se fosse a coisa mais importante,
mais urgente do mundo, entrar por aquela sala adentro. Para quê?
Explicações, justificações e desculpas enquanto alterna o que nos trouxe
ali com pedidos para que se acalme, e espere. Nada. Ele continua e,
eventualmente, consegue entrar. Parece perturbado por alguma coisa ou
alguém. Parece encurralado, tentando escapar. Parece em perigo, a precisar
de ser salvo.
Ela pergunta, finalmente, o que é que ele quer, e ele responde
conseguindo-o: um abraço. Aquele rapaz, nos seus treze anos e quase um e
oitenta de altura, caracóis dourados e olhos claros, capaz de tamanha
brutalidade para com uma porta, apenas exige, apenas quer do mundo um
abraço. Assino os papéis.
Gostas de mim?
Silêncio. Ouviria esta pergunta dezenas de vezes por dia nas próximas
semanas. Pijama polar azul, olhar fixo sobre a rua, à espera de ver os outros
regressar, com telemóveis novos nos bolsos ou mais uma expulsão da
escola. A mesma força bruta e incomensurável de antes. Força essa que o
levaria a passar dois dias no hospital, ao partir a cabeça de propósito contra
uma janela, por querer visitar um dos companheiros, que lá está por doença.
Sempre a mesma pergunta e, quanto mais ele a coloca, maior a tendência
para passar do silêncio ao sim, e de essa resposta passar de conveniente a
verdadeira.
Claro que gosto de ti.
Desço para a rua. Nas escadas ecoa um assobio cujo dono eu ainda não
sei reconhecer. Ao tema, sim: My heart will go on, de Céline Marie
Claudette Dion.
Tenho tempo antes de começar. Como um gelado na praça, nas únicas
vezes talvez em que não reparo em ninguém. Dois euros, três sabores à
escolha e natas. Quero esvaziar a cabeça ou ganhar coragem. Estar
preparada. Como se fosse possível.
Há sempre futebol quando venho. Dois ou três fazem questão de estar em
casa nesses finais de tarde. Ocupam o sofá, mandam os outros calar. Sento-
me a ver com eles. Nos intervalos, jogam hóquei de mesa. Noutra noite,
participarei numa peça de teatro sem guião e sem público, repetida
incansáveis vezes. Perucas brilhantes, de cores extravagantes, e vozes feitas
grossas para a ocasião, muita gesticulação e um médico louco, que nos
persegue no lusco-fusco. É suposto que nos deixemos vencer por um
destino cruel ao som de gargalhadas maléficas. Há um rapaz de quem toda a
gente me fala, mas o tempo passa e não nos cruzamos. Parece que ninguém
sabe o que fazer com ele e, como se comporta, deixam-no no que julgam ser
em paz. Entretanto, deixo-me ficar naquilo com os dois irmãos: um joga no
computador (carros), enquanto ouve rap tuga sobre como é difícil a vida nas
ruas. Ensurdecedora, pelos vistos. O outro, o que me ofereceu chocolates
uma vez, lê a Bíblia. Às vezes não sabe dela e não sossega enquanto um dos
outros não a descobre e lha devolve. Normalmente, está no andar de cima,
onde nunca chegarei a ir. Quando volto, na semana seguinte, ele já não está
lá. Foi transferido para outro lugar. Na parede, nas mesas, vestígios da festa
de despedida do dia anterior: fotografias a cores dos rapazes e da equipa,
felizes. Bolos, sandes, frango de churrasco, sumo. Agora foi-se o líder.
Agora que íamos ouvir música, escrever e rever canções juntos. Agora que
eu lhe ofereci o meu pin do Muhammad Ali. Agora que eu estava a tentar
convencê-lo a regressar à escola. Agora que eu o fizera sorrir, e falar-me
dos temas do rap que fazia e da rapariga de quem gostava. Agora que volta
a ser um nome suspirado por todos os adultos e recordado respeitosamente
por todos os miúdos.
Eu não sei o que fazer e, como tal, escolho o que sempre faço nessas
situações: um bolo. A oito mãos, impacientes e conflituosas, curiosas e
inexperientes, que vão seguindo as minhas indicações com mais ou menos
nuvens de farinha no ar. Mas isto não é sobre o bolo, embora eu espere que
as cabeças que surgem à porta com olhar de gula, desprezo e maldizer,
sejam compreensíveis caso não esteja como querem. É, ainda, a estreia do
forno que não consigo entender de imediato como funciona. Ajudam-me.
Ainda há muito por fazer e por limpar.
Alguns recebem telefonemas da família. Outros, encontram-na nos que
ali trabalham e estão presentes todos os dias. Alguém suspira. Alguém
comenta o quão nova era a casa ainda agora e o quão destruída vai ficando a
cada dia, conforme as energias negativas, de que me dizem estar cheios, vão
sendo libertadas. «Se eles puderem roubar-te, não vão hesitar.» Quem
confiará em quem primeiro? Há um momento de tensão, e outro, e outro.
Alguém separa adulto e adolescente. Em breve, ela, a adulta, estará de
baixa, oferta da casa. Mas voltará. Voltará sempre, porque entende. Porque
escolheu estar ali.
«Quem és tu?» Apresentam-me. Apresento-me. «Deve ser a nova
estagiária.» Já no sofá, em sossego, continua: «Tens filhos?» Respondo.
«Não te preocupes, miúda, um dia ainda vais ser mãe.» E mal tenho tempo
de processar isto quando regressam os outros, como quem tivesse estado à
escuta: «Vieste buscá-lo? És a tia dele?» Contam-me que uma ex-
funcionária tentou adoptá-lo mas não conseguiu a aprovação. Queria levá-lo
de novo para a terra onde nasceu, mas acabou por desistir. «Era a
oportunidade de ele sair daqui. Vai sempre depender de alguém. Não sei o
que vai ser dele.» Ele. Tenho carinho por ele.
Quando vou a casa dos meus pais, na semana seguinte, resgato o
velhinho 20 000 Léguas Submarinas. No quarto, lemos juntos, à vez.
Confessa, «às vezes tenho uma escuridão dentro de mim». Daí a Bíblia.
Tem medo, e um dos sorrisos mais bonitos que já vi. À nossa volta, posters
e mais posters do filme Titanic, o seu preferido. Vê-o todos os dias. Chora
sempre. Convida-me para o seu aniversário, daí a dois dias. Deixo-o
descansar.
Saímos os três para a noite fria. Estou de totós, que outro dia aprendi
dizer-se Maria-Chiquinha, no Brasil. «Pareces a Harley Quinn.» Fico a
olhar para ele e digo a mim mesma: disfarça, não queres que deixe de
pensar que és fixe. Continuamos a volta ao bairro. Estão a aprender a dar a
quem precisa. Levam comida para quem a não tem. Eles que já têm tão
pouco, e de quem apenas se espera o pior. Mas a verdade é que perto, longe,
onde quer que estejamos, tornam-se facilmente os nossos miúdos
preferidos. Mesmo quando se peidam sem pudor e evitam tomar banho por
tanto tempo quanto possível. Mesmo se o autismo, a delinquência, o
abandono, a deficiência. Ah, rapazes perdidos. Fosse o mundo assim tão
puro.
Eu também
«No outro dia chamaram-me bitch e eu sorri.» De cada vez que uma
mulher nos conta algo assim existe, certamente e no mínimo, uma história
semelhante que devemos partilhar. A geografia pode muito pouco contra o
que vai no íntimo das gentes, e a fronteiras, muros, géneros e espaços
pessoais é fácil e conveniente, tantas vezes, ultrapassar.
*
Muitas vezes não me lembro do que aconteceu. Quer dizer, não penso no
que aconteceu, não me surge de repente ao cair a chuva ou ao ouvir uma
canção. Sempre tive uma memória demasiado boa até para o meu próprio
bem. Não do género fotográfico, pelo menos não completamente, não só: a
memória das emoções, da roupa que trazia vestida, de uma ou outra frase
que seria insignificante para a maioria das pessoas, mas que se cravou no
meu inconsciente talvez para o resto da vida (as frases sim, essas surgem
sempre que lhes apetece, não tenho qualquer controlo sobre elas). Isto é
diferente, talvez seja o meu próprio corpo a repelir essa memória com todas
as suas forças. Porém, ela nunca mais poderá ser completamente apagada,
e de vez em quando abre-se essa gaveta do meu cérebro (nunca poderia
guardar essa memória no coração, já teria morrido por esta altura) ou
talvez não, porque se seguiram outras tão más ou piores.
*
«Are you interested in writing a book?», foi uma das muitas perguntas
feitas por um grupo de senadores homens, brancos, a Anita Hill, professora
universitária e activista negra, em 1991, aquando do processo que abriu
contra o candidato nomeado para o Supremo Tribunal Clarence Thomas,
que viria a ser confirmado juiz, o segundo negro a ocupar um dos cargos
mais importantes do país. Negro e negra em lados opostos da justiça, ambos
a fazerem história em simultâneo. Este nunca foi o plano. Estamos quase no
final de 2018, e continuamos de costas voltadas em relação a isto.
*
Eu deveria ter uns sete ou oito anos. Estava na escola primária e já fazia
o percurso entre casa e escola sozinha, embora acompanhada por colegas
de turma a maior parte do caminho. Mas eu estava a falar de quando
andava na terceira classe. Costumava ir a casa de uma familiar que ficava
num bairro a uns quinze ou vinte minutos a pé de nossa casa, brincar com
as filhas dela. Elas eram mais velhas do que eu, e na verdade uma delas
não era mesmo filha, mas era tratada como tal. Ela tinha, ainda, dois
filhos. Todos eram mais velhos do que eu uns bons anos. Era sobretudo
para não ficar sozinha em casa, para me livrar de sarilhos e do
aborrecimento.
*
«Estou bem triste.» Assim começa uma mensagem de voz tremida.
Pouco importa se vem de uma rapariga bonita. «Eu vinha do trabalho hoje,
às sete da manhã, e três homens começaram a dizer-me coisas, a chamarem-
me de puta, vadia, a fazer gestos obscenos. Deviam estar bêbados. Entrei
em pânico e comecei a gritar com eles também. Fiquei muito agoniada e
comecei a chorar. Eu estava tão feliz, o trabalho tinha corrido bem, apesar
de cansativo. Agora vou ficar com medo, agora vou ficar a olhar para todo o
lado para ver se vem alguém.»
*
Ele devia ter uns quinze anos. Raramente penso nisto. É só mais uma das
coisas que não posso alterar. A maior parte das vezes nem me lembro que
aconteceu. Chamava-me ao quarto dele, conversava comigo e dizia que
gostava de mim. Fazia-me deitar no chão e deitava-se em cima de mim.
Tocava-me, fazia pressão sobre mim e tentava, constantemente, chegar mais
longe, e como não conseguia, ficava zangado. Lembro-me muito bem de
ter-se rido de mim quando, uma vez, fui até à janela e comecei a recitar os
nomes dos meus colegas de turma. Uma das irmãs dele, uma vez, espreitou
pelo buraco da fechadura, e disse que sabia o que estávamos a fazer, e que
ia contar, mas não o fez. Eu mesma nem sei porque não o fiz. Por medo,
talvez. Medo do que todos iriam dizer e pensar. Eu não percebia bem o que
se passava, acho que parte de mim via aquilo como uma forma de afecto.
*
É o homem alto e forte com equipamento de ténis completo à porta do
campo que fica ao lado de um supermercado onde vais tantas vezes após a
escola, e que faz esperas e tenta falar contigo. É o funcionário da junta que
varre as ruas e vai deixando pequenos bilhetes caídos no chão, pequenas
cartas que entenderá certamente serem de amor para a tua amiga com doze
anos, como tu; mais tarde é a história da tua prima aos catorze, e um vizinho
e amigo da família. É a tua colega de faculdade num parque de
estacionamento, e a amiga dela também, e contar-te isto na esplanada num
dia de sol e alguma coisa gelar-te por dentro e te privar de empatia para com
ela, como quem diz, faz parte, calha a todas, quem nunca. É aquela rapariga
de há muito tempo, e o irmão e o segredo partilhado e calado por todas as
irmãs. É a pessoa que admiras e respeitas e te diz todas as coisas que sempre
quiseste ouvir sobre o teu trabalho, mas que momentos depois tenta beijar-
te. É a pessoa que te procura para uma colaboração, mas após uma série de
observações intrusivas se propõe ir contigo para casa ao fim de um jantar
que, para ti, era apenas de trabalho; é ainda aquela pessoa que justifica, «Se
calhar ele estava só muito apaixonado». E chegas a casa e rebentas num
pranto e não consegues dormir, e a vida do outro segue como se nada fosse.
É a actriz que se defende não se afastando, chocando e tentando reverter o
nojo. É o actor que fala de aguentar o assédio porque são apenas três dias de
filmagens, e lutou muito por aquilo, e tem de pagar as contas, e terá o
trabalho para mostrar e para se consolar. É quem te julga e recorda que
ninguém te apontou uma arma à cabeça, e que és uma desilusão. É quem
fala mal de ti e acha que não tens direito a uma voz porque mandaste nudes
a este e àquele e ao outro, ou porque és gay, ou porque és latina, ou asiática,
ou trabalhadora do sexo, ou todas as anteriores. É a mulher de Thomas,
deixando uma mensagem de voz a Hill em 2010 a exigir um pedido de
desculpas. Ou o senador Alan Thompson a perguntar, ainda em 1991, «Why
in God’s name would you ever speak to a man like that the rest of your
life?»
*
Já era adulta quando falei nisso a alguém pela primeira vez. A vida por
vezes é muito cruel. Foi um alívio quando a família toda se mudou para
Inglaterra. Nunca mais os vi, e ainda bem. Mas nada tira o amargo de
maçã podre. Temos tendência para relevar a fruta quando ela está tocada,
cortamos e deitamos fora o que estiver manchado, ou oxidado, ou podre.
Não queremos, não gostamos de desperdiçar nada, mas naquele caso eu
não podia ficar com uma parte e esperar que o todo não estivesse
envenenado. Era uma situação da qual só poderiam resultar mais vítimas, e
assim deixei-me ser a única. Porque a vergonha e a culpa nos fazem sentir
que estamos sós, que ninguém quer saber ou acreditar, que somos,
realmente, putas, desmerecedoras de compaixão e merecedoras de todas as
coisas más, sortudas por haver quem nos queira, mesmo se pela força,
mesmo se desta forma, porque nós começámos tudo isto apenas por
existirmos.
*
Há pessoas que pedem desculpa e há pessoas que não. Há pessoas que se
fecham para o mundo e para os outros e passam a viver como se fossem de
cristal. Pessoas que se calam e pessoas que não o fazem. Há pessoas que se
magoam mais e se desassociam de si, e entram num pesadelo de miséria e
promiscuidade, em detrimento da sua já frágil condição. Que deixam de
acreditar em si para acreditar no gaslighting do outro. Para alguns é
compulsão e doença, para outros um momento menos brilhante, toldado
pelo ego e por algum álcool à mistura. Concluo que será sempre demasiado
cedo para poder chegar a qualquer conclusão, a não ser a de que
continuamos sem saber como lidar, como conviver uns com os outros, como
amar, como respeitar, como entender.
*
«And I can’t explain; it takes an expert in psychology to explain how that
can happen, but it can happen, because it happened to me», disse ela, ainda
em 1991. E os Sonic Youth responderam: «I believe Anita Hill.» Eu
também, eu também.
Partir o pente
A minha irmã acha que eu deveria cortar o cabelo, logo agora que recebe
mais elogios que nunca. Divertida, faz-me sinais de uma tesoura invisível,
sorri e oferece-se, «Se quiseres eu corto». Não tenho usado muito os
bigoudis que dela herdei quando decidiu cortar o longo cabelo bem
curtinho, há uns anos. Agora, tem uma afro invejável, com tons entre o loiro
e o castanho. Uma vez, numa loja de acessórios, dei por ela a experimentar
uma peruca. Retorquiu, «O que foi? Sempre quis saber como ficaria se
fosse loira.» É difícil cabermos, e aos nossos cabelos, por inteiro na mesma
selfie, mas ambas continuamos, cada uma num país, a lidar com estranhos
que insistem em tocá-los. Suspiro. Da raiz até às pontas.
*
Vejo vídeos sobre como fazer a transição capilar, reeducar o cabelo, fazer
o big chop total ou parcial, para ter uma só textura, para desintoxicar e
recuperar o meu verdadeiro eu. Na série Insecure, Issa Rae e as amigas
mudam frequentemente de penteado. Em This is Us, igualmente. Parece
fácil e acessível. Em Keeping up with the Kardashians, a royalty da reality
tv americana é adepta de extensões e perucas. Muitas vezes, a sua origem é
indiana ou vietnamita: as primeiras doam o cabelo ao templo milionário e as
segundas usam-no para sobreviver e alimentar as famílias mais algum
tempo.
*
Cabelo curto, comprido, desfrisado e natural, tranças, caracóis, liso e
ondulado: já tive de tudo um pouco, embora nunca o tenha pintado senão de
preto. Pouco original, bem sei. No processo, parti muitos pentes, dentes de
pentes, cabos de pentes, como qualquer africana ou afrodescendente que se
preze.
*
Penso que não tenho mais paciência para isto do que para usar
maquilhagem. Deixei de desfrisar o cabelo há dois anos, depois voltei a
fazê-lo, e já só o fazia uma vez por ano, no momento de maior desespero e
embaraço, quando o pente ameaçava partir-se novamente, após logradas
tentativas de domesticação. Arrependo-me e penso, agora vou ter de
começar de novo. No entanto, trouxe recentemente do supermercado uma
escova eléctrica. Apesar de ter um ferro de alisar e uma varinha de
encaracolar, que raramente uso. Não tenho secador mas sei que, por uma
vez, a explicação não cabe a Freud.
Se folheio a Poesia Toda, descubro em Herberto Helder Na cerimónia da
puberdade feminina (dos índios Cunas, Panamá). A mesma inclui tesouras,
cabaças, água e aguardente, lenços, mulheres e raparigas. Muitas vezes sinto
saudades de ter tranças. Permanecem na memória como um ritual sagrado e
moroso, em frente à televisão, com pequenas pausas e muita paciência,
perfeição e minuciosidade das mãos maravilhosas da minha mãe e da minha
tia.
*
Passaram dois anos desde o lançamento do icónico álbum de Solange, A
seat at the table, e do hino Don’t touch my hair. Este single, que obriga a
reflectir para além do já expressivo título, assenta muito bem num mundo
em que o cabelo continua a ser motor de vítimas e de agressores, com mais
ou menos silêncio e assumir de responsabilidades e preconceitos. O
responder a uma pergunta que raras vezes é feita. Uma resposta pacífica
para um gesto tantas vezes agressivo, se não físico, certamente mental e
emocional. A artista explica «Don’t touch my hair / When it’s the feelings I
wear». Nada parece faltar a Solange. E nós sentamo-nos à mesa para pensar
e lutar com ela.
*
Também em 2016, a ginasta olímpica Gabby Douglas foi criticada,
sobretudo na comunidade afro-americana, pelo seu cabelo que, segundo os
comentadores, se apresentou desleixado durante as competições. Gabby,
uma jovem adulta digna de admiração, cedeu naturalmente perante tais
reacções, quando deveria estar feliz, a celebrar a sua prestação e a medalha
de ouro, a primeira ganha por uma afro-americana naquela categoria.
Início de 2018: uma mulher de nome Essie Grundy processa a cadeia de
supermercados Walmart por suposta segregação de produtos de cabelo e
pele destinados à comunidade afro-americana, guardados à chave num
armário, como em Portugal vemos tantas vezes com produtos não conotados
racialmente, mas que talvez tenham mais tendência a serem alvo de furtos,
como artigos de higiene pessoal.
*
Se ando por livrarias ou supermercados, por todo o lado encontro
Becoming, de Michelle Obama. A internet delira e ergue as mãos ao céu em
júbilo pela sua cabeleira, em estreia natural e encaracolada na capa da
revista Essence. Não foi assim há tanto tempo que os Obama deixaram a
Casa Branca e o levantar de sobrancelhas que as tranças das suas
descendentes causaram. Não foi assim há tanto tempo que, de Beyoncé,
ouvimos «I like my baby heir with baby hair and afros».
*
E se 2016 parece ter sido um dos anos capilares de maior relevo, a uma
fotografia de Barack, de cabeça baixa, permitindo a um menino que lhe
tocasse no cabelo para descobrir se seria igual ao seu, o devemos. Sou fã de
Michelle, mas pergunto: por que é que o cabelo encaracolado não agraciou
antes a capa da sua biografia, em vez da revista, e se manteve politicamente
correcto, já depois da presidência? Talvez o mundo deva mais a Michelle do
que o contrário. Talvez Michelle guarde o seu cabelo natural para a
intimidade; talvez tenha sido este o seu sacrifício. Os Egípcios deixavam
crescer o cabelo enquanto viajavam. Talvez Michelle, não tendo ainda
chegado ao fim da viagem, apenas agora tenha conseguido fazer uma pausa
para pensar. Talvez a sua pequena evolução pessoal e capilar ainda venha a
tempo de ser uma revolução, talvez ela não seja o seu cabelo (bem, não
mais do que qualquer um de nós, pelo menos) e estejam certas as culturas
que acreditam que o cabelo é uma das moradas da alma e também o estejam
as primeiras-damas que se protegem atrás dele. Talvez este experimentar
constante, numa altura em que toda a gente se policia, seja apenas mais uma
forma de aprendermos a suportar o nosso próprio peso.
Um espectáculo, digo eu!
No caminho para a paragem, onde se cruzam eléctricos e autocarros,
distraída e com sono, quase piso a passadeira ainda a ser pintada de fresco.
Há operários, cones de sinalização, luzes amarelas e coletes reflectores.
Alguns metros à frente, os homens do lixo fazem a recolha. Levo a mão à
cabeça para ter a certeza de que não trouxe um capacete em vez do gorro.
Fico confusa por momentos; poderia julgar que o ensaio acabara e que já
não estava em directo do grande auditório do CCB, onde o público aguarda
o início de mais uma criação da mala voadora e, sim, na rua, em Lisboa. O
autocarro chega e a viagem é feita aos solavancos. O cheiro a frango assado
que o passageiro sentado atrás de mim devora torna tudo mais real. É o
descanso do trabalhador, a marmita tradicional, o piquenique em
movimento para quem ainda tiver forças para comer a esta hora da noite.
As últimas semanas foram intensas e exigentes, e nesta viagem que
nunca começa para todos ao mesmo tempo, apenas termina, encontramo-
nos cada vez mais lado a lado para ensaiar, jantar quando conseguimos,
fumar um cigarro, tocar piano a quatro mãos, apertar um botão da camisa ou
acertar colarinhos no último segundo, mandar calar, matar os colegas cem
vezes na nossa cabeça, apenas para depois com eles dançar em conjunto
entre cada cena, fazer rir e trocar histórias, para desesperar e zangar. Temos
pouco tempo e, no entanto, há sempre tempo para atrasos, faltas, momentos
de diva, para ficar doente, mudar de ideias, perder e reaver objectos,
habituar-se a que tudo mude todos os dias e mais do que uma vez por dia,
cortar e acrescentar cenas, cimentar e criar amizades, e ainda cobiçar todo o
guarda-roupa do director artístico. Não importa como se chegou aqui, agora
estamos juntos nisto.
*
Sábado de tarde: turistas e locais passeiam, fotografam, lancham e
apanham sol, como sempre ou talvez com maior fervor, pois afinal é um
feriado religioso. Técnicos fazem greve, como é de seu direito. O
espectáculo é cancelado. Sucedem-se as mensagens, telefonemas, suspiros e
brados de revolta, tristeza, desilusão e frustração. Como manda o figurino,
há uma reunião de última hora com quem de direito e com direito a
explicação, que sabe naturalmente a pouco, sabe talvez a algum do material
usado na construção do cenário. Existe solidariedade de parte a parte, só
tenho pena de que o «crítico» não tenha escolhido o dia de hoje para vir ao
teatro. Provavelmente teria apreciado mais esta versão. Fausto não é para
todos, não agrada a todos (de qualquer um dos lados do palco, pois
acreditem que é possível fazer um espectáculo de que não se gosta) mas é,
inegavelmente, sobre todos e dá um lugar e visibilidade a todos. Sou
suspeita mas, pessoalmente, é isso o que me interessa na arte. E o respeito
por quem trabalha, claro. Em Fausto, trabalhou-se e aprendeu-se muito.
*
Um coro, um rancho e um stripper entram num palco... Ganhamos mais
do que perdemos. Para trás ficam lantejoulas, folhos, escudos, luvas e
cacetetes, azulejos e leques, camas de hospital e os vinte e cinco anos do
Centro Cultural de Belém. Fica a festa possível, sem esquecer que são as
pessoas que fazem as instituições. As recentes greves demonstram isso,
sejamos estivadores ou actores na tv ou no teatro. Ou todas as profissões
que estes últimos representam, por vezes até fora do blueroom. Alguém
disse que a ambição é necessária para a realização. Eu penso nos
Apanhados TVI e RTP e em maquilhagem que serve para nos fazer parecer
que estamos sem maquilhagem e, de algum modo, tudo isto parece fazer
sentido.
*
Conto, para que vocês acreditem. Talvez este seja o final, o único final
possível. Mais irónico e genial do que qualquer um de nós poderia ter
criado intencionalmente. Nós, a equipa, saímos de malas e bagagens como
tantas vezes estivemos em cena. Talvez a arte não imite a vida, apenas a
amplifique, pois em Fausto houve manifestações, revoluções, feridos e
queimados, migrantes e desempregados. Talvez esta greve tenha o seu quê
de justiça poética, não houvesse também um grupo de juízes em cena. Mas
agora é hora de arrumar tudo, apagar as luzes, apanhar novo eléctrico, novo
autocarro, e voltarmos a ser as pessoas de todos os dias, sem fronteiras e
quase sem limites. Caótica e elegantemente, como um povo e uma família
de artistas que se preze.
Uma gota de glitter
Tenho um trabalho de casa e queria que João Barrento o fizesse por mim.
Estou a ler o seu conjunto de crónicas, Uma seta no coração do dia, cujo
belíssimo título me recorda Huxley e o seu Brave new world: «Words can
be like X-rays, if you use them properly – they’ll go through anything. You
read and you’re pierced.» Gostaria de pensar que serei uma escritora melhor
depois de ler Barrento, cujo A chama e as cinzas aguarda a sua vez na
minha pilha de livros, recomendação do meu amigo Ricardo Falcão. Mas
não venho falar de Barrento, nem de Huxley, e sim de Mariah Carey, que
ouço muitas, muitas, mas mesmo muitas vezes enquanto leio ou faço outra
coisa qualquer. Há alguns anos, imaginei uma Batalha dos Advérbios,
Aldous Huxley vs Mariah Carey. Huxley: expressionlessly, startlingly,
imploringly, inconspicuously, revoltingly, reassuringly, terrifyingly,
despairingly, patronizingly, piercingly. Carey: abandonedly, painstakingly,
consequently, incessantly, inadvertently, unendingly, threateningly,
convincingly, subconsciously, consequently. A meu ver, Carey ganha. Mas
talvez porque eu sou uma assumida freak de Mariah Carey, que o é,
claramente, de vocabulário. Quem nunca acordou e se preparou
energicamente para um novo dia ao som de Emotions ou rodopiou pela
cozinha de braços estendidos desafinando melancolicamente I still believe?
Quem nunca chorou ao som de Petals, I don’t wanna cry, Love takes time
ou se sentiu melhor depois de ouvir Someday, Everything fades away,
Obsessed ou Everytime you need a friend? O escritor islandês Sjón disse,
numa entrevista: «We should not be afraid to work with the things that
impressed us when we were at our most impressionable. [...] Very few of us
grow up in a castle and have private tutors who teach us Greek before noon
and Latin in the afternoon and then we take piano classes and learn about
classical painting or something. All of us come to culture through trash.
And there are so many people who are embarrassed about what excited
them. If you came to storytelling through the Spice Girls, then this is how
you got introduced to storytelling. Work with it.»
Eu cresci a ouvir Spice Girls e Sade (The best of Sade é o álbum que ouvi
mais vezes em toda a minha vida), mas também Tabanka Djaz, Os Tubarões
e Bob Marley. Não sei tocar piano mas gostava. Carey não cresceu num
castelo, mas tornou-se a moça pobre por quem um príncipe se apaixona e a
leva para o seu reino onde vivem até ela sair da discográfica. E então a
moça pode começar a ser feliz quase para sempre e, até, comprar o piano do
seu ícone, Marilyn Monroe, cujo nome inspiraria o da sua filha ou versos
das suas canções mais recentes. Um dos meus temas preferidos de Carey é
Make it happen, poderosamente autobiográfico e inspirador, e um pequeno
mantra para todos os dias, os difíceis e os outros, relembrando que persistir
é preciso, mas não sem uma fé que por acaso partilhamos, e nos mantém
por cá quando tudo se desmorona. Para muitos, os que sabem ou não negam
saber quem ela é, Mariah será uma diva pop louca, gasta, irrelevante e
irritante, com decotes exagerados e uma obsessão por sapatos
(compreensível, para quem conhece a sua história). Para muitos mais ainda,
um ícone merecedor de um movimento como o recente #justiceforglitter,
empenhados como estavam os seus fãs em fazer chegar ao primeiro lugar
um álbum que, após ter sido um fracasso, tal como o filme de que era banda
sonora, se tornou um objecto de culto, com a sua vibe de anos oitenta, talvez
pensado à frente do seu tempo. Só o amor dos fãs para destronar o álbum
mais recente de número um por outro mais antigo. Mariah a vencer Mariah,
ou será Bianca, o seu alter ego que encontramos nos vídeos de Heart
breaker com Jay Z e do seu remix com Snoop Dogg no papel de noivo e Da
Brat e Missy Elliott como madrinhas? Heart breaker que, originalmente, foi
pensado para ser parte de Glitter, mas cuja inclusão no álbum anterior,
Rainbow, se tornou uma benesse na época mais sombria da carreira da
cantora, compositora, produtora, actriz e, agora também, mãe. Crescer com
Mariah Carey é conhecer Mariah Carey e conhecê-la é, sem dúvida aceitá-la
e amá-la até ao fim dos nossos dias, perdoando todas as falhas e celebrando
todos os intermináveis sucessos. Num mundo em que já não restam muitas
das lendas originais, tendo perdido Aretha Franklin (uma das suas principais
influências) ainda tão recentemente, e com as demais figuras míticas tão
perto da terceira idade, Carey, que viu partir tantos dos seus talentosos
amigos da velha escola, com quem colaborou ao longos de décadas, estará,
talvez, aos quarenta e oito anos, a meio caminho de algum lugar (ainda
mais) importante. Nomeada, com outra das suas amigas próximas, Missy
Elliott, e inspirações, Chrissie Hynde, para o Songwriters Hall of Fame,
lutou sempre para ser vista como a escritora de canções que é, sendo que
escreveu todos os seus temas, excepto as covers e o dueto com Trey Lorenz,
I’ll be there, e When you believe, dueto com Whitney. Temos outras grandes
cantoras também autoras de muitos dos seus sucessos (pessoalmente,
destaco Tori Amos, Kate Bush, Alanis Morissette e Fiona Apple, esta última
creditada por Diddy como uma das que mais o influenciou), mas só Mariah
ultrapassou Elvis enquanto artista solo com o maior número de canções a
chegar ao primeiro lugar. À sua maneira, lutou para que houvesse esse
reconhecimento e multidimensionalidade, a par com o que era dado tão
facilmente a outros, bastando que fossem homens ou, sendo mulheres,
tocassem regularmente algum instrumento. Ora, Mariah assume tocar mal o
piano e poucas vezes a vemos dançar, em palco ou num videoclip. Mas esta
é a mulher que uniu o pop com o hip hop e o rap e será, ainda, quem melhor
continua a fazê-lo. Num mundo de artistas como Ariana Grande (também
capaz de fazer o whistle de Minnie Riperton, que começou a carreira com
covers de Carey no Youtube até ser descoberta, assídua colaboradora de
Minaj e, infelizmente, também com um atentado terrorista a marcar a sua
carreira), não podemos esquecer que foi Carey a primeira grande artista a
colaborar com uma ainda pouco conhecida Nicki e a incluí-la no vídeo,
antes mesmo de Minaj ter lançado o seu álbum de estreia, e ainda longe do
estatuto que depois se lhe atribuiu de rainha do rap, discussões no American
Idol à parte. Não podemos esquecer que Mariah teve um mega hit com o
título Shake it Off dois anos antes de Taylor Swift, e que só não chegou ao
primeiro lugar porque, bem, Mariah já lá estava com a canção que seria a
sua segunda a ser considerada canção da década. Nem tão pouco podemos
esquecer que Glitter foi lançado no pior dia possível, o dia do atentado
contra as torres gémeas, que mudaria o mundo para sempre, e que também
Carey lida com doença mental e insónia desde tenra idade, tendo demorado
muito para assumir e, consequentemente, tratar a sua bipolaridade. Mas
Carey tem sentido de humor e como tal teve gémeos, tem um alter ego, dois
álbuns a lutar pelo primeiro lugar e será das artistas com maior número de
colaborações de sempre, o que demonstra a sua generosidade e
adaptabilidade não apenas social mas também musical. De Luther Vandross
a Boyz II Men, de Skrillex a Slick Rick (a quem todo e qualquer rapper terá
ido buscar alguma coisa) e Ty Dollar Sign (no mais recente e delicioso
álbum, Caution) a Pharrell Williams, Sean «Puffy» Combs, Jermaine Dupri
e Mobb Deep nos primórdios da sua carreira, sem esquecer a mítica e
disruptiva colaboração com Ol’ Dirty Bastard, Mariah fez e cantou de tudo
e com todos, destacando sempre o seu amor por Wu Tang Clan e o quanto
aprendeu com Bone Thugs-n-Harmony.
*
Anitta, a actual mandante do funk brasileiro, inspirou-se no look de
Carey que agracia a capa de Rainbow para sua fantasia do Carnaval que aí
vem, à guisa do que Beyoncé tem feito com as suas homenagens a Lil’ Kim
ou Toni Braxton no Instagram. Beyoncé, que será talvez a única das
cantoras actuais que Carey menciona em entrevistas, afirma, «Diva is a
female version of a hustler». Quando lhe perguntaram sobre Jennifer Lopez,
Carey respondeu «I don’t know her», o que ao longo do tempo se tornou
uma piada e até merchandising, tomando agora a forma de «I still don’t
know her», cortesia de antigas disputas causadas por supostos roubos de
ideias para canções da Columbia Records já depois da saída de Carey, e
para beneficiar Lopez.
A eterna rainha do Natal, talvez tudo o que Carey queira este ano seja
esse reconhecimento como autora/escritora. Cantora de origens mistas, filha
de um casal em que o pai era negro com raízes venezuelanas e a mãe
branca, com origens irlandesas, Mariah (a terceira filha de um casamento
mal visto pela sociedade da altura, cujo preconceito criaria tensões que
levariam ao divórcio) nunca se considerou branca, embora tenha lidado,
nem sempre bem, com essa one drop de sangue negro, e embora tivesse
lutado para aceitar-se e ser aceite, quando a sua aparência branca com voz
negra foi usada para mass appeal. Quando se libertou finalmente, a
borboleta de Nova Iorque pôde mostrar as suas influências, que iam desde
Jimmy Hendrix a Def Leppard ou à sua mãe, cantora de ópera. O que é um
ídolo? Pode Mariah, a cantora que mais me ensinou sobre gangster music,
que chegou a alguns número um primeiro nos tops de R&B, antes das
demais tabelas, ser definida como um ídolo pop, quando tem canções para
todos os sentimentos e situações possíveis, abrangendo uma miríade de
géneros? Definitivamente, não.
*
Receamos sempre o dia em que os nossos ídolos vão deixar-nos. Tal
como outros, também chorei Cohen, Bowie, Prince. Mas quando
desapareceram Jackson e Houston, foi pela obsessivamente perfeccionista
Carey que temi. Se estivermos vivos tempo suficiente, tudo pode,
eventualmente, acontecer-nos. Carey não falhou as polémicas do playback,
dos colapsos nervosos em público, dos casamentos falhados, dos dramas
familiares, das cirurgias e flutuações de peso, dos excessos que um sucesso
fora de série parece sempre acarretar, numa proporção assustadora de tão
directa. Mas também não falhou a redenção que We belong together ou seu
aclamado papel em Precious lhe trouxeram. A par de Britney, com a devida
salvaguarda do que as diferencia, mas que continua a ter fãs eternos e
também passou por um escrutínio que quebraria o mais forte de nós, Mariah
será talvez um dos poucos casos de real morte e ressurreição nesta indústria
que esquece, permite e perdoa tão mais e mais rapidamente a homens,
geralmente com agravantes bem mais negros do que os que estas duas
figuras alguma vez poderão ter (veja-se Chris Brown ou R. Kelly e os
recentes comportamentos preocupantes de Drake em relação a menores).
Falando em comparações, recordemos o que disse a saudosa Houston
(com quem poderíamos fazer um paralelismo com Amy Winehouse ou
Lady Gaga): «Mariah is Mariah», e talvez isso seja a única e a melhor coisa
que alguém pode esperar de si mesmo e dos outros. Haverá luta mais dura,
importante e recompensadora do que a de nos conhecermos e superarmos?
Talvez a humanidade e a imperfeição sejam, a par do carisma e da centelha
divina das suas vozes, o que faz um ícone. Como diz o ditado, it takes one
to know one e, se Houston é The Voice, Carey é The most. Agora, se me dão
licença, vou voltar a João Barrento, um outro tipo de ícone, pois ainda tenho
muito que aprender.
Diários Turcos (I)
O que é que jantámos na nossa primeira noite em Istambul? Pizza. Very
typical. Na recepção, um senhor chama-me umas seis vezes pelos nomes do
meio, como se fossem um só e ele não conseguisse ler nem o meu primeiro
nem o meu último nome.
Chego, sento-me no sofá contemplando a hora de jantar.
*
– Então, Gisela, que fazes?
– Estou apenas...
– Estás a rir sozinha?
*
Estava a olhar para o telemóvel. Éramos cinco à mesa. Alguém me
chamou. Levantei o rosto e duas pessoas queriam oferecer-me uvas. Uma
tinha duas, roubadas à que tinha umas dez num cachito. Sem saber o que
fazer, perante aqueles olhares ansiosos e braços estáticos, aceitei tudo. Um
outro interveniente disse, de quem tinha mais, «Ele só queria oferecer-te
um». Rimos. La Fontaine revisitado.
*
Nos lavabos públicos, rapazes adolescentes e homens descalçam-se e
lavam os pés, recolhendo os casacos pendurados à saída. Em sua casa, Zafer
dispensa-nos de descalçar os sapatos, por cortesia. Chove e faz frio, mas
nem isso impede os gatos de frequentarem a universidade à noite. Somos
revistados à entrada dos museus e dos centro comerciais. Fotografo a Lígia
no meio de oito chineses, cinco de um lado e três do outro, todos sentados e
ela no meio. Quase todos me olham ao mesmo tempo sem combinar e sem
desviar a atenção, como se nos conhecêssemos. Fotografo a Lígia a
descalçar-se cinco vezes por entre túmulos e mesquitas; por vezes há um
extintor ou uma roseira a compor o quadro. Dizem-nos: «Quero saber a
vossa religião. São cristãs? Porque eu sou muçulmano mas não sou um
terrorista.» Mais tarde, numa escola, perguntar-me-ão se sou muçulmana.
Mais tarde, numa igreja e numa escola, alguém levará a mão ao peito em
vez de no-la apertar, deixando-nos penduradas e perplexas. Zafer disse-me,
ontem: «Ainda não te sentiste estrangeira aqui.»
*
À hora de almoço:
*
– Isto é tão bom, lembra-me algo.
– É leite condensado cozido.
– Pois é.
– Comemos quando alguém morre.
– Então... Quem morreu?
*
Finalmente cedo e digo, numa sessão escolar e em turco, que İsmet Özel
(cuja obra desconheço) é o maior poeta turco. A multidão vibra. Yaya diz-
me, através de notas num bloco que ainda tenho, que Rıdvan lhe confessou
que quer casar comigo, porque o fiz feliz ao dizer esta frase que me vinha
repetindo há dias. Há uma foto do momento preciso em que leio essa frase e
rio: é uma das melhores fotos desta viagem.
*
No aeroporto:
– Eventualmente todos os turcos vão embora.
– Excepto tu.
*
No palácio:
– É pá, a bandeira e todas estas luas lembram a Sailor Moon, não achas?
– Pois é.
*
Ao fim de um tempo teríamos de ceder às casas de banho à la Bairro
Alto. Nem sei como demorámos cinco dias a atingir este marco.
*
Domingo a Turquia fez anos. Segunda, fiz eu.
*
Já me perguntaram algumas vezes se estou aborrecida. Normalmente é
quando me calo. Ou há pouco, porque estava em pé lá na rede expressos
enquanto fazíamos tempo. Acho que é isso que querem dizer porque fazem
a pergunta ao contrário, perguntam, “Estás a aborrecer-nos?”. Espero que
não. Respondo que nunca me aborreço e que dentro da minha cabeça estou
sempre bastante entretida. A Esra, a nossa intérprete, anui com a cabeça e
sorri, acho que começa a conhecer-me.
*
No autocarro para Gaziantep, agora somos nove, (comento com a Lígia
que isto é a Sete Rios cá do sítio) sentados à espera que parta, e estou a
tagarelar fluentemente, como sempre. Dizem-me, «Esta avó...» e eu penso,
deve querer que eu me cale, afinal só se ouve a minha voz, «... Diz que te
ama». Gargalhada geral, e a senhora vai repetindo os seus afectos
instantâneos em turco. Vão ser umas lindas seis horas de viagem.
*
Novos diálogos de Konya:
– Este catering só no Alfa.
– Wifi no expresso para Melgaço.
*
A Lígia bate-me ao de leve no ombro. Passa-me um phone. Notorious B.
I. G., «Big Poppa». Gosto desta miúda. Estamos um pouco lost in
translation, tempo e espaço. Já não sabemos bem que dia da semana é nem
que horas são em Portugal. Ao telefone a minha amiga diz que são quatro
da tarde. Aqui, sete. Não há horário de Inverno, só o Inverno em si. No
meio de nenhures, paramos rapidamente pela segunda vez. Desta vez
saímos. O rapaz das uvas não fala inglês. Oferece-me o maço. Eu não fumo,
digo (pensava que já teriam reparado por esta altura, considerando que sou
realmente a única que não fuma). Porquê?! Pergunta um outro. Ouvem-se
tambores. Dizem-me que é uma celebração, uma despedida, um rapaz vai
para o exército, como é costume aqui quando aos vinte ainda não se foi para
a universidade. WC Bayan é casa de banho das senhoras. Dão-me uma
moeda para a mão. A sério? Olá, Santa Apolónia nos anos 90, com porteiro
e guichet nos lavabos. Por algum motivo agora só me apetece ouvir Beatles:
«Here, there and everywhere.» Seguimos caminho.
Diários Turcos (II)
Se já te estavas a dar bem com uma pessoa, imagina quando ela te mostra
uma foto sua num tractor, precisamente o que falta à tua colecção. A Lígia
escreve um poema sobre um gato que conheceu numa livraria. Quem deu
colo a quem não é certo.
*
Em verdade vos digo, num sítio onde é preciso passar por vários
detectores ao longo do dia, tenho sorte que os ganchos de cabelo não os
façam apitar. Há pessoas que tentam acalmar-se a si mesmas. Eu digo isso
ao meu cabelo.
*
Esta noite:
– Olha, vem aí a minha sobremesa preferida!
– Portanto vamos comer a sobremesa dos mortos novamente.
*
No carro, a Lígia olha para a minha mala.
– Bem, cabe aí tudo.
– Muitos anos a jogar Tetris.
*
Passei os primeiros três ou quatro dias de cabelo apanhado num carrapito
composto. Agora que o soltei, passo os dias a tentar que ele caiba nas fotos
e não tape ninguém. No dia seguinte, bantu knots.
*
Na última escola, em Gaziantep, uma miúda diz-me:
– O teu cabelo é muito bonito.
– Obrigada. Fiz isto a mim mesma.
*
Estamos a jantar no sítio mais pomposo de sempre quando reparo que
cravos ornam a mesa. Explico o 25 de Abril. Brincamos com Oxalá e
Insha’Allah. Mistura-se turco, húngaro, inglês, português e árabe. Alguém
escreve «Saramago é o maior da Europa.» Já de Pessoa diz-se, pelo tradutor
no telemóvel, «Eu leio o livro inquieto».
*
Doze pessoas no carro. Perguntam-me, «Museu da cidade ou café?».
Café, respondo após uma ligeira pausa. Suspiram todos de alívio e alguém
agradece. Explico que é só porque não quero que estejam tristes, porque eu
adoro museus e, verdade seja dita, estamos SEMPRE a beber café e chá e
café e chá de novo. Eles, OS ONZE, fumam fumam e eu morro morro, mas
pronto. Reúno uma colecção de maços de tabaco turcos, com imagens super
suaves e diferentes das dos maços portugueses. Atento também no lindo
cinzeiro com cravos e no facto de, depois de termos acabado o café,
perguntarem se queremos chá. What else? Este é o ciclo da vida. Chá, café,
chá, café. Uma vez por outra água e iogurte.
*
Novos diálogos de Gaziantep:
Eu: Então diga-me, há quanto tempo diria que é inspirado por plástico de
bolhas?
Ele: Diria que há uns cinco, seis anos.
*
No carro, discutimos a relação entre poesia e bolhas, sabão e plástico.
Em mais um aeroporto, o rapaz das uvas oferece-me cigarros pela segunda
vez. Muito engraçado. «Se alguma vez precisares de cigarros ou de plástico
de bolhas, conta comigo.» Rio-me.
*
De manhã,
– Cá estamos nós a passar outra vez a Lx Factory cá do sítio.
*
Hora de almoço,
– Isto é tão feio. Parece Odivelas.
*
Tarde,
– Esta zona é mais Mem Martins. Só faltam as marquises.
– Aqui, Azeitão.
– Olha, afinal até há marquises.
*
Ao almoço,
– Isto é a casa do Sporting, não é? Ou melhor, a churrasqueira do Campo
Grande.
– O verde até é o mesmo.
– Pizzas em vez de frangos.
*
Depois de almoço,
– Olha este túnel, consigo imaginar a câmara do lado direito e, ali, parece
o Estádio José Alvalade.
– Um estádio em forma de bola.
*
Duas horas depois,
– Gisela! (há uma moça que está sempre a rir - sim, mais do que eu – e
está sempre a dizer o meu nome de uma forma quase cantada, mas com o Gi
a soar Ri) Vamos beber café!
– Para sempre?!
*
Ao jantar:
– Isto é chocolate?
– Sim.
– É muito bom. Como se chama?
– Pudim.
– A sério? Eu aqui à espera de algum nome impronunciável e vocês
chamam a isto pudim?!
*
Como as primeiras castanhas do ano numa banca de rua, mas a
iluminação led de Santa Apolónia ainda não chegou aqui. De regresso a
casa, bem mais roliça, sonharei três vezes que regresso a este país, e em
cada uma delas trago mais pessoas comigo. O que ficou por dizer é porque
não se sentiu. Ou foi dito por todas as pessoas que nos leram, a nós,
estrangeiros, durante aqueles dias em escolas, igrejas, cafés e universidades.
Porque há coisas que se sentem em conjunto. Às vezes mando fotos da
Ponte 25 de Abril e quase engano os meus amigos turcos. Outro dia, na
Áustria, comentava com alguém que Istambul e Lisboa são muito parecidas.
Essa pessoa disse, muito chocada, que Istambul lhe lembrava mais Nova
Iorque. Na volta ambas temos razão. Lembra-nos um lugar de sonho, onde
nos sentimos em casa.
E o que é que jantámos na nossa última noite em Istambul? Jardineira,
pois claro. Very, very typical. «Merhaba! Merhaba! Merhaba», já dizia a
Amália.
Black mirror, Black face
Sou uma pessoa sensível. Tive, durante a maior parte da minha vida, um
estômago de avestruz e uma pele que nunca me deu trabalho excepto pela
cor que tenho. Não sou muito picuinhas com os produtos de beleza. A regra
de ouro é hidratação completa, de cima a baixo, todos os dias. Aquele
antigo ditado português que diz: put the cream, sabem? Sou discreta na
minha sensibilidade, mesmo quando é a pele a sofrer. Mas a verdade é que a
minha pele, o meu rosto, raras vezes são tela para maquilhagem, embora
goste da dita e aprecie vê-la bem aplicada. Não tenho quase nenhuma, pelo
menos comparando com a maioria das mulheres (e alguns homens), e
guardo-a para ocasiões especiais; nunca faço uma make completa, escolho
sempre as coisas mais básicas, e só tive uma embalagem de base na vida.
Talvez por isso me recorde demasiado bem da primeira vez que fui
maquilhada por uma amiga, antes de uma saída à noite; depois, por uma
conselheira de beleza numa loja da especialidade (achei que não parecia eu
em nenhuma das vezes), por maquilhadoras profissionais, que também
trabalham em teatro, antes de participar num programa de televisão (adorei).
Talvez seja como habituarmo-nos a ouvir a nossa voz gravada, melhora com
o tempo. Não impede que saiba quais são as tendências, que conheça a linha
de produtos de palete inclusiva de Rihanna, ou assista aos populares vídeos
da Vogue, em que podemos ver celebridades como Pablo Vittar aplicar
maquilhagem em dez ou quinze minutos (que nunca o são realmente, com
todo o fast forward e as coisas que a dita diz já ter feito antes de começar a
gravar).
O Carnaval passou. Este ano não o celebrei, mas reflecti bastante sobre.
O melhor foi ver as fotos e vídeos dos filhos dos amigos, mascarados, e os
filhos dos desconhecidos, nos comboios, na rua, em todo o lado. O pior foi
ver escolas, como no caso de Matosinhos, em que professores e demais
funcionários se mascararam de negros e, inclusive, foram dadas indicações
aos alunos para irem vestidos como tal. É o negro ainda uma coisa, e coisa
tão passível de ser objectificada e banalizada, que pode ser descaracterizada
assim tão gratuitamente? Como pode uma criança africana ou
afrodescendente ir para a escola de negro, quando é negra o tempo todo e,
mesmo se calha esquecer-se por um momento, e a achar-se apenas humana,
a própria escola a recorda, limita, ostraciza?
Finalmente comprei uma máscara de carvão activado, algo que há muito
me suscitava curiosidade, por este ingrediente ser agora usado em tudo e
para tudo; confesso que, também, por me lembrar o black face. Em frente ao
espelho, apliquei a dita seguindo meticulosamente as instruções da
embalagem e, depois, removi-a, lentamente e sempre na mesma direcção.
Saiu quase inteira. Pousei aquele retrato dermatológico na bancada do
lavatório e pensei, eis a minha black face. A minha amiga Diana chama-lhe
mask face (ela entende muito de maquilhagem). Achei o termo interessante,
bem melhor que black face. Não conheço, de facto, nenhum negro, nem
aqueles descritos como tendo um tom de pele preto-azulado, cuja
fisionomia seja sequer próxima da daquele rosto inanimado que me olhava.
Deitei-a fora e retive esta palavra: máscara.
Ainda se crê, em pleno 2019, que ser negro é uma fantasia para usar nos
três dias de Carnaval ou no Halloween. Pinta-se a cara porque dá menos
trabalho do que pintar também as mãos e o resto, afinal nem é preciso
prestar-se a tamanha cerimónia, isto é uma coisa temporária, o resultado
fica à vista de todos, literalmente in your face. Agora sou negra, agora já
não sou. Obrigada, água micelar. Obrigada, toalhita desmaquilhante. Se eu,
por nunca usar maquilhagem, me esqueço dela quando a tenho, da minha
identidade nunca me dispo nem esqueço. Se, há uns anos desamiguei uma
antiga colega do secundário por ter postado fotos, no seu Facebook, em que
ela e uma colega de trabalho se mascaravam de negras, com caras pintadas
de preto ou castanho-escuro, perucas afro e nomes a quererem-se tribais,
exóticos ou impronunciáveis, para completar os figurinos, hoje já não o
faço. Outro dia, no espaço de minutos, vi uma foto de perfil de alguém
mascarado de índio, a qual lhe mereceu inúmeros elogios e, depois, a foto
de três pessoas, uma das quais conheço, vestidas de negras, não menos
caricaturadas e caricatas do que a polémica vestimenta berbere de Madonna
há uns meses numa cerimónia de prémios. Em sua defesa, a rainha da pop
disse «I love my dress». E ninguém pode acusar Madonna de racismo,
afinal tem mais filhos adoptivos (4, negros, do Malawi) do que biológicos
(2).
Eu também sei que essas pessoas, as mascaradas no meu feed, adoram
negros, adoram índios, e até têm amigos que são. Mas ofendem, insultam.
Provavelmente mais por ignorância do que por qualquer outro motivo.
Teimosia, também. Como se a afronta, por não ser intencional, tivesse de
ser tolerada por quem é dela alvo. Poderia encontrar uma falsa lógica nestes
episódios que mais lembram a série Black Mirror, por estas pessoas nunca
terem convivido com membros da comunidade indígena e os mesmos lhes
parecerem uma qualquer criação romanesca. Mas qual a desculpa para todas
as outras etnias? As que andam por todo o lado? Ou não se repara nelas
excepto quando se tenta, e mal, imitar quem nos parece ser e se quer
considerar «todos iguais»? Os mesmos que continuamos a tratar de formas
diferentes. Porque se o nosso primo ou a nossa avó não são um disfarce,
porque é que mais alguém seria? E nós, somos? Ou vocês, que eu sendo
negra já o sou, claramente. Acredito que temos de continuar a educar-nos
uns aos outros, a explicar de forma mais ou menos directa o porquê de
índios e negros não serem fantasias de Carnaval (existe, no youtube, um
vídeo excelente de Fernanda Carlone, que recomendo, por responder à
pergunta «O que é o black face e qual é o mal?», que muitas pessoas ainda
fazem). Acredito que temos de denunciar, reportar, criticar. Acredito que
aceitar a diferença é aceitar uma opinião diferente também, ainda que seja
sobre a nossa/vossa boa intenção.
Recentemente, a Gucci retirou do mercado uma camisola de gola alta que
subia até ao nariz, deixando um buraco na boca, delineada como se por um
grosso batom vermelho. A Burberry achou engraçado criar uma linha de
hoodies com nós de forca como colares. O público não entendeu a piada.
Katy Perry criou uma linha de sapatos com caras africanas, negras e, arrisco
dizer, albinas também, inspiradas talvez em peças de arte do continente. A
Prada tinha um porta-chaves também considerado racista, a velha
dicotomia macaco/negro. Ninguém viu o mal em nenhum destes produtos
até terem sido postos à venda, talvez por não haver pessoas negras em
posições suficientemente relevantes ou, de todo, nestas empresas, que se
revoltassem e demonstrassem o porquê de serem ofensivos. O público, no
entanto, não perdoa, e a ameaça de boicote é real. O problema começa bem
antes da criação: começa na contratação de conselheiros e designers de
outras etnias, numa indústria ainda predominantemente branca, que possam
interromper a sequer criação de tais peças e inspirar uma criatividade
histórica, social e culturalmente consciente. Um outro problema é a compra
e venda, a brancos, de marcas de sucesso criadas por africanos, que o fazem
como forma de acabar com a concorrência, no entanto aniquilando também
marcas para todos em prol da continuação da expansão de marcas apenas
para alguns. A responsabilidade é de todas as partes, pois o que afecta uma
minoria afecta todas, e as minorias têm de saber que um legado é mais
importante do que um lucro imediato.
Daqui a uns dias faço outra máscara. E quando é que eu posso trocar a
minha pele por outra? Não que eu quisesse. Seria mais fácil? Com certeza.
Seria melhor? Não. O melhor de cada um é o que cada um já é ou pode vir a
ser. Eu não serei mais caucasiana do que alguma vez terei olhos azuis (os
sapatos de Katy Perry têm-nos, curiosamente). No seu poema «A woman
speaks», Audre Lorde termina com «I am woman / and not white.» Que é
como quem diz, há outras cores para seres humanos, e há outras cores para
géneros. Há outras possibilidades para fantasias. Há, também, a necessidade
de estarmos em contacto com a realidade, pois ela dura bem mais do que
uma qualquer efeméride. Se o Carnaval é cultura e tradição, convém
lembrar que ser-se humano não o é menos. Algumas homenagens não são
senão hipocrisias e o perpetuar de histórias que são muito diferentes
conforme quem as conta. No próximo ano, se carnavalar não ofenda. O
tempo passado em frente ao espelho a mascarar-se de alguém que nem
existe talvez possa ser passado a olhar o outro e a tentar conhecer, ouvir,
estar lá para quem é, não duvidem, bem real. Há coisas que não podemos
nem devemos mudar. Mas façamos algo por aquelas que estão nas nossas
mãos, nos nossos rostos e, sobretudo, nas nossas vozes e consciências.
Porque há coisas que não podemos nem devemos aceitar.
Mercúrio retrógrado
Bati com a cabeça. Bati e bati com força, não figurativa mas literalmente,
o que prova que, a ser um recurso estilístico, a realidade nada tem de
estiloso. O mesmo devem ter pensado os donos das gargalhadas altíssimas
que ouvi após o embate, o qual entortou a haste direita dos óculos e me
deixou com a visão turva por instantes. Era de noite, estava distraída, olhar
preso num jornal que alguém deixou num banco da paragem (mãe, pai, por
que me abandonaram, vulgo ensinaram a ler?!), e com um saco de papel do
McDonald’s na mão, que é como quem diz, quase mereceste levar com o
mupi, que não teve culpa nenhuma e já lá estava. Gostaria de um dia ter a
minha cara em todas as paragens de autocarro, locais esses de que sou
membro diamante, mas talvez esta não seja a forma mais eficiente. Também
gostaria de ir ao supermercado usando vestidos Valentino, mas isso fica
para outra crónica. Eram já quase onze da noite, chegara à paragem onde o
tempo de espera era de trinta e cinco minutos e, para fazer tempo, fora
comprar comida. No restaurante, o atendimento atrasado, funcionários
discutiam entre si, clientes discutiam com a gerente, motoristas de serviço
de entrega suspiravam e bufavam. Eu rezava para não perder outro
autocarro, enquanto comia os nuggets mais tristes de sempre. Mas eu ia tão
bem no meu vegetarianismo quase totalitário, que talvez tenha sido o
karma, ou então o único, o temido, o incorrigível mercúrio retrógrado. Na
paragem, com uma dor crescente do lado mais afectado pela pancada, ainda
me parecia ouvir a risota alheia, em eco, cada vez menos sonante, mas ainda
no ar. Cheguei ao meu destino rapidamente e, em menos de vinte minutos,
estava despachada de mais uma burocracia que, espero eu, tenha sido a
final. Novo compasso de espera na paragem ao fundo da curva, perto da
rotunda. Desta vez, não estava sozinha mas com um casal, cujo odor
corporal me fez rezar novamente, com todas as forças, mas não as
suficientes para aspirar mais ar, que o autocarro não demorasse muito.
Chegada a casa, caí na cama, não sem antes recordar que nesse mesmo dia,
numa entrevista feita em minha casa, faltaram os microfones, que ficaram
do outro lado do rio, que uma peça de equipamento se estragou, que alguém
se atrasou quase uma hora, que outro alguém combinou para as 15 horas
com alguém que achou ter marcado às 16 horas, entre outras confusões e
falhas de comunicação. No dia seguinte, antes de seguir em viagem para
Londres e de lá para Hong Kong e Macau, tentei ir a um multibanco
específico, que permitisse depositar dinheiro: nada feito. Durante o voo,
tentei ver um filme ou ouvir música, no entanto o meu ecrã não deixou, por
mais resets que a tripulação fizesse. Pedi novos headphones pois os meus
não funcionavam. Precisei de paracetamol pois a dor de cabeça passou de
forte a insuportável, de subtil a um galo. Um galo português em Macau,
algo a que os meus amigos, por algum motivo, parecem achar demasiada
piada. Pelo menos encontrei dinheiro na rua duas vezes seguidas, no espaço
de uma hora. Tentei comprar comida e nenhum dos terminais do café
aceitava o meu cartão, o que me obrigou a ir levantar o bonito dinheiro
destas terras. No hotel descobri, ao tentar aceder ao wifi, que me pede o
número do quarto e o apelido, que o meu último nome é, agora, o de solteira
da minha mãe. Há algo de curioso em telefonar a estranhos para descobrir
em quem nos tornámos. Antes, no controlo de passaportes, o funcionário
perguntou-me várias vezes se eu era eu, qual o meu nome, a data de
nascimento. Apontou para a fotografia, depois escondeu-a. Sim, eu sou essa
pessoa. Essa daí sou eu, sim. O meu passaporte é de 2017, cabelo esticado,
desfrisado, comprido. Cortei o cabelo nem há uma semana (sim, a minha
irmã convenceu-me finalmente e fi-lo eu mesma, pela primeira vez na vida,
em casa), já não o desfriso há mais de um ano e meio, perdi peso e voltei a
usar óculos que tirei, como mandam os scans biométricos. O sinal no rosto,
esse, é o mesmo de sempre. Ainda assim, parecia não ser suficiente. Lá o
convenci, talvez por ter-me oferecido para mostrar outros documentos,
embora talvez isso apenas o confundisse mais, pois no cartão de cidadão o
meu cabelo também está bastante diferente. Lembrei-me de quando
trabalhava num edifício no Areeiro, e ia ao mesmo café todos os dias. Num
dia em que fui de cabelo apanhado em vez de solto, a dona não me
reconheceu logo. Ri-me sozinha ao lembrar-me de uma amiga que passou
por mim na rua, na semana em que voltei a usar óculos, sem perceber que
era eu. Nova afronta ao meu nome, quando o vejo com um g em vez de um
c no novamente malogrado apelido. Quem claramente percebe disto é uma
das moças do hotel, cujo nome adorei: Bet Si. I see what you did there.
Mercúrio volta a estar directo dia 28 de Março, mas é certo e sabido que os
seus efeitos se sentem bastante tempo antes e depois da sua vinda. Gisela
Casimiro was marked safe during the first Mercury Retrograde of 2019,
após ter sofrido o que julgou serem os seus efeitos todos em apenas vinte e
quatro horas. É com alívio e já sem galo que de vós me despeço, desejando
a todos um trânsito planetário seguro, e até aos próximos dois. Qualquer
coisa, sabem de quem é a culpa.
Sem anestesia possível
Quando entrei, pediram que me deitasse, baixasse a saia, levantasse a
camisola e virasse o rosto para a parede. O médico não tinha como saber
que eu já conhecia cada uma daquelas agulhas desde o dia anterior, do
Youtube. Vai sentir um frio, uma sensação gelada, do spray anestesiante. As
nádegas a descoberto, os olhos fechados. Vou começar. Um jogo de
adivinhação sobre a minha carne, um-dó-li-tá. Imaginei uma mão aberta e
uma faca a saltar por entre os dedos, tentando acertar no vazio. Primeiro,
não doía, era apenas uma impressão enervante. Tentava não pensar nos
meus pais na sala de espera. A minha mãe tentara entrar, mas fora impedida.
Preferi assim. Peço desculpa, mas tenho de encontrar o lugar exacto da
anestesia. Primeiro não doía, mas depois já não era um jogo afinal, ele fazia
a agulha saltar vezes sem conta, aparentemente sem ritmo ou destino, até
que encontrou o que buscava, e eu percebi que a anestesia era só para a
carne, como é que eu não pensei nisso, como poderia não me doer o osso,
como é que eu não previ isto, como é que eu. Peço desculpa. Peço desculpa.
Peço desculpa.
Pensava que conseguia fazer isto sem chorar. Sem gritar. Não é só a
agulha. Quem nunca levou uma injecção no rabo? Ninguém me estava a dar
nada. Eu vim aqui para me tirarem uma parte de mim. Talvez para depois
me tirarem a minha vida, ou o que eu acho que tenho de meu, e de vida.
Vim aqui para me cravarem uma agulha o mais fundo possível, eu que já
tive tantas agulhas espetadas em mim nestes últimos anos, que viro sempre
o rosto para o lado e que, quando finalmente não quis fazê-lo, fui obrigada.
Vim aqui para sentir alguma coisa a ser aspirada de dentro de mim, de um
lugar secreto onde nunca ninguém me tocara. Tente pensar em alguma coisa
agradável. Tentei, tanto. Estava um dia tão bonito. A praia. A minha irmã.
Procurei-a em vão. Nem ela me poderia valer naquele momento. Mais tarde,
dir-me-ia que a mãe entrou pelo quarto a chorar e a anunciar que eu iria
morrer. A nossa mãe, sempre tão dramática, hipocondríaca, fatalista. Mas eu
ainda não sabia, ainda estava ali na sala pequena, dividida em duas por uma
cortina branca, tudo era branco, os ossos são brancos...
Estou aqui deitada como se fosse um chão de calçada portuguesa e o
médico está a picar, picar, picar e finalmente eu consigo ouvir e sentir o
meu osso a partir, este som é o meu osso a partir, quero que isto pare, eu que
nunca parti nada, nem a cabeça, não literalmente pelo menos, de órgãos
partidos só sei mesmo do coração, como é que se sobrevive a isto, uma
fractura interna, é disto que falam quando falam disso, e agora a agulha
aspira qualquer coisa e então é isto um mielograma e então é isto uma
biópsia. A voz tremia, crescia numa sucessão de ais que eu cada vez
controlava menos, e no entanto não me mexia. Não podia. É tão difícil
respirar enquanto se sofre. Também isto me escapara. Esta simples noção,
este malabarismo íntimo que eu julguei ter dominado a vida toda e que,
agora, ficava provado por agulha mais carne mais osso mais medula que,
afinal, eu nada sabia. Não havia Mário Viegas a recitar Armindo Mendes
Carvalho. Ai a dor que tenho aqui!
A enfermeira sentou-se aos meus pés. Segurou-me na mão esquerda,
braço estendido. Devo tê-la agarrado de volta, com uma força que me
escapava por todos os outros lados. Um anjo que eu não via mas que
visitava a minha cama, como Jesus no conto do Eça. Minha querida, tenha
calma, já não falta muito, como se chama? Hesitei. Pela primeira vez na
minha vida, durante segundos, eu não me lembrava do meu nome. Sentia-
me prestes a perder os sentidos. Solucei uma vez mais, e disse. Consegui
dizer o meu nome. Depois, acabou.
Limpeza, um penso, portou-se muito bem, vai ficar tudo bem. Daqui a
duas semanas saberá os resultados, se houver alguma coisa antes nós
dizemos. Esperar e sofrer, sempre. Fiquei em silêncio. Agora deixe-se estar
deitada de barriga para cima uns quinze ou vinte minutos, já venho ver
como está.
Olhei o tecto, incapaz de mais. Atrás da cortina, uma voz feminina com
sotaque espanhol dizia, Vai sentir uma sensação fria, vou aplicar um spray.
Momentos depois, um velho, Ai minha Nossa Senhora. Ai minha Nossa
Senhora. Chorei por ele. Ai pobre daquele velhinho.
Vieram buscar-me. Percebi, então, que coxeava. Tantas primeiras vezes
em tão pouco tempo. Levaram-me para uma sala com cadeirões e sentei-me.
Reconheci pessoas da sala de espera, o velhote que estava com o filho, um
outro homem, a moça grávida. A televisão ligada mas ninguém lhe prestava
atenção. Deve haver algum estudo que comprove que o zumbido de uma
televisão ligada no canal mais desinteressante possível acalma os nervos
físicos e burocráticos dos pacientes, como deve haver um estudo a
comprovar o contrário.
Eu tinha parado de chorar. Mas havia uma rapariga à minha frente, muito
pálida, careca, a quem vieram dar um pequeno-almoço líquido. Ela estava
cansada e tinha covas debaixo dos olhos. Fechou-os várias vezes, e
dormitava de vez em quando. Quando as enfermeiras saíram, a minha e a
dela, quando eu olhei bem em volta, um homem de pijama e pantufas, a
rapariga grávida, os outros, mas sobretudo a rapariga careca, chorei como
nunca antes. Pensei, não vamos todos sobreviver. Pensei, eu não vou
sobreviver, eu vou morrer mesmo, estou doente, quantas vezes pode alguém
escapar, quantos exames feitos e quantas certezas do que não tenho e iguais
incertezas sobre o que tenho, quanto tempo mais posso aguentar sem a má
notícia derradeira.
Chorava de medo, vergonha, desespero e dor, e já todos deveriam ter
passado pelo mesmo, pois ninguém disse nada, como se eu ali não estivesse,
ou estivesse tão calma e seca como eles, e talvez eles estivessem pior, até.
Eu ainda não tenho nada, posso não ter nada, até podemos todos sobreviver,
tens de aprender com isto, nada te ensinou mais na vida do que isto, vais
morrer. O tempo passado num hospital, qualquer que seja a situação, é o
mais próximo do Inferno que podemos experienciar.
Não fui trabalhar. Mandei uma foto do meu rabo à minha irmã. Sentia-
me enjoada e fraca. O que dormi pareceu-me pouco. A viagem de carro de
casa dos meus pais para a minha foi difícil, com uma respiração consciente
e forçada para evitar vomitar a todo o custo. Coxeei durante uma semana,
tempo que demorei a conseguir deitar-me novamente de barriga para cima.
Quando deixei de precisar de pensos, apenas um ponto ínfimo mostrava que
algo se passara, e era difícil dar com ele à primeira, por mais vezes que me
visse ao espelho. Como se nada fosse. Como se tivesse sido um sonho. Mas
não tem sido isso a minha vida? Tanta ironia. E eu tão pequenina.
Tupperware
«O amor é um alimento», recorda-me o Facebook nas suas memórias.
Quem o diz, num vídeo, é Gustavo Santos, o guru que todos amamos odiar.
Ontem, no comboio para casa dos meus pais, uma rapariga contava, ao
telefone: «Sabes aquela marmita? A minha mãe encheu-a de salsichas e
molho.» Eu própria regressei coleccionando mais um tápáruére, como se diz
em bom português, com doce de coco, consequência da última ida da minha
mãe à Guiné. É uma verdade universal que os ditos, pertencentes a alguém
que seja mãe, devem ser estimados e devolvidos imaculados, o mais
depressa possível, sob ameaça de desencadear várias pequenas guerras
familiares à escala mundial. Recordo uma amiga ter-me levado dois, certa
vez, um com uma inscrição a marcador preto onde se lia que o dito lhe
pertencia, a ordenar «favor devolver» e outro, da sogra, que já lho pedira há
bastante tempo e que ela, julgando-o perdido, suspirou de alívio ao saber
que ainda existia. Devolvi-lhe as caixas com almôndegas que tinha feito
nesse dia.
Se, para alguém que adora livros e ainda os empresta, não há nada pior
do que não os reaver (excepto dobrarem os cantinhos de páginas que não
marcámos), é também verdade que é por nunca devolvermos alguns que a
nossa biblioteca ganha contornos mais interessantes. Por três vezes comprei
e emprestei um dos meus preferidos, A balada do café triste, de Carson
McCullers, e lhes perdi o rasto. Paz à alma dos Contos Completos de
Truman Capote e à versão bilingue do Book of Longing, de Leonard Cohen.
Anos passados, encontrei este último em versão original na estante de
alguém que me é querido, e trouxe-o apenas para, uma hora depois declarar,
insolente, que não lho devolveria. Mas ele deixa. O amor, tal como os
tupperwares, também pode ser rastreado, perdido, devolvido mas nunca de
igual modo, não importa se numa caixa de gelado de tamanho familiar
usada para congelar malaguetas ou num daqueles dos bons, com abertura
para deixar escapar o vapor e que vedam tão bem que quase não
conseguimos abri-los. Cresci com uma mãe que é a melhor cozinheira que
conheço e de quem de momento tenho três caixas em casa. Mas vou
encontrando outras que não reconheço logo: a de tampa azul da Andrea, o
frasco de vidro da Lilit, o de tampa amarela do Daveed. Vou-me
apercebendo de quanto da nossa memória afectiva está contida nessas
caixinhas e frascos. Lembro-me de ter deixado um saco com o meu melhor
tupperware, de sopa, à porta de um rapaz que amei muito e durante muito
tempo. Foi a primeira vez que o fiz. Como um gato que nos recebe com um
pássaro ou rato morto na boca e o deposita a nossos pés. Gestos de amor,
delicados. Rituais e oferendas, sacrifícios. Afectos por vezes recíprocos,
tupperware muitas vezes não recuperáveis. Lembro-me de voltar de casa
dos meus pais com uma das comidas preferidas do meu namorado da altura,
feita pela minha mãe, e de ele a ter devorado sorridente, mandando recados
elogiosos para ela, que ainda nem sabia que ele existia.
O prazer de preparar refeições para a semana e ver aquele amontoado de
caixinhas cheias de segredos e coisas boas, acalma e é demasiado bom,
sobretudo para quem tem algum transtorno obsessivo-compulsivo. Sim,
porque também cozinho para mim, para conforto próprio. Outro dia saí com
sopa e bolo (eu juro que cozinho muitas outras coisas) para uma amiga que
estava muito doente. Desta vez, pedi que passasse o que trouxera para
outros recipientes ou pratos, ela lavou-os e eu trouxe-os de volta comigo.
Talvez eu esteja em estágio para a maternidade sem o saber. Certamente já
passei demasiado tempo a tentar fazer coincidir tampas e caixas, no armário
e na vida (se nunca partilharam casa, não sabem como é difícil conseguir
harmonia e coordenação de recursos). Mas quero com isto dizer que voltei
com bem mais do que levei, e nem me refiro a chás arménios e colombianos
ou a uma conserva maravilhosa. Regressei a casa sabendo que ainda agora
lá estava, e é esse o motivo pelo qual vou continuar sempre a demonstrar, da
maneira como o fizeram comigo, o que é para mim o amor. Um alimento,
uma partilha, uma delícia. Na mochila, em sacos, nas mãos, na poesia de
e.e. cummings, carregamo-nos uns aos outros, aos nossos corações e às
nossas boas intenções e más interpretações. Uma e outra vez nos
transportamos do frigorífico para a mesa, para o aprofundar de laços, para
celebrações demasiado íntimas para caberem em algum lado. Mas nós bem
que tentamos. Home is where ___________’s (insert person you love here)
tupperware is.
Precipícios interiores
«Lembro-me de ter pensado que
há coisas que só se engolem
com muita fome e uma flor à frente.
Mas ele era um sem-abrigo ainda jovem
qualquer dia
já nem vai precisar da flor.»
And.Tecedeiro
É a terceira ida ao supermercado este mês. A música ajuda, sempre e em
tudo. Bolsos e carteira vazios. Contas bancárias por onde nem o vento
passa. As botas escorregadias por já não terem capas nas solas. A mala a
precisar de ser cosida. A mala e a vida. Ou ela a si mesma. Pensava que era
uma mulher, e a constatação de que esteve numa dolorosa aula de ioga nas
últimas vinte e quatro horas acrescenta dez centímetros ao seu já maltratado
ego. A fome é um precipício interior, erguido a medo, desolação, desespero.
Quando chegamos ao limite ou ao que julgamos ser o nosso limite, eis que
descobrimos os alheios e, sobretudo, a falta deles.
No autocarro, o cheiro do pão ainda quente. Outro dia, ao telefone, dois
estranhos discutiam o que se conseguia comprar no supermercado com seis
euros. Alguém, do lado de lá, dizia ser «Muita coisa». A estranha do lado de
cá, com ironia, respondia, «Eu sei muito bem o que dá para comprar com
esse dinheiro». Seguiu-se um «Nada», mudo. Mas ela sabe, afinal faz somas
na calculadora do telemóvel a cada produto que escolhe, não vá o dinheiro
tecê-las. Um após o outro devora três dos quatro pães que estão no saco.
Armazenar é preciso, mas todos os dias se gasta, e a reposição não chega a
ser feita em tempo útil.
Está cansada. Cansada de precisar, de depender, de não ter. Cansada de
malabarismos financeiros nos quais o saldo acaba sempre negativo.
Cansada de adiar, de adiar-se. De fazer planos e falhar-lhes. Cansada de
falhar a si mesma. De não poder ser aquela com quem se pode contar. De
falhar aos outros, mesmo se eles não o sabem ainda. A negação caminha de
mão dada com a prostração. Raramente se permite chorar. Mas há dias em
que não suporta a própria vida, dias em que não sabe quem é esta pessoa
que se mantém por cá, que tem sempre um sorriso sincero para dar, que por
vezes quase parece esquecer-se da situação em que vive. Que não quer
preocupar ninguém, que guarda os desabafos até ao último momento.
Jardineira, panados de peru com massa, coelho com batatas fritas, peito
de frango com esparguete. Poderia ser a lista de pratos do dia num qualquer
restaurante, mas são parte da ementa privada que a colega do lado lhe tem
trazido para o almoço. Comemos fora, estamos habituados a que sejam
outros a preparar a nossa comida. Então, por que é tão estranho que alguém
no-la traga? É a tal da vergonha. A paralisante vergonha da necessidade. A
gratidão tem o mesmo efeito. Porque nunca parece suficiente. Porque a
sentimos de tal modo que nem sabemos como expressá-la. A lista continua.
Café, bananas, pêras, maçãs. A gratidão caminha lado a lado com a culpa e
o pensar no que pertence e poderia, poderá, será que faz?, falta a outros. A
culpa pelo sacrifício alheio é uma das mais corrosivas. Corrói mais do que
dias corridos a sopa de pacote e pacotes de ketchup (surripiados de um
restaurante de fast food), do que as noites em que vai para a cama sem
jantar. Quando vivemos sozinhos, tudo dura mais tempo, não é assim?
A delicadeza de quem, para além de tão grande gesto de compaixão,
ainda nos pergunta se gostamos disto ou daquilo, para nos dar a escolher,
como se fôssemos da sua própria família. A delicadeza emudece, emociona,
transforma. Há um precipício, mas não temos de atirar-nos dele. Muitos o
carregam dentro de si e andam no meio de outros, em igual ou pior situação,
e nada que os distinga porque a fome é isso mesmo, uma ameaça que
demora muito a deixar-se ver. Há um precipício. Há mãos que nos agarram
no último momento. Às vezes essas mãos são bem pequenas mas pertencem
a alguém de coração gigante. Eu espero que haja sempre alguém que nos
encontre. Há um precipício mas não temos de ceder. Podemos sentar-nos à
sua beira e, com sorte, na relva. Com sorte, haverá flores. Com sorte, dias
melhores.

30-01-2019
Mostro-lhe o meu livro pela primeira vez. Observa-o muito atentamente.
Olha-me, pergunta: «És tu, a Gisela Casimiro?», como se esse ser impresso
fosse um alter-ego e não eu mesma, a pessoa que para ela é a Gisela,
apenas, mas também «A» Gisela. Respondo que sim. Diz que acha o livro
bonito. Não há nada melhor do que ir buscar uma criança à escola. Pelo
menos para mim, que as não tenho. Hoje, a «minha» está calada. Pergunto
como está, nada bem, uma dor num dente que manteve secreta desde o
acordar, achando que iria passar. Levo-a ao lugar de que toda a gente gosta,
o Kaffeehaus, e após muito torcer o nariz, lá se delicia vezes sem conta com
a limonada de framboesa, sem gelo nem rodela de limão. Água a rodos.
Hoje não há bolo para ninguém, tal é a dor, até de comer, mas fica a
descrição do mítico sachertorte, promessa para a sua segunda visita. Mais
tarde, abraçadas a ver Ladybug, à espera da mãe, pergunta a minha idade.
Creio que se vai esquecendo, de vez em quando, ou é o tempo que se vai
esquecendo de nós, deixando o que nos liga cada vez mais forte, uma
ternura que nunca ganha pó, talvez apenas umas rosinhas brancas há muito
tempo, ou uma única, cor-de-rosa, desta vez; amigas de longa data que, sem
se verem há muito tempo, ainda ontem estiveram juntas nalguma realidade
paralela. Mas depois os cabelos: tão longos como não me lembro de alguma
vez ter visto. Quando lhe digo que são trinta e quatro, deleito-me com um
«És muito nova». É por isso que gosto tanto de conversar contigo, Nê.
23-01-2017
Falávamos de balões. Sobrara um, laranja, perdido na minha mala, que a
Nê encheu pelo caminho. Falávamos de balões com vias lácteas e com
orelhas, os balões da nossa infância. Ela, que ainda a vive, disse que, em
casa, têm balões em forma de coração. A mãe observou, «Mas os corações
rebentam com muita facilidade». E eu respondi, «Infelizmente, não só em
sentido metafórico».
04-10-2016
Não sei como é que ela conseguiu, mas estávamos ambas em pé e a Nê
fez-me festas na cabeça. Os que não têm seis anos vão dizer que foi por
causa das escadas, mas não estavam lá, pois não? Depois, espetou o
indicador ao de leve na minha barriga e apontou para a sua, já de camisola
levantada. Tenho de voltar ao exercício físico, disse-lhe. Podes vir fazer
educação física na minha escola. Achas que ninguém iria notar? Agora
temos lá uma tartaruga bebé, ela é tão fofa, estamos sempre a olhar para ela.
E já tem nome? Não. Têm de votar e depois decidir. Vou chamar-lhe Gisela.
Vai ser a tua cópia. Não, vai ser a minha homónima. Entre homónimos,
doppelgangers e sósias, contou-me de duas gémeas amigas, não me recordo
agora os nomes, mas uma era a da camisola rosa e, outra, a da camisola
azul. Coitadas, nunca mudavam de roupa? Ou vestiam sempre a mesma
cor? E se trocassem de camisola, como é que fazias? Falámos da natação,
do piano, do Daniel, da professora de inglês e de como ela descobriu,
durante a apanhada (diferente da do meu tempo, agora apanha-se mesmo)
que é mais forte do que um rapaz do quarto ano. Quando nos despedimos,
pediu que a levasse comigo; abraçada a mim, dizia, não vais sair daqui, vou
colar-me a ti. Menos cabelo, num corte que lhe fica tão bem, menos dentes,
num sorriso que, num dia como o de hoje, especialmente como o de hoje, eu
não esperava ver e que ela tem sempre para me dar. Ouvi, quando cheguei, a
Catarina dizer, olha ali a Gisela. E a Nê, mesmo à minha frente, olhava para
todos os lados e perguntava, ainda sem me ver, onde, onde? No meio de
muitos abraços, ouvi, a minha filha está a olhar para uma das suas pessoas
preferidas. Ela também é uma das minhas. Nunca quero esquecer as coisas
bonitas que ela me diz. E só agora percebi o tanto que ainda tinha para lhe
contar. Não sei como, mas tenho ali uma grande amiga. Duas, na verdade. E
que saudades eu já tinha.
19-07-2016
Outro dia,
– Gisela, qual é o teu vestido preferido?
– Não sei, Nê, eu...
– Eu acho que é esse que tens agora, porque já te vi muitas vezes com
ele.
No mesmo dia,
«Quando tu me conheceste eu já tinha seis anos. Eu pensava que riqueza
era ter muito dinheiro mas riqueza afinal é ser inteligente. Ó Gisela, tu
disseste que ias para a natação, já começaste? Eu não sei por que é que o
laranja é uma fruta e uma cor.»
(E eu só consigo dizer «Ó Nê tu és linda».)
25-06-2016
Das manhãs felizes, com encontros combinados que se sobrepõem aos
casuais e tudo resulta em bonita sintonia. E há lá coisa que nos desarme
mais do que, depois de sermos cumprimentados com um longo abraço,
recebermos um outro, assim do nada, inesperado, ainda melhor do que o
primeiro? Talvez nas crianças coisa alguma venha do nada. A Nê vem da
Catarina, em parte. Ela disse à filha que os cockers são cães de veludo.
Algum tempo antes, o Fred disse, «As minhas referências Disney são
limitadas. Por isso é que eu sou são».
Trapezista temporária
O MEU CORPO

Este é o meu corpo,


mas ainda não é o meu corpo.
Este já não é o meu corpo
e nunca voltará a ser o meu corpo.
Mas este já foi o meu corpo
e ainda virá a ser o meu corpo.
Este já parece o meu corpo,
mas eu não sei se o meu corpo
ainda se lembra do meu corpo
ou se terá de esculpir outro.
Gisela Casimiro in Erosão
(Urutau, 2018)
Quando escrevi este poema, O meu corpo, estava muito longe de
imaginar que um dia estaria em palco, no Grande Auditório do Centro
Cultural de Belém, pendurada numa barra, qual Cristo crucificado. Este
poema vem de longe, de um lugar de memória permanente. Agora que o
espectáculo terminou posso, aos poucos, começar a descer do trapézio e a
olhá-lo, como fazia em palco, mas agora, sem deixar de fazer a inevitável
analogia ao meu percurso de vida. Abril marca que foi há quatro anos que
me submeti a uma cirurgia bariátrica, um sleeve gástrico, em que nos
retiram 80% do estômago, que depois volta a crescer mas nunca a retomar o
seu tamanho original. Apesar de tornar-se mais sensível, também passa do
modo avestruz para algo mais evoluído e inteligente: tudo o que não
pertence ali, não fica muito tempo. Fossem os nossos cérebros e corações
tão capazes de reagir com a mesma rapidez e parcialidade. Talvez seja uma
questão de sobrevivência, talvez o estômago seja mais difícil de enganar ou
mais eficiente em matéria de autoprotecção. Talvez o amor-próprio seja um
super poder que é despoletado por situações extremas. Outro poema meu,
2015, confessa: «O que perdi em estômago, ganhei em coração.» Que é
como quem diz, no caminho para voltar a reconhecer-me, ou talvez para
conhecer-me de uma vez por todas, aprendi a respeitar o outro e a colocar-
me no lugar dele, e apenas posso esperar que tantas provações me tenham
tornado um grama que seja melhor enquanto pessoa.
Há a versão de Hamburgo, em que os meus papéis são desempenhados
por uma moça robusta e loira. Como ela, levo o cálice para o palco. Como
ela, carrego uma bandeira branca. Faço piadas com outra colega, agora uma
nova amiga, cabelo escuro e pele alva, cuja antecessora era, também, loira.
Com ela partilho o trapézio, momento em que a cor invade o palco por
momentos, pois praticamente tudo é branco neste cenário. Não pergunto a
quem me escolheu porque é que o fez, mas sinto essa graça e esse peso,
mais do que o meu, a comover-me. Há muitos contrastes, uma capa
vermelha e uma azul. Uma criança-esqueleto e um autocarro que invade o
palco em altura de terrível e lamentável tragédia na Madeira e da agora
menos relevante, face a isso, falta de combustível. Há as línguas portuguesa,
italiana, francesa, alemã e há o silêncio e a dedicatória da estreia a Notre
Dame, onde infelizmente nunca fui. Há um entendimento, harmonia e caos,
orquestra e coro, técnicos e produtores. Há uma árvore, já destinada ao
abate, e os seus ramos cortados no momento. Há quem lhe leve flores, à
árvore, num dos mais bonitos quadros vivos que já vi. As folhas atenuam os
cheiros dos químicos usados neste laboratório improvisado, pois que nada
foi deixado ao acaso, desde o amoníaco à electrólise. Há uma pedra que se
racha, e que outro dia ficou com um formato de coração partido. Há aqui
tanto que me comove que anda ali estou, incapaz de falar noutro tempo que
não o presente, ou de ouvir outra música que não a que me tem
acompanhado nos últimos meses, mas sobretudo nas últimas semanas. Há
uma obra inspirada na religião que é a minha, e que é imperfeita como eu,
mas da qual não consigo desvincular-me, por acreditar demasiado em algo
que é como eu, e maior que eu, tal como eu também sou capaz de ser,
sobretudo quando me faço mais e mais pequena e me lembro de que servir é
o mais importante. Contar histórias seria inútil se não servisse ninguém.
Uma religião é obsoleta se não se alicerçar no amor, e o amor não tem
fronteiras, ou passa a ser outra coisa.
Nos corredores, nos bastidores, cronometra-se o tempo que cada um
resiste e fazem-se ajustes, enquanto se abusa do pó de magnésio nas mãos,
para horror da produção, e se observa os colegas, um de cada vez, alguns
dedicados inteiramente a este momento e outros com mais funções. Mas
quase toda a gente gostaria de fazer também esta parte. Há quem venha
precavido com ligaduras ou pensos, há quem descaia a cabeça para a
esquerda e quem o faça para a direita. Há homens e mulheres, há outra
criança. A mim, observam e parabenizam muitas vezes: «És quem aguenta
mais tempo», ou «Tens um ar tão natural», ou «A mulher do trapézio». Rio
e respondo que a minha vida me preparou para este momento; que não sei
como isto aconteceu, e é verdade; que a minha hérnia inguinal, operada em
2017, e que ultimamente tem voltado a chatear-me, não acha muita graça.
No dia da estreia, também o meu estômago não parece querer colaborar, e
passo horas agoniada. Há quem vá correr uma ou duas vezes por dia durante
os ensaios mas que não consiga deixar de pensar em bolos, mesmo se traz
uma caixa gigante com cenouras cruas para ir petiscando. Há quem se
conheça pela primeira vez e quem já se tenha cruzado neste e noutros
palcos. Respirações conscientes e profundas, ioga aproveitando que existe
um tapete de luta no cenário, alongamentos e uma panóplia de pequenos
exercícios e rituais de preparação. Há ainda quem leia ou durma e quem não
consiga estar calado ou afastar-se do telemóvel por muito tempo, ou de um
cigarro. No Capítulo XVI, Crucificação, podemos ler: «O peso do corpo dos
condenados à crucificação provocava a morte por asfixia. [...] O condenado
mantinha-se plenamente consciente até ao momento da morte.» A Paixão
segundo São Mateus, de Bach, dirigida por Romeo Castellucci, inclui,
ainda, no libreto, o peso, nome, idade e altura dos figurantes a quem foi
pedido que suportassem o peso do seu corpo o máximo de tempo que
conseguissem. Nenhum de nós, figurantes, fala em palco, não fosse esta
uma ópera, a primeira a que assisti na vida, e da qual tive ainda a honra de
fazer parte. Falam os nossos gestos, os nossos olhares e as nossas pálpebras
fechadas. Falam os braços que tremem por vezes ou as mãos que ajustamos.
Falam o baloiçar dos nossos corpos suspensos, e a posição das nossas
pernas. Falam os nossos pensamentos, ou o que quer que nos ajude a
permanecer por cá. Há quem deteste que lhe perguntem a idade. Eu detesto
que me perguntem ou tentem adivinhar o peso, mesmo se na verdade me
dão menos peso (e idade, vá, afinal sou negra) do que o que tenho. Eu já
tive orgulho do meu peso e já tive vergonha do meu peso. Mas agora sei que
consigo suportá-lo, seja ele qual for, e até vê-lo exposto assim, impresso: os
70 kg que tinha e que me ficavam tão bem mas ocultavam o peso
equivalente a uma pessoa em escuridão, peso esse que foi passando tão para
fora de mim que deixei de poder ignorá-lo, ao chegar aos 133 kg certa vez.
Há o Joel, que sobreviveu a uma hipotermia no mar, perdido que esteve
durante cinco horas. Tinha ido surfar. Há o Carlos, que se viu de pernas
presas debaixo de um tractor; consciente durante todo o tempo do acidente,
que forçou a amputação de ambas, agora usa próteses. Há a entrada leve e
cómica do Joel nos agradecimentos e o sorriso e as brincadeiras constantes
do Carlos. O nosso peso, interior ou exterior, parece muito pouco, perante a
coragem e a alegria de ambos. O amor à vida de ambos, penso, numa
semana em que ouvi de alguém próximo que queria muito morrer.
Diz o libreto: 78kg – Gisela Casimiro, 34 anos, 172 cm. Trapezista
temporária no palco, permanente fora dele. Ainda com muitos pesos para
deixar cair. Ainda tendo de me lembrar de respirar, ao fim de todos estes
anos. Olá, eu sou a Gisela. Muito gosto em conhecer-vos. Talvez possamos
conversar quando eu recuperar os sentidos, o equilíbrio e a voz.
Flores de Paris
«Nunca peço este bolo. Há uma amiga que o escolhe sempre mas hoje,
como ela não está aqui...» Completo-lhe a frase enquanto serve o seu chá.
Pequenos, delicados, estranhos rituais estes, que passamos a ter na ausência
de alguém para trazê-lo/a para mais perto de nós. Conversamos sobre as
idas à piscina, o desamor, o negócio dos livros, doenças e solidão. Mais
tarde falaremos sobre o cansaço das viagens e tudo o que pode correr mal
em festivais literários. Dir-me-á para não pensar tanto em coisas que,
assegura, fiz bem em deixar.
*
Passaram alguns anos desde que me enviou essa foto que nunca esqueci:
flores de Paris, de entre as quais sobressaem verónicas, dálias e hortênsias.
Noutra altura, uma tarte de maçã ladeada de hortelã e manjericão a
emoldurar a singeleza. Não costumo ir muitas vezes à Versailles, o que é
pena, porque a sopa de cebola, o pastel de bacalhau, os bolos, e até mesmo a
formalidade, são bastante prazerosos. Não fazer muitas vezes algo que nos
dá gosto ajuda a preservá-lo como deveríamos. Há uma mini Versailles no
hospital onde fui operada a primeira vez e há uma Versailles umas ruas
abaixo de onde vivo agora. Mas na original sentei-me com a minha amiga
Ana a falar da sua mãe e de bandas desenhadas. De como o pai queria
aprender a cozinhar para a mulher, que era professora e cantava fado. Eu
não chegaria a conhecê-la, mas naquela tarde senti que sim. Foi ali que
estreitámos laços, comovidas que estávamos. Por isso, não sei como poderia
ter-me encontrado com mais esta amiga noutro sítio, independentemente do
jeito que desse. Há algumas coisas que notamos sempre na primeira vez:
quando nos chamam pelo diminutivo, quando alguém de quem gostamos
nos diz que somos bonitas (mesmo se agora já o sabemos), quando uma
amiga se nos refere como tal, em voz alta, a outra pessoa.
*
«Como é que eu podia explicar à mamã que o problema não era ela, mas
a deformação que o tempo sofria na casa dela? Eu entrava na casa da mamã
e o tempo tornava-se um mecanismo tosco, como se alguém o esculpisse em
fisga, eu à mercê dessa fisga, eu munição contra mim mesma, a ser puxada
para trás no tempo e depois atirada, desprotegida contra o presente, onde via
todos os meus erros e fracassos. A casa da mamã guardava tudo o que eu
não quis ser, e que ironicamente acabei por ser.» Troco mensagens com uma
amiga que me diz: «Cliffhanger maravilhoso na Eliete.» Rio-me. Pergunto,
citando o livro: «Não vais apagar agora, pois não, Carlota?» Responde com
um «Somos todos Eliete». Somos, mas só a Dulce pode ser a Dulce. Daí a
uns dias, vamos a uma conversa na Tigre de Papel e rimos como umas
perdidas enquanto trocamos bilhetinhos secretos, ela com uma carraspana
de meter dó, anunciando uma morte para breve antes de abandonar a sala
mais cedo. «Vou ter de comprar um medidor de tensão arterial destes, e o
coração ficou esquecido nos rascunhos.» A capa do livro funde-se com o
meu velho edredão laranja. É bom saber que há mais de onde vieram estes
livros, estas mulheres. Há muito de Portugal, daquela coisa mesmo deliciosa
e terrivelmente portuguesinha em Eliete. Na Dulce há uma gentileza que me
encanta sempre. Nunca usei tanto a expressão «temos de parar de encontrar-
nos desta forma» com alguém como com ela. Porque a encontrei quase
sempre por acaso, em transportes públicos ou restaurantes de fast food. Não
é todos os dias que temos um ataque de riso com alguém que nos faz sentir
tanto com a sua escrita. A primeira vez que a vi, ainda não a conhecia, foi
num evento com laivos de chique, trazia um vestido preto e havaianas.
Sempre a rir, sem querer saber. Há uns anos, a um sábado de manhã, quando
entrou e se sentou à minha frente no metro, mochila e casaco floridos,
pareceu-me que era ela, a cabeleira loira inconfundível, mas achei que devia
controlar-me. Os meus auscultadores só estavam a funcionar de um lado.
Sorte a minha.
*
Ele: – Lembras-te do Professor Pardal? Também andava sempre com
uma lâmpada.
Ela: – Lembro. Mas ele era magrinho. Terias de fazer uma dieta. (Risos.)
Eu: – Riso silencioso, a tentar ser discreta, mas sem conseguir, à medida
que ela se ia metendo mais e mais com ele, um beicinho a nascer-lhe.
Ele: – A música deve estar boa. (Para mim.)
Ela: – Ahaha
Eu: – Peço desculpa. (Sem conseguir conter o riso mas a tentar, a limpar
as lágrimas e a encolher os ombros.)
Ele: – Deve ser um podcast. (Já a corar.)
Ela: – Eu também tenho disso. (Para mim, ambas a rir sem parar.) Podia
ser a tua imagem de marca, podias ir a todo o lado com uma lâmpada. (Para
ele.)
*
Como explicar uma amizade que começa antes de que se possa saber o
mínimo não-tão-indispensável sobre alguém? Ou será assim que surgem
algumas das amizades mais ternas? Não saber quase nada sobre alguém,
nem precisar, é o derradeiro guilty pleasure das relações modernas. Ou
melhor, saber só o que importa. Levar o seu tempo, e fazê-lo olhos nos
olhos. Coisas para as quais não há pressa, flores que continuam a crescer
ininterruptamente, para lá dos seus vasos fotografados, num país onde
nunca estive.
O lugar das estacas
Voltei ao lugar das estacas, expressão popularizada pela apresentadora
Cristina Ferreira em 2016 quando declarou, emocionada: «Mesmo que eu
um dia tenha de voltar à feira, ainda sei o lugar das estacas.» Considero este
um dos grandes momentos da televisão portuguesa, com laivos de Scarlett
O’Hara na sua saudosa Tara, declarando a Deus que jamais voltará a passar
fome. Ao contrário de Cristina, que muitos consideram a figura deste ano
que encerra, eu nunca vendi na feira, mas recordo-me bem de uma
entrevista em que ela dizia só ter andado de avião pela primeira vez aos
trinta. Há anos que não visitava a Feira do Relógio, a qual tenho descoberto
ser ainda um mistério para alguns residentes lisboetas. Também eu me tenho
esquivado, por preguiça e por ter vivido três anos na rua contígua à Ladra, a
voltar à mãe de todas as feiras. Tolice. Nada faz passar a melancolia
dominical como uma ida ao Relógio.
Cresci em Alverca do Ribatejo, uma das muitas cidades onde há uma
feira, no mínimo, todos os sábados. O ritual de sair para passear,
normalmente em família, reencontrar toda a gente, ver coelhos e pintainhos
à venda, voltar para casa com saias a dois euros e farturas no bucho em
qualquer altura do ano, é parte da qualidade de vida que perdi quando me
mudei. Que me perdoem os farmer’s markets, mas esta é uma liga superior:
dos lugares mais mágicos, surreais e divertidos, em estímulo exagerado e
contínuo de todos os nossos sentidos. Nada se faz pela metade a não ser,
talvez, o preço. Há alguns domingos, depois de uma primeira desistência
por causa da chuva na semana anterior, lá me dispus a percorrer novamente
a Avenida de Santo Condestável.
*
Abre o olho! Vá lá, vá lá, vá lá! Muito artigo bom e barato. Dois a um
euro! Três a um euro. E há a quatro euros, também! Uma mulher usa um
megafone e sobe a um pequeno escadote e há quem suba à própria banca
onde tem os artigos. Desde que não chovam pedras!, repete alguém. Há
quem cante Ciiiiinco euros, em falsete de fazer corar o Prince. Cinco, cinco,
cinco é o mantra repetido em tom gutural. «Because I love you», canta um
homem que por mim passa, reclamando entredentes que o saco vai muito
pesado para o seu gosto. É tão fácil existir aqui. Por todo o lado, sacos de
plástico com desenhos de Pai Natal envolvem cuecas e tomadas eléctricas.
Uma banca está protegida por uma toalha que reconheço: um padrão de
ursinhos, que me remete de imediato para um primeiro date, há quase um
ano. Já acreditávamos, mas isto confirma o seu lugar como a melhor toalha
do mundo. Reparo ainda num belo avental, ostentado por uma feirante, com
a inscrição «Deus te abençoe e te guie» pintada.
*
Andem mal vestidas, andem. Não gastem o dinheiro, não. Ó jeitosas! Ó
jovem! Ó menina, pode mexer à vontade. Um euro cada, se comprar cinco
leva seis. Leva um oferecido. Já não é quinze, é a dez! A dez a dez a dez, é
para a criança andar bem vestida na rua, na escola, para ir à missa!
Cheguem-se para cá! É três por dez! Artigos de loja, artigos de marca! Para
homem, para mulher: coisa linda! Leve tudo, leve tudo! É coisa boa, não é
Primark, não é lixo. É da Loja das Meias! Pode abrir e ver. Aproveitem,
Carolina, Francisca! Venham ver! Vá lá, princesa! Três collants! Olha a
mala! Pode levar maiores e mais pequeninas, está bem, querida? Olhem que
eu tenho luxo! Ó Teresa, esta menina diz para eu não a provocar. Vocês hoje
estão uns chatos do caraças! É de roer! Andem bonitas, mulheres!
*
Parar não é permitido. A feira pulsa, ribomba em sons e línguas diversas,
e quem está nela deve acompanhar os seus movimentos. Cães a passeio e
carrinhos de bebé são levados com cautela pelo mar de gente em constante
desvio, uns dos outros e das estacas de metal que seguram as tendas com
fios grossos e coloridos. Por aqui, há quem ande de patins em linha, quem
branda pijamas-escalpe do Pikachu, quem fale com abacates, quem declare
que é o próprio homem, o próprio ser humano quem está a dar cabo disto
tudo. Delicio-me com um pastel de vento, clássico brasileiro de massa tenra
com recheio de carne e queijo, que mal cabe no prato. Bifanas, garrafões de
vinho, ervas aromáticas frescas e secas. Águas-de-colónia, bolas de futebol,
a genialidade da expressão «jogo de cama». Buzinas, serras, flores falsas e
verdadeiras. Encanto-me com giló, malagueta em forma de rosa, pitaia de
polpa roxa. Há pássaros, plantas, ovos em caixas intermináveis e bem
organizadas. Com sorte até cassetes e disquetes. Soldados de brincar,
porquinhos-mealheiro, mantas multiusos, um pinguim verde de louça que
me acena, facas, bálsamo chinês, cola e escovas de dentes convivem num
caos irónico que me tranquiliza. Posso comprar um sofá, um pente
fluorescente, uma toalha de praia com golfinhos, um relógio do SLB, um
baralho de UNO, pensos rápidos, brincos, uma Nossa Senhora que brilha no
escuro ou pães chamados bebés. Não há limites. São ou não são os
melhores, estes domingos de manhã na cápsula do tempo, no museu vivo de
todas as coisas tuga?
Um lugar à mesa
São muitos, para todos os gostos, viciantes, uma pequena escola de
culinária. Vão criando versões e reinventando-se uns aos outros. Contam-
nos episódios ilustrados ao pormenor por fotografias em que os humanos
são secundários e as refeições, o que importa. Fazem-nos companhia.
Inspiram-nos. Vêem nascer amizades. A Ana Luísa Amaral tem muitos
poemas que são, na verdade, receitas, e os seus poemas estão para a
realidade como os blogs gastronómicos estão, bem, para o resto.
*
Já desconfiava da doença, porém nunca poderia adivinhar o resto. O que
sabemos, realmente, senão o que as pessoas demonstram? Nas redes, pelo
menos. A inevitabilidade de um ocasional revirar de olhos e uma crítica
silenciosa quando surgem os moralismos que no fundo só são bons para os
outros, sob a forma de posts partilhados. Share it until you make it, talvez.
Partilhar para acreditar. Somos da velha escola, do blogspot e do
livejournal, mas os flagelos que nos acometem são muito, muito mais
antigos ainda e não parecem querer ir a lado algum.
*
Há cinco anos que este blog incontornável não era actualizado. Era como
alguém cujo regresso desejamos secretamente mas não acreditamos que
aconteça. Alguém com uma presença, um legado tão vincado que é
impossível não nos entretermos mesmo na sua aparente ausência. Contar
quantas vezes me alimentei e aos meus amigos com as suas receitas revelar-
se-ia tarefa impossível.
*
«Deixa-a lá dentro, cortada, na cozinha,
e traz-me só café. Pousa a bandeja
ali, e depois vai. Não quero o seu olhar:
*
Recorda-me a prisão que ele habitou
(sem ser por mim) e a outra
em que eu morei, e onde fiquei,
*
Lembrando o seu olhar.»
*
Estava no supermercado, outro dia, a planear o que iria cozinhar esta
semana, não fosse eu viciada em meal prep, mas algo me faltava. Algo que,
tantas vezes, encontro no Ponto Espadana, na Smitten Kitchen, no Para
Cozinhar, no The Kitchn, no Two Fat Ladies (saudades das originais) onde
nem uma receita de caldo mancarra falta, na lista memorável de saladas do
Mark Bittman no New York Times. Não desta vez. Abri um blog antigo,
fiável, cujos links de receitas partilhei infindáveis vezes, e que, repito, não
via posts novos há anos. Mas a verdade é que a última actualização
aconteceu há precisamente um ano.
*
«E agora mostras
a toda a gente o cesto,
e não há sombra.»
*
A minha busca por inspiração foi abruptamente colocada em pausa.
Fiquei ali, parada no corredor, a estorvar a multidão que se abastecia de
mantimentos como se o fim-de-semana fosse uma catástrofe e o
supermercado o bunker. Li um testemunho sincero, vulnerável, revelador:
«Assunto delicado e importante.»
*
«Tão brilhante e tão quente. Como
sabe a vermelho este café.»
*
Uma despedida muito após o desaparecimento, com explicações para
nós, os leitores.
*
«Deixo um bilhete à porta, junto ao Hades,
na esperança de que o cão
o não destrua.»
*
Acontece que me habituara há muito a googlar o nome do ingrediente
principal e o do blog, abrindo directamente as páginas que me interessavam,
certa de que encontraria ali inúmeras receitas, dicas, dicionários de termos
portugueses e brasileiros, curiosidades e histórias de familiares e amigos
desta mulher que viveu em França, em Timor, na Terceira. Depois,
espreitava as sugestões no fim de cada post. A Elvira (mãe dos blogs
portugueses de culinária) lembrava-me a Filipa Vacondeus e o Chefe Silva
(mãe e pai da tv e das revistas) por ter-se tornado um clássico. Por ensinar-
nos os clássicos. Por ter sempre um nome carinhoso, de alguém que amava,
para dar a uma receita em vez do original.
*
«Deve ser isso o que a mantém,
A faz vestir-se todos os dias, tomar o cesto das
compras,
Escolher legumes naquela mercearia:
Os minúsculos gestos de que a vida é feita
Quando a guerra é ausente.»
*
Um mês após esse último post, ela deixou-nos. Semanas passaram, no
entanto, entre a minha primeira descoberta e a segunda, que me horrorizou
ainda mais, quando procurei o seu nome no Google e surgiu o verbo morrer
como sugestão complementar de busca. Agora, um ano após a sua partida,
queria poder inventar uma receita que a honrasse, confortasse, fizesse
dançar e cantar durante a preparação, ver o fuminho a sair delicado e seguro
do que quer que estivesse no prato, talvez não um prato mas um tabuleiro de
grão-de-bico com chouriço e ovos. Ou uma carne espiritual. Ou a
delicadíssima lista que forneceu durante uma entrevista quando lhe
perguntaram qual seria a sua última refeição. Não sei se a teve. Não sei se
foi exactamente como ela queria. Não sei porque é que nunca lhe escrevi.
Não sei se a Ana Luísa Amaral e a Elvira do Elvira’s Bistrot sabiam uma da
outra, mas imagino-as a discutir receitas na cozinha e na vida, como nesta
conversa imaginada. Não sei porque é que os cancros e as violências
domésticas andam de mãos dadas. Mas sei que tudo aquilo foi real. Tudo: a
sua dedicação e a nossa admiração.
*
«Vou apagar a luz. Sair da mesa.
Ela aguarda. E eu vou.»
*
Sinto-me como se tivesse chegado tarde, demasiado tarde, a casa. Mas
sei que a Elvira terá sempre um lugar à mesa.
Beleza feia
Há um ano, numa ida a Sintra para visitar a vernissage de uma amiga
pintora, a que estava comigo perguntou, enquanto eu tentava fotografá-la e
lhe dava dicas para se embrenhar mais no meio de umas flores brancas que
encontrámos pelo caminho: «Gisela, o que fazes com as tuas estrias?»
Respondi: «Aceito-as. Digo bom dia e boa noite.» Recentemente, uma das
minhas amigas, que é professora de ioga e, claro, super fit, posou para uma
marca e acho que ainda não lhe disse o quanto gostei do facto de em nada
ter coberto as cicatrizes de uma operação para lhe salvar a vida, ainda bebé.
O instagram pulula de posts de Kim Kardashian (conhecida por mil coisas
mas a mais divertida, sem dúvida, a sua cara feia de choro) a promover
produtos e serviços de marca própria, familiar ou alheia. Mais
recentemente, porém, Kim tem divulgado a sua maquilhagem de corpo, que
usa para cobrir a psoríase, mas da qual vemos também um vídeo atenuando
as veias azuladas e a pele rugosa de sua avó. A modelo Salem Mitchell é
dona de um dos memes mais engraçados de sempre: segurando um cacho de
bananas pintalgadas junto do seu rosto pejado de sardas. Do pesado gozo da
comunidade online surgiu uma carreira de sucesso em tenra idade. Outra
modelo negra, Winnie Harlow, que aliás colaborou recentemente com Kim
num linha de maquilhagem de rosto, é conhecida por ter vitiligo, e tem
vindo a desafiar positivamente todas as ideias de beleza convencionais de
que pelo menos alguns de nós já se cansaram.
Uma das minhas fotos preferidas do Instagram, de sempre, foi postada no
dia dezoito de Agosto deste ano, pela famosa modelo plus-size Ashley
Graham. Uma foto nua, de lado, mão de manicure vermelha impecável e
aliança a tapar o mamilo. Vemos dobras, peito, estrias e marcas de quem
está sentada de lado, perna encostada à barriga. Uma foto de quem está,
também grávida, antes de a barriga arredondar e ganhar espaço, ou seja,
antes de Graham ficar ainda mais bonita. A foto soma até agora mais de um
milhão e setecentos mil gostos, inclusive o meu, que já a revisitei inúmeras
vezes até me decidir tirar e postar uma igual, de um lado e de outro. Ashley
é uma das mais conhecidas modelos plus-size, e tem agraciado as capas e
passarelas de revistas e marcas notórias em todo o mundo, inclusive a da
edição de fatos de banho da Sports Illustrated ou da Vogue. Ashley é uma
daquelas raparigas que deve, ao longo da vida, ter ouvido comentários sobre
como tinha tanto estilo e um rosto tão lindo... para uma rapariga gorda, isto
é. Deve, até, ter ouvido que, se emagrecesse, poderia ser modelo. Eu sou só
uma rapariga comum que uma vez engordou 60kg e depois aprendeu muitas
lições, sobretudo sobre si mesma. Um dia somos adolescentes e perguntam-
nos se nunca pensámos ser modelos. Outro dia estamos na lista de espera
para uma cirurgia bariátrica. Anos depois, alguém nos pergunta se não
queremos posar para uma marca de bikinis sustentáveis e depois de muito
hesitarmos e nos torturarmos, aceitamos. A pessoa que eu mais quero
influenciar ainda sou eu própria e este mês, um ano depois de ter parado,
voltei ao ginásio. No entanto, é irónico como certa vez convenci uns seis
colegas de trabalho a inscreverem-se e que todos tenham continuado até
agora. Lutas.
Outra celebridade que tem ganhado fãs em todo o lado é a já mítica
Lizzo. Num dos seus singles do último álbum colabora com uma Missy
Elliot visivelmente mais magra, olhos amendoados sobressaindo, sempre
fiel às roupas desportivas, sempre dançante, sempre uma rapper
maravilhosa. A Supa Dupa Fly tem lutado com o peso ao longo dos anos, e
pergunto-me o que pensará sobre esta fase em que as coisas parecem estar,
lentamente, a mudar. O meu instagram reflecte alguma aceitação e
celebração, no entanto as partilhas são pouco as de cada uma e das mulheres
reais da sua vida e mais de estranhas e famosas. Ou seja, aceitamos apenas
quem já foi aceite e validado pela internet? Por que é que não celebramos a
mãe, amiga, irmã, vizinha, colega de trabalho mesmo ali ao lado? Porque
podemos cruzar-nos connosco num espelho perto delas? A aceitação é para
quem, afinal?
Desde a estreia de Euphoria, a série do momento sobre adolescentes,
Barbie Ferreira é a porta-estandarte da geração mais jovem, sendo, a par de
Lizzo, talvez a mais cool desta onda, não houvesse uma cena, na série, em
que a sua personagem dança sensualmente em modo twerk ao som de,
precisamente, «Tempo» e do verso Slow songs ain’t for skinny hoes.
Thelonius Monk talvez concordasse.
Finalmente, volto aos meus primeiros amores plus-size: Nadia
Aboulhosn e Gaby Fresh, divas e amigas: bloggers, modelos, designers,
entusiastas do exercício. Porque, sim, todas estas moças plus-size passam,
aparentemente, tantas horas no ginásio como a própria Kim Kardashian que,
como Hemingway fazia, se pesa todos os dias. A diferença estará, talvez, na
alimentação. A semelhança maior? No amor. Algumas raparigas são
maiores que outras, diziam os Smiths. Não vejo mal nenhum nisso.
Eu sou ela
«and he said: you pretty full of yourself ain’t chu
so she replied: show me someone not full of herself
and i’ll show you a hungry person»
Nikki Giovanni
As redes sociais mundiais estão obcecadas com Greta Thunberg e coube
às redes sociais portuguesas duas obsessões extra: o último vídeo do rapper
Valete e a gaguez de Joacine Katar Moreira. Não sei quase nada sobre
Valete, a sua carreira, as suas origens, o seu percurso pessoal e profissional.
Ouvi muitas vezes uma canção de há uns anos, em que colabora com
Capicua, rapper, feminista e activista extraordinaire. Essa canção, Medusa,
é precisamente sobre abusos, igualdade de género, é o denunciar de
situações criminosas e misóginas que vemos, ainda, repetirem-se
demasiadas vezes. Na semana em que o Theatro Circo de Braga se encontra
de luto profundo por um elemento fundamental da sua equipa, Gabriela
Monteiro, vítima de violência doméstica, a reflexão e a acção tornam-se
mais urgentes ainda. Não entendo o que aconteceu nos últimos anos para
que a mensagem de Valete tenha, aparentemente, mudado. Sei que enquanto
rappers, feministas, plantas e animais de estimação debatem no twitter e no
Youtube, essas mulheres continuam a precisar, elas sim, de atenção, que tem
ido para tudo e todos excepto as mesmas. Passamos tristemente do oitenta
ao menos oito, quando as argumentações e defesas revisitam os esqueletos
no armário de cada um dos envolvidos, abordando situações totalmente
alheias a esta. Mediatismo à parte, não é diferente ver o video de Valete
(que não aprecio, nem a letra, nem à defesa que dele faz) ou ver vídeos
virais, brasileiros, verdadeiros, de mulheres que maltratam outras mulheres
violentamente, em situações de adultério, com armas e cortes de cabelo,
exactamente ao nível do que os gangues fazem. E se recordarmos a carreira
musical de Rihanna, talvez fiquemos um pouco confusos com Love the way
you lie ou Bitch better have my money e a mensagem que passam, depois da
sua famigerada relação com Chris Brown, resultando em violência. Apenas
me pergunto se não deveríamos, como diz Capicua, colocar a minha ira, a
nossa ira, a ira... ao serviço de cada vítima acusada e transformada em
monstro.
*
No cartaz de um evento está a minha foto e a de mais três mulheres, uma
delas negra. Por engano, escrevem o meu nome duas vezes: por baixo da
minha e da foto de uma delas, a escritora Yara Monteiro, que se apercebe do
erro e pede a correcção. Concordamos, rindo, que é um elogio mútuo, erros
à parte. Seria porque ambas temos uma mega cabeleira solta e volumosa,
fácil de confundir? Estas coisas acontecem com alguma frequência, seja
com nomes, fotos ou até descrições. Por vezes até através do tempo e do
espaço, como descreve a Djaimilia Pereira de Almeida em Esse Cabelo,
quando se reconhece na mítica foto de Elizabeth Eckford, tirada em 1957.
Eu mesma tiro uma foto de rosto encostado à capa deste romance, ao
melhor jeito «podia ser eu». É que podia mesmo. Dias mais tarde, ao jantar
numa associação, um jovem dirige-se-nos. Sim, estou agora com essa
amiga, já fora do cartaz e com muito menos cabelo do que na foto. O jovem
apresenta-se e, quando dou por mim, está a segurar-me as mãos,
embevecido. Pede-me um autocolante, respondo que só tenho um, a minha
amiga também, mas cede o seu. Ele continua, embevecido, a segurar-me as
mãos e a dizer coisas que não percebo, mas a minha amiga sim, e clarifica:
«Ela não é a do autocolante.» É então que eu e o jovem ficamos perplexos,
ele por perceber que eu não sou eu ou, pelo menos, aquela que ele julgava
que eu era, e eu por perceber finalmente de onde vinha tudo aquilo. Mais
um dia na minha vida. A minha amiga continua «Ela está lá fora.» Sei um
bocadinho mais sobre ela do que sobre o Valete. Ela, neste caso, também
conhecida por aquela com quem eu fui confundida, era Joacine Katar
Moreira, a outra mulher do momento. Sim, aquela que gagueja e depois
fecha os olhos e faz sons estranhos e tudo isso. Ocorre-me um trocadilho
entre o romance de Yara e a gaguez de Joacine, em vez de Essa dama bate
bué, poderia ser Essa dama gagueja bué. Continuaria a ser uma história
sobre mulheres e luta. Tento negociar com esta minha nova função de sósia,
que representa uma grande vantagem para ela, a da ubiquidade. Mas onde é
que ela não está? Outro dia vi tantos dos seus cartazes espalhados, a maioria
intactos, um ou outro vandalizados, como todo o bom cartaz, no bairro com
maior diversidade cultural de Lisboa. Recordei as suas palavras numa
entrevista recente: «Eu sou uma mulher negra para poupar o esforço a muita
gente.» Tenho de lhe perguntar, a ela e a todas as mulheres, vítimas ou não
de alguma coisa, certamente sobreviventes de muitas mais, se conhecem a
poesia de Nikki Giovanni (em cuja foto circa 1980 me espelho, cheia de
saudades de ter o cabelo maior) e aqueles seus versos: «I cannot be
comprehended / except by my permission.» Urgem a permissão, a
compreensão, o respeito e a paz.
Sem título
«Ontem não houve nada que não me acontecesse», afirma uma mulher.
Desço do autocarro sem saber do seu passado recente, que poderia bem
descrever a minha vida, em todos os seus tempos. Passo pelo Profeta do
Cais, que continua a apregoar não a sua opinião, mas a palavra de Cristo.
Repete, incessantemente, que vem em nome de Jesus, em poder e
autoridade gentilmente cedidos por Ele. «Para que ninguém nos engane.»
Desperta curiosidade e gáudio, este jovem moreno, magro, de barba e
cabelo desgrenhados, munido de Evangelho e mochila. Quer saiba ou não,
irá certamente parar a uma qualquer rede social, como meme ou vídeo viral.
Eu penso em Bashô.
*
no lugar sagrado
as pessoas não param
de se empurrar
*
No trabalho, um colega partilhou estes dias a sua alegria por ter
descoberto uma igreja onde a missa é em inglês, útil para a sua família sul-
africana em que nem todos falam português. Quanto ao jovem, o seu pregão
não parece ter fim, nem a sua fé, o trânsito, a multidão, o barulho ou a
música. Pergunto-me o que faz quando não está ali, do mesmo modo que
me pergunto o que fazem os vendedores de castanhas quando acaba o
Outono, se bem que actualmente, como o clima anda, já ninguém estranhe
que se vendam castanhas e gelados, harmoniosa e simultaneamente. Espero
que caminhe na luz em que se vê.
*
ninguém diz
como molhou as mangas
nesta retrete
*
Caminho umas poucas centenas de metros até onde me esperam. No
primeiro dia, sentei-me com eles à espera uns bons dez minutos, até fazer a
pergunta certa. Saber quem gosta de grão, quem prefere uma certa sopa ou
não come sopa, de todo, tem miúdos ou é intolerante à lactose. Prestar
atenção a rostos, números, caixas, datas. Voltar a usar avental. Enganar-me
a registar coisas. Saber quem vem hoje e quem quase nunca vem e que, por
isso, precisa de um pouco mais. Saber quem vem todos os dias e, ainda
assim, parece acreditar que o pão nosso de cada dia não é suficiente. Sei
bem como é, o medo e o não confiar que existe essa abundância em tudo.
Ironicamente, é em parte devido a essa abundância, esse excesso, até ao
nível do desperdício, que aqui estamos.
*
o meu amigo
trouxe arroz
e a lua
*
Saber quem tem luz, água, casa. Cometer mais erros. Recordar quem se
queixou com uma careta, na semana passada, de que não gostava de
beterraba, e que parece vir quando lhe apetece ou melhor, age sempre como
se não fosse aparecer. É preciso lavar as mãos e limpar a bancada muitas
vezes. Não misturar utensílios. Usar uma touca na qual o meu cabelo
claramente não quer caber. Dar conta da loiça que se acumula tão
rapidamente. O pão mais requisitado é o de fibra, com sementes e passas,
logo o que há em menor quantidade. Adoro esse pão, mas ainda não consigo
associar os nomes aos rostos ou ambos ao números. Rejo-me por listas e
perguntas, por apresentações. Sinto que estou numa cozinha mas não
cozinhei, num restaurante mas não existem mesas, só cadeiras e fila e uma
sala de espera, que estou numa padaria mas ninguém pede a conta, num
supermercado em que toda a gente traz o seu saco, leva e devolve
recipientes de cada vez, sem IVA, factura ou cartões de desconto.
*
enrola bolos de arroz
só com uma mão
com a outra afasta o cabelo
*
Um homem, cuja comida vou ajudando a colocar dentro do saco (entre
carne, arroz, bolos, iogurtes, salada de frutas) pergunta-me se sou de Cabo
Verde. Um sinal? Não que precisasse de um para saber que estou
precisamente onde devo estar. Rio-me, respondo que é a pergunta que mais
me fazem, talvez mais do que como é que me chamo. Estende-me a mão,
cumprimentamo-nos. Digo-lhe de onde vim. Ele é angolano mas, pelos
vistos, é frequentemente confundido com um cigano. «Então se estiver de
preto e com um chapéu... os próprios ciganos já nem perguntam, assumem
que sou um deles.» Somos todos tudo, nenhum lugar é garantido e todos
podem ser invertidos, mas duvido que este homem precisasse da invenção
das hashtags para saber de algo tão básico.
*
1686 ANO NOVO
*
Comendo o que me dão e o que mendigo, sobreviverei
sem fome até ao fim do ano.
*
talvez eu seja
uma dessas pessoas felizes
que vão chegar ao fim do ano
*
Servem-me café num conjunto antigo de chávena e pires delicados, com
arabescos florais, do qual me esqueço, como vem acontecendo muitas
vezes. Tomo-o já frio, não me demoro porque, afinal, duas horas passam
demasiado depressa, mesmo se bem passadas. Oferecem-me um saco
carregado de fragrantes maçãs colhidas no fim de semana, de quem tinha
toneladas e toneladas de excedentes para doar, desde que alguém fosse
buscá-las. Garantimos que toda a gente leva alguma. Há, ainda, pêras. Sinto
sempre que poderia, facilmente, ficar mais tempo, como os meus colegas
voluntários. Tempo para os outros, quando não nos são nada de instituído
social ou biologicamente, tempo para nos fazemos úteis a alguém é tempo
para recuperarmos algum silêncio, alguma humanidade. Para a semana, para
mim, há mais, espero que por muito tempo, agora que voltei a isto. Para
outros, todos os dias são dias assim, vulgo a sua vida. Espero que não para
sempre.
Nada de especial
Um homem dorme sossegado no muro da mesquita. Tem meias pretas
mas não lhe encontro os sapatos. O corpo curvado parece não ter espinha,
só flexibilidade. As pessoas que saíram agora do trabalho passam para cima
e para baixo. Passam-lhe ao lado. O miúdo sentado no passeio segura um
helicóptero amarelo. Em pé, a mãe vê um avião passar. No IKEA, encostada
a uma mesa alta, como um de dois cachorros quentes. Não aprecio a versão
vegetariana por aí além. «Deviam ter muito mais cadeiras, é uma
vergonha», diz este homem de cabelos brancos, enquanto ajeita o pesado
banco que acarretou durante uns metros para me ceder. Vai-se embora com
a esposa silenciosa. Espantada e agradada com o gesto, quando acabo de
comer tento fazer o mesmo por outra pessoa, mas ninguém parece prestar-
me atenção, ou perceber o que quero, e acabo por desistir.
*
Na paragem de autocarro passa um homem com um miúdo de uns três
anos, segurando um boneco. Sorrimos um ao outro. Alguns minutos depois,
o miúdo já não vem de queixo colado ao ombro do pai e sim pendurado,
todo desengonçado, de lado. Param ao começo de nova birra. «Fica aí então,
eu vou-me embora.» O miúdo chora, lágrimas bem gordas que realçam os
olhos verdes contra a pele negra. É muito belo, como aliás o pai. A mãe,
que não fica atrás em beleza nem em caminho, aparece não sei de onde com
duas amigas e convence-o a erguer-se das cócoras, a tirar os punhos das
bochechas e a dar-lhe a mão, embora não abdicando da birra. Ele é tão
pequenino, e toda a gente se vira para vê-lo melhor.
*
Deixei de dar os parabéns às pessoas nos seus aniversários por tempo
indeterminado. A Sara trouxe-me um boneco representativo da ópera
chinesa. De cada vez que se lhe inclina o chapéu, o boneco muda de cara.
Somos todos bonecos. O David perguntou-me como foi o resto daquele
sábado. Digo que correu bem. «Fui-me embora quando começaste a falar»,
admite. É o que todos queremos ouvir, respondo. Gosto demasiado de dizer
aos outros como poderiam viver uma vida mais plena, mas a verdade é que
ando há meses com a haste dos óculos torta, como se isso fosse mudar a
minha perspectiva das coisas. Quero usar o cabelo apanhado e não posso,
porque a afro ajuda a equilibrar a minha visão. Concluo, portanto, que não
sou a melhor life coach do mundo. Mas também não devo ser a pior amiga,
afinal recebo mensagens do Brasil a perguntar como era mesmo a receita
das chips de couve kale (galega para os amigos) que servi certa noite ao
jantar, e pedidos de uma certa menina de olhos azuis em relação à roupa que
vai usar em cada uma das suas inúmeras reuniões de trabalho. Agora que
está desempregada sinto que eu também estou, de certo modo.
Vivo alheada da maioria das notícias e isso contribui muito para a minha
tranquilidade. Decido ver toda a primeira temporada de Euphoria de uma
assentada, abandonando The Wire. Rue, a personagem principal,
interpretada por Zendaya, ameaça outra, no último episódio, citando nomes
que reconheço como sendo de personagens de The Wire. Apanhada pela
vida a fazer batota pela segunda vez, esta semana.
*
Entro no regional. Aprecio o quão vazio vai e o ar condicionado, tão
menos exagerado que nos autocarros. Penso que gosto da expressão «Eu
cá...», como quem diz, eu cá gosto da Ana Cássia Rebelo, que tantas
gargalhadas me tem arrancado. Mentira, dou-lhas de bom grado. Mas
entretanto sinto comichão no nariz porque vai uma família de cinco ingleses
com um português e acabaram de pôr, os ingleses, um perfume qualquer
que, não sendo mau, também não é bom, e que multiplicado assim se torna
difícil de suportar. Agora estão a falar de queijos. Eu coço o nariz com o
marcador que veio com o livro. Tem a foto da Patti Smith em jovem e
protege-me do cheiro real a perfume, do cheiro virtual dos queijos e da
risada que continua aqui, à espera de que um deles me olhe para sair.
*
No supermercado: mulher ao telefone declara a alguém que ele é seu e só
seu, e que é bom que fulana o saiba. Outra conta à filha como a avó lhe deu
a comer atum até enjoar. «Só voltei a comer atum quando conheci o teu
pai», revela. Tive uma conversa assim com o meu ex-namorado sobre
queijo da ilha, mas deixei de comer quando terminámos. «Queriam levar o
meu marido para o Monsanto, para a má vida.» Ou fico mais sã ou passo a
aborrecer-me de morte, quando abdicar dos transportes públicos. Na
biblioteca, folheio tudo excepto livros da autora que procuro. Nada como a
morte. Num romance, encontro uma carta dobrada em três. «Cara
professora Sara, gostaria de lhe pedir para deixar a Ariel trazer o livro de
Estudo do Meio para casa, este fim de semana. Obrigada. A mãe – Inês, 4
de Outubro de 2018.» A mãe é daquelas pessoas cujo apelido é o mesmo
que o do cônjuge, pelo que se repete. Se há algo de que não posso abdicar, é
da minha solidão. Quando deixei de descurá-la, passei a nutrir-me.
Entretanto, demorei tanto a escrever este texto que a haste dos meus óculos
já foi arranjada. Pondero lentes, apesar de ter avançado três casas no
tabuleiro de leitura.
À deriva e sem motor
«À deriva e sem motor» é como, nas notícias, descrevem o barco
resgatado pela polícia marítima portuguesa ao largo de Lesbos (Grécia)
estes dias. De cinquenta migrantes, metade são crianças. Pergunto-me se
ainda se recordam de quando eram apenas pessoas.
*
A maioria das mulheres são afegãs. Não raras vezes, os maridos ficam
para trás e enviam esposas e crianças primeiro. Os milhares de euros
necessários para esta viagem deveriam garantir coletes salva-vidas e barcos
de qualidade. Porém, os migrantes são apenas fontes de rendimento para
facilitadores que recebem o seu quinhão sempre, independentemente de
quem chega ou não vivo, ou onde. Normalmente, é escolhido um homem ao
acaso para comandar cada barco. São-lhes dadas instruções e luzes que
devem seguir. Cabem sempre mais do que deveriam, nos barcos, no mar, no
campo. Entre noites frias e dias quentes, lutas entre afegãos, iranianos e
africanos, nem o campo pode ser considerado seguro. O racismo existe
também aqui. E o suicídio. A esperança de sair do campo e chegar à última
fase, a do país longínquo com o qual se sonha, no qual pensam poder tornar-
se cidadãos, é o que mantém estas pessoas vivas. No entanto, nenhum
voluntário se atreve a dizer-lhes que, muitas vezes, nesses países, ninguém
quer recebê-los. De outro modo, o que lhes restaria?
*
Não nos vemos há muito tempo. Diz-me que se despediu no dia anterior.
Dou-lhe os parabéns. Poderia dizer que me surpreende ouvir falar do seu
próximo destino, mas não realmente. Fala-me da formação que teve
recentemente na Estónia e sobre o que vai fazer durante seis meses no
Uganda. Sentirão todos os alemães esta culpa, esta necessidade de
compensar pelo passado do seu país? Qual é realmente a diferença entre
campos de concentração e campos de refugiados? Conversamos sobre as
duas semanas a colaborar com uma ONG que providencia uma refeição
quente, banhos, roupa interior limpa a mulheres e crianças refugiadas.
Rapazes até aos dez anos, também. Fazem-se tantas viagens quanto possível
logisticamente, em carrinhas de nove lugares, do campo para o edifício da
organização.
*
Por vezes há risos e dança. A expressão inglesa mais popular, a forma de
tratamento predilecta é Ma friend. Trocam-se histórias e costumes. Muitas
destas esposas casaram aos quinze anos. Avaliam-se maridos pelo número
de filhos. Espanta-as que algumas das voluntárias, tendo passado os trinta e
cinco, não tenham nem uma coisa nem outra. A minha amiga é loira de
olhos azuis, fisicamente bem diferente de Carola Rakete. E o que importa
isso? Há activistas mais focados na cor de pele de quem, reconhecendo o
quão boa a sua vida é, decide abdicar de parte dela para ajudar os outros.
Quem é salvo/ajudado, não quer saber de cores. Essas questões ficam para
quem tem tempo a perder.
*
O turismo em Lesbos escasseia mas é ainda desesperadamente
necessário, numa altura em que consciência cívica e lazer parecem dois
pólos opostos. A praia ainda é paradisíaca. Nela, podemos fazer o mesmo
que em quase qualquer outra. Lesbos só não se terá tornado uma Chernobyl,
provavelmente, porque os campos de refugiados ficam longe da praia, de
outro modo não teríamos já influencers de smartphone em riste, tirando
selfies sobre um fundo de burcas e olhares tristes? Não duvido que esse dia
chegue, em que lugares destes, já desabitados, se tornarão cenários de
campanhas de moda, de anúncios, de vlogs. E como fica quem nasceu e
cresceu em Lesbos? Ainda se lembrarão de quando a ilha era conhecida por
Sapho?
*
«Durante três anos confiei no mar para me levar à segurança. Porém o
mar traiu-me», desabafa um residente do campo Moria, considerado o pior
do mundo, à BBC, de lágrimas nos olhos. A seu lado, a menina de olhar
impávido tem agora a cabeça na mesa e as mãos juntas. Estar no campo não
significa ter paz mas sim alopecia, envelhecimento precoce, doenças de pele
e respiratórias. Uma das mulheres entrevistadas declara que ela e as suas
crianças estão sempre preparadas para fugir a qualquer momento. Ficamos a
saber que é preciso ir para a fila do pequeno-almoço às 3 da manhã, e à hora
a que regressam à sua tenda já é hora de almoço.
*
Duas horas é quanto estas pessoas têm, na sede da Shower Power, para
trocar por um momento a sua vida actual por higiene, privacidade, água
limpa, champô, roupas lavadas e cheirosas, enquanto alguém lhes toma
conta das crianças e brinca com elas, faz tricô, lhes pinta as unhas ou
entrança o cabelo. Duas horas para poder voltar a ser só uma pessoa, quem
sabe das que cantam no chuveiro.
*
Entretanto, mais dois barcos sofreram um naufrágio na costa da Líbia: 70
mortos e 100 desaparecidos, no mínimo. Nem países nem ilhas nem campos
parecem poder conter tantas vidas quantas as que os mares vão engolindo e
velando. A ONU considera esta a pior tragédia até então. Mas quantas vidas
mais se perderam, se perderão entretanto, nas notícias que nunca
conseguiremos actualizar? As pessoas continuam a ser a derradeira fronteira
umas das outras.
*
Enviado da minha vida privilegiada e segura.
Tempo de partida
«tempo de partida —
tão pesados
o chapéu e o casaco!»
Bashô
No início era a morte. Depois, outra. Depois, um internamento. Satisfeita
com a sua obra, a vida trouxe ainda uma separação. Depois, a ansiedade.
Mais tarde a insónia, o choro, a má-disposição. O doloroso devolver das
chaves de casa. O abalar da ideia de casa. Foi então que uma praga de
percevejos se abateu sobre a casa e lhe deixou marcas pelo corpo todo.
Certo dia, olhou-se ao espelho e também o rosto havia mudado. No fim, se é
que haveria um fim, era a alergia. Riu e encolheu os ombros, rendida que já
estava. Depois, tudo continuou tranquilamente a piorar. O caos só sabe ser
caos, nós é que perdemos a calma. O que dizer a alguém a quem tudo o que
pode acontecer de mau acontece? Alguém que está, claramente, a ter o seu
pior ano? Estou aqui? Vai passar? Sim, fazes bem em voltar para o teu país,
se é desse colo que precisas e sim, podes sempre voltar? Não, aguenta-te
por aqui porque as coisas vão melhorar e, se não estiveres bem contigo ou
não souberes para onde ir, os problemas vão continuar, então o melhor é não
fazeres nada? Ainda subestimamos o poder de não fazer nada. Da rendição.
Quaisquer clichés bem-intencionados de apoio contam em momentos em
que toda a ajuda é pouca. Desde que não julguem. Se a maré de azar
culmina nesta altura do ano, parece impossível não exacerbar a dimensão
trágico-cómica das nossas circunstâncias. Começamos a traçar um plano de
fuga enquanto as festividades trazem e levam pessoas de forma mais ou
menos temporária. Celebramos mais as partidas do que as chegadas, neste
fim de década. Termo-nos-emos habituado demasiado a despedidas e não
tanto a estarmos felizes nas nossas próprias vidas.
*
Há duas noites, estava num lugar cheio de gente e, ao olhar para a rua
igualmente a transbordar, vi um rapaz espreitar lá para dentro, como se
procurasse reconhecer alguém. Um rapaz como tantos outros, de sobretudo
e gorro. Não me viu. Pareceu tão familiar. Procurei-o na minha memória
enquanto se ia afastando. Não o conhecia mas percebi que era igual a um
outro que eu também não conheci, mas de cuja vida e falecimento soube
simultaneamente por amigos em comum. A sua imagem perturbou,
acompanhou-me o resto da noite, a deste fantasma que o não era, a dessa
perda que não minha, a desse amigo, a desse conhecido que não meu. É
comum vermos alguém de quem temos saudades, vivos ou mortos, nos
rostos quotidianos. Não sei o que fazer com o de alguém que teria sido mais
bem avistado por quem pudesse ter encontrado consolo nesse encontro.
*
Demorar tanto para tomar decisões que sabemos ser as melhores. Cortar
o cabelo na Primavera e, meses depois, concluir que não se consegue usar
um gorro, quando antes se soltava a juba em dias frios. Receber um gorro
de quem nos convenceu a cortar o cabelo, sem termos falado sobre esta
aparente nova incapacidade do dia a dia. Estender a percepção de como
tudo está ligado e o que procuramos também nos procura, também procura
grandes coisas. Ter tanto para guardar em bolsos nos quais não cabe quase
nada, nem as mãos. Ser tudo novo como só algo em segunda mão mas que
nunca foi usado e nos é dado por alguém que nos ama pode ser. O que se
sente e o que mal se esconde. Teimar em não se precisar de quase nada e,
claro, ir falhando, num ano em que definitiva e finalmente se falhou melhor.
A avó de quem poderia ser a nossa irmãzinha segurando um colar de
pérolas na festa do lar, sob uma grinalda de lâmpadas coloridas. Encontrar-
se o consolo possível num prato de comida fumegante e acabada de fazer. A
bem dizer, mais no fumo do que na própria comida. Algumas coisas jamais
voltam a encontrar esse fulgor, por mais que se reacendam os bicos do
fogão. Nós que nos habituamos a viver sem microondas. Sonhar que se vai
ver o mar e o mar poder ser levantado de uma vez só, usando apenas uma
das mãos, e pousado como uma folha de papel ou uma coberta confortável
sobre a cabeça para fugir às agruras do mundo não sonhado. No sonho,
contudo, não dobrar o mar. Não doerem os braços. O mar não ter som. Não
haver pássaros nem peixes. Haver areia seca, a da praia e a destapada pelo
mar. O sol como se no deserto. O mar como um chapéu para ajudar a pensar
pensamentos que não pesem. Ainda haver céu e tudo o resto,
aparentemente.
Rapariga com tatuagem de Pégaso
Era sexta-feira. Ela tinha o rosto coberto e, depois de o destapar e lhe dar
um beijo, voltou a cobri-lo. As tias e outras pessoas formaram um círculo e,
de mãos dadas, começaram a cantar. Eu não percebia bem o que elas
diziam, porém a música era tão bela e triste, o ar tão pesado que, minutos
depois, me fez romper num pranto desesperado. Não era a única. Quando
quis despedir-me, aproximei-me do caixão e destapei-lhe o rosto. Parecia
uma versão um pouco acinzentada de si mesma. A maquilhagem utilizada
para disfarçar as marcas da violência que sofrera não era suficiente. O
piercing no nariz ainda lá estava e o pescoço coberto, mas eu só soube o
porquê um mês depois. Pedi-lhe desculpa por tudo aquilo mas também pela
pena que involuntariamente sentia de mim mesma agora, uma semana antes
do meu aniversário, aquele que eu nunca esqueceria. Disse-lhe adeus,
baixinho, e encostei os lábios à testa dela para dar um beijo à rapariga com a
tatuagem de Pégaso. Fui invadida pelo gelo que é já não termos o coração a
bater. Ela estava da temperatura mais baixa que eu alguma vez tinha
sentido. E foi como se me abandonasse o espírito, de repente pensei que ia
desmaiar, tal era a forma desvairada (tão diferente da minha voz de sempre)
como eu gritava, chorava e dizia o quão fria ela estava. Como se mais
ninguém soubesse. Eu nunca tinha tocado numa pessoa que não estivesse
viva. Nos filmes e na televisão nunca vemos alguém estranhar essa
temperatura oposta à nossa. Era a segunda pessoa morta que eu via, mas a
primeira em quem eu tinha tocado. Já não sei quem me segurou; estava
histérica e não percebia como é que a rapariga de antes fora capaz de fazê-lo
com tanta serenidade. Consegui controlar-me algum tempo depois, apenas o
suficiente para voltar para junto dela e dar-lhe o beijo de despedida que
interrompera.
*
Sábado. Mais um funeral em dia solarengo e quente. Comecei a achar
que fazia sempre sol nos funerais, mas claro que isso não fazia sentido.
Nem parecia que estávamos em Outubro. Foi tudo muito difícil, desde o
percurso da igreja para o cemitério ao baixar do caixão e atirar dos
primeiros bocados de terra (ouviram-se choros e lamentos reforçados, nesse
momento), até ao olhar em volta, para aquela massa enorme de gente, e
pensar «Será que ele está aqui?» Ele, o autor de tudo aquilo, sobre quem
cedo pensei que precisaria de perdão.
No dia seguinte, domingo, como habitualmente passei as duas últimas
horas de trabalho sozinha e, entre a falta de chamadas e a visão da sua
cadeira vazia, tão perto da minha e mais vazia do que as outras, dei por mim
a vaguear pela sala, até encontrar um saco cinzento, dos que usávamos para
guardar os headsets e, dentro dele, entre várias outras coisas, o seu caderno
actual. Foi uma descoberta assombrosa. Um caderno A5, azul, pautado, com
argolas brancas, perfeitamente comum, que eu guardaria durante muitos
anos, como se pudesse trazê-la de volta. Todos os tínhamos; eram uma das
nossas ferramentas de trabalho mais importantes, onde registávamos o
nome da pessoa com quem estávamos a falar, fosse cliente, colega de loja
ou motorista, o número da loja e o número do processo em questão, um
procedimento que parece obsoleto, volvidos doze anos. O caderno
começava a nove de Setembro e terminava a vinte e três de Outubro de dois
mil e sete. Começava com uma Fátima e acabava com uma Ana. E entre
uma e outra houvera Rosas, Danielas, Verónicas, Josés, Mafaldas, Paulas,
Carlos, Pedros, Sandras, Cristinas, Jorges, Tiagos, Margaridas, Salomés,
Brigites, Marcos, Ruis, Olgas, Cátias, Ricardos, Elsas, Joanas, Adílias,
Martas, Dulces e tantos outros nomes, de inúmeros sítios do país. Havia um
post-it amarelo com o nome e o número de telemóvel do nosso chefe. As
datas apareciam a vermelho e marcador amarelo fluorescente. Tudo o resto
fora escrito a azul e, antes de cada nome, alternadamente, um traço ou uma
bolinha, a vermelho. Metade do caderno estava preenchida, a outra metade
em branco. Alguns rabiscos, uma ou duas notas não relacionadas com o
trabalho, o seu nome e alcunha escritos em vários sítios, com uma daquelas
canetas de bico fino, verde-escuro. Um bloco de apenas três post-its, com o
rebordo pintado a verde, na folha do dia 23 de Outubro – sem nada escrito.
Nada mais seria escrito.
*
Eis o caderno da Vânia, que sabia dançar, que fumava, que devorava
Pringles e adorava Skittles embora afirmasse, com toda a certeza, que os de
Inglaterra sabiam muito, muito melhor. Compreendo. Afinal, a vida também
sabia melhor quando ela estava por perto. A filha herdou dela a beleza e,
com um pouco de sorte, a todos nós terá calhado alguma da sua força.
*
Ouço Visions de Stevie Wonder repetidas vezes. Olho as fotos cúmplices
que já conheço de cor. De algum modo, sinto que são as mais belas. Passou
metade da pena de prisão. Passou muita coisa, excepto a memória de
alguém que conheci apenas durante meio ano. Bolas, que belo meio ano.
Velhos conhecidos
Ela (que gosta muito de estalar os dedos encostando as mãos em mim e
fazendo pressão de um lado e do outro até se ouvir aquele crac-crac-crac e
eu reclamar), bateu com a cabeça pouco antes de eu apanhar o comboio para
ir ao seu encontro. Mandou-me uma fotografia de um galo gigante, com um
pequeno furo que em breve começaria a jorrar sangue (esta parte não vi, foi
ela quem mo contou, e eu acreditei). Logo se encaminhou para o hospital e,
trocando-me pelo namorado que foi lá ter, deixou-me entregue a mim
mesma e à missão do dia: comprar óculos pela primeira vez em anos. Eu
bem insisti que poderia acompanhá-la, mas há dias em que o que nos
aguarda o faz sabendo que não lhe vamos escapar. Na óptica, deambulei de
um lado para o outro, experimentando todo o tipo de armações, cores e
preços, fazendo caretas, tirando fotos e enviando-as às amigas pacientes
para que me dessem a sua opinião.
*
Na mercearia, fico a saber da morte de Tiago, o gato amarelo que vi pela
primeira vez de lombo solarengo estendido num banco da paragem do 729
da Carris, num qualquer domingo a descer a Calçada da Ajuda, antes
mesmo de vir viver para o bairro. A chinesa Lili, dona do estabelecimento,
diz-me que foi atropelado esta manhã. Ela própria, tentando conter as
lágrimas, fala de quão triste está o marido, que se levantava sempre mais
cedo para ir procurar este agora falecido vizinho e dar-lhe comida. Outra
cliente, com a qual a conversa começou, na verdade, lamenta a perda e as
saudades que a doutora (não fixei o nome) da farmácia terá. Eu mesma já
vira Tiago à porta da farmácia algumas vezes, sossegado, observador,
pertencente a todos e a si mesmo sobretudo.
*
Falta um mês para o meu aniversário. Finalmente mudei a minha morada
no banco, mas não me tenho sentido em casa senão quando estou fora.
Comecei mais uma vez a carta que não consigo escrever e sempre acaba no
lixo. Fiz um bolo de limão e saí sem saber bem se para ir comprar açúcar
em pó ou para resolver a minha vida. Deixei dois rolos a revelar, ao fim de
onze meses. Quando estiverem prontos talvez eu também esteja. Comprei
açúcar e farinha. Liguei ao meu irmão. Ontem soube que a mãe dele
faleceu. E fiquei muito triste, apesar de não saber quase nada sobre ela.
Então finalmente liguei à minha própria mãe. E recebi uma mensagem do
destinatário da carta que não escrevi.
*
Aprendi outro dia que sonhos, para os brasileiros, são cuecas viradas e
que aquilo que para nós são bolas de berlim é que eles chamam de sonhos.
Tudo isto me parece da maior importância. Como o post-it amarelo que
deixei a marcar a página trinta e dois de The Genius and the Goddess, de
Huxley. Um livro que ainda não li, na verdade, mas que marquei com uma
lista de que constam: duas alfaces, duas latas de atum, duas couves
lombardas, dois frangos para assar, quatro cenouras, tomate para salada,
salsichas frescas, um pimento, dois litros de leite magro e dois quilos de
carne picada. Não sei quanto tempo tem a lista ou o porquê da obsessão
com o número dois. De volta à mercearia: uma velhota dispara, ao entrar e
sem dizer bom-dia, «Mãos nos bolsos dão mau aspecto», para o dono,
sorridente atrás do balcão. Minutos mais tarde ouço-a refilar outra vez «A
culpa é das mulheres. Onde estão as mulheres?!». Foi no corredor do pão.
*
«“The trouble with fiction”, said John Rivers, “is that it makes too much
sense. Reality never makes sense”.
“Never?”, I questioned.
“Maybe from God’s point of view”, he conceded.»
Faltam duas semanas para o meu aniversário. Há um bolo de laranja que,
por este andar, ninguém vai comer porque, embora o tenha feito muitas
vezes, as últimas foram sempre na minha cozinha mental. Paro muitas vezes
o que estou a escrever para olhar as nuvens sobre o rio, nesta casa
abençoada a que vim parar quando a anterior foi vendida. Voltei a ter vista
de rio, como há três casas atrás. Hoje estão particularmente interessantes, as
nuvens, ou então este assunto é-me particularmente difícil. Escreveu Daniel
Faria «Socorre-me / Devolve-me a leveza / da tão primeira nuvem que
avistares». A pessoa tenta. Hoje ia dormir uma sesta feliz, a cabeça naquele
lugar estratégico onde bate mais o sol, mas as horas passaram, estou lenta,
sonolenta e a luz mudou entretanto. É que precisei, primeiro, de voltar a um
outro lugar, de luz branca forte e cruel. Precisei de voltar à óptica, há muitos
meses atrás, a ver o meu meio-irmão pela segunda vez na vida, ele a
escolher óculos como eu, ele a bater-me ao de leve no ombro, ele a abraçar-
me. Como vizinhos ou velhos conhecidos.
Xico
Na quarta, mais um amigo chegou e alguém lhe apresentou o Senhor
Fernando: «Este é o pai do Xico.» E eu sou a mãe, respondi, sentada entre
pai e filho. Rimos. Já alguém achara que eu era prima dele. Quando nos
vimos, ontem, o Sami chamou-me de «a única amiga não-caucasiana do
Xico». Ri-me. Ontem ainda, o Tiago, seu amigo de traquinices de mais de
vinte anos, contou muitas histórias, algumas envolvendo a tentativa falhada
de desmontar uma 4L. «O Xico já teve o cabelo de todas as maneiras, até
uma afro assim, que fazia chamas, como a tua.» Que luxo não seria, ser
minusculamente parecida com ele. A última mensagem que me mandou foi
uma gargalhada enorme. A primeira que lhe mandei foi a pedir mais
informações sobre um quarto disponível em sua casa, há cinco anos. Quis o
destino que eu fosse antes viver com uma outra pessoa maravilhosa, umas
ruas mais abaixo. Outro dia o Xico, a Lili e eu estivemos à mesma mesa e,
entre todos, que éramos e somos muitos, se partilhou amor, risos e um pão
de banana. Acho que vou demorar até voltar a fazer bolos, mas este, de que
não comi uma única fatia, vai alimentar-me durante muito tempo. Nunca vi
demonstrações de amor como as dos últimos dias. He was a natural. Que
sigamos o seu exemplo como conseguirmos, sorrindo, dançando, criando
união até entre pessoas que não se dão, e acreditando sempre que ainda
voltaremos a ver pássaros.
*
Há uma semana que é dia de feira todos os dias.
*
João Ricardo Machado Matos, Xico da Ladra: a arquitectura futurista e
projecção racial negra circunscrita. Teorização do visual, representação e
aspiração.
*
Xico, eu acho que comi tantas bolachas de água e sal nos últimos meses
só porque as vi no teu quarto. Não sei se consegui, mas tentei ser uma
pessoa melhor só por te ter conhecido.
A vida sexual das orquídeas
Não sou a avó de ninguém, nem sei se alguma vez serei. As fotos que
mais tiro são com a cara no mato, em jardins, enfiada nas flores. Um amigo
costuma dizer que eu acho que sou uma abelha e que é isso que os insectos
comentam entre si. «Lá vem aquela miúda que pensa que é uma abelha.»
Escrevi algumas vezes sobre orquídeas e tive uma que me foi oferecida por
um rapaz que se apaixonou por mim, mas por quem eu cedo percebi que
não tinha sentimentos. Quando me ofereceram flores pela primeira vez,
senti raiva. Achava criminoso. A orquídea veio muito depois disso. «As
melhores flores são as que se colhe quando ainda se ignora a morte», ou
algo assim, escreveu o Tolentino. Depois de muito tempo, em que fomos
felizes, levei-a para casa da minha mãe. Da última vez que lá fui, as
orquídeas tinham morrido todas. Escrevo e escrevi sobre orquídeas porque a
minha mãe é a orchid whisperer, mas ela é whisperer de todas as plantas
porque fala com elas e dá-lhes beijinhos.
De momento, eu e a minha mãe não estamos a falar uma com a outra e
não é a primeira vez. Não sei se será a última. Uma vez vimos um
documentário sobre um peixe que mudava de sexo e foi muito divertido.
Acho que também escrevi sobre isso. Eu escrevo sobre tudo.
Ontem fui ao teatro porque não sabia o que mais fazer. Queria estar
sozinha comigo e com estranhos. Vou ao teatro para resolver os meus
problemas. Mas apareceu a Sofia Dinger, que conheci num palco partilhado
e que me perguntou como é que eu estava, porque já sabia. Então ontem não
deu para ser tão generosa com o trabalho da Sofia Teillet que estava em
palco. Pensei, dá para fazer um espectáculo com isto, uau. Ela agora é a
nossa Senhora Vicent, uau. Aprendi muito. Tiago Rodrigues, agradece por
mim à Sofia do palco, porque me ajudou a pensar 0,000000000001% menos
no meu amigo morto, que é um dos melhores amigos das melhores amigas
da Sofia que estava comigo na plateia. E diz-lhe que prefiro magnólias,
lírios, tulipas e peónias.
Vida nova
«Le vent se lève il faut tenter de vivre»
Paul Valéry
Tanto era tempo de partida que a avó se foi, sem ninguém dar por ela sair
da casa habitada durante oitenta e oito anos. Um último Natal e, dois dias
depois, uma ida silenciosa e serena, como quem diz: «Vocês cuidaram de
mim mas, agora, finalmente, posso levantar-me e ir, vejam, afinal ainda
consigo fazer coisas sozinha.» E lá foi, deixando para trás o eco da sua
gargalhada inconfundível e todos os bons conselhos que nos deu. Foi sem
falar e sem que as máquinas a traíssem. Foi sem que ninguém percebesse.
No entanto, ninguém foi mais notado do que ela, entre a outra casa e o
hospital. A doença prolongada faz isso. O amor também. E ela espalhou o
seu, no mínimo, por mais três gerações. O que será do tempo e do espaço
que ela ocupou aos que lhe eram mais próximos? Talvez nem eles saibam
ainda. Talvez ainda seja cedo para fazer mais do que contemplar o vazio.
Mas desconfio que as crianças ainda vejam a bisa e se riam com ela.
Desconfio que as crianças saberão exactamente o que fazer. Que elas, uma e
outra vez, ensinarão aos adultos o que é viver. Que é preciso fazê-lo. E que
nem as crianças nem a avó terão lido Valéry.
*
É outra vez aquela fase em que toda a gente parece estar com um bebé a
caminho ou acabado de chegar. As visitas, os vídeos e as fotos ocupam a
agenda e o telemóvel. Dou por mim a pensar em como pôde a vida ser antes
destas chegadas que parecem, assim de repente, de quem esteve sempre ali.
Poderia ser um grande motivo de preocupação, a ameaça de guerra. Mas um
bebé ocupa tanto a barriga da mãe como tudo o resto. Em Conhecereis a
Nossa Velocidade, uma das personagens de Dave Eggers declara: «Há
viagens e há bebés. O resto é trabalheira e morte.»
*
Começa um novo ano e somos obrigados a confrontar-nos com as
promessas de falhar à la Pedro Chagas Freitas e a concluir que ele esteve,
este tempo todo, a falar das resoluções de ano novo. Em reuniões de
trabalho ou no Instagram, as listas são muito semelhantes. Dou por mim a
fazer listas para os outros, como todas as pessoas que adoram listas e acham
que sabem o que é melhor para alguém. Mas as listas que anunciamos
publicamente não são, também elas, para mostrar aos outros? Penso na
minha própria lista, evito-a, destruo e refaço-a. Dou por mim a falhar um ou
outro aspecto e ainda só passou uma semana da não consensual nova
década.
*
O meu último momento vergonhoso de 2019 foi, ao sair de casa no dia
31 para deixar comes e bebes em casa de uma amiga, ter pedido ao
motorista da Uber que me esperasse, pois ainda precisaria de ir ao teatro.
Ricardo III, de Thomas Ostermeier, no Dona Maria II. A maravilha total. O
motorista acedeu. Subi, desci e dirigi-me ao carro cinzento em quatro piscas
frente ao prédio. Porta trancada. Bati e nada. Vidro da frente. Bato. O dono
desce o vidro e olha-me, muito sério. Peço desculpa, olho para a frente e
vejo um carro cinzento em quatro piscas. Entro. Conto o que acabou de
acontecer. Rimos até ao teatro.
*
O meu primeiro momento vergonhoso de 2020 foi, continuando com o
dramatismo que define quer a minha vida quer a cultura que consumo, ter
ido assistir ao querido Que mal fiz eu a Deus agora?, ver-me a braços com
um menu pipoca mais refrigerante e, tendo chegado cedo ao cinema, em
pleno dia 1, pousar a bebida no chão, à falta de suporte, e as pipocas no
banco ao lado. Equilíbrio perfeito, até o dito ter tombado, sozinho, para o
banco e para o colo da ocupante do banco ao lado, num momento em que, já
em modo sala cheia, aquele lugar, ainda para mais no topo, se tornou, de
repente, mais cobiçado que o trono mais falado dos últimos anos. Até ao
filme começar, tive de desiludir umas cinco pessoas que queriam sentar-se
ali. Mas só um senhor conquistou o Popcorn Throne. À saída do filme,
pediu desculpa por ter-se sentado nas minha pipocas. Como dizia a alguém
de quem gosto muito outro dia, estranhamente, não dei por mim a querer ser
menos parva em 2020.
*
Há quem saiba dizer onde se encontra no tempo da sua vida. Eu observei
sempre as minhas mãos sem saber ou acreditar que cumpriria o
comprimento da linha da vida. Tenho umas linhas bem longas e vincadas.
Não sei onde me encontro, se falta muito mais para a frente do que o que
esteve para trás. Seria assim, idealmente, não é? No entanto, para tantos e
tantas, a dificuldade de viver é tão avassaladora que envelhecer nem é uma
hipótese. A mente não chega lá. Quanto a mim, gosto de viver. Apenas
nunca me imaginei a envelhecer, como se não fosse lá chegar sem tê-lo
imaginado. Como se fosse desenhando a minha existência, ou escrevendo-a,
ao longo da própria vida. Independentemente das mãos e de tudo o resto.
Penso no que dizer a todos estes bebés. Mas é tão mais bonito e importante
o que eles me dizem quando me olham, quando dormem, quando fazem
birras e quando sorriem. É maravilhoso e tolo o tempo que podemos passar
a olhar para eles. No fundo, precisamos tanto deles como o contrário, ou
mais até.
Chegámos até aqui
Uma mulher entra no autocarro. Assim parecem começar tantas das
minhas histórias. Já se fez História a partir de histórias de mulheres em
autocarros. Não parece, contudo, pelo menos não hoje, o caso desta. Fala ao
telefone, declara: «Não me dói nada. Nadinha me dói.» Haja quem.
*
Ela olha-me, o rosto mais enrugado que me lembro de ver nos últimos
tempos. Cabelo grisalho muito comprido, contido com ganchos, molas e
uma bandolete. Sorriu-me, já, por duas ou três vezes.
*
Entro, finalmente, numa igreja, em hora de missa mas, para meu espanto,
agora há missas em modo aula de cycling no ginásio, o que até deve fazer
sentido, se considerarmos que igrejas e ginásios são locais que nunca
fecham e onde se pode ir sozinho e ficar sozinho mas menos do que se
estivesse fechado em casa. Pelo menos em alguns dias. Em vez do ecrã,
temos o púlpito vazio e a voz gravada de um padre, que nem sei se é
conhecido de alguma destas pessoas, ou se também opera em modo
videochamada. Faço a minha parte e saio, muito antes de estar da missa a
metade. Ficam os turistas, a minha estranheza e o meu arrependimento.
*
Mas, voltando ao meu lugar preferido, e preferido de tanta gente, o
austríaco na Rua Anchieta, a mesma que ao sábado vira feira de livros e
torna tudo mais especial. Tenho voltado aqui muitas vezes, ultimamente.
Ela dá as mãos, cotovelos na mesa, o olhar mais parecido com o meu,
sempre que regresso do escuro da janela. Agora já não sorri, antes se
levanta e prepara para partir, conheci-a durante o tempo de um café e isso
pode ser conhecer alguém intimamente e para sempre e como ninguém, ou
quase, ela levanta-se e parte, não sem antes trocar umas palavras com o
pessoal da casa, como fez quando entrou, e dois amigos do empregado que
entraram há pouco, prancha de skate debaixo do braço e a juventude nos
ombros, no rosto e no resto. Na mesa, o café e meio copo com água. Volta a
olhar-me, diz «Adeus, menina!» com a mão, o rosto e o resto. Eu continuo a
escrever à mão. Escrevo sobre ela.
*
Tem feito tanto frio que me doem os olhos quando saio do trabalho às
seis da manhã. Dói-me este vento. Encontro, sempre no turno da noite, dois
homens na paragem. Digo bom dia e eles respondem. Um deles deixa-me
sempre entrar primeiro e, certa vez em que choveu muito, o outro abriu o
chapéu e deu-me cobertura enquanto o autocarro não vinha. Em certos dias,
quando o autocarro se atrasa (e é uma hora cruel para atrasos), trocamos
reparos, sempre em tom suave, não vá o autocarro ouvir e demorar mais. Às
vezes penso que devem ser do mesmo país que eu. Outras, percebo que esse
país pode ser este. Outras, ainda, penso se estaremos, realmente, no mesmo
país, ou como seria se tivéssemos vindo do mesmo, onde as pessoas são
tratadas de forma diferente conforme a tez seja mais clara ou mais escura. É
como aqui, afinal, apenas ao contrário: quanto mais claro, pior.
*
Tenho tido tonturas deitada, em pé, sentada. A anemia faz-nos isso. Mas
que pode a anemia perante a Olívia, a minha nova melhor amiga de infância
que, a três meses dos dois anos, me puxa e segura com as suas mãozinhas,
me sorri com todos os dentes, que os tem, me encanta com os caracolinhos
loiros perfeitos como numa fábula e ri, ri, ri, e me conduz em rodopio
infinito pela sala e pela cozinha? É a brincadeira preferida dela, explicam os
pais, e já encontrou uma forma mais eficaz de ficar ainda mais tonta.
Giramos e giramos e nada nos aflige. Ela deita-se e eu arrasto-a pelo tapete,
no sofá, ao longo das minhas pernas. Balanço-a de mim para os pais. Pelo
meio faz festas à gata. O que pode qualquer sombra, o que podem os
motoristas, os polícias, os políticos, contra uma bebé, que nos puxa e
envolve, que leva sempre a melhor sobre nós, enquanto nos recorda do
nosso melhor?
*
No trabalho, sentimos que nos pagam pouco para virmos comer
pistachios e conversar. O meu colega diz, «Dia 4 de Fevereiro é o
aniversário da minha filha». Pausa. «E o dia das catanas em Angola.»
Rimos. «Faço anos a 15 de Maio», conta uma colega em contexto da
marcação de uma viagem. O primeiro responde, «Eu também, oito dias
antes». Rimos novamente, ou não parámos ainda. Corrijo, «É no mesmo
dia, com a diferença de oito dias e uns vinte anos». Ele, que é um português
angolano, com passagem por Macau e pela Bélgica, regressou à primeira
casa depois de décadas na África do Sul, onde sentiu, desde o primeiro
momento, que estava em casa, que encontrara «O» lugar. E ali encontrou
beleza imensa, uma mulher e uma família. Ao contar-lhe sobre a missa em
formato podcast, reclama nunca ter encontrado uma igreja aqui onde, na
comunhão, para além da hóstia, também aos crentes se desse a beber o
vinho. Digo-lhe que, aqui, vinho só para padres e acólitos. Continua a
retorquir que está mal, e assim vamos fazendo pausas de galhofar para
trabalhar. Há dias assim e passam demasiado rápido. A vida passa
demasiado rápido.
*
«Já chegámos até aqui», diz outra mulher para a amiga. Ambas saem do
autocarro e, também, deste texto. E nós, seguimos?
A jóia pesa conforme o uso
Continuou quando assim se interrompeu. Começou quando assim se
sucedeu, após o que ocorreria vezes sem conta. O vendedor, homem
delgado e enrugado, fixava-a havia algum tempo do outro lado da praça
vazia, elevando o punho direito no ar com movimentos ritmados. Quando a
rapariga se aproximou finalmente, a figura estendeu a palma da mão onde
se via um corte recente. Sorriu-lhe. Tem aí mais uma linha, retorquiu ela.
De vida ou de morte? Cortou ou acrescentou dias ao seu destino? Ele sorria
apenas com a boca, o olhar muito para dentro dela, como o de um pássaro
ávido pelas migalhas que as amigas lhe atiravam no sonho da noite anterior,
entre risos maldosos, indiferentes às suas lágrimas e às mãos tapando a
cabeça, ela ajoelhada no chão. A mão revelou de um bolso secreto um par
de leves brincos sem fecho feitos de madeira escura: uma réplica do
continente africano. Ela colocou os dois continentes pelo preço de um em
cada orelha, satisfeita. «Sempre quis uns destes. Como me ficam?» O
homem recusou o dinheiro que lhe estendeu, mas segurou-lhe o pulso com
uma das mãos e, com a outra, traçou em silêncio o percurso de cada uma
das linhas da cliente. «Enquanto usares estes brincos não deverás ver-te ao
espelho senão nos olhos dos vivos.» Sentiu um pequeno frémito quando ele
lhe cerrou suavemente o punho e se afastou em silêncio. Tacteou o interior
da mala à procura de um espelho riscado que trazia há anos, lembrança da
loja de um museu. Tocou ao de leve nos brincos, como para garantir que
ainda os trazia postos. Que bonitos, que bonita! Olhou as mãos. Viu a marca
do velho transferida para si e tentou voltar o pescoço à procura dele mas os
brincos, que por alguma razão não saíam, começavam agora de repente a
crescer e a pesar mais e mais.
Segundo cérebro (I)
«What is your great hunger? To understand your great hunger, you must
understand what breaks your heart.» Assim nos ensina Tererai Trent a
sermos vulneráveis. O que me parte o coração? A pergunta, na verdade, é
sobre o que nos parte o coração enquanto Humanidade, e o que podemos
fazer para repará-lo, para nos repararmos.
É Março e chega-nos a pandemia que abrandou o mundo. Ainda não
sabemos o que é o trauma que assola sobretudo chineses e italianos há
meses. Esta ferida exposta não é por todos vivida da mesma forma, como a
vida também não era. Os dias expandem-se e contraem-nos; o ar perde a
luta para a ansiedade, damos por nós a experienciar e a repetir todo o tipo de
emoções e afirmações contraditórias. Entre notícias e memes, o quarto e a
sala, a cozinha e o supermercado, eis-nos trancados fora do mundo.
Trancados connosco próprios (e, em tantos casos, com a família), sem
distracções ou um fim previsto à vista. Pessoas com vista privilegiada para
si mesmas, indo para dentro cá dentro. Que luto fazemos, neste início de
quarentena privilegiada? O dos mortos que não são, ainda, os nossos? O dos
desempregados? Dos que passam fome? Sabemos, sequer, que estamos de
luto? Sabemos o que perdemos realmente, e que não foi agora que o
perdemos?
Faço as pazes com a perda da viagem a Paris que marquei num impulso,
sem saber que precisaria dela para me ajudar a acabar de fazer o luto pela
morte recente e repentina de um amigo. Alguém escreveu: «Só se safam [o
amigo] e o Pôncio Pilatos.» Esta frase não mais me deixou. Depositei a
minha fé em nuvens que não pude alcançar e só me tornei mais pesada. Se
nos dessem uma mochila com o que carregamos dentro de nós, rapidamente
diríamos não ser capazes de aguentar com o peso. A horizontalidade já me
acompanhava como um animal de estimação doente, aninhado a mim.
Restava-me estar comigo, com os meus sentimentos, cuidar. Eu sou o meu
animal doente. Eu sou responsável por mim. Quando estou triste, quando
estou feliz. Eu, que poucas vezes bebo, tomo a última bebida alcóolica com
um amigo a 12 de Março, enquanto as redes sociais liberalizam a happy
hour para sempre que se queira. Afinal, os dias confundem-nos, não é? Vou
ao escritório buscar o computador para trabalhar em casa, vejo as últimas
pessoas que conheço sem saber quando voltarei a estar com alguém. Faço
compras em excesso, proporcionais ao absurdo colectivo, à pena de nós
mesmos, à incerteza de todos os futuros. Netflix, fazer pão, encomendar
comida e observar como as diferentes empresas fazem entregas, mandar vir
livros e descer dois andares todos os dias na expectativa de que tenham
chegado, pensar em como desinfectar cartas, lavar maçãs com sabão e
deixar tudo a secar ao sol, limpar a casa constantemente, como nunca antes,
mesmo para quem o faz muito frequentemente. Estar farta disto, pronta para
que acabe, mas apenas às vezes, durante uns segundos. Fazer planos para
aspirar a tornar-me o meu melhor eu, almejar a viver a minha melhor vida.
Se não agora, quando? Apagar as redes sociais uma, duas, três vezes. Falhar
em tudo isto, ver séries e filmes e desenhos animados. Sem concentração
para ler. Trabalhar. Estar grata pelo trabalho que detesto e pelo tempo de paz
à minha pequena escala individual. A paz pela qual tanto ansiei. Lamentar a
catástrofe à escala mundial. Listas infinitas do que fazer, aprender, cozinhar.
Uma grande obsessão por focaccia. Recusar quase todos os directos e
desafios das redes.
Em Abril, celebro cinco anos desde um sleeve gástrico. A consulta dos
cinco anos foi uma teleconsulta ainda em Março, a presencial remarcada
para Novembro. Durante todo o mês falo com quem tenha sido submetido a
cirurgias semelhantes, quem esteja a fazer jejum intermitente, quem esteve a
escrever teses de Doutoramento sobre cantinas. Poderia falar sobre comida
sem parar. Afinal é só no que penso, não trabalhasse eu no ramo alimentar.
Passado o inicial impulso colectivo originado pelo choque e pelo
aborrecimento, que nos compelia a fazer demasiadas refeições por dia,
fechados em casa como estávamos inicialmente, regressa uma ideia que não
me abandona desde o Verão de 2018: fazer um jejum-de-água-ponto-final.
O meu cirurgião retirou-me oitenta por cento daquilo a que chamam
segundo cérebro. Do relatório fiz versos: «O que perdi em estômago /
ganhei em coração». O que me parte o coração? Como se repara o coração?
Kintsukuroi, também conhecido por Kintsugi, ou o reparo dourado, é a
arte japonesa de reconstruir vasos, taças e demais cerâmica através de
diferentes técnicas de ensambladura, comumente sendo acrescentado um pó
dourado à matéria que liga as partes quebradas ou rachadas. Não se disfarça
a falha. Ela é celebrada e a peça mais valiosa a partir de agora. A fotógrafa e
directora de arte Carlota Guerrero escreve no seu Instagram sobre como
estamos todos ligados por um filamento, uma trança invisível. Nos últimos
anos encontrei repetidas vezes pela internet fora excertos de um poema de
Anne Sexton sem lhe saber o nome. O verso preferido de toda a gente
parecia ser «Love and a cough / cannot be concealed. / Even a small cough.
/ Even a small love.» Em Small Wire, Sexton começa por declarar «My faith
/ is a great weight / hung on a small wire». E prossegue sobre o quase nada
de que Deus precisa, mas do quão preciso é esse nada: «just a thin vein, /
with blood pushing back and forth in it, / and some love». No meu poema
Deus, digo: «Deus não me pede nada / mas eu culpo-o de tudo.» Quando o
escrevi, ainda não lera o poema de Anne Sexton, mas já conhecia Deus há
muito tempo.
Eid Mubarak, ouviu-se e leu-se tantas vezes ao longo deste penúltimo
domingo de Maio. Escrevo durante a noite aquilo em que meditei todos os
dias: porquê? Para quem? Com quem? Desconfinarei no meu tempo. Ainda
preciso de tempo. Faço jejum uma, duas, três vezes. Intermitente, de água, à
maneira budista, durante um, dois, três dias. Falho. Bebo mais água que
nunca. Procuro, visito casas. Deixei o café há precisamente quinze dias.
Arrefece o chá de gengibre e, como sempre, encontro o meu reflexo intacto
no fundo da chávena, por entre os riscos e fendas.
Inserir nome de família
— Diz à Gisela o que disseste ainda agora.
— Que se ela dormisse lá em casa ficávamos em família.
— E que mais?
— Como antigamente.
*
Eles falam ao mesmo tempo, um por cima do outro, completam as frases
um do outro, refilam um com o outro, confundem-se um com o outro, e ora
competem sobre quem vai contar uma história, ora pedem ao outro que a
conte. Servem-me café, sumo, tosta mista com manteiga, bolo-rei. Não lhes
posso recusar nada e eles oferecem-me tudo. A televisão ligada nalgum
programa da tarde. São os mesmos sofás verdes, mas a casa já não é a de
antes. Já não é comprada e já não é aquela onde viram filhos e netos crescer
nos últimos quarenta anos, e onde estive à mesa do almoço tantas vezes,
terminando refeições com um licor caseiro. Estão muito magrinhos, digo.
Mas eles sabem. Poderia ter dito: estão muito velhinhos, afinal ele está a
uns dias de fazer oitenta anos. Mas eles sabem. Eles sabem tantas coisas.
*
Ela vai buscar-me à estação e, num regresso lento e cuidadoso, sempre a
pé, fala-me dos últimos problemas e da vida nova, umas ruas abaixo da
morada anterior. Reparo na igreja onde também já estivémos. Faz-me uma
visita guiada à casa antes mesmo de o marido se levantar da sala e vir
abraçar-me no corredor. Um abraço como só alguém que pensou que nunca
mais nos veria pode dar. Brinco com ele: digo, as coisas que faz para ter
atenção e histórias para contar. E se há alguém que tem histórias para
contar, são estes dois.
*
O meu filho dizia, porque é que arranjaste uma rapariga, foi só para me
chatear? Mas tu querias uma mana. Queria, mas uma coisa destas não. Na
escola ele sentia-se infeliz, porque era o único que não tinha irmãos. Só que
a irmã era um terror. Dez anos de diferença. No entanto, as fotografias de
ambos mostram somente o amor entre eles.
*
Escusas de estar a enganar-me. Foi mesmo assim, o mais novo foi buscar
o tablet e disse, A internet mostra como é estar nos cuidados intensivos, e se
é assim que ele está, tenho de ir vê-lo. Mas claro que não podia e, quando
ele finalmente pôde, eu já estava na enfermaria. É o que dá deixarem os
miúdos ir à escola, aprendem a ler e a escrever e a navegar na internet, não
podemos mentir-lhes, brinco. Já o mais velho, a primeira vez que foi visitar
o avô, foi logo lá para fora chorar. Foi ele que me tirou do fundo do poço,
quando nasceu. Tomei conta dele. Ele lembra-me muito o meu filho.
*
Tive uma tuberculose pulmonar aos onze anos. E depois voltou quando
eu estava grávida, afectou-me os ossos. Estás a ver a tartaruga dentro da
carapaça? Era ela mas num tabuleiro de gesso, numa gaiola, diz o marido.
Só pensava no meu filho. Ele nunca me tratou por mãe. Perguntava:
Mãezinha, quando é que vais para casa? E eu deixava-o com a ama ou com
familiares e ele detestava porque não o tratavam bem. Os outros miúdos
eram maus para ele. À sexta-feira, depois de deixar esta (a minha amiga, a
sua filha), ele vinha passar o fim-de-semana comigo. Foi praticamente um
ano deitada, paralisada, um ano de visitas diárias ao hospital. À minha filha,
agora, o médico disse: Despeça-se do seu pai porque ele não vai sobreviver.
Mas o colega dele visitava-me todos os dias, nem ia para casa, queria cuidar
de mim a toda a hora. E sobrevivi. O pai chora.
*
Ele sobreviveu melhor porque trabalhava, saía de manhã, vinha à noite.
Eu estava em casa. Já me tinha reformado, cedo, por causa do problema nos
ossos e das operações. Ao fim de tanto tempo de baixa, foi automático.
Quando ele tinha de ir para algum lado por causa do trabalho, eu ia com ele.
Havia dias em que eu não podia ouvir nada, dias em que eu não podia
levantar-me para vesti-la, para ela poder ir para a escola. Eu dizia, espera só
um pouco que a mãe já levanta a cabeça e já te ajuda. E ela dizia que não
precisava de ajuda, que já sabia escolher. E eu dizia, então veste o que
quiseres e depois a mãezinha já vê. Ela virava costas e ia a casa da vizinha
pedir que a vestisse. Outro dia ela disse-me, Eu sei que preferias que tivesse
ido eu em vez do meu irmão, eu sei que não fui planeada; fiquei tão triste,
aquilo magoou-me muito. A mãe chora.
*
Feitios diferentes, apazigua o marido. Eu sei porque é que ela diz aquilo.
Porque ela estava sempre sozinha. E já o meu filho tinha ficado sozinho. E
depois nós ficámos todos sem ele. Eu fiquei desorientada, fiquei de cama,
só eu e Deus sabemos o que passei. Ela diz que nos esquecemos dela.
*
Em Tenerife achei que ia voltar para Portugal num saco-cama. Olha, não
terias passado por esta de agora. Pois não. Eles entendem-se mesmo no
humor negro. Tenho passado bons momentos na vida, conclui. Passeei
bastante, gozei bastante enquanto tive saúde. Se voltar a ter, gostava de
ainda fazer algumas coisas. Ir à Madeira. Falam-me de todas as viagens que
fizeram, em férias ou em trabalho. Contam as últimas dos netos, do genro,
da filha. Mais tarde ela liga-me, diz: Os meus pais adoraram a tua visita. Eu
não deixei de pensar neles desde então.
*
Acompanhamos pessoas a uma missa pela alma do filho, do irmão morto
aos dezasseis por um colega mais velho com uma faca de ponta e mola, sem
nunca se saber o motivo. Vamos buscar os miúdos à escola com elas. Vamos
juntos para a piscina. Telefonamos de vez em quando ou elas a nós.
Partilhamos histórias de cirurgias, exames e sintomas que os médicos nunca
chegam realmente a saber o que são, apenas o que não são. Vamos com elas
ao supermercado, rimos com elas, pensamos em como sobrevivem com
tanta dor e durante tanto tempo. Sabemos dos comprimidos para dormir, das
mudanças, das avarias, dos tribunais, dos dias em que pensaram tirar a
própria vida. Das coisas ditas sem querer. Da generosidade imensa, do
cuidado.
*
Sabemos que houve alguém que se assumiu culpado de um crime sem
testemunhas e depois se enforcou, vinte anos depois, sem que se soubesse
porquê. E há quem tenha de continuar, quem carregue um corpo consigo,
apenas com algumas pausas pelo caminho, a vida toda. O peso de uma vida
que mal começara a ser, e que poderia ter sido tanto para tanta gente. Uma
memória como uma ferida em constante reabertura. Talvez só um filho seja
mesmo insubstituível. Talvez o corpo, o karma ou a necessidade de punição
por se estar vivo e o outro não, atraiam tantas outras situações de
sofrimento. Talvez se busque uma dor que possa ser maior, e se falhe
constantemente. Estas pessoas, que são tão reais, tornam-se parte de nós,
tornam-se as nossas pessoas, mesmo se com outro nome de família.
*
Não sei quando se esclarecerão todos os equívocos e nem sempre a
redenção chega antes da morte. Duas pessoas raramente contarão a mesma
história da mesma maneira, e o que recordamos uns dos outros dependerá
sempre do lugar sombrio ou mágico onde nos tiverem tocado. Mas gostaria
de acreditar que sim, que há algo de luminoso que une as famílias, mesmo
as que tantas vezes não se entendem, mas nunca deixam de estar lá umas
para as outras.
*
— Lembras-te de quando dormiste lá?
— Lembro.
— Eu também gostei. (Dá-me dois beijos)
— Ó puto, eu não te disse se gostei ou não...
Concerto para peluches número 2
Sabes tocar piano? Comprei um piano. Estou a ver que sim. Não, não sei
tocar, mas era o que eu mais queria. Ainda se contam pelos dedos duma
mão, as vezes em que o viu. Ao subir as escadas do segundo andar do
número dois, pela primeira vez, há um ano, não foi a única surpreendida. Na
altura, havia dois sofás na sala. Jantaram à mesa, com a toalha de ursinhos.
Não conseguiu alertar antes que ele a servisse e não conseguiu acabar. Foi a
primeira vez que partilharam uma manta. Ele fumou, na varanda. Ela sentiu
muita vergonha.
*
Volta a elogiar-lhe os brincos. Argolas prateadas mas não de prata. Então,
pensavas que nunca mais nos íamos ver? Temos de jantar mais vezes, fazer
uma viagem. Gritam o mesmo destino em uníssono, mas nunca se viram
noutro lugar. No dia seguinte, volta o medo. Também gostei, mas acho que
não é boa ideia repetir. Passam meses sem se verem. Falam pouco, cada vez
menos. Chateiam-se muitas vezes.
*
Ela veste o robe do Bugs Bunny, que é dele. Ouve música no telemóvel,
na casa de banho. Ele irrita-se. O que se passa? Tu intimidas-me. Tu
também me intimidas. Não podemos partilhar antes a manta grande?
Quantas vezes vamos fazer isto? Olha, porque é que não trabalhas ou fazes
coisas enquanto eu toco? Hoje não tenho nada para fazer, só estar aqui. Ela
já lhe disse que não são amigos. Ele vai buscar o vinho. É a segunda vez
que ela nota: ele hesita em tocar-lhe no cabelo. Não falam, só riem até
roncar, enquanto vêem o Sticks and Stones, do Dave Chappelle.
*
Pode irritar-nos que alguém faça a barba e não nos deixe vê-lo com ela
grande. Que nunca o vejamos de cabelo curto. Que não perceba que a barba
por fazer há dois dias fica bem com o cabelo curto. Que não pode fazer a
barba se deixa o cabelo por cortar já com um mês de atraso. Que lhe faz
cara de bebé. Aquela cara que nos dá vontade de morder, da bochecha ao
queixo espetado. Pensar tanto em alguém. Falar dele aos amigos começando
por aquilo a que sabe que torcerão o nariz, como a inclinação política. Ir
percebendo, com o tempo, que cada vez nos importamos menos com isso.
Ah, fazer algo resultar apenas na nossa cabeça.
*
Vêem a Guerra dos Tronos. Ela consegue ouvi-lo urinar, como no poema
de Bukowski. Ele joga o seu jogo preferido do momento. Ela mostra-lhe a
sua canção preferida do novo álbum do Boss. Ela atrasa-se, ele impacienta-
se. Ela tem de escolher o vinho. Ela traz doces e ele não gosta,
especialmente, de doces, e menos ainda destes. Ele pede salsa e depois diz
que afinal tem coentros, que até ficam melhor com isto. Ele parece o Ian
Curtis, e pergunta se ela quer uns chinelos de andar por casa. Ele diz que
engordou. Ela nem comenta. É melhor falarem do quão suave a pele do
outro é.
*
O paraíso é alguém que nos conta histórias e nos traz bolachas à cama.
Alguém que se despe e veste sempre demasiado rápido para a nossa falta de
jeito, e nos enerva com o seu nervosismo, mas que depois fica à porta do
quarto, calado, a olhar para nós com ternura e se aproxima e nos beija a
nádega. Não se chega a grandes conclusões, reflectindo sobre estes homens
que nos ficam com a chave de casa e vão lá regar as plantas ou dar de comer
e brincar com os nossos gatos. O homem que vai ao funeral da nossa mãe
ou nos atribui uma escova de dentes em sua casa, mas a quem a palavra
namorados causa ataques de pânico.... Ou de burrice, diriam algumas das
nossas amigas, versadas em soft boys.
*
Queres jantar? (Lá está ele com as douradas de mar.) Ver o Benfica?
Ficar mesmo sem ver o Benfica? Dormir aqui esta noite? Não, não, o quê?!
(Então e o teu amigo?), e não. Aquilo são brincos? Sim. Podiam ser
pulseiras da (inserir nome da dona dos peluches). Pensa que foi a coisa mais
bonita que ele lhe disse. Lembra-se de um texto que leu há muito tempo,
que dizia qualquer coisa sobre não ter uma gaveta em casa do nosso amor
mas, ao ouvi-lo dizer «a nossa casa», as malas pesarem como pulseiras. Ele
está a treinar para uma maratona. Ou apaixonado por outra. Ou ocupado
com o trabalho. Ou a andar de bicicleta. A jogar xadrez ou a fotografar.
Nunca tomaram o pequeno-almoço juntos. Se calhar é por isso. Mas depois
ela vai a colocar a cabeça no colo dele e, antes que possa fazê-lo, ele puxa-
lhe o cabelo com cuidado, enfia-lhe uma almofada por baixo e fá-la pousar
a cabeça, em menos de um segundo, e não volta a tirar a mão. Despedem-se
várias vezes, até ele a expulsar, hoje um pouco mais gentilmente. No
entanto, só alguém próximo consegue irritar-nos desta maneira, e ainda
manter-nos mais ou menos por perto. Mesmo se nos faz sentir que não
somos o suficiente.
*
Termina como começou. Cotovelos nos joelhos, punhos cerrados a suster
o queixo, cabeça inclinada, à escuta, e ele ao piano, dizer asneiras. Tira-lhe
uma foto, a ele que sempre diz que a quer fotografar mas nunca o fez, ou
ainda não. Até pareço um pianista a sério, diz. Talvez vocês não saibam,
mas ele nunca se engana quando toca para peluches.
Olá, mãe!
Talvez esteja quase a entrar no chamado inferno astral, como todos os
bons aniversariantes, cerca de um mês antes da dita efeméride, talvez seja
deste tempo que no mesmo dia muda várias vezes do azul para o cinzento,
talvez seja do adiantado da hora e de Setembro. O ano termina daqui a três
meses, Junho despediu-se sem que mal o tenhamos vislumbrado (num ano
em que voltámos a ter frio nos Santos Populares) e não estou certa de que
Maio, até agora o meu mês preferido, tenha chegado a terminar. Os dias 25
parecem, em geral, bons para a independência.
Tendo vivido algum tempo com duas pessoas cuja formação de base é da
área da psicologia, habituei-me a ouvir as suas histórias caricatas dos
tempos lá passados, mas sobretudo a usar a expressão «Fazer as malas e
bazar para Moçambique», usada por uma dessas amigas para descrever a
sua hilariante fuga para longe de uma relação.
É a primeira vez que volto a um país onde não faço parte da minoria, um
sentimento indescritível a não ser pelo meu sorriso. Nunca aqui estive mas,
como denota um amigo, sinto-me em casa tão imediatamente que nem
consigo tirar fotografias. As primeiras, envio à minha irmã, precisamente
por saber que ela vai reconhecer a descrição que faço, não se parecessem
estes bairros com os da cidade em que crescemos.
Quando aqui chego, e durante os próximos dias, observo sempre, em
algum momento, borboletas à minha volta. Não me transformo nelas, nem
são amarelas, mas alegram-me. Tudo faz sentido neste sortido de cores
vibrantes e escritos curiosos, desde os avisos para não fazer xixi (o
equivalente aos não escarrar para o chão de Macau) ao conselho
Moçambicanos, não troquem o pão por doces, ao meu novo mantra,
encontrado no Mafalala: Caiu mas vai levantar.
É a primeira vez que me chamam mãe, embora não a primeira em que
me confundem com a de alguém. É, também, o dia da mãe. No segundo dia,
saio do hotel assim que o cansaço da viagem permite, e deambulo durante
cinco horas pelas ruas de Maputo. Os moçambicanos são conversadores,
simpáticos, práticos, curiosos, prestáveis. São campeões de vendas: de
manhã à noite, estão em constante negociação. Caju, amendoim, brincos,
estátuas, flores. Muitas flores, porque são um povo absolutamente
romântico. Enquanto espero para almoçar, aparece mais um. Tem um
produto verdadeiramente único, em madeira, quase do seu tamanho, para
me apresentar: África. A vida dispensa metáforas.
Na Avenida Marginal, faço amizade com dois polícias, homem e mulher.
Um desportista alerta-me de que nem todos os que por ali caminham são
bem-intencionados. Por falar em desportistas, quase me junto a uma aula ao
ar livre. O sol nasce e põe-se tão cedo que pelas dez já me sinto como se
fosse uma da tarde.
O ninho do tecelão parece um coração invertido. Não muito longe de
onde o Carlos apanha um para me mostrar, numa loja, na praia, assistimos a
um concerto de tear, tocado por um rapaz que mal o larga para nos vender
inconfundíveis sacos coloridos. Ao regressar pela reserva, os animais que
não se manifestaram durante a vinda proporcionam-nos o melhor momento
do dia: macacos, gazelas, girafas. É outra vez sábado. Só estou aqui há uma
semana? Ficaram-me a Vanessa, a Ana Mafalda, a Estela, o Mbate, o
Ondjaki, o Valter, a Carmen, o Patraquim, o Mendonça, o Pignatelli, o
Carlos, a Énia e tantos outros resilientes.
Ficou-me a Teresa vestida de branco, naquela última manhã de domingo.
A foto da Luna de que só se lhe vê o cabelo luminoso, no banco de trás do
carro, no dia em que fomos dar um mergulho à Ponta do Ouro. Uma outra,
da Jade, deitada ao comprido no sofá, descalça, pé direito enroscado no
esquerdo, livro na mão como tantas vezes esta família parece andar. Jade
com a gata ao colo, Jade a comer queijo deliciada, Jade a explicar-nos o
mundo e a ralhar ao pai à mesa, em conversas divertidíssimas. Ficou-me o
Cabrita à janela, em modo despedida, talvez ainda a lamentar as flores
vermelhas das acácias que não coincidiram o seu tempo com o meu,
enquanto a Sónia vem de casa da irmã, do outro lado da rua, e me dá mais
um livro e uns quantos abraços. Ficou-me a doce Hirondina, que conheci
em Macau e a Keysha, essa miúda maravilhosa, tão jovem, mãe de uma
menina que fez um ano daí a dias.
Volto para Portugal mais pesada, e não é só dos livros, ou não tivéssemos
comido e bebido à fartazana. Volto com mais um sonho realizado. Volto
com um verso do Craveirinha, «O que há a fazer sou eu que tenho de o
consumar.» Ficou-me o clássico «africano a tentar convencer outro a
transportar-lhe qualquer coisa numa viagem intercontinental», neste caso
duas mulheres que se me dirigem, uma delas passageira e a outra
embaladora de malas com película aderente no aeroporto.
Ficou-me o comerciante que ameaçou atirar-me à água quando fotografei
a sua loja sem reparar que ele estava lá dentro, as fotos desfocadas de
estranhos nos my love ao pôr-do-sol e essa saudação tão bonita que se ouve
em todo o lado. Olá amiga, olá mãe.
Segundo cérebro (II)
Não, ao ovo quente do pequeno-almoço,
à sua perfeição,
não chego nem de longe.
Imaginem, mais do que o meu cérebro
dura a chave de parafusos.
Que belo seria
ter o coração fofo como um figo
e a abnegação de uma lâmpada eléctrica.
Lamento. Desculpai vinagre
e azeite, pimenta e sal,
que eu não seja
como vocês
indispensável. (1)
*
Já sei andar de bicicleta, e isto merece o seu próprio parágrafo.
Um amigo em comum apresentou-nos. Ele pediu-me os óculos, observou
que estavam tortos (haviam sofrido o segundo golpe apenas recentemente) e
levou a mão ao bolso. Ri-me, pensando se teria um alicate escondido e mos
endireitaria logo ali, em pleno Largo de São Domingos. Tirou um pequeno
pano para o efeito e começou a limpá-los calmamente. Talvez não seja
possível ver se alguém está a corar por trás da máscara. Sobretudo se for de
noite e estivermos no meio de uma multidão. Queria dizer-lhe que não
podia fazer isso porque, afinal, estávamos (estamos) numa pandemia e ele
não me conhecia, mas não disse nada.
Escutara-lhe a voz no meio de outras tantas multidões, primeiro no início
de Junho e agora no final de Julho, ambas sem saber quem era. Só agora eu
lhe via a altura, o rosto, as mãos: metódico, insinuante, no seu próprio
tempo. A limpar os meus óculos pela primeira de muitas vezes.
*
Voltei a tomar vitamina D. O título do último email que recebi é
«Preparação para a Videocolonoscopia Total e Videoendoscopia Digestiva
Alta sob sedação profunda». A preparação depende apenas de si, diz o
email. Obrigadinha. Agora que eu voltara a investir no meu antigo amor por
brócolos e deixara o queijo, tenho de largar os primeiros e dedicar-me ao
segundo. A app que me lembra ou, melhor, manda beber água mais vezes
do que eu o faria por mim mesma, pergunta se eu iniciei o jejum, aponta
quanto tempo decorreu desde o último. Estou no rácio budista, o 20:4. Faço
mais chá, consigo finalmente beber umas quatro ou cinco chávenas por dia.
Voltei a deixar de comprar café, porém ainda compro chapatas na Chaimite.
Por duas vezes o funcionário me pede, com razão, que não me afaste porque
estas raspadinhas têm prémio. Lamento que o precipitar do Outono leve
consigo a magnífica copa da Ceiba speciosa, também conhecida por
paineira, e o seu manto.
*
Acontece que, há três casas atrás (que é como quem diz: ainda agora, no
Verão), passeava em frente ao MAAT quando uma mulher de bicicleta
deixou cair o seu casaco. Hesitei em apanhá-lo, chamei-a e ela voltou-se,
hesitou em pegar nele, levou-o e agradeceu-me. Pensei que a pandemia nos
tirara também e sobretudo a gentileza. Meses depois, no final de Outubro,
uma rapariga caiu como resultado de um solavanco maior. O autocarro
virou uma tela em que ela, inclinada como um Cristo sorridente ainda na
cruz, ficou a três pares de braços do chão, segurada por vários outros
passageiros. Os braços arqueados e as pernas ainda juntas, esticadas, uma
agradável visão renascentista em câmara lenta. Quotidiano e álcool gel
sobre máscara.
*
A vida é assim. Escrevemos um poema ao amor impossível e ela mostra-
nos quem concretize esse poema, sem saber que o escrevêramos. Ela
mostra-nos que o amor, para o ser de verdade, tem de ser possível, mesmo
que demore a chegar e se engane demasiadas vezes no caminho. Há quem
use óculos como eu e viva onde eu aprendi a andar de bicicleta. Quem ande
de bicicleta por essas mesmas ruas. Há coincidências e há a letra T por duas
vezes, embora alternadas. Há quem seja não um, mas dois poemas. Nenhum
dos quais pode ficar.
*
No escuro, uma folha nova se desprendeu da Monstera deliciosa (há lá
nome melhor!), despertando-me. Acordei assim de uma das poucas noites
em que não adormecera de cansaço e luz acesa. A folha nova não mudou a
hora: 4h20, como ultimamente. Estava escuro e assustei-me um pouco.
Talvez algo se desenrolasse também dentro de mim. De dia, quando está
sol, encosto o rosto às folhas que são já maiores do que ele, e ficamos assim
coladas e caladas durante muito tempo.
Tive uns brincos com a forma de folhas douradas, esburacadas, muito
antes de ter uma monstera de verdade. Agora uso menos os brincos, mas
continuo a criar essas aberturas e, espero, a deixar apenas o que importa no
lugar delas. Continuo a sobreviver, como as minhas plantas.
*
«Eu conheço a tua pele». Ele faz muitas declarações deste género, e eu
não o contrario. Às vezes, só. Gosto de lhe dizer que não, e gosto de ser
impaciente com ele e do contraste da sua paciência para comigo. «You’re
funny», diz. Somos a primeira vez de algo muito particular em anos, para
ambos. Pergunta-me sobre o que me dói a mim, mesmo que lhe doa tudo a
ele. Atenta em cada suspiro. Diz-me o que os médicos disseram na semana
em que tudo aconteceu. Oferece-me o escuro e as coisas que só nele vemos.
Oferece-me o sol que sustenta os meus retratos, o trânsito, ficar cada vez
mais tempo, o não querer ir embora. Eu faço-me mais pesada e ele ignora e
puxa a cadeira ainda mais para junto de si.
Oferece-me de tudo, desde um mini presépio a camisas suas lindíssimas,
ao jantar e todas as outras refeições, a bolachas que levo na mala como se
estivesse a sair de casa dos meus pais, a um dos muitos CD que ouvimos
juntos. Não o Coltrane, não o Blue Train, mas o Black Messiah, de
D’Angelo. Existe outra canção que não a Really Love? Eu nem tenho um
leitor de CD, mas gostava.
Conheço-lhe o livro sagrado que deixa sempre aberto à cabeceira da
cama, os pijamas, as teimosias, as pantufas fofinhas, a raiva, o luto fresco
(irmão), o luto de ainda agora (o Candé, que para ele e os irmãos era o
colega de escola e nunca vai ser menos do que isso, ainda que o racismo) e
o luto antigo (pai). Sempre tão composto. Conheço-lhe as persianas, o
espelho, a parede enrugada, a orquídea, o seu prezado e invejável guarda-
roupa, o riso e o choro. Conheço-lhe tudo aquilo que me irrita e as saudades
que ficam.
*
Há cortes de que apenas nos apercebemos quando cicatrizados. Na mão
direita trago dois. Descubro-os pouco antes de voltar a este texto que deixei
a meio porque... PANDEMIC!
A voz da comediante Elsa Majimbo é uma das mais inconfundíveis dos
últimos tempos. Creio ainda que os fabricantes quer de batatas fritas quer de
óculos de sol lhe devem parte do seu negócio desde Março. Eu continuo
fascinada com a sua humildade e aquele pedaço de tinta azul-bebé a
escamar do tecto do quarto, que ela teima em apanhar no seu monólogo de
Instagram, para gáudio dos seus milhões de seguidores; ela que está na
Forbes e em tantas outras revistas de renome. Há algo reconfortante nessa
imperfeição visível e humilde. Há algo reconfortante numa jovem queniana
a triunfar num ano como 2020 (ler vinte-vinte).
*
No início de tudo isto, preparando-me para assar tomates-cereja a baixa
temperatura e durante o maior tempo possível, para uma salada, desarrumei
a bandeja e escrevi FUCK COVID usando os ditos. Foi absolutamente
satisfatório. Take no remedy lightly, take no urging intently, take no
separation leniently, beware of no lake and no larder. A change, a final
change includes potatoes. This is no authority for the abuse of cheese. This
is a result. There is no superposition and circumstance, there is hardness
and a reason and the rest and remainder. There is no delight and no
mathematics. (4)
Outro dia chamaram-me de gorda. Quero dizer, chamaram-me de gorda
em duas ocasiões diferentes, como se uma não bastasse (em caso de dúvida,
por favor quebrar novamente o vidro de emergência, se tiver restado algum
pedaço).
A primeira: Feira do Livro fora de tempo (máscara, sol no pino do meio-
dia, multidão, álcool gel a rodos, perigos vários para a minha carteira); uma
estranha acabada de tornar-se conhecida cometeu o clássico erro de me
parabenizar pela minha suposta gravidez. Acontece a muitas mulheres. A
mim, não acontecia há muitos anos.
Dois meses mais tarde, depois de pagar a conta (imperiais e chamuças) e
trocar dois dedos de conversa com quem nos atendera num conhecido
restaurante, eu e a amiga que estava comigo preparávamo-nos para sair há
já algum tempo, apesar da simpática insistência para que ficássemos.
Queríamos continuar a nossa longa caminhada. Fazia eu muito bem, anuiu o
senhor, porque não é que não fosse elegante (e com isto fez um gesto não de
elegância e sim de arcabouço), mas podia ser muito mais. É a minha deixa,
retorqui, e saí.
*
Berra a vizinha: «Diz lá, já fizeste merda, não foi? Eu não percebo nada
disto, e tu parece que ainda percebes menos. Também és mais velha do que
eu, devias ser mais inteligente. Estou-te a dizer adeus azul. Que menina tão
linda...Tens de lhe cortar a franja. Tomou um Xanax... Dormiu a noite toda.
Vocês aí já têm ordem para sair à rua?»
*
O que a vulgaridade sabe bem! O que a matéria sabe bem. [...] E uma
pena da vida! Uma saudade da vida! Uma tristeza de não poder misturar-
me à vida! A vida — e um cantinho do lume, a vida banal, a vida
comezinha.... Tenho saudades do muro a que costumava queixar-me. Tu és a
nuvem, tu és a árvore. Enche a consciência de todas estas coisas, porque
não tardarás a perdê-la.(2)
*
Sonhei que um dos meus anéis se partia e, ao partir-se, ficava maior.
Tenho dois anéis iguais, oferecidos pela minha mãe. São reguláveis, a única
forma de me servirem porque tenho as mãos grandes e os dedos grossos.
Podem ser usados juntos ou separados. Tenho duas marcas à volta do anelar
e do indicador esquerdos. Protegida mesmo quando não os trago postos.
Uma vez julguei ter perdido um durante uma das minhas muitas mudanças
de casa e, então, receando perder o outro, deixei de usar anéis. Muito mais
tarde, reencontrei-o e, desde então, raramente os tiro, embora se prendam na
roupa e no cabelo e em todo o lado. São anéis de voltar atrás. Dão-me
balanço para avançar.
*
Os maiores dramas passam-se porém no silêncio(3). Talvez por isso me
custe tanto ser obrigada a deixar de falar com alguém. Fotografo
obsessivamente a evolução da bancada e do lava-loiça, em substituição da
série que fiz com a mesa e a janela da cozinha há cinco casas atrás. Finjo
que sou William Eggleston. Fotografo a minha sombra na perna da Vanda
num dia tranquilo, sentadas a apanhar sol; ela ri-se ao ver as fotografias.
Finjo que sou Vivian Maier. Vi a minha mãe pela primeira vez em onze
meses. Não vejo a minha irmã nem o meu pai há onze meses. Ele reage com
corações a uma foto minha e manda-me fotos suas. Está na Bélgica. Repito
o que escrevi há alguns anos, quando a minha irmã foi viver para Londres:
Natal é quando a minha irmã vier.
*
Ondjaki cortou o cabelo, adiou um tapete, leu-me Eduardo White pelo
WhatsApp. Inscrevi-me de novo num ginásio. Fiz três foccacias e duas
acabaram no lixo após o forno. A terceira, mais trabalhosa, com uma receita
diferente, como se a diferença estivesse na receita que antes me serviu tão
bem, a mim e a tantos outros.
Porque é que eu me ponho a fazer receitas que implicam as tarefas de
que menos gosto? Como ralar cenouras, descascar maçãs ou mexer
pacientemente coisas que requerem a minha atenção, enquanto descuro as
coisas que realmente precisam da minha atenção, vulgo eu mesma. Antes
ser a manteiguinha que desliza batata-doce-laranja abaixo.
Voltaram as breakfast pizzas em pão naan, o apple crisp com gelado de
nata, a mousse de aquafaba e chocolate com chantilly, croquetes de grão, o
risotto de cogumelos, o pudim de chocolate, um bolo de ricotta, o bolo de
curcuma e limão da Joana Barrios, as torradas com manteiga e shiitake em
alho e pimenta preta. Vivo para as receitas de Rachel Alice Roddy para o
Guardian, para o seu Instagram de comidas reais, sem filtro, a lembrar still
life painting (natureza morta é um nome feio para imagens tão bonitas).
Encontro muita beleza em tudo o que a Filipa Castro fotografa, e por
vezes são só as cascas dos legumes. Melhor do que tirar fotos, só ver fotos.
Por vezes não precisamos de comer, apenas de cozinhar e dar a alguém para
provar.
*
Um pássaro foi de encontro à janela do meu quarto, fez ricochete no dia
cinzento e nos meus pensamentos onde continua a embater. E eu sem saber
o significado. Do pássaro, dos meus sonhos, por vezes da minha vida. O
pássaro não se prendeu. A janela permanece intacta. E eu? Fui promovida a
pessoa que corrige os outros constantemente, lembrando-lhes o que fizeram
bem mas, sobretudo (e parece que é isso o que mais importa) o que fizeram
de errado. E eu?
*
Perguntara à empregada da loja: «Nenhuma gabardina permanece
sempre impermeável. À prova de água, sim.»
E quando lhe perguntei o que significava ser à prova de água,
respondeu-me que era melhor comprar um chapéu-de-chuva. Mas não tinha
dinheiro que chegasse para um chapéu-de-chuva. (5)
*
‘Tá e vou sair, vou abandonar, tenho uma consulta agora às cinco, não
posso ‘tar aqui. Escrevi estas palavras a giz nas paredes do 59 da ZDB, há
muitos anos. Diz-me a Lia que faleceu o senhor que as disse (e disse-as
piscando o olho), um dos icónicos fazedores de cultura portuguesa, dos
Apanhados TVI e RTP, uma língua em que muitos dos meus amigos são
fluentes. Uma língua que talvez seja condição para ser meu amigo.
Continuamos sem saber o seu nome, mas nunca o esqueceremos. Mesmo se
com um fogo a dez metros de nossa casa.
*
Acredito no meu secador de salada, no removedor de borbotos que
comprei em promoção quando regressei da ilha de Armona, em chocolate
quente caseiro com marshmallows não-caseiros em cima e no gel de aloe
vera. Sou sobrevivente dos senhorios loucos, das baratas e dos fados
simultâneos triplamente deprimentes de Alfama. Sobrevivente de um único
coração, partido muitas vezes.
Confesso que cheguei até aqui sem instalar o Co-Star nem o Pattern. Na
verdade, deixei completamente de ler o horóscopo. Tornei-me discípula de
Karen Kardasha. Cheguei atrasada à aula de I-Cycle outro dia e, to my
dismay (queria tanto que esta expressão funcionasse em português), o
instrutor fez questão de que toda a gente soubesse o meu nome. Os meus
pensamentos durante esta aula vão desde «estou tão gorda» a «quem
inventou isto?» a «porque é que aquela bitch continua a pedalar se já
estamos nos alongamentos?» a «tenho de pedalar mais rápido» a «certo, fui
eu que não só me inscrevi como ainda compareci» a «este pessoal não está a
brincar» a «este gajo aproveita tão bem os minutos» a «como é que isto
ainda não acabou se eu ainda por cima me atrasei» a «ainda bem que fiz
isto».
Vem-me muitas vezes à cabeça a frase «My tranquility needs to be
refurbished» dita pela personagem Alma Wheatley, para mim a mais icónica
de The Queen’s Gambit.
*
Vou ao supermercado e o Filipe ao cemitério. Cada um faz o que tem a
fazer até ao recolher obrigatório. Passa-me para a mão o avental bordado
com o seu nome. A noite passada, atirou a máquina do tabaco para o chão
da cozinha. Aterrou no tapete. É uma táctica não milenar mas millennial de
estragar algo e tentar repará-lo usando o mesmo método. Ele diz, «Acordei
a sentir-me um saquinho de lixo». E eu respondo: «Espero que seja um
saquinho de lixo dourado.» Rimos e ele sai para ir comprar pão. Ora vem
abraçar-me, ora diz que preciso de endireitar as costas, ora lhe mando uma
foto da porta que ele deixou mal fechada e agora se abre sozinha.
EU COMPREI PÃO./ ENTÃO EU DOU-TE COM O SACO DO PÃO
NA CARA. Diz que estou ao computador quando se vai deitar e que já
estou ao computador quando se levanta. Porque é que os meus amigos
atiram com as coisas quando se enfurecem? Ainda bem que a Black Friday
não calha em Mercúrio Retrógrado. «PUTA QUE NOS PARIU A TODOS.
Põe isso num poema, Gisela.»
*
Sou pior do que Penélope, bem sei. Mas urdi este texto durante tempo
suficiente para que a minha amiga Ana pudesse, finalmente, mudar-se para
o Japão, o que era para ter acontecido, como tantas coisas, em Março.
Também me atrasei o suficiente para Margaret Keenan de 90 anos receber a
primeira vacina para a covid-19. Casaco cinzento às bolinhas e camisola
natalícia com um pinguim, sorriso no rosto, tão cedo não a esqueceremos.
Quanto a mim, conto ir visitar a Ana assim que possível. Respirei fundo e
ouvi o bater do meu coração. Estou viva, estou viva, estou viva. [...] Todos
os olhos e rostos se voltaram em direcção a mim e, guiando-me por eles,
como por um fio mágico, entrei na sala. (6)
*
Citações: Hans Magnus Enzensberger, 66 Poemas - Escolhidos e
traduzidos por Alberto Pimenta (1); Raul Brandão, Húmus (2) (3); Gertrude
Stein, Food (4); Sylvia Plath, A Campânula de Vidro (5) (6).
Delivery / O parto
Escreveu Exupéry: «The earth teaches us more about ourselves than
all the books in the world because it is resistant to us. Self-discovery
comes when man measures himself against an obstacle. [...] We must
surely seek unity. We must surely seek to communicate with some of
those fires burning far apart in the landscape.»
Há um mês atrás, do nada, não que eu acredite muito em nadas, marquei
uma viagem a Paris, onde nunca estive. Pois é, ainda nem todos fomos a
Paris (ou a Itália, ou à Serra da Estrela, ou aprendemos a andar de bicicleta,
ou sabemos nadar, ou mil outras coisas). Cada um com a sua história. Eu
iria sempre viajar em Março, voltaria a Macau, correndo tudo bem iria até à
China, visitaria a minha Sarita e o seu bebé Arthur (e agora estão em
Portugal e também não posso visitá-los), porém há meses que essa viagem
foi cancelada, ou melhor, adiada para uma altura incerta, pelo motivo que
sabemos. O mesmo aconteceu com antologias em standy by nas gráficas e
lançamentos de livros traduzidos, com tantos pequenos e grandes aspectos
da vida, todos ligados pelo vírus que é, também, o do distanciamento.
Contava isto às pessoas e parecia sempre uma daquelas situações distantes,
recebia um «que chatice» acompanhado de um encolher de ombros. Era
uma coisa que acontecia aos outros, e eu tornei-me, nos últimos meses, um
bocadinho ínfimo desses outros.
Agora, como tantos amigos e conhecidos, agora que já não existem
«outros» e somos todos «todos», tenho uma exposição em suspenso,
reuniões, eventos, colaborações com teatros e museus, festivais de música
adiados ou cancelados. Outro dia gravei um programa de tv que
normalmente tem gente a assistir, mas agora o público também tem de ficar
em casa. E já não nos maquilham, apenas tiram o brilho (curiosa expressão
para quem pensa demais), o que para mim é bom porque nunca uso
maquilhagem, mas também é triste porque são as raras chances de me ver
em full costume.
Na altura, quando marquei essa viagem, que está agendada para este
domingo, não sabia que aconteceriam tantas coisas sérias e tristes, algumas
já aqui referidas, outras ainda não, mas lá chegaremos, se passarmos,
efectivamente, do pré apocalíptico ao pós. À medida que os acontecimentos
se sucediam, mais e mais eu dizia a mim mesma: «ainda bem que marquei
esta viagem», até porque me tenho sentido, desde a viagem anterior,
também a um lugar onde nunca fora, e onde fui para visitar a minha irmã,
com grande vontade de estar sozinha, em silêncio, onde ninguém me
conheça e tudo e tudo e tudo. Isto pode surpreender quem não me conhece,
a mim que vivo sozinha pela terceira vez, que já dividi casa, que já estive
junta, que sou mesmo como pareço ser.
Sim, gosto muito de conviver. Felizmente, encontrei pessoas que também
gostam de conviver comigo. Mas adoro estar sozinha, fazer coisas sozinha,
viver sozinha, ir a sítios sozinha e adoro tanto falar quanto estar calada. É
mesmo fundamental para que esteja bem. Há muito, muito tempo que
anseio por um reset que, confesso, ainda não tive a capacidade de
concretizar. Esta parece a oportunidade perfeita.
Por isso, e usando aquelas expressões facebookianas, sim, quero
continuar como Gisela e sim, desejo sair assim mesmo, sem terminar,
porque nunca nada está terminado. Não sinto vontade de ligar ou escrever
mais a alguém do que o normal, de passar mais tempo online, de grandes
mudanças das que vejo apregoadas por aí, só sinto mesmo vontade das
outras. «I’ll take a quiet life», cantou o filósofo Thom Yorke. Mas a minha
vida já é a quiet life. Quero com isto dizer que, apesar de a minha família
nuclear estar espalhada por vários países, eu vivo numa casa linda, vejo o
rio todos os dias, posso apanhar sol da varanda e, para além disso, já me
apareceu Cristo num sonho certa vez a dizer o dia em que eu ia morrer. Não
sei o mês nem o ano, mas saber o dia já ajuda muito. E sim, eu tinha 33
anos na altura.
Lamento muito todas as vidas que este vírus levou mas, como dizia
alguém que teve de ir ao Santa Maria ontem, as outras doenças todas
continuam a existir. Nós continuamos a existir, com tudo o que isso implica.
Somos sortudos, uns privilegiados, mesmo os que não têm pais ricos ou são
precários. Podíamos não ter casa, nem comida, nem saúde mental, por
exemplo. Nem internet para estarmos a falar disto tudo. Nem um dia lindo
de sol. Ou Netflix para vermos o Dave Chappelle. Hoje também me lembrei
daquele poema de António Amaral Tavares que começa assim «Doutor eu
tenho uma guerra tremenda dentro da minha cabeça». Outra possível
tradução para como me tenho sentido.
*
Na verdade, agora que tudo se precipita, sinto-me bastante tranquila,
mais ou menos como a Kirsten Dunst em Melancholia, mas em divertida e
em pessoa que gosta de viver. Tenho tido todas as emoções possíveis e
agora sinto-me, apenas, bem. Já não consigo estar preocupada, nem triste,
nem nervosa, nem ansiosa, nem nada, não sou hipocondríaca, não vou
entrar em pânico, vou seguir as directrizes que tiver de seguir, como é
esperado de todos.
Há muita gente ainda a fazer o mundo funcionar, até o da cultura. Há
muita gente que ainda está onde nós estávamos até há dois ou três dias. Mas
também existem ainda algumas sujeições e liberdades: é uma questão de
bom senso e equilíbrio, mais do que de altruísmo. As únicas pessoas
verdadeiramente altruístas nesta situação são as que fazem disso o seu modo
de vida, a sua profissão, são as que nunca vamos ouvir dizer que são
altruístas, são os profissionais de saúde e são, até, os sacrificados das caixas
de supermercado, a viver uma espécie de fim de ano em loop.
Se não estivesse agora de férias durante uma semana, estaria no
escritório como ainda estão os meus colegas, excepto um ou outro já a
trabalhar de casa. Ainda assim, antes das coisas importantes, das mesmo-
mesmo importantes, das que eu sei que me vão impedir de fazer aquelas de
que gosto, eu vou sempre, mas sempre fazê-las. E não são nada de especial,
ou são especiais apenas para mim. Uma coisa: quarentena não são férias,
pois não, mas se eu soubesse que ficaria muito tempo sem ver o mar, talvez
esse fosse o meu primeiro impulso. Acredito que algumas pessoas possam
ter sentido isso. Quanto às outras não sei, se calhar pensaram que pelo
menos de cancro da pele já não morrem, eu sei lá. Há gente para tudo. As
pessoas são pessoas e temos de ter paciência uns com os outros.
*
Ontem andei bastante a pé pela cidade inteira com um amigo, fui a uma
gelataria onde nunca tinha entrado, bebemos demasiados cafés, dissemos
impropérios, imprimimos arte, fizemos planos, rimos que nem doidos,
conseguimos apanhar o 727 em Santos e sentarmo-nos em hora de ponta
porque vinha vazio, fui ao meu local de trabalho ter uma reunião difícil e
necessária, fomos ao supermercado, que normalmente é uma coisa que me
relaxa mas ontem apenas me pareceu ridícula, e sim, amigos, há papel
higiénico e tudo o que quiserem, apenas há também um horário de
reposição. Apanhei um táxi pela primeira vez em muito tempo e percebi o
quão vamos todos continuar a ser exactamente os mesmos. Entre cobrar-me
um valor ridículo por um trajecto pequeno e dizer que só lhe apetecia ir para
a casa na aldeia, enquanto se queixava de que o filho de dezassete anos não
comprara nada de jeito no dia anterior com o dinheiro que lhe dera, foi isso
que o taxista me mostrou: esta situação trará ao de cima apenas o bom e o
mau que cada um já tem em si. Ou, se calhar, o taxista serviu para me
torturar, como em The Good Place. Sim, vi as 4 temporadas de rajada nas
últimas duas semanas e estou tão obcecada que sou capaz de ver de novo.
Ajudou-me muito numa fase em que voltei a questionar novamente (mais
do que nunca) o que faz sentido, o que é a bondade, entre outras. Podemos
ser melhores? Sim. Continuaremos a ser parvos? Claro que sim.
Não tenho declarações para fazer porque as faço diariamente, para mal e
gáudio de quem as recebe. O medo... não sei. Continuam a martelar na casa
da vizinha de baixo, continuo a ter livros por ler, ainda tenho ali a máscara
que me deram por abrir.
*
No dia anterior fui ao meu lugar preferido e reencontrei pessoas que
conheci em Maputo, que estavam com uma outra amiga e ex-vizinha de
quem tentei manter a distância mas que me saltou para cima – classic
Helena Maia move – enquanto declarava que nada a impediria de me beijar
e abraçar. Voltámos a comparar as nossas peles e congratulámo-nos
mutuamente por termos bronzes permanentes e, por isso, não termos de ir
para a praia ou para o solário. Como disse uma vez a chata da Beth ao
Darryl, no Walking Dead, é como se ele tivesse sido feito para o modo
como as coisas são agora. Claro que o agora a que ela se referia na altura
era já o apocalipse zombie, but I digress. Face ao que tem sido a vida nas
últimas semanas, o corona fest parece ser isso mesmo, a desordem natural
das coisas.
Agora vou ter mesmo de comer os seis litros de sopa de pimentos,
courgette, batata doce e leite de coco que fiz na outra semana e tenho no
congelador. Sim, acredito em meal planning e não, não tenho açúcar
nenhum em casa. Mas também não costumo ter arroz e massa. Vou chegar
ao fim disto uma estampa. Agora é fazer caldo verde, para variar, e a minha
sopa preferida, que é a de courgete, coentros e couve-flor, e aquela receita
de cogumelos que ando para experimentar há dois meses. Gostaria muito de
apanhar umas lentilhas, ervilhas, tofu fumado e haloumi, mas pronto. Vai
ficar tudo bem. Sou a única que odeia esta expressão?
A quem possa interessar
Ambos lançados em 1999, um em Agosto e o outro em Setembro, o
Livejournal foi uma das redes sociais originais, a par do Blogger/Blogspot.
Apesar da migração de muitos usuários para formatos como o Facebook
(2004) e o Instagram (2010), depois do desvanecer de redes como o
MySpace (2003), o Hi5 (2004) e o Orkut (2004), a nostalgia permanece
intacta. Estes eram os tempos do mIRC (1995) e do MSN Messenger
(1999), de estar com alguém na rua à conversa e ir a correr para casa
continuar. De deixar pequenas mensagens subliminares no lugar do nosso
nome, no estado. De fazer posts com uma música no descritivo, de eliminar
fronteiras geográficas e linguísticas, de criar projectos por via digital mas
para os quais os correios ainda tinham grande relevância.
*
«A quem possa interessar: por favor, encha o meu corpo de flores
perenes e composte-me com os restos de romã, clementina e manga do meu
memorial num campo em Gwangju, na Coreia do Sul.» É assim que começa
a contribuição de uma colaboradora do projecto Learning to Love You More,
de Miranda July. A tarefa 51 era «Descreve o que fazer com o teu corpo
quando morreres». O projecto decorreu entre 2002 e 2009, começou num
apelo no Livejournal, tornou-se um site em nome próprio, um livro,
originou exposições em museus e contou com as contribuições de mais de
8000 pessoas.
Demais tarefas incluem: descrever o som que não nos deixa dormir, fazer
um cartaz encorajador, pedir à família que descreva o nosso trabalho,
fotografar uma peça de roupa que tenha um significado especial, tirar uma
foto com flash debaixo da cama, escrever o telefonema que gostaríamos de
receber, gravar a nossa própria meditação guiada, dar conselhos ao nosso eu
passado, fazer tranças a outra pessoa, listar cinco eventos passados em
1984, sugerir uma tarefa para o LTLYM, curar-se de algo, documentar a
careca se a tivermos, desenhar o conto «A Catedral» de Raymond Carver,
cultivar um jardim num lugar inesperado, passar tempo com alguém em fim
de vida, desenhar um póster de sombras, recriar um cartaz colado na parede
durante a nossa adolescência, contar a nossa história de vida em menos de
um dia, construir uma réplica da nossa cama em papel, fazer um cartaz de
protesto e de facto protestar contra algo, fazer uma cover da canção Don’t
dream it’s over, recriar uma foto disponibilizada pela própria July, dizer
adeus.
*
Ao todo, foram setenta pequenas missões que permitiram a cada pessoa
ser parte activa de uma exposição pessoal que intencionava chegar a um
conhecimento mais profundo de si mesmo e partilhar-se através de som,
vídeo e imagem, com uma comunidade a muitos quilómetros de distância,
formada por pessoas das quais muitas vezes apenas se sabia o nome, se
tanto. É curioso constatar quais das tarefas tiveram maior adesão, tendo até
recebido contribuições múltiplas da mesma pessoa, por oposição a tarefas a
que só três pessoas responderam. Desde 2010 que o site é propriedade do
Museu de Arte Moderna de São Francisco, no que parece ser uma versão
primordial do que está a acontecer actualmente com os NFTs no mundo das
artes visuais, da música, dos memes.
*
*
Um projecto deste género lembra inevitavelmente os desafios do
Instagram como o Bucket Challenge de 2014, em que os participantes
tinham de despejar um balde de água gelada sobre si mesmos ou doar
dinheiro para causas sociais (sendo que muitos acabaram por fazer ambos).
O LTLYM lembra ainda os pedidos de museus de todo o mundo pós-
pandemia, solicitando aos seus visitantes presenciais e virtuais que
recriassem obras de arte durante a quarentena, com os materiais que tinham
em casa, imagens essas que deveriam ser depois mostradas e ilustradas com
tags ao respectivo museu.
Embora o site original tenha cessado actividade, versões do mesmo
continuam a existir, com a bênção de July e do seu parceiro de criação,
Harrell Fletcher. É de notar que tudo isto foi feito com instruções simples e
sem limitações de língua, sem que as fotos fossem perfeitas ou os
contribuintes artistas de profissão. Qualquer pessoa de qualquer lugar podia
participar, de forma individual ou em pares. Todas as vozes eram relevantes.
Todos os silêncios e flashes reflectidos em azulejos, todos os dedos
indicadores desfocados insurgindo-se na lente, também.
*
A pandemia trouxe-nos desafios inesperados e outros, conscientemente
decididos a não nos deixar desassociar da nossa imagem, da nossa vida, a
estarmos presentes. É essa a premissa de #lyndaemcasa (2020) de Joana
Barrios, que consistia em vestir-se com outra coisa que não o pijama
(equipamento oficial da humanidade durante a pandemia), só porque sim,
mesmo sem poder sair de casa, o que originou fotos do cómico ao
dramático ao high-fashion, ao «não sabemos quanto tempo é que isto vai
durar, deixa-me cá estar bem comigo e com o espelho». Diz Barrios no seu
icónico blog Trashédia:
*
«#LYNDAEMCASA é o meu convite a todx x que quiserem shake it off,
como cantaria a Taylor Swift, sendo que “it” será a neura, a seca, a agonia, a
fartura…
É um convite à expressão e celebração da subjectividade da beleza
individual num espaço livre e aberto, apenas agrupado por um hashtag que
criei para sabermx quem somx e para nx darmx força unx a outrx. É um
convite a uma acção tão simples como a da montação individual, para
sairmx disto melhor do que entrámx. É uma coisa simples, mesmo, para
praticar todos os dias, como aquele telefonema que fazemos para saber se x
amygx e a família estão bem.»
*
Os projectos e-motion, Find Me e Passepartout, de Joana Linda, são
outros que recordo e destaco, apesar de já quase não se encontrarem
vestígios dos mesmos online. e-motion foi uma iniciativa que juntou artistas
de vários países e resultou numa exposição fotográfica no Castelo de São
Jorge, em Lisboa.
Find me juntava fotografias antigas com colagens e uma história criada
por Joana Linda, que as interligava através das suas palavras em sites feitos
pela própria. Na altura contribuí com fotos de família para Find me: a minha
mãe no alpendre de casa da minha avó materna com o meu tio e padrinho ao
colo. Uma foto muito antiga e gasta, desde a Guiné-Bissau. A história
pessoal de cada um recebia uma nova narrativa que a transformava numa
história comum e comunitária.
Diz a conhecida expressão que, uma vez na internet, para sempre na
internet. De Passepartout encontramos apenas a descrição: «O projecto
propõe, numa leitura inicial, uma viagem instantânea à volta do mundo.
Não uma viagem física mas uma viagem visual, permitindo vislumbrar o
que está a acontecer em diversos pontos do globo exactamente à mesma
hora. Passepartout pode ser encarado como uma performance colectiva
mediada pela internet. A artista lançou um desafio aos internautas, através
do seu site pessoal: tirar uma fotografia a si próprios, estivessem onde
estivessem, exactamente às 15:30, hora de Lisboa, no dia 30 de Abril de
2004.»
*
Não temos já acesso às fotos do projecto, mas ainda podemos recordá-lo,
esquecê-lo e voltar a lembrar enquanto por cá andarmos.
Seja porque os computadores e discos externos se perderam ou
avariaram, seja porque os proprietários foram mudando de domínio e
filtrando essas partes mais antigas do seu percurso profissional, a verdade é
que alguns destes projectos vivem mais na nossa memória do que numa
cloud qualquer. Recordo-me da fotografia de Marta Loureiro, tirada num
comboio regional algures entre Vila Nova da Barquinha e Lisboa. Por que é
que ainda me lembro disto? Por que é que só me lembro disto? Ainda tenho
quer a Joana Linda quer a Marta Loureiro nas minhas redes sociais, no
entanto só conheci a primeira pessoalmente e, ainda antes de me cruzar com
ela, conheci a sua mãe, por puro acaso.
O que sobressai do tempo do Livejournal e do Blogger são, para além
destas comunidades internacionais ligadas pela fotografia e pela música, o
autodidatismo de aprender a programar em html, css e, para os mais
audazes, flash e javascript. Tudo estava ainda tão no início. Entre amores e
amizades, houve quem partisse do virtual e depois se cruzasse no real, e daí
resultaram viagens pelo mundo, colaborações, casamentos.
Vivemos muitas vidas ao longo das nossas vidas, mas ter acompanhado
um processo em que artistas como Joana Linda ou Filipa Barros Castro
usavam scanners como máquinas fotográficas, tinham conta no Flickr e no
site da Lomo, num misto de fotografia analógica com digital e realização de
videoclipes e curtas-metragens, é fazer parte de uma memória colectiva
prática e afectiva extremamente original e singular quando comparada, se
tal comparação fosse sequer possível, com um tempo em que a internet
rapidamente deixa de estar no nosso controlo e passa a controlar-nos, mais
do que nunca.
*
Outro projecto que liga Blogger e Livejournal e que hoje em dia existe
não só no site mas também no Instagram é o Post Secret. O conceito é
contar um segredo escrito num postal: um segredo, um medo, uma traição,
uma confissão. O importante é revelar algo, desde que seja verdade e nunca
tenha sido partilhado antes. O segredo deve ser usado aproveitando o postal
ao máximo, ser breve e enviado por correio, anonimamente. Sim, ainda hoje
é pedido a quem queira contribuir que envie o postal, no que também pode
ser visto como uma forma de purga digital, ao invés do hoarding de
informação a que estamos sujeitos. É uma forma de realmente confiar uma
parte física desse segredo a outrem. Este postal é depois digitalizado e
postado online. Já são mais de oito os livros PostSecret, sendo o primeiro,
«PostSecret: Extraordinary Confessions from Ordinary Lives» de 2005.
*
Em 2005 duas mulheres conheceram-se, tornaram-se amigas e, em 2007,
começaram o projecto A Year of Mornings: 3191 Miles Apart. São elas
Maria Alexandra Vettese (MAV) e Stephanie Congdon Barnes (SCB), que
viviam a 3191 milhas de distância, uma em Portland, Maine e a outra em
Portland, Oregon.
A troca começou no Livejournal e também se tornou um livro de fotos
do quotidiano de cada uma. As afinidades fotográficas e artísticas
permitiram-lhes partilhar momentos, receitas, manhãs (que constituíam o
foco do livro, sempre em díptico) e noites (estas dariam lugar a um segundo
livro). A aparente simplicidade deste slow sharing é quase impensável numa
sociedade em que as lives são dominantes, em que se não postarmos uma
foto no momento seguinte a tê-la tirado já estamos a incorrer em throwback.
Com tantos directos, tornamo-nos rapidamente obsoletos, sem tempo de
usufruir da memória e quase sem necessidade de guardá-la dentro de nós,
pois o Instagram, o Facebook e o Google Fotos nos permitem revisitá-la
sempre que quisermos, diariamente. Mas só se a tivermos carregado para
estas aplicações, claro. Se bem que o nosso telefone ouve tudo o que
dizemos e sabe todos os nossos segredos. São o oposto do desapego, são
talvez algo que nos envelhece por um lado e nos permite revisitar
fragmentos da nossa vida (mesmo se filtrada), se um dia nos afectar a
doença.
*
Vivemos numa época em que se espera de nós que meditemos
diariamente enquanto lidamos com o desespero, a sofreguidão de
solicitações constantes e de falta de paciência para estar consigo e com os
outros. É o ir a um concerto e ser mais importante provar que se esteve lá e
provar naquele momento exacto, do que ouvir e ver quem nos presenteia
com a sua arte, arte pela qual pagamos, mas cuja expectativa continua a
estar no exterior, no número de pessoas que faz likes, que guarda os nossos
posts, que os partilha de novo. É lidar constantemente com questões de
saúde mental. É estar em confinamento e compreender, com uma clareza
que fere, o que há de errado e certo na nossa vida.
*
HONY ou Humans of New York é talvez o projecto que mais vezes
aparece nas minhas memórias do Facebook. Também migrado para o
Instagram, tornou-se um projecto tão conhecido que até já incluiu
celebridades e outras figuras notórias. Recordo-me de uma foto da sensação
pop Katy Perry cuja legenda era «Estou a tentar passar menos tempo a olhar
para o meu telefone».
Humans of New York teve início em 2010 e pretendia fotografar dez mil
habitantes da cidade de Nova Iorque; no entanto rapidamente se juntou a
fotografia à entrevista e o autor, Brandon Stanton, começou a incluir
também citações e pequenas histórias contadas na primeira pessoa pelas
pessoas que abordava. No seguimento dos demais projectos referidos,
também este se materializou em livros e chegou a angariar um milhão de
dólares para causas, o que levou a um reconhecimento por parte de Obama.
A geografia inicialmente nova-iorquina do projecto abrange hoje mais de
vinte países. Invisible Wounds é uma das suas ramificações, em que
veteranos da guerra no Iraque contam as suas experiências. Através de
Humans of New York (que é facilmente a página preferida da maioria das
pessoas que conheço), paramos para nos reencontrarmos com os outros e
connosco mesmos, através das partilhas das suas vivências, amores,
desamores, tristezas, dificuldades e alegrias. É talvez o único lugar da
internet onde os comentários são quase sempre um lugar seguro, não
obstante o tema do post serem as drogas, abusos sexuais, uma ida para a
universidade já em idade avançada ou conseguir um papel numa série de
TV.
*
Uma das referências em termos de criação de comunidade é a jornalista
da Blitz Lia Pereira, veterana da geração Fórum Sons que nos presenteia
sempre com as melhores listas no Spotify e que já mantivera um blog
individual durante muito tempo, o Sofá Verde (2003-2012). Sendo uma das
muitas fãs portuguesas do HONY, criou três outros projectos que são
absolutamente fundamentais para nos ajudar a navegar as agruras do dia-a-
dia com humor, ternura, algum nojo e partilha de conhecimento inútil e útil,
sendo que ambos são importantes.
Recentemente, numa conversa com a cantora Selma Uamusse, esta
recordava Corta-unhas – «O Tic-Tic do dia-a-dia», um tumblr criado por
Lia Pereira em 2012 e actualizado até 2018, dedicado a pessoas que cortam
as unhas em público. O site é uma curadoria colectiva com contribuições
diversas, desde paragens do autocarro ao metro, varandas, à porta de
cabeleireiros, táxis, praia e festivais de música. Com algumas participações
especiais de pinças, vernizes, limas e até facas pelo meio, claro.
Houve ainda a presença de um corta-unhas pendurado na mão de um
convidado da televisão nacional, do qual consta a seguinte legenda: «Este
senhor foi ao programa Prós e Contras com um corta-unhas pendurado no
polegar. Não está a cortar a unhaca, é verdade, mas se é capaz de ir para a
televisão com o corta-unhas atrás (e à vista), é porque é menino para tratar
do assunto em qualquer lugar público – e, como tal, merece uma menção
honrosa no nosso Corta-Unhas.»
No ecrã lê-se «Quem somos nós?» Claramente um povo que cuida das
suas mãos (e pés, não se iludam, que os há ao longo das dez páginas de
posts), esteja onde estiver e independentemente de quem possa estar a ver.
Prova disso são tic-tics da Galiza e da China a embelezar o feed, que isto do
turismo não são só tuc-tucs.
*
Uma outra forma de comunidade são os grupos do Facebook, uma
espécie de versão moderna dos fóruns e chats de antigamente. «Gataria» é
uma das criações de Lia Pereira (que doravante poderia ser referida como
«Administradora»), uma exímia contadora de histórias e uma cat lady
premium que vive com Farrusco Rameiro e Fëi Tripinha a tempo inteiro e
em part time com Areias Guna. «Gataria» é o lugar certo para todas as
pessoas que adoram gatos (doravante designados por «Donos Disto Tudo»),
quer os tenham tido ou não ao longo da vida, e varia entre memes e
indicações de veterinários a notícias e histórias deste ecossistema inter-
animal. Desde pessoas que não se conhecem sem ser virtualmente aos
amigos a quem pedimos que vão ver dos bichinhos quando nos ausentamos,
há lugar para toda a gente.
Finalmente, chego à terceira criação de Lia e a única que surgiu após a
pandemia: «Amigos em tempo de corona». Os grupos são democráticos e
qualquer pessoa pode convidar outra e fazer updates. A generosidade com
que Lia continua a fazer updates de notícias sobre vacinas ou sobre os
efeitos da pandemia nas nossas afectividades ou células cerebrais é
louvável.
*
Afrolink (2019), da jornalista e empreendedora moçambicana Paula
Cardoso, começou com orientação do Menos Hub, hoje Impulso (uma
plataforma de formação de empreendedores). Inicialmente, Afrolink era um
grupo fechado no Facebook, uma base de dados em permanente
actualização de currículos e ofertas de emprego de pessoas racializadas, por
elas, para elas, com elas a todos os passos do caminho. Na sua génese mais
simplista, foi uma espécie de LinkedIn para pessoas racializadas, mas é tão
mais do que isso. A realidade é que o Afrolink permitiu a toda uma
comunidade identificar os seus membros, as suas skills, as suas
disponibilidades, os seus talentos e experiência, em suma valorizar-se para
conquistar espaço, visibilidade e direitos sociais e laborais. Actualmente o
Afrolink é um site em nome próprio, acessível a toda a gente, e continua a
anunciar ofertas de emprego, tem ainda entrevistas, uma agenda cultural,
artigos de opinião, imagens, notícias e até promove programas de estágios,
entre outros.
*
Quantas pessoas são necessárias para criar uma comunidade? Para além
das amizades, existem relações profissionais que mantenho até hoje, quer
com as pessoas que fui encontrando, quer com aquelas com quem ainda não
me cruzei pessoalmente, mas de quem conheço amigos, primos, tias, ex-
colegas de casa, vizinhos e tantas e tantos outros membros da sua rede de
apoio privada, que foi fazendo festas à minha, ao longo do tempo. Por mais
que nos queiramos afastar das redes sociais, elas são uma ferramenta como
qualquer outra: aquilo para que as usamos é o que as transforma em algo
positivo ou negativo, por mais sofisticadas e problemáticas que elas sejam
actualmente.
*
A Caixa Solidária, iniciativa criada por Nuno Botelho em Abril de 2020,
e que conheci através da actriz Cláudia Jardim, surgiu durante a primeira
parte da pandemia via Facebook. Caixas com bens alimentares de primeira
necessidade que ficavam em lugares fixos e eram fotografadas, munidas de
algumas indicações simples e, mais importante do que tudo, ajudavam
quem precisava. Embora, como todas as iniciativas, pudesse ter falhas e
estar sujeita a apropriações por parte de quem por vezes levasse tudo, é de
respeitar pessoas que, pertencendo ou não a alguma associação ou
colectividade, se juntaram e juntaram os seus recursos para ajudar quem os
não tinha, sem julgamento e com toda a abertura. Rapidamente o município
de Cascais, no qual Botelho reside, se aliou a esta iniciativa, distribuindo
Caixas Solidárias por toda a área. Outros intervenientes públicos e privados
se lhe juntaram e agora há caixas destas em todo o continente e ilhas, bem
como a sua versão virtual para quem quiser contribuir de outro modo.
*
Voltando a Joana Barrios:
*
«#lyndaemcasa é precisamente sobre esta ideia de construção social e
sobre a oportunidade de operar essa construção desde um local inédito e
potencialmente revolucionário. É sobre a hipótese de criar uma nova forma
de estar a ser mais aproximada daquilo que se deseja projectar; é para
ultrapassar os medos e os complexos e as limitações impostas por um status
quo que colapsa muito facilmente com questões não essenciais como
tatuagens, cores de cabelos ou cores de unhas ou batons. É sobre fazer a
revolução com o que se tem à mão. Porque o grande desconhecido, o vazio,
a planície à nossa frente, árida, pode parecer angustiante pela sua imensidão
que convive simultaneamente com a limitação das quatro paredes e o portal
da internet. Mas só se quisermos muito que isso aconteça. O Futuro
constrói-se com o presente.»
*
Temos uma forma pessimista e resignada de olhar o mundo, achando que
tudo já foi inventado e feito, que contrabalançamos com a crença não
provada de que só agora já foi feito, mas estes projectos mostram-nos que
houve um antes. Cabe a nós garantir um depois.
Apesar das diferenças entre estes projectos, por coincidência ou não,
maioritariamente desenvolvidos por mulheres, que podem estar ou não
ligadas entre si (como Barrios e Jardim, ambas do teatro Praga), são muitos
mais os pontos de contacto. Falamos de cidadania, de vizinhança, de
curadoria aberta, de cura colectiva. Falamos sobre o melhor da internet
ainda serem as pessoas e de como elas se vão reinventando e reaproximando
quando tudo parece contribuir para o afastamento e a indiferença.
Quantas pessoas são precisas para fazer uma comunidade? Não teremos
criado uma mesmo agora, eu e quem quer que seja que tenha lido este texto
até ao fim? Obrigada por estarem aí. Fico muito feliz.
Segundo cérebro (III)
Se me estou a lembrar disto, é porque chega de falar no quão difícil estas
semanas têm sido. Até porque me sinto muito melhor (também chega de me
sentir mal por me sentir bem nesta altura das nossas vidas), e porque elas
tiveram muita beleza. Talvez seja altura de falar apenas da beleza. Mais ou
menos como quando a Björk cancelou a tour do Vulnicura por ter
ultrapassado o divórcio.
Todos os dias são bons para deixar algo que já não nos serve. Não é só
por ser intenso, é porque não conseguimos criar memórias novas se estamos
constantemente a reviver as antigas e, mesmo essas, só aconteceram
realmente quando aconteceram. Uma vez. Inserir reticências e parêntesis.
Ainda martelam em casa da minha actual vizinha. Do pouco que saí,
notei que o chico-espertismo de passar à frente nas filas, o não dizer boa
tarde e outros que tais, continuam. Mas os animais continuam a querer festa
e brincadeira. Há duas segundas atrás, num dia muito punk, maluco, como
diria a minha amiga Lili no seu sotaque brasileiro, estava com a minha outra
Marta (como a Lili, ex-colega de casa e ex-vizinha também), no café em
frente à casa delas. Ia falar sobre algo que me afligia quando reparei que
tinha um cachorro branco encostado às pernas, vindo sorrateiramente do
nada. Era de um casal jovem que vivia no prédio ao lado, e ali se demorou,
comigo a dar-lhe palmadinhas no lombo sedoso e encaracolado. Não sei que
magia é esta dos animais, conhecidos e desconhecidos, me virem afagar
quando eu preciso. Mas é muito comovente, sempre.
*
«Será a hora e o frio que invadem a noite / quando morre o poeta.» Estou
triste. Morreu o Manuel Cintra que era poeta, sensível, generoso, atento, e
muito mais. Guardo dele o modo como acreditava, como inventava para dar
até o que não tinha, como tratava as mulheres, e o quanto gostava de tantas
de quem eu também gosto e que eu sei que estão tão tristes neste momento.
Não conheci o Manuel durante muitos anos, uns cinco. Leu e ofereceu-
me a sua poesia várias vezes. Ouviu a minha e disse-me que merecia ser
conhecida. Acreditou em mim. Falou-me tanto da Patrícia Baltazar antes de
eu a conhecer. Do Povo ao Irreal, da Pensão Amor à Barraca e das Galegas
de volta ao Povo, das bolas de sabão ao seu cabelo verde às leggings do
chinês ao Frozen à Rihanna e ao Cohen, do amor aos animais, da solidão, da
depressão, falámos de tudo um pouco; estivemos aqui e ali, embirrámos um
com o outro quando teve de ser e fizemos as pazes como também tinha de
ser. Foi a primeira pessoa que me convidou para ler numa apresentação, a
de “O Céu submerso”. Ainda aqui tenho o meu rascunho com as pausas
marcadas, dentro do livro:
*
«Então voa. Nesse coágulo
de silêncio, voa.
Lembra-te que sou para sempre
mudo.
Lembra-te de mim.»
*
Dizia que se dava mal com homens, mas sei que tinha amigos e que os
teve até ao fim. Ele também sabia. Devolvo-lhe esta «Pedra», que dedicou a
Herberto Helder:
*
«Há uma cama onde os poetas nunca dormem.
Morrem, certo dia, prontos para nascer.
Algumas pedras os escutam. Alguns dedos
continuarão a escrever.»
*
Esta luz tão bonita de início de ano, o bom tempo, os dias que ficam
ligeiramente maiores, fazem-me pensar que se avizinha o regresso do rapaz
loiro, com ar de europeu nórdico, a quem apelidei Zé dos Telhados. Ele
começa a aparecer na primavera. Vem do outro lado do telhado em frente e,
ora fica deitado ao comprido a mexer no telemóvel ora sentado, a ler.
Imaginem chegar a casa, entrar na sala, que dá para a varanda, e no
telhado do prédio em frente estar alguém, com frequência, a apanhar sol e a
assistir ao ocaso, pés descalços, em pose do famoso quadro de Caspar
David Friedrich. Alguém que quase parece estar em vossa casa. Zé dos
Telhados recolhe antes de anoitecer completamente, excepto da vez que
teve um encontro (assim ficcionei, amoroso) com uma rapariga... no
telhado, claro. Ambos de costas para a minha casa, bebendo álcool pela
primeira vez naquele lugar. Foi o primeiro e único momento de partilha
deste lugar secreto que testemunhei.
Nunca lhe acenei, porém, a minha amiga Odete fê-lo da primeira vez que
me visitou, e ele retribuiu. Ela corou. Zé dos Telhados: perigoso e
misterioso.
*
Apesar de acordar muito cedo para o padrão da maioria das pessoas, por
vezes chego atrasada à piscina. É verdade. Agora eu nado. Pausa dramática,
suspiro, olhos fechados, sorriso.
Voltando à realidade: não consigo explicar como ou porque é que os
meus óculos, a touca, até a toalha e as chaves de casa se escondem de mim
quando é hora de sair de casa. Não culparei a minha falta de organização.
Recentemente, arranjei um motivo melhor. Pássaros. Um bando de cem
pássaros, no mínimo, que começou a passar em frente à mesa onde trabalho
sempre. Acontece estar a olhar para o computador, levantar o rosto e, de
repente, estarem a fazer a sua dança veloz. Levanto-me e fico de sentinela
aguardando que voltem, para poder registar o momento. Não sei que
pássaros são. Sei que passam mesmo por cima do telhado do Zé (por falar
nisso, onde é que ele vai no inverno?, quem é ele?, o que faz?, em que
trabalha?, que livros lê, no telhado e fora dele?).
Nas últimas semanas, tornei-me obcecada por estes pássaros. Não pelo
primeiro voo. Esse ainda me surpreende, de um jeito terno e familiar. É um
grande presente, um sinal bonito que me faz levantar da cadeira e abrir as
janelas não obstante o frio. Faz-me sorrir. Não, o problema não é o primeiro
voo. O problema é o segundo, o de regresso, que tarda e tarda. Quase
desisti, de tão difícil que era, mesmo fazendo-me de distraída e deixando o
telemóvel a filmar sozinho.
Outro dia, no entanto, eram 7h23 da manhã, e eu sabia que os vira uma
vez às 7h29. Pus-me à espera, câmara a postos, e eles não falharam. Tenho
tido este privilégio, como uma rotina matinal, e queria partilhá-lo com
outras pessoas, mesmo sabendo que não é a mesma coisa. Consegui. Menos
uma desculpa, portanto. Chegar atrasada por causa da pontualidade dos
pássaros. Também houve um dia em que cheguei atrasada por estar
apaixonada. Desse pássaro sei o nome completo, mas vocês não precisam
saber tanto quanto eu, pois não?
João Paulo Cotrim. Não dizer nada parece a única coisa acertada.
*
A Patrícia Baltazar escreveu, mas já cumprira: «Espero vir a conhecer o
circuito das nuvens para calçar os passos da chuva e tocar as casas, os
Homens. As árvores.» Patrícia, Patrícia.
*
Outro dia dei por mim a fazer babysitting, inesperadamente, num
aniversário daqueles a que vamos sem conhecer ninguém. As miúdas
estavam a brincar num pedaço de areia que era um restaurante onde as
gelatinas iam ao forno. Ao fim de 10 minutos a mais velha olhou para mim
e exigiu: «Podias ajudar-nos». E para a irmã: «Preciso de espaço e
silêncio.» A irmã disse que lhe dava espaço. Suponho que o silêncio não
venha com os miúdos de três anos. Eu disse que ela tinha de respeitar a
liberdade criativa da irmã.
Ela anuiu, depois de ter tirado o bolo do forno, que eram dois tijolos.
Estavam descalças. Quando quiseram ir brincar com os outros miúdos, tive
de calçar os sapatos à mais pequena. «O pai também tem dificuldade em
calçar esses sapatos à mana. A mãe consegue logo. A mãe é esperta porque
é francesa. O pai é português e vem de Lisboa.»
*
O Bryan morreu, depois o Farrusco. Dois seres fundamentais para
amigas minhas desapareceram no mesmo ano. O Bryan foi o único cão com
quem vivi, fiz muitas e longas caminhadas, fiquei a tomar conta na ausência
da dona. Farrusco, um gato que poucas vezes vi mas com quem criei um
laço inquebrável desde o primeiro momento, que mesmo após sobreviver a
um acidente, procurou o meu colo, de pata engessada, e se veio despedir de
mim à porta como se tudo estivesse bem. Infelizmente, não consegui dizer-
lhe adeus, só ao Bryan.
Vocês não sabem, mas eu já tive muito medo de cães, e às vezes até de
gatos. Pensar no que fez da minha bolsa uma cama temporária, que lhe
escrevi uma canção, que falei dele a quem o pintou num quadro sem nunca
o ter visto. Pensar noutro, que me lambia as pernas do nada, que me fazia
correr alegremente sem me cansar, que me deixava fazer-lhe perucas com a
esfregona e uma vez ficou preso debaixo da cama e o quanto esse vídeo tolo
ainda faz rir...
Pensar em tudo o que estes anos pandémicos nos levaram. Já passou um
tempo, quase já passaram anos, mas nunca escrevi sobre isso. Mesmo agora,
apenas consigo dizer: vocês não sabem, mas o Bryan morreu, depois o
Farrusco. E deixar um parágrafo ou dez de silêncio.
*
Pensei que precisaria de uma pausa longa mas que, chegada a hora, ainda
teria a mesma vontade que antes de escrever sobre a pandemia. Agora penso
que o que está escrito assim ficou, e que não quero mais falar sobre certas
coisas. Falar aqui, por escrito. Agora já não. Não quero escrever coisas
novas sobre dores antigas, mesmo que pareça que é exactamente isso que
estou a fazer. Sempre a fazer. Não quero escrever como quem prevê um
passado recente e doloroso, até porque o fim dos tempos nunca mais acaba
de acabar.
Gosto dos Lunch Poems de Frank O’Hara. Gosto daquele poema que
pergunta por que tiramos a máscara se mantemos a boca calada. Gosto do
poema que imagina bolinhos da sorte mais sinceros e atrevidos.
Consigo pensar no scone caseiro da Laura, que vive ali na calçada ao
lado, e a quem uma vez levei um bolo de morangos e chantilly, quando tudo
fechava às 13h. Ela ofertou o scone numa altura em que os supermercados
só abriam algumas horas por dia, e fui buscar a iguaria entregue pela janela
e anunciada no Facebook. Mal uso o Facebook agora.
Eu vivia noutra casa aqui no bairro. Cozinhava muito mais. Voltara a
assistir a vídeos de Nigella Lawson mesmo sem fazer as receitas. Adorava o
modo como ela dizia que batatas, natas e manteiga (adicionar mais
manteiga), eram a única protecção para a vida de que precisávamos. E pôs-
me a magicar uma pavlova que nunca aconteceu.
Ainda volto aos vídeos de Adrienne, do Yoga com Adrienne. Ela
encoraja-nos a mandar amor para a barriga, o nosso cerne. Imagino que
conversas ambas poderiam ter tido com Frank, que escreveu um poema
sobre o coração fechar-se como um punho, e meditou sobre emergências
noutro, e declarou, num outro poema ainda, que alguém era um prisioneiro
numa fábrica de croissants.
Houve um momento em que os nomes de guerra deram lugar aos nomes
de quarentena. Chegamos a estes, segundo a internet, somando como nos
sentimos à última coisa que comemos. Foi assim que eu, «Farinheira Feliz»,
fiquei a conhecer «Cuscuz Ansioso», «Beringela Entusiasta», «Café
Aborrecido», «Salada Russa Sonolenta». «Pizza Preocupada», «Bolacha
Triste», «Queijo Preguiçoso», «Esparguete Apático», «Banana Dormente»,
«Grelhada Mista Cansada», «Gelado Atencioso», entre outros. Realizei este
teste colectivo através da minha página de Facebook no dia 20 de Março de
2020. Era o tempo em que, como bem disse dois dias antes a minha amiga
Sara, «Se saíres à rua o Rodrigo Guedes de Carvalho ralha-te.»
Era ainda o tempo em que, sem sabermos realmente o que estava a
acontecer e muito menos tudo o que viria a acontecer ainda (não que
saibamos agora), fazíamos testes inúteis e, logo, essenciais, para ver quando
é que iríamos pirar ou melhor, para saber quanto tempo resistiríamos ao
confinamento. Obrigada, criadores de whenwillyoucrack.com. Fui assim
informada a 10 de Abril que perderia a sanidade a 10 de Maio de 2020. O
site já não está online, portanto imagino que tenha pirado ainda em 2020.
*
«You will eat cake», outro verso de Frank, quem sabe o mais delicioso.
Vais comer bolo. Foi o que pensei quando, há tempos, extremamente
doente, consegui ter um momento de forças e me arrastei até à esplanada do
Frutalmeidas, de onde gostaria de estar a escrever este texto, com uma fatia
de bolo de morangos e um ovo verde à frente. Tornei-me uma pessoa que
gosta de água das pedras, já disse isto? A poeta Raquel Nobre Guerra
escreveu que «O fim do mundo começa sempre no café do bairro». Voltei a
ter uma batedeira, mas ainda não lhe dei uso. Ainda passo muitos dias de
pijama. Aconteceram-me quase todas as desgraças possíveis. Vou
ultrapassando. Continuo como Gisela.

Você também pode gostar