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Miguel de

Cervantes
Saavedra

O engenhoso
fidalgo dom
Quixote da
Mancha
FRONTISPÍCIO
O ENGENHOSO
FIDALGO DOM QUI-
XOTE DA MANCHA,
Composto por Miguel de Cervantes
Saavedra.
DIRIGIDO AO DUQUE DE BEJAR,
Marquês de Gibraleón, Conde de Benalcázar, e Baña-
res, Visconde da Cidade de Alcócer, Senhor  
das vilas de Capilla, Curiel, e 
Burguillos.
Ano, 1605.
COM PRIVILÉGIO, 
EM MADRI, Por Juan de la Cuesta.
Vende-se em casa de Francisco de Robles, livreiro do Rei Nosso
Senhor.
TAXA

Eu, Juan Gallo de Andrada, escrivão de Câmara do Rei


nosso Senhor, dos que residem em seu Conselho, certifico e
dou fé que, havendo visto os senhores dele um livro
intitulado O engenhoso fidalgo da Mancha, composto por
Miguel de Cervantes Saavedra, taxaram cada folha do dito
livro a três maravedis e meio; o qual tem oitenta e três
folhas, que ao dito preço monta o dito livro duzentos e
noventa maravedis e meio, em que se há de vender em papel;
e deram licença para que a este preço se possa vender, e
mandaram que esta taxa se ponha ao princípio do dito livro, e
não se possa vender sem ela. E para que dele conste, dei o
presente em Valladolid, a vinte dias do mês de dezembro de
mil e seiscentos e quatro anos.
Juan Gallo de Andrada
TESTEMUNHO DAS ERRATAS

Este livro não tem coisa digna de notar que não corresponda a


seu original; em testemunho de o haver corrigido dei esta fé. No
Colégio da Mãe de Deus dos Teólogos da Universidade de Alcalá,
em primeiro de dezembro de 1604 anos.

O Licenciado Francisco Murcia de la Llana


PRIVILÉGIO REAL

Por quanto por parte de vós, Miguel de Cervantes, nos foi feita
relação que havíeis composto um livro intitulado O engenhoso fidalgo
da Mancha, o qual vos havia custado muito trabalho e era muito útil e
proveitoso, e nos pedistes e suplicastes vos mandássemos dar licença
e faculdade para o poder imprimir, e privilégio pelo tempo que
fôssemos servidos, ou como a nossa mercê fosse; o qual visto pelos do
nosso Conselho, por quanto no dito livro se fizeram as diligências que a
lei ultimamente por Nós feita sobre a impressão dos livros dispõe, foi
acordado que devíamos mandar dar esta nossa cédula para vós, na dita
razão, e Nós tivemo-la por bem. Pela qual, por vos fazer bem e mercê,
vos damos licença e faculdade para que vós, ou a pessoa que vosso
poder tiver, e não outra alguma, possais imprimir o dito livro,
intitulado O engenhoso fidalgo da Mancha, a que acima se faz menção,
em todos estes nossos reinos de Castela, por tempo e espaço de dez
anos, que corram e se contem desde o dito dia da data deste nosso
despacho. Sob pena que a pessoa ou pessoas que sem ter vosso poder
o imprimir ou vender, ou fizer imprimir ou vender, pelo mesmo caso
perca a impressão que fizer, com os moldes e aparelhos dela, e mais
incorra em pena de cinquenta mil maravedis, cada vez que o contrário
fizer. A qual dita pena seja a terça parte para a pessoa que o acusar,
e a outra terça parte para nossa Câmara, e a outra terça parte para o
juez que o sentenciar. À condição de que todas as vezes que houvéreis
de fazer imprimir o dito livro, durante o tempo dos ditos dez anos, o
tragais ao nosso Conselho, juntamente com o original que nele foi
visto, que vai rubricada cada página e firmada no fim dele por Juan
Gallo de Andrada, nosso escrivão de Câmara, dos que nele residem,
para saber se a dita impressão está conforme o original; o tragais fé
em pública forma de que por corretor nomeado por nosso mandado se
viu e corrigiu a dita impressão pelo original, e se imprimiu conforme a
ele, e ficam impressas as erratas por ele apontadas, para cada um
livro dos que assim forem impressos, para que se taxe o preço que por
cada volume houvéreis de haver. E mandamos ao impressor que assim
imprimir o dito livro não imprima o princípio nem a primeira folha dele,
nem entregue mais de um só livro com o original ao autor, ou pessoa a
cuja custa o imprimir, nem outro algum, para efeito da dita correção e
taxa, até que antes e primeiro o dito livro esteja corrigido e taxado
pelos de nosso Conselho; e estando feito, e não de outra maneira,
possa imprimir o dito princípio e primeira folha, e sucessivamente
ponha esta nossa cédula e a aprovação, taxa e erratas, sob pena de
cair e incorrer nas penas contidas nas leis e decretos destes nossos
reinos. E mandamos aos do nosso Conselho e a outras quaisquer
justiças deles guardem e cumpram este nosso despacho e o nele
contido. Feito em Valladollid, a vinte e seis dias do mês de setembro
de mil e seiscentos e quatro anos.
EU O REI

Por mandado do Rei nosso Senhor:


        Juan de Amézqueta

DEDICATÓRIA. AO DUQUE DE BÉJAR


Marquês de Gibraleón, conde de Benalcázar e Bañares,
visconde da Cidade de Alcocer, senhor das vilas de Capilla, Curiel
e Burguillos

À fé do bom acolhimento e honra que faz Vossa Excelência a


toda sorte de livros, como príncipe tão inclinado a favorecer as
boas artes, maiormente as que por sua nobreza não se abatem ao
serviço e negociatas do vulgo, determinei trazer à luz o
Engenhoso Fidalgo dom Quixote da Mancha , ao abrigo do
claríssimo nome de Vossa Excelência, a quem, com o acatamento
que devo a tanta grandeza, suplico o receba agradavelmente em
sua proteção, para que à sua sombra, ainda que desnudo daquele
precioso ornamento de elegância e erudição de que soem andar
vestidas as obras que se compõem nas casas dos homens que
sabem, ouse parecer seguramente no juízo de alguns que, não se
contendo nos limites de sua ignorância, soem condenar com mais
rigor e menos justiça os trabalhos alheios; que, pondo os olhos a
prudência de Vossa Excelência em meu bom desejo, confio em
que não desdenhará a pequenez de tão humilde serviço.

Miguel de Cervantes Saavedra

PRÓLOGO
Leitor ocioso: sem jurar, poder-me-ás crer que eu quisera que
este livro, como filho do entendimento, fosse o mais formoso, o
mais galhardo e mais discreto que se pudesse imaginar. Mas não
pude infringir a ordem da natureza, que nela cada coisa engendra
seu semelhante. E assim, o que podia engendrar o meu estéril e
mal cultivado engenho senão a história de um filho seco,
enrugado, caprichoso e cheio de pensamentos incoerentes e nunca
imaginados por nenhum outro, bem como quem se engendrou num
cárcere, onde todo incômodo tem seu assento e onde todo triste
ruído faz sua moradia? O sossego, o lugar tranquilo, a amenidade
dos campos, a serenidade dos céus, o murmurar das fontes, a
quietude do espírito, são grande parte para que as musas mais
estéreis se mostrem fecundas e ofereçam partos ao mundo que
lhe encham de maravilha e de contentamento. Acontece ter um
pai um filho feio e sem graça alguma, e o amor que lhe tem põe
uma venda nos olhos para que não veja suas faltas, antes as julga
por discrições e lindezas, e as conta a seus amigos por agudezas e
donaires. Mas eu, que, embora pareça pai, sou padrasto de dom
Quixote, não quero ir contra a corrente do uso, nem suplicar-te
quase com lágrimas nos olhos, como outros fazem, leitor
caríssimo, que perdoe ou dissimule as faltas que neste meu filho
vir, pois nem és seu parente nem seu amigo, e tens tua alma em
teu corpo e teu livre alvedrio como exemplares, e estás em tua
casa, onde é senhor dela, como o rei de seus impostos, e sabes o
que comumente se diz, que “debaixo de meu manto ao rei mato”.
Tudo o que te isenta e faz livre de todo respeito e obrigação, e
assim podes dizer da história tudo aquilo que te parecer, sem
temor de que te caluniem pelo mal, nem te premiem pelo bem que
disser dela.
Só queria dar-ta limpa e nua, sem o ornato de prólogo, nem da
inumerabilidade e catálogo dos acostumados sonetos, epigramas e
elogios que no princípio dos livros costumam pôr-se. Porque te sei
dizer que ainda que me custou algum trabalho compô-la, nenhum
tive maior que fazer este prefácio que vais lendo. Muitas vezes
peguei a pena para escrevê-lo, e muitas a deixei, por não saber o
que escreveria; e, estando uma vez suspenso com o papel adiante,
a pena na orelha, o cotovelo na escrivaninha e a mão na bochecha,
pensando o que diria, entrou de repente um amigo meu, gracioso e
bem entendido, o qual, vendo-me tão pensativo, me perguntou a
causa; e, não a encobrindo eu, disse-lhe que pensava no prólogo
que havia de fazer à história de dom Quixote, e que estava de tal
maneira que nem queria fazê-lo, nem por isso trazer à luz as
façanhas de tão nobre cavalheiro.
Porque, como quereis vós que não fique confuso com o que dirá
o antigo legislador que chamam vulgo, quando veja que ao cabo de
tantos anos como há que durmo no silêncio do olvido, saia agora
com todos meus anos às costas com uma lenda seca como palha,
sem invenção, minguada de estilo, pobre de conceitos, e falta de
toda erudição e doutrina, sem comentários nas margens e sem
anotações no fim do livro, como vejo que são outros livros, ainda
que sejam fabulosos e profanos, tão cheios de sentenças de
Aristóteles, de Platão e de toda a caterva de filósofos, que
causam admiração aos leitores, e têm seus autores por homens
lidos, eruditos e eloquentes? Pois o quê, quando citam a Divina
Escritura! Não dirão senão que são uns santos Tomases e outros
doutores da Igreja, guardando nisto um decoro tão engenhoso,
que em um trecho pintam um enamorado distraído e em outro
fazem um sermãozinho cristão, que é uma alegria e um regalo
ouvi-lo ou lê-lo. De tudo isto há de carecer meu livro, porque nem
tenho o que comentar na margem, nem o que anotar no fim, nem
menos sei que autores sigo nele, para pô-los no princípio, como
fazem todos, pelas letras do abecê, começando em Aristóteles e
acabando em Xenofonte e em Zoilo ou Zêuxis, ainda que foi
maledicente um e pintor o outro. Também há de carecer meu livro
de sonetos no princípio, ao menos de sonetos cujos autores sejam
duques, marqueses, condes, bispos, damas ou poetas
celebérrimos. Ainda que se eu pedisse a dois ou três oficiais
amigos, eu sei que os dariam, e tais, que não os igualassem os
daqueles que têm mais nome em nossa Espanha. Enfim, senhor e
amigo meu, prossegui, eu determino que o senhor dom Quixote
fique sepultado em seus arquivos na Mancha, até que o céu
providencie quem lhe adorne de tantas coisas que lhe faltam,
porque eu me acho incapaz de remediá-las por minha insuficiência
e poucas letras, e porque naturalmente sou poltrão e preguiçoso
para andar buscando autores que digam o que eu sei dizer sem
eles. Daqui nasce a suspensão e arrebatamento em que me
achastes: bastante causa para pôr-me nela a que de mim haveis
ouvido.
Isso ouvindo o meu amigo, dando uma palmada na fronte e
disparando uma carga de riso, disse-me:
- Por Deus, irmão, que agora me acabo de desenganar de um
engano em que tenho estado todo o muito tempo que há que vos
conheço, no qual sempre vos tive por discreto e prudente em
todas as vossas ações. Porém agora vejo que estais tão distante
de sê-lo como o está o céu da terra. Como é possível que coisas de
tão pouco momento e tão fáceis de remediar, possam ter forças
para suspender e deixar absorto um engenho tão maduro como o
vosso e tão afeito a anular e superar outras dificuldades
maiores? À fé, isto não nasce de falta de habilidade, senão de
sobra de preguiça e penúria de discurso. Quereis ver se é
verdade o que digo? Pois estai atento, e vereis como em um abrir
e fechar de olhos desfaço todas as vossas dificuldades e
remedeio todas as faltas que dizeis que vos suspendem e
acovardam para deixar de pôr à luz do mundo a história de vosso
famoso dom Quixote, luz e espelho de toda a cavalaria andante.
- Dizei, - repliquei-lhe eu, ouvindo o que me dizia, - de que modo
pensais encher o vazio de meu temor e transformar em claridade
o caos de minha confusão?
Ao que ele disse:
- A primeira coisa em que reparais a respeito dos sonetos,
epigramas ou elogios que vos faltam para o princípio, e que sejam
de personagens graves e de título, pode-se remediar com que vós
mesmo tenhais algum trabalho em fazê-los, e depois os podeis
batizar e pôr o nome que quiserdes, afilhando-os ao Preste Juan
das Índias ou ao Imperador de Trapisonda, de quem eu sei que há
notícia que foram famosos poetas; e quando não o hajam sido, e
houver alguns pedantes e bacharéis que por detrás vos mordam e
murmurem por esta verdade, não se lhes deem dois maravedis;
porque já que vos averiguem a mentira, não vos hão de cortar a
mão pelo que escrevestes. Quanto a isto de citar nas margens os
livros e autores de onde tirardes as sentenças e ditos que
puserdes em vossa história, não há mais senão fazer de maneira
que venham à luz algumas sentenças ou latins que vós saibais de
memória, ou ao menos, que vos custem pouco trabalho o buscá-los,
como será pôr, tratando de liberdade e cativeiro:

Non bene pro toto libertas venditur auro.

E depois, na margem, citar Horácio, ou a quem o disse. Se


tratardes do poder da morte, acudir em seguida com:

Pallida mors aequo pulsat pede pauperum tabernas,


Regumque turres.

Se da amizade e amor que Deus manda que se tenha ao inimigo,


entrai a seguir pela Escritura Divina, que o podeis fazer com um
tantinho de curiosidade, e dizer as palavras, pelo menos, do
mesmo Deus: Ego autem dico vobis: diligite inimicos vestros. Se
tratardes de maus pensamentos, acudi com o Evangelho: De
corde exeunt cogitationes malae. Se da instabilidade dos amigos,
aí está Catão que vos dará seu dístico:
Donec eris felix, multos numerabis amicos,
Tempora si fuerint nubila, solus eris.

E com estes latinzinhos e outros tais vos terão ao menos por


gramático, pois sê-lo não é de pouca honra e proveito nos dias de
hoje. No que toca a pôr anotacões ao fim do livro, certamente o
podeis fazer desta maneira: se nomeais algum gigante em vosso
livro, fazei que seja o gigante Golias, e com apenas isto, que vos
custará quase nada, tende uma grande anotação, pois podeis pôr:
O gigante Golias ou Goliat foi um filisteu a quem o pastor Davi
matou com uma grande pedrada no vale do Terebinto, segundo se
conta no livro dos Reis, no capítulo que vós achardes que se
escreve. A seguir, para mostrar-vos homem erudito em letras
humanas e cosmógrafo, fazei de modo que em vossa história se
nomeie o rio Tejo, e ver-vos-eis logo com outra famosa anotação,
pondo: O rio Tejo foi assim nomeado por um rei das Espanhas;
tem seu nascimento em tal lugar e morre no mar Oceano,
beijando os muros da famosa cidade de Lisboa, e é opinião que
tem as areias de ouro etc. Se tratardes de ladrões, eu vos darei
a história de Caco, que a sei de cor; se de mulheres rameiras, aí
está o bispo de Mondoñedo, que vos emprestará Lamia, Laida e
Flora, cuja anotação vos dará grande crédito; se de cruéis, Ovídio
vos entregará Medeia; se de encantadoras e feiticeiras, Homero
tem Calipso, e Virgílio Circe; se de capitães valorosos, o mesmo
Júlio César vos emprestará a si mesmo em seus Comentários, e
Plutarco vos dará mil Alexandres. Se tratardes de amores, com
duas onças que saibais da língua toscana, topareis com Leão
Hebreu, que vos enche as medidas; e se não quereis andar por
terras estranhas, em vossa casa tende Fonseca, Do amor de
Deus, onde se encontra tudo o que vós e o mais engenhoso
pretender desejar em tal matéria. Concluindo, não há mais senão
que vós procureis nomear estes nomes, ou introduzir na vossa
estas histórias que aqui disse, e deixai a mim o cargo de pôr as
anotações e comentários, com os quais juro-vos encher as
margens e muito mais páginas no fim do livro. Venhamos agora à
citação dos autores que os outros livros têm, que no vosso faltam.
O remédio que isto tem é muito fácil, porque não haveis de fazer
outra coisa que buscar um livro que os contenha todos, desde o A
até o Z, como vós dizeis. Pois esse mesmo abecedário poreis em
vosso livro; que posto que às claras se veja a mentira, pela pouca
necessidade que vós tínheis de aproveitar-vos deles, não importa
nada; e quiçá algum haverá tão simplório que creia que de todos
vos haveis aproveitado na simples e singela história vossa. E
quando não sirva de outra coisa, pelo menos servirá aquele longo
catálogo de autores a dar de improviso autoridade ao livro. E
mais, que não haverá quem se ponha a averiguar se os seguistes
ou não os seguistes, não valendo nada isso. Quanto mais que, se
bem calculo, este vosso livro não tem necessidade de nenhuma
coisa daquelas que vós dizeis que lhe faltam, porque todo ele é
uma invectiva contra os livros de cavalaria, dos quais nunca se
lembrou Aristóteles, nem disse nada São Basílio, nem interessou
a Cícero; nem caem na conta de seus fabulosos disparates os
rigores da verdade, nem as observações da astrologia; nem lhe
são de importância as medidas geométricas, nem a refutação dos
argumentos de quem se serve da retórica; nem tem para que
pregar a ninguém, misturando o humano com o divino, que é um
gênero de mistura impróprio a um entendimento cristão. Só tem
que aproveitar-se da imitação no que for escrevendo; que quanto
ela for mais perfeita, tanto melhor será o que se escrever. E pois
esta vossa escritura não visa mais que a desfazer a autoridade e
cabimento que no mundo e no vulgo têm os livros de cavalaria, não
há para que andeis mendigando sentenças de filósofos, conselhos
da Divina Escritura, fábulas de poetas, orações de retóricos,
milagres de santos, senão procurar que simplesmente, com
palavras significativas, honestas e bem colocadas, saia vossa
oração e período sonoro e festivo, pintando, em tudo o que
alcançardes e for possível, vossa intenção, dando a entender
vossos conceitos, sem intrincá-los e obscurecê-los. Procurai
também que lendo vossa história o melancólico se mova ao riso, o
risonho o acrescente, o simplório não se enfade, o discreto se
admire da invenção, o grave não a desaprecie, nem o prudente
deixe de elogiá-la. Com efeito, tende a mira posta em derrubar a
máquina mal fundada destes cavaleirescos livros, aborrecidos
para tantos e louvados por muitos mais; que se isto alcançásseis,
não haveríeis alcançado pouco.
Com silêncio grande estive escutando o que meu amigo me dizia,
e de tal maneira se imprimiram em mim suas razões, que sem pô-
las em disputa, as aprovei por boas e delas mesmas quis fazer
este prólogo, no qual verás, leitor suave, a discrição de meu
amigo, a boa ventura minha em achar em tempo tão necessitado
tal conselheiro, e o alívio teu em achar tão sincera e tão sem
revoltas a história do famoso dom Quixote da Mancha, de quem
há opinião por todos os habitantes do distrito do campo de
Montiel, que foi o mais casto enamorado e o mais valente
cavaleiro que de muitos anos a esta parte se viu naqueles
contornos. Eu não quero encarecer o serviço que te faço em dar-
te a conhecer tão notável e tão honrado cavaleiro; porém quero
que me agradeças o conhecimento que terás do famoso Sancho
Pança, seu escudeiro, em quem, a meu parecer, te dou inclusas
todas as graças escuderis que na caterva dos livros vãos de
cavalaria estão espalhadas. E com isto, Deus te dê saúde, e a mim
não olvide. VALE.

VERSOS PRELIMINARES

AO LIVRO DE DOM QUIXOTE DA MANCHA


Urganda a desconhecida

Se de chegar-te aos bo-(ns),


livro, fosses com leitu-(ra),
não te dirá o boquirro-(to)
que não pões bem os de-(dos).
Mas se o pão não se co-(ze)
por ir a mãos de idio-(tas),
verás de mãos a bo-(ca)
ainda não dar uma no cra-(vo),
se bem se comem as mã-(os)
por mostrar que são curio-(sas).
E pois a experiência ensi-(na)
que o que a boa árvore se arri-(ma)
boa sombra o co-(bre),
em Béjar tua boa estre-(la)
uma árvore real te ofere-(ce)
que dá príncipes por fru-(tos),
na qual floresce um du-(que)
que é novo Alexandre Ma-(gno)
chega a sua sombra que a ousa-(dos)
favorece a fortu-(na).
De um nobre fidalgo manche-(go)
contarás as aventu-(ras),
a quem ociosas leitu-(ras),
transtornaram a cabe-(ça):
damas, armas, cavalei-(ros)
o provocaram de mo-(do),
que, qual Orlando furio-(so),
sereno ao enamora-(do),
obteve à força de bra-(ço)
Dulcineia do Tobo-(so)
Não indiscretos hierógli-(fos)
estampes no escu-(do)
que, quando é tudo figu-(ra)
com ruins pontos se arris-(ca).
Se na direção te humi-(lhas)
não dirá trocista algu-(m):
“Que dom Álvaro de Lu-(na),
que Aníbal o de Carta-(go),
que Rei Francisco em Espa-(nha)
se queixa da fortu-(na)!”
Pois ao céu não lhe aprou-(ve)
que saísses tão ladi-(no)
como o negro João Lati-(no),
a falar latim se recu-(sa).
Não me espetes com agu-(lha),
nem me alegues com filó-(sofos),
porque, torcendo a bo-(ca),
dirá o que entende a le-(tra),
não um palmo das ore-(lhas):
“Para que comigo tru-(ques)?”
Não te metas em dese-(nhos),
nem em saber vidas alhei-(as),
que no que não vai nem ve-(m),
passar ao largo é cordu-(ra).
Que soem em frustra-(ção)
dar aos que grace-(jam);
mas queimas as pesta-(nas)
só em cobrar boa fa-(ma);
que o que imprime toli-(ces)
dá-as a registro perpé-(tuo).
Adverte que é desati-(no),
sendo de vidro o telha-(do),
pegar pedras nas mã-(os)
para atirar ao vizi-(nho).
Deixa que o homem de juí-(zo),
nas obras que compõ-(e),
se vá com pés de chum-(bo);
que o que dá à luz papé-(is)
para entreter donze-(las),
escreve às tontas e à lou-(ca).

AMADIS DE GAULA
A DOM QUIXOTE DA MANCHA

Soneto
Tu, que imitaste a chorosa vida
que tive ausente e desdenhado sobre
o grande penhasco da Penha Pobre,
de alegre a penitência reduzida;
tu, a quem os olhos deram a bebida
de abundante licor, embora salobre,
e erguendo-te a prata, estanho e cobre,
te deu a terra em terra a comida:
vive seguro de que eternamente,
enquanto, ao menos, na quarta esfera
seus cavalos aguilhoe o ruivo Apolo,
terás claro renome de valente;
tua pátria será em todas a primeira;
teu sábio autor, no mundo único e só.

DOM BELIANIS DA GRÉCIA A DOM QUIXOTE DA MANCHA

Soneto

Rompi, cortei, amoldei, e disse e fiz


mais que no orbe cavaleiro andante;
fui destro, fui valente, fui arrogante;
mil agravos vinguei, cem mil desfiz.
Façanhas dei à Fama que eternize;
fui comedido e regalado amante;
foi anão para mim todo gigante,
e no duelo em qualquer ponto satisfiz.
Tive a meus pés prostrada a Fortuna,
e busquei agarrar pelo topete
a calva Ocasião.
Mas, embora sobre o corno da lua
sempre se viu no alto minha ventura,
tuas proezas invejo, oh grande Quixote!

A SENHORA ORIANA A DULCINEIA DO TOBOSO

Soneto

Oh, quem tivesse, formosa Dulcineia,


por mais comodidade e mais repouso,
a Miraflores posto no Toboso,
e trocasse Londres com tua aldeia!
Oh, quem de teus desejos e libré
alma e corpo adornasse, e do famoso
cavaleiro, que fizeste venturoso
mirasse alguma desigual peleja!
Oh, quem tão castamente se escapasse
do senhor Amadis como tu fizeste
do comedido fidalgo dom Quixote!
Que assim invejada fosse, e não invejasse
e fosse alegre o tempo que foi triste,
e gozasse os prazeres sem limite.
GANDALÍN, ESCUDEIRO DE AMADIS DE GAULA, A
SANCHO PANÇA, ESCUDEIRO DE DOM QUIXOTE

Soneto

Salve, varão famoso, a quem Fortuna,


quando no trato escuderil te pôs,
tão branda e sensatamente o dispôs,
que o passaste sem desgraça alguma.
Já a enxada ou a foice pouco repugna
o andante exercício; já está em uso
a lhaneza escudeira, com que acuso
ao soberbo que intenta pisar a lua.
Invejo teu jumento e teu nome,
e a teus alforjes igualmente invejo,
que mostraram tua lúcida providência.
Salve outra vez, oh Sancho, tão bom homem
que só a ti nosso espanhol Ovídio
com um cascudo te faz reverência.

DO DONOSO, POETA EMBARALHADO, A SANCHO PANÇA E


ROCINANTE

A SANCHO PANÇA

Sou Sancho Pança, escudei-(ro)


do manchego dom Quixo-(te);
pus pés em polvoro-(sa),
para viver como discre-(to);
que o tácito Vila-Dio-(go)
toda sua razão de esta-(do)
reduziu em uma retira-(da),
segundo sente Celesti-(na),
livro, em minha opinião, divi-(no)
se encobrisse mais o huma-(no).

A ROCINANTE

Sou Rocinante, o famo-(so)


bisneto do grande Babie-(ca);
por pecados de fraque-(za),
fui a poder de um dom Quixo-(te).
Parelho corri ao frou-(xo);
mas, por unha de cava-(lo),
não me escapou ceva-(da);
que isto tirei de Lazari-(lho)
quando, para furtar o vi-(nho)
ao cego, lhe dei pa-(lha).

ORLANDO FURIOSO A DOM QUIXOTE DA MANCHA

Soneto

Se não és par, tampouco o tiveste:


que par puderas ser entre mil pares;
nem pode havê-lo onde tu te achares,
invicto vencedor, jamais vencido.
Orlando sou, Quixote, que, perdido
por Angélica, vi remotos mares,
oferecendo à Fama em seus altares
aquele valor que respeitou o olvido.
Não posso ser teu igual, que este decoro
se deve a tuas proezas e à tua fama,
posto que, como eu, perdeste o senso.
Mas sê-lo-ás meu, se ao soberbo Mouro
e Cita feroz domas, que hoje nos chama
iguais em amor com mal sucesso.
O CAVALEIRO DO FEBO A DOM QUIXOTE DA MANCHA

Soneto

A vossa espada não igualou a minha,


Febo espanhol, curioso cortesão,
nem à alta glória de valor minha mão,
que raio foi onde nasce e morre o dia.
Impérios desprezei: a monarquia
que me ofereceu o Oriente vermelho em vão
deixei, para ver o rosto soberano
de Claridiana, aurora formosa minha.
Amei-a por milagre único e raro,
e, ausente em sua desgraça, o próprio inferno
temeu meu braço, que domou sua raiva.
Mas vós, godo Quixote, ilustre e claro,
por Dulcineia sois ao mundo eterno,
e ela, por vós, famosa, honesta e sábia.

DE SOLISDÃO A DOM QUIXOTE DA MANCHA

Soneto

Ainda, senhor Quixote, que sandices


vos tenham o cérebro transtornado,
nunca sereis por alguém reprovado
por ser homem de obras vis e soezes.
Serão vossas façanhas os juízes,
pois tortos desfazendo haveis andado,
sendo vezes mil surrado
por vadios cativos e ruins.
E se a vossa linda Dulcineia
ofensa contra vós comete,
nem a vossas coitas mostra bom talante,
com tal desmando, vosso consolo seja
que Sancho Pança foi mau alcoviteiro,
néscio ele, dura ela, e vós não amante.

DIÁLOGO ENTRE BABIECA E ROCINANTE

Soneto

B. Por que estais, Rocinante, tão magro?


R. Porque nunca se come, e se trabalha.
B. Pois, que é da cevada e da palha?
R. Não me deixa meu amo nem bocado.
B. Andai, senhor, que estais mui mal criado,
pois vossa língua d’asno o amo ultraja.
R. Asno se é do berço à mortalha.
Quereis ver? Olhai o enamorado.
B. É loucura amar? R. Não é grande prudência.
B. Metafísico estais. R. É que não como.
B. Queixai-vos do escudeiro. R. Não é bastante.

Como me hei de queixar de minha doença


se o amo e escudeiro ou o patrão
são tão rocins como Rocinante?

Primeira parte do engenhoso fidalgo dom Quixote da


Mancha

CAPÍTULO PRIMEIRO
Que trata da condição e exercício do famoso fidalgo dom
Quixote da Mancha

Em uma aldeia da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, não


há muito tempo vivia um fidalgo dos de lança no estaleiro, escudo
antigo, rocim magro e galgo corredor. Um cozido com mais vaca que
carneiro, salpicão as mais noites, dores e quebrantos aos sábados,
lentilhas às sextas, algum pombinho extra aos domingos, consumiam as
três partes de seus bens. Do resto deles constavam saio de velarte,
calças de veludo para as festas com suas alpercatas do mesmo pano, e
nos dias de meio de semana se honrava com seu capote de lã da mais
fina. Tinha em sua casa uma criada que passava dos quarenta, e uma
sobrinha que não chegava aos vinte, e um moço de campo e praça, que
tanto selava o rocim como pegava na foice. Aproximava-se a idade de
nosso fidalgo dos cinquenta anos; era de compleição robusta, seco de
carnes, enxuto de rosto, grande madrugador e amigo da caça. Querem
dizer que tinha o sobrenome de Quijada ou Quesada, que nisto há
alguma diferença nos autores que deste caso escrevem, embora por
conjecturas verossímeis se deixa entender que se chamava Quejana.
Mas isto importa pouco à nossa história: basta que em sua narração
não se saia um ponto da verdade.
É, pois, de saber que este sobredito fidalgo, nos períodos em que
estava ocioso - que eram os mais do ano -, se punha a ler livros de
cavalarias com tanta afeição e gosto, que esqueceu quase totalmente o
exercício da caça e ainda a administração de seus bens; e chegou a
tanto sua curiosidade e desatino nisto, que vendeu muitos alqueires de
terra de semeadura para comprar livros de cavalarias para ler, e assim
levou para sua casa todos quantos pode haver deles, e de todos,
nenhuns lhe pareciam tão bem como os que compôs o famoso Feliciano
de Silva; porque a clareza de sua prosa e aquelas intrincadas razões
suas lhe pareciam de pérolas, e mais quando chegava a ler aqueles
galanteios e cartas de desafios, onde em muitas partes achava
escrito: “A razão da sem-razão que à minha razão se faz, de tal
maneira minha razão enfraquece, que com razão me queixo da vossa
formosura.” E também quando lia: “Os altos céus, que de vossa
divindade divinamente com as estrelas vos fortificam, e vos fazem
merecedora do merecimento que merece a vossa grandeza.”
Com estas razões perdia o pobre cavaleiro o juízo e desvelava-se
por entendê-las e desentranhar-lhes o sentido, que não o conseguiria
nem as entenderia o próprio Aristóteles, se para só isso
ressuscitasse. Não entendia muito bem as feridas que dom Belianis
dava e recebia, porque imaginava que, por grandes cirurgiões que o
houvessem curado, não deixaria de ter o rosto e todo o corpo cheio de
cicatrizes e sinais. Contudo, louvava em seu autor o acabar seu livro
com a promessa daquela interminável aventura, e muitas vezes lhe veio
o desejo de tomar da pena e dar fim, ao pé da letra, o que ali se
promete; e sem dúvida alguma o faria, e ainda o publicaria, se outros
maiores e continuados pensamentos não o estorvassem. Teve muitas
vezes divergência com o padre de sua comunidade - que era homem
douto, graduado em Sigüenza - sobre qual havia sido melhor cavaleiro,
Palmeirim de Inglaterra ou Amadis de Gaula; mas mestre Nicolás,
barbeiro do mesmo povoado, dizia que nenhum igualava o Cavaleiro do
Febo, e que se algum se podia com ele comparar, era dom Galaor,
irmão de Amadis de Gaula, porque tinha muita disposição para tudo;
que não era cavaleiro melindroso, nem tão chorão como seu irmão, e
que em matéria de valentia não lhe ficava atrás.
Em suma, ele concentrou-se tanto em sua leitura, que lhe passavam
as noites lendo de claro em claro, e os dias de escuro em escuro; e
assim do pouco dormir e do muito ler secou-lhe o cérebro de maneira
que veio a perder o juízo. Encheu-se-lhe a fantasia de tudo aquilo que
lia nos livros, assim a respeito de encantamentos como de pendências,
batalhas, desafios, feridas, galanteios, amores, tormentas e
disparates impossíveis. E assentou-lhe de tal modo na imaginação que
era verdade toda a trama daquelas sonhadas invenções que lia, que
para ele não havia outra história mais certa no mundo. Dizia ele que o
Cid Rui Dias havia sido muito bom cavaleiro, mas que não havia como
comparar com o Cavaleiro da Ardente Espada, que em só um encontro
havia partido ao meio dois feros e descomunais gigantes. Melhor
estava com Bernardo do Carpio, porque em Roncesvales havia morto a
Roldão o encantado, valendo-se da indústria de Hércules quando
afogou Anteu, o filho da Terra, entre os braços. Dizia muito bem do
gigante Morgante, porque por ser daquela geração giganteia, em que
todos são soberbos e descomedidos, só ele era afável e bem criado.
Mas sobre todos considerava Reinaldo de Montalvão, e mais quando o
via sair de seu castelo, e roubar quantos topava, e quando em ultramar
roubou aquele ídolo de Maomé, que era todo de ouro, segundo diz sua
história. Daria ele, para dar uma surra de coices no traidor Galalão, a
ama que tinha e ainda sua sobrinha.
Com efeito, perdido o juízo, chegou ao mais estranho pensamento
que jamais acometeu um louco no mundo; e foi que lhe pareceu
conveniente e necessário, assim para o aumento de sua honra como
para o serviço de sua república, fazer-se cavaleiro andante, e ir por
todo o mundo com suas armas e cavalo buscar as aventuras, e
exercitar-se em tudo aquilo que ele havia lido que os cavaleiros
andantes se exercitavam, desfazendo todo gênero de agravo, e
metendo-se nas ocasiões e perigos onde, dando-lhes fim, conquistasse
eterno nome e fama. Imaginava-se o pobre já coroado pelo valor de
seu braço, pelo menos do império de Trapisonda; e assim, com estes
tão agradáveis pensamentos, levado do estranho gosto que neles
sentia, apressou-se em realizar o que desejava. E a primeira coisa que
fez foi limpar umas armas que haviam sido de seus bisavós que,
tomadas de ferrugem e cheias de mofo, longos séculos havia que
estavam postas e olvidadas em um canto. Limpou-as e reparou-as o
melhor que pôde; mas viu que tinham uma grande falta, e era que não
tinham elmo de encaixe, senão capacete simples; mas a isto supriu sua
indústria, porque de cartões fez uma espécie de meio elmo, que
encaixado com o capacete, fazia uma aparência de elmo inteiro. É
verdade que, para provar se era forte e podia estar ao risco de uma
cutilada, sacou sua espada e lhe deu dois golpes, e com o primeiro, e
num instante, desfez o que havia feito em uma semana; e não deixou
de parecer-lhe mal a facilidade com que a havia feito em pedaços, e
por assegurar-se deste perigo, a tornou a fazer de novo, pondo-lhe
umas barras de ferro por dentro, de tal maneira que ele ficou
satisfeito com sua fortaleza, e sem querer fazer nova experiência
com ela, a reputou e teve por finíssimo elmo de encaixe.
Foi depois ver seu rocim, e ainda que tinha mais quartos que um real
e mais manchas que o cavalo de Gonela, que “tantum pellis et ossa
fuit”, lhe pareceu que nem o Bucéfalo de Alexandre, nem Babieca, o do
Cid, a ele se igualavam. Quatro dias lhe passaram em imaginar que
nome lhe poria; porque, segundo se dizia ele a si mesmo, não era razão
que cavalo de cavaleiro tão famoso, e tão bom por si mesmo, estivesse
sem nome conhecido; e assim procurava acomodar-se de maneira que
declarasse quem havia sido antes que fosse de cavaleiro andante, e o
que era então; pois tinha em mente que, mudando seu senhor o estado,
mudasse ele também o nome, e lhe tornasse famoso e de estrondo,
como convinha à nova ordem e ao novo exercício que já professava; e
assim, depois de muitos nomes que formou, apagou e tirou, ajuntou,
desfez e tornou a fazer em sua memória e imaginação, por fim lhe veio
a chamar “Rocinante”: nome, a seu parecer, alto, sonoro e significativo
do que havia sido quando foi rocim, antes do que agora era, que era
antes e primeiro de todos os rocins do mundo.
Posto nome, e tão a seu gosto, em seu cavalo, quis pô-lo a si mesmo,
e neste pensamento durou outros oito dias, e ao cabo se veio a chamar
“dom Quixote”; de onde, como fica dito, tomaram ocasião os autores
desta tão verdadeira história, que, sem dúvida, se devia de chamar
“Quijada”, e não “Quesada”, como outros quiseram dizer. Mas
concordando-se que o valoroso Amadis não só não se havia contentado
com chamar-se “Amadis” a seco, senão que acrescentou o nome de seu
reino e pátria para fazê-la famosa, e se chamou “Amadis de Gaula”,
assim quis como bom cavaleiro acrescentar ao seu o nome da sua, e
chamar-se “dom Quixote da Mancha”, com o que, a seu parecer,
declarava muito ao vivo sua linhagem e pátria, e a honrava com tomar o
sobrenome dela.

Limpas, pois, suas armas, feito do capacete elmo, posto nome a seu
rocim e confirmando-se a si mesmo, se deu a entender que não lhe
faltava outra coisa senão buscar uma dama de quem enamorar-se;
porque o cavaleiro andante sem amores era árvore sem folhas e sem
fruto e corpo sem alma. Dizia-se ele:
“Se eu, por meus maus pecados, ou por minha boa sorte, me
encontro por aí com algum gigante, como de ordinário acontece aos
cavaleiros andantes, e o derrubo em um encontro, ou o parto pelo
meio, ou finalmente o venço e o rendo, não será bom ter a quem
enviar-lhe que se apresente, e que entre e caia de joelhos ante minha
doce senhora, e diga com voz humilde e rendida: - Eu, senhora, sou o
gigante Caraculiambro, senhor da ilha Malindrânia, a quem venceu em
singular batalha o jamais como se deve louvado cavaleiro dom Quixote
da Mancha, o qual me mandou que me apresentasse ante vossa mercê
para que a vossa grandeza disponha de mim a seu talante”?
Oh, como folgou nosso bom cavaleiro quando fez este discurso, e
mais quando achou a quem dar nome de sua dama! E foi, ao que se crê,
que em um lugar perto do seu havia uma moça lavradora de muito bom
parecer, de quem ele um tempo andou enamorado, ainda que, segundo
se entende, ela jamais o soube nem se deu conta dele. Chamava-se
Aldonça Lourenço, e a esta lhe pareceu ser bom dar-lhe título de
senhora de seus pensamentos; e buscando-lhe nome que não
desdissesse muito do seu, e que tirasse e se encaminhasse ao de
princesa e grande senhora, veio a chamá-la Dulcineia do Toboso,
porque era natural do Toboso: nome a seu parecer musical e peregrino,
e significativo, como todos os demais que a ele e a suas coisas havia
posto.

CAPÍTULO II

Que trata da primeira saída que de sua terra fez o


engenhoso dom Quixote
Tomadas, pois, estas providências, não quis aguardar mais tempo a
pôr em efeito seu pensamento, apressando-lhe a isso a falta que ele
pensava que fazia no mundo sua tardança, segundo eram os agravos
que pensava desfazer, tortos a endireitar, sem-razões a emendar, e
abusos a melhorar, e dúvidas a satisfazer. E assim, sem dar parte a
pessoa alguma de sua intenção, e sem que ninguém o visse, uma manhã,
antes do dia, que era um daqueles quentes do mês de julho, armou-se
de todas as suas armas, subiu sobre Rocinante, pôs seu mal composto
elmo, empalmou seu escudo, tomou sua lança, e pela porta falsa de um
curral saiu ao campo, com grandíssimo contentamento e alvoroço por
ver com quanta facilidade havia dado princípio a seu bom desejo. Mas
apenas se viu no campo, quando o assaltou um pensamento terrível, e
tal que por pouco não o fez deixar a começada empresa, e foi que lhe
veio à memória que não era armado cavaleiro, e que conforme a lei de
cavalaria, nem podia nem devia tomar armas com nenhum cavaleiro; e
posto que o fora, havia de levar armas brancas como novel cavaleiro,
sem emblema no escudo até que por seu esforço o ganhasse. Estes
pensamentos o fizeram titubear em seu propósito; mas, podendo mais
sua loucura que outra razão alguma, propôs fazer-se armar cavaleiro
ao primeiro que topasse, à imitação de outros muitos que assim o
fizeram, segundo ele havia lido nos livros que tal o tinham. Quanto às
armas brancas, pensava limpá-las de maneira, havendo lugar, que o
fossem mais que um arminho; e com isto se aquietou e prosseguiu seu
caminho, sem levar outro que aquele que seu cavalo queria, crendo que
naquilo consistia a força das aventuras.
Indo, pois, caminhando nosso flamante aventureiro, ia falando
consigo mesmo e dizendo:
- Quem duvida senão que nos vindouros tempos, quando saia à luz a
verdadeira história de meus famosos feitos, que o mago que os
escrever não ponha, quando chegue a contar esta minha primeira saída
tão de manhã, desta maneira?: “Apenas havia o rubicundo Apolo
estendido pela face da ampla e espaçosa terra os dourados fios de
seus formosos cabelos, e apenas os pequenos e pintalgados
passarinhos com suas arpadas línguas haviam saudado com doce e
melíflua harmonia a vinda da rosada aurora, que, deixando a branda
cama do zeloso marido, pelas portas e balcões do manchego horizonte
aos mortais se mostrava, quando o famoso cavaleiro dom Quixote da
Mancha, deixando as ociosas plumas, subiu sobre seu famoso cavalo
Rocinante, e começou a caminhar pelo antigo e conhecido campo de
Montiel.”
E era verdade que por ele caminhava; e acrescentou dizendo:
- Ditosa idade e século ditoso aquele, onde sairão à luz as famosas
façanhas minhas, dignas de entalhar-se em bronzes, esculpir-se em
mármores e pintar-se em tábuas para memória no futuro! Oh tu, mago
encantador, quem quer que sejas, a quem há de tocar o ser cronista
desta peregrina história! Rogo-te que não te olvides de meu bom
Rocinante, companheiro eterno meu em todos meus caminhos e
carreiras.
Depois dizia, como se verdadeiramente estivesse enamorado:
- Oh princesa Dulcineia, senhora deste cativo coração! Muito agravo
me haveis feito em despedir-me e repreender-me com a rigorosa
ordem de mandar-me não aparecer ante a vossa formosura. Peço-vos,
senhora, que vos lembre deste vosso sujeito coração, que tantas
coitas por vosso amor padece.
Com estes ia ajuntando outros disparates, todos ao modo dos que
seus livros lhe haviam ensinado, imitando em quanto podia sua
linguagem; e, com isto, caminhava tão devagar, e o sol entrava tão
depressa e com tanto ardor, que seria bastante para derreter-lhe os
miolos se algum os tivesse.

Quase todo aquele dia caminhou sem acontecer-lhe coisa que de


contar fosse, do que se desesperava, porque queria topar logo logo
com quem fazer experiência do valor de seu forte braço. Autores há
que dizem que a primeira aventura que lhe veio foi a do Porto Lápice,
outros dizem que a dos moinhos de vento; mas o que eu pude averiguar
neste caso, e o que se acha escrito nos anais da Mancha, é que ele
andou todo aquele dia e, ao anoitecer, seu rocim e ele se acharam
cansados e mortos de fome; e que, olhando a toda parte a ver se
descobriria algum castelo ou algum redil de pastores onde recolher-
se, e onde pudesse remediar sua muita necessidade, viu não longe do
caminho por onde ia uma estalagem, que foi como se visse uma estrela
que, não aos portais, senão aos alcáceres de sua redenção o
encaminhava. Deu-se pressa em caminhar, e chegou a ela a tempo que
anoitecia.
Estavam então à porta duas mulheres moças, destas que chamam
rameiras, as quais iam a Sevilha com uns arreeiros, que na estalagem
aquela noite acertaram fazer pouso; e como a nosso aventureiro tudo
quanto pensava, via ou imaginava lhe parecia ser feito e passar ao
modo do que havia lido, logo que viu a estalagem se lhe representou
que era um castelo, com suas quatro torres e capitéis de luzente
prata, sem faltar-lhe sua ponte levadiça e funda cava, com todos
aqueles ornamentos com que semelhantes castelos se pintam. Foi
chegando à estalagem, que a ele parecia castelo, e próximo a ela fez
parar Rocinante, esperando que algum anão se pusesse entre as ameias
a dar sinal com alguma trombeta de que chegava cavaleiro ao castelo.
Mas como viu que tardavam, e que Rocinante se apressava a chegar à
cavalariça, chegou-se à porta da estalagem, e viu as duas distraídas
moças que ali estavam, que a ele lhe pareceram duas formosas
donzelas ou duas graciosas damas, que diante da porta do castelo
estavam a conforto. Nisto sucedeu acaso que um porqueiro que andava
recolhendo de umas palhas uma manada de porcos (que, sem pedir
perdão, assim se chamam), tocou um chifre, a cujo sinal eles se
recolhem, e nesse instante se representou a dom Quixote o que
desejava, que era que algum anão fazia sinal de sua vinda. E assim, com
estranha alegria chegou à estalagem e às damas, as quais, ao ver
chegar um homem daquela sorte armado, e com lança e escudo, cheias
de medo iam entrar na estalagem; mas dom Quixote, percebendo por
esta fuga seu medo, alçando a viseira de papelão e descobrindo seu
seco e empoeirado rosto, em tom gentil e voz repousada lhes disse:
- Não fujam as vossas mercês, nem temam desordem alguma, que à
ordem de cavalaria que professo não toca nem diz respeito fazê-lo a
ninguém, quanto mais a tão altas donzelas como vossas presenças
demonstram.
Olhavam-no as moças, e andavam com os olhos buscando-lhe o rosto
que a má viseira encobria; mas, como ouviram se chamar donzelas,
coisa tão fora de sua profissão, não puderam conter o riso, e foi de
maneira que dom Quixote correu a dizer-lhes:
- Bem parece o comedimento nas formosas, e é muita sandice,
ademais, o riso que de leve causa procede; mas não vo-lo digo porque
vos ofendais nem mostreis má disposição, que a minha não é outra que
a de servir-vos.
A linguagem, não entendida pelas senhoras, e o mau aspecto de
nosso cavaleiro acrescentava nelas o riso e nele a irritação, o que iria
muito adiante se naquele momento não saísse o vendeiro, homem que,
por ser muito gordo, era muito pacífico, o qual, vendo aquela figura
desajeitada, armada de armas tão desiguais como eram o bridão,
lança, escudo e corselete, esteve a ponto de acompanhar as donzelas
nas mostras de seu contentamento. Mas, com efeito, temendo a soma
de tantos apetrechos, determinou falar-lhe comedidamente, e assim
lhe disse:
- Se vossa mercê, senhor cavaleiro, busca pousada, com exceção do
leito, porque nesta estalagem não há nenhum, tudo mais achará nela
com muita abundância.
Vendo dom Quixote a humildade do alcaide da fortaleza, que tal lhe
pareceu a ele o vendeiro e a estalagem, respondeu:
- Para mim, senhor castelão, qualquer coisa basta, porque “meus
arreios são as armas, meu descanso o pelear”, etc.
Pensou o hospedeiro que o haver-lhe chamado castelão havia sido
por haver-lhe parecido fosse de Castela, ainda que ele fosse andaluz e
dos da praia de Sanlúcar, não menos ladrão que Caco, nem menos
meliante que estudante ou pajem, e assim lhe respondeu:
- Segundo isso, as camas de vossa mercê serão duras penhas, e seu
dormir, sempre velar; e sendo assim, bem se pode apear, com
segurança de achar nesta choça ocasião e ocasiões para não dormir em
todo um ano, quanto mais em uma noite.
E dizendo isto foi segurar o estribo para dom Quixote, o qual apeou
com muita dificuldade e trabalho, como alguém que em todo aquele dia
não se houvesse desjejuado.
Disse logo ao hospedeiro que tivesse muito cuidado com seu cavalo,
porque era a melhor peça que comia pão no mundo. Olhou-o o vendeiro,
e não lhe pareceu tão bom como dom Quixote dizia, nem ainda a
metade; e acomodando-o na cavalariça, voltou a ver o que seu hóspede
mandava, ao que estavam desarmando as donzelas, que já se haviam
reconciliado com ele; as quais, ainda que lhe houvessem tirado o peito
e o espaldar, jamais souberam nem puderam desencaixar-lhe a gola,
nem tirar-lhe o malfeito elmo, que trazia atado com umas cintas
verdes, e era mister cortá-las por não poder-se desfazer os nós; mas
ele não o quis consentir de maneira alguma, e assim ficou toda aquela
noite com o elmo posto, que era a mais graciosa e estranha figura que
se pudesse pensar; e, ao desarmá-lo, como ele imaginava que aquelas
trazidas e levadas que o desarmavam eram algumas principais
senhoras e damas daquele castelo, disse-lhes com muito donaire:

- Nunca fora cavaleiro


de damas tão bem servido
como fora dom Quixote
quando de sua aldeia veio:
donzelas cuidavam dele;
princesas do seu rocim,

ou Rocinante, que este é o nome, senhoras minhas, de meu cavalo, e


dom Quixote da Mancha o meu, que, posto que não quisera descobrir-
me até que as façanhas feitas em vosso serviço e por mim
descobrissem a força de acomodar ao propósito presente este
romance velho de Lancelote, tem sido causa que saibais meu nome
antes de toda ocasião; mas tempo virá em que as vossas senhorias me
mandem e eu obedeça, e o valor de meu braço descubra o desejo que
tenho de servir-vos.
As moças, que não estavam afeitas a ouvir semelhantes retóricas,
não respondiam palavra; só lhe perguntaram se queria comer alguma
coisa.
- Qualquer coisa jantaria eu, - respondeu dom Quixote, - porque, ao
que entendo, me faria muito bem.
O destino determinou ser sexta-feira aquele dia, e não havia em
toda a estalagem senão umas rações de um pescado que em Castela
chamam abadejo, e em Andaluzia bacalhau, e em outras partes
curadillo, e em outras truchuela. Perguntaram-lhe se porventura
comeria sua mercê truchuela, que não havia outro pescado que dar-lhe
a comer.
- Como haja muitas truchuelas, - respondeu dom Quixote, - poderão
servir uma truta; porque não importa que me deem oito reais em
miúdos que uma peça de oito. Quanto mais que poderia ser que fossem
estas truchuelas como a vitela, que é melhor que a vaca, e o cabrito
que o bode. Mas, seja o que for, venha logo, que o trabalho e peso das
armas não se pode levar sem o governo das tripas.
Puseram-lhe a mesa à porta da estalagem, ao fresco, e trouxe-lhe o
hospedeiro uma porção do mal remolhado e pior cozido bacalhau, e um
pão tão negro e sebento como suas armas; mas era matéria de grande
riso vê-lo comer porque, como tinha posto o elmo e alçada a viseira,
não podia pôr nada na boca com suas mãos se alguém não lhe dava e
colocava, e assim, uma daquelas senhoras fazia este mister. Mas ao
dar-lhe de beber, não foi possível, nem o seria se o vendeiro não
perfurasse uma cana e, posto um cabo na boca, pelo outro lhe ia
colocando o vinho; e tudo isto o recebia com paciência, a troco de não
romper as tiras do elmo. Estando nisto, chegou então à estalagem um
castrador de porcos, e assim como chegou, soou seu silvado de canas
quatro ou cinco vezes; com o qual acabou de confirmar dom Quixote
que estava em algum famoso castelo, e que o serviam com música, e
que o abadejo eram trutas, o pão, candial, e as rameiras damas, e o
vendeiro castelão do castelo; e com isto dava por bem empregada sua
determinação e saída. Mas o que mais o fatigava era o não ver-se
armado cavaleiro, por parecer-lhe que não se poderia pôr
legitimamente em aventura alguma sem receber a ordem de cavalaria.

CAPÍTULO III

Onde se conta a graciosa maneira que teve dom Quixote em armar-se


cavaleiro

E assim, atormentado com este pensamento, abreviou seu racionado


jantar de estalagem; terminado este, chamou o vendeiro e, fechando-
se com ele na cavalariça, pôs-se-lhe de joelhos diante, dizendo:
- Não me levantarei jamais de onde estou, valoroso cavaleiro, até
que a vossa cortesia me outorgue um dom que pedir-lhe quero, o qual
redundará em vosso louvor e em prol do gênero humano.
O vendeiro, que viu seu hóspede a seus pés e ouviu semelhantes
razões, estava confuso olhando-o, sem saber o que fazer nem dizer-
lhe, e porfiava com ele que se levantasse, e jamais quis, até que teve
de dizer que outorgava o dom que lhe pedia.
- Não esperava eu menos da grande magnificência vossa, senhor
meu - respondeu dom Quixote -; e assim, digo-vos que o dom que vos
pedi, e por vossa liberalidade me foi outorgado, é que já amanhã me
haveis de armar cavaleiro, e esta noite, na capela deste vosso castelo,
velarei as armas, e amanhã, como disse, se cumprirá o que tanto
desejo, para poder, como se deve, ir por todas as quatro partes do
mundo buscando as aventuras em prol dos necessitados, como está a
cargo da cavalaria e dos cavaleiros andantes como eu sou, cujo desejo
a semelhantes façanhas é inclinado.
O vendeiro que, como se disse, era um pouco velhaco e já tinha
alguns indícios da falta de juízo de seu hóspede, acabou de crê-lo
quando acabou de ouvir-lhe semelhantes razões, e, por ter do que rir
aquela noite, determinou de seguir-lhe o humor; e assim, disse-lhe que
andava muito acertado no que desejava e pedia, e que tal objetivo era
próprio e natural dos cavaleiros tão principais como ele parecia e como
sua galharda presença mostrava; e que ele também, nos anos de sua
mocidade, se havia dado àquele honroso exercício, andando por
diversas partes do mundo, buscando suas aventuras, sem que houvesse
deixado os Subúrbios de Málaga, Ilhas de Riarán, Compasso de
Sevilha, Açougue de Segóvia, a Oliveira de Valência, Praça de Granada,
Praia de Sanlúcar, Potro de Córdova e as Vendinhas de Toledo e
outras diversas partes, onde havia exercitado a ligeireza de seus pés,
sutileza de suas mãos, fazendo muitos tortos, requestando muitas
viúvas, desfazendo algumas donzelas e enganando a alguns garotos, e,
finalmente, dando-se a conhecer por quantas audiências e tribunais há
quase em toda Espanha; e que por último se havia vindo recolher
àquele seu castelo, onde vivia com seus bens e com os alheios,
acolhendo nele todos os cavaleiros andantes, de qualquer qualidade e
condição que fossem, somente pela muita afeição que lhes tinha e
porque repartissem com ele seus haveres em paga de seu bom desejo.
Disse-lhe também que naquele seu castelo não havia capela alguma
onde pudesse velar as armas, porque estava derrubada para fazê-la de
novo; mas que, em caso de necessidade, ele sabia que se podiam velar
onde quisesse, e que aquela noite as podia velar em um pátio do
castelo; que de manhã, sendo Deus servido, se fariam as devidas
cerimônias de maneira que ele ficasse armado cavaleiro, e tão
cavaleiro que não pudesse ser mais no mundo.
Perguntou-lhe se trazia dinheiros; respondeu dom Quixote que não
trazia meio maravedi, porque ele nunca havia lido nas histórias dos
cavaleiros andantes que nenhum os houvesse trazido. A isto disse o
vendeiro que se enganava; que, dado que nas histórias não se escrevia,
por haver-lhes parecido aos autores delas que não era preciso
escrever uma coisa tão clara e tão necessária de trazer-se, como
eram dinheiros e camisas limpas, não por isso se havia de crer que não
os trouxessem; e assim, tivesse por certo e averiguado que todos os
cavaleiros andantes, de que tantos livros estão cheios e atestados,
levavam bem fechadas as bolsas, pelo que pudesse suceder-lhes; e que
também levavam camisas e uma arca pequena cheia de unguentos para
curar as feridas que recebiam, porque não todas as vezes, nos campos
e desertos onde combatiam e saíam feridos, havia quem os curasse, se
já não era que tinham algum mago encantador por amigo, que logo os
socorria, trazendo pelo ar nalguma nuvem alguma donzela ou anão com
alguma redoma de água de tal virtude, que tomando uma gota dela, de
imediato ficavam sãos de suas chagas e feridas, como se mal algum
houvessem tido; mas que, enquanto isto não houvesse, tiveram os
passados cavaleiros por coisa acertada que seus escudeiros fossem
providos de dinheiros e de outras coisas necessárias, como eram
gazes e unguentos para curar-se; e quando sucedia que os tais
cavaleiros não tinham escudeiros - que eram poucas e raras vezes -,
eles mesmos levavam tudo em uns alforjes muito sutis, que quase não
se pareciam, nas ancas do cavalo, como que era outra coisa de mais
importância; porque, não sendo por ocasião semelhante, isto de levar
alforjes não foi muito admitido entre os cavaleiros andantes; e por
isto lhe dava por conselho, pois ainda o podia mandar como seu
afilhado, que tão presto o havia de ser, que não caminhasse dali em
diante sem dinheiros e sem as providências referidas, e que veria quão
bem se achava com elas quando menos pensasse.
Prometeu-lhe dom Quixote fazer o que lhe aconselhava, com toda
pontualidade; e assim, deu logo ordem que velasse as armas em um
curral grande que a um lado da estalagem estava, e, recolhendo-as
dom Quixote todas, as pôs sobre uma pia que junto a um poço estava,
e, empunhando seu escudo, tomou sua lança, e com gentil aspecto
começou a passear diante da pia; e quando começou o passeio,
começava a fechar a noite.
Contou o vendeiro a todos quantos estavam na estalagem a loucura
de seu hóspede, a vigília das armas, e a armação de cavalaria que
esperava. Admiraram-se de tão estranho gênero de loucura e o foram
observar de longe, e viram que, com jeito sossegado, umas vezes
passeava; outras, arrimado à sua lança, punha os olhos nas armas, sem
deixá-los por um bom espaço delas. Acabou de cerrar a noite, mas com
tanta claridade da lua, que podia competir com o que lha emprestava;
de maneira que quanto o novo cavaleiro fazia era bem visto por todos.
Desejou nisto um dos arreeiros que estavam na estalagem ir dar água
a sua manada, e foi preciso tirar as armas de dom Quixote, que
estavam sobre a pia, o qual, vendo-o chegar, em voz alta lhe disse:
- Oh tu, quem quer que sejas, atrevido cavaleiro, que chegas a tocar
as armas do mais valoroso andante que jamais cingiu uma espada! Vê o
que fazes, e não as toques, se não queres deixar a vida em paga de teu
atrevimento.
Não cuidou o arreeiro destas razões (e seria melhor que cuidasse,
porque iria cuidar com saúde), antes, travando das correias, as lançou
longe de si. O que, visto por dom Quixote, alçou os olhos ao céu, e,
posto o pensamento - ao que pareceu - em sua senhora Dulcineia,
disse:
- Socorrei-me, senhora minha, nesta primeira afronta que a este
vosso avassalado peito se oferece: não me falte neste primeiro transe
vosso favor e amparo.
E dizendo estas e outras semelhantes razões, soltando o escudo,
alçou a lança com as duas mãos, e deu com ela tão grande golpe na
cabeça do arreeiro, que o derrubou no solo tão maltratado, que se
secundasse com outro, não haveria necessidade de cirurgião que o
curasse. Feito isto, recolheu suas armas, e tornou a passear com o
mesmo repouso de antes. Dali a pouco, sem saber o que havia passado
- porque ainda estava aturdido o arreeiro -, chegou outro com a
mesma intenção de dar água aos mulos, e chegando a tirar as armas
para desembaraçar a pia, sem falar dom Quixote palavra, e sem pedir
favor a ninguém, soltou outra vez o escudo e alçou outra vez a lança, e
sem fazê-la pedaços, fez mais de três a cabeça do segundo arreeiro,
porque a abriu em quatro. Ao ruído acudiu toda a gente da estalagem,
e entre eles o vendeiro. Vendo isto dom Quixote, empunhou seu
escudo e, posta mão em sua espada, disse:
- Oh senhora da formosura, esforço e vigor do debilitado coração
meu, agora é tempo que volvas os olhos de tua grandeza a este teu
cativo cavaleiro, que tamanha aventura está empreendendo!
Com isto cobrou, a seu parecer, tanto ânimo, que se o acometessem
todos os arreeiros do mundo, não volveria o pé atrás. Os companheiros
dos feridos, que tais os viram, começaram de longe a chover pedras
sobre dom Quixote, o qual, o melhor que podia, se defendia com seu
escudo, e não ousava apartar-se da pia para não desamparar as armas.
O vendeiro gritava que o deixassem, porque já lhes havia dito que era
louco, e que por ser louco se livraria ainda que os matasse a todos.
Também dom Quixote gritava, ainda mais, chamando-os de aleivosos e
traidores, e que o senhor do castelo era um baderneiro e mal nascido
cavaleiro, pois de tal maneira consentia que se tratassem os andantes
cavaleiros, e que se ele houvesse recebido a ordem de cavalaria, que
ele lhe daria a entender sua aleivosia:
- Mas de vocês, soez e baixa canalha, não faço caso algum: atirem,
cheguem, venham e ofendam-me quanto puderem, que vocês verão a
paga que levam de sua sandice e demasia.
Dizia isto com tanto brio e denodo, que infundiu um terrível temor
nos que o acometiam; e assim por isto como pelas persuasões do
vendeiro, deixaram de o apedrejar, e ele deixou retirar os feridos e
tornou à vigília de suas armas, com a mesma quietude e sossego de
antes.
Não pareceram bem ao vendeiro as burlas de seu hóspede, e
determinou abreviar e dar-lhe a negra ordem de cavalaria logo, antes
que outra desgraça sucedesse. E assim, chegando-se a ele, desculpou-
se da insolência que aquela gente baixa com ele havia usado, sem que
ele soubesse coisa alguma, mas que bem castigados ficavam de seu
atrevimento. Disse-lhe que já lhe havia dito que naquele castelo não
havia capela, e para o que restava a fazer, tampouco era necessária;
que todo o toque de ser armado cavaleiro consistia no pescoção e na
espadada, segundo ele tinha notícia do cerimonial da ordem, e que
aquilo em meio a um campo se podia fazer; e que já havia cumprido
com o que lhe tocava ao velar as armas, que com só duas horas de
vigília se cumpria, quanto mais que ele havia estado mais de quatro. Em
tudo acreditou dom Quixote, e disse que ele estava ali pronto para
obedecer-lhe e que concluísse com a maior brevidade que pudesse;
porque se fosse outra vez acometido, e se visse armado cavaleiro, não
pensava deixar pessoa viva no castelo, exceto aquelas que ele lhe
mandasse, a quem por seu respeito deixaria.
Advertido e medroso disto o castelão, trouxe logo um livro, onde
assentava a palha e cevada que dava aos arreeiros, e com um cabo de
vela que lhe trazia um rapaz, e com as duas já ditas donzelas, veio
onde dom Quixote estava, ao que mandou ajoelhar-se; e, lendo em seu
manual, como que dizia alguma devota oração, em meio da leitura alçou
a mão, e deu-lhe sobre o pescoço um bom golpe, e atrás dele com sua
própria espada uma gentil espadada, sempre murmurando entre
dentes como se rezasse. Feito isto, mandou a uma daquelas damas que
lhe cingisse a espada, a qual o fez com muita desenvoltura e discrição,
porque não foi preciso pouca para não rebentar de riso a cada ponto
das cerimônias; mas as proezas que já haviam visto do novo cavaleiro
lhes limitavam o riso. Ao cingir-lhe a espada, disse a boa senhora:
- Deus faça vossa mercê muito venturoso cavaleiro e lhe dê ventura
nas lides.
Dom Quixote lhe perguntou como se chamava, para que ele soubesse
dali em diante a quem ficava obrigado pela mercê recebida, porque
pensava dar-lhe alguma parte da honra que alcançasse pelo valor de
seu braço. Ela respondeu com muita humildade que se chamava a
Tolosa, e que era filha de um remendão natural de Toledo, que vivia
nas tendinhas de Sancho Bienaya, e que onde quer que ela estivesse, o
serviria e o teria por senhor. Dom Quixote lhe replicou que, por seu
amor, lhe fizesse mercê que dali em diante se pusesse dom, e se
chamasse “dona Tolosa”. Ela o prometeu, e a outra lhe calçou a espora,
com a qual lhe passou quase o mesmo colóquio que com a da espada.
Perguntou-lhe seu nome, e disse que se chamava a Moleira, e que era
filha de um honrado moleiro de Antequera; à qual também rogou dom
Quixote que se pusesse dom, e se chamasse “dona Moleira”,
oferecendo-lhe novos serviços e mercês.
Feitas, pois, de galope e às pressas as até ali nunca vistas
cerimônias, não viu a hora dom Quixote de ver-se a cavalo e sair
buscando as aventuras; e, selando logo Rocinante, subiu nele, e,
abraçando seu anfitrião, lhe disse coisas tão estranhas, agradecendo-
lhe a mercê de havê-lo armado cavaleiro, que não é possível acertar a
referi-las. O vendeiro, por vê-lo já fora da estalagem, com não menos
retóricas, ainda que com mais breves palavras, respondeu às suas, e,
sem pedir-lhe a custa da pousada, deixou-o ir em boa hora.

CAPÍTULO IV

Do que sucedeu a nosso cavaleiro quando saiu da estalagem

Alvorecia quando dom Quixote saiu da estalagem, tão contente, tão


galhardo, tão alvoroçado por ver-se já armado cavaleiro, que o gozo
lhe rebentava pelas cilhas do cavalo. Mas vindo-lhe à memória os
conselhos de seu anfitrião acerca das provisões tão necessárias que
havia de levar consigo, especialmente a dos dinheiros e camisas,
determinou voltar a sua casa e prover-se de tudo, e de um escudeiro,
pretendendo receber um lavrador vizinho seu, que era pobre e com
filhos, mas muito a propósito para o ofício escuderil da cavalaria. Com
este pensamento guiou Rocinante até sua aldeia, o qual, quase
conhecendo a querência, com tanta gana começou a caminhar, que
parecia que não punha os pés no chão.
Não havia andado muito, quando lhe pareceu que à sua mão direita,
da espessura de um bosque que ali estava, saíam umas vozes delicadas,
como de pessoa que se queixava, e apenas as ouviu, disse:
- Graças dou ao céu pela mercê que me faz, pois tão depressa me dá
ocasiões onde eu possa cumprir com o que devo à minha profissão, e
onde possa colher o fruto de meus bons desejos. Estas vozes, sem
dúvida, são de algum necessitado ou necessitada que tem necessidade
de meu favor e ajuda.
E, puxando as rédeas, encaminhou Rocinante até onde lhe pareceu
que as vozes saíam. E a poucos passos que entrou pelo bosque, viu
amarrada uma égua em uma azinheira, e amarrado em outra um rapaz,
desnudo de meio corpo acima, de idade até quinze anos, que era o que
as vozes dava, e não sem causa, porque lhe estava dando com uma
cinta muitos açoites um lavrador de bom talhe, e cada açoite
acompanhava com uma repreensão e conselho, porque dizia:
- A língua calada e os olhos espertos.
E o rapaz respondia:
- Não o farei outra vez, senhor meu; pela paixão de Deus, que não o
farei outra vez, e eu prometo ter daqui em diante mais cuidado com o
gado.
E vendo dom Quixote o que acontecia, com voz irada disse:
- Descortês cavaleiro, mal parece haver-vos com quem defender-se
não pode; subi sobre vosso cavalo, e tomai vossa lança - que também
tinha uma lança arrimada à azinheira onde estava amarrada a égua -,
que eu vos farei conhecer ser de covardes o que estais fazendo.
O lavrador, que viu sobre si aquela figura cheia de armas, brandindo
a lança sobre seu rosto, teve-se por morto, e com boas palavras
respondeu:
- Senhor cavaleiro, este rapaz que estou castigando é um meu
criado que me serve de guardar uma manada de ovelhas que tenho
nestes entornos, o qual é tão descuidado que cada dia me falta uma, e
porque castigo seu descuido ou velhacaria, diz que o faço de miserável
por não pagar-lhe o salário que lhe devo, e por Deus e por minha alma
que mente.
- “Mente” diante de mim, ruim vilão? - disse dom Quixote. - Pelo sol
que nos ilumina, que estou por atravessar-vos de parte a parte com
esta lança. Pagai-lhe logo sem mais réplica; se não, pelo Deus que nos
rege, que vos conclua e aniquile neste ponto. Desatai-o logo.
O lavrador baixou a cabeça e, sem responder palavra, desatou seu
criado, ao que perguntou dom Quixote quanto lhe devia seu amo. Ele
disse que nove meses, a sete reais cada mês. Fez a conta dom Quixote
e achou que montava a sessenta e três reais, e disse ao lavrador que
de pronto os desembolsasse se não queria morrer por isso. Respondeu
o medroso vilão que no passo em que estava e juramento que havia
feito - e ainda não havia jurado nada -, que não eram tantos; porque se
lhe haviam de descontar e receber em conta três pares de sapatos
que lhe havia dado, e um real de duas sangrias que lhe haviam feito
estando enfermo.
- Bem está tudo isso - replicou dom Quixote; - mas fiquem os
sapatos e as sangrias pelos açoites que sem culpa lhe haveis dado, que
se ele rompeu o couro dos sapatos que vós pagastes, vós lhe haveis
rompido o de seu corpo; e se lhe tirou o barbeiro sangue estando
enfermo, vós em saúde o haveis tirado; assim que, por esta parte, não
vos deve nada.
- O problema está, senhor cavaleiro, em que não tenho aqui
dinheiros: venha André comigo a minha casa, que eu pagarei um real
sobre outro.
- Ir-me eu com ele? - disse o rapaz - Mas, mal ano! Não, senhor,
nem em pensamento, porque, vendo-me só, me esfolará como a um São
Bartolomeu.
- Não fará tal - replicou dom Quixote. - Basta que eu mande para
que me tenha respeito, e que ele jure pela lei de cavalaria que
recebeu, deixá-lo-ei ir livre e assegurarei a paga.
- Veja vossa mercê, senhor, o que diz - disse o rapaz, - que este
meu amo não é cavaleiro nem recebeu ordem de cavalaria alguma; que
é João Haldudo o rico, o vizinho do Quintanar.
- Importa isso pouco - respondeu dom Quixote, - que Haldudos pode
ter cavaleiros, quanto mais, que cada um é filho de suas obras.
- Assim é verdade - disse André; - mas este meu amo, de que obras
é filho, pois me nega meu salário e meu suor e trabalho?
- Não nego, irmão André - respondeu o lavrador, - e fazei-me o
prazer de vir comigo, que eu juro, por todas as ordens que de
cavalarias há no mundo, pagar-vos, como disse, um real sobre outro, e
ainda defumados.
- Disso vos dispenso - disse dom Quixote; - dai-os em reais, que com
isso me contento, e vede que o cumprais como o haveis jurado; se não,
pelo mesmo juramento vos juro de voltar para buscar-vos e castigar-
vos, e que vos tenho de achar, ainda que vos escondais mais que uma
lagartixa. E se quereis saber quem vos manda isto, para ficar com mais
força obrigado a cumpri-lo, sabei que eu sou o valoroso dom Quixote
da Mancha, o desfazedor de agravos e sem-razões, e com Deus ficai, e
não vos saia das mentes o prometido e jurado, sob pena da pena
pronunciada.
E, dizendo isto, picou seu Rocinante, e em pouco tempo se apartou
deles. Seguiu-o o lavrador com os olhos, e quando viu que havia
transposto o bosque e que já não se via, voltou-se para seu criado
André e disse-lhe:
- Vinde cá, filho meu, que vos quero pagar o que vos devo, como
aquele desfazedor de agravos me deixou mandado.
- Isso juro eu - disse André; - e como que andará vossa mercê
acertado em cumprir o mandamento daquele bom cavaleiro, que mil
anos viva; que, segundo é de valoroso e de bom juiz, viva Roque, que se
não me paga, que volte e execute o que disse!
- Também o juro eu - disse o lavrador; - mas, pelo muito que vos
quero, quero acrescentar a dívida para acrescentar a paga.
E tomando-lhe do braço, tornou-o a atar à azinheira, onde lhe deu
tantos açoites que o deixou como morto.
- Chamai, senhor André, agora - dizia o lavrador - ao desfazedor de
agravos; vereis como não desfaz este; ainda que creio que não está
acabado de fazer, porque tenho vontade de esfolar-vos vivo, como vós
temíeis.
Mas, por fim, desatou-o e lhe deu licença que fosse buscar seu juiz,
para que executasse a pronunciada sentença. André partiu algo
mofino, jurando ir buscar o valoroso dom Quixote da Mancha, e
contar-lhe ponto por ponto o que havia passado, e que se o havia de
pagar sete vezes mais. Entretanto, ele partiu chorando e seu amo
ficou rindo.
E desta maneira desfez o agravo o valoroso dom Quixote; o qual,
contentíssimo do sucedido, parecendo-lhe que havia dado felicíssimo e
alto princípio a suas cavalarias, com grande satisfação de si mesmo ia
caminhando até sua aldeia, dizendo a meia voz:
- Bem te podes chamar ditosa sobre quantas hoje vivem na terra, oh
sobre as belas, bela Dulcineia do Toboso, pois te coube em sorte ter
sujeito e rendido a toda tua vontade e talante um tão valente e tão
renomado cavaleiro como o é e será dom Quixote da Mancha; o qual,
como todo o mundo sabe, ontem recebeu a ordem de cavalaria, e hoje
desfez o maior torto e agravo que formou a sem-razão e cometeu a
crueldade: hoje tirou o látego da mão daquele desapiedado inimigo que
tão sem ocasião sovava aquele delicado infante.
Nisto, chegou a um caminho que em quatro se dividia, e logo lhe
vieram à imaginação as encruzilhadas onde os cavaleiros andantes se
punham a pensar qual caminho daqueles tomariam, e por imitá-los
esteve um tempo quedo, e ao cabo de havê-lo muito bem pensado,
soltou a rédea a Rocinante, deixando à vontade do rocim a sua, o qual
seguiu seu primeiro intento, que foi de ir a caminho de sua cavalariça.
E havendo andado cerca de duas milhas, descobriu dom Quixote um
grande tropel de gente, que, como depois se soube, eram uns
mercadores toledanos que iam comprar seda em Múrcia. Eram seis, e
vinham com seus guarda-sóis, com outros quatro criados a cavalo e
três moços de mulas a pé. Apenas os divisou dom Quixote, quando
imaginou ser coisa de nova aventura, e por imitar em tudo quanto a ele
lhe parecia possível os passos que havia lido em seus livros, pareceu-
lhe vir ali de propósito algo que pensava fazer. E assim, com gentil
aspecto e denodo, se firmou bem nos estribos, apertou a lança, chegou
a escudo ao peito e, posto no meio do caminho, esteve esperando que
aqueles cavaleiros andantes chegassem, que já ele por tais os tinha e
julgava; e quando chegaram a distância que se puderam ver e ouvir,
levantou dom Quixote a voz e com jeito arrogante disse:
- Todo o mundo se detenha, se todo o mundo não confessa que não
há no mundo todo donzela mais formosa que a Imperatriz da Mancha,
a sem par Dulcineia do Toboso.
Pararam os mercadores ao som destas razões, e ao ver a estranha
figura do que as dizia, e pela figura e pelas razões logo chegaram a
ver a loucura de seu dono; mas quiseram ver devagar em que parava
aquela confissão que se lhes pedia, e um deles, que era um pouco
burlão e muitíssimo discreto, lhe disse:
- Senhor cavaleiro, nós não conhecemos quem seja essa boa senhora
que dizeis; mostrai-nos-la, que se ela for de tanta formosura como
significais, de boa vontade e sem coerção alguma confessaremos a
verdade que de parte vossa nos é pedida.
- Se vo-la mostrasse - replicou dom Quixote, - que mérito teríeis
em confessar uma verdade tão notória? A importância está em que
sem vê-la o haveis de crer, confessar, afirmar, jurar e defender;
quando não, comigo sois em batalha, gente descomunal e soberba. Que,
agora venhais um a um, como pede a ordem de cavalaria, ora todos
juntos, como é costume e má usança dos de vossa espécie, aqui vos
aguardo e espero, confiado na razão que de minha parte tenho.
- Senhor cavaleiro - replicou o mercador, - suplico a vossa mercê,
em nome de todos estes príncipes que aqui estamos, que, para que não
sobrecarreguemos nossas consciências confessando uma coisa por nós
jamais vista nem ouvida, e mais sendo tão em prejuízo das
imperatrizes e rainhas de Alcarria e Estremadura, que vossa mercê
seja servido de mostrar-nos algum retrato dessa senhora, ainda que
seja do tamanho de um grão de trigo; que pelo dedo se conhece o
gigante, e ficaremos com isto satisfeitos e seguros, e vossa mercê
ficará contente e pago. E ainda creio que estamos já tão a seu lado
que, ainda que seu retrato nos mostre que é torta de um olho e que do
outro lhe mane vermelhão e enxofre, desse modo, por comprazer a
vossa mercê, diremos em seu favor tudo o que quiser.
- Não lhe mana, canalha infame - respondeu dom Quixote,
queimando em cólera; - não lhe mana, digo, isso que dizeis, senão
âmbar e algália entre algodões, e não é torta nem corcovada, senão
mais direita que um fuso de Guadarrama; mas pagareis a grande
blasfêmia que dissestes contra tamanha beldade como é a de minha
senhora!
E dizendo isto, arremeteu com a lança baixa contra o que o havia
dito, com tanta fúria e irritação, que se a boa sorte não fizesse que na
metade do caminho tropeçasse e caísse Rocinante, passaria mal o
atrevido mercador. Caiu Rocinante, e foi rodando seu amo um bom
trecho pelo campo e, querendo levantar-se, jamais pôde: tal embaraço
lhe causavam a lança, escudo, esporas e elmo, com o peso das antigas
armas. E enquanto pugnava por levantar-se, e não podia, ia dizendo:
- Não fujais, gente covarde; gente cativa, esperai; que não por culpa
minha, senão de meu cavalo, estou aqui estendido.
Um moço de mulas dos que ali vinham, que não devia ser muito bem
intencionado, ouvindo dizer ao pobre caído tantas arrogâncias, não o
pôde suportar sem dar-lhe a resposta nas costelas. E chegando-se a
ele, tomou a lança e, depois de havê-la feito em pedaços, com um deles
começou a dar em nosso dom Quixote tantos golpes que, a despeito e
apesar de suas armas, moeu-o como bagaço. Gritavam seus amos que
não lhe desse tanto e que o deixasse; mas estava já o moço picado e
não quis deixar o jogo até despejar todo o resto de sua cólera; e
pegando os restantes fragmentos da lança, acabou-os de desfazer
sobre o miserável caído que, com toda aquela tempestade de golpes
que sobre ele vinha, não fechava a boca, ameaçando o céu e a terra, e
os meliantes, que tal lhe pareciam.
Cansou-se o moço, e os mercadores seguiram seu caminho, levando o
que contar em todo ele do pobre surrado. O qual, depois que se viu só,
tornou a provar se podia levantar-se; mas se não o pôde fazer quando
são e bom, como o faria moído e quase desfeito? E ainda se tinha por
ditoso, parecendo-lhe que aquela era desgraça própria de cavaleiros
andantes, e toda a atribuia à falta de seu cavalo; e não era possível
levantar-se, pois tinha todo o corpo machucado.

CAPÍTULO V

Onde prossegue a narração da desgraça de nosso cavaleiro

Vendo, pois, que, com efeito, não podia mexer-se, pensou em


recorrer a seu costumeiro remédio, que era pensar em algum passo de
seus livros; e trouxe-lhe sua loucura à memória aquele de Valdovinos e
do marquês de Mântua, quando Carloto o deixou ferido na montanha,
história sabida dos meninos, não ignorada dos moços, celebrada e
ainda acreditada pelos velhos e, apesar disso, não mais verdadeira que
os milagres de Maomé. Esta, pois, lhe pareceu a ele que lhe vinha a
calhar para o passo em que se achava; e assim, com mostras de grande
sentimento, começou a se virar pela terra e a dizer com debilitado
alento o mesmo que dizem dizia o ferido cavaleiro do bosque:

- Onde estás, senhora minha,


que não te dói meu mal?
Ou não o sabes, senhora,
ou és falsa e desleal.

E desta maneira foi prosseguindo o poema até aqueles versos que


dizem:

- Oh nobre marquês de Mântua,


meu tio e senhor carnal!

E quis a sorte que, quando chegou a este verso, aconteceu de passar


por ali um lavrador de seu mesmo lugar e vizinho seu, que vinha de
levar uma carga de trigo ao moinho; o qual, vendo aquele homem ali
estendido, se chegou a ele e lhe perguntou quem era e que mal sentia
pois tão tristemente se queixava. Dom Quixote acreditou, sem dúvida,
que aquele era o marquês de Mântua, seu tio; e assim, não lhe
respondeu outra coisa senão prosseguir em seu poema, onde lhe dava
conta de sua desgraça e dos amores do filho do Imperador com sua
esposa, tudo da mesma maneira que o poema canta.
O lavrador estava admirado ouvindo aqueles disparates; e, tirando-
lhe a viseira, que já estava feita em pedaços em virtude dos golpes,
limpou-lhe o rosto, que tinha coberto de pó; e apenas o limpou, quando
o reconheceu e lhe disse:
- Senhor Quijana - que assim se devia chamar quando tinha juízo e
não havia passado de fidalgo sossegado a cavaleiro andante, - quem
deixou vossa mercê neste estado?
Mas ele seguia com seu poema a quanto lhe perguntava. Vendo isso o
bom homem, o melhor que pôde lhe tirou o peito e espaldar, para ver
se tinha alguma ferida; mas não viu sangue nem sinal algum. Procurou
levantá-lo do chão, e não com pouco trabalho o subiu sobre seu
jumento, por parecer cavalaria mais sossegada. Recolheu as armas, até
as lascas da lança, e amarrou-as sobre Rocinante, do qual tomou a
rédea, e o cabresto do asno, e se encaminhou até seu povoado, bem
pensativo de ouvir os disparates que dom Quixote dizia; e não menos
ia dom Quixote, que, de puro moído e quebrantado, não se podia ter
sobre o burrico, e de quando em quando dava uns suspiros que os
punha no céu; de modo que de novo obrigou a que o lavrador lhe
pedisse lhe dissesse que mal sentia; e não parece senão que o diabo
lhe trazia à memória os contos acomodados a seus sucessos, porque,
naquele ponto, olvidando-se de Valdovinos, se recordou do mouro
Abindarráez, quando o alcaide de Antequera, Rodrigo de Narváez, o
prendeu e levou cativo a sua alcaidia. De sorte que, quando o lavrador
lhe voltou a perguntar como estava e o que sentia, respondeu com as
mesmas palavras e razões com que o cativo Abencerraje respondia a
Rodrigo de Narváez, do mesmo modo que ele havia lido a história na
Diana, de Jorge de Montemaior, onde se escreve; aproveitando-se
dela tão a propósito, que o lavrador se ia dando ao diabo de ouvir
tanta máquina de necedades; por onde percebeu que seu vizinho
estava louco, e tinha pressa de chegar ao povoado, por recusar o
enfado que dom Quixote lhe causava com sua larga arenga. Ao cabo da
qual, disse:
- Saiba vossa mercê, senhor dom Rodrigo de Narváez, que esta
formosa Jarifa que disse é agora a linda Dulcineia do Toboso, por
quem eu fiz, faço e farei os mais famosos feitos de cavalarias que se
viram, vejam nem verão no mundo.
A isto respondeu o lavrador:
- Veja vossa mercê, senhor, pecador de mim, que eu não sou dom
Rodrigo de Narváez, nem o marquês de Mântua, senão Pedro Alonso,
seu vizinho; nem vossa mercê é Valdovinos, nem Abindarráez, senão o
honrado fidalgo do senhor Quijana.
- Eu sei quem sou - respondeu dom Quixote; - e sei que posso ser
não só os que disse, senão todos os Doze Pares de França, e ainda
todos os nove da Fama, pois a todas as façanhas que eles todos juntos
e cada um por si fizeram avantajar-se-ão as minhas.
Nestas conversas e em outras semelhantes, chegaram ao lugar à
hora que anoitecia, mas o lavrador aguardou que fosse algo mais noite,
para que não vissem o moído fidalgo tão mal cavaleiro. Chegada, pois, a
hora que lhe pareceu, entrou no povoado, e na casa de dom Quixote, a
qual achou toda alvoroçada; e estavam nela o padre e o barbeiro do
lugar, que eram grandes amigos de dom Quixote, aos quais estava
dizendo sua ama em alta voz:
- Que lhe parece a vossa mercê, senhor licenciado Pero Pérez - que
assim se chamava o padre, - da desgraça de meu senhor? Três dias há
que não aparecem ele, nem o rocim, nem o escudo, nem a lança, nem as
armas. Desventurada de mim!, que me dou a entender, e assim é a
verdade que nasci para morrer, que estes malditos livros de cavalarias
que ele tem e costuma ler tão de ordinário viraram-lhe o juízo; que
agora me lembro de haver-lhe ouvido dizer muitas vezes, falando
entre si, que queria fazer-se cavaleiro andante e ir buscar as
aventuras por esses mundos. Encomendados sejam a Satanás e a
Barrabás tais livros, que assim puseram a perder o mais delicado
entendimento que havia em toda a Mancha.
A sobrinha dizia o mesmo, e ainda dizia mais:
- Saiba, senhor mestre Nicolás (que este era o nome do barbeiro),
que muitas vezes aconteceu a meu senhor tio estar lendo nestes
desalmados livros de desventuras dois dias com suas noites, ao cabo
dos quais arrojava o livro das mãos, e punha mão à espada e andava a
cutiladas com as paredes; e quando estava muito cansado, dizia que
matara quatro gigantes como quatro torres, e o suor que suava do
cansaço dizia que era sangue das feridas que havia recebido na
batalha; e bebia logo um grande jarro de água fria, e ficava são e
sossegado, dizendo que aquela água era uma preciosíssima bebida que
lhe havia trazido o mago Esquife, um grande encantador e amigo seu.
Mas eu tenho a culpa de tudo, que não avisei a vossas mercês dos
disparates de meu senhor tio, para que o corrigissem antes de chegar
ao que chegou, e queimassem todos estes excomungados livros, que
tem muitos, que bem merecem ser queimados, como se fossem de
hereges.
- Isto digo eu também - disse o padre, - e à fé que não se passe o
dia de amanhã sem que deles não se faça ato público e sejam
condenados ao fogo, porque não deem ocasião a quem os ler de fazer o
que meu bom amigo deve ter feito.
Tudo isto estavam ouvindo o lavrador e dom Quixote, com que
acabou de entender o lavrador a enfermidade de seu vizinho; e assim,
começou a dizer em alta voz:
- Abram vossas mercês ao senhor Valdovinos e ao senhor marquês
de Mântua, que vem mal ferido, e ao senhor mouro Abindarráez, que
traz cativo o valoroso Rodrigo de Narváez, alcaide de Antequera.
A estas vozes saíram todos, e, como reconheceram uns seu amigo,
as outras a seu amo e tio, que ainda não se havia apeado do jumento,
porque não podia, correram a abraçá-lo. Ele disse:
- Tenham-se todos, que venho mal ferido por culpa de meu cavalo.
Levem-me a meu leito e chame-se, se for possível, a sábia Urganda,
que encontre minhas feridas e as cure.
- Vede, em má hora - disse a este ponto o ama, - bem dizia a mim
meu coração do pé que coxeava meu senhor! Suba vossa mercê em boa
hora, que, sem que venha essa hurgada, o saberemos aqui curar.
Malditos, digo, sejam outra vez e outras cem estes livros de
cavalarias, que tal fizeram a vossa mercê!
Levaram-no logo à cama e, procurando as feridas, não acharam
nenhuma; e ele disse que tudo era moimento, por haver dado uma
grande queda com Rocinante, seu cavalo, combatendo com dez
gigantes, os mais desaforados e atrevidos que se pudessem encontrar
em grande parte da terra.
- Bem, bem! - disse o padre. - Gigantes há na dança? Pelo sinal da
cruz, que eu os queime amanhã antes que chegue a noite.
Fizeram a dom Quixote mil perguntas, e a nenhuma quis responder
outra coisa senão que lhe dessem de comer e o deixassem dormir, que
era o que mais lhe importava. Fez-se assim, e o padre se informou
muito à larga do lavrador sobre o modo como havia achado dom
Quixote. Ele contou tudo, com os disparates que ao achá-lo e ao
trazê-lo havia dito; que foi pôr mais desejo no licenciado de fazer o
que no outro dia fez, que foi chamar seu amigo o barbeiro mestre
Nicolás, com o qual veio à casa de dom Quixote.

CAPÍTULO VI

Do magnífico e grande exame que o padre e o barbeiro


fizeram na livraria de nosso engenhoso fidalgo

O qual ainda dormia. Pediu à sobrinha as chaves do aposento


onde estavam os livros, autores do dano, e ela as deu com muito boa
vontade. Entraram todos, e a ama com eles, e acharam mais de cem
volumes de livros grandes, muito bem encadernados, e outros
pequenos; e, assim que a ama os viu, voltou a sair do aposento com
grande pressa, e tornou logo com uma tigela de água benta e um
hissope, e disse:
- Tome vossa mercê, senhor licenciado: borrife este aposento, não
esteja aqui algum encantador dos muitos que têm estes livros, e nos
encantem, em troca do que lhes queremos dar expulsando-os do
mundo.
Causou riso ao licenciado a simplicidade da ama, e pediu ao barbeiro
que lhe fosse dando aqueles livros um a um, para ver de que tratavam,
pois podia acontecer de achar alguns que não merecessem castigo de
fogo.
- Não - disse a sobrinha, - não há que perdoar nenhum, porque todos
causaram mal; melhor será jogá-los pelas janelas ao pátio, e fazer uma
pilha deles e pôr-lhes fogo; e se não, levá-los ao curral, e ali se fará a
fogueira, que assim não nos ofenderá a fumaça.
O mesmo disse a ama: tal era a vontade que as duas tinham da
morte daqueles inocentes; mas o padre não quis isso sem primeiro ler
pelo menos os títulos. E o primeiro que mestre Nicolás lhe deu nas
mãos foi Os quatro de Amadis de Gaula, e disse o padre:
- Parece coisa de mistério esta; porque, segundo ouvi dizer, este
livro foi o primeiro de cavalarias que se imprimiu na Espanha, e todos
os demais tiveram princípio e origem neste; e assim me parece que,
como o dogmatizador de uma seita tão má, devemos, sem escusa
alguma, condená-lo ao fogo.
- Não, senhor - disse o barbeiro, - pois também ouvi dizer que é o
melhor de todos os livros que deste gênero se compuseram; e assim,
como o único em sua arte, se deve perdoar.
- Assim é verdade - disse o padre -, e por essa razão se lhe outorga
a vida por agora. Vejamos esse outro que está junto a ele.
- É - disse o barbeiro - As façanhas de Esplandián, filho legítimo de
Amadis de Gaula.
- Pois, em verdade - disse o padre - que não há de valer ao filho a
bondade do pai. Tomai, senhora ama: abri essa janela e atirai-o ao
curral, e dê princípio ao montão da fogueira que se há de fazer.
Fê-lo assim a ama com muito contentamento, e o bom do Esplandián
foi voando ao curral, esperando com toda paciência o fogo que o
ameaçava.
- Adiante - disse o padre.
- Este que vem - disse o barbeiro - é Amadis de Grécia; e ainda
todos os deste lado, ao que creio, são da mesma linhagem do Amadis.
- Pois vão todos ao curral - disse o padre - que, a troco de queimar a
rainha Pintiquiniestra, e o pastor Darinel, e suas éclogas, e as
endiabradas e revoltadas razões de seu autor, queimarei com eles o
pai que me gerou, se andasse em figura de cavaleiro andante.
- Desse parecer sou eu - disse o barbeiro.
- E ainda eu - acrescentou a sobrinha.
- Pois assim é - disse a ama, - venham, e ao curral com eles.
Deram-nos, que eram muitos, e ela evitou a escada e deu com eles
pela janela abaixo.
- Quem é esse tonel? - disse o padre.
- Este é - respondeu o barbeiro - Dom Olivante de Laura.
- O autor desse livro - disse o padre - foi o mesmo que compôs o
Jardim de flores, e em verdade que não saiba determinar qual dos
dois livros é mais verdadeiro, ou, por dizer melhor, menos mentiroso;
só sei dizer que este irá ao curral por disparatado e arrogante.
- Este que segue é Florismarte de Hircânia - disse o barbeiro.
- Aí está o senhor Florismarte? - replicou o padre. - Pois à fé que há
de parar depressa no curral, apesar de seu estranho nascimento e
sonhadas aventuras; que não dá lugar a outra coisa a dureza e secura
de seu estilo. Ao curral com ele e com esse outro, senhora ama.
- Com prazer, senhor meu - respondia ela; e com muita alegria
executava o que lhe era mandado.
- Este é O Cavaleiro Platir - disse o barbeiro.
- Antigo livro é este - disse o padre, - e não acho nele coisa que
mereça vênia. Acompanhe aos demais sem réplica.
E assim foi feito. Abriu-se outro livro e viram que tinha por título O
cavaleiro da Cruz.
- Por nome tão santo como este livro tem, podia-se perdoar sua
ignorância; mas também se costuma dizer: "atrás da cruz está o
diabo". Vá ao fogo.
Tomando o barbeiro outro livro, disse:
- Este é Espelho de cavalarias.
- Já conheço sua mercê - disse o padre. - Aí anda o senhor Reinaldo
de Montalvão com seus amigos e companheiros, mais ladrões que Caco,
e os Doze Pares, com o verdadeiro historiador Turpin; e em verdade
que estou por condená-los não mais que a desterro perpétuo, pelo
menos porque têm parte da invenção do famoso Mateo Boyardo, de
onde também teceu sua teia o cristão poeta Ludovico Ariosto; ao qual,
se aqui o acho, e que fala em outra língua que não a sua, não lhe
guardarei respeito algum; mas se fala em seu idioma, pô-lo-ei sobre
minha cabeça.
- Pois eu o tenho em italiano - disse o barbeiro, - mas não o entendo.
- Nem ainda seria bom que vós o entendêsseis - respondeu o padre
-; e aqui perdoaríamos ao senhor capitão que não o houvesse trazido à
Espanha e feito castelão; que lhe tirou muito de seu natural valor, e o
mesmo farão todos aqueles que os livros de verso quiserem traduzir
em outra língua: que, por muito cuidado que ponham e habilidade que
mostrem, jamais chegarão ao ponto que eles têm em seu primeiro
nascimento. Digo, com efeito, que este livro, e todos os que se
acharem que tratam destas coisas da França, tomem-se e depositem
em um poço seco, até que com mais acordo se veja o que se há de
fazer deles, excetuando a um Bernardo do Carpio que anda por aí e a
outro chamado Roncesvalles; que estes, chegando a minhas mãos, hão
de estar nas da ama, e delas nas do fogo, sem remissão alguma.
Tudo o confirmou o barbeiro, e ele teve por bem e por coisa muito
acertada, por entender que era o padre tão bom cristão e tão amigo
da verdade, que não diria outra coisa por todas as do mundo. E,
abrindo outro livro, viu que era Palmerin de Oliva, e junto a ele estava
outro que se chamava Palmerin da Inglaterra; o qual visto pelo
licenciado, disse:
- Essa oliva se faça logo achas e se queime, que ainda não fiquem
dela as cinzas; e essa palma de Inglaterra se guarde e se conserve
como a coisa única, e se faça para isso outra caixa como a que achou
Alexandre nos despojos de Dario, que a disputou para guardar nela as
obras do poeta Homero. Este livro, senhor compadre, tem autoridade
por duas coisas: uma, porque ele por si é muito bom, e outra, porque é
fama que o compôs um discreto rei de Portugal. Todas as aventuras do
castelo de Miraguarda são boníssimas e de grande artifício; as razões,
cortesãs e claras, que guardam e veem o decoro do que fala com muita
propriedade e entendimento. Digo, pois, salvo vosso bom parecer,
senhor mestre Nicolás, que este e Amadis de Gaula fiquem livres do
fogo, e todos os demais, sem fazer mais reparo e procura, pereçam.
- Não, senhor compadre - replicou o barbeiro; - que este que aqui
tenho é o afamado Dom Belianis.
- Pois esse - replicou o padre, - com a segunda, terceira e quarta
parte, têm necessidade de um pouco de ruibarbo para purgar a sua
demasiada cólera, e é preciso tirar-lhes tudo aquilo do castelo da
Fama e outras impertinências de mais importância, para que se lhes dá
término ultramarino, e como se emendassem, assim se usará com eles
de misericórdia ou de justiça; e em tanto, tende vós, compadre, em
vossa casa, mas não os deixeis ler a nenhum.
- Com prazer - respondeu o barbeiro.
E, sem querer cansar-se mais em ler livros de cavalarias, pediu à
ama que tomasse todos os grandes e desse com eles no curral. Não se
disse a tonta nem a surda, senão a quem tinha mais vontade de
queimá-los que de fazer uma teia, por grande e delgada que fosse; e,
pegando quase oito de uma vez, os arrojou pela janela. Por tomar
muitos juntos, caiu um aos pés do barbeiro, que teve vontade de ver
de quem era, e viu que dizia: História do famoso cavaleiro Tirante o
Branco.
- Valha-me Deus! - disse o padre em alta voz. - Que aqui esteja
Tirante o Branco! Dai-mo cá, compadre; que faço conta que achei nele
um tesouro de contentamento e uma mina de passatempos. Aqui está
dom Quirieléison de Montalvão, valoroso cavaleiro, e seu irmão Tomás
de Montalvão, e o cavaleiro Fonseca, com a batalha que o valente de
Tirante fez com o alano, e as agudezas da donzela Prazerdeminhavida,
com os amores e embustes da viúva Repousada, e a senhora
Imperatriz, enamorada de Hipólito, seu escudeiro. Digo-vos a verdade,
senhor compadre, que, por seu estilo, é este o melhor livro do mundo:
aqui comem os cavaleiros, e dormem, e morrem em suas camas, e
fazem testamento antes de sua morte, com estas coisas de que todos
os demais livros deste gênero carecem. Desse modo, digo-vos que
merecia o que o compôs, pois não fez tantas necedades de indústria,
que o trancafiaram por todos os dias de sua vida. Levai-o a casa e
lede-o, e vereis que é verdade quanto dele vos disse.
- Assim será - respondeu o barbeiro, - mas, que faremos destes
pequenos livros que ficam?
- Estes - disse o padre - não devem ser de cavalarias, senão de
poesia.
E abrindo um, viu que era A Diana, de Jorge de Montemaior, e disse,
crendo que todos os demais eram do mesmo gênero:
- Estes não merecem ser queimados, como os demais, porque não
fazem nem farão o mal que os de cavalarias fizeram; que são livros de
entendimento, sem prejuízo de terceiro.
- Ai senhor! - disse a sobrinha, - bem os pode vossa mercê mandar
queimar, como aos demais, porque não seria muito que, havendo-se
curado meu senhor tio da enfermidade cavaleiresca, lendo estes,
desejasse fazer-se pastor e andar pelos bosques e prados cantando e
tangendo; e, o que seria pior, fazer-se poeta; que, segundo dizem, é
enfermidade incurável e pegadiça.
- Verdade diz esta donzela - disse o padre, - e será bom evitar a
nosso amigo este tropeço e ocasião. E, pois começamos pela Diana de
Montemaior, sou de parecer que não se queime, senão que se lhe tire
tudo aquilo que trata da sábia Felícia e da água encantada, e quase
todos os versos maiores, e fique-lhe em hora boa a prosa, e a honra de
ser primeiro em semelhantes livros.
- Este que segue - disse o barbeiro - é a A Diana chamada segunda
do Salmantino; e este, outro que tem o mesmo nome, cujo autor é Gil
Polo.
- Pois a do Salmantino - respondeu o padre - acompanhe e
acrescente o número dos condenados ao curral, e a de Gil Polo se
guarde como se fora do mesmo Apolo; e passe adiante, senhor
compadre, e tenhamos pressa, que se vai fazendo tarde.
- Este livro é - disse o barbeiro abrindo outro - Os dez livros de
Fortuna de Amor, compostos por Antônio de Lofraso, poeta sardo.
- Pelas ordens que recebi - disse o padre - que desde que Apolo foi
Apolo, e as musas musas, e os poetas poetas, tão gracioso nem tão
disparatado livro como esse não se há composto, e que, por seu
caminho, é o melhor e o mais único de quantos deste gênero saíram à
luz do mundo; e o que não o leu pode fazer conta que não leu jamais
coisa de gosto. Dai-mo cá, compadre, que aprecio mais havê-lo achado
que se me dessem uma sotaina de sarja de Florência.
Pô-lo à parte com grandíssimo gosto, e o barbeiro prosseguiu
dizendo:
- Estes que se seguem são o Pastor de Ibéria, Ninfas de Henares e
Desenganos de zelos.

- Pois não há mais que fazer - disse o padre, - senão entregá-los ao


braço secular da ama; e não se me pergunte o porquê, que seria nunca
acabar.
- Este que vem é O pastor de Fílida.
- Não é este pastor - disse o padre, - senão muito discreto
cortesão; guarde-se como joia preciosa.
- Este grande que aqui vem se intitula - disse o barbeiro - Tesouro
de várias poesias.
- Como elas não foram tantas - disse o padre, - foram mais
estimadas; preciso é que este livro se descarte e limpe de algumas
baixezas que entre suas grandezas tem. Guarde-se, porque seu autor
é amigo meu, e por respeito de outras mais heroicas e levantadas
obras que escreveu.
- Este é - continuou o barbeiro - O cancioneiro de López Maldonado.
- Também o autor desse livro - replicou o padre - é grande amigo
meu, e seus versos em sua boca admiram a quem os ouve; e tal é a
suavidade da voz com que os canta, que encanta. Algo largo é nas
éclogas, mas nunca o bom foi muito: guarde-se com os escolhidos. Mas,
que livro é esse que está junto a ele?
- A Galateia, de Miguel de Cervantes - disse o barbeiro.
- Muitos anos há que é grande amigo meu esse Cervantes, e sei que
é mais versado em desditas que em versos. Seu livro tem algo de boa
invenção; propõe algo, e não conclui nada: é preciso esperar a segunda
parte que promete; talvez com a emenda alcançará de todo a
misericórdia que agora se lhe nega; e, enquanto isto se vê, tende-o
recluso em vossa pousada, senhor compadre.
- Com prazer - respondeu o barbeiro. - E aqui vêm três, todos
juntos: A araucana, de dom Alonso de Ercilla; A austríada, de João
Rufo, jurado de Córdova, e O Monserrato, de Cristóbal de Virués,
poeta valenciano.
- Todos esses três livros - disse o padre - são os melhores que, em
verso heroico, em língua castelhana estão escritos, e podem competir
com os mais famosos de Itália: guardem-se como as mais ricas
prendas de poesia que tem a Espanha.
Cansou-se o padre de ver mais livros; e assim, a carga cerrada, quis
que todos os demais se queimassem; mas já tinha aberto um o
barbeiro, que se chamava As lágrimas de Angélica.
- Chorá-las-ia eu - disse o padre ouvindo o nome - se tal livro
houvesse mandado queimar; porque seu autor foi um dos famosos
poetas do mundo, não só da Espanha, e foi felicíssimo na tradução de
algumas fábulas de Ovídio.

CAPÍTULO VII

Da segunda saída de nosso bom cavaleiro dom Quixote da Mancha

Estando nisto, começou a gritar dom Quixote, dizendo:


- Aqui, aqui, valorosos cavaleiros; aqui é preciso mostrar a força de
vossos valorosos braços, que os cortesãos levam o melhor do torneio.
Para acudir a este ruído e estrondo, não se passou adiante com o
exame dos demais livros que ficavam; e assim, se crê que foram ao
fogo, sem ser vistos nem ouvidos, A Caroleia e Leão da Espanha, com
os feitos do Imperador, compostos por dom Luís de Ávila, que, sem
dúvida, deviam estar entre os que ficavam; e quiçá, se o padre os
visse, não passariam por tão rigorosa sentença.
Quando chegaram a dom Quixote, já ele estava levantado da cama,
e prosseguia com seus gritos e seus desatinos, dando cutiladas e
reveses para todos os lados, estando tão desperto como se nunca
houvesse dormido. Abraçaram-no, e por força o levaram de volta ao
leito; e depois que sossegou um pouco, voltando-se para falar com o
padre lhe disse:
- Por certo, senhor arcebispo Turpin, que é grande infortúnio para
os que nos chamamos Doze Pares deixar, tão sem mais nem mais levar
a vitória deste torneio aos cavaleiros cortesãos, havendo nós os
aventureiros ganho o prêmio nos três dias antecedentes.
- Cale vossa mercê, senhor compadre - disse o padre, - que Deus
será servido que a sorte mude, e que o que hoje se perde se ganhe
amanhã; e atenda vossa mercê à sua saúde por agora, que me parece
que deve estar demasiadamente cansado, se já não é que está
malferido.
- Ferido não - disse dom Quixote, - mas moído e quebrantado, não
há dúvida nisso; porque aquele bastardo de dom Roldão me moeu a
pancadas com o tronco de uma azinheira, e tudo por inveja, porque vê
que eu só sou o oposto de suas valentias. Mas não me chamaria eu
Reinaldo de Montalvão se, levantando-me deste leito, não mo pagar,
apesar de todos os seus encantamentos; e, por agora, tragam-me de
jantar, que sei que é o que mais me virá ao caso, e fique o do vingar-
me a meu cargo.
Fizeram assim: deram-lhe de comer, e ele dormiu outra vez, ficando
eles admirados de sua loucura.
Aquela noite queimou e destruiu a ama quantos livros havia no curral
e em toda a casa, e tais deveram arder que mereciam guardar-se em
perpétuos arquivos; mas não o permitiu sua sorte e a pressa do
escrutinador; e assim se cumpriu o refrão de que pagam às vezes os
justos pelos pecadores.
Um dos remédios que o padre e o barbeiro deram, por então, para o
mal de seu amigo, foi que lhe murassem e tapassem o aposento dos
livros, para que quando se levantasse não os achasse - talvez
eliminando a causa, cessasse o efeito -, e que dissessem que um
encantador os havia levado, e o aposento e tudo; e assim foi feito com
muita presteza. Dali a dois dias se levantou dom Quixote, e a primeira
coisa que fez foi ir ver seus livros; e, como não achava o aposento
onde o havia deixado, andava de um para outro lado procurando-o.
Chegava onde costumava estar a porta, e apalpava-a com as mãos, e
volvia e revolvia os olhos por tudo, sem dizer palavra; mas, ao cabo de
um bom tempo, perguntou à sua ama onde estava o aposento de seus
livros. A ama, que já estava bem advertida do que havia de responder,
lhe disse:
- Que aposento, ou que nada, busca vossa mercê? Já não há
aposento nem livros nesta casa, porque tudo levou o próprio diabo.
- Não era diabo - replicou a sobrinha, - senão um encantador que
veio sobre uma nuvem uma noite, depois do dia que vossa mercê daqui
partiu e, apeando-se de uma serpente em que vinha a cavaleiro, entrou
no aposento, e não sei o que fez dentro, que ao fim de pouco tempo
saiu voando pelo telhado, e deixou a casa cheia de fumaça; e, quando
acordamos para ver o que fazia, não vimos livro nem aposento algum;
só nos recorda muito bem a mim e à ama que, ao tempo do partir
aquele mau velho, disse em altas vozes que, por inimizade secreta que
tinha ao dono daqueles livros e aposento, deixava feito o dano naquela
casa que depois se veria. Disse também que se chamava o mago
Munhatão.
- “Frestão” diria - disse dom Quixote.
- Não sei - respondeu a ama - se se chamava “Frestão” ou “Fritão”;
só sei que acabou em tão su nome.
- Assim é - disse dom Quixote; - que esse é um mago encantador,
grande inimigo meu, que me tem ojeriza, porque sabe por suas artes e
letras que tenho de vir, andando os tempos, a lutar em singular
batalha com um cavaleiro a quem ele favorece, e o tenho de vencer,
sem que ele o possa estorvar, e por isto procura fazer-me todos os
aborrecimentos que pode; e digo-lhe eu que mal poderá ele
contradizer nem evitar o que pelo céu está ordenado.
- Quem duvida disso? - disse a sobrinha. - Mas, quem mete vossa
mercê, senhor tio, nessas pendências? Não será melhor ficar pacífico
em sua casa e não ir pelo mundo a buscar sofrimentos, sem considerar
que muitos vão em busca de lã e voltam tosquiados?
- Oh sobrinha minha - respondeu dom Quixote, - e quão mal que
estás na conta! Primeiro que a mim me tosquiem, terei rapado e tirado
as barbas a quantos imaginarem tocar-me na ponta de um só cabelo.
Não quiseram as duas replicar-lhe mais, porque viram que se lhe
incendiava a cólera.
É, pois, o caso que ele esteve quinze dias em casa muito sossegado,
sem dar mostras de querer secundar seus primeiros devaneios, nos
quais dias trocou graciosíssimas impressões com seus dois compadres
o padre e o barbeiro, em que ele dizia que a coisa de que mais
necessidade tinha o mundo era de cavaleiros andantes e de que nele se
ressuscitasse a cavalaria andante. O padre algumas vezes o
contradizia e outras concedia, porque se não utilizasse este artifício,
não poderia entendê-lo.
Neste tempo, solicitou dom Quixote a um lavrador vizinho seu,
homem de bem - se é que este título se pode dar ao que é pobre - ,
mas de muito pouco sal na moleira. Em suma, tanto lhe disse, tanto o
persuadiu e lhe prometeu, que o pobre vilão se determinou a sair com
ele e servir-lhe de escudeiro. Dizia-lhe, entre outras coisas, dom
Quixote que se dispusesse a ir com ele de boa vontade, porque talvez
lhe podia suceder aventura que ganhasse, em dá cá aquelas palhas,
alguma ilha, e lhe deixasse a ele por governador dela. Com estas
promessas e outras tais, Sancho Pança, que assim se chamava o
lavrador, deixou sua mulher e filhos e assentou por escudeiro de seu
vizinho.
Deu logo dom Quixote ordem em buscar dinheiros; e, vendendo uma
coisa e empenhando outra, e malbaratando-as todas, chegou a uma
razoável quantidade. Muniu-se assim de um escudo, que pediu
emprestado a um seu amigo e, apetrechando seu quebrado elmo o
melhor que pôde, avisou a seu escudeiro Sancho do dia e a hora que
pensava pôr-se em caminho, para que ele se prouvesse do que visse
que mais lhe era preciso. Sobretudo o encarregou de que levasse
alforjes; e disse que sim levaria, e que também pensava levar um asno
que tinha muito bom, porque ele não estava acostumado a andar muito
a pé. Quanto ao asno refletiu um pouco dom Quixote, imaginando se se
recordava se algum cavaleiro andante havia trazido escudeiro
cavaleiro asnalmente, mas nunca lhe veio algum à memória; entretanto,
determinou que o levasse, com pressuposto de servir-lhe de mais
honrada cavalaria em havendo ocasião para tal, tirando o cavalo ao
primeiro descortês cavaleiro que topasse. Proveu-se de camisas e das
demais coisas que pôde, conforme ao conselho que o vendeiro lhe havia
dado; tudo o qual feito e cumprido, sem despedir-se Pança de seus
filhos e mulher, nem dom Quixote de sua ama e sobrinha, uma noite
saíram do lugar sem que ninguém os visse, na qual caminharam tanto,
que ao amanhecer tiveram-se por seguros de que não os achariam
ainda que os buscassem.
Ia Sancho Pança sobre seu jumento como um patriarca, com seus
alforjes e sua bota de vinho, e com muito desejo de ver-se já
governador da ilha que seu amo lhe havia prometido. Acertou dom
Quixote tomar a mesma rota e caminho que ele havia tomado em sua
primeira viagem, que foi pelo campo de Montiel, pelo qual caminhava
com menos tristeza que a vez passada, porque, por ser a hora da
manhã e ferir-lhes obliquamente os raios do sol, não lhes fatigavam.
Disse nisto Sancho Pança a seu amo:
- Veja vossa mercê, senhor cavaleiro andante, que não se lhe olvide
o que sobre a ilha me tem prometido; que eu a saberei governar, por
grande que seja.
A que lhe respondeu dom Quixote:
- Hás de saber, amigo Sancho Pança, que foi costume muito usado
dos cavaleiros andantes antigos fazer governadores a seus escudeiros
das ilhas ou reinos que ganhavam, e eu tenho determinado de que por
mim não falte tão agradecida usança; antes, penso avantajar-me nela:
porque eles algumas vezes, e quiçá as mais, esperavam que seus
escudeiros fossem velhos; e, já depois de fartos de servir e de levar
maus dias e piores noites, davam-lhes algum título de conde ou, pelo
muito, de marquês, de algum vale ou província de pouco valor; mas, se
tu vives e eu vivo, bem podia ser que antes de seis dias ganhasse eu
tal reino que tivesse outros a ele aderentes, que viessem de molde
para coroar-te rei de um deles. E não o tenhas por muito, que coisas e
casos acontecem aos tais cavaleiros, por modos tão nunca vistos nem
pensados, que com facilidade te podia dar ainda mais do que te
prometo.
- Dessa maneira - respondeu Sancho Pança, - se eu fosse rei por
algum milagre dos que vossa mercê diz, pelo menos, Joana Gutiérrez,
meu aconchego, viria a ser rainha, e meus filhos infantes.
- Pois quem o duvida? - respondeu dom Quixote.
- Eu o duvido - replicou Sancho Pança; - porque tenho para mim que,
ainda que chovesse Deus reinos sobre a terra, nenhum assentaria bem
sobre a cabeça de Mari Gutiérrez. Saiba, senhor, que não vale dois
maravedis para rainha; condessa lhe cairá melhor, e ainda Deus a
ajude.
- Encomenda-o tu a Deus, Sancho - respondeu dom Quixote, - que
Ele dará o que mais lhe convenha, mas não apouques teu ânimo tanto,
que te venhas a contentar com menos que com ser adiantado.
- Não o farei, senhor meu - respondeu Sancho, - e mais tendo tão
principal amo em vossa mercê, que me saberá dar tudo aquilo que me
esteja bem e eu possa levar.

CAPÍTULO VIII

Do bom êxito que o valoroso dom Quixote teve na


espantável e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com
outros sucessos dignos de feliz recordação

Nisto, descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento que há


naquele campo; e, assim que dom Quixote os viu, disse a seu escudeiro:
- A ventura vai guiando nossas coisas melhor do que acertaríamos a
desejar, porque vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem
trinta, ou poucos mais, desaforados gigantes, com quem penso fazer
batalha e tirar-lhes a todos as vidas, com cujos despojos
começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra, e é grande serviço
de Deus tirar tão má semente de sobre a face da terra.
- Que gigantes? - disse Sancho Pança.
- Aqueles que ali vês - respondeu seu amo -, dos braços grandes, que
os costumam ter alguns de quase duas léguas.
- Veja vossa mercê - respondeu Sancho - que aqueles que ali se
parecem não são gigantes, senão moinhos de vento, e o que neles
parecem braços são as pás, que, empurradas pelo vento, fazem andar a
pedra do moinho.
- Bem parece - respondeu dom Quixote - que não estás cursado
nisto das aventuras: eles são gigantes; e se tens medo, sai daí, e põe-
te em oração enquanto que eu vou entrar com eles em fera e desigual
batalha.
E, dizendo isto, esporeou seu cavalo Rocinante, sem atender às
falas de seu escudeiro Sancho, advertindo-o de que, sem dúvida
alguma, eram moinhos de vento, e não gigantes, aqueles que ia atacar.
Mas ele ia tão certo de que eram gigantes, que nem ouvia a voz de seu
escudeiro Sancho nem cuidava de ver, ainda que estivesse já bem
perto, o que eram; antes, ia dizendo em vozes altas:
- Não fujais, covardes e vis criaturas, que um só cavaleiro é o que os
ataca.
Levantou-se nisto um pouco de vento e as grandes pás começaram a
mover-se, o que, visto por dom Quixote, disse:
- Pois, ainda que movais mais braços que os do gigante Briareio,
haveis-me de pagar.
E, dizendo isto, e encomendando-se de todo coração a sua senhora
Dulcineia, pedindo-lhe que em tal transe o socorresse, bem coberto
por seu escudo, com a lança em riste, arremeteu a todo o galope de
Rocinante e embestou contra o primeiro moinho que estava diante; e,
dando-lhe uma lançada na pá, voltou-a o vento com tanta fúria que fez
a lança em pedaços, levando atrás de si o cavalo e o cavaleiro, que foi
rodando muito maltratado pelo campo. Acudiu Sancho Pança a socorrê-
lo, a todo o correr de seu asno, e quando chegou achou que não se
podia mexer: tal foi o tombo que deu com ele Rocinante.
- Valha-me Deus! - disse Sancho. - Não disse eu a vossa mercê que
visse bem o que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e não o
podia ignorar senão quem levasse outros tais na cabeça?
- Cala, amigo Sancho - respondeu dom Quixote, - que as coisas da
guerra, mais que outras, estão sujeitas a contínua mudança; quanto
mais, que eu penso, e é assim verdade, que aquele mago Frestão que
me roubou o aposento e os livros transformou estes gigantes em
moinhos para tirar-me a glória de seu vencimento: tal é a inimizade
que me tem; mas, ao cabo ao cabo, hão de poder pouco suas más artes
contra a bondade de minha espada.
- Deus o faça como pode - respondeu Sancho Pança.
E, ajudando-o a levantar, tornou a subir sobre Rocinante, que meio
descadeirado estava. E, falando na passada aventura, seguiram o
caminho do Porto Lápice, porque ali dizia dom Quixote que não era
possível deixar de achar-se muitas e diversas aventuras, por ser lugar
muito transitado; senão que ia muito pesaroso por haver-lhe faltado a
lança; e, dirigindo-se a seu escudeiro, falou-lhe:
- Eu me recordo de haver lido que um cavaleiro espanhol, chamado
Diego Pérez de Vargas, havendo-se-lhe em uma batalha partido a
espada, desgalhou de uma azinheira um pesado ramo ou tronco, e com
ele fez tais coisas aquele dia, e machacou tantos mouros, que lhe ficou
por sobrenome “Machuca”, e assim ele como seus descendentes se
chamaram, daquele dia em diante, “Vargas e Machuca”. Disse-te isto,
porque da primeira azinheira ou carvalho que se me depare penso
desgalhar outro tronco tal e tão bom como aquele, que imagino e penso
fazer com ele tais façanhas, que tu te tenhas por bem afortunado de
haver merecido vir a vê-las e a ser testemunha de coisas que apenas
poderão ser acreditadas.
- À mão de Deus - disse Sancho; - eu creio em tudo assim como
vossa mercê o diz; mas endireite-se um pouco, que parece que vai meio
de lado, e deve ser do moimento da caída.
- Assim é a verdade - respondeu dom Quixote; - e se não me queixo
da dor, é porque não é dado aos cavaleiros andantes queixar-se de
ferida alguma, ainda que lhe saiam as tripas por ela.
- Se isso é assim, não tenho eu que replicar - respondeu Sancho, -
mas sabe Deus se eu me folgaria que vossa mercê se queixasse quando
alguma coisa lhe doesse. De mim sei dizer que me hei de queixar da
menor dor que tenha, se já não se entende também com os escudeiros
dos cavaleiros andantes isso de não queixar-se.
Não se deixou de rir dom Quixote da simplicidade de seu escudeiro;
e assim lhe declarou que podia muito bem queixar-se, como e quando
quisesse, sem vontade ou com ela; que até então não havia lido coisa
em contrário na ordem de cavalaria. Disse-lhe Sancho que visse que
era hora de comer. Respondeu-lhe seu amo que por então não lhe fazia
preciso; que comesse ele quando desejasse. Com esta licença,
acomodou-se Sancho o melhor que pôde sobre seu jumento e, tirando
dos alforjes o que neles havia posto, ia caminhando e comendo atrás
de seu amo muito à vontade, e de quando em quando empinava a bota,
com tanto gosto, que o poderia invejar o mais regalado bodegueiro de
Málaga. E, enquanto ele ia daquela maneira amiudando tragos, não se
recordava de nenhuma promessa que seu amo lhe houvesse feito, nem
tinha por nenhum trabalho, senão por muito descanso, andar buscando
as aventuras, por perigosas que fossem.
Em suma, aquela noite a passaram entre umas árvores, e de uma
delas desgalhou dom Quixote um ramo seco que quase lhe podia servir
de lança, e pôs nele o ferro que tirou da que se havia quebrado. Toda
aquela noite não dormiu dom Quixote, pensando em sua senhora
Dulcineia, por acomodar-se ao que havia lido em seus livros, quando os
cavaleiros passavam sem dormir muitas noites nas florestas e
despovoados, entretidos com as memórias de suas senhoras. Não a
passou assim Sancho Pança que, como tinha o estômago cheio, e não de
água de chicória, de um sono a levou toda; e não deram conta de
despertá-lo, se seu amo não o chamasse, os raios do sol, que lhe davam
no rosto, nem o canto das aves, que, muitas e muito regozijadamente,
a vinda do novo dia saudavam. Ao levantar-se deu um tento à bota, e
achou-a algo mais magra que a noite anterior; e afligiu-se-lhe o
coração, por parecer-lhe que não tinham como remediar tão depressa
sua falta. Não quis desjejuar dom Quixote, porque, como está dito,
deu em sustentar-se de saborosas memórias. Tornaram a seu
começado caminho do Porto Lápice, e por volta das três da tarde o
descobriram.
- Aqui - disse, vendo-o, dom Quixote - podemos, irmão Sancho
Pança, meter as mãos até os cotovelos nisto que chamam aventuras.
Mas adverte que, ainda que me vejas nos maiores perigos do mundo,
não hás de pôr mão à tua espada para defender-me, se já não vires
que os que me ofendem é canalha e gente baixa, que em tal caso bem
podes ajudar-me; mas se forem cavaleiros, de nenhuma maneira te é
lícito nem concedido pelas leis de cavalaria que me ajudes, até que
sejas armado cavaleiro.
- Por certo, senhor - respondeu Sancho, - que vossa mercê seja
muito bem obedecido nisto; e mais, que eu por mim sou pacífico e
inimigo de meter-me em ruídos nem pendências. Bem é verdade que,
no que tocar a defender minha pessoa, não terei muita conta com
essas leis, pois as divinas e humanas permitem que cada um se defenda
de quem quiser agravá-lo.
- Não digo eu menos - respondeu dom Quixote, - mas nisto de
ajudar-me contra cavaleiros hás de conter teus naturais ímpetos.
- Digo que assim o farei - respondeu Sancho - e que guardarei esse
preceito tão bem como o dia do domingo.
Estando nestas razões, assomaram pelo caminho dois frades da
ordem de São Bento, montados em dois dromedários, que não eram
menores as duas mulas em que vinham. Traziam seus óculos de viagem
e seus guarda-sóis. Atrás deles vinha um coche, com quatro ou cinco a
cavalo que o acompanhavam e dois moços de mulas a pé. Vinha no
coche, como depois se soube, uma senhora biscainha, que ia a Sevilha,
onde estava seu marido, que passava às Índias com um muito honroso
cargo. Não vinham os frades com ela, ainda que fossem pelo mesmo
caminho; mas, apenas os divisou dom Quixote, disse a seu escudeiro:
- Ou eu me engano, ou esta há de ser a mais famosa aventura que se
há visto; porque aqueles vultos negros que ali parecem devem ser, e
são sem dúvida, alguns encantadores que levam furtada alguma
princesa naquele coche, e é preciso desfazer este torto com todo meu
poderio.
- Pior será isto que os moinhos de vento - disse Sancho. - Veja,
senhor, que aqueles são frades de São Bento, e o coche deve ser de
alguma gente passageira. Veja que digo que veja bem o que faz, não
seja o diabo que o engane.
- Já te disse, Sancho - respondeu dom Quixote, - que sabes pouco
em matéria de aventuras; o que eu digo é verdade, e agora o verás.
E, dizendo isto, adiantou-se e se pôs no meio do caminho por onde
os frades vinham, e, chegando tão perto que a ele pareceu que podiam
ouvir o que dissesse, em alta voz disse:
- Gente endiabrada e descomunal, deixai imediatamente as altas
princesas que nesse coche levais forçadas; se não, aparelhai-vos para
receber pronta morte, por justo castigo de vossas más obras.
Detiveram os frades as rédeas, e ficaram admirados, assim da
figura de dom Quixote como de suas razões, às quais responderam:
- Senhor cavaleiro, nós não somos endiabrados nem descomunais,
senão dois religiosos de São Bento que vamos em nosso caminho, e não
sabemos se neste coche vêm, ou não, nenhumas forçadas princesas.
- Para mim não há palavras brandas, que já eu vos conheço, enganosa
canalha - disse dom Quixote.
E, sem esperar mais resposta, esporeou Rocinante e, lança baixa,
arremeteu contra o primeiro frade, com tanta fúria e denodo que, se
o frade não se deixasse cair da mula, ele o faria vir ao chão contra sua
vontade, e ainda malferido, se não caísse morto. O segundo religioso,
que viu o modo como tratavam seu companheiro, pôs pernas a quem te
quero à sua boa mula, e começou a correr por aquele campo, mais
ligeiro que o próprio vento.
Sancho Pança, que viu no chão o frade, apeando-se rapidamente de
seu asno, arremeteu a ele e lhe começou a tirar os hábitos. Chegaram
nisto dois moços dos frades e perguntaram-lhe por que o desnudava.
Respondeu-lhes Sancho que aquilo tocava a ele legitimamente, como
despojos da batalha que seu senhor dom Quixote havia ganho. Os
moços, que não sabiam de burlas, nem entendiam aquilo de despojos
nem batalhas, vendo que já dom Quixote estava desviado dali, falando
com as que no coche vinham, arremeteram com Sancho e deram com
ele no chão; e, sem deixar-lhe pelo nas barbas, moeram-no a coices e o
deixaram estendido sem alento nem sentido. E, sem deter-se um
minuto, tornou a subir o frade, todo temeroso e acovardado e sem cor
no rosto; e, quando se viu a cavalo, picou atrás de seu companheiro,
que a um bom espaço dali o estava aguardando, e esperando em que
dava aquele sobressalto; e, sem querer aguardar o fim de todo aquele
começado sucesso, seguiram seu caminho, benzendo-se mais do que se
levassem o diabo nas costas.
Dom Quixote estava, como se disse, falando com a senhora do
coche, dizendo-lhe:
- A vossa formosura, senhora minha, pode fazer de sua pessoa o que
mais lhe der vontade, porque já a soberba de vossos roubadores jaz
no chão, derrubada por este meu forte braço; e, para que não peneis
por saber o nome de vosso libertador, sabei que eu me chamo dom
Quixote da Mancha, cavaleiro andante e aventureiro, e cativo da sem
par e formosa dona Dulcineia do Toboso; e, em pago do benefício que
de mim haveis recebido, não quero outra coisa senão que volvais ao
Toboso, e que de minha parte vos apresenteis ante esta senhora e lhe
digais o que fiz por vossa liberdade.
Tudo isto que dom Quixote dizia escutava um escudeiro dos que o
coche acompanhavam, que era biscainho; o qual, vendo que não queria
deixar passar o coche adiante, senão que dizia que logo havia de dar a
volta ao Toboso, se foi para dom Quixote e, tomando-lhe a lança, lhe
disse, em má língua castelhana e pior biscainha, desta maneira:
- Anda, cavaleiro que mal andes; pelo Deus que criou-me, que, se não
deixas coche, assim te matas como estás aí biscainho.
Entendeu-o muito bem dom Quixote, e com muito sossego lhe
respondeu:
- Se fosses cavaleiro, como não o és, já eu haveria castigado tua
sandice e atrevimento, cativa criatura.
Ao qual replicou o biscainho:
- Eu não cavaleiro? Juro a Deus tão mentes como cristão. Se lança
arrojas e espada sacas, eu água quão depressa verás que ao gato levas!
Biscainho por terra, fidalgo por mar, fidalgo pelo diabo; e mentes que
veja se outra dizes coisa.
- Agora o vereis, disse Agrajes! - respondeu dom Quixote.
E, arrojando a lança ao solo, tirou sua espada e embraçou seu
escudo, e arremeteu ao biscainho com determinação de tirar-lhe a
vida. O biscainho, que assim o viu vir, ainda que quisesse apear-se da
mula, que, por ser das mais de aluguel, não havia que fiar nela, não
pôde fazer outra coisa senão sacar sua espada; mas por sorte se
achou junto ao coche, de onde pôde tomar uma almofada que lhe
serviu de escudo, e logo se foram um para o outro, como se fossem
dois mortais inimigos. A demais gente quis pô-los em paz, mas não
pôde, porque dizia o biscainho em suas mal travadas razões que se não
o deixassem acabar sua batalha, que ele mesmo havia de matar sua
ama e toda a gente que o estorvasse. A senhora do coche, admirada e
temerosa do que via, fez ao cocheiro que se desviasse dali algum
pouco, e desde longe se pôs a olhar a rigorosa contenda, no curso da
qual deu o biscainho uma grande cutilada em dom Quixote em um
ombro, por cima da escudo, que, a dar-lha sem defesa, o abriria até a
cintura. Dom Quixote, que sentiu o peso daquele desaforado golpe,
deu uma grande voz, dizendo:
- Oh senhora de minha alma, Dulcineia, flor da formosura, socorrei
a este vosso cavaleiro, que, por satisfazer à vossa muita bondade,
neste rigoroso transe se acha!
O dizer isto, e o apertar a espada, e o cobrir-se bem com seu
escudo, e o arremeter ao biscainho, tudo foi em um tempo, levando
determinação de aventurar tudo de um golpe só.
O biscainho, que assim o viu vir contra ele, bem entendeu por seu
denodo sua coragem, e determinou de fazer o mesmo que dom
Quixote; e assim, aguardou-o bem coberto por sua almofada, sem
poder rodear a mula a uma nem a outra parte; que ela, de puro cansada
e não feita para semelhantes travessuras, não podia dar um passo.
Vinha, pois, como se disse, dom Quixote contra o cauto biscainho,
com a espada no alto, com determinação de abri-lo ao meio, e o
biscainho o aguardava também levantada a espada e forrado com sua
almofada, e todos os circunstantes estavam temerosos e transidos do
que havia de suceder daqueles tamanhos golpes com que se
ameaçavam; e a senhora do coche e as demais criadas suas estavam
fazendo mil votos e oferecimentos a todas as imagens e casas de
devoção da Espanha, para que Deus livrasse a seu escudeiro e a elas
daquele tão grande perigo em que se achavam.
Mas está o dano de tudo isto que neste ponto e término deixa
pendente o autor desta história esta batalha, desculpando-se que não
achou mais escrito destas façanhas de dom Quixote das que deixa
referidas. Bem é verdade que o segundo autor desta obra não quis
crer que tão curiosa história estivesse entregue às leis do olvido, nem
que houvessem sido tão pouco curiosos os engenhos da Mancha que não
tivessem em seus arquivos ou em seus escritórios alguns papéis que
deste famoso cavaleiro tratassem; e assim, com este pensamento, não
se desesperou de achar o fim desta aprazível história, a qual, sendo-
lhe o céu favorável, a achou do modo que se contará na segunda parte.

CAPÍTULO IX

Onde se conclui e dá fim à estupenda batalha que o


galhardo biscainho e o valente manchego tiveram

Deixamos na primeira parte desta história o valoroso biscainho e o


famoso dom Quixote com as espadas altas e desnudas, a ponto de
descarregar dois furibundos golpes fendentes, tais que, se em cheio
acertassem, pelo menos dividiriam e fenderiam de acima abaixo e
abririam como uma granada; e que naquele ponto tão duvidoso parou e
ficou destroncada tão saborosa história, sem que nos desse notícia
seu autor onde se podia achar o que dela faltava.
Causou-me isto muita tristeza, porque o gosto de haver lido tão
pouco se volvia em desgosto, de pensar o mau caminho que se oferecia
para achar o muito que, a meu parecer, faltava de tão saboroso conto.
Pareceu-me coisa impossível e fora de todo bom costume que a tão
bom cavaleiro lhe houvesse faltado algum mago que tomara a cargo o
escrever suas nunca vistas façanhas, coisa que não faltou a nenhum
dos cavaleiros andantes,
dos que dizem as gentes
que vão a suas aventuras,

porque cada um deles tinha um ou dois autores a seu dispor, que não
somente escreviam seus feitos, senão que pintavam seus mais mínimos
pensamentos e ninharias, por mais escondidas que fossem; e não havia
de ser tão desditado tão bom cavaleiro, que faltasse a ele o que
sobrou a Platir e a outros semelhantes. E assim, não podia inclinar-me
a crer que tão galharda história houvesse ficado manca e estropiada;
e punha culpa na malignidade do tempo, devorador e consumidor de
todas as coisas, o qual ou a tinha ocultado ou consumido.
Por outro lado, me parecia que, pois entre seus livros se haviam
achado tão modernos como Desengano de zelos e Ninfas e pastores
de Henares, que também sua história devia ser moderna; e que, já que
não estivesse escrita, estaria na memória da gente de sua aldeia e das
a ela circunvizinhas. Este pensamento me trazia confuso e desejoso de
saber, real e verdadeiramente, toda a vida e milagres de nosso famoso
espanhol dom Quixote da Mancha, luz e espelho da cavalaria
manchega, e o primeiro que em nossa idade e nestes tão calamitosos
tempos se pôs ao trabalho e exercício das andantes armas, e ao
desfazer agravos, socorrer viúvas, amparar donzelas, daquelas que
andavam com seus açoites e palafréns, e com toda sua virgindade por
sua conta, de monte em monte e de vale em vale; que, se não era que
algum vagabundo, ou algum vilão de machado e armadura de cabeça, ou
algum descomunal gigante as forçava, donzela houve nos passados
tempos que, ao cabo de oitenta anos, em todos eles não dormiu um dia
debaixo de telhado, e se foi tão inteira à sepultura como a mãe que a
havia parido. Digo, pois, que, por estes e outros muitos respeitos, é
digno nosso galhardo Quixote de contínuos e memoráveis louvores; e
ainda a mim não se me devem negar, pelo trabalho e diligência que pus
em buscar o fim desta agradável história; ainda que bem sei que se o
céu, o acaso e a fortuna não me ajudam, o mundo ficará falto e sem o
passatempo e gosto que bem quase duas horas poderá ter o que ler
com atenção. Passou-se, pois, o encontrá-la desta maneira:
Estando eu um dia no Alcaná de Toledo, chegou um rapaz para
vender uns cartapácios e papéis velhos a um mercador de sedas; e,
como eu sou aficionado por ler, ainda que sejam os papéis rasgados
das ruas, levado desta minha natural inclinação, tomei um cartapácio
dos que o rapaz vendia, e o vi com caracteres que conheci ser
arábicos. E, posto que, ainda que os conhecia, não os sabia ler, estive
olhando se aparecia por ali algum mourisco falante de castelhano que
os lesse; e não foi muito dificultoso achar intérprete semelhante,
pois, ainda que o buscasse de outra melhor e mais antiga língua, o
acharia. Enfim, a sorte me deparou um, que, dizendo-lhe meu desejo e
pondo-lhe o livro nas mãos, abriu-o ao meio, e, lendo um pouco nele,
começou a rir.
Perguntei-lhe eu que de que se ria, e respondeu-me que de uma
coisa que tinha aquele livro escrita na margem por anotação. Disse-lhe
que ma dissesse; e ele, sem deixar a riso, disse:
- Está, como disse, aqui na margem escrito isto: "Esta Dulcineia do
Toboso, tantas vezes nesta história referida, dizem que teve a melhor
mão para salgar porcos que outra mulher de toda a Mancha".
Quando eu ouvi dizer "Dulcineia do Toboso", fiquei atônito e
suspenso, porque logo se me representou que aqueles cartapácios
continham a história de dom Quixote. Com este pensamento, apressei-
o a que lesse o princípio, e, fazendo assim, transpondo de improviso o
arábico para o castelhano, disse que dizia: História de dom Quixote
da Mancha, escrita por Cide Hamete Benengeli, historiador arábico.
Muita discrição foi precisa para dissimular a alegria que tive quando
chegou a meus ouvidos o título do livro; e, acometendo ao sedeiro,
comprei ao rapaz todos os papéis e cartapácios por meio real; que, se
ele tivesse discrição e soubesse o quanto eu os desejava, bem se
poderia prometer e levar mais de seis reais da compra. Apartei-me
logo com o mourisco pelo claustro da igreja maior, e roguei-lhe me
traduzisse aqueles cartapácios, todos os que tratavam de dom
Quixote, em língua castelhana, sem tirar-lhes nem acrescentar-lhes
nada, oferecendo-lhe a paga que ele quisesse. Contentou-se com duas
arrobas de passas e oito alqueires de trigo, e prometeu traduzi-los
bem e fielmente e com muita brevidade. Mas eu, por facilitar mais o
negócio e por não deixar de mão tão bom achado, trouxe-o a minha
casa, onde em pouco mais de mês e meio a traduziu toda, do mesmo
modo que aqui se refere.
Estava no primeiro cartapácio, pintada muito ao natural, a batalha
de dom Quixote com o biscainho, postos na mesma postura que a
história conta, levantadas as espadas, um coberto por seu escudo, o
outro pela almofada, e a mula do biscainho tão ao vivo, que estava
mostrando ser de aluguel a um tiro de besta. Tinha aos pés escrito o
biscainho um título que dizia: “dom Sancho de Azpetia”, que, sem
dúvida, devia ser seu nome, e aos pés de Rocinante estava outro que
dizia: “dom Quixote”. Estava Rocinante maravilhosamente pintado, tão
largo e estendido, tão extenuado e magro, com tanto espinhaço, tão
confirmadamente tísico, que mostrava bem claramente com quanta
advertência e propriedade se lhe havia posto o nome de “Rocinante”.
Junto a ele estava Sancho Pança, que tinha pelo cabresto seu asno,
aos pés do qual estava outra legenda que dizia: “Sancho Ancas”, e
devia ser que tinha, ao que mostrava a pintura, a barriga grande, o
talhe curto e as ancas largas; e por isto se deveu de pôr-lhe nome de
“Pança” e de “Ancas”, que com estes dois sobrenomes o chama algumas
vezes a história. Outras algumas minudências havia que advertir, mas
todas são de pouca importância e que não vêm ao caso à verdadeira
relação da história; que nenhuma é má como seja verdadeira.
Se a esta se pode pôr alguma objeção acerca de sua verdade, não
poderá ser outra senão haver sido seu autor arábico, sendo muito
próprio dos daquela nação ser mentirosos; ainda que, por ser tão
nossos inimigos, antes se pode entender haver escasseado nela que
sobejado. E assim me parece a mim, pois, quando pudera e devera
estender a pena nos louvores a tão bom cavaleiro, parece que por
indústria os passa em silêncio: coisa mal feita e pior pensada, havendo
e devendo ser os historiadores pontuais, verdadeiros e nada
apaixonados, e que nem o interesse nem o medo, o rancor nem a
afeição, não lhes façam torcer do caminho da verdade, cuja mãe é a
história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado,
exemplo e aviso do presente, advertência do porvir. Nesta sei que se
achará tudo o que se acertar a desejar na mais aprazível; e se algo
bom nela faltar, para mim tenho que foi por culpa do galgo de seu
autor, antes que por falta do sujeito. Enfim, sua segunda parte,
seguindo a tradução, começava desta maneira:
Postas e levantadas ao alto as cortadoras espadas dos dois
valorosos e raivosos combatentes, não parecia senão que estavam
ameaçando o céu, a terra e o abismo: tal era o denodo e objetivo que
tinham. E o primeiro que descarregou o golpe foi o colérico biscainho,
o qual foi dado com tanta força e tanta fúria que, a não desviar-se a
espada no caminho, aquele único golpe seria bastante para dar fim à
sua rigorosa contenda e a todas as aventuras de nosso cavaleiro; mas
a boa sorte, que para maiores coisas o tinha guardado, torceu a
espada de seu contrário, de modo que, ainda que lhe acertou no ombro
esquerdo, não lhe fez outro dano que desarmar-lhe todo aquele lado,
levando-lhe de roldão grande parte do elmo, com a metade da orelha;
que tudo aquilo com espantosa ruína veio por terra, deixando-o muito
maltratado.
Valha-me Deus, e quem será aquele que boamente possa contar
agora a raiva que entrou no coração de nosso manchego, vendo-se
parar daquela maneira! Não se diga mais, senão que foi de maneira que
se alçou de novo nos estribos, e, apertando mais a espada nas duas
mãos, com tal fúria descarregou sobre o biscainho, acertando-lhe de
cheio sobre a almofada e sobre a cabeça, que, sem ser parte tão boa
defesa, como se caísse sobre ele uma montanha, começou a soltar
sangue pelo nariz, e pela boca e pelos ouvidos, e a dar mostras de cair
da mula abaixo, de onde cairia, sem dúvida, se não se abraçasse com o
pescoço; mas, mesmo assim, tirou os pés dos estribos e logo soltou os
braços; e a mula, espantada pelo terrível golpe, deu a correr pelo
campo, e em poucos corcovos deu com seu dono em terra.
Estava com muito sossego olhando-o dom Quixote e, ao vê-lo cair,
saltou de seu cavalo e com muita ligeireza se chegou a ele e, pondo-lhe
a ponta da espada nos olhos, lhe disse que se rendesse; se não, que lhe
cortaria a cabeça. Estava o biscainho tão perturbado que não podia
responder palavra, e ele passaria mal, segundo estava cego dom
Quixote, se as senhoras do coche, que até então com grande desmaio
haviam assistido à pendência, não fossem onde estava e lhe pedissem
com muito encarecimento lhes fizesse tão grande mercê e favor de
perdoar a vida àquele seu escudeiro. Ao que dom Quixote respondeu,
com muito entono e gravidade:
- Por certo, formosas senhoras, eu estou muito contente de fazer o
que me pedis; mas há de ser com uma condição e concerto, e é que
este cavaleiro me há de prometer de ir ao lugar do Toboso e
apresentar-se de minha parte ante a sem par dona Dulcineia, para que
ela faça dele o que mais for de sua vontade.
A temerosa e desconsolada senhora, sem entrar em conta do que
dom Quixote pedia, e sem perguntar quem Dulcineia fosse, lhe
prometeu que o escudeiro faria tudo aquilo que de sua parte lhe fosse
mandado.
- Pois em fé dessa palavra eu não lhe farei mais dano, posto que o
tinha bem merecido.

CAPÍTULO X

Do que mais aconteceu a dom Quixote com o biscainho e do perigo


em que se viu com uma caterva de galegos

Já neste tempo se havia levantado Sancho Pança, algo maltratado


pelos moços dos frades, e havia estado atento à batalha de seu senhor
dom Quixote, e rogava a Deus em seu coração fosse servido de dar-
lhe vitória e que nela ganhasse alguma ilha de que o fizesse
governador, como lhe havia prometido. Vendo, pois, já acabada a
pendência, e que seu amo voltava a subir sobre Rocinante, chegou-se
para segurar-lhe o estribo; e antes que subisse ficou de joelhos
diante dele e, tomando-lhe da mão, beijou-a e lhe disse:
- Seja vossa mercê servido, senhor dom Quixote meu, de dar-me o
governo da ilha que nesta rigorosa pendência se ganhou; que, por
grande que seja, eu me sinto com forças de sabê-la governar tal e tão
bem como outro que tem governado ilhas no mundo.
Ao qual respondeu dom Quixote:
- Adverti, irmão Sancho, que esta aventura e as a esta semelhantes
não são aventuras de ilhas, senão de encruzilhadas, nas quais não se
ganha outra coisa que ter quebrada a cabeça ou uma orelha menos.
Tende paciência, que aventuras se oferecerão onde não somente vos
possa fazer governador, senão mais alto.
Agradeceu-lhe muito Sancho e, beijando-lhe outra vez a mão e a
fralda da cota de armas, ajudou-o a subir sobre Rocinante; e ele subiu
sobre seu asno e começou a seguir seu senhor, que, a passo estirado,
sem despedir-se nem falar mais com as do coche, entrou por um
bosque que ali junto estava. Seguia-o Sancho a todo o trote de seu
jumento, mas caminhava tanto Rocinante que, vendo-se ficar atrás,
foi-lhe forçoso dar vozes a seu amo que aguardasse. Fê-lo assim dom
Quixote, puxando as rédeas a Rocinante até que chegasse seu cansado
escudeiro, o qual, ao chegar, disse-lhe:
- Parece-me, senhor, que seria acertado ir-nos refugiar em alguma
igreja; que, como ficou maltratado aquele com quem vós combatestes,
não será muito que deem notícia do caso à Santa Irmandade e nos
prendam; e à fé que se o fazem, que antes que saiamos do cárcere nos
há de suar o topete.
- Cala - disse dom Quixote. - E onde viste, ou leste jamais, que
cavaleiro andante tenha sido posto ante a justiça, por mais homicídios
que houvesse cometido?
- Eu não sei nada de omecilhos - respondeu Sancho, - nem em minha
vida catei nenhum; só sei que a Santa Irmandade tem que ver com os
que lutam no campo, e nesse outro não me intrometo.
- Pois não tenhas pena, amigo - respondeu dom Quixote, - que eu te
tirarei das mãos dos caldeus, quanto mais das da Irmandade. Mas diz-
me, por tua vida: tens visto mais valoroso cavaleiro que eu em todo o
descoberto da terra? Tens lido em histórias outro que tenha nem
tenha tido mais brio em acometer, mais alento no perseverar, mais
destreza no ferir, nem mais manha no derrubar?
- A verdade é - respondeu Sancho - que eu não li nenhuma história
jamais, porque nem sei ler nem escrever; mas o que ousarei apostar é
que mais atrevido amo que vossa mercê eu não tenho servido em todos
os dias de minha vida, e queira Deus que estes atrevimentos não se
paguem onde tenho dito. O que rogo a vossa mercê é que se cure, que
lhe sai muito sangue dessa orelha; que aqui trago gazes e um pouco de
unguento branco nos alforjes.
- Tudo isso seria bem escusado - respondeu dom Quixote - se a mim
se me recordasse de fazer uma redoma do bálsamo de Ferrabrás, que
com só uma gota se poupariam tempo e medicinas.
- Que redoma e que bálsamo é esse? - disse Sancho Pança.
- É um bálsamo - respondeu dom Quixote - de que tenho a receita
na memória, com o qual não há que ter temor à morte, nem há pensar
morrer de ferida alguma. E assim, quando eu o faça e te dê, não tens
mais que fazer senão que, quando vires que em alguma batalha me
partiram ao meio o corpo, como muitas vezes costuma acontecer, com
cuidado a parte do corpo que houver caído no solo, e com muita
sutileza, antes que o sangue gele, o porás sobre a outra metade que
ficar na sela, advertindo de encaixá-lo igualmente e ao justo; logo me
darás a beber só dois tragos do bálsamo que disse, e ver-me-ás ficar
mais são que uma maçã.
- Se isso há - disse Pança, - eu renuncio desde aqui o governo da
prometida ilha, e não quero outra coisa, em paga de meus muitos e
bons serviços, senão que vossa mercê me dê a receita desse
extremado licor; que para mim tenho que valerá a onça ao menos mais
que dois reais, e não preciso eu mais para passar esta vida honrada e
descansadamente. Mas é de saber agora se tem muito custo o fazê-lo.
- Com menos de três reais se podem fazer seis litros - respondeu
dom Quixote.
- Pecador de mim! - replicou Sancho. - Pois que aguarda vossa mercê
para fazê-lo e me ensiná-lo?
- Cala, amigo - respondeu dom Quixote, - que maiores segredos
penso ensinar-te e maiores mercês fazer-te; e, por agora, curemo-
nos, que a orelha me dói mais do que eu quisera.
Tirou Sancho dos alforjes gazes e unguento. Mas, quando dom
Quixote viu partido seu elmo, pensou perder o juízo, e, posta a mão na
espada e alçando os olhos ao céu, disse:
- Eu faço juramento ao Criador de todas as coisas e aos santos
quatro Evangelhos, onde mais largamente estão escritos, de fazer a
vida que fez o grande marquês de Mântua quando jurou vingar a morte
de seu sobrinho Valdovinos, que foi de não comer pão em toalha, nem
com sua mulher folgar, e outras coisas que, ainda que delas não me
recordo, dou-as aqui por expressadas, até tomar inteira vingança do
que tal descortesia me fez.
Ouvindo isto Sancho, disse-lhe:
- Advirta vossa mercê, senhor dom Quixote, que se o cavaleiro
cumpriu o que se lhe deixou ordenado de ir-se apresentar ante minha
senhora Dulcineia do Toboso, já haverá cumprido com o que devia, e
não merece outra pena se não comete novo delito.
- Falaste e apontaste muito bem - respondeu dom Quixote; - e
assim, anulo o juramento quanto ao que toca a tomar dele nova
vingança; mas faço-lhe e confirmo-lhe de novo de fazer a vida que
disse, até que tire por força outro elmo tal e tão bom como este a
algum cavaleiro. E não penses, Sancho, que assim por fogo de palha
faço isto, que bem tenho a quem imitar nele; que isto mesmo passou,
ao pé da letra, sobre o elmo de Mambrino, que tão caro custou a
Sacripante.
- Que dê ao diabo vossa mercê tais juramentos, senhor meu -
replicou Sancho; - que são muito em dano da saúde e muito em
prejuízo da consciência. Se não, diga-me agora: se acaso em muitos
dias não topamos homem armado com elmo, que havemos de fazer?
Há-se de cumprir o juramento, a despeito de tantos inconvenientes e
incomodidades, como será o dormir vestido, e o não dormir em
povoado, e outras mil penitências que continha o juramento daquele
louco velho do marquês de Mântua, que vossa mercê quer revalidar
agora? Veja vossa mercê bem, que por todos estes caminhos não
andam homens armados, senão arreeiros e carreteiros, que não só não
trazem elmos, mas quiçá não os ouviram nomear em todos os dias de
sua vida.
- Enganaste-te nisso - disse dom Quixote, - porque não haveremos
estado duas horas por estas encruzilhadas, quando vejamos mais
armados que os que vieram sobre Albraca para a conquista de Angélica
a Bela.
- Alto, pois; seja assim - disse Sancho, - e a Deus praza que nos
suceda bem, e que se chegue já o tempo de ganhar esta ilha que tão
cara me custa, e morra eu logo.
- Já te disse, Sancho, que não te dê isso cuidado algum; que, quando
faltar ilha, aí está o reino de Dinamarca ou o de Sobradisa, que te
virão como anel ao dedo; e mais, que, por ser em terra firme, te deves
mais alegrar. Mas deixemos isto para seu tempo, e veja se trazes algo
nesses alforjes que comamos, porque vamos logo em busca de algum
castelo onde nos alojemos esta noite e façamos o bálsamo que te
disse; porque eu te voto a Deus que me vai doendo muito a orelha.
- Aqui trago uma cebola e um pouco de queijo, e não sei quantos
nacos de pão dormido - disse Sancho, - mas não são manjares que
pertencem a tão valente cavaleiro como vossa mercê.
- Que mal o entendes! - respondeu dom Quixote. - Faço-te saber,
Sancho, que é honra dos cavaleiros andantes não comer em um mês; e,
já que comam, seja daquilo que acharem mais à mão; e isto te seria
certo se houvesses lido tantas histórias como eu; que, ainda que
tenham sido muitas, em todas elas não achei feita relação de que os
cavaleiros andantes comessem, se não era acaso e nalguns suntuosos
banquetes que lhes faziam, e os demais dias os passavam à custa de
flores. E, ainda que se deixa entender que não podiam passar sem
comer e sem fazer todas as outros precisões naturais, porque, com
efeito, eram homens como nós, há de entender-se também que,
andando o mais do tempo de sua vida pelas florestas e despovoados, e
sem cozinheiro, que sua mais ordinária comida fosse de viandas
rústicas, tais como as que tu agora me ofereces. Assim que, Sancho
amigo, não te angusties com o que a mim me dá gosto. Nem quererás
tu fazer mundo novo, nem tirar a cavalaria andante de seus eixos.
- Perdoe-me vossa mercê - disse Sancho; - que, como eu não sei ler
nem escrever, como outra vez disse, não sei nem caí nas regras da
profissão cavaleiresca; e daqui por diante eu proverei as alforjes de
todo gênero de fruta seca para vossa mercê, que é cavaleiro, e para
mim as proverei, pois não o sou, de outras coisas voláteis e de mais
substância.
- Não digo eu, Sancho - replicou dom Quixote, - que seja forçoso
aos cavaleiros andantes não comer outra coisa senão essas frutas que
dizes, senão que seu mais ordinário sustento devia de ser delas, e de
algumas ervas que achavam pelos campos, que eles conheciam e eu
também conheço.
- Virtude é - respondeu Sancho - conhecer essas ervas; que,
segundo eu vou imaginando, algum dia será preciso usar desse
conhecimento.
E tirando nisto o que disse que trazia, comeram os dois em boa paz
e companhia. Mas, desejosos de buscar onde se alojar aquela noite,
acabaram com muita brevidade sua pobre e seca comida. Subiram logo
a cavalo, e apressaram-se por chegar a povoado antes que
anoitecesse; mas faltou-lhes o sol, e a esperança de alcançar o que
desejavam, junto a umas choças de uns cabreiros, e assim,
determinaram de passá-la ali; que quanto foi de pesar para Sancho não
chegar a povoado, foi de alegria para seu amo dormi-la ao céu
descoberto, por parecer-lhe que cada vez que isto lhe sucedia era
fazer um ato possessivo que facilitava a prova de sua cavalaria.

CAPÍTULO XI

Do que sucedeu a dom Quixote com uns cabreiros

Foi acolhido pelos cabreiros com bom ânimo, e, havendo Sancho o


melhor que pôde acomodado a Rocinante e a seu jumento, foi atrás do
odor que desprendiam de si certas postas de cabra que estavam
fervendo ao fogo num caldeirão; e, embora ele quisesse naquele
mesmo instante ver se estava na hora de trasladá-las do caldeirão ao
estômago, deixou de fazê-lo, porque os cabreiros as tiraram do fogo,
e, estendendo no chão umas peles de ovelhas, prepararam com muita
pressa sua rústica mesa e convidaram os dois, com mostras de muito
boa vontade, para o que tinham. Sentaram-se ao redor das peles seis
deles, que eram os que estavam no redil, havendo primeiro com
grosseiras cerimônias rogado a Dom Quixote que se sentasse sobre
um cocho que virado de borco lhe puseram. Sentou-se Dom Quixote, e
estava Sancho em pé para servir-lhe a taça, que era feita de chifre.
Vendo-o em pé seu amo, disse-lhe:
- Para que vejas, Sancho, o bem que em si encerra a andante
cavalaria, e quão a pique estão os que em qualquer ministério dela se
exercitam de vir brevemente a ser honrados e estimados do mundo,
quero que aqui a meu lado e em companhia desta boa gente te sentes,
e que sejas uma mesma coisa comigo, que sou teu amo e natural
senhor; que comas em meu prato e bebas onde eu beber; porque da
cavalaria andante se pode dizer o mesmo que do amor se diz: que
todas as coisas iguala.
- Grande mercê! - disse Sancho; - mas sei dizer a vossa mercê que,
quando eu tivesse o que comer, tão bem e melhor o comeria em pé e
sozinho que sentado ao lado de um imperador. E ainda, para dizer a
verdade, muito melhor me sabe o que como em meu rincão, sem
melindres nem respeitos, embora seja pão e cebola, que os perus de
outras mesas onde me seja forçoso mastigar devagar, beber pouco,
limpar-me amiúde, não espirrar nem tossir se me dá vontade, nem
fazer outras coisas que a solidão e a liberdade trazem consigo. Assim
que, senhor meu, estas honras que vossa mercê quer dar-me por ser
serviçal e adjunto da cavalaria andante, como o sou sendo escudeiro
de vossa mercê, converta-as em outras coisas que me sejam de mais
cômodo e proveito; que estas, embora as dê por bem recebidas,
renuncio a elas daqui ao fim do mundo.
- Desse modo, hás de sentar-te; porque a quem se humilha, Deus o
exalta.
E tomando-o pelo braço, forçou-o a que junto dele se sentasse.
Não entendiam os cabreiros aquela geringonça de escudeiros e de
cavaleiros andantes, e não faziam outra coisa senão comer e calar, e
olhar para seus hóspedes, que, com muito donaire e gana, devoravam
pedaços do tamanho de um punho. Acabado o serviço de carne,
estenderam sobre as peles grande quantidade de bolotas avelanadas,
e juntamente puseram um meio queijo, mais duro que se fosse feito de
argamassa. Não estava, nisto, ocioso o chifre, porque andava ao redor
tão amiúde, já cheio, já vazio, como alcatruz de engenho, que com
facilidade esvaziou um odre dos que estavam à vista. Depois que Dom
Quixote teve bem satisfeito seu estômago, tomou um punho de
bolotas na mão, e, olhando-as atentamente, soltou a voz com estas
razões:
- Ditosa idade e séculos ditosos aqueles a quem os antigos puseram
nome de dourados, e não porque neles o ouro, que nesta nossa idade de
ferro tanto se estima, se alcançasse naquela venturosa sem fadiga
alguma, senão porque então os que nela viviam ignoravam estas duas
palavras de teu e meu. Eram naquela santa idade todas as coisas
comuns; a ninguém era necessário, para alcançar seu ordinário
sustento, tomar outro trabalho senão alçar a mão e alcançá-las das
robustas azinheiras, que liberalmente os estavam convidando com seu
doce e sazonado fruto. As claras fontes e correntes rios, em
magnífica abundância, saborosas e transparentes águas lhes
ofereciam. Nas fendas dos penhascos e no oco das árvores formavam
sua república as solícitas e discretas abelhas, oferecendo a qualquer
mão, sem interesse algum, a fértil colheita de seu dulcíssimo trabalho.
Os valentes sobreiros despediam de si, sem outro artifício que o de
sua cortesia, suas largas e leves cortiças, com que se começaram a
cobrir as casas, sobre rústicas estacas sustentadas, não mais que para
defesa das inclemências do céu. Tudo era paz então, tudo amizade,
tudo concórdia; ainda não se havia atrevido a pesada grade do curvo
arado a abrir nem visitar as entranhas piedosas de nossa primeira
mãe, que ela, sem ser forçada, oferecia, por todas as partes de seu
fértil e espaçoso seio, o que pudesse fartar, sustentar e deleitar aos
filhos que então a possuíam. Então sim que andavam as simples e
formosas garotinhas de vale em vale e de outeiro em outeiro, de
trança e em cabelo, sem mais vestidos que aqueles que eram mister
para cobrir honestamente o que a honestidade quer e quis sempre que
se cubra; e não eram seus adornos dos que agora se usam, a quem a
púrpura de Tiro e a por tantos modos martirizada seda encarecem,
senão de algumas folhas verdes de bardanas e hera entretecidas, com
o que quiçá iam tão pomposas e compostas como vão agora nossas
cortesãs com as raras e peregrinas invenções que a curiosidade ociosa
lhes mostrou. Então se aprendiam os conceitos amorosos da alma
simples e singelamente, do mesmo modo e maneira que ela os concebia,
sem buscar artificioso rodeio de palavras para encarecê-los. Não
havia a fraude, o engano nem a malícia mesclado-se com a verdade e
lhaneza. A justiça estava em seus próprios termos, sem que a
ousassem turbar nem ofender os do favor e os do interesse, que tanto
agora a menoscabam, perturbam e perseguem. A lei do arbítrio ainda
não se havia assentado no entendimento do juiz, porque então não
havia o que julgar, nem quem fosse julgado. As donzelas e a
honestidade andavam, como tenho dito, por toda a parte, sós e
senhoras, sem temor que a alheia desenvoltura e lascivo intento as
menoscabassem, e sua perdição nascia de seu gosto e própria vontade.
E agora, nestes nossos detestáveis séculos, não está segura nenhuma,
embora a oculte e cerre outro novo labirinto como o de Creta; porque
ali, pelos resquícios ou pelo ar, com o hábito da maldita solicitação,
entra-se-lhes a amorosa pestilência e lhes faz passar com todo seu
recolhimento ao opróbrio. Para cuja segurança, andando mais os
tempos e crescendo mais a malícia, instituiu-se a ordem dos cavaleiros
andantes, para defender as donzelas, amparar as viúvas e socorrer os
órfãos e os necessitados. Desta ordem sou eu, irmãos cabreiros, a
quem agradeço o agasalho e bom acolhimento que fazeis a mim e a meu
escudeiro; que, embora por lei natural estão todos os que vivem
obrigados a favorecer aos cavaleiros andantes, todavia, por saber que
sem saber vós esta obrigação me acolhestes e regalastes, é razão que,
com a vontade a mim possível, agradeça-vos à vossa.
Toda esta longa arenga (que se poderia muito bem evitar) disse
nosso cavaleiro porque as bolotas que lhe deram lhe trouxeram à
memória a idade dourada e desejou fazer aquele inútil arrazoado aos
cabreiros, que, sem responder-lhe palavra, embasbacados e suspensos,
estiveram-no escutando. Sancho calava e comia bolotas, e visitava
muito amiúde o segundo odre, que, para que se esfriasse o vinho,
tinham-no pendurado a um sobreiro.
Mais tardou em falar Dom Quixote que em acabar-se o jantar; ao
fim do qual um dos cabreiros disse:
- Para que com mais veras possa vossa mercê dizer, senhor cavaleiro
andante, que o agasalhamos com pronta e boa vontade, queremos dar-
lhe diversão e alegria ao fazer que cante um companheiro nosso que
não tardará muito em estar aqui; o qual é um zagal muito entendido e
muito enamorado, e que, sobretudo, sabe ler e escrever e é músico de
uma rabeca, que não há mais que desejar.
Apenas havia o cabreiro acabado de dizer isto, quando chegou a
seus ouvidos o som da rabeca, e dali a pouco chegou o que a tangia, que
era um moço de até vinte e dois anos, de muito boa graça.
Perguntaram-lhe seus companheiros se havia jantado, e, respondendo
que sim, o que havia feito os oferecimentos lhe disse:
- Dessa maneira, Antônio, bem poderás dar-nos o prazer de cantar
um pouco, porque veja este senhor hóspede que temos que também
pelos montes e selvas há quem saiba de música. Falamos-lhe de tuas
boas habilidades, e desejamos que as mostres e nos tornes
verdadeiros; e assim, rogo-te por tua vida que te sentes e cantes o
romance de teus amores que te compôs o beneficiado teu tio, que na
vila agradou muito.
- Com prazer - respondeu o moço.
E sem fazer-se mais rogar, sentou-se no tronco liso de uma
azinheira e, temperando sua rabeca, dali a pouco, com muito boa
graça, começou a cantar, dizendo desta maneira:

ANTÔNIO

- Eu sei, Olália, que me adoras,


embora não mo disseste
nem com os olhos sequer,
mudas línguas de namoricos.
Porque sei que sabes,
que me queres afirmo;
que nunca foi desditado
amor que foi conhecido.
Bem é verdade que talvez,
Olália, me deste indício
que tens de bronze a alma
e o branco peito de pedra.
Mas lá entre teus reproches
e honestíssimos desvios,
talvez a esperança mostra
a orla de seu vestido.
Abalança-se à armadilha
minha fé, que nunca pôde,
nem minguar por não chamada,
nem crescer por escolhida.
Se o amor é cortesia,
da que tens presumo
que o fim de minhas esperanças
há de ser qual imagino.
E se são serviços parte
de fazer um peito benigno,
alguns dos que fiz
fortalecem meu partido.
Porque se olhaste nele,
mais de uma vez haverás visto
que me vesti às segundas
o que me honrava o domingo.
Como o amor e a gala
andam um mesmo caminho,
em todo tempo a teus olhos
quis mostrar-me polido.
Deixo o bailar por tua causa,
nem as músicas te mostro
que escutaste a desoras
e ao canto do primeiro galo.
Não conto as louvações
que de tua beleza disse;
que, embora verdadeiras, fazem
ser eu de algumas malquisto.
Teresa do Berrocal,
eu louvando-te, me disse:
“Tal pensa que adora um anjo,
e vem a adorar um símio;
mercê aos muitos ditos
e aos cabelos postiços,
e a hipócritas formosuras,
que enganam ao Amor mesmo”.
Desmenti-a e zangou-se;
veio por ela seu primo:
desafiou-me, e já sabes
o que eu fiz e ele fez.
Não te quero eu de montão,
nem te pretendo e te sirvo
para mancebia;
que melhor é meu desígnio.
Conjuntas tem a Igreja
que são laçadas de seda;
põe tu o pescoço na canga;
verás como ponho o meu.
Se não, daqui juro,
pelo santo mais bendito,
não sair destas serras
senão para capuchinho.

Com isto deu o cabreiro fim a seu canto; e, embora Dom Quixote
lhe rogou que algo mais cantasse, não o consentiu Sancho Pança,
porque estava mais para dormir que para ouvir canções. E assim, disse
a seu amo:
- Bem pode vossa mercê acomodar-se desde logo onde há de pousar
esta noite, que o trabalho que estes bons homens têm todo o dia não
permite que passem as noites cantando.
- Já te entendo, Sancho - respondeu-lhe Dom Quixote; - que bem
me está claro que as visitas ao odre pedem mais recompensa de sono
que de música.
- A todos nos sabe bem, bendito seja Deus - respondeu Sancho.
- Não o nego - replicou Dom Quixote, - mas acomoda-te tu onde
quiseres, que os de minha profissão melhor parecem velando que
dormindo. Entretanto, seria bom, Sancho, que me voltes a curar esta
orelha, que me está doendo mais do que é mister.
Fez Sancho o que se lhe mandava; e, vendo um dos cabreiros a
ferida, disse-lhe que não tivesse pena, que ele poria remédio com que
facilmente se curasse. E tomando algumas folhas de alecrim, do muito
que por ali havia, mastigou-as e as misturou com um pouco de sal, e,
aplicando-as à orelha, vedou-a muito bem, assegurando-lhe que não
havia mister outra medicina, e assim foi a verdade.

CAPÍTULO XII

Do que contou um cabreiro aos que estavam com dom Quixote

Estando nisto, chegou outro moço dos que lhes traziam da aldeia as
provisões, e disse:
- Sabeis o que se passa no lugar, companheiros?
- Como o podemos saber? - respondeu um deles.
- Pois sabei - prosseguiu o moço - que morreu esta manhã aquele
famoso pastor estudante chamado Grisóstomo, e se murmura que
morreu de amores por aquela endiabrada moça Marcela, a filha de
Guilherme o rico: aquela que anda em hábito de pastora por esses
ermos.
- Por Marcela, dirás - disse um.
- Por essa digo - respondeu o cabreiro. - E o bom é que mandou em
seu testamento que o enterrassem no campo, como se fosse mouro, e
que seja ao pé do penhasco onde está a fonte do sobreiro; porque,
segundo é fama, e ele dizem que o disse, aquele lugar é onde ele a viu a
vez primeira. E também mandou outras coisas, tais, que os abades da
vila dizem que não se hão de cumprir, nem é bem que se cumpram,
porque parecem de gentios. Ao que responde aquele grande seu amigo
Ambrósio, o estudante, que também se vestiu de pastor com ele, que
se há de cumprir tudo, sem faltar nada, como o deixou mandado
Grisóstomo, e sobre isto anda a vila alvoroçada; mas, ao que se diz,
enfim se fará o que Ambrósio e todos os pastores seus amigos
querem; e amanhã o vêm enterrar com grande pompa onde eu disse. E
tenho para mim que há de ser coisa muito de ver; ao menos, eu não
deixarei de ir vê-la, se soubesse não voltar amanhã ao lugar.
- Todos faremos o mesmo - responderam os cabreiros -, e
lançaremos sortes a quem há de ficar a guardar as cabras de todos.
- Bem dizes, Pedro - disse um -, embora não será mister usar dessa
diligência, que eu ficarei por todos. E não o atribuas a virtude e a
pouca curiosidade minha, senão porque não me deixa andar o estrepe
que outro dia me pegou este pé.
- Desse modo, agradecemos-te - respondeu Pedro.
E Dom Quixote rogou a Pedro lhe dissesse que morto era aquele e
que pastora aquela; ao que Pedro respondeu que o que sabia era que o
morto era um fidalgo rico, vizinho de um lugar que estava naquelas
serras, o qual havia sido estudante muitos anos em Salamanca, ao cabo
dos quais havia voltado a seu lugar, com opinião de muito sábio e muito
lido.
- Principalmente, diziam que sabia a ciência das estrelas, e do que
passam, lá no céu, o sol e a lua; porque pontualmente nos dizia o cris
do sol e da lua.
- Eclipse se chama, amigo, que não cris, o escurecer-se esses dois
luminares maiores - disse Dom Quixote.
Mas Pedro, não reparando em ninharias, prosseguiu seu conto,
dizendo:
- Também adivinhava quando havia de ser o ano abundante ou estil.
- Estéril quereis dizer, amigo - disse Dom Quixote.
- Estéril ou estil - respondeu Pedro, - tudo é o mesmo. E digo que
com isto que dizia se fizessem, seu pai e seus amigos, que lhe davam
crédito, muito ricos, porque faziam o que ele lhes aconselhava,
dizendo-lhes: “Semeai este ano cevada, não trigo; neste podeis
semear grão-de-bico e não cevada; o que vem será de boa safra de
azeite; nos três seguintes não se colherá gota.”
- Essa ciência se chama Astrologia - disse Dom Quixote.
- Não sei eu como se chama - replicou Pedro, - mas sei que tudo isto
sabia, e ainda mais. Finalmente, não passaram muitos meses, depois
que veio de Salamanca, quando um dia apareceu vestido de pastor, com
seu cajado e casacão de pele, tendo tirado as vestimentas largas que
como escolar trazia; e juntamente se vestiu com ele de pastor outro
seu grande amigo, chamado Ambrósio, que havia sido seu companheiro
nos estudos. Esquecia-me de dizer como Grisóstomo, o defunto, foi
grande homem de compor versos; tanto, que ele fazia os vilancicos
para a noite do Nascimento do Senhor, e os autos para o dia de Deus,
que os representavam os moços de nossa vila, e todos diziam que eram
perfeitos. Quando os do lugar viram tão de improviso vestidos de
pastores os dois escolares, ficaram admirados, e não podiam adivinhar
a causa que os havia movido a fazer aquela tão estranha mudança. Já
neste tempo havia morrido o pai de nosso Grisóstomo, e ele herdou
muita quantidade de bens, tanto móveis como de raízes, e não pequena
quantidade de gado, maior e menor, e grande quantidade de dinheiros;
de tudo o que ficou o moço senhor absoluto, e em verdade que tudo o
merecia, que era muito bom companheiro e caritativo e amigo dos
bons, e tinha uma cara como uma bênção. Depois se veio a entender
que o haver mudado de traje não havia sido por outra coisa que por
andar por estes despovoados atrás daquela pastora Marcela que nosso
zagal nomeou antes, da qual se havia enamorado o pobre defunto
Grisóstomo. E quero-vos dizer agora, porque é bom que o saibais, quem
é esta moça; quiçá, e mesmo sem quiçá, não havereis ouvido
semelhante coisa em todos os dias de vossa vida, embora vivais mais
anos que sarna.
- Dizei Sara - replicou Dom Quixote, não podendo suportar o trocar
dos vocábulos do cabreiro.
- Muito vive a sarna - respondeu Pedro; - e se é, senhor, que me
haveis de andar alfinetando a cada passo os vocábulos, não
acabaremos num ano.
- Perdoai, amigo - disse Dom Quixote; - por haver tanta diferença
de sarna a Sara é que eu vo-lo disse; mas respondestes muito bem,
porque vive mais sarna que Sara; e prossegui vossa história, que não
vos replicarei mais em nada.
- Digo, pois, senhor meu de minha alma - disse o cabreiro, - que em
nossa aldeia houve um lavrador ainda mais rico que o pai de
Grisóstomo, o qual se chamava Guilherme, e a quem deu Deus, além das
muitas e grandes riquezas, uma filha, de cujo parto morreu a mãe, que
foi a mais honrada mulher que houve em todos estes contornos. Não
parece senão que agora a vejo, com aquela cara que de um lado tinha o
sol e do outro a lua; e, sobretudo, diligente e amiga dos pobres, pelo
que creio que deve estar sua alma a essa hora gozando de Deus no
outro mundo. De pesar da morte de tão boa mulher morreu seu marido
Guilherme, deixando sua filha Marcela, moça e rica, em poder de um
tio seu sacerdote e beneficiado em nosso lugar. Cresceu a menina com
tanta beleza, que nos fazia recordar a de sua mãe, que a teve muito
grande; e, desse modo, julgava-se que a havia de passar a da filha. E
assim foi, que, quando chegou a idade de quatorze a quinze anos,
ninguém a olhava que não bendizia a Deus, que tão formosa a havia
criado, e os mais ficavam enamorados e perdidos por ela. Guardava-a
seu tio com muito recato e com muito encerramento; mas, mesmo
assim, a fama de sua muita formosura se estendeu de maneira que,
assim por ela como por suas muitas riquezas, não somente dos de
nossa vila, senão dos de muitas léguas ao redor, e dos melhores deles,
era rogado, solicitado e importunado seu tio para que a desse por
mulher. Mas ele, que às direitas é bom cristão, embora quisesse casá-
la logo, assim como a via na idade, não quis fazê-lo sem seu
consentimento, sem ter olho aos ganhos e benefícios que lhe oferecia
o ter os bens da moça, dilatando seu casamento. E à fé que se disse
isto em mais de um grupinho na vila, em louvação do bom sacerdote;
que quero que saiba, senhor andante, que nestes lugares pequenos de
tudo se trata e de tudo se murmura; e tende para vós, como eu tenho
para mim, que devia ser demasiadamente bom o clérigo que faz com
que seus paroquianos digam bem dele, especialmente nas aldeias.
- Assim é a verdade - disse Dom Quixote, - e prossegui adiante, que
o conto é muito bom, e vós, bom Pedro, o contais com muito boa graça.
- A do Senhor não me falte, que é a que vem ao caso. E no demais
sabereis que, embora o tio propunha à sobrinha e lhe dizia as
qualidades de cada um em particular, dos muitos que por mulher a
pediam, rogando-lhe que se casasse e escolhesse a seu gosto, jamais
ela respondeu outra coisa senão que por então não queria casar-se, e
que, por ser tão moça, não se sentia hábil para poder levar a carga do
matrimônio. Com estas que dava, ao que parece justas escusas,
deixava o tio de importuná-la, e esperava que entrasse algo mais em
idade e ela soubesse escolher companhia a seu gosto. Porque dizia ele,
e dizia muito bem, que não haviam de dar os pais a seus filhos estado
contra sua vontade. Mas eis que, senão quando, aparece um dia a
melindrosa Marcela feita pastora; e, sem se importar com seu tio nem
com todos os da vila, que o desaconselhavam, deu em ir ao campo com
as demais zagalas do lugar, e deu em guardar seu mesmo gado. E assim
como ela saiu em público e sua formosura se viu a descoberto, não vos
saberei boamente dizer quantos ricos mancebos, fidalgos e lavradores
tomaram o traje de Grisóstomo e a andam adulando por esses campos.
Um dos quais, como já está dito, foi nosso defunto, do qual diziam que
a deixava de querer, para adorá-la. E não se pense que porque Marcela
se pôs naquela liberdade e vida tão solta e de tão pouco ou de nenhum
recolhimento, que por isso tenha dado indício, nem de longe, que venha
em menoscabo de sua honestidade e recato; antes é tanta e tal a
vigilância com que cuida de sua honra, que de quantos a servem e
solicitam nenhum se louvou, nem com verdade se poderá louvar, que
lhe haja dado alguma pequena esperança de alcançar seu desejo. Que,
posto que não foge nem se esquiva da companhia e conversação dos
pastores, e os trata cortês e amigavelmente, chegando a descobrir
sua intenção qualquer deles, embora seja tão justa e santa como a do
matrimônio, arroja-os de si como com um trabuco. E dessa maneira
faz mais dano nesta terra que se por ela entrasse a pestilência;
porque sua afabilidade e formosura atrai os corações dos que com ela
tratam em servi-la e em amá-la, mas seu desdém e desengano os
conduz a desesperar-se; e assim, não sabem que dizer-lhe, senão
chamá-la cruel e desagradecida, com outros títulos a este
semelhantes, que bem a qualidade de sua condição manifestam. E se
aqui estivésseis, senhor, algum dia, veríeis ressoar estas serras e
estes vales com os lamentos dos desenganados que a seguem. Não está
muito longe daqui um sítio onde há quase duas dúzias de altas faias, e
não há nenhuma que em sua lisa cortiça não tenha gravado e escrito o
nome de Marcela; e em cima de alguma, uma coroa gravada na mesma
árvore, como se mais claramente dissesse seu amante que Marcela a
leva e a merece de toda a formosura humana. Aqui suspira um pastor,
ali se queixa outro; acolá se ouvem amorosas canções, aqui
desesperadas endechas. Qual há que passa todas as horas da noite
sentado ao pé de alguma azinheira ou penhasco, e ali, sem pregar os
chorosos olhos, embevecido e transportado em seus pensamentos,
achou-o o sol de manhã; e qual há que, sem dar alívio nem trégua a
seus suspiros, em meio ao ardor da mais maçante sesta do verão,
estendido sobre a ardente areia, envia suas queixas ao piedoso céu. E
deste e daquele, e daqueles e destes, livre e desenfadadamente
triunfa a formosa Marcela; e todos os que a conhecemos estamos
esperando em que há de parar sua altivez e quem há de ser o ditoso
que há de vir a dominar condição tão terrível e gozar de formosura
tão extremada. Por ser tudo o que contei tão averiguada verdade, dou
a entender que também o é a que nosso rapaz disse que se dizia da
causa da morte de Grisóstomo. E assim, aconselho-vos, senhor, que
não deixeis de achar-vos amanhã em seu enterro, que será muito de
ver, porque Grisóstomo tem muitos amigos, e não está deste lugar
àquele onde manda enterrar-se meia légua.
- Nisso tenho interesse - disse Dom Quixote, - e agradeço-vos o
gosto que me haveis dado com a narração de tão saboroso conto.
- Oh! - replicou o cabreiro, - ainda não sei eu a metade dos casos
sucedidos aos amantes de Marcela, mas poderia ser que amanhã
topássemos no caminho algum pastor que nos os dissesse. E por agora,
bem será que vos vades a dormir debaixo de telhado, porque o sereno
vos poderia piorar a ferida, posto que é tal a medicina que se vos
colocou, que não há que temer um mau acidente.
Sancho Pança, que já dava ao diabo o tanto falar do cabreiro,
solicitou, por sua parte, que seu amo entrasse para dormir na choça de
Pedro. Fê-lo assim, e o resto da noite lhe passou em memórias de sua
senhora Dulcineia, à imitação dos amantes de Marcela. Sancho Pança
se acomodou entre Rocinante e seu jumento, e dormiu, não como
enamorado desfavorecido, senão como homem moído a coices.

CAPÍTULO XIII

Onde se dá fim ao conto da pastora Marcela, com outros sucessos

Mas apenas começou a descobrir-se o dia pelos balcões do oriente,


quando cinco dos seis cabreiros se levantaram e foram despertar dom
Quixote, e dizer-lhe se estava ainda com propósito de ir ver o famoso
enterro de Grisóstomo, e que eles lhe fariam companhia. Dom
Quixote, que outra coisa não desejava, levantou-se e mandou Sancho
encilhar e albardar de imediato, o que ele fez com muita diligência, e
com a mesma se puseram logo todos a caminho. E não haviam andado
um quarto de légua, quando ao cruzar uma senda viram vir em direção
a eles até seis pastores, vestidos com casacões negros e coroadas as
cabeças com grinaldas de cipreste e de amargo loendro. Trazia, cada
um, um grosso bastão de azevinho na mão. Vinham com eles, também,
dois gentis-homens a cavalo, muito bem trajados para viagem, com
outros três moços a pé que os acompanhavam. Chegando a encontrar-
se, saudaram-se cortesmente e, perguntando-se uns aos outros onde
iam, souberam que todos se encaminhavam ao lugar do enterro; e
assim, começaram a caminhar todos juntos.
Um dos a cavalo, falando com seu companheiro, lhe disse:
- Parece-me, senhor Vivaldo, que havemos de dar por bem
empregada a tardança que fizermos em ver este famoso enterro, que
não poderá deixar de ser famoso, segundo estes pastores nos
contaram estranhezas, assim do morto pastor como da pastora
homicida.
- Assim me parece a mim - respondeu Vivaldo; - e não digo eu fazer
tardança de um dia, mas de quatro a faria a troco de vê-lo.
Perguntou-lhes dom Quixote que era o que haviam ouvido de
Marcela e de Grisóstomo. O caminhante disse que aquela madrugada
haviam encontrado com aqueles pastores, e que, por havê-los visto
naquele tão triste traje, haviam-lhes perguntado por que iam daquela
maneira; que um deles o contou, contando a estranheza e formosura
de uma pastora chamada Marcela, e os amores de muitos que a
requestavam, com a morte daquele Grisóstomo a cujo enterro iam.
Finalmente, ele contou tudo o que Pedro a dom Quixote havia contado.
Cessou esta conversa e começou-se outra, perguntando o que se
chamava Vivaldo a dom Quixote qual era o motivo que o movia a andar
armado daquela maneira por terra tão pacífica. A que respondeu dom
Quixote:
- A profissão de meu exercício não consente nem permite que eu
ande de outra maneira. O bom passo, o regalo e o repouso, lá se
inventaram para os brandos cortesãos; mas o trabalho, a inquietude e
as armas só se inventaram e fizeram para aqueles que o mundo chama
cavaleiros andantes, dos quais eu, embora indigno, sou o menor de
todos.
Apenas lhe ouviram isto, quando todos o tiveram por louco; e, por
averiguá-lo mais e ver que gênero de loucura era o seu, tornou-lhe a
perguntar Vivaldo o que queria dizer cavaleiros andantes.
- Não leram vossas mercês - respondeu Dom Quixote - os anais e
histórias da Inglaterra, onde se tratam as famosas façanhas do rei
Artur, que continuamente em nossa língua castelhana chamamos “o rei
Artús”, de quem é tradição antiga e comum em todo aquele reino da
Grã-Bretanha que este rei não morreu, senão que, por arte de
encantamento, converteu-se em corvo, e que, andando os tempos, há
de voltar a reinar e a cobrar seu reino e cetro; a cuja causa não se
provará que desde aquele tempo a este haja nenhum inglês morto
corvo algum? Pois em tempo deste bom rei foi instituída aquela
famosa ordem de cavalaria dos cavaleiros da Távola Redonda, e
passaram-se, sem faltar um ponto, os amores que ali se contam de
dom Lancelote do Lago com a rainha Ginevra, sendo medianeira deles e
sabedora aquela tão honrada dona Quintañona, de onde nasceu aquele
tão sabido poema, e tão decantado em nossa Espanha, de:

Nunca fora cavaleiro


de damas tão bem servido
como fora Lancelote
quando de Bretanha veio,

com aquele progresso tão doce e tão suave de seus amorosos e


fortes feitos. Pois desde então, de mão em mão, foi aquela ordem de
cavalaria estendendo-se e dilatando-se por muitas e diversas partes
do mundo; e nela foram famosos e conhecidos por seus feitos o
valente Amadis de Gaula, com todos seus filhos e netos, até a quinta
geração, e o valoroso Felixmarte de Hircânia, e o nunca como se deve
louvado Tirante o Branco, e quase que em nossos dias vimos e
comunicamos e ouvimos o invencível e valoroso cavaleiro dom Belianis
de Grécia. Isto, pois, senhores, é ser cavaleiro andante, e a que eu
disse é a ordem de sua cavalaria; na qual, como outra vez disse, eu,
embora pecador, fiz profissão, e o mesmo que professaram os
cavaleiros referidos professo eu. E assim, vou-me por estas solidões e
despovoados buscando as aventuras, com ânimo deliberado de
oferecer meu braço e minha pessoa à mais perigosa que a sorte me
deparar, em ajuda dos fracos e necessitados.
Por estas razões que disse, acabaram de inteirar-se os
caminhantes que era dom Quixote falto de juízo, e do gênero de
loucura que o senhoreava, do qual receberam a mesma admiração que
recebiam todos aqueles que de novo vinham em conhecimento dela. E
Vivaldo, que era pessoa muito discreta e de alegre condição, por
passar sem pesar o pouco caminho que diziam que lhes faltava, ao
chegar à serra do enterro, quis dar-lhe ocasião a que passasse mais
adiante com seus disparates. E assim lhe disse:
- Parece-me, senhor cavaleiro andante, que vossa mercê professou
uma das mais rígidas profissões que há na terra, e tenho para mim que
ainda a dos frades cartuxos não é tão rígida.
- Tão rígida bem podia ser - respondeu nosso Dom Quixote, - mas
tão necessária no mundo estou a ponto de pô-lo em dúvida. Porque, se
se vai dizer a verdade, não faz menos o soldado que põe em execução
o que seu capitão lhe manda que o mesmo capitão que o ordena. Quero
dizer que os religiosos, com toda paz e sossego, pedem ao céu o bem
da terra; mas os soldados e cavaleiros pomos em execução o que eles
pedem, defendendo-a com o valor de nossos braços e fios de nossas
espadas; não debaixo de coberta, senão ao céu aberto, postos como
alvo dos insofríveis raios do sol de verão e dos eriçados gelos do
inverno. Assim que somos serviçais de Deus na terra, e braços por
quem executa nela sua justiça. E como as coisas da guerra e as a elas
tocantes e concernentes não se podem pôr em execução senão suando,
afanando e trabalhando, segue-se que aqueles que a professam têm,
sem dúvida, maior trabalho que aqueles que em sossegada paz e
repouso estão rogando a Deus favoreça aos que pouco podem. Não
quero eu dizer, nem me passa por pensamento, que é tão bom estado o
de cavaleiro andante como o do encerrado religioso; só quero inferir,
pelo que padeço, que, sem dúvida, é mais trabalhoso e mais aporreado,
e mais faminto e sedento, miserável, roto e piolhento; porque não há
dúvida senão que os cavaleiros andantes passados passaram muita
desventura no decurso de sua vida. E se alguns ascenderam a ser
imperadores pelo valor de seu braço, à fé que lhes custou boa parte
de seu sangue e de seu suor; e que se aos que a tal grau chegaram lhes
faltassem encantadores e magos que os ajudaram, ficariam bem
defraudados em seus desejos e bem enganados em suas esperanças.
- Desse parecer sou eu - replicou o caminhante; - mas uma coisa,
entre outras muitas, me parece muito mal dos cavaleiros andantes, e é
que, quando se veem na ocasião de acometer uma grande e perigosa
aventura, em que se vê manifesto perigo de perder a vida, nunca
naquele instante de acometê-la se lembram de encomendar-se a Deus,
como cada cristão está obrigado a fazer em perigos semelhantes;
antes, encomendam-se a suas damas, com tanta gana e devoção como
se elas fossem seu Deus: coisa que me parece que cheira algo a
gentilidade.
- Senhor - respondeu Dom Quixote, - isso não pode ser menos de
maneira alguma, e cairia em má ação o cavaleiro andante que outra
coisa fizesse; pois já está em uso e costume na cavalaria andantesca
que o cavaleiro andante que, ao acometer algum grande feito de
armas, tivesse sua senhora diante, volte a ela os olhos branda e
amorosamente, como que lhe pede com eles lhe favoreça e ampare no
duvidoso transe que acomete; e ainda se ninguém o ouve, está
obrigado a dizer algumas palavras entre dentes, em que de todo
coração se lhe encomende; e disto temos inumeráveis exemplos nas
histórias. E não se há de entender por isto que hão de deixar de
encomendar-se a Deus; que tempo e lugar lhes resta para fazê-lo no
decurso da obra.
- Desse modo - replicou o caminhante - me fica um escrúpulo, e é
que muitas vezes li que se travam palavras entre dois andantes
cavaleiros e, num átimo, acende-se-lhes a cólera, e voltam os cavalos e
tomam uma bom trecho de campo, e logo, sem mais nem mais, a todo o
correr deles, voltam-se a encontrar; e, no meio da corrida,
encomendam-se a suas damas; e o que costuma suceder do encontro é
que um cai pelas ancas do cavalo, trespassado pela lança do contrário
de parte a parte, e ao outro lhe vem também que, a não se agarrar às
crinas do seu, não poderia deixar de vir ao chão. E não sei eu como o
morto teve lugar para encomendar-se a Deus no decurso desta tão
acelerada obra. Melhor fora que as palavras que na carreira gastou
encomendando-se a sua dama as gastasse no que devia e estava
obrigado como cristão. Quanto mais, que eu tenho para mim que não
todos os cavaleiros andantes têm damas a quem encomendar-se,
porque não todos são enamorados.
- Isso não pode ser - respondeu Dom Quixote: - digo que não pode
ser que haja cavaleiro andante sem dama, porque tão próprio e tão
natural lhes é aos tais ser enamorados como ao céu ter estrelas, e
asseguro que não se viu história onde se ache cavaleiro andante sem
amores; e pelo mesmo caso que estivesse sem eles, não seria tido por
legítimo cavaleiro, senão por bastardo, e que entrou na fortaleza da
dita cavalaria, não pela porta, senão pelos esconsos, como salteador e
ladrão.
- Desse modo - disse o caminhante, - me parece, se mal não me
lembro, haver lido que dom Galaor, irmão do valoroso Amadis de Gaula,
nunca teve dama própria a quem pudesse encomendar-se; e, desse
modo, não foi tido em menos, e foi um muito valente e famoso
cavaleiro.
A que respondeu nosso dom Quixote:
- Senhor, uma andorinha só não faz verão. Quanto mais, que eu sei
que em segredo estava esse cavaleiro muito bem enamorado; fora que,
aquilo de querer a todas bem quantas bem lhe pareciam era condição
natural, a quem não podia deixar na mão. Mas, em suma, averiguado
está muito bem que ele tinha uma só a quem ele havia feito senhora de
sua vontade, à qual se encomendava muito amiúde e muito
secretamente, porque se prezou de secreto cavaleiro.
- Logo, se é da essência que todo cavaleiro andante haja de ser
enamorado - disse o caminhante, - bem se pode crer que vossa mercê
o é, pois é da profissão. E se é que vossa mercê não se preza de ser
tão secreto como dom Galaor, com as veras que posso suplico-lhe, em
nome de toda esta companhia e no meu, diga-nos o nome, pátria,
qualidade e formosura de sua dama; que ela se teria por ditosa de que
tudo o mundo saiba que é querida e servida de um tal cavaleiro como
vossa mercê parece.
Aqui deu um grande suspiro dom Quixote, e disse:
- Eu não poderei afirmar se a doce minha inimiga gosta, ou não, de
que o mundo saiba que eu a sirvo; só sei dizer, respondendo ao que com
tanto comedimento se me pede, que seu nome é Dulcineia; sua pátria, o
Toboso, um lugar da Mancha; sua qualidade, pelo menos, há de ser de
princesa, pois é rainha e senhora minha; sua formosura, sobre-humana,
pois nela se vêm a fazer verdadeiros todos os impossíveis e quiméricos
atributos de beleza que os poetas dão a suas damas: que seus cabelos
são ouro, sua fronte campos elísios, suas sobrancelhas arcos do céu,
seus olhos sóis, suas faces rosas, seus lábios corais, pérolas seus
dentes, alabastro seu pescoço, mármore seu peito, marfim suas mãos,
sua brancura neve, e as partes que à vista humana encobriu a
honestidade são tais, segundo eu penso e entendo, que só a discreta
consideração pode encarecê-las, e não compará-las.
- A linhagem, prosápia e estirpe queríamos saber - replicou Vivaldo.
A que respondeu dom Quixote:
- Não é dos antigos Cúrcios, Gaios e Cipiões romanos, nem dos
modernos Colonas e Ursinos; nem dos Moncadas e Requesenes da
Catalunha, nem menos dos Rebelas e Villanovas de Valência; Palafoxes,
Nuzas, Rocabertis, Corellas, Lunas, Alagões, Urreas, Foces e Gurreas
de Aragão; Cerdas, Manriques, Mendozas e Guzmanes de Castela;
Alencastros, Palhas e Meneses de Portugal; mas é dos do Toboso da
Mancha, linhagem, embora moderna, tal, que pode dar generoso
princípio às mais ilustres famílias dos vindouros séculos. E não se me
replique nisto, se não for com as condições que pôs Cervino ao pé do
troféu das armas de Orlando, que dizia:
Ninguém as mova
Que estar não possa com Roldão a prova .

- Embora o meu seja dos Cachopins de Laredo - respondeu o


caminhante, - não ousarei eu compará-lo com o do Toboso da Mancha,
posto que, para dizer a verdade, semelhante apelido até agora não
chegou a meus ouvidos.
- Como isso não chegou! - replicou dom Quixote.
Com grande atenção iam escutando todos os demais a conversa dos
dois, e ainda até os mesmos cabreiros e pastores conheceram a
demasiada falta de juízo de nosso dom Quixote. Só Sancho Pança
pensava que quanto seu amo dizia era verdade, sabendo ele quem era e
havendo-o conhecido desde seu nascimento; e no que duvidava algo era
em crer aquilo da linda Dulcineia do Toboso, porque nunca tal nome
nem tal princesa havia chegado jamais a seu conhecimento, embora
vivesse tão próximo do Toboso.
Nestas conversas iam, quando viram que, pelo caminho que vinha de
duas altas montanhas, baixavam até vinte pastores, todos com
casacões de negra lã vestidos e coroados com grinaldas, que, ao que
depois pareceu, eram umas de teixo e outras de cipreste. Seis deles
traziam umas andas, cobertas de muita diversidade de flores e de
ramos.
O que, visto por um dos cabreiros, disse:
- Aqueles que ali vêm são os que trazem o corpo de Grisóstomo, e o
pé daquela montanha é o lugar onde ele mandou que o enterrassem.
Por isto se deram pressa a chegar, e foi a tempo, pois já os que
vinham haviam posto as andas no chão; e quatro deles com agudas
picaretas estavam cavando a sepultura a um lado de uma dura penha.
Receberam-se uns e outros cortesmente; e logo dom Quixote e os
que com ele vinham se puseram a olhar as andas, e nelas viram coberto
de flores um corpo morto, vestido como pastor, de idade, ao parecer,
de trinta anos; e, embora morto, mostrava que vivo havia sido de rosto
formoso e de disposição galharda. Ao redor dele havia nas mesmas
andas alguns livros e muitos papéis, abertos e fechados. E assim os
que isto olhavam, como os que abriam a sepultura, e todos os demais
que ali havia, guardavam um maravilhoso silêncio, até que um dos que o
morto trouxeram disse a outro:
- Vede bem, Ambrósio, se é este o lugar que Grisóstomo disse, já
que quereis que tão pontualmente se cumpra o que deixou mandado em
seu testamento.
- Este é - respondeu Ambrósio; - que muitas vezes nele me contou
meu desditado amigo a história de sua desventura. Ali me disse ele
que viu a vez primeira aquela inimiga mortal da linhagem humana, e ali
foi também onde a primeira vez lhe declarou seu pensamento, tão
honesto como enamorado, e ali foi a última vez onde Marcela o acabou
de desenganar e desdenhar, de sorte que pôs fim à tragédia de sua
miserável vida. E aqui, em memória de tantas desditas, quis ele que o
depositassem nas entranhas do eterno olvido.
E voltando-se a dom Quixote e aos caminhantes, prosseguiu
dizendo:
- Esse corpo, senhores, que com piedosos olhos estais olhando, foi
depositário de um alma em quem o céu pôs infinita parte de suas
riquezas. Esse é o corpo de Grisóstomo, que foi único no engenho, só
na cortesia, extremo na gentileza, fênix na amizade, magnífico sem
limite, grave sem presunção, alegre sem baixeza, e, finalmente,
primeiro em tudo o que é ser bom, e sem segundo em tudo o que foi
ser desditado. Quis bem, foi aborrecido; adorou, foi desdenhado;
rogou a uma fera, importunou a um mármore, correu atrás do vento,
deu vozes à solidão, serviu à ingratidão, de quem alcançou por prêmio
ser despojos da morte na metade da carreira de sua vida, à qual deu
fim uma pastora a quem ele procurava eternizar para que vivesse na
memória das gentes, o que poderiam mostrar bem esses papéis que
estais olhando, se ele não me houvesse mandado que os entregasse ao
fogo em havendo entregado seu corpo à terra.
- De maior rigor e crueldade usareis vós com eles - disse Vivaldo -
que seu mesmo dono, pois não é justo nem acertado que se cumpra a
vontade de quem o que ordena esteja fora de todo razoável discurso.
E não o faria bem Augusto César se consentisse que se pusesse em
execução o que o divino Mantuano deixou em seu testamento mandado.
Assim que, senhor Ambrósio, já que dais o corpo de vosso amigo à
terra, não queirais dar seus escritos ao olvido; que se ele ordenou
como agravado, não é bem que vós cumprais como indiscreto. Antes
fazei, dando a vida a estes papéis, que a tenha sempre a crueldade de
Marcela, para que sirva de exemplo, nos tempos que estão por vir, aos
viventes, para que se apartem e fujam de cair em semelhantes
despenhadeiros; que já sei eu, e os que aqui vimos, a história deste
vosso enamorado e desesperado amigo, e sabemos a amizade vossa, e o
motivo de sua morte, e o que deixou mandado ao acabar da vida; da
qual lamentável história se pode saber quanto haja sido a crueldade de
Marcela, o amor de Grisóstomo, à fé da amizade vossa, com o
paradeiro que têm os que à rédea solta correm pela senda que o
desvairado amor diante dos olhos lhes põe. Ontem à noite soubemos
da morte de Grisóstomo, e que neste lugar havia de ser enterrado; e
assim, de curiosidade e de lástima, deixamos nosso caminho, e
concordamos em vir ver com os olhos o que tanto nos havia lastimado
em ouvi-lo. E em paga desta lástima e do desejo que em nós nasceu de
remediá-la se pudéssemos, rogamos-te, oh discreto Ambrósio!, ao
menos, eu te o suplico de minha parte, que, deixando de queimar estes
papéis, me deixes levar alguns deles.
E sem aguardar que o pastor respondesse, estendeu a mão e tomou
alguns dos que mais perto estavam; vendo o que Ambrósio disse:
- Por cortesia consentirei que vós fiqueis, senhor, com os que já
haveis tomado; mas pensar que deixarei de queimar os que ficam é
pensamento vão.
Vivaldo, que desejava ver o que os papéis diziam, abriu logo um deles
e viu que tinha por título: Canção desesperada. Ouviu-o Ambrósio e
disse:
- Esse é o último papel que escreveu o desditado; e, para que vejais,
senhor, o estado em que o deixavam suas desventuras, lede de modo
que sejais ouvido; que bem vos dará lugar a ele o que se tardar em
abrir a sepultura.
- Isso farei eu de muito bom grado - disse Vivaldo.
E como todos os circunstantes tinham o mesmo desejo, puseram-se-
lhe ao redor; e ele, lendo em voz clara, viu que assim dizia:

CAPÍTULO XIV

Onde se põem os versos desesperados do defunto pastor, com


outros não esperados sucessos

CANÇÃO DE GRISÓSTOMO

Já que queres, cruel, que se publique,


de língua em língua e de uma em outra gente,
do áspero rigor teu a força,
farei que o mesmo inferno comunique
ao triste peito meu um som dolente,
com que o uso comum de minha voz torça.
E a par de meu desejo, que se esforça
a dizer minha dor e tuas façanhas,
da espantável voz irá o acento,
e nele mescladas, por maior tormento,
pedaços das míseras entranhas.
Escuta, pois, e presta atento ouvido,
não ao concertado som, senão ao ruído
que do fundo de meu amargo peito,
levado de um forçoso desvario,
por gosto meu sai e teu despeito.

O rugir do leão, do lobo fero


o temeroso uivo, o silvo horrendo
de escamosa serpente, o espantável
berro de algum monstro, o agourento
grasnar da gralha, e o estrondo
do vento contrastado em mar instável;
do já vencido touro o implacável
bramido, e da viúva pombinha
o sentido arrulhar; o triste canto
da invejada coruja, com o pranto
de toda a infernal negra quadrilha,
saiam com a dolente alma fora,
mesclados num som, de tal maneira
que se confundam os sentidos todos,
pois a pena cruel que em mim se acha
para contá-la pede novos modos.

De tanta confusão não as areias


do pai Tejo ouvirão os tristes ecos,
nem do famoso Bétis as olivas:
que ali se espalharão minhas duras penas
em altos riscos e em profundos ocos,
com morta língua e com palavras vivas;
ou já em escuros vales, ou em esquivas
praias, desnudas de presença humana,
ou onde o sol jamais mostrou seu lume,
ou entre a venenosa multidão
de feras que alimenta o líbio chão;
que, posto que nos páramos desertos
os ecos roucos de meu mal, incertos,
soem com teu rigor tão sem segundo,
por privilégio de meus pequenos fados,
serão levados pelo largo mundo.

Mata um desdém, aterra a paciência,


ou verdadeira ou falsa, uma suspeita;
matam os zelos com rigor mais forte;
desconcerta a vida larga ausência;
contra um temor de olvido não aproveita
firme esperança de ditosa sorte.
Em tudo há certa, inevitável morte;
mas eu, milagre nunca visto!, vivo
zeloso, ausente, desdenhado e certo
das suspeitas que me têm morto;
e no olvido em que meu fogo avivo,
e, entre tantos tormentos, nunca alcança
minha vista a ver em sombra a esperança,
nem eu, desesperado, a procuro;
antes, por extremar-me em minha querela,
estar sem ela eternamente juro.

Pode-se, porventura, num instante


esperar e temer, ou é bem fazê-lo,
sendo as causas do temor mais certas?
Tenho, se o duro zelo está diante,
de cerrar estes olhos, se hei de vê-lo
por mil feridas na alma abertas?
Quem não abrirá de par em par as portas
à desconfiança, quando vê
descoberto o desdém, e as suspeitas,
oh amarga conversão!, verdades feitas,
e a limpa verdade volta em mentira?
Oh, no reino de amor feros tiranos
zelos, ponde-me um ferro nestas mãos!
Dá-me, desdém, uma torcida corda.
Mas, ai de mim!, que, com cruel vitória,
vossa memória o sofrimento afoga.

Eu morro, enfim; e, porque nunca espere


bom sucesso na morte nem na vida,
pertinaz estarei em minha fantasia.
Direi que vai acertado o que bem quer,
e que é mais livre a alma mais rendida
à de amor antiga tirania.
Direi que a inimiga sempre minha
formosa a alma como o corpo tem,
e que seu olvido de minha culpa nasce,
e que, em fé dos males que nos faz,
amor seu império em justa paz mantém.
E com esta opinião e um duro laço,
acelerando o miserável prazo
a que me hão conduzido seus desdéns,
oferecerei aos ventos corpo e alma,
sem louro ou palma de futuros bens.
Tu, que com tantas sem-razões mostras
a razão que me força a que a faça
à cansada vida que aborreço,
pois já vês que te dá notórias mostras
esta do coração profunda chaga,
de como, alegre, a teu rigor me ofereço,
se, acaso, conheces que mereço
que o céu claro de teus belos olhos
em minha morte se turve, não o faças;
que não quero que em nada satisfaças,
ao dar-te de minha alma os despojos.
Antes, com riso na ocasião funesta,
descobre que o fim meu foi tua festa;
mas grande tolice é avisar-te disto,
pois sei que está tua glória conhecida
em que minha vida chegue ao fim tão presto.

Venha, que é tempo já, do fundo abismo


Tântalo com sua sede; Sísifo venha
com o peso terrível de seu canto;
Tício traga seu abutre, e também
com sua roda Egião não se detenha,
nem as irmãs que trabalham tanto;
e todos juntos seu mortal quebranto
trasladem em meu peito, e em voz baixa
- se já a um desesperado são devidas -
cantem exéquias tristes, doloridas,
ao corpo a quem se negue ainda a mortalha.
E o porteiro infernal dos três rostos,
com outras mil quimeras e mil monstros,
levem o doloroso contraponto;
que outra pompa melhor não me parece
que a merece um amador defunto.

Canção desesperada, não te queixes


quando minha triste companhia deixes;
antes, pois que a causa donde nasceste
com minha desdita aumenta sua ventura,
ainda na sepultura não estejas triste.

Bem lhes pareceu, aos que escutado haviam, a canção de


Grisóstomo, posto que o que a leu disse que não lhe parecia que
conformava com a relação que ele havia ouvido do recato e bondade de
Marcela, porque nela se queixava Grisóstomo de zelos, suspeitas e de
ausência, tudo em prejuízo do bom crédito e boa fama de Marcela. A
que respondeu Ambrósio, como aquele que sabia bem os mais
escondidos pensamentos de seu amigo:
- Para que, senhor, vos satisfaçais dessa dúvida, é bem que saibais
que quando este desditado escreveu esta canção estava ausente de
Marcela, de quem ele se havia ausentado por sua vontade, para ver se
a ausência agiria nele com seus costumeiros poderes. E como ao
enamorado ausente não há coisa que não o fatigue nem temor que não
lhe dê alcance, assim fatigavam a Grisóstomo os zelos imaginados e as
suspeitas temidas como se fossem verdadeiras. E com isto fica
provada a verdade que a fama apregoa da bondade de Marcela; a qual,
afora ser cruel, e um pouco arrogante e um muito desdenhosa, a
mesma inveja nem deve nem pode atribuir-lhe falta alguma.
- Assim é a verdade - respondeu Vivaldo.
E querendo ler outro papel dos que havia retirado do fogo,
perturbou-o uma maravilhosa visão - que tal parecia ela - que
improvisamente se lhes ofereceu aos olhos; e foi que, por cima da
penha onde se cavava a sepultura, apareceu a pastora Marcela, tão
formosa que passava sua fama sua formosura. Os que até então não a
haviam visto a olhavam com admiração e silêncio, e os que já estavam
acostumados a vê-la não ficaram menos suspensos que os que nunca a
haviam visto. Mas apenas a viu Ambrósio, quando com mostras de
ânimo indignado lhe disse:
- Vens ver, porventura, oh fero basilisco destas montanhas!, se com
tua presença vertem sangue as feridas deste miserável a quem tua
crueldade tirou a vida? Ou vens ufanar-te das cruéis façanhas de tua
condição, ou ver desde essa altura, como outro desapiedado Nero, o
incêndio de sua abrasada Roma, ou pisar, arrogante, este desditado
cadáver, como a ingrata filha o de seu pai Tarquino? Dize-nos presto
ao que vens, ou que é aquilo de que mais gostas; que, por saber eu que
os pensamentos de Grisóstomo jamais deixaram de obedecer-te em
vida, farei que, ainda ele morto, te obedeçam os de todos aqueles que
se chamaram seus amigos.
- Não venho, oh Ambrósio!, por nenhuma coisa das que disseste -
respondeu Marcela, - senão para voltar por mim mesma, e dar a
entender quão fora de razão vão todos aqueles que de suas penas e da
morte de Grisóstomo me culpam; e assim, rogo a todos os que aqui
estais me estejais atentos, que não será mister muito tempo nem
gastar muitas palavras para persuadir uma verdade aos discretos.
Fez-me o céu, segundo vós dizeis, formosa, e de tal maneira que, sem
ser poderosos para outra coisa, a que me ameis vos move minha
formosura; e, pelo amor que me mostrais, dizeis, e ainda quereis, que
esteja eu obrigada a amar-vos. Eu conheço, com o natural
entendimento que Deus me deu, que todo o formoso é amável; mas não
alcanço que, por razão de ser amado, esteja obrigado o que é amado
por formoso a amar a quem o ama. E mais, que poderia acontecer que o
amador do formoso fosse feio, e, sendo o feio digno de ser
aborrecido, cai muito mal o dizer “Quero-te por formosa; hás-me de
amar embora seja feio”. Mas, caso ocorram igualmente as formosuras,
não por isso hão de ocorrer iguais os desejos, que não todas as
formosuras enamoram; que algumas alegram a vista e não rendem a
vontade; que se todas as belezas enamorassem e rendessem, seria um
andar as vontades confusas e desencaminhadas, sem saber em qual
haviam de parar; porque, sendo infinitos os sujeitos formosos,
infinitos haviam de ser os desejos. E segundo eu ouvi dizer, o
verdadeiro amor não se divide, e há de ser voluntário, e não forçoso.
Sendo isto assim, como eu creio que o é, por que quereis que renda
minha vontade por força, obrigada não mais de que dizeis que me
quereis bem? Se não, dizei-me: se como o céu me fez formosa me
fizesse feia, seria justo que me queixasse de vós porque não me
amáveis? Quanto mais, que haveis de considerar que eu não escolhi a
formosura que tenho; que, tal qual é, o céu me a deu de graça, sem eu
pedi-la nem escolhê-la. E assim como a víbora não merece ser culpada
pela peçonha que tem, posto que com ela mata, por havê-la dado a
natureza, tampouco eu mereço ser repreendida por ser formosa; que a
formosura na mulher honesta é como o fogo apartado ou como a
espada aguda, que nem ele queima nem ela corta a quem a eles não se
acerca. A honra e as virtudes são adornos da alma, sem as quais o
corpo, embora o seja, não deve parecer formoso. Pois se a
honestidade é uma das virtudes que ao corpo e à alma mais adornam e
aformoseiam, por que a há de perder a que é amada por formosa, por
corresponder à intenção daquele que, por só seu gosto, com todas suas
forças e indústrias procura que a perca? Eu nasci livre, e para poder
viver livre escolhi a solidão dos campos. As árvores destas montanhas
são minha companhia, as claras águas destes arroios meus espelhos;
com as árvores e com as águas comunico meus pensamentos e
formosura. Fogo sou apartado e espada posta longe. Aos que enamorei
com a vista desenganei com as palavras. E se os desejos se sustentam
com esperanças, não havendo eu dado alguma a Grisóstomo nem a
outro algum, o fim de nenhum deles bem se pode dizer que antes o
matou sua porfia que minha crueldade. E se se me diz que eram
honestos seus pensamentos, e que por isto estava obrigada a
corresponder a eles, digo que, quando nesse mesmo lugar onde agora
se cava sua sepultura me descobriu a bondade de sua intenção, disse-
lhe eu que a minha era viver em perpétua solidão, e de que só a terra
gozase o fruto de meu recolhimento e os despojos de minha
formosura; e se ele, com todo este desengano, quis porfiar contra a
esperança e navegar contra o vento, é muito que afundasse em meio ao
golfo de seu desatino? Se eu o entretivesse, seria falsa; se o
contentasse, eu o faria contra minha melhor intenção e pressuposto.
Porfiou desenganado, desesperou sem ser aborrecido: vede agora se
será razão que de sua pena se me dê a mim a culpa! Queixe-se
o enganado, desespere-se aquele a quem lhe faltaram as prometidas
esperanças, confie o que eu chamar, ufane-se o que eu admitir; mas
não me chame cruel nem homicida aquele a quem eu não prometo,
engano, chamo nem admito. O céu ainda até agora não quis que eu ame
por destino, e o pensar que tenho de amar por eleição é escusado.
Este geral desengano sirva a cada um dos que me solicitam para seu
particular proveito; e entenda-se, daqui por diante, que se algum por
mim morrer, não morre de zeloso nem desditado, porque quem a
ninguém quer, a nenhum deve dar zelos; que os desenganos não se hão
de tomar em conta de desdéns. O que me chama fera e basilisco,
deixe-me como coisa prejudicial e má; o que me chama ingrata, não me
sirva; o que desconhecida, não me conheça; quem cruel, não me siga;
que esta fera, este basilisco, esta ingrata, esta cruel e esta
desconhecida, nem os buscará, servirá, conhecerá nem seguirá de
maneira alguma. Que se a Grisóstomo matou sua impaciência e
arrojado desejo, por que se há de culpar meu honesto proceder e
recato? Se eu conservo minha limpeza com a companhia das árvores,
por que há de querer que a perca o que quer que a tenha com os
homens? Eu, como sabeis, tenho riquezas próprias e não cobiço as
alheias; tenho livre condição e não gosto de sujeitar-me: nem quero
nem aborreço a ninguém. Não engano a este nem solicito aquele, nem
burlo com um nem me entretenho com o outro. A conversação honesta
das zagalas destas aldeias e o cuidado de minhas cabras me entretêm.
Têm meus desejos por termo estas montanhas, e se daqui saem, é a
contemplar a formosura do céu, passos com que caminha a alma a sua
morada primeira.
E dizendo isto, sem querer ouvir resposta alguma, voltou as costas e
entrou pelo mais cerrado de um monte que ali perto estava, deixando
admirados, tanto de sua discrição como de sua formosura, a todos os
que ali estavam. E alguns deram mostras (aqueles que da poderosa
flecha dos raios de seus belos olhos estavam feridos) de querê-la
seguir, sem aproveitar-se do manifesto desengano que haviam ouvido.
O que visto por dom Quixote, parecendo-lhe que ali vinha bem usar de
sua cavalaria, socorrendo às donzelas necessitadas, posta a mão no
punho de sua espada, em altas e inteligíveis vozes disse:
- Nenhuma pessoa, de qualquer estado e condição que seja, se
atreva a seguir a formosa Marcela, sob pena de cair na furiosa
indignação minha. Ela mostrou com claras e suficentes razões a pouca
ou nenhuma culpa que teve na morte de Grisóstomo, e quão alheia vive
de condescender com os desejos de nenhum de seus amantes, a cuja
causa é justo que, em lugar de ser seguida e perseguida, seja honrada
e estimada por todos os bons do mundo, pois mostra que nele ela é só
a que com tão honesta intenção vive.
Ou já que fosse pelas ameaças de dom Quixote, ou porque Ambrósio
lhes disse que concluíssem com o que a seu bom amigo deviam, nenhum
dos pastores se moveu nem apartou dali até que, acabada a sepultura
e queimados os papéis de Grisóstomo, puseram seu corpo nela, não sem
muitas lágrimas dos circunstantes. Fecharam a sepultura com uma
grossa pedra, enquanto se acabava uma lousa que, segundo Ambrósio
disse, pensava mandar fazer, com um epitáfio que havia de dizer desta
maneira:

Jaz aqui de um amador


o mísero corpo gelado,
que foi pastor de gado,
perdido por desamor.
Morreu a mãos do rigor
de uma esquiva formosa ingrata,
com quem seu império dilata
a tirania de amor.

Logo espargiram por cima da sepultura muitas flores e ramos, e,


dando todos os pêsames a seu amigo Ambrósio, despediram-se dele. O
mesmo fizeram Vivaldo e seu companheiro, e dom Quixote se despediu
de seus anfitriões e dos caminhantes, os quais lhe rogaram viesse com
eles a Sevilha, por ser lugar tão acomodado a achar aventuras, que em
cada rua e atrás de cada esquina se oferecem mais que em outro
algum. Dom Quixote lhes agradeceu o aviso e o ânimo que mostravam
de fazer-lhe mercê, e disse que por então não queria nem devia ir a
Sevilha, até que houvesse despojado todas aquelas serras de ladrões
gatunos, de quem era fama que todas estavam cheias. Vendo sua boa
determinação, não quiseram os caminhantes importuná-lo mais, senão,
tornando a despedir-se de novo, deixaram-no e prosseguiram seu
caminho, no qual não lhes faltou de que tratar, assim da história de
Marcela e Grisóstomo como das loucuras de dom Quixote. O qual
determinou de ir buscar a pastora Marcela e oferecer-lhe tudo o que
ele podia em seu serviço. Mas não lhe aconteceu como ele pensava,
segundo se conta no decurso desta verdadeira história, dando aqui fim
à segunda parte.

CAPÍTULO XV

Onde se conta a desgraçada aventura que topou dom Quixote ao


topar com uns desalmados galegos

Conta o mago Cide Hamete Benengeli que, assim que dom Quixote se
despediu de seus anfitriões e de todos os que se acharam no enterro
do pastor Grisóstomo, ele e seu escudeiro entraram pelo mesmo
bosque onde viram que havia entrado a pastora Marcela; e, havendo
andado mais de duas horas por ele, buscando-a por todas as partes
sem poder achá-la, vieram parar em um prado cheio de fresca erva,
junto do qual corria um arroio aprazível e fresco; tanto, que convidou
e forçou a passar ali as horas da sesta, que rigorosamente começava
já a entrar.
Apearam-se dom Quixote e Sancho e, deixando o jumento e
Rocinante à larga pastar da muita erva que ali havia, atacaram os
alforjes e, sem cerimônia alguma, em boa paz e companhia, amo e moço
comeram o que neles acharam.
Não se importara Sancho em deixar Rocinante solto, seguro de que
o conhecia por tão manso e tão pouco fogoso que todas as éguas da
pastaria de Córdova não o fizessem ir por mau caminho. Ordenou, pois,
a sorte, e o diabo (que não todas as vezes dorme), que andavam por
aquele vale pastando uma manada de éguas galicianas de uns arreeiros
galegos, dos quais é costume sestear com sua récua em lugares e
sítios de erva e água; e aquele onde calhou achar-se dom Quixote era
muito a propósito dos galegos.
Sucedeu, pois, que a Rocinante veio o desejo de refocilar-se com as
senhoras éguas, e saindo, assim que as farejou, de seu natural passo e
costume, sem pedir licença a seu dono, tomou um trotezinho algo
picadinho e foi comunicar sua necessidade a elas. Mas elas, que, ao que
pareceu, deviam ter mais vontade de pastar que de outra coisa,
receberam-no com as ferraduras e com os dentes, de tal maneira que,
em pouco tempo, romperam-lhe as cilhas e ficou, sem sela, em pelo.
Mas o que ele deveu mais sentir foi que, vendo os arreeiros a força
que a suas éguas se fazia, acudiram com cajados, e tantos golpes lhe
deram que o derrubaram estropiado no chão.
Já nisto dom Quixote e Sancho, que a sova de Rocinante haviam
visto, chegavam arfando, e disse dom Quixote a Sancho:
- Ao que eu vejo, amigo Sancho, estes não são cavaleiros, senão
gente soez e de baixa ralé. Digo-o porque bem me podes ajudar a
tomar a devida vingança do agravo que diante de nossos olhos se fez a
Rocinante.
- Que diabos de vingança havemos de tomar - respondeu Sancho, -
se estes são mais de vinte e nós não mais de dois, e ainda, quiçá, senão
um e meio?
- Eu valho por cem - replicou dom Quixote.
E sem fazer mais discursos tomou a espada e arremeteu contra os
galegos, e o mesmo fez Sancho Pança, incitado e movido do exemplo
de seu amo. E para começo deu dom Quixote uma cutilada em um, que
lhe abriu um saio de couro de que vinha vestido, com grande parte das
costas.
Os galegos, que se viram maltratar por aqueles dois homens sós,
sendo eles tantos, recorreram a seus cajados e, cercando-os,
começaram a lhes bater com grande afinco e veemência. Verdade é
que ao segundo toque deram com Sancho no chão, e o mesmo
aconteceu a dom Quixote, sem que lhe valesse sua destreza e bom
ânimo; e quis sua ventura que viesse a cair aos pés de Rocinante, que
ainda não se havia levantado; onde se vê a fúria com que machucam
cajados postos em mãos rústicas e iradas.
Vendo pois os galegos o estrago que haviam feito, com a maior
presteza que puderam carregaram sua récua e seguiram seu caminho,
deixando os dois aventureiros em má figura e pior disposição.
O primeiro a recobrar-se foi Sancho Pança; e achando-se junto a
seu senhor, com voz enferma e lastimada disse:
- Senhor dom Quixote? Ah, senhor dom Quixote!
- Que queres, Sancho irmão? - respondeu dom Quixote com o
mesmo tom débil e dolente que Sancho.
- Queria, se fosse possível - respondeu Sancho Pança, - que vossa
mercê me desse dois tragos daquela bebida do feio Blas, se é que a
tem vossa mercê aí à mão. Quiçá será de proveito para os
quebrantamentos de ossos como o é para as feridas.
- Pois, a tê-la eu aqui, desgraçado eu, que nos faltava? - respondeu
dom Quixote. - Mas eu te juro, Sancho Pança, à fé de cavaleiro
andante, que antes que passem dois dias, se a fortuna não ordena
outra coisa, tenho-a de ter em meu poder, ou má sorte hei de ter.
- Pois, em quantos lhe parece a vossa mercê que poderemos mover
os pés? - replicou Sancho Pança.
- De mim sei dizer - disse o moído cavaleiro dom Quixote - que não
saberei pôr termo a esses dias. Mas eu tenho a culpa de tudo, que não
havia de pôr mão à espada contra homens que não fossem armados
cavaleiros como eu; e assim, creio que, como pena de haver infringido
as leis da cavalaria, permitiu o deus das batalhas que se me desse este
castigo. Pelo qual, Sancho Pança, convém que estejas advertido nisto
que agora te direi, porque importa muito à saúde de nós dois; e é que,
quando vejas que semelhante canalha nos faz algum agravo, não
aguardes a que eu ponha mão à espada para eles, porque não o farei de
maneira alguma, senão põe tu mão a tua espada e castiga-os muito a
teu gosto; que se em sua ajuda e defesa acudirem cavaleiros, eu te
saberei defender e atacá-los com todo meu poder; que já haverás
visto por mil sinais e experiências até onde se estende o valor deste
meu forte braço.
Tanto ficou arrogante o pobre senhor com o vencimento do valente
biscainho. Mas não lhe pareceu tão bem a Sancho Pança o aviso de seu
amo que deixasse de responder, dizendo:
- Senhor, eu sou homem pacífico, manso, sossegado, e sei ignorar
qualquer injúria, porque tenho mulher e filhos que sustentar e criar.
Assim que, seja a vossa mercê também aviso, pois não pode ser
mandado, que de maneira alguma porei mão à espada, nem contra vilão
nem contra cavaleiro; e que, daqui para diante de Deus, perdoo
quantos agravos me fizeram e hão de fazer: ora me os haja feito, ou
faça ou haja de fazer, pessoa alta ou baixa, rico ou pobre, fidalgo ou
plebeu, sem excetuar estado nem condição alguma.
O que ouvido por seu amo, respondeu-lhe:
- Quisera ter alento para poder falar um pouco descansado, e que a
dor que tenho nesta costela se aplacasse um pouquinho, para dar-te a
entender, Pança, o erro em que estás. Vem cá, pecador; se o vento da
fortuna, até agora tão contrário, em nosso favor se volta, levando-nos
as velas do desejo para que seguramente e sem empecilho algum
tomemos porto em alguma das ilhas que te tenho prometida, que seria
de ti se, ganhando-a eu, te fizesse senhor dela? Pois o virás a
impossibilitar por não ser cavaleiro, nem querê-lo ser, nem ter valor
nem intenção de vingar tuas injúrias e defender teu senhorio? Porque
hás de saber que nos reinos e províncias recém conquistados nunca
estão tão quietos os ânimos de seus naturais, nem tão do lado do novo
senhor que não tenham temor de que hão de fazer alguma novidade
para alterar de novo as coisas, e voltar, como dizem, a arriscar-se; e
assim, é mister que o novo possessor tenha entendimento para saber
governar, e valor para atacar e defender-se em qualquer
acontecimento.
- Neste que agora nos aconteceu - respondeu Sancho, - quisera eu
ter esse entendimento e esse valor que vossa mercê diz; mas eu lhe
juro, à fé de pobre homem, que mais estou para emplastros que para
conversas. Veja vossa mercê se se pode levantar, e ajudaremos
Rocinante, embora não o merece, porque ele foi a causa principal de
todo este moimento. Jamais tal pensei de Rocinante, que o tinha por
pessoa casta e tão pacífica como eu. Enfim, bem dizem que é mister
muito tempo para vir a conhecer as pessoas, e que não há coisa segura
nesta vida. Quem diria que atrás daquelas tão grandes cutiladas como
vossa mercê deu naquele desditado cavaleiro andante, havia de vir,
rapidamente e em seguida, esta tão grande tempestade de golpes que
descarregou sobre nossas costas?
- Ainda as tuas, Sancho - replicou dom Quixote, - devem estar
afeitas a semelhantes nuvens; mas as minhas, criadas entre tecidos
finos, claro está que sentiram mais a dor desta desgraça. E se não
fosse porque imagino..., que digo, imagino?, sei muito certo, que todas
estas incomodidades são muito próprias ao exercício das armas, aqui
me deixaria morrer de puro nojo.
A isto replicou o escudeiro:
- Senhor, já que estas desgraças são da colheita da cavalaria, diga-
me vossa mercê se sucedem muito amiúde, ou se têm seus tempos
limitados em que acontecem; porque me parece a mim que após duas
colheitas ficaremos inúteis para a terceira, se Deus, por sua infinita
misericórdia, não nos socorre.
- Sabe, amigo Sancho - respondeu dom Quixote, - que a vida dos
cavaleiros andantes está sujeita a mil perigos e desventuras; e, nem
mais nem menos, está em potência próxima de ser os cavaleiros
andantes reis e imperadores, como o mostrou a experiência em muitos
e diversos cavaleiros, de cujas histórias eu tenho inteira notícia. E
poder-te-ia contar agora, se a dor me permitisse, de alguns que, só
pelo valor de seu braço, subiram aos altos graus que contei; e estes
mesmos se viram antes e depois em diversas calamidades e misérias.
Porque o valoroso Amadis de Gaula se viu em poder de seu mortal
inimigo Arcalaus o encantador, de quem se tem por averiguado que lhe
deu, tendo-o preso, mais de duzentos açoites com as rédeas de seu
cavalo, atado a uma coluna de um pátio. E ainda há um autor secreto, e
de não pouco crédito, que diz que, havendo capturado o Cavaleiro do
Febo com uma certa armadilha que se lhe afundou debaixo dos pés,
num certo castelo, e ao cair, se achou em uma funda caverna debaixo
da terra, atado de pés e mãos, e ali lhe fizeram uma destas que
chamam lavagens, de água de neve e areia, do que chegou muito
próximo à morte; e se não fosse socorrido naquele grande penar por
um mago grande amigo seu, passaria muito mal o pobre cavaleiro.
Assim que, bem posso eu passar entre tanta boa gente; que maiores
afrontas são as que estes passaram, que não as que agora nós
passamos. Porque quero fazer-te sabedor, Sancho, que não afrontam
as feridas que se dão com os instrumentos que acaso se acham nas
mãos; e isto está na lei do duelo, escrito por palavras expressas: que
se o sapateiro dá em outro com a fôrma que tem na mão, posto que
verdadeiramente é de pau, não por isso se dirá que fica apaleado
aquele a quem deu com ela. Digo isto para que não penses que, posto
que fiquemos desta pendência moídos, fiquemos afrontados; porque as
armas que aqueles homens traziam, com que nos machucaram, não
eram outras senão seus cajados, e nenhum deles, ao que me lembro,
tinha estoque, espada nem punhal.
- Não me permitiram - respondeu Sancho - que visse isso; porque,
apenas peguei minha espada, quando me castigaram os ombros com
suas varas, de maneira que me tiraram a vista dos olhos e a força dos
pés, dando comigo onde agora jazo, e onde não me dá pena alguma o
pensar se foi afronta ou não o dos estocaços, como me dá a dor dos
golpes, que me hão de ficar tão impressos na memória como nas
costas.
- Mesmo assim, te faço saber, irmão Pança - replicou dom Quixote,
- que não há memória a quem o tempo não acabe, nem dor que morte
não consuma.
- Pois, que maior desdita pode ser - replicou Pança - que aquela que
aguarda ao tempo que a consuma e à morte que a acabe? Se esta nossa
desgraça fosse daquelas que com um par de emplastros se curam,
ainda não tão mau; mas vou vendo que não hão de bastar todos os
emplastros de um hospital para pô-las em bom termo sequer.
- Deixa disso e tira forças da fraqueza, Sancho - respondeu dom
Quixote, - que assim farei eu, e vejamos como está Rocinante; que, ao
que me parece, não coube ao pobre a menor parte desta desgraça.
- Não há de que maravilhar-se disso - respondeu Sancho, - sendo ele
tão bom cavaleiro andante; do que eu me maravilho é de que meu
jumento haja ficado livre e sem custas onde nós saímos sem costelas.
- Sempre deixa a ventura uma porta aberta nas desditas, para dar
remédio a elas - disse dom Quixote. - Digo-o porque essa bestazinha
poderá suprir agora a falta de Rocinante, levando-me daqui a algum
castelo onde seja curado de minhas feridas. E mais, que não terei por
desonra tal cavalaria, porque me lembro de haver lido que aquele bom
velho Sileno, aio e pedagogo do alegre deus do riso, quando entrou na
cidade das cem portas ia, muito a seu prazer, a cavaleiro sobre um
muito formoso asno.
- Verdade será que ele devia ir a cavaleiro, como vossa mercê diz
- respondeu Sancho, - mas há grande diferença do ir a cavaleiro ao ir
atravessado como saco de porcaria.
A que respondeu dom Quixote:
- As feridas que se recebem nas batalhas, antes dão honra que a
tiram. Assim que, Pança amigo, não me repliques mais, senão, como já
te disse, levanta-te o melhor que puderes e põe-me da maneira que
mais te agradar em cima de teu jumento, e vamos daqui antes que a
noite venha e nos assalte neste despovoado.
- Pois eu ouvi dizer a vossa mercê - disse Pança - que é muito de
cavaleiros andantes o dormir nos páramos e desertos o mais do ano, e
que o têm por muita ventura.
- Isso é - disse dom Quixote - quando não podem mais, ou quando
estão enamorados; e é tão verdade isto, que houve cavaleiro que
esteve sobre uma penha, ao sol e à sombra, e às inclemências do céu,
dois anos, sem que o soubesse sua senhora. E um destes foi Amadis,
quando, chamando-se Beltenebros, se alojou na Penha Pobre, nem sei
se oito anos ou oito meses, que não estou muito bem na conta: basta
que ele esteve ali fazendo penitência, por não sei que dissabor que lhe
fez a senhora Oriana. Mas deixemos já isto, Sancho, e anda, antes que
suceda outra desgraça ao jumento, como a Rocinante.
- Ainda aí seria o diabo - disse Sancho.
E despedindo trinta ais, e sessenta suspiros, e cento e vinte
maldições e arrenegos a quem ali o havia trazido, levantou-se, ficando
agoniado no meio do caminho, como arco turco, sem poder acabar de
endireitar-se; e com todo este trabalho aparelhou seu asno, que
também havia andado algo distraído com a demasiada liberdade
daquele dia. Levantou logo a Rocinante, o qual, se tivesse língua com
que queixar-se, seguramente que Sancho nem seu amo o poderiam
seguir.
Em suma, Sancho acomodou dom Quixote sobre o asno e pôs
Rocinante atrás; e levando o asno pelo cabresto, encaminhou-se, pouco
mais ou menos, até onde lhe pareceu que podia estar o caminho real. E
a sorte, que suas coisas de bem em melhor ia guiando, ainda não
andara uma pequena légua, quando lhe deparou o caminho, no qual
descobriu uma estalagem que, para pesar seu e gosto de dom Quixote,
havia de ser castelo. Insistia Sancho que era estalagem, e seu amo que
não, senão castelo; e tanto durou a porfia, que terminaram, sem
acabá-la, por chegar a ela, na qual Sancho entrou, sem mais
averiguação, com toda sua récua.

CAPÍTULO XVI

Do que sucedeu ao engenhoso fidalgo na estalagem que ele


imaginava ser castelo
O vendeiro, que viu dom Quixote atravessado no asno, perguntou a
Sancho que mal tinha ele. Sancho lhe respondeu que não era nada,
senão que havia sofrido uma queda de uma penha abaixo, e que tinha
algo machucadas as costelas. Tinha o vendeiro por mulher a uma não
da condição que costumam ter as de semelhante trato, porque
naturalmente era caritativa e se doía das calamidades de seus
próximos; e assim, acudiu logo a curar dom Quixote e fez que uma
filha sua, donzela, moça e de muito bom parecer, a ajudasse a curar
seu hóspede. Servia na estalagem, também, uma moça asturiana, larga
de cara, pescoço curto, de nariz achatado, de um olho torta e do outro
não muito sã. Verdade é que a galhardia do corpo supria as demais
faltas: não tinha sete palmos dos pés à cabeça, e as costas, que algum
tanto a encurvavam, faziam-na olhar para o chão mais do que ela
queria. Esta gentil moça, pois, ajudou a donzela, e as duas fizeram uma
muito má cama para dom Quixote num sótão que, em outros tempos,
dava manifestos indícios de haver servido de palheiro muitos anos; o
qual também alojava um arreeiro, que tinha sua cama feita um pouco
mais para lá da de nosso dom Quixote. E embora fosse das cilhas e
mantas de seus mulos, fazia muita vantagem à de dom Quixote, que só
continha quatro mal lisas tábuas, sobre dois não muito iguais bancos, e
um colchão que no fim parecia colcha, cheio de bodoques, que, a não
mostrar que eram de lã por alguns buracos, ao cabo, na dureza,
semelhavam ser de seixo, e dois lençóis feitos de couro de escudo, e
uma manta, cujos fios, se se quisessem contar, não se perderia um só
da conta.
Nesta maldita cama se acostou dom Quixote, e logo a vendeira e
sua filha o emplastaram de cima abaixo, alumiando-as Maritornes, que
assim se chamava a asturiana; e, como ao emplastá-lo visse a vendeira
dom Quixote tão amarrotado, disse que aquilo mais pareciam golpes
que queda.
- Não foram golpes - disse Sancho, - senão que a penha tinha muitos
picos e topadas, e que cada um fez sua pisadura.
E também lhe disse:
- Faça vossa mercê, senhora, de maneira que fiquem algumas
estopas, que não faltará quem as necessite; que também me doem um
pouco os lombos.
- Dessa maneira - respondeu a vendeira, - também devestes vós
cair.
- Não caí - disse Sancho Pança, - senão que do sobressalto que
tomei de ver meu amo cair, de tal maneira me dói o corpo que me
parece que me deram mil golpes.
- Bem poderá ser isso - disse a donzela; - que a mim me aconteceu
muitas vezes sonhar que caía de uma torre abaixo e que nunca acabava
de chegar ao chão, e, quando despertava do sonho, achar-me tão
moída e quebrantada como se verdadeiramente houvesse caído.
- Aí está, senhora - respondeu Sancho Pança: - que eu, sem sonhar
nada, senão estando mais desperto que agora estou, me acho com
pouco menos escoriações que meu senhor dom Quixote.
- Como se chama este cavaleiro? - perguntou a asturiana
Maritornes.
- Dom Quixote da Mancha - respondeu Sancho Pança, - e é cavaleiro
aventureiro, e dos melhores e mais fortes que de longos tempos até
aqui se viram no mundo.
- Que é cavaleiro aventureiro? - replicou a moça.
- Tão nova sois no mundo que não o sabeis? - respondeu Sancho
Pança. - Pois sabei, irmã minha, que cavaleiro aventureiro é uma coisa
que em duas palavras se vê apaleado e imperador. Hoje está a mais
desditada criatura do mundo e a mais necessitada, e amanhã teria
duas ou três coroas de reinos que dar a seu escudeiro.
- Pois, como vós, sendo deste tão bom senhor - disse a vendeira, -
não tendes, ao que parece, sequer algum condado?
- Ainda é cedo - respondeu Sancho, - porque não há senão um mês
que andamos buscando aventuras, e até agora não topamos com
nenhuma que o seja. E talvez haja que se busque uma coisa e se ache
outra. Verdade é que, se meu senhor dom Quixote sara desta ferida
ou queda e eu não fico tolhido dela, não trocaria minhas esperanças
com o melhor título da Espanha.
Todas estas conversas estava escutando, muito atento, dom
Quixote, e, sentando-se no leito como pôde, tomando da mão à
vendeira, disse-lhe:
- Crede-me, formosa senhora, que vos podeis chamar venturosa por
haver alojado neste vosso castelo a minha pessoa, que é tal, que se eu
não a louvo, é pelo que costuma dizer-se que a louvação própria
envilece; mas meu escudeiro vos dirá quem sou. Só vos digo que terei
eternamente escrito em minha memória o serviço que me fizestes,
para agradecer-vos enquanto a vida me durar; e prouvera aos altos
céus que o amor não me tivesse tão rendido e tão sujeito a suas leis, e
aos olhos daquela formosa ingrata que digo entre meus dentes; que os
desta formosa donzela foram senhores de minha liberdade.
Confusas estavam a vendeira e sua filha e a boa Maritornes ouvindo
as razões do andante cavaleiro, que assim as entendiam como se
falasse em grego, embora bem alcançaram que todas se encaminhavam
a oferecimento e galanteios; e, como não acostumadas a semelhante
linguagem, olhavam-no e admiravam-se, e parecia-lhes diferente
homem dos que existiam; e, agradecendo-lhe com vendeiras razões
seus oferecimentos, deixaram-no; e a asturiana Maritornes curou
Sancho, que não menos o precisava que seu amo.
Havia o arreeiro combinado com ela que aquela noite se refocilariam
juntos, e ela lhe havia dado sua palavra de que, estando sossegados os
hóspedes e dormindo seus amos, iria procurá-lo e satisfazer-lhe o
gosto em quanto a mandasse. E conta-se desta boa moça que jamais
deu semelhantes palavras que não as cumprisse, embora as desse num
monte e sem testemunho algum; porque presumia-se muito de fidalga,
e não tinha por afronta estar naquele exercício de servir na
estalagem, porque dizia ela que desgraças e maus sucessos a haviam
trazido àquele estado.
O duro, estreito, apoucado e falso leito de dom Quixote estava à
frente naquele estrelado estábulo, e logo, junto a ele, fez o seu
Sancho, que só continha uma esteira de junco e uma manta, que antes
mostrava ser de farpas que de lã. Sucedia a estes dois leitos o do
arreeiro, fabricado, como se disse, das albardas e todo o adorno dos
dois melhores mulos que trazia, embora fossem doze, luzidios, gordos
e famosos, porque era um dos ricos arreeiros de Arévalo, segundo o
diz o autor desta história, que deste arreeiro faz particular menção,
porque o conhecia muito bem, e ainda querem dizer que era algo
parente seu. Além do que Cide Mahamate Benengeli foi historiador
muito curioso e muito pontual em todas as coisas; e isso bem se vê,
pois as que ficam referidas, com ser tão mínimas e tão rasteiras, não
as quis passar em silêncio; de onde poderão tomar exemplo os
historiadores graves, que nos contam as ações tão curta e
sucintamente que apenas nos chegam aos lábios, deixando-se no
tinteiro, já por descuido, por malícia ou ignorância, o mais substancial
da obra. Bem haja mil vezes o autor de Tablante de Ricamonte, e
aquele do outro livro onde se contam os feitos do conde Tomillas; e
com que pontualidade o descrevem todo!
Digo, pois, que depois de haver visitado o arreeiro sua récua e dado-
lhe a segunda ração, estendeu-se em suas albardas e se pôs a esperar
sua pontualíssima Maritornes. Já estava Sancho emplastado e deitado
e, embora procurasse dormir, não o consentia a dor de suas costelas;
e dom Quixote, com a dor das suas, tinha os olhos abertos como lebre.
Toda a estalagem estava em silêncio, e em toda ela não havia outra luz
que a que dava uma lâmpada que pendurada em meio do portal ardia.
Esta maravilhosa quietude, e os pensamentos que sempre nosso
cavaleiro trazia dos sucessos que a cada passo se contam nos livros
autores de sua desgraça, trouxeram-lhe à imaginação uma das
estranhas loucuras que boamente imaginar-se podem. E foi que ele
imaginou haver chegado a um famoso castelo (que, como se disse,
castelos eram a seu parecer todas as estalagens onde se alojava) e
que a filha do vendeiro o era do senhor do castelo, a qual, vencida de
sua gentileza, se havia enamorado dele e prometido que aquela noite, a
furto de seus pais, viria a jazer com ele um bom tempo; e, tendo toda
esta quimera, que ele havia fabricado, por firme e certa, começou a
afligir-se e a pensar no perigoso transe em que sua honestidade se
havia de ver, e propôs em seu coração de não cometer aleivosia contra
sua senhora Dulcineia do Toboso, embora a mesma rainha Ginevra com
sua dama Quintañona se lhe pusessem diante.
Pensando, pois, nestes disparates, chegou o tempo e a hora (que
para ele foi aziaga) da vinda da asturiana, a qual, em camisa e
descalça, colhidos os cabelos em uma rede de fustão, com tácitos e
prudentes passos, entrou no aposento onde os três se alojavam em
busca do arreeiro. Mas, apenas chegou à porta, quando dom Quixote a
sentiu e, sentando-se na cama, apesar de seus emplastros e com dor
de suas costelas, estendeu os braços para receber sua formosa
donzela. A asturiana, que, toda recolhida e calada, ia com as mãos
diante buscando a seu querido, topou com os braços de dom Quixote,
o qual a agarrou fortemente pelo pulso e, puxando-a para si, sem que
ela ousasse falar palavra, a fez sentar sobre a cama. Tenteou-lhe logo
a camisa, e, embora ela fosse de aniagem, a ele pareceu ser de
finíssima e delgada tela de seda. Trazia nos pulsos umas contas de
vidro, mas a ele deram vislumbres de preciosas pérolas orientais. Os
cabelos, que de alguma maneira pareciam crinas, ele os tomou por fios
de luzidíssimo ouro da Arábia, cujo resplendor o do mesmo sol
escurecia. E o hálito, que, sem dúvida alguma, cheirava a salada
rançosa e estragada, a ele pareceu que arrojava de sua boca um olor
suave e aromático; e, finalmente, ele a pintou em sua imaginação com o
mesmo traço e modo que havia lido em seus livros da outra princesa
que veio ver o mal ferido cavaleiro, vencida de seus amores, com todos
os adornos que aqui vão postos. E era tanta a cegueira do pobre
fidalgo, que o tato, nem o hálito, nem outras coisas que trazia em si a
boa donzela, não o desenganavam, as quais poderiam fazer vomitar a
outro que não fosse arreeiro; antes, parecia-lhe que tinha entre seus
braços a deusa da formosura. E tendo-a bem segura, com voz amorosa
e baixa começou a dizer-lhe:
- Quisera achar-me em termos, formosa e alta senhora, de poder
pagar tamanha mercê como a que com a vista de vossa grande
formosura me fizestes, mas quis a fortuna, que não se cansa de
perseguir os bons, pôr-me neste leito, onde jazo tão moído e
quebrantado que, embora de minha vontade quisesse satisfazer à
vossa, seria impossível. E mais, que se junte a esta impossibilidade
outra maior, que é a prometida fé que tenho dada à sem par Dulcineia
do Toboso, única senhora de meus mais escondidos pensamentos; que
se isto não houvesse por meio, não seria eu tão louco cavaleiro que
deixasse passar em branco a venturosa ocasião que vossa grande
bondade me propicia.
Maritornes estava angustiadíssima e transpirando, de ver-se tão
apertada por dom Quijote, e, sem entender nem estar atenta às
razões que lhe dizia, procurava, sem falar palavra, soltar-se. O bom
do arreeiro, a quem tinham desperto seus maus desejos, desde o
ponto que entrou sua parceira pela porta, percebeu-a; esteve
atentamente escutando tudo o que dom Quixote dizia, e, zeloso de
que a asturiana lhe houvesse faltado à palavra por outro, foi-se
chegando mais ao leito de dom Quixote, e esteve quieto até ver em
que paravam aquelas razões, que ele não podia entender. Mas, como viu
que a moça forcejava por soltar-se e dom Quixote trabalhava por
retê-la, parecendo-lhe mal a burla, alçou o braço ao alto e
descarregou tão terrível murro sobre as estreitas queixadas do
enamorado cavaleiro, que lhe banhou toda a boca em sangue; e, não
contente com isto, subiu-lhe em cima das costelas, e com os pés mais
que a trote, passeou-as todas de cabo a rabo.
O leito, que era um pouco débil e de não firmes fundamentos, não
podendo sofrer o acréscimo do arreeiro, deu consigo no chão, a cujo
grande ruído despertou o vendeiro, e logo imaginou que deviam de ser
pendências de Maritornes, porque, havendo-a chamado aos gritos, não
respondia. Com esta suspeita se levantou, e, acendendo uma lamparina,
foi até onde havia sentido a refrega. A moça, vendo que seu amo vinha,
e que era de condição terrível, toda medrosinha e alvoroçada,
refugiou-se na cama de Sancho Pança, que ainda dormia, e ali se
encolheu e se fez um novelo. O vendeiro entrou dizendo:
- Onde estás, puta? Certamente que são tuas coisas estas.
Nisto, despertou Sancho, e, sentindo aquele vulto quase em cima de
si, pensou que era pesadelo, e começou a dar murros a uma e outra
parte, e entre outras alcançou com não sei quantos a Maritornes, a
qual, sentida da dor, desprezando o decoro, deu o retorno a Sancho
com tantos que, a seu despeito, tirou-lhe o sono; o qual, vendo-se
tratar daquela maneira e sem saber de quem, levantando-se como
pôde, abraçou-se com Maritornes, e começaram os dois a mais renhida
e graciosa escaramuça do mundo.
Vendo, pois, o arreeiro, à luz da lamparina do vendeiro, como estava
sua dama, deixando dom Quixote, acudiu a dar-lhe o socorro
necessário. O mesmo fez o vendeiro, mas com intenção diferente,
porque foi a castigar à moça, crendo sem dúvida que ela só era o
motivo de todo aquele bafafá. E assim como costuma dizer-se: “o gato
ao rato, o rato à corda, a corda ao golpe”, dava o arreeiro em Sancho,
Sancho na moça, a moça nele, o vendeiro na moça, e todos batiam com
tanta pressa que não se davam repouso; e deu-se que ao vendeiro se
lhe apagou a lamparina, e, como ficaram às escuras, davam-se tão sem
compaixão todos que, onde quer que punham a mão, não deixavam nada
são.
Alojava-se acaso aquela noite na estalagem um quadrilheiro dos que
chamam da Santa Irmandade Velha de Toledo, o qual, ouvindo também
o estranho estrondo da peleja, pegou sua meia vara e a caixa de lata
de seus títulos, e entrou às escuras no aposento, dizendo:
- Detenham-se à justiça! Detenham-se à Santa Irmandade!
E o primeiro com quem topou foi com o esmurrado dom Quixote, que
estava em seu derrubado leito, estendido de boca para cima, sem
sentido algum, e, agarrando-lhe as barbas, não cessava de dizer:
- “Favor à justiça!”
Mas, vendo que o que tinha segurado não se movia, entendeu que
estava morto, e que os que ali dentro estavam eram seus matadores; e
com esta suspeita reforçou a voz, dizendo:
- Feche-se a porta da estalagem! Vejam não se vá ninguém, que
mataram aqui um homem!
Esta voz sobressaltou a todos, e cada qual deixou a pendência na
atitude em que lhe alcançou a voz. Retirou-se o vendeiro a seu
aposento, o arreeiro a suas albardas, a moça a seu rancho; só os
desventurados dom Quixote e Sancho não se puderam mover de onde
estavam. Soltou nisto o quadrilheiro a barba de dom Quixote, e saiu a
buscar luz para buscar e prender os delinquentes; mas não a achou,
porque o vendeiro, deliberadamente, havia apagado a lâmpada quando
se retirou para seu quarto, e foi-lhe forçoso acudir à chaminé, onde,
com muito trabalho e tempo, acendeu o quadrilheiro outra lamparina.

CAPÍTULO XVII

Onde prosseguem os inumeráveis trabalhos que o bravo dom


Quixote e seu bom escudeiro Sancho Pança passaram na estalagem
que por seu mal pensou que era castelo

Havia já voltado neste tempo de sua síncope dom Quixote, e, com o


mesmo tom de voz com que no dia antes havia chamado seu escudeiro,
quando estava estendido no vale dos cajados, começou a chamá-lo,
dizendo:
- Sancho amigo, dormes? Dormes, amigo Sancho?
- Que tenho de dormir, desditado de mim - respondeu Sancho,
cheio de pesar e de despeito; - que não parece senão que todos os
diabos estiveram comigo esta noite?
- Podes crer assim, sem dúvida - respondeu dom Quixote, - porque,
ou eu sei pouco, ou este castelo é encantado. Porque hás de saber...
Mas isto que agora quero dizer-te hás me de jurar que o terás
secreto até depois de minha morte.
- Sim, juro - respondeu Sancho.
- Digo-o - replicou dom Quixote, - porque sou inimigo de que se tire
a honra a ninguém.
- Digo que sim, juro - tornou a dizer Sancho - que o calarei até
depois dos dias de vossa mercê, e praza a Deus que o possa descobrir
amanhã.
- Tão más obras te faço, Sancho - respondeu dom Quixote, - que me
querias ver morto com tanta brevidade?
- Não é por isso - respondeu Sancho, - senão porque sou inimigo de
guardar muito as coisas, e não queria que apodrecessem de guardadas.
- Seja pelo que for - disse dom Quixote; - que mais confio em teu
amor e em tua cortesia; e assim, hás de saber que esta noite me
sucedeu uma das mais estranhas aventuras que eu saberei encarecer;
e, por te a contar brevemente, saberás que pouco há que a mim veio a
filha do senhor deste castelo, que é a mais charmosa e formosa
donzela que em grande parte da terra se pode achar. Que te poderia
dizer da beleza de sua pessoa? Que de seu galhardo entendimento?
Que de outras coisas ocultas, que, por guardar a fé que devo a minha
senhora Dulcineia do Toboso, deixarei passar intactas e em silêncio?
Só te quero dizer que, invejoso o céu de tanto bem como a ventura me
havia posto nas mãos, ou quiçá, e isto é o mais certo, que, como tenho
dito, é encantado este castelo, ao tempo que eu estava com ela em
dulcíssimos e amorosíssimos colóquios, sem que eu a visse nem
soubesse por onde vinha, veio uma mão pegada a algum braço de algum
descomunal gigante e assentou-me um murro nas queixadas, tal, que as
tenho todas banhadas em sangue; e depois me moeu de tal sorte que
estou pior que ontem quando os arreeiros, que, por demasias de
Rocinante, fizeram-nos o agravo que sabes. Por onde conjecturo que o
tesouro da formosura desta donzela deve guardá-lo algum encantado
mouro, e não deve ser para mim.
- Nem para mim tampouco - respondeu Sancho, - porque mais de
quatrocentos mouros me espancaram, de maneira que o moimento dos
cajados foi tortas e pão pintado. Mas diga-me, senhor, como chama a
esta boa e rara aventura, havendo ficado dela qual ficamos? Ainda
vossa mercê menos mal, pois teve em suas mãos aquela incomparável
formosura que disse, mas eu, que levei senão as maiores porradas que
penso receber em toda minha vida? Desditado de mim e da mãe que
me pariu, que nem sou cavaleiro andante, nem o penso ser jamais, e de
todos os infortúnios de que me cabe a maior parte!
- Logo, também estás tu aporreado? - respondeu dom Quixote.
- Não lhe disse que sim, pese à minha linhagem? - disse Sancho.
- Não tenhas pena, amigo - disse dom Quixote, - que eu farei agora
o bálsamo precioso com que nos curaremos num abrir e fechar de
olhos.
Acabou nisto de acender a lamparina o quadrilheiro, e entrou para
ver o que pensava que estava morto; e, assim que o viu entrar Sancho,
vendo-o vir em camisa e com seu pano de cabeça e lamparina na mão, e
com uma muito má cara, perguntou a seu amo:
- Senhor, será este, por acaso, o mouro encantado, que nos volta a
castigar, se esqueceu algo?
- Não pode ser o mouro - respondeu dom Quixote, - porque os
encantados não se deixam ver por ninguém.
- Se não se deixam ver, deixam-se sentir - disse Sancho; - se não,
digam-no minhas costas.
- Também o poderiam dizer as minhas - respondeu dom Quixote, -
mas não é bastante indício esse para crer que este que se vê seja o
encantado mouro.
Chegou o quadrilheiro, e, como os achou falando em tão sossegada
conversação, ficou suspenso. Bem é verdade que ainda dom Quixote
estava de boca para cima, sem poder-se mexer, de puro moído e
emplastado. Chegou-se a ele o quadrilheiro e disse-lhe:
- Pois, como vai, bom homem?
- Falaria eu com mais educação - respondeu dom Quixote, - se
estivesse em vosso lugar. Usa-se nesta terra falar dessa sorte aos
cavaleiros andantes, tonto?
O quadrilheiro, que se viu tratar tão mal por um homem de tão mau
parecer, não o pôde suportar, e, alçando a lamparina com todo seu
azeite, deu em dom Quijote com ela na cabeça, de sorte que o deixou
muito bem estropiado; e, como tudo ficou às escuras, saiu logo; e
Sancho Pança disse:
- Sem dúvida, senhor, que este é o mouro encantado, e deve guardar
o tesouro para outros, e para nós só guarda os murros e os
lamparinaços.
- Assim é - respondeu dom Quixote, - e não há que fazer caso
destas coisas de encantamentos, nem há para que ter cólera nem nojo
com elas; que, como são invisíveis e fantásticas, não acharemos de
quem nos vingar, embora mais o procuremos. Levanta-te, Sancho, se
podes, e chama o alcaide desta fortaleza, e procura que se me dê um
pouco de azeite, vinho, sal e alecrim para fazer o salutífero bálsamo;
que em verdade creio que preciso muito dele agora, porque me sai
muito sangue da ferida que este fantasma me deu.
Levantou-se Sancho com muita dor nos ossos, e foi às escuras onde
estava o vendeiro; e, encontrando-se com o quadrilheiro, que estava
escutando em que parava seu inimigo, disse-lhe:
- Senhor, quem queira que sejais, fazei-nos mercê e benefício de
dar-nos um pouco de alecrim, azeite, sal e vinho, que é mister para
curar um dos melhores cavaleiros andantes que há na terra, o qual jaz
naquela cama, malferido pelas mãos do encantado mouro que está
nesta estalagem.
Quando o quadrilheiro tal ouviu, teve-o por homem falto de juízo; e,
porque já começava a amanhecer, abriu a porta da estalagem, e,
chamando o vendeiro, disse-lhe o que aquele bom homem queria. O
vendeiro lhe proveu de quanto quis, e Sancho o levou a dom Quixote,
que estava com as mãos na cabeça, queixando-se da dor do
lamparinaço, que não lhe havia feito mais mal que levantar-lhe dois
galos algo crescidos, e o que ele pensava que era sangue não era senão
suor que suava com a angústia da passada tormenta.
Em suma, ele apanhou seus ingredientes, dos quais fez um composto,
misturando-os todos e cozendo-os um bom tempo, até que lhe pareceu
que estavam no ponto. Pediu logo alguma redoma para colocá-lo, e,
como não a houve na estalagem, resolveu pô-lo em uma vinagreira ou
azeiteira de folha de lata, de que o vendeiro lhe fez grata doação. E
logo disse sobre a vinagreira mais de oitenta pai-nossos e outras
tantas ave-marias, salves e credos, e a cada palavra acompanhava uma
cruz, a modo de bênção; a tudo o que se acharam presentes Sancho, o
vendeiro e o quadrilheiro; que já o arreeiro sossegadamente andava
ocupado no cuidado de seus mulos.
Feito isto, quis ele mesmo fazer logo a experiência do poder
daquele precioso bálsamo que ele imaginava; e assim, bebeu, do que
não pôde caber na vinagreira e ficava na panela onde se havia cozido,
quase um litro; e apenas o acabou de beber, quando começou a vomitar
de maneira que não lhe ficou nada no estômago; e com as ânsias e
agitação do vômito lhe deu um suor copiosíssimo, pelo qual mandou que
o agasalhassem e o deixassem sozinho. Fizeram-no assim, e ficou
adormecido mais de três horas, ao cabo das quais despertou e se
sentiu aliviadíssimo do corpo, e de tal maneira melhor de seu
quebrantamento que se teve por são; e verdadeiramente creu que
havia acertado com o bálsamo de Fierabrás, e que com aquele remédio
podia acometer dali em diante, sem temor algum, quaisquer ruínas,
batalhas e pendências, por perigosas que fossem.
Sancho Pança, que também teve por milagre a melhoria de seu amo,
rogou-lhe que desse a ele o que ficava na panela, que não era pouca
quantidade. Concedeu-o dom Quixote, e ele, tomando-a dos mãos, com
boa fé e melhor talante, deu um grande trago, e envasou bem pouco
menos que seu amo. É, pois, o caso que o estômago do pobre Sancho
não devia ser tão delicado como o de seu amo, e assim, em vez de
vomitar, acometeram-no tantas ânsias e náuseas, com tantos suores e
desmaios que ele pensou bem e verdadeiramente que era chegada sua
última hora; e, vendo-se tão afligido e angustiado, maldizia o bálsamo
e ao ladrão que o havia dado. Vendo-o assim dom Quixote, disse-lhe:
- Eu creio, Sancho, que todo este mal te vem de não ser armado
cavaleiro, porque tenho para mim que este licor não deve aproveitar
aos que não o são.
- Se isso sabia vossa mercê - replicou Sancho, - mal haja eu e toda
minha parentela!, para que consentiu que o tomasse?
Nisto, fez sua operação a beberagem e começou o pobre escudeiro
a desaguar por ambos os canais, com tanta pressa que a esteira de
palha, sobre a qual voltara a deitar-se, nem a manta de farpas com que
se cobria, foram mais de proveito. Suava e transudava com tais
síncopes e acidentes, que não somente ele, senão todos pensaram que
lhe acabava a vida. Durou-lhe esta borrasca e má andança quase duas
horas, ao cabo das quais não ficou como seu amo, senão tão moído e
quebrantado que não se podia ter.
Mas dom Quixote, que, como se disse, sentiu-se aliviado e são, quis
partir logo a buscar aventuras, parecendo-lhe que todo o tempo que ali
tardava era privar o mundo e os nele necessitados de seu favor e
amparo; e mais com a segurança e confiança que levava em seu
bálsamo. E assim, forçado deste desejo, ele mesmo encilhou Rocinante
e albardou o jumento de seu escudeiro, a quem também ajudou a
vestir e a subir no asno. Pôs-se logo a cavalo, e, chegando-se a um
canto da estalagem, pegou um chuço que ali estava, para que lhe
servisse de lança.
Estavam-no olhando todos quantos havia na estalagem, que
passavam de mais de vinte pessoas; olhava-o também a filha do
vendeiro, e ele também não tirava os olhos dela, e de quando em
quando arrojava um suspiro que parecia que o arrancava do profundo
de suas entranhas, e todos pensavam que devia ser da dor que sentia
nas costelas; ao menos, pensavam-no aqueles que a noite antes o
haviam visto emplastar-se.
Assim que estiveram os dois a cavalo, posto à porta da estalagem,
chamou o vendeiro, e com voz muito repousada e grave lhe disse:
- Muitas e muito grandes são as mercês, senhor alcaide, que neste
vosso castelo recebi, e fico obrigadíssimo a agradecer-vo-las todos os
dias de minha vida. Se vos as posso pagar em fazer-vos vingado de
algum soberbo que vos haja feito algum agravo, sabei que meu ofício
não é outro senão valer aos que pouco podem, e vingar aos que
recebem tortos, e castigar aleivosias. Recorrei a vossa memória, e se
achais alguma coisa deste jaez que encomendar-me, não há senão
dizê-la; que eu vos prometo, pela ordem de cavaleiro que recebi, de
fazer-vos satisfeito e pago a toda vossa vontade.
O vendeiro respondeu com o mesmo sossego:
- Senhor cavaleiro, eu não tenho necessidade de que vossa mercê
me vingue nenhum agravo, porque eu sei tomar a vingança que me
parece, quando me fazem. Só preciso que vossa mercê me pague o
gasto que esta noite fez na estalagem, assim da palha e cevada de
suas duas bestas, como do jantar e camas.
- Logo, estalagem é esta? - replicou dom Quixote.
- E muito honrada - respondeu o vendeiro.
- Enganado vivi até aqui - respondeu dom Quixote, - que em verdade
pensei que era castelo, e não mau; mas, pois é assim que não é castelo
senão estalagem, o que se poderá fazer por agora é que perdoeis pela
paga, que eu não posso contravir à ordem dos cavaleiros andantes, dos
quais sei certo, sem que até agora haja lido coisa em contrário, que
jamais pagaram pousada nem outra coisa em estalagem onde
estivessem, porque se lhes deve por privilégio e de direito qualquer
bom acolhimento que se lhes fizer, em paga do insofrível trabalho que
padecem buscando as aventuras de noite e de dia, no inverno e no
verão, a pé e a cavalo, com sede e com fome, com calor e com frio,
sujeitos a todas as inclemências do céu e a todos os incômodos da
terra.
- Pouco tenho eu que ver nisso - respondeu o vendeiro; - pague-me o
que me deve, e deixemo-nos de contos e de cavalarias, que eu não
tenho conta com outra coisa que com cobrar meu trabalho.
- Vós sois um louco e mau hospitaleiro - respondeu dom Quixote.
E pondo pernas a Rocinante e terçando seu chuço, saiu da
estalagem sem que ninguém o detivesse, e ele, sem olhar se o seguia
seu escudeiro, alongou-se um bom trecho.
O vendeiro, que o viu ir e que não lhe pagava, acudiu a cobrar de
Sancho Pança, o qual disse que, pois seu senhor não havia querido
pagar, que tampouco ele pagaria; porque, sendo ele escudeiro de
cavaleiro andante, como era, a mesma regra e razão corria por ele
como por seu amo em não pagar coisa alguma nas hospedarias e
estalagens. Desgostou-se muito disto o vendeiro, e ameaçou-o de que
se não lhe pagasse, que o cobraria de modo que lhe pesasse. A que
Sancho respondeu que, pela lei de cavalaria que seu amo havia
recebido, não pagaria um só cêntimo, embora lhe custasse a vida;
porque não havia de perder por ele a boa e antiga usança dos
cavaleiros andantes, nem se haviam de queixar dele os escudeiros dos
tais que estavam por vir ao mundo, censurando-lhe a quebra de tão
justo privilégio.
Quis a má sorte do desditado Sancho que, entre a gente que estava
na estalagem, se achassem quatro cardadores de lã de Segóvia, três
fabricantes de agulhas do Potro de Córdova e dois vizinhos da Feira
de Sevilha, gente alegre, bem intencionada, escrachada e brincalhona,
os quais, quase como instigados e movidos por um mesmo espírito,
chegaram-se a Sancho e, apeando-o do asno, um deles entrou em
busca da manta da cama do hospedeiro, e, colocando-o nela, alçaram
os olhos e viram que o teto era algo mais baixo do que precisavam para
sua obra, e determinaram sair ao curral, que tinha por limite o céu. E
ali, posto Sancho no meio da manta, começaram a levantá-lo ao alto e a
brincar com ele como com cachorro pelo carnaval.
As vozes que o mísero manteado dava foram tantas, que chegaram
aos ouvidos de seu amo; o qual, determinando-se a escutar
atentamente, creu que alguma nova aventura lhe vinha, até que
claramente conheceu que o que gritava era seu escudeiro; e, volvendo
as rédeas, com um sofrido galope chegou à estalagem, e, achando-a
fechada, rodeou-a para ver se achava por onde entrar; mas não havia
chegado às paredes do curral, que não eram muito altas, quando viu o
mau jogo que se fazia a seu escudeiro. Viu-o baixar e subir pelo ar,
com tanta graça e presteza que, se a cólera deixasse, tenho para mim
que se riria. Tentou subir do cavalo às bordas do muro, mas estava tão
moído e quebrantado que mesmo apear-se não pôde; e assim, de cima
do cavalo, começou a dizer tantas injúrias e ofensas aos que a Sancho
manteavam, que não é possível acertar a escrevê-las; mas não por isto
cessavam eles seu riso e sua obra, nem o voador Sancho deixava suas
queixas, misturadas já com ameaças, já com rogos; mas tudo
aproveitava pouco, nem aproveitou, até que de tão cansados o
deixaram. Trouxeram-lhe ali seu asno, e, subindo-o em cima, vestiram-
no com seu gabão. E a compassiva Maritornes, vendo-o tão fatigado,
pareceu-lhe ser bom socorrê-lo com um jarro de água, e assim,
trouxe-lhe do poço, por ser mais frio. Tomou-o Sancho, e levando-o à
boca, parou às vozes que seu amo lhe dava, dizendo:
- Filho Sancho, não bebas água! Filho, não a bebas, que te matará!
Vês? Aqui tenho o santíssimo bálsamo - e mostrava-lhe a vinagreira da
beberagem, - com duas gotas que dele bebas sararás sem dúvida.
A estas vozes volveu Sancho os olhos, como de través, e disse com
outras maiores:
- Por acaso esqueceu-se vossa mercê de que eu não sou cavaleiro, ou
quer que acabe de vomitar as entranhas que me ficaram de ontem à
noite? Guarde seu licor com todos os diabos e deixe-me.
E o acabar de dizer isto e o começar a beber tudo foi um; mas,
como ao primeiro trago viu que era água, não quis passar adiante, e
rogou a Maritornes que lhe trouxesse vinho, e assim o fez ela de
muito boa vontade, e o pagou com seu próprio dinheiro; porque, com
efeito, se diz dela que, embora estava naquele trato, tinha umas
sombras e longes de cristã.
Assim que bebeu Sancho, deu com os calcanhares em seu asno, e,
abrindo a porta da estalagem de par em par, saiu dela, muito contente
de não haver pagado nada e de haver saído com sua intenção, embora
houvesse sido à custa de seus costumeiros fiadores, que eram suas
costas. Verdade é que o vendeiro ficou com seus alforjes em paga do
que se lhe devia; mas Sancho não sentiu falta deles, pois saiu
perturbado. Quis o vendeiro trancar bem a porta assim que o viu fora,
mas não o consentiram os manteadores, que eram gente que, embora
dom Quixote fosse verdadeiramente dos cavaleiros andantes da
Távola Redonda, não o estimaram em dois tostões.

CAPÍTULO XVIII

Onde se contam as razões que passou Sancho Pança com seu senhor
dom Quixote, com outras aventuras dignas de ser contadas

Chegou Sancho a seu amo murcho e desmaiado; tanto, que não podia
arrear seu jumento. Quando assim o viu dom Quixote, disse-lhe:
- Agora acabo de crer, Sancho bom, que aquele castelo ou
estalagem é encantado sem dúvida; porque aqueles que tão
atrozmente fizeram troça de ti, que podiam ser senão fantasmas e
gente do outro mundo? E confirmo isto por haver visto que, quando
estava pelas cercas do curral olhando os atos de tua triste tragédia,
não me foi possível subir por elas, nem menos pude apear-me de
Rocinante, porque me deviam ter encantado; pois te juro, pela fé de
quem sou, que se pudesse subir ou apear-me, eu te vingaria de maneira
que aqueles baderneiros e gatunos se recordariam da burla para
sempre, embora nisso soubesse contrariar as leis da cavalaria, que,
como já muitas vezes te disse, não consentem que cavaleiro ponha mão
contra quem não o seja, se não for em defesa de sua própria vida e
pessoa, em caso de urgente e grande necessidade.
- Também me vingaria eu se pudesse, fosse ou não fosse armado
cavaleiro, mas não pude; embora tenha para mim que aqueles que
folgaram comigo não eram fantasmas nem homens encantados, como
vossa mercê diz, senão homens de carne e osso como nós; e todos,
segundo os ouvi nomear quando me volteavam, tinham seus nomes: que
um se chamava Pedro Martínez, e o outro Tenório Hernández, e o
vendeiro ouvi que se chamava Juan Palomeque o Canhoto. Assim que,
senhor, o não poder saltar as cercas do curral, nem apear-se do
cavalo, de outra coisa se tratou que de encantamentos. E o que eu tiro
a limpo de tudo isto é que estas aventuras que andamos buscando, ao
cabo ao cabo, hão-nos de trazer tantas desventuras que não saibamos
qual é nosso pé direito. E o que seria melhor e mais acertado, segundo
meu pouco entendimento, seria o voltar a nosso lugar, agora que é
tempo da ceifa e de cuidar dos bens, deixando de andar de Ceca em
Meca e de coisa má para outra pior, como dizem.
- Que pouco sabes, Sancho - respondeu dom Quixote, - de ofício de
cavalaria! Cala e tem paciência, que dia virá onde vejas por teus olhos
quão honrosa coisa é andar neste exercício. Se não, diz-me: que maior
alegria pode haver no mundo, ou que gosto pode igualar-se ao de
vencer uma batalha e ao de triunfar de seu inimigo? Nenhum, sem
dúvida alguma.
- Assim deve ser - respondeu Sancho, - embora eu não o saiba; só
sei que, desde que somos cavaleiros andantes, ou vossa mercê o é (que
eu não há para que me conte em tão honroso número), jamais vencemos
batalha alguma, se não foi a do biscainho, e ainda daquela saiu vossa
mercê com meia orelha e meio elmo menos; que, desde então, tudo tem
sido golpes e mais golpes, murros e mais murros, levando eu de
vantagem o manteamento e haver-me sucedido por pessoas
encantadas, de quem não posso vingar-me, para saber até onde chega
o gosto do vencimento do inimigo, como vossa mercê diz.
- Essa é a pena que eu tenho e a que tu deves ter, Sancho -
respondeu dom Quixote; - mas, daqui em diante, eu procurarei ter às
mãos alguma espada feita por tal magia, que ao que a trouxer consigo
não lhe possam fazer nenhum gênero de encantamentos; e ainda
poderia ser que me deparasse a ventura aquela de Amadis, quando se
chamava o Cavaleiro da Ardente Espada, que foi uma das melhores
espadas que teve cavaleiro no mundo, porque, além de ter tal poder,
cortava como uma navalha, e não havia armadura, por forte e
encantada que fosse, que se lhe comparasse.
- Eu sou tão venturoso - disse Sancho - que, quando isso fosse e
vossa mercê viesse a achar espada semelhante, só viria a servir e
aproveitar aos armados cavaleiros, como o bálsamo; e os escudeiros,
que os parta o raio.
- Não temas isso, Sancho - disse dom Quixote, - que melhor o fará
o céu contigo.
Nestes colóquios iam dom Quixote e seu escudeiro, quando viu dom
Quixote que pelo caminho que iam vinha até eles uma grande e espessa
nuvem de poeira; e, vendo-a, voltou-se para Sancho e lhe disse:
- Este é o dia, oh Sancho!, no qual se há de ver o bem que me tem
guardado minha sorte; este é o dia, digo, em que se há de mostrar,
tanto como em outro algum, o valor de meu braço, e no que tenho de
fazer obras que fiquem escritas no livro da Fama por todos os
vindouros séculos. Vês aquela poeira que ali se levanta, Sancho? Pois
toda está coalhada de um copiosíssimo exército que de diversas e
inumeráveis gentes por ali vem marchando.
- A essa conta, dois devem ser - disse Sancho, - porque desta parte
contrária se levanta também outra semelhante poeira.
Voltou a olhar dom Quixote, e viu que assim era verdade; e,
alegrando-se sobremaneira, pensou, sem dúvida alguma, que eram dois
exércitos que se vinham investir e encontrar em meio àquela espaçosa
planura; porque tinha a todas as horas e momentos cheia a fantasia
daquelas batalhas, encantamentos, sucessos, desatinos, amores,
desafios, que nos livros de cavalarias se contam, e tudo quanto falava,
pensava ou fazia era encaminhado a coisas semelhantes. E a poeira que
havia visto a levantavam duas grandes manadas de ovelhas e carneiros
que, por aquele mesmo caminho, de duas diferentes partes vinham, as
quais, com o pó, não se puderam ver até que chegaram perto. E com
tanto afinco afirmava dom Quixote que eram exércitos, que Sancho o
veio a crer e a dizer-lhe:
- Senhor, pois que havemos de fazer nós?
- O quê? - disse dom Quixote: - Favorecer e ajudar aos
necessitados e desvalidos. E hás de saber, Sancho, que este que vem
por nossa frente o conduz e guia o grande imperador Alifanfarão,
senhor da grande ilha Taprobana; este outro que às minhas costas
marcha é o de seu inimigo, o rei dos garamantas, Pentapolin do
Arregaçado Braço, porque sempre entra nas batalhas com o braço
direito desnudo.
- Pois, por que se querem tão mal estes dois senhores? - perguntou
Sancho.
- Querem-se mal - respondeu dom Quixote - porque este
Alifanfarão é um furibundo pagão e está enamorado da filha de
Pentapolin, que é uma muito formosa e ademais graciosa senhora, e é
cristã, e seu pai não a quer entregar ao rei pagão se não deixa
primeiro a lei de seu falso profeta Maomé e volta à sua.
- Por minhas barbas - disse Sancho, - se não faz muito bem
Pentapolin, e que o tenho de ajudar em quanto puder!
- Nisso farás o que deves, Sancho - disse dom Quixote, - porque,
para entrar em batalhas semelhantes, não se requer ser armado
cavaleiro.
- Bem me alcança isso - respondeu Sancho, - mas, onde poremos
este asno que estejamos certos de achá-lo depois de passada a
refrega? Porque o entrar nela em semelhante cavalaria não creio que
está em uso até agora.
- Assim é verdade - disse dom Quixote. - O que podes fazer dele é
deixá-lo a suas aventuras, ora se perca ou não, porque serão tantos os
cavalos que teremos, depois de sairmos vencedores, que ainda corre
perigo Rocinante não lhe troque por outro. Mas está-me atento e olha,
que te quero dar conta dos cavaleiros mais principais que nestes dois
exércitos vêm. E para que melhor os vejas e notes, retiremo-nos
àquele alto que ali se faz, de onde se devem ver os dois exércitos.
Fizeram-no assim, e puseram-se sobre uma colina, desde a qual
veriam bem as duas manadas que a dom Quixote se fizeram exército,
se as nuvens do pó que levantavam não lhes turvasse e cegasse a vista;
entretanto, vendo em sua imaginação o que não via nem havia, com voz
levantada começou a dizer:
- Aquele cavaleiro que ali vês das armas amarelas, que traz no
escudo um leão coroado, rendido aos pés de uma donzela, é o valoroso
Laurcalco, senhor da Ponte de Prata; o outro das armas das flores
de ouro, que traz no escudo três coroas de prata em campo azul, é o
temido Micocolembo, grande duque de Quirócia; o outro dos membros
gigânteos, que está à sua direita mão, é o nunca medroso
Brandabarbarán de Boliche, senhor das três Arábias, que vem armado
daquele couro de serpente, e tem por escudo uma porta que, segundo
é fama, é uma das do templo que Sansão derrubou, quando com sua
morte se vingou de seus inimigos. Mas volta os olhos a esta outra
parte e verás diante e na frente deste outro exército o sempre
vencedor e jamais vencido Timonel de Carcajona, príncipe da Nova
Biscaia, que vem armado com as armas divididas em quartéis, azuis,
verdes, brancas e amarelas, e traz no escudo um gato de ouro em
campo leonado, com uma letra que diz: “Miau”, que é o princípio do
nome de sua dama, que, segundo se diz, é a sem par Miulina, filha do
duque Alfeniquém do Algarve; o outro, que oprime os lombos daquele
poderoso corcel, que traz as armas como neve brancas e o escudo
branco e sem emblema algum, é um cavaleiro novel, de nação francês,
chamado Pierres Papin, senhor das baronias de Utrique; o outro, que
roça as ilhargas com os ferrados calcanhares àquela pintada e ligeira
zebra e traz as armas dos esmaltes azuis, é o poderoso duque de
Nérbia, Espartafilardo do Bosque, que traz por emblema no escudo um
aspargo, com uma letra em castelhano que diz assim: “ Rastreia minha
sorte”.
E desta maneira foi nomeando muitos cavaleiros de um e de outro
esquadrão, que ele imaginava, e a todos deu suas armas, cores,
emblemas e motes de improviso, levado da imaginação de sua nunca
vista loucura; e, sem parar, prosseguiu dizendo:
- Este esquadrão fronteiro formam e fazem gentes de diversas
nações: aqui estão os que bebiam as doces águas do famoso Xanto; os
montanheses que pisam os massílicos campos; os que garimpam o
finíssimo e miúdo ouro na feliz Arábia; os que gozam as famosas e
frescas ribeiras do claro Termodonte; os que sangram por muitas e
diversas vias o dourado Pactolo; os númidas, duvidosos em suas
promessas; os persas, arcos e flechas famosos; os partos, os medos,
que pelejam fugindo; os árabes, de mudáveis casas; os citas, tão cruéis
como brancos; os etíopes, de perfurados lábios, e outras infinitas
nações, cujos rostos conheço e vejo, embora dos nomes não me
lembre. Neste outro esquadrão vêm os que bebem as correntes
cristalinas do olivífero Bétis; os que enrijam e pulem seus rostos com
o licor do sempre rico e dourado Tejo; os que gozam as proveitosas
águas do divino Genil; os que pisam os tartésios campos, de pastos
abundantes; os que se alegram nos elísios xerezanos prados; os
manchegos, ricos e coroados de loiras espigas; os de ferro vestidos,
relíquias antigas do sangue godo; os que no Pisuerga se banham,
famoso pela mansidão de sua corrente; os que seu gado apascentam
nas estendidas pastarias do tortuoso Guadiana, celebrado por seu
escondido curso; os que tremem com o frio dos selvosos Pireneus e
com os brancos flocos do elevado Apenino; finalmente, quantos toda a
Europa em si contém e encerra.
Valha-me Deus, e quantas províncias disse, quantas nações nomeou,
dando a cada uma, com maravilhosa presteza, os atributos que lhe
pertenciam, tudo absorvido e empapado no que havia lido em seus
livros mentirosos!
Estava Sancho Pança pendurado em suas palavras, sem falar
nenhuma, e, de quando em quando, volvia a cabeça a ver se via os
cavaleiros e gigantes que seu amo nomeava; e, como não descobria
nenhum, disse-lhe:
- Senhor, que o diabo leve homem, gigante ou cavaleiro de quantos
vossa mercê diz ver; ao menos, eu não os vejo; quiçá tudo deve ser
encantamento, como as fantasmas de ontem à noite.
- Como dizes isso? - respondeu dom Quixote. - Não ouves o
relinchar dos cavalos, o tocar dos clarins, o ruído dos tambores?
- Não ouço outra coisa - respondeu Sancho - senão muitos balidos
de ovelhas e carneiros.
E assim era a verdade, porque já chegavam perto os dois rebanhos.
- O medo que tens - disse dom Quixote - te faz, Sancho, que nem
vejas nem ouças às direitas; porque um dos efeitos do medo é turvar
os sentidos e fazer com que as coisas não pareçam o que são; e se é
que tanto temes, retira-te à parte e deixa-me só, que sozinho basto
para dar a vitória à parte a quem eu der minha ajuda.
E dizendo isto, esporeou Rocinante, e, posta a lança em riste,
desceu a encosta como um raio.
Deu-lhe vozes Sancho, dizendo-lhe:
- Volte vossa mercê, senhor dom Quixote, que voto a Deus que são
carneiros e ovelhas as que vai a investir! Volte, desditado do pai que
me engendrou! Que loucura é esta? Olhe que não há gigante nem
cavaleiro algum, nem gatos, nem armas, nem escudos partidos nem
inteiros, nem esmaltes azuis nem endiabrados. Que é o que faz?
Pecador sou eu a Deus!
Nem por isso voltou dom Quixote; antes, em altas vozes, ia dizendo:
- Eia, cavaleiros, os que seguis e militais debaixo das bandeiras do
valoroso imperador Pentapolin do Arregaçado Braço, segui-me todos:
vereis quão facilmente dou vingança de seu inimigo Alifanfarão da
Taprobana!
Isto dizendo, entrou no meio do esquadrão das ovelhas, e começou a
lanceá-las com tanta coragem e denodo como se verdadeiramente
lanceasse seus mortais inimigos. Os pastores e vaqueiros que com a
manada vinham davam-lhe vozes que não fizesse aquilo; mas, vendo que
não adiantava, desamarraram as fundas e começaram a saudar-lhe os
ouvidos com pedras grandes como punhos. Dom Quixote não se
importava com as pedras; antes, discursando ao léu, dizia:
- Onde estás, soberbo Alifanfarão? Vinde a mim; que um cavaleiro
só sou, que deseja, em combate singular, provar tuas forças e tirar-te
a vida, em pena da que dás ao valoroso Pentapolin Garamanta.
Chegou nisto um seixo e, pegando-o num lado, afundou-lhe
duas costelas. Vendo-se tão maltratado, creu sem dúvida que
estava morto ou malferido, e, recordando-se de seu licor, tirou sua
vinagreira e levou-a à boca, e começou a engolir licor; mas, antes que
acabasse de envasar o que a ele parecia que era bastante, chegou
outra amêndoa e deu-lhe na mão e na vinagreira tão em cheio que a
fez em pedaços, levando-lhe de roldão três ou quatro dentes da boca,
e machucando-lhe duramente dois dedos da mão.
Tal foi o golpe primeiro, e tal o segundo, que foi forçoso ao pobre
cavaleiro dar consigo do cavalo abaixo. Chegaram-se a ele os pastores
e creram que o haviam matado; e assim, com muita pressa, recolheram
seu gado, e carregaram as reses mortas, que passavam de sete, e, sem
averiguar outra coisa, se foram.
Estava todo este tempo Sancho no morrinho, olhando as loucuras
que seu amo fazia, e arrancava-se as barbas, maldizendo a hora e o
ponto em que a fortuna se lhe havia dado a conhecer. Vendo-o, pois,
caído no chão, e que já os pastores se haviam ido, desceu e chegou-se
a ele, e achou-o com muito mau aspecto, embora não houvesse perdido
o sentido, e disse-lhe:
- Não lhe dizia eu, senhor dom Quixote, que voltasse, que os que ia
acometer não eram exércitos, senão manadas de carneiros?
- Coisas assim pode desaparecer e contrafazer aquele ladrão do
mago meu inimigo. Sabes, Sancho, que é muito fácil coisa, aos tais,
fazer-nos parecer o que querem, e este maligno que me persegue,
invejoso da glória que viu que eu havia de alcançar desta batalha,
transformou os esquadrões de inimigos em manadas de ovelhas. Se
não, faz uma coisa, Sancho, por minha vida, para que te desenganes e
vejas ser verdade o que te digo: sobe em teu asno e segue-os com
cuidado, e verás como, afastando-se daqui algum pouco, voltam a seu
ser primeiro, e, deixando de ser carneiros, são homens feitos e
direitos, como eu te os pintei primeiro... Mas não vás agora, que
preciso de teu favor e ajuda; chega-te a mim e veja quantos dentes
me faltam, que me parece que não me ficou nenhum na boca.
Chegou-se Sancho tão perto que quase lhe metia os olhos na boca, e
foi a tempo que já havia obrado o bálsamo no estômago de dom
Quixote; e, ao tempo que Sancho chegou a olhar-lhe a boca, arrojou
de si, mais forte que uma escopeta, quanto dentro tinha, e deu com
todo ele nas barbas do compassivo escudeiro.
- Santa Maria! - disse Sancho, - e que é isto que me sucedeu? Sem
dúvida, este pecador está ferido de morte, pois vomita sangue pela
boca.
Mas, reparando um pouco mais nele, viu na cor, sabor e cheiro, que
não era sangue, senão o bálsamo da vinagreira que ele o havia visto
beber; e foi tanto o asco que tomou que, revoltando-se-lhe o
estômago, vomitou as tripas sobre seu mesmo senhor, e ficaram
ambos como feitos de pérolas. Acudiu Sancho a seu asno para tirar
dos alforjes com que limpar-se e com que curar a seu amo; e, como não
os achou, esteve a ponto de perder o juízo. Maldisse-se de novo, e
propôs em seu coração deixar seu amo e voltar a sua terra, embora
perdesse o salário pelo já servido e as esperanças do governo da
prometida ilha.
Levantou-se nisto dom Quixote, e, posta a mão esquerda na boca,
para que não se lhe acabassem de sair os dentes, pegou com a outra as
rédeas de Rocinante, que nunca se havia movido de junto a seu amo -
tal era de leal e boa condição, - e foi onde seu escudeiro estava, com o
peito sobre o asno, com a mão na face, com gesto de homem muito
pensativo. E vendo-o dom Quixote daquela maneira, com mostras de
tanta tristeza, disse-lhe:
- Sabes, Sancho, que não é um homem mais que outro se não faz
mais que outro. Todas estas borrascas que nos sucedem são sinais de
que logo há de serenar o tempo e hão de suceder-nos bem as coisas;
porque não é possível que o mal nem o bem sejam duráveis, e daqui se
segue que, havendo durado muito o mal, o bem está já perto. Assim
que, não deves angustiar-te pelas desgraças que a mim me sucedem,
pois a ti não te cabe parte delas.
- Como não? - respondeu Sancho. - Porventura, o que ontem
mantearam, era outro senão o filho de meu pai? E os alforjes que hoje
me faltam, com todas as minhas joias, são de outro que do mesmo?
- Faltam-te os alforjes, Sancho? - disse dom Quixote.
- Sim que me faltam - respondeu Sancho.
- Desse modo, não temos o que comer hoje - replicou dom Quixote.
- Isso seria - respondeu Sancho - quando faltassem por estes
prados as ervas que vossa mercê diz que conhece, com que costumam
suprir semelhantes faltas os tão desventurados andantes cavaleiros
como vossa mercê é.
- Contudo - respondeu dom Quixote, - comeria eu agora antes um
quarto de pão, ou uma fogaça e duas cabeças de sardinhas defumadas,
a quantas ervas descreve Dioscórides, embora fosse o livro ilustrado
pelo doutor Laguna. Mas, então, sobe em teu jumento, Sancho o bom, e
vem atrás de mim; que Deus, que é provedor de todas as coisas, não
nos há de faltar, e mais andando tão em seu serviço como andamos,
pois não falta aos mosquitos do ar, nem aos vermes da terra, nem aos
girinos da água; e é tão piedoso que faz sair seu sol sobre os bons e os
maus, e chove sobre os injustos e justos.
- Melhor estaria vossa mercê - disse Sancho - para pregador que
para cavaleiro andante.
- De tudo sabiam e hão de saber os cavaleiros andantes, Sancho -
disse dom Quixote, - porque cavaleiro andante houve nos passados
séculos que assim parava para fazer um sermão ou prédica, em meio a
um campo real, como se fosse graduado pela Universidade de Paris; de
onde se infere que nunca a lança embotou a pena, nem a pena a lança.
- Agora bem, seja assim como vossa mercê diz - respondeu Sancho,
- vamos agora daqui, e procuremos onde nos alojar esta noite, e queira
Deus que seja em lugar onde não haja mantas, nem manteadores, nem
fantasmas, nem mouros encantados; que se os há, os mandarei ao
diabo.
- Pede-o tu a Deus, filho - disse dom Quixote, - e guia tu por onde
quiseres, que esta vez quero deixar a tua eleição o alojar-nos. Mas dá-
me aqui a mão e tenteia com o dedo, e veja bem quantos dentes me
faltam deste lado direito da queixada alta, que ali sinto a dor.
Meteu Sancho os dedos, e, estando tenteando, disse-lhe:
- Quantos dentes costumava vossa mercê ter nesta parte?
- Quatro - respondeu dom Quixote, - fora o do siso, todos inteiros
e muito sãos.
- Veja vossa mercê bem o que diz, senhor - respondeu Sancho.
- Digo quatro, se não eram cinco - respondeu dom Quixote, - porque
em toda minha vida não me tiraram dente da boca, nem me caiu ou
perdeu nenhum por cárie ou infecção alguma.
- Pois nesta parte de baixo - disse Sancho - não tem vossa mercê
mais de dois dentes e meio, e na de cima, nem meio nem nenhum, que
toda está lisa como a palma da mão.
- Sem ventura eu! - disse dom Quixote, ouvindo as tristes novas que
seu escudeiro lhe dava, - que mais quisesse que me houvessem
arrancado um braço, se não fosse o da espada; porque te faço saber,
Sancho, que a boca sem dentes é como moinho sem pedra, e em muito
mais se há de estimar um dente que um diamante. Mas a tudo isto
estamos sujeitos os que professamos a rígida ordem da cavalaria.
Sobe, amigo, e guia, que eu te seguirei ao passo que quiseres.
Fê-lo assim Sancho, e encaminhou-se até onde lhe pareceu que
podia achar acolhimento, sem sair do caminho real, que por ali ia muito
seguido.
Indo-se, pois, pouco a pouco, porque a dor das queixadas de dom
Quixote não lhe deixava sossegar nem atender a dar-se pressa, quis
Sancho entretê-lo e diverti-lo dizendo-lhe alguma coisa; e, entre
outras que lhe disse, foi o que se dirá no seguinte capítulo.

CAPÍTULO XIX

Das discretas razões que Sancho passava com seu amo, e da


aventura que lhe sucedeu com um corpo morto, com outros
acontecimentos famosos
- Parece-me, senhor meu, que todas estas desventuras que estes
dias nos sucederam, sem dúvida alguma foram pena pelo pecado
cometido por vossa mercê contra a ordem de sua cavalaria, não
havendo cumprido o juramento que fez de não comer pão em toalha
nem com a rainha folgar, com tudo aquilo que a isto se segue e vossa
mercê jurou cumprir, até tirar aquele elmete do Malandrino, ou como
se chama o mouro, que não me lembro bem.
- Tens muita razão, Sancho - disse dom Quixote; - mas, para dizer-
te a verdade, disso havia-me esquecido; e também podes ter por certo
que pela culpa de não haver-me tu recordado em tempo te sucedeu
aquilo da manta; mas eu farei a emenda, que modos há de
recomposição na ordem da cavalaria para tudo.
- Então, jurei eu algo, por acaso? - respondeu Sancho.
- Não importa que não hajas jurado - disse dom Quixote: - basta
que eu entenda que ao tratar com excomungados não estás muito
seguro, e, pelo sim pelo não, não será mau prover-nos de remédio.
- Pois se isso é assim - disse Sancho, - veja vossa mercê não se
torne a olvidar isto, como o do juramento; quiçá lhes voltará a vontade
aos fantasmas de divertir-se outra vez comigo, e ainda com vossa
mercê se o vêm tão pertinaz.
Nestas e outras conversas encontrou-os a noite em meio do
caminho, sem ter nem descobrir onde aquela noite se recolhessem; e o
que não havia de bom nisso era que pereciam de fome; que, com a falta
dos alforjes, faltou-lhes toda a provisão de comida. E para acabar de
confirmar esta desgraça, sucedeu-lhes uma aventura que, sem
artifício algum, verdadeiramente o parecia. E foi que a noite fechou
com alguma escuridão; mas, mesmo assim, caminhavam, crendo Sancho
que, pois aquele caminho era real, a uma ou duas léguas, com certeza,
acharia nele alguma estalagem.
Indo, pois, desta maneira, na noite escura, o escudeiro faminto e o
amo com vontade de comer, viram que pelo mesmo caminho que iam
vinham até eles grande multidão de luzes, que não pareciam senão
estrelas que se moviam. Pasmou Sancho vendo-as, e assim dom
Quixote; puxou um o cabresto de seu asno, e o outro as rédeas de seu
rocim, e estiveram parados, olhando atentamente o que podia ser
aquilo, e viram que as luzes se iam acercando deles, e quanto mais se
chegavam, maiores pareciam; a cuja vista Sancho começou a tremer
todo, e os cabelos da cabeça de dom Quixote se eriçaram; o qual,
animando-se um pouco, disse:
- Esta, sem dúvida, Sancho, deve ser grandíssima e perigosíssima
aventura, onde será necessário que eu mostre todo meu valor e
esforço.
- Desditado de mim! - respondeu Sancho; - se acaso esta aventura
fosse de fantasmas, como me vai parecendo, aonde haverá costelas
que a sofram?
- Por mais fantasmas que sejam - disse dom Quixote, - não
consentirei eu que te toque no pelo da roupa; que se a outra vez
burlaram contigo, foi porque não pude eu saltar as paredes do curral,
mas agora estamos em campo raso, onde poderei eu como quiser
esgrimir minha espada.
- E se o encantam e paralisam, como da outra vez o fizeram - disse
Sancho, - que aproveitará estar em campo aberto ou não?
- Entretanto - replicou dom Quixote, - rogo-te, Sancho, que tenhas
bom ânimo, que a experiência te dará a entender o que eu tenho.
- Sim terei, se Deus quiser - respondeu Sancho.
E apartando-se os dois a um lado do caminho, tornaram a olhar
atentamente o que aquilo daquelas luzes que caminhavam podia ser; e
dali a muito pouco descobriram muitos encamisados, cuja temerosa
visão acabou de vez com o ânimo de Sancho Pança, o qual começou a
dar dente com dente, como quem tem frio de febre; e cresceu mais o
bater de dentes quando distintamente viram o que era, porque
descobriram até vinte encamisados, todos a cavalo, com suas tochas
acesas nas mãos; atrás dos quais vinha uma liteira coberta de luto, à
qual seguiam outros seis a cavalo, enlutados até os pés das mulas; que
bem viram que não eram cavalos pelo sossego com que caminhavam.
Iam os encamisados murmurando entre si, com uma voz baixa e
compassiva. Esta estranha visão, a tais horas e em tal despovoado,
bem bastava para pôr medo no coração de Sancho, e ainda no de seu
amo; e assim bem seria quanto a dom Quixote, que já Sancho havia
naufragado com todo seu esforço. O contrário aconteceu a seu amo, a
quem naquele ponto se representou em sua imaginação ao vivo que
aquela era uma das aventuras de seus livros.
Figurou-se-lhe que a liteira eram andas onde devia ir algum
malferido ou morto cavaleiro, cuja vingança a ele só estava reservada;
e, sem fazer outro discurso, enristou seu chuço, ajeitou-se bem na
sela, e com gentil brio, semblante e postura se pôs no meio do caminho
por onde os encamisados forçosamente haviam de passar, e quando os
viu perto alçou a voz e disse:
- Detende-vos, cavaleiros, ou quem quer que sejais, e dai-me conta
de quem sois, de onde vindes, aonde vais, que é o que naquelas andas
levais; que, segundo as mostras, ou vós haveis feito, ou vos fizeram,
alguma afronta, e convém e é mister que eu o saiba, ou bem para
castigar-vos do mal que fizestes, ou bem para vingar-vos do torto que
vos fizeram.
- Vamos com pressa - respondeu um dos encamisados - e está a
estalagem longe, e não nos podemos deter a dar tanta conta como
pedis.
E picando a mula, passou adiante. Ressentiu-se desta resposta
grandemente dom Quixote e, travando-lhe o freio, disse:
- Detende-vos e sede mais bem educado, e dai-me conta do que vos
perguntei; se não, comigo sois todos em batalha.
Era a mula assustadiça, e ao tomá-la pelo freio espantou-se de
maneira que, alçando-se nos pés, deu com seu dono pelas ancas no
chão. Um moço que ia a pé, vendo cair o encamisado, começou a
insultar dom Quixote, o qual, já encolerizado, sem esperar mais,
enristando seu chuço, arremeteu contra um dos enlutados, e,
malferido, deu com ele em terra; e, voltando-se contra os demais, era
coisa de ver a presteza com que os acometia e desbaratava; que não
parecia senão que naquele instante haviam nascido asas a Rocinante,
conforme andava ligeiro e orgulhoso.
Todos os encamisados era gente medrosa e sem armas, e assim, com
facilidade, num momento deixaram a refrega e começaram a correr
por aquele campo com as tochas acesas, que não pareciam senão os das
mascaradas que em noite de regozijo e festa correm. Os enlutados,
também, envoltos em suas batinas e sotainas, não se podiam mover;
assim que, muito a salvo, dom Quixote os apaleou a todos e os fez
deixar o lugar malgrado seu, porque todos pensaram que aquele não
era homem, senão diabo do inferno que lhes vinha tirar o corpo morto
que na liteira levavam.
Tudo olhava Sancho, admirado da ousadia de seu senhor, e dizia
entre si:
- Sem dúvida este meu amo é tão valente e esforçado como ele diz.
Estava uma tocha ardendo no chão, junto ao primeiro que derrubou
a mula, a cuja luz o pôde ver dom Quixote; e, chegando-se a ele, pôs-
lhe a ponta do chuço no rosto, dizendo-lhe que se rendesse; se não,
que o mataria. A que respondeu o caído:
- Muito rendido estou, pois não me posso mover, que tenho uma
perna quebrada; suplico a vossa mercê, se é cavaleiro cristão, que não
me mate; que cometerá um grande sacrilégio, que sou licenciado e
tenho as primeiras ordens.
- Então, quem diabos vos trouxe aqui - disse dom Quixote, - sendo
homem de Igreja?
- Quem, senhor? - replicou o caído: - Minha desventura.
- Pois outra maior vos ameaça - disse dom Quixote, - se não me
satisfizerdes a tudo quanto primeiro vos perguntei.
- Com facilidade será vossa mercê satisfeito - respondeu o
licenciado; e assim, saberá vossa mercê que, embora antes disse que
eu era licenciado, não sou senão bacharel, e chamo-me Alonso López;
sou natural de Alcobendas; venho da cidade de Baeza com outros onze
sacerdotes, que são os que fugiram com as tochas; vamos à cidade de
Segóvia acompanhando um corpo morto, que vai naquela liteira, que é
de um cavaleiro que morreu em Baeza, onde foi depositado; e agora,
como digo, levávamos seus ossos a sua sepultura, que está em Segóvia,
de onde é natural.
- E quem o matou? - perguntou dom Quixote.
- Deus, por meio de uns calores pestilentos que o acometeram -
respondeu o bacharel.
- Dessa sorte - disse dom Quixote, - afastou-me Nosso Senhor do
trabalho que havia de ter em vingar sua morte se outro algum o
houvesse morto; mas, havendo-o morto quem o matou, não há senão
calar e encolher os ombros, porque o mesmo faria se a mim mesmo me
matasse. E quero que saiba vossa reverência que eu sou um cavaleiro
da Mancha, chamado dom Quixote, e é meu ofício e exercício andar
pelo mundo endireitando tortos e desfazendo agravos.
- Não sei como possa ser isso de endireitar tortos - disse o
bacharel, - pois a mim de direito me haveis entortado, deixando-me
uma perna quebrada, a qual não se verá direita em todos os dias de sua
vida; e o agravo que em mim haveis desfeito foi deixar-me agravado
de maneira que ficarei agravado para sempre; e foi farta desventura
topar convosco, que ides buscando aventuras.
- Não todas as coisas - respondeu dom Quixote - sucedem de um
mesmo modo. O dano esteve, senhor bacharel Alonso López, em vir,
como vínheis, de noite, vestidos com aquelas sobrepelizes, com as
tochas acesas, rezando, cobertos de luto, que propriamente
semelháveis coisa má e do outro mundo; e assim, eu não pude deixar
de cumprir com minha obrigação acometendo-vos, e vos acometeria
embora verdadeiramente soubesse que éreis os mesmos satanases do
inferno, que por tais vos julguei e tive sempre.
- Já que assim o quis minha sorte - disse o bacharel, - suplico a
vossa mercê, senhor cavaleiro andante (que tão má andança me deu),
me ajude a sair de debaixo desta mula, que me tem tomada uma perna
entre o estribo e a sela.
- Falais agora! - disse dom Quixote. - E até quando aguardáveis a
dizer-me vosso aperto?
Deu logo vozes a Sancho Pança que viesse; mas ele não cuidou de vir,
porque andava ocupado saqueando uma mula de carga que traziam
aqueles bons senhores, bem abastecida de coisas de comer. Fez
Sancho uma trouxa de seu gabão, e, recolhendo tudo o que pôde e nela
coube, carregou seu jumento, e logo acudiu às vozes de seu amo e
ajudou a tirar o senhor bacharel da opressão da mula; e, pondo-o em
cima dela, deu-lhe a tocha, e dom Quixote lhe disse que seguisse o
caminho de seus companheiros, a quem de sua parte pedisse perdão do
agravo, que não estivera em sua mão deixar de havê-lo feito. Disse-lhe
também Sancho:
- Se acaso quiserem saber esses senhores quem foi o valoroso que
tais os pôs, dir-lhes-á vossa mercê que é o famoso dom Quixote da
Mancha, que por outro nome se chama o Cavaleiro da Triste Figura .
Com isto, se foi o bacharel; e dom Quixote perguntou a Sancho o
que o havia movido a chamá-lo “o Cavaleiro da Triste Figura”, agora e
não antes.
- Eu o direi - respondeu Sancho: - porque o estive olhando um
momento à luz daquela tocha que leva aquele malandante, e
verdadeiramente tem vossa mercê a mais má figura, até aqui, que
jamais vi; e deve-o de haver causado, ou já o cansaço deste combate,
ou já a falta dos dentes.
- Não é isso - respondeu dom Quixote, - senão que o mago, a cujo
cargo deve estar o escrever a história de minhas façanhas, haver-lhe-
á parecido que será bem que eu tome algum nome apelativo, como o
tomavam todos os cavaleiros passados: qual se chamava o da Ardente
Espada; qual, o do Unicórnio; aquele, o das Donzelas; este, o da Ave
Fênix; o outro, o Cavaleiro do Grifo; este outro, o da Morte; e por
estes nomes e insígnias eram conhecidos por toda a redondeza da
terra. E assim, digo que o mago já dito te haverá posto na língua e no
pensamento agora que me chamasses o Cavaleiro da Triste Figura,
como penso chamar-me de hoje em diante; e, para que melhor me
quadre tal nome, determino de fazer pintar, quando haja lugar, em
meu escudo, uma muito triste figura.
- Não há para que gastar tempo e dinheiros em fazer essa figura -
disse Sancho, - senão o que se há de fazer é que vossa mercê
descubra a sua e mostre o rosto aos que o olharem; que, sem mais nem
mais, e sem outra imagem nem escudo, o chamarão o da Triste Figura;
e creia-me que lhe digo a verdade, porque prometo a vossa mercê,
senhor (e isto seja dito por brincadeira), que lhe faz tão má cara a
fome e a falta dos dentes, que, como já tenho dito, se poderá muito
bem escusar a triste pintura.
Riu-se dom Quixote do donaire de Sancho; mas, contudo, propôs
chamar-se daquele nome podendo pintar seu escudo, ou rodela, como
havia imaginado.
- Esquecia-me dizer que advirta vossa mercê que fica excomungado
por haver posto as mãos violentamente em coisa sagrada, iuxta illud,
“Si quis suadente diabolo”, etc.
- Não entendo esse latim - respondeu dom Quixote -, embora saiba
bem que não pus as mãos, senão este chuço; quanto mais, que eu não
pensei que ofendia a sacerdotes nem a coisas da Igreja, a quem
respeito e adoro como católico e fiel cristão que sou, senão a
fantasmas e a monstros do outro mundo. E quando isso assim fosse, na
memória tenho o que passou ao Cid Ruy Diaz, quando quebrou a cadeira
do embaixador daquele rei diante de Sua Santidade o Papa, pelo qual o
excomungou, e andou aquele dia o bom Rodrigo de Vivar como muito
honrado e valente cavaleiro.
Ouvindo isto o bacharel se foi, como fica dito, sem replicar-lhe
palavra. Quisera dom Quixote olhar se o corpo que vinha na liteira
eram ossos ou não, mas não o consentiu Sancho, dizendo-lhe:
- Senhor, vossa mercê acabou esta perigosa aventura o mais a salvo
de todas as que eu vi; esta gente, embora vencida e desbaratada,
poderia ser que caísse na conta de que os venceu só uma pessoa, e,
corridos e envergonhados disto, voltassem a refazer-se e a buscar-
nos, e nos dessem em que entender. O jumento está como convém, a
montanha perto, a fome aperta, não há que fazer senão retirar-nos a
bom passo, e, como dizem, vá o morto à sepultura e o vivo à fogaça.
E fustigando seu asno, rogou a seu senhor que o seguisse; o qual,
parecendo-lhe que Sancho tinha razão, sem voltar-lhe a replicar,
seguiu-o. E a pouco trecho que caminhavam por entre duas
montanhazinhas, acharam-se em um espaçoso e escondido vale, onde
apearam; e Sancho aliviou o jumento e, estendidos sobre a verde erva,
com o tempero de sua fome, desjejuaram, almoçaram, merendaram e
jantaram na mesma hora, satisfazendo seus estômagos com mais de
uma lancheira que os senhores clérigos do defunto (que poucas vezes
se deixam passar mal) na mula de carga traziam.
Mas sucedeu-lhes outra desgraça, que Sancho a teve pela pior de
todas, e foi que não tinham vinho para beber, nem ainda água que
chegar à boca; e, acossados da sede, disse Sancho, vendo que o prado
onde estavam estava cheio de verde e miúda erva, o que se dirá no
seguinte capítulo.

CAPÍTULO XX

Da jamais vista nem ouvida aventura que com menos perigo foi
acabada por famoso cavaleiro no mundo, como a que acabou o valoroso
dom Quixote da Mancha

- Não é possível, senhor meu, senão que estas ervas dão testemunho
de que por aqui perto deve haver alguma fonte ou arroio que estas
ervas umedece; e assim, será bom que vamos um pouco mais adiante,
que já toparemos onde possamos mitigar esta terrível sede que nos
fatiga, que, sem dúvida, causa maior pena que a fome.
Pareceu bom o conselho a dom Quixote, e, tomando a rédea de
Rocinante, e Sancho o cabresto de seu asno, depois de haver posto
sobre ele as sobras que do jantar ficaram, começaram a caminhar pelo
prado acima às cegas, porque a escuridão da noite não os deixava ver
coisa alguma; mas, não haviam andado duzentos passos, quando chegou
a seus ouvidos um grande ruído de água, como que de alguns grandes e
altos penhascos se despenhava. Alegrou-os o ruído em grande maneira,
e, parando para escutar de que lado soava, ouviram inesperadamente
outro estrondo que lhes aguou o contentamento do água,
especialmente a Sancho, que naturalmente era medroso e de pouco
ânimo. Digo que ouviram que davam uns golpes rítmicos, com um certo
ranger de ferros e correntes, que, acompanhados do furioso estrondo
da água, dariam pavor a qualquer outro coração que não fosse o de
dom Quixote.
Era a noite, como se disse, escura, e eles acertaram de entrar
entre umas árvores altas, cujas folhas, movidas pelo brando vento,
faziam um temeroso e manso ruído; de maneira que a solidão, o lugar, a
escuridão, o ruído da água com o sussurro das folhas, tudo causava
horror e espanto, e mais quando viram que nem os golpes cessavam,
nem o vento dormia, nem a manhã chegava; somando-se a tudo isto o
ignorar o lugar onde se achavam. Mas dom Quixote, acompanhado de
seu intrépido coração, saltou sobre Rocinante, e, sobraçando sua
rodela, terçou seu chuço e disse:
- Sancho amigo, hás de saber que eu nasci, por querer do céu, nesta
nossa idade de ferro, para ressuscitar nela a de ouro, ou a dourada,
como costuma chamar-se. Eu sou aquele para quem estão guardados os
perigos, as grandes façanhas, os valorosos feitos. Eu sou, digo outra
vez, quem há de ressuscitar os da Távola Redonda, os Doze de França
e os Nove da Fama, e o que há de pôr no olvido os Platires, os
Tablantes, Olivantes e Tirantes, os Febos e Belianises, com toda a
caterva dos famosos cavaleiros andantes do passado tempo, fazendo
neste em que me acho tais grandezas, estranhezas e feitos de armas,
que escureçam as mais claras que eles fizeram. Bem notas, escudeiro
fiel e legal, as trevas desta noite, seu estranho silêncio, o surdo e
confuso estrondo destas árvores, o temeroso ruído daquela água em
cuja busca vimos, que parece que se despenha e derruba desde os
altos montes da lua, e aquele incessável golpear que nos fere e lastima
os ouvidos; as quais coisas, todas juntas e cada uma por si, são
bastantes a infundir medo, temor e espanto no peito do mesmo Marte,
quanto mais naquele que não está acostumado a semelhantes
acontecimentos e aventuras. Pois tudo isto que eu te pinto são
incentivos e despertadores de meu ânimo, que já faz que o coração me
rebente no peito, com o desejo que tem de acometer esta aventura,
por mais dificultosa que se mostre. Assim que, aperta um pouco as
cilhas de Rocinante e fica com Deus, e espera-me aqui até três dias
não mais, nos quais, se não voltar, podes tu voltar a nossa aldeia, e
desde ali, por fazer-me mercê e boa obra, irás ao Toboso, onde dirás
à incomparável senhora minha Dulcineia que seu cativo cavaleiro
morreu por acometer coisas que o fizessem digno de poder chamar-se
seu.
Quando Sancho ouviu as palavras de seu amo, começou a chorar com
a maior ternura do mundo e a dizer-lhe:
- Senhor, eu não sei por que quer vossa mercê acometer esta tão
temerosa aventura: agora é de noite, aqui não nos vê ninguém, bem
podemos torcer o caminho e desviar-nos do perigo, embora não
bebamos em três dias; e, pois não há quem nos veja, menos haverá
quem nos chame de covardes; quanto mais, que eu ouvi pregar o padre
de nosso lugar, que vossa mercê bem conhece, que quem busca o
perigo nele perece; assim que, não é bem tentar a Deus cometendo tão
desaforado feito, onde não se pode escapar senão por milagre; e basta
os que fez o céu com vossa mercê em livrá-lo de ser manteado, como
eu o fui, e em deixá-lo vencedor, livre e salvo de entre tantos inimigos
que acompanhavam o defunto. E quando tudo isto não mova nem
abrande esse duro coração, mova-o o pensar e crer que apenas se
haverá vossa mercê apartado daqui, quando eu, de medo, dê minha
alma a quem quiser levá-la. Eu saí de minha terra e deixei filhos e
mulher por vir a servir a vossa mercê, crendo valer mais e não menos;
mas, como a cobiça rompe o saco, a mim rasgou minhas esperanças,
pois quando mais vivas as tinha de alcançar aquela negra e malfadada
ilha que tantas vezes vossa mercê me prometeu, vejo que, em paga e
troco dela, me quer agora deixar num lugar tão apartado do trato
humano. Por um só Deus, senhor meu, que não se me faça tal agravo; e
já que de todo não queira vossa mercê desistir de acometer este
feito, dilate-o, ao menos, até a manhã; que, ao que a mim me mostra a
ciência que aprendi quando era pastor, não deve haver daqui ao
alvorecer três horas, porque a boca da buzina está em cima da cabeça,
e é meia noite na linha do braço esquerdo.
- Como podes tu, Sancho - disse dom Quixote, - ver onde faz essa
linha, nem onde está essa boca ou essa cachola que dizes, se está a
noite tão escura que não aparece em todo o céu estrela alguma?
- Assim é - disse Sancho, - mas tem o medo muitos olhos e vê as
coisas debaixo da terra, quanto mais em cima no céu; posto que, por
bom argumento, bem se pode entender que há pouco daqui ao dia.
- Falte o que faltar - respondeu dom Quixote; - que não se há de
dizer por mim, agora nem em nenhum tempo, que lágrimas e rogos me
apartaram de fazer o que devia pelas normas de cavaleiro; e assim,
rogo-te, Sancho, que cales; que Deus, que me pôs no coração acometer
agora esta tão não vista e tão temerosa aventura, terá cuidado de
olhar por minha saúde e consolar tua tristeza. O que hás de fazer é
apertar bem as cilhas a Rocinante e ficar aqui, que eu voltarei logo, ou
vivo ou morto.
Vendo, pois, Sancho a última resolução de seu amo e quão pouco
valiam com ele suas lágrimas, conselhos e rogos, determinou
aproveitar-se de sua indústria e fazê-lo esperar até o dia, se pudesse;
e assim, quando apertava as cilhas ao cavalo, com cuidado e sem ser
sentido, atou com o cabresto de seu asno ambos os pés de Rocinante,
de maneira que quando dom Quixote quis partir, não pôde, porque o
cavalo não se podia mover senão a saltos. Vendo Sancho Pança o bom
sucesso de seu embuste, disse:
- Eia, senhor, que o céu, comovido por minhas lágrimas e preces,
ordenou que não se possa mover Rocinante; e se vós quereis porfiar, e
esporear, e dar-lhe, será enojar à fortuna e dar murros, como dizem,
em ponta de faca.
Desesperava-se com isto dom Quixote, e, por mais que golpeasse
com as pernas o cavalo, menos o podia mover; e, sem dar conta da
ligadura, teve por bem sossegar-se e esperar, ou que amanhecesse, ou
que Rocinante se mexesse, crendo, sem dúvida, que aquilo vinha de
outra parte que da indústria de Sancho; e assim, disse-lhe:
- Pois assim é, Sancho, que Rocinante não pode mover-se, eu estou
contente de esperar que raie o alvorecer, embora eu chore o que ele
tardar em vir.
- Não há que chorar - respondeu Sancho, - que eu entreterei a
vossa mercê contando contos daqui ao dia, se já não é que se quer
apear e dormir um pouco sobre a verde erva, ao uso de cavaleiros
andantes, para achar-se mais descansado quando chegue o dia e hora
de acometer esta tão incomparável aventura que o espera.
- A que chamas apear ou a que dormir? - disse dom Quixote. - Sou
eu, porventura, daqueles cavaleiros que tomam repouso nos perigos?
Dorme tu, que nasceste para dormir, ou faz o que quiseres, que eu
farei o que vir que mais convém a minha pretensão.
- Não se zangue vossa mercê, senhor meu - respondeu Sancho, - que
não o disse para tanto.
E chegando-se a ele, pôs uma mão no arção dianteiro e a outra no
outro, de modo que ficou abraçado com a coxa esquerda de seu amo,
sem ousar separar-se dele um dedo: tal era o medo que tinha aos
golpes, que ainda alternativamente soavam. Disse-lhe dom Quixote que
contasse algum conto para entretê-lo, como o havia prometido, ao que
Sancho disse que o faria se o deixasse o temor do que ouvia.
- Entretanto, eu me esforçarei para dizer uma história que, se a
acerto a contar e não me impedem, é a melhor das histórias; e
esteja-me vossa mercê atento, que já começo. “Era o que era, o bem
que vier para todos seja, e o mal, para quem o for buscar...” E
advirta vossa mercê, senhor meu, que o princípio que os antigos
deram a suas histórias não foi assim em vão, que foi uma sentença de
Catão Zonzorino romano, que diz: “e o mal, para quem o for buscar”,
que vem aqui como anel ao dedo, para que vossa mercê esteja quieto e
não vá buscar o mal em nenhum lugar, senão que voltemos por outro
caminho, pois ninguém nos força a que sigamos este, onde tantos
medos nos sobressaltan.
- Segue teu conto, Sancho - disse dom Quixote, - e do caminho que
havemos de seguir deixa-me a mim o cuidado.
- “Digo, pois - prosseguiu Sancho, - que num lugar de Estremadura
havia um pastor cabreiro, quero dizer, que guardava cabras, o qual
pastor ou cabreiro, como digo, de meu conto, se chamava Lope Ruiz; e
este Lope Ruiz andava enamorado de uma pastora que se chamava
Torralba, a qual pastora chamada Torralba era filha de um pecuarista
rico, e este pecuarista rico...”
- Se dessa maneira contas teu conto, Sancho - disse dom Quixote, -
repetindo duas vezes o que vais dizendo, não acabarás em dois dias;
dize-o seguidamente e conta-o como homem de entendimento, e se
não, não digas nada.
- Da mesma maneira que eu o conto - respondeu Sancho, - se contam
em minha terra todas as histórias, e eu não sei contá-lo de outra, nem
é bem que vossa mercê me peça que faça usos novos.
- Diz como quiseres - respondeu dom Quixote; - que, pois a sorte
quer que não possa deixar de escutar-te, prossegue.
- “Assim que, senhor meu de minha alma - prosseguiu Sancho, - que,
como já tenho dito, este pastor andava enamorado de Torralba, a
pastora, que era uma moça roliça, arisca e tirava algo a machona,
porque tinha uns poucos de bigodes, que parece que agora a vejo”.
- Logo, conheceste-a tu? - disse dom Quixote.
- Não a conheci eu - respondeu Sancho, - mas quem me contou este
conto me disse que era tão certo e verdadeiro que podia bem, quando
o contasse a outro, afirmar e jurar que o havia visto todo. “Assim que,
indo dias e vindo dias, o diabo, que não dorme e tudo enreda, fez de
maneira que o amor que o pastor tinha à pastora se transformasse em
ódio e má vontade; e a causa foi, segundo más línguas, uma certa
quantidade de motivos de ciúmes que ela lhe deu, tais que passavam
dos limites e chegavam ao vedado; e foi tanto o que o pastor a
aborreceu daí em diante que, para não vê-la, se quis ausentar daquela
terra e ir onde seus olhos não a vissem jamais. A Torralba, que se viu
desdenhada do Lope, logo o quis bem, mais que nunca o havia querido.”
- Essa é natural condição das mulheres - disse dom Quixote: -
desdenhar a quem as quer e amar a quem as aborrece. Passa adiante,
Sancho.
- “Sucedeu - disse Sancho - que o pastor pôs em prática sua
determinação e, recolhendo suas cabras, encaminhou-se pelos campos
de Estremadura, para passar aos reinos de Portugal. A Torralba, que o
soube, foi atrás dele, e seguia-o a pé e descalça desde longe, com um
bordão na mão e com uns alforjes ao pescoço, onde levava, segundo é
fama, um pedaço de espelho e outro de um pente, e não sei que
potezinho de creme para o rosto; mas, levasse o que levasse, que eu
não me quero meter agora em averiguá-lo, só direi que dizem que o
pastor chegou com seu gado a passar o rio Guadiana, que naquela
ocasião ia crescido e quase transbordando, e pelo lado que chegou não
havia barca nem barco, nem quem passasse a ele nem a seu gado do
outro lado, do que se angustiou muito, porque via que a Torralba vinha
já muito perto e lhe havia de dar muito pesar com seus rogos e
lágrimas; mas, tanto andou olhando, que viu um pescador que tinha
junto a si um barco, tão pequeno que somente podiam caber nele uma
pessoa e uma cabra; e, desse modo, falou-lhe e acertou com ele que
passasse a ele e às trezentas cabras que levava. Entrou o pescador no
barco, e passou uma cabra; voltou, e passou outra; tornou a voltar, e
tornou a passar outra.” Tenha vossa mercê conta nas cabras que o
pescador vai passando, porque se se perde uma da memória, se
acabará o conto e não será possível contar mais palavra dele. “Sigo,
pois, e digo que o desembarcadouro do outro lado estava cheio de lama
e escorregadio, e tardava o pescador muito tempo em ir e voltar.
Desse modo, voltou por outra cabra, e outra, e outra...”
- Faz de conta que as passou todas - disse dom Quixote, - não andes
indo e vindo dessa maneira, que não acabarás de passá-las num ano.
- Quantas passaram até agora? - disse Sancho.
- Eu que diabos sei? - respondeu dom Quixote.
- Foi o que eu disse: que tivesse boa conta. Pois, por Deus, que se
acabou o conto, que não há como passar adiante.
- Como pode ser isso? - respondeu dom Quixote. - Tão da essência
da história é saber as cabras que passaram, por extenso, que se se
erra uma do número não podes seguir adiante com a história?
- Não senhor, de maneira alguma - respondeu Sancho; - porque,
assim que eu perguntei a vossa mercê que me dissesse quantas cabras
haviam passado e me respondeu que não sabia, naquele mesmo instante
se me foi a mim da memória quanto me ficava por dizer, e à fé que era
de muita virtude e contentamento.
- De modo - disse dom Quixote - que já a história é acabada?
- Tão acabada é como minha mãe - disse Sancho.
- Digo-te de verdade - respondeu dom Quixote - que tu contaste
uma das mais novas fábulas, conto ou história, que ninguém pôde
pensar no mundo; e que tal modo de contá-la nem deixá-la, jamais se
poderá ver nem se viu em toda a vida, embora não esperasse eu outra
coisa de teu bom discurso; mas não me maravilho, pois quiçá estes
golpes, que não cessam, devem ter-te perturbado o entendimento.
- Tudo pode ser - respondeu Sancho, - mas eu sei que do meu conto
não há mais que dizer: que ali acaba onde começa o erro da conta da
passagem das cabras.
- Acabe em boa hora onde quiser - disse dom Quixote, - e vejamos
se se pode mover Rocinante.
Tornou a fustigá-lo, e ele tornou a dar saltos e a estar parado:
tanto estava bem atado.
Nisto, parece ser, ou que o frio da manhã, que já vinha, ou que
Sancho houvesse jantado algumas coisas lenitivas, ou que fosse coisa
natural - que é o que mais se deve crer, - a ele veio vontade e desejo
de fazer o que outro não poderia fazer por ele; mas era tanto o medo
que havia entrado em seu coração, que não ousava apartar-se um nada
de seu amo. Mas pensar não fazer o que tinha gana, tampouco era
possível; e assim, o que fez, por bem de paz, foi soltar a mão direita,
que tinha presa ao arção traseiro, com a qual, com cuidado e sem
rumor algum, soltou a laçada corrediça com que os calções se
sustinham, sem ajuda de outra alguma, e, tirando-a, deram logo abaixo
e ficaram como grilhões. Depois, alçou a camisa o melhor que pôde e
expôs ao ar as nádegas, que não eram muito pequenas. Feito isto - que
ele pensou que era o mais que tinha a fazer para sair daquele terrível
aperto e angústia -, sobreveio outra maior, que foi que lhe pareceu que
não podia esvaziar-se sem fazer estrépito e ruído, e começou a
apertar os dentes e a encolher os ombros, recolhendo em si o alento
tanto quanto podia; mas, com todas estas diligências, foi tão
desditado que, ao cabo ao cabo, veio a fazer um pouco de ruído, bem
diferente daquele que a ele dava tanto medo. Ouviu-o dom Quixote e
disse:
- Que rumor é esse, Sancho?
- Não sei, senhor - respondeu ele. - Alguma coisa nova deve ser, que
as aventuras e desventuras nunca começam por pouco.
Tornou outra vez a provar a sorte, e sucedeu-lhe tão bem que, sem
mais ruído nem alvoroço que o passado, se achou livre da carga que
tanto pesar lhe havia dado. Mas, como dom Quixote tinha o sentido do
olfato tão vivo como o dos ouvidos, e Sancho estava tão junto e
grudado a ele que quase por linha reta subiam os vapores para cima,
não pôde deixar que alguns chegassem a seu nariz; e, apenas
chegaram, apertou o nariz com dois dedos; e, com tom algo fanhoso,
disse:
- Parece-me, Sancho, que tens muito medo.
- Sim, tenho - respondeu Sancho; - mas, por que o vê vossa mercê
agora mais que nunca?
- Porque agora mais que nunca cheiras, e não a âmbar - respondeu
dom Quixote.
- Bem poderá ser - disse Sancho, - mas eu não tenho a culpa, senão
vossa mercê, que me traz fora de hora e por estes não acostumados
passos.
- Retira-te três ou quatro passos para lá, amigo - disse dom
Quixote (tudo isto sem tirar os dedos do nariz), - e daqui em diante
tem mais conta com tua pessoa e com o que deves à minha; que a muita
conversação que tenho contigo engendrou este menosprezo.
- Apostarei - replicou Sancho - que pensa vossa mercê que eu fiz de
minha pessoa alguma coisa que não deva.
- Melhor não falar mais nisso, amigo Sancho - respondeu dom
Quixote.
Nestes colóquios e outros semelhantes passaram a noite amo e
moço. Mas, vendo Sancho que rapidamente vinha a manhã, com muito
tento desamarrou Rocinante e atou os calções. Como Rocinante se viu
livre, embora ele de seu não era nada brioso, parece que se ressentiu,
e começou a dar com as patas dianteiras; porque empinar (com perdão
seu) não o sabia fazer. Vendo, pois, dom Quixote que já Rocinante se
movia, teve-o por bom sinal, e creu que o era de acometer aquela
temerosa aventura.
Acabou nisto de descobrir-se o alvorecer e de aparecer
distintamente as coisas, e viu dom Quixote que estava entre umas
árvores altas, que eram castanheiros, que fazem a sombra muito
escura. Sentiu também que o golpear não cessava, mas não viu o que o
podia causar; e assim, sem mais deter-se, fez Rocinante sentir as
esporas, e, tornando a despedir-se de Sancho, mandou que ali o
aguardasse três dias, no máximo, como já outra vez havia dito; e que,
se ao cabo deles não houvesse voltado, tivesse por certo que Deus
havia sido servido de que naquela perigosa aventura acabassem seus
dias. Tornou-lhe a referir o recado e embaixada que havia de levar de
sua parte a sua senhora Dulcineia, e que, no que tocava à paga de seus
serviços, não se preocupasse, porque ele havia deixado feito seu
testamento antes de sair de seu lugar, onde se acharia gratificado de
todo o tocante a seu salário, em proporção por quantidade, do tempo
que houvesse servido; mas que se Deus o tirasse daquele perigo são e
salvo e sem pagar resgate, podia ter por muito mais que certa a
prometida ilha.
De novo tornou a chorar Sancho, ouvindo de novo as lastimosas
razões de seu bom senhor, e determinou de não deixá-lo até o último
trânsito e fim daquele negócio.
Destas lágrimas e determinação tão honrada de Sancho Pança
conclui o autor desta história que devia ser bem nascido, e, pelo
menos, cristão velho. Cujo sentimento enterneceu algo a seu amo, mas
não tanto que mostrasse fraqueza alguma; antes, dissimulando o
melhor que pôde, começou a caminhar até o lugar de onde lhe pareceu
que o ruído da água e do golpear vinha.
Seguia-o Sancho a pé, levando, como tinha costume, pelo cabresto o
seu jumento, perpétuo companheiro de suas prósperas e adversas
fortunas; e, havendo andado um bom pedaço por entre aqueles
castanheiros e árvores sombrias, deram num pradozinho ao pé de
umas altas penhas, das quais se precipitava um grandíssimo golpe de
água. Ao pé das penhas, estavam umas casas mal feitas, que mais
pareciam ruínas de edifícios que casas, de entre as quais perceberam
que saía o ruído e estrondo daquele golpear, que ainda não cessava.
Alvoroçou-se Rocinante com o estrondo da água e dos golpes, e,
sossegando-o dom Quixote, foi-se chegando pouco a pouco às casas,
encomendando-se de todo coração a sua senhora, suplicando-lhe que
naquela temerosa jornada e empresa o favorecesse, e de caminho se
encomendava também a Deus, que não o olvidasse. Não saía Sancho do
seu lado, o qual alargava quanto podia o pescoço e a vista por entre as
pernas de Rocinante, por ver se veria já o que tão suspenso e medroso
o tinha.
Outros cem passos seriam os que andaram, quando, ao dobrar de
uma ponta, pareceu descoberta e patente a mesma causa, sem que
pudesse ser outra, daquele horríssono e para eles espantável ruído,
que tão suspensos e medrosos toda a noite os havia tido. E eram (não
tenhas, oh leitor!, pesar e nojo) seis macetes, que com seus
alternativos golpes aquele estrondo formavam.
Quando dom Quixote viu o que era, emudeceu e petrificou-se.
Mirou-o Sancho, e viu que tinha a cabeça inclinada sobre o peito, com
mostras de estar envergonhado. Olhou também dom Quixote para
Sancho, e viu que tinha as bochechas inchados e a boca cheia de riso,
com evidentes sinais de querer rebentar com ele, e não pôde sua
melancolia tanto com ele que, à vista de Sancho, pudesse deixar de
rir; e, como viu Sancho que seu amo havia começado, relaxou de
maneira que teve necessidade de apertar as ilhargas com os punhos,
para não rebentar rindo. Quatro vezes sossegou, e outras tantas
voltou a seu riso com o mesmo ímpeto que no começo; do que já se
dava ao diabo dom Quixote, e mais quando o ouviu dizer, como por
brincadeira:
- “Hás de saber, oh Sancho amigo!, que eu nasci por querer do céu
nesta nossa idade de ferro para ressuscitar nela a dourada, ou de
ouro. Eu sou aquele para quem estão guardados os perigos, as façanhas
grandes, os valorosos feitos...”
E por aqui foi repetindo todas ou as mais razões que dom Quixote
disse a vez primeira em que ouviram os temerosos golpes.
Vendo, pois, dom Quixote que Sancho fazia burla dele, vexou-se e
irritou-se de tal maneira, que alçou o chuço e lhe assentou dois golpes,
tais que, se, como os recebeu nas costas, os recebesse na cabeça,
ficaria livre de pagar-lhe o salário, se não fosse a seus herdeiros.
Vendo Sancho que sofria tão maus castigos por suas burlas, com
temor de que seu amo continuasse com eles, com muita humildade lhe
disse:
- Sossegue vossa mercê; que, por Deus, que estou brincando.
- Pois porque vós brincais, não brinco eu - respondeu dom Quixote. -
Vinde cá, senhor alegre: parece-vos que, se como estes foram macetes
de madeira, fossem outra perigosa aventura, não havia eu mostrado o
ânimo que convinha para emprendê-la e acabá-la? Estou eu obrigado,
por acaso, sendo, como sou, cavaleiro, a conhecer e distinguir os sons
e saber quais são de macete ou não? E mais, que poderia ser, como é
verdade, que nunca os vi em minha vida, como vós os havereis visto,
como vilão ruim que sois, criado e nascido entre eles. Se não, fazei vós
que estes seis macetes se transformem em seis gigantes, e incitai-os
contra mim um a um, ou todos juntos, e, quando eu não der com todos
de patas para cima, fazei comigo a brincadeira que quiserdes.
- Já chega, senhor meu - replicou Sancho, - que eu confesso que
andei algo risonho em demasia. Mas diga-me vossa mercê, agora que
estamos em paz, assim Deus o salve de todas as aventuras que lhe
sucederem tão são e salvo como salvou desta: não foi coisa de rir, e o
é de contar, o grande medo que tivemos? Ao menos, o que eu tive; que
de vossa mercê já eu sei que não o conhece, nem sabe o que é temor
nem espanto.
- Não nego eu - respondeu dom Quixote - que o que nos sucedeu não
seja coisa digna de riso, mas não é digna de contar-se; pois não são
todas as pessoas tão discretas que saibam dar o devido valor às
coisas.
- Ao menos - respondeu Sancho, - soube vossa mercê dar valor ao
chuço, apontando-me à cabeça, e dando-me nas costas, graças a Deus
e à diligência que pus em virar-me de lado. Mas vá, que afinal sairá
toda a verdade; que eu ouvi dizer: “Esse te quer bem, que te faz
chorar”; e mais, que costumam os principais senhores, após uma má
palavra que dizem a um criado, dar-lhe logo umas calças; embora não
sei o que lhe costumam dar após haver-lhe dado golpes, se já não é que
os cavaleiros andantes dão após golpes ilhas ou reinos em terra firme.
- Tal poderia deparar-lhe a sorte - disse dom Quixote - que tudo o
que dizes viesse a ser verdade; e perdoa o passado, pois és discreto e
sabes que os primeiros impulsos não estão no domínio do homem, e
esteja advertido daqui em diante de uma coisa, para que te abstenhas
e moderes em não falar demasiado comigo; que em quantos livros de
cavalarias tenho lido, que são infinitos, jamais achei que nenhum
escudeiro falasse tanto com seu senhor como tu com o teu. E em
verdade que o tenho por grande falta, tua e minha: tua, porque me
estimas pouco; minha, porque não me deixo estimar mais. Sim, que
Gandalin, escudeiro de Amadis de Gaula, conde foi da Ilha Firme; e se
lê dele que sempre falava a seu senhor com o boné na mão,
inclinada a cabeça e dobrado o corpo more turquesco. Então, que
diremos de Gasabal, escudeiro de dom Galaor, que foi tão calado que,
para declarar-nos a excelência de seu maravilhoso silêncio, só uma vez
se nomeia seu nome em toda aquela tão grande como verdadeira
história? De tudo o que disse hás de inferir, Sancho, que é mister
fazer diferença de amo a moço, de senhor a criado e de cavaleiro a
escudeiro. Assim que, de hoje em diante, havemo-nos de tratar com
mais respeito, sem embromar-nos, porque, de qualquer maneira que eu
me zangue convosco, há de ser mal para o cântaro. As mercês e
benefícios que eu vos prometi chegarão a seu tempo; e se não
chegarem, o salário, ao menos, não se há de perder, como já vos disse.
- Está bem quanto vossa mercê diz - disse Sancho, - mas queria eu
saber, por se acaso não chegasse o tempo das mercês e fosse
necessário atender ao dos salários, quanto ganhava um escudeiro de
um cavaleiro andante naqueles tempos, e se se acertavam por meses,
ou por dias, como pedreiros.
- Não creio eu - respondeu dom Quixote - que jamais os tais
escudeiros estiveram a salário, senão à mercê. E se eu agora te
indiquei no testamento fechado que deixei em minha casa, foi pelo que
podia suceder; que ainda não sei como prova nestes tão calamitosos
tempos nossos a cavalaria, e não queria que por ninharias penasse
minha alma no outro mundo. Porque quero que saibas, Sancho, que
neste não há estado mais perigoso que o dos aventureiros.
- Assim é verdade - disse Sancho, - pois só o ruído dos macetes
pôde alvoroçar e desassossegar o coração de um tão valoroso andante
aventureiro como é vossa mercê. Mas, bem pode estar seguro que,
daqui em diante, não despregue meus lábios para fazer donaire das
coisas de vossa mercê, se não for para honrá-lo, como a meu amo e
senhor natural.
- Dessa maneira - replicou dom Quixote, - viverás sobre a face da
terra; porque, depois de aos pais, aos amos se há de respeitar como se
o fossem.
CAPÍTULO XXI

Que trata da alta aventura e rica conquista do elmo de Mambrino,


com outras coisas sucedidas a nosso invencível cavaleiro

Nisto, começou a chover um pouco, e queria Sancho que entrassem


no moinho dos macetes, mas haviam causado tal aborrecimento a dom
Quixote, pela pesada burla, que de maneira alguma quis entrar; e
assim, torcendo o caminho à direita, deram em outro como o que
haviam percorrido o dia anterior.
Dali a pouco, descobriu dom Quixote um homem a cavalo que trazia
na cabeça uma coisa que rebrilhava como se fosse de ouro, e apenas
ele o viu, quando se voltou a Sancho e lhe disse:
- Parece-me, Sancho, que não há refrão que não seja verdadeiro,
porque todos são sentenças tiradas da mesma experiência, mãe das
ciências todas, especialmente aquele que diz: “Onde uma porta se
fecha, outra se abre”. Digo-o porque se ontem à noite nos fechou a
ventura a porta da que buscávamos, enganando-nos com os macetes,
agora nos abre de par em par outra, para outra melhor e mais certa
aventura; que se eu não acertar a entrar por ela, minha será a culpa,
sem que a possa dar à pouca notícia de macetes nem à escuridão da
noite. Digo isto porque, se não me engano, até nós vem um que traz em
sua cabeça posto o elmo de Mambrino, sobre o que eu fiz o juramento
que sabes.
- Mire vossa mercê bem o que diz, e melhor o que faz - disse
Sancho, - que não queria que fossem outros macetes que nos
acabassem de macetear e aporrear o sentido.
- Leve-te o diabo, mau homem! - replicou dom Quixote. - Que tem a
ver elmo com macetes?
- Não sei nada - respondeu Sancho; - mas, à fé que se eu pudesse
falar tanto como costumava, quiçá daria tais razões que vossa mercê
veria que se engana no que diz.
- Como me posso enganar no que digo, traidor insignificante? - disse
dom Quixote. - Diz-me, não vês aquele cavaleiro que até nós vem,
sobre um cavalo ruço, que traz posto na cabeça um elmo de ouro?
- O que eu vejo e vislumbro - respondeu Sancho - não é senão um
homem sobre um asno pardo, como o meu, que traz sobre a cabeça uma
coisa que rebrilha.
- Pois esse é o elmo de Mambrino - disse dom Quixote. - Afasta-te
e deixa-me com ele a sós: verás como sem falar palavra, para poupar
tempo, concluo esta aventura e fica para mim o elmo que tanto
desejei.

- Eu tenho o cuidado de afastar-me - replicou Sancho, - mas queira


Deus, torno a dizer, que orégano seja, e não macetes.
- Já vos disse, irmão, que não me mintais, nem em pensamento, mas
isso dos macetes - disse dom Quixote; - que voto, e não digo mais, que
vos açoite a alma.
Calou Sancho, com temor de que seu amo não cumprisse o voto que
havia feito, redondo como uma bola.
É, pois, o caso que o elmo, e o cavalo e cavaleiro que dom Quixote
via, era isto: que naquele contorno havia dois lugares, um tão pequeno
que nem tinha botica nem barbeiro, e o outro, que estava junto, sim; e
assim, o barbeiro do maior servia ao menor, no qual teve necessidade
um enfermo de sangrar-se e outro de fazer a barba, para que vinha o
barbeiro, e trazia uma bacia de latão; e quis a sorte que, quando
vinha, começou a chover, e, para que não se lhe manchasse o chapéu,
que devia ser novo, pôs a bacia sobre a cabeça; e, como estava limpa,
desde meia légua rebrilhava. Vinha sobre um asno pardo, como Sancho
disse, e este foi o motivo que a dom Quixote pareceu cavalo ruço, e
cavaleiro, e elmo de ouro; que todas as coisas que via, com muita
facilidade as acomodava a suas desvairadas cavalarias e malandantes
pensamentos. E quando ele viu que o pobre cavaleiro chegava perto,
sem pôr-se com ele em razões, a todo correr de Rocinante enristou-o
com o chuço baixo, levando intenção de atravessá-lo de lado a lado;
mas quando a ele chegava, sem deter a fúria de sua carreira, disse-
lhe:
- Defende-te, criatura mesquinha, ou entrega-me por tua vontade o
que com tanta razão me deve!
O barbeiro, que, tão sem pensá-lo nem temê-lo, viu vir aquele
fantasma sobre si, não teve outro remédio, para poder guardar-se do
golpe da lança, se não foi o deixar-se cair do asno abaixo; e não havia
tocado no chão, quando se levantou mais ligeiro que um gamo e
começou a correr por aquele plano, que não o alcançaria o vento.
Deixou a bacia no chão, com a qual se contentou dom Quixote, e disse
que o pagão havia andado discreto e que havia imitado o castor, o qual,
vendo-se acossado pelos caçadores, se corta e desgarra com os
dentes aquilo pelo que ele, por instinto natural, sabe que é perseguido.
Mandou que Sancho alçasse o elmo, o qual, tomando-a nas mãos, disse:
- Por Deus, que a bacia é boa e tanto vale um real de oito pesos
como um maravedi.
E dando-a a seu amo, este a pôs logo na cabeça, rodando-a para um
lado e outro, buscando-lhe o encaixe; e, como não o achava, disse:
- Sem dúvida que o pagão, a cuja medida se forjou primeiro este
famoso elmo, devia ter grandíssima cabeça, e o pior disso é que lhe
falta a metade.
Quando Sancho ouviu chamar à bacia “elmo”, não pôde reter o riso;
mas veio-lhe à mente a cólera de seu amo, e conteve-se.
- De que te ris, Sancho? - disse dom Quixote.
- Rio-me - respondeu ele - de considerar a grande cabeça que tinha
o pagão dono deste elmete, que não parece senão uma bacia de
barbeiro.
- Sabes o que imagino, Sancho? Que esta famosa peça deste
encantado elmo, por algum estranho acidente, deveu vir às mãos de
quem não soube conhecer nem estimar seu valor, e, sem saber o que
fazia, vendo-a de ouro puríssimo, deveu fundir a outra metade para
aproveitar-se do preço, e da outra metade fez esta, que parece bacia
de barbeiro, como tu dizes. Mas, seja o que for; que para mim que a
conheço não vem ao caso sua transmutação; que eu a aformosearei no
primeiro lugar onde haja ferreiro, e de sorte que não lhe faça
vantagem, nem ainda se lhe aproxime, a que fez e forjou o deus das
serralherias para o deus das batalhas; e, neste entretanto, a trarei
como puder, que mais vale algo que nada; quanto mais, que bem será
bastante para defender-me de alguma pedrada.
- Isso será - disse Sancho - se não se atira com funda, como
atiraram na peleja dos dois exércitos, quando benzeram a vossa mercê
os dentes e romperam o vinagreira onde vinha aquela benditíssima
beberagem que me fez vomitar as entranhas.
- Não me dá muita pena havê-la perdido, que já sabes tu, Sancho -
disse dom Quixote, - que eu tenho a receita na memória.
- Também a tenho eu - respondeu Sancho, - mas se eu a fizer nem a
provar mais em minha vida, aqui seja minha hora. Quanto mais, que não
penso pôr-me na ocasião de precisar dela, porque penso guardar-me
com todos meus cinco sentidos de ser ferido nem de ferir a ninguém.
De ser outra vez manteado, não digo nada, que semelhantes desgraças
mal se podem prever, e se vêm, não há que fazer outra coisa senão
encolher os ombros, reter a respiração, fechar os olhos e deixar-se ir
por onde a sorte e a manta nos levar.
- Mau cristão és, Sancho - disse, ouvindo isto, dom Quixote, -
porque nunca olvidas a injúria que uma vez te fizeram; pois sabe que é
de peitos nobres e generosos não fazer caso de ninharias. Que pé
tiveste coxo, que costela quebrada, que cabeça rota, para que não te
olvides daquela burla? Que, bem apurada a coisa, burla foi e
passatempo; que, a não entendê-lo eu assim, já eu haveria voltado lá e
feito em tua vingança mais dano que o que fizeram os gregos pela
roubada Helena. A qual, se fosse neste tempo, ou minha Dulcineia
fosse naquele, poderia estar certa de que não teria tanta fama de
formosa como tem.
E aqui deu um suspiro, e o pôs nas nuvens. E disse Sancho:
- Passe por burlas, pois a vingança não pode passar de verdade; mas
eu sei de que qualidade foram as verdades e as burlas, e sei também
que nunca me sairão da memória, e assim também das costas. Mas,
deixando isto de lado, diga-me vossa mercê que faremos deste cavalo
ruço, que parece asno pardo, que deixou aqui desamparado aquele
Martino que vossa mercê derrubou; que, conforme ele pôs os pés em
polvorosa e escapou a toda pressa, não leva disposição de voltar por
ele jamais; e por minhas barbas, se não é bom o ruço!
- Nunca eu me acostumo - disse dom Quixote - a despojar os que
venço, nem é uso de cavalaria tirar-lhes os cavalos e deixá-los a pé, se
já não fosse que o vencedor houvesse perdido na pendência o seu; que,
em tal caso, lícito é tomar o do vencido, como gado em guerra lícita.
Assim que, Sancho, deixa esse cavalo, ou asno, ou o que tu quiseres
que seja, que, quando seu dono nos veja afastados daqui, voltará por
ele.
- Deus sabe se queria levá-lo - replicou Sancho, - ou, pelo menos,
trocá-lo com este meu, que não me parece tão bom. Verdadeiramente
que são rígidas as leis de cavalaria, pois não se estendem a deixar
trocar um asno por outro; e queria saber se poderia trocar os
aparelhos sequer.
- Nisso não estou muito certo - respondeu dom Quixote; - e, em
caso de dúvida, até estar melhor informado, digo que os troques, se é
que tens deles necessidade extrema.
- Tão extrema é - respondeu Sancho - que se fossem para minha
mesma pessoa, deles não precisaria mais.
E logo, habilitado com aquela licença, fez mutatio caparum e pôs seu
jumento às mil lindezas, deixando-o melhorado em terço e um quinto.
Feito isto, almoçaram das sobras do butim que da mula despojaram,
beberam da água do arroio dos macetes, sem voltar a cara para olhá-
los: tal era o aborrecimento que lhes tinham pelo medo em que lhes
haviam posto.
Cessada, pois, a cólera, e ainda a tristeza, subiram a cavalo, e, sem
tomar determinado caminho, por ser muito de cavaleiros andantes o
não tomar nenhum certo, puseram-se a caminhar por onde a vontade
de Rocinante quis, que levava atrás de si a de seu amo, e ainda a do
asno, que sempre o seguia por onde quer que guiasse, em bom amor e
companhia. Desse modo, voltaram ao caminho real e seguiram por ele
ao acaso, sem outro desígnio algum.
Indo, pois, assim caminhando, disse Sancho a seu amo:
- Senhor, quer vossa mercê dar-me licença que fale um pouco
consigo? Que, depois que me impôs aquele áspero mandamento do
silêncio, apodreceram-se-me mais de quatro coisas no estômago, e uma
só que agora tenho na ponta da língua não queria que malograsse.
- Dize-a - disse dom Quixote, - e sê breve em teus arrazoados, que
nenhum é agradável se é prolixo.
- Digo, pois, senhor - respondeu Sancho, - que, de alguns dias a esta
parte considerei quão pouco se ganha e granjeia ao andar buscando
estas aventuras que vossa mercê busca por estes desertos e
encruzilhadas de caminhos, onde, já que se vençam e acabem as mais
perigosas, não há quem as veja nem saiba; e assim, hão de ficar em
perpétuo silêncio, e em prejuízo da intenção de vossa mercê e do que
elas merecem. E assim, me parece que seria melhor, salvo o melhor
parecer de vossa mercê, que nos fôssemos servir a algum imperador,
ou a outro príncipe grande que tenha alguma guerra, em cujo serviço
vossa mercê mostre o valor de sua pessoa, suas grandes forças e
maior entendimento; que, visto isto do senhor a quem servirmos, por
força nos há de remunerar, a cada qual segundo seus méritos, e ali não
faltará quem ponha em escrito as façanhas de vossa mercê, para
perpétua memória. Das minhas não digo nada, pois não hão de sair dos
limites escuderis; embora sei dizer que, se se usa na cavalaria
escrever façanhas de escudeiros, não penso que hão de ficar as
minhas perdidas.
- Não dizes mal, Sancho - respondeu dom Quixote; - mas, antes que
se chegue a esse termo, é mister andar pelo mundo, como em
aprovação, buscando as aventuras, para que, dando fim a algumas, se
cobre nome e fama tal que, quando se for à corte de algum grande
monarca, já seja o cavaleiro conhecido por suas obras; e que, apenas o
vejam entrar os moços pela porta da cidade, quando todos o sigam e
rodeiem, dando vozes, dizendo: “Este é o Cavaleiro do Sol”, ou da
Serpente, ou de outra insígnia alguma, debaixo da qual houver
cumprido grandes façanhas. “Este é - dirão - o que venceu em singular
batalha ao gigantaço Brocabruno da Grande Força; o que desencantou
o Grande Mameluco da Pérsia do largo encantamento em que havia
estado quase novecentos anos”. Assim que, de mão em mão, irão
apregoando teus feitos, e logo, ao alvoroço dos moços e da demais
gente, parará às janelas de seu real palácio o rei daquele reino, e
assim que veja o cavaleiro, conhecendo-o pelas armas ou pelo emblema
do escudo, forçosamente há de dizer: “Eia, sus! Saiam meus
cavaleiros, quantos em minha corte estão, para receber a flor da
cavalaria, que ali vem!” A cujo mandamento sairão todos, e ele chegará
até a metade da escada, e o abraçará estreitissimamente, e o saudará
beijando-o no rosto em sinal de amizade; e logo o levará pela mão ao
aposento da senhora rainha, onde o cavaleiro a achará com a infanta,
sua filha, que há de ser uma das mais formosas e acabadas donzelas
que, em grande parte do descoberto da terra, a duras penas se possa
achar. Sucederá após isto, logo imediatamente, que ela ponha os olhos
no cavaleiro e ele nos dela, e cada um pareça a outro coisa mais divina
que humana; e, sem saber como, nem como não, hão de ficar presos e
enlaçados na intrincada rede amorosa, e com grande coita em seus
corações por não saber como se hão de falar para descobrir suas
ânsias e sentimentos. Dali o levarão, sem dúvida, a algum quarto do
palácio, ricamente adornado, onde, havendo-lhe tirado as armas, trar-
lhe-ão um rico manto escarlate com que se cubra; e se bem pareceu
armado, tão bem e melhor há de parecer de gibão. Vinda a noite, ceará
com o rei, rainha e infanta, quando nunca tirará os olhos dela, olhando-
a a furto dos circunstantes, e ela fará o mesmo com a mesma
sagacidade, porque, como tenho dito, é muito discreta donzela. Tirar-
se-ão as mesas, e entrará de repente pela porta da sala um feio e
pequeno anão com uma formosa dona que entre dois gigantes atrás do
anão vem, com certa aventura, proposta por um antiquíssimo mago, que
o que a concluir será tido pelo melhor cavaleiro do mundo. Mandará
logo o rei que todos os que estão presentes intentem cumpri-la, e
nenhum lhe dará fim senão o cavaleiro hóspede, muito em prol de sua
fama, do que ficará contentíssima a infanta, e se terá por alegre e
paga além disso, por haver posto e colocado seus pensamentos em tão
alto lugar. E o bom é que este rei, ou príncipe, ou o que é, tem uma
muito renhida guerra com outro tão poderoso como ele, e o cavaleiro
hóspede lhe pede, ao cabo de alguns dias que tem estado em sua
corte, licença para ir servi-lo naquela guerra. Dar-lhe-á o rei de muito
bom talante, e o cavaleiro lhe beijará cortesmente as mãos pela mercê
que lhe faz. E naquela noite se despedirá de sua senhora a infanta
pelas grades de um jardim, que dá no aposento onde ela dorme, pelas
quais já outras muitas vezes lhe havia falado, sendo medianeira e
sabedora de tudo uma donzela em quem a infanta muito confiava.
Suspirará ele, desmaiará ela, trará água a donzela, sofrerá muito
porque vem a manhã, e não queria que fossem descobertos, pela honra
de sua senhora. Finalmente, a infanta voltará a si e dará suas brancas
mãos pela grade ao cavaleiro, o qual as beijará mil e mil vezes e as
banhará em lágrimas. Ficará acertado entre os dois o modo que hão
de fazer saber seus bons ou maus sucessos, e rogar-lhe-á a princesa
que se detenha o menos que puder; prometê-lo-á ele com muitos
juramentos; torna a beijar-lhe as mãos, e despede-se com tanto
sentimento que estará pouco por acabar a vida. Vai dali a seu
aposento, joga-se sobre seu leito, não pode dormir da dor da partida,
madruga muito de manhã, vai despedir-se do rei e da rainha e da
infanta; dizem-lhe, havendo-se despedido dos dois, que a senhora
infanta está mal disposta e que não pode receber visita; pensa o
cavaleiro que é de pena de sua partida, traspassa-se-lhe o coração, e
falta pouco para não dar indício manifesto de sua pena. Está a donzela
medianeira diante, fá-lo notar tudo, vai dizê-lo a sua senhora, a qual a
recebe com lágrimas e lhe diz que uma das maiores penas que tem é
não saber quem seja seu cavaleiro, e se é de linhagem de reis ou não;
assegura-lhe a donzela que não pode caber tanta cortesia, gentileza e
valentia como a de seu cavaleiro senão em sujeito real e grave;
consola-se com isto a coitada; procura consolar-se, por não dar mal
indício de si a seus pais, e, ao cabo de dois dias, sai em público. Já se
foi o cavaleiro: luta na guerra, vence o inimigo do rei, conquista muitas
cidades, triunfa em muitas batalhas, volta à corte, vê a sua senhora
por onde costuma, acerta-se que a peça a seu pai por mulher em paga
de seus serviços. Não a quer dar o rei, porque não sabe quem é; mas,
então, ou roubada ou de outra qualquer sorte que seja, a infanta vem a
ser sua esposa e seu pai o vem a ter por grande ventura, porque se
veio a averiguar que o tal cavaleiro é filho de um valoroso rei de não
sei que reino, porque creio que não deve estar no mapa. Morre o pai,
herda a infanta, fica rei o cavaleiro em duas palavras. Aqui entra logo
o fazer mercês a seu escudeiro e a todos aqueles que o ajudaram a
subir a tão alto estado: casa seu escudeiro com uma donzela da
infanta, que será, sem dúvida, a que foi terceira em seus amores, que
é filha de um duque muito principal.
- Isso peço, e sem enganos - disse Sancho; - a isso me atenho,
porque tudo, ao pé da letra, há de suceder por vossa mercê,
chamando-se o Cavaleiro da Triste Figura.
- Não o duvides, Sancho - replicou dom Quixote, - porque do mesmo
e pelos mesmos passos que isto contei sobem e subiram os cavaleiros
andantes a ser reis e imperadores. Só falta agora olhar que rei dos
cristãos ou dos pagãos tenha guerra e tenha filha formosa; mas tempo
haverá para pensar nisto, pois, como te tenho dito, primeiro se há de
cobrar fama por outras partes que se acuda à corte. Também me falta
outra coisa; que, caso se ache rei com guerra e com filha formosa, e
que eu haja cobrado fama incrível por tudo o universo, não sei eu como
se podia achar que eu seja de linhagem de reis, ou, pelo menos, primo
segundo de imperador; porque não me quererá o rei dar a sua filha por
mulher se não está primeiro muito inteirado nisto, embora mais o
mereçam meus famosos feitos. Assim que, por esta falta, temo perder
o que meu braço tem bem merecido. Bem é verdade que eu sou fidalgo
de solar conhecido, de possessão e propriedade e de reivindicar
quinhentos soldos; e poderia ser que o mago que escrevesse minha
história deslindasse de tal maneira minha parentela e descendência,
que me achasse quinto ou sexto neto de rei. Porque te faço saber,
Sancho, que há duas maneiras de linhagems no mundo: uns que trazem
e derivam sua linhagem de príncipes e monarcas, a quem pouco a pouco
o tempo desfaz, e acabam em ponta, como pirâmide posta ao revés;
outros tiveram princípio de gente baixa, e vão subindo de grau em
grau, até chegar a ser grandes senhores. De maneira que está a
diferença em que uns foram, que já não são, e outros são, que já não
foram; e poderia ser eu destes que, depois de averiguado, houvesse
sido meu princípio grande e famoso, com o qual se devia contentar o
rei, meu sogro, que houver de ser. E quando não, a infanta me há de
querer de maneira que, apesar de seu pai, embora claramente saiba
que sou filho de um peão, me há de admitir por senhor e por esposo; e
se não, aqui entra o roubá-la e levá-la onde mais gosto me der; que o
tempo ou a morte há de acabar a zanga de seus pais.
- Aí entra bem também - disse Sancho - o que alguns desalmados
dizem: “Não peças por bem o que podes tomar por força”; embora
melhor quadra dizer: “Mais vale a escapulida que rogo de juízes de
paz”. Digo-o porque se o senhor rei, sogro de vossa mercê, não se
quiser dobrar para entregar-lhe a minha senhora a infanta, não há
senão, como vossa mercê diz, roubá-la e levá-la. Mas está o dano que,
enquanto se façam as pazes e se goze pacificamente o reino, o pobre
escudeiro se poderá estar a pão e água nisto das mercês. Se já não é
que a donzela terceira, que há de ser sua mulher, sai com a infanta, e
ele passa com ela sua má ventura, até que o céu ordene outra coisa;
porque bem poderá, creio eu, desde logo dá-la seu senhor por legítima
esposa.
- Isso não há quem o impeça - disse dom Quixote.
- Pois, como isso seja - respondeu Sancho, - não há senão
encomendar-nos a Deus, e deixar correr a sorte por onde melhor o
encaminhar.
- Faça-o Deus - respondeu dom Quixote - como eu desejo e tu,
Sancho, precisas; e ruim seja quem por ruim se tem.
- Seja por Deus - disse Sancho, - que eu cristão velho sou, e para
ser conde isto me basta.
- E ainda te sobra - disse dom Quixote; - e quando não o fosses, não
viria nada ao caso, porque, sendo eu o rei, bem te posso dar nobreza,
sem que a compres nem me sirvas com nada. Porque, em fazendo-te
conde, tornas-te cavaleiro, e digam o que disserem; que à boa fé que
te hão de chamar senhoria, mal que lhes pese.
- E quanto saberia eu valorizar o titlo! - disse Sancho.
- Título hás de dizer, que não titlo - disse seu amo.
- Seja assim - respondeu Sancho Pança. - Digo que o saberia bem
acomodar, porque, por vida minha, que um tempo fui criado de uma
confraria, e que me assentava tão bem a roupa de criado, que diziam
todos que tinha presença para poder ser mordomo da mesma
confraria. Pois, que será quando me ponha um roupão ducal às costas,
ou me vista de ouro e de pérolas, à moda de conde estrangeiro? Para
mim tenho que me hão de vir ver de cem léguas.
- Bem parecerás - disse dom Quixote, - mas será mister que te
rapes as barbas amiúde; que, conforme as tens espessas, emaranhadas
e mal postas, se não as rapas à navalha, cada dois dias pelo menos, a
tiro de escopeta se verá o que és.
- Que há mais - disse Sancho, - senão tomar um barbeiro e tê-lo
assalariado em casa? E ainda, se for mister, lhe farei que ande atrás
de mim, como cavalariço de grande.
- Pois, como sabes tu - perguntou dom Quixote - que os grandes
levam atrás de si os seus cavalariços?
- Eu o direi - respondeu Sancho. - Em anos passados estive um mês
na corte, e ali vi que, passeando um senhor muito pequeno, que diziam
que era muito grande, um homem o seguia a cavalo em todas as voltas
que dava, que não parecia senão que era seu rabo. Perguntei por que
aquele homem não se juntava com o outro, senão que sempre andava
atrás dele. Responderam-me que era seu cavalariço e que era uso dos
grandes levar atrás de si aos tais. Desde então o sei tão bem que
nunca me esqueci.
- Digo que tens razão - disse dom Quixote, - e que assim podes tu
levar teu barbeiro; que os usos não vieram todos juntos, nem se
inventaram de uma vez, e podes ser tu o primeiro conde que leve atrás
de si seu barbeiro; e ainda é de mais confiança o fazer a barba que
encilhar um cavalo.
- Fique isso do barbeiro a meu cargo - disse Sancho, - e ao de vossa
mercê fique o procurar vir a ser rei e o fazer-me conde.
- Assim será - respondeu dom Quixote.
E alçando os olhos, viu o que se dirá no seguinte capítulo.
CAPÍTULO XXII

Da liberdade que deu dom Quixote a muitos desditados que, mau


grado seu, levavam-nos aonde não queriam ir

Conta Cide Hamete Benengeli, autor arábico e manchego, nesta


gravíssima, altissonante, mínima, doce e imaginada história que, depois
que entre o famoso dom Quixote da Mancha e Sancho Pança, seu
escudeiro, passaram aquelas razões que no fim do capítulo XXI ficam
referidas, que dom Quixote alçou os olhos e viu que pelo caminho que
seguia vinham até doze homens a pé, enfiados, como contas, em uma
grande corrente de ferro pelos pescoços, e todos com algemas às
mãos. Vinham também com eles dois homens a cavalo e dois a pé; os a
cavalo, com escopetas, e os a pé, com dardos e espadas; e assim que
Sancho Pança os viu, disse:
- Esta é corrente de galeotes, gente forçada do rei, que vai às
galeras.
- Como gente forçada? - perguntou dom Quixote. - É possível que o
rei force alguém?
- Não digo isso - respondeu Sancho, - senão que é gente que, por
seus delitos, vai condenada a servir ao rei nas galeras por força.
- Em suma - replicou dom Quixote, - como queira que isto seja, esta
gente, embora os levem, vão por força, e não por sua vontade.
- Assim é - disse Sancho.
- Pois dessa maneira - disse seu amo, - aqui encaixa a execução de
meu ofício: desfazer forças e socorrer e acudir aos miseráveis.
- Advirta vossa mercê - disse Sancho - que a justiça, que é o mesmo
rei, não faz força nem agravo a semelhante gente, senão que os
castiga em pena de seus delitos.
Chegou, nisto, a corrente dos galeotes, e dom Quixote, com muito
corteses razões, pediu aos que iam em sua guarda fossem servidos de
informar-lhe e dizer-lhe a causa, ou causas, por que levavam aquela
gente daquela maneira.
Um dos guardas a cavalo respondeu que eram galeotes, gente de
Sua Majestade que ia às galeras, e que não havia mais que dizer, nem
ele tinha mais que saber.
- Mesmo assim - replicou dom Quixote, - queria saber de cada um
deles em particular a causa de sua desgraça.
Acrescentou a estas outras tais e tão comedidas razões, para
movê-los a que dissessem o que desejava, que o outro guarda a cavalo
lhe disse:
- Embora levemos aqui o registro e a fé das sentenças de cada um
destes desventurados, não é tempo este de deter-nos a tirá-las nem a
lê-las; vossa mercê chegue e o pergunte a eles mesmos, que eles o
dirão se quiserem, que sim quererão, porque é gente que recebe gosto
de fazer e dizer velhacarias.
Com esta licença, que dom Quixote tomaria embora não a dessem,
chegou-se à corrente, e ao primeiro perguntou por que pecados ia em
tão mau estado. Ele lhe respondeu que por enamorado ia daquela
maneira.
- Por isso não mais? - replicou dom Quixote. - Pois, se por
enamorados jogam nas galeras, dias há que poderia eu estar remando
nelas.
- Não são os amores como os que vossa mercê pensa - disse o
galeote; que os meus foram que quis tanto a uma canastra de vime,
cheia de roupa branca, que a abracei comigo tão fortemente que, a não
tirá-la a justiça por força, ainda até agora não a haveria deixado por
minha vontade. Foi em flagrante, não houve necessidade de tortura;
concluiu-se a causa, deram-me nas costas cem chibatadas, e por
acréscimo três anos sem remissão de gurapas, e acabou-se a história.
- Que são gurapas? - perguntou dom Quixote.
- Gurapas são galeras - respondeu o galeote.
O qual era um moço de até idade de vinte e quatro anos, e disse que
era natural de Piedrahíta. O mesmo perguntou dom Quixote ao
segundo, o qual não respondeu palavra, conforme ia triste e
melancólico; mas respondeu por ele o primeiro, e disse:
- Este, senhor, vai por canário; digo, por músico e cantor.
- Pois, como - repetiu dom Quixote. - Por músicos e cantores vão
também às galeras?
- Sim, senhor - respondeu o galeote, - que não há pior coisa que
cantar na água.
- Antes, ouvi dizer - disse dom Quixote - que quem canta seus
males espanta.
- Aqui é ao contrário - disse o galeote, - que quem canta uma vez
chora toda a vida.
- Não o entendo - disse dom Quixote.
Mas um dos guardas lhe disse:
- Senhor cavaleiro, cantar na água se diz, entre esta gente não
santa, confessar na tortura. A este pecador torturaram e confessou
seu delito, que era ser abigeatário, que é ser ladrão de bestas, e, por
haver confessado, condenaram-no por seis anos às galeras, além de
duzentos açoites que já leva nas costas. E vai sempre pensativo e
triste, porque os demais ladrões que lá ficam e aqui vão o maltratam e
aniquilam, e escarnecem e têm em pouco, porque confessou e não teve
ânimo de negar. Porque dizem eles que tantas letras tem um não como
um sim, e que farta ventura tem um delinquente, que está em sua
língua sua vida ou sua morte, e não na dos testemunhos e provas; e
para mim tenho que não vão muito fora de caminho.
- E eu o entendo assim - respondeu dom Quixote.
O qual, passando ao terceiro, perguntou o mesmo que aos outros; o
qual, prestamente e com muito desenfado, respondeu e disse:
- Eu vou por cinco anos às senhoras gurapas por faltar-me dez
ducados.
- Eu darei vinte de muito bom grado - disse dom Quixote - por
livrar-vos dessa tristeza.
- Isso me parece - respondeu o galeote - como quem tem dinheiros
no meio do mar e está morrendo de fome, sem ter onde comprar o que
há mister. Digo-o porque se no tempo certo tivesse eu esses vinte
ducados que vossa mercê agora me oferece, teria untado com eles a
pena do escrivão e avivado o engenho do procurador, de maneira que
hoje me veria na praça de Zocodover de Toledo, e não neste caminho,
atado como galgo; mas Deus é grande: paciência e basta.
Passou dom Quixote ao quarto, que era um homem de venerável
rosto com uma barba branca que lhe passava do peito; o qual, ouvindo
perguntar a causa por que ali vinha, começou a chorar e não respondeu
palavra; mas o quinto condenado lhe serviu de língua, e disse:
- Este homem honrado vai por quatro anos às galeras, havendo
passeado as ruas costumeiras vestido em pompa e a cavalo.
- Isso é - disse Sancho Pança, - ao que a mim me parece, haver sido
levado à vergonha.
- Assim é - replicou o galeote; - e a culpa por que lhe deram esta
pena é por haver sido corretor de orelhas, e ainda de todo o corpo.
Com efeito, quero dizer que este cavaleiro vai por alcoviteiro, e por
ter também algo de feiticeiro.
- A não haver-lhe acrescentado essas suspeitas - disse dom
Quixote, - ao de simples alcoviteiro, não merecia ele ir remar nas
galeras, senão mandá-las e a ser general delas; porque não é assim
como queira o ofício de alcoviteiro, que é ofício de discretos e
necessaríssimo na república bem ordenada, e que não o devia exercer
senão gente muito bem nascida; e ainda havia de haver inspetor e
examinador dos tais, como o há dos demais ofícios, com numeração e
registro oficial, como corretores oficiais, e desta maneira se
evitariam muitos males que se causam por andar este ofício e
exercício entre gente idiota e de pouco entendimento, como são
mulherzinhas de pouco mais ou menos, pajenzinhos e truões de poucos
anos e de pouca experiência, que, na mais necessária ocasião e quando
é mister ter manha, ficam atônitos e não sabem qual é sua mão direita.
Quisera passar adiante e dar as razões por que convinha fazer eleição
dos que na república haviam de ter tão necessário ofício, mas não é o
lugar acomodado para isso: algum dia o direi a quem o possa prover e
remediar. Só digo agora que a pena que me causou ver estas brancas
cãs e este rosto venerável em tanta fatiga, por alcoviteiro, ma tirou o
adjunto de ser feiticeiro; embora bem sei que não há feitiços no
mundo que possam mover e forçar a vontade, como alguns simples
pensam; que é livre nosso alvedrio, e não há erva nem encanto que o
force. O que costumam fazer algumas mulherzinhas simples e alguns
embusteiros velhacos é algumas misturas e venenos com que tornam
loucos os homens, dando a entender que têm força para fazer querer
bem, sendo, como digo, coisa impossível forçar a vontade.
- Assim é - disse o bom velho, - e, em verdade, senhor, que no de
feiticeiro que não tive culpa; no de alcoviteiro, não o pude negar. Mas
nunca pensei que fazia mal nele: que toda minha intenção era que todo
o mundo folgasse e vivesse em paz e quietude, sem pendências nem
penas; mas não me aproveitou nada este bom desejo para deixar de ir
onde não espero voltar, conforme me carregam os anos e um mal de
urina que tenho, que não me deixa repousar um instante.
E aqui tornou a seu pranto, como de início; e teve Sancho tanta
compaixão dele, que tirou um real de quatro pesos do seio e lhe deu de
esmola.
Passou adiante dom Quixote, e perguntou a outro seu delito, o qual
respondeu com não menos, senão com muita mais galhardia que o
passado:
- Eu vou aqui porque burlei demasiadamente com duas primas irmãs
minhas, e com outras duas irmãs que não o eram minhas; finalmente,
tanto burlei com todas, que resultou da burla crescer a parentela, tão
intrincadamente que não há diabo que a declare. Provou-se tudo,
faltou favor, não tive dinheiros, via-me a pique de perder a garganta,
sentenciaram-me às galeras por seis anos, consenti: castigo é de
minha culpa; moço sou: dure a vida, que com ela tudo se alcança. Se
vossa mercê, senhor cavaleiro, leva alguma coisa com que socorrer a
estes pobretes, Deus o pagará no céu, e nós teremos na terra cuidado
de rogar a Deus em nossas orações pela vida e saúde de vossa mercê,
que seja tão larga e tão boa como sua boa presença merece.
Este ia em hábito de estudante, e disse um dos guardas que era
muito grande falante e muito gentil ladino.
Atrás de todos estes, vinha um homem de muito bom parecer, de
idade de trinta anos, senão que ao olhar metia um olho no outro um
pouco. Vinha diferentemente atado dos demais, porque trazia uma
corrente ao pé, tão grande que passava por todo o corpo, e das argolas
à garganta, uma na corrente, e a outra das que chamam guarda-amigo
ou pé-de-amigo, da qual desciam dois ferros que chegavam à cintura,
nos quais se prendiam duas algemas, onde levava as mãos, fechadas
com um grosso cadeado, de maneira que nem com as mãos podia
chegar à boca, nem podia baixar a cabeça a chegar às mãos. Perguntou
dom Quixote por que ia aquele homem com tantas trancas mais que os
outros. Respondeu-lhe o guarda porque tinha, aquele só, mais delitos
que todos os outros juntos, e que era tão atrevido e tão grande
velhaco que, embora o levassem daquela maneira, não iam seguros dele,
senão que temiam que lhes havia de fugir.
- Que delitos pode ter - disse dom Quixote, - se não mereceram
mais pena que levá-lo às galeras?
- Vai por dez anos - replicou a guarda, - que é como morte civil. Não
se queira saber mais, senão que este bom homem é o famoso Ginés de
Pasamonte, que por outro nome chamam Ginesillo de Parapilla.
- Senhor comissário - disse então o galeote, - vá pouco a pouco, e
não andemos agora a deslindar nomes e sobrenomes. Ginés me chamo e
no Ginesillo, e Pasamonte é minha estirpe, e não Parapilla, como
vosmecê diz; e cada um olhe por si, e não fará pouco.
- Fale com menos tom - replicou o comissário, - senhor ladrão de
marca maior, se não quer que lhe faça calar, mal que lhe pese.
- Bem parece - respondeu o galeote - que vai o homem como Deus é
servido, mas algum dia saberá algum se me chamo Ginesillo de
Parapilla, ou não.
- Então, não te chamam assim, embusteiro? - disse o guarda.
- Sim chamam - respondeu Ginés, - mas eu farei que não me
chamem, ou me arrancaria as barbas onde eu digo entre meus dentes.
Senhor cavaleiro, se tem algo que dar-nos, dê-nos já, e vá com Deus,
que já enfada com tanto querer saber de vidas alheias; e se a minha
quer saber, saiba que eu sou Ginés de Pasamonte, cuja vida está
escrita por estes polegares.
- Diz a verdade - disse o comissário: - que ele mesmo escreveu sua
história, que não há mais que desejar, e deixa empenhado o livro no
cárcere por duzentos reais.
- E penso resgatá-lo - disse Ginés, - se ficasse por duzentos
ducados.
- Tão bom é? - disse dom Quixote.
- É tão bom - respondeu Ginés - que tanto pior para Lazarillo de
Tormes e para todos quantos daquele gênero se escreveram ou
escreverem. O que sei dizer a vosmecê é que trata verdades, e que
são verdades tão lindas e tão graciosas que não pode haver mentiras
que se lhe igualem.
- E como se intitula o livro? - perguntou dom Quixote.
- A vida de Ginés de Pasamonte - respondeu o mesmo.
- E está acabado? - perguntou dom Quixote.
- Como pode estar acabado - respondeu ele, - se ainda não está
acabada minha vida? O que está escrito é desde meu nascimento até o
ponto que esta última vez me colocaram nas galeras.
- Logo, outra vez estivestes nelas? - disse dom Quixote.
- Para servir a Deus e ao rei, outra vez estive quatro anos, e já sei a
que sabe a bolacha dura e o rebenque - respondeu Ginés; - e não me
pesa muito de ir a eles, porque ali terei lugar de acabar meu livro, que
me ficam muitas coisas que dizer, e nas galeras da Espanha há mais
sossego que aquele que seria mister, embora não é mister muito mais
para o que eu tenho de escrever, porque o sei de cor.
- Hábil pareces - disse dom Quixote.
- E desditado - respondeu Ginés; - porque sempre as desditas
perseguem o bom engenho.
- Perseguem os velhacos - disse o comissário.
- Já lhe disse, senhor comissário - respondeu Pasamonte, - que vá
pouco a pouco, que aqueles senhores não lhe deram essa vara para que
maltratasse os pobretes que aqui vamos, senão para que nos guiasse e
levasse onde Sua Majestade manda. Se não, por vida de... Basta, que
poderia ser que saíssem algum dia na barrela as manchas que se
fizeram na estalagem; e tudo o mundo cale, e viva bem, e fale melhor e
caminhemos, que já é muita embromação esta.
Alçou a vara no alto o comissário para dar a Pasamonte em resposta
de suas ameaças, mas dom Quixote se pôs no meio e lhe rogou que não
o maltratasse, pois não era muito que quem levava tão atadas as mãos
tivesse algum tanto solta a língua. E voltando-se a todos os da
corrente, disse:
- De tudo quanto me haveis dito, irmãos caríssimos, tirei a limpo
que, embora vos castigaram por vossas culpas, as penas que ides
padecer não vos dão muito gosto, e que vais a elas muito de má
vontade e muito contra vossa vontade; e que poderia ser que o pouco
ânimo que aquele teve na tortura, a falta de dinheiros deste, o pouco
favor do outro e, finalmente, o torcido juízo do juiz, houvesse sido
causa de vossa perdição e de não haver saído com a justiça que de
vossa parte tínheis. Todo o qual se me representa a mim agora na
memória de maneira que me está dizendo, persuadindo e ainda
forçando que mostre convosco o efeito para que o céu me arrojou ao
mundo, e me fez professar nele a ordem de cavalaria que professo, e o
voto que nela fiz de favorecer aos necessitados e opressos pelos
maiores. Mas, porque sei que uma das partes da prudência é que o que
se pode fazer por bem não se faça por mal, quero rogar a estes
senhores guardiães e comissário sejam servidos de desatar-vos e
deixar-vos ir em paz, que não faltarão outros que sirvam ao rei em
melhores ocasiões; porque me parece duro caso fazer escravos aos
que Deus e natureza fez livres. Quanto mais, senhores guardas -
acrescentou dom Quixote, - que estes pobres não cometeram nada
contra vós. Lá se haja cada um com seu pecado; Deus há no céu, que
não se descuida de castigar o mau nem de premiar o bom, e não fica
bem que os homens honrados sejam verdugos dos outros homens, não
lhes valendo nada isso. Peço isto com esta mansidão e sossego, para
que tenha, se o cumpris, algo que agradecer-vos; e, quando de bom
grado não o façais, esta lança e esta espada, com o valor de meu
braço, farão que o façais por força.
- Graciosa tolice! - respondeu o comissário - Boa está a graça com
que saiu depois de tanto tempo! Os forçados do rei quer que lhe
deixemos, como se tivéssemos autoridade para soltá-los ou ele a
tivesse para mandar-nos! Vá-se vossa mercê, senhor, em boa hora, seu
caminho adiante, e ajeite esse penico que traz na cabeça, e não ande
procurando três pés no gato.
- Vós sois o gato, e o rato, e o velhaco! - respondeu dom Quixote.
E dizendo e fazendo, arremeteu contra ele tão rápido que, sem que
tivesse lugar de pôr-se em defesa, deu com ele no chão, malferido de
uma lançada; e deu-se bem, que este era o da escopeta. Os demais
guardas ficaram atônitos e suspensos do não esperado acontecimento;
mas, voltando a si, pegaram suas espadas os a cavalo, e os a pé seus
dardos, e arremeteram a dom Quixote, que com muito sossego os
aguardava; e, sem dúvida, ele passaria mal se os galeotes, vendo a
ocasião que se lhes oferecia de alcançar liberdade, não a procuraram,
procurando romper a corrente onde vinham enfiados. Foi a revolta de
maneira que as guardas, já por acudir aos galeotes, que se desatavam,
já por acometer a dom Quixote, que os acometia, não fizeram coisa
que fosse de proveito.
Ajudou Sancho, por sua parte, na soltura de Ginés de Pasamonte,
que foi o primeiro que saltou livre e desembaraçado, e, arremetendo
ao comissário caído, lhe tirou a espada e a escopeta, com a qual,
apontando a um e a outro, sem dispará-la jamais, não ficou guarda em
todo o campo, porque se foram fugindo, assim da escopeta de
Pasamonte como das muitas pedradas que os já soltos galeotes lhes
atiravam.
Entristeceu-se muito Sancho com este sucesso, porque se lhe
representou que os que iam fugindo haviam de dar notícia do caso à
Santa Irmandade, a qual, tocando sinos de alerta, sairia a buscar os
delinquentes, e assim o disse a seu amo, e lhe rogou que logo dali
partissem e se emboscassem na serra, que estava perto.
- Bem está isso - disse dom Quixote, - mas eu sei o que agora
convém que se faça.
E chamando a todos os galeotes, que andavam alvoroçados e haviam
despojado o comissário até deixá-lo em pelo, puseram-se todos a seu
redor para ver o que lhes mandava, e assim lhes disse:
- De gente bem nascida é agradecer os benefícios que recebem, e
um dos pecados que mais a Deus ofende é a ingratidão. Digo-o porque
já haveis visto, senhores, com manifesta experiência, o que de mim
haveis recebido; em paga do qual queria, e é minha vontade, que,
carregados dessa corrente que tirei de vossos pescoços, logo vos
ponhais a caminho e vades à cidade do Toboso, e ali vos apresenteis
ante a senhora Dulcineia do Toboso e lhe digais que seu cavaleiro o da
Triste Figura se lhe envia para que dele se recorde, e lhe conteis,
ponto por ponto, todos os que teve esta famosa aventura até pôr-vos
na desejada liberdade; e, feito isto, vós podereis ir onde quiserdes,
em boa sorte.
Respondeu por todos Ginés de Pasamonte, e disse:
- O que vossa mercê nos manda, senhor e libertador nosso, é
impossível de toda impossibilidade cumpri-lo, porque não podemos ir
juntos pelos caminhos, senão sós e divididos, e cada um por sua parte,
procurando meter-se nas entranhas da terra, por não ser achado da
Santa Irmandade, que, sem dúvida alguma, há de sair em nossa busca.
O que vossa mercê pode fazer, e é justo que faça, é mudar esse
serviço e tributo da senhora Dulcineia do Toboso em alguma
quantidade de ave-marias e credos, que nós diremos pela intenção de
vossa mercê; e esta é coisa que se poderá cumprir de noite e de dia,
fugindo ou repousando, em paz ou em guerra; mas pensar que havemos
de voltar agora às panelas do Egito, digo, a tomar nossa corrente e a
pôr-nos a caminho do Toboso, é pensar que é agora de noite, que ainda
não são as dez do dia, e é pedir a nós isso como pedir peras ao olmo.
- Pois voto a tal - disse dom Quixote, já posto em cólera, - dom
filho da puta, dom Ginesillo de Paropillo, ou como vos chameis, que
haveis de ir vós só, de rabo entre as pernas, com toda a corrente às
costas.
Pasamonte, que não era nada resignado, estando já inteirado de que
dom Quixote não era muito lúcido, pois tal disparate havia cometido
como o de querer dar-lhes liberdade, vendo-se tratar daquela
maneira, fez sinais com os olhos aos companheiros, e, afastando-se,
começaram a chover tantas pedras sobre dom Quixote, que não
conseguia cobrir-se com a rodela; e o pobre de Rocinante não fazia
mais caso da espora como se fosse feito de bronze. Sancho se pôs
atrás de seu asno, e com ele se defendia da tempestade de granizo
que sobre ambos chovia. Não se pôde escudar tão bem dom Quixote
que não o acertassem não sei quantos seixos no corpo, com tanta força
que deram com ele no chão; e apenas caiu, quando foi sobre ele o
estudante e lhe tirou a bacia da cabeça, e deu-lhe com ela três ou
quatro golpes nas costas e outros tantos na terra, com que a fez em
pedaços. Tiraram-lhe uma jaqueta que trazia sobre as armas, e as
meias lhe queriam tirar se as polainas de aço não o atrapalhassem. A
Sancho tiraram o gabão, e, deixando-o em pelo, repartindo entre si os
demais despojos da batalha, foram-se cada um por sua parte, com
mais cuidado de escapar-se da Irmandade, que temiam, que de
carregar a corrente e ir apresentar-se ante a senhora Dulcineia do
Toboso.
Sós ficaram jumento e Rocinante, Sancho e dom Quixote; o
jumento, cabisbaixo e pensativo, sacudindo de quando em quando as
orelhas, pensando que ainda não havia cessado a borrasca das pedras,
que lhe perseguiam os ouvidos; Rocinante, estendido junto a seu amo,
que também veio ao chão com outra pedrada; Sancho, em pelo e
temeroso da Santa Irmandade; dom Quixote, mofiníssimo de ver-se
tão estropiado pelos mesmos a quem tanto bem havia feito.

CAPÍTULO XXIII

Do que aconteceu ao famoso dom Quixote na Serra Morena, que foi


uma das mais raras aventuras que nesta verdadeira história se conta

Vendo-se tão estropiado dom Quixote, disse a seu escudeiro:


- Sempre, Sancho, ouvi dizer que o fazer bem a vilões é jogar água
no mar. Se eu houvesse acreditado no que me disseste, eu teria
evitado esta tristeza; mas já está feito: paciência, e escarmentar
para daqui em diante.
- Assim escarmentará vossa mercê - respondeu Sancho - como eu
sou turco; mas, pois diz que se me houvesse acreditado se haveria
evitado este dano, creia-me agora e evitará outro maior; porque lhe
faço saber que com a Santa Irmandade não há usar de cavalarias, que
não dá ela por quantos cavaleiros andantes há dois maravedis; e saiba
que já me parece que suas setas me zunem pelos ouvidos.
- Por natureza és covarde, Sancho - disse dom Quixote, - mas, para
que não digas que sou contumaz e que jamais faço o que me
aconselhas, por esta vez quero tomar teu conselho e afastar-me da
fúria que tanto temes; mas há de ser com uma condição: que jamais,
em vida nem em morte, hás de dizer a ninguém que eu me retirei e
afastei deste perigo de medo, senão por comprazer a teus rogos; que
se outra coisa disseres, mentirás, e desde agora para então, e desde
então para agora, te desminto, e digo que mentes e mentirás todas as
vezes que o pensares ou o disseres. E não me repliques mais, que em só
pensar que me afasto e retiro de algum perigo, especialmente deste,
que parece que leva algum é, não é, de sombra de medo, estou já para
ficar, e para aguardar aqui só, não somente a Santa Irmandade que
dizes e temes, senão os irmãos das doze tribos de Israel, e os sete
Macabeus, e Castor e Pólux, e ainda todos os irmãos e irmandades que
há no mundo.
- Senhor - respondeu Sancho, - retirar não é fugir, nem esperar é
cordura, quando o perigo sobrepuja a esperança, e de sábios é
guardar-se hoje para amanhã e não aventurar tudo num dia. E saiba
que, embora grosseiro e vilão, ainda me alcança algo disto que chamam
bom juízo; assim que, não se arrependa de haver tomado meu
conselho, senão suba em Rocinante, se pode, ou se não eu o ajudarei, e
siga-me, que o entendimento me diz que precisamos agora mais dos
pés que das mãos.
Subiu dom Quixote, sem replicar-lhe mais palavra, e, guiando
Sancho sobre seu asno, entraram por uma parte da Serra Morena, que
ali junto estava, levando Sancho intenção de atravessá-la toda e ir
sair em Viso, ou Almodóvar do Campo, e esconder-se alguns dias por
aquelas asperezas, para não ser achados se a Irmandade os buscasse.
Animou-o a isto haver visto que da refrega dos galeotes havia
escapado livre a provisão que sobre seu asno vinha, coisa que julgou
por milagre, segundo foi o que levaram e buscaram os galeotes.
Aquela noite chegaram às entranhas da Serra Morena, onde
pareceu a Sancho passar aquela noite e ainda outros alguns dias, ao
menos, todos aqueles que durasse o farnel que levava, e assim,
pernoitaram entre duas penhas e entre muitos sobreiros Mas a sorte
fatal, que segundo a opinião dos que não têm a luz da verdadeira fé,
tudo guia, trama e compõe a seu modo, ordenou que Ginés de
Pasamonte, o famoso embusteiro e ladrão que da corrente, por virtude
e loucura de dom Quixote, se havia escapado, levado do medo da
Santa Irmandade, a quem com justa razão temia, calhou de esconder-
se naquelas montanhas, e levou-o sua sorte e seu medo ao mesmo lugar
aonde havia levado dom Quixote e Sancho Pança, à hora e tempo que
os pôde reconhecer, e a ponto que os deixou dormir; e como sempre os
maus são desagradecidos, e a necessidade seja motivo de atender ao
que não se deve, e o remédio presente vença ao por vir, Ginés não era
nem agradecido nem bem intencionado, resolveu furtar o asno de
Sancho Pança, não deu atenção a Rocinante, por ser prenda tão má de
empenhar como de vender. Dormia Sancho Pança, furtou-lhe seu
jumento, e antes que amanhecesse se achou bem longe de ser achado.

Saiu a aurora alegrando a terra e entristecendo Sancho Pança,


porque não achou seu ruço; o qual, vendo-se sem ele, começou a fazer
o mais triste e doloroso pranto do mundo, e foi de maneira que dom
Quixote despertou às vozes, e ouviu que nelas dizia:
- Oh filho de minhas entranhas, nascido em minha mesma casa,
brinco de meus filhos, regalo de minha mulher, inveja de meus
vizinhos, alívio de minhas cargas, e, finalmente, sustentador da
metade de minha pessoa, porque com vinte e seis maravedis que
ganhavas cada dia, cobria eu metade de minha despesa!
Dom Quixote, que viu o pranto e soube a causa, consolou Sancho
com as melhores razões que pôde, e lhe rogou que tivesse paciência,
prometendo dar-lhe uma cédula de câmbio para que lhe dessem três
em sua casa, de cinco que havia deixado nela.
Consolou-se Sancho com isto, e limpou suas lágrimas, moderou seus
soluços, e agradeceu a dom Quixote a mercê que lhe fazia.
Assim que dom Quixote entrou por aquelas montanhas, alegrou-se-
lhe o coração, parecendo-lhe aqueles lugares acomodados para as
aventuras que buscava. Voltavam-lhe à memória os maravilhosos
acontecimentos que em semelhantes solidões e asperezas haviam
sucedido a cavaleiros andantes, e ia pensando nestas coisas, tão
embevecido e transportado nelas que de nenhuma outra se recordava.
Nem Sancho levava outro cuidado - depois que lhe pareceu que
caminhava por parte segura - senão de satisfazer seu estômago com
os sobras que do despojo clerical haviam ficado; e assim, ia atrás de
seu amo sentado de lado sobre seu jumento, tirando de um saco e
enfiando na pança; e não daria, por achar outra aventura, enquanto ia
daquela maneira, um tostão.
Nisto, alçou os olhos e viu que seu amo estava parado, procurando
com a ponta do chuço alçar não sei que volume que estava caído no
chão, pelo qual se deu pressa a chegar a ajudar-lhe se fosse mister; e
quando chegou foi a tempo que alçava com a ponta do chuço uma valise
e uma maleta presa a ele, meio apodrecidas, ou apodrecidas de todo, e
desfeitas; mas, pesavam tanto, que foi necessário que Sancho se
apeasse para pegá-las, e mandou seu amo que visse o que na maleta
vinha.
Fê-lo com muita presteza Sancho, e, embora a maleta estivesse
fechada com uma corrente e seu cadeado, pelo roto e apodrecido dela
viu o que nela havia, que eram quatro camisas de delgada holanda e
outras coisas de fino pano, não menos primorosas que limpas, e num
lencinho achou um bom montinho de escudos de ouro; e, assim que os
viu, disse:
- Bendito seja todo o céu, que nos deparou uma aventura que seja
de proveito!
E buscando mais, achou um livrinho de memória, ricamente
guarnecido. Este lhe pediu dom Quixote, e mandou que guardasse o
dinheiro e o tomasse para ele. Beijou-lhe as mãos Sancho pela mercê,
e, aliviando a valise de seus panos, a pôs no saco do farnel. Tudo o que
visto por dom Quixote, disse:
- Parece-me, Sancho, e não é possível que seja outra coisa, que
algum caminhante desencaminhado deveu passar por esta serra, e,
assaltando-o gatunos, devem tê-lo morto, e o trouxeram para enterrar
nesta tão escondida parte.
- Não pode ser isso - respondeu Sancho, - porque se fossem
ladrões, não deixariam aqui este dinheiro.
- Verdade dizes - disse dom Quixote, - e assim, não adivinho nem
dou no que isto possa ser; mas, espera: veremos se neste livrinho de
memória há alguma coisa escrita por onde possamos rastrear e vir em
conhecimento do que desejamos.
Abriu-o, e a primeira coisa que achou nele escrita, como em
borrador, embora de muito boa letra, foi um soneto, que, lendo-o alto
para que Sancho também o ouvisse, viu que dizia desta maneira:

Ou falta ao Amor conhecimento,


ou lhe sobra crueldade, ou não é minha pena
igual à ocasião que me condena
ao gênero mais duro de tormento.
Mas se Amor é deus, é argumento
que nada ignora, e é razão muito boa
que um deus não seja cruel. Pois, quem ordena
a terrível dor que adoro e sinto?
Se digo que sois vós, Fili, não acerto;
que tanto mal enquanto bem não cabe,
nem me vem do céu esta ruína.
Logo haverei de morrer, que é o mais certo;
que ao mal de quem a causa não se sabe
milagre é acertar a medicina.

- Por essa trova - disse Sancho - não se pode saber nada, se já não
é que por esse fio que está aí se encontre o novelo de todo.
- Que fio está aqui? - disse dom Quixote.
- Parece-me - disse Sancho - que vossa mercê nomeou aí fio.
- Não disse senão Fili - respondeu dom Quixote, - e este, sem
dúvida, é o nome da dama de quem se queixa o autor deste soneto; e à
fé que deve ser razoável poeta, ou eu sei pouco de arte.
- Logo, também - disse Sancho - entende vossa mercê de trovas?
- E mais do que tu pensas - respondeu dom Quixote, - e o verás
quando leves uma carta, escrita em verso de cima abaixo, a minha
senhora Dulcineia do Toboso. Porque quero que saibas, Sancho, que
todos ou os mais cavaleiros andantes da idade passada eram grandes
trovadores e grandes músicos; que estas duas habilidades, ou graças,
por melhor dizer, são anexas aos enamorados andantes. Verdade é que
as coplas dos passados cavaleiros têm mais de espírito que de primor.
- Leia mais vossa mercê - disse Sancho, - que já achará algo que nos
satisfaça.
Voltou a folha dom Quixote e disse:
- Isto é prosa, e parece carta.
- Carta de família, senhor? - perguntou Sancho.
- No princípio não parece senão de amores - respondeu dom
Quixote.
- Pois leia vossa mercê alto - disse Sancho, - que gosto muito destas
coisas de amores.
- Com prazer - disse dom Quixote.
E lendo-a alto, como Sancho lhe havia rogado, viu que dizia desta
maneira:

Tua falsa promessa e minha certa desventura me levam ao lugar onde antes
voltarão a teus ouvidos as novas de minha morte que as razões de minhas
queixas. Descartaste-me, oh ingrata!, por quem tem mais, não por quem vale mais
que eu; mas se a virtude fosse riqueza que se estimasse, não invejaria eu
felicidades alheias nem choraria desditas próprias. O que levantou tua
formosura derrubaram tuas obras: por ela entendi que eras anjo, e por elas
conheço que és mulher. Fica em paz, causadora de minha guerra, e faça o céu
que os enganos de teu esposo estejam sempre encobertos, para que tu não
fiques arrependida do que fizeste e eu não tome vingança do que não desejo.

Acabando de ler a carta, disse dom Quixote:


- Menos por esta que pelos versos se pode deduzir mais que quem a
escreveu é algum desdenhado amante.
E folheando quase todo o livrinho, achou outros versos e cartas,
que alguns pôde ler e outros não; mas o que todos continham eram
queixas, lamentos, desconfianças, sabores e dissabores, favores e
desdéns, solenizados uns e chorados outros.
Enquanto dom Quixote examinava o livro, examinava Sancho a
maleta, sem deixar canto em toda ela, nem na valise, que não buscasse,
esquadrinhasse e inquirisse, nem costura que não desfizesse, nem
mecha de lã que não cardasse, porque não ficasse nada por pressa nem
descuido: tal cupidez haviam despertado nele os achados escudos, que
passavam de cem. E embora não achasse mais do achado, deu por bem
empregados os voos da manta, o vomitar da beberagem, as bênçãos
dos cajados, as murros do arreeiro, a falta dos alforjes, o roubo do
gabão e toda a fome, sede e cansaço que havia passado em serviço de
seu bom senhor, parecendo-lhe que estava mais que muito bem pago
com a mercê recebida da entrega do achado.
Com grande desejo ficou o Cavaleiro da Triste Figura de saber
quem fosse o dono da maleta, conjeturando, pelo soneto e carta, pelo
dinheiro em ouro e pelas tão boas camisas, que devia ser de algum
principal enamorado, a quem desdéns e maus tratamentos de sua dama
deviam haver conduzido a algum desesperado termo. Mas, como por
aquele lugar inabitável e escabroso não aparecia pessoa alguma com
quem poder informar-se, não cuidou de mais que de passar adiante,
sem levar outro caminho que aquele que Rocinante queria, que era por
onde ele podia caminhar, sempre com imaginação que não podia faltar
por aquelas matas alguma estranha aventura.
Indo, pois, com este pensamento, viu que, por cima de um monte que
diante dos olhos se lhe oferecia, ia saltando um homem, de penhasco
em penhasco e de mata em mata, com estranha ligeireza. Afigurou-se-
lhe que ia desnudo, a barba negra e espessa, os cabelos muitos e
revoltos, os pés descalços e as pernas sem coisa alguma; as coxas
cobriam uns calções, ao parecer de veludo amarelado, mas tão feitos
em pedaços que por muitas partes se lhe descobriam as carnes. Trazia
a cabeça descoberta, e, embora tenha passado com a ligeireza que se
disse, todas estas minudências viu e notou o Cavaleiro da Triste
Figura; e, embora o procurasse, não pôde segui-lo, porque não era
dado à debilidade de Rocinante andar por aquelas asperezas, e mais
sendo ele de seu passo curto e fleugmático. Logo imaginou dom
Quixote que aquele era o dono da valise e da maleta, e propôs-se
procurá-lo, embora soubesse andar um ano por aquelas montanhas até
achá-lo, e, assim, mandou que Sancho se apeasse do asno e atalhasse
por uma parte da montanha, que ele iria pela outra e poderia ser que
topassem, com esta diligência, com aquele homem que com tanta
pressa se lhes havia sumido de diante.
- Não poderei fazer isso - respondeu Sancho, - porque, em
afastando-me de vossa mercê, logo é comigo o medo, que me assalta
com mil gêneros de sobressaltos e visões. E sirva-lhe isto que digo de
aviso, para que daqui em diante não me afaste um dedo de sua
presença.
- Assim será - disse o da Triste Figura, - e eu estou muito contente
de que queiras valer-te de meu ânimo, o qual não te há de faltar,
embora te falte a alma do corpo. E vem agora atrás de mim pouco a
pouco, ou como puderes, e faz dos olhos lanternas; rodearemos esta
serrinha: quiçá toparemos com aquele homem que vimos, o qual, sem
dúvida alguma, não é outro que o dono de nosso achado.
Ao que Sancho respondeu:
- Muito melhor seria não procurá-lo, porque se o achamos e acaso
for o dono do dinheiro, claro está que o tenho de restituir; e assim,
seria melhor, sem fazer esta inútil diligência, possui-lo eu com boa fé
até que, por outra via menos curiosa e diligente, aparecesse seu
verdadeiro senhor; e quiçá fosse a tempo que o houvesse gastado, e
então o rei me dispensaria de pagar fiança.
- Enganas-te nisso, Sancho - respondeu dom Quixote; - que, já que
suspeitamos quem é o dono, que está quase adiante, estamos
obrigados a procurá-lo e devolvê-los; e, quando não o procurássemos, a
veemente suspeita que temos de que ele o seja nos põe já em tanta
culpa como se o fosse. Assim que, Sancho amigo, não te dê pena o
procurá-lo, pois que a mim ela findará se o acho.
E assim picou a Rocinante, e seguiu-o Sancho com seu inseparável
jumento; e, havendo rodeado parte da montanha, acharam num arroio,
caída, morta e meio comida de cães e picada de urubus, uma mula
encilhada e aparelhada; tudo o que confirmou neles mais a suspeita de
que aquele que fugia era o dono da mula e da valise.
Estando-a olhando, ouviram um silvo como de pastor que guardava
gado, e de repente, à sua esquerda, apareceram uma boa quantidade
de cabras, e atrás delas, por cima da montanha, apareceu o cabreiro
que as guardava, que era um homem ancião. Deu-lhe vozes dom
Quixote, e rogou-lhe que descesse até onde estavam. Ele perguntou a
gritos quem os havia trazido por aquele lugar, poucas ou nenhumas
vezes pisado senão de pés de cabras ou de lobos e outras feras que
por ali andavam. Respondeu-lhe Sancho que descesse, que de tudo lhe
dariam boa conta. Desceu o cabreiro, e, chegando onde dom Quixote
estava, disse:
- Apostarei que está olhando a mula de aluguel que está morta
nesses fundões. Pois à boa fé que há já seis meses que está nesse
lugar. Digam-me: toparam por aí seu dono?
- Não topamos ninguém - respondeu dom Quixote, - senão uma
valise e uma maletinha que não longe deste lugar achamos.
- Também a achei eu - respondeu o cabreiro, - mas nunca a quis
alçar nem chegar a ela, temeroso de alguma desgraça e de que ma
pedissem por furto; que é o diabo sutil, e debaixo dos pés se levanta
ao homem coisa onde tropece e caia, sem saber como, nem como não.
- Isso mesmo é o que eu digo - respondeu Sancho: - que também a
achei eu, e não quis chegar a ela jogando-lhe uma pedra; ali a deixei e
ali fica como estava, que não quero cão com chocalho.
- Dizei-me, bom homem - disse dom Quixote, - sabeis vós quem seja
o dono destas prendas?
- O que saberei eu dizer - disse o cabreiro - é que haverá seis
meses, pouco mais ou menos, que chegou a uma cabana de pastores,
que estará como três léguas deste lugar, um mancebo de gentil talhe e
postura, a cavaleiro sobre essa mesma mula que aí está morta, e com a
mesma valise e maleta que dizeis que achastes e não tocastes.
Perguntou-nos qual parte desta serra era a mais áspera e escondida;
dissemos-lhe que era esta onde agora estamos; e é assim a verdade,
porque se entrais meia légua mais adentro, quiçá não acertareis sair; e
estou maravilhado de como haveis podido chegar aqui, porque não há
caminho nem senda que a este lugar encaminhe. Digo, pois, que,
ouvindo nossa resposta o mancebo, voltou as rédeas e encaminhou-se
até o lugar onde lhe assinalamos, deixando-nos a todos contentes por
seu bom talhe, e admirados por sua demanda e da pressa com que o
víamos caminhar e voltar-se para a serra; e desde então nunca mais o
vimos, até que dali a alguns dias saiu ao caminho a um de nossos
pastores, e, sem dizer-lhe nada, se chegou a ele e lhe deu muitos
murros e coices, e logo se foi à burrica da trouxa e lhe tirou quanto
pão e queijo nela trazia; e, com estranha ligeireza, feito isto, voltou a
esconder-se na serra. Como isto soubemos alguns cabreiros, o
andamos a procurar quase dois dias pelo mais fechado desta serra, ao
cabo dos quais o achamos metido no oco de um grosso e valente
sobreiro. Saiu a nós com muita mansidão, já rota a roupa, e o rosto
desfigurado e tostado do sol, de tal sorte que apenas o
reconhecíamos, senão que as roupas, embora rotas, com a notícia que
delas tínhamos, nos deram a entender que era o que buscávamos.
Saudou-nos cortesmente, e em poucas e muito boas razões nos disse
que não nos maravilhássemos de vê-lo andar daquela sorte, porque
assim lhe convinha para cumprir certa penitência que por seus muitos
pecados lhe havia sido imposta. Rogamos-lhe que nos dissesse quem
era, mas nunca o pudemos conseguir. Pedimos-lhe também que, quando
precisasse de sustento, sem o qual não podia passar, nos dissesse onde
o acharíamos, porque com muito amor e cuidado o levaríamos; e que se
isto tampouco fosse de seu gosto, que, ao menos, saísse a pedi-lo, e
não a tirá-lo aos pastores. Agradeceu nosso oferecimento, pediu
perdão dos assaltos passados, e ofereceu de pedi-lo daí em diante por
amor de Deus, sem dar moléstia alguma a ninguém. Quanto ao que
tocava ao lugar de sua habitação, disse que não tinha outro que aquele
que lhe oferecia a ocasião onde o encontrava a noite; e acabou sua
conversa com um tão terno pranto, que bem seríamos de pedra os que
o havíamos escutado, se nisso não o acompanhássemos, considerando
como o havíamos visto a vez primeira, e como o víamos então. Porque,
como tenho dito, era um muito gentil e gracioso mancebo, e em suas
corteses e acertadas razões mostrava ser bem nascido e muito
cortesã pessoa; que, posto que éramos rústicos os que o escutávamos,
sua gentileza era tanta, que bastava a dar-se a conhecer à mesma
rusticidade. E estando no melhor de sua conversa, parou e emudeceu;
cravou os olhos no chão por um bom tempo, no qual todos estivemos
parados e suspensos, esperando em que havia de dar aquele
ensimesmamento, com não pouca lástima de vê-lo; porque, pelo que
fazia de abrir os olhos, estar fixo olhando o chão sem mover pestana
muito tempo, e outras vezes fechá-los, apertando os lábios e
arqueando as sobrancelhas, facilmente conhecemos que algum
acidente de loucura lhe havia sobrevindo. Mas ele nos deu a entender
logo ser verdade o que pensávamos, porque se levantou com grande
fúria do chão, onde se havia posto, e arremeteu com o primeiro que
achou junto a si, com tal denodo e raiva que, se não o afastássemos,
matá-lo-ia a murros e a mordidas; e tudo isto fazia, dizendo: “Ah,
desleal Fernando! Aqui, aqui me pagarás a sem-razão que me fizeste:
estas mãos te arrancarão o coração, onde se albergam e têm guarida
todas as maldades juntas, principalmente a fraude e o engano!” E a
estas juntava outras razões, que todas se encaminhavam a dizer mal
daquele Fernando e a tachá-lo de traidor e desleal. Deixamo-lo, pois,
com não pouco pesar, e ele, sem dizer mais palavra, se afastou de nós
e se emboscou correndo por entre estas plantas e matas, de modo que
nos impossibilitou de segui-lo. Por isto conjeturamos que a loucura lhe
vinha a tempos, e que algum que se chamava Fernando lhe devia haver
feito alguma má obra, tão pesada quanto o mostrava o termo a que o
havia conduzido. Tudo o qual se confirmou depois aqui com as vezes,
que foram muitas, que ele saiu ao caminho, umas a pedir aos pastores
lhe deem do que levam para comer e outras a tirá-lo por força; porque
quando está com o acidente da loucura, embora os pastores o
ofereçam de bom grado, não o admite, senão que o toma a murros; e
quando está em seu juízo, pede-o por amor de Deus, cortês e
comedidamente, e rende por isso muitas graças, e não com falta de
lágrimas. E em verdade vos digo, senhores - prosseguiu o cabreiro, -
que ontem determinamos eu e quatro zagais, dos quais dois criados e
dois amigos meus, de procurá-lo até que o achássemos, e, depois de
achado, já por força já por bem, o havemos de levar à vila de
Almodóvar, que está daqui oito léguas, e ali o curaremos, se é que seu
mal tem cura, ou saberemos quem é quando esteja em seu juízo, e se
tem parentes a quem dar notícia de sua desgraça. Isto é, senhores, o
que saberei dizer-vos do que me haveis perguntado; e entendei que o
dono das prendas que achastes é o mesmo que vistes passar com tanta
ligeireza como desnudez - que já lhe havia dito dom Quixote como
havia visto passar aquele homem saltando pela serra.
O qual ficou admirado do que ao cabreiro havia ouvido, e ficou com
mais desejo de saber quem era o desditado louco; e propôs-se o
mesmo que já tinha pensado: de procurá-lo por toda a montanha, sem
deixar canto nem cova nela que não olhasse, até achá-lo. Mas fê-lo
melhor a sorte do que ele pensava nem esperava, porque naquele
mesmo instante apareceu, por entre um passo estreito de uma serra
que saía onde eles estavam, o mancebo que buscava, o qual vinha
falando entre si coisas que não podiam ser entendidas de perto,
quanto mais de longe. Seu traje era tal qual se descreveu, só que,
chegando perto, viu dom Quixote que um colete feito em pedaços que
sobre si trazia era de âmbar; por onde acabou de entender que pessoa
que tais roupas trazia não devia ser de ínfima qualidade.
Chegando o mancebo a eles, saudou-os com uma voz desentoada e
rouca, mas com muita cortesia. Dom Quixote retribuiu-lhe as
saudações com não menos comedimento, e, apeando-se de Rocinante,
com gentil postura e donaire, abraçou-o e o teve um bom tempo
estreitamente entre seus braços, como se de longos tempos o
conhecesse. O outro, a quem podemos chamar “o Roto da Má Figura”
(como a dom Quixote o da Triste), depois de haver-se deixado
abraçar, afastou-o um pouco de si, e, postas suas mãos nos ombros de
dom Quixote, esteve olhando-o, como se queria ver se o conhecia; não
menos admirado quiçá de ver a figura, talhe e armas de dom Quixote,
que dom Quixote o estava de vê-lo. Em suma, o primeiro que falou
depois do abraço foi o Roto, e disse o que se dirá adiante.

CAPÍTULO XXIV

Onde prossegue a aventura da Serra Morena

Diz a história que era grandíssima a atenção com que dom Quixote
escutava o andrajoso Cavaleiro da Serra, o qual, prosseguindo sua
conversa, disse:
- Por certo, senhor, quem quer que sejais, que eu não vos conheço,
eu vos agradeço as mostras e a cortesia que comigo usastes; e
quisesse eu achar-me em termos que com mais que a vontade pudesse
servir a que mostrastes ter-me no bom acolhimento que me fizestes,
mas não quer minha sorte dar-me outra coisa com que corresponda às
boas obras que me fazem, que bons desejos de satisfazê-las.
- Os que eu tenho - respondeu dom Quixote - são de servir-vos;
tanto, que tinha determinado de não sair destas serras até achar-vos
e saber de vós se a dor que na estranheza de vossa vida mostrais ter
se podia achar algum gênero de remédio; e se fosse mister buscá-lo,
buscá-lo com a diligência possível. E quando vossa desventura fosse
daquelas que têm fechadas as portas a todo gênero de consolo,
pensava ajudar-vos a chorá-la e lamentá-la como melhor pudesse, que
sempre é consolo nas desgraças achar quem se doa com elas. E se é
que meu bom intento merece ser agradecido com algum gênero de
cortesia, eu vos suplico, senhor, pela muita que vejo que em vós se
encerra, e juntamente vos conjuro pela coisa que nesta vida mais
haveis amado ou amais, que me digais quem sois e a causa que vos
trouxe a viver e a morrer entre estas solidões como bruto animal, pois
morais entre eles tão alheio de vós mesmo qual o mostra vosso traje e
pessoa. E juro - acrescentou dom Quixote, - pela ordem de cavalaria
que recebi, embora indigno e pecador, e pela profissão de
cavaleiro andante, que se nisto, senhor, me comprazeis, de servir-vos
com as verdades a que me obriga o ser quem sou: ora remediando
vossa desgraça, se tem remédio, ora ajudando-vos a chorá-la, como
vos prometi.
O Cavaleiro do Bosque, que de tal maneira ouviu falar ao da Triste
Figura, não fazia senão olhá-lo, e reolhá-lo e torná-lo a olhar de cima
abaixo; e, depois que o olhou bem, disse-lhe:
- Se têm algo que dar-me a comer, por amor de Deus que me deem;
que, depois de haver comido, eu farei tudo o que se me manda, em
agradecimento de tão bons desejos como aqui me mostraram.
Logo tiraram, Sancho de seu saco e o cabreiro de seu surrão, com
que satisfez o Roto sua fome, comendo o que lhe deram como pessoa
apalermada, tão depressa que não dava espaço de um bocado ao outro,
pois antes os engolia que mastigava; e, enquanto comia, nem ele nem os
que o olhavam falavam palavra. Quando acabou de comer, fez-lhes
sinais que o seguissem, o que fizeram, e ele os levou a um verde
pradozinho que à volta de uma penha pouco desviada dali estava. Em
chegando a ele se estendeu no chão, em cima da erva, e os demais
fizeram o mesmo; e tudo isto sem que nenhum falasse, até que o Roto,
depois de haver-se acomodado em seu assento, disse:
- Se gostais, senhores, que vos diga em breves razões a imensidade
de minhas desventuras, haveis-me de prometer de que com nenhuma
pergunta, nem outra coisa, não interrompereis o fio de minha triste
história; porque no ponto que o façais, nesse ficará o que for
contando.
Estas razões do Roto trouxeram à memória de dom Quixote o conto
que lhe havia contado seu escudeiro, quando não acertou o número das
cabras que haviam passado o rio e ficou a história pendente. Mas,
voltando ao Roto, prosseguiu dizendo:
- Esta prevenção que faço é porque queria passar brevemente pelo
conto de minhas desgraças; que o trazê-las à memória não me serve
de outra coisa que acrescentar outras de novo, e, quanto menos me
perguntardes, mais depressa acabarei eu de dizê-las, posto que não
deixarei por contar coisa alguma que seja de importância para
satisfazer de todo vosso desejo.
Dom Quixote o prometeu, em nome dos demais, e ele, com este
seguro, começou desta maneira:
- Meu nome é Cardênio; minha pátria, uma cidade das melhores
desta Andaluzia; minha linhagem, nobre; meus pais, ricos; minha
desventura, tanta que a devem de haver chorado meus pais e sentido
minha linhagem, sem podê-la aliviar com sua riqueza; que para
remediar desditas do céu pouco costumam valer os bens de fortuna.
Vivia nesta mesma terra um céu, onde pôs o amor toda a glória que eu
quisera desejar-me: tal é a formosura de Lucinda, donzela tão nobre e
tão rica como eu, mas de mais ventura e de menos firmeza da que a
meus honrados pensamentos se devia. A esta Lucinda amei, quis e
adorei desde meus ternos e primeiros anos, e ela me quis com aquela
singeleza e bom ânimo que sua pouca idade permitia. Sabiam nossos
pais nossos intentos, e isso não lhes dava pesar, porque bem viam que,
quando refletissem, não podiam ter outro fim que o de casar-nos,
coisa que quase o impunha a igualdade de nossa linhagem e riquezas.
Cresceu a idade, e com ela o amor de ambos, de modo que ao pai de
Lucinda pareceu que por bons respeitos estava obrigado a negar-me a
entrada em sua casa, quase imitando nisto os pais daquela Tisbe tão
cantada pelos poetas. E foi esta negação juntar chama a chama e
desejo a desejo, porque, embora pusessem silêncio às línguas, não lhes
puderam pôr às penas, as quais, com mais liberdade que as línguas,
costumam dar a entender a quem querem o que na alma está
encerrado; que muitas vezes a presença da coisa amada turva e
emudece a intenção mais determinada e a língua mais atrevida. Ai
céus, e quantos bilhetes lhe escrevi! Quão regaladas e honestas
respostas tive! Quantas canções compus e quantos enamorados versos,
onde a alma declarava e trasladava seus sentimentos, pintava seus
acesos desejos, entretinha suas memórias e recreava sua vontade!
Com efeito, vendo-me apurado, e que minha alma se consumia com o
desejo de vê-la, determinei pôr em prática e concluir rapidamente o
que me pareceu que mais convinha para sair com meu desejado e
merecido prêmio; e foi o pedi-la a seu pai por legítima esposa, como o
fiz; ao que ele me respondeu que me agradecia a vontade que mostrava
de honrá-lo, e de querer honrar-me com prendas suas, mas que, sendo
meu pai vivo, a ele tocava de justo direito fazer aquela demanda;
porque, se não fosse com muita vontade e gosto seu, não era Lucinda
mulher para tomar-se nem dar-se a furto. Eu lhe agradeci seu bom
intento, parecendo-me que levava razão no que dizia, e que meu pai
conviria nisso conforme eu o dissesse; e com este intento, logo
naquele mesmo instante, fui dizer a meu pai o que desejava, e ao
tempo que entrei num aposento onde estava, achei-o com uma carta
aberta na mão, a qual, antes que eu lhe dissesse palavra, entregou-a e
disse: “Por essa carta verás, Cardênio, a vontade que o duque Ricardo
tem de fazer-te mercê”. Este duque Ricardo, como já vós, senhores,
deveis saber, é um grande da Espanha que tem seus domínios no
melhor desta Andaluzia. Tomei e li a carta, a qual vinha tão encarecida
que a mim mesmo me pareceu mal se meu pai deixasse de cumprir o
que nela se lhe pedia, que era que me enviasse logo onde ele estava;
que queria que fosse companheiro, não criado, de seu filho o maior, e
que ele tomava a cargo o pôr-me no patamar que correspondesse à
estima em que me tinha. Li a carta e emudeci lendo-a, e mais quando
ouvi que meu pai me dizia: “Daqui a dois dias partirás, Cardênio, a
fazer a vontade do duque; e dá graças a Deus que te vai abrindo
caminho por onde alcances o que eu sei que mereces”. Acrescentou a
estas outras razões de pai conselheiro. Chegou a época de minha
partida, falei uma noite a Lucinda, disse-lhe tudo o que se passava, e o
mesmo fiz a seu pai, suplicando-lhe se entretivesse alguns dias e
dilatasse o dar-lhe a mão até que eu visse o que Ricardo me queria. Ele
o prometeu e ela o confirmou com mil juramentos e mil desmaios. Vim,
enfim, onde o duque Ricardo estava. Fui dele tão bem recebido e
tratado, que desde logo começou a inveja a fazer seu ofício, tendo-a
os criados antigos, parecendo-lhes que as mostras que o duque dava
de fazer-me mercê haviam de ser em prejuízo seu. Mas o que mais se
alegrou com minha ida foi um filho segundo do duque, chamado
Fernando, moço galhardo, gentil-homem, liberal e enamorado, o qual,
em pouco tempo, quis que fosse tão seu amigo, que dava que dizer a
todos; e, embora o maior me queria bem e me fazia mercê, não chegou
ao extremo com que dom Fernando me queria e tratava. É, pois, o caso
que, como entre os amigos não há coisa secreta que não se comunique,
e o valimento que eu tinha de dom Fernando deixava de sê-lo para ser
amizade, todos seus pensamentos me declarava, especialmente um
enamorado, que lhe dava um pouco de desassossego. Queria bem a uma
lavradora, vassala de seu pai, e vassalos ela os tinha muito ricos, e era
tão formosa, recatada, discreta e honesta que ninguém que a conhecia
saberia dizer em qual destas coisas tivesse mais excelência nem mais
se avantajasse. Estas tão boas qualidades da formosa lavradora
levaram a tal ponto os desejos de dom Fernando, que decidiu, para
poder alcançá-lo e conquistar a virgindade da lavradora, dar-lhe
palavra de ser seu esposo, porque de outra maneira era procurar o
impossível. Eu, obrigado de sua amizade, com as melhores razões que
soube e com os mais vivos exemplos que pude, procurei convencê-lo e
afastá-lo de tal propósito. Mas, vendo que não conseguia, decidi
contar o caso ao duque Ricardo, seu pai. Mas dom Fernando, como
astuto e discreto, receou isto, por parecer-lhe que estava eu
obrigado, como bem educado, não ter encoberta coisa que tão em
prejuízo da honra de meu senhor o duque vinha; e assim, por distrair-
me a atenção e enganar-me, me disse que não achava outro melhor
remédio para poder afastar da memória a formosura que tão sujeito o
tinha, que o ausentar-se por alguns meses; e que queria que a ausência
fosse que os dois viéssemos em casa de meu pai, por ocasião que
dariam ao duque que vinha ver e comprar uns muito bons cavalos que
em minha cidade havia, que é mãe dos melhores do mundo. Apenas lhe
ouvi eu dizer isto, quando, movido de minha afeição, embora sua
decisão não fosse tão boa, aprovei-a eu por uma das mais acertadas
que se podiam imaginar, por ver quão bom motivo e conjuntura se me
oferecia de voltar a ver a minha Lucinda. Com este pensamento e
desejo, aprovei seu parecer e endossei seu propósito, dizendo-lhe que
o pusesse em prática com a brevidade possível, porque, com efeito, a
ausência fazia seu ofício, apesar dos mais firmes pensamentos. Já
quando ele me veio dizer isto, segundo depois se soube, havia
desfrutado da lavradora a título de esposo, e esperava a ocasião de
manifestá-lo oportunamente, temeroso do que o duque seu pai faria
quando soubesse de seu disparate. Sucedeu, pois, que, como o amor
nos moços, na maior parte, não o é, senão apetite, o qual, como tem
por último fim o deleite, chegando a alcançá-lo se acaba, e há de
voltar atrás aquilo que parecia amor, porque não pode passar adiante
do termo que lhe pôs a natureza, o qual termo não pôs ao que é
verdadeiro amor, quero dizer que, assim que dom Fernando desfrutou
da lavradora, aplacaram-se seus desejos e resfriaram seus afincos; e
se primeiro fingia querer-se ausentar, por remediá-los, agora deveras
procurava ir-se, por não pô-los em execução. Deu-lhe o duque licença,
e mandou-me que o acompanhasse. Vimos à minha cidade, recebeu-o
meu pai como quem era; vi eu logo Lucinda, tornaram a viver (embora
não estivessem mortos nem amortecidos) meus desejos, dos quais dei
conta, por meu mal, a dom Fernando, por parecer-me que, na lei da
muita amizade que mostrava, não lhe devia encobrir nada. Louvei a
formosura, donaire e discrição de Lucinda de tal maneira, que minhas
louvações moveram nele os desejos de querer ver donzela de tantas
boas qualidades adornada. Cumpri-los eu, para minha pequena sorte,
mostrando-a uma noite, à luz de uma vela, por uma janela por onde os
dois costumávamos falar-nos. Viu-a de camisola, tal, que todas as
belezas até então por ele vistas as pôs no olvido. Emudeceu, perdeu o
sentido, ficou absorto e, finalmente, tão enamorado qual o vereis no
decurso do conto de minha desventura. E para acender-lhe mais o
desejo (que a mim ocultava e só ao céu descobria), quis o destino que
achasse um dia um bilhete dela pedindo-me que a pedisse a seu pai por
esposa, tão discreto, tão honesto e tão enamorado que, lendo-o, disse-
me que unicamente em Lucinda se encerravam todas as graças de
formosura e de entendimento que nas demais mulheres do mundo
estavam repartidas. Bem é verdade que quero confessar agora que,
posto que eu via com quão justas causas dom Fernando a Lucinda
louvava, pesava-me ouvir aquelas louvações de sua boca, e comecei a
temer e a recear-me dele, porque não se passava momento onde não
quisesse que tratássemos de Lucinda, e ele movia para aí a conversa,
embora por pouco que fosse, coisa que despertava em mim um não sei
quê de ciúmes, não porque eu temesse revés algum da bondade e da fé
de Lucinda, mas, então, me fazia temer minha sorte o mesmo que ela
me assegurava. Procurava sempre dom Fernando ler os papéis que eu a
Lucinda enviava e os que ela me respondia, a título que da discrição
dos dois gostava muito. Aconteceu, pois, que, havendo-me pedido
Lucinda um livro de cavalarias para ler, de quem era ela muito
aficionada, que era o de Amadis de Gaula...
Não bem ouviu dom Quixote nomear livro de cavalarias, quando
disse:
- Se me dissesse vossa mercê, ao princípio de sua história, que sua
mercê a senhora Lucinda era aficionada a livros de cavalarias, não
seria mister outro encarecimento para dar-me a entender a alteza de
seu entendimento, porque não o tivesse tão bom como vós, senhor, o
haveis pintado, se carecesse do gosto de tão saborosa leitura: assim
que, para comigo, não é mister gastar mais palavras em declarar-me
sua formosura, valor e entendimento; que, por só haver entendido sua
afeição, a confirmo pela mais formosa e mais discreta mulher do
mundo. E quisesse eu, senhor, que vossa mercê lhe houvesse enviado
junto com Amadis de Gaula ao bom de Don Rugel de Grécia, que eu sei
que gostaria a senhora Lucinda muito de Daraida e Geraya, e das
discrições do pastor Darinel e daqueles admiráveis versos de suas
bucólicas, cantadas e representadas por ele com todo donaire,
discrição e desenvoltura. Mas tempo poderá vir em que se emende
essa falta, e não dura mais em fazer-se a emenda de quanto queira
vossa mercê ser servido de vir comigo a minha aldeia, que ali lhe
poderei dar mais de trezentos livros, que são o regalo de minha alma e
o entretenimento de minha vida; embora tenha para mim que já não
tenho nenhum, mercê à malícia de maus e invejosos encantadores. E
perdoe-me vossa mercê o haver contravindo ao que prometemos de
não interromper sua conversa, pois, ouvindo coisas de cavalarias e de
cavaleiros andantes, assim está em minhas mãos deixar de falar neles,
como o está nas dos raios do sol deixar de aquecer, nem umedecer nas
da lua. Assim que, perdão e prosseguir, que é o que agora faz mais ao
caso.
Enquanto dom Quixote estava dizendo o que fica dito, Cardênio
deixara cair a cabeça sobre o peito, dando mostras de estar
profundamente pensativo. E posto que duas vezes lhe disse dom
Quixote que prosseguisse sua história, nem alçava a cabeça nem
respondia palavra; mas, ao cabo de um bom espaço, levantou-a e disse:
- Não se me pode tirar do pensamento, nem haverá quem mo tire no
mundo, nem quem me dê a entender outra coisa, e seria um tonto o que
o contrário entendesse ou acreditasse, senão que aquele velhacão do
cirurgião Elisabat estava amancebado com a rainha Madásima.
- Isso não, voto a tal! - respondeu com muita cólera dom Quixote, e
lançou-lhe esta jura, como tinha costume, - e essa é uma muito grande
malícia, ou velhacaria, por melhor dizer: a rainha Madásima foi muito
principal senhora, e não se há de presumir que tão alta princesa se
havia de amancebar com um mau cirurgião; e quem o contrário
entender, mente como muito grande velhaco. E eu o darei a entender,
a pé ou a cavalo, armado ou desarmado, de noite ou de dia, ou como
mais gosto lhe der.
Estava-o olhando muito atentamente Cardênio, que já compreendera
o acidente de sua loucura e não estava para prosseguir sua história;
nem tampouco dom Quixote a ouviria, segundo o desgostara o que de
Madásima ouvira. Estranho caso; que assim a defendeu como se
verdadeiramente fosse sua verdadeira e natural senhora, tal como
seus excomungados livros o tinham! Digo, pois, que, como já Cardênio
estava louco e se ouviu tratar de mentiroso e de velhaco, com outras
injúrias semelhantes, pareceu-lhe mal a burla, e alçou um seixo que
achou junto a si, e deu com ele nos peitos tal golpe a dom Quixote que
o fez cair de costas. Sancho Pança, que de tal modo viu parar a seu
senhor, arremeteu ao louco com o punho fechado; e o Roto o recebeu
de tal sorte que com uma murro deu com ele a seus pés, e logo subiu
sobre ele e lhe magoou as costelas muito a seu sabor. O cabreiro, que
o quis defender, correu o mesmo perigo. E depois que os teve a todos
rendidos e moídos, deixou-os e se foi, com gentil sossego, emboscar-
se na montanha.
Levantou-se Sancho, e, com a raiva que tinha de ver-se aporreado
tão sem merecê-lo, acudiu a tomar a vingança do cabreiro, dizendo-lhe
que ele tinha a culpa de não haver-lhes avisado que àquele homem o
tomava a tempos a loucura; que, se isto soubessem, estariam prontos
para poder-se guardar. Respondeu o cabreiro que já o havia dito, e que
se ele não o havia ouvido, que não era sua a culpa. Replicou Sancho
Pança, e tornou a replicar o cabreiro, e foi o fim das réplicas
agarrarem-se as barbas e dar-se tais murros que, se dom Quixote não
os pusesse em paz, far-se-iam em pedaços. Dizia Sancho, preso com o
cabreiro:
- Deixe-me vossa mercê, senhor cavaleiro da Triste Figura, que
neste, que é vilão como eu e não está armado cavaleiro, bem posso a
meu salvo satisfazer-me do agravo que me fez, lutando com ele mão a
mão, como homem honrado.
- Assim é - disse dom Quixote, - mas eu sei que ele não tem
nenhuma culpa do sucedido.
Com isto os apaziguou, e dom Quixote voltou a perguntar ao
cabreiro se seria possível achar Cardênio, porque ficava com
grandíssimo desejo de saber o fim de sua história. Disse-lhe o
cabreiro o que antes lhe havia dito, que era não conhecer ao certo sua
guarida, mas que se andasse muito por aqueles contornos, não deixaria
de achá-lo, ou lúcido ou louco.

CAPÍTULO XXV
Que trata das estranhas coisas que na Serra Morena sucederam ao
valente cavaleiro da Mancha, e da imitação que fez à penitência do
Belo Tenebroso

Despediu-se do cabreiro dom Quixote, e, subindo outra vez sobre


Rocinante, mandou a Sancho que o seguisse, o qual o fez, com seu
jumento, de muito má vontade. Iam pouco a pouco entrando no mais
áspero da montanha, e Sancho ia morto por palestrar com seu amo, e
desejava que ele começasse a conversa, por não contravir ao que lhe
tinha mandado; mas, não podendo suportar tanto silêncio, disse-lhe:
- Senhor dom Quixote, vossa mercê me lance sua bênção e me dê
licença; que daqui quero voltar a minha casa, e à minha mulher e a
meus filhos, com os quais, pelo menos, falarei e repartirei tudo o que
quiser; porque querer vossa mercê que o acompanhe por estas
solidões, de dia e de noite, e que não lhe fale quando me der gosto é
enterrar-me em vida. Se já quisesse a sorte que os animais falassem,
como falavam em tempos de Guisopete (Esopo: N. do T.), seria menos
mal, porque repartiria eu com meu jumento o que me desse vontade, e
com isto passaria minha má ventura; que é difícil coisa, e que não se
pode levar com paciência, andar buscando aventuras toda a vida e não
achar senão coices e manteamentos, ladrilhaços e murros, e, desse
modo, havemos de coser a boca, sem ousar dizer o que se tem no
coração, como se fosse mudo.
- Já te entendo, Sancho - respondeu dom Quixote: - tu morres
porque te libertes da proibição que te tenho posto na língua. Dê-se
por livre e diz o que quiseres, com condição que não há de durar esta
liberdade mais que enquanto andarmos por estas serras.
- Seja assim - disse Sancho; - fale eu agora, que depois Deus sabe o
que será; e, começando a gozar desse salvo-conduto, pergunto por que
vossa mercê defendia tanto aquela rainha Magimasa, ou como se
chama? Ou, que fazia ao caso que aquele abade fosse seu amigo ou
não? Que, se vossa mercê se abstivesse disso, pois não era seu juiz,
bem creio eu que o louco iria adiante com sua história, e se teriam
poupado o golpe do seixo, e os coices, e ainda mais de seis bofetadas.
- À fé, Sancho - respondeu dom Quixote, - que se tu soubesses,
como eu o sei, quão honrada e quão principal senhora era a rainha
Madásima, eu sei que dirias que tive muita paciência, pois não quebrei
a boca por onde tais blasfêmias saíram; porque é muito grande
blasfêmia dizer nem pensar que uma rainha esteja amancebada com
um cirurgião. A verdade do conto é que aquele cirurgião Elisabat, que
o louco disse, foi um homem muito prudente e de muito sãos
conselhos, e serviu de aio e de médico à rainha; mas pensar que ela era
sua amiga é disparate digno de muito grande castigo. E porque vejas
que Cardênio não soube o que disse, hás de advertir que quando o
disse já estava sem juízo.
- Isso digo eu - disse Sancho: - que não havia para que fazer conta
das palavras de um louco; porque se a boa sorte não ajudasse a vossa
mercê e encaminhasse o seixo à cabeça, como o encaminhou ao peito,
bons ficaríamos por haver defendido aquela minha senhora que Deus
destrua. Pois, por minha fé, que não se livraria Cardênio por ser louco!
- Contra lúcidos e contra loucos está obrigado qualquer cavaleiro
andante a defender a honra das mulheres, quaisquer que sejam,
quanto mais pelas rainhas de tão alta qualidade como foi a rainha
Madásima, a quem eu tenho particular afeição por seus bons dotes;
porque, além de haver sido formosa, ademais foi muito prudente e
muito sofrida em suas calamidades, que as teve muitas; e os conselhos
e companhia do cirurgião Elisabat lhe foi e lhe foram de muito
proveito e alívio para poder levar seus trabalhos com prudência e
paciência. E daqui tomou ocasião o vulgo ignorante e mal intencionado
de dizer e pensar que ela era sua manceba; e mentem, digo outra vez,
e mentirão outras duzentas, todos os que tal pensarem e disserem.
- Nem eu o digo nem o penso - respondeu Sancho; - que lá se
tenham, que seu pão o comam. Se foram amancebados, ou não, a Deus
pagaram; de minhas vinhas venho, não sei nada; não sou amigo de saber
vidas alheias; que o que compra e mente, em sua bolsa o sente. Quanto
mais, que desnudo nasci, desnudo me acho: nem perco nem ganho; mas
que o fossem, que me interessa? E muitos pensam que há toucinhos e
não há estacas. Mas, quem pode pôr portas ao campo? Quanto mais,
que de Deus murmuraram.
- Valha-me Deus - disse dom Quixote, - e quantas necedades vais,
Sancho, emendando! Que vai do que tratamos aos refrãos que
desfias? Por tua vida, Sancho, que cales; e daqui em diante, ocupa-te
em esporear teu asno, e deixa de fazê-lo no que não te importa. E
entende com todos teus cinco sentidos que tudo quanto eu fiz, faço e
fizer, vai muito posto em razão e muito conforme às regras de
cavalaria, que as sei melhor que quantos cavaleiros as professam no
mundo.
- Senhor - respondeu Sancho, - e é boa regra de cavalaria que
andemos perdidos por estas montanhas, sem senda nem caminho,
buscando a um louco, o qual, depois de achado, quiçá lhe virá a vontade
de acabar o que deixou começado, não de seu conto, senão da cabeça
de vossa mercê e de minhas costelas, acabando-as de romper de vez?
- Cala, te digo outra vez, Sancho - disse dom Quixote; - porque te
faço saber que não só me traz por estas partes o desejo de achar o
louco, quanto o que tenho de fazer nelas uma façanha com que hei de
ganhar perpétuo nome e fama em todo o descoberto da terra; e será
tal, que hei de concluir com ela tudo aquilo que pode fazer perfeito e
famoso a um andante cavaleiro.
- E é de muito grande perigo essa façanha? - perguntou Sancho
Pança.
- Não - respondeu o da Triste Figura, - posto que de tal maneira
podia correr o dado, que tivéssemos o 1 em lugar do 6; mas tudo há de
estar em tua diligência.
- Em minha diligência? - disse Sancho.
- Sim - disse dom Quixote; - porque se voltas logo de onde penso
enviar-te, logo se acabará minha pena e logo começará minha glória. E
porque não é bem que te tenha mais suspenso, esperando no que hão
de parar minhas razões, quero, Sancho, que saibas que o famoso
Amadis de Gaula foi um dos mais perfeitos cavaleiros andantes. Não
disse bem foi um: foi o só, o primeiro, o único, o senhor de todos
quantos houve em seu tempo no mundo. Mal ano e mal mês para dom
Belianis e para todos aqueles que disserem que se lhe igualou em algo,
porque se enganam, juro certo. Digo também que quando algum pintor
quer sair famoso em sua arte, procura imitar os originais dos mais
únicos pintores que conhece; e esta mesma regra corre por todos os
mais ofícios ou exercícios de importância que servem para adorno das
repúblicas. E assim o há de fazer e faz o que quer alcançar nome de
prudente e sofrido, imitando a Ulisses, em cuja pessoa e trabalhos nos
pinta Homero um retrato vivo de prudência e de sofrimento; como
também nos mostrou Virgílio, em pessoa de Eneias, o valor de um filho
piedoso e a sagacidade de um valente e entendido capitão, não o
pintando nem o descobrindo como eles foram, senão como haviam de
ser, para ficar exemplo aos vindouros homens de suas virtudes. Desta
mesma sorte, Amadis foi o norte, o luzeiro, o sol dos valentes e
enamorados cavaleiros, a quem devemos imitar todos aqueles que
debaixo da bandeira do amor e da cavalaria militamos. Sendo, pois,
isto assim, como o é, acho eu, Sancho amigo, que o cavaleiro andante
que mais o imitar estará mais perto de alcançar a perfeição da
cavalaria. E uma das coisas em que mais este cavaleiro mostrou sua
prudência, valor, valentia, sofrimento, firmeza e amor, foi quando se
retirou, desdenhado da senhora Oriana, a fazer penitência na Penha
Pobre, mudado seu nome no de Belo Tenebroso, nome, por certo,
significativo e próprio para a vida que ele de sua vontade havia
escolhido. Assim que me é a mim mais fácil imitá-lo nisto que não em
fender gigantes, descabeçar serpentes, matar endríagos, desbaratar
exércitos, fracassar armadas e desfazer encantamentos. E pois estes
lugares são tão acomodados para semelhantes efeitos, não há para que
se deixe passar a ocasião, que agora com tanta comodidade me
oferece suas madeixas.
- Com efeito - disse Sancho, - que é o que vossa mercê quer fazer
neste tão remoto lugar?
- Já não te disse - respondeu dom Quixote - que quero imitar
Amadis, fazendo aqui do desesperado, do néscio e do furioso, por
imitar juntamente ao valente dom Roldão, quando achou em uma fonte
as sinais de que Angélica a Bela havia cometido vileza com Medoro, de
cujo pesar se tornou louco e arrancou as árvores, turvou as águas das
claras fontes, matou pastores, destruiu gados, queimou choças,
derrubou casas, arrastou éguas e fez outras cem mil demasias, dignas
de eterno nome e escritura? E posto que eu não penso imitar Roldão,
ou Orlando, ou Rotolando (que todos estes três nomes tinha), parte
por parte em todas as loucuras que fez, disse e pensou, farei o
bosquejo, como melhor puder, nas que me parecerem ser mais
essenciais. E poderá ser que viesse a contentar-me com só a imitação
de Amadis, que sem fazer loucuras de dano, senão de choros e
sentimentos, alcançou tanta fama como o que mais.
- Parece-me - disse Sancho, - que os cavaleiros que tal fizeram
foram provocados e tiveram causa para fazer essas necedades e
penitências, mas vossa mercê, que causa tem para tornar-se louco?
Que dama o desdenhou, ou que sinais achou que lhe deem a entender
que a senhora Dulcineia do Toboso dormiu com mouro ou cristão?
- Aí está o ponto - respondeu dom Quixote, - e essa é a fineza de
meu negócio; que tornar-se louco um cavaleiro andante com causa, nem
mérito nem graças há: o toque está em desatinar sem motivo e dar a
entender à minha dama que se em seco faço isto, que faria molhado?
Quanto mais, que farto motivo tenho na larga ausência que fiz da
sempre senhora minha Dulcineia do Toboso; que, como já ouviste dizer
àquele pastor de antes, Ambrósio: quem está ausente todos os males
tem e teme. Assim que, Sancho amigo, não gastes tempo em
aconselhar-me que deixe tão rara, tão feliz e tão não vista imitação.
Louco sou, louco hei de ser até que tu voltes com a resposta de uma
carta que contigo penso enviar a minha senhora Dulcineia; e se for tal
qual a minha fé se lhe deve, acabar-se-á minha sandice e minha
penitência; e se for ao contrário, serei louco deveras, e, sendo-o, não
sentirei nada. Assim que, de qualquer maneira que responda, sairei do
conflito e trabalho em que me deixares, gozando o bem que me
trouxeres, como lúcido, ou não sentindo o mal que me aportares, por
louco. Mas diz-me, Sancho, trazes bem guardado o elmo de Mambrino,
que já vi que o alçaste do chão quando aquele desagradecido o quis
fazer em pedaços mas não pôde, onde se vê a fineza de sua têmpera?
A que respondeu Sancho:
- Vive Deus, senhor cavaleiro da Triste Figura, que não posso
suportar nem levar com paciência algumas coisas que vossa mercê diz,
e que por elas venho a imaginar que tudo quanto me diz de cavalarias e
de alcançar reinos e impérios, de dar ilhas e de fazer outras mercês e
grandezas, como é uso de cavaleiros andantes, que tudo deve ser coisa
de vento e mentira, e tudo pastranha, ou patranha, ou como o
chamarmos. Porque quem ouvir dizer a vossa mercê que uma bacia de
barbeiro é o elmo de Mambrino, e que não saia deste erro em mais de
quatro dias, que há de pensar, senão que quem tal diz e afirma deve
ter perdido o juízo? A bacia eu a levo no saco, toda amassada, e levo-a
para repará-la em minha casa e fazer a barba nela, se Deus me der
tanta graça que algum dia me veja com minha mulher e filhos.
- Veja, Sancho, pelo mesmo que antes juraste, te juro - disse dom
Quixote, - que tens o mais curto entendimento que tem nem teve
escudeiro no mundo. É possível que em quanto tempo há que andas
comigo não percebeste que todas as coisas dos cavaleiros andantes
parecem quimeras, necedades e desatinos, e que são todas feitas ao
revés? E não porque seja isso assim, senão porque andam entre nós
sempre uma caterva de encantadores que todas nossas coisas mudam
e trocam e as transformam segundo seu gosto, e segundo têm a
vontade de favorecer-nos ou destruir-nos; e assim, isso que a ti te
parece bacia de barbeiro, parece-me o elmo de Mambrino, e a outro
lhe parecerá outra coisa. E foi rara providência do mago que é de
minha parte fazer que pareça bacia a todos o que real e
verdadeiramente é elmo de Mambrino, porque, sendo ele de tanta
estima, todo o mundo me perseguirá para o tirar de mim; mas, como
veem que não é mais que uma bacia de barbeiro, não cuidam de
consegui-lo, como se mostrou bem no que quis destruí-lo e o deixou no
chão sem levá-lo; que à fé que se o conhecesse, nunca ele o deixaria.
Guarda-o, amigo, que por agora não preciso dele; que antes tenho de
tirar todas estas armas e ficar desnudo como quando nasci, se é que
me dá vontade de seguir em minha penitência mais a Roldão que a
Amadis.
Chegaram, nestas conversas, ao pé de uma alta montanha que,
quase como rochedo escarpado, estava só entre outras muitas que a
rodeavam. Corria por sua fralda um manso arroiozinho, e havia por
toda sua redondeza um prado tão verde e prazenteiro, que dava
alegria aos olhos que o olhavam. Havia por ali muitas árvores silvestres
e algumas plantas e flores, que faziam o lugar aprazível. Este sítio
escolheu o Cavaleiro da Triste Figura para fazer sua penitência; e
assim, vendo-o, começou a dizer em voz alta, como se estivesse sem
juízo:
- Este é o lugar, oh céus!, que destino e escolho para chorar a
desventura em que vós mesmos me haveis posto. Este é o sítio onde o
humor de meus olhos aumentará as águas deste pequeno arroio, e
meus contínuos e profundos suspiros moverão incessantemente as
folhas destas montanhescas árvores, em testemunho e sinal da pena
que meu angustiado coração padece. Oh vós, quem quer que sejais,
rústicos deuses que neste inabitável lugar tendes vossa morada, ouvi
as queixas deste desditado amante, a quem uma longa ausência e uns
imaginados zelos trouxeram a lamentar-se entre estas asperezas, e a
queixar-se da dura condição daquela ingrata e bela, termo e fim de
toda humana formosura! Oh vós, náiades e dríadas, que tendes por
costume habitar nas espessuras dos montes, assim os ligeiros e
lascivos sátiros, de quem sois, embora em vão, amadas, não perturbem
jamais vosso doce sossego, que me ajudeis a lamentar minha
desventura, ou, ao menos, não vos canseis de ouvi-la! Oh Dulcineia do
Toboso, dia de minha noite, glória de minha pena, norte de meus
caminhos, estrela de minha ventura, assim o céu te a dê boa em quanto
acertares a pedir-lhe, que consideres o lugar e o estado a que tua
ausência me conduziu, e que com bom termo correspondas ao que a
minha fé lhe deve! Oh solitárias árvores, que de hoje em diante
haveis de fazer companhia à minha solidão, dai indício, com o brando
movimento de vossos ramos, que não vos desagrade minha presença!
Oh tu, escudeiro meu, agradável companheiro em mais prósperos e
adversos sucessos, toma bem na memória o que aqui me verás fazer,
para que o contes e recites à causa total de tudo isso!
E dizendo isto, apeou-se de Rocinante, e num momento lhe tirou o
freio e a sela; e, dando-lhe uma palmada nas ancas, disse-lhe:
- Liberdade te dá o que sem ela fica, oh cavalo tão extremado por
tuas obras quão desditado por tua sorte! Vai para onde quiseres, que
na frente levas escrito que não te igualou em ligeireza o Hipogrifo de
Astolfo, nem o nomeado Frontino, que tão caro custou a Bradamante.
Vendo isto Sancho, disse:
- Bem haja quem nos tirou agora do trabalho de desencilhar o ruço;
que à fé que não faltaram palmadinhas a dar-lhe, nem coisas que
dizer-lhe em sua louvação; mas se ele aqui estivesse, não consentiria
eu que ninguém o desencilhasse, pois não havia para quê, que a ele não
tocavam as perguntas gerais de enamorado nem de desesperado, pois
não o estava seu amo, que era eu, quando Deus queria. E em verdade,
senhor cavaleiro da Triste Figura, que se é que minha partida e a
loucura de vossa mercê vai deveras, que será bem tornar a encilhar
Rocinante, para que supra a falta do ruço, porque será poupar tempo a
minha ida e volta; que se a faço a pé, não sei quando chegarei nem
quando voltarei, porque, em suma, sou mau caminhante.
- Digo, Sancho - respondeu dom Quixote, - que seja como tu
quiseres, que não me parece mau teu desígnio; e digo que daqui a três
dias partirás, porque quero que neste tempo vejas o que por ela faço e
digo, para que o digas.
- Ora, que mais tenho de ver - disse Sancho - que o que já vi?
- Não te inteiraste de nada! - respondeu dom Quixote. - Agora me
falta rasgar as vestes, descartar as armas e dar cabeçadas por estas
penhas, com outras coisas deste jaez que te hão de admirar.
- Por amor de Deus - disse Sancho, - que veja vossa mercê como dá
essas cabeçadas; que a tal penha poderá chegar, e em tal ponto, que
com a primeira se acabe o plano desta penitência; e seria eu de
parecer que, já que a vossa mercê parece que são aqui necessárias
cabeçadas e que não se pode fazer esta obra sem elas, se
contentasse, pois tudo isto é fingido e imitação e burla, se
contentasse, digo, com dá-las na água, ou em alguma coisa branda,
como algodão; e deixe a mim o encargo, que eu direi à minha senhora
que vossa mercê as dava em uma ponta de penha mais dura que a de
um diamante.
- Eu agradeço tua boa intenção, amigo Sancho - respondeu dom
Quixote; - mas quero-te fazer sabedor de que todas estas coisas que
faço não são burlas, senão muito de verdade; porque de outra maneira,
seria contravir às ordens de cavalaria, que nos mandam que não
digamos mentira alguma, sob pena de relapsos, e o fazer uma coisa por
outra o mesmo é que mentir. Assim que, minhas cabeçadas hão de ser
verdadeiras, firmes e de valor, sem que tenham nada de sofístico nem
de fantástico. E será necessário que me deixes alguns panos para
curar-me, pois que a ventura quis que nos faltasse o bálsamo que
perdemos.
- Mais foi perder o asno - respondeu Sancho, - pois se perderam
nele os panos e tudo. E rogo a vossa mercê que não se recorde mais
daquela maldita beberagem; que em só ouvir-lhe mencionar se me
revolta a alma, e não só o estômago. E mais lhe rogo: que faça de conta
que são já passados os três dias que me deu de termo para ver as
loucuras que faz, que já as dou por vistas e por passadas em coisa
julgada, e direi maravilhas à minha senhora; e escreva a carta e
despache-me logo, porque tenho grande desejo de voltar a tirar vossa
mercê deste purgatório onde o deixo.
- Purgatório o chamas, Sancho? - disse dom Quixote. - Melhor
farias de chamá-lo inferno, e ainda pior, se há outra coisa que o seja.
- “Para quem está no inferno - respondeu Sancho, - nula es
retencio”, segundo ouvi dizer.
- Não entendo que quer dizer retencio - disse dom Quixote.
- Retencio é - respondeu Sancho, - que quem está no inferno nunca
sai dele, nem pode. O que será ao revés em vossa mercê, ou a mim me
andarão mal os pés, se é que levo esporas para avivar Rocinante; e
ponha-me eu efetivamente no Toboso, e diante de minha senhora
Dulcineia, que eu lhe direi tais coisas das necedades e loucuras, que
tudo é um, que vossa mercê fez e fica fazendo, que a venha a pôr mais
branda que uma luva, embora a ache mais dura que um sobreiro; com
cuja resposta doce e melificada voltarei pelos ares, como bruxo, e
tirarei vossa mercê deste purgatório, que parece inferno e não o é,
pois há esperança de sair dele, a qual, como tenho dito, não a têm de
sair os que estão no inferno, nem creio que vossa mercê dirá outra
coisa.
- Assim é a verdade - disse o da Triste Figura; - mas, que faremos
para escrever a carta?
- E a letra de câmbio asnal também? - acrescentou Sancho.
- Tudo será incluído - disse dom Quixote; - e seria bom, já que não
há papel, que a escrevêssemos, como faziam os antigos, em folhas de
árvores, ou em umas tabuinhas de cera; embora tão dificultoso será
achar-se isso agora como o papel. Mas já me veio à memória onde será
bem, e ainda mais que bem, escrevê-la: que é no livrinho de memória
que foi de Cardênio; e tu terás cuidado de fazê-la trasladar em papel,
com boa letra, no primeiro lugar que achares, onde haja cirurgião de
escola de moços, ou se não, qualquer sacristão te a trasladará; e não
se dês a trasladar a nenhum escrivão, que fazem letra complicada, que
não a entenderá Satanás.
- Pois, que se há de fazer da assinatura? - disse Sancho.
- Nunca as cartas de Amadis se assinam - respondeu dom Quixote.
- Está bem - respondeu Sancho, - mas a letra de câmbio
forçosamente se há de assinar, e essa, se se traslada, dirão que a
assinatura é falsa e ficarei sem asninhos.
- A letra de câmbio irá no mesmo livrinho assinada; que, vendo-a,
minha sobrinha não porá dificuldade em cumpri-la. E no que toca à
carta de amores, porás por assinatura: “Vosso até a morte, o Cavaleiro
da Triste Figura”. E virá pouco ao caso que vá por mão alheia, porque,
ao que eu me lembre, Dulcineia não sabe escrever nem ler, e em toda
sua vida não viu letra minha nem carta minha, porque meus amores e os
seus foram sempre platônicos, sem estender-se a mais que a um
honesto olhar. E ainda isto tão de quando em quando, que ousarei jurar
com verdade que em doze anos que há que a quero mais que à luz
destes olhos que hão de comer a terra, não a vi quatro vezes; e ainda
poderá ser que destas quatro vezes não notou ela nenhum de meus
olhares: tal é o recato e encerramento com que seus pais, Lourenço
Corchuelo e sua mãe Aldonça Nogales a criaram.
- Bem, bem! - disse Sancho. - Então a filha de Lourenço Corchuelo é
a senhora Dulcineia do Toboso, chamada por outro nome Aldonça
Lourenço?
- Essa é - disse dom Quixote, - e é a que merece ser senhora de
tudo o universo.
- Bem a conheço - disse Sancho, - e sei dizer que joga tão bem uma
malha como o mais forçudo zagal de toda a vila. Vive Deus, que é moça
de qualidades, feita e direita e de pelo no peito, e que pode tirar a
barba do lodo a qualquer cavaleiro andante, ou por andar, que a tiver
por senhora! Oh fidaputa, que compleição que tem, e que voz! Sei
dizer que se pôs um dia em cima do campanário da aldeia a chamar uns
rapazes seus que andavam numa terra arada de seu pai, e, embora
estavam dali mais de meia légua, assim a ouviram como se estivessem
ao pé da torre. E o melhor que tem é que não é nada melindrosa,
porque tem muito de cortesã: com todos burla e de tudo faz careta e
donaire. Agora digo, senhor cavaleiro da Triste Figura, que não
somente pode e deve vossa mercê fazer loucuras por ela, senão que,
com justo título, pode desesperar-se e enforcar-se; que ninguém
haverá que o saiba que não diga que fez demasiado bem, posto que o
leve o diabo. E queria já ver-me a caminho, só por vê-la; que há muitos
dias que não a vejo, e deve estar já mudada, porque gasta muito a face
das mulheres andar sempre ao campo, ao sol e ao ar. E confesso a
vossa mercê uma verdade, senhor dom Quixote: que até aqui estive
em uma grande ignorância; que pensava bem e fielmente que a senhora
Dulcineia devia ser alguma princesa de quem vossa mercê estava
enamorado, ou alguma pessoa tal, que merecesse os ricos presentes
que vossa mercê lhe enviou: assim o do biscainho como o dos galeotes,
e outros muitos que devem ser, segundo devem ser muitas as vitórias
que vossa mercê ganhou no tempo que eu ainda não era seu escudeiro.
Mas, bem considerado, de que servirá à senhora Aldonça Lourenço,
digo, à senhora Dulcineia do Toboso, ficar de joelhos diante dela os
vencidos que vossa mercê lhe envia e há de enviar? Porque poderia ser
que, ao tempo que eles chegassem, estivesse ela cardando linho, ou
debulhando nas eiras, e eles corressem ao vê-la, e ela risse e se
enfadasse do presente.
- Já te tenho dito antes de agora muitas vezes, Sancho - disse dom
Quixote, - que és muito grande falador, e que, embora de engenho
torpe, muitas vezes te fazes esperto. Mas, para que vejas quão néscio
és tu e quão discreto sou eu, quero que me ouças um breve conto. Hás
de saber que uma viúva formosa, moça, livre e rica, e, sobretudo,
descontraída, se enamorou de um frade leigo, roliço e de bom tom.
Soube-o seu maior, e um dia disse à boa viúva, por via de fraternal
repreensão: “Maravilhado estou, senhora, e não sem muita causa, de
que uma mulher tão principal, tão formosa e tão rica como vossa
mercê, se haja enamorado de um homem tão soez, tão baixo e tão
idiota como fulano, havendo nesta casa tantos cirurgiões, tantos
licenciados e tantos teólogos, em quem vossa mercê poderia escolher
como entre peras, e dizer: Este quero, este não quero”. Mas ela lhe
respondeu, com muito donaire e desenvoltura: “Vossa mercê, senhor
meu, está muito enganado, e pensa muito à antiga se pensa que eu
escolhi mal fulano, por idiota que lhe pareça, pois, para o que eu o
quero, tanta filosofia sabe, e mais, que Aristóteles.” Assim que,
Sancho, pelo que eu quero a Dulcineia do Toboso, tanto vale como a
mais alta princesa da terra. Sim, que não todos os poetas que louvam
damas, debaixo de um nome que eles a seu alvedrio lhes põem, é
verdade que as têm. Pensas tu que as Amarilis, as Filis, as Sílvias, as
Dianas, as Galateias, as Fílidas e outras tais de que os livros, os
poemas, as tendas dos barbeiros, os teatros das comédias, estão
cheios, foram verdadeiramente damas de carne e osso, e daqueles que
as celebram e celebraram? Não, por certo, senão que as mais as
fingem, por dar assunto a seus versos e porque os tenham por
enamorados e por homens que têm valor para sê-lo. E assim, basta-me
pensar e crer que a boa de Aldonça Lourenço é formosa e honesta; e
no da linhagem importa pouco, que não hão de ir buscar informação
disso para dar-lhe alguma vestimenta, e eu acredito que é a mais alta
princesa do mundo. Porque hás de saber, Sancho, se não o sabes, que
duas coisas só incitam a amar mais que outras, que são a muita
formosura e a boa fama; e estas duas coisas se acham
consumadamente em Dulcineia, porque em ser formosa nenhuma lhe
iguala, e na boa fama, poucas lhe chegam. E para concluir com tudo, eu
imagino que tudo o que digo é assim, sem que sobre nem falte nada; e
pinto-a em minha imaginação como a desejo, assim na beleza como na
principalidade, e nem a chega Helena, nem a alcança Lucrécia, nem
outra alguma das famosas mulheres das idades pretéritas, grega,
bárbara ou latina. E diga cada um o que quiser; que se por isto for
repreendido pelos ignorantes, não serei castigado pelos rigorosos.
- Digo que em tudo tem vossa mercê razão - respondeu Sancho, - e
que eu sou um asno. Mas não sei eu para que nomeio asno em minha
boca, pois não se há de mencionar a corda em casa do enforcado. Mas
venha a carta, e adeus, que já me mando.
Tirou o livro de memória dom Quixote, e, afastando-se a uma parte,
com muito sossego começou a escrever a carta; e, acabando-a, chamou
Sancho e lhe perguntou se a queria ler, porque a tomasse de memória,
se acaso a perdesse pelo caminho, porque de sua desdita tudo se podia
temer. A que respondeu Sancho:
- Escreva-a vossa mercê duas ou três vezes aí no livro e dê-me-a,
que eu a levarei bem guardada, porque pensar que eu a hei de tomar na
memória é disparate: que a tenho tão má que muitas vezes se me
olvida como me chamo. Mas, mesmo assim, diga-a vossa mercê, que
folgarei muito em ouvi-la, que deve ser maravilha.
- Escuta, que assim diz, - disse dom Quixote:

CARTA DE DOM QUIXOTE


A DULCINEA DO TOBOSO

Soberana e alta senhora:


O ferido pela ponta da ausência e o chagado das telas do coração,
dulcíssima Dulcineia do Toboso, te envia a saúde que ele não tem. Se tua
formosura me despreza, se teu valor não é em meu valimento, se teus
desdéns são por minha aflição, embora eu seja assaz sofrido, mal poderei
suster-me nesta coita, que, além de ser forte, é muito duradoura. Meu bom
escudeiro Sancho te dará inteira relação, oh bela ingrata, amada inimiga
minha!, do modo que por tua causa fico. Se gostares de socorrer-me, teu
sou; e se não, faz o que te vier a gosto; que, com acabar minha vida, haverei
satisfeito a tua crueldade e a meu desejo. Teu até a morte,

O CAVALEIRO DA TRISTE FIGURA.

- Por vida de meu pai, - disse Sancho ouvindo a carta, - que é a mais
alta coisa que jamais ouvi. Pese a mim, e como que lhe diz vossa mercê
aí tudo quanto quer, e que bem que encaixa na assinatura O Cavaleiro
da Triste Figura! Digo de verdade que é vossa mercê o mesmo diabo, e
que não haja coisa que não saiba.
- Tudo é mister - respondeu dom Quixote, - para o ofício que trago.
- Eia, pois - disse Sancho, - ponha vossa mercê nessa outra volta a
cédula dos três asninhos e assine-a com muita claridade, porque a
reconheçam vendo-a.
- Com prazer, - disse dom Quixote.
E havendo-a escrito, leu-a; que dizia assim:

Mandará vossa mercê, por esta primeira de asninhos, senhora sobrinha, dar
a Sancho Pança, meu escudeiro, três dos cinco que deixei em casa e estão a
cargo de vossa mercê. Os quais três asninhos os mando liberar e pagar por
outros tantos aqui recebidos de contado, que consta, e com sua carta de
pagamento serão bem dados. Feita nas entranhas de Serra Morena, a vinte
e dois de agosto deste presente ano.

- Boa está - disse Sancho, - assine-a vossa mercê.


- Não é mister assiná-la - disse dom Quixote, - senão somente pôr
minha rubrica, que é o mesmo que assinatura, e para três asnos, e
ainda para trezentos, seria bastante.
- Eu confio em vossa mercê, - respondeu Sancho. - Deixe-me, irei
encilhar Rocinante, e prepare-se vossa mercê a dar-me sua bênção,
que logo penso partir, sem ver as sandices que vossa mercê há de
fazer, que eu direi que o vi fazer tantas que não queira mais.
- Pelo menos quero, Sancho, e porque é mister assim, quero, digo,
que me vejas em pelo, e fazer uma ou duas dúzias de loucuras, que as
farei em menos de meia hora, porque, havendo-as tu visto por teus
olhos, possas jurar a teu salvo nas demais que quiseres juntar; e
asseguro-te que não dirás tu tantas quantas eu penso fazer.
- Por amor de Deus, senhor meu, que não veja eu em pelo vossa
mercê, que me dará muita lástima e não poderei deixar de chorar; e
tenho tal a cabeça, do pranto que ontem à noite fiz pelo ruço, que não
estou para meter-me em novos choros; e se é que vossa mercê gosta
de que eu veja algumas loucuras, faça-as vestido, breves e as que lhe
vierem mais a gosto. Quanto mais, que para mim não era mister nada
disso, e, como já tenho dito, fora poupar o caminho de minha volta, que
há de ser com as novas que vossa mercê deseja e merece. E se não,
prepare-se a senhora Dulcineia; que se não responde como é razão,
voto faço solene a quem posso que lhe tenho de tirar a boa resposta
do estômago a coices e a bofetões. Porque, onde se há de sofrer que
um cavaleiro andante, tão famoso como vossa mercê, se torne louco,
sem que nem para quê, por uma...? Não me faça dizer a senhora,
porque por Deus que diga barbaridades e ponha tudo a perder.
Bonzinho sou eu para isso! Mal me conhece! Pois, à fé que se me
conhecesse, temer-me-ia!
- À fé, Sancho - disse dom Quixote, - que, ao que parece, que não
estás tu mais lúcido que eu.
- Não estou tão louco - respondeu Sancho, - mas estou mais
colérico. Mas, deixando isto de lado, que é o que há de comer vossa
mercê enquanto não volto? Há de sair ao caminho, como Cardênio, a
tirá-lo aos pastores?
- Não te dê pena esse cuidado - respondeu dom Quixote, - porque,
embora tivesse, não comeria outra coisa que as ervas e frutos que
este prado e estas árvores me derem, que a fineza de meu negócio
está em não comer e em fazer outras asperezas equivalentes.
- Adeus, pois. - Mas, sabe vossa mercê que temo? Que não tenho de
acertar a voltar a este lugar onde agora deixo, conforme está
escondido.
- Toma bem os sinais, que eu procurarei não afastar-me destes
contornos - disse dom Quixote, - e ainda terei cuidado de subir por
estes mais altos penhascos, por ver se te descubro quando voltes.
Quanto mais, que o mais acertado será, para que não me erres e te
percas, que cortes alguns arbustos dos muitos que por aqui há e os vás
pondo de trecho em trecho, até sair ao raso, os quais te servirão de
marcos e sinais para que me aches quando voltes, à imitação do fio do
labirinto de Perseu.
- Assim o farei, - respondeu Sancho Pança.
E, cortando alguns, pediu a bênção a seu senhor, e, não sem muitas
lágrimas de ambos, despediu-se dele. E subindo sobre Rocinante, a
quem dom Quixote encomendou muito, e que olhasse por ele como por
sua própria pessoa, pôs-se a caminho do plano, espalhando de trecho
em trecho os ramos da touceira, como seu amo o havia aconselhado. E
assim, se foi, embora ainda importunasse dom Quixote que o visse
sequer fazer duas loucuras. Mas não andou cem passos, quando voltou
e disse:
- Digo, senhor, que vossa mercê disse muito bem: que, para que
possa jurar sem peso de consciência que o vi fazer loucuras, será bem
que veja sequer uma, embora bem grande vi na queda de vossa mercê.
- Não o dizia eu? - disse dom Quixote. - Espera, Sancho, que num
credo as farei.
E desnudando-se com toda pressa dos calções, ficou em carnes e em
fraldas de camisa, e logo, sem mais nem mais, deu duas piruetas no ar
e duas quedas, a cabeça para baixo e os pés no alto, descobrindo
coisas que, por não vê-las outra vez, voltou Sancho a rédea a
Rocinante e se deu por contente e satisfeito de que podia jurar que
seu amo ficava louco. E assim o deixaremos ir seu caminho, até a volta,
que foi breve.

CAPÍTULO XXVI

Onde prosseguem as finezas que de enamorado fez dom Quixote na


Serra Morena

E voltando a contar o que fez o da Triste Figura depois que se viu


só, diz a história que, assim que dom Quixote acabou de dar as quedas
ou voltas, do meio para baixo desnudo e do meio para cima vestido, e
viu que Sancho se havia ido sem querer aguardar a ver mais sandices,
subiu sobre uma ponta de uma alta penha e ali tornou a pensar o que
outras muitas vezes havia pensado, sem haver-se jamais resolvido. E
era o que seria melhor e lhe estaria mais a gosto: imitar Roldão nas
loucuras desaforadas que fez, ou Amadis nas melancólicas; e falando
consigo mesmo, dizia:
- Se Roldão foi tão bom cavaleiro e tão valente como todos dizem,
que maravilha, pois, ao fim, era encantado e não o podia matar ninguém
se não fosse metendo-lhe um alfinete grosso pela planta do pé, e ele
trazia sempre os sapatos com sete solas de ferro? Embora não lhe
valeram tretas contra Bernardo del Carpio, que as percebeu e o
afogou entre os braços, em Roncesvales. Mas, deixando isso da
valentia à parte, venhamos ao de perder o juízo, que é certo que o
perdeu, pelos sinais que achou na fonte e pelas novas que lhe deu o
pastor de que Angélica havia adormecido mais de duas sestas com
Medoro, um mourinho de cabelos eriçados e pajem de Agramante; e se
ele entendeu que isto era verdade e que sua dama lhe havia cometido
agravo, não fez muito em ficar louco; mas eu, como posso imitá-lo nas
loucuras, se não o imito no motivo delas? Porque minha Dulcineia do
Toboso ousarei eu jurar que não viu em todos os dias de sua vida
mouro algum, assim como ele é, em seu próprio traje, e que está hoje
como a mãe que a pariu; e far-lhe-ia agravo manifesto se, imaginando
outra coisa dela, me tornasse louco daquele gênero de loucura de
Roldão o furioso. Por outra parte, vejo que Amadis de Gaula, sem
perder o juízo e sem fazer loucuras, alcançou tanta fama de
enamorado como o que mais; porque o que fez, segundo sua história,
não foi mais do que, por ver-se desdenhado de sua senhora Oriana,
que lhe havia mandado que não aparecesse ante sua presença até que
fosse sua vontade, retirou-se à Penha Pobre em companhia de um
ermitão, e ali se fartou de chorar e de encomendar-se a Deus, até que
o céu lhe acorreu, em meio de sua maior coita e necessidade. E se isto
é verdade, como o é, para que quero eu tomar trabalho agora de
desnudar-me de todo, nem dar pesar a estas árvores, que não me
fizeram mal algum? Nem tenho para que turvar a água clara destes
arroios, os quais me hão de dar de beber quando tenha vontade. Viva a
memória de Amadis, e seja imitado por dom Quixote da Mancha em
tudo o que puder; do qual se dirá o que do outro se disse: que se não
fez grandes coisas, morreu por enfrentá-las; e se eu não sou
descartado nem desdenhado por Dulcineia do Toboso, basta-me, como
já disse, estar ausente dela. Eia, pois, mãos à obra: vinde à minha
memória, coisas de Amadis, e ensinai-me por onde tenho de começar a
imitar-vos. Mas já sei que o mais que ele fez foi rezar e encomendar-
se a Deus; mas, o que farei de rosário, que não tenho?
Nisto lhe veio ao pensamento como o faria, e foi que rasgou uma
grande tira das fraldas da camisa, que estavam soltas, e deu-lhe onze
nós, um maior que os demais, e isto lhe serviu de rosário o tempo que
ali esteve, onde rezou um milhão de ave-marias. E o que o fatigava
muito era não achar por ali outro ermitão que o confessasse e com
quem consolar-se. E assim, entretinha-se passeando pelo pradozinho,
escrevendo e gravando pelas cortiças das árvores e pela miúda areia
muitos versos, todos acomodados a sua tristeza, e alguns em louvação
de Dulcineia. Mas os que se puderam achar inteiros e que se pudessem
ler, depois que ali o acharam, não foram mais que estes que aqui se
seguem:

Árvores, ervas e plantas


que nste sítio estais,
tão altos, verdes e tantas,
se de meu mal não zombais,
escutai minhas queixas santas.
Minha dor não vos alvoroce,
embora mais terrível seja,
pois, por pagar-vos a cota,
aqui chorou dom Quixote
ausências de Dulcineia
do Toboso.

É aqui o lugar onde


o amador mais leal
de sua senhora se esconde,
e veio ter tanto mal
sem saber como ou por onde.
Trá-lo amor sem sossego,
que é de muito má ralé;
e assim, até encher um pote,
aqui chorou dom Quixote
ausências de Dulcineia
do Toboso.

Buscando as aventuras
por entre as duras penhas,
maldizendo entranhas duras,
que entre penhascos e entre brenhas
acha o triste desventuras,
feriu-o amor com seu açoite,
não com sua branda correia;
e, tocando-lhe o cangote,
aqui chorou dom Quixote
ausências de Dulcineia
do Toboso.

Não causou pouco riso nos que acharam os versos referidos o


acréscimo “do Toboso” ao nome de Dulcineia, porque imaginaram que
deveu imaginar dom Quixote que se, nomeando Dulcineia, não dizia
também “do Toboso”, não se poderia entender a copla; e assim foi a
verdade, como ele depois confessou. Outros muitos escreveu, mas,
como se disse, não se puderam tirar a limpo, nem inteiros, mais que
estas três coplas. Nisto, e em suspirar e em chamar os faunos e
silvanos daqueles bosques, às ninfas dos rios, à dolorosa e úmida Eco,
que lhe respondessem, consolassem e escutassem, entretinha-se, e em
buscar algumas ervas com que sustentar-se enquanto Sancho não
voltava; que, como tardou três dias, tardasse três semanas, o
cavaleiro da Triste Figura ficaria tão desfigurado que não o
conheceria a mãe que o pariu.
E será bom deixá-lo envolto entre seus suspiros e versos, para
contar o que aconteceu a Sancho Pança em sua missão; e foi que,
saindo ao caminho real, se pôs em busca do Toboso, e no outro dia
chegou à estalagem onde lhe havia sucedido a desgraça da manta; e
nem bem a viu, quando lhe pareceu que outra vez andava nos ares, e
não quis entrar, embora chegasse na hora que o poderia e deveria
fazer, por ser a de comer algo quente; que havia muito tempo que só
comia carne fria.
Esta necessidade o forçou a que chegasse junto à estalagem, ainda
duvidoso se entraria ou não; e estando nisto, saíram da estalagem duas
pessoas que logo o conheceram. E disse um ao outro:
- Diga-me, senhor licenciado, aquele do cavalo não é Sancho Pança, o
que disse a ama de nosso aventureiro que havia saído com seu senhor
como escudeiro?
- Sim, é - disse o licenciado, - e aquele é o cavalo de nosso dom
Quixote.
E reconheceram-no tão bem pois aqueles eram o padre e o barbeiro
de seu mesmo lugar, os que fizeram o escrutínio e ato geral dos livros.
Os quais, assim que acabaram de reconhecer Sancho Pança e
Rocinante, desejosos de saber de dom Quixote, foram-se a ele; e o
padre o chamou por seu nome, dizendo-lhe:
- Amigo Sancho Pança, onde está vosso amo?
Reconheceu-os logo Sancho Pança, e decidiu encobrir o lugar e o
modo onde e como seu amo estava; e assim, respondeu-lhes que seu
amo estava ocupado em certo lugar e em certa coisa que lhe era de
muita importância, a qual ele não podia revelar, pelo que mais queria.
- Não, não - disse o barbeiro, - Sancho Pança, se vós não nos dizeis
onde fica, imaginaremos, como já imaginamos, que vós o haveis morto e
roubado, pois vindes em cima de seu cavalo. Em verdade que nos haveis
de dar o dono do rocim, ou sobre isso, haverá pendência.
- Não há para quê, comigo, ameaças, que eu não sou homem que
roubo nem mato a ninguém: a cada um mate sua ventura, ou Deus, que
o fez. Meu amo fica fazendo penitência nesta montanha, muito a seu
sabor.
E logo, de corrida e sem parar, contou-lhes do modo como estava, as
aventuras que lhe haviam sucedido e como levava a carta à senhora
Dulcineia do Toboso, que era a filha de Lourenço Corchuelo, de quem
estava enamorado até os fígados.
Ficaram admirados os dois do que Sancho Pança lhes contava; e,
embora já conhecessem a loucura de dom Quixote e o gênero dela,
sempre que a ouviam se admiravam de novo. Pediram a Sancho Pança
que lhes mostrasse a carta que levava à senhora Dulcineia do Toboso.
Ele disse que ia escrita num livro de memória e que era ordem de seu
senhor que a fizesse trasladar em papel no primeiro lugar que
chegasse; ao que disse o padre que a mostrasse, que ele a trasladaria
com muito boa letra. Meteu a mão no seio Sancho Pança, buscando o
livrinho, mas não o achou, nem o podia achar se o procurasse até
agora, porque havia ficado dom Quixote com ele e não o havia dado,
nem ele resolveu pedi-lo.
Quando Sancho viu que não achava o livro, foi-lhe ficando mortal o
rosto; e, tornando a apalpar todo o corpo muito depressa, tornou a ver
que não o achava; e, sem mais nem mais, pôs ambos os punhos às
barbas e arrancou a metade delas, e logo, depressa e sem cessar, se
deu meia dúzia de murros no rosto e no nariz, que os banhou em
sangue. Visto o que pelo padre e o barbeiro, perguntaram-lhe o que lhe
havia sucedido, que tão mal estava.
- Que me há de suceder - respondeu Sancho, - senão o haver
perdido de uma mão para outra, num instante, três asninhos, que cada
um era como um castelo?
- Como é isso? - replicou o barbeiro.
- Perdi o livro de memória - respondeu Sancho, - onde vinha carta
para Dulcineia e uma cédula firmada de seu senhor, pela qual mandava
que sua sobrinha me desse três asninhos, de quatro ou cinco que
estavam em casa.
E com isto, lhes contou a perda do ruço. Consolou-o o padre, e
disse-lhe que, achando seu senhor, ele lhe faria revalidar a doação e
que tornaria a fazer a letra de câmbio em papel, como era uso e
costume, porque as que se faziam em livros de memória jamais se
aceitavam nem cumpriam.
Com isto se consolou Sancho, e disse que, se aquilo fosse assim, que
não lhe dava muita pena a perda da carta de Dulcineia, porque ele a
sabia quase de memória, da qual se poderia trasladar onde e quando
quisessem.
- Dizei-a, Sancho, pois - disse o barbeiro, - que depois a
trasladaremos.
Ficou Sancho Pança a coçar a cabeça para trazer à memória a carta,
e já se punha sobre um pé, e já sobre outro; umas vezes olhava ao
chão, outras ao céu; e, ao cabo de haver-se roído a metade da polpa de
um dedo, tendo suspensos os que esperavam que já a dissesse, disse
ao cabo de grandíssimo momento:
- Por Deus, senhor licenciado, que os diabos levem a coisa que da
carta se me recorda; embora no princípio dizia: “Alta e rebaixada
senhora”.
- Não diria - disse o barbeiro, - rebaixada, senão sobre-humana, ou
soberana senhora.
- Assim é - disse Sancho. - Logo, se mal não me lembro, prosseguia...
se mal não me lembro: “o cagado e falto de sono, e o ferido beija a
vossa mercê as mãos, ingrata e muito desconhecida formosa”, e não
sei que dizia de saúde e de enfermidade que lhe enviava, e por aqui ia
escorrendo, até que acabava em “Vosso até a morte, o Cavaleiro da
Triste Figura”.
Não pouco gostaram os dois de ver a boa memória de Sancho Pança,
e louvaram-na muito, e lhe pediram que dissesse a carta outras duas
vezes, para que eles também a tomassem de memória para trasladá-la
a seu tempo. Tornou-a a dizer Sancho outras três vezes, e outras
tantas voltou a dizer outros três mil disparates. Atrás disto, contou
também as coisas de seu amo, mas não falou palavra acerca do
manteamento que lhe havia sucedido naquela estalagem, na qual
recusava entrar. Disse também como seu senhor, se trouxesse boa
resposta da senhora Dulcineia do Toboso, se havia de pôr a caminho a
procurar como ser imperador, ou, pelo menos, monarca; que assim o
tinham combinado entre os dois, e era coisa muito fácil vir a sê-lo,
segundo era o valor de sua pessoa e a força de seu braço; e que,
sendo-o, havia de casá-lo, porque já seria viúvo, que não podia ser
menos, e havia de dar-lhe por mulher uma donzela da imperatriz,
herdeira de um rico e grande estado de terra firme, sem ilhos nem
ilhas, que já não as queria.
Dizia isto Sancho com tanto repouso, limpando de quando em quando
o nariz, e com tão pouco juízo, que os dois se admiraram de novo,
considerando quão veemente havia sido a loucura de dom Quixote, pois
havia levado atrás de si o juízo daquele pobre homem. Não quiseram
cansar-se em tirá-lo do erro em que estava, parecendo-lhes que, pois
não lhe doía nada a consciência, melhor era deixá-lo, e a eles seria de
mais gosto ouvir suas necedades. E assim, disseram-lhe que rogasse a
Deus pela saúde de seu senhor, que coisa contingente e muito possível
era vir, com o decurso do tempo, a ser imperador, como ele dizia, ou,
pelo menos, arcebispo, ou outra dignidade equivalente. A que
respondeu Sancho:
- Senhores, se a fortuna rodeasse as coisas de maneira que a meu
amo lhe viesse a vontade de não ser imperador, senão de ser
arcebispo, queria eu saber agora: que costumam dar os arcebispos
andantes a seus escudeiros?
- Costumam dar-lhes - respondeu o padre - algum cargo, simples ou
de padre, ou alguma sacristania, que lhes vale muito de renda fixa,
além do pé de altar, que se costuma estimar em outro tanto.
- Para isso será mister - replicou Sancho - que o escudeiro não seja
casado e que saiba ajudar a missa, pelo menos; e se isto é assim,
desditado de mim, que sou casado e não sei a primeira letra do abecê!
Que será de mim se a meu amo lhe dá desejo de ser arcebispo, e não
imperador, como é uso e costume dos cavaleiros andantes?
- Não tenhais pena, Sancho amigo - disse o barbeiro, - que aqui
rogaremos a vosso amo e o aconselharemos, e ainda o poremos em caso
de consciência, que seja imperador e não arcebispo, porque lhe será
mais fácil, porque ele é mais valente que estudante.
- Assim me pareceu - respondeu Sancho, - embora sei dizer que
para tudo tem habilidade. O que eu penso fazer de minha parte é
rogar a Nosso Senhor que o leve àqueles lugares onde ele mais se
sirva e onde mais mercês me faça.
- Vós o dizeis como discreto - disse o padre - e o fareis como bom
cristão. Mas o que agora se há de fazer é tirar vosso amo daquela
inútil penitência que dizeis que está fazendo; e, para pensar o modo
que havemos de ter, e para comer, que já é hora, será bom que
entremos nesta estalagem.
Sancho disse que entrassem eles, que ele esperaria ali fora e que
depois lhes diria a causa por que não entrava nem lhe convinha entrar
nela; mas que lhes rogava que lhe obtivessem ali algo de comer que
fosse coisa quente, e, também, cevada para Rocinante. Eles entraram
e o deixaram, e, dali a pouco, o barbeiro lhe trouxe de comer. Depois,
havendo bem pensado entre os dois o modo que teriam para conseguir
o que desejavam, veio ao padre um pensamento muito acomodado ao
gosto de dom Quixote e para o que eles queriam. E foi que disse ao
barbeiro que o que havia pensado era que ele vestiria roupa de donzela
andante, e que ele procurasse pôr-se o melhor que pudesse como
escudeiro, e que assim iriam onde dom Quixote estava, fingindo ser
ela uma donzela aflita e necessitada, e lhe pediria um dom, o qual ele
não poderia deixar-lhe de outorgar, como valoroso cavaleiro andante.
E que o dom que lhe pensava pedir era que viesse com ela onde ela o
levasse, a desfazer-lhe um agravo que um mau cavaleiro lhe tinha
feito; e que lhe suplicava, também, que não a mandasse tirar seu véu,
nem lhe perguntasse sobre seu assunto, até que a houvesse
desagravado; e que cresse, sem dúvida, que dom Quixote viria em tudo
quanto lhe pedisse por este termo; e que desta maneira o tirariam dali
e o levariam a seu lugar, onde procurariam ver se tinha algum remédio
sua estranha loucura.

CAPÍTULO XXVII

De como conseguiram seu objetivo o padre e o barbeiro, com outras


coisas dignas de que se contem nesta grande história

Não pareceu mal ao barbeiro a invenção do padre, senão tão bem,


que logo a puseram em prática. Pediram à vendeira um vestido e umas
toucas, deixando-lhe em prendas uma sotaina nova do padre. O
barbeiro fez uma grande barba de um rabo de boi entre ruço e
vermelho, onde o vendeiro tinha pendurado o pente. Perguntou-lhes a
vendeira para que lhe pediam aquelas coisas. O padre lhe contou em
breves razões a loucura de dom Quixote, e como convinha aquele
disfarce para tirá-lo da montanha, onde na ocasião estava.
Perceberam logo o vendeiro e a vendeira que o louco era seu hóspede,
o do bálsamo, e o amo do manteado escudeiro, e contaram ao padre
tudo o que com ele lhes havia passado, sem calar o que tanto calava
Sancho. Em suma, a vendeira vestiu o padre de modo que não havia
mais que ver: pôs-lhe um vestido de pano, cheio de franjas de veludo
negro de um palmo de largura, todas cortadas em ponta, e uns
corpetes de veludo verde, guarnecidos com uns debruns de cetim
branco, que devem ter sido feitos, eles e o vestido, no tempo do rei
Bamba. Não consentiu o padre que o tocassem, senão pôs-se na cabeça
um barrete de fino pano acolchoado que levava para dormir de noite, e
cingiu pela frente uma liga de tafetá negro, e com outra liga fez um
véu, com que cobriu muito bem as barbas e o rosto; encasquetou o
chapéu, que era tão grande que lhe podia servir de guarda-sol, e,
cobrindo-se com sua capa curta, subiu em sua mula de lado, e o
barbeiro na sua, com sua barba que lhe chegava à cintura, entre
vermelha e branca, como aquela que, como se disse, era feita do rabo
de um boi barroso.
Despediram-se de todos, e da boa Maritornes, que prometeu rezar
um rosário, embora pecadora, porque Deus lhes desse bom sucesso em
tão árduo e tão cristão negócio como era o que haviam empreendido.
Mas, apenas saiu da estalagem, quando veio ao padre um
pensamento: que fazia mal em haver-se posto daquela maneira, por ser
coisa inconveniente que um sacerdote se pusesse assim, embora fosse
necessário; e, dizendo-o ao barbeiro, rogou-lhe que trocassem os
trajes, pois era mais justo que ele fosse a donzela necessitada, e que
ele faria o escudeiro, e que assim se profanava menos sua dignidade; e
que se não o queria fazer, determinava não passar adiante, embora a
dom Quixote o levasse o diabo.
Nisto, chegou Sancho, e ao ver os dois naquele traje não pôde reter
o riso. Com efeito, o barbeiro consentiu em tudo aquilo que o padre
quis, e, trocando a invenção, o padre lhe foi informando o modo que
havia de ter e as palavras que havia de dizer a dom Quixote para
convencê-lo e forçá-lo a que com ele viesse, e deixasse a querência do
lugar que havia escolhido para sua vã penitência. O barbeiro respondeu
que, sem que o ensinasse, ele o faria corretamente. Não quis vestir-se
por então, até que estivessem junto de onde dom Quixote estava; e
assim, dobrou seus vestidos, e o padre acomodou sua barba, e
seguiram seu caminho, guiando-os Sancho Pança; o qual lhes foi
contando o que lhes aconteceu com o louco que acharam na serra,
encobrindo, entretanto, o achado da maleta e de quanto nela vinha;
que, embora tonto, era um pouco cobiçoso o mancebo.
No outro dia chegaram ao lugar onde Sancho havia deixado postos
os sinais dos ramos para acertar o lugar onde havia deixado seu
senhor; e, reconhecendo-o, lhes disse que aquela era a entrada, e que
bem se podiam vestir, se era que aquilo vinha ao caso para a liberdade
de seu senhor; porque eles lhe haviam dito antes que o ir daquela
sorte e vestir-se daquele modo era de toda a importância para tirar a
seu amo daquela má vida que havia escolhido, e que lhe encareciam
muito que não dissesse a seu amo quem eles eram, nem que os
conhecia; e que se lhe perguntasse, como o havia de perguntar, se deu
a carta a Dulcineia, dissesse que sim, e que, por não saber ler, lhe
havia respondido de palavra, dizendo-lhe que lhe mandava dizer, sob
pena da sua desgraça, que logo ao momento viesse a ver com ela, que
era coisa que lhe importava muito; porque com isto e com o que eles
pensavam dizer-lhe tinham por coisa certa dar-lhe a melhor vida, e
fazer com ele que logo se pusesse a caminho para ir ser imperador ou
monarca; que no de ser arcebispo não havia de que temer.
Tudo o escutou Sancho, e o tomou muito bem na memória, e lhes
agradeceu muito a intenção que tinham de aconselhar a seu senhor
fosse imperador e não arcebispo, porque ele tinha para si que, para
fazer mercês a seus escudeiros, mais podiam os imperadores que os
arcebispos andantes. Também lhes disse que seria bem que ele fosse
adiante a procurá-lo e dar-lhe a resposta de sua senhora, que já seria
ela bastante a tirá-lo daquele lugar, sem que eles se dessem tanto
trabalho. Pareceu-lhes bem o que Sancho Pança dizia, e assim,
decidiram aguardá-lo até que voltasse com as novas do achado de seu
amo.
Entrou Sancho por aquelas quebradas da serra, deixando os dois em
uma por onde corria um pequeno e manso arroio, a quem faziam
sombra agradável e fresca outras penhas e algumas árvores que por
ali estavam. O calor, e o dia que ali chegaram, era dos do mês de
agosto, que por aquelas partes costuma ser o ardor muito grande; a
hora, as três da tarde: tudo o que fazia o sítio mais agradável, e que
convidasse a que nele esperassem a volta de Sancho, como o fizeram.
Estando, pois, os dois ali, sossegados e à sombra, chegou a seus
ouvidos uma voz que, sem acompanhá-la som de algum outro
instrumento, doce e regaladamente soava, de que não pouco se
admiraram, por parecer-lhes que aquele não era lugar onde pudesse
haver quem tão bem cantasse. Porque, embora costuma dizer-se que
pelas selvas e campos se acham pastores de vozes extremadas, mais
são encarecimentos de poetas que verdades; e mais, quando
advertiram que o que ouviam cantar eram versos, não de rústicos
vaqueiros, senão de discretos cortesãos. E confirmou esta verdade
haver sido os versos que ouviram estes:

Quem menoscaba meus bens?


Desdéns.
E quem aumenta minhas penas?
Os zelos.
E quem prova minha paciência?
Ausência.
Desse modo, em minha dolência
nenhum remédio se alcança,
pois me matam a esperança
desdéns, zelos e ausência.

Quem me causa esta dor?


Amor.
E quem minha glória repugna?
Fortuna.
E quem consente em minha pena?
O céu.
Desse modo, eu receio
morrer deste mal estranho,
pois se aumentam em meu dano,
amor, fortuna e o céu.

Quem melhorará minha sorte?


A morte.
E o bem de amor, quem o alcança?
Mudança.
E seus males, quem os cura?
Loucura.
Desse modo, não é cordura
querer curar a paixão
quando os remédios são
morte, mudança e loucura.

A hora, o tempo, a solidão, a voz e a destreza do que cantava causou


admiração e alegria nos dois ouvintes, os quais estiveram parados,
esperando se outra alguma coisa ouviam; mas, vendo que durava algum
tanto o silêncio, determinaram sair a buscar o músico que com tão boa
voz cantava. E querendo fazê-lo, fez a mesma voz que não se
movessem, a qual chegou de novo a seus ouvidos, cantando este
soneto:

SONETO

Santa amizade, que com ligeiras asas,


tua falsa imagem ficando no chão,
entre benditas almas, no céu,
subiste alegre às empíreas salas,
desde lá, quando queres, nos assinalas
a justa paz coberta com um véu,
por quem às vezes se transluz o zelo
de boas obras que, ao fim, são más.
Deixa o céu, oh amizade!, ou não permitas
que o engano seja teu lacaio,
com que destrói a intenção sincera;
que se tuas falsas imagens não lhe quitas,
presto há de ver-se o mundo na peleja
da discorde confusão primeira.

O canto acabou com um profundo suspiro, e os dois, com atenção,


voltaram a esperar se mais se cantava; mas, vendo que a música se
havia voltado em soluços e em lastimosos ais, concordaram em saber
quem era o triste, tão extremado na voz como doloroso nos gemidos; e
não andaram muito, quando, ao voltar de uma ponta de uma penha,
viram um homem do mesmo talhe e figura que Sancho Pança lhes havia
pintado quando lhes contou o conto de Cardênio; o qual homem, quando
os viu, sem sobressaltar-se, esteve quedo, com a cabeça inclinada
sobre o peito à guisa de homem pensativo, sem alçar os olhos a olhá-
los mais da vez primeira, quando de improviso chegaram.
O padre, que era bom conversador, que já tinha notícia de sua
desgraça, pois pelos sinais o havia reconhecido, se chegou a ele, e com
breves embora muito discretas razões lhe rogou e persuadiu que
aquela tão miserável vida deixasse, porque ali não a perdesse, que era
a desdita maior das desditas. Estava Cardênio então em seu inteiro
juízo, livre daquele furioso acidente que tão amiúde o tirava de si
mesmo; e assim, vendo os dois em traje tão não usado dos que por
aquelas solidões andavam, não deixou de admirar-se algum tanto, e
mais quando ouviu que lhe haviam falado de sua situação como de coisa
sabida (porque as razões que o padre lhe disse assim lhe deram a
entender); e assim, respondeu desta maneira:
- Bem vejo eu, senhores, quem quer que sejais, que o céu, que tem
cuidado de socorrer aos bons, e ainda aos maus muitas vezes, sem eu
merecê-lo, me envia, nestes tão remotos e afastados lugares do trato
comum das gentes, algumas pessoas que, pondo-me diante dos olhos
com vivas e varias razões quão sem ela ando em fazer a vida que faço,
procuraram tirar-me deste a melhor lugar; mas, como não sabem que
sei eu que saindo deste dano hei de cair em outro maior, quiçá me
devem ter por homem de fracas razões, e ainda, o que pior seria, de
nenhum juízo. E não seria maravilha que assim fosse, porque a mim
está claro que a força da ruminação de minhas desgraças é tão intensa
e pode tanto em minha perdição que, sem que eu possa evitá-lo, venho
a ficar como pedra, falto de todo bom sentido e conhecimento; e
venho a cair na conta desta verdade, quando alguns me dizem e
mostram sinais das coisas que fiz enquanto aquele terrível acidente
me senhoreia, e não sei mais que doer-me em vão e maldizer sem
proveito minha ventura, e dar por desculpa de minhas loucuras o dizer
a causa delas a quantos ouvi-la querem; porque, vendo os lúcidos qual é
a causa, não se maravilharão dos efeitos, e se não me derem remédio,
ao menos não me darão culpa, convertendo-se-lhes o nojo de minha
desenvoltura em lástima de minhas desgraças. E se é que vós,
senhores, vindes com a mesma intenção que outros vieram, antes que
passeis adiante em vossas discretas persuasões, rogo-vos que escuteis
o conto, que não tem fim, de minhas desventuras; porque quiçá, depois
de ouvido, poupareis o trabalho que tomareis em consolar um mal que
de todo consolo é incapaz.
Os dois, que não desejavam outra coisa que saber de sua mesma
boca a causa de seu dano, rogaram-lhe que a contasse, oferecendo-lhe
de não fazer outra coisa senão a que ele quisesse, em seu remédio ou
consolo; e com isto, o triste cavaleiro começou sua lastimosa história,
quase pelas mesmas palavras e passos que a havia contado a dom
Quixote e ao cabreiro poucos dias atrás, quando, por ocasião do
cirurgião Elisabat e preocupação de dom Quixote em guardar o decoro
à cavalaria, ficou o conto imperfeito, como a história o deixa contado.
Mas agora quis a boa sorte que se deteve o acidente da loucura e lhe
deu lugar de contá-lo até o fim; e assim, chegando ao passo do bilhete
que havia achado dom Fernando entre o livro de Amadis de Gaula,
disse Cardênio que o tinha bem na memória, e que dizia desta maneira:

LUCINDA A CARDENIO

Cada dia descubro em vós valores que me obrigam e forçam a que em mais vos
estime; e assim, se quiserdes tirar-me desta dúvida sem executar-me na honra,
o podereis muito bem fazer. Pai tenho, que vos conhece e que me quer bem, o
qual, sem forçar minha vontade, cumprirá a que será justo que vós tenhais, se é
que me estimais como dizeis e como eu creio.

- Por este bilhete me movi a pedir Lucinda por esposa, como já vos
contei, e isto foi por quem ficou Lucinda na opinião de dom Fernando
por uma das mais discretas e avisadas mulheres de seu tempo; e este
bilhete foi o que o pôs em desejo de destruir-me, antes que o meu se
efetuasse. Disse eu a dom Fernando do que fazia questão o pai de
Lucinda, que era que meu pai a pedisse, o que eu não lhe ousava dizer,
temeroso que não faria isso, não porque não tivesse bem conhecida a
qualidade, bondade, virtude e formosura de Lucinda, e que tinha
qualidades bastantes para enobrecer qualquer outra linhagem da
Espanha, senão porque eu entendia dele que desejava que não me
casasse logo, até ver o que o duque Ricardo fazia comigo. Em suma,
disse-lhe que não me aventurava a dizê-lo a meu pai, assim por aquele
inconveniente como por outros muitos que me acovardavam, sem saber
quais eram, senão que me parecia que o que eu desejava jamais havia
de ter efeito. A tudo isto me respondeu dom Fernando que ele se
encarregava de falar a meu pai e fazer com ele que falasse ao de
Lucinda. Oh Mário ambicioso, oh Catilina cruel, oh Sila facinoroso, oh
Galalão embusteiro, oh Vellido traidor, oh Julião vingativo, oh Judas
cobiçoso! Traidor, cruel, vingativo e embusteiro, que desserviços te
havia feito este triste, que com tanta lhaneza te descobriu os
segredos e alegrias de seu coração? Que ofensa te fiz? Que palavras
te disse, ou que conselhos te dei, que não fossem todos encaminhados
a acrescentar tua honra e teu proveito? Mas, de que me queixo?,
desventurado de mim!, pois é coisa certa que quando trazem as
desgraças o curso dos astros, como vêm de alto a baixo, despenhando-
se com furor e com violência, não há força na terra que as detenha,
nem indústria humana que prevê-las possa. Quem poderia imaginar que
dom Fernando, cavaleiro ilustre, discreto, obrigado de meus serviços,
poderoso para alcançar o que o desejo amoroso lhe pedisse onde quer
que o ocupasse, havia de sujar-se, como costuma dizer-se, em tomar-
me a mim uma só ovelha, que ainda não possuía? Mas deixem-se estas
considerações à parte, como inúteis e sem proveito, e retomemos o
roto fio de minha desditada história.
“Digo, pois, que, parecendo a dom Fernando que minha presença lhe
era inconveniente para pôr em execução seu falso e mau pensamento,
decidiu enviar-me a seu irmão maior, para pedir-lhe uns dinheiros para
pagar seis cavalos, que por indústria, e só para este efeito de que me
ausentasse, para poder melhor sair com seu danado intento, no mesmo
dia que se ofereceu a falar a meu pai os comprou, e quis que eu viesse
pelo dinheiro. Pude eu prever esta traição? Pude, porventura, imaginá-
la? Não, por certo; antes, com grandíssimo gosto, me ofereci a partir
logo, contente da boa compra feita. Aquela noite falei com Lucinda, e
lhe disse o que com dom Fernando ficava acertado, e que tivesse
firme esperança de que teriam efeito nossos bons e justos desejos.
Ela me disse, tão segura como eu da traição de dom Fernando, que
procurasse voltar logo, porque acreditava que não tardaria mais a
conclusão de nossas vontades que tardasse meu pai de falar ao seu.
Não sei o que foi, que, acabando de dizer-me isto, se lhe encheram os
olhos de lágrimas e um nó se lhe atravessou na garganta, que não a
deixava falar palavra de outras muitas que me pareceu que procurava
dizer-me. Fiquei admirado deste novo acidente, até ali jamais nela
visto, porque sempre nos falávamos, as vezes que a boa fortuna e
minha diligência o concedia, com todo regozijo e alegria, sem misturar
em nossas conversas lágrimas, suspiros, zelos, suspeitas ou temores.
Tudo era engrandecer eu minha ventura, por haver-ma dado o céu por
senhora: exagerava sua beleza, admirava-me de seu valor e
entendimento. Dava-me ela o troco, louvando em mim o que, como
enamorada, lhe parecia digno de louvação. Com isto, nos contávamos
cem mil ninharias e acontecimentos de nossos vizinhos e conhecidos, e
ao que mais se entendia minha desenvoltura era tomar-lhe, quase por
força, uma de suas belas e brancas mãos, e chegá-la a minha boca,
segundo dava lugar a estreiteza de uma baixa grade que nos dividia.
Mas a noite que precedeu ao triste dia de minha partida, ela chorou,
gemeu e suspirou, e se foi, e me deixou cheio de confusão e
sobressalto, espantado de haver visto tão novas e tão tristes mostras
de dor e sentimento em Lucinda. Mas, por não destruir minhas
esperanças, tudo o atribuí à força do amor que me tinha e à dor que
costuma causar a ausência nos que bem se querem. Enfim, eu parti
triste e pensativo, cheia a alma de imaginações e suspeitas, sem saber
o que suspeitava nem imaginava: claros indícios que me mostravam o
triste sucesso e desventura que me estava guardada. Cheguei ao lugar
onde era enviado. Dei as cartas ao irmão de dom Fernando; fui bem
recebido, mas não bem despachado, porque me mandou aguardar, bem
a meu desgosto, oito dias, e em lugar onde o duque, seu pai, não me
visse, porque seu irmão lhe escrevia que lhe enviasse certo dinheiro
sem seu conhecimento. E tudo foi invenção do falso dom Fernando,
pois não faltavam a seu irmão dinheiros para despachar-me logo.
Ordem e mandato foi este que me pôs em condição de não obedecê-lo,
por parecer-me impossível sustentar tantos dias a vida no ausência de
Lucinda, e mais, havendo-a deixado com a tristeza que vos contei; mas,
mesmo assim, obedeci, como bom criado, embora visse que havia de
ser à custa de minha saúde. Mas, aos quatro dias que ali cheguei,
chegou um homem em minha busca com uma carta, que me deu, que no
sobrescrito conheci ser de Lucinda, porque a letra dele era sua. Abri-
a, temeroso e com sobressalto, crendo que coisa grande devia ser a
que a havia movido a escrever-me estando ausente, pois presente
poucas vezes o fazia. Perguntei ao homem, antes de lê-la, quem a havia
dado e o tempo que havia tardado no caminho. Disse-me que acaso,
passando por uma rua da cidade à hora de meo-dia, uma senhora muito
formosa o chamou desde uma janela, os olhos cheios de lágrimas, e que
com muita pressa lhe disse: “- Irmão: se sois cristão, como pareceis,
por amor de Deus vos rogo que encaminheis logo logo esta carta ao
lugar e à pessoa que diz o sobrescrito, que tudo é bem conhecido, e
nisto fareis um grande serviço a Nosso Senhor; e para que não vos
falte comodidade de podê-lo fazer, tomai o que vai neste lenço”. “E
dizendo isto, me arrojou pela janela um lenço, onde vinham atados cem
reais e este anel de ouro que aqui trago, com essa carta que vos dei. E
logo, sem aguardar resposta minha, se afastou da janela; embora
primeiro viu como eu tomei a carta e o lenço, e, por sinais, disse-lhe
que faria o que me mandava. E assim, vendo-me tão bem pago do
trabalho que podia tomar em trazer-vo-la e conhecendo pelo
sobrescrito que éreis vós a quem se enviava, porque eu, senhor, vos
conheço muito bem, e obrigado também das lágrimas daquela formosa
senhora, decidi não fiar-me em outra pessoa, senão vir eu mesmo a
dar-vo-la; e em dezesseis horas que há que me entregou, fiz o
caminho, que sabeis que é de dezoito léguas”.
“Enquanto que o agradecido e novo correio isto me dizia, estava eu
pendurado de suas palavras, tremendo-me as pernas de maneira que
apenas podia suster-me. Com efeito, abri a carta e vi que continha
estas razões:

A palavra que dom Fernando vos deu de falar a vosso pai para que falasse ao
meu, cumpriu-a mais em seu gosto que em vosso proveito. Sabei, senhor, que ele
me pediu por esposa, e meu pai, levado da vantagem que ele pensa que dom
Fernando vos faz, concedeu, com tantas veras que daqui a dois dias se há de
fazer o desposório, tão secreto e tão a sós, que só hão de ser testemunhos os
céus e alguma gente de casa. Como estou, imaginai; se vos cumpre vir, vinde; e se
vos quero bem ou não, o sucesso deste caso vo-lo dará a entender. A Deus preze
que esta chegue a vossas mãos antes que a minha se veja em condição de juntar-
se com a de quem tão mal sabe guardar a fé que promete.

“Estas, em suma, foram as razões que a carta continha e as que me


fizeram pôr logo em caminho, sem esperar outra resposta nem outros
dinheiros; que bem claro conheci então que não a compra dos cavalos,
senão a de seu gosto, havia movido dom Fernando a enviar-me a seu
irmão. A zanga que contra dom Fernando concebi, junto com o temor
de perder a prenda que com tantos anos de serviços e desejos tinha
granjeada, me puseram asas, pois, quase como em voo, no outro dia me
pus em meu lugar, ao ponto e hora que convinha para ir falar a Lucinda.
Entrei secretamente, e deixei uma mula em que vinha em casa do bom
homem que me havia levado a carta, e quis a sorte que então a tivesse
tão boa que achei Lucinda posta à grade, testemunho de nossos
amores. Reconheceu-me Lucinda logo, e reconheci-a eu; mas não como
devia ela reconhecer-me e eu reconhecê-la. Mas, quem há no mundo
que se possa louvar de que haja penetrado e sabido o confuso
pensamento e condição mutável de uma mulher? Ninguém, por certo.
Digo, pois, que, assim que Lucinda me viu, me disse: “Cardênio, de boda
estou vestida; já me estão aguardando na sala dom Fernando o traidor
e meu pai o cobiçoso, com outros testemunhos, que antes o serão de
minha morte que de meu desposório. Não te perturbes, amigo, senão
procura achar-te presente a este sacrifício, o qual se não puder ser
perturbado por minhas razões, uma adaga levo escondida que poderá
perturbar mais determinadas forças, dando fim à minha vida e
princípio a que conheças o afeto que te tive e tenho”. Eu lhe respondi
perturbado e às pressas, temeroso me faltasse lugar para responder-
lhe: “Façam, senhora, tuas obras verdadeiras tuas palavras; que se tu
levas adaga para eu acreditar-te, aqui levo eu espada para defender-
te com ela ou para matar-me se a sorte nos for contrária”. Não creio
que pôde ouvir todas estas razões, porque senti que a chamavam às
pressas, porque o desposado aguardava. Cerrou-se com isto a noite de
minha tristeza, pôs-se o sol de minha alegria: fiquei sem luz nos olhos
e sem discernimento. Não acertava entrar em sua casa, nem podia
mover-me a lugar algum; mas, considerando quanto importava minha
presença para o que suceder pudesse naquele caso, me animei o mais
que pude e entrei em sua casa. E como já sabia muito bem todas suas
entradas e saídas, e mais com o alvoroço que em segredo nela andava,
ninguém me viu. Assim que, sem ser visto, tive lugar de pôr-me no oco
que fazia uma janela da mesma sala, que com as pontas e remates de
dois tapetes se cobria, por entre os quais podia eu ver, sem ser visto,
tudo quanto na sala se fazia. Quem poderia dizer agora os
sobressaltos que me deu o coração enquanto ali estive, os
pensamentos que me ocorreram, as considerações que fiz, que foram
tantas e tais, que nem se podem dizer nem ainda é bem que se digam?
Basta que saibais que o desposado entrou na sala sem outro adorno
que as mesmas vestes costumeiras. Trazia por padrinho um primo
irmão de Lucinda, e em toda a sala não havia pessoa de fora, senão os
criados de casa. Dali a um pouco, saiu de uma recâmara Lucinda,
acompanhada de sua mãe e de duas donzelas suas, tão bem adornada e
composta como sua qualidade e formosura mereciam, e como quem era
a perfeição da gala e bizarria cortesã. Não me deu lugar minha
suspensão e arroubo para que olhasse e notasse em particular o que
trazia vestido; só pude reparar nas cores, que eram encarnado e
branco, e nos reflexos que as pedras e joias do toucado e de todo o
vestido faziam, a tudo o qual se avantajava a beleza singular de seus
formosos e loiros cabelos; tais que, em comparação com as preciosas
pedras e as luzes de quatro tochas que na sala estavam, a sua com
mais resplendor aos olhos ofereciam. Oh memória, inimiga mortal de
meu descanso! De que serve representar-me agora a incomparável
beleza daquela adorada inimiga minha? Não será melhor, cruel
memória, que me recordes e representes o que então fez, para que,
movido de tão manifesto agravo, procure, já que não a vingança, ao
menos perder a vida? Não vos canseis, senhores, de ouvir estas
digressões que faço; que não é minha pena daquelas que possam nem
devam contar-se sucintamente e depressa, pois cada circunstância sua
me parece que é digna de um largo discurso.
A isto lhe respondeu o padre que não só não se cansavam em ouvi-lo,
senão que lhes davam muito gosto as minudências que contava, por ser
tais, que mereciam não passar-se em silêncio, e a mesma atenção que o
principal do conto.
- Digo, pois - prosseguiu Cardênio, - que, estando todos na sala,
entrou o padre da paróquia, e, tomando os dois pela mão para fazer o
que em tal ato se requer, ao dizer: “Quereis, senhora Lucinda, ao
senhor dom Fernando, que está presente, por vosso legítimo esposo,
como o manda a Santa Madre Igreja?”, eu tirei toda a cabeça e
pescoço de entre os tapetes, e com atentíssimos ouvidos e alma
perturbada me pus a escutar o que Lucinda respondia, esperando de
sua resposta a sentença de minha morte ou a confirmação de minha
vida. Oh, quem se atreveria a sair então, dizendo a vozes!: “Ah
Lucinda, Lucinda, vê o que fazes, considera o que me deves, vê que és
minha e que não podes ser de outro! Adverte que o dizer tu sim e o
acabar-me a vida há de ser a só e mesma coisa. Ah traidor dom
Fernando, roubador de minha glória, morte de minha vida! Que
queres? Que pretendes? Considera que não podes cristãmente chegar
ao fim de teus desejos, porque Lucinda é minha esposa e eu sou seu
marido”. Ah, louco de mim, agora que estou ausente e longe do perigo,
digo que havia de fazer o que não fiz! Agora que deixei roubar minha
cara prenda, maldigo ao roubador, de quem poderia vingar-me se
tivesse coração para isso como o tenho para queixar-me! Enfim, pois
fui então covarde e néscio, não é muito que morra agora vexado,
arrependido e louco. Estava esperando o padre a resposta de Lucinda,
que se deteve um bom espaço em dá-la, e, quando eu pensei que sacava
a adaga para que eu nela acreditasse, ou desatava a língua para dizer
alguma verdade ou desengano que em meu proveito redundasse, ouço
que disse com voz desmaiada e fraca: “Sim, quero”, e o mesmo disse
dom Fernando; e, dando-lhe o anel, ficaram em indissolúvel nó ligados.
Chegou o desposado a abraçar a sua esposa, e ela, pondo-se a mão
sobre o coração, caiu desmaiada nos braços de sua mãe. Resta agora
dizer como fiquei eu vendo, no sim que havia ouvido, burladas minhas
esperanças, falsas as palavras e promessas de Lucinda, impossibilitado
de cobrar em algum tempo o bem que naquele instante havia perdido.
Fiquei falto de conselho, desamparado, a meu parecer, de todo o céu,
feito inimigo da terra que me sustentava, negando-me o ar alento para
meus suspiros e a água humor para meus olhos; só o fogo se
acrescentou de maneira que tudo ardia de raiva e de zelos.
Alvoroçaram-se todos com o desmaio de Lucinda, e, desapertando-lhe
sua mãe o peito para que lhe desse ar, se descobriu nele um papel
fechado, que dom Fernando tomou logo e se pôs a ler à luz de uma das
tochas; e, acabando de lê-lo, sentou-se em uma cadeira e pôs a mão na
face, com mostras de homem muito pensativo, sem acudir aos
remédios que à sua esposa se faziam para que do desmaio voltasse. Eu,
vendo alvoroçada toda a gente de casa, me aventurei a sair, ora fosse
visto ou não, com determinação que, se me vissem, de fazer um
desatino tal, que tudo o mundo viesse a entender a justa indignação de
meu peito no castigo do falso dom Fernando, e ainda no mudável da
desmaiada traidora. Mas minha sorte, que para maiores males, se é
possível que os haja, me deve ter guardado, ordenou que naquele ponto
me sobrasse o entendimento que depois aqui me faltou; e assim, sem
querer tomar vingança de meus maiores inimigos (que, por estar tão
sem pensamento meu, fora fácil tomá-la), quis tomá-la de minha mão e
executar em mim a pena que eles mereciam; e ainda quiçá com mais
rigor do que com eles usaria se então lhes desse morte, pois a que se
recebe repentina logo acaba a pena; mas a que se dilata com
tormentos sempre mata, sem acabar a vida. Enfim, eu saí daquela casa
e vim à daquele onde havia deixado a mula; fiz que ma encilhasse, sem
despedir-me dele subi nela, e saí da cidade, sem ousar, como outro
Lot, voltar o rosto a olhá-la; e quando me vi no campo só, e que a
escuridão da noite me encobria e seu silêncio convidava a queixar-me,
sem respeito ou medo de ser escutado nem conhecido, soltei a voz e
desatei a língua em tantas maldições a Lucinda e a dom Fernando,
como se com elas satisfizesse o agravo que me haviam feito. Dei-lhe
títulos de cruel, de ingrata, de falsa e desagradecida; mas, sobretudo,
de cobiçosa, pois a riqueza de meu inimigo lhe havia fechado os olhos
da vontade, para tirá-la de mim e entregá-la àquele com quem mais
liberal e franca a fortuna se havia mostrado; e, em meio do ardor
destas maldições e vitupérios, a desculpava, dizendo que não era muito
que uma donzela recolhida em casa de seus pais, feita e acostumada
sempre a obedecer-lhes, houvesse querido condescender com seu
gosto, pois lhe davam por esposo um cavaleiro tão principal, tão rico e
tão gentil homem que, a não querer recebê-lo, se podia pensar, ou que
não tinha juízo, ou que em outra parte tinha a vontade, coisa que
redundava tão em prejuízo de sua boa opinião e fama. Logo voltava
dizendo que, posto que ela dissesse que eu era seu esposo, veriam eles
que não havia feito em escolher-me tão má eleição, que não a
desculpariam, pois antes de oferecer-se-lhes dom Fernando não
poderiam eles mesmos acertar a desejar, se com razão medissem seu
desejo, outro melhor que eu para esposo de sua filha; e que bem
poderia ela, antes de pôr-se no transe forçoso e último de dar a mão,
dizer que já eu lhe havia dado a minha; que eu viria e concordaria com
tudo quanto ela acertara a fingir neste caso. Enfim, decidi que pouco
amor, pouco juízo, muita ambição e desejos de grandezas fizeram que
se olvidasse das palavras com que me havia enganado, entretido e
sustentado em minhas firmes esperanças e honestos desejos. Com
estas vozes e com esta inquietude caminhei o que ficava daquela noite,
e dei ao amanhecer em uma entrada destas serras, pelas quais
caminhei outros três dias, sem senda nem caminho algum, até que vim
parar a uns prados, que não sei a que mão destas montanhas caem, e
ali perguntei a uns vaqueiros onde era o mais áspero destas serras.
Disseram-me que neste lugar. Logo me encaminhei a ele, com intenção
de acabar aqui a vida, e, entrando por estas asperezas, de cansaço e
de fome caiu minha mula morta, ou, o que eu mais creio, por descartar
de si tão inútil carga como em mim levava. Eu fiquei a pé, rendido da
natureza, traspassado de fome, sem ter, nem pensar buscar, quem me
socorresse. Daquela maneira estive não sei que tempo, estendido no
chão, ao cabo do qual me levantei sem fome, e achei junto a mim uns
cabreiros, que, sem dúvida, deveram ser os que minha necessidade
remediaram, porque eles me disseram da maneira que me haviam
achado, e como estava dizendo tantos disparates e desatinos, que
dava indícios claros de haver perdido o juízo; e eu senti em mim depois
aqui que não todas as vezes o tenho perfeito, senão tão definhado e
fraco que faço mil loucuras, rasgando-me as vestes, dando vozes por
estas solidões, maldizendo minha ventura e repetindo em vão o nome
amado de minha inimiga, sem ter outro discurso nem intento então que
procurar acabar a vida vozeando; e quando em mim volto, me acho tão
cansado e moído, que apenas posso mover-me. Minha mais comum
habitação é no oco de um sobreiro, capaz de cobrir este miserável
corpo. Os vaqueiros e cabreiros que andam por estas montanhas,
movidos de caridade, me sustentam, pondo-me o manjar pelos
caminhos e pelas penhas por onde entendem que acaso poderei passar
e achá-lo; e assim, embora então me falte o juízo, a necessidade
natural me dá a conhecer o alimento, e desperta em mim o desejo de
apetecê-lo e a vontade de tomá-lo. Outras vezes me dizem eles,
quando me encontram com juízo, que eu saio aos caminhos e que o tiro
à força, embora me o deem de bom grado os pastores que vêm com ele
do lugar às cabanas. Desta maneira passo minha miserável e extrema
vida, até que o céu seja servido de conduzi-la a seu último fim, ou de
pô-la em minha memória, para que não me recorde da formosura e da
traição de Lucinda e do agravo de dom Fernando; que se isto ele faz
sem tirar-me a vida, eu voltarei a melhor discurso meus pensamentos;
onde não, não há senão rogar-lhe que absolutamente tenha
misericórdia de minha alma, que eu não sinto em mim valor nem forças
para tirar o corpo desta estreiteza em que por meu gosto o atirei.
Esta é, oh senhores!, a amarga história de minha desgraça: dizei-me
se é tal, que possa celebrar-se com menos sentimentos que os que em
mim haveis visto; e não vos canseis em persuadir-me nem aconselhar-
me o que a razão vos disser que pode ser bom para meu remédio,
porque há de aproveitar comigo o que aproveita a medicina receitada
de famoso médico ao enfermo que receber não a quer. Eu não quero
saúde sem Lucinda; e, pois ela gostou de ser alheia, sendo, ou devendo
ser, minha, goste eu de ser da desventura, podendo haver sido da boa
felicidade. Ela quis, com sua mudança, fazer estável minha perdição;
eu quererei, com procurar perder-me, fazer contente sua vontade, e
será exemplo aos por vir de que a mim só faltou o que a todos os
desditados sobra, aos quais costuma ser consolo a impossibilidade de
ter-lhe, e em mim é causa de maiores sentimentos e mais, porque
ainda penso que não se hão de acabar com a morte.
Aqui deu fim Cardênio a sua larga conversa e tão desditada como
amorosa história. E ao tempo que o padre se prevenia para dizer-lhe
algumas razões de consolo, suspendeu-o uma voz que chegou a seus
ouvidos, que em lastimados acentos ouviram que dizia o que se dirá na
quarta parte desta narração, que neste ponto deu fim à terceira o
sábio e circunspecto historiador Cide Hamete Benengeli.

CAPÍTULO XXVIII

Que trata da nova e agradável aventura que ao padre e barbeiro


sucedeu na mesma serra

Felicíssimos e venturosos foram os tempos em que se lançou ao


mundo o audacíssimo cavaleiro dom Quixote da Mancha, pois por haver
tido tão honrosa decisão como foi o querer ressuscitar e trazer de
volta ao mundo a já perdida e quase morta ordem da andante
cavalaria, gozamos agora, nesta nossa idade, necessitada de alegres
entretenimentos, não só da doçura de sua verdadeira história, senão
dos contos e episódios dela, que, em parte, não são menos agradáveis e
artificiosos e verdadeiros que a mesma história; a qual, prosseguindo
seu rastelado, torcido e aspado fio, conta que, assim que o padre
começou a preparar-se para consolar Cardênio, impediu-o uma voz que
chegou a seus ouvidos, que, com tristes acentos, dizia desta maneira:
- Ai Deus! Será possível que já achei lugar que possa servir de
escondida sepultura à carga pesada deste corpo, que tão contra minha
vontade sustenho? Sim, será, se a solidão que prometem estas serras
não me mente. Ai, desditada, e quão mais agradável companhia farão
estes penhascos e matas à minha intenção, pois me darão lugar para
que com queixas comunique minha desgraça ao céu, que não a de
nenhum homem humano, pois não há nenhum na terra de quem se possa
esperar conselho nas dúvidas, alívio nas queixas, nem remédio nos
males!
Todas estas razões ouviram e perceberam o padre e os que com ele
estavam, e por parecer-lhes, como isso era, que ali junto as diziam,
levantaram-se a buscar o dono, e não andaram vinte passos, quando
detrás de um penhasco viram, sentado ao pé de um freixo, um moço
vestido como lavrador, o qual, por ter inclinado o rosto, porque lavava
os pés no arroio que por ali corria, não puderam ver por então. E eles
chegaram com tanto silêncio que dele não foram sentidos, nem ele
estava a outra coisa atento que a lavar os pés, que eram tais, que não
pareciam senão dois pedaços de branco cristal que entre as outras
pedras do arroio haviam nascido. Suspendeu-os a brancura e beleza
dos pés, parecendo-lhes que não estavam feitos a pisar terrões, nem a
andar atrás do arado e dos bois, como mostrava a roupa de seu dono; e
assim, vendo que não haviam sido sentidos, o padre, que ia adiante, fez
sinais aos outros dois que se agachassem ou escondessem detrás de
uns pedaços de penha que ali havia, e assim o fizeram todos, olhando
com atenção o que o moço fazia; o qual trazia posto um poncho pardo
de duas fraldas, muito cingido ao corpo com uma toalha branca. Trazia
também uns calções e polainas de pano pardo, e na cabeça um barrete
pardo. Tinha as polainas levantadas até a metade da perna, que, sem
dúvida alguma, de branco alabastro parecia. Acabou de lavar os
formosos pés, e logo, com um pano para cabeça, que tirou debaixo do
barrete, limpou-os; e, ao tirá-lo, alçou o rosto, e tiveram lugar os que
olhando-o estavam de ver uma formosura incomparável, tal, que
Cardênio disse ao padre, com voz baixa:
- Esta, já que não é Lucinda, não é pessoa humana, senão divina.
O moço tirou o barrete, e, sacudindo a cabeça para um e outro lado,
começaram a soltar-se e espalhar uns cabelos que poderiam os do sol
ter-lhes inveja. Com isto entenderam que o que parecia lavrador era
mulher, e delicada, e ainda a mais formosa que até então os olhos dos
dois haviam visto, e ainda os de Cardênio, se não houvessem visto e
conhecido Lucinda; que depois afirmou que só a beleza de Lucinda
podia contender com aquela. Os longos e loiros cabelos não só lhe
cobriram as costas, mas toda em torno a esconderam debaixo deles;
que se não fossem os pés, nenhuma outra parte de seu corpo aparecia:
tais e tantos eram. Nisto, serviu-lhes de pente umas mãos, que se os
pés na água haviam parecido pedaços de cristal, as mãos nos cabelos
semelhavam pedaços de neve; tudo o que em mais admiração e em mais
desejo de saber quem era punha os três que a olhavam.
Por isto decidiram mostrar-se; e ao movimento que fizeram de pôr-
se em pé, a formosa moça alçou a cabeça e, afastando os cabelos de
diante dos olhos com ambas as mãos, olhou os que o ruído faziam; e
apenas os viu, quando se levantou, e, sem aguardar a calçar-se nem a
recolher os cabelos, pegou com muita presteza um volume, como de
roupa, que junto a si tinha, e quis pôr-se em fuga, cheia de
perturbação e sobressalto; mas não deu seis passos quando, não
podendo sofrer os delicados pés a aspereza das pedras, deu consigo
no chão. O que, visto pelos três, foram-lhe ao encontro, e o padre foi
o primeiro que lhe disse:
- Detende-vos, senhora, quem quer que sejais, que os que aqui vedes
só têm intenção de servir-vos. Não há para que vos ponhais em tão
despropositada fuga, porque nem vossos pés o poderão sofrer nem nós
consentir.
A tudo isto ela não respondia palavra, atônita e confusa. Chegaram,
pois, a ela, e, tomando-a pela mão o padre, prosseguiu dizendo:
- O que vosso traje, senhora, nos nega, vossos cabelos nos
descobrem: sinais claros que não devem ser de pouca importância as
causas que disfarçaram vossa beleza em roupa tão indigna, e
trouxeram-na a tanta solidão como é esta, na qual foi ventura o achar-
vos, se não para dar remédio a vossos males, ao menos para dar-lhes
conselho, pois nenhum mal pode fatigar tanto, nem chegar tão ao
extremo de sê-lo (enquanto não acaba a vida), que evite escutar
sequer o conselho que com boa intenção se dá ao que o padece. Assim
que, senhora minha, ou senhor meu, ou o que vós quiserdes ser, perdei
o sobressalto que nossa vista vos causou e contai-nos vossa boa ou má
sorte; que em nós juntos, ou em cada um, achareis quem vos ajude a
compartir vossas desgraças.
Enquanto o padre dizia estas razões, estava a disfarçada moça
como estupefata, olhando-os a todos, sem mover lábio nem dizer
palavra alguma, bem assim como rústico aldeão que de improviso se lhe
mostram coisas raras e dele jamais vistas. Mas, voltando o padre a
dizer-lhe outras razões ao mesmo efeito encaminhadas, dando ela um
profundo suspiro, rompeu o silêncio e disse:
- Pois que a solidão destas serras não foi suficiente para encobrir-
me, nem a soltura de meus descompostos cabelos não permitiu que
seja mentirosa minha língua, debalde seria fingir eu de novo agora o
que, se se me cresse, seria mais por cortesia que por outra razão
alguma. Posto isto, digo, senhores, que vos agradeço o oferecimento
que me fizestes, o qual me pôs na obrigação de satisfazer-vos em tudo
o que me haveis pedido, embora tema que a relação que vos fizer de
minhas desditas vos há de causar, a par da compaixão, a tristeza,
porque não haveis de achar remédio para remediá-las nem consolo
para entretê-las. Mas, então, para que não ande vacilando minha honra
em vossas intenções, havendo-me já conhecido por mulher e vendo-me
moça, só e neste traje, coisas todas juntas, e cada uma por si, que
podem jogar por terra qualquer honesto crédito, vos haverei de dizer
o que quisera calar, se pudesse.
Tudo isto disse sem parar a que tão formosa mulher parecia, com
tão solta língua, com voz tão suave, que não menos lhes admirou sua
discrição que sua formosura. E tornando-lhe a fazer novos
oferecimentos e novos rogos para que o prometido cumprisse, ela, sem
fazer-se mais rogar, calçando-se com toda honestidade e recolhendo
seus cabelos, se acomodou no assento de uma pedra, e, postos os três
ao redor dela, fazendo força por deter algumas lágrimas que aos olhos
lhe vinham, com voz repousada e clara, começou a história de sua vida
desta maneira:
- Nesta Andaluzia há um lugar de quem toma título um duque, que
lhe faz um dos que chamam “grandes” em Espanha; este tem dois
filhos: o maior, herdeiro de suas posses, e, ao parecer, de seus bons
costumes; e o menor, não sei eu de que seja herdeiro, senão das
traições de Vellido e dos embustes de Galalão. Deste senhor são
vassalos meus pais, humildes em linhagem, mas tão ricos que se os
bens de sua natureza igualassem aos de sua fortuna, neles teriam mais
que desejar nem eu temeria ver-me na desdita em que me vejo; porque
quiçá nasce minha pouca ventura da que não tiveram eles em não haver
nascido ilustres. Bem é verdade que não são tão baixos que possam
afrontar-se de seus bens, nem tão altos que a mim me tirem
o pensamento que tenho de que de sua humildade vem minha desgraça.
Eles, enfim, são lavradores, gente lhana, sem mescla de alguma raça
inconveniente, e, como costuma dizer-se, cristãos velhos antigos; mas
tão ricos que sua riqueza e magnífico trato lhes vai pouco a pouco
adquirindo nome de fidalgos, e ainda de cavaleiros. Posto que da maior
riqueza e nobreza que eles se prezavam era de ter-me a mim por filha,
e assim por não ter outra nem outro que os herdasse como por ser
pais e carinhosos, eu era uma das mais regaladas filhas que pais jamais
regalaram. Era o espelho em que se olhavam, o báculo de sua velhice, e
o sujeito a quem encaminhavam, medindo-os com o céu, todos seus
desejos; dos quais, por ser eles tão bons, os meus não saíam um ponto.
E do mesmo modo que eu era senhora de seus ânimos, assim o era de
seus bens: por mim se recebiam e despediam os criados; a razão e
conta do que se semeava e colhia passava por minha mão; os moinhos
de azeite, os lagares de vinho, o número do gado maior e menor, o das
colmeias. Finalmente, de tudo aquilo que um tão rico lavrador como
meu pai pode ter e tem, tinha eu a conta, e era a mordoma e senhora,
com tanta solicitude minha e com tanto gosto seu, que boamente não
acertarei a encarecê-lo. Os momentos que do dia me ficavam, depois
de haver dado o que convinha aos chefes, a capatazes e a outros
jornaleiros, entretinha-os em exercícios que são às donzelas tão
lícitos como necessários, como são os que oferece a agulha e a
almofadinha, e a roca muitas vezes; e se alguma, por recrear o ânimo,
estes exercícios deixava, acolhia-me ao entretenimento de ler algum
livro devoto, ou de tocar uma harpa, porque a experiência me
mostrava que a música compõe os ânimos descompostos e alivia os
trabalhos que nascem do espírito. Esta, pois, era a vida que eu tinha
em casa de meus pais, a qual, se tão particularmente contei, não foi
por ostentação nem por dar a entender que sou rica, senão porque se
advirta quão sem culpa vim daquele bom estado que disse ao infeliz em
que agora me acho. É, pois, o caso que, passando minha vida em tantas
ocupações e em um encerramento tal que ao de um monastério poderia
comparar-se, sem ser vista, a meu parecer, de outra pessoa alguma
que dos criados de casa, porque os dias que ia à missa era tão de
manhã, e tão acompanhada de minha mãe e de outras criadas, e eu tão
coberta e recatada que apenas viam meus olhos mais terra que aquela
onde punha os pés, e, desse modo, os do amor, ou os da ociosidade, por
melhor dizer, a quem os de lince não podem igualar-se, me viram,
postos na solicitude de dom Fernando, que este é o nome do filho
menor do duque que vos contei.
Não houve bem nomeado a dom Fernando a que o conto contava,
quando a Cardênio se lhe mudou a cor do rosto, e começou a tressuar,
com tão grande alteração que o padre e o barbeiro, que repararam
nele, temeram que lhe vinha aquele acidente de loucura que haviam
ouvido dizer que de quando em quando lhe vinha. Mas Cardênio não fez
outra coisa que tressuar e estar quedo, olhando fixamente a
lavradora, imaginando quem ela era; a qual, sem advertir nas emoções
de Cardênio, prosseguiu sua história, dizendo:
- E não me houveram bem visto quando, segundo ele disse depois,
ficou tão preso de meus amores quanto o deram bem a entender suas
demonstrações. Mas, para dar logo fim ao conto, que não o têm minhas
desditas, quero passar em silêncio as diligências que dom Fernando
fez para declarar-me sua vontade. Subornou toda a gente de minha
casa, deu e ofereceu dádivas e mercês a meus parentes. Os dias eram
todos de festa e de regozijo em minha rua; às noites as músicas não
deixavam ninguém dormir. Os bilhetes que, sem saber como, a minhas
mãos vinham, eram infinitos, cheios de enamoradas razões e
oferecimentos, com menos letras que promessas e juramentos. Todo o
que não só não me abrandava, mas me endurecia de maneira como se
fosse meu mortal inimigo, e que todas as obras que para
reduzir-me à sua vontade fazia, as fizesse para o efeito contrário;
não porque a mim me parecesse mal a gentileza de dom Fernando, nem
que tivesse a demasia suas solicitudes; porque me dava um não sei quê
de contentamento ver-me tão querida e estimada de um tão principal
cavaleiro, e não me pesava ver em seus papéis minhas louvações: que
nisto, por feias que sejamos as mulheres, parece-me que sempre nos
dá gosto o ouvir que nos chamam formosas. Mas a tudo isto se opunha
minha honestidade, e os conselhos contínuos que meus pais me davam,
que já muito ao descoberto sabiam a vontade de dom Fernando,
porque já a ele não se lhe dava nada de que todo o mundo a soubesse.
Diziam-me meus pais que em só minha virtude e bondade deixavam e
depositavam sua honra e fama, e que considerasse a desigualdade que
havia entre mim e dom Fernando, e que por aqui veria que seus
pensamentos (embora ele dissesse outra coisa) mais se encaminhavam
a seu gosto que a meu proveito; e que se eu quisesse pôr de alguma
maneira algum inconveniente para que ele deixasse sua injusta
pretensão, que eles me casariam logo com quem eu mais gostasse:
assim dos mais principais de nosso lugar como de todos os
circunvizinhos, pois tudo se podia esperar de seus muitos bens e de
minha boa fama. Com estes certos prometimentos, e com a verdade
que eles me diziam, fortificava eu minha integridade, e jamais quis
responder a dom Fernando palavra que lhe pudesse mostrar, embora
de muito longe, esperança de alcançar seu desejo. Todos estes
recatos meus, que ele devia ter por desdéns, deveram ser causa de
avivar mais seu lascivo apetite, que este nome quero dar à vontade que
me mostrava; a qual, se ela fosse como devia, não a saberíeis vós
agora, porque haveria faltado motivo de a dizer-vos. Finalmente, dom
Fernando soube que meus pais andavam por prometer-me em
casamento, por tirar-lhe a esperança de possuir-me, ou, ao menos,
porque eu tivesse mais guardas para guardar-me; e esta nova ou
suspeita foi causa para que fizesse o que agora ouvireis. E foi que uma
noite, estando eu em meu aposento com só a companhia de uma
donzela que me servia, tendo bem fechadas as portas, por temor que,
por descuido, minha honestidade se visse em perigo, sem saber nem
imaginar como, em meio destes recatos e prevenções, e na solidão
deste silêncio e clausura, achei-me diante dele, cuja vista me
perturbou de maneira que me tirou a de meus olhos e me emudeceu a
língua; e assim, não fui poderosa de dar vozes, nem ainda ele creio que
me as deixara dar, porque logo se chegou a mim, e, tomando-me entre
seus braços (porque eu, como digo, não tive forças para defender-me,
conforme estava perturbada), começou a dizer-me tais razões, que
não sei como é possível que tenha tanta habilidade a mentira que as
saiba compor de modo que pareçam tão verdadeiras. Fazia o traidor
que suas lágrimas acreditassem suas palavras e os suspiros sua
intenção. Eu, pobrezinha, só entre os meus, mal exercitada em casos
semelhantes, comecei, não sei de que modo, a ter por verdadeiras
tantas falsidades, mas não de sorte que me movessem a compaixão
menos que boa suas lágrimas e suspiros; e assim, passando aquele
sobressalto primeiro, tornei algum tanto a cobrar meus perdidos
sentidos, e com mais ânimo do que pensei que poderia ter, lhe disse:
“Se como estou, senhor, em teus braços, estivesse entre os de um
leão fero e o livrar-me deles me assegurasse com que fizesse, ou
dissesse, coisa que fosse em prejuízo de minha honestidade, assim
seria possível fazê-la ou dizê-la como é possível deixar de haver sido o
que foi. Assim que, se tu tens cingido meu corpo com teus braços, eu
tenho atada minha alma com meus bons desejos, que são tão
diferentes dos teus como o verás se com fazer-me força quiseres
passar adiante neles. Tua vassala sou, mas não tua escrava; nem tem
nem deve ter império a nobreza de teu sangue para desonrar e ter em
pouco a humildade da minha; e tanto me estimo eu, vilã e lavradora,
como tu, senhor e cavaleiro. Comigo não hão de ser de nenhum efeito
tuas forças, nem hão de ter valor tuas riquezas, nem tuas palavras hão
de poder enganar-me, nem teus suspiros e lágrimas enternecer-me.
Se alguma de todas estas coisas que disse visse eu no que meus pais
me deram por esposo, a sua vontade se ajustaria à minha, e minha
vontade da sua não sairia; de modo que, ao ficar com honra, embora
ficasse sem gosto, de bom grado te entregaria o que tu, senhor, agora
com tanta força procuras. Tudo isto disse porque não é pensar que de
mim alcance coisa alguma o que não for meu legítimo esposo.” “Se não
reparas mais que nisso, belíssima Doroteia (que este é o nome desta
desditada)”, - disse o desleal cavaleiro, “aqui te dou a mão para ser
teu, e sejam testemunhos desta verdade os céus, a quem nenhuma
coisa se esconde, e esta imagem de Nossa Senhora que aqui tens”.
Quando Cardênio lhe ouviu dizer que se chamava Doroteia, tornou
de novo a seus sobressaltos e acabou de confirmar por verdadeira sua
primeira opinião; mas não quis interromper o conto, por ver em que
vinha a dar o que ele já quase sabia; só disse:
- Doroteia é teu nome, senhora? Outra ouvi eu dizer do mesmo, que
quiçá corre a par com tuas desditas. Passa adiante, que tempo virá em
que te diga coisas que te espantem no mesmo grau que te lastimem.
Reparou Doroteia nas razões de Cardênio e em seu estranho e
desastrado traje, e rogou-lhe que se alguma coisa de seu caso sabia,
dissesse-a logo; porque se algo lhe havia deixado bom a fortuna, era o
ânimo que tinha para sofrer qualquer desastre que lhe sobreviesse,
segura de que, a seu parecer, nenhum podia acrescentar um ponto ao
que tinha.
- Não hesitaria eu, senhora - respondeu Cardênio, - em dizer-te o
que penso, se fosse verdade o que imagino; e até agora não se deu
ocasião, nem a ti importa nada o sabê-lo.
- Seja o que for - respondeu Doroteia, - o que em meu conto passa
foi que, tomando dom Fernando uma imagem que naquele aposento
estava, a pôs por testemunho de nosso desposório. Com palavras
eficacíssimas e juramentos extraordinários, me deu a palavra de ser
meu marido, posto que, antes que acabasse de dizê-las, disse-lhe que
visse bem o que fazia e que considerasse a ira que seu pai havia de ter
por vê-lo casado com uma vilã vassala sua; que não lhe cegasse minha
formosura, tal qual era, pois não era bastante para achar nela
desculpa de seu erro, e que se algum bem me queria fazer, pelo amor
que me tinha, fosse deixar correr minha sorte ao nível do que minha
qualidade podia, porque nunca os tão desiguais casamentos se gozam
nem duram muito naquele gosto com que começam. Todas estas razões
que aqui disse lhe disse, e outras muitas de que não me lembro, mas
não foram o bastante para que ele deixasse de seguir seu intento, bem
assim como o que não pensa pagar, que, ao fraudar, não repara em
inconvenientes. Eu, então, fiz um breve discurso comigo, e me disse a
mim mesma: “Sim, que não serei eu a primeira que por via de
matrimônio haja subido de humilde a grande estado, nem será dom
Fernando o primeiro a quem formosura, ou cega afeição, que é o mais
certo, haja feito tomar companhia desigual a sua grandeza. Pois se não
faço nem mundo nem uso novo, bem é acudir a esta honra que a sorte
me oferece, posto que neste não dure mais a vontade que me mostra
de quanto dure o cumprimento de seu desejo; que, enfim, para com
Deus serei sua esposa. E se quero com desdéns despedi-lo, em termo
lhe vejo que, não usando o que deve, usará o da força e virei a ficar
desonrada e sem desculpa da culpa que me podia dar o que não souber
quão sem ela vim a este ponto. Porque, que razões serão bastantes
para persuadir a meus pais, e a outros, que este cavaleiro entrou em
meu aposento sem consentimento meu?” Todas estas demandas e
respostas revolvi eu num instante em pensamento; e, sobretudo, me
começaram a forçar e a inclinar-me ao que foi, sem eu pensá-lo, minha
perdição: os juramentos de dom Fernando, os testemunhos que punha,
as lágrimas que derramava, e, finalmente, sua disposição e gentileza,
que, acompanhada com tantas mostras de verdadeiro amor, poderiam
render outro tão livre e recatado coração como o meu. Chamei minha
criada, para que na terra acompanhasse os testemunhos do céu;
tornou dom Fernando a reiterar e confirmar seus juramentos;
acrescentou aos primeiros novos santos por testemunhos; lançou-se
mil futuras maldições, se não cumprisse o que me prometia; voltou a
umedecer seus olhos e a acrescentar seus suspiros; apertou-me mais
entre seus braços, dos quais jamais me havia deixado; e com isto, e
com voltar a sair do aposento minha donzela, eu deixei de sê-lo e ele
acabou de ser traidor e desleal. O dia que sucedeu à noite de minha
desgraça vinha ainda não tão depressa como eu penso que dom
Fernando desejava, porque, depois de cumprido aquilo que o apetite
pede, o maior gosto que pode vir é afastar-se de onde o alcançaram.
Digo isto porque dom Fernando deu pressa por partir de mim, e, por
arte de minha donzela, que era a mesma que ali o havia trazido, antes
que amanhecesse se viu na rua. E ao despedir-se de mim, embora não
com tanto afinco e veemência como quando veio, me disse que
estivesse segura de sua fé e de serem firmes e verdadeiros seus
juramentos; e, para mais confirmação de sua palavra, tirou um rico
anel do dedo e o pôs no meu. Com efeito, ele se foi e eu fiquei nem sei
se triste ou alegre; isto sei bem dizer: que fiquei confusa e pensativa,
e quase fora de mim com o novo acontecimento, e não tive ânimo, ou
não me lembrei, de repreender a minha donzela pela traição cometida
de encerrar dom Fernando em meu mesmo aposento, porque ainda não
me decidia se era bem ou mal o que me havia sucedido. Disse, ao
partir, a dom Fernando que pelo mesmo caminho daquela podia ver-me
outras noites, pois já era sua, até que, quando ele quisesse, aquele
feito se publicasse. Mas não veio outra alguma, se não foi a seguinte,
nem eu pude vê-lo na rua nem na igreja em mais de um mês; em vão me
cansei em solicitá-lo, posto que soube que estava na vila e que os mais
dias ia à caça, exercício de que ele era muito aficionado. Estes dias e
estas horas bem sei eu que para mim foram aziagos e minguadas, e
bem sei que comecei a duvidar neles, e ainda a descrer da fé de dom
Fernando; e sei também que minha donzela ouviu então as palavras que
em repreensão de seu atrevimento antes não havia ouvido; e sei que
me foi forçoso ter conta com minhas lágrimas e com a compostura de
meu rosto, por não dar ocasião a que meus pais me perguntassem por
que andava descontente e me obrigassem a buscar mentiras que dizer-
lhes. Mas tudo isto se acabou num ponto, chegando-se um onde se
atropelaram conveniências e se acabaram os honrados discursos, e
onde se perdeu a paciência e saíram à praça meus secretos
pensamentos. E isto foi porque, dali a poucos dias, se disse no lugar
que em uma cidade ali perto se havia casado dom Fernando com uma
donzela formosíssima em todo extremo, e de muito principais pais,
embora não tão rica que, pela dote, pudesse aspirar a tão nobre
casamento. Disse-se que se chamava Lucinda, com outras coisas que
em seus desposórios sucederam dignas de admiração.
Ouviu Cardênio o nome de Lucinda, e não fez outra coisa que
encolher os ombros, morder os lábios, arquear as sobrancelhas e
deixar dali a pouco cair por seus olhos duas fontes de lágrimas. Mas
não por isto deixou Doroteia de seguir seu conto, dizendo:
- Chegou esta triste nova a meus ouvidos, e, em lugar de gelar-me o
coração em ouvi-la, foi tanta a cólera e raiva que se acendeu nele, que
faltou pouco para não sair pelas ruas dando vozes, publicando a
aleivosia e traição que se me havia feito. Mas acalmou-se esta fúria
por então com pensar de pôr aquela mesma noite em prática o que pus:
que foi pôr-me nesta roupa, que me deu um dos que chamam “zagais”
em casa dos lavradores, que era criado de meu pai, ao que descobri
toda minha desventura, e lhe roguei me acompanhasse até a cidade
onde soube que meu inimigo estava. Ele, depois de haver repreendido
meu atrevimento e criticado minha decisão, vendo-me resolvida em
meu parecer, ofereceu-se a acompanhar-me, como ele disse, até o fim
do mundo. Em seguida encerrei em uma almofada de fino pano um
vestido de mulher, e algumas joias e dinheiros, pelo que podia suceder.
E no silêncio daquela noite, sem dar conta à minha traidora donzela,
saí de minha casa, acompanhada de meu criado e de muitos
pensamentos, e me pus a caminho da cidade a pé, levada em voo do
desejo de chegar, já que não a perturbar o que tinha por feito, ao
menos a dizer a dom Fernando me dissesse com que alma o havia feito.
Cheguei em dois dias e meio onde queria, e, entrando pela cidade,
perguntei pela casa dos pais de Lucinda, e o primeiro a quem fiz a
pergunta me respondeu mais do que eu quisera ouvir. Disse-me a casa
e tudo o que havia sucedido no desposório de sua filha, coisa tão
pública na cidade, que se faziam grupinhos para contá-la por toda ela.
Disse-me que a noite que dom Fernando se desposou com Lucinda,
depois de haver ela dado o sim de ser sua esposa, havia-lhe tomado um
forte desmaio, e que, chegando seu esposo a desapertar-lhe o peito
para que lhe desse ar, achou um papel escrito com a mesma letra de
Lucinda, em que dizia e declarava que ela não podia ser esposa de dom
Fernando, porque o era de Cardênio, que, ao que o homem me disse,
era um cavaleiro muito principal da mesma cidade; e que se havia dado
o sim a dom Fernando, foi por não sair da obediência de seus pais. Em
suma, tais razões disse que continha o papel, que dava a entender que
ela havia tido intenção de matar-se acabando de casar, e dava ali as
razões por que havia tirado a vida. Dizem que tudo isso confirmou uma
adaga que acharam não sei em que parte de suas vestes. Quanto a
dom Fernando, parecendo-lhe que Lucinda o havia burlado e
escarnecido e tido em pouco, arremeteu contra ela, antes que de seu
desmaio voltasse, e com a mesma adaga que acharam a quis apunhalar;
e o faria se seus pais e os que se achavam presentes não o
impedissem. Disseram mais: que logo se ausentou dom Fernando, e que
Lucinda não havia voltado de sua síncope até outro dia, que contou a
seus pais como ela era verdadeira esposa daquele Cardênio que disse.
Soube mais: que Cardênio, segundo diziam, se achou presente nos
desposórios, e que, vendo-a desposada, o qual ele jamais pensou, saiu
da cidade desesperado, deixando-lhe antes escrita uma carta, onde
dava a entender o agravo que Lucinda lhe havia feito, e de como ele ia
onde gentes não o vissem. Isto tudo era público e notório em toda a
cidade, e todos falavam disso; e mais falaram quando souberam que
Lucinda havia faltado de casa de seus pais e da cidade, pois não a
acharam em toda ela, de que perdiam o juízo seus pais e não sabiam
que meio tomar para achá-la. Isto que soube fortaleceu minhas
esperanças, e tive por melhor não haver achado a dom Fernando, que
não achá-lo casado, parecendo-me que ainda não estava de todo
fechada a porta a meu remédio, dando-me eu a entender que poderia
ser que o céu houvesse posto aquele impedimento no segundo
matrimônio, por fazê-lo conhecer o que ao primeiro devia, e a cair na
conta de que era cristão e que estava mais obrigado à sua alma que
aos respeitos humanos. Todas estas coisas revolvia em minha fantasia,
e me consolava sem ter consolo, fingindo umas esperanças largas e
desmaiadas, para entreter a vida, que já aborreço. Estando, pois, na
cidade, sem saber que fazer, pois a dom Fernando não achava, chegou
a meus ouvidos um público pregão, onde se prometia grande
recompensa a quem me achasse, dando as sinais da idade e do mesmo
traje que trazia; e ouvi dizer que se dizia que me havia tirado de casa
de meus pais o moço que comigo veio, coisa que me chegou à alma, por
ver quão decaído andava meu crédito, pois não bastava perdê-lo com
minha vinda, senão juntá-lo com quem fosse sujeito tão baixo e tão
indigno de meus bons pensamentos. Quando ouvi o pregão, saí da
cidade com meu criado, que já começava a dar mostras de titubear na
promessa que de fidelidade me tinha prometida, e aquela noite
entramos pelo espesso desta montanha, com o medo de não ser
achados. Mas, como costuma dizer-se que um mal chama outro, e que o
fim de uma desgraça costuma ser princípio de outra maior, assim me
sucedeu a mim, porque meu bom criado, até então fiel e seguro, assim
que me viu nesta solidão, incitado de sua mesma velhacaria antes que
de minha formosura, quis aproveitar-se da ocasião que, a seu parecer,
estes ermos lhe ofereciam; e, com pouca vergonha e menos
temor de Deus nem respeito meu, me requereu amores; e, vendo que
eu com feias e justas palavras respondia às desvergonhas de seus
propósitos, deixou de lado os rogos, de quem primeiro pensou
aproveitar-se, e começou a usar da força. Mas o justo céu, que poucas
ou nenhumas vezes deixa de olhar e favorecer às justas intenções,
favoreceu as minhas, de maneira que com minhas poucas forças, e com
pouco trabalho, dei com ele por um despenhadeiro, onde o deixei, nem
sei se morto ou se vivo; e logo, com mais ligeireza que meu sobressalto
e cansaço pediam, entrei por estas montanhas, sem levar outro
pensamento nem outro desígnio que esconder-me nelas e fugir de meu
pai e daqueles que de sua parte me andavam buscando. Com este
desejo, há não sei quantos meses que entrei nelas, onde achei um
vaqueiro que me levou como seu criado a um lugar que está nas
entranhas desta serra, ao que servi de zagal todo este tempo,
procurando estar sempre no campo por cobrir estes cabelos que agora
tão sem pensar se descobriram. Mas toda minha arte e toda minha
solicitude foi e tem sido de nenhum proveito, pois meu amo teve
conhecimento de que eu não era varão, e nasceu nele o mesmo mau
pensamento que em meu criado; e, como não sempre a fortuna com os
trabalhos dá os remédios, não achei despenhadeiro nem barranco de
onde despenhar e despenar o amo, como o achei para o criado; e assim,
tive por menor inconveniente deixá-lo e esconder-me de novo entre
estas asperezas que provar com ele minhas forças ou minhas
desculpas. Digo, pois, que me tornei a emboscar, e a buscar onde sem
impedimento algum pudesse com suspiros e lágrimas rogar ao céu se
doa de minha desventura e me dê inteligência e favor para sair dela,
ou para deixar a vida entre estas solidões, sem que fique memória
desta triste, que tão sem culpa sua haverá dado matéria para que dela
se fale e murmure na sua e nas alheias terras.

CAPÍTULO XXIX

Que trata da discrição da formosa Doroteia, com outras coisas de


muito gosto e passatempo

- Esta é, senhores, a verdadeira história de minha tragédia: vede e


julgai agora se os suspiros que escutastes, as palavras que ouvistes e
as lágrimas que de meus olhos saíam tinham motivo bastante para
mostrar-se em maior abundância; e, considerada a qualidade de minha
desgraça, vereis que será em vão o consolo, pois é impossível o
remédio dela. Só vos rogo, o que com facilidade podereis e deveis
fazer, que me aconselheis onde poderei passar a vida sem que me
acabe o temor e sobressalto que tenho de ser achada pelos que me
buscam; que, embora saiba que o muito amor que meus pais me têm me
assegura que serei deles bem recebida, é tanta a vergonha que me
ocupa só o pensar que, não como eles pensavam, tenho de aparecer em
sua presença, que tenho por melhor desterrar-me para sempre de ser
vista que não ver-lhes o rosto, com pensamento que eles olhem o meu
alheio da honestidade que de mim se deviam ter prometida.
Calou dizendo isto, e o rosto se lhe cobriu de uma cor que mostrou
bem claro o sentimento e vergonha da alma. Nas suas sentiram os que
escutavam tanta lástima como admiração de sua desgraça; e, embora
logo quisesse o padre consolá-la e aconselhá-la, tomou primeiro a mão
Cardênio, dizendo:
- Enfim, senhora, tu és a formosa Doroteia, a filha única do rico
Clenardo.
Admirada ficou Doroteia quando ouviu o nome de seu pai, e de ver
quão de pouca condição era o que o nomeava, porque já se disse da má
maneira que Cardênio estava vestido; e assim, disse-lhe:
- E quem sois vós, irmão, que assim sabeis o nome de meu pai?
Porque eu, até agora, se mal não me lembro, em todo o decorrer do
conto de minha desdita não o nomeei.
- Sou - respondeu Cardênio - aquele sem ventura que, segundo vós,
senhora, dissestes, Lucinda disse que era sua esposa. Sou o desditado
Cardênio, a quem o mau fim daquele que a vós vos pôs no que estais me
trouxe a que me vejais qual me veis: roto, desnudo, falto de todo
humano consolo e, o que é pior de tudo, falto de juízo, pois não o tenho
senão quando o céu se permite dar-mo por algum breve espaço. Eu,
Doroteia, sou o que me achei presente às sem-razões de dom
Fernando, e o que aguardou ouvir o sim que de ser sua esposa
pronunciou Lucinda. Eu sou o que não teve ânimo para ver em que dava
seu desmaio, nem o que resultava do papel que lhe foi achado no peito,
porque não teve a alma coragem para ver tantas desventuras juntas; e
assim, deixei a casa e a paciência, e uma carta que deixei a um
anfitrião meu, a quem roguei que em mãos de Lucinda a pusesse, e vim
a estas solidões, com intenção de acabar nelas a vida, que desde
aquele ponto aborreci como mortal inimiga minha. Mas não a quis a
sorte tirá-la, contentando-se com tirar-me o juízo, quiçá por guardar-
me para a boa ventura que tive em achar-vos; pois, sendo verdade,
como creio que o é, o que aqui contastes, ainda poderia ser que a
ambos nos tivesse o céu guardado melhor sucesso em nossos
desastres que nós pensamos. Porque, posto que Lucinda não pode
casar-se com dom Fernando, por ser minha, nem dom Fernando com
ela, por ser vosso, e havê-lo ela tão manifestamente declarado, bem
podemos esperar que o céu nos restitua o que é nosso, pois é ainda
possível, e não se há alheado nem desfeito. E pois este consolo temos,
nascido não de muito remota esperança, nem fundado em desvairadas
imaginações, suplico-vos, senhora, que tomeis outra resolução em
vossos honrados pensamentos, pois eu a penso tomar nos meus,
acomodando-vos a esperar melhor fortuna; que eu vos juro, pela fé de
cavaleiro e de cristão, de não desamparar-vos até ver-vos em poder
de dom Fernando, e que, quando com razões não o puder atrair a que
conheça o que vos deve, de usar então a liberdade que me concede o
ser cavaleiro, e poder com justo título desafiá-lo, em razão da sem-
razão que vos faz, sem recordar-me de meus agravos, cuja vingança
deixarei ao céu acudir na terra aos vossos.
Com o que Cardênio disse, acabou de admirar-se Doroteia, e, por
não saber que graças voltar a tão grandes oferecimentos, quis tomar-
lhe os pés para beijá-los; mas não o consentiu Cardênio, e o licenciado
respondeu por ambos, e aprovou o bom discurso de Cardênio, e,
sobretudo, lhes rogou, aconselhou e persuadiu que fossem com ele a
sua aldeia, onde se poderiam reparar das coisas que lhes faltavam, e
que ali se daria ordem de buscar dom Fernando, ou como levar
Doroteia a seus pais, ou fazer o que mais lhes parecesse conveniente.
Cardênio e Doroteia lhe agradeceram, e aceitaram a mercê que se lhes
oferecia. O barbeiro, que a tudo havia estado suspenso e calado, fez
também sua boa conversa e se ofereceu com não menos vontade que o
padre a tudo aquilo que fosse bom para servi-los.
Contou também com brevidade a causa que ali os havia trazido, com
a estranheza da loucura de dom Quixote, e como aguardavam seu
escudeiro, que havia ido procurá-lo. Veio à memória a Cardênio, como
por sonhos, a pendência que com dom Quixote havia tido e contou-a
aos demais, mas não soube dizer por que causa foi sua questão.
Nisto, ouviram vozes, e perceberam que o que as dava era Sancho
Pança, que, por não havê-los achado no lugar onde os deixou, os
chamava aos gritos. Saíram-lhe ao encontro, e, perguntando-lhe por
dom Quixote, lhes disse como o havia achado desnudo em camisa,
magro, amarelo e morto de fome, e suspirando por sua senhora
Dulcineia; e que, posto que lhe havia dito que ela mandava que saísse
daquele lugar e fosse ao Toboso, onde o ficava esperando, havia
respondido que estava determinado de não aparecer ante sua
formosura até que houvesse feito façanhas que o fizessem digno de
sua graça. E que se aquilo passava adiante, corria perigo de não vir a
ser imperador, como estava obrigado, nem ainda arcebispo, que era o
menos que podia ser. Por isso, que vissem o que se havia de fazer para
tirá-lo dali.
O licenciado lhe respondeu que não se preocupasse, que eles o
tirariam dali, mal que lhe pesasse. Contou logo a Cardênio e a Doroteia
o que tinham pensado para remédio de dom Quixote, ao menos para
levá-lo a sua casa. A que disse Doroteia que ela faria a donzela
necessitada melhor que o barbeiro, e mais, que tinha ali vestidos com
que fazê-lo ao natural, e que lhe deixassem o encargo de saber
representar tudo aquilo que fosse mister para levar adiante seu
intento, porque ela havia lido muitos livros de cavalarias e sabia bem o
estilo que tinham as donzelas coitadas quando pediam seus dons aos
andantes cavaleiros.
- Pois não é preciso mais - disse o padre - senão que logo se ponha
em prática; que, sem dúvida, a boa sorte se mostra em favor nosso,
pois, tão sem pensá-lo, a vós, senhores, se começou a abrir a porta
para vosso remédio e a nós se nos facilitou a que precisávamos.
Tirou logo Doroteia de sua almofada uma veste inteira de certa
lãzinha rica e uma mantilha de outro vistoso pano verde, e de uma
caixinha um colar e outras joias, com que num instante se adornou de
maneira que uma rica e grande senhora parecia. Todo aquilo, e mais,
disse que havia tirado de sua casa para o que se oferecesse, e que até
então não se lhe havia oferecido ocasião de havê-lo mister. A todos
contentou em extremo sua muita graça, donaire e formosura, e
confirmaram dom Fernando por de pouco conhecimento, pois tanta
beleza descartava.
Mas o que mais se admirou foi Sancho Pança, por parecer-lhe - como
era assim verdade - que em todos os dias de sua vida não havia visto
tão formosa criatura; e assim, pediu ao padre com grande afinco que
lhe dissesse quem era aquela tão formosa senhora, e que era o que
buscava por aqueles ermos.
- Esta formosa senhora - respondeu o padre, - Sancho irmão, é,
como quem não diz nada, é a herdeira por linha reta de varão do
grande reino de Micomicão, a qual vem em busca de vosso amo a pedir-
lhe um dom, o qual é que lhe desfaça um torto ou agravo que um mau
gigante lhe fez; e, à fama que de bom cavaleiro vosso amo tem por
toda a face da terra, de Guiné veio buscá-lo esta princesa.
- Ditosa busca e ditosa recompensa - disse então Sancho Pança, - e
mais se meu amo é tão venturoso que desfaça esse agravo e repare
esse torto, matando a esse fidaputa desse gigante que vossa mercê
diz; que sim matará se ele o encontra, se já não for fantasma, que
contra os fantasmas não tem meu senhor poder algum. Mas uma coisa
quero suplicar a vossa mercê, entre outras, senhor licenciado, e é que,
porque a meu amo não lhe dê vontade de ser arcebispo, que é o que eu
temo, que vossa mercê o aconselhe que se case logo com esta princesa,
e assim ficará impossibilitado de receber ordens arcebispais e virá
com facilidade a seu império e eu ao fim de meus desejos; que eu
examinei bem isso e acho por minha conta que não me está bem que
meu amo seja arcebispo, porque eu sou inútil para a Igreja, pois sou
casado, e andar agora a trazer dispensações para poder ter renda
pela Igreja, tendo, como tenho, mulher e filhos, seria nunca acabar.
Assim que, senhor, todo o caso está em que meu amo se case logo com
esta senhora, que até agora não sei sua graça, e assim, não a chamo
por seu nome.
- Chama-se - respondeu o padre - a princesa Micomicona, porque,
chamando-se seu reino Micomicão, claro está que ela se há de chamar
assim.
- Não há dúvida nisso - respondeu Sancho, - que eu vi a muitos
tomar o apelido e estirpe do lugar onde nasceram, chamando-se Pedro
de Alcalá, Juan de Úbeda e Diego de Valladolid; e isto mesmo se deve
usar lá em Guiné: tomar as rainhas os nomes de seus reinos.
- Assim deve ser - disse o padre; - e no do casar-se vosso amo, eu
farei nisso todos meus esforços.
Com o que ficou tão contente Sancho quanto o padre admirado de
sua
simploriedade, e de ver quão encaixados tinha na fantasia os mesmos
disparates que seu amo, pois sem alguma dúvida se dava a entender
que havia de vir a ser imperador.
Já, nisto, se havia posto Doroteia sobre a mula do padre e o
barbeiro havia acomodado ao rosto a barba do rabo de boi, e disseram
a Sancho que os guiasse onde dom Quixote estava (ao que advirtiram
que não dissesse que conhecia ao licenciado nem ao barbeiro, porque
em não conhecê-los consistia todo o caso de vir a ser imperador seu
amo), posto que nem o padre nem Cardênio quiseram ir com eles,
porque não se recordasse dom Quixote a pendência que com Cardênio
havia tido, e o padre porque não era mister por então sua presença, e,
assim, os deixaram ir adiante, e eles os foram seguindo a pé, pouco a
pouco. Não deixou de avisar o padre o que havia de fazer Doroteia; ao
que ela disse que descuidassem, que tudo faria, sem faltar nada, como
o pediam e pintavam os livros de cavalarias.
Três quartos de légua haveriam andado, quando descobriram dom
Quixote entre umas intrincadas penhas, já vestido, embora não
armado; e, assim que Doroteia o viu e foi informada de Sancho que
aquele era dom Quixote, açoitou seu palafrém, seguindo-a o bem
barbado barbeiro. E chegando junto a ele, o escudeiro se arrojou da
mula e foi tomar nos braços a Doroteia, a qual, apeando-se com grande
desenvoltura, foi ficar de joelhos ante os de dom Quixote; e, embora
ele pugnasse por levantá-la, ela, sem levantar-se, falou-lhe deste
modo:
- Daqui não me levantarei, oh valoroso e esforçado cavaleiro!, até
que a vossa bondade e cortesia me outorgue um dom, o qual redundará
em honra e apreço de vossa pessoa, e em prol da mais desconsolada e
agravada donzela que o sol tenha visto. E se é que o valor de vosso
forte braço corresponde à voz de vossa imortal fama, obrigado estais
a favorecer à sem ventura que de tão longes terras vem, ao cheiro de
vosso famoso nome, buscando-vos para remédio de suas desditas.
- Não vos responderei palavra, formosa senhora - respondeu dom
Quixote, - nem ouvirei mais coisa de vosso assunto, até que vos
levanteis.
- Não me levantarei, senhor - respondeu a afligida donzela, - se
primeiro, pela vossa cortesia, não me é outorgado o dom que peço.
- Eu vos o outorgo e concedo - respondeu dom Quixote, - se não se
haja de cumprir em dano ou míngua de meu rei, de minha pátria e
daquela que de meu coração e liberdade tem a chave.
- Não será em dano nem em míngua dos que dizeis, meu bom senhor
- replicou a dolorosa donzela.
E estando nisto, chegou Sancho Pança ao ouvido de seu senhor e em
voz muito baixa lhe disse:
- Bem pode vossa mercê, senhor, conceder-lhe o dom que pede, que
não é coisa de nada: só é matar um gigantaço, e esta que o pede é a
alta princesa Micomicona, rainha do grande reino Micomicão de
Etiópia.
- Seja quem for - respondeu dom Quixote, - que eu farei o que sou
obrigado e o que me dita minha consciência, conforme ao que
professado tenho.
E voltando-se à donzela, disse:
- A vossa grande formosura se levante, que eu lhe outorgo o dom
que pedir-me quiser.
- Pois o que peço é - disse a donzela - que a vossa magnânima pessoa
venha logo comigo onde eu a levar, e me prometa que não se há de
intrometer em outra aventura nem demanda alguma até dar-me
vingança de um traidor que, contra todo direito divino e humano, tem
usurpado meu reino.
- Digo que assim o outorgo - respondeu dom Quixote, - e assim
podeis, senhora, desde hoje mais, descartar a melancolia que vos
fatiga e fazer que cobre novos brios e forças vossa desmaiada
esperança; que, com o ajuda de Deus e a de meu braço, vós vos vereis
logo restituída em vosso reino e sentada na cadeira de vosso antigo e
grande estado, apesar e a despeito dos baderneiros que contradizê-lo
quiserem. E mãos à obra, que na tardança dizem que costuma estar o
perigo.
A necessitada donzela pugnou, com muita porfia, por beijar-lhe as
mãos, mas dom Quixote, que em tudo era comedido e cortês cavaleiro,
jamais o consentiu; antes, a fez levantar e a abraçou com muita
cortesia e comedimento, e mandou a Sancho que examinasse as cilhas
a Rocinante e o armasse logo. Sancho despendurou as armas, que,
como troféu, de uma árvore estavam pendentes, e, examinando as
cilhas, num instante armou o seu senhor; o qual, vendo-se armado,
disse:
- Vamos daqui, em nome de Deus, favorecer esta grande senhora.
Estava o barbeiro ainda de joelhos, fazendo grande conta de
dissimular o riso e de que não lhe caísse a barba, com cuja caída quiçá
ficassem todos sem conseguir sua boa intenção; e, vendo que já o dom
estava concedido e com a diligência que dom Quixote se apressava
para ir cumpri-lo, se levantou e tomou da outra mão a sua senhora, e
os dois a subiram na mula. Logo subiu dom Quixote sobre Rocinante, e
o barbeiro se acomodou em sua cavalgadura, ficando Sancho a pé,
onde de novo se lhe renovou a perda do ruço, com a falta que então lhe
fazia; mas tudo o levava com gosto, por parecer-lhe que já seu senhor
estava posto a caminho, e muito a pique, de ser imperador; porque sem
dúvida alguma pensava que se havia de casar com aquela princesa, e
ser, pelo menos, rei de Micomicão. Só lhe dava pesar o pensar que
aquele reino era em terra de negros, e que a gente que por seus
vassalos lhe dessem haviam de ser todos negros; ao que fez logo em
sua imaginação um bom remédio, e disse a si mesmo:
- Que se me dá que meus vassalos sejam negros? Haverá mais que
carregar com eles e trazê-los à Espanha, onde os poderei vender, e
onde me os pagarão de contado, de cujo dinheiro poderei comprar
algum título ou algum cargo oficial com que viver descansado todos os
dias de minha vida? Não, não hei de dormir, e não tenhais engenho nem
habilidade para dispor das coisas e para vender trinta ou dez mil
vassalos em dá cá essas palhas! Par Deus que os farei voar, pequeno
com grande, ou como puder, e que, por negros que sejam, os hei de
tornar brancos ou amarelos. Confiai em mim, que sou tonto!
Com isto, andava tão solícito e tão contente que se lhe olvidava o
pesar de caminhar a pé.
Tudo isto olhavam de entre umas brenhas Cardênio e o padre, e não
sabiam que fazer para juntar-se com eles; mas o padre, que era
grande tracista, imaginou logo o que fariam para conseguir o que
desejavam; e foi que com umas tesouras que trazia num estojo tirou
com muita presteza a barba a Cardênio, e vestiu-lhe um capotinho
pardo que ele trazia e deu-lhe um capa curta negra, e ele ficou de
calças e gibão; e ficou tão outro do que antes parecia Cardênio, que
ele mesmo não se conheceria, embora a um espelho se olhasse. Feito
isto, posto já que os outros haviam passado adiante enquanto eles se
disfarçaram, com facilidade saíram ao caminho real antes que eles,
porque as matas e maus passos daqueles lugares não concediam que
andassem tanto os a cavalo como os de a pé. Com efeito, eles se
puseram no plano, à saída da serra, e, assim que saíram dela dom
Quixote e seus camaradas, o padre se pôs a olhá-lo muito bem, dando
sinais de que o ia reconhecendo; e, ao cabo de haver-lhe um bom
tempo estado olhando, se foi a ele abertos os braços e dizendo alto:
- Para bem seja achado o espelho da cavalaria, o meu bom
compatriota dom Quixote da Mancha, a flor e a nata da gentileza, o
amparo e remédio dos necessitados, a quintessência dos cavaleiros
andantes.
E dizendo isto, tinha abraçado pelo joelho da perna esquerda a
Dom Quixote; o qual, espantado do que via e ouvia dizer e fazer aquele
homem, se pôs a olhá-lo com atenção, e, ao fim, reconheceu-o e ficou
como espantado de vê-lo, e fez grande força por apear-se; mas o
padre não o consentiu, pelo qual dom Quixote dizia:
- Deixe-me vossa mercê, senhor licenciado, que não é razão que eu
esteja a cavalo, e uma tão reverenda pessoa como vossa mercê esteja
a pé.
- Isso não consentirei eu em nenhum modo - disse o padre: - esteja-
se a vossa grandeza a cavalo, pois estando a cavalo leva a cabo as
maiores façanhas e aventuras que em nossa idade se viram; que a mim,
embora indigno sacerdote, bastar-me-ia subir nas ancas de uma
destas mulas destes senhores que com vossa mercê caminham, se não
se zangam. E ainda farei de conta que vou a cavaleiro sobre o cavalo
Pégaso, ou sobre a zebra ou corcel em que cavalgava aquele famoso
mouro Muzaraque, que ainda até agora jaz encantado na grande costa
Zulema, que dista pouco da grande Compluto.
- Nisso não havia pensado, meu senhor licenciado - respondeu dom
Quixote; - e eu sei que minha senhora a princesa será servida, por
meu amor, de mandar a seu escudeiro dê a vossa mercê a sela de sua
mula; que ele poderá acomodar-se nas ancas, se é que ela as suporta.
- Suporta sim, ao que eu creio - respondeu a princesa; - e também
sei que não será mister mandá-lo ao senhor meu escudeiro, que ele é
tão cortês e tão cortesão que não consentirá que uma pessoa
eclesiástica vá a pé, podendo ir a cavalo.
- Assim é - respondeu o barbeiro.
E apeando-se num instante, ofereceu a sela ao padre, e ele a tomou
sem fazer-se muito de rogar. E foi o mal que ao subir às ancas o
barbeiro, a mula, que, com efeito, era de aluguel, que para dizer que
era má isto basta, alçou um pouco os quartos traseiros e deu dois
coices no ar, que, a dá-los no peito de mestre Nicolás, ou na cabeça,
ele dera ao diabo a vinda para buscar dom Quixote. Desse modo,
sobressaltaram-no de maneira que caiu no chão, com tão pouco cuidado
das barbas, que lhe caíram no chão; e, como se viu sem elas, não teve
outro remédio senão acudir a cobrir o rosto com ambas as mãos e a
queixar-se que lhe haviam derrubado os dentes. Dom Quixote, quando
viu toda aquela mata de pelo de barbas, sem queixadas e sem sangue,
longe do rosto do escudeiro caído, disse:
- Vive Deus, que é grande milagre este! As barbas derrubou e
arrancou do rosto, como se as tirassem de propósito!
O padre, que viu o perigo que corria sua invenção de ser
descoberta, acudiu logo às barbas e foi com elas onde jazia mestre
Nicolás, dando ainda vozes, e de um golpe, chegando-lhe a cabeça a
seu peito, as pôs, murmurando sobre ele umas palavras, que disse que
era certa benzedura apropriada para nascerem barbas, como o veriam;
e, quando as colocou, afastou-se, e ficou o escudeiro tão bem barbado
e tão são como antes, de que se admirou dom Quixote sobremaneira, e
rogou ao padre que quando tivesse lugar lhe ensinasse aquela
benzedura; que ele entendia que sua virtude a mais que nascerem
barbas se devia estender, pois estava claro que de onde as barbas se
tirassem havia de ficar a carne chagada e maltratada, e que, pois tudo
o curava, a mais que barbas aproveitava.
- Assim é - disse o padre, e prometeu ensiná-la na primeira ocasião.
Combinaram que por então subisse o padre, e a trechos fossem os
três mudando, até que chegassem à estalagem, que estaria até duas
léguas dali. Postos os três a cavalo, a saber, dom Quixote, a princesa e
o padre, e os três a pé, Cardênio, o barbeiro e Sancho Pança, dom
Quixote disse à donzela:
- Vossa grandeza, senhora minha, guie por onde mais gosto lhe der.
E antes que ela respondesse, disse o licenciado:
- Até que reino quer guiar vossa senhoria? É, porventura, até o de
Micomicão? Que sim deve ser, ou eu sei pouco de reinos.
Ela, que estava a par de tudo, entendeu que havia de responder que
sim; e assim, disse:
- Sim, senhor, até esse reino é meu caminho.
- Se assim é - disse o padre, - pelo meu povoado havemos de passar,
e dali tomará vossa mercê a rota de Cartagena, onde se poderá
embarcar com a boa ventura; e se há vento próspero, mar tranquilo e
sem borrasca, em pouco menos de nove anos poderá estar à vista da
grande lagoa Mijona, digo, Meótides, que está pouco mais de cem
jornadas mais aqui do reino de vossa grandeza.
- Vossa mercê está enganado, senhor meu - disse ela, - porque não
há dois anos que eu parti dele, e em verdade que nunca tive bom
tempo, e, desse modo, cheguei a ver o que tanto desejava, que é o
senhor dom Quixote da Mancha, cujas novas chegaram a meus ouvidos
assim que pus os pés na Espanha, e elas me moveram a buscá-lo, para
encomendar-me em sua cortesia e confiar minha justiça ao valor de
seu invencível braço.
- Não mais: cessem minhas louvações - disse então dom Quixote, -
porque sou inimigo de todo gênero de adulação; e, embora esta não o
seja, todavia ofendem minhas castas orelhas semelhantes conversas.
O que eu sei dizer, senhora minha, que ora tenha valor ou não, o que
tiver ou não tiver se há de empregar em vosso serviço até perder a
vida; e assim, deixando isto para seu tempo, rogo ao senhor licenciado
me diga que é a causa que o trouxe por estas partes, tão só, e tão sem
criados, e tão à ligeira, que me põe espanto.
- A isso eu responderei com brevidade - respondeu o padre, -
porque saberá vossa mercê, senhor dom Quixote, que eu e mestre
Nicolás, nosso amigo e nosso barbeiro, íamos a Sevilha cobrar certo
dinheiro que um parente meu que há muitos anos que passou às Índias
me havia enviado, e não tão poucos que não passam de sessenta mil
pesos de prata, que cada qual vale por dois; e, passando ontem por
estes lugares, nos saíram ao encontro quatro salteadores e nos
tiraram até as barbas; e como no-las tiraram, conveio ao barbeiro pô-
las postiças; e ainda a este mancebo que aqui vai - indicando Cardênio -
puseram-no como novo. E é o bom que é pública fama por todos estes
contornos que os que nos assaltaram são parte de uns galeotes que
dizem que libertou, quase neste mesmo sítio, um homem tão valente
que, apesar do comissário e das guardas, os soltou a todos; e, sem
dúvida alguma, ele devia estar fora de juízo, ou deve ser tão grande
velhaco como eles, ou algum homem sem alma e sem consciência, pois
quis soltar o lobo entre as ovelhas, a raposa entre as galinhas, a mosca
entre o mel; quis defraudar a justiça, ir contra seu rei e senhor
natural, pois foi contra seus justos mandamentos. Quis, digo, tirar às
galeras seus remos, pôr em alvoroço a Santa Irmandade, que havia
muitos anos que repousava; quis, finalmente, fazer um feito por onde
se perca sua alma e não se ganhe seu corpo.
Havia contado Sancho ao padre e ao barbeiro a aventura dos
galeotes, que acabou seu amo com tanta glória sua, e por isto
carregava nas tintas o padre referindo-a, por ver o que fazia ou dizia
dom Quixote; ao que se lhe mudava a cor a cada palavra, e não ousava
dizer que ele havia sido o libertador daquela boa gente.
- Estes, pois - disse o padre, - foram os que nos roubaram; que
Deus, por sua misericórdia, perdoe ao que não os deixou levar ao
devido suplício.

CAPÍTULO XXX

Que trata do gracioso artifício e arranjo que se inventaram para


tirar nosso enamorado cavaleiro da asperíssima penitência em que se
pôs

Não houve bem acabado o padre, quando Sancho disse:


- Pois, por minha fé, senhor licenciado, quem fez essa façanha foi
meu amo, e não porque eu não lhe disse antes e o avisei que visse o que
fazia, e que era pecado dar-lhes liberdade, porque todos iam ali por
grandíssimos velhacos.
- Tolo! - disse então dom Quixote, - aos cavaleiros andantes não
lhes toca nem concerne averiguar se os aflitos, acorrentados e
opressos que encontram pelos caminhos vão daquela maneira, ou estão
naquela angústia, por suas culpas ou por suas graças; só lhes toca
ajudá-los como a necessitados, pondo os olhos em suas penas e não em
suas velhacarias. Eu topei um rosário de gente mofina e desditada, e
fiz com eles o que minha religião me pede, e o demais não me importa;
e a quem mal lhe pareceu, salvo a santa dignidade do senhor licenciado
e sua honrada pessoa, digo que sabe pouco de ofício de cavalaria, e que
mente como um fidaputa e mal nascido; e isto o farei conhecer com
minha espada, onde mais largamente conste.
E isto disse afirmando-se nos estribos e calando o morrião; porque
a bacia de barbeiro, que à sua conta era o elmo de Mambrino, levava
pendurada do arção dianteiro, até refazê-la do mau tratamento que
lhe fizeram os galeotes.
Doroteia, que era discreta e de grande donaire, como quem já
conhecia o irascível humor de dom Quixote e que todos faziam burla
dele, senão Sancho Pança, não quis ser para menos, e, vendo-o tão
irado, disse-lhe:
- Senhor cavaleiro, lembre-se à vossa mercê o dom que me tem
prometido, e que, conforme a ele, não pode intrometer-se em outra
aventura, por urgente que seja; sossegue vossa mercê o peito, que se
o senhor licenciado soubesse que por esse invicto braço haviam sido
liberados os galeotes, ele se daria três pontos na boca, e ainda se
morderia três vezes a língua, antes de haver dito palavra que em
desprezo de vossa mercê redundasse.
- Isso juro eu bem - disse o padre, - e ainda me teria tirado um
bigode.
- Eu calarei, senhora minha - disse dom Quixote, - e reprimirei a
justa cólera que já em meu peito se havia levantado, e irei quieto e
pacífico até que vos cumpra o dom prometido; mas, em paga deste bom
desejo, vos suplico me digais, se não vos faça mal, qual é a vossa coita
e quantas, quem e quais são as pessoas de quem vos tenho de dar
devida, suficiente e inteira vingança.
- Isso farei eu de vontade - respondeu Doroteia, - se é que não vos
enfada ouvir lástimas e desgraças.
- Não enfadará, senhora minha - respondeu dom Quixote.
Ao que respondeu Doroteia:
- Pois assim é, estejam-me vossas mercês atentos.
Não houve ela dito isto, quando Cardênio e o barbeiro se lhe
puseram ao lado, desejosos de ver como fingia sua história a discreta
Doroteia; e o mesmo fez Sancho, que tão enganado ia com ela como
seu amo. E ela, depois de haver-se posto bem na sela e se prevenido
em tossir e fazer outros ademanes, com muito donaire, começou a
dizer desta maneira:
- Primeiramente, quero que vossas mercês saibam, senhores meus,
que a mim me chamam...
E deteve-se aqui um pouco, porque se lhe olvidou o nome que o padre
lhe havia posto; mas ele acudiu ao remédio, porque entendeu o que se
passava, e disse:
- Não é maravilha, senhora minha, que a vossa grandeza se perturbe
e hesite contando suas desventuras, que elas costumam ser tais, que
muitas vezes tiram a memória aos que maltratam, de tal maneira que
ainda de seus mesmos nomes não se lhes recorda, como fizeram com
vossa grande senhoria, que se há olvidado que se chama a princesa
Micomicona, legítima herdeira do grande reino Micomicão; e com este
apontamento possa vossa grandeza fazer voltar agora facilmente à
sua lastimada memória tudo aquilo que contar quiser.
- Assim é a verdade - respondeu a donzela, - e daqui em diante creio
que não será mister apontar-me nada, que eu sairei a bom porto com
minha verdadeira história. A qual é que o rei meu pai, que se chama
Tinácrio o Sabedor, foi muito douto nisto que chamam a arte mágica, e
averiguou por sua ciência que minha mãe, que se chamava a rainha
Jaramilla, havia de morrer primeiro que ele, e que dali a pouco tempo
ele também havia de passar desta vida e eu havia de ficar órfã de pai
e mãe. Mas dizia ele que não o angustiava tanto isto quanto lhe punha
em confusão saber, por coisa muito certa, que um descomunal gigante,
senhor de uma grande ilha, que quase faz divisa com nosso reino,
chamado Pandafilando da Fosca Vista, porque é coisa averiguada que,
embora tem os olhos em seu lugar e direitos, sempre mira ao revés,
como se fosse vesgo, e isto o faz ele de maligno e para pôr medo e
espanto aos que olha, digo que soube que este gigante, sabendo de
minha orfandade, havia de passar com grande poderio sobre meu reino
e me o havia de tirar todo, sem deixar-me uma pequena aldeia onde me
recolhesse; mas que podia evitar toda esta ruína e desgraça se eu
quisesse casar com ele; mas, ao que ele entendia, jamais pensava que
me viria a vontade de fazer tão desigual casamento; e disse nisto a
pura verdade, porque jamais me passou pelo pensamento casar-me com
aquele gigante, e nem com outro algum, por grande e desaforado que
fosse. Disse também meu pai que, depois que ele morresse e visse eu
que Pandafilando começava a passar sobre meu reino, que não
aguardasse a pôr-me em defesa, porque seria destruir-me, senão que
voluntariamente lhe deixasse desembaraçado o reino, se queria evitar
a morte e total destruição de meus bons e leais vassalos, porque não
havia de ser possível defender-me da endiabrada força do gigante;
senão que logo, com alguns dos meus, me pusesse a caminho das
Espanhas, onde acharia o remédio de meus males achando um cavaleiro
andante, cuja fama neste tempo se estenderia por todo este reino, o
qual se havia de chamar, se mal não me lembro, dom Azote ou dom
Gigote.
- Dom Quixote diria, senhora - disse então Sancho Pança, - ou, por
outro nome, o Cavaleiro da Triste Figura.
- Assim é a verdade - disse Doroteia. - Disse mais: que havia de ser
alto de corpo, seco de rosto, e que no lado direito, debaixo do ombro
esquerdo, ou por ali junto, havia de ter uma pinta parda com certos
cabelos à maneira de cerdas.
Ouvindo isto dom Quixote, disse a seu escudeiro:
- Vem aqui, Sancho, filho, ajuda-me a desnudar, que quero ver se
sou o cavaleiro que aquele sábio rei deixou profetizado.
- Ora, para que quer vossa mercê desnudar-se? - disse Doroteia.
- Para ver se tenho essa pinta que vosso pai disse - respondeu dom
Quixote.
- Não há para que desnudar-se - disse Sancho, - que eu sei que tem
vossa mercê uma pinta dessas no meio do espinhaço, que é sinal de ser
homem forte.
- Isso basta - disse Doroteia, - porque com os amigos não se há de
reparar em minúcias, e que esteja no ombro ou que esteja no
espinhaço, importa pouco; basta que haja pinta, e esteja onde estiver,
pois tudo é uma mesma carne; e, sem dúvida, acertou meu bom pai em
tudo, e eu acertei em encomendar-me ao senhor dom Quixote, que ele
é por quem meu pai disse, pois os sinais do rosto vêm com as da boa
fama que este cavaleiro tem não só na Espanha, mas em toda a
Mancha, pois apenas desembarquei em Osuna, quando ouvi dizer tantas
façanhas suas, que logo me disse o coração que era o mesmo que vinha
buscar.
- Pois, como desembarcou vossa mercê em Osuna, senhora minha -
perguntou dom Quixote, - se não é porto de mar?
Mas, antes que Doroteia respondesse, tomou o padre a palavra e
disse:
- Deve querer dizer a senhora princesa que, depois que
desembarcou em Málaga, a primeira parte onde ouviu novas de vossa
mercê foi em Osuna.
- Isso quis dizer - disse Doroteia.
- E isto é verdadeiro - disse o padre, - e prossiga vossa majestade
adiante.
- Não há que prosseguir - respondeu Doroteia, - senão que,
finalmente, minha sorte foi tão boa em achar o senhor dom Quixote,
que já me conto e tenho por rainha e senhora de todo meu reino, pois
ele, por sua cortesia e magnificência, me prometeu o dom de ir comigo
onde quer que eu o levar, que não será a outra parte que a pô-lo diante
de Pandafilando da Fosca Vista, para que o mate e me restitua o que
tão contra razão me tem usurpado: que tudo isto há de suceder tal
como se desejava, pois assim o deixou profetizado Tinácrio o
Sabedor, meu bom pai; o qual também deixou dito e escrito em letras
caldeias, ou gregas, que eu não as sei ler, que se este cavaleiro da
profecia, depois de haver degolado o gigante, quisesse casar-se
comigo, que eu me outorgasse logo sem réplica alguma por sua legítima
esposa, e lhe desse a possessão de meu reino, junto com a de minha
pessoa.
- Que te parece, Sancho amigo? - disse a este ponto dom Quixote.
- Não ouves o que acontece? Não te disse eu? Vê se temos já reino
que mandar e rainha com quem casar.
- Isso juro eu - disse Sancho - para o maricão que não se casar
estrangulando o senhor Pandafodido! Por minha fé que é má a rainha!
Assim se me tornem as pulgas da cama!
E dizendo isto, deu duas cabriolas no ar, com mostras de
grandíssima alegria, e logo foi tomar as rédeas da mula de Doroteia, e,
fazendo-a deter, ficou de joelhos ante ela, suplicando-lhe lhe desse as
mãos para beijá-las, em sinal que a recebia por sua rainha e senhora.
Quem não havia de rir dos circustantes, vendo a loucura do amo e a
simplicidade do criado? Com efeito, Doroteia as deu, e lhe prometeu
fazer-lhe grande senhor em seu reino, quando o céu lhe fizesse tanto
bem que o deixasse cobrar e gozar. Agradeceu-lhe Sancho com tais
palavras que renovou o riso em todos.
- Esta, senhores - prosseguiu Doroteia, - é minha história: só resta
dizer-vos que de quanta gente de acompanhamento tirei de meu reino
não me ficou senão só este bom barbado escudeiro, porque todos se
afogaram em uma grande borrasca que tivemos à vista do porto, e ele
e eu saímos em duas tábuas à terra, como por milagre; e assim, é todo
milagre e mistério o decorrer de minha vida, como o havereis notado.
E se em alguma coisa andei demasiada, ou não tão acertada como
deveria, lançai a culpa ao que o senhor licenciado disse ao princípio de
meu conto: que os trabalhos contínuos e extraordinários tiram a
memória ao que os padece.
- Essa não me tirarão a mim, oh alta e valorosa senhora! - disse dom
Quixote - quantos eu passar em servir-vos, por grandes e não vistos
que sejam; e assim, de novo confirmo o dom que vos prometi, e juro de
ir convosco ao fim do mundo, até ver-me com o fero inimigo vosso, a
quem penso, com o ajuda de Deus e de meu braço, cortar a cabeça
soberba com os fios desta... não quero dizer “boa” espada, mercê a
Ginés de Pasamonte, que levou a minha.
Isto disse entre dentes, e prosseguiu dizendo:
- E depois de havê-la cortado e vos posto em pacífica possessão de
vosso estado, ficará à vossa vontade fazer de vossa pessoa o que mais
em gosto vos vier; porque, enquanto eu tiver ocupada a memória e
cativa a vontade, perdido o entendimento, àquela..., e não digo mais,
não é possível que eu arroste, nem em pensamento, o casar-me,
embora fosse com a ave fênix.
Pareceu tão mal a Sancho o que por último seu amo disse acerca de
não querer casar-se, que, com grande enfezamento, alçando a voz,
disse:
- Voto a mim, e juro a mim, que não tem vossa mercê, senhor dom
Quixote, cabal juízo. Ora, como é possível que põe vossa mercê em
dúvida o casar-se com tão alta princesa como esta? Pensa que lhe há
de oferecer a fortuna, atrás de cada esquina, semelhante ventura
como a que agora se lhe oferece? É, por acaso, mais formosa minha
senhora Dulcineia? Não, por certo, nem ainda a metade, e ainda estou
por dizer que não chega ao sapato da que está diante de nós. Assim,
em hora má alcançarei eu o condado que espero, se vossa mercê anda a
colher batatas em alto mar. Case-se, case-se logo, encomendo-lhe eu a
Satanás, e tome esse reino que vem às mãos de graça, e, em sendo rei,
faça-me marquês ou chefe provincial, e logo, e que tudo leve o diabo.
Dom Quixote, que tais blasfêmias ouviu dizer contra sua senhora
Dulcineia, não o pôde suportar, e, alçando o chuço, sem falar palavra a
Sancho e sem dizer-lhe esta boca é minha, lhe deu tais dois golpes que
deu com ele em terra; e se não fosse porque Doroteia lhe deu vozes
que não lhe desse mais, sem dúvida lhe tiraria ali a vida.
- Pensais - disse-lhe após um momento, - vilão ruim, que há de haver
lugar sempre para tratar-me sem nenhuma consideração, e que tudo
há de ser errar vós e perdoar-vos eu? Pois não o penseis, velhaco
excomungado, que sem dúvida o estás, pois caluniaste a sem par
Dulcineia. E não sabeis vós, bruto, ganha-pão, biltre, que se não fosse
pelo valor que ela infunde em meu braço, que não o teria eu para matar
uma pulga? Dizei, socarrão de língua viperina, e quem pensais que
ganhou este reino e cortou a cabeça a este gigante, e fez-vos
marquês, que tudo isto dou já por feito e por coisa passada sem
apelação, se não é o valor de Dulcineia, tomando meu braço por
instrumento de suas façanhas? Ela peleja em mim, e vence em mim, e
eu vivo e respiro nela, e tenho vida e ser. Oh fidaputa velhaco, e como
sois desagradecido: que vos vedes levantado do pó da terra a ser
senhor de título, e correspondeis a tão boa obra com dizer mal de
quem vos a fez!
Não estava tão maltratado Sancho que não ouvisse tudo quanto seu
amo lhe dizia, e, levantando-se com um pouco de presteza, foi pôr-se
detrás do palafrém de Doroteia, e dali disse a seu amo:
- Diga-me, senhor: se vossa mercê tem determinado de não casar-se
com esta grande princesa, claro está que não será o reino seu; e, não
sendo-o, que mercês me pode fazer? Isto é do que eu me queixo;
case-se vossa mercê efetivamente com esta rainha, agora que a temos
aqui como chovida do céu, e depois pode regressar a minha senhora
Dulcineia; que reis deve ter havido no mundo que hajam sido
amancebados. No da formosura não me intrometo; que, em verdade, se
vai a dizê-la, que ambas me parecem bem, posto que eu nunca vi a
senhora Dulcineia.
- Como que não a viste, traidor blasfemo? - disse dom Quixote. -
Ora, não acabas de trazer-me agora um recado de sua parte?
- Digo que não a vi tão devagar - disse Sancho - que possa haver
notado particularmente sua formosura e suas boas qualidades ponto
por ponto; mas assim, por alto, me parece bem.
- Agora te desculpo - disse dom Quixote, - e perdoa-me a raiva que
te dei, que os primeiros movimentos não estão nas mãos dos homens.
- Já eu o vejo - respondeu Sancho; - e assim, em mim a vontade de
falar sempre é primeiro movimento, e não posso deixar de dizer, por
uma vez sequer, o que me vem à língua.
- Desse modo - disse dom Quixote, - vê, Sancho, o que falas, porque
tantas vezes vai o cântaro à fonte..., e não te digo mais.
- Pois bem - respondeu Sancho, - Deus está no céu, que vê as
armadilhas, e será juiz de quem faz mais mal: eu em não falar bem, ou
vossa mercê em não obrá-lo.
- Não haja mais - disse Doroteia; - correi, Sancho, e beijai a mão a
vosso senhor, e pedi-lhe perdão, e daqui em diante andai mais atento
em vossas louvações e vitupérios, e não digais mal daquela senhora
Tobosa, a quem eu não conheço se não é para servi-la, e tende
confiança em Deus, que não vos há de faltar um estado onde vivais
como um príncipe.
Foi Sancho cabisbaixo e pediu a mão a seu senhor, e ele a deu com
repousada postura; e, depois que a teve beijada, lançou-lhe a
bênção, e disse a Sancho que se adiantassem um pouco; que tinha que
perguntar e repartir com ele coisas de muita importância. Fê-lo assim
Sancho e afastaram-se os dois algo adiante, e disse-lhe dom Quixote:
- Depois que vieste, não tive lugar nem espaço para perguntar-te
muitas coisas de particularidade acerca da embaixada que levaste e
da resposta que trouxeste; e agora, pois a fortuna nos concedeu
tempo e lugar, não me negues tu a ventura que podes dar-me com tão
boas novas.
- Pergunte vossa mercê o que quiser - respondeu Sancho, - que a
tudo darei tão boa saída como tive a entrada. Mas suplico a vossa
mercê, senhor meu, que não seja daqui em diante tão vingativo.
- Por que o dizes, Sancho? - disse dom Quixote.
- Digo-o - respondeu - porque estes golpes de agora mais foram pela
pendência que entre os dois travou o diabo a outra noite, que pelo que
disse contra minha senhora Dulcineia, a quem amo e reverencio como a
uma relíquia, embora nela não o haja, só por ser coisa de vossa mercê.
- Não tornes a essas conversas, Sancho, por tua vida - disse dom
Quixote, - que me dão tristeza; já te perdoei então, e bem sabes tu
que costuma dizer-se: “A pecado novo, penitência nova.”
Enquanto isto passava, viram vir pelo caminho onde eles iam um
homem, a cavaleiro sobre um jumento, e quando chegou perto lhes
pareceu que era cigano; mas Sancho Pança, que onde quer que via
asnos se lhe iam os olhos e a alma, apenas viu o homem, quando
reconheceu que era Ginés de Pasamonte, e pelo fio do cigano tirou o
novelo de seu asno, como era a verdade, pois era o ruço sobre que
Pasamonte vinha; o qual, para não ser conhecido e para vender o asno,
se havia posto em traje de cigano, cuja língua, e outras muitas, sabia
falar como se fossem naturais suas. Viu-o Sancho e reconheceu-o; e
apenas o viu e reconheceu, quando a grandes vozes lhe disse:
- Ah, ladrão Ginesillo! Deixa minha prenda, solta minha vida, não
impeças meu descanso, deixa meu asno, deixa meu regalo! Foge, puto;
ausenta-te, ladrão, e abandona o que não é teu!
Não foram mister tantas palavras nem ofensas, porque à primeira
saltou Ginés e, tomando um trote que parecia carreira, num instante
se ausentou e distanciou de todos. Sancho chegou a seu ruço e,
abraçando-o, disse-lhe:
- Como tem estado, bem meu, ruço de meus olhos, companheiro
meu?
E com isto o beijava e acariciava, como se fosse pessoa. O asno
calava e se deixava beijar e acariciar por Sancho sem responder-
lhe palavra alguma. Chegaram todos e deram-lhe os parabéns pelo
achado do ruço, especialmente dom Quixote, o qual lhe disse que não
por isso anulava a apólice dos três asninhos. Sancho lhe agradeceu.
Enquanto os dois iam nestas conversas, disse o padre a Doroteia que
fora muito discreta, assim no conto como na brevidade dele, e na
similitude que teve com aquilo dos livros de cavalarias. Ela disse que
muito tempo se havia entretido em lê-los, mas que não sabia ela onde
eram as províncias nem portos de mar, e que assim havia dito sem
pensar que havia desembarcado em Osuna.
- Eu o entendi assim - disse o padre, - e por isso acudi logo a dizer o
que disse, com que se acomodou tudo. Mas, não é coisa estranha ver
com quanta facilidade crê este desventurado fidalgo em todas estas
invenções e mentiras, só porque levam o estilo e modo das necedades
de seus livros?
- Sim é - disse Cardênio, - e tão rara e nunca vista, que eu não sei se
querendo inventá-la e fabricá-la mentirosamente, tivesse tão agudo
engenho para tal.
- Pois outra coisa há nele - disse o padre: - que fora das
simplicidades que este bom fidalgo diz tocantes à sua loucura, trata
de outras coisas, discorre com boníssimas razões e mostra ter um
entendimento claro e aprazível em tudo. De maneira que, se não
tocam em suas cavalarias, não haverá ninguém que o julgue senão por
de muito bom entendimento.
Enquanto eles iam nesta conversação, prosseguiu dom Quixote com
a sua e disse a Sancho:
- Esqueçamos, Pança amigo, nossas pendências, e diz-me agora, sem
ter conta com ira nem rancor algum: Onde, como e quando achaste
Dulcineia? Que fazia? Que lhe disseste? Que te respondeu? Que
rosto fez quando lia minha carta? Quem te a trasladou? E tudo aquilo
que vires que neste caso é digno de saber-se, de perguntar-se e
satisfazer-se, sem que acrescentes ou mintas por dar-me gosto, nem
menos encurtes por não tirar-mo.
- Senhor - respondeu Sancho, - se vai a dizer a verdade, a carta não
me a trasladou ninguém, porque eu não levei carta alguma.
- Assim é como tu dizes - disse dom Quixote, - porque o livrinho de
memória onde eu a escrevi o achei em meu poder a cabo de dois dias
de tua partida, o que me causou grandíssima pena, por não saber o que
havias tu de fazer quando te visses sem carta, e cri sempre que
voltarias desde o lugar onde deste falta dela.
- Assim seria - respondeu Sancho, - se não a houvesse eu tomado na
memória quando vossa mercê a leu, de maneira que a disse a um
sacristão, que a trasladou do entendimento, tão ponto por ponto, que
disse que em todos os dias de sua vida, embora havia lido muitas
cartas de excomunhão, não havia visto nem lido tão linda carta como
aquela.
- E tens-la ainda na memória, Sancho? - disse dom Quixote.
- Não, senhor - respondeu Sancho, - porque depois que a disse,
como vi que não havia de ser de mais proveito, esqueci-a. E se algo se
me recorda, é aquilo do “sobaixada”, digo, do “soberana senhora”, e o
último: “Vosso até a morte, o Cavaleiro da Triste Figura”. E em meio
destas duas coisas, pus mais de trezentas almas, e vidas, e olhos meus.

CAPÍTULO XXXI

Dos saborosos arrazoados que se deram entre dom Quixote e


Sancho Pança, seu escudeiro, com outros sucessos

- Tudo isso não me descontenta; prossegue adiante - disse dom


Quixote. - Chegaste, e que fazia aquela rainha da formosura?
Certamente a achaste ensartando pérolas, ou bordando algum
emblema com ouro em fios para este seu cativo cavaleiro.
- Não a achei - respondeu Sancho - senão limpando duas sacas de
trigo num curral de sua casa.
- Pois faz de conta - disse dom Quixote - que os grãos daquele trigo
eram grãos de pérolas, tocados por suas mãos. E se viste, amigo, o
trigo era candial, ou trechel?
- Não era senão rubión - respondeu Sancho.
- Pois eu te asseguro - disse dom Quixote - que, limpo por suas
mãos, fez pão candial, sem dúvida alguma. Mas passa adiante: quando
lhe deste minha carta, beijou-a? Pô-la sobre a cabeça? Fez alguma
cerimônia digna de tal carta, ou que fez?
- Quando eu ia entregá-la - respondeu Sancho, - ela estava no ardor
do manejo de uma boa parte de trigo que tinha na peneira, e disse-me:
“Ponde, amigo, essa carta sobre aquele saco, que não a posso ler até
que acabe de peneirar tudo o que aqui está”.
- Discreta senhora! - disse dom Quixote. - Isso deveu ser para lê-la
devagar e recrear-se com ela. Adiante, Sancho: e, enquanto estava em
seu mister, que colóquios passou contigo? Que te perguntou de mim? E
tu, que lhe respondeste? Termina, conta-me tudo; não te esqueças de
nada.
- Ela não me perguntou nada - disse Sancho, - mas eu lhe disse da
maneira que vossa mercê, por seu serviço, ficava fazendo penitência,
desnudo da cintura para cima, metido entre estas serras como se
fosse selvagem, dormindo no chão, sem comer pão em toalha nem sem
pentear a barba, chorando e maldizendo sua fortuna.
- Ao dizer que maldizia minha fortuna disseste mal - disse dom
Quixote, - porque antes a bendigo e bendirei todos os dias de minha
vida, por haver-me feito digno de merecer amar tão alta senhora como
Dulcineia do Toboso.
- Tão alta é - respondeu Sancho, - que a boa fé que me passa mais
de um palmo.
- Ora, como, Sancho? - disse dom Quixote. - Mediste-te com ela?
- Medi-me desta maneira - respondeu Sancho: - que, chegando a
ajudá-la a pôr um saco de trigo sobre um jumento, chegamos tão
juntos que vi que me passava mais de um grande palmo.
- Pois é verdade - replicou dom Quixote - que não acompanha essa
grandeza e a adorna com mil milhões e graças da alma! Mas não me
negarás, Sancho, uma coisa: quando chegaste junto a ela, não sentiste
um cheiro delicado, uma fragância aromática, e um não sei quê de bom,
que eu não acerto a dar-lhe nome? Digo, um cheiro como se estivesses
na tenda de algum cuidadoso luveiro?
- O que sei dizer - disse Sancho - é que senti um olorzinho algo
machão; e devia ser que ela, com o muito exercício, estava suada e
algo imunda.
- Não seria isso - respondeu dom Quixote, - senão que tu devias de
estar acatarrado, ou deveste cheirar a ti mesmo; porque eu sei bem
ao que cheira aquela rosa entre espinhos, aquele lírio do campo, aquele
puro âmbar.
- Tudo pode ser - respondeu Sancho, - que muitas vezes sai de mim
aquele cheiro que então me pareceu que saía de sua mercê a senhora
Dulcineia; mas não há de que maravilhar-se, que um diabo se parece
com outro.
- E bem - prosseguiu dom Quixote, - eis que acabou de limpar seu
trigo e de enviá-lo ao moinho. Que fez quando leu a carta?
- A carta - disse Sancho - não a leu, porque disse que não sabia ler
nem escrever; antes, a rasgou e a fez miúdas peças, dizendo que não a
queria dar a ler a ninguém, porque não se soubessem no lugar seus
segredos, e que bastava o que eu lhe havia dito de palavra acerca do
amor que vossa mercê lhe tinha e da penitência extraordinária que por
sua causa ficava fazendo. E finalmente, me disse que dissesse a vossa
mercê que lhe beijava as mãos, e que ali ficava com mais desejo de vê-
lo que de escrever-lhe; e que, assim, lhe suplicava e mandava que, em
vista da presente, saísse daqueles matagais e deixasse de fazer
disparates, e se pusesse logo logo a caminho do Toboso, se outra coisa
de mais importância não lhe sucedesse, porque tinha grande desejo de
ver vossa mercê. Riu-se muito quando lhe disse que se chamava vossa
mercê o Cavaleiro da Triste Figura. Perguntei-lhe se havia ido lá o
biscainho de sempre; disse-me que sim, e que era um homem muito de
bem. Também lhe perguntei pelos galeotes, mas disse-me que não
havia visto até então algum.
- Tudo vai bem até agora - disse dom Quixote. - Mas diz-me: que
joia foi a que te deu, ao despedir-te, pelas novas que de mim lhe
levaste? Porque é usado e antigo costume entre os cavaleiros e damas
andantes dar aos escudeiros, donzelas ou anões que lhes levam novas,
de suas damas a eles, a elas de seus andantes, alguma rica joia em
alvíssaras, em agradecimento de seu recado.
- Bem pode isso ser assim, e eu a tenho por boa usança; mas isso
deveu ser nos tempos passados, que agora só se deve costumar dar um
pedaço de pão e queijo, que isto foi o que me deu minha senhora
Dulcineia, pelas cercas de um curral, quando dela me despedi; e ainda,
por maus sinais, era o queijo ovelhum.
- É liberal em extremo - disse dom Quixote, - e se não te deu joia
de ouro, sem dúvida deveu ser porque não a teria ali à mão para dar-
te; mas também ao que vem tarde se agradece: eu a verei, e tudo se
satisfará. Sabes de que estou maravilhado, Sancho? De que me parece
que foste e vieste pelos ares, pois pouco mais de três dias tardaste
em ir e vir daqui ao Toboso, havendo daqui lá mais de trinta léguas;
pelo qual me dou a entender que aquele mago nigromante que tem
conta com minhas coisas e é meu amigo, porque por força lhe há, e lhe
há de haver, sob pena que eu não seria bom cavaleiro andante, digo
que este tal te deveu ajudar a caminhar, sem que tu o sentisses; que
há mago destes que colhe a um cavaleiro andante dormindo em sua
cama, e, sem saber como ou de que maneira, amanhece outro dia mais
de mil léguas de onde anoiteceu. E se não fosse por isto, não se
poderiam socorrer em seus perigos os cavaleiros andantes uns aos
outros, como se socorrem a cada passo. Que acontece estar um
lutando nas serras de Armênia com algum endríago, ou com algum fero
monstro, ou com outro cavaleiro, onde leva o pior da batalha e está já
a ponto de morte, e quando menos se espera, assoma acolá, em cima de
uma nuvem, ou sobre um carro de fogo, outro cavaleiro amigo seu, que
pouco antes se achava na Inglaterra, que o favorece e livra da morte,
e à noite se acha em sua pousada, jantando muito a seu sabor; e
costuma haver de uma a outra parte duas ou três mil léguas. E tudo
isto se faz por arte e sabedoria destos magos encantadores que têm
cuidado destes valorosos cavaleiros. Assim que, amigo Sancho, não se
me faz dificultoso crer que em tão breve tempo hajas ido e vindo
desde este lugar ao do Toboso, pois, como tenho dito, algum mago
amigo te deveu levar como em um rápido voo, sem que tu o sentisses.
- Assim seria - disse Sancho; - porque à boa fé que andava
Rocinante como se fosse asno de cigano com mercúrio nos ouvidos.
- E como levava mercúrio! - disse dom Quixote, - e ainda uma legião
de demônios, que é gente que caminha e faz caminhar, sem cansar-se,
tudo aquilo que deseja. Mas, deixando isto à parte, que te parece que
devo eu fazer agora acerca do que minha senhora me manda que vá
ver? Porque, embora eu veja que estou obrigado a cumprir seu
mandamento, vejo-me também impossibilitado do dom que prometi à
princesa que conosco vem, e força-me a lei de cavalaria a cumprir
minha palavra antes que meu gosto. Por uma parte, me acossa e fatiga
o desejo de ver a minha senhora; por outra, me incita e chama a
prometida fé e a glória que hei de alcançar nesta empresa. Mas o que
penso fazer será caminhar depressa e chegar logo onde está este
gigante, e, chegando, lhe cortarei a cabeça, e porei a princesa
pacificamente em seu estado, e imediatamente darei a volta a ver a
luz que meus sentidos ilumina, à qual darei tais desculpas que ela venha
a ter por boa minha tardança, pois verá que tudo redunda no aumento
de sua glória e fama, pois quanta eu alcancei, alcanço e alcançar pelas
armas nesta vida, toda me vem do favor que ela me dá e de ser eu seu.
- Ai - disse Sancho, - e como está vossa mercê mal dessa cuca! Pois
diga-me, senhor: pensa vossa mercê caminhar este caminho em vão, e
deixar passar e perder um tão rico e tão principal casamento como
este, onde lhe dão em dote um reino, que a boa verdade que ouvi dizer
que tem mais de vinte mil léguas de contorno, e que é abundantíssimo
de todas as coisas que são necessárias para o sustento da vida
humana, e que é maior que Portugal e que Castela juntos? Cale, por
amor de Deus, e tenha vergonha do que disse, e tome meu conselho, e
perdoe-me, e case-se logo no primeiro lugar que tenha um padre; e se
não, aí está nosso licenciado, que o fará de pérolas. E advirta que já
tenho idade para dar conselhos, e que este que lhe dou lhe vem de
molde, e que mais vale pássaro na mão que abutre voando, porque quem
bem tem e mal escolhe, por bem que se enoja não se vinga.
- Vê, Sancho - respondeu dom Quixote: - se o conselho que me dás
de que me case é porque seja logo rei, matando o gigante, e tenha
oportunidade para fazer-te mercês e dar-te o prometido, faço-te
saber que sem casar-me poderei cumprir teu desejo muito facilmente,
porque eu darei como bônus, antes de entrar na batalha, que, saindo
vencedor dela, já que não me case, me hão de dar uma parte do reino,
para que a possa dar a quem eu quiser; e, dando-ma, a quem queres tu
que a dê senão a ti?
- Isso está claro - respondeu Sancho, - mas veja vossa mercê que a
escolha próximo à costa, porque, se não me contentar o lugar, possa
embarcar meus negros vassalos e fazer deles o que já disse. E vossa
mercê não se preocupe de ir por agora ver a minha senhora Dulcineia,
senão vá matar o gigante, e concluamos este negócio; que por Deus que
sinto que há de ser de muita honra e de muito proveito.
- Digo-te, Sancho - disse dom Quixote, - que estás certo, e que
haverei de tomar teu conselho quanto a ir antes com a princesa que a
ver Dulcineia. E aviso-te que não digas nada a ninguém, nem aos que
conosco vêm, do que aqui havemos compartido e tratado; que, pois
Dulcineia é tão recatada que não quer que se saibam seus
pensamentos, não será bem que eu, nem outro por mim, os descubra.
- Pois se isso é assim - disse Sancho, - como faz vossa mercê que
todos os que vence por seu braço vão apresentar-se ante minha
senhora Dulcineia, sendo isto certidão de que a quer bem e que é seu
enamorado? E sendo forçoso que os que forem hão de ficar de joelhos
ante sua presença, e dizer que vão de parte de vossa mercê a dar-lhe
a obediência, como se podem encobrir os pensamentos de ambos?
- Oh, que néscio e que ingênuo és! - disse dom Quixote. - Tu não vês,
Sancho, que isso tudo redunda em sua maior exaltação? Porque hás de
saber que neste nosso estilo de cavalaria é grande honra ter uma
dama muitos cavaleiros andantes que a sirvam, sem que se estendam
mais seus pensamentos que a servi-la por só ser ela quem é, sem
esperar outro prêmio de seus muitos e bons desejos, senão que ela se
contente de aceitá-los por seus cavaleiros.
- Com essa maneira de amor - disse Sancho - ouvi eu pregar que se
há de amar a Nosso Senhor, por si só, sem que nos mova esperança de
glória ou temor de pena. Embora eu lhe quisesse amar e servir pelo
que pudesse.
- Valha-te o diabo por vilão - disse dom Quixote, - e que discrições
dizes às vezes! Não parece senão que estudaste.
- Pois à fé minha que não sei ler - respondeu Sancho.
Nisto lhes deu vozes mestre Nicolás que esperassem um pouco, que
queriam deter-se a beber em uma fontezinha que ali estava. Deteve-
se dom Quixote, com não pouco gosto de Sancho, que já estava
cansado de mentir tanto e temia que o colhesse seu amo em
contradição; porque, posto que ele sabia que Dulcineia era uma
lavradora do Toboso, não a havia visto em toda sua vida.
Havia neste tempo vestido Cardênio as vestes que Doroteia trazia
quando a acharam, que, embora não fossem muito boas, faziam muita
vantagem às que deixava. Apearam-se junto à fonte, e com o que o
padre se proveu na estalagem satisfizeram, embora pouco, a muita
fome que todos traziam.
Estando nisto, acertou de passar por ali um moço que ia a caminho, o
qual, pondo-se a olhar com muita atenção aos que na fonte estavam,
dali a pouco arremeteu a dom Quixote, e, abraçando-o pelas pernas,
começou a chorar muito de propósito, dizendo:
- Ai, senhor meu! Não me conhece vossa mercê? Pois olhe-me bem,
que eu sou aquele moço André que vossa mercê tirou da azinheira onde
estava atado.
Reconheceu-o dom Quixote, e, tomando-o pela mão, se voltou aos
que ali estavam e disse:
- Porque vejam vossas mercês quão de importância é haver
cavaleiros andantes no mundo, que desfaçam os tortos e agravos que
nele se fazem pelos insolentes e maus homens que nele vivem, saibam
vossas mercês que os dias passados, passando eu por um bosque, ouvi
uns gritos e umas vozes muito lastimosas, como de pessoa aflita e
necessitada; acudi logo, levado por minha obrigação, até o lugar onde
me pareceu que as lamentáveis vozes soavam, e achei atado a uma
azinheira este moço que agora está aqui diante, do que me alegro na
alma, porque será testemunho que não me deixará mentir em nada.
Digo que estava atado à azinheira, desnudo de meio corpo para cima, e
estava-lhe dando açoites com as rédeas de uma égua um vilão, que
depois soube que era amo seu; e, assim que eu o vi, lhe perguntei a
causa de tão atroz sova; respondeu o grosseiro que o açoitava porque
era seu criado, e que certos descuidos que tinha nasciam
mais de ladrão que de ingênuo; ao que este menino disse: “Senhor, não
me açoita senão porque lhe peço meu salário”. O amo replicou não sei
que arengas e desculpas, as quais, embora de mim fossem ouvidas, não
foram admitidas. Em suma, eu o fiz desatar, e tomei juramento ao
vilão de que o levaria consigo e lhe pagaria um real sobre outro, e com
sobras. Não é verdade tudo isto, filho André? Não notaste com
quanto império o mandei, e com quanta humildade prometeu fazer tudo
quanto eu lhe impus, e notifiquei e quis? Responde; não te perturbes
nem duvides em nada: diz o que se passou a estes senhores, porque se
veja e considere ser do proveito que digo haver cavaleiros andantes
pelos caminhos.
- Tudo o que vossa mercê disse é muita verdade - respondeu o
moço, - mas o fim do negócio sucedeu muito ao revés do que vossa
mercê imagina.
- Como ao revés? - replicou dom Quixote. - Logo, não te pagou o
vilão?
- Não só não me pagou - respondeu o moço, - mas, assim que vossa
mercê transpôs o bosque e ficamos sós, me voltou a atar à mesma
azinheira, e me deu de novo tantos açoites que fiquei feito um São
Bartolomeu desolado; e, a cada açoite que me dava, me dizia um
donaire e chiste acerca de fazer burla de vossa mercê, que, a não
sentir eu tanta dor, me riria do que dizia. Com efeito: ele me pôs de
tal maneira, que até agora estive curando-me num hospital do mal que
o mau vilão então me fez. De tudo o que tem vossa mercê a culpa,
porque se se fosse em seu caminho adiante e não viesse onde não o
chamavam, nem se intrometesse em negócios alheios, meu amo se
contentaria com dar-me uma ou duas dúzias de açoites, e logo me
soltaria e pagaria quanto me devia. Mas, como vossa mercê o desonrou
tão sem propósito e lhe disse tantas vilanias, acendeu-se-lhe a cólera,
e, como não a pôde vingar em vossa mercê, quando se viu só
descarregou sobre mim sua ira, de modo que me parece que não serei
mais homem em toda minha vida.
- O dano esteve - disse dom Quixote - em ir-me eu dali; que não me
havia de ir até deixar-te pago, porque bem devia eu de saber, por
longas experiências, que não há vilão que guarde palavra que tem, se
ele vê que não lhe está bem guardá-la. Mas já te recordas, André, que
eu jurei que se não te pagava, que havia de ir buscá-lo, e que o havia
de achar, embora se escondesse no ventre da baleia.
- Assim é a verdade - disse André, - mas não aproveitou nada.
- Agora verás se aproveita - disse dom Quixote.
E dizendo isto, se levantou muito depressa e mandou Sancho arrear
Rocinante, que estava pastando enquanto eles comiam.
Perguntou-lhe Doroteia que era o que fazer queria. Ele lhe
respondeu que queria ir buscar o vilão e castigá-lo de tão má ação, e
fazer pagar a André até o último maravedi, a despeito e pesar de
quantos vilões houvesse no mundo. Ao que ela respondeu que
advertisse que não podia, conforme o dom prometido, intrometer-se
em nenhuma empresa até acabar a sua; e que, pois isto sabia ele
melhor que outro algum, que sossegasse o peito até a volta de seu
reino.
- Assim é verdade - respondeu dom Quixote, - e é forçoso que
André tenha paciência até a volta, como vós, senhora, dizeis; que eu
lhe torno a jurar e a prometer de novo não parar até fazê-lo vingado e
pago.
- Não creio nesses juramentos - disse André; - mais quisera ter
agora com que chegar a Sevilha que todas as vinganças do mundo: dê-
me, se tem aí, algo que coma e leve, e fique com Deus sua mercê e
todos os cavaleiros andantes; que tão bem andantes sejam eles para
consigo como o foram para comigo.
Tirou de seu farnel Sancho um pedaço de pão e outro de queijo, e,
dando-os ao moço, disse-lhe:
- Tomai, irmão André, que a todos nos alcança parte de vossa
desgraça.
- Pois, que parte vos alcanças? - perguntou André.
- Esta parte de queijo e pão que vos dou - respondeu Sancho, - que
Deus sabe se me há de fazer falta ou não; porque vos faço saber,
amigo, que os escudeiros dos cavaleiros andantes estamos sujeitos a
muita fome e a má ventura, e ainda a outras coisas que se sentem
melhor que se dizem.
André pegou seu pão e queijo, e, vendo que ninguém lhe dava outra
coisa, abaixou a cabeça e tomou o caminho nas mãos, como costuma
dizer-se. Bem é verdade que, ao partir, disse a dom Quixote:
- Por amor de Deus, senhor cavaleiro andante, que se outra vez me
encontrar, embora veja que me fazem em pedaços, não me socorra
nem ajude, senão deixe-me com minha desgraça; que não será tanta,
que não seja maior a que me virá da ajuda de vossa mercê, a quem
Deus maldiga, e a todos quantos cavaleiros andantes nasceram no
mundo.
Ia levantar-se dom Quixote para castigá-lo, mas ele se pôs a correr
de modo que ninguém se atreveu a segui-lo. Ficou vexadíssimo dom
Quixote do conto de André, e foi mister que os demais fizessem
muito esforço para não rir, por não acabar de vexá-lo de todo.

CAPÍTULO XXXII

Que trata do que sucedeu na estalagem a toda a quadrilha de dom


Quixote

Acabou-se a boa comida, encilharam logo, e, sem que lhes sucedesse


coisa digna de contar, chegaram outro dia à estalagem, espanto e
assombro de Sancho Pança; e, embora ele quisesse não entrar nela,
não o pôde evitar. A vendeira, vendeiro, sua filha e Maritornes, que
viram vir dom Quixote e Sancho, saíram-lhes a receber com mostras
de muita alegria, e ele as recebeu com grave postura e aplauso, e
disse-lhes que lhe preparassem outro melhor leito que a vez passada;
ao que lhe respondeu a hospedeira que se a pagasse melhor que a
outra vez, ela a daria principesca. Dom Quixote disse que o faria, e
assim, prepararam-lhe um razoável no mesmo sótão de antes, e ele se
deitou logo, porque vinha muito quebrantado e falto de juízo.
Não se houve bem retirado, quando a hospedeira arremeteu ao
barbeiro, e, tomando-o pela barba, disse:
- Por minha cruz, que não se há ainda de aproveitar mais de meu
rabo para sua barba, e que me há de devolver minha cauda; que anda o
de meu marido por esses chãos, que é vergonha; digo, o pente, que
costumava eu pendurar de meu bom rabo.
Não a queria dar o barbeiro, embora ela mais insistisse, até que o
licenciado lhe disse que a desse, que já não era mister mais usar
daquela manha, senão que se descobrisse e mostrasse em sua mesma
forma, e dissesse a dom Quixote que quando os despojaram os ladrões
galeotes haviam vindo àquela estalagem fugindo; e que se perguntasse
pelo escudeiro da princesa, lhe diriam que ela o havia enviado adiante
a dar aviso aos de seu reino como ela ia e levava consigo o libertador
de todos. Com isto, deu de bom grado o rabo à vendeira o barbeiro, e
também lhe devolveram todos os adereços que havia emprestado para
a liberdade de dom Quixote. Espantaram-se todos os da estalagem
com a formosura de Doroteia, e ainda com o bom talhe do rapaz
Cardênio. Fez o padre que lhes preparassem de comer do que na
estalagem houvesse, e o hospedeiro, com esperança de melhor paga,
com diligência lhes preparou uma razoável comida; e a tudo isto
dormia dom Quixote, e foram de parecer de não despertá-lo, porque
mais proveito lhe faria por então o dormir que o comer.
Trataram na sobremesa, estando diante o vendeiro, sua mulher, sua
filha, Maritornes, todos os passageiros, da estranha loucura de dom
Quixote e do modo que o haviam achado. A hospedeira lhes contou o
que com ele e com o arreeiro lhes havia acontecido, e, olhando se
acaso estava ali Sancho, como não o visse, contou tudo o de seu
manteamento, de que não pouco gosto receberam. E como o padre
dissesse que os livros de cavalarias que dom Quixote havia lido lhe
haviam transtornado o juízo, disse o vendeiro:
- Não sei eu como pode ser isso; que em verdade que, ao que eu
entendo, não há melhor literatura no mundo, e que tenho aí dois ou
três deles, com outros papéis, que verdadeiramente me deram a vida,
não só a mim, senão a outros muitos. Porque, quando é tempo da ceifa,
se acolhem aqui nas festas muitos ceifadores, e sempre há alguns que
sabem ler, um dos quais toma um destes livros nas mãos, e pomo-nos
ao redor dele mais de trinta, e o escutamos com tanto gosto que nos
tira mil preocupações; ao menos, de mim sei dizer que quando ouço
dizer aqueles furibundos e terríveis golpes que os cavaleiros dão, que
me dá vontade de fazer outro tanto, e que queria estar ouvindo-os
noites e dias.
- E eu nem mais nem menos - disse a vendeira, - porque nunca tenho
um bom momento em minha casa senão aquele que vós estais
escutando ler: que estais tão embasbacado, que não vos lembrais de
brigar então.
- Assim é a verdade - disse Maritornes, - e à boa fé que eu também
gosto muito de ouvir aquelas coisas, que são muito lindas; e mais,
quando contam que está a outra senhora debaixo de umas laranjeiras
abraçada com seu cavaleiro, e que está uma dona fazendo-lhes a
guarda, morta de inveja e com muito sobressalto. Digo que tudo isto é
coisa muito agradável.
- E a vós que vos parece, senhora donzela? - disse o padre, falando
com a filha do vendeiro.
- Não sei, senhor, em minha alma - respondeu ela; - também eu o
escuto, e em verdade que, embora não o entenda, recebo gosto em
ouvi-lo; mas não gosto eu dos golpes de que meu pai gosta, senão das
lamentações que os cavaleiros fazem quando estão ausentes de suas
senhoras: que em verdade que algumas vezes me fazem chorar de
compaixão que lhes tenho.
- Logo, bem as remediaríeis vós, senhora donzela - disse Doroteia, -
se por vós chorassem?
- Não sei o que faria - respondeu a moça; - só sei que há algumas
senhoras daquelas tão cruéis, que as chamam seus cavaleiros tigres e
leões e outras mil imundícies. E Jesus!, eu não sei que gente é aquela
tão desalmada e tão sem consciência, que por não olhar a um homem
honrado, deixam que morra, ou que enlouqueça. Eu não sei para que é
tanto melindre: se o fazem de honradas, casem-se com eles, que eles
não desejam outra coisa.
- Cala, menina - disse a vendeira, - que parece que sabes muito
destas coisas, e não está bem às donzelas saber nem falar tanto.
- Como o pergunta este senhor - respondeu ela, - não pude deixar
de responder-lhe.
- Pois bem - disse o padre, - trazei-me, senhor hospedeiro, aqueles
livros, que os quero ver.
- Com prazer - respondeu ele.
E entrando em seu aposento, tirou dele uma maletinha velha,
fechada com uma correntinha, e, abrindo-a, achou nela três livros
grandes e uns papéis de muito boa letra, escritos à mão. O primeiro
livro que abriu viu que era Dom Cirongílio de Trácia; e o outro, de
Felixmarte de Hircânia; e o outro, a História do Grande Capitão
Gonçalo Hernández de Córdoba, com a vida de Diego Garcia de
Paredes. Assim que o padre leu os dois títulos primeiros, voltou o
rosto ao barbeiro e disse:
- Falta nos fazem aqui agora a ama de meu amigo e sua sobrinha.
- Não fazem - respondeu o barbeiro, - que também sei eu levá-los
ao curral ou à chaminé; que em verdade que há muito bom fogo nela.
- Logo, quer vossa mercê queimar mais livros? - disse o vendeiro.
- Não mais - disse o padre - que estes dois: o de Dom Cirongílio e o
de Felixmarte.
- Pois, porventura - disse o vendeiro - meus livros são hereges ou
fleumáticos, que os quer queimar?
- Cismáticos quereis dizer, amigo - disse o barbeiro, - que não
fleumáticos.
- Assim é - replicou o vendeiro; - mas se algum quer queimar, seja
esse do Grande Capitão e desse Diego Garcia, que antes deixarei
queimar um filho que deixar queimar nenhum dos outros.
- Irmão meu - disse o padre, - estes dois livros são mentirosos e
estão cheios de disparates e devaneios; e este do Grande Capitão é
história verdadeira, e tem os feitos de Gonçalo Hernández de
Córdoba, o qual, por suas muitas e grandes façanhas, mereceu ser
chamado por todo o mundo “Grande Capitão”, renome famoso e claro, e
dele só merecido. E este Diego Garcia de Paredes foi um principal
cavaleiro, natural da cidade de Trujillo, em Estremadura, valentíssimo
soldado, e de tantas forças naturais que detinha com um dedo uma
roda de moinho na meio de sua fúria; e, posto com um espadagão na
entrada de uma ponte, deteve a todo um inumerável exército, que não
passasse por ela; e fez outras tais coisas que, como ele as conta e as
escreve ele também, com a modéstia de cavaleiro e de cronista
próprio, as escrevesse outro, livre e desapaixonado, poriam no olvido
as dos Heitores, Aquiles e Roldões.
- E a mim me conta! - disse o dito vendeiro. - Vede de que se
espanta: de deter uma roda de moinho! Por Deus, agora havia vossa
mercê de ler o que fez Felixmarte de Hircânia, que de um revés só
partiu cinco gigantes pela cintura, como se fossem feitos de favas,
como os fradezinhos que os meninos fazem. E outra vez arremeteu
contra um grandíssimo e poderosíssimo exército, onde enfrentou mais
de um milhão e seiscentos mil soldados, todos armados desde o pé até
a cabeça, e os desbaratou a todos, como se fossem manadas de
ovelhas. Pois, que me dirão do bom de dom Cirongílio de Trácia, que foi
tão valente e animoso como se verá no livro, onde conta que,
navegando por um rio, saiu do meio da água uma serpente de fogo, e
ele, assim que a viu, se arrojou sobre ela, e se pôs a cavalo em cima de
suas escamosas costas, e lhe apertou com ambas as mãos a garganta,
com tanta força que, vendo a serpente que ia afogando, não teve outro
remédio senão deixar-se ir ao fundo do rio, levando atrás de si o
cavaleiro, que nunca a quis soltar? E quando chegaram lá baixo, se
achou em uns palácios e em uns jardins tão lindos que era maravilha; e
logo a serpente se transformou num velho ancião, que lhe disse tantas
coisas que não há mais que ouvir. Cale, senhor, que se ouvisse isto,
enlouqueceria de prazer. Bolas para o Grande Capitão e para esse
Diego Garcia que diz!
Ouvindo isto Doroteia, disse baixo a Cardênio:
- Pouco falta a nosso hospedeiro para fazer a segunda parte de dom
Quixote.
- Assim me parece - respondeu Cardênio, - porque, segundo dá
indício, ele tem por certo que tudo o que estes livros contam se passou
nem mais nem menos que como o escrevem, e não o farão crer outra
coisa frades descalços.
- Vede, irmão - tornou a dizer o padre, - que não houve no mundo
Felixmarte de Hircânia, nem dom Cirongílio de Trácia, nem outros
cavaleiros semelhantes que os livros de cavalarias contam, porque
tudo é impostura e ficção de engenhos ociosos, que os compuseram
para o efeito que vós dizeis de entreter o tempo, como o entretêm
lendo-os vossos ceifadores; porque realmente vos juro que nunca tais
cavaleiros existiram no mundo, nem tais façanhas nem disparates
aconteceram nele.
- A outro cão com esse osso! - respondeu o vendeiro. - Como se eu
não soubesse quantos são cinco e onde me aperta o sapato! Não pense
vossa mercê dar-me papinha, porque por Deus que não sou nada
bronco. Bom é que queira dar-me vossa mercê a entender que tudo
aquilo que estes bons livros dizem sejam disparates e mentiras,
estando impressos com licença dos senhores do Conselho Real, como
se eles fossem gente que haviam de deixar imprimir tanta mentira
junta, e tantas batalhas e tantos encantamentos que tiram o juízo!
- Já vos disse, amigo - replicou o padre, - que isto se faz para
entreter nossos ociosos pensamentos; e, assim que se consente nas
repúblicas bem concertadas que haja jogos de xadrez, de pelota e de
bilhar, para entreter a alguns que nem têm, nem devem, nem podem
trabalhar, assim se consente imprimir e que haja tais livros, crendo,
como é verdade, que não há de haver alguém tão ignorante que tenha
por história verdadeira nenhum destes livros. E se me fora lícito
agora, e o auditório o requeresse, eu diria coisas acerca do que hão de
ter os livros de cavalarias para ser bons, que quiçá fossem de proveito
e ainda de gosto para alguns; mas eu espero que virá tempo em que o
possa comunicar com quem possa remediá-lo, e neste entretanto
crede, senhor vendeiro, no que vos disse, e tomai vossos livros, e lá
vos avinde com suas verdades ou mentiras, e bom proveito vos façam,
e queira Deus que não coxeeis do pé que coxeia vosso hóspede dom
Quixote.
- Isso não - respondeu o vendeiro, - que não serei eu tão louco que
me faça cavaleiro andante: que bem vejo que agora não se usa o que se
usava naquele tempo, quando se diz que andavam pelo mundo estes
famosos cavaleiros.
A meio desta conversa se achou Sancho presente, e ficou muito
confuso e pensativo do que havia ouvido dizer que agora não se usavam
cavaleiros andantes, e que todos os livros de cavalarias eram
necedades e mentiras, e propôs em seu coração esperar no que dava
aquela viagem de seu amo, e que se não saía com a felicidade que ele
pensava, decidia deixá-lo e voltar com sua mulher e seus filhos a seu
costumeiro trabalho.
Levava a maleta e os livros o vendeiro, mas o padre lhe disse:
- Esperai, que quero ver que papéis são esses que com tão boa letra
estão escritos.
Tirou-os o hospedeiro, e, dando-os a ler, viu até obra de oito folhas
escritos à mão, e ao princípio tinham um título grande que dizia:
Novela do curioso impertinente. Leu o padre para si três ou quatro
linhas e disse:
- Certo que não me parece mal o título desta novela, e que me vem
vontade de lê-la toda.
Ao que respondeu o vendeiro:
- Pois bem pode lê-la sua reverência, porque lhe faço saber que
alguns hóspedes que aqui a leram se contentaram muito, e ma pediram
com muitas veras; mas eu não a quis dar, pensando devolver a quem
aqui deixou esta maleta olvidada com estes livros e esses papéis; que
bem pode ser que volte seu dono por aqui algum tempo, e, embora
saiba que me hão de fazer falta os livros, à fé que os hei de devolver:
que, embora vendeiro, ainda sou cristão.
- Vós tendes muita razão, amigo - disse o padre, - mas, assim, se a
novela me contenta, ma haveis de deixar copiar.
- De muito bom grado - respondeu o vendeiro.
Enquanto os dois isto diziam, havia tomado Cardênio a novela e
começado a ler nela; e, parecendo-lhe o mesmo que ao padre, rogou-
lhe que a lesse de modo que todos a ouvissem.
- Leria - disse o padre, - se não fosse melhor gastar este tempo em
dormir que em ler.
- Farto repouso será para mim - disse Doroteia - entreter o tempo
ouvindo algum conto, pois ainda não tenho o espírito tão sossegado que
me conceda dormir quando fosse razão.
- Pois dessa maneira - disse o padre, - quero lê-la, por curiosidade
sequer; quiçá terá alguma de gosto.
Acudiu mestre Nicolás a rogar-lhe o mesmo, e Sancho também; o
qual visto pelo padre, e entendendo que a todos daria gosto e ele o
receberia, disse:
- Pois assim é, estejam-me todos atentos, que a novela começa
desta maneira:

CAPÍTULO XXXIII

Onde se conta a novela do “Curioso Impertinente”

Em Florença, cidade rica e famosa da Itália, na província que


chamam Toscana, viviam Anselmo e Lotário, dois cavaleiros ricos e
principais, e tão amigos que, por excelência e antonomásia, por todos
os que os conheciam “os dois amigos” eram chamados. Eram solteiros,
moços de uma mesma idade e de mesmos costumes, tudo o que era
bastante causa a que os dois com recíproca amizade convivessem. Bem
é verdade que Anselmo era algo mais inclinado aos passatempos
amorosos que Lotário, que preferia os da caça; mas, quando se
oferecia, deixava Anselmo de atender a seus gostos para seguir os de
Lotário, e Lotário deixava os seus para atender aos de Anselmo; e,
desta maneira, andavam tão a uma suas vontades, que não havia
acertado relógio que assim andasse.
Andava Anselmo perdido de amores por uma donzela principal e
formosa da mesma cidade, filha de tão bons pais e tão boa ela por si,
que decidiu, com o parecer de seu amigo Lotário, sem o qual nenhuma
coisa fazia, pedi-la por esposa a seus pais, e assim o pôs em execução;
e quem levou a embaixada foi Lotário, e quem concluiu o negócio tão a
gosto de seu amigo, que em breve tempo se viu posto na possessão que
desejava, e Camila tão contente de ter Anselmo por esposo, que não
cessava de dar graças ao céu, e a Lotário, por cujo meio tanto bem lhe
havia vindo. Nos primeiros dias, como todos os de boda costumam ser
alegres, frequentou Lotário como costumava a casa de seu amigo
Anselmo, procurando honrá-lo, festejá-lo e regozijá-lo com tudo aquilo
que a ele foi possível; mas, acabadas as bodas e sossegada já a
frequência das visitas e parabéns, começou Lotário a descuidar-se das
idas à casa de Anselmo, por parecer-lhe (como é razão que pareça a
todos os que forem discretos) que não se hão de visitar nem
frequentar as casas dos amigos casados da mesma maneira que quando
eram solteiros; porque, embora a boa e verdadeira amizade não pode
nem deve ser suspeitosa em nada, assim é tão delicada a honra do
casado, que parece que se pode ofender ainda pelos mesmos irmãos,
quanto mais pelos amigos.
Notou Anselmo a diminuição da presença de Lotário e fez-lhe
queixas grandes, dizendo-lhe que se ele soubesse que o casar-se havia
de ser motivo para não tratá-lo como costumava, que jamais o haveria
feito, e que se, pela boa convivência que os dois tinham enquanto ele
foi solteiro, haviam alcançado tão doce nome como o de ser chamados
“os dois amigos”, que não permitisse, por querer parecer circunspecto,
sem outro motivo algum, que tão famoso e tão agradável nome se
perdesse; e que assim, suplicava-lhe, se era lícito que tal modo de
falar se usasse entre eles, que voltasse a ser senhor de sua casa, e a
entrar e sair dela como antes, assegurando-lhe que sua esposa Camila
não tinha outro gosto nem outra vontade que a que ele queria que
tivesse, e que, por haver sabido ela com quantas veras os dois se
amavam, estava confusa de ver nele tanta esquivança.
A todas estas e outras muitas razões que Anselmo disse a Lotário
para persuadi-lo a voltar como costumava a sua casa, respondeu
Lotário com tanta prudência, discrição e aviso, que Anselmo ficou
satisfeito da boa intenção de seu amigo, e ficaram combinados que
dois dias na semana e nas festas fosse Lotário almoçar com ele; e,
embora isto ficou assim combinado entre os dois, propôs Lotário não
fazer mais que aquilo que visse que mais convinha à honra de seu
amigo, cujo crédito estimava em mais que o seu próprio. Dizia ele, e
dizia bem, que o casado a quem o céu havia concedido mulher formosa,
tanto cuidado havia de ter que amigos levava a sua casa como em olhar
com que amigas sua mulher conversava, porque o que não se faz nem
combina nas praças, nem nos templos, nem nas festas públicas, nem
estações (coisas que não todas vezes as hão de negar os maridos a
suas mulheres), se combina e facilita em casa da amiga ou a parenta
de quem mais confiança se tem.
Também dizia Lotário que tinham necessidade os casados de ter
cada um algum amigo que o advertisse dos descuidos que em seu
proceder fizesse, porque costuma acontecer que com o muito amor
que o marido à mulher tem, ou não a adverte ou não lhe diz, para não
zangá-la, que faça ou deixe de fazer algumas coisas, que o fazê-las ou
não, lhe seria de honra ou de vitupério; do qual, sendo do amigo
advertido, facilmente poria remédio em tudo. Mas, onde se achará
amigo tão discreto e tão leal e verdadeiro como aqui Lotário lhe pede?
Não o sei eu, por certo; só Lotário era este, que com toda solicitude e
advertimento olhava pela honra de seu amigo e procurava diminuir,
rarear e encurtar os dias de ir a sua casa, porque não parecesse mal
ao vulgo ocioso e aos olhos vagabundos e maliciosos a entrada de um
moço rico, gentil-homem e bem nascido, e das boas qualidades que ele
pensava que tinha, na casa de uma mulher tão formosa como Camila;
que, posto que sua bondade e valor podia pôr freio a toda maldizente
língua, mesmo assim não queria pôr em dúvida seu crédito nem o de
seu amigo, e por isto os mais dos dias do combinado os ocupava e
entretinha em outras coisas, que ele dava a entender ser inescusáveis.
Assim que, em queixas de um e desculpas do outro se passavam muitos
momentos e partes do dia.
Sucedeu, pois, que um que os dois andavam passeando por um prado
fora da cidade, Anselmo disse a Lotário as seguintes razões:
- Pensavas, amigo Lotário, que às mercês que Deus me fez em
fazer-me filho de tais pais como foram os meus e ao dar-me, não com
mão escassa, os bens, assim os que chamam de natureza como os de
fortuna, não posso eu corresponder com agradecimento que chegue ao
bem recebido, e supere ao que me fez em dar-me a ti por amigo e a
Camila por mulher própria: duas prendas que as estimo, se não no grau
que devo, no que posso. Pois com todas estes dons, que costumam ser
tudo com que os homens costumam e podem viver contentes, vivo eu o
mais despeitado e o mais desabrido homem de todo o universo mundo;
porque não sei que dias a esta parte me fatiga e aperta um desejo tão
estranho, e tão fora do uso comum de outros, que eu me maravilho de
mim mesmo, e me culpo e me zango a sós, e procuro calá-lo e encobri-
lo de meus próprios pensamentos; e assim me foi possível sair com
este segredo como se por indústria procurasse dizê-lo a todo o mundo.
E pois que, com efeito, ele há de fazer-se notório, quero que seja na
do arquivo de teu segredo, confiado que, com ele e com a diligência
que terás, como meu amigo verdadeiro, em remediar-me, eu me verei
logo livre da angústia que me causa, e chegará minha alegria por tua
solicitude ao grau que chegou meu descontentamento por minha
loucura.
Suspenso tinham a Lotário as razões de Anselmo, e não sabia em
que havia de dar tão larga preparação ou preâmbulo; e, embora fosse
revolvendo em sua imaginação que desejo poderia ser aquele que a seu
amigo tanto fatigava, esteve sempre muito longe da verdade; e, por
sair logo da agonia que lhe causava aquela suspensão, disse-lhe que
fazia notório agravo à sua muita amizade andar buscando rodeios para
dizer-lhe seus mais encobertos pensamentos, pois tinha certo que se
podia prometer dele, ou já conselhos para entretê-los, ou já remédio
para cumpri-los.
- Assim é a verdade - respondeu Anselmo, - e com essa confiança te
faço saber, amigo Lotário, que o desejo que me fatiga é pensar se
Camila, minha esposa, é tão boa e tão perfeita como eu penso; e não
posso inteirar-me desta verdade, se não provando-a de maneira que a
prova manifeste os quilates de sua bondade, como o fogo mostra os do
ouro. Porque eu tenho para mim, oh amigo!, que não é uma mulher
melhor de quanto é ou não é solicitada, e que aquela só é forte que não
se dobra às promessas, às dádivas, às lágrimas e às contínuas
importunações dos solícitos amantes. Porque, que há que agradecer -
dizia ele - que uma mulher seja boa, se ninguém lhe diz que seja má?
Que muito que esteja recolhida e temerosa a que não lhe dão ocasião
para que se solte, e a que sabe que tem marido que, colhendo-a na
primeira sem-vergonhice, há de tirar-lhe a vida? Assim que, a que é
boa por temor, ou por falta de lugar, eu não a quero ter naquela
estima em que terei à solicitada e perseguida que saiu com a coroa do
vencimento. De modo que, por estas razões e por outras muitas que te
poderia dizer para acreditar e fortalecer a opinião que tenho, desejo
que Camila, minha esposa, passe por estas dificuldades e se acrisole e
quilate no fogo de ver-se requerida e solicitada, e de quem tenha valor
para pôr nela seus desejos; e se ela sai, como creio que sairá, com a
palma desta batalha, terei eu por sem igual minha ventura; poderei eu
dizer que está cheio o vazio de meus desejos; direi que me coube em
sorte a mulher forte, de quem o Sábio diz que “quem a achará?” E
quando isto suceda ao revés do que penso, com o gosto de ver que
acertei em minha opinião, levarei sem pena a que de razão poderá
causar-me minha tão custosa experiência. E pressuposto que nenhuma
coisa de quantas me disseres contra meu desejo há de ser de algum
proveito para deixar de pô-lo em prática, quero, oh amigo Lotário!, que
te disponhas a ser o instrumento que lavre esta obra de meu gosto;
que eu te darei lugar para que o faças, sem faltar-te tudo aquilo que
eu vir ser necessário para requestar uma mulher honesta, honrada,
recolhida e desinteressada. E move-me, entre outras coisas, a confiar
a ti esta tão árdua empresa, o ver que se de ti é vencida Camila, não
há de chegar o vencimento a todo transe e rigor, senão a só ter por
feito o que se há de fazer, por bom respeito; e assim, não ficarei eu
ofendido mais que com o desejo, e minha injúria ficará escondida na
virtude de teu silêncio, que bem sei que no que me tocar há de ser
eterno como o da morte. Assim que, se queres que eu tenha vida que
possa dizer que o é, desde logo hás de entrar nesta amorosa batalha,
não tíbia nem preguiçosamente, senão com o afinco e diligência que
meu desejo pede, e com a confiança que nossa amizade me assegura.
Estas foram as razões que Anselmo disse a Lotário, a todas as quais
esteve tão atento, que se não foram as que ficam escritas que lhe
disse, não despregou seus lábios até que houve acabado; e, vendo que
não dizia mais, depois que o esteve olhando um bom espaço, como se
olhasse outra coisa que jamais houvesse visto, que lhe causasse
admiração e espanto, disse-lhe:
- Não me posso persuadir, oh amigo Anselmo!, a que não sejam
burlas as coisas que me disseste; que, a pensar que deveras as dizias,
não consentiria que tão adiante passasses, porque com não escutar-te
preveniria tua larga arenga. Sem dúvida imagino, ou que não me
conheces, ou que eu não te conheço. Mas não; que bem sei que és
Anselmo, e tu sabes que eu sou Lotário; o dano está em que eu penso
que não és o Anselmo que costumavas, e tu deves haver pensado que
tampouco eu sou o Lotário que devia ser, porque as coisas que me
disseste, nem são daquele Anselmo meu amigo, nem as que me pedes
se hão de pedir àquele Lotário que tu conheces; porque os bons amigos
hão de provar a seus amigos e valer-se deles, como disse um poeta,
“usque ad aras”, que quis dizer que não se haviam de valer de sua
amizade em coisas que fossem contra Deus. Pois, se isto sentiu um
gentio da amizade, quanto melhor é que o sinta o cristão, que sabe que
por nenhuma humana há de perder a amizade divina? E quando o amigo
chegasse tão longe que pusesse à parte os respeitos do céu por
atender aos de seu amigo, não há de ser por coisas ligeiras e de pouco
momento, senão por aquelas em que vá a honra e a vida de seu amigo.
Pois diz-me tu agora, Anselmo: qual destas duas coisas tens em perigo
para que eu me aventure a comprazer-te e a fazer uma coisa tão
detestável como me pedes? Nenhuma, por certo; antes, me pedes,
segundo eu entendo, que procure e solicite tirar-te a honra e a vida, e
tirá-la a mim juntamente. Porque se eu hei de procurar tirar-te a
honra, claro está que te tiro a vida, pois o homem sem honra pior é que
um morto; e, sendo eu o instrumento, como tu queres que o seja, de
tanto mal teu, não venho a ficar desonrado, e, pelo mesmo
conseguinte, sem vida? Escuta, amigo Anselmo, e tem paciência de não
responder-me até que acabe de dizer-te o que se me oferecer acerca
do que te pediu teu desejo; que tempo ficará para que tu me repliques
e eu te escute.
- Com prazer - disse Anselmo; - diz o que quiseres.
E Lotário prosseguiu dizendo:
- Parece-me, oh Anselmo!, que tens tu agora o engenho como o que
sempre têm os mouros, aos quais não se lhes pode dar a entender o
erro de sua seita com as determinações da Santa Escritura, nem com
razões que consistam em especulação do entendimento, nem que vão
fundadas em artigos de fé, senão que lhes hão de trazer exemplos
palpáveis, fáceis, inteligíveis, demonstrativos, indubitáveis, com
demonstrações matemáticas que não se podem negar, como quando
dizem: “Se de duas partes iguais tiramos partes iguais, as que ficam
também são iguais”; e, quando isto não entendam de palavra, como,
com efeito, não o entendem, há de mostrar-lhes com as mãos e pô-lo
diante dos olhos, e, ainda assim, não basta ninguém com eles a
persuadi-los das verdades de minha sacra religião. E este mesmo
termo e modo me convirá usar contigo, porque o desejo que em ti
nasceu vai tão desencaminhado e tão fora de tudo aquilo
que tenha sombra de razoável, que me parece que há de ser tempo
perdido o que ocupar em dar-te a entender tua simplicidade - que por
agora não lhe quero dar outro nome -, e ainda estou por deixar-te em
teu desatino, em pena de teu mau desejo; mas não me deixa usar
deste rigor a amizade que te tenho, a qual não consente que te deixe
posto em tão manifesto perigo de perder-te. E porque claro o vejas,
diz-me, Anselmo: tu não me disseste que tenho de solicitar a uma
retirada, persuadir a uma honesta, oferecer a uma desinteressada,
servir a uma prudente? Sim que o disseste. Pois se tu sabes que tens
mulher retirada, honesta, desinteressada e prudente, que buscas? E
se pensas que de todos os meus assaltos há de sair vencedora, como
sairá sem dúvida, que melhores títulos pensas dar-lhe depois que os
que agora tem, ou que será mais depois do que é agora? Ou é que tu
não a tens pela que dizes, ou tu não sabes o que pedes. Se não a tens
pelo que dizes, para que queres prová-la, senão, como a má, fazer dela
o que mais te vier em gosto? Mas se é tão boa como crês,
impertinente coisa será fazer experiência da mesma verdade, pois,
depois de feita, se há de ficar com a estimação que primeiro tinha.
Assim que, é razão concluinte que o intentar as coisas das quais antes
nos pode suceder dano que proveito é de juízos sem razão e
temerários, e mais quando querem intentar aquelas a que não são
forçados nem compelidos, e que de muito longe trazem descoberto
que o intentá-las é manifesta loucura. As coisas dificultosas se
intentam por Deus, ou pelo mundo, ou por ambos: as que se cometem
por Deus são as que cometeram os santos, intentando viver vida de
anjos em corpos humanos; as que se cometem por respeito do mundo
são as daqueles que passam tanta infinidade de água, tanta
diversidade de climas, tanta estranheza de gentes, por adquirir estes
que chamam bens de fortuna. E as que se intentam por Deus e pelo
mundo juntamente são aquelas dos valorosos soldados, que apenas
veem no contrário muro aberto tanto espaço quanto é o que pôde
fazer uma redonda bala de artilharia, quando, posto à parte todo
temor, sem fazer discurso nem advertir ao manifesto perigo que os
ameaça, levados em voo pelas asas do desejo de voltar por sua fé, por
sua nação e por seu rei, se arrojam intrepidamente pelo meio de mil
distintas mortes que os esperam. Estas coisas são as que costumam
intentar-se, e é honra, glória e proveito intentá-las, embora tão cheias
de inconvenientes e perigos. Mas a que tu dizes que queres intentar e
pôr em prática, nem te há de alcançar glória de Deus, bens da fortuna,
nem fama com os homens; porque, posto que saias dela como desejas,
não hás de ficar nem mais ufano, nem mais rico, nem mais honrado que
estás agora; e se não sais, te hás de ver na maior miséria que
imaginar-se possa, porque não te há de aproveitar pensar então que
não sabe ninguém a desgraça que te sucedeu, porque bastará para
afligir-te e desfazer-te que a saibas tu mesmo. E para confirmação
desta verdade, te quero dizer uma estância que fez o famoso poeta
Luís Tansilo, no fim de sua primeira parte de As lágrimas de São
Pedro, que diz assim:

Cresce a dor e cresce a vergonha


em Pedro, quando o dia se mostrou;
e, embora ali não vê a ninguém, se envergonha
de si mesmo, por ver que havia pecado:
que a um magnânimo peito a haver vergonha
não só há de mover-lhe o ser visto,
que de si se envergonha quando erra,
se bem outro não vê que céu e terra.

Assim que não evitarás com o segredo tua dor; antes, terás que
chorar continuamente, se não lágrimas dos olhos, lágrimas de sangue
do coração, como as chorava aquele ingênuo doutor que nosso poeta
nos conta que fez a prova do vaso, que, com melhor razão, se escusou
de fazê-la o prudente Reinaldo; que, posto que aquilo seja ficção
poética, tem em si encerrados segredos morais dignos de ser
advertidos e entendidos e imitados. Quanto mais que, com o que agora
penso dizer-te, acabarás de vir em conhecimento do grande erro que
queres cometer. Diz-me, Anselmo, se o céu, ou a sorte boa, te
houvesse feito senhor e legítimo possuidor de um finíssimo diamante,
de cuja bondade e quilates estivessem satisfeitos quantos lapidários o
vissem, e que todos a uma voz e de comum parecer dissessem que
chegava em quilates, bondade e fineza a quanto se podia estender a
natureza de tal pedra, e tu mesmo o cresses assim, sem saber outra
coisa em contrário, seria justo que te viesse em desejo de tomar
aquele diamante, e pô-lo entre uma bigorna e um martelo, e ali, a pura
força de golpes e braços, provar se é tão duro e tão fino como dizem?
E mais, se o pusesses em prática; que, caso a pedra fizesse
resistência a tão néscia prova, não por isso se lhe juntaria mais valor
nem mais fama; e se se rompesse, coisa que poderia ser, não se
perderia tudo? Sim, por certo, deixando a seu dono no conceito de que
todos o tenham por bruto. Pois faz de conta, Anselmo amigo, que
Camila é finíssimo diamante, assim em teu conceito como no alheio, e
que não é razão pô-la em contingência de que se quebre, pois, embora
fique com sua integridade, não pode subir a mais valor do que agora
tem; e se faltasse e não resistisse, considera desde agora como
ficarias sem ela, e com quanta razão te poderias queixar de ti mesmo,
por haver sido causa de sua perdição e a tua. Vê que não há joia no
mundo que tanto valha como a mulher casta e honrada, e que toda a
honra das mulheres consiste na opinião boa que delas se tem; e, pois a
de tua esposa é tal que chega ao extremo de bondade que sabes, para
que queres pôr esta verdade em dúvida? Vê, amigo, que a mulher é
animal imperfeito, e que não se lhe hão de pôr embaraços onde
tropece e caia, senão tirá-los e limpar-lhe o caminho de qualquer
inconveniente, para que sem pesar corra ligeira a alcançar a perfeição
que lhe falta, que consiste no ser virtuosa. Contam os naturais que o
arminho é um animalejo que tem uma pele branquíssima, e que quando
querem caçá-lo, os caçadores usam deste artifício: que, sabendo os
lugares por onde costuma passar, os atapetam de lodo, e depois,
espantando-o com a voz, encaminham-no até aquele lugar, e assim que
o arminho chega ao lodo, fica parado e se deixa prender e cativar, a
troco de não passar pela lama e perder e sujar sua brancura, que a
estima mais que a liberdade e a vida. A honesta e casta mulher é
arminho, e é mais que neve branca e limpa a virtude da honestidade; e
o que quiser que não a perca, antes a guarde e conserve, há de usar de
outro estilo diferente que com o arminho se tem, porque não lhe hão
de pôr diante a lama dos regalos e serviços dos importunos amantes,
porque quiçá, e ainda sem quiçá, não tem tanta virtude e força natural
que possa por si mesma atropelar e passar por aqueles embaraços, e é
necessário tirá-los e pôr-lhe diante a limpeza da virtude e a beleza
que encerra em si a boa fama. É também a boa mulher como espelho
de cristal luzente e claro; mas está sujeito a empanar-se e escurecer-
se com qualquer alento que o toque. Há-se de usar com a honesta
mulher o estilo que com as relíquias: adorá-las e não tocá-las. Há-se
de guardar e estimar a mulher boa como se guarda e estima um
formoso jardim que está cheio de flores e rosas, cujo dono não
consente que ninguém lhe passeie nem manuseie; basta que desde
longe, e por entre as cancelas de ferro, gozem de sua fragrância e
formosura. Finalmente, quero dizer-te uns versos que me vieram à
memória, que os ouvi em uma comédia moderna, que me parece que
vêm a propósito do que vamos tratando. Aconselhava um prudente
velho a outro, pai de uma donzela, que a recolhesse, guardasse e
encerrasse, e entre outras razões, disse-lhe estas:

É de vidro a mulher;
mas não se há de provar
se se pode ou não quebrar,
porque tudo poderia ser.
E é mais fácil o quebrar-se,
e não é cordura pôr-se
a perigo de romper-se
o que não pode soldar-se.
E nesta opinião estejam
todos, e em razão a fundo:
que se há Dânaes no mundo,
há chuvas de ouro também.

Quanto até aqui te disse, oh Anselmo!, foi pelo que a ti te


toca; e agora é bem que se ouça algo do que a mim me convém; e se
for prolixo, perdoa-me, que tudo o requer o labirinto onde entraste e
de onde queres que eu te tire. Tu me tens por amigo e queres tirar-me
a honra, coisa que é contra toda amizade; e ainda não só pretendes
isto, senão que procuras que eu a tire a ti. Que ma queres tirar a mim
está claro, pois, quando Camila veja que eu a galanteio, como me pedes,
certo está que me há de ter por homem sem honra e malvisto, pois
intento e faço uma coisa tão fora daquilo que o ser quem sou e tua
amizade me obriga. De que queres que a tire de ti não há dúvida,
porque, vendo Camila que eu a pretendo, há de pensar que eu vi nela
alguma leviandade que me deu atrevimento a descobrir-lhe meu mau
desejo; e, tendo-se por desonrada, toca-te, como a coisa sua, sua
mesma desonra. E daqui nasce o que comumente se pratica: que o
marido da mulher adúltera, embora ele não o saiba nem haja dado
ocasião para que sua mulher não seja a que deve, nem estivesse em
suas mãos, nem em seu descuido e pouco recato perturbar sua
desgraça, contudo, chamam-no e o nomeiam com nome de vitupério e
baixo; e em certa maneira o veem, os que a maldade de sua mulher
sabem, com olhos de menosprezo, em vez de olhá-lo com os de lástima,
vendo que não por sua culpa, senão pelo gosto de sua má companheira,
está naquela desventura. Mas quero-te dizer a causa por que com
justa razão é desonrado o marido da mulher má, embora ele não saiba
que o é, nem tenha culpa, nem haja sido parte, nem dado ocasião, para
que ela o seja. E não te canses de ouvir-me, que tudo há de redundar
em teu proveito. Quando Deus criou nosso primeiro pai no Paraíso
terrenal, diz a Divina Escritura que infundiu Deus sono em Adão, e
que, estando dormindo, lhe tirou uma costela do lado esquerdo, da qual
formou a nossa mãe Eva; e, assim que Adão despertou e a viu, disse:
“Esta é carne de minha carne e osso de meus ossos”. E Deus disse:
“Por esta deixará o homem seu pai e mãe, e serão dois em uma carne
mesma”. E então foi instituído o divino sacramento do matrimônio, com
tais laços que só a morte pode desatá-los. E tem tanta força e virtude
este milagroso sacramento, que faz que duas diferentes pessoas
sejam uma mesma carne; e ainda faz mais nos bons casados, que,
embora têm duas almas, não têm mais de uma vontade. E daqui vem
que, como a carne da esposa seja uma mesma com a do esposo, as
manchas que nela caem, ou os defeitos que se procuram, redundam na
carne do marido, embora ele não haja dado, como fica dito, ocasião
para aquele dano. Porque, assim como a dor do pé ou de qualquer
membro do corpo humano lhe sente todo o corpo, por ser tudo de uma
carne mesma, e a cabeça sente o dano do tornozelo, sem que ela se lhe
haja causado, assim o marido é participante da desonra da mulher, por
ser uma mesma coisa com ela. E como as honras e desonras do mundo
sejam todas e nasçam de carne e sangue, e as da mulher má sejam
deste gênero, é forçoso que ao marido caiba parte delas, e seja tido
por desonrado sem que ele o saiba. Vê, pois, oh Anselmo!, o perigo em
que te pões em querer turvar o sossego em que tua boa esposa vive.
Vê por quão vã e impertinente curiosidade queres revoltar os humores
que agora estão sossegados no peito de tua casta esposa. Adverte que
o que aventuras a ganhar é pouco, e que o que perderás será tanto que
o deixarei em seu ponto, porque me faltam palavras para encarecê-lo.
Mas se tudo quanto disse não basta a mover-te de teu mau propósito,
bem podes buscar outro instrumento de tua desonra e desventura, que
eu não penso sê-lo, embora por isso perca tua amizade, que é a maior
perda que imaginar posso.
Calou ao dizer isto o virtuoso e prudente Lotário, e Anselmo ficou
tão confuso e pensativo que por um bom espaço não lhe pôde
responder palavra; mas, enfim, disse-lhe:
- Com a atenção que viste, escutei, Lotário amigo, quanto quiseste
dizer-me, e em tuas razões, exemplos e comparações vi a muita
discrição que tens e o extremo da verdadeira amizade que alcanças; e
também vejo e confesso que se não sigo teu parecer e vou atrás do
meu, vou fugindo do bem e correndo atrás do mal. Proposto isto, hás
de considerar que eu padeço agora a enfermidade que costumam ter
algumas mulheres, que se lhes apraz comer terra, gesso, carvão e
outras coisas piores, ainda asquerosas para olhar-se, quanto mais para
comer-se; assim que é mister usar de algum artifício para que eu sane,
e isto se podia fazer com facilidade, só com que comeces, embora
tíbia e fingidamente, a requestar Camila, a qual não há de ser tão
tenra que aos primeiros encontros dê com sua honestidade por terra;
e com só este princípio ficarei contente e tu haverás cumprido com o
que deves a nossa amizade, não somente dando-me a vida, senão
persuadindo-me de não ver-me sem honra. E estás obrigado a fazer
isto por uma razão só; e é que, estando eu, como estou, determinado
de pôr em prática esta prova, não hás tu de consentir que eu dê conta
de meu desatino a outra pessoa, com que poria em aventura a honra
que tu procuras que não perca; e, quando o teu não esteja no ponto que
deve na intenção de Camila enquanto a requestares, importa pouco ou
nada, pois com brevidade, vendo nela a integridade que esperamos, lhe
poderás dizer a pura verdade de nosso artifício, com que voltará teu
crédito ao ser primeiro. E pois tão pouco aventuras e tanto
contentamento me podes dar aventurando-te, não o deixes de fazer,
embora mais inconvenientes se te ponham diante, pois, como já disse,
com só que comeces darei por concluída a causa.
Vendo Lotário a resoluta vontade de Anselmo, e não sabendo que
mais exemplos trazer-lhe nem que mais razões mostrar-lhe para que
não a seguisse, e vendo que o ameaçava que daria a outro conta de seu
mau desejo, por evitar maior mal, decidiu contentá-lo e fazer o que
lhe pedia, com propósito e intenção de guiar aquele negócio de modo
que, sem alterar os pensamentos de Camila, ficasse Anselmo
satisfeito; e assim, lhe respondeu que não comunicasse seu
pensamento a outro algum, que ele tomava a seu cargo aquela empresa,
a qual começaria quando a ele lhe desse mais gosto. Abraçou-o
Anselmo terna e amorosamente, e agradeceu-lhe seu oferecimento,
como se alguma grande mercê lhe houvesse feito; e ficaram de acordo
entre os dois que no dia seguinte se começasse a obra; que ele lhe
daria lugar e tempo como a sós pudesse falar a Camila, e também lhe
daria dinheiros e joias que dar-lhe e que oferecer-lhe. Aconselhou-o
que lhe desse músicas, que escrevesse versos em sua louvação, e que,
quando ele não quisesse tomar trabalho de fazê-los, ele mesmo os
faria. A tudo se ofereceu Lotário, bem com diferente intenção da que
Anselmo pensava.
E com este acordo voltaram à casa de Anselmo, onde acharam
Camila com ânsia e cuidado, esperando seu esposo, porque naquele dia
tardava em vir mais que o de costume.
Foi-se Lotário à sua casa, e Anselmo ficou na sua, tão contente
como Lotário foi pensativo, não sabendo que fazer para sair bem
daquele impertinente negócio. Mas naquela noite pensou o modo que
teria para enganar Anselmo, sem ofender Camila; e no outro dia veio
almoçar com seu amigo, e foi bem recebido por Camila, a qual o
recebia e regalava com muita vontade, por entender a boa que seu
esposo lhe tinha.
Acabaram de almoçar, tiraram a mesa e Anselmo disse a Lotário que
ficasse ali com Camila, enquanto ele ia a um negócio forçoso, que
dentro de hora e meia voltaria. Rogou-lhe Camila que não fosse e
Lotário se ofereceu a fazer-lhe companhia, mas nada aproveitou com
Anselmo; antes, insistiu com Lotário que ficasse e o aguardasse,
porque tinha que tratar com ele uma coisa de muita importância. Disse
também a Camila que não deixasse só a Lotário enquanto ele não
voltasse. Com efeito, ele soube tão bem fingir a necessidade, ou
necedade, de sua ausência, que ninguém poderia entender que era
fingida. Foi-se Anselmo, e ficaram sós à mesa Camila e Lotário, porque
a demais gente de casa toda havia ido almoçar. Viu-se Lotário posto na
paliçada que seu amigo desejava e com o inimigo diante, que poderia
vencer com apenas sua formosura um esquadrão de cavaleiros
armados: vede se era razão que o temesse Lotário.
Mas o que fez foi pôr o cotovelo sobre o braço da cadeira e a mão
aberta na face, e, pedindo perdão a Camila pela descortesia,
disse que queria repousar um pouco enquanto Anselmo não voltava.
Camila lhe respondeu que melhor repousaria no dossel que na cadeira,
e assim, rogou-lhe que entrasse para dormir nele. Não quis Lotário, e
ali ficou adormecido até que voltou Anselmo, o qual, como achou Camila
em seu aposento e Lotário dormindo, creu que, como se havia tardado
tanto, já haveriam tido os dois lugar para falar, e ainda para dormir, e
não viu a hora em que Lotário despertasse, para ir com ele para fora e
perguntar-lhe sobre sua ventura.
Tudo sucedeu como ele quis: Lotário despertou, e logo saíram os
dois de casa, e assim, lhe perguntou o que desejava, e lhe respondeu
Lotário que não lhe havia parecido ser bem que a primeira vez se
descobrisse de todo; e assim, não havia feito outra coisa que louvar a
Camila de formosa, dizendo-lhe que em toda a cidade não se tratava
de outra coisa que de sua formosura e discrição, e que este lhe havia
parecido bom princípio para entrar ganhando a vontade, e dispondo-a a
que outra vez o escutasse com gosto, usando nisto do artifício que o
demônio usa quando quer enganar alguém que está em prontidão de
cuidar-se: transforma-se em anjo de luz, sendo-o ele de trevas, e,
pondo-lhe diante aparências boas, ao cabo descobre quem é e sai com
sua intenção, se aos princípios não é descoberto seu engano. Tudo isto
contentou muito a Anselmo, e disse que cada dia daria o mesmo lugar,
embora não saísse de casa, porque nela se ocuparia em coisas que
Camila não pudesse ter conhecimento de seu artifício.
Sucedeu, pois, que se passaram muitos dias que, sem dizer Lotário
palavra a Camila, respondia a Anselmo que lhe falava e jamais podia
tirar dela uma pequena mostra de vir em nenhuma coisa que má fosse,
nem ainda dar um sinal de sombra de esperança; antes, dizia que o
ameaçava que se aquele mau pensamento não deixasse, que o havia de
dizer a seu esposo.
- Bem está - disse Anselmo. - Até aqui resistiu Camila às palavras; é
mister ver como resiste às obras: eu vos darei manhã quatro mil
escudos de ouro para que os ofereçais, e ainda os deis, e outros
tantos para que compreis joias com que cevá-la; que as mulheres
costumam ser aficionadas, e mais se são formosas, por mais castas
que sejam, a isto de trajar-se bem e andar enfeitadas; e se ela
resiste a esta tentação, eu ficarei satisfeito e não vos darei mais
pesar.
Lotário respondeu que já que havia começado, que ele levaria até o
fim aquela empresa, embora entendesse sair dela cansado e vencido.
No outro dia recebeu os quatro mil escudos, e com eles quatro mil
confusões, porque não sabia que dizer para mentir de novo; mas, com
efeito, decidiu dizer-lhe que Camila estava tão íntegra quanto às
dádivas e promessas como às palavras, e que não havia para que
cansar-se mais, porque todo o tempo se gastava em vão.
Mas a sorte, que as coisas guiava de outra maneira, ordenou que,
havendo deixado Anselmo sós Lotário e Camila, como outras vezes
costumava, ele se fechou num aposento e pelos buracos da fechadura
esteve olhando e escutando o que os dois tratavam, e viu que em mais
de meia hora Lotário não falou palavra a Camila, nem a falaria se ali
estivesse um século, e caiu na conta de que quanto seu amigo lhe havia
dito das respostas de Camila tudo era ficção e mentira. E para ver se
isto era assim, saiu do aposento, e, chamando Lotário à parte,
perguntou-lhe que novas havia e em que humor estava Camila. Lotário
lhe respondeu que não pensava mais falar-lhe naquele assunto, porque
respondia tão áspera e desabridamente, que não teria ânimo para
voltar a dizer-lhe coisa alguma.
- Ah! - disse Anselmo, - Lotário, Lotário, e quão mal correspondes
ao que me deves e ao muito que em ti confio! Agora te estive olhando
pelo lugar que permite a entrada desta chave, e vi que não disseste
palavra a Camila, por onde me dou a entender que ainda as primeiras
lhe tens por dizer; e se isto é assim, como sem dúvida o é, para que me
enganas, ou por que queres tirar-me com tua indústria os meios que eu
poderia achar para conseguir meu desejo?
Não disse mais Anselmo, mas bastou o que havia dito para deixar
Lotário vexado e confuso; o qual, quase como tomando por ponto de
honra o haver sido achado em mentira, jurou a Anselmo que desde
aquele momento tomava tão a seu cargo o contentar-lhe e não mentir-
lhe, que o veria se com curiosidade o espiasse; quanto mais, que não
seria mister usar de nenhuma diligência, porque a que ele pensava
fazer para satisfazê-lo o tiraria de toda suspeita. Creu-lhe Anselmo, e
para dar-lhe comodidade mais segura e menos sobressaltada,
determinou de fazer ausência de sua casa por oito dias, indo à de um
amigo seu, que estava em uma aldeia, não longe da cidade, com o qual
amigo combinou que lhe enviasse a chamar com muitas veras, para ter
pretexto com Camila de sua partida.
Desditado e mal advertido de ti, Anselmo! Que é o que fazes? Que
é o que planejas? Que é o que ordenas? Vê que fazes contra ti mesmo,
planejando tua desonra e ordenando tua perdição. Boa é tua esposa
Camila, quieta e sossegadamente a possuis, ninguém sobressalta teu
gosto, seus pensamentos não saem das paredes de sua casa, tu és seu
céu na terra, o alvo de seus desejos, o cumprimento de seus gostos e a
medida por onde mede sua vontade, ajustando-a em tudo com a tua e
com a do céu. Pois se a mina de sua honra, formosura, honestidade e
recolhimento te dá sem nenhum trabalho toda a riqueza que tem e tu
podes desejar, para que queres escavar a terra e buscar novos veios
de novo e nunca visto tesouro, pondo-te a perigo que toda venha
abaixo, pois, enfim, se sustenta sobre os débeis arrimos de sua fraca
natureza? Vê que o que busca o impossível é justo que o possível se lhe
negue, como o disse melhor um poeta, dizendo:

Busco na morte a vida,


saúde na enfermidade,
na prisão liberdade,
no fechado saída
e no traidor lealdade.
Mas minha sorte, de quem
jamais espero algum bem,
com o céu há estatuído
que, pois o impossível peço,
o possível ainda não me deem.

Foi-se no outro dia Anselmo à aldeia, deixando dito a Camila que o


tempo que ele estivesse ausente viria Lotário a olhar por sua casa e a
almoçar com ela; que tivesse cuidado de tratá-lo como a sua mesma
pessoa. Afligiu-se Camila, como mulher discreta e honrada, da ordem
que seu marido lhe deixava, e disse-lhe que advertisse que não estava
bem que ninguém, ele ausente, ocupasse a cadeira de sua mesa, e que
se o fazia por não ter confiança que ela saberia governar sua casa, que
provasse por aquela vez, e veria por experiência como para maiores
cuidados era bastante. Anselmo lhe replicou que aquele era seu gosto,
e que não tinha mais que fazer que baixar a cabeça e obedecer-lhe.
Camila disse que assim o faria, embora contra sua vontade.
Partiu Anselmo, e no outro dia veio a sua casa Lotário, onde foi
recebido por Camila com amoroso e honesto acolhimento; a qual jamais
se pôs em lugar onde Lotário a visse a sós, porque sempre andava
rodeada de seus criados e criadas, especialmente de uma donzela sua,
chamada Leonela, a quem ela muito queria, por haver-se criado desde
meninas as duas juntas em casa dos pais de Camila, e quando se casou
com Anselmo a trouxe consigo. Nos três dias primeiros nunca Lotário
lhe disse nada, embora pudesse, quando se tirava a mesa e os outros
iam almoçar com muita pressa, porque assim o tinha mandado Camila. E
ainda tinha ordem Leonela que almoçasse antes de Camila, e que de
seu lado jamais saísse; mas ela, que em outras coisas de seu gosto
tinha posto o pensamento e havia mister aquelas horas e aquele lugar
para ocupá-lo em suas alegrias, não cumpria todas as vezes o
mandamento de sua senhora; antes, os deixava sós, como se aquilo lhe
houvessem mandado. Mas a honesta presença de Camila, a gravidade
de seu rosto, a compostura de sua pessoa era tanta, que punha freio à
língua de Lotário.
Mas o proveito que as muitas virtudes de Camila fizeram, pondo
silêncio na língua de Lotário, redundou mais em dano dos dois, porque
se a língua calava, o pensamento discorria e tinha lugar de contemplar,
parte por parte, todos os extremos de bondade e de formosura que
Camila tinha, bastantes a enamorar uma estatua de mármore, quanto
mais um coração de carne.
Olhava-a Lotário no lugar e espaço em que havia de falar-lhe, e
considerava quão digna era de ser amada; e esta consideração
começou pouco a pouco a dar assaltos aos respeitos que a Anselmo
tinha, e mil vezes quis ausentar-se da cidade e ir para onde jamais
Anselmo o visse, nem ele visse Camila; mas já lhe fazia impedimento e
detinha o gosto que achava em olhá-la. Fazia força e lutava consigo
mesmo por descartar e não sentir o contentamento que o levava a
olhar Camila. Culpava-se a sós de seu desatino, chamava-se mau amigo
e ainda mau cristão; fazia discursos e comparações entre ele e
Anselmo, e todos davam em dizer que mais havia sido a loucura e
confiança de Anselmo que sua pouca fidelidade, e que se assim tivesse
desculpa para com Deus como para com os homens do que pensava
fazer, que não temeria pena por sua culpa.
Com efeito, a formosura e a bondade de Camila, juntamente com a
ocasião que o ignorante marido lhe havia posto nas mãos, deram com a
lealdade de Lotário em terra. E sem olhar a outra coisa que aquela a
que seu gosto o inclinava, ao cabo de três dias da ausência de
Anselmo, nos quais esteve em contínua batalha por resistir a seus
desejos, começou a galantear Camila, com tanta perturbação e com
tão amorosas razões que Camila ficou suspensa, e não fez outra coisa
que levantar-se de onde estava e entrar em seu aposento, sem
responder-lhe palavra alguma. Mas não por esta sequidão se desmaiou
em Lotário a esperança, que sempre nasce juntamente com o amor;
antes, teve em mais a Camila. A qual, havendo visto em Lotário o que
jamais pensara, não sabia que fazer. E parecendo-lhe não ser coisa
segura nem bem feita dar-lhe ocasião nem lugar a que outra vez lhe
falasse, decidiu enviar naquela mesma noite, como o fez, um criado seu
com um bilhete a Anselmo, onde lhe escreveu estas razões:

CAPÍTULO XXXIV

Onde prossegue a novela do “Curioso Impertinente”

Assim como costuma dizer-se que parece mal o exército sem seu general e o
castelo sem seu castelão, digo eu que parece muito pior a mulher casada e moça
sem seu marido, quando justíssimas ocasiões não o impedem. Eu me acho tão mal
sem vós, e tão impossibilitada de não poder suportar esta ausência, que se logo
não vindes, me haverei de ir passar uma temporada em casa de meus pais,
embora deixe sem guardião a vossa; porque o que me deixastes, se é que ficou
com tal título, creio que olha mais por seu gosto que pelo que a vós vos toca; e,
pois sois discreto, não tenho mais que dizer-vos, nem ainda é bem que mais vos
diga.

Esta carta recebeu Anselmo, e entendeu por ela que Lotário havia
já começado a empresa, e que Camila devia haver respondido como ele
desejava; e, alegre sobremaneira por tais novas, respondeu a Camila,
por meio de um emissário, que não saísse de sua casa de modo nenhum,
porque ele voltaria com muita brevidade. Admirada ficou Camila da
resposta de Anselmo, que a pôs em mais confusão que antes, porque
nem se atrevia a estar em sua casa, nem menos ir-se à de seus pais;
porque ao ficar corria perigo sua honestidade, e na ida ia contra o
mandamento de seu esposo.
Enfim, se resolveu no que lhe esteve pior, que foi no ficar, com
determinação de não fugir à presença de Lotário, por não dar que
dizer a seus criados; e já lhe pesava haver escrito o que escreveu a
seu esposo, temerosa de que pensasse que Lotário havia visto nela
alguma desenvoltura que o houvesse movido a não guardar-lhe o
decoro que devia. Mas, confiante em sua bondade, confiou-se a Deus e
a seu bom pensamento, com que pensava resistir calando a tudo aquilo
que Lotário dizer-lhe quisesse, sem dar mais conta a seu marido, por
não pô-lo em alguma pendência e trabalho. E ainda andava buscando
maneira como desculpar Lotário com Anselmo, quando lhe perguntasse
o motivo que a havia movido a escrever-lhe aquele papel. Com estes
pensamentos, mais honrados que acertados nem proveitosos, esteve
no outro dia escutando Lotário, o qual carregou a mão de maneira que
começou a titubear a firmeza de Camila, e sua honestidade teve muito
que fazer em atender aos olhos, para que não dessem mostra de
alguma amorosa compaixão que as lágrimas e as razões de Lotário em
seu peito haviam despertado. Tudo isto notava Lotário, e todo o
incendiava.
Finalmente, a ele pareceu que era preciso, no espaço e lugar que
dava a ausência de Anselmo, apertar o cerco àquela fortaleza. E assim,
confirmou sua pretensão com as louvações de sua formosura, porque
não há coisa que mais rápido renda e invada as fortificadas torres da
vaidade das formosas que a mesma vaidade, posta nas línguas da
adulação. Com efeito, ele, com toda diligência, minou a cidadela de sua
integridade, com tais apetrechos que, embora Camila fosse toda de
bronze, viria ao chão. Chorou, rogou, ofereceu, adulou, porfiou, e
fingiu Lotário com tantos sentimentos, com mostras de tantas veras,
que deu ao través com o recato de Camila e veio a triunfar do que
menos pensava e mais desejava.
Rendeu-se Camila, Camila se rendeu; mas é demais, se a amizade de
Lotário desmoronou? Exemplo claro que nos mostra que só se vence a
paixão amorosa fugindo-lhe, e que ninguém se há de pôr a braços com
tão poderoso inimigo, porque é mister forças divinas para vencer as
suas humanas. Só soube Leonela a fraqueza de sua senhora, porque
não a puderam encobrir os dois maus amigos e novos amantes. Não quis
Lotário dizer a Camila a pretensão de Anselmo, nem que ele lhe havia
dado lugar para chegar àquele ponto, porque não tivesse em menos seu
amor e pensasse que assim, acaso e sem pensar, e não de propósito, a
havia requestado.
Voltou dali a poucos dias Anselmo à sua casa, e não viu o que
faltava nela, que era o que em menos tinha e mais estimava. Foi logo
ver Lotário, e achou-o em sua casa; abraçaram-se os dois, e Anselmo
perguntou pelas novas de sua vida ou de sua morte.
- As novas que te poderei dar, oh amigo Anselmo! - disse Lotário, -
são de que tens uma mulher que dignamente pode ser exemplo e coroa
de todas as mulheres boas. As palavras que lhe disse as levou o ar, os
oferecimentos foram tidos em pouco, as dádivas não se admitiram, de
algumas lágrimas fingidas minhas fez burla notável. Em suma, assim
que Camila é compêndio de toda beleza, é arquivo onde habita a
honestidade e vive o comedimento e o recato, e todas as virtudes que
podem fazer louvável e bem afortunada uma honrada mulher. Volte a
tomar teus dinheiros, amigo, que aqui os tenho, sem haver tido
necessidade de tocar neles; que a integridade de Camila não se rende
a coisas tão baixas como são dádivas nem promessas. Contenta-te,
Anselmo, e não queiras fazer mais provas que as feitas; e pois a pé
enxuto passaste o mar das dificuldades e suspeitas que das mulheres
costumam e podem ter-se, não queiras entrar de novo no profundo
pélago de novos inconvenientes, nem queiras fazer experiência com
outro piloto da bondade e fortaleza do navio que o céu te deu em
sorte para que nele passasses o mar deste mundo, senão acredita que
estás já em seguro porto, e aferra-te com as âncoras da boa
consideração, e deixa-te estar até que te venham cobrar a dívida, a da
morte, que não há fidalguia humana que de pagá-la se escuse.
Contentíssimo ficou Anselmo pelas palavras de Lotário, e assim
nelas acreditou como se fossem ditas por algum oráculo, mas, então,
rogou-lhe que não deixasse a empresa, embora não fosse mais que por
curiosidade e entretenimento, embora não se utilizassem daí em
diante tão veementes diligências como até então; e que só queria que
lhe escrevesse alguns versos em sua louvação, debaixo do nome de
Clori, porque ele daria a entender a Camila que andava enamorado de
uma dama, a quem lhe havia posto aquele nome por poder celebrá-la
com o decoro que a sua honestidade lhe devia; e que, se Lotário não
quisesse tomar trabalho de escrever os versos, ele os faria.
- Isso não será preciso - disse Lotário, - pois não me são tão
inimigas as musas que em algumas épocas do ano não me visitem. Diz tu
a Camila o que disseste do fingimento de meus amores, que os versos
eu os farei; se não tão bons como o sujeito merece, serão, pelo menos,
os melhores que eu puder.
Fizeram este acordo o impertinente e o traidor amigo; e, voltou
Lotário (lapso do A.; deveria ser Anselmo. N. do T.) à sua casa,
perguntou a Camila o que ela já se maravilhava de que não o houvesse
perguntado: que foi que lhe dissesse o motivo por que lhe havia escrito
o papel que lhe enviou. Camila lhe respondeu que lhe havia parecido que
Lotário a olhava um pouco mais desenvoltamente que quando ele estava
em casa; mas que já estava desenganada e cria que havia sido
imaginação sua, porque já Lotário fugia de vê-la e de estar com ela a
sós. Disse-lhe Anselmo que bem podia estar segura daquela suspeita,
porque ele sabia que Lotário andava enamorado de uma donzela
principal da cidade, a quem ele celebrava debaixo do nome de Clori, e
que, embora não o estivesse, não havia que temer da verdade de
Lotário e da muita amizade de ambos. E a não estar avisada Camila por
Lotário de que eram fingidos aqueles amores de Clori, e que ele o havia
dito a Anselmo por poder ocupar-se algum tempo nas mesmas
louvações de Camila, ela, sem dúvida, cairia na desesperada rede dos
ciúmes; mas, por estar já advertida, passou aquele sobressalto sem
tristeza.
No outro dia, estando os três à sobremesa, rogou Anselmo a Lotário
dissesse alguma coisa das que havia composto a sua amada Clori; que,
pois Camila não a conhecia, seguramente podia dizer o que quisesse.
- Embora a conhecesse - respondeu Lotário, - não encobriria eu
nada, porque quando algum amante louva a sua dama por formosa e a
percebe cruel, nenhum opróbrio faz a seu bom crédito. Mas, seja o
que for, o que sei dizer é que ontem fiz um soneto à ingratidão desta
Clori, que diz assim:

SONETO

No silêncio da noite, quando


ocupa o doce sono os mortais,
a pobre conta de meus ricos males
estou ao céu e à minha Clori dando.
E ao tempo em que o sol se vai mostrando
pelas rosadas portas orientais,
com suspiros e acentos desiguais,
vou a antiga querela renovando.
E quando o sol, de seu estrelado assento,
direitos raios à terra envia,
o pranto cresce e dobro os gemidos.
Volta a noite, e volto ao triste conto,
e sempre acho, em minha mortal porfia,
o céu, surdo; Clori, sem ouvidos.

Bem pareceu o soneto a Camila, mas melhor a Anselmo, pois o


louvou, e disse que era demasiadamente cruel a dama que a tão claras
verdades não correspondia. Ao que disse Camila:
- Logo, tudo aquilo que os poetas enamorados dizem é verdade?
- Enquanto poetas, não a dizem - respondeu Lotário; - mas, enquanto
enamorados, sempre ficam tão sóbrios como verdadeiros.
- Não há dúvida disso - replicou Anselmo, tudo por apoiar e
acreditar os pensamentos de Lotário com Camila, tão descuidada do
artifício de Anselmo como já enamorada de Lotário.
E assim, com o gosto que de suas coisas tinha, e mais, tendo por
entendido que seus desejos e escritos a ela se encaminhavam, e que
ela era a verdadeira Clori, lhe rogou que se outro soneto ou outros
versos sabia, os dissesse:
- Sim, sei - respondeu Lotário, - mas não creio que é tão bom como o
primeiro, ou, por melhor dizer, menos mau. E podereis bem julgá-lo,
pois é este:

SONETO

Eu sei que morro; e se não sou acreditado,


é mais certo o morrer, como é mais certo
ver-me a teus pés, oh bela ingrata!, morto,
antes que de adorar-te arrependido.
Poderei eu ver-me na região do olvido,
de vida e glória e de favor deserto,
e ali ver-se poderá em meu peito aberto
como teu formoso rosto está esculpido.
Que esta relíquia guardo para o duro
transe que me ameaça minha porfia,
que em teu mesmo rigor se fortalece.
Ai daquele que navega, o céu escuro,
por mar não usado e perigosa via,
onde norte ou porto não se oferece!

Também louvou este segundo soneto Anselmo, como havia feito no


primeiro, e desta maneira ia juntando elo a elo à corrente com que se
enlaçava e construía sua desonra, pois quando mais Lotário o
desonrava, então lhe dizia que estava mais honrado; e, com isto, todos
os degraus que Camila descia até o fundo de seu menosprezo, os subia,
na opinião de seu marido, até o cume da virtude e de sua boa fama.
Sucedeu nisto que, achando-se uma vez, entre outras, só Camila com
sua donzela, disse-lhe:
- Envergonhada estou, amiga Leonela, de ver em quão pouco soube
estimar-me, pois nem sequer fiz que com o tempo comprasse Lotário a
inteira possessão que lhe dei tão logo de minha vontade. Temo que há
de estimar minha presteza ou ligeireza, sem que veja a força que ele
me fez para não poder resistir-lhe.
- Não te dê pena isso, senhora minha - respondeu Leonela, - que não
eleva nem rebaixa dar o que se dá logo se, com efeito, o que se dá é
bom, e isso por si digno de estimar-se. E ainda costuma dizer-se que o
que logo dá, dá duas vezes.
- Também se costuma dizer - disse Camila - que o que custa pouco
se estima menos.
- Isso não se diz por ti - respondeu Leonela, - porque o amor,
segundo ouvi dizer, umas vezes voa e outras anda, com este corre e
com aquele vai devagar, a uns amorna e a outros abrasa, a uns fere e a
outros mata, em um mesmo ponto começa a carreira de seus desejos e
naquele mesmo ponto a acaba e conclui, pela manhã costuma pôr o
cerco a uma fortaleza e à noite a tem rendida, porque não há força
que lhe resista. E sendo assim, de que te espantas, ou de que temes,
se o mesmo deve haver acontecido a Lotário, havendo tomado o amor
por instrumento de render-nos a ausência de meu senhor? E era
forçoso que nela se concluísse o que o amor tinha determinado, sem
dar tempo ao tempo para que Anselmo lhe tivesse de voltar, e com sua
presença ficasse imperfeita a obra. Porque o amor não tem outro
melhor serviçal para executar o que deseja que é a ocasião: da ocasião
se serve em todos seus feitos, principalmente nos princípios. Tudo
isto sei eu muito bem, mais de experiência que de ouvir, e algum dia te
o direi, senhora, que eu também sou de carne e de sangue moça.
Quanto mais, senhora Camila, que não te entregaste nem deste tão
logo, que primeiro não houvesses visto nos olhos, nos suspiros, nas
razões e nas promessas e dádivas de Lotário toda sua alma, vendo nela
e em suas virtudes quão digno era Lotário de ser amado. Pois se isto é
assim, não te assaltem a imaginação esses escrupulosos e melindrosos
pensamentos, senão assegura-te que Lotário te estima como tu o
estimas, e vive com alegria e satisfação de que, já que caíste no laço
amoroso, é o que te aperta de valor e de estima, e que não só tem os
quatro esses que dizem que hão de ter os bons enamorados, senão
todo um abecê inteiro: se não, escuta-me e verás como te digo de cor.
Ele é, segundo eu vejo e a mim me parece, agradecido, bom, cavaleiro,
dadivoso, enamorado, firme, galhardo, honrado, ilustre, leal, moço,
nobre, (h)onesto, principal, quantioso, rico, e os esses que dizem, e
logo, tácito, verdadeiro. O x não lhe quadra, porque é letra áspera; o y
já está dito; o z, zelador de tua honra.
Riu-se Camila do abecê de sua donzela, e teve-a por mais prática
nas coisas de amor que ela dizia; e assim o confessou ela, descobrindo
a Camila como tratava amores com um mancebo bem nascido, da
mesma cidade; do qual se perturbou Camila, temendo que era aquele
caminho por onde sua honra podia correr risco. Apertou-a para saber
se passavam suas conversas a mais que sê-lo. Ela, com pouca vergonha
e muita desenvoltura, lhe respondeu que sim, passavam; porque é coisa
já certa que os descuidos das senhoras tiram a vergonha às criadas,
as quais, quando veem as amas tropeçar, não se lhes dá nada a elas
coxear, nem que o saibam.
Não pôde fazer outra coisa Camila senão rogar a Leonela não
dissesse nada de seu feito ao que dizia ser seu amante, e que tratasse
suas coisas com segredo, porque não viessem ao conhecimento de
Anselmo nem de Lotário. Leonela respondeu que assim o faria, mas
cumpriu-o de maneira que fez certo o temor de Camila de que por ela
havia de perder seu crédito. Porque a desonesta e atrevida Leonela,
depois que viu que o proceder de sua ama não era o que costumava,
atreveu-se a fazer entrar em casa seu amante, confiada que, embora
sua senhora o visse, não havia de ousar descobri-lo; que este dano
acarretam, entre outros, os pecados das senhoras: que se fazem
escravas de suas mesmas criadas e se obrigam a encobrir-lhes suas
desonestidades e vilezas, como aconteceu com Camila; que, embora
visse uma e muitas vezes que sua Leonela estava com seu galã num
aposento de sua casa, não só não a ousava repreender, mas dava-lhe
lugar a que o encerrasse, e evitava todos os estorvos, para que não
fosse visto por seu marido.
Mas não os pôde evitar de modo que Lotário não o visse uma vez
sair, ao romper do alvorecer; o qual, sem saber quem era, pensou
primeiro que devia ser algum fantasma; mas, quando o viu caminhar,
embuçar-se e encobrir-se com cuidado e recato, caiu de seu ingênuo
pensamento e deu em outro, que fora a perdição de todos se Camila
não o remediasse. Pensou Lotário que aquele homem que havia visto
sair tão de repente de casa de Anselmo não havia entrado nela por
Leonela, nem ainda se lembrou se Leonela existia; só creu que Camila,
da mesma maneira que havia sido fácil e ligeira com ele, o era para
outro; que estes acréscimos traz consigo a maldade da mulher má: que
perde o crédito de sua honra com o mesmo a quem se entregou rogada
e persuadida, e crê que com maior facilidade se entrega a outros, e dá
infalível crédito a qualquer suspeita que disto lhe venha. E não parece
senão que faltou a Lotário neste ponto todo seu bom entendimento, e
se lhe foram da memória todas as suas ponderadas razões, pois, sem
fazer algo que bom fosse, nem ainda razoável, sem mais nem mais,
antes que Anselmo se levantasse, impaciente e cego da ciumenta raiva
que as entranhas lhe roía, morrendo por vingar-se de Camila, que em
nenhuma coisa o havia ofendido, foi ter com Anselmo e lhe disse:
- Sabes, Anselmo, que há muitos dias que andei lutando comigo
mesmo, fazendo força para não dizer-te o que já não é possível nem
justo que mais te encubra. Sabes que a fortaleza de Camila está já
rendida e sujeita a tudo aquilo que eu quiser fazer dela; e se tardei
em descobrir-te esta verdade, foi por ver se era algum leviano desejo
seu, ou se o fazia para provar-me e ver se eram com propósito firme
tratados os amores que, com tua licença, com ela comecei. Cri,
também, que ela, se fosse a que devia e a que ambos pensávamos, já te
haveria dado conta de meu assédio, mas, havendo visto que tarda,
conheço que são verdadeiras as promessas que me deu de que, quando
outra vez te ausentes de tua casa, me falará na recâmara, onde está o
escaninho de tuas joias - e era a verdade, que ali lhe costumava falar
Camila; - e não quero que precipitadamente corras a fazer alguma
vingança, pois não está ainda cometido o pecado senão em pensamento,
e poderia ser que, desde este até o tempo de pô-lo em prática, se
mudasse o de Camila e nascesse em seu lugar o arrependimento. E
assim, já que, em todo ou em parte, seguiste sempre meus conselhos,
segue e guarda um que agora te direi, para que sem engano e com
medroso advertimento te satisfaças daquilo que mais vires que te
convenha. Finge que te ausentas por dois ou três dias, como outras
vezes costumas, e faz de maneira que fiques escondido em tua
recâmara, pois os tapetes que ali há e outras coisas com que te possas
encobrir te oferecem muita comodidade, e então verás por teus
mesmos olhos, e eu pelos meus, o que Camila quer; e se for a maldade
que se pode temer antes que esperar, com silêncio, sagacidade e
discrição poderás ser o verdugo de teu agravo.
Absorto, suspenso e admirado ficou Anselmo com as razões de
Lotário, porque o colheram em tempo onde menos as esperava ouvir,
porque já tinha Camila por vencedora dos fingidos assaltos de Lotário
e começava a gozar a glória da vitória. Calado esteve por um bom
espaço, olhando o chão sem mover pestana, e ao cabo disse:
- Tu o fizeste, Lotário, como eu esperava de tua amizade; em tudo
hei de seguir teu conselho: faz o que quiseres e guarda aquele segredo
que vês que convém em caso tão não pensado.
Prometeu-o Lotário, e, afastando-se dele, se arrependeu
totalmente de quanto lhe havia dito, vendo quão nesciamente havia
andado, pois poderia ele vingar-se de Camila, e não por caminho tão
cruel e tão desonrado. Maldizia seu entendimento, afeava sua ligeira
determinação, e não sabia que meio tomar para desfazer o feito, ou
para dar-lhe alguma razoável saída. Ao fim, resolveu dar conta de tudo
a Camila; e, como não faltava lugar para podê-lo fazer, aquele mesmo
dia a achou só, e ela, assim que viu que lhe podia falar, disse-lhe:
- Sabei, amigo Lotário, que tenho uma pena no coração que o aperta
de sorte que parece que quer rebentar no peito, e há de ser maravilha
se não o faz, pois chegou a desvergonha de Leonela a tanto, que cada
noite encerra um galã seu nesta casa e está com ele até o dia, tão à
custa de meu crédito quanto lhe ficará campo aberto de julgá-lo ao
que o vir sair a horas tão inusitadas de minha casa. E o que me fatiga é
que não a posso castigar nem repreender: que o ser ela cúmplice de
nossos tratos me pôs um freio na boca para calar os seus, e temo que
daqui há de nascer algum mau sucesso.
Ao princípio que Camila isto dizia creu Lotário que era artifício para
o convencer de que o homem que havia visto sair era de Leonela, e não
seu; mas, vendo-a chorar e afligir-se, e pedir-lhe remédio, veio a crer
na verdade, e, crendo-a, acabou de estar confuso e arrependido de
tudo. Mas, então, respondeu a Camila que não tivesse pena, que ele
ordenaria remédio para anular a insolência de Leonela. Disse-lhe
também o que, instigado da furiosa raiva dos ciúmes, havia dito a
Anselmo, e como estava combinado de esconder-se na recâmara, para
ver dali às claras a pouca lealdade que ela lhe guardava. Pediu-lhe
perdão desta loucura, e conselho para poder remediá-la e sair bem de
tão revolto labirinto onde sua má palavra o havia posto.
Espantada ficou Camila de ouvir o que Lotário lhe dizia, e com muita
zanga e muitas e discretas razões o repreendeu e afeou seu mau
pensamento e a ingênua e má decisão que havia tido. Mas, como
naturalmente tem a mulher engenho pronto para o bem e para o mal
mais que o varão, posto que falta a este quando se dispõe a falar, num
instante achou Camila o modo de remediar tão aparentemente
iremediável assunto, e disse a Lotário que procurasse que no outro dia
se escondesse Anselmo onde dizia, porque ela pensava tirar de seu
esconderijo comodidade para que dali em diante os dois se
desfrutassem sem sobressalto algum; e, sem declarar-lhe de todo seu
pensamento, advertiu-o de que tivesse cuidado em que, estando
Anselmo escondido, ele viesse quando Leonela o chamasse, e que a
quanto ela lhe dissesse lhe respondesse como responderia se não
soubesse que Anselmo o escutava. Porfiou Lotário que lhe acabasse de
declarar sua intenção, para que com mais segurança e aviso guardasse
tudo o que visse ser necessário.
- Digo - disse Camila - que não há mais que guardar, se não for
responder-me como eu vos perguntar, - não querendo Camila dar-lhe
antes conta do que pensava fazer, temerosa que não quisesse seguir o
parecer que a ela tão bom lhe parecia, e seguisse ou buscasse outros
que não poderiam ser tão bons.
Com isto, se foi Lotário; e Anselmo, no outro dia, com a escusa de ir
àquela aldeia de seu amigo, partiu e voltou a esconder-se; que o pôde
fazer com comodidade, porque astuciosamente a deram Camila e
Leonela.
Escondido, pois, Anselmo, com aquele sobressalto que se pode
imaginar que teria o que esperava ver por seus olhos dilacerar as
entranhas de sua honra, ia a pique de perder o sumo bem que ele
pensava que tinha em sua querida Camila. Seguras já e certas Camila e
Leonela que Anselmo estava escondido, entraram na recâmara; e
apenas pôs os pés nela Camila, quando, dando um grande suspiro, disse:
- Ai, Leonela amiga! Não seria melhor que, antes que chegasse a pôr
em execução o que não quero que saibas, para que não procures
estorvá-lo, que tomasses a adaga de Anselmo, que te pedi, e
traspassasses com ela este infame peito meu? Mas não faças tal, que
não será razão que eu leve a pena da alheia culpa. Antes quero saber
que é o que viram em mim os atrevidos e desonestos olhos de Lotário
que fosse causa de dar-lhe atrevimento a descobrir-me um tão mau
desejo como é o que me descobriu, em desapreço de seu amigo e em
desonra minha. Põe-te, Leonela, a essa janela e chama-o, que, sem
dúvida alguma, ele deve estar na rua, esperando pôr em prática sua má
intenção. Mas primeiro se realizará a cruel quanto honrada minha.
- Ai, senhora minha! - respondeu a sagaz e advertida Leonela, - e
que é o que queres fazer com esta adaga? Queres porventura tirar-te
a vida ou a de Lotário? Que qualquer destas coisas que queiras há de
redundar em perda de teu crédito e fama. Melhor é que dissimules teu
agravo, e não dês lugar a que este mau homem entre agora nesta casa
e nos ache sozinhas. Vê, senhora, que somos fracas mulheres, e ele é
homem e determinado; e, como vem com aquele mau propósito, cego e
apaixonado, quiçá antes que tu ponhas em execução o teu, fará ele o
que te estaria pior que tirar-te a vida. Mal haja meu senhor Anselmo,
que tanto mal quis dar a este descarado em sua casa! E já, senhora,
que o mates, como eu penso que queres fazer, que havemos de fazer
dele depois de morto?
- O quê, amiga? - respondeu Camila: - deixaremos que Anselmo o
enterre, pois será justo que tenha por descanso o trabalho que tomar
em pôr debaixo da terra sua mesma infâmia. Chama-o, anda, que todo
o tempo que tardo em tomar a devida vingança de meu agravo parece
que ofendo à lealdade que a meu esposo devo.
Tudo isto escutava Anselmo, e, a cada palavra que Camila dizia,
mudavam seus pensamentos; mas, quando entendeu que estava
resolvida a matar Lotário, quis sair e descobrir-se, para que tal coisa
não se fizesse; mas deteve-lhe o desejo de ver em que dava tanta
galhardia e honesta resolução, com propósito de sair a tempo que a
estorvasse.
Sobreveio nisto a Camila um forte desmaio e, arrojando-se em cima
de uma cama que ali estava, começou Leonela a chorar muito
amargamente e a dizer:
- Ai, desditada de mim se fosse tão sem ventura que morresse aqui
entre meus braços a flor da honestidade do mundo, a coroa das
boas mulheres, o exemplo da castidade...!
Com outras coisas a estas semelhantes, que ninguém a escutaria que
não a tivesse pela mais lastimada e leal donzela do mundo, e a sua
senhora por outra nova e perseguida Penélope. Pouco tardou em voltar
de seu desmaio Camila; e, ao voltar a si, disse:
- Por que não vais, Leonela, chamar o mais leal amigo de amigo que
viu o sol ou cobriu a noite? Anda, corre, pica-te, caminha, não se
desvaneça com a tardança o fogo da cólera que tenho, e só fique em
ameaças e maldições a justa vingança que espero.
- Já vou chamá-lo, senhora minha - disse Leonela, - mas hás-me de
dar primeiro essa adaga, para que não faças coisa, enquanto falto, que
deixes com ela que chorar toda a vida a todos os que bem te querem.
- Vai segura, Leonela amiga, que não farei - respondeu Camila; -
porque, já que seja atrevida e ingênua, a teu parecer, ao lutar por
minha honra, não o hei de ser tanto como aquela Lucrécia de quem
dizem que se matou sem haver cometido erro algum, e sem haver
morto primeiro a quem foi a causa de sua desgraça. Eu morrerei, se
morro, mas há de ser vingada e satisfeita do que me deu ocasião de
vir a este lugar a chorar seus atrevimentos, nascidos tão sem culpa
minha.
Muito se fez de rogar Leonela antes que saísse a chamar Lotário,
mas, enfim, saiu; e, enquanto não voltava, ficou Camila dizendo, como
se falasse consigo mesma:
- Valha-me Deus! Não teria sido mais acertado haver despedido
Lotário, como outras muitas vezes o fiz, que não pô-lo em condição,
como já o pus, que me tenha por desonesta e má, sequer este tempo
que hei de tardar em desenganá-lo? Melhor seria, sem dúvida; mas não
ficaria eu vingada, nem a honra de meu marido satisfeita, se tão com
mãos limpas e tão com passo leve saísse de onde seus maus
pensamentos o levaram. Pague o traidor com a vida o que intentou com
tão lascivo desejo: saiba o mundo, se acaso chegar a sabê-lo, que
Camila não só guardou a lealdade a seu esposo, senão que lhe deu
vingança do que se atreveu a ofendê-lo. Mas, contudo, creio que teria
sido melhor dar conta disto a Anselmo, mas já a apontei a dar na carta
que lhe escrevi à aldeia, e creio que o não atender ele ao remédio do
dano que ali lhe assinalei, deveu ser que, de puro bom e confiado, não
quis nem pôde crer que no peito de seu tão firme amigo pudesse caber
gênero de pensamento que contra sua honra fosse; nem ainda eu o cri
depois, por muitos dias, nem o creria jamais, se sua insolência não
chegasse a tanto, que as manifestas dádivas e as largas promessas e
as contínuas lágrimas não mo manifestassem. Mas, para que faço eu
agora estes discursos? Tem, porventura, uma resolução galharda
necessidade de conselho algum? Não, por certo. Fora, pois, traidores;
aqui, vinganças! Entre o falso, venha, chegue, morra e acabe, e suceda
o que suceder! Limpa entrei em poder do que o céu me deu por meu,
limpa hei de sair dele; e, quando muito, sairei banhada em meu casto
sangue, e no impuro do mais falso amigo que viu a amizade no mundo.
E dizendo isto, passeava pela sala com a adaga desembainhada,
dando tão desconcertados e desaforados passos, e fazendo tais
ademanes, que não parecia senão que lhe faltava o juízo, e que não era
mulher delicada, senão um rufião desesperado.
Tudo via Anselmo, coberto detrás de uns tapetes onde se havia
escondido, e de tudo se admirava, e já lhe parecia que o que havia
visto e ouvido era bastante satisfação para maiores suspeitas; e já
queria que a prova de vir Lotário faltasse, temeroso de algum mau
repentino sucesso. E estando já para manifestar-se e sair, para
abraçar e desenganar a sua esposa, deteve-se porque viu que Leonela
voltava com Lotário; e, assim que Camila o viu, fazendo com a adaga no
chão uma grande risca diante dela, disse-lhe:
- Lotário, adverte no que te digo: se acaso te atreveres a passar
desta risca que vês, nem ainda chegar a ela, no ponto que vir que o
intentas, nesse mesmo me traspassarei o peito com esta adaga que nas
mãos tenho. E antes que a isto me respondas palavra, quero que outras
algumas me escutes; que depois responderás o que mais te agradar.
Antes quero, Lotário, que me digas se conheces Anselmo, meu marido,
e em que opinião o tens; e segundo, quero saber também se me
conheces a mim. Responde-me a isto, e não te perturbes, nem penses
muito o que hás de responder, pois não são dificuldades as que te
pergunto.
Não era tão ignorante Lotário que, desde o primeiro ponto que
Camila lhe disse que fizesse esconder a Anselmo, não se houvesse
dado conta do que ela pensava fazer; e assim, correspondeu à sua
intenção tão discretamente, e tão a tempo, que fizeram os dois passar
aquela mentira por mais que certa verdade; e assim, respondeu a
Camila desta maneira:
- Não pensei eu, formosa Camila, que me chamavas para perguntar-
me coisas tão fora da intenção com que eu aqui venho. Se o fazes por
dilatar-me a prometida mercê, desde mais longe poderias entretê-la,
porque tanto mais fatiga o bem desejado quanto a esperança está
mais perto de possuí-lo; mas, porque não digas que não respondo a tuas
perguntas, digo que conheço a teu esposo Anselmo, e nos conhecemos
os dois desde nossos mais tenros anos; e não quero dizer o que tu tão
bem sabes de nossa amizade, por não me fazer testemunho do agravo
que o amor faz que lhe faça, poderosa desculpa de maiores erros. A ti
conheço e tenho na mesma possessão que ele te tem; que, a não ser
assim, por menos prendas que as tuas não havia eu de ir contra o que
devo a ser quem sou e contra as santas leis da verdadeira amizade,
agora por tão poderoso inimigo como o amor por mim rompidas e
violadas.
- Se isso confessas - respondeu Camila, - inimigo mortal de tudo
aquilo que justamente merece ser amado, com que rosto ousas
aparecer ante quem sabes que é o espelho onde se olha aquele em
quem tu te deverias olhar, para que visses com quão pouco motivo o
agravas? Mas já caio, ai, desditada de mim!, na conta de quem te fez
ter tão pouca com o que a ti mesmo deves, que deve haver sido alguma
desenvoltura minha, que não quero chamá-la desonestidade, pois não
haverá procedido de deliberada determinação, senão de algum
descuido dos que as mulheres que pensam que não têm de que recatar-
se costumam fazer inadvertidamente. Se não, diz-me: quando, oh
traidor!, respondi a teus rogos com alguma palavra ou sinal que
pudesse despertar em ti alguma sombra de esperança de cumprir teus
infames desejos? Quando tuas amorosas palavras não foram desfeitas
e repreendidas pelas minhas com rigor e com aspereza? Quando tuas
muitas promessas e maiores dádivas foram por mim acreditadas, nem
admitidas? Mas, por parecer-me que alguém não pode perseverar no
intento amoroso longo tempo, se não é sustentado por alguma
esperança, quero atribuir-me a mim a culpa de tua impertinência, pois,
sem dúvida, algum descuido meu sustentou tanto tempo teu cuidado; e
assim, quero castigar-me e dar-me a pena que tua culpa merece. E
porque visses que, sendo comigo tão desumana, não era possível deixar
de sê-lo contigo, quis trazer-te a ser testemunho do sacrifício que
penso fazer à ofendida honra de meu tão honrado marido, agravado de
ti com o maior cuidado que te foi possível, e de mim também com o
pouco recato que tive de fugir à ocasião, se alguma te dei, para
favorecer e canonizar tuas más intenções. Torno a dizer que a
suspeita que tenho que algum descuido meu engendrou em ti tão
desvairados pensamentos é a que mais me fatiga, e a que eu mais
desejo castigar com minhas próprias mãos, porque, castigando-me
outro verdugo, quiçá seria mais pública minha culpa; mas, antes que
isto faça, quero matar morrendo, e levar comigo quem me acabe de
satisfazer o desejo da vingança que espero e tenho, vendo lá, onde
quer que for, a pena que dá a justiça desinteressada e que não se
dobra ao que em termos tão desesperados me pôs.
E dizendo estas razões, com uma incrível força e ligeireza
arremeteu a Lotário com a adaga desembainhada, com tais mostras de
querer cravá-la no peito, que quase ele esteve em dúvida se aquelas
demonstrações eram falsas ou verdadeiras, porque lhe foi forçoso
valer-se de sua habilidade e de sua força para impedir que Camila não
o atingisse. A qual tão vivamente fingia aquele estranho embuste e
vilania que, por dar-lhe cor de verdade, a quis matizar com seu próprio
sangue; porque, vendo que não podia alcançar Lotário, ou fingindo que
não podia, disse:
- Pois a sorte não quer satisfazer de todo meu tão justo desejo, ao
menos, não será tão poderosa que, em parte, me impeça que não o
satisfaça.
E fazendo força para soltar a mão da adaga, que Lotário tinha
presa, a tirou, e, guiando sua ponta a lugar que pudesse ferir não
profundamente, a empurrou e escondeu acima no lado esquerdo, junto
ao ombro, e logo se deixou cair no chão, como desmaiada.
Estavam Leonela e Lotário suspensos e atônitos de tal sucesso, e
mesmo duvidavam da verdade daquele feito, vendo Camila estendida
em terra e banhada em seu sangue. Acudiu Lotário com muita
presteza, espavorido e sem alento, a tirar a adaga, e, ao ver a pequena
ferida, saiu do temor que até então tinha, e de novo se admirou da
sagacidade, prudência e muita discrição da formosa Camila; e, por
atender ao que lhe tocava, começou a fazer uma larga e triste
lamentação sobre o corpo de Camila, como se estivesse defunta,
lançando-se muitas maldições, não só a ele, senão ao que havia sido
causa de haver-lhe posto naquele termo. E como sabia que o escutava
seu amigo Anselmo, dizia coisas que o que o ouvisse tivesse muito mais
lástima dele que de Camila, embora por morta a julgasse.
Leonela a tomou nos braços e a pôs no leito, suplicando a Lotário
fosse buscar quem secretamente a Camila curasse; pedia-lhe também
conselho e parecer do que diriam a Anselmo daquela ferida de sua
senhora, se acaso viesse antes que estivesse sã. Ele respondeu que
dissessem o que quisessem, que ele não estava para dar conselho que
de proveito fosse; só lhe disse que procurasse fazer um curativo,
porque ele ia para onde as pessoas não o vissem. E com mostras de
muita dor e sentimento, saiu de casa; e, quando se viu só e em lugar
onde ninguém o via, não cessava de benzer-se, maravilhando-se da
indústria de Camila e dos ademanes tão próprios de Leonela.
Considerava quão ciente havia de ficar Anselmo de que tinha por
mulher a uma segunda Pórcia, e desejava ter com ele para celebrar os
dois a mentira e a verdade mais dissimulada que jamais poderia
imaginar-se.
Leonela fez, como se disse, um curativo em sua senhora, que não era
mais que aquilo que bastou para acreditar seu embuste; e, lavando com
um pouco de vinho a ferida, a fechou o melhor que soube, dizendo tais
razões, enquanto a curava, que, embora não houvessem precedido
outras, bastaram a fazer crer a Anselmo que tinha em Camila um
simulacro da honestidade.
Juntaram-se às palavras de Leonela outras de Camila, chamando-se
covarde e de pouco ânimo, pois lhe havia faltado quando fora mais
necessário tê-lo, para tirar-se a vida, que tão aborrecida tinha. Pedia
conselho a sua donzela se contaria, ou não, todo aquele sucesso a seu
querido esposo; a qual lhe disse que não o dissesse, porque o poria na
obrigação de vingar-se de Lotário, o que não poderia ser sem muito
risco seu, e que a boa mulher estava obrigada a não dar ocasião a seu
marido a que a repreendesse, senão a afastar todas aquelas que lhe
fosse possível.
Respondeu Camila que lhe parecia muito bem seu parecer e que ela o
seguiria; mas que em todo caso convinha buscar que dizer a Anselmo
da causa daquela ferida, que ele não poderia deixar de ver; ao que
Leonela respondia que ela, nem ainda burlando, não sabia mentir.
- Pois eu, irmã - replicou Camila, - que tenho de saber, que não me
atreverei a forjar nem sustentar uma mentira, se me fosse nisso a
vida? E se é que não havemos de saber dar saída a isto, melhor será
dizer-lhe a verdade desnuda, que não que nos colha em mentira.
- Não tenhas pena, senhora: daqui até amanhã - respondeu Leonela -
eu pensarei no que lhe digamos, e quiçá que, por ser a ferida onde é, a
poderás encobrir sem que ele a veja, e o céu será servido de
favorecer a nossos tão justos e tão honrados pensamentos. Sossega,
senhora minha, e procura sossegar tua alteração, para que meu senhor
não te ache sobressaltada, e o demais deixa a meu cargo, e ao de
Deus, que sempre acode aos bons desejos.
Atentíssimo havia estado Anselmo a escutar e a ver representar a
tragédia da morte de sua honra; a qual com tão estranhos e eficazes
afetos a representaram os personagens dela, que pareceu que se
haviam transformado na mesma verdade do que fingiam. Desejava
muito a noite, e o ter lugar para sair de sua casa, e ir ter com seu bom
amigo Lotário, congratulando-se com ele da pérola perfeita que havia
achado no desengano da bondade de sua esposa. Tiveram cuidado as
duas de dar-lhe lugar e comodidade a que saísse, e ele, sem perdê-la,
saiu e logo foi procurar Lotário, o qual, encontrado, não se pode com
precisão contar os abraços que lhe deu, as coisas que de seu
contentamento lhe disse, as louvações que deu a Camila. Tudo o que
escutou Lotário sem poder dar mostras de alguma alegria, porque se
lhe representava à memória quão enganado estava seu amigo e quão
injustamente ele o agravava; e como Anselmo visse que Lotário não se
alegrava, cria ser a causa o haver deixado Camila ferida e haver ele
sido a causa; e assim, entre outras razões, disse-lhe que não tivesse
pena do caso de Camila, porque, sem dúvida, a ferida era ligeira, pois
ficavam de combinação de encobri-la a ele; e que, segundo isto, não
havia de que temer, senão que daí em diante gozasse e alegrasse com
ele, pois por sua indústria e meio ele se via levantado à mais alta
felicidade que pensara desejar, e queria que não fossem outros seus
entretenimentos que em fazer versos em louvação de Camila, que a
fizessem eterna na memória dos séculos vindouros. Lotário louvou sua
boa determinação e disse que ele, por sua parte, ajudaria a levantar
tão ilustre edifício.
Com isto ficou Anselmo o homem mais saborosamente enganado que
pôde haver no mundo: ele mesmo levou pela mão à sua casa, crendo que
levava o instrumento de sua glória, toda a perdição de sua fama.
Recebia-o Camila com rosto aparentemente torcido, embora com alma
risonha. Durou este engano alguns dias, até que, ao cabo de poucos
meses, voltou Fortuna sua roda, e saiu à praça a maldade com tanto
artifício até ali coberta, e a Anselmo lhe custou a vida sua
impertinente curiosidade.

CAPÍTULO XXXV

Onde se dá fim à novela do “Curioso impertinente”


Pouco mais ficava por ler da novela, quando do sótão onde
repousava dom Quixote saiu Sancho Pança todo alvoroçado, dizendo
alto:
- Acudi, senhores, logo, e socorrei meu senhor, que anda envolto na
mais renhida e travada batalha que meus olhos viram. Vive Deus, que
deu uma cutilada no gigante inimigo da senhora princesa Micomicona,
que lhe cortou a cabeça, na raiz, como se fosse um nabo!
- Que dizes, irmão? - disse o padre, deixando de ler o que da novela
ficava. - Estais em vós, Sancho? Como diabos pode ser isso que dizeis,
estando o gigante duas mil léguas daqui?
Nisto, ouviram um grande ruído no aposento, e que dom Quixote
dizia alto:
- Detém-te, ladrão, gatuno, baderneiro, que aqui te tenho, e não te
há de valer tua cimitarra!
E parecia que dava grandes cutiladas pelas paredes. E disse Sancho:
- Não têm que parar a escutar, senão entrem a pôr fim à peleja, ou
a ajudar meu amo; embora já não será mister, porque, sem dúvida
alguma, o gigante está já morto, e dando conta a Deus de sua passada
e má vida, que eu vi correr o sangue pelo chão, e a cabeça cortada e
caída a um lado, que é tamanha como um grande odre de vinho.
- Que me matem - disse então o vendeiro - se dom Quixote, ou dom
diabo, não deu alguma cutilada em algum dos odres de vinho tinto que
à sua cabeceira estavam cheios, e o vinho derramado deve ser o que
parece sangue a este bom homem.
E com isto, entrou no aposento, e todos atrás dele, e acharam dom
Quixote no mais estranho traje do mundo: estava em camisa, a qual
não era tão comprida que na frente lhe acabasse de cobrir os coxas, e
atrás tinha seis dedos menos; as pernas eram muito largas e magras,
cheias de penugem e nada limpas; tinha na cabeça um gorrinho
vermelho, ensebado, que era do vendeiro; no braço esquerdo tinha
enrolada a manta da cama, de que tinha ojeriza Sancho, e ele sabia
bem o porquê; e na direita, desembainhada a espada, com a qual dava
cutiladas para todos os lados, dizendo palavras como se
verdadeiramente estivesse lutando com algum gigante. E é o bom que
não tinha os olhos abertos, porque estava dormindo e sonhando que
estava em batalha com o gigante; que foi tão intensa a imaginação da
aventura que ia levar a cabo, que o fez sonhar que já havia chegado ao
reino de Micomicão, e que já estava na luta com seu inimigo. E havia
dado tantas cutiladas nos odres, crendo que as dava no gigante, que
todo o aposento estava cheio de vinho; o que, visto pelo vendeiro,
zangou-se tanto que arremeteu contra dom Quixote, e a punho
fechado lhe começou a dar tantos golpes que se Cardênio e o padre
não o afastassem, ele acabaria a guerra do gigante; e, com tudo aquilo,
não despertava o pobre cavaleiro, até que o barbeiro trouxe um
grande caldeirão de água fria do poço e a lançou por todo o corpo de
supetão, com o que despertou dom Quixote; mas não com tanto acordo
de si que percebesse a maneira em que estava.
Doroteia, que viu quão pequena e sutilmente estava vestido, não quis
entrar a ver a batalha de seu ajudador e de seu contrário.
Andava Sancho buscando a cabeça do gigante por todo o chão, e,
como não a achava, disse:
- Já eu sei que tudo desta casa é encantamento; que na outra vez,
neste mesmo lugar onde agora me acho, me deram muitos tabefes e
porradas, sem saber quem os dava, e nunca pude ver ninguém; e agora
não aparece por aqui esta cabeça que vi cortar por meus mesmíssimos
olhos, e o sangue corria do corpo como de uma fonte.
- Que sangue nem que fonte dizes, inimigo de Deus e de seus
santos? - disse o vendeiro. - Não vês, ladrão, que o sangue e a fonte
não é outra coisa que estes odres que aqui estão perfurados e o vinho
tinto que nada neste aposento, que nadando veja eu a alma nos
infernos de quem os perfurou?
- Não sei nada - respondeu Sancho; - só sei que virei a ser tão
desditado que, por não achar esta cabeça, se há de desfazer meu
condado como o sal na água.
E estava pior Sancho desperto que seu amo dormindo: tal o tinham
as promessas que seu amo lhe havia feito. O vendeiro se desesperava
de ver a fleugma do escudeiro e o malefício do senhor, e jurava que
não havia de ser como na vez passada, que se foram sem pagar; e que
agora não lhe haviam de valer os privilégios de sua cavalaria para
deixar de pagar um e outro, ainda até o que pudessem custar as
emendas que se haviam de fazer nos rasgados odres.
Segurava o padre pelas mãos a dom Quixote, o qual, crendo que já
havia acabado a aventura, e que se achava diante da princesa
Micomicona, ficou de joelhos diante do padre, dizendo:
- Bem possa vossa grandeza, alta e formosa senhora, viver, de hoje
em diante, segura de que não lhe possa fazer mal esta mal nascida
criatura; e eu também, de hoje em diante, estou quite da palavra que
vos dei, pois, com o ajuda do alto Deus e com o favor daquela por quem
eu vivo e respiro, tão bem a cumpri.
- Não o disse eu? - disse ouvindo isto Sancho. - Sim que não estava
eu bêbado: vede se meu amo não deixou o gigante bem morto! Não há
nenhuma dúvida: meu condado está seguro!
Quem não havia de rir com os disparates dos dois, amo e moço?
Todos riam senão o vendeiro, que se dava a Satanás. Mas, enfim, tanto
fizeram o barbeiro, Cardênio e o padre que, com não pouco trabalho,
deram com dom Quixote na cama, o qual ficou adormecido, com
mostras de grandíssimo cansaço. Deixaram-no dormir, e saíram ao
portal da estalagem a consolar Sancho Pança por não haver achado a
cabeça do gigante; embora mais tiveram que fazer em aplacar o
vendeiro, que estava desesperado pela repentina morte de seus odres.
E a vendeira dizia em voz e em grito:
- Em mau ponto e em má hora entrou em minha casa este cavaleiro
andante, que nunca meus olhos o houvessem visto, que tão caro me
custa. Na vez passada se foi com o custo de uma noite, de ceia, cama,
palha e cevada, para ele e para seu escudeiro, e um rocim e um
jumento, dizendo que era cavaleiro aventureiro, que má ventura lhe dê
Deus a ele e a quantos aventureiros há no mundo, e que por isto não
estava obrigado a pagar nada, que assim estava escrito nos códigos da
cavalaria andantesca. E agora, por sua causa, veio este outro senhor e
levou meu rabo, e o devolveu com mais de dezessete maravedis de
dano, todo pelado, que não pode servir para o que o quer meu marido. E
por fim e remate de tudo, romper meus odres e derramar meu vinho;
que derramado veja eu seu sangue. Pois não se pense; que, pelos ossos
de meu pai e pela vida eterna de minha mãe, se não o hão de pagar um
quarto sobre outro, ou não me chamaria eu como me chamo nem seria
filha de quem sou!
Estas e outras razões tais dizia a vendeira com grande zanga, e
ajudava-a sua boa criada Maritornes. A filha calava, e de quando em
quando sorria. O padre sossegou tudo, prometendo satisfazer sua
perda o melhor que pudesse, assim dos odres como do vinho, e
principalmente do menoscabo do rabo, de que tanta conta faziam.
Doroteia consolou Sancho Pança dizendo-lhe que sempre que se
demonstrasse haver sido verdade que seu amo havia descabeçado o
gigante, prometia-lhe, vendo-se pacífica em seu reino, dar-lhe o
melhor condado que nele houvesse. Consolou-se com isto Sancho, e
assegurou à princesa que tivesse por certo que ele havia visto a
cabeça do gigante, e que, por mais sinais, tinha uma barba que lhe
chegava à cintura; e que se não parecia, era porque tudo quanto
naquela casa passava era por via de encantamento, como ele o havia
provado na outra vez que havia pousado nela. Doroteia disse que assim
o cria, e que não se preocupasse, que tudo se faria e sucederia bem.
Sossegados todos, o padre quis acabar de ler a novela, porque viu
que faltava pouco. Cardênio, Doroteia e todos os demais rogaram-lhe
que a acabasse. Ele, que a todos quis dar gosto, e pelo que ele tinha de
lê-la, prosseguiu o conto, que assim dizia:
“Sucedeu, pois, que, pela satisfação que Anselmo tinha da bondade
de Camila, vivia uma vida contente e descuidada, e Camila, com astúcia,
fazia mau rosto a Lotário, porque Anselmo entendesse ao revés do
amor que lhe tinha; e, para mais confirmação de seu feito, pediu
licença Lotário para não vir a sua casa, pois claramente se mostrava o
pesar que com sua vista Camila recebia; mas o enganado Anselmo lhe
disse que de maneira alguma tal fizesse. E desta maneira, por mil
maneiras era Anselmo o fabricador de sua desonra, crendo que o era
de seu gosto.
“Nisto, o que tinha Leonela de ver-se aprovada em seus amores
chegou a tanto que, sem olhar a outra coisa, se ia atrás dele à rédea
solta, fiada em que sua senhora a encobria, e ainda a advertia do modo
que com pouco receio pudesse pô-lo em execução. Enfim, uma noite
sentiu Anselmo passos no aposento de Leonela, e, querendo entrar a
ver quem os dava, sentiu que lhe detinham a porta, coisa que lhe pôs
mais vontade de abri-la; e tanta força fez, que a abriu, e entrou a
tempo de ver que um homem saltava pela janela à rua; e, acudindo com
presteza a alcançá-lo ou reconhecê-lo, não pôde conseguir nem um nem
outro, porque Leonela se abraçou com ele, dizendo-lhe:
“- Sossega, senhor meu, e não te alvoroces, nem sigas ao que daqui
saltou; é coisa minha, e tanto, que é meu esposo.
“Não o quis crer Anselmo; antes, cego de raiva, tirou a adaga e quis
ferir Leonela, dizendo-lhe que lhe dissesse a verdade, se não, que a
mataria. Ela, com o medo, sem saber o que se dizia, disse-lhe:
“- Não me mates, senhor, que eu te direi coisas de mais importância
das que podes imaginar.
“- Dize-as logo - disse Anselmo; - se não, morta és.
“- Por agora será impossível - disse Leonela, - segundo estou
perturbada; deixa-me até amanhã, que então saberás de mim o que te
há de admirar; e está seguro que o que saltou por esta janela é um
mancebo desta cidade, que me deu a mão por esposo.
“Sossegou-se com isto Anselmo e quis aguardar o tempo que se lhe
pedia, porque não pensava ouvir coisa que contra Camila fosse, por
estar de sua bondade tão satisfeito e seguro; e assim, saiu do
aposento e deixou Leonela encerrada nele, dizendo-lhe que dali não
sairia até que lhe dissesse o que tinha que dizer-lhe.
“Foi logo ver Camila e dizer-lhe, como lhe disse, tudo aquilo que
com sua donzela lhe havia passado, e a palavra que lhe havia dado de
dizer-lhe grandes coisas e de importância. Se se perturbou Camila ou
não, não há para que dizê-lo, porque foi tanto o temor que teve,
crendo verdadeiramente - e era de crer - que Leonela havia de dizer a
Anselmo tudo o que sabia de sua pouca fé, que não teve ânimo para
esperar se sua suspeita saía falsa ou não. E naquela mesma noite,
quando lhe pareceu que Anselmo dormia, juntou as melhores joias que
tinha e alguns dinheiros, e, sem ser de ninguém sentida, saiu de casa e
foi à de Lotário, a quem contou o que passava, e lhe pediu que a
escondesse em local seguro, ou que se ausentassem os dois onde de
Anselmo pudessem estar seguros. A confusão em que Camila pôs
Lotário foi tal, que não lhe sabia responder palavra, nem menos sabia
resolver o que faria.
“Enfim, resolveu levar Camila a um monastério, onde era priora uma
sua irmã. Consentiu Camila nisso, e, com a presteza que o caso pedia, a
levou Lotário e a deixou no monastério, e ele, também, se ausentou
logo da cidade, sem dar parte a ninguém de sua ausência.
“Quando amanheceu, sem ver Anselmo que Camila faltava a seu
lado, com o desejo que tinha de saber o que Leonela queria dizer-lhe,
se levantou e foi aonde a havia deixado encerrada. Abriu e entrou no
aposento, mas não achou nele Leonela: só achou uns lençóis pendurados
à janela, indício e sinal que por ali se havia dependurado e ido. Voltou
logo muito triste a dizê-lo a Camila, e, não achando-a na cama nem em
toda a casa, ficou assombrado. Perguntou aos criados de casa por ela,
mas ninguém lhe soube dar razão do que pedia.
“Sucedeu acaso que, procurando Camila, viu seus cofres abertos e
que deles faltavam as mais de suas joias, e com isto acabou de cair na
conta de sua desgraça, e em que não era Leonela a causa de sua
desventura. E assim que estava, sem acabar de vestir-se, triste e
pensativo, foi dar conta de sua desdita a seu amigo Lotário. Mas,
quando não o achou, e seus criados lhe disseram que aquela noite havia
faltado de casa e havia levado consigo todos os dinheiros que tinha,
pensou perder o juízo. E para acabar de concluir tudo, voltando a casa,
não achou nela nenhum de quantos criados nem criadas tinha, senão a
casa deserta e só.
“Não sabia que pensar, que dizer, nem que fazer, e pouco a pouco
se lhe ia voltando o juízo. Contemplava-se e via-se num instante sem
mulher, sem amigo e sem criados; desamparado, a seu parecer, do céu
que o cobria, e sobretudo sem honra, porque na falta de Camila viu sua
perdição.
“Resolveu, enfim, ao cabo de um bom tempo, ir à aldeia de seu
amigo, onde havia estado quando deu lugar a que se maquinasse toda
aquela desventura. Cerrou as portas de sua casa, subiu a cavalo, e com
desmaiado alento se pôs a caminho; e, apenas houve andado a metade,
quando, acossado por seus pensamentos, lhe foi forçoso apear-se e
amarrar seu cavalo a uma árvore, a cujo tronco se deixou cair, dando
ternos e dolorosos suspiros, e ali esteve até quase que anoitecia; e
aquela hora viu que vinha um homem a cavalo da cidade, e, depois de
havê-lo saudado, lhe perguntou que novas havia em Florença. O
cidadão respondeu:
“- As mais estranhas que muitos dias há se ouviram nela; porque se
diz publicamente que Lotário, aquele grande amigo de Anselmo o rico,
que vivia em São João, levou esta noite Camila, mulher de Anselmo, o
qual tampouco aparece. Tudo isto disse uma criada de Camila, que
ontem à noite a achou o governador descendo com um lençol pelas
janelas da casa de Anselmo. Com efeito, não sei pontualmente como se
deu o caso; só sei que toda a cidade está admirada deste sucesso,
porque não se podia esperar tal feito da muita e familiar amizade dos
dois, que dizem que era tanta, que os chamavam os dois amigos.
“- Sabe-se, porventura - disse Anselmo, - o caminho que levam
Lotário e Camila?
“- Nem em pensamento - disse o cidadão, - embora o governador
tenha usado de muita diligência em buscá-los.
“- Ide com Deus, senhor - disse Anselmo.
“- Com Ele ficai - respondeu o cidadão, e foi-se.
“Com tão desditadas novas, quase quase chegou a cabo Anselmo,
não só de perder o juízo, senão de acabar a vida. Levantou-se como
pôde e chegou à casa de seu amigo, que ainda não sabia de sua
desgraça; mas, como o viu chegar amarelo, consumido e seco, entendeu
que de algum grave mal vinha fatigado. Pediu logo Anselmo que o
deitassem, e que lhe dessem com que escrever. Fez-se assim, e
deixaram-no deitado e só, porque ele assim o quis, e ainda que lhe
cerrassem a porta. Vendo-se, pois, só, começou a carregar tanto a
imaginação com sua desventura, que claramente conheceu que se lhe ia
acabando a vida; e assim, ordenou de deixar notícia da causa de sua
estranha morte; e, começando a escrever, antes que acabasse de pôr
tudo o que queria, lhe faltou o alento e deixou a vida nas mãos da dor
que lhe causou sua curiosidade impertinente.
“Vendo o senhor da casa que era já tarde e que Anselmo não
chamava, resolveu entrar a saber se passara sua indisposição, e achou-
o estendido de boca para baixo, a metade do corpo na cama e a outra
metade sobre o bufê, sobre o qual estava o papel escrito e aberto, e
ele tinha ainda a pena na mão. Chegou o anfitrião a ele, havendo-o
chamado primeiro; e, travando-o pela mão, vendo que não lhe
respondia e achando-o frio, viu que estava morto. Admirou-se e
angustiou-se em grande maneira, e chamou a gente de casa para que
vissem a desgraça a Anselmo sucedida; e, finalmente, leu o papel, que
viu que de sua mesma mão estava escrito, o qual continha estas
razões:

Um néscio e impertinente desejo me tirou a vida. Se as novas de


minha morte chegarem aos ouvidos de Camila, saiba que eu a perdoo,
porque não estava ela obrigada a fazer milagres, nem eu tinha
necessidade de querer que ela os fizesse; e, pois eu fui o fabricador
de minha desonra, não há para quê...

“Até aqui escreveu Anselmo, por onde se viu que naquele ponto, sem
poder acabar a razão, se lhe acabou a vida. No outro dia deu aviso seu
amigo aos parentes de Anselmo de sua morte, os quais já sabiam de
sua desgraça, e o monastério onde Camila estava, quase no termo de
acompanhar a seu esposo naquela forçosa viagem, não pelas novas do
morto esposo, mas pelas que soube do ausente amigo. Diz-se que,
embora se visse viúva, não quis sair do monastério, nem, menos, fazer
votos de monja, até que, não dali a muitos dias, lhe vieram novas de
que Lotário havia morrido em uma batalha que naquele tempo deu
monsieur de Lautrec ao Grande Capitão Gonçalo Fernández de
Córdova, no reino de Nápoles, onde havia ido parar o tarde
arrependido amigo; o qual sabido por Camila, fez os votos, e acabou em
breves dias a vida às rigorosas mãos de tristezas e melancolias. Este
foi o fim que tiveram todos, nascido de um tão desatinado princípio.”
- Bem - disse o padre - me parece esta novela, mas não me posso
persuadir que isto seja verdade; e se é fingido, fingiu mal o autor,
porque não se pode imaginar que haja marido tão néscio que queira
fazer tão custosa experiência como Anselmo. Se este caso
acontecesse entre um galã e uma dama, poder-se-ia crer, mas entre
marido e mulher, algo tem de impossível; e, no que toca ao modo de
contar, não me descontenta.

CAPÍTULO XXXVI

Que trata da brava e descomunal batalha que dom Quixote teve com
uns odres de vinho tinto (ocorrida no capítulo anterior: provável erro de
revisão. N. do T.) , com outros raros sucessos que na estalagem
sucederam

Estando nisto, o vendeiro, que estava à porta da estalagem, disse:


- Esta que vem é uma formosa tropa de hóspedes: se eles param
aqui, temos festa.
- Que gente é? - disse Cardênio.
- Quatro homens - respondeu o vendeiro - vêm a cavalo, à ginete,
com lanças e escudos, e todos com véus negros; e junto com eles vem
uma mulher vestida de branco, num silhão, também coberto o rosto, e
outros dois moços a pé.
- Vêm muito perto? - perguntou o padre.
- Tão perto - respondeu o vendeiro, - que já chegam.
Ouvindo isto Doroteia, cobriu o rosto, e Cardênio entrou no
aposento de dom Quixote; e quase não haviam tido tempo para isto,
quando entraram na estalagem todos os que o vendeiro havia dito; e,
apeando-se os quatro a cavalo, que de muito gentil talhe e disposição
eram, foram apear a mulher que no silhão vinha; e, tomando-a um deles
em seus braços, a sentou em uma cadeira que estava à entrada do
aposento onde Cardênio se havia escondido. Em todo este tempo, nem
ela nem eles haviam tirado os véus, nem falado palavra alguma; só que,
ao sentar-se a mulher na cadeira, deu um profundo suspiro e deixou
cair os braços, como pessoa enferma e desmaiada. Os moços a pé
levaram os cavalos à cavalariça.
Vendo isto o padre, desejoso de saber que gente era aquela que com
tal traje e tal silêncio estava, foi onde estavam os moços, e a um deles
perguntou o que já desejava; o qual lhe respondeu:
- Por Deus, senhor, eu não saberei dizer-vos que gente seja esta; só
sei que mostra ser muito principal, especialmente aquele que chegou a
tomar em seus braços àquela senhora que vistes; e isto digo-o porque
todos os demais lhe têm respeito, e não se faz outra coisa mais da que
ele ordena e manda.
- E a senhora, quem é? - perguntou o padre.
- Tampouco saberei dizer isso - respondeu o moço, - porque em todo
o caminho não lhe vi o rosto; suspirar sim a ouvi muitas vezes, e dar
uns gemidos que parece que com cada um deles quer morrer. E não é
de maravilhar que não saibamos mais do que dissemos, porque meu
companheiro e eu não há mais de dois dias que os acompanhamos;
porque, havendo-os encontrado no caminho, nos rogaram e
persuadiram que viéssemos com eles até a Andaluzia, oferecendo-se a
pagar-nos muito bem.
- E ouvistes nomear a algum deles? - perguntou o padre.
- Não, por certo - respondeu o moço, - porque todos caminham com
tanto silêncio que é maravilha, porque não se ouve entre eles outra
coisa que os suspiros e soluços da pobre senhora, que nos movem à
lástima; e sem dúvida temos acreditado que ela vai forçada onde quer
que vai, e, segundo se pode depreender por seu traje, ela é monja, ou
vai sê-lo, que é o mais certo, e quiçá porque não lhe deve nascer de
vontade o ser monja, vai triste, como parece.
- Tudo poderia ser - disse o padre.
E deixando-os, voltou onde estava Doroteia, a qual, como havia
ouvido suspirar à embuçada, movida de natural compaixão, chegou-se a
ela e lhe disse:
- Que mal sentis, senhora minha? Vede se é algum de que as
mulheres costumam ter uso e experiência de curá-lo, que de minha
parte vos ofereço boa vontade de servir-vos.
A tudo isto calava a lastimada senhora; e, embora Doroteia viesse
com maiores oferecimentos, ainda estava em seu silêncio, até que
chegou o cavaleiro embuçado que disse o moço a que os demais
obedeciam, e disse a Doroteia:
- Não vos canseis, senhora, em oferecer nada a essa mulher, porque
tem por costume não agradecer coisa que por ela se faz, nem
procureis que vos responda, se não quereis ouvir alguma mentira de
sua boca.
- Jamais a disse - disse então a que até ali havia estado calada;
- antes, por ser tão verdadeira e tão sem manhas mentirosas, me vejo
agora em tanta desventura; e disto vós mesmo quero que sejais o
testemunho, pois minha pura verdade vos faz a vós ser falso e
mentiroso.
Ouviu estas razões Cardênio bem clara e distintamente, como quem
estava tão junto de quem as dizia que só a porta do aposento de dom
Quixote estava em meio; e, assim que as ouviu, dando uma grande voz
disse:
- Valha-me Deus! Que é isto que ouço? Que voz é esta que chegou a
meus ouvidos?
Voltou a cabeça a estes gritos aquela senhora, toda sobressaltada,
e, não vendo quem as dava, levantou-se e ia entrar no aposento; ao
que, visto pelo cavaleiro, a deteve, sem deixá-la mover um passo. A
ela, com a perturbação e desassossego, caiu-lhe o tafetá com que
trazia coberto o rosto, e descobriu uma formosura incomparável e um
rosto milagroso, embora descolorido e aterrorizado, porque com os
olhos andava fixando todos os lugares onde alcançava com a vista, com
tanto afinco, que parecia pessoa fora de juízo; cujos gestos, sem
saber por que os fazia, puseram grande lástima em Doroteia e em
quantos a olhavam. Prendia-a o cavaleiro fortemente pelos ombros, e,
por estar tão ocupado nisso, não pôde atender a alçar o embuço, que
lhe caía, como, com efeito, caiu de todo; e, alçando os olhos Doroteia,
que abraçada com a senhora estava, viu que o que a prendia era seu
esposo dom Fernando; e, apenas o reconheceu, quando, arrojando do
íntimo de suas entranhas um longo e tristíssimo “ai!”, se deixou cair de
costas desmaiada; e, a não achar-se ali junto o barbeiro, que a
recolheu nos braços, ela daria consigo no chão.
Acudiu logo o padre a tirar-lhe o embuço, para jogar-lhe água no
rosto, e assim que a descobriu a reconheceu dom Fernando, que era o
que estava abraçado com a outra, e ficou como morto ao vê-la; mas
não porque deixasse, desse modo, de prender Lucinda, que era a que
procurava soltar-se de seus braços; a qual havia reconhecido a voz de
Cardênio, e ele a havia reconhecido. Ouviu também Cardênio o “ai!” que
deu Doroteia quando caiu desmaiada, e, crendo que era sua Lucinda,
saiu do aposento espavorido, e o primeiro que viu foi dom Fernando,
que tinha abraçada Lucinda. Também dom Fernando reconheceu logo
Cardênio; e todos os três, Lucinda, Cardênio e Doroteia, ficaram
mudos e suspensos, quase sem saber o que lhes havia acontecido.
Calavam todos e olhavam-se todos, Doroteia a dom Fernando, dom
Fernando a Cardênio, Cardênio a Lucinda e Lucinda a Cardênio. Mas
quem primeiro rompeu o silêncio foi Lucinda, falando a dom Fernando
desta maneira:
- Deixai-me, senhor dom Fernando, pelo que vos obriga ser quem
sois, já que por outro respeito não o façais; deixai-me chegar ao muro
de quem eu sou hera, ao arrimo de quem não me puderam afastar
vossas importunações, vossas ameaças, vossas promessas nem vossas
dádivas. Notai como o céu, por desusados e a nós encobertos
caminhos, me pôs diante de meu verdadeiro esposo. E bem sabeis por
mil custosas experiências que só a morte seria bastante para apagá-lo
de minha memória. Sejam motivo, pois, tão claros desenganos para que
transformeis, já que não podeis fazer outra coisa, o amor em raiva, a
vontade em despeito, e acabai-me com ele a vida; que, como eu a dê
diante de meu bom esposo, a darei por bem empregada: quiçá com
minha morte ficará satisfeito da fé que lhe mantive até o último
transe da vida.
Havia neste entretanto voltado Doroteia a si, e havia estado
escutando todas as razões que Lucinda disse, pelas quais veio em
conhecimento de quem ela era; que, vendo que dom Fernando ainda não
a deixava dos braços, nem respondia a suas razões, esforçando-se o
mais que pôde, levantou-se e ficou de joelhos a seus pés; e,
derramando muita quantidade de formosas e lastimosas lágrimas,
assim lhe começou a dizer:
- Se já não é, senhor meu, que os raios deste sol que em teus braços
eclipsado tens te tiram e ofuscam os de teus olhos, já tereis visto que
a que a teus pés está ajoelhada é a sem ventura, até que tu queiras, e
a desditada Doroteia. Eu sou aquela lavradora humilde a quem tu, por
tua bondade ou por teu gosto, quiseste levantar à altura de poder
chamar-se tua. Sou a que, encerrada nos limites da honestidade, viveu
vida contente até que, às vozes de tuas importunações, e, ao parecer,
justos e amorosos sentimentos, abriu as portas de seu recato e te
entregou as chaves de sua liberdade: dádiva de ti tão mal agradecida,
qual o mostra bem claro haver sido forçoso achar-me no lugar onde me
achas, e ver-te eu a ti da maneira que te vejo. Entretanto, não queria
que estivesse em tua imaginação pensar que vim aqui com passos de
minha desonra, havendo-me trazido só os da dor e sentimento de ver-
me de ti olvidada. Tu quiseste que eu fosse tua, e quiseste-o de
maneira que, embora agora queiras que não o seja, não será possível
que tu deixes de ser meu. Vê, senhor meu, que pode ser recompensa à
formosura e nobreza por quem me deixas o incomparável amor que te
tenho. Tu não podes ser da formosa Lucinda, porque és meu, nem ela
pode ser tua, porque é de Cardênio; e mais fácil te será, se nisso
pensas, reduzir tua vontade a querer a quem te adora, que não
encaminhar a que te aborrece a que bem te queira. Tu solicitaste meu
descuido, tu rogaste a minha integridade, tu não ignoraste minha
qualidade, tu sabes bem da maneira que me entreguei a toda tua
vontade: não te fica lugar nem acolhida de chamar-te a engano. E se
isto é assim, como o é, e tu és tão cristão como cavaleiro, por que por
tantos rodeios dilatas de fazer-me venturosa nos fins, como me
fizeste nos princípios? E se não me queres pela que sou, que sou tua
verdadeira e legítima esposa, quer-me, ao menos, e admite-me por tua
escrava; que, como eu esteja em teu poder, me terei por ditosa e bem
afortunada. Não permitas, com deixar-me e desamparar-me, que se
façam e juntem grupinhos em minha desonra; não dês tão má velhice a
meus pais, pois não o merecem os leais serviços que, como bons
vassalos, aos teus sempre fizeram. E se te parece que hás de aniquilar
teu sangue por misturá-lo com o meu, considera que poucas ou
nenhuma nobreza há no mundo que não haja andado por este caminho,
e que a que se toma das mulheres não é a que vem ao caso nas ilustres
descendências; quanto mais, que a verdadeira nobreza consiste na
virtude, e se esta a ti te falta, negando-me o que tão justamente me
deves, eu ficarei com mais vantagems de nobre que as que tu tens.
Enfim, senhor, o que ultimamente te digo é que, queiras ou não
queiras, eu sou tua esposa: testemunhos são tuas palavras, que não hão
nem devem ser mentirosas, se já é que te prezas por aquilo por que me
desprezas; testemunho será a palavra que deste, e testemunho o céu,
a quem tu chamaste por testemunho do que me prometias. E quando
tudo isto falte, tua mesma consciência não há de faltar de dar vozes
calando em meio de tuas alegrias, voltando por esta verdade que te
disse e perturbando teus melhores gostos e contentamentos.
Estas e outras razões disse a lastimada Doroteia, com tanto
sentimento e lágrimas, que os mesmos que acompanhavam dom
Fernando, e quantos presentes estavam, a acompanharam nelas.
Escutou-a dom Fernando sem replicar-lhe palavra, até que ela deu fim
às suas e princípio a tantos soluços e suspiros, que bem havia de ser
coração de bronze o que com mostras de tanta dor não se
enternecesse. Olhando-a estava Lucinda, não menos lastimada de seu
sentimento que admirada de sua muita discrição e formosura; e,
embora quisesse chegar-se a ela e dizer-lhe algumas palavras de
consolo, não a deixavam os braços de dom Fernando, que apertada a
tinham. O qual, cheio de confusão e espanto, ao cabo de um bom
espaço que atentamente esteve olhando Doroteia, abriu os braços e,
deixando livre Lucinda, disse:
- Venceste, formosa Doroteia, venceste; porque não é possível ter
ânimo para negar tantas verdades juntas.
Com o desmaio que Lucinda havia tido, assim que a deixou dom
Fernando, ia cair no chão; mas, achando-se Cardênio ali junto, que às
costas de dom Fernando se havia posto para que não o reconhecesse,
superado todo temor e aventurando a todo risco, acudiu a suster
Lucinda, e, colhendo-a entre seus braços, disse-lhe:
- Se o piedoso céu gosta e quer que já tenhas algum descanso, leal,
firme e formosa senhora minha, em nenhum lugar creio eu que lhe
terás mais seguro que nestes braços que agora te recebem, e outro
tempo te receberam, quando a fortuna quis que pudesse chamar-te
minha.
A estas razões, pôs Lucinda em Cardênio os olhos, e, havendo
começado a reconhecê-lo, primeiro pela voz, e assegurando-se de que
era ele com a vista, quase fora de sentido e sem ter conta a nenhum
honesto respeito, jogou-lhe os braços ao pescoço, e, juntando seu
rosto com o de Cardênio, disse-lhe:
- Vós sim, senhor meu, sois o verdadeiro dono desta vossa cativa,
embora mais o impeça a contrária sorte, e, embora mais ameaças lhe
façam a esta vida que na vossa se sustenta.
Estranho espetáculo foi este para dom Fernando e para todos os
circunstantes, admirando-se de tão não visto sucesso. Pareceu a
Doroteia que dom Fernando havia perdido a cor do rosto e que fazia
gesto de querer vingar-se de Cardênio, porque o viu encaminhar a mão
a pô-la na espada; e, assim que o pensou, com não vista presteza se
abraçou com ele pelos joelhos, beijando-os e tendo-o apertado, que
não o deixava mover, e, sem cessar um instante suas lágrimas, lhe
dizia:
- Que é o que pensas fazer, único refugio meu, neste tão impensado
transe? Tu tens a teus pés a tua esposa, e a que queres que o seja
está nos braços de seu marido. Vê se te estará bem ou te será
possível desfazer o que o céu fez, ou se te convirá querer levantar a
igualar a ti mesmo à que, superado todo inconveniente, confirmada em
sua verdade e firmeza, diante de teus olhos tem os seus, banhados de
licor amoroso o rosto e peito de seu verdadeiro esposo. Por quem Deus
é te rogo, e por quem tu és te suplico, que este tão notório desengano
não só não acrescente tua ira, senão que a mingue de tal maneira, que
com quietude e sossego permitas que estes dois amantes tenham, sem
impedimento teu, todo o tempo que o céu quiser conceder-lhe; e nisto
mostrarás a generosidade de teu ilustre e nobre peito, e verá o mundo
que tem contigo mais força a razão que o apetite.
Enquanto isto dizia Doroteia, embora Cardênio tinha abraçada a
Lucinda, não tirava os olhos de dom Fernando, com determinação de
que, se o visse fazer algum movimento em seu prejuízo, procurar
defender-se e ofender como melhor pudesse a todos aqueles que em
seu dano se mostrassem, embora lhe custasse a vida. Mas então
acudiram os amigos de dom Fernando, e o padre e o barbeiro, que a
tudo haviam estado presentes, sem que faltasse o bom de Sancho
Pança, e todos rodeavam dom Fernando, suplicando-lhe tivesse por
bem olhar as lágrimas de Doroteia; e que, sendo verdade, como sem
dúvida eles criam que o era, o que em suas razões havia dito, que não
permitisse ficasse defraudada de suas tão justas esperanças. Que
considerasse que, não por acaso, como parecia, senão com particular
providência do céu, se haviam todos juntado em lugar onde menos
nenhum pensava; e que advertisse - disse o padre - que só a morte
podia afastar Lucinda de Cardênio; e, embora os dividissem fios de
alguma espada, eles teriam por felicíssima sua morte; e que nos laços
irremediáveis era suma cordura, forçando-se e vencendo-se a si
mesmo, mostrar um generoso peito, permitindo que por só sua vontade
os dois gozassem o bem que o céu já lhes havia concedido; que pusesse
os olhos também na beldade de Doroteia, e veria que poucas ou
nenhuma se lhe podiam igualar, quanto mais fazer-lhe vantagem, e que
juntasse à sua formosura sua humildade e o extremo do amor que lhe
tinha; e, sobretudo, advertisse que se se prezava por ser cavaleiro e
cristão, que não podia fazer outra coisa que cumprir-lhe a palavra
dada, e que, cumprindo-a, cumpriria com Deus e satisfaria às pessoas
discretas, as quais sabem e conhecem que é prerrogativa da
formosura, embora esteja em sujeito humilde, quando se acompanhe
com a honestidade, poder levantar-se e igualar-se a qualquer alteza,
sem nota de menoscabo do que a levanta e iguala a si mesmo; e, quando
se cumprem as fortes leis do gosto, se nele não intervenha pecado,
não deve ser culpado o que as segue.
Com efeito, a estas razões juntaram todos outras, tais e tantas,
que o valoroso peito de dom Fernando - enfim, como alimentado com
ilustre sangue - se abrandou e se deixou vencer pela verdade, que ele
não poderia negar embora quisesse; e o sinal que deu de haver-se
rendido e entregado ao bom parecer que se lhe havia proposto foi
abaixar-se e abraçar Doroteia, dizendo-lhe:
- Levantai-vos, senhora minha, que não é justo que esteja ajoelhada
a meus pés a que eu tenho em minha alma; e se até aqui não dei
mostras do que digo, quiçá foi por ordem do céu, para que, vendo eu
em vós a fé com que me amais, vos saiba estimar no que mereceis. O
que vos rogo é que não repreendais minha má conduta e meu muito
descuido, pois o mesmo motivo e força que me moveu para aceitar-vos
por minha, esse mesmo me impeliu para procurar não ser vosso. E que
isto seja verdade, volvei e vede os olhos da já contente Lucinda, e
neles achareis desculpa de todos meus erros; e, pois ela achou e
alcançou o que desejava, e eu achei em vós o que me cumpre, viva ela
segura e contente longos e felizes anos com seu Cardênio, que eu
rogarei ao céu que os deixe viver com minha Doroteia.
E dizendo isto, a tornou a abraçar e a juntar seu rosto com o seu,
com tão terno sentimento, que lhe foi necessário muito esforço para
que as lágrimas não acabassem de dar indubitáveis sinais de seu amor
e arrependimento. Não o fizeram assim as de Lucinda e Cardênio, e
ainda as de quase todos os que ali presentes estavam, porque
começaram a derramar tantas, uns de contentamento próprio e outros
do alheio, que não parecia senão que algum grave e mau caso a todos
havia sucedido. Até Sancho Pança chorava, embora depois disse que
não chorava ele senão por ver que Doroteia não era, como ele pensava,
a rainha Micomicona, de quem ele tantas mercês esperava. Durou
algum tempo, junto com o pranto, a admiração em todos, e logo
Cardênio e Lucinda se foram a pôr de joelhos ante dom Fernando,
dando-lhe graças da mercê que lhes havia feito com tão corteses
razões, que dom Fernando não sabia o que responder-lhes; e assim, os
levantou e abraçou com mostras de muito amor e de muita cortesia.
Pediu logo a Doroteia lhe dissesse como havia vindo àquele lugar tão
longe do seu. Ela, com breves e discretas razões, contou tudo o que
antes havia contado a Cardênio, do que gostou tanto dom Fernando e
os que com ele vinham, que queriam que durasse o conto mais tempo:
tanta era a graça com que Doroteia contava suas desventuras. E assim
que acabou, disse dom Fernando o que na cidade lhe havia acontecido
depois que achou o papel no seio de Lucinda, onde declarava ser
esposa de Cardênio e não poder ser sua. Disse que a quis matar, e o
faria se por seus pais não fosse impedido; e que assim, saiu de sua
casa, despeitado e vexado, com determinação de vingar-se com mais
comodidade; e que no outro dia soube como Lucinda havia faltado da
casa de seus pais, sem que ninguém soubesse dizer onde havia ido, e
que, em suma, ao cabo de alguns meses veio a saber que estava num
monastério, com vontade de ficar nele toda a vida, se não a pudesse
passar com Cardênio; e que, assim que o soube, escolhendo para sua
companhia aqueles três cavaleiros, veio ao lugar onde estava, à qual
não havia querido falar, temeroso que, sabendo que ele estava ali,
havia de haver mais guarda no monastério; e assim, aguardando um dia
em que a porteira estivesse aberta, deixou os dois à guarda da porta,
e ele, com outro, haviam entrado no monastério procurando Lucinda, a
qual acharam no claustro falando com uma monja; e, arrebatando-a,
sem dar-lhe lugar a outra coisa, haviam vindo com ela a um lugar onde
se proveram daquilo que precisavam para trazê-la. Tudo o que haviam
podido fazer bem a seu salvo, por estar o monastério no campo, bom
trecho fora da vila. Disse que, assim que Lucinda se viu em seu poder,
perdeu todos os sentidos; e que, depois de desperta, não havia feito
outra coisa senão chorar e suspirar, sem falar palavra alguma; e que
assim, acompanhados de silêncio e de lágrimas, haviam chegado àquela
estalagem, que para ele era haver chegado ao céu, onde se rematam e
têm fim todas as desventuras da terra.

CAPÍTULO XXXVII

Onde prossegue a história da famosa infanta Micomicona, com


outras graciosas aventuras

Tudo isto escutava Sancho, não com pouca dor de sua alma, vendo
que se lhe desapareciam e iam em fumaça as esperanças de seu título
de nobreza, e que a linda princesa Micomicona se havia transformado
em Doroteia, e o gigante em dom Fernando, e seu amo estava
dormindo a sono solto, bem descuidado de todo o sucedido. Não se
podia assegurar Doroteia se era sonhado o bem que possuía. Cardênio
estava no mesmo pensamento, e o de Lucinda corria pela mesma conta.
Dom Fernando dava graças ao céu pela mercê recebida e haver-lhe
tirado daquele intrincado labirinto, onde se achava tão a pique de
perder o crédito e a alma; e, finalmente, quantos na estalagem
estavam, estavam contentes e gozosos do bom sucesso que haviam
tido tão travados e desesperados negócios.
Tudo esclarecia o padre, como discreto, e a cada um dava os
parabéns pelo bem alcançado; mas quem mais jubilava e se contentava
era a vendeira, pela promessa que Cardênio e o padre lhe haviam feito
de pagar-lhe todos os danos e interesses que por conta de dom
Quixote lhe houvessem vindo. Só Sancho, como já se disse, era o
aflito, o desventurado e o triste; e assim, com melancólico semblante,
acometeu seu amo, o qual acabava de despertar, a quem disse:
- Bem pode vossa mercê, senhor Triste Figura, dormir tudo o que
quiser, sem cuidado de matar nenhum gigante, nem de levar a princesa
a seu reino: que já tudo está feito e concluído.
- Isso creio eu bem - respondeu dom Quixote, - porque tive com o
gigante a mais descomunal e desaforada batalha que penso ter em
todos os dias de minha vida; e de um revés, zás!, lhe derrubei a cabeça
no chão, e foi tanto o sangue que lhe saiu, que os arroios corriam pela
terra como se fossem de água.
- Como se fossem de vinho tinto, poderia vossa mercê dizer melhor
- respondeu Sancho, - porque quero que saiba vossa mercê, se é que
não o sabe, que o gigante morto é um odre perfurado, e o sangue, seis
arrobas de vinho tinto que encerrava em seu ventre; e a cabeça
cortada é a puta que me pariu, e leve-o tudo Satanás.
- E que é o que dizes, louco? - replicou dom Quixote. - Estás em teu
juízo?
- Levante-se vossa mercê - disse Sancho, - e verá a boa conquista
que fez, e o que temos que pagar; e verá a rainha convertida em uma
dama particular, chamada Doroteia, com outros sucessos que, se os
conhece, lhe hão de admirar.
- Não me maravilharia de nada disso - replicou dom Quixote, -
porque, se bem te recordas, a outra vez que aqui estivemos te disse
eu que tudo quanto aqui sucedia eram coisas de encantamento, e não
seria muito que agora fosse o mesmo.
- Tudo o acreditaria eu - respondeu Sancho, - se também meu
manteamento fosse coisa desse jaez, mas não o foi, senão real e
verdadeiramente; e vi eu que o vendeiro que aqui está hoje segurava
uma ponta da manta, e me jogava até o céu com muito donaire e brio, e
com tanto riso como força; e quanto a conhecer-se as pessoas, tenho
para mim, embora ingênuo e pecador, que não há encantamento algum,
senão muito moimento e muita má ventura.
- Agora bem, Deus o remediará - disse dom Quixote. - Ajuda-me a
vestir e deixa-me sair lá fora, que quero ver os sucessos e
transformações que dizes.
Ajudou-o a vestir-se Sancho, e, enquanto se vestia, contou o padre
a dom Fernando e aos demais as loucuras de dom Quixote, e do
artifício que haviam usado para tirá-lo da Penha Pobre, onde ele
imaginava estar por desdéns de sua senhora. Contou-lhes também
quase todas as aventuras que Sancho havia contado, de que não pouco
se admiraram e riram, por parecer-lhes o que a todos parecia: ser o
mais estranho gênero de loucura que podia caber em pensamento
disparatado. Disse mais o padre: que, pois já o bom sucesso da
senhora Doroteia impedia passar com seu desígnio adiante, que era
preciso inventar e achar outro para poder levá-lo à sua terra.
Ofereceu-se Cardênio a prosseguir o começado, e que Lucinda faria e
representaria a pessoa de Doroteia.
- Não - disse dom Fernando, - não há de ser assim: que eu quero que
Doroteia prossiga sua invenção; que, se não for muito longe daqui o
lugar deste bom cavaleiro, eu gostarei de que se procure seu remédio.
- Não está a mais de dois dias daqui.
- Pois, embora estivesse mais, gostaria eu de caminhá-los, a troco
de fazer tão boa obra.
Saiu nisto dom Quixote, armado de todos seus apetrechos, com o
elmo, embora amassado, de Mambrino na cabeça, embraçando sua
rodela e arrimado a seu tronco o chuço. Suspendeu a dom Fernando e
aos demais a estranha presença de dom Quixote, vendo seu rosto de
meia légua de andadura, seco e amarelo, a desigualdade de suas armas
e sua comedida postura, e estiveram calados até ver o que ele dizia, o
qual, com muita gravidade e repouso, postos os olhos na formosa
Doroteia, disse:
- Estou informado, formosa senhora, deste meu escudeiro que a
vossa grandeza se aniquilou, e vosso ser se desfez, porque de rainha e
grande senhora que costumáveis ser vos haveis transformado em uma
particular donzela. Se isto foi por ordem do rei nigromante de vosso
pai, temeroso que eu não vos desse a necessária e devida ajuda, digo
que não soube nem sabe da missa a metade, e que foi pouco versado
nas histórias cavaleirescas, porque se ele as houvesse lido e passado
tão atentamente e com tanto espaço como eu as passei e li, acharia a
cada passo como outros cavaleiros de menor fama que a minha haviam
levado a efeito coisas mais dificultosas, não sendo-o muito matar um
gigantinho, por arrogante que seja; porque não há muitas horas que eu
me vi com ele, e... Quero calar, porque não me digam que minto; mas o
tempo, descobridor de todas as coisas, o dirá quando menos o
pensemos.
- Enfrentastes dois odres, não um gigante - disse então o vendeiro.
Ao qual mandou dom Fernando que calasse e não interrompesse a
conversa de dom Quixote de maneira alguma; e dom Quixote
prosseguiu dizendo:
- Digo, enfim, alta e deserdada senhora, que se pela causa que disse
vosso pai fez esta metamorfose em vossa pessoa, que não lhe deis
crédito algum, porque não há nenhum perigo na terra por onde não
abra caminho minha espada, com a qual, pondo a cabeça de vosso
inimigo em terra, na vossa porei a coroa em breves dias.
Não disse mais dom Quixote, e esperou que a princesa lhe
respondesse, a qual, como já sabia a determinação de dom Fernando
de que se prosseguisse adiante no engano até levar dom Quixote à sua
terra, com muito donaire e gravidade, respondeu-lhe:
- Quem quer que vos disse, valoroso cavaleiro da Triste Figura, que
eu me havia mudado e trocado de meu ser, não vos disse o certo,
porque a mesma que ontem fui sou hoje. Verdade é que alguma
mudança fizeram em mim certos acontecimentos de boa ventura, que
ma deram a melhor que eu poderia desejar, mas não por isso deixei de
ser a de antes e de ter os mesmos pensamentos de valer-me do valor
de vosso valoroso e invulnerável braço que sempre tive. Assim que,
senhor meu, vossa bondade restitua a honra ao pai que me engendrou,
e tenha-lhe por homem advertido e prudente, pois com sua ciência
achou caminho tão fácil e tão verdadeiro para remediar minha
desgraça; que eu creio que se por vós, senhor, não fosse, jamais
acertaria a ter a ventura que tenho; e nisto digo tanta verdade como
são bons testemunhos dela os mais destes senhores que estão
presentes. O que resta é que amanhã nos ponhamos a caminho, porque
já hoje se poderá fazer pouca jornada, e no demais do bom sucesso
que espero, o deixarei a Deus e ao valor de vosso peito.
Isto disse a discreta Doroteia, e, ouvindo-o dom Quixote, se voltou
a Sancho, e, com mostras de muita zanga, disse-lhe:
- Agora te digo, Sanchico, que és o maior velhacote que há na
Espanha. Diz-me, ladrão vagabundo, não me acabaste de dizer agora
que esta princesa se havia transformado em uma donzela que se
chamava Doroteia, e que a cabeça que entendo que cortei a um gigante
era a puta que te pariu, com outros disparates que me puseram na
maior confusão que jamais estive em todos os dias de minha vida?
Voto... - e olhou para o céu e apertou os dentes - que estou por fazer
um estrago em ti, que ponha inteligência na moleira a todos quantos
mentirosos escudeiros houver de cavaleiros andantes, daqui em
diante, no mundo!
- Vossa mercê sossegue, senhor meu - respondeu Sancho, - que bem
poderia ser que eu me houvesse enganado no que toca à mutação da
senhora princesa Micomicona; mas, no que toca à cabeça do gigante,
ou, ao menos, à perfuração dos odres e ao de ser vinho tinto o sangue,
não me engano, vive Deus, porque os odres ali estão feridos, à
cabeceira do leito de vossa mercê, e o vinho tinto fez um lago o
aposento; e se não, ao frigir dos ovos o verá; quero dizer que o verá
quando aqui sua mercê o senhor vendeiro lhe peça a indenização de
tudo. Do demais, de que a senhora rainha esteja como estava, me
regozijo na alma, porque tenho minha parte, como cada filho de
vizinho.
- Agora eu te digo, Sancho - disse dom Quixote, - que és um
mentecapto; e perdoa-me, e basta.
- Basta - disse dom Fernando, - e não se fale mais nisto; e, pois a
senhora princesa diz que se caminhe amanhã, porque já hoje é tarde,
faça-se assim, e esta noite a poderemos passar em boa conversação
até o vindouro dia, onde todos acompanharemos ao senhor dom
Quixote, porque queremos ser testemunhos das valorosas e inauditas
façanhas que há de fazer no decurso desta grande empresa que a seu
cargo leva.
- Eu sou o que tenho de servir-vos e acompanhar-vos - respondeu
dom Quixote, - e agradeço muito a mercê que me faz e a boa opinião
que de mim tem, a qual procurarei que saia verdadeira, ou me custará
a vida, e ainda mais, se mais custar-me pode.
Muitas palavras de comedimento e muitos oferecimentos passaram
entre dom Quixote e dom Fernando; mas a tudo pôs silêncio um
passageiro que naquele momento entrou na estalagem, o qual em seu
traje mostrava ser cristão recém vindo de terra de mouros, porque
vinha vestido com uma casaca de pano azul, curta de fraldas, com
meias mangas e sem pescoço; os calções eram também de fino pano
azul, com barrete da mesma cor; trazia uns borzeguins cor de tâmara
e um alfanje mourisco, posto numa tira de couro que lhe atravessava o
peito. Entrou logo atrás dele, em cima de um jumento, uma mulher à
mourisca vestida, coberto o rosto com uma touca na cabeça; trazia um
barretinho de brocado, e vestida uma túnica, que desde os ombros aos
pés a cobria.
Era o homem de robusto e gracioso talhe, de idade de pouco mais
de quarenta anos, algo moreno de rosto, largo de bigodes e a barba
muito bem posta. Em suma, ele mostrava em sua postura que se
estivesse bem vestido o julgariam por pessoa de qualidade e bem
nascida.
Pediu, ao entrar, um aposento, e como lhe disseram que na
estalagem não havia, mostrou tristeza e, chegando-se à que no traje
parecia moura, a apeou em seus braços. Lucinda, Doroteia, a vendeira,
sua filha e Maritornes, levadas do novo e para elas nunca visto traje,
rodearam a moura, e Doroteia, que sempre foi graciosa, comedida e
discreta, parecendo-lhe que assim ela como o que a trazia se
angustiavam pela falta do aposento, disse-lhe:
- Não vos dê muita pena, senhora minha, a decente comodidade que
aqui falta, pois é próprio de estalagens não achar-se nelas; mas, então,
se gostardes de passar conosco - indicando Lucinda, - quiçá no decurso
deste caminho havereis achado outros não tão bons acolhimentos.
Não respondeu nada a isto a embuçada, nem fez outra coisa que
levantar-se de onde sentado se havia, e, postas ambas as mãos
cruzadas sobre o peito, inclinada a cabeça, dobrou o corpo em sinal de
que o agradecia. Por seu silêncio imaginaram que, sem dúvida alguma,
devia ser moura, e que não sabia falar cristão. Chegou, nisto, o cativo,
que ocupado em outra coisa até então havia estado, e, vendo que todas
tinham cercado a que com ele vinha, e que ela a quanto lhe diziam
calava, disse:
- Senhoras minhas, esta donzela apenas entende minha língua, nem
sabe falar outra nenhuma senão conforme a sua terra, e por isto não
deve haver respondido, nem responde, ao que se lhe perguntou.
- Não se lhe pergunta outra coisa nenhuma - respondeu Lucinda -
senão oferecer-lhe por esta noite nossa companhia e parte do lugar
onde nos acomodaremos, onde se lhe fará o regalo que a comodidade
oferecer, com a vontade que obriga a servir a todos os estrangeiros
que disso tiverem necessidade, especialmente sendo mulher a quem se
serve.
- Por ela e por mim - respondeu o cativo - vos beijo, senhora minha,
as mãos, e estimo muito e no que é razão a mercê oferecida; que em
tal ocasião, e de tais pessoas como vosso parecer mostra, bem se vê
que há de ser muito grande.
- Dizei-me, senhor - disse Doroteia: - esta senhora é cristã ou
moura? Porque o traje e o silêncio nos faz pensar que é o que não
queríamos que fosse.
- Moura é no traje e no corpo, mas na alma é muito grande
cristã, porque tem grandíssimos desejos de sê-lo.
- Então não é batizada? - replicou Lucinda.
- Não houve lugar para isso - respondeu o cativo - depois que saiu de
Argel, sua pátria e terra, e até agora não se viu em perigo de morte
tão perto que obrigasse a batizá-la sem que soubesse primeiro todas
as cerimônias que nossa Madre a Santa Igreja manda; mas Deus será
servido que logo se batize com o decoro que a qualidade de sua pessoa
merece, que é mais do que mostra seu traje e o meu.
Com estas razões pôs vontade em todos os que escutando-o
estavam de saber quem fosse a moura e o cativo, mas ninguém o quis
perguntar por então, por ver que aquela ocasião era mais para dar-lhes
descanso que para perguntar-lhes de suas vidas. Doroteia a tomou pela
mão e a levou a sentar junto a si, e lhe rogou que tirasse o embuço. Ela
olhou para o cativo, como se lhe pedisse que dissesse o que diziam e o
que ela faria. Ele, em língua arábica, disse-lhe que lhe pediam que
tirasse o embuço, e que o fizesse; e assim, o tirou, e descobriu um
rosto tão formoso que Doroteia a teve por mais formosa que Lucinda,
e Lucinda por mais formosa que Doroteia, e todos os circunstantes
reconheceram que se alguém poderia igualar ao das duas, era o da
moura, e ainda houve alguns que o avantajaram em alguma coisa. E
como a formosura tenha prerrogativa e graça de reconciliar os ânimos
e atrair as vontades, logo se renderam todos ao desejo de servir e
acariciar à formosa moura.
Perguntou dom Fernando ao cativo como se chamava a moura, o qual
respondeu que Lela Zoraida; e, assim que isto ouviu, ela entendeu o
que haviam perguntado ao cristão, e disse com muita pressa, cheia de
angústia e donaire:
- Não, não Zoraida: Maria, Maria! - dando a entender que se
chamava Maria e não Zoraida.
Estas palavras, o grande afeto com que a moura as disse, fizeram
derramar mais de uma lágrima a alguns dos que a escutaram,
especialmente às mulheres, que de sua natureza são ternas e
compassivas. Abraçou-a Lucinda com muito amor, dizendo-lhe:
- Sim, sim, Maria, Maria.
A que respondeu a moura:
- Sim, sim: Maria: Zoraida macange! - que quer dizer não.
Já, nisto, chegava a noite, e, por ordem dos que vinham com dom
Fernando, havia o vendeiro posto diligência e cuidado em preparar-
lhes com que jantar o melhor que a ele lhe foi possível. Chegada, pois,
a hora, sentaram-se todos a uma larga mesa, como de refeitório,
porque não a havia redonda nem quadrada na estalagem, e deram a
cabeceira e principal assento, embora ele o recusasse, a dom Quixote,
o qual quis que estivesse a seu lado a senhora Micomicona, pois ele era
seu protetor. Logo se sentaram Lucinda e Zoraida, e fronteiro delas
dom Fernando e Cardênio, e logo o cativo e os demais cavaleiros, e, ao
lado das senhoras, o padre e o barbeiro. E assim, jantaram com muita
alegria, e acrescentou-se-lhes mais vendo que, deixando de comer dom
Quixote, movido por outro semelhante espírito que o que o moveu a
falar tanto como falou quando jantou com os cabreiros, começou a
dizer:
- Verdadeiramente, se bem se considera, senhores meus, grandes e
inauditas coisas veem os que professam a ordem da andante cavalaria.
Se não, qual dos viventes haverá no mundo que agora pela porta deste
castelo entrasse, e da sorte que estamos nos vir, que julgue e creia
que nós somos quem somos? Quem poderá dizer que esta senhora que
está a meu lado é a grande rainha que todos sabemos, e que eu sou
aquele cavaleiro da Triste Figura que anda por aí na boca da fama?
Agora não há que duvidar, senão que esta arte e exercício excede a
todas aquelas e aqueles que os homens inventaram, e tanto mais se há
de ter em estima quanto a mais perigos está sujeito. Tirem-me de
diante os que disserem que as letras fazem vantagem às armas, que
lhes direi, e sejam quem forem, que não sabem o que dizem. Porque a
razão que os tais costumam dizer, e ao que isso mais se atêm, é que os
trabalhos do espírito excedem aos do corpo, e que as armas só com o
corpo se exercitam, como se fosse seu exercício ofício de ganha-pães,
para quem não é preciso mais que boas forças; ou como se nisto que
chamamos armas os que as professamos não se encerrassem os atos
da fortaleza, os quais pedem para executá-los muito entendimento; ou
como se não trabalhasse o ânimo do guerreiro que tem a seu cargo um
exército, ou a defesa de uma cidade sitiada, assim com o espírito
como com o corpo. Se não, veja-se se se alcança com as forças
corporais saber e conjeturar o intento do inimigo, os desígnios, os
estratagemas, as dificuldades, o previr os danos que se temem; que
todas estas coisas são ações do entendimento, em que não tem parte
alguma o corpo. Sendo pois assim, que as armas requerem espírito,
como as letras, vejamos agora qual dos dois espíritos, o do letrado ou
o do guerreiro, trabalha mais. E isto se virá a conhecer pelo fim e
paradeiro a que cada um se encaminha, porque aquela intenção se há
de estimar em mais quem tenha por objeto mais nobre fim. É o fim e
paradeiro das letras..., e não falo agora das divinas, que têm por alvo
levar e encaminhar as almas ao céu, que a um fim tão sem fim como
este nenhum outro se lhe pode igualar; falo das letras humanas, que é
seu fim esclarecer a justiça distributiva e dar a cada um o que é seu,
entender e fazer que as boas leis se guardem. Fim, por certo,
generoso e alto e digno de grande louvação, mas não de tanta como
merece aquele a que as armas atendem, as quais têm por objeto e fim
a paz, que é o maior bem que os homens podem desejar nesta vida. E
assim, as primeiras boas novas que teve o mundo e tiveram os homens
foram as que deram os anjos a noite que foi nosso dia, quando
cantaram nos ares: “Glória seja nas alturas, e paz na terra, aos
homens de boa vontade”; e à saudação que o melhor cirurgião da terra
e do céu ensinou a seus achegados e favoritos, foi dizer-lhes que
quando entrassem em alguma casa, dissessem: “Paz esteja nesta casa”;
e outras muitas vezes lhes disse: “Minha paz vos dou, minha paz vos
deixo: paz seja convosco”, bem como joia e prenda dada e deixada de
tal mão; joia que sem ela, na terra nem no céu pode haver bem algum.
Esta paz é o verdadeiro fim da guerra, que o mesmo é dizer armas que
guerra. Pressuposta, pois, esta verdade, que o fim da guerra é a paz, e
que nisto faz vantagem ao fim das letras, venhamos agora aos
trabalhos do corpo do letrado e aos do professor das armas, e veja-se
quais são maiores.
De tal maneira e por tão bons termos ia prosseguindo em sua
palestra dom Quixote que obrigou a que, por então, nenhum dos que
escutando-o estavam o tivesse por louco; antes, como todos os mais
eram cavaleiros, a quem são próprias as armas, o escutavam de muito
bom grado; e ele prosseguiu dizendo:
- Digo, pois, que os trabalhos do estudante são estes:
principalmente pobreza, não porque todos sejam pobres, senão por pôr
este caso em todo o extremo que possa ser; e, em haver dito que
padece pobreza, me parece que não havia que dizer mais de sua má
ventura, porque quem é pobre não tem coisa boa. Esta pobreza a
padece por suas partes, já em fome, já em frio, já em desnudez, já em
tudo junto; entretanto, não é tanta que não coma, embora seja um
pouco mais tarde do que se usa, embora seja das sobras dos ricos; que
é a maior miséria do estudante esta que entre eles chamam “andar à
sopa”; e não lhes falta algum alheio braseiro ou chaminé, que, se não
esquenta, ao menos diminui seu frio, e, enfim, à noite dormem debaixo
de coberta. Não quero chegar a outras minudências, convém a saber,
da falta de camisas e não sobra de sapatos, a raridade e pouco pelo do
vestido, nem aquele empanturrar-se com tanto gosto, quando a boa
sorte lhes depara algum banquete. Por este caminho que pintei, áspero
e dificultoso, tropeçando aqui, caindo ali, levantando-se acolá,
tornando a cair cá, chegam ao grau que desejam; o qual alcançado, a
muitos temos visto que, havendo passado por estas Sirtes e por estas
Cilas e Caribdes como levados em voo pela favorável fortuna, digo que
os temos visto mandar e governar o mundo desde uma cadeira,
trocada sua fome em fartura, seu frio em refrigério, sua desnudez em
galas, e seu dormir em uma esteira em repousar em holandas e
damascos: prêmio justamente merecido de sua virtude. Mas,
contrapostos e comparados seus trabalhos com os do soldado
guerreiro, ficam muito atrás em tudo, como agora direi.

CAPÍTULO XXXVIII

Que trata do curioso discurso que fez dom Quixote das armas e
das letras

Prosseguindo dom Quixote, disse:


- Pois começamos no estudante pela pobreza e suas partes, vejamos
se é mais rico o soldado. E veremos que não há nenhum mais pobre na
mesma pobreza, porque está preso à miséria de sua paga, que vem ou
tarde ou nunca, ou ao que pilhar por suas mãos, com notável perigo de
sua vida e de sua consciência. E às vezes costuma ser sua desnudez
tanta, que um colete rasgado lhe serve de gala e de camisa, e no meio
do inverno se costuma reparar das inclemências do céu, estando em
campo aberto, com só o alento de sua boca, que, como sai de lugar
vazio, tenho por averiguado que deve sair frio, contra toda natureza.
Pois esperai que espere que chegue a noite, para restaurar-se de
todas estas incomodidades, na cama que o aguarda, a qual, se não é por
sua culpa, jamais pecará por ser estreita; que bem pode medir na
terra os pés que quiser, e revolver-se nela a seu sabor, sem temor que
se lhe encolham as lençóis. Junte-se, pois, a tudo isto, o dia e a hora
de receber o grau de seu exercício; junte-se um dia de batalha, que ali
lhe porão a borla na cabeça, feita de trapos, para curá-lo de algum
balaço, que quiçá lhe haverá perfurado as têmporas, ou o deixará
estropiado de braço ou perna. E quando isto não suceda, senão que o
céu piedoso o guarde e conserve são e vivo, poderá ser que fique na
mesma pobreza que antes estava, e que seja preciso que suceda um e
outro combate, uma e outra batalha, e que de todas saia vencedor,
para obter algo; mas estes milagres veem-se raras vezes. Mas, dizei-
me, senhores, se haveis reparado nisso: quão menos são os premiados
pela guerra que os que pereceram nela? Sem dúvida, haveis de
responder que não têm comparação, nem se podem contar os mortos, e
que se poderão contar os premiados vivos com três algarismos. Tudo
isto é ao revés nos letrados; porque, pessoas de fraldas (que não
quero dizer de mangas) todas têm como sustentar-se. Assim que,
embora é maior o trabalho do soldado, é muito menor o prêmio. Mas a
isto se pode responder que é mais fácil premiar dois mil letrados que
trinta mil soldados, porque aqueles se premiam com dar-lhes ofícios,
que por força se hão de dar aos de sua profissão, e estes não se
podem premiar senão com as mesmas posses do senhor a quem servem;
e esta impossibilidade fortifica mais a razão que tenho. Mas deixemos
isto à parte, que é labirinto de muito dificultosa saída, senão voltemos
à preeminência das armas contra as letras, matéria que até agora está
por averiguar, segundo são as razões que cada uma de sua parte alega.
E entre as que disse, dizem as letras que sem elas não se poderiam
sustentar as armas, porque a guerra também tem suas leis e está
sujeita a elas, e que as leis caem debaixo do que são letras e letrados.
A isto respondem as armas que as leis não se poderão sustentar sem
elas, porque com as armas se defendem as repúblicas, se conservam os
reinos, se guardam as cidades, se asseguram os caminhos, se limpam
os mares de corsários; e, finalmente, se por elas não fosse, as
repúblicas, os reinos, as monarquias, as cidades, os caminhos de mar e
terra estariam sujeitos ao rigor e à confusão que traz consigo a
guerra o tempo que dura e tem licença de usar de seus privilégios e de
suas forças. E é razão averiguada que aquilo que mais custa se estima
e deve estimar em mais. Conseguir alguém ser eminente em letras lhe
custa tempo, vigílias, fome, desnudez, vertigens de cabeça,
indigestões de estômago, e outras coisas a estas aderentes, que, em
parte, já as tenho referidas; mas chegar um por seus meios a ser bom
soldado lhe custa tudo o que ao estudante, em tão maior grau que não
tem comparação, porque a cada passo está a pique de perder a vida. E
que temor de necessidade e pobreza pode chegar nem fatigar o
estudante, que chegue ao que tem um soldado, que, achando-se
cercado em algum forte, e estando de sentinela, ou guarda, sente que
os inimigos estão minando até o lugar onde ele está, e não pode
afastar-se dali por nenhum caso, nem fugir do perigo que de tão perto
o ameaça? Só o que pode fazer é dar notícia a seu capitão do que
acontece, para que o remedie com alguma contramina, e ele estar
quedo, temendo e esperando quando improvisamente há de subir às
nuvens sem asas e baixar ao profundo sem sua vontade. E se este
parece pequeno perigo, vejamos se lhe iguala ou faz vantagens o de
investir duas galeras pelas proas em meio ao mar espaçoso, as quais,
encravilhadas e travadas, não fica ao soldado mais espaço do que
concedem dois pés de tábua de proa; e, desse modo, vendo que tem
diante de si tantos serviçais da morte que o ameaçam quantos canhões
de artilharia se assestam da parte contrária, que não distam de seu
corpo uma lança, e vendo que ao primeiro descuido dos pés iria visitar
os profundos seios de Netuno; e, desse modo, com intrépido coração,
levado da honra que o incita, se põe a ser alvo de tanta arcabuzaria, e
procura passar por tão estreito passo ao baixel contrário. E o que
mais é de admirar: que apenas um caiu onde não se poderá levantar até
o fim do mundo, quando outro ocupa seu mesmo lugar; e se este
também cai no mar, que como a inimigo o aguarda, outro e outro lhe
sucede, sem dar tempo ao tempo de suas mortes: valentia e
atrevimento o maior que se pode achar em todos os transes da guerra.
Bem hajam aqueles benditos séculos que careceram da espantável
fúria destes endemoniados instrumentos da artilharia, a cujo inventor
tenho para mim que no inferno se lhe está dando o prêmio de sua
diabólica invenção, com a qual deu causa que um infame e covarde
braço tire a vida a um valoroso cavaleiro, e que, sem saber como ou
por onde, na meio da coragem e brio que acende e anima os valentes
peitos, chega uma desmandada bala, disparada por quem quiçá fugiu e
se espantou do resplendor que fez o fogo ao disparar da maldita
máquina, e corta e acaba num instante os pensamentos e vida de quem
a merecia gozar longos séculos. E assim, considerando isto, estou por
dizer que na alma me pesa haver tomado este exercício de cavaleiro
andante em idade tão detestável como é esta em que agora vivemos;
porque, embora a mim nenhum perigo me põe medo, todavia me põe
receio pensar se a pólvora e o estanho me hão de tirar a ocasião de
fazer-me famoso e conhecido pelo valor de meu braço e fios de minha
espada, por todo o descoberto da terra. Mas faça o céu o que for
servido, que tanto serei mais estimado, se saio com o que pretendo,
quanto a maiores perigos me expus que se expuseram os cavaleiros
andantes dos passados séculos.
Todo este largo preâmbulo disse dom Quixote, enquanto os demais
jantavam, olvidando-se de levar bocado à boca, embora algumas vezes
lhe dissesse Sancho Pança que jantasse, que depois haveria lugar para
dizer tudo o que quisesse. Nos que o escutavam sobreveio nova lástima
de ver que homem que, ao parecer, tinha bom entendimento e bom
discurso em todas as coisas que tratava, o houvesse perdido tão
rematadamente, tratando de sua negra e sinistra cavalaria. O padre
lhe disse que tinha muita razão em tudo quanto havia dito em favor
das armas, e que ele, embora letrado e graduado, estava de seu
mesmo parecer.
Acabaram de jantar, tiraram a mesa, e, enquanto a vendeira, sua
filha e Maritornes preparavam o sótão de dom Quixote da Mancha,
onde haviam determinado que naquela noite só as mulheres nele se
recolhessem, dom Fernando rogou ao cativo lhes contasse o decorrer
de sua vida, porque não poderia ser senão que fosse peregrino e
agradável, segundo as mostras que havia começado a dar, vindo em
companhia de Zoraida. A que respondeu o cativo que de muito bom
grado faria o que se lhe mandava, e que só temia que o conto não havia
de ser tal, que lhes desse o gosto que ele desejava; mas que, mesmo
assim, por não faltar em obedecer-lhe, lhe contaria. O padre e todos
os demais lhe agradeceram, e de novo lhe rogaram; e ele, vendo-se
rogar por tantos, disse que não eram precisos rogos onde o mandar
tinha tanta força.
- E assim, estejam vossas mercês atentos, e ouvirão um discurso
verdadeiro, a quem poderia ser que não chegassem os mentirosos que
com curioso e pensado artifício costumam compor-se.
Com isto que disse, fez que todos se acomodassem e lhe prestassem
um grande silêncio; e ele, vendo que já calavam e esperavam o que
queria dizer, com voz agradável e repousada, começou a dizer desta
maneira:

CAPÍTULO XXXIX

Onde o cativo conta sua vida e sucessos

Em um lugar das montanhas de Leão teve princípio minha linhagem,


com quem foi mais agradecida e liberal a natureza que a fortuna,
embora, na estreiteza daqueles povoados, ainda possuía meu pai fama
de rico, e verdadeiramente o seria se assim tivesse manha para
conservar seus bens como tinha em gastá-los. E a condição que tinha
de ser liberal e gastador lhe procedeu de haver sido soldado nos anos
de sua juventude, que é escola a soldadesca onde o mesquinho se faz
generoso, e o generoso, pródigo; e se alguns soldados se acham
miseráveis, são como monstros, que se veem raras vezes. Passava meu
pai os limites da liberalidade, e raiava nos de ser pródigo: coisa que
não é de nenhum proveito ao homem casado, e que tem filhos que lhe
hão de suceder no nome e no ser. Os que meu pai tinha eram três,
todos varões e todos em idade de poder casar. Vendo, pois, meu pai
que, segundo ele dizia, não podia ir contra sua condição, quis privar-se
do instrumento e causa que o fazia gastador e dadivoso, que foi
privar-se dos bens, sem os quais o mesmo Alexandre pareceria
acanhado; e assim, chamando-nos um dia a todos os três a sós num
aposento, nos disse umas razões semelhantes às que agora direi:
“Filhos, para dizer-vos que vos quero bem, basta saber e dizer que
sois meus filhos; e, para entender que vos quero mal, basta saber que
não ajo bem no que toca a conservar vossos bens. Pois, para que
entendais daqui em diante que vos quero como pai, e que não vos quero
destruir como padrasto, quero fazer uma coisa convosco que há
muitos dias que a tenho pensada e com madura consideração disposta.
Vós estais já em idade de casar, ou, ao menos, de eleger ocupação, tal
que, quando maiores, vos honre e aproveite. E o que pensei é fazer de
meus bens quatro partes: as três vos darei a cada um o que lhe tocar,
sem exceder em coisa alguma, e com a outra ficarei eu para viver e
sustentar-me os dias que o céu for servido de dar-me de vida. Mas
queria que, depois que cada um tivesse em seu poder a parte que lhe
toca de seus bens, seguisse um dos caminhos que lhe direi. Há um
refrão em nossa Espanha, a meu parecer muito verdadeiro, como
todos o são, por ser sentenças breves tiradas da longa e discreta
experiência; e o que eu digo diz: “Igreja, ou mar, ou casa real”, como
se mais claramente dissesse: “Quem quiser valer e ser rico, siga ou a
Igreja, ou navegue, exercitando o arte da mercancia, ou entre a servir
aos reis em suas casas”; porque dizem: “Mais vale migalha de rei que
mercê de senhor”. Digo isto porque queria, e é minha vontade, que um
de vós seguisse as letras, o outro a mercancia, e o outro servisse o rei
na guerra, pois é dificultoso entrar a servi-lo em sua casa; que, já que
a guerra não dê muitas riquezas, costuma dar muito valor e muita
fama. Dentro de oito dias, vos darei toda vossa parte em dinheiros,
sem defraudar-vos num tostão, como o vereis de fato. Dizei-me agora
se quereis seguir meu parecer e conselho no que vos propus”. E
mandando a mim, por ser o maior, que respondesse, depois de haver-
lhe dito que não se desfizesse dos bens, senão que gastasse tudo o
que fosse de sua vontade, que nós tínhamos idade para saber ganhá-
los, vim a concluir que cumpriria seu gosto, e que o meu era seguir o
exercício das armas, servindo nele a Deus e a meu rei. O segundo
irmão fez os mesmos oferecimentos, e escolheu o ir às Índias, levando
empregados os bens que lhe coubessem. O menor, e, ao que eu creio, o
mais discreto, disse que queria seguir a Igreja, ou ir acabar seus
começados estudos em Salamanca. Assim como acabamos de
concordar e escolher nossas ocupações, meu pai nos abraçou a todos,
e, com a brevidade que disse, pôs em prática quanto nos havia
prometido; e, dando a cada um sua parte, que, ao que me lembre,
foram para cada três mil ducados, em dinheiros (porque um nosso tio
comprou todos os bens e os pagou de contado, para que não saíssem do
tronco da casa), num mesmo dia nos despedimos todos os três de
nosso bom pai; e, naquele mesmo, parecendo-me a mim ser
desumanidade que meu pai ficasse velho e com tão poucos bens, fiz
com ele que de meus três mil tomasse dois mil ducados, porque a mim
me bastava o resto para acomodar-me do que precisava um soldado.
Meus dois irmãos, movidos de meu exemplo, cada um lhe deu mil
ducados: de modo que a meu pai ficaram quatro mil em dinheiros, e
mais três mil, que, ao que parece, valiam os bens que lhe couberam,
que não quis vender, senão ficar com eles em raízes. Digo, enfim, que
nos despedimos dele e daquele nosso tio que disse, não sem muito
sentimento e lágrimas de todos, encarregando-nos de que lhes
fizéssemos saber, todas as vezes que houvesse comodidade para isso,
de nossos sucessos, prósperos ou adversos. Prometemo-lo, e,
abraçando-nos e dando-nos sua bênção, um tomou o caminho de
Salamanca, o outro de Sevilha e eu o de Alicante, onde tive novas que
havia uma nave genovesa que carregava ali lã para Gênova. Este fará
vinte e dois anos que saí de casa de meu pai, e em todos esses, posto
que escrevi algumas cartas, não soube dele nem de meus irmãos nova
alguma. E o que neste decurso de tempo passei o direi brevemente.
Embarquei em Alicante, cheguei com próspera viagem a Gênova, fui
dali a Milão, onde me provi de armas e de algumas galas de soldado, de
onde quis ir assentar minha praça no Piemonte; e, estando já de
caminho para Alessandria della Paglia, tive novas que o grande duque
de Alba passava a Flandres. Mudei de propósito, fui-me com ele, servi-
o nas jornadas que fez, achei-me na morte dos condes de Eguemón e
de Hornos, cheguei a ser alferes de um famoso capitão de
Guadalajara, chamado Diego de Urbina; e, ao cabo de algum tempo que
cheguei a Flandres, tivemos notícias da liga que a Santidade o Papa Pio
Quinto, de feliz recordação, havia feito com Veneza e com a Espanha,
contra o inimigo comum, que é o Turco; o qual, naquele mesmo tempo,
havia conquistado com sua armada a famosa ilha de Chipre, que estava
debaixo do domínio de venezianos, e foi perda lamentável e desditada.
Soube-se certo que vinha por general desta liga o sereníssimo dom
João de Áustria, irmão natural de nosso bom rei dom Felipe. Divulgou-
se o grandíssimo aparato de guerra que se fazia. Tudo o que me
incitou e comoveu o ânimo e o desejo de ver-me na jornada que se
esperava; e, embora tivesse indícios, e quase promessas certas, de que
na primeira ocasião que se oferecesse seria promovido a capitão, quis
deixar tudo e vir, como vim, à Itália. E quis minha boa sorte que o
senhor dom João de Áustria acabava de chegar a Gênova, que passava
a Nápoles a juntar-se com a armada de Veneza, como depois o fez em
Messina. Digo, enfim, que eu me achei naquela felicíssima jornada, já
feito capitão de infantaria, a cujo honroso cargo me subiu minha boa
sorte, mais que meus merecimentos. E naquele dia, que foi para a
cristandade tão ditoso, porque nele se desenganou o mundo e todas as
nações do erro em que estavam, crendo que os turcos eram invencíveis
pelo mar: naquele dia, digo, onde ficou o orgulho e soberba otomana
quebrantada, entre tantos venturosos como ali houve (porque mais
ventura tiveram os cristãos que ali morreram que os que vivos e
vencedores ficaram), eu só fui o desditado, pois, em troca de que
poderia esperar, se fosse nos romanos séculos, alguma naval coroa, me
vi naquela noite que seguiu a tão famoso dia com correntes nos pés e
algemas nas mãos. E foi desta sorte: que, havendo o Uchali, rei de
Argel, atrevido e venturoso corsário, investido e rendido a capitânia
de Malta, que só três cavaleiros ficaram vivos nela, e estes
malferidos, acudiu a capitânia de João Andrea a socorrê-la, na qual eu
ia com minha companhia; e, fazendo o que devia em ocasião
semelhante, saltei na galera contrária, a qual, desviando-se da que a
havia investido, estorvou que meus soldados me seguissem, e assim,
me achei só entre meus inimigos, a quem não pude resistir, por ser
tantos; enfim, me renderam cheio de feridas. E como já havereis,
senhores, ouvido dizer que o Uchali se salvou com toda sua esquadra,
vim eu a ficar cativo em seu poder, e só fui o triste entre tantos
alegres e o cativo entre tantos livres; porque foram quinze mil
cristãos os que naquele dia alcançaram a desejada liberdade, que
todos vinham ao remo na turquesca armada.
Levaram-me a Constantinopla, onde o Grande Turco Selim fez
general do mar a meu amo, porque havia feito seu dever na batalha,
havendo levado por mostra de seu valor o estandarte da religião de
Malta. Achei-me no segundo ano, que foi o de setenta e dois, em
Navarino, vogando na capitânia dos três faróis. Vi e notei a ocasião
que ali se perdeu de não colher no porto toda o armada turquesca,
porque todos os levantes e janízaros que nela vinham tiveram por
certo que lhes haviam de investir dentro do mesmo porto, e tinham
prontos sua roupa e pasamaques, que são seus sapatos, para fugir logo
por terra, sem esperar ser combatidos: tanto era o medo que tinham
de nossa armada. Mas o céu ordenou de outra maneira, não por culpa
nem descuido do general que aos nossos regia, senão pelos pecados da
cristandade, e porque quer e permite Deus que tenhamos sempre
verdugos que nos castiguem. Com efeito, o Uchali se recolheu a
Modón, que é uma ilha que está junto a Navarino, e, deixando a gente
em terra, fortificou a boca do porto, e esteve quieto até que o senhor
dom João voltou. Nesta viagem se tomou a galera que se chamava A
Presa, de quem era capitão um filho daquele famoso corsário Barba
Ruiva. Tomou-a a capitânia de Nápoles, chamada A Loba, regida por
aquele raio da guerra, pelo pai dos soldados, por aquele venturoso e
jamais vencido capitão dom Álvaro de Bazán, marquês de Santa Cruz.
E não quero deixar de dizer o que sucedeu na presa de A Presa. Era
tão cruel o filho de Barba Ruiva, e tratava tão mal a seus cativos, que,
assim que os que vinham ao remo viram que a galera Loba lhes ia
acercando e que os alcançava, soltaram todos a um tempo os remos, e
agarraram seu capitão, que estava sobre a estanteirola gritando que
remassem depressa, e passando-o de banco em banco, de popa a proa,
lhe deram mordidas, que a pouco mais que passou do mastro maior já
havia passado sua alma ao inferno: tal era, como disse, a crueldade
com que os tratava e o ódio que eles lhe tinham. Voltamos a
Constantinopla, e no ano seguinte, que foi o de setenta e três, se
soube aí como o senhor dom João havia conquistado Túnis, e tirado
aquele reino aos turcos e posto em possessão dele a Muley Hamet,
cortando as esperanças que de voltar a reinar nele tinha Muley
Hamida, o mouro mais cruel e mais valente que teve o mundo. Sentiu
muito esta perda o Grande Turco, e, usando da sagacidade que todos
os de sua casa têm, fez paz com venezianos, que muito mais que ele a
desejavam; e no ano seguinte de setenta e quatro acometeu à Goleta e
ao forte que junto a Túnis havia deixado meio levantado o senhor dom
João. Em todos estes transes andava eu ao remo, sem esperança de
liberdade alguma; ao menos, não esperava tê-la por resgate, porque
tinha determinado de não escrever as novas de minha desgraça a meu
pai. Perdeu-se, enfim, a Goleta; perdeu-se o forte, sobre as quais
praças houve de soldados turcos, pagos, setenta e cinco mil, e de
mouros, e árabes de toda a África, mais de quatrocentos mil,
acompanhado este tão grande número de gente com tantas munições e
apetrechos de guerra, e com tantos sapadores, que com as mãos e a
punhados de terra poderiam cobrir a Goleta e o forte. Perdeu-se
primeiro a Goleta, tida até então por inexpugnável; e não se perdeu
por culpa de seus defensores, os quais fizeram em sua defesa tudo
aquilo que deviam e podiam, senão porque a experiência mostrou a
facilidade com que se podiam levantar trincheiras naquela deserta
areia, porque a dois palmos se achava água, e os turcos não a acharam
a duas varas; e assim, com muitos sacos de areia levantaram as
trincheiras tão altas que sobrepujavam as muralhas da fortificação; e,
atirando-lhes a cavaleiro, ninguém podia detê-los, nem defender-se.
Foi comum opinião que não se haviam de encerrar os nossos na Goleta,
senão esperar em campo aberto o desembarque, e os que isto dizem
falam de longe e com pouca experiência de casos semelhantes, porque
se na Goleta e no forte apenas havia sete mil soldados, como podia tão
pouco número, embora mais esforçados fossem, sair ao campo e ficar
nas fortificações, contra tanto como era o dos inimigos? E como é
possível deixar de perder-se fortificação que não é socorrida, e mais
quando a cercam inimigos muitos e porfiados, e em sua mesma terra?
Mas a muitos lhes pareceu, e assim me pareceu a mim, que foi
particular graça e mercê que o céu fez à Espanha em permitir que se
destruísse aquela oficina e capa de maldades, e aquele monstro ou
esponja e traça da infinidade de dinheiros que ali sem proveito se
gastavam, sem servir de outra coisa que de conservar a memória de
havê-la tomado a felicíssima do invictíssimo Carlos V, como se fosse
preciso para fazê-la eterna, como o é e será, que aquelas pedras a
sustentaram. Perdeu-se também o forte, mas foram-no tomando os
turcos palmo a palmo, porque os soldados que o defendiam lutaram tão
valorosa e fortemente, que passaram de vinte e cinco mil inimigos os
que mataram em vinte e dois assaltos gerais que lhes deram. Nenhum
cativaram são de trezentos que ficaram vivos, sinal certo e claro de
seu esforço e valor, e do bem que se haviam defendido e guardado
suas praças. Capitulou um pequeno forte ou torre que estava em meio
do braço de mar, a cargo de dom João Zanoguera, cavaleiro valenciano
e famoso soldado. Prenderam dom Pedro Puertocarrero, general da
Goleta, o qual fez quanto foi possível por defender sua fortificação; e
sentiu tanto o havê-la perdido que de pesar morreu no caminho de
Constantinopla, aonde o levavam cativo. Prenderam também o general
do forte, que se chamava Gabrio Cervellón, cavaleiro milanês, grande
engenheiro e valentíssimo soldado. Morreram nestas duas
fortificações muitas pessoas de conta, das quais foi uma Pagán de
Oria, cavaleiro do hábito de São João, de condição generoso, como o
mostrou a suma liberalidade que usou com seu irmão, o famoso João
de Andrea de Oria; e o que mais fez lastimosa sua morte foi haver
morrido às mãos de uns árabes a quem se confiou, vendo já perdido o
forte, que se ofereceram para levá-lo em traje de mouro a Tabarca,
que é um portozinho ou casa que naquelas ribeiras têm os genoveses
que se exercitam na pescaria do coral; os quais árabes lhe cortaram a
cabeça e a trouxeram ao general da armada turquesca, o qual cumpriu
com eles nosso refrão castelhano, que “embora a traição agrade, o
traidor se aborrece”; e assim, se diz que mandou o general enforcar
aos que lhe trouxeram o presente, porque não o haviam trazido vivo.
Entre os cristãos que no forte se perderam, foi um chamado dom
Pedro de Aguilar, natural não sei de que lugar da Andaluzia, o qual
havia sido alferes no forte, soldado de muita conta e de raro
entendimento: especialmente tinha particular graça no que chamam
poesia. Digo-o porque sua sorte o trouxe à minha galera e a meu
banco, e a ser escravo de meu mesmo patrão; e, antes que partíssemos
daquele porto, fez este cavaleiro dois sonetos, à maneira de epitáfios,
um à Goleta e o outro ao forte. E em verdade que vos tenho de dizer,
porque os sei de memória e creio que antes causarão gosto que
tristeza.
No ponto que o cativo nomeou a dom Pedro de Aguilar, dom
Fernando olhou para seus camaradas, e todos os três sorriram; e,
quando chegou a falar dos sonetos, disse um:
- Antes que vossa mercê passe adiante, lhe suplico me diga que fez
esse dom Pedro de Aguilar que disse.
- O que sei é - respondeu o cativo - que, ao cabo de dois anos que
esteve em Constantinopla, fugiu em traje de albanês com um grego
espia, e não sei se veio em liberdade, embora creia que sim, porque
dali a um ano vi eu o grego em Constantinopla, e não lhe pude
perguntar o sucesso daquela viagem.
- Foi bom - respondeu o cavaleiro, - porque esse dom Pedro é meu
irmão, e está agora em nosso lugar, bom e rico, casado e com três
filhos.
- Graças sejam dadas a Deus - disse o cativo - por tantas mercês
como lhe fez; porque não há na terra, conforme meu parecer, alegria
que se iguale a alcançar a liberdade perdida.
- E mais - replicou o cavaleiro, - que eu sei os sonetos que meu irmão
fez.
- Diga-os, pois, vossa mercê - disse o cativo, - que os saberá dizer
melhor que eu.
- Com prazer - respondeu o cavaleiro; - e o da Goleta dizia assim:
CAPÍTULO XL

Onde prossegue a história do cativo

SONETO

Almas ditosas que do mortal véu


livres e isentas, pelo bem que obrastes,
desde a baixa terra vos levantastes
ao mais alto e o melhor do céu,
e, ardendo em ira e em honroso zelo,
dos corpos a força exercitastes,
que em próprio e sangue alheio coloristes
o mar vizinho e arenoso chão;
primeiro que o valor faltou a vida
nos cansados braços, que, morrendo,
com ser vencidos, levam a vitória.
E esta vossa mortal, triste queda
entre o muro e o ferro, vos vai adquirindo
fama que o mundo vos dá, e o céu glória.

- Dessa mesma maneira o sei eu - disse o cativo.


- Pois o do forte, se mal não me lembro - disse o cavaleiro, - diz
assim:

SONETO

De entre esta terra estéril, derrubada,


destes terrões pelo chão lançados,
as almas santas de três mil soldados
subiram vivas a melhor morada,
sendo primeiro, em vão, exercitada
a força de seus braços esforçados,
até que, ao fim, de poucos e cansados,
deram a vida ao fio da espada.
E este é o chão que contínuo foi
de mil memórias lamentáveis cheio
nos passados séculos e presentes;
mas não mais justas de seu duro seio
haverão ao claro céu almas subido,
nem ainda ele susteve corpos tão valentes.

Não pareceram mal os sonetos, e o cativo se alegrou com as novas


que de seu camarada lhe deram; e, prosseguindo seu conto, disse:
- Rendidos, pois, a Goleta e o forte, os turcos deram ordem para
derrubar os muros da Goleta (porque o forte ficou tal, que não houve
o que pôr por terra), e para fazê-lo com mais brevidade e menos
trabalho, a minaram por três partes; mas com nenhuma se pôde fazer
voar o que parecia menos forte, que eram as muralhas velhas; e tudo
aquilo que havia ficado em pé da fortificação nova que havia feito o
Fratín, com muita facilidade veio à terra. Em suma, a armada voltou a
Constantinopla, triunfante e vencedora: e dali a poucos meses morreu
meu amo o Uchali, ao que chamavam Uchali Fartax, que quer dizer, em
língua turquesca, “o renegado tinhoso”, porque o era; e é costume
entre os turcos pôr-se nomes de alguma falta que tenham, ou de
alguma virtude que neles haja; e isto é porque não há entre eles senão
quatro apelidos de linhagens, que descendem da casa otomana, e os
demais, como tenho dito, tomam nome e apelido já dos defeitos do
corpo e já das virtudes do ânimo. E este Tinhoso remou, sendo escravo
do Grande Senhor, quatorze anos, e a mais dos trinta e quatro de sua
idade renegou, de despeito de que um turco, estando ao remo, lhe deu
um bofetão, e por poder-se vingar deixou sua fé; e foi tanto seu valor
que, sem subir pelos torpes meios e caminhos que os mais privados do
Grande Turco sobem, veio a ser rei de Argel, e depois, a ser general
do mar, que é o terceiro cargo que há naquele senhorio. Era calabrês
de nação, e moralmente foi um homem de bem, e tratava com muita
humanidade a seus cativos, que chegou a ter três mil, os quais, depois
de sua morte, se repartiram, como ele o deixou em seu testamento,
entre o Grande Senhor (que também é filho herdeiro de quantos
morrem, e entra à parte com os demais filhos que deixa o defunto) e
entre seus renegados; e eu coube a um renegado veneziano que, sendo
grumete de uma nave, cativou-o o Uchali, e o quis tanto, que foi um
dos mais regalados pajens seus, e ele veio a ser o mais cruel renegado
que jamais se viu. Chamava-se Azán Agá, e chegou a ser muito rico, e a
ser rei de Argel; com o qual eu vim de Constantinopla, algo contente,
por estar tão perto da Espanha, não porque pensasse escrever a
ninguém o desditado sucesso meu, senão por ver se me era mais
favorável a sorte em Argel que em Constantinopla, onde já havia
tentado mil maneiras de fugir, e nenhuma teve lugar nem ventura; e
pensava em Argel buscar outros meios de alcançar o que tanto
desejava, porque jamais me desamparou a esperança de ter liberdade;
e quando no que fabricava, pensava e punha em prática não
correspondia o sucesso à intenção, logo, sem abandonar-me, fingia e
buscava outra esperança que me sustentasse, embora fosse débil e
fraca. Com isto entretinha a vida, encerrado em uma prisão ou casa
que os turcos chamam banho, onde encerram os cativos cristãos, assim
os que são do rei como de alguns particulares; e os que chamam do
armazém, que é como dizer cativos da câmara, que servem à cidade
nas obras públicas que faz e em outros ofícios, e estes tais cativos
têm muito dificultosa sua liberdade, que, como são do comum e não
têm amo particular, não há com quem tratar seu resgate, embora o
tenham. Nestes banhos, como tenho dito, costumam levar seus cativos
alguns particulares da vila, principalmente quando são de resgate,
porque ali os têm acomodados e seguros até que venha seu resgate.
Também os cativos do rei que são de resgate não saem ao trabalho
com os demais galeotes, se não é quando tarda seu resgate; que então,
por fazer-lhes que escrevam por ele com mais afinco, os fazem
trabalhar e apanhar lenha com os demais, que é um não pequeno
trabalho. Eu, pois, era um dos de resgate; que, como se soube que era
capitão, embora eu tivesse dito de minhas poucas possibilidades e
falta de bens, não aproveitou nada para que não me pusessem no
número dos cavaleiros e gente de resgate. Puseram-me uma corrente,
mais por sinal de resgate que por guardar-me com ela; e assim,
passava a vida naquele banho, com outros muitos cavaleiros e gente
principal, marcados e tidos por de resgate. E embora a fome e
desnudez pudesse fatigar-nos às vezes, e ainda quase sempre,
nenhuma coisa nos fatigava tanto como ouvir e ver, a cada passo, as
jamais vistas nem ouvidas crueldades que meu amo usava com os
cristãos. Cada dia enforcava o seu, empalava este, desorelhava aquele;
e isto, por tão pouco motivo, e tão sem ele, que os turcos sabiam que o
fazia não mais que por fazê-lo, e por ser natural condição sua ser
homicida de todo o gênero humano. Só se deu bem com ele um soldado
espanhol, chamado tal de Saavedra, em quem, por haver feito coisas
que ficarão na memória daquelas gentes por muitos anos, e todas por
alcançar liberdade, jamais bateu, nem mandou bater, nem lhe disse má
palavra; e, pela menor coisa de muitas que fez, temíamos todos que
havia de ser empalado, e assim o temeu ele mais de uma vez; e se não
fosse porque o tempo não dá lugar, eu diria agora algo do que este
soldado fez, o que daria lugar para entreter-vos e admirar-vos muito
melhor que com a narração de minha história. Digo, pois, que em cima
do pátio de nossa prisão caíam as janelas da casa de um mouro rico e
principal, as quais, como de ordinário são as dos moros, mais eram
buracos que janelas, e ainda estas se cobriam com gelosias muito
espessas e apertadas. Aconteceu, pois, que um dia, estando em um
terraço de nossa prisão com outros três companheiros, fazendo
provas de saltar com as correntes, por entreter o tempo, estando sós,
porque todos os demais cristãos haviam saído a trabalhar, levantei
acaso os olhos e vi que por aquelas fechadas janelinhas que disse
aparecia uma vara, e ao remate dela posto um lenço atado, e a vara
estava se movendo, quase como se fizesse sinais que chegássemos a
tomá-la. Vimos isso, e um dos que comigo estavam foi pôr-se debaixo
da vara, para ver se a soltavam, ou o que faziam; mas, assim que
chegou, alçaram a vara e a moveram para os dois lados, como se
dissessem não com a cabeça. Voltou o cristão, e tornaram-na a baixar
e fazer os mesmos movimentos de antes. Foi outro de meus
companheiros, e sucedeu-lhe o mesmo que ao primeiro. Finalmente, foi
o terceiro e aconteceu-lhe o que ao primeiro e ao segundo. Vendo eu
isto, não quis deixar de provar a sorte, e, assim que cheguei a pôr-me
debaixo da vara, a deixaram cair, e deu a meus pés dentro do banho.
Acudi logo a desatar o lenço, no qual vi um nó, e dentro dele vinham
dez cianíis, que são umas moedas de ouro baixo que usam os mouros,
que cada uma vale dez reais dos nossos. Se me alegrei com o achado,
não há para que dizê-lo, pois foi tanto o contentamento como a
admiração de pensar de onde podia vir-nos aquele bem, especialmente
a mim, pois as mostras de não haver querido soltar a vara senão a mim
claro diziam que a mim se fazia a mercê. Tomei meu bom dinheiro,
quebrei a vara, voltei ao terracinho, olhei a janela, e vi que por ela saía
uma muito branca mão, que a abriam e fechavam muito depressa. Com
isto entendemos, ou imaginamos, que alguma mulher que naquela casa
vivia nos devia haver feito aquele benefício; e, em sinal de que o
agradecíamos, fizemos reverências ao uso dos mouros, inclinando a
cabeça, dobrando o corpo e pondo os braços sobre o peito. Dali a
pouco mostraram pela mesma janela uma pequena cruz feita de varas,
e logo a retiraram. Este sinal nos confirmou que alguma cristã devia
estar cativa naquela casa, e era a que o bem nos fazia; mas a brancura
da mão, e os braceletes que nela vimos, nos desfez este pensamento,
posto que imaginamos que devia ser cristã renegada, a quem de
ordinário costumam tomar por legítimas mulheres seus mesmos amos,
e ainda se têm por felizes, porque as estimam mais que as de sua
nação. Em todas nossas falas ficamos muito longe da verdade do caso;
e assim, todo nosso entretenimento dali em diante era olhar e ter por
norte a janela onde nos havia aparecido a estrela da vara; mas bem se
passaram quinze dias em que não a vimos, nem a mão tampouco, nem
outro sinal algum. E embora neste tempo procurássemos com toda
solicitude saber quem naquela casa vivia, e se havia nela alguma cristã
renegada, jamais houve quem nos dissesse outra coisa, senão que ali
vivia um mouro principal e rico, chamado Agi Morato, alcaide que havia
sido da Pata, que é ofício entre eles de muita qualidade. Mas, quando
mais descuidados estávamos de que por ali haviam de chover mais
cianíis, vimos de repente aparecer a vara, e outro lenço nela, com
outro nó mais crescido; e isto foi a tempo que estava o banho, como na
vez passada, só e sem gente. Fizemos a costumeira prova, indo cada
um antes de mim, dos mesmos três que estávamos, mas a nenhum se
rendeu a vara senão a mim, porque, chegando eu, deixaram-na cair.
Desatei o nó, e achei quarenta escudos de ouro espanhóis e um papel
escrito em arábico, e ao cabo do escrito feita uma grande cruz. Beijei
a cruz, tomei os escudos, voltei ao terraço, fizemos todos nossas
reverências, tornou a aparecer a mão, fiz sinais que leria o papel,
fecharam a janela. Ficamos todos confusos e alegres com o sucedido;
e, como nenhum de nós entendia o arábico, era grande o desejo que
tínhamos de entender o que o papel continha, e maior a dificuldade de
buscar quem o lesse. Enfim, eu decidi fiar-me a um renegado, natural
de Múrcia, que se havia dado por grande amigo meu, e dado provas de
confiança entre os dois, que o obrigavam a guardar o segredo de que o
encarregasse; porque costumam alguns renegados, quando têm
intenção de voltar à terra de cristãos, trazer consigo alguns
atestados de cativos principais, em que dão fé, na forma que podem,
que o tal renegado é homem de bem, e que sempre fez bem a cristãos,
e que leva desejo de fugir na primeiro ocasião que se lhe ofereça.
Alguns há que procuram estas fés com boa intenção, outros se servem
delas casualmente e com astúcia: que, vindo a roubar a terra de
cristãos, se acaso se perdem ou os prendem, sacam seus atestados e
dizem que por aqueles papéis se verá o propósito com que vinham, o
qual era de ficar em terra de cristãos, e que por isso vinham em barco
com os demais turcos. Com isto escapam daquele primeiro ímpeto, e se
reconciliam com a Igreja, sem que se lhes faça dano; e, quando a
oportunidade aparece, voltam à Barbária para ser o que antes eram.
Outros há que usam estes papéis, e os procuram, com boa intenção, e
ficam em terra de cristãos. Pois um dos renegados que disse era este
meu amigo, o qual tinha atestados de todos nossos camaradas, onde o
acreditávamos quanto era possível; e se os mouros achassem estes
papéis, queimá-lo-iam vivo. Soube que sabia muito bem arábico, e não
somente falá-lo, senão escrevê-lo; mas, antes que de todo me
declarasse com ele, disse-lhe que me lesse aquele papel, que acaso
havia achado num buraco de meu rancho. Abriu-o, e esteve um bom
espaço olhando-o e examinando sua construção gramatical,
murmurando entre os dentes. Perguntei-lhe se o entendia; disse-me
que muito bem, e, que se queria que o declarasse palavra por palavra,
que lhe desse tinta e pena, para que melhor o fizesse. Demos-lhe logo
o que pedia, e ele pouco a pouco o foi traduzindo; e, acabando, disse:
“Tudo o que vai aqui em castelhano, sem faltar letra, é o que contém
este papel mourisco; e há-se de advertir que onde diz Lela Marién
quer dizer: Nossa Senhora a Virgem Maria”. Lemos o papel, e dizia
assim:

Quando eu era menina, tinha meu pai uma escrava, a qual em minha língua me
mostrou a oração cristã, e me disse muitas coisas de Lela Marién. A cristã
morreu, e eu sei que não foi ao fogo, senão com Alá, porque depois a vi duas
vezes, e me disse que me fosse à terra de cristãos para ver Lela Marién, que me
queria muito. Não sei eu como vá: muitos cristãos vi por esta janela, e nenhum
me pareceu cavaleiro senão tu. Eu sou muito formosa e moça, e tenho muitos
dinheiros que levar comigo: vê tu se podes fazer como nos vamos, e serás lá meu
marido, se quiseres, e se não quiseres, não se me dará nada, que Lela Marién me
dará com quem me case. Eu escrevi isto; vê a quem o dás a ler: não confies em
nenhum mouro, porque são todos traidores. Disto tenho muita preocupação:
queria que não te descobrisses a ninguém, porque se meu pai o sabe, me jogará
logo num poço, e me cobrirá com pedras. Na vara porei um fio: ata ali a resposta;
e se não tens quem te escreva arábico, diz por sinais, que Lela Marién fará que
te entenda. Ela e Alá te guardem, e essa cruz que eu beijo muitas vezes; que
assim me mandou a cativa.

Vede, senhores, se era razão que as palavras deste papel nos


admirassem e alegrassem. E assim, tal se deu de maneira que o
renegado entendeu que não por acaso se havia achado aquele papel,
senão que realmente a algum de nós se havia escrito; e assim, nos
rogou que se era verdade o que suspeitava, que confiássemos nele e o
disséssemos, que ele aventuraria sua vida por nossa liberdade. E
dizendo isto, tirou do peito um crucifixo de metal, e com muitas
lágrimas jurou pelo Deus que aquela imagem representava, em quem
ele, embora pecador e mau, bem e fielmente cria, guardar-nos
lealdade e segredo em tudo quanto quiséssemos descobrir-lhe, porque
lhe parecia, e quase adivinhava que, por meio daquela que aquele
papel havia escrito, havia ele e todos nós de ter liberdade, e ver-se
ele no que tanto desejava, que era integrar-se ao grêmio da Santa
Igreja, sua mãe, de quem como membro apodrecido estava dividido e
afastado por sua ignorância e pecado. Com tantas lágrimas e com
mostras de tanto arrependimento disse isto o renegado, que todos de
um mesmo parecer consentimos, e declaramos-lhe a verdade do caso;
e assim, lhe demos conta de tudo, sem encobrir-lhe nada. Mostramos-
lhe a janelinha por onde aparecia a vara, e ele marcou dali a casa, e
ficou de ter especial e grande cuidado em informar-se quem nela vivia.
Concordamos, também, que seria bom responder o bilhete da moura; e,
como tínhamos quem o soubesse fazer, logo o renegado escreveu as
palavras que eu lhe fui ditando, que pontualmente foram as que direi,
porque de todos os pontos substanciais que neste sucesso me
aconteceram, nenhum me foi da memória, nem ainda me irá enquanto
tiver vida. Com efeito, o que à moura se respondeu foi isto:

O verdadeiro Alá te guarde, senhora minha, e aquela bendita Marién, que é a


verdadeira mãe de Deus e é a que te pôs no coração que te vás a terra de
cristãos, porque te quer bem. Roga-lhe que se sirva de dar-te a entender como
poderás pôr em prática o que te manda, que ela é tão boa que o fará. De minha
parte e da de todos estes cristãos que estão comigo, te ofereço de fazer por ti
tudo o que pudermos, até morrer. Não deixes de escrever-me e avisar-me o que
pensares fazer, que eu te responderei sempre; que o grande Alá nos deu um
cristão cativo que sabe falar e escrever tua língua tão bem como o verás por
este papel. Assim que, sem ter medo, nos podes avisar de tudo o que quiseres.
Ao que dizes que se fores a terra de cristãos, que hás de ser minha mulher, eu
te o prometo como bom cristão; e sabe que os cristãos cumprem o que prometem
melhor que os mouros. Alá e Marién, sua mãe, sejam em tua guarda, senhora
minha.
Escrito e fechado este papel, aguardei dois dias a que estivesse o
banho só, como costumava, e logo saí ao lugar de costume do
terracinho, por ver se a vara aparecia, que não tardou muito em
assomar. Assim que a vi, embora não pudesse ver quem a punha,
mostrei o papel, como dando a entender que pusessem o fio, mas já
vinha posto na vara, ao que atei o papel, e dali a pouco tornou a
aparecer nossa estrela, com a branca bandeira de paz da trouxinha.
Deixaram-na cair, e levantei-a eu, e achei no pano, em toda sorte de
moeda de prata e de ouro, mais de cinquenta escudos, os quais
cinquenta vezes mais dobraram nossa alegria e confirmaram a
esperança de ter liberdade. Naquela mesma noite voltou nosso
renegado, e nos disse que havia sabido que naquela casa vivia o mesmo
mouro que a nós nos haviam dito que se chamava Agi Morato,
riquíssimo em todo extremo, o qual tinha uma só filha, herdeira de
todos os seus bens, e que era comum opinião em toda a cidade ser a
mais formosa mulher da Barbária; e que muitos dos vice-reis que ali
vinham a haviam pedido por mulher, e que ela nunca se quis casar; e
que também soube que teve uma cristã cativa, que já havia morrido;
tudo o que combinava com o que vinha no papel. Refletimos logo com o
renegado, sobre que providência se daria para raptar a moura e vir-
nos todos a terra de cristãos, e, enfim, se concordou por então que
esperássemos o aviso segundo de Zoraida, que assim se chamava a que
agora quer chamar-se Maria; porque bem vimos que ela, e não outra
alguma era a que havia de dar meio a todas aquelas dificuldades.
Depois que ficamos nisto, disse o renegado que não nos
preocupássemos, que ele perderia a vida ou nos poria em liberdade.
Quatro dias esteve o banho com gente, que foi motivo que por quatro
dias tardasse em aparecer a vara; ao cabo dos quais, na costumeira
solidão do banho, apareceu com o lenço tão cheio, que um felicíssimo
parto prometia. Inclinou-se para mim a vara e o lenço, achei nele outro
papel e cem escudos de ouro, sem outra moeda alguma. Estava ali o
renegado, demos-lhe a ler o papel dentro de nosso rancho, o qual disse
que assim dizia:
Eu não sei, meu senhor, como providenciar para que nos vamos à Espanha, nem
Lela Marién o disse, embora eu o perguntasse. O que se poderá fazer é que eu
vos darei por esta janela muitíssimos dinheiros de ouro: resgatai-vos com eles e
vossos amigos, e vá um em terra de cristãos, e compre lá uma barca e volte pelos
demais; e a mim me acharão na casa de campo de meu pai, que está à porta de
Babazón, junto à marina, onde tenho de estar todo este verão com meu pai e
com meus criados. Dali, de noite, me podereis tirar sem medo e levar-me à
barca; e vê que hás de ser meu marido, porque se não, eu pedirei a Marién que te
castigue. Se não confias em ninguém que vá pela barca, resgata-te e vai, que eu
sei que voltarás melhor que outro, pois és cavaleiro e cristão. Procura localizar a
casa de campo, e quando passeies por aí saberei que está só o banho e te darei
muito dinheiro. Alá te guarde, senhor meu.

Isto dizia e continha o segundo papel. O que visto por todos, cada
um se ofereceu a querer ser o resgatado, e prometeu ir e voltar com
toda pontualidade, e também eu me ofereci ao mesmo; a tudo o qual se
opôs o renegado, dizendo que de maneira alguma consentiria que
nenhum saísse de liberdade até que fossem todos juntos, porque a
experiência lhe havia mostrado quão mal cumpriam os livres as
palavras que davam no cativeiro; porque muitas vezes haviam usado
daquele remédio alguns principais cativos, resgatando a um que fosse a
Valência, ou Mallorca, com dinheiros para poder preparar uma barca e
voltar pelos que o haviam resgatado, e nunca haviam voltado; porque a
liberdade alcançada e o temor de voltar a perdê-la lhes apagava da
memória todas as obrigações do mundo. E em confirmação da verdade
que nos dizia, nos contou brevemente um caso que quase naquela
mesma época havia acontecido a uns cavaleiros cristãos, o mais
estranho que jamais sucedeu naquelas partes, onde a cada passo
sucedem coisas de grande espanto e de admiração. Com efeito, ele
veio a dizer que o que se podia e devia fazer era que o dinheiro que se
havia de dar para resgatar o cristão, que se desse a ele para comprar
ali em Argel uma barca, com intenção de fazer-se mercador e
tratante em Tetuán e naquela costa; e que, sendo ele senhor da barca,
facilmente se daria oportunidade para tirá-los do banho e embarcá-los
a todos. Quanto mais, que se a moura, como ela dizia, dava dinheiros
para resgatá-los a todos, que, estando livres, era facilíssima coisa
ainda embarcar-se no meio do dia; e que a dificuldade que se oferecia
maior era que os mouros não consentem que renegado algum compre
nem tenha barca, se não é baixel grande para ir em corso, porque
temem que o que compra barca, principalmente se é espanhol, não a
quer senão para ir a terra de cristãos; mas que ele facilitaria este
inconveniente com fazer que um mouro tagarino fosse à parte com ele
na companhia da barca e na compra das mercadorias, e sob esta
aparência ele viria a ser senhor da barca, com que dava por acabado
todo o demais. E posto que a mim e a meus camaradas nos havia
parecido melhor o de enviar alguém para obtenção da barca em
Mallorca, como a moura dizia, não ousamos contradizer-lhe, temerosos
de que, se não fizéssemos o que ele dizia, nos havia de descobrir e pôr
a perigo de perder as vidas, se descobrisse o trato de Zoraida, por
cuja vida daríamos todos as nossas. E assim, decidimos pôr-nos nas
mãos de Deus e nas do renegado, e daquele mesmo modo se respondeu
a Zoraida, dizendo-lhe que faríamos tudo quanto nos aconselhava,
porque o havia advertido tão bem como se Lela Marién o houvesse
dito, e que nela só estava dilatar aquele negócio, ou pô-lo logo em
prática. Ofereci-me de novo a ser seu esposo, e com isto, no outro dia
que aconteceu de estar só o banho, em diversas vezes, com a vara e o
pano, nos deu dois mil escudos de ouro, e um papel onde dizia que o
primeiro jumá, que é a sexta-feira, ia à casa de campo de seu pai, e
que antes que fosse nos daria mais dinheiro, e que se aquilo não
bastasse, que o avisássemos, que nos daria quanto lhe pedíssemos: que
seu pai tinha tantos, que não o daria menos, quanto mais, que ela tinha
as chaves de tudo. Demos logo quinhentos escudos ao renegado para
comprar a barca; com oitocentos me resgatei, dando o dinheiro a um
mercador valenciano que à época se achava em Argel, o qual me
resgatou do rei, tomando-me sob sua palavra, dando-a de que com o
primeiro baixel que viesse de Valência pagaria meu resgate; porque se
logo desse o dinheiro, seria dar suspeitas ao rei que havia muitos dias
que meu resgate estava em Argel, e que o mercador, para seu
proveito, o havia calado. Finalmente, meu amo era tão caviloso que de
maneira alguma me atrevi a que logo se desembolsasse o dinheiro. Na
quinta antes da sexta-feira que a formosa Zoraida havia de ir à casa
de campo, deu-nos outros mil escudos e nos avisou de sua partida,
rogando-me que, se me resgatasse, localizasse logo a casa de campo
de seu pai, e que em todo caso buscasse ocasião de ir lá e vê-la.
Respondi-lhe em breves palavras que assim o faria, e que tivesse
cuidado de encomendar-nos a Lela Marién, com todas aquelas orações
que a cativa lhe havia ensinado. Feito isto, tomaram providências para
que os três companheiros nossos se resgatassem, por facilitar a saída
do banho, e porque, vendo-me a mim resgatado, e a eles não, pois havia
dinheiro, não se alvoroçassem e lhes persuadisse o diabo que fizessem
alguma coisa em prejuízo de Zoraida; que, posto que o ser eles quem
eram me podia assegurar deste temor, desse modo, não quis pôr o
negócio em perigo, e assim, os fiz resgatar pelo mesmo modo pelo qual
me resgatei, entregando todo o dinheiro ao mercador, para que, com
certeza e segurança, pudesse fazer a fiança; ao qual nunca
descobrimos nosso trato e segredo, pelo perigo que havia.

CAPÍTULO XLI

Onde ainda prossegue o cativo seu sucesso

Não se passaram quinze dias, quando já nosso renegado tinha


comprado uma muito boa barca, com capacidade para mais de trinta
pessoas; e para afiançar seu feito e dar-lhe aparência de verdade,
quis fazer, como fez, um viagem a um lugar que se chamava Sargel,
que está a trinta léguas de Argel até os lados de Orán, onde há muito
comércio de figos secos. Duas ou três vezes fez esta viagem, em
companhia do tagarino que havia dito. ( Tagarinos chamam em Barbária
aos mouros de Aragão, e aos de Granada, mudéjares; e no reino de Fez
chamam aos mudéjares, elches, os quais são a gente de quem aquele
rei mais se serve na guerra.) Digo, pois, que cada vez que passava com
sua barca fundeava em uma baía que estava nem a dois tiros de besta
da casa onde Zoraida esperava; e ali, muito de propósito, se punha o
renegado com os mourinhos que remavam, ou para orar ou para ensaiar
por manha o que pensava fazer de verdade; e assim, ia à casa de
Zoraida e lhe pedia fruta, e seu pai a dava sem conhecê-lo; e embora
ele quisesse falar a Zoraida, como ele depois me disse, e dizer-lhe que
ele era o que por ordem minha havia de levá-la a terra de cristãos, que
estivesse contente e segura, nunca lhe foi possível, porque as mouras
não se deixam ver de nenhum mouro nem turco, se não é que seu
marido ou seu pai o mandem. De cristãos cativos se deixam tratar e
comunicar, ainda mais do que seria razoável; e a mim me haveria
pesado que ele lhe houvesse falado, pois quiçá a alvoroçasse, vendo
que seu negócio andava em boca de renegados. Mas Deus, que o
ordenava de outra maneira, não deu lugar ao bom desejo que nosso
renegado tinha; o qual, vendo quão seguramente ia e vinha a Sargel, e
que fundeava quando e como e onde queria, e que o tagarino, seu
companheiro, não tinha mais vontade do que a sua ordenava, e que eu
estava já resgatado, e que só faltava buscar alguns cristãos que
manejassem o remo, me disse que visse eu quais queria trazer comigo,
fora dos resgatados, e que os tivesse falados para o primeira sexta-
feira, onde tinha determinado que fosse nossa partida. Vendo isto,
falei a doze espanhóis, todos valentes homens do remo, e daqueles que
mais livremente podiam sair da cidade; e não foi pouco achar tantos
naquela conjuntura, porque estavam vinte baixéis em corso, e haviam
levado toda a gente de remo, e estes não se achariam, se não fosse
que seu amo ficou aquele verão sem ir em corso, a acabar uma galeota
que tinha no estaleiro. Aos quais não lhes disse outra coisa, senão que
na primeira sexta-feira à tarde saíssem um a um, dissimuladamente, e
fossem à volta da quinta de Agi Morato, e que ali me aguardassem até
que eu fosse. A cada um dei este aviso por vez, com ordem de que,
embora ali vissem outros cristãos, não lhes dissessem senão que eu os
havia mandado esperar naquele lugar. Feita esta diligência, me faltava
fazer outra, que era a que mais me convinha: e era a de avisar a
Zoraida o ponto em que estavam os negócios, para que estivesse
apercebida e sobre aviso, que não se sobressaltasse se de improviso a
assaltásemos antes do tempo que ela podia imaginar que a barca de
cristãos podia voltar. E assim, decidi ir à casa e ver se poderia falar-
lhe; e, com o pretexto de colher algumas verduras, um dos dias antes
de minha partida, fui lá, e a primeira pessoa com quem encontrei foi
seu pai, o qual me disse, em língua que em toda a Barbária, e ainda em
Constantinopla, se fala entre cativos e mouros, que nem é mourisca,
nem castelhana, nem de outra nação alguma, senão uma mescla de
todas as línguas com a qual todos nos entendemos; digo, pois, que
nesta maneira de linguagem me perguntou o que buscava naquela sua
quinta, e de quem era. Respondi-lhe que era escravo de Arnaute Mamí
(e isto, porque sabia eu por muito certo que era um grandíssimo amigo
seu), e que buscava de todas as verduras para fazer salada.
Perguntou-me, em seguida, se era homem de resgate ou não, e quanto
pedia meu amo por mim. Estando em todas estas perguntas e
respostas, saiu da casa da quinta a bela Zoraida, a qual já havia muito
que me havia visto; e como as mouras de maneira alguma têm
escrúpulos em mostrar-se aos cristãos, nem tampouco se esquivam,
como já disse, não se lhe deu nada em vir onde seu pai comigo estava;
antes, logo que seu pai viu que vinha, e devagar, a chamou e mandou
que chegasse. Demasiada coisa seria dizer eu agora a muita
formosura, a gentileza, o galhardo e rico adorno com que minha
querida Zoraida se mostrou a meus olhos: só direi que mais pérolas
pendiam de seu formosíssimo pescoço, orelhas e cabelos, que cabelos
tinha na cabeça. Nos tornozelos, que descobertos, a seu uso, trazia,
trazia dois carcajes (que assim se chamavam as argolas ou braceletes
dos pés em mourisco) de puríssimo ouro, com tantos diamantes
engastados, que ela me disse depois que seu pai os estimava em dez
mil dobrões, e as que trazia nas pulsos valiam outro tanto. As pérolas
eram em grande quantidade e muito boas, porque a maior gala e
bizarria das mouras é adornar-se de ricas pérolas e aljôfar, e assim,
há mais pérolas e aljôfar entre mouros que entre todas as demais
nações; e o pai de Zoraida tinha fama de ter muitas e das melhores
que em Argel havia, e de ter também mais de duzentos mil escudos
espanhóis, de tudo o qual era senhora esta que agora o é minha. Se
com todo este adorno podia vir então formosa ou não, pelos restos que
lhe ficaram em tantos trabalhos se poderá conjeturar quanto devia
ser nas prosperidades. Porque já se sabe que a formosura de algumas
mulheres tem dias e épocas, e requer acidentes para diminuir ou
acrescentar-se; e é natural coisa que as paixões do ânimo a levantem
ou abaixem, embora as mais vezes a destruam. Digo, enfim, que então
chegou em todo extremo enfeitada e em todo extremo formosa, ou,
ao menos, a mim me pareceu sê-lo a mais que até então havia visto; e
com isto, vendo as obrigações em que me havia posto, me parecia que
tinha diante de mim uma deidade do céu, vinda à terra para meu gosto
e para meu remédio. Assim que ela chegou, disse-lhe seu pai em sua
língua que eu era cativo de seu amigo Arnaute Mamí, e que vinha
buscar salada. Ela se adiantou, e naquela mescla de línguas que eu
disse me perguntou se era cavaleiro e qual era a causa porque não me
resgatava. Eu lhe respondi que já estava resgatado, e que pelo preço
podia ver quanto meu amo me estimava, pois havia dado por mim mil e
quinhentos zoltanís. A que ela respondeu:
- Em verdade que se tu fosses de meu pai, eu faria que não te desse
ele por outros dois tantos, porque vós, cristãos, sempre mentis em
quanto dizeis, e vos fazeis pobres por enganar os mouros.
- Bem poderia ser isso, senhora - lhe respondi, - mas em verdade fui
sincero com meu amo, e o sou e serei com quantas pessoas há no
mundo.
- E quando te vais?, disse Zoraida.
- Amanhã, creio eu - disse, - porque está aqui um baixel da França
que se faz amanhã à vela, e penso ir nele.
- Não é melhor - replicou Zoraida, - esperar que venham baixéis da
Espanha, e ir com eles, que não com os da França, que não são vossos
amigos?
- Não - respondi eu, - embora se como há novas que vem já um
baixel da Espanha, é verdade, todavia eu o aguardarei, embora seja
mais certo partir amanhã; porque o desejo que tenho de ver-me em
minha terra, e com as pessoas que bem quero, é tanto que não me
deixará esperar outra comodidade, se tarda, por melhor que seja.
- Deves ser, sem dúvida, casado em tua terra - disse Zoraida, - e
por isso desejas ir ver-te com tua mulher.
- Não sou - respondi eu - casado, mas tenho dada a palavra de
casar-me chegando lá.
- E é formosa a dama a quem a deste? - disse Zoraida.
- Tão formosa é - respondi eu -, que para encarecê-la e dizer-te a
verdade, parece muito contigo.
Disto se riu muito seu pai, e disse:
- Por Deus, cristão, que deve ser muito formosa se se parece com
minha filha, que é a mais formosa de todo este reino. Se não, olha-a
bem, e verás como te digo a verdade.
Servia-nos de intérprete às mais destas palavras e razões o pai de
Zoraida, como mais conhecedor, pois, embora ela falasse a bastarda
língua que, como disse, ali se usa, mais declarava sua intenção por
sinais que por palavras. Estando nestas e outras muitas razões, chegou
um mouro correndo, e disse, a grandes vozes, que pelas cercas ou
paredes da quinta haviam saltado quatro turcos, e andavam colhendo
fruta, embora não estivesse madura. Sobressaltou-se o velho, e o
mesmo fez Zoraida, porque é comum e quase natural o medo que os
mouros aos turcos têm, especialmente aos soldados, os quais são tão
insolentes e têm tanto império sobre os mouros que a eles estão
sujeitos, que os tratam pior que se fossem escravos seus. Digo, pois,
que disse seu pai a Zoraida:
- Filha, retira-te à casa e encerra-te, enquanto eu vou a falar com
estes cães; e tu, cristão, busca tuas verduras, e vai em boa hora, e
leve-te bem Alá à tua terra.
Eu me inclinei, e ele foi procurar os turcos, deixando-me só
com Zoraida, que começou a dar mostras de ir aonde seu pai a havia
mandado. Mas, apenas ele se encobriu com as árvores da quinta,
quando ela, voltando-se para mim, cheios os olhos de lágrimas, me
disse:
- Ámexi, cristão, ámexi? (Que quer dizer: “Vai-te, cristão, vai-te?”.)
Eu lhe respondi:
- Senhora, sim, mas não, de maneira alguma, sem ti: o primeiro jumá
me aguarda, e não te sobressaltes quando nos vejas; que sem dúvida
alguma iremos a terra de cristãos.
Eu lhe disse isto de maneira que ela me entendeu muito bem todo o
diálogo que ambos tivemos; e lançando-me um braço ao pescoço, com
desmaiados passos começou a caminhar até a casa; e quis a sorte, que
poderia ser muito má se o céu não o ordenasse de outra maneira, que,
indo os dois da maneira e postura que vos contei, com um braço ao
pescoço, seu pai, que já voltava de ir aos turcos, nos viu da sorte e
maneira que íamos, e nós vimos que ele nos havia visto; mas Zoraida,
advertida e discreta, não quis tirar o braço de meu pescoço, antes se
chegou mais a mim e pôs sua cabeça sobre meu peito, dobrando um
pouco os joelhos, dando claros sinais e mostras de que desmaiava, e
eu, também, dei a entender que a sustinha contra minha vontade. Seu
pai chegou correndo onde estávamos, e vendo a sua filha daquela
maneira, lhe perguntou o que tinha; mas, como ela não lhe
respondesse, disse seu pai:
- Sem dúvida alguma que com o sobressalto da entrada destes cães
haja desmaiado.
E tirando-a do meu, a arrimou a seu peito; e ela, dando un
suspiro e ainda não enxutos os olhos de lágrimas, voltou a dizer:
- Ámexi, cristão, ámexi: (“Vai, cristão, vai”.)
Ao que seu pai respondeu:
- Não importa, filha, que o cristão se vá, que nenhum mal te fez, e
os turcos já foram. Não te sobressalte coisa alguma, pois nenhuma há
que possa dar-te tristeza, pois, como já te disse, os turcos, a meu
rogo, voltaram por onde entraram.
- Eles, senhor, a sobressaltaram, como disseste - disse eu a seu pai;
- mas, pois ela diz que eu me vá, não lhe quero dar tristeza: fica em
paz, e, com tua licença, voltarei, se for preciso, por verduras a esta
quinta; que, segundo diz meu amo, em nenhuma as há melhores para
salada que nela.
- Todas as vezes que quiseres poderás voltar - respondeu Agi
Morato, - que minha filha não diz isto porque tu nem nenhum dos
cristãos a enojassem, senão que, por dizer que os turcos se fossem,
disse que tu te fosses, ou porque já era hora que colhesses tuas
verduras.
Com isto, me despedi de ambos; e ela, arrancando-se-lhe a alma, ao
parecer, se foi com seu pai; e eu, com pretexto de colher as verduras,
rodeei muito bem e a meu prazer toda a quinta: olhei bem as entradas
e saídas, e a fortaleza da casa, e a comodidade que se podia oferecer
para facilitar todo nosso negócio. Feito isto, vim e dei conta de quanto
havia passado ao renegado e a meus companheiros; e já não via a hora
de ver-me usufruir sem sobressalto do bem que na formosa e bela
Zoraida a sorte me oferecia. Enfim, o tempo passou, e chegou o dia e
prazo de nós tão desejado; e, seguindo todos a ordem e parecer que,
com discreta consideração e largo discurso, muitas vezes havíamos
dado, tivemos o bom sucesso que desejávamos; porque a sexta-feira
que seguiu ao dia que eu com Zoraida falei na quinta, nosso renegado,
ao anoitecer, fundeou a barca quase fronteiro de onde a formosíssima
Zoraida estava.
Já os cristãos que haviam de remar estavam prevenidos e
escondidos por diversas partes de todos aqueles arredores. Todos
estavam suspensos e alvoroçados, aguardando-me, desejosos já de
investir com o baixel que aos olhos tinham; porque eles não sabiam o
acordo do renegado, senão que pensavam que à força de braços haviam
de haver e ganhar a liberdade, tirando a vida aos mouros que dentro
da barca estavam. Sucedeu, pois, que, assim que eu me mostrei e meus
companheiros, todos os demais escondidos que nos viram vieram
chegando a nós. Isto era já a tempo que a cidade estava já fechada, e
por toda aquele campo nenhuma pessoa aparecia. Como estivemos
juntos, duvidamos se seria melhor ir primeiro por Zoraida, ou render
primeiro aos mouros marinheiros que manejavam o remo na barca. E
estando nesta dúvida, chegou a nós nosso renegado perguntando-nos
em que nos detínhamos, que já era hora, e que todos seus mouros
estavam descuidados, e os mais deles dormindo. Dissemos-lhe no que
reparávamos, e ele disse que o que mais importava era render primeiro
o baixel, que se podia fazer com grandíssima facilidade e sem perigo
algum, e que logo podíamos ir por Zoraida. Pareceu-nos bem a todos o
que dizia, e assim, sem deter-nos mais, fazendo ele de guia, chegamos
ao baixel, e, saltando ele dentro primeiro, pegou um alfanje, e disse
em mourisco:
- Nenhum de vós se mova daqui, se não quer que lhe custe a vida.
Já, a este tempo, haviam entrado quase todos os cristãos. Os
mouros, que eram de pouco ânimo, vendo seu arrais falar daquela
maneira, ficaram espantados, e sem nenhum de todos eles lançar mão
às armas, que poucas ou quase nenhumas tinham, se deixaram, sem
falar alguma palavra, maniatar pelos cristãos, os quais com muita
presteza o fizeram, ameaçando os mouros de que se elevassem por
alguma via ou maneira a voz, que imediatamente os passariam todos à
faca. Feito já isto, ficando em guarda deles a meio dos nossos, os que
ficávamos, fazendo-nos também o renegado de guia, fomos à quinta de
Agi Morato, e quis a boa sorte que, chegando para abrir a porta, se
abriu com tanta facilidade como se fechada não estivesse; e assim,
com grande quietude e silêncio, chegamos à casa sem ser sentidos de
ninguém.
Estava a belíssima Zoraida aguardando-nos a uma janela, e, assim
que percebeu a presença de pessoas, perguntou com voz baixa se
éramos nizarani, como se dissesse ou perguntasse se éramos cristãos.
Eu lhe respondi que sim, e que descesse. Quando ela me reconheceu,
não se deteve um nada, porque, sem responder-me palavra, desceu
num instante, abriu a porta e mostrou-se a todos tão formosa e
ricamente vestida que não o acerto a encarecer. Logo que eu a vi, lhe
tomei uma mão e a comecei a beijar, e o renegado fez o mesmo, e
meus dois camaradas; e os demais, que o caso não sabiam, fizeram o
que viram que nós fazíamos, que não parecia senão que lhe dávamos as
graças e a reconhecíamos por senhora de nossa liberdade. O renegado
lhe disse em língua mourisca se estava seu pai na quinta. Ela respondeu
que sim e que dormia.
- Pois será preciso despertá-lo - replicou o renegado, - e levá-lo
conosco, e tudo aquilo que tem de valor esta formosa quinta.
- Não - disse ela, - a meu pai não se há de tocar de nenhum modo, e
nesta casa não há outra coisa que o que eu levo, que é tanto, que bem
haverá para que todos fiqueis ricos e contentes; e esperai um pouco e
o vereis.
E dizendo isto, voltou a entrar, dizendo que muito depressa
voltaria; que estivéssemos parados, sem fazer nenhum ruído.
Perguntei ao renegado o que com ela havia passado, o qual me contou, a
quem eu disse que em nenhuma coisa se havia de fazer mais do que
Zoraida quisesse; a qual quando voltava carregada com um cofrezinho
cheio de escudos de ouro, tantos, que apenas o podia sustentar, quis a
má sorte que seu pai despertasse neste ínterim e percebesse o ruído
que havia na quinta; e, assomando à janela, logo conheceu que todos os
que nela estavam eram cristãos; e, dando muitas, grandes e
desaforadas vozes, começou a dizer em arábico:
- Cristãos, cristãos! Ladrões, ladrões!
Pelos quais gritos nos vimos todos postos em grandíssima e
temerosa confusão. Mas o renegado, vendo o perigo em que
estávamos, e o muito que lhe importava sair com aquela empresa antes
de ser sentido, com grandíssima presteza, subiu onde Agi Morato
estava, e juntamente com ele foram alguns de nós; que eu não ousei
desamparar Zoraida, que desmaiada se havia deixado cair em meus
braços. Em suma, os que subiram tiveram tão boa manha que num
momento baixaram com Agi Morato, trazendo-lhe atadas as mãos e
posto um lencinho na boca, que não o deixava falar palavra,
ameaçando-o de que o falá-la lhe havia de custar a vida. Quando sua
filha o viu, cobriu os olhos para não vê-lo, e seu pai ficou espantado,
ignorando quão de sua vontade se havia posto em nossas mãos. Mas,
então sendo mais necessários os pés, com diligência e presteza nos
pusemos na barca; que já os que nela haviam ficado nos esperavam,
temerosos de algum mau sucesso nosso. Apenas seriam duas horas
passadas do anoitecer, quando já estávamos todos na barca, na qual se
tirou ao pai de Zoraida a atadura das mãos e o pano da boca; mas
tornou-lhe a dizer o renegado que não falasse palavra, que lhe
tirariam a vida. Ele, ao ver ali a sua filha, começou a suspirar
ternissimamente, e mais quando viu que eu estreitamente a tinha
abraçada, e que ela sem defender, queixar-se nem esquivar-se, estava
quieta; mas, assim, calava, para que não pusessem em efeito as muitas
ameaças que o renegado lhe fazia. Vendo-se, pois, Zoraida já na barca,
e que queríamos dar os remos à água, e vendo ali seu pai e os demais
mouros que atados estavam, disse ao renegado que me dissesse lhe
fizesse mercê de soltar aqueles mouros e de dar liberdade a seu pai,
porque antes se arrojaria no mar que ver diante de seus olhos e por
causa sua levar cativo a um pai que tanto a havia querido. O renegado
me o disse; e eu respondi que ficava muito contente por isso; mas ele
respondeu que não convinha, porque, se ali os deixassem dariam logo
alarme à terra e alvoroçariam a cidade, e seriam causa que saíssem a
buscá-los com algumas fragatas ligeiras, e lhes tomassem a terra e o
mar, de maneira que não pudéssemos escapar; que o que se poderia
fazer era dar-lhes liberdade chegando à primeira terra de cristãos.
Deste parecer fomos todos, e Zoraida, a quem se lhe deu conta, com
as causas que nos moviam a não fazer logo o que queria, também se
satisfez; e logo, com regozijado silêncio e alegre diligência, cada um
de nossos valentes remeiros tomou seu remo, e começamos,
encomendando-nos a Deus de todo coração, a navegar à volta das ilhas
de Mallorca, que é a terra de cristãos mais próxima. Mas, por soprar
um pouco o vento tramontano e estar o mar algo agitado, não foi
possível seguir a rota de Mallorca, e foi-nos forçoso deixar-nos ir
costeando até Orán, não sem muito pesar nosso, por não ser
descobertos do lugar de Sargel, que naquela costa está a menos de
sessenta milhas de Argel; e também temíamos encontrar por aquela
paragem alguma galeota das que de ordinário vêm com mercadoria de
Tetuán, embora cada um por si, e todos juntos, presumíamos que, se
se encontrava galeota de mercadoria, como não fosse das que andam
em corso, que não só não nos perderíamos, mas que tomaríamos baixel
onde com mais segurança pudéssemos acabar nossa viagem. Ia
Zoraida, enquanto se navegava, posta a cabeça entre minhas mãos, por
não ver seu pai, e sentia eu que ia chamando a Lela Marién que nos
ajudasse. Bem haveríamos navegado trinta milhas, quando nos
amanheceu, como três tiros de arcabuz desviados de terra, toda a
qual vimos deserta e sem ninguém que nos descobrisse; entretanto,
nos fomos à força de braços entrando um pouco no mar, que já estava
algo mais sossegado; e, havendo entrado quase duas léguas, deu-se
ordem que se remasse parte dos homens enquanto comíamos algo, que
ia bem provida a barca, posto que os que remavam disseram que não
era aquele tempo de tomar repouso algum, que lhes dessem de comer
os que não remavam, que eles não queriam soltar os remos das mãos de
maneira alguma. Fez-se assim, e nisto começou a soprar um vento
largo, que nos obrigou a soltar logo as velas e a deixar o remo, e
endireitar a Orán, por não ser possível poder fazer outra viagem.
Tudo se fez com muitíssima presteza; e assim, à vela, navegamos por
mais de oito milhas por hora, sem levar outro temor algum senão o de
encontrar com baixel que de corso fosse. Demos de comer aos mouros
bagarinos, e o renegado os consolou dizendo-lhes que não iam cativos,
que na primeira ocasião lhes dariam liberdade. O mesmo se disse ao
pai de Zoraida, o qual respondeu:
- Qualquer outra coisa poderia eu esperar e crer de vossa
liberalidade e bom termo, oh cristãos!, mas o dar-me liberdade, não
me tenhais por tão ingênuo que o imagine; que nunca vos expusestes ao
perigo de tirá-la para devolvê-la tão liberalmente, especialmente
sabendo quem sou eu, e o interesse que vos pode seguir de dá-la; o
qual interesse, se lhe quereis fixar o resgate, daqui vos ofereço tudo
aquilo que quiserdes por mim e por essa desditada filha minha, ou se
não, por ela só, que é a maior e a melhor parte de minha alma.
Dizendo isto, começou a chorar tão amargamente que a todos nos
moveu a compaixão, e forçou Zoraida que o olhasse; a qual, vendo-o
chorar, tanto se enterneceu que se levantou e foi abraçar seu pai e,
juntando seu rosto com o seu, começaram os dois tão terno pranto que
muitos dos que ali íamos o acompanhamos. Mas, quando seu pai a viu
adornada de festa e com tantas joias sobre si, disse-lhe em sua língua:
- Que é isto, filha, que ontem ao anoitecer, antes que nos sucedesse
esta terrível desgraça em que nos vemos, te vi com tuas ordinárias e
caseiras vestes, e agora, sem que hajas tido tempo de vestir-te e sem
haver-te dado alguma nova alegre de solenizá-la com adornar-te e
aformosear-te, te vejo composta com os melhores trajes que eu soube
e pude dar-te quando nos foi a ventura mais favorável? Responde-me a
isto, que me tem mais suspenso e admirado que a mesma desgraça em
que me acho.
Tudo o que o mouro dizia à sua filha nos declarava o renegado, e ela
não lhe respondia palavra. Mas, quando ele viu a um lado da barca o
cofrezinho onde ela costumava ter suas joias, o qual sabia ele bem que
o havia deixado em Argel, e não trazido à quinta, ficou mais confuso, e
perguntou-lhe como aquele cofre havia vindo a nossas mãos, e que era
o que vinha dentro. A que o renegado, sem aguardar que Zoraida lhe
respondesse, lhe respondeu:
- Não te canses, senhor, em perguntar a Zoraida, tua filha, tantas
coisas, porque com uma que eu te responda te satisfarei a todas; e
assim, quero que saibas que ela é cristã, e é a que foi a lima de nossas
correntes e a liberdade de nosso cativeiro; ela vai aqui por sua
vontade, tão contente, ao que eu imagino, de ver-se neste estado,
como o que sai das trevas à luz, da morte à vida e da pena à glória.
- É verdade o que este diz, filha? - disse o mouro.
- Assim é - respondeu Zoraida.
- Que, com efeito - replicou o velho, - tu és cristã, e a que pôs seu
pai em poder de seus inimigos?
A que respondeu Zoraida:
- A que é cristã, sou eu, mas não a que te pôs neste ponto, porque
nunca meu desejo se estendeu a deixar-te nem a fazer-te mal, senão a
fazer-me a mim bem.
- E que bem é o que te hás feito, filha?
- Isso - respondeu ela - pergunta-o a Lela Marién, que ela te saberá
dizer melhor que não eu.
Apenas ouviu isto o mouro, quando, com uma incrível presteza, se
arrojou de cabeça no mar, onde sem nenhuma dúvida se afogaria, se a
roupa larga e embaraçante que trazia não o mantivesse um pouco
sobre a água. Deu vozes Zoraida que o tirassem, e assim, acudimos
logo todos, e, tomando-o pela túnica, o tiramos meio afogado e sem
sentido, do que recebeu tanta pena Zoraida que, como se tivesse já
morrido, fazia sobre ele um terno e doloroso pranto. Voltamo-lo de
boca para baixo, vomitou muita água, tornou a si ao cabo de duas
horas, nas quais, havendo-se trocado o vento, nos conveio voltar até a
terra, e fazer força de remos, para não tocar nela; mas quis nossa boa
sorte que chegássemos a uma baía que se faz ao lado de um pequeno
promontório ou cabo que dos mouros é chamado o da “Cava Rumía”, que
em nossa língua quer dizer “a má mulher cristã”; e é tradição entre os
mouros que naquele lugar está enterrada a Cava, por quem se perdeu a
Espanha, porque cava em sua língua quer dizer “mulher má” , e rumía,
“cristã”; e ainda têm por mau agouro chegar ali para fundear quando a
necessidade lhes força a isso - porque nunca lhe dão sem ela -, posto
que para nós não foi abrigo de má mulher, senão porto seguro de nosso
remédio, segundo andava alterado o mar. Pusemos nossas sentinelas
em terra, e não deixamos jamais os remos da mão; comemos do que o
renegado havia provido, e rogamos a Deus e a Nossa Senhora, de todo
nosso coração, que nos ajudasse e favorecesse para que felizmente
déssemos fim a tão ditoso princípio. Deu-se ordem, por súplica de
Zoraida, que deixássemos em terra seu pai e todos os demais mouros
que ali amarrados vinham, porque não lhe bastava o ânimo, nem o
podiam sofrer suas brandas entranhas, ver diante de seus olhos
amarrado seu pai e aqueles de sua terra presos. Prometemos-lhe fazê-
lo assim ao tempo da partida, pois não corria perigo o deixá-los
naquele lugar, que era despovoado. Não foram tão vãs nossas orações
que não fossem ouvidas pelo céu; que, em nosso favor, logo mudou de
direção o vento, tranquilo o mar, convidando-nos a que voltássemos
alegres a prosseguir nossa começada viagem. Vendo isto,
desamarramos os mouros, e um a um os pusemos em terra, do que eles
ficaram admirados; mas, chegando a desembarcar o pai de Zoraida,
que já estava bem acordado, disse:
- Por que pensais, cristãos, que esta má fêmea se alegra por que me
deis liberdade? Pensais que é por piedade que de mim tem? Não, por
certo, senão que o faz pela perturbação que lhe dará minha presença
quando queira pôr em execução seus maus desejos; nem penseis que a
moveu a mudar de religião entender ela que a vossa à nossa se
avantaja, senão o saber que em vossa terra se usa a desonestidade
mais livremente que na nossa.
E voltando-se a Zoraida, tendo-lhe eu e outro cristão de ambos os
braços preso, para que algum desatino não fizesse, disse-lhe:
- Oh infame e mal aconselhada moça! Aonde vais, cega e desatinada,
em poder destes cães, naturais inimigos nossos? Maldita seja a hora
em que eu te engendrei, e malditos sejam os regalos e deleites em que
te criei!
Mas vendo eu que parecia não terminar tão cedo, apressei-me em
pô-lo em terra, e dali, a vozes, prosseguiu em suas maldições e
lamentos, rogando a Maomé rogasse a Alá que nos destruísse,
confundisse e acabasse; e quando, por haver-nos feito à vela, não
pudemos ouvir suas palavras, vimos suas obras, que eram arrancar-se
as barbas e os cabelos e arrastar-se pelo chão; mais uma vez levantou
a voz de tal maneira que pudemos entender que dizia:
- Volta, amada filha, volta a terra, que tudo te perdoo; entrega a
esses homens esse dinheiro, que já é seu, e volta a consolar este
triste pai teu, que nesta deserta areia deixará a vida, se tu o deixas.
Tudo o que escutava Zoraida, e tudo o sentia e chorava, e não soube
dizer-lhe nem responder-lhe palavra, senão:
- Submete-te a Alá, pai meu, que Lela Marién, que foi a causa de que
eu seja cristã, ela te console em tua tristeza. Alá sabe bem que não
pude fazer outra coisa que a que fiz, e que estes cristãos não devem
nada a minha vontade, pois, embora quisesse não vir com eles e ficar
em minha casa, me seria impossível, segundo a pressa que me dava
minha alma a pôr em prática esta que a mim me parece tão boa como
tu, pai amado, a julgas por má.
Isto disse, a tempo que nem seu pai a ouvia, nem nós já o víamos; e
assim, consolando eu a Zoraida, empreendemos todos a nossa viagem, a
qual nos facilitava o próprio vento, de tal maneira que bem tivemos por
certo de ver-nos no outro dia ao amanhecer nas ribeiras da Espanha.
Mas, como poucas vezes, ou nunca, vem o bem puro e singelo, sem ser
acompanhado ou seguido de algum mal que o perturbe ou sobressalte,
quis nossa ventura, ou quiçá as maldições que o mouro a sua filha havia
lançado, que sempre se hão de temer de qualquer pai que sejam; quis,
digo, que estando já em alto-mar e sendo já quase passadas três horas
da noite, indo com a vela estendida de alto abaixo, suspensos os
remos, porque o próspero vento nos tirava do trabalho de deles
precisar, com a luz da lua, que claramente resplandecia, vimos perto
de nós um baixel redondo, que, com todas as velas estendidas, com a
proa elevada aproveitando o vento, diante de nós atravessava; e isto
tão perto, que nos foi forçoso amainar para não o tocar, e eles,
também, fizeram força de timão para dar-nos lugar que passássemos.
Haviam-se posto a bordo do baixel a perguntar-nos quem éramos, e
aonde navegávamos, e de onde vínhamos; mas, por perguntar-nos isto
em língua francesa, disse nosso renegado:
- Nenhum responda; porque estes, sem dúvida, são corsários
franceses, que roubam qualquer coisa.
Por este advertimento, nenhum respondeu palavra; e, havendo
passado um pouco adiante, que já o baixel ficava a sotavento, de
improviso soltaram duas peças de artilharia, e, ao que parecia, ambas
vinham com correntes, porque com uma cortaram nosso mastro grande
pelo meio, e deram com ele e com a vela no mar; e já, disparando outra
peça, veio a dar a bala em meio de nossa barca, de modo que a abriu
toda, sem fazer outro mal algum; mas, como nós nos vimos ir a fundo,
começamos todos a grandes vozes a pedir socorro e a rogar aos do
baixel que nos acolhessem, porque nos afogávamos. Amainaram então,
e, jogando o bote ou barca ao mar, entraram nele até doze franceses
bem armados, com seus arcabuzes e tochas acesas, e assim chegaram
junto ao nosso; e, vendo quão poucos éramos e como o baixel se
afundava, nos recolheram, dizendo que, por haver usado da
descortesia de não responder-lhes, nos havia sucedido aquilo. Nosso
renegado tomou o cofre das riquezas de Zoraida, e deu com ele no
mar, sem que nenhum visse o que fazia. Em suma, todos ficamos com
os franceses, os quais, depois de haver-se informado de tudo aquilo
que de nós saber quiseram, como se fossem nossos capitais inimigos,
nos despojaram de tudo quanto tínhamos, e a Zoraida lhe tiraram até
os braceletes que trazia nos pés. Mas não me dava a mim tanto pesar o
que a Zoraida davam, como me dava o temor que tinha de que haviam
de passar do tirar as riquíssimas e preciosíssimas joias ao tirar a joia
que mais valia e ela mais estimava. Mas os desejos daquela gente não
se estendem a mais que ao dinheiro, e disto jamais se vê farta sua
cobiça; a qual então chegou a tanto, que ainda até as roupas de cativos
nos tirariam se de algum proveito lhes fossem. E houve parecer entre
eles de que a todos nos arrojassem ao mar envoltos em uma vela,
porque tinham intenção de comerciar em alguns portos da Espanha
com nome de que eram bretões, e se nos levavam vivos, seriam
castigados, sendo descoberto seu furto. Mas o capitão, que era o que
havia despojado a minha querida Zoraida, disse que ele se contentava
com a presa que tinha, e que não queria tocar em nenhum porto da
Espanha, senão passar o estreito de Gibraltar de noite, ou como
pudesse, e ir à Rochela, de onde havia saído; e assim, concordaram em
dar-nos o bote de seu navio, e todo o necessário para a pequena
navegação que nos ficava, como o fizeram no outro dia, já à vista de
terra da Espanha, com a qual vista, todas nossas tristezas e pobrezas
se nos olvidaram de pronto, como se não houvessem passado por nós:
tanto é o gosto de alcançar a liberdade perdida. Cerca de meio-dia
poderia ser quando nos jogaram na barca, dando-nos dois barris de
água e algum biscoito; e o capitão, movido não sei de que misericórdia,
ao embarcar a formosíssima Zoraida, lhe deu até quarenta escudos de
ouro, e não consentiu que lhe tirassem seus soldados estes mesmos
trajes que agora tem postos. Entramos no baixel; demos-lhes as
graças pelo bem que nos faziam, mostrando-nos mais agradecidos que
queixosos; eles se fizeram ao largo, seguindo a rota do estreito; nós,
sem olhar a outro norte que à terra que se nos mostrava diante, nos
demos tanta pressa a remar que ao pôr do sol estávamos tão perto que
bem poderíamos, a nosso parecer, chegar antes que fosse muito noite;
mas, por não aparecer naquela noite a lua e o céu mostrar-se escuro, e
por ignorar a paragem em que estávamos, não nos pareceu coisa segura
desembarcar em terra, como a muitos de nós lhes parecia, dizendo
que déssemos nela, embora fosse em umas penhas e longe de povoado,
porque assim afastaríamos o temor que com razão se devia ter de que
por ali andassem baixéis de corsários de Tetuán, os quais anoitecem
em Barbária e amanhecem nas costas da Espanha, e fazem de
ordinário presa, e voltam a dormir em suas casas. Mas, dos contrários
pareceres, o que se tomou foi que nos chegássemos pouco a pouco, e
que se o sossego do mar o concedesse, desembarcássemos onde
pudéssemos. Fez-se assim, e pouco antes da meia noite seria quando
chegamos ao pé de uma disformíssima e alta montanha, não tão junto
ao mar que não concedesse um pouco de espaço para poder
desembarcar comodamente. Aportamos na areia, saímos à terra,
beijamos o chão, e, com lágrimas de muito alegríssimo contentamento,
demos todos graças a Deus, Senhor Nosso, pelo bem tão incomparável
que nos havia feito. Tiramos da barca as provisões que tinha, pusemo-
la em terra, e subimos um grandíssimo trecho na montanha, porque
ainda ali estávamos, e ainda não podíamos assegurar o peito, nem
acabávamos de crer que era terra de cristãos a que já nos sustinha.
Amanheceu mais tarde, a meu parecer, do que queríamos. Acabamos
de subir toda a montanha, para ver se dali algum povoado se
descobria, ou algumas cabanas de pastores; mas, embora mais
estendêssemos a vista, nem povoado, nem pessoa, nem senda, nem
caminho descobrimos. Desse modo, decidimos entrar terra adentro,
pois não poderia ser menos senão que logo descobríssemos quem nos
desse notícia dela. Mas o que a mim mais me fatigava era o ver ir a pé
Zoraida por aquelas asperezas, que, posto que alguma vez a pus sobre
meus ombros, mais lhe cansava a ela meu cansaço que a repousava seu
repouso; e assim, nunca mais quis que eu aquele trabalho tomasse; e,
com muita paciência e mostras de alegria, levando-a eu sempre da
mão, pouco menos de um quarto de légua devíamos ter andado, quando
chegou a nossos ouvidos o som de um pequeno cincerro, sinal claro de
que por ali perto havia gado; e, olhando todos com atenção se alguém
aparecia, vimos ao pé de um sobreiro um pastor moço, que com grande
repouso e descuido estava lavrando um pau com uma faca. Demos
vozes, e ele, alçando a cabeça, se pôs ligeiramente em pé, e, ao que
depois soubemos, os primeiros que à vista se lhe ofereceram foram o
renegado e Zoraida, e, como ele os viu em traje de mouros, pensou que
todos os da Barbária estavam sobre ele; e, metendo-se com estranha
ligeireza pelo bosque adiante, começou a dar os maiores gritos do
mundo dizendo:
- Mouros, mouros há na terra! Mouros, mouros! Arma, arma!
Com estas vozes ficamos todos confusos, e não sabíamos que fazer;
mas, considerando que as vozes do pastor haviam de alvoroçar a terra,
e que a cavalaria da costa havia de vir logo ver o que era, acordamos
que o renegado tirasse as roupas de turco e vestisse um jaleco ou
casaca de cativo que um de nós lhe deu logo, embora ficasse em
camisa; e assim, encomendando-nos a Deus, fomos pelo mesmo caminho
que vimos que o pastor ia, esperando sempre quando havia de dar
sobre nós a cavalaria da costa. E não nos enganou nosso pensamento,
porque, ainda não haveriam passado duas horas quando, havendo já
saído daquelas matas a um plano, descobrimos até cinquenta
cavaleiros, que com grande ligeireza, correndo a meia rédea, a nós
vinham, e assim que os vimos, estivemos parados aguardando-os; mas,
quando eles chegaram e viram, em lugar dos mouros que buscavam,
tanto pobre cristão, ficaram confusos, e um deles nos perguntou se
éramos nós acaso o motivo por que um pastor havia dado alarme.
- Sim - disse eu; e, querendo começar a dizer-lhe meu sucesso, e de
onde vínhamos e quem éramos, um dos cristãos que conosco vinham
conheceu o ginete que nos havia feito a pergunta, e disse, sem deixar-
me dizer mais palavra:
- Graças sejam dadas a Deus, senhores, que a tão bom lugar nos
conduziu! Porque, se eu não me engano, a terra que pisamos é a de
Vélez Málaga, se já os anos de meu cativeiro não me tiraram da
memória o recordar-me que vós, senhor, que nos perguntais quem
somos, sois Pedro de Bustamante, tio meu.
Apenas disse isto o cristão cativo, quando o ginete se arrojou do
cavalo e veio abraçar o moço, dizendo-lhe:
- Sobrinho de minha alma e de minha vida, já te reconheço, e já te
chorei por morto eu, e minha irmã, tua mãe, e todos os teus, que ainda
vivem; e Deus foi servido de dar-lhes vida para que gozem o prazer de
ver-te: já sabíamos que estavas em Argel, e pelos sinais e mostras de
tuas vestes, e a de todos os desta companhia, compreendo que
tivestes milagrosa liberdade.
- Assim é - respondeu o moço, - e tempo nos ficará para contar-vos
tudo.
Logo que os ginetes entenderam que éramos cristãos cativos,
apearam-se de seus cavalos, e cada um nos convidava com o seu para
levar-nos à cidade de Vélez Málaga, que légua e meia dali estava.
Alguns deles voltaram a levar a barca à cidade, dizendo-lhes onde
a havíamos deixado; outros nos subiram às ancas, e Zoraida foi nas do
cavalo do tio do cristão. Saiu-nos a receber toda a vila, que já por
algum que se havia adiantado sabiam a nova de nossa vinda. Não se
admiravam de ver cativos livres, nem mouros cativos, porque toda a
gente daquela costa está afeita a ver a uns e a outros; mas
admiravam-se da formosura de Zoraida, a qual naquele instante e
ocasião estava no auge, assim com o cansaço do caminho como com a
alegria de ver-se já em terra de cristãos, sem sobressalto de perder-
se; e isto lhe havia dado ao rosto tais cores que, se não é que a
afeição então me enganava, ousarei dizer que mais formosa criatura
não havia no mundo; ao menos, que eu a houvesse visto. Fomos direitos
à igreja, a dar graças a Deus pela mercê recebida; e, assim que nela
entrou Zoraida, disse que ali havia rostos que se pareciam aos de Lela
Marién. Dissemos-lhe que eram imagens suas, e como melhor pôde lhe
deu o renegado a entender o que significavam, para que ela as
adorasse como se verdadeiramente fossem cada uma delas a mesma
Lela Marién que havia falado. Ela, que tem bom entendimento e um
natural fácil e claro, entendeu logo quanto acerca das imagens se lhe
disse. Desde ali nos levaram e repartiram a todos em diferentes casas
da vila; mas ao renegado, Zoraida e a mim nos levou o cristão que veio
conosco, e em casa de seus pais, que medianamente eram acomodados
dos bens de fortuna, e nos regalaram com tanto amor como a seu
mesmo filho. Seis dias estivemos em Vélez, ao cabo dos quais o
renegado, obtida a informação de quanto lhe convinha, foi à cidade de
Granada, para retornar por meio da Santa Inquisição ao grêmio
santíssimo da Igreja; os demais cristãos libertados se foram cada um
onde melhor lhe pareceu; sós ficamos Zoraida e eu, com só os escudos
que a cortesia do francês deu a Zoraida, dos quais comprei este
animal em que ela vem; e, servindo-a eu até agora de pai e escudeiro, e
não de esposo, vamos com intenção de ver se meu pai é vivo, ou se
algum de meus irmãos teve mais próspera ventura que a minha, posto
que, por haver-me feito o céu companheiro de Zoraida, me parece que
nenhuma outra sorte me poderia vir, por boa que fora, que mais a
estimasse. A paciência com que Zoraida leva as incomodidades que a
pobreza traz consigo, e o desejo que mostra ter de ver-se já cristã é
tanto e tal, que me admira e me move a servi-la todo o tempo de minha
vida, posto que o gosto que tenho de ver-me seu e de que ela seja
minha me perturba e desfaz não saber se acharei em minha terra
algum canto onde recolhê-la, e se haverão feito o tempo e a morte tal
mudança nos bens e vida de meu pai e irmãos que apenas ache quem me
conheça, se eles faltam. Não tenho mais, senhores, que dizer-vos de
minha história; a qual, se é agradável e peregrina, julguem-no vossos
bons entendimentos; que de mim sei dizer que quisera haver-vos
contado mais brevemente, posto que o temor de enfadar-vos mais de
quatro ocasiões me segurou a língua.

CAPÍTULO XLII

Que trata do que mais sucedeu na estalagem e de outras muitas


coisas dignas de saber-se

Calou dizendo isto o cativo, a quem dom Fernando disse:


- Por certo, senhor capitão, o modo com que haveis contado este
estranho sucesso foi tal, que iguala à novidade e estranheza do mesmo
caso. Tudo é peregrino e raro, e cheio de acidentes que maravilham e
suspendem a quem os ouve; e é de tal maneira o gosto que recebemos
em escutar-te, que, embora nos achasse o dia de amanhã entretidos
no mesmo conto, folgaríamos que de novo começasse.
E dizendo isto, dom Fernando e todos os demais lhe ofereceram,
com tudo o a eles possível para servi-lo, com palavras e razões tão
amorosas e tão verdadeiras que o capitão se teve por bem satisfeito
de suas vontades. Especialmente, lhe ofereceu dom Fernando que se
quisesse voltar com ele, ele faria com que o marquês, seu irmão, fosse
padrinho do batismo de Zoraida, e que ele, por sua parte, o
acomodaria de maneira que pudesse entrar em sua terra com a
autoridade e cômodo que a sua pessoa se devia. Tudo agradeceu
cortesissimamente o cativo, mas não quis aceitar nenhum de seus
liberais oferecimentos.
Nisto, chegava já a noite, e, ao fechar dela, chegou à estalagem um
coche, com alguns homens a cavalo. Pediram pousada; a quem a
vendeira respondeu que não havia em toda a estalagem um palmo
desocupado.
- Pois, embora isso seja - disse um dos a cavalo que haviam entrado
- não há de faltar para o senhor ouvidor que aqui vem.
A este nome se perturbou a hospedeira, e disse:
- Senhor, o que há é que não tenho camas: se é que sua mercê o
senhor ouvidor a traz, que sim deve trazer, entre em boa hora, que eu
e meu marido sairemos de nosso aposento para acomodar sua mercê.
- Seja em boa hora - disse o escudeiro.
Mas a este tempo já havia saído do coche um homem, que no traje
mostrou logo o ofício e cargo que tinha, porque a roupa longa, com as
mangas em forma de roca, que vestia, mostraram ser ouvidor, como
seu criado havia dito. Trazia pela mão uma donzela, ao parecer de uns
dezesseis anos, com traje de viagem, tão bizarra, tão formosa e tão
galharda que a todos pôs em admiração sua vista; de sorte que, a não
haver visto Doroteia e Lucinda e Zoraida, que na estalagem estavam,
creriam que outra tal formosura como a desta donzela dificilmente
poderia achar-se. Achou-se dom Quixote ao entrar do ouvidor e da
donzela, e assim que o viu disse:
- Seguramente pode vossa mercê entrar e repousar neste castelo,
que, embora seja estreito e mal acomodado, não há estreiteza nem
incomodidade no mundo que não dê lugar às armas e às letras, e mais
se as armas e letras trazem por guia e chefe a formosura, como a
trazem as letras de vossa mercê nesta formosa donzela, a quem
devem não só abrir-se e render-se os castelos, senão afastar-se os
penhascos, e dividir-se e abaixar-se as montanhas, para dar-lhe
acolhida. Entre vossa mercê, digo, neste paraíso, que aqui achará
estrelas e sóis que acompanhem o céu que vossa mercê traz consigo;
aqui achará as armas em seu ponto e a formosura em seu extremo.
Admirado ficou o ouvidor do arrazoado de dom Quixote, a quem se
pôs a olhar muito insistentemente, e não menos admirava seu talhe que
suas palavras; e, sem achar nenhumas com que responder-lhe, tornou a
admirar-se de novo quando viu diante de si Lucinda, Doroteia e
Zoraida, que, às novas dos novos hóspedes e às que a vendeira lhes
havia dado da formosura da donzela, haviam vindo a vê-la e a recebê-
la. Mas dom Fernando, Cardênio e o padre lhe fizeram mais plenos e
mais cortesãos oferecimentos. Com efeito, o senhor ouvidor entrou
confuso, assim do que via como do que escutava, e as formosas da
estalagem deram aa boas-vindas à formosa donzela.
Em suma, bem viu o ouvidor que era gente principal toda a que ali
estava; mas o talhe, cara e postura de dom Quixote o desatinava; e,
trocados entre todos corteses oferecimentos e averiguada a
comodidade da estalagem, se ordenou o que antes estava ordenado:
que todas as mulheres entrassem no sótão já referido, e que os
homens ficassem fora, como em sua guarda. E assim, ficou contente o
ouvidor que sua filha, que era a donzela, se fosse com aquelas
senhoras, o que ela fez de muito bom grado. E com parte da estreita
cama do vendeiro, e com a metade da que o ouvidor trazia, se
acomodaram aquela noite melhor do que pensavam.
O cativo, que, desde o momento que viu o ouvidor, lhe deu saltos o
coração e pressentimentos de que aquele era seu irmão, perguntou a
um dos criados que com ele vinham que como se chamava e se sabia de
que terra era. O criado lhe respondeu que se chamava o licenciado
João Pérez de Viedma, e que havia ouvido dizer que era de um lugar
das montanhas de Leão. Com esta relação e com o que ele havia visto
acabou de confirmar que aquele era seu irmão, que havia seguido as
letras por conselho de seu pai; e, alvoroçado e contente, chamando à
parte dom Fernando, Cardênio e o padre, lhes contou o que se passava,
certificando-lhes que aquele ouvidor era seu irmão. Havia-lhe dito
também o criado como ia designado como ouvidor às Índias, na
audiência do México. Soube também que aquela donzela era sua filha,
de cujo parto havia morrido sua mãe, e que ele havia ficado muito rico
com o dote que com a filha lhe ficou em casa. Pediu-lhes conselho que
modo teria para descobrir-se, ou para conhecer primeiro se, depois de
descoberto, seu irmão, por vê-lo pobre, se afrontava ou o recebia com
afabilidade.
- Deixe-se-me a mim o fazer essa experiência - disse o padre; -
quanto mais, que não há pensar senão que vós, senhor capitão, sereis
muito bem recebido, porque o valor e prudência que em seu bom
parecer descobre vosso irmão não dá indícios de ser arrogante nem
incumpridor de suas obrigações, nem que não há de saber pôr os casos
do destino em seu lugar.
- Mesmo assim - disse o capitão -, eu queria não de improviso, senão
por rodeios, dar-me-lhe a conhecer.
- Já vos digo - respondeu o padre - que eu o farei de modo que
todos fiquemos satisfeitos.
Já, nisto, estava preparada o jantar, e todos se sentaram à mesa,
exceto o cativo e as senhoras, que jantaram em seu aposento. No meio
do jantar disse o padre:
- Do mesmo nome de vossa mercê, senhor ouvidor, tive eu um
camarada em Constantinopla, onde estive cativo alguns anos; o qual
camarada era um dos valentes soldados e capitães que havia em toda a
infantaria espanhola, mas tanto quanto tinha de esforçado e valoroso
o tinha de desditado.
- E como se chamava esse capitão, senhor meu? - perguntou o
ouvidor.
- Chamava-se - respondeu o padre - Ruy Pérez de Viedma, e era
natural de um lugar das montanhas de Leão, o qual me contou um caso
que a seu pai com seus irmãos lhe havia sucedido, que, a não contar-me
um homem tão verdadeiro como ele, o teria por história daquelas que
as velhas contam no inverno ao fogo. Porque me disse que seu pai havia
dividido seus bens entre três filhos que tinha, e lhes havia dado
certos conselhos, melhores que os de Catão. E sei eu dizer que o que
ele escolheu de vir à guerra lhe havia sucedido tão bem que em poucos
anos, por seu valor e esforço, sem outro braço que o de sua muita
virtude, subiu a ser capitão de infantaria, e a ver-se a caminho e
merecimento de ser logo mestre de campo. Mas foi-lhe a fortuna
contrária, pois onde a poderia esperar e ter boa, ali a perdeu, com
perder a liberdade na felicíssima jornada onde tantos a cobraram, que
foi na batalha de Lepanto. Eu o perdi na Goleta, e depois, por
diferentes sucessos, nos achamos camaradas em Constantinopla. Dali
veio a Argel, onde sei que lhe sucedeu um dos mais estranhos casos
que no mundo sucederam.
Daqui foi prosseguindo o padre, e, com brevidade sucinta, contou o
que com Zoraida a seu irmão havia sucedido; a tudo o qual estava tão
atento o ouvidor, que nenhuma vez havia sido tão ouvidor como então.
Só chegou o padre ao ponto de quando os franceses despojaram os
cristãos que na barca vinham, e a pobreza e necessidade em que seu
camarada e a formosa moura haviam ficado; dos quais não havia sabido
em que haviam parado, nem se haviam chegado à Espanha, ou levado-os
os franceses à França.
Todo o que o padre dizia estava escutando, algo dali desviado, o
capitão, e notava todos os movimentos que seu irmão fazia; o qual,
vendo que já o padre havia chegado ao fim de seu conto, dando um
grande suspiro e enchendo-se-lhe os olhos de água, disse:
- Oh, senhor, se soubésseis as novas que me contastes, e como me
tocam tanto que me é forçoso dar mostras disso com estas lágrimas
que, contra toda minha discrição e recato, me saem pelos olhos! Esse
capitão tão valoroso que dizeis é meu maior irmão, o qual, como mais
forte e de mais altos pensamentos que eu nem outro irmão menor meu,
escolheu o honroso e digno exercício da guerra, que foi um dos três
caminhos que nosso pai nos propôs, segundo vos disse vosso camarada
na história que, a vosso parecer, lhe ouvistes. Eu segui o das letras,
nas quais Deus e minha diligência me puseram no grau que me vedes.
Meu menor irmão está no Peru, tão rico que com o que enviou a meu pai
e a mim satisfez bem a parte que ele levou, e ainda dado às mãos de
meu pai com que poder fartar sua liberalidade natural; e eu também
pude com mais decência e autoridade cuidar de meus estudos e chegar
ao posto em que me vejo. Vive ainda meu pai, morrendo com o desejo
de saber de seu filho maior, e pede a Deus com contínuas orações não
cerre a morte seus olhos até que ele veja com vida os de seu filho; do
qual me maravilho, sendo tão discreto, como em tantos trabalhos e
aflições, ou prósperos sucessos, se haja descuidado de dar notícia de
si a seu pai; que se ele o soubesse, ou algum de nós, não teria
necessidade de aguardar o milagre da vara para alcançar seu resgate.
Mas o que eu agora temo é de pensar se aqueles franceses lhe deram
liberdade, ou o mataram por encobrir seu furto. Isto tudo será que eu
prossiga minha viagem, não com aquele contentamento com que a
comecei, senão com toda melancolia e tristeza. Oh bom irmão meu, e
quem saberá agora onde estás; que eu te iria buscar e livrar de teus
trabalhos, embora fosse à custa dos meus! Oh, quem levará novas a
nosso velho pai de que vives, embora estejas nas masmorras mais
escondidas da Barbária; que dali te tirariam suas riquezas, as de meu
irmão e as minhas! Oh Zoraida formosa e liberal, quem poderia pagar o
bem que a um irmão fizeste! Quem poderia achar-se ao renascer de
tua alma, e às bodas, que tanto gosto a todos nos dariam!
Estas e outras semelhantes palavras dizia o ouvidor, cheio de tanta
compaixão com as novas que de seu irmão lhe haviam dado, que todos
os que o ouviam o acompanhavam em dar mostras do sentimento que
tinham de sua lástima.
Vendo, pois, o padre que tão bem havia saído com sua intenção e
com o que desejava o capitão, não quis tê-los a todos mais tempo
tristes, e assim, se levantou da mesa, e, entrando onde estava
Zoraida, a tomou pela mão, e atrás dela vieram Lucinda, Doroteia e a
filha do ouvidor. Estava esperando o capitão a ver o que o padre queria
fazer, que foi que, tomando-lhe a ele também pela outra mão, com
ambos foi onde o ouvidor e os demais cavaleiros estavam, e disse:
- Cessem, senhor ouvidor, vossas lágrimas, e encha-se vosso desejo
de todo o bem que desejar, pois tendes diante vosso bom irmão e a
vossa boa cunhada. Este que aqui vedes é o capitão Viedma, e esta, a
formosa moura que tanto bem lhe fez. Os franceses que vos disse os
puseram na apertura que vedes, para que vós mostreis a liberalidade
de vosso bom peito.
Acudiu o capitão a abraçar seu irmão, e ele lhe pôs ambas as mãos
nos peitos para olhá-lo algo mais afastado; mas, quando o acabou de
reconhecer, abraçou-o tão estreitamente, derramando tão ternas
lágrimas de alegria, que os mais dos que presentes estavam o
acompanharam nelas. As palavras que ambos os irmãos se disseram, os
sentimentos que mostraram, apenas creio que podem pensar-se,
quanto mais escrever-se. Ali, em breves palavras, se deram conta de
seus sucessos; ali mostraram claramente a boa amizade de dois
irmãos; ali abraçou o ouvidor a Zoraida; ali lhe ofereceu seus bens; ali
fez que a abraçasse sua filha; ali a cristã formosa e a moura
formosíssima renovaram as lágrimas de todos.
Ali dom Quixote estava atento, sem falar palavra, considerando
estes tão estranhos sucessos, atribuindo-os todos a quimeras da
andante cavalaria. Ali combinaram que o capitão e Zoraida voltassem
com seu irmão a Sevilha e avisassem seu pai de seu achado e
liberdade, para que, como pudesse, viesse a achar-se nas bodas e
batismo de Zoraida, por não ser ao ouvidor possível deixar o caminho
que levava, por causa de ter novas que dali a um mês partia a frota de
Sevilha à Nova Espanha, e ser-lhe-ia de grande incomodidade perder a
viagem.
Em suma, todos ficaram contentes e alegres do bom sucesso do
cativo; e, como já a noite ia quase nas duas partes de sua jornada,
acordaram de recolher-se e repousar o que dela lhes ficava. Dom
Quixote se ofereceu a fazer a guarda do castelo, para que de algum
gigante ou outro mal andante baderneiro não fossem acometidos,
cobiçosos do grande tesouro de formosura que naquele castelo se
encerrava. Agradeceram-lhe os que o conheciam, e deram ao ouvidor
conta do humor estranho de dom Quixote, de que não pouco gosto
recebeu.
Só Sancho Pança se desesperava com a tardança do recolhimento, e
só ele se acomodou melhor que todos, jogando-se sobre os aparelhos
de seu jumento, que lhe custaram tão caros como adiante se dirá.
Recolhidas, pois, as damas em seu quarto, e os demais acomodados
como menos mal puderam, dom Quixote saiu fora da estalagem a fazer
a sentinela do castelo, como o havia prometido.
Sucedeu, pois, que faltando pouco por vir o alvorecer, chegou aos
ouvidos das damas uma voz tão entoada e tão boa, que as obrigou a que
todas lhe prestassem atento ouvido, especialmente Doroteia, que
desperta estava, a cujo lado dormia dona Clara de Viedma, que assim
se chamava a filha do ouvidor. Ninguém podia imaginar quem era a
pessoa que tão bem cantava, e era uma voz sozinha, sem que a
acompanhasse instrumento algum. Umas vezes lhes parecia que
cantavam no pátio; outras, que na cavalariça; e, estando nesta
confusão muito atentas, chegou à porta do aposento Cardênio e disse:
- Quem não dorme, escute; que ouvirão uma voz de um moço de
mulas, que de tal maneira canta que encanta.
- Já o ouvimos, senhor - respondeu Doroteia.
E com isto, se foi Cardênio; e Doroteia, pondo toda a atenção
possível, entendeu que o que se cantava era isto:

CAPÍTULO XLIII

Onde se conta a agradável história do moço de mulas, com outros


estranhos acontecimentos na estalagem sucedidos

- Marinheiro sou de amor,


e em seu pélago profundo
navego sem esperança
de chegar a porto algum.
Seguindo vou a uma estrela
que desde longe descubro,
mais bela e resplandecente
que quantas viu Palinuro.
Eu não sei aonde me guia,
e assim, navego confuso,
a alma a olhá-la atenta,
cuidadosa e com descuido.
Recatos impertinentes,
honestidade contra o uso,
são nuvens que ma encobrem
quando mais vê-la procuro.
Oh clara e luzente estrela,
em cuja luz me apuro!;
no ponto que me encubras,
será de minha morte a hora.

Chegando o que cantava a este ponto, pareceu a Doroteia que não


seria bem que deixasse Clara de ouvir uma tão boa voz; e assim,
movendo-a a uma e a outra parte, a despertou dizendo-lhe:
- Perdoa-me, menina, que te desperto, pois o faço para que aprecies
ouvir a melhor voz que quiçá haverás ouvido em toda tua vida.
Clara despertou toda sonolenta, e da primeira vez não entendeu o
que Doroteia lhe dizia; e, vindo-lhe a perguntar, ela o tornou a dizer, a
que esteve atenta Clara. Mas, apenas ouviu dois versos que o que
cantava ia prosseguindo, quando lhe tomou um tremor tão estranho
como se de algum grave acidente de febre estivesse enferma, e,
abraçando-se estreitamente com Doroteia, disse-lhe:
- Ai senhora de minha alma e de minha vida!, para que me
despertastes? Que o maior bem que a fortuna me podia fazer por
agora era ter-me fechados os olhos e os ouvidos, para não ver nem
ouvir esse desditado músico.
- Que é o que dizes, menina? Vê que dizem que o que canta é um
moço de mulas.
- Não é senão senhor de vassalos - respondeu Clara, - e o lugar que
ele tem em minha alma é tão seguro, que se ele não quer deixá-lo, não
lhe será tirado eternamente.
Admirada ficou Doroteia das sentidas razões da moça, parecendo-
lhe que se avantajavam em muito à discrição que seus poucos anos
prometiam; e assim lhe disse:
- Falais de modo, senhora Clara, que não posso entender-vos:
explicai-vos melhor e dizei-me que é o que dizeis de alma e de
vassalos, e deste músico, cuja voz tão inquieta vos tem. Mas não me
digais nada por agora, que não quero perder, por atender a vosso
sobressalto, o gosto que recebo de ouvir o que canta; que me parece
que com novos versos e novo tom torna a seu canto.
- Seja em boa hora - respondeu Clara.
E para não ouvi-lo, tapou com as mãos ambos os ouvidos, do que
também se admirou Doroteia; a qual, estando atenta ao que se
cantava, viu que prosseguiam desta maneira:

- Doce esperança minha,


que, rompendo impossíveis e matas,
segues firme a via
que tu mesma finges e preparas:
não te desmaie o ver-te
a cada passo junto ao de tua morte.
Não alcançam preguiçosos
honrados triunfos nem vitória alguma,
nem podem ser ditosos
os que, não enfrentando a fortuna,
entregam, desvalidos,
ao ócio brando todos os sentidos.
Que amor suas glórias venda
caras, é grande razão, e é trato justo,
pois não há mais rica prenda
que a que se mede por seu gosto;
e é coisa manifesta
que não é de estima o que pouco custa.
Amorosas porfias
talvez alcançam impossíveis coisas;
e assim, embora com as minhas
sigo de amor as mais dificultosas,
não por isso receio
de não alcançar desde a terra o céu.

Aqui deu fim a voz, e Clara princípio a novos soluços. Tudo o que
acendia o desejo de Doroteia, que desejava saber a causa de tão suave
canto e de tão triste choro. E assim, lhe voltou a perguntar que era o
que lhe queria dizer antes. Então Clara, temerosa de que Lucinda a
ouvisse, abraçando estreitamente a Doroteia, pôs sua boca tão junto
do ouvido de Doroteia, que seguramente podia falar sem ser de outro
ouvida, e assim lhe disse:
- Este que canta, senhora minha, é um filho de um cavaleiro natural
do reino de Aragão, senhor de dois lugares, o qual vivia fronteiro da
casa de meu pai na corte; e, embora meu pai tinha as janelas de sua
casa com cortinas no inverno e gelosias no verão, eu não sei o que foi,
nem o que não, que este cavaleiro, que era estudante, me viu, nem sei
se na igreja ou em outra parte: finalmente, ele se enamorou de mim, e
mo deu a entender desde as janelas de sua casa com tantos sinais e
com tantas lágrimas, que eu o tive de crer, e ainda querer, sem saber
quanto me queria. Entre os sinais que me fazia, era um de juntar uma
mão com a outra, dando-me a entender que se casaria comigo; e,
embora eu me alegrasse muito que assim fosse, como só e sem mãe,
não sabia com quem comunicá-lo, e assim, o deixei estar sem dar-lhe
outro favor se não era, quando estava meu pai fora de casa e o seu
também, alçar um pouco a cortina ou a gelosia e deixar-me ver toda,
do que ele fazia tanta festa, que dava sinais de enlouquecer. Chegou
nisto o tempo da partida de meu pai, a qual ele soube, e não de mim,
pois nunca pude dizê-lo. Adoeceu, ao que eu entendo, de tristeza; e
assim, o dia em que partimos em nenhuma ocasião pude vê-lo para
despedir-me dele, sequer com os olhos. Mas, a cabo de dois dias que
caminhávamos, ao entrar em uma pousada, num lugar uma jornada
daqui, o vi à porta da estalagem, posto em traje de moço de mulas, tão
naturalmente que se eu não o trouxesse tão retratado em minha alma
seria impossível reconhecê-lo. Reconheci-o, admirei-me e alegrei-me;
ele me viu a furto de meu pai, de quem ele sempre se esconde quando
atravessa por diante de mim nos caminhos e nas pousadas onde
chegamos; e, como eu sei quem é, e considero que por amor de mim
vem a pé e com tanto trabalho, morro de tristeza, e onde ele põe os
pés ponho eu os olhos. Não sei com que intenção vem, nem como pôde
escapar-se de seu pai, que o quer extraordinariamente, porque não
tem outro herdeiro, e porque ele o merece, como o verá vossa mercê
quando o veja. E mais lhe sei dizer: que tudo aquilo que canta o tira de
sua cabeça; que ouvi dizer que é muito grande estudante e poeta. E há
mais: que cada vez que o vejo ou o ouço cantar, tremo toda e me
sobressalto, temerosa de que meu pai o reconheça e venha em
conhecimento de nossos desejos. Em minha vida nunca lhe falei, e,
desse modo, quero-o de maneira que não hei de poder viver sem ele.
Isto é, senhora minha, tudo o que vos posso dizer deste músico, cuja
voz tanto vos contentou; que unicamente nela bem vereis que não é
moço de mulas, como dizeis, senão senhor de almas e lugares, como eu
vos disse.
- Não digais mais, senhora dona Clara - disse então Doroteia, e isto,
beijando-a mil vezes, - não digais mais, digo, e esperai que venha o
novo dia, que eu espero em Deus encaminhar de maneira tal vossos
negócios que tenham o feliz fim que tão honestos princípios merecem.
- Ai senhora! - disse dona Clara, - que fim se pode esperar, se seu
pai é tão principal e tão rico que lhe parecerá que ainda eu não posso
ser criada de seu filho, quanto mais esposa? Pois casar-me eu a furto
de meu pai, não o farei por quanto há no mundo. Não queria senão que
este moço voltasse e me deixasse; quiçá que ao não vê-lo e com a
grande distância do caminho que seguimos se me aliviaria a pena que
agora levo, embora sei dizer que este remédio que imagino me há de
aproveitar bem pouco. Não sei que diabos foi isto, nem por onde
entrou este amor que lhe tenho, sendo eu tão moça e ele tão moço,
que em verdade creio que somos de uma mesma idade, e que eu não
tenho cumpridos dezesseis anos, que para o dia de São Miguel que virá
diz meu pai que os cumpro.
Não pôde deixar de rir-se Doroteia ouvindo quão como menina
falava dona Clara, a quem disse:
- Repousemos, senhora, o pouco que creio fica da noite, e
amanhecerá Deus e tudo se arranjará, ou muito má sorte hei de ter.
Sossegaram-se com isto, e em toda a estalagem se guardava um
grande silêncio; somente não dormiam a filha da vendeira e
Maritornes, sua criada, as quais, como já sabiam o humor de que
pecava dom Quixote, e que estava fora da estalagem armado e a
cavalo fazendo a guarda, decidiram as duas fazer-lhe alguma burla, ou,
ao menos, passar um pouco o tempo ouvindo seus disparates.
É, pois, o caso que em toda a estalagem não havia janela que desse
para o campo, senão um buraco de um palheiro, por onde colocavam a
palha. A este buraco se puseram as duas semidonzelas, e viram que
dom Quixote estava a cavalo, recostado sobre seu chuço, dando de
quando em quando tão dolentes e profundos suspiros que parecia que
com cada um se lhe arrancava a alma; e também ouviram que dizia com
voz branda, regalada e amorosa:
- Oh minha senhora Dulcineia do Toboso, extremo de toda
formosura, fim e remate da discrição, arquivo do melhor donaire,
depósito da honestidade, e, por último e perfeitamente, ideia de todo
o proveitoso, honesto e deleitável que há no mundo! E que fará agora a
tua mercê? Se terás porventura o pensamento em teu cativo
cavaleiro, que a tantos perigos, por só servir-te, de sua vontade quis
pôr-se? Dá-me tuas novas dela, oh luminária das três caras! Quiçá com
inveja da sua a estás agora olhando; que, ou passeando-se por alguma
galeria de seus suntuosos palácios, ou já posta de peitos sobre algum
balcão, está considerando como, salva sua honestidade e grandeza, há
de amansar a tormenta que por ela este meu coitado coração padece,
que glória há de dar a minhas penas, que sossego a meu cuidado e,
finalmente, que vida à minha morte e que prêmio a meus serviços. E tu,
sol, que já deves estar depressa encilhando teus cavalos, por
madrugar e sair a ver a minha senhora, assim que a vejas, suplico-te
que de minha parte a saúdes; mas guarda-te que ao vê-la e saudá-la
não a beijes no rosto, que terei mais ciúmes de ti que tu os tiveste
daquela ligeira ingrata que tanto te fez suar e correr pelos planos da
Tessália, ou pelas ribeiras de Peneu, que não me lembro bem por onde
correste então ciumento e enamorado.
A este ponto chegava então dom Quixote em seu tão lastimoso
arrazoado, quando a filha da vendeira lhe começou a cecear e a
dizer-lhe:
- Senhor meu, chegue aqui vossa mercê se faz o favor.
A cujos sinais e voz voltou dom Quixote a cabeça, e viu, à luz da
lua, que então estava em toda sua claridade, que o chamavam do
buraco que a ele lhe pareceu janela, e ainda com grades douradas,
como convém que as tenham tão ricos castelos como ele imaginava que
era aquela estalagem; e logo no instante se lhe representou em sua
louca imaginação que outra vez, como a passada, a donzela formosa,
filha da senhora daquele castelo, vencida de seu amor, tornava a
requestá-lo; e com este pensamento, por não mostrar-se descortês e
desagradecido, voltou as rédeas a Rocinante e se chegou ao buraco, e,
assim que viu as duas moças, disse:
- Lástima vos tenho, formosa senhora, de que pusestes vossas
amorosas mentes em parte onde não é possível corresponder-vos
conforme merece vosso grande valor e gentileza; do que não deveis
dar culpa a este miserável andante cavaleiro, a quem tem amor
impossibilitado de poder entregar sua vontade a outra que aquela que,
no momento em que seus olhos a viram, a fez senhora absoluta de sua
alma. Perdoai-me, boa senhora, e recolhei-vos em vosso aposento, e
não queirais, ao confirmar-me vossos desejos, que eu me mostre mais
desagradecido; e se do amor que me tendes achais em mim outra coisa
com que satisfazer-vos, que o mesmo amor não seja, pedi-ma; que eu
vos juro, por aquela ausente inimiga doce minha, de dá-la
imediatamente, se bem me pedísseis uma madeixa dos cabelos de
Medusa, que eram todos cobras, ou já os mesmos raios do sol
encerrados em uma redoma.
- Não precisa nada disso minha senhora, senhor cavaleiro - disse
então Maritornes.
- Então de que precisa, discreta dona, vossa senhora? - respondeu
dom Quixote.
- Só uma de vossas formosas mãos - disse Maritornes, - por poder
desafogar com ela o grande desejo que a este buraco a trouxe, tão a
perigo de sua honra que se seu senhor pai a percebesse, a maior
talhada dela seria a orelha.
- Já quisera eu ver isso! - respondeu dom Quixote. - Mas ele se
guardará bem disso, se já não quer ter o mais desastrado fim que pai
teve no mundo, por haver posto as mãos nos delicados membros de sua
enamorada filha.
Pareceu a Maritornes que sem dúvida dom Quixote daria a mão que
lhe haviam pedido, e, propondo em seu pensamento o que havia de
fazer, desceu do buraco e foi à cavalariça, onde tomou o cabresto do
jumento de Sancho Pança, e com muita presteza voltou a seu buraco,
no momento em que dom Quixote se pôs de pé sobre a sela de
Rocinante, para alcançar a janela gradeada, onde imaginava estar a
donzela ferida de amor; e, ao dar-lhe a mão, disse:
- Tomai, senhora, essa mão, ou, por melhor dizer, esse verdugo dos
malfeitores do mundo; tomai essa mão, digo, a quem não tocou outra
de mulher alguma, nem ainda a daquela que tem inteira possessão de
todo meu corpo. Não vos a dou para que a beijeis, senão para que
mireis a contextura de seus nervos, a juntura de seus músculos, a
largura e tamanho de suas veias; de onde tirareis que tal deve ser a
força do braço que tal mão tem.
- Agora o veremos - disse Maritornes.
E fazendo uma laçada corrediça no cabresto, a fechou no pulso, e,
descendo do buraco, amarrou o que ficava ao trinco da porta do
palheiro muito fortemente. Dom Quixote, que sentiu a aspereza do
cordel em seu pulso, disse:
- Mais parece que vossa mercê me rala que me regala a mão; não a
trateis tão mal, pois ela não tem culpa do mal que minha vontade vos
faz, nem é bem que em tão pouca parte vingueis o todo de vossa ira.
Vede que quem quer bem não se vinga tão mal.
Mas todas estas razões de dom Quixote já não as escutava
ninguém, porque, assim que Maritornes o amarrou, ela e a outra se
foram, mortas de riso, e o deixaram preso de maneira que foi
impossível soltar-se.
Estava, pois, como se disse, de pé sobre Rocinante, metido todo o
braço pelo buraco e amarrado pelo pulso, e ao trinco da porta, com
grandíssimo temor e cuidado, que se Rocinante se desviasse para um
lado ou a outro, havia de ficar pendurado pelo braço; e assim, não
ousava fazer movimento algum, embora da paciência e quietude de
Rocinante bem se podia esperar que estaria sem mover-se um século
inteiro.
Em suma, vendo-se dom Quixote amarrado, e que já as damas se
haviam ido, se deu a imaginar que tudo aquilo se fazia por via de
encantamento, como a vez passada, quando naquele mesmo castelo o
moeu aquele mouro encantado do arreeiro; e maldizia consigo sua
pouca discrição e raciocínio, pois, havendo saído tão mal a vez primeira
daquele castelo, se havia aventurado a entrar nele a segunda, sendo
advertimento de cavaleiros andantes que, quando provaram uma
aventura e não saíram bem dela, é sinal que não está para eles
guardada, senão para outros; e assim, não têm obrigação de prová-la
segunda vez. Desse modo, puxava o braço, para ver se podia soltar-se;
mas ele estava tão bem preso, que todas suas provas foram em vão.
Bem é verdade que puxava com cuidado, para que Rocinante não se
movesse; e, embora ele quisesse sentar-se e pôr-se na sela, não podia
senão estar em pé, ou arrancar a mão.
Ali foi o desejar a espada de Amadis, contra quem não tinha força
encantamento algum; ali foi o maldizer de sua fortuna; ali foi o
exagerar a falta que faria no mundo sua presença o tempo que ali
estivesse encantado, que sem dúvida alguma acreditava estar; ali o
recordar-se de novo de sua querida Dulcineia do Toboso; ali foi o
chamar a seu bom escudeiro Sancho Pança, que, sepultado em sonho e
estendido sobre a albarda de seu jumento, não se recordava naquele
instante da mãe que o havia parido; ali chamou aos sábios Lirgandeo e
Alquife, que o ajudassem; ali invocou a sua boa amiga Urganda, que o
socorresse, e, finalmente, ali o achou a manhã, tão desesperado e
confuso que bramava como um touro; porque não esperava ele que com
o dia se remediasse sua coita, porque a tinha por eterna, tendo-se por
encantado. E fazia-o crer isto ver que Rocinante pouco nem muito se
movia, e cria que daquela sorte, sem comer nem beber nem dormir,
haviam de estar ele e seu cavalo, até que aquele mal influxo das
estrelas passasse, ou até que outro mais sábio encantador o
desencantasse.
Mas enganou-se muito em sua crença, porque, apenas começou a
amanhecer, quando chegaram à estalagem quatro homens a cavalo,
muito bem postos e aparelhados, com suas escopetas sobre os arções.
Chamaram à porta da estalagem, que ainda estava fechada, com
grandes golpes; o qual, visto por dom Quixote desde onde ainda não
deixava de fazer a sentinela, com voz arrogante e alta disse:
- Cavaleiros ou escudeiros ou quem quer que sejais: não tendes para
que chamar às portas deste castelo; que assaz claro está que a tais
horas, ou os que estão dentro dormem, ou não têm por costume abrir-
se as fortalezas até que o sol esteja estendido por todo o chão.
Afastai-vos um pouco, e esperai que aclare o dia, e então veremos se
será justo ou não que vos abram.
- Que diabos de fortaleza ou castelo é este - disse um, - para
obrigar-nos a guardar essas cerimônias? Se sois o vendeiro, mandai
que nos abram, que somos caminhantes que não queremos mais que dar
cevada a nossas cavalgaduras e passar adiante, porque vamos com
pressa.
- Parece-vos, cavaleiros, que tenho eu talhe de vendeiro? -
respondeu dom Quixote.
- Não sei de que tendes talhe - respondeu o outro, - mas sei que
dizeis disparates ao chamar castelo a esta estalagem.
- Castelo é - replicou dom Quixote, - e ainda dos melhores de toda
esta província; e gente tem dentro que teve cetro na mão e coroa na
cabeça.
- Melhor fora ao contrário - disse o caminhante: - o cetro na cabeça
e a coroa na mão. E será, se vem ao caso, que deve estar aí alguma
companhia de atores, dos quais é ter amiúde essas coroas e cetros que
dizeis, porque em uma estalagem tão pequena, e onde se guarda tanto
silêncio como esta, não creio eu que se alojam pessoas dignas de coroa
e cetro.
- Sabeis pouco do mundo - replicou dom Quixote, - pois ignorais os
casos que costumam acontecer na cavalaria andante.
Cansavam-se os companheiros que com o perguntante vinham do
colóquio que com dom Quixote passava, e assim, tornaram a chamar
com grande fúria; e foi de modo que o vendeiro despertou, e ainda
todos quantos na estalagem estavam; e assim, se levantou a perguntar
quem chamava. Sucedeu neste tempo que uma das cavalgaduras em que
vinham os quatro que chamavam se aproximou para cheirar Rocinante,
que, melancólico e triste, com as orelhas caídas, sustinha sem mover-
se seu estirado senhor; e como, enfim, era de carne, embora
parecesse de pau, não pôde deixar de ressentir-se e tornar a cheirar
quem lhe chegava a fazer carícias; e assim, não se moveu um
pouquinho, quando se desviaram os juntos pés de dom Quixote, e,
resvalando da sela, dariam com ele no chão, se não ficasse pendurado
pelo braço: coisa que lhe causou tanta dor que creu ou que o pulso lhe
cortavam, ou que o braço se lhe arrancava; porque ele ficou tão perto
do chão que com os extremos das pontas dos pés beijava a terra, que
era em seu prejuízo, porque, como sentia o pouco que lhe faltava para
pôr as plantas na terra, fatigava-se e estirava-se quanto podia para
alcançar o chão, bem assim como os que estão na tortura da garrucha,
postos a “toca, não toca”, que eles mesmos são causa de acrescentar
sua dor, com o afinco que põem em estirar-se, enganados da esperança
que se lhes representa que com pouco mais que se estirem chegarão
ao chão.

CAPÍTULO XLIV

Onde prosseguem os inauditos sucessos da estalagem


Com efeito, foram tantas as vozes que dom Quixote deu, que,
abrindo rapidamente as portas da estalagem, saiu o vendeiro,
espavorido, a ver quem tais gritos dava, e os que estavam fora
fizeram o mesmo. Maritornes, que já havia despertado às mesmas
vozes, imaginando o que podia ser, foi ao palheiro e desatou, sem que
ninguém o visse, o cabresto que sustinha dom Quixote, e ele deu logo
no chão, à vista do vendeiro e dos caminhantes, que, chegando-se a
ele, lhe perguntaram que tinha, que tais vozes dava. Ele, sem
responder palavra, tirou o cordel do pulso, e, levantando-se, subiu
sobre Rocinante, embraçou seu escudo, enristou seu chuço, e,
escolhendo a melhor orientação para combater, voltou a meio galope,
dizendo:
- Qualquer que disser que eu fui com justo título encantado, se
minha senhora a princesa Micomicona me dá licença para isso, eu o
desminto, acuso-o de traidor e desafio a singular batalha.
Os novos caminhantes ficaram admirados com as palavras de dom
Quixote, mas o vendeiro os tirou daquela admiração, dizendo-lhes que
era dom Quixote, e que não havia que fazer caso dele, porque estava
fora de juízo.
Perguntaram ao vendeiro se acaso havia chegado àquela estalagem
um moço de uns quinze anos, que vinha vestido como moço de mulas, de
tais e tais sinais, dando os mesmos que trazia o amante de dona Clara.
O vendeiro respondeu que havia tanta gente na estalagem, que não
havia visto o que perguntavam. Mas, havendo visto um deles o coche
onde havia vindo o ouvidor, disse:
- Aqui deve estar sem dúvida, porque este é o coche que ele dizem
que segue; fique um de nós à porta e entrem os demais a buscá-lo; e
ainda seria bom que um de nós rodeasse toda a estalagem, para que
não se fosse pelas cercas dos currais.
- Assim se fará - respondeu um deles.
E entrando os dois, um ficou à porta e o outro se foi a
rodear a estalagem; tudo o que via o vendeiro, e não sabia atinar para
que se faziam aquelas diligências, posto que bem acreditou que
buscavam aquele moço cujos sinais lhe haviam dado.
Já então aclarava o dia; e, assim por isto como pelo ruído que dom
Quixote havia feito, estavam todos despertos e se levantavam,
especialmente dona Clara e Doroteia, que uma com sobressalto de ter
tão perto seu amante, e a outra com o desejo de vê-lo, haviam podido
dormir bem mal aquela noite. Dom Quixote, que viu que nenhum dos
quatro caminhantes fazia caso dele, nem respondiam à sua demanda,
morria e raivava de despeito e sanha; e se ele achasse nas ordenanças
de sua cavalaria que licitamente podia o cavaleiro andante tomar e
emprender outra empresa, havendo dado sua palavra e fé de não pôr-
se em nenhuma até acabar a que havia prometido, ele investiria contra
todos, e os faria responder mau grado seu. Mas, por parecer-lhe não
convir nem estar bem começar nova empresa até pôr a Micomicona em
seu reino, teve por bem calar e estar quedo, esperando para ver em
que davam as diligências daqueles caminhantes; um dos quais achou o
mancebo que buscava, dormindo ao lado de um moço de mulas, bem
descuidado de que ninguém nem o buscasse, nem menos de que o
achasse. O homem lhe travou do braço e disse:
- Por certo, senhor dom Luís, que corresponde bem a quem sois o
traje que tendes, e que diz bem a cama em que vos acho ao regalo com
que vossa mãe vos criou.
Limpou o moço os sonolentos olhos e olhou devagar o que o tinha
preso, e logo reconheceu que era criado de seu pai, de que recebeu tal
sobressalto, que não acertou ou não pôde falar-lhe palavra por um bom
espaço; e o criado prosseguiu dizendo:
- Aqui não há que fazer outra coisa, senhor dom Luís, senão ter
paciência e voltar para casa, se já vossa mercê não quer que seu pai e
meu senhor morra, porque não se pode esperar outra coisa da pena
com que fica por vossa ausência.
- Pois, como soube meu pai - disse dom Luís - que eu vinha por este
caminho e neste traje?
- Um estudante - respondeu o criado - a quem destes conta de
vossos pensamentos foi o que o descobriu, movido à lástima das que
viu que fazia vosso pai quando vos deu por falta; e assim, despachou a
quatro de seus criados em vossa busca, e todos estamos aqui a vosso
serviço, mais contentes do que imaginar se pode, pelo bom despacho
com que tornaremos, levando-vos aos olhos que tanto vos querem.
- Isso será como eu quiser, ou como o céu o ordenar - respondeu
dom Luís.
- Que haveis de querer, ou que há de ordenar o céu, fora de
consentir em voltar-vos? Porque não há de ser possível outra coisa.
Todas estas razões que entre os dois se davam ouviu o moço de
mulas junto a quem dom Luís estava; e, levantando-se dali, foi dizer o
que passava a dom Fernando e a Cardênio, e aos demais, que já se
haviam vestido; aos quais disse como aquele homem chamava de dom
àquele moço, e os argumentos que diziam, e como o queria levar de
volta à casa de seu pai, e o moço não queria. E com isto, e com o que
dele sabiam da boa voz que o céu lhe havia dado, ficaram todos com
grande desejo de saber mais particularmente quem era, e ainda de
ajudá-lo se o quisessem forçar; e assim, foram até o lugar onde ainda
estava falando e porfiando com seu criado.
Saía nisto Doroteia de seu aposento, e atrás dela dona Clara, toda
perturbada; e, chamando Doroteia a Cardênio à parte, lhe contou em
breves razões a história do músico e de dona Clara, a quem ele
também disse o que se passava da vinda a buscá-lo os criados de seu
pai, e não o disse tão baixo que o deixasse de ouvir Clara; do que ficou
tão fora de si que, se Doroteia não chegasse a segurá-la, daria consigo
no chão. Cardênio disse a Doroteia que voltassem ao aposento, que ele
procuraria pôr remédio em tudo, e elas o fizeram.
Já estavam todos os quatro que vinham buscar dom Luís dentro da
estalagem e em volta dele, persuadindo-o de que logo, sem deter-se
um minuto, voltasse para consolar seu pai. Ele respondeu que de
maneira alguma o podia fazer até dar fim a um negócio em que lhe ia a
vida, a honra e a alma. Apertaram-lhe então os criados, dizendo-lhe
que de nenhum modo voltariam sem ele, e que o levariam, quisesse ou
não quisesse.
- Isso não fareis vós - replicou dom Luís, - se não é levando-me
morto; embora, de qualquer maneira que me leveis, será levar-me sem
vida.
Já então haviam acudido à porfia quase todos os que estavam na
estalagem, especialmente Cardênio, dom Fernando, seus camaradas, o
ouvidor, o padre, o barbeiro e dom Quixote, que já lhe pareceu que
não havia necessidade de guardar mais o castelo. Cardênio, como já
sabia a história do moço, perguntou aos que queriam levá-lo o que os
movia a querer levar contra sua vontade aquele moço.
- Move-nos - respondeu um dos quatro - dar a vida a seu pai, que
pela ausência deste cavaleiro fica a perigo de perdê-la.
A isto disse dom Luís:
- Não há para que se dê conta aqui de minhas coisas: eu sou livre, e
voltarei se me der gosto, e se não, nenhum de vós me há de forçar.
- Chamar-se-á vossa mercê à razão - respondeu o homem; - e,
quando ela não bastar com vossa mercê, bastará conosco para fazer
ao que vimos e o que somos obrigados.
- Saibamos o que é isto de princípio ao fim - disse a este tempo o
ouvidor.
Mas o homem, que o reconheceu, como vizinho de sua casa,
respondeu:
- Não reconhece vossa mercê, senhor ouvidor, este cavaleiro, que é
o filho de seu vizinho, o qual se ausentou de casa de seu pai no traje
tão indecente à sua qualidade como vossa mercê pode ver?
O ouvidor olhou-o então mais atentamente e reconheceu-o; e
abraçando-o, disse:
- Que ninharias são estas, senhor dom Luís, ou que causas tão
poderosas, que vos moveram a vir desta maneira, e neste traje, que
diz tão mal com a vossa qualidade?
Ao moço vieram as lágrimas aos olhos, e não pôde responder
palavra. O ouvidor disse aos quatro que sossegassem, que tudo se
faria bem; e, tomando dom Luís pela mão, afastou-o a um lado e lhe
perguntou que vinda havia sido aquela.
E enquanto lhe fazia esta e outras perguntas, ouviram gritos à
porta da estalagem, e era a causa delas que dois hóspedes que aquela
noite haviam se alojado nela, vendo a toda a gente ocupada em saber o
que os quatro buscavam, haviam intentado ir embora sem pagar o que
deviam; mas o vendeiro, que atendia mais a seu negócio que aos
alheios, os apanhou ao sair da porta e pediu sua paga, e lhes afeou sua
má intenção com tais palavras, que os moveu a que lhe respondessem
com os punhos; e assim, começaram a dar-lhe tal sova, que o pobre
vendeiro teve necessidade de gritar e pedir socorro. A vendeira e sua
filha não viram outro mais desocupado para poder socorrê-lo senão
dom Quixote, a quem a filha da vendeira disse:
- Socorra vossa mercê, senhor cavaleiro, pela graça que Deus lhe
deu, a meu pobre pai, que dois maus homens o estão deixando feito
farinha.
A que respondeu dom Quixote, muito devagar e com muita fleugma:
- Formosa donzela, não tem lugar por agora vossa petição, porque
estou impedido de intrometer-me em outra aventura enquanto não der
conclusão a uma em que minha palavra me pôs. Mas o que eu poderei
fazer por servir-vos é o que agora direi: correi e dizei a vosso pai que
se entretenha nessa batalha o melhor que puder, e que não se deixe
vencer de nenhum modo, enquanto eu peço licença à princesa
Micomicona para poder socorrê-lo em sua coita; que se ela a dá, tende
por certo que eu o tirarei dela.
- Pecadora de mim! - disse a isto Maritornes, que estava diante: -
Antes que vossa mercê alcance essa licença que diz, estará já meu
senhor no outro mundo.
- Dai-me vós, senhora, que eu alcance a licença que digo - respondeu
dom Quixote, - que, se eu a tiver, pouco fará ao caso que ele esteja no
outro mundo; que dali o tirarei apesar do mesmo mundo que o
contradiga; ou, pelo menos, vos darei tal vingança dos que lá o
houverem enviado, que fiqueis mais que medianamente satisfeitas.
E sem dizer mais se foi a pôr de joelhos ante Doroteia, pedindo-lhe
com palavras cavaleirescas e andantescas que a sua grandeza fosse
servida de dar-lhe licença de acorrer e socorrer ao castelão daquele
castelo, que estava posto em uma grave míngua. A princesa a deu de
bom talante, e ele logo, embraçando seu escudo e pegando sua espada,
acudiu à porta da estalagem, onde ainda os dois hóspedes maltratavam
o vendeiro; mas, assim que chegou, deteve-se confuso e esteve quedo,
embora Maritornes e a vendeira lhe perguntassem por que se detinha,
e dissessem que socorresse seu senhor e marido.
- Detenho-me - disse dom Quixote - porque não me é lícito usar a
espada contra gente escuderil; mas chamai-me aqui meu escudeiro
Sancho, que a ele toca esta defesa e vingança.
Isto se passava na porta da estalagem, e nela andavam os murros e
tabefes muito à vontade, tudo em dano do vendeiro e em raiva de
Maritornes, a vendeira e sua filha, que se desesperavam de ver a
covardia de dom Quixote, e do mal que passava seu marido, senhor e
pai.
Mas deixemo-lo aqui, que não faltará quem o socorra, ou se não,
sofra e cale o que se atreve a mais do que suas forças lhe permitem, e
voltemo-nos atrás cinquenta passos, a ver que foi o que dom Luís
respondeu ao ouvidor, que o deixamos à parte, perguntando-lhe a
causa de sua vinda a pé e de tão vil traje vestido. A que o moço,
tomando-o fortemente das mãos, como em sinal de que alguma grande
dor lhe apertava o coração, e derramando lágrimas em grande
abundância, disse-lhe:
- Senhor meu, eu não sei dizer-vos outra coisa senão que desde o
momento que quis o céu e facilitou nossa vizinhança que eu visse a
minha senhora dona Clara, filha vossa e senhora minha, desde aquele
instante a fiz dona de minha vontade; e se a vossa, verdadeiro senhor
e pai meu, não o impede, neste mesmo dia há de ser minha esposa. Por
ela deixei a casa de meu pai, e por ela me pus neste traje, para segui-
la onde quer que fosse, como a seta ao alvo, ou como o marinheiro ao
norte. Ela não sabe de meus desejos mais do que pôde entender de
algumas vezes que desde longe viu chorar meus olhos. Já, senhor,
sabeis a riqueza e a nobreza de meus pais, e como eu sou seu único
herdeiro: se vos parece que estas são qualidades para que vos
aventureis a fazer-me em tudo venturoso, recebei-me logo por vosso
filho; que se meu pai, levado de outros desígnios seus, não gostar
deste bem que eu soube buscar, mais força tem o tempo para
desfazer e mudar as coisas que as humanas vontades.
Calou dizendo isto o enamorado mancebo, e o ouvidor ficou a ouvi-lo
suspenso, confuso e admirado, assim de haver ouvido o modo e a
discrição com que dom Luís lhe havia descoberto seu pensamento,
como de ver-se em situação que não sabia o que poder fazer em tão
repentino e não esperado negócio; e assim, não respondeu outra coisa
senão que sossegasse por então, e entretivesse a seus criados, que
por aquele dia não o levassem, para que tivesse tempo para considerar
o que estivesse melhor a todos. Beijou-lhe as mãos com força dom
Luís, e ainda as banhou com lágrimas, coisa que poderia enternecer um
coração de mármore, não só o do ouvidor, que, como discreto, já havia
percebido quão bem estava a sua filha com aquele matrimônio; embora,
se fosse possível, o quisesse efetuar por vontade do pai de dom Luís,
do qual sabia que pretendia conseguir um título nobiliário para seu
filho.
Já então estavam em paz os hóspedes com o vendeiro, pois, por
persuasão e boas razões de dom Quixote, mais que por ameaças,
haviam-lhe pago tudo o que ele quis, e os criados de dom Luís
aguardavam o fim da conversa do ouvidor e a resolução de seu amo,
quando o demônio, que não dorme, ordenou que naquele mesmo
momento entrasse na estalagem o barbeiro a quem dom Quixote tirou
o elmo de Mambrino e Sancho Pança os aparelhos do asno, que trocou
com os do seu; o qual barbeiro, levando seu jumento à cavalariça, viu
Sancho Pança que estava preparando não sei que da albarda, e assim
que a viu a conheceu, atreveu-se a arremeter contra Sancho, dizendo:
- Ah dom ladrão, que aqui vos tenho! Venha minha bacia e minha
albarda, com todos meus aparelhos que me roubastes!
Sancho, que se viu acometer tão de improviso e ouviu os vitupérios
que lhe diziam, com uma mão agarrou a albarda, e com a outra deu um
soco no barbeiro que lhe banhou os dentes em sangue; mas não por
isto deixou o barbeiro a presa que tinha feito da albarda; antes, alçou
a voz de tal maneira que todos os da estalagem atenderam ao ruído e
pendência, e dizia:
- Aqui o rei e a justiça, que, além de tirar meus bens, me quer matar
este ladrão salteador de caminhos!
- Mentis - respondeu Sancho, - que eu não sou salteador de
caminhos; que em boa guerra ganhou meu senhor dom Quixote estes
despojos.
Já estava dom Quixote diante, com muito contentamento de ver
quão bem se defendia e ofendia seu escudeiro, e teve-lhe dali em
diante por homem de bem, e propôs em seu coração armá-lo cavaleiro
na primeira ocasião que se lhe oferecesse, por parecer-lhe que seria
nele bem empregada a ordem da cavalaria. Entre outras coisas que o
barbeiro dizia no decurso da pendência, veio a dizer:
- Senhores, assim esta albarda é minha como a morte que devo a
Deus, e assim a conheço como se a houvesse parido; e aí está meu asno
no estábulo, que não me deixará mentir; se não, observem-na, e se não
a acharem adequada ao meu ofício, eu ficarei por infame. E há mais:
que o mesmo dia que ela se me tirou, me tiraram também uma bacia de
latão nova, que não havia estreado, que valia um escudo.
Aqui não se pôde conter dom Quixote sem responder, e pondo-se
entre os dois e afastando-os, pondo a albarda no chão, para que a
tivesse em depósito até que a verdade se aclarasse, disse:
- Porque vejam vossas mercês clara e manifestamente o erro em
que está este bom escudeiro, pois chama bacia ao que foi, é e será
elmo de Mambrino, o qual o obtive eu em boa guerra, e me fiz senhor
dele com legítima e lícita possessão! No do albarda não me intrometo,
que o que nisso saberei dizer é que meu escudeiro Sancho me pediu
licença para tirar os jaezes do cavalo deste vencido covarde, e com
eles adornar o seu; eu a dei, e ele os tomou, e, de haver-se convertido
de jaez em albarda, não saberei dar outra razão se não é a ordinária:
que essas transformações se veem nos sucessos da cavalaria; para
confirmação do qual, corre, Sancho filho, e traz aqui o elmo que este
bom homem diz ser bacia.
- Por Deus, senhor - disse Sancho, - se não temos outra prova de
nossa intenção que a que vossa mercê diz, tão bacia é o elmo de Malino
como albarda o jaez deste bom homem!
- Faz o que te mando - replicou dom Quixote, - que não todas as
coisas deste castelo hão de ser guiadas por encantamento.
Sancho foi onde estava a bacia e a trouxe; e, assim que dom
Quixote a viu, a tomou nas mãos e disse:
- Vejam vossas mercês com que cara podia dizer este escudeiro que
esta é bacia, e não o elmo que eu disse; e juro pela ordem de cavalaria
que professo que este elmo foi o mesmo que eu lhe tirei, sem haver
acrescentado nele nem tirado coisa alguma.
- Nisso não há dúvida - disse então Sancho, - porque desde que meu
senhor lhe ganhou até agora não fez com ele mais de uma batalha,
quando livrou os sem ventura acorrentados; e se não fosse por este
bacielmo, não acabaria então muito bem, porque houve assaz de
pedradas naquele transe.

CAPÍTULO XLV

Onde se acaba de averiguar a dúvida do elmo de Mambrino e da


albarda, e outras aventuras sucedidas, com toda verdade

- O que parece a vossas mercês, senhores - disse o barbeiro, - o que


afirmam estes gentis-homens, pois ainda porfiam que esta não é bacia,
mas elmo?
- E quem o contrário disser - disse dom Quixote, - lhe farei eu
conhecer que mente, se for cavaleiro, e se escudeiro, que remente mil
vezes.
Nosso barbeiro, que a tudo estava presente, como tinha tão bem
conhecido o humor de dom Quixote, quis avivar seu desatino e levar
adiante a burla para que todos rissem, e disse, falando com o outro
barbeiro:
- Senhor barbeiro, ou quem sois, sabei que eu também sou de vosso
ofício, e tenho há mais de vinte anos carta de exame, e conheço muito
bem todos os instrumentos da barbearia, sem que lhe falte um; e nem
mais nem menos fui um tempo em minha mocidade soldado, e sei
também o que é elmo, e o que é morrião, e elmo de encaixe, e outras
coisas tocantes à milícia, digo, aos gêneros de armas dos soldados; e
digo, salvo melhor parecer, remetendo-me sempre ao melhor
entendimento, que esta peça que está aqui diante e que este bom
senhor tem nas mãos, não só não é bacia de barbeiro, mas está tão
longe de sê-lo como está longe o branco do negro e a verdade da
mentira; também digo que este, embora seja elmo, não é elmo inteiro.
- Não, por certo - disse dom Quixote, - porque lhe falta a metade,
que é a babeira.
- Assim é - disse o padre, que já havia entendido a intenção de seu
amigo o barbeiro.
E o mesmo confirmou Cardênio, dom Fernando e seus camaradas; e
ainda o ouvidor, se não estivesse tão pensativo com o negócio de dom
Luís, ajudaria também na brincadeira, mas as questões do que pensava
o tinham tão suspenso, que pouco ou nada atendia àqueles donaires.
- Valha-me Deus! - disse então o barbeiro burlado. - É possível que
tanta gente honrada diga que esta não é bacia, mas elmo? Coisa parece
esta que pode pôr admirada toda uma universidade, por discreta que
seja. Basta: se é que esta bacia é elmo, também deve ser esta albarda
jaez de cavalo, como este senhor disse.
- Parece-me albarda - disse dom Quixote, - mas já disse que nisso
não me intrometo.
- De que seja albarda ou jaez - disse o padre - não há mais quem o
diga que o senhor dom Quixote; que nestas coisas da cavalaria todos
estes senhores e eu lhe damos a vantagem.
- Por Deus, senhores meus - disse dom Quixote, - são tantas e tão
estranhas as coisas que neste castelo, em duas vezes que nele me
alojei, me sucederam, que não me atrevo a dizer afirmativamente
nenhuma coisa do que se perguntar acerca do que ele contém, porque
imagino que quanto nele acontece é por via de encantamento. A
primeira vez me fatigou muito um mouro encantado que nele há, e a
Sancho não lhe foi muito bem com outros seus sequazes; e ontem à
noite estive pendurado deste braço quase duas horas, sem saber
como, nem como não, vim a cair naquela desgraça. Assim que, pôr-me
eu agora em coisa de tanta confusão a dar meu parecer, será cair em
juízo temerário. No que toca ao que dizem que esta é bacia, e não
elmo, já eu tenho respondido; mas, no de declarar se essa é albarda ou
jaez, não me atrevo a dar sentença definitiva: só o deixo ao bom
parecer de vossas mercês. Quiçá por não ser armados cavaleiros,
como eu o sou, não terão que ver com vossas mercês os encantamentos
deste lugar, e terão os entendimentos livres, e poderão julgar das
coisas deste castelo como elas são real e verdadeiramente, e não
como a mim me pareciam.
- Não há dúvida - respondeu a isto dom Fernando, - senão que o
senhor dom Quixote disse muito bem hoje que a nós toca a definição
deste caso; e, porque vá com mais fundamento, eu tomarei em segredo
os votos destes senhores, e do que resultar darei inteira e clara
notícia.
Para aqueles que a tinham do humor de dom Quixote, era tudo isto
matéria de grandíssimo riso; mas, para os que o ignoravam, lhes
parecia o maior disparate do mundo, especialmente aos quatro criados
de dom Luís, e a dom Luís nem mais nem menos, e a outros três
passageiros que acaso haviam chegado à estalagem, que tinham
parecer de ser quadrilheiros, como, com efeito, o eram. Mas o que
mais se desesperava era o barbeiro, cuja bacia, ali diante de seus
olhos, se havia transformado no elmo de Mambrino, e cuja albarda
pensava sem dúvida alguma que se havia de transformar em jaez rico
de cavalo; e uns e outros se riam de ver como andava dom Fernando
tomando os votos de uns e outros, falando-lhes ao ouvido para que em
segredo declarassem se era albarda ou jaez aquela joia sobre a qual
tanto se havia brigado. E depois que tomou os votos daqueles que
conheciam dom Quixote, disse em alta voz:
- O caso é, bom homem, que já eu estou cansado de tomar tantos
pareceres, porque vejo que a nenhum pergunto o que desejo saber que
não me diga que é disparate o dizer que esta seja albarda de jumento,
senão jaez de cavalo, e ainda de cavalo castiço; e assim, havereis de
ter paciência, porque, a vosso pesar e ao de vosso asno, este é jaez e
não albarda, e vós haveis alegado e provado muito mal de vossa parte.
- Não a tenha eu no céu - disse o barbeiro - se todos vossas
mercês não se enganam, e que assim pareça minha alma ante Deus
como ela me parece a mim albarda, e não jaez; mas lá vão leis... e não
digo mais; e em verdade que não estou borracho: que estou em jejum,
sim, de pecar não.
Não menos causavam riso as necedades que dizia o barbeiro que os
disparates de dom Quixote, o qual então disse:
- Aqui não há mais que fazer, senão que cada um tome o que é seu, e
a quem Deus a deu, São Pedro a bendiga.
Um dos quatro disse:
- Se já não é que isto seja burla pensada, não me posso persuadir
que homens de tão bom entendimento como são, ou parecem, todos os
que aqui estão, se atrevam a dizer e afirmar que esta não é bacia, nem
aquela albarda; mas, como vejo que o afirmam e o dizem, me dou a
entender que não carece de mistério o porfiar uma coisa tão contrária
do que nos mostra a mesma verdade e a mesma experiência; porque,
voto a tal (e completou a jura) que não me deem a mim a entender
quantos hoje vivem no mundo que esta não seja bacia de barbeiro e
esta albarda de asno.
- Bem poderia ser de burrica - disse o padre.
- Tanto faz - disse o criado, - que o caso não consiste nisso, senão
em se é ou não é albarda, como vossas mercês dizem.
Ouvindo isto um dos quadrilheiros que haviam entrado, que ouvira a
pendência e questão, cheio de cólera e de enfado, disse:
- Tão albarda é como meu pai; e o que outra coisa disse ou disser
deve estar mamado.
- Mentis como velhaco vilão - respondeu dom Quixote.
E alçando o chuço, que nunca soltava, ia descarregar-lhe tal golpe
sobre a cabeça, que, a não desviar-se o quadrilheiro, o deixaria ali
estendido. O chuço se fez em pedaços no chão, e os demais
quadrilheiros, que viram tratar mal a seu companheiro, alçaram a voz
pedindo favor à Santa Irmandade.
O vendeiro, que era da quadrilha, foi buscar imediatamente sua
meia vara e sua espada, e se pôs ao lado de seus companheiros; os
criados de dom Luís rodearam-no, para que com o alvoroço não
fugisse; o barbeiro, vendo a casa agitada, tornou a agarrar sua
albarda, e o mesmo fez Sancho; dom Quixote pegou sua espada e
arremeteu aos quadrilheiros. Dom Luís dava vozes a seus criados que o
deixassem e acorressem a dom Quixote, e a Cardênio, e a dom
Fernando, que todos favoreciam a dom Quixote. O padre dava vozes, a
vendeira gritava, sua filha se afligia, Maritornes chorava, Doroteia
estava confusa, Lucinda suspensa e dona Clara desmaiada. O barbeiro
aporreava Sancho, Sancho moía o barbeiro; dom Luís, a quem um
criado seu se atreveu a agarrá-lo pelo braço para que não se fosse, lhe
deu um murro que lhe banhou os dentes em sangue; o ouvidor o
defendia, dom Fernando tinha um quadrilheiro debaixo de seus pés,
pisoteando-o muito a seu sabor. O vendeiro tornou a reforçar a voz,
pedindo favor à Santa Irmandade: de modo que toda a estalagem era
prantos, vozes, gritos, confusões, temores, sobressaltos, desgraças,
cutiladas, tabefes, golpes, coices e efusão de sangue. E no meio deste
caos, máquina e labirinto de coisas, se lhe representou na memória de
dom Quixote que se via metido dos pés à cabeça na discórdia do
campo de Agramante; e assim disse, com voz que atroava a estalagem:
- Detenham-se todos; todos embainhem; todos sosseguem; ouçam-
me todos, se todos querem ficar com vida!
A cuja grande voz todos pararam, e ele prosseguiu, dizendo:
- Não vos disse eu, senhores, que este castelo era encantado, e que
alguma região de demônios deve habitar nele? Em confirmação do que,
quero que vejais por vossos olhos como se passou aqui e trasladada
entre nós a discórdia do campo de Agramante. Vede como ali se peleja
pela espada, aqui pelo cavalo, acolá pela águia, aqui pelo elmo, e todos
pelejamos, e todos não nos entendemos. Venha, pois, vossa mercê,
senhor ouvidor, e vossa mercê, senhor padre, e um sirva de rei
Agramante, e o outro de rei Sobrino, e ponham-nos em paz; porque
por Deus Todo-poderoso que é grande velhacaria que tanta gente
principal como aqui estamos se mate por causas tão levianas.
Os quadrilheiros, que não entendiam o estilo de dom Quixote, e se
viam estropiados por dom Fernando, Cardênio e seus camaradas, não
queriam sossegar-se; o barbeiro sim, porque na pendência tinha
desfeitas as barbas e a albarda; Sancho, à mais mínima voz de seu
amo, obedeceu como bom criado; os quatro criados de dom Luís
também ficaram parados, vendo quão pouco lhes ia em não está-lo. Só
o vendeiro porfiava que se haviam de castigar as insolências daquele
louco, que a cada passo lhe alvoroçava a estalagem. Finalmente, o
rumor se apaziguou por então, a albarda ficou por jaez até o dia do
juízo, e a bacia por elmo e a estalagem por castelo na imaginação de
dom Quixote.
Postos, pois, já em sossego, e feitos amigos todos à persuasão do
ouvidor e do padre, voltaram os criados de dom Luís a insistir que
imediatamente viesse com eles; e, enquanto ele com eles se avinha, o
ouvidor perguntou a dom Fernando, Cardênio e o padre o que devia
fazer naquele caso, contando-lhes as razões que dom Luís lhe havia
dito. Enfim, foi acordado que dom Fernando dissesse aos criados de
dom Luís quem ele era e como era seu gosto que dom Luís se fosse
com ele à Andaluzia, onde por seu irmão o marquês seria estimado
como o valor de dom Luís merecia; porque desta maneira se sabia da
intenção de dom Luís que não voltaria por aquela vez aos olhos de seu
pai, ainda que o fizessem em pedaços. Entendida, pois, dos quatro a
qualidade de dom Fernando e a intenção de dom Luís, determinaram
entre eles que três voltassem a contar o que se passava a seu pai, e o
outro ficasse a servir a dom Luís, e a não deixá-lo até que eles
voltassem por ele, ou visse o que seu pai lhes ordenava.
Desta maneira se apaziguou aquela máquina de pendências, pela
autoridade de Agramante e prudência do rei Sobrino; mas, vendo-se o
inimigo da concórdia e o êmulo da paz menosprezado e burlado, e o
pouco fruto que havia granjeado de havê-los posto a todos em tão
confuso labirinto, resolveu provar outra vez a mão, ressuscitando
novas pendências e desassossegos.
É, pois, o caso que os quadrilheiros se sossegaram, por haver
entreouvido a qualidade dos que com eles haviam combatido, e se
retiraram da pendência, por parecer-lhes que, de qualquer maneira
que sucedesse, haviam de levar o pior da batalha; mas um deles, que
foi o que foi moído e pateado por dom Fernando, lhe veio à memória
que, entre alguns mandamentos que trazia para prender alguns
delinquentes, trazia um contra dom Quixote, a quem a Santa
Irmandade havia mandado prender, pela liberdade que deu aos
galeotes, e como Sancho, com muita razão, havia temido.
Imaginando, pois, isto, quis certificar-se se os sinais que de dom
Quixote trazia vinham bem, e, tirando do seio um pergaminho, topou
com o que buscava; e, pondo-se a ler devagar, porque não era bom
leitor, a cada palavra que lia punha os olhos em dom Quixote, e ia
cotejando os sinais do mandamento com o rosto de dom Quixote, e
achou que, sem dúvida alguma, era o que o mandamento rezava. E
apenas se certificou, quando, recolhendo seu pergaminho, na esquerda
tomou o mandamento, e com a direita agarrou dom Quixote pelo
colarinho tão fortemente, que não o deixava respirar, e a grandes
vozes dizia:
- Favor à Santa Irmandade! E para que se veja que o peço de veras,
leia-se este mandamento, que diz que se prenda este salteador de
caminhos.
Tomou o mandamento o padre, e viu que era verdade quanto o
quadrilheiro dizia, e que combinavam os sinais com dom Quixote; o
qual, vendo-se tratar mal por aquele vilão gatuno, encolerizadíssimo e
rangendo-lhe os ossos do corpo, como melhor pôde, agarrou o
quadrilheiro com ambas as mãos pela garganta, que, a não ser
socorrido por seus companheiros, ali deixaria a vida antes que dom
Quixote a presa. O vendeiro, que por força havia de favorecer aos de
seu ofício, acudiu logo a dar-lhe favor. A vendeira, que viu de novo o
seu marido em pendências, de novo alçou a voz, no que acompanharam
logo Maritornes e sua filha, pedindo favor ao céu e aos que ali
estavam. Sancho disse, vendo o que passava:
- Vive o Senhor que é verdade quanto meu amo diz dos encantos
deste castelo, pois não é possível viver uma hora com quietude nele!
Dom Fernando desapartou o quadrilheiro e dom Quixote, e, com
gosto de ambos, lhes desentalou as mãos, que um no colarinho de um, e
o outro na garganta do outro, bem presas tinham; mas não por isto
cessavam os quadrilheiros de pedir seu preso, e que os ajudassem a
dá-lo amarrado e entregue a toda sua vontade, porque assim convinha
ao serviço do rei e da Santa Irmandade, de cuja parte de novo lhes
pediam socorro e favor para fazer aquela prisão daquele roubador e
salteador de caminhos e de carreiras. Ria-se de ouvir dizer estas
razões dom Quixote; e, com muito sossego, disse:
- Vinde cá, gente soez e malnascida: assaltar caminhos chamais ao
dar liberdade aos acorrentados, soltar os presos, acorrer aos
miseráveis, levantar os caídos, remediar os necessitados? Ah gente
infame, digna por vosso baixo e vil entendimento que o céu não vos
comunique o valor que se encerra na cavalaria andante, nem vos dê a
entender o pecado e ignorância em que estais em não reverenciar a
sombra, quanto mais a assistência, de qualquer cavaleiro andante!
Vinde cá, ladrões em quadrilha, que não quadrilheiros, salteadores de
caminhos com licença da Santa Irmandade; dizei-me: quem foi o
ignorante que firmou mandamento de prisão contra um tal cavaleiro
como eu sou? Quem o que ignorou que são isentos de todo judicial foro
os cavaleiros andantes, e que sua lei é sua espada; seus foros, seus
brios; seus decretos, sua vontade? Quem foi o mentecapto, volto a
dizer, que não sabe que não há carta de fidalguia com tantas
preeminências, nem isenções, como a que adquire um cavaleiro andante
no dia que se arma cavaleiro e se entrega ao duro exercício da
cavalaria? Que cavaleiro andante pagou impostos diretos ou indiretos,
tarifa postal ou barca? Que alfaiate lhe cobrou o custo da roupa que
lhe fizesse? Que castelão o acolheu em seu castelo que o fizesse
pagar a conta? Que rei não o assentou à sua mesa? Que donzela não se
lhe aficionou e se lhe entregou rendida, a todo seu talante e vontade?
E finalmente, que cavaleiro andante houve, há nem haverá no mundo,
que não tenha brios para dar ele só quatrocentos golpes a
quatrocentos quadrilheiros que se lhe ponham diante?

CAPÍTULO XLVI

Da notável aventura dos quadrilheiros, e a grande ferocidade de


nosso bom cavaleiro dom Quixote

Enquanto dom Quixote dizia isto, estava o padre persuadindo os


quadrilheiros de que dom Quixote era falto de juízo, como o viam por
suas obras e por suas palavras, e que não tinham para que levar aquele
negócio adiante, pois, embora o prendessem e levassem, logo o haviam
de soltar por ser louco; ao que respondeu o do mandamento que a ele
não tocava julgar a loucura de dom Quixote, senão fazer o que por seu
maior lhe era mandado, e que uma vez preso, que o soltassem
trezentas.
- Entretanto - disse o padre, - por esta vez não o haveis de levar,
nem ainda ele se deixará levar, ao que eu entendo.
Com efeito, tanto lhes soube o padre dizer, e tantas loucuras soube
dom Quixote fazer, que mais loucos que ele seriam os quadrilheiros se
não conhecessem a falta de dom Quixote; e assim, tiveram por bem
apaziguar-se, e ainda de ser medianeiros em fazer as pazes entre o
barbeiro e Sancho Pança, que continuavam com grande rancor sua
pendência. Finalmente, eles, como membros de justiça, mediaram a
causa e foram árbitros dela, de tal modo que ambas as partes ficaram,
se não de todo contentes, ao menos algo satisfeitas, porque se
trocaram as albardas, e não as cilhas e cabeçadas; e no que tocava ao
elmo de Mambrino, o padre, à socapa e sem que dom Quixote o
percebesse, lhe deu pela bacia oito reais, e o barbeiro lhe fez uma
cédula do recibo para não se ter o padre por enganado então, nem
para sempre jamais, amém.
Sossegadas, pois, estas duas pendências, que eram as mais
principais e de mais tomo, restava que os criados de dom Luís se
contentassem de voltar os três, e que um ficasse para acompanhá-lo
aonde dom Fernando o queria levar; e, como já a boa sorte e melhor
fortuna havia começado a romper lanças e a facilitar dificuldades em
favor dos amantes da estalagem e dos valentes dela, quis levá-lo ao
cabo e dar a tudo feliz sucesso, porque os criados se contentaram de
quanto dom Luís queria; de que recebeu tanto contentamento dona
Clara, que ninguém então a olharia no rosto que não conhecesse o
regozijo de sua alma.
Zoraida, embora não entendesse bem todos os sucessos que havia
visto, se entristecia e alegrava muito, conforme via e notava os
semblantes de cada um, especialmente de seu espanhol, em quem tinha
sempre postos os olhos e trazia pendurada a alma. O vendeiro, a quem
não se lhe passou por alto a dádiva e recompensa que o padre havia
feito ao barbeiro, pediu a paga de dom Quixote, com a perda de seus
couros e falta de vinho, jurando que não sairia da estalagem
Rocinante, nem o jumento de Sancho, sem que se lhe pagasse primeiro
até o último tostão. Tudo o apaziguou o padre, e o pagou dom
Fernando, posto que o ouvidor, de muito boa vontade, havia também
oferecido a paga; e de tal maneira ficaram todos em paz e sossego,
que já não parecia a estalagem a discórdia do campo de Agramante,
como dom Quixote havia dito, senão a mesma paz e quietude do tempo
de Otaviano; de tudo o que foi comum opinião que se deviam dar as
graças à boa intenção e muita eloquência do senhor padre e à
incomparável liberalidade de dom Fernando.
Vendo-se, pois, dom Quixote livre e desembaraçado de tantas
pendências, assim de seu escudeiro como suas, lhe pareceu que seria
bem seguir sua começada viagem e dar fim àquela grande aventura
para que havia sido chamado e escolhido; e assim, com resoluta
determinação se foi pôr de joelhos ante Doroteia, a qual não lhe
consentiu que falasse palavra até que se levantasse; e ele, por
obedecê-la, se pôs em pé e lhe disse:
- É comum provérbio, formosa senhora, que a diligência é mãe da
boa ventura, e em muitas e graves coisas mostrou a experiência que a
solicitude do negociante traz a bom fim o pleito duvidoso; mas em
nenhumas coisas se mostra mais esta verdade que nas da guerra, onde
a celeridade e presteza preveem os planos do inimigo, e alcança a
vitória antes que o contrário se ponha em defesa. Tudo isto digo, alta
e preciosa senhora, porque me parece que a estada nossa neste
castelo já é sem proveito, e poderia ser-nos de tanto dano que o
víssemos algum dia; porque, quem sabe se por ocultos espias e
diligentes haverá sabido já vosso inimigo o gigante de que eu vou
destruí-lo, e, dando-lhe lugar o tempo, se fortificasse em algum
inexpugnável castelo ou fortaleza contra quem valessem pouco minhas
diligências e a força de meu incansável braço? Assim que, senhora
minha, previnamos, como tenho dito, com nossa diligência seus
desígnios, e partamos logo à boa ventura; que não está mais de tê-la
vossa grandeza como deseja, de quanto eu tarde de ver-me com vosso
contrário.
Calou e não disse mais dom Quixote, e esperou com muito sossego a
resposta da formosa infanta; a qual, com ademã senhoril e acomodado
ao estilo de dom Quixote, lhe respondeu desta maneira:
- Eu vos agradeço, senhor cavaleiro, o desejo que mostrais ter de
favorecer-me em minha grande coita, bem assim que cavaleiro, a quem
é próprio e concernente favorecer os órfãos e necessitados; e queira
o céu que o vosso e meu desejo se cumpram, para que vejais que há
agradecidas mulheres no mundo. E no de minha partida, seja logo; que
eu não tenho mais vontade que a vossa: disponde de mim à toda vossa
vontade e talante; que a que uma vez vos entregou a defesa de sua
pessoa e pôs em vossas mãos a restauração de seus senhorios não há
de querer ir contra o que a vossa prudência ordenar.
- À mão de Deus - disse dom Quixote; - pois assim é que uma
senhora se humilha, não quero eu perder a ocasião de levantá-la e pô-
la em seu herdado trono. A partida seja logo, porque me vai pondo
esporas ao desejo e ao caminho o que costuma dizer-se que na
tardança está o perigo. E pois não criou o céu, nem viu o inferno,
nenhum que me espante nem acovarde, encilha, Sancho, Rocinante, e
aparelha teu jumento e o palafrém da rainha, e despeçamo-nos do
castelão e destes senhores, e vamos daqui logo ao ponto.
Sancho, que a tudo estava presente, disse, meneando a cabeça para
um lado e outro:
- Ai senhor, senhor, e como a coisa é pior do que parece, com
perdão seja dito das damas honradas!
- Que mal pode haver em nenhuma aldeia, nem em todas as cidades
do mundo, que possa soar em meu desdouro, vilão?
- Se vossa mercê se zanga - respondeu Sancho, - eu calarei, e
deixarei de dizer o que sou obrigado como bom escudeiro, e como
deve um bom criado dizer a seu senhor.
- Diz o que quiseres - replicou dom Quixote, - e que tuas palavras
não se encaminhem a pôr-me medo; que se tu o tens, fazes como quem
és, e se eu não o tenho, faço como quem sou.
- Não é isso, pecador fui eu a Deus! - respondeu Sancho, - senão que
eu tenho por certo e por averiguado que esta senhora que se diz ser
rainha do grande reino Micomicão não o é mais que minha mãe; porque,
a ser o que ela diz, não andaria beijocando algum dos que estão
conosco, aproveitando cada possível ocasião.
Corou Doroteia com as palavras de Sancho, porque era verdade que
seu esposo dom Fernando, alguma vez, a furto de outros olhos, havia
colhido com os lábios parte do prêmio que mereciam seus desejos, o
que havia visto Sancho, e parecendo-lhe que aquela desenvoltura mais
era de dama cortesã que de rainha de tão grande reino, e não pôde
nem quis responder palavra a Sancho, senão deixou-o prosseguir em
sua conversa, e ele foi dizendo:
- Isto digo, senhor, porque, se ao cabo de haver andado caminhos e
carreiras, e passado más noites e piores dias, há de vir a colher o
fruto de nossos trabalhos o que se está folgando nesta estalagem, não
há para que dar-me pressa a que encilhe a Rocinante, albarde o
jumento e prepare o palafrém, pois será melhor que estejamos
quedos, e cada puta faça como queira, e comamos.
Oh, valha-me Deus, e quão grande foi a ira que arrebatou dom
Quixote, ouvindo as descompostas palavras de seu escudeiro! Digo que
foi tanto, que, com voz atropelada e tartamuda língua, lançando vivo
fogo pelos olhos, disse:
- Oh velhaco vilão, malquisto, descomposto, ignorante, infacundo,
deslinguado, atrevido, murmurador e maldizente! Tais palavras
ousaste dizer em minha presença e na destas ínclitas senhoras, e tais
desonestidades e atrevimentos ousaste pôr em tua confusa
imaginação? Vai-te de minha presença, monstro de natureza,
depositário de mentiras, armário de embustes, silo de velhacarias,
inventor de maldades, publicador de sandices, inimigo do decoro que
se deve às reais pessoas! Vai-te; não apareças diante de mim, sob pena
de minha ira!
E dizendo isto, arqueou as sobrancelhas, inflou as bochechas, olhou
para todos os lados, e deu com o pé direito uma grande patada no
chão, sinais todas da ira que encerrava em suas entranhas. A cujas
palavras e furibundos ademanes ficou Sancho tão encolhido e
medroso, que folgaria se naquele instante a terra se abrisse debaixo
de seus pés e o tragasse. E não soube que fazer, senão voltar as
costas e tirar-se da irada presença de seu senhor. Mas a discreta
Doroteia, que tão entendido tinha já o humor de dom Quixote, disse,
para amainar-lhe a ira:
- Não vos despeiteis, senhor cavaleiro da Triste Figura, com as
sandices que vosso bom escudeiro disse, porque quiçá não as deve
dizer sem motivo, nem de seu bom entendimento e cristã consciência
se pode suspeitar que levante testemunho a ninguém; e assim, se há de
crer, sem pôr dúvida nele, que, como neste castelo, segundo vós,
senhor cavaleiro, dizeis, todas as coisas vão e sucedem por modo de
encantamento, poderia ser, digo, que Sancho houvesse visto por esta
diabólica via o que ele diz que viu, tão em ofensa de minha
honestidade.
- Pelo onipotente Deus juro - disse então dom Quixote, - que a
vossa grandeza acertou, e que alguma má visão se pôs
diante deste pecador de Sancho, que o fez ver o que seria impossível
ver-se de outro modo que pelo de encantos não fosse; que sei eu bem
da bondade e inocência deste desditado, que não sabe levantar
testemunhos a ninguém.
- Assim é e assim será - disse dom Fernando; - pelo que deve vossa
mercê, senhor dom Quixote, perdoá-lo e reconduzi-lo ao grêmio de
sua graça, “sicut erat in principio”, antes que as tais visões lhe
tirassem o juízo.
Dom Quixote respondeu que ele o perdoava, e o padre foi buscar
Sancho, o qual veio muito humilde, e, ficando de joelhos, pediu a mão a
seu amo; e ele a deu, e, depois de haver-se deixado beijar, lhe deu a
bênção, dizendo:
- Agora acabarás de conhecer, Sancho filho, ser verdade o que eu
outras muitas vezes te disse de que todas as coisas deste castelo são
feitas por via de encantamento.
- Assim o creio eu - disse Sancho, - exceto aquilo da manta, que
realmente sucedeu por via ordinária.
- Não o creias - respondeu dom Quixote; - que se assim fosse, eu te
vingaria então, e ainda agora; mas nem então nem agora pude nem vi
em quem tomar vingança de teu agravo.
Desejaram saber todos o que era aquilo da manta, e o vendeiro o
contou, ponto por ponto: o voo de Sancho Pança, de que não pouco se
riram todos, e de que não menos se vexaria Sancho, se de novo não o
assegurasse seu amo que era encantamento; posto que jamais chegou a
sandice de Sancho a tanto, que cresse não ser verdade pura e
averiguada, sem mescla de engano algum, o de haver sido manteado
por pessoas de carne e osso, e não por fantasmas sonhados nem
imaginados, como seu senhor o cria e afirmava.
Dois dias eram já passados os que havia que toda aquela ilustre
companhia estava na estalagem; e, parecendo-lhes que já era tempo de
partir, deram ordem para que, sem pôr-se ao trabalho de voltar
Doroteia e dom Fernando com dom Quixote à sua aldeia, com a
invenção da liberdade da rainha Micomicona, pudessem o padre e o
barbeiro levá-lo, como desejavam, e procurar a cura de sua loucura em
sua terra. E o que fizeram foi que combinaram com um carreteiro de
bois que acaso acertou de passar por ali, para que o levasse nesta
forma: fizeram uma como jaula gradeada, capaz de nela caber
folgadamente dom Quixote; e logo dom Fernando e seus camaradas,
com os criados de dom Luís e os quadrilheiros, juntamente com o
vendeiro, todos por ordem e parecer do padre, cobriram os rostos e
se disfarçaram, quem de uma maneira e quem de outra, de modo que a
dom Quixote parecesse ser outra gente que a que naquele castelo
havia visto.
Feito isto, com grandíssimo silêncio entraram onde ele estava
dormindo e descansando das passadas refregas. Chegaram-se a ele,
que livre e seguro de tal acontecimento dormia, e, agarrando-o
fortemente, lhe amarraram muito bem as mãos e os pés, de modo que,
quando ele despertou com sobressalto, não pôde mexer-se, nem fazer
outra coisa mais que admirar-se e suspender-se de ver diante de si
tão estranhas visagens; e logo deu conta do que sua contínua e
desvairada imaginação lhe representava, e acreditou que todas aquelas
figuras eram fantasmas daquele encantado castelo, e que, sem dúvida
alguma, já estava encantado, pois não se podia mexer nem defender:
tudo como havia pensado que sucederia o padre, traçador desta
máquina. Só Sancho, de todos os presentes, estava em seu mesmo
juízo e em sua mesma figura; o qual, embora lhe faltava bem pouco
para ter a mesma enfermidade de seu amo, não deixou de conhecer
quem eram todas aquelas disfarçadas figuras; mas não ousou descoser
sua boca, até ver em que dava aquele assalto e prisão de seu amo, o
qual tampouco falava palavra, esperando para ver o paradeiro de sua
desgraça; que foi que, trazendo ali a jaula, o encerraram dentro, e lhe
cravaram os madeiros tão fortemente que não se poderiam romper a
trancos.
Tomaram-na logo aos ombros, e, ao sair do aposento, se ouviu uma
voz amedrontadora, tanto quanto a soube compor o barbeiro, não o da
albarda, mas o outro, que dizia:
- Oh Cavaleiro da Triste Figura! Não te dê angústia a prisão em
que vais, porque assim convém para acabar mais depressa a aventura
em que teu grande esforço te pôs; a qual se acabará quando o
furibundo leão manchado com a branca pomba tobosina juntarem-se
em um, já depois de humilhadas as altas cervizes ao brando jugo
matrimonial; de cujo inaudito consórcio sairão à luz do orbe os bravos
filhotes, que imitarão as rompantes garras do valoroso pai. E isto será
antes que o seguidor da fugitiva ninfa faça duas vezes a visita das
luzentes imagens com seu rápido e natural curso. E tu, oh, o mais
nobre e obediente escudeiro que teve espada na cintura, barbas no
rosto e olfato nas nariz!, não te desmaie nem descontente ver levar
assim diante de teus olhos mesmos a flor da cavalaria andante; que
logo, se ao plasmador do mundo lhe apraz, te verás tão alto e tão
sublimado que não te conheças, e não sairão defraudadas as
promessas que te fez teu bom senhor. E asseguro-te, de parte da
sábia Mentironiana, que teu salário te seja pago, como o verás de fato;
e segue as pisadas do valoroso e encantado cavaleiro, que convém que
vás onde pareis ambos. E porque não me é lícito dizer outra coisa, com
Deus ficai, que eu volto para onde eu sei.
E ao acabar da profecia, elevou a voz um tom acima, e diminuiu-a
depois, com tão terno acento, que ainda os sabedores da burla
estiveram por crer que era verdade o que ouviam.
Ficou dom Quixote consolado com a escutada profecia, porque logo
entendeu de todo em todo a significação dela; e viu que lhe prometiam
o ver-se ajuntado em santo e devido matrimônio com sua querida
Dulcineia do Toboso, de cujo feliz ventre sairiam os filhotes, que eram
seus filhos, para glória perpétua da Mancha. E crendo isto bem e
firmemente, alçou a voz e, dando um grande suspiro, disse:
- Oh tu, quem quer que sejas, que tanto bem me hás prognosticado!
Rogo-te que peças de minha parte ao mago encantador que minhas
coisas tem a cargo, que não me deixe perecer nesta prisão onde agora
me levam, até ver cumpridas tão alegres e incomparáveis promessas
como são as que aqui me fizeram; que, como isto seja, terei por glória
as penas de meu cárcere, e por alívio estas correntes que me cingem,
e não por duro campo de batalha este leito em que me deitam, senão
por cama branda e tálamo ditoso. E no que toca à consolação de
Sancho Pança, meu escudeiro, eu confio em sua bondade e bom
proceder que não me deixará em boa nem em má sorte; porque, quando
não suceda, pela sua ou por minha pequena ventura, o poder-lhe eu dar
a ilha, ou outra coisa equivalente que lhe tenho prometida, pelo menos
seu salário não poderá perder-se; que em meu testamento, que já está
feito, deixo declarado o que se lhe há de dar, não conforme a seus
muitos e bons serviços, senão à possibilidade minha.
Sancho Pança se lhe inclinou com muito comedimento, e lhe beijou
ambas as mãos, porque uma só não poderia, por estarem atadas ambas.
Logo tomaram a jaula aos ombros aquelas visões, e a acomodaram no
carro dos bois.

CAPÍTULO XLVII

Do estranho modo com que foi encantado dom Quixote da Mancha,


com outros famosos sucessos
Quando dom Quixote se viu daquela maneira enjaulado e em cima do
carro, disse:
- Muitas e muito graves histórias eu li de cavaleiros andantes, mas
jamais li, nem vi, nem ouvi, que aos cavaleiros encantados os levem
desta maneira e com o vagar que prometem estes preguiçosos e
tardios animais; porque sempre os costumam levar pelos ares, com
estranha ligeireza, encerrados em alguma parda e escura nuvem, ou
em algum carro de fogo, ou já sobre algum hipogrifo ou outra besta
semelhante; mas que me levem agora sobre um carro de bois, vive
Deus que me põe em confusão! Mas quiçá a cavalaria e os encantos
destes nossos tempos devem seguir outro caminho que seguiram os
antigos. E também poderia ser que, como eu sou novo cavaleiro no
mundo, e o primeiro que ressuscitou o já olvidado exercício da
cavalaria aventureira, também novamente se inventaram outros
gêneros de encantamentos e outros modos de levar os encantados.
Que te parece isto, Sancho filho?
- Não sei eu o que me parece - respondeu Sancho, - por não ser tão
lido como vossa mercê nas escrituras andantes; entretanto, ousaria
afirmar e jurar que estas visões que por aqui andam não são de todo
católicas.
- Católicas? Meu pai! - respondeu dom Quixote. - Como hão de ser
católicas se são todos demônios que tomaram corpos fantásticos para
vir a fazer isto e a pôr-me neste estado? E se queres ver esta
verdade, toca-os e palpa-os, e verás que não têm corpo senão de ar e
que este não consiste mais que aparência.
- Por Deus, senhor - replicou Sancho, - já eu os toquei; e este diabo
que aqui anda tão solícito é roliço de carnes e tem outra propriedade
muito diferente da que eu ouvi dizer que têm os demônios; porque,
segundo se diz, todos cheiram a enxofre e a outros maus odores, mas
este cheira a âmbar a meia légua.
Dizia isto Sancho por dom Fernando, que, como tão senhor, devia
cheirar ao que Sancho dizia.
- Não te maravilhes disso, Sancho amigo - respondeu dom Quixote,
- porque te faço saber que os diabos sabem muito, e, posto que
tragam odores consigo, eles não cheiram a nada, porque são espíritos,
e se cheiram, não podem cheirar a coisas boas, senão más e hediondas.
E a razão é que eles, onde quer que estejam, trazem o inferno consigo,
e não podem receber gênero de alívio algum em seus tormentos, e o
bom cheiro seja coisa que deleita e contenta, não é possível que eles
cheirem a coisa boa. E se te parece que esse demônio que dizes cheira
a âmbar, ou tu te enganas, ou ele quer enganar-te ao fazer que não o
tenhas por demônio.
Todos estes colóquios se passaram entre amo e criado; e, temendo
dom Fernando e Cardênio que Sancho não viesse a cair de todo na
conta de sua invenção, pois estava a ponto de desvendá-la, decidiram
abreviar a partida, e, chamando à parte o vendeiro, lhe ordenaram que
encilhasse Rocinante e albardasse o jumento de Sancho, o qual o fez
com muita presteza.
Já nisto o padre havia combinado com os quadrilheiros que o
acompanhassem até seu lugar, dando-lhes um tanto cada dia. Cardênio
pendurou do arção da sela de Rocinante, de um lado o escudo e do
outro a bacia, e por sinais mandou a Sancho que subisse em seu asno e
tomasse das rédeas a Rocinante, e pôs aos dois lados do carro os dois
quadrilheiros com suas escopetas. Mas, antes que se movesse o carro,
saiu a vendeira, sua filha e Maritornes a despedir-se de dom Quixote,
fingindo que choravam de dor por sua desgraça; a quem dom Quixote
disse:
- Não choreis, minhas boas senhoras, que todas estas desditas são
anexas aos que professam o que eu professo; e se estas calamidades
não me acontecessem, não me teria eu por famoso cavaleiro andante;
porque aos cavaleiros de pouco nome e fama nunca lhes sucedem
semelhantes casos, porque não há no mundo quem se recorde deles.
Aos valorosos sim, que têm invejosos de sua virtude e valentia em
muitos príncipes e muitos outros cavaleiros, que procuram por más
vias destruir os bons. Mas, assim, a virtude é tão poderosa que, por si
só, apesar de toda a nigromância que teve seu primeiro inventor,
Zoroastro, sairá vencedora de todo transe, e dará de si luz no mundo,
como a dá o sol no céu. Perdoai-me, formosas damas, se algum agravo,
por descuido meu, vos fiz, que, por vontade e conhecimento, jamais dei
a ninguém; e rogai a Deus me tire destas prisões, onde algum mal
intencionado encantador me pôs; que se delas me vejo livre, não me
sairão da memória as mercês que neste castelo me fizestes, para
gratificá-las, servi-las e recompensá-las como elas merecem.
Enquanto as damas do castelo isto passavam com dom Quixote, o
padre e o barbeiro se despediram de dom Fernando e seus camaradas,
e do capitão e de seu irmão e todas aquelas contentes senhoras,
especialmente de Doroteia e Lucinda. Todos se abraçaram e ficaram
de dar-se notícia de seus sucessos, dizendo dom Fernando ao padre
onde havia de escrever-lhe para avisá-lo do que acontecesse a dom
Quixote, assegurando-lhe que não haveria coisa que mais gosto lhe
desse que sabê-lo; e que ele, também, o avisaria de tudo aquilo que ele
visse que poderia dar-lhe gosto, assim de seu casamento como do
batismo de Zoraida, e sucesso de dom Luís, e volta de Lucinda a sua
casa. O padre ofereceu-se a fazer quanto se lhe mandava, com toda
pontualidade. Tornaram a abraçar-se outra vez, e outra vez tornaram
a novos oferecimentos.
O vendeiro se chegou ao padre e lhe deu uns papéis, dizendo-lhe que
os havia achado num forro da maleta onde se achou a Novela do
Curioso impertinente, e que, como seu dono não havia voltado mais por
ali, que os levasse todos; e como ele não sabia ler, não os queria. O
padre lhe agradeceu, e, abrindo-os logo, viu que ao princípio do escrito
dizia: Novela de Rinconete e Cortadillo, por onde entendeu ser alguma
novela e presumiu que, como a do Curioso impertinente havia sido boa,
também o seria aquela, pois poderia ser fossem todas de um mesmo
autor; e, assim, a guardou, com pressuposto de lê-la quando tivesse
comodidade.
Subiu a cavalo, e também seu amigo o barbeiro, com suas máscaras,
para que não fossem logo reconhecidos por dom Quixote, e puseram-
se a caminhar atrás do carro. E a ordem que seguiam era esta: ia
primeiro o carro, guiando-o seu dono; aos dois lados iam os
quadrilheiros, como se disse, com suas escopetas; seguia logo Sancho
Pança sobre seu asno, levando pela rédea a Rocinante. Atrás de tudo
isto iam o padre e o barbeiro sobre suas poderosas mulas, cobertos os
rostos, como se disse, com grave e repousada postura, não caminhando
mais do que permitia o passo tardo dos bois. Dom Quixote ia sentado
na jaula, as mãos amarradas, estendidos os pés, e arrimado às
cancelas, com tanto silêncio e tanta paciência como se não fosse
homem de carne, mas estátua de pedra.
E assim, com aquele vagar e silêncio caminharam até duas léguas,
quando chegaram a um vale, onde pareceu ao boieiro ser lugar
acomodado para repousar e dar pasto aos bois; e, dizendo-o ao padre,
foi de parecer o barbeiro que caminhassem um pouco mais, porque ele
sabia que atrás de um declive que perto dali se mostrava havia um vale
de mais erva e muito melhor que aquele onde queriam parar. Tomou-se
o parecer do barbeiro, e assim, tornaram a prosseguir seu caminho.
Nisto, voltou o padre o rosto, e viu que a suas costas vinham até
seis ou sete homens a cavalo, bem postos e adereçados, pelos quais
foram logo alcançados, porque caminhavam não com a fleugma e
repouso dos bois, senão como quem ia sobre mulas de cônegos e com
desejo de chegar logo a sestear na estalagem, que estava a menos de
uma légua dali. Chegaram os diligentes aos preguiçosos e saudaram-se
cortesmente; e um dos que vinham, que, certamente, era cônego de
Toledo e senhor dos demais que o acompanhavam, vendo a concertada
procissão do carro, quadrilheiros, Sancho, Rocinante, padre e
barbeiro, e mais dom Quixote, enjaulado e aprisionado, não pôde
deixar de perguntar que significava levar aquele homem daquela
maneira, embora já se houvesse dado a entender, vendo as insígnias
dos quadrilheiros, que devia ser algum facinoroso salteador, ou outro
delinquente cujo castigo tocasse à Santa Irmandade. Um dos
quadrilheiros, a quem foi feita a pergunta, respondeu assim:
- Senhor, o que significa ir este cavaleiro desta maneira, diga-o ele,
porque nós não o sabemos.
Ouviu dom Quixote a conversa, e disse:
- Por acaso vossas mercês, senhores cavaleiros, são versados e
peritos nisto da cavalaria andante? Porque se o são, contarei aos
senhores minhas desgraças, e se não, não há para que me canse em
dizê-las.
Já então haviam já chegado o padre e o barbeiro, vendo que os
caminhantes estavam em conversas com dom Quixote da Mancha, para
responder de modo que não fosse descoberto seu artifício.
O cônego, ao que dom Quixote disse, respondeu:
- Em verdade, irmão, que sei mais de livros de cavalarias que das
Súmulas de Villalpando. Assim que, se não está mais que nisto,
seguramente podeis dizer-me o que quiserdes.
- À mão de Deus - replicou dom Quixote. - Se assim é, quero,
senhor cavaleiro, que saibais que eu vou encantado nesta jaula, por
inveja e fraude de maus encantadores; que a virtude mais é
perseguida dos maus que amada dos bons. Cavaleiro andante sou, e não
daqueles de cujos nomes jamais a fama se lembrou para eternizá-los
em sua memória, senão daqueles que, a despeito e pesar da mesma
inveja, e de quantos magos criou a Pérsia, brâmanes a Índia,
gimnosofistas a Etiópia, há de pôr seu nome no templo da imortalidade
para que sirva de exemplo e modelo nos vindouros séculos, onde os
cavaleiros andantes vejam os passos que hão de seguir, se quiserem
chegar ao cume e altura honrosa das armas.
- Diz a verdade o senhor dom Quixote da Mancha - disse então o
padre; - que ele vai encantado nesta carreta, não por suas culpas e
pecados, senão pela má intenção daqueles a quem a virtude enfada e a
valentia enoja. Este é, senhor, o Cavaleiro da Triste Figura, se já o
ouvistes nomear em algum tempo, cujas valorosas façanhas e grandes
feitos serão escritas em bronzes duros e em eternos mármores, por
mais que se canse a inveja em escurecê-los e a malícia em ocultá-los.
Quando o cônego ouviu falar o preso e o livre em semelhante estilo,
esteve por benzer-se, admirado, e não podia saber o que lhe havia
acontecido; e na mesma admiração estavam todos os que com ele
vinham. Nisto, Sancho Pança, que se havia acercado a ouvir a conversa,
para resolver tudo, disse:
- Agora, senhores, queiram-me bem ou queiram-me mal pelo que
disser, o caso é que assim vai encantado meu senhor dom Quixote
como minha mãe; ele tem seu inteiro juízo, ele come e bebe e faz suas
necessidades como os demais homens, e como as fazia ontem, antes
que o enjaulassem. Sendo isto assim, como querem fazer-me entender
que vai encantado? Pois eu ouvi dizer a muitas pessoas que os
encantados nem comem, nem dormem, nem falam, e meu amo, se não o
interrompem, falará mais que trinta procuradores.
E voltando-se para olhar o padre, prosseguiu dizendo:
- Ah senhor padre, senhor padre! Pensava vossa mercê que não o
reconheço, e pensará que eu não percebo e adivinho aonde se
encaminham estes novos encantamentos? Pois saiba que o reconheço,
por mais que encubra o rosto, e saiba que o entendo, por mais que
dissimule seus embustes. Enfim, onde reina a inveja não pode viver a
virtude, nem onde há escassez a liberalidade. Mal haja o diabo!; que,
se não fosse por sua reverência, esta seria já a hora que meu senhor
estivesse casado com a infanta Micomicona, e eu seria conde, pelo
menos, pois não se podia esperar outra coisa, assim da bondade de
meu senhor o da Triste Figura como da grandeza de meus serviços.
Mas já vejo que é verdade o que se diz por aí: que a roda da fortuna
anda mais depressa que uma roda de moinho, e que os que ontem
estavam colocados no mais alto hoje estão pelo chão. Por meus filhos e
por minha mulher tenho pesar, pois quando podiam e deviam esperar
ver entrar seu pai por suas portas feito governador ou vice-rei de
alguma ilha ou reino, o verão entrar feito moço de cavalos. Tudo isto
que disse, senhor padre, não é mais que por encarecer a sua
paternidade faça consciência do mau tratamento que a meu senhor se
faz, e veja bem não lhe peça Deus na outra vida esta prisão de meu
amo, e se lhe faça cargo de todos aqueles socorros e bens que meu
senhor dom Quixote deixa de fazer neste tempo que está preso.
- Iluminai-me! - disse então o barbeiro. - Também vós, Sancho, sois
da confraria de vosso amo? Vive o Senhor, que vou vendo que haveis
de fazer-lhe companhia na jaula, e que haveis de ficar tão encantado
como ele, pelo que vos toca de seu humor e de sua cavalaria! Em má
hora vos emprenhastes de suas promessas e vos entrou na cachola a
ilha que tanto desejais.
- Eu não estou prenhe de ninguém - respondeu Sancho, - nem sou
homem que me deixaria emprenhar, do rei que fosse; e, embora pobre,
sou cristão velho, e não devo nada a ninguém; e se ilhas desejo, outros
desejam outras coisas piores; e cada um é filho de suas obras; e,
debaixo de ser homem, posso vir a ser papa, quanto mais governador
de uma ilha, e mais podendo ganhar tantas meu senhor que lhe falte a
quem dá-las. Vossa mercê veja como fala, senhor barbeiro; que não é
tudo fazer barbas, e algo vai de Pedro a Pedro. Digo-o porque todos
nos conhecemos, e a mim não se há de dar dado falso. E nisto do
encanto de meu amo, Deus sabe a verdade; e fique aqui, porque é pior
mexer nisso.
Não quis o barbeiro responder a Sancho, para que não descobrisse
com suas simplicidades o que ele e o padre tanto procuravam encobrir;
e, por este mesmo temor, havia o padre dito ao cônego que
caminhassem um pouco adiante: que ele lhe diria o mistério do
enjaulado, com outras coisas que lhe dessem gosto. Fê-lo assim o
cônego, e adiantou-se com seus criados e com ele: esteve atento a
tudo aquilo que quis dizer-lhe da condição, vida, loucura e costumes de
dom Quixote, contando-lhe brevemente o princípio e causa de seu
desvario, e todo o progresso de seus sucessos, até havê-lo posto
naquela jaula, e o desígnio que tinham de levá-lo à sua terra, para ver
se por algum meio achavam remédio para sua loucura. Admiraram-se
de novo os criados e o cônego de ouvir a peregrina história de dom
Quixote, e, acabando-a de ouvir, disse:
- Verdadeiramente, senhor padre, eu acho por minha conta que são
prejudiciais na república estes que chamam livros de cavalarias; e,
embora tenha lido, levado por um ocioso e falso gosto, quase o
princípio de todos os mais que há impressos, jamais pude ler nenhum
do princípio ao fim, porque me parece que, qual mais, qual menos, todos
eles são uma mesma coisa, e não tem mais este que aquele, nem este
outro que o outro. E segundo me parece, este gênero de escritura e
composição cai debaixo daquele das fábulas que chamam de Mileto,
que são contos disparatados, que atendem somente a deleitar, e não a
ensinar, ao contrário do que fazem as fábulas apólogas, que deleitam e
ensinam juntamente. E posto que o principal intento de semelhantes
livros seja o deleitar, não sei eu como possam consegui-lo, indo cheios
de tantos e tão desaforados disparates; que o deleite que na alma se
concebe há de ser da formosura e concordância que vê ou contempla
nas coisas que a vista ou a imaginação lhe põem diante; e toda coisa
que tem em si fealdade e descompostura não nos pode causar
contentamento algum. Pois, que formosura pode haver, ou que
proporção de partes com o todo e do todo com as partes, num livro ou
fábula onde um moço de dezesseis anos dá uma cutilada num gigante
como uma torre, e o divide em duas metades, como se fosse de massa
de açúcar, e que, quando nos querem pintar uma batalha, depois de
haver dito que há da parte dos inimigos um milhão de combatentes,
como seja contra eles o senhor do livro, forçosamente, mal que nos
pese, havemos de entender que o tal cavaleiro alcançou a vitória por
só o valor de seu forte braço? Pois, que diremos da facilidade com que
uma rainha ou imperatriz herdeira se conduz nos braços de um
andante e não conhecido cavaleiro? Que engenho, se não é de todo
bárbaro e inculto, poderá contentar-se lendo que uma grande torre
cheia de cavaleiros vai pelo mar adiante, como nave com próspero
vento, e hoje anoitece em Lombardia, e amanhã amanheça em terras
do Preste João das Índias, ou em outras que nem as descobriu
Ptolomeu nem as viu Marco Polo? E se a isto se me respondesse que os
que tais livros compõem os escrevem como coisas de mentira, e que
assim, não estão obrigados a olhar em delicadezas nem verdades,
responder-lhes-ia eu que tanto a mentira é melhor quanto mais parece
verdadeira, e tanto mais agrada quanto tem mais do duvidoso e
possível. Hão-se de casar as fábulas mentirosas com o entendimento
dos que as lerem, escrevendo-se de sorte que, facilitando os
impossíveis, aplanando as grandezas, suspendendo os ânimos, admirem,
suspendam, alvorocem e entretenham, de modo que andem a um mesmo
passo a admiração e a alegria juntas; e todas estas coisas não poderá
fazer o que fugir da verossimilhança e da imitação, em que consiste a
perfeição do que se escreve. Não vi nenhum livro de cavalarias que
faça um corpo de fábula inteiro com todos os seus membros, de
maneira que o meio corresponda ao princípio, e o fim ao princípio e ao
meio; senão que os compõem com tantos membros, que mais parece
que levam intenção de formar uma quimera ou um monstro que de
fazer uma figura proporcionada. Fora disto, são no estilo duros; nas
façanhas, incredíveis; nos amores, lascivos; nas cortesias, malvistos;
largos nas batalhas, néscios nas razões, disparatados nos viagens, e,
finalmente, alheios de todo discreto artifício, e por isto dignos de ser
desterrados da república cristã, como as pessoas inúteis.
O padre o esteve escutando com grande atenção, e pareceu-lhe
homem de bom entendimento, e que tinha razão em quanto dizia; e
assim, disse-lhe que, por ser ele de sua mesma opinião e ter ojeriza
aos livros de cavalarias, havia queimado todos os de dom Quixote, que
eram muitos. E contou-lhe o escrutínio que deles havia feito, e os que
havia condenado ao fogo e deixado com vida, de que não pouco se riu o
cônego, e disse que, com tudo quanto de mau havia dito de tais livros,
achava neles uma coisa boa: que era o assunto que ofereciam para que
um bom entendimento pudesse mostrar-se neles, porque davam largo e
espaçoso campo por onde sem pejo algum pudesse correr a pena,
descobrindo naufrágios, tormentas, combates e batalhas; pintando um
capitão valoroso com todas as qualidades que para ser tal se
requerem, mostrando-se prudente prevenindo as astúcias de seus
inimigos, e eloquente orador persuadindo ou dissuadindo seus
soldados, maduro no conselho, presto no determinado, tão valente no
esperar como no acometer; pintando ora um lamentável e trágico
sucesso, agora um alegre e não pensado acontecimento; ali uma
formosíssima dama, honesta, discreta e recatada; aqui um cavaleiro
cristão, valente e comedido; acolá um desaforado bárbaro fanfarrão;
aqui um príncipe cortês, valoroso e bem visto; representando bondade
e lealdade de vassalos, grandezas e mercês de senhores. Já pode
mostrar-se astrólogo, já cosmógrafo excelente, já músico, já
inteligente nas matérias de estado, e talvez lhe virá ocasião de
mostrar-se nigromante, se quiser. Pode mostrar as astúcias de
Ulisses, a piedade de Eneias, a valentia de Aquiles, as desgraças de
Heitor, as traições de Sinon, a amizade de Euriálio, a liberalidade de
Alexandre, o valor de César, a clemência e verdade de Trajano, a
fidelidade de Zópiro, a prudência de Catão; e, finalmente, todas
aquelas ações que podem fazer perfeito um varão ilustre, agora
pondo-as em um só, agora dividindo-as em muitos.
- E sendo isto feito com aprazibilidade de estilo e com engenhosa
invenção, que tire o mais que for possível à verdade, sem dúvida
comporá uma tela tecida de vários e formosos laços, que, depois de
acabada, tal perfeição e formosura mostre, que consiga o fim melhor
que se pretende nos escritos, que é ensinar e deleitar juntamente,
como já tenho dito. Porque a escritura desatada destes livros dá lugar
a que o autor possa mostrar-se épico, lírico, trágico, cômico, com
todas aquelas partes que encerram em si as dulcíssimas e agradáveis
ciências da poesia e da oratória; que a épica também pode escrever-se
em prosa como em verso.

CAPÍTULO XLVIII
Onde prossegue o cônego a matéria dos livros de cavalarias, com
outras coisas dignas de seu engenho

- Assim é como vossa mercê diz, senhor cônego - disse o padre, - e


por esta causa são mais dignos de repreensão os que até aqui
compuseram semelhantes livros sem ter advertência a nenhum bom
argumento, nem à arte e regras por onde poderiam guiar-se e fazer-
se famosos em prosa, como o são em verso os dois príncipes da poesia
grega e latina.
- Eu, ao menos - replicou o cônego, - tive certa tentação de fazer
um livro de cavalarias, guardando nele todos os pontos que
assinalei; e se hei de confessar a verdade, tenho escritas mais de cem
folhas. E para fazer a experiência de se correspondiam a minha
estimação, as compartilhei com homens apaixonados por este gênero,
doutos e discretos, e com outros ignorantes, que só atendem ao gosto
de ouvir disparates, e de todos achei uma agradável aprovação; mas,
então, não prossegui adiante, assim por parecer-me que faço coisa
alheia à minha profissão, como por ver que é maior o número dos
simples que dos prudentes; e que, posto que é melhor ser louvado
pelos poucos sábios que burlado pelos muitos néscios, não quero
sujeitar-me ao confuso juízo do desvanecido vulgo, a quem pela maior
parte toca ler semelhantes livros. Mas o que mais me tirou das mãos, e
ainda do pensamento, em acabá-lo, foi um argumento que fiz comigo
mesmo, tirado das comédias que agora se representam, dizendo: “Se
estas que agora se usam, assim as imaginadas como as de história,
todas ou as mais são conhecidos disparates e coisas que não levam pés
nem cabeça, e, mesmo assim, o vulgo as ouve com gosto, e as tem e as
aprova por boas, estando tão longe de sê-lo, e os autores que as
compõem e os atores que as representam dizem que assim hão de ser,
porque assim as quer o vulgo, e não de outra maneira; e que as que têm
manha e seguem a fábula como a arte pede, não servem senão para
quatro discretos que as entendem, e todos os demais ficam jejunos de
entender seu artifício, e que a eles lhes está melhor ganhar de comer
com os muitos, que não opinião com os poucos, deste modo virá a ser
um livro, ao cabo de haver-me queimado as sobrancelhas por guardar
os preceitos referidos, e virei a ser o alfaiate da esquina.” E embora
algumas vezes procurei persuadir aos atores que se enganam em ter a
opinião que têm, e que mais gente atrairão e mais fama terão
representando comédias que façam a arte que não com as
disparatadas, e estão tão presos e incorporados em seu parecer, que
não há razão nem evidência que dele os tire. Recordo-me de que um
dia disse a um destes pertinazes: “Dizei-me, não vos recordais que há
poucos anos que se representaram na Espanha três tragédias que um
famoso poeta destes reinos compôs, as quais foram tais, que
admiraram, alegraram e suspenderam a todos quantos as ouviram,
assim simples como prudentes, assim do vulgo como dos escolhidos, e
deram mais dinheiros aos representantes elas três sozinhas que trinta
das melhores que depois aqui se fizeram?” “Sem dúvida - respondeu o
autor que digo, - que deve dizer vossa mercê sobre A Isabela, A Filis
e A Alejandra”. “Essas digo - lhe repliquei eu; - e vede se guardavam
bem os preceitos da arte, e se por guardá-los deixaram de parecer o
que eram e de agradar a todo mundo. Assim que não está a falta no
vulgo, que pede disparates, senão naqueles que não sabem representar
outra coisa. Sim, que não foi disparate A ingratidão vingada, nem o
teve A Numância, nem se lhe achou na de O Mercador amante, nem
menos em A inimiga favorável, nem em outras algumas que por alguns
entendidos poetas foram compostas, para fama e renome seu, e para o
ganho dos que as representaram”. E outras coisas acrescentei a estas,
com que, a meu parecer, deixei-o algo confuso, mas não satisfeito nem
convencido para tirá-lo de seu errado pensamento.
- Vossa mercê tocou em assunto, senhor cônego - disse então o
padre, - que despertou em mim um antigo rancor que tenho pelas
comédias que agora se usam, tal, que iguala ao que tenho pelos livros
de cavalarias; porque, havendo de ser a comédia, segundo parece a
Túlio, espelho da vida humana, exemplo das costumes e imagem da
verdade, as que agora se representam são espelhos de disparates,
exemplos de necedades e imagens de lascívia. Porque, que maior
disparate pode haver no assunto que tratamos que sair um menino em
fraldas na primeira cena do primeiro ato, e na segunda sair já feito
homem barbado? E que maior que pintar-nos um velho valente e um
moço covarde, um lacaio retórico, um pajem conselheiro, um rei ganha-
pão e uma princesa faxineira? Que direi, pois, da observância que
guardam nos tempos em que podem ou podiam suceder as ações que
representam, senão que vi comédia em que a primeira jornada começou
na Europa, a segunda na Asia, a terceira se acabou na África, e se
assim fosse de quatro jornadas, a quarta acabaria na América, e assim
se houvesse feito em todas as quatro partes do mundo? E se
é que a imitação é o principal que há de ter a comédia, como é
possível que satisfaça a nenhum mediano entendimento que, fingindo
uma ação que passa em tempo do rei Pepino e Carlos Magno, o mesmo
que nela faz a pessoa principal lhe atribuam que foi o imperador
Heráclio, que entrou com a Cruz em Jerusalém, e o que conquistou a
Casa Santa, como Godofredo de Bulhão, havendo infinitos anos de um
ao outro; e fundando-se a comédia sobre coisa fingida, atribuir-lhe
verdades de história, e misturar-lhe pedaços de outras sucedidas a
diferentes pessoas e tempos, e isto, não com manhas verossímeis,
senão com patentes erros em tudo inescusáveis? E é o mau que há
ignorantes que digam que isto é o perfeito, e que o demais é buscar
esquisitices. E se nos voltamos às comédias divinas? Quantos milagres
falsos fingem nelas, quantas coisas apócrifas e mal entendidas,
atribuindo a um santo os milagres de outro! E ainda nas humanas se
atrevem a fazer milagres, sem mais respeito nem consideração que
parecer-lhes que ali estará bem o tal milagre e aparência, como eles
chamam, para que gente ignorante se admire e venha à comédia; que
tudo isto é em prejuízo da verdade e em menoscabo das histórias, e
ainda em opróbrio dos engenhos espanhóis; porque os estrangeiros,
que com muita pontualidade guardam as leis da comédia, nos têm por
bárbaros e ignorantes, vendo os absurdos e disparates das que
fazemos. E não seria bastante desculpa disto dizer que o principal
intento que as repúblicas bem ordenadas têm, permitindo que se
façam públicas comédias, é para entreter a comunidade com alguma
honesta recreação, e diverti-la às vezes dos maus humores que
costuma engendrar a ociosidade; e que, pois isto se consegue com
qualquer comédia, boa ou má, não há para que pôr leis, nem obrigar os
que as compõem e representam a que as façam como deviam fazer-se,
pois, como disse, com qualquer se consegue o que com elas se
pretende. A que responderia eu que este fim se conseguiria muito
melhor, sem comparação alguma, com as comédias boas que com as não
tais; porque, de haver ouvido a comédia artificiosa e bem ordenada,
sairia o ouvinte alegre com as burlas, ensinado com as verdades,
admirado dos sucessos, discreto com as razões, advertido com os
embustes, sagaz com os exemplos, airado contra o vício e enamorado
da virtude; que todos estes afetos há de despertar a boa comédia no
ânimo do que a escutar, por rústico e torpe que seja; e de toda
impossibilidade é impossível deixar de alegrar e entreter, satisfazer e
contentar, a comédia que todas estas qualidades tiver muito mais que
aquela que carecer delas, como pela maior parte carecem estas que de
ordinário agora se representam. E não têm a culpa disto os poetas que
as compõem, porque alguns há deles que conhecem muito bem no que
erram, e sabem extremadamente o que devem fazer; mas, como as
comédias se fizeram mercadoria vendível, dizem, e dizem verdade,
que os representantes não as comprariam se não fossem daquele jaez;
e assim, o poeta procura acomodar-se com o que o representante que
lhe há de pagar sua obra lhe pede. E que isto seja verdade veja-se por
muitas e infinitas comédias que um felicíssimo engenho destes reinos
compôs, com tanta gala, com tanto donaire, com tão elegante verso,
com tão boas razões, com tão graves sentenças e, finalmente, tão
cheias de locução e alteza de estilo, que está cheio o mundo de sua
fama; e, por querer acomodar-se ao gosto dos representantes, não
chegaram todas, como chegaram algumas, ao ponto da perfeição que
requerem. Outros as compõem tão sem olhar o que fazem, que depois
de representadas têm necessidade os recitantes de fugir e ausentar-
se, temerosos de ser castigados, como o foram muitas vezes, por
haver representado coisas em prejuízo de alguns reis e em desonra de
algumas linhagens. E todos estes inconvenientes cessariam, e ainda
outros muitos mais que não digo, se houvesse na corte uma pessoa
inteligente e discreta que examinasse todas as comédias antes que se
representassem (não só aquelas que se fizeram na corte, senão todas
as que se quisessem representar na Espanha), sem a qual aprovação,
selo e firma, nenhuma justiça em seu lugar deixasse representar
comédia alguma; e, desta maneira, os comediantes teriam cuidado de
enviar as comédias à corte, e com segurança poderiam representá-las,
e aqueles que as compõem olhariam com mais cuidado e estudo o que
faziam, temorosos de haver de passar suas obras pelo rigoroso exame
de quem o entende; e desta maneira se fariam boas comédias e se
conseguiria felicissimamente o que nelas se pretende: assim o
entretenimento da vila, como a opinião dos engenhos da Espanha, o
interesse e segurança dos recitantes e o poupar o cuidado de castigá-
los. E se desse cargo a outro, ou a este mesmo, que examinasse os
livros de cavalarias que de novo se compusessem, sem dúvida poderiam
sair alguns com a perfeição que vossa mercê disse, enriquecendo nossa
língua do agradável e precioso tesouro da eloquência, dando ocasião
que os livros velhos se escurecessem à luz dos novos que saíssem, para
honesto passatempo, não somente dos ociosos, senão dos mais
ocupados; pois não é possível que esteja continuamente ocupado, nem a
condição e fraqueza humana se possa sustentar sem alguma lícita
recreação.
A este ponto de seu colóquio chegavam o cônego e o padre, quando,
adiantando-se o barbeiro, chegou a eles, e disse ao padre:
- Aqui, senhor licenciado, é o lugar que eu disse que era bom para
que, sesteando nós, tivessem os bois fresco e abundante pasto.
- Assim me parece - respondeu o padre.
E dizendo ao cônego o que pensava fazer, ele também quis ficar com
eles, motivado por um formoso vale que à vista se lhes oferecia. E
assim por gozar dele como da conversação do padre, de quem já ia
aficionado, e por saber mais por miúdo as façanhas de dom Quixote,
mandou alguns de seus criados que fossem à estalagem, que não longe
dali estava, e trouxessem dela o que houvesse de comer, para todos,
porque ele determinava de sestear naquele lugar aquela tarde; ao que
um de seus criados respondeu que a mula de carga, que já devia estar
na estalagem, trazia comida bastante para não obrigar a tomar da
estalagem mais que cevada.
- Se é assim - disse o cônego, - levem-se lá todas as cavalgaduras, e
fazei voltar a besta de carga.
Enquanto isto se passava, vendo Sancho que podia falar a seu amo
sem a contínua assistência do padre e do barbeiro, que tinha por
suspeitosos, se chegou à jaula onde ia seu amo, e lhe disse:
- Senhor, para desencargo de minha consciência, lhe quero dizer o
que se passa acerca de seu encantamento; e é que estes dois que vêm
aqui cobertos os rostos são o padre de nosso lugar e o barbeiro; e
imagino tiveram esta manha de levá-lo desta maneira, de pura inveja
que têm de que vossa mercê se lhes adianta em fazer famosos feitos.
Pressuposta, pois, esta verdade, segue-se que não vai encantado,
senão embaído e tonto. Para prova do que lhe quero perguntar uma
coisa; e se me responde como creio que me há de responder,
entenderá este engano e verá como não vai encantado, senão
transtornado o juízo.
- Pergunta o que quiseres, filho Sancho - respondeu dom Quixote, -
que eu te satisfarei e responderei a toda tua vontade. E no que dizes
que aqueles que ali vão e vêm conosco são o padre e o barbeiro, nossos
compatriotas e conhecidos, bem poderá ser que pareça que são eles
mesmos; mas que o sejam realmente e com efeito, isso não o creias de
maneira alguma. O que hás de crer e entender é que se eles se lhes
parecem, como dizes, deve ser que os que me encantaram haverão
tomado essa aparência e semelhança; porque é fácil aos encantadores
tomar a figura que desejam, e haverão tomado as destes nossos
amigos, para dar-te a ti ocasião de que penses o que pensas, e pôr-te
num labirinto de imaginações, que não acertes a sair dele, embora
tivesses a corda de Teseu. E também o haverão feito para que eu
vacile em meu entendimento, e não saiba atinar de onde me vem este
dano; porque se, por uma parte, tu me dizes que me acompanham o
barbeiro e o padre de nossa vila, e, por outra, eu me vejo enjaulado, e
sei de mim que forças humanas, como não fossem sobrenaturais, não
fossem bastantes para enjaular-me, que queres que diga ou pense
senão que a maneira de meu encantamento excede a quantas eu li em
todas as histórias que tratam de cavaleiros andantes que foram
encantados? Assim que, bem podes dar-te paz e sossego nisto de crer
que são os que dizes, porque assim são eles como eu sou turco. E no
que toca a querer perguntar-me algo, diz, que eu te responderei,
embora me perguntes de agora até amanhã.
- Valha-me Nossa Senhora! - respondeu Sancho, dando uma grande
voz. - E é possível que seja vossa mercê tão duro de cérebro, e tão
falto de miolo, que não veja que é pura verdade a que lhe digo, e que
nesta sua prisão e desgraça tem mais parte a malícia que o encanto?
Mas, se é assim, eu lhe quero provar evidentemente como não vai
encantado. Se não, diga-me, assim Deus o tire desta tormenta, e assim
se veja nos braços de minha senhora Dulcineia quando menos se
pense...
- Para de me fazer jurar - disse dom Quixote, - e pergunta o que
quiseres; que já te disse que te responderei com toda pontualidade.
- Isso peço - replicou Sancho; - e o que quero saber é que me diga,
sem juntar nem tirar coisa nenhuma, senão com toda verdade, como se
espera que a hão de dizer e a dizem todos aqueles que professam as
armas, como vossa mercê as professa, debaixo de título de cavaleiros
andantes...
- Digo que não mentirei em coisa alguma - respondeu dom Quixote. -
Acaba já de perguntar, que em verdade que me cansas com tantas
papagaiadas, preces e prevenções, Sancho.
- Digo que eu estou seguro da bondade e verdade de meu amo; e
assim, porque vem ao caso de nosso conto, pergunto, falando com
acatamento, se acaso depois que vossa mercê vai enjaulado e, a seu
parecer, encantado nesta jaula, lhe veio vontade e vontade de fazer
águas maiores ou menores, como costuma dizer-se.
- Não entendo isso de fazer águas, Sancho; aclara-te mais, se
queres que te responda direito.
- É possível que não entende vossa mercê de fazer águas menores
ou maiores? Pois na escola desmamam os meninos com isso. Pois saiba
que quero dizer se lhe veio vontade de fazer o que não se escusa.
- Já, já te entendo, Sancho! E muitas vezes; e ainda agora a tenho.
Tira-me deste perigo, que não está tudo limpo!

CAPÍTULO XLIX

Onde se trata do discreto colóquio que Sancho Pança teve com seu
senhor dom Quixote

- Ah! - disse Sancho; apanhei-o! Isto é o que eu desejava saber,


como à alma e como à vida. Venha cá, senhor: poderia negar o que
comumente costuma dizer-se por aí quando uma pessoa está de má
vontade: “Não sei que tem fulano, que nem come, nem bebe, nem
dorme, nem responde a propósito ao que lhe perguntam, que não
parece senão que está encantado”? De onde se vem a tirar que os que
não comem, nem bebem, nem dormem, nem fazem as obras naturais
que eu digo, estes tais estão encantados; mas não aqueles que têm a
vontade que vossa mercê tem e que bebe quando lhe dão, e come
quando o tem, e responde a tudo aquilo que lhe perguntam.
- Verdade dizes, Sancho - respondeu dom Quixote, - mas já te
disse que há muitas maneiras de encantamentos, e poderia ser que
com o tempo se houvessem mudado de uns em outros, e que agora se
use que os encantados façam tudo o que eu faço, embora antes não o
faziam. De maneira que contra o uso dos tempos não há que arguir nem
de que tirar consequências. Eu sei e tenho para mim que vou
encantado, e isto me basta para a segurança de minha consciência; que
a formaria muito grande se eu pensasse que não estava encantado e
me deixasse estar nesta jaula, preguiçoso e covarde, defraudando o
socorro que poderia dar a muitos necessitados que devem ter à hora
de agora precisa e extrema necessidade de minha ajuda e amparo.
- Pois assim - replicou Sancho, - digo que, para maior abundância e
satisfação, seria bom que vossa mercê tentasse sair deste cárcere,
que eu me obrigo com todo meu poder a facilitá-lo, e ainda a tirá-lo
dele, e tentasse de novo subir sobre seu bom Rocinante, que também
parece que vai encantado, segundo vai de melancólico e triste; e, feito
isto, tentássemos outra vez a sorte de buscar mais aventuras; e se
não nos sucedesse bem, tempo nos fica para voltar-nos à jaula, na qual
prometo, à lei de bom e leal escudeiro, encerrar-me juntamente com
vossa mercê, se acaso for vossa mercê tão desditado, ou eu tão
simples, que não acerte a sair com o que digo.
- Eu estou contente de fazer o que dizes, Sancho irmão - replicou
dom Quixote; - e quando tu vejas conjuntura de pôr em prática minha
liberdade, eu te obedecerei em tudo e por tudo; mas tu, Sancho, verás
como te enganas no conhecimento de minha desgraça.
Nestas conversas se entretiveram o cavaleiro andante e o mal
andante escudeiro, até que chegaram onde, já apeados, os aguardavam
o padre, o cônego e o barbeiro. O boieiro desprendeu logo da canga os
bois da carreta, e deixou-os andar à vontade por aquele verde e
aprazível sítio, cuja frescura convidava a querê-la gozar, não às
pessoas tão encantadas como Dom Quixote, senão aos tão advertidos
e discretos como seu escudeiro; o qual rogou ao padre que permitisse
que seu senhor saísse por um momento da jaula, porque se não o
deixassem sair, não iria tão limpa aquela prisão como requeria a
decência de um tal cavaleiro como seu amo. O padre entendeu-o, e
disse que de muito bom grado faria o que lhe pedia se não temesse
que, vendo-se seu senhor em liberdade, havia de fazer das suas, e ir
aonde jamais ninguém o visse.
- Eu sou fiador de que não fugirá - respondeu Sancho.
- E eu também, e ainda mais - disse o cônego; - e mais se ele me dá a
palavra, como cavaleiro, de não afastar-se de nós até que seja nossa
vontade.
- Sim, dou - respondeu dom Quixote, que tudo estava escutando; -
quanto mais, que o que está encantado, como eu, não tem liberdade
para fazer de sua pessoa o que quiser, porque o que o encantou lhe
pode fazer que não se mova de um lugar em três séculos; e se houver
fugido, o fará voltar voando. - E que, pois isto era assim, bem podiam
soltá-lo, e mais, sendo tão em proveito de todos; e do não soltá-lo lhes
assegurava muito formalmente que não podia deixar de fatigar-lhes o
olfato, se dali não se desviassem.
Tomou-lhe a mão o cônego, embora as tivesse amarradas, e, debaixo
de sua boa fé e palavra, desenjaularam-no, de que ele se alegrou
infinito e em grande maneira de ver-se fora da jaula. E a primeira
coisa que fez foi estirar todo o corpo, e logo se foi onde estava
Rocinante, e, dando-lhe duas palmadas nas ancas, disse:
- Ainda espero em Deus e em sua bendita Madre, flor e espelho dos
cavalos, que logo nos havemos de ver os dois qual desejamos; tu, com
teu senhor às costas; e eu, em cima de ti, exercitando o ofício para
que Deus me pôs no mundo.
E dizendo isto, dom Quixote se afastou com Sancho em remota
parte, de donde veio mais aliviado e com mais desejos de pôr em
prática o que seu escudeiro ordenasse.
Olhava-o o cônego, e admirava-se de ver a estranheza de sua
grande loucura, e de que, em quanto falava e respondia, mostrava ter
boníssimo entendimento: somente vinha a perder os estribos, como
outras vezes se disse, tratando com ele de cavalaria. E assim, movido
de compaixão, depois de todos haverem-se sentado na verde erva,
para esperar as provisões do cônego, este disse-lhe:
- É possível, senhor fidalgo, que haja podido tanto com vossa mercê
a amarga e ociosa letura dos livros de cavalarias, que lhe hajam
transtornado o juízo de modo que venha a crer que vai encantado, com
outras coisas deste jaez, tão longe de ser verdadeiras como o está a
mesma mentira da verdade? E como é possível que haja entendimento
humano que se dê a entender que houve no mundo aquela infinidade de
Amadises, e aquela turbamulta de tanto famoso cavaleiro, tanto
imperador de Trapisonda, tanto Felixmarte de Hircânia, tanto
palafrém, tanta donzela andante, tantas serpentes, tantos endríagos,
tantos gigantes, tantas inauditas aventuras, tanto gênero de
encantamentos, tantas batalhas, tantos desaforados encontros, tanta
bizarria de trajes, tantas princesas enamoradas, tantos escudeiros
condes, tantos anões graciosos, tanto bilhete, tanto requebro, tantas
mulheres valentes; e, finalmente, tantos e tão disparatados casos
como os livros de cavalarias contêm? De mim sei dizer que, quando os
leio, enquanto não ponho a imaginação em pensar que são todos
mentira e leviandade, me dão algum contentamento; mas, quando caio
na conta do que são, dou com o melhor deles na parede, e ainda daria
com ele no fogo se perto ou presente o tivesse, bem como a
merecedores de tal pena, por ser falsos e embusteiros, e fora do
trato que peça comum natureza, e como a inventores de novas seitas e
de novo modo de vida, e como a quem dá ocasião a que o vulgo
ignorante venha a crer e a ter por verdadeiras tantas necedades como
contêm. E ainda têm tanto atrevimento, que se atrevem a perturbar
os engenhos dos discretos e bem nascidos fidalgos, como se vê pelo
que com vossa mercê fizeram, pois o trouxeram a ponto de que seja
forçoso enfechá-lo em uma jaula, e trazê-lo sobre um carro de bois,
como quem traz ou leva algum leão ou algum tigre, de lugar em lugar,
para ganhar com ele deixando que o vejam. Eia, senhor dom Quixote,
doa-se de si mesmo, e retorne ao grêmio da discrição, e saiba usar da
muita que o céu foi servido de dar-lhe, empregando o felicíssimo
talento de seu engenho em outra leitura que redunde em
aproveitamento de sua consciência e em aumento de sua honra! E se
ainda, levado de sua natural inclinação, quiser ler livros de façanhas e
de cavalarias, leia na Sacra Escritura o dos Juízes, que ali achará
verdades grandiosas e feitos tão verdadeiros como valentes. Um
Viriato teve Lusitânia; um César, Roma; um Aníbal, Cartago; um
Alexandre, Grécia; um conde Fernão González, Castela; um Cide,
Valência; um Gonçalo Fernández, Andaluzia; um Diego Garcia de
Paredes, Estremadura; um Garci Pérez de Vargas, Jerez; um
Garcilaso, Toledo; um dom Manuel de Leão, Sevilha, cuja lição de seus
valorosos feitos pode entreter, ensinar, deleitar e admirar aos mais
altos engenhos que os lerem. Esta sim será leitura digna do bom
entendimento de vossa mercê, senhor dom Quixote meu, da qual sairá
erudito na história, enamorado da virtude, ensinado na bondade,
melhorado nos costumes, valente sem temeridade, ousado sem
covardia, e tudo isto, para honra de Deus, proveito seu e fama da
Mancha; de onde, segundo soube, traz vossa mercê seu princípio e
origem.
Atentissimamente esteve dom Quixote escutando as razões do
cônego; e, quando viu que já havia posto fim a elas, depois de haver-
lhe estado um bom espaço olhando, disse-lhe:
- Parece-me, senhor fidalgo, que a conversa de vossa mercê se
encaminhou a querer dar-me a entender que não houve cavaleiros
andantes no mundo, e que todos os livros de cavalarias são falsos,
mentirosos, causadores de danos e inúteis para a república; e que eu
fiz mal em lê-los, e pior em crê-los e em imitá-los, havendo-me
imposto a seguir a duríssima profissão da cavalaria andante, que eles
ensinam, negando-me que não houve no mundo Amadises, nem de Gaula
nem de Grécia, nem todos os outros cavaleiros de que as escrituras
estão cheias.
- Tudo é ao pé da letra como vossa mercê o vai relatando - disse
então o cônego.
A que respondeu dom Quixote:
- Acrescentou também vossa mercê, dizendo que me haviam feito
muito dano tais livros, pois me haviam transtornado o juízo e posto-me
em uma jaula, e que me seria melhor fazer a emenda e mudar de
leitura, lendo outros mais verdadeiros e que melhor deleitam e
ensinam.
- Assim é - disse o cônego.
- Pois eu - replicou dom Quixote - acho por minha conta que o sem
juízo e o encantado é vossa mercê, pois se pôs a dizer tantas
blasfêmias contra uma coisa tão aceita no mundo, e tida por tão
verdadeira, que o que a negasse, como vossa mercê a nega, merecia a
mesma pena que vossa mercê diz que dá aos livros quando os lê e o
enfadam. Porque querer dar a entender a alguém que Amadis não
existiu, nem todos os outros cavaleiros aventureiros de que estão
cheias as histórias, será querer persuadir que o sol não ilumina, nem o
gelo enfria, nem a terra sustenta; porque, que engenho pode haver no
mundo que possa persuadir a outro que não foi verdade o da infanta
Floripes e Guy de Borgonha, e o de Ferrabrás com a ponte de
Mantible, que sucedeu no tempo de Carlos Magno; que voto a tal que é
tanta verdade como é agora de dia? E se é mentira, também o deve
ser que não houve Heitor, nem Aquiles, nem a guerra de Troia, nem os
Doze Pares da França, nem o rei Artur da Inglaterra, que anda até
agora convertido em corvo e o esperam em seu reino sem falta. E
também se atreverão a dizer que é mentirosa a história de Guarino
Mezquino, e a da demanda do Santo Graal, e que são apócrifos os
amores de dom Tristão e a rainha Isolda, como os de Ginevra e
Lancelote, havendo pessoas que quase se lembram de haver visto dona
Quintañona, que foi quem melhor repartia vinho aos comensais que
teve a Grã-Bretanha. E é isto tão assim, que me lembro eu que me
dizia uma minha avó por parte de meu pai, quando via alguma senhora
com toucas reverendas: “Aquela, neto, se parece com dona
Quintañona”; de onde arguo eu que a deveu conhecer ou, pelo menos,
deveu chegar a ver algum retrato seu. Pois, quem poderá negar não ser
verdadeira a história de Pierres e a linda Magalona, pois ainda até
hoje em dia se vê na armaria dos reis a cravilha com que dirigia o
cavalo de madeira, sobre o qual ia o valente Pierres pelos ares, a qual é
um pouco maior que um timão de carreta? E junto à cravilha está a
sela de Babieca, e em Roncesvales está o chifre de elefante de
Roldão, tamanho como uma grande viga: de onde se infere que houve
Doze Pares, que houve Pierres, que houve Cides, e outros cavaleiros
semelhantes,

destes que dizem as gentes


que em suas aventuras vão.

Se não, digam-me também que não é verdade que foi cavaleiro andante
o valente lusitano João de Merlo, que foi à Borgonha e combateu na
cidade de Arras contra o famoso senhor de Charny, chamado
monsieur Pierres, e depois, na cidade de Basileia, com monsieur
Enrique de Remestán, saindo de ambas as empresas vencedor e cheio
de honrosa fama; e as aventuras e desafios que também
empreenderam em Borgonha os valentes espanhóis Pedro Barba e
Gutierre Quijada (de cuja estirpe eu descendo em linha reta de
varão), vencendo aos filhos do conde de São Polo. Neguem-me também
que não foi buscar as aventuras na Alemanha dom Fernando de
Guevara, onde combateu contra micer Jorge, cavaleiro da casa do
duque de Áustria; digam que foram burla as justas de Suero de
Quiñones, do Paso; as empresas de monsieur Luís de Falces contra
dom Gonçalo de Guzmão, cavaleiro castelhano, com outras muitas
façanhas feitas por cavaleiros cristãos, destes e dos reinos
estrangeiros, tão autênticas e verdadeiras, que torno a dizer que o
que as negasse careceria de toda razão e boas palavras.
Admirado ficou o cônego de ouvir a mescla que dom Quixote fazia
de verdades e mentiras, e de ver a notícia que tinha de todas aquelas
coisas tocantes e concernentes aos feitos de sua andante cavalaria; e
assim, lhe respondeu:
- Não posso eu negar, senhor dom Quixote, que não seja verdade
algo do que vossa mercê disse, especialmente no que toca aos
cavaleiros andantes espanhóis; e, também, quero conceder que houve
Doze Pares da França, mas não quero crer que fizeram todas aquelas
coisas que o arcebispo Turpin deles escreve; porque a verdade disso é
que foram cavaleiros escolhidos pelos reis da França, a quem
chamaram pares por serem todos iguais em valor, em qualidade e em
valentia; ao menos, se não o eram, era razão que o fossem e era como
uma religião das que agora se usam de Santiago ou de Calatrava, que
se pressupõe que os que a professam hão de ser, ou devem ser,
cavaleiros valorosos, valentes e bem nascidos; e, como agora dizem
“cavaleiro de São João”, ou “de Alcântara”, diziam naquele tempo
“cavaleiro dos Doze Pares”, porque não foram doze iguais os que para
esta religião militar se escolheram. No de que houve Cid não há dúvida,
nem menos Bernardo de Carpio, mas de que fizeram as façanhas que
dizem, creio que a há muito grande. No outro da cravilha que vossa
mercê diz do conde Pierres, e que está junto à sela de Babieca na
armaria dos reis, confesso meu pecado; que sou tão ignorante, ou tão
pequeno de vista, que, embora vi a sela, não vi a cravilha, e mais sendo
tão grande como vossa mercê disse.
- Pois ali está, sem dúvida alguma - replicou dom Quixote; - e, por
mais sinais, dizem que está metida em uma funda de vaqueta, para que
não mofe.
- Tudo pode ser - respondeu o cônego; - mas, pelas ordens que
recebi, que não me lembro de havê-la visto. Mas, posto que conceda
que está ali, não por isso me obrigo a crer nas histórias de tantos
Amadises, nas de tanta turbamulta de cavaleiros como por aí nos
contam; nem é razão que um homem como vossa mercê, tão honrado e
de tão boas qualidades, e dotado de tão bom entendimento, se dê a
entender que são verdadeiras tantas e tão estranhas loucuras como as
que estão escritas nos disparatados livros de cavalarias.

CAPÍTULO L

Das discretas altercações que dom Quixote e o cônego tiveram,


com outros sucessos

- Bom está isso! - respondeu dom Quixote. - Os livros que estão


impressos com licença dos reis e com aprovação daqueles a quem se
remeteram, e que com gosto geral são lidos e celebrados pelos
grandes e pequenos, pelos pobres e ricos, pelos letrados e ignorantes,
pelos plebeus e cavaleiros, finalmente, por todo gênero de pessoas, de
qualquer estado e condição que sejam, haviam de ser mentira, e mais
levando tanta aparência de verdade, pois nos contam o pai, a mãe, a
pátria, os parentes, a idade, o lugar e as façanhas, ponto por ponto e
dia por dia, que o tal cavaleiro fez, ou cavaleiros fizeram? Cale vossa
mercê, não diga tal blasfêmia, e creia-me que lhe aconselho nisto o
que deve fazer como discreto, senão leia-os, e verá o gosto que
recebe de seu gênero. Se não, diga-me: há maior prazer que ver, como
se disséssemos: aqui agora se mostra diante de nós um grande lago de
piche fervendo a borbotões, e que andam nadando e cruzando por ele
muitas serpentes, cobras e lagartos, e outros muitos gêneros de
animais ferozes e espantáveis, e que do meio do lago sai uma voz
tristíssima que diz: “Tu, cavaleiro, quem quer que sejas, que o
temeroso lago estás olhando, se queres alcançar o bem que debaixo
destas negras águas se encobre, mostra o valor de teu forte peito e
arroja-te em meio de seu negro e aceso licor; porque se assim não o
fazes, não serás digno de ver as altas maravilhas que em si encerram e
contêm os sete castelos das sete fadas que debaixo desta negrura
jazem?” E que, apenas o cavaleiro não acabou de ouvir a voz temerosa,
quando, sem entrar mais em contas consigo, sem pôr-se a considerar o
perigo a que se expõe, e ainda sem despojar-se do peso de suas fortes
armas, encomendando-se a Deus e a sua senhora, se arroja em meio do
agitado lago, e, quando não sabe de si nem onde há de parar, se acha
entre uns floridos campos, com os quais os Elísios não se comparam em
nada? Ali lhe parece que o céu é mais transparente, e que o sol brilha
com claridade mais nova; oferece-se-lhe aos olhos uma aprazível
floresta de tão verdes e frondosas árvores composta, que alegra à
vista sua verdura, e entretém os ouvidos o doce e não aprendido canto
dos pequenos, infinitos e pintados passarinhos que pelos intrincados
ramos vão cruzando. Aqui descobre um arroiozinho, cujas frescas
águas, que líquidos cristais parecem, correm sobre miúdas areias e
brancas pedrinhas, que ouro puro e puras pérolas semelham; acolá vê
uma artificiosa fonte de jaspe variado e de liso mármore composta;
aqui vê outra ao brutesco adornada, onde as miúdas conchas das
amêijoas, com as torcidas casas brancas e amarelas do caracol, postas
com ordem desordenada, misturados entre elas pedaços de cristal
luzente e de fingidas esmeraldas, fazem um variado labor, de maneira
que a arte, imitando a natureza, parece que ali a vence. Acolá de
improviso se descobre um forte castelo ou vistoso alcácer, cujas
muralhas são de maciço ouro, as ameias de diamantes, as portas de
jacintos; finalmente, ele é de tão admirável compostura que, com ser a
matéria de que está formado não menos que de diamantes, de
carbúnculos, de rubis, de pérolas, de ouro e de esmeraldas, é de mais
estimação sua feitura. E há mais que ver, depois de haver visto isto,
que ver sair pela porta do castelo um bom número de donzelas, cujos
galantes e vistosos trajes, se eu me pusesse agora a dizê-los como as
histórias no-los contam, seria nunca acabar; e tomar logo a que parecia
principal de todas pela mão ao atrevido cavaleiro que se arrojou no
fervente lago, e levá-lo, sem falar-lhe palavra, para dentro do rico
alcácer ou castelo, e fazê-lo desnudar-se como sua mãe o pariu, e
banhá-lo com temperadas águas, e logo untá-lo todo com olorosos
unguentos, e vestir-lhe uma camisa de seda delgadíssima, toda olorosa
e perfumada, e atender outra donzela e jogar-lhe um mantão sobre os
ombros, que, pelo menos menos, dizem que costuma valer uma cidade,
e ainda mais? O que é ver, pois, quando nos contam que, depois de tudo
isto, levam-no a outra sala, onde acha postas as mesas, com tanto
concerto, que fica suspenso e admirado? O que, o vê-lo jogar água nas
mãos, toda de âmbar e de olorosas flores destilada? O que, o fazer-
lhe sentar sobre uma cadeira de marfim? O que, vê-lo servir todas as
donzelas, guardando um maravilhoso silêncio? O que, o trazer-lhe
tanta diferença de manjares, tão saborosamente guisados, que não
sabe o apetite a qual deva pôr a mão? Qual será ouvir a música que
enquanto come soa, sem saber-se quem a canta nem onde soa? E
depois da comida acabada e as mesas tiradas, ficar o cavaleiro
recostado sobre a cadeira, e quiçá limpando os dentes, como é
costume, entrar de repente pela porta da sala outra muito mais
formosa donzela que nenhuma das primeiras, e sentar-se ao lado do
cavaleiro, e começar a dar-lhe conta de que castelo é aquele, e de
como ela está encantada nele, com outras coisas que suspendem ao
cavaleiro e admiram aos leitores que vão lendo sua história? Não quero
alargar-me mais nisto, pois disso se pode depreender que qualquer
parte que se leia, de qualquer história de cavaleiro andante, há de
causar gosto e maravilha a qualquer que a ler. E vossa mercê creia-me,
e, como outra vez lhe disse, leia estes livros, e verá como lhe
desterram a melancolia que tiver, e lhe melhoram a condição, se acaso
a tem má. De mim sei dizer que, depois que sou cavaleiro andante, sou
valente, comedido, liberal, bem criado, generoso, cortês, atrevido,
brando, paciente, sofredor de trabalhos, de prisões, de encantos; e,
embora há tão pouco me vi encerrado em uma jaula, como louco, penso,
pelo valor de meu braço, favorecendo-me o céu e não me sendo
contrária a fortuna, em poucos dias ver-me rei de algum reino, onde
possa mostrar o agradecimento e liberalidade que meu peito encerra.
Que, por minha fé, senhor, o pobre está inabilitado de poder mostrar
a virtude de liberalidade com ninguém, embora em sumo grau a possua;
e o agradecimento que só consiste no desejo é coisa morta, como é
morta a fé sem obras. Por isto queria que a fortuna me oferecesse
logo alguma ocasião onde me fizesse imperador, por mostrar minhas
virtudes fazendo bem a meus amigos, especialmente a este pobre
Sancho Pança, meu escudeiro, que é o melhor homem do mundo, e
queria dar-lhe um condado que lhe prometi há muitos dias, contudo
temo que não há de ter habilidade para governar seu estado.
Apenas estas últimas palavras ouviu Sancho a seu amo, a quem
disse:
- Trabalhe vossa mercê, senhor dom Quixote, em dar-me esse
condado, tão prometido de vossa mercê como de mim esperado, que eu
lhe prometo que não me falte habilidade para governá-lo; e quando me
faltar, eu ouvi dizer que há homens no mundo que tomam em
arrendamento os estados dos senhores, e lhes dão um tanto cada ano,
e eles cuidam do governo, e o senhor fica de pernas pro ar, gozando da
renda que lhe dão, sem cuidar de outra coisa; e assim farei eu, e não
regatearei, mas logo me desinteressarei de tudo, e gozarei minha
renda como um duque, e lá se arranjem.
- Isso, irmão Sancho - disse o cônego, - entende-se quanto ao gozar
a renda; porém, ao administrar justiça, há de atender o senhor do
estado, e aqui entra a habilidade e bom juízo, e principalmente a boa
intenção de acertar; que se esta falta nos princípios, sempre irão
errados os meios e os fins; e assim costuma Deus ajudar ao bom
desejo do ingênuo como desfavorecer ao mau do discreto.
- Não sei essas filosofias - respondeu Sancho Pança, - mas só sei
que tão logo tivesse eu o condado como saberia regê-lo; que tanta
alma tenho eu como outro, e tanto corpo como o que mais, e tão rei
seria eu de meu estado como cada um do seu: e, sendo-o, faria o que
quisesse; e, fazendo o que quisesse, faria meu gosto; e, fazendo meu
gosto, estaria contente; e, estando um contente, não tem mais que
desejar; e, não tendo mais que desejar, acabou-se; e o estado venha, e
adeus e vejamo-nos, como disse um cego a outro.
- Não são más filosofias essas, como tu dizes, Sancho, mas, assim,
há muito que dizer sobre esta matéria de condados.
A que replicou dom Quixote:
- Eu não sei que haja mais que dizer; só me guio pelo exemplo que
me dá o grande Amadis de Gaula, que fez seu escudeiro conde da Ilha
Firme, e, assim, posso eu, sem escrúpulo de consciência, fazer conde a
Sancho Pança, que é um dos melhores escudeiros que cavaleiro
andante teve.
Admirado ficou o cônego dos concertados disparates que dom
Quixote havia dito, do modo com que havia pintado a aventura do
Cavaleiro do Lago, da impressão que nele haviam feito as pensadas
mentiras dos livros que havia lido; e, finalmente, lhe admirava a
necedade de Sancho, que com tanto afinco desejava alcançar o
condado que seu amo lhe havia prometido.
Já nisto, voltavam os criados do cônego, que à estalagem haviam ido
pela mula de provisões, e, fazendo mesa da verde erva do prado, à
sombra de umas árvores se sentaram, e almoçaram ali, para que o
boieiro não perdesse a comodidade daquele sítio, como fica dito. E
estando comendo, de repente ouviram um forte estrondo e um som de
cincerro, que soava por entre umas sarças e espessas matas que ali
junto estavam, e ao mesmo instante viram sair de entre aquelas matas
uma formosa cabra, toda a pele manchada de negro, branco e pardo.
Atrás dela vinha um cabreiro dando-lhe vozes, e dizendo-lhe palavras
a seu uso, para que se detivesse, ou ao rebanho voltasse. A fugitiva
cabra, temerosa e espavorida, veio até as pessoas, como a favorecer-
se delas, e ali se deteve. Chegou o cabreiro, e, pegando-a pelos
chifres, como se fosse capaz de palavras e entendimento, disse-lhe:
- Ah ingrata, ingrata, Manchada, Manchada, e como andais vós estes
dias cheia de malícias! Que lobos vos espantam, filha? Não me direis
que é isto, formosa? Mas que pode ser senão que sois fêmea, e não
podeis estar sossegada; que mal haja vossa condição, e a de todas
aquelas a quem imitais! Voltai, voltai, amiga; que se não tão contente,
ao menos, estareis mais segura em vosso aprisco, ou com vossas
companheiras; que se vós que as haveis de guardar e encaminhar
andais tão sem guia e tão desencaminhada, o que poderão elas fazer?
Prazer deram as palavras do cabreiro aos que as ouviram,
especialmente ao cônego, que lhe disse:
- Por vida vossa, irmão, que vos sossegueis um pouco e não vos
apresseis em levar de volta tão logo essa cabra a seu rebanho; que,
pois ela é fêmea, como vós dizeis, há de seguir seu natural instinto,
por mais que vós vos ponhais a perturbá-lo. Tomai este bocado e bebei
uma vez, com que acalmareis a cólera, e enquanto isso, descansará a
cabra.
E o dizer isto e o dar-lhe com a ponta da faca os lombos de um
coelho empanado, tudo foi um. Tomou-o e agradeceu-o o cabreiro;
bebeu e sossegou-se, e logo disse:
- Não queria que por haver eu falado com esta alimária tão
seriamente, me tivessem vossas mercês por homem simples; que em
verdade que não carecem de mistério as palavras que lhe disse.
Rústico sou, mas não tanto que não entenda como se há de tratar com
os homens e com as bestas.
- Isso creio eu muito bem - disse o padre, - que já eu sei de
experiência que os montes criam letrados e as cabanas dos pastores
encerram filósofos.
- Ao menos, senhor - replicou o cabreiro, - acolhem homens
escarmentados; e para que creais esta verdade e a toqueis com a mão,
embora pareça que sem ser rogado me convido, se não vos enfadais
disso e quereis, senhores, um breve espaço prestar-me ouvido atento,
vos contarei uma verdade que acredite o que esse senhor - apontando
o padre - disse, e a minha.
A isto respondeu dom Quixote:
- Por ver que tem este caso um não sei quê de sombra de aventura
de cavalaria, eu, por minha parte, vos ouvirei, irmão, de muito bom
grado, e assim o farão todos estes senhores, pelo muito que têm de
discretos e de ser amigos de curiosas novidades que suspendam,
alegrem e entretenham os sentidos, como, sem dúvida, penso que o há
de fazer vosso conto. Começai, pois, amigo, que todos escutaremos.
- Retiro-me - disse Sancho; - que eu àquele arroio me vou com esta
empanada, onde penso fartar-me por três dias; porque ouvi dizer a
meu senhor dom Quixote que o escudeiro de cavaleiro andante há de
comer, quando se lhe oferecer, até não poder mais, porque se lhes
costuma oferecer entrar acaso por uma selva tão intrincada que não
acertam a sair dela em seis dias; e se o homem não vai farto, ou bem
providos os alforjes, ali poderá ficar, como muitas vezes fica, feito
múmia.
- Tu estás certo, Sancho - disse dom Quixote: - vai onde quiseres, e
come o que puderes; que eu já estou satisfeito, e só me falta dar à
alma um lanchinho, como o darei escutando o conto deste bom homem.
- Assim o daremos todos às nossas - disse o cônego.
E logo, rogou ao cabreiro que desse princípio ao que havia
prometido. O cabreiro deu duas palmadas sobre o lombo da cabra, que
pelos chifres tinha, dizendo-lhe:
- Recosta-te junto a mim, Manchada, que tempo nos fica para voltar
a nosso aprisco.
Parece que o entendeu a cabra, porque, sentando-se seu dono,
estendeu-se ela junto a ele com muito sossego, e, olhando-lhe o rosto,
dava a entender que estava atenta ao que o cabreiro ia dizendo, o qual
começou sua história desta maneira:

CAPÍTULO LI

Que trata do que contou o cabreiro a todos os que levavam dom


Quixote

- A três léguas deste vale está uma aldeia que, embora pequena, é
das mais ricas que há em todos estes contornos; na qual havia um
lavrador muito honrado, e tanto, que, embora é próprio ao ser rico o
ser honrado, mais o era ele pela virtude que tinha que pela riqueza que
possuía. Mas o que o fazia mais ditoso, segundo ele dizia, era ter uma
filha de tão extremada formosura, rara discrição, donaire e virtude,
que o que a conhecia e a olhava se admirava de ver as extremadas
qualidades com que o céu e a natureza a haviam enriquecido. Sendo
menina era formosa, e sempre foi crescendo em beleza, e na idade de
dezesseis anos era formosíssima. A fama de sua beleza começou a
estender-se por todas as circunvizinhas aldeias, que digo eu pelas
circunvizinhas não mais, se se estendeu às afastadas cidades, e ainda
entrou pelas salas dos reis, e pelos ouvidos de todo gênero de gente;
que, como a coisa rara, ou como a imagem de milagres, de todos os
lados vinham para vê-la? Guardava-a seu pai, e guardava-se ela; que
não há cadeados, guardas nem fechaduras que melhor guardem a uma
donzela que as do recato próprio.
“A riqueza do pai e a beleza da filha moveram a muitos, assim do
povoado como forasteiros, que por mulher a pedissem; mas ele, como a
quem tocava dispor de tão rica joia, andava confuso, sem saber
determinar a quem a entregaria dos infinitos que o importunavam. E
entre os muitos que tão bom desejo tinham, fui eu um, a quem deram
muitas e grandes esperanças de bom sucesso conhecer que o pai
conhecia quem eu era, o ser natural do mesmo povoado, limpo em
sangue, na idade florescente, nos bens muito rico e no engenho não
menos acabado. Com todas estas mesmas qualidades a pediu também
outro do mesmo povoado, que foi causa de suspender e pôr em balança
a vontade do pai, a quem parecia que com qualquer de nós estava sua
filha bem empregada; e, por sair desta confusão, determinou dizê-lo a
Leandra, que assim se chama a rica que em miséria me tem posto,
advertindo que, pois os dois éramos iguais, ficava bem deixar à
vontade de sua querida filha o escolher a seu gosto: coisa digna de
imitar por todos os pais que a seus filhos querem casar: não digo eu
que os deixem escolher em coisas ruins e más, mas que as proponham
boas, e das boas, que escolham a seu gosto. Não sei eu o que teve
Leandra; só sei que o pai nos entreteve a ambos com a pouca idade de
sua filha e com palavras gerais, que nem o obrigavam, nem nos
desobrigava tampouco. Chama-se meu competidor Anselmo, e eu
Eugênio, para que saibais os nomes das pessoas que nesta tragédia se
contêm, cujo fim ainda está pendente; mas bem se deixa entender que
será desastrado.
“Nesta ocasião, veio a nossa vila um tal Vicente da Roca, filho de
um pobre lavrador do mesmo lugar; o qual Vicente vinha das Itálias e
de outras diversas partes, de ser soldado. Levou-o de nosso lugar,
sendo moço de uns doze anos, um capitão que com sua companhia por
ali acertou passar, e voltou o moço dali a outros doze, vestido à
soldadesca, pintado com mil cores, cheio de mil enfeites de cristal e
sutis correntes de aço. Hoje punha uma veste e amanhã outra; mas
todas sutis, falsas, de pouco peso e menos importância. A gente
lavradora, que de seu é maliciosa, e dando-lhe o ócio lugar é a mesma
malícia, o notou, e contou ponto por ponto suas vestes e adornos, e
achou que os vestidos eram três, de diferentes cores, com suas ligas e
meias; mas ele fazia tantos guisados e invenções delas, que se não se
os contassem, haveria quem jurasse que havia feito mostra de mais de
dez pares de trajes e de mais de vinte plumagens. E não pareça
impertinência e demasia isto que dos trajes vou contando, porque eles
têm uma boa parte nesta história. Sentava-se num banco que debaixo
de um grande álamo está em nossa praça, e ali nos tinha a todos de
boca aberta, pendentes das façanhas que nos ia contando. Não havia
terra em todo o orbe que não houvesse visto, nem batalha onde não se
houvesse achado; havia matado mais mouros que tem Marrocos e
Túnis, e entrado em mais singulares desafios, segundo ele dizia, que
Gante e Luna, Diego Garcia de Paredes e outros mil que nomeava; e de
todos havia saído com vitória, sem que lhe houvessem derramado uma
só gota de sangue. Por outra parte, mostrava sinais de feridas que,
embora não se divisavam, nos fazia entender que eram arcabuzaços
dados em diferentes combates e facções. Finalmente, com uma não
vista arrogância, chamava de vós a seus iguais e aos mesmos que o
conheciam, e dizia que seu pai era seu braço, sua linhagem, suas obras,
e que debaixo de ser soldado, ao mesmo rei não devia nada.
Acrescentou-se-lhe a estas arrogâncias ser um pouco músico e tocar
uma guitarra ao rasgado, de maneira que diziam alguns que a fazia
falar; mas não pararam aqui suas graças, que também a tinha de poeta,
e assim, de cada ninharia que acontecia no povoado, compunha um
poema de légua e meia de escritura. Este soldado, pois, que aqui pintei,
este Vicente da Roca, este bravo, este galã, este músico, este poeta
foi visto e visto muitas vezes por Leandra, desde uma janela de sua
casa que tinha a vista à praça. Enamorou-a o ouropel de seus vistosos
trajes, encantaram-na seus poemas, que de cada um que compunha
dava vinte traslados, chegaram a seus ouvidos as façanhas que ele de
si mesmo havia referido, e, finalmente, que assim o diabo o devia ter
ordenado, ela veio a enamorar-se dele, antes que nele nascesse
presunção de requestá-la. E como nos casos de amor não há nenhum
que com mais facilidade se cumpra que aquele que tem de sua parte o
desejo da dama, com facilidade se acertaram Leandra e Vicente; e,
antes que algum de seus muitos pretendentes pressentisse seu
desejo, já ela o tinha cumprido, havendo deixado a casa de seu querido
e amado pai, que mãe não a tem, e se ausentado da aldeia com o
soldado, que saiu com mais triunfo desta empresa que de todas as
muitas que ele se atribuía. Admirou o acontecido a toda a aldeia, e
ainda a todos os que dele notícia tiveram; eu fiquei suspenso, Anselmo,
atônito, o pai triste, seus parentes afrontados, solícita a justiça, os
quadrilheiros rápidos; tomaram-se os caminhos, esquadrinharam-se os
bosques e quanto havia, e, ao cabo de três dias, acharam a caprichosa
Leandra em uma cova de um monte, só em camisa, sem os muitos
dinheiros e preciosíssimas joias que de sua casa havia tirado.
Levaram-na à presença do lastimado pai; perguntaram-lhe sua
desgraça; confessou voluntariamente que Vicente da Roca a havia
enganado, e debaixo de sua palavra de ser seu esposo a persuadiu que
deixasse a casa de seu pai; que ele a levaria à mais rica e mais viciosa
cidade que havia em todo o universo mundo, que era Nápoles; e que
ela, mal advertida e pior enganada, havia acreditado nele; e, roubando
seu pai, tudo lhe entregou na mesma noite em que fugira; e que ele a
levou a um áspero monte, e a fechou naquela cova onde a haviam
achado. Contou também como o soldado, sem tirar sua honra, lhe
roubou quanto tinha, e a deixou naquela cova e se foi: acontecimento
que de novo pôs em admiração a todos. Duro nos foi acreditar na
continência do moço, mas ela o afirmou com tantas veras, que foram
parte para que o desconsolado pai se consolasse, não fazendo conta
das riquezas que lhe levavam, pois lhe haviam deixado sua filha com a
joia que, se uma vez se perde, não deixa esperança de que jamais se
cobre. No mesmo dia que apareceu Leandra a desapareceu seu pai de
nossos olhos, e a levou a encerrar num monastério de uma vila que está
aqui perto, esperando que o tempo gaste alguma parte da má opinião
em que sua filha se pôs. Os poucos anos de Leandra serviram de
desculpa de sua culpa, ao menos para aqueles que não tinham algum
interesse em que ela fosse má ou boa; mas os que conheciam sua
discrição e muito entendimento não atribuíram à ignorância seu
pecado, senão à sua desenvoltura e à natural inclinação das mulheres,
que, pela maior parte, costuma ser desatinada e mal composta.
Encerrada Leandra, ficaram os olhos de Anselmo cegos, ao menos sem
ter coisa que olhar que prazer lhe desse; os meus em trevas, sem luz
que a nenhuma coisa de gosto lhes encaminhasse; com a ausência de
Leandra, crescia nossa tristeza, apoucava-se nossa paciência,
maldizíamos as roupas do soldado e abominávamos a pouca prudência
do pai de Leandra. Finalmente, Anselmo e eu combinamos de deixar a
aldeia e vir a este vale, onde ele, apascentando uma grande quantidade
de ovelhas suas próprias, e eu um numeroso rebanho de cabras,
também minhas, passamos a vida entre as árvores, dando descanso a
nossas paixões, ou cantando juntos louvações ou vitupérios da formosa
Leandra, ou suspirando sós e a sós compartindo com o céu nossas
querelas. À imitação nossa, outros muitos dos pretendentes de
Leandra vieram a estes ásperos montes, usando o mesmo exercício
nosso; e são tantos, que parece que este sítio se converteu na pastoral
Arcádia, segundo está cheio de pastores e de apriscos, e não há parte
nele onde não se ouça o nome da formosa Leandra. Este a maldiz e a
chama caprichosa, vária e desonesta; aquele a condena por fácil e
ligeira; tal a absolve e perdoa, e tal a justiça e vitupera; um celebra
sua formosura, outro renega sua condição, e, enfim, todos a desonram,
e todos a adoram, e de todos se estende a tanto a loucura, que há
quem se queixe de desdém sem haver-lhe jamais falado, e ainda quem
se lamente e sinta a raivosa enfermidade dos ciúmes, que ela jamais
deu a ninguém; porque, como já disse, antes se soube seu pecado que
seu desejo. Não há oco de penha, nem margem de arroio, nem sombra
de árvore que não esteja ocupada por algum pastor que suas
desventuras aos ares conte; o eco repete o nome de Leandra onde
quer que possa formar-se: “Leandra” ressoam os montes, “Leandra”
murmuram os arroios, e Leandra nos tem a todos suspensos e
encantados, esperando sem esperança e temendo sem saber de que
tememos. Entre estes disparatados, o que mostra que menos e mais
juízo tem é meu competidor Anselmo, o qual, tendo tantas outras
coisas de que queixar-se, só se queixa de ausência; e ao som de uma
rabeca, que admiravelmente toca, com versos onde mostra seu bom
entendimento, cantando se queixa. Eu sigo outro caminho mais fácil, e
a meu parecer o mais acertado, que é dizer mal da ligeireza das
mulheres, de sua inconstância, de seu dúbio trato, de suas promessas
mortas, de sua fé rompida, e, finalmente, da pouca razão que têm em
saber colocar seus pensamentos e intenções; e este foi o motivo,
senhores, das palavras e razões que disse a esta cabra quando aqui
cheguei; que por ser fêmea a tenho em pouco, embora seja a melhor
de todo meu aprisco. Esta é a história que prometi contar-vos; se fui
prolixo ao contá-la, não serei em servir-vos curto: perto daqui tenho
minha cabana, e nela tenho fresco leite e muito saborosíssimo queijo,
com outras várias e sazonadas frutas, não menos à vista que ao gosto
agradáveis.

CAPÍTULO LII

Da pendência que dom Quixote teve com o cabreiro, com a rara


aventura dos penitentes disciplinantes, a que deu feliz fim à custa de
seu suor

Geral gosto causou o conto do cabreiro a todos os que o haviam


escutado; especialmente o recebeu o cônego, que com estranha
curiosidade notou a maneira com que o havia contado, tão longe de
parecer rústico cabreiro quão perto de mostrar-se discreto cortesão;
e assim, disse que havia dito muito bem o padre em dizer que os
montes criavam letrados. Todos se ofereceram a Eugênio; mas o que
mais se mostrou liberal nisto foi dom Quixote, que lhe disse:
- Por certo, irmão cabreiro, que se eu me achasse possibilitado de
poder começar alguma aventura, que logo logo me poria a caminho para
que vós a tivésseis boa; que eu tiraria do monastério (onde, sem dúvida
alguma, deve estar contra sua vontade), a Leandra, apesar da
abadessa e de quantos quisessem perturbá-lo, e a poria em vossas
mãos, para que dispusésseis dela a toda vossa vontade e talante,
guardando, porém, as leis da cavalaria, que mandam que a nenhuma
donzela lhe seja feito agravo algum; embora eu espere em Deus Nosso
Senhor que não há de poder tanto a força de um encantador malicioso,
que não possa mais a de outro encantador melhor intencionado, e para
então vos prometo meu favor e ajuda, como me obriga minha
profissão, que não é outra se não é favorecer aos desvalidos e
necessitados.
Olhou-o o cabreiro, e, como viu dom Quixote com tão mau aspecto e
catadura, admirou-se e perguntou ao barbeiro, que tinha perto de si:
- Senhor, quem é este homem, que tal talhe tem e de tal maneira
fala?
- Quem há de ser - respondeu o barbeiro - senão o famoso dom
Quixote da Mancha, desfazedor de agravos, endireitador de tortos, o
amparo das donzelas, o assombro dos gigantes e o vencedor das
batalhas?
- Isso me semelha - respondeu o cabreiro - ao que se lê nos livros
de cavaleiros andantes, que faziam tudo isso que deste homem vossa
mercê diz; posto que para mim tenho, ou que vossa mercê se burla, ou
que este gentil-homem deve ter vazios os aposentos da cabeça.
- Sois um grandíssimo velhaco - disse então dom Quixote; - e vós
sois o vazio e o minguado, que eu estou mais cheio que jamais o esteve
a muito fidaputa puta que vos pariu.
E dizendo e fazendo, arrebatou um pão que junto a si tinha, e deu
com ele ao cabreiro em todo o rosto, com tanta fúria, que lhe aplastou
o nariz; mas o cabreiro, que não sabia de burlas, vendo com quantas
veras o maltratavam, sem ter respeito à alfombra, nem às toalhas,
nem a todos aqueles que estavam comendo, saltou sobre dom Quixote,
e, tomando-o do pescoço com ambas as mãos, não duvidaria de afogá-
lo, se Sancho Pança não chegasse naquele ponto, e o agarrasse pelas
costas e desse com ele em cima da mesa, quebrando pratos, rompendo
taças e derramando e espargindo quanto nela estava. Dom Quixote,
que se viu livre, acudiu a subir sobre o cabreiro; o qual, cheio de
sangue o rosto, moído a coices por Sancho, andava buscando de gatas
alguma faca da mesa para fazer alguma sanguinolenta vingança, mas
impediam-no o cônego e o padre; mas o barbeiro fez de sorte que o
cabreiro colheu debaixo de si a dom Quixote, sobre o qual choveu
tanto número de tabefes, que do rosto do pobre cavaleiro chovia
tanto sangue como do seu.
Rebentavam de riso o cônego e o padre, saltavam os quadrilheiros
de gozo, provocavam uns e outros, como fazem aos cães quando em
pendência estão travados; só Sancho Pança se desesperava, porque
não se podia livrar de um criado do cônego, que o impedia de ajudar
seu amo.
Em suma, estando todos em regozijo e festa, senão os dois
aporreantes que se arranhavam, ouviram o som de uma trombeta, tão
triste que lhes fez voltar os rostos até onde lhes pareceu que soava;
mas o que mais se alvoroçou de ouvi-lo foi dom Quixote, o qual,
embora estivesse debaixo do cabreiro, muito contra sua vontade e
mais que medianamente moído, disse-lhe:
- Irmão demônio, que não é possível que deixes de sê-lo, pois tiveste
valor e forças para sujeitar as minhas, rogo-te que façamos tréguas,
não mais que por uma hora; porque o doloroso som daquela trombeta
que a nossos ouvidos chega me parece que a alguma nova aventura me
chama.
O cabreiro, que já estava cansado de moer e ser moído, deixou-o
logo, e dom Quixote se pôs em pé, voltando também o rosto onde o
som se ouvia, e viu de repente que por um declive baixavam muitos
homens vestidos de branco, a modo de penitentes disciplinantes.
Era o caso que aquele ano haviam as nuvens negado seu orvalho à
terra, e por todos os lugares daquela comarca se faziam procissões,
rogativas e disciplinas, pedindo a Deus abrisse as mãos de sua
misericórdia e lhes chovesse; e para este efeito as pessoas de uma
aldeia que ficava ali perto vinham em procissão a uma devota ermida
que havia num declive daquele vale.
Dom Quixote, que viu os estranhos trajes dos disciplinantes, sem
passar-lhe pela memória as muitas vezes que os havia de ter visto,
imaginou que era coisa de aventura, e que a ele só tocava, como a
cavaleiro andante, o acometê-la; e confirmou-lhe mais esta imaginação
pensar que uma imagem que traziam coberta de luto fosse alguma
principal senhora que levavam por força aqueles baderneiros e
descomedidos gatunos; e, quando isto lhe veio ao pensamento, com
grande ligeireza arremeteu a Rocinante, que estava pastando, tirando-
lhe do arção o freio e o escudo, e num instante o enfreou, e, pedindo a
Sancho sua espada, subiu sobre Rocinante e embraçou seu escudo, e
disse em alta voz a todos os que estavam presentes:
- Agora, valorosa companhia, vereis quanto importa que haja no
mundo cavaleiros que professem a ordem da andante cavalaria; agora
digo que vereis, na liberdade daquela boa senhora que ali vai cativa, se
se hão de estimar os cavaleiros andantes.
E dizendo isto, apertou os coxas a Rocinante, porque esporas não as
tinha, e, a todo galope, porque carreira estirada não se lê em toda
esta verdadeira história que jamais Rocinante a desse, foi encontrar
com os disciplinantes, bem que fossem o padre e o cônego e barbeiro a
detê-lo; mas não lhes foi possível, nem menos lhe detiveram as vozes
que Sancho lhe dava, dizendo:
- Aonde vai, senhor dom Quixote? Que demônios leva no peito, que
o incitam a ir contra nossa fé católica? Advirta, mal haja eu, que
aquela é procissão de disciplinantes, e que aquela senhora que levam
sobre o pedestal é a imagem benditíssima da Virgem sem mancha;
veja, senhor, o que faz, que por esta vez se pode dizer que não é o que
parece.
Fatigou-se em vão Sancho, porque seu amo ia tão disposto em
chegar aos amortalhados e em livrar a senhora enlutada, que não ouviu
palavra; e, embora a ouvisse, não voltaria, se o rei o mandasse. Chegou,
pois, à procissão, e parou Rocinante, que já levava desejo de quietar-
se um pouco, e com turva e rouca voz disse:
- Vós, que, quiçá por não ser bons, vos encobris os rostos, esperai e
escutai o que dizer-vos quero.
Os primeiros que se detiveram foram os que levavam a imagem; e
um dos quatro clérigos que cantavam as litanias, vendo a estranha
catadura de dom Quixote, a magreza de Rocinante e outras
circunstâncias de riso que notou e descobriu em dom Quixote, lhe
respondeu dizendo:
- Senhor irmão, se nos quer dizer algo, diga-o logo, porque estão
estes irmãos abrindo as carnes, e não podemos, nem é razão que nos
detenhamos a ouvir coisa alguma, se já não é tão breve que em duas
palavras se diga.
- Em uma o direi - replicou dom Quixote, - e é esta: que
imediatamente deixeis livre essa formosa senhora, cujas lágrimas e
triste semblante dão claras mostras que a levais contra sua vontade e
que algum notório agravo lhe fizestes; e eu, que nasci no mundo para
desfazer semelhantes agravos, não consentirei que um só passo
adiante passe sem dar-lhe a desejada liberdade que merece.
Por estas palavras, compreenderam todos os que as ouviram que
dom Quixote devia ser algum homem louco, e riram muito; cujo riso
pôs pólvora na cólera de dom Quixote, porque, sem dizer mais palavra,
tirando a espada, arremeteu às andas. Um daqueles que as levavam,
deixando a carga a seus companheiros, saiu ao encontro de dom
Quixote, erguendo uma forquilha ou bastão com que sustentava as
andas enquanto descansava; e, recebendo nela uma grande cutilada
que lhe atirou dom Quixote, com que a fez em duas partes, com o
último terço, que lhe ficou na mão, deu tal golpe a dom Quixote em
cima de um ombro, pelo mesmo lado da espada - que não pôde cobrir o
escudo contra força de vilão -, que o pobre dom Quixote veio ao chão
muito mal parado.
Sancho Pança, que arfando lhe ia ao alcance, vendo-o caído, deu
vozes a seu moedor que não lhe desse outro golpe, porque era um
pobre cavaleiro encantado, que não havia feito mal a ninguém em todos
os dias de sua vida. Mas, o que deteve o vilão não foram as vozes de
Sancho, senão o ver que dom Quixote não bulia pé nem mão; e assim,
crendo que o havia matado, com pressa alçou a túnica à cinta, e deu a
fugir pelo campo como um gamo.
Já nisto chegaram todos os da companhia de dom Quixote onde ele
estava; e mais os da procissão, que os viram vir correndo, e com
eles os quadrilheiros com suas bestas, temeram algum desastre, e
fizeram todos um remoinho de gente ao redor da imagem; e, alçados
os capuzes, empunhando as disciplinas, e os clérigos os ciriais,
esperavam o assalto com determinação de defender-se, e ainda
ofender, se pudessem, a seus acometedores; mas a fortuna o fez
melhor que se pensava, porque Sancho não fez outra coisa que
arrojar-se sobre o corpo de seu senhor, fazendo sobre ele o mais
doloroso e cômico pranto do mundo, crendo que estava morto.
O padre foi reconhecido por outro padre que vinha na procissão,
cujo conhecimento pôs em sossego o justificado temor dos dois
esquadrões. O primeiro padre deu ao segundo, em duas palavras, conta
de quem era dom Quixote, e assim ele como toda a turba dos
disciplinantes foram ver se estava morto o pobre cavaleiro, e ouviram
que Sancho Pança, com lágrimas nos olhos, dizia:
- Oh flor da cavalaria, que com só uma bordoada acabaste a
carreira de teus tão bem gastados anos! Oh honra de tua linhagem,
honra e glória de toda a Mancha, e ainda de todo o mundo, o qual,
faltando tu nele, ficará cheio de malfeitores, sem temor de ser
castigados de suas más feitorias! Oh liberal sobre todos os
Alexandres, pois por só oito meses de serviço me tinhas dada a melhor
ilha que o mar cinge e rodeia! Oh humilde com os soberbos e arrogante
com os humildes, acometedor de perigos, sofredor de afrontas,
enamorado sem causa, imitador dos bons, açoite dos maus, inimigo dos
ruins, enfim, cavaleiro andante, que é tudo o que dizer se pode!
Com as vozes e gemidos de Sancho reviveu dom Quixote, e a
primeira palavra que disse foi:
- O que de vós vive ausente, dulcíssima Dulcineia, a maiores misérias
que estas está sujeito. Ajuda-me, Sancho amigo, a pôr-me sobre o
carro encantado, que já não estou para oprimir a sela de Rocinante,
porque tenho todo este ombro feito em pedaços.
- Isso farei eu de muito bom grado, senhor meu - respondeu
Sancho, - e voltemos à minha aldeia em companhia destes senhores,
que seu bem desejam, e ali daremos ordem de fazer outra saída que
nos seja de mais proveito e fama.
- Bem dizes, Sancho - respondeu dom Quixote, - e será grande
prudência deixar passar o mau influxo das estrelas que agora corre.
O cônego e o padre e barbeiro lhe disseram que faria muito bem em
fazer o que dizia; e assim, havendo recebido grande gosto das
simplicidades de Sancho Pança, puseram dom Quixote no carro, como
antes vinha. A procissão voltou a ordenar-se e a prosseguir seu
caminho; o cabreiro se despediu de todos; os quadrilheiros não
quiseram passar adiante, e o padre lhes pagou o que se lhes devia. O
cônego pediu ao padre que o mantivesse a par do caso de dom
Quixote, se se curava de sua loucura ou se prosseguia nela, e com isto
tomou licença para seguir sua viagem. Enfim, todos se dividiram e
afastaram, ficando só o padre e barbeiro, dom Quixote e Pança, e o
bom de Rocinante, que a tudo o que havia visto estava com tanta
paciência como seu amo.
O boieiro cangou seus bois e acomodou dom Quixote sobre um feixe
de feno, e com sua costumeira fleugma seguiu o caminho que o padre
quis, e ao cabo de seis dias chegaram à aldeia de dom Quixote, onde
entraram no meio do dia, que calhou de ser domingo, e as pessoas
estavam todas na praça, pelo meio da qual atravessou o carro de dom
Quixote. Acudiram todos a ver quem vinha no carro, e, quando
reconheceram seu compatriota, ficaram maravilhados, e um moço
acudiu correndo a dar as novas à sua ama e à sua sobrinha de que seu
tio e seu senhor vinha magro e amarelo, e estendido sobre um montão
de feno e sobre um carro de bois. Coisa de lástima foi ouvir os gritos
que as duas boas senhoras alçaram, as bofetadas que se deram, as
maldições que de novo lançaram aos malditos livros de cavalarias; tudo
o que se renovou quando viram entrar dom Quixote por suas portas.
Às novas desta vinda de dom Quixote, acudiu a mulher de Sancho
Pança, que já havia sabido que havia ido com ele servindo-o de
escudeiro, e, assim que viu Sancho, a primeira coisa que lhe perguntou
foi se vinha bom o asno. Sancho respondeu que vinha melhor que seu
amo.
- Graças sejam dadas a Deus - replicou ela, - que tanto bem me fez;
mas contai-me agora, amigo: que bem haveis tirado de vossas
escuderias? Que roupa me trazes? Que sapatinhos a vossos filhos?
- Não trago nada disso - disse Sancho, - mulher minha, embora
traga outras coisas de mais momento e consideração.
- Disso recebo eu muito gosto - respondeu a mulher; - mostrai-me
essas coisas de mais consideração e mais momento, amigo meu, que as
quero ver, para que se me alegre este coração, que tão triste e
descontente tem estado em todos os séculos de vossa ausência.
- Em casa vo-las mostrarei, mulher - disse Pança, - e por agora estai
contente, que, sendo Deus servido de que outra vez saiamos em
viagem a buscar aventuras, vós me vereis logo conde ou governador de
uma ilha, e não das comuns, senão a melhor que possa achar-se.
- Queira-o assim o céu, marido meu; que bem o precisamos. Mas
dizei-me que é isso de ilhas, que não o entendo.
- Não é o mel para a boca do asno - respondeu Sancho; - a seu
tempo o verás, mulher, e ainda te admirarás de ouvir-te chamar
senhoria de todos teus vassalos.
- Que é o que dizeis, Sancho, de senhorias, ilhas e vassalos? -
respondeu Joana Pança, que assim se chamava a mulher de Sancho,
embora não fossem parentes, senão porque se usa na Mancha as
mulheres tomar o apelido de seus maridos.
- Não te apresses, Joana, por saber tudo isto tão depressa; basta
que te digo verdade, e cose a boca. Só te saberei dizer, assim de
passagem, que não há coisa mais gostosa no mundo que ser um homem
honrado escudeiro de um cavaleiro andante buscador de aventuras.
Bem é verdade que as mais que se acham não saem tão a gosto como o
homem queria, porque de cem que se encontram, noventa e nove
costumam sair avessas e torcidas. Sei-o eu de experiência, porque de
algumas saí manteado, e de outras moído; entretanto, é linda coisa
esperar os acontecimentos atravessando montes, esquadrinhando
selvas, pisando penhas, visitando castelos, alojando-se em estalagens
com toda discrição, sem pagar nem um maldito maravedi.
Todas estas conversas se passaram entre Sancho Pança e Joana
Pança, sua mulher, enquanto a ama e sobrinha de dom Quixote o
receberam, e o desnudaram, e o estenderam em seu antigo leito.
Olhava-as ele com olhos atravessados, e não acabava de entender em
que parte estava. O padre encarregou à sobrinha tivesse grande conta
com regalar a seu tio, e que estivessem alerta de que outra vez não se
lhes escapasse, contando o que havia sido preciso para trazê-lo à sua
casa. Aqui alçaram as duas de novo os gritos ao céu; ali se renovaram
as maldições dos livros de cavalarias, ali pediram ao céu que
confundisse no centro do abismo os autores de tantas mentiras e
disparates. Finalmente, elas ficaram confusas e temerosas de que se
haviam de ver sem seu amo e tio no mesmo momento em que tivesse
alguma melhoria; e sim foi como elas o imaginaram.
Mas o autor desta história, posto que com curiosidade e diligência
buscou os feitos que dom Quixote fez em sua terceira saída, não pôde
achar notícia delas, ao menos por escrituras autênticas; só a fama
guardou, nas memórias da Mancha, que dom Quixote, a terceira vez
que saiu de sua casa, foi a Saragoça, onde se achou em umas famosas
justas que naquela cidade fizeram, e ali lhe passaram coisas dignas de
seu valor e bom entendimento. Nem de seu fim e acabamento pôde
alcançar coisa alguma, nem a alcançaria nem saberia se a boa sorte não
lhe deparasse um antigo médico que tinha em seu poder uma caixa de
chumbo, que, segundo ele disse, se havia achado nos cimentos
derrubados de uma antiga ermida que se renovava; na qual caixa se
haviam achado uns pergaminhos escritos com letras góticas, mas em
versos castelhanos, que continham muitas de suas façanhas e davam
notícia da formosura de Dulcineia do Toboso, da figura de Rocinante,
da fidelidade de Sancho Pança e da sepultura do mesmo dom Quixote,
com diferentes epitáfios e elogios de sua vida e costumes.
E os que se puderam ler e tirar a limpo foram os que aqui põe o
fidedigno autor desta nova e jamais vista história. O qual autor não
pede aos que a lerem, em prêmio do imenso trabalho que lhe custou
inquirir e buscar todos os arquivos manchegos, por dá-la a luz, senão
que lhe deem o mesmo crédito que costumam dar os discretos aos
livros de cavalarias, que tão valorizados andam no mundo; que com isto
se terá por bem pago e satisfeito, e se animará a buscar outras, se
não tão verdadeiras, ao menos, de tanta invenção e passatempo.
As primeiras palavras que estavam escritas no pergaminho que se
achou na caixa de chumbo eram estas:

Os acadêmicos da Argamasilla, lugar da Mancha, em vida e morte


do valoroso dom Quixote da Mancha, “hoc scripserunt”

O MONICONGO,
ACADÊMICO DA ARGAMASILLA,
À SEPULTURA DE DOM QUIXOTE

Epitáfio

O doido estrondeante que adornou a Mancha


de mais despojos que Jasão decreta;
o malucão que via o torto
em toda a parte,
o braço que sua força tanto ensancha,
que chegou do Catai até Gaeta,
A musa mais horrenda e mais discreta
que gravou versos na brônzea prancha,
o que para trás deixou os Amadises,
e em muito pouco a Galaores teve,
estribado em seu amor e bizarria,
o que fez calar os Belianises,
aquele que em Rocinante errando andou,
jaz debaixo desta lousa fria.

DO APANIAGUADO, ACADÊMICO DA ARGAMASILLA,


“IN LAUDEM DULCINEAE DEL TOBOSO”

Soneto

Esta que vedes de rosto inchado,


alta de peitos e ademã brioso,
é Dulcineia, rainha do Toboso,
de quem foi o grande Quixote aficionado.
Pisou por ela um e outro lado
da grande Serra Negra, e o famoso
campo de Montiel, até o herboso
chão de Aranjuez, a pé e cansado:
(culpa de Rocinante). Oh dura estrela!,
Que esta manchega dama, e este invicto
andante cavaleiro, em ternos anos,
ela deixou, morrendo, de ser bela;
e ele, embora fica em mármores escrito,
não pôde fugir de amor, iras e enganos.

DO FANTÁSTICO, DISCRETÍSSIMO
ACADÊMICO DA ARGAMASILLA,
EM LOUVOR DE ROCINANTE,
CAVALO DE DOM QUIXOTE DA MANCHA

Soneto

No soberbo trono diamantino


que com sangrentas plantas pisa Marte,
frenético, o Manchego seu estandarte
tremula com esforço peregrino.
Pendura as armas e o aço fino
com que destroça, assola, racha e parte:
novas proezas!, mas inventa a arte
um novo estilo ao novo paladino.
E se de seu Amadis se preza Gaula,
por cujos bravos descendentes Grécia
triunfou mil vezes e sua fama ensancha,
hoje a Quixote lhe coroa a aula
do Belona preside, e dele se preza,
mais que Grécia nem Gaula, a alta Mancha.
Nunca suas glórias o olvido mancha,
pois até Rocinante, em ser galhardo,
excede a Brilladoro e a Baiardo.

DO ENGANADOR,
ACADÊMICO ARGAMASILLESCO,
A SANCHO PANÇA

Soneto

Sancho Pança é este, em corpo chico,


mas grande em valor, milagre estranho!,
escudeiro o mais ingênuo e sem engano
que teve o mundo, vos juro e certifico.
De ser conde não esteve num tantico,
se não se conjurassem em seu dano
insolências e agravos do tacanho
século, que ainda não perdoam a um burrico.
Sobre ele andou (com perdão se mente)
este manso escudeiro, atrás do manso
cavalo Rocinante e atrás de seu dono.
Oh vãs esperanças da gente,
como passais com prometer descanso
e ao fim parais em sombra, em fumo, em sonho!

DO CACHIDIABO,
ACADÊMICO DA ARGAMASILLA,
NA SEPULTURA DE DOM QUIXOTE
Epitáfio

Aqui jaz o cavaleiro,


bem moído e mal andante,
a quem levou Rocinante
por um e outro sendeiro.
Sancho Pança o tonto
jaz também junto a ele,
escudeiro o mais fïel
que viu o ofício de escudeiro.

DO TIQUITOC,
ACADÊMICO DA ARGAMASILLA,
NA SEPULTURA DE DULCINEIA DO TOBOSO

Epitáfio

Repousa aqui Dulcineia;


e, embora de carnes roliça,
a voltou em pó e cinza
a morte espantável e feia.
Foi de castiça ralé,
e teve assomos de dama;
do grande Quixote foi chama,
e foi glória de sua aldeia.

Estes foram os versos que se puderam ler; os demais, por estar


carcomida a letra, se entregaram a um acadêmico para que por
conjecturas os declarasse. Tem-se notícia que o fez, à custa de
muitas vigílias e muito trabalho, e que tem intenção de trazê-los à luz,
com esperança da terceira saída de dom Quixote.

Forse altro canterà con miglior plectro.

FINIS
PORTADA 

SEGUNDA PARTE
DO ENGENHOSO
CAVALEIRO DOM
QUIXOTE DA
MANCHA.
Por Miguel de Cervantes Saavedra, autor de sua primeira parte.
Dirigida a dom Pedro Fernández de Castro, Conde de Le-
mos, de Andrade, e de Villalba, Marquês de Sarria, Gentil-
homem da Câmara de Sua Majestade, Comendador da
Encomenda de Penafiel, e a Sarça da Ordem de Al-
cântara, Vice-rei, Governador, e Capitão General 
do Reino de Nápoles, e Presidente do Su-
premo Conselho da Itália.
Ano 1615
COM PRIVILÉGIO
Em Madrid, Por Juan de Cuesta.
Vende-se em casa de Francisco de Robles, livreiro do Rei  N.S.

TAXA
Eu, Fernando de Vallejo, escrivão de Câmara do Rei nosso Senhor, dos
que residem em seu Conselho, dou fé que, havendo-se visto pelos
senhores dele um livro que compôs Miguel de Cervantes Saavedra,
intitulado Dom Quijote da Mancha, Segunda parte, que com licença de
Sua Majestade foi impresso, taxaram-no a quatro maravedis cada
folha, o qual tem setenta e três folhas, que ao dito respeito soma e
monta duzentos e noventa e dois maravedis; e mandaram que esta
taxa se ponha ao princípio de cada volume do dito livro, para que se
saiba e entenda o que por ele se há de pedir e levar, sem que se
exceda nisso de maneira alguma, como consta e parece pelo auto e
decreto original sobre ele dado e que fica em meu poder, a que me
refiro. E de mandamento dos ditos senhores do Conselho e de pedido
da parte do dito Miguel de Cervantes, dei esta fé em Madri, a vinte e
um dias do mês de outubro de mil e seiscentos e quinze.
Fernando de Vallejo
FÉ DE ERRATAS
Vi este livro intitulado Segunda parte de dom Quixote da Mancha,
composto por Miguel de Cervantes Saavedra, e não há nele coisa digna
de notar que não corresponda a seu original. Dada en Madrid a vinte e
um de outubro, mil e seiscentos e quinze.
O Licenciado Francisco Murcia de la Llana

APROVAÇÃO DO DOUTOR 
GUTIERRE DE CETINA
Por comissão e mandado dos senhores do Conselho, fiz ver o livro
contido neste memorial. Não contém coisa contra a fé e bons
costumes, antes é livro de muito entretenimento lícito, mesclado de
muita filosofia moral. Pode-se dar licença para imprimi-lo. Em Madri, a
cinco de novembro de mil seiscentos e quinze.
Doctor Gutierre de Cetina

APROVAÇÃO DO MESTRE 
JOSEF DE VALDIVIELSO

Por comissão e mandado dos senhores do Conselho vi a Segunda parte


de dom Quixote da Mancha, por Miguel de Cervantes Saavedra. Não
contém coisa contra nossa santa fé católica e bons costumes, antes
muitas de honesta recreação e aprazível divertimento, que os antigos
julgaram convenientes a suas repúblicas, pois ainda na severa dos
lacedemônios levantaram estátua ao riso, e os de Tessália lhe
dedicaram festas, como o diz Pausânias, referido de
Bósio, livro 2º  “De signis Ecclesiae”, capitulo 10º, alentando ânimos
murchos e espíritos melancólicos, de que se recordou Túlio no
primeiro De legibus, e o poeta dizendo:

Interpone tuis interdum gaudia curis,


o qual faz o autor mesclando as verdades às burlas, o doce ao
proveitoso e o moral ao faceto, dissimulando na isca do donaire o anzol
da repreensão e cumprindo com o acertado assunto em que pretende a
expulsão dos livros de cavalarias, pois com sua boa diligência
manhosamente limpou de sua contagiosa dolência a estes reinos. É
obra mui digna de seu grande engenho, honra e lustre de nossa nação,
admiração e inveja das estranhas. Este é meu parecer, salvo, etc. Em
Madri, a 17 de março de 1615.
O Mestre Josef de Valdivielso

APROVAÇÃO DO LICENCIADO 
MÁRQUEZ TORRES

Por comissão do senhor Doutor Gutierre de Cetina, vigário geral desta


cidade de Madri, corte de Sua Majestade, vi este livro da Segunda
parte do engenhoso cavaleiro dom Quixote da Mancha , por Miguel de
Cervantes Saavedra, e não acho nele coisa indigna de um cristão
zeloso nem que destoe da decência devida a bom exemplo nem
virtudes morais, antes muita erudição e aproveitamento, assim na
continência de seu bem seguido assunto, para extirpar os vãos e
mentirosos livros de cavalarias, cujo contágio se havia espalhado mais
do que seria justo, como na lisura da língua castelhana, no adulterado
com enfadonha e estudada afetação, vício com razão aborrecido por
homens lúcidos; e na correção de vícios que geralmente toca,
ocasionado por seus agudos discursos, guarda com tanta cordura as
leis de repreensão cristã, que aquele que for tocado pela enfermidade
que pretende curar, no doce e saboroso de suas medicinas
gostosamente haverá bebido, quando menos o imagine, sem pejo nem
asco algum, o proveitoso da repugnância de seu vício, com que se
achará, que é o mais difícil de conseguir-se, gostoso e repreendido.
Houve muitos que, por não haver sabido temperar nem mesclar a
propósito o útil com o doce, deram com todo seu molesto trabalho em
terra, pois, não podendo imitar Diógenes no filósofo e douto, atrevida,
por não dizer licenciosa e erradamente, pretendem imitá-lo no cínico,
entregando-se a maldizentes, inventando casos que não se passaram
para tornar correto o vício que tocam de sua áspera repreensão, e
porventura descobrem caminhos para seguir até então ignorados, com
que vêm a ficar, se não repreensores, ao menos mestres dele. Fazem-
se odiosos aos bem entendidos; com o povo perdem o crédito, se algum
tiveram, para admitir seus escritos; e os vícios que arrojada e
imprudentemente quiserem corrigir, em mui pior estado que antes, que
não todas os abscessos a um mesmo tempo estão dispostos para
admitir as receitas ou cautérios, antes alguns muito melhor recebem
as brandas e suaves medicinas, com cuja aplicação o atento e douto
médico consegue o fim de abri-los, objetivo que muitas vezes é melhor
que o que se alcança com o rigor do ferro.
Bem diferente sentiram dos escritos de Miguel Cervantes assim nossa
nação como as estranhas, pois como a milagre desejam ver o autor de
livros que com geral aplauso, assim por seu decoro e decência como
pela suavidade e brandura de seus discursos, receberam Espanha,
França, Itália, Alemanha e Flandres. Certifico com verdade que em
vinte e cinco de fevereiro deste ano de seiscentos e quinze, havendo
ido o ilustrísimo senhor dom Bernardo de Sandoval e Rojas, cardeal
arcebispo de Toledo, meu senhor, a pagar a visita que a Sua
Ilustríssima fez o embaixador da França, que veio tratar coisas
tocantes aos casamentos de seus príncipes e os da Espanha, muitos
cavaleiros franceses dos que vieram acompanhando o embaixador, tão
corteses como entendidos e amigos de boas letras, chegaram-se a mim
e a outros capelães do cardeal meu senhor, desejosos de saber que
livros de engenho tinham mais valor; e tocando acaso neste que eu
estava censurando, apenas ouviram o nome de Miguel de Cervantes,
quando começaram a louvar, encarecendo a estimação que assim na
França como nos reinos seus confinantes tinham suas obras: A
Galateia, que algum deles tem quase de memória, a primeira parte
desta e as Novelas. Foram tantos seus encarecimentos, que me
ofereci para levá-los a ver o autor delas, que estimaram com mil
demonstrações de vivos desejos. Perguntaram-me em pormenores sua
idade, sua profissão, qualidade e quantidade. Vi-me obrigado a dizer
que era velho, soldado, fidalgo e pobre, a que um respondeu estas
formais palavras: “Mas a tal homem não o tem a Espanha mui rico e
sustentado pelo erário público?”. Acudiu ootro daqueles cavaleiros
com este pensamento, e com muita agudeza, e disse: “Se a
necessidade o há de obrigar a escrever, praza a Deus que nunca tenha
abundância, para que com suas obras, sendo ele pobre, faça rico a
todo o mundo”. Bem creio que está, para censura, um pouco prolixa;
alguém dirá que toca os limites de lisonjeiro elogio; mas a verdade do
que brevemente digo desfaz no crítico a suspeita e em mim o cuidado:
ainda mais que hoje em dia não se lisonjeia a quem não tem com que
cevar o bico do adulador, que, embora afetuosa e falsamente o diz por
brincadeira, pretende ser remunerado de verdade. Em Madri, a vinte
e sete de fevereiro de mil e seiscentos e quinze.
O Licenciado Márquez Torres

PRIVILÉGIO
Por quanto por parte de vós, Miguel de Cervantes Saavedra, nos foi
feita relação que havíeis composto a Segunda parte de dom Quixote
da Mancha, da qual fazíeis apresentação, e por ser livro de história
agradável e honesta, e haver-vos custado muito trabalho e estudo, nos
suplicastes vos mandássemos dar licença para o poder imprimir e
privilégio por vinte anos, ou como a nossa mercê fosse; o qual visto
pelos do nosso Conselho, por quanto no dito livro se fez a diligência
que a lei por nós sobre ele feita dispõe, foi acordado que devíamos
mandar dar esta nossa cédula na dita razão, e nós o tivemos por bem.
Pela qual vos damos licença e faculdade para que por tempo e espaço
de dez anos cumpridos primeiros seguintes, que corram e se contem
desde o dia da data desta nossa cédula em diante, vós, ou a pessoa que
para isso vosso poder tiver, e não outra alguma, possais imprimir e
vender o dito livro de que acima se faz menção, e pela presente damos
licença e faculdade a qualquer impressor de nossos reinos que
nomeardes para que durante no dito tempo o possa imprimir pelo
original que no nosso Conselho se viu, que vai rubricado e firmado ao
fim por Fernando de Vallejo, nosso escrivão de Câmara e um dos que
nele residem, com que antes e primeiro que se venda o tragais ante
eles, juntamente com o dito original, para que se veja se a dita
impressão está conforme a ele, ou tragais fé em pública forma como
por corretor por nós nomeado se viu e corrigiu a dita impressão pelo
dito original. E mandamos ao dito impressor que assim imprimir o dito
livro não imprima o princípio e primeira folha dele, nem entregue mais
de um só livro com o original ao autor e pessoa a cuja custa o imprimir,
nem a outra alguma, para efeito da dita correção e taxa, até que antes
e primeiro o dito livro esteja corrigido e taxado pelos do nosso
Conselho; e estando feito, e não de outra maneira, possa imprimir o
dito princípio e primeira folha, no qual imediatamente ponha esta
nossa licença e a aprovação, taxa e erratas, nem o possais vender nem
vendais vós nem outra pessoa alguma até que esteja o dito livro na
forma dita acima, sob pena de cair e incorrer nas penas contidas na
dita lei e leis de nossos reinos que sobre isso dispõem. E mais que
durante o dito tempo pessoa alguma sem vossa licença não o possa
imprimir nem vender, sob pena que o que o imprimir e vender haja
perdido e perca quaisquer livros, moldes e aparelhos que dele tiver, e
mais incorra em pena de cinquenta mil maravedis por cada vez que o
contrário fizer, da qual dita pena seja a terça parte para nossa
Câmara, e a outra terça parte para o juiz que o sentenciar, e a outra
terça parte para o que o denunciar. E mais aos do nosso Conselho,
presidentes, ouvidores das nossas Audiências, alcaides, meirinhos da
nossa Casa e Corte e Chancelarias, e a outras quaisquer justiças de
todas as cidades, vilas e lugares dos nossos reinos e senhorios e a
cada um em sua jurisdição, assim aos que agora são como aos que
serão daqui em diante, que vos guardem e cumpram esta nossa cédula
e mercê que assim vos fazemos, e contra ela não vão nem passem de
maneira alguma, sob pena da nossa mercê e de dez mil maravedis para
a nossa Câmara. Dada em Madri, a trinta dias do mês de março de mil
e seiscentos e quinze anos.
EU O REI

Por mandado do Rei nosso Senhor:


        Pedro de Contreras
PRÓLOGO AO LEITOR

Valha-me Deus, e com quanta vontade deves estar esperando agora,


leitor ilustre, ou acaso plebeu, este prólogo, crendo achar nele
vinganças, rixas e vitupérios do autor do segundo Dom Quixote; digo
daquele que dizem que se engendrou em Tordesilhas e nasceu em
Tarragona! Pois em verdade que não te hei dar este prazer; que, posto
que os agravos despertam a cólera nos mais humildes peitos, no meu
há de padecer exceção esta regra. Quiseras tu que o daria do asno, do
mentecapto e do atrevido, mas não me passa pelo pensamento: ele não
me importa em absoluto. O que não pude deixar de sentir é que me
note por velho e manco, como se estivesse em minhas mãos deter o
tempo, que não passasse por mim, ou se minha manqueira houvesse
nascido em alguma taberna, e não na mais alta ocasião que viram os
séculos passados, os presentes, nem esperam ver os vindouros. Se
minhas feridas não resplandecem nos olhos de quem as vê, são
estimadas, ao menos, na estimação dos que sabem onde ocorreram;
que o soldado mais bem parece morto na batalha que livre na fuga; e é
isto em mim de maneira, que se agora me propusessem e facilitassem
um impossível, quisera antes haver-me achado naquela batalha
prodigiosa que curado agora de minhas feridas sem haver-me achado
nela. As que o soldado mostra no rosto e nos peitos, estrelas são que
guiam aos demais ao céu da honra, e ao de desejar a justa louvação; e
há-se de advertir que não se escreve com as cãs, senão com o
entendimento, o qual costuma melhorar-se com os anos.
Senti também que me chame invejoso, e que, como a ignorante, me
descreva que coisa seja a inveja; que, em realidade de verdade, de
duas que há, eu não conheço senão a santa, a nobre e bem
intencionada; e, sendo isto assim, como o é, não tenho eu de perseguir
nenhum sacerdote, e mais se tem por acréscimo ser familiar do Santo
Ofício; e se ele o disse por quem parece que o disse, enganou-se de
todo em todo: que desse adoro o engenho, admiro as obras e a
ocupação contínua e virtuosa. Mas, com efeito, lhe agradeço a este
senhor autor o dizer que minhas novelas são mais satíricas que
exemplares, mas que são boas; e não o poderiam ser se não tivessem
de todo.
Parece-me que me dizes que ando muito limitado e que me contenho
muito nos termos de minha modéstia, sabendo que não se há juntar
aflição ao aflito, e que a que deve ter este senhor sem dúvida é
grande, pois não ousa aparecer em campo aberto e céu claro,
encobrindo seu nome, fingindo sua pátria, como se houvesse feito
alguma traição de lesa-majestade. Se, porventura, chegares a
conhecê-lo, diz-lhe de minha parte que não me tenho por agravado:
que bem sei o que são tentações do demônio, e que uma das maiores é
pôr um homem no entendimento que pode compor e imprimir um livro,
com que ganhe tanta fama como dinheiros, e tantos dinheiros quanta
fama; e, para confirmação disto, quero que em teu bom donaire e
graça lhe contes este conto:
Havia em Sevilha um louco que foi tomado pelo mais gracioso
disparate e obsessão que atingiu algum louco no mundo. E foi que fez
um canudo de vara pontiagudo no fim, e, colhendo algum cão na rua, ou
em qualquer outra parte, com um pé lhe colhia o seu, e o outro lhe
alçava com a mão, e como melhor podia lhe acomodava o canudo na
parte que, soprando-lhe, o punha redondo como uma pelota; e, tendo-o
desta sorte, lhe dava duas palmadinhas na barriga, e o soltava,
dizendo aos circunstantes, que sempre eram muitos: “Pensarão vossas
mercês agora que é pouco trabalho inflar um cão?”. Pensará vossa
mercê agora que é pouco trabalho fazer um livro?
E se este conto não lhe quadrar, dir-lhe-ás, leitor amigo, este, que
também é de louco e de cão:
Havia em Córdova outro louco, que tinha por costume trazer em
cima da cabeça um pedaço de lousa de mármore, ou uma pedra não
muito leve, e, topando algum cão descuidado, se chegava, e a prumo
deixava cair sobre ele o peso. Amofinava-se o cão, e, dando ladridos e
uivos, não parava em três ruas. Sucedeu, pois, que, entre os cães que
descarregou a carga, foi um um cão de um chapeleiro, a quem queria
muito seu dono. Baixou a pedra, deu-lhe na cabeça, alçou o grito o
moído cão, viu-o e sentiu-o seu amo, pegou uma vara de medir, e saiu
ao encontro do louco e não lhe deixou osso são; e cada golpe que lhe
dava dizia: “Cão ladrão, bateu em meu perdigueiro? Não viste, cruel,
que era perdigueiro meu cão?” E repetindo-lhe o nome de perdigueiro
muitas vezes, moeu-o todo. Arrependeu-se o louco e retirou-se, e em
mais de um mês não saiu à praça; ao cabo do qual tempo, voltou com
sua invenção e com mais carga. Chegava onde estava o cão, e, mirando-
o muito fixamente, e sem querer nem atrever-se a descarregar a
pedra, dizia: “- Este é perdigueiro: cuidado!”. Com efeito, todos
quantos cães topava, embora fossem alãos, ou vira-latas, dizia que
eram perdigueiros; e assim, não soltou mais a pedra. Quiçá desta
sorte lhe poderá acontecer a este historiador: que não se atreverá a
soltar mais a presa de seu engenho em livros que, sendo maus, são
mais duros que as penhas.
Diz-lhe também que da ameaça que me faz, de que me há de tirar o
ganho com seu livro, nada se me dá, que, acomodando-me ao entremez
famoso de A Perendenga, lhe respondo que me viva o vinte e quatro,
meu senhor, e Cristo com todos. Viva o grande conde de Lemos, cuja
cristandade e liberalidade, bem conhecida, contra todos os golpes de
minha pequena fortuna me tem em pé, e viva-me a suma caridade do
ilustríssimo de Toledo, dom Bernardo de Sandoval e Rojas, e sequer
haja tipografias no mundo, e sequer se imprimam contra mim mais
livros que têm letras as coplas de Mingo Revulgo. Estes dois príncipes,
sem que os solicite adulação minha nem outro gênero de aplauso, por
só sua bondade, tomaram a seu encargo o fazer-me mercê e
favorecer-me; no que me tenho por mais ditoso e mais rico que se a
fortuna por caminho ordinário me houvesse posto em seu cume. A
honra pode-a ter o pobre, mas não o prazenteiro; a pobreza pode
nublar a nobreza, mas não escurecê-la de todo; mas, quando a virtude
dê alguma luz de si, embora seja pelos inconvenientes e resquícios da
estreiteza, vem a ser estimada dos altos e nobres espíritos, e, por
conseguinte, favorecida.
E não lhe digas mais, nem eu quero dizer-te mais a ti, senão
advertir-te que consideres que esta segunda parte de Dom Quixote
que te ofereço é cortada pelo mesmo artífice e do mesmo pano que a
primeira, e que nela te dou dom Quixote dilatado, e, finalmente, morto
e sepultado, para que ninguém se atreva a levantar-lhe novos
testemunhos, pois bastam os passados e basta também que um homem
honrado haja dado notícia destas discretas loucuras, sem querer de
novo entrar nelas: que a abundância das coisas, embora sejam boas,
faz que não se estimem, e a carestia, ainda das más, se estima em
algo. Esquece-se-me de dizer-te que esperes o Persiles, que já estou
acabando, e a segunda parte de Galateia.

DEDICATÓRIA. AO CONDE DE LEMOS

Enviando a Vossa Excelência nos dias passados minhas comédias,


antes impressas que representadas, se bem me lembro, disse que dom
Quixote ficava calçadas as esporas para ir a beijar as mãos a Vossa
Excelência; e agora digo que as calçou e se pôs a caminho, e se ele lá
chega, me parece que terei feito algum serviço a Vossa Excelência,
porque é muita a pressa que de infinitas partes me dão a que lhe envie
para tirar o amargo e a náusea que causou outro dom Quixote que com
nome de Segunda parte se disfarçou e correu pelo mundo. E o que
mais mostrou desejá-lo foi o grande imperador da China, pois em
língua chinesa haverá um mês que me escreveu uma carta por um
emissário, pedindo-me, ou, por melhor dizer, suplicando-me se lhe
enviasse, porque queria fundar um colégio onde se lesse a língua
castelhana, e queria que o livro que se lesse fosse o da história de
dom Quixote. Juntamente com isto, me dizia que fosse eu a ser o
reitor do tal colégio. Perguntei ao portador se Sua Majestade havia
dado para mim alguma ajuda de custo. Respondeu-me que nem por
pensamento.
- Pois, irmão - lhe respondi eu, - vós podeis voltar à vossa China
depressa ou devagar, porque eu não estou com saúde para pôr-me em
tão longa viagem; ademais que, sobre estar enfermo, estou muito sem
dinheiros, e imperador por imperador, e monarca por monarca, em
Nápoles tenho o grande conde de Lemos, que, sem tantos titulinhos de
colégios nem reitorias, me sustenta, me ampara e faz mais mercê que
a que eu desejo.
Com isto o despedi e com isto me despeço, oferecendo a Vossa
Excelência Os Trabalhos de Persiles e Sigismunda , livro ao qual darei
fim dentro de quatro meses, Deo volente, o qual há de ser ou o pior ou
o melhor que em nossa língua se compôs, quero dizer dos de
entretenimento; e digo que me arrependo de haver dito o pior, porque,
segundo a opinião de meus amigos, há de chegar ao extremo de
bondade possível. Venha Vossa Excelência com a saúde que é
desejado; que já estará Persiles para beijar-lhe as mãos, e eu os pés,
como criado que sou de Vossa Excelência. De Madrid, último de
outubro de mil seiscentos e quinze.
Criado de Vossa Excelência,

Miguel de Cervantes Saavedra


SEGUNDA PARTE DO ENGENHOSO CAVALEIRO
DOM QUIXOTE DA MANCHA (1615)

CAPÍTULO PRIMEIRO

Do que o padre e o barbeiro trataram com dom Quixote acerca de sua


enfermidade

Conta Cide Hamete Benengeli, na segunda parte desta história e


terceira saída de dom Quixote, que o padre e o barbeiro estiveram
quase um mês sem vê-lo, para não renovar-lhe e trazer-lhe à memória
as coisas passadas; mas não por isto deixaram de visitar a sua
sobrinha e a sua ama, encarregando-as de o tratar com regalo, dando-
lhe a comer coisas confortativas e apropriadas para o coração e o
cérebro, de onde procedia, segundo a boa razão, toda sua má ventura.
As quais disseram que assim o faziam, e o fariam, com a vontade e
cuidado possível, porque viam que seu senhor por momentos ia dando
mostras de estar em seu inteiro juízo; do qual receberam os dois
grande alegria, por parecer-lhes que haviam acertado em trazê-lo
encantado no carro dos bois, como se contou na primeira parte desta
tão grande como pontual história, em seu último capítulo; e assim,
decidiram visitá-lo e fazer experiência de sua melhoria, embora
tinham quase por impossível que a tivesse, e acordaram em não tocar
em nenhum ponto da andante cavalaria, por não pôr em perigo
descoser os da ferida, que tão tenros estavam.
Visitaram-no, enfim, e acharam-no sentado na cama, vestido com
uma camiseta de baeta verde, com um gorro vermelho toledano; e
estava tão seco e amumiado, que não parecia senão feito de pele e
osso. Foram por ele muito bem recebidos, perguntaram-lhe por sua
saúde, e ele deu conta de si e dela com muito juízo e com muito
elegantes palavras; e no decorrer de sua conversa vieram a tratar
disto que chamam “razão de estado” e modos de governo, emendando
este abuso e condenando aquele, reformando um costume e
desterrando outro, fazendo-se cada um dos três um novo legislador,
um Licurgo moderno ou um Sólon flamante; e de tal maneira renovaram
a república, que não pareceu senão que a haviam posto em uma forja, e
tirado outra da que puseram; e falou dom Quixote com tanta discrição
em todas as matérias que se tocaram, que os dois examinadores
creram indubitavelmente que estava de todo bom e em seu inteiro
juízo.
Acharam-se presentes à conversa sobrinha e ama, e não se
fartavam de dar graças a Deus por ver seu senhor com tão bom
entendimento; mas o padre, mudando o propósito primeiro, que era de
não tocar em coisa de cavalarias, quis fazer de todo em todo
experiência se a sanidade de dom Quixote era falsa ou verdadeira, e
assim, de lance em lance, veio a contar algumas novas que haviam vindo
da corte; e, entre outras, disse que se tinha por certo que o Turco
baixava com uma poderosa armada, e que não se sabia seu desígnio,
nem onde havia de descarregar tão grande tormenta; e, com este
temor, com que quase cada ano nos pomos em defesa, estava posta
nela toda a cristandade, e Sua Majestade havia feito guarnecer as
costas de Nápoles e Sicília e a ilha de Malta. A isto respondeu dom
Quixote:
- Sua Majestade fez como prudentíssimo guerreiro em guarnecer
seus estados com tempo, para que não o ache desapercebido o inimigo;
mas se tomasse meu conselho, aconselhar-lhe-ia eu que usasse de uma
prevenção, da qual Sua Majestade à hora de agora deve estar muito
alheio de pensar nela.
Apenas ouviu isto o padre, quando disse entre si: “Deus te tenha em
sua mão, pobre dom Quixote: que me parece que te despenhas do alto
cume de tua loucura até o profundo abismo de tua simplicidade!”.
Mas o barbeiro, que já havia dado no mesmo pensamento que o
padre, perguntou a dom Quixote qual era a advertência da prevenção
que dizia era bem se fizesse; quiçá poderia ser tal, que se pusesse na
lista das muitas advertências impertinentes que se costumam dar aos
príncipes.
- O meu, senhor rapador - disse dom Quixote, - não será
impertinente, mas pertencente.
- Não o digo por tanto - replicou o barbeiro, - senão porque tem
mostrado a experiência que todos ou os mais arbítrios que se dão a
Sua Majestade, ou são impossíveis, ou disparatados, ou em dano do rei
ou do reino.
- Pois o meu - respondeu dom Quixote - nem é impossível nem
disparatado, senão o mais fácil, o mais justo e o mais sagaz e breve
que pode caber em pensamento de arbitrante algum.
- Já tarda em dizê-lo vossa mercê, senhor dom Quixote - disse o
padre.
- Não queria - disse dom Quixote - que o dissesse eu aqui agora, e
amanhecesse amanhã nos ouvidos dos senhores conselheiros, e levasse
outro as graças e o prêmio de meu trabalho.
- Por mim - disse o barbeiro, - dou a palavra, aqui e diante de Deus,
de não dizer o que vossa mercê disser a rei nem a roque, nem a homem
terrenal, juramento que aprendi do poema do padre que no prefácio
avisou ao rei do ladrão que lhe havia roubado os cem dobrões e a sua
mula andarilha.
- Não sei histórias - disse dom Quixote, - mas sei que é bom esse
juramento, à fé de que sei que é homem de bem o senhor barbeiro.
- Se não fosse - disse o padre, - eu o abono e defendo, que neste
caso não falará mais que um mudo, sob pena de pagar o julgado e
sentenciado.
- E a vossa mercê, quem o fia, senhor padre? - disse dom Quixote.
- Minha profissão - respondeu o padre, - que é de guardar segredo.
- Corpo de tal! - disse então dom Quixote. - Há mais, senão mandar
Sua Majestade pôr público pregão que se juntem na corte para um dia
marcado todos os cavaleiros andantes que vagam pela Espanha; que,
embora não viessem senão meia dúzia, tal poderia vir entre eles, que
só bastasse a destruir toda a potestade do Turco? Estejam-me vossas
mercês atentos, e venham comigo. Porventura é coisa nova desfazer
um só cavaleiro andante um exército de duzentos mil homens, como se
todos juntos tivessem uma só garganta, ou fossem feitos de massa de
açúcar? Se não, digam-me: quantas histórias estão cheias destas
maravilhas? Havia, em hora má para mim, que não quero dizer para
outro, de viver hoje o famoso dom Belianis, ou algum dos da
inumerável linhagem de Amadis de Gaula; que se algum destes hoje
vivesse e com o Turco se afrontasse, à fé que não apostaria neste!
Mas Deus olhará por seu povo, e deparará algum que, se não tão bravo
como os passados andantes cavaleiros, ao menos não lhes será inferior
no ânimo; e Deus sabe a quem me refiro, e não digo mais.
- Ai! - disse então a sobrinha; - que me matem se não quer meu
senhor voltar a ser cavaleiro andante!
Ao que disse dom Quixote:
- Cavaleiro andante hei de morrer, e baixe ou suba o Turco quando
ele quiser e quão poderosamente puder; que outra vez digo que Deus
sabe a quem me refiro.
Então disse o barbeiro:
- Suplico a vossas mercês que se me dê licença para contar um
conto breve que sucedeu em Sevilha, que, por vir aqui como de molde,
me dá vontade de contá-lo.
Deu a licença dom Quixote, e o padre e os demais lhe prestaram
atenção, e ele começou desta maneira:
- No manicômio de Sevilha estava um homem a quem seus parentes
haviam posto ali por ser falto de juízo. Era graduado em cânones por
Osuna, mas, embora o fosse por Salamanca, segundo opinião de muitos,
não deixaria de ser louco. Este tal graduado, ao cabo de alguns anos
de recolhimento, deu a entender que estava lúcido e em seu inteiro
juízo, e com este pensamento escreveu ao arcebispo, suplicando-lhe
encarecidamente e com muito concertadas razões o mandasse tirar
daquela miséria em que vivia, pois pela misericórdia de Deus havia já
cobrado o juízo perdido; mas que seus parentes, por gozar da parte de
seus bens, o tinham ali, e, apesar da verdade, queriam que fosse louco
até a morte. O arcebispo, persuadido por muitos bilhetes concertados
e discretos, mandou um capelão seu se informasse pelo reitor da casa
se era verdade o que aquele licenciado lhe escrevia, e que também
falasse com o louco, e que se lhe parecesse que tinha juízo, o pusesse
em liberdade. Fê-lo assim o capelão, e o reitor lhe disse que aquele
homem ainda estava louco: que, posto que falasse muitas vezes como
pessoa de grande entendimento, ao cabo disparava com tantas
necedades, que em muitas e em grandes igualavam a suas primeiras
discrições, como podia fazer a experiência falando-lhe. Quis fazê-la o
capelão, e, tendo-a com o louco, falou com ele uma hora e mais, e em
todo aquele tempo jamais o louco disse palavra torcida nem
disparatada; antes, falou tão prudentemente, que o capelão foi
forçado a crer que o louco estava lúcido; e entre outras coisas que o
louco lhe disse foi que o reitor lhe tinha ojeriza, por não perder os
regalos que seus parentes lhe faziam para que dissesse que ainda
estava louco, e com lúcidos intervalos; e que o maior contrário que em
sua desgraça tinha eram seus muitos bens, pois, por gozar deles seus
inimigos, punham dolo e duvidavam da mercê que Nosso Senhor lhe
havia feito em transformá-lo de besta em homem. Finalmente, ele
falou de maneira que fez suspeitoso o reitor, cobiçosos e desalmados
seus parentes, e a ele tão discreto que o capelão decidiu levá-lo
consigo para que o arcebispo o visse e tocasse com a mão a verdade
daquele negócio. Com esta boa fé, o bom capelão pediu ao reitor
mandasse dar as vestes com que ali havia entrado o licenciado; voltou
a dizer o reitor que visse o que fazia, porque, sem dúvida alguma, o
licenciado ainda estava louco. Não serviram de nada para com o
capelão as prevenções e advertências do reitor para que deixasse de
levá-lo; obedeceu o reitor, vendo ser ordem do arcebispo; puseram no
licenciado suas vestes, que eram novas e decentes, e, quando ele se viu
vestido de lúcido e desnudo de louco, suplicou ao capelão que por
caridade lhe desse licença para ir despedir-se de seus companheiros
os loucos. O capelão disse que ele o queria acompanhar e ver os loucos
que na casa havia. Subiram, com efeito, e com eles alguns que se
acharam presentes; e, chegado o licenciado a uma jaula onde estava
um louco furioso, embora então sossegado e quieto, disse-lhe: “Irmão
meu, veja se me manda algo, que me vou a minha casa; que já Deus foi
servido, por sua infinita bondade e misericórdia, sem eu merecê-lo, de
devolver-me meu juízo: já estou são e lúcido; que acerca do poder de
Deus nenhuma coisa é impossível. Tenha grande esperança e confiança
nEle, que, pois a mim me devolveu a meu primeiro estado, também o
voltará a ele se nEle confia. Eu terei cuidado em enviar-lhe alguns
regalos que coma, e coma-os em todo caso, que lhe faço saber que
imagino, como quem passou por isso, que todas nossas loucuras
procedem de ter os estômagos vazios e os cérebros cheios de ar.
Esforce-se, esforce-se, que a fraqueza nos infortúnios apouca a saúde
e acarreta a morte.” Todas estas razões do licenciado escutou outro
louco que estava em outra jaula, fronteiro da do furioso, e,
levantando-se de uma esteira velha onde estava jogado e nu em pelo,
perguntou em grandes vozes quem era o que se ia são e lúcido. O
licenciado respondeu: “Eu sou, irmão, o que me vou; que já não tenho
necessidade de estar mais aqui, pelo que dou infinitas graças aos céus,
que tão grande mercê me fizeram.” “Vede o que dizeis, licenciado, não
vos engane o diabo - replicou o louco; - sossegai o pé, e ficai quietinho
em vossa casa, e poupareis a volta.” “Eu sei que estou bom - replicou o
licenciado, - e não haverá para que reviver o passado.” “Vós bom? -
disse o louco. - Agora bem, já se verá; andai com Deus, mas eu vos
juro por Júpiter, cuja majestade eu represento na terra, que por só
este pecado que hoje comete Sevilha, em tirar-vos desta casa e em
ter-vos por lúcido, tenho de fazer um tal castigo nela, que fique
memória dele por todos os séculos dos séculos, amém. Não sabes tu,
licenciadinho minguado, que o poderei fazer, pois, como digo, sou
Júpiter Tonante, que tenho em minhas mãos os raios queimadores com
que posso e costumo ameaçar e destruir o mundo? Mas com só uma
coisa quero castigar a este ignorante povoado, e é com não chover
nele nem em todo seu distrito e contorno por três inteiros anos, que
se hão de contar desde o dia e ponto em que foi feita esta ameaça em
diante. Tu livre, tu são, tu lúcido, e eu louco, e eu enfermo, e eu
amarrado...? Assim penso chover como pensar enforcar-me.” Às vozes
e às razões do louco estiveram os circunstantes atentos, mas nosso
licenciado, voltando-se a nosso capelão e tomando-lhe as mãos, disse-
lhe: “Não se preocupe vossa mercê, senhor meu, nem faça caso do que
este louco disse, que se ele é Júpiter e não quiser chover, eu, que sou
Netuno, o pai e o deus das águas, choverei todas as vezes que eu
desejar e for preciso.” Ao que respondeu o capelão: “Contudo, senhor
Netuno, não será bom zangar o senhor Júpiter: vossa mercê fique em
sua casa, que outro dia, quando haja mais comodidade e mais espaço,
voltaremos por vossa mercê.” Riu-se o reitor e os presentes, por cujo
riso envergonhou-se um pouco o capelão; desnudaram o licenciado,
ficou em casa e acabou-se o conto.
- Pois, este é o conto, senhor barbeiro - disse dom Quixote, - que,
por vir aqui como de molde, não podia deixar de contá-lo? Ah, senhor
rapista, senhor rapista, e quão cego é aquele que não vê o evidente! E
é possível que vossa mercê não sabe que as comparações que se fazem
de engenho a engenho, de valor a valor, de formosura a formosura e
de linhagem a linhagem são sempre odiosas e mal recebidas? Eu,
senhor barbeiro, não sou Netuno, o deus das águas, nem procuro que
ninguém me tenha por discreto não o sendo; só me fatigo por dar a
entender ao mundo o erro em que está em não renovar em si o
felicíssimo tempo onde campeava a ordem da andante cavalaria. Mas
não é merecedora a depravada idade nossa de gozar tanto bem como o
que gozaram as idades onde os andantes cavaleiros tomaram a seu
encargo e tomaram sobre suas costas a defesa dos reinos, o amparo
das donzelas, o socorro dos órfãos e pupilos, o castigo dos soberbos e
o prêmio dos humildes. Os mais dos cavaleiros que agora se usam,
antes lhes aprazem os damascos, os brocados e outras ricos tecidos
com que se vestem, que a armadura com que se armam; já não há
cavaleiro que durma nos campos, sujeito ao rigor do céu, armado de
todas as armas desde os pés à cabeça; e já não há quem, sem tirar os
pés dos estribos, arrimado à sua lança, só procure degolar, como
dizem, o sono, como o faziam os cavaleiros andantes. Já não há
nenhum que, saindo deste bosque, entre naquela montanha, e dali pise
uma estéril e deserta praia do mar, as mais vezes proceloso e
alterado, e, achando nela e em sua orla um pequeno batel sem remos,
vela, mastro nem enxárcia alguma, com intrépido coração se arroje
nele, entregando-se às implacáveis ondas do mar profundo, que já
sobem ao céu e já baixam ao abismo; e ele, posto o peito à invencível
borrasca, quando menos espera, se acha três mil e mais léguas
distante do lugar onde embarcou, e, saltando em terra remota e não
conhecida, lhe sucedem coisas dignas de estar escritas, não em
pergaminhos, senão em bronzes. Mas agora, já triunfa a preguiça
sobre a diligência, a ociosidade ao trabalho, o vício à virtude, a
arrogância à valentia e a teoria à prática das armas, que só viveram e
resplandeceram nas idades do ouro e nos andantes cavaleiros. Se não,
digam-me quem mais honesto e mais valente que o famoso Amadis de
Gaula. Quem mais discreto que Palmeirim da Inglaterra? Quem mais
fácil de contentar e convencer que Tirante o Branco? Quem mais
galante que Lisuarte da Grécia? Quem mais acutilado nem acutilador
que dom Belianis? Quem mais intrépido que Perión de Gaula, ou quem
mais acometedor de perigos que Felixmarte de Hircânia, ou quem mais
sincero que Esplandião? Quem mais arrojado que dom Cirongílio de
Trácia? Quem mais bravo que Rodamonte? Quem mais prudente que o
rei Sobrino? Quem mais atrevido que Reinaldo? Quem mais invencível
que Roldão? E quem mais galhardo e mais cortês que Rugero, de quem
descendem hoje os duques de Ferrara, segundo Turpin em sua
cosmografia? Todos estes cavaleiros, e outros muitos que poderia
dizer, senhor padre, foram cavaleiros andantes, luz e glória da
cavalaria. Destes, ou tais como estes, quisesse eu que fossem os de
meu arbítrio, que, a sê-lo, Sua Majestade se acharia bem servido e
pouparia muito gasto, e o Turco ficaria pelando as barbas, e com isto,
não quero ficar em minha casa, pois não me tira o capelão dela; e se
seu Júpiter, como disse o barbeiro, não chover, aqui estou eu, que
choverei quando me calhar. Digo isto porque saiba o senhor bacia que o
entendo.
- Em verdade, senhor dom Quixote - disse o barbeiro, - que não o
disse por tanto, e assim me ajude Deus como foi boa minha intenção, e
que não deve vossa mercê sentir-se.
- Se posso sentir-me ou não - respondeu dom Quixote, - eu o sei.
A isto disse o padre:
- Ainda bem que eu quase não falei palavra até agora, e não quisera
ficar com um escrúpulo que me rói e escarva a consciência, nascido do
que aqui o senhor dom Quixote disse.
- Para outras coisas mais - respondeu dom Quixote - tem licença o
senhor padre; e assim, pode dizer seu escrúpulo, porque não é de
gosto andar com a consciência escrupulosa.
- Pois com esse beneplácito - respondeu o padre, - digo que meu
escrúpulo é que não me posso persuadir de maneira alguma de que toda
a caterva de cavaleiros andantes que vossa mercê, senhor dom
Quixote, referiu, tenham sido real e verdadeiramente pessoas de
carne e osso no mundo; antes, imagino que tudo é ficção, fábula e
mentira, e sonhos contados por homens despertos, ou, por melhor
dizer, meio adormecidos.
- Esse é outro erro - respondeu dom Quixote - em que caíram
muitos, que não creem que houve tais cavaleiros no mundo; e eu muitas
vezes, com diversas pessoas e ocasiões, procurei tirar à luz da
verdade este quase comum engano; mas algumas vezes não saí com
minha intenção, e outras sim, sustentando-a sobre os ombros da
verdade; a qual verdade é tão certa, que estou por dizer que com
meus próprios olhos vi Amadis de Gaula, que era um homem alto de
corpo, branco de rosto, bem posto de barba, embora negra, de vista
entre branda e rigorosa, de poucas palavras, tardo em irar-se e listo
em conter a ira; e do modo como delineei Amadis poderia, a meu
parecer, pintar e descobrir todos quantos cavaleiros andantes andam
nas histórias no orbe, que, pela apreensão que tenho de que foram
como suas histórias contam, e pelas façanhas que fizeram e condições
que tiveram, se podem tirar por boa fisionomia suas feições, suas
cores e estaturas.
- Quão grande parece a vossa mercê, meu senhor dom Quixote -
perguntou o barbeiro, - devia ser o gigante Morgante?
- Nisto de gigantes - respondeu dom Quixote - há diferentes
opiniões, se os houve ou não no mundo; mas a Santa Escritura, que não
pode faltar um átomo com a verdade, nos mostra que os houve,
contando-nos a história daquele filisteuzão Golias, que tinha três
metros e meio de altura, que é uma descomedida grandeza. Também
na ilha de Sicília se acharam ossos de braços e pernas e omoplatas tão
grandes, que sua grandeza manifesta que foram gigantes seus donos, e
tão grandes como grandes torres; que a geometria tira esta verdade
da dúvida. Entretanto, não saberei dizer com certeza que tamanho
tivesse Morgante, embora imagine que não deveu ser muito alto; e
move-me a ser deste parecer achar na história onde se faz menção
particular de suas façanhas que muitas vezes dormia debaixo de
telhado; e, pois achava casa onde coubesse, claro está que não era
descomedida sua grandeza.
- Assim é - disse o padre.
O qual, gostando de ouvir-lhe dizer tão grandes disparates, lhe
perguntou o que sabia acerca dos rostos de Reinaldo de Montalvão e
de dom Roldão, e dos demais Doze Pares de França, pois todos haviam
sido cavaleiros andantes.
- De Reinaldo - respondeu dom Quixote - me atrevo a dizer que era
largo de rosto, de cor vermelho, os olhos bailadores e algo saltados,
suspicaz e colérico em demasia, amigo de ladrões e de gente perdida.
De Roldão, ou Rotolando, ou Orlando, que com todos estes nomes o
nomeiam as histórias, sou de parecer e afirmo que foi de mediana
estatura, largo de espáduas, algo cambaio, moreno de rosto e barba
vermelha, lanoso no corpo e de vista ameaçadora; de poucas palavras,
mas muito comedido e bem criado.
- Se não foi Roldão mais gentil-homem do que vossa mercê disse -
replicou o padre, - não foi maravilha que a senhora Angélica a Bela o
desdenhasse e deixasse pela gala, brio e donaire que devia ter o
mourinho de barba nascente a quem ela se entregou; e andou discreta
em adorar antes a brandura de Medoro que a aspereza de Roldão.
- Essa Angélica - respondeu dom Quixote, - senhor padre, foi uma
donzela distraída, andarilha e algo caprichosa, e tão cheio deixou o
mundo de suas impertinências como da fama de sua formosura:
desprezou mil senhores, mil valentes e mil discretos, e contentou-se
com um pajenzinho imberbe, sem outros bens nem nome que o que lhe
pôde dar de agradecido a amizade que guardou a seu amigo. O grande
cantor de sua beleza, o famoso Ariosto, por não atrever-se, ou por não
querer cantar o que a esta senhora lhe sucedeu depois de sua ruim
entrega, que não deveram ser coisas demasiadamente honestas, a
deixou onde disse:

E como do Catai recebeu o bastão,


quiçá outro cantará com melhor dom.

E sem dúvida, que isto foi como profecia; que os poetas também se
chamam vates, que quer dizer “adivinhos”. Vê-se esta verdade clara,
porque, depois aqui, um famoso poeta andaluz chorou e cantou suas
lágrimas, e outro famoso e único poeta castelhano cantou sua
formosura.
- Diga-me, senhor dom Quixote - disse então o barbeiro, - não
houve algum poeta que haja feito alguma sátira a essa senhora
Angélica, entre tantos que a louvaram?
- Bem creio eu - respondeu dom Quixote - que se Sacripante ou
Roldão fossem poetas, que já houvessem insultado a donzela; porque é
próprio e natural dos poetas desdenhados e não admitidos por suas
damas (fingidas, ou fingidas com efeito por aqueles) a quem eles
escolheram por senhoras de seus pensamentos, vingar-se com sátiras
e libelos, vingança, por certo, indigna de peitos generosos; mas até
agora não chegou à minha notícia nenhum verso infamatório contra a
senhora Angélica, que agitou o mundo.
- Milagre! - disse o padre.
E nisto ouviram que a ama e a sobrinha, que já haviam deixado a
conversação, davam grandes vozes no pátio, e atenderam todos ao
ruído.

CAPÍTULO II

Que trata da notável pendência que Sancho Pança teve com a sobrinha
e ama de dom Quixote, com outros assuntos graciosos

Conta a história que as vozes que ouviram dom Quixote, o padre e o


barbeiro eram da sobrinha e ama, que as davam dizendo a Sancho
Pança, que pugnava por entrar para ver dom Quixote, e elas lhe
proibiam a entrada:
- Que quer este monstrengo nesta casa? Ide-vos à vossa, irmão, que
vós sois, e não outro, o que distrai e desencaminha meu senhor, e o
leva por esses ermos.
Ao que Sancho respondeu:
- Ama de Satanás, o desencaminhado, e o distraído, e o levado por
esses ermos sou eu, e não teu amo; ele me levou por esses mundos, e
vós exagerais: ele me tirou de minha casa com promessas enganosas,
prometendo-me uma ilha, que até agora a espero.
- Más ilhas te afoguem - respondeu a sobrinha, - Sancho maldito. E
que são ilhas? É alguma coisa de comer, gulosaço, comilão, que tu és?
- Não é de comer - replicou Sancho, - senão que melhor governar
quatro cidades e reger quatro juízes de corte.
- Mesmo assim - disse a ama, - não entrareis cá, saco de maldades e
saco de malícias. Ide governar vossa casa e lavrar vossos lotes, e
deixai de pretender ilhas nem ilhos.
Grande gosto recebiam o padre e o barbeiro ao ouvir o colóquio dos
três; mas dom Quixote, temeroso que Sancho começasse a falar e
desembuchasse algum montão de maliciosas necedades, e tocasse em
pontos que não estariam bem a seu crédito, o chamou, e fez às duas
que calassem e o deixassem entrar. Entrou Sancho, e o padre e o
barbeiro se despediram de dom Quixote, de cuja saúde desesperaram,
vendo quão posto estava em seus desvairados pensamentos, e quão
embebido na simplicidade de suas mal-andantes cavalarias; e assim,
disse o padre ao barbeiro:
- Vós vereis, compadre, como, quando menos o pensemos, nosso
fidalgo sai outra vez a voar.
- Não ponho eu dúvida nisso - respondeu o barbeiro, - mas não me
maravilho tanto da loucura do cavaleiro como da simplicidade do
escudeiro, que tão acreditado tem aquilo da ilha, que creio que não o
tirarão da cachola quantos desenganos possam imaginar-se.
- Deus os remedeie - disse o padre, - e estejamos de olho: veremos
no que dá esta máquina de disparates de tal cavaleiro e de tal
escudeiro, que parece que os forjaram aos dois em uma mesma fôrma,
e que as loucuras do senhor, sem as necedades do criado, não valiam
um tostão.
- Assim é - disse o barbeiro, - e gostaria muito de saber o que
tratarão agora os dois.
- Eu estou seguro - respondeu o padre - de que a sobrinha ou a ama
no-lo conta depois, que não são de condição que deixarão de escutá-lo.
Enquanto isso, dom Quixote se fechou com Sancho em seu
aposento; e, estando sós, disse-lhe:
- Muito me pesa, Sancho, que hajas dito e digas que eu fui o que te
tirei de tuas casinhas, sabendo que eu não fiquei em minhas casas:
juntos saímos, juntos fomos e juntos peregrinamos; uma mesma
fortuna e uma mesma sorte se deu para os dois: se te mantearam uma
vez, a mim me moeram cem, e isto é o que te levo de vantagem.
- Isso era assim - respondeu Sancho, - porque, segundo vossa mercê
diz, mais próprias são aos cavaleiros andantes as desgraças que a seus
escudeiros.
- Enganas-te, Sancho - disse dom Quixote; - segundo aquilo, “quando
caput dolet...”, etcétera.
- Não entendo outra língua senão a minha - respondeu Sancho.
- Quero dizer - disse dom Quixote - que, quando a cabeça dói,
todos os membros doem; e assim, sendo eu teu amo e senhor, sou tua
cabeça, e tu minha parte, pois és meu criado; e, por esta razão, o mal
que a mim me toca, ou tocar, a ti te há de doer, e a mim o teu.
- Assim havia de ser - disse Sancho, - mas quando a mim me
manteavam como a membro, estava minha cabeça detrás das cercas,
vendo-me voar pelos ares, sem sentir dor algum; e, pois os membros
estão obrigados a doer-se do mal da cabeça, havia de estar obrigada
ela a doer-se deles.
- Quererás tu dizer agora, Sancho - respondeu dom Quixote, - que
não me doía eu quando a ti te manteavam? E se o dizes, não o digas,
nem o penses; pois mais dor sentia eu então em meu espírito que tu em
teu corpo. Mas deixemos isto à parte por agora, que tempo haverá
onde o ponderemos e lhe demos seu valor, e diz-me, Sancho amigo: que
é o que dizem de mim por esse lugar? Em que opinião me tem o vulgo,
em que os fidalgos e em que os cavaleiros? Que dizem de minha
valentia, que de minhas façanhas e que de minha cortesia? Que se fala
do fato de eu ter intentado ressuscitar e retrazer ao mundo a já
olvidada ordem cavaleiresca? Finalmente, quero, Sancho, me digas o
que acerca disto chegou a teus ouvidos; e isto me hás de dizer sem
juntar ao bem nem tirar ao mal coisa alguma, que dos vassalos leais é
dizer a verdade a seus senhores em seu ser e figura própria, sem que
a adulação a acrescente ou outro vão respeito a diminua; e quero que
saibas, Sancho, que se aos ouvidos dos príncipes chegasse a verdade
desnuda, sem as vestes da lisonja, outros séculos correriam, outras
idades seriam tidas por mais de ferro que a nossa, que entendo que,
das que agora se usam, é a dourada. Sirva-te esta advertência,
Sancho, para que discreta e bem intencionadamente ponhas em meus
ouvidos a verdade das coisas que souberes do que te perguntei.
- Isso farei eu de muito bom grado, senhor meu - respondeu
Sancho, - com condição que vossa mercê não se há de zangar do que eu
disser, pois quer que o diga nu, sem vesti-lo com outras roupas que
aquelas com que chegaram à minha notícia.
- De maneira alguma me zangarei - respondeu dom Quixote. - Bem
podes, Sancho, falar livremente e sem rodeio algum.
- Pois a primeira coisa que digo - disse, - é que o vulgo tem vossa
mercê por grandíssimo louco, e a mim por não menos mentecapto. Os
fidalgos dizem que, não contendo-se vossa mercê nos limites da
fidalguia, se pôs dom e se arrogou cavaleiro com quatro pés de uva e
dois pedaços de terra e com um trapo atrás e outro adiante. Dizem os
cavaleiros que não queriam que os fidalgos se comparassem a eles,
especialmente aqueles fidalgos pobres que passam graxa preta nos
sapatos e emendam os pontos das meias negras com seda verde.
- Isso - disse dom Quixote - não tem que ver comigo, pois ando
sempre bem vestido, e jamais remendado; roto, bem poderia ser; e
roto, mais das armas que do tempo.
- No que toca - prosseguiu Sancho - à valentia, cortesia, façanhas e
atos de vossa mercê, há diferentes opiniões; uns dizem: “Louco,
mas gracioso”; outros, “Valente, mas desgraçado”; outros, “Cortês,
mas impertinente”; e por aqui vão discorrendo em tantas coisas, que
nem a vossa mercê nem a mim nos deixam osso são.
- Vê, Sancho - disse dom Quixote: - onde quer que esteja a virtude
enquanto eminente grau, é perseguida. Poucos ou nenhum dos famosos
varões que passaram deixou de ser caluniado pela malícia. Júlio César,
animosíssimo, prudentíssimo e valentíssimo capitão, foi taxado de
ambicioso e algum tanto não limpo, nem em suas vestes nem em seus
costumes. Alexandre, a quem suas façanhas lhe alcançaram o renome
de Magno, dizem dele que teve seus certos quês de bêbado. De
Hércules, o dos muitos trabalhos, se conta que foi lascivo e mole. De
dom Galaor, irmão de Amadis de Gaula, se murmura que foi mais que
demasiadamente fogoso; e de seu irmão, que foi chorão. Assim que, oh
Sancho!, entre as tantas calúnias de bons, bem podem passar as
minhas, como não sejam mais que as que disseste.
- Aí está o toque, corpo de meu pai! - replicou Sancho.
- Então há mais? - perguntou dom Quixote.
- Falta o último e o mais duro - disse Sancho. - O dito até aqui são
tortas e pão pintado; mas se vossa mercê quer saber tudo o que há
acerca das calúnias que lhe põem, eu lhe trarei aqui imediatamente
quem as diga todas, sem que lhes falte um nada; que ontem à noite
chegou o filho de Bartolomeu Carrasco, que vem de estudar em
Salamanca, feito bacharel, e, indo eu a dar-lhe as boas-vindas, me
disse que andava já em livros a história de vossa mercê, com nome do
Engenhoso Fidalgo dom Quixote da Mancha; e diz que nela mencionam
a mim com meu mesmo nome de Sancho Pança, e à senhora Dulcineia
do Toboso, com outras coisas que passamos nós a sós, que me fiz
cruzes de espantado como as pôde saber o historiador que as
escreveu.
- Eu te asseguro, Sancho - disse dom Quixote, - que deve ser algum
mago encantador o autor de nossa história; que aos tais não se lhes
encobre nada do que querem escrever.
- E como - disse Sancho - se era mago e encantador, pois, segundo
diz o bacharel Sansão Carrasco, que assim se chama o que disse, o
autor da história se chama Cide Hamete Berinjela!
- Esse nome é de mouro - respondeu dom Quixote.
- Assim será - respondeu Sancho, - porque pela maior parte ouvi
dizer que os mouros são amigos de berinjelas.
- Tu deves, Sancho - disse dom Quixote, - ter errado no sobrenome
desse Cide, que em arábico quer dizer “senhor”.
- Bem poderia ser - replicou Sancho, - mas, se vossa mercê gosta
que eu o faça vir aqui, irei até ele voando.
- Dar-me-ás muito prazer, amigo - disse dom Quixote, - que me tem
suspenso o que me disseste, e não darei mordida que bem me saiba até
ser informado de tudo.
- Pois eu vou até ele - respondeu Sancho.
E deixando seu senhor, foi buscar o bacharel, com o qual voltou dali
a pouco tempo, e os três tiveram um graciosíssimo colóquio.
CAPÍTULO III

Do ridículo arrazoado que se deu entre dom Quixote, Sancho Pança


e o bacharel Sansão Carrasco

Muito pensativo ficou dom Quixote, esperando o bacharel Carrasco,


de quem esperava ouvir as novas de si mesmo postas em livro, como
havia dito Sancho; e não se podia persuadir de que houvesse tal
história, pois ainda não estava enxuto no fio de sua espada o sangue
dos inimigos que matou, e já queriam que andassem em estampa suas
altas cavalarias. Desse modo, imaginou que algum mago, ou já amigo ou
inimigo, por arte de encantamento as haverá dado à estampa: se
amigo, para engrandecê-las e levantá-las sobre as mais assinaladas de
cavaleiro andante; se inimigo, para aniquilá-las e pô-las debaixo das
mais vis que por algum vil escudeiro se houvessem escrito, posto -
dizia entre si - que nunca façanhas de escudeiros se escreveram; e
quando fosse verdade que a tal história houvesse, sendo de cavaleiro
andante, por força havia de ser grandíloqua, alta, insigne, magnífica e
verdadeira.
Com isto se consolou algum tanto, mas desconsolou-o pensar que seu
autor era mouro, segundo aquele nome de Cide; e dos mouros não se
podia esperar verdade alguma, porque todos são enganadores,
mentirosos e inventores de falsidades. Temia houvesse tratado seus
amores com alguma inconveniência, que redundasse em menoscabo e
prejuízo da honestidade de sua senhora Dulcineia do Toboso; desejava
que houvesse declarado sua fidelidade e o decoro que sempre lhe
havia guardado, menosprezando rainhas, imperatrizes e donzelas de
todas as qualidades, refreando os ímpetos dos naturais movimentos; e
assim, envolto e revolto nestes e outros muitos pensamentos, o
acharam Sancho e Carrasco, a quem dom Quixote recebeu com muita
cortesia.
Era o bacharel, embora se chamasse Sansão, não muito grande de
corpo, embora muito grande socarrão, de cor macilenta, mas de muito
bom entendimento; teria até vinte e quatro anos, carirredondo, de
nariz chato e de boca grande, sinais todos de ser de condição
maliciosa e amigo de donaires e de burlas, como o mostrou vendo dom
Quixote, pondo-se diante dele de joelhos, dizendo-lhe:
- Dê-me vossa grandeza as mãos, senhor dom Quixote da Mancha;
que, pelo traje de São Pedro que visto, embora não tenha outras
ordens que as quatro primeiras, que é vossa mercê um dos mais
famosos cavaleiros andantes que houve, nem ainda haverá, em toda a
redondez da terra. Bem haja Cide Hamete Benengeli, que a história de
vossas grandezas deixou escritas, e melhor haja o curioso que teve
cuidado de fazê-las traduzir do arábico ao nosso vulgar castelhano,
para universal entretenimento das gentes.
Fê-lo levantar dom Quixote, e disse:
- Então, verdade é que há história minha, e que foi mouro e sábio o
que a compôs?
- É tão verdade, senhor - disse Sansão, - que tenho para mim que no
dia de hoje estão impressos mais de doze mil livros da tal história; se
não, diga-o Portugal, Barcelona e Valência, onde se imprimiram; e ainda
há fama que se está imprimindo em Antuérpia, e me parece que não há
de haver nação nem língua onde não se traduza.
- Uma das coisas - disse então dom Quixote - que mais deve dar
prazer a um homem virtuoso e eminente é ver-se, vivendo, andar com
bom nome pelas línguas das gentes, impresso e em estampa. Disse com
bom nome, porque sendo ao contrário, nenhuma morte se lhe igualará.
- Se por boa fama e se por bom nome vai - disse o bacharel, - só
vossa mercê leva a palma a todos os cavaleiros andantes; porque o
mouro em sua língua e o cristão na sua tiveram cuidado de pintar-nos
mui ao vivo a galhardia de vossa mercê, o ânimo grande em acometer
os perigos, a paciência nas adversidades e o sofrimento, assim nas
desgraças como nas feridas, a honestidade e continência nos amores
tão platônicos de vossa mercê e de minha senhora dona Dulcineia do
Toboso.
- Nunca - disse então Sancho Pança - ouvi chamar com dom a minha
senhora Dulcineia, senão somente “a senhora Dulcineia do Toboso”, e
já nisto anda errada a história.
- Não é objeção de importância essa - respondeu Carrasco.
- Não, por certo - respondeu dom Quixote; - mas diga-me vossa
mercê, senhor bacharel: que façanhas minhas são as que mais se
ponderam nessa história?
- Nisso - respondeu o bacharel, - há diferentes opiniões, como há
diferentes gostos: uns se atêm à aventura dos moinhos de vento,
que a vossa mercê lhe pareceram Briareus e gigantes; outros, à dos
macetes; este, à descrição dos dois exércitos, que depois
pareceram ser duas manadas de carneiros; aquele encarece a do
morto que levavam a enterrar em Segóvia; um diz que a todas se
avantaja a da liberdade dos galeotes; outro, que nenhuma iguala à dos
dois gigantes beneditinos, com a pendência do valoroso biscainho.
- Diga-me, senhor bacharel - disse então Sancho: - entra aí a
aventura dos galegos, quando nosso bom Rocinante desejou pedir
coisas impossíveis?
- Não ficou nada - respondeu Sansão - ao sábio no tinteiro: tudo o
diz e tudo o aponta, até o das cabriolas que o bom Sancho fez na
manta.
- Na manta não fiz eu cabriolas - respondeu Sancho; - no ar sim, e
ainda mais que as que eu quisera.
- Ao que eu imagino - disse dom Quixote, - não há história humana
no mundo que não tenha seus altibaixos, especialmente as que tratam
de cavalarias, as quais nunca podem estar cheias de prósperos
sucessos.
- Assim - respondeu o bacharel, - dizem alguns que leram a história
que folgaram de terem os autores dela se esquecido de alguns dos
infinitos golpes que em diferentes encontros deram no senhor dom
Quixote.
- Aí entra a verdade da história - disse Sancho.
- Também poderiam calá-los por equidade - disse dom Quixote, -
pois as ações que nem mudam nem alteram a verdade da história não
há para que escrevê-las, se hão de redundar em menosprezo do senhor
da história. À fé que não foi tão piedoso Eneias como Virgílio o pinta,
nem tão prudente Ulisses como o descreve Homero.
- Assim é - replicou Sansão, - mas uma coisa é escrever como poeta
e outra como historiador: o poeta pode contar, ou cantar as coisas,
não como foram, senão como deviam ser; e o historiador as há de
escrever, não como deviam ser, senão como foram, sem juntar nem
tirar à verdade coisa alguma.
- Pois se é que se anda a dizer verdades esse senhor mouro - disse
Sancho, - seguramente que entre os golpes de meu senhor se achem
os meus, porque nunca a sua mercê lhe tomaram a medida das costas
que não a tomassem a mim de todo o corpo; mas não há de que
maravilhar-me, pois, como diz o mesmo senhor meu, da dor da cabeça
hão de participar os membros.
- Socarrão sois, Sancho - respondeu dom Quixote. - À fé que não
vos falta memória quando vós quereis tê-la.
- Quando eu quiser olvidar-me dos bordoadas que me deram - disse
Sancho, - não o consentirão as pisaduras, que ainda estão frescas nas
costelas.
- Calai, Sancho - disse dom Quixote, - e não interrompais o senhor
bacharel, a quem suplico passe adiante em dizer-me o que se diz de
mim na referida história.
- E de mim - disse Sancho, - que também dizem que sou eu um dos
principais presonagens dela.
- Personagens e não presonagens, Sancho amigo - disse Sansão.
- Outro reprochador de voquiblos temos? - disse Sancho. - Então
andem depressa, ou não acabaremos em toda a vida.
- Má me a dê Deus, Sancho - respondeu o bacharel, - se não sois vós
a segunda pessoa da história; e que há tal, que preza mais ouvir-vos
falar que ao mais pintado de toda ela, posto que também há quem diga
que andastes demasiadamente crédulo em crer que podia ser verdade
o governo daquela ilha, oferecida pelo senhor dom Quixote, que está
presente.
- Ainda há tempo e esperança - disse dom Quixote, - e, quanto mais
for entrando em idade Sancho, com a experiência que dão os anos,
estará mais idôneo e mais hábil para ser governador que não está
agora.
- Por Deus, senhor - disse Sancho, - a ilha que eu não governasse
com os anos que tenho, não a governarei com os anos de Matusalén. O
dano está em que a dita ilha se entretém, não sei onde, e não em
faltar-me o entendimento para governá-la.
- Encomendai-o a Deus, Sancho - disse dom Quixote, - que tudo se
fará bem, e quiçá melhor do que vós pensais; que não se move a folha
na árvore sem a vontade de Deus.
- Assim é verdade - disse Sansão, - que se Deus quer, não lhe
faltarão a Sancho mil ilhas que governar, quanto mais uma.
- Governador vi por aí - disse Sancho - que, a meu parecer, não
chegam à sola de meu sapato, e, desse modo, os chamam “senhoria”, e
se servem com talheres de prata.
- Esses não são governadores de ilhas - replicou Sansão, - senão de
outros governos mais simples; que os que governam ilhas, pelo menos
hão de saber gramática.
- Com a grama bem me haveria eu - disse Sancho, - mas com a tica
não me meto, porque não a entendo. Mas, deixando isto do governo nas
mãos de Deus, que me lance às partes onde mais de mim se sirva, digo,
senhor bacharel Sansão Carrasco, que infinitamente me deu gosto que
o autor da história tenha falado de mim de maneira que não enfadam
as coisas que de mim se contam; que à fé de bom escudeiro que se
houvesse dito de mim coisas que não fossem muito de cristão velho,
como sou, que nos haviam de ouvir os surdos.
- Isso seria fazer milagres - respondeu Sansão.
- Milagres ou não milagres - disse Sancho, - cada um veja como fala
ou como escreve das pessoas, e não ponha a esmo a primeira coisa que
lhe vem à cabeça.
- Um dos defeitos que põem à tal história - disse o bacharel - é que
seu autor pôs nela uma novela intitulada O Curioso impertinente, não
por má nem por mal arrazoada, senão por não ser daquele lugar, nem
tem a ver com a história de sua mercê o senhor dom Quixote.
- Eu apostarei - replicou Sancho - que o filho de cão misturou
couves com balaios.
- Agora digo - disse dom Quixote - que não foi sábio o autor de
minha história, senão algum ignorante falador, que, incertamente e
sem algum critério, se pôs a escrevê-la, saia o que sair, como fazia
Orbaneja, o pintor de Úbeda, a quem perguntando o que pintava,
respondeu: “O que sair”. Talvez pintasse um galo, de tal sorte e tão
mal parecido, que era preciso que com letras góticas escrevesse junto
a ele: “Este é galo”. E assim deve ser minha história, que terá
necessidade de comentário para entendê-la.
- Isso não - respondeu Sansão, - porque é tão clara, que não há
coisa que dificultar nela: os meninos a manuseiam, os moços a leem, os
homens a entendem e os velhos a celebram; e, finalmente, é tão
seguida e tão lida e tão sabida de todo gênero de pessoas, que apenas
veem algum rocim magro, dizem: “Ali vai Rocinante”. E os que mais se
deram à sua leitura são os pajens: não há antecâmara de senhor onde
não se ache um Dom Quixote: uns o tomam se outros o deixam; estes
investem nele e aqueles o pedem. Finalmente, a tal história é do mais
gostoso e menos prejudicial entretenimento que até agora se viu,
porque em toda ela não se descobre nem por semelhanças uma palavra
desonesta nem um pensamento menos que católico.
- A escrever de outra sorte - disse dom Quixote, - não seria
escrever verdades, senão mentiras; e os historiadores que de
mentiras se valem haviam de ser queimados, como os que fazem moeda
falsa; e não sei eu o que moveu o autor a valer-se de novelas e contos
alheios, havendo tanto que escrever nos meus: sem dúvida se ateve ao
refrão: “De palha e de feno...”, etcétera. Pois em verdade que em só
manifestar meus pensamentos, meus suspiros, minhas lágrimas, meus
bons desejos e meus acometimentos poderia fazer um volume maior,
ou tão grande que o que podem fazer todas as obras do Tostado. Com
efeito, o que eu penso, senhor bacharel, é que para compor histórias e
livros, de qualquer sorte que sejam, é preciso um grande juízo e um
maduro entendimento. Dizer graças e escrever donaires é de grandes
engenhos: a mais discreta figura da comédia é a do bobo, porque não o
há de ser o que quer dar a entender que é simples. A história é como
coisa sagrada; porque há de ser verdadeira, e onde está a verdade
está Deus, enquanto verdade; mas, não obstante isto, há alguns que
assim compõem e arrojam livros de si como se fossem bolinhos.
- Não há livro tão mau - disse o bacharel - que não tenha algo bom.
- Não há dúvida disso - replicou dom Quixote; - mas muitas vezes
acontece que os que tinham merecidamente granjeado e alcançado
grande fama por seus escritos, dando-os à estampa, a perderam de
todo, ou a menoscabaram em algo.
- A causa disso é - disse Sansão - que, como as obras impressas se
olham devagar, facilmente se veem suas faltas, e tanto mais se
esquadrinham quanto é maior a fama do que as compôs. Os homens
famosos por seus engenhos, os grandes poetas, os ilustres
historiadores, sempre, ou as mais vezes, são invejados por aqueles que
têm por gosto e por particular entretenimento julgar os escritos
alheios, sem haver dado alguns próprios à luz do mundo.
- Isso não é de maravilhar - disse dom Quixote, - porque muitos
teólogos há que não são bons para o púlpito, e são boníssimos para
conhecer as faltas ou sobras dos que pregam.
- Tudo isso é assim, senhor dom Quixote - disse Carrasco, - mas
quisera eu que os tais censuradores fossem mais misericordiosos e
menos escrupulosos, sem ater-se aos átomos do sol claríssimo da obra
de que murmuram; que se “aliquando bonus dormitat Homerus” (alguma
vez dormita o bom Homero (N. do T.)), considerem o muito que esteve
desperto, por dar à luz sua obra com menos sombra que pôde; e quiçá
poderia ser que o que a eles lhes parece mau fossem pintas, que às
vezes acrescentam a formosura do rosto que as tem; e assim, digo que
é grandíssimo o risco a que se propõe o que imprime um livro, sendo de
toda impossibilidade impossível compor-lhe tal, que satisfaça e
contente a todos os que o lerem.
- O que de mim trata - disse dom Quixote, - a poucos haverá
contentado.
- Antes é ao revés; que, como de “stultorum infinitus est numerus” ,
infinitos são os que gostaram da tal história; e alguns acharam falta e
dolo na memória do autor, pois se lhe olvida de contar quem foi o
ladrão que furtou o ruço de Sancho, que ali não se declara, e só se
infere do escrito que o furtaram, e dali a pouco o vemos a
cavalo sobre o mesmo jumento, sem haver aparecido. Também dizem
que se lhe olvidou pôr o que Sancho fez daqueles cem escudos que
achou na maleta em Serra Morena, que nunca mais os nomeia, e há
muitos que desejam saber que fez deles, ou em que os gastou, que é
um dos pontos substanciais que faltam na obra.
Sancho respondeu:
- Eu, senhor Sansão, não estou agora para pôr-me em contas nem
contos; que me tomou um desmaio de estômago, que se não o reparo
com dois tragos do alheio, tombarei de fraqueza. Em casa o tenho,
minha metade me aguarda; acabando de comer, darei a volta, e
satisfarei a vossa mercê e a todo o mundo do que perguntar quiserem,
assim da perda do jumento como do gasto dos cem escudos.
E sem esperar resposta nem dizer outra palavra, foi para casa.
Dom Quixote pediu e rogou ao bacharel ficasse para fazer
penitência com ele. O bacharel aceitou o convite: ficou, acrescentou-
se ao de todo dia um par de pombinhos, tratou-se na mesa de
cavalarias, Carrasco acompanhou-lhe o humor, acabou-se o banquete,
dormiram a sesta, voltou Sancho e renovou-se a conversa passada.

CAPÍTULO IV
Onde Sancho Pança satisfaz ao bacharel Sansão Carrasco sobre
suas dúvidas e perguntas, com outros sucessos dignos de saber-se e
de contar-se

Voltou Sancho à casa de dom Quixote, e voltando à conversa


anterior, disse:
- Ao que o senhor Sansão disse que se desejava saber quem, ou
como, ou quando se me furtou o jumento, respondendo digo que na
noite mesma em que, fugindo da Santa Irmandade, entramos em Serra
Morena, depois da aventura sem ventura dos galeotes e da do defunto
que levavam a Segóvia, meu senhor e eu nos metemos entre uma
espessura, onde meu senhor arrimado à sua lança e eu sobre meu ruço,
moídos e cansados das passadas refregas, nos pusemos a dormir como
se fosse sobre quatro colchões de pena; especialmente eu dormi com
tão pesado sono, que quem quer que me roubara teve ocasião de
chegar e suspender-me sobre quatro estacas que pôs aos quatro lados
da albarda, de maneira que me deixou a cavalo sobre ela, e tirou
debaixo de mim o ruço, sem que eu o sentisse.
- Isso é coisa fácil, e não acontecimento novo, que o mesmo sucedeu
a Sacripante quando, estando no cerco de Albraca, com essa mesma
invenção lhe tirou o cavalo de entre as pernas aquele famoso ladrão
chamado Brunelo.
- Amanheceu - prosseguiu Sancho, - e, apenas me espreguicei,
quando, falhando as estacas, dei comigo no chão numa grande queda;
procurei o jumento, e não o vi; vieram-me lágrimas aos olhos, e fiz uma
lamentação, que se não a pôs o autor de nossa história, pode crer que
não pôs coisa boa. Ao cabo de não sei quantos dias, vindo com a
senhora princesa Micomicona, reconheci meu asno, e que vinha sobre
ele em traje de cigano aquele Ginés de Pasamonte, aquele embusteiro
e grandíssimo malfeitor que meu senhor e eu libertamos da corda de
presos.
- Não está nisso o erro - replicou Sansão, - senão em que, antes de
haver aparecido o jumento, diz o autor que ia a cavalo Sancho no
mesmo ruço.
- A isso - disse Sancho, - não sei que responder, senão que o
historiador se enganou, ou já seria descuido do impressor.
- Assim é, sem dúvida - disse Sansão, - mas, que se fez dos cem
escudos? Desfizeram-se?
Respondeu Sancho:
- Eu os gastei em prol de minha pessoa e da de minha mulher, e de
meus filhos, e eles foram causa de que minha mulher leve com
paciência os caminhos e carreiras que andei servindo a meu senhor
dom Quixote; que se, ao cabo de tanto tempo, voltasse sem prata e
sem o jumento à minha casa, negra ventura me esperava; e se há mais
que saber de mim, aqui estou, que responderei ao mesmo rei em
pressoa, e ninguém tem para que meter-se em se trouxe ou não
trouxe, se gastei ou não gastei; que se os golpes que me deram nestas
viagens se houvessem de pagar a dinheiro, embora não se taxassem
senão a quatro maravedis cada um, outros cem escudos não havia para
pagar-me a metade; e cada um meta a mão em seu peito, e não se
ponha a julgar o branco por negro e o negro por branco; que cada um é
como Deus o fez, e ainda pior muitas vezes.
- Eu terei cuidado - disse Carrasco - em acusar ao autor da história
que se outra vez a imprimir, não se lhe olvide isto que o bom Sancho
disse, que será realçá-la um bom palmo mais do que ela está.
- Há outra coisa que emendar nessa lenda, senhor bacharel? -
perguntou dom Quixote.
- Sim, deve haver - respondeu ele, - mas nenhuma deve ser da
importância das já referidas.
- E porventura - disse dom Quixote, - promete o autor segunda
parte?
- Sim, promete - respondeu Sansão, - mas diz que não achou nem
sabe quem a tem, e assim, estamos em dúvida se sairá ou não; e assim
por isto como porque alguns dizem: “Nunca segundas partes foram
boas”, e outros: “Das coisas de dom Quixote bastam as escritas”, se
duvida se há de haver segunda parte; embora alguns que são mais
joviais que melancólicos dizem: “Venham mais quixotadas: invista dom
Quixote e fale Sancho Pança, e seja o que for, que com isso nos
contentamos”.
- E a que se atém o autor?
- A que - respondeu Sansão, - achando a história, que ele vai
buscando com extraordinárias diligências, a dará logo à estampa,
levado mais do interesse que de dá-la lhe sobrevém que de outra
louvação alguma.
Ao que disse Sancho:
- Ao dinheiro e ao interesse visa o autor? Maravilha será que
acerte, porque não fará senão esbaforir-se, esbaforir-se, como
alfaiate em vésperas de páscoas, e as obras que se fazem depressa
nunca se acabam com a perfeição que requerem. Atenda esse senhor
mouro, ou o que é, a olhar o que faz; que eu e meu senhor lhe daremos
tanto material à mão em matéria de aventuras e de sucessos
diferentes, que possa compor não só segunda parte, senão cem. Deve
pensar o bom homem, sem dúvida, que dormimos no ponto; pois
conheça-nos e verá quem somos. O que eu sei dizer é que se meu
senhor tomasse meu conselho, já havíamos de estar nesses campos
desfazendo agravos e endireitando tortos, como é uso e costume dos
bons andantes cavaleiros.
Sancho não havia bem acabado de dizer estas palavras, quando
chegaram a seus ouvidos relinchos de Rocinante; os quais relinchos
tomou dom Quixote por felicíssimo agouro, e decidiu fazer dali a três
ou quatro dias outra saída; e, declarando seu intento ao bacharel, lhe
pediu conselho por que parte começaria sua jornada; o qual lhe
respondeu que era seu parecer que fosse ao reino de Aragão e à
cidade de Saragoça, onde, dali a poucos dias, se haviam de fazer umas
soleníssimas justas pela festa de São Jorge, nas quais poderia ganhar
fama sobre todos os cavaleiros aragoneses, que seria ganhá-la sobre
todos os do mundo. Louvou-lhe ser honradíssima e valentíssima sua
decisão, e advertiu-o de que andasse mais atento em acometer os
perigos, por que sua vida não era sua, senão de todos aqueles que dele
precisavam para que os amparasse e socorresse em suas desventuras.
- Isso é o que eu renego, senhor Sansão - disse então Sancho, - que
assim avança meu senhor contra cem homens armados como um moço
guloso a meia dúzia de melancias. Corpo do mundo, senhor bacharel!
Sim, que tempos há de avançar e tempos de retirar; sim, não há de ser
tudo “Santiago, e fecha, Espanha!” E mais, que eu ouvi dizer, e creio
que a meu senhor mesmo, se mal não me lembro, que nos extremos de
covarde e de temerário está o meio da valentia; e se isto é assim, não
quero que fuja sem ter para quê, nem que avance quando o
atrevimento pede outra coisa. Mas, sobretudo, aviso a meu senhor que
se me há de levar consigo, há de ser com a condição que ele há de
batalhar todo, e que eu não hei de estar obrigado a outra coisa que a
olhar por sua pessoa no que tocar a sua limpeza e a seu regalo; que
nisto eu me adiantarei a seus desejos; mas pensar que tenho de pôr
mão à espada, embora seja contra vilões gatunos de machado e elmo, é
pensar no escusado. Eu, senhor Sansão, não penso granjear fama de
valente, senão do melhor e mais leal escudeiro que jamais serviu a
cavaleiro andante; e se meu senhor dom Quixote, obrigado de meus
muitos e bons serviços, quiser dar-me alguma ilha das muitas que sua
mercê diz que se há de topar por aí, receberei muita mercê nisso; e
quando não me a der, nascido sou para sofrer, e não há de viver o
homem sob confiança de outro senão de Deus; e mais, que tão bem, e
ainda quiçá melhor, me saberá o pão desgovernado que sendo
governador; e sei eu porventura se nesses governos me tem
aparelhada o diabo alguma artimanha onde tropece e caia e me rompa
os dentes? Sancho nasci, e Sancho penso morrer; mas se então, de
boas a boas, sem muita solicitude e sem muito risco, me deparasse o
céu alguma ilha, ou outra coisa semelhante, não sou tão néscio que a
descartasse; que também se diz: “quando te derem a novilha, corre
com a canguinha”, e “quando vem o bem, mete-o em tua casa”.
- Vós, irmão Sancho - disse Carrasco, - falastes como um
catedrático; mas, assim, confiai em Deus e no senhor dom Quixote,
que vos há de dar um reino, e não uma ilha.
- Tanto é o de mais como o de menos - respondeu Sancho; - embora
sei dizer ao senhor Carrasco que não me deixaria meu senhor o reino
que eu o desperdiçasse, que eu tomei o pulso a mim mesmo, e me acho
com saúde para reger reinos e governar ilhas, e isto já outras vezes o
disse a meu senhor.
- Vede, Sancho - disse Sansão, - que os ofícios mudam as costumes,
e poderia ser que vendo-vos governador não conhecêsseis a mãe que
vos pariu.
- Isso lá se há de entender - respondeu Sancho - com os que
tiveram vil nascimento, e não com os que têm sobre a alma quatro
dedos de graxa de cristãos velhos, como eu os tenho. Não, tão só
considerai como sou e se poderei ser desagradecido com alguém!
- Deus o faça - disse dom Quixote, - e isso dirá quando o governo
venha; que já me parece que o trago entre os olhos.
Dito isto, rogou ao bacharel que, se era poeta, lhe fizesse mercê de
compor-lhe uns versos que tratassem da despedida que pensava fazer
de sua senhora Dulcineia do Toboso, e que advertisse que no princípio
de cada verso havia de pôr uma letra de seu nome, de maneira que ao
fim dos versos, juntando as primeiras letras, se lesse: “Dulcineia do
Toboso”. O bacharel respondeu que, posto que ele não era dos
famosos poetas que havia na Espanha, que diziam que não eram senão
três e meio, que não deixaria de compor os tais versos, embora achava
uma dificuldade grande em sua composição, porque as letras que
continham o nome eram dezessete; e que se fazia quatro coplas
castelhanas da quatro versos, sobraria uma letra; e se de cinco, a
quem chamam “décimas” ou “redondilhas”, faltavam três letras;
entretanto, procuraria colocar uma letra o melhor que pudesse, de
maneira que nas quatro castelhanas se incluísse o nome de Dulcineia
do Toboso.
- Há de ser assim em todo caso - disse dom Quixote; - que se ali não
vai o nome patente e de manifesto, não há mulher que creia que para
ela se fizeram os versos.
Ficaram nisto e em que a partida seria dali a oito dias. Encarregou
dom Quixote ao bacharel a tivesse secreta, especialmente ao padre e
a mestre Nicolás, e a sua sobrinha e à ama, para que não perturbassem
sua honrada e valorosa decisão. Tudo o prometeu Carrasco. Com isto
se despediu, encarregando a dom Quixote que de todos seus bons ou
maus sucessos o avisasse, havendo comodidade; e, assim, se
despediram e Sancho foi pôr em ordem o necessário para sua jornada.

CAPÍTULO V

Da discreta e graciosa conversa que se deu entre Sancho Pança e


sua mulher Teresa Pança, e outros sucessos dignos de feliz
recordação

Chegando a escrever o tradutor desta história este quinto capítulo,


diz que o tem por apócrifo, porque nele fala Sancho Pança com outro
estilo do que se podia esperar de seu curto engenho, e diz coisas tão
sutis, que não tem por possível que ele as soubesse; mas que não quis
deixar de traduzi-lo, por cumprir com o que a seu ofício devia; e
assim, prosseguiu dizendo:
Chegou Sancho à sua casa tão regozijado e alegre, que sua mulher
percebeu sua alegria a tiro de besta; tanto, que a obrigou a perguntar-
lhe:
- Que trazeis, Sancho amigo, que tão alegre vindes?
Ao que ele respondeu:
- Mulher minha, se Deus quisesse, bem me folgaria eu de não estar
tão contente como mostro.
- Não vos entendo, marido - replicou ela, - e não sei que quereis
dizer nisso de que vos folgaríeis, se Deus quisesse, de não estar
contente; que, embora tonta, não sei eu quem recebe gosto de não
ter-lhe.
- Vede, Teresa - respondeu Sancho: - eu estou alegre porque decidi
voltar a servir meu amo dom Quixote, o qual quer a vez terceira sair a
buscar as aventuras; e eu volto a sair com ele, porque o quer assim
minha necessidade, junto com a esperança, que me alegra, de pensar
se poderei achar outros cem escudos como os já gastados, embora me
entristeça o haver-me de afastar de ti e de meus filhos; e se Deus
quisesse dar-me de comer a pé enxuto e em minha casa, sem trazer-
me por ruins caminhos e encruzilhadas, pois o podia fazer a pouco
custo e não mais por querê-lo, claro está que minha alegria seria mais
firme e válida, pois que a que tenho vai misturada com a tristeza do
deixar-te; assim que, disse bem que folgaria, se Deus quisesse, de não
estar contente.
- Vede, Sancho - replicou Teresa; - depois que vos fizestes membro
de cavaleiro andante falais de tão rodeada maneira, que não há quem
vos entenda.
- Basta que me entenda Deus, mulher - respondeu Sancho, - que Ele
é o entendedor de todas as coisas, e fique isto aqui; e adverti, irmã,
que vos convém cuidar estes três dias do ruço, de maneira que esteja
para armas levar: dobrai-lhe os pensos, aparelhai a albarda e as
demais peças, porque não vamos a bodas, senão a rodear o mundo, e a
ter dares e tomares com gigantes, com endríagos e com monstros, e a
ouvir silvos, rugidos, bramidos e urros; e ainda tudo isto seriam
insignificâncias, se não tivéssemos que nos entender com galegos e
com mouros encantados.
- Bem creio eu, marido - replicou Teresa, - que os escudeiros
andantes não comem o pão debalde; e assim, ficarei rogando a Nosso
Senhor vos afaste logo de tanta má ventura.
- Eu vos digo, mulher - respondeu Sancho, - que se não pensasse
antes de muito tempo ver-me governador de uma ilha, aqui me cairia
morto.
- Isso não, marido meu - disse Teresa: - viva a galinha, embora seja
com seus achaques; vivei, e leve o diabo quantos governos há no
mundo; sem governo saístes do ventre de vossa mãe, sem governo
haveis vivido até agora, e sem governo ireis, ou vos levarão, à
sepultura quando Deus for servido. Como esses há no mundo que vivem
sem governo, e não por isso deixam de viver e de ser contados no
número das gentes. A melhor salsa do mundo é a fome; e como esta
não falta aos pobres, sempre comem com gosto. Mas vede, Sancho: se
porventura vos virdes com algum governo, não vos olvideis de mim e de
vossos filhos. Adverti que Sanchico tem já quinze anos completos, e é
razão que vá à escola, se é que seu tio o abade lhe há de arranjar
cargo na Igreja. Vede também que Mari Sancha vossa filha não
morrerá se a casamos; que me vai dando pressentimentos de que
deseja tanto ter marido como desejais ver-vos com governo; e, enfim,
enfim, melhor parece a filha mal casada que bem amancebada.
- À boa fé - respondeu Sancho - que se Deus me chega a dar algum
governo, que tenho de casar, mulher minha, Mari Sancha tão
altamente que não a alcancem senão com chamá-la “senhoria”.
- Isso não, Sancho - respondeu Teresa: - casai-a com seu igual, que
é o mais acertado; que se dos tamancos a alçais a sapatos elegantes, e
de roupa parda da roça a veludos e sedas, e de uma Marica e um tu a
uma dona tal e senhoria, não se há de achar a moça, e a cada passo há
de cair em mil faltas, expondo a rude textura de seu tecido basto e
grosseiro.
- Cala, boba - disse Sancho, - que tudo será usá-lo dois ou três anos,
que depois lhe virá o senhorio e a gravidade como de molde; e quando
não, que importa? Seja ela senhoria, e venha o que vier.
- Comportai-vos, Sancho, conforme vossa condição - respondeu
Teresa, - não vos queirais alçar a maiores, e adverti ao refrão que diz:
“Ao filho de teu vizinho, limpa-lhe o nariz e mete-o em tua casa”. Por
certo, que seria gentil coisa casar a nossa Maria com um condaço, ou
com cavaleirote que, quando desejasse, a pusesse como nova,
chamando-a de vilã, filha do caipira e da fiandeira! Não em meus dias,
marido! Para isso, por certo, criei eu a minha filha! Trazei dinheiros,
Sancho, e o casá-la deixai-o a meu encargo; que aí está Lope Tonto, o
filho de João Tonto, moço roliço e são, e que conhecemos, e sei que
não olha de mau olho à moça; e com este, que é nosso igual, estará bem
casada, e o teremos sempre a nossos olhos, e seremos todos uns, pais
e filhos, netos e genros, e andará a paz e a bênção de Deus entre
todos nós; e não casá-la vós agora nessas cortes e nesses palácios
grandes, onde nem a ela a entendam, nem ela se entenda.
- Vem cá, besta e mulher de Barrabás - replicou Sancho: - por que
queres tu agora, sem que nem para quê, estorvar-me que não case a
minha filha com quem me dê netos que se chamem “senhoria ”? Vê,
Teresa: sempre ouvi dizer a meus maiores que o que não sabe gozar da
ventura quando lhe vem, que não se deve queixar se se lhe passa. E não
seria bem que agora, que está chamando à nossa porta, a cerremos;
deixemo-nos levar por este vento favorável que nos sopra.
Por este modo de falar, e pelo que mais abaixo diz Sancho, disse o
tradutor desta história que tinha por apócrifo este capítulo.
- Não te parece, alimária - prosseguiu Sancho, - que será bom dar
com meu corpo em algum governo proveitoso que nos tire o pé do lodo?
E case-se Mari Sancha com quem eu quiser, e verás como te chamam a
ti “dona Teresa Pança”, e te sentas na igreja sobre alcatifa, almofadas
e colchas, para pesar e despeito das fidalgas da vila. Não, senão não
mudais de natureza, sem crescer nem minguar, como figura de
paramento! E nisto não falemos mais, que Sanchica há de ser
condessa, embora tu mais me digas.
- Vede quanto dizeis, marido? - respondeu Teresa. - Pois, assim,
temo que este condado de minha filha há de ser sua perdição. Fazei o
que quiserdes, ora a façais duquesa ou princesa, mas sei-vos dizer que
não será isso com vontade nem consentimento meu. Sempre, irmão, fui
amiga da igualdade, e não posso ver arrogâncias sem fundamentos.
Teresa me puseram no batismo, nome limpo e sucinto, sem acréscimos
nem babados, nem adornos de dons nem donas; “Cascalho” se chamou
meu pai, e a mim, por ser vossa mulher, me chamam “Teresa Pança”
(que à boa razão me haviam de chamar “Teresa Cascalho”, mas lá vão
reis onde querem leis), e com este nome me contento, sem que lhe
ponham um dom em cima que pese tanto que não o possa levar, e não
quero dar o que dizer aos que me virem andar vestida como condessa
ou governadora, que logo dirão: “Vede que soberba vai a porcalhona!
Ontem não se fartava de fiar estopa, e ia à missa coberta a cabeça
com a fralda da saia, em lugar de manto, e já hoje vai com veludos,
com broches e com arrogância, como se não a conhecêssemos”. Se
Deus me guarda meus sete, ou meus cinco sentidos, ou os que tenho,
não penso dar motivo de ver-me em tal aperto. Vós, irmão, ide ser
governo ou ilho, e ensoberbecei-vos a vosso gosto; que minha filha nem
eu, pela vida eterna de minha mãe, que não havemos de mudar um
passo de nossa aldeia: a mulher honrada, a perna quebrada, e em casa;
e a donzela honesta, o trabalhar é sua festa. Ide com vosso dom
Quixote a vossas aventuras, e deixai-nos a nós com nossas más
venturas, que Deus nos as melhorará conforme sejamos boas; e eu não
sei, por certo, quem lhe pôs a ele dom, que não tiveram seus pais nem
seus avós.
- Agora digo - replicou Sancho - que tens algum diabo nesse corpo.
Valha-te Deus, mulher, e que coisas enfiaste umas em outras, sem ter
pés nem cabeça! Que tem que ver o cascalho, os broches, os refrãos e
a soberba com o que eu digo? Vem cá, mentecapta e ignorante, que
assim te posso chamar, pois não entendes minhas razões e vais
fugindo da sorte: se eu dissesse que minha filha se arrojasse de uma
torre abaixo, ou que se fosse por esses mundos, como quis ir a infanta
dona Urraca, tinhas razão de não vir com meu gosto; mas se num
átimo, e em menos de um abrir e fechar de olhos, te planto um dom e
uma senhoria às costas, e te tiro dos restolhos, e te ponho em toldo e
em peanha, e em um estrado de mais almofadas de veludo que tiveram
mouros em sua linhagem os Almofadas de Marrocos, por que não hás
de consentir e querer o que eu quero?
- Sabeis por quê, marido? - respondeu Teresa; - pelo refrão que diz:
“Quem te cobre, te descobre”! Pelo pobre todos passam os olhos como
de corrida, e no rico os detêm; e se o tal rico foi um tempo pobre, ali
é o murmurar e o maldizer, e o pior perseverar dos maldizentes, que
os há por essas ruas aos montões, como enxames de abelhas.
- Vê, Teresa - respondeu Sancho, - e escuta o que agora quero
dizer-te; quiçá não o haverás ouvido em todos os dias de tua vida, e eu
agora não falo de meu; que tudo o que penso dizer são sentenças do
padre pregador que a Quaresma passada pregou neste povoado, o qual,
se mal não me lembro, disse que todas as coisas presentes que os
olhos estão olhando se apresentam, estão e moram em nossa memória
muito melhor e com mais veemência que as coisas passadas.
Todas estas razões que aqui vai dizendo Sancho são as segundas por
quem diz o tradutor que tem por apócrifo este capítulo, que excedem
à capacidade de Sancho. O qual prosseguiu dizendo:
- De onde nasce que, quando vemos alguma pessoa bem enfeitada, e
com ricas vestes composta, e com pompa de criados, parece que por
força nos move e convida a que por ela tenhamos respeito, embora a
memória naquele instante nos represente alguma baixeza em que
vimos a tal pessoa; a qual ignomínia, agora seja de pobreza ou de
linhagem, como já passou, não é, e só é o que vemos presente. E se
este a quem a fortuna tirou do esboço de sua baixa condição (que por
estas mesmas razões o disse o padre) à altura de sua prosperidade,
for bem criado, liberal e cortês com todos, e não se puser em contos
com aqueles que por antiguidade são nobres, tem por certo, Teresa,
que não haverá quem se recorde do que foi, senão que reverenciem o
que é, se não forem os invejosos, de quem nenhuma próspera fortuna
está segura.
- Eu não vos entendo, marido - replicou Teresa: - fazei o que
quiserdes, e não me quebreis mais a cabeça com vossas arengas e
retóricas. E se estais revolvido em fazer o que dizeis...
- Resolvido hás de dizer, mulher - disse Sancho, - e não revolvido.
- Não vos ponhais a disputar, marido, comigo - respondeu Teresa:
- eu falo como Deus é servido, e não me meto em mais problemas; e
digo que se estais porfiando em ter governo, que leveis convosco vosso
filho Sancho, para que desde agora o ensineis a ter governo, que bem
é que os filhos herdem e aprendam os ofícios de seus pais.
- Tendo governo - disse Sancho, - enviá-lo-ei pela posta, e te
enviarei dinheiros, que não me faltarão, pois nunca falta quem os
empreste aos governadores quando não os têm; e veste-o de modo que
dissimule o que é e pareça o que há de ser.
- Enviai dinheiro - disse Teresa, - que eu o vestirei como um palmito.
- Com efeito, ficamos de acordo - disse Sancho - de que há de ser
condessa nossa filha.
- O dia que eu a vir condessa - respondeu Teresa, - esse farei de
conta que a enterro, mas outra vez vos digo que façais o que vos der
gosto, que com esta carga nascemos as mulheres, de estar obedientes
a seus maridos, embora sejam uns tontos.
E nisto começou a chorar tão sinceramente como se já visse
Sanchica morta e enterrada. Sancho a consolou dizendo-lhe que, já
que a houvesse de fazer condessa, faria tudo o mais tarde que
pudesse ser. Com isto se acabou sua conversa, e Sancho voltou a ver
dom Quixote para dar ordem em sua partida.

CAPÍTULO VI

Do que se passou com dom Quixote, sua sobrinha e sua ama, e é um


dos importantes capítulos de toda a história

Enquanto Sancho Pança e sua mulher Teresa Cascalho tiveram a


impertinente referida conversa, não estavam ociosas a sobrinha e a
ama de dom Quixote, que por mil sinais iam entendendo que seu tio e
senhor queria escapar pela terceira vez, e voltar ao exercício de sua,
para elas, mal-andante cavalaria: procuravam por todas as vias
possíveis afastá-lo de tão mau pensamento, mas tudo era pregar em
deserto e malhar em ferro frio. Assim, entre outras muitas razões
que com ele tiveram, disse-lhe a ama:
- Em verdade, senhor meu, que se vossa mercê não é prudente e
fica quieto em sua casa, e deixa de andar pelos montes e pelos vales
coma alma penada, buscando essas que dizem que se chamam
aventuras, a que eu chamo desditas, que me tenho de queixar em voz e
em grita a Deus e ao Rei, que ponham remédio nisso.
Ao que respondeu dom Quixote:
- Ama, o que Deus responderá a tuas queixas eu não sei, nem o que
há de responder Sua Majestade tampouco, e só sei que se eu fosse
rei, me escusaria de responder a tanta infinidade de memoriais
impertinentes que a cada dia lhe dão; que um dos maiores trabalhos
que os reis têm, entre outros muitos, é o estar obrigados a escutar a
todos e a responder a todos; e assim, não queria eu que coisas minhas
lhe dessem tristeza.
Ao que disse a ama:
- Diga-nos, senhor: na corte de Sua Majestade, não há cavaleiros?
- Sim - respondeu dom Quixote, - e muitos; e é razão que os haja,
para adorno da grandeza dos príncipes e para ostentação da
majestade real.
- Pois, não seria vossa mercê - replicou ela - um dos que a pé quieto
servissem a seu rei e senhor, estando na corte?
- Vê, amiga - respondeu dom Quixote: - não todos os cavaleiros
podem ser cortesãos, nem todos os cortesãos podem nem devem ser
cavaleiros andantes: de todos há de haver no mundo; e, embora todos
sejamos cavaleiros, vai muita diferença de uns a outros; porque os
cortesãos, sem sair de seus aposentos nem dos umbrais da corte,
passeiam por todo o mundo, olhando um mapa, sem custar-lhes prata,
nem padecer calor nem frio, fome nem sede; mas nós, os cavaleiros
andantes verdadeiros, ao sol, ao frio, ao ar, às inclemências do céu, de
noite e de dia, a pé e a cavalo, medimos toda a terra com nossos
mesmos pés; e não somente conhecemos os inimigos pintados, senão
em seu mesmo ser, e em todo transe e em toda ocasião os
enfrentamos, sem olhar para ninharias, nem nas leis dos desafios; se
leva, ou não leva, mais curta a lança, ou a espada; se traz sobre si
relíquias, ou algum engano encoberto; se há de repartir e fazer
talhadas ao sol, ou não, com outras cerimônias deste jaez, que se usam
nos desafios particulares de pessoa a pessoa, que tu não sabes e eu
sim. E hás de saber mais: que o bom cavaleiro andante, embora veja
dez gigantes que com as cabeças não só tocam, senão passam as
nuvens, e que a cada um lhe servem de pernas duas grandíssimas
torres, e que os braços semelham mastros de grossos e poderosos
navios, e cada olho como uma grande roda de moinho e mais ardendo
que um forno de vidro, não lhe hão de espantar de maneira alguma;
antes com gentil postura e com intrépido coração os há de acometer e
investir, e, se for possível, vencê-los e desbaratá-los num pequeno
instante, embora viessem armados de umas conchas de um certo
pescado que dizem que são mais duras que se fossem de diamantes, e
em lugar de espadas trouxessem facas cortantes de damasquino aço,
ou bolas de ferro com pontas também de aço, como eu as vi mais de
duas vezes. Tudo isto disse, ama minha, para que vejas a diferença que
há de uns cavaleiros a outros; e seria razão que não houvesse príncipe
que não estimasse em mais esta segunda, ou, por melhor dizer,
primeira espécie de cavaleiros andantes, que, segundo lemos em suas
histórias, tal houve entre eles que foi a saúde não só de um reino,
senão de muitos.
- Ah, senhor meu! - disse então a sobrinha; - advirta vossa mercê
que tudo isso que diz dos cavaleiros andantes é fábula e mentira, e
suas histórias, já que não as queimassem, mereciam que em cada uma
se colocasse um escapulário, ou algum sinal para que fosse conhecida
por infame e por corruptora dos bons costumes.
- Pelo Deus que me sustenta - disse dom Quixote, - que se não
fosses minha sobrinha diretamente, como filha de minha mesma irmã,
que havia de fazer um tal castigo em ti, pela blasfêmia que disseste,
que soaria por todo o mundo. Como que é possível que uma moça que
apenas sabe mexer doze pauzinhos de rendas se atreva a pôr língua e
a censurar as histórias dos cavaleiros andantes? Que diria o senhor
Amadis se tal ouvisse? Mas a bom seguro que ele te perdoaria, porque
foi o mais humilde e cortês cavaleiro de seu tempo, e, ademais, grande
amparador das donzelas; mas, tal te poderia haver ouvido que não te
fosse bom nisso, que não todos são corteses nem bem vistos: alguns há
baderneiros e descomedidos. Nem todos os que se chamam cavaleiros
o são de todo em todo: que uns são de ouro, outros de alquimia, e
todos parecem cavaleiros, mas não todos podem suportar a prova da
verdade. Homens baixos há que rebentam por parecer cavaleiros, e
cavaleiros altos há que parece que de propósito morrem por parecer
homens baixos; aqueles se levantam ou com a ambição ou com a
virtude, estes se abaixam ou com a frouxidão, ou com o vício; e é
preciso aproveitar-nos do conhecimento discreto para distinguir estas
duas maneiras de cavaleiros, tão parecidos nos nomes e tão distantes
nas ações.
- Valha-me Deus! - disse a sobrinha. - Que saiba vossa mercê tanto,
senhor tio, que, se fosse preciso em uma necessidade poderia subir
num púlpito e ir pregar por essas ruas, e que, desse modo, dê em uma
cegueira tão grande e em uma sandice tão conhecida, que dê a
entender que é valente, sendo velho, que tem forças, estando
enfermo, e que endireita tortos, estando pela idade encurvado, e,
sobretudo, que é cavaleiro, não o sendo; porque, embora o possam ser
os fidalgos, não o são os pobres!
- Tens muita razão, sobrinha, no que dizes - respondeu dom
Quixote, - e coisas te poderia eu dizer acerca das linhagens, que te
admirariam; mas, para não misturar o divino com o humano, não as
digo. Vede, amigas: a quatro sortes de linhagens, e estai-me atentas,
se podem reduzir todas as que há no mundo, que são estas: uns, que
tiveram princípios humildes, e se foram estendendo e dilatando até
chegar a uma suma grandeza; outros, que tiveram princípios grandes, e
os foram conservando e os conservam e mantêm no ser que
começaram; outros, que, embora tiveram princípios grandes, acabaram
em ponta, como pirâmide, havendo diminuído e aniquilado seu princípio
até parar em nonada, como o é a ponta da pirâmide, que com respeito a
sua base ou assento não é nada; outros há (e estes são os mais) que
nem tiveram princípio bom nem razoável meio, e assim terão o fim,
sem nome, como a linhagem da gente plebeia e ordinária. Dos
primeiros, que tiveram princípio humilde e subiram à grandeza que
agora conservam, te sirva de exemplo a casa otomana, que, de um
humilde e baixo pastor que lhe deu princípio, está no cume em que a
vemos. Da segunda linhagem, que teve princípio em grandeza e a
conserva sem aumentá-la, serão exemplo muitos príncipes que por
herança o são, e se conservam nela, sem aumentá-la nem diminuí-la,
contendo-se nos limites de seus estados pacificamente. Dos que
começaram grandes e acabaram em ponta há milhares de exemplos,
porque todos os Faraós e Ptolomeus do Egito, os Césares de Roma,
com toda a caterva (se é que se lhe pode dar este nome), de infinitos
príncipes, monarcas, senhores, medos, assírios, persas, gregos e
bárbaros, todas estas linhagens e senhorios acabaram em ponta e em
nonada, assim eles como os que lhes deram princípio, pois não será
possível achar agora nenhum de seus descendentes, e se o
achássemos, seria em baixo e humilde estado. Da linhagem plebeia não
tenho que dizer, senão que serve só de acrescentar o número dos que
vivem, sem que mereçam outra fama nem outro elogio suas grandezas.
De todo o dito quero que infirais, bobas minhas, que é grande a
confusão que há entre as linhagens, e que só aqueles parecem grandes
e ilustres que o mostram na virtude, e na riqueza e liberalidade de
seus donos. Disse virtudes, riquezas e liberalidades, porque o grande
que for prazenteiro será prazenteiro grande, e o rico não liberal será
um avaro mendigo; que ao possuidor das riquezas não lhe faz ditoso o
tê-las, senão o gastá-las, e não o gastá-las como queira, senão o sabê-
las bem gastar. Ao cavaleiro pobre não lhe fica outro caminho para
mostrar que é cavaleiro senão o da virtude, sendo afável, bem criado,
cortês e comedido, e solícito; não soberbo, não arrogante, não
murmurador, e, sobretudo, caritativo; que com dois maravedis que com
ânimo alegre dê ao pobre se mostrará tão liberal como o que com
toque de sinos dá esmola, e não haverá quem o veja adornado das
referidas virtudes que, embora não o conheça, deixe de julgá-lo e tê-
lo por de boa casta, e o não sê-lo seria milagre; e sempre a louvação
foi prêmio da virtude, e os virtuosos não podem deixar de ser
louvados. Dois caminhos há, filhas, por onde podem ir os homens a
chegar a ser ricos e honrados: um é o das letras; outro, o das armas.
Eu tenho mais armas que letras, e nasci, segundo me inclino às armas,
debaixo da influência do planeta Marte; assim que, quase me é forçoso
seguir por seu caminho, e por ele tenho de ir apesar de todo o mundo,
e será em vão cansar-vos em persuadir-me a que não queira eu o que
os céus querem, a fortuna ordena e a razão pede, e, sobretudo, minha
vontade deseja. Pois com saber, como sei, os inumeráveis trabalhos
que são próprios à andante cavalaria, sei também os infinitos bens que
se alcançam com ela; e sei que a senda da virtude é muito estreita, e o
caminho do vício, largo e espaçoso; e sei que seus fins e paradeiros são
diferentes, porque o do vício, dilatado e espaçoso, acaba na morte, e o
da virtude, estreito e trabalhoso, acaba em vida, e não em vida que se
acaba, senão na que não terá fim; e sei, como diz o grande poeta
castelhano nosso, que

Por estas asperezas se caminha


da imortalidade ao alto assento,
aonde nunca sobe quem dali declina.

- Ai, desditada de mim - disse a sobrinha, - que também meu senhor


é poeta! Tudo sabe, tudo alcança: eu apostarei que se quisesse ser
pedreiro, que saberia fabricar tanto uma casa como uma jaula.
- Eu te prometo, sobrinha - respondeu dom Quixote, - que se estes
pensamentos cavaleirescos não me levassem atrás de si todos os
sentidos, que não haveria coisa que eu não fizesse, nem curiosidade
que não saísse de minhas mãos, especialmente jaulas e palitos de
dentes.
A este tempo, chamaram à porta, e, perguntando quem chamava,
respondeu Sancho Pança que era ele; e, apenas o reconheceu a ama,
quando correu a esconder-se para não vê-lo: tanto a aborrecia. Abriu-
lhe a sobrinha, saiu a receber-lhe com os braços abertos seu senhor
dom Quixote, e encerraram-se os dois em seu aposento, onde tiveram
outro colóquio, que não lhe faz vantagem o passado.

CAPÍTULO VII

Do que passou dom Quixote com seu escudeiro, com outros sucessos
famosíssimos

Apenas viu a ama que Sancho Pança se encerrava com seu senhor,
quando se deu conta de seus planos; e, imaginando que daquela
consulta havia de sair a resolução de sua terceira saída e tomando seu
manto, toda cheia de angústia e tristeza, foi procurar o bacharel
Sansão Carrasco, parecendo-lhe que, por ser bem falado e amigo
recente de seu senhor, poderia persuadi-lo a que deixasse tão
desvairado propósito.
Achou-o passeando pelo pátio de sua casa, e, vendo-o, se deixou cair
ante seus pés, tressuando e angustiada. Quando a viu Carrasco com
mostras tão doloridas e sobressaltadas, disse-lhe:
- Que é isto, senhora ama? Que lhe aconteceu, que parece que se
lhe quer arrancar a alma?
- Não é nada, senhor Sansão meu, senão que meu amo vai embora;
vai sem dúvida!
- E para onde vai, senhora? - perguntou Sansão. - Rompeu-lhe
alguma parte do corpo?
- Não vai - respondeu ela, - senão pela porta de sua loucura. Quero
dizer, senhor bacharel de minha alma, que quer sair outra vez, que
com esta será a terceira, a buscar por esse mundo o que ele chama
venturas, que eu não posso entender como lhes dá este nome. A vez
primeira no-lo trouxeram atravessado sobre um jumento, moído a
golpes. A segunda veio num carro de bois, metido e encerrado em uma
jaula, onde ele dava a entender que estava encantado; e vinha tal o
triste, que não o conheceria a mãe que o pariu: magro, amarelo, os
olhos fundidos nos últimos recantos do cérebro, e, para fazê-lo voltar
algum tanto a si, gastei mais de seiscentos ovos, como o sabe Deus e
todo o mundo, e minhas galinhas, que não me deixarão mentir.
- Isso creio eu muito bem - respondeu o bacharel; - que elas são tão
boas, tão gordas e tão bem criadas, que não dirão uma coisa por outra,
ainda que rebentassem. Com efeito, senhora ama: não há outra coisa,
nem sucedeu outro desmando algum, senão o que se teme que quer
fazer o senhor dom Quixote?
- Não, senhor - respondeu ela.
- Pois não se preocupe - respondeu o bacharel, - senão vá em hora
boa para sua casa, e prepare-me alguma coisa quente para almoçar, e,
no caminho, vá rezando a oração de Santa Apolônia se é que a sabe,
que eu irei logo lá, e verá maravilhas.
- Coitada de mim! - replicou a ama. - A oração de Santa Apolônia diz
vossa mercê que reze? Isso seria se meu amo tivesse dor de dentes,
mas não a tem senão da cachola.
- Eu sei o que digo, senhora ama: vá e não se ponha a disputar
comigo, pois sabe que sou bacharel por Salamanca, que não há mais que
bacharelar - respondeu Carrasco.
E com isto se foi a ama, e o bacharel foi logo procurar o padre, para
conversar com ele o que se dirá a seu tempo.
No tempo em que estiveram encerrados dom Quixote e Sancho,
passaram as razões que com muita pontualidade e verdadeira relação
conta a história.
Disse Sancho a seu amo:
- Senhor, já eu tenho reluzida a minha mulher a que me deixe ir com
vossa mercê onde quiser levar-me.
- Reduzida hás de dizer, Sancho - disse dom Quixote, - que não
reluzida.
- Uma ou duas vezes - respondeu Sancho, - se mal não me lembro,
supliquei a vossa mercê que não me emende os vocábulos, se é que
entende o que quero dizer com eles, e que, quando não os entenda,
diga: “Sancho, ou diabo, não te entendo”; e se eu não me explicar,
então poderá emendar-me; que eu só tão fócil...
- Não te entendo, Sancho - disse logo dom Quixote, - pois não sei
que quer dizer sou tão fócil.
- Tão fócil quer dizer - respondeu Sancho - “sou tão assim”.
- Menos te entendo agora - replicou dom Quixote.
- Pois se não me pode entender - respondeu Sancho, - não sei como
o diga: não sei mais, e Deus esteja comigo.
- Já, já sei - respondeu dom Quixote: - tu queres dizer que és tão
dócil, suave e esperto que aceitarás o que eu te disser, e seguirás o
que te ensinar.
- Apostarei eu - disse Sancho - que desde o princípio me entendeu,
mas quis confundir-me para ouvir-me dizer outras duzentas
patacoadas.
- Poderá ser - replicou dom Quixote. - E com efeito, que diz
Teresa?
- Teresa diz - disse Sancho - que me assegure bem no trato feito
com vossa mercê, e que falem cartas e calem barbas, porque quem
corta não baralha, pois mais vale um toma que dois te darei. E eu digo
que o conselho da mulher é pouco, e o que não o toma é louco.
- E eu o digo também - respondeu dom Quixote. - Dizei, Sancho
amigo; passai adiante, que falais hoje por pérolas.
- É o caso - replicou Sancho - que, como vossa mercê melhor sabe,
todos estamos sujeitos à morte, e que hoje existimos e amanhã não, e
que tão logo se vai o cordeiro como o carneiro, e que ninguém pode
prometer-se neste mundo mais horas de vida das que Deus quiser dar-
lhe, porque a morte é surda, e, quando chega a chamar às portas de
nossa vida, sempre vai depressa e não a farão deter nem rogos, nem
forças, nem cetros, nem mitras, segundo é pública voz e fama, e
segundo no-lo dizem por esses púlpitos.
- Tudo isso é verdade - disse dom Quixote, - mas não sei onde
pretendes chegar.
- Quero chegar - disse Sancho - em que vossa mercê me estipule
salário conhecido do que me há de dar cada mês pelo tempo que o
servir, e que o tal salário se me pague de seus bens; que não quero
estar por mercês, que chegam tarde, ou mal, ou nunca; com o meu me
ajude Deus. Enfim, eu quero saber o que ganho, pouco ou muito que
seja, que sobre um ovo põe a galinha, e muitos poucos fazem um muito,
e quando se ganha algo não se perde nada. Verdade seja que se
sucedesse, o qual nem o creio nem o espero, que vossa mercê me desse
a ilha que me tem prometida, não sou tão ingrato, nem levo as coisas
tão pelos fins, que não quererei que se aprecie o que montar a renda
da tal ilha, e se desconte de meu salário gata por quantidade.
- Sancho amigo - respondeu dom Quixote, - às vezes, tão boa
costuma ser uma gata como uma rata.
- Já entendo - disse Sancho: - eu apostarei que havia de dizer rata,
e não gata; mas não importa nada, pois vossa mercê me entendeu.
- E tanto entendi - respondeu dom Quixote - que penetrei o último
de teus pensamentos, e sei ao alvo que atiras com as inumeráveis
setas de teus refrãos. Vê, Sancho: eu bem te estipularia salário, se
houvesse achado em alguma das histórias dos cavaleiros andantes
exemplo que me descobrisse e mostrasse, por algum pequeno
resquício, que é o que costumavam ganhar cada mês, ou cada ano; mas
eu li todas ou as mais de suas histórias, e não me lembro de haver lido
que nenhum cavaleiro andante haja estipulado conhecido salário a seu
escudeiro. Só sei que todos serviam à mercê, e que, quando menos o
pensavam, se a seus senhores houvesse corrido bem a sorte, se
achavam premiados com uma ilha, ou com outra coisa equivalente, e,
pelo menos, ficavam com título e senhoria. Se com estas esperanças e
aditamentos vós, Sancho, gostais de voltar a servir-me, seja em boa
hora: que pensar que eu hei de tirar de seus termos e normas a antiga
usança da cavalaria andante é pensar em vão. Assim que, Sancho meu,
voltai a vossa casa, e declarai a vossa Teresa minha intenção; e se ela
gostar e vós gostardes de estar à mercê comigo, bene quidem, e se
não, tão amigos como antes; que se ao pombal não falta ceva, não lhe
faltarão pombas. E adverti, filho, que vale mais boa esperança que
ruim possessão, e boa queixa que má paga. Falo desta maneira, Sancho,
por dar-vos a entender que também como vós sei eu lançar refrãos em
abundância. E finalmente, quero dizer, e vos digo, que se não quereis
vir à mercê comigo e correr a sorte que eu correr, que Deus fique
convosco e vos faça um santo; que a mim não me faltarão escudeiros
mais obedientes, mais solícitos, e não tão lerdos nem tão faladores
como vós.
Quando Sancho ouviu a firme resolução de seu amo se lhe nublou o
céu e caíram as asas do coração, porque tinha acreditado que seu
senhor não iria sem ele por todos os haveres do mundo; e assim,
estando suspenso e pensativo, entrou Sansão Carrasco com a ama e a
sobrinha, desejosas de ouvir com que razões persuadia seu senhor a
não tornar a buscar aventuras. Chegou Sansão, socarrão famoso, e,
abraçando-o como na primeira vez e com voz levantada, disse-lhe:
- Oh flor da andante cavalaria; oh luz resplandecente das armas! Oh
honra e espelho da nação espanhola! Tomara Deus todo-poderoso,
onde mais largamente se contém, que a pessoa ou pessoas que puserem
impedimento e perturbarem tua terceira saída, que não a achem no
labirinto de seus desejos, nem jamais se lhes cumpra o que mal
desejarem.
E voltando-se à ama, disse-lhe:
- Bem possa a senhora ama não rezar mais a oração de Santa
Apolônia; que eu sei que é determinação precisa das esferas que o
senhor dom Quixote volte a executar seus altos e novos pensamentos,
e eu carregaria muito minha consciência se não intimasse e
persuadisse este cavaleiro que não tenha mais tempo encolhida e
detida a força de seu valoroso braço e a bondade de seu ânimo
valentíssimo, porque defrauda com sua tardança o direito dos tortos,
o amparo dos órfãos, a honra das donzelas, o favor das viúvas e o
arrimo das casadas, e outras coisas deste jaez, que tocam, atêm-se,
dependem e são próprias à ordem da cavalaria andante. Eia, senhor
dom Quixote meu, formoso e bravo, antes hoje que amanhã se ponha
vossa mercê e sua grandeza a caminho; e se alguma coisa faltar para
pô-lo em execução, aqui estou eu para supri-la com minha pessoa e
bens; e se for necessidade servir a tua magnificência de escudeiro, o
terei por felicíssima ventura!
Então, disse dom Quixote, voltando-se a Sancho:
- Não te disse eu, Sancho, que me haviam de sobrar escudeiros? Vê
quem se oferece a sê-lo, senão o inaudito bacharel Sansão Carrasco,
perpétuo bufão e regozijador dos pátios das escolas salmanticenses,
são de sua pessoa, ágil de seus membros, calado, sofredor assim do
calor como do frio, assim da fome como da sede, com todas aquelas
qualidades que se requerem para ser escudeiro de um cavaleiro
andante. Mas não permita o céu que, por seguir meu gosto, desfaça e
quebre a coluna das letras e o vaso das ciências, e trunque a palma
eminente das boas e liberais artes. Fique o novo Sansão em sua pátria,
e, honrando-a, honre juntamente as cãs de seus anciãos pais; que eu
com qualquer escudeiro estarei contente, já que Sancho não se digna
de vir comigo.
- Sim, digno-me - respondeu Sancho, enternecido e cheios de
lágrimas os olhos; e prosseguiu: - Não se dirá por mim, senhor meu: o
pão comido e a companhia desfeita; sim, que não venho eu de alguma
estirpe desagradecida, que já sabe todo o mundo, e especialmente
meu povoado, quem foram os Panças, de quem eu descendo, e mais, que
tenho conhecido e calado por muitas boas obras, e por melhores
palavras, o desejo que vossa mercê tem de fazer-me mercê; e se
regateei acerca de meu salário, foi por comprazer a minha mulher; a
qual, quando encasqueta com uma coisa, não há macete que tanto
aperte os aros de uma cuba como ela aperta a que se faça o que quer;
mas, com efeito, o homem há de ser homem, e a mulher, mulher; e,
pois eu sou homem onde quer, que não o posso negar, também o quero
ser em minha casa, pese a quem pesar; e assim, não há mais que fazer,
senão que vossa mercê ordene seu testamento com suas cláusulas, de
modo que não se possa revolgar, e ponhamo-nos logo a caminho, para
que não padeça a alma do senhor Sansão, que diz que sua consciência
lhe dita que persuada a vossa mercê a sair pela terceira vez por esse
mundo; e eu de novo me ofereço a servir a vossa mercê fiel e
legalmente, tão bem e melhor que quantos escudeiros serviram a
cavaleiros andantes nos passados e presentes tempos.
Admirado ficou o bacharel de ouvir o momento e modo precisos de
falar de Sancho Pança; pois, embora houvesse lido a primeira história
de seu senhor, nunca creu que era tão gracioso como ali o pintam; mas,
ouvindo-o dizer agora “testamento e cláusulas que não se possam
revolgar”, em lugar de “testamento e cláusulas que não se possam
revogar”, creu em tudo o que dele havia lido, e confirmou-o por um dos
mais solenes mentecaptos de nossos séculos; e disse consigo que tais
loucos como amo e moço não se haveriam visto no mundo.
Finalmente, dom Quixote e Sancho se abraçaram e ficaram amigos,
e com parecer e beneplácito do grande Carrasco, que por então era
seu oráculo, se ordenou que dali a três dias fosse sua partida; nos
quais haveria lugar de preparar o necessário para a viagem, e de
buscar uma elmo de encaixe, que de toda maneira disse dom Quixote
que o havia de levar. Ofereceu-o Sansão, porque sabia não o negaria
um amigo seu que o possuía, embora estivesse mais escuro pela
ferrugem e o mofo que clara e limpa pelo aço polido.
As maldições que as duas, ama e sobrinha, lançaram ao bacharel não
tiveram conta: arrancaram seus cabelos, arranharam seus rostos, e, ao
modo das carpideiras que se usavam, lamentavam a partida como se
fosse a morte de seu senhor. O desígnio que teve Sansão, para
persuadi-lo a que outra vez saísse, foi fazer o que adiante conta a
história, tudo por conselho do padre e do barbeiro, com quem ele
antes havia conversado.
Em suma, naqueles três dias dom Quixote e Sancho se abasteceram
do que lhes pareceu convir-lhes; e, havendo aplacado Sancho sua
mulher, e dom Quixote sua sobrinha e sua ama, ao anoitecer, sem que
ninguém visse, senão o bacharel, que quis acompanhá-los até meia
légua do lugar, se puseram a caminho do Toboso: dom Quixote sobre
seu bom Rocinante, e Sancho sobre seu antigo ruço, providos os
alforjes de coisas tocantes à boca, e a bolsa, de dinheiros, que lhe deu
dom Quixote para o que se oferecesse. Abraçou-o Sansão, e suplicou-
lhe o deixasse a par de sua boa ou má sorte, para alegrar-se com esta
ou entristecer-se com aquela, como as leis de sua amizade pediam.
Prometeu-o dom Quixote, Sansão voltou a seu lugar, e os dois
tomaram o rumo da grande cidade do Toboso.

CAPÍTULO VIII

Onde se conta o que sucedeu a dom Quixote, indo ver sua senhora
Dulcineia do Toboso

“Bendito seja o poderoso Alá!”, - diz Hamete Benengeli no começo


deste oitavo capítulo. “Bendito seja Alá!”, repete três vezes, e diz que
dá estas bênçãos por ver que tem já em campo dom Quixote e Sancho,
e que os leitores de sua agradável história podem saber que desde
este ponto começam as façanhas e donaires de dom Quixote e de seu
escudeiro; persuade-os de que esqueçam as passadas cavalarias do
engenhoso fidalgo, e ponham os olhos nas que estão por vir, que desde
agora no caminho do Toboso começam, como as outras começaram nos
campos de Montiel, e não é muito o que pede para tanto que ele
promete; e assim prossegue dizendo:
Sós ficaram dom Quixote e Sancho, e, apenas se afastou Sansão,
quando começou a relinchar Rocinante e a suspirar o ruço, o que por
ambos, cavaleiro e escudeiro, foi tido por bom sinal e por felicíssimo
agouro; embora, se se há de contar a verdade, mais foram os suspiros
e zurros do ruço que os relinchos do rocim, de onde concluiu Sancho
que sua ventura havia de sobrepujar e pôr-se acima da de seu senhor,
fundando-se não sei se em astrologia judiciária que ele sabia, embora
a história não o declare; só lhe ouviram dizer que, quando tropeçava ou
caía, se folgara por não haver saído de casa, porque do tropeçar ou
cair não se ganhava outra coisa senão o sapato roto ou as costelas
quebradas; e, embora tonto, não andava nisto muito fora no caminho.
Disse-lhe dom Quixote:
- Sancho amigo, a noite chega muito depressa, e com mais escuridão
da que havíamos preciso para alcançar a ver com o dia o Toboso, onde
tenho determinado de ir antes que em outra aventura me ponha, e ali
tomarei a bênção e boa licença da sem par Dulcineia, com a qual
licença penso e tenho por certo acabar e dar feliz remate a toda
perigosa aventura, porque nenhuma coisa desta vida faz mais valentes
os cavaleiros andantes que ver-se favorecidos de suas damas.
- Eu assim o creio - respondeu Sancho; - mas tenho por dificultoso
que vossa mercê possa falar-lhe nem vê-la, em parte, ao menos, que
possa receber sua bênção, se já não o consegue desde as cercas do
curral, por onde eu a vi a vez primeira, quando lhe levei a carta onde
iam as novas das sandices e loucuras que vossa mercê ficava fazendo
no coração da Serra Morena.
- Cercas de curral te pareceram aquelas, Sancho - disse dom
Quixote, - onde ou por onde viste aquela jamais bastantemente
louvada gentileza e formosura? Não deviam ser senão galerias ou
corredores, ou balcões, ou como as chamam, de ricos e reais palácios.
- Tudo pôde ser - respondeu Sancho, - mas a mim cercas me
pareceram, se não é que sou falto de memória.
- Então, vamos lá, Sancho - replicou dom Quixote, - que quando eu a
veja, isso se me dá que seja por cercas ou por janelas, ou por
resquícios, ou cancelas de jardins; que qualquer raio que do sol de sua
beleza chegue a meus olhos iluminará meu entendimento e fortalecerá
meu coração, de modo que fique único e sem igual na discrição e na
valentia.
- Pois em verdade, senhor - respondeu Sancho, - que quando eu vi
esse sol da senhora Dulcineia do Toboso, não estava tão claro, que
lançasse de si raios alguns, e deveu ser que, como sua mercê estava
peneirando aquele trigo que disse, o muito pó que subia se lhe pôs
como nuvem ante o rosto e o escureceu.
- Continuas, Sancho - disse dom Quixote, - a dizer, a pensar, a crer
e a porfiar que minha senhora Dulcineia peneirava trigo, sendo isso um
mister e exercício que vai desviado de tudo o que fazem e devem
fazer as pessoas principais que estão educadas e reservadas para
outros exercícios e entretenimentos, que mostram a tiro de besta sua
principalidade...! Mal se lembram a ti, oh Sancho!, aqueles versos de
nosso poeta onde nos pinta as labores que faziam lá em suas moradas
de cristal aquelas quatro ninfas que do Tejo amado ergueram as
cabeças, e se sentaram a lavrar no prado verde aquelas ricas telas que
ali o engenhoso poeta nos descreve, que todas eram de ouro, fios de
seda e pérolas entrelaçadas e tecidas. E desta maneira devia ser o de
minha senhora quando tu a viste; senão que a inveja que algum mau
encantador deve ter de minhas coisas, todas as que me hão de dar
gosto troca e transforma em diferentes figuras da que elas têm; e
assim, temo que, naquela história que dizem que anda impressa de
minhas façanhas, se porventura foi seu autor algum mago meu inimigo,
haverá posto umas coisas por outras, misturando com uma verdade mil
mentiras, desviando-se a contar outras ações fora do que requer a
continuação de uma verdadeira história. Oh inveja, raiz de infinitos
males e carcoma das virtudes! Todos os vícios, Sancho, trazem um não
sei quê de deleite consigo, mas o da inveja não traz senão desgostos,
rancores e raivas.
- Isso é o que eu digo também - respondeu Sancho, - e penso que
nessa lenda ou história que nos disse o bacharel Carrasco que de nós
havia visto deve andar minha honra desprezada, e, como dizem, ao léu,
aqui e ali, varrendo as ruas. Pois, à fé de bom, que não disse eu mal de
nenhum encantador, nem tenho tantos bens que possa ser invejado;
bem é verdade que sou algo malicioso, e que tenho meus certos
assomos de velhaco, mas tudo o cobre e tapa a grande capa da
simplicidade minha, sempre natural e nunca artificiosa. E quando outra
coisa não tivesse senão o crer, como sempre creio, firme e
verdadeiramente em Deus e em tudo aquilo que sustém e crê a santa
Igreja Católica Romana, e o ser inimigo mortal, como o sou, dos
judeus, deviam os historiadores ter misericórdia de mim e tratar-me
bem em seus escritos. Mas digam o que quiserem; que desnudo nasci,
desnudo me acho: nem perco nem ganho; embora, por ver-me posto em
livros e andar por esse mundo de mão em mão, não se me dá um figo
que digam de mim tudo o que quiserem.
- Isso se parece, Sancho - disse dom Quixote, - ao que sucedeu a
um famoso poeta destes tempos, o qual, havendo feito uma maliciosa
sátira contra todas as damas cortesãs, não pôs nem nomeou nela a uma
dama que se podia duvidar se o era ou não; a qual, vendo que não
estava na lista das demais, se queixou ao poeta, perguntando-lhe o que
havia visto nela para não pô-la no número das outras, e que alargasse a
sátira, e a pusesse na continuação: se não, que considerasse para o que
havia nascido. Fê-lo assim o poeta, e pintou-a tal qual não fariam donas
maldizentes, e ela ficou satisfeita, por ver-se com fama, embora
infame. Também vem com isto o que contam daquele pastor que pôs
fogo e queimou o templo famoso de Diana, contado por uma das sete
maravilhas do mundo, só para que ficasse vivo seu nome nos séculos
vindouros; e embora se mandou que ninguém o nomeasse, nem fizesse
por palavra ou por escrito menção de seu nome, para que não
conseguisse o fim de seu desejo, todavia se soube que se chamava
Eróstrato. Também alude a isto o que sucedeu ao grande imperador
Carlos V com um cavaleiro em Roma. Quis ver o imperador aquele
famoso templo da Rotunda, que na antiguidade se chamou o templo de
todos os deuses, e agora, com melhor vocação, se chama de todos os
santos, e é o edifício que mais inteiro ficou dos que alçou a gentilidade
em Roma, e é o que mais conserva a fama da grandiosidade e
magnificência de seus fundadores: ele é em forma de uma meia
laranja, grandíssimo em extremo, e é muito claro, sem entrar-lhe
outra luz que a que lhe concede uma janela, ou, por melhor dizer,
claraboia redonda que está em seu teto, desde a qual olhando o
imperador o edifício, estava com ele e a seu lado um cavaleiro romano,
declarando-lhe os primores e sutilezas daquela grande construção e
memorável arquitetura; e, havendo-se afastado da claraboia, disse ao
imperador: “Mil vezes, Sacra Majestade, me veio desejo de abraçar-
me com vossa majestade e arrojar-me daquela claraboia abaixo, para
deixar de mim fama eterna no mundo.” “Eu vos agradeço - respondeu o
imperador - o não haver posto tão mau pensamento em prática, e daqui
em diante não vos porei eu na ocasião que volteis a fazer prova de
vossa lealdade; e assim, vos mando que jamais me faleis, nem estejais
onde eu estiver”. E atrás destas palavras, lhe fez uma grande mercê.
Quero dizer, Sancho, que o desejo de alcançar fama é ativo em grande
maneira. Quem pensas tu que arrojou Horácio da ponte abaixo, armado
de todas as armas, na profundidade do Tibre? Quem queimou o braço
e a mão a Múcio? Quem impeliu Cúrcio a lançar-se na profunda caverna
ardente que apareceu no meio de Roma? Quem, contra todos os
agouros que em contrário se lhe haviam mostrado, fez César
atravessar o Rubicão? E com exemplos mais modernos, quem encalhou
os navios e deixou em seco e isolados os valorosos espanhóis guiados
pelo cortesíssimo Cortês no Novo Mundo? Todas estas e outras
grandes e diferentes façanhas são, foram e serão obras da fama, que
os mortais desejam como prêmios e parte da imortalidade que seus
famosos feitos merecem, embora os cristãos, católicos e andantes
cavaleiros mais havemos de atender à glória dos séculos vindouros,
que é eterna nas regiões etéreas e celestes, que à vaidade da fama
que neste presente e acabável século se alcança; a qual fama, por
muito que dure, enfim se há de acabar com o mesmo mundo, que tem
seu fim marcado. Assim, oh Sancho!, que nossas obras não hão de sair
do limite que nos tem posto a religião cristã, que professamos.
Havemos de matar nos gigantes a soberba; a inveja, na generosidade e
bom peito; a ira, na repousada postura e quietude do ânimo; a gula e o
sono, no pouco comer que comemos e no muito velar que velamos; a
luxúria e lascívia, na lealdade que guardamos às que havemos feito
senhoras de nossos pensamentos; a preguiça, com andar por todas as
partes do mundo, buscando as ocasiões que nos possam fazer e façam,
sobre cristãos, famosos cavaleiros. Vês aqui, Sancho, os meios por
onde se alcançam os extremos de louvações que consigo traz a boa
fama.
- Tudo o que vossa mercê até aqui me disse - disse Sancho - o
entendi muito bem, mas, assim, queria que vossa mercê me
resorvesse uma dúvida que agora neste ponto me veio à memória.
- Resolvesse queres dizer, Sancho - disse dom Quixote. - Diz em
boa hora, que eu responderei o que souber.
- Diga-me, senhor - prosseguiu Sancho: - esses Júlios ou Agostos, e
todos esses cavaleiros façanhosos que disse, que já são mortos, onde
estão agora?
- Os gentios - respondeu dom Quixote - sem dúvida estão no
inferno; os cristãos, se foram bons cristãos, ou estão no purgatório ou
no céu.
- Está bem - disse Sancho, - mas saibamos agora: essas sepulturas
onde estão os corpos desses senhoraços, têm diante de si lâmpadas de
prata, ou estão adornadas as paredes de suas capelas de muletas, de
mortalhas, de cabeleiras, de pernas e de olhos de cera? E se disto
não, de que estão adornadas?
Ao que respondeu dom Quixote:
- Os sepulcros dos gentios foram pela maior parte suntuosos
templos: as cinzas do corpo de Júlio César se puseram sobre uma
pirâmide de pedra de descomedida grandeza, a quem hoje chamam em
Roma a “agulha de São Pedro ”; ao imperador Adriano lhe serviu de
sepultura um castelo tão grande como uma boa aldeia, a quem
chamaram moles Hadriani, que agora é o castelo de Santo Ângelo em
Roma; a rainha Artemisa sepultou seu marido Mausoléu num sepulcro
que se teve por uma das sete maravilhas do mundo; mas nenhuma
destas sepulturas nem outras muitas que tiveram os gentios se
adornaram com mortalhas nem com outras oferendas e sinais que
mostrassem ser santos os que nelas estavam sepultados.
- A isso vou - replicou Sancho. - E diga-me agora: qual é mais:
ressuscitar um morto, ou matar um gigante?
- A resposta está à mão - respondeu dom Quixote: - mais é
ressuscitar um morto.
- Apanhei-o - disse Sancho. - Logo a fama do que ressuscita mortos,
dá vista aos cegos, endireita os coxos e dá saúde aos enfermos, e
diante de suas sepulturas ardem lâmpadas, e estão cheias suas capelas
de pessoas devotas que de joelhos adoram suas relíquias, melhor fama
será, para este e para o outro século, que a que deixaram e deixarem
quantos imperadores gentios e cavaleiros andantes houve no mundo.
- Também confesso essa verdade - respondeu dom Quixote.
- Pois esta fama, estas graças, estas prerrogativas, como chamam a
isto - respondeu Sancho, - têm os corpos e as relíquias dos santos que,
com aprovação e licença de nossa santa mãe Igreja, têm lâmpadas,
velas, mortalhas, muletas, pinturas, cabeleiras, olhos, pernas, com que
aumentam a devoção e engrandecem sua cristã fama. Os corpos dos
santos ou suas relíquias levam os reis sobre seus ombros, beijam os
pedaços de seus ossos, adornam e enriquecem com eles seus oratórios
e seus mais prezados altares.
- Que queres que infira, Sancho, de tudo o que disseste? - disse
dom Quixote.
- Quero dizer - disse Sancho - que nos demos a ser santos, e
alcançaremos mais brevemente a boa fama que pretendemos; e
advirta, senhor, que ontem ou antes de ontem, que, segundo há pouco
se pode dizer desta maneira, canonizaram ou beatificaram dois
fradezinhos descalços, cujas correntes de ferro com que cingiam e
atormentavam seus corpos se tem agora por grande ventura o beijá-
las e tocá-las, e estão em mais veneração que está, segundo disse, a
espada de Roldão na armaria do rei, nosso senhor, que Deus guarde.
Assim que, senhor meu, mais vale ser humilde fradezinho, de qualquer
ordem que seja, que valente e andante cavaleiro; mais alcançam com
Deus duas dúzias de disciplinas que duas mil lançadas, ora as deem a
gigantes, ora a monstros ou a endríagos.
- Tudo isso é assim - respondeu dom Quixote, - mas não todos
podemos ser frades, e muitos são os caminhos por onde leva Deus os
seus ao céu: religião é a cavalaria; cavaleiros santos há na glória.
- Sim - respondeu Sancho, - mas eu ouvi dizer que há mais frades no
céu que cavaleiros andantes.
- Isso é - respondeu dom Quixote - porque é maior o número dos
religiosos que o dos cavaleiros.
- Muitos são os andantes - disse Sancho.
- Muitos - respondeu dom Quixote, - mas poucos os que merecem
nome de cavaleiros.
Nestas e outras semelhantes conversas se lhes passou aquela noite
e o dia seguinte, sem acontecer-lhes coisa que de contar fosse, o que
não pouco pesou a dom Quixote. Enfim, no outro dia, ao anoitecer,
descobriram a grande cidade do Toboso, com cuja vista se alegraram
os espíritos de dom Quixote e se entristeceram os de Sancho, porque
não sabia a casa de Dulcineia, nem em sua vida a havia visto, como não
a havia visto seu senhor; de modo que um por vê-la, e o outro por não
havê-la visto, estavam alvoroçados, e não imaginava Sancho o que havia
de fazer quando seu dono o enviasse ao Toboso. Finalmente, ordenou
dom Quixote entrar na cidade entrada a noite, e, enquanto a hora
chegava, ficaram entre umas azinheiras que estavam perto do Toboso,
e, chegado o momento preciso, entraram na cidade, onde lhes
sucederam muitas e muito importantes coisas.

CAPÍTULO IX

Onde se conta o que nele se verá

Era meia-noite em ponto, pouco mais ou menos, quando dom Quixote


e Sancho deixaram o monte e entraram no Toboso. Estava a vila num
sossegado silêncio, porque todos seus vizinhos dormiam e repousavam
à perna solta, como costuma dizer-se. Era a noite enluarada, embora
quisesse Sancho que fosse de todo escura, por achar em sua escuridão
desculpa de sua sandice. Não se ouvia em todo o lugar senão ladridos
de cães, que atroavam os ouvidos de dom Quixote e perturbavam o
coração de Sancho. De quando em quando, zurrava um jumento,
grunhiam porcos, miavam gatos, cujas vozes, de diferentes sons,
aumentavam com o silêncio da noite, tudo o que teve o enamorado
cavaleiro por mau agouro; mas, então, disse a Sancho:
- Sancho, filho, guia ao palácio de Dulcineia: quiçá poderá ser que a
achemos desperta.
- A que palácio tenho de guiar, corpo do sol - respondeu Sancho, -
que no que eu vi a sua grandeza não era senão casa muito pequena?
- Devia de estar retirada, então - respondeu dom Quixote, - em
alguma pequena casa de seu alcácer, confortando-se a sós com suas
donzelas, como é uso e costume das altas senhoras e princesas.
- Senhor - disse Sancho, - já que vossa mercê quer, a meu pesar,
que seja alcácer a casa de minha senhora Dulcineia, é hora esta
porventura de achar a porta aberta? E será bem que demos
aldravaços para que nos ouçam e nos abram, metendo em alvoroço e
rumor toda a gente? Vamos por acaso chamar à casa de nossas
mancebas, como fazem os amancebados, que chegam, e chamam, e
entram a qualquer hora, por tarde que seja?
- Achemos primeiro de uma vez por todas o alcácer - replicou dom
Quixote, - que então eu te direi, Sancho, o que será bom que façamos.
E adverte, Sancho, que eu vejo pouco, ou que aquele vulto grande e
sombra que daqui se descobre a deve fazer o palácio de Dulcineia.
- Pois guie vossa mercê - respondeu Sancho: - quiçá será assim;
embora eu o verei com os olhos e o tocarei com as mãos, e assim o
crerei eu como crer que é agora de dia.
Guiou dom Quixote, e, havendo andado como duzentos passos, deu
com o vulto que fazia a sombra, e viu uma grande torre, e logo
reconheceu que o tal edifício não era alcácer, senão a igreja principal
da vila. E disse:
- Com a igreja topamos, Sancho.
- Já o vejo - respondeu Sancho; - e Deus queira que não demos com
nossa sepultura, que não é bom sinal andar pelos cemitérios a tais
horas, e mais, havendo eu dito a vossa mercê, se mal não me lembro,
que a casa desta senhora há de estar em uma ruazinha sem saída.
- Maldito sejas por Deus, mentecapto! - disse dom Quixote. - Onde
tu soubeste que os alcáceres e palácios reais estejam edificados em
ruazinhas sem saída?
- Senhor - respondeu Sancho, - em cada terra seu uso: quiçá se usa
aqui no Toboso edificar em ruazinhas os palácios e edifícios grandes; e
assim, suplico a vossa mercê me deixe buscar por estas ruas ou
ruazinhas que se me oferecem: poderia ser que em algum canto
topasse com esse alcácer, que lhe veja eu comido de cães, que assim
nos traz vexados e angustiados.
- Fala com respeito, Sancho, das coisas de minha senhora - disse
dom Quixote, - e tenhamos a festa em paz, e não arrojemos a corda
atrás do caldeirão.
- Eu me moderarei - respondeu Sancho; - mas, com que paciência
poderei levar que queira vossa mercê que de só uma vez que vi a casa
de nossa ama, a haja de saber sempre e achá-la à meia-noite, não
achando-a vossa mercê, que a deve haver visto milhares de vezes?
- Tu me farás desesperar, Sancho - disse dom Quixote. - Vem cá,
herege: não te disse mil vezes que em todos os dias de minha vida não
vi a sem par Dulcineia, nem jamais atravessei os umbrais de seu
palácio, e que só estou enamorado de ouvida e da grande fama que tem
por formosa e discreta?
- Agora o ouço - respondeu Sancho; - e digo que, pois vossa mercê
não a viu, nem eu tampouco...
- Isso não pode ser - replicou dom Quixote; - que, pelo menos, já me
disseste tu que a viste peneirando trigo, quando me trouxeste a
resposta da carta que lhe enviei contigo.
- Não se atenha a isso, senhor - respondeu Sancho, - porque lhe
faço saber que também foi de ouvida a vista e a resposta que lhe
trouxe; porque, assim sei eu quem é a senhora Dulcineia como dar um
soco no céu.
- Sancho, Sancho - respondeu dom Quixote, - tempos há de burlar,
e tempos onde caem e parecem mal as burlas. Não porque eu diga que
nem vi nem falei à senhora de minha alma hás tu de dizer também que
nem falaste nem viste, sendo tão ao revés como sabes.
Estando os dois nestas conversas, viram que vinha a passar por onde
estavam um com duas mulas, que, pelo ruído que fazia o arado, que
arrastava pelo chão, julgaram que devia ser lavrador, que haveria
madrugado antes do dia a ir a sua lavoura, e assim foi a verdade. Vinha
o lavrador cantando aquele poema que diz:

Má a tivestes, franceses,
nessa de Roncesvales.

- Que me matem, Sancho - disse, ouvindo-o, dom Quixote, - se nos


há de suceder coisa boa esta noite. Não ouves o que vem cantando
esse vilão?
- Sim, ouço - respondeu Sancho; - mas, que vem a nosso propósito a
batalha de Roncesvales? Assim poderia cantar o romance de Calaínos,
que tudo fora a mesma coisa para suceder-nos bem ou mal em nosso
negócio.
Chegou nisto o lavrador, a quem dom Quixote perguntou:
- Sabereis dizer-me, bom amigo, que boa ventura vos dê Deus, onde
são por aqui os palácios da sem par princesa dona Dulcineia do
Toboso?
- Senhor - respondeu o moço, - eu sou forasteiro e há poucos dias
que estou neste povoado, servindo a um lavrador rico na lavra do
campo; nessa casa fronteira vivem o padre e o sacristão do lugar;
ambos, ou qualquer deles, saberá dar a vossa mercê razão dessa
senhora princesa, porque têm a lista de todos os vizinhos do Toboso;
embora para mim tenho que em todo ele não vive princesa alguma;
muitas senhoras, sim, principais, que cada uma em sua casa pode ser
princesa.
- Pois entre essas - disse dom Quixote - deve estar, amigo, esta por
quem te pergunto.
- Poderia ser - respondeu o moço; - e adeus, que já vem o alvorecer.
E incitando suas mulas, não atendeu a mais perguntas. Sancho, que
viu seu senhor suspenso e assaz mal contente, disse-lhe:
- Senhor, já vem rápido o dia, e não será acertado deixar que nos
ache o sol na rua; melhor será que saiamos da cidade, e que vossa
mercê se embosque em alguma floresta aqui perto, e eu voltarei de
dia, e não deixarei canto em todo este lugar onde não busque a casa,
alcácer ou palácio de minha senhora, e assaz seria desditado se não o
achasse; e, achando-o, falarei com sua mercê, e lhe direi onde e como
fica vossa mercê esperando que lhe dê ordem e manha para vê-la, sem
menoscabo de sua honra e fama.
- Disseste, Sancho - disse dom Quixote, - mil sentenças encerradas
no círculo de breves palavras: o conselho que agora me deste me
apetece e o recebo de boníssima vontade. Vem, filho, e vamos buscar
onde me embosque, que tu voltarás, como dizes, para buscar, ver e
falar a minha senhora, de cuja discrição e cortesia espero mais que
milagrosos favores.
Raivava Sancho por tirar a seu amo da vila, para que não averiguasse
a mentira da resposta que de parte de Dulcineia lhe havia levado à
Serra Morena; e assim, deu pressa à saída, que foi logo, e a duas
milhas do lugar acharam uma floresta ou bosque, onde dom Quixote se
emboscou enquanto Sancho voltava à cidade a falar a Dulcineia; em
cuja embaixada lhe sucederam coisas que pedem nova atenção e novo
crédito.
CAPÍTULO X

Onde se conta a astúcia de que se valeu Sancho para encantar a


senhora Dulcineia, e de outros sucessos tão ridículos como
verdadeiros

Chegando o autor desta grande história a contar o que neste


capítulo conta, diz que quisera passá-lo em silêncio, temeroso de que
não havia de ser acreditado, porque as loucuras de dom Quixote
chegaram aqui ao limite das maiores que podem imaginar-se, e ainda
passaram dois tiros de besta mais além das maiores. Finalmente,
embora com este medo e receio, as escreveu da mesma maneira que
ele as fez, sem juntar nem tirar à história um átomo da verdade, sem
dar nada pelas objeções que podiam chamá-lo de mentiroso. E teve
razão, porque a verdade adelgaça e não quebra, e sempre anda sobre a
mentira como o azeite sobre a água.
E assim, prosseguindo sua história, diz que, assim que dom Quixote
se emboscou na floresta, azinheiral ou selva junto ao grande Toboso,
mandou Sancho voltar à cidade, e que não voltasse à sua presença sem
haver primeiro falado de sua parte à sua senhora, pedindo-lhe fosse
servida de deixar-se ver por seu cativo cavaleiro, e se dignasse dar-
lhe sua bênção, para que pudesse esperar por ela felicíssimos sucessos
de todos seus enfrentamentos e dificultosas empresas. Encarregou-se
Sancho de fazê-lo assim como se lhe mandava, e de trazer-lhe tão boa
resposta como lhe trouxe a vez primeira.
- Anda, filho - replicou dom Quixote, - e não te perturbes quando te
vires ante a luz do sol de formosura que vais buscar. Ditoso tu sobre
todos os escudeiros do mundo! Tem memória, e não te desapercebas
de como te recebe: se muda as cores enquanto estiveres dando minha
mensagem; se se desassossega e perturba ouvindo meu nome; se não
cabe na almofada, se acaso a achas sentada no estrado rico de sua
autoridade; e se está em pé, observa-a se se põe agora sobre um,
agora sobre o outro pé; se te repete a resposta que te der duas ou
três vezes; se a muda de branda em áspera, de azeda em amorosa; se
levanta a mão ao cabelo para compô-lo, embora não esteja
desordenado; finalmente, filho, observe todas suas ações e
movimentos; porque se tu os relatares como eles foram, tirarei eu o
que ela tem escondido no segredo de seu coração acerca do que ao
feito de meus amores toca; que hás de saber, Sancho, se não o sabes,
que entre os amantes, as ações e movimentos exteriores que mostram,
quando de seus amores se trata, são certíssimos correios que trazem
as novas do que lá no interior da alma se passa. Vê, amigo, e guie-te
outra melhor ventura que a minha, e torne-te outro melhor sucesso do
que o que eu fico temendo e esperando nesta amarga solidão em que
me deixas.
- Eu irei e voltarei logo - disse Sancho; - e alargue vossa mercê,
senhor meu, esse coraçãozinho, que o deve ter agora não maior que
uma avelã, e considere que se costuma dizer que bom coração
quebranta má ventura, e que onde não há toucinhos, não há estacas; e
também se diz: “Donde não se pensa, salta a lebre”. Digo-o porque se
esta noite não achamos os palácios ou alcáceres de minha senhora,
agora que é de dia os penso achar, quando menos os pense, e achados,
deixem-me a mim com ela.
- Por certo, Sancho - disse dom Quixote, - que sempre trazes teus
refrãos tão a propósito do que tratamos quanto me dê Deus melhor
ventura no que desejo.
Isto dito, voltou Sancho as costas e fustigou seu ruço, e dom
Quixote ficou a cavalo, descansando sobre os estribos e sobre o
arrimo de sua lança, cheio de tristes e confusas imaginações, onde o
deixaremos, indo-nos com Sancho Pança, que não menos confuso e
pensativo se afastou de seu senhor do que ele ficava; e tanto, que,
apenas houve saído do bosque, quando, voltando a cabeça e vendo que
dom Quixote não aparecia, se apeou do jumento, e, sentando-se ao pé
de uma árvore, começou a falar consigo mesmo e a dizer-se:
- Saibamos agora, Sancho irmão, aonde vai vossa mercê. Vai buscar
algum jumento que se lhe haja perdido? - Não, por certo. - Pois, que
vai buscar? - Vou buscar, como quem não diz nada, uma princesa, e
nela o sol da formosura e todo o céu junto. - E onde pensais achar isso
que dizeis, Sancho? - Onde? Na grande cidade do Toboso. - E bem: e
de parte de quem a vais buscar? - De parte do famoso cavaleiro dom
Quixote da Mancha, que desfaz os tortos, e dá de comer ao que tem
sede, e de beber ao que tem fome. - Todo isso está muito bem. E
sabeis sua casa, Sancho? - Meu amo diz que hão de ser uns reais
palácios ou uns soberbos alcáceres.- E haveis-la visto algum dia
porventura? - Nem eu nem meu amo a vimos jamais. - E parece-vos que
seria acertado e bem feito que se os do Toboso soubessem que estais
vós aqui com intenção de ir furtar-lhes suas princesas e
desassossegar-lhes suas damas, viessem e vos moessem as costelas a
puros golpes, e não vos deixassem osso são? - Em verdade que teriam
muita razão, quando não considerassem que sou mandado, e que:

Mensageiro sois, amigo,


não mereceis culpa, não.

- Não vos fieis nisso, Sancho, porque a gente manchega é tão


colérica como honrada, e não consente bromas de ninguém. Vive Deus
que se vos tiver suspeita, que vos auguro má ventura. - Sai, demônio!
Raios te partam! Não, senão ande eu buscando três pés ao gato pelo
gosto alheio! E mais, que assim será buscar Dulcineia no Toboso como a
Marica em Ravena, ou ao bacharel em Salamanca. O diabo, o diabo me
meteu nisto, que outro não!
Este solilóquio passou consigo Sancho, e o que tirou dele foi que
voltou a dizer-se:
- Agora bem, todas as coisas têm remédio, se não é a morte,
debaixo de cujo jugo havemos de passar todos, mal que nos pese, ao
acabar da vida. Este meu amo, por mil sinais, vi que é um louco de
amarrar, e ainda também eu não lhe fico atrás, pois sou mais
mentecapto que ele, pois o sigo e o sirvo, se é verdadeiro o refrão que
diz: “Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”, e o outro de “Não
com quem nasces, senão com quem pasces”. Sendo, pois, louco, como o
é, e de loucura que as mais vezes toma umas coisas por outras, e julga
o branco por negro e o negro por branco, como pareceu quando disse
que os moinhos de vento eram gigantes, e as mulas dos religiosos
dromedários, e as manadas de carneiros exércitos de inimigos, e
outras muitas coisas neste tom, não será muito difícil fazer-lhe crer
que uma lavradora, a primeira que me topar por aqui, é a senhora
Dulcineia; e, quando ele não o creia, jurarei eu; e se ele jurar, tornarei
eu a jurar; e se porfiar, porfiarei eu mais, e de maneira que manterei
sempre minha opinião, venha o que vier. Quiçá com esta porfia
conseguirei dele que não me envie outra vez a semelhantes tarefas,
vendo quão mal recado lhe trago delas, ou quiçá pensará, como eu
imagino, que algum mau encantador destes que ele diz que lhe querem
mal lhe transformou a figura por fazer-lhe mal e dano.
Com isto que pensou Sancho Pança ficou sossegado seu espírito, e
teve por bem acabado seu negócio, e detendo-se ali até a tarde, por
dar tempo a que dom Quixote pensasse que o havia tido para ir e
voltar do Toboso; e sucedeu-lhe tudo tão bem que, quando se levantou
para subir no ruço, viu que do Toboso até onde ele estava vinham três
lavradoras sobre três asninhos, ou asninhas, que o autor não o declara,
embora mais se pode crer que eram burricas, por ser ordinária
cavalaria das aldeãs; mas, como isto não importa muito, não há para
que deter-nos em averiguá-lo. Em suma: assim que Sancho viu as
lavradoras, a passo estirado voltou a buscar seu senhor dom Quixote,
e achou-o suspirando e dizendo mil amorosas lamentações. Quando
dom Quixote o viu, disse-lhe:
- Que há, Sancho amigo? Poderei marcar este dia com pedra branca,
ou com negra?
- Melhor será - respondeu Sancho - que vossa mercê o marque com
ocre, como letreiros de faculdades, para que o vejam bem os que o
virem.
- Desse modo - replicou dom Quixote, - boas novas trazes.
- Tão boas - respondeu Sancho, - que não tem mais que fazer vossa
mercê senão picar Rocinante e sair ao raso a ver a senhora Dulcineia
do Toboso, que com outras duas donzelas suas vem ver vossa mercê.
- Santo Deus! Que é o que dizes, Sancho amigo? - disse dom
Quixote. - Vê não me enganes, nem queiras com falsas alegrias alegrar
minhas verdadeiras tristezas.
- Que ganharia eu em enganar vossa mercê - respondeu Sancho, - e
mais estando tão perto de descobrir minha verdade? Pique, senhor, e
venha, e verá vir a princesa, nossa ama, vestida e adornada, enfim,
como quem ela é. Suas donzelas e ela todas são uma brasa de ouro,
todas fileiras de pérolas, todas são diamantes, todas rubis, todas
tecidos de brocado de mais de dez níveis; os cabelos, soltos pelas
costas, que são outros tantos raios do sol que andam jogando com o
vento; e, sobretudo, vêm a cavalo sobre três cananeias malhadas, que
não há mais que ver.
- Hacaneias quererás dizer, Sancho.
- Pouca diferença há - respondeu Sancho - de cananeias a
hacaneias; mas, venham sobre o que vierem, elas vêm as mais galantes
senhoras que se possam desejar, especialmente a princesa Dulcineia,
minha senhora, que pasma os sentidos.
- Vamos, Sancho filho - respondeu dom Quixote; - e, em regalo
destas não esperadas como boas novas, te mando o melhor despojo
que ganhar na primeira aventura que tiver, e se isto não te contenta,
te mando as crias que este ano me derem as três éguas minhas, que tu
sabes que ficam para parir no prado da câmara de nossa vila.
- Às crias me atenho - respondeu Sancho, - porque de ser bons os
despojos da primeira aventura não está muito certo.
Já nisto saíram da selva, e descobriram perto as três aldeãs.
Estendeu dom Quixote os olhos por todo o caminho do Toboso, e como
não viu senão as três lavradoras, perturbou-se todo, e perguntou a
Sancho se as havia deixado fora da cidade.
- Como fora da cidade? - respondeu. - Porventura tem vossa mercê
os olhos no cangote, que não vê que são estas, as que aqui vêm,
resplandecentes como o mesmo sol a meio-dia?
- Eu não vejo, Sancho - disse dom Quixote, - senão três lavradoras
sobre três burricos.
- Agora me livre Deus do diabo! - respondeu Sancho. - E é possível
que três hacaneias, ou como se chamam, brancas como o floco da neve,
lhe pareçam a vossa mercê burricos? Vive o Senhor, que me pele estas
barbas se tal fosse verdade!
- Pois eu te digo, Sancho amigo - disse dom Quixote, - que é tão
verdade que são burricos, ou burricas, como eu sou dom Quixote e tu
Sancho Pança; ao menos, a mim tais me parecem.
- Cale, senhor - disse Sancho, - não diga tal palavra, senão desperte
esses olhos, e venha fazer reverência à senhora de seus pensamentos,
que já chega perto.
E dizendo isto, se adiantou a receber as três aldeãs; e, apeando-se
do ruço, pegou o cabresto do jumento de uma das três lavradoras, e,
fincando ambos os joelhos no chão, disse:
- Rainha e princesa e duquesa da formosura, vossa altivez e
grandeza seja servida de receber em sua graça e bom talante ao
cativo cavaleiro vosso, que ali está feito pedra mármore, todo
perturbado e sem pulsos de ver-se ante vossa magnífica presença. Eu
sou Sancho Pança, seu escudeiro, e ele é o angustiado cavaleiro dom
Quixote da Mancha, chamado por outro nome o Cavaleiro da Triste
Figura.
Então já se havia posto dom Quixote de joelhos junto a Sancho e
olhava com olhos desconjuntados e vista turvada a que Sancho
chamava rainha e senhora; e como não descobria nela senão uma moça
aldeã, e não de muito bom rosto, porque era carirredonda e chata,
estava suspenso e admirado, sem ousar despregar os lábios. As
lavradoras estavam também atônitas, vendo aqueles dois homens tão
diferentes fincados de joelhos, que não deixavam passar adiante a sua
companheira; mas, rompendo o silêncio a detida, toda sem graça e
mofina, disse:
- Afastem-se em má hora do caminho, e deixem-nos passar, que
vamos com pressa.
Ao que respondeu Sancho:
- Oh princesa e senhora universal do Toboso! Como vosso magnânimo
coração não se enternece vendo ajoelhado ante vossa sublimada
presença a coluna e sustento da andante cavalaria?
Ouvindo o qual outra das duas disse:
- Mas, xô, que te esfrego, burra de meu sogro! Vede que vêm os
senhoritos agora a fazer burla das aldeãs, como se aqui não
soubéssemos falar pulhices como eles! Sigam seu caminho, e deixem-
nos fazer o nosso, e ficarão bem.
- Levanta-te, Sancho - disse então dom Quixote, - que já vejo que a
fortuna, de meu mal não se farta, tem tomados os caminhos todos por
onde possa vir algum contentamento a esta alma mesquinha que tenho
nas carnes. E tu, oh extremo do valor que pode desejar-se, termo da
humana gentileza, único remédio deste aflito coração que te adora!, já
que o maligno encantador me persegue, e pôs nuvens e cataratas em
meus olhos, e para só eles e não para outros mudou e transformou tua
sem igual formosura e rosto no de uma lavradora pobre, se já também
o meu não o mudou no de algum monstro, para fazê-lo aborrecível a
teus olhos, não deixes de olhar-me branda e amorosamente, vendo
nesta submissão e genuflexão que à tua disfarçada formosura faço, a
humildade com que minha alma te adora.
- Caramba! - respondeu a aldeã. - Amiguita sou eu de ouvir
requebraixos! Afastem-se e deixem-nos ir, e havemos de agradecer.
Afastou-se Sancho e deixou-a ir, contentíssimo de haver saído bem
em seu enredo.
Apenas se viu livre a aldeã que havia feito o papel de Dulcineia,
quando, picando a sua cananeia com um aguilhão que trazia numa vara,
deu a correr pelo prado adiante. E como a burrica sentia a ponta do
aguilhão, que a fatigava mais que o ordinário, começou a dar corcovos,
de maneira que deu com a senhora Dulcineia em terra; o qual visto por
dom Quixote, acudiu a levantá-la, e Sancho a compor e apertar a
albarda, que também veio à barriga da asninha. Acomodada, pois, a
albarda, e querendo dom Quixote levantar a sua encantada senhora
nos braços sobre a jumenta, a senhora, levantando-se do chão, o
poupou daquele trabalho, porque, indo algum tanto para trás, deu uma
corridinha, e, postas ambas as mãos sobre as ancas da asninha, deu
com seu corpo, mais ligeiro que um falcão, sobre a albarda, e ficou a
cavalo, como se fosse homem; e então disse Sancho:
- Vive Roque, que é a senhora nossa ama mais ligeira que um
tagarote, e que pode ensinar a subir à gineta ao mais destro cordovês
ou mexicano! O arção traseiro da sela passou de um salto, e sem
esporas faz correr a hacaneia como uma zebra. E não lhe ficam atrás
suas donzelas, que todas correm como o vento.
E assim era a verdade, porque, vendo-se a cavalo Dulcineia, todas
picaram atrás dela e dispararam a correr, sem voltar a cabeça atrás
por espaço de mais de meia légua. Seguiu-as dom Quixote com a vista,
e, quando viu que não se viam, voltando-se a Sancho, disse-lhe:
- Sancho, que te parece quão malquisto sou de encantadores? E veja
até onde se estende sua malícia e a ojeriza que me têm, pois me
quiseram privar da alegria que poderia dar-me ver em seu ser a minha
senhora. Com efeito, eu nasci para exemplo de desditados, e para ser
alvo e montículo onde tomem a mira e assestem as flechas da má
fortuna. E hás também de advertir, Sancho, que não se contentaram
estes traidores de haver transformado a minha Dulcineia, senão que a
transformaram em uma figura tão baixa e tão feia como a daquela
aldeã, e juntamente lhe tiraram o que é tão seu das principais
senhoras, que é o bom cheiro, por andar sempre entre âmbares e
entre flores. Porque te faço saber, Sancho, que quando cheguei a
subir a Dulcineia sobre sua hacaneia, segundo tu dizes, que a mim me
pareceu burrica, me deu um cheiro de alhos crus, que me sufocou e
intoxicou a alma.
- Oh canalha! - gritou então Sancho - Oh encantadores aziagos e
mal intencionados, e quem vos vira a todos enfiados pelas guelras,
como sardinhas em fieira! Muito sabeis, muito podeis e muito mais
fazeis. Bastar-vos devera, velhacos, haver mudado as pérolas dos
olhos de minha senhora em guelras de sobreiro, e seus cabelos de ouro
puríssimo em cerdas de rabo de boi vermelho, e, finalmente, todas
suas feições de boas em más, sem que lhe tocásseis no cheiro; que por
ele sequer saberíamos o que estava encoberto debaixo daquela feia
cortiça; embora, para dizer a verdade, nunca eu vi sua fealdade, senão
sua formosura, à qual subia de ponto e quilates uma pinta que tinha
sobre o lábio direito, à maneira de bigode, com sete ou oito cabelos
loiros como fios de ouro e largos de mais de um palmo.
- A essa pinta - disse dom Quixote, - segundo a correspondência
que têm consigo as do rosto com as do corpo, há de ter outra
Dulcineia na parte interior da coxa que corresponde ao lado onde tem
a do rosto, mas muito longos para pintas são pelos da grandeza que
disseste.
- Pois eu sei dizer a vossa mercê - respondeu Sancho - que pareciam
ali como nascidos.
- Eu o creio, amigo - replicou dom Quixote, - porque nenhuma coisa
pôs a natureza em Dulcineia que não fosse perfeita e bem acabada; e
assim, se tivesse cem pintas como o que dizes, nela não fossem pintas,
senão luas e estrelas resplandecentes. Mas diz-me, Sancho: aquela que
a mim me pareceu albarda, que tu endireitaste, era sela rasa ou
silhão?
- Não era - respondeu Sancho - senão sela à gineta, com uma manta
que vale a metade de um reino, segundo é de rica.
- E não vi eu tudo isso, Sancho! - disse dom Quixote. - Agora torno
a dizer, e direi mil vezes, que sou o mais desditado dos homens.
Muito tinha que fazer o socarrão de Sancho em dissimular o riso,
ouvindo as sandices de seu amo, tão delicadamente enganado.
Finalmente, depois de outras muitas razões que entre os dois se
passaram, voltaram a subir em suas bestas, e seguiram o caminho de
Saragoça, onde pensavam chegar a tempo que pudessem achar-se em
umas solenes festas que naquela insigne cidade cada ano costumam
fazer-se. Mas, antes que lá chegassem, lhes sucederam coisas que, por
muitas, grandes e novas, merecem ser escritas e lidas, como se verá
adiante.

CAPÍTULO XI

Da estranha aventura que sucedeu ao valoroso dom Quixote com o


carro ou carreta das “Cortes da Morte”

Muito pensativo ia dom Quixote por seu caminho adiante,


considerando a má burla que lhe haviam feito os encantadores,
transformando a sua senhora Dulcineia na má figura da aldeã, e não
imaginava que remédio teria para volvê-la a seu ser primeiro; e estes
pensamentos o levavam tão fora de si, que, sem senti-lo, soltou as
rédeas a Rocinante, o qual, sentindo a liberdade que se lhe dava, a
cada passo se detinha a pastar a verde erva de que aqueles campos
abundavam. De seu ensimesmamento o tirou Sancho Pança, dizendo-
lhe:
- Senhor, as tristezas não se fizeram para as bestas, senão para os
homens; mas se os homens as sentem demasiado, se tornam bestas:
vossa mercê se contenha, e volte a si, e colha as rédeas a Rocinante,
e avive e desperte, e mostre aquela galhardia que convém que tenham
os cavaleiros andantes. Que diabos é isto? Que abatimento é este?
Estamos aqui, ou na França? Mas que leve Satanás a quantas
Dulcineias há no mundo, pois vale mais a saúde de um só cavaleiro
andante que todos os encantos e transformações da terra.
- Cala, Sancho - respondeu dom Quixote com voz não muito
desmaiada; - cala, digo, e não digas blasfêmias contra aquela
encantada senhora, que de sua desgraça e desventura eu só tenho a
culpa: da inveja que me têm os maus há nascido sua má andança.
- Assim o digo eu - respondeu Sancho: - quem a viu e a vê agora,
qual é o coração que não chora?
- Isso podes tu dizer bem, Sancho - replicou dom Quixote, - pois a
viste na integridade cabal de sua formosura, que o encanto não se
estendeu a turvar-te a vista nem a encobrir-te sua beleza: contra mim
só e contra meus olhos se endereça a força de seu veneno.
Entretanto, reparei, Sancho, em uma coisa, e é que me pintaste mal
sua formosura, porque, se mal não me lembro, disseste que tinha os
olhos de pérolas, e os olhos que parecem de pérolas antes são de peixe
que de dama; e, ao que eu creio, os de Dulcineia devem ser de verdes
esmeraldas, rasgados, com dois celestiais arcos que lhes servem de
sobrancelhas; e essas pérolas tira-as dos olhos e passa-as aos dentes,
que sem dúvida trocaste, Sancho, tomando os olhos pelos dentes.
- Tudo pode ser - respondeu Sancho, - porque tanto me perturbou
sua formosura como a vossa mercê sua fealdade. Mas encomendemos
tudo a Deus, que Ele é o sabedor das coisas que hão de suceder neste
vale de lágrimas, neste mau mundo que temos, onde quase não se acha
coisa que esteja sem mescla de maldade, embuste e velhacaria. Uma
coisa me pesa, senhor meu, mais que outras; que é pensar que meio se
há de ter quando vossa mercê vença algum gigante ou outro cavaleiro,
e mande que se vá apresentar ante a formosura da senhora Dulcineia:
onde a há de achar este pobre gigante, ou este pobre e mísero
cavaleiro vencido? Parece-me que os vejo andar pelo Toboso feitos
uns bobalhões, buscando a minha senhora Dulcineia, e, embora a
encontrem em meio da rua, não a conhecerão mais que a meu pai.
- Quiçá, Sancho - respondeu dom Quixote, - não se estenderá o
encantamento a tirar o conhecimento de Dulcineia aos vencidos e
apresentados gigantes e cavaleiros; e, em um ou dois dos primeiros
que eu vença e lhe envie, faremos a experiência se a veem ou não,
mandando-lhes que voltem a dar-me relação do que acerca disto lhes
houver sucedido.
- Digo, senhor - replicou Sancho, - que me pareceu bem o que vossa
mercê disse, e que com esse artifício viremos em conhecimento do que
desejamos; e se é que ela a só vossa mercê se encobre, a desgraça
mais será de vossa mercê que sua; mas, como a senhora Dulcineia
tenha saúde e alegria, nós por aqui nos aviremos e passaremos o
melhor que pudermos, buscando nossas aventuras e deixando ao tempo
que faça das suas, que ele é o melhor médico destas e de outras
maiores enfermidades.
Dom Quixote queria responder a Sancho Pança, mas perturbou-o
uma carreta que saiu ao través do caminho, carregada dos mais
diversos e estranhos personagens e figuras que pudessem imaginar-se.
O que guiava as mulas e servia de carreteiro era um feio demônio.
Vinha a carreta descoberta ao céu aberto, sem toldo nem esteiras
laterais. A primeira figura que se ofereceu aos olhos de dom Quixote
foi a da mesma Morte, com rosto humano; junto a ela vinha um anjo
com umas grandes e pintadas asas; a um lado estava um imperador com
uma coroa, ao parecer de ouro, na cabeça; aos pés da Morte estava o
deus que chamam Cupido, sem venda nos olhos, mas com seu arco,
aljava e setas. Vinha também um cavaleiro armado completamente,
exceto que não trazia morrião, nem elmo, senão um chapéu cheio de
penas de diversas cores; com estas vinham outras pessoas de
diferentes trajes e rostos. Tudo o que visto de improviso, de alguma
maneira alvoroçou dom Quixote e pôs medo no coração de Sancho; mas
logo se alegrou dom Quixote, crendo que se lhe oferecia alguma nova e
perigosa aventura, e com este pensamento, e com ânimo disposto a
enfrentar qualquer perigo, se pôs diante da carreta, e, com voz alta e
ameaçadora, disse:
- Carreteiro, cocheiro, ou diabo, ou o que és, não tardes em dizer-
me quem és, aonde vais e quem é a gente que levas em tua carroça, que
mais parece a barca de Caronte que carreta das que se usam.
A que, mansamente, detendo o Diabo a carreta, respondeu:
- Senhor, nós somos atores da companhia de Angulo o Mau; fizemos
num lugar que está detrás daquela colina, esta manhã, que é a oitava
do Corpus, o auto de As Cortes da Morte, e havemos de fazê-lo esta
tarde naquele lugar que daqui se vê; e, por estar tão perto e evitar o
trabalho de desnudar-nos e voltar-nos a vestir, vamos vestidos com as
mesmas vestes com que representamos. Aquele mancebo vai de Morte;
o outro de Anjo; aquela mulher, que é a do diretor, vai de Rainha; o
outro, de Soldado; aquele, de Imperador, e eu, de Demônio, e sou uma
das principais figuras do auto, porque faço nesta companhia os
primeiros papéis. Se outra coisa vossa mercê deseja saber de nós,
pergunte-me, que eu lhe saberei responder com toda pontualidade;
que, como sou demônio, tudo posso.
- Pela fé de cavaleiro andante - respondeu dom Quixote, - que,
assim que vi este carro, imaginei que alguma grande aventura se me
oferecia; e agora digo que é preciso tocar as aparências com a mão
para dar lugar ao desengano. Andai com Deus, boa gente, e fazei vossa
festa, e vede se pedis algo em que possa ser-vos de proveito, que o
farei com bom ânimo e bom talante, porque desde moço fui aficionado
da comédia, e em minha mocidade se me iam os olhos atrás da
farândola.
Estando nestas conversas, quis a sorte que chegasse um da
companhia, que vinha vestido de bufão, com muitos guizos, e na ponta
de uma vara trazia três bexigas de vaca cheias de ar; o qual palhaço,
chegando-se a dom Quixote, começou a esgrimir a vara e a golpear o
chão com as bexigas, e a dar grandes saltos, soando os guizos, cuja má
visão assim alvoroçou Rocinante, que, sem poder detê-lo dom Quixote,
tomando o freio entre os dentes, deu a correr pelo campo com mais
ligeireza que jamais prometeram os ossos de sua anatomia. Sancho,
que considerou o perigo em que ia seu amo de ser derrubado, saltou do
ruço, e a toda pressa foi socorrê-lo; mas, quando a ele chegou, já
estava em terra, e junto a ele, Rocinante, que, com seu amo, veio ao
chão: ordinário fim e paradeiro das louçanias de Rocinante e de seus
atrevimentos.
Mas, apenas houve deixado sua montaria Sancho para atender dom
Quixote, quando o demônio bailador das bexigas saltou sobre o ruço,
e, batendo nele com elas, o medo e ruído, mais que a dor dos golpes, o
fez voar pela campo até o lugar onde iam fazer a festa. Olhava
Sancho a carreira de seu ruço e a queda de seu amo, e não sabia a qual
das duas necessidades atenderia primeiro; mas, com efeito, como bom
escudeiro e como bom criado, pôde mais com ele o amor de seu senhor
que o carinho de seu jumento, embora cada vez que via levantar as
bexigas no ar e cair sobre as ancas de seu ruço eram para ele
angústias e sustos de morte, e antes quisera que aqueles golpes os
dessem a ele nas meninas dos olhos que no mais mínimo pelo do rabo
de seu asno. Com esta perplexa atribulação chegou onde estava dom
Quixote, muito mais maltratado do que ele quisera, e, ajudando-o a
subir sobre Rocinante, disse-lhe:
- Senhor, o Diabo levou o ruço.
- Que diabo? - perguntou dom Quixote.
- O das bexigas - respondeu Sancho.
- Pois eu o recuperarei - replicou dom Quixote, - ainda que se
encerrasse com ele nos mais fundos e escuros calabouços do inferno.
Segue-me, Sancho, que a carreta vai devagar, e com as mulas dela
satisfarei a perda do ruço.
- Não há para que fazer essa diligência, senhor - respondeu Sancho:
- vossa mercê modere sua cólera, que, segundo me parece, já o diabo
deixou o ruço, e volta à querência.
E assim era a verdade; porque, havendo caído o Diabo com o ruço,
para imitar dom Quixote e Rocinante, o diabo se foi a pé ao povoado, e
o jumento voltou a seu amo.
- Afinal - disse dom Quixote, - será bom castigar o
descomedimento daquele demônio em algum dos da carreta, embora
seja o mesmo Imperador.
- Tire vossa mercê isso da cabeça - replicou Sancho, - e tome meu
conselho, que é que nunca se meta com farsantes, que é gente
favorecida. Ator vi eu estar preso por duas mortes e sair livre e sem
custas. Saiba vossa mercê que, como são gentes alegres e de prazer,
todos os favorecem, todos os amparam, ajudam e estimam, e mais
sendo daqueles das companhias reais e de título, que todos, ou os
mais, em seus trajes e compostura parecem uns príncipes.
- Pois mesmo assim - respondeu dom Quixote, - não se me há de ir o
demônio farsante jactando-se, embora o favoreça todo o gênero
humano.
E dizendo isto, voltou à carreta, que já estava bem perto da vila.
Ia dando vozes, dizendo:
- Detende-vos, esperai, turba alegre e regozijada, que vos quero
dar a entender como se hão de tratar os jumentos e alimárias que
servem de cavalaria aos escudeiros dos cavaleiros andantes.
Tão altos eram os gritos de dom Quixote, que os ouviram e
entenderam os da carreta; e, julgando pelas palavras a intenção do que
as dizia, em um instante saltou a Morte da carreta, e atrás dela, o
Imperador, o Diabo carreteiro e o Anjo, sem restar a Rainha nem o
deus Cupido; e todos se carregaram de pedras e se puseram em ala,
esperando receber dom Quixote nas pontas de seus seixos. Dom
Quixote, que os viu postos em tão galhardo esquadrão, os braços
levantados com gesto de despedir poderosamente as pedras, deteve
as rédeas a Rocinante e pôs-se a pensar de que modo os enfrentaria
com menos perigo de sua pessoa. Nisto que se deteve, chegou Sancho,
e, vendo-o em postura de atacar o bem formado esquadrão, disse-lhe:
- Muita loucura seria intentar tal empresa: considere vossa mercê,
senhor meu, que para tempestade de pedras não há arma defensiva no
mundo, se não é embutir-se e encerrar-se em uma campana de bronze;
e também se há de considerar que é mais temeridade que valentia um
homem só atacar um exército onde está a Morte, e pelejam em pessoa
imperadores, e a quem ajudam os bons e os maus anjos; e se esta
consideração não o move a estar-se quedo, mova-o saber por certo
que, entre todos os que ali estão, embora pareçam reis, príncipes e
imperadores, não há nenhum cavaleiro andante.
- Agora sim - disse dom Quixote - atingiste, Sancho, o ponto que
pode e deve mudar-me de meu já determinado intento. Eu não posso
nem devo tirar a espada, como outras vezes muitas te disse, contra
quem não for armado cavaleiro. A ti, Sancho, toca, se queres tomar a
vingança do agravo que a teu ruço se fez, que eu daqui te ajudarei com
vozes e advertências saudáveis.
- Não há para quê, senhor - respondeu Sancho, - tomar vingança de
ninguém, pois não é de bons cristãos tomá-la dos agravos; quanto mais,
que eu convencerei meu asno que ponha sua ofensa nas mãos de minha
vontade, a qual é de viver pacificamente os dias que os céus me derem
de vida.
- Pois essa é tua determinação - replicou dom Quixote, - Sancho
bom, Sancho discreto, Sancho cristão e Sancho sincero, deixemos
estes fantasmas e voltemos a buscar melhores e mais qualificadas
aventuras; que eu vejo esta terra de molde a que não hão de faltar
nela muitas e muito milagrosas.
Voltou as rédeas logo, Sancho foi pegar o ruço, a Morte com todo
seu esquadrão volante voltaram à sua carreta e prosseguiram sua
viagem, e este feliz fim teve a temerosa aventura da carreta da
Morte, graças sejam dadas ao saudável conselho que Sancho Pança
deu a seu amo; ao qual, no dia seguinte, sucedeu outra com um
enamorado e andante cavaleiro, de não menos suspensão que a
passada.

CAPÍTULO XII

Da estranha aventura que sucedeu ao valoroso dom Quixote com o


bravo Cavaleiro dos Espelhos

A noite que seguiu ao dia do combate da Morte a passaram dom


Quixote e seu escudeiro debaixo de umas altas e sombrosas árvores,
havendo dom Quixote comido, por persuasão de Sancho, do que vinha
no farnel do ruço, e enquanto ceavam disse Sancho a seu senhor:
- Senhor, que tonto seria eu se houvesse escolhido como regalo os
despojos da primeira aventura que vossa mercê acabara, antes que as
crias das três éguas! Com efeito, com efeito, mais vale pássaro na mão
que abutre voando.
- Todavia - respondeu dom Quixote, - se tu, Sancho, me deixasses
atacar, como eu queria, te coubessem em despojos, pelo menos, a
coroa de ouro da Imperatriz e as pintadas asas de Cupido, que eu as
tiraria à força e as poria nas tuas mãos.
- Nunca os cetros e coroas dos imperadores fingidos - respondeu
Sancho Pança - foram de ouro puro, senão de ouropel ou folha de lata.
- Assim é verdade - replicou dom Quixote, - porque não seria
acertado que os atavios da comédia fossem finos, senão fingidos e
aparentes, como o é a mesma comédia, com a qual quero, Sancho, que
estejas bem, tendo-a em boa opinião, e pelo mesmo conseguinte aos
que as representam e aos que as compõem, porque todos são
instrumentos de fazer um grande bem à república, pondo-nos um
espelho a cada passo diante, onde se veem ao vivo as ações da vida
humana, e nenhuma comparação há que mais ao vivo nos represente o
que somos e o que havemos de ser como a comédia e os comediantes.
Se não, diz-me: não viste tu representar alguma comédia onde se
introduzem reis, imperadores e pontífices, cavaleiros, damas e outros
diversos personagens? Um faz o rufião, outro o embusteiro, este o
mercador, aquele o soldado, outro o ingênuo discreto, outro o
enamorado simples; e, acabada a comédia e desnudando-se das vestes
dela, ficam todos os atores iguais.
- Sim, vi - respondeu Sancho.
- Pois o mesmo - disse dom Quixote - acontece na comédia e trato
deste mundo, onde uns fazem os imperadores, outros os pontífices, e,
finalmente, todos quantos papéis se podem introduzir em uma
comédia; mas, chegando ao fim, que é quando se acaba a vida, a todos
lhes tira a morte as roupas que os diferençavam, e ficam iguais na
sepultura.
- Brava comparação! - disse Sancho, - embora não tão nova que eu
não a haja ouvido muitas e diversas vezes, como aquela do jogo do
xadrez, que, enquanto dura o jogo, cada peça tem seu particular
ofício; e, acabando-se o jogo, todas se misturam, juntam e baralham, e
dão com elas em uma bolsa, que é como dar com a vida na sepultura.
- Cada dia, Sancho - disse dom Quixote, - te vais fazendo menos
ingênuo e mais discreto.
- Sim, que algo se me há de pegar da discrição de vossa mercê
- respondeu Sancho; - que as terras que de seu são estéreis e secas,
estercando-as e cultivando-as, vêm a dar bons frutos: quero dizer que
a conversação de vossa mercê foi o esterco que sobre a estéril terra
de meu seco engenho caiu; a cultivação, o tempo que há que lhe sirvo e
comunico; e com isto espero dar frutos de mim que sejam de bênção,
tais, que não desdigam nem deslizem dos caminhos da boa criação que
vossa mercê fez no agreste entendimento meu.
Riu-se dom Quixote das afetadas palavras de Sancho, e pareceu-lhe
ser verdade o que dizia de sua emenda, porque de quando em quando
falava de maneira que o admirava; embora todas ou as mais vezes que
Sancho queria falar doutamente e à cortesã, acabava sua razão com
despenhar-se do monte de sua simplicidade ao profundo de sua
ignorância; e no que ele se mostrava mais elegante e memorioso era
em trazer refrãos, viessem ou não viessem a propósito do que tratava,
como se viu e notou no decorrer desta história.
Nestas e em outras conversas se lhes passou grande parte da noite,
e Sancho teve vontade de deixar cair as comportas dos olhos, como
ele dizia quando queria dormir, e, desarreando o ruço, lhe deu pasto
abundante e livre. Não tirou a sela de Rocinante, por ser expresso
mandamento de seu senhor que, no tempo que andassem em campo, ou
não dormissem debaixo de telhado, não desarreasse Rocinante: antiga
usança estabelecida e guardada pelos andantes cavaleiros, tirar o
freio e pendurá-lo do arção da sela; mas, tirar a sela ao cavalo?,
cuidado!; e assim o fez Sancho, e lhe deu a mesma liberdade que ao
ruço, cuja amizade dele e de Rocinante foi tão única e tão travada,
que há fama, por tradição de pais a filhos, que o autor desta
verdadeira história fez particulares capítulos dela; mas que, por
guardar a decência e decoro que a tão heroica história se deve, não os
pôs nela, embora algumas vezes se descuida deste seu propósito, e
escreve que, assim que as duas bestas se juntavam, acudiam a
coçar um ao outro, e que, depois de cansados e satisfeitos, cruzava
Rocinante o pescoço sobre o pescoço do ruço (que lhe sobrava da
outra parte mais de meia vara), e, olhando os dois atentamente ao
chão, costumavam estar daquela maneira três dias; ao menos, todo o
tempo que lhes deixavam, ou não lhes compelia a fome a buscar
sustento. Digo que dizem que deixou o autor escrito que os havia
comparado na amizade à que tiveram Niso e Euríalo, e Pílades e
Orestes; e se isto é assim, se podia ver, para universal admiração,
quão firme deveu ser a amizade destes dois pacíficos animais, e para
confusão dos homens, que tão mal sabem guardar amizade uns aos
outros. Por isto se diz:

Não há amigo para amigo:


as varas se tornam lanças;

e o outro que cantou:

De amigo a amigo, percevejo (no olho), etc.

E não pareça a alguém que andou o autor algo fora do caminho ao


haver comparado a amizade destes animais à dos homens, que das
bestas receberam muitas advertências os homens e aprendido muitas
coisas de importância, como são: das cegonhas, o clister; dos cães, o
vômito e o agradecimento; dos grous, a vigilância; das formigas, a
providência; dos elefantes, a honestidade, e a lealdade, do cavalo.
Finalmente, Sancho ficou adormecido ao pé de um sobreiro, e dom
Quixote dormitando ao de uma robusta azinheira; mas, pouco espaço
de tempo havia passado, quando o despertou um ruído que sentiu a
suas costas, e, levantando-se com sobressalto, se pôs a olhar e a
escutar de onde o ruído procedia, e viu que eram dois homens a cavalo,
e que um, deixando-se cair da sela, disse ao outro:
- Apeia-te, amigo, e tira os freios aos cavalos, que, a meu parecer,
este sítio abunda de erva para eles, e do silêncio e solidão de que
precisam meus amorosos pensamentos.
O dizer isto e o estender-se no chão tudo foi a um mesmo tempo; e,
ao arrojar-se, fizeram ruído as armas de que vinha armado, manifesto
sinal por onde conheceu dom Quixote que devia ser cavaleiro andante;
e, chegando-se a Sancho, que dormia, travou-o do braço, e com não
pequeno trabalho o acordou, e com voz baixa lhe disse:
- Irmão Sancho, aventura temos.
- Deus nos a dê boa - respondeu Sancho; - e onde está, senhor meu,
sua mercê dessa senhora aventura?
- Onde, Sancho? - replicou dom Quixote; - volta os olhos e vê, e
verás ali estendido um andante cavaleiro, que, ao que me parece, não
deve estar demasiadamente alegre, porque o vi arrojar-se do cavalo e
estender-se no chão com algumas mostras de despeito, e ao cair lhe
rangeram as armas.
- Mas por que acha vossa mercê - disse Sancho - que esta seja
aventura?
- Não quero eu dizer - respondeu dom Quixote - que esta seja
aventura de todo, senão princípio dela; que por aqui começam as
aventuras. Mas escuta, que, ao que parece, afinando está um alaúde ou
viola, e, conforme cospe e se limpa o peito, deve preparar-se para
cantar algo.
- À boa fé que é assim - respondeu Sancho, - e que deve ser
cavaleiro enamorado.
- Não há nenhum dos andantes que não o seja - disse dom Quixote. -
E escutemo-lo, que pelo fio tiraremos o novelo de seus pensamentos,
se é que canta; que da abundância do coração fala a língua.
Sancho queria replicar a seu amo, mas a voz do Cavaleiro do Bosque,
que não era muito má nem muito boa, o perturbou, e estando os dois
atônitos, ouviram que o que cantou foi este

SONETO

- Dai-me, senhora, uma conduta que siga,


conforme a vossa vontade cortada;
que será da minha assim estimada,
que jamais um ponto dela desdiga.
Se gostais que calando minha fadiga
morra, contai-me já por acabado:
se quereis que vo-la conte em desusado
modo, farei que o mesmo amor a diga.
À prova de contrários estou feito,
de branda cera e de diamante duro,
e às leis de amor a alma ajusto.
Brando qual é, ou forte, ofereço o peito:
esculpi ou imprimi o que vos dê gosto,
que guardá-lo eternamente juro.

Com um ai! arrancado, ao parecer, do íntimo de seu coração, deu fim


a seu canto o Cavaleiro do Bosque, e, dali a um pouco, com voz dolente
e lastimada, disse:
- Oh a mais formosa e a mais ingrata mulher do orbe! Como será
possível, sereníssima Casildeia de Vandália, que hás de consentir que
se consuma e acabe em contínuas peregrinações e em ásperos e duros
trabalhos este teu cativo cavaleiro? Não basta já que fiz que te
confessem pela mais formosa do mundo todos os cavaleiros de
Navarra, todos os leoneses, todos os andaluzes, todos os castelhanos,
e, finalmente, todos os cavaleiros da Mancha?
- Isso não - disse então dom Quixote, - que eu sou da Mancha e
nunca tal confessei, nem podia nem devia confessar uma coisa tão
prejudicial à beleza de minha senhora; e este tal cavaleiro já vês tu,
Sancho, que desvaria. Mas, escutemos: quiçá se declarará mais.
- Sim, fará - replicou Sancho, - que parece queixar-se um mês
inteiro.
Mas não foi assim, porque, havendo entreouvido o Cavaleiro do
Bosque que falavam perto dele, sem passar adiante em sua
lamentação, se pôs em pé e disse com voz sonora e comedida:
- Quem vai lá? Que gente? É porventura do número dos
contentes, ou dos aflitos?
- Dos aflitos - respondeu dom Quixote.
- Pois chegue-se a mim - respondeu o do Bosque, - e verá que se
chega à mesma tristeza e à aflição mesma.
Dom Quixote, que se viu responder tão terna e comedidamente, se
chegou a ele, e Sancho nem mais nem menos.
O cavaleiro lamentador pegou dom Quixote do braço, dizendo:
- Sentai-vos aqui, senhor cavaleiro, que para entender que o sois, e
dos que professam a andante cavalaria, basta-me o haver-vos achado
neste lugar, onde a solidão e o sereno vos fazem companhia, naturais
leitos e próprias moradas dos cavaleiros andantes.
A que respondeu dom Quixote:
- Cavaleiro sou, e da profissão que dizeis; e, embora em minha alma
têm seu próprio assento as tristezas, as desgraças e as desventuras,
não por isso fugiu dela a compaixão que tenho das alheias desditas. Do
que contaste há pouco compreendi que as vossas são enamoradas,
quero dizer, do amor que tendes àquela formosa ingrata que em vossas
lamentações nomeastes.
Já quando isto falavam estavam sentados juntos sobre a dura terra,
em boa paz e companhia, como se ao romper do dia não houvessem de
romper-se as cabeças.
- Por ventura, senhor cavaleiro - perguntou o do Bosque a dom
Quixote, - sois enamorado?
- Por desventura o sou - respondeu dom Quixote; - embora os danos
que nascem dos bem postos pensamentos antes se devem ter por
graças que por desditas.
- Assim é a verdade - replicou o do Bosque, - se não nos turvassem a
razão e o entendimento os desdéns, que, sendo muitos, parecem
vinganças.
- Nunca fui desdenhado por minha senhora - respondeu dom
Quixote.
- Não, por certo - disse Sancho, que ali junto estava, - porque é
minha senhora como uma borrega mansa: é mais branda que uma
manteiga.
- É vosso escudeiro este? - perguntou o do Bosque.
- Sim, é - respondeu dom Quixote.
- Nunca vi eu escudeiro - replicou o do Bosque - que se atreva a
falar onde fala seu senhor; ao menos, aí está esse meu, que é tão
grande como seu pai, e não se provará que haja despregado o lábio
quando eu falo.
- Pois à fé - disse Sancho, - que falei eu, e posso falar diante de
outro tão..., e ainda fique aqui, que é pior dizê-lo.
O escudeiro do Bosque pegou Sancho pelo braço, dizendo-lhe:
- Vamo-nos os dois onde possamos falar escuderilmente tudo quanto
quisermos, e deixemos a estes senhores amos nossos que se deem às
lanças, contando-se as histórias de seus amores; que seguramente
lhes há de colher o dia nelas e não as haverão terminado.
- Seja em boa hora - disse Sancho; - e eu direi a vossa mercê quem
sou, para que veja se posso equiparar-me com os mais falantes
escudeiros.
Com isto se afastaram os dois escudeiros, entre os quais se deu um
tão gracioso colóquio como foi grave o que houve entre seus senhores.

CAPÍTULO XIII

Onde prossegue a aventura do Cavaleiro do Bosque, com o discreto,


novo e suave colóquio dos dois escudeiros

Divididos estavam cavaleiros e escudeiros: estes contando-se suas


vidas, e aqueles seus amores; mas a história conta primeiro o
arrazoado dos moços e logo prossegue com o dos amos; e assim, diz
que, afastando-se um pouco deles, o do Bosque disse a Sancho:
- Trabalhosa vida é a que passamos e vivemos, senhor meu, nós que
somos escudeiros de cavaleiros andantes: em verdade que comemos o
pão com o suor de nossos rostos, que é uma das maldições que lançou
Deus a nossos primeiros pais.
- Também se pode dizer - acrescentou Sancho - que o comemos com
o gelo de nossos corpos; porque, quem mais calor e mais frio que os
miseráveis escudeiros da andante cavalaria? E ainda menos mal se
comêssemos, pois as dores, com pão são menos; mas alguma vez há que
nos passe um dia e dois sem desjejuar-nos, se não é do vento que
sopra.
- Tudo isso se pode levar e relevar - disse o do Bosque, - com a
esperança que temos do prêmio; porque se demasiadamente não é
desgraçado o cavaleiro andante a quem um escudeiro serve, pelo
menos, em poucos lances se verá premiado com um formoso governo
de qualquer ilha, ou com um condado de bom parecer.
- Eu - replicou Sancho - já disse a meu amo que me contento com o
governo de alguma ilha; e ele é tão nobre e tão liberal, que mo
prometeu muitas e diversas vezes.
- Eu - disse o do Bosque, - com um canonicato ficarei satisfeito por
meus serviços, e já mo tem prometido meu amo, e como!
- Deve ser - disse Sancho - o amo de vossa mercê cavaleiro ao
eclesiástico, e poderá fazer essas mercês a seus bons escudeiros; mas
o meu é meramente leigo, embora eu me lembre quando o queriam
aconselhar pessoas discretas, embora, a meu parecer mal
intencionadas, que procurasse ser arcebispo; mas ele não quis senão
ser imperador, e eu estava então tremendo se lhe vinha em vontade
ser da Igreja, por não achar-me digno de ser beneficiado por ela;
porque faço saber a vossa mercê que, embora pareça homem, sou uma
besta para ser da Igreja.
- Pois em verdade que o erra vossa mercê - disse o do Bosque, -
porque os governos insulanos não são todos de boa qualidade. Alguns
há torcidos, alguns pobres, alguns melancólicos, e finalmente, o mais
erguido e bem disposto traz consigo uma pesada carga de
preocupações e de incomodidades, que põe sobre seus ombros o
desditado que lhe coube em sorte. Muito melhor seria que os que
professamos esta maldita servidão nos retirássemos a nossas casas, e
ali nos entretivéssemos em exercícios mais suaves, como se
disséssemos, caçando ou pescando; pois, que escudeiro há tão pobre
no mundo, a quem lhe falte um rocim, e um par de galgos, e uma vara
de pescar, com que entreter-se em sua aldeia?
- A mim não me falta nada disso - respondeu Sancho: - verdade é
que não tenho rocim, mas tenho um asno que vale duas vezes mais que
o cavalo de meu amo. Má páscoa me dê Deus, e seja a primeira que
vier, se o trocasse por ele, embora me dessem quatro medidas de
cevada para compensar. Por burla terá vossa mercê o valor de meu
ruço, que ruço é o cor de meu jumento. Também galgos não me haviam
de faltar, havendo-os de sobra em meu povoado; e mais, que então é a
caça mais gostosa quando se faz à custa alheia.
- Real e verdadeiramente - respondeu o do Bosque, - senhor
escudeiro, que tenho proposto e determinado deixar estes disparates
destes cavaleiros, e retirar-me a minha aldeia, e criar meus filhitos,
que tenho três como três orientais pérolas.
- Duas tenho eu - disse Sancho, - que se podem apresentar ao Papa
em pessoa, especialmente uma moça a quem crio para condessa, se
Deus for servido, embora apesar de sua mãe.
- E que idade tem essa senhora que se cria para condessa? -
perguntou o do Bosque.
- Quinze anos, dois mais ou menos - respondeu Sancho, - mas é tão
grande como uma lança, e tão fresca como uma manhã de abril, e tem
uma força de um ganha-pão.
- Qualidades são essas - respondeu o do Bosque - não só para ser
condessa, senão para ser ninfa do verde bosque. Oh fideputa, puta, e
que compleição deve ter a velhaca!
Ao que respondeu Sancho, algo mofino:
- Nem ela é puta, nem o foi sua mãe, nem o será nenhuma das duas,
Deus querendo, enquanto eu viver. E fale mais comedidamente, que,
para haver-se criado vossa mercê entre cavaleiros andantes, que são a
mesma cortesia, não me parecem muito concertadas essas palavras.
- Oh, que pouco sabe vossa mercê - replicou o do Bosque - a
respeito de louvações, senhor escudeiro! Como não sabe que quando
algum cavaleiro dá uma boa lançada no touro na praça, ou quando
alguma pessoa faz alguma coisa bem feita, costuma dizer o vulgo: “Oh
fideputa, puto, e que bem que o fez!?” E aquilo que parece vitupério,
naquele termo, é louvação notável; e renegai vós, senhor, dos filhos ou
filhas que não fazem obras que mereçam se deem a seus pais louvores
semelhantes.
- Sim, renego - respondeu Sancho, - e desse modo e por essa mesma
razão podia lançar vossa mercê a mim e filhos e a minha mulher toda
uma putaria em cima, porque tudo quanto fazem e dizem são em
extremo dignos de semelhantes louvações, e para voltá-los a ver rogo
eu a Deus me afaste de pecado mortal, que o mesmo será se me afasta
deste perigoso ofício de escudeiro, no qual incorri segunda vez,
cevado e enganado por uma bolsa com cem ducados que achei um dia
no coração de Serra Morena, e o diabo me põe ante os olhos aqui, ali,
aqui não, senão acolá, um saco cheio de dobrões, que me parece que a
cada passo lhe toco com a mão, e me abraço com ele, e o levo a minha
casa, e o invisto para viver de rendas, e vivo como um príncipe; e o
tempo que nisto penso se me fazem fáceis e leves quantos trabalhos
padeço com este mentecapto de meu amo, de quem sei que tem mais
de louco que de cavaleiro.
- Por isso - respondeu o do Bosque - dizem que a cobiça rompe o
saco; e se se vai tratar deles, não há outro maior no mundo que meu
amo, porque é daqueles que dizem: “Cuidados alheios matam o asno”;
pois, porque cobre outro cavaleiro o juízo que perdeu se faz ele louco
e anda buscando o que não sei se depois de achado lhe há de pesar.
- E é enamorado, por acaso?
- Sim - disse o do Bosque: - de uma tal Casildeia de Vandália, a mais
crua e a mais assada senhora que em todo o orbe pode achar-se; mas
não coxeia do pé da crueza, que outros maiores embustes lhe grunhem
nas entranhas, e já se verá antes de muitas horas.
- Não há caminho tão plano - replicou Sancho - que não tenha algum
tropeção ou barranco; em outras casas cozem favas, e na minha, a
caldeiradas; mais acompanhados e apaniguados deve ter a loucura que
a discrição. Mas se é verdade o que comumente se diz, que o ter
companheiros nos trabalhos costuma servir de alívio neles, com vossa
mercê poderei consolar-me, pois serve a outro amo tão tonto como o
meu.
- Tonto, mas valente - respondeu o do Bosque, - e mais velhaco que
tonto e que valente.
- Assim não é o meu - respondeu Sancho: - digo, que não tem nada
de velhaco; antes tem uma alma como um cântaro: não sabe fazer mal
a ninguém, senão bem a todos, nem tem malícia alguma: um menino o
fará entender que é de noite no meio do dia; e por esta singelez o
quero como às carnes de meu coração, e não me animo a deixá-lo, por
mais disparates que faça.
- Desse modo, irmão e senhor - disse o do Bosque, - se o cego guia o
cego, ambos vão a perigo de cair no buraco. Melhor é retirar-nos com
bom passo, e voltar-nos a nossas querências; que os que buscam
aventuras não sempre as acham boas.
Cuspia Sancho amiúde, ao parecer, um certo gênero de saliva
pegajosa e algo seca; o qual visto e notado pelo caritativo bosqueril
escudeiro, disse:
- Parece-me que do quanto falamos se nos pregam ao palato as
línguas, mas eu trago um despregador pendente do arção de meu
cavalo, que parece bom.
E levantando-se, voltou dali a um pouco com uma grande bota de
vinho e uma empanada de meia vara; e não é encarecimento, porque
era de um coelho branco, tão grande que Sancho, ao tocá-la, entendeu
ser de algum cabrão, não de cabrito; o qual visto por Sancho, disse:
- E isto traz vossa mercê consigo, senhor?
- Ora, o que pensava? - respondeu o outro. - Sou eu porventura
algum escudeiro de somenos? Melhor boia trago eu nas ancas de meu
cavalo que leva consigo quando vai no caminho um general.
Comeu Sancho sem fazer-se rogar, e engolia sem mastigar nacos
enormes. E disse:
- Vossa mercê sim que é escudeiro fiel e legal, com todo o
necessário, magnífico e grande, como o mostra este banquete, que se
não veio aqui por arte de encantamento, parece-o, ao menos; e não
como eu, mesquinho e desventurado, que só trago em meus alforjes um
pouco de queijo, tão duro que podem ferir um gigante com ele, a quem
fazem companhia quatro dúzias de alfarrobas e outras tantas de
avelãs e nozes, devidas à estreiteza de meu dono, e à opinião que tem
e ordem que guarda de que os cavaleiros andantes não se hão de
manter e sustentar senão com frutas secas e com as ervas do campo.
- Por minha fé, irmão - replicou o do Bosque, - que eu não tenho
feito o estômago para cardos, nem peras, nem para raízes dos montes.
Lá se tenham com suas opiniões e leis cavaleirescas nossos amos, e
comam o que eles quiserem; fiambres trago, e esta bota pendurada do
arção da sela, pelo sim ou pelo não; e é tão devota minha e quero-a
tanto, que poucos momentos se passam sem que lhe dê mil beijos e mil
abraços.
E dizendo isto, a pôs nas mãos de Sancho, o qual, empinando-a,
posta à boca, esteve olhando as estrelas um quarto de hora, e,
acabando de beber, deixou cair a cabeça a um lado, e, dando um
grande suspiro, disse:
- Oh fideputa velhaco, e como é católico!
- Veis aí - disse o do Bosque, ouvindo o fideputa de Sancho, - como
haveis louvado este vinho chamando-lhe “fideputa”?
- Digo - respondeu Sancho, - que confesso que reconheço que não é
desonra chamar “filho de puta” a ninguém, quando faz por ser louvado.
Mas diga-me, senhor, pela vida eterna de quem mais quer: este vinho é
da Cidade Real?
- Bravo degustador! - respondeu o do Bosque. - Em verdade que não
é de outra parte, e que tem alguns anos de ancianidade.
- E isso me diz? - disse Sancho. - Dessa matéria sei de sobra. Não
será bom, senhor escudeiro, que tenha eu um instinto tão grande e tão
natural, nisto de conhecer vinhos, que, em dando-me a cheirar
qualquer, acerto a pátria, a linhagem, o sabor, e a duração, e as voltas
que há de dar, com todas as circunstâncias concernentes ao vinho?
Mas não há de que maravilhar-se, se tive em minha linhagem por parte
de meu pai os dois mais excelentes degustadores que em longos anos
conheceu a Mancha, para prova do que lhes sucedeu o que agora direi.
Deram aos dois a provar do vinho de uma cuba, pedindo-lhes seu
parecer do estado, qualidade, bondade ou malícia do vinho. Um o
provou com a ponta da língua, o outro não fez mais que chegá-lo ao
nariz. O primeiro disse que aquele vinho sabia a ferro, o segundo disse
que mais sabia a couro de cabra. O dono disse que a cuba estava limpa,
e que o tal vinho não tinha tempero algum por onde houvesse tomado
sabor de ferro nem de couro de cabra. Mesmo assim, os dois famosos
degustadores confirmaram o que haviam dito. Andou o tempo, vendeu-
se o vinho, e ao limpar da cuba acharam nela uma chave pequena,
pendente de uma correia de couro de cabra. Então veja vossa mercê
se quem vem desta gente poderá dar seu parecer em semelhantes
causas.
- Por isso digo - disse o do Bosque - que nos deixemos de andar
buscando aventuras; e, se temos fogaças, não busquemos tortas, e
voltemos a nossas choças, que ali nos achará Deus, se Ele quer.
- Até que meu amo chegue a Saragoça, eu o servirei; que depois
todos nos entenderemos.
Finalmente, tanto falaram e tanto beberam os dois bons escudeiros,
que teve necessidade o sono de atar-lhes as línguas e diminuir-lhes a
sede, que eliminá-la seria impossível; e assim, presos ambos da já
quase vazia bota, com os bocados a meio mastigar na boca,
adormeceram, onde os deixaremos por agora, para contar o que o
Cavaleiro do Bosque passou com o da Triste Figura.

CAPÍTULO XIV

Onde prossegue a aventura do Cavaleiro do Bosque

Entre muitas razões que passaram dom Quixote e o Cavaleiro da


Selva, diz a história que o do Bosque disse a dom Quixote:
- Finalmente, senhor cavaleiro, quero que saibais que meu destino,
ou, por melhor dizer, minha eleição, me trouxe a enamorar da sem par
Casildeia de Vandália. Chamo-a sem par porque não o tem, assim na
grandeza do corpo como no extremo do estado e da formosura. Esta
tal Casildeia, pois, que vou contando, pagou meus bons pensamentos e
comedidos desejos com fazer-me ocupar, como sua madrinha a
Hércules, em muitos e diversos perigos, prometendo-me ao fim de
cada um que no fim do outro chegaria o de minha esperança; mas assim
se foram sucedendo meus trabalhos, que não têm conta, nem eu sei
qual há de ser o último que dê princípio ao cumprimento de meus bons
desejos. Uma vez me mandou que fosse desafiar aquela famosa
giganta de Sevilha chamada a Giralda, que é tão valente e forte como
feita de bronze, e, sem mudar-se de um lugar, é a mais movível e
volúvel mulher do mundo. Cheguei, vi-a, e venci-a, e fi-la estar quieta e
comportada, porque em mais de uma semana não sopraram senão
ventos nortes. Vez também houve que me mandou fosse pesar as
antigas pedras dos valentes Touros de Guisando, empresa mais para
encomendar-se a ganha-pães que a cavaleiros. Outra vez me mandou
que me precipitasse e sumisse na caverna de Cabra, perigo inaudito e
temeroso, e que lhe trouxesse particular relação do que naquela
escura profundidade se encerra. Detive o movimento à Giralda, pesei
os Touros de Guisando, despenhei-me na caverna e trouxe à luz o
escondido de seu abismo, e minhas esperanças, mortas que mortas, e
seus mandamentos e desdéns, vivos que vivos. Em suma, ultimamente
me mandou que percorra todas as províncias da Espanha e faça
confessar a todos os andantes cavaleiros que por elas vagarem que ela
só é a mais avantajada em formosura de quantas hoje vivem, e que eu
sou o mais valente e o mais bem enamorado cavaleiro do orbe; em cuja
demanda andei já a maior parte da Espanha, e nela venci muitos
cavaleiros que se atreveram a contradizer-me. Mas do que eu mais me
prezo e ufano é de haver vencido, em singular batalha, àquele tão
famoso cavaleiro dom Quixote da Mancha, e fi-lo confessar que é mais
formosa minha Casildeia que sua Dulcineia; e com só esta vitória sinto
que venci todos os cavaleiros do mundo, porque o tal dom Quixote que
digo os venceu a todos; e, havendo-o eu vencido a ele, sua glória, sua
fama e sua honra se transferiram e passaram à minha pessoa,

e tanto o vencedor é mais honrado,


quanto mais o vencido é reputado;

assim que, já correm por minha conta e são minhas as inumeráveis


façanhas do já referido dom Quixote.
Admirado ficou dom Quixote de ouvir o cavaleiro do Bosque, e
esteve mil vezes por dizer-lhe que mentia, e já teve o mentis na ponta
da língua; mas conteve-se o melhor que pôde, por fazer-lhe confessar
por sua própria boca sua mentira; e assim, sossegadamente lhe disse:
- De que vossa mercê, senhor cavaleiro, tenha vencido os mais
cavaleiros andantes da Espanha, e ainda de todo o mundo, não digo
nada; mas de que tenha vencido dom Quixote da Mancha, ponho-o em
dúvida. Poderia ser que fosse outro que se parecesse com ele, embora
há poucos que com ele se pareçam.
- Como não? - replicou o do Bosque. - Pelo céu que nos cobre, que
lutei com dom Quixote, e o venci e rendi; e é um homem alto de corpo,
seco de rosto, estirado e enrugado de membros, grisalho, o nariz
aquilino e algo curvo, de bigodes grandes, negros e caídos. Campeia
debaixo do nome do Cavaleiro da Triste Figura e traz por escudeiro
um lavrador chamado Sancho Pança; oprime o lombo e rege o freio de
um famoso cavalo chamado Rocinante, e, finalmente, tem por senhora
de sua vontade a uma tal Dulcineia do Toboso, chamada um tempo
Aldonça Lourenço; como a minha, que, por chamar-se Casilda e ser da
Andaluzia, eu a chamo Casildeia de Vandália. Se todos estes sinais não
bastam para acreditar minha verdade, aqui está minha espada, que a
fará dar crédito à mesma incredulidade.
- Sossegai-vos, senhor cavaleiro - disse dom Quixote, - e escutai o
que dizer vos quero. Haveis de saber que esse dom Quixote que dizeis
é o maior amigo que neste mundo tenho, e tanto, que poderei dizer que
o tenho em lugar de minha mesma pessoa, e que pelos sinais que dele
me destes, tão pontuais e certos, não posso pensar senão que seja o
mesmo que vencestes. Por outra parte, vejo com os olhos e toco com
as mãos não ser possível ser o mesmo, se já não fosse que como ele
tem muitos inimigos encantadores, especialmente um que de ordinário
o persegue, não haja algum deles tomado sua figura para deixar-se
vencer, por defraudar-lhe da fama que suas altas cavalarias lhe têm
granjeado e adquirido por todo o descoberto da terra. E para
confirmação disto, quero também que saibais que os tais encantadores
seus contrários não há mais de dois dias que transformaram a figura e
pessoa da formosa Dulcineia do Toboso em uma aldeã soez e baixa, e
desta maneira haverão transformado dom Quixote; e se tudo isto não
basta para inteirar-vos desta verdade que digo, aqui está o mesmo
dom Quixote, que a sustentará com suas armas a pé, ou a cavalo, ou de
qualquer sorte que vos agradar.
E dizendo isto se levantou e empunhou a espada, esperando que
resolução tomaria o cavaleiro do Bosque, o qual, com voz também
sossegada, respondeu e disse:
- Ao bom pagador não faltam garantias: o que uma vez, senhor dom
Quixote, pôde vencer-vos transformado, bem poderá ter esperança
de render-vos em vosso próprio ser. Mas, porque não é bom que os
cavaleiros façam seus feitos de armas às escuras, como os
salteadores e rufiões, esperemos o dia, para que o sol veja nossas
obras. E há de ser condição de nossa batalha que o vencido há de ficar
à vontade do vencedor, para que faça dele tudo o que quiser, de
maneira tal que seja decente para cavaleiro o que se lhe ordenar.
- Estou mais que contente dessa condição e conveniência -
respondeu dom Quixote.
E dizendo isto, foram onde estavam seus escudeiros, e os acharam
roncando e na mesma forma que estavam quando os assaltou o sono.
Despertaram-nos e mandaram-nos que tivessem prontos os cavalos,
porque, saindo o sol, haviam de fazer os dois uma sangrenta, singular e
desigual batalha; a cujas novas ficou Sancho atônito e pasmado,
temeroso da saúde de seu amo, pelas valentias que havia ouvido o
escudeiro do Bosque dizer do seu; mas, sem falar palavra, foram os
dois escudeiros buscar as montarias, que já os três cavalos e o ruço se
haviam cheirado, e estavam todos juntos.
No caminho disse o do Bosque a Sancho:
- Há de saber, irmão, que têm por costume os pelejadores da
Andaluzia, quando são padrinhos de alguma pendência, não estar
ociosos de mãos abanando enquanto seus afilhados lutam. Digo-o
porque esteja advertido de que enquanto nossos donos lutarem, nós
também havemos de pelejar e destroçar-nos.
- Esse costume, senhor escudeiro - respondeu Sancho, - lá pode
correr e passar com os rufiões e pelejantes que diz, mas com os
escudeiros dos cavaleiros andantes, nem em pensamento. Ao menos, eu
não ouvi meu amo dizer semelhante costume, e sabe de memória todas
as ordenanças da andante cavalaria. Quanto mais, que eu posso aceitar
que seja verdade e ordenança expressa o pelejar os escudeiros
enquanto seus senhores pelejam; mas eu não quero cumpri-la, senão
pagar a pena que estiver posta aos tais pacíficos escudeiros, que eu
asseguro que não passe de duas libras de cera, e mais quero pagar as
tais libras, que sei que me custarão menos que os trapos que poderei
gastar em curar-me a cabeça, que já a conto por partida e dividida em
duas partes. Há mais, que me impossibilita o lutar o não ter espada,
pois mais vale minha vida.
- Para isso sei eu um bom remédio - disse o do Bosque: - eu trago
aqui dois sacos de pano, de um mesmo tamanho: tomareis vós um, e eu
o outro, e lutaremos a sacadas, com armas iguais.
- Dessa maneira, seja em boa hora - respondeu Sancho, - porque
antes servirá a tal peleja para espanar-nos em vez de ferir-nos.
- Não há de ser assim - replicou o outro, - porque se hão de pôr nos
sacos, para que não os leve o ar, meia dúzia de seixos lindos e pelados,
que pesem tanto uns como os outros, e desta maneira nos poderemos
dar com os sacos sem fazer-nos mal nem dano.
- Vede, corpo de meu pai - respondeu Sancho, - que peles de marta,
ou que flocos de algodão cardado põe nos sacos, para não ficarem
moídos as cabeças e os ossos! Mas, embora se enchessem de botões
de seda, saiba, senhor meu, que não hei de pelejar: pelejem nossos
amos, e lá se tenham, e bebamos e vivamos nós, que o tempo tem
cuidado de tirar-nos as vidas, sem que andemos buscando apetites
para que se acabem antes de chegar sua hora e fim e que caiam de
maduras.
- Contudo - replicou o do Bosque, - havemos de pelejar pelo menos
meia hora.
- Isso não - respondeu Sancho, - não serei eu tão descortês nem tão
desagradecido, que com quem comi e bebi trave questão alguma, por
mínima que seja; quanto mais que, estando sem cólera e sem zanga,
quem diabos se há de pôr a lutar sem motivo?
- Para isso - disse o do Bosque - eu darei um suficiente remédio: e é
que, antes que comecemos a peleja, eu me chegarei com cuidado a
vossa mercê e lhe darei três ou quatro bofetadas, que dê com o
senhor a meus pés, com as quais lhe farei despertar a cólera, embora
esteja com sono de pedra.
- Contra essa solução sei eu outra - respondeu Sancho, - que não lhe
fica atrás: pegarei eu um cacete, e, antes que vossa mercê chegue a
despertar-me a cólera, farei eu dormir a bordoadas de tal sorte a sua,
que não desperte se não for no outro mundo, no qual se sabe que não
sou eu homem que deixe manusear o rosto por ninguém; e cada um
cuide de si, embora o mais acertado seria deixar dormir a cólera de
cada um, que não sabe ninguém a alma de ninguém, e tal costuma
buscar lã que volta tosquiado; e Deus bendisse a paz e maldisse as
lutas, porque se um gato acossado, encerrado e apertado se
transforma em leão, eu, que sou homem, Deus sabe no que poderei
transformar-me; e assim, desde agora intimo a vossa mercê, senhor
escudeiro, que corra por sua conta todo o mal e dano que de nossa
pendência resultar.
- Está bem - replicou o do Bosque. - Amanhecerá Deus e veremos.
Nisto, já começavam a gorjear nas árvores mil sortes de
pintalgados passarinhos, e em seus diversos e alegres cantos parecia
que davam a boa hora e saudavam a fresca aurora, que já pelas portas
e balcões do oriente ia descobrindo a formosura de seu rosto,
sacudindo de seus cabelos um número infinito de líquidas pérolas, em
cujo suave licor banhando-se as ervas, parecia também que elas
brotavam e choviam branco e miúdo aljôfar; os salgueiros destilavam
maná saboroso, riam-se as fontes, murmuravam os arroios, alegravam-
se as selvas e enriqueciam-se os prados com sua vinda. Mas, apenas
deu lugar a claridade do dia para ver e diferençar as coisas, quando a
primeira que se ofereceu aos olhos de Sancho Pança foi a nariz do
escudeiro do Bosque, que era tão grande que quase lhe fazia sombra a
todo o corpo. Conta-se, com efeito, que era de demasiada grandeza,
curvo no meio e todo cheio de verrugas, de cor como de amora ou
berinjela; baixava-lhe dois dedos da boca; cuja grandeza, cor,
verrugas e encurvamento assim lhe afeavam o rosto, que, vendo-o
Sancho, começou a bater pés e mãos, como menino com convulsão, e
propôs em seu coração deixar-se dar duzentas bofetadas antes que
despertar a cólera para lutar com aquele monstro.
Dom Quixote mirou seu contendor, e achou-o já posto e calado o
elmo, de modo que não lhe pôde ver o rosto, mas notou que era homem
membrudo, e não muito alto de corpo. Sobre as armas trazia uma capa
ou casaca de um tecido, ao parecer, de ouro finíssimo, semeadas por
ela muitas luas pequenas de resplandecentes espelhos, que o faziam de
grandíssima maneira galante e vistoso; voavam-lhe sobre o elmo
grande quantidade de penas verdes, amarelas e brancas; a lança, que
tinha arrimada a uma árvore, era grandíssima e grossa, e de um ferro
afiado de mais de um palmo.
Tudo viu e tudo notou dom Quixote, e julgou do olhado e visto que o
já dito cavaleiro devia ser de grandes forças; mas não por isso temeu,
como Sancho Pança; antes, com gentil denodo, disse ao Cavaleiro dos
Espelhos:
- Se a muita vontade de pelejar, senhor cavaleiro, não vos gasta a
cortesia, por ela vos peço que levanteis a viseira um pouco, para que eu
veja se a galhardia de vosso rosto responde à de vossa disposição.
- Ou vencido ou vencedor que saiais desta empresa, senhor
cavaleiro - respondeu o dos Espelhos, - vos ficará tempo e espaço
demasiado para ver-me; e se agora não satisfaço a vosso desejo, é por
parecer-me que faço notável agravo à formosa Casildeia de Vandália
em dilatar o tempo que tardar em levantar a viseira, sem fazer-vos
confessar o que já sabeis que pretendo.
- Então, enquanto subimos a cavalo - disse dom Quixote, - bem
podeis dizer-me se sou eu aquele dom Quixote que dissestes haver
vencido.
- A isso vos respondemos - disse o dos Espelhos - que pareceis,
como se parece um ovo a outro, ao mesmo cavaleiro que eu venci; mas,
segundo vós dizeis que o perseguem encantadores, não ousarei afirmar
se sois o sobredito ou não.
- Isso me basta - respondeu dom Quixote - para que creia vosso
engano; mas, para tirar-vos dele de todo, venham nossos cavalos, que
em menos tempo que o que tardardes em alçar a viseira, se Deus, se
minha senhora e meu braço me valem, verei eu vosso rosto, e vós
vereis que não sou eu o vencido dom Quixote que pensais.
Com isto, encurtando razões, subiram a cavalo, e dom Quixote
voltou as rédeas a Rocinante para tomar o que convinha do campo,
para voltar a encontrar a seu contrário, e o mesmo fez o dos Espelhos.
Mas, não se havia afastado dom Quixote vinte passos, quando se ouviu
chamar pelo dos Espelhos, e, aproximando-se os dois, o dos Espelhos
lhe disse:
- Adverti, senhor cavaleiro, que a condição de nossa batalha é que o
vencido, como outra vez disse, há de ficar à discrição do vencedor.
- Já a sei - respondeu dom Quixote; - com tal que o que se lhe
impuser e mandar ao vencido hão de ser coisas que não saiam dos
limites da cavalaria.
- Assim se entende - respondeu o dos Espelhos.
Ofereceu-se nisto à vista de dom Quixote o estranho nariz do
escudeiro, e não se admirou menos de vê-lo que Sancho; tanto, que o
julgou por algum monstro, ou por homem novo e daqueles que não se
usam no mundo. Sancho, que viu seu amo partir para tomar carreira,
não quis ficar só com o narigudo, temendo que com só um golpe com
aquele nariz no seu estaria acabada a sua pendência, ficando do golpe,
ou do medo, estendido no chão, e fosse atrás de seu amo, preso a uma
correia de Rocinante; e, quando lhe pareceu que já era tempo que
voltasse, disse-lhe:
- Suplico a vossa mercê, senhor meu, que antes que volte a
encontrar-se me ajude a subir sobre aquele sobreiro, de onde poderei
ver mais a meu sabor, melhor que desde o chão, o galhardo encontro
que vossa mercê há de fazer com este cavaleiro.
- Antes creio, Sancho - disse dom Quixote, - que queres subir em
andaime para ver sem perigo os touros.
- A verdade que diga - respondeu Sancho, - o desaforado nariz
daquele escudeiro me tem atônito e cheio de espanto, e não me atrevo
a estar junto a ele.
- Ele é tal - disse dom Quixote, - que, a não ser eu quem sou,
também me assombraria; e assim, vem: ajudar-te-ei a subir onde
dizes.
No que se deteve dom Quixote em que Sancho subisse no sobreiro,
tomou o dos Espelhos do campo o que lhe pareceu necessário; e,
crendo que o mesmo haveria feito dom Quixote, sem esperar som de
trombeta nem outro sinal que os avisasse, voltou as rédeas a seu
cavalo - que não era mais ligeiro nem de melhor parecer que Rocinante,
- e, a todo seu correr, que era um mediano trote, ia encontrar seu
inimigo; mas, vendo-o ocupado na subida de Sancho, deteve as rédeas
e parou na meio da carreira, do que o cavalo ficou agradecidíssimo,
porque já não podia mover-se. Dom Quixote, que lhe pareceu que já
seu inimigo vinha voando, encostou fortemente as esporas às côncavas
ilhargas de Rocinante, e o aguilhoou de maneira tal, que conta a
história que esta só vez se conheceu haver corrido algo, porque todas
as demais sempre seriam trotes declarados; e com esta não vista
fúria chegou onde o dos Espelhos estava fincando em seu cavalo as
esporas até os botões, sem que o pudesse mover um só dedo do lugar
onde havia estancado sua carreira.
Nesta boa ocasião e conjuntura achou dom Quixote seu contrário
embaraçado com seu cavalo e ocupado com sua lança, que nunca, ou não
acertou, ou não teve lugar de pô-la em riste. Dom Quixote, que não
olhava nestes inconvenientes, com segurança e sem perigo algum,
encontrou o dos Espelhos com tanta força, que mau grado seu o fez
vir ao chão pelas ancas do cavalo, dando tal queda, que, sem mover pé
nem mão, deu sinais de que estava morto.
Apenas o viu caído Sancho, quando deslizou do sobreiro e a toda
pressa veio onde seu senhor estava, o qual, apeando-se de Rocinante,
foi sobre o dos Espelhos, e, tirando-lhe as laçadas do elmo para ver se
estava morto e para que lhe desse o ar se acaso estava vivo; e viu...
Quem poderá dizer o que viu, sem causar admiração, maravilha e
espanto aos que o ouvirem? Viu, diz a história, o rosto mesmo, a
mesma figura, o mesmo aspecto, a mesma fisionomia, a mesma efígie, a
perspectiva mesma do bacharel Sansão Carrasco; e, assim que a viu,
em altas vozes disse:
- Acode, Sancho, e veja o que hás de ver e não o hás de crer! Corre,
filho, e adverte o que pode a magia, o que podem os feiticeiros e os
encantadores!
Chegou Sancho, e, quando viu o rosto do bacharel Carrasco,
começou a fazer mil cruzes e a benzer-se outras tantas. Em tudo isto,
não dava mostras de estar vivo o derrubado cavaleiro, e Sancho disse
a dom Quixote:
- Sou de parecer, senhor meu, que, pelo sim ou pelo não, vossa
mercê finque e meta a espada pela boca a este que parece o bacharel
Sansão Carrasco; quiçá matará nele algum de seus inimigos os
encantadores.
- Não dizes mal - disse dom Quixote, - porque dos inimigos, os
menos.
E tirando a espada para pôr em prática o aviso e conselho de
Sancho, chegou o escudeiro do dos Espelhos, já sem o nariz que tão
feio o havia feito, e a grandes vozes disse:
- Veja vossa mercê o que faz, senhor dom Quixote, que esse que
tem aos pés é o bacharel Sansão Carrasco, seu amigo, e eu sou seu
escudeiro.
E vendo-o Sancho sem aquela fealdade primeira, disse-lhe:
- E o nariz?
A que ele respondeu:
- Aqui o tenho, na algibeira.
E enfiando a mão à direita, tirou um nariz de pasta e verniz, de
máscara, da feitura já contada. E olhando-o mais e mais Sancho, com
voz admirativa e grande, disse:
- Santa Maria, e valha-me! Este não é Tomé Cecial, meu vizinho e
meu compadre?
- E como sou! - respondeu o já desnarigado escudeiro: - Tomé Cecial
sou, compadre e amigo Sancho Pança, e logo vos direi os rolos,
embustes e enredos por onde sou aqui vindo; entretanto, pedi e
suplicai ao senhor vosso amo que não toque, maltrate, fira nem mate o
Cavaleiro dos Espelhos, que a seus pés tem, porque sem dúvida alguma
é o atrevido e mal aconselhado bacharel Sansão Carrasco, nosso
compatriota.
Nisto, voltou a si o dos Espelhos, o qual visto por dom Quixote, lhe
pôs a ponta desnuda da espada em cima do rosto, e lhe disse:
- Morto sois, cavaleiro, se não confessais que a sem par Dulcineia do
Toboso se avantaja em beleza a vossa Casildeia de Vandália; e além
disto haveis de prometer, se desta contenda e queda ficardes com
vida, ir à cidade do Toboso e apresentar-vos em sua presença de
minha parte, para que faça de vós o que for de sua vontade; e se vos
deixar na vossa, também haveis de voltar a buscar-me, que o rastro de
minhas façanhas vos servirá de guia para que vos traga onde eu
estiver, e a dizer-me o que com ela houverdes passado; condições que,
conforme às que pusemos antes de nossa batalha, não saem dos
termos da andante cavalaria.
- Confesso - disse o caído cavaleiro - que vale mais o sapato
descosido e sujo da senhora Dulcineia do Toboso que as barbas mal
penteadas, embora limpas, de Casildeia, e prometo ir e voltar de sua
presença à vossa, e dar-vos inteira e particular conta do que me pedis.
- Também haveis de confessar e crer - acrescentou dom Quixote -
que aquele cavaleiro que vencestes não foi nem pôde ser dom Quixote
da Mancha, senão outro que se parecia com ele, como eu confesso e
creio que vós, embora pareceis o bacharel Sansão Carrasco, não o sois,
senão outro que com ele se parece, e que em sua figura aqui o puseram
meus inimigos, para que detenha e modere o ímpeto de minha cólera, e
para que use brandamente da glória do vencimento.
- Tudo o confesso, julgo e sinto como vós o credes, julgais e sentis
- respondeu o descadeirado cavaleiro. - Deixai-me levantar, vos rogo,
se é que o permite o golpe de minha caída, que assaz maltratado me
tem.
Ajudaram-no a levantar dom Quixote e Tomé Cecial, seu escudeiro,
do qual não tirava os olhos Sancho, perguntando-lhe coisas cujas
respostas lhe davam manifestos sinais de que verdadeiramente era o
Tomé Cecial que dizia; mas a apreensão que em Sancho havia feito o
que seu amo disse, de que os encantadores haviam mudado a figura do
Cavaleiro dos Espelhos na do bacharel Carrasco, não lhe deixava dar
crédito à verdade que com os olhos estava vendo. Finalmente, ficaram
com este engano amo e moço, e o dos Espelhos e seu escudeiro,
mofinos e mal-andantes, se afastaram de dom Quixote e Sancho, com
intenção de buscar algum lugar onde pôr unguentos e talas nas
costelas. Dom Quixote e Sancho voltaram a prosseguir em seu
caminho de Saragoça, onde os deixa a história, para dar conta de
quem era o Cavaleiro dos Espelhos e seu narigante escudeiro.
CAPÍTULO XV
Onde se conta e dá notícia de quem era o Cavaleiro dos Espelhos e
seu escudeiro

Em extremo contente, ufano e vanglorioso ia dom Quixote por


haver alcançado vitória contra tão valente cavaleiro como ele
imaginava que era o dos Espelhos, de cuja cavaleiresca palavra
esperava saber se o encantamento de sua senhora terminara, pois era
forçoso que o tal vencido cavaleiro voltasse, sob pena de não sê-lo,
para dar-lhe conhecimento do que com ela houvesse sucedido. Mas um
pensava dom Quixote e outro o dos Espelhos, embora por então não
era outro seu pensamento senão buscar onde emplastrar-se, como se
disse. Diz, pois, a história que quando o bacharel Sansão Carrasco
aconselhou dom Quixote que voltasse a prosseguir suas deixadas
cavalarias, foi por haver entrado primeiro em conspiração com o padre
e o barbeiro sobre que meio se poderia tomar para convencer dom
Quixote a que estivesse em sua casa quieto e sossegado, sem que o
alvoroçassem suas mal buscadas aventuras; de cujo conselho saiu, por
voto comum de todos e parecer particular de Carrasco, que deixassem
dom Quixote sair, pois o deter-lhe parecia impossível, e que Sansão
lhe saísse ao caminho como cavaleiro andante, e travasse batalha com
ele, pois não faltaria sobre quê, e o vencesse, tendo-o por coisa fácil,
e que fosse pacto e acerto que o vencido ficasse à mercê do vencedor;
e assim vencido dom Quixote, lhe havia de mandar o bacharel
cavaleiro que voltasse a seu povoado e casa, e não saísse dela em dois
anos, ou até quando por ele lhe fosse mandado outra coisa; o qual era
claro que dom Quixote vencido cumpriria indubitavelmente, por não
contravir e faltar às leis da cavalaria, e poderia ser que no tempo de
sua reclusão se lhe olvidassem suas vanidades, ou se desse lugar de
buscar para sua loucura algum conveniente remédio.
Aceitou-o Carrasco, e ofereceu-se-lhe por escudeiro Tomé Cecial,
compadre e vizinho de Sancho Pança, homem alegre e pouco sensato.
Armou-se Sansão como fica referido e Tomé Cecial acomodou sobre
seu natural nariz o falso e de máscara já dito, para que não fosse
conhecido por seu compadre quando se vissem; e assim, seguiram a
mesma viagem que fazia dom Quixote, e chegaram quase a achar-se na
aventura do carro da Morte. E finalmente, deram com eles no bosque,
onde lhes sucedeu tudo o que o leitor prudente leu; e se não fosse
pelos pensamentos extraordinários de dom Quixote, que se deu a
entender que o bacharel não era o bacharel, o senhor bacharel ficaria
impossibilitado para sempre de graduar-se licenciado, por não haver
achado ninhos onde pensou achar pássaros. Tomé Cecial, que viu quão
mal havia logrado seus desejos e o mau paradeiro que havia tido sua
missão, disse ao bacharel:
- Por certo, senhor Sansão Carrasco, que temos nosso merecido:
com facilidade se pensa e se acomete uma empresa, mas com
dificuldade as mais vezes se sai dela. Dom Quixote louco, nós lúcidos:
ele se vai são e rindo, vossa mercê fica moído e triste. Saibamos, pois,
agora, qual é mais louco: o que o é por não poder menos, ou o que o é
por sua vontade?
A que respondeu Sansão:
- A diferença que há entre esses dois loucos é que o que o é por
força o será sempre, e o que o é por vontade o deixará de ser quando
quiser.
- Pois assim é - disse Tomé Cecial, - eu fui por minha vontade louco
quando quis fazer-me escudeiro de vossa mercê, e pela mesma quero
deixar de sê-lo e voltar à minha casa.
- Isso vos convém - respondeu Sansão, - porque pensar que eu hei
de voltar à minha, antes de haver moído dom Quixote a golpes, é
pensar erradamente; e não me levará agora a buscá-lo o desejo de que
cobre seu juízo, senão o da vingança; que a dor grande de minhas
costelas não me deixa fazer mais piedosos discursos.
Nisto foram falando os dois, até que chegaram a um povoado onde
foi ventura achar um algebrista, com quem se curou o Sansão
desgraçado. Tomé Cecial voltou e o deixou, e ele ficou imaginando sua
vingança; e a história volta a falar dele a seu tempo, por não deixar de
regozijar-se agora com dom Quixote.

CAPÍTULO XVI

Do que sucedeu a dom Quixote com um discreto cavaleiro da


Mancha

Com a alegria, contentamento e vanglória que se disse, seguia dom


Quixote sua jornada, imaginando-se pela passada vitória ser o
cavaleiro andante mais valente que tinha naquela idade o mundo; dava
por acabadas e a feliz fim conduzidas quantas aventuras pudessem
suceder-lhe daí em diante; tinha em pouco os encantos e os
encantadores; não se lembrava dos inumeráveis golpes que no
decorrer de suas cavalarias lhe haviam dado, nem da pedrada que lhe
derrubou a metade dos dentes, nem do desagradecimento dos
galeotes, nem do atrevimento e chuva de estacas dos galegos.
Finalmente, dizia consigo que se ele achasse arte, modo ou maneira de
desencantar a sua senhora Dulcineia, não invejaria a maior ventura que
alcançou ou pôde alcançar o mais venturoso cavaleiro andante dos
passados séculos. Nestas imaginações ia todo ocupado, quando Sancho
lhe disse:
- Não é estranho, senhor, que eu contudo ainda traga entre os olhos
o desaforado nariz, e maior que o normal, de meu compadre Tomé
Cecial?
- E crês tu, Sancho, porventura, que o cavaleiro dos Espelhos era o
bacharel Carrasco, e seu escudeiro, Tomé Cecial, teu compadre?
- Não sei o que diga a isso - respondeu Sancho; - só sei que os sinais
que me deu de minha casa, mulher e filhos não mos poderia dar outro
senão ele mesmo; e a cara, tirado o nariz, era a mesma de Tomé
Cecial, como eu a vi muitas vezes em meu povoado e parede e meia de
minha mesma casa; e o tom da fala era todo um.
- Vamos falar disso, Sancho - replicou dom Quixote. - Vem cá: em
que consideração pode caber que o bacharel Sansão Carrasco viesse
como cavaleiro andante, armado de armas ofensivas e defensivas, a
pelejar comigo? Fui eu seu inimigo porventura? Dei-lhe eu jamais
ocasião para ter-me ojeriza? Sou eu seu rival, ou faz ele profissão das
armas, para ter inveja à fama que eu por elas ganhei?
- Ora, que diremos, senhor - respondeu Sancho, - a isto de parecer-
se tanto aquele cavaleiro, seja o que for, com o bacharel Carrasco, e
seu escudeiro com Tomé Cecial, meu compadre? E se isso é
encantamento, como vossa mercê disse, não havia no mundo outros
dois com quem se parecessem?
- Tudo é artifício e manha - respondeu dom Quixote - dos malignos
magos que me perseguem, os quais, antevendo que eu havia de ficar
vencedor na contenda, se preveniram de que o cavaleiro vencido
mostrasse o rosto de meu amigo o bacharel, para que a amizade que
lhe tenho se pusesse entre os fios de minha espada e o rigor de meu
braço, e moderasse a justa ira de meu coração, e desta maneira
ficasse com vida o que com embustes e falsidades procurava tirar-me
a minha. Para prova do que já sabes, oh Sancho!, por experiência que
não te deixará mentir nem enganar, quão fácil seja aos encantadores
mudar uns rostos em outros, fazendo do formoso feio e do feio
formoso, pois não há dois dias que viste por teus mesmos olhos a
formosura e galhardia da sem par Dulcineia em toda sua integridade e
natural conformidade, e eu a vi na fealdade e baixeza de uma
grosseira lavradora, com cataratas nos olhos e com mau cheiro na
boca; e mais, que o perverso encantador que se atreveu a fazer uma
transformação tão má não é muito que haja feito a de Sansão
Carrasco e a de teu compadre, por tirar-me a glória do vencimento das
mãos. Mas, então, me consolo; porque, enfim, em qualquer figura que
haja sido, fiquei vencedor de meu inimigo.
- Deus sabe a verdade de tudo - respondeu Sancho.
E como ele sabia que a transformação de Dulcineia havia sido manha
e embuste seu, não lhe satisfaziam as quimeras de seu amo; mas não
lhe quis replicar, por não dizer alguma palavra que descobrisse seu
embuste.
Nestas razões estavam quando os alcançou um homem que detrás
deles pelo mesmo caminho vinha sobre uma muito formosa égua
tordilha, vestido um gabão de pano fino verde, triangulado de veludo
amarelado, com um barrete do mesmo veludo; os arreios da égua eram
de campo e de ginete, também de roxo e verde. Trazia um alfanje
mourisco pendente de um largo cinturão de verde e ouro, e os
borzeguins eram do lavor do cinturão; as esporas não eram douradas,
senão de um verniz verde, tão polidas e lustrosas que, por combinar
com toda a veste, pareciam melhor que se fosse de ouro puro. Quando
chegou a eles, o caminhante os saudou cortesmente, e, picando a égua,
passava ao largo; mas dom Quixote lhe disse:
- Senhor gentil-homem, se é que vossa mercê leva o caminho que nós
e não importa o dar-se pressa, mercê receberia em que nos fôssemos
juntos.
- Em verdade - respondeu o da égua - que não passaria tão ao largo,
se não fosse por temor que com a companhia de minha égua se
alvoroçasse esse cavalo.
- Bem pode, senhor - respondeu então Sancho, - bem pode ter as
rédeas à sua égua, porque nosso cavalo é o mais honesto e bem visto
do mundo: jamais em semelhantes ocasiões fez vileza alguma, e uma
vez que se desmandou a fazê-la a pagamos meu senhor e eu por sete.
Digo outra vez que pode vossa mercê deter-se, se quiser; que, embora
a deem como fino prato, é certo que o cavalo não a afronte.
Reteve a rédea o caminhante, admirando-se da postura e rosto de
dom Quixote, o qual ia sem elmo, que o levava Sancho como maleta no
arção dianteiro da albarda do ruço; e se muito olhava o do verde a dom
Quixote, muito mais olhava dom Quixote ao do verde, parecendo-lhe
homem virtuoso. A idade mostrava ser de cinquenta anos; as cãs,
poucas, e o rosto, aquilino; a vista, entre alegre e grave; finalmente,
no traje e postura dava a entender ser homem de boas prendas. O que
julgou de dom Quixote da Mancha o de verde foi que semelhante
maneira nem parecer de homem não havia visto jamais: admirou-se da
delgadeza de seu cavalo, da grandeza de seu corpo, da magreza e
amarelado de seu rosto, suas armas, seu gesto e compostura: figura e
retrato não visto por longos tempos atrás naquela terra. Notou bem
dom Quixote a atenção com que o caminhante o olhava, e leu-lhe na
suspensão seu desejo; e, como era tão cortês e tão amigo de dar gosto
a todos, antes que lhe perguntasse nada, adiantou-se, dizendo-lhe:
- Esta figura que vossa mercê em mim viu, por ser tão nova e tão
fora das que comumente se usam, não me maravilharia eu de que o
houvesse maravilhado; mas deixará vossa mercê de o estar quando lhe
diga, como lhe digo, que sou cavaleiro

destes que dizem as gentes


que a suas aventuras vão.

Saí de meu povoado natal, empenhei meus bens, deixei meu regalo, e
entreguei-me nos braços da fortuna, que me levassem onde mais fosse
servida. Quis ressuscitar a já morta andante cavalaria, e há muitos
dias que, tropeçando aqui, caindo ali, despenhando-me aqui e
levantando-me acolá, cumpri grande parte de meu desejo, socorrendo
viúvas, amparando donzelas e favorecendo casadas, órfãos e pupilos,
próprio e natural ofício de cavaleiros andantes; e assim, por minhas
valorosas, muitas e cristãs façanhas mereci andar já em estampa em
quase todas ou as mais nações do mundo. Trinta mil volumes se
imprimiram de minha história, e chegará a imprimir-se trinta mil vezes
de milhares, se o céu não o impede. Finalmente, por encerrar tudo em
breves palavras, ou em uma só, digo que eu sou dom Quixote da
Mancha, por outro nome chamado o Cavaleiro da Triste Figura; e,
embora as próprias louvações envileçam, é-me forçoso dizer eu talvez
as minhas, e isto se entende quando não se acha presente quem as
diga; assim que, senhor gentil-homem, nem este cavalo, esta lança,
nem este escudo, nem escudeiro, nem todas juntas estas armas, nem a
amarelidão de meu rosto, nem minha atenuada magreza, vos poderá
admirar daqui em diante, havendo já sabido quem sou e a profissão que
tenho.
Calou dizendo isto dom Quixote, e o de verde, segundo tardava em
responder-lhe, parecia que não acertava em fazê-lo; mas dali a bom
espaço lhe disse:
- Acertastes, senhor cavaleiro, em perceber por minha suspensão
meu desejo; mas não haveis acertado em tirar-me a maravilha que em
mim causa o haver-vos visto; que, embora, como vós, senhor, dizeis,
que o saber já quem sois mo poderia tirar, não foi assim; antes, agora
que o sei, fico mais suspenso e maravilhado. Como é possível que haja
hoje cavaleiros andantes no mundo, e que haja histórias impressas de
verdadeiras cavalarias? Não me posso persuadir que haja hoje na
terra quem favoreça viúvas, ampare donzelas, nem honre casadas, nem
socorra órfãos, e não o creria se em vossa mercê não o houvesse visto
com meus olhos. Bendito seja o céu!, que com essa história, que vossa
mercê diz que está impressa, de suas altas e verdadeiras cavalarias,
se haverão posto em olvido as inumeráveis dos fingidos cavaleiros
andantes, de que estava cheio o mundo, tão em dano dos bons
costumes e tão em prejuízo e descrédito das boas histórias.
- Há muito que dizer - respondeu dom Quixote - em razão de se são
fingidas, ou não, as histórias dos andantes cavaleiros.
- Então, há quem duvide - respondeu o Verde - que não são falsas as
tais histórias?
- Eu o duvido - respondeu dom Quixote, - e fique isto aqui, que se
nossa jornada dura, espero em Deus dar a entender a vossa mercê que
fez mal em seguir a corrente dos que têm por certo que não são
verdadeiras.
Desta última razão de dom Quixote entendeu o caminhante que dom
Quixote devia ser algum louco, e aguardava que com outras o
confirmasse; mas, antes que se divertissem em outros arrazoados,
dom Quixote lhe rogou lhe dissesse quem era, pois ele lhe havia dado
parte de sua condição e de sua vida. Ao que respondeu o do Verde
Gabão:
- Eu, senhor Cavaleiro da Triste Figura, sou um fidalgo natural de
um lugar onde iremos almoçar hoje, se Deus for servido. Sou mais que
medianamente rico e é meu nome dom Diego de Miranda; passo a vida
com minha mulher, e com meus filhos, e com meus amigos; meus
exercícios são o da caça e pesca, mas não mantenho nem falcão nem
galgos, senão algum perdigão manso, ou algum furão atrevido. Tenho
até seis dúzias de livros, uns em castelhano e outros em latim, de
história alguns e de devoção outros; os de cavalarias ainda não
entraram pelos umbrais de minhas portas. Folheio mais os que são
profanos que os devotos, como sejam de honesto entretenimento, que
deleitem com a linguagem e admirem e suspendam com a invenção,
embora destes haja muito poucos na Espanha. Alguma vez almoço com
meus vizinhos e amigos, e muitas vezes os convido; são meus convites
limpos e asseados, e nada escassos; nem gosto de murmurar, nem
consinto que diante de mim se murmure; não esquadrinho as vidas
alheias, nem sou cúmplice dos feitos dos outros; ouço missa cada dia;
reparto meus bens com os pobres, sem fazer alarde das boas obras,
para não dar entrada em meu coração à hipocrisia e vanglória, inimigos
que brandamente se apoderam do coração mais recatado; procuro pôr
em paz os que sei que estão desavindos; sou devoto de nossa Senhora,
e confio sempre na misericórdia infinita de Deus nosso Senhor.
Atentíssimo esteve Sancho à relação da vida e entretenimentos do
fidalgo; e, parecendo-lhe boa e santa e que quem a fazia devia fazer
milagres, se arrojou do ruço, e com grande pressa lhe foi pegar o
estribo direito, e com devoto coração e quase lágrimas lhe beijou os
pés uma e muitas vezes. Visto o que pelo fidalgo, lhe perguntou:
- Que fazeis, irmão? Que beijos são estes?
- Deixem-me beijar - respondeu Sancho, - porque me parece vossa
mercê o primeiro santo à gineta que vi em todos os dias de minha vida.
- Não sou santo - respondeu o fidalgo, - senão grande pecador; vós
sim, irmão, que deveis ser bom, como vossa simplicidade o mostra.
Voltou Sancho a montar o asno, fazendo rir seu amo apesar de sua
profunda melancolia e causando nova admiração a dom Diego.
Perguntou-lhe dom Quixote quantos filhos tinha, e disse-lhe que uma
das coisas em que punham o sumo bem os antigos filósofos, que
careceram do verdadeiro conhecimento de Deus, foi nos bens da
natureza, nos da fortuna, em ter muitos amigos e em ter muitos e
bons filhos.
- Eu, senhor dom Quixote - respondeu o fidalgo, - tenho um filho,
que, a não tê-lo, quiçá me julgara por mais ditoso do que sou; e não
porque ele seja mau, senão porque não é tão bom como eu quisera.
Será de idade de dezoito anos: seis esteve em Salamanca, aprendendo
as línguas latina e grega; e, quando quis que passasse a estudar outras
ciências, achei-o tão embebido na da poesia (se é que se pode chamar
ciência), que não é possível fazê-lo enfrentar a das leis, que eu queria
que estudasse, nem da rainha de todas, a teologia. Quisera eu que
fosse coroa de sua linhagem, pois vivemos em século onde nossos reis
premiam altamente as virtuosas e boas letras; porque letras sem
virtude são pérolas na esterqueira. Todo o dia passa em averiguar se
disse bem ou mal Homero em tal verso da Ilíada, se Marcial andou
desonesto, ou não, em tal epigrama; se se hão de entender de uma
maneira ou outra tais e tais versos de Virgílio. Enfim, todas suas
conversações são com os livros dos referidos poetas, e com os de
Horácio, Pérsio, Juvenal e Tibulo; que dos modernos autores não faz
muita conta; e, com todo o mau carinho que mostra ter à poesia em
língua vulgar, tem agora perturbados os pensamentos em fazer uma
glosa a quatro versos que lhe enviaram de Salamanca, e penso que são
de concurso literário.
A tudo o que respondeu dom Quixote:
- Os filhos, senhor, são pedaços das entranhas de seus pais, e
assim, se hão de querer, ou bons ou maus que sejam, como se querem
as almas que nos dão vida; aos pais toca o encaminhá-los desde
pequenos pelos passos da virtude, da boa criação e dos bons e cristãos
costumes, para que quando grandes sejam báculo da velhice de seus
pais e glória de sua posteridade; e no de forçá-los que estudem esta
ou aquela ciência não o tenho por acertado, embora o persuadi-los não
será danoso; e quando não se há de estudar para pane lucrando, sendo
tão venturoso o estudante que lhe deu o céu pais que o mantenham,
seria eu de parecer que o deixem seguir aquela ciência a que mais o
virem inclinado; e, embora a da poesia seja menos útil que deleitável,
não é daquelas que costumam desonrar a quem as possui. A poesia,
senhor fidalgo, a meu parecer, é como uma donzela tenra e de pouca
idade, e em todo extremo formosa, a quem têm cuidado de enriquecer,
polir e adornar outras muitas donzelas, que são todas as outras
ciências, e ela se há de servir de todas, e todas se hão de beneficiar
com ela; mas esta tal donzela não quer ser manuseada, nem trazida
pelas ruas, nem publicada pelas esquinas das praças nem pelos cantos
dos palácios. Ela é feita de uma alquimia de tal virtude, que quem a
sabe tratar a transformará em ouro puríssimo de inestimável preço;
há de tê-la, o que a tiver, nos trilhos, não deixando-a correr em
torpes sátiras nem em desalmados sonetos; não há de ser vendível de
maneira alguma, se já não for em poemas heroicos, em lamentáveis
tragédias, ou em comédias alegres e artificiosas; não se há de deixar
tratar pelos truões, nem pelo ignorante vulgo, incapaz de reconhecer
nem estimar os tesouros que nela se encerram. E não penseis, senhor,
que eu chamo aqui vulgo somente à gente plebeia e humilde; que todo
aquele que não sabe, embora seja senhor e príncipe, pode e deve
entrar à conta de vulgo. E assim, o que com os requisitos que disse
tratar e tiver à poesia, será famoso e estimado seu nome em todas as
nações civilizadas do mundo. E ao que dizeis, senhor, que vosso filho
não estima muito a poesia em língua vulgar, dou-me a entender que não
anda muito acertado nisso, e a razão é esta: o grande Homero não
escreveu em latim, porque era grego, nem Virgílio escreveu em grego,
porque era latino. Em suma, todos os poetas antigos escreveram na
língua que mamaram no leite, e não foram buscar as estrangeiras para
declarar a alteza de seus conceitos. E sendo isto assim, razão seria se
estendesse este costume por todas as nações, e que não se
desestimasse o poeta alemão porque escreve em sua língua, nem o
castelhano, nem ainda o biscainho, que escreve na sua. Mas vosso filho,
ao que eu, senhor, imagino, não deve estar mal com a poesia em língua
vulgar, senão com os poetas que só escrevem em vulgar, sem saber
outras línguas nem outras ciências que adornem e despertem e ajudem
seu natural impulso; e ainda nisto pode haver erro; porque, segundo é
opinião verdadeira, o poeta nasce: querem dizer que do ventre de sua
mãe o poeta natural sai poeta; e, com aquela inclinação que lhe deu o
céu, sem mais estudo nem artifício, compõe coisas, que faz verdadeiro
o que disse: “Est Deus in nobis”, etc. Também digo que o natural poeta
que se ajudar da arte será muito melhor e se avantajará ao poeta que
só por saber a arte quiser sê-lo; a razão é porque a arte não se
avantaja à natureza, senão aperfeiçoa-a; assim que, misturadas a
natureza e a arte, e a arte com a natureza, farão um perfeitíssimo
poeta. Seja, pois, a conclusão de minha conversa, senhor fidalgo, que
vossa mercê deixe caminhar seu filho por onde sua estrela o chama;
que, sendo ele tão bom estudante como deve ser, e havendo já subido
felizmente o primeiro escalão das essências, que é o das línguas, com
elas por si mesmo subirá ao cume das letras humanas, as quais tão bem
parecem num cavaleiro de capa e espada, e assim lhe adornam, honram
e engrandecem, como as mitras aos bispos, ou como as togas aos
peritos jurisconsultos. Reprenda vossa mercê a seu filho se fizer
sátiras que prejudiquem as honras alheias, e castigue-o, e rasgue-as,
mas se fizer sermões ao modo de Horácio, onde repreenda os vícios
em geral, como tão elegantemente ele o fez, louve-o: porque lícito é ao
poeta escrever contra a inveja, e dizer em seus versos mal dos
invejosos, e assim dos outros vícios, não nomeando pessoa alguma; mas
há poetas que, a troco de dizer uma malícia, se porão em perigo que os
desterrem às ilhas do Ponto. Se o poeta for casto em seus costumes,
o será também em seus versos; a pena é língua da alma: quais forem os
conceitos que nela se engendrarem, tais serão seus escritos; e quando
os reis e príncipes veem a milagrosa ciência da poesia em sujeitos
prudentes, virtuosos e graves, os honram, os estimam e os
enriquecem, e ainda os coroam com as folhas da árvore a quem não
ofende o raio, como em sinal que não hão de ser ofendidos por ninguém
os que com tais coroas veem honradas e adornadas suas têmporas.
Admirado ficou o do Verde Gabão do arrazoado de dom Quixote, e
tanto, que foi perdendo a opinião que dele tinha, de ser louco. Mas, a
meio desta conversa, Sancho, por não ser muito de seu gosto, se havia
desviado do caminho a pedir um pouco de leite a uns pastores que ali
junto estavam ordenhando umas ovelhas; e, nisto, já voltava a renovar
a conversa o fidalgo, satisfeito em extremo da discrição e bom
discurso de dom Quixote, quando, alçando dom Quixote a cabeça, viu
que pelo caminho por onde eles iam vinha um carro cheio de bandeiras
reais; e, crendo que devia ser alguma nova aventura, a grandes vozes
chamou Sancho que viesse dar-lhe o elmo. O qual Sancho, ouvindo-se
chamar, deixou os pastores, e a toda pressa picou o ruço, e chegou
onde seu amo estava, a quem sucedeu uma espantosa e desatinada
aventura.

CAPÍTULO XVII

Onde se declarou o último ponto e extremo onde chegou e pôde


chegar o inaudito ânimo de dom Quixote, com a felizmente terminada
aventura dos leões

Conta a história que quando dom Quixote dava vozes a Sancho que
lhe trouxesse o elmo, estava ele comprando uns requeijões que os
pastores lhe vendiam; e, acossado pela muita pressa de seu amo, não
soube o que fazer deles, nem em que trazê-los, e, para não perdê-los,
que já os tinha pago, resolveu colocá-los na elmo de seu senhor, e com
esta precaução voltou a ver o que lhe queria; o qual, em chegando,
disse-lhe:
- Dá-me, amigo, esse elmo; que eu sei pouco de aventuras, ou o que
ali descubro é alguma que me há de necessitar e me necessita a tomar
minhas armas.
O do Verde Gabão, que isto ouviu, estendeu a vista por todos os
lados, e não descobriu outra coisa senão um carro que até eles vinha,
com duas ou três bandeiras pequenas, que lhe deram a entender que o
tal carro devia trazer carregamento de Sua Majestade, e assim o
disse a dom Quixote; mas ele não lhe deu crédito, sempre crendo e
pensando que tudo o que lhe sucedesse haviam de ser aventuras e mais
aventuras, e assim, respondeu ao fidalgo:
- Homem preparado, meio trabalho feito: não se perde nada em que
eu me prepare, que sei por experiência que tenho inimigos visíveis e
invisíveis, e não sei quando, nem onde, nem em que tempo, nem em que
figuras me hão de atacar.
E voltando-se a Sancho, lhe pediu o elmo; o qual, como não teve
tempo de tirar os requeijões, lhe foi forçoso dá-lo como estava.
Tomou-o dom Quixote, e, sem que visse o que dentro vinha, com toda
pressa o encaixou na cabeça; e, como os requeijões se apertaram e
espremeram, começou a correr o soro por todo o rosto e barbas de
dom Quixote, do que recebeu tal susto, que disse a Sancho:
- Que será isto, Sancho, que parece que se me amolecem os miolos,
ou se me derretem os juízos, ou que suo dos pés à cabeça? E se é que
suo, em verdade que não é de medo; sem dúvida creio que é terrível a
aventura que agora quer suceder-me. Dá-me, se tens, com que me
limpe, que o copioso suor me cega os olhos.
Calou Sancho e deu-lhe um pano, e deu, com ele, graças a Deus de
que seu senhor não houvesse percebido a coisa. Limpou-se dom
Quixote e tirou o elmo por ver que coisa era a que, a seu parecer, lhe
enfriava a cabeça, e, vendo aquelas papas brancas dentro do elmo, as
chegou ao nariz, e cheirando-as disse:
- Por vida de minha senhora Dulcineia do Toboso, que são requeijões
os que aqui me puseste, traidor, biltre e malvisto escudeiro.
Ao que com grande fleugma e dissimulação respondeu Sancho:
- Se são requeijões, dai-mos vossa mercê, que eu os comerei... Mas
coma-os o diabo, que deveu ser o que aí os pôs. Eu havia de ter
atrevimento de sujar o elmo de vossa mercê? Bom atrevido achastes!
À fé, senhor, ao que Deus me dá a entender, também devo eu ter
encantadores que me perseguem como à vossa mercê, e haverão posto
aí essa imundície para mover à cólera sua paciência e fazer que me
moa, como costuma, as costelas. Pois em verdade que desta vez deram
salto no vazio, que eu confio na boa razão de meu senhor, que haverá
considerado que nem eu tenho requeijões, nem leite, nem outra coisa
que o valha, e que se a tivesse, antes a poria em meu estômago que no
elmo.
- Tudo pode ser - disse dom Quixote.
E tudo olhava o fidalgo, e de tudo se admirava, especialmente
quando, depois de haver-se limpado dom Quixote cabeça, rosto e
barbas e elmo, o encaixou; e, firmando-se bem nos estribos,
conferindo a espada e pegando a lança, disse:
- Agora, venha o que vier, que aqui estou com ânimo de lutar com o
mesmo Satanás em pessoa.
Chegou nisto o carro das bandeiras, no qual não vinha outra gente
que o carreteiro, nas mulas, e um homem sentado na dianteira. Pôs-se
dom Quixote diante e disse:
- Aonde ides, irmãos? Que carro é este, o que levais nele e que
bandeiras são estas?
Ao que respondeu o carreteiro:
- O carro é meu; o que vai nele são dois bravos leões enjaulados, que
o general de Orã envia à corte, presenteados à Sua Majestade; as
bandeiras são do rei nosso Senhor, em sinal que aqui vai coisa sua.
- E são grandes os leões? - perguntou dom Quixote.
- Tão grandes - respondeu o homem que ia à porta do carro, - que
não vieram maiores, nem tão grandes, da África à Espanha jamais; e eu
sou o cuidador de leões, e trouxe outros, mas como estes, nenhum.
São fêmea e macho: o macho vai nesta jaula primeira, e a fêmea na de
trás, e agora vão famintos porque não comeram hoje; e, assim, vossa
mercê se afaste, que é preciso chegar logo onde lhes demos de comer.
Ao que disse dom Quixote, sorrindo-se um pouco:
- Leõezinhos para mim? Para mim leõezinhos, e a tais horas? Ora,
por Deus que hão de ver esses senhores que aqui os enviam se sou eu
homem que se espanta com leões! Apeai-vos, bom homem, e, já que
sois o cuidador, abri essas jaulas e soltai essas bestas, que em meio
deste campo lhes darei a conhecer quem é dom Quixote da Mancha, a
despeito e pesar dos encantadores que a mim os enviam.
- Bom, bom! - disse então consigo o fidalgo. - Deu sinal de quem
é nosso bom cavaleiro: os requeijões sem dúvida lhe amoleceram os
miolos e as ideias.
Chegou-se nisto a ele Sancho e disse-lhe:
- Senhor, por quem Deus é que vossa mercê faça de maneira que
meu senhor dom Quixote não lute com estes leões, que se luta, aqui
nos hão de fazer em pedaços a todos.
- Então, tão louco é vosso amo - respondeu o fidalgo, - que temeis, e
credes que há de lutar com tão feros animais?
- Não é louco - respondeu Sancho, - senão atrevido.
- Eu farei que não o seja - replicou o fidalgo.
E chegando-se a dom Quixote, que estava dando pressa ao cuidador
que abrisse as jaulas, disse-lhe:
- Senhor cavaleiro, os cavaleiros andantes hão de enfrentar as
aventuras que prometem esperança de sair bem delas, e não aquelas
que em tudo a tiram; porque a valentia que entra na jurisdição da
temeridade, mais tem de loucura que de fortaleza. Quanto mais, que
estes leões não vêm contra vossa mercê, nem o sonham: vão
presenteados a Sua Majestade, e não será bom detê-los nem impedir-
lhes sua viagem.
- Vá vossa mercê, senhor fidalgo - respondeu dom Quixote, -
entender-se com seu perdigão manso e com seu furão atrevido, e
deixe a cada um fazer seu ofício. Este é o meu, e eu sei se vêm a mim,
ou não, estes senhores leões.
E voltando-se ao cuidador, disse-lhe:
- Voto a tal, dom velhaco, que se não abris logo logo as jaulas, que
com esta lança vos hei de pregar ao carro!
O carreteiro, que viu a determinação daquela armada fantasma,
disse-lhe:
- Senhor meu, vossa mercê seja servido, por caridade, deixar-me
desjungir as mulas e pôr-me a salvo com elas antes que se
desembainhem os leões, porque se as matam, ficarei arruinado por
toda minha vida; que não tenho outros bens senão este carro e estas
mulas.
- Oh homem de pouca fé! - respondeu dom Quixote, - apeia-te e
desjunge, e faz o que quiseres, que logo verás que trabalhaste em vão
e que poderias poupar esta diligência.
Apeou-se o carreteiro e desjungiu com grande pressa, e o cuidador
disse a grandes vozes:
- Sejam-me testemunhos quantos aqui estão como contra minha
vontade e forçado abro as jaulas e solto os leões, e de que protesto a
este senhor que todo o mal e dano que estas bestas fizerem corra e
vá por sua conta, com mais meus salários e direitos. Vossas mercês,
senhores, se ponham a salvo antes que abra, que eu seguro estou que
não me hão de fazer dano.
Outra vez o persuadiu o fidalgo que não fizesse loucura semelhante,
que era tentar a Deus cometer tal disparate. Ao que respondeu dom
Quixote que ele sabia o que fazia. Respondeu-lhe o fidalgo que o visse
bem, que ele entendia que se enganava.
- Agora, senhor - replicou dom Quixote, - se vossa mercê não quer
assistir a esta que a seu parecer há de ser tragédia, pique a tordilha e
ponha-se a salvo.
Ouvido o que por Sancho, com lágrimas nos olhos lhe suplicou
desistisse de tal empresa, em cuja comparação haviam sido tortas e
pão pintado a dos moinhos de vento e a temerosa dos macetes, e,
finalmente, todas as façanhas que havia cometido em todo o decurso
de sua vida.
- Veja, senhor - dizia Sancho, - que aqui não há encanto nem coisa
que o valha; que eu vi por entre as cancelas e resquícios da jaula uma
unha de leão verdadeiro, e vejo por ela que o tal leão, do qual deve ser
a tal unha, é maior que uma montanha.
- O medo, ao menos - respondeu dom Quixote, - te fará parecer
maior que a metade do mundo. Retira-te, Sancho, e deixa-me; e se
aqui morrer, já sabes nosso antigo acerto: atenderás a Dulcineia, e não
te digo mais.
A estas acrescentou outras razões, com que tirou as esperanças de
que havia de deixar de prosseguir seu desvairado intento. Quisera o
do Verde Gabão opor-se-lhe, mas viu-se desigual nas armas, e não lhe
pareceu prudência lutar com um louco, que já o havia parecido de toda
maneira dom Quixote; o qual, voltando a dar pressa ao cuidador e a
reiterar as ameaças, deu ocasião ao fidalgo a que picasse a égua, e
Sancho o ruço, e o carreteiro suas mulas, procurando todos afastar-se
do carro o mais que pudessem, antes que os leões fossem soltos.
Chorava Sancho a morte de seu senhor, que daquela vez sem dúvida
cria que chegava nas garras dos leões; maldizia sua ventura, e chamava
minguada a hora em que lhe veio ao pensamento voltar a servir-lhe;
mas não por chorar e lamentar-se deixava de bater no ruço para que
se distanciasse do carro. Vendo, pois, o cuidador que já os que iam
fugindo estavam bem desviados, tornou a requerer e a intimar dom
Quixote o que já lhe havia requerido e intimado, o qual respondeu que
o ouvia, e que não cuidasse de mais intimações e requerimentos, que
tudo seria de pouco fruto, e que se desse pressa.
No espaço que tardou o cuidador em abrir a primeira jaula, esteve
considerando dom Quixote se seria bom fazer a batalha antes a pé
que a cavalo; e, enfim, se decidiu de fazê-la a pé, temendo que
Rocinante se espantasse com a vista dos leões. Por isto saltou do
cavalo, tomou a lança e embraçou o escudo, e, desembainhando a
espada, passo a passo, com maravilhoso denodo e coração valente, se
pôs diante do carro, encomendando-se a Deus de todo coração, e logo
à sua senhora Dulcineia.
E é de saber que, chegando a este passo, o autor desta verdadeira
história exclama e diz: “Oh forte e sobre todo encarecimento animoso
dom Quixote da Mancha, espelho onde se podem olhar todos os
valentes do mundo, segundo e novo dom Manuel de Leão, que foi glória
e honra dos espanhóis cavaleiros! Com que palavras contarei esta tão
espantosa façanha, ou com que razões a farei crível aos séculos
vindouros, ou que louvações haverá que não te convenham e quadrem,
embora sejam hipérboles sobre todas as hipérboles? Tu a pé, tu só, tu
intrépido, tu magnânimo, com só uma espada, e não das cortadoras
com a marca do cãozinho, com um escudo não de muito luzente e polido
aço, estás aguardando e afrontando os dois mais feros leões que
jamais criaram as africanas selvas. Teus mesmos feitos sejam os que
te louvem, valoroso manchego, que eu os deixo aqui em seu ponto, por
faltar-me palavras com que encarecê-los”.
Aqui cessou a referida exclamação do autor, e passou adiante,
amarrando o fio da história, dizendo que, vendo o cuidador dom
Quixote já posto em postura, e que não podia deixar de soltar o leão
macho, sob pena de cair na desgraça do indignado e atrevido cavaleiro,
abriu de par em par a primeira jaula, onde estava, como se disse, o
leão, o qual pareceu de grandeza extraordinária e de espantável e feia
catadura. A primeira coisa que fez foi revolver-se na jaula, onde vinha
fechado, e estender a garra, e espreguiçar-se todo; abriu logo a boca
e bocejou muito devagar, e, com quase dois palmos de língua que tirou
para fora, sacudiu o pó dos olhos e lavou o rosto; feito isto, tirou a
cabeça para fora da jaula e olhou para todos os lados com os olhos
feitos brasas, olhar e gesto para pôr espanto à mesma temeridade. Só
dom Quixote o olhava atentamente, desejando que saltasse já do
carro e viesse com ele às mãos, entre as quais pensava fazê-lo em
pedaços.
Até aqui chegou o extremo de sua jamais vista loucura. Mas o
generoso leão, mais comedido que arrogante, não fazendo caso de
ninharias, nem de bravatas, depois de haver olhado para uma e outra
parte, como se disse, voltou as costas e mostrou suas partes traseiras
para dom Quixote, e com grande fleugma e calma voltou a deitar-se na
jaula. Vendo o que dom Quixote, mandou o cuidador que lhe desse
golpes e o irritasse para que saísse.
- Isso não farei eu - respondeu o cuidador, - porque se eu o instigo,
o primeiro a quem fará em pedaços será a mim mesmo. Vossa mercê,
senhor cavaleiro, se contente com o feito, que é tudo o que pode
dizer-se em gênero de valentia, e não queira tentar segunda fortuna.
O leão tem aberta a porta: em sua mão está sair, ou não sair; mas, pois
não saiu até agora, não sairá em todo o dia. A grandeza do coração de
vossa mercê já está bem declarada: nenhum bravo pelejador, segundo
a mim alcança, está obrigado a mais que desafiar seu inimigo e esperá-
lo em campo; e se o contrário não acode, nele fica a infâmia, e o
desafiante ganha a coroa da vitória.
- Assim é verdade - respondeu dom Quixote: - fecha, amigo, a
porta, e dá-me por testemunho, na melhor forma que puderes, o que
aqui me viste fazer, convém a saber: como tu abriste ao leão, eu o
esperei, ele não saiu; voltei a esperar, voltou a não sair e voltou a
deitar-se. Não devo mais, e encantos afora, e Deus ajude à razão e à
verdade, e à verdadeira cavalaria; e fecha, como disse, enquanto faço
sinais aos fugidos e ausentes, para que saibam de tua boca esta
façanha.
Fê-lo assim o cuidador, e dom Quixote, pondo na ponta da lança o
lenço com que havia limpado o rosto da chuva dos requeijões,
começou a chamar os que não deixavam de fugir nem de voltar a
cabeça a cada passo, todos em tropa e seguidos pelo fidalgo; mas,
vendo Sancho o sinal do pano branco, disse:
- Que me matem se meu senhor não venceu as feras bestas, pois
nos chama.
Detiveram-se todos, e reconheceram que o que fazia os sinais era
dom Quixote; e, perdendo algum tanto do medo, pouco a pouco se
foram acercando até onde claramente ouviram as vozes de dom
Quixote, que os chamava. Finalmente, voltaram ao carro, e, chegando,
disse dom Quixote ao carreteiro:
- Voltai, irmão, a jungir vossas mulas e a prosseguir vossa viagem; e
tu, Sancho, dá-lhe dois escudos de ouro, para ele e para o cuidador,
em recompensa do que por mim se detiveram.
- Esses darei eu de muito bom grado - respondeu Sancho, - mas que
se fez dos leões? Estão mortos, ou vivos?
Então o cuidador, miudamente e com grandes pausas, contou o fim
da contenda, exagerando, como ele melhor pôde e soube, o valor de
dom Quixote, de cuja vista o leão, acovardado, não quis nem ousou sair
da jaula, embora havia tido um bom tempo aberta a porta da jaula; e
que, por haver ele dito àquele cavaleiro que era tentar a Deus irritar o
leão para que por força saísse, como ele queria que se irritasse, mau
grado seu e contra toda sua vontade, havia permitido que a porta se
fechasse.
- Que te parece isto, Sancho? - disse dom Quixote. - Há encantos
que valham contra a verdadeira valentia? Bem poderão os
encantadores tirar-me a ventura, mas o esforço e o ânimo, será
impossível.
Deu os escudos Sancho, jungiu o carreteiro, beijou as mãos o
cuidador a dom Quixote pela mercê recebida, e prometeu-lhe contar
aquela valorosa façanha ao mesmo rei, quando na corte se visse.
- Pois, se acaso Sua Majestade perguntar quem a fez, dir-lhe-eis
que o Cavaleiro dos Leões , que daqui em diante quero que neste se
troque, cambie, volte e mude o que até aqui tive do Cavaleiro da Triste
Figura; e nisto sigo a antiga usança dos andantes cavaleiros, que
mudavam os nomes quando queriam, ou quando lhes convinha.
Seguiu seu caminho o carro, e dom Quixote, Sancho e o do Verde
Gabão prosseguiram o seu.
Em todo este tempo não havia falado palavra dom Diego de Miranda,
todo atento a olhar e a notar os feitos e palavras de dom Quixote,
parecendo-lhe que era um lúcido louco e um louco que tirava a lúcido.
Não havia ainda chegado a seu conhecimento a primeira parte de sua
história; que se a houvesse lido, cessaria a admiração em que o punham
seus feitos e suas palavras, pois já soubera o gênero de sua loucura;
mas, como não a sabia, já o tinha por lúcido e já por louco, porque o
que falava era acertado, elegante e bem dito, e o que fazia,
disparatado, temerário e tonto. E dizia entre si: “Que mais loucura
pode ser que pôr o elmo cheio de requeijões e dar a entender que lhe
amoleciam os miolos os encantadores? E que maior temeridade e
disparate que querer lutar por força com leões?”
Destas imaginações e deste solilóquio o tirou dom Quixote, dizendo-
lhe:
- Quem duvida, senhor dom Diego de Miranda, de que vossa mercê
não me tenha em sua opinião por um homem disparatado e louco? E não
seria muito que assim fosse, porque minhas obras não podem dar
testemunho de outra coisa. Pois, assim, quero que vossa mercê advirta
que não sou tão louco nem tão minguado como devo haver-lhe parecido.
Bem parece um galhardo cavaleiro, aos olhos de seu rei, no meio de
uma grande praça, dar uma lançada com feliz êxito em um bravo touro;
bem parece um cavaleiro, armado de resplandecentes armas, intervir
em alegres justas diante das damas, e bem parecem todos aqueles
cavaleiros que em exercícios militares, ou que o pareçam, entretêm e
alegram, e, se se pode dizer, honram as cortes de seus príncipes; mas
sobre todos estes parece melhor um cavaleiro andante, que pelos
desertos, pelas solidões, pelas encruzilhadas, pelas selvas e pelos
montes anda buscando perigosas aventuras, com intenção de dar-lhes
ditoso e bem afortunado fim, só por alcançar gloriosa fama e
duradoura. Melhor parece, digo, um cavaleiro andante, socorrendo a
uma viúva em algum despovoado, que um cortesão cavaleiro,
galanteando uma donzela nas cidades. Todos os cavaleiros têm seus
particulares exercícios: sirva às damas o cortesão; autorize a corte
de seu rei com librés; sustente os cavaleiros pobres com o esplêndido
prato de sua mesa; concerte justas, mantenha torneios e mostre-se
grande, liberal e magnífico, e bom cristão, sobretudo, e desta maneira
cumprirá com suas precisas obrigações. Mas o andante cavaleiro
busque os fins do mundo; entre nos mais intrincados labirintos;
enfrente a cada passo o impossível; resista nos páramos despovoados
aos ardentes raios do sol no meio do verão, e no inverno a dura
inclemência dos ventos e dos gelos; não o assombrem leões, nem o
espantem monstros, nem atemorizem endríagos; que buscar estes,
enfrentar aqueles e vencê-los a todos são seus principais e
verdadeiros exercícios. Eu, pois, como me coube em sorte ser um do
número da andante cavalaria, não posso deixar de atacar tudo aquilo
que a mim me parecer que cai debaixo da jurisdição de meus
exercícios; e assim, o enfrentar os leões que agora enfrentei
diretamente me tocava, embora reconheci ser temeridade
exorbitante, porque bem sei o que é valentia, que é uma virtude que
está posta entre dois extremos prazenteiros, como são a covardia e a
temeridade; mas menos mal será que o que é valente toque e suba ao
ponto de temerário, que não que baixe e toque no ponto de covarde;
que assim que é mais fácil vir o pródigo a ser liberal que ao avaro,
assim é mais fácil dar o temerário em verdadeiro valente que não o
covarde subir à verdadeira valentia; e, nisto de acometer aventuras,
creia-me vossa mercê, senhor dom Diego, que antes se há de perder
por carta de mais que de menos, porque melhor soa nas orelhas dos
que o ouvem: “ O tal cavaleiro é temerário e atrevido” que não “O tal
cavaleiro é tímido e covarde”.
- Digo, senhor dom Quixote - respondeu dom Diego, - que tudo o
que vossa mercê disse e fez vai nivelado com o fiel da mesma razão, e
que entendo que se as ordenanças e leis da cavalaria andante se
perdessem, se achariam no peito de vossa mercê como em seu mesmo
depósito e arquivo. E demo-nos pressa, que se faz tarde, e cheguemos
à minha aldeia e casa, onde descansará vossa mercê do passado
trabalho, que se não foi do corpo, foi do espírito, que costuma talvez
redundar em cansaço do corpo.
- Tenho o oferecimento por grande favor e mercê, senhor dom
Diego - respondeu dom Quixote.
E picando mais do que até então, seriam como as duas da tarde
quando chegaram à aldeia e à casa de dom Diego, a quem dom Quixote
chamava “o Cavaleiro do Verde Gabão”.
CAPÍTULO XVIII

Do que sucedeu a dom Quixote no castelo ou casa do Cavaleiro do


Verde Gabão, com outras coisas extravagantes

Achou dom Quixote ser a casa de dom Diego de Miranda ampla


como de aldeia; o brasão de família, embora de pedra tosca, em cima
da porta da rua; a adega, no pátio; a despensa, na entrada, e muitos
potes em torno, que, por ser do Toboso, lhe renovaram as memórias de
sua encantada e transformada Dulcineia; e suspirando, e sem olhar o
que dizia, nem diante de quem estava, disse:

- Oh doces prendas, por meu mal achadas,


doces e alegres quando Deus queira!

“Oh tobosescos potes, que me haveis trazido à memória a doce prenda


de minha maior amargura!”
Ouviu-o dizer isto o estudante poeta, filho de dom Diego, que com
sua mãe havia saído a recebê-lo, e mãe e filho ficaram suspensos de
ver a estranha figura de dom Quixote; o qual, apeando-se de
Rocinante, foi com muita cortesia pedir-lhe as mãos para beijá-las, e
dom Diego disse:
- Recebei, senhora, com vosso costumeiro agrado o senhor dom
Quixote da Mancha, que é o que tendes diante, andante cavaleiro e o
mais valente e o mais discreto que tem o mundo.
A senhora, que dona Cristina se chamava, o recebeu com mostras de
muito amor e de muita cortesia, e dom Quixote se lhe ofereceu com
assaz discretas e comedidas razões. Quase os mesmos comedimentos
passou com o estudante, que, ouvindo-o falar dom Quixote, o teve por
discreto e agudo.
Aqui pinta o autor todas as circunstâncias da casa de dom Diego,
pintando-nos nelas o que contém uma casa de um cavaleiro lavrador e
rico; mas ao tradutor desta história lhe pareceu passar estas e outras
semelhantes minudências em silêncio, porque não vinham bem com o
propósito principal da história, a qual mais tem sua força na verdade
que nas frias digressões.
Levaram dom Quixote a uma sala, desarmou-o Sancho, ficou em
calções e em gibão de camurça, todo ensebado das armas: o colarinho
era valão ao estudantil, sem goma e sem rendas; os borzeguins eram
cor de tâmara, e encerados os sapatos. Cingiu sua boa espada, que
pendia de um cinturão de pele de foca, que é opinião que muitos anos
foi enfermo dos rins; cobriu-se com um capa curta de bom pano pardo;
mas antes de tudo, com cinco caldeirões, ou seis, de água, que na
quantidade dos caldeirões há alguma diferença, lavou a cabeça e
rosto, e todavia ficou a água de cor de soro, mercê à gula de Sancho e
à compra de seus negros requeijões, que tão branco puseram a seu
amo. Com os referidos atavios, e com gentil donaire e galhardia, saiu
dom Quixote à outra sala, onde o estudante o estava esperando para
entretê-lo enquanto as mesas se punham; que, pela vinda de tão nobre
hóspede, queria a senhora dona Cristina mostrar que sabia e podia
regalar aos que à sua casa chegassem.
Enquanto dom Quixote se esteve desarmando, teve lugar dom
Lourenço, que assim se chamava o filho de dom Diego, de dizer a seu
pai:
- Quem diremos, senhor, que é este cavaleiro que vossa mercê nos
trouxe a casa? Que o nome, a figura, e o dizer que é cavaleiro
andante, a mim e a minha mãe nos tem suspensos.
- Não sei o que te diga, filho - respondeu dom Diego; - só te saberei
dizer que o vi fazer coisas do maior louco do mundo, e dizer razões
tão discretas que apagam e desfazem seus feitos: fala-lhe tu, e toma
o pulso do que sabe, e, pois és discreto, julga de sua discrição ou
tontaria o que mais posto em razão estiver; embora, para dizer
verdade, antes o tenho por louco que por lúcido.
Com isto, se foi dom Lourenço entreter dom Quixote, como fica
dito, e, entre outras conversas que os dois passaram, disse dom
Quixote a dom Lourenço:
- O senhor dom Diego de Miranda, pai de vossa mercê, me deu
notícia da rara habilidade e sutil engenho que vossa mercê tem, e,
sobretudo, que é vossa mercê um grande poeta.
- Poeta, bem poderá ser - respondeu dom Lourenço, - mas grande,
nem por pensamento. Verdade é que eu sou algum tanto aficionado à
poesia e a ler os bons poetas, mas não de maneira que se me possa dar
o nome de grande que meu pai diz.
- Não me parece mal essa humildade - respondeu dom Quixote, -
porque não há poeta que não seja arrogante e pense de si que é o
maior poeta do mundo.
- Não há regra sem exceção - respondeu dom Lourenço, - e algum
haverá que o seja e não o pense.
- Poucos - respondeu dom Quixote. - Mas diga-me vossa mercê: que
versos são os que agora traz nas mãos, que me disse o senhor seu pai
que o trazem algo inquieto e pensativo? E se é alguma glosa, entendo
algo de assunto de glosas, e folgaria em sabê-los; e se é que são de
justa literária, procure vossa mercê levar o segundo prêmio, que o
primeiro sempre o leva o favor ou a grande qualidade da pessoa, o
segundo o leva a mera justiça, e o terceiro vem a ser segundo, e o
primeiro, a esta conta, será o terceiro, ao modo das licenças que se
dão nas universidades; entretanto, grande personagem é o nome de
primeiro.
“Até agora - disse consigo dom Lourenço, - não vos poderei eu
julgar por louco. Vamos adiante.” E disse-lhe:
- Parece-me que vossa mercê frequentou escolas: que ciências
cursou?
- A da cavalaria andante - respondeu dom Quixote, - que é tão boa
como a da poesia, e ainda dois dedinhos mais.
- Não sei que ciência seja essa - replicou dom Lourenço, - e até
agora não chegou a meu conhecimento.
- É uma ciência - replicou dom Quixote - que encerra em si todas ou
as mais ciências do mundo, porque o que a professa há de ser
jurisperito, e saber as leis da justiça distributiva e comutativa, para
dar a cada um o que é seu e o que lhe convém; há de ser teólogo, para
saber dar razão da cristã lei que professa, clara e distintamente,
onde quer que lhe for pedido; há de ser médico e principalmente
ervanário, para conhecer em meio dos despovoados e desertos as
ervas que têm virtude de curar as feridas, que não há de andar o
cavaleiro andante a qualquer hora buscando quem as cure; há de ser
astrólogo, para conhecer pelas estrelas quantas horas são passadas da
noite, e em que parte e em que clima do mundo se acha; há de saber as
matemáticas, porque a cada passo se lhe oferecerá ter necessidade
delas; e, deixando à parte que há de estar adornado de todas as
virtudes teologais e cardeais, descendo a outras minudências, digo que
há de saber nadar como dizem que nadava o peixe Nicolás ou Nicolao;
há de saber ferrar um cavalo e pôr a sela e o freio; e, voltando ao de
acima, há de guardar a fé a Deus e à sua dama; há de ser casto nos
pensamentos, honesto nas palavras, liberal nas obras, valente nos
feitos, sofrido nos trabalhos, caritativo com os necessitados, e,
finalmente, mantenedor da verdade, embora lhe custe a vida o
defendê-la. De todas estas grandes e mínimas partes se compõe um
bom cavaleiro andante; porque veja vossa mercê, senhor dom
Lourenço, se é ciência de criançola o que aprende o cavaleiro que a
estuda e a professa, e se se pode igualar às mais estiradas que nos
ginásios e escolas se ensinam.
- Se isso é assim - replicou dom Lourenço, - eu digo que se avantaja
essa ciência a todas.
- Como se é assim? - respondeu dom Quixote.
- O que eu quero dizer - disse dom Lourenço - é que duvido que haja
havido, nem que os há agora, cavaleiros andantes e adornados de
virtudes tantas.
- Muitas vezes disse o que volto a dizer agora - respondeu dom
Quixote: - que a maior parte da gente do mundo está de parecer de
que não houve nele cavaleiros andantes; e, por parecer-me a mim que
se o céu milagrosamente não lhes dá a entender a verdade de que os
houve e de que os há, qualquer trabalho que se tome há de ser em vão,
como muitas vezes mo mostrou a experiência, não quero deter-me
agora em tirar vossa mercê do erro que com os muitos tem; o que
penso fazer é rogar ao céu o tire dele, e lhe dê a entender quão
proveitosos e quão necessários foram ao mundo os cavaleiros andantes
nos passados séculos, e quão úteis seriam no presente se se usassem;
mas triunfam agora, por pecados das gentes, a preguiça, a ociosidade,
a gula e o regalo.
“Nosso hóspede escapou - disse então consigo dom Lourenço, - mas
ele é louco bizarro, e eu seria frouxo de mente se assim não o cresse.”
Aqui deram fim a sua conversa, porque os chamaram a almoçar.
Perguntou dom Diego a seu filho o que havia tirado a limpo do engenho
do hóspede. Ao que ele respondeu:
- Não o tirarão do borrador de sua loucura quantos médicos e bons
escrevedores tem o mundo: ele é um louco pela metade, cheio de
lúcidos intervalos.
Foram almoçar, e a comida foi tal como dom Diego havia dito no
caminho que a costumava dar a seus convidados: limpa, abundante e
saborosa; mas do que mais se contentou dom Quixote foi do
maravilhoso silêncio que em toda a casa havia, que semelhava um
monastério de cartuxos. Tirada então a mesa, e dadas graças a Deus e
água às mãos, dom Quixote pediu afincadamente a dom Lourenço
dissesse os versos da justa literária; ao que ele respondeu que, por
não parecer daqueles poetas que quando lhes rogam digam seus versos
os negam e quando não os pedem os vomitam, “eu direi minha glosa, da
qual não espero prêmio algum; que só por exercitar o engenho a fiz”.
- Um amigo e discreto - respondeu dom Quixote - era de parecer
que não se havia de cansar ninguém em glosar versos; e a razão, dizia
ele, era que jamais a glosa podia chegar ao texto, e que muitas ou as
mais vezes ia a glosa fora da intenção e propósito do que pedia o que
se glosava; e mais, que as leis da glosa eram demasiadamente
estreitas: que não sofriam interrogantes, nem disse, nem direi, nem
fazer nomes de verbos, nem mudar o sentido, com outras ataduras e
estreitezas com que vão atados os que glosam, como vossa mercê deve
saber.
- Verdadeiramente, senhor dom Quixote - disse dom Lourenço, -
que desejo colher vossa mercê num incorreto arrazoado, e não posso,
porque desliza entre as mãos como enguia.
- Não entendo - respondeu dom Quixote - o que vossa mercê diz
nem quer dizer nisso do deslizar-me.
- Eu me darei a entender - respondeu dom Lourenço; - e por agora
esteja vossa mercê atento aos versos glosados e à glosa, que dizem
desta maneira:

Se meu foi tornasse a é,


sem esperar mais será,
ou viesse o tempo já
do que será depois...!

Glosa

No fim, como tudo passa,


passou o bem que me deu
fortuna, um tempo não escassa,
e nunca me devolveu,
nem com avareza.
Séculos há já que me vês,
fortuna, posto a teus pés;
torna-me a ser venturoso,
que será meu ser ditoso
se meu foi tornasse a é.

Não quero outro gosto ou glória,


outra palma ou vencimento,
outro triunfo, outra vitória,
senão voltar ao contentamento
que é pesar em minha memória.
Se tu me voltas lá,
fortuna, acalmado está
todo o rigor de meu fogo,
e mais se este bem é logo,
sem esperar mais será.

Coisas impossíveis peço,


pois voltar o tempo a ser
depois que uma vez foi,
não há na terra poder
que a tanto se haja estendido.
Corre o tempo, voa e vai
ligeiro, e não voltará,
e erraria o que pedisse,
o que o tempo já se fosse,
ou viesse o tempo já.

Viver em perplexa vida,


já esperando, já temendo:
é morte muito conhecida,
e é muito melhor morrendo
buscar à dor saída.
A mim me seria interesse
acabar, mas não o é,
pois, com razão melhor,
me dá a vida o temor
do que será depois.

Acabando de dizer sua glosa dom Lourenço, levantou-se dom


Quixote, e, em voz levantada, que parecia grito, pegando com sua mão
a direita de dom Lourenço, disse:
- Vivem os céus onde mais altos estão, mancebo generoso, que sois o
melhor poeta do orbe, e que mereceis estar laureado, não por Chipre
nem por Gaeta, como disse um poeta, que Deus perdoe, senão pelas
academias de Atenas, se hoje vivessem, e pelas que hoje vivem de
Paris, Bolonha e Salamanca! Praza ao céu que os juízes que vos tirarem
o prêmio primeiro, Febo os asseteie e as Musas jamais atravessem os
umbrais de suas casas. Dizei-me, senhor, se sois servido, alguns versos
maiores, que quero tomar de todo em todo o pulso a vosso admirável
engenho.
Não é bom que dizem que se alegrou dom Lourenço de ver-se louvar
por dom Quixote, embora o tivesse por louco? Oh força da adulação, a
quanto te estendes, e quão dilatados limites são os de tua jurisdição
agradável! Esta verdade acreditou dom Lourenço, pois concedeu com a
demanda e desejo de dom Quixote, dizendo-lhe este soneto à fábula
ou história de Píramo e Tisbe:

SONETO

O muro rompe a donzela formosa


que de Píramo abriu o galhardo peito:
parte o Amor de Chipre, e vai direito
ver a fenda estreita e prodigiosa.
Fala o silêncio ali, porque não ousa
A voz entrar por tão estreito estreito;
as almas sim, que amor costuma de feito
facilitar a mais difícil coisa.
Saiu o desejo de compasso, e o passo
da imprudente virgem solicita
por seu gosto sua morte; vede que história:
que a ambos num ponto, oh estranho caso!,
os mata, os encobre e ressuscita
uma espada, um sepulcro, uma memória.

- Bendito seja Deus! - disse dom Quixote havendo ouvido o soneto a


dom Lourenço, - que entre os infinitos poetas consumidos que há, vi
um consumado poeta, como o é vossa mercê, senhor meu; que assim mo
dá a entender o artifício deste soneto.
Quatro dias esteve dom Quixote regaladíssimo na casa de dom
Diego, ao cabo dos quais lhe pediu licença para ir-se, dizendo-lhe que
lhe agradecia a mercê e bom tratamento que em sua casa havia
recebido; mas que, por não parecer bem que os cavaleiros andantes se
deem muitas horas ao ócio e ao regalo, queria ir cumprir com seu
ofício, buscando as aventuras, de que tinha notícia que aquela terra
abundava, onde esperava entreter o tempo até que chegasse o dia das
justas de Saragoça, que era o de sua rota traçada; e que primeiro
havia de entrar na cova de Montesinos, de quem tantas e tão
admiráveis coisas naqueles contornos se contavam, sabendo e
inquirindo também o nascimento e verdadeiros mananciais das sete
lagoas chamadas comumente de Ruidera. Dom Diego e seu filho
louvaram sua honrosa determinação, e lhe disseram que tomasse de
sua casa e de seus bens tudo o que quisesse, que o serviriam com a
vontade possível; que a isso os obrigava o valor de sua pessoa e a
honrosa profissão sua.
Chegou, enfim, o dia de sua partida, tão alegre para dom Quixote
como triste e aziago para Sancho Pança, que se achava muito bem com
a abundância da casa de dom Diego, e recusava voltar à fome que se
usa nas florestas, despovoados, e à estreiteza de seus mal providos
alforjes. Então, os abarrotou do mais necessário que lhe pareceu; e ao
despedir-se disse dom Quixote a dom Lourenço:
- Não sei se disse a vossa mercê outra vez, e se o disse o volto a
dizer, que quando vossa mercê quiser poupar caminhos e trabalhos
para chegar ao inacessível cume do templo da Fama, não tem que fazer
outra coisa senão deixar a uma parte a senda da poesia, algo estreita,
e tomar a estreitíssima da andante cavalaria, bastante para fazê-lo
imperador em dá cá aquelas palhas.
Com estas razões acabou dom Quixote de fechar o processo de sua
loucura, e mais com as que acrescentou, dizendo:
- Sabe Deus se quisera levar comigo o senhor dom Lourenço, para
ensiná-lo como se hão de perdoar os subjugados, e pisotear e acoicear
os soberbos, virtudes próprias à profissão que eu professo; mas, pois
não o pede sua pouca idade, nem o quererão consentir seus louváveis
exercícios, só me contento com advertir vossa mercê que, sendo
poeta, poderá ser famoso se se guia mais pelo parecer alheio que pelo
próprio, porque não há pai nem mãe a quem seus filhos lhe pareçam
feios, e nos que o são do entendimento corre mais este engano.
De novo se admiraram pai e filho das confusas razões de dom
Quixote, já discretas e já disparatadas, e da monomania e tesão que
tinha de atender de todo em todo à busca de suas desventuradas
aventuras, que as tinha por fim e alvo de seus desejos. Reiteraram-se
os oferecimentos e comedimentos, e, com a boa licença da senhora do
castelo, dom Quixote e Sancho, sobre Rocinante e o ruço, partiram.

CAPÍTULO XIX

Onde se conta a aventura do pastor enamorado, com outros em


verdade graciosos sucessos

Pouco trecho se havia afastado dom Quixote do lugar de dom Diego,


quando encontrou com dois clérigos ou estudantes e com dois
lavradores que sobre quatro bestas asnais vinham cavaleiros. Um dos
estudantes trazia, em uma espécie de maleta, envolto num lenço de
algodão verde, ao parecer, um pouco de roupa branca fina e dois pares
de meias de lã; o outro não trazia outra coisa senão duas espadas
negras de esgrima, novas e com suas ponteiras. Os lavradores traziam
outras coisas, que davam indício e sinal que vinham de alguma vila
grande, onde as haviam comprado, e as levavam à sua aldeia; e assim
estudantes como lavradores caíram na mesma admiração em que caíam
todos aqueles que pela primeira vez viam dom Quixote, e morriam por
saber que homem fosse aquele tão fora do uso dos outros homens.
Saudou-os dom Quixote, e, depois de saber o caminho por onde iam,
que era o mesmo que ele fazia, lhes ofereceu sua companhia, e lhes
pediu detivessem o passo, porque caminhavam mais suas asninhas que
seu cavalo; e, para bem parecer-lhes, em breves razões lhes disse
quem era, e seu ofício e profissão, que era de cavaleiro andante que ia
buscar aventuras por todas as partes do mundo. Disse-lhes que se
chamava de nome próprio “dom Quixote da Mancha”, e pelo apelativo,
“o Cavaleiro dos Leões”. Tudo isto para os lavradores era falar-lhes
em grego ou incompreensivelmente, mas não para os estudantes, que
logo entenderam a fraqueza do cérebro de dom Quixote; mas, mesmo
assim, olhavam-no com admiração e com respeito, e um deles lhe disse:
- Se vossa mercê, senhor cavaleiro, não tem caminho determinado,
como não o costumam ter os que buscam as aventuras, vossa mercê
venha conosco: verá uma das melhores bodas e mais ricas que até o dia
de hoje se haverão celebrado na Mancha, nem em outras muitas léguas
ao redor.
Perguntou-lhe dom Quixote se eram de algum príncipe, pois assim as
elogiava.
- Não são - respondeu o estudante - senão de um lavrador e uma
lavradora: ele, o mais rico de toda esta terra; e ela, a mais formosa
que viram os homens. O aparato com que se hão de fazer é
extraordinário e novo, porque se hão de celebrar num prado que está
junto ao povoado da noiva, a quem por excelência chamam Quitéria “a
formosa”, e o desposado se chama Camacho “o rico”; ela de idade de
dezoito anos, e ele de vinte e dois; feitos um para o outro, embora
alguns curiosos que têm de memória os linhagens de todo o mundo
querem dizer que o da formosa Quitéria se avantaja ao de Camacho;
mas já não se repara nisto, já que as riquezas são poderosas para
soldar muitas quebras. Com efeito, o tal Camacho é liberal e desejou
de enramar e cobrir todo o prado, de tal sorte que o sol há de ter
trabalho se quiser visitar as ervas verdes de que está coberto o chão.
Tem também danças preparadas de antemão, assim de espadas como
de guizo miúdo, que há em seu povoado quem os repique e sacuda em
extremo; de sapateadores não digo nada, que é uma multidão os que
tem contratados; mas nenhuma das coisas referidas nem outras
muitas que deixei de referir há de fazer mais memoráveis estas
bodas, senão as que imagino que fará nelas o despeitado Basílio. É este
Basílio um rapaz vizinho do mesmo lugar de Quitéria, o qual tinha sua
casa parede e meia da dos pais de Quitéria, de onde tomou ocasião o
amor de renovar ao mundo os já olvidados amores de Píramo e Tisbe,
porque Basílio se enamorou de Quitéria desde seus tenros e primeiros
anos, e ela foi correspondendo a seu desejo com mil honestos favores,
tanto, que se contavam por entretenimento no povoado os amores dos
dos meninos Basílio e Quitéria. Foi crescendo a idade, e resolveu o pai
de Quitéria dificultar a Basílio a usual entrada que em sua casa tinha;
e, para não andar receoso e cheio de suspeitas, ordenou casar a sua
filha com o rico Camacho, não parecendo-lhe ser bom casá-la com
Basílio, que não tinha tantos bens de fortuna como de natureza; pois
se vai a dizer as verdades sem inveja, ele é o mais ágil mancebo que
conhecemos: grande atirador de barra, lutador extremado e grande
jogador de pelota; corre como um gamo, salta mais que uma cabra e
joga boliche como por encantamento; canta como uma calandra, e toca
uma guitarra, que a faz falar, e, sobretudo, maneja uma espada como o
melhor.
- Por essa só graça - disse então dom Quixote, - merecia esse
mancebo não só casar-se com a formosa Quitéria, senão com a mesma
rainha Ginevra, se fosse hoje viva, apesar de Lancelote e de todos
aqueles que estorvá-lo quisessem.
- Não para minha mulher! - disse Sancho Pança, que até então havia
ido calando e escutando, - a qual não quer senão que cada um case com
seu igual, atendo-se ao refrão que dizem “cada ovelha com sua
parelha”. O que eu quisera é que esse bom Basílio, a quem já me vou
aficionando, se casasse com essa senhora Quitéria; que tenham bom
repouso eterno e boa morte (ia dizer ao contrário), os que estorvam
que se casem os que bem se querem.
- Se todos os que bem se querem se houvessem de casar - disse
dom Quixote, - tirar-se-ia a eleição e jurisdição aos pais de casar
seus filhos com quem e quando devem; e se à vontade das filhas
ficasse escolher os maridos, tal haveria que escolhesse o criado de
seu pai, e tal ao que viu passar pela rua, a seu parecer, bizarro e
soberbo, embora fosse um espadachim desmiolado; que o amor e a
afeição com facilidade cegam os olhos do entendimento, tão
necessários para escolher estado, e o do matrimônio está muito a
perigo de errar-se, e é preciso grande tento e particular favor do céu
para acertá-lo. Quer fazer um uma viagem longa, e se é prudente,
antes de pôr-se a caminho busca alguma companhia segura e aprazível
com quem acompanhar-se; então, por que não fará o mesmo o que há
de caminhar toda a vida, até o paradeiro da morte, e mais se a
companhia lhe há de acompanhar na cama, na mesa e em todos os
lados, como é a da mulher com seu marido? A da própria mulher não é
mercadoria que uma vez comprada retorna, ou se troca ou cambia,
porque é união inseparável, que dura o que dura a vida: é um laço que
se uma vez o pões ao pescoço, vira nó górdio, que se não o corta a
foice da morte, não há como desatá-lo. Muitas mais coisas poderia
dizer nesta matéria, se não o perturbasse o desejo que tenho de
saber se lhe fica mais que dizer ao senhor licenciado acerca da
história de Basílio.
Ao que respondeu o estudante bacharel, ou licenciado, como o
chamou dom Quixote:
- De tudo não me fica mais que dizer senão que desde o momento
em que Basílio soube que a formosa Quitéria se casava com Camacho o
rico, nunca mais o viram rir nem falar palavra acertada, e sempre anda
pensativo e triste, falando consigo mesmo, com o que dá certos e
claros sinais de que se lhe transtornou o juízo: come pouco e dorme
pouco, e o que come são frutas, e no que dorme, se dorme, é no campo,
sobre a dura terra, como animal bruto; olha de quando em quando para
o céu, e outras vezes crava os olhos na terra, com tal
ensimesmamento, que não parece senão estátua vestida a que o ar
move a roupa. Enfim, ele dá tais mostras de ter apaixonado o coração,
que tememos todos os que o conhecemos que o dar o sim amanhã a
formosa Quitéria há de ser a sentença de sua morte.
- Deus o fará melhor - disse Sancho; - que Deus, que dá a chaga, dá
a medicina; ninguém sabe o que está por vir: daqui até amanhã muitas
horas há, e em uma, e ainda num momento, cai a casa; eu vi chover e
fazer sol, tudo a um mesmo tempo; tal se deita são à noite, que não se
pode mover no outro dia. E digam-me, porventura haverá quem se
louve que tenha pregado um cravo na roda da fortuna? Não, por certo;
e entre o sim e o não da mulher não me atreveria eu a pôr uma ponta
de alfinete, porque não caberia. Deem-me que Quitéria queira de bom
coração e de boa vontade a Basílio, que eu darei a ele um saco de boa
ventura: que o amor, segundo eu ouvi dizer, olha com uns desejos que
fazem parecer ouro ao cobre, à pobreza riqueza, e às remelas pérolas.
- Onde vais parar, Sancho maldito? - disse dom Quixote; - que
quando começas a emendar refrãos e contos, não te pode esperar
senão o mesmo Judas, que te leve. Diz-me, animal, que sabes tu de
cravos, nem de rodas, nem de outra coisa nenhuma?
- Oh! Pois se não me entendem - respondeu Sancho, - não é
maravilha que minhas sentenças sejam tidas por disparates. Mas não
importa: eu me entendo, e sei que não disse muitas necedades no que
disse; senão que vossa mercê, senhor meu, sempre é friscal de meus
ditos, e ainda de meus feitos.
- Fiscal hás de dizer - disse dom Quixote, - que não friscal,
prevaricador da bom linguagem, que Deus te confunda.
- Não se azede vossa mercê comigo - respondeu Sancho, - pois sabe
que não me criei na corte, nem estudei em Salamanca, para saber se
acrescento ou tiro alguma letra a meus vocábulos. Sim, que, valha-me
Deus!, não há para que obrigar o saiaguês a que fale como o toledano, e
toledanos pode haver que não sejam muito bons nisto do falar polido.
- Assim é - disse o licenciado, - porque não podem falar tão bem os
que se criam nas Tenerias e em Zocodover como os que passeiam
quase todo o dia pelo claustro da igreja maior, e todos são toledanos.
A linguagem pura, a própria, a elegante e clara, está nos discretos
cortesãos, embora hajam nascido em Majadahonda: disse discretos
porque há muitos que não o são, e a discrição é a gramática da boa
linguagem, que se acompanha com o uso. Eu, senhores, por meus
pecados, estudei cânones em Salamanca, e orgulho-me algum tanto de
dizer meu pensamento com palavras claras, simples e significantes.
- Se não vos orgulhásseis mais de saber mais manejar as negras
espadas que levais que a língua - disse o outro estudante, - vós
levaríeis o primeiro em licenças, como fostes o último.
- Vede, bacharel - respondeu o licenciado: - vós estais na mais
errada opinião do mundo acerca da destreza da espada, tendo-a por
vã.
- Para mim não é opinião, senão verdade assentada - replicou
Corchuelo; - e se quereis que vo-lo mostre com a experiência, espadas
trazeis, comodidade há, eu pulsos e forças tenho, que acompanhadas
de meu ânimo, que não é pouco, vos farão confessar que eu não me
engano. Apeai-vos, e usai de vosso movimento de pés, de vossos
círculos e vossos ângulos e ciência; que eu espero de fazer-vos ver
estrelas a meio-dia com minha destreza moderna e grosseira, em quem
espero, depois de Deus, que está por nascer homem que me faça
voltar as costas, e que não há no mundo a quem eu não faça
retroceder.
- Nisso de voltar, ou não, as costas não me meto - replicou o destro;
- embora poderia ser que na parte onde a vez primeira cravásseis o
pé, ali vos abrissem a sepultura: quero dizer que ali ficaríeis morto
pela desapreciada destreza.
- Agora se verá - respondeu Corchuelo.
E apeando-se com grande presteza de seu jumento, tirou com fúria
uma das espadas que levava o licenciado no seu.
- Não há de ser assim - disse a este instante dom Quixote, - que eu
quero ser o árbitro desta esgrima e o juiz desta muitas vezes não
averiguada questão.
E apeando-se de Rocinante e pegando sua lança, se pôs no meio do
caminho, a tempo que já o licenciado, com gentil donaire de corpo e
movimento de pés, ia contra Corchuelo, que contra ele veio, lançando,
como sói dizer-se, fogo pelos olhos. Os outros dois lavradores do
acompanhamento, sem apear-se de suas asninhas, serviram de
espectadores na mortal tragédia. As cutiladas, estocadas, altibaixos,
reveses e golpes de punho que atirava Corchuelo eram sem número,
mais espessas que fígado e mais miúdas que granizo. Arremetia como
um leão irritado, mas saía-lhe ao encontro o anteparo da ponteira da
espada do licenciado, que em meio de sua fúria o detinha, e a fazia
beijar como se fosse relíquia, embora não com tanta devoção como as
relíquias devem e costumam beijar-se.
Finalmente, o licenciado lhe contou a estocadas todos os botões de
uma meia sotaina que trazia vestida, fazendo-lhe tiras os
fraldamentos, absolutamente destroçados; derrubou-lhe o chapéu
duas vezes, e cansou-o de maneira que de despeito, cólera e raiva
pegou a espada pela empunhadura, e arrojou-a pelo ar com tanta
força, que um dos lavradores assistentes, que era escrivão, que foi
buscá-la, deu depois por testemunho que a arrojou de si quase três
quartos de légua; o qual testemunho serve e serviu para que se
conheça e veja com toda verdade como a força é vencida pela arte.
Sentou-se cansado Corchuelo, e chegando-se a ele Sancho, disse-
lhe:
- À minha fé, senhor bacharel, se vossa mercê toma meu conselho,
daqui em diante não há de desafiar ninguém a esgrimir, senão a lutar
ou atirar a barra, pois tem idade e forças para isso; que destes a
quem chamam destros ouvi dizer que metem uma ponta de uma espada
pelo olho de uma agulha.
- Eu me contento - respondeu Corchuelo - de haver saído de meu
erro e de que me haja mostrado a experiência a verdade de que tão
longe estava.
E levantando-se, abraçou o licenciado, e ficaram mais amigos que
antes, não querendo esperar o escrivão, que havia ido buscar a espada,
por parecer-lhe que tardaria muito; e assim, determinaram seguir,
para chegar cedo à aldeia de Quitéria, de onde todos eram.
No que faltava do caminho, lhes foi contando o licenciado as
excelências da espada, com tantas razões demostrativas e com tantas
figuras e demonstrações matemáticas, que todos ficaram inteirados
da bondade da ciência, e Corchuelo convencido de seu erro.
Anoitecera, mas antes que chegassem pareceu a todos que estava
diante da vila um céu cheio de inumeráveis e resplandecentes estrelas.
Ouviram, também, confusos e suaves sons de diversos instrumentos,
como de flautas, tamborins, saltérios, flautas córneas, pandeiros e
chocalhos; e quando chegaram perto viram que as árvores de uma
ramada, que à mão haviam posto à entrada da vila, estavam todas
cheias de luminárias, a quem não ofendia o vento, que então não
soprava senão tão manso que não tinha força para mover as folhas das
árvores. Os músicos eram os regozijadores da boda, que em diversas
quadrilhas por aquele agradável sítio andavam, uns bailando, e outros
cantando, e outros tocando a diversidade dos referidos instrumentos.
Com efeito, não parecia senão que por todo aquele prado andava
correndo a alegria e saltando o contentamento.
Outros muitos andavam ocupados em levantar andaimes, de onde
com comodidade pudessem ver no outro dia as representações e
danças que se haviam de fazer naquele lugar dedicado para solenizar
as bodas do rico Camacho e as exéquias de Basílio. Não quis entrar no
lugar dom Quixote, embora o pedissem assim o lavrador como o
bacharel; mas ele deu por desculpa, bastantíssima a seu parecer, ser
costume dos cavaleiros andantes dormir pelos campos e florestas
antes que nos povoados, embora fosse debaixo de dourados tetos; e
com isto, se desviou um pouco do caminho, bem contra a vontade de
Sancho, vindo-lhe à memória o bom alojamento que havia tido no
castelo ou casa de dom Diego.

CAPÍTULO XX

Onde se contam as bodas de Camacho o rico, com o sucesso de


Basílio o pobre

Apenas a branca aurora havia dado lugar a que o luzente Febo, com
o ardor de seus quentes raios, as líquidas pérolas de seus cabelos de
ouro enxugasse, quando dom Quixote, sacudindo a preguiça de seus
membros, se pôs em pé e chamou seu escudeiro Sancho, que ainda
roncava; o qual visto por dom Quixote, antes que o despertasse, disse-
lhe:
- Oh tu, bem-aventurado sobre quantos vivem sobre a face da
terra, pois sem ter inveja nem ser invejado, dormes com sossegado
espírito, nem te perseguem encantadores, nem sobressaltam
encantamentos! Dorme, digo outra vez, e o direi outras cem, sem que
te tenham em contínua vigília zelos de tua dama, nem te desvelem
pensamentos de pagar dívidas que devas, nem do que hás de fazer
para comer no outro dia tu e tua pequena e angustiada familia. Nem a
ambição te inquieta, nem a pompa vã do mundo te fatiga, pois os
limites de teus desejos não se estendem a mais que o cuidar de teu
jumento, que o de tua pessoa sobre meus ombros o puseste,
contrapeso e carga que pôs a natureza e o costume sobre os senhores.
Dorme o criado, e está velando o senhor, pensando como o há de
sustentar, melhorar e fazer mercês. A angústia de ver que o céu se
faz de bronze sem atender à terra com o conveniente orvalho não
aflige o criado, senão o senhor, que há de sustentar na esterilidade e
fome o que lhe serviu na fertilidade e abundância.
A tudo isto não respondeu Sancho, porque dormia, nem despertaria
tão logo se dom Quixote com o cabo da lança não o fizesse voltar a si.
Despertou, enfim, sonolento e preguiçoso, e, voltando o rosto a todos
os lados, disse:
- Da parte desta enramada, se não me engano, sai um tufo e cheiro
farto mais de torresmos assados que de juncos e tomilhos: bodas que
por tais olores começam, para minha bênção que devem ser
abundantes e generosas.
- Anda, glutão - disse dom Quixote; - vem, vamos ver estes
desposórios, para ver o que faz o desdenhado Basílio.
- Mas que faça o que quiser - respondeu Sancho: - não fosse ele
pobre e casar-se-ia com Quitéria. Não há mais senão ter um quarto e
querer alçar-se às nuvens? À fé, senhor, eu sou de parecer que o
pobre deve contentar-se com o que achar, e não pedir o impossível. Eu
apostarei um braço que pode Camacho envolver Basílio em reais; e se
isto é assim, como deve ser, bem boba seria Quitéria em descartar as
galas e as joias que lhe deve haver dado, e lhe pode dar Camacho, por
escolher o atirar a barra e o jogar a espada negra de Basílio. Por um
bom tiro de barra ou por uma gentil finta de espada não dão um
quartilho de vinho na taberna. Habilidades e graças que não são
vendíveis, por mais que as tenha o conde Dirlos; mas, quando as tais
graças caem sobre quem tem bom dinheiro, tal seja minha vida como
elas parecem. Sobre um bom cimento se pode levantar um bom
edifício, e o melhor cimento e alicerce do mundo é o dinheiro.
- Por quem Deus é, Sancho - disse então dom Quixote, - conclui tua
arenga; que tenho para mim que se te deixassem seguir nas que a cada
passo começas, não te ficaria tempo para comer nem para dormir, que
todo o gastarias em falar.
- Se vossa mercê tivesse boa memória - replicou Sancho, - deveria
lembrar dos capítulos de nosso acerto antes que esta última vez
saíssemos de casa: um deles foi que me havia de deixar falar tudo
aquilo que quisesse, contanto que não fosse contra o próximo nem
contra a autoridade de vossa mercê; e até agora me parece que não
contravim contra o tal capítulo.
- Eu não me lembro, Sancho - respondeu dom Quixote, - do tal
capítulo; e, embora seja assim, quero que cales e venhas, que já os
instrumentos que ontem à noite ouvimos voltam a alegrar os vales, e
sem dúvida os desposórios se celebrarão no frescor da manhã, e não
no calor da tarde.
Fez Sancho o que seu senhor lhe mandava, e, pondo a sela em
Rocinante e a albarda no ruço, subiram os dois, e passo ante passo
foram entrando pela enramada.
A primeira coisa que se ofereceu à vista de Sancho foi, espetado
num assador de um tronco de olmo inteiro, um inteiro novilho; e no
fogo onde se havia de assar ardia um mediano monte de lenha, e seis
panelas que ao redor da fogueira estavam não se haviam feito no
comum molde das demais panelas, porque eram seis meios potes, que
em cada um cabia a carne de um matadouro: assim embebiam e
encerravam em si carneiros inteiros, escondendo-os, como se fossem
pombinhos; as lebres já sem pele e as galinhas sem pena que estavam
penduradas pelas árvores para sepultá-las nas panelas não tinham
número; os pássaros e caça de diversos gêneros eram infinitos,
pendurados das árvores para que o ar os amaciasse.
Contou Sancho mais de sessenta odres de mais de duas arrobas
cada um, e todos cheios, segundo depois pareceu, de generosos vinhos;
assim havia montes de pão branquíssimo, como os costuma haver de
montões de trigo nas eras; os queijos, postos como ladrilhos
entrecruzados, formavam uma muralha, e duas caldeiras de azeite,
maiores que as de um tintureiro, serviam para fritar empanadas, que
com duas grandes pás as tiravam fritas e as mergulhavam em outra
caldeira de preparado mel que ali junto estava.
Os cozinheiros e cozinheiras passavam de cinquenta: todos limpos,
todos diligentes e todos contentes. No dilatado ventre do novilho
estavam doze tenros e pequenos leitões, que, costurados por cima,
serviam para dar-lhe sabor e torná-lo tenro. As especiarias de
diversas sortes não pareciam ter sido compradas por libras, senão por
arrobas, e todas estavam à vista em uma grande arca. Finalmente, o
aparato da boda era rústico, mas tão abundante que podia sustentar
um exército.
Tudo olhava Sancho Pança, e tudo contemplava, e de tudo se
aficionava: primeiro o cativaram e renderam o desejo as panelas, de
onde ele pegara com boníssima vontade um mediano cozido; depois lhe
aficionaram a vontade os odres; e, ultimamente, as empanadas de
frigideira, se é que se podiam chamar frigideiras as tão bojudas
caldeiras; e assim, sem conseguir fazer outra coisa, aproximou-se de
um dos solícitos cozinheiros, e, com corteses e famintas razões, lhe
rogou o deixasse molhar um pão dormido em uma daquelas panelas. Ao
que o cozinheiro respondeu:
- Irmão, este dia não é daqueles sobre o qual tem jurisdição a
fome, mercê ao rico Camacho. Apeai-vos e vede se há por aí uma
concha, e pegai uma galinha ou duas, e bom proveito vos façam.
- Não vejo nenhuma - respondeu Sancho.
- Esperai - disse o cozinheiro. - Pecador de mim, e que melindroso e
apoucado deveis ser!
E dizendo isto, pegou um caldeirão, e, encaixando-o em um dos
meios potes, pôs nele três galinhas e dois gansos, e disse a Sancho:
- Comei, amigo, e desjejuai-vos com esta espuma, enquanto chega a
hora do jantar.
- Não tenho em que levá-la - respondeu Sancho.
- Pois levai - disse o cozinheiro - a concha e tudo, que a riqueza e a
alegria de Camacho tudo supre.
Enquanto isto fazia Sancho, estava dom Quixote olhando como, por
uma parte da enramada, entravam até doze lavradores sobre doze
formosíssimas éguas, com ricos e vistosos jaezes de campo e com
muitos guizos nos peitorais, e todos vestidos de regozijo e festas; os
quais, em acertado tropel, correram não uma, senão muitas carreiras
pelo prado, com regozijada algazarra e grita, dizendo:
- Vivam Camacho e Quitéria: ele tão rico como ela formosa, e ela a
mais formosa do mundo!
Ouvindo o que dom Quixote, disse entre si:
- Bem parece que estes não viram a minha Dulcineia do Toboso, que
se a houvessem visto, eles se moderariam nas louvações desta sua
Quitéria.
Dali a pouco começaram a entrar por diversas partes da enramada
muitas e diferentes danças, entre as quais vinha uma de espadas, de
até vinte e quatro rapazes de galhardo parecer e brio, todos vestidos
de delgado e branquíssimo tecido, com suas toucas, lavradas de várias
cores de fina seda; e ao que os guiava, que era um ligeiro mancebo,
perguntou um dos das éguas se se havia ferido algum dos dançantes.
- Por agora, bendito seja Deus, não se feriu ninguém: todos vamos
sãos.
E logo começou a enredar-se com os demais companheiros, com
tantas voltas e com tanta destreza que, embora dom Quixote estava
afeito a ver semelhantes danças, nenhuma lhe havia parecido tão bem
como aquela.
Também lhe pareceu bem outra que entrou de donzelas
formosíssimas, tão moças que, ao parecer, nenhuma baixava de
quatorze nem chegava a dezoito anos, vestidas todas de luxuoso
tecido verde, os cabelos parte trançados e parte soltos, mas todos
tão loiros, que com os do sol podiam competir, sobre os quais traziam
grinaldas compostas de jasmins, rosas, amaranto e madressilva.
Guiava-as um venerável velho e uma anciã matrona, mas mais ligeiros e
soltos que seus anos prometiam. Fazia-lhes o som uma gaita zamorana,
e elas, levando nos rostos e nos olhos a honestidade e nos pés a
ligeireza, se mostravam as melhores bailadoras do mundo.
Depois desta entrou outra dança de artifício e das que chamam
faladas. Era de oito ninfas, repartidas em duas fileiras: de uma fileira
era guia o deus Cupido, e da outra, o Interesse; aquele, adornado de
asas, arco, aljava e setas; este, vestido de ricas e diversas cores de
ouro e seda. As ninfas que ao Amor seguiam traziam às costas, em
pergaminho branco e letras grandes, escritos seus nomes: Poesia era o
título da primeira, o da segunda Discrição, o da terceira Boa linhagem,
o da quarta Valentia; do modo mesmo vinham assinaladas as que ao
Interesse seguiam: dizia Liberalidade o título da primeira, Dádiva o da
segunda, Tesouro o da terceira, e o da quarta, Possessão pacífica.
Adiante de todos vinha um castelo de madeira, o qual puxavam quatro
selvagens, todos vestidos de hera e de cânhamo tingido de verde, tão
ao natural, que por pouco espantaram Sancho. Na fronteira do castelo
e em todas as quatro partes de seus quadros trazia escrito: Castelo
do bom recato. Faziam-lhes o som quatro destros tocadores de
tamborim e flauta.
Começava a dança Cupido, e havendo feito dois passos, alçava os
olhos e flechava o arco contra uma donzela que se punha entre as
ameias do castelo, à qual desta sorte disse:

- Eu sou o deus poderoso


no ar e na terra
e no largo mar undoso,
e em quanto o abismo encerra
em seu báratro espantoso.
Nunca conheci o que é medo;
todo quanto quero posso,
embora queira o impossível,
e em tudo o que é possível
mando, tiro, ponho e vedo.

Acabou a copla, disparou uma flecha pelo alto do castelo e retirou-


se a seu posto. Saiu logo o Interesse, e fez outros dois passos;
calaram os tamborins, e ele disse:

- Sou quem pode mais que Amor,


e é Amor o que me guia;
sou da estirpe melhor
que o céu na terra cria,
mais conhecida e maior.
Sou o Interesse, em quem
poucos costumam obrar bem,
e obrar sem mim é grande milagre;
e qual sou te me consagro,
por sempre jamais, amém.

Retirou-se o Interesse, e adiantou-se a Poesia; a qual, depois de


haver feito seus passos como os demais, postos os olhos na donzela do
castelo, disse:

- Em dulcíssimos conceitos,
A dulcíssima Poesia,
altos, graves e discretos,
senhora, a alma te envia
envolta entre mil sonetos.
Se acaso não te importuna
minha porfia, tua fortuna,
de outras muitas invejada,
será por mim levantada
sobre o cerco da lua.

Desviou-se a Poesia, e da parte do Interesse saiu a Liberalidade, e,


depois de feitas seus mudanças, disse:
- Chamam Liberalidade
ao dar que do extremo foge
da prodigalidade,
e do contrário, que argui
tíbia e frouxa vontade.
Mas eu, por te engrandecer,
de hoje mais, pródiga hei de ser;
que, embora é vício, é vício honrado
e de peito enamorado,
que no dar se vê.

Deste modo saíram e se retiraram todas as duas figuras das duas


esquadras, e cada um fez seus passos e disse seus versos, alguns
elegantes e alguns ridículos, e só tomou de memória dom Quixote -
que a tinha grande - os já referidos; e logo se misturaram todos,
fazendo e desfazendo laços com gentil donaire e desenvoltura; e
quando passava o Amor por diante do castelo, disparava para o alto
suas flechas, mas o Interesse quebrava nele alcanzias douradas.
Finalmente, depois de haver bailado um bom espaço, o Interesse
tirou um surrão feito do pelo de um grande gato romano, que parecia
estar cheio de dinheiros, e, arrojando-o ao castelo, com o golpe se
desencaixaram as tábuas e caíram, deixando a donzela descoberta e
sem defesa alguma.
Chegou o Interesse com as figuras de sua turma, e, pondo-lhe uma
grande corrente de ouro ao pescoço, mostraram prendê-la, rendê-la e
cativá-la; o qual visto pelo Amor e seus valedores, fizeram gesto de
tomá-la; e todas as demonstrações que faziam eram ao som dos
tamborins, bailando e dançando concertadamente. Puseram-nos em paz
os selvagens, os quais com muita presteza voltaram a armar e a
encaixar as tábuas do castelo, e a donzela se encerrou nele de novo, e
com isto acabou a dança com grande contentamento dos que a
olhavam.
Perguntou dom Quixote a uma das ninfas quem a havia composto e
ordenado. Respondeu-lhe que um beneficiado daquele povoado, que
tinha gentil entendimento para semelhantes invenções.
- Eu apostarei - disse dom Quixote - que deve ser mais amigo de
Camacho que de Basílio o tal bacharel ou beneficiado, e que deve ter
mais de satírico que de rezar vésperas: bem encaixou na dança as
habilidades de Basílio e as riquezas de Camacho!
Sancho Pança, que escutava tudo, disse:
- O rei é meu galo: a Camacho me atenho.
- Enfim - disse dom Quixote, - bem se parece, Sancho, que és vilão
e daqueles que dizem: “Viva quem vence!”
- Não sei dos que sou - respondeu Sancho, - mas bem sei que nunca
de panelas de Basílio tirarei eu tão elegante espuma como é esta que
tirei das de Camacho.
E mostrou-lhe o caldeirão cheio de gansos e de galinhas, e, pegando
uma, começou a comer com muito donaire e vontade, e disse:
- À conta das habilidades de Basílio!, que tanto vales quanto tens,
e tanto tens quanto vales. Duas linhagens só há no mundo, como dizia
uma avó minha, que são o ter e o não ter, embora ela ao do ter se
ativesse; e o dia de hoje, meu senhor dom Quixote, antes se toma o
pulso ao haver que ao saber: um asno coberto de ouro parece melhor
que um cavalo albardado. Assim que volto a dizer que a Camacho me
atenho, de cujas panelas são abundantes espumas gansos e galinhas,
lebres e coelhos; e das de Basílio serão, se vem a mão, e embora não
venha senão ao pé, aguapé.
- Acabaste tua arenga, Sancho? - disse dom Quixote.
- Acabei - respondeu Sancho, - porque vejo que vossa mercê recebe
pesar com ela; que se isto não se pusesse de por meio, assunto havia
para murmurar para três dias.
- Praza a Deus, Sancho - replicou dom Quixote, - que eu te veja
mudo antes que eu morra.
- Ao passo que vamos - respondeu Sancho, - antes que vossa mercê
morra estarei eu mascando barro, e então poderá ser que esteja tão
mudo que não fale palavra até o fim do mundo, ou, pelo menos, até o
dia do juízo.
- Embora isso assim suceda, oh Sancho! - respondeu dom Quixote, -
nunca chegará teu silêncio onde chegou o que falaste, falas e tens de
falar em tua vida; e mais, que está muito posto em razão natural que
primeiro chegue o dia de minha morte que o da tua; e assim, jamais
penso ver-te mudo, nem ainda quando estejas bebendo ou dormindo,
que é o que posso encarecer.
- À boa fé, senhor - respondeu Sancho, - que não há que confiar na
descarnada, digo, na morte, a qual também come cordeiro como
carneiro; e a nosso padre ouvi dizer que com igual pé pisava as altas
torres dos reis como as humildes choças dos pobres. Tem esta
senhora mais de poder que de melindre: não tem asco de nada, de tudo
come e a tudo se acomoda, e de toda sorte de gentes, idades e
preeminências enche seus alforjes. Não é segador que dorme as
sestas, que a todas horas sega, e corta assim a seca como a verde
erva; e não parece que mastiga, senão que engole e traga quanto se lhe
põe diante, porque tem fome canina, que nunca se farta; e, embora não
tem barriga, dá a entender que está hidrópica e sedenta de beber
unicamente as vidas de quantos vivem, como quem bebe um jarro de
água fria.
- Não mais, Sancho - disse então dom Quixote. - Anima-te, e não te
deixes vencer; que em verdade o que disseste da morte por teus
rústicos termos é o que poderia dizer um bom pregador. Digo-te,
Sancho, que se como tens bom natural e discrição, poderias tomar um
púlpito na mão e ir por esse mundo pregando lindezas.
- Bem prega quem bem vive - respondeu Sancho, - e eu não sei
outras tologias.
- Nem as precisas - disse dom Quixote; - mas eu não acabo de
entender nem alcançar como, sendo o princípio da sabedoria o temor
de Deus, tu, que temes mais a um lagarto que a Ele, sabes tanto.
- Julgue vossa mercê, senhor, de suas cavalarias - respondeu
Sancho, - e não se meta em julgar dos temores ou valentias alheias,
que tão gentil temeroso sou eu de Deus como cada filho de vizinho; e
deixe-me vossa mercê devorar esta espuma, que o demais todas são
palavras ociosas, de que nos hão de pedir conta na outra vida.
E dizendo isto, começou de novo a dar assalto a seu caldeirão, com
tão bons apetites, que despertou os de dom Quixote, e sem dúvida o
ajudaria, se não o impedisse o que é forçoso se diga adiante.

CAPÍTULO XXI

Onde prosseguem as bodas de Camacho, com outros gostosos


sucessos

Quando estavam dom Quixote e Sancho nas razões referidas no


capítulo antecedente, ouviram-se grandes vozes e grande ruído, e
davam-nas e causavam-no os das éguas, que com larga carreira e grita
iam receber os noivos, que, rodeados por mil gêneros de instrumentos
e de invenções, vinham acompanhados do padre, e da parentela de
ambos, e de toda a gente mais importante dos lugares circunvizinhos,
todos vestidos de festa. E quando Sancho viu a noiva, disse:
- À boa fé que não vem vestida de lavradora, senão de formosa
palaciana. Por Deus, que segundo diviso, os medalhões que traz são
ricos corais, e a palmilha verde de Cuenca é veludo de trinta cores! E
por minha fé que o adorno é de tiras de fino tecido branco! Voto a
mim que é de seda!; ora, vede as mãos, adornadas com anéis de
azeviche! Não viva eu se não são anéis de ouro, e muito de ouro, e
empedrados com pérolas brancas como uma coalhada, que cada uma
deve valer um olho da cara. Oh fideputa, e que cabelos; que se não são
postiços, não os vi mais longos nem mais loiros em toda minha vida!
Não, não ponhais defeito no brio e no talhe, e comparai-a a uma palma
que se move carregada com cachos de tâmaras, que o mesmo parecem
os enfeites que traz pendentes dos cabelos e da garganta! Juro em
minha alma que ela é uma moça de tal valia que pode enfrentar os
perigos de Flandres.
Riu-se dom Quixote das rústicas louvações de Sancho Pança;
pareceu-lhe que, sem contar sua senhora Dulcineia do Toboso, não
havia visto mulher mais formosa jamais. Vinha a formosa Quitéria algo
descolorida, e devia ser da má noite que sempre passam as noivas em
compor-se para o dia vindouro de suas bodas. Iam-se acercando a um
teatro que a um lado do prado estava, adornado de alfombras e ramos,
onde se haviam de fazer os desposórios, e de onde haviam de olhar as
danças e as invenções; e, quando chegavam ao posto, ouviram a suas
costas grandes vozes, e uma que dizia:
- Esperai um pouco, gente tão inconsiderada como apressada.
A cujas vozes e palavras todos voltaram a cabeça, e viram que as
dava um homem vestido, ao parecer, com um saio negro adornado de
seda vermelha. Vinha coroado - como se viu logo - com uma coroa de
funesto cipreste; nas mãos trazia um bastão grande. Chegando mais
perto, foi conhecido por todos como o galhardo Basílio, e todos
estiveram suspensos, esperando em que haviam de parar suas vozes e
suas palavras, temendo algum mau sucesso de sua vinda em momento
semelhante.
Chegou, enfim, cansado e sem alento, e, posto diante dos
desposados, fincando o bastão no chão, que tinha a ponteira de aço,
mudada a cor, postos os olhos em Quitéria, com voz tremente e rouca,
estas palavras disse:
- Bem sabes, ingrata Quitéria, que conforme à santa lei que
professamos, que vivendo eu, tu não podes tomar esposo; e
juntamente não ignoras que, por esperar eu que o tempo e minha
diligência melhorassem os bens de minha fortuna, não quis deixar de
guardar o decoro que à tua honra convinha; mas tu, dando as costas a
todas as obrigações que deves a meu bom desejo, queres fazer senhor
do que é meu a outro, cujas riquezas lhe servem não só de boa
fortuna, senão de boníssima ventura. E para que a tenha cheia, e não
como eu penso que a merece, senão como a querem dar os céus, eu, por
minhas mãos, desfarei o impossível ou o inconveniente que pode
perturbá-la, tirando-me de por meio. Viva, viva o rico Camacho com a
ingrata Quitéria largos e felizes séculos, e morra, morra o pobre
Basílio, cuja pobreza cortou as asas de sua felicidade e o pôs na
sepultura!
E dizendo isto, pegou o bastão que tinha fincado no chão, e,
ficando a metade dele na terra, mostrou que servia de bainha a uma
mediana espada larga que nele se ocultava; e, posta a que se podia
chamar empunhadura no chão, com ligeiro desenfado e determinado
propósito se arrojou sobre ela, e num instante mostrou a ponta
sangrenta às costas, com a metade da afiada lâmina, ficando o triste
banhado em seu sangue e estendido no chão, de suas mesmas armas
transpassado.
Acudiram logo seus amigos a socorrê-lo, condoídos de sua miséria e
lastimosa desgraça; e, deixando dom Quixote Rocinante, acudiu a
socorrê-lo e o tomou em seus braços, e achou que ainda não havia
expirado. Quiseram-lhe tirar a espada, mas o padre, que estava
presente, foi de parecer que não a tirassem antes de confessá-lo,
porque o tirar e o expirar seria tudo a um tempo. Mas, voltando um
pouco a si Basílio, com voz dolente e desmaiada disse:
- Se quisesses, cruel Quitéria, dar-me neste último e forçoso
transe a mão de esposa, ainda pensaria que minha temeridade teria
desculpa, pois nela alcancei o bem de ser teu.
O padre, ouvindo o que, disse-lhe que atendesse à saúde da alma
antes que aos gostos do corpo, e que pedisse muito de verdade a Deus
perdão de seus pecados e de sua desesperada determinação. A que
replicou Basílio que de maneira alguma se confessaria se primeiro
Quitéria não lhe desse a mão para ser sua esposa: que aquela alegria
lhe aumentaria a vontade e lhe daria alento para confessar-se.
Ouvindo dom Quixote a petição do ferido, em elevado estilo disse
que Basílio pedia uma coisa muito justa e posta em razão, e ademais,
muito fácil de fazer, e que o senhor Camacho ficaria tão honrado
recebendo a senhora Quitéria viúva do valoroso Basílio como se a
recebesse de seu pai:
- Aqui não há de haver mais de um sim, que não tenha outro efeito
que o pronunciá-lo, pois o tálamo destas bodas há de ser a sepultura.
Tudo o ouvia Camacho, e tudo o tinha suspenso e confuso, sem saber
que fazer nem que dizer; mas as vozes dos amigos de Basílio foram
tantas, pedindo-lhe que consentisse que Quitéria lhe desse a mão de
esposa, para que sua alma não se perdesse, partindo desesperada
desta vida, que o moveram, e ainda forçaram, a dizer que se Quitéria
quisesse dá-la, que ele se contentaria, pois tudo era dilatar por um
momento o cumprimento de seus desejos.
Logo foram todos a Quitéria, e uns com rogos, e outros com
lágrimas, e outros com eficazes razões, a persuadiam que desse a mão
ao pobre Basílio; e ela, mais dura que um mármore e mais quieta que
uma estátua, mostrava que nem sabia nem podia, nem queria responder
palavra; nem a responderia se o padre não lhe dissesse que se
decidisse logo sobre o que havia de fazer, porque tinha Basílio já a
alma nos dentes, e não dava lugar a esperar irresolutas decisões.
Então a formosa Quitéria, sem responder palavra alguma,
perturbada, ao parecer triste e pesarosa, chegou onde Basílio estava,
já os olhos esbugalhados, o alento curto e acelerado, murmurando
entre os dentes o nome de Quitéria, dando mostras de morrer como
gentio, e não como cristão. Chegou, enfim, Quitéria, e posta de
joelhos, lhe pediu a mão por sinais, e não por palavras. Arregalou os
olhos Basílio, e, olhando-a atentamente, disse-lhe:
- Oh Quitéria, que hás vindo a ser piedosa a tempo quando tua
piedade há de servir de faca que me acabe de tirar a vida, pois já não
tenho forças para levar a glória que me dás em escolher-me por teu,
nem para suspender a dor que tão depressa me vai cobrindo os olhos
com a espantosa sombra da morte! O que te suplico é, oh fatal estrela
minha!, que a mão que me pedes e queres dar-me não seja por
cumprimento, nem para enganar-me de novo, senão que confesses e
digas que, sem forçar tua vontade, ma entregas e ma dás como a teu
legítimo esposo; pois não é razão que num transe como este me
enganes, nem uses de fingimentos com quem tantas verdades conviveu
contigo.
Entre estas razões, desmaiava, de modo que todos os presentes
pensavam que cada desmaio havia de levar sua alma consigo. Quitéria,
toda honesta e toda envergonhada, tomando com sua mão direita a de
Basílio, disse-lhe:
- Nenhuma força seria bastante para torcer minha vontade; e
assim, com a mais livre que tenho te dou a mão por legítima esposa e
recebo a tua, se é que ma dás de teu livre alvedrio, sem que a
perturbe nem contraste a calamidade em que teu louco arrazoado te
pôs.
- Sim, dou - respondeu Basílio, - não perturbado nem confuso, senão
com o claro entendimento que o céu quis dar-me; e assim, me dou e me
entrego por teu esposo.
- E eu por tua esposa - respondeu Quitéria, - agora vivas largos
anos, agora te levem de meus braços à sepultura.
- Para estar tão ferido este mancebo - disse então Sancho Pança, -
muito fala; façam que se deixe de requebros e que atenda à sua alma,
que, a meu parecer, mais a tem na língua que nos dentes.
Estando, pois, presos das mãos Basílio e Quitéria, o padre, terno e
choroso, lhes deu a bênção e pediu ao céu desse bom pouso à alma do
novo desposado; o qual, assim que recebeu a bênção, com presta
ligeireza se levantou, e com não vista desenvoltura tirou a espada, à
qual servia de bainha seu corpo. Ficaram todos os circunstantes
admirados, e alguns deles, mais simples que sagazes, em altas vozes,
começaram a dizer:
- Milagre, milagre!
Mas Basílio replicou:
- Não milagre, milagre, senão indústria, indústria!
O padre, perturbado e atônito, acudiu com ambas as mãos a apalpar
a ferida, e achou que a lâmina havia passado, não pela carne e costelas
de Basílio, senão por um tubo oco de ferro que, cheio de sangue,
naquele lugar bem acomodado tinha, preparado o sangue, segundo
depois se soube, de modo que não coagulasse.
Finalmente, o padre e Camacho, com todos os mais circunstantes, se
tiveram por burlados e escarnecidos. A esposa não deu mostras de
pesar-lhe a burla; antes, ouvindo dizer que aquele casamento, por
haver sido enganoso, não havia de ser válido, disse que ela o
confirmava de novo; do qual concluíram todos que com consentimento
e sabedoria dos dois se havia planejado aquele caso, do que ficou
Camacho e seus valedores tão vexados que puseram sua vingança em
prática, e, desembainhando muitas espadas, atacaram Basílio, em cujo
favor num instante se desembainharam quase outras tantas. E
tomando a dianteira a cavalo dom Quixote, com a lança sobre o braço
e bem coberto de seu escudo, forçava passagem. Sancho, a quem
jamais agradaram nem divertiram semelhantes coisas, se chegou aos
potes, onde havia tirado sua agradável espuma, parecendo-lhe aquele
lugar como sagrado, que havia de ser tido com respeito. Dom Quixote,
a grandes vozes, dizia:
- Detende-vos, senhores, detende-vos, que não é razão tomeis
vingança dos agravos que o amor nos faz; e adverti que o amor e a
guerra são uma mesma coisa, e assim que na guerra é coisa lícita e
costumeira usar de ardis e estratagemas para vencer o inimigo, assim
nas contendas e competências amorosas se têm por bons os embustes
e maranhas que se fazem para conseguir o fim que se deseja, como
não sejam em menoscabo e desonra da coisa amada. Quitéria era de
Basílio, e Basílio de Quitéria, por justa e favorável disposição dos
céus. Camacho é rico, e poderá comprar seu gosto quando, onde e
como quiser. Basílio não tem mais que esta ovelha, e não a há de tirar
algum, por poderoso que seja; que os dois que Deus junta não poderá
separar o homem; e o que o intentar, primeiro há de passar pela ponta
desta lança.
E nisto, a brandiu tão forte e tão destramente, que pôs pavor em
todos os que não o conheciam, e tão intensamente se fixou na
imaginação de Camacho o desdém de Quitéria, que a apagou da
memória em um instante; e assim, convenceram-no as persuasões do
padre, que era varão prudente e bem intencionado, com as quais ficou
Camacho e os de sua turma pacíficos e sossegados, em sinal do que
voltaram as espadas a seus lugares, culpando mais a facilidade de
Quitéria que a indústria de Basílio, falando Camacho que se Quitéria
queria bem a Basílio donzela, também o quisera casada, e que devia
dar graças ao céu, mais por havê-la tirado que por havê-la dado.
Consolado, pois, e pacífico Camacho e os de seu bando, todos os de
Basílio se sossegaram, e o rico Camacho, para mostrar que não sentia a
burla, nem a estimava em nada, quis que as festas continuassem como
se realmente tivesse desposado; mas não quiseram assistir a elas
Basílio nem sua esposa nem sequazes, e assim, se foram à aldeia de
Basílio, que também os pobres virtuosos e discretos têm quem os siga,
honre e ampare, como os ricos têm quem os lisonjeie e acompanhe.
Levaram consigo dom Quixote, estimando-o por homem de valor e
pelo no peito. Só a Sancho se lhe escureceu a alma, por ver-se
impossibilitado de aguardar a esplêndida comida e festas de Camacho,
que duraram até a noite; e assim, agoniado e triste, seguiu seu senhor,
que com a quadrilha de Basílio ia, e assim deixou atrás as panelas do
Egito, embora as levasse na alma, cuja já quase consumida e acabada
espuma, que no caldeirão levava, lhe representava a glória e a
abundância do bem que perdia; e assim, angustiado e pensativo,
embora sem fome, sem apear-se do ruço, seguiu as pegadas de
Rocinante.

CAPÍTULO XXII

Onde se dá conta da grande aventura da Cova de Montesinos, que


está no coração da Mancha, a que deu feliz final o valoroso dom
Quixote da Mancha

Grandes foram e muitos os regalos que os desposados fizeram a


dom Quixote, obrigados das mostras que havia dado defendendo sua
causa, e a par da valentia lhe louvaram a discrição, tendo-o por um Cid
nas armas e por um Cícero na eloquência. O bom Sancho se refocilou
três dias à custa dos noivos, dos quais se soube que não foi manha
combinada com a formosa Quitéria o ferir-se fingidamente, senão
indústria de Basílio, esperando dela o mesmo procedimento que se viu:
bem é verdade que confessou que havia dado parte de seu pensamento
a alguns de seus amigos, para que ao tempo necessário favorecessem
sua intenção e abonassem seu engano.
- Não se podem nem devem chamar enganos - disse dom Quixote -
os que põem a mira em virtuosos fins.
E que o de casar-se os enamorados era o fim de mais excelência,
advertindo que o maior contrário que o amor tem é a fome e a
contínua necessidade, porque o amor é todo alegria, regozijo e
contentamento, e mais quando o amante está em possessão da coisa
amada, contra quem são inimigos opostos e declarados a necessidade e
a pobreza; e que tudo isto dizia com intenção de que deixasse o
senhor Basílio de exercitar as habilidades que sabe, que, embora lhe
dessem fama, não lhe davam dinheiros, e que atendesse a granjear
bens por meios lícitos e industriosos, que nunca faltam aos prudentes
e aplicados.
- O pobre honrado (se é que pode ser honrado o pobre) tem prenda
em ter mulher formosa, que, quando a tiram, lhe tiram a honra e a
matam. A mulher formosa e honrada, cujo marido é pobre, merece ser
coroada com lauréis e palmas de vencimento e triunfo. A formosura,
por si só, atrai as vontades de quantos a olham e conhecem, e como a
chamariz gostoso se precipitam as águias reais e os pássaros
altaneiros; mas se à tal formosura se lhe junta a necessidade e a
estreiteza, também a investem os corvos, os falcões e as outras aves
de rapina; e a que está a tantos encontros firme bem merece chamar-
se coroa de seu marido. Vede, discreto Basílio - acrescentou dom
Quixote: - opinião foi de não sei que sábio que não havia em todo o
mundo senão uma só mulher boa, e dava por conselho que cada um
pensasse e cresse que aquela única boa era a sua, e assim viveria
contente. Eu não sou casado, nem até agora me veio em pensamento
sê-lo; e, mesmo assim, me atreveria a dar conselho ao que mo pedisse
do modo que havia de buscar a mulher com quem se quisesse casar. A
primeira coisa, aconselhá-lo-ia que mirasse mais à fama que aos bens,
porque a boa mulher não alcança a boa fama somente com ser boa,
senão com parecê-lo; que muito mais danam às honras das mulheres as
desenvolturas e liberdades públicas que as maldades secretas. Se
trazes boa mulher à tua casa, fácil coisa seria conservá-la, e ainda
melhorá-la, naquela bondade; mas se a trazes má, trabalho te dará o
emendá-la: que não é muito fácil fazer passar de um extremo a outro.
Eu não digo que seja impossível, mas tenho-o por dificultoso.
Ouvia tudo isto Sancho, e disse entre si:
- Este meu amo, quando eu falo coisas de miolo e de substância
costuma dizer que poderia eu tomar um púlpito nas mãos e ir-me por
esse mundo adiante pregando lindezas; e eu digo dele que quando
começa a emendar sentenças e a dar conselhos, não só pode tomar
púlpito nas mãos, senão dois em cada dedo, e andar por essas praças
sendo muito bem tratado. Valha-te o diabo por cavaleiro andante, que
tantas coisas sabes! Eu pensava em minha alma que só podia saber
aquilo que tocava a suas cavalarias, mas não há coisa onde não bique e
deixe de meter sua colher.
Murmurava isto Sancho, e entreouviu-lhe seu senhor, e perguntou-
lhe:
- O que murmuras, Sancho?
- Não digo nada, nem murmuro sobre nada - respondeu Sancho; - só
estava dizendo entre mim que quisera ter ouvido o que vossa mercê
aqui disse antes que me casasse, pois quiçá diria eu agora: “O boi solto
bem se lambe”.
- Tão má é tua Teresa, Sancho? - disse dom Quixote.
- Não é muito má - respondeu Sancho, - mas não é muito boa; ao
menos, não é tão boa como eu quisera.
- Mal fazes, Sancho - disse dom Quixote, - em dizer mal de tua
mulher, que, com efeito, é mãe de teus filhos.
- Não nos devemos nada - respondeu Sancho, - que também ela diz
mal de mim quando deseja, especialmente quando está com ciúmes, que
então aguente-a o mesmo Satanás.
Finalmente, três dias estiveram com os noivos, onde foram
regalados e servidos como reis. Pediu dom Quixote ao destro
licenciado lhe arranjasse um guia que o encaminhasse à cova de
Montesinos, porque tinha grande desejo de entrar nela e ver a olhos
vistos se eram verdadeiras as maravilhas que dela se diziam por todos
aqueles contornos. O licenciado lhe disse que lhe arranjaria um primo
seu, famoso estudioso e muito aficionado a ler livros de cavalarias, o
qual com muita vontade o poria à boca da mesma cova, e lhe mostraria
as lagoas de Ruidera, famosas também em toda a Mancha, e ainda em
toda a Espanha; e disse-lhe que teria com ele gostoso entretenimento,
porque era moço que sabia fazer livros para imprimir e para dedicá-los
a príncipes. Finalmente, o primo veio com uma asninha prenhe, cuja
albarda cobria um colorido tapete ou saco de aniagem. Sancho encilhou
Rocinante e o ruço, proveu todos os alforjes, os quais acompanharam
os do primo, também bem providos, e, encomendando-se a Deus e
despedindo-se de todos, se puseram a caminho, tomando a rota da
famosa cova de Montesinos.
No caminho perguntou dom Quixote ao primo de que gênero e
qualidade eram suas ocupações, sua profissão e estudos; ao que ele
respondeu que sua profissão era ser humanista; seus exercícios e
estudos, compor livros para dar à estampa, todos de grande proveito e
não menos entretenimento para a república; que um se intitulava o das
librés, onde pinta setecentas e três librés, com suas cores, motes e
cifras, de donde podiam tirar e tomar as que quisessem em tempo de
festas e regozijos os cavaleiros cortesãos, sem andá-las mendigando
de ninguém, nem esquentando, como dizem, o cérebro, por obtê-las
conformes a seus desejos e intenções.
- Porque dou ao zeloso, ao desdenhado, ao olvidado e ao ausente as
que lhes convêm, que lhes virão mais justas que pecadoras. Outro livro
tenho também, a quem hei de chamar Metamorfose, ou Ovídio
espanhol, de invenção nova e rara; porque nele, imitando Ovídio ao
burlesco, pinto quem foi a Giralda de Sevilha e o Anjo da Madalena,
quem o Cano de Vecinguerra, de Córdova, quem os Touros de Guisando,
a Serra Morena, as fontes de Leganitos e Lavapés, em Madri, não
olvidando-me da do Piolho, da do Cano Dourado e da Priora; e isto, com
suas alegorias, metáforas e translações, de modo que alegram,
suspendem e ensinam a um mesmo ponto. Outro livro tenho, que o
chamo Suplemento a Virgílio Polidoro, que trata da invenção das
coisas, que é de grande erudição e estudo, porque as coisas que deixou
de dizer Polidoro de grande substância, as averiguo eu, e as declaro
em gentil estilo. Olvidou-se Virgílio de declarar-nos quem foi o
primeiro que teve catarro no mundo, e o primeiro que tomou as unções
para curar-se do morbo gálico, e eu o declaro ao pé da letra, e o
autorizo com mais de vinte e cinco autores: porque veja vossa mercê
se trabalhei bem e se há de ser útil o tal livro a todo o mundo.
Sancho, que havia estado muito atento à narração do primo, disse-
lhe:
- Diga-me, senhor, assim Deus lhe dê boa sorte na impressão de
seus livros: saber-me-ia dizer, que sim saberá, pois tudo o sabe, quem
foi o primeiro que coçou a cabeça, que eu para mim tenho que deveu
ser nosso pai Adão?
- Sim, seria - respondeu o primo, - porque Adão não há dúvida senão
que teve cabeça e cabelos; e, sendo isto assim, e sendo o primeiro
homem do mundo, alguma vez se coçaria.
- Assim o creio eu - respondeu Sancho; - mas diga-me agora: quem
foi o primeiro acrobata do mundo?
- Em verdade, irmão - respondeu o primo, - que não saberei
determinar agora, até que o estude. Eu o estudarei, voltando onde
tenho meus livros, e eu vos satisfarei quando outra vez nos vejamos,
que não há de ser esta a derradeira.
- Pois veja, senhor - replicou Sancho, - não tome trabalho nisto, que
agora caí na conta do que lhe perguntei. Saiba que o primeiro acrobata
do mundo foi Lúcifer, quando o jogaram ou arrojaram do céu, que veio
rodopiando até os abismos.
- Tens razão, amigo - disse o primo.
E disse dom Quixote:
- Essa pergunta e resposta não é tua, Sancho: a alguém as ouviste
dizer.
- Cale, senhor - replicou Sancho, - que à boa fé que se me dou a
perguntar e a responder, que não acabe daqui até amanhã. Sim, que
para perguntar necedades e responder disparates não preciso eu
andar buscando ajuda de vizinhos.
- Mais disseste, Sancho, do que sabes - disse dom Quixote; - que há
alguns que se cansam em saber e averiguar coisas que, depois de
sabidas e averiguadas, não importam um tostão ao entendimento nem à
memória.
Nestas e outras gostosas conversas se lhes passou aquele dia, e à
noite se albergaram em uma pequena aldeia, onde o primo disse a dom
Quixote que dali à cova de Montesinos não havia mais de duas léguas,
e que se tinha determinado entrar nela, era preciso prover-se de
cordas, para atar-se e descer em seu fundo.
Dom Quixote disse que, embora chegasse ao abismo, havia de ver
onde parava; e assim, compraram quase cem braças de corda, e no
outro dia, às duas da tarde, chegaram à cova, cuja boca é espaçosa e
larga, mas cheia de arbustos espinhosos e figueiras silvestres, de
sarças e moitas, tão espessas e intrincadas, que de todo em todo a
cegam e encobrem. Vendo-a, apearam o primo, Sancho e dom Quixote,
ao que os dois o ataram logo fortissimamente com as cordas; e,
enquanto o enfaixavam e cingiam, disse-lhe Sancho:
- Veja vossa mercê, senhor meu, o que faz: não se queira sepultar
em vida, nem se ponha onde pareça frasco que põem a esfriar em
algum poço. Sim, que a vossa mercê não lhe toca nem atém ser o
esquadrinhador desta que deve ser pior que masmorra.
- Ata e cala - respondeu dom Quixote, - que tal empresa como esta,
Sancho amigo, para mim estava guardada.
E então disse o guia:
- Suplico a vossa mercê, senhor dom Quixote, que veja bem e
especule com cem olhos o que há lá dentro: quiçá haverá coisas que as
ponha eu no livro de minhas Transformações.
- Em mãos está o pandeiro que saberá bem tocar - respondeu
Sancho Pança.
Dito isto e acabada a ligadura de dom Quixote (que não foi sobre o
arnês, senão sobre o gibão de armar), disse dom Quixote:
- Inadvertidos estivemos em não haver-nos provido de alguma
campainha pequena, que seria atada junto a mim nesta mesma corda,
com cujo som se entendesse que ainda baixava e estava vivo; mas, pois
já não é possível, à mão de Deus, que me guie.
E logo ficou de joelhos e fez uma oração em voz baixa ao céu,
pedindo a Deus o ajudasse e lhe desse bom sucesso naquela, ao
parecer, perigosa e nova aventura, e em voz alta disse depois:
- Oh senhora de minhas ações e movimentos, claríssima e sem par
Dulcineia do Toboso! Se é possível que cheguem a teus ouvidos as
preces e rogos deste teu venturoso amante, por tua inaudita beleza te
rogo as escutes, que não são outras que rogar-te não me negues teu
favor e amparo, agora que tanto preciso. Eu vou despenhar-me, a
empoçar-me e a afundar-me no abismo que aqui se me apresenta, só
para que conheça o mundo que se tu me favoreces, não haverá
impossível que eu não enfrente e vença.
E dizendo isto, se acercou à caverna; viu não ser possível
despendurar-se, nem entrar, se não era à força de braços, ou a
cutiladas, e assim, pondo mão à espada, começou a derribar e a cortar
aquelas moitas que à boca da cova estavam, por cujo ruído e estrondo
saíram por ela uma infinidade de grandíssimos corvos e gralhos, tão
espessos e com tanta pressa, que deram com dom Quixote no chão; e
se ele fosse tão supersticioso como católico cristão, o teria por mau
sinal e recusaria encerrar-se em lugar semelhante.
Finalmente se levantou, e, vendo que não saíam mais corvos nem
outras aves noturnas, como fossem morcegos, que também entre os
corvos saíram, dando-lhe corda o primo e Sancho, se deixou ir ao
fundo da caverna espantosa; e, ao entrar, lançando-lhe Sancho sua
bênção e fazendo sobre ele mil cruzes, disse:
- Deus te guie e a Penha de França, junto com a Trindade de Gaeta,
flor, nata e espuma dos cavaleiros andantes! Lá vais, valentão do
mundo, coração de aço, braços de bronze! Deus te guie, outra vez, e te
traga livre e são à luz desta vida, que deixas por enterrar-te nesta
escuridão que buscas!
Quase as mesmas preces e imprecações fez o primo.
Ia dom Quixote dando vozes que lhe dessem corda e mais corda, e
eles a davam pouco a pouco; e quando as vozes, que acanaladas pela
cova saíam, deixaram de ouvir-se, já eles tinham desprendido as cem
braças de corda, e foram de parecer de trazer de volta dom Quixote,
pois não lhe podiam dar mais corda. Desse modo, se detiveram como
meia hora, ao cabo do qual tempo voltaram a recolher a corda com
muita facilidade e sem peso algum, sinal que lhes fez imaginar que dom
Quixote ficava dentro; e, crendo-o assim, Sancho chorava
amargamente e puxava com muita pressa por desenganar-se, mas,
chegando, a seu parecer, a pouco mais das oitenta braças, sentiram
peso, de que em extremo se alegraram. Finalmente, às dez viram
distintamente dom Quixote, a quem deu vozes Sancho, dizendo-lhe:
- Esteja vossa mercê muito bem de volta, senhor meu, que já
pensávamos que ficava lá para sempre.
Mas não respondia palavra dom Quixote; e, tirando-o de todo, viram
que trazia fechados os olhos, com mostras de estar adormecido.
Estenderam-no no chão e desamarraram-no, e mesmo assim não
despertava; mas tanto o viraram e reviraram, sacudiram e moveram,
que ao cabo de um bom tempo voltou a si, espreguiçando-se, bem como
se de algum grave e profundo sonho despertasse; e, olhando para um e
outro lado, como espantado, disse:
- Deus vo-lo perdoe, amigos; que me haveis tirado da mais saborosa
e agradável vida e vista que nenhum humano viu nem passou. Com
efeito, agora acabo de conhecer que todos os contentamentos desta
vida passam como sombra e sonho, ou murcham como a flor do campo.
Oh desditado Montesinos! Oh mal ferido Durandarte! Oh sem ventura
Belerma! Oh choroso Guadiana, e vós infelizes filhas de Ruidera, que
mostrais em vossas águas as que choraram vossos formosos olhos!
Com muita atenção escutavam o primo e Sancho as palavras de dom
Quixote, que as dizia como se com dor imensa as tirasse das
entranhas. Suplicaram lhes desse a entender o que dizia, e lhes
dissesse o que naquele inferno havia visto.
- Inferno o chamais? - disse dom Quixote. - Pois não o chameis
assim, porque não o merece, como logo vereis.
Pediu que lhe dessem algo de comer, que trazia grandíssima fome.
Estenderam a esteira do primo sobre a verde erva, serviram-se de
seus alforjes, e, sentados todos os três em bom amor e companhia,
merendaram e cearam, tudo junto. Levantada a esteira, disse dom
Quixote:
- Não se levante ninguém, e estai-me, filhos, todos atentos.

CAPÍTULO XXIII

Das admiráveis coisas que o exagerado dom Quixote contou que


havia visto na profunda cova de Montesinos, cuja impossibilidade e
grandeza faz com que se tenha esta aventura por falsa

As quatro da tarde seriam, quando o sol, coberto entre nuvens, com


luz escassa e moderados raios, deu ocasião a dom Quixote para que,
sem calor e cansaço, contasse a seus dois claríssimos ouvintes o que na
cova de Montesinos havia visto, e começou do modo seguinte:
- À obra de doze ou quatorze estados da profundidade desta
masmorra, à direita mão, se faz uma concavidade e espaço capaz de
poder caber nela um grande carro com suas mulas. Entra-lhe uma
pequena luz por uns resquícios ou buracos, que longe lhe respondem,
abertos na superfície da terra. Esta concavidade e espaço vi eu
quando já ia cansado e mofino de ver-me, pendente e pendurado da
corda, caminhar por aquela escura região abaixo, sem levar certo nem
determinado caminho; e assim, determinei entrar nela e descansar um
pouco. Dei vozes, pedindo-vos que não soltásseis mais corda até que eu
vo-lo dissesse, mas não devestes ouvir-me. Fui recolhendo a corda que
enviáveis, e, fazendo dela uma rosca ou monte, me sentei sobre ele,
muito pensativo, considerando o que fazer devia para chegar ao fundo,
não tendo quem me sustentasse; e, estando neste pensamento e
confusão, de repente e sem procurá-lo, me assaltou um sono
profundíssimo; e, quando menos o pensava, sem saber como, nem como
não, despertei dele e me achei na meio do mais belo, ameno e deleitoso
prado que pode criar a natureza nem imaginar a mais discreta
imaginação humana. Espertei os olhos, limpei-os, e vi que não dormia,
senão que realmente estava desperto; desse modo, me apalpei a
cabeça e os peitos, para certificar-me se era eu mesmo o que ali
estava, ou algum fantasma vão e contrafeito; mas o tato, o
sentimento, os discursos concertados que entre mim fazia, me
certificaram que eu era ali então o que sou aqui agora. Ofereceu-se-
me depois à vista um real e suntuoso palácio ou alcácer, cujos muros e
paredes pareciam de transparente e claro cristal fabricados; do qual
abrindo-se duas grandes portas, vi que por elas saía e até mim vinha
um venerável ancião, vestido com um capuz de baeta roxa, que pelo
chão se arrastava: cingia-lhe os ombros e os peitos uma beca de
colegial, de seda verde; cobria-lhe a cabeça um boné milanês negro, e
a barba, caníssima, lhe passava da cintura; não trazia arma nenhuma,
senão um rosário de contas na mão, maiores que medianas nozes, e os
dos pais-nossos também como ovos medianos de avestruz; a postura, o
passo, a gravidade e a larguíssima presença, cada coisa por si e todas
juntas, me suspenderam e admiraram. Chegou-se a mim, e a primeira
coisa que fez foi abraçar-me estreitamente, e logo dizer-me:
“- Longos tempos há, valoroso cavaleiro dom Quixote da Mancha, que
os que estamos nestas solidões encantados esperamos ver-te, para
que dês notícia ao mundo do que encerra e cobre a profunda cova por
onde entraste, chamada a cova de Montesinos: façanha só guardada
para ser enfrentada por teu invencível coração e por teu ânimo
estupendo. Vem comigo, senhor claríssimo, que te quero mostrar as
maravilhas que este transparente alcácer contém, de quem eu sou
alcaide e guarda maior perpétuo, porque sou o mesmo Montesinos, de
quem a cova toma nome”. Apenas me disse que era Montesinos, quando
lhe perguntei se foi verdade o que no mundo daqui de cima se contava:
que ele havia tirado do meio do peito, com uma pequena adaga, o
coração de seu grande amigo Durandarte e o levado à Senhora
Belerma, como ele o mandou quando de sua morte. Respondeu-me que
em tudo diziam verdade, senão na adaga, porque não foi adaga, nem
pequena, senão um punhal afiado, mais agudo que uma sovela.
- Devia ser - disse então Sancho - o tal punhal de Ramón de Hoces,
o sevilhano.
- Não sei - prosseguiu dom Quixote, - mas não seria desse
punhaleiro, porque Ramón de Hoces foi ontem, e o de Roncesvales,
onde aconteceu esta desgraça, há muitos anos; e esta averiguação não
é de importância, nem turva nem altera a verdade e contexto da
história.
- Assim é - respondeu o primo; - prossiga vossa mercê, senhor dom
Quixote, que o escuto com o maior gosto do mundo.
- Não com menor o conto eu - respondeu dom Quixote; - e assim,
digo que o venerável Montesinos me meteu no cristalino palácio, onde
em uma sala baixa, fresquíssima sobremodo e toda de alabastro,
estava um sepulcro de mármore, com grande maestria fabricado,
sobre o qual vi a um cavaleiro estendido de largo a largo, não de
bronze, nem de mármore, nem de jaspe feito, como os costuma haver
em outros sepulcros, senão de pura carne e de puros ossos. Tinha a
mão direita (que, a meu parecer, é algo peluda e nervosa, sinal de ter
muitas forças seu dono) posta sobre o lado do coração, e, antes que
perguntasse nada a Montesinos, vendo-me suspenso olhando ao do
sepulcro, me disse: “- Este é meu amigo Durandarte, flor e espelho
dos cavaleiros enamorados e valentes de seu tempo; tem-no aqui
encantado, como me tem a mim e a outros muitos e muitas, Merlim,
aquele francês encantador que dizem que foi filho do diabo; e o que eu
creio é que não foi filho do diabo, senão que soube, como dizem, um
ponto mais que o diabo. O como ou para que nos encantou ninguém o
sabe, e isso dirão andando os tempos, que não estão muito longe,
segundo imagino. O que a mim me admira é que sei, tão certo como
agora é de dia, que Durandarte acabou os de sua vida em meus braços,
e que depois de morto lhe tirei o coração com minhas próprias mãos; e
em verdade que devia pesar duas libras, porque, segundo os naturais, o
que tem maior coração é dotado de maior valentia do que o que o tem
pequeno. Pois sendo isto assim, e que realmente morreu este cavaleiro,
como agora se queixa e suspira de quando em quando, como se
estivesse vivo?” Isto dito, o mísero Durandarte, dando uma grande
voz, disse:

“- Oh, meu primo Montesinos!,


o derradeiro que vos rogava,
que quando eu for morto,
e minha alma arrancada,
que leveis meu coração
onde Belerma estava,
tirando-mo do peito,
já com punhal, já com adaga.”

Isto ouvindo o venerável Montesinos se pôs de joelhos ante o


lastimado cavaleiro, e, com lágrimas nos olhos, disse-lhe: “- Já, senhor
Durandarte, caríssimo primo meu, já fiz o que me mandastes no aziago
dia de nossa perda: eu vos tirei o coração o melhor que pude, sem que
vos deixasse uma mínima parte no peito; eu o limpei com um lencinho
de pontas; eu parti com ele de carreira para a França, havendo-vos
primeiro posto no seio da terra, com tantas lágrimas, que seriam
bastantes a lavar-me as mãos e limpar-me com elas o sangue que
tinham, de haver-vos tocado nas entranhas. E ainda mais, primo de
minha alma, no primeiro lugar que topei, saindo de Roncesvales, pus um
pouco de sal em vosso coração, para que não cheirasse mal, e fosse, se
não fresco, ao menos conservado, à presença da senhora Belerma; a
qual, convosco, e comigo, e com Guadiana, vosso escudeiro, e com a
dona Ruidera e suas sete filhas e duas sobrinhas, e com outros muitos
de vossos conhecidos e amigos, nos tem aqui encantados o sábio
Merlim há muitos anos; e, embora passem de quinhentos, não morreu
nenhum de nós. Somente faltam Ruidera e suas filhas e sobrinhas, as
quais chorando, por compaixão que deveu ter Merlim delas, as
converteu em outras tantas lagoas, que agora, no mundo dos vivos e na
província da Mancha, as chamam as lagoas de Ruidera; as sete são dos
reis da Espanha, e as duas sobrinhas, dos cavaleiros de uma ordem
santíssima, que chamam de São João. Guadiana, vosso escudeiro,
pranteando também vossa desgraça, foi convertido num rio chamado
de seu mesmo nome; o qual, quando chegou à superfície da terra e viu
o sol do outro céu, foi tanto o pesar que sentiu de ver que vos deixava,
que se submergiu nas entranhas da terra; mas, como não é possível
deixar de atender à sua natural corrente, de quando em quando sai e
se mostra onde o sol e as gentes o vejam. Vão-lhe provendo com suas
águas as referidas lagoas, com as quais e com outras muitas que
chegam, entra pomposo e grande em Portugal. Entretanto, por onde
quer que vai mostra sua tristeza e melancolia, e não se preza de criar
em suas águas peixes regalados e de estima, senão bastos e insípidos,
bem diferentes dos do Tejo dourado; e isto que agora vos digo, oh
primo meu!, vo-lo disse muitas vezes; e, como não me respondeis,
imagino que não me dais crédito, ou não me ouvis, do que eu recebo
tanta pena qual Deus o sabe. Umas novas vos quero dar agora, as quais,
já que não sirvam de alívio a vossa dor, não vo-la aumentarão de
maneira alguma. Sabei que tendes aqui em vossa presença, e abri os
olhos e o vereis, aquele grande cavaleiro de quem tantas coisas tem
profetizado o sábio Merlim, aquele dom Quixote da Mancha, digo, que
de novo e com maiores vantagens que nos passados séculos ressuscitou
nos presentes a já olvidada andante cavalaria, por cujo meio e favor
poderia ser que nós fôssemos desencantados; que as grandes façanhas
para os grandes homens estão guardadas”. “- E quando assim não seja
- respondeu o lastimado Durandarte com voz desmaiada e baixa, -
quando assim não seja, oh primo!, digo, paciência e baralhar”. E
voltando-se de lado, tornou a seu costumeiro silêncio, sem falar mais
palavras. Ouviram-se nisto grandes alaridos e prantos, acompanhados
de profundos gemidos e estreitados soluços; volvi a cabeça, e vi pelas
paredes de cristal que por outra sala passava uma procissão de duas
fileiras de formosíssimas donzelas, todas vestidas de luto, com
turbantes brancos sobre as cabeças, ao modo turquesco. Ao cabo e
fim das fileiras vinha uma senhora, que na gravidade o parecia,
também vestida de negro, com toucas brancas tão estendidas e largas,
que beijavam a terra. Seu turbante era maior duas vezes que o maior
de alguma das outras; era de sobrancelhas juntas, e o nariz algo
chato; a boca grande, mas vermelhos os lábios; os dentes, que talvez
os descobria, mostravam ser ralos e não bem postos, embora fossem
brancos como umas peladas amêndoas; trazia nas mãos um lenço
delgado, e entre ele, ao que pude divisar, um coração de carne
mumificada, segundo vinha seco e salgado. Disse-me Montesinos como
toda aquela gente da procissão eram serventes de Durandarte e de
Belerma, que ali com seus dois senhores estavam encantados, e que a
última, que trazia o coração entre o lenço e nas mãos, era a senhora
Belerma, a qual com suas donzelas quatro dias na semana faziam
aquela procissão e cantavam, ou, por melhor dizer, choravam endechas
sobre o corpo e sobre o lastimado coração de seu primo; e que se me
havia parecido algo feia, ou não tão formosa como tinha a fama, era a
causa as más noites e piores dias que naquele encantamento passava,
como o podia ver em suas grandes olheiras e em sua cor quebradiça. “-
E não é motivo de sua amarelidão e suas olheiras estar com o mal
mensal, ordinário nas mulheres, porque há muitos meses, e ainda anos
que não o tem nem assoma por suas portas, senão da dor que sente seu
coração pelo que de contínuo tem nas mãos, que lhe renova e traz à
memória a desgraça de seu mal logrado amante; que se isto não fosse,
apenas a igualaria em formosura, donaire e brio a grande Dulcineia do
Toboso, tão celebrada em todos estes contornos, e ainda em todo o
mundo”. “Alto lá! - disse eu então, - senhor dom Montesinos: conte
vossa mercê sua história como deve, que já sabe que toda comparação
é odiosa, e assim, não há para que comparar ninguém com ninguém. A
sem par Dulcineia do Toboso é quem é, e a senhora dona Belerma é
quem é, e quem foi, e fique aqui”. Ao que ele me respondeu: “- Senhor
dom Quixote, perdoe-me vossa mercê, que eu confesso que andei mal,
e não disse bem em dizer que apenas igualaria a senhora Dulcineia à
senhora Belerma, pois me bastava a mim haver entendido, por não sei
que pressentimentos, que vossa mercê é seu cavaleiro, para que me
mordesse a língua antes de compará-la senão com o mesmo céu”. Com
esta satisfação que me deu o grande Montesinos se quietou meu
coração do sobressalto que recebi em ouvir que a minha senhora a
comparavam com Belerma.
- E ainda me maravilho eu - disse Sancho - de como vossa mercê não
subiu sobre o velhote, e o moeu a coices todos os ossos, e lhe pelou as
barbas, sem deixar-lhe pelo nelas.
- Não, Sancho amigo - respondeu dom Quixote, - não me estava bem
fazer isso, porque estamos todos obrigados a ter respeito aos
anciãos, embora não sejam cavaleiros, e principalmente aos que o são e
estão encantados; eu sei bem que não nos ficamos a dever nada em
outras muitas demandas e respostas que entre os dois passamos.
Então disse o primo:
- Eu não sei, senhor dom Quixote, como vossa mercê em tão pouco
espaço de tempo como há que está lá embaixo, viu tantas coisas e
falado e respondido tanto.
- Quanto há que baixei? - perguntou dom Quixote.
- Pouco mais de uma hora - respondeu Sancho.
- Isso não pode ser - replicou dom Quixote, - porque lá me
anoiteceu e amanheceu, e tornou a anoitecer e amanhecer três vezes;
de modo que, na minha conta, três dias estive naquelas partes remotas
e escondidas à vista nossa.
- Verdade deve dizer meu senhor - disse Sancho, - que, como todas
as coisas que lhe sucederam são por encantamento, quiçá o que a nós
nos parece um hora, deve parecer lá três dias com suas noites.
- Assim será - respondeu dom Quixote.
- E comeu vossa mercê em todo este tempo, senhor meu? -
perguntou o primo.
- Não comi um nada - respondeu dom Quixote, - nem ainda tive
fome, nem por pensamento.
- E os encantados, comem? - disse o primo.
- Não comem - respondeu dom Quixote, - nem têm excrementos
maiores; embora é opinião que lhes crescem as unhas, as barbas e os
cabelos.
- E dormem porventura os encantados, senhor? - perguntou Sancho.
- Não, por certo - respondeu dom Quixote; - ao menos, nestes três
dias que eu estive com eles, nenhum há pregado o olho, nem eu
tampouco.
- Aqui encaixa bem o refrão - disse Sancho - de “diz-me com quem
andas, dir-te-ei quem és” Ande vossa mercê com encantados jejunos e
despertos: vede se é muito que nem coma nem durma enquanto com
eles andar. Mas perdoe-me vossa mercê, senhor meu, se lhe digo que
de tudo quanto aqui disse, leve-me Deus, que ia dizer o diabo, se o
creio coisa alguma.
- Como não? - disse o primo, - pois havia de mentir o senhor dom
Quixote, que, embora quisesse, não teve lugar para compor e imaginar
tanto milhão de mentiras?
- Eu não creio que meu senhor mente - respondeu Sancho.
- Se não, no que crês? - lhe perguntou dom Quixote.
- Creio - respondeu Sancho - que aquele Merlim ou aqueles
encantadores que encantaram a toda a chusma que vossa mercê diz
que viu e conversou lá baixo, lhe encaixaram no pensamento ou na
memória toda essa máquina que nos contou, e tudo aquilo que por
contar lhe fica.
- Tudo isso poderia ser, Sancho - replicou dom Quixote, - mas não é
assim, porque o que contei o vi por meus próprios olhos e o toquei com
minhas mesmas mãos. Mas, que dirás quando te diga eu agora como,
entre outras infinitas coisas e maravilhas que me mostrou Montesinos,
as quais devagar e a seus tempos tas irei contando no decurso de
nossa viagem, por não ser todas deste lugar, me mostrou três
lavradoras que por aqueles ameníssimos campos iam saltando e
brincando como cabras; e, apenas as vi, quando reconheci ser uma a
sem par Dulcineia do Toboso, e as outras duas aquelas mesmas
lavradoras que vinham com ela, que falamos à saída do Toboso?
Perguntei a Montesinos se as conhecia, respondeu-me que não, mas
que ele imaginava que deviam ser algumas senhoras principais
encantadas, que poucos dias havia que naqueles prados haviam
aparecido; e que não me maravilhasse disto, porque ali estavam outras
muitas senhoras dos passados e presentes séculos, encantadas em
diferentes e estranhas figuras, entre as quais conhecia ele a rainha
Ginevra e sua dona Quintanhona, dando o vinho a Lancelote, “quando
de Bretanha veio”.
Quando Sancho ouviu dizer isto a seu amo, pensou perder o juízo ou
morrer de riso; pois como ele sabia a verdade do fingido encanto de
Dulcineia, de quem ele havia sido o encantador e o levantador de tal
testemunho, acabou de conhecer indubitavelmente que seu senhor
estava fora de juízo e louco de pedra, e, assim, lhe disse:
- Em má conjuntura e em pior ocasião e em aziago dia baixou vossa
mercê, caro patrão meu, ao outro mundo, e em má hora se encontrou
com o senhor Montesinos, que tal no-lo devolveu. Bem estava vossa
mercê aqui em cima com seu inteiro juízo, tal qual Deus lhe havia dado,
falando sentenças e dando conselhos a cada passo, e não agora,
contando os maiores disparates que podem imaginar-se.
- Como te conheço, Sancho - respondeu dom Quixote, - não faço
caso de tuas palavras.
- Nem eu tampouco das de vossa mercê - replicou Sancho, - sequer
me fira, sequer me mate pelas que lhe disse, ou pelas que lhe penso
dizer se nas suas não se corrige e emenda. Mas diga-me vossa mercê,
agora que estamos em paz: como ou em que reconheceu a senhora
nossa ama? E se lhe falou, o que disse, e o que lhe respondeu?
- Reconheci-a - respondeu dom Quixote - porque traz as mesmas
vestes que trazia quando tu ma mostraste. Falei-lhe, mas não me
respondeu palavra; antes, me voltou as costas, e se foi fugindo com
tanta pressa, que não a alcançaria uma seta. Quis segui-la, e o faria,
se não me aconselhasse Montesinos que não me cansasse nisso, porque
seria em vão, e mais porque chegava a hora em que me convinha voltar
a sair da caverna. Disse-me também que, andando o tempo, me daria
aviso como haviam de ser desencantados ele, e Belerma e Durandarte,
com todos os que ali estavam; mas o que mais pena me deu, das que ali
vi e notei, foi que, estando-me dizendo Montesinos estas razões, se
chegou a mim por um lado, sem que eu a visse vir, uma das duas
companheiras da sem ventura Dulcineia, e, cheios os olhos de lágrimas,
com turvada e baixa voz, me disse: “- Minha senhora Dulcineia do
Toboso beija a vossa mercê as mãos, e suplica a vossa mercê a faça
saber como está; e que, por estar em uma grande necessidade,
também suplica a vossa mercê, quão encarecidamente pode, seja
servido de emprestar-lhe sobre esta fralda que aqui trago de piquê
novo meia dúzia de reais, ou os que vossa mercê tiver, que ela dá sua
palavra de devolvê-los com muita brevidade”. Suspendeu-me e
admirou-me o tal recado, e, voltando-me ao senhor Montesinos, lhe
perguntei: “- É possível, senhor Montesinos, que os encantados
principais padeçam necessidade?” Ao que ele me respondeu: “- Creia-
me vossa mercê, senhor dom Quixote da Mancha, que esta que
chamam necessidade onde quer se usa, e por tudo se estende, e a
todos alcança, e ainda até os encantados não perdoa; e, pois a senhora
Dulcineia do Toboso envia a pedir esses seis reais, e a prenda é boa,
segundo parece, não há senão dá-los; que, sem dúvida, deve estar
posta em algum grande aperto”. “- Prenda, não a tomarei eu - lhe
respondi, - nem menos lhe darei o que pede, porque não tenho senão só
quatro reais.” Os quais lhe dei, que seriam os que tu, Sancho, me deste
o outro dia para dar esmola aos pobres que topasse pelos caminhos, e
lhe disse: “- Dizei, amiga minha, a vossa senhora que a mim me pesam
na alma seus trabalhos, e que queria ser um milionário para remediá-
los; e que lhe faço saber que eu não posso nem devo ter saúde
carecendo de sua agradável vista e discreta conversação, e que lhe
suplico, quão encarecidamente posso, seja servida sua mercê de
deixar-se ver e tratar deste seu cativo servidor e angustiado
cavaleiro. Dir-lhe-eis também que quando menos o pense, ouvirá dizer
como eu fiz um juramento e voto, a modo daquele que fez o marquês
de Mântua, de vingar seu sobrinho Baldovinos, quando o achou a
expirar em meio da montanha, que foi de não comer pão em toalha,
com as outras minudências que ali acrescentou, até vingá-lo; e assim
lhe farei eu de não sossegar, e de andar as sete partidas do mundo,
com mais pontualidade que as andou o infante dom Pedro de Portugal,
até desencantá-la”. “- Tudo isso, e mais, deve vossa mercê à minha
senhora”, me respondeu a donzela. E tomando os quatro reais, em
lugar de fazer-me uma reverência, fez tal cabriola que se levantou
duas varas de medir no ar.
- Oh santo Deus! - disse então dando uma grande voz Sancho. - É
possível que tal há no mundo, e que tenham nele tanta força os
encantadores e encantamentos, que hajam trocado o bom juízo de meu
senhor em uma tão disparatada loucura? Oh senhor, senhor, por quem
Deus é, que vossa mercê veja por si e volte por sua honra, e não dê
crédito a essas futilidades que lhe têm diminuído e desconcertado o
sentido!
- Como me queres bem, Sancho, falas dessa maneira - disse dom
Quixote; - e, como não és experimentado nas coisas do mundo, todas
as coisas que têm algo de dificuldade te parecem impossíveis; mas
andará o tempo, como outra vez disse, e eu te contarei algumas das
que lá embaixo vi, que te farão crer as que aqui contei, cuja verdade
nem admite réplica nem disputa.

CAPÍTULO XXIV
Onde se contam mil bagatelas tão impertinentes como necessárias
ao verdadeiro entendimento desta grande história

Diz o que traduziu esta grande história do original que escreveu


seu primeiro autor Cide Hamete Benengeli, que, chegando ao capítulo
da aventura da cova de Montesinos, na margem dele estavam escritas,
com a mão do mesmo Hamete, estas mesmas palavras:
“Não me posso dar a entender, nem me posso persuadir, que ao
valoroso dom Quixote lhe passasse pontualmente tudo o que no
antecedente capítulo fica escrito: a razão é que todas as aventuras
até aqui sucedidas seriam possíveis e verossímeis, mas nesta desta
cova não vejo motivo algum para tê-la por verdadeira, por ir tão fora
dos termos razoáveis. Pois pensar eu que dom Quixote mentisse,
sendo o mais verdadeiro fidalgo e o mais nobre cavaleiro de seus
tempos, não é possível, pois não diria ele uma mentira ainda que o
flechassem. Por outra parte, considero que ele a contou e a disse com
todas as circunstâncias ditas, e que não pôde fabricar em tão breve
tempo tão grande quantidade de disparates; e se esta aventura
parece falsa, eu não tenho a culpa; e assim, sem afirmá-la por falsa ou
verdadeira, a escrevo. Tu, leitor, pois és prudente, julga o que te
parecer, que eu não devo nem posso mais; embora se tem por certo
que ao tempo de seu fim e morte dizem que se retratou dela, e disse
que ele a havia inventado, por parecer-lhe que convinha e quadrava
bem com as aventuras que havia lido em suas histórias”.
E logo prossegue, dizendo:
Espantou-se o primo, assim do atrevimento de Sancho Pança como
da paciência de seu amo, e julgou que do contentamento que tinha de
haver visto a sua senhora Dulcineia do Toboso, embora encantada, lhe
nascia aquela condição branda que então mostrava; porque, se assim
não fosse, palavras e razões lhe disse Sancho que mereciam moê-lo a
pancadas; porque realmente lhe pareceu que havia andado atrevidinho
com seu senhor, a quem disse:
- Eu, senhor dom Quixote da Mancha, dou por bem empregadíssima
a jornada que com vossa mercê fiz, porque nela granjeei quatro coisas.
A primeira, haver conhecido vossa mercê, que o tenho por grande
felicidade. A segunda, haver sabido o que se encerra nesta cova de
Montesinos, com as mutações do Guadiana e das lagoas de Ruidera,
que me servirão para o Ovídio espanhol que trago nas mãos. A
terceira, entender a antiguidade dos naipes, que, pelo menos, já se
usavam em tempo do imperador Carlos Magno, segundo pode coligir-se
das palavras que vossa mercê diz que disse Durandarte, quando, ao
cabo daquele grande espaço de tempo que esteve falando com ele
Montesinos, ele despertou dizendo: “Paciência e baralhar.” E esta
razão e modo de falar não a pôde aprender encantado, senão quando
não o estava, na França e em tempo do referido imperador Carlos
Magno. E esta averiguação me vem adequada para o outro livro que vou
compondo, que é Suplemento de Virgílio Polidoro, na invenção das
antiguidades; e creio que no seu não se lembrou de pôr a dos naipes,
como a porei eu agora, que será de muita importância, e mais alegando
autor tão grave e tão verdadeiro como é o senhor Durandarte. A
quarta é haver sabido com certeza o nascimento do rio Guadiana, até
agora ignorado das gentes.
- Vossa mercê tem razão - disse dom Quixote, - mas queria eu
saber, já que Deus lhe faça mercê de que se lhe dê licença para
imprimir esses seus livros, que o duvido, a quem pensa dedicá-los.
- Senhores e grandes há na Espanha a quem possam dedicar-se -
disse o primo.
- Não muitos - respondeu dom Quixote; - e não porque não o
mereçam, senão que não querem admiti-los, por não obrigar-se à
satisfação que parece se deve ao trabalho e cortesia de seus autores.
Um príncipe conheço eu que pode suprir a falta dos demais, com
tantas vantagens que, se me atrever a dizê-las, quiçá despertaria a
inveja em mais de quatro generosos peitos; mas fique isto aqui para
outro tempo mais cômodo, e vamos buscar onde recolher-nos esta
noite.
- Não longe daqui - respondeu o primo - está uma ermida, onde faz
sua habitação um ermitão, que dizem foi soldado, e está em opinião de
ser um bom cristão, e muito discreto e caritativo. Junto com a ermida
tem uma pequena casa, que ele construiu à sua custa; contudo, embora
pequena, é capaz de receber hóspedes.
- Tem porventura galinhas o tal ermitão? - perguntou Sancho.
- Poucos ermitões não as têm - respondeu dom Quixote, - porque
não são os que agora se usam como aqueles dos desertos do Egito, que
se vestiam de folhas de palma e comiam raízes da terra. E não se
entenda que por dizer bem daqueles não o digo destes, senão que
quero dizer que ao rigor e aperto de então não chegam as penitências
dos de agora; mas não por isto deixam de ser todos bons; ao menos, eu
por bons os julgo; e, no pior dos casos, menos mal faz o hipócrita que
se finge bom que o público pecador.
Estando nisto, viram que até onde eles estavam vinha um homem a
pé, caminhando depressa, e dando varadas a um macho que vinha
carregado de lanças e de alabardas. Quando chegou a eles, os saudou
e passou ao largo. Dom Quixote lhe disse:
- Bom homem, detende-vos, que parece que ides com mais diligência
do que esse macho precisa.
- Não me posso deter, senhor - respondeu o homem, - porque as
armas que vedes que aqui levo hão de servir amanhã; e assim, me é
forçoso o não deter-me, e adeus. Mas se quiserdes saber para que as
levo, na estalagem que está mais acima da ermida penso me alojar esta
noite; e se é que fazeis este mesmo caminho, ali me achareis, onde vos
contarei maravilhas. E adeus outra vez.
E de tal maneira picou o macho, que não teve lugar dom Quixote de
perguntar-lhe que maravilhas eram as que pensava dizer-lhes; e, como
ele era algo curioso e sempre lhe davam desejos de saber coisas
novas, ordenou que neste momento partissem e fossem passar a noite
na estalagem, sem tocar na ermida, onde queria o primo que ficassem.
Fez-se assim, subiram a cavalo, e seguiram todos os três o caminho
da estalagem, à qual chegaram um pouco antes de anoitecer. Disse o
primo a dom Quixote que chegassem a ela a beber um trago. Apenas
ouviu isto Sancho Pança, quando encaminhou o ruço à ermida, e o
mesmo fizeram dom Quixote e o primo; mas a má sorte de Sancho
parece que ordenou que o ermitão não estivesse em casa; que assim o
disse um sotaermitão que na ermida acharam. Pediram-lhe do caro;
respondeu que seu senhor não o tinha, mas que se queriam água
barata, que a daria de muito bom vontade.
- Se eu a tivesse de água - respondeu Sancho, - poços há no
caminho, onde a haveria satisfeito. Ah bodas de Camacho e abundância
da casa de dom Diego, e quantas vezes vos tenho de encontrar menos!
Com isto, deixaram a ermida e picaram até a estalagem; e a pouco
trecho toparam um rapazinho, que diante deles ia caminhando não com
muita pressa; e assim, o alcançaram. Levava a espada sobre o ombro, e
nela posto um volume ou envoltório, ao parecer de suas vestes; que, ao
parecer, deviam ser os calções ou greguescos, e capa curta, e alguma
camisa, porque trazia posta uma casaca curta de veludo com alguns
vislumbres de seda, e a camisa, de fora; as meias eram de seda, e os
sapatos quadrados, a uso da corte; a idade chegaria a dezoito ou
dezenove anos; alegre de rosto, e, ao parecer ágil de sua pessoa. Ia
cantando seguidilhas, para entreter o trabalho do caminho. Quando
chegaram a ele, acabava de cantar uma, que o primo tomou de
memória, que dizem que dizia:

À guerra me leva
minha necessidade;
se tivesse dinheiros,
não iria, em verdade.

O primeiro que lhe falou foi dom Quixote, dizendo-lhe:


- Com muito pouca roupa caminha vossa mercê, senhor galante. E
aonde se dirige? Saibamos, se é que gosta de dizê-lo.
Ao que o moço respondeu:
- O caminhar tão desvestido o causa o calor e a pobreza, e aonde
vou é à guerra.
- Como a pobreza? - perguntou dom Quixote. - Que pelo calor bem
pode ser.
- Senhor - replicou o mancebo, - eu levo neste envoltório uns
greguescos de veludo, companheiros desta casaca; se os gasto no
caminho, não me poderei honrar com eles na cidade, e não tenho com
que comprar outros; e, assim por isto como por refrescar-me, vou
desta maneira, até alcançar umas companhias de infantaria que não
estão doze léguas daqui, onde assentarei minha praça, e não faltarão
mulas de carga em que caminhar daí em diante até o embarcadouro,
que dizem há de ser em Cartagena. E mais quero ter por amo e por
senhor o rei, e servi-lo na guerra, que não um pobretão na corte.
- E leva vossa mercê algum dinheiro porventura? - perguntou o
primo.
- Se eu houvesse servido a algum grande da Espanha, ou algum
principal personagem - respondeu o moço, - seguramente que eu o
levaria, que isso tem o servir aos bons: que do refeitório dos criados
costumam sair a ser alferes ou capitães, ou com algum bom prêmio;
mas eu, desventurado, servi sempre a caçadores de títulos e a gente
adventícia, de ração e paga tão mísera e atenuada, que para pagar o
engomar uma gola se consumia a metade dela; e seria tido por milagre
que um pajem aventureiro alcançasse alguma sequer razoável ventura.
- E diga-me, por sua vida, amigo - perguntou dom Quixote: - é
possível que nos anos que serviu não pôde obter alguma libré?
- Duas me deram - respondeu o pajem; - mas, assim que o que sai de
alguma religião antes de professar lhe tiram o traje e lhe devolvem
suas vestes, assim as devolviam a mim meus amos, que, acabados os
negócios a que vinham à corte, voltavam a suas casas e recolhiam as
librés que por só ostentação haviam dado.
- Porca miséria, como diz o italiano - disse dom Quixote; - mas,
assim, tenha por feliz ventura o haver saído da corte com tão boa
intenção como leva; porque não há outra coisa na terra mais honrada
nem de mais proveito que servir a Deus, primeiramente, e logo, a seu
rei e senhor natural, especialmente no exercício das armas, pelas
quais se alcançam, se não mais riquezas, ao menos, mais honra que
pelas letras, como eu disse muitas vezes; pois, embora fundaram mais
maiorais as letras que as armas, todavia têm um não sei quê os das
armas que não os das letras, com um sim sei quê de esplendor que se
acha neles, que os avantaja a todos. E isto que agora lhe quero dizer
leve-o na memória, que lhe será de muito proveito e alívio em seus
trabalhos; e é que, à parte a imaginação dos sucessos adversos que lhe
poderão vir, que o pior de todos é a morte, e como esta seja boa, o
melhor de todos é o morrer. Perguntaram a Júlio César, aquele
valoroso imperador romano, qual era a melhor morte; respondeu que a
impensada, a de repente e não prevista; e, embora respondesse como
gentil e alheio do conhecimento do verdadeiro Deus, então, disse bem,
para poupar-se do sentimento humano; pois, se vos matam na primeira
facção e refrega, ou já de um tiro de artilharia, ou lançado ao alto por
uma mina, que importa? Tudo é morrer, e acabou-se a obra; e, segundo
Terêncio, mais bem parece o soldado morto na batalha que vivo e salvo
na fuga; e tanto alcança de fama o bom soldado quanto tem de
obediência a seus capitães e aos que mandar-lhe podem. E adverti,
filho, que ao soldado melhor lhe está o cheirar a pólvora que a
perfume, e que se a velhice vos colhe neste honroso exercício, embora
seja cheio de feridas e estropiado ou coxo, ao menos não vos poderá
colher sem honra, e tal, que não vos poderá menoscabar a pobreza;
quanto mais, que já se vai dando ordem como se entretenham e
remediem os soldados velhos e estropiados, porque não é bom que se
faça com eles o que costumam fazer os que poupam e dão liberdade a
seus negros quando já são velhos e não podem servir, e, tirando-os de
casa com título de livres, os fazem escravos da fome, da qual não
pensam poupar-se senão com a morte. E por agora não vos quero dizer
mais, senão que subais às ancas deste meu cavalo até a estalagem, e
ali jantareis comigo, e pela manhã seguireis o caminho, que vos lhe dê
Deus tão bom como vossos desejos merecem.
O pajem não aceitou o convite das ancas, embora sim o de jantar
com ele na estalagem; e, então, dizem que disse Sancho entre si:
“Valha-te Deus por senhor! E é possível que homem que sabe dizer
tais, tantas e tão boas coisas como aqui disse, diga que viu os
disparates impossíveis que conta da cova de Montesinos? Agora bem,
isso se verá.”
E nisto, chegaram à estalagem, a tempo que anoitecia, e não sem
gosto de Sancho, por ver que seu senhor a julgou por verdadeira
estalagem, e não por castelo, como costumava. Não bem entraram,
quando dom Quixote perguntou ao vendeiro pelo homem das lanças e
alabardas; o qual lhe respondeu que na cavalariça estava acomodando o
macho. O mesmo fizeram com seus jumentos o primo e Sancho, dando
a Rocinante a melhor manjedoura e o melhor lugar da cavalariça.

CAPÍTULO XXV

Onde começa a aventura do zurro e a graciosa do titereiro, com as


memoráveis adivinhações do mono adivinho

Nunca se acabava de assar o pão de dom Quixote, como se costuma


dizer, até ouvir e saber as maravilhas prometidas pelo homem
condutor das armas. Foi buscá-lo onde o vendeiro lhe havia dito que
estava, e achou-o, e disse-lhe que em todo caso lhe dissesse logo o que
lhe havia de dizer depois, acerca do que lhe havia perguntado no
caminho. O homem lhe respondeu:
- Mais devagar, e não em pé, se há de tomar o conto de minhas
maravilhas: deixe-me vossa mercê, senhor bom, acabar de dar ração à
minha besta, que eu lhe direi coisas que o admirem.
- Não seja por isso - respondeu dom Quixote, - que eu vos ajudarei
em tudo.
E assim o fez, joeirando-lhe a cevada e limpando a manjedoura,
humildade que obrigou o homem a contar-lhe com boa vontade o que
lhe pedia; e, sentando-se num banco e dom Quixote junto a ele, tendo
por público e auditório o primo, o pajem, Sancho Pança e o vendeiro,
começou a dizer desta maneira:
- Saberão vossas mercês que num lugar que está quatro léguas e
meia desta estalagem sucedeu que a um vereador dele, por indústria e
engano de uma moça criada sua, e isto é longo de contar, faltou um
asno, e, embora o tal vereador fez as diligências possíveis por achá-lo,
não foi possível. Quinze dias seriam passados, segundo é pública voz e
fama, que o asno faltava, quando, estando na praça o vereador
perdedor, outro vereador do mesmo povoado lhe disse: “Dai-me
alvíssaras, compadre, que vosso jumento apareceu”. “Eu vo-las mando e
boas, compadre - respondeu o outro, - mas saibamos onde apareceu”.
“No monte - respondeu o achador, - o vi esta manhã, sem albarda e
sem aparelho algum, e tão magro que era uma compaixão vê-lo. Quis
pegá-lo e trazer-vos, mas está já tão selvagem e tão arisco, que,
quando cheguei a ele, se foi fugindo e entrou no mais escondido do
monte. Se quereis que voltemos os dois a buscá-lo, deixai-me pôr esta
burrica em minha casa, que logo volto”. “Muito prazer me fareis -
disse o do jumento, - e eu procurarei pagar-vos na mesma moeda”. Com
estas circunstâncias todas, e da mesma maneira que eu o vou
contando, o contam todos aqueles que estão inteirados na verdade
deste caso. Em suma, os dois vereadores, a pé e mão a mão, se foram
ao monte, e, chegando ao lugar e sítio onde pensaram achar o asno, não
o acharam, nem apareceu por todos aqueles contornos, embora mais o
procurassem. Vendo, pois, que não aparecia, disse o vereador que o
havia visto ao outro: “Vede, compadre: um ardil me veio ao
pensamento, com o qual sem dúvida alguma poderemos descobrir este
animal, embora esteja metido nas entranhas da terra, e não do monte;
e é que eu sei zurrar maravilhosamente; e se vós sabeis algum tanto,
dai o feito por concluído”. “Algum tanto dizeis, compadre? - disse o
outro; - por Deus, que não dê a vantagem a ninguém, nem ainda aos
mesmos asnos”. “Agora o veremos - respondeu o vereador segundo, -
porque tenho determinado que ides vós por um lado do monte e eu por
outro, de modo que o rodeemos e andemos todo, e de trecho em
trecho zurrareis vós e zurrarei eu, e não poderá ser menos senão que
o asno nos ouça e nos responda, se é que está no monte”. Ao que
respondeu o dono do jumento: “Digo, compadre, que o ardil é
excelente e digno de vosso grande engenho”. E dividindo-se os dois
segundo o acordo, sucedeu que quase a um mesmo tempo zurraram, e
cada um enganado do zurro do outro, atenderam a buscar-se,
pensando que já o jumento havia aparecido; e, vendo-se, disse o
perdedor: “É possível, compadre, que não foi meu asno o que zurrou?”
“Não foi, senão eu”, respondeu o outro. “Agora digo - disse o dono, -
que de vós a um asno, compadre, não há nenhuma diferença, em quanto
toca ao zurrar, porque em minha vida não vi nem ouvi coisa mais
própria”. “Essas louvações e encarecimento - respondeu o do ardil, -
melhor vos atêm e tocam a vós que a mim, compadre; que pelo Deus
que me criou que podeis dar dois zurros de vantagem ao maior e mais
perito zurrador do mundo; porque o som que tendes é alto; o sustenido
da voz, a seu tempo e compasso; as inflexões, muitas e aceleradas, e,
em suma, eu me dou por vencido e vos rendo a palma e dou por
vencedor desta rara habilidade”. “Agora digo - respondeu o dono, -
que me terei e estimarei em mais daqui em diante, e pensarei que sei
alguma coisa, pois tenho alguma graça; que, embora pensasse que
zurrava bem, nunca entendi que chegava ao extremo que dizeis”.
“Também direi eu agora - respondeu o segundo - que há raras
habilidades perdidas no mundo, e que são mal empregadas naqueles
que não sabem aproveitar-se delas”. “As nossas - respondeu o dono, -
se não é em casos semelhantes como o que trazemos nas mãos, não nos
podem servir em outros, e ainda neste praza a Deus que nos sejam de
proveito”. Isto dito, se tornaram a dividir e a voltar a seus zurros, e a
cada passo se enganavam e voltavam a juntar-se, até que combinaram
um sinal pelo qual, para entender que eram eles, e não o asno,
zurrassem duas vezes, uma atrás da outra. Com isto, dobrando a cada
passo os zurros, rodearam todo o monte sem que o perdido jumento
respondesse, nem ainda por sinais. Mas, como havia de responder o
pobre e mal logrado, se o acharam no mais escondido do bosque,
comido de lobos? E vendo-o, disse seu dono: “Já me maravilhava eu de
que ele não respondia, pois a não estar morto, ele zurraria se nos
ouvisse, ou não seria asno; mas, a troco de haver-vos ouvido zurrar
com tanta graça, compadre, dou por bem empregado o trabalho que
tive em buscá-lo, embora o tenha achado morto”. “Em boa mão está,
compadre - respondeu o outro, - pois se bem canta o abade, não lhe
fica atrás o coroinha”. Com isto, desconsolados e roucos, voltaram a
sua aldeia, onde contaram a seus amigos, vizinhos e conhecidos quanto
lhes havia acontecido na busca do asno, exagerando um a graça do
outro no zurrar; tudo o qual se soube e se estendeu pelos lugares
circunvizinhos; e o diabo, que não dorme, como é amigo de semear e
derramar desavenças e discórdia por onde quer que seja, armando
escândalos e grandes quimeras de nonada, ordenou e fez que as
gentes dos outros povoados, vendo a algum de nossa aldeia, zurrasse,
como dando-lhes em rosto com o zurro de nossos vereadores. Deram
nisso os moços, que foi dar em mãos e em bocas de todos os demônios
do inferno, e foi-se espalhando o zurro de um a outro povoado, de
maneira que são conhecidos os naturais da vila do zurro, como são
conhecidos e diferençados os negros dos brancos; e chegou a tanto a
desgraça desta burla, que muitas vezes com mão armada e formado
esquadrão saíram contra os burladores os burlados a dar batalha, sem
podê-lo remediar rei nem roque, nem temor nem vergonha. Eu creio
que amanhã ou depois de amanhã hão de sair em campo os de meu
povoado, que são os do zurro, contra outro lugar que está a duas
léguas do nosso, que é um dos que mais nos perseguem: e, por sair bem
prevenidos, levo compradas estas lanças e alabardas que haveis visto.
E estas são as maravilhas que disse que vos havia de contar, e se não
vos o pareceram, não sei outras.
E com isto deu fim à sua conversa o bom homem; e, nisto, entrou
pela porta da estalagem um homem todo vestido de camurça, meias,
greguescos e gibão, e com voz levantada disse:
- Senhor hospedeiro, há pousada? Que vem aqui o mono adivinho e o
retábulo da liberdade de Melisendra.
- Corpo de tal - disse o vendeiro, - que aqui está o senhor mestre
Pedro! Boa noite se nos prepara.
Esquecia-me de dizer como o tal mestre Pedro trazia coberto o olho
esquerdo, e quase meia bochecha, com um tapa-olho de tafetá verde,
sinal de que todo aquele lado devia estar enfermo; e o vendeiro
prosseguiu, dizendo:
- Seja bem-vindo vossa mercê, senhor mestre Pedro. Onde está o
mono e o retábulo, que não os vejo?
- Já chegam perto - respondeu o todo camurça, - senão que eu me
adiantei, a saber se há pousada.
- Do mesmo duque de Alba a tiraria para dá-la ao senhor mestre
Pedro - respondeu o vendeiro; - chegue o mono e o retábulo, que gente
há esta noite na estalagem que pagará o vê-lo e as habilidades do
mono.
- Seja em boa hora - respondeu o do tapa-olho, - que eu moderarei o
preço, e com só a custa me darei por bem pago; e eu volto a fazer que
caminhe a carreta onde vem o mono e o retábulo.
E logo voltou a sair da estalagem.
Perguntou logo dom Quixote ao vendeiro que mestre Pedro era
aquele, e que retábulo e que mono trazia. Ao que respondeu o
vendeiro:
- Este é um famoso titereiro, que há muitos dias que anda por esta
Mancha de Aragão encenando um retábulo de Melisendra, libertada
pelo famoso dom Gaiferos, que é uma das melhores e mais bem
representadas histórias que de muitos anos a esta parte neste reino
se viram. Traz também consigo um mono da mais rara habilidade que
se viu entre monos, nem se imaginou entre homens, porque se lhe
perguntam algo, está atento ao que lhe perguntam e logo salta sobre
os ombros de seu amo, e, chegando-se-lhe ao ouvido, lhe diz a
resposta do que lhe perguntam, e mestre Pedro a declara logo; e das
coisas passadas diz muito mais que das que estão por vir; e, embora
não todas as vezes acerta em todas, nas mais não erra, de modo que
nos faz crer que tem o diabo no corpo. Dois reais leva por cada
pergunta, se é que o mono responde; quero dizer, se responde o amo
por ele, depois de haver-lhe falado ao ouvido; e assim, se crê que o tal
mestre Pedro está riquíssimo; e é homem discreto, como dizem em
Itália, e buon compagno, e dá-se a melhor vida do mundo; fala mais que
seis e bebe mais que doze, tudo à custa de sua língua e de seu mono e
de seu retábulo.
Nisto, voltou mestre Pedro, e em uma carreta vinha o retábulo, e o
mono, grande e sem rabo, com as nádegas despeladas, mas não de má
cara; e, apenas o viu dom Quixote, quando lhe perguntou:
- Diga-me vossa mercê, senhor adivinho: vai fazer algo de proveito?
Que há de ser de nós? E veja aqui meus dois reais.
E mandou a Sancho que os desse a mestre Pedro, o qual respondeu
pelo mono, e disse:
- Senhor, este animal não responde nem dá notícia das coisas que
estão por vir; das passadas sabe algo, e das presentes, algum tanto.
- Voto a Rus - disse Sancho, - não dê eu um tostão porque me digam
o que por mim passou!, porque, quem o pode saber melhor que eu
mesmo? E pagar eu porque me digam o que sei, seria uma grande
necedade; mas, pois sabe as coisas presentes, eis aqui meus dois reais,
e diga-me o senhor moníssimo que faz agora minha mulher Teresa
Pança, e em que se entretém.
Não quis tomar mestre Pedro o dinheiro, dizendo:
- Não quero receber adiantados os prêmios, sem que hajam
precedido os serviços.
E dando com a mão direita dois golpes sobre o ombro esquerdo, num
pulo se pôs o mono nele, e, chegando a boca ao ouvido, dava dente com
dente muito depressa; e, havendo feito este gesto por espaço de um
credo, de outro pulo se pôs no chão, e então, com grandíssima pressa,
se foi mestre Pedro pôr de joelhos ante dom Quixote, e, abraçando-
lhe as pernas, disse:
- Estas pernas abraço, como se abraçasse as duas colunas de
Hércules, oh ressuscitador insigne da já posta em olvido andante
cavalaria, oh não jamais como se deve louvado cavaleiro dom Quixote
da Mancha, ânimo dos desmaiados, arrimo dos que vão cair, braço dos
caídos, báculo e consolo de todos os desditados!
Ficou pasmado dom Quixote, absorto Sancho, suspenso o primo,
atônito o pajem, abobado o do zurro, confuso o vendeiro, e,
finalmente, espantados todos os que ouviram as palavras do titereiro,
o qual prosseguiu dizendo:
- E tu, oh bom Sancho Pança!, o melhor escudeiro, e do melhor
cavaleiro do mundo, alegra-te, que tua boa mulher Teresa está boa, e
esta é a hora em que ela está rastrilhando uma libra de linho, e, por
mais sinais, tem a seu lado esquerdo um jarro lascado em que cabe
uma boa quantidade de vinho, com que se entretém em seu trabalho.
- Isso creio eu muito bem - respondeu Sancho, - porque é ela uma
bem-aventurada, e, a não ser ciumenta, não a trocaria eu pela giganta
Andandona, que, segundo meu senhor, foi uma mulher muito cabal e
muito de pro; e é minha Teresa daquelas que não se deixam passar
mal, embora seja à custa de seus herdeiros.
- Agora digo - disse então dom Quixote, - que o que lê muito e anda
muito, vê muito e sabe muito. Digo isto porque, que persuasão seria
bastante para persuadir-me de que há monos no mundo que adivinhem,
como o vi agora por meus próprios olhos? Porque eu sou o mesmo dom
Quixote da Mancha que este bom animal disse, embora se há
estendido algum tanto em minhas louvações; mas como queira que eu
me seja, dou graças ao céu, que me dotou de um ânimo brando e
compassivo, inclinado sempre a fazer bem a todos, e mal a nenhum.
- Se eu tivesse dinheiros - disse o pajem, - perguntaria ao senhor
mono que me há de suceder na peregrinação que levo.
Ao que respondeu mestre Pedro, que já se havia levantado dos pés
de dom Quixote:
- Já disse que esta bestazinha não responde ao por vir; que se
respondesse, não importaria não haver dinheiros; que, por serviço do
senhor dom Quixote, que está presente, deixaria eu todos os
interesses do mundo. E agora, porque o devo, e por dar-lhe gosto,
quero armar meu retábulo e dar prazer a quantos estão na estalagem,
sem paga alguma.
Ouvindo o que o vendeiro, alegre sobremaneira, mostrou o lugar
onde se podia pôr o retábulo, o que num instante foi feito.
Dom Quixote não estava muito contente com as adivinhações do
mono, por parecer-lhe não ser a propósito que um mono adivinhasse,
nas de por vir, nem as passadas coisas; e assim, enquanto mestre
Pedro acomodava o retábulo, se retirou dom Quixote com Sancho a um
canto da cavalariça, onde, sem ser ouvidos por ninguém, disse-lhe:
- Vê, Sancho, eu considerei bem a estranha habilidade deste mono,
e acho por minha conta que sem dúvida este mestre Pedro, seu amo,
deve ter feito pacto, tácito ou expresso, com o demônio.
- Se o pátio é sujo e do demônio - disse Sancho, - sem dúvida deve
ser muito sujo pátio; mas, de que serve ao tal mestre Pedro ter esses
pátios?
- Não me entendes, Sancho: não quero dizer senão que deve ter
feito algum concerto com o demônio de que infunda essa habilidade no
mono, com que ganhe de comer, e depois que esteja rico lhe dará sua
alma, que é o que este universal inimigo pretende. E faz-me crer isto o
ver que o mono não responde senão às coisas passadas ou presentes, e
a sabedoria do diabo não se pode estender a mais, que as por vir não
as sabe se não é por conjeturas, e não todas as vezes; que a só Deus
está reservado conhecer os tempos e os momentos, e para Ele não há
passado nem porvir, que tudo é presente. E sendo isto assim, como o é,
está claro que este mono fala com o estilo do diabo; e estou
maravilhado como não o tenham acusado ao Santo Ofício, e examinado
e arrancado em nome de quem adivinha; porque certo está que este
mono não é astrólogo, nem seu amo nem ele traçam, nem sabem traçar,
estas figuras que chamam “mapa astral”, que tanto agora se usam na
Espanha, que não há mulherzinha, nem pajem, nem sapateiro que não
se gabe de traçar uma figura, como se fosse uma sota de baralho,
pondo a perder com suas mentiras e ignorâncias a verdade maravilhosa
da ciência. De uma senhora sei eu que perguntou a um destes
figureiros se uma cadelinha de colo, que tinha, emprenharia e pariria,
e quantos e de que cor seriam os cães que parisse. Ao que o senhor
astrólogo, depois de haver traçado a figura, respondeu que a
cachorrinha emprenharia, e pariria três cãezinhos, um verde, o outro
encarnado e o outro de mistura, com tal condição que a tal cachorra
fosse coberta entre as onze e doze do dia, ou da noite, e que fosse na
segunda-feira ou no sábado; e o que sucedeu foi que dali a dois dias
morria a cadela de indigestão, e o senhor astrólogo ficou acreditado
no lugar por acertadíssimo, como o ficam todos ou a maioria.
- Mesmo assim, queria - disse Sancho - que vossa mercê dissesse a
mestre Pedro perguntasse a seu mono se é verdade o que a vossa
mercê se passou na cova de Montesinos; que eu para mim tenho, com
perdão de vossa mercê, que tudo foi embuste e mentira, ou pelo
menos, coisas sonhadas.
- Tudo poderia ser - respondeu dom Quixote, - mas eu farei o que
me aconselhas, embora me há de ficar um não sei quê de escrúpulo.
Estando nisto, chegou mestre Pedro a buscar dom Quixote e dizer-
lhe que já estava em ordem o retábulo; que sua mercê viesse vê-lo,
porque o merecia. Dom Quixote lhe comunicou seu pensamento, e lhe
rogou perguntasse logo a seu mono lhe dissesse se certas coisas que
havia passado na cova de Montesinos haviam sido sonhadas ou
verdadeiras; porque a ele lhe parecia que tinham de todo. Ao que
mestre Pedro, sem responder palavra, voltou a trazer o mono, e, posto
diante de dom Quixote e de Sancho, disse:
- Vede, senhor mono, que este cavaleiro quer saber se certas coisas
que lhe passaram em uma cova chamada de Montesinos, foram falsas
ou verdadeiras.
E fazendo-lhe o costumeiro sinal, o mono lhe subiu ao ombro
esquerdo, e, falando-lhe, ao parecer, no ouvido, disse logo mestre
Pedro:
- O mono diz que parte das coisas que vossa mercê viu, ou passou, na
dita cova são falsas, e parte verossímeis; e que isto é o que sabe, e
não outra coisa, quanto a esta pergunta; e que se vossa mercê quiser
saber mais, que na sexta-feira vindoura responderá a tudo o que se
lhe perguntar, que por agora se lhe acabou o dom, que não lhe virá até
a sexta-feira, como tem dito.
- Não o dizia eu - disse Sancho, - que não se me podia assentar que
tudo o que vossa mercê, senhor meu, disse dos acontecimentos da
cova era verdade, nem ainda a metade?
- Os acontecimentos o dirão, Sancho - respondeu dom Quixote;
- que o tempo, descobridor de todas as coisas, não deixa nenhuma que
não as traga à luz do sol, embora esteja escondida nos seios da terra.
E por hora, baste isto, e vamo-nos a ver o retábulo do bom mestre
Pedro, que para mim tenho que deve ter alguma novidade.
- Como alguma? - respondeu mestre Pedro: - Sessenta mil encerra
em si este meu retábulo; digo a vossa mercê, meu senhor dom
Quixote, que é uma das coisas mais de ver que hoje tem o mundo, e
“operibus credite, et non verbis”, e mãos à obra, que se faz tarde e
temos muito que fazer e que dizer e que mostrar.
Obedeceram-no dom Quixote e Sancho, e viram onde já estava o
retábulo posto e descoberto, cheio por todos os lados de candeinhas
de cera acesas, que o faziam vistoso e resplandecente. Chegando,
meteu-se mestre Pedro dentro dele, pois era ele que havia de manejar
as figuras do artifício, e fora se pôs um moço, criado do mestre
Pedro, para servir de intérprete e declarador dos mistérios do tal
retábulo: tinha uma varinha na mão, com a qual indicava as figuras que
saíam.
Postos, pois, todos quantos havia na estalagem, e alguns em pé, em
frente ao retábulo, e acomodados dom Quixote, Sancho, o pajem e o
primo nos melhores lugares, o intérprete começou a dizer o que ouvirá
e verá quem ouvir ou vir o capítulo seguinte.

CAPÍTULO XXVI
Onde prossegue a graciosa aventura do titereiro, com outras coisas
em verdade muito boas

“Calaram todos, tírios e troianos”, quero dizer, pendentes estavam


todos os que o retábulo olhavam da boca do declarador de suas
maravilhas, quando se ouviram soar no retábulo quantidade de
atabaques e trombetas, e disparar-se muita artilharia, cujo rumor
passou em tempo breve, e logo alçou a voz o moço, e disse:
- Esta verdadeira história que aqui a vossas mercês se representa é
tirada ao pé da letra das crônicas francesas e dos romances espanhóis
que andam em boca das gentes, e dos moços, por essas ruas. Trata da
liberdade que deu o senhor dom Gaiferos à sua esposa Melisendra, que
estava cativa na Espanha, em poder de mouros, na cidade de
Sansonha, que assim se chamava então a que hoje se chama Saragoça;
e vejam vossas mercês ali como está jogando às tábuas dom Gaiferos,
segundo aquilo que se canta:

Jogando está às tábuas dom Gaiferos,


que já de Melisendra está olvidado.

E aquele personagem que ali assoma, com coroa na cabeça e cetro nas
mãos, é o imperador Carlos Magno, pai putativo da tal Melisendra, o
qual, mofino de ver o ócio e descuido de seu genro, sai a repreendê-lo;
e observem a veemência e afinco com que o repreende, que não parece
senão que lhe quer dar com o cetro meia dúzia de coscorões, e ainda
há autores que dizem que os deu, e muito bem dados; e, depois de
haver-lhe dito muitas coisas acerca do perigo que corria sua honra em
não procurar a liberdade de sua esposa, dizem que lhe disse: “- Muito
vos disse: vede-o.” Vejam vossas mercês também como o imperador
volta as costas e deixa despeitado dom Gaiferos, o qual já veem como
arroja, impaciente da cólera, longe de si o tabuleiro e as tábuas, e
pede depressa as armas, e a dom Roldão, seu primo, pede emprestada
sua espada Durindana, e como dom Roldão não a quer emprestar,
oferecendo-lhe sua companhia na difícil empresa em que se põe; mas o
valoroso irado não o quer aceitar; antes, diz que ele só é bastante
para resgatar sua esposa, se bem estivesse metida no mais fundo
centro da terra; e, com isto, se começa a armar, para pôr-se logo a
caminho. Voltem vossas mercês os olhos àquela torre que ali aparece,
que se pressupõe que é uma das torres do alcácer de Saragoça, que
agora chamam a Aljaferia; e aquela dama que naquele balcão aparece,
vestida ao mouro, é a sem par Melisendra, que dali muitas vezes se
punha a olhar o caminho da França, e, posta a imaginação em Paris e
em seu esposo, se consolava em seu cativeiro. Vejam também um novo
caso que agora sucede, quiçá não visto jamais. Não veem aquele mouro
que caladinho e passinho a passo, posto o dedo na boca, se chega pelas
costas de Melisendra? Pois vejam como lhe dá um beijo nos lábios, e
às pressas ela se põe a cuspir, e a limpá-los com a branca manga de sua
camisa, e como se lamenta, e se arranca de pesar seus formosos
cabelos, como se eles tivessem a culpa do malefício. Vejam também
como aquele grave mouro que está naqueles corredores é o rei
Marsílio de Sansonha; o qual, por haver visto a insolência do mouro,
embora fosse um parente e grande privado seu, o mandou logo
prender, e que lhe dessem duzentos açoites, levando-o pelas ruas
costumeiras da cidade,

com pregoeiros adiante


e açoitadores atrás;

e vedes aqui onde saem a executar a sentença, imediatamente depois


de cometida a falta; porque entre mouros não há “traslado à parte”,
nem “a prova e esteja-se”, como entre nós.
- Menino, menino - disse com voz alta então dom Quixote, - segui
vossa história em linha reta, e não vos metais nas curvas ou
transversais; que, para tirar uma verdade a limpo, precisas são muitas
provas e reprovas.
Também disse mestre Pedro desde dentro:
- Moço, não floreies, senão faz o que esse senhor te manda, que
será o mais acertado; segue teu canto com simplicidade, e não te
metas em contrapontos, que se costumam quebrar por sutis.
- Eu o farei assim - respondeu o moço; e prosseguiu, dizendo: - Esta
figura que aqui aparece a cavalo, coberta com uma capa gasconha, é a
mesma de dom Gaiferos, a quem sua esposa, já vingada do atrevimento
do enamorado mouro, com melhor e mais sossegado semblante, se pôs
aos mirantes da torre, e fala com seu esposo, crendo que é algum
passageiro, com quem passou todas aquelas razões e colóquios daquele
romance que dizem:

Cavaleiro, se à França ides,


por Gaiferos perguntai,

as quais não digo eu agora, porque da prolixidade se costuma


engendrar o fastio; basta ver como dom Gaiferos se descobre, e que
pelos ademanes alegres que Melisendra faz nos dá a entender que ela
o conheceu, e mais agora que vemos desce do balcão, para pôr-se nas
ancas do cavalo de seu bom esposo. Mas, ai, sem ventura!, que se lhe
prendeu uma ponta da fralda em um dos ferros do balcão, e está
pendente no ar, sem poder chegar ao chão. Mas vede como o piedoso
céu socorre nas maiores necessidades, pois chega dom Gaiferos, e,
sem olhar se se rasgará ou não a rica fralda, toma-a, e mau grado seu
a faz baixar ao chão, e logo, de um pulo, a põe sobre as ancas de seu
cavalo, montando-a como homem, e lhe manda que se segure
fortemente e lhe ponha os braços pelas costas, de modo que os cruze
no peito, para que não caia, porque não estava a senhora Melisendra
acostumada a semelhantes cavalarias. Vede também como os relinchos
do cavalo dão sinais que vai contente com a valente e formosa carga
que leva em seu senhor e em sua senhora. Vede como voltam as costas
e saem da cidade, e alegres e regozijados tomam de Paris a via. Ide
em paz, oh par sem par de verdadeiros amantes! Chegai a salvo à vossa
desejada pátria, sem que a fortuna perturbe vossa feliz viagem! Os
olhos de vossos amigos e parentes vos vejam gozar em paz tranquila os
dias (que os de Nestor sejam) que vos ficam da vida!
Aqui alçou outra vez a voz mestre Pedro, e disse:
- Lhaneza, moço; não te exaltes, que toda afetação é má.
Não respondeu nada o intérprete; antes, prosseguiu, dizendo:
- Não faltaram alguns ociosos olhos, que costumam ver tudo, que
não vissem a baixada e a subida de Melisendra, de quem deram notícia
ao rei Marsílio, o qual mandou logo dar alarme; e vejam com que
pressa, que já a cidade se funde com o som dos sinos que em todas as
torres das mesquitas soam.
- Isso não! - disse então dom Quixote: - nisto dos sinos anda muito
impróprio mestre Pedro, porque entre mouros não se usam sinos,
senão atabaques, e um gênero de flautas que parecem nossas
charamelas; e isto de soar sinos em Sansonha sem dúvida que é um
grande disparate.
O que ouvido por mestre Pedro, cessou o tocar e disse:
- Não fique vossa mercê em ninharias, senhor dom Quixote, nem
queira levar as coisas tão ao cabo que não o ache. Não se representam
por aí, quase de ordinário, mil comédias cheias de mil impropriedades
e disparates, e, assim, correm felicissimamente sua carreira, e se
escutam não só com aplauso, senão com admiração e tudo? Prossegue,
moço, e deixa dizer, que conforme eu encha minha bolsa, tanto se me
dá que represente mais impropriedades que tem átomos o sol.
- Assim é a verdade - replicou dom Quixote.
E o moço disse:
- Vejam quanta e quão luzida cavalaria sai da cidade em seguimento
dos dois católicos amantes, quantas trombetas que soam, quantas
flautas que tocam e quantos atabaques e tambores que retumbam.
Temo que os hão de alcançar, e os hão de trazer atados ao rabo de
seu mesmo cavalo, o que seria um horrendo espetáculo.
Vendo e ouvindo, pois, tanta mourisma e tanto estrondo dom
Quixote, pareceu-lhe ser bom dar ajuda aos que fugiam; e,
levantando-se, em voz alta disse:
- Não consentirei eu em meus dias e em minha presença se faça
injúria a tão famoso cavaleiro e a tão atrevido enamorado como dom
Gaiferos. Detende-vos, mal nascida canalha; não o sigais nem
persigais; se não, comigo sois na batalha!
E dizendo e fazendo, desembainhou a espada, e de um pulo se pôs
junto ao retábulo, e, com acelerada e nunca vista fúria, começou a
chover cutiladas sobre a titereira mourisma, derrubando a uns,
descabeçando a outros, estropiando este, destroçando aquele, e,
entre outros muitos, atirou um golpe de cima para baixo tal, que se
mestre Pedro não se abaixa, se encolhe e agacha, lhe cortaria a
cabeça com mais facilidade que se fosse feita de massa de maçapão.
Dava vozes mestre Pedro, dizendo:
- Detenha-se vossa mercê, senhor dom Quixote, e advirta que estes
que derruba, destroça e mata não são verdadeiros mouros, senão umas
figurinhas de massa. Veja, pecador de mim, que me destrói e põe a
perder todos meus bens!
Mas não por isto deixava de amiudar dom Quixote cutiladas,
estocadas, talhos e reveses como chovidos. Finalmente, em menos de
dois credos deu com todo o retábulo no chão, feitas pedaços e
esmigalhadas todas suas enxárcias e figuras: o rei Marsílio, mal
ferido, e o imperador Carlos Magno, partida a coroa e a cabeça em
duas partes. Alvoroçou-se o senado dos ouvintes, fugiu o mono pelos
telhados da janela, temeu o primo, acovardou-se o pajem, e até o
mesmo Sancho Pança teve pavor grandíssimo, porque, como ele jurou
depois de passada a borrasca, jamais havia visto a seu senhor com tão
desatinada cólera. Feito, pois, o geral destroço do retábulo, sossegou-
se um pouco dom Quixote e disse:
- Quisera eu ter aqui diante neste ponto todos aqueles que não
creem, nem querem crer, de quanto proveito sejam no mundo os
cavaleiros andantes: vejam, se não me achasse eu aqui presente, que
seria do bom dom Gaiferos e da formosa Melisendra; seguramente que
esta seria já a hora que os houvessem alcançado estes cães, e lhes
houvessem feito algum agravo. Em suma, viva a andante cavalaria
sobre quantas coisas hoje vivem na terra!
- Viva em hora boa - disse então com voz enfermiça mestre Pedro,
- e morra eu, pois sou tão desditado que posso dizer com o rei dom
Rodrigo:

Ontem fui senhor da Espanha...


e hoje não tenho uma ameia
que possa dizer que é minha!

Não há meia hora, nem ainda um mediano momento, que me vi senhor


de reis e de imperadores, cheias minhas cavalariças e meus cofres e
sacos de infinitos cavalos e de inumeráveis galas, e agora me vejo
desolado e abatido, pobre e mendigo, e, sobretudo, sem meu mono, que
à fé que antes que volte a meu poder me hão de suar os dentes; e tudo
pela fúria mal considerada deste senhor cavaleiro, de quem se diz que
ampara pupilos, e endireita tortos, e faz outras obras caritativas; e
em mim só veio a faltar sua intenção generosa, que sejam benditos e
louvados os céus, lá onde têm mais levantados seus assentos. Enfim, o
Cavaleiro da Triste Figura havia de ser aquele que havia de desfigurar
as minhas.
Enterneceu-se Sancho Pança com as palavras de mestre Pedro, e
disse-lhe:
- Não chores, mestre Pedro, nem te lamentes, que me quebras o
coração; porque te faço saber que é meu senhor dom Quixote tão
católico e escrupuloso cristão, que se ele cai na conta de que te fez
algum agravo, o saberá e o quererá pagar e satisfazer com muitas
vantagens.
- Com que me pagasse o senhor dom Quixote alguma parte das
feituras que me há desfeito, ficaria contente, e sua mercê
asseguraria sua consciência, porque não se pode salvar quem tem o
alheio contra a vontade de seu dono e não o restitui.
- Assim é - disse dom Quixote, - mas até agora eu não sei que tenha
nada vosso, mestre Pedro.
- Como não? - respondeu mestre Pedro; - e estas relíquias que estão
por este duro e estéril chão, quem as espalhou e aniquilou, senão a
força invencível desse poderoso braço? E de quem eram seus corpos
senão meus? E com quem me sustentava eu senão com eles?
- Agora acabo de crer - disse então dom Quixote - o que outras
muitas vezes acreditei: que estes encantadores que me perseguem não
fazem senão pôr-me as figuras como elas são diante dos olhos, e logo
as mudam e trocam nas que eles querem. Real e verdadeiramente vos
digo, senhores que me ouvis, que a mim me pareceu tudo o que aqui se
passou que passava ao pé da letra: que Melisendra era Melisendra,
dom Gaiferos dom Gaiferos, Marsílio Marsílio, e Carlos Magno Carlos
Magno: por isso se me alterou a cólera, e, por cumprir com minha
profissão de cavaleiro andante, quis dar ajuda e favor aos que fugiam,
e com este bom propósito fiz o que haveis visto; se me saiu ao revés,
não é culpa minha, senão dos maus que me perseguem; e, desse modo,
deste meu erro, embora não procedi com malícia, quero eu mesmo
condenar-me as custas: veja mestre Pedro o que quer pelas figuras
desfeitas, que eu me ofereço a pagá-lo logo, em boa e corrente moeda
castelhana.
Inclinou-se mestre Pedro, dizendo-lhe:
- Não esperava eu menos da inaudita cristandade do valoroso dom
Quixote da Mancha, verdadeiro socorredor e amparo de todos os
necessitados e necessitados vagabundos; e aqui o senhor vendeiro e o
grande Sancho serão medianeiros e apreciadores, entre vossa mercê e
eu, do que valem ou podiam valer as já desfeitas figuras.
O vendeiro e Sancho disseram que assim o fariam, e logo mestre
Pedro alçou do chão, com a cabeça menos, o rei Marsílio de Saragoça,
e disse:
- Já se vê quão impossível é voltar este rei a seu ser primeiro; e
assim, me parece, salvo melhor juízo, que se me dê por sua morte, fim
e acabamento quatro reais e meio.
- Adiante! - disse dom Quixote.
- Pois por esta abertura de cima abaixo - prosseguiu mestre Pedro,
tomando nas mãos o partido imperador Carlos Magno, - não seria muito
que pedisse eu cinco reais e um quartinho.
- Não é pouco - disse Sancho.
- Nem muito - replicou o vendeiro; - reparta-se a diferença e
marquem-se cinco reais.
- Deem-se todos cinco e quartinho - disse dom Quixote, - que não
está em um quartinho mais ou menos a monta desta notável desgraça;
e acabe logo mestre Pedro, que se faz hora de jantar, e eu tenho
alguma fome.
- Por esta figura - disse mestre Pedro - que está sem nariz e um
olho menos, que é da formosa Melisendra, quero, e me ponho no justo,
dois reais e doze maravedis.
- Ainda aí seria o diabo - disse dom Quixote, - se já não estivesse
Melisendra com seu esposo, pelo menos, no caminho da França; porque
o cavalo em que iam, a mim me pareceu que antes voava que corria; e
assim, não há para que vender-me a mim o gato por lebre,
apresentando-me aqui a Melisendra desnarigada, estando a outra, se
vem a mão, agora folgando na França com seu esposo tranquilamente.
Ajude Deus com o seu a cada um, senhor mestre Pedro, e caminhemos
todos com pé firme e com intenção sã. E prossiga.
Mestre Pedro, que viu que dom Quixote desvairava e que voltava a
seu primeiro tema, não quis que se lhe escapasse; e assim, disse-lhe:
- Esta não deve ser Melisendra, senão alguma das donzelas que a
serviam; e assim, com sessenta maravedis que me deem por ela ficarei
contente e bem pago.
Desta maneira foi pondo preço a outras muitas destroçadas figuras,
que depois os moderaram os dois juízes árbitros, com satisfação das
partes, que chegaram a quarenta reais e três quartinhos; e, além
disto, que logo o desembolsou Sancho, pediu mestre Pedro dois reais
pelo trabalho de recuperar o mono.
- Dá-os, Sancho - disse dom Quixote, - não para recuperar o mono,
senão a mona; e duzentos daria eu agora em alvíssaras a quem me
dissesse com certeza que a senhora dona Melisendra e o senhor dom
Gaiferos estavam já na França e entre os seus.
- Nenhum no-lo poderá dizer melhor que meu mono - disse mestre
Pedro, - mas não haverá diabo que agora o apanhe; embora imagino que
o carinho e a fome lhe hão de forçar a que me busque esta noite, e
amanhecerá Deus e veremos.
Em suma, a borrasca do retábulo se acabou e todos jantaram em
paz e em boa companhia, à custa de dom Quixote, que era liberal em
todo extremo.
Antes que amanhecesse, se foi o que levava as lanças e as
alabardas, e já depois de amanhecido, vieram despedir-se de dom
Quixote o primo e o pajem: um, para voltar à sua terra; e o outro, a
prosseguir seu caminho, para ajuda do qual lhe deu dom Quixote uma
dúzia de reais. Mestre Pedro não quis voltar a entrar em mais
discussões com dom Quixote, a quem ele conhecia muito bem, e assim,
madrugou antes do sol, e, colhendo as relíquias de seu retábulo e seu
mono, se foi também a buscar suas aventuras. O vendeiro, que não
conhecia dom Quixote, tão admirado lhe tinham suas loucuras como
sua liberalidade. Finalmente, Sancho o pagou muito bem, por ordem de
seu senhor, e, despedindo-se dele, quase às oito do dia deixaram a
estalagem e se puseram a caminho, onde os deixaremos ir; que assim
convém para dar lugar a contar outras coisas pertencentes à
declaração desta famosa história.

CAPÍTULO XXVII

Onde se dá conta de quem eram mestre Pedro e seu mono, com o


mau sucesso que dom Quixote teve na aventura do zurro, que não
acabou como ele queria e como o tinha pensado

Entra Cide Hamete, cronista desta grande história, com estas


palavras neste capítulo: “Juro como católico cristão...”. Ao que seu
tradutor diz que o jurar Cide Hamete como católico cristão, sendo ele
mouro, como sem dúvida o era, não quis dizer outra coisa senão que,
assim que o católico cristão quando jura, jura, ou deve jurar, verdade,
e dizê-la no que disser, assim ele a dizia, como juraria como cristão
católico, no que queria escrever de dom Quixote, especialmente em
dizer quem era mestre Pedro, e quem o mono adivinho que trazia
admirados todos aqueles povoados com suas adivinhações.
Diz, pois, que bem se lembrará o que houver lido a primeira parte
desta história, daquele Ginés de Pasamonte, a quem, entre outros
galeotes, deu liberdade dom Quixote em Serra Morena, benefício que
depois lhe foi mal agradecido e pior pago por aquela gente maligna e
mal acostumada. Este Ginés de Pasamonte, a quem dom Quixote
chamava “Ginesillo de Parapilla”, foi o que furtou o ruço de Sancho
Pança; que, por não haver-se posto o como nem o quando na primeira
parte, por culpa dos impressores, deu em que entender a muitos, que
atribuíam à pouca memória do autor a falta de imprenta. Mas, em
suma, Ginés o furtou, estando sobre ele dormindo Sancho Pança,
usando da manha e modo que usou Brunelo quando, estando Sacripante
sobre Albraca, lhe tirou o cavalo de entre as pernas, e depois o cobrou
Sancho, como se contou. Este Ginés, pois, temeroso de ser achado
pela justiça, que o procurava para castigá-lo de suas infinitas
velhacarias e delitos, que seriam tantos e tais, que ele mesmo compôs
um grande volume contando-os, decidiu passar ao reino de Aragão e
cobrir o olho esquerdo, acomodando-se ao ofício de titereiro; que isto
e o jogar de mãos o sabia fazer por extremo.
Sucedeu, pois, que de uns cristãos já livres que vinham de Barbária
comprou aquele mono, a quem ensinou que, fazendo-lhe certo sinal, se
lhe subisse ao ombro e lhe murmurasse, ou o parecesse, ao ouvido.
Feito isto, antes que entrasse no lugar onde chegava com seu retábulo
e mono, se informava no lugar mais perto, ou de quem ele melhor
podia, que coisas particulares houvessem sucedido no tal lugar, e a que
pessoas; e, levando-as bem na memória, a primeira coisa que fazia era
mostrar seu retábulo, o qual umas vezes era de uma história, e outras
de outra; mas todas alegres e regozijadas e conhecidas. Acabada a
mostra, propunha as habilidades de seu mono, dizendo ao povoado que
adivinhava todo o passado e o presente; mas que no de por vir não se
dava manha. Pela resposta de cada pergunta pedia dois reais, e por
algumas fazia barato, segundo tomava o pulso aos perguntantes; e
como talvez chegava às casas de quem ele sabia os sucessos dos que
nela moravam, embora não lhe perguntassem nada por não pagá-lo, ele
fazia o sinal ao mono, e logo dizia que lhe havia dito tal e tal coisa, que
vinha de molde com o sucedido. Com isto cobrava crédito inefável, e
andavam todos atrás dele. Outras vezes, como era tão discreto,
respondia de maneira que as respostas vinham bem com as perguntas;
e, como ninguém lhe apurava nem apertava a que dissesse como
adivinhava seu mono, a todos deixava boquiabertos, e enchia suas
bolsas.
Assim que entrou na estalagem, conheceu dom Quixote e Sancho,
por cujo conhecimento lhe foi fácil pôr em admiração a dom Quixote e
a Sancho Pança, e a todos os que nela estavam; mas haveria de custar-
lhe caro se dom Quixote baixasse um pouco mais a mão quando cortou
a cabeça ao rei Marsílio e destruiu toda sua cavalaria, como fica dito
no antecedente capítulo.
Isto é o que há que dizer de mestre Pedro e de seu mono.
E voltando a dom Quixote da Mancha, digo que, depois de haver
saído da estalagem, decidiu ver primeiro as ribeiras do rio Ebro e
todos aqueles contornos, antes de entrar na cidade de Saragoça, pois
lhe dava tempo para todo o muito que faltava dali às justas. Com esta
intenção seguiu seu caminho, pelo qual andou dois dias sem acontecer-
lhe coisa digna de pôr-se em escritura, até que ao terceiro, ao subir
de uma colina, ouviu um grande rumor de tambores, de trombetas e
arcabuzes. Ao princípio pensou que algum regimento de soldados
passava por aquela parte, e por vê-los picou Rocinante e subiu a colina
acima; e quando chegou ao cume, viu ao pé dela, a seu parecer, mais de
duzentos homens armados de diferentes sortes de armas, como se
disséssemos lanções, bestas, partasanas, alabardas e lanças, e alguns
arcabuzes, e muitas rodelas. Baixou do declive e acercou-se ao
esquadrão, tanto, que distintamente viu as bandeiras, julgou das cores
e notou os emblemas que nelas traziam, especialmente uma que num
estandarte ou pendão de seda branco vinha, no qual estava pintado
muito ao vivo um asno como de raça pequena, a cabeça levantada, a
boca aberta e a língua de fora, em ato e postura como se estivesse
zurrando; ao redor dele estavam escritos em letras grandes estes
dois versos:

Não zurraram em vão


um e outro alcaide.

Por esta insígnia concluiu dom Quixote que aquela gente devia ser
do povoado do zurro, e assim o disse a Sancho, declarando-lhe o que
no estandarte vinha escrito. Disse-lhe também que o que lhes havia
dado notícia daquele caso havia errado em dizer que dois vereadores
haviam sido os que zurraram; mas que, segundo os versos do
estandarte, não haviam sido senão alcaides. Ao que respondeu Sancho
Pança:
- Senhor, nisso não há que reparar, que bem pode ser que os
vereadores que então zurraram viessem com o tempo a ser alcaides de
seu povoado, e assim, se podem chamar com ambos os títulos; quanto
mais, que não vem ao caso à verdade da história ser os zurradores
alcaides ou vereadores, como eles uma por uma hajam zurrado; porque
tão a pique está de zurrar um alcaide como um vereador.
Finalmente, conheceram e souberam como a vila vexada saía a lutar
com outra que a vexava mais do que era tolerável e do que se devia à
boa vizinhança.
Foi-se chegando a eles dom Quixote, não com pouco pesar de
Sancho, que nunca foi amigo de achar-se em semelhantes jornadas. Os
do esquadrão o recolheram em meio, crendo que era algum dos de sua
facção. Dom Quixote, alçando a viseira, com gentil brio e postura,
chegou até o estandarte do asno, e ali se lhe puseram ao redor todos
os mais principais do exército, por vê-lo, admirados com a admiração
costumeira em que caíam todos aqueles que a vez primeira o viam. Dom
Quixote, que os viu tão atentos a olhá-lo, sem que nenhum lhe falasse
nem lhe perguntasse nada, quis aproveitar-se daquele silêncio, e,
rompendo o seu, alçou a voz e disse:
- Bons senhores, quão encarecidamente posso, vos suplico que não
interrompais um arrazoado que quero fazer-vos, até que vejais que
vos desgosta e enfada; que se isto sucede, com o mais mínimo sinal que
me façais porei um selo em minha boca e uma mordaça em minha
língua.
Todos lhe disseram que dissesse o que quisesse, que de bom grado o
escutariam. Dom Quixote, com esta licença, prosseguiu dizendo:
- Eu, senhores meus, sou cavaleiro andante, cujo exercício é o das
armas, e cuja profissão a de favorecer aos que precisam de favor e
atender aos necessitados. Dias há que soube vossa desgraça e porque
vos move a tomar as armas a cada passo, para vingar-vos de vossos
inimigos; e, havendo refletido uma e muitas vezes em meu
entendimento sobre vosso negócio, acho, segundo as leis do duelo, que
estais enganados em ter-vos por afrontados, porque nenhum
particular pode afrontar a um povoado inteiro, se não é desafiando-o
de traidor conjuntamente, porque não sabe em particular quem
cometeu a traição pela qual o desafia. Exemplo disto temos em dom
Diego Ordónhez de Lara, que desafiou a toda a vila zamorana, porque
ignorava que só Vellido Dolfos havia cometido a traição de matar seu
rei, e assim, desafiou a todos, e a todos tocava a vingança e a
resposta; embora bem é verdade que o senhor dom Diego andou algo
demasiado, e ainda passou muito adiante dos limites do desafio,
porque não tinha para que desafiar os mortos, as águas, nem os pães,
nem os que estavam por nascer, nem as outras minudências que ali se
declaram; mas, vá!, pois quando a cólera sai de mãe, não tem a língua
pai, aio nem freio que a corrija. Sendo, pois, isto assim, que um só não
pode afrontar a reino, província, cidade, república nem povoado
inteiro, fica em limpo que não há para que sair à vingança do repto da
tal afronta, pois não o é; porque, bom seria que se matassem a cada
passo os da vila da Reloja com quem se o chama, nem os caçaroleiros,
berinjeleiros, baleotes, saboeiros, nem os de outros nomes e apelidos
que andam por aí em boca dos moços e de gente de pouco mais ou
menos! Bom seria, por certo, que todos estes insignes povoados se
vexassem e vingassem, e andassem continuamente as espadas
desembainhadas para qualquer pendência, por pequena que fosse! Não,
não, nem Deus o permita ou queira. Os varões prudentes, as repúblicas
bem concertadas, por quatro coisas hão de tomar as armas e
desembainhar as espadas, e pôr a risco suas pessoas, vidas e bens: a
primeira, por defender a fé católica; a segunda, por defender sua
vida, que é de lei natural e divina; a terceira, em defesa de sua honra,
de sua família e bens; a quarta, em serviço de seu rei, na guerra justa;
e se lhe quiséssemos juntar a quinta, que se pode contar por segunda,
é em defesa de sua pátria. A estas cinco causas, como capitais, se
podem agregar algumas outras que sejam justas e razoáveis, e que
obriguem a tomar as armas; mas tomá-las por ninharias e por coisas
que antes são de riso e passatempo que de afronta, parece que quem
as toma carece de todo razoável argumento; quanto mais, que o tomar
vingança injusta, que justa não pode haver alguma que o seja, vai
diretamente contra a santa lei que professamos, na qual se nos manda
que façamos bem a nossos inimigos e que amemos aos que nos
aborrecem; mandamento que, embora parece algo dificultoso de
cumprir, não o é senão para aqueles que têm menos de Deus que do
mundo, e mais de carne que de espírito; porque Jesus Cristo, Deus e
homem verdadeiro, que nunca mentiu, nem pôde nem pode mentir,
sendo legislador nosso, disse que seu jugo era suave e sua carga leve;
e assim, não nos havia de mandar coisa que fosse impossível o cumpri-
la. Assim que, meus senhores, vossas mercês estão obrigados por leis
divinas e humanas a sossegar-se.
- O diabo me leve - disse então Sancho consigo - se este meu amo
não é tólogo; e se não o é, que o parece como um ovo a outro.
Tomou um pouco de alento dom Quixote, e, vendo que ainda lhe
prestavam silêncio, quis passar adiante em sua conversa, como
passaria se não se pusesse em meio a agudeza de Sancho, o qual, vendo
que seu amo se detinha, tomou a mão por ele, dizendo:
- Meu senhor dom Quixote da Mancha, que um tempo se chamou “o
Cavaleiro da Triste Figura” e agora se chama “o Cavaleiro dos Leões”,
é um fidalgo muito prudente, que sabe latim e romance como um
bacharel, e em tudo quanto trata e aconselha procede como muito bom
soldado, e tem todas as leis e ordenanças do que chamam o duelo na
unha; e assim, não há mais que fazer senão deixar-se levar pelo que
ele disser, e sobre mim se o errarem; quanto mais, que isso se está
dito que é necedade correr-se por só ouvir um zurro, que eu me
lembro, quando moço, que zurrava quando queria, sem que ninguém me
fosse à mão, e com tanta graça e propriedade que, zurrando eu,
zurravam todos os asnos da vila, e não por isso deixava de ser filho de
meus pais, que eram honradíssimos; e, embora por esta habilidade era
invejado de mais de quatro dos ditos superiores de meu povoado, não
me davam dois tostões. E porque se veja que digo verdade, esperem e
escutem, que esta ciência é como a do nadar: que, uma vez aprendida,
nunca se olvida.
E logo, posta a mão no nariz, começou a zurrar tão fortemente, que
todos os vales ao redor retumbaram. Mas um dos que estavam junto a
ele, crendo que fazia burla deles, alçou um varapau que na mão tinha, e
deu-lhe tal golpe com ele, que, sem poder fazer outra coisa, deu com
Sancho Pança no chão. Dom Quixote, que viu tão estropiado a Sancho,
arremeteu ao que lhe havia dado, com a lança sobre mão, mas foram
tantos os que se puseram em meio, que não foi possível vingá-lo; antes,
vendo que chovia sobre ele uma chuva de pedras, e que o ameaçavam
mil encaradas bestas e não menos quantidade de arcabuzes, voltou as
rédeas a Rocinante, e a todo o que seu galope pôde, saiu de entre eles,
encomendando-se de todo coração a Deus, que daquele perigo o
livrasse, temendo a cada passo lhe entrasse alguma bala pelas costas e
lhe saísse ao peito; e a cada ponto recolhia o alento, para ver se lhe
faltava.
Mas os do esquadrão se contentaram com vê-lo fugir, sem atacá-lo.
A Sancho o puseram sobre seu jumento, apenas voltado a si, e o
deixaram ir atrás de seu amo, não porque ele tivesse sentido para
guiá-lo; mas o ruço seguiu as pegadas de Rocinante, sem o qual não se
achava um ponto. Alongado, pois, dom Quixote bom trecho, voltou a
cabeça e viu que Sancho vinha, e esperou-o, vendo que ninguém o
seguia.
Os do esquadrão estiveram ali até a noite, e, por não haver saído à
batalha seus contrários, voltaram a seu povoado, regozijados e
alegres; e se eles soubessem o costume antigo dos gregos, levantariam
naquele lugar e sítio um monumento.

CAPÍTULO XXVIII

De coisas que diz Benengeli que as saberá quem o ler, se as lê com


atenção

Quando o valente foge, é porque descobriu a traição, e é de varões


prudentes guardar-se para melhor ocasião. Esta verdade se verificou
em dom Quixote, o qual, deixando passar a fúria da vila e as más
intenções daquele indignado esquadrão, pôs pés em polvorosa, e, sem
lembrar-se de Sancho nem do perigo em que o deixava, se afastou
tanto quanto lhe pareceu que bastava para estar seguro. Seguia-o
Sancho, atravessado em seu jumento, como fica referido. Chegou,
enfim, já voltado a si, e ao chegar, se deixou cair do ruço aos pés de
Rocinante, todo ansioso, todo moído e todo apaleado. Apeou-se dom
Quixote para procurar-lhe as feridas; mas, como o achasse são dos
pés à cabeça, com muita cólera lhe disse:
- Tão em hora má soubestes vós zurrar, Sancho! E onde achastes
vós ser bom o nomear a corda em casa do enforcado? A música de
zurros, que contraponto se havia de levar senão de varapaus? E dai
graças a Deus, Sancho, que já que vos benzeram com um golpe, não vos
deram uma cutilada na cara com um alfanje.
- Não estou para responder - respondeu Sancho, - porque me
parece que falo pelas costas. Subamos e afastemo-nos daqui, que eu
porei silêncio em meus zurros, mas não em deixar de dizer que os
cavaleiros andantes fogem, e deixam seus bons escudeiros
convertidos em pó em poder de seus inimigos.
- Não foge o que se retira - respondeu dom Quixote, - porque hás
de saber, Sancho, que a valentia que não se funda sobre a base da
prudência se chama temeridade, e as façanhas do temerário mais se
atribuem à boa fortuna que a seu ânimo. E assim, eu confesso que me
retirei, mas não fugi; e nisto imitei muitos valentes, que se guardaram
para tempos melhores, e disto estão as histórias cheias, as quais, por
não ser-te a ti de proveito nem a mim de gosto, não as refiro agora.
Nisto, já estava a cavalo Sancho, ajudado por dom Quixote, o qual
também subiu em Rocinante, e pouco a pouco foram abrigar-se em uma
alameda que estava a um quarto de légua dali. De quando em quando
dava Sancho uns ais profundíssimos e uns gemidos dolorosos; e,
perguntando-lhe dom Quixote a causa de tão amargo sentimento,
respondeu que, desde a ponta do espinhaço até a nuca do cérebro lhe
doía de maneira que lhe tirava o sentido.
- A causa dessa dor deve ser, sem dúvida - disse dom Quixote, -
que, como era o golpe com que te deram largo e estendido, te colheu
todas as costas, onde entram todas essas partes que te doem; e se
mais te colhesse, mais te doeria.
- Por Deus - disse Sancho, - que vossa mercê me tirou de uma
grande dúvida, e que a declarou com lindos termos! Corpo de mim! Tão
encoberta estava a causa de minha dor que foi preciso dizer-me que
me dói tudo tudo aquilo que alcançou o golpe? Se me doessem os
tornozelos, ainda poderia ser que se andasse adivinhando o porquê me
doíam, mas doer-me o que me moeram não é muito adivinhar. À fé,
senhor nosso amo, é fácil desligar-se do mal dos outros, e cada dia vou
me inteirando do pouco que posso esperar da companhia que com vossa
mercê tenho; porque se esta vez me deixou apalear, outra e outras
cento voltaremos aos manteamentos de sempre e a outras molecagens,
que se agora me saíram às costas, depois me sairão aos olhos. Muito
melhor faria eu, senão que sou um bárbaro, e não farei nada que bom
seja em toda minha vida; muito melhor faria eu, volto a dizer, em
voltar-me à minha casa, e à minha mulher, e a meus filhos, e sustentá-
la e criá-los com o que Deus foi servido de dar-me, e não andar-me
atrás de vossa mercê por caminhos sem caminho e por sendas e
carreiras que não as têm, bebendo mal e comendo pior. Pois, tomai-me
o dormir! Contai, irmão escudeiro, sete pés de terra, e se quiserdes
mais, tomai outros tantos, que em vossa mão está sevir-vos, e tende-
vos a todo vosso bom talante; que queimado veja eu e feito pó o
primeiro que deu pontada na andante cavalaria, ou, ao menos, ao
primeiro que quis ser escudeiro de tais tontos como deveram ser
todos os cavaleiros andantes passados. Dos presentes não digo nada;
que, por ser vossa mercê um deles, vos tenho respeito, e porque sei
que sabe vossa mercê um ponto mais que o diabo em quanto fala e em
quanto pensa.
- Faria eu uma boa aposta convosco, Sancho - disse dom Quixote: -
que agora que vais falando sem que ninguém vos vá à mão, que não vos
dói nada em todo vosso corpo. Falai, filho meu, tudo aquilo que vos vier
ao pensamento e à boca; que, a troco de que a vós não vos doa nada,
terei eu por gosto o enfado que me dão vossas impertinências. E se
tanto desejais voltar-vos à vossa casa com vossa mulher e filhos, não
permita Deus que eu vos o impeça; dinheiros tendes meus: vede quanto
há que esta terceira vez saímos de nossa vila, e vede o que podeis e
deveis ganhar cada mês, e pagai-vos com vossa mão.
- Quando eu servia - respondeu Sancho - a Tomé Carrasco, o pai do
bacharel Sansão Carrasco, que vossa mercê bem conhece, dois
ducados ganhava cada mês, além da comida; com vossa mercê não sei o
que posso ganhar, embora sei que tem mais trabalho o escudeiro do
cavaleiro andante que o que serve a um lavrador; que, em suma, os que
servimos a lavradores, por muito que trabalhemos de dia, por mal que
suceda, à noite jantamos cozido e dormimos em cama, na qual não
adormeci desde que sirvo a vossa mercê. Se não foi o tempo breve que
estivemos em casa de dom Diego de Miranda, e o banquete que tive
com a espuma que tirei das panelas de Camacho, e o que comi e bebi e
dormi em casa de Basílio, todo o outro tempo adormeci na dura terra,
ao céu aberto, sujeito ao que dizem inclemências do céu, sustentando-
me com fatias de queijo e pão dormido, e bebendo águas, já de
arroios, já de fontes, das que encontramos por esses ermos onde
andamos.
- Confesso - disse dom Quixote - que tudo o que dizes, Sancho, seja
verdade. Quanto parece que vos devo dar mais do que vos dava Tomé
Carrasco?
- A meu parecer - disse Sancho, - com dois reais mais que vossa
mercê acrescentasse cada mês me teria por bem pago. Isto é quanto
ao salário de meu trabalho; mas, em quanto a satisfazer-me à palavra
e promessa que vossa mercê me tem feita de dar-me o governo de
uma ilha, seria justo que se me acrescentassem outros seis reais, que
por todos seriam trinta.
- Está muito bem - replicou dom Quixote; - e conforme ao salário
que vós vos haveis assinalado, vinte e cinco dias há que saímos de
nossa vila: contai, Sancho, rata por quantidade, e vede o que vos devo,
e pagai-vos, como vos disse, com vossa mão.
- Oh, corpo de mim! - disse Sancho, - que vai vossa mercê muito
errado nesta conta, porque no da promessa da ilha se há de contar
desde o dia que vossa mercê ma prometeu até a presente hora em que
estamos.
- Pois, que tanto há, Sancho, que vo-la prometi? - disse dom
Quixote.
- Se eu mal não me lembro - respondeu Sancho, - deve haver mais
de vinte anos, três dias mais ou menos.
Deu-se dom Quixote uma grande palmada na fronte, e começou a rir
com muita vontade, e disse:
- Pois não andei eu em Serra Morena, nem em todo o decurso de
nossas saídas, senão dois meses apenas, e dizes, Sancho, que há vinte
anos que te prometi a ilha? Agora digo que queres que se consumam
em teus salários o dinheiro que tens meu; e se isto é assim, e tu
gostas disso, desde aqui o dou, e bom proveito te faça; que, a troco de
ver-me sem tão mau escudeiro, folgarei de ficar pobre e sem prata.
Mas diz-me, prevaricador das ordens escuderis da andante cavalaria,
onde viste tu, ou leste, que nenhum escudeiro de cavaleiro andante se
haja posto com seu senhor em “quanto me haveis de dar cada mês por
que vos sirva”? Entra, entra, gatuno, baderneiro e monstro, que tudo o
pareces; entra, digo, pelo maremagnum de suas histórias, e se achares
que algum escudeiro haja dito, nem pensado, o que aqui disseste, quero
que mo craves na fronte, e, por acréscimo, me dês quatro sopapos no
rosto. Volte as rédeas, ou o cabresto, ao ruço, e volta à tua casa,
porque um só passo daqui não hás de passar mais adiante comigo. Oh
pão mal conhecido! Oh promessas mal colocadas! Oh homem que tem
mais de besta que de pessoa! Agora, quando eu pensava pôr-te em
estado, e tal, que apesar de tua mulher te chamaram senhoria, te
despedes? Agora te vais, quando eu vinha com intenção firme e
valedora de fazer-te senhor da melhor ilha do mundo? Enfim, como tu
disseste outras vezes, não é o mel... etcétera. Asno és, e asno hás de
ser, e em asno hás de ficar quando te acabe o curso da vida; que para
mim tenho que antes chegará ela a seu último termo que tu caias e dês
na conta de que és besta.
Olhava Sancho dom Quixote fixamente, enquanto os tais vitupérios
lhe dizia, e compungiu-se de maneira que lhe vieram as lágrimas aos
olhos, e com voz dolorida e enferma lhe disse:
- Senhor meu, eu confesso que para ser de todo asno não me falta
mais que o rabo; se vossa mercê quer pô-mo, eu o darei por bem posto,
e o servirei como jumento todos os dias que me ficam de minha vida.
Vossa mercê me perdoe e se doa de minha mocidade, e advirta que sei
pouco, e que se falo muito, mais procede de enfermidade que de
malícia; mas, quem erra e se emenda, a Deus se encomenda.
- Maravilhar-me-ia eu, Sancho, se não misturasses algum
refrãozinho em teu colóquio. Agora bem, eu te perdoo, desde que te
emendes, e que não te mostres daqui em diante tão amigo de teu
interesse, senão que procures alargar o coração, e te alentes e animes
a esperar o cumprimento de minhas promessas, que, embora se tarda,
não se impossibilita.
Sancho respondeu que sim faria, embora sacasse forças de
fraqueza.
Com isto, se meteram na alameda, e dom Quixote se acomodou ao pé
de um olmo, e Sancho ao de uma faia; que estas tais árvores e outros
suas semelhantes sempre têm pés, e não mãos. Sancho passou a noite
penosamente, porque o varapau se fazia mais sentir com o sereno.
Dom Quixote a passou em suas contínuas memórias; mas, assim, deram
os olhos ao sono, e ao sair do alvorecer seguiram seu caminho
buscando as ribeiras do famoso Ebro, onde lhes sucedeu o que se
contará no capítulo vindouro.

CAPÍTULO XXIX

Da famosa aventura do barco encantado

Por seus passos contados e por contar, dois dias depois que saíram
da alameda, chegaram dom Quixote e Sancho ao rio Ebro, e vê-lo foi
de grande gosto a dom Quixote, porque contemplou e viu nele a
amenidade de suas margens, a claridade de suas águas, o sossego de
seu curso e a abundância de seus líquidos cristais, cuja alegre vista
renovou em sua memória mil amorosos pensamentos. Especialmente foi
e veio em pensamento no que havia visto na cova de Montesinos; que,
embora o mono de mestre Pedro lhe havia dito que parte daquelas
coisas eram verdade e parte mentira, ele se atinha mais às
verdadeiras que às mentirosas, bem ao revés de Sancho, que todas as
tinha pela mesma mentira.
Indo, pois, desta maneira, se lhe ofereceu à vista um pequeno barco
sem remos nem outras enxárcias algumas, que estava atado na orla a
um tronco de uma árvore que na margem estava. Olhou dom Quixote a
todos os lados, e não viu pessoa alguma; e logo, sem mais nem mais,
apeou de Rocinante e mandou Sancho que o mesmo fizesse do ruço, e
que a ambas as bestas as atasse muito bem, juntas, ao tronco de um
álamo ou salgueiro que ali estava. Perguntou-lhe Sancho a causa
daquele súbito apeamento e daquele ligamento. Respondeu dom
Quixote:
- Hás de saber, Sancho, que este barco que aqui está, direitamente
e sem poder ser outra coisa em contrário, me está chamando e
convidando a que entre nele, e vá nele a dar socorro a algum cavaleiro,
ou a outra necessitada e principal pessoa, que deve estar posta em
alguma grande coita, porque este é estilo dos livros das histórias
cavaleirescas e dos encantadores que nelas se intrometem e praticam:
quando algum cavaleiro está posto em algum trabalho, que não pode
ser liberado dele senão pela mão de outro cavaleiro, embora estejam
distantes um do outro duas ou três mil léguas, e ainda mais, ou o
arrebatam em uma nuvem ou lhe deparam um barco em que entre, e em
menos de um abrir e fechar de olhos o levam, ou pelos ares, ou pelo
mar, onde querem e onde é precisa sua ajuda; assim que, oh Sancho!,
este barco está posto aqui para o mesmo efeito; e isto é tão verdade
como é agora de dia; e antes que este passe, ata juntos o ruço e
Rocinante, e à mão de Deus, que nos guie, que não deixarei de
embarcar-me se mo pedissem frades descalços.
- Pois assim é - respondeu Sancho, - e vossa mercê quer dar a cada
passo nestes que não sei se os chame disparates, não há senão
obedecer e baixar a cabeça, atendendo ao refrão: “faz o que teu amo
te manda, e senta-te com ele à mesa”; mas, assim, pelo que toca ao
desencargo de minha consciência, quero advertir a vossa mercê que a
mim me parece que este tal barco não é dos encantados, senão de
alguns pescadores deste rio, porque nele se pescam as melhores
sabogas do mundo.
Isto dizia, enquanto atava as bestas, Sancho, deixando-as à
proteção e amparo dos encantadores, com farta dor de sua alma. Dom
Quixote lhe disse que não tivesse pena do desamparo daqueles
animais, que o que os levaria a eles por tão longínquos caminhos e
regiões teria conta de sustentá-los.
- Não entendo isso de logíquos - disse Sancho, - nem ouvi tal
vocábulo em todos os dias de minha vida.
- Longínquos - respondeu dom Quixote - quer dizer “afastados”, e
não é maravilha que não o entendas, que não estás tu obrigado a saber
latim, como alguns que presumem que o sabem e o ignoram.
- Já estão atados - replicou Sancho. - Que havemos de fazer agora?
- Quê? - respondeu dom Quixote. - Benzer-nos e levantar ferro;
quero dizer, embarcar-nos e cortar a amarra com que este barco está
atado.
E dando um salto nele, seguindo-o Sancho, cortou o cordel, e o
barco se foi afastando pouco a pouco da margem; e quando Sancho se
viu obra de duas varas dentro do rio, começou a tremer, temendo sua
perdição; mas nenhuma coisa lhe deu mais pena que o ouvir zurrar o
ruço e o ver que Rocinante pugnava por desatar-se, e disse a seu
senhor:
- O ruço zurra, condoído de nossa ausência, e Rocinante procura
pôr-se em liberdade para arrojar-se atrás de nós. Oh caríssimos
amigos, ficai em paz, e a loucura que nos aparta de vós, convertida em
desengano, nos volte à vossa presença!
E nisto, começou a chorar tão amargamente que dom Quixote,
mofino e colérico, disse-lhe:
- Que temes, covarde criatura? Por que choras, coração de
manteiguinhas? Quem te persegue, ou quem te acossa, ânimo de ratão
caseiro, ou que te falta, necessitado no meio das entranhas da
abundância? Por acaso vais caminhando a pé e descalço pelas
montanhas rifeias, senão sentado em uma tábua, como um arquiduque,
pelo sossegado curso deste agradável rio, de onde em breve tempo
sairemos ao mar dilatado? Mas já havemos de haver saído, e
caminhado, pelo menos, setecentas ou oitocentas léguas; e se eu
tivesse aqui um astrolábio com que tomar a altura do polo, eu te diria
as que caminhamos; embora, ou eu sei pouco, ou já passamos, ou
passaremos logo, pela linha equinocial, que divide e corta os dois
contrapostos polos em igual distância.
- E quando cheguemos a essa lenha que vossa mercê diz - perguntou
Sancho, - quanto haveremos caminhado?
- Muito - replicou dom Quixote, - porque de trezentos e sessenta
graus que contém o globo, da água e da terra, segundo o cômputo de
Ptolomeu, que foi o maior cosmógrafo que se sabe, a metade
haveremos caminhado, chegando à linha que disse.
- Por Deus - disse Sancho, - que vossa mercê me traz por
testemunho do que diz a uma gentil pessoa, maricas e leproso, com o
acréscimo de mijão, ou mijado, ou não sei como.
Riu-se dom Quixote da interpretação que Sancho havia dado ao
nome e ao cômputo e conta do cosmógrafo Ptolomeu, e disse-lhe:
- Saberás, Sancho, que os espanhóis e os que embarcam em Cádis
para ir às Índias Orientais, um dos sinais que têm para entender que
passaram a linha equinocial que te disse é que a todos os que vão no
navio se lhes morrem os piolhos, sem que lhes fique nenhum, nem em
todo o baixel o acharão, se o pesam a ouro; e assim, podes, Sancho,
passear uma mão por uma coxa, e se topares coisa viva, sairemos
desta dúvida; e se não, passamos.
- Eu não creio nada disso - respondeu Sancho, - mas, contudo, farei
o que vossa mercê me manda, embora não sei para que há necessidade
de fazer essas experiências, pois eu vejo com meus mesmos olhos que
não nos afastamos da margem cinco varas, nem de onde estão as
alimárias duas varas, porque ali estão Rocinante e o ruço no próprio
lugar onde os deixamos; e tomada a medida, como eu a tomo agora,
voto a tal que não nos movemos nem andamos ao passo de uma formiga.
- Faz, Sancho, a averiguação que te disse, e não cuides de outra, que
tu não sabes que coisa sejam coluros, linhas, paralelos, zodíacos,
eclípticas, polos, solstícios, equinócios, planetas, signos, pontos,
medidas, de que se compõe a esfera celeste e terrestre; que se todas
estas coisas soubesses, ou parte delas, verias claramente quais
paralelos cortamos, quais signos vimos e quais imagens deixamos atrás
e vamos deixando agora. E torno-te a dizer que te tenteies e pesques,
que eu para mim tenho que estás mais limpo que uma folha de papel
liso e branco.
Tenteou-se Sancho, e, chegando com a mão com cuidado e com
tento até a curva esquerda, alçou a cabeça e olhou seu amo, e disse:
- Ou a experiência é falsa, ou não chegamos onde vossa mercê diz,
nem com muitas léguas.
- Então o quê? - perguntou dom Quixote, - topaste algo?
- E ainda algos! - respondeu Sancho.
E sacudindo os dedos, lavou toda a mão no rio, pelo qual
sossegadamente deslizava o barco por meio da corrente, sem que o
movesse alguma inteligência secreta, nem algum encantador escondido,
senão o mesmo curso da água, brando então e suave.
Nisto, descobriram uns grandes moinhos d'água que no meio do rio
estavam; e apenas os viu dom Quixote, quando com voz alta disse a
Sancho:
- Vês? Ali, oh amigo!, se descobre a cidade, castelo ou fortaleza
onde deve estar algum cavaleiro oprimido, ou alguma rainha, infanta ou
princesa estropiada, para cujo socorro sou aqui trazido.
- Que diabos de cidade, fortaleza ou castelo diz vossa mercê,
senhor? - disse Sancho. - Não vê que aqueles são moinhos que estão no
rio, onde se mói o trigo?
- Cala, Sancho - disse dom Quixote; - que, embora pareçam moinhos,
não o são; e já te disse que todas as coisas trastrocam e mudam de
seu ser natural os encantos. Não quero dizer que as mudam de um em
outro ser realmente, senão que o parece, como o mostrou a
experiência na transformação de Dulcineia, único refúgio de minhas
esperanças.
Nisto, o barco, entrado no meio da corrente do rio, começou a
caminhar não tão lentamente como até ali. Os moleiros, que viram vir
aquele barco pelo rio, e que se ia a embocar pelo caudal
das rodas, saíram com presteza muitos deles com varas largas a
detê-lo, e, como saíam enfarinhados, e cobertos os rostos e as
vestes do pó da farinha, representavam uma má vista. Davam vozes
grandes, dizendo:
- Demônios de homens! Onde ides? Vindes desesperados? Que
quereis, afogar-vos e fazer-vos pedaços nestas rodas?
- Não te disse eu, Sancho - disse então dom Quixote, - que
havíamos chegado onde hei de mostrar onde chega o valor de meu
braço? Vê quantos gatunos e baderneiros me saem ao encontro, veja
quantos monstros se me opõem, veja quantas feias cataduras nos
ameaçam... Pois agora o vereis, velhacos!
E posto em pé no barco, com grandes vozes começou a ameaçar os
moleiros, dizendo-lhes:
- Canalha malvada e pior aconselhada, deixai em sua liberdade e
livre alvedrio à pessoa que nessa vossa fortaleza ou prisão tendes
oprimida, alta ou baixa, de qualquer sorte ou qualidade que seja, que
eu sou dom Quixote da Mancha, chamado o Cavaleiro dos Leões por
outro nome, a quem está reservada por ordem dos altos céus o dar fim
feliz a esta aventura.
E dizendo isto, pegou a espada e começou a esgrimi-la no ar contra
os moleiros; os quais, ouvindo e não entendendo aquelas
sandices, se puseram com suas varas a deter o barco, que já ia
entrando no caudal e canal das rodas.
Pôs-se Sancho de joelhos, pedindo devotamente ao céu o livrasse de
tão manifesto perigo, como o fez, pela indústria e presteza dos
moleiros, que, opondo-se com seus golpes ao barco, o detiveram, mas
não de maneira que deixassem de virar o barco e dar com dom
Quixote e com Sancho ao través na água; mas veio-lhe bem a dom
Quixote, que sabia nadar como um ganso, embora o peso das armas o
levasse ao fundo duas vezes; e se não fosse pelos moleiros, que se
arrojaram à água e os tiraram a ambos, ali havia sido Troia para os
dois.
Postos, pois, em terra, mais molhados que mortos de sede, Sancho,
posto de joelhos, as mãos juntas e os olhos cravados no céu, pediu a
Deus com uma larga e devota prece o livrasse daí em diante dos
atrevidos desejos e enfrentamentos de seu senhor.
Chegaram nisto os pescadores donos do barco, a quem haviam feito
pedaços as rodas dos moinhos; e, vendo-o roto, acometeram a
desnudar a Sancho, e a pedir a dom Quixote que o pagasse; o qual,
com grande sossego, como se não houvesse passado nada por ele, disse
aos moleiros e pescadores que ele pagaria o barco com boníssima
vontade, com condição que lhe dessem livre e sem cautela a pessoa ou
pessoas que naquele seu castelo estavam oprimidas.
- Que pessoas ou que castelo diz - respondeu um dos moleiros, -
homem sem juízo? Queres levar porventura as que vêm a moer trigo
nestes moinhos?
- Basta! - disse consigo dom Quixote. - Aqui será pregar em deserto
querer convencer esta canalha a que por rogos faça virtude alguma. E
nesta aventura se devem haver encontrado dois valentes
encantadores, e um perturba o que o outro intenta: um me deparou o
barco, e o outro deu comigo ao través. Deus o remedeie, que todo este
mundo é máquinas e manhas, contrárias umas às outras. Eu não posso
mais.
E alçando a voz, prosseguiu dizendo, e olhando os moinhos:
- Amigos, quem quer que sejais, que nessa prisão estais encerrados,
perdoai-me; que, por minha desgraça e pela vossa, eu não vos posso
tirar de vossa coita. Para outro cavaleiro deve estar guardada e
reservada esta aventura.
Dizendo isto, se concertou com os pescadores, e pagou pelo barco
cinquenta reais, que os deu Sancho de muito má vontade, dizendo:
- A duas barcadas como estas, daremos com todo o caudal ao fundo.
Os pescadores e moleiros estavam admirados, olhando aquelas duas
figuras tão fora do uso, ao parecer, dos outros homens, e não
acabavam de entender onde se encaminhavam as razões e perguntas
que dom Quixote lhes dizia; e, tendo-os por loucos, os deixaram e se
recolheram a seus moinhos, e os pescadores a seus ranchos. Voltaram
a suas bestas, e a ser bestas, dom Quixote e Sancho, e este fim teve
a aventura do encantado barco.

CAPÍTULO XXX

Do que sobreveio a dom Quixote com uma bela caçadora

Assaz melancólicos e com mau talante chegaram a seus animais


cavaleiro e escudeiro, especialmente Sancho, a quem chegava à alma
chegar ao cabedal do dinheiro, parecendo-lhe que tudo o que dele se
tirava era tirar-lhe as meninas dos olhos. Finalmente, sem falar-se
palavra, se puseram a cavalo e se afastaram do famoso rio, dom
Quixote sepultado nos pensamentos de seus amores, e Sancho nos de
seu acrescentamento, que por então lhe parecia que estava bem longe
de tê-lo; porque, embora fosse tonto, bem percebia que as ações de
seu amo, todas ou as mais, eram disparates, e buscava motivo para
que, sem entrar em contas nem em despedimentos com seu senhor, um
dia se desgarrasse e fosse para sua casa. Mas a fortuna ordenou as
coisas muito ao revés do que ele temia.
Sucedeu, pois, que no outro dia, ao pôr do sol e ao sair de uma selva,
estendeu dom Quixote a vista por um verde prado, e no fim dele viu
gente, e, chegando perto, reconheceu que eram caçadores de
volataria. Chegou-se mais, e entre eles viu uma galharda senhora
sobre um palafrém ou égua branquíssima, adornada de guarnições
verdes e com um silhão de prata. Vinha a senhora também vestida de
verde, tão bizarra e ricamente que a mesma bizarria vinha
transformada nela. Na mão esquerda trazia um açor, sinal que deu a
entender a dom Quixote ser aquela alguma grande senhora, que devia
sê-lo de todos aqueles caçadores, como era a verdade; e assim, disse a
Sancho:
- Corre, filho Sancho, e diz àquela senhora do palafrém e do açor
que eu o Cavaleiro dos Leões beija as mãos à sua grande formosura, e
que se sua grandeza me dá licença, as irei beijar, e a servi-la em
quanto minhas forças puderem e sua alteza me mandar. E veja,
Sancho, como falas, e tem conta de não encaixar algum refrão dos
teus em tua embaixada.
- Achastes o encaixador! - respondeu Sancho. - A mim com isso!
Sim, que não é esta a vez primeira que levei embaixadas a altas e
crescidas senhoras nesta vida!
- Se não foi a que levaste à senhora Dulcineia - replicou dom
Quixote, - eu não sei que hajas levado outra, ao menos a meu serviço.
- Assim é verdade - respondeu Sancho, - mas ao bom pagador não
lhe faltam garantias, e em casa cheia logo se guisa a ceia; quero dizer
que a mim não há que dizer-me nem advertir-me de nada, que para
tudo tenho e de tudo se me alcança um pouco.
- Eu o creio, Sancho - disse dom Quixote; - vai em boa hora, e Deus
te guie.
Partiu Sancho de carreira, tirando de seu passo o ruço, e chegou
onde a bela caçadora estava, e apeando-se, posto ante ela de joelhos,
disse-lhe:
- Formosa senhora, aquele cavaleiro que ali está, chamado o
Cavaleiro dos Leões, é meu amo, e eu sou um escudeiro seu, a quem
chamam em sua casa Sancho Pança. Este tal Cavaleiro dos Leões, que
não há muito se chamava o da Triste Figura, envia por mim a dizer a
vossa grandeza seja servida de dar-lhe licença para que, com seu
propósito e beneplácito e consentimento, ele venha a pôr em prática
seu desejo, que não é outro, segundo ele diz e eu penso, que de servir
à vossa elevada altaneria e formosura; que em dá-lo vossa senhoria
fará coisa que redunde em seu pro, e ele receberá assinaladíssima
mercê e contentamento.
- Por certo, bom escudeiro - respondeu a senhora, - vós haveis dado
a embaixada vossa com todas aquelas circunstâncias que as tais
embaixadas pedem. Levantai-vos do chão, que escudeiro de tão grande
cavaleiro como é o da Triste Figura, de quem já temos aqui muita
notícia, não é justo que esteja de joelhos; levantai-vos, amigo, e dizei
a vosso senhor que venha muito em hora boa a servir-se de mim e do
duque meu marido, em uma casa de campo que aqui temos.
Levantou-se Sancho admirado, assim da formosura da boa senhora
como de sua muita educação e cortesia, e mais do que lhe havia dito
que tinha notícia de seu senhor o Cavaleiro da Triste Figura, e que se
não o havia chamado o dos Leões, devia ser por havê-lo posto há tão
pouco tempo. Perguntou-lhe a duquesa, cujo título ainda não se sabe:
- Dizei-me, irmão escudeiro: este vosso senhor, não é um de quem
anda impressa uma história que se chama do engenhoso fidalgo dom
Quixote da Mancha, que tem por senhora de sua alma uma tal
Dulcineia do Toboso?
- O mesmo é, senhora - respondeu Sancho; - e aquele escudeiro seu
que anda, ou deve andar, na tal história, a quem chamam Sancho Pança,
sou eu, se não é que me trocaram no berço; quero dizer, que me
trocaram na estampa.
- Com tudo isso folgo eu muito - disse a duquesa. - Ide, irmão Pança,
e dizei a vosso senhor que ele seja o bem chegado e o bem-vindo a
meus estados, e que nenhuma coisa me poderia vir que mais alegria me
desse.
Sancho, com esta tão agradável resposta, com grandíssimo gosto
voltou a seu amo, a quem contou tudo o que a grande senhora lhe havia
dito, levantando com seus rústicos termos aos céus sua muita
formosura, seu grande donaire e cortesia. Dom Quixote se galhardeou
na sela, pôs-se bem nos estribos, acomodou a viseira, arremeteu a
Rocinante, e com gentil denodo foi beijar as mãos à duquesa; a qual,
fazendo chamar o duque, seu marido, lhe contou, enquanto dom
Quixote chegava, toda a embaixada sua; e os dois, por haver lido a
primeira parte desta história e haver entendido por ela o disparatado
humor de dom Quixote, com grandíssimo gosto e com desejo de
conhecê-lo o esperavam, com pressuposto de seguir-lhe o humor e
conceder a ele quanto lhes dissesse, tratando-o como a cavaleiro
andante os dias que com eles se detivesse, com todas as cerimônias
costumeiras nos livros de cavalarias, que eles haviam lido, e ainda lhes
eram muito aficionados.
Nisto, chegou dom Quixote, alçada a viseira; e, dando mostras de
apear-se, acudiu Sancho a segurar-lhe o estribo; mas foi tão
desgraçado que, ao apear-se do ruço, se lhe prendeu um pé em uma
corda da albarda, de tal modo que não foi possível desenredar-lhe,
antes ficou pendurado dele, com a boca e os peitos no chão. Dom
Quixote, que não tinha costume de apear-se sem que lhe segurassem o
estribo, pensando que já Sancho havia chegado a segurá-lo,
descarregou de golpe o corpo, e levou atrás de si a sela de Rocinante,
que devia estar mal cilhado, e a sela e ele vieram ao chão, não sem
vergonha sua e de muitas maldições que entre dentes lançou ao
desditado Sancho, que ainda tinha o pé na corma.
O duque mandou seus caçadores acudirem o cavaleiro e o escudeiro,
os quais levantaram dom Quixote maltratado da caída, e, coxeando e
como pôde, foi fincar os joelhos ante os dois senhores; mas o duque
não o consentiu de maneira alguma, antes, apeando-se de seu cavalo,
foi abraçar dom Quixote, dizendo-lhe:
- A mim me pesa, senhor Cavaleiro da Triste Figura, que a primeira
coisa que vossa mercê fez em minha terra haja sido tão má como se
viu; mas descuidos de escudeiros costumam ser causa de outros piores
sucessos.
- O que eu tive em ver-vos, valoroso príncipe - respondeu dom
Quixote, - é impossível ser mau, embora minha caída não parasse até o
profundo dos abismos, pois dali me levantaria e teria a glória de
haver-vos visto. Meu escudeiro, que Deus maldiga, melhor desata a
língua para dizer malícias que ata e cilha uma sela para que esteja
firme; mas, como queira que eu me ache, caído ou levantado, a pé ou a
cavalo, sempre estarei ao serviço vosso e ao de minha senhora a
duquesa, digna consorte vossa, e digna senhora da formosura e
universal princesa da cortesia.
- Devagar, meu senhor dom Quixote da Mancha! - disse o duque, -
que onde está minha senhora dona Dulcineia do Toboso não é razão
que se louvem outras formosuras.
Já estava então livre Sancho Pança do laço, e, achando-se ali
perto, antes que seu amo respondesse, disse:
- Não se pode negar, senão afirmar, que é muito formosa minha
senhora Dulcineia do Toboso, mas onde menos se pensa se levanta a
lebre; que eu ouvi dizer que isto que chamam natureza é como um
oleiro que faz vasos de barro, e o que faz um vaso formoso também
pode fazer dois, e três e cento; digo-o porque minha senhora a
duquesa à fé que não fica atrás de minha ama a senhora Dulcineia do
Toboso.
Voltou-se dom Quixote à duquesa e disse:
- Vossa grandeza imagine que não teve cavaleiro andante no mundo
escudeiro mais falador nem mais gracioso do que eu tenho, e ele
demonstrará que sou veraz se alguns dias quiser vossa grande
excelsitude servir-se de mim.
Ao que respondeu a duquesa:
- De que Sancho o bom seja gracioso o estimo eu em muito, porque é
sinal que é discreto; que as graças e os donaires, senhor dom Quixote,
como vossa mercê bem sabe, não assentam sobre engenhos torpes; e,
pois o bom Sancho é gracioso e donairoso, daqui o confirmo por
discreto.
- E falador - acrescentou dom Quixote.
- Tanto melhor - disse o duque, - porque muitas graças não se
podem dizer com poucas palavras. E porque não se nos vá o tempo
nelas, venha o grande Cavaleiro da Triste Figura...
- “Dos Leões” há de dizer vossa alteza - disse Sancho, - que já não
há Triste Figura nem figuro.
- Seja o dos Leões - prosseguiu o duque. - Digo que venha o senhor
Cavaleiro dos Leões a um castelo meu que está aqui perto, onde se lhe
fará o acolhimento que a tão alta pessoa se deve justamente, e o que
eu e a duquesa costumamos fazer a todos os cavaleiros andantes que a
ele chegam.
Já nisto, Sancho havia colocado e cilhado bem a sela em Rocinante;
e, subindo nele dom Quixote, e o duque num formoso cavalo, puseram a
duquesa em meio e encaminharam-se ao castelo. A duquesa mandou
que Sancho fosse junto a ela, porque gostava infinito de ouvir suas
discrições. Não se fez rogar Sancho, e entremeteu-se entre os três, e
fez quarto na conversação, com grande gosto da duquesa e do duque,
que tiveram por grande ventura acolher em seu castelo tal cavaleiro
andante e tal escudeiro andado.

CAPÍTULO XXXI

Que trata de muitas e grandes coisas

Suma era a alegria que levava consigo Sancho, gozando, a seu


parecer, da graça e confiança da duquesa, porque se lhe figurava que
havia de achar em seu castelo o que na casa de dom Diego e na de
Basílio, sempre aficionado à boa vida; e assim, agarrava pelos cabelos
a ocasião de regalar-se cada e quando que se lhe oferecia.
Conta, pois, a história, que antes que à casa de campo ou castelo
chegassem, se adiantou o duque e deu ordem a todos seus criados do
modo que haviam de tratar dom Quixote; o qual, quando chegou com a
duquesa às portas do castelo, imediatamente saíram dele dois lacaios
ou palafreneiros, vestidos até os pés com umas roupas que chamam de
bata, de finíssima seda carmesim, e colhendo dom Quixote nos braços,
com muita rapidez, disseram-lhe:
- Vá vossa grandeza apear à minha senhora a duquesa.
Dom Quixote o fez, e houve grandes comedimentos entre os dois
sobre o caso; mas, com efeito, venceu a porfia da duquesa, e não quis
descer ou baixar do palafrém senão nos braços do duque, dizendo que
não se achava digna de dar a tão grande cavaleiro tão inútil carga.
Enfim, saiu o duque a apeá-la; e ao entrar num grande pátio, chegaram
duas formosas donzelas e puseram sobre os ombros de dom Quixote
um grande manto de finíssimo escarlate, e num instante se coroaram
todos os corredores do pátio de criados e criadas daqueles senhores,
dizendo a grandes vozes:
- Bem seja vinda a flor e a nata dos cavaleiros andantes!
E todos ou os mais derramavam frascos com águas olorosas sobre
dom Quixote e sobre os duques, de tudo o que se admirava dom
Quixote; e aquele foi o primeiro dia que de todo em todo reconheceu e
creu ser cavaleiro andante verdadeiro, e não fantástico, vendo-se
tratar do mesmo modo que ele havia lido se tratavam os tais
cavaleiros nos passados séculos.
Sancho, desamparando o ruço, se coseu com a duquesa e entrou no
castelo; e, remordendo-lhe a consciência de que deixava o jumento só,
se chegou a uma reverenda ama, que com outras a receber a duquesa
havia saído, e com voz baixa lhe disse:
- Senhora González, ou como é a graça de vossa mercê...
- Dona Rodríguez de Grijalba me chamo - respondeu a ama. - Que é
o que mandais, irmão?
Ao que respondeu Sancho:
- Queria que vossa mercê a fizesse de sair à porta do castelo,
onde achará um asno ruço meu; vossa mercê seja servida de mandar-
lhe pôr, ou pô-lo, na cavalariça, porque o pobrezinho é um pouco
medroso, e não se acostumará a estar só em nenhuma das maneiras.
- Se tão discreto é o amo como o moço - respondeu a ama, -
estamos feitas! Andai, irmão, muito em hora má para vós e para quem
aqui vos trouxe, e tende conta com vosso jumento, que as donas desta
casa não estamos acostumadas a semelhantes coisas.
- Pois em verdade - respondeu Sancho - que ouvi eu dizer a meu
senhor, que é um mago das histórias, contando aquela de Lancelote,

quando de Bretanha veio,


que damas cuidavam dele,
e amas do seu rocim;
e que no particular de meu asno, que não o trocaria eu com o rocim do
senhor Lancelote.
- Irmão, se sois brincalhão - replicou a ama, - guardai vossas graças
para onde pareçam e vos paguem, que de mim não podereis levar senão
uma figa.
- Ainda bem - respondeu Sancho - que será bem madura, pois não
perderá vossa mercê a quadra de seus anos por menos pontos!
- Filho de puta - disse a ama, toda já acesa em cólera, - se sou velha
ou não, a Deus darei a conta, que não a vós, velhaco, farto de alhos.
E isto disse em voz tão alta, que o ouviu a duquesa; e, voltando e
vendo a ama tão alvoroçada e tão encarniçados os olhos, perguntou-lhe
com quem brigava.
- Aqui - respondeu a ama - com este bom homem, que me pediu
encarecidamente que vá pôr na cavalariça um asno seu que está à
porta do castelo, trazendo-me por exemplo que assim o fizeram não
sei onde, que umas damas cuidaram de um tal Lancelote, e umas donas
de seu rocim, e, sobretudo, por bom termo me chamou velha.
- Isso teria eu por afronta - respondeu a duquesa, - mais que
quantas poderiam dizer-me.
E falando com Sancho lhe disse:
- Adverti, Sancho amigo, que dona Rodríguez é muito moça, e que
aquelas toucas mais as traz por autoridade e pela usança que pelos
anos.
- Maus sejam os que me ficam por viver - respondeu Sancho, - se o
disse por tanto; só o disse porque é tão grande o carinho que tenho a
meu jumento, que me pareceu que não podia encomendar-lhe a pessoa
mais caritativa que à senhora dona Rodríguez.
Dom Quixote, que tudo ouvia, disse-lhe:
- Práticas são estas, Sancho, para este lugar?
- Senhor - respondeu Sancho, - cada um há de falar de seu preciso
onde queira que estiver; aqui se me lembrou o ruço, e aqui falei dele; e
se na cavalariça me lembrasse, ali falaria.
Ao que disse o duque:
- Sancho está muito certo, e não há que culpá-lo em nada; ao ruço se
dará o que precise, e descuide Sancho, que será tratado como sua
mesma pessoa.
Com estes arrazoados, gostosos a todos senão a dom Quixote,
chegaram ao alto e levaram dom Quixote a uma sala adornada de
tecidos riquíssimos de ouro e de brocado; seis donzelas o desarmaram
e serviram de pajens, todas industriadas e advertidas do duque e da
duquesa do que haviam de fazer, e de como haviam de tratar dom
Quixote, para que imaginasse e visse que o tratavam como cavaleiro
andante. Ficou dom Quixote, depois de desarmado, em seus estreitos
greguescos e em seu gibão de camurça, seco, alto, larguíssimo, com as
queixadas, que por dentro se beijava uma com a outra; figura que, a
não ter cuidado as donzelas que o serviam de dissimular o riso (que foi
uma das precisas ordens que seus senhores lhes haviam dado),
rebentariam rindo.
Pediram-lhe que se deixasse desnudar para pôr-lhe uma camisa
nova, mas nunca o consentiu, dizendo que a honestidade parecia tão
bem nos cavaleiros andantes como a valentia. Contudo, disse que
dessem a camisa a Sancho, e, encerrando-se com ele em uma alcova
onde estava um rico leito, se desnudou e vestiu a camisa; e, vendo-se
só com Sancho, disse-lhe:
- Diz-me, truão moderno e tonto antigo: parece-te bem desonrar e
afrontar a uma ama tão veneranda e tão digna de respeito como
aquela? Tempos eram aqueles para lembrar-te do ruço, ou senhores
são estes para deixar mal passar às bestas, tratando tão
elegantemente a seus donos? Por quem Deus é, Sancho, que te
comportes, e que não descubras a índole de maneira que percebam que
és de vilão e grosseiro fio tecido. Vê, pecador de ti, que tanto mais é
tido o senhor quanto tem mais honrados e bem nascidos criados, e que
uma das vantagens maiores que levam os príncipes aos demais homens
é que se servem de criados tão bons como esses. Não advertes,
angustiado de ti, e desventurado de mim, que se veem que tu és um
grosseiro vilão, ou um mentecapto gracioso, pensarão que eu sou algum
embusteiro, ou algum falso cavaleiro? Não, não, Sancho amigo, foge,
foge destes inconvenientes, que quem tropeça em falador e em
gracioso, ao primeiro pontapé cai e dá em truão desgraçado. Freia a
língua, considera e rumina as palavras antes que te saiam da boca, e
adverte que chegamos a lugar onde, com o favor de Deus e valor de
meu braço, havemos de sair melhorados em terço e quinto em fama e
em bens.
Sancho lhe prometeu com muitas veras de coser a boca, ou morder-
se a língua, antes de falar palavra que não fosse muito a propósito e
bem considerada, como ele o mandava, e que descuidasse acerca de
tal, que nunca por ele se descobriria quem eles eram.
Vestiu-se dom Quixote, pôs seu cinturão com sua espada, jogou o
mantão de escarlate às costas, pôs um barrete de seda verde que as
donzelas lhe deram, e com este adorno saiu à grande sala, onde achou
as donzelas postas em ala, tantas a uma parte como a outra, e todas
com jarro para lavar-lhe as mãos, o qual lhe apresentaram com muitas
reverências e cerimônias.
Logo chegaram doze pajens com o camareiro-mor, para levá-lo a
almoçar, que já os senhores o aguardavam. Rodearam-no, e, cheio de
pompa e majestade, o levaram a outra sala, onde estava posta uma rica
mesa com só quatro serviços. A duquesa e o duque saíram à porta da
sala a recebê-lo, e com eles um grave eclesiástico, destes que
governam as casas dos príncipes; destes que, como não nascem
príncipes, não acertam a ensinar como o hão de ser os que o são;
destes que querem que a grandeza dos grandes se meça com a
estreiteza de seus ânimos; destes que, querendo mostrar aos que eles
governam a ser limitados, os fazem ser miseráveis; destes tais, digo
que devia ser o grave religioso que com os duques saiu a receber dom
Quixote. Fizeram-se mil corteses comedimentos, e, finalmente,
rodeando dom Quixote, foram sentar-se à mesa.
Ofereceu o duque a dom Quixote a cabeceira da mesa, e embora ele
o recusasse, as importunações do duque foram tantas que a tomou. O
eclesiástico sentou-se defronte, e o duque e a duquesa aos dois lados.
A tudo estava presente Sancho, embasbacado e atônito de ver a
honra que a seu senhor aqueles príncipes faziam; e, vendo as muitas
cerimônias e rogos que se passaram entre o duque e dom Quixote para
fazê-lo sentar-se à cabeceira da mesa, disse:
- Se suas mercês me dão licença, lhes contarei um conto que passou
em meu povoado acerca disto dos assentos.
Apenas houve dito isto Sancho, quando dom Quixote tremeu,
crendo sem dúvida alguma que havia de dizer alguma necedade. Mirou-
o Sancho e entendeu-o, e disse:
- Não tema vossa mercê, senhor meu, que eu me desmande, nem que
diga coisa que não venha muito a propósito, que não se me esqueceram
os conselhos que pouco há vossa mercê me deu sobre o falar muito ou
pouco, ou bem ou mal.
- Eu não me lembro de nada, Sancho - respondeu dom Quixote; - diz
o que quiseres, desde que o digas prontamente.
- Pois o que quero dizer - disse Sancho - é tão verdade, que meu
senhor dom Quixote, que está presente, não me deixará mentir.
- Por mim - replicou dom Quixote, - mente tu, Sancho, quanto
quiseres, que eu não te contradirei, mas vê o que vais dizer.
- Tão visto e revisto o tenho, que não tenho por que preocupar-me,
como se verá pela obra.
- Bom será - disse dom Quixote - que vossas grandezas mandem
tirar daqui este tonto, que dirá mil patacoadas.
- Por vida do duque - disse a duquesa, - que não se há de afastar de
mim Sancho um ponto: quero-lhe eu muito, porque sei que é muito
discreto.
- Discretos dias - disse Sancho - viva vossa santidade pelo bom
crédito que de mim tem, embora em mim não o haja. E o conto que
quero dizer é este: convidou um fidalgo de meu povoado, muito rico e
principal, porque vinha dos Álamos de Medina do Campo, que casou com
dona Mência de Quinhões, que foi filha de dom Alonso de Maranhón,
cavaleiro do traje de Santiago, que se afogou na Ferradura, por quem
houve aquela pendência anos há em nosso lugar, que, ao que entendo,
meu senhor dom Quixote se achou nela, de onde saiu ferido
Tomasinho o Travesso, o filho de Balbastro o ferreiro... Não é
verdade tudo isto, senhor nosso amo? Diga-o, por sua vida, porque
estes senhores não me tenham por algum falador mentiroso.
- Até agora - disse o eclesiástico, - mais vos tenho por falador que
por mentiroso, mas daqui em diante não sei pelo que vos terei.
- Tu dás tantos testemunhos, Sancho, e tantos sinais, que não posso
deixar de dizer que deves dizer verdade. Passa adiante e encurta o
conto, porque levas caminho de não acabar em dois dias.
- Não há de abreviar - disse a duquesa, - por fazer-me a mim
prazer; antes, o há de contar da maneira que sabe, embora não o
acabe em seis dias; que se tantos fossem, seriam para mim os
melhores que houvesse vivido em minha vida.
- Digo, pois, senhores meus - prosseguiu Sancho, - que este tal
fidalgo, que eu conheço como a minhas mãos, porque não há de minha
casa à sua um tiro de besta, convidou um lavrador pobre, mas honrado.
- Adiante, irmão - disse então o religioso, - que caminho levais de
não parar com vosso conto até o outro mundo.
- A menos da metade pararei, se Deus for servido - respondeu
Sancho. - E assim, digo que, chegando o tal lavrador à casa do dito
fidalgo convidador, que bom pouso tenha sua alma, que já é morto, e
por mais sinais dizem que teve uma morte digna de um anjo, que eu não
me achei presente, que havia ido por aquele tempo a segar a
Tembleque...
- Por vida vossa, filho, que volteis logo de Tembleque, e que, sem
enterrar o fidalgo, se não quereis fazer mais exéquias, acabeis vosso
conto.
- É, pois, o caso - replicou Sancho - que, estando os dois para
assentar-se à mesa, que parece que agora os vejo mais que nunca...
Grande gosto recebiam os duques do desgosto que mostrava ter o
bom religioso da dilação e pausas com que Sancho contava seu conto, e
dom Quixote se estava consumindo em cólera e em raiva.
- Digo, assim - disse Sancho, - que, estando, como disse, os dois
para sentar-se à mesa, o lavrador porfiava com o fidalgo que tomasse
a cabeceira da mesa, e o fidalgo porfiava também que o lavrador a
tomasse, porque em sua casa se havia de fazer o que ele mandasse;
mas o lavrador, que presumia de cortês e bem criado, jamais quis, até
que o fidalgo, mofino, pondo-lhe ambas mãos sobre os ombros, lhe fez
sentar por força, dizendo-lhe: “Sentai, idiota, que onde queira que eu
me sente será vossa cabeceira.” E este é o conto, e em verdade que
creio que não foi aqui trazido fora de propósito.
Pôs-se dom Quixote de mil cores, que sobre o moreno se
mostravam; os senhores dissimularam o riso, para que dom Quixote
não acabasse de vexar-se, havendo entendido a malícia de Sancho; e,
por mudar de conversa e fazer que Sancho não prosseguisse com
outros disparates, perguntou a duquesa a dom Quixote que novas
tinha da senhora Dulcineia, e se lhe havia enviado por aqueles dias
alguns presentes de gigantes ou gatunos, pois não podia deixar de
haver vencido muitos. Ao que dom Quixote respondeu:
- Senhora minha, minhas desgraças, embora tiveram princípio, nunca
terão fim. Gigantes venci, e baderneiros e gatunos lhe enviei, mas
onde a haviam de achar, se está encantada e transformada na mais
feia lavradora que imaginar se pode?
- Não sei - disse Sancho Pança, - a mim me parece a mais formosa
criatura do mundo; ao menos, na ligeireza e no brincar bem sei eu que
não dará ela a vantagem a um volteador; à boa fé, senhora duquesa,
assim salta desde o chão sobre uma burrica como se fosse um gato.
- Vistes-la encantada, Sancho? - perguntou o duque.
- E como a vi! - respondeu Sancho. - Pois, quem diabos senão eu foi o
primeiro que caiu no assunto do encantório? Tão encantada está como
meu pai!
O eclesiástico, que ouviu dizer de gigantes, de baderneiros e de
encantos, concluiu que aquele devia ser dom Quixote da Mancha, cuja
história lia o duque de ordinário, e ele o havia repreendido muitas
vezes, dizendo-lhe que era disparate ler tais disparates; e,
inteirando-se ser verdade o que suspeitava, com muita cólera, falando
com o duque, lhe disse:
- Vossa excelência, senhor meu, tem que dar conta a Nosso Senhor
do que faz este bom homem. Este dom Quixote, ou dom Tonto, ou
como se chama, imagino eu que não deve ser tão mentecapto como
vossa excelência quer que seja, dando-lhe ocasiões para que leve
adiante suas sandices e vacuidades.
E voltando a conversa a dom Quixote, disse-lhe:
- E a vós, alma de cântaro, quem vos meteu no cérebro que sois
cavaleiro andante e que venceis gigantes e prendeis gatunos? Andai
em hora boa, e em tal se vos diga: voltai à vossa casa, e criai vossos
filhos, se os tendes, e cuidai de vossos bens, e deixai de andar
vagando pelo mundo, papando vento e dando que rir a quantos vos
conhecem e não conhecem. Onde, em má hora, haveis vós achado que
houve nem há agora cavaleiros andantes? Onde há gigantes na
Espanha, ou gatunos na Mancha, nem Dulcineias encantadas, nem toda
a caterva das simplicidades que de vós se contam?
Atento esteve dom Quixote às razões daquele venerável varão, e,
vendo que já calava, sem guardar respeito aos duques, com semblante
airado e alvoroçado rosto, se levantou e disse...
Mas esta resposta capítulo por si merece.

CAPÍTULO XXXII

Da resposta que deu dom Quixote a seu repreensor, com outros


graves e graciosos sucessos

Levantando-se, pois, dom Quixote, tremendo de agitação dos pés à


cabeça, com pressurosa e perturbada língua disse:
- O lugar onde estou, e a presença ante quem me acho e o respeito
que sempre tive e tenho ao estado que vossa mercê professa têm e
atam as mãos de minha justa zanga; e, assim pelo que disse como por
saber que sabem todos que as armas dos togados são as mesmas que
as da mulher, que são a língua, entrarei com a minha em igual batalha
com vossa mercê, de quem se devia esperar antes bons conselhos que
infames vitupérios. As repreensões santas e bem intencionadas outras
circunstâncias requerem e outros pontos pedem: ao menos, o haver-me
repreendido em público e tão asperamente passou todos os limites da
boa repreensão, pois as primeiras melhor assentam sobre a brandura
que sobre a aspereza, e não é bom que, sem ter conhecimento do
pecado que se repreende, chamar ao pecador, sem mais nem mais,
mentecapto e tonto. Se não, diga-me vossa mercê: por qual das
insensatezes que em mim viu me condena e vitupera, e me manda que
me vá à minha casa a cuidar do governo dela e de minha mulher e de
meus filhos, sem saber se a tenho ou os tenho? Não há mais senão a
esmo entrar pelas casas alheias a governar seus donos, e, havendo-se
criado alguns na estreiteza de alguma república de estudantes, sem
haver visto mais mundo que o que pode conter-se em vinte ou trinta
léguas de distrito, meter-se de roldão a dar leis à cavalaria e a julgar
dos cavaleiros andantes? Porventura é assunto vão ou é tempo mal
gasto o que se gasta em vagar pelo mundo, não buscando os regalos
dele, senão as asperezas por onde os bons sobem ao assento da
imortalidade? Se me tivessem por tonto os cavaleiros, os magníficos,
os generosos, os altamente nascidos, tê-lo-ia por afronta irreparável;
mas de que me tenham por louco os estudantes, que nunca entraram
nem pisaram as sendas da cavalaria, não se me dá um tostão: cavaleiro
sou e cavaleiro hei de morrer se praz ao Altíssimo. Uns vão pelo largo
campo da ambição soberba; outros, pelo da adulação servil e baixa;
outros, pelo da hipocrisia enganosa, e alguns, pelo da verdadeira
religião; mas eu, inclinado por minha estrela, vou pela estreita senda
da cavalaria andante, por cujo exercício desprezo os bens, mas não a
honra. Eu satisfiz agravos, endireitei tortos, castiguei insolências,
venci gigantes e atropelei monstros; eu sou enamorado, não mais
porque é forçoso que os cavaleiros andantes o sejam; e, sendo-o, não
sou dos enamorados prazenteiros, senão das platônicas posturas.
Minhas intenções sempre as dirijo a bons fins, que são de fazer bem a
todos e mal a ninguém; se o que isto entende, se o que isto obra, se o
que disto trata merece ser chamado bobo, digam-no vossas grandezas,
duque e duquesa excelentes.
- Bem, por Deus! - disse Sancho. - Não diga mais vossa mercê,
senhor e amo meu, em seu abono, porque não há mais que dizer, nem
mais que pensar, nem mais que perseverar no mundo. E mais, que,
negando este senhor, como há negado, que não houve no mundo, nem os
há, cavaleiros andantes, que muito que não saiba nenhuma das coisas
que disse?
- Porventura - disse o eclesiástico - sois vós, irmão, aquele Sancho
Pança que dizem, a quem vosso amo tem prometida uma ilha?
- Sim sou - respondeu Sancho; - e sou quem a merece tão bem como
outro qualquer; sou quem “junta-te aos bons e serás um deles”, e sou
eu daqueles “não com quem nasces, senão com quem pasces”, e dos
“quem a boa árvore se arrima, boa sombra o abriga”. Eu me arrimei a
bom senhor, e há muitos meses que ando em sua companhia, e hei de
ser outro como ele, Deus querendo; e viva ele e viva eu: que nem a ele
lhe faltarão impérios que mandar nem a mim ilhas que governar.
- Não, por certo, Sancho amigo - disse então o duque, - que eu, em
nome do senhor dom Quixote, vos dou o governo de uma que tenho
desocupada, de não pequena qualidade.
- Finca-te de joelhos, Sancho - disse dom Quixote, - e beija os pés
de sua excelência pela mercê que te fez.
Fê-lo assim Sancho; o qual visto pelo eclesiástico, se levantou da
mesa, mofino ademais, dizendo:
- Pelo traje que tenho, que estou por dizer que é tão louco vossa
excelência como estes pecadores. Vede se não hão de ser eles loucos,
pois os lúcidos canonizam suas loucuras! Fique vossa excelência com
eles; que, enquanto estiverem em casa, estarei eu na minha, e me
escusarei de repreender o que não posso remediar.
E sem dizer mais nem comer mais, se foi, sem que pudessem detê-lo
os rogos dos duques; embora o duque não lhe tenha dito muito,
impedido do riso que sua impertinente cólera lhe havia causado.
Acabou de rir e disse a dom Quixote:
- Vossa mercê, senhor Cavaleiro dos Leões, respondeu por si tão
altamente que não lhe fica coisa por satisfazer deste que, embora
pareça agravo, não o é de maneira alguma; porque, assim que não
agravam as mulheres, não agravam os eclesiásticos, como vossa mercê
melhor sabe.
- Assim é - respondeu dom Quixote, - e a causa é que o que não
pode ser agravado não pode agravar ninguém. As mulheres, os meninos
e os eclesiásticos, como não podem defender-se, embora sejam
ofendidos, não podem ser afrontados; porque entre o agravo e a
afronta há esta diferença, como melhor vossa excelência sabe: a
afronta vem de parte de quem a pode fazer, e a faz e a sustenta; o
agravo pode vir de qualquer parte, sem que afronte. Seja exemplo:
está um na rua descuidado, chegam dez com mão armada, e, dando-lhe
golpes, põe mão à espada e faz seu dever, mas a multidão dos
contrários se lhe opõe, e não lhe deixa sair com sua intenção, que é de
vingar-se; este tal fica agravado, mas não afrontado. E o mesmo
confirmará outro exemplo: está um voltado de costas, chega outro e
dá-lhe golpes, e dando-os foge e não espera, e o outro o segue e não
alcança; este que recebeu os golpes, recebeu agravo, mas não afronta,
porque a afronta há de ser sustentada. Se o que lhe deu os golpes,
embora os desse a furto, pegasse sua espada e estivesse quedo,
encarando seu inimigo, ficaria o apaleado agravado e afrontado
juntamente: agravado, porque lhe deram à traição; afrontado, porque
o que lhe deu sustentou o que havia feito, sem voltar as costas e a pé
quedo. E assim, segundo as leis do maldito duelo, eu posso estar
agravado, mas não afrontado; porque os meninos não sentem, nem as
mulheres, nem podem fugir, nem têm para que esperar, e o mesmo os
constituídos na sacra religião, porque estes três gêneros de gente
carecem de armas ofensivas e defensivas; e assim, embora
naturalmente estejam obrigados a defender-se, não o estão para
ofender a ninguém. E embora há pouco disse que eu podia estar
agravado, agora digo que não, de maneira alguma, porque quem não
pode receber afronta, menos a pode dar; pelas quais razões eu não
devo sentir, nem sinto, as que aquele bom homem me disse; só queria
que esperasse algum pouco, para dar-lhe a entender no
erro em que está em pensar e dizer que não houve, nem os há,
cavaleiros andantes no mundo; que se tal ouvisse Amadis, ou um dos
infinitos de sua linhagem, eu sei que não ficaria bem à sua mercê.
- Isso juro eu bem - disse Sancho: - cutilada lhe haveriam dado que
o abririam de cima abaixo como uma romã, ou como a um melão muito
maduro. Bonitos eram eles para sofrer semelhantes graças! Para
minha bênção, que tenho por certo que se Reinaldo de Montalvão
houvesse ouvido estas razões ao homenzinho, tapa-boca lhe haveria
dado que não falaria mais em três anos. Não, senão haver-se-ia com
eles e veria como escapava de suas mãos!
Morria de riso a duquesa ouvindo Sancho falar, e em sua opinião o
tinha por mais gracioso e por mais louco que seu amo; e muitos houve
naquele tempo que foram deste mesmo parecer. Finalmente, dom
Quixote sossegou, e o almoço acabou, e, tirada a mesa, chegaram
quatro donzelas, uma com uma bandeja de prata, e a outra com um
jarro também de prata, e a outra com duas branquíssimas e
riquíssimas toalhas ao ombro, e a quarta descobertos os braços até o
meio, e em suas brancas mãos - que sem dúvida eram brancas - uma
pelota de sabão napolitano. Chegou a da bandeja, e com gentil donaire
e desenvoltura encaixou a bandeja debaixo da barba de dom Quixote;
o qual, sem falar palavra, admirado de semelhante cerimônia, crendo
que devia ser usança daquela terra em lugar das mãos lavar as barbas,
e assim estendeu a sua tudo quanto pôde, e ao mesmo ponto começou a
chover o jarro, e a donzela do sabão lhe manuseou as barbas com
muita pressa, levantando flocos de neve, que não eram menos brancas
as espumas, não só pelas barbas, mas por todo o rosto e pelos olhos do
obediente cavaleiro, tanto, que os fizeram fechar pela força. O duque
e a duquesa, que de nada disto eram sabedores, estavam esperando
em que havia de dar tão extraordinário lavatório. A donzela barbeira,
quando o teve com um palmo de espuma, fingiu que lhe havia acabado a
água, e mandou à da jarro fosse por ela, que o senhor dom Quixote
esperaria. Fê-lo assim, e ficou dom Quixote com a mais estranha
figura e mais para fazer rir que se poderia imaginar.
Miravam-no todos os que presentes estavam, que eram muitos, e
como o viam com meia vara de pescoço, mais que medianamente
moreno, os olhos fechados e as barbas cheias de sabão, foi grande
maravilha e muita discrição poder dissimular o riso; as donzelas da
burla tinham os olhos baixos, sem ousar olhar a seus senhores; neles
se misturavam a cólera e o riso, e não sabiam a que atender: ou a
castigar o atrevimento das moças, ou dar-lhes prêmio pelo gosto que
recebiam de ver dom Quixote daquela maneira. Finalmente, a donzela
da jarro veio, e acabaram de lavar dom Quixote, e logo a que trazia as
toalhas o limpou e o enxugou muito repousadamente; e, fazendo-lhe
todas as quatro ao mesmo tempo uma grande e profunda inclinação e
reverência, queriam ir-se; mas o duque, para que dom Quixote não
percebesse a burla, chamou a donzela da bandeja, dizendo-lhe:
- Vinde e lavai-me, e vede que não vos acabe a água.
A moça, aguda e diligente, chegou e pôs a bandeja ao duque como a
dom Quixote, e, dando-se pressa, o lavaram e ensaboaram muito bem,
e, deixando-o enxuto e limpo, fazendo reverências se foram. Depois se
soube que havia jurado o duque que se a ele não o lavassem como a
dom Quixote, havia de castigar sua desenvoltura, a qual haviam
emendado discretamente com haver-lhe ensaboado.
Estava atento Sancho às cerimônias daquele lavatório, e disse entre
si:
- Valha-me Deus! Será também usança nesta terra lavar as barbas
aos escudeiros como aos cavaleiros? Porque, em Deus e em minha alma
que o bem preciso, e ainda que as rapassem a navalha, o teria por mais
benefício.
- Que dizeis entre vós, Sancho? - perguntou a duquesa.
- Digo, senhora - respondeu ele, - que nas cortes dos outros
príncipes sempre ouvi dizer que tirada a mesa dão água às mãos, mas
não lixívia às barbas; e que por isso é bom viver muito, por ver muito;
embora também dizem que “o que larga vida vive muito mal há de
passar”, embora passar por um lavatório destes antes é gosto que
trabalho.
- Não tenhais pena, amigo Sancho - disse a duquesa, - que eu farei
que minhas donzelas vos lavem, e ainda vos ponham de molho, se for
preciso.
- Com as barbas me contento - respondeu Sancho, - por agora ao
menos, que andando o tempo, Deus sabe o que será.
- Vede, camareiro-mor - disse a duquesa, - o que o bom Sancho
pede, e cumpri-lhe a vontade ao pé da letra.
O camareiro-mor respondeu que em tudo seria servido o senhor
Sancho, e com isto foi almoçar, e levou Sancho consigo, ficando à
mesa os duques e dom Quixote, falando em muitas e diversas coisas;
mas todas tocantes ao exercício das armas e da andante cavalaria.
A duquesa rogou a dom Quixote que lhe delineasse e descrevesse,
pois parecia ter feliz memória, a formosura e feições da senhora
Dulcineia do Toboso; que, segundo o que a fama apregoava de sua
beleza, tinha por entendido que devia ser a mais bela criatura do orbe,
e ainda de toda a Mancha. Suspirou dom Quixote, ouvindo o que a
duquesa lhe pedia, e disse:
- Se eu pudesse tirar meu coração e pô-lo ante os olhos de vossa
grandeza, aqui, sobre esta mesa e num prato, pouparia o trabalho de
minha língua de dizer o que apenas se pode pensar, porque vossa
excelência a veria nele toda retratada; mas, para que é pôr-me eu
agora a delinear e descrever ponto por ponto e parte por parte a
formosura da sem par Dulcineia, sendo carga digna de outros ombros
que dos meus, empresa em quem se deviam ocupar os pincéis de
Parrásio, de Timantes e de Apeles, e os buris de Lisipo, para pintá-la e
gravá-la em tábuas, em mármores e em bronzes, e a retórica
ciceroniana e demostina para louvá-la?
- Que quer dizer demostina, senhor dom Quixote - perguntou a
duquesa, - que é vocábulo que não ouvi em todos os dias de minha vida?
- Retórica demostina - respondeu dom Quixote - é o mesmo que
dizer retórica de Demóstenes, como ciceroniana, de Cícero, que
seriam os dois maiores retóricos do mundo.
- Assim é - disse o duque, - e fostes descortês na tal pergunta.
Mas, mesmo assim, nos daria grande gosto o senhor dom Quixote se
no-la pintasse; que seguramente que, embora seja em rascunho e
bosquejo, que ela saia tal, que lhe tenham inveja as mais formosas.
- Sim o faria, por certo - respondeu dom Quixote, - se não a tivesse
apagado do pensamento a desgraça que há pouco lhe sucedeu, que é
tal, que mais estou para chorá-la que para descrevê-la; porque haverão
de saber vossas grandezas que, indo os dias passados a beijar-lhe as
mãos, e a receber sua bênção, beneplácito e licença para esta terceira
saída, achei outra da que buscava: achei-a encantada e convertida de
princesa em lavradora, de formosa em feia, de anjo em diabo, de
olorosa em pestífera, de bem falada em rústica, de repousada em
brincadora, de luz em trevas, e, finalmente, de Dulcineia do Toboso
em uma rústica camponesa.
- Valha-me Deus! - dando uma grande voz, disse a este instante o
duque. - Quem foi o que tanto mal fez ao mundo? Quem tirou dele a
beleza que o alegrava, o donaire que o entretinha e a honestidade que
o acreditava?
- Quem? - respondeu dom Quixote. - Quem pode ser senão algum
maligno encantador dos muitos invejosos que me perseguem? Esta
raça maldita, nascida no mundo para escurecer e aniquilar as façanhas
dos bons, e para dar luz e levantar os feitos dos maus. Perseguiram-
me encantadores, encantadores me perseguem e encantadores me
perseguirão até dar comigo e com minhas altas cavalarias no profundo
abismo do olvido; e naquela parte me danam e ferem onde veem que
mais o sinto, porque tirar a um cavaleiro andante sua dama é tirar-lhe
os olhos com que veja, e o sol com que se ilumina, e o sustento com que
se mantém. Outras muitas vezes o disse, e agora o volto a dizer: que o
cavaleiro andante sem dama é como a árvore sem folhas, o edifício
sem cimento e a sombra sem corpo que a cause.
- Não há mais que dizer - disse a duquesa; - mas se, assim, havemos
de dar crédito à história que do senhor dom Quixote de poucos dias a
esta parte saiu à luz do mundo, com geral aplauso das gentes, dela se
colige, se mal não me lembro, que nunca vossa mercê viu a senhora
Dulcineia, e que esta tal senhora não existe, senão que é dama
fantástica, que vossa mercê engendrou e pariu em seu entendimento, e
a pintou com todas aquelas graças e perfeições que quis.
- Nisso há muito que dizer - respondeu dom Quixote. - Deus sabe se
há Dulcineia ou não no mundo, ou se é fantástica ou não é fantástica; e
estas não são das coisas cuja averiguação se há de levar até o fim.
Nem eu engendrei nem pari a minha senhora, embora a contemple
como convém que seja uma dama que contenha em si as partes que
possam fazê-la famosa em todas as do mundo, como são: formosa sem
defeito, grave sem soberba, amorosa com honestidade, agradecida por
cortês, cortês por bem criada, e, finalmente, alta por linhagem,
porque sobre o bom sangue resplandece e campeia a formosura com
mais graus de perfeição que nas formosas humildemente nascidas.
- Assim é - disse o duque; - mas há-me de dar licença o senhor dom
Quixote para que diga o que me força a dizer a história que de suas
façanhas li, de onde se infere que, embora se conceda que há
Dulcineia, no Toboso ou fora dele, e que seja formosa no sumo grau
que vossa mercê no-la pinta, no da alteza da linhagem não concorre
com as Orianas, com as Alastrajareas, com as Madásimas, nem com
outras deste jaez, de quem estão cheias as histórias que vossa mercê
bem sabe.
- A isso posso dizer - respondeu dom Quixote - que Dulcineia é filha
de suas obras, e que as virtudes adubam o sangue, e que em mais se há
de estimar e ter um humilde virtuoso que um prazenteiro levantado;
quanto mais, que Dulcineia tem um girão que a pode levar a ser rainha
de coroa e cetro; que o merecimento de uma mulher formosa e
virtuosa a fazer maiores milagres se estende, e, embora não
formalmente, virtualmente tem em si encerradas maiores venturas.
- Digo, senhor dom Quixote - disse a duquesa, - que em tudo quanto
vossa mercê diz vai com pé de chumbo, e, como costuma dizer-se, com
muita prudência; e que eu daqui em diante crerei e farei crer a todos
os de minha casa, e ainda ao duque meu senhor, se for preciso, que há
Dulcineia no Toboso, e que vive hoje em dia, e é formosa, e
principalmente nascida e merecedora que um tal cavaleiro como é o
senhor dom Quixote a sirva; que é o mais que posso nem sei
encarecer. Mas não posso deixar de formar um escrúpulo, e ter algum
não sei quê de ojeriza contra Sancho Pança: o escrúpulo é que diz a
história referida que o tal Sancho Pança achou a tal senhora Dulcineia,
quando de parte de vossa mercê lhe levou uma epístola, limpando um
saco de trigo, e, por mais sinais, diz que era de má qualidade: coisa que
me faz duvidar na alteza de sua linhagem.
Ao que respondeu dom Quixote:
- Senhora minha, saberá a vossa grandeza que todas ou as mais
coisas que a mim me sucedem vão fora dos termos ordinários das que
aos outros cavaleiros andantes acontecem, ou já sejam encaminhadas
pelo querer inescrutável dos fados, ou já venham encaminhadas pela
malícia de algum encantador invejoso; e, como é coisa já averiguada
que todos ou os mais cavaleiros andantes e famosos, um tenha graça
de não poder ser encantado, outro de ser de tão impenetráveis carnes
que não possa ser ferido, como o foi o famoso Roldão, um dos Doze
Pares de França, de quem se conta que não podia ser ferido senão pela
planta do pé esquerdo, e que isto havia de ser com a ponta de um
alfinete grande, e não com outra sorte de arma alguma; e assim,
quando Bernardo do Carpio o matou em Roncesvales, vendo que não o
podia chagar com ferro, levantou-o do chão entre os braços e
o afogou, lembrando-se então da morte que deu Hércules a Anteu,
aquele feroz gigante que diziam ser filho da Terra. Quero inferir do
dito, que poderia ser que eu tivesse alguma graça destas, não do não
poder ser ferido, porque muitas vezes a experiência me mostrou que
sou de carnes brandas e não nada impenetráveis, nem a de não poder
ser encantado, que já me vi metido em uma jaula, onde todo o mundo
não seria poderoso a encerrar-me, se não seria a forças de
encantamentos; mas, pois daquele me livrei, quero crer que não há de
haver outro algum que me impeça; e assim, vendo estes encantadores
que com minha pessoa não podem usar de suas más manhas, vingam-se
nas coisas que mais quero, e querem tirar-me a vida maltratando a de
Dulcineia, por quem eu vivo; e assim, creio que, quando meu escudeiro
lhe levou minha embaixada, a converteram em vilã e ocupada em tão
baixo exercício como é o de limpar trigo; mas já tenho eu dito que
aquele trigo nem era ruivão nem trigo, senão grãos de pérolas
orientais; e para prova desta verdade quero dizer a vossas magnitudes
como, vindo há pouco pelo Toboso, jamais pude achar os palácios de
Dulcineia; e que outro dia, havendo-a visto Sancho, meu escudeiro, em
sua mesma figura, que é a mais bela do orbe, a mim me pareceu uma
lavradora tosca e feia, e não nada bem arrazoada, sendo a discrição do
mundo; e, pois eu não estou encantado, nem o posso estar, segundo
bom argumento, ela é a encantada, a ofendida e a mudada, trocada e
trastrocada, e nela vingaram-se de mim meus inimigos, e por ela
viverei eu em perpétuas lágrimas, até vê-la em seu prístino estado.
Tudo isto disse para que ninguém repare no que Sancho disse do
joeirar nem do limpar de Dulcineia; que, pois a mim a mudaram, não é
maravilha que a ele a trocassem. Dulcineia é principal e bem nascida, e
das fidalgas linhagens que há no Toboso, que são muitas, antigas e
muito boas, seguramente que não cabe pouca parte à sem par
Dulcineia, por quem seu lugar será famoso e nomeado nos vindouros
séculos, como o foi Troia por Helena, e a Espanha pela Cava, embora
com melhor título e fama. Por outra parte, quero que entendam vossas
senhorias que Sancho Pança é um dos mais graciosos escudeiros que
jamais serviu a cavaleiro andante; tem às vezes umas simplicidades
tão agudas, que o pensar se é ingênuo ou agudo causa não pequeno
contentamento; tem malícias que o condenam por velhaco, e descuidos
que o confirmam por bobo; duvida de tudo e crê em tudo; quando
penso que se vai a despenhar de tonto, sai com umas discrições, que o
levantam ao céu. Finalmente, eu não o trocaria com outro escudeiro,
embora me dessem de acréscimo uma cidade; e assim, estou em dúvida
se será bem enviá-lo ao governo de que vossa grandeza lhe fez mercê;
embora veja nele uma certa aptidão para isto de governar, que
polindo-lhe um tantinho o entendimento, se sairia com qualquer
governo, como o rei com seus tributos; e mais, que já por muitas
experiências sabemos que não é preciso nem muita habilidade nem
muitas letras para ser um governador, pois há por aí cento que apenas
sabem ler, e governam como uns falcões; o toque está em que tenham
boa intenção e desejem acertar em tudo; que nunca lhes faltará quem
os aconselhe e encaminhe no que hão de fazer, como os governadores
cavaleiros e não letrados, que sentenciam com assessor. Aconselhar-
lhe-ia eu que nem se deixe subornar nem cobre menos do que é justo,
e outras coisinhas que me ficam no estômago, que sairão a seu tempo,
para utilidade de Sancho e proveito da ilha que governar.
A este ponto de seu colóquio chegavam o duque, a duquesa e dom
Quixote, quando ouviram muitas vozes e grande rumor de gente no
palácio; e de repente entrou Sancho na sala, todo assustado, com um
pano grosso por babador, e atrás dele muitos moços, ou, por melhor
dizer, ajudantes de cozinha e outra gente miúda, e um vinha com uma
tina de água, que na cor e pouca limpeza mostrava ser de lavar o chão;
seguia-o e perseguia-o o da tina, e procurava com toda solicitude pô-la
e encaixá-la debaixo das barbas, e outro ajudante mostrava querer
lavá-las.
- Que é isto, irmãos? - perguntou a duquesa. - Que é isto? Que
quereis desse bom homem? Como não considerais que está eleito
governador?
Ao que respondeu o ajudante barbeiro:
- Não quer este senhor deixar-se lavar, como é usança, e como se
lavou o duque meu senhor e o senhor seu amo.
- Sim quero - respondeu Sancho com muita cólera, - mas queria que
fosse com toalhas mais limpas, com lixívia mais clara e com mãos não
tão sujas; que não há tanta diferença de mim a meu amo, que a ele o
lavem com água de anjos e a mim com lixívia de diabos. As usanças das
terras e dos palácios dos príncipes tanto são boas quanto não dão
tristeza, mas o costume do lavatório que aqui se usa pior é que de
disciplinantes. Eu estou limpo de barbas e não tenho necessidade de
semelhantes refrigérios; e o que se chegar a lavar-me nem a tocar-me
um pelo da cabeça, digo, de minha barba, falando com o devido
acatamento, lhe darei tal murro que lhe deixe o punho engastado nos
cascos; que estas tais cirimônias e ensaboaduras mais parecem burlas
que gasalhos de hóspedes.
Morta de riso estava a duquesa, vendo a cólera e ouvindo as razões
de Sancho, mas não deu muito gosto a dom Quixote vê-lo tão pouco
elegante com a imunda toalha, e tão rodeado de tantos agregados de
cozinha; e assim, fazendo uma profunda reverência aos duques, como
que lhes pedia licença para falar, com voz repousada disse à canalha:
- Olá, senhores cavaleiros! Vossas mercês deixem o mancebo, e
voltem por onde vieram, ou para outro lugar se desejarem, que meu
escudeiro é limpo tanto como outro, e essas tininhas são para ele
estreitos e penosos jarros. Tomem meu conselho e deixem-no, porque
nem ele nem eu sabemos de assunto de burlas.
Colheu-lhe a palavra da boca Sancho, e prosseguiu dizendo:
- Não, venham fazer burla do vagabundo, que assim o suportarei
como agora é de noite! Tragam aqui um pente, ou o que quiserem, e
escovem-me estas barbas, e se tirarem delas coisa que ofenda à
limpeza, que me castiguem.
Então, sem deixar o riso, disse a duquesa:
- Sancho Pança tem razão em tudo quanto disse, e a terá em tudo
quanto disser: ele é limpo, e, como ele diz, não tem necessidade de
lavar-se; e se nossa usança não o contenta, sua alma sua palma, quanto
mais, que vós, serventes da limpeza, haveis andado demasiadamente
lentos e descuidados, e não sei se diga atrevidos, a trazer a tal
personagem e a tais barbas, em lugar de bandejas e jarros de ouro
puro e de toalhas alemãs, tininhas e baldes de madeira e estopas. Mas,
enfim, sois maus e mal nascidos, e não podeis deixar, como gatunos
que sois, de mostrar a ojeriza que tendes com os escudeiros dos
andantes cavaleiros.
Creram os ajudantes serventes, e ainda o camareiro-mor, que vinha
com eles, que a duquesa falava de veras; e assim, tiraram o babador do
peito de Sancho, e todos confusos e quase vexados se foram e o
deixaram; o qual, vendo-se fora daquele, a seu parecer, sumo perigo,
ficou de joelhos ante a duquesa e disse:
- De grandes senhoras, grandes mercês se esperam; esta que a
vossa mercê hoje me fez não pode pagar-se com menos, se não é com
desejar ver-me armado cavaleiro andante, para ocupar-me todos os
dias de minha vida em servir a tão alta senhora. Lavrador sou, Sancho
Pança me chamo, casado sou, filhos tenho e de escudeiro sirvo: se com
alguma destas coisas posso servir a vossa grandeza, menos tardarei eu
em obedecer que vossa senhoria em mandar.
- Bem parece, Sancho - respondeu a duquesa, - que haveis aprendido
a ser cortês na escola da mesma cortesia; bem parece, quero dizer,
que vos haveis educado aos peitos do senhor dom Quixote, que deve
ser a nata dos comedimentos e a flor das cerimônias, ou cirimônias,
como vós dizeis. Bem haja tal senhor e tal criado: um, por norte da
andante cavalaria; e o outro, por estrela da escuderil fidelidade.
Levantai-vos, Sancho amigo, que eu satisfarei vossas cortesias com
fazer que o duque meu senhor, o mais rápido que puder, vos cumpra a
mercê prometida do governo.
Com isto cessou a conversa, e dom Quixote foi repousar a sesta, e a
duquesa pediu a Sancho que, se não tinha muita vontade de dormir,
viesse a passar a tarde com ela e com suas donzelas em uma muito
fresca sala. Sancho respondeu que, embora era verdade que tinha por
costume dormir quatro ou cinco horas as sestas do verão, que, por
servir à sua bondade, ele procuraria com todas suas forças não dormir
aquele dia nenhuma, e viria obediente a seu mandado, e foi-se. O
duque deu novas ordens para que se tratasse dom Quixote como
cavaleiro andante, sem sair um ponto do estilo como contam que se
tratavam os antigos cavaleiros.
CAPÍTULO XXXIII

Da saborosa conversa que a duquesa e suas donzelas tiveram com


Sancho Pança, digna de que se leia e de que se note

Conta, pois, a história, que Sancho não dormiu aquela sesta, senão
que, por cumprir sua palavra, após almoçar veio ver a duquesa; a qual,
com o gosto que tinha de ouvi-lo, o fez sentar junto a si em uma
cadeira baixa, embora Sancho, de puro bem educado, não queria
sentar-se; mas a duquesa lhe disse que se sentasse como governador e
falasse como escudeiro, embora por ambas as coisas merecia o mesmo
assento do Cid Ruy Diaz Campeador.
Encolheu Sancho os ombros, obedeceu e sentou-se, e todas as
donzelas e amas da duquesa a rodearam atentas, com grandíssimo
silêncio, a escutar o que diria; mas a duquesa foi a que falou primeiro,
dizendo:
- Agora que estamos sós, e que aqui não nos ouve ninguém, queria eu
que o senhor governador me resolvesse certas dúvidas que tenho,
nascidas da história que do grande dom Quixote anda já impressa;
uma das quais dúvidas é que, pois o bom Sancho nunca viu Dulcineia,
digo, à senhora Dulcineia do Toboso, nem lhe levou a carta do senhor
dom Quixote, porque ficou no livro de memória em Serra Morena,
como se atreveu a fingir a resposta, e aquilo de que a achou limpando
trigo, sendo tudo burla e mentira, e tão em dano da boa opinião da sem
par Dulcineia, e todas que não vêm bem com a qualidade e fidelidade
dos bons escudeiros.
A estas razões, sem responder com alguma, se levantou Sancho da
cadeira, e, com passos silenciosos, o corpo encurvado e o dedo posto
sobre os lábios, andou por toda a sala levantando os dosséis; e logo,
isto feito, se voltou a sentar e disse:
- Agora, senhora minha, que vi que não nos escuta ninguém à socapa,
fora dos circunstantes, sem temor nem sobressalto responderei ao
que me perguntou, e a tudo aquilo que me perguntar; e a primeira coisa
que digo é que eu tenho a meu senhor dom Quixote por louco
rematado, embora algumas vezes diz coisas que, a meu parecer, e
ainda de todos aqueles que o escutam, são tão discretas e por tão bom
trilho encaminhadas, que o mesmo Satanás não as poderia dizer
melhores; mas, mesmo assim, verdadeiramente e sem escrúpulo, a mim
está claro que é um mentecapto. Pois, como eu tenho isto no
pensamento, me atrevo a fazer-lhe crer o que não tem pés nem
cabeça, como foi aquilo da resposta da carta, e o de haverá seis ou
oito dias, que ainda não está em história, convém a saber: o do encanto
de minha senhora dona Dulcineia, que lhe dei a entender que está
encantada, o que está longíssimo da verdade.
Rogou-lhe a duquesa que lhe contasse aquele encantamento ou burla,
e Sancho contou tudo do mesmo modo que se havia passado, de que
não pouco gosto receberam os ouvintes; e prosseguindo em sua
conversa, disse a duquesa:
- Do que o bom Sancho me contou me anda brincando um escrúpulo
na alma e um certo sussurro chega a meus ouvidos, que me diz: “Pois
dom Quixote da Mancha é louco, minguado e mentecapto, e Sancho
Pança seu escudeiro o conhece, e, assim, o serve e o segue e vai preso
às vãs promessas suas, sem dúvida alguma deve ser ele mais louco e
tonto que seu amo; e, sendo isto assim, como o é, mal contado te será,
senhora duquesa, se ao tal Sancho Pança lhe dás ilha que governe,
porque o que não sabe governar-se a si, como saberá governar a
outros?”
- Por Deus, senhora - disse Sancho, - que esse escrúpulo vem a
propósito; mas diga-lhe vossa mercê que fale claro, ou como quiser,
que eu conheço que diz verdade: que se eu fosse discreto, dias há que
havia de haver deixado meu amo. Mas esta foi minha sorte, e este meu
infortúnio; não posso mais, tenho de segui-lo: somos de um mesmo
lugar, comi seu pão, quero-o bem, é agradecido, deu-me seus asninhos,
e, sobretudo, eu sou fiel; e assim, é impossível que nos possa afastar
outro sucesso que o da pá e enxadão. E se vossa altaneria não quiser
que se me dê o prometido governo, por menos me fez Deus, e poderia
ser que o não dar-mo redundasse em pro de minha consciência; que,
embora tonto, entendo aquele refrão de “por seu mal nasceram asas à
formiga”; e ainda poderia ser que se fosse mais cedo Sancho
escudeiro ao céu, que não Sancho governador. Tão bom pão fazem aqui
como na França; e de noite todos os gatos são pardos, e assaz de
desditada é a pessoa que às duas da tarde não desjejuou; e não há
estômago que seja um palmo maior que outro, o qual se pode encher,
como costuma dizer-se, de palha e de feno; e as avezinhas do campo
têm a Deus por seu provedor e despenseiro; e mais aquecem quatro
varas de pano de Cuenca que outras quatro de sarja de Segóvia; e ao
deixar este mundo e meter-nos terra adentro, por tão estreita senda
vai o príncipe como o jornaleiro, e não ocupa mais pés de terra o corpo
do Papa que o do sacristão, embora seja mais alto um que o outro; que
ao entrar no buraco todos nos ajustamos e encolhemos, ou nos fazem
ajustar e encolher, mal que nos pese e boas-noites. E torno a dizer
que se vossa senhoria não me quiser dar a ilha por tonto, eu saberei
não dar-me nada por discreto; e eu ouvi dizer que detrás da cruz está
o diabo, e que não é ouro tudo o que reluz, e que de entre os bois,
arados e cangas trouxeram o lavrador Bamba para ser rei da Espanha,
e de entre os brocados, passatempos e riquezas trouxeram Rodrigo
para ser comido por cobras, se é que as trovas dos romances antigos
não mentem.
- E como que não mentem! - disse então dona Rodríguez a ama, que
era uma das escutantes: - que um romance há que diz que meteram o
rei Rodrigo, vivo vivo, em uma tumba cheia de sapos, cobras e lagartos,
e que dali a dois dias disse o rei desde dentro da tumba, com voz
dolente e baixa:

Já me comem, já me comem
por onde mais pecado havia;

e, segundo isto, muita razão tem este senhor em dizer que quer mais
ser mais lavrador que rei, se o hão de comer vermes.
Não pôde a duquesa reter o riso, ouvindo a simplicidade de sua ama,
nem deixou de admirar-se em ouvir as razões e refrãos de Sancho, a
quem disse:
- Já sabe o bom Sancho que o que uma vez promete um cavaleiro
procura cumpri-lo, embora lhe custe a vida. O duque, meu senhor e
marido, embora não seja dos andantes, não por isso deixa de ser
cavaleiro, e assim, cumprirá a palavra da prometida ilha, apesar da
inveja e da malícia do mundo. Esteja Sancho de bom ânimo, que quando
menos o pense se verá sentado na cadeira de sua ilha e na de seu
estado, e empunhará seu governo, que vá melhorando e ganhando
sempre. O de que eu lhe encarrego é que veja como governa seus
vassalos, advertindo que todos são leais e bem nascidos.
- Isso de governá-los bem - respondeu Sancho - não há para que
encarregar-me, porque eu sou caritativo de meu e tenho compaixão
pelos pobres; e a quem coze e amassa, não lhe furtes fogaça; e para
minha bênção que não me hão de jogar dado falso; sou cão velho, e
entendo tudo tus, tus, e sei despertar-me a seus tempos, e não
consinto que me turvem os olhos, porque sei onde me aperta o sapato:
digo-o porque os bons terão comigo apoio e refúgio, e os maus, nem pé
nem entrada. E parece-me que nisto dos governos tudo é começar, e
poderia ser que a quinze dias de governador almejasse exercer o
ofício e soubesse mais dele que do labor do campo, em que me criei.
- Vós tendes razão, Sancho - disse a duquesa, - que ninguém nasce
ensinado, e dos homens se fazem os bispos, que não das pedras. Mas,
voltando à conversa que há pouco tratávamos do encanto da senhora
Dulcineia, tenho por coisa certa e mais que averiguada que aquela ideia
que Sancho teve de burlar a seu senhor e dar-lhe a entender que a
lavradora era Dulcineia, e que se seu senhor não a conhecia devia ser
por estar encantada, toda foi invenção de algum dos encantadores que
perseguem o senhor dom Quixote; porque real e verdadeiramente eu
sei de boa parte que a vilã que deu o pulo sobre a asninha era e é
Dulcineia do Toboso, e que o bom Sancho, pensando ser o enganador, é
o enganado; e não há pôr mais dúvida nesta verdade que nas coisas que
nunca vimos; e saiba o senhor Sancho Pança que também temos aqui
encantadores que nos querem bem, e nos dizem o que passa pelo
mundo, pura e singelamente, sem enredos nem máquinas; e creia-me
Sancho que a vilã brincadora era e é Dulcineia do Toboso, que está
encantada como a mãe que a pariu; e quando menos pensemos, a
havemos de ver em sua própria figura, e então sairá Sancho do engano
em que vive.
- Bem pode ser tudo isso - disse Sancho Pança; - e agora quero crer
o que meu amo conta do que viu na cova de Montesinos, onde diz que
viu a senhora Dulcineia do Toboso no mesmo traje que eu disse que a
havia visto quando a encantei por só meu gosto; e tudo deveu ser ao
revés, como vossa mercê, senhora minha, diz, porque de meu ruim
engenho não se pode nem deve presumir que fabricasse num instante
tão agudo embuste, nem creio eu que meu amo é tão louco que com tão
fraca e magra persuasão como a minha cresse uma coisa tão fora de
todo termo. Mas, senhora, não por isto será bem que vossa bondade
me tenha por malévolo, pois não está obrigado um tonto como eu a
perfurar os pensamentos e malícias dos péssimos encantadores: eu
fingi aquilo por escapar-me das repreensões de meu senhor dom
Quixote, e não com intenção de ofendê-lo; e se saiu ao revés, Deus
está no céu, que julga os corações.
- Assim é a verdade - disse a duquesa; - mas diga-me agora, Sancho,
que é isto que diz da cova de Montesinos, que gostaria de sabê-lo.
Então Sancho Pança lhe contou ponto por ponto o que fica dito
acerca da tal aventura. Ouvindo o que a duquesa, disse:
- Deste sucesso se pode inferir que, pois o grande dom Quixote diz
que viu ali a mesma lavradora que Sancho viu à saída do Toboso, sem
dúvida é Dulcineia, e que andam por aqui os encantadores muito listos
e demasiadamente ativos.
- Isso digo eu - disse Sancho Pança, - que se minha senhora
Dulcineia do Toboso está encantada, pior para ela, que eu não me
tenho de tomar, eu, com os inimigos de meu amo, que devem ser
muitos e maus. Verdade seja que a que eu vi foi uma lavradora, e por
lavradora a tive, e por tal lavradora a julguei; e se aquela era
Dulcineia, não há de estar à minha conta, nem há de correr por mim,
ou sobre isso, pendência. Não, senão andem a cada momento comigo a
diz-me e direi-te, “Sancho o disse, Sancho o fez, Sancho tornou e
Sancho voltou”, como se Sancho fosse algum qualquer, e não fosse o
mesmo Sancho Pança, o que anda já em livros por esse mundo adiante,
segundo me disse Sansão Carrasco, que, pelo menos, é pessoa
bacharelada por Salamanca, e os tais não podem mentir se não é
quando desejam ou lhes vem muito a conto; assim que, não há para que
ninguém se tome comigo, e pois que tenho boa fama, e, segundo ouvi
dizer a meu senhor, que mais vale o bom nome que as muitas riquezas,
encaixem-me esse governo e verão maravilhas; que quem foi bom
escudeiro será bom governador.
- Tudo quanto aqui disse o bom Sancho - disse a duquesa - são
sentenças catonianas, ou, pelo menos, tiradas das mesmas entranhas
do mesmo Micael Verino, “florentibus occidit anis" (“morreu na flor da
idade”: N. do T.). Enfim, enfim, falando a seu modo, debaixo de má
capa costuma haver bom bebedor.
- Em verdade, senhora - respondeu Sancho, - que em minha vida
bebi por malícia; com sede bem poderia ser, porque não tenho nada de
hipócrita: bebo quando tenho vontade, e quando não a tenho e quando
me dão, por não parecer ou melindroso ou malcriado; que a um brinde
de um amigo, que coração há de haver tão de mármore que não aceite?
Mas, embora as calce, não as sujo (as calças: N. do T.); quanto mais,
que os escudeiros dos cavaleiros andantes, quase de ordinário bebem
água, porque sempre andam por florestas, selvas e prados, montanhas
e penhascos, sem achar uma misericórdia de vinho, se dão por ela um
olho.
- Eu o creio assim - respondeu a duquesa. - E por agora, vá Sancho a
repousar, que depois falaremos mais largo e daremos ordem como vá
logo a encaixar-se, como diz, aquele governo.
De novo beijou as mãos Sancho à duquesa, e lhe suplicou lhe fizesse
mercê de que se tivesse boa conta com seu ruço, porque era a luz de
seus olhos.
- Que ruço é este? - perguntou a duquesa.
- Meu asno - respondeu Sancho, - que por não nomeá-lo com este
nome, costumo chamá-lo “o ruço”; e a esta senhora ama roguei, quando
entrei neste castelo, tomasse conta dele, e enfureceu-se de maneira
como se lhe houvesse dito que era feia ou velha, devendo ser mais
próprio e natural das amas alimentar jumentos que abrilhantar as
salas. Oh, valha-me Deus, e quão mal estava com estas senhoras um
fidalgo de meu lugar!
- Seria algum vilão - disse dona Rodríguez, a ama, - que se ele fosse
fidalgo e bem nascido, ele as poria nos cornos da lua.
- Agora bem - disse a duquesa, - não haja mais: cale dona Rodríguez
e sossegue o senhor Pança, e fique a meu cargo o regalo do ruço; que,
por ser joia de Sancho, lhe porei eu sobre as meninas de meus olhos.
- Na cavalariça basta que esteja - respondeu Sancho, - que sobre as
meninas dos olhos de vossa grandeza nem ele nem eu somos dignos de
estar só um momento, e assim o consentiria eu como dar-me
punhaladas; que, embora diz meu senhor que nas cortesias antes se há
de perder por carta de mais que de menos, nas jumentis e asininas se
há de ir com o compasso na mão e com medido termo.
- Leve-o - disse a duquesa - Sancho ao governo, e lá lhe poderá
regalar como quiser, e ainda aposentá-lo do trabalho.
- Não pense vossa mercê, senhora duquesa, que disse muito - disse
Sancho; - que eu vi ir mais de dois asnos aos governos, e que levasse
eu o meu não seria coisa nova.
As palavras de Sancho renovaram na duquesa o riso e o
contentamento; e, enviando-o a repousar, ela foi dar conta ao duque
do que com ele havia passado, e entre os dois deram manha e ordem
de fazer uma burla a dom Quixote que fosse famosa e viesse bem com
o estilo cavaleiresco, no qual lhe fizeram muitas, tão próprias e
discretas, que são as melhores aventuras que nesta grande história se
contêm.

CAPÍTULO XXXIV

Que conta da notícia que se teve de como se havia de desencantar a


sem par Dulcineia do Toboso, que é uma das aventuras mais famosas
deste livro

Grande era o gosto que recebiam o duque e a duquesa da


conversação de dom Quixote e da de Sancho Pança; e confirmando-se
na intenção que tinham de fazer-lhes algumas burlas que levassem
vislumbres e aparências de aventuras, tomaram motivo da que dom
Quixote já lhes havia contado da cova de Montesinos, para fazer-lhe
uma que fosse famosa. Mas do que mais a duquesa se admirava era que
a simplicidade de Sancho fosse tanta que houvesse vindo a crer ser
verdade infalível que Dulcineia do Toboso estivesse encantada,
havendo sido ele mesmo o encantador e o embusteiro daquele negócio.
E, assim, havendo dado ordem a seus criados de tudo o que haviam de
fazer, dali a seis dias o levaram à caça de montaria, com tanto aparato
de monteiros e caçadores como poderia levar um rei coroado. Deram a
dom Quixote um traje de montar e a Sancho outro verde, de finíssimo
pano; mas dom Quixote não o quis pôr, dizendo que no outro dia havia
de voltar ao duro exercício das armas e que não podia levar consigo
coisas luxuosas. Sancho sim tomou o que lhe deram, com intenção de
vendê-lo na primeira ocasião que pudesse.
Chegado, pois, o esperado dia, armou-se dom Quixote, vestiu-se
Sancho, e, em cima de seu ruço, que não quis deixar embora lhe
dessem um cavalo, se meteu entre a tropa dos monteiros. A duquesa
saiu bizarramente enfeitada, e dom Quixote, de puro cortês e
comedido, tomou a rédea de seu palafrém, embora o duque não
quisesse consenti-lo, e, finalmente, chegaram a um bosque que entre
duas altíssimas montanhas estava, onde, tomados os postos, tocaias e
veredas, e repartida a gente por diferentes postos, começou a caça
com grande estrondo, grita e vozearia, de maneira que
uns a outros não podiam ouvir-se, assim pelo ladrido dos cães como
pelo som das buzinas.
Apeou-se a duquesa, e, com um agudo dardo nas mãos, se pôs em um
posto por onde ela sabia que costumavam vir alguns javalis. Apeou-se
também o duque e dom Quixote, e puseram-se a seus lados; Sancho se
pôs detrás de todos, sem apear-se do ruço, a quem não ousara
desamparar, para que não lhe sucedesse algum desmando; e apenas
haviam desmontado e postos em ala com outros muitos criados seus,
quando, acossado dos cães e seguido dos caçadores, viram que até eles
vinha um descomedido javali, rangendo dentes e arrojando espuma
pela boca; e vendo-o, embraçando seu escudo e pegando sua espada, se
adiantou a recebê-lo dom Quixote. O mesmo fez o duque com seu
dardo; mas a todos se adiantaria a duquesa, se o duque não o
impedisse. Só Sancho, vendo o valente animal, desamparou o ruço e
deu a correr quanto pôde, e, procurando subir em uma alta azinheira,
não foi possível; antes, estando já a meio dela, preso por uma rama,
pugnando por subir, foi tão sem ventura e tão desgraçado, que se
desgalhou a rama, e, ao vir ao chão, ficou no ar, preso por um gancho
da azinheira, sem poder chegar ao chão. E vendo-se assim, e que o saio
verde se lhe rasgava, e parecendo-lhe que se aquele fero animal ali
achegava o podia alcançar, começou a dar tantos gritos e a pedir
socorro com tanto afinco, que todos os que o ouviam e não o viam
creram que estava entre os dentes de alguma fera.
Finalmente, o dentuço javali ficou atravessado das lâminas de
muitos dardos que se lhe puseram diante; e voltando a cabeça dom
Quixote aos gritos de Sancho, que já por eles o havia reconhecido,
viu-o pendente da azinheira e a cabeça abaixo, e o ruço junto a ele,
que não o desamparou em sua calamidade; e diz Cide Hamete que
poucas vezes viu Sancho Pança sem ver o ruço, nem o ruço sem ver
Sancho: tal era a amizade e boa fé que entre os dois se guardavam.
Chegou dom Quixote e despendurou Sancho; o qual, vendo-se livre e
no chão, mirou o desgarrado do saio de montar, e pesou-lhe na alma,
pois pensou que tinha na veste um bem de primogenitura. Nisto,
atravessaram o javali poderoso sobre uma besta de carga, e,
cobrindo-o com ramos de alecrim e mirto, levaram-no, como em sinal
de vitóriosos despojos, a umas grandes tendas de campo que no meio
do bosque estavam postas, onde acharam as mesas em ordem e a
comida preparada, tão suntuosa e grande, que se via nela a grandeza e
magnificência de quem a dava. Sancho, mostrando as chagas à duquesa
de sua rota veste, disse:
- Se esta caça fosse de lebres ou de passarinhos, seguro estaria
meu saio de ver-se neste extremo. Eu não sei que gosto se recebe de
esperar a um animal que, se vos alcança com um canino, vos pode tirar
a vida; eu me lembro haver ouvido cantar um poema antigo que diz:

Pelos ursos sejas comido,


como Fávila o renomado.

- Esse foi um rei godo - disse dom Quixote, - que, indo à caça de
montaria, o comeu um urso.
- Isso é o que eu digo - respondeu Sancho: - que não queria eu que
os príncipes e os reis se pusessem em semelhantes perigos, a troco de
um gosto que parece que não o havia de ser, pois consiste em matar
um animal que não cometeu delito algum.
- Antes vos enganais, Sancho - respondeu o duque, - porque o
exercício da caça de monte é o mais conveniente e necessário para os
reis e príncipes que outro algum. A caça é uma imagem da guerra: há
nela estratagemas, astúcias, insídias para vencer a salvo o inimigo;
padecem-se nela frios grandíssimos e calores intoleráveis; menoscaba-
se o ócio e o sonho, corroboram-se as forças, agilizam-se os membros
do que a usa, e, em suma, é exercício que se pode fazer sem prejuízo
de ninguém e com gosto de muitos; e o melhor que ele tem é que não é
para todos, como o é o dos outros gêneros de caça, exceto o da
volataria, que também é só para reis e grandes senhores. Assim que,
oh Sancho!, mudai de opinião, e, quando sejais governador, ocupai-vos
na caça e vereis como vos vale um pão por cem.
- Isso não - respondeu Sancho: - o bom governador, a perna
quebrada, e em casa. Bom seria que viessem os negociantes a buscá-lo
fatigados e ele estivesse no monte divertindo-se! Assim em hora má
andaria o governo! Minha fé, senhor, a caça e os passatempos mais hão
de ser para os folgazões que para os governadores. No que eu penso
entreter-me é em jogar truco de vez em quando, e boliche nos
domingos e festas, que essas caças nem caços não dizem com minha
condição nem fazem com minha consciência.
- Praza a Deus, Sancho, que assim seja, porque do dito ao feito há
grande trecho.
- Haja o que houver - replicou Sancho, - que ao bom pagador não lhe
faltam garantias, e mais vale ao que Deus ajuda que ao que muito
madruga, e tripas levam pés, que não pés a tripas; quero dizer que se
Deus me ajuda, e eu faço o que devo com boa intenção, sem dúvida que
governarei melhor que um falcão. Não, senão ponham-me o dedo na
boca e verão se aperta ou não!
- Maldito sejas de Deus e de todos seus santos, Sancho maldito -
disse dom Quixote, - e quando será o dia, como outras muitas vezes
disse, onde eu te veja falar sem refrãos uma razão corrente e
concertada! Vossas grandezas deixem a este tonto, senhores meus,
que lhes moerá as almas, não só postas entre dois, senão entre dois
mil refrãos, trazidos tão a propósito e tão a tempo quanto lhe dê Deus
a ele a saúde, ou a mim se os quisesse escutar.
- Os refrãos de Sancho Pança - disse a duquesa, - embora são mais
que os do Comendador Grego, não por isso são menos de estimar, pela
brevidade das sentenças. De mim sei dizer que me dão mais gosto que
outros, embora sejam melhor trazidos e com mais propósito
acomodados.
Com estes e outros divertidos arrazoados, saíram da tenda ao
bosque, e em procurar algumas tocaias, e logo, se lhes passou o dia e
se lhes veio a noite, e não tão clara nem tão serena como a época do
ano pedia, que era a meio do verão; mas um certo claro-escuro que
trouxe consigo ajudou muito à intenção dos duques; e, assim que
começou a anoitecer, um pouco mais adiante do crepúsculo, de repente
pareceu que todo o bosque por todas as quatro partes ardia, e logo se
ouviram por aqui e por ali, e por aqui e por acolá, infinitas cornetas e
outros instrumentos de guerra, como de muitas tropas de cavalaria
que pelo bosque passava. A luz do fogo, o som dos bélicos
instrumentos, quase cegaram e atroaram os olhos e os ouvidos dos
circunstantes, e ainda de todos os que no bosque estavam.
Logo se ouviram infinitas algaravias, ao uso de mouros quando
entram nas batalhas, soaram trombetas e clarins, retumbaram
tambores, ressoaram pífaros, quase todos a um tempo, tão contínuo e
tão depressa, que não teria sentido o que não ficasse sem ele ao som
confuso de tantos intrumentos. Pasmou-se o duque, suspendeu-se a
duquesa, admirou-se dom Quixote, tremeu Sancho Pança, e,
finalmente, ainda até os mesmos sabedores da causa se espantaram.
Com o temor lhes colheu o silêncio, e um postilhão que em traje de
demônio lhes passou por diante, tocando em voz de corneta um oco e
descomedido chifre, que um rouco e espantoso som despedia.
- Olá, irmão correio! - disse o duque, - quem sois, aonde vais, e que
gente de guerra é a que por este bosque parece que atravessa?
Ao que respondeu o correio com voz horríssona e desenfadada:
- Eu sou o Diabo; vou a buscar dom Quixote da Mancha; a gente que
por aqui vem são seis tropas de encantadores, que sobre um carro
triunfante trazem a sem par Dulcineia do Toboso. Encantada vem com
o galhardo francês Montesinos, a dar ordem a dom Quixote de como
há de ser desencantada a tal senhora.
- Se vós fôsseis diabo, como dizeis e como vossa figura mostra, já
haveríeis reconhecido o tal cavaleiro dom Quixote da Mancha, pois o
tendes diante.
- Em Deus e em minha consciência - respondeu o Diabo - não via
isso, porque trago em tantas coisas desviados os pensamentos, que do
principal a que vinha me olvidava.
- Sem dúvida - disse Sancho - que este demônio deve ser homem de
bem e bom cristão, porque, a não sê-lo, não jurara “em Deus e em
minha consciência”. Agora eu tenho para mim que ainda no mesmo
inferno deve haver boa gente.
Logo o Demônio, sem apear-se, encaminhando a vista a dom Quixote,
disse:
- A ti o Cavaleiro dos Leões, que entre as garras deles te veja eu,
me envia o desgraçado mas valente cavaleiro Montesinos, mandando-
me que de sua parte te diga que o esperes no mesmo lugar que te
topar, porque traz consigo a que chamam Dulcineia do Toboso, com
ordem de dar-te a que é preciso para desencantá-la. E por não ser
para mais minha vinda, não há de ser mais minha estada: os demônios
como eu fiquem contigo, e os anjos bons com estes senhores.
E dizendo isto, tocou o desaforado chifre, e voltou as costas e
foi-se, sem esperar resposta de ninguém.
Renovou-se a admiração em todos, especialmente em Sancho e dom
Quixote: em Sancho, ao ver que, a despeito da verdade, queriam que
estivesse encantada Dulcineia; em dom Quixote, por não poder
assegurar-se se era verdade ou não o que lhe havia passado na cova de
Montesinos. E estando elevado nestes pensamentos, o duque lhe disse:
- Pensa vossa mercê esperar, senhor dom Quixote?
- Ora, não? - respondeu ele. - Aqui esperarei intrépido e forte, se
me viesse a atacar todo o inferno.
- Pois se eu vejo outro diabo e ouço outro chifre como o passado,
assim esperarei eu aqui como em Flandres - disse Sancho.
Nisto se fechou mais a noite e começaram a correr muitas luzes
pelo bosque, como correm pelo céu as exalações secas da terra, que
parecem à nossa vista estrelas que correm. Ouviu-se também um
espantoso ruído, ao modo daquele que é causado pelas rodas maciças
que costumam trazer os carros de bois, de cujo chiado áspero e
continuado se diz que fogem os lobos e os ursos, se os há por onde
passam. Acrescentou-se a toda esta tempestade outra que as
aumentou todas, que foi que parecia verdadeiramente que às quatro
partes do bosque se estavam dando a um mesmo tempo quatro
combates ou batalhas, porque ali soava o duro estrondo de espantosa
artilharia, acolá se disparavam infinitas escopetas, perto quase
soavam as vozes dos combatentes, longe se reiteravam as algaravias
agarenas.
Finalmente, as cornetas, os chifres, as buzinas, os clarins, as
trombetas, os tambores, a artilharia, os arcabuzes, e, sobretudo, o
temeroso ruído dos carros, formavam todos juntos um som tão
confuso e tão horrendo, que foi preciso que dom Quixote se valesse
de todo seu coração para suportá-lo; mas o de Sancho veio à terra, e
deu com ele desmaiado nas fraldas da duquesa, a qual o recebeu nelas,
e a grande pressa mandou que lhe jogassem água no rosto. Fez-se
assim, e ele voltou a si, a tempo que já um carro das rechinantes rodas
chegava àquele posto.
Puxavam-no quatro preguiçosos bois, todos cobertos de paramentos
negros; em cada chifre traziam atada e acesa uma grande tocha de
cera, e em cima do carro vinha posto um assento alto, sobre o qual
vinha sentado um venerável velho, com uma barba mais branca que a
mesma neve, e tão longa que lhe passava da cintura; sua veste era uma
roupa larga de negro bocaxim, que, por vir o carro cheio de infinitas
luzes, se podia bem divisar e discernir tudo o que nele vinha. Guiavam-
no dois feios demônios vestidos do mesmo bocaxim, com tão feios
rostos, que Sancho, havendo-os visto uma vez, fechou os olhos por não
vê-los outra. Chegando, pois, o carro junto ao posto, se levantou de
seu alto assento o velho venerável, e, posto em pé, dando uma grande
voz, disse:
- Eu sou o sábio Lirgandeu.
E passou o carro adiante, sem falar mais palavra. Atrás deste
passou outro carro da mesma maneira, com outro velho entronizado; o
qual, fazendo com que o carro se detivesse, com voz não menos grave
que o outro, disse:
- Eu sou o sábio Alquife, o grande amigo de Urganda a
Desconhecida.
E passou adiante.
Logo, da mesma maneira, chegou outro carro; mas o que vinha
sentado no trono não era velho como os demais, senão homenzarrão
robusto e de má catadura, o qual, ao chegar, levantando-se, como os
outros, disse com voz mais rouca e mais endiabrada:
- Eu sou Arcalaus o encantador, inimigo mortal de Amadis de Gaula
e de toda sua parentela.
E passou adiante. Pouco desviados dali fizeram alto estes três
carros, e cessou o enfadonho ruído de suas rodas, e logo se ouviu
outro, não ruído, senão um som de uma suave e concertada música, com
que Sancho se alegrou, e o teve por bom sinal; e assim, disse à
duquesa, de quem um ponto nem um passo se apartava:
- Senhora, onde há música não pode haver coisa má.
- Tampouco onde há luzes e claridade - respondeu a duquesa.
Ao que replicou Sancho:
- Luz dá o fogo e claridade as fogueiras, como o vemos nas que nos
cercam, e bem poderia ser que nos abrasassem, mas a música sempre
é indício de regozijos e de festas.
- Isso se verá - disse dom Quixote, que tudo escutava.
E disse bem, como se mostra no capítulo seguinte.

CAPÍTULO XXXV

Onde prossegue a notícia que teve dom Quixote do desencanto de


Dulcineia, com outros admiráveis sucessos

Ao compasso da agradável música viram que até eles vinha um carro


dos que chamam triunfais puxado por seis mulas pardas, cobertas
mas de paramento branco, e sobre cada uma vinha um disciplinante de
luz, também vestido de branco, com uma tocha de cera grande acesa
na mão. Era o carro duas vezes, e ainda três, maior que os passados, e
os lados, e em cima dele, ocupavam doze outros disciplinantes alvos
como a neve, todos com suas tochas acesas, vista que admirava e
espantava juntamente; e num levantado trono vinha sentada uma ninfa,
vestida de mil véus de tela de prata, brilhando por todos eles infinitas
folhas de lantejoula de ouro, que a faziam, se não rica, ao menos
vistosamente vestida. Trazia o rosto coberto com uma transparente e
delicada tela de seda, de modo que, sem impedi-lo seus fios, por entre
eles se descobria um formosíssimo rosto de donzela, e as muitas luzes
davam lugar para distinguir a beleza e os anos, que, ao parecer, não
chegavam a vinte nem baixavam de dezessete.
Junto a ela vinha uma figura vestida de uma roupa das que chamam
roçagantes, até os pés, coberta a cabeça com um véu negro; mas, ao
ponto que chegou o carro a estar frente a frente dos duques e de dom
Quixote, cessou a música das charamelas, e logo a das harpas e
alaúdes que no carro soavam; e, levantando-se a figura da roupa, a
afastou a ambos os lados, e, tirando o véu do rosto, descobriu
patentemente ser a mesma figura da morte, descarnada e feia, de que
dom Quixote recebeu pesar e Sancho medo, e os duques tiveram
algum sentimento temeroso. Alçada e posta em pé esta morte viva,
com voz algo adormecida e com língua não muito desperta, começou a
dizer desta maneira:

- Eu sou Merlim, aquele que as histórias


dizem que tive por meu pai ao diabo
- mentira autorizada dos tempos -,
príncipe da mágica e monarca
e arquivo da ciência zoroástrica,
êmulo às idades e aos séculos
que solapar pretendem as façanhas
dos andantes bravos cavaleiros
a quem eu tive e tenho grande carinho.
E embora é dos encantadores,
dos magos ou mágicos contínuo
dura a condição, áspera e forte,
a minha é terna, branda e amorosa,
e amiga de fazer bem a todas as gentes.
Nas cavernas lôbregas de Dite,
onde estava minha alma entretida
em formar certos rombos e caráteres,
chegou a voz dolente da bela
e sem par Dulcineia do Toboso.
Soube seu encantamento e sua desgraça,
e sua trasformação de gentil dama
em rústica aldeã; condoí-me,
e, encerrando meu espírito no oco
deste espantoso e fero esqueleto,
depois de haver revirado cem mil livros
desta minha ciência endemoniada e torpe,
venho dar o remédio que convém
a tamanha dor, a mal tamanho.
Oh tu, glória e honra de quantos vestem
as túnicas de aço e de diamante,
luz e farol, caminho, norte e guia
daqueles que, deixando o torpe sonho
e as ociosas penas, se acomodam
em usar o exercício intolerável
das sangrentas e pesadas armas!
A ti digo oh varão, como se deve
por jamais louvado!, a ti, valente
juntamente e discreto dom Quixote,
da Mancha esplendor, da Espanha estrela,
que para recobrar seu estado primo
a sem par Dulcineia do Toboso,
é preciso que Sancho, teu escudeiro,
se dê três mil açoites e trezentos
em ambas suas valentes nádegas,
ao ar descobertas, e de modo
que lhe ardam, o amarguem e o enfadem.
E nisto se resolvem todos quantos
de sua desgraça foram os autores,
e a isto é minha vinda, meus senhores.

- Voto a tal! - disse então Sancho. - Não digo eu três mil açoites,
mas assim me darei eu três como três punhaladas. Valha-te o diabo
por modo de desencantar! Eu não sei que têm que ver meus assentos
com os encantos! Par Deus que se o senhor Merlim não achou outra
maneira de desencantar a senhora Dulcineia do Toboso, encantada se
poderá ir à sepultura!
- Apanhar-vos-ei eu - disse dom Quixote, - dom vilão, farto de
alhos, e amarrar-vos-ei a uma árvore, desnudo como vossa mãe vos
pariu; e não digo eu três mil e trezentos, senão seis mil e seiscentos
açoites vos darei, tão bem pregados que não se arranquem com três
mil e trezentos puxões. E não me repliqueis palavra, que vos arrancarei
a alma.
Ouvindo o que Merlim, disse:
- Não há de ser assim, porque os açoites que há de receber o bom
Sancho hão de ser por sua vontade, e não por força, e no tempo que
ele quiser; que não se lhe põe prazo marcado; mas permite-se-lhe que
se ele quiser redimir sua vexação por meio desta sova, pode deixar
que se os dê alheia mão, embora seja algo pesada.
- Nem alheia, nem própria, nem pesada, nem por pesar - replicou
Sancho: - a mim não me há de tocar alguma mão. Pari eu, porventura, à
senhora Dulcineia do Toboso, para que paguem minhas nádegas o que
pecaram seus olhos? O senhor meu amo sim, que é parte sua, pois a
chama a cada passo “minha vida”, “minha alma”, sustento e arrimo seu,
se pode e deve açoitar por ela e fazer todas as diligências necessárias
para seu desencanto; mas, açoitar-me eu...? De maneira nenhuma.
Apenas acabou de dizer isto Sancho, quando, levantando-se a
lantejoulada ninfa que junto ao espírito de Merlim vinha, tirando o
sutil véu do rosto, o descobriu tal, que a todos pareceu mais que
demasiadamente formoso, e, com um desenfado varonil e com uma voz
não muito adamada, falando diretamente com Sancho Pança, disse:
- Oh desventurado escudeiro, alma de cântaro, coração de sobreiro,
de entranhas duras como pedra! Se te mandassem, ladrão descarado,
que te arrojasses de uma alta torre ao chão; se te pedissem, inimigo
do gênero humano, que comesses uma dúzia de sapos, duas de lagartos
e três de cobras; se te persuadissem a que matasses tua mulher e
teus filhos com algum truculento e agudo alfanje, não seria maravilha
que te mostrasses melindroso e esquivo; mas fazer caso de três mil e
trezentos açoites, que não há menino de orfanato, por ruim que seja,
que não os leve cada mês, admira, assombra, espanta a todas as
entranhas piedosas dos que o escutam, e ainda as de todos aqueles que
o vierem a saber com o decurso do tempo. Põe, oh miserável e
endurecido animal!, põe, digo, esses teus olhos de machinho
espantadiço nas meninas destes meus, comparados a rutilantes
estrelas, e vê-los-ás chorar fio a fio e madeixa a madeixa, fazendo
sulcos, carreiras e sendas pelos formosos campos de minhas faces.
Move-te, socarrão e mal-intencionado monstro, que a idade tão florida
minha, que ainda está no dez e... tais anos, pois tenho dezenove e não
chego a vinte, se consome e murcha debaixo da cortiça de uma rústica
lavradora; e se agora não o pareço, é mercê particular que me fez o
senhor Merlim, que está presente, só porque te enterneça minha
beleza; que as lágrimas de uma aflita formosura voltam em algodão os
penhascos, e os tigres em ovelhas. Dá-te, dá-te nessas carnaças,
bestão indômito, e desperta esse brio, que a só comer e mais comer te
inclina, e põe em liberdade a lisura de minhas carnes, a mansidão de
minha condição e a beleza de minha face; e se por mim não queres
abrandar-te nem reduzir-te a algum razoável termo, faze-o por esse
pobre cavaleiro que a teu lado tens; por teu amo, digo, de quem estou
vendo a alma, que a tem atravessada na garganta, não a dez dedos dos
lábios, que não espera senão tua rígida ou branda resposta, ou para
sair pela boca, ou para voltar ao estômago.
Apalpou-se a garganta dom Quixote ouvindo isto, e disse, voltando-
se ao duque:
- Por Deus, senhor, que Dulcineia disse a verdade, que aqui tenho a
alma atravessada na garganta, como um pivô de besta.
- Que dizeis vós a isto, Sancho? - perguntou a duquesa.
- Digo, senhora - respondeu Sancho, - o que disse: que dos açoites,
abernúncio.
- Abrenúncio haveis de dizer, Sancho, e não como dizeis - disse o
duque.
- Deixe-me vossa grandeza - respondeu Sancho, - que não estou
agora para olhar em sutilezas nem em letras mais ou menos; porque me
têm tão turbado estes açoites que me hão de dar, ou me tenho de dar,
que não sei o que digo, nem o que faço. Mas queria eu saber da senhora
minha senhora dona Dulcineia do Toboso aonde aprendeu o modo de
rogar que tem: vem pedir-me que me abra as carnes a açoites, e
chama-me “alma de cântaro” e “bestão indômito”, com uma litania de
maus nomes, que o diabo os suporte. Porventura são minhas carnes de
bronze, ou depende de mim algo em que se desencante ou não? Que
canastra de roupa branca, de camisas, de toucadores e de escarpins,
ainda que não os gaste, traz diante de si para abrandar-me, senão um
vitupério e outro, sabendo aquele refrão que dizem por aí, que um asno
carregado de ouro sobe ligeiro por uma montanha, e que dádivas
quebrantam penhas, e a Deus rogando e com o malho dando, e que mais
vale um toma que dois te darei? Pois o senhor meu amo, que havia de
mimar-me e adular-me para que eu me fizesse de lã e de algodão
cardado, diz que se me apanha me amarrará desnudo a uma árvore e
me dobrará a parada dos açoites; e haviam de considerar estes
lastimados senhores que não somente pedem que se açoite um
escudeiro, senão um governador; como quem diz: “bebe com ginjas”.
Aprendam, aprendam muito em hora má a saber rogar, e a saber pedir,
e a ter criação, que não são todos os tempos unos, nem estão os
homens sempre de um bom humor. Estou eu agora rebentando de pena
por ver meu saio verde roto, e vêm a pedir-me que me açoite por
minha vontade, estando ela tão alheia disso como de eu virar cacique.
- Pois em verdade, amigo Sancho - disse o duque, - que se não vos
abrandais mais que um figo maduro, que não haveis de empunhar o
governo. Bom seria que eu enviasse a meus insulanos um governador
cruel, de entranhas de pedra, que não se dobra às lágrimas das aflitas
donzelas, nem aos rogos de discretos, imperiosos e antigos
encantadores e sábios! Em suma, Sancho, ou haveis de ser açoitado, ou
vos hão de açoitar, ou não haveis de ser governador.
- Senhor - respondeu Sancho, - não se me dariam dois dias de prazo
para pensar o que me está melhor?
- Não, de maneira alguma - disse Merlim -; aqui, neste instante e
neste lugar, há de ficar assentado o que há de ser deste negócio, ou
Dulcineia voltará à cova de Montesinos e a seu prístino estado de
lavradora, ou já, no ser que está, será levada aos elísios campos, onde
estará esperando se cumpra o número de açoites.
- Eia, bom Sancho - disse a duquesa, - bom ânimo e boa
correspondência ao pão que comestes do senhor dom Quixote, a quem
todos devemos servir e agradar, por sua boa condição e por suas altas
cavalarias. Dai o sim, filho, a esta coça, e vá-se o diabo para o diabo e
o temor para o mesquinho, que um bom coração quebranta má ventura,
como vós bem sabeis.
A estas palavras respondeu com estas disparatadas Sancho, que,
falando com Merlim, lhe perguntou:
- Diga-me vossa mercê, senhor Merlim: quando chegou aqui o diabo
correio, deu a meu amo um recado do senhor Montesinos, mandando de
sua parte que o esperasse aqui, porque vinha a dar ordem de que a
senhora dona Dulcineia do Toboso se desencantasse, e até agora não
vimos Montesinos nem coisa que o valha.
A que respondeu Merlim:
- O Diabo, amigo Sancho, é um ignorante e um grandíssimo velhaco:
eu o enviei em busca de vosso amo, mas não com recado de
Montesinos, senão meu, porque Montesinos está em sua cova
entendendo, ou, por melhor dizer, esperando seu desencanto, que
ainda lhe falta coisa por cumprir. Se vos deve algo, ou tendes alguma
coisa que negociar com ele, eu vo-lo trarei e porei onde vós mais
quiserdes. E por agora, acabai de dar o sim a esta disciplina, e crede-
me que vos será de muito proveito, assim para a alma como para o
corpo: para a alma, pela caridade com que a fareis; para o corpo,
porque eu sei que sois de compleição sanguínea, e não vos poderá fazer
dano tirar-vos um pouco de sangue.
- Muitos médicos há no mundo: até os encantadores são médicos
- replicou Sancho. - Mas, pois todos mo dizem, embora eu não o veja,
digo que só me contento em dar-me os três mil e trezentos açoites,
com a condição que os tenho de dar cada e quando que eu quiser, sem
que se me ponha taxa nos dias nem no tempo; e eu procurarei sair da
dívida o mais breve que seja possível, porque goze o mundo da
formosura da senhora dona Dulcineia do Toboso, pois, segundo parece,
ao revés do que eu pensava, com efeito é formosa. Há de ser também
condição que não hei de estar obrigado a tirar-me sangue com a
disciplina, e que se alguns açoites forem frouxos, se me hão de tomar
em conta. Item, que se errar no número, o senhor Merlim, pois sabe
tudo, há de ter cuidado de contá-los e de avisar-me os que me faltam
ou os que me sobram.
- Das sobras não haverá que avisar - respondeu Merlim, - porque,
chegando ao cabal número, logo ficará imediatamente desencantada a
senhora Dulcineia, e virá buscar, agradecida, o bom Sancho, e dar-lhe
graças, e ainda prêmios, pela boa obra. Assim que não há de que ter
escrúpulo das sobras nem das faltas, nem o céu permita que eu engane
a ninguém, embora seja num pelo da cabeça.
- Eia, pois, à mão de Deus! - disse Sancho. - Eu consinto em minha
má ventura; digo que eu aceito a penitência com as condições
apontadas.
Apenas disse estas últimas palavras Sancho, quando voltou a soar a
música das charamelas e se voltaram a disparar infinitos arcabuzes, e
dom Quixote se pendurou no pescoço de Sancho, dando-lhe mil beijos
na fronte e nas faces. A duquesa e o duque e todos os circunstantes
deram mostras de haver recebido grandíssima alegria, e o carro
começou a caminhar; e, ao passar, a formosa Dulcineia inclinou a
cabeça aos duques e fez uma grande reverência a Sancho.
E já, nisto, vinha rapidamente o alvorecer, alegre e risonho: as
florezinhas dos campos se destacavam e erguiam, e os líquidos
cristais dos arroiozinhos, murmurando por entre brancos e pardos
seixos, iam dar tributo aos rios que os esperavam. A terra alegre, o
céu claro, o ar limpo, a luz serena, cada um por si e todos juntos,
davam manifestos sinais de que o dia, que à aurora vinha pisando as
fraldas, havia de ser sereno e claro. E satisfeitos os duques da caça e
de haver conseguido sua intenção tão discreta e felizmente, voltaram
a seu castelo, com pressuposto de continuar em suas burlas, que para
eles não havia veras que mais gosto lhes dessem.

CAPÍTULO XXXVI

Onde se conta a estranha e jamais imaginada aventura da ama


dolorida, aliás da condessa Trifaldi, com uma carta que Sancho Pança
escreveu à sua mulher Teresa Pança

Tinha um mordomo o duque de muito burlesco e desenfadado


engenho, o qual fez a figura de Merlim e acomodou todo o aparato da
aventura passada, compôs os versos e fez que um pajem fizesse a
Dulcineia. Finalmente, com intervenção de seus senhores, ordenou
outra do mais gracioso e estranho artifício que pode imaginar-se.
Perguntou a duquesa a Sancho no outro dia se havia começado a
tarefa da penitência que havia de fazer pelo desencanto de Dulcineia.
Disse que sim, e que aquela noite se havia dado cinco açoites.
Perguntou-lhe a duquesa com que se os havia dado. Respondeu que com
a mão.
- Isso - replicou a duquesa - mais é dar-se palmadas que açoites. Eu
tenho para mim que o sábio Merlim não estará contente com tanta
brandura; preciso será que o bom Sancho faça alguma disciplina de
espinhos, ou das trançadas, que se deixem sentir; porque a letra com
sangue entra, e não se há de dar tão barata a liberdade de uma tão
grande senhora como o é Dulcineia por tão pouco preço; e advirta
Sancho que as obras de caridade que se fazem tibia e frouxamente
não têm mérito, nem valem nada.
Ao que respondeu Sancho:
- Dê-me vossa senhoria alguma disciplina ou corda conveniente, que
eu me darei com ela de modo que não me doa demasiado, porque faço
saber a vossa mercê que, embora seja rústico, minhas carnes têm mais
de algodão que de capacho, e não será bem que eu me maltrate pelo
proveito alheio.
- Seja em boa hora - respondeu a duquesa: - eu vos darei amanhã
uma disciplina que vos venha muito ao justo e se acomode com a
tenrura de vossas carnes, como se fossem suas irmãs próprias.
Ao que disse Sancho:
- Saiba vossa alteza, senhora minha de minha alma, que eu tenho
escrita uma carta à minha mulher Teresa Pança, dando-lhe conta de
tudo o que me sucedeu depois que me afastei dela; aqui a tenho no
seio, que não lhe falta mais que pôr-lhe o sobrescrito; queria que vossa
discrição a lesse, porque me parece que vai conforme ao de
governador, digo, ao modo que devem escrever os governadores.
- E quem a ditou? - perguntou a duquesa.
- Quem a havia de ditar senão eu, pecador de mim? - respondeu
Sancho.
- E vós a escrevestes? - disse a duquesa.
- Nem em pensamento - respondeu Sancho, - porque eu não sei ler
nem escrever, embora saiba assinar.
- Vejamo-la - disse a duquesa, - que seguramente vós mostrais nela
a qualidade e suficiência de vosso engenho.
Tirou Sancho uma carta aberta do seio, e, tomando-a a duquesa, viu
que dizia desta maneira:

CARTA DE SANCHO PANÇA A TERESA PANÇA, SUA MULHER

Se bons açoites me davam, bem a cavaleiro iria; se bom governo tenho, bons
açoites me custa. Isto não o entenderás tu, Teresa minha, por agora; em outra
ocasião o saberás. Hás de saber, Teresa, que tenho determinado que andes em
coche, que é o que vem ao caso, porque todo outro andar é andar de gatas. Mulher
de um governador és, veja se alguém falará mal de ti! Aí te envio um traje verde de
caçador, que me deu minha senhora a duquesa; acomoda-o de modo que sirva de
saia à nossa filha. Dom Quixote, meu amo, segundo ouvi dizer nesta terra, é um
louco lúcido e um mentecapto gracioso, e que eu não lhe fico atrás. Estivemos na
cova de Montesinos, e o sábio Merlim lançou mão de mim para o desencanto de
Dulcineia do Toboso, que aí se chama Aldonça Lourenço: com três mil e trezentos
açoites, menos cinco, que me hei de dar, ficará desencantada como a mãe que a
pariu. Não dirás disto nada a ninguém, porque dize-o, e uns dirão que é branco e
outros que é negro. Daqui a poucos dias partirei ao governo, onde vou com
grandíssimo desejo de fazer dinheiros, porque me disseram que todos os
governadores novos vão com este mesmo desejo; tomar-lhe- ei o pulso, e avisar-te-
ei se hás de vir a estar comigo ou não. O ruço está bom, e se te encomenda muito; e
não o penso deixar, embora me levassem a ser Grande Turco. A duquesa minha
senhora te beija mil vezes as mãos; dá-lhe o retorno com dois mil, que não há coisa
que menos custe nem seja mais barata, segundo diz meu amo, que os bons
comedimentos. Não foi Deus servido de deparar-me outra maleta com outros cem
escudos, como a de antes, mas não te dê pena, Teresa minha, que a salvo está o que
reclama, e tudo sairá na barrela do governo; senão que me deu grande pena que me
dizem que se uma vez o provo, tenho de morrer por ele; e se assim fosse, não me
custaria muito barato, embora os estropiados e mancos já têm seu ganho na esmola
que pedem; assim que, por uma via ou por outra, tu hás de ser rica, de boa ventura.
Deus ta dê, como pode, e a mim me guarde para servir-te.
Deste castelo, a vinte de julho 1614.

Teu marido o governador


Sancho Pança.

Acabando a duquesa de ler a carta, disse a Sancho:


- Em duas coisas anda um pouco desencaminhado o bom governador:
uma, em dizer ou dar a entender que este governo lhe deram pelos
açoites que se há de dar, sabendo ele, que não o pode negar, que
quando o duque, meu senhor, o prometeu, não sonhava haver açoites no
mundo; a outra é que se mostra nela muito cobiçoso, e não queria que o
fosse, porque a cobiça rompe o saco, e o governador cobiçoso faz a
justiça desgovernada.
- Eu não o digo por tanto, senhora - respondeu Sancho; - e se a
vossa mercê lhe parece que a tal carta não vai como há de ir, não há
senão rasgá-la e fazer outra nova, e poderia ser que fosse pior se a
deixam a meu entendimento.
- Não, não - replicou a duquesa, - boa está esta, e quero que o duque
a veja.
Com isto se foram a um jardim, onde haviam de almoçar aquele dia.
Mostrou a duquesa a carta de Sancho ao duque, de que recebeu
grandíssimo prazer. Almoçaram, e depois de tirada a mesa, e depois
de haver-se divertido um bom espaço com a saborosa conversação de
Sancho, de repente se ouviu o som tristíssimo de um pífaro e o de um
rouco e destemperado tambor. Todos mostraram alvoroçar-se com a
confusa, marcial e triste harmonia, especialmente dom Quixote, que
não cabia em seu assento de puro alvoroçado; de Sancho não há que
dizer senão que o medo o levou a seu costumeiro refúgio, que era o
lado ou fraldas da duquesa, porque real e verdadeiramente o som que
se escutava era tristíssimo e melancólico.
E estando todos assim suspensos, viram entrar pelo jardim adiante
dois homens vestidos de luto, tão longo e estendido que lhes arrastava
pelo chão; estes vinham tocando dois grandes tambores, também
cobertos de negro. A seu lado vinha o pífaro, negro como os demais.
Seguia os três um personagem de corpo agigantado, coberto com um
grande manto, não meramente vestido, com uma negríssima sotaina,
cuja fralda era também desaforada de grande. Por cima da sotaina o
cingia e atravessava um largo cinturão, também negro, de que pendia
um descomedido alfanje de guarnições e bainha negra. Vinha coberto o
rosto com um trasparente véu negro, pelo qual se entremostrava uma
longuíssima barba, branca como a neve. Movia o passo ao som dos
tambores com muita gravidade e repouso. Enfim, sua grandeza, seu
gingado, sua negrura e seu acompanhamento poderia e pôde suspender
a todos aqueles que sem conhecê-lo o viram.
Chegou, pois, com o espaço e prosopopeia referida a ajoelhar-se
ante o duque, que em pé, com os demais que ali estavam, o esperava;
mas o duque de maneira alguma lhe consentiu falar até que se
levantasse. Fê-lo assim o espantalho prodigioso, e, posto em pé, alçou
o véu do rosto e fez patente a mais horrenda, a mais larga, a mais
branca e mais farta barba que até então humanos olhos haviam visto,
e logo desencaixou e arrancou do largo e dilatado peito uma voz grave
e sonora, e, pondo os olhos no duque, disse:
- Altíssimo e poderoso senhor, a mim me chamam “Trifaldín o da
Barba Branca”; sou escudeiro da condessa Trifaldi, por outro nome
chamada “a ama Dolorida”, de parte da qual trago a vossa grandeza
uma embaixada, e é que a vossa magnificência seja servida de dar-lhe
permissão e licença para entrar a dizer-lhe sua coita, que é uma das
mais novas e mais admiráveis que o mais coitado pensamento do orbe
possa haver pensado. E antes quer saber se está neste vosso castelo o
valoroso e jamais vencido cavaleiro dom Quixote da Mancha, em cuja
busca vem a pé e sem desjejuar desde o reino de Candaya até este
vosso estado, coisa que se pode e deve ter por milagre ou força de
encantamento. Ela fica à porta desta fortaleza ou casa de campo, e
não aguarda para entrar senão vosso beneplácito. Disse.
E tossiu logo e manuseou a barba de cima abaixo com ambas as
mãos, e com muito sossego esteve esperando a resposta do duque, que
foi:
- Já, bom escudeiro Trifaldín da Branca Barba, há muitos dias que
temos notícia da desgraça de minha senhora a condessa Trifaldi, a
quem os encantadores a fazem chamar a ama Dolorida; bem podeis,
estupendo escudeiro, dizer-lhe que entre e que aqui está o valente
cavaleiro dom Quixote da Mancha, de cuja condição generosa pode
prometer-se com segurança todo amparo e toda ajuda; e também lhe
podereis dizer de minha parte que se meu favor lhe for necessário,
não lhe há de faltar, pois já me tem obrigado a dar-lhe o ser cavaleiro,
a quem é próprio e concernente favorecer a toda sorte de mulheres,
em especial às donas viúvas, menoscabadas e doloridas, qual o deve ser
sua senhoria.
Ouvindo o que Trifaldín, inclinou o joelho até o chão, e, fazendo ao
pífaro e tambores sinal que tocassem, ao mesmo som e ao mesmo
passo que havia entrado, voltou a sair do jardim, deixando a todos
admirados de sua presença e compostura. E voltando-se o duque a dom
Quixote, disse-lhe:
- Enfim, famoso cavaleiro, não podem as trevas da malícia nem da
ignorância encobrir e escurecer a luz do valor e da virtude. Digo isto
porque apenas há seis dias que a vossa bondade está neste castelo,
quando já vos vêm a buscar de longes e afastadas terras, e não em
carroças nem em dromedários, senão a pé e em jejum, os tristes, os
aflitos, confiados que hão de achar nesse fortíssimo braço o remédio
de suas coitas e trabalhos, mercê a vossas grandes façanhas, que
correm e rodeiam todo o descoberto da terra.
- Quisera eu, senhor duque - respondeu dom Quixote, - que
estivesse aqui presente aquele bendito religioso que à mesa no outro
dia mostrou ter tão mau talante e tão má ojeriza contra os cavaleiros
andantes, para que visse por vista de olhos se os tais cavaleiros são
necessários no mundo: tocaria, pelo menos, com a mão que os
extraordinariamente aflitos e desconsolados, em casos grandes e em
desditas enormes não vão a buscar seu remédio às casas dos letrados,
nem à dos sacristãos das aldeias, nem ao cavaleiro que nunca há
acertado a sair dos termos de seu lugar, nem ao preguiçoso cortesão
que antes busca novas para referi-las e contá-las que procura fazer
obras e façanhas para que outros as contem e as escrevam: o remédio
das coitas, o socorro das necessidades, o amparo das donzelas, o
consolo das viúvas, em nenhuma sorte de pessoas se acha melhor que
nos cavaleiros andantes, e de sê-lo eu dou infinitas graças ao céu, e
dou por muito bem empregado qualquer desmando e trabalho que
neste tão honroso exercício possa suceder-me. Venha esta dona e
peça o que quiser, que eu lhe darei seu remédio na força de meu braço
e na intrépida resolução de meu animoso espírito.

CAPÍTULO XXXVII

Onde prossegue a famosa aventura da ama dolorida

Em extremo se alegraram o duque e a duquesa de ver quão bem ia


respondendo à sua intenção dom Quixote, e então disse Sancho:
- Não queria eu que esta senhora ama pusesse algum tropeço à
promessa de meu governo, porque eu ouvi dizer a um boticário
toledano que falava como um pintassilgo que onde interviessem amas
não podia suceder coisa boa. Valha-me Deus, e que mal estava com elas
o tal boticário! Do que eu saco que, pois todas as amas são enfadonhas
e impertinentes, de qualquer qualidade e condição que sejam, que
serão as que são doloridas, como disseram que é esta condessa Três
Fraldas, ou Três Rabos? Que em minha terra fraldas e rabos, rabos e
fraldas, tudo é um.
- Cala, Sancho amigo - disse dom Quixote, - que, pois esta senhora
ama de tão longes terras vem a buscar-me, não deve ser daquelas que
o boticário tinha em seu número, quanto mais que esta é condessa, e
quando as condessas servem de amas, será servindo a rainhas e a
imperatrizes, que em suas casas são senhoríssimas que se servem de
outras amas.
A isto respondeu dona Rodríguez, que se achou presente:
- Amas tem minha senhora a duquesa a seu serviço, que poderiam
ser condessas se a fortuna quisesse, mas lá vão leis onde querem reis;
e ninguém diga mal das amas, e mais das antigas e donzelas; que,
embora eu não o seja, bem me alcança e me trasluz a vantagem que
faz uma ama donzela a uma ama viúva; e quem a nós tosquiou, as
tesouras lhe ficaram na mão.
- Mesmo assim - replicou Sancho, - há tanto que tosquiar nas amas,
segundo meu barbeiro, quanto será melhor não mexer o arroz, embora
grude.
- Sempre os escudeiros - respondeu dona Rodríguez - são inimigos
nossos; que, como são duendes das antessalas e nos veem a cada
passo, os momentos que não rezam, que são muitos, os gastam em
murmurar de nós, desenterrando-nos os ossos e enterrando-nos a
fama. Pois mando-os eu às galeras, que, mal que lhes pese, havemos de
viver no mundo, e nas casas principais, embora morramos de fome e
cubramos com um negro mongil nossas delicadas ou não delicadas
carnes, como quem cobre ou tapa uma esterqueira com um tapete em
dia de procissão. À fé que se me fosse dado, e o tempo o pedisse, eu
daria a entender, não só aos presentes, senão a todo o mundo, como
não há virtude que não se encerre em uma ama.
- Eu creio - disse a duquesa - que minha boa dona Rodríguez tem
razão, e muito grande; mas convém que aguarde tempo para defender
a si e as demais amas, para contraditar a má opinião daquele mau
boticário, e desarraigar a que tem em seu peito o grande Sancho
Pança.
Ao que Sancho respondeu:
- Desde que tenho fumos de governador deixaram-me os desmaios
de escudeiro, e não dou um figo por quantas amas haja.
Adiante passariam com o colóquio amesco se não ouvissem que o
pífaro e os tambores voltavam a soar, por onde entenderam que a ama
Dolorida entrava. Perguntou a duquesa ao duque se seria bom ir
recebê-la, pois era condessa e pessoa principal.
- Pelo que tem de condessa - respondeu Sancho, antes que o duque
respondesse, - bem estou em que vossas grandezas saiam a recebê-la;
mas pelo de ama, sou de parecer que não se movam um passo.
- Quem te mete a ti nisto, Sancho? - disse dom Quixote.
- Quem, senhor? - respondeu Sancho. - Eu me meto, que posso
meter-me, como escudeiro que aprendeu os termos da cortesia na
escola de vossa mercê, que é o mais cortês e bem criado cavaleiro que
há em toda a cortesania; e nestas coisas, segundo ouvi vossa mercê
dizer, tanto se perde por carta de mais como por carta de menos; e ao
bom entendedor, poucas palavras.
- Assim é, como Sancho diz - disse o duque: - veremos o talhe da
condessa, e por ele tentearemos a cortesia que se lhe deve.
Nisto, entraram os tambores e o pífaro, como a vez primeira.
E aqui com este breve capítulo deu fim o autor, e começou o outro,
seguindo a mesma aventura, que é uma das mais notáveis da história.
CAPÍTULO XXXVIII

Onde se conta a que deu de sua má andança a ama dolorida

Atrás dos tristes músicos começaram a entrar pelo jardim adiante


doze amas, repartidas em duas fileiras, todas vestidas de uns mongis
largos, ao parecer, de lãzinha, com umas toucas brancas de delgado
algodão, tão longas que só o debrum do mongil descobriam. Atrás delas
vinha a condessa Trifaldi, a quem trazia pela mão o escudeiro
Trifaldín da Branca Barba, vestida de finíssima e negra baeta por
frisar, que, a vir frisada, descobriria cada grão do tamanho de um
grão-de-bico dos bons de Martos. O rabo, ou fralda, ou como chamá-la
quiserem, era de três pontas, as quais se sustentavam nas mãos de
três pajens, também vestidos de luto, fazendo uma vistosa e
matemática figura com aqueles três ângulos agudos que as três pontas
formavam, pelo qual perceberam todos os que a fralda pontiaguda
viram que por ela se devia chamar a condessa Trifaldi, como se
disséssemos a condessa “das Três Fraldas”, e assim diz Benengeli que
foi verdade, e que de seu próprio apelido se chamou a condessa
Lobuna, porque se criavam em seu condado muitos lobos, e que se
como eram lobos fossem raposas, a chamariam a condessa Raposuna,
por ser costume naquelas partes tomar os senhores a denominação de
seus nomes da coisa ou coisas em que mais seus domínios abundam;
mas esta condessa, por favorecer a novidade de sua fralda, deixou o
Lobuna e tomou o Trifaldi.
Vinham as doze amas e a senhora a passo de procissão, cobertos os
rostos com uns véus negros e não trasparentes como o de Trifaldín,
senão tão apertados que nenhuma coisa trasluziam.
Assim como acabou de aparecer o amesco esquadrão, o duque, a
duquesa e dom Quixote se puseram em pé, e todos aqueles que a
espaçosa procissão olhavam. Pararam as doze amas e fizeram rua, por
meio da qual a Dolorida se adiantou, sem deixá-la da mão Trifaldín;
vendo o que o duque, a duquesa e dom Quixote, se adiantaram obra de
doze passos a recebê-la. Ela, postos os joelhos no chão, com voz antes
basta e rouca que sutil e delicada, disse:
- Vossas grandezas sejam servidas de não fazer tanta cortesia a
este seu criado; digo, a esta sua criada, porque, segundo sou de
dolorida, não acertarei a responder ao que devo, porque minha
estranha e jamais vista desdita me levou o entendimento não sei
aonde, e deve ser muito longe, pois quanto mais o busco menos o acho.
- Sem ele estaria - respondeu o duque, - senhora condessa, o que
não descobrisse por vossa pessoa vosso valor, o qual, sem mais ver, é
merecedor de toda a nata da cortesia e de toda a flor das bem
criadas cerimônias.
E levantando-a pela mão, a levou a assentar em uma cadeira junto à
duquesa, a qual a recebeu também com muito comedimento.
Dom Quixote calava, e Sancho andava morto por ver o rosto da
Trifaldi e de alguma de suas muitas amas, mas não foi possível até que
elas por seu grado e vontade se descobrissem.
Sossegados todos e postos em silêncio, estavam esperando quem o
havia de romper, e foi a ama Dolorida com estas palavras:
- Confiada estou, senhor poderosíssimo, formosíssima senhora e
discretíssimos circunstantes, que há de achar minha coitíssima em
vossos valorosíssimos peitos acolhimento não menos plácido que
generoso e doloroso, porque ela é tal, que é bastante a enternecer os
mármores, e a abrandar os diamantes, e a amolecer os aços dos mais
endurecidos corações do mundo; mas, antes que saia à praça de vossos
ouvidos (por não dizer orelhas), queria que me fizessem sabedora se
está neste grêmio, círculo e companhia o acendradíssimo cavaleiro
dom Quixote da Manchíssima e seu escuderíssimo Pança.
- O Pança - antes que outro respondesse, disse Sancho - aqui está, e
o dom Quixotíssimo também; e assim, podereis, dolorosíssima
amíssima, dizer o que quiserdíssimes; que todos estamos prontos e
aparelhadíssimos a ser vossos servidoríssimos.
Nisto se levantou dom Quixote, e, encaminhando suas razões à
Dolorida ama, disse:
- Se vossas coitas, angustiada senhora, podem prometer alguma
esperança de remédio por algum valor ou forças de algum andante
cavaleiro, aqui estão as minhas, que, embora fracas e breves, todas se
empregarão em vosso serviço. Eu sou dom Quixote da Mancha, cujo
assunto é atender a toda sorte de necessitados, e, sendo isto assim,
como o é, não haveis preciso, senhora, captar benevolências nem
buscar preâmbulos, senão, naturalmente e sem rodeios, dizer vossos
males; que ouvidos vos escutam que saberão, se não remediá-los, doer-
se deles.
Ouvindo o que a Dolorida ama fez sinal de querer arrojar-se aos pés
de dom Quixote, e ainda se arrojou, e pugnando por abraçá-los dizia:
- Ante estes pés e pernas me arrojo, oh cavaleiro invicto!, por ser
os que são bases e colunas da andante cavalaria; estes pés quero
beijar, de cujos passos pende e depende todo o remédio de minha
desgraça, oh valoroso andante, cujas verdadeiras façanhas deixam
atrás e escurecem as fabulosas dos Amadises, Esplandianes e
Belianises!
E deixando dom Quixote, se voltou a Sancho Pança, e, tomando-o
das mãos, disse-lhe:
- Oh tu, o mais leal escudeiro que jamais serviu a cavaleiro andante
nos presentes nem nos passados séculos, mais longo em bondade que a
barba de Trifaldín, meu acompanhador, que está presente! Bem podes
apreciar que em servir ao grande dom Quixote serves em cifra a toda
a caterva de cavaleiros que usaram armas no mundo. Conjuro-te, pelo
que deves à tua bondade fidelíssima, me sejas bom intercessor com
teu dono, para que logo favoreça a esta humilíssima e desditadíssima
condessa.
Ao que respondeu Sancho:
- De que seja minha bondade, senhoria minha, tão larga e grande
como a barba de vosso escudeiro, a mim me faz muito pouco ao caso;
barbada e com bigodes tenha eu minha alma quando desta vida vá, que
é o que importa, que das barbas daqui pouco ou nada cuido; mas, sem
essas manhas nem preces eu rogarei a meu amo, que sei que me quer
bem, e mais agora que me precisa para certo negócio, que favoreça e
ajude a vossa mercê em tudo o que puder. Vossa mercê desembuche
sua coita e no-la conte, e deixe fazer, que todos nos entenderemos.
Rebentavam de riso com estas coisas os duques, como aqueles que
haviam tomado o pulso à tal aventura, e louvavam consigo a agudeza e
dissimulação da Trifaldi, a qual, voltando-se a sentar, disse:
- Do famoso reino de Candaya, que está entre a grande Trapobana e
o mar do Sul, duas léguas mais além do cabo Comorín, foi senhora a
rainha dona Magúncia, viúva do rei Archipiela, seu senhor e marido, de
cujo matrimônio tiveram e procriaram a infanta Antonomásia, herdeira
do reino, a qual dita infanta Antonomásia se criou e cresceu debaixo
de minha tutela e doutrina, por ser eu a mais antiga e a mais principal
ama de sua mãe. Sucedeu, pois, que, indo dias e vindo dias, a menina
Antonomásia chegou à idade de quatorze anos, com tão grande
perfeição de formosura, que não a pôde subir mais de ponto a
natureza. Pois digamos agora que a discrição era pouco discreta!
Assim era discreta como bela, e era a mais bela do mundo, e o é, se já
os fados invejosos e as parcas endurecidas não lhe cortaram o fio da
vida. Mas não haverão, que não hão de permitir os céus que se faça
tanto mal à terra como seria levar sem amadurecer o cacho da mais
formosa vide. Desta formosura, e não como se deve encarecida por
minha torpe língua, se enamorou um número infinito de príncipes,
assim naturais como estrangeiros, entre os quais ousou levantar os
pensamentos ao céu de tanta beleza um cavaleiro particular que na
corte estava, confiado em sua mocidade e em sua bizarria, e em suas
muitas habilidades e graças, e facilidade e felicidade de engenho;
porque faço saber a vossas grandezas, se não o têm por enfado, que
tocava uma guitarra que a fazia falar, e mais que era poeta e grande
bailarino, e sabia fazer uma jaula de pássaros, que somente por fazê-
las poderia ganhar a vida quando se visse em extrema necessidade,
que todas estas qualidades e graças são bastantes a derrubar uma
montanha, não que uma delicada donzela. Mas toda sua gentileza e bom
donaire e todas suas graças e habilidades tiveram pouco ou nenhum
poder para render a fortaleza de minha menina, se o ladrão descarado
não usasse do remédio de render a mim primeiro. Primeiro quis o
gatuno e desalmado vagabundo granjear-me a vontade e subornar-me
o gosto, para que eu, mau alcaide, lhe entregasse as chaves da
fortaleza que guardava. Em suma: ele me adulou o entendimento e me
rendeu a vontade com não sei que ditos e joias que me deu, mas o que
mais me fez prostrar e dar comigo ao chão foram umas coplas que lhe
ouvi cantar uma noite desde uma grade que dava a uma ruazinha onde
ele estava, que, se mal não me lembro, diziam:

Da doce minha inimiga


nasce um mal que à alma fere,
e, por mais tormento, quer
que se sinta e não se diga.

Pareceu-me a trova de pérolas, e sua voz de açúcar, e desde aqui,


digo, desde então, vendo o mal em que caí por estes e outros
semelhantes versos, considerei que das boas e concertadas repúblicas
se haviam de desterrar os poetas, como aconselhava Platão, ao menos,
os lascivos, porque escrevem umas coplas, não como as do marquês de
Mântua, que entretêm e fazem chorar os meninos e as mulheres,
senão umas agudezas que, a modo de brandas espinhos, vos
atravessam a alma, e como raios os ferem nela, deixando são o
vestido. E outra vez cantou:

Vem, morte, tão escondida,


que não te sinta vir,
porque o prazer do morrer
não me torne a dar a vida.

E deste jaez outras coplinhas e estrambotes, que cantados


encantam e escritos suspendem. Ora, e quando se humilham a compor
um gênero de verso que em Candaya se usava então, a quem eles
chamavam “seguidilhas”? Ali era o brincar das almas, o excitar do riso,
o desassossego dos corpos e, finalmente, o mercúrio de todos os
sentidos. E assim, digo, senhores meus, que os tais trovadores com
justo título os deviam desterrar às ilhas dos Lagartos. Mas não têm
eles a culpa, senão os simples que os louvam e as bobas que os creem;
e se eu fosse a boa ama que devia, não me haviam de mover seus
tresnoitados conceitos, nem havia de crer ser verdade aquele dizer:
“Vivo morrendo, ardo no gelo, tremo no fogo, espero sem esperança,
vou e fico”, com outros impossíveis desta ralé, de que estão seus
escritos cheios. Ora, e quando prometem a fênix da Arábia, a coroa de
Ariadne, os cavalos do sol, do Sul as pérolas, de Tíbar o ouro e de
Pancaya o bálsamo? Aqui é onde eles alargam mais a pena, como lhes
custa pouco prometer o que jamais pensam nem podem cumprir. Mas,
por onde divago? Ai de mim, desditada! Que loucura ou que desatino
me leva a contar as alheias faltas, tendo tanto que dizer das minhas?
Ai de mim, outra vez, sem ventura!, que não me renderam os versos,
senão minha simplicidade; não me abrandaram as músicas, senão minha
leviandade: minha muita ignorância e minha pouca advertência abriram
o caminho e desembaraçaram a senda aos passos de dom Clavijo, que
este é o nome do referido cavaleiro; e assim, sendo eu a medianeira,
ele se achou uma e mui muitas vezes no quarto da por mim, e não por
ele, enganada Antonomásia, debaixo do título de verdadeiro esposo;
que, embora pecadora, não consentiria que sem ser seu marido
chegasse à vira da sola de suas sapatilhas. Não, não, isso não: o
matrimônio há de ir adiante em qualquer negócio destes que por mim
se tratar! Somente houve um dano neste negócio, que foi o da
desigualdade, por ser dom Clavijo um cavaleiro particular, e a infanta
Antonomasia herdeira, como já disse, do reino. Alguns dias esteve
encoberta e solapada na sagacidade de meu recato esta maranha, até
que me pareceu que a ia descobrindo depressa não sei que inchação do
ventre de Antonomásia, cujo temor nos fez entrar em conspiração aos
três, e saiu disso que, antes que saísse à luz a má notícia, dom Clavijo
pedisse ante o vigário por sua mulher a Antonomásia, em fé de um
compromisso que de ser sua esposa a infanta lhe havia feito, ditado
por meu engenho, com tanta força, que as de Sansão não poderiam
rompê-lo. Fizeram-se as diligências, viu o vigário o compromisso,
tomou o tal vigário a confissão à senhora, mandou-a instalar em casa
de um meirinho da corte muito honrado...
Então disse Sancho:
- Também em Candaya há meirinhos da corte, poetas e seguidilhas,
pelo que posso jurar que imagino que todo o mundo é um. Mas dê-se
vossa mercê pressa, senhora Trifaldi, que é tarde e já morro por
saber o fim desta tão larga história.
- Sim, farei - respondeu a condessa.

CAPÍTULO XXXIX

Onde a Trifaldi prossegue sua estupenda e memorável história

De qualquer palavra que Sancho dizia, a duquesa gostava tanto como


se desesperava dom Quixote; e mandando-o calar, a Dolorida
prosseguiu dizendo:
- Enfim, ao cabo de muitas perguntas e respostas, como a infanta se
mantinha sempre em sua decisão, sem sair nem variar da primeira
declaração, o vigário sentenciou em favor de dom Clavijo, e a entregou
por sua legítima esposa, do que recebeu tanto nojo a rainha dona
Magúncia, mãe da infanta Antonomásia, que dentro de três dias a
enterramos.
- Deveu morrer, sem dúvida - disse Sancho.
- Claro está! - respondeu Trifaldín, - que em Candaya não se
enterram as pessoas vivas, senão as mortas.
- Já se viu, senhor escudeiro - replicou Sancho, - enterrar um
desmaiado crendo ser morto, e parecia-me que estava a rainha
Magúncia obrigada a desmaiar em vez de morrer; que com a vida
muitas coisas se remedeiam, e não foi tão grande o disparate da
infanta que obrigasse a senti-lo tanto. Se se houvesse casado essa
senhora com algum pajem seu, ou com outro criado de sua casa, como
fizeram outras muitas, segundo ouvi dizer, seria o dano sem remédio;
mas o haver-se casado com um cavaleiro tão gentil-homem e tão
entendido como aqui no-lo pintaram, em verdade em verdade que,
embora fosse necedade, não foi tão grande como se pensa; porque,
segundo as regras de meu senhor, que está presente e não me deixará
mentir, assim como se fazem dos homens letrados os bispos, se podem
fazer dos cavaleiros, e mais se são andantes, os reis e os imperadores.
- Razão tens, Sancho - disse dom Quixote; - porque um cavaleiro
andante, como tenha dois dedos de ventura, está em potência próxima
de ser o maior senhor do mundo. Mas, passe adiante a senhora
Dolorida, que a mim está claro que lhe falta por contar o amargo desta
até aqui doce história.
- E como falta o amargo! - respondeu a condessa, - e tão amargo que
em sua comparação são doces os acônitos e saborosos os loendros.
Morta, pois, a rainha, e não desmaiada, a enterramos; e, apenas a
cobrimos com a terra e apenas lhe demos o último vale, quando

quis talia fando temperet a lachrymis?,


(quem, ouvindo tais coisas, poderá conter as lágrimas? (N. do T.))

posto sobre um cavalo de madeira, apareceu em cima da sepultura


da rainha o gigante Malambruno, primo coirmão de Magúncia, que junto
com ser cruel era encantador, o qual com suas artes, em vingança da
morte de sua coirmã, e por castigo do atrevimento de dom Clavijo, e
por despeito da demasia de Antonomásia, os deixou encantados sobre
a mesma sepultura: a ela, convertida em uma símia de bronze, e a ele,
num espantoso crocodilo de um metal não conhecido, e entre os dois
está um padrão, também de metal, e nele escritas em língua siríaca
umas letras que, havendo-se declarado na candaiesca, e agora na
castelhana, encerram esta sentença: “Não cobrarão sua primeira
forma estes dois atrevidos amantes até que o valoroso manchego
venha comigo às mãos em singular batalha, que para só seu grande
valor guardam os fados esta nunca vista aventura”. Feito isto, tirou da
bainha um largo e descomedido alfanje, e, agarrando-me pelos cabelos,
fez gesto de querer ceifar-me a garganta e cortar-me cerce a cabeça.
Turvei-me; colou-se-me a voz à garganta, fiquei mofina em todo
extremo, mas, contudo, me esforcei o mais que pude, e, com voz
trêmula e dolente, disse-lhe tantas e tais coisas, que o fizeram
suspender a execução de tão rigoroso castigo. Finalmente, fez trazer
diante de si todas as amas do palácio, que foram estas que estão
presentes, e, depois de haver exagerado nossa culpa e vituperado as
condições das amas, suas más manhas e piores truques, e atribuindo a
todas a culpa que eu só tinha, disse que não queria com pena capital
castigar-nos, senão com outras penas dilatadas, que nos dessem uma
morte civil e contínua; e, naquele mesmo momento que acabou de dizer
isto, sentimos todas que se nos abriam os poros da cara, e que por
toda ela nos punçavam como com pontas de agulhas. Acudimos logo
com as mãos aos rostos, e achamo-nos da maneira que agora vereis.
E logo a Dolorida e as demais amas alçaram as máscaras com que
cobertas vinham, e descobriram os rostos, todos povoados de barbas,
quais loiras, quais negras, quais brancas e quais mechadas de branco,
de cuja vista mostraram ficar admirados o duque e a duquesa,
pasmados dom Quixote e Sancho, e atônitos todos os presentes.
E a Trifaldi prosseguiu:
- Desta maneira nos castigou aquele baderneiro e mal-intencionado
de Malambruno, cobrindo a brandura e suavidade de nossos rostos
com a aspereza destas cerdas, que aprouvesse ao céu que antes com
seu descomedido alfanje nos houvesse cortado as cabeças, pois não
escureceria a luz de nossas caras com esta borra que nos cobre;
porque se entramos em conta, senhores meus (e isto que vou dizer
agora o queria dizer feitos meus olhos fontes, mas a consideração de
nossa desgraça, e os mares que até aqui choveram, os têm sem humor
e secos como arestas, e assim, o direi sem lágrimas), digo, pois, que
onde poderá ir uma ama com barbas? Que pai ou que mãe se doerá
dela? Quem lhe dará ajuda? Pois, ainda quando tem a tez lisa e o rosto
martirizado com mil sortes de cosméticos, apenas acha quem bem a
queira, que fará quando descubra feito um bosque seu rosto? Oh amas
e companheiras minhas, em desditado tempo nascemos, em hora
minguada nossos pais nos engendraram!
E dizendo isto, deu mostras de desmaiar.

CAPÍTULO XL

De coisas que concernem e tocam a esta aventura e a esta


memorável história

Real e verdadeiramente, todos os que gostam de semelhantes


histórias como esta devem mostrar-se agradecidos a Cide Hamete,
seu autor primeiro, pela curiosidade que teve em contar-nos as
semínimas dela, sem deixar coisa, por miúda que fosse, que não a
desse à luz distintamente: pinta os pensamentos, descobre as
imaginações, responde às tácitas, aclara as dúvidas, resolve os
argumentos; finalmente, os átomos do mais curioso desejo manifesta.
Oh autor celebérrimo! Oh dom Quixote ditoso! Oh Dulcineia famosa!
Oh Sancho Pança gracioso! Todos juntos e cada um por si vivais
séculos infinitos, para gosto e geral passatempo dos viventes.
Diz, pois, a história que, assim que Sancho viu a Dolorida desmaiada,
disse:
- Pela fé de homem de bem, juro, e pela vida eterna de todos meus
passados os Panças, que jamais ouvi nem vi, nem meu amo me contou,
nem em seu pensamento coube, semelhante aventura como esta. Valha-
te mil satanases, por não maldizer-te por encantador e gigante,
Malambruno; e não achaste outro gênero de castigo que dar a estas
pecadoras senão o de barbá-las? Como e não fora melhor, e a elas lhes
estivesse mais a preceito, tirar-lhes a metade do nariz do meio para
cima, embora falassem fanhoso, que não pôr-lhes barbas? Apostarei
eu que não têm bens para pagar a quem as rape.
- Assim é a verdade, senhor - respondeu uma das doze, - que não
temos bens para barbear-nos; e assim, resolvemos algumas de nós por
remédio poupativo usar de uns emplastros pegajosos, e aplicando-os
aos rostos, e tirando de golpe, ficamos rasas e lisas como fundo de
morteiro de pedra; que, embora haja em Candaya mulheres que andam
de casa em casa a depilar e a desenhar as sobrancelhas e fazer outros
tratamentos tocantes a mulheres, nós as amas de minha senhora
jamais quisemos admiti-las, porque as mais cheiram a terceiras,
havendo deixado de ser primeiras; e se pelo senhor dom Quixote não
somos remediadas, com barbas nos levarão à sepultura.
- Eu pelaria as minhas - disse dom Quixote - em terra de mouros, se
não remediasse as vossas.
A este ponto voltou de seu desmaio a Trifaldi e disse:
- O retintim dessa promessa, valoroso cavaleiro, em meio de meu
desmaio chegou a meus ouvidos, e foi parte para que eu dele volte e
cobre todos meus sentidos; e assim, de novo vos suplico, andante
ínclito e senhor indomável, vossa graciosa promessa se converta em
prática.
- Por mim não faltará - respondeu dom Quixote: - vede, senhora,
que é o que tenho de fazer, que o ânimo está muito pronto para servir-
vos.
- É o caso - respondeu a Dolorida - que daqui ao reino de Candaya,
se se vai por terra, há cinco mil léguas, duas a mais ou a menos; mas se
se vai pelo ar e pela linha reta, há três mil e duzentas e vinte e sete. É
também de saber que Malambruno me disse que quando a sorte me
deparasse ao cavaleiro nosso libertador, que ele lhe enviaria uma
cavalgadura muito melhor e com menos malícias que as que são de
retorno, porque há de ser aquele mesmo cavalo de madeira sobre o
qual levou o valoroso Pierres roubada a linda Magalona; o qual cavalo se
rege por uma cravilha que tem na frente, que lhe serve de rédea, e
voa pelo ar com tanta ligeireza que parece que os mesmos diabos o
levam. Este tal cavalo, segundo é tradição antiga, foi composto por
aquele sábio Merlim; emprestou-o a Pierres, que era seu amigo, com o
qual fez grandes viagens, e roubou, como se disse, a linda Magalona,
levando-a às ancas pelo ar, deixando embasbacados a quantos desde a
terra os olhavam; e não o emprestava senão a quem ele queria, ou
melhor o pagava; e desde o grande Pierres até agora não sabemos que
haja subido alguém nele. Dali o tirou Malambruno com suas artes, e o
tem em seu poder, e se serve dele em suas viagens, que as faz por
momentos, por diversas partes do mundo, e hoje está aqui e amanhã na
França e no outro dia em Potosí; e é o bom que o tal cavalo nem come,
nem dorme nem gasta ferraduras, e vai ligeiro pelos ares sem ter
asas, que o que leva em cima pode levar uma taça cheia de água na mão
sem que se lhe derrame gota, segundo caminha tranquilo e repousado;
pelo qual a linda Magalona folgava muito de andar cavaleira nele.
A isto disse Sancho:
- Para andar repousado e tranquilo, tenho meu ruço, embora não
ande pelos ares; mas pela terra, eu o porei a competir com quantos
ligeiros haja no mundo.
Riram-se todos, e a Dolorida prosseguiu:
- E este tal cavalo, se é que Malambruno quer dar fim a nossa
desgraça, antes que seja meia hora entrada a noite, estará em nossa
presença, porque ele me significou que o sinal que me daria por onde
eu entendesse que havia achado o cavaleiro que buscava, fora enviar-
me o cavalo, onde fosse com comodidade e presteza.
- E quantos cabem nesse cavalo? - perguntou Sancho.
A Dolorida respondeu:
- Duas pessoas: uma na sela e a outra nas ancas; e, pela maior
parte, estas tais duas pessoas são cavaleiro e escudeiro, quando falta
alguma roubada donzela.
- Queria eu saber, senhora Dolorida - disse Sancho, - que nome tem
esse cavalo.
- O nome - respondeu a Dolorida - não é como o cavalo de
Belerofonte, que se chamava Pégaso, nem como o do Magno Alexandre,
chamado Bucéfalo, nem como o do furioso Orlando, cujo nome foi
Brinhadoro, nem menos Bayarte, que foi o de Reinaldo de Montalvão,
nem Frontino, como o de Rugero, nem Bootes nem Peritoa, como dizem
que se chamam os do sol, nem tampouco se chama Orélia, como o
cavalo em que o desditado Rodrigo, último rei dos godos, entrou na
batalha onde perdeu a vida e o reino.
- Eu apostarei - disse Sancho - que, pois não lhe deram nenhum
desses famosos nomes de cavalos tão conhecidos, que tampouco lhe
haverão dado o de meu amo, Rocinante, que em ser próprio excede a
todos os que se nomearam.
- Assim é - respondeu a barbada condessa, - mas todavia lhe quadra
muito, porque se chama Cravilenho o Alígero, cujo nome convém com o
ser de lenho, e com a cravilha que traz na frente, e com a ligeireza
com que caminha; e assim, quanto ao nome, bem pode competir com o
famoso Rocinante.
- Não me descontenta o nome - replicou Sancho, - mas com que
rédeas ou com que cabeçada se governa?
- Já disse - respondeu a Trifaldi- que com a cravilha, que, voltando-
a a uma parte ou a outra, o cavaleiro que vai em cima o faz caminhar
como quer, ou já pelos ares, ou já rastreando e quase varrendo a
terra, ou pelo meio, que é o que se busca e se há de ter em todas as
ações bem ordenadas.
- Já o queria ver - respondeu Sancho, - mas pensar que tenho de
subir nele, nem na sela nem nas ancas, é pedir peras ao olmo. Bom é
que apenas posso ter-me em meu ruço, e sobre um albarda mais
branda que a mesma seda, e queriam agora que me tivesse em umas
ancas de tábua, sem almofada nem travesseiro algum! Por Deus, eu não
penso moer-me por tirar as barbas a ninguém: cada qual se rape como
mais lhe vier melhor, que eu não penso acompanhar a meu senhor em
tão larga viagem. Quanto mais, que eu não devo fazer ao caso para o
rapamento destas barbas como o faço para o desencanto de minha
senhora Dulcineia.
- Sim sois, amigo - respondeu a Trifaldi-, e tanto, que, sem vossa
presença, entendo que não faremos nada.
- Aqui o rei! - disse Sancho: - que têm que ver os escudeiros com as
aventuras de seus senhores? Hão de levar eles a fama das que
cometem, e havemos de levar nós o trabalho? Corpo de mim! Ainda se
dissessem os historiadores: “O tal cavaleiro venceu tal e tal batalha,
mas com ajuda de fulano, seu escudeiro, sem o qual seria impossível
vencê-la”. Mas, que escrevam a seco “Dom Paralipómenon das Três
Estrelas venceu a batalha dos seis monstros”, sem nomear a pessoa de
seu escudeiro, que se achou presente a tudo, como se não existisse!
Agora, senhores, volto a dizer que meu senhor pode ir só, e bom
proveito lhe faça, que eu ficarei aqui, em companhia da duquesa minha
senhora, e poderia ser que quando voltasse achasse melhorada a causa
da senhora Dulcineia em terço e quinto; porque penso, nos momentos
ociosos e desocupados, dar-me uma tunda de açoites que me despele.
- Mesmo assim, haveis de acompanhá-lo se for necessário, bom
Sancho, porque vo-lo rogarão bons; que não hão de ficar por vosso
inútil temor tão povoados os rostos destas senhoras; que, certo, seria
mau caso.
- Aqui o rei outra vez! - replicou Sancho. - Quando esta caridade se
fizesse por algumas donzelas recolhidas, ou por algumas meninas
órfãs, poderia o homem aventurar-se a qualquer trabalho, por mais
que sofra por tirar as barbas a amas, mau ano!, ainda que as visse eu a
todas com barbas, desde a maior até a menor, e da mais melindrosa
até a mais descarada.
- Mal estais com as amas, Sancho amigo - disse a duquesa: - muito
ides atrás da opinião do boticário toledano. Pois à fé que não tendes
razão; que amas há em minha casa que podem ser exemplo de amas,
que aqui está minha dona Rodríguez, que não me deixará dizer outra
coisa.
- Por mais que a diga vossa excelência - disse Rodríguez -, que Deus
sabe a verdade de tudo, e boas ou más, barbadas ou imberbes que
sejamos as amas, também nos pariu nossa mãe como às outras
mulheres; e, pois Deus nos pôs no mundo, Ele sabe para quê, e à sua
misericórdia me atenho, e não às barbas de ninguém.
- Agora bem, senhora Rodríguez - disse dom Quixote, - e senhora
Trifaldi e companhia, eu espero no céu que olhará com bons olhos
vossas coitas, que Sancho fará o que eu lhe mandar, já viesse
Cravilenho e já me visse com Malambruno; que eu sei que não haveria
navalha que com mais facilidade rapasse a vossas mercês como minha
espada raparia dos ombros a cabeça de Malambruno; que Deus suporta
os maus, mas não para sempre.
- Ai! - disse então a Dolorida, - com benignos olhos vejam a vossa
grandeza, valoroso cavaleiro, todas as estrelas das regiões celestes, e
infundam em vosso ânimo toda prosperidade e valentia para ser
escudo e amparo do vituperoso e abatido gênero amesco, abominado
por boticários, murmurado por escudeiros e enganado por pajens; que
mal haja a velhaca que na flor de sua idade não se meteu antes a ser
monja que a ama. Desditadas de nós as amas, que, embora venhamos
por linha reta, de varão em varão, do mesmo Heitor o troiano, não
deixarão de tratar-nos com desprezo nossas senhoras, se pensassem
por isso ser rainhas! Oh gigante Malambruno, que, embora sejas
encantador, és certíssimo em tuas promessas!, envia-nos já o sem par
Cravilenho, para que nossa desdita se acabe, que se entra o calor e
estas nossas barbas duram, ai de nossa ventura!
Disse isto com tanto sentimento a Trifaldi, que tirou lágrimas dos
olhos de todos os circunstantes, e ainda arrasou os de Sancho, e
propôs em seu coração de acompanhar a seu senhor até as últimas
partes do mundo, se é que nisso consistisse tirar a lã daqueles
veneráveis rostos.

CAPÍTULO XLI

Da vinda de Cravilenho, com o fim desta dilatada aventura

Chegou nisto a noite, e com ela a hora determinada em que o famoso


cavalo Cravilenho viria, cuja tardança fatigava já a dom Quixote,
parecendo-lhe que, pois Malambruno se detinha em enviá-lo, ou ele não
era o cavaleiro para quem estava guardada aquela aventura, ou
Malambruno não ousava vir com ele a singular batalha. Mas eis que de
repente entraram pelo jardim quatro selvagens, vestidos todos de
verde hera, que sobre seus ombros traziam um grande cavalo de
madeira. Puseram-no de pés no chão, e um dos selvagens disse:
- Suba sobre esta máquina o que tiver ânimo para isso.
- Aqui - disse Sancho - eu não subo, porque nem tenho ânimo nem
sou cavaleiro.
E o selvagem prosseguiu dizendo:
- E ocupe as ancas o escudeiro, se é que o tem, e confie no valoroso
Malambruno, que se não for por sua espada, por nenhuma outra, nem
por outra malícia, será ofendido; e não há mais que torcer esta
cravilha que sobre o pescoço traz posta, que ele os levará pelos ares
onde vos espera Malambruno; mas, para que a alteza e sublimidade do
caminho não lhes cause vertigens, se hão de cobrir os olhos até que o
cavalo relinche, que será sinal de haver dado fim a sua viagem.
Isto dito, deixando Cravilenho, com gentil postura voltaram por
onde haviam vindo. A Dolorida, assim que viu o cavalo, quase com
lágrimas disse a dom Quixote:
- Valoroso cavaleiro, as promessas de Malambruno foram certas: o
cavalo está em casa, nossas barbas crescem, e cada uma de nós e com
cada pelo delas te suplicamos nos rapes e tosquies, pois não está em
mais senão em que subas nele com teu escudeiro e dês feliz princípio à
vossa nova viagem.
- Isso farei eu, senhora condessa Trifaldi, de muito bom grado e de
melhor talante, sem pôr-me a tomar almofada nem calçar-me esporas,
por não deter-me: tanta é a vontade que tenho de ver-vos, senhora, e
a todas estas amas lisas e limpas.
- Isso não farei eu - disse Sancho, - nem de mau nem de bom
talante, de maneira alguma; e se é que este rapamento não se pode
fazer sem que eu suba às ancas, bem pode buscar meu senhor outro
escudeiro que o acompanhe, e estas senhoras outro modo de alisar os
rostos; que eu não sou bruxo, para gostar de andar pelos ares. E que
dirão meus insulanos quando saibam que seu governador anda
passeando pelos ventos? E outra coisa mais: que havendo três mil e
tantas léguas daqui a Candaya, se o cavalo se cansa ou o gigante se
zanga, tardaremos em dar a volta meia dúzia de anos, e já nem haverá
ilha nem ilhos no mundo que me conheçam; e, pois se diz comumente
que na tardança vai o perigo, e que quando te derem a vaquinha acudas
com a cordinha, perdoem-me as barbas destas senhoras, que bem está
São Pedro em Roma; quero dizer que bem estou nesta casa, onde tanta
mercê se me faz e de cujo dono tão grande bem espero como é ver-me
governador.
Ao que o duque disse:
- Sancho amigo, a ilha que eu vos prometi não é movível nem
fugitiva: raízes tem tão fundas, fincadas nos abismos da terra, que
não a arrancarão nem mudarão de onde está com três puxões; e, pois
vós sabeis que sei eu que não há nenhum gênero de ofício destes de
muito ganho que não se granjeie com alguma sorte de suborno, qual
mais, qual menos, o que eu quero levar por este governo é que ides com
vosso senhor dom Quixote a dar fim a esta memorável aventura; que
agora volteis sobre Cravilenho com a brevidade que sua ligeireza
promete, ora a contrária fortuna vos traga e volte a pé, feito alecrim,
de hospedaria em hospedaria e de estalagem em estalagem, sempre
que voltardes achareis vossa ilha onde a deixais, já vossos insulanos
com o mesmo desejo de receber-vos por seu governador que sempre
tiveram, e minha vontade será a mesma; e não ponhais dúvida nesta
verdade, senhor Sancho, que fora fazer notório agravo ao desejo que
de servir-vos tenho.
- Não mais, senhor - disse Sancho: - eu sou um pobre escudeiro e
não posso levar às costas tantas cortesias; suba meu amo, tapem-me
estes olhos e encomendem-me a Deus, e avisem-me se quando vamos
por essas altanerias poderei encomendar-me a Nosso Senhor ou
invocar os anjos que me favoreçam.
Ao que respondeu Trifaldi:
- Sancho, bem podeis encomendar-vos a Deus ou a quem quiserdes,
que Malambruno, embora seja encantador, é cristão, e faz seus
encantamentos com muita sagacidade e com muito tento, sem meter-
se com ninguém.
- Eia, pois - disse Sancho, - Deus me ajude e a Santíssima Trindade
de Gaeta.
- Desde a memorável aventura dos macetes - disse dom Quixote, -
nunca vi Sancho com tanto temor como agora, e se eu fosse tão
agoureiro como outros, sua pusilanimidade me quebrantaria o ânimo.
Mas chegai aqui, Sancho, que com licença destes senhores vos quero
falar à parte duas palavras.
E levando Sancho junto a umas árvores do jardim e tomando-lhe
ambas as mãos, disse-lhe:
- Já vês, Sancho irmão, a larga viagem que nos espera, e que sabe
Deus quando voltaremos dela, nem a comodidade e espaço que nos
darão os negócios; assim, queria que agora te fosses a teu aposento,
como que vais buscar alguma coisa necessária para o caminho, e, num
da cá aquelas palhas, te desses, à boa conta dos três mil e trezentos
açoites a que estás obrigado, pelo menos quinhentos, que dados os
terás, que o começar as coisas é tê-las meio acabadas.
- Par Deus - disse Sancho, - que vossa mercê deve ser falto de
juízo; isto é como aquilo que dizem: “às pressas me vês e donzelice me
demandas!” Agora que tenho de ir sentado em uma tábua rasa, quer
vossa mercê que me lastime as nádegas? Em verdade em verdade que
não tem vossa mercê razão. Vamos agora rapar estas amas, que à volta
eu prometo a vossa mercê, como quem sou, dar-me tanta pressa a sair
de minha obrigação, que vossa mercê se contente, e não lhe digo mais.
E dom Quixote respondeu:
- Pois com essa promessa, bom Sancho, vou consolado, e creio que a
cumprirás, porque, com efeito, embora tonto, és homem verídico.
- Não sou verdico, senão moreno - disse Sancho, - mas embora fora
de mistura, cumpriria minha palavra.
E com isto voltaram para subir em Cravilenho, e ao subir disse dom
Quixote:
- Tapai-vos, Sancho, e subi, Sancho, que quem de tão longes terras
envia por nós não será para enganar-nos, pela pouca glória que lhe
pode redundar de enganar a quem nele confia; e, embora tudo
sucedesse ao revés do que imagino, a glória de haver emprendido esta
façanha não a poderá escurecer malícia alguma.
- Vamos, senhor - disse Sancho, - que as barbas e lágrimas destas
senhoras as tenho cravadas no coração, e não comerei bocado que bem
me saiba até vê-las em sua primeira lisura. Suba vossa mercê e tape-
se primeiro, que se eu tenho de ir às ancas, claro está que primeiro
sobe o da sela.
- Assim é a verdade - replicou dom Quixote.
E tirando um lenço da algibeira, pediu à Dolorida que lhe
cobrisse muito bem os olhos, e, havendo-os coberto, voltou a
descobrir-se e disse:
- Se mal não me lembro, eu li em Virgílio aquilo do Paládio de Troia,
que foi um cavalo de madeira que os gregos presentearam à deusa
Palas, o qual ia prenhado de cavaleiros armados, que depois foram a
total ruína de Troia; e assim, será bom ver primeiro o que Cravilenho
traz em seu estômago.
- Não há para quê - disse a Dolorida, - que eu lhe fio e sei que
Malambruno não tem nada de malicioso nem de traidor. Vossa mercê,
senhor dom Quixote, suba sem pavor algum, e a meu dano se algum lhe
suceder.
Pareceu a dom Quixote que qualquer coisa que replicasse acerca de
sua segurança seria pôr em detrimento sua valentia; e assim, sem mais
altercar, subiu sobre Cravilenho e lhe palpou a cravilha, que
facilmente se manejava; e, como não tinha estribos e se pendiam as
pernas, não parecia senão figura de tapete flamengo pintada ou tecida
em algum romano triunfo. De mau talante e pouco a pouco chegou a
subir Sancho, e, acomodando-se o melhor que pôde nas ancas, as achou
algo duras e não nada brandas, e pediu ao duque que, se fosse possível,
o acomodassem com algum assento ou com alguma almofada, embora
fosse do estrado de sua senhora a duquesa, ou do leito de algum
pajem, porque as ancas daquele cavalo mais pareciam de mármore que
de lenho. A isto disse a Trifaldi que nenhum jaez nem nenhum gênero
de adorno suportava sobre si Cravilenho; que o que podia fazer era
pôr-se de lado, e que assim não sentiria tanto a dureza. Fê-lo assim
Sancho, e, dizendo “a Deus”, se deixou vendar os olhos, e, já depois de
vendados, voltou a descobrir-se, e, olhando a todos os do jardim
ternamente e com lágrimas, disse que o ajudassem naquele transe com
seus pai-nossos e suas ave-marias, para que Deus deparasse quem por
eles os dissesse quando em semelhantes transes se vissem. Ao que
disse dom Quixote:
- Ladrão, estás posto na forca porventura, ou no último termo da
vida, para usar de semelhantes preces? Não estás, desalmada e
covarde criatura, no mesmo lugar que ocupou a linda Magalona, do qual
desceu, não à sepultura, senão a ser rainha da França, se não mentem
as histórias? E eu, que vou a teu lado, não posso pôr-me ao do valoroso
Pierres, que oprimiu este mesmo lugar que eu agora oprimo? Cobre-te,
cobre-te, animal sem coração, e não te saia à boca o temor que tens,
ao menos em presença minha.
- Tapem-me - respondeu Sancho; - e, pois não querem que me
encomende a Deus nem que seja encomendado, que muito que tema não
ande por aqui alguma legião de diabos que deem conosco na justiça de
Peralvilho?
Cobriram-se, e, sentindo dom Quixote que estava como havia de
estar, manejou a cravilha, e, apenas pôs os dedos nela, quando todas
as amas e quantos estavam presentes levantaram as vozes, dizendo:
- Deus te guie, valoroso cavaleiro!
- Deus seja contigo, escudeiro intrépido!
- Já, já vais por esses ares, rompendo-os com mais velocidade que
uma seta!
- Já começais a suspender e admirar a quantos desde a terra vos
estão olhando!
- Segura-te, valoroso Sancho, que bamboleias! Vê não caias, que
será pior tua caída que a do atrevido moço que quis reger o carro do
Sol seu pai!
Ouviu Sancho as vozes, e, apertando-se com seu amo e cingindo-o
com os braços, disse-lhe:
- Senhor, como dizem estes que vamos tão altos, se alcançam aqui
suas vozes, e não parecem senão que estão aqui falando junto a nós?
- Não repares nisso, Sancho, que, como estas coisas e estas
volatarias vão fora dos cursos ordinários, de mil léguas verás e ouvirás
o que quiseres. E não me apertes tanto, que me derrubas; e em
verdade que não sei por que te perturbas nem te espantas, que
ousarei jurar que em todos os dias de minha vida não subi em
cavalgadura de passo mais tranquilo: não parece senão que não nos
movemos do lugar. Afasta, amigo, o medo, que, com efeito, a coisa vai
como há de ir, e o vento levamos em popa.
- Assim é a verdade - respondeu Sancho, - que por este lado me dá
um vento tão forte, que parece que com mil foles me estão soprando.
E assim era isso, que uns grandes foles lhe estavam fazendo ar: tão
bem traçada estava a tal aventura pelo duque e a duquesa e seu
mordomo, que não lhe faltou requisito que a deixasse de fazer
perfeita.
Sentindo-se, pois, soprar dom Quixote, disse:
- Sem dúvida alguma, Sancho, que já devemos chegar à segunda
região do ar, onde se engendra o granizo, as neves, os trovões, os
relâmpagos e os raios se engendram na terceira região; e se é que
desta maneira vamos subindo, logo daremos na região do fogo, e não
sei eu como manejar esta cravilha para que não subamos onde nos
abrasemos.
Nisto, com umas estopas ligeiras de acender-se e apagar-se, desde
longe, pendentes de uma vara, lhes aqueciam os rostos. Sancho, que
sentiu o calor, disse:
- Que me matem se não estamos já no lugar do fogo, ou bem perto,
porque uma grande parte de minha barba se chamuscou, e estou,
senhor, por descobrir-me e ver em que parte estamos.
- Não faças tal - respondeu dom Quixote, - e lembra-te do
verdadeiro conto do licenciado Torralba, a quem levaram os diabos
voando pelo ar, cavaleiro em uma vara, fechados os olhos, e em doze
horas chegou a Roma, e se apeou em Torre de Nona, que é uma rua da
cidade, e viu todo o fracasso e assalto e morte de Borbón, e pela
manhã já estava de volta em Madri, onde deu conta de tudo o que
havia visto; o qual também disse que quando ia pelo ar lhe mandou o
diabo que abrisse os olhos, e os abriu, e se viu tão perto, a seu
parecer, do corpo da lua, que a poderia pegar com a mão, e que não
ousou olhar à terra por não desvanecer-se. Assim que, Sancho, não há
para que descobrir-nos; que, o que nos carrega, ele dará conta de nós,
e quiçá vamos tomando pontas e subindo no alto para deixar-nos cair
de uma sobre o reino de Candaya, como faz o falcão sacre ou nebri
sobre a garça, para apanhá-la, por mais que suba; e, embora nos
pareça que não há meia hora que partimos do jardim, crê-me que
devemos haver percorrido grande caminho.
- Não sei o que é - respondeu Sancho Pança: - só sei dizer que se a
senhora Magallanes, ou Magalona, se contentou com estas ancas, que
não devia ser muito tenra de carnes.
Todas estas conversas dos dois valentes ouviam o duque e a duquesa
e os do jardim, de que recebiam extraordinário prazer; e querendo
dar remate à estranha e bem fabricada aventura, pelo rabo de
Cravilenho lhe pegaram fogo com umas estopas, e num instante, por
estar o cavalo cheio de foguetes atroadores, voou pelos ares, com
estranho ruído, e deu com dom Quixote e com Sancho Pança no chão,
meio chamuscados.
Neste tempo já haviam desaparecido do jardim todo o barbado
esquadrão das amas e a Trifaldi e tudo, e os do jardim ficaram
como desmaiados, estendidos pelo chão. Dom Quixote e Sancho se
levantaram maltratados, e, olhando a todos os lados, ficaram atônitos
de ver-se no mesmo jardim de onde haviam partido e de ver estendido
por terra tanto número de gente; e cresceu mais sua admiração
quando a um lado do jardim viram fincada uma grande lança no chão e
pendente dela e de dois cordões de seda verde um pergaminho liso e
branco, no qual, com grandes letras de ouro, estava escrito o seguinte:
O ínclito cavaleiro dom Quixote da Mancha feneceu e acabou a aventura da
condessa Trifaldi, por outro nome chamada a ama Dolorida, e companhia, com só
intentá-la.

Malambruno se dá por contente e satisfeito em toda sua vontade, e as barbas


das amas já ficam lisas e limpas, e os reis dom Clavijo e
Antonomásia em seu prístino estado. E quando se cumprir o escuderil
açoitamento, a branca pomba se verá livre dos pestíferos falcões que a
perseguem, e em braços de seu querido arrulhador; que assim está ordenado
pelo sábio Merlim, protoencantador dos encantadores.

Havendo, pois, dom Quixote lido as letras do pergaminho, claro


entendeu que do desencanto de Dulcineia falavam; e, dando muitas
graças ao céu de que com tão pouco perigo houvesse acabado tão
grande feito, reduzindo à sua passada tez os rostos das veneráveis
amas, que já não apareciam, foi onde o duque e a duquesa ainda não
haviam voltado a si, e, travando da mão ao duque, disse-lhe:
- Eia, bom senhor, bom ânimo, bom ânimo, que tudo é nada! A
aventura é já acabada sem dano de terceiros, como o mostra claro o
escrito que naquele padrão está posto.
O duque, pouco a pouco, e como quem de um pesado sonho recorda,
foi voltando a si, e pelo mesmo teor a duquesa e todos os que pelo
jardim estavam caídos, com tais mostras de maravilha e espanto, que
quase se podiam dar a entender haver-lhes acontecido de veras o que
tão bem sabiam fingir de burlas. Leu o duque o cartel com os olhos
meio fechados, e logo, com os braços abertos, foi abraçar dom
Quixote, dizendo-lhe ser o melhor cavaleiro que em nenhum século se
houvesse visto.
Sancho estava procurando pela Dolorida, por ver que rosto tinha
sem as barbas, e se era tão formosa sem elas como sua galharda
disposição prometia, mas disseram-lhe que, assim que Cravilenho
baixou ardendo pelos ares e deu no chão, todo o esquadrão das amas,
com a Trifaldi, havia desaparecido, e que já iam rapadas e sem
penugens. Perguntou a duquesa a Sancho como lhe havia sido aquela
larga viagem. A que Sancho respondeu:
- Eu, senhora, senti que íamos, segundo meu senhor me disse,
voando pela região do fogo, e quis descobrir-me um pouco os olhos,
mas meu amo, a quem pedi licença para descobrir-me, não a consentiu;
mas eu, que tenho não sei que fibras de curioso e de desejar saber o
que me perturba e impede, com cuidado e sem que ninguém o visse, por
junto ao nariz afastei tanto quanto o lencinho que me tapava os olhos,
e por ali olhei a terra, e pareceu-me que toda ela não era maior que um
grão de mostarda, e os homens que andavam sobre ela, pouco maiores
que avelãs; porque se veja quão altos devíamos ir então.
A isto disse a duquesa:
- Sancho amigo, vede o que dizeis, que, ao que parece, vós não vistes
a terra, senão os homens que andavam sobre ela; e está claro que se a
terra vos pareceu como um grão de mostarda, e cada homem como uma
avelã, um homem só havia de cobrir toda a terra.
- Assim é verdade - respondeu Sancho, - mas, mesmo assim, a
descobri por um ladito e a vi toda.
- Vede, Sancho - disse a duquesa, - que por um ladito não se vê o
todo do que se olha.
- Eu não sei essas vistas - replicou Sancho: - só sei que será bom
que vossa senhoria entenda que, pois voávamos por encantamento, por
encantamento podia eu ver toda a terra e todos os homens por onde
quer que os olhasse; e se isto não me crê, tampouco crerá vossa mercê
como, descobrindo-me por junto às sobrancelhas, me vi tão junto ao
céu que não havia de mim a ele palmo e meio, e pelo que posso jurar,
senhora minha, que é muito grande. E sucedeu que íamos por parte
onde estão as sete cabrinhas; e em Deus e em minha alma que, como
eu em minha meninice fui em minha terra cabreiro, que assim que as vi,
me deu uma vontade de divertir-me com elas um momento...! E se não o
cumprisse me parece que rebentaria. Venho, pois, e tomo, e que faço?
Sem dizer nada a ninguém, nem a meu senhor tampouco, cuidadosa e
vagarosamente me apeei de Cravilenho, e me diverti com as cabrinhas,
que são como uns alelis e como umas flores, quase três quartos de
hora, e Cravilenho não se moveu do lugar, nem passou adiante.
- E enquanto o bom Sancho se divertia com as cabras - perguntou o
duque, - em que se entretinha o senhor dom Quixote?
Ao que dom Quixote respondeu:
- Como todas estas coisas e estes tais sucessos vão fora da ordem
natural, não é muito que Sancho diga o que diz. De mim sei dizer que
nem me descobri por alto nem por baixo, nem vi o céu nem a terra,
nem o mar nem as areias. Bem é verdade que senti que passava pela
região do ar, e ainda que tocava à do fogo; mas que passássemos dali
não o posso crer, pois, estando a região do fogo entre o céu da lua e a
última região do ar, não podíamos chegar ao céu onde estão as sete
cabrinhas que Sancho diz, sem abrasar-nos; e, pois não nos queimamos,
ou Sancho mente ou Sancho sonha.
- Nem minto nem sonho - respondeu Sancho: - se não, perguntem-
me os sinais das tais cabras, e por eles verão se digo verdade ou não.
- Diga-os, pois, Sancho - disse a duquesa.
- São - respondeu Sancho - duas verdes, duas encarnadas, duas
azuis, e uma de mistura.
- Nova maneira de cabras é essa - disse o duque, - e por esta nossa
região do chão não se usam tais cores; digo, cabras de tais cores.
- Bem claro está isso - disse Sancho; - sim, que diferença há de
haver das cabras do céu às do chão.
- Dizei-me, Sancho - perguntou o duque: - vistes lá em entre essas
cabras algum cabrão?
- Não, senhor - respondeu Sancho, - mas ouvi dizer que nenhum
passava dos cornos da lua.
Não quiseram perguntar-lhe mais de sua viagem, porque lhes
pareceu que levava Sancho jeito de passear por todos os céus, e dar
novas de quanto lá passava, sem haver-se movido do jardim.
Em suma, este foi o fim da aventura da ama Dolorida, que deu que
rir aos duques, não só naquele tempo, senão no de toda sua vida, e que
contar a Sancho séculos, se os vivesse; e, chegando-se dom Quixote a
Sancho, ao ouvido lhe disse:
- Sancho, pois vós quereis que se vos creia o que vistes no céu, eu
quero que vós me creais a mim o que vi na cova de Montesinos; e não
vos digo mais.

CAPÍTULO XLII

Dos conselhos que deu dom Quixote a Sancho Pança antes que fosse
governar a ilha, com outras coisas bem consideradas

Com o feliz e gracioso sucesso da aventura da Dolorida, ficaram tão


contentes os duques, que determinaram passar com as burlas adiante,
vendo o conveniente assunto que tinham para que se tivessem por
veras; e assim, havendo dado a manha e ordens que seus criados e
seus vassalos haviam de guardar com Sancho no governo da ilha
prometida, no outro dia, que foi o que sucedeu ao voo de Cravilenho,
disse o duque a Sancho que se alinhasse e compusesse para ir ser
governador, que já seus insulanos o estavam esperando como a água de
maio. Sancho se lhe curvou, e lhe disse:
- Depois que baixei do céu, e depois que desde seu alto cume olhei a
terra e a vi tão pequena, moderou-se em parte em mim a vontade que
tinha tão grande de ser governador; porque, que grandeza é mandar
num grão de mostarda, ou que dignidade ou império o governar meia
dúzia de homens do tamanho de avelãs, que, a meu parecer, não havia
mais em toda a terra? Se vossa senhoria fosse servido de dar-me uma
tantica parte do céu, embora não fosse mais de meia légua, a tomaria
com melhor vontade que a maior ilha do mundo.
- Vede, amigo Sancho - respondeu o duque: - eu não posso dar parte
do céu a ninguém, embora não seja maior que uma unha, que a só Deus
estão reservadas essas mercês e graças. O que posso dar vos dou, que
é uma ilha feita e direita, redonda e bem proporcionada, e
sobremaneira fértil e abundosa, onde se vós sabeis ser esperto,
podeis com as riquezas da terra granjear as do céu.
- Sendo assim - respondeu Sancho, - venha essa ilha, que eu
pugnarei por ser tal governador que, apesar de velhacos, me vá ao céu;
e isto não é por cobiça que eu tenha de sair de minhas casinhas nem
de levantar-me a maiores, senão pelo desejo que tenho de provar a
que sabe o ser governador.
- Se uma vez o provais, Sancho - disse o duque, - comer-vos-eis as
mãos atrás do governo, por ser dulcíssima coisa o mandar e ser
obedecido. Seguramente que quando vosso dono chegue a ser
imperador, que o será sem dúvida, segundo vão encaminhadas suas
coisas, que não o arranquem como queira, e que lhe doa e lhe pese no
meio da alma do tempo que houver deixado de sê-lo.
- Senhor - replicou Sancho, - eu imagino que é bom mandar, embora
seja a um punhado de gado.
- Penso como vós, Sancho, que sabeis de tudo - respondeu o duque, -
e eu espero que sereis tal governador como vosso juízo promete, e
fique isto aqui e adverti que amanhã mesmo haveis de ir ao governo da
ilha, e esta tarde vos proverão do traje conveniente que haveis de
levar e de todas as coisas necessárias à vossa partida.
- Vistam-me - disse Sancho - como quiserem, que de qualquer
maneira que vá vestido serei Sancho Pança.
- Assim é verdade - disse o duque, - mas os trajes hão de
corresponder ao ofício ou dignidade que se professa, que não seria
bem que um jurista se vestisse como soldado, nem um soldado como
um sacerdote. Vós, Sancho, ireis vestido parte como letrado e parte
como capitão, porque na ilha que vos dou tanto são precisas as armas
como as letras, e as letras como as armas.
- Letras - respondeu Sancho, - poucas tenho, porque ainda não sei o
abcê; mas basta-me ter o Christus na memória para ser bom
governador. As armas manejarei as que me derem, até cair, e que
Deus ajude.
- Com tão boa memória - disse o duque, - não poderá Sancho errar
em nada.
Nisto chegou dom Quixote, e, sabendo o que se passava e a
celeridade com que Sancho havia de partir a seu governo, com licença
do duque o tomou pela mão e foi com ele a seu quarto, com intenção de
aconselhá-lo como se havia de haver em seu ofício.
Entrados, pois, em seu aposento, fechou atrás de si a porta, e fez
quase por força que Sancho se sentasse junto a ele, e com repousada
voz lhe disse:
- Infinitas graças dou ao céu, Sancho amigo, de que, antes e
primeiro que eu haja encontrado com algum bom acaso, te haja saído a
ti receber e encontrar a boa ventura. Eu, que em minha boa sorte te
tinha liberada a paga de teus serviços, me vejo nos princípios de
avantajar-me, e tu, antes de tempo, contra a lei do razoável, te vês
premiado por teus desejos. Outros subornam, importunam, solicitam,
madrugam, rogam, porfiam, e não alcançam o que pretendem; e chega
outro, e sem saber como, nem como não, se acha com o cargo e ofício
que outros muitos pretenderam; e aqui entra e encaixa bem o dizer
que há boa e má fortuna nas pretensões. Tu, que para mim, sem dúvida
alguma, és um tonto, sem madrugar nem tresnoitar e sem fazer
diligência alguma, com só o alento que te tocou da andante cavalaria,
sem mais nem mais te vês governador de uma ilha, como quem não diz
nada. Tudo isto digo, oh Sancho!, para que não atribuas a teus
merecimentos a mercê recebida, senão que dês graças ao céu, que
dispõe suavemente as coisas, e depois as darás à grandeza que em si
encerra a profissão da cavalaria andante. Disposto, pois, o coração a
crer o que te disse, está, oh filho!, atento a este teu Catão, que quer
aconselhar-te e ser norte e guia que te encaminhe e chegue a seguro
porto deste mar proceloso onde vais engolfar-te; que os ofícios e
grandes encargos não são outra coisa senão um golfo profundo de
confusões.
“Primeiramente, oh filho!, hás de temer a Deus, porque no temê-lo
está a sabedoria, e sendo sábio não poderás errar em nada.
“Segundo, hás de pôr os olhos em quem és, procurando conhecer-te
a ti mesmo, que é o mais difícil conhecimento que pode imaginar-se. Do
conhecer-te sairá o não inchar-te como a rã que quis igualar-se ao boi,
que se isto fazes, virá a ser feios pés de pavão de tua loucura a
consideração de haver guardado porcos em tua terra.
- Assim é a verdade - respondeu Sancho, - mas foi quando moço;
mas depois, algo homenzinho, gansos foram os que guardei, que não
porcos; mas isto parece-me que não vem ao caso, que não todos os que
governam vêm de casta de reis.
- Assim é verdade - replicou dom Quixote, - pelo qual os não de
princípios nobres devem acompanhar a gravidade do cargo que
exercitam com uma branda suavidade que, guiada pela prudência, os
livre da murmuração maliciosa, da qual não há estado que escape.
“Não te preocupes, Sancho, da humildade de tua linhagem, e não te
desprezes por dizer que vens de lavradores; porque, vendo que não te
envergonhas, nenhum se porá a vexar-te; e preza-te mais de ser
humilde virtuoso que pecador soberbo. Inumeráveis são aqueles que,
de baixa estirpe nascidos, subiram à suma dignidade pontifícia e
imperatória; e desta verdade te poderia trazer tantos exemplos, que
te cansariam.
“Vê, Sancho: se tomas por meio a virtude, e te prezas
de fazer feitos virtuosos, não há para que ter inveja dos que os
têm de príncipes e senhores, porque o sangue se herda e a virtude se
conquista, e a virtude vale por si só o que o sangue não vale.
“Sendo isto assim, como o é, que se acaso vier a ver-te quando
estejas em tua ilha algum de teus parentes, não o descartes nem o
afrontes; antes o hás de acolher, agasalhar e regalar, que com isto
satisfarás ao céu, que gosta que ninguém se despreze pelo que ele fez,
e corresponderás ao que deves à natureza bem concertada.
“Se trouxeres a tua mulher contigo (porque não é bom que os que
assistem a governos muito tempo estejam sem as próprias), ensina-a,
doutrina-a e desbasta-a de sua natural rudeza, porque tudo o que
costuma adquirir um governador discreto costuma perder e derramar
uma mulher rústica e tonta.
“Se acaso enviuvares, coisa que pode suceder, e com o cargo
melhorares de consorte, não a tomes tal, que te sirva de anzol e de
vara de pescar, e do “não quero tua capela”, porque em verdade te
digo que de tudo aquilo que a mulher do juiz receber há de dar conta o
marido na residência universal, onde pagará com o quádruplo na morte
as partidas de que não se houver feito encargo na vida.
“Nunca te guies pela lei arbitrária, que costuma ter muita cabida
com os ignorantes que presumem de agudos.
“Achem em ti mais compaixão as lágrimas do pobre, mas não mais
justiça, que as informações do rico.
“Procura descobrir a verdade por entre as promessas e dádivas do
rico, como por entre os soluços e importunidades do pobre.
“Quando puder e dever ter lugar a equidade, não imponhas todo o
rigor da lei ao delinquente, que não é melhor a fama do juiz rigoroso
que a do compassivo.
“Se acaso dobrares a vara da justiça, não seja com o peso da
dádiva, senão com o da misericórdia.
“Quando te suceder julgar algum pleito de algum teu inimigo,
afasta as mentes de tua injúria e põe-nas na verdade do caso.
“Não te cegue a paixão própria na causa alheia, que os erros que
nela fizeres, as mais vezes, serão sem remédio; e se lhe tiverem, será
à custa de teu crédito, e ainda de teus bens.
“Se alguma mulher formosa vier a pedir-te justiça, tira os olhos de
suas lágrimas e teus ouvidos de seus gemidos, e considera com vagar a
substância do que pede, se não queres que se afogue tua razão em seu
pranto e tua bondade em seus suspiros.
“Ao que hás de castigar com obras não trates mal com palavras,
pois basta ao desditado a pena do suplício, sem o acréscimo das más
razões.
“Ao culpado que cair debaixo de tua jurisdição considera-o homem
miserável, sujeito às condições da depravada natureza nossa, e em
tudo quanto for de tua parte, sem fazer agravo à contrária, mostra-te
piedoso e clemente, porque, embora os atributos de Deus todos são
iguais, mais resplandece e campeia a nosso ver o da misericórdia que o
da justiça.
“Se estes preceitos e estas regras segues, Sancho, serão longos
teus dias, tua fama será eterna, teus prêmios muitos, tua felicidade
indizível, casarás teus filhos como quiseres, títulos terão eles e teus
netos, viverás em paz e beneplácito das gentes, e nos últimos passos
da vida te alcançará o da morte, em velhice suave e madura, e
fecharão teus olhos as ternas e delicadas mãos de teus terceiros
netinhos. Isto que até aqui te disse são instruções que hão de adornar
tua alma; escuta agora os que hão de servir para adorno do corpo.

CAPÍTULO XLIII

Dos conselhos segundos que deu dom Quixote a Sancho Pança

Quem ouviria o passado arrazoado de dom Quixote que não o


tivesse por pessoa muito lúcida e melhor intencionada? Mas, como
muitas vezes no progresso desta grande história fica dito, somente
disparatava falando-lhe de cavalaria, e nos demais discursos mostrava
ter claro e desenvolto entendimento, de maneira que a cada passo
desacreditavam suas obras seu juízo, e seu juízo suas obras; mas
nesta destas segundas instruções que deu a Sancho, mostrou ter
grande donaire, e pôs sua discrição e sua loucura num levantado ponto.
Atentissimamente o escutava Sancho, e procurava conservar na
memória seus conselhos, como quem pensava guardá-los e sair por eles
a bom parto da prenhez de seu governo. Prosseguiu, pois, dom
Quixote, e disse:
- No que toca a como hás de governar tua pessoa e casa, Sancho, a
primeira coisa de que te encarrego é que sejas limpo, e que cortes as
unhas, sem deixá-las crescer, como alguns fazem, a quem sua
ignorância lhes deu a entender que as unhas grandes lhes aformoseiam
as mãos, como se aquela secreção e acréscimo que se deixa de cortar
fosse unha, sendo antes garras de ave lagartixeira: porco e
extraordinário abuso.
“Não andes, Sancho, folgado e frouxo, que a veste descomposta dá
indícios de ânimo desmazelado, se já a descompostura e frouxidão não
cai debaixo de chocarrice, como se julgou na de Júlio César.
“Toma com discrição o pulso ao que puder valer teu ofício, e se
acontecer que dês uniforme a teus criados, dá-o honesto e proveitoso
mais que vistoso e bizarro, e reparte-o entre teus criados e os
pobres: quero dizer que se hás de vestir seis pajens, veste três e
outros três pobres, e assim terás pajens para o céu e para o chão; e
este novo modo de dar uniforme não a alcançam os vangloriosos.
“Não comas alhos nem cebolas, para que não percebam pelo cheiro
tua qualidade de vilão.
“Anda devagar; fala com repouso, mas não de maneira que pareça
que te escutas a ti mesmo, que toda afetação é má.
“Almoça pouco e janta menos, que a saúde de todo o corpo se forja
na oficina do estômago.
“Sê moderado no beber, considerando que o vinho demasiado nem
guarda segredo nem cumpre palavra.
“Faça, Sancho, por não encher demasiado a boca, nem de eructar
diante de ninguém.
- Isso de eructar não entendo - disse Sancho.
E dom Quixote lhe disse:
- Eructar, Sancho, quer dizer “arrotar”, e este é um dos mais
torpes vocábulos que tem a língua castelhana, embora seja muito
expressivo; e assim, a gente fina serviu-se do latim, e ao arrotar diz
eructar, e aos arrotos, eructações; e, se alguns não entendem estes
termos, importa pouco, que o uso os irá introduzindo com o tempo, que
com facilidade se entendam; e isto é enriquecer a língua, sobre a qual
tem poder o vulgo e o uso.
- Em verdade, senhor - disse Sancho, - que um dos conselhos e
avisos que penso levar na memória há de ser o de não arrotar, porque
o costumo fazer muito amiúde.
- Eructar, Sancho, que não arrotar - disse dom Quixote.
- Eructar direi daqui em diante - respondeu Sancho, - e à fé que não
esqueça.
- Também, Sancho, não hás de misturar em tuas conversas a
multidão de refrãos que costumas; que, embora os refrãos são
sentenças breves, muitas vezes os trazes tão pelos cabelos, que mais
parecem disparates que sentenças.
- Isso Deus o pode remediar - respondeu Sancho, - porque sei mais
refrãos que um livro, e vêm tantos juntos à boca quando falo, que
lutam por sair uns com outros, mas a língua vai arrojando os primeiros
que encontra, embora não venham a propósito. Mas eu procurarei
daqui em diante dizer os que convenham à gravidade de meu cargo,
que em casa cheia logo se guisa a ceia, e quem descarta não baralha, e
a salvo está o que reclama, e o dar e o ter juízo é preciso.
- Isso sim, Sancho! - disse dom Quixote: - encaixa, ensarta,
enfileira refrãos, que ninguém te contém! Castiga-me minha mãe, e eu
zombo dela! Estou te dizendo que evites refrãos, e num instante
lançaste aqui uma litania deles, que assim quadram com o que vamos
tratando como pelos cerros de Úbeda. Vê, Sancho, não te digo eu que
parece mal um refrão trazido a propósito, mas carregar e ensartar
refrãos a trouxe-mouxe faz a conversa desmaiada e baixa.
“Quando subires a cavalo, não vás jogando o corpo sobre o arção
derradeiro, nem leves as pernas tesas e estiradas e desviadas da
barriga do cavalo, nem tampouco vás tão frouxo que pareça que vais
sobre o ruço: que o andar a cavalo a uns faz cavaleiros; a outros,
cavalariços.
“Seja moderado teu sono, que o que não madruga com o sol, não
goza do dia; e adverte, oh Sancho!, que a diligência é mãe da boa
ventura, e a preguiça, sua contrária, jamais chegou ao termo que pede
um bom desejo.
“Este último conselho que agora dar-te quero, embora não
sirva para adorno do corpo, quero que o leves muito na memória, que
creio que não te será de menos proveito que os que até aqui te dei; e é
que jamais te ponhas a disputar por linhagens, ao menos, comparando-
as entre si, pois, por força, nos que se comparam um há de ser o
melhor, e pelo que abateres serás aborrecido, e pelo que levantares,
de nenhuma maneira premiado.
“Teu traje será calça inteira, sobreveste larga, capa curta um
pouco mais larga; greguescos, nem em pensamento, que não estão bem
nem aos cavaleiros nem aos governadores.
“Por agora, isto se me ofereceu, Sancho, a aconselhar-te; andará o
tempo, e, segundo as ocasiões, assim serão meus ensinamentos,
conforme tu tenhas cuidado de avisar-me o estado em que te achares.
- Senhor - respondeu Sancho, - bem vejo que tudo quanto vossa
mercê me disse são coisas boas, santas e proveitosas, mas de que hão
de servir, se de nenhuma me lembro? Verdade seja que aquilo de não
deixar crescer as unhas e de casar-me outra vez, se se oferecer, não
esquecerei, mas esses outros badulaques e enredos e confusões, não
lembro nem lembrarei mais deles que das nuvens de antanho, e assim,
será preciso que se me deem por escrito, que, embora não saiba ler
nem escrever, eu os darei a meu confessor para que mos encaixe e
lembre quando for preciso.
- Ah, pecador de mim - respondeu dom Quixote, - e que mal parece
nos governadores o não saber ler nem escrever! Porque hás de saber,
oh Sancho!, que não saber um homem ler, ou ser canhoto, significa uma
de duas coisas: ou que foi filho de pais demasiado humildes e baixos,
ou ele tão travesso e mau que não pôde entrar no bom uso nem boa
doutrina. Grande falta é a que levas contigo, e assim, queria que
aprendesses a assinar pelo menos.
- Bem sei firmar meu nome - respondeu Sancho, - que quando fui
mordomo em meu lugar, aprendi a fazer umas letras como de marca de
fardo (maiúsculas e toscas (N. do T.)), que diziam que dizia meu nome;
quanto mais, que fingirei que tenho aleijada a mão direita, e farei que
assine outro por mim; que para tudo há remédio, se não é para a
morte; e, tendo eu o mando e o malho, farei o que quiser; quanto mais,
que o que tem o pai alcaide... E sendo eu governador, que é mais que
ser alcaide, chegai, e vede o que acontece! Não, senão desprezem e
caluniem-me, que virão por lã e voltarão tosquiados; e a quem Deus
quer bem, a casa lhe sabe; e as necedades do rico por sentenças
passam no mundo; e, sendo-o eu, sendo governador e juntamente
liberal, como o penso ser, não haverá falta que a pareça. Não, senão
fazei mel, e comer-vos-ão moscas; tanto vales quanto tens, dizia uma
minha avó, e do homem arraigado não te verás vingado.
- Oh, maldito sejas por Deus, Sancho! - disse então dom Quixote. -
Sessenta mil satanases te levem a ti e a teus refrãos! Uma hora há
que os estás ensartando e dando-me com cada um tragos de tormento.
Eu te asseguro que estes refrãos te hão de levar um dia à forca; por
eles te hão de tirar o governo teus vassalos, ou há de haver entre eles
sublevações. Diz-me, onde os achas, ignorante, ou como os aplicas,
mentecapto, que para dizer eu um e aplicá-lo bem, suo e trabalho como
se cavasse?
- Por Deus, senhor nosso amo - replicou Sancho, - que vossa mercê
se queixa de coisas de pouca importância. Por que diabos se irrita de
que eu me sirva de meus bens, que nenhum outro tenho, nem outro
caudal algum, senão refrãos e mais refrãos? E agora se me oferecem
quatro que vinham aqui adequados, ou como peras no cesto, mas não os
direi, porque ao bom calar chamam Sancho.
- Esse Sancho não és tu - disse dom Quixote, - porque não só não és
bom calar, senão mal falar e mal porfiar; mas, mesmo assim, queria
saber que quatro refrãos te ocorriam agora à memória que vinham
aqui a propósito, que eu ando recorrendo à minha, que a tenho boa, e
nenhum se me oferece.
- Que melhores - disse Sancho - que “entre dois dentes do siso
nunca ponhas teus polegares”, e “a irdes à minha casa e que quereis
com minha mulher, não há responder”, e “se dá o cântaro na pedra ou a
pedra no cântaro, mal para o cântaro”, todos os quais vêm a calhar?
Que ninguém contrarie seu governador nem quem lhe manda, porque
sairá lastimado, como o que põe o dedo entre dois dentes do siso, e
embora não sejam do siso, sendo dentes, não importa; e ao que disser
o governador não há que replicar, como ao “saí de minha casa e que
quereis com minha mulher”. Pois o da pedra no cântaro um cego o verá.
Assim que, é preciso que o que vê o cisco no olho alheio, veja a viga no
seu, porque não se diga por ele: “espantou-se a morta da degolada”, e
vossa mercê sabe bem que mais sabe o néscio em sua casa que o lúcido
na alheia.
- Isso não, Sancho - respondeu dom Quixote, - que o néscio em sua
casa nem na alheia sabe nada, porque sobre o aumento da necedade
não se assenta nenhum discreto edifício. E deixemos isto aqui,
Sancho, que se mal governares, tua será a culpa, e minha a vergonha;
mas consolo-me que fiz o que devia em aconselhar-te com as veras e
com a discrição a mim possível: com isto saio de minha obrigação e de
minha promessa. Deus te guie, Sancho, e te governe em teu governo, e
a mim me salve do escrúpulo que me fica que hás de dar com toda a
ilha de patas para cima, coisa que poderia eu evitar com descobrir ao
duque quem és, dizendo-lhe que toda essa gordura e essa pessoinha
que tens não é outra coisa senão um saco cheio de refrãos e de
malícias.
- Senhor - replicou Sancho, - se a vossa mercê lhe parece que não
sou de pro para este governo, aqui o deixo, que mais quero um só negro
da unha de minha alma que a todo meu corpo; e assim me sustentarei
Sancho a seco com pão e cebola, como governador com perdizes e
capões; e mais que, enquanto se dorme, todos são iguais, os grandes e
os menores, os pobres e os ricos; e se vossa mercê veja nisso, verá
que só vossa mercê me pôs nisto de governar: que eu não sei mais de
governos de ilhas que um abutre; e se se imagina que por ser
governador me há de levar o diabo, mais me quero ir Sancho ao céu
que governador ao inferno.
- Por Deus, Sancho - disse dom Quixote, - que, por só estas últimas
razões que disseste, julgo que mereces ser governador de mil ilhas:
bom natural tens, sem o qual não há ciência que valha; encomenda-te a
Deus, e procura não errar na primeira intenção; quero dizer que
sempre tenhas intento e firme propósito de acertar em quantos
negócios te ocorrerem, porque sempre favorece o céu os bons
desejos. E vamos almoçar, que creio que já estes senhores nos
aguardam.

CAPÍTULO XLIV

Como Sancho Pança foi levado ao governo, e da estranha aventura


que no castelo sucedeu a dom Quixote

Dizem que no próprio original desta história se lê que, chegando


Cide Hamete a escrever este capítulo, não o traduziu seu intérprete
como ele o havia escrito, que foi um modo de queixa que teve o mouro
de si mesmo, por haver tomado nas mãos uma história tão seca e tão
limitada como esta de dom Quixote, por parecer-lhe que sempre havia
de falar dele e de Sancho, sem ousar estender-se a outras digressões
e episódios mais graves e mais entretidos; e dizia que o ir sempre
preso o entendimento, a mão e a pena a escrever de um só assunto e
falar pelas bocas de poucas pessoas era um trabalho insuportável,
cujo fruto não redundava no de seu autor, e que, por fugir deste
inconveniente, havia usado na primeira parte do artifício de algumas
novelas, como foram a do Curioso impertinente e a do Capitão cativo,
que estão como separadas da história, embora as demais que ali se
contam são casos sucedidos ao mesmo dom Quixote, que não podiam
deixar de escrever-se. Também pensou, como ele diz, que muitos,
levados pela atenção que pedem as façanhas de dom Quixote, não a
dariam às novelas, e passariam por elas, ou com pressa ou com enfado,
sem advertir a gala e artifício que em si contêm, o que se mostraria
bem a descoberto quando, por si sós, sem arrimar-se às loucuras de
dom Quixote nem às sandices de Sancho, saíram à luz. E assim, nesta
segunda parte não quis inserir novelas soltas nem interpoladas, senão
alguns episódios que o parecessem, nascidos dos mesmos sucessos que
a verdade oferece; e ainda estes, limitadamente e com só as palavras
que bastam a declará-los; e, pois se contém e fecha nos estreitos
limites da narração, tendo habilidade, suficiência e entendimento para
tratar do universo todo, pede não se desprecie seu trabalho, e se lhe
deem louvações, não pelo que escreve, senão pelo que deixou de
escrever.
E logo prossegue a história dizendo que, acabando de almoçar dom
Quixote, no dia em que deu os conselhos a Sancho, naquela tarde os
deu escritos, para que ele buscasse quem os lesse; mas, apenas os deu,
quando vieram às mãos do duque, que os compartilhou com a duquesa, e
os dois se admiraram de novo da loucura e do engenho de dom
Quixote; e assim, levando adiante suas burlas, naquela tarde enviaram
Sancho com muito acompanhamento ao lugar que para ele havia de ser
ilha.
Aconteceu, pois, que o que o levava a cargo era um mordomo do
duque, muito discreto e muito gracioso - que não pode haver graça
onde não há discrição -, o qual havia feito a pessoa da condessa
Trifaldi, com o donaire que fica referido; e com isto, e com ir
advertido por seus senhores de como se havia de haver com Sancho,
saiu com seu intento maravilhosamente. Digo, pois, que aconteceu que,
assim que Sancho viu o tal mordomo, se lhe figurou em seu rosto o
mesmo da Trifaldi, e, voltando-se a seu senhor, disse-lhe:
- Senhor, ou a mim me há de levar o diabo daqui de onde estou, por
justo e por crente (neste instante (N. do T.)), ou vossa mercê me há
de confessar que o rosto deste mordomo do duque, que aqui está, é o
mesmo da Dolorida.
Olhou dom Quixote atentamente o mordomo, e, havendo-o visto,
disse a Sancho:
- Não há para que te leve o diabo, Sancho, nem por justo nem por
crente, que não sei o que queres dizer: se o rosto da Dolorida é o do
mordomo, não por isso o mordomo é a Dolorida; que, a sê-lo, implicaria
contradição muito grande, e não é tempo agora de fazer estas
averiguações, que seria entrar em intricados labirintos. Crê-me,
amigo, que é preciso rogar a Nosso Senhor muito de veras que nos
livre dos maus feiticeiros e maus encantadores.
- Não é burla, senhor - replicou Sancho, - senão que antes o ouvi
falar, e não pareceu senão que a voz da Trifaldi me soava nos ouvidos.
Agora bem, eu calarei, mas não deixarei de andar advertido daqui em
diante, a ver se descubro outro sinal que confirme ou desfaça minha
suspeita.
- Assim o hás de fazer, Sancho - disse dom Quixote, - e dar-me-ás
aviso de tudo o que neste caso descobrires e de tudo aquilo que no
governo te suceder.
Saiu, enfim, Sancho, acompanhado de muita gente, vestido como
letrado, e em cima um gabão muito largo de chamalote lustroso
amarelado, com um barrete do mesmo, sobre um macho à gineta, e
atrás dele, por ordem do duque, ia o ruço com jaezes e ornamentos
jumentis de seda e flamantes. Voltava Sancho a cabeça de quando em
quando a olhar seu asno, com cuja companhia ia tão contente que não
se trocaria com o imperador de Alemanha.
Ao despedir-se dos duques, beijou-lhes as mãos, e tomou a bênção
de seu senhor, que a deu com lágrimas, e Sancho a recebeu com
biquinhos de choro.
Deixa, leitor amável, ir em paz e em hora boa o bom Sancho, e
espera duas porções de riso, que te há de causar o saber como se
portou em seu cargo, e, enquanto isso, atende a saber o que aconteceu
a seu amo naquela noite; que se com isso não rires, pelo menos
despregarás os lábios com riso de símia, porque os sucessos de dom
Quixote, ou se hão de celebrar com admiração, ou com riso.
Conta-se, pois, que, apenas partiu Sancho, quando dom Quixote
sentiu sua solidão; e se lhe fosse possível revogar-lhe a comissão e
tirar-lhe o governo, o faria. Percebeu a duquesa sua melancolia, e
perguntou-lhe por que estava triste; se era pela ausência de Sancho,
que escudeiros, amas e donzelas havia em sua casa que lhe serviriam
muito a satisfação de seu desejo.
- Verdade é, senhora minha - respondeu dom Quixote, - que sinto a
ausência de Sancho, mas não é essa a causa principal que me faz
parecer que estou triste, e dos muitos oferecimentos que vossa
excelência me faz, somente aceito e escolho o da vontade com que se
me fazem, e, no demais, suplico a vossa excelência que dentro de meu
aposento consinta e permita que eu só seja o que me sirva.
- Em verdade - disse a duquesa, - senhor dom Quixote, que não há
de ser assim: que lhe hão de servir quatro donzelas das minhas,
formosas como umas flores.
- Para mim - respondeu dom Quixote - não serão elas como flores,
senão como espinhos que me pungem a alma. Assim entrarão elas em
meu aposento, nem coisa que o pareça, como voar. Se é que vossa
grandeza quer levar adiante o fazer-me mercê sem eu merecê-la,
deixe que eu me arranje comigo, e que eu me sirva de minhas portas
adentro, que eu ponha uma muralha em meio de meus desejos e de
minha honestidade; e não quero perder este costume pela liberalidade
que vossa alteza quer mostrar comigo. E em suma, antes dormirei
vestido que consentir que alguém me desnude.
- Não mais, não mais, senhor dom Quixote - replicou a duquesa. -
Por mim digo que darei ordem que nem ainda uma mosca entre em seu
quarto, não que uma donzela; não sou eu pessoa, que por mim se há de
deixar de ser íntegra a decência do senhor dom Quixote; que, segundo
me ficou claro, a que mais campeia entre suas muitas virtudes é a da
honestidade. Desnude-se vossa mercê e vista-se só e a seu modo,
como e quando quiser, que não haverá quem o impeça, pois dentro de
seu aposento achará os vasos necessários à vontade do que dorme a
portas fechadas, para que nenhuma natural necessidade o obrigue a
que as abra. Viva mil séculos a grande Dulcineia do Toboso, e seja seu
nome estendido por toda a redondez da terra, pois mereceu ser
amada por tão valente e tão honesto cavaleiro, e os benignos céus
infundam no coração de Sancho Pança, nosso governador, um desejo
de acabar logo suas disciplinas, para que volte a gozar o mundo da
beleza de tão grande senhora.
A que disse dom Quixote:
- Vossa altitude falou como quem é, que na boca das boas
senhoras não há de haver nenhuma que seja má; e mais venturosa e
mais conhecida será no mundo Dulcineia por havê-la louvado vossa
grandeza que por todas as louvações que possam dar-lhe os mais
eloquentes da terra.
- Agora bem, senhor dom Quixote - replicou a duquesa, - a hora de
jantar chega, e o duque deve esperar: venha vossa mercê e jantemos,
e deitar-se-á cedo, que a viagem que ontem fez de Candaya não foi tão
pequena que não haja causado algum moimento.
- Não sinto nenhum, senhora - respondeu dom Quixote, - porque
ousarei jurar à vossa excelência que em minha vida não subi sobre
besta mais repousada nem de melhor passo que Cravilenho; e não sei
eu o que pôde mover Malambruno para desfazer-se de tão ligeira e tão
gentil cavalgadura, e queimá-la assim, sem mais nem mais.
- A isso se pode imaginar - respondeu a duquesa - que, arrependido
do mal que havia feito à Trifaldi e companhia, e a outras pessoas, e
das maldades que como feiticeiro e encantador devia haver cometido,
quis acabar com todos os instrumentos de seu ofício, e, como o
principal e que mais o trazia desassossegado, vagando de terra em
terra, queimou Cravilenho; que com suas queimadas cinzas e com o
troféu do cartel fica eterno o valor do grande dom Quixote da
Mancha.
De novo novas graças deu dom Quixote à duquesa, e, jantando, dom
Quixote se retirou a seu aposento só, sem consentir que ninguém
entrasse com ele a servi-lo: tanto temia encontrar ocasiões que o
movessem ou forçassem a perder o honesto decoro que a sua senhora
Dulcineia guardava, sempre posta na imaginação a bondade de Amadis,
flor e espelho dos andantes cavaleiros. Fechou atrás de si a porta, e à
luz de duas velas de cera se desnudou, e ao descalçar-se, oh desgraça
indigna de tal pessoa!, se lhe soltaram, não suspiros, nem outra coisa,
que desacreditassem a limpeza de sua boa educação, senão até duas
dúzias de pontos de uma meia, que ficou feita gelosia. Afligiu-se em
extremo o bom senhor, e daria ele por ter ali um pedacinho de seda
verde uma onça de prata (digo seda verde porque as meias eram
verdes).
Aqui exclamou Benengeli, e, escrevendo, disse “Oh pobreza,
pobreza! Não sei eu com que razão se moveu aquele grande poeta
cordovês a chamar-te ‘dádiva santa desapreciada’! Eu, embora mouro,
bem sei, pela comunicação que tive com cristãos, que a santidade
consiste na caridade, humildade, fé, obediência e pobreza; mas, assim,
digo que há de ter muito de Deus o que se vier a contentar com ser
pobre, se não é daquele modo de pobreza de quem diz um de seus
maiores santos: ‘Tende todas as coisas como se não as tivésseis’; e a
isto chamam pobreza de espírito; mas tu, segunda pobreza, que és da
que eu falo, por que queres ir contra os fidalgos e bem nascidos mais
que contra outra gente? Por que os obrigas a dissimular os buracos
dos sapatos, e a que os botões de suas sobrevestes uns sejam de seda,
outros de cerdas, e outros de vidro? Por que seus colarinhos, pela
maior parte, hão de ser sempre mal pregueados, e não abertos com
molde?’ E nisto se verá que é antigo o uso do amido e dos colarinhos
abertos. E prosseguiu: ‘Miserável do bem nascido que vai dando
caldinhos à sua honra, comendo mal e a portas fechadas, ostentando
hipócrita o palito de dentes com que sai à rua depois de não haver
comido coisa que o obrigue a limpá-los! Miserável daquele, digo, que
tem a honra espantadiça, e pensa que desde uma légua se lhe descobre
o remendo do sapato, o suor do chapéu, a índole da capinha e a fome
de seu estômago!’”
Tudo isto se renovou a dom Quixote na soltura de seus pontos, mas
consolou-se com ver que Sancho lhe havia deixado umas botas no
caminho, que pensou pôr no outro dia. Finalmente, ele se deitou
pensativo e pesaroso, assim da falta que Sancho lhe fazia como da
irreparável desgraça de suas meias, a quem dera os pontos, embora
fosse com seda de outra cor, que é um dos maiores sinais de miséria
que um fidalgo pode dar no decurso de sua prolixa pobreza. Apagou as
velas; fazia calor e não podia dormir; levantou-se do leito e abriu um
pouco a janela de uma grade que dava sobre um formoso jardim, e, ao
abri-la, sentiu e ouviu que andava e falava gente no jardim. Pôs-se a
escutar atentamente. Levantaram a voz os de abaixo, tanto, que pôde
ouvir estas palavras:
- Não insistas, oh Emerência!, que cante, pois sabes que, desde o
momento em que este forasteiro entrou neste castelo e meus olhos o
viram, eu não sei cantar, senão chorar; quanto mais, que o sono de
minha senhora tem mais de ligeiro que de pesado, e não queria que nos
achasse aqui por todo o tesouro do mundo. E caso dormisse e não
despertasse, em vão fora meu canto se dorme e não desperta para
ouvi-lo este novo Eneias, que chegou a minhas regiões para deixar-me
escarnecida.
- Não o temas, Altisidora amiga - responderam, - que sem dúvida a
duquesa e quantos há nessa casa dormem, se não é o senhor de teu
coração e o despertador de tua alma, porque agora senti que abria a
janela da grade de seu quarto, e sem dúvida deve estar desperto;
canta, lastimada minha, em tom baixo e suave ao som de tua harpa, e,
se a duquesa nos ouve, poremos a culpa mo calor que faz .
- Não está nisso o ponto, oh Emerência! - respondeu Altisidora, -
senão em que não queria que meu canto descobrisse meu coração e
fosse julgada pelos que não têm notícia das forças poderosas de amor
por donzela caprichosa e leviana. Mas venha o que vier, que mais vale
vergonha na cara que mancha no coração.
E nisto sentiu-se tocar uma harpa suavissimamente. Ouvindo o que,
ficou dom Quixote pasmado, porque naquele instante se lhe vieram à
memória as infinitas aventuras semelhantes àquela, de janelas, grades
e jardins, músicas, galanteios e desvanecimentos que nos seus
desvanecidos livros de cavalarias havia lido. Logo imaginou que alguma
donzela da duquesa estava dele enamorada, e que a honestidade a
forçava a ter secreta sua vontade; temeu que o rendesse, e propôs em
seu pensamento o não deixar-se vencer; e, encomendando-se de todo
bom ânimo e bom talante à sua senhora Dulcineia do Toboso, decidiu
escutar a música; e, para dar a entender que ali estava, deu um fingido
espirro, de que não pouco se alegraram as donzelas, que outra coisa
não desejavam senão que dom Quixote as ouvisse. Tangida, pois, e
afinada a harpa, Altisidora deu princípio a este poema:

- Oh, tu, que estás em teu leito,


entre lençóis de holanda,
dormindo à perna estendida
da noite à manhã,
cavaleiro o mais valente
que produziu a Mancha,
mais honesto e mais bendito
que o ouro fino da Arábia!
Ouve uma triste donzela,
bem crescida e mal lograda,
que na luz de teus dois sóis
sente abrasar a alma.
Tu buscas tuas aventuras,
e alheias desditas achas;
dás as feridas, e negas
o remédio de saná-las.
Diz-me, valoroso jovem,
que Deus prospere tuas ânsias,
se te criaste na Líbia,
ou nas montanhas de Jaca;
se serpentes te deram leite;
se, acaso, foram tuas amas
a aspereza das selvas
e o horror das montanhas.
Muito bem pode Dulcineia,
donzela roliça e sã,
prezar-se de que rendeu
uma cruel e brava fera.
Por isto será famosa
desde Henares a Jarama,
desde o Tejo a Mançanares,
desde Pisuerga até Arlanza.
Trocar-me-ia eu por ela,
e poria em cima uma saia
das mais coloridas minhas,
que de ouro lhe adornam franjas.
Oh, quem se visse em teus braços,
ou se não, junto à tua cama,
acariciando-te a cabeça
e tirando-te a caspa!
Muito peço, e não sou digna
de mercê tão assinalada:
os pés queria massagear-te,
que a uma humilde isto lhe basta.
Oh, que gorros te daria,
que escarpins de prata,
que calças de damasco,
que capas de holanda!
que finíssimas pérolas,
cada qual como uma guelra,
que, a não ter companheiras,
“as sós” seriam chamadas!
Não vejas de tua Tarpeia
este incêndio que me abrasa,
Nero manchego do mundo,
nem o avives com tua sanha.
Menina sou, donzela tenra,
minha idade de quinze não passa:
quatorze tenho e três meses,
te juro em Deus e em minha alma.
Não sou cambaia, nem sou coxa,
nem tenho nada de manca;
os cabelos, como lírios,
que, em pé, pelo chão arrastam.
E embora seja minha boca aquilina
e o nariz algo chato,
ser meus dentes de topázios
minha beleza ao céu exalta.
Minha voz, já vês, se me escutas,
que à que é mais doce iguala,
e sou de disposição
algo menos que mediana.
Estas e outras graças minhas,
são despojos de tua aljava;
desta casa sou donzela,
e Altisidora me chamam.

Aqui deu fim o canto da malferida Altisidora, e começou o assombro


do requestado dom Quixote, o qual, dando um grande suspiro, disse
entre si: “- Por que tenho de ser tão desditado andante, que não há de
haver donzela que me veja que de mim não se enamore...! Por que tenha
de ser tão pequena de ventura a sem par Dulcineia do Toboso, que não
a hão de deixar a sós gozar da incomparável firmeza minha...! Por que
a quereis, rainhas? Por que a perseguis, imperatrizes? Para que a
acossais, donzelas de quatorze a quinze anos? Deixai, deixai à
miserável que triunfe, goze e se ufane com a sorte que Amor quis dar-
lhe em render-lhe meu coração e entregar-lhe minha alma. Vede,
caterva enamorada, que para só Dulcineia sou de massa e de massa de
açúcar, e para todas as demais sou de pedra; para ela sou mel, e para
vós amargor; para mim só Dulcineia é a formosa, a discreta, a honesta,
a galharda e a bem nascida, e as demais, as feias, as néscias, as
levianas e as de pior linhagem; para ser eu seu, e não de outra alguma,
me arrojou a natureza ao mundo. Chore ou cante Altisidora;
desespere-se Madama, por quem me atontearam no castelo do mouro
encantado, que eu tenho de ser de Dulcineia, cozido ou assado, limpo,
bem criado e honesto, apesar de todas as potestades feiticeiras da
terra.”
E com isto fechou de golpe a janela, e despeitado e pesaroso como
se lhe houvesse acontecido alguma grande desgraça, se deitou em seu
leito, onde o deixaremos por agora, porque nos está chamando o
grande Sancho Pança, que quer dar princípio a seu famoso governo.

CAPÍTULO XLV
De como o grande Sancho Pança tomou posse de sua ilha, e do modo
que começou a governar

Oh perpétuo descobridor dos antípodas, archote do mundo, olho do


céu, meneio doce das cantis, Tímbrio aqui, Febo ali, atirador aqui,
médico acolá, pai da Poesia, inventor da Música: tu que sempre
sais, e, embora o pareça, nunca te pões! A ti digo, oh sol, com cuja
ajuda o homem engendra o homem!; a ti digo que me favoreças, e
ilumines a escuridão de meu engenho, para que possa discorrer por
seus pontos na narração do governo do grande Sancho Pança; que sem
ti, eu me sinto tíbio, desestimulado e confuso.
Digo, pois, que com todo seu acompanhamento chegou Sancho a um
lugar de até mil habitantes, que era dos melhores que o duque tinha.
Deram-lhe a entender que se chamava “a ilha Baratária”, ou já porque
o lugar se chamava “Baratário”, ou já pelo barato com que se lhe havia
dado o governo. Ao chegar às portas da vila, que era amuralhada, saiu
a câmara do povoado a recebê-lo; tocaram as sinos, e todos os
moradores deram mostras de geral alegria, e com muita pompa o
levaram à igreja maior a dar graças a Deus, e logo, com algumas
ridículas cerimônias lhe entregaram as chaves da vila e o admitiram
por perpétuo governador da ilha Baratária.
O traje, as barbas, a gordura e pequenês do novo governador tinha
admirada a toda a gente que o busílis da história não sabia, e ainda a
todos os que o sabiam, que eram muitos. Finalmente, tirando-o da
igreja, levaram-no à cadeira do tribunal e o sentaram nela; e o
mordomo do duque lhe disse:
- É costume antigo nesta ilha, senhor governador, que o que vem a
tomar possessão desta famosa ilha está obrigado a responder a uma
pergunta que se lhe fizer, que seja algo intrincada e dificultosa, de
cuja resposta a vila toma e toca o pulso do engenho de seu novo
governador; e assim, ou se alegra ou se entristece com sua vinda.
Enquanto o mordomo dizia isto a Sancho, estava ele olhando umas
grandes e muitas letras que na parede fronteira de sua cadeira
estavam escritas; e, como ele não sabia ler, perguntou o que eram
aquelas pinturas que naquela parede estavam. Foi-lhe respondido:
- Senhor, ali está escrito e anotado o dia em que vossa senhoria
tomou possessão desta ilha, e diz o epitáfio: “Hoje dia, a tantos de tal
mês e de tal ano, tomou a possessão desta ilha o senhor dom Sancho
Pança, que muitos anos a goze.”
- E a quem chamam dom Sancho Pança? - perguntou Sancho.
- A vossa senhoria - respondeu o mordomo, - que nesta ilha não
entrou outro Pança senão o que está sentado nessa cadeira.
- Pois adverti, irmão - disse Sancho, - que eu não tenho dom, nem
em toda minha linhagem o houve: Sancho Pança me chamam a seco, e
Sancho se chamou meu pai, e Sancho meu avô, e todos foram Panças,
sem acréscimos de dões nem donas; e eu imagino que nesta ilha deve
haver mais dões que pedras; mas basta: Deus me entende, e poderá
ser que, se o governo me dura quatro dias, eu arrancarei estes dões,
que, pela multidão, devem enfadar como os mosquitos. Passe adiante
com sua pergunta o senhor mordomo, que eu responderei o melhor que
souber, ora se entristeça ou não se entristeça a vila.
A este instante entraram no tribunal dois homens, um vestido de
lavrador e o outro de alfaiate, porque trazia umas tesouras na mão, e
o alfaiate disse:
- Senhor governador, eu e este homem lavrador vimos ante vossa
mercê em razão que este bom homem chegou à minha tenda ontem,
que eu, com perdão dos presentes, sou alfaiate diplomado, que Deus
seja bendito, e, pondo-me um pedaço de pano nas mãos, me perguntou:
“Senhor, haveria nisto pano bastante para fazer-me um capuz?” Eu,
tenteando o pano, lhe respondi que sim; ele deveu imaginar, ao que eu
imagino, e imaginei bem, que sem dúvida eu lhe queria furtar alguma
parte do pano, fundando-se em sua malícia e na má opinião dos
alfaiates, e replicou-me que visse se haveria para dois; adivinhei-lhe o
pensamento e disse-lhe que sim; e ele, a cavaleiro em sua danada e
primeira intenção, foi acrescentando capuzes, e eu acrescentando
sins, até que chegamos a cinco capuzes, e agora neste momento acaba
de vir por eles: eu os dou, e não me quer pagar a feitura, antes me
pede que lhe pague ou devolva seu pano.
- É tudo isto assim, irmão? - perguntou Sancho.
- Sim, senhor - respondeu o homem, - mas faça-lhe vossa mercê que
mostre os cinco capuzes que me fez.
- De bom grado - respondeu o alfaiate.
E tirando em seguida a mão debaixo da capa, mostrou nela cinco
capuzes postos nas cinco cabeças dos dedos da mão, e disse:
- Eis aqui os cinco capuzes que este bom homem me pede, e em Deus
e em minha consciência que não me ficou nada do pano, e eu darei a
obra à vista de vedores do ofício.
Todos os presentes se riram da multidão das capuzes e do novo
pleito. Sancho se pôs a considerar um pouco, e disse:
- Parece-me que neste pleito não há de haver grandes dilações,
senão julgar logo a juízo de bom varão; e assim, eu dou por sentença
que o alfaiate perde as feituras, e o lavrador o pano, e os capuzes se
levem aos presos do cárcere, e não haja mais.
Se a sentença posterior da bolsa do vaqueiro moveu à admiração os
circunstantes, esta lhes provocou o riso, mas, enfim, se fez o que
mandou o governador. Ante o qual se apresentaram dois homens
anciãos; um trazia uma varinha por báculo, e o sem báculo disse:
- Senhor, a este bom homem emprestei há dias dez escudos de ouro
em ouro, por fazer-lhe prazer e boa obra, com condição que mos
devolvesse quando os pedisse; passaram-se muitos dias sem pedi-los,
por não ter maior necessidade de devolver-mos que a que ele tinha
quando eu os emprestei; mas, por parecer-me que se descuidava na
paga, os pedi uma e muitas vezes, e não somente não mos devolve, mas
mos nega e diz que nunca tais dez escudos lhe emprestei, e que se os
emprestei, que já mos devolveu. Eu não tenho testemunhos nem do
emprestado nem da devolução, porque não mos devolveu; queria que
vossa mercê lhe tomasse juramento, e se jurar que mos devolveu, eu
os perdoo aqui e diante de Deus.
- Que dizeis vós a isto, bom velho do báculo? - disse Sancho.
Ao que disse o velho:
- Eu, senhor, confesso que mos emprestou, e baixe vossa mercê
essa vara; e, pois ele o deixa em meu juramento, eu jurarei como se os
devolvi e paguei real e verdadeiramente.
Baixou o governador a vara, e, então, o velho do báculo deu o báculo
ao outro velho, que o segurasse enquanto jurava, como se o
embaraçasse muito, e logo pôs a mão na cruz da vara, dizendo que era
verdade que lhe haviam emprestado aqueles dez escudos que lhe
pediam; mas que ele os havia devolvido de sua mão à sua, e que por não
lembrar-se disso voltava a pedi-los com insistência. Vendo o que o
grande governador, perguntou ao credor o que respondia ao que dizia
seu contrário; e disse que sem dúvida alguma seu devedor devia dizer
verdade, porque o tinha por homem de bem e bom cristão, e que ele se
devia haver olvidado o como e quando os havia devolvido, e que dali em
diante jamais lhe pediria nada. Tornou a tomar seu báculo o devedor,
e, baixando a cabeça, saiu do tribunal. Visto o que Sancho, e que sem
mais nem mais se ia, e vendo também a paciência do demandante,
inclinou a cabeça sobre o peito, e, pondo o índice da mão direita sobre
as sobrancelhas e o nariz, esteve como pensativo um pequeno espaço,
e logo alçou a cabeça e mandou que lhe chamassem o velho do báculo,
que já se havia ido. Trouxeram-no, e, vendo-o Sancho, disse-lhe:
- Dai-me, bom homem, esse báculo, que preciso dele.
- De muito bom grado - respondeu o velho: - ei-lo aqui, senhor.
E pô-lo na mão. Tomou-o Sancho, e, dando-o ao outro velho, disse-
lhe:
- Ide com Deus, que já vais pago.
- Eu, senhor? - respondeu o velho. - Ora, vale esta varinha dez
escudos de ouro?
- Sim - disse o governador; - ou se não, eu sou o maior tonto do
mundo. E agora se verá se tenho eu entendimento para governar todo
um reino.
E mandou que ali, diante de todos, se rompesse e abrisse a vara.
Fez-se assim, e no coração dela acharam dez escudos em ouro.
Ficaram todos admirados, e tiveram a seu governador por um novo
Salomão.
Perguntaram-lhe de onde havia inferido que naquela varinha
estavam aqueles dez escudos, e respondeu que de haver visto dar o
velho que jurava, a seu contrário, aquele báculo, enquanto fazia o
juramento, e jurar que os havia dado real e verdadeiramente, e que,
acabando de jurar, lhe tornou a pedir o báculo, lhe veio à imaginação
que dentro dele estava a paga do que pediam. De onde se podia inferir
que os que governam, embora sejam uns tontos, talvez os encaminha
Deus em seus juízos; e mais, que ele havia ouvido contar outro caso
como aquele ao padre de seu lugar, e que ele tinha tão grande
memória, que, a não esquecer tudo aquilo de que queria lembrar-se,
não haveria tal memória em toda a ilha. Finalmente, um velho vexado e
o outro pago, se foram, e os presentes ficaram admirados, e o que
escrevia as palavras, feitos e movimentos de Sancho não acabava de
determinar-se se o teria e poria por tonto ou por discreto.
Logo, acabado este pleito, entrou no tribunal uma mulher segura
fortemente por um homem vestido de vaqueiro rico, a qual vinha dando
grandes vozes, dizendo:
- Justiça, senhor governador, justiça, e se não a acho na terra, a
irei buscar no céu! Senhor governador de minha alma, este mau homem
me colheu no meio desse campo, e se aproveitou de meu corpo como se
fosse trapo mal lavado, e, desditada de mim!, me levou o que eu tinha
guardado há mais de vinte e três anos, defendendo-o de mouros e
cristãos, de naturais e estrangeiros; e eu, sempre dura como um
sobreiro, conservando-me inteira como a salamandra no fogo, ou como
a lã entre as sarças, para que este bom homem chegasse agora com
suas mãos limpas (sem merecê-lo (N. do T.)) a manusear-me.
- Ainda isso está por averiguar: se tem limpas ou não as mãos este
galante - disse Sancho.
E voltando-se ao homem, perguntou-lhe o que dizia e respondia à
querela daquela mulher. O qual, todo perturbado, respondeu:
- Senhores, eu sou um pobre vaqueiro de gado de cerda, e esta
manhã saía deste lugar de vender, com perdão seja dito, quatro
porcos, que me levaram de impostos e propinas pouco menos do que
eles valiam; voltava à minha aldeia, topei no caminho esta boa ama, e o
diabo, que tudo enreda e tudo cozinha, fez que folgássemos juntos;
paguei-lhe o suficiente, e ela, mal contente, agarrou-me, e não me
deixou até trazer-me a este posto. Diz que a forcei, e mente, para o
juramento que faço ou penso fazer; e esta é toda a verdade, sem
faltar migalha.
Então o governador lhe perguntou se trazia consigo algum dinheiro
em prata; ele disse que até vinte ducados tinha no seio, em uma valise.
Mandou que a pegasse e a entregasse, assim como estava, à
querelante; ele o fez tremendo; tomou-a a mulher, e fazendo mil
reverências a todos e rogando a Deus pela vida e saúde do senhor
governador, que assim olhava pelas órfãs necessitadas e donzelas, e
com isto saiu do tribunal, levando a bolsa segura com ambas as mãos,
embora antes olhasse se era de prata a moeda que levava dentro.
Apenas saiu, quando Sancho disse ao vaqueiro, que já lhe saltavam
as lágrimas, e os olhos e o coração iam atrás de sua bolsa:
- Bom homem, ide atrás daquela mulher e tirai-lhe a bolsa, embora
não queira, e voltai aqui com ela.
E não o disse a tonto nem a surdo, porque logo partiu como um raio e
foi ao que se lhe mandava. Todos os presentes estavam suspensos,
esperando o fim daquele pleito, e dali a pouco voltaram o homem e a
mulher mais presos e aferrados que a vez primeira: ela a veste
levantada e no regaço posta a bolsa, e o homem pugnando por tirá-la;
mas não era possível, segundo a mulher a defendia, a qual dava vozes
dizendo:
- Justiça de Deus e do mundo! Veja vossa mercê, senhor
governador, a pouca vergonha e o pouco temor deste desalmado, que,
no meio do povoado e no meio da rua, me quis tirar a bolsa que vossa
mercê mandou dar-me.
- E tirou-a? - perguntou o governador.
- Como tirar? - respondeu a mulher. - Antes me deixara eu tirar a
vida que me tirem a bolsa. Boa sou eu! Outros gatos me hão de pôr
barbas, que não este desventurado e asqueroso! Tenazes e martelos,
maços e escopos não serão bastantes a tirar-ma das unhas, nem ainda
garras de leões: antes a alma do fundo das carnes!
- Ela tem razão - disse o homem, - e eu me dou por rendido e sem
forças, e confesso que as minhas não são bastantes para tirá-la, e
deixo-a.
Então o governador disse à mulher:
- Mostrai, honrada e valente, essa bolsa.
Ela a deu logo, e o governador a devolveu ao homem, e disse à
esforçada e não forçada:
- Irmã minha, se o mesmo alento e valor que mostrastes para
defender esta bolsa o mostrasses, e ainda a metade menos, para
defender vosso corpo, as forças de Hércules não vos forçariam. Ide
com Deus, e muito em má hora, e não pareis em toda esta ilha nem em
seis léguas ao redor, sob pena de duzentos açoites. Ide logo, digo,
perjura, desavergonhada e embaidora!
Espantou-se a mulher e foi-se cabisbaixa e mal contente, e o
governador disse ao homem:
- Bom homem, ide com Deus a vosso lugar com vosso dinheiro, e
daqui em diante, se não o quereis perder, procurai que não vos venha a
vontade de folgar com ninguém.
O homem lhe deu as graças, aturdido, e foi-se, e os circunstantes
ficaram admirados de novo dos juízos e sentenças de seu novo
governador. Tudo o que, notado por seu cronista, foi logo escrito ao
duque, que com grande desejo o estava esperando.
E fique aqui o bom Sancho, que é muita a pressa que nos dá seu amo,
alvoroçado com a música de Altisidora.

CAPÍTULO XLVI

Do temeroso espanto cincerril e felino que recebeu dom Quixote no


decorrer dos amores da enamorada Altisidora

Deixamos o grande dom Quixote envolto nos pensamentos que lhe


haviam causado a música da enamorada donzela Altisidora. Deitou-se
com eles, e, como se fossem pulgas, não o deixaram dormir nem
sossegar um instante, e juntavam-se os que lhe faltavam de suas
meias; mas, como é ligeiro o tempo, e não há barranco que o detenha,
correu a cavaleiro nas horas, e com muita presteza chegou a da manhã.
O que visto por dom Quixote, deixou as brandas penas, e, não nada
preguiçoso, vestiu seu acamurçado traje e calçou suas botas no
caminho, por encobrir a desgraça de suas meias; jogou-se em cima o
mantão de escarlate e pôs na cabeça um barrete de veludo verde,
guarnecido de galões de prata; pôs o cinturão pelos ombros com sua
boa e cortadora espada, pegou um grande rosário que consigo contínuo
trazia, e com grande prosopopeia e afetação saiu à antessala, onde o
duque e a duquesa estavam já vestidos e como esperando-o. E ao
passar por uma galeria estavam a propósito esperando-o Altisidora e a
outra donzela sua amiga, e, assim que Altisidora viu dom Quixote,
fingiu desmaiar, e sua amiga a recolheu em suas fraldas, e com grande
presteza lhe ia desabotoar o peito. Dom Quixote, que o viu, chegando-
se a elas, disse:
- Já sei eu do que procedem estes acidentes.
- Não sei eu do que - respondeu a amiga, - porque Altisidora é a
donzela mais sã de toda esta casa, e eu nunca lhe ouvi um ai! desde que
a conheço: que malditos sejam quantos cavaleiros andantes há no
mundo, se é que todos são desagradecidos. Vá-se vossa mercê, senhor
dom Quixote, que não voltará a si esta pobre menina enquanto vossa
mercê aqui estiver.
Ao que respondeu dom Quixote:
- Faça vossa mercê, senhora, que se ponha um alaúde esta noite em
meu aposento, que eu consolarei o melhor que puder a esta lastimada
donzela; que nos princípios amorosos os desenganos prestos costumam
ser remédios qualificados.
E com isto se foi, para que não fosse notado pelos que ali o vissem.
Não se houve bem afastado, quando, voltando a si a desmaiada
Altisidora, disse à sua companheira:
- Mister será que se lhe ponha o alaúde, que sem dúvida dom
Quixote quer dar-nos música, e não será má, sendo sua.
Foram logo dar conta à duquesa do que se passava e do alaúde que
pedia dom Quixote, e ela, alegre sobremodo, combinou com o duque e
com suas donzelas fazer-lhe uma burla que fosse mais risonha que
danosa, e com muita alegria esperavam a noite, que veio tão depressa
como havia vindo o dia, o qual passaram os duques em saborosas
conversas com dom Quixote. E a duquesa naquele dia real e
verdadeiramente despachou um pajem seu, que havia feito na selva a
figura encantada de Dulcineia, a Teresa Pança, com a carta de seu
marido Sancho Pança, e com o pacote de roupa que havia deixado para
que lhe enviasse, encarregando-o lhe trouxesse boa relação de tudo o
que com ela falasse.
Feito isto, e chegadas as onze horas da noite, achou dom Quixote
uma viola em seu aposento; afinou-a, abriu a grade, e ouviu que andava
gente no jardim; e, havendo percorrido os trastes da viola e afinando-
a o melhor que soube, cuspiu e limpou o peito, e logo, com uma voz
rouquinha, embora entoada, cantou o seguinte poema, que ele mesmo
naquele dia havia composto:

- Soem as forças de amor


tirar o tino às almas,
tomando por instrumento
a ociosidade descuidada.
Sói o coser e o lavrar,
e o estar sempre ocupada,
ser antídoto ao veneno
das amorosas ânsias.
As donzelas retraídas
que aspiram a ser casadas,
a honestidade é o dote
e voz de suas louvações.
Os andantes cavaleiros,
e os que na corte andam,
galanteiam as livres,
com as honestas se casam.
Há amores de levante,
que entre hóspedes se tratam,
que chegam logo ao poente,
porque na partida acabam.
O amor recém-vindo,
que hoje chegou e se vai amanhã,
as imagens não deixa
bem impressas na alma.
Pintura sobre pintura
nem se mostra nem assinala;
e onde há primeira beleza,
a segunda não dá vaza.
Dulcineia do Toboso
na tábua rasa da alma
tenho pintada de modo
que é impossível apagá-la.
A firmeza nos amantes
é a parte mais prezada,
por quem faz amor milagres,
e a si mesmo os levanta.

Aqui chegava dom Quixote em seu canto, o qual estavam escutando


o duque e a duquesa, Altisidora e quase toda a gente do castelo,
quando de improviso, desde em cima de um corredor que sobre a grade
de dom Quixote a prumo caía, desprenderam um cordel onde vinham
mais de cem cincerros presos, e logo atrás deles derramaram um
grande saco de gatos, que também traziam cincerros menores atados
aos rabos. Foi tão grande o ruído dos cincerros e o miar dos gatos,
que, embora os duques houvessem sido inventores da burla, todavia os
sobressaltou; e, temeroso, dom Quixote ficou pasmado. E quis a sorte
que dois ou três gatos entraram pela grade de seu quarto, e, indo de
uma parte a outra, parecia que uma legião de diabos andava nela.
Apagaram as velas que no aposento ardiam, e buscavam por onde
escapar. O despendurar e subir do cordel dos grandes cincerros não
cessava; a maior parte da gente do castelo, que não sabia a verdade do
caso, estava suspensa e admirada.
Levantou-se dom Quixote, e, pegando a espada, começou a dar
estocadas pela grade e a dizer a grandes vozes:
- Fora, malignos encantadores! Fora, canalha feiticeiresca, que eu
sou dom Quixote da Mancha, contra quem não valem nem têm força
vossas más intenções!
E voltando-se aos gatos que andavam pelo aposento, lhes deu muitas
cutiladas; eles acharam a grade, e por ali saíram, embora um, vendo-se
tão acossado pelas cutiladas de dom Quixote, lhe saltou ao rosto e o
agarrou pelo nariz com as unhas e os dentes, por cuja dor dom
Quixote começou a dar os maiores gritos que pôde. Ouvindo o que o
duque e a duquesa, e considerando o que podia ser, com muita
presteza foram a seu quarto, e, abrindo com chave mestra, viram o
pobre cavaleiro pugnando com todas suas forças por arrancar o gato
de seu rosto. Entraram com luzes e viram a desigual peleja; acudiu o
duque a apartá-la, e dom Quixote disse a vozes:
- Não o tire ninguém! Deixem-me mão a mão com este demônio, com
este feiticeiro, com este encantador, que eu lhe darei a entender de
mim a ele quem é dom Quixote da Mancha!
Mas o gato, não cuidando destas ameaças, grunhia e apertava. Mas,
enfim, o duque o separou e o jogou pela grade.
Ficou dom Quixote com o rosto arranhado e não muito são o nariz,
embora muito despeitado porque não lhe haviam deixado concluir a
batalha que tão travada tinha com aquele perverso encantador.
Fizeram trazer azeite de Aparício, e a mesma Altisidora, com suas
branquíssimas mãos, lhe pôs uns curativos por todos os ferimentos; e,
ao pô-los, com voz baixa lhe disse:
- Todos estes infortúnios te sucedem, empedernido cavaleiro, pelo
pecado de tua dureza e pertinácia; e praza a Deus que se esqueça
Sancho teu escudeiro de açoitar-se, para que nunca saia de seu
encanto esta tão amada tua Dulcineia, nem tu o desfrutes, nem
chegues ao tálamo com ela, ao menos vivendo eu, que te adoro.
A tudo isto não respondeu dom Quixote outra palavra se não foi dar
um profundo suspiro, e logo se estendeu em seu leito, agradecendo aos
duques a mercê, não porque ele tinha temor daquela canalha gatesca,
encantadora e cincerruna, senão porque havia reconhecido a boa
intenção com que haviam vindo socorrê-lo. Os duques o deixaram
sossegar, e se foram, pesarosos do mau sucesso da burla; que não
creram que tão pesada e custosa sairia a dom Quixote aquela
aventura, que lhe custou cinco dias de encerramento e de cama, onde
lhe sucedeu outra aventura mais gostosa que a passada, a qual não
quer seu historiador contar agora, por atender a Sancho Pança, que
andava muito solícito e muito gracioso em seu governo.

CAPÍTULO XLVII

Onde prossegue como se portava Sancho Pança em seu governo

Conta a história que desde o tribunal levaram Sancho Pança a um


suntuoso palácio, onde em uma grande sala estava posta uma real e
limpíssima mesa; e, assim que Sancho entrou na sala, soaram
charamelas, e saíram quatro pajens a dar-lhe água para as mãos, que
Sancho recebeu com muita gravidade.
Cessou a música, sentou-se Sancho à cabeceira da mesa, porque não
havia mais que aquele assento, e nem outro serviço em toda ela. Pôs-se
a seu lado em pé um personagem, que depois mostrou ser médico, com
uma barbatana de baleia na mão. Levantaram uma riquíssima e branca
toalha com que estavam cobertas as frutas e muita diversidade de
pratos de diversos manjares; um que parecia estudante deu a bênção,
e um pajem pôs um babador rendado em Sancho; outro que fazia o
ofício de camareiro-mor, chegou um prato de fruta diante; mas,
apenas havia dado uma mordida, quando o da varinha tocando com ela
no prato, o tiraram de diante com grandíssima celeridade; mas o
camareiro-mor lhe chegou outro com outro manjar. Ia a prová-lo
Sancho; mas, antes que chegasse a ele nem o experimentasse, já a
varinha havia tocado nele, e um pajem alçado-o com tanta presteza
como o da fruta. Visto o que por Sancho, ficou suspenso, e, olhando a
todos, perguntou se havia de comer aquela comida como jogo de
prestidigitador. A que respondeu o da vara:
- Não se há de comer, senhor governador, senão como é uso e
costume nas outras ilhas onde há governadores. Eu, senhor, sou
médico, e estou assalariado nesta ilha para sê-lo dos governadores
dela, e olho por sua saúde muito mais que pela minha, estudando de
noite e de dia, e tenteando a compleição do governador, para acertar a
curá-lo quando cair enfermo; e o principal que faço é assistir a seus
almoços e jantares, e a deixá-lo comer do que me parece que lhe
convém, e a impedir-lhe o que imagino que lhe há de fazer dano e ser
nocivo ao estômago; e assim, mandei tirar o prato da fruta, por ser
demasiadamente úmida, e o prato do outro manjar também o mandei
tirar, por ser demasiadamente quente e ter muitas especiarias, que
acrescentam a sede; e o que muito bebe mata e consome o úmido
radical, onde consiste a vida.
- Dessa maneira, aquele prato de perdizes que estão ali assadas, e,
a meu parecer, bem temperadas, não me farão algum dano.
Ao que o médico respondeu:
- Essas não comerá o senhor governador enquanto eu tiver vida.
- Ora, por quê? - disse Sancho.
E o médico respondeu:
- Porque nosso cirurgião Hipócrates, norte e luz da medicina, em um
aforismo seu, diz: “Omnis saturatio mala, perdicis autem pessima”.
Quier dizer: “Toda demasia é má; mas a das perdizes, malíssima”.
- Se isso é assim - disse Sancho, - veja o senhor doutor de quantos
manjares há nesta mesa qual me fará mais proveito e qual menos dano,
e deixe-me comer dele sem que lhe dê com a vara; porque, por vida do
governador, e assim Deus me deixe usufruir, que morro de fome, e o
negar-me a comida, embora lhe pese ao senhor doutor e ele mais me
diga, antes será tirar-me a vida que aumentá-la.
- Vossa mercê tem razão, senhor governador - respondeu o médico;
- e assim, é meu parecer que vossa mercê não coma daqueles coelhos
guisados que ali estão, porque é manjar de animal de pelo fino. Daquela
vitela, se não fosse assada e com adubo, ainda se poderia provar, mas
não há para quê.
E Sancho disse:
- Aquele pratarrão que está mais adiante fumegante me parece que
é um cozido, que pela diversidade de coisas que nos tais cozidos há,
não poderei deixar de topar com alguma que me seja de gosto e de
proveito.
- Absit! (Fora! (N. do T.)) - disse o médico. - Vá longe de nós tão
mau pensamento: não há coisa no mundo de pior conservação que um
cozido. Lá os cozidos para os cônegos, ou para os reitores de colégios,
ou para as bodas lavradorescas, e deixe-nos livres as mesas dos
governadores, onde há de assistir todo primor e todo cuidado; e a
razão é porque sempre e onde quer e de quem quer são mais estimadas
as medicinas simples que as compostas, porque nas simples não se pode
errar e nas compostas sim, alterando a quantidade das coisas de que
são compostas; mas o que eu sei que há de comer o senhor governador
agora, para conservar sua saúde e corroborá-la, é um cento de
canudinhos de hóstia e umas talhadinhas sutis de carne de marmelo,
que lhe assentem o estômago e lhe ajudem a digestão.
Ouvindo isto Sancho, arrimou-se sobre o espaldar da cadeira e
olhou fixamente o tal médico, e com voz grave lhe perguntou como se
chamava e onde havia estudado. Ao que ele respondeu:
- Eu, senhor governador, me chamo o doutor Pedro Recio de Agouro,
e sou natural de um lugar chamado Tirteafora, que está entre
Caracuel e Almodóvar do Campo, à mão direita, e tenho o grau de
doutor pela universidade de Osuna.
Ao que respondeu Sancho, todo aceso em cólera:
- Pois, senhor doutor Pedro Recio de Mau Agouro, natural de
Tirteafora, lugar que está à direita mão como vamos de Caracuel a
Almodóvar do Campo, graduado em Osuna, saia-me logo daqui, se não,
voto ao sol que tome um bordão e que a bordoadas, começando pelo
senhor, não me há de ficar médico em toda a ilha, ao menos daqueles
que eu entenda que são ignorantes; que os médicos sábios, prudentes e
discretos os porei sobre minha cabeça e os honrarei como a pessoas
divinas. E volto a dizer que se vá, Pedro Recio, daqui; se não, tomarei
esta cadeira onde estou sentado e a lançarei na cabeça; e peçam-no
quando se me acabe o mandato; que eu me inocentarei ao dizer que fiz
serviço a Deus em matar a um mau médico, verdugo da república. E
deem-me de comer, ou se não, tomem seu governo, que ofício que não
dá de comer a seu dono não vale duas favas.
Alvoroçou-se o doutor, vendo tão colérico o governador, e quis
fazer tirteafora da sala, entretanto naquele instante soou uma
corneta de posta na rua, e, assomando o camareiro-mor à janela,
voltou dizendo:
- Correio vem do duque meu senhor: algum despacho deve trazer de
importância.
Entrou o correio suando e assustado, e tirando uma folha do seio, a
pôs nas mãos do governador, e Sancho a pôs nas do mordomo, a quem
mandou lesse o sobrescrito, que dizia assim: A dom Sancho Pança,
governador da ilha Baratária, em sua própria mão ou nas de seu
secretário. Ouvindo o que Sancho, disse:
- Quem é aqui meu secretário?
E um dos que presentes estavam respondeu:
- Eu, senhor, porque sei ler e escrever, e sou biscainho.
- Com esse acréscimo - disse Sancho, - bem podeis ser secretário
do mesmo imperador. Abri essa folha, e vede o que diz.
Fê-lo assim o recém-nascido secretário, e, havendo lido o que dizia,
disse que era negócio para tratar a sós. Mandou Sancho despejar a
sala, e que não ficassem nela senão o mordomo e o camareiro-mor, e os
demais e o médico se foram; e logo o secretário leu a carta, que assim
dizia:

A minha notícia chegou, senhor dom Sancho Pança, que uns inimigos meus e
dessa ilha lhe hão de dar um assalto furioso, não sei que noite; convém velar e
estar alerta, para que não o tomem desapercebido. Sei também, por espias
verdadeiras, que entraram nesse lugar quatro pessoas disfarçadas para tirar-
vos a vida, porque temem vosso engenho; abri o olho, e vede quem chega a
falar-vos, e não comais de coisa que vos presentearem. Eu terei cuidado de
socorrer-vos se vos virdes em perigo, e em tudo fareis como se espera de
vosso entendimento. Deste lugar, a dezesseis de agosto, às quatro da manhã.

Vosso amigo, O Duque.

Ficou atônito Sancho, e o mostraram ficar também os


circunstantes; e, voltando-se ao mordomo, disse-lhe:
- O que agora se há de fazer, e há de ser logo, é meter num
calabouço o doutor Recio; porque se algum me há de matar, há de ser
ele, e de morte adminícula e péssima, como é a da fome.
- Também - disse o camareiro-mor - me parece a mim que vossa
mercê não coma de tudo o que está nesta mesa, porque o
presentearam umas monjas, e, como costuma dizer-se, detrás da cruz
está o diabo.
- Não o nego - respondeu Sancho, - e por agora deem-me um pedaço
de pão e cerca de quatro libras de uvas, que nelas não poderá vir
veneno; porque, com efeito, não posso passar sem comer, e se é que
havemos de estar prontos para estas batalhas com que nos ameaçam,
preciso será estar bem providos, porque tripas levam coração, que não
coração tripas. E vós, secretário, respondei ao duque meu senhor e
dizei-lhe que se cumprirá o que manda como o manda, sem faltar nada;
e dareis de minha parte um beija-mãos à minha senhora a duquesa, e
que lhe suplico não se esqueça de enviar por um mensageiro minha
carta e meu pacote à minha mulher Teresa Pança, que nele receberei
muita mercê, e terei cuidado de servi-la com tudo o que minhas forças
alcançarem; e no caminho podeis encaixar um beija-mãos a meu senhor
dom Quixote da Mancha, porque veja que sou pão agradecido; e vós,
como bom secretário e como bom biscainho, podeis juntar tudo o que
quiserdes e mais vier ao caso. E levem estes pratos, e deem-me de
comer, que eu me haverei com quantas espias e matadores e
encantadores vierem sobre mim e sobre minha ilha.
Nisto entrou um pajem, e disse:
- Aqui está um lavrador negociante que quer falar a vossa senhoria
de um negócio, segundo ele diz, de muita importância.
- Estranho caso é este - disse Sancho - destes negociantes. É
possível que sejam tão néscios, que não vejam que semelhantes horas
como estas não são as que hão de vir a negociar? Porventura os que
governamos, os que somos juízes, não somos homens de carne e de
osso, e que é preciso que nos deixem descansar o tempo que a
necessidade pede, senão que querem que sejamos feitos de pedra
mármore? Por Deus e em minha consciência que se me dura o governo,
que não durará, segundo me está claro, que eu me faça ser
considerado por mais de um negociante. Agora dizei a esse bom
homem que entre; mas advirta-se primeiro não seja algum dos espias,
ou matador meu.
- Não, senhor - respondeu o pajem, - porque parece uma alma de
cântaro, e eu sei pouco, ou ele é tão bom como o bom pão.
- Não há que temer - disse o mordomo, - que aqui estamos todos.
- Seria possível - disse Sancho, - camareiro-mor, que agora que não
está aqui o doutor Pedro Recio, que comesse eu alguma coisa de peso e
de substância, embora fosse um pedaço de pão e uma cebola?
- Esta noite, à janta, se satisfará a falta da comida, e ficará
vossa senhoria satisfeito e pago - disse o camareiro-mor.
- Deus o faça - respondeu Sancho.
E nisto, entrou o lavrador, que era de muito boa presença, e de mil
léguas se via que era bom e boa alma. A primeira coisa que disse foi:
- Quem é aqui o senhor governador?
- Quem há de ser - respondeu o secretário, - senão o que está
sentado na cadeira?
- Curvo-me, pois, em sua presença - disse o lavrador.
E pondo-se de joelhos, lhe pediu a mão para beijá-la. Negou-a
Sancho, e mandou que se levantasse e dissesse o que queria. Fê-lo
assim o lavrador, e logo disse:
- Eu, senhor, sou lavrador, natural de Miguel Turra, um lugar que
está a duas léguas de Cidade Real.
- Outro Tirteafora temos! - disse Sancho. - Dizei, irmão, que o que
eu vos sei dizer é que conheço muito bem Miguel Turra, e que não está
muito longe de meu povoado.
- É, pois, o caso, senhor - prosseguiu o lavrador, - que eu, pela
misericórdia de Deus, sou casado em paz e em face da Santa Igreja
Católica Romana; tenho dois filhos estudantes que o menor estuda
para bacharel e o maior para licenciado; sou viúvo, porque morreu
minha mulher, ou, por melhor dizer, a matou um mau médico, que a
purgou estando prenhe, e se Deus fosse servido que saísse à luz o
parto, e fosse filho, eu o poria a estudar para doutor, para que não
tivesse inveja de seus irmãos o bacharel e o licenciado.
- De modo - disse Sancho - que se vossa mulher não houvesse
morrido, ou a houvessem matado, vós não seríeis agora viúvo.
- Não, senhor, de maneira alguma - respondeu o lavrador.
- Lúcidos estamos! - replicou Sancho. - Adiante, irmão, que é hora
de dormir mais que de negociar.
- Digo, pois - disse o lavrador, - que este meu filho que há de ser
bacharel se enamorou no mesmo povoado de uma donzela chamada
Clara Perlerina, filha de André Perlerino, lavrador riquíssimo; e este
nome de Perlerines não lhes vem de avoengo nem outra estirpe, senão
porque todos os desta linhagem são paralíticos, e por melhorar o nome
os chamam Perlerines; embora, se vai dizer a verdade, a donzela é
como uma pérola orental, e, vista pelo lado direito, parece uma flor do
campo; pelo esquerdo não tanto, porque lhe falta aquele olho, que se
lhe saltou por varíola; e, embora os buracos do rosto são muitos e
grandes, dizem os que a querem bem que aqueles não são buracos,
senão sepulturas onde se sepultam as almas de seus amantes. É tão
limpa que, para não sujar a cara, traz o nariz, como dizem, arregaçado,
que não parece senão que vai fugindo da boca; e, mesmo assim, parece
bem por extremo, porque tem a boca grande, e, a não faltar-lhe dez
ou doze dentes, poderia sobrepujar as mais bem formadas. Dos lábios
não tenho que dizer, porque são tão sutis e delicados que, se se usasse
trançar lábios, poderiam fazer deles uma meada; mas, como têm
diferente cor da que nos lábios se usa comumente, parecem
milagrosos, porque são jaspeados de azul e verde e aberinjelado; e
perdoe-me o senhor governador se por tão miúdo vou pintando as
partes da que ao fim ao fim há de ser minha filha, que a quero bem e
não me parece mal.
- Pintai o que quiserdes - disse Sancho, - que eu me vou recreando
na pintura, e se houvesse comido, não haveria melhor sobremesa para
mim que vosso retrato.
- Isso tenho eu por servir - respondeu o lavrador, - mas tempo virá
em que sejamos, se agora não somos. E digo, senhor, que se pudesse
pintar sua gentileza e a altura de seu corpo, seria coisa de admiração;
mas não pode ser, por que ela está encurvada e encolhida, e tem os
joelhos com a boca, e, desse modo, se vê que se se pudesse levantar,
daria com a cabeça no teto; e já ela haveria dado a mão de esposa a
meu bacharel, senão que não a pode estender, que está atada; e,
contudo, nas unhas largas e acaneladas se mostra sua bondade e bom
caráter.
- Está bem - disse Sancho, - e fazei de conta, irmão, que já a haveis
pintado dos pés à cabeça. Que é o que quereis agora? E vinde ao ponto
sem rodeios nem ruazinhas, nem retalhos nem acréscimos.
- Queria, senhor - respondeu o lavrador, - que vossa mercê me
fizesse mercê de dar-me uma carta de favor para meu consogro,
suplicando-lhe seja servido de que este casamento se faça, pois não
somos desiguais nos bens de fortuna, nem nos da natureza; porque,
para dizer a verdade, senhor governador, meu filho é endemoniado, e
não há dia que três ou quatro vezes não lhe atormentem os malignos
espíritos; e por haver caído uma vez no fogo, tem o rosto enrugado
como pergaminho, e os olhos algo chorosos e mananciais; mas tem uma
condição de um anjo, e se não é que se atonteia e se dá de murros ele
mesmo a si mesmo, seria um bendito.
- Quereis outra coisa, bom homem? - replicou Sancho.
- Outra coisa queria - disse o lavrador, - contudo não me atrevo a
dizê-lo; mas vá, que, enfim, não se me há de apodrecer no peito, pegue
ou não pegue. Digo, senhor, que queria que vossa mercê me desse
trezentos ou seiscentos ducados para ajuda ao dote de meu bacharel;
digo para ajuda de pôr sua casa, porque, enfim, hão de viver por si,
sem estar sujeitos às impertinências dos sogros.
- Vede se quereis outra coisa - disse Sancho, - e não a deixeis de
dizer por pejo nem por vergonha.
- Não, por certo - respondeu o lavrador.
E apenas disse isto, quando, levantando-se o governador, pegou da
cadeira em que estava sentado e disse:
- Voto a tal, dom campônio rústico e malvisto, que se não vos
afastais e escondeis logo de minha presença, que com esta cadeira vos
rompa e abra a cabeça! Fideputa velhaco, pintor do mesmo demônio, e
a estas horas te vens a pedir-me seiscentos ducados? E onde os tenho
eu, hediondo? E por que tos havia de dar, embora os tivesse, socarrão
e mentecapto? E que se me dá a mim de Miguel Turra, nem de toda a
linhagem dos Perlerines? Vá de mim, digo; se não, por vida do duque
meu senhor, que faço o que disse! Tu não deves ser de Miguel Turra,
senão algum socarrão que, para tentar-me, te enviou aqui o inferno.
Diz-me, desalmado, ainda não há dia e meio que tenho o governo, e já
queres que tenha seiscentos ducados?
Fez sinais o camareiro-mor ao lavrador para que se saísse da sala, o
qual o fez cabisbaixo e, ao parecer, temeroso de que o governador
executasse sua cólera; que o velhacão soube fazer muito bem seu
ofício.
Mas deixemos Sancho com sua cólera, e fique em paz o grupinho, e
voltemos a dom Quixote, que o deixamos com o rosto emplastrado
curando das gatescas feridas, das quais não sarou em oito dias, em um
dos quais lhe sucedeu o que Cide Hamete promete contar com a
pontualidade e verdade com que costuma contar as coisas desta
história, por mínimas que sejam.

CAPÍTULO XLVIII

Do que sucedeu a dom Quixote com dona Rodríguez, a ama da


duquesa, com outros acontecimentos dignos de escritura e de memória
eterna

Sobremaneira estava mofino e melancólico o malferido dom


Quixote, emplastrado o rosto e marcado, não pela mão de Deus, senão
pelas unhas de um gato, desditas próprias à andante cavalaria. Seis
dias esteve sem sair em público, em uma noite das quais, estando
desperto e desvelado, pensando em suas desgraças e no assédio de
Altisidora, sentiu que com uma chave abriam a porta de seu aposento,
e logo imaginou que a enamorada donzela vinha para sobressaltar sua
honestidade e pô-lo em condição de faltar à fé que guardar devia à
sua senhora Dulcineia do Toboso.
- Não - disse, crendo em sua imaginação, e isto com voz que poderia
ser ouvida, - não há de haver a maior formosura da terra para que eu
deixe de adorar a que tenho gravada e estampada no íntimo de meu
coração e no mais escondido de minhas entranhas, ora estejas,
senhora minha, transformada em ceboluda lavradora, ora em ninfa do
dourado Tejo, tecendo telas de ouro e sirgo compostas, ora te tenha
Merlim, ou Montesinos, onde eles quiserem; que, onde quer és minha, e
onde quer fui eu, e hei de ser, teu.
O acabar estas razões e o abrir da porta foi tudo um. Pôs-se em pé
sobre a cama, envolto de cima abaixo em uma colcha de seda amarela,
um gorro de dormir na cabeça, e o rosto e os bigodes vendados - o
rosto, pelos arranhos; os bigodes, porque não se lhe desmaiassem e
caíssem -, no qual traje parecia o mais extraordinário fantasma que se
poderia pensar.
Cravou os olhos na porta, e, quando esperava ver entrar por ela a
rendida e lastimada Altisidora, viu entrar uma reverendíssima ama
com umas toucas brancas pregueadas e longas, tanto, que a cobriam
dos pés à cabeça. Entre os dedos da mão esquerda trazia uma meia
vela acesa, e com a direita fazia sombra, para que não lhe desse a luz
nos olhos, os quais cobriam uns muito grandes óculos. Vinha pisando de
manso, e movia os pés brandamente.
Mirou-a dom Quixote desde sua atalaia, e quando viu seu alinho e
notou seu silêncio, pensou que alguma bruxa ou maga vinha naquele
traje a lhe fazer alguma má ação, e começou a benzer-se com muita
pressa. Foi-se chegando a visão, e, quando chegou a meio do aposento,
alçou os olhos e viu a pressa com que estava fazendo cruzes dom
Quixote; e se ele ficou medroso em ver tal figura, ela ficou espantada
em ver a sua, porque, assim que o viu tão alto e tão amarelo, com a
colcha e com as ataduras que o desfiguravam, deu uma grande voz,
dizendo:
- Jesus! Que é o que vejo?
E com o sobressalto caiu a vela de suas mãos; e, vendo-se às
escuras, voltou as costas para ir-se, e com o medo tropeçou em suas
fraldas e deu consigo uma grande queda. Dom Quixote, temeroso,
começou a dizer:
- Conjuro-te, fantasma, ou o que és, que me digas quem és, e que me
digas que é o que de mim queres. Se és alma em pena, dize-o, que eu
farei por ti tudo quanto minhas forças alcançarem, porque sou católico
cristão e amigo de fazer bem a todo o mundo; que para isto tomei a
ordem da cavalaria andante que professo, cujo exercício ainda até
fazer bem às almas de purgatório se estende.
A machucada ama, que ouviu conjurar-se, por seu temor entendeu o
de dom Quixote, e com voz aflita e baixa lhe respondeu:
- Senhor dom Quixote, se é que acaso vossa mercê é dom Quixote,
eu não sou fantasma, nem visão, nem alma de purgatório, como vossa
mercê deve haver pensado, senão dona Rodríguez, a ama de honra de
minha senhora a duquesa, que com uma necessidade daquelas que vossa
mercê costuma remediar à vossa mercê venho.
- Diga-me, senhora dona Rodríguez - disse dom Quixote: -
porventura vem vossa mercê fazer alguma mediação? Porque lhe faço
saber que não sou de proveito para ninguém, mercê à sem par beleza
de minha senhora Dulcineia do Toboso. Digo, enfim, senhora dona
Rodríguez, que, se vossa mercê evita e deixa à parte todo recado
amoroso, pode voltar para acender sua vela, e retorne, e
compartiremos tudo o que mais mandar e mais em gosto lhe vier,
evitando, como digo, toda provocativa delicadeza.
- Eu recado de alguém, senhor meu? - respondeu a ama. - Mal me
conhece vossa mercê; sim, que ainda não estou em idade tão
prolongada que me acolha a semelhantes ninharias, pois, Deus louvado,
minha alma tenho nas carnes, e todos meus dentes na boca, além de
uns poucos que me usurparam uns catarros, que nesta terra de Aragão
são tão ordinários. Mas espere vossa mercê um pouco; sairei para
acender minha vela, e voltarei num instante a contar minhas coitas,
como a remediador de todas as do mundo.
E sem esperar resposta, saiu do aposento, onde ficou dom Quixote
sossegado e pensativo esperando-a; mas logo lhe sobrevieram mil
pensamentos acerca daquela nova aventura, e parecia-lhe ser mal feito
e pior pensado pôr-se em perigo de romper à sua senhora a fé
prometida, e dizia a si mesmo:
- Quem sabe se o diabo, que é sutil e manhoso, quererá enganar-me
agora com uma ama, o que não pôde com imperatrizes, rainhas,
duquesas, marquesas nem condessas? Que eu ouvi dizer muitas vezes
e a muitos discretos que, se ele pode, antes vos dará mulher de nariz
chato que aquilino. E quem sabe se esta solidão, esta ocasião e este
silêncio despertará meus desejos que dormem, e farão que ao cabo de
meus anos venha a cair onde nunca tropecei? E em casos semelhantes,
melhor é fugir que esperar a batalha. Mas eu não devo estar em meu
juízo, pois tais disparates digo e penso; que não é possível que uma
ama touquibranca, comprida e caprichosa possa mover nem levantar
pensamento lascivo no mais desalmado peito do mundo. Porventura há
ama na terra que tenha boas carnes? Porventura há ama no orbe que
deixe de ser impertinente, geniosa e melindrosa? Fora, pois, caterva
amesca, inútil para nenhum humano regalo! Oh, quão bem fazia aquela
senhora de quem se diz que tinha duas amas bonecas com seus óculos
e almofadinhas ao cabo de seu estrado, como se estivessem
costurando, e tanto lhe serviam para a autoridade da sala aquelas
estátuas como as amas verdadeiras!
E dizendo isto se arrojou do leito com intenção de fechar a porta e
não deixar entrar a senhora Rodríguez; mas quando a chegou a fechar,
já a senhora Rodríguez voltava, acesa uma vela de cera branca, e
quando ela viu dom Quixote de mais perto, envolto na colcha, com as
ataduras, gorro ou barrete, temeu de novo, e, indo para trás como
dois passos, disse:
- Estamos seguras, senhor cavaleiro? Porque não tenho por muito
honesto sinal haver-se vossa mercê levantado de seu leito.
- Isso mesmo é bem que eu pergunte, senhora - respondeu dom
Quixote; - e assim, pergunto se estarei eu seguro de ser acometido e
forçado.
- De quem ou a quem pedis, senhor cavaleiro, essa segurança? -
respondeu a ama.
- A vós e de vós a peço - replicou dom Quixote, - porque nem eu sou
de mármore nem vós de bronze, nem agora são as dez do dia, senão
meia-noite, e ainda um pouco mais, segundo imagino, e em um quarto
mais fechado e secreto que o deveu ser a cova onde o traidor e
atrevido Eneias desfrutou da formosa e piedosa Dido. Mas dai-me,
senhora, a mão, que eu não quero outra segurança maior que a de
minha continência e recato, e a que oferecem essas reverendíssimas
toucas.
E dizendo isto, beijou sua direita mão, e lhe tomou a sua, que ela lhe
deu com as mesmas cerimônias.
Aqui faz Cide Hamete um parêntese, e diz que por Maomé que daria
por ver ir os dois assim presos e travados desde a porta ao leito a
melhor túnica de duas que tinha.
Entrou, enfim, dom Quixote em seu leito, e ficou dona Rodríguez
sentada em uma cadeira, algo desviada da cama, não tirando os óculos
nem a vela. Dom Quixote se encolheu e se cobriu todo, não deixando
mais que o rosto descoberto; e, havendo-se os dois sossegado, o
primeiro que rompeu o silêncio foi dom Quixote, dizendo:
- Pode vossa mercê agora, minha senhora dona Rodríguez, abrir-se e
desembuchar tudo aquilo que tem dentro de seu coitado coração e
lastimadas entranhas, que será por mim escutada com castos ouvidos,
e socorrida com piedosas obras.
- Assim o creio eu - respondeu a ama, - que da gentil e agradável
presença de vossa mercê não se podia esperar senão tão cristã
resposta. É, pois, o caso, senhor dom Quixote, que, embora vossa
mercê me vê sentada nesta cadeira e no reino de Aragão, e em traje
de ama aniquilada e angustiada, sou natural das Astúrias de Oviedo, e
de linhagem que atravessam por ela muitos dos melhores daquela
província; mas minha pequena sorte e o descuido de meus pais, que
empobreceram antes de tempo, sem saber como, nem como não, me
trouxeram à corte, a Madri, onde por bem de paz e por evitar maiores
desventuras, meus pais me acomodaram a servir de criadinha de uma
principal senhora; e quero fazer sabedor a vossa mercê que em fazer
bainhas e festões nenhuma me venceu em toda a vida. Meus pais me
deixaram servindo e voltaram à sua terra, e dali a poucos anos
deveram ir para o céu, porque eram muito bons e católicos cristãos.
Fiquei órfã, e presa ao miserável salário e às estreitas mercês que às
tais criadas se costumam dar em palácio; e, neste tempo, sem que
desse eu ocasião a isso, se enamorou de mim um escudeiro de casa,
homem já em dias, barbudo e apessoado, e, sobretudo, fidalgo como o
Rei, porque era montanhês. Não tratamos tão secretamente nossos
amores que não viessem à notícia de minha senhora, a qual, para evitar
falatórios, nos casou em paz e em face da Santa Madre Igreja
Católica Romana, de cujo matrimônio nasceu uma filha para rematar
com minha ventura, se alguma tinha; não porque eu morresse do parto,
que o tive direito e em ocasião, senão porque dali a pouco morreu meu
esposo de um certo espanto que teve, que, a ter agora lugar para
contá-lo, eu sei que vossa mercê se admiraria.
E nisto, começou a chorar ternamente, e disse:
- Perdoe-me vossa mercê, senhor dom Quixote, que não está mais
em minha mão, porque todas as vezes que me lembro de meu malogro
se me arrasam os olhos de lágrimas. Valha-me Deus, e com que
autoridade cavalgava minha senhora às ancas de uma poderosa mula,
negra como o mesmo azeviche! Que então não se usavam coches nem
selas, como agora dizem que se usam, e as senhoras iam às ancas de
seus escudeiros. Isto, ao menos, não posso deixar de contá-lo, porque
se note a educação e pontualidade de meu bom marido. Ao entrar da
rua de Santiago, em Madri, que é algo estreita, vinha a sair por ela um
alcaide de corte com dois meirinhos adiante, e, assim que meu bom
escudeiro o viu, voltou as rédeas à mula, dando sinal de voltar a
acompanhá-lo. Minha senhora, que ia às ancas, com voz baixa lhe dizia:
“- Que fazeis, desventurado? Não vedes que vou aqui?” O alcaide,
comedido, deteve a rédea do cavalo e disse-lhe: “- Segui, senhor,
vosso caminho, que eu sou o que devo acompanhar a minha senhora
dona Casilda”, que assim era o nome de minha ama. Ainda insistia meu
marido, com o boné na mão, a querer ir acompanhando o alcaide, vendo
o que minha senhora, cheia de cólera e zanga, tirou um alfinete grosso
ou creio que um furador do estojo, e cravou-o pelos lombos, de
maneira que meu marido deu uma grande voz e torceu o corpo, de
sorte que deu com sua senhora no chão. Acudiram dois lacaios seus a
levantá-la, e o mesmo fez o alcaide e os meirinhos; Alvoroçou-se a
Porta de Guadalajara, digo, a gente baldia que nela estava; veio a pé
minha ama, e meu marido foi à casa de um barbeiro dizendo que levava
trespassadas de parte a parte as entranhas. Divulgou-se a cortesia de
meu esposo, tanto, que os moços o vexavam pelas ruas, e por isto e
porque ele era algum tanto curto de vista, minha senhora a duquesa o
despediu, cujo pesar, sem dúvida alguma, tenho para mim que lhe
causou o mal da morte. Fiquei eu viúva e desamparada, e com filha às
costas, que ia crescendo em formosura como a espuma do mar.
Finalmente, como eu tivesse fama de grande costureira, minha
senhora a duquesa, que estava recém casada com o duque meu senhor,
quis trazer-me consigo a este reino de Aragão e a minha filha nem
mais nem menos, onde, indo dias e vindo dias, cresceu minha filha, e
com ela todo o donaire do mundo: canta como uma calandra, dança
como o pensamento, baila como uma perdida, lê e escreve como um
mestre de escola, e conta como um avarento. De sua limpeza não digo
nada: que a água que corre não é mais limpa, e deve ter agora, se mal
não me lembro, dezesseis anos, cinco meses e três dias, um mais ou
menos. Em suma: desta minha moça se enamorou um filho de um
lavrador riquíssimo que está em uma aldeia do duque meu senhor, não
muito longe daqui. Com efeito, não sei como, nem como não, eles se
juntaram, e, debaixo da palavra de ser seu esposo, burlou a minha
filha, e não a quer cumprir; e, embora o duque meu senhor o saiba,
porque eu me queixei a ele, não uma, senão muitas vezes, e pedi mande
que o tal lavrador se case com minha filha, faz orelhas de mercador e
apenas quer ouvir-me; e é porque, como o pai do burlador é tão rico e
lhe empresta dinheiros, e lhe sai por fiador de suas armadilhas por
momentos, não o quer descontentar nem dar pesar de nenhum modo.
Queria, pois, senhor meu, que vossa mercê tomasse a cargo o
desfazer este agravo, ou já por rogos, ou já por armas, pois, segundo
todo o mundo diz, vossa mercê nasceu nele para desfazê-los e para
endireitar os tortos e amparar os miseráveis; e ponha-se vossa mercê
diante da orfandade de minha filha, sua gentileza, sua mocidade, com
todas as boas qualidades que disse que tem; que em Deus e em minha
consciência que de quantas donzelas tem minha senhora, que não há
nenhuma que chegue à sola de seu sapato, e que uma que chamam
Altisidora, que é a que têm por mais desenvolta e galharda, posta em
comparação com minha filha, não lhe chega a duas léguas. Porque quero
que saiba vossa mercê, senhor meu, que não é tudo ouro o que reluz;
porque esta Altisidora tem mais de presunção que de formosura, e
mais de desenvolta que de recolhida, além disso não está muito sã: que
tem um certo mau hálito, que não há suportar o estar junto a ela um
momento. E ainda minha senhora a duquesa... Quero calar, que se
costuma dizer que as paredes têm ouvidos.
- Que tem minha senhora a duquesa, por vida minha, senhora dona
Rodríguez? - perguntou dom Quixote.
- Com esse conjuro - respondeu a ama, - não posso deixar de
responder ao que se me pergunta com toda verdade. Vê vossa mercê,
senhor dom Quixote, a formosura de minha senhora a duquesa, aquela
tez de rosto, que não parece senão de uma espada polida, aquelas duas
faces de leite e de carmim, que em uma tem o sol e na outra a lua, e
aquela galhardia com que vai pisando e ainda desprezando o chão, que
não parece senão que vai derramando saúde onde passa? Pois saiba
vossa mercê que o pode agradecer, primeiro, a Deus, e logo, a duas
incisões que tem nas duas pernas, por onde deságua todo o mau humor
de quem dizem os médicos que está cheia.
- Santa Maria! - disse dom Quixote. - E é possível que minha
senhora a duquesa tenha tais desaguadeiros? Não o creria se mo
dissessem frades descalços; mas, pois a senhora dona Rodríguez o diz,
deve ser assim. Mas tais incisões, e em tais lugares, não devem manar
humor, senão âmbar líquido. Verdadeiramente que agora acabo de crer
que isto de fazer-se incisões deve ser coisa importante para a saúde.
Apenas acabou dom Quixote de dizer esta palavra, quando com um
grande golpe abriram as portas do aposento, e do sobressalto do golpe
caiu a vela da mão de dona Rodríguez, e ficou o quarto como boca de
lobo, como costuma dizer-se. Logo sentiu a pobre ama que a agarravam
pela garganta com duas mãos, tão fortemente que não a deixavam
ganir, e que outra pessoa, com muita presteza, sem falar palavra, lhe
alçava as fraldas, e com uma, ao parecer, chinela, lhe começou a dar
tantos açoites, que era uma compaixão; e, embora dom Quixote a
tinha, não se mexia do leito, e não sabia o que podia ser aquilo, e
estava quieto e calado, e ainda temendo não viesse por ele a tunda
açoitesca. E não foi vão seu temor, porque, deixando moída a ama os
calados verdugos, a qual não ousava queixar-se, chegaram a dom
Quixote, e, desembaraçando-o do lençol e da colcha, beliscaram-no
tão amiúde e tão fortemente, que não pôde deixar de defender-se a
murros, e tudo isto em silêncio admirável. Durou a batalha quase meia
hora; saíram os fantasmas, recolheu dona Rodríguez suas fraldas, e,
gemendo sua desgraça, saiu pela porta afora, sem dizer palavra a dom
Quixote, o qual, dolorido e beliscado, confuso e pensativo, ficou só,
onde o deixaremos desejoso de saber quem havia sido o perverso
encantador que tal o havia posto. Mas isso se dirá a seu tempo, que
Sancho Pança nos chama, e o bom concerto da história o pede.

CAPÍTULO XLIX

Do que sucedeu a Sancho Pança rondando sua ilha

Deixamos o grande governador irado e mofino com o lavrador pintor


e socarrão, o qual, industriado pelo mordomo, e o mordomo pelo duque,
burlavam com Sancho; mas ele fazia frente a todos, embora tonto,
bronco e grosseiro, e disse aos que com ele estavam, e ao doutor
Pedro Recio, que, como acabara o segredo da carta do duque, havia
voltado a entrar na sala:
- Agora verdadeiramente entendo que os juízes e governadores
devem ser, ou hão de ser, de bronze, para não sentir as
importunidades dos negociantes, que a todas as horas e a todo tempo
querem que os escutem e despachem, atendendo só a seu negócio,
venha o que vier; e se o pobre do juiz não os escuta e despacha, ou
porque não pode ou porque não é aquele tempo apropriado para dar-
lhes audiência, logo os maldizem e murmuram, e lhes roem os ossos, e
ainda lhes esquadrinham as linhagens. Negociante néscio, negociante
mentecapto, não te apresses; espera ocasião e conjuntura para
negociar: não venhas à hora do comer nem à do dormir, que os juízes
são de carne e de osso e hão de dar à natureza o que naturalmente
lhes pede, se não é eu, que não lhe dou de comer à minha, mercê ao
senhor doutor Pedro Recio Tirteafora, que está diante, que quer que
morra de fome, e afirma que esta morte é vida, que assim a dê Deus a
ele e a todos os de sua ralé: digo, à dos maus médicos, que a dos bons,
palmas e louros merecem.
Todos os que conheciam Sancho Pança se admiravam, ouvindo-o
falar tão elegantemente, e não sabiam a que atribuí-lo, senão a que os
ofícios e cargos graves, ou adubam ou entorpecem os entendimentos.
Finalmente, o doutor Pedro Recio Agouro de Tirteafora prometeu dar-
lhe de jantar aquela noite, embora excedesse todos os aforismos de
Hipócrates. Com isto ficou contente o governador, e esperava com
grande ânsia chegasse a noite e a hora de jantar; e, embora o tempo,
ao parecer seu, estivesse parado, sem mover-se do lugar, todavia
chegou por ele o tanto desejado, onde lhe deram de jantar um salpicão
de vaca com cebola, e umas mãos cozidas de vitela algo entrada em
dias. Entregou-se em tudo com mais gosto do que se lhe houvessem
dado francolins de Milão, faisões de Roma, vitela de Sorrento,
perdizes de Morón, ou gansos de Lavajos, e entre o jantar, voltando-
se ao doutor, disse-lhe:
- Vede, senhor doutor: daqui em diante não cuideis de dar-me a
comer coisas regaladas nem manjares esquisitos, porque será tirar
meu estômago de seu natural, o qual está acostumado a cabra, a vaca,
a toucinho, a carne seca, a nabos e a cebolas, e se acaso lhe dão
outros manjares de palácio, os recebe com melindre, e algumas vezes
com asco. O que o camareiro-mor pode fazer é trazer-me estes que
chamam cozidos, que quanto mais cozidos são, melhor cheiram, e neles
se pode enfiar tudo o que se quiser, como seja de comer, que eu o
agradecerei e o pagarei algum dia; e não burle ninguém comigo, porque
ou somos ou não somos: vivamos todos e comamos em boa paz e
companhia, pois, quando Deus amanhece, para todos amanhece. Eu
governarei esta ilha sem perdoar direito nem levar suborno, e todo o
mundo traga o olho alerta e atenda ao seu, porque lhes faço saber que
há desordens, e que se me dão ocasião, hão de ver maravilhas. Não,
senão fazei mel, e comer-vos-ão moscas.
- Por certo, senhor governador - disse o camareiro-mor, - que vossa
mercê tem muita razão em quanto disse, e que eu ofereço em nome de
todos os insulanos desta ilha que hão de servir a vossa mercê com
toda pontualidade, amor e benevolência, porque o suave modo de
governar que nestes princípios vossa mercê deu não lhes dá lugar de
fazer nem de pensar coisa que em desserviço de vossa mercê redunde.
- Eu o creio - respondeu Sancho, - e foram eles uns néscios se outra
coisa fizeram ou pensaram. E volto a dizer que se tenha conta com
meu sustento e com o de meu ruço, que é o que neste negócio importa
e faz mais ao caso; e, em sendo hora, vamos a rondar, que é minha
intenção limpar esta ilha de todo gênero de imundície e de gente
vagabunda, folgazões, e mal entretida; porque quero que saibais,
amigos, que a gente baldia e preguiçosa é na república o mesmo que os
zangãos nas colmeias, que comem o mel que as trabalhadoras abelhas
fazem. Penso favorecer os lavradores, guardar suas preeminências aos
fidalgos, premiar os virtuosos e, sobretudo, ter respeito à religião e à
honra dos religiosos. Que vos parece isto, amigos? Digo algo, ou
quebro a cabeça?
- Diz tanto vossa mercê, senhor governador - disse o mordomo, -
que estou admirado de ver que um homem tão sem letras como vossa
mercê, que, ao que creio, não tem nenhuma, diga tais e tantas coisas
cheias de sentenças e de avisos, tão fora de tudo aquilo que do
engenho de vossa mercê esperavam os que nos enviaram e os que aqui
vimos. Cada dia se veem coisas novas no mundo: as burlas se voltam em
veras e os burladores se acham burlados.
Chegou a noite, e jantou o governador, com licença do senhor doutor
Recio. Prepararam-se para a ronda; saiu com o mordomo, secretário e
camareiro-mor, e o cronista que tinha cuidado de pôr em memória seus
feitos, e meirinhos e escrivãos, tantos que podiam formar um mediano
esquadrão. Ia Sancho em meio, com sua vara, que não havia mais que
ver, e poucas ruas andadas do lugar, ouviram ruído de cutiladas; foram
lá, e acharam que eram só dois homens os que lutavam, os quais, vendo
vir a justiça, ficaram parados; e um deles disse:
- Aqui Deus e o rei! Como se há de suportar que roubem em público
neste povoado, e que se saia a assaltar nele no meio das ruas?
- Sossegai, homem de bem - disse Sancho, - e contai-me qual é a
causa desta pendência, que eu sou o governador.
O outro contrário disse:
- Senhor governador, eu a direi com toda brevidade. Vossa mercê
saberá que este gentil-homem acaba de ganhar agora nesta casa de
jogo que está aqui em frente mais de mil reais, e sabe Deus como; e,
achando-me eu presente, julguei mais de uma sorte duvidosa em seu
favor, contra tudo aquilo que me ditava a consciência; alçou-se com o
ganho, e, quando esperava que me havia de dar algum escudo, pelo
menos, por baixo, como é uso e costume dá-lo aos homens principais
como eu, que estamos prontos para bem e mal passar, e para apoiar
sem-razões e evitar pendências, ele embolsou seu dinheiro e saiu da
casa. Eu vim despeitado atrás dele, e com boas e corteses palavras lhe
pedi que me desse sequer oito reais, pois sabe que eu sou homem
honrado e que não tenho ofício nem benefício, porque meus pais não
mo ensinaram nem deixaram, e o socarrão, que não é mais ladrão que
Caco, nem mais trapaceiro que Andradilla, não queria dar-me mais de
quatro reais; para que veja vossa mercê, senhor governador, que pouca
vergonha e que pouca consciência! Mas à fé que, se vossa mercê não
chegasse, que eu o faria vomitar o ganho, e que havia de dar-lhe uma
boa lição.
- Que dizeis vós a isto? - perguntou Sancho.
E o outro respondeu que era verdade quanto seu contrário dizia, e
não havia querido dar-lhe mais de quatro reais porque os dava muitas
vezes; e os que esperam propina hão de ser comedidos e tomar com
rosto alegre o que lhes derem, sem pôr-se em contas com os
ganhadores, se já não soubessem de certo que são trapaceiros e que o
que ganham é mal ganho; e que, para sinal que ele era homem de bem e
não ladrão, como dizia, nenhum havia maior que o não haver-lhe
querido dar nada; que sempre os trapaceiros são tributários dos
olheiros que os conhecem.
- Assim é - disse o mordomo. - Veja vossa mercê, senhor
governador, que é o que se há de fazer destes homens.
- O que se há de fazer é isto - respondeu Sancho: - vós, ganhador,
bom, ou mau, ou indiferente, dai logo a este vosso acutilador cem
reais, e mais, haveis de desembolsar trinta para os pobres do cárcere;
e vós, que não tendes ofício nem benefício e sobrais nesta ilha, tomai
logo esses cem reais, e amanhã saí desta ilha desterrado por dez anos,
sob pena, se o quebrardes, os cumprais na outra vida, pendurando-vos
eu de uma torre, ou, ao menos, o verdugo por meu mandado; e nenhum
me replique, que lhe assentarei a mão.
Desembolsou um, recebeu o outro, este saiu da ilha, e aquele se foi
a sua casa, e o governador ficou dizendo:
- Agora, eu poderei pouco, ou fecharei estas casas de jogo, que a
mim está claro que são muito prejudiciais.
- Esta, ao menos - disse um escrivão, - não a poderá vossa mercê
fechar, porque a tem um grande personagem, e mais é sem
comparação o que ele perde ao ano que o que tira dos naipes. Contra
outras casas de jogo de menor quantia poderá vossa mercê mostrar
seu poder, que são as que mais dano fazem e mais insolências
encobrem; que nas casas dos cavaleiros principais e dos senhores não
se atrevem os famosos trapaceiros a usar de suas tretas; e, pois o
vício do jogo se tornou exercício comum, melhor é que se jogue em
casas principais que não na de algum oficial, onde colhem um desditado
depois de meia-noite abaixo e o esfolam vivo.
- Agora, escrivão - disse Sancho, - eu sei que há muito que dizer
nisso.
E nisto, chegou um guarda que trazia preso um moço, e disse:
- Senhor governador, este mancebo vinha até nós, e, assim que
vislumbrou a justiça, voltou as costas e começou a correr como um
gamo, sinal que deve ser algum delinquente. Eu parti atrás dele, e, se
não fosse porque tropeçou e caiu, não o alcançaria jamais.
- Por que fugias, homem? - perguntou Sancho.
Ao que o moço respondeu:
- Senhor, para evitar responder às muitas perguntas que as
justiças fazem.
- Que ofício tens?
- Tecelão.
- E que teces?
- Ferros de lanças, com licença boa de vossa mercê.
- Graciosinho sois? Por chocarreiro quereis passar? Está bem! E
aonde íeis agora?
- Senhor, a tomar ar.
- E onde se toma ar nesta ilha?
- Onde sopra.
- Bom, respondeis muito a propósito! Discreto sois, mancebo; mas
fazei de conta que eu sou o ar, e que vos sopro na popa, e vos
encaminho ao cárcere. Pegai-o, vamos, e levai-o, que eu farei que
durma ali sem ar esta noite!
- Por Deus - disse o moço, - assim me faça vossa mercê dormir no
cárcere como fazer-me rei!
- Ora, por que não te farei eu dormir no cárcere? - respondeu
Sancho. - Não tenho eu poder para prender-te e soltar-te cada e
quando quiser?
- Por mais poder que vossa mercê tenha - disse o moço, - não será
bastante para fazer-me dormir no cárcere.
- Como não? - replicou Sancho. - Levai-o logo onde verá por seus
olhos o desengano, embora mais o alcaide queira usar com ele de sua
interessada liberalidade; que eu lhe porei pena de dois mil ducados se
te deixa sair um passo do cárcere.
- Tudo isso é coisa de riso - respondeu o moço. - O caso é que não
me farão dormir no cárcere quantos hoje vivem.
- Diz-me, demônio - disse Sancho, - tens algum anjo que te tire os
grilhões que te penso mandar pôr?
- Agora, senhor governador - respondeu o moço com muito bom
donaire, - pensemos e venhamos ao ponto. Pressuponha vossa mercê
que me manda levar ao cárcere, e que nela me põem grilhões e
correntes, e que me metem num calabouço, e se põem ao alcaide
graves penas se me deixa sair, e que ele o cumpre como se manda;
mesmo assim, se eu não quero dormir, e estar desperto toda a noite,
sem pregar pestana, será vossa mercê bastante com todo seu poder
para fazer-me dormir, se eu não quero?
- Não, por certo - disse o secretário, - e o homem saiu com sua
intenção.
- De modo - disse Sancho - que não deixareis de dormir por outra
coisa que por vossa vontade, e não por contravir à minha.
- Não, senhor - disse o moço, - nem em pensamento.
- Pois ide com Deus - disse Sancho; - ide dormir em vossa casa, e
Deus vos dê bom sonho, que eu não vos quero impedir; mas aconselho-
vos que daqui em diante não burleis com a justiça, porque topareis com
alguma que vos dê com a burla nos cascos.
Foi-se o moço, e o governador prosseguiu com sua ronda, e dali a
pouco vieram dois guardas que traziam um homem preso, e disseram:
- Senhor governador, este que parece homem não o é, senão mulher,
e não feia, que vem vestida em traje de homem.
Chegaram-lhe aos olhos duas ou três lanternas, a cujas luzes
descobriram um rosto de uma mulher, ao parecer, de dezesseis ou
poucos mais anos, recolhidos os cabelos com uma redinha de ouro e
seda verde, formosa como mil pérolas. Olharam-na de cima abaixo, e
viram que vinha com umas meias de seda encarnada, com ligas de
tafetá branco e franjas de ouro e aljôfar; os greguescos eram verdes,
de tecido de ouro, e um blusão do mesmo, solto, debaixo do qual trazia
um gibão de tecido finíssimo de ouro e branco, e os sapatos eram
brancos e de homem. Não trazia espada cingida, senão uma riquíssima
adaga, e nos dedos, muitos e muito bons anéis. Finalmente, a moça
parecia bem a todos, e nenhum a reconheceu de quantos a viram, e os
naturais do lugar disseram que não podiam pensar quem fosse, e os
consabedores das burlas que se haviam de fazer a Sancho foram os
que mais se admiraram, porque aquele sucesso e achado não vinha
ordenado para eles; e assim, estavam duvidosos, esperando em que
daria o caso. Sancho ficou pasmado da formosura da moça, e
perguntou-lhe quem era, aonde ia e que motivo a havia movido para
vestir-se naquele traje. Ela, postos os olhos em terra com
honestíssima vergonha, respondeu:
- Não posso, senhor, dizer tão em público o que tanto me importava
fosse segredo; uma coisa quero que se entenda: que não sou ladrão
nem pessoa facinorosa, senão uma donzela desditada a quem a força
de uns desejos fez romper o decoro que à honestidade se deve.
Ouvindo isto o mordomo, disse a Sancho:
- Faça, senhor governador, afastar a gente, porque esta senhora
com menos pejo possa dizer o que quiser.
Mandou-o assim o governador; afastaram-se todos, menos o
mordomo, camareiro-mor e o secretário. Vendo-se, pois, sós, a donzela
prosseguiu dizendo:
- Eu, senhores, sou filha de Pedro Pérez Mazorca, arrendador dos
impostos das lãs deste lugar, o qual costuma muitas vezes ir à casa de
meu pai.
- Isso não pode ser - disse o mordomo, - senhora, porque eu
conheço muito bem Pedro Pérez e sei que não tem filho nenhum, nem
varão nem fêmea; e mais, que dizeis que é vosso pai, e logo
acrescentais que costuma ir muitas vezes à casa de vosso pai.
- Já havia notado isso - disse Sancho.
- Ora, senhores, eu estou perturbada, e não sei o que digo -
respondeu a donzela, - mas a verdade é que eu sou filha de Diego de la
Llana, que todas vossas mercês devem conhecer.
- Isso já pode ser - respondeu o mordomo, - que eu conheço Diego
de la Llana, e sei que é um fidalgo principal e rico, e que tem um filho e
uma filha, e que depois que enviuvou não houve ninguém em todo este
lugar que possa dizer que viu o rosto de sua filha; que a tem tão
encerrada que não dá lugar ao sol que a veja; e, mesmo assim, a fama
diz que é em extremo formosa.
- Assim é a verdade - respondeu a donzela, - e essa filha sou eu; se
a fama mente ou não em minha formosura já vos havereis, senhores,
desenganado, pois me vistes.
E nisto, começou a chorar ternamente; vendo o que o secretário
chegou-se ao ouvido do camareiro-mor e lhe disse baixinho:
- Sem dúvida alguma que a esta pobre donzela deve haver sucedido
algo de importância, pois em tal traje, e a tais horas, e sendo tão
principal, anda fora de sua casa.
- Não há duvidar nisso - respondeu o camareiro-mor, - e mais que
essa suspeita a confirmam suas lágrimas.
Sancho a consolou com as melhores razões que ele soube, e lhe
pediu que sem temor algum lhes dissesse o que lhe havia sucedido; que
todos procurariam remediá-lo com muitas veras e por todas as vias
possíveis.
- É o caso, senhores - respondeu ela, - que meu pai me teve
encerrada há dez anos, que são os mesmos que a minha mãe come a
terra. Em casa dizem missa num rico oratório, e eu em todo este
tempo não vi senão o sol do céu de dia, e a lua e as estrelas de noite,
nem sei que são ruas, praças, nem templos, nem ainda homens, fora de
meu pai e de um irmão meu, e de Pedro Pérez o arrendador, que, por
entrar de ordinário em minha casa, desejei dizer que era meu pai, por
não declarar o meu. Este encerramento e este negar-me o sair de
casa, sequer à igreja, há muitos dias e meses que me traz muito
desconsolada; queria eu ver o mundo, ou, ao menos, a vila onde nasci,
parecendo-me que este desejo não ia contra o bom decoro que as
donzelas principais devem guardar a si mesmas. Quando ouvia dizer
que corriam touros e jogavam varas, e se representavam comédias,
pedia a meu irmão, que é um ano menor que eu, que me dissesse que
coisas eram aquelas e outras muitas que eu não vi; ele mo declarava
pelos melhores modos que sabia, mas tudo era acender-me mais o
desejo de vê-lo. Finalmente, por abreviar o conto de minha perdição,
digo que eu roguei e pedi a meu irmão, que nunca tal pediria nem
rogaria...
E tornou a renovar o pranto. O mordomo lhe disse:
- Prossiga vossa mercê, senhora, e acabe de dizer-nos o que lhe
sucedeu, que nos têm a todos suspensos suas palavras e suas lágrimas.
- Poucas me ficam por dizer - respondeu a donzela, - embora muitas
lágrimas sim que chorar, porque os mal colocados desejos não podem
trazer consigo outras más consequências que os semelhantes.
Havia-se assentado na alma do camareiro-mor a beleza da donzela,
e chegou outra vez sua lanterna para vê-la de novo; e pareceu-lhe que
não eram lágrimas as que chorava, senão aljôfar ou orvalho dos
prados, e ainda as subia de ponto e as chegava a pérolas orientais, e
estava desejando que sua desgraça não fosse tanta como davam a
entender os indícios de seu pranto e de seus suspiros. Desesperava-se
o governador da tardança que tinha a moça em dilatar sua história, e
disse-lhe que acabasse de tê-los mais suspensos, que era tarde e
faltava muito que andar da vila. Ela, entre entrecortados soluços e mal
formados suspiros, disse:
- Não é outra minha desgraça, nem meu infortúnio é outro senão que
eu roguei a meu irmão que me vestisse em trajes de homem com uma
de suas vestes e que me levasse uma noite a ver toda a vila, quando
nosso pai dormisse; ele, importunado por meus rogos, condescendeu
com meu desejo, e, pondo-me esta veste e ele vestindo-se com outra
minha, que lhe está como nascido, porque ele não tem pelo de barba e
não parece senão uma donzela formosíssima, esta noite, deve haver
uma hora, pouco mais ou menos, saímos de casa; e, guiados por nosso
moço e desbaratado propósito, rodeamos toda a vila, e quando
queríamos voltar a casa, vimos vir um grande tropel de gente, e meu
irmão me disse: “Irmã, esta deve ser a ronda: aligeira os pés e põe
asas neles, e vem atrás de mim correndo, para que não nos
reconheçam, o que virá em nosso desdouro”. E dizendo isto, voltou as
costas e começou, não digo a correr, senão a voar; eu, a menos de seis
passos, caí, com o sobressalto, e então chegou o ministro da justiça
que me trouxe ante vossas mercês, onde, por má e caprichosa, me vejo
envergonhada ante tanta gente.
- Com efeito, senhora - disse Sancho, - não vos sucedeu outro
desmando algum, nem desejos, como vós ao princípio de vosso conto
dissestes, não vos tiraram de vossa casa?
- Não me sucedeu nada, nem me tiraram desejos, senão só o de ver
o mundo, que não se estendia a mais que a ver as ruas deste lugar.
E acabou de confirmar ser verdade o que a donzela dizia chegar os
guardas com seu irmão preso, a quem alcançou um deles quando fugiu
de sua irmã. Não trazia senão uma fralda rica e uma mantilha de
damasco azul com galões de ouro fino, a cabeça sem touca nem com
outra coisa adornada que com seus mesmos cabelos, que eram anéis de
ouro, conforme eram loiros e cacheados. Afastaram-se com o
governador, mordomo e camareiro-mor, e, sem que o ouvisse sua irmã,
lhe perguntaram como vinha naquele traje, e ele, com não menos
vergonha e pejo, contou o mesmo que sua irmã havia contado, de que
recebeu grande gosto o enamorado camareiro-mor. Mas o governador
lhes disse:
- Por certo, senhores, que esta foi uma grande criancice, e para
contar esta necedade e atrevimento não eram precisas tantas
grandes, nem tantas lágrimas e suspiros, que com dizer “Somos fulano
e fulana, que saímos, para entreter-nos, de casa de nossos pais com
este ardil, só por curiosidade, sem outro desígnio algum”, se acabaria
o conto, e não gemidinhos, e chorinhos, sem parar.
- Assim é a verdade - respondeu a donzela, - mas saibam vossas
mercês que a perturbação que tive foi tanta, que não me deixou
manter o recato que devia.
- Não se perdeu nada - respondeu Sancho. - Vamos, e deixaremos
vossas mercês em casa de seu pai; quiçá não terá sentido vossa falta.
E daqui em diante, não se mostrem tão meninos, nem tão desejosos de
ver o mundo, que a donzela honrada, a perna quebrada, e em casa; e a
mulher e a galinha, por andar se perdem facilmente; e a que é
desejosa de ver, também tem desejo de ser vista. Não digo mais.
O mancebo agradeceu ao governador a mercê que queria fazer-lhes
de levá-los à sua casa, e assim, se encaminharam até ela, que não
estava muito longe dali. Chegaram, pois, e, atirando o irmão uma
pedrinha a uma grade, num instante desceu uma criada, que os estava
esperando, e lhes abriu a porta, e eles entraram, deixando a todos
admirados, assim de sua gentileza e formosura como do desejo que
tinham de ver o mundo, de noite e sem sair do lugar; mas tudo o
atribuíram à sua pouca idade.
Ficou o camareiro-mor com o coração trespassado e propôs de logo
no outro dia pedi-la por mulher a seu pai, tendo por certo que não a
negaria, por ser ele criado do duque; e ainda a Sancho lhe vieram
desejos de casar o moço com Sanchica, sua filha, e decidiu pô-lo em
prática a seu tempo, dando a entender que a uma filha de um
governador nenhum marido se podia negar.
Com isto, se acabou a ronda daquela noite, e dali a dois dias o
governo, com o que se truncaram e apagaram todos seus desígnios,
como se verá adiante.
CAPÍTULO L

Onde se declara quem foram os encantadores e verdugos que


açoitaram a ama e beliscaram e arranharam dom Quixote, com o
sucesso que teve o pajem que levou a carta a Teresa Sancha, mulher
de Sancho Pança

Diz Cide Hamete, pontualíssimo esquadrinhador dos átomos desta


verdadeira história, que ao tempo que dona Rodríguez saiu de seu
aposento para ir ao quarto de dom Quixote, outra ama que com ela
dormia o notou, e que, como todas as amas são amigas de saber,
entender e farejar, foi atrás dela, com tanto silêncio, que a boa
Rodríguez não viu; e, assim que a ama a viu entrar no quarto de dom
Quixote, para que não faltasse nela o geral costume que todas as amas
têm de ser fofoqueiras, num instante foi fofocar com sua senhora a
duquesa, de como dona Rodríguez estava no aposento de dom Quixote.
A duquesa o disse ao duque, e lhe pediu licença para que ela e
Altisidora viessem ver o que aquela ama queria com dom Quixote; o
duque a deu, e as duas, com grande tento e sossego, passo ante passo,
chegaram a pôr-se junto à porta do aposento, e tão perto, que ouviam
tudo o que dentro falavam; e, quando ouviu a duquesa que Rodríguez
havia tornado público o assunto de suas incisões, não o pôde suportar,
nem menos Altisidora; e assim, cheias de cólera e desejosas de
vingança, entraram de golpe no aposento, e arranharam dom Quixote e
sovaram a ama do modo que fica contado; porque as afrontas que vão
contra a formosura e presunção das mulheres desperta nelas em
grande maneira a ira e acende o desejo de vingar-se.
Contou a duquesa ao duque o que lhe havia passado, do que se
divertiu muito, e a duquesa, prosseguindo com sua intenção de burlar e
receber passatempo com dom Quixote, despachou o pajem que havia
feito a figura de Dulcineia no concerto de seu desencanto - que tinha
bem olvidado Sancho Pança com a ocupação de seu governo - a Teresa
Pança, sua mulher, com a carta de seu marido, e com outra sua, e com
um grande colar de corais ricos de presente.
Diz, pois, a história, que o pajem era muito discreto e agudo, e, com
desejo de servir a seus senhores, partiu de muito bom grado ao lugar
de Sancho; e, antes de entrar nele, viu num arroio estar lavando
quantidade de mulheres, a quem perguntou se lhe saberiam dizer se
naquele lugar vivia uma mulher chamada Teresa Pança, mulher de um
certo Sancho Pança, escudeiro de um cavaleiro chamado dom Quixote
da Mancha, a cuja pergunta se levantou uma mocinha que estava
lavando, e disse:
- Essa Teresa Pança é minha mãe, e esse tal Sancho, meu senhor
pai, e o tal cavaleiro, nosso amo.
- Pois vinde, donzela - disse o pajem, - e mostrai-me a vossa mãe,
porque lhe trago uma carta e um presente do tal vosso pai.
- Isso farei eu de muito bom grado, senhor meu - respondeu a moça,
que mostrava ser de idade de quatorze anos, pouco mais ou menos.
E deixando a roupa que lavava a outra companheira, sem toucar-se
nem calçar-se, que estava de pernas nuas e desgrenhada, saltou diante
da cavalgadura do pajem, e disse:
- Venha vossa mercê, que à entrada da vila está nossa casa, e minha
mãe nela, com muita pena por não haver sabido há muitos dias de meu
senhor pai.
- Pois eu as levo tão boas - disse o pajem - que tem que dar bem
graças a Deus por elas.
Finalmente, saltando, correndo e pulando, chegou ao povoado a
moça, e, antes de entrar em sua casa, disse aos gritos desde a porta:
- Saia, mãe Teresa, saia, saia, que vem aqui um senhor que traz
cartas e outras coisas de meu bom pai.
A cujos gritos saiu Teresa Pança, sua mãe, fiando um floco de
estopa, com uma saia parda - parecia, por ser curta, às das
prostitutas -, com um corpete também pardo e uma blusa decotada.
Não era muito velha, embora mostrasse passar dos quarenta, mas
forte, tesa, nervuda e avelanada; a qual, vendo a filha, e o pajem a
cavalo, disse-lhe:
- Que é isto, menina? Que senhor é este?
- É um servidor de minha senhora dona Teresa Pança - respondeu o
pajem.
E dizendo e fazendo, se arrojou do cavalo e foi com muita
humildade pôr-se de joelhos ante a senhora Teresa, dizendo:
- Dê-me vossa mercê suas mãos, minha senhora dona Teresa, bem
assim que mulher legítima e particular do senhor dom Sancho Pança,
governador próprio da ilha Baratária.
- Ai, senhor meu, saia daí; não faça isso - respondeu Teresa, - que
eu não sou nada palaciana, senão uma pobre lavradora, filha de um
estripa-terrões, e mulher de um escudeiro andante, e não de
governador algum!
- Vossa mercê - respondeu o pajem - é mulher digníssima de um
governador arquidigníssimo; e, para prova desta verdade, receba vossa
mercê esta carta e este presente.
E tirou no mesmo instante do bolso um colar de corais com pai-
nossos de ouro, pôs no pescoço dela e disse:
- Esta carta é do senhor governador, e outra que trago e estes
corais são de minha senhora a duquesa, que a vossa mercê me envia.
Ficou pasmada Teresa, e sua filha nem mais nem menos, e a moça
disse:
- Que me matem se não está nisso nosso senhor amo dom Quixote,
que deve haver dado ao pai o governo ou condado que tantas vezes lhe
havia prometido.
- Assim é a verdade - respondeu o pajem: - que, por respeito do
senhor dom Quixote, é agora o senhor Sancho governador da ilha
Baratária, como se verá por esta carta.
- Leia-ma vossa mercê, senhor gentil-homem - disse Teresa, -
porque, embora eu saiba fiar, não sei ler migalha.
- Nem eu tampouco - acrescentou Sanchica; - mas esperem-me aqui,
que eu irei chamar quem a leia, ora seja o padre mesmo, ou o bacharel
Sansão Carrasco, que virão de muito bom grado, por saber novas de
meu pai.
- Não há para que se chame ninguém, que eu não sei fiar, mas sei
ler, e a lerei.
E assim, leu-a toda, que, por ficar já referida, não se põe aqui; e
logo tirou outra da duquesa, que dizia desta maneira:

Amiga Teresa: as boas partes da bondade e do engenho de vosso marido Sancho


me moveram e obrigaram a pedir a meu marido o duque lhe desse um governo de
uma ilha, de muitas que tem. Tenho notícia que governa como um falcão, do que
eu estou muito contente, e o duque meu senhor, pelo conseguinte; pelo que dou
muitas graças ao céu de não haver-me enganado em escolhê-lo para o tal
governo; porque quero que saiba a senhora Teresa que com dificuldade se acha
um bom governador no mundo, e tal me faça a mim Deus como Sancho governa.
Aí lhe envio, querida minha, um colar de corais com pai-nossos de ouro; eu me
alegraria se fosse de pérolas orientais, mas quem te dá o osso, não te queria ver
morta: tempo virá em que nos conheçamos e nos falemos, e Deus sabe o que
será. Encomende-me a Sanchica, sua filha, e diga-lhe de minha parte que se
prepare, que a tenho de casar altamente quando menos o pense.
Dizem-me que nesse lugar há bolotas gordas: envie-me até duas dúzias, que as
estimarei em muito, por ser de sua mão, e escreva-me longamente, avisando-me
de sua saúde e de seu bem-estar; e se precisar de alguma coisa, não tem que
fazer mais que abrir a boca, que se lhe dará, e Deus ma guarde.
Deste lugar, sua amiga que bem a quer,
A Duquesa.

- Ai - disse Teresa ouvindo a carta, - e que boa e que lhana e que


humilde senhora! Com estas tais senhoras me enterrem, e não as
fidalgas que neste povoado se usam, que pensam que por ser fidalgas
não as há de tocar o vento, e vão à igreja com tanta presunção como
se fossem as mesmas rainhas, que não parece senão que têm por
desonra o olhar uma lavradora; e vedes aqui onde esta boa senhora,
com ser duquesa, me chama amiga, e me trata como se fosse sua igual,
que igual a veja eu ao mais alto campanário que há na Mancha. E no que
toca às bolotas, senhor meu, eu enviarei a sua senhoria quatro litros e
meio, que por gordas as podem vir a ver e maravilhar. E por agora,
Sanchica, atende a que se regale este senhor: põe em ordem este
cavalo, e apanha ovos da cavalariça, e corta toucinho em abundância, e
demos-lhe de comer como a um príncipe, que as boas novas que nos
trouxe e a boa cara que ele tem o merece todo; e, enquanto isso,
sairei eu a dar a minhas vizinhas as novas de nosso contentamento, e
ao padre padre e a mestre Nicolás o barbeiro, que tão amigos são e
foram de teu pai.
- Sim, farei, mãe - respondeu Sanchica; - mas veja que me há de dar
a metade desse colar; que não tenho eu por tão boba a minha senhora
a duquesa, que o havia de enviar todo à senhora.
- Tudo é para ti, filha - respondeu Teresa, - mas deixa-mo trazer
alguns dias ao pescoço, que verdadeiramente parece que me alegra o
coração.
- Também se alegrarão - disse o pajem - quando vejam o pacote que
vem nesta maleta, que é um traje de pano finíssimo que o governador
só um dia usou numa caçada, o qual todo o envia para a senhora
Sanchica.
- Que viva ele mil anos - respondeu Sanchica, - e o que o traz, nem
mais nem menos, e ainda dois mil, se for necessidade.
Saiu nisto Teresa fora de casa, com as cartas, e com o colar ao
pescoço, e ia tangendo nas cartas como se fosse num pandeiro; e,
encontrando-se acaso com o padre e Sansão Carrasco, começou a
bailar e a dizer:
- À fé que agora que não há parente pobre! Governinho temos! Não,
senão venha a ter comigo a mais nobre fidalga, que eu a suplantarei!
- Que é isto, Teresa Pança? Que loucuras são estas, e que papéis
são esses?
- Não é outra a loucura senão que estas são cartas de duquesas e de
governadores, e estes que trago ao pescoço são corais finos as ave-
marias, e os pais nossos são de ouro puro, e eu sou governadora.
- Por Deus, não vos entendemos, Teresa, nem sabemos o que vós
dizeis.
- Aí o poderão ver - respondeu Teresa.
E deu-lhes as cartas. Leu-as o padre de modo que as ouviu Sansão
Carrasco, e Sansão e o padre se olharam um ao outro, como admirados
do que haviam lido; e perguntou o bacharel quem havia trazido aquelas
cartas. Respondeu Teresa que viessem com ela a sua casa e veriam o
mensageiro, que era um mancebo como um pinheiro de ouro, e que lhe
trazia outro presente que valia ainda mais. Tirou-lhe o padre os corais
do pescoço, e mirou-os e remirou-os, e, certificando-se de que eram
finos, tornou a admirar-se de novo, e disse:
- Pelo hábito que visto, que não sei que diga nem que pense destas
cartas e destes presentes: por uma parte, vejo e toco a fineza destes
corais, e por outra, leio que uma duquesa envia a pedir duas dúzias de
bolotas.
- Que disparate! - disse então Carrasco. - Agora bem, vamos ver o
portador desta folha, que por ele nos informaremos das dificuldades
que se nos oferecem.
Fizeram-no assim, e voltou Teresa com eles. Acharam o pajem
crivando um pouco de cevada para sua cavalgadura, e Sanchica
cortando um torresmo para misturá-lo com ovos e dar de comer ao
pajem, cuja presença e bom adorno contentou muito aos dois; e,
depois de saudá-lo cortesmente, e ele a eles, pediu-lhe Sansão lhes
dissesse novas assim de dom Quixote como de Sancho Pança; que,
embora houvessem lido as cartas de Sancho e da senhora duquesa,
ainda estavam confusos e não acabavam de atinar o que fora aquilo do
governo de Sancho, e mais de uma ilha, sendo todas ou as mais que há
no mar Mediterrâneo de Sua Majestade. Ao que o pajem respondeu:
- De que o senhor Sancho Pança seja governador, não há que duvidar
disso; de que seja ilha ou não a que governa, nisso não me intrometo,
mas basta que seja um lugar de mais de mil moradores; e, quanto ao
das bolotas, digo que minha senhora a duquesa é tão lhana e tão
humilde, que... (não dizia ele que era enviado só a pedir bolotas a uma
lavradora, mas que lhe acontecia de ser enviado a pedir um pente
emprestado a uma vizinha sua). Porque quero que saibam vossas
mercês que as senhoras de Aragão, embora sejam tão principais, não
são tão suspicazes e altivas como as senhoras castelhanas; com mais
lhaneza tratam as pessoas.
Estando no meio destas conversas, saltou Sanchica com uma fralda
de ovos, e perguntou ao pajem:
- Diga-me, senhor: meu senhor pai traz porventura calças justas
depois que é governador?
- Não reparei nisso - respondeu o pajem, - mas sim, deve trazer.
- Ai Deus meu - replicou Sanchica, - e o que será ver meu pai com
peidorreiras! Não é bom que desde que nasci tenho desejo de ver meu
pai com calças justas?
- Essas coisas o verá vossa mercê se vive - respondeu o pajem. - Por
Deus, leva jeito de caminhar com balaclava, com só dois meses que lhe
dure o governo.
Bem viram o padre e o bacharel que o pajem falava
por brincadeira, mas a fineza dos corais e o traje de caça que
Sancho enviava o desfazia todo; que já Teresa lhes havia mostrado o
traje. E não deixaram de rir do desejo de Sanchica, e mais quando
Teresa disse:
- Senhor padre, procure por aí se há alguém que vá a Madri, ou a
Toledo, para que me compre uma saia rodada, bem feita, e esteja na
moda e das melhores que houver; que em verdade em verdade que
tenho de honrar o governo de meu marido em quanto eu puder, e ainda
que não goste, tenho de ir a essa corte, e ir de coche, como todas; que
a que tem marido governador muito bem o pode trazer e sustentar.
- E como, mãe! - disse Sanchica. - Prouvesse a Deus que fosse antes
hoje que amanhã, embora dissessem os que me vissem ir sentada com
minha senhora mãe naquele coche: “Vede a qualquer, filha do farto de
alhos, e como vai sentada e estendida no coche, como se fosse uma
papisa!” Mas pisem eles os lodos, e ande eu em meu coche, levantados
os pés do chão. Mal ano e mal mês para quantos murmuradores há no
mundo, e ande eu quente, e ria-se a gente! Digo bem, mãe minha?
- E como dizes bem, filha! - respondeu Teresa. - E todas estas
venturas, e ainda maiores, mas tem profetizadas meu bom Sancho, e
verás tu, filha, como não para até fazer-me condessa: que tudo é
começar a ser venturosas; e, como eu ouvi dizer muitas vezes a teu
bom pai, que assim que o é teu o é dos refrãos, quando te derem a
novilha, corre com cordinha: quando te derem um governo, pega-o;
quando te derem um condado, agarra-o, e quando te fizerem tus, tus,
com alguma boa dádiva, engula-a. Não, senão dormi, e não respondais
às venturas e bons acasos que estão chamando à porta de vossa casa!
- E que se me dá - acrescentou Sanchica - que diga o que quiser
quando me veja soberba e presunçosa: “Viu-se o cão em calças de
seda...”, e ainda mais?
Ouvindo o que o padre, disse:
- Eu não posso crer senão que todos os desta linhagem dos Panças
nasceram cada um com um saco de refrãos no corpo: nenhum deles vi
que não os derrame a todas as horas e em todas as conversas que têm.
- Assim é a verdade - disse o pajem, - que o senhor governador
Sancho a cada passo os diz, e, embora muitos não vêm a propósito,
todavia dão gosto, e minha senhora a duquesa e o duque os celebram
muito.
- Ainda afirma vossa mercê, senhor meu - disse o bacharel, - ser
verdade isto do governo de Sancho, e de que há duquesa no mundo que
lhe envie presentes e lhe escreva? Porque nós, embora tocamos os
presentes e lemos as cartas, não o cremos, e pensamos que esta é uma
das coisas de dom Quixote nosso compatriota, que todas pensa que
são feitas por encantamento; e assim, estou por dizer que quero tocar
e palpar vossa mercê, por ver se é embaixador fantástico ou homem
de carne e osso.
- Senhores, eu não sei mais de mim - respondeu o pajem - senão que
sou embaixador verdadeiro, e que o senhor Sancho Pança é
governador efetivo, e que meus senhores duque e duquesa podem dar,
e deram, o tal governo; e que ouvi dizer que nele se porta
valentissimamente o tal Sancho Pança; se nisto há encantamento ou
não, vossas mercês o disputem lá entre eles, que eu não sei outra
coisa, para o juramento que faço, que é por vida de meus pais, que os
tenho vivos e os amo e os quero muito.
- Bem poderá isso ser assim - replicou o bacharel, - mas dubitat
Augustinus.
- Duvide quem duvidar - respondeu o pajem, - a verdade é a que
disse, e esta que há de andar sempre sobre a mentira, como o azeite
sobre a água; e se não, “operibus credite, et non verbis”: venha algum
de vossas mercês comigo, e verão com os olhos o que não creem pelos
ouvidos.
- Essa ida a mim toca - disse Sanchica: - leve-me vossa mercê,
senhor, às ancas de seu rocim, que eu irei de muito bom grado ver meu
senhor pai.
- As filhas dos governadores não hão de ir sós pelos caminhos,
senão acompanhadas de carroças e liteiras e de grande número de
serventes.
- Por Deus - respondeu Sancha, - tão bem iria eu sobre uma asninha
como sobre um coche. Achastes a melindrosa!
- Cala, moça - disse Teresa, - que não sabes o que dizes, e este
senhor está no certo: que tal o tempo, tal o tento; quando Sancho,
Sancha, e quando governador, senhora, e não sei se diga algo.
- Mais diz a senhora Teresa do que pensa - disse o pajem; - e deem-
me de comer e despachem-me logo, porque penso voltar esta tarde.
Ao que disse o padre:
- Vossa mercê virá fazer penitência comigo, que a senhora Teresa
mais tem vontade que joias para servir a tão bom hóspede.
Recusou-o o pajem; mas, com efeito, o houve de conceder porque
lhe era mais conveniente, e o padre o levou consigo de bom grado, para
ter lugar de perguntar-lhe com vagar por dom Quixote e suas
façanhas.
O bacharel se ofereceu para escrever as cartas a Teresa da
resposta, mas ela não quis que o bacharel se metesse em suas coisas,
que o tinha por algo burlão; e assim, deu um bolo e dois ovos a um
coroinha que sabia escrever, o qual lhe escreveu duas cartas, uma para
seu marido e outra para a duquesa, ditadas de seu mesmo
entendimento, que não são as piores que nesta grande história se
põem, como se verá adiante.

CAPÍTULO LI

Do progresso do governo de Sancho Pança, com outros sucessos tais


como bons

Amanheceu o dia que se seguiu à noite da ronda do governador, a


qual o camareiro-mor passou sem dormir, ocupado o pensamento no
rosto, brio e beleza da disfarçada donzela; e o mordomo ocupou o que
dela faltava em escrever a seus senhores o que Sancho Pança fazia e
dizia, tão admirado de seus feitos como de seus ditos: porque
andavam misturadas suas palavras e suas ações, com assomos
discretos e tontos.
Levantou-se, enfim, o senhor governador, e, por ordem do doutor
Pedro Recio, fizeram-no desjejuar com um pouco de conserva e quatro
tragos de água fria, coisa que a trocaria Sancho com um pedaço de
pão e um cacho de uvas; mas, vendo que aquilo era mais força que
vontade, passou por isso, com muita dor de sua alma e fadiga de seu
estômago, fazendo-o crer Pedro Recio que os manjares poucos e
delicados avivavam o engenho, que era o que mais convinha às pessoas
constituídas em mandos e em ofícios graves, onde se hão de
aproveitar não tanto das forças corporais como das do entendimento.
Com este sofisma padecia fome Sancho, e tal, que em seu segredo
maldizia o governo e ainda a quem o havia dado; mas, com sua fome e
com sua conserva, se pôs a julgar naquele dia, e o primeiro que se lhe
ofereceu foi uma pergunta que um forasteiro lhe fez, estando
presentes a tudo o mordomo e os demais acólitos, que foi:
- Senhor, um caudaloso rio dividia dois termos de um mesmo
senhorio… E esteja vossa mercê atento, porque o caso é de
importância e algo dificultoso. Digo, pois, que sobre este rio estava
uma ponte, e ao cabo dela, uma forca e uma como casa de audiência, na
qual de ordinário havia quatro juízes que julgavam a lei que pôs o dono
do rio, da ponte e do senhorio, que era nesta forma: “Se algum passar
por esta ponte de uma parte a outra, há de jurar primeiro aonde e a
que vai; e se jurar verdade, deixem-no passar; e se disser mentira,
morra por isso enforcado na forca que ali se mostra, sem remissão
alguma”. Sabida esta lei e a rigorosa condição dela, passavam muitos, e
logo no que juravam se via que diziam verdade, e os juízes os deixavam
passar livremente. Sucedeu, pois, que, tomando juramento a um
homem, jurou e disse que para o juramento que fazia, que ia morrer
naquela forca que ali estava, e não por outra coisa. Repararam os
juízes no juramento e disseram: “Se a este homem o deixamos passar
livremente, mentiu em seu juramento, e, conforme à lei, deve morrer;
e se o enforcamos, ele jurou que ia morrer naquela forca, e, havendo
jurado verdade, pela mesma lei deve ser livre”. Pergunta-se a vossa
mercê, senhor governador, que farão os juízes do tal homem; que
ainda até agora estão duvidosos e suspensos. E havendo tido notícia do
agudo e elevado entendimento de vossa mercê, me enviaram a mim a
que suplicasse a vossa mercê de sua parte desse seu parecer em tão
intrincado e duvidoso caso.
Ao que respondeu Sancho:
- Por certo que esses senhores juízes que a mim vos enviam o
poderiam haver evitado, porque eu sou um homem que tenho mais de
monstrengo que de agudo; mas, mesmo assim, repeti-me outra vez o
negócio de modo que eu o entenda: quiçá poderia ser que acerte.
Voltou outra e outra vez o perguntante a referir o que primeiro
havia dito, e Sancho disse:
- A meu parecer, este negócio rapidamente o declararei eu, e é
assim: o tal homem jura que vai a morrer na forca, e se morre nela,
jurou verdade, e pela lei posta merece ser livre e que passe a ponte; e
se não o enforcam, jurou mentira, e pela mesma lei merece que o
enforquem.
- Assim é como o senhor governador diz - disse o mensageiro; - e
quanto à integridade e entendimento do caso, não há mais que pedir
nem que duvidar.
- Digo eu, pois, agora - replicou Sancho - que deste homem aquela
parte que jurou verdade a deixem passar, e a que disse mentira a
enforquem, e desta maneira se cumprirá ao pé da letra a condição da
passagem.
- Ora, senhor governador - replicou o perguntador, - será
necessário que o tal homem se divida em partes, em mentirosa e
verdadeira; e se se divide, por força há de morrer, e assim não se
consegue coisa alguma do que a lei pede, e é de necessidade expressa
que se cumpra com ela.
- Vinde cá, senhor bom homem - respondeu Sancho; - este
passageiro que dizeis, ou eu sou um tonto, ou ele tem a mesma razão
para morrer que para viver e passar a ponte; porque se a verdade o
salva, a mentira o condena igualmente; e, sendo isto assim, como o é,
sou de parecer que digais a esses senhores que a mim vos enviaram
que, pois estão em equilíbrio as razões de condená-lo ou absolvê-lo,
que o deixem passar livremente, pois sempre é louvado mais o fazer
bem que mal, e isto o daria assinado com meu nome, se soubesse
assinar; e eu neste caso não falei por mim, senão que me veio à
memória um preceito, entre outros muitos que me deu meu amo dom
Quixote na noite antes que viesse a ser governador desta ilha: que foi
que, quando a justiça estivesse em dúvida, me inclinasse pela
misericórdia; e quis Deus que agora me lembrasse, por servir bem a
este caso.
- Assim é - respondeu o mordomo, - e tenho para mim que o mesmo
Licurgo, que deu leis aos lacedemônios, não poderia dar melhor
sentença que a que o grande Pança deu. E acabe-se com isto a
audiência desta manhã, e eu darei ordem para que o senhor
governador coma muito a seu gosto.
- Isso peço, e sem tretas - disse Sancho: - deem-me de comer, e
chovam casos e dúvidas sobre mim, que eu as solucionarei no ar.
Cumpriu sua palavra o mordomo, parecendo-lhe ser encargo de
consciência matar de fome a tão discreto governador; e mais, que
pensava concluir com ele naquela mesma noite fazendo-lhe a burla
última que trazia por comissão fazer-lhe.
Sucedeu, pois, que, havendo comido aquele dia contra as regras e
aforismos do doutor Tirteafora, ao tirar-se a mesa, entrou um correio
com uma carta de dom Quixote para o governador. Mandou Sancho o
secretário que a lesse para si, e que se não visse nela alguma coisa
digna de segredo, a lesse em voz alta. Fê-lo assim o secretário, e,
repassando-a primeiro, disse:
- Bem se pode ler em voz alta, que o que o senhor dom Quixote
escreve a vossa mercê merece estar estampado e escrito com letras
de ouro, e diz assim:

CARTA DE DOM QUIXOTE DA MANCHA A SANCHO PANÇA,


GOVERNADOR DA ILHA BARATÁRIA

Quando esperava ouvir novas de teus descuidos e impertinências, Sancho


amigo, as ouvi de tuas discrições, de que dei por isso graças particulares
ao céu, o qual do esterco sabe levantar os pobres, e dos tontos fazer
discretos. Dizem-me que governas como se fosses homem, e que és
homem como se fosses besta, segundo é a humildade com que tratas; e
quero que advirtas, Sancho, que muitas vezes convém e é necessário, pela
autoridade do ofício, ir contra a humildade do coração; porque o bom
adorno da pessoa que está posta em graves cargos há de ser conforme ao
que eles pedem, e não à medida do que sua humilde condição lhe inclina.
Veste-te bem, que um pau bem vestido não parece pau. Não digo que uses
ameaças nem galas, nem que sendo juiz te vistas como soldado, senão que
te adornes com o traje que teu ofício requer, com tal que seja limpo e
bem composto.
Para ganhar a vontade da vila que governas, entre outras hás de fazer
duas coisas: uma, ser bem educado com todos, embora isto já outra vez
to disse; e a outra, procurar a abundância dos mantimentos; que não há
coisa que mais fatigue o coração dos pobres que a fome e a carestia.
Não faças muitos decretos; e se os fizeres, procura que sejam bons, e,
sobretudo, que se guardem e cumpram; que os decretos que não se
guardam, o mesmo é que se não o fossem; antes dão a entender que o
príncipe que teve discrição e autoridade para fazê-las, não teve valor
para fazer que se guardassem; e as leis que atemorizam e não se
executam, vêm a ser como o madeiro, rei das rãs: que ao princípio as
espantou, e com o tempo o menosprezaram e subiram sobre ele.
Sê pai das virtudes e padrasto dos vícios. Não sejas sempre
rigoroso, nem sempre brando, e escolhe o meio entre estes dois
extremos, que nisto está o ponto da discrição. Visita os cárceres, os
matadouros e os mercados, que a presença do governador em lugares tais
é de muita importância: consola os presos, que esperam a brevidade de
seu despacho; é bicho-papão para os carniceiros, que por então igualam os
pesos, e é espantalho para as vendedoras, pela mesma razão. Não te
mostres, embora porventura o sejas - o qual eu não creio, - cobiçoso,
mulherengo nem glutão; porque, sabendo a vila e os que contigo tratam
tua inclinação determinada, por ali te darão bateria, até derrubar-te no
profundo da perdição.
Vê e revê, passa e repassa os conselhos e documentos que te dei por
escrito antes que daqui partisses a teu governo, e verás como achas
neles, se os guardas, uma ajuda de custo que te sobreleve os trabalhos e
dificuldades que a cada passo aos governadores se lhes oferecem.
Escreve a teus senhores e mostra-te-lhes agradecido, que a ingratidão é
filha da soberba, e um dos maiores pecados que se sabe, e a pessoa que é
agradecida aos que bem lhe fizeram, dá indício que também o será a
Deus, que tantos bens lhe fez e de contínuo lhe faz .
A senhora duquesa despachou um mensageiro com teu traje e outro
presente à tua mulher Teresa Pança; por ora esperamos resposta.
Eu estive um pouco mal disposto de um certo gateamento que me sucedeu
não muito a favor de meu nariz; mas não foi nada, que se há encantadores
que me maltratem, também os há que me defendam.
Avisa-me se o mordomo que está contigo teve que ver nas ações da
Trifaldi, como tu suspeitaste, e de tudo o que te suceder me irás dando
aviso, pois é tão curto o caminho; quanto mais, que eu penso deixar logo
esta vida ociosa em que estou, pois não nasci para ela.
Um negócio se me há oferecido, que creio que me há de pôr em desgraça
destes senhores; mas, embora se me dá muito, não se me dá nada, pois,
enfim enfim, tenho de cumprir antes com minha profissão que com seu
gosto, conforme ao que costuma dizer-se: “Amicus Plato, sede magis
amica veritas”. Digo-te este latim porque me dou a entender que, depois
que és governador, o haverás aprendido. E a Deus, o qual te guarde de que
nenhum te tenha lástima.
Teu amigo
Dom Quixote da Mancha.

Ouviu Sancho a carta com muita atenção, e foi celebrada e tida por
discreta pelos que a ouviram; e logo Sancho se levantou da mesa, e,
chamando o secretário, se encerrou com ele em seu quarto, e, sem
dilatá-lo mais, quis responder logo a seu senhor dom Quixote, e disse
ao secretário que, sem juntar nem tirar coisa alguma, fosse
escrevendo o que ele lhe dissesse, e assim o fez; e a carta da resposta
foi do teor seguinte:

CARTA DE SANCHO PANÇA A DOM QUIXOTE DA MANCHA

A ocupação de meus negocios é tão grande que não tenho lugar para coçar a
cabeça, nem ainda para cortar as unhas; e assim, as trago tão crescidas qual
Deus o remedie. Digo isto, senhor meu de minha alma, para que vossa mercê não
se espante se até agora não dei aviso de meu bem ou mal estar neste governo, no
qual tenho mais fome que quando andávamos os dois pelas selvas e pelos
despovoados.
Escreveu-me o duque, meu senhor, outro dia, dando-me aviso que haviam entrado
nesta ilha certas espias para matar-me, e até agora eu não descobri outra que
um certo doutor que está neste lugar assalariado para matar a quantos
governadores aqui vierem: chama-se o doutor Pedro Recio, e é natural de
Tirteafora: porque veja vossa mercê que nome para não temer que hei de
morrer em suas mãos! Este tal doutor diz ele mesmo de si mesmo que ele não
cura as enfermidades quando as há, senão que as previne, para que não venham;
e as medicinas que usa são dieta e mais dieta, até pôr a pessoa em ossos limpos,
como se não fosse maior mal a fraqueza que a quentura. Finalmente, ele me vai
matando de fome, e eu vou morrendo de despeito, pois quando pensei vir a este
governo a comer quente e a beber frio, e a recrear o corpo entre lençóis de
holanda, sobre colchões de pena, vim fazer penitência, como se fosse ermitão; e,
como não a faço por minha vontade, penso que, ao cabo ao cabo, me há de levar o
diabo.
Até agora não toquei em direitos nem levei suborno, e não posso pensar em que
vai isto; porque aqui me hão dito que os governadores que a esta ilha costumam
vir, antes de entrar nela, ou lhes deram ou lhes emprestaram os da vila muitos
dinheiros, e que esta é ordinária usança nos demais que vão a governos, não
somente neste.
Ontem à noite, andando de ronda, topei uma muito formosa donzela em traje de
varão e um irmão seu em traje de mulher; da moça se enamorou meu camareiro-
mor, e a escolheu em sua imaginação para sua mulher, segundo ele disse, e eu
escolhi o moço para meu genro; hoje os dois poremos em prática nossos
pensamentos com o pai de ambos, que é um tal Diego da Llana, fidalgo e cristão
velho quanto se quer.
Eu visito os mercados, como vossa mercê mo aconselha, e ontem achei uma
tendeira que vendia avelãs novas, e averiguei que havia misturado com uma saca
de avelãs novas outra de velhas, vãs e apodrecidas; dei-as todas para os meninos
órfãos, que as saberiam bem distinguir, e sentenciei-a que por quinze dias não
entrasse no mercado. Disseram-me que o fiz valorosamente; o que sei dizer a
vossa mercê é que é fama neste povoado que não há gente mais má que as
vendedoras, porque todas são desavergonhadas, desalmadas e atrevidas, e eu
assim o creio, pelas que vi em outros povoados.
De que minha senhora a duquesa haja escrito a minha mulher Teresa Pança e
enviado-lhe o presente que vossa mercê diz, estou muito satisfeito, e procurarei
mostrar-me agradecido a seu tempo: beije-lhe vossa mercê as mãos de minha
parte, dizendo que digo eu que não o pôs em saco furado, como verá pela obra.
Não queria que vossa mercê tivesse desgostos com esses meus senhores, porque
se vossa mercê se enfada deles, claro está que há de redundar em meu dano, e
não será bem que, pois se me dá por conselho que seja agradecido, que vossa
mercê não o seja com quem tantas mercês lhe tem feitas e com tanto regalo foi
tratado em seu castelo.
Aquilo do gateado não entendo, mas imagino que deve ser alguma das más
feitorias que com vossa mercê costumam usar os maus encantadores; eu o
saberei quando nos vejamos.
Quisera enviar a vossa mercê alguma coisa, mas não sei o que envie, se não é
alguns canudos de canas, que para com bexigas os fazem nesta ilha muito
curiosos; embora se me dura o ofício, eu buscarei enviar, do modo que seja.
Se me escrever minha mulher Teresa Pança, pague vossa mercê o porte e envie-
me a carta, que tenho grandíssimo desejo de saber do estado de minha casa, de
minha mulher e de meus filhos. E com isto, Deus livre a vossa mercê de mal
intencionados encantadores, e a mim me tire com bem e em paz deste governo,
que o duvido, porque o penso deixar com a vida, segundo me trata o doutor
Pedro Recio.
Criado de vossa mercê,
Sancho Pança o Governador.

Fechou a carta o secretário e despachou logo ao correio; e,


juntando-se os burladores de Sancho, combinaram consigo como
despachá-lo do governo; e aquela tarde passou Sancho em fazer
algumas ordenanças tocantes ao bom governo da que ele imaginava ser
ilha, e ordenou que não houvesse especuladores dos mantimentos na
república, e que pudessem meter nela vinho das qualidades que
quisessem, com aditamento de que declarassem o lugar de donde era,
para pôr-lhe o preço segundo sua estimação, bondade e fama, e o que
o aguasse ou lhe mudasse o nome, perdesse a vida por isso.
Moderou o preço de todo calçado, principalmente o dos sapatos, por
parecer-lhe que corria com exorbitância; pôs taxa nos salários dos
criados, que caminhavam à rédea solta pelo caminho do interesse; pôs
gravíssimas penas aos que cantassem cantares lascivos e
descompostos, nem de noite nem de dia. Ordenou que nenhum cego
cantasse milagre em coplas se não trouxesse testemunho autêntico de
ser verdadeiro, por parecer-lhe que os males que os cegos cantam são
fingidos, em prejuízo dos verdadeiros.
Fez e criou um meirinho de pobres, não para que os perseguisse,
senão para que os examinasse se o eram, porque à sombra da
manquidão fingida e da chaga falsa andam os braços ladrões e a saúde
bêbada. Em suma: ele ordenou coisas tão boas que até hoje se
guardam naquele lugar, e se nomeiam “As constituições do grande
governador Sancho Pança.”
CAPÍTULO LII

Onde se conta a aventura da segunda ama Dolorida, ou Angustiada,


chamada por outro nome dona Rodríguez

Conta Cide Hamete que estando já dom Quixote são de seus


arranhões, pareceu-lhe que a vida que naquele castelo tinha era contra
toda a ordem de cavalaria que professava, e assim, decidiu pedir
licença aos duques para partir para Saragoça, cujas festas estavam
próximas, onde pensava ganhar o arnês que nas tais festas se
conquista.
E estando um dia à mesa com os duques, e começando a pôr em
prática sua intenção e pedir a licença, de repente entraram pela porta
da grande sala duas mulheres, como depois se comprovou, cobertas de
luto dos pés à cabeça; e uma delas, chegando-se a dom Quixote, se lhe
estirou aos pés, a boca cosida com os pés de dom Quixote, e dava uns
gemidos tão tristes, tão profundos e tão dolorosos, que pôs em
confusão a todos os que a ouviam e olhavam; e, embora os duques
pensassem que fora alguma burla que seus criados queriam fazer a
dom Quixote, todavia, vendo o afinco com que a mulher suspirava,
gemia e chorava, os teve duvidosos e suspensos, até que dom Quixote,
compassivo, a levantou do chão e fez que se descobrisse e tirasse o
manto de sobre a face chorosa.
Ela o fez assim, e mostrou ser o que jamais se poderia pensar,
porque descobriu o rosto de dona Rodríguez, a ama da casa, e a outra
enlutada era sua filha, a burlada do filho do lavrador rico. Admiraram-
se todos aqueles que a conheciam, e mais os duques que ninguém; que,
embora a tivessem por boba e de bom caráter, não acreditavam que
viesse a fazer loucuras. Finalmente, dona Rodríguez, voltando-se aos
senhores, lhes disse:
- Vossas excelências sejam servidos de dar-me licença que eu
converse um pouco com este cavaleiro, porque assim convém para sair
bem do negócio em que me pôs o atrevimento de um mal intencionado
vilão.
O duque disse que ele a dava, e que conversasse com o senhor dom
Quixote quanto lhe viesse em desejo. Ela, dirigindo a voz e o rosto a
dom Quixote, disse:
- Dias há, valoroso cavaleiro, que vos tenho dado conta da sem-
razão e aleivosia que um mal lavrador tem feito à minha muito querida
e amada filha, que é esta desditada que aqui está presente, e vós me
prometestes defendê-la, endireitando-lhe o torto que lhe têm feito, e
agora chegou à minha notícia que vós quereis partir deste castelo, em
busca das boas venturas que Deus vos depare; e assim, queria que,
antes que vos escapásseis por esses caminhos, desafiásseis a este
rústico indômito, e fizésseis que se casasse com minha filha, em
cumprimento da palavra que lhe deu de ser seu esposo, antes e
primeiro que dormisse com ela; porque pensar que o duque meu senhor
me há de fazer justiça é pedir peras ao olmo, pelo motivo que já a
vossa mercê em segredo tenho declarado. E com isto, Nosso Senhor
dê a vossa mercê muita saúde, e a nós não desampare.
A cujas razões respondeu dom Quixote, com muita gravidade e
prosopopeia:
- Boa ama, moderai vossas lágrimas, ou, por melhor dizer, enxugai-
as e poupai vossos suspiros, que eu tomo a meu cargo o remédio de
vossa filha, à qual lhe seria melhor não haver sido tão fácil em crer
nas promessas de enamorados, as quais, pela maior parte, são ligeiras
de prometer e muito pesadas de cumprir; e assim, com licença do
duque meu senhor, eu partirei logo em busca desse desalmado
mancebo, e o acharei, e o desafiarei, e o matarei cada e quando se
escusar de cumprir a prometida palavra; que o principal assunto de
minha profissão é perdoar os humildes e castigar os soberbos; quero
dizer: acorrer aos miseráveis e destruir os cruéis.
- Não é preciso - respondeu o duque - que vossa mercê se ponha em
trabalho de buscar o rústico de quem esta boa ama se queixa, nem é
preciso tampouco que vossa mercê me peça a mim licença para
desafiá-lo; que eu o dou por desafiado, e tomo a meu cargo fazer-lhe
saber este desafio, e que o aceite, e venha a responder por si a este
meu castelo, onde a ambos darei campo seguro, guardando todas as
condições que em tais atos costumam e devem guardar-se, guardando
igualmente sua justiça a cada um, como estão obrigados a guardá-la
todos aqueles príncipes que dão campo franco aos que se combatem
nos termos de seus senhorios.
- Pois com esse seguro, e com boa licença de vossa grandeza -
replicou dom Quixote, - daqui digo que por esta vez renuncio à minha
fidalguia, e me ajusto à condição do danador, e me faço igual a ele,
habilitando-o para poder combater comigo; e assim, embora ausente, o
desafio e repto, em razão de que fez mal em defraudar a esta pobre,
que foi donzela e já por sua culpa não o é, e que lhe há de cumprir a
palavra que lhe deu de ser seu legítimo esposo, ou morrer na empresa.
E logo, descalçando uma luva, a arrojou em meio da sala, e o duque a
alçou, dizendo que, como já havia dito, ele aceitava o tal desafio em
nome de seu vassalo, e marcava o prazo dali a seis dias; e o campo, na
praça daquele castelo; e as armas, as costumeiras dos cavaleiros:
lança e escudo, e arnês trançado, com todas as demais peças, sem
engano, fraude ou superstição alguma, examinadas e vistas pelos
juízes do campo.
- Mas, ante todas coisas, é preciso que esta boa ama e esta má
donzela ponham o direito de sua justiça em mãos do senhor dom
Quixote; que de outra maneira não se fará nada, nem chegará a devida
execução o tal desafio.
- Eu, sim, ponho - respondeu a ama.
- E eu também - acrescentou a filha, toda chorosa e toda
vergonhosa e de mau talante.
Tomado, pois, este apontamento, e havendo imaginado o duque o que
havia de fazer no caso, as enlutadas se foram, e ordenou a duquesa
que daí em diante não as tratassem como a suas criadas, senão como a
senhoras aventureiras que vinham pedir justiça em sua casa; e assim,
lhes deram quarto à parte e as serviram como a forasteiras, não sem
espanto das demais criadas, que não sabiam em que havia de parar a
sandice e leviandade de dona Rodríguez e de sua desgraçada filha.
Estando nisto, para acabar de alegrar a festa e dar bom fim ao
almoço, eis que entrou na sala o pajem que levou as cartas e presentes
a Teresa Pança, mulher do governador Sancho Pança, de cuja chegada
receberam grande contentamento os duques, desejosos de saber o
que lhe havia sucedido em sua viagem; e, perguntando-o, respondeu o
pajem que não o podia dizer tão em público nem com breves palavras:
que suas excelências fossem servidos de deixá-lo a sós, e que
entretanto se entretivessem com aquelas cartas. E tirando duas
cartas, as pôs em mãos da duquesa. Uma dizia no sobrescrito: “Carta
para minha senhora a duquesa tal, de não sei onde”, e a outra: “A meu
marido Sancho Pança, governador da ilha Baratária, que Deus prospere
mais anos que a mim.” Não se cozia o pão, como costuma dizer-se, à
duquesa até ler sua carta, e abrindo-a e lido para si, e vendo que a
podia ler em voz alta para que o duque e os circunstantes a ouvissem,
leu desta maneira:

CARTA DE TERESA PANÇA À DUQUESA

Muita alegria me deu, senhora minha, a carta que vossa grandeza me escreveu,
que em verdade que a tinha bem desejada. O colar de corais é muito bom, e o
traje de caça de meu marido não lhe fica atrás. De que vossa senhoria haja feito
governador a Sancho, meu consorte, recebeu muito gosto todo este lugar,
embora não há quem o creia, principalmente o padre, e mestre Nicolás o
barbeiro, e Sansão Carrasco o bacharel; mas a mim não se me dá nada; que, como
isso seja assim, como o é, diga cada um o que quiser; embora, se vai a dizer
verdade, a não vir os corais e o traje, tampouco eu o creria, porque neste
povoado todos têm a meu marido por um tonto, e que, exceto o governar um
bocado de cabras, não podem imaginar para que governo possa ser bom. Deus o
faça, e o encaminhe como vê que o precisam seus filhos.
Eu, senhora de minha alma, estou determinada, com licença de vossa mercê, a
aproveitar esta boa ocasião, indo à corte a estender-me num coche, para
quebrar os olhos a mil invejosos que já tenho; e assim, suplico a vossa excelência
mande meu marido me envie algum dinheirinho, e que seja algo de consideração,
porque na corte são os gastos grandes: que o pão vale a real, e a carne, a libra, a
trinta maravedis, o que é um assombro; e se quiser que não vá, que mo avise com
tempo, porque me estão bulindo os pés por pôr-me a caminho; que me dizem
minhas amigas e minhas vizinhas que, se eu e minha filha andamos bojudas e
pomposas na corte, virá a ser conhecido meu marido por mim mais que eu por ele,
sendo forçoso que perguntem muitos: “- Quem são estas senhoras deste coche?”
E um criado meu responder: “- A mulher e a filha de Sancho Pança, governador
da ilha Baratária”; e desta maneira será conhecido Sancho, e eu serei estimada,
e adiante sem medo.
Pesa-me quanto pesar-me pode, que este ano não se colheram bolotas neste
povoado; mesmo assim, envio a vossa alteza até dois litros, que uma a uma as fui
eu colher e escolher ao monte, e não as achei maiores; eu queria que fossem
como ovos de avestruz.
Não se olvide a vossa pomposidade de escrever-me, que eu cuidarei da resposta,
avisando de minha saúde e de tudo o que houver que avisar deste lugar, onde
fico rogando a Nosso Senhor guarde a vossa grandeza, e a mim não olvide.
Sancha, minha filha, e meu filho beijam a vossa mercê as mãos.
A que tem mais desejo de ver a vossa senhoria que de escrever-lhe, sua
criada
Teresa Pança.

Grande foi o gosto que todos receberam de ouvir a carta de Teresa


Pança, principalmente os duques, e a duquesa pediu parecer a dom
Quixote se seria bom abrir a carta que vinha para o governador, que
imaginava devia ser boníssima. Dom Quixote disse que ele a abriria
por dar-lhes gosto, e assim o fez, e viu que dizia desta maneira:

CARTA DE TERESA PANÇA A SANCHO PANÇA SEU MARIDO

Tua carta recebi, Sancho meu de minha alma, e eu te prometo e juro como
católica cristã que não faltaram dois dedos para ficar louca de alegria. Vê,
irmão: quando eu cheguei a ouvir que és governador, pensei ali cair morta de
puro gozo, que já sabes tu que dizem que assim mata a alegria súbita como a dor
grande. A Sanchica, tua filha, se lhe foram as águas sem senti-lo, de puro
contentamento. O traje que me enviaste tinha diante, e os corais que me enviou
minha senhora a duquesa ao pescoço, e as cartas nas mãos, e o portador delas ali
presente, e, mesmo assim, cria e pensava que era tudo sonho o que via e o que
tocava; porque, quem podia pensar que um pastor de cabras havia de vir a ser
governador de ilhas? Já sabes tu, amigo, que dizia minha mãe que era preciso
viver muito para ver muito: digo-o porque penso ver mais se vivo mais; porque
não penso parar até ver-te alugador ou arrendador de impostos, que são ofícios
que, embora leva o diabo a quem mal os usa, enfim enfim, sempre têm e manejam
dinheiros. Minha senhora a duquesa te dirá o desejo que tenho de ir à corte;
pensa nisso, e avisa-me de teu gosto, que eu procurarei honrar-te nela andando
em coche.
O padre, o barbeiro, o bacharel e ainda o sacristão não podem crer que és
governador, e dizem que tudo é embuste, ou coisas de encantamento, como são
todas as de dom Quixote teu amo; e diz Sansão que há de ir buscar-te e tirar-te
o governo da cabeça, e a dom Quixote a loucura dos cascos; eu não faço senão
rir-me, e olhar meu colar, e dar jeito do traje que tenho de fazer do teu à nossa
filha.
Umas bolotas enviei a minha senhora a duquesa; eu queria que fossem de ouro.
Envia-me tu alguns colares de pérolas, se se usam nessa ilha.
As novas deste lugar são que a Berroca casou a sua filha com um pintor de mão
ruim, que chegou a este povoado a pintar o que saísse; mandou-o a Câmara pintar
o escudo das armas de Sua Majestade sobre as portas do Ajuntamento, pediu
dois ducados, deram-nos adiantados, trabalhou oito dias, ao cabo dos quais não
pintou nada, e disse que não acertava pintar tantas bagatelas; devolveu o
dinheiro, e, mesmo assim, se casou a título de bom oficial; verdade é que já
deixou o pincel e tomou a enxada, e vai ao campo como gentil-homem. O filho de
Pedro de Lobo se ordenou de graus e coroa, com intenção de fazer-se clérigo;
soube-o Minguinha, a neta de Mingo Silvato, e pôs-lhe demanda de que lhe deu
palavra de casamento; más línguas querem dizer que está grávida dele, mas ele o
nega de pés juntos.
Este ano não há azeitonas, nem se acha uma gota de vinagre em todo este
povoado. Por aqui passou uma companhia de soldados; levaram no caminho três
moças deste povoado; não te quero dizer quem são: quiçá voltarão, e não faltará
quem as tome por mulheres, com seus defeitos bons ou maus.
Sanchica faz pontas de rendas; ganha cada dia oito maravedis limpos, que os vai
pondo em um cofrinho para ajuda a seu enxoval; mas agora que é filha de um
governador, tu lhe darás o dote sem que ela trabalhe. A fonte da praça secou;
um raio caiu na bomba, e isso não me importa.
Espero resposta desta, e a resolução de minha ida à corte; e, com isto, Deus te
guarde mais anos que a mim ou tantos, porque não queria deixar-te sem mim
neste mundo. Tua mulher
Teresa Pança.
As cartas foram solenizadas, ridas, estimadas e admiradas; e, para
completar, chegou o correio, o que trazia a que Sancho enviava a dom
Quixote, que também se leu publicamente, a qual pôs em dúvida a
sandice do governador.
Retirou-se a duquesa, para saber do pajem o que lhe havia sucedido
no lugar de Sancho, o qual o contou muito por extenso, sem deixar
circunstância que não referisse; deu-lhe as bolotas, e mais um queijo
que Teresa lhe deu, por ser muito bom, que se avantajava aos de
Tronchão. Recebeu-o a duquesa com grandíssimo gosto, com o qual a
deixaremos, por contar o fim que teve o governo do grande Sancho
Pança, flor e espelho de todos os insulanos governadores.

CAPÍTULO LIII

Do fatigado fim e remate que teve o governo de Sancho Pança

“Pensar que nesta vida as coisas dela hão de durar sempre num
estado é pensar no impossível; antes parece que ela anda toda em
redondo, digo, ao redor: a primavera segue ao verão, o verão ao estio,
o estio ao outono, e o outono ao inverno, e o inverno à primavera, e
assim torna a andar o tempo com esta roda contínua; só a vida humana
corre a seu fim ligeira mais que o tempo, sem esperar renovar-se se
não é na outra, que não tem termos que a limitem”. Isto diz Cide
Hamete, filósofo maomético, porque isto de entender a ligeireza e
instabilidade da vida presente, e da duração da eterna que se espera,
muitos sem luz de fé, senão com a luz natural, o entenderam; mas aqui,
nosso autor o diz pela presteza com que se acabou, se consumiu, se
desfez, se foi como em sombra e fumaça o governo de Sancho.
O qual, estando a sétima noite dos dias de seu governo em sua cama,
não farto de pão nem de vinho, senão de julgar e dar pareceres e de
fazer estatutos e decretos, quando o sono, a despeito e apesar da
fome, lhe começava a fechar as pálpebras, ouviu tão grande ruído de
sinos e de vozes, que não parecia senão que toda a ilha se afundava.
Sentou-se na cama, e esteve atento e escutando, por ver se descobria
o que podia ser a causa de tão grande alvoroço; mas não só não o
soube, mas, somando-se ao ruído de vozes e sinos o de infinitas
trombetas e tambores, ficou mais confuso e cheio de temor e
espanto; e, levantando-se, pôs umas chinelas, pela umidade do chão, e,
sem pôr roupão, nem coisa que se parecesse, saiu à porta de seu
aposento, a tempo de ver por uns corredores mais de vinte pessoas
com tochas acesas nas mãos e com as espadas desembainhadas,
gritando todos a grandes vozes:
- Alarma, alarma, senhor governador, alarma!; que entraram
infinitos inimigos na ilha, e estamos perdidos se vossa indústria e valor
não nos socorre.
Com este ruído, fúria e alvoroço chegaram onde Sancho estava,
atônito e estupefato do que ouvia e via; e, quando chegaram a ele, um
lhe disse:
- Arme-se logo vossa senhoria, se não quer perder-se e que toda
esta ilha se perca!
- Que me tenho de armar - respondeu Sancho, - nem que sei eu de
armas nem de socorros? Estas coisas melhor será deixá-las para meu
amo dom Quixote, que num instante as despachará e porá em cobro;
que eu, pecador fui a Deus, não entendo nada destas agonias.
- Ah, senhor governador! - disse outro. - Que pachorra é esta?
Arme-se vossa mercê, que aqui lhe trazemos armas ofensivas e
defensivas, e saia a essa praça, e seja nossa guia e nosso capitão, pois
de direito lhe toca ser, sendo nosso governador.
- Armem-me em boa hora - replicou Sancho.
E num instante lhe trouxeram dois paveses, que vinham providos
deles, e lhe puseram em cima da camisa, sem deixá-lo tomar outro
traje, um pavês diante e outro detrás, e, por umas concavidades que
traziam feitas, lhe puseram os braços, e o ligaram muito bem com uns
cordéis, de modo que ficou emparedado e entabuado, direito como um
fuso, sem poder dobrar os joelhos nem mexer-se um só passo.
Puseram-lhe nas mãos uma lança, à qual se arrimou para poder ter-se
em pé. Quando assim o tiveram, disseram-lhe que caminhasse, e os
guiasse e animasse a todos; que, sendo ele seu norte, sua lanterna e
seu luzeiro, teriam bom fim seus negócios.
- Como tenho de caminhar, desventurado eu - respondeu Sancho, -
que não posso mover as articulações dos joelhos, porque mo impedem
estas tábuas que tão cosidas tenho com minhas carnes? O que hão de
fazer é levar-me em braços e pôr-me, atravessado ou em pé, em algum
postigo, que eu o guardarei, ou com esta lança ou com meu corpo.
- Ande, senhor governador - disse outro, - que mais o medo que as
tábuas lhe impedem o passo; ande e mexa-se, que é tarde, e os
inimigos crescem, e as vozes aumentam e o perigo ataca.
Por cujas persuasões e vitupérios tentou o pobre governador
mover-se, e foi dar consigo no chão tão grande golpe, que pensou que
se havia feito em pedaços. Ficou como tartaruga encerrada e coberta
com seus cascos, ou como meio toucinho metido entre duas masseiras,
ou bem assim que barca que fica ao través na areia; e não por vê-lo
caído aquela gente burladora lhe tiveram compaixão alguma; antes,
apagando as tochas, tornaram a reforçar as vozes, e a reiterar o
alarma! com tão grande pressa, passando por cima do pobre Sancho,
dando-lhe infinitas cutiladas sobre os paveses, que se ele não se
recolhesse e encolhesse, metendo a cabeça entre os paveses, passaria
muito mal o pobre governador, o qual, naquela estreiteza recolhido,
suava e tressuava, e de todo coração se encomendava a Deus que
daquele perigo o tirasse.
Uns tropeçavam nele, outros caíam, e tal houve que se pôs em cima
um bom espaço, e dali, como desde atalaia, governava os exércitos, e a
grandes vozes dizia:
- Aqui os nossos, que por esta parte atacam mais os inimigos! Aquele
postigo se guarde, aquela porta se feche, aquelas escalas se tranquem!
Venham bolas de fogo, piche e resina em caldeiras de azeite fervendo!
Barriquem-se as ruas com colchões!
Enfim, ele nomeava com todo afinco todas as bagatelas e
instrumentos e apetrechos de guerra com que costuma defender-se o
assalto de uma cidade, e o moído Sancho, que o escutava e sofria tudo,
dizia entre si: “Oh, se meu Senhor fosse servido que se acabasse já
de perder esta ilha, e me visse eu ou morto ou fora desta grande
estreiteza!” Ouviu o céu sua petição, e, quando menos o esperava,
ouviu vozes que diziam:
- Vitória, vitória! Os inimigos vão de vencida! Eia, senhor
governador, levante-se vossa mercê e venha gozar do vencimento e a
repartir os despojos que se tomaram aos inimigos, pelo valor desse
invencível braço!
- Levantem-me - disse com voz dolente o dolorido Sancho.
Ajudaram-no a levantar, e, posto em pé, disse:
- O inimigo que eu houver vencido quero que mo imprimam na fronte.
Eu não quero repartir despojos de inimigos, senão pedir e suplicar a
algum amigo, se é que o tenho, que me dê um trago de vinho, que estou
seco, e me enxugue este suor, que viro água.
Limparam-no, trouxeram-lhe o vinho, soltaram-lhe os paveses,
sentou-se sobre seu leito e desmaiou do temor, do sobressalto e do
trabalho. Já pesava aos da burla havê-la feito tão pesada; mas o haver
voltado a si Sancho lhes moderou a pena que lhes havia dado seu
desmaio. Perguntou que hora era, responderam-lhe que já amanhecia.
Calou, e, sem dizer outra coisa, começou a vestir-se, todo sepultado
em silêncio, e todos o olhavam e esperavam em que havia de dar a
pressa com que se vestia. Vestiu-se, enfim, e pouco a pouco, porque
estava moído e não podia ir muito a muito, se foi à cavalariça,
seguindo-o todos os que ali se achavam, e, chegando-se ao ruço, o
abraçou e lhe deu um beijo de paz na fronte, e, não sem lágrimas nos
olhos, disse-lhe:
- Vinde cá, companheiro meu e amigo meu, e colaborador de meus
trabalhos e misérias: quando eu me avinha convosco e não tinha outros
pensamentos que os que me davam os cuidados de remendar vossos
aparelhos e de sustentar vosso corpinho, ditosas eram minhas horas,
meus dias e meus anos; mas, depois que vos deixei e subi sobre as
torres da ambição e da soberba, entraram-me pela alma adentro mil
misérias, mil trabalhos e quatro mil desassossegos.
E enquanto estas razões ia dizendo, ia também albardando o asno,
sem que ninguém nada lhe dissesse. Albardado, pois, o ruço, com
grande pena e pesar subiu sobre ele, e, encaminhando suas palavras e
razões ao mordomo, ao secretário, ao camareiro-mor e a Pedro Recio o
doutor, e a outros muitos que ali presentes estavam, disse:
- Abri caminho, senhores meus, e deixai-me voltar à minha antiga
liberdade; deixai-me que vá buscar a vida passada, para que ressuscite
desta morte presente. Eu não nasci para ser governador, nem para
defender ilhas nem cidades dos inimigos que quiserem atacá-las.
Melhor entendo de arar e cavar, podar e escorar as vinhas, que de dar
leis nem de defender províncias nem reinos. Bem está São Pedro em
Roma: quero dizer, que bem está cada um usando o ofício para que foi
nascido. Melhor me está uma foice na mão que um cetro de
governador; mais quero fartar-me de sopas que estar sujeito à
miséria de um médico impertinente que me mate de fome; e mais
quero recostar-me à sombra de uma azinheira no verão e vestir-me
com pele de cordeiro no inverno, em minha liberdade, que deitar-me
com a sujeição do governo entre lençóis de holanda e vestir-me com
pele de marta. Vossas mercês fiquem com Deus, e digam ao duque meu
senhor que desnudo nasci, desnudo me acho: nem perco nem ganho;
quero dizer, que sem prata entrei neste governo e sem ela saio, bem
ao revés de como costumam sair os governadores de outras ilhas. E
afastem-se: deixem-me ir, que vou pôr emplastros; que creio que
tenho machucadas todas as costelas, mercê aos inimigos que esta
noite passearam sobre mim.
- Não há de ser assim, senhor governador - disse o doutor Recio, -
que eu darei a vossa mercê uma bebida contra quedas e moimentos,
que logo o volte em sua prístina integridade e vigor; e, no da comida,
eu prometo a vossa mercê emendar-me, deixando-lhe comer
abundantemente de tudo aquilo que quiser.
- Tarde piache (Piaste tarde (N. do T.))! - respondeu Sancho. -
Assim deixarei de ir como tornar-me turco. Não são estas burlas para
duas vezes. Por Deus que assim fique neste, nem admita outro
governo, embora mo dessem na bandeja, como voar ao céu sem asas.
Eu sou da linhagem dos Panças, que todos são birrentos, e se uma vez
dizem ímpares, ímpares hão de ser, embora sejam pares, apesar de
todo o mundo. Fiquem nesta cavalariça as asas da formiga, que me
levantaram no ar para que me comessem gaviões e outros pássaros, e
voltemos a andar pelo chão com pé descalço, que, se não adornarem
sapatos de pele de cabra, não lhe faltarão alpargatas toscas de corda.
Cada ovelha com sua parelha, e ninguém estenda mais a perna de
quanto for largo o lençol; e deixem-me passar, que se me faz tarde.
Ao que o mordomo disse:
- Senhor governador, de muito bom grado deixaríamos ir vossa
mercê, embora nos pesará muito perdê-lo, que seu engenho e seu
cristão proceder obrigam a desejá-lo; mas já se sabe que todo
governador está obrigado, antes que se ausente do lugar onde
governou, a fazer primeiro um relatório: dê-o vossa mercê dos dez
dias que tem o governo, e vá-se à paz de Deus.
- Ninguém mo pode pedir - respondeu Sancho, - se não é quem
ordenar o duque meu senhor; eu vou ver-me com ele, e a ele o darei
como devo; quanto mais que, saindo eu desnudo, como saio, não é
preciso outro sinal para dar a entender que governei como um anjo.
- Por Deus que tem razão o grande Sancho - disse o doutor Recio, -
e sou de parecer que o deixemos ir, porque o duque há de gostar
infinito de vê-lo.
Todos convieram nisso, e o deixaram ir, oferecendo-lhe primeiro
companhia e tudo aquilo que quisesse para o regalo de sua pessoa e
para a comodidade de sua viagem. Sancho disse que não queria mais
que um pouco de cevada para o ruço e meio queijo e meio pão para ele;
que, pois o caminho era tão curto, não era preciso maior nem melhor
provimento. Abraçaram-no todos, e ele, chorando, abraçou a todos, e
os deixou admirados, assim de suas razões como de sua determinação
tão resoluta e tão discreta.

CAPÍTULO LIV

Que trata de coisas tocantes a esta história, e não a outra alguma

Resolveram o duque e a duquesa que o desafio que dom Quixote fez


a seu vassalo, pela causa já referida, fosse adiante; e, embora o moço
estivesse em Flandres, onde havia ido fugindo, por não ter por sogra
dona Rodríguez, ordenaram de pôr em seu lugar um lacaio gascão, que
se chamava Tosilos, industriando-o primeiro muito bem de tudo o que
havia de fazer.
Dali a dois dias disse o duque a dom Quixote que dali a quatro viria
seu contrário, e se apresentaria no campo, armado como cavaleiro, e
sustentaria como a donzela mentia por metade da barba, e ainda por
toda a barba inteira, se afirmava que ele lhe houvesse dado palavra de
casamento. Dom Quixote recebeu muito gosto com as tais novas, e
prometeu a si mesmo fazer maravilhas no caso, e teve a grande
ventura de haver-se-lhe oferecido ocasião onde aqueles senhores
pudessem ver até onde se estendia o valor de seu poderoso braço; e
assim, com alvoroço e alegria, esperava os quatro dias, que se lhe iam
fazendo, à conta de seu desejo, quatrocentos séculos.
Deixemos-los passar nós (como deixamos passar outras coisas), e
vamos acompanhar Sancho, que entre alegre e triste vinha caminhando
sobre o ruço a buscar seu amo, cuja companhia lhe agradava mais que
ser governador de todas as ilhas do mundo.
Sucedeu, pois, que, não havendo-se distanciado muito da ilha do seu
governo (que ele nunca se pôs a averiguar se era ilha, cidade, vila ou
lugar a que governava), viu que pelo caminho por onde ele ia vinham
seis peregrinos com seus bordões, destes estrangeiros que pedem
esmola cantando, os quais, chegando a ele, se puseram em ala, e,
levantando as vozes todos juntos, começaram a cantar em sua língua o
que Sancho não pôde entender, a não ser uma palavra que claramente
queria dizer “esmola”, por onde entendeu que era esmola a que em seu
canto pediam; e como ele, segundo diz Cide Hamete, era caritativo
demais, tirou de seus alforjes meio pão e meio queijo, de que vinha
provido, e deu-os, dizendo-lhes por sinais que não tinha outra coisa
que dar-lhes. Eles o receberam de muito bom grado, e disseram:
- Guelte! Guelte (Dinheiro! Dinheiro! (N. do T.))!
- Não entendo - respondeu Sancho - que é o que me pedis, boa
gente.
Então um deles tirou uma bolsa do seio e mostrou-a a Sancho, por
onde entendeu que lhe pediam dinheiros, e ele, pondo o dedo polegar
na garganta e estendendo a mão para cima, lhes deu a entender que
não tinha nenhum tostão, e, picando o ruço, passou por eles; e, ao
passar, havendo-o estado olhando um deles com muita atenção,
arremeteu a ele, pondo-lhe os braços na cintura; em voz alta e muito
castelhana, disse:
- Valha-me Deus! Que é o que vejo? É possível que tenho em meus
braços o meu caro amigo, o meu bom vizinho Sancho Pança? Sim,
tenho, sem dúvida, porque eu nem durmo, nem estou agora bêbado.
Admirou-se Sancho de ver-se nomear por seu nome e de ver-se
abraçar pelo estrangeiro peregrino, e, depois de tê-lo olhado sem
falar palavra, com muita atenção, não pôde reconhecê-lo; mas, vendo
sua suspensão o peregrino, disse-lhe:
- Como é possível, Sancho Pança irmão, que não reconheces teu
vizinho Ricote o mourisco, lojista de teu lugar?
Então Sancho o olhou com mais atenção e começou a recordar sua
imagem, e, finalmente, o veio a reconhecer de todo, e, sem apear-se
do jumento, lançou-lhe os braços ao pescoço, e lhe disse:
- Quem diabos te havia de reconhecer, Ricote, nesse traje de
palhaço que trazes? Diz-me: quem te fez francês, e como tens
atrevimento de voltar à Espanha, onde se te pegam e reconhecem
terás muita má ventura?
- Se tu não me descobres, Sancho - respondeu o peregrino, - seguro
estou que neste traje não haverá ninguém que me reconheça; e
afastemo-nos do caminho àquela alameda que ali está, onde querem
comer e repousar meus companheiros, e ali comerás com eles, que são
muito aprazível gente. Eu terei lugar de contar-te o que me sucedeu
depois que parti de nosso lugar, por obedecer o proclama de Sua
Majestade, que com tanto rigor aos desditados de minha casta
ameaçava, segundo ouviste.
Fê-lo assim Sancho, e, falando Ricote aos demais peregrinos, se
afastaram à alameda que se via, bem desviados do caminho real.
Arrojaram os bordões, tiraram as capas ou capotes e ficaram em
mangas de camisa, e todos eles eram moços e muito gentis-homens,
exceto Ricote, que já era homem entrado em anos. Todos traziam
alforjes, e todos, segundo pareceu, vinham bem providos, ao menos, de
coisas incitativas e que chamam à sede a duas léguas. Estenderam-se
no chão, e, fazendo mesas das ervas, puseram sobre elas pão, sal,
facas, nozes, talhadas de queijo, ossos limpos de presunto, que se não
se deixavam mastigar, não impediam o ser chupados. Puseram também
um manjar negro que dizem que se chama cavial (caviar (N. do T.)), e é
feito de ovos de pescados, grande despertador da sede de vinho. Não
faltaram azeitonas, embora secas e sem tempero algum, mas
saborosas e apetitosas. Mas o que mais campeou no campo daquele
banquete foram seis botas de vinho, que cada um tirou a sua de seu
alforje; até o bom Ricote, que se havia transformado de mourisco em
alemão ou em tudesco, tirou a sua, que em grandeza podia competir
com as cinco.
Começaram a comer com grandíssimo gosto e muito devagar,
saboreando cada bocado, que pegavam com a ponta do faca, e muito
pouquinho de cada coisa, e logo, em seguida, todos à uma, levantaram
os braços e as botas no ar; postas as bocas em sua boca, cravados os
olhos no céu, não parecia senão que punham nele a pontaria; e desta
maneira, mexendo as cabeças a um lado e a outro, sinais que
mostravam o gosto que recebiam, estiveram um bom tempo,
trasladando para seus estômagos as entranhas das vasilhas.
Tudo o olhava Sancho, e de nenhuma coisa se doía, antes, por
cumprir com o refrão, que ele muito bem sabia, de “quando a Roma
fores, faz como vires”, pediu a Ricote a bota, e fez sua pontaria como
os demais, e não com menos gosto que eles.
Quatro vezes deram lugar as botas para ser empinadas; mas a
quinta não foi possível, porque já estavam mais enxutas e secas que um
esparto, coisa que murchou a alegria que até ali haviam mostrado. De
quando em quando, juntava algum sua mão direita com a de Sancho, e
dizia:
- Espanhol y tudesqui, tuto uno: bon compaño . (Espanhol e alemães,
todos uns: bons companheiros. (N. do T.))
E Sancho respondia:
- Bon compaño, jura Di! (Bons companheiros, juro por Deus! (N. do
T.))
E disparava com um riso que lhe durava um hora, sem lembrar-se
então de nada do que lhe havia sucedido em seu governo; porque sobre
o momento e tempo quando se come e bebe, pouca jurisdição
costumam ter os cuidados. Finalmente, o acabar o vinho foi princípio
de um sono que deu a todos, ficando adormecidos sobre as mesmas
mesas e toalhas; só Ricote e Sancho ficaram alerta, porque haviam
comido mais e bebido menos; e, afastando Ricote a Sancho, sentaram-
se ao pé de uma faia, deixando os peregrinos sepultados em doce sono;
e Ricote, sem tropeçar nada em sua língua mourisca, na pura
castelhana lhe disse as seguintes razões:
- Bem sabes, oh Sancho Pança, vizinho e amigo meu!, como o pregão
e proclama que Sua Majestade mandou publicar contra os de minha
nação pôs terror e espanto em todos nós; ao menos, em mim o pôs de
sorte que me parece que antes do tempo que se nos concedia para que
saíssemos da Espanha, já tinha o rigor da pena executado em minha
pessoa e na de meus filhos. Ordenei, pois, a meu parecer como
prudente, bem assim que o que sabe que para tal tempo lhe hão de
tirar a casa onde vive e se provê de outra para onde mudar-se;
ordenei, digo, de sair eu só, sem minha familia, de meu povoado, e ir
buscar onde levá-la com comodidade e sem a pressa com que os demais
saíram; porque bem vi, e viram todos nossos anciãos, que aqueles
pregões não eram só ameaças, como alguns diziam, senão verdadeiras
leis, que se haviam de pôr em execução a seu determinado tempo; e
forçava-me a crer esta verdade saber eu os ruins e disparatados
intentos que os nossos tinham, e tais, que me parece que foi inspiração
divina a que moveu a Sua Majestade a pôr em efeito tão
galharda resolução, não porque todos fôssemos culpados, que alguns
havia cristãos firmes e verdadeiros; mas eram tão poucos que não se
podiam contrapor aos que não o eram, e não era bom criar a serpente
no seio, tendo os inimigos dentro de casa. Finalmente, com justa razão
fomos castigados com a pena do desterro, branda e suave ao parecer
de alguns, mas ao nosso, a mais terrível que se nos podia dar. Onde
queira que estamos choramos pela Espanha, que, enfim, nascemos nela
e é nossa pátria natural; em nenhuma parte achamos o acolhimento que
nossa desventura deseja, e em Barbária, e em todas as partes da
África, onde esperávamos ser recebidos, acolhidos e regalados, ali é
onde mais nos ofendem e maltratam. Não conhecemos o bem até que
o perdemos; e é o desejo tão grande, que quase todos temos de voltar
à Espanha, que os mais daqueles (e são muitos) que sabem a língua
como eu, voltam a ela, e deixam lá suas mulheres e seus filhos
desamparados: tanto é o amor que lhe têm; e agora conheço e
experimento o que costuma dizer-se: que é doce o amor da pátria. Saí,
como digo, de nossa vila, entrei na França, e, embora ali nos faziam
bom acolhimento, quis vê-lo todo. Passei à Itália e cheguei à Alemanha,
e ali me pareceu que se podia viver com mais liberdade, porque seus
habitantes não miram em muitas delicadezas: cada um vive como quer,
porque na maior parte dela se vive com liberdade de consciência.
Arranjei casa num povoado junto a Augusta; juntei-me com estes
peregrinos, que têm por costume vir à Espanha muitos deles, cada ano,
a visitar os santuários dela, que os têm por suas Índias, e por
certíssimo capital e conhecido ganho. Andam-na quase toda, e não há
povoado nenhum de onde não saiam comidos e bebidos, como costuma
dizer-se, e com um real, pelo menos, em moeda pequena, e ao cabo de
sua viagem saem com mais de cem escudos de sobra que, trocados em
ouro, ou já no oco dos bordões, ou entre os remendos das capas, ou
com a indústria que eles podem, os tiram do reino e os passam a suas
terras, apesar das guardas dos postos e portos onde se registram.
Agora é minha intenção, Sancho, tirar o tesouro que deixei enterrado,
que por estar fora da vila o poderei fazer sem perigo e escrever ou
passar desde Valência a minha filha e a minha mulher, que sei que está
em Argel, e usar de artifício para trazê-las a algum porto da França, e
dali levá-las à Alemanha, onde esperaremos o que Deus quiser fazer
de nós; que, em suma, Sancho, eu sei certo que a Ricota minha filha e
Francisca Ricota, minha mulher, são católicas cristãs, e, embora eu
não o seja tanto, todavia tenho mais de cristão que de mouro, e rogo
sempre a Deus me abra os olhos do entendimento e me dê a conhecer
como o tenho de servir. E o que me tem admirado é não saber por que
se foi minha mulher e minha filha antes à Barbária que à França, onde
podia viver como cristã.
Ao que respondeu Sancho:
- Vê, Ricote, isso não deveu estar em sua mão, porque as levou João
Tiopieyo, o irmão de tua mulher, e como deve ser mouro autêntico,
fosse ao melhor lugar, e sei-te dizer outra coisa: que creio que vais
em vão buscar o que deixaste enterrado; porque tivemos novas que
haviam tirado de teu cunhado e tua mulher muitas pérolas e muito
dinheiro em ouro que levavam para registrar.
- Bem pode ser isso - replicou Ricote, - mas eu sei, Sancho, que não
tocaram em meu esconderijo, porque eu não lhes descobri onde
estava, temeroso de algum desmando; e assim, se tu, Sancho, queres
vir comigo e ajudar-me a tirá-lo e a encobri-lo, eu te darei duzentos
escudos, com que poderás remediar tuas necessidades, que já sabes
que sei eu que as tens muitas.
- Eu o faria - respondeu Sancho, - mas não sou nada cobiçoso; que, a
sê-lo, um ofício deixei eu esta manhã onde poderia fazer as paredes
de minha casa de ouro, e comer antes de seis meses em pratos de
prata; e, assim por isto como por parecer-me que faria traição a meu
rei ao dar favor a seus inimigos, não fosse contigo, se como me
prometes duzentos escudos, me desses aqui de contado quatrocentos.
- E que ofício é o que deixaste, Sancho? - perguntou Ricote.
- Deixei de ser governador de uma ilha - respondeu Sancho, - e tal,
que à boa fé que não achem outra como ela a muitos tirões.
- E onde está essa ilha? - perguntou Ricote.
- Onde? - respondeu Sancho. - Duas léguas daqui, e se chama a ilha
Baratária.
- Cala, Sancho - disse Ricote, - que as ilhas estão lá dentro do mar,
pois não há ilhas na terra firme.
- Como não? - replicou Sancho. - Digo-te, Ricote amigo, que esta
manhã parti dela, e ontem estive nela governando a meu prazer, como
um nascido em Sagitário; mas, mesmo assim, a deixei, por parecer-me
ofício perigoso o dos governadores.
- E o que ganhaste no governo dessa ilha? - perguntou Ricote.
- Ganhei - respondeu Sancho - o haver conhecido que não sou bom
para governar, se não é um punhado de gado, e que as riquezas que se
ganham nos tais governos são à custa de perder o descanso e o sono, e
ainda o sustento; porque nas ilhas devem comer pouco os
governadores, especialmente se têm médicos que cuidem de sua saúde.
- Eu não te entendo, Sancho - disse Ricote, - mas parece-me que
tudo o que dizes é disparate; pois, quem te havia de dar ilhas que
governasses? Faltavam homens no mundo mais hábeis para
governadores que tu és? Cala, Sancho, e volta a ti, e vê se queres vir
comigo, como te disse, ajudar-me a tirar o tesouro que deixei
escondido; que em verdade que é tanto, que se pode chamar tesouro, e
te darei com que vivas, como te disse.
- Já te disse, Ricote - replicou Sancho, - que não quero; contenta-te
que por mim não serás descoberto, e prossegue em boa hora teu
caminho, e deixa-me seguir o meu; que eu sei que o bem ganho se
perde, e o mau, ele e seu dono.
- Não quero insistir, Sancho - disse Ricote, - mas diz-me: achaste-
te em nosso lugar, quando partiu dele minha mulher, minha filha e meu
cunhado?
- Sim, achei-me - respondeu Sancho, - e sei-te dizer que saiu tua
filha tão formosa que saíram a vê-la quantos havia no povoado, e todos
diziam que era a mais bela criatura do mundo. Ia chorando e abraçava
todas as suas amigas e conhecidas, e quantos chegavam a vê-la, e a
todos pedia a encomendassem a Deus e a Nossa Senhora sua mãe; e
isto, com tanto sentimento, que a mim me fez chorar, que não costumo
ser muito chorão. E à fé que muitos tiveram desejo de escondê-la e
sair a tomá-la no caminho; mas o medo de ir contra o mandado do Rei
os deteve. Principalmente se mostrou mais apaixonado dom Pedro
Gregório, aquele mancebo primogênito rico que tu conheces, que dizem
que a queria muito, e depois que ela partiu, nunca mais ele apareceu em
nosso lugar, e todos pensamos que ia atrás dela para roubá-la; mas até
agora não se soube de nada.
- Sempre tive eu má suspeita - disse Ricote - de que esse cavaleiro
cortejava a minha filha; mas, fiado no valor de minha Ricota, nunca me
deu pesar o saber que a queria bem; que já haverás ouvido dizer,
Sancho, que as mouriscas poucas ou nenhuma vez se misturaram por
amores com cristãos velhos, e minha filha, que, ao que eu creio,
atendia a ser mais cristã que enamorada, não cuidaria das solicitudes
desse senhor primogênito.
- Deus o faça - replicou Sancho, - que a ambos lhes estaria mal. E
deixa-me partir daqui, Ricote amigo, que quero chegar esta noite onde
está meu senhor dom Quixote.
- Deus vá contigo, Sancho irmão, que já meus companheiros se
mexem, e também é hora que prossigamos nosso caminho.
E logo se abraçaram os dois, e Sancho subiu em seu ruço, e Ricote
se arrimou a seu bordão, e se separaram.
CAPÍTULO LV

De coisas sucedidas a Sancho no caminho, e outras evidentes

O haver-se detido Sancho com Ricote não lhe deu lugar a que
naquele dia chegasse ao castelo do duque, embora chegasse a meia
légua dele, onde o encontrou a noite, algo escura e fechada; mas, como
era verão, não lhe deu muita tristeza; e assim, afastou-se do caminho
com intenção de esperar a manhã; e quis sua curta e desventurada
sorte que, buscando lugar onde melhor acomodar-se, caíram ele e o
ruço em uma funda e escuríssima caverna que entre uns edifícios
muito antigos estava, e ao tempo do cair, encomendou-se a Deus de
todo coração, pensando que não havia de parar até o profundo dos
abismos. E não foi assim, porque a pouco mais de cinco metros chegou
ao fundo o ruço, e ele se achou em cima dele, sem haver recebido
lesão nem dano algum.
Apalpou todo o corpo, e reteve a respiração, por ver se estava são
ou ferido em alguma parte; e, vendo-se bom, inteiro e católico de
saúde, não se fartava de dar graças a Deus nosso Senhor da mercê
que lhe havia feito, porque sem dúvida pensou que estava feito em mil
pedaços. Apalpou também com as mãos as paredes da caverna, para
ver se seria possível sair dela sem ajuda de ninguém; mas todas as
achou lisas e sem apoio algum, do que Sancho se lastimou muito,
especialmente quando ouviu que o ruço se queixava terna e
dolorosamente; e não era muito, nem se lamentava sem motivo, pois, na
verdade, não estava muito bem parado.
- Ai - disse então Sancho Pança, - e quão não pensados sucessos
costumam suceder a cada passo aos que vivem neste miserável mundo!
Quem diria que o que ontem se viu entronizado governador de uma
ilha, mandando em seus serventes e em seus vassalos, hoje se havia de
ver sepultado em uma caverna, sem haver pessoa alguma que o
remedeie, nem criado nem vassalo que acuda em seu socorro? Aqui
haveremos de perecer de fome eu e meu jumento, se já não morremos
antes, ele moído e quebrantado, e eu pesaroso. Ao menos, não serei eu
tão venturoso como o foi meu senhor dom Quixote da Mancha quando
desceu e baixou à cova daquele encantado Montesinos, onde achou
quem o regalasse melhor que em sua casa, que não parece senão que
teve a mesa posta e a cama feita. Ali viu ele visões formosas e
aprazíveis, e eu verei aqui, ao que creio, sapos e cobras. Desditado de
mim, e em que deram minhas loucuras e fantasias! Daqui tirarão meus
ossos, quando o céu seja servido que me descubram, limpos, brancos e
raspados, e os de meu bom ruço com eles, por onde quiçá se verá quem
somos, ao menos dos que tiverem notícia de que nunca Sancho Pança
se afastou de seu asno, nem seu asno de Sancho Pança. Outra vez
digo: miseráveis de nós, que não quis nossa curta sorte que
morrêssemos em nossa pátria e entre os nossos, onde já que não
achasse remédio nossa desgraça, não faltaria quem disso se doesse, e
na hora última de nosso passamento nos fecharia os olhos! Oh
companheiro e amigo meu, que mal paga te dei de teus bons serviços!
Perdoa-me e pede à fortuna, do melhor modo que souberes, que nos
tire deste miserável sofrimento em que estamos postos os dois; que
eu prometo pôr-te uma coroa de louros na cabeça, para que não
pareças senão um laureado poeta, e dar-te as rações dobradas.
Desta maneira se lamentava Sancho Pança, e seu jumento o
escutava sem responder-lhe palavra alguma: tal era o aperto e
angústia em que o pobre se achava. Finalmente, havendo passado toda
aquela noite em miseráveis queixas e lamentações, veio o dia, com cuja
claridade e resplendor viu Sancho que era impossível de toda
impossibilidade sair daquele poço sem ser ajudado, e começou a
lamentar-se e gritar, por ver se alguém o ouvia; mas todos os seus
gritos eram dados no deserto, pois por todos aqueles contornos não
havia pessoa que pudesse escutá-lo, e então se acabou de dar por
morto.
Estava o ruço de boca para cima, e Sancho Pança o acomodou de
modo que o pôs em pé, que apenas se podia manter; e, tirando dos
alforjes, que também haviam tido a mesma sorte da queda, um pedaço
de pão, o deu a seu jumento, que não lhe soube mal, e disse-lhe
Sancho, como se o entendesse:
- Todos as dores com pão são boas.
Nisto, descobriu a um lado da caverna um buraco, capaz de caber
por ele uma pessoa, se se encurvasse e encolhesse. Acudiu a ele
Sancho Pança, e, agachando-se, entrou por ele e viu que por dentro
era espaçoso e largo, e pôde-o ver, porque pelo que se podia chamar
teto entrava um raio de sol que o descobria todo. Viu também que se
dilatava e alargava por outra concavidade espaçosa; vendo o que,
voltou a sair onde estava o jumento, e com uma pedra começou a
desmoronar a terra do buraco, de modo que em pouco tempo fez por
onde com facilidade pudesse entrar o asno, como o fez; e, pegando-o
pelo cabresto, começou a caminhar por aquela gruta adiante, por ver
se achava alguma saída por outra parte. Às vezes ia às escuras, e às
vezes sem luz, mas nenhuma vez sem medo.
“Valha-me Deus todo-poderoso! - dizia consigo -. “Esta que para
mim é desventura, melhor seria aventura para meu amo dom Quixote.
Ele sim teria estas profundidades e masmorras por jardins floridos e
por palácios de Galiana, e esperaria sair desta escuridão e estreiteza
a algum florido prado; mas eu, sem ventura, falto de conselho e
menoscabado de ânimo, a cada passo penso que debaixo dos pés de
improviso se há de abrir outra caverna mais profunda que a outra, que
acabe de tragar-me. Bem venhas mal, se vens só.”
Desta maneira e com estes pensamentos lhe pareceu que haveria
caminhado pouco mais de meia légua, ao cabo da qual descobriu uma
confusa claridade, que pareceu ser já de dia, e que por alguma parte
entrava, que dava indício de ter fim aberto aquele, para ele, caminho
da outra vida.
Aqui o deixa Cide Hamete Benengeli, e volta a tratar de dom
Quixote, que, alvoroçado e contente, esperava o prazo da batalha que
havia de fazer com o roubador da honra da filha de dona Rodríguez, a
quem pensava endireitar o torto e agravo que maldosamente lhe
tinham feito.
Sucedeu, pois, que, saindo uma manhã a estudar e ensaiar o que
havia de fazer no transe em que no outro dia pensava ver-se, dando
um repelão ou arremetida a Rocinante, chegou a pôr os pés tão junto a
uma cova, que, a não puxar-lhe fortemente as rédeas, seria impossível
não cair nela. Enfim, deteve-o e não caiu, e, chegando-se algo mais
perto, sem apear-se, mirou aquela fundura; e, estando-a olhando, ouviu
grandes vozes dentro; e, escutando atentamente, pôde perceber e
entender que o que as dava dizia:
“- Ah de cima! Há algum cristão que me escute, ou algum cavaleiro
caritativo que se doa de um pecador enterrado em vida, ou um
desditado desgovernado governador?”
Pareceu a dom Quixote que ouvia a voz de Sancho Pança, de que
ficou suspenso e assombrado, e, levantando a voz tudo o que pôde,
disse:
- Quem está lá embaixo? Quem se queixa?
- Quem pode estar aqui, ou quem se há de queixar - responderam, -
senão o angustiado Sancho Pança, governador, por seus pecados e por
sua má andança, da ilha Baratária, escudeiro que foi do famoso
cavaleiro dom Quixote da Mancha?
Ouvindo o que dom Quixote, se lhe dobrou a admiração e se lhe
acrescentou o pasmo, vindo-se-lhe ao pensamento que Sancho Pança
devia estar morto, e que estava ali penando sua alma, e levado por
esta imaginação disse:
- Conjuro-te por tudo aquilo que posso conjurar-te como católico
cristão, que me digas quem és; e se és alma em pena, diz-me que
queres que faça por ti; que, pois é minha profissão favorecer e
acorrer aos necessitados deste mundo, também o serei para acorrer e
ajudar aos necessitados do outro mundo, que não podem ajudar-se por
si próprios.
- Dessa maneira - responderam, - vossa mercê que me fala deve ser
meu senhor dom Quixote da Mancha, e ainda pelo timbre da voz não é
outro, sem dúvida.
- Dom Quixote sou - replicou dom Quixote, - o que professo
socorrer e ajudar em suas necessidades aos vivos e aos mortos. Por
isso diz-me quem és, que me tens atônito; porque se és meu escudeiro
Sancho Pança, e morreste, se não te levaram os diabos, e, pela
misericórdia de Deus, estejas no purgatório, sufrágios tem nossa
santa mãe a Igreja Católica Romana bastantes a tirar-te das penas em
que estás, e eu, que o solicitarei com ela, por minha parte, com quanto
meus bens alcançar; por isso, acaba de declarar-te e diz-me quem és.
- Voto a tal! - responderam, - e pelo nascimento de quem vossa
mercê quiser, juro, senhor dom Quixote da Mancha, que eu sou seu
escudeiro Sancho Pança, e que nunca morri em todos os dias de minha
vida; senão que, havendo deixado meu governo por coisas e causas que
é preciso mais espaço para dizê-las, ontem à noite caí nesta caverna
onde jazo, o ruço comigo, que não me deixará mentir, pois, por mais
sinais, está aqui comigo.
E há mais, que não parece senão que o jumento entendeu o que
Sancho disse, porque num instante começou a zurrar, tão forte, que
toda a cova retumbava.
- Famoso testemunho! - disse dom Quixote. - O zurro conheço como
se o parisse, e tua voz ouço, Sancho meu. Espera-me; irei ao castelo
do duque, que está aqui perto, e trarei quem te tire desta caverna,
onde teus pecados te devem haver posto.
- Vá vossa mercê - disse Sancho, - e volte logo, por um só Deus, que
já não posso suportar o estar aqui sepultado em vida, e estou
morrendo de medo.
Deixou-o dom Quixote, e foi ao castelo contar aos duques o sucesso
de Sancho Pança, de que não pouco se maravilharam, embora bem
entenderam que devia haver caído pela outra boca daquela gruta que
há tempos imemoriais estava ali feita; mas não podiam pensar como
havia deixado o governo sem ter eles aviso de sua vinda. Finalmente,
como dizem, levaram cordas e cordames; e, à custa de muita gente e
de muito trabalho, tiraram o ruço e Sancho Pança daquelas trevas à
luz do sol. Viu-o um estudante, e disse:
- Desta maneira haviam de sair de seus governos todos os maus
governadores, como sai este pecador do profundo do abismo: morto de
fome, descolorido, e sem prata, ao que eu creio.
Ouviu-o Sancho, e disse:
- Oito dias ou dez há, irmão murmurador, que entrei a governar a
ilha que me deram, nos quais não me vi farto de pão sequer um hora;
neles me perseguiram médicos, e inimigos me machucaram os ossos;
nem tive lugar de fazer subornos, nem de cobrar direitos; e, sendo
isto assim, como o é, não merecia eu, a meu parecer, sair desta
maneira; mas o homem põe e Deus dispõe, e Deus sabe o melhor e o
que está bem a cada um; e qual o tempo, tal o tento; e ninguém diga
“desta água não beberei”, que onde se pensa que há toucinhos, não há
estacas; e Deus me entende, e basta, e não digo mais, embora
pudesse.
- Não te zangues, Sancho, nem recebas pesar do que ouvires, que
será nunca acabar: vem tu com segura consciência, e digam o que
disserem; e é querer atar as línguas dos maldizentes o mesmo que
querer pôr portas ao campo. Se o governador sai rico de seu governo,
dizem dele que foi um ladrão, e se sai pobre, que foi um curto de gênio
e um mentecapto.
- Seguramente - respondeu Sancho - que por esta vez antes me hão
de ter por tonto que por ladrão.
Nestas conversas chegaram, rodeados de moços e de outra muita
gente, ao castelo, onde em uns corredores estavam já o duque e a
duquesa esperando dom Quixote e Sancho, o qual não quis subir a ver
o duque sem que primeiro não houvesse acomodado o ruço na
cavalariça, porque dizia que havia passado muito má noite na pousada;
e logo subiu a ver seus senhores, ante os quais, posto de joelhos,
disse:
- Eu, senhores, porque o quis assim vossa grandeza, sem nenhum
merecimento meu, fui governar vossa ilha Baratária, na qual entrei
desnudo, e desnudo me acho: nem perco, nem ganho. Se governei bem
ou mal, testemunhos tive diante, que dirão o que quiserem. Declarei
dúvidas, sentenciei pleitos, sempre morto de fome, por havê-lo
querido assim o doutor Pedro Recio, natural de Tirteafora, médico
insulano e governadoresco. Atacaram-nos inimigos de noite, e,
havendo-nos posto em grande aperto, dizem os da ilha que saíram
livres e com vitória pelo valor de meu braço, que tal saúde lhes dê
Deus como eles dizem verdade. Em suma, neste tempo eu tenteei as
cargas que traz consigo, e as obrigações, o governar, e achei por
minha conta que não as poderão levar meus ombros, nem são peso de
minhas costelas, nem flechas de minha aljava; e assim, antes que
desse comigo ao través o governo, quis eu dar com o governo ao
través, e ontem de manhã deixei a ilha como a achei: com as mesmas
ruas, casas e telhados que tinha quando entrei nela. Não pedi
emprestado a ninguém, nem meti-me em negócios; e, embora pensava
fazer algumas ordenanças proveitosas, não fiz nenhuma, temeroso que
não se haviam de guardar: que é o mesmo fazê-las que não fazê-las.
Saí, como digo, da ilha sem outro acompanhamento que o de meu ruço;
caí em uma caverna, vim por ela adiante, até que, esta manhã, com a
luz do sol, vi a saída, mas não tão fácil que, a não deparar-me o céu
meu senhor dom Quixote, ali ficaria até o fim do mundo. Assim que,
meus senhores duque e duquesa, aqui está vosso governador Sancho
Pança, que granjeou em só dez dias que teve o governo conhecer que
não se lhe há de dar nada para ser governador, não apenas de uma ilha,
senão de todo o mundo; e, com este posto, beijando a vossas mercês
os pés, imitando o jogo dos moços, que dizem “Salta tu, e dá-ma tu”,
dou um salto do governo, e passo ao serviço de meu senhor dom
Quixote; que, enfim, nele, embora como o pão com sobressalto, farto-
me, ao menos, e para mim, se eu estiver farto, não importa que seja de
cenouras ou de perdizes.
Com isto deu fim a seu longo discurso Sancho, temendo sempre dom
Quixote que havia de dizer nela milhares de disparates; e, quando o
viu acabar com tão poucos, deu em seu coração graças ao céu, e o
duque abraçou Sancho, e lhe disse que lhe pesava na alma que
houvesse deixado tão logo o governo; mas que ele faria de sorte que
se lhe desse em seu estado outro ofício de menos carga e de mais
proveito. Abraçou-o a duquesa também, e mandou que o regalassem,
porque dava sinais de vir mal moído e pior parado.

CAPÍTULO LVI

Da descomunal e nunca vista batalha que se deu entre dom Quixote


da Mancha e o lacaio Tosilos, na defesa da filha da ama dona
Rodríguez

Não ficaram arrependidos os duques da burla feita a Sancho Pança


do governo que lhe deram, e mais que naquele mesmo dia veio seu
mordomo, e lhes contou ponto por ponto todas quase as palavras e
ações que Sancho havia dito e feito naqueles dias, e finalmente lhes
encareceu o assalto da ilha, e o medo de Sancho e sua saída, de que
não pequeno gosto receberam.
Depois disto conta a história que chegou o dia da batalha aprazada,
e, havendo o duque uma e mui muitas vezes advertido a seu lacaio
Tosilos como se havia de avir com dom Quixote para vencê-lo sem
matá-lo nem feri-lo, ordenou que se tirassem os ferros das lanças,
dizendo a dom Quixote que não permitia a cristandade, que ele
prezava, que aquela batalha fosse com tanto risco e perigo das vidas,
e que se contentasse com que lhe dava campo franco em sua terra,
embora ia contra o decreto do Santo Concílio, que proíbe os tais
desafios, e não quisesse levar com todo rigor aquele transe tão forte.
Dom Quixote disse que sua excelência dispusesse as coisas daquele
negócio como mais fosse servido, que ele o obedeceria em tudo.
Chegado, pois, o temeroso dia, e havendo mandado o duque que diante
da praça do castelo se fizesse um espaçoso tablado, onde estivessem
os juízes do campo e as amas, mãe e filha, demandantes, havia acudido
de todos os lugares e aldeias circunvizinhas infinita gente, a ver a
novidade daquela batalha; que nunca outra tal não haviam visto, nem
ouvido dizer naquela terra os que viviam nem os que haviam morrido.
O primeiro que entrou no campo e arena foi o mestre das
cerimônias, que averiguou o campo e o percorreu todo, porque nele não
houvesse algum engano, nem coisa encoberta onde se tropeçasse e
caísse; logo entraram as amas e se sentaram em seus assentos,
cobertas com os mantos até os olhos e ainda até os peitos, com
mostras de não pequeno sentimento. Presente dom Quixote na arena,
dali a pouco, acompanhado de muitas trombetas, assomou por uma
parte da praça, sobre um poderoso cavalo, atroando-a toda, o grande
lacaio Tosilos, calada a viseira e todo teso, com umas fortes e
luzentes armas. O cavalo mostrava ser frisão, largo e de cor tordilho;
de cada mão e pé lhe pendia uma arroba de lã.
Vinha o valoroso combatente bem informado do duque seu senhor
de como se havia de portar com o valoroso dom Quixote da Mancha,
advertido que de maneira alguma o matasse, senão que procurasse
fugir no primeiro encontro para evitar o perigo de sua morte, que
estava certo se de cheio em cheio lhe saísse ao encontro. Percorreu a
praça e, chegando onde as amas estavam, se pôs algum tanto a olhar à
que por esposo lhe pedia. Chamou o mestre de campo a dom Quixote,
que já se havia apresentado na praça, e junto com Tosilos falou às
amas, perguntando-lhes se consentiam que viesse por seu direito dom
Quixote da Mancha. Elas disseram que sim, e que tudo o que naquele
caso fizesse o davam por bem feito, por firme e válido.
Já neste tempo estavam o duque e a duquesa postos em uma galeria
que caía sobre a arena, toda a qual estava coroada de infinita gente,
que esperava ver o rigoroso transe nunca visto. Foi condição dos
combatentes que se dom Quixote vencesse, seu contrário se havia de
casar com a filha de dona Rodríguez; e se ele fosse vencido, ficava
livre seu contendor da palavra que se lhe pedia, sem dar outra
satisfação alguma.
O mestre das cerimônias os colocou de maneira que a nenhum lhe
desse o sol de frente, e pôs os dois cada um no posto onde haviam de
estar. Soaram os tambores, encheu o ar o som das trombetas, tremia
debaixo dos pés a terra; estavam suspensos os corações da mirante
turba espectadora, temendo uns e esperando outros o bom ou o mal
sucesso daquele caso. Finalmente, dom Quixote, encomendando-se de
todo seu coração a Deus nosso Senhor e à senhora Dulcineia do
Toboso, estava aguardando que se lhe desse sinal preciso da
arremetida; mas nosso lacaio tinha diferentes pensamentos: não
pensava ele senão no que agora direi.
Parece que quando esteve olhando a sua inimiga, pareceu-lhe a mais
formosa mulher que havia visto em toda sua vida, e o menino ceguinho
a quem costumam chamar de ordinário “Amor” por essas ruas não quis
perder a ocasião que se lhe ofereceu de triunfar de uma alma lacaia e
pô-la na lista de seus troféus; e assim, chegando-se a ele com cuidado,
sem que ninguém o visse, enterrou no pobre lacaio uma flecha de duas
varas pelo lado esquerdo, e lhe trespassou o coração de parte a parte;
e pôde-o fazer bem seguramente, porque o Amor é invisível, e entra e
sai por onde quer, sem que ninguém lhe peça conta de seus feitos.
Digo, pois, que quando deram o sinal da arremetida estava nosso
lacaio transportado, pensando na formosura da que já havia feito
senhora de sua liberdade, e assim, não atendeu ao som da trombeta,
como fez dom Quixote, que, apenas a ouviu, quando arremeteu, e, a
todo o correr que permitia Rocinante, partiu contra seu inimigo; e,
vendo-o partir seu bom escudeiro Sancho, disse a grandes vozes:
- Deus te guie, nata e flor dos andantes cavaleiros! Deus te dê a
vitória, pois levas a razão de tua parte!
E embora Tosilos visse vir contra si dom Quixote, não se moveu um
passo de seu posto; antes, com grandes vozes, chamou o mestre de
campo, o qual vindo a ver o que queria, disse-lhe:
- Senhor, esta batalha não se faz para que eu me case, ou não me
case, com aquela senhora?
- Assim é - foi-lhe respondido.
- Pois eu - disse o lacaio - temo minha consciência, e pô-la-ia em
grande peso se passasse adiante nesta batalha; e assim, digo que eu
me dou por vencido e que quero casar-me logo com aquela senhora.
Ficou admirado o mestre de campo com as razões de Tosilos; e,
como era um dos sabedores da treta daquele caso, não lhe soube
responder palavra. Deteve-se dom Quixote no meio de sua carreira,
vendo que seu inimigo não o atacava. O duque não sabia o motivo
porque não se passava adiante na batalha, mas o mestre de campo lhe
foi declarar o que Tosilos dizia, do que ficou suspenso e colérico em
extremo.
Enquanto isto se passava, Tosilos se chegou onde dona Rodríguez
estava e disse a grandes vozes:
- Eu, senhora, quero casar-me com vossa filha, e não quero alcançar
por pleitos nem contendas o que posso alcançar por paz e sem perigo
da morte.
Ouviu isto o valoroso dom Quixote, e disse:
- Pois isto assim é, eu fico livre e solto de minha promessa: casem-
se em hora boa, e, pois Deus nosso Senhor a deu, São Pedro a bendiga.
O duque havia baixado à praça do castelo, e, chegando-se a Tosilos,
lhe disse:
- É verdade, cavaleiro, que vos dais por vencido, e que, instigado por
vossa temerosa consciência, vos quereis casar com esta donzela?
- Sim, senhor - respondeu Tosilos.
- Ele faz muito bem - disse então Sancho Pança, - porque o que hás
de dar ao rato, dá-o ao gato, que te será melhor.
Ia Tosilos desembaraçando-se do elmo, e rogava que depressa o
ajudassem, porque lhe iam faltando os espíritos do alento, e não podia
ver-se encerrado tanto tempo na estreiteza daquele aposento.
Tiraram-no depressa, e ficou descoberto e patente seu rosto de
lacaio. Vendo o qual dona Rodríguez e sua filha, dando grandes vozes,
disseram:
- Este é engano, engano é este! A Tosilos, o lacaio do duque meu
senhor, puseram em lugar de meu verdadeiro esposo! Justiça de Deus
e do rei, por tanta malícia, por não dizer velhacaria!
- Não vos apureis, senhoras - disse dom Quixote, - que nem esta é
malícia nem é velhacaria; e se a é, não foi a causa o duque, senão os
maus encantadores que me perseguem, os quais, invejosos de que eu
alcançasse a glória deste vencimento, converteram o rosto de vosso
esposo no deste que dizeis que é lacaio do duque. Tomai meu conselho,
e, apesar da malícia de meus inimigos, casai-vos com ele, que sem
dúvida é o mesmo que vós desejais alcançar por esposo.
O duque, que isto ouviu, esteve por romper em riso toda sua cólera
e disse:
- São tão extraordinárias as coisas que sucedem ao senhor dom
Quixote que estou por crer que este meu lacaio não o é; mas usemos
deste ardil e manha: dilatemos o casamento quinze dias, se querem, e
tenhamos encerrado a este personagem que nos tem duvidosos, nos
quais poderia ser que retornasse à sua prístina figura; que não há de
durar tanto o rancor que os encantadores têm ao senhor dom
Quixote, e mais ganhando eles tão pouco em usar estes embustes e
transformações.
- Oh senhor! - disse Sancho, - que já têm estes gatunos por uso e
costume mudar as coisas, de umas em outras, que tocam a meu amo.
Um cavaleiro que venceu os dias passados, chamado o dos Espelhos, o
transformaram na figura do bacharel Sansão Carrasco, natural de
nosso povoado e grande amigo nosso, e a minha senhora Dulcineia do
Toboso a transformaram em uma rústica lavradora; e assim, imagino
que este lacaio há de morrer e viver lacaio todos os dias de sua vida.
Ao que disse a filha de Rodríguez:
- Seja quem for este que me pede por esposa, eu lhe agradeço; que
mais quero ser mulher legítima de um lacaio que não amiga e burlada
de um cavaleiro, embora o que a mim me burlou não o seja.
Em suma, todos estes contos e sucessos pararam em que Tosilos se
recolhesse, até ver em que dava sua transformação; aclamaram todos
a vitória de dom Quixote, e os mais ficaram tristes e melancólicos por
ver que não se haviam feito pedaços os tão esperados combatentes,
bem assim que os moços ficam tristes quando não sai o enforcado que
esperam, porque o perdoou ou a parte ou a justiça. Foi-se a gente,
voltaram o duque e dom Quixote ao castelo, encerraram Tosilos,
ficaram dona Rodríguez e sua filha contentíssimas de ver que, por uma
via ou por outra, aquele caso havia de dar em casamento, e Tosilos não
esperava menos.

CAPÍTULO LVII

Que trata de como dom Quixote se despediu do duque, e do que lhe


sucedeu com a discreta e desenvolta Altisidora, donzela da duquesa

Já pareceu a dom Quixote que era bom sair de tanta ociosidade


como a que naquele castelo tinha; que imaginava ser grande a falta que
sua pessoa fazia em deixar-se estar encerrado e preguiçoso entre os
infinitos regalos e deleites que como a cavaleiro andante aqueles
senhores lhe faziam, e parecia-lhe que havia de dar conta estreita ao
céu daquela ociosidade e encerramento; e assim, pediu um dia licença
aos duques para partir. Deram-na, com mostras de que em grande
maneira lhes pesava que os deixasse. Deu a duquesa as cartas de sua
mulher a Sancho Pança, o qual chorou com elas, e disse:
- Quem pensaria que esperanças tão grandes como as que no peito
de minha mulher Teresa Pança engendraram as novas de meu governo
haviam de dar em voltar eu agora às arrastadas aventuras de meu amo
dom Quixote da Mancha? Mesmo assim, contento-me de ver que minha
Teresa correspondeu a ser quem é, enviando as bolotas à duquesa;
que, a não havê-las enviado, ficando eu pesaroso, me mostraria ela
desagradecida. O que me consola é que a esta dádiva não se pode dar
nome de suborno, porque já tinha eu o governo quando ela as enviou, e
está posto em razão que os que recebem algum benefício, embora seja
com ninharias, se mostrem agradecidos. Com efeito, eu entrei desnudo
no governo e saio desnudo dele; e assim, poderei dizer com segura
consciência, que não é pouco: “Desnudo nasci, desnudo me acho: nem
perco nem ganho”.
Isto passava consigo Sancho no dia da partida; e, saindo dom
Quixote, havendo-se despedido na noite antes dos duques, uma manhã
se apresentou armado na praça do castelo. Olhavam-no dos
corredores toda a gente do castelo, e também os duques saíram a vê-
lo. Estava Sancho sobre seu ruço, com seus alforjes, maleta e farnel,
contentíssimo, porque o mordomo do duque, o que foi a Trifaldi, lhe
havia dado uma bolsinha com duzentos escudos de ouro, para suprir as
precisões do caminho, e isto ainda não o sabia dom Quixote.
Estando, como fica dito, olhando-o todos, de repente, entre as
outras amas e donzelas da duquesa, que o olhavam, alçou a voz a
desenvolta e discreta Altisidora, e em som lastimoso disse:

- Escuta, mau cavaleiro;


detém um pouco as rédeas;
não fatigues as ilhargas
de tua mal regida besta.
Vê, falso, que não foges
de alguma serpente fera,
senão de uma cordeirinha
que está muito longe de ovelha.
Tu burlaste, monstro horrendo,
A mais formosa donzela
que Diana viu em seus montes,
que Vênus mirou em suas selvas.
Cruel Bireno, fugitivo Eneias,
Barrabás te acompanhe; lá te avenhas.

Tu levas, levar ímpio!,


nas garras de tuas mãos
as entranhas de uma humilde,
como enamorada, terna.
Levaste três toucas,
e umas ligas, de umas pernas
que ao mármore puro se igualam
em lisas, brancas e negras.
Levaste dois mil suspiros,
que, a ser de fogo, poderiam
abrasar a duas mil Troias,
se duas mil Troias houvesse.
Cruel Bireno, fugitivo Eneias,
Barrabás te acompanhe; lá te avenhas.

Desse Sancho, teu escudeiro,


as entranhas sejam tão teimosas
e tão duras, que não saia
de seu encanto Dulcineia.
Da culpa que tu tens
leve a triste a pena;
que justos por pecadores
talvez pagam em minha terra.
Tuas mais finas aventuras
em desventuras se voltem,
em sonhos teus passatempos,
em olvidos tuas firmezas.
Cruel Bireno, fugitivo Eneias,
Barrabás te acompanhe; lá te avenhas.

Sejas tido por falso


desde Sevilha a Marchena,
desde Granada até Loja,
de Londres à Inglaterra.
Se jogares o reinado,
os centos, ou a primeira,
os reis fujam de ti;
ases nem setes não vejas.
Se te cortares os calos,
sangue as feridas vertam,
e caiam-te as raízes
se tirares os dentes.
Cruel Bireno, fugitivo Eneias,
Barrabás te acompanhe; lá te avenhas.

Enquanto da maneira que se disse se queixava a lastimada


Altisidora, esteve-a olhando dom Quixote, e, sem responder-lhe
palavra, voltando o rosto a Sancho, disse-lhe:
- Pela salvação eterna de teus passados, Sancho meu, te conjuro que
me digas uma verdade. Diz-me, levas porventura as três toucas e as
ligas que esta enamorada donzela diz?
Ao que Sancho respondeu:
- As três toucas sim, levo; mas as ligas, está muito longe da
verdade.
Ficou a duquesa admirada da desenvoltura de Altisidora, embora a
tivesse por atrevida, graciosa e desenvolta, mas não em grau que se
atrevesse a semelhantes desenvolturas; e, como não estava advertida
desta burla, cresceu mais sua admiração. O duque quis reforçar o
donaire, e disse:
- Não me parece bom, senhor cavaleiro, que, havendo recebido
neste meu castelo o bom acolhimento que nele se vos fez, vos
atrevestes a levar as três toucas, não só, mas ainda as ligas de minha
donzela; indícios são de mau peito e mostras que não correspondem à
vossa fama. Devolvei-lhe as ligas; se não, eu vos desafio a mortal
batalha, sem ter temor que gatunos encantadores me transformem
nem mudem o rosto, como fizeram no de Tosilos meu lacaio, o que
entrou convosco em batalha.
- Não queira Deus - respondeu dom Quixote - que eu desembainhe
minha espada contra vossa ilustríssima pessoa, de quem tantas mercês
recebi; as toucas devolverei, porque diz Sancho que as tem; as ligas é
impossível, porque nem eu as recebi nem ele tampouco; e se esta vossa
donzela quiser olhar seus esconderijos, seguramente que as ache. Eu,
senhor duque, jamais fui ladrão, nem o penso ser em toda minha vida,
como Deus não me deixe de sua mão. Esta donzela fala, como ela diz,
como enamorada, do que eu não tenho culpa; e assim, não tenho de que
pedir-lhe perdão nem a ela nem a vossa excelência, a quem suplico me
tenha em melhor opinião, e me dê de novo licença para seguir meu
caminho.
- Deus vo-lo dê tão bom - disse a duquesa, - senhor dom Quixote,
que sempre ouçamos boas novas de vossos feitos. E andai com Deus;
que, quanto mais vos detendes, mais aumentais o fogo nos peitos das
donzelas que vos olham; e à minha eu a castigarei de modo que daqui
em diante não se desmande com a vista nem com as palavras.
- Uma não mais quero que me escutes, oh valoroso dom Quixote! -
disse então Altisidora; - e é que te peço perdão do latrocínio das ligas,
porque, por Deus e por minha alma que as tenho postas, e caí no
descuido daquele que, indo sobre o asno, o procurava.
- Não o disse eu? - disse Sancho. - Não sou eu de encobrir furtos!
Pois, a querê-los fazer, às maravilhas tive ocasião em meu governo.
Abaixou a cabeça dom Quixote e fez reverência aos duques e a
todos os circunstantes, e, voltando as rédeas a Rocinante, seguindo
Sancho sobre o ruço, saiu do castelo, tomando o caminho de Saragoça.

CAPÍTULO LVIII

Que trata de como se amiudaram sobre dom Quixote aventuras


tantas, que não davam vagar umas às outras

Quando dom Quixote se viu no campo raso, livre e desembaraçado


dos requebros de Altisidora, lhe pareceu que estava em seu centro, e
que os espíritos se lhe renovavam para prosseguir de novo o assunto
de suas cavalarias, e, voltando-se a Sancho, disse-lhe:
- A liberdade, Sancho, é um dos mais preciosos dons que aos homens
deram os céus; com ela não podem igualar-se os tesouros que encerra
a terra nem o mar encobre; pela liberdade, assim como pela honra, se
pode e deve aventurar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior
mal que pode vir aos homens. Digo isto, Sancho, porque bem viste o
regalo, a abundância que neste castelo que deixamos tivemos; pois em
meio daqueles banquetes apetitosos e daquelas bebidas geladas me
parecia que estava metido entre as estreitezas da fome, porque não o
gozava com a liberdade que o gozaria se fossem meus; que as
obrigações das recompensas dos benefícios e mercês recebidas são
ataduras que não deixam campear o ânimo livre. Venturoso aquele a
quem o céu deu um pedaço de pão, sem que lhe fique obrigação de
agradecê-lo a outro que ao mesmo céu!
- Com tudo isso - disse Sancho - que vossa mercê me disse, não é
bom que se fique sem agradecimento de nossa parte duzentos escudos
de ouro que em uma bolsinha me deu o mordomo do duque, que como
emplastro e confortativo a levo posto sobre o coração, para o que se
oferecer, que não sempre havemos de achar castelos onde nos
regalem, que talvez toparemos com algumas estalagens onde nos
espanquem.
Nestes e outros arrazoados iam os andantes, cavaleiro e escudeiro,
quando viram, havendo andado pouco mais de uma légua, que em cima
da erva de um pradinho verde, em cima de suas capas, estavam
comendo até uma dúzia de homens, vestidos de lavradores. Junto a si
tinham uns como lençóis brancos, com que cobriam alguma coisa que
debaixo estava; estavam empinados e estendidos, e de trecho a
trecho postos. Chegou dom Quixote aos que comiam, e, saudando-os
primeiro cortesmente, lhes perguntou o que era que aqueles panos
cobriam. Um deles lhe respondeu:
- Senhor, debaixo destes panos estão umas imagens de relevo e
entalhe que hão de servir num retábulo que fazemos em nossa aldeia;
levamo-las cobertas, para que não se deslustrem, e nos ombros, para
que não se quebrem.
- Se sois servidos - respondeu dom Quixote, - gostaria de vê-las,
pois imagens que com tanto recato se levam, sem dúvida devem ser
boas.
- E como o são! - disse outro. - Se não, diga-o o que custa: que em
verdade que não há nenhuma que não esteja em mais de cinquenta
ducados; e, porque veja vossa mercê esta verdade, espere vossa
mercê, e vê-la-á por seus próprios olhos.
E levantando-se, deixou de comer e foi tirar a coberta da primeira
imagem, que mostrou ser a de São Jorge posto a cavalo, com uma
serpente enroscada aos pés e a lança atravessada pela boca, com a
fereza que costuma pintar-se. Toda a imagem parecia uma brasa de
ouro, como costuma dizer-se. Vendo-a dom Quixote, disse:
- Este cavaleiro foi um dos melhores andantes que teve a milícia
divina: chamou-se dom São Jorge, e foi além disso defendedor de
donzelas. Vejamos esta outra.
Descobriu-a o homem, e pareceu ser a de São Martim posto a
cavalo, que dividia a capa com o pobre; e apenas a viu dom Quixote,
quando disse:
- Este cavaleiro também foi dos aventureiros cristãos, e creio que
foi mais liberal que valente, como o podes ver, Sancho, em que está
dividindo a capa com o pobre e lhe dá a metade; e sem dúvida devia
ser então inverno, que, se não, ele a daria toda, conforme era
caritativo.
- Não deveu ser isso - disse Sancho, - senão que se deveu ater ao
refrão que dizem: que para dar e ter, juízo é preciso.
Riu-se dom Quixote e pediu que tirassem outro pano, debaixo do
qual se descobriu a imagem do Padroeiro das Espanhas a cavalo, a
espada ensanguentada, atropelando mouros e pisando cabeças; e,
vendo-a, disse dom Quixote:
- Este sim que é cavaleiro, e das esquadras de Cristo; este se chama
dom São Diego Matamoros, um dos mais valentes santos e cavaleiros
que teve o mundo e tem agora o céu.
Logo descobriram outro pano, e pareceu que encobria a queda de
São Paulo do cavalo abaixo, com todas as circunstâncias que no
retábulo de sua conversão costumam pintar-se. Quando o viu tão ao
vivo, que disseram que Cristo lhe falava e Paulo respondia, disse dom
Quixote:
- Este foi o maior inimigo que teve a Igreja de Deus nosso Senhor
em seu tempo, e o maior defensor seu que terá jamais: cavaleiro
andante pela vida, e santo a pé interrompido pela morte, trabalhador
incansável na vinha do Senhor, doutor das gentes, a quem serviram de
escolas os céus e de catedrático e mestre que lhe ensinasse o mesmo
Jesus Cristo.
Não havia mais imagens, e assim, mandou dom Quixote que as
voltassem a cobrir, e disse aos que as levavam:
- Por bom agouro tive, irmãos, haver visto o que vi, porque estes
santos e cavaleiros professaram o que eu professo, que é o exercício
das armas; senão que a diferença que há entre mim e eles é que eles
foram santos e pelejaram pelo divino, e eu sou pecador e pelejo pelo
humano. Eles conquistaram o céu à força de braços, porque o céu
padece força, e eu até agora não sei o que conquisto à força de meus
trabalhos; mas se minha Dulcineia do Toboso saísse dos que padece,
melhorando minha sorte e o juízo, poderia ser que encaminhasse meus
passos por melhor caminho do que levo.
- Deus o ouça e o pecado seja surdo - disse Sancho então.
Admiraram-se os homens, assim da figura como das razões de dom
Quixote, sem entender a metade do que nelas queria dizer. Acabaram
de comer, carregaram com suas imagens, e, despedindo-se de dom
Quixote, seguiram sua viagem.
Ficou Sancho de novo, como se jamais houvesse conhecido seu
senhor, admirado do que sabia, parecendo-lhe que não devia haver
história no mundo nem sucesso que não conhecesse muito bem e
gravasse na memória, e disse-lhe:
- Em verdade, senhor nosso amo, que se isto que nos sucedeu hoje
se pode chamar aventura, ela foi das mais suaves e doces que em todo
o decurso de nossa peregrinação nos sucedeu: dela saímos sem golpes
e sobressalto algum, nem lançamos mão das espadas, nem batemos a
terra com os corpos, nem ficamos famintos. Bendito seja Deus, que tal
me deixou ver com meus próprios olhos.
- Tu dizes bem, Sancho - disse dom Quixote, - mas hás de advertir
que não todos os tempos são unos, nem correm de uma mesma sorte, e
isto que o vulgo costuma chamar comumente agouros, que não se
fundam sobre natural razão alguma, pelo que é discreto hão de ser
tidos e julgar por bons acontecimentos. Levanta-se um destes
supersticiosos pela manhã, sai de sua casa, encontra-se com um frade
da ordem do bem-aventurado São Francisco, e, como se houvesse
encontrado com um grifo, volta as costas e volta a sua casa. Derrama-
se ao outro mendoza (supersticioso (N. do T.)) o sal em cima da mesa,
e derrama-se a ele a melancolia pelo coração, como se estivesse
obrigada a natureza a dar sinais das vindouras desgraças com coisas
tão de pouco momento como as referidas. O discreto e cristão não há
de andar investigando o que quer fazer o céu. Chega Cipião à África,
tropeça saltando em terra, têm-no por mau agouro seus soldados; mas
ele, abraçando-se com o chão, disse: “Não me poderás fugir, África,
porque te tenho presa e entre meus braços”. Assim que, Sancho, o
haver encontrado com estas imagens foi para mim felicíssimo
acontecimento.
- Eu assim o creio - respondeu Sancho, - e queria que vossa mercê
me dissesse que é a causa por que dizem os espanhóis quando querem
dar alguma batalha, invocando aquele São Diego Matamoros: “Santiago
e fecha a Espanha!” Está porventura a Espanha aberta, e de modo que
é preciso fechá-la, ou que cerimônia é esta?
- Simplicíssimo és, Sancho - respondeu dom Quixote; - e veja que
este grande cavaleiro da cruz vermelha deu-o Deus à Espanha por
padroeiro e amparo seu, especialmente nos rigorosos transes que com
os mouros os espanhóis tiveram; e assim, invocam-no e chamam como
defensor seu em todas as batalhas que acometem, e muitas vezes o
viram visivelmente nelas, derrubando, atropelando, destruindo e
matando os agarenos esquadrões; e desta verdade te poderia trazer
muitos exemplos que nas verdadeiras histórias espanholas se contam.
Mudou Sancho a conversa, e disse a seu amo:
- Maravilhado estou, senhor, da desenvoltura de Altisidora, a
donzela da duquesa: bravamente a deve ter ferido e traspassado
aquele que chamam Amor, que dizem que é um rapaz ceguinho que, por
estar remelento, ou, por melhor dizer, sem vista, toma por alvo um
coração, por pequeno que seja, acerta-o e traspassa de parte a parte
com suas flechas. Ouvi dizer também que na vergonha e recato das
donzelas se despontam e embotam as amorosas setas, mas nesta
Altisidora mais parece que se aguçam que despontam.
- Adverte, Sancho - disse dom Quixote, - que o amor nem vê
respeitos nem guarda razão em seus discursos, e tem a mesma
condição que a morte: que assim acomete os altos alcáceres dos reis
como as humildes choças dos pastores, e quando toma inteira
possessão de uma alma, a primeira coisa que faz é tirar-lhe o temor e
a vergonha; e assim, sem ela declarou Altisidora seus desejos, que
engendraram em meu peito antes confusão que lástima.
- Crueldade notória! - disse Sancho. - Desagradecimento inaudito!
Eu de mim sei dizer que me renderia e avassalaria a mais mínima razão
amorosa sua. Fideputa, e que coração de mármore, que entranhas de
bronze e que alma de argamassa! Mas não posso pensar que é o que viu
esta donzela em vossa mercê que assim a rendesse e avassalasse: que
gala, que brio, que donaire, que rosto, que cada coisa por si destas, ou
todas juntas, a enamoraram; que em verdade em verdade que muitas
vezes me paro a olhar a vossa mercê desde a ponta do pé até o último
cabelo da cabeça, e vejo mais coisas para espantar que para enamorar;
e, havendo eu também ouvido dizer que a formosura é a primeira e
principal parte que enamora, não tendo vossa mercê nenhuma, não sei
eu de que se enamorou a pobre.
- Adverte, Sancho - respondeu dom Quixote, - que há duas
maneiras de formosura: uma da alma e outra do corpo; a da alma
campeia e se mostra no entendimento, na honestidade, no bom
proceder, na liberalidade e na boa educação, e todas estas qualidades
cabem e podem estar num homem feio; e quando se põe a vista nesta
formosura, e não na do corpo, costuma nascer o amor com ímpeto e
com vantagens. Eu, Sancho, bem vejo que não sou formoso, mas
também conheço que não sou disforme; e basta a um homem de bem
não ser monstro para ser bem querido, como tenha os dotes da alma
que te disse.
Nestas razões e conversas iam entrando por uma selva que fora do
caminho estava, e de repente, sem perceber, se achou dom Quixote
enredado entre umas redes de fio verde, que desde umas árvores a
outras estavam estendidas; e, sem poder imaginar o que pudesse ser
aquilo, disse a Sancho:
- Parece-me, Sancho, que isto destas redes deve ser uma das mais
novas aventuras que possa imaginar. Que me matem se os
encantadores que me perseguem não querem enredar-me nelas e deter
meu caminho, como em vingança do rigor que com Altisidora tive. Pois
mando-lhes eu que, embora estas redes, se como são feitas de fio
verde fossem de duríssimos diamantes, ou mais fortes que aquela com
que o zeloso deus dos ferreiros enredou Vênus e Marte, assim a
romperia como se fosse de juncos marinhos ou de fiapos de algodão.
E querendo passar adiante e rompê-lo todo, ao improviso se lhe
ofereceram diante, saindo de entre umas árvores, duas formosíssimas
pastoras; ao menos, vestidas como pastoras, senão que os casacões e
saias eram de fino brocado, digo, que as saias eram de riquíssimos
tecidos de seda e ouro. Traziam os cabelos soltos pelas costas, que
sendo loiros podiam competir com os raios do mesmo sol; os quais se
coroavam com duas grinaldas de verde louro e de roxo amaranto
tecidas. A idade, ao parecer, nem baixava dos quinze nem passava dos
dezoito.
Vista foi esta que admirou Sancho, suspendeu dom Quixote, fez
parar o sol em sua carreira para vê-las, e teve em maravilhoso silêncio
a todos quatro. Enfim, quem primeiro falou foi uma das duas zagalas,
que disse a dom Quixote:
- Detende, senhor cavaleiro, o passo, e não rompais as redes, que
não para dano vosso, senão para nosso passatempo, aí estão
estendidas; e, porque sei que nos haveis de perguntar para que se
puseram e quem somos, vo-lo quero dizer em breves palavras. Em uma
aldeia que está a duas léguas daqui, onde há muita gente principal e
muitos fidalgos e ricos, entre muitos amigos e parentes se concertou
que com seus filhos, mulheres e filhas, vizinhos, amigos e parentes,
nos viéssemos a divertir neste sítio, que é um dos mais agradáveis de
todos estes contornos, formando entre todos uma nova e pastoril
Arcádia, vestindo-nos as donzelas de zagalas e os mancebos de
pastores. Trazemos estudadas duas éclogas, uma do famoso poeta
Garcilaso, e outra do excelentíssimo Camões, em sua mesma língua
portuguesa, as quais até agora não representamos. Ontem foi o
primeiro dia que aqui chegamos; temos entre estes ramos plantadas
algumas tendas, que dizem se chamam de campo, na margem de um
abundoso arroio que todos estes prados fertiliza; estendemos a noite
passada estas redes nestas árvores para enganar os simples
passarinhos, que, assustados com nosso ruído, vierem a dar nelas. Se
gostais, senhor, de ser nosso hóspede, sereis agasalhado liberal e
cortesmente; porque por agora neste sítio não há de entrar o pesar
nem a melancolia.
Calou e não disse mais. Ao que respondeu dom Quixote:
- Por certo, formosíssima senhora, que não deveu ficar mais
suspenso nem admirado Anteu quando viu ao improviso banhar-se nas
águas Diana, como eu fiquei atônito em ver vossa beleza. Louvo o
assunto de vossos entretenimentos, e o de vossos oferecimentos
agradeço; e, se vos posso servir, com segurança de ser obedecidas mo
podeis mandar; porque não é esta a profissão minha, senão de
mostrar-me agradecido e benfeitor com todo gênero de gente, em
especial com a principal que vossas pessoas representam; e, se como
estas redes, que devem ocupar algum pequeno espaço, ocupassem toda
a redondez da terra, buscaria eu novos mundos por onde passar sem
rompê-las; e porque deis algum crédito a esta minha exageração, vede
que vo-lo promete, pelo menos, dom Quixote da Mancha, se é que há
chegado a vossos ouvidos este nome.
- Ai, amiga de minha alma - disse então a outra zagala, - e que
ventura tão grande nos sucedeu! Vês este senhor que temos diante?
Pois faço-te saber que é o mais valente, e o mais enamorado, e o mais
comedido que tem o mundo, se não é que nos mente e nos engana uma
história que de suas façanhas anda impressa e eu li. Eu apostarei que
este bom homem que vem consigo é um tal Sancho Pança, seu
escudeiro, a cujas graças não há nenhumas que se lhe igualem.
- Assim é a verdade - disse Sancho: - que eu sou esse gracioso e
esse escudeiro que vossa mercê diz, e este senhor é meu amo, o
mesmo dom Quixote da Mancha historiado e referido.
- Ai! - disse a outra. - Supliquemos-lhe, amiga, que fique; que nossos
pais e nossos irmãos gostarão infinito disso, que também ouvi eu dizer
de seu valor e de suas graças o mesmo que tu me disseste, e,
sobretudo, dizem dele que é o mais firme e mais leal enamorado que
se sabe, e que sua dama é uma tal Dulcineia do Toboso, a quem em
toda a Espanha dão a palma da formosura.
- Com razão lhe dão - disse dom Quixote, - se já não o põe em
dúvida vossa sem igual beleza. Não vos canseis, senhoras, em deter-
me, porque as precisas obrigações de minha profissão não me deixam
repousar em nenhum lugar.
Chegou nisto onde os quatro estavam um irmão de uma das duas
pastoras, vestido também de pastor, com a riqueza e galas que às das
moças correspondia; contaram-lhe elas que o que com elas estava era
o valoroso dom Quixote da Mancha, e o outro, seu escudeiro Sancho,
de quem tinha ele já notícia, por haver lido sua história. Ofereceu-se-
lhe o galhardo pastor, pediu-lhe que viesse com ele a suas tendas;
teve-o de conceder dom Quixote, e assim o fez. Chegou, nisto, o
ruído, encheram-se as redes de passarinhos diferentes que,
enganados pela cor das redes, caíam no perigo de que iam fugindo.
Juntaram-se naquele sítio mais de trinta pessoas, todas bizarramente
de pastores e pastoras vestidas, e num instante ficaram inteiradas de
quem eram dom Quixote e seu escudeiro, de que não pouca alegria
receberam, porque já tinham dele notícia por sua história. Chegaram
às tendas, acharam as mesas postas, ricas, abundantes e limpas;
honraram dom Quixote dando-lhe o primeiro lugar nelas; olhavam-no
todos, e admiravam-se de vê-lo. Finalmente, tirada a mesa, com grande
repouso alçou dom Quixote a voz, e disse:
- Entre os pecados maiores que os homens cometem, embora alguns
dizem que é a soberba, eu digo que é o desagradecimento, atendo-me
ao que costuma dizer-se: que dos desagradecidos está cheio o inferno.
Deste pecado, quanto me foi possível, procurei eu fugir desde o
instante que tive uso de razão; e se não posso pagar as boas obras que
me fazem com outras obras, ponho em seu lugar os desejos de fazê-
las, e quando estes não bastam, as publico; porque quem diz e publica
as boas obras que recebe, também as recompensaria com outras, se
pudesse; porque, pela maior parte, os que recebem são inferiores aos
que dão; e assim, é Deus sobre todos, porque é dador sobre todos e
não podem corresponder as dádivas do homem às de Deus com
igualdade, por infinita distância; e esta estreiteza e pequenês, de
certo modo, supre-a o agradecimento. Eu, pois, agradecido à mercê
que aqui se me fez, não podendo corresponder à mesma medida,
contendo-me nos estreitos limites de meu poderio, ofereço o que
posso e o que tenho de minha colheita; e assim, digo que sustentarei
dois dias naturais a meio desse caminho real que vai a Saragoça, que
estas senhoras moças disfarçadas que aqui estão são as mais
formosas donzelas e mais corteses que há no mundo, exceto só a sem
par Dulcineia do Toboso, única senhora de meus pensamentos, com paz
seja dito por quantos e quantas me escutam.
Ouvindo isso, Sancho, que com grande atenção o havia estado
escutando, dando uma grande voz, disse:
- É possível que haja no mundo pessoas que se atrevam a dizer e a
jurar que este meu senhor é louco? Digam vossas mercês, senhores
pastores: há padre de aldeia, por discreto e por estudioso que seja,
que possa dizer o que meu amo disse, nem há cavaleiro andante, por
mais fama que tenha de valente, que possa oferecer o que meu amo
aqui ofereceu?
Voltou-se dom Quixote a Sancho, e, aceso o rosto e colérico, disse-
lhe:
- É possível, oh Sancho!, que haja em todo o orbe alguma pessoa que
diga que não és tonto, forrado do mesmo, com não sei que debruns de
malicioso e de velhaco? Quem te mete em minhas coisas, e em
averiguar se sou discreto ou tonto? Cala e não me repliques, senão
encilha, se está desencilhado Rocinante: vamos pôr em prática meu
oferecimento, que, com a razão que vai de minha parte, podes dar por
vencidos a todos quantos quiserem contradizê-la.
E com grande fúria e mostras de ira, se levantou da cadeira,
deixando admirados os circunstantes, fazendo-os duvidar se o podiam
ter por louco ou por lúcido. Finalmente, havendo-o persuadido que não
se pusesse em tal demanda, que eles davam por bem conhecida sua
agradecida vontade e que não era preciso novas demonstrações para
conhecer seu ânimo valoroso, pois bastavam as que na história de seus
feitos se referiam, mesmo assim, saiu dom Quixote com sua intenção;
e, posto sobre Rocinante, embraçando seu escudo e tomando sua lança,
se pôs em um caminho real que não longe do verde prado estava.
Seguiu-o Sancho sobre seu ruço, com toda a gente do pastoral
rebanho, desejosos de ver em que dava seu arrogante e nunca visto
oferecimento.
Posto, pois, dom Quixote no caminho, como se disse, feriu o ar com
essas palavras:
- Oh vós, passageiros e viandantes, cavaleiros, escudeiros, gente a
pé e a cavalo que por este caminho passais, ou haveis de passar nestes
dois dias seguintes! Sabei que dom Quixote da Mancha, cavaleiro
andante, está aqui posto para defender que a todas as formosuras e
cortesias do mundo excedem as que se encerram nas ninfas
habitadoras destes prados e bosques, deixando a um lado a senhora
de minha alma Dulcineia do Toboso. Por isso, o que for de parecer
contrário, venha, que aqui o espero.
Duas vezes repetiu estas mesmas razões, e duas vezes não foram
ouvidas por nenhum aventureiro; mas a sorte, que suas coisas ia
encaminhando de melhor em melhor, ordenou que dali a pouco se
descobrisse pelo caminho multidão de homens a cavalo, e muitos deles
com lanças nas mãos, caminhando todos apinhados, de tropel e a
grande pressa. Nem bem os viram os que com dom Quixote estavam,
quando, voltando as costas, se afastaram para bem longe do caminho,
porque reconheceram que esperavam lhes podia suceder algum perigo;
só dom Quixote, com intrépido coração, esteve parado, e Sancho
Pança se escudou com as ancas de Rocinante.
Chegou o tropel dos lanceiros, e um deles que vinha mais adiante a
grandes vozes começou a dizer a dom Quixote:
- Afasta-te, homem do diabo, do caminho, que te farão em pedaços
estes touros!
- Eia, canalha - respondeu dom Quixote, - para mim não há touros
que valham, embora sejam dos mais bravos que cria Jarama em suas
ribeiras! Confessai, malditos, assim, sem tardar, que é verdade o que
eu aqui disse; se não, comigo sois em batalha.
Não teve tempo de responder o vaqueiro, nem dom Quixote o teve
de desviar-se, embora quisesse; e assim, o tropel dos touros bravos e
o dos mansos cabrestos, com a multidão dos vaqueiros e outras gentes
que os levavam a encerrar em um lugar onde no outro dia haviam de
correr, passaram sobre dom Quixote, e sobre Sancho, Rocinante e o
ruço, dando com todos eles em terra, lançando-os a rodar pelo chão.
Ficou moído Sancho, espantado dom Quixote, atonteado o ruço e não
muito católico Rocinante; mas, enfim, se levantaram todos, e dom
Quixote, a grande pressa, tropeçando aqui e caindo ali, começou a
correr atrás da vacada, dizendo aos gritos:
- Detende-vos e esperai, canalha perversa, que um só cavaleiro vos
espera, o qual não tem condição nem é de parecer dos que dizem que
ao inimigo que foge, fazer-lhe a ponte de prata!
Mas não por isso se detiveram os apressados corredores, nem
fizeram mais caso de suas ameaças que das nuvens de antanho.
Deteve-o o cansaço dom Quixote, e, mais irado que vingado, sentou-se
no caminho, esperando que Sancho, Rocinante e o ruço chegassem.
Chegaram, voltaram a subir amo e moço, e, sem voltar a despedir-se
da Arcádia fingida ou disfarçada, e com mais vergonha que gosto,
seguiram seu caminho.
CAPÍTULO LIX

Onde se conta do extraordinário sucesso, que se pode ter por


aventura, que sucedeu a dom Quixote

Ao pó e ao cansaço que dom Quixote e Sancho tiraram do


descomedimento dos touros, socorreu uma fonte clara e limpa que
entre um fresco arvoredo acharam, na margem do qual, deixando
livres, sem cabresto e freio, o ruço e Rocinante, os dois angustiados
amo e moço se sentaram. Chegou-se Sancho ao farnel de seus
alforjes, e deles tirou do que ele costumava chamar boia; enxaguou a
boca, lavou dom Quixote o rosto, com cujo refrigério cobraram alento
os espíritos desalentados. Não comia dom Quixote, de puro pesaroso,
nem Sancho ousava tocar nos manjares que diante tinha, de puro
comedido, e esperava que seu senhor comesse o primeiro bocado; mas,
vendo que, levado por suas imaginações, não se lembrava de levar o pão
à boca, não disse uma palavra, e, atropelando todo gênero de
educação, começou a meter para dentro do estômago o pão e queijo
que se lhe oferecia.
- Come, Sancho amigo - disse dom Quixote, - sustenta a vida, que
mais que a mim te importa, e deixa-me morrer nas mãos de meus
pensamentos e nas forças de minhas desgraças. Eu, Sancho, nasci para
viver morrendo, e tu para morrer comendo; e, para que vejas que te
digo verdade nisto, considera-me impresso em histórias, famoso nas
armas, comedido em minhas ações, respeitado por príncipes, solicitado
por donzelas; ao cabo ao cabo, quando esperava palmas, triunfos e
coroas, granjeadas e merecidas por minhas valorosas façanhas, me vi
esta manhã pisado e acoiceado e moído pelos pés de animais imundos e
soezes. Esta consideração me embota e entorpece os dentes, e
entumece as mãos, e tira de todo em todo a vontade do comer, de
maneira que penso deixar-me morrer de fome: morte a mais cruel das
mortes.
- Dessa maneira - disse Sancho, sem deixar de mastigar depressa -
não aprovará vossa mercê aquele refrão que dizem: “Morra Marta, e
morra farta”. Eu, ao menos, não penso matar-me a mim mesmo; antes
penso fazer como o sapateiro, que tira o couro com os dentes até que
o faz chegar onde ele quer; eu tirarei minha vida comendo até que
chegue ao fim que lhe tem determinado o céu; e saiba, senhor, que não
há maior loucura que a que toca em querer desesperar-se como vossa
mercê, e creia-me, e depois de comido, ponha-se a dormir um pouco
sobre os colchões verdes destas ervas, e verá como quando desperte
se acha algo mais aliviado.
Fê-lo assim dom Quixote, parecendo-lhe que as razões de Sancho
mais eram de filósofo que de mentecapto, e disse-lhe:
- Se tu, oh Sancho!, quisesses fazer por mim o que eu agora te direi,
seriam meus alívios mais certos e minhas tristezas não tão grandes; e
é que, enquanto eu durmo, obedecendo teus conselhos, tu te
desviasses um pouco longe daqui, e com as rédeas de Rocinante, pondo
ao ar tuas carnes, te desses trezentos ou quatrocentos açoites à boa
conta dos três mil e tantos que te hás de dar pelo desencanto de
Dulcineia; que é lástima não pequena que aquela pobre senhora esteja
encantada por teu descuido e negligência.
- Há muito que dizer nisso - disse Sancho. - Durmamos por agora
ambos, e depois Deus sabe o que será. Saiba vossa mercê que isto de
açoitar-se um homem o sangue frio é coisa forte, e mais se caem os
açoites sobre um corpo mal sustentado e pior comido: tenha paciência
minha senhora Dulcineia, que, quando menos saiba, me verá feito uma
peneira, de açoites; e até a morte, tudo é vida; quero dizer que ainda
eu a tenho, junto com o desejo de cumprir com o que prometi.
Agradecendo-lhe dom Quixote, comeu algo, e Sancho muito, e
puseram-se a dormir ambos, deixando a seu alvedrio e sem ordem
alguma pastar da abundosa erva de que aquele prado estava cheio os
dois contínuos companheiros e amigos Rocinante e o ruço.
Despertaram algo tarde, voltaram a subir e a seguir seu caminho,
dando-se pressa para chegar a uma estalagem que, ao parecer, uma
légua dali se descobria. Digo que era estalagem porque dom Quixote a
chamou assim, fora do uso que tinha de chamar a todas as estalagens
castelos.
Chegaram, pois, a ela; perguntaram ao hospedeiro se havia pousada;
foi-lhes respondido que sim, com toda a comodidade e regalo que
poderia achar em Saragoça. Apearam-se e recolheu Sancho seu farnel
num aposento, do qual o hospedeiro lhe deu a chave; levou as bestas à
cavalariça, deu-lhes suas rações, saiu a ver o que dom Quixote, que
estava sentado sobre um banco, lhe mandava, dando particulares
graças ao céu de que a seu amo não houvesse parecido castelo aquela
estalagem.
Chegou a hora do jantar; recolheram-se a seu quarto; perguntou
Sancho ao hospedeiro o que tinha para dar-lhes de jantar. Ao que o
hospedeiro respondeu que sua boca seria satisfeita e, assim, que
pedisse o que quisesse: que dos passarinhos do ar, das aves da terra e
dos pescados do mar estava provida aquela estalagem.
- Não é preciso tanto - respondeu Sancho, - que com um par de
frangos que nos assem teremos o suficiente, porque meu senhor é
delicado e come pouco, e eu não sou comilão em demasia.
Respondeu-lhe o hospedeiro que não tinha frangos, porque os
falcões os tinham devastado.
- Pois mande o senhor hospedeiro - disse Sancho - assar uma franga
que seja tenra.
- Franga? Meu pai! - respondeu o hospedeiro. - Em verdade em
verdade que enviei ontem à cidade para vender mais de cinquenta;
mas, fora frangas, peça vossa mercê o que quiser.
- Dessa maneira - disse Sancho, - não faltará vitela ou cabrito.
- Em casa por agora - respondeu o hospedeiro, - não há, porque se
acabou, mas na semana que vem haverá de sobra.
- Bem estamos com isso! - respondeu Sancho. - Eu apostarei que se
vêm a resumir-se todas estas faltas nas sobras que deve haver de
toucinho e ovos.
- Por Deus - respondeu o hospedeiro, - que é gentil donaire o que
meu hóspede tem! Pois disse-lhe que nem tenho frangas nem galinhas,
e quer que tenha ovos? Discorra, se quiser, por outras delicadezas, e
deixe de pedir iguarias.
- Resolvamo-nos, corpo de mim - disse Sancho, - e diga-me
finalmente o que tem, e deixe de discorrimentos, senhor hospedeiro.
Disse o vendeiro:
- O que real e verdadeiramente tenho são duas unhas de vaca que
parecem mãos de vitela, ou duas mãos de vitela que parecem unhas de
vaca; estão cozidas com seus grãos-de-bico, cebolas e toucinho, e à
hora de agora estão dizendo: “Comei-me! Comei-me!”
- Por minhas as marco daqui - disse Sancho; - e ninguém as toque,
que eu as pagarei melhor que outro, porque para mim nenhuma outra
coisa poderia esperar de mais gosto, e não se me daria nada que
fossem mãos, como fossem unhas.
- Ninguém as tocará - disse o vendeiro, - porque outros hóspedes
que tenho, de puro principais, trazem consigo cozinheiro, despenseiro
e provisões.
- Se por principais vai - disse Sancho, - nenhum mais que meu amo;
mas o ofício que ele traz não permite despensas nem serviço de mesa:
aí nos estendemos em meio de um prado e nos fartamos de bolotas ou
de nêsperas.
Esta foi a conversa que Sancho teve com o vendeiro, sem querer
Sancho passar adiante em responder-lhe, que já lhe havia perguntado
que ofício ou que exercício era o de seu amo.
Chegou, pois, a hora do jantar, recolheu-se a seu quarto dom
Quixote, trouxe o hospedeiro a panela, assim com o que tinha, e
sentou-se a jantar com muita aplicação. Parece ser que em outro
aposento que junto ao de dom Quixote estava, que não o dividia mais
que um sutil tabique, ouviu dizer dom Quixote:
- Por vida de vossa mercê, senhor dom Jerônimo, que enquanto
trazem a janta leiamos outro capítulo da segunda parte de Dom
Quixote da Mancha.
Apenas ouviu seu nome dom Quixote, quando se pôs em pé e com
ouvido alerta escutou o que dele tratavam e ouviu que o tal dom
Jerônimo referido respondeu:
- Para que quer vossa mercê, senhor dom João, que leiamos estes
disparates, se o que houver lido a primeira parte da história de dom
Quixote da Mancha não é possível que possa ter gosto em ler esta
segunda?
- Mesmo assim - disse o dom João, - será bom lê-la, pois não há livro
tão mau que não tenha alguma coisa boa. O que a mim neste mais
desgosta é que pinta dom Quixote já desenamorado de Dulcineia do
Toboso.
Ouvindo isso dom Quixote, cheio de ira e de despeito alçou a voz e
disse:
- Quem quer que disser que dom Quixote da Mancha olvidou ou pode
olvidar Dulcineia do Toboso, eu o farei entender com armas iguais que
vai muito longe da verdade; porque a sem par Dulcineia do Toboso nem
pode ser olvidada, nem em dom Quixote pode caber olvido: seu brasão
é a firmeza, e sua profissão, o guardá-la com suavidade e sem fazer
força alguma.
- Quem é o que nos responde? - responderam do outro aposento.
- Quem há de ser - respondeu Sancho - senão o mesmo dom
Quixote da Mancha, que fará bem quanto disse, e ainda quanto disser,
que ao bom pagador não lhe doem prendas?
Apenas houve dito isto Sancho, quando entraram pela porta de seu
aposento dois cavaleiros, que tais o pareciam, e um deles lançando os
braços ao pescoço de dom Quixote, disse-lhe:
- Nem vossa presença pode desmentir vosso nome, nem vosso nome
pode não acreditar vossa presença: sem dúvida, vós, senhor, sois o
verdadeiro dom Quixote da Mancha, norte e luzeiro da andante
cavalaria, a despeito e pesar do que quis usurpar vosso nome e
aniquilar vossas façanhas, como o fez o autor deste livro que aqui
vos entrego.
E pondo-lhe um livro nas mãos, que trazia seu companheiro, o tomou
dom Quixote, e, sem responder palavra, começou a folheá-lo, e dali a
um pouco se voltou, dizendo:
- Neste pouco que vi achei três coisas neste autor dignas de
repreensão. A primeira é algumas palavras que li no prólogo; a outra,
que a linguagem é aragonês, porque talvez escreve sem artigos, e a
terceira, que mais o confirma por ignorante, é que erra e se desvia da
verdade no mais principal da história; porque aqui diz que a mulher de
Sancho Pança meu escudeiro se chama Mari Gutiérrez, e não chama
tal, senão Teresa Pança; e quem nesta parte tão principal erra, bem se
poderá temer que erra em todas as demais da história.
A isto disse Sancho:
- Graciosa coisa de historiador! Por certo, bem deve estar no conto
de nossos sucessos, pois chama a Teresa Pança, minha mulher, Mari
Gutiérrez! Torne a tomar o livro, senhor, e veja se ando eu por aí e se
me mudou o nome.
- Pelo que ouvi falar, amigo - disse dom Jerônimo, - sem dúvida
deveis ser Sancho Pança, o escudeiro do senhor dom Quixote.
- Sim, sou - respondeu Sancho, - e me prezo disso.
- Pois à fé - disse o cavaleiro - que não vos trata este autor
moderno com a limpeza que em vossa pessoa se mostra: pinta-vos
comedor, e simples, e não nada gracioso, e muito outro do Sancho que
na primeira parte da história de vosso amo se descreve.
- Deus o perdoe - disse Sancho. - Deixasse-me em meu canto, sem
lembrar-se de mim, porque cada um sabe de suas coisas, e bem está
São Pedro em Roma.
Os dois cavaleiros pediram a dom Quixote se passasse a seu quarto
a jantar com eles, que bem sabiam que naquela estalagem não havia
coisas correspondentes à sua pessoa. Dom Quixote, que sempre foi
comedido, condescendeu com sua demanda e jantou com eles; ficou
Sancho com a panela com todos os poderes; sentou-se na cabeceira da
mesa, e com ele o vendeiro, que não menos que Sancho estava por suas
mãos e por suas unhas aficionado.
No decurso do jantar perguntou dom João a dom Quixote que novas
tinha da senhora Dulcineia do Toboso: se se havia casado, se estava
parida ou prenhe, ou se, estando em sua integridade, se lembrava,
guardando sua honestidade e bom decoro, dos amorosos pensamentos
do senhor dom Quixote. Ao que ele respondeu:
- Dulcineia está inteira, e meus pensamentos, mais firmes que
nunca; as correspondências, em sua sequidão antiga; sua formosura, na
de uma soez lavradora transformada.
E logo lhes foi contando ponto por ponto o encanto da senhora
Dulcineia, e o que lhe havia sucedido na cova de Montesinos, com a
ordem que o sábio Merlim lhe havia dado para desencantá-la, que foi a
dos açoites de Sancho.
Sumo foi o prazer que os dois cavaleiros receberam por ouvir dom
Quixote contar os estranhos sucessos de sua história, e assim
ficaram admirados de seus disparates como do elegante modo com que
os contava. Aqui o tinham por discreto, e ali se lhes deslizava por
mentecapto, sem saber determinar-se que grau lhe dariam entre a
discrição e a loucura.
Acabou de jantar Sancho, e, deixando borracho o vendeiro, se
passou ao quarto de seu amo; e, entrando, disse:
- Que me matem, senhores, se o autor deste livro que vossas
mercês têm quer que não nos demos bem; eu queria que, já que me
chama comilão, como vossas mercês dizem, não me chamasse também
bêbado.
- Sim, chama - disse dom Jerônimo, - mas não me lembro de que
maneira, embora sei que são inconvenientes as razões, e ademais,
mentirosas, segundo eu vejo na fisionomia do bom Sancho que está
presente.
- Creiam-me vossas mercês - disse Sancho - que o Sancho e o dom
Quixote dessa história devem ser outros que os que andam naquela
que compôs Cide Hamete Benengeli, que somos nós: meu amo, valente,
discreto e enamorado; e eu, ingênuo gracioso, e não comedor nem
bêbado.
- Eu assim o creio - disse dom João - ; e se fosse possível, se havia
de mandar que nenhum fora ousado a tratar das coisas do grande dom
Quixote, se não fosse Cide Hamete, seu primeiro autor, bem assim
que mandou Alexandre que nenhum fosse ousado a retratá-lo senão
Apeles.
- Retrate-me o que quiser - disse dom Quixote, - mas não me
maltrate; que muitas vezes costuma acabar a paciência quando a
carregam de injúrias.
- Nenhuma - disse dom João - se pode fazer ao senhor dom Quixote
de que ele não se possa vingar, se não a repara no escudo de sua
paciência, que, a meu parecer, é forte e grande.
Nestas e outras conversas se passou grande parte da noite; e,
embora dom João quisesse que dom Quixote lesse mais do livro, para
ver de que discordava, não o puderam convencer, dizendo que ele o
dava por lido e o confirmava por absolutamente néscio, e que não
queria, se acaso chegasse à notícia de seu autor que o havia tido em
suas mãos, se alegrasse ao pensar que o havia lido; pois das coisas
obscenas e torpes, os pensamentos se hão de afastar, quanto mais os
olhos. Perguntaram-lhe aonde levava determinada sua viagem.
Respondeu que a Saragoça, a achar-se nas justas do arnês, que
naquela cidade costumam fazer-se todos os anos. Disse-lhe dom João
que aquela nova história contava como dom Quixote, seja quem se
quiser, se havia achado nela em um jogo da argola falto de invenção,
pobre de letras, pobríssima de librés, embora rica de simplicidades.
- Pelo mesmo caso - respondeu dom Quixote, - não porei os pés em
Saragoça, e assim atirarei à praça do mundo a mentira desse
historiador moderno, e verão as gentes como eu não sou o dom
Quixote que ele diz.
- Fará muito bem - disse dom Jerônimo; - e outras justas há em
Barcelona, onde poderá o senhor dom Quixote mostrar seu valor.
- Assim o penso fazer - disse dom Quixote; - e vossas mercês me
deem licença, pois já é hora para ir-me ao leito, e me tenham e ponham
no número de seus maiores amigos e servidores.
- E a mim também - disse Sancho: - quiçá serei bom para algo.
Com isto se despediram, e dom Quixote e Sancho se retiraram a
seu aposento, deixando dom João e dom Jerônimo admirados de ver a
mescla que havia feito de sua discrição e de sua loucura; e
verdadeiramente creram que estes eram os verdadeiros dom Quixote
e Sancho, e não os que descrevia seu autor aragonês.
Madrugou dom Quixote, e, dando golpes ao tabique do outro
aposento, se despediu de seus hóspedes. Pagou Sancho ao vendeiro
magnificamente, e aconselhou-o que louvasse menos a provisão de sua
estalagem, ou a tivesse mais provida.

CAPÍTULO LX

Do que sucedeu a dom Quixote indo a Barcelona

Era fresca a manhã, e dava mostras de sê-lo também o dia em que


dom Quixote saiu da estalagem, informando-se primeiro qual era o
mais direito caminho para ir a Barcelona sem tocar em Saragoça: tal
era o desejo que tinha de tornar mentiroso aquele novo historiador
que tanto diziam que o vituperava.
Sucedeu, pois, que em mais de seis dias não lhe sucedeu coisa digna
de pôr-se em escritura, ao cabo dos quais, indo fora de caminho,
achou-o a noite entre umas espessas azinheiras ou sobreiros, que
nisto não guarda a pontualidade Cide Hamete que em outras coisas
costuma.
Apearam-se de suas bestas amo e moço, e, acomodando-se aos
troncos das árvores, Sancho, que havia merendado aquele dia, se
deixou entrar de roldão pelas portas do sonho; mas dom Quixote, a
quem desvelavam suas imaginações muito mais que a fome, não podia
pregar seus olhos, antes ia e vinha com o pensamento por mil gêneros
de lugares. Já lhe parecia achar-se na cova de Montesinos; já ver
pular e subir sobre sua asninha a convertida em lavradora Dulcineia; já
lhe soavam aos ouvidos as palavras do sábio Merlim que lhe referiam
as condições e diligências que se haviam de fazer e ter no desencanto
de Dulcineia. Desesperava-se por ver a frouxidão e caridade pouca de
Sancho seu escudeiro, pois, ao que acreditava, só cinco açoites se
havia dado, número desigual e pequeno para os infinitos que lhe
faltavam; e disto recebeu tanto pesar e nojo, que fez este discurso:
- Se o nó górdio cortou Magno Alexandre, dizendo “Tanto monta
cortar como desatar”, e não por isso deixou de ser universal senhor de
toda a Ásia, nem mais nem menos poderia suceder agora no
desencanto de Dulcineia, se eu açoitasse Sancho a pesar seu; que se a
condição deste remédio está em que Sancho receba os três mil e
tantos açoites, que se me dá a mim que se os dê ele, ou que se os dê
outro, pois a substância está em que ele os receba, cheguem por onde
chegarem?
Com este pensamento se chegou a Sancho, havendo primeiro tomado
as rédeas de Rocinante, e acomodado-as de modo que pudesse açoitá-
lo com elas, começou-lhe a tirar as cintas, que é opinião que não tinha
mais que a dianteira, em que se sustentavam os greguescos; mas,
apenas chegou, quando Sancho despertou de todo, e disse:
- Que é isto? Quem me toca e tira a cinta?
- Eu sou - respondeu dom Quixote, - que venho suprir tuas faltas e
remediar meus trabalhos: venho-te açoitar, Sancho, e diminuir, em
parte, a dívida a que te obrigaste. Dulcineia perece; tu vives em
descuido; eu morro desejando; e assim, despe-te por tua vontade, que
a minha é de dar-te nesta solidão, pelo menos, dois mil açoites.
- Isso não - disse Sancho; - vossa mercê esteja quieto; se não, por
Deus verdadeiro que nos hão de ouvir os surdos. Os açoites a que eu
me obriguei hão de ser voluntários, e não por força, e agora não tenho
vontade de açoitar-me; basta que dou a vossa mercê minha palavra de
surrar-me quando a vontade me vier.
- Não há deixá-lo a tua cortesia, Sancho - disse dom Quixote, -
porque és duro de coração, e, embora vilão, brando de carnes.
E assim, procurava e pugnava por desenlaçá-lo; vendo isso Sancho
Pança se pôs em pé, e, arremetendo a seu amo, se abraçou com ele e,
dando-lhe uma rasteira, deu com ele no chão de boca para cima; pôs-
lhe o joelho direito sobre o peito, e com as mãos lhe segurava as mãos,
de modo que nem o deixava mexer-se nem respirar. Dom Quixote lhe
dizia:
- Como, traidor? Contra teu amo e senhor natural te desmandas?
Com quem te dá o pão te atreves?
- Nem deponho rei, nem ponho rei - respondeu Sancho, - senão
ajudo-me a mim, que sou meu senhor. Vossa mercê me prometa que
ficará quieto, e não tratará de açoitar-me por agora, que eu o deixarei
livre e desembaraçado; se não,

aqui morrerás, traidor,


inimigo de dona Sancha.

Prometeu-o dom Quixote, e jurou pela vida de seus pensamentos


não tocar-lhe no pelo da roupa e que deixaria em toda sua vontade e
alvedrio o açoitar-se quando quisesse.
Levantou-se Sancho, e desviou-se daquele lugar um bom espaço; e,
indo arrimar-se a outra árvore, sentiu que lhe tocavam na cabeça, e,
alçando as mãos, topou com dois pés de pessoa, com sapatos e calças.
Tremeu de medo; chegou-se a outra árvore, e sucedeu-lhe o mesmo:
deu vozes chamando dom Quixote a que o favorecesse. Fê-lo assim
dom Quixote, e, perguntando-lhe o que lhe havia sucedido e de que
tinha medo, respondeu-lhe Sancho que todas aquelas árvores estavam
cheias de pés e de pernas humanas. Tateou-os dom Quixote, e
descobriu logo o que podia ser, e disse a Sancho:
- Não tens de que ter medo, porque estes pés e pernas que tocas e
não vês, sem dúvida são de alguns foragidos e bandoleiros que nestas
árvores estão enforcados; que por aqui os costuma enforcar a justiça
quando os colhe, de vinte em vinte e de trinta em trinta; por onde me
dou a entender que devo estar perto de Barcelona.
E assim era a verdade como ele o havia imaginado.
Ao partir, alçaram os olhos, e viram os cachos daquelas árvores, que
eram corpos de bandoleiros. Já, nisto, amanhecia, e se os mortos os
haviam espantado, não menos os atribularam mais de quarenta
bandoleiros vivos que de improviso os rodearam, dizendo-lhes em
língua catalã que estivessem parados, e se detivessem, até que
chegasse seu capitão.
Achou-se dom Quixote a pé, seu cavalo sem freio, sua lança
arrimada a uma árvore, e, finalmente, sem defesa alguma; e assim,
teve por bem cruzar as mãos e inclinar a cabeça, guardando-se para
melhor ocasião e conjuntura.
Foram os bandoleiros a esquadrinhar o ruço, e a não deixar-lhe
nenhuma coisa de quantas nos alforjes e maleta trazia; e caiu bem a
Sancho que em uma faixa que tinha cingida vinham os escudos do
duque e os que haviam trazido de sua terra, e, mesmo assim, aquela
boa gente o perscrustaria e olharia até o que entre o couro e a carne
tivesse escondido, se não chegasse naquela ocasião seu capitão, o qual
mostrou ser de até idade de trinta e quatro anos, robusto, mais que
de mediana proporção, de olhar grave e cor morena. Vinha sobre um
poderoso cavalo, vestida a afiada cota, e com quatro pistoletes (que
naquela terra se chamam pedreñalles) aos lados. Viu que seus
escudeiros, que assim chamam aos que andam naquele exercício, iam
despojar Sancho Pança; mandou-lhes que não o fizessem, e foi logo
obedecido; e assim escapou a faixa. Admirou-o ver lança arrimada à
árvore, escudo no chão, e dom Quixote armado e pensativo, com a
mais triste e melancólica figura que poderia formar a mesma tristeza.
Chegou-se a ele dizendo-lhe:
- Não estejais tão triste, bom homem, porque não haveis caído nas
mãos de algum cruel Osíris, senão nas de Roque Guinart, que têm mais
de compassivas que de rigorosas.
- Não é minha tristeza - respondeu dom Quixote - haver caído em
teu poder, oh valoroso Roque, cuja fama não há limites na terra que a
encerrem!, senão por haver sido tal meu descuido, que me hajam
colhido teus soldados sem o freio, estando eu obrigado, segundo a
ordem da andante cavalaria, que professo, a viver contínuo alerta,
sendo a todas horas sentinela de mim mesmo; porque te faço saber, oh
grande Roque!, que se me achassem sobre meu cavalo, com minha lança
e com meu escudo, não lhes seria muito fácil render-me, porque eu sou
dom Quixote da Mancha, aquele que de suas façanhas tem cheio todo
o orbe.
Logo Roque Guinart conheceu que a enfermidade de dom Quixote se
tratava mais de loucura que de valentia, e, embora algumas vezes o
ouviu nomear, nunca teve por verdade seus feitos, nem se pôde
persuadir de que semelhante humor reinasse em coração de homem; e
alegrou-se em extremo de havê-lo encontrado, para tocar de perto o
que de longe dele havia ouvido; e assim, disse-lhe:
- Valoroso cavaleiro, não vos despeiteis nem tenhais por sinistra
sorte esta em que vos achais, que podia ser que nestes tropeços vossa
torcida sorte se endireitasse; que o céu, por estranhos e nunca vistos
rodeios, pelos homens não imaginados, costuma levantar os caídos e
enriquecer os pobres.
Já lhe ia dar as graças dom Quixote, quando sentiram a suas costas
um ruído como de tropel de cavalos, e não era senão um só, sobre o
qual vinha a toda fúria um mancebo, ao parecer de até vinte anos,
vestido de damasco verde, com galões de ouro, greguescos e capuz,
com chapéu terçado, à valona, botas enceradas e justas, esporas,
adaga e espada douradas, uma escopeta pequena nas mãos e duas
pistolas aos lados. Ao ruído voltou Roque a cabeça e viu esta formosa
figura, a qual, chegando a ele, disse:
- Em tua busca vinha, oh valoroso Roque!, para achar em ti, se não
remédio, ao menos alívio para minha desdita; e, por não ter-te
suspenso, porque sei que não me reconheceste, quero dizer-te quem
sou: eu sou Cláudia Jerônima, filha de Simão Forte, teu singular amigo
e inimigo particular de Clauquel Torrelas, que também o é teu, por ser
um dos de teu contrário bando; e já sabes que este Torrelas tem um
filho que dom Vicente Torrelas se chama, ou, ao menos, se chamava
não há duas horas. Este, pois, por abreviar o conto de minha
desventura, te direi em breves palavras a que me causou. Viu-me,
galanteou-me, escutei-o, enamorei-me, a furto de meu pai; porque não
há mulher, por retirada que esteja e recatada que seja, a quem não
lhe sobre tempo para pôr em execução e efeito seus atropelados
desejos. Finalmente, ele me prometeu ser meu esposo, e eu lhe dei a
palavra de ser sua, sem que em práticas passássemos adiante. Soube
ontem que, olvidado do que me devia, se casava com outra, e que esta
manhã ia desposar-se, nova que me turvou o sentido e acabou a
paciência; e, por não estar meu pai no lugar, tive eu de pôr-me no traje
que vês, e apressando o passo a este cavalo, alcancei dom Vicente obra
de uma légua daqui; e, sem pôr-me a dar queixas nem a ouvir
desculpas, lhe disparei estas escopetas, e, por acréscimo, estas duas
pistolas; e, ao que creio, lhe devi encerrar mais de duas balas no
corpo, abrindo-lhe portas por onde envolta em seu sangue saísse minha
honra. Ali o deixo entre seus criados, que não ousaram nem puderam
pôr-se em sua defesa. Venho buscar-te para que me passes à França,
onde tenho parentes com quem viva, e também a rogar-te defendas
meu pai, para que os muitos de dom Vicente não se atrevam a tomar
nele desaforada vingança.
Roque, admirado da galhardia, bizarria, bom talhe e sucesso da
formosa Cláudia, disse-lhe:
- Vem, senhora, e vamos ver se é morto teu inimigo, que depois
veremos o que mais te importar.
Dom Quixote, que estava escutando atentamente o que Cláudia
havia dito e o que Roque Guinart respondeu, disse:
- Não tem ninguém para que tomar trabalho em defender a esta
senhora, que o tomo eu a meu cargo: deem-me meu cavalo e minhas
armas, e esperem-me aqui, que eu irei buscar esse cavaleiro, e, morto
ou vivo, o farei cumprir a palavra prometida a tanta beleza.
- Ninguém duvide disto - disse Sancho, - porque meu senhor tem
muito boa mão para casamenteiro, pois não há muitos dias que fez
casar a outro que também negava a outra donzela sua palavra; e se não
fosse porque os encantadores que o perseguem mudaram sua
verdadeira figura na de um lacaio, esta seria a hora que já a tal
donzela não o seria.
Roque, que atendia mais a pensar no sucesso da formosa Cláudia que
nas razões de amo e moço, não as entendeu; e, mandando que seus
escudeiros devolvessem a Sancho tudo quanto lhe haviam tirado do
ruço, mandou também que se retirassem à parte onde naquela noite
haviam estado alojados e logo partiu com Cláudia a toda pressa a
buscar o ferido, ou morto, dom Vicente. Chegaram ao lugar onde o
encontrou Cláudia, e não acharam nele senão recém derramado sangue;
mas, estendendo a vista por todos os lados, descobriram por um
declive acima alguma gente, e deram-se a entender, como era a
verdade, que devia ser dom Vicente, a quem seus criados, ou morto ou
vivo, levavam, ou para curá-lo, ou para enterrá-lo; deram-se pressa em
alcançá-los, e, como iam devagar, com facilidade o fizeram. Acharam
dom Vicente nos braços de seus criados, a quem com cansada e
debilitada voz rogava que o deixassem ali morrer, porque a dor das
feridas não consentia que mais adiante passasse.
Arrojaram-se dos cavalos Cláudia e Roque, chegaram-se a ele,
temeram os criados a presença de Roque, e Cláudia se perturbou em
ver a de dom Vicente; e assim, entre enternecida e rigorosa, se
chegou a ele, e tomando-o das mãos, disse-lhe:
- Se tu me desses estas, conforme a nosso concerto, nunca tu te
verias neste passo.
Abriu os quase fechados olhos o ferido cavaleiro, e, reconhecendo
Cláudia, lhe disse:
- Bem vejo, formosa e enganada senhora, que tu foste a que me
mataste: pena não merecida nem devida a meus desejos, com os quais,
nem com minhas obras, jamais quis nem soube ofender-te.
- Logo, não é verdade - disse Cláudia - que ias esta manhã a
desposar Leonora, a filha do rico Balvastro?
- Não, por certo - respondeu dom Vicente; - minha má fortuna te
deveu levar estas novas, para que, ciumenta, me tirasses a vida, a qual,
pois a deixo em tuas mãos e em teus braços, tenho minha sorte por
venturosa. E para assegurar-te desta verdade, aperta a mão e recebe-
me por esposo, se quiseres, que não tenho outra maior satisfação que
dar-te do agravo que pensas que de mim recebeste.
Apertou-lhe a mão Cláudia, e acercou-a ao coração, de maneira que
sobre o sangue e peito de dom Vicente ficou desmaiada, e a ele lhe
tomou uma mortal síncope. Confuso estava Roque, e não sabia o que
fazer. Foram os criados buscar água para lançar-lhes nos rostos, e
trouxeram-na, com que os banharam. Voltou de seu desmaio Cláudia,
mas não de sua síncope dom Vicente, porque se lhe acabou a vida.
Visto o que por Cláudia, havendo-se inteirado que já seu doce esposo
não vivia, rompeu os ares com suspiros, feriu os céus com queixas,
maltratou seus cabelos, entregando-os ao vento, afeou seu rosto com
suas próprias mãos, com todas as mostras de dor e sentimento que de
um lastimado peito poderiam imaginar-se.
- Oh cruel e inconsiderada mulher - dizia, - com que facilidade te
moveste a pôr em execução tão mau pensamento! Oh força raivosa dos
ciúmes, a que desesperado fim conduzis a quem vos dá acolhida em seu
peito! Oh esposo meu, cuja desditada sorte, por ser prenda minha, te
levou do tálamo à sepultura!
Tais e tão tristes eram as queixas de Cláudia, que tiraram as
lágrimas dos olhos de Roque, não acostumados a vertê-las por nenhum
motivo. Choravam os criados, desmaiava a cada passo Cláudia, e todo
aquele circuito parecia campo de tristeza e lugar de desgraça.
Finalmente, Roque Guinart ordenou aos criados de dom Vicente que
levassem seu corpo ao lugar de seu pai, que estava ali perto, para que
lhe dessem sepultura. Cláudia disse a Roque que queria ir a um
monastério onde era abadessa uma tia sua, no qual pensava acabar a
vida, de outro melhor esposo e mais eterno acompanhada. Louvou-lhe
Roque seu bom propósito, ofereceu-se para acompanhá-la até onde
quisesse, e de defender seu pai dos parentes e de todo o mundo, se
ofendê-lo quisesse. Não quis sua companhia Cláudia, de nenhuma
maneira, e, agradecendo seus oferecimentos com as melhores razões
que soube, se despediu dele chorando. Os criados de dom Vicente
levaram seu corpo, e Roque voltou aos seus, e este fim tiveram os
amores de Cláudia Jerônima. Mas que admira, se teceram a trama de
sua lamentável história as forças invencíveis e rigorosas dos ciúmes?
Achou Roque Guinart seus escudeiros na parte onde lhes havia
ordenado, e dom Quixote entre eles, sobre Rocinante, fazendo-lhes
uma arenga em que lhes persuadia deixassem aquele modo de viver tão
perigoso, assim para a alma como para o corpo; mas, como os mais
eram gascões, gente rústica e desbaratada, não lhes entrava bem a
conversa de dom Quixote. Chegado que foi Roque, perguntou a Sancho
Pança se lhe haviam devolvido e restituído as joias e pertences que os
seus do ruço lhe haviam tirado. Sancho respondeu que sim, senão que
lhe faltavam três toucas, que valiam três cidades.
- Que é o que dizes, homem? - disse um dos presentes, - que eu as
tenho, e não valem três reais.
- Assim é - disse dom Quixote, - mas estima-os meu escudeiro no
que disse por haver-mos dado quem mos deu.
Mandou-as devolver em seguida Roque Guinart, e, mandando pôr os
seus em ala, mandou trazer ali diante todos os trajes, joias, e
dinheiros, e tudo aquilo que desde a última repartição haviam roubado;
e, fazendo brevemente a avaliação, tomando o não repartível e
reduzindo-o a dinheiros, repartiu-o por toda sua companhia, com tanta
legalidade e prudência que não passou um ponto nem defraudou nada
da justiça distributiva. Feito isto, com o que todos ficaram contentes,
satisfeitos e pagos, disse Roque a dom Quixote:
- Se não se guardasse esta pontualidade com estes, não se poderia
viver com eles.
Ao que disse Sancho:
- Segundo o que aqui vi, é tão boa a justiça, que é necessária que se
use ainda entre os mesmos ladrões.
Ouviu-o um escudeiro, e alçou a culatra de um arcabuz, com a qual,
sem dúvida, abriria a cabeça de Sancho, se Roque Guinart não lhe
desse vozes que se detivesse. Pasmou Sancho, e propôs não descoser
os lábios enquanto entre aquela gente estivesse.
Chegou, nisto, um ou alguns daqueles escudeiros que estavam postos
por sentinelas pelos caminhos para ver a gente que por eles vinha e
dar aviso a seu maior do que se passava, e este disse:
- Senhor, não longe daqui, pelo caminho que vai a Barcelona, vem um
grande tropel de gente.
A que respondeu Roque:
- Viste - respondeu Roque - se são dos que nos buscam, ou dos que
nós buscamos?
- Não, senão dos que buscamos - respondeu o escudeiro.
- Pois saí todos - replicou Roque, - e trazei-mos aqui logo, sem que
se vos escape nenhum.
Fizeram-no assim, e, ficando sós dom Quixote, Sancho e Roque,
aguardaram a ver o que os escudeiros traziam; e, neste entretanto,
disse Roque a dom Quixote:
- Nova maneira de vida deve parecer ao senhor dom Quixote a
nossa, novas aventuras, novos sucessos, e todos perigosos; e não me
maravilho que assim lhe pareça, porque realmente lhe confesso que
não há modo de viver mais inquieto nem mais sobressaltado que o
nosso. Puseram-me nele não sei que desejos de vingança, que têm
força de turvar os mais sossegados corações; eu, de meu natural, sou
compassivo e bem intencionado; mas, como disse, o querer vingar-me
de um agravo que se me fez, assim dá com todas minhas boas
inclinações em terra, que persevero neste estado, a despeito e pesar
do que entendo; e, como um abismo chama outro e um pecado a outro
pecado, encadearam-se as vinganças de maneira que não só as minhas,
mas as alheias tomo a meu cargo; mas Deus é servido de que, embora
me vejo no meio do labirinto de minhas confusões, não perco a
esperança de sair dele a porto seguro.
Admirado ficou dom Quixote de ouvir Roque dizer tão boas e
concertadas razões, porque ele pensava que, entre os de ofícios
semelhantes de roubar, matar e saltear não podia haver algum que
tivesse bom discurso, e respondeu-lhe:
- Senhor Roque, o princípio da saúde está em conhecer a
enfermidade e em querer tomar o enfermo as medicinas que o médico
lhe ordena: vossa mercê está enfermo, conhece sua doença, e o céu,
ou Deus, por melhor dizer, que é nosso médico, lhe aplicará medicinas
que o curem, as quais costumam curar pouco a pouco e não de repente
e por milagre; e mais, que os pecadores discretos estão mais perto de
emendar-se que os simples; e, pois vossa mercê mostrou em suas
razões sua prudência, não há senão ter bom ânimo e esperar melhoria
da enfermidade de sua consciência; e se vossa mercê quer poupar
caminho e pôr-se com facilidade no de sua salvação, venha comigo, que
eu o ensinarei a ser cavaleiro andante, onde se passam tantos
trabalhos e desventuras que, tomando-as por penitência, num instante
o porão no céu.
Riu-se Roque do conselho de dom Quixote, a quem, mudando de
assunto, contou o trágico sucesso de Cláudia Jerônima, de que pesou
em extremo a Sancho, que não lhe havia parecido mal a beleza,
desenvoltura e brio da moça.
Chegaram, nisto, os escudeiros da presa, trazendo consigo dois
cavaleiros a cavalo, e dois peregrinos a pé, e um coche de mulheres
com até seis criados, que a pé e a cavalo as acompanhavam, com outros
dois moços de mulas que os cavaleiros traziam. Rodearam-nos os
escudeiros, guardando vencidos e vencedores grande silêncio,
esperando que o grande Roque Guinart falasse, o qual perguntou aos
cavaleiros quem eram e aonde iam, e que dinheiro levavam. Um deles
lhe respondeu:
- Senhor, nós somos dois capitães da infantaria espanhola; temos
nossas companhias em Nápoles e vamos embarcar-nos em quatro galés,
que dizem estão em Barcelona com ordem de passar a Sicília; levamos
até duzentos ou trezentos escudos, com que, a nosso parecer, vamos
ricos e contentes, pois a estreiteza ordinária dos soldados não
permite maiores tesouros.
Perguntou Roque aos peregrinos o mesmo que aos capitães; foi-lhe
respondido que iam embarcar para passar a Roma, e que entre ambos
podiam levar até sessenta reais. Quis saber também quem ia no coche,
e aonde, e o dinheiro que levavam; e um dos a cavalo disse:
- Minha senhora dona Guiomar de Quinhões, mulher do regente da
Vicaria de Nápoles, com uma filha pequena, uma donzela e uma ama,
são as que vão no coche; acompanhamo-la seis criados, e os dinheiros
são seiscentos escudos.
- De modo - disse Roque Guinart-, que já temos aqui novecentos
escudos e sessenta reais; meus soldados devem ser até sessenta;
veja-se quanto cabe a cada um, porque eu sou mau contador.
Ouvindo dizer isto os salteadores, levantaram a voz, dizendo:
- Viva Roque Guinart muitos anos, apesar dos lladres (ladrões, em
catalão (N. do T.)) que sua perdição procuram!
Mostraram afligir-se os capitães, entristeceu-se a senhora regenta
e não se alegraram nada os peregrinos, vendo a confiscação de seus
bens. Teve-os assim um momento suspensos Roque, mas não quis que
passasse adiante sua tristeza, que já se podia conhecer a tiro de
arcabuz, e, voltando-se aos capitães, disse:
- Vossas mercês, senhores capitães, por cortesia, sejam servidos de
emprestar-me sessenta escudos, e a senhora regenta oitenta, para
contentar esta esquadra que me acompanha, porque o abade, do que
canta janta, e logo podem seguir seu caminho livre e
desembaraçadamente, com um salvo-conduto que eu lhes darei, para
que, se toparem outras de algumas esquadras minhas que tenho
divididas por estes contornos, não lhes façam dano; que não é minha
intenção agravar soldados nem mulher alguma, especialmente às que
são principais.
Infinitas e bem ditas foram as razões com que os capitães
agradeceram a Roque sua cortesia e liberalidade, que, por tal a
tiveram, em deixar-lhes seu mesmo dinheiro. A senhora dona Guiomar
de Quinhões se quis arrojar do coche para beijar os pés e as mãos do
grande Roque, mas ele não o consentiu de maneira alguma; antes lhe
pediu perdão do agravo que lhe fazia, forçado de cumprir com as
obrigações precisas de seu mau ofício. Mandou a senhora regenta que
um criado seu desse logo os oitenta escudos que lhe haviam repartido,
e já os capitães haviam desembolsado os sessenta. Iam os peregrinos
dar toda sua miséria, mas Roque lhes disse que estivessem parados e,
voltando-se aos seus, lhes disse:
- Destes escudos dois tocam a cada um, e sobram vinte: os dez se
deem a estes peregrinos, e os outros dez a este bom escudeiro, para
que possa dizer bem desta aventura.
E trazendo-lhe com que escrever, de que sempre andava provido,
Roque lhes deu por escrito um salvo-conduto para os chefes de suas
esquadras, e, despedindo-se deles, os deixou ir livres, e admirados de
sua nobreza, de sua galharda disposição e estranho proceder, tendo-
lhe mais por um Alexandre Magno que por ladrão conhecido. Um dos
escudeiros disse em sua língua gasconha e catalã:
- Este nosso capitão mais é para frade que para bandoleiro: se daqui
em diante quiser mostrar-se liberal seja-o com seus bens e não com os
nossos.
Não o disse tão baixo o desventurado que deixasse de ouvi-lo
Roque, o qual, pegando a espada, lhe abriu a cabeça quase em duas
partes, dizendo-lhe:
- Desta maneira castigo eu aos deslinguados e atrevidos.
Pasmaram todos, e nenhum lhe ousou dizer palavra: tanta era a
obediência que lhe tinham.
Afastou-se Roque a uma parte e escreveu uma carta a um seu
amigo, em Barcelona, dando-lhe aviso como estava consigo o famoso
dom Quixote da Mancha, aquele cavaleiro andante de quem tantas
coisas se diziam; e que lhe fazia saber que era o mais gracioso e o
mais entendido homem do mundo, e que dali a quatro dias, que era o de
São João Batista, o poria em meio da praia da cidade, armado de
todas seus armas, sobre Rocinante, seu cavalo, e seu escudeiro Sancho
sobre um asno, e que desse notícia disto a seus amigos os Niarros,
para que com ele se alegrassem; que ele queria que carecessem deste
gosto os Cadells, seus contrários, mas que isto era impossível, porque
as loucuras e discrições de dom Quixote e os donaires de seu
escudeiro Sancho Pança não podiam deixar de dar gosto geral a todo o
mundo. Despachou esta carta com um de seus escudeiros, que,
mudando o traje de bandoleiro no de um lavrador, entrou em
Barcelona e a deu a quem se dirigia.

CAPÍTULO LXI

Do que sucedeu a dom Quixote na entrada de Barcelona, com outras


coisas que têm mais do verdadeiro que do discreto

Três dias e três noites esteve dom Quixote com Roque, e se


estivesse trezentos anos, não lhe faltaria o que olhar e admirar no
modo de sua vida: aqui amanheciam, acolá comiam; umas vezes fugiam,
sem saber de quem, e outras esperavam, sem saber a quem. Dormiam
em pé, interrompendo o sono, mudando-se de um lugar a outro. Tudo
era pôr espias, escutar sentinelas, soprar as mechas dos arcabuzes,
embora trouxessem poucos, porque todos se serviam de trabucos.
Roque passava as noites afastado dos seus, em partes e lugares onde
eles não pudessem saber onde estava; porque os muitos bandos que o
vice-rei de Barcelona havia lançado sobre sua vida o traziam inquieto e
temeroso, e não ousava confiar em nenhum, temendo que os mesmos
seus, ou o haviam de matar, ou entregar à justiça: vida, por certo,
miserável e enfadonha.
Enfim, por caminhos desusados, por atalhos e sendas encobertas,
partiram Roque, dom Quixote e Sancho com outros seis escudeiros a
Barcelona. Chegaram à sua praia na véspera de São João à noite, e,
abraçando Roque a dom Quixote e a Sancho, a quem deu os dez
escudos prometidos, que até então não os havia dado, os deixou, com
mil oferecimentos que de uma à outra parte se fizeram.
Foi-se Roque, ficou dom Quixote esperando o dia, assim a cavalo
como estava, e não tardou muito quando começou a descobrir-se pelos
balcões do oriente a face da branca aurora, alegrando as ervas e as
flores, em lugar de alegrar o ouvido; embora no mesmo instante
alegrassem também o ouvido o som de muitas charamelas e atabaques,
ruído de guizos, “fora, fora, afasta, afasta!” de corredores, que, ao
parecer, da cidade saíam. Deu lugar a aurora ao sol, que, um rosto
maior que o de uma rodela, pelo mais baixo horizonte pouco a pouco se
ia levantando.
Estenderam dom Quixote e Sancho a vista por todos os lados: viram
o mar, até então por eles não visto; pareceu-lhes espaçosíssimo e
largo, muito mais que as lagoas de Ruidera, que na Mancha haviam
visto; viram as galeras que estavam na praia, as quais, arriando os
toldos, se descobriram cheias de flâmulas e galhardetes, que
tremulavam ao vento e beijavam e varriam a água; dentro soavam
clarins, trombetas e charamelas, que perto e longe enchiam o ar de
suaves e belicosos acentos. Começaram a mover-se e a fazer modo de
escaramuça pelas sossegadas águas, correspondendo-lhes quase ao
mesmo modo infinitos cavaleiros que da cidade sobre formosos cavalos
e com vistosas librés saíam. Os soldados das galeras disparavam
infinita artilharia, à qual respondiam os que estavam nas muralhas e
fortes da cidade, e a artilharia grossa com espantoso estrondo rompia
os ventos, a quem respondiam os canhões de grosso calibre das
galeras. O mar alegre, a terra jocunda, o ar claro, só talvez turvo da
fumaça da artilharia, parece que ia infundindo e engendrando gosto
súbito em todas as gentes. Não podia imaginar Sancho como pudessem
ter tantos remos aqueles vultos que pelo mar se moviam. Nisto,
chegaram correndo, com grita, lililis e algazarra, os das librés onde
dom Quixote suspenso e atônito estava, e um deles, que era o avisado
de Roque, disse em alta voz a dom Quixote:
- Bem seja vindo a nossa cidade o espelho, o farol, a estrela e o
norte de toda a cavalaria andante, onde mais largamente se contém.
Bem seja vindo, digo, o valoroso dom Quixote da Mancha: não o falso,
não o fictício, não o apócrifo que em falsas histórias estes dias nos
mostraram, senão o verdadeiro, o legal e o fiel que nos descreveu Cide
Hamete Benengeli, flor dos historiadores.
Não respondeu dom Quixote palavra, nem os cavaleiros esperaram a
que respondesse, senão, voltando-se e revoltando-se com os demais
que os seguiam, começaram a fazer um revolto caracol ao derredor de
dom Quixote; o qual, voltando-se a Sancho, disse:
- Estes bem nos reconheceram: eu apostarei que leram nossa
história e ainda a do aragonês recém impressa.
Voltou outra vez o cavaleiro que falou a dom Quixote, e disse-lhe:
- Vossa mercê, senhor dom Quixote, venha conosco, que todos
somos seus servidores e grandes amigos de Roque Guinart.
A que dom Quixote respondeu:
- Se cortesias engendram cortesias, a vossa, senhor cavaleiro, é
filha ou parenta muito perto das do grande Roque. Levai-me onde
quiserdes, que eu não terei outra vontade que a vossa, e mais se a
quereis ocupar em vosso serviço.
Com palavras não menos comedidas que estas lhe respondeu o
cavaleiro, e rodeando-o todos, ao som das charamelas e dos
atabaques, se encaminharam com ele à cidade, ao entrar da qual, o
mau, que tudo o mau ordena, e os moços, que são piores que o mau,
dois deles, travessos e atrevidos, entraram por toda a gente, e,
alçando um o rabo do ruço e o outro o de Rocinante, lhes puseram e
encaixaram em cada um molhos de plantas espinhosas. Sentiram os
pobres animais as novas esporas, e, apertando os rabos, aumentaram
seu desgosto, de maneira que, dando mil corcovos, deram com seus
donos em terra. Dom Quixote, vexado e afrontado, acudiu a tirar a
plumagem do rabo de sua chagada cavalgadura, e Sancho, o de seu
ruço. Quiseram os que guiavam dom Quixote castigar o atrevimento
dos moços, e não foi possível, porque se encerraram entre mais de
outros mil que os seguiam.
Voltaram a montar dom Quixote e Sancho; com o mesmo aplauso e
música chegaram à casa de seu guia, que era grande e principal, enfim,
como de cavaleiro rico; onde os deixaremos por agora, porque assim o
quer Cide Hamete.
CAPÍTULO LXII

Que trata da aventura da cabeça encantada, com outras ninharias


que não podem deixar de contar-se

Dom Antônio Moreno se chamava o anfitrião de dom Quixote,


cavaleiro rico e discreto, e amigo de folgar com o honesto e afável, o
qual, vendo em sua casa dom Quixote, andava buscando modos como,
sem seu prejuízo, levasse à praça suas loucuras; porque não são burlas
as que doem, nem há passatempos que valham se são com dano de
terceiro. A primeira coisa que fez foi fazer desarmar dom Quixote e
mostrá-lo com aquele seu estreito e acamurçado traje (como já outras
vezes o havemos descrito e pintado) em um balcão que dava para uma
rua das mais principais da cidade, à vista das gentes e dos moços, que
como a alguém exótico o olhavam. Correram de novo diante dele os das
librés, como se para ele só, não para alegrar aquele festivo dia, as
houvessem posto; e Sancho estava contentíssimo, por parecer-lhe que
havia achado, sem saber como, nem como não, outras bodas de
Camacho, outra casa como a de dom Diego de Miranda e outro castelo
como o do duque.
Almoçaram aquele dia com dom Antônio alguns de seus amigos,
honrando todos e tratando dom Quixote como a cavaleiro andante, do
que, oco e pomposo, não cabia em si de contentamento. Os donaires de
Sancho foram tantos, que de sua boca andavam como pendurados
todos os criados da casa e todos quantos o ouviam. Estando à mesa,
disse dom Antônio a Sancho:
- Aqui temos notícia, bom Sancho, que sois tão amigo de manjar
branco e de almondiguinhas, que, se vos sobram, as guardais no seio
para o outro dia.
- Não, senhor, não é assim - respondeu Sancho, - porque tenho mais
de limpo que de guloso, e meu senhor dom Quixote, que está diante,
sabe bem que com um punho de bolotas, ou de nozes, costumamos
passar ambos oito dias. Verdade é que se talvez me sucede que me
deem a novilha, corro com a cordinha; quero dizer que como o que me
dão, e uso dos tempos como os acho; e quem quer que houver dito que
eu sou comedor avantajado e não limpo, tenha-se por dito que não
acerta; e de outra maneira diria isto se não olhasse às barbas
honradas que estão à mesa.
- Por certo - disse dom Quixote, - que a parcimônia e limpeza com
que Sancho come se pode escrever e gravar em lâminas de bronze,
para que fique em memória eterna dos séculos vindouros. Verdade é
que, quando ele tem fome, parece algo comilão, porque come depressa
e mastiga com a boca cheia; mas a limpeza sempre a tem em seu ponto,
e no tempo que foi governador aprendeu a comer ao melindroso: tanto,
que comia com garfo as uvas, e ainda os grãos da romã.
- Como! - disse dom Antônio. - Governador foi Sancho?
- Sim - respondeu Sancho, - e de uma ilha chamada a Baratária. Dez
dias a governei a pedir para a boca; neles perdi o sossego, e aprendi a
desapreciar todos os governos do mundo; saí fugindo dela, caí em uma
cova, onde me tive por morto, da qual saí vivo por milagre.
Contou dom Quixote por miúdo todo o sucesso do governo de
Sancho, com que deu grande gosto aos ouvintes.
Tirada a mesa, e tomando dom Antônio pela mão a dom Quixote,
entrou com ele num afastado aposento, no qual não havia outra coisa
de adorno que uma mesa, ao parecer de jaspe, que sobre um pé do
mesmo se sustinha, sobre a qual estava posta, ao modo das cabeças
dos imperadores romanos, dos peitos acima, uma que semelhava ser de
bronze. Andou dom Antônio com dom Quixote por todo o aposento,
rodeando muitas vezes a mesa, depois do que disse:
- Agora, senhor dom Quixote, que estou inteirado que não nos ouve
e escuta ninguém e está fechada a porta, quero contar a vossa mercê
uma das mais raras aventuras, ou, por melhor dizer, novidades que
imaginar-se podem, com condição que o que a vossa mercê disser o há
de depositar nos últimos recintos do segredo.
- Assim o juro - respondeu dom Quixote, - e ainda lhe porei uma
lousa em cima, para mais segurança; porque quero que saiba vossa
mercê, senhor dom Antônio - que já sabia seu nome -, que está falando
com quem, embora tenha ouvidos para ouvir, não tem língua para falar;
assim que, com segurança pode vossa mercê trasladar o que tem em
seu peito ao meu e saber que o arrojou nos abismos do silêncio.
- À fé dessa promessa - respondeu dom Antônio, - quero pôr vossa
mercê em admiração com o que vir e ouvir, e dar-me algum alívio da
pena que me causa não ter com quem comunicar meus segredos, que
não são para confiar a todos.
Suspenso estava dom Quixote, esperando em que haviam de dar
tantas prevenções. Nisto, tomando-lhe a mão dom Antônio, a passeou
pela cabeça de bronze e por toda a mesa, e pelo pé de jaspe sobre que
se sustinha, e logo disse:
- Esta cabeça, senhor dom Quixote, foi feita e fabricada por um
dos maiores encantadores e feiticeiros que teve o mundo, que creio
era polaco de nação e discípulo do famoso Escotillo, de quem tantas
maravilhas se contam; o qual esteve aqui em minha casa, e por preço
de mil escudos que lhe dei, lavrou esta cabeça, que tem propriedade e
poder de responder a quantas coisas ao ouvido lhe perguntarem.
Examinou figuras e signos mágicos, observou astros, avaliou pontos
cardeais, e, finalmente, a construiu com a perfeição que veremos
amanhã, porque nas sextas-feiras está muda, e hoje, que o é, nos há
de fazer esperar até amanhã. Neste tempo poderá vossa mercê
prevenir-se do que quererá perguntar, que por experiência sei que diz
verdade em quanto responde.
Admirado ficou dom Quixote do poder e propriedade da cabeça, e
esteve por não crer em dom Antônio; mas, por ver quão pouco tempo
havia para fazer a experiência, não quis dizer-lhe outra coisa senão
que lhe agradecia o haver-lhe descoberto tão grande segredo. Saíram
do aposento, fechou a porta dom Antônio com chave, e foram à sala,
onde os demais cavaleiros estavam. Neste tempo lhes havia contado
Sancho muitas das aventuras e sucessos que a seu amo haviam
acontecido.
Naquela tarde levaram dom Quixote a passear, não armado, senão a
passeio, trajado com uma opa de pano amarelado, que poderia fazer
suar naquele tempo ao próprio gelo. Ordenaram a seus criados que
entretivessem Sancho de modo que não o deixassem sair de casa. Ia
dom Quixote, não sobre Rocinante, senão sobre um grande macho de
passo suave, e muito bem adereçado. Puseram-lhe a opa, e nas costas,
sem que o visse, coseram-lhe um pergaminho, onde escreveram com
letras grandes: “Este é dom Quixote da Mancha”. Começando o
passeio, levava o rótulo aos olhos de quantos vinham vê-lo, e como liam:
“Este é dom Quixote da Mancha”, admirava-se dom Quixote de ver
que quantos o olhavam o nomeavam e reconheciam; e, voltando-se a
dom Antônio, que ia a seu lado, disse-lhe:
- Grande é a prerrogativa que encerra em si a andante cavalaria,
pois faz conhecido e famoso ao que a professa por todos os termos da
terra; se não, veja vossa mercê, senhor dom Antônio, que até os
moços desta cidade, sem nunca haver-me visto, me reconhecem.
- Assim é, senhor dom Quixote - respondeu dom Antônio, - que,
assim como o fogo não pode estar escondido e encerrado, a virtude
não pode deixar de ser reconhecida, e a que se alcança pela profissão
das armas resplandece e campeia sobre todas as outras.
Aconteceu, pois, que, indo dom Quixote com o aplauso que se disse,
um castelhano que leu o rótulo das costas, alçou a voz, dizendo:
- Valha-te o diabo por dom Quixote da Mancha! Como que até aqui
chegaste, sem haver-te morto os infinitos golpes que tens às costas?
Tu és louco, e se o fosses a sós e dentro das portas de tua loucura,
seria menos mau; mas tens propriedade de tornar loucos e
mentecaptos quantos te tratam e comunicam; se não, vejam-no por
estes senhores que te acompanham. Volta, mentecapto, a tua casa, e
olha por teus bens, por tua mulher e teus filhos, e deixa destas
vacuidades que te carcomem o juízo e te desnaturam o entendimento.
- Irmão - disse dom Antônio, - segui vosso caminho, e não deis
conselhos a quem não vo-los pede. O senhor dom Quixote da Mancha é
muito lúcido, e nós, que o acompanhamos, não somos néscios; a virtude
se há de honrar onde quer que se achar, e andai em hora má, e não vos
metais onde não vos chamam.
- Por Deus, vossa mercê tem razão - respondeu o castelhano, - que
aconselhar a este bom homem é dar coices contra o aguilhão; mas,
mesmo assim, me dá muito grande lástima que o bom engenho que
dizem que tem em todas as coisas este mentecapto se lhe deságue
pela canal de sua andante cavalaria; e a em hora má que vossa mercê
disse seja para mim e para todos meus descendentes, se de hoje em
diante, embora vivesse mais anos que Matusalém, der conselho a
ninguém, embora mo peça.
Afastou-se o conselheiro; seguiu adiante o passeio; mas foi tanta o
rebuliço que os moços e toda a gente fazia lendo o rótulo, que o houve
de tirar dom Antônio, como se lhe tirasse outra coisa.
Chegou a noite, voltaram a casa; houve sarau de damas, porque a
mulher de dom Antônio, que era uma senhora principal e alegre,
formosa e discreta, convidou a outras suas amigas a que viessem a
honrar seu hóspede e a gostar de suas nunca vistas loucuras. Vieram
algumas, jantou-se esplendidamente e começou o sarau quase às dez
da noite. Entre as damas havia duas de gosto pícaro e brincalhonas, e,
embora muito honestas, eram algo atrevidas, por dar lugar que as
burlas alegrassem sem enfado. Estas deram tanta pressa em levar
dom Quixote a dançar, que lhe moeram, não só o corpo, mas a alma.
Era coisa de ver a figura de dom Quixote, largo, estirado, magro,
amarelo, estreito no traje, desairado, e, sobretudo, não nada ligeiro.
Galanteavam-no como a furto as mocinhas, e ele, também como a
furto, as desdenhava; mas, vendo-se apertar de galanteios, alçou a voz
e disse:
- Fugite, partes adversae (Fugi, inimigos! (N. do T.))! Deixai-me em
meu sossego, pensamentos mal vindos. Lá vos avinde, senhoras, com
vossos desejos, que a que é rainha dos meus, a sem par Dulcineia do
Toboso, não consente que nenhuns outros que os seus me avassalem e
rendam.
E dizendo isto, sentou-se no meio da sala, no chão, moído e
quebrantado de tão bailador exercício. Fez dom Antônio que o
levassem a seu leito, e o primeiro que o segurou foi Sancho, dizendo-
lhe:
- Em tal hora, senhor nosso amo, bailastes! Pensais que todos os
valentes são dançadores e todos os andantes cavaleiros bailarinos?
Digo que se o pensais, que estais enganado; homem há que se atreverá
a matar um gigante antes que fazer uma cabriola. Se houvésseis de
sapatear, eu supriria vossa falta, que sapateio como um falcão; mas de
dançar não entendo nada.
Com estas e outras razões deu que rir Sancho aos do sarau e deu
com seu amo na cama, vestindo-o para que suasse a frieza de sua
dança.
No outro dia pareceu a dom Antônio ser bom fazer a experiência da
cabeça encantada, e com dom Quixote, Sancho e outros dois amigos,
com as duas senhoras que haviam moído dom Quixote no baile, que
aquela própria noite haviam ficado com a mulher de dom Antônio, se
fechou no quarto onde estava a cabeça. Contou-lhes a propriedade que
tinha, encarregou-os do segredo e disse-lhes que aquele era o
primeiro dia onde se havia de provar o poder da tal cabeça encantada;
e se não eram os dois amigos de dom Antônio, nenhuma outra pessoa
sabia o busílis do encanto, e ainda se dom Antônio não o houvesse
descoberto primeiro a seus amigos, também eles cairiam na admiração
em que os demais caíram, sem ser possível outra coisa: com tal manha
e tal ordem estava fabricada.
O primeiro que se aproximou do ouvido da cabeça foi o mesmo dom
Antônio, e disse-lhe em voz baixa, mas não tanto que por todos não
fosse entendida:
- Diz-me, cabeça, pelo poder que em ti se encerra: que pensamentos
tenho eu agora?
E a cabeça lhe respondeu, sem mover os lábios, com voz clara e
distinta, de modo que foi por todos entendida, esta razão:
- Eu não julgo pensamentos.
Ouvindo isso, todos ficaram atônitos, e mais vendo que em todo o
aposento ou ao derredor da mesa não havia pessoa humana que
responder pudesse.
- Quantos estamos aqui? - tornou a perguntar dom Antônio.
E foi-lhe respondido pelo mesmo teor, baixo:
- Estás tu e tua mulher, com dois amigos teus, e duas amigas dela, e
um cavaleiro famoso chamado dom Quixote da Mancha, e um seu
escudeiro que Sancho Pança tem por nome.
Aqui sim que foi o admirar-se de novo, aqui sim que foi o eriçar-se
os cabelos a todos de puro espanto! E afastando-se dom Antônio da
cabeça, disse:
- Isto me basta para dar-me a entender que não fui enganado pelo
que te me vendeu, cabeça sábia, cabeça faladora, cabeça respondona e
admirável cabeça! Chegue outro e pergunte-lhe o que quiser.
E como as mulheres de ordinário são pressurosas e amigas de saber,
a primeira que chegou foi uma das duas amigas da mulher de dom
Antônio, e o que lhe perguntou foi:
- Diz-me, cabeça, que farei eu para ser muito formosa?
E foi-lhe respondido:
- Sê muito honesta.
- Não te pergunto mais - disse a perguntante.
Chegou logo a companheira, e disse:
- Queria saber, cabeça, se meu marido me quer bem, ou não.
E responderam-lhe:
- Vê as obras que te faz, e verás.
Afastou-se a casada dizendo:
- Esta resposta não tinha necessidade de pergunta, porque, com
efeito, as obras que se fazem declaram a vontade que tem o que as
faz .
Logo chegou um dos dois amigos de dom Antônio, e perguntou-lhe:
- Quem sou eu?
E foi-lhe respondido:
- Tu o sabes.
- Não te pergunto isso - respondeu o cavaleiro, - senão que me digas
se me conheces.
- Sim, conheço - lhe responderam, - és dom Pedro Noriz.
- Não quero saber mais, pois isto basta para entender, oh cabeça!,
que sabes tudo.
E afastando-se, chegou o outro amigo e perguntou-lhe:
- Diz-me, cabeça, que desejos tem meu filho o primogênito?
- Já eu disse - lhe responderam - que eu não julgo desejos, mas,
mesmo assim, te sei dizer que os que teu filho tem são de enterrar-te.
- Isso é - disse o cavaleiro: - o que vejo pelos olhos é óbvio.
E não perguntou mais. Aproximou-se a mulher de dom Antônio, e
disse:
- Eu não sei, cabeça, o que perguntar-te; só queria saber de ti se
gozarei muitos anos de bom marido.
E responderam-lhe:
- Sim, gozarás, porque sua saúde e sua temperança no viver
prometem muitos anos de vida, a qual muitos costumam encurtar por
sua destemperança.
Aproximou-se em seguida dom Quixote, e disse:
- Diz-me, o que respondes: foi verdade ou foi sonho o que eu conto
que me passou na cova de Montesinos? Serão certos os açoites de
Sancho meu escudeiro? Terá efeito o desencanto de Dulcineia?
- Ao da cova - responderam - há muito que dizer: de tudo tem; os
açoites de Sancho irão devagar, o desencanto de Dulcineia chegará à
devida execução.
- Não quero saber mais - disse dom Quixote -, que se vir Dulcineia
desencantada, saberei que vêm de golpe todas as venturas que acertar
a desejar.
O último perguntante foi Sancho, e o que perguntou foi:
- Porventura, cabeça, terei outro governo? Sairei da estreiteza de
escudeiro? Voltarei a ver minha mulher e meus filhos?
Ao que lhe responderam:
- Governarás em tua casa; e se voltas a ela, verás tua mulher e teus
filhos; e, deixando de servir, deixarás de ser escudeiro.
- Bom, por Deus! - disse Sancho Pança. - Isto eu o diria: não diria
mais o profeta Perogrullo.
- Besta - disse dom Quixote, - que queres que te respondam? Não
basta que as respostas que esta cabeça deu correspondam ao que se
lhe pergunta?
- Sim, basta - respondeu Sancho, - mas queria eu que fosse mais
clara e me dissesse mais.
Com isto se acabaram as perguntas e as respostas, mas não se
acabou a admiração em que todos ficaram, exceto os dois amigos de
dom Antônio, que o caso sabiam. O qual quis Cide Hamete Benengeli
declarar logo, por não ter suspenso o mundo, crendo que algum
feiticeiro e extraordinário mistério na tal cabeça se encerrava; e
assim, diz que dom Antônio Moreno, à imitação de outra cabeça que
viu em Madri, fabricada por um estampador, fez esta em sua casa,
para entreter-se e suspender os ignorantes; e a fábrica era desta
sorte: a tábua da mesa era de madeira, pintada e envernizada como
jaspe, e o pé sobre que se sustinha era do mesmo, com quatro garras
de águia que dele saíam, para maior firmeza do peso. A cabeça, que
parecia medalha e figura de imperador romano, e de cor de bronze,
estava toda oca, e nem mais nem menos a tábua da mesa, em que se
encaixava tão justamente, que nenhum sinal de juntura aparecia. O pé
da tábua era também oco, que respondia à garganta e peitos da
cabeça, e tudo isto vinha a corresponder em outro aposento que
debaixo do cômodo da cabeça estava. Por todo este oco de pé, mesa,
garganta e peitos da medalha e figura referida se encaminhava um
cano de folha de lata, muito justo, que de ninguém podia ser visto. No
aposento de baixo correspondente ao de cima se punha o que havia de
responder, grudada a boca no mesmo cano, de modo que, a modo de
zarabatana, ia a voz de cima para baixo e de baixo para cima, em
palavras articuladas e claras; e desta maneira não era possível
conhecer o embuste. Um sobrinho de dom Antônio, estudante agudo e
discreto, foi o respondente; o qual, estando avisado de seu senhor tio
dos que haviam de entrar com ele naquele dia no aposento da cabeça,
lhe foi fácil responder com presteza e pontualidade à primeira
pergunta; às demais respondeu por conjecturas, e, como discreto,
discretamente. E diz mais Cide Hamete: que até dez ou doze dias
durou esta maravilhosa máquina; mas que, divulgando-se pela cidade
que dom Antônio tinha em sua casa uma cabeça encantada, que a
quantos lhe perguntavam respondia, temendo chegasse aos ouvidos das
despertas sentinelas de nossa fé, havendo declarado o caso aos
senhores inquisidores, mandaram-lhe que o desfizesse e não passasse
mais adiante, para que o vulgo ignorante não se escandalizasse; mas na
opinião de dom Quixote e de Sancho Pança, a cabeça ficou por
encantada e por respondona, mais para satisfação de dom Quixote que
de Sancho.
Os cavaleiros da cidade, por comprazer a dom Antônio e por
agasalhar dom Quixote e dar lugar a que descobrisse suas sandices,
ordenaram de correr anel dali a seis dias; que não teve efeito pelo
motivo que se dirá adiante. Deu vontade em dom Quixote de passear a
cidade a pé, temendo que, se fosse a cavalo, haviam-no de perseguir os
moços, e assim, ele e Sancho, com outros dois criados que dom
Antônio lhe deu, saíram a passear.
Sucedeu, pois, que, indo por uma rua, alçou os olhos dom Quixote, e
viu escrito sobre uma porta, com letras muito grandes: “Aqui se
imprimem livros”, do que se contentou muito, porque até então não
havia visto tipografia alguma, e desejava saber como era. Entrou, com
todo seu acompanhamento, e viu tirar em uma parte, corrigir em
outra, compor nesta, emendar naquela, e, finalmente, toda aquela
máquina que nas tipografias grandes se mostra. Chegava-se dom
Quixote a uma bancada e perguntava o que era aquilo que ali se fazia;
davam-lhe conta os oficiais, admirava-se e passava adiante. Chegou
nisto a um, e perguntou-lhe o que era o que fazia. O oficial lhe
respondeu:
- Senhor, este cavaleiro que aqui está - e mostrou-lhe um homem de
muito bom talhe e parecer e de alguma gravidade - traduziu um livro
toscano em nossa língua castelhana, e estou-o eu compondo, para dar-
lhe à estampa.
- Que título tem o livro? - perguntou dom Quixote.
Ao que o autor respondeu:
- Senhor, o livro, em toscano, se chama Le bagatele.
- E a que corresponde le bagatele em nosso castelhano? - perguntou
dom Quixote.
- Le bagatele - disse o autor - é como se em castelhano disséssemos
“os brinquedos”; e embora este livro seja no nome humilde, contém e
encerra em si coisas muito boas e substanciais.
- Eu - disse dom Quixote - sei algum tanto do toscano, e me prezo
de cantar algumas estâncias do Ariosto. Mas diga-me vossa mercê,
senhor meu, e não digo isto porque quero examinar o engenho de vossa
mercê, senão por curiosidade e não mais: achou em sua escritura
alguma vez nomear piñata?
- Sim, muitas vezes - respondeu o autor.
- E como a traduz vossa mercê em castelhano? - perguntou dom
Quixote.
- Como a havia de traduzir senão dizendo “panela”?
- Corpo de tal - disse dom Quixote, - e que adiante está vossa
mercê no toscano idioma! Eu apostarei uma boa aposta que onde diga
no toscano piache, diz vossa mercê no castelhano “place”, e onde diga
più diz “mais”, e o su declara com “em cima”, e o giù com “em baixo”.
- Sim, declaro, por certo - disse o autor, - porque essas são suas
próprias correspondências.
- Ousarei eu jurar - disse dom Quixote - que não é vossa mercê
conhecido no mundo, inimigo sempre de premiar os floridos engenhos
nem os louváveis trabalhos. Quantas habilidades há perdidas por aí!
Quantos engenhos desprezados! Quantas virtudes menosprezadas!
Mas, mesmo assim, me parece que o traduzir de uma língua a outra,
como não seja das rainhas das línguas, grega e latina, é como quem
veja os tapetes flamengos pelo revés, que, embora se veem as figuras,
são cheias de fios que as escurecem, e não se veem com a lisura e tez
da face; e o traduzir de línguas fáceis, nem argui engenho nem
elocução, como não lhe argui o que traslada nem o que copia um papel
de outro papel. E não por isto quero inferir que não seja louvável este
exercício do traduzir, porque em outras coisas piores se poderia
ocupar o homem, e que menos proveito lhe trouxessem. Fora desta
conta vão os dois famosos tradutores: um, o doutor Cristóbal de
Figueroa, em seu Pastor Fido, e o outro, dom João de Jáurigui, em sua
Aminta, onde felizmente põem em dúvida qual é a tradução ou qual o
original. Mas diga-me vossa mercê: este livro, imprime-se por sua
conta, ou tem já vendido o privilégio a algum livreiro?
- Por minha conta o imprimo - respondeu o autor, - e penso ganhar
mil ducados, pelo menos, com esta primeira impressão, que há de ser
de dois mil corpos, e se hão de despachar a seis reais cada um, em dá
cá aquelas palhas.
- Bem está vossa mercê na conta! - respondeu dom Quixote. - Bem
parece que não sabe as entradas e saídas dos impressores, e as
correspondências que há de uns a outros; eu lhe prometo que, quando
se veja carregado de dois mil corpos de livros, veja tão moído seu
corpo, que se espante, e mais se o livro é um pouco avesso e não nada
picante.
- Ora, quê? - disse o autor. - Quer vossa mercê que o dê a um
livreiro, que me dê pelo privilégio três maravedis, e ainda pensa que
me faz mercê em dar-mos? Eu não imprimo meus livros para alcançar
fama no mundo, que já nele sou conhecido por minhas obras: proveito
quero, que sem ele não vale um vintém a boa fama.
- Deus dê a vossa mercê boa sorte - respondeu dom Quixote.
E passou adiante a outra bancada, onde viu que estavam corrigindo
uma folha de um livro que se intitulava Luz da alma, e vendo-o disse:
- Estes tais livros, embora haja muitos deste gênero, são os que se
devem imprimir, porque são muitos os pecadores que se usam, e são
precisas infinitas luzes para tantos desiluminados.
Passou adiante e viu que também estavam corrigindo outro livro; e
perguntando seu título, lhe responderam que se chamava a Segunda
parte do engenhoso fidalgo dom Quixote da Mancha , composta por um
tal morador de Tordesilhas.
- Já eu tenho notícia deste livro - disse dom Quixote, - e em
verdade e em minha consciência que pensei que já estava queimado e
feito pó, por impertinente; mas seu castigo lhe chegará, como a cada
porco, que as histórias fingidas tanto têm de boas e de deleitáveis
quanto se chegam à verdade ou à semelhança dela, e as verdadeiras
tanto são melhores quanto são mais verdadeiras.
E dizendo isto, com mostras de algum despeito, saiu da tipografia. E
naquele mesmo dia mandou dom Antônio levá-lo a ver as galeras que na
praia estavam, de que Sancho se regozijou muito, porque em sua vida
não as havia visto. Avisou dom Antônio ao comodoro das galeras como
aquela tarde havia de levar a vê-las a seu hóspede o famoso dom
Quixote da Mancha, de quem já o comodoro e todos os moradores da
cidade tinham notícia; e o que lhe sucedeu nelas se dirá no seguinte
capítulo.

CAPÍTULO LXIII

Do mal que sobreveio a Sancho Pança com a visita das galeras, e a


nova aventura da formosa mourisca

Grandes eram as especulações que dom Quixote fazia sobre a


resposta da encantada cabeça, sem que nenhuma delas desse pelo
embuste, e todas confirmavam a promessa, que ele teve por certa, do
desencanto de Dulcineia. Ali ia e vinha, e se alegrava consigo mesmo,
crendo que havia de ver logo seu cumprimento; e Sancho, embora
aborrecia o ser governador, como fica dito, todavia desejava voltar a
mandar e a ser obedecido; que esta má ventura traz consigo o mando,
embora seja de brincadeira.
Em suma, aquela tarde dom Antônio Moreno, seu anfitrião, e seus
dois amigos, com dom Quixote e Sancho, foram às galeras. O
comodoro, que estava avisado de sua boa vinda, por ver os dois tão
famosos Quixote e Sancho, apenas chegaram à marina, quando todas
as galeras recolheram os toldos, e soaram as charamelas; arrojaram
logo o bote à água, coberto de ricos tapetes e de almofadas de veludo
carmesim, e, pondo os pés nele dom Quixote, disparou a capitânia o
canhão da coxia, e as outras galeras fizeram o mesmo, e, ao subir dom
Quixote pela escada de estibordo, toda a chusma o saudou como é
usança quando uma pessoa principal entra na galera, dizendo: “Hu, hu,
hu!” três vezes. Deu-lhe a mão o general, que com este nome o
chamaremos, que era um principal cavaleiro valenciano; abraçou dom
Quixote, dizendo-lhe:
- Este dia marcarei eu com pedra branca, por ser um dos melhores
que penso usufruir em minha vida, havendo visto o senhor dom
Quixote da Mancha: tempo e sinal que nos mostra que nele se encerra
e cifra todo o valor do andante cavalaria.
Com outras não menos corteses razões lhe respondeu dom Quixote,
alegre sobremaneira por ver-se tratar tão ao senhor. Entraram todos
na popa, que estava muito bem enfeitada, e sentaram-se pelos bancos;
passou o oficial de coxia e deu sinal com o apito para que a chusma
tirasse os jalecos, o que se fez num instante. Sancho, que viu tanta
gente em pelo, ficou pasmado, e mais quando viu levantar os toldos
com tanta pressa, que a ele pareceu que todos os diabos andavam ali
trabalhando; mas isto tudo foram tortas e pão pintado para o que
agora direi. Estava Sancho sentado perto da coluna da popa, junto ao
remeiro do lado direito, o qual já avisado do que havia de fazer,
agarrou Sancho, e, levantando-o nos braços, toda a chusma posta em
pé e alerta, começando da banda direita, lhe foi dando e volteando
sobre os braços da chusma de banco em banco, com tanta pressa, que
o pobre Sancho perdeu a vista dos olhos, e sem dúvida pensou que os
mesmos demônios o levavam, e não pararam com ele até voltá-lo pela
banda esquerda e pô-lo na popa. Ficou o pobre moído, e ofegando, e
tressuando, sem poder imaginar que foi o que lhe havia sucedido.
Dom Quixote, que viu o voo sem asas de Sancho, perguntou ao
general se eram cerimônias aquelas que se usavam com os primeiros
que entravam nas galeras; porque se acaso o fosse, ele, que não tinha
intenção de professar nelas, não queria fazer semelhantes exercícios,
e que votava a Deus que, se algum chegasse a pegá-lo para volteá-lo,
que lhe havia de tirar a alma a pontapés; e, dizendo isto, se levantou e
empunhou a espada.
Neste instante baixaram os toldos, e com grandíssimo ruído
deixaram cair a verga de alto abaixo. Pensou Sancho que o céu se
desencaixava de seus gonzos e vinha a dar sobre sua cabeça; e,
inclinando-a, cheio de medo, a pôs entre as pernas. Não as teve todas
consigo dom Quixote, que também estremeceu e encolheu os ombros e
perdeu a cor do rosto. A chusma içou a verga com a mesma pressa e
ruído que a haviam abaixado, e tudo isto, calando, como se não
tivessem voz nem alento. Fez sinal o oficial que levantassem a âncora,
e, saltando em meio da coxia com o açoite ou rebenque, começou a
açoitar de leve as costas da chusma, e a largar-se pouco a pouco ao
mar. Quando Sancho viu à uma mover-se tantos pés vermelhos, que
tais pensou ele que eram os remos, disse entre si:
“Estas sim são verdadeiramente coisas encantadas, e não as que
meu amo diz. Que fizeram estes desditados, que assim os açoitam, e
como este homem só, que anda por aqui silvando, tem atrevimento para
açoitar tanta gente? Agora eu digo que este é o inferno, ou, pelo
menos, o purgatório”.
Dom Quixote, que viu a atenção com que Sancho olhava o que se
passava, disse-lhe:
- Ah Sancho amigo, e com que brevidade e quão a pouca custa
podíeis, se quisésseis, desnudar de meio corpo acima, e pôr-vos entre
estes senhores, e acabar com o desencanto de Dulcineia! Pois com a
miséria e pena de tantos, não sentiríeis muito a vossa; e mais, que
poderia ser que o sábio Merlim tomasse em conta cada açoite destes,
por ser dados de boa mão, por dez dos que finalmente vos haveis de
dar.
Perguntar queria o general que açoites eram aqueles, ou o que o
desencanto de Dulcineia, quando disse o marinheiro:
- Sinal faz o monte Monjuí de que há baixel de remos na costa pela
banda do poente.
Isto ouvido, saltou o general na coxia, e disse:
- Eia filhos, não se nos vá! Algum bergantim de corsários de Argel
deve ser este que a atalaia nos aponta.
Aproximaram-se logo as outras três galeras à capitânia, a saber o
que se lhes ordenava. Mandou o general que as duas saíssem ao mar, e
ele com a outra iria terra a terra, porque assim o baixel não lhes
escaparia. Apertou a chusma os remos, impelindo as galeras com tanta
fúria, que parecia que voavam. As que saíram ao mar, a cerca de duas
milhas descobriram um baixel, que com a vista o avaliaram como tendo
quatorze ou quinze bancos, e assim era a verdade; o qual baixel,
quando descobriu as galeras, se pôs em fuga, com intenção e
esperança de escapar por sua ligeireza; mas deu-se mal, porque a
galera capitânia era dos mais ligeiros baixéis que no mar navegavam, e
assim lhe foi entrando, que claramente os do bergantim reconheceram
que não podiam escapar; e assim, o arrais queria que deixassem os
remos e se entregassem, para não provocar a ira do capitão que nossas
galeras regia. Mas a sorte, que de outra maneira o guiava, ordenou
que, já que a capitânia chegava tão perto que podiam os do baixel ouvir
as vozes que desde ela lhes diziam que se rendessem, dois toraquis,
que é como dizer dois turcos bêbados, que no bergantim vinham com
estes doze, dispararam duas escopetas, com que deram morte a dois
soldados que sobre nossas amuradas vinham. Vendo o que, jurou o
general de não deixar com vida a todos quantos no baixel tomasse, e,
chegando a investir com toda fúria, se lhe escapou por debaixo dos
remos. Passou a galera adiante um bom trecho; os do baixel se viram
perdidos, içaram vela enquanto a galera voltava, e de novo, à vela e a
remo, se puseram em fuga; mas não lhes aproveitou sua diligência
tanto como lhes danou seu atrevimento, porque, alcançando-os a
capitânia a pouco mais de meia milha, lhes deitou os remos em cima e
os colheu vivos a todos.
Chegaram nisto as outras duas galeras, e todas quatro com a presa
voltaram à praia, onde infinita gente os estava esperando, desejosos
de ver o que traziam. Fundeou o general perto da terra, e soube que
estava na marina o vice-rei da cidade. Mandou lançar o bote para
trazê-lo, e mandou abaixar a verga para enforcar logo logo o arrais e
os demais turcos que no baixel havia colhido, que foram até trinta e
seis pessoas, todos galhardos, e os mais, escopeteiros turcos.
Perguntou o general quem era o arrais do bergantim e foi-lhe
respondido por um dos cativos, em língua castelhana (que depois
pareceu ser renegado espanhol):
- Este mancebo, senhor, que aqui vês é nosso arrais.
E mostrou-lhe um dos mais belos e galhardos moços que poderia
pintar a humana imaginação. A idade, ao parecer, não chegava a vinte
anos. Perguntou-lhe o general:
- Diz-me, mal aconselhado cão, quem te moveu a matar meus
soldados, pois vias ser impossível escapar? Esse respeito se guarda às
capitânias? Não sabes tu que não é valentia a temeridade? As
esperanças duvidosas hão de fazer os homens atrevidos, mas não
temerários.
Responder queria o arrais; mas não pôde o general, por então, ouvir
a resposta, por atender a receber o vice-rei, que já entrava na galera,
com o qual entraram alguns de seus criados e algumas pessoas da vila.
- Boa esteve a caça, senhor general! - disse o vice-rei.
- E tão boa - respondeu o general - qual a verá Vossa Excelência
agora pendurada desta verga.
- Como assim? - replicou o vice-rei.
- Porque mataram - respondeu o general, - contra toda lei e contra
toda razão e usança de guerra, dois soldados dos melhores que nestas
galeras vinham, e eu jurei enforcar a quantos prendi, principalmente
este moço, que é o arrais do bergantim.
E mostrou-lhe o que já tinha atadas as mãos e posto o cordel à
garganta, esperando a morte.
Olhou-o o vice-rei, e vendo-o tão formoso e tão galhardo, e tão
humilde, dando-lhe naquele instante uma carta de recomendação sua
formosura, lhe veio o desejo de evitar sua morte; e assim, lhe
perguntou:
- Diz-me, arrais, és turco de nação, ou mouro, ou renegado?
A que o moço respondeu, em língua também castelhana:
- Nem sou turco de nação, nem mouro, nem renegado.
- Então, que és? - replicou o vice-rei.
- Mulher cristã - respondeu o mancebo.
- Mulher e cristã e em tal traje e em tais atos? Mais é coisa para
admirá-la que para crê-la.
- Suspendei - disse o moço, - oh senhores!, a execução de minha
morte, que não se perderá muito em que se dilate vossa vingança
enquanto eu vos conte minha vida.
Quem seria o de coração tão duro que com estas razões não se
abrandasse, ou, ao menos, até ouvir as que o triste e lastimado
mancebo dizer queria? O general lhe disse que dissesse o que
quisesse, mas que não esperasse alcançar perdão de sua conhecida
culpa. Com esta licença, o moço começou a dizer desta maneira:
- Daquela nação mais desditada que prudente, sobre quem choveu
estes dias um mar de desgraças, nasci eu, de mouriscos pais
engendrada. Na corrente de sua desventura fui eu por dois tios meus
levada à Barbária, sem que me aproveitasse dizer que era cristã,
como, com efeito, o sou, e não das fingidas nem aparentes, senão das
verdadeiras e católicas. Não me valeu, com os que tinham a cargo
nosso miserável desterro, dizer esta verdade, nem meus tios quiseram
crê-la; antes a tiveram por mentira e por invenção para ficar na terra
onde havia nascido, e assim, por força mais que por vontade, me
trouxeram consigo. Tive uma mãe cristã e um pai discreto e cristão,
nem mais nem menos; mamei a fé católica no leite; criei-me com bons
costumes; nem na língua nem neles jamais, a meu parecer, dei sinais de
ser mourisca. A par e a passo destas virtudes, que eu creio que o são,
cresceu minha formosura, se é que tenho alguma; e, embora meu
recato e meu encerramento foi muito, não deveu ser tanto que não
tivesse lugar de ver-me um mancebo cavaleiro, chamado dom Gaspar
Gregório, filho primogênito de um cavaleiro que junto a nosso lugar
outro seu tem. Como me viu, como nos falamos, como se viu perdido
por mim e como eu não muito ganha por ele, seria longo de contar, e
mais em tempo que estou temendo que, entre a língua e a garganta, se
há de atravessar o rigoroso cordel que me ameaça; e assim, só direi
como em nosso desterro quis acompanhar-me dom Gregório. Misturou-
se com os mouriscos que de outros lugares saíram, porque sabia muito
bem a língua, e na viagem se fez amigo de dois tios meus que consigo
me traziam; porque meu pai, prudente e prevenido, assim que ouviu o
primeiro proclama de nosso desterro, saiu do lugar e foi buscar
alguém nos reinos estranhos que nos acolhesse. Deixou encerradas e
enterradas, em uma parte de quem eu só tenho notícia, muitas pérolas
e pedras de grande valor, com alguns dinheiros em cruzados e dobrões
de ouro. Mandou-me que não tocasse no tesouro que deixava de
nenhuma maneira, se acaso antes que ele voltasse nos desterrassem.
Fi-lo assim, e com meus tios, como disse, e outros parentes e
achegados passamos à Barbária; e o lugar onde fizemos assento foi em
Argel, como se o fizéssemos no mesmo inferno. Teve notícia o rei de
minha formosura, e a fama se deu de minhas riquezas, o que, em parte,
foi ventura minha. Chamou-me ante si, perguntou-me de que parte da
Espanha era e que dinheiros e que joias trazia. Disse-lhe o lugar, e que
as joias e dinheiros ficavam nele enterrados, mas que com facilidade
se poderiam recobrar se eu mesma voltasse por eles. Tudo isto lhe
disse, temerosa de que não o cegasse minha formosura, senão sua
cobiça. Estando comigo nestas conversas, lhe chegaram a dizer como
vinha comigo um dos mais galhardos e formosos mancebos que se podia
imaginar. Logo entendi que o diziam por dom Gaspar Gregório, cuja
beleza deixa atrás as maiores que encarecer se podem. Perturbei-me,
considerando o perigo que dom Gregório corria, porque entre aqueles
bárbaros turcos em mais se tem e estima um moço ou mancebo
formoso que uma mulher, por belíssima que seja. Mandou logo o rei que
se lhe trouxessem ali diante para vê-lo, e perguntou-me se era
verdade o que daquele moço lhe diziam. Então eu, quase como
prevenida do céu, disse-lhe que sim, era; mas que lhe fazia saber que
não era varão, senão mulher como eu, e que lhe suplicava deixasse ir
vesti-la em seu natural traje, para que de todo em todo mostrasse sua
beleza e com menos pejo aparecesse ante sua presença. Disse-me que
fosse em boa hora, e que outro dia falaríamos no modo que se podia
ter para que eu voltasse à Espanha a tirar o escondido tesouro. Falei
com dom Gaspar, contei-lhe o perigo que corria o mostrar ser homem;
vesti-o de moura, e naquela mesma tarde o trouxe à presença do rei, o
qual, vendo-o, ficou admirado e fez desígnio de guardá-la para fazer
presente dela ao grande senhor; e por fugir do perigo que no serralho
de suas mulheres podia ter e temer de si mesmo, a mandou pôr em
casa de umas principais mouras que a guardassem e a servissem, onde
o levaram logo. O que os dois sentimos, que não posso negar que o
quero, se deixe à consideração dos que se afastam se bem se querem.
Deu logo manha o rei de que eu voltasse à Espanha neste bergantim e
que me acompanhassem dois turcos de nação, que foram os que
mataram vossos soldados. Veio também comigo este renegado
espanhol - mostrando o que havia falado primeiro -, do qual sei eu bem
que é cristão encoberto e que vem com mais desejo de ficar na
Espanha que de voltar à Barbária; a demais chusma do bergantim são
mouros e turcos, que não servem mais que remar. Os dois turcos,
cobiçosos e insolentes, sem guardar a ordem que trazíamos de que a
mim e a este renegado na primeira parte da Espanha, em traje de
cristãos, de que vimos providos, nos pusessem em terra, primeiro
quiseram varrer esta costa e fazer alguma presa, se pudessem,
temendo que se primeiro nos pusessem em terra, por algum acidente
que aos dois nos sucedesse, poderíamos descobrir que ficava o
bergantim no mar, e se acaso houvesse galeras por esta costa, os
tomassem. Ontem à noite descobrimos esta praia, e, sem ter notícia
destas quatro galeras, fomos descobertos, e nos sucedeu o que haveis
visto. Em suma: dom Gregório fica em traje de mulher entre mulheres,
com manifesto perigo de perder-se, e eu me vejo atadas as mãos,
esperando, ou, por melhor dizer, temendo perder a vida, que já me
cansa. Este é, senhores, o fim de minha lamentável história, tão
verdadeira como desditada; o que vos rogo é que me deixeis morrer
como cristã, pois, como já disse, em nenhuma coisa fui partícipe da
culpa em que os de minha nação caíram.
E logo calou, cheios os olhos de ternas lágrimas, a quem
acompanharam muitas dos que presentes estavam. O vice-rei, terno e
compassivo, sem falar-lhe palavra, se chegou a ela e lhe tirou com suas
mãos o cordel que as formosas da moura ligava.
Enquanto, pois, a mourisca cristã sua peregrina história contava,
teve cravados os olhos nela um ancião peregrino que entrou na galera
quando entrou o vice-rei; e, apenas deu fim à sua conversa a mourisca,
quando ele se arrojou a seus pés, e, abraçado neles, com
interrompidas palavras por mil soluços e suspiros, disse-lhe:
- Oh Ana Félix, desditada filha minha! Eu sou teu pai Ricote, que
voltava a buscar-te por não poder viver sem ti, que és minha alma.
A cujas palavras abriu os olhos Sancho, e alçou a cabeça (que
inclinada tinha, pensando na desgraça de seu passeio) e, olhando o
peregrino, reconheceu ser o mesmo Ricote que topou no dia que saiu
de seu governo, e confirmou-se que aquela era sua filha, a qual, já
desatada, abraçou seu pai, misturando suas lágrimas com as suas; o
qual disse ao general e ao vice-rei:
- Esta, senhores, é minha filha, mais desditada em seus sucessos
que em seu nome. Ana Félix se chama, com o sobrenome de Ricote,
famosa tanto por sua formosura como por minha riqueza. Eu saí de
minha pátria a buscar em reinos estranhos quem nos albergasse e
recolhesse, e, havendo-o achado na Alemanha, voltei neste traje de
peregrino, em companhia de outros alemães, a buscar minha filha e a
desenterrar muitas riquezas que deixei escondidas. Não achei a minha
filha; achei o tesouro, que comigo trago, e agora, pelo estranho rodeio
que vistes, achei o tesouro que mais me enriquece, que é a minha
querida filha. Se nossa pouca culpa e suas lágrimas e as minhas, pela
integridade de vossa justiça, podem abrir portas à misericórdia, usai-
a conosco, que jamais tivemos pensamento de ofender-vos, nem
convimos de nenhum modo com a intenção dos nossos, que justamente
foram desterrados.
Então disse Sancho:
- Bem conheço Ricote, e sei que é verdade o que diz quanto a ser
Ana Félix sua filha; que nessas outras minudências de ir e vir, ter boa
ou má intenção, não me intrometo.
Admirados do estranho caso todos os presentes, o general disse:
- Uma por uma vossas lágrimas não me deixarão cumprir meu
juramento: vivei, formosa Ana Félix, os anos de vida que vos tem
determinados o céu, e levem a pena de sua culpa os insolentes e
atrevidos que a cometeram.
E mandou logo enforcar na verga os dois turcos que seus dois
soldados haviam matado; mas o vice-rei lhe pediu encarecidamente não
os enforcasse, pois mais loucura que valentia havia sido a sua. Fez o
general o que o vice-rei lhe pedia, porque não se executam bem as
vinganças a sangue gelado. Procuraram logo dar manha de tirar dom
Gaspar Gregório do perigo em que ficava. Ofereceu Ricote para isso
mais de dois mil ducados que em pérolas e em joias tinha. Deram-se
muitos meios, mas nenhum foi tal como o que deu o renegado espanhol
que se disse, o qual se ofereceu de voltar a Argel em algum barco
pequeno, de até seis bancos, armado de remeiros cristãos, porque ele
sabia onde, como e quando podia e devia desembarcar, e também não
ignorava a casa onde dom Gaspar ficava. Duvidaram o general e o vice-
rei o fiar-se do renegado, nem confiar dos cristãos que haviam de
remar; fiou-lhe Ana Félix, e Ricote, seu pai, disse que sairia a dar o
resgate dos cristãos, se acaso se perdessem.
Firmados, pois, neste parecer, desembarcou o vice-rei, e dom
Antônio Moreno levou consigo a mourisca e seu pai, encarregando-lhe
o vice-rei que os regalasse e acariciasse quanto lhe fosse possível; que
de sua parte lhe oferecia o que em sua casa houvesse para seu regalo.
Tanta foi a benevolência e caridade que a formosura de Ana Félix
infundiu em seu peito.

CAPÍTULO LXIV

Que trata da aventura que mais pesar deu a dom Quixote de


quantas até então lhe haviam sucedido

A mulher de dom Antônio Moreno conta a história que teve


grandíssimo prazer em ver Ana Félix em sua casa. Recebeu-a com
muito agrado, assim enamorada de sua beleza como de sua discrição,
porque numa e outra era extremada a mourisca, e toda a gente da
cidade, como por sino tangida, vinha vê-la.
Disse dom Quixote a dom Antônio que o parecer que haviam tomado
na liberdade de dom Gregório não era bom, porque tinha mais de
perigoso que de conveniente, e que seria melhor que pusessem em
Barbária com suas armas e cavalo; que ele o resgataria apesar de toda
a mourisma, como havia feito dom Gaiferos à sua esposa Melisendra.
- Advirta vossa mercê - disse Sancho, ouvindo isto - que o senhor
dom Gaiferos resgatou sua esposa de terra firme e a levou à França
por terra firme; mas aqui, se acaso resgatamos dom Gregório, não
temos por onde trazê-lo à Espanha, pois está o mar em meio.
- Para tudo há remédio, se não é para a morte - respondeu dom
Quixote; - pois, chegando o barco à marina, poderemos embarcar nele,
embora todo o mundo o impeça.
- Muito bem o pinta e facilita vossa mercê - disse Sancho, - mas do
dito ao feito há grande trecho, e eu me atenho ao renegado, que me
parece muito homem de bem e de muito boas entranhas.
Dom Antônio disse que se o renegado não se saísse bem no caso, se
tomaria o expediente de que o grande dom Quixote passasse em
Barbária.
Dali a dois dias partiu o renegado num ligeiro barco de seis remos
por banda, armado de valentíssima chusma; e dali a outros dois
partiram as galeras a Levante, havendo pedido o general ao vice-rei
fosse servido de avisá-lo do que sucedesse na liberdade de dom
Gregório e no caso de Ana Félix; ficou o vice-rei de fazê-lo assim
como se lhe pedia.
E uma manhã, saindo dom Quixote a passear pela praia armado de
todas as suas armas, porque, como muitas vezes dizia, elas eram seus
arreios, e seu descanso o pelear, e não se achava sem elas um minuto,
viu vir até ele um cavaleiro, armado também dos pés à cabeça, que no
escudo trazia pintada uma lua resplandecente; o qual, chegando-se a
trecho que podia ser ouvido, em altas vozes, encaminhando suas
razões a dom Quixote, disse:
- Insigne cavaleiro e jamais como se deve louvado dom Quixote da
Mancha, eu sou o Cavaleiro da Branca Lua, cujas inauditas façanhas
quiçá te lhe haverão trazido à memória. Venho a contender contigo e a
provar a força de teus braços, em razão de fazer-te reconhecer e
confessar que minha dama, seja quem for, é sem comparação mais
formosa que tua Dulcineia do Toboso; a qual verdade se tu a confessas
francamente, evitarás tua morte e o trabalho que eu hei de tomar em
dá-la; e se tu pelejares e eu te vencer, não quero outra satisfação
senão que, deixando as armas e abstendo-te de buscar aventuras, te
recolhas e retires a teu lugar pelo tempo de um ano, onde hás de viver
sem tocar a espada, em paz tranquila e em proveitoso sossego, porque
assim convém ao aumento de teus bens e à salvação de tua alma; e se
tu me venceres, ficará à tua discrição minha cabeça e serão teus os
despojos de minhas armas e cavalo, e passará à tua a fama de minhas
façanhas. Vê o que te está melhor, e responde-me logo, porque hoje
todo o dia trago de prazo para despachar este negócio.
Dom Quixote ficou suspenso e atônito, assim pela arrogância do
Cavaleiro da Branca Lua como pela causa por que lhe desafiava; e com
repouso e gesto severo lhe respondeu:
- Cavaleiro da Branca Lua, cujas façanhas até agora não chegaram à
minha notícia, eu ousarei jurar que jamais vistes a ilustre Dulcineia;
que se visto a houvésseis, eu sei que procuraríeis não pôr-vos nesta
demanda, porque sua vista vos desenganaria de que não houve nem
pode haver beleza que com a sua comparar se possa; e assim, não
dizendo-vos que mentis, senão que não acertais no proposto, com as
condições que referistes, aceito vosso desafio, e logo, porque não se
passe o dia que trazeis determinado; e só excetuo as condições a de
que se passe a mim a fama de vossas façanhas, porque não sei quais
nem que tais sejam: com as minhas me contento, tais quais elas são.
Tomai, pois, a parte do campo que quiserdes, que eu farei o mesmo, e a
quem Deus a der, São Pedro a bendiga.
Haviam descoberto desde a cidade o Cavaleiro da Branca Lua, e
disse-se-o ao vice-rei, e que estava falando com dom Quixote da
Mancha. O vice-rei, crendo fosse alguma nova aventura fabricada por
dom Antônio Moreno, ou por outro algum cavaleiro da cidade, saiu logo
à praia com dom Antônio e com outros muitos cavaleiros que o
acompanhavam, a tempo que dom Quixote puxava as rédeas de
Rocinante para tomar do campo o necessário.
Vendo, pois, o vice-rei que davam os dois sinais de voltar-se a
encontrar, se pôs em meio, perguntando-lhes o que os movia a fazer
tão de improviso batalha. O Cavaleiro da Branca Lua respondeu que
era precedência de formosura, e em breves razões lhe disse as
mesmas que havia dito a dom Quixote, com a aceitação das condições
do desafio feitas por ambas as partes. Chegou-se o vice-rei a dom
Antônio, e perguntou-lhe baixo se sabia quem era o tal Cavaleiro da
Branca Lua, ou se era alguma burla que queriam fazer a dom Quixote.
Dom Antônio lhe respondeu que nem sabia quem era, nem se era de
burlas nem de veras o tal desafio. Esta resposta pôs perplexo o vice-
rei se os deixaria ou não passar adiante na batalha; mas, não podendo-
se persuadir a que fosse senão burla, se afastou dizendo:
- Senhores cavaleiros, se aqui não há outro remédio senão
confessar ou morrer, e o senhor dom Quixote e vossa mercê o da
Branca Lua mantêm sua decisão, à mão de Deus, e batam-se.
Agradeceu o da Branca Lua com corteses e discretas razões ao
vice-rei a licença que se lhes dava, e dom Quixote fez o mesmo; o qual,
encomendando-se ao céu de todo coração e à sua Dulcineia, como tinha
por costume ao começar das batalhas que se lhe ofereciam, tornou a
tomar outro pouco mais do campo, porque viu que seu contrário fazia o
mesmo, e, sem tocar trombeta nem outro instrumento bélico que lhes
desse sinal de arremeter, puxaram ambos a um mesmo tempo as
rédeas de seus cavalos; e, como era mais ligeiro o da Branca Lua,
chegou a dom Quixote a dois terços andados da carreira, e ali o
encontrou com tão poderosa força, sem tocá-lo com a lança (que a
levantou, ao parecer, de propósito), que deu com Rocinante e com dom
Quixote pelo chão uma perigosa caída. Foi logo sobre ele, e, pondo-lhe
a lança sobre a viseira, disse-lhe:
- Vencido sois, cavaleiro, e ainda morto, se não confessais as
condições de nosso desafio.
Dom Quixote, moído e aturdido, sem alçar a viseira, como se falasse
dentro de uma tumba, com voz debilitada e enferma, disse:
- Dulcineia do Toboso é a mais formosa mulher do mundo, e eu o
mais desditado cavaleiro da terra, e não é bom que minha fraqueza
defraude esta verdade. Aperta, cavaleiro, a lança, e tira-me a vida,
pois me tiraste a honra.
- Isso não farei eu, por certo - disse o da Branca Lua: - viva, viva em
sua integridade a fama da formosura da senhora Dulcineia do Toboso,
que só me contento com que o grande dom Quixote se retire a seu
lugar um ano, ou até o tempo que por mim lhe for mandado, como
concertamos antes de entrar nesta batalha.
Tudo isto ouviram o vice-rei e dom Antônio, com outros muitos que
ali estavam, e ouviram também que dom Quixote respondeu que se não
lhe pedisse coisa que fosse em prejuízo de Dulcineia, todo o demais
cumpriria como cavaleiro pontual e verdadeiro.
Feita esta confissão, puxou as rédeas o da Branca Lua, e, fazendo
mesura com a cabeça ao vice-rei, a meio galope entrou na cidade.
Mandou o vice-rei a dom Antônio que fosse atrás dele, e que de
todas as maneiras soubesse quem era. Levantaram dom Quixote,
descobriram-lhe o rosto e acharam-no sem cor e tressuando.
Rocinante, de puro estropiado, não se pôde mover por então. Sancho,
todo triste, todo pesaroso, não sabia que dizer nem que fazer:
parecia-lhe que todo aquele sucesso passava em sonhos e que toda
aquela máquina era coisa de encantamento. Via seu senhor rendido e
obrigado a não tomar armas um ano; imaginava a luz da glória de suas
façanhas escurecida, as esperanças de suas novas promessas
desfeitas, como se desfaz o fumaça com o vento. Temia se ficaria ou
não aleijado Rocinante, ou quebrado seu amo, que seria pouca ventura
se quebrado ficasse. Finalmente, com uma cadeira de mãos que
mandou trazer o vice-rei, levaram-no à cidade, e o vice-rei voltou
também a ela, com desejo de saber quem era o Cavaleiro da Branca
Lua, que de tão mau talante havia deixado dom Quixote.

CAPÍTULO LXV

Onde se dá notícia de quem era o da Branca Lua, com a liberdade de


dom Gregório, e de outros sucessos

Dom Antônio Moreno seguiu o Cavaleiro da Branca Lua, e seguiram-


no também, e ainda perseguiram-no, muitos moços, até que o
encontraram em uma estalagem dentro da cidade. Entrou nela dom
Antônio com desejo de conhecê-lo; saiu um escudeiro a recebê-lo e a
desarmá-lo; fechou-se em uma sala baixa, e com ele dom Antônio, que
ardia por saber quem fosse. Vendo, pois, o da Branca Lua que aquele
cavaleiro não o deixava, disse-lhe:
- Bem sei, senhor, ao que vindes, que é a saber quem sou; e, porque
não há para que negar-vo-lo, enquanto este meu criado me desarma vo-
lo direi, sem faltar um ponto à verdade do caso. Sabei, senhor, que a
mim me chamam o bacharel Sansão Carrasco; sou do mesmo lugar de
dom Quixote da Mancha, cuja loucura e sandice move a que lhe
tenhamos lástima todos quantos o conhecemos, e entre os que mais a
tiveram fui eu; e, crendo que está sua saúde em seu repouso e em que
esteja em sua terra e em sua casa, usei manha para fazê-lo estar nela;
e assim, haverá três meses que lhe saí ao caminho como cavaleiro
andante, chamando-me o Cavaleiro dos Espelhos, com intenção de
pelejar com ele e vencê-lo, sem fazer-lhe dano, pondo por condição de
nossa peleja que o vencido ficasse à discrição do vencedor; e o que eu
pensava pedir-lhe, porque já o julgava por vencido, era que voltasse a
seu lugar e que não saísse dele em todo um ano, no qual tempo poderia
ser curado; mas a sorte o ordenou de outra maneira, porque ele me
venceu e me derrubou do cavalo, e assim, não teve efeito meu
pensamento: ele prosseguiu seu caminho, e eu voltei, vencido, vexado e
moído da queda, que foi por demais perigosa; mas não por isto se me
tirou o desejo de voltar a buscá-lo e a vencê-lo, como hoje se viu. E
como ele é tão pontual em guardar as ordens da andante cavalaria,
sem dúvida alguma guardará a que lhe dei, em cumprimento de sua
palavra. Isto é, senhor, o que se passa, sem que tenha que dizer-vos
outra coisa alguma; suplico-vos não me descubrais nem digais a dom
Quixote quem sou, para que tenham efeito os bons pensamentos meus
e volte a cobrar seu juízo um homem que o tem boníssimo, se o
deixarem as sandices da cavalaria.
- Oh senhor - disse dom Antônio, - Deus vos perdoe o agravo que
fizestes a todo o mundo em querer voltar lúcido ao mais gracioso louco
que há nele! Não vedes, senhor, que não poderá chegar o proveito que
cause a lucidez de dom Quixote ao que chega o gosto que dá com seus
desvarios? Mas eu imagino que toda a indústria do senhor bacharel
não há de ser suficiente para tornar lúcido um homem tão
rematadamente louco; e se não fosse contra caridade, diria que nunca
cure dom Quixote, porque com sua saúde, não somente perdemos suas
graças, senão as de Sancho Pança, seu escudeiro, que qualquer delas
pode voltar a alegrar à mesma melancolia. Mesmo assim, calarei, e não
lhe direi nada, por ver se sou verdadeiro em suspeitar que não há de
ter efeito a diligência feita pelo senhor Carrasco.
O qual respondeu que já efetivamente estava em bom ponto aquele
negócio, de que esperava feliz sucesso. E havendo-se oferecido dom
Antônio fazer o que mais lhe mandasse, se despediu dele; e, feito pôr
suas armas sobre um mulo, logo no mesmo instante, sobre o cavalo com
que entrou na batalha, saiu da cidade aquele mesmo dia e voltou a sua
pátria, sem suceder-lhe coisa que obrigue a contá-la nesta verdadeira
história.
Contou dom Antônio ao vice-rei tudo o que Carrasco lhe havia
contado, do que o vice-rei não recebeu muito gosto, porque no
recolhimento de dom Quixote se perdia o que podiam ter todos
aqueles que de suas loucuras tivessem notícia.
Seis dias esteve dom Quixote no leito, aflito, triste, pensativo e em
má condição, indo e vindo com a imaginação no desditado sucesso de
seu vencimento. Consolava-o Sancho, e, entre outras razões, disse-lhe:
- Senhor meu, alce vossa mercê a cabeça e alegre-se, se pode, e dê
graças ao céu que, já que o derrubou na terra, não saiu com alguma
costela quebrada; e, pois sabe que onde as dão as tomam, e que não
sempre há toucinhos onde há estacas, dê uma figa ao médico, pois não
lhe é preciso para que o cure nesta enfermidade: voltemo-nos a nossa
casa e deixemos de andar buscando aventuras por terras e lugares
que não sabemos; e, se bem se considera, eu sou aqui o mais perdedor,
embora seja vossa mercê o mais mal parado. Eu, que deixei com o
governo os desejos de ser mais governador, não deixei a vontade de
ser conde, que jamais terá efeito se vossa mercê deixa de ser rei,
deixando o exercício de sua cavalaria; e assim, vêm a voltar-se em
fumaça minhas esperanças.
- Cala, Sancho, pois vês que minha reclusão e retirada não há de
passar de um ano; que logo voltarei a meus honrados exercícios, e não
me há de faltar reino que ganhe e algum condado que dar-te.
- Deus o ouça - disse Sancho, - e não o ouça o diabo, que sempre
ouvi dizer que mais vale boa esperança que ruim possessão.
Nisto estavam quando entrou dom Antônio, dizendo com mostras de
grandíssimo contentamento:
- Alvíssaras, senhor dom Quixote, que dom Gregório e o renegado
que foi por ele está na praia! Que digo na praia? Já está em casa do
vice-rei, e estará aqui num instante.
Alegrou-se algum tanto dom Quixote, e disse:
- Em verdade que estou por dizer que me alegraria se houvesse
sucedido tudo ao revés, porque me obrigaria a passar em Barbária,
onde com a força de meu braço daria liberdade não só a dom Gregório,
senão a quantos cristãos cativos há em Barbária. Mas, que digo,
miserável? Não sou eu o vencido? Não sou eu o derrubado? Não sou eu
o que não pode tomar arma num ano? Pois, que prometo? De que me
louvo, se antes me convém usar a roca que a espada?
- Deixe disso, senhor - disse Sancho: - viva a galinha, embora com
seu achaque, que hoje por ti e amanhã por mim; e nestas coisas de
encontros e porradas não há tomar-lhes tento algum, pois o que hoje
cai pode levantar-se manhã, se não é que se quer estar na cama; quero
dizer que se deixe desmaiar, sem cobrar novos brios para novas
pendências. E levante-se vossa mercê agora para receber dom
Gregório, que me parece que anda a gente alvoroçada, e já deve estar
em casa.
E assim era a verdade; porque, havendo já dado conta dom Gregório
e o renegado ao vice-rei de sua ida e volta, desejoso dom Gregório de
ver Ana Félix, veio com o renegado à casa de dom Antônio; e, embora
dom Gregório, quando o resgataram de Argel, foi com trajes de
mulher, no barco os trocou pelos de um cativo que saiu consigo; mas
em qualquer que viesse, mostraria ser pessoa para ser cobiçada,
servida e estimada, porque era formoso sobremaneira, e a idade, ao
parecer, de dezessete ou dezoito anos. Ricote e sua filha saíram a
recebê-lo: o pai com lágrimas e a filha com honestidade. Não se
abraçaram uns a outros, porque onde há muito amor não costuma
haver demasiada desenvoltura. As duas belezas juntas de dom
Gregório e Ana Félix admiraram em particular a todos juntos os que
presentes estavam. O silêncio foi ali o que falou pelos dois amantes, e
os olhos foram as línguas que descobriram seus alegres e honestos
pensamentos.
Contou o renegado a indústria e meio que teve para resgatar dom
Gregório; contou dom Gregório os perigos e apertos em que se havia
visto com as mulheres com quem havia ficado, não com largo
arrazoado, senão com breves palavras, onde mostrou que sua discrição
se adiantava a seus anos. Finalmente, Ricote pagou e satisfez
liberalmente assim ao renegado como aos que haviam remado.
Reincorporou-se e reconciliou-se o renegado com a Igreja, e de
membro apodrecido voltou limpo e são com a penitência e o
arrependimento.
Dali a dois dias tratou o vice-rei com dom Antônio que modo teriam
para que Ana Félix e seu pai ficassem na Espanha, parecendo-lhes não
ser de inconveniente algum que ficassem nela filha tão cristã e pai, ao
parecer, tão bem intencionado. Dom Antônio se ofereceu vir à corte a
negociá-lo, onde havia de vir forçosamente a outros negócios, dando a
entender que nela, por meio do favor e das dádivas, muitas coisas
dificultosas se acabam.
- Não - disse Ricote, que se achou presente a esta conversa - há que
esperar em favores nem em dádivas, porque com o grande dom
Bernardino de Velasco, conde de Salazar, a quem deu Sua Majestade
cargo de nossa expulsão, não valem rogos, não promessas, não dádivas,
não lástimas; porque, embora seja verdade que ele mescla a
misericórdia com a justiça, como ele vê que todo o corpo de nossa
nação está contaminado e apodrecido, usa com ele antes do cautério
que abrasa que do unguento que mitiga; e assim, com prudência, com
sagacidade, com diligência e com medos que põe, levou sobre seus
fortes ombros à devida execução o peso desta grande máquina, sem
que nossas indústrias, estratagemas, solicitudes e fraudes hajam
podido deslumbrar seus olhos de Argos, que contínuo tem alerta,
porque não se lhe fique nem encubra nenhum dos nossos, que, como
raiz escondida, que com o tempo venha depois a brotar, e a lançar
frutos venenosos na Espanha, já limpa, já desembaraçada dos temores
em que nossa multidão a tinha. Heroica resolução do grande Filipo
Terceiro, e inaudita prudência em havê-la encarregado ao tal dom
Bernardino de Velasco!
- Uma por uma, eu farei, posto lá, as diligências possíveis, e faça o
céu o que mais for servido - disse dom Antônio. - Dom Gregório irá
comigo consolar a pena que seus pais devem ter por sua ausência; Ana
Félix ficará com minha mulher em minha casa, ou num monastério, e eu
sei que o senhor vice-rei gostará fique na sua o bom Ricote, até ver
como eu negocio.
O vice-rei consentiu em todo o proposto, mas dom Gregório,
sabendo o que se passava, disse que de maneira alguma podia nem
queria deixar dona Ana Félix; mas, tendo intenção de ver seus pais, e
de dar manha de voltar por ela, consentiu no decretado concerto.
Ficou Ana Félix com a mulher de dom Antônio, e Ricote em casa do
vice-rei.
Chegou o dia da partida de dom Antônio, e o de dom Quixote e
Sancho, que foi dali a outros dois; que a queda não lhe concedeu que
antes se pusesse a caminho. Houve lágrimas, houve suspiros, desmaios
e soluços ao despedir-se dom Gregório de Ana Félix. Ofereceu Ricote
a dom Gregório mil escudos, se os queria; mas ele não tomou nenhum,
senão só cinco que lhe emprestou dom Antônio, prometendo a paga
deles na corte. Com isto, partiram os dois, e dom Quixote e Sancho
depois, como se disse: dom Quixote desarmado e em traje de viagem;
Sancho a pé, por ir o ruço carregado com as armas.

CAPÍTULO LXVI

Que trata do que verá o que o ler, ou o ouvirá o que o escutar ler

Ao sair de Barcelona, voltou dom Quixote a olhar o lugar onde havia


caído, e disse:
- Aqui foi Troia! Aqui minha desdita, e não minha covardia, levou
minhas alcançadas glórias; aqui usou a fortuna comigo de suas voltas e
revoltas; aqui se escureceram minhas façanhas; aqui, finalmente, caiu
minha ventura para jamais levantar-se!
Ouvindo isso Sancho disse:
- Tão de valentes corações é, senhor meu, ter sofrimento nas
desgraças como alegria nas prosperidades; e isto o julgo por mim
mesmo, que se quando era governador estava alegre, agora que sou
escudeiro a pé, não estou triste; porque ouvi dizer que esta que
chamam por aí Fortuna é uma mulher bêbada e caprichosa, e,
sobretudo, cega, e assim, não vê o que faz, nem sabe a quem derruba,
nem a quem exalta.
- Mui filósofo estás, Sancho - respondeu dom Quixote, - muito ao
discreto falas: não sei quem to ensina. O que te sei dizer é que não há
fortuna no mundo, nas coisas que nele sucedem, boas ou más que
sejam, que venham por acaso, senão por particular providência dos
céus, e daqui vem o que costuma dizer-se: que cada um é artífice de
sua ventura. Eu o fui da minha, mas não com a prudência necessária, e
assim, me saíram más minhas presunções; pois deveria pensar que ao
poderoso tamanho do cavalo do da Branca Lua não podia resistir a
fraqueza de Rocinante. Atrevi-me enfim, fiz o que pude, derrubaram-
me, e, embora perdi a honra, não perdi, nem posso perder, a virtude
de cumprir minha palavra. Quando era cavaleiro andante, atrevido e
valente, com minhas obras e com minhas mãos acreditava meus feitos;
e agora, quando sou escudeiro pedestre, acreditarei minhas palavras
cumprindo a que dei de minha promessa. Caminha, pois, amigo Sancho,
e vamos ter em nossa terra o ano do noviciado, com cujo encerramento
cobraremos virtude nova para voltar ao nunca por mim olvidado
exercício das armas.
- Senhor - respondeu Sancho, - não é coisa tão gostosa o caminhar a
pé, que me mova e incite a fazer grandes jornadas. Deixemos estas
armas penduradas em alguma árvore, em lugar de um enforcado, e,
ocupando eu as costas do ruço, levantados os pés do chão, faremos as
jornadas como vossa mercê as pedir e medir, que pensar que tenho de
caminhar a pé e fazê-las grandes é pensar no escusado.
- Bem disseste, Sancho - respondeu dom Quixote: - dependurem-se
minhas armas como troféu, e ao pé delas, ou ao redor delas,
gravaremos nas árvores o que no troféu das armas de Roldão estava
escrito:

Ninguém as mova
que estar não possa
com Roldão a prova.

- Tudo isso me parece de pérolas - respondeu Sancho; - e, se não


fosse pela falta que para a viagem nos havia de fazer Rocinante,
também seria bom deixá-lo pendurado.
- Pois nem ele nem as armas - replicou dom Quixote - quero que se
enforquem, porque não se diga que para bom serviço, mal galardão!
- Muito bem diz vossa mercê - respondeu Sancho, - porque, segundo
opinião de discretos, a culpa do asno não se há de lançar à albarda; e,
pois deste sucesso vossa mercê tem a culpa, castigue-se a si mesmo, e
não rebentem suas iras pelas já rotas e sangrentas armas, nem pelas
mansidões de Rocinante, nem pela brandura de meus pés, querendo
que caminhem mais que o justo.
Nestas razões e conversas se lhes passou todo aquele dia, e ainda
outros quatro, sem suceder-lhes coisa que perturbasse seu caminho; e
ao quinto dia, à entrada de um lugar, acharam à porta de uma
estalagem muita gente, que, por ser festa, estava ali divertindo-se.
Quando chegava a eles dom Quixote, um lavrador alçou a voz dizendo:
- Algum destes dois senhores que aqui vêm, que não conhecem as
partes, dirá o que se há de fazer em nossa aposta.
- Sim, direi, por certo - respondeu dom Quixote, - com toda
retidão, se é que posso entendê-la.
- É, pois, o caso - disse o lavrador, - senhor bom, que um vizinho
deste lugar, tão gordo que pesa onze arrobas, desafiou a correr outro
seu vizinho, que não pesa mais que cinco. Foi a condição que haviam de
correr uma carreira de cem passos com pesos iguais; e, havendo-lhe
perguntado ao desafiador como se havia de igualar o peso, disse que o
desafiado, que pesa cinco arrobas, se pusesse seis de ferro às costas,
e assim se igualariam as onze arrobas do magro com as onze do gordo.
- Isso não - disse então Sancho, antes que dom Quixote
respondesse. - E a mim, que há poucos dias que saí de ser governador
e juiz, como tudo o mundo sabe, toca averiguar estas dúvidas e dar
parecer em todo pleito.
- Responde em boa hora - disse dom Quixote, - Sancho amigo, que
eu não estou para dar migas a um gato, segundo trago alvoroçado e
trastornado o juízo.
Com esta licença, disse Sancho aos lavradores, que estavam muitos
ao redor dele com a boca aberta, esperando a sentença da sua:
- Irmãos, o que o gordo pede não é razoável, nem tem sombra de
justiça alguma; porque se é verdade o que se diz, que o desafiado pode
escolher as armas, não é bem que este as escolha tais que lhe impeçam
nem perturbem o sair vencedor; e assim, é meu parecer que o gordo
desafiador se aligeire, pode, desbaste, pula e atile, e elimine seis
arrobas de suas carnes, daqui ou dali de seu corpo, como melhor lhe
parecer e estiver; e desta maneira, ficando em cinco arrobas de peso,
se igualará e ajustará com as cinco de seu contrário, e assim poderão
correr igualmente.
- Voto a tal - disse um lavrador que escutou a sentença de Sancho -
que este senhor falou como um bendito e sentenciado como um cônego!
Mas seguramente que não há de querer eliminar o gordo uma onça de
suas carnes, quanto mais seis arrobas.
- O melhor é que não corram - respondeu outro, - para que o magro
não se moa com o peso, nem o gordo se descarne; e ponha-se a metade
da aposta em vinho, e levemos estes senhores à taberna do caro, e
sobre mim a capa quando chova.
- Eu, senhores - respondeu dom Quixote, - vo-lo agradeço, mas não
posso deter-me um momento, porque pensamentos e sucessos tristes
me fazem parecer descortês e caminhar mais que a passo.
E assim, esporeando Rocinante, passou adiante, deixando-os
admirados de haver visto e notado assim sua estranha figura como a
discrição de seu criado, que por tal julgaram Sancho. E outro dos
lavradores disse:
- Se o criado é tão discreto, qual deve ser o amo! Eu apostarei que
vão estudar em Salamanca, e em um tris hão de vir a ser alcaides de
corte; que tudo é burla, senão estudar e mais estudar, e ter favor e
ventura; e quando menos pensa o homem, se acha com uma vara na mão
ou com uma mitra na cabeça.
Aquela noite a passaram amo e moço em meio do campo, ao céu limpo
e descoberto; e outro dia, seguindo seu caminho, viram que até eles
vinha um homem a pé, com uns alforjes ao pescoço e um dardo ou
chuço na mão, próprio talhe de correio a pé; o qual, quando chegou
junto a dom Quixote, adiantou o passo, e meio correndo chegou a ele,
e, abraçando-o pela coxa direita, que não alcançava a mais, disse-lhe,
com mostras de muita alegria:
- Oh meu senhor dom Quixote da Mancha, e que grande prazer há
de chegar ao coração de meu senhor o duque quando saiba que vossa
mercê volta a seu castelo, que ainda está nele com minha senhora a
duquesa!
- Não vos conheço, amigo - respondeu dom Quixote, - nem sei quem
sois, se vós não mo dizeis.
- Eu, senhor dom Quixote - respondeu o correio, - sou Tosilos, o
lacaio do duque meu senhor, que não quis pelear com vossa mercê
sobre o casamento da filha de dona Rodríguez.
- Valha-me Deus! - disse dom Quixote. - É possível que sois vós o
que os encantadores meus inimigos transformaram nesse lacaio que
dizeis, por defraudar-me da honra daquela batalha?
- Cale, senhor bom - replicou o carteiro, - que não houve encanto
algum nem mudança de rosto nenhuma: tão lacaio Tosilos entrei na
arena como Tosilos lacaio saí dela. Eu pensei casar-me sem pelear, por
haver-me parecido bem a moça, mas sucedeu ao revés meu
pensamento, pois, assim que vossa mercê partiu de nosso castelo, o
duque meu senhor me fez dar cem golpes por haver contravindo às
ordenanças que me tinha dado antes de entrar na batalha, e tudo deu
em que a moça é já monja, e dona Rodríguez voltou a Castela, e eu vou
agora a Barcelona, levar um folha de cartas ao vice-rei, que lhe envia
meu amo. Se vossa mercê quer um traguito, embora quente, puro, aqui
levo uma cabaça cheia do caro, com não sei quantas talhadas de queijo
de Tronchón, que servirão de aperitivo e despertador da sede, se
acaso está dormindo.
- Aceito o convite - disse Sancho, - e gaste-se tudo o que fique, e
reparta o vinho o bom Tosilos, a despeito e pesar de quantos
encantadores há nas Índias.
- Enfim - disse dom Quixote, - tu és, Sancho, o maior glutão do
mundo e o maior ignorante da terra, pois não te persuades que este
correio é encantado, e este Tosilos disfarçado. Fica com ele e farta-
te, que eu irei adiante pouco a pouco, esperando que venhas.
Riu-se o lacaio, desembainhou sua cabaça, desalforjou suas
talhadas, e, tirando um pãozinho, ele e Sancho se sentaram sobre a
erva verde, e em boa paz e companhia despertaram e deram fundo
com toda a provisão dos alforjes, com tão bons alentos, que lamberam
a folha das cartas, só porque cheirava a queijo. Disse Tosilos a
Sancho:
- Sem dúvida este teu amo, Sancho amigo, deve ser um louco.
- Como deve? - respondeu Sancho. - Não deve nada a ninguém, que
tudo o paga, e mais quando a moeda é loucura. Bem o vejo eu, e bem
lhe digo; mas, que aproveita? E mais agora que vai rematado, porque
vai vencido do Cavaleiro da Branca Lua.
Rogou-lhe Tosilos lhe contasse o que lhe havia sucedido, mas Sancho
lhe respondeu que era descortesia deixar que seu amo o esperasse;
que outro dia, se se encontrassem, haveria lugar para isso. E
levantando-se, depois de haver sacudido o saio e as migalhas das
barbas, conduziu o ruço, e, dizendo “a Deus”, deixou Tosilos e alcançou
seu amo, que à sombra de uma árvore o estava esperando.
CAPÍTULO LXVII

Da resolução que tomou dom Quixote de fazer-se pastor e seguir a


vida do campo, enquanto se passava o ano de sua promessa, com outros
sucessos em verdade gostosos e bons

Se muitos pensamentos fatigavam dom Quixote antes de ser


derrubado, muitos mais o fatigaram depois de caído. À sombra da
árvore estava, como se disse, e ali, como moscas no mel, lhe acudiam e
picavam pensamentos: uns iam ao desencanto de Dulcineia e outros à
vida que havia de fazer em sua forçosa retirada. Chegou Sancho e
louvou-lhe a liberal condição do lacaio Tosilos.
- É possível - lhe disse dom Quixote - que ainda, oh Sancho!, penses
que aquele seja verdadeiro lacaio? Parece que te foi das mentes haver
visto Dulcineia convertida e transformada em lavradora, e o Cavaleiro
dos Espelhos no bacharel Carrasco, obras todas dos encantadores que
me perseguem. Mas diz-me agora: perguntaste a esse Tosilos que
dizes que fez Deus de Altisidora: se chorou minha ausência, ou se
deixou já nas mãos do olvido os enamorados pensamentos que em
minha presença a fatigavam?
- Não eram - respondeu Sancho - os que eu tinha tais que me
dessem lugar a perguntar bobeiras. Corpo de mim!, senhor, está vossa
mercê agora em termos de inquirir pensamentos alheios,
especialmente amorosos?
- Vê, Sancho - disse dom Quixote, - muita diferença há das obras
que se fazem por amor às que se fazem por agradecimento. Bem pode
ser que um cavaleiro seja desamorado, mas não pode ser, falando com
todo rigor, que seja desagradecido. Quis-me bem, ao parecer,
Altisidora; deu-me as três toucas que sabes, chorou em minha partida,
maldisse-me, vituperou-me, queixou-se, a despeito da vergonha,
publicamente: sinais todos de que me adorava, que as iras dos amantes
costumam dar em maldições. Eu não tive esperanças que dar-lhe, nem
tesouros que oferecer-lhe, porque as minhas as tenho entregues a
Dulcineia, e os tesouros dos cavaleiros andantes são como os dos
duendes, aparentes e falsos, e só posso dar-lhe estas recordações que
dela tenho, sem prejuízo, porém, dos que tenho de Dulcineia, a quem
tu agravas com a remissão que tens em açoitar-te e em castigar essas
carnes que veja eu comidas de lobos, que querem guardar-se antes
para os vermes que para o remédio daquela pobre senhora.
- Senhor - respondeu Sancho, - se vai a dizer a verdade, eu não me
posso persuadir que os açoites de minhas nádegas tenham que ver com
os desencantos dos encantados, que é como se disséssemos: “Se vos
dói a cabeça, besuntai as joelhos”. Ao menos, eu ousarei jurar que em
quantas histórias vossa mercê leu que tratam da andante cavalaria não
viu alguém desencantado por açoites; mas, pelo sim ou pelo não, eu mos
darei, quando tenha vontade e o tempo me dê comodidade para
castigar-me.
- Deus o faça - respondeu dom Quixote, - e os céus te deem graça
para que caias na conta e na obrigação que te corre de ajudar a minha
senhora, que o é tua, pois tu és meu.
Nestas conversas iam seguindo seu caminho, quando chegaram ao
mesmo sítio e lugar onde foram atropelados pelos touros. Reconheceu-
o dom Quixote; disse a Sancho:
- Este é o prado onde topamos as bizarras pastoras e galhardos
pastores que nele queriam renovar e imitar à pastoral Arcádia,
pensamento tão novo como discreto, a cuja imitação, se é que a ti te
parece bom, queria, oh Sancho!, que nos convertêssemos em pastores,
pelo menos o tempo que tenho de estar recolhido. Eu comprarei
algumas ovelhas, e todas as demais coisas que ao pastoral exercício
são necessárias, e chamando-me eu “o pastor Quijótiz”, e tu “o pastor
Pancino”, andaremos pelos montes, pelas selvas e pelos prados,
cantando aqui, entoando endechas ali, bebendo dos líquidos cristais
das fontes, ou já dos limpos arroiozinhos, ou dos caudalosos rios. Dar-
nos-ão com abundantíssima mão de seu dulcíssimo fruto as azinheiras,
assento os troncos dos duríssimos sobreiros, sombra os salgueiros,
cheiro as rosas, alfombras de mil cores matizadas os estendidos
prados, alento o ar claro e puro, luz a lua e as estrelas, apesar da
escuridão da noite, gosto o canto, alegria o choro, Apolo versos, o
amor conceitos, com que poderemos fazer-nos eternos e famosos, não
só nos presentes, senão nos vindouros séculos.
- Por Deus - disse Sancho, - que me há vindo bem tal gênero de vida;
e mais, que não a há de haver ainda bem visto o bacharel Sansão
Carrasco e mestre Nicolás o barbeiro, quando a hão de querer seguir,
e fazer-se pastores conosco; e ainda queira Deus não lhe venha em
vontade ao padre de entrar também no aprisco, segundo é de alegre e
amigo de folgar.
- Tu disseste muito bem - disse dom Quixote; - e poderá chamar-se
o bacharel Sansão Carrasco, se entra no pastoral grêmio, como
entrará sem dúvida, “o pastor Sansonino”, ou já “o pastor Carrascón”;
o barbeiro Nicolás se poderá chamar “Niculoso”, como já o antigo
Boscán se chamou “Nemoroso”; ao padre não sei que nome lhe
ponhamos, se não é algum derivativo de seu nome, chamando-lhe “o
pastor Padriambro”. As pastoras de quem havemos de ser amantes,
como entre peras poderemos escolher seus nomes; e, pois o de minha
senhora quadra assim ao de pastora como ao de princesa, não há para
que cansar-me em buscar outro que melhor lhe venha; tu, Sancho,
porás à tua o que quiseres.
- Não penso - respondeu Sancho - pô-lo outro algum senão o de
Teresona, que lhe virá bem com sua gordura e com o próprio que tem,
pois se chama Teresa; e mais, que, celebrando-a eu em meus versos,
venha a descobrir meus castos desejos, pois não ando a buscar
confusão pelas casas alheias. O padre não será bom que tenha pastora,
por dar bom exemplo; e se quiser o bacharel tê-la, sua alma sua palma.
- Valha-me Deus - disse dom Quixote, - e que vida nos havemos de
dar, Sancho amigo! Quantas flautas hão de chegar a nossos ouvidos,
quantas gaitas zamoranas, quantos tamborins, e quantos chocalhos, e
quantos rabecões! Pois, que se destas diferenças de músicas ressoa a
dos albogues! Ali se verá quase todos os instrumentos pastorais.
- Que são albogues - perguntou Sancho, - que nem os ouvi nomear,
nem os vi em toda minha vida?
- Albogues são - respondeu dom Quixote - umas chapas a modo de
castiçais de latão, que, dando uma com outra pelo vazio e oco, faz um
som, se não muito agradável nem harmônico, não descontenta, e vem
bem com a rusticidade da gaita e do tamborim; e este nome albogues é
mourisco, como o são todos aqueles que em nossa língua castelhana
começam em al, convém a saber: almohaza, almoçar, alhombra,
alguacil, alhucema, almacén, alcancía , e outros semelhantes, que devem
ser poucos mais; e só três tem nossa língua que são mouriscos e
acabam em í, e são: borzeguí, zaquizamí e maravedi; alhelí e alfaquí,
tanto pelo al primeiro como pelo í em que acabam, são conhecidos por
arábicos. Isto te disse, de passagem, por haver-mo trazido à memória
a ocasião de haver nomeado albogues; e há-nos de ajudar muito ao
parecer em perfeição este exercício o ser eu algum tanto poeta, como
tu sabes, e o sê-lo também em extremo o bacharel Sansão Carrasco.
Do padre não digo nada; mas eu apostarei que deve ter seus assomos
de poeta; e que os tenha também mestre Nicolás, não duvido disso,
porque todos, ou os mais, são guitarristas e copleiros. Eu me queixarei
de ausência; tu te louvarás de firme enamorado; o pastor Carrascón,
de desdenhado; e o padre Padriambro, do que ele mais pode servir-se,
e assim, andará a coisa que não haja mais que desejar.
Ao que respondeu Sancho:
- Eu sou, senhor, tão desgraçado que temo não há de chegar o dia
em que em tal exercício me veja. Oh, que polidas colheres de pau
tenho de fazer quando pastor me veja! Quantas migas, quantas natas,
quantas grinaldas e quantas minudências pastoris, que, embora não me
granjeiem fama de discreto, não deixarão de granjear-me a de
engenhoso! Sanchica minha filha nos levará a comida na trouxa. Mas,
guarda!, que é de bom parecer, e há pastores mais maliciosos que
simples, e não queria que fosse por lã e voltasse tosquiada; e também
costumam andar os amores e os não bons desejos pelos campos como
pelas cidades, e pelas pastorais choças como pelos reais palácios, e,
tirada a causa se tira o pecado; e olhos que não veem, coração que não
quebra; e mais vale salto de mata que rogo de homens bons.
- Não mais refrãos, Sancho - disse dom Quixote, - pois qualquer dos
que disseste basta para dar a entender teu pensamento; e muitas
vezes te aconselhei que não sejas tão pródigo em refrãos e que te
contenhas em dizê-los; mas parece-me que é pregar no deserto, e
castigue-me minha mãe, que eu não me importo.
- Parece-me - respondeu Sancho - que vossa mercê é como o que
dizem: “Disse a frigideira à caldeira: Sai, olho gordo”. Está-me
repreendendo que não diga eu refrãos, e ensarta-os vossa mercê de
dois em dois.
- Vê, Sancho - respondeu dom Quixote: - eu trago os refrãos a
propósito, e vêm quando os digo como anel no dedo; mas trazes-los tão
pelos cabelos, que os arrastas, e não os guias; e se não me lembro mal,
outra vez te disse que os refrãos são sentenças breves, tiradas da
experiência e especulação de nossos antigos sábios; e o refrão que não
vem a propósito, antes é disparate que sentença. Mas deixemos disto,
e, pois já vem a noite, retiremo-nos do caminho real algum trecho,
onde passaremos esta noite, e Deus sabe o que será amanhã.
Retiraram-se, jantaram tarde e mal, bem contra a vontade de
Sancho, a quem se lhe representavam as estreitezas da andante
cavalaria usadas nas selvas e nos montes, se bem talvez a abundância
se mostrasse nos castelos e casas, assim de dom Diego de Miranda
como nas bodas do rico Camacho, e de dom Antônio Moreno; mas
considerava não ser possível ser sempre de dia nem sempre de noite, e
assim, passou aquela dormindo, e seu amo velando.

CAPÍTULO LXVIII

Da cerdosa aventura que aconteceu a dom Quixote

Era a noite algo escura, embora a lua estivesse no céu, mas não em
parte que pudesse ser vista: que talvez a senhora Diana vai passear
nos antípodas, e deixa os montes negros e os vales escuros. Cumpriu
dom Quixote com a natureza dormindo o primeiro sono, sem dar lugar
ao segundo; bem ao revés de Sancho, que nunca teve segundo, porque
lhe durava o sono desde a noite até a manhã, em que se mostrava sua
boa compleição e poucos cuidados. Os de dom Quixote o desvelaram
de maneira que despertou Sancho e lhe disse:
- Maravilhado estou, Sancho, da liberdade de tua condição: eu
imagino que és feito de mármore, ou de duro bronze, em quem não
cabe movimento nem sentimento algum. Eu velo quando tu dormes, eu
choro quando cantas, eu desmaio de jejum quanto tu estás preguiçoso
e desalentado de puro farto. De bons criados é conlevar as penas de
seus senhores e sentir seus sentimentos, pelo bem parecer sequer. Vê
a serenidade desta noite, a solidão em que estamos, que nos convida a
intrometer alguma vigília entre nosso sonho. Levanta, por tua vida, e
desvia algum trecho daqui, e com bom ânimo e denodo agradecido dá-
te trezentos ou quatrocentos açoites à boa conta dos do desencanto
de Dulcineia; e isto rogando to suplico, que não quero vir contigo aos
braços, como a outra vez, porque sei que os tens pesados. Depois que
te hajas dado, passaremos o que resta da noite cantando, eu minha
ausência e tu tua firmeza, dando desde agora princípio ao exercício
pastoral que havemos de ter em nossa aldeia.
- Senhor - respondeu Sancho, - não sou eu religioso para que do
meio de meu sono me levante e me discipline, nem menos me parece
que do extremo da dor dos açoites se possa passar ao da música.
Vossa mercê me deixe dormir e não me aperte no do açoitar-me; que
me fará fazer juramento de não tocar-me jamais no pelo do saio, não
que no de minhas carnes.
- Oh alma endurecida! Oh escudeiro sem piedade! Oh pão mal
empregado e mercês mal consideradas as que te fiz e penso de fazer-
te! Por mim te viste governador, e por mim te vês com esperanças
próximas de ser conde, ou ter outro título equivalente, e não tardará o
cumprimento delas mais de quanto tarde em passar este ano; que eu
“post tenebras spero lucem” (depois das trevas espero a luz (N. do
T.)).
- Não entendo isso - replicou Sancho; - só entendo que, enquanto
durmo, nem tenho temor, nem esperança, nem trabalho nem glória; e
bem haja o que inventou o sono, capa que cobre todos os humanos
pensamentos, manjar que tira a fome, água que afugenta a sede, fogo
que esquenta o frio, frio que modera o ardor, e, finalmente, moeda
geral com que todas as coisas se compram, balança e peso que iguala o
pastor com o rei e o ingênuo com o discreto. Só uma coisa tem má o
sono, segundo ouvi dizer, e é que se parece à morte, pois de um
adormecido a um morto há muito pouca diferença.
- Nunca te ouvi falar, Sancho - disse dom Quixote, - tão
elegantemente como agora, por onde venho a conhecer ser verdade o
refrão que tu algumas vezes costumas dizer: “Não com quem nasces,
senão com quem pasces”.
- Ah, pese a tal - replicou Sancho, - senhor nosso amo! Não sou eu
agora o que ensarta refrãos, que também a vossa mercê se lhe caem
da boca de dois em dois melhor que a mim, senão que deve haver entre
os meus e os seus esta diferença: que os de vossa mercê virão a tempo
e os meus de repente; mas, com efeito, todos são refrãos.
Nisto estavam, quando sentiram um surdo estrondo e um áspero
ruído, que por todos aqueles vales se estendia. Levantou-se dom
Quixote e pegou a espada, e Sancho se agachou debaixo do ruço,
pondo-se aos lados o molho das armas, e a albarda de seu jumento, tão
tremendo de medo como alvoroçado dom Quixote. De momento a
momento ia crescendo o ruído, e, chegando perto dos dois temerosos:
ao menos, de um, que do outro, já se conhece sua valentia.
É, pois, o caso que levavam uns homens a vender em uma feira mais
de seiscentos porcos, com os quais caminhavam àquelas horas, e era
tanto o ruído que levavam e o grunhir e o bufar, que ensurdeceram os
ouvidos de dom Quixote e de Sancho, que não advertiram o que podia
ser. Chegou de tropel a estendida e grunhidora manada, e, sem ter
respeito à autoridade de dom Quixote, nem à de Sancho, passaram
por cima dos dois, desfazendo as trincheiras de Sancho, e derrubando
não só dom Quixote, senão levando por acréscimo Rocinante. O tropel,
o grunhir, a presteza com que chegaram os animais imundos, pôs em
confusão e pelo chão albarda, as armas, o ruço, Rocinante, Sancho e
dom Quixote.
Levantou-se Sancho como melhor pôde, e pediu a seu amo a espada,
dizendo-lhe que queria matar meia dúzia daqueles senhores e
descomedidos porcos, que já havia reconhecido que o eram. Dom
Quixote lhe disse:
- Deixa-os estar, amigo, que esta afronta é pena de meu pecado, e
justo castigo do céu é que a um cavaleiro andante vencido o comam
chacais, e o piquem vespas e pisem-no porcos.
- Também deve ser castigo do céu - respondeu Sancho - que aos
escudeiros dos cavaleiros vencidos os puncem moscas, os comam
piolhos e lhes invista a fome. Se os escudeiros fôssemos filhos dos
cavaleiros a quem servimos, ou parentes seus muito próximos, não
seria muito que nos alcançasse a pena de suas culpas até a quarta
geração; mas, que têm que ver os Panças com os Quixotes? Agora
bem: tornemos a acomodar-nos e durmamos o pouco que fica da noite,
e amanhecerá Deus e tudo se arranjará.
- Dorme tu, Sancho - respondeu dom Quixote, - que nasceste para
dormir; que eu, que nasci para velar, no tempo que falta daqui ao dia,
darei rédea a meus pensamentos, e os desafogarei num madrigalzinho,
que, sem que tu o saibas, ontem à noite compus na memória.
- A mim me parece - respondeu Sancho - que os pensamentos que
dão lugar a fazer coplas não devem ser muitos. Vossa mercê copleie
quanto quiser, que eu dormirei quanto puder.
E logo, tomando do chão quanto quis, encolheu-se e dormiu a sono
solto, sem que fianças, nem dúvidas, nem dor alguma o perturbasse.
Dom Quixote, arrimado a um tronco de uma faia ou de um sobreiro
(que Cide Hamete Benengeli não distingue a árvore que era), ao som de
seus mesmos suspiros, cantou desta sorte:
- Amor, quando eu penso
no mal que me dás, terrível e forte,
vou correndo à morte,
pensando assim acabar meu mal imenso;
mas, chegando ao passo
que é porto neste mar de meu tormento,
tanta alegria sinto,
que a vida se esforça e não o passo.
Assim o viver me mata,
que a morte me torna a dar a vida.
Oh condição não ouvida,
a que comigo morte e vida trata!

Cada verso destes acompanhava com muitos suspiros e não poucas


lágrimas, bem como aquele cujo coração tinha traspassado com a dor
do vencimento e com a ausência de Dulcineia.
Chegou nisto o dia, deu o sol com seus raios nos olhos de Sancho,
despertou e espreguiçou-se, sacudindo e estirando os preguiçosos
membros; mirou o destroço que haviam feito os porcos em sua
provisão, e maldisse a manada e ainda mais adiante. Finalmente,
voltaram os dois a seu começado caminho, e ao declinar da tarde viram
que até eles vinham até dez homens a cavalo e quatro ou cinco a pé.
Sobressaltou-se o coração de dom Quixote e assustou-se o de
Sancho, porque a gente que se lhes chegava trazia lanças e escudos e
vinha muito preparada para a guerra. Voltou-se dom Quixote a
Sancho, e disse-lhe:
- Se eu pudesse, Sancho, exercitar minhas armas, e minha promessa
não me houvesse atado os braços, esta máquina que sobre nós vem a
teria eu por tortas e pão pintado, mas poderia ser fosse outra coisa
da que tememos.
Chegaram, nisto, os a cavalo, e levantando as lanças, sem falar
palavra alguma rodearam dom Quixote e as puseram às costas e
peitos, ameaçando-o de morte. Um dos a pé, posto um dedo na boca,
em sinal de que calasse, pegou o freio de Rocinante e o tirou do
caminho; e os demais a pé, agarrando Sancho e o ruço, guardando
todos maravilhoso silêncio, seguiram os passos do que levava dom
Quixote, o qual duas ou três vezes quis perguntar aonde o levavam ou
o que queriam; mas, apenas começava a mover os lábios, quando os iam
fechar com os ferros das lanças; e a Sancho lhe acontecia o mesmo,
porque, apenas dava mostras de falar, quando um dos a pé, com um
aguilhão, o punçava, e o ruço nem mais nem menos como se falar
quisesse. Fechou a noite, apressaram o passo, cresceu nos dois presos
o medo, e mais quando ouviram que de quando em quando lhes diziam:
- Caminhai, trogloditas!
- Calai, bárbaros!
- Pagai, antropófagos!
- Não vos queixeis, citas, nem abrais os olhos, Polifemos matadores,
leões carniceiros!
E outros nomes semelhantes a estes, com que atormentavam os
ouvidos dos miseráveis amo e moço. Sancho ia dizendo entre si: “Nós
tortolitas? Nós barbeiros nem estropajos? Nós cadelinhas, a quem
dizem cita, cita? Não me contentam nada estes nomes: com mau vento
vai esta palha; todo o mal nos vem junto, como ao cão os golpes, e
oxalá ficasse neles o que ameaça esta aventura tão desventurada!”
Ia dom Quixote estupefato, sem poder atinar com o que
significavam aqueles nomes cheios de vitupérios que lhes punham, dos
quais imaginava não esperar nenhum bem e temer muito mal.
Chegaram, nisto, um hora quase da noite, a um castelo, que bem
reconheceu dom Quixote que era o do duque, onde havia pouco que
haviam estado.
- Valha-me Deus! - disse, assim que conheceu o local - e que será
isto? Sim que nesta casa tudo é cortesia e bom comedimento, mas
para os vencidos o bem se volta em mal e o mal em pior.
Entraram no pátio principal do castelo, e viram-no preparado e
posto de maneira que lhes acrescentou a admiração e lhes dobrou o
medo, como se verá no seguinte capítulo.
CAPÍTULO LXIX

Do mais raro e mais novo sucesso que em todo o decorrer desta


grande história sobreveio a dom Quixote

Apearam-se os a cavalo, e junto com os a pé, carregando


arrebatadamente Sancho e dom Quixote, os levaram no pátio, ao
redor do qual ardiam quase cem tochas, postas em seus castiçais, e,
pelos corredores do pátio, mais de quinhentas luminárias; de modo
que, apesar da noite, que se mostrava algo escura, não se sentia falta
do dia. Em meio do pátio se levantava um túmulo cerca de duas varas
do chão, coberto tudo com um grandíssimo dossel de veludo negro, ao
redor do qual, por seus degraus, ardiam velas de cera branca sobre
mais de cem castiçais de prata; em cima do qual túmulo se mostrava
um corpo morto de uma tão formosa donzela, que fazia parecer com
sua formosura formosa à mesma morte. Tinha a cabeça sobre uma
almofada de brocado, coroada com uma grinalda de diversas e
odoríferas flores tecida, as mãos cruzadas sobre o peito, e, entre
elas, um ramo de amarela e vencedora palma.
A um lado do pátio estava posto um tablado, e em duas cadeiras
sentados dois personagens, que, por ter coroas na cabeça e cetros nas
mãos, davam sinais de ser alguns reis, já verdadeiros ou já fingidos.
Ao lado deste tablado, onde se subia por alguns degraus, estavam
outras duas cadeiras, sobre as quais os que trouxeram os presos
sentaram dom Quixote e Sancho, tudo isto calando e dando-lhes a
entender com sinais aos dois que também calassem; mas, sem que
mandassem, calaram eles, porque a admiração do que estavam olhando
lhes tinha atadas as línguas.
Subiram, nisto, no tablado, com muito acompanhamento, dois
principais personagens, que logo foram reconhecidos por dom Quixote
ser o duque e a duquesa, seus anfitriões, os quais se sentaram em duas
riquíssimas cadeiras, junto aos dois que pareciam reis. Quem não se
havia de admirar com isto, somando-se a isso haver percebido dom
Quixote que o corpo morto que estava sobre o túmulo era o da
formosa Altisidora?
Ao subir o duque e a duquesa no tablado, se levantaram dom
Quixote e Sancho e lhes fizeram uma profunda reverência, e os
duques fizeram o mesmo, inclinando algum tanto as cabeças.
Saiu, nisto, de través, um servente, e chegando-se a Sancho, lhe pôs
uma roupa de algodão negro em cima, toda pintada com chamas de
fogo, e, tirando-lhe o capuz, lhe pôs na cabeça uma mitra de papel, ao
modo das que usam os penitenciados pelo Santo Ofício, e disse-lhe ao
ouvido que não descosesse os lábios, porque lhe poriam uma mordaça,
ou lhe tirariam a vida. Olhava-se Sancho de cima abaixo, via-se
ardendo em chamas, mas como não o queimavam, não as estimava em
dois tostões. Tirou a mitra, viu-a pintada de diabos; voltou a pô-la,
dizendo entre si:
- Ainda bem que nem elas me abrasam, nem eles me levam.
Olhava-o também dom Quixote, e, embora o temor lhe tivesse
suspensos os sentidos, não deixou de rir ao ver a figura de Sancho.
Começou, nisto, a sair, ao parecer, debaixo do túmulo um som baixo e
agradável de flautas, que, por não ser impedido de alguma humana voz,
porque naquele sítio o mesmo silêncio guardava silêncio a si mesmo, se
mostrava brando e amoroso. Logo fez de si improvisa mostra, junto à
almofada dele, ao parecer, cadáver, um formoso mancebo vestido à
romana, que, ao som de uma harpa, que ele mesmo tocava, cantou com
suavíssima e clara voz estas duas estâncias:

Enquanto a si volta Altisidora,


morta pela crueldade de dom Quixote,
e enquanto na corte encantadora
se vestirem as damas de picote,
e enquanto a suas amas minha senhora
vestir de baeta e de lãzinha,
cantarei sua beleza e sua desgraça,
com melhor plectro que o cantor da Trácia.

E ainda não se me figura que me toca


este ofício somente em vida;
mas, com a língua morta e fria na boca,
penso mover a voz a ti devida.
Livre minha alma de sua estreita roca,
pelo estígio lago conduzida,
celebrando te irá, e aquele sonido
fará parar as águas do olvido.

- Não mais - disse então um dos dois que pareciam reis: - não mais,
cantor divino; que fora proceder em infinito representar-nos agora a
morte e as graças da sem par Altisidora, não morta, como o mundo
ignorante pensa, senão viva nas línguas da fama e na pena que
para volvê-la à perdida luz há de passar Sancho Pança, que está
presente; e assim, oh tu, Radamanto, que comigo julgas nas cavernas
lôbregas de Dite!, pois sabes tudo aquilo que nos inescrutáveis fados
está determinado acerca de voltar a si esta donzela, di-lo e declara-o
logo, para que não se nos dilate o bem que com sua nova volta
esperamos.
Apenas disse isto Minos, juiz e companheiro de Radamanto, quando,
levantando-se Radamanto, disse:
- Eia, serviçais desta casa, altos e baixos, grandes e pequenos, acudi
uns atrás de outros e acariciai o rosto de Sancho com vinte e quatro
tabefes, e doze beliscões e seis alfinetadas nos braços e lombos, que
nesta cerimônia consiste a saúde de Altisidora!
Ouvindo isso Sancho Pança rompeu o silêncio e disse:
- Voto a tal, assim me deixe eu acariciar o rosto nem manusear a
cara como tornar-me moro! Corpo de mim! Que tem que ver manusear-
me o rosto com a ressurreição desta donzela? Gostou a velha das
acelgas. Encantam Dulcineia, e açoitam-me para que se desencante;
morre Altisidora de males que Deus quis dar-lhe, e hão-na de
ressuscitar fazer-me a mim vinte e quatro tapões, e crivar-me o corpo
a alfinetadas e cardar-me os braços a beliscões. Essas burlas, a um
cunhado, que eu sou cão velho, e não há comigo tus, tus!
- Morrerás! - disse em alta voz Radamanto. - Abranda-te, tigre;
humilha-te, Nembrot soberbo, e sofre e cala, pois não te pedem
impossíveis. E não te metas em averiguar as dificuldades deste
negócio: estapeado hás de ser, crivado te hás de ver, beliscado hás de
gemer. Eia, digo, serviçais, cumpri meu mandamento; se não, pela fé de
homem de bem, que haveis de ver para o que nascestes!
Apareceram nisto, as quais pelo pátio vinham, até seis amas em
procissão, uma atrás de outra, as quatro com óculos, e todas
levantadas as mãos direitas, com quatro dedos de fora, para fazer as
mãos mais largas, como agora se usa. Apenas as viu Sancho, quando,
bramando como um touro, disse:
- Bem poderei eu deixar-me manusear por todo o mundo, mas
consentir que me toquem amas, isso não! Gateiem-me o rosto, como
fizeram a meu amo neste mesmo castelo; traspassem-me o corpo com
pontas de adagas aguçadas; atenazem-me os braços com tenazes de
fogo, que eu o levarei em paciência, farei o que estes senhores
querem; mas que me toquem amas não o consentirei se me levasse o
diabo.
Rompeu também o silêncio dom Quixote, dizendo a Sancho:
- Tem paciência, filho, e dá gosto a estes senhores, e muitas graças
ao céu por haver posto tal poder em tua pessoa, que com o martírio
dela desencantes os encantados e ressuscites os mortos.
- Menos cortesia; menos cremes, senhora ama - disse Sancho; - que
por Deus que trazeis as mãos cheirando a vinagre!
Finalmente, todas as amas o esbofetearam, e outra muita gente de
casa o beliscaram; mas o que ele não pôde suportar foi a punção dos
alfinetes; e assim, se levantou da cadeira, ao parecer mofino, e,
pegando uma tocha acesa que junto a ele estava, correu atrás das
amas, e atrás de todos seu verdugos, dizendo:
- Fora, serviçais infernais, que não sou eu de bronze, para não
sentir tão extraordinários martírios!
Nisto, Altisidora, que devia estar cansada por haver estado tanto
tempo deitada de costas, se voltou para um lado; visto o que pelos
circunstantes, quase todos a uma voz disseram:
- Viva é Altisidora! Altisidora vive!
Mandou Radamanto a Sancho que depusesse a ira, pois já se havia
alcançado o intento que se procurava.
Assim que dom Quixote viu Altisidora mexer-se, foi-se pôr de
joelhos diante de Sancho, dizendo-lhe:
- Agora é tempo, filho de minhas entranhas, não que escudeiro meu,
que te dês alguns dos açoites que estás obrigado a dar pelo
desencanto de Dulcineia. Agora, digo, que é o tempo onde tens
sazonado o poder, e com eficácia de obrar o bem que de ti se espera.
Ao que respondeu Sancho:
- Isto me parece tormento sobre tormento, e não mel na panqueca.
Bom seria que atrás de beliscões, tabefes e alfinetadas viessem agora
os açoites. Não têm mais que fazer senão tomar uma grande pedra, e
atá-la ao pescoço, e dar comigo num poço, do que a mim não pesaria
muito, se é que para curar os males alheios tenha eu de ser a vaca da
boda. Deixem-me; se não, por Deus que ponho tudo a perder.
Já nisto, se havia sentado no túmulo Altisidora, e no mesmo
instante soaram as charamelas, a quem acompanharam as flautas e as
vozes de todos, que aclamavam:
- Viva Altisidora! Altisidora viva!
Levantaram-se os duques e os reis Minos e Radamanto, e todos
juntos, com dom Quixote e Sancho, foram receber Altisidora e a
baixá-la do túmulo; a qual, fingindo que as forças lhe faltavam, se
inclinou aos duques e aos reis, e, olhando de través a dom Quixote,
disse-lhe:
- Deus te perdoe, desamorado cavaleiro, pois por tua crueldade
estive no outro mundo, a meu parecer, mais de mil anos; e a ti, oh o
mais compassivo escudeiro que contém o orbe!, te agradeço a vida que
possuo. Dispõe desde hoje, amigo Sancho, de seis camisas minhas que
te mando, para que faças outras seis para ti; e, se não são todas
novas, ao menos são todas limpas.
Beijou-lhe por isso as mãos Sancho, com a mitra na mão e os joelhos
no chão. Mandou o duque que a tirassem, e lhe devolvessem o capuz, e
lhe pusessem o saio, e lhe tirassem a roupa das chamas. Suplicou
Sancho ao duque que lhe deixassem a roupa e a mitra, que as queria
levar a sua terra, por sinal e memória daquele nunca visto sucesso. A
duquesa respondeu que sim deixariam, que já sabia ele quão grande
amiga sua era. Mandou o duque evacuar o pátio, e que todos se
recolhessem a seus aposentos, e que a dom Quixote e a Sancho os
levassem aos que eles já sabiam.

CAPÍTULO LXX

Que segue ao de sessenta e nove, e trata de coisas não escusadas


para a clareza desta história

Dormiu Sancho aquela noite em uma cama de campanha, no mesmo


aposento de dom Quixote, coisa que ele queria evitar, se pudesse,
porque bem sabia que seu amo não o havia de deixar dormir com
perguntas e com respostas, e não se achava com disposição de falar
muito, porque as dores dos martírios passados as tinha presentes, e
não lhe deixavam livre a língua, e ser-lhe-ia melhor dormir em uma
choça só, e não naquele rico quarto acompanhado. Saiu-lhe seu temor
tão verdadeiro e sua suspeita tão certa, que, apenas entrou seu
senhor no leito, quando disse:
- Que te parece, Sancho, do sucesso desta noite? Grande e
poderosa é a força do desdém desamorado, como por teus mesmos
olhos viste morta Altisidora, não com outras setas, nem com outra
espada, nem com outro instrumento bélico, nem com venenos
mortíferos, senão com a consideração do rigor e o desdém com que eu
sempre a tratei.
- Morresse ela em hora boa quanto quisesse e como quisesse -
respondeu Sancho, - e deixasse-me em minha casa, pois nem eu a
enamorei nem a desdenhei em minha vida. Eu não sei nem posso pensar
como seja que a saúde de Altisidora, donzela mais caprichosa que
discreta, tenha que ver, como outra vez disse, com os martírios de
Sancho Pança. Agora sim que venho a saber clara e distintamente que
há encantadores e encantos no mundo, de quem Deus me livre, pois eu
não me sei livrar; assim, suplico a vossa mercê me deixe dormir e não
me pergunte mais, se não quer que me arroje por uma janela abaixo.
- Dorme, Sancho amigo - respondeu dom Quixote, - se é que te dão
lugar as alfinetadas e beliscões recebidos, e os tabefes dados.
- Nenhuma dor - replicou Sancho - chegou à afronta dos tabefes,
não por outra coisa que por havê-los dado amas, que confundidas
sejam; e torno a suplicar a vossa mercê me deixe dormir, porque o
sono é alívio das misérias dos que as têm despertos.
- Seja assim - disse dom Quixote, - e Deus te acompanhe.
Dormiram os dois, e neste tempo quis escrever e dar conta Cide
Hamete, autor desta grande história, do que moveu os duques a
levantar o edifício da máquina referida. E diz que, não havendo-se
olvidado o bacharel Sansão Carrasco de quando o Cavaleiro dos
Espelhos foi vencido e derrubado por dom Quixote, cujo vencimento e
queda apagou e desfez todos seus desígnios, quis voltar a tentar,
esperando melhor sucesso que o passado; e assim, informando-se pelo
pajem que levou a carta e presente a Teresa Pança, mulher de Sancho,
onde dom Quixote estava, buscou novas armas e cavalo, e pôs no
escudo a branca lua, levando tudo sobre um mulo, a quem guiava um
lavrador, e não Tomé Cecial, seu antigo escudeiro, para que não fosse
reconhecido por Sancho nem por dom Quixote.
Chegou, pois, ao castelo do duque, que lhe informou o caminho e
rota que dom Quixote seguia, com intento de achar-se nas justas de
Saragoça. Disse-lhe também as burlas que lhe havia feito com a manha
do desencanto de Dulcineia, que havia de ser à custa das nádegas de
Sancho. Enfim, deu conta da burla que Sancho havia feito a seu amo,
dando-lhe a entender que Dulcineia estava encantada e transformada
em lavradora, e como a duquesa sua mulher havia dado a entender a
Sancho que ele era o que se enganava, porque verdadeiramente estava
encantada Dulcineia; de que não pouco se riu e admirou o bacharel,
considerando a agudeza e simplicidade de Sancho, como do extremo
da loucura de dom Quixote.
Pediu-lhe o duque que se o achasse, e o vencesse ou não, voltasse
por ali a dar-lhe conta do sucesso. Fê-lo assim o bacharel; partiu em
sua busca, não o achou em Saragoça, passou adiante e sucedeu-lhe o
que fica referido.
Voltou pelo castelo do duque e contou-lhe tudo, com as condições da
batalha, e que já dom Quixote voltava para cumprir, como bom
cavaleiro andante, a palavra de retirar-se um ano em sua aldeia, no
qual tempo podia ser, disse o bacharel, que se curasse de sua loucura;
que esta era a intenção que o havia movido a fazer aquelas
transformações, por ser coisa de lástima que um fidalgo tão bem
entendido como dom Quixote fosse louco. Com isto, se despediu do
duque, e voltou a seu lugar, esperando nele dom Quixote, que atrás
dele vinha.
Daqui tomou ocasião o duque de fazer-lhe aquela burla: tanto era o
que gostava das coisas de Sancho e de dom Quixote; e fazendo tomar
os caminhos perto e longe do castelo por todas as partes que imaginou
que poderia voltar dom Quixote, com muitos criados seus a pé e a
cavalo, para que por força ou por vontade o trouxessem ao castelo, se
o achassem. Acharam-no, deram aviso ao duque, o qual, já prevenido
de tudo o que havia de fazer, assim que teve notícia de sua chegada,
mandou acender as tochas e as luminárias do pátio e pôr Altisidora
sobre o túmulo, com todos os aparatos que se contaram, tão ao vivo, e
tão bem feitos, que da verdade a eles havia bem pouca diferença.
E diz mais Cide Hamete: que tem para si ser tão loucos os
burladores como os burlados, e que não estavam os duques dois dedos
de parecer tontos, pois tanto afinco punham em burlar com dois
tontos.
Os quais, um dormindo a sono solto, e o outro velando com
pensamentos desatados, lhes tomou o dia e a vontade de levantar-se,
que as ociosas plumas, nem vencido nem vencedor, jamais deram gosto
a dom Quixote.
Altisidora (na opinião de dom Quixote, retornada da morte à vida),
seguindo o humor de seus senhores, coroada com a mesma grinalda que
no túmulo tinha, e vestida uma pequena túnica de tafetá branco,
semeada de flores de ouro, e soltos os cabelos pelas costas, arrimada
a um báculo de negro e finíssimo ébano, entrou no aposento de dom
Quixote; com cuja presença perturbado e confuso se encolheu e
cobriu quase todo com os lençóis e colchas da cama, muda a língua,
sem que acertasse a fazer-lhe cortesia nenhuma. Sentou-se Altisidora
em uma cadeira, junto a sua cabeceira, e depois de haver dado um
grande suspiro, com voz terna e debilitada lhe disse:
- Quando as mulheres principais e as recatadas donzelas atropelam
pela honra, e dão licença à língua que rompa por todo inconveniente,
dando notícia em público dos segredos que seu coração encerra, em
estreito termo se acham. Eu, senhor dom Quixote da Mancha, sou uma
destas, maltratada, vencida e enamorada; mas, mesmo assim, sofrida e
honesta; tanto que, por sê-lo tanto, rebentou minha alma por meu
silêncio e perdi a vida. Dois dias há que com a consideração do rigor
com que me trataste,

Oh mais duro que mármore a minhas queixas,

empedernido cavaleiro!, estive morta, ou, ao menos, julgada por tal


pelos que me viram; e se não fora porque o amor, condoendo-se de
mim, depositou meu remédio nos martírios deste bom escudeiro, lá
ficaria no outro mundo.
- Bem poderia o amor - disse Sancho - depositá-los nos de meu asno,
que eu o agradeceria. Mas diga-me, senhora, assim o céu a acomode
com outro mais brando amante que meu amo: que é o que viu no outro
mundo? O que há no inferno? Porque quem morre desesperado, por
força há de ter aquele paradeiro.
- A verdade que vos diga - respondeu Altisidora, - eu não devi
morrer de todo, pois não entrei no inferno; que, se lá entrasse, em
absoluto não poderia sair dele, embora quisesse. A verdade é que
cheguei à porta, onde estavam jogando até uma dúzia de diabos à
pelota, todos em calças e em gibão, com valonas guarnecidas com
pontas de rendas flamengas, e com umas voltas do mesmo, que lhes
serviam de punhos, com quatro dedos de braço de fora, porque
parecessem as mãos mais largas, nas quais tinham umas raquetes de
fogo; e o que mais me admirou foi que lhes serviam, em lugar de
pelotas, livros, ao parecer, cheios de presunção e de porcaria, coisa
maravilhosa e nova; mas isto não me admirou tanto como o ver que,
sendo natural dos jogadores o alegrar-se os ganhadores e
entristecer-se os que perdem, ali naquele jogo todos grunhiam, todos
brigavam e todos se maldiziam.
- Isso não é maravilha - respondeu Sancho, - porque os diabos,
joguem ou não joguem, nunca podem estar contentes, ganhem ou não
ganhem.
- Assim deve ser - respondeu Altisidora; - mas há outra coisa que
também me admira, quero dizer me admirou então, e foi que ao
primeiro voleio não ficava pelota em pé, nem de proveito para servir
outra vez; e assim, amiudavam livros novos e velhos, que era uma
maravilha. A um deles, novo, flamante e bem encadernado, lhe deram
um golpe seco que lhe tiraram as tripas e lhe espalharam as folhas.
Disse um diabo a outro: “Vede que livro é esse”. E o diabo lhe
respondeu: “Esta é a Segunda parte da história de dom Quixote da
Mancha, não composta por Cide Hamete, seu primeiro autor, senão por
um aragonês, que ele diz ser natural de Tordesilhas”. “Tirai-o daí -
respondeu o outro diabo, - e metei-o nos abismos do inferno: não o
vejam mais meus olhos”. “Tão mau é?”, respondeu o outro. “Tão mau -
replicou o primeiro, - que se de propósito eu mesmo me pusesse a
fazê-lo pior, não acertaria”. Prosseguiram seu jogo, peloteando outros
livros, e eu, por haver ouvido nomear a dom Quixote, a
quem tanto amo e quero, procurei que me ficasse na memória esta
visão.
- Visão deveu ser, sem dúvida - disse dom Quixote, - porque não há
outro eu no mundo, e já essa história anda por aqui de mão em mão,
mas não para em nenhuma, porque todos a desprezam. Eu não me
alterei em ouvir que ando como corpo fantástico pelas trevas do
abismo, nem pela claridade da terra, porque não sou aquele de quem
essa história trata. Se ela for boa, fiel e verdadeira, terá séculos de
vida; mas se for má, de seu parto à sepultura não será muito largo o
caminho.
Ia Altisidora prosseguir em queixar-se de dom Quixote, quando lhe
disse dom Quixote:
- Muitas vezes vos disse, senhora, que a mim me pesa de que hajais
colocado em mim vossos pensamentos, pois dos meus antes podem ser
agradecidos que remediados; eu nasci para ser de Dulcineia do
Toboso, e os fados (se os houvesse) me dedicaram para ela, e pensar
que outra alguma formosura há de ocupar o lugar que em minha alma
tem é pensar o impossível. Suficiente desengano é este para que vos
retireis nos limites de vossa honestidade, pois ninguém se pode
obrigar ao impossível.
Ouvindo o qual Altisidora, mostrando enojar-se e alterar-se, disse-
lhe:
- Vive o Senhor, dom bacalhau, alma de pilão, caroço de tâmara,
mais teimoso e duro que vilão rogado quando acha que tem mais razão
que todos, que se arremeto a vós, que vos tenho de tirar os olhos!
Pensais porventura, dom vencido e dom moído a golpes, que eu morri
por vós? Tudo o que vistes esta noite foi fingido; que não sou eu
mulher que por semelhantes camelos havia de deixar que me doesse
um negro da unha, quanto mais morrer.
- Isso creio eu muito bem - disse Sancho, - que isto de morrer os
enamorados é coisa de riso: bem o podem eles dizer, mas fazer, creia-
o Judas.
Estando nestas conversas, entrou o músico, cantor e poeta que
havia cantado as duas já referidas estâncias, o qual, fazendo uma
grande reverência a dom Quixote, disse:
- Vossa mercê, senhor cavaleiro, me conte e tenha no número de
seus maiores servidores, porque há muitos dias que lhe sou muito
aficionado, assim por sua fama como por suas façanhas.
Dom Quixote lhe respondeu:
- Vossa mercê me diga quem é, que minha cortesia responda a seus
merecimentos.
O moço respondeu que era o músico e panegirista da noite anterior.
- Por certo - replicou dom Quixote, - que vossa mercê tem
extremada voz, mas o que cantou não me parece que foi muito a
propósito; porque, que têm a ver as estâncias de Garcilaso com a
morte desta senhora?
- Não se maravilhe vossa mercê com isso - respondeu o músico, -
que já entre os novéis poetas de nossa idade se usa que cada um
escreva como quiser, e furte de quem quiser, venha ou não venha a
propósito de seu intento, e já não há necedade que cantem ou
escrevam que não se atribua a licença poética.
Responder queria dom Quixote, mas perturbaram-no o duque e a
duquesa, que entraram para vê-lo, entre os quais passaram uma longa e
doce conversa, na qual disse Sancho tantos donaires e tantas malícias,
que deixaram de novo admirados os duques, assim com sua
simplicidade como com sua agudeza. Dom Quixote lhes suplicou lhe
dessem licença para partir naquele mesmo dia, pois aos vencidos
cavaleiros, como ele, mais lhes convinha habitar uma pocilga que não
reais palácios. Deram-na de muito bom grado, e a duquesa lhe
perguntou se ficava em sua graça Altisidora. Ele lhe respondeu:
- Senhora minha, saiba vossa senhoria que todo o mal desta donzela
nasce de ociosidade, cujo remédio é a ocupação honesta e contínua.
Ela me disse aqui que se usam rendas no inferno; e, pois ela as deve
saber fazer, não as deixe de mão, que, ocupada em manejar os
pauzinhos, não se manejarão em sua imaginação a imagem ou imagens
do que bem quer; e esta é a verdade, este meu parecer e este é meu
conselho.
- E o meu - acrescentou Sancho, - pois não vi em toda minha vida
rendeira que por amor tenha morrido; que as donzelas ocupadas mais
põem seus pensamentos em acabar suas tarefas que em pensar em
seus amores. Por mim o digo, pois, enquanto estou cavando, não me
lembro de minha metade, digo, de minha Teresa Pança, a quem quero
mais que às pestanas de meus olhos.
- Vós dizeis muito bem, Sancho - disse a duquesa, - e eu farei que
minha Altisidora se ocupe daqui em diante em fazer algum bordado,
que o sabe fazer por extremo.
- Não há para quê, senhora - respondeu Altisidora, - usar desse
remédio, pois a consideração das crueldades que comigo usou este
perverso monstrengo o apagarão da memória sem outro artifício
algum. E com licença de vossa grandeza, quero retirar-me, para não
ver diante de meus olhos já não sua triste figura, senão sua feia e
abominável catadura.
- Isso me parece - disse o duque - ao que costuma dizer-se:

Porque aquele que diz injúrias,


perto está de perdoar.

Fez Altisidora mostra de limpar as lágrimas com um lenço, e,


fazendo reverência a seus senhores, saiu do aposento.
- Desejo-te eu - disse Sancho, - pobre donzela, desejo-te, digo, má
ventura, pois a tiveste com uma alma de esparto e com um coração de
azinheira. À fé que se a tivesses comigo, que outro galo te cantaria!
Acabou-se a conversa, vestiu-se dom Quixote, almoçou com os
duques e partiu naquela tarde.
CAPÍTULO LXXI

Do que a dom Quixote sucedeu com seu escudeiro Sancho indo a sua
aldeia

Ia o vencido e angustiado dom Quixote muito pensativo por uma


parte, e muito alegre por outra. Causava sua tristeza a derrota; e a
alegria, o pensar no poder de Sancho, como o havia mostrado na
ressurreição de Altisidora, embora com algum escrúpulo se
persuadisse de que a enamorada donzela tivesse morrido deveras. Não
ia nada Sancho alegre, porque o entristecia ver que Altisidora não lhe
havia cumprido a palavra de dar-lhe as camisas; e indo e vindo nisto,
disse a seu amo:
- Em verdade, senhor, que sou o mais desgraçado médico que se
deve achar no mundo, no qual há médicos que, ao matar o enfermo que
curam, querem ser pagos por seu trabalho, que não é outro senão
assinar um papelinho com alguns remédios, que não os faz ele, senão o
boticário, e veja-o engodado; e a mim, que a saúde alheia me custa
gotas de sangue, tabefes, beliscões, alfinetadas e açoites, não me dão
um tostão. Pois eu lhes voto a tal que se me trazem às mãos outro
algum enfermo, que, antes que o cure, me hão de untar as minhas; que
o abade onde canta janta, e não quero crer que me haja dado o céu o
poder que tenho para que eu o comunique com outros de graça.
- Tu tens razão, Sancho amigo - respondeu dom Quixote, - e fez
muito mal Altisidora em não haver-te dado as prometidas camisas; e,
embora teu poder é gratis data (dado pela graça (N. do T.)), que não
te custou estudo algum, mais que estudo é receber martírios em tua
pessoa. De mim te sei dizer que se quisesses paga pelos açoites do
desencanto de Dulcineia, já te a haveria dado tal como boa; mas não
sei se virá bem com a cura a paga, e não queria que impedisse o prêmio
à medicina. Desse modo, me parece que não se perderá nada em prová-
lo: veja, Sancho, o que queres, e açoita-te logo, e paga-te de contado e
com tua própria mão, pois tens dinheiros meus.
A cujos oferecimentos abriu Sancho os olhos e as orelhas um palmo,
e deu consentimento em seu coração a açoitar-se de bom grado, e
disse a seu amo:
- Pois bem, senhor, eu quero dispor-me a dar gosto a vossa mercê no
que deseja, com proveito meu; que o amor de meus filhos e de minha
mulher me faz que me mostre interessado. Diga-me vossa mercê:
quanto me dará por cada açoite que me der?
- Se eu te houvesse de pagar, Sancho - respondeu dom Quixote, -
conforme o que merece a grandeza e qualidade deste remédio, o
tesouro de Veneza, as minas do Potosí seriam pouco para pagar-te;
toma tu o tento ao que levas meu, e põe o preço a cada açoite.
- Eles - respondeu Sancho - são três mil e trezentos e tantos; deles
me dei até cinco: ficam os demais; entrem entre os tantos estes cinco,
e venhamos aos três mil e trezentos, que a quartinho cada um, que não
levarei menos se todo o mundo mo mandasse, montam três mil e
trezentos quartinhos, que são os três mil, mil e quinhentos meios
reais, que fazem setecentos e cinquenta reais; e os trezentos fazem
cento e cinquenta meios reais, que vêm a fazer setenta e cinco reais,
que, juntando-se aos setecentos e cinquenta, são por todos oitocentos
e vinte e cinco reais. Estes desfalcarei eu dos que tenho de vossa
mercê, e entrarei em minha casa rico e contente, embora bem
açoitado; porque não se tomam trutas..., e não digo mais.
- Oh Sancho bendito! Oh Sancho amável - respondeu dom Quixote, -
e quão obrigados havemos de ficar Dulcineia e eu a servir-te todos os
dias que o céu nos der de vida! Se ela volta ao ser perdido, que não é
possível senão que volte, sua desdita haverá sido dita, e minha
derrota, felicíssimo triunfo. E veja, Sancho, quando queres começar a
disciplina, que porque a abrevies, te acrescento cem reais.
- Quando? - replicou Sancho. - Esta noite, sem falta. Procure vossa
mercê que a tenhamos no campo, ao céu aberto, que eu me abrirei as
carnes.
Chegou a noite, esperada de dom Quixote com a maior ânsia do
mundo, parecendo-lhe que as rodas do carro de Apolo se haviam
quebrado, e que o dia se alongava mais que o costumeiro, como
acontece aos enamorados, que jamais ajustam a conta de seus
desejos. Finalmente, entraram entre umas amenas árvores que pouco
desviadas do caminho estavam, onde, deixando vazias a sela e albarda
de Rocinante e do ruço, se estenderam sobre a verde erva e jantaram
do farnel de Sancho; o qual, fazendo do cabresto e da cabeçada do
ruço um poderoso e flexível açoite, se retirou até vinte passos de seu
amo, entre umas faias. Dom Quixote, que o viu ir com denodo e com
brio, disse-lhe:
- Vê, amigo, que não te faças em pedaços, dá lugar que uns açoites
aguardem a outros; não queiras apressar-te tanto na carreira, que em
meio dela te falte o alento; quero dizer que não te dês tão forte que
te falte a vida antes de chegar ao número desejado. E porque não
percas por carta de mais nem de menos, eu estarei à parte contando
por este meu rosário os açoites que te deres. Favoreça-te o céu
conforme tua boa intenção merece.
- Ao bom pagador não lhe falta crédito - respondeu Sancho: - eu
penso dar-me de maneira que, sem matar-me, me doa; que nisto deve
consistir a substância deste milagre.
Desnudou-se logo de meio corpo acima, e, arrebatando o cordel,
começou a dar-se, e começou dom Quixote a contar os açoites. Até
seis ou oito se haveria dado Sancho, quando lhe pareceu ser pesada a
burla e muito barato o preço dela, e, detendo-se um pouco, disse a seu
amo que se havia enganado, porque merecia cada açoite daqueles ser
pago a meio real, e não a quartinho.
- Prossegue, Sancho amigo, e não desmaies - lhe disse dom Quixote,
- que eu dobro a parada do preço.
- Desse modo - disse Sancho, - à mão de Deus, e chovam açoites!
Mas o socarrão deixou de dá-los nas costas, e dava nas árvores, com
uns suspiros de quando em quando, que parecia que com cada um deles
se lhe arrancava a alma. Terna a de dom Quixote, temeroso de que se
lhe acabasse a vida, e não conseguisse seu desejo pela imprudência de
Sancho, disse-lhe:
- Por tua vida, amigo, que fique neste ponto este negócio, que me
parece muito áspera esta medicina, e será bom dar tempo ao tempo;
que não se ganhou Zamora numa hora. Mais de mil açoites, se eu não
contei mal, te deste: bastam por agora; que o asno, falando ao
grosseiro, sofre a carga, mas não a sobrecarga.
- Não, não, senhor - respondeu Sancho, - não se há de dizer por
mim: “a dinheiros pagos, braços quebrados”. Afaste-se vossa mercê
outro pouco e deixe-me dar outros mil açoites pelo menos, que a duas
levadas destas haveremos cumprido com esta partida, e ainda nos
sobrará roupa.
- Pois tu te achas com tão boa disposição - disse dom Quixote, - o
céu te ajude, e pega-te, que eu me afasto.
Voltou Sancho à sua tarefa com tanto denodo, que já havia tirado as
cortiças a muitas árvores: tal era o rigor com que se açoitava; e,
alçando uma vez a voz, e dando um desaforado açoite em uma faia,
disse:
- Aqui morrerás, Sansão, e quantos com ele são!
Acudiu dom Quixote logo ao som da lastimada voz e do golpe do
rigoroso açoite, e, tomando o torcido cabresto que servia de rebenque
a Sancho, disse-lhe:
- Não permita a sorte, Sancho amigo, que pelo gosto meu percas tu
a vida, que há de servir para sustentar a tua mulher e teus filhos:
espere Dulcineia melhor conjuntura, que eu me conterei nos limites da
esperança próxima, e esperarei que cobres forças novas, para que se
conclua este negócio a gosto de todos.
- Pois vossa mercê, senhor meu, o quer assim - respondeu Sancho, -
seja em boa hora, e ponha-me sua capa sobre estas costas, que estou
suando e não queria resfriar-me, que os novos disciplinantes correm
este perigo.
Fê-lo assim dom Quixote, e ficando em pelo, abrigou Sancho, o qual
dormiu até que o despertou o sol, e logo voltaram a prosseguir seu
caminho, a quem deram fim, por então, num lugar que a três léguas dali
estava. Apearam-se numa estalagem, que por tal lhe reconheceu dom
Quixote, e não por castelo de cava funda, torres, rastelos e ponte
levadiça; que, depois que o venceram, com mais juízo em todas as
coisas discorria, como agora se dirá. Alojaram-no em uma sala baixa, à
qual serviam de cortinas umas sarjas velhas pintadas, como se usam
nas aldeias. Em uma delas estava pintada de malíssima mão o roubo de
Helena, quando o atrevido hóspede a levou de Menelau, e em outra
estava a história de Dido e de Eneias, ela sobre uma alta torre, como
que fazia sinais com um meio lençol ao fugitivo hóspede, que pelo mar,
sobre uma fragata ou bergantim, ia fugindo. Notou nas duas histórias
que Helena não ia de muito má vontade, porque ria à socapa e ao
socarrão; mas a formosa Dido mostrava verter lágrimas do tamanho
de nozes pelos olhos. Vendo isso dom Quixote disse:
- Estas duas senhoras foram desditadíssimas, por não haver nascido
nesta idade, e eu sobre todos desditado em não haver nascido na sua:
se eu encontrasse estes senhores, nem seria queimada Troia, nem
Cartago destruída, pois se eu apenas matasse Páris se evitariam
tantas desgraças.
- Eu apostarei - disse Sancho - que antes de muito tempo não há de
haver taberna, venda nem estalagem ou tenda de barbeiro onde não
ande pintada a história de nossas façanhas. Mas queria eu que a
pintassem mãos de outro melhor pintor que o que pintou estas.
- Tens razão, Sancho - disse dom Quixote, - porque este pintor é
como Orbaneja, um pintor que estava em Úbeda; que, quando lhe
perguntavam o que pintava, respondia: “O que sair”; e se porventura
pintava um galo, escrevia em baixo: “Este é galo”, para que não
pensassem que era raposa. Desta maneira me parece, Sancho, que
deve ser o pintor ou escritor, que tudo é um, que tirou à luz a história
deste novo dom Quixote que saiu: que pintou ou escreveu o que sair;
ou haverá sido como um poeta que andava os anos passados na corte,
chamado Mauleón, o qual respondia de repente a quanto lhe
perguntavam, e perguntando-lhe um que queria dizer “Deum de Deo”,
respondeu: “Dê onde der”. Mas, deixando isto à parte, diz-me se
pensas, Sancho, dar-te outra tunda esta noite, e se queres que seja
debaixo de telhado, ou a céu aberto.
- Por Deus, senhor - respondeu Sancho, - que para o que eu penso
dar-me, isso me é o mesmo em casa ou no campo; contudo, queria que
fosse entre árvores, que parece que me acompanham e me ajudam a
levar meu trabalho maravilhosamente.
- Pois não há de ser assim, Sancho amigo - respondeu dom Quixote,
- senão que para que tomes forças, o havemos de guardar para nossa
aldeia, que, ao mais tardar, chegaremos lá depois de amanhã.
Sancho respondeu que fizesse seu gosto, mas que ele queria
concluir com brevidade aquele negócio a sangue quente e quando
estava em ação o moinho, porque na tardança costuma estar muitas
vezes o perigo; e a Deus rogando e com o maço dando, e que mais valia
um toma que dois te darei, e o pássaro na mão que o abutre voando.
- Não mais refrãos, Sancho, por um só Deus - disse dom Quixote, -
que parece que te voltas ao sicut erat (como no princípio (N. do T.));
fala chãmente, ao liso, ao não intricado, como muitas vezes te disse, e
verás como te vale um pão por cem.
- Não sei que má ventura é esta minha - respondeu Sancho, - que
não sei dizer razão sem refrão, nem refrão que não me pareça razão;
mas eu me emendarei se puder.
E com isto cessou por então sua conversa.

CAPÍTULO LXXII

De como dom Quixote e Sancho chegaram a sua aldeia

Todo aquele dia, esperando a noite, estiveram naquele lugar e


estalagem dom Quixote e Sancho: um, para acabar no campo raso a
tunda de sua disciplina, e o outro, para ver o fim dela, no qual consistia
o de seu desejo. Chegou nisto à estalagem um caminhante a cavalo,
com três ou quatro criados, um dos quais disse ao que o senhor deles
parecia:
- Aqui pode vossa mercê, senhor dom Álvaro Tarfe, passar hoje a
sesta: a pousada parece limpa e fresca.
Ouvindo isto dom Quixote, disse a Sancho:
- Vê, Sancho: quando eu folheei aquele livro da segunda parte de
minha história, me parece que de passagem topei ali este nome de dom
Álvaro Tarfe.
- Bem poderá ser - respondeu Sancho. - Deixemo-lo apear, que
depois o perguntaremos.
O cavaleiro se apeou, e, fronteiro do aposento de dom Quixote, a
hospedeira lhe deu uma sala baixa, ajaezada com outras pintadas
sarjas, como as que tinha o quarto de dom Quixote. Pôs-se o recém
vindo cavaleiro em traje de verão, e, saindo ao portal da estalagem,
que era espaçoso e fresco, pelo qual passeava dom Quixote, lhe
perguntou:
- Aonde bem caminha vossa mercê, senhor gentil-homem?
E dom Quixote lhe respondeu:
- A uma aldeia que está aqui perto, de onde sou natural. E vossa
mercê, aonde caminha?
- Eu, senhor - respondeu o cavaleiro, - vou a Granada, que é minha
pátria.
- E boa pátria! - replicou dom Quixote. - Mas diga-me vossa mercê,
por cortesia, seu nome, porque me parece que me há de importar
sabê-lo mais do que boamente poderei dizer.
- Meu nome é dom Álvaro Tarfe - respondeu o hóspede.
Ao que replicou dom Quixote:
- Sem dúvida alguma penso que vossa mercê deve ser aquele dom
ÁlvaroTarfe que anda impresso na segunda parte da história de dom
Quixote da Mancha, recém impressa e dada à luz do mundo por um
autor novato.
- O mesmo sou - respondeu o cavaleiro, - e o tal dom Quixote,
sujeito principal da tal história, foi grandíssimo amigo meu, e eu fui o
que o tirou de sua terra, ou, ao menos, o movi a que viesse a umas
justas que se faziam em Saragoça, aonde eu ia; e, em verdade em
verdade que lhe fiz muitas amizades, e que impedi que lhe palmeasse
as costas o verdugo, por ser demasiadamente atrevido.
- E diga-me vossa mercê, senhor dom Álvaro, pareço eu em algo com
esse tal dom Quixote que vossa mercê diz?
- Não, por certo - respondeu o hóspede, - de maneira alguma.
- E esse dom Quixote - disse o nosso - trazia consigo um escudeiro
chamado Sancho Pança?
- Sim, trazia - respondeu dom Álvaro; - e embora tivesse fama de
muito gracioso, nunca o ouvi dizer graça que a tivesse.
- Isso creio eu muito bem - disse então Sancho, - porque o dizer
graças não é para todos, e esse Sancho que vossa mercê diz, senhor
gentil-homem, deve ser algum grandíssimo velhaco, sem graça e ladrão
juntamente, pois o verdadeiro Sancho Pança sou eu, que tenho mais
graças que chuvas; e se não, faça vossa mercê a experiência, e ande
atrás de de mim, pelos menos um ano, e verá que me caem a cada
passo, e tais e tantas que, sem saber eu as mais vezes o que digo, faço
rir a quantos me escutam; e o verdadeiro dom Quixote da Mancha, o
famoso, o valente e o discreto, o enamorado, o desfazedor de agravos,
o tutor de pupilos e órfãos, o amparo das viúvas, o matador das
donzelas, o que tem por única senhora à sem par Dulcineia do Toboso,
é este senhor que está presente, que é meu amo; todo qualquer outro
dom Quixote e qualquer outro Sancho Pança é ilusão e coisa de sonho.
- Por Deus que o creio! - respondeu dom Álvaro, - porque mais
graças dissestes vós, amigo, em quatro razões que haveis falado, que o
outro Sancho Pança em quantas eu lhe ouvi falar, que foram muitas.
Mais tinha de comilão que de bem falado, e mais de tonto que de
gracioso, e tenho por sem dúvida que os encantadores que perseguem
dom Quixote o bom quiseram perseguir-me com dom Quixote o mau.
Mas não sei que diga; que ousarei eu jurar que o deixo metido na Casa
do Núncio, em Toledo, para que o curem, e agora aparece
inesperadamente aqui outro dom Quixote, embora bem diferente do
meu.
- Eu - disse dom Quixote - não sei se sou bom, mas sei dizer que não
sou o mau; para prova do que quero que saiba vossa mercê, meu senhor
dom Álvaro Tarfe, que em todos os dias de minha vida não estive em
Saragoça; antes, por haver-me dito que esse dom Quixote fantástico
se havia achado nas justas dessa cidade, não quis eu entrar nela, por
trazer às barbas do mundo sua mentira; e assim, fui diretamente a
Barcelona, arquivo da cortesia, albergue dos estrangeiros, hospital
dos pobres, pátria dos valentes, vingança dos ofendidos e
correspondência grata de firmes amizades, e, em lugar e em beleza,
única. E embora os sucessos que nela me sucederam não são de muito
gosto, senão de muita tristeza, os levo sem ela, só por havê-la visto.
Finalmente, senhor dom Álvaro Tarfe, eu sou dom Quixote da Mancha,
o mesmo que diz a fama, e não esse desventurado que quis usurpar
meu nome e honrar-se com meus pensamentos. A vossa mercê suplico,
pelo que deve a ser cavaleiro, seja servido de fazer uma declaração
ante o alcaide deste lugar, de que vossa mercê não me viu em todos os
dias de sua vida até agora, e de que eu não sou o dom Quixote
impresso na segunda parte, nem este Sancho Pança meu escudeiro é
aquele que vossa mercê conheceu.
- Isso farei eu de muito bom grado - respondeu dom Álvaro, -
embora cause admiração ver dois dom Quixotes e dois Sanchos a um
mesmo tempo, tão conformes nos nomes como diferentes nas ações; e
volto a dizer e afirmo que não vi o que vi, nem passou por mim o que
passou.
- Sem dúvida - disse Sancho - que vossa mercê deve estar
encantado, como minha senhora Dulcineia do Toboso, e prouvesse ao
céu que estivesse o desencanto de vossa mercê em dar-me outros três
mil e tantos açoites como me dou por ela, que eu os daria sem
interesse algum.
- Não entendo isso de açoites - disse dom Álvaro.
E Sancho lhe respondeu que era longo de contar, mas que ele o
contaria se acaso fossem por um mesmo caminho.
Chegou nisto a hora de comer; almoçaram juntos dom Quixote e
dom Álvaro. Entrou acaso o alcaide da vila na estalagem, com um
escrivão, ante o qual alcaide pediu dom Quixote, por uma petição, de
que por seu direito convinha que dom Álvaro Tarfe, aquele cavaleiro
que ali estava presente, declarasse ante sua mercê como não conhecia
dom Quixote da Mancha, que também estava ali presente, e que não
era aquele que andava impresso em uma história intitulada Segunda
parte de dom Quixote da Mancha, composta por um tal de Avellaneda,
natural de Tordesilhas. Finalmente, o alcaide proveu juridicamente; a
declaração se fez com todas as forças que em tais casos deviam
fazer-se, com o que ficaram dom Quixote e Sancho muito alegres,
como se lhes importasse muito semelhante declaração e não
mostrassem claro a diferença dos dois dom Quixotes e a dos dois
Sanchos suas obras e suas palavras. Muitas cortesias e oferecimentos
passaram entre dom Álvaro e dom Quixote, nas quais mostrou o
grande manchego sua discrição, de modo que desenganou a dom Álvaro
Tarfe do erro em que estava; o qual se deu a entender que devia estar
encantado, pois tocava com a mão dois tão contrários dom Quixotes.
Chegou a tarde, partiram daquele lugar, e a obra de meia légua se
afastavam dois caminhos diferentes, um que guiava à aldeia de dom
Quixote, e o outro o que havia de levar dom Álvaro. Neste pouco
espaço lhe contou dom Quixote a desgraça de sua derrota e o encanto
e o remédio de Dulcineia, que tudo pôs em nova admiração a dom
Álvaro, o qual, abraçando dom Quixote e Sancho, seguiu seu caminho,
e dom Quixote o seu, que aquela noite a passou entre outras árvores,
por dar lugar a Sancho de cumprir sua penitência, que a cumpriu do
mesmo modo que a passada noite, à custa das cortiças das faias, muito
mais que de suas costas, que as guardou tanto, que não poderiam tirar
os açoites uma mosca, embora a tivesse em cima.
Não perdeu o enganado dom Quixote um só golpe da conta, e achou
que com os da noite passada eram três mil e vinte e nove. Parece que
havia madrugado o sol a ver o sacrifício, com cuja luz voltaram a
prosseguir seu caminho, tratando entre os dois do engano de dom
Álvaro e de quão bem acordado havia sido tomar sua declaração ante a
justiça, e tão autenticamente.
Aquele dia e aquela noite caminharam sem suceder-lhes coisa digna
de contar-se, se não foi que nela acabou Sancho sua tarefa, de que
ficou dom Quixote contente sobremodo, e esperava o dia, por ver se
no caminho topava já desencantada Dulcineia sua senhora; e, seguindo
seu caminho, não topava mulher nenhuma que não ia a reconhecer se
era Dulcineia do Toboso, tendo por infalível não poder mentir as
promessas de Merlim.
Com estes pensamentos e desejos subiram uma encosta, desde a
qual descobriram sua aldeia, a qual, vista por Sancho, ficou de joelhos
e disse:
- Abre os olhos, desejada pátria, e veja que volta a ti Sancho Pança,
teu filho, se não muito rico, muito bem açoitado. Abre os braços e
recebe também teu filho dom Quixote, que se vem vencido pelos
braços alheios, vem vencedor de si mesmo; que, segundo ele me disse,
é a maior vitória que desejar-se pode. Dinheiros levo, porque se bons
açoites me davam, bem a cavaleiro ia.
- Deixa dessas sandices - disse dom Quixote, - e vamos com pé
direito entrar em nosso lugar, onde daremos curso a nossas
imaginações e ao plano que na pastoral vida pensamos executar.
Com isto, desceram a encosta e foram a seu povoado.

CAPÍTULO LXXIII

Dos agouros que sentiu dom Quixote ao entrar em sua aldeia, com
outros sucessos que adornam e acreditam esta grande história

À entrada do qual, segundo diz Cide Hamete, viu dom Quixote que
nas eiras do lugar estavam brigando dois moços, e um disse ao outro:
- Não te canses, Pedrinho, que não a hás de ver em todos os dias de
tua vida.
Ouviu-o dom Quixote, e disse a Sancho:
- Não advertes, amigo, o que aquele moço disse: “não a hás de ver
em todos os dias de tua vida”?
- Pois bem, que importa - respondeu Sancho - que haja dito isso o
moço?
- Quê? - replicou dom Quixote. - Não vês tu que, aplicando aquela
palavra à minha intenção, quer significar que não tenho de ver mais
Dulcineia?
Queria-lhe responder Sancho, quando o perturbou ver que por
aquele campo vinha fugindo uma lebre, seguida de muitos galgos e
caçadores, a qual, temerosa, veio recolher-se e agachar debaixo dos
pés do ruço. Colheu-a Sancho facilmente com a mão e apresentou-a a
dom Quixote, o qual estava dizendo:
- Malum signum! Malum signum! (Mau sinal! Mau sinal! (N. do T.))
Lebre foge, galgos a seguem: Dulcineia não aparece!
- Estranho é vossa mercê - disse Sancho; - pressuponhamos que
esta lebre é Dulcineia do Toboso e estes galgos que a perseguem são
os perversos encantadores que a transformaram em lavradora: ela
foge, eu a colho e a ponho em poder de vossa mercê, que a tem em
seus braços e a regala: que mau sinal é este, nem que mal agouro se
pode tomar daqui?
Os dois moços da pendência se achegaram para ver a lebre, e a um
deles perguntou Sancho por que brigavam. E foi-lhe respondido pelo
que havia dito “não a verás mais em toda tua vida” que ele havia
tomado ao outro moço uma jaula de grilos, a qual não pensava devolvê-
la em toda sua vida. Tirou Sancho quatro quartos da algibeira e deu-os
ao moço pela jaula, e pô-la nas mãos de dom Quixote, dizendo:
- Eis aqui, senhor, rompidos e desbaratados estes agouros, que não
têm a ver mais com nossos sucessos, segundo eu imagino, embora
tonto, que com as nuvens de antanho. E se não me lembro mal, ouvi
dizer ao padre de nossa vila que não é de pessoas cristãs nem
discretas olhar nestas ninharias; e ainda vossa mercê mesmo mo disse
os dias passados, dando-me a entender que eram tontos todos aqueles
cristãos que olhavam em agouros. E não é preciso fazer finca-pé nisto,
senão passemos adiante e entremos em nossa aldeia.
Chegaram os caçadores, pediram sua lebre e deu-a dom Quixote;
passaram adiante e à entrada da vila toparam num pradozinho rezando
o padre e o bacharel Carrasco. E é de saber que Sancho Pança havia
posto sobre o ruço e sobre o molho das armas, para que servisse de
guarnição, a túnica de algodão, pintada de chamas de fogo que lhe
vestiram no castelo do duque na noite que voltou a si Altisidora.
Acomodou-lhe também a mitra na cabeça, que foi a mais nova
transformação e adorno com que se viu jamais jumento no mundo.
Foram logo reconhecidos os dois pelo padre e o bacharel, que
vieram a eles com os braços abertos. Apeou-se dom Quixote e
abraçou-os estreitamente; e os moços, que não se lhes oculta nada,
divisaram a mitra do jumento e vieram vê-lo, e diziam uns a outros:
- Vinde, moços, e vereis o asno de Sancho Pança mais galante que
Mingo, e a besta de dom Quixote mais magra hoje que no primeiro dia.
Finalmente, rodeados de moços e acompanhados do padre e do
bacharel, entraram no povoado, e foram à casa de dom Quixote, e
acharam à porta dela a ama e a sua sobrinha, a quem já haviam
chegado as novas de sua vinda. Nem mais nem menos as haviam dado a
Teresa Pança, mulher de Sancho, a qual, desgrenhada e meio desnuda,
trazendo pela mão Sanchica, sua filha, veio ver seu marido; e, vendo-o
não tão bem alinhado como ela pensava que havia de estar um
governador, disse-lhe:
- Como vindes assim, marido meu, que me parece que vindes a pé e a
pés estropiados, e mais trazeis semelhança de desgovernado que de
governador?
- Cala, Teresa - respondeu Sancho, - que muitas vezes onde há
estacas não há toucinhos, e vamos para nossa casa, que lá ouvirás
maravilhas. Dinheiros trago, que é o que importa, ganhos por minha
indústria e sem dano de ninguém.
- Trazei dinheiros, meu bom marido - disse Teresa, - e sejam
ganhos por aqui ou por ali, que, como queira que os hajais ganho, não
havereis feito usança nova no mundo.
Abraçou Sanchica a seu pai, e perguntou-lhe se trazia algo, que o
estava esperando como a água de maio; e, tomando-o de um lado do
cinto, e sua mulher da mão, puxando sua filha o ruço, foram à sua casa,
deixando dom Quixote na sua, em poder de sua sobrinha e de sua ama,
e em companhia do padre e do bacharel.
Dom Quixote, sem esperar nada, naquele mesmo instante se afastou
a sós com o bacharel e o padre, e em breves razões lhes contou sua
derrota, e a obrigação em que havia ficado de não sair de sua aldeia
em um ano, a que pensava guardar ao pé da letra, sem traspassá-la em
um átomo, bem assim que cavaleiro andante, obrigado pela
pontualidade e ordem da andante cavalaria, e que tinha pensado fazer-
se aquele ano pastor, e entreter-se na solidão dos campos, onde à
rédea solta podia dar vazão a seus amorosos pensamentos,
exercitando-se no pastoral e virtuoso exercício; e que lhes suplicava,
se não tinham muito que fazer e não estavam impedidos em negócios
mais importantes, quisessem ser seus companheiros; que ele compraria
ovelhas e gado suficiente que lhes desse nome de pastores; e que lhes
fazia saber que o mais principal daquele negócio estava feito, porque
lhes tinha posto os nomes, que lhes viriam a calhar. Disse-lhe o padre
que os dissesse. Respondeu dom Quixote que ele se havia de chamar o
pastor Quijótiz; e o bacharel, o pastor Carrascón; e o padre, o pastor
Padriambro; e Sancho Pança, o pastor Pancino.
Pasmaram todos de ver a nova loucura de dom Quixote; mas, para
que não se lhes fosse outra vez da vila a suas cavalarias, esperando
que naquele ano poderia ser curado, concederam com sua nova
intenção, e aprovaram por discreta sua loucura, oferecendo-se por
companheiros em seu exercício.
- E mais - disse Sansão Carrasco, - que, como já todo o mundo sabe,
eu sou celebérrimo poeta e a cada passo comporei versos pastoris, ou
cortesãos, ou como mais me convier, para que nos entretenhamos por
esses ermos onde havemos de andar; e o que mais é preciso, senhores
meus, é que cada um escolha o nome da pastora que pensa celebrar em
seus versos, e que não deixemos árvore, por dura que seja, onde não a
rotule e grave seu nome, como é uso e costume dos enamorados
pastores.
- Isso está perfeito - respondeu dom Quixote, - embora eu esteja
livre de buscar nome de pastora fingida, pois está aí a sem par
Dulcineia do Toboso, glória destas ribeiras, adorno destes prados,
sustento da formosura, nata dos donaires, e, finalmente, sujeito sobre
quem pode assentar bem toda louvação, por hipérbole que seja.
- Assim é verdade - disse o padre, - mas nós buscaremos por aí
pastoras dóceis, que se não nos quadrarem, nos servirão bem.
Ao que acrescentou Sansão Carrasco:
- E quando faltarem, dar-lhes-emos os nomes das estampadas e
impressas, do que está cheio o mundo: Fílidas, Amarílis, Dianas,
Fléridas, Galateias e Belisardas; que, pois as vendem nas praças, bem
as podemos comprar nós e tê-las por nossas. Se minha dama, ou, por
melhor dizer, minha pastora, porventura se chamar Ana, a celebrarei
debaixo do nome de “Anarda”; e se Francisca, a chamarei eu
“Francênia”; e se Lúcia, “Lucinda”, que tudo há lá; e Sancho Pança, se é
que há de entrar nesta confraria, poderá celebrar a sua mulher
Teresa Pança com nome de “Teresaina”.
Riu-se dom Quixote da aplicação do nome, e o padre lhe louvou
infinito sua honesta e honrada resolução, e se ofereceu de novo a
fazer-lhe companhia todo o tempo que lhe vagasse para atender a suas
forçosas obrigações. Com isto, se despediram dele, e lhe rogaram e
aconselharam tivesse conta com sua saúde, com regalar-se o que fosse
bom.
Quis a sorte que sua sobrinha e a ama ouviram a conversa dos três;
e, assim como se foram, entraram ambas com dom Quixote, e a
sobrinha lhe disse:
- Que é isto, senhor tio? Agora que pensávamos nós que vossa
mercê voltava a permanecer em sua casa, e passar nela uma vida
quieta e honrada, se quer meter em novos labirintos, fazendo-se
“pastorzinho, tu para que vens, pastorzinho, tu para que vais?” Pois em
verdade que está já dura a cevada para flautas.
Ao que acrescentou a ama:
- E poderá vossa mercê passar no campo as sestas do verão, os
serenos do inverno, o uivo dos lobos? Não, por certo, que este é
exercício e ofício de homens robustos, curtidos e criados para tal
ministério quase desde as faixas e cueiros. Ainda, mal por mal, melhor
é ser cavaleiro andante que pastor. Veja, senhor, tome meu conselho,
que não lhe dou por estar farta de pão e vinho, senão em jejum, e por
cinquenta anos que tenho de idade: esteja em sua casa, atenda a seus
bens, confesse-se amiúde, favoreça aos pobres, e que venha sobre
minha alma se mal lhe for.
- Calai, filhas - lhes respondeu dom Quixote, - que eu sei bem o que
me cumpre. Levai-me ao leito, que me parece que não estou muito bom,
e tende por certo que, agora seja cavaleiro andante ou pastor por
andar, não deixarei sempre de atender ao que precisardes, como o
vereis pela obra.
E as boas filhas (que o eram sem dúvida ama e sobrinha) o levaram à
cama, onde lhe deram de comer e regalaram o possível.

CAPÍTULO LXXIV

De como dom Quixote caiu doente e do testamento que fez e sua


morte

Como as coisas humanas não são eternas, indo sempre em declinação


de seus princípios até chegar a seu último fim, especialmente as vidas
dos homens, e como a de dom Quixote não tivesse privilégio do céu
para deter o curso da sua, chegou seu fim e acabamento quando ele
menos o pensava; porque, ou já fosse da melancolia que lhe causava o
ver-se vencido, ou já pela disposição do céu, que assim o ordenava, se
lhe arraigou uma febre que o teve seis dias na cama, nos quais foi
visitado muitas vezes pelo padre, pelo bacharel e pelo barbeiro, seus
amigos, sem sair-lhe da cabeceira Sancho Pança, seu bom escudeiro.
Estes, crendo que o pesar de ver-se vencido e de não ver cumprido
seu desejo na liberdade e desencanto de Dulcineia o tinha daquela
sorte, por todas as vias possíveis procuravam alegrá-lo, dizendo-lhe o
bacharel que se animasse e levantasse, para começar seu pastoral
exercício, para o que tinha já composta uma écloga, que mal ano para
quantas Sanazaro havia composto, e que já tinha comprados de seu
próprio dinheiro dois famosos cães para guardar o gado: um chamado
Barcino, e o outro Butrón, que os havia vendido um vaqueiro do
Quintanar. Mas não por isto deixava dom Quixote suas tristezas.
Seus amigos chamaram o médico, tomou-lhe o pulso, e não se
contentou muito, e disse que, pelo sim ou pelo não, atendesse à saúde
de sua alma, porque a do corpo corria perigo. Ouviu-o dom Quixote
com ânimo sossegado, mas não o ouviram assim sua ama, sua sobrinha e
seu escudeiro, os quais começaram a chorar ternamente, como se já o
tivessem morto diante. Foi o parecer do médico que melancolias e
desabrimentos o acabavam. Rogou dom Quixote que o deixassem só,
porque queria dormir um pouco. Fizeram-no assim e dormiu de um
tirão, como dizem, mais de seis horas; tanto, que pensaram a ama e a
sobrinha que havia de ficar no sono. Despertou ao cabo do tempo
dito, e, dando uma grande voz, disse:
- Bendito seja o poderoso Deus, que tanto bem me fez! Enfim, suas
misericórdias não têm limite, nem as abreviam nem impedem os
pecados dos homens.
Esteve atenta a sobrinha às razões do tio, e pareceram-lhe mais
concertadas que ele costumava dizê-las, ao menos, naquela
enfermidade, e perguntou-lhe:
- Que é o que vossa mercê diz, senhor? Temos algo de novo? Que
misericórdias são estas, ou que pecados dos homens?
- As misericórdias - respondeu dom Quixote, - sobrinha, são as que
neste instante usou Deus comigo, a quem, como disse, não as impedem
meus pecados. Eu tenho juízo já, livre e claro, sem as sombras
caliginosas da ignorância, que sobre ele me puseram minha amarga e
contínua lenda dos detestáveis livros das cavalarias. Já entendo seus
disparates e seus embustes, e não me pesa senão que este desengano
chegou tão tarde, que não me deixa tempo para fazer alguma
recompensa, lendo outros que sejam luz da alma. Eu me sinto,
sobrinha, a ponto de morte; queria fazê-la de tal modo, que desse a
entender que não havia sido minha vida tão má que deixasse renome de
louco, que, embora o tenha sido, não queria confirmar esta verdade em
minha morte. Chama-me, amiga, meus bons amigos: o padre, o bacharel
Sansão Carrasco e mestre Nicolás, o barbeiro, que quero confessar-
me e fazer meu testamento.
Mas deste trabalho se escusou a sobrinha com a entrada dos três.
Apenas os viu dom Quixote, quando disse:
- Dai-me alvíssaras, bons senhores, de que já eu não sou dom
Quixote da Mancha, senão Alonso Quijano, a quem meus costumes me
deram renome de “bom”. Já sou inimigo de Amadis de Gaula e de toda
a infinita caterva de sua linhagem, já me são odiosas todas as
histórias profanas da andante cavalaria, já conheço minha necedade e
o perigo em que me puseram havê-las lido, já, por misericórdia de
Deus, escarmentando em cabeça própria, as abomino.
Quando isto lhe ouviram dizer os três, creram, sem dúvida, que
alguma nova loucura o havia tomado. E Sansão lhe disse:
- Agora, senhor dom Quixote, que temos nova que está
desencantada a senhora Dulcineia, sai vossa mercê com isso? E agora
que estamos tão a pique de ser pastores, para passar cantando a vida,
como uns príncipes, quer vossa mercê fazer-se ermitão? Cale, por sua
vida, volte a si, e deixe-se de contos.
- Os de até aqui - replicou dom Quixote, - que foram verdadeiros
em meu dano, os há de voltar minha morte, com ajuda do céu, em meu
proveito. Eu, senhores, sinto que me vou morrendo a toda pressa;
deixem burlas à parte, e tragam-me um confessor que me confesse e
um escrivão que faça meu testamento, que em tais transes como este
não se há de burlar o homem com a alma; e assim, suplico que,
enquanto o senhor padre me confessa, vão pelo escrivão.
Miraram-se uns a outros, admirados das razões de dom Quixote, e,
embora em dúvida, lhe quiseram crer; e um dos sinais por onde
conjeturaram que morria foi o ter voltado com tanta facilidade de
louco a lúcido, porque às já ditas razões acrescentou outras muitas
tão bem ditas, tão cristãs e com tanto concerto, que de todo lhes veio
a tirar a dúvida, e a crer que estava lúcido.
Fez sair a gente o padre, e ficou só com ele e confessou-o.
O bacharel foi pelo escrivão, e dali a pouco voltou com ele e com
Sancho Pança; o qual Sancho, que já sabia por novas do bacharel em
que estado estava seu senhor, achando a ama e a sobrinha chorosas,
começou a fazer bicos e a derramar lágrimas. Acabou-se a confissão,
e saiu o padre, dizendo:
- Verdadeiramente morre, e verdadeiramente está lúcido Alonso
Quijano o Bom; bem podemos entrar para que faça seu testamento.
Estas novas deram um terrível repelão nos olhos prenhes da ama,
sobrinha e de Sancho Pança, seu bom escudeiro, de tal maneira, que os
fez rebentar as lágrimas dos olhos e mil profundos suspiros do peito;
porque, verdadeiramente, como alguma vez se disse, enquanto dom
Quixote foi Alonso Quijano o Bom a seco, e enquanto foi dom Quixote
da Mancha, foi sempre de aprazível condição e de agradável trato, e
por isto não só era bem querido dos de sua casa, senão de todos
quantos o conheciam.
Entrou o escrivão com os demais, e, depois de haver feito a cabeça
do testamento e ordenado sua alma dom Quixote, com todas aquelas
circunstâncias cristãs que se requerem, chegando aos legados, disse:
- Item, é minha vontade que de certos dinheiros que Sancho Pança,
a quem em minha loucura fiz meu escudeiro, tem, que, porque houve
entre mim e ele certas contas, e dares e tomares, quero que não se
lhe faça cargo deles, nem se lhe peça conta alguma, senão que se
sobrar algum, depois de haver-se pago do que lhe devo, o restante
seja seu, que será bem pouco, e bom proveito lhe faça; e, se como
estando eu louco fui parte para dar-lhe o governo da ilha, pudesse
agora, estando lúcido, dar-lhe o de um reino, dá-lo-ia, porque a
singelez de sua condição e fidelidade de seu trato o merece.
E voltando-se a Sancho, disse-lhe:
- Perdoa-me, amigo, da ocasião que te dei de parecer louco como eu,
fazendo-te cair no erro em que eu caí, de que houve e há cavaleiros
andantes no mundo.
- Ai! - respondeu Sancho, chorando: - Não morra vossa mercê,
senhor meu, senão tome meu conselho e viva muitos anos, porque a
maior loucura que pode fazer um homem nesta vida é deixar-se
morrer, sem mais nem mais, sem que ninguém o mate, nem outras mãos
o acabem que as da melancolia. Veja não seja preguiçoso, senão
levante-se dessa cama, e vamo-nos ao campo vestidos de pastores,
como temos concertado: quiçá atrás de alguma mata acharemos a
senhora dona Dulcineia desencantada, que não haja mais que ver. Se é
que se morre de pesar de ver-se vencido, ponha-me a culpa, dizendo
que por haver eu encilhado mal a Rocinante o derrubaram; quanto
mais, que vossa mercê haverá visto em seus livros de cavalarias ser
coisa ordinária derrubar uns cavaleiros a outros, e o que é vencido
hoje, ser vencedor amanhã.
- Assim é - disse Sansão, - e o bom Sancho Pança está muito na
verdade destes casos.
- Senhores - disse dom Quixote, - vamos pouco a pouco, pois já nos
ninhos de antanho não há pássaros de hoje: eu fui louco, e já estou
lúcido; fui dom Quixote da Mancha, e sou agora, como disse, Alonso
Quijano o Bom. Possa com vossas mercês meu arrependimento e minha
verdade voltar-me à estimação que de mim se tinha, e prossiga
adiante o senhor escrivão.
“Item, lego todos meus bens, porteira fechada, a Antônia Quijana,
minha sobrinha, que está presente, havendo tirado primeiro do mais
disponível deles o que for preciso para cumprir os legados que deixo
feitos; e a primeira satisfação que se faça quero que seja pagar o
salário que devo do tempo que minha ama me serviu, e mais vinte
ducados para um vestido. Deixo por meus testamenteiros o senhor
padre e ao senhor bacharel Sansão Carrasco, que estão presentes.
“Item, é minha vontade que se Antônia Quijana minha sobrinha
quiser casar-se, se case com homem de quem primeiro se haja tido
informação que não sabe que coisas sejam livros de cavalarias; e, em
caso de se averiguar que o sabe, e, mesmo assim, minha sobrinha
quiser casar-se com ele, e se casar, perca tudo o que lhe leguei, o qual
possam meus testamenteiros distribuir em obras pias à sua vontade.
“Item, suplico aos ditos senhores meus testamenteiros que se a
boa sorte lhes trouxer a conhecer o autor que dizem que compôs uma
história que anda por aí com o título de Segunda parte das façanhas
de dom Quixote da Mancha, de minha parte lhe peçam, quão
encarecidamente ser possa, perdoe o motivo que sem eu pensá-lo lhe
dei de haver escrito tantos e tão grandes disparates como nela
escreve, porque parto desta vida com escrúpulo de haver-lhe dado
motivo para escrevê-los.
Cerrou com isto o testamento e, tomando-lhe um desmaio, se
estendeu em toda a largura da cama. Alvoroçaram-se todos e
atenderam a seu remédio, e em três dias que viveu depois deste onde
fez o testamento, desmaiava muito amiúde. Andava a casa alvoroçada;
mas, contudo, comia a sobrinha, brindava a ama, e se regozijava
Sancho Pança; que isto do herdar algo apaga ou modera no herdeiro a
memória da pena que é razão que deixe o morto.
Enfim, chegou o fim de dom Quixote, depois de recebidos todos os
sacramentos, e depois de haver abominado com muitas e eficazes
razões os livros de cavalarias. Achou-se o escrivão presente, e disse
que nunca havia lido em nenhum livro de cavalarias que algum cavaleiro
andante houvesse morrido em seu leito tão sossegadamente e tão
cristão como dom Quixote; o qual, entre compaixões e lágrimas dos
que ali se acharam, deu seu espírito, quero dizer que morreu.
Vendo o que o padre, pediu ao escrivão lhe desse por testemunho
como Alonso Quijano o Bom, chamado comumente dom Quixote da
Mancha, havia passado desta presente vida e morrido naturalmente; e
que o tal testemunho pedia para tirar a ocasião de algum outro autor
que Cide Hamete Benengeli o ressuscitasse falsamente, e fizesse
inacabáveis histórias de suas façanhas.
Este fim teve o engenhoso fidalgo da Mancha, cujo lugar não quis
pôr Cide Hamete pontualmente, por deixar que todas as vilas e lugares
da Mancha contendessem consigo por afilhá-lo e tê-lo por seu, como
contenderam as sete cidades de Grécia por Homero.
Deixam-se de pôr aqui os prantos de Sancho, sobrinha e ama de
dom Quixote, os novos epitáfios de sua sepultura, embora Sansão
Carrasco lhe pôs este:

Jaz aqui o fidalgo forte


que a tanto extremo chegou
de valente, que se adverte
que a morte não triunfou
de sua vida com sua morte.
Teve a todo o mundo em pouco;
foi o espantalho e o papão
do mundo, em tal conjuntura,
que acreditou sua ventura
morrer lúcido e viver louco.
E o prudentíssimo Cide Hamete disse à sua pena: “Aqui ficarás,
pendurada desta espeteira e deste fio de arame, nem sei se bem
cortada ou mal talhada pena minha, onde viverás longos séculos, se
presunçosos e perversos historiadores não te despendurem para
profanar-te. Mas, antes que a ti cheguem, lhes podes advertir, e
dizer-lhes no melhor modo que puderes:

Cuidado, cuidado, baderneiros!,


Por nenhum seja tocada,
porque este emblema, bom rei,
para mim estava guardado.

Para mim só nasceu dom Quixote, e eu para ele; ele soube obrar e eu
escrever; só os dois somos para um, a despeito e pesar do escritor
fingido e tordesilhesco que se atreveu, ou se há de atrever, a
escrever com pena de avestruz grosseira e mal alinhada as façanhas
de meu valoroso cavaleiro, porque não é carga para seus ombros, nem
assunto para seu frio engenho; a quem advertirás, se acaso chegas a
conhecê-lo, que deixe repousar na sepultura os cansados e já
apodrecidos ossos de dom Quixote, e não o queira levar, contra todos
os foros da morte, a Castela a Velha, fazendo-o sair da fossa onde
real e verdadeiramente jaz estendido, impossibilitado de fazer
terceira jornada e saída nova; que, para fazer burla de tantas como
fizeram quantos andantes cavaleiros, bastam as duas que ele fez, tão
a gosto e beneplácito das gentes a cuja notícia chegaram, assim
nestes como nos estranhos reinos. E com isto cumprirás com tua
cristã profissão, aconselhando bem a quem mal te quer, e eu ficarei
satisfeito e ufano de haver sido o primeiro que gozou o fruto de seus
escritos inteiramente, como desejava, pois não foi outro meu desejo
que pôr em aborrecimento dos homens as fingidas e disparatadas
histórias dos livros de cavalarias, que, pelas de meu verdadeiro dom
Quixote, vão já tropeçando, e hão de cair de todo, sem dúvida
alguma.” Vale.

FIM

Traduzido de El ingenioso hidalgo  Don Quijote de la Mancha, Edição


do Centro Virtual Cervantes, cvc.cervantes.es, por Joroncas.

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