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Cervantes
Saavedra
O engenhoso
fidalgo dom
Quixote da
Mancha
FRONTISPÍCIO
O ENGENHOSO
FIDALGO DOM QUI-
XOTE DA MANCHA,
Composto por Miguel de Cervantes
Saavedra.
DIRIGIDO AO DUQUE DE BEJAR,
Marquês de Gibraleón, Conde de Benalcázar, e Baña-
res, Visconde da Cidade de Alcócer, Senhor
das vilas de Capilla, Curiel, e
Burguillos.
Ano, 1605.
COM PRIVILÉGIO,
EM MADRI, Por Juan de la Cuesta.
Vende-se em casa de Francisco de Robles, livreiro do Rei Nosso
Senhor.
TAXA
Por quanto por parte de vós, Miguel de Cervantes, nos foi feita
relação que havíeis composto um livro intitulado O engenhoso fidalgo
da Mancha, o qual vos havia custado muito trabalho e era muito útil e
proveitoso, e nos pedistes e suplicastes vos mandássemos dar licença
e faculdade para o poder imprimir, e privilégio pelo tempo que
fôssemos servidos, ou como a nossa mercê fosse; o qual visto pelos do
nosso Conselho, por quanto no dito livro se fizeram as diligências que a
lei ultimamente por Nós feita sobre a impressão dos livros dispõe, foi
acordado que devíamos mandar dar esta nossa cédula para vós, na dita
razão, e Nós tivemo-la por bem. Pela qual, por vos fazer bem e mercê,
vos damos licença e faculdade para que vós, ou a pessoa que vosso
poder tiver, e não outra alguma, possais imprimir o dito livro,
intitulado O engenhoso fidalgo da Mancha, a que acima se faz menção,
em todos estes nossos reinos de Castela, por tempo e espaço de dez
anos, que corram e se contem desde o dito dia da data deste nosso
despacho. Sob pena que a pessoa ou pessoas que sem ter vosso poder
o imprimir ou vender, ou fizer imprimir ou vender, pelo mesmo caso
perca a impressão que fizer, com os moldes e aparelhos dela, e mais
incorra em pena de cinquenta mil maravedis, cada vez que o contrário
fizer. A qual dita pena seja a terça parte para a pessoa que o acusar,
e a outra terça parte para nossa Câmara, e a outra terça parte para o
juez que o sentenciar. À condição de que todas as vezes que houvéreis
de fazer imprimir o dito livro, durante o tempo dos ditos dez anos, o
tragais ao nosso Conselho, juntamente com o original que nele foi
visto, que vai rubricada cada página e firmada no fim dele por Juan
Gallo de Andrada, nosso escrivão de Câmara, dos que nele residem,
para saber se a dita impressão está conforme o original; o tragais fé
em pública forma de que por corretor nomeado por nosso mandado se
viu e corrigiu a dita impressão pelo original, e se imprimiu conforme a
ele, e ficam impressas as erratas por ele apontadas, para cada um
livro dos que assim forem impressos, para que se taxe o preço que por
cada volume houvéreis de haver. E mandamos ao impressor que assim
imprimir o dito livro não imprima o princípio nem a primeira folha dele,
nem entregue mais de um só livro com o original ao autor, ou pessoa a
cuja custa o imprimir, nem outro algum, para efeito da dita correção e
taxa, até que antes e primeiro o dito livro esteja corrigido e taxado
pelos de nosso Conselho; e estando feito, e não de outra maneira,
possa imprimir o dito princípio e primeira folha, e sucessivamente
ponha esta nossa cédula e a aprovação, taxa e erratas, sob pena de
cair e incorrer nas penas contidas nas leis e decretos destes nossos
reinos. E mandamos aos do nosso Conselho e a outras quaisquer
justiças deles guardem e cumpram este nosso despacho e o nele
contido. Feito em Valladollid, a vinte e seis dias do mês de setembro
de mil e seiscentos e quatro anos.
EU O REI
PRÓLOGO
Leitor ocioso: sem jurar, poder-me-ás crer que eu quisera que
este livro, como filho do entendimento, fosse o mais formoso, o
mais galhardo e mais discreto que se pudesse imaginar. Mas não
pude infringir a ordem da natureza, que nela cada coisa engendra
seu semelhante. E assim, o que podia engendrar o meu estéril e
mal cultivado engenho senão a história de um filho seco,
enrugado, caprichoso e cheio de pensamentos incoerentes e nunca
imaginados por nenhum outro, bem como quem se engendrou num
cárcere, onde todo incômodo tem seu assento e onde todo triste
ruído faz sua moradia? O sossego, o lugar tranquilo, a amenidade
dos campos, a serenidade dos céus, o murmurar das fontes, a
quietude do espírito, são grande parte para que as musas mais
estéreis se mostrem fecundas e ofereçam partos ao mundo que
lhe encham de maravilha e de contentamento. Acontece ter um
pai um filho feio e sem graça alguma, e o amor que lhe tem põe
uma venda nos olhos para que não veja suas faltas, antes as julga
por discrições e lindezas, e as conta a seus amigos por agudezas e
donaires. Mas eu, que, embora pareça pai, sou padrasto de dom
Quixote, não quero ir contra a corrente do uso, nem suplicar-te
quase com lágrimas nos olhos, como outros fazem, leitor
caríssimo, que perdoe ou dissimule as faltas que neste meu filho
vir, pois nem és seu parente nem seu amigo, e tens tua alma em
teu corpo e teu livre alvedrio como exemplares, e estás em tua
casa, onde é senhor dela, como o rei de seus impostos, e sabes o
que comumente se diz, que “debaixo de meu manto ao rei mato”.
Tudo o que te isenta e faz livre de todo respeito e obrigação, e
assim podes dizer da história tudo aquilo que te parecer, sem
temor de que te caluniem pelo mal, nem te premiem pelo bem que
disser dela.
Só queria dar-ta limpa e nua, sem o ornato de prólogo, nem da
inumerabilidade e catálogo dos acostumados sonetos, epigramas e
elogios que no princípio dos livros costumam pôr-se. Porque te sei
dizer que ainda que me custou algum trabalho compô-la, nenhum
tive maior que fazer este prefácio que vais lendo. Muitas vezes
peguei a pena para escrevê-lo, e muitas a deixei, por não saber o
que escreveria; e, estando uma vez suspenso com o papel adiante,
a pena na orelha, o cotovelo na escrivaninha e a mão na bochecha,
pensando o que diria, entrou de repente um amigo meu, gracioso e
bem entendido, o qual, vendo-me tão pensativo, me perguntou a
causa; e, não a encobrindo eu, disse-lhe que pensava no prólogo
que havia de fazer à história de dom Quixote, e que estava de tal
maneira que nem queria fazê-lo, nem por isso trazer à luz as
façanhas de tão nobre cavalheiro.
Porque, como quereis vós que não fique confuso com o que dirá
o antigo legislador que chamam vulgo, quando veja que ao cabo de
tantos anos como há que durmo no silêncio do olvido, saia agora
com todos meus anos às costas com uma lenda seca como palha,
sem invenção, minguada de estilo, pobre de conceitos, e falta de
toda erudição e doutrina, sem comentários nas margens e sem
anotações no fim do livro, como vejo que são outros livros, ainda
que sejam fabulosos e profanos, tão cheios de sentenças de
Aristóteles, de Platão e de toda a caterva de filósofos, que
causam admiração aos leitores, e têm seus autores por homens
lidos, eruditos e eloquentes? Pois o quê, quando citam a Divina
Escritura! Não dirão senão que são uns santos Tomases e outros
doutores da Igreja, guardando nisto um decoro tão engenhoso,
que em um trecho pintam um enamorado distraído e em outro
fazem um sermãozinho cristão, que é uma alegria e um regalo
ouvi-lo ou lê-lo. De tudo isto há de carecer meu livro, porque nem
tenho o que comentar na margem, nem o que anotar no fim, nem
menos sei que autores sigo nele, para pô-los no princípio, como
fazem todos, pelas letras do abecê, começando em Aristóteles e
acabando em Xenofonte e em Zoilo ou Zêuxis, ainda que foi
maledicente um e pintor o outro. Também há de carecer meu livro
de sonetos no princípio, ao menos de sonetos cujos autores sejam
duques, marqueses, condes, bispos, damas ou poetas
celebérrimos. Ainda que se eu pedisse a dois ou três oficiais
amigos, eu sei que os dariam, e tais, que não os igualassem os
daqueles que têm mais nome em nossa Espanha. Enfim, senhor e
amigo meu, prossegui, eu determino que o senhor dom Quixote
fique sepultado em seus arquivos na Mancha, até que o céu
providencie quem lhe adorne de tantas coisas que lhe faltam,
porque eu me acho incapaz de remediá-las por minha insuficiência
e poucas letras, e porque naturalmente sou poltrão e preguiçoso
para andar buscando autores que digam o que eu sei dizer sem
eles. Daqui nasce a suspensão e arrebatamento em que me
achastes: bastante causa para pôr-me nela a que de mim haveis
ouvido.
Isso ouvindo o meu amigo, dando uma palmada na fronte e
disparando uma carga de riso, disse-me:
- Por Deus, irmão, que agora me acabo de desenganar de um
engano em que tenho estado todo o muito tempo que há que vos
conheço, no qual sempre vos tive por discreto e prudente em
todas as vossas ações. Porém agora vejo que estais tão distante
de sê-lo como o está o céu da terra. Como é possível que coisas de
tão pouco momento e tão fáceis de remediar, possam ter forças
para suspender e deixar absorto um engenho tão maduro como o
vosso e tão afeito a anular e superar outras dificuldades
maiores? À fé, isto não nasce de falta de habilidade, senão de
sobra de preguiça e penúria de discurso. Quereis ver se é
verdade o que digo? Pois estai atento, e vereis como em um abrir
e fechar de olhos desfaço todas as vossas dificuldades e
remedeio todas as faltas que dizeis que vos suspendem e
acovardam para deixar de pôr à luz do mundo a história de vosso
famoso dom Quixote, luz e espelho de toda a cavalaria andante.
- Dizei, - repliquei-lhe eu, ouvindo o que me dizia, - de que modo
pensais encher o vazio de meu temor e transformar em claridade
o caos de minha confusão?
Ao que ele disse:
- A primeira coisa em que reparais a respeito dos sonetos,
epigramas ou elogios que vos faltam para o princípio, e que sejam
de personagens graves e de título, pode-se remediar com que vós
mesmo tenhais algum trabalho em fazê-los, e depois os podeis
batizar e pôr o nome que quiserdes, afilhando-os ao Preste Juan
das Índias ou ao Imperador de Trapisonda, de quem eu sei que há
notícia que foram famosos poetas; e quando não o hajam sido, e
houver alguns pedantes e bacharéis que por detrás vos mordam e
murmurem por esta verdade, não se lhes deem dois maravedis;
porque já que vos averiguem a mentira, não vos hão de cortar a
mão pelo que escrevestes. Quanto a isto de citar nas margens os
livros e autores de onde tirardes as sentenças e ditos que
puserdes em vossa história, não há mais senão fazer de maneira
que venham à luz algumas sentenças ou latins que vós saibais de
memória, ou ao menos, que vos custem pouco trabalho o buscá-los,
como será pôr, tratando de liberdade e cativeiro:
VERSOS PRELIMINARES
AMADIS DE GAULA
A DOM QUIXOTE DA MANCHA
Soneto
Tu, que imitaste a chorosa vida
que tive ausente e desdenhado sobre
o grande penhasco da Penha Pobre,
de alegre a penitência reduzida;
tu, a quem os olhos deram a bebida
de abundante licor, embora salobre,
e erguendo-te a prata, estanho e cobre,
te deu a terra em terra a comida:
vive seguro de que eternamente,
enquanto, ao menos, na quarta esfera
seus cavalos aguilhoe o ruivo Apolo,
terás claro renome de valente;
tua pátria será em todas a primeira;
teu sábio autor, no mundo único e só.
Soneto
Soneto
Soneto
A SANCHO PANÇA
A ROCINANTE
Soneto
Soneto
Soneto
Soneto
CAPÍTULO PRIMEIRO
Que trata da condição e exercício do famoso fidalgo dom
Quixote da Mancha
Limpas, pois, suas armas, feito do capacete elmo, posto nome a seu
rocim e confirmando-se a si mesmo, se deu a entender que não lhe
faltava outra coisa senão buscar uma dama de quem enamorar-se;
porque o cavaleiro andante sem amores era árvore sem folhas e sem
fruto e corpo sem alma. Dizia-se ele:
“Se eu, por meus maus pecados, ou por minha boa sorte, me
encontro por aí com algum gigante, como de ordinário acontece aos
cavaleiros andantes, e o derrubo em um encontro, ou o parto pelo
meio, ou finalmente o venço e o rendo, não será bom ter a quem
enviar-lhe que se apresente, e que entre e caia de joelhos ante minha
doce senhora, e diga com voz humilde e rendida: - Eu, senhora, sou o
gigante Caraculiambro, senhor da ilha Malindrânia, a quem venceu em
singular batalha o jamais como se deve louvado cavaleiro dom Quixote
da Mancha, o qual me mandou que me apresentasse ante vossa mercê
para que a vossa grandeza disponha de mim a seu talante”?
Oh, como folgou nosso bom cavaleiro quando fez este discurso, e
mais quando achou a quem dar nome de sua dama! E foi, ao que se crê,
que em um lugar perto do seu havia uma moça lavradora de muito bom
parecer, de quem ele um tempo andou enamorado, ainda que, segundo
se entende, ela jamais o soube nem se deu conta dele. Chamava-se
Aldonça Lourenço, e a esta lhe pareceu ser bom dar-lhe título de
senhora de seus pensamentos; e buscando-lhe nome que não
desdissesse muito do seu, e que tirasse e se encaminhasse ao de
princesa e grande senhora, veio a chamá-la Dulcineia do Toboso,
porque era natural do Toboso: nome a seu parecer musical e peregrino,
e significativo, como todos os demais que a ele e a suas coisas havia
posto.
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
porque cada um deles tinha um ou dois autores a seu dispor, que não
somente escreviam seus feitos, senão que pintavam seus mais mínimos
pensamentos e ninharias, por mais escondidas que fossem; e não havia
de ser tão desditado tão bom cavaleiro, que faltasse a ele o que
sobrou a Platir e a outros semelhantes. E assim, não podia inclinar-me
a crer que tão galharda história houvesse ficado manca e estropiada;
e punha culpa na malignidade do tempo, devorador e consumidor de
todas as coisas, o qual ou a tinha ocultado ou consumido.
Por outro lado, me parecia que, pois entre seus livros se haviam
achado tão modernos como Desengano de zelos e Ninfas e pastores
de Henares, que também sua história devia ser moderna; e que, já que
não estivesse escrita, estaria na memória da gente de sua aldeia e das
a ela circunvizinhas. Este pensamento me trazia confuso e desejoso de
saber, real e verdadeiramente, toda a vida e milagres de nosso famoso
espanhol dom Quixote da Mancha, luz e espelho da cavalaria
manchega, e o primeiro que em nossa idade e nestes tão calamitosos
tempos se pôs ao trabalho e exercício das andantes armas, e ao
desfazer agravos, socorrer viúvas, amparar donzelas, daquelas que
andavam com seus açoites e palafréns, e com toda sua virgindade por
sua conta, de monte em monte e de vale em vale; que, se não era que
algum vagabundo, ou algum vilão de machado e armadura de cabeça, ou
algum descomunal gigante as forçava, donzela houve nos passados
tempos que, ao cabo de oitenta anos, em todos eles não dormiu um dia
debaixo de telhado, e se foi tão inteira à sepultura como a mãe que a
havia parido. Digo, pois, que, por estes e outros muitos respeitos, é
digno nosso galhardo Quixote de contínuos e memoráveis louvores; e
ainda a mim não se me devem negar, pelo trabalho e diligência que pus
em buscar o fim desta agradável história; ainda que bem sei que se o
céu, o acaso e a fortuna não me ajudam, o mundo ficará falto e sem o
passatempo e gosto que bem quase duas horas poderá ter o que ler
com atenção. Passou-se, pois, o encontrá-la desta maneira:
Estando eu um dia no Alcaná de Toledo, chegou um rapaz para
vender uns cartapácios e papéis velhos a um mercador de sedas; e,
como eu sou aficionado por ler, ainda que sejam os papéis rasgados
das ruas, levado desta minha natural inclinação, tomei um cartapácio
dos que o rapaz vendia, e o vi com caracteres que conheci ser
arábicos. E, posto que, ainda que os conhecia, não os sabia ler, estive
olhando se aparecia por ali algum mourisco falante de castelhano que
os lesse; e não foi muito dificultoso achar intérprete semelhante,
pois, ainda que o buscasse de outra melhor e mais antiga língua, o
acharia. Enfim, a sorte me deparou um, que, dizendo-lhe meu desejo e
pondo-lhe o livro nas mãos, abriu-o ao meio, e, lendo um pouco nele,
começou a rir.
Perguntei-lhe eu que de que se ria, e respondeu-me que de uma
coisa que tinha aquele livro escrita na margem por anotação. Disse-lhe
que ma dissesse; e ele, sem deixar a riso, disse:
- Está, como disse, aqui na margem escrito isto: "Esta Dulcineia do
Toboso, tantas vezes nesta história referida, dizem que teve a melhor
mão para salgar porcos que outra mulher de toda a Mancha".
Quando eu ouvi dizer "Dulcineia do Toboso", fiquei atônito e
suspenso, porque logo se me representou que aqueles cartapácios
continham a história de dom Quixote. Com este pensamento, apressei-
o a que lesse o princípio, e, fazendo assim, transpondo de improviso o
arábico para o castelhano, disse que dizia: História de dom Quixote
da Mancha, escrita por Cide Hamete Benengeli, historiador arábico.
Muita discrição foi precisa para dissimular a alegria que tive quando
chegou a meus ouvidos o título do livro; e, acometendo ao sedeiro,
comprei ao rapaz todos os papéis e cartapácios por meio real; que, se
ele tivesse discrição e soubesse o quanto eu os desejava, bem se
poderia prometer e levar mais de seis reais da compra. Apartei-me
logo com o mourisco pelo claustro da igreja maior, e roguei-lhe me
traduzisse aqueles cartapácios, todos os que tratavam de dom
Quixote, em língua castelhana, sem tirar-lhes nem acrescentar-lhes
nada, oferecendo-lhe a paga que ele quisesse. Contentou-se com duas
arrobas de passas e oito alqueires de trigo, e prometeu traduzi-los
bem e fielmente e com muita brevidade. Mas eu, por facilitar mais o
negócio e por não deixar de mão tão bom achado, trouxe-o a minha
casa, onde em pouco mais de mês e meio a traduziu toda, do mesmo
modo que aqui se refere.
Estava no primeiro cartapácio, pintada muito ao natural, a batalha
de dom Quixote com o biscainho, postos na mesma postura que a
história conta, levantadas as espadas, um coberto por seu escudo, o
outro pela almofada, e a mula do biscainho tão ao vivo, que estava
mostrando ser de aluguel a um tiro de besta. Tinha aos pés escrito o
biscainho um título que dizia: “dom Sancho de Azpetia”, que, sem
dúvida, devia ser seu nome, e aos pés de Rocinante estava outro que
dizia: “dom Quixote”. Estava Rocinante maravilhosamente pintado, tão
largo e estendido, tão extenuado e magro, com tanto espinhaço, tão
confirmadamente tísico, que mostrava bem claramente com quanta
advertência e propriedade se lhe havia posto o nome de “Rocinante”.
Junto a ele estava Sancho Pança, que tinha pelo cabresto seu asno,
aos pés do qual estava outra legenda que dizia: “Sancho Ancas”, e
devia ser que tinha, ao que mostrava a pintura, a barriga grande, o
talhe curto e as ancas largas; e por isto se deveu de pôr-lhe nome de
“Pança” e de “Ancas”, que com estes dois sobrenomes o chama algumas
vezes a história. Outras algumas minudências havia que advertir, mas
todas são de pouca importância e que não vêm ao caso à verdadeira
relação da história; que nenhuma é má como seja verdadeira.
Se a esta se pode pôr alguma objeção acerca de sua verdade, não
poderá ser outra senão haver sido seu autor arábico, sendo muito
próprio dos daquela nação ser mentirosos; ainda que, por ser tão
nossos inimigos, antes se pode entender haver escasseado nela que
sobejado. E assim me parece a mim, pois, quando pudera e devera
estender a pena nos louvores a tão bom cavaleiro, parece que por
indústria os passa em silêncio: coisa mal feita e pior pensada, havendo
e devendo ser os historiadores pontuais, verdadeiros e nada
apaixonados, e que nem o interesse nem o medo, o rancor nem a
afeição, não lhes façam torcer do caminho da verdade, cuja mãe é a
história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado,
exemplo e aviso do presente, advertência do porvir. Nesta sei que se
achará tudo o que se acertar a desejar na mais aprazível; e se algo
bom nela faltar, para mim tenho que foi por culpa do galgo de seu
autor, antes que por falta do sujeito. Enfim, sua segunda parte,
seguindo a tradução, começava desta maneira:
Postas e levantadas ao alto as cortadoras espadas dos dois
valorosos e raivosos combatentes, não parecia senão que estavam
ameaçando o céu, a terra e o abismo: tal era o denodo e objetivo que
tinham. E o primeiro que descarregou o golpe foi o colérico biscainho,
o qual foi dado com tanta força e tanta fúria que, a não desviar-se a
espada no caminho, aquele único golpe seria bastante para dar fim à
sua rigorosa contenda e a todas as aventuras de nosso cavaleiro; mas
a boa sorte, que para maiores coisas o tinha guardado, torceu a
espada de seu contrário, de modo que, ainda que lhe acertou no ombro
esquerdo, não lhe fez outro dano que desarmar-lhe todo aquele lado,
levando-lhe de roldão grande parte do elmo, com a metade da orelha;
que tudo aquilo com espantosa ruína veio por terra, deixando-o muito
maltratado.
Valha-me Deus, e quem será aquele que boamente possa contar
agora a raiva que entrou no coração de nosso manchego, vendo-se
parar daquela maneira! Não se diga mais, senão que foi de maneira que
se alçou de novo nos estribos, e, apertando mais a espada nas duas
mãos, com tal fúria descarregou sobre o biscainho, acertando-lhe de
cheio sobre a almofada e sobre a cabeça, que, sem ser parte tão boa
defesa, como se caísse sobre ele uma montanha, começou a soltar
sangue pelo nariz, e pela boca e pelos ouvidos, e a dar mostras de cair
da mula abaixo, de onde cairia, sem dúvida, se não se abraçasse com o
pescoço; mas, mesmo assim, tirou os pés dos estribos e logo soltou os
braços; e a mula, espantada pelo terrível golpe, deu a correr pelo
campo, e em poucos corcovos deu com seu dono em terra.
Estava com muito sossego olhando-o dom Quixote e, ao vê-lo cair,
saltou de seu cavalo e com muita ligeireza se chegou a ele e, pondo-lhe
a ponta da espada nos olhos, lhe disse que se rendesse; se não, que lhe
cortaria a cabeça. Estava o biscainho tão perturbado que não podia
responder palavra, e ele passaria mal, segundo estava cego dom
Quixote, se as senhoras do coche, que até então com grande desmaio
haviam assistido à pendência, não fossem onde estava e lhe pedissem
com muito encarecimento lhes fizesse tão grande mercê e favor de
perdoar a vida àquele seu escudeiro. Ao que dom Quixote respondeu,
com muito entono e gravidade:
- Por certo, formosas senhoras, eu estou muito contente de fazer o
que me pedis; mas há de ser com uma condição e concerto, e é que
este cavaleiro me há de prometer de ir ao lugar do Toboso e
apresentar-se de minha parte ante a sem par dona Dulcineia, para que
ela faça dele o que mais for de sua vontade.
A temerosa e desconsolada senhora, sem entrar em conta do que
dom Quixote pedia, e sem perguntar quem Dulcineia fosse, lhe
prometeu que o escudeiro faria tudo aquilo que de sua parte lhe fosse
mandado.
- Pois em fé dessa palavra eu não lhe farei mais dano, posto que o
tinha bem merecido.
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
ANTÔNIO
Com isto deu o cabreiro fim a seu canto; e, embora Dom Quixote
lhe rogou que algo mais cantasse, não o consentiu Sancho Pança,
porque estava mais para dormir que para ouvir canções. E assim, disse
a seu amo:
- Bem pode vossa mercê acomodar-se desde logo onde há de pousar
esta noite, que o trabalho que estes bons homens têm todo o dia não
permite que passem as noites cantando.
- Já te entendo, Sancho - respondeu-lhe Dom Quixote; - que bem
me está claro que as visitas ao odre pedem mais recompensa de sono
que de música.
- A todos nos sabe bem, bendito seja Deus - respondeu Sancho.
- Não o nego - replicou Dom Quixote, - mas acomoda-te tu onde
quiseres, que os de minha profissão melhor parecem velando que
dormindo. Entretanto, seria bom, Sancho, que me voltes a curar esta
orelha, que me está doendo mais do que é mister.
Fez Sancho o que se lhe mandava; e, vendo um dos cabreiros a
ferida, disse-lhe que não tivesse pena, que ele poria remédio com que
facilmente se curasse. E tomando algumas folhas de alecrim, do muito
que por ali havia, mastigou-as e as misturou com um pouco de sal, e,
aplicando-as à orelha, vedou-a muito bem, assegurando-lhe que não
havia mister outra medicina, e assim foi a verdade.
CAPÍTULO XII
Estando nisto, chegou outro moço dos que lhes traziam da aldeia as
provisões, e disse:
- Sabeis o que se passa no lugar, companheiros?
- Como o podemos saber? - respondeu um deles.
- Pois sabei - prosseguiu o moço - que morreu esta manhã aquele
famoso pastor estudante chamado Grisóstomo, e se murmura que
morreu de amores por aquela endiabrada moça Marcela, a filha de
Guilherme o rico: aquela que anda em hábito de pastora por esses
ermos.
- Por Marcela, dirás - disse um.
- Por essa digo - respondeu o cabreiro. - E o bom é que mandou em
seu testamento que o enterrassem no campo, como se fosse mouro, e
que seja ao pé do penhasco onde está a fonte do sobreiro; porque,
segundo é fama, e ele dizem que o disse, aquele lugar é onde ele a viu a
vez primeira. E também mandou outras coisas, tais, que os abades da
vila dizem que não se hão de cumprir, nem é bem que se cumpram,
porque parecem de gentios. Ao que responde aquele grande seu amigo
Ambrósio, o estudante, que também se vestiu de pastor com ele, que
se há de cumprir tudo, sem faltar nada, como o deixou mandado
Grisóstomo, e sobre isto anda a vila alvoroçada; mas, ao que se diz,
enfim se fará o que Ambrósio e todos os pastores seus amigos
querem; e amanhã o vêm enterrar com grande pompa onde eu disse. E
tenho para mim que há de ser coisa muito de ver; ao menos, eu não
deixarei de ir vê-la, se soubesse não voltar amanhã ao lugar.
- Todos faremos o mesmo - responderam os cabreiros -, e
lançaremos sortes a quem há de ficar a guardar as cabras de todos.
- Bem dizes, Pedro - disse um -, embora não será mister usar dessa
diligência, que eu ficarei por todos. E não o atribuas a virtude e a
pouca curiosidade minha, senão porque não me deixa andar o estrepe
que outro dia me pegou este pé.
- Desse modo, agradecemos-te - respondeu Pedro.
E Dom Quixote rogou a Pedro lhe dissesse que morto era aquele e
que pastora aquela; ao que Pedro respondeu que o que sabia era que o
morto era um fidalgo rico, vizinho de um lugar que estava naquelas
serras, o qual havia sido estudante muitos anos em Salamanca, ao cabo
dos quais havia voltado a seu lugar, com opinião de muito sábio e muito
lido.
- Principalmente, diziam que sabia a ciência das estrelas, e do que
passam, lá no céu, o sol e a lua; porque pontualmente nos dizia o cris
do sol e da lua.
- Eclipse se chama, amigo, que não cris, o escurecer-se esses dois
luminares maiores - disse Dom Quixote.
Mas Pedro, não reparando em ninharias, prosseguiu seu conto,
dizendo:
- Também adivinhava quando havia de ser o ano abundante ou estil.
- Estéril quereis dizer, amigo - disse Dom Quixote.
- Estéril ou estil - respondeu Pedro, - tudo é o mesmo. E digo que
com isto que dizia se fizessem, seu pai e seus amigos, que lhe davam
crédito, muito ricos, porque faziam o que ele lhes aconselhava,
dizendo-lhes: “Semeai este ano cevada, não trigo; neste podeis
semear grão-de-bico e não cevada; o que vem será de boa safra de
azeite; nos três seguintes não se colherá gota.”
- Essa ciência se chama Astrologia - disse Dom Quixote.
- Não sei eu como se chama - replicou Pedro, - mas sei que tudo isto
sabia, e ainda mais. Finalmente, não passaram muitos meses, depois
que veio de Salamanca, quando um dia apareceu vestido de pastor, com
seu cajado e casacão de pele, tendo tirado as vestimentas largas que
como escolar trazia; e juntamente se vestiu com ele de pastor outro
seu grande amigo, chamado Ambrósio, que havia sido seu companheiro
nos estudos. Esquecia-me de dizer como Grisóstomo, o defunto, foi
grande homem de compor versos; tanto, que ele fazia os vilancicos
para a noite do Nascimento do Senhor, e os autos para o dia de Deus,
que os representavam os moços de nossa vila, e todos diziam que eram
perfeitos. Quando os do lugar viram tão de improviso vestidos de
pastores os dois escolares, ficaram admirados, e não podiam adivinhar
a causa que os havia movido a fazer aquela tão estranha mudança. Já
neste tempo havia morrido o pai de nosso Grisóstomo, e ele herdou
muita quantidade de bens, tanto móveis como de raízes, e não pequena
quantidade de gado, maior e menor, e grande quantidade de dinheiros;
de tudo o que ficou o moço senhor absoluto, e em verdade que tudo o
merecia, que era muito bom companheiro e caritativo e amigo dos
bons, e tinha uma cara como uma bênção. Depois se veio a entender
que o haver mudado de traje não havia sido por outra coisa que por
andar por estes despovoados atrás daquela pastora Marcela que nosso
zagal nomeou antes, da qual se havia enamorado o pobre defunto
Grisóstomo. E quero-vos dizer agora, porque é bom que o saibais, quem
é esta moça; quiçá, e mesmo sem quiçá, não havereis ouvido
semelhante coisa em todos os dias de vossa vida, embora vivais mais
anos que sarna.
- Dizei Sara - replicou Dom Quixote, não podendo suportar o trocar
dos vocábulos do cabreiro.
- Muito vive a sarna - respondeu Pedro; - e se é, senhor, que me
haveis de andar alfinetando a cada passo os vocábulos, não
acabaremos num ano.
- Perdoai, amigo - disse Dom Quixote; - por haver tanta diferença
de sarna a Sara é que eu vo-lo disse; mas respondestes muito bem,
porque vive mais sarna que Sara; e prossegui vossa história, que não
vos replicarei mais em nada.
- Digo, pois, senhor meu de minha alma - disse o cabreiro, - que em
nossa aldeia houve um lavrador ainda mais rico que o pai de
Grisóstomo, o qual se chamava Guilherme, e a quem deu Deus, além das
muitas e grandes riquezas, uma filha, de cujo parto morreu a mãe, que
foi a mais honrada mulher que houve em todos estes contornos. Não
parece senão que agora a vejo, com aquela cara que de um lado tinha o
sol e do outro a lua; e, sobretudo, diligente e amiga dos pobres, pelo
que creio que deve estar sua alma a essa hora gozando de Deus no
outro mundo. De pesar da morte de tão boa mulher morreu seu marido
Guilherme, deixando sua filha Marcela, moça e rica, em poder de um
tio seu sacerdote e beneficiado em nosso lugar. Cresceu a menina com
tanta beleza, que nos fazia recordar a de sua mãe, que a teve muito
grande; e, desse modo, julgava-se que a havia de passar a da filha. E
assim foi, que, quando chegou a idade de quatorze a quinze anos,
ninguém a olhava que não bendizia a Deus, que tão formosa a havia
criado, e os mais ficavam enamorados e perdidos por ela. Guardava-a
seu tio com muito recato e com muito encerramento; mas, mesmo
assim, a fama de sua muita formosura se estendeu de maneira que,
assim por ela como por suas muitas riquezas, não somente dos de
nossa vila, senão dos de muitas léguas ao redor, e dos melhores deles,
era rogado, solicitado e importunado seu tio para que a desse por
mulher. Mas ele, que às direitas é bom cristão, embora quisesse casá-
la logo, assim como a via na idade, não quis fazê-lo sem seu
consentimento, sem ter olho aos ganhos e benefícios que lhe oferecia
o ter os bens da moça, dilatando seu casamento. E à fé que se disse
isto em mais de um grupinho na vila, em louvação do bom sacerdote;
que quero que saiba, senhor andante, que nestes lugares pequenos de
tudo se trata e de tudo se murmura; e tende para vós, como eu tenho
para mim, que devia ser demasiadamente bom o clérigo que faz com
que seus paroquianos digam bem dele, especialmente nas aldeias.
- Assim é a verdade - disse Dom Quixote, - e prossegui adiante, que
o conto é muito bom, e vós, bom Pedro, o contais com muito boa graça.
- A do Senhor não me falte, que é a que vem ao caso. E no demais
sabereis que, embora o tio propunha à sobrinha e lhe dizia as
qualidades de cada um em particular, dos muitos que por mulher a
pediam, rogando-lhe que se casasse e escolhesse a seu gosto, jamais
ela respondeu outra coisa senão que por então não queria casar-se, e
que, por ser tão moça, não se sentia hábil para poder levar a carga do
matrimônio. Com estas que dava, ao que parece justas escusas,
deixava o tio de importuná-la, e esperava que entrasse algo mais em
idade e ela soubesse escolher companhia a seu gosto. Porque dizia ele,
e dizia muito bem, que não haviam de dar os pais a seus filhos estado
contra sua vontade. Mas eis que, senão quando, aparece um dia a
melindrosa Marcela feita pastora; e, sem se importar com seu tio nem
com todos os da vila, que o desaconselhavam, deu em ir ao campo com
as demais zagalas do lugar, e deu em guardar seu mesmo gado. E assim
como ela saiu em público e sua formosura se viu a descoberto, não vos
saberei boamente dizer quantos ricos mancebos, fidalgos e lavradores
tomaram o traje de Grisóstomo e a andam adulando por esses campos.
Um dos quais, como já está dito, foi nosso defunto, do qual diziam que
a deixava de querer, para adorá-la. E não se pense que porque Marcela
se pôs naquela liberdade e vida tão solta e de tão pouco ou de nenhum
recolhimento, que por isso tenha dado indício, nem de longe, que venha
em menoscabo de sua honestidade e recato; antes é tanta e tal a
vigilância com que cuida de sua honra, que de quantos a servem e
solicitam nenhum se louvou, nem com verdade se poderá louvar, que
lhe haja dado alguma pequena esperança de alcançar seu desejo. Que,
posto que não foge nem se esquiva da companhia e conversação dos
pastores, e os trata cortês e amigavelmente, chegando a descobrir
sua intenção qualquer deles, embora seja tão justa e santa como a do
matrimônio, arroja-os de si como com um trabuco. E dessa maneira
faz mais dano nesta terra que se por ela entrasse a pestilência;
porque sua afabilidade e formosura atrai os corações dos que com ela
tratam em servi-la e em amá-la, mas seu desdém e desengano os
conduz a desesperar-se; e assim, não sabem que dizer-lhe, senão
chamá-la cruel e desagradecida, com outros títulos a este
semelhantes, que bem a qualidade de sua condição manifestam. E se
aqui estivésseis, senhor, algum dia, veríeis ressoar estas serras e
estes vales com os lamentos dos desenganados que a seguem. Não está
muito longe daqui um sítio onde há quase duas dúzias de altas faias, e
não há nenhuma que em sua lisa cortiça não tenha gravado e escrito o
nome de Marcela; e em cima de alguma, uma coroa gravada na mesma
árvore, como se mais claramente dissesse seu amante que Marcela a
leva e a merece de toda a formosura humana. Aqui suspira um pastor,
ali se queixa outro; acolá se ouvem amorosas canções, aqui
desesperadas endechas. Qual há que passa todas as horas da noite
sentado ao pé de alguma azinheira ou penhasco, e ali, sem pregar os
chorosos olhos, embevecido e transportado em seus pensamentos,
achou-o o sol de manhã; e qual há que, sem dar alívio nem trégua a
seus suspiros, em meio ao ardor da mais maçante sesta do verão,
estendido sobre a ardente areia, envia suas queixas ao piedoso céu. E
deste e daquele, e daqueles e destes, livre e desenfadadamente
triunfa a formosa Marcela; e todos os que a conhecemos estamos
esperando em que há de parar sua altivez e quem há de ser o ditoso
que há de vir a dominar condição tão terrível e gozar de formosura
tão extremada. Por ser tudo o que contei tão averiguada verdade, dou
a entender que também o é a que nosso rapaz disse que se dizia da
causa da morte de Grisóstomo. E assim, aconselho-vos, senhor, que
não deixeis de achar-vos amanhã em seu enterro, que será muito de
ver, porque Grisóstomo tem muitos amigos, e não está deste lugar
àquele onde manda enterrar-se meia légua.
- Nisso tenho interesse - disse Dom Quixote, - e agradeço-vos o
gosto que me haveis dado com a narração de tão saboroso conto.
- Oh! - replicou o cabreiro, - ainda não sei eu a metade dos casos
sucedidos aos amantes de Marcela, mas poderia ser que amanhã
topássemos no caminho algum pastor que nos os dissesse. E por agora,
bem será que vos vades a dormir debaixo de telhado, porque o sereno
vos poderia piorar a ferida, posto que é tal a medicina que se vos
colocou, que não há que temer um mau acidente.
Sancho Pança, que já dava ao diabo o tanto falar do cabreiro,
solicitou, por sua parte, que seu amo entrasse para dormir na choça de
Pedro. Fê-lo assim, e o resto da noite lhe passou em memórias de sua
senhora Dulcineia, à imitação dos amantes de Marcela. Sancho Pança
se acomodou entre Rocinante e seu jumento, e dormiu, não como
enamorado desfavorecido, senão como homem moído a coices.
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CANÇÃO DE GRISÓSTOMO
CAPÍTULO XV
Conta o mago Cide Hamete Benengeli que, assim que dom Quixote se
despediu de seus anfitriões e de todos os que se acharam no enterro
do pastor Grisóstomo, ele e seu escudeiro entraram pelo mesmo
bosque onde viram que havia entrado a pastora Marcela; e, havendo
andado mais de duas horas por ele, buscando-a por todas as partes
sem poder achá-la, vieram parar em um prado cheio de fresca erva,
junto do qual corria um arroio aprazível e fresco; tanto, que convidou
e forçou a passar ali as horas da sesta, que rigorosamente começava
já a entrar.
Apearam-se dom Quixote e Sancho e, deixando o jumento e
Rocinante à larga pastar da muita erva que ali havia, atacaram os
alforjes e, sem cerimônia alguma, em boa paz e companhia, amo e moço
comeram o que neles acharam.
Não se importara Sancho em deixar Rocinante solto, seguro de que
o conhecia por tão manso e tão pouco fogoso que todas as éguas da
pastaria de Córdova não o fizessem ir por mau caminho. Ordenou, pois,
a sorte, e o diabo (que não todas as vezes dorme), que andavam por
aquele vale pastando uma manada de éguas galicianas de uns arreeiros
galegos, dos quais é costume sestear com sua récua em lugares e
sítios de erva e água; e aquele onde calhou achar-se dom Quixote era
muito a propósito dos galegos.
Sucedeu, pois, que a Rocinante veio o desejo de refocilar-se com as
senhoras éguas, e saindo, assim que as farejou, de seu natural passo e
costume, sem pedir licença a seu dono, tomou um trotezinho algo
picadinho e foi comunicar sua necessidade a elas. Mas elas, que, ao que
pareceu, deviam ter mais vontade de pastar que de outra coisa,
receberam-no com as ferraduras e com os dentes, de tal maneira que,
em pouco tempo, romperam-lhe as cilhas e ficou, sem sela, em pelo.
Mas o que ele deveu mais sentir foi que, vendo os arreeiros a força
que a suas éguas se fazia, acudiram com cajados, e tantos golpes lhe
deram que o derrubaram estropiado no chão.
Já nisto dom Quixote e Sancho, que a sova de Rocinante haviam
visto, chegavam arfando, e disse dom Quixote a Sancho:
- Ao que eu vejo, amigo Sancho, estes não são cavaleiros, senão
gente soez e de baixa ralé. Digo-o porque bem me podes ajudar a
tomar a devida vingança do agravo que diante de nossos olhos se fez a
Rocinante.
- Que diabos de vingança havemos de tomar - respondeu Sancho, -
se estes são mais de vinte e nós não mais de dois, e ainda, quiçá, senão
um e meio?
- Eu valho por cem - replicou dom Quixote.
E sem fazer mais discursos tomou a espada e arremeteu contra os
galegos, e o mesmo fez Sancho Pança, incitado e movido do exemplo
de seu amo. E para começo deu dom Quixote uma cutilada em um, que
lhe abriu um saio de couro de que vinha vestido, com grande parte das
costas.
Os galegos, que se viram maltratar por aqueles dois homens sós,
sendo eles tantos, recorreram a seus cajados e, cercando-os,
começaram a lhes bater com grande afinco e veemência. Verdade é
que ao segundo toque deram com Sancho no chão, e o mesmo
aconteceu a dom Quixote, sem que lhe valesse sua destreza e bom
ânimo; e quis sua ventura que viesse a cair aos pés de Rocinante, que
ainda não se havia levantado; onde se vê a fúria com que machucam
cajados postos em mãos rústicas e iradas.
Vendo pois os galegos o estrago que haviam feito, com a maior
presteza que puderam carregaram sua récua e seguiram seu caminho,
deixando os dois aventureiros em má figura e pior disposição.
O primeiro a recobrar-se foi Sancho Pança; e achando-se junto a
seu senhor, com voz enferma e lastimada disse:
- Senhor dom Quixote? Ah, senhor dom Quixote!
- Que queres, Sancho irmão? - respondeu dom Quixote com o
mesmo tom débil e dolente que Sancho.
- Queria, se fosse possível - respondeu Sancho Pança, - que vossa
mercê me desse dois tragos daquela bebida do feio Blas, se é que a
tem vossa mercê aí à mão. Quiçá será de proveito para os
quebrantamentos de ossos como o é para as feridas.
- Pois, a tê-la eu aqui, desgraçado eu, que nos faltava? - respondeu
dom Quixote. - Mas eu te juro, Sancho Pança, à fé de cavaleiro
andante, que antes que passem dois dias, se a fortuna não ordena
outra coisa, tenho-a de ter em meu poder, ou má sorte hei de ter.
- Pois, em quantos lhe parece a vossa mercê que poderemos mover
os pés? - replicou Sancho Pança.
- De mim sei dizer - disse o moído cavaleiro dom Quixote - que não
saberei pôr termo a esses dias. Mas eu tenho a culpa de tudo, que não
havia de pôr mão à espada contra homens que não fossem armados
cavaleiros como eu; e assim, creio que, como pena de haver infringido
as leis da cavalaria, permitiu o deus das batalhas que se me desse este
castigo. Pelo qual, Sancho Pança, convém que estejas advertido nisto
que agora te direi, porque importa muito à saúde de nós dois; e é que,
quando vejas que semelhante canalha nos faz algum agravo, não
aguardes a que eu ponha mão à espada para eles, porque não o farei de
maneira alguma, senão põe tu mão a tua espada e castiga-os muito a
teu gosto; que se em sua ajuda e defesa acudirem cavaleiros, eu te
saberei defender e atacá-los com todo meu poder; que já haverás
visto por mil sinais e experiências até onde se estende o valor deste
meu forte braço.
Tanto ficou arrogante o pobre senhor com o vencimento do valente
biscainho. Mas não lhe pareceu tão bem a Sancho Pança o aviso de seu
amo que deixasse de responder, dizendo:
- Senhor, eu sou homem pacífico, manso, sossegado, e sei ignorar
qualquer injúria, porque tenho mulher e filhos que sustentar e criar.
Assim que, seja a vossa mercê também aviso, pois não pode ser
mandado, que de maneira alguma porei mão à espada, nem contra vilão
nem contra cavaleiro; e que, daqui para diante de Deus, perdoo
quantos agravos me fizeram e hão de fazer: ora me os haja feito, ou
faça ou haja de fazer, pessoa alta ou baixa, rico ou pobre, fidalgo ou
plebeu, sem excetuar estado nem condição alguma.
O que ouvido por seu amo, respondeu-lhe:
- Quisera ter alento para poder falar um pouco descansado, e que a
dor que tenho nesta costela se aplacasse um pouquinho, para dar-te a
entender, Pança, o erro em que estás. Vem cá, pecador; se o vento da
fortuna, até agora tão contrário, em nosso favor se volta, levando-nos
as velas do desejo para que seguramente e sem empecilho algum
tomemos porto em alguma das ilhas que te tenho prometida, que seria
de ti se, ganhando-a eu, te fizesse senhor dela? Pois o virás a
impossibilitar por não ser cavaleiro, nem querê-lo ser, nem ter valor
nem intenção de vingar tuas injúrias e defender teu senhorio? Porque
hás de saber que nos reinos e províncias recém conquistados nunca
estão tão quietos os ânimos de seus naturais, nem tão do lado do novo
senhor que não tenham temor de que hão de fazer alguma novidade
para alterar de novo as coisas, e voltar, como dizem, a arriscar-se; e
assim, é mister que o novo possessor tenha entendimento para saber
governar, e valor para atacar e defender-se em qualquer
acontecimento.
- Neste que agora nos aconteceu - respondeu Sancho, - quisera eu
ter esse entendimento e esse valor que vossa mercê diz; mas eu lhe
juro, à fé de pobre homem, que mais estou para emplastros que para
conversas. Veja vossa mercê se se pode levantar, e ajudaremos
Rocinante, embora não o merece, porque ele foi a causa principal de
todo este moimento. Jamais tal pensei de Rocinante, que o tinha por
pessoa casta e tão pacífica como eu. Enfim, bem dizem que é mister
muito tempo para vir a conhecer as pessoas, e que não há coisa segura
nesta vida. Quem diria que atrás daquelas tão grandes cutiladas como
vossa mercê deu naquele desditado cavaleiro andante, havia de vir,
rapidamente e em seguida, esta tão grande tempestade de golpes que
descarregou sobre nossas costas?
- Ainda as tuas, Sancho - replicou dom Quixote, - devem estar
afeitas a semelhantes nuvens; mas as minhas, criadas entre tecidos
finos, claro está que sentiram mais a dor desta desgraça. E se não
fosse porque imagino..., que digo, imagino?, sei muito certo, que todas
estas incomodidades são muito próprias ao exercício das armas, aqui
me deixaria morrer de puro nojo.
A isto replicou o escudeiro:
- Senhor, já que estas desgraças são da colheita da cavalaria, diga-
me vossa mercê se sucedem muito amiúde, ou se têm seus tempos
limitados em que acontecem; porque me parece a mim que após duas
colheitas ficaremos inúteis para a terceira, se Deus, por sua infinita
misericórdia, não nos socorre.
- Sabe, amigo Sancho - respondeu dom Quixote, - que a vida dos
cavaleiros andantes está sujeita a mil perigos e desventuras; e, nem
mais nem menos, está em potência próxima de ser os cavaleiros
andantes reis e imperadores, como o mostrou a experiência em muitos
e diversos cavaleiros, de cujas histórias eu tenho inteira notícia. E
poder-te-ia contar agora, se a dor me permitisse, de alguns que, só
pelo valor de seu braço, subiram aos altos graus que contei; e estes
mesmos se viram antes e depois em diversas calamidades e misérias.
Porque o valoroso Amadis de Gaula se viu em poder de seu mortal
inimigo Arcalaus o encantador, de quem se tem por averiguado que lhe
deu, tendo-o preso, mais de duzentos açoites com as rédeas de seu
cavalo, atado a uma coluna de um pátio. E ainda há um autor secreto, e
de não pouco crédito, que diz que, havendo capturado o Cavaleiro do
Febo com uma certa armadilha que se lhe afundou debaixo dos pés,
num certo castelo, e ao cair, se achou em uma funda caverna debaixo
da terra, atado de pés e mãos, e ali lhe fizeram uma destas que
chamam lavagens, de água de neve e areia, do que chegou muito
próximo à morte; e se não fosse socorrido naquele grande penar por
um mago grande amigo seu, passaria muito mal o pobre cavaleiro.
Assim que, bem posso eu passar entre tanta boa gente; que maiores
afrontas são as que estes passaram, que não as que agora nós
passamos. Porque quero fazer-te sabedor, Sancho, que não afrontam
as feridas que se dão com os instrumentos que acaso se acham nas
mãos; e isto está na lei do duelo, escrito por palavras expressas: que
se o sapateiro dá em outro com a fôrma que tem na mão, posto que
verdadeiramente é de pau, não por isso se dirá que fica apaleado
aquele a quem deu com ela. Digo isto para que não penses que, posto
que fiquemos desta pendência moídos, fiquemos afrontados; porque as
armas que aqueles homens traziam, com que nos machucaram, não
eram outras senão seus cajados, e nenhum deles, ao que me lembro,
tinha estoque, espada nem punhal.
- Não me permitiram - respondeu Sancho - que visse isso; porque,
apenas peguei minha espada, quando me castigaram os ombros com
suas varas, de maneira que me tiraram a vista dos olhos e a força dos
pés, dando comigo onde agora jazo, e onde não me dá pena alguma o
pensar se foi afronta ou não o dos estocaços, como me dá a dor dos
golpes, que me hão de ficar tão impressos na memória como nas
costas.
- Mesmo assim, te faço saber, irmão Pança - replicou dom Quixote,
- que não há memória a quem o tempo não acabe, nem dor que morte
não consuma.
- Pois, que maior desdita pode ser - replicou Pança - que aquela que
aguarda ao tempo que a consuma e à morte que a acabe? Se esta nossa
desgraça fosse daquelas que com um par de emplastros se curam,
ainda não tão mau; mas vou vendo que não hão de bastar todos os
emplastros de um hospital para pô-las em bom termo sequer.
- Deixa disso e tira forças da fraqueza, Sancho - respondeu dom
Quixote, - que assim farei eu, e vejamos como está Rocinante; que, ao
que me parece, não coube ao pobre a menor parte desta desgraça.
- Não há de que maravilhar-se disso - respondeu Sancho, - sendo ele
tão bom cavaleiro andante; do que eu me maravilho é de que meu
jumento haja ficado livre e sem custas onde nós saímos sem costelas.
- Sempre deixa a ventura uma porta aberta nas desditas, para dar
remédio a elas - disse dom Quixote. - Digo-o porque essa bestazinha
poderá suprir agora a falta de Rocinante, levando-me daqui a algum
castelo onde seja curado de minhas feridas. E mais, que não terei por
desonra tal cavalaria, porque me lembro de haver lido que aquele bom
velho Sileno, aio e pedagogo do alegre deus do riso, quando entrou na
cidade das cem portas ia, muito a seu prazer, a cavaleiro sobre um
muito formoso asno.
- Verdade será que ele devia ir a cavaleiro, como vossa mercê diz
- respondeu Sancho, - mas há grande diferença do ir a cavaleiro ao ir
atravessado como saco de porcaria.
A que respondeu dom Quixote:
- As feridas que se recebem nas batalhas, antes dão honra que a
tiram. Assim que, Pança amigo, não me repliques mais, senão, como já
te disse, levanta-te o melhor que puderes e põe-me da maneira que
mais te agradar em cima de teu jumento, e vamos daqui antes que a
noite venha e nos assalte neste despovoado.
- Pois eu ouvi dizer a vossa mercê - disse Pança - que é muito de
cavaleiros andantes o dormir nos páramos e desertos o mais do ano, e
que o têm por muita ventura.
- Isso é - disse dom Quixote - quando não podem mais, ou quando
estão enamorados; e é tão verdade isto, que houve cavaleiro que
esteve sobre uma penha, ao sol e à sombra, e às inclemências do céu,
dois anos, sem que o soubesse sua senhora. E um destes foi Amadis,
quando, chamando-se Beltenebros, se alojou na Penha Pobre, nem sei
se oito anos ou oito meses, que não estou muito bem na conta: basta
que ele esteve ali fazendo penitência, por não sei que dissabor que lhe
fez a senhora Oriana. Mas deixemos já isto, Sancho, e anda, antes que
suceda outra desgraça ao jumento, como a Rocinante.
- Ainda aí seria o diabo - disse Sancho.
E despedindo trinta ais, e sessenta suspiros, e cento e vinte
maldições e arrenegos a quem ali o havia trazido, levantou-se, ficando
agoniado no meio do caminho, como arco turco, sem poder acabar de
endireitar-se; e com todo este trabalho aparelhou seu asno, que
também havia andado algo distraído com a demasiada liberdade
daquele dia. Levantou logo a Rocinante, o qual, se tivesse língua com
que queixar-se, seguramente que Sancho nem seu amo o poderiam
seguir.
Em suma, Sancho acomodou dom Quixote sobre o asno e pôs
Rocinante atrás; e levando o asno pelo cabresto, encaminhou-se, pouco
mais ou menos, até onde lhe pareceu que podia estar o caminho real. E
a sorte, que suas coisas de bem em melhor ia guiando, ainda não
andara uma pequena légua, quando lhe deparou o caminho, no qual
descobriu uma estalagem que, para pesar seu e gosto de dom Quixote,
havia de ser castelo. Insistia Sancho que era estalagem, e seu amo que
não, senão castelo; e tanto durou a porfia, que terminaram, sem
acabá-la, por chegar a ela, na qual Sancho entrou, sem mais
averiguação, com toda sua récua.
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
Onde se contam as razões que passou Sancho Pança com seu senhor
dom Quixote, com outras aventuras dignas de ser contadas
Chegou Sancho a seu amo murcho e desmaiado; tanto, que não podia
arrear seu jumento. Quando assim o viu dom Quixote, disse-lhe:
- Agora acabo de crer, Sancho bom, que aquele castelo ou
estalagem é encantado sem dúvida; porque aqueles que tão
atrozmente fizeram troça de ti, que podiam ser senão fantasmas e
gente do outro mundo? E confirmo isto por haver visto que, quando
estava pelas cercas do curral olhando os atos de tua triste tragédia,
não me foi possível subir por elas, nem menos pude apear-me de
Rocinante, porque me deviam ter encantado; pois te juro, pela fé de
quem sou, que se pudesse subir ou apear-me, eu te vingaria de maneira
que aqueles baderneiros e gatunos se recordariam da burla para
sempre, embora nisso soubesse contrariar as leis da cavalaria, que,
como já muitas vezes te disse, não consentem que cavaleiro ponha mão
contra quem não o seja, se não for em defesa de sua própria vida e
pessoa, em caso de urgente e grande necessidade.
- Também me vingaria eu se pudesse, fosse ou não fosse armado
cavaleiro, mas não pude; embora tenha para mim que aqueles que
folgaram comigo não eram fantasmas nem homens encantados, como
vossa mercê diz, senão homens de carne e osso como nós; e todos,
segundo os ouvi nomear quando me volteavam, tinham seus nomes: que
um se chamava Pedro Martínez, e o outro Tenório Hernández, e o
vendeiro ouvi que se chamava Juan Palomeque o Canhoto. Assim que,
senhor, o não poder saltar as cercas do curral, nem apear-se do
cavalo, de outra coisa se tratou que de encantamentos. E o que eu tiro
a limpo de tudo isto é que estas aventuras que andamos buscando, ao
cabo ao cabo, hão-nos de trazer tantas desventuras que não saibamos
qual é nosso pé direito. E o que seria melhor e mais acertado, segundo
meu pouco entendimento, seria o voltar a nosso lugar, agora que é
tempo da ceifa e de cuidar dos bens, deixando de andar de Ceca em
Meca e de coisa má para outra pior, como dizem.
- Que pouco sabes, Sancho - respondeu dom Quixote, - de ofício de
cavalaria! Cala e tem paciência, que dia virá onde vejas por teus olhos
quão honrosa coisa é andar neste exercício. Se não, diz-me: que maior
alegria pode haver no mundo, ou que gosto pode igualar-se ao de
vencer uma batalha e ao de triunfar de seu inimigo? Nenhum, sem
dúvida alguma.
- Assim deve ser - respondeu Sancho, - embora eu não o saiba; só
sei que, desde que somos cavaleiros andantes, ou vossa mercê o é (que
eu não há para que me conte em tão honroso número), jamais vencemos
batalha alguma, se não foi a do biscainho, e ainda daquela saiu vossa
mercê com meia orelha e meio elmo menos; que, desde então, tudo tem
sido golpes e mais golpes, murros e mais murros, levando eu de
vantagem o manteamento e haver-me sucedido por pessoas
encantadas, de quem não posso vingar-me, para saber até onde chega
o gosto do vencimento do inimigo, como vossa mercê diz.
- Essa é a pena que eu tenho e a que tu deves ter, Sancho -
respondeu dom Quixote; - mas, daqui em diante, eu procurarei ter às
mãos alguma espada feita por tal magia, que ao que a trouxer consigo
não lhe possam fazer nenhum gênero de encantamentos; e ainda
poderia ser que me deparasse a ventura aquela de Amadis, quando se
chamava o Cavaleiro da Ardente Espada, que foi uma das melhores
espadas que teve cavaleiro no mundo, porque, além de ter tal poder,
cortava como uma navalha, e não havia armadura, por forte e
encantada que fosse, que se lhe comparasse.
- Eu sou tão venturoso - disse Sancho - que, quando isso fosse e
vossa mercê viesse a achar espada semelhante, só viria a servir e
aproveitar aos armados cavaleiros, como o bálsamo; e os escudeiros,
que os parta o raio.
- Não temas isso, Sancho - disse dom Quixote, - que melhor o fará
o céu contigo.
Nestes colóquios iam dom Quixote e seu escudeiro, quando viu dom
Quixote que pelo caminho que iam vinha até eles uma grande e espessa
nuvem de poeira; e, vendo-a, voltou-se para Sancho e lhe disse:
- Este é o dia, oh Sancho!, no qual se há de ver o bem que me tem
guardado minha sorte; este é o dia, digo, em que se há de mostrar,
tanto como em outro algum, o valor de meu braço, e no que tenho de
fazer obras que fiquem escritas no livro da Fama por todos os
vindouros séculos. Vês aquela poeira que ali se levanta, Sancho? Pois
toda está coalhada de um copiosíssimo exército que de diversas e
inumeráveis gentes por ali vem marchando.
- A essa conta, dois devem ser - disse Sancho, - porque desta parte
contrária se levanta também outra semelhante poeira.
Voltou a olhar dom Quixote, e viu que assim era verdade; e,
alegrando-se sobremaneira, pensou, sem dúvida alguma, que eram dois
exércitos que se vinham investir e encontrar em meio àquela espaçosa
planura; porque tinha a todas as horas e momentos cheia a fantasia
daquelas batalhas, encantamentos, sucessos, desatinos, amores,
desafios, que nos livros de cavalarias se contam, e tudo quanto falava,
pensava ou fazia era encaminhado a coisas semelhantes. E a poeira que
havia visto a levantavam duas grandes manadas de ovelhas e carneiros
que, por aquele mesmo caminho, de duas diferentes partes vinham, as
quais, com o pó, não se puderam ver até que chegaram perto. E com
tanto afinco afirmava dom Quixote que eram exércitos, que Sancho o
veio a crer e a dizer-lhe:
- Senhor, pois que havemos de fazer nós?
- O quê? - disse dom Quixote: - Favorecer e ajudar aos
necessitados e desvalidos. E hás de saber, Sancho, que este que vem
por nossa frente o conduz e guia o grande imperador Alifanfarão,
senhor da grande ilha Taprobana; este outro que às minhas costas
marcha é o de seu inimigo, o rei dos garamantas, Pentapolin do
Arregaçado Braço, porque sempre entra nas batalhas com o braço
direito desnudo.
- Pois, por que se querem tão mal estes dois senhores? - perguntou
Sancho.
- Querem-se mal - respondeu dom Quixote - porque este
Alifanfarão é um furibundo pagão e está enamorado da filha de
Pentapolin, que é uma muito formosa e ademais graciosa senhora, e é
cristã, e seu pai não a quer entregar ao rei pagão se não deixa
primeiro a lei de seu falso profeta Maomé e volta à sua.
- Por minhas barbas - disse Sancho, - se não faz muito bem
Pentapolin, e que o tenho de ajudar em quanto puder!
- Nisso farás o que deves, Sancho - disse dom Quixote, - porque,
para entrar em batalhas semelhantes, não se requer ser armado
cavaleiro.
- Bem me alcança isso - respondeu Sancho, - mas, onde poremos
este asno que estejamos certos de achá-lo depois de passada a
refrega? Porque o entrar nela em semelhante cavalaria não creio que
está em uso até agora.
- Assim é verdade - disse dom Quixote. - O que podes fazer dele é
deixá-lo a suas aventuras, ora se perca ou não, porque serão tantos os
cavalos que teremos, depois de sairmos vencedores, que ainda corre
perigo Rocinante não lhe troque por outro. Mas está-me atento e olha,
que te quero dar conta dos cavaleiros mais principais que nestes dois
exércitos vêm. E para que melhor os vejas e notes, retiremo-nos
àquele alto que ali se faz, de onde se devem ver os dois exércitos.
Fizeram-no assim, e puseram-se sobre uma colina, desde a qual
veriam bem as duas manadas que a dom Quixote se fizeram exército,
se as nuvens do pó que levantavam não lhes turvasse e cegasse a vista;
entretanto, vendo em sua imaginação o que não via nem havia, com voz
levantada começou a dizer:
- Aquele cavaleiro que ali vês das armas amarelas, que traz no
escudo um leão coroado, rendido aos pés de uma donzela, é o valoroso
Laurcalco, senhor da Ponte de Prata; o outro das armas das flores
de ouro, que traz no escudo três coroas de prata em campo azul, é o
temido Micocolembo, grande duque de Quirócia; o outro dos membros
gigânteos, que está à sua direita mão, é o nunca medroso
Brandabarbarán de Boliche, senhor das três Arábias, que vem armado
daquele couro de serpente, e tem por escudo uma porta que, segundo
é fama, é uma das do templo que Sansão derrubou, quando com sua
morte se vingou de seus inimigos. Mas volta os olhos a esta outra
parte e verás diante e na frente deste outro exército o sempre
vencedor e jamais vencido Timonel de Carcajona, príncipe da Nova
Biscaia, que vem armado com as armas divididas em quartéis, azuis,
verdes, brancas e amarelas, e traz no escudo um gato de ouro em
campo leonado, com uma letra que diz: “Miau”, que é o princípio do
nome de sua dama, que, segundo se diz, é a sem par Miulina, filha do
duque Alfeniquém do Algarve; o outro, que oprime os lombos daquele
poderoso corcel, que traz as armas como neve brancas e o escudo
branco e sem emblema algum, é um cavaleiro novel, de nação francês,
chamado Pierres Papin, senhor das baronias de Utrique; o outro, que
roça as ilhargas com os ferrados calcanhares àquela pintada e ligeira
zebra e traz as armas dos esmaltes azuis, é o poderoso duque de
Nérbia, Espartafilardo do Bosque, que traz por emblema no escudo um
aspargo, com uma letra em castelhano que diz assim: “ Rastreia minha
sorte”.
E desta maneira foi nomeando muitos cavaleiros de um e de outro
esquadrão, que ele imaginava, e a todos deu suas armas, cores,
emblemas e motes de improviso, levado da imaginação de sua nunca
vista loucura; e, sem parar, prosseguiu dizendo:
- Este esquadrão fronteiro formam e fazem gentes de diversas
nações: aqui estão os que bebiam as doces águas do famoso Xanto; os
montanheses que pisam os massílicos campos; os que garimpam o
finíssimo e miúdo ouro na feliz Arábia; os que gozam as famosas e
frescas ribeiras do claro Termodonte; os que sangram por muitas e
diversas vias o dourado Pactolo; os númidas, duvidosos em suas
promessas; os persas, arcos e flechas famosos; os partos, os medos,
que pelejam fugindo; os árabes, de mudáveis casas; os citas, tão cruéis
como brancos; os etíopes, de perfurados lábios, e outras infinitas
nações, cujos rostos conheço e vejo, embora dos nomes não me
lembre. Neste outro esquadrão vêm os que bebem as correntes
cristalinas do olivífero Bétis; os que enrijam e pulem seus rostos com
o licor do sempre rico e dourado Tejo; os que gozam as proveitosas
águas do divino Genil; os que pisam os tartésios campos, de pastos
abundantes; os que se alegram nos elísios xerezanos prados; os
manchegos, ricos e coroados de loiras espigas; os de ferro vestidos,
relíquias antigas do sangue godo; os que no Pisuerga se banham,
famoso pela mansidão de sua corrente; os que seu gado apascentam
nas estendidas pastarias do tortuoso Guadiana, celebrado por seu
escondido curso; os que tremem com o frio dos selvosos Pireneus e
com os brancos flocos do elevado Apenino; finalmente, quantos toda a
Europa em si contém e encerra.
Valha-me Deus, e quantas províncias disse, quantas nações nomeou,
dando a cada uma, com maravilhosa presteza, os atributos que lhe
pertenciam, tudo absorvido e empapado no que havia lido em seus
livros mentirosos!
Estava Sancho Pança pendurado em suas palavras, sem falar
nenhuma, e, de quando em quando, volvia a cabeça a ver se via os
cavaleiros e gigantes que seu amo nomeava; e, como não descobria
nenhum, disse-lhe:
- Senhor, que o diabo leve homem, gigante ou cavaleiro de quantos
vossa mercê diz ver; ao menos, eu não os vejo; quiçá tudo deve ser
encantamento, como as fantasmas de ontem à noite.
- Como dizes isso? - respondeu dom Quixote. - Não ouves o
relinchar dos cavalos, o tocar dos clarins, o ruído dos tambores?
- Não ouço outra coisa - respondeu Sancho - senão muitos balidos
de ovelhas e carneiros.
E assim era a verdade, porque já chegavam perto os dois rebanhos.
- O medo que tens - disse dom Quixote - te faz, Sancho, que nem
vejas nem ouças às direitas; porque um dos efeitos do medo é turvar
os sentidos e fazer com que as coisas não pareçam o que são; e se é
que tanto temes, retira-te à parte e deixa-me só, que sozinho basto
para dar a vitória à parte a quem eu der minha ajuda.
E dizendo isto, esporeou Rocinante, e, posta a lança em riste,
desceu a encosta como um raio.
Deu-lhe vozes Sancho, dizendo-lhe:
- Volte vossa mercê, senhor dom Quixote, que voto a Deus que são
carneiros e ovelhas as que vai a investir! Volte, desditado do pai que
me engendrou! Que loucura é esta? Olhe que não há gigante nem
cavaleiro algum, nem gatos, nem armas, nem escudos partidos nem
inteiros, nem esmaltes azuis nem endiabrados. Que é o que faz?
Pecador sou eu a Deus!
Nem por isso voltou dom Quixote; antes, em altas vozes, ia dizendo:
- Eia, cavaleiros, os que seguis e militais debaixo das bandeiras do
valoroso imperador Pentapolin do Arregaçado Braço, segui-me todos:
vereis quão facilmente dou vingança de seu inimigo Alifanfarão da
Taprobana!
Isto dizendo, entrou no meio do esquadrão das ovelhas, e começou a
lanceá-las com tanta coragem e denodo como se verdadeiramente
lanceasse seus mortais inimigos. Os pastores e vaqueiros que com a
manada vinham davam-lhe vozes que não fizesse aquilo; mas, vendo que
não adiantava, desamarraram as fundas e começaram a saudar-lhe os
ouvidos com pedras grandes como punhos. Dom Quixote não se
importava com as pedras; antes, discursando ao léu, dizia:
- Onde estás, soberbo Alifanfarão? Vinde a mim; que um cavaleiro
só sou, que deseja, em combate singular, provar tuas forças e tirar-te
a vida, em pena da que dás ao valoroso Pentapolin Garamanta.
Chegou nisto um seixo e, pegando-o num lado, afundou-lhe
duas costelas. Vendo-se tão maltratado, creu sem dúvida que
estava morto ou malferido, e, recordando-se de seu licor, tirou sua
vinagreira e levou-a à boca, e começou a engolir licor; mas, antes que
acabasse de envasar o que a ele parecia que era bastante, chegou
outra amêndoa e deu-lhe na mão e na vinagreira tão em cheio que a
fez em pedaços, levando-lhe de roldão três ou quatro dentes da boca,
e machucando-lhe duramente dois dedos da mão.
Tal foi o golpe primeiro, e tal o segundo, que foi forçoso ao pobre
cavaleiro dar consigo do cavalo abaixo. Chegaram-se a ele os pastores
e creram que o haviam matado; e assim, com muita pressa, recolheram
seu gado, e carregaram as reses mortas, que passavam de sete, e, sem
averiguar outra coisa, se foram.
Estava todo este tempo Sancho no morrinho, olhando as loucuras
que seu amo fazia, e arrancava-se as barbas, maldizendo a hora e o
ponto em que a fortuna se lhe havia dado a conhecer. Vendo-o, pois,
caído no chão, e que já os pastores se haviam ido, desceu e chegou-se
a ele, e achou-o com muito mau aspecto, embora não houvesse perdido
o sentido, e disse-lhe:
- Não lhe dizia eu, senhor dom Quixote, que voltasse, que os que ia
acometer não eram exércitos, senão manadas de carneiros?
- Coisas assim pode desaparecer e contrafazer aquele ladrão do
mago meu inimigo. Sabes, Sancho, que é muito fácil coisa, aos tais,
fazer-nos parecer o que querem, e este maligno que me persegue,
invejoso da glória que viu que eu havia de alcançar desta batalha,
transformou os esquadrões de inimigos em manadas de ovelhas. Se
não, faz uma coisa, Sancho, por minha vida, para que te desenganes e
vejas ser verdade o que te digo: sobe em teu asno e segue-os com
cuidado, e verás como, afastando-se daqui algum pouco, voltam a seu
ser primeiro, e, deixando de ser carneiros, são homens feitos e
direitos, como eu te os pintei primeiro... Mas não vás agora, que
preciso de teu favor e ajuda; chega-te a mim e veja quantos dentes
me faltam, que me parece que não me ficou nenhum na boca.
Chegou-se Sancho tão perto que quase lhe metia os olhos na boca, e
foi a tempo que já havia obrado o bálsamo no estômago de dom
Quixote; e, ao tempo que Sancho chegou a olhar-lhe a boca, arrojou
de si, mais forte que uma escopeta, quanto dentro tinha, e deu com
todo ele nas barbas do compassivo escudeiro.
- Santa Maria! - disse Sancho, - e que é isto que me sucedeu? Sem
dúvida, este pecador está ferido de morte, pois vomita sangue pela
boca.
Mas, reparando um pouco mais nele, viu na cor, sabor e cheiro, que
não era sangue, senão o bálsamo da vinagreira que ele o havia visto
beber; e foi tanto o asco que tomou que, revoltando-se-lhe o
estômago, vomitou as tripas sobre seu mesmo senhor, e ficaram
ambos como feitos de pérolas. Acudiu Sancho a seu asno para tirar
dos alforjes com que limpar-se e com que curar a seu amo; e, como não
os achou, esteve a ponto de perder o juízo. Maldisse-se de novo, e
propôs em seu coração deixar seu amo e voltar a sua terra, embora
perdesse o salário pelo já servido e as esperanças do governo da
prometida ilha.
Levantou-se nisto dom Quixote, e, posta a mão esquerda na boca,
para que não se lhe acabassem de sair os dentes, pegou com a outra as
rédeas de Rocinante, que nunca se havia movido de junto a seu amo -
tal era de leal e boa condição, - e foi onde seu escudeiro estava, com o
peito sobre o asno, com a mão na face, com gesto de homem muito
pensativo. E vendo-o dom Quixote daquela maneira, com mostras de
tanta tristeza, disse-lhe:
- Sabes, Sancho, que não é um homem mais que outro se não faz
mais que outro. Todas estas borrascas que nos sucedem são sinais de
que logo há de serenar o tempo e hão de suceder-nos bem as coisas;
porque não é possível que o mal nem o bem sejam duráveis, e daqui se
segue que, havendo durado muito o mal, o bem está já perto. Assim
que, não deves angustiar-te pelas desgraças que a mim me sucedem,
pois a ti não te cabe parte delas.
- Como não? - respondeu Sancho. - Porventura, o que ontem
mantearam, era outro senão o filho de meu pai? E os alforjes que hoje
me faltam, com todas as minhas joias, são de outro que do mesmo?
- Faltam-te os alforjes, Sancho? - disse dom Quixote.
- Sim que me faltam - respondeu Sancho.
- Desse modo, não temos o que comer hoje - replicou dom Quixote.
- Isso seria - respondeu Sancho - quando faltassem por estes
prados as ervas que vossa mercê diz que conhece, com que costumam
suprir semelhantes faltas os tão desventurados andantes cavaleiros
como vossa mercê é.
- Contudo - respondeu dom Quixote, - comeria eu agora antes um
quarto de pão, ou uma fogaça e duas cabeças de sardinhas defumadas,
a quantas ervas descreve Dioscórides, embora fosse o livro ilustrado
pelo doutor Laguna. Mas, então, sobe em teu jumento, Sancho o bom, e
vem atrás de mim; que Deus, que é provedor de todas as coisas, não
nos há de faltar, e mais andando tão em seu serviço como andamos,
pois não falta aos mosquitos do ar, nem aos vermes da terra, nem aos
girinos da água; e é tão piedoso que faz sair seu sol sobre os bons e os
maus, e chove sobre os injustos e justos.
- Melhor estaria vossa mercê - disse Sancho - para pregador que
para cavaleiro andante.
- De tudo sabiam e hão de saber os cavaleiros andantes, Sancho -
disse dom Quixote, - porque cavaleiro andante houve nos passados
séculos que assim parava para fazer um sermão ou prédica, em meio a
um campo real, como se fosse graduado pela Universidade de Paris; de
onde se infere que nunca a lança embotou a pena, nem a pena a lança.
- Agora bem, seja assim como vossa mercê diz - respondeu Sancho,
- vamos agora daqui, e procuremos onde nos alojar esta noite, e queira
Deus que seja em lugar onde não haja mantas, nem manteadores, nem
fantasmas, nem mouros encantados; que se os há, os mandarei ao
diabo.
- Pede-o tu a Deus, filho - disse dom Quixote, - e guia tu por onde
quiseres, que esta vez quero deixar a tua eleição o alojar-nos. Mas dá-
me aqui a mão e tenteia com o dedo, e veja bem quantos dentes me
faltam deste lado direito da queixada alta, que ali sinto a dor.
Meteu Sancho os dedos, e, estando tenteando, disse-lhe:
- Quantos dentes costumava vossa mercê ter nesta parte?
- Quatro - respondeu dom Quixote, - fora o do siso, todos inteiros
e muito sãos.
- Veja vossa mercê bem o que diz, senhor - respondeu Sancho.
- Digo quatro, se não eram cinco - respondeu dom Quixote, - porque
em toda minha vida não me tiraram dente da boca, nem me caiu ou
perdeu nenhum por cárie ou infecção alguma.
- Pois nesta parte de baixo - disse Sancho - não tem vossa mercê
mais de dois dentes e meio, e na de cima, nem meio nem nenhum, que
toda está lisa como a palma da mão.
- Sem ventura eu! - disse dom Quixote, ouvindo as tristes novas que
seu escudeiro lhe dava, - que mais quisesse que me houvessem
arrancado um braço, se não fosse o da espada; porque te faço saber,
Sancho, que a boca sem dentes é como moinho sem pedra, e em muito
mais se há de estimar um dente que um diamante. Mas a tudo isto
estamos sujeitos os que professamos a rígida ordem da cavalaria.
Sobe, amigo, e guia, que eu te seguirei ao passo que quiseres.
Fê-lo assim Sancho, e encaminhou-se até onde lhe pareceu que
podia achar acolhimento, sem sair do caminho real, que por ali ia muito
seguido.
Indo-se, pois, pouco a pouco, porque a dor das queixadas de dom
Quixote não lhe deixava sossegar nem atender a dar-se pressa, quis
Sancho entretê-lo e diverti-lo dizendo-lhe alguma coisa; e, entre
outras que lhe disse, foi o que se dirá no seguinte capítulo.
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
Da jamais vista nem ouvida aventura que com menos perigo foi
acabada por famoso cavaleiro no mundo, como a que acabou o valoroso
dom Quixote da Mancha
- Não é possível, senhor meu, senão que estas ervas dão testemunho
de que por aqui perto deve haver alguma fonte ou arroio que estas
ervas umedece; e assim, será bom que vamos um pouco mais adiante,
que já toparemos onde possamos mitigar esta terrível sede que nos
fatiga, que, sem dúvida, causa maior pena que a fome.
Pareceu bom o conselho a dom Quixote, e, tomando a rédea de
Rocinante, e Sancho o cabresto de seu asno, depois de haver posto
sobre ele as sobras que do jantar ficaram, começaram a caminhar pelo
prado acima às cegas, porque a escuridão da noite não os deixava ver
coisa alguma; mas, não haviam andado duzentos passos, quando chegou
a seus ouvidos um grande ruído de água, como que de alguns grandes e
altos penhascos se despenhava. Alegrou-os o ruído em grande maneira,
e, parando para escutar de que lado soava, ouviram inesperadamente
outro estrondo que lhes aguou o contentamento do água,
especialmente a Sancho, que naturalmente era medroso e de pouco
ânimo. Digo que ouviram que davam uns golpes rítmicos, com um certo
ranger de ferros e correntes, que, acompanhados do furioso estrondo
da água, dariam pavor a qualquer outro coração que não fosse o de
dom Quixote.
Era a noite, como se disse, escura, e eles acertaram de entrar
entre umas árvores altas, cujas folhas, movidas pelo brando vento,
faziam um temeroso e manso ruído; de maneira que a solidão, o lugar, a
escuridão, o ruído da água com o sussurro das folhas, tudo causava
horror e espanto, e mais quando viram que nem os golpes cessavam,
nem o vento dormia, nem a manhã chegava; somando-se a tudo isto o
ignorar o lugar onde se achavam. Mas dom Quixote, acompanhado de
seu intrépido coração, saltou sobre Rocinante, e, sobraçando sua
rodela, terçou seu chuço e disse:
- Sancho amigo, hás de saber que eu nasci, por querer do céu, nesta
nossa idade de ferro, para ressuscitar nela a de ouro, ou a dourada,
como costuma chamar-se. Eu sou aquele para quem estão guardados os
perigos, as grandes façanhas, os valorosos feitos. Eu sou, digo outra
vez, quem há de ressuscitar os da Távola Redonda, os Doze de França
e os Nove da Fama, e o que há de pôr no olvido os Platires, os
Tablantes, Olivantes e Tirantes, os Febos e Belianises, com toda a
caterva dos famosos cavaleiros andantes do passado tempo, fazendo
neste em que me acho tais grandezas, estranhezas e feitos de armas,
que escureçam as mais claras que eles fizeram. Bem notas, escudeiro
fiel e legal, as trevas desta noite, seu estranho silêncio, o surdo e
confuso estrondo destas árvores, o temeroso ruído daquela água em
cuja busca vimos, que parece que se despenha e derruba desde os
altos montes da lua, e aquele incessável golpear que nos fere e lastima
os ouvidos; as quais coisas, todas juntas e cada uma por si, são
bastantes a infundir medo, temor e espanto no peito do mesmo Marte,
quanto mais naquele que não está acostumado a semelhantes
acontecimentos e aventuras. Pois tudo isto que eu te pinto são
incentivos e despertadores de meu ânimo, que já faz que o coração me
rebente no peito, com o desejo que tem de acometer esta aventura,
por mais dificultosa que se mostre. Assim que, aperta um pouco as
cilhas de Rocinante e fica com Deus, e espera-me aqui até três dias
não mais, nos quais, se não voltar, podes tu voltar a nossa aldeia, e
desde ali, por fazer-me mercê e boa obra, irás ao Toboso, onde dirás
à incomparável senhora minha Dulcineia que seu cativo cavaleiro
morreu por acometer coisas que o fizessem digno de poder chamar-se
seu.
Quando Sancho ouviu as palavras de seu amo, começou a chorar com
a maior ternura do mundo e a dizer-lhe:
- Senhor, eu não sei por que quer vossa mercê acometer esta tão
temerosa aventura: agora é de noite, aqui não nos vê ninguém, bem
podemos torcer o caminho e desviar-nos do perigo, embora não
bebamos em três dias; e, pois não há quem nos veja, menos haverá
quem nos chame de covardes; quanto mais, que eu ouvi pregar o padre
de nosso lugar, que vossa mercê bem conhece, que quem busca o
perigo nele perece; assim que, não é bem tentar a Deus cometendo tão
desaforado feito, onde não se pode escapar senão por milagre; e basta
os que fez o céu com vossa mercê em livrá-lo de ser manteado, como
eu o fui, e em deixá-lo vencedor, livre e salvo de entre tantos inimigos
que acompanhavam o defunto. E quando tudo isto não mova nem
abrande esse duro coração, mova-o o pensar e crer que apenas se
haverá vossa mercê apartado daqui, quando eu, de medo, dê minha
alma a quem quiser levá-la. Eu saí de minha terra e deixei filhos e
mulher por vir a servir a vossa mercê, crendo valer mais e não menos;
mas, como a cobiça rompe o saco, a mim rasgou minhas esperanças,
pois quando mais vivas as tinha de alcançar aquela negra e malfadada
ilha que tantas vezes vossa mercê me prometeu, vejo que, em paga e
troco dela, me quer agora deixar num lugar tão apartado do trato
humano. Por um só Deus, senhor meu, que não se me faça tal agravo; e
já que de todo não queira vossa mercê desistir de acometer este
feito, dilate-o, ao menos, até a manhã; que, ao que a mim me mostra a
ciência que aprendi quando era pastor, não deve haver daqui ao
alvorecer três horas, porque a boca da buzina está em cima da cabeça,
e é meia noite na linha do braço esquerdo.
- Como podes tu, Sancho - disse dom Quixote, - ver onde faz essa
linha, nem onde está essa boca ou essa cachola que dizes, se está a
noite tão escura que não aparece em todo o céu estrela alguma?
- Assim é - disse Sancho, - mas tem o medo muitos olhos e vê as
coisas debaixo da terra, quanto mais em cima no céu; posto que, por
bom argumento, bem se pode entender que há pouco daqui ao dia.
- Falte o que faltar - respondeu dom Quixote; - que não se há de
dizer por mim, agora nem em nenhum tempo, que lágrimas e rogos me
apartaram de fazer o que devia pelas normas de cavaleiro; e assim,
rogo-te, Sancho, que cales; que Deus, que me pôs no coração acometer
agora esta tão não vista e tão temerosa aventura, terá cuidado de
olhar por minha saúde e consolar tua tristeza. O que hás de fazer é
apertar bem as cilhas a Rocinante e ficar aqui, que eu voltarei logo, ou
vivo ou morto.
Vendo, pois, Sancho a última resolução de seu amo e quão pouco
valiam com ele suas lágrimas, conselhos e rogos, determinou
aproveitar-se de sua indústria e fazê-lo esperar até o dia, se pudesse;
e assim, quando apertava as cilhas ao cavalo, com cuidado e sem ser
sentido, atou com o cabresto de seu asno ambos os pés de Rocinante,
de maneira que quando dom Quixote quis partir, não pôde, porque o
cavalo não se podia mover senão a saltos. Vendo Sancho Pança o bom
sucesso de seu embuste, disse:
- Eia, senhor, que o céu, comovido por minhas lágrimas e preces,
ordenou que não se possa mover Rocinante; e se vós quereis porfiar, e
esporear, e dar-lhe, será enojar à fortuna e dar murros, como dizem,
em ponta de faca.
Desesperava-se com isto dom Quixote, e, por mais que golpeasse
com as pernas o cavalo, menos o podia mover; e, sem dar conta da
ligadura, teve por bem sossegar-se e esperar, ou que amanhecesse, ou
que Rocinante se mexesse, crendo, sem dúvida, que aquilo vinha de
outra parte que da indústria de Sancho; e assim, disse-lhe:
- Pois assim é, Sancho, que Rocinante não pode mover-se, eu estou
contente de esperar que raie o alvorecer, embora eu chore o que ele
tardar em vir.
- Não há que chorar - respondeu Sancho, - que eu entreterei a
vossa mercê contando contos daqui ao dia, se já não é que se quer
apear e dormir um pouco sobre a verde erva, ao uso de cavaleiros
andantes, para achar-se mais descansado quando chegue o dia e hora
de acometer esta tão incomparável aventura que o espera.
- A que chamas apear ou a que dormir? - disse dom Quixote. - Sou
eu, porventura, daqueles cavaleiros que tomam repouso nos perigos?
Dorme tu, que nasceste para dormir, ou faz o que quiseres, que eu
farei o que vir que mais convém a minha pretensão.
- Não se zangue vossa mercê, senhor meu - respondeu Sancho, - que
não o disse para tanto.
E chegando-se a ele, pôs uma mão no arção dianteiro e a outra no
outro, de modo que ficou abraçado com a coxa esquerda de seu amo,
sem ousar separar-se dele um dedo: tal era o medo que tinha aos
golpes, que ainda alternativamente soavam. Disse-lhe dom Quixote que
contasse algum conto para entretê-lo, como o havia prometido, ao que
Sancho disse que o faria se o deixasse o temor do que ouvia.
- Entretanto, eu me esforçarei para dizer uma história que, se a
acerto a contar e não me impedem, é a melhor das histórias; e
esteja-me vossa mercê atento, que já começo. “Era o que era, o bem
que vier para todos seja, e o mal, para quem o for buscar...” E
advirta vossa mercê, senhor meu, que o princípio que os antigos
deram a suas histórias não foi assim em vão, que foi uma sentença de
Catão Zonzorino romano, que diz: “e o mal, para quem o for buscar”,
que vem aqui como anel ao dedo, para que vossa mercê esteja quieto e
não vá buscar o mal em nenhum lugar, senão que voltemos por outro
caminho, pois ninguém nos força a que sigamos este, onde tantos
medos nos sobressaltan.
- Segue teu conto, Sancho - disse dom Quixote, - e do caminho que
havemos de seguir deixa-me a mim o cuidado.
- “Digo, pois - prosseguiu Sancho, - que num lugar de Estremadura
havia um pastor cabreiro, quero dizer, que guardava cabras, o qual
pastor ou cabreiro, como digo, de meu conto, se chamava Lope Ruiz; e
este Lope Ruiz andava enamorado de uma pastora que se chamava
Torralba, a qual pastora chamada Torralba era filha de um pecuarista
rico, e este pecuarista rico...”
- Se dessa maneira contas teu conto, Sancho - disse dom Quixote, -
repetindo duas vezes o que vais dizendo, não acabarás em dois dias;
dize-o seguidamente e conta-o como homem de entendimento, e se
não, não digas nada.
- Da mesma maneira que eu o conto - respondeu Sancho, - se contam
em minha terra todas as histórias, e eu não sei contá-lo de outra, nem
é bem que vossa mercê me peça que faça usos novos.
- Diz como quiseres - respondeu dom Quixote; - que, pois a sorte
quer que não possa deixar de escutar-te, prossegue.
- “Assim que, senhor meu de minha alma - prosseguiu Sancho, - que,
como já tenho dito, este pastor andava enamorado de Torralba, a
pastora, que era uma moça roliça, arisca e tirava algo a machona,
porque tinha uns poucos de bigodes, que parece que agora a vejo”.
- Logo, conheceste-a tu? - disse dom Quixote.
- Não a conheci eu - respondeu Sancho, - mas quem me contou este
conto me disse que era tão certo e verdadeiro que podia bem, quando
o contasse a outro, afirmar e jurar que o havia visto todo. “Assim que,
indo dias e vindo dias, o diabo, que não dorme e tudo enreda, fez de
maneira que o amor que o pastor tinha à pastora se transformasse em
ódio e má vontade; e a causa foi, segundo más línguas, uma certa
quantidade de motivos de ciúmes que ela lhe deu, tais que passavam
dos limites e chegavam ao vedado; e foi tanto o que o pastor a
aborreceu daí em diante que, para não vê-la, se quis ausentar daquela
terra e ir onde seus olhos não a vissem jamais. A Torralba, que se viu
desdenhada do Lope, logo o quis bem, mais que nunca o havia querido.”
- Essa é natural condição das mulheres - disse dom Quixote: -
desdenhar a quem as quer e amar a quem as aborrece. Passa adiante,
Sancho.
- “Sucedeu - disse Sancho - que o pastor pôs em prática sua
determinação e, recolhendo suas cabras, encaminhou-se pelos campos
de Estremadura, para passar aos reinos de Portugal. A Torralba, que o
soube, foi atrás dele, e seguia-o a pé e descalça desde longe, com um
bordão na mão e com uns alforjes ao pescoço, onde levava, segundo é
fama, um pedaço de espelho e outro de um pente, e não sei que
potezinho de creme para o rosto; mas, levasse o que levasse, que eu
não me quero meter agora em averiguá-lo, só direi que dizem que o
pastor chegou com seu gado a passar o rio Guadiana, que naquela
ocasião ia crescido e quase transbordando, e pelo lado que chegou não
havia barca nem barco, nem quem passasse a ele nem a seu gado do
outro lado, do que se angustiou muito, porque via que a Torralba vinha
já muito perto e lhe havia de dar muito pesar com seus rogos e
lágrimas; mas, tanto andou olhando, que viu um pescador que tinha
junto a si um barco, tão pequeno que somente podiam caber nele uma
pessoa e uma cabra; e, desse modo, falou-lhe e acertou com ele que
passasse a ele e às trezentas cabras que levava. Entrou o pescador no
barco, e passou uma cabra; voltou, e passou outra; tornou a voltar, e
tornou a passar outra.” Tenha vossa mercê conta nas cabras que o
pescador vai passando, porque se se perde uma da memória, se
acabará o conto e não será possível contar mais palavra dele. “Sigo,
pois, e digo que o desembarcadouro do outro lado estava cheio de lama
e escorregadio, e tardava o pescador muito tempo em ir e voltar.
Desse modo, voltou por outra cabra, e outra, e outra...”
- Faz de conta que as passou todas - disse dom Quixote, - não andes
indo e vindo dessa maneira, que não acabarás de passá-las num ano.
- Quantas passaram até agora? - disse Sancho.
- Eu que diabos sei? - respondeu dom Quixote.
- Foi o que eu disse: que tivesse boa conta. Pois, por Deus, que se
acabou o conto, que não há como passar adiante.
- Como pode ser isso? - respondeu dom Quixote. - Tão da essência
da história é saber as cabras que passaram, por extenso, que se se
erra uma do número não podes seguir adiante com a história?
- Não senhor, de maneira alguma - respondeu Sancho; - porque,
assim que eu perguntei a vossa mercê que me dissesse quantas cabras
haviam passado e me respondeu que não sabia, naquele mesmo instante
se me foi a mim da memória quanto me ficava por dizer, e à fé que era
de muita virtude e contentamento.
- De modo - disse dom Quixote - que já a história é acabada?
- Tão acabada é como minha mãe - disse Sancho.
- Digo-te de verdade - respondeu dom Quixote - que tu contaste
uma das mais novas fábulas, conto ou história, que ninguém pôde
pensar no mundo; e que tal modo de contá-la nem deixá-la, jamais se
poderá ver nem se viu em toda a vida, embora não esperasse eu outra
coisa de teu bom discurso; mas não me maravilho, pois quiçá estes
golpes, que não cessam, devem ter-te perturbado o entendimento.
- Tudo pode ser - respondeu Sancho, - mas eu sei que do meu conto
não há mais que dizer: que ali acaba onde começa o erro da conta da
passagem das cabras.
- Acabe em boa hora onde quiser - disse dom Quixote, - e vejamos
se se pode mover Rocinante.
Tornou a fustigá-lo, e ele tornou a dar saltos e a estar parado:
tanto estava bem atado.
Nisto, parece ser, ou que o frio da manhã, que já vinha, ou que
Sancho houvesse jantado algumas coisas lenitivas, ou que fosse coisa
natural - que é o que mais se deve crer, - a ele veio vontade e desejo
de fazer o que outro não poderia fazer por ele; mas era tanto o medo
que havia entrado em seu coração, que não ousava apartar-se um nada
de seu amo. Mas pensar não fazer o que tinha gana, tampouco era
possível; e assim, o que fez, por bem de paz, foi soltar a mão direita,
que tinha presa ao arção traseiro, com a qual, com cuidado e sem
rumor algum, soltou a laçada corrediça com que os calções se
sustinham, sem ajuda de outra alguma, e, tirando-a, deram logo abaixo
e ficaram como grilhões. Depois, alçou a camisa o melhor que pôde e
expôs ao ar as nádegas, que não eram muito pequenas. Feito isto - que
ele pensou que era o mais que tinha a fazer para sair daquele terrível
aperto e angústia -, sobreveio outra maior, que foi que lhe pareceu que
não podia esvaziar-se sem fazer estrépito e ruído, e começou a
apertar os dentes e a encolher os ombros, recolhendo em si o alento
tanto quanto podia; mas, com todas estas diligências, foi tão
desditado que, ao cabo ao cabo, veio a fazer um pouco de ruído, bem
diferente daquele que a ele dava tanto medo. Ouviu-o dom Quixote e
disse:
- Que rumor é esse, Sancho?
- Não sei, senhor - respondeu ele. - Alguma coisa nova deve ser, que
as aventuras e desventuras nunca começam por pouco.
Tornou outra vez a provar a sorte, e sucedeu-lhe tão bem que, sem
mais ruído nem alvoroço que o passado, se achou livre da carga que
tanto pesar lhe havia dado. Mas, como dom Quixote tinha o sentido do
olfato tão vivo como o dos ouvidos, e Sancho estava tão junto e
grudado a ele que quase por linha reta subiam os vapores para cima,
não pôde deixar que alguns chegassem a seu nariz; e, apenas
chegaram, apertou o nariz com dois dedos; e, com tom algo fanhoso,
disse:
- Parece-me, Sancho, que tens muito medo.
- Sim, tenho - respondeu Sancho; - mas, por que o vê vossa mercê
agora mais que nunca?
- Porque agora mais que nunca cheiras, e não a âmbar - respondeu
dom Quixote.
- Bem poderá ser - disse Sancho, - mas eu não tenho a culpa, senão
vossa mercê, que me traz fora de hora e por estes não acostumados
passos.
- Retira-te três ou quatro passos para lá, amigo - disse dom
Quixote (tudo isto sem tirar os dedos do nariz), - e daqui em diante
tem mais conta com tua pessoa e com o que deves à minha; que a muita
conversação que tenho contigo engendrou este menosprezo.
- Apostarei - replicou Sancho - que pensa vossa mercê que eu fiz de
minha pessoa alguma coisa que não deva.
- Melhor não falar mais nisso, amigo Sancho - respondeu dom
Quixote.
Nestes colóquios e outros semelhantes passaram a noite amo e
moço. Mas, vendo Sancho que rapidamente vinha a manhã, com muito
tento desamarrou Rocinante e atou os calções. Como Rocinante se viu
livre, embora ele de seu não era nada brioso, parece que se ressentiu,
e começou a dar com as patas dianteiras; porque empinar (com perdão
seu) não o sabia fazer. Vendo, pois, dom Quixote que já Rocinante se
movia, teve-o por bom sinal, e creu que o era de acometer aquela
temerosa aventura.
Acabou nisto de descobrir-se o alvorecer e de aparecer
distintamente as coisas, e viu dom Quixote que estava entre umas
árvores altas, que eram castanheiros, que fazem a sombra muito
escura. Sentiu também que o golpear não cessava, mas não viu o que o
podia causar; e assim, sem mais deter-se, fez Rocinante sentir as
esporas, e, tornando a despedir-se de Sancho, mandou que ali o
aguardasse três dias, no máximo, como já outra vez havia dito; e que,
se ao cabo deles não houvesse voltado, tivesse por certo que Deus
havia sido servido de que naquela perigosa aventura acabassem seus
dias. Tornou-lhe a referir o recado e embaixada que havia de levar de
sua parte a sua senhora Dulcineia, e que, no que tocava à paga de seus
serviços, não se preocupasse, porque ele havia deixado feito seu
testamento antes de sair de seu lugar, onde se acharia gratificado de
todo o tocante a seu salário, em proporção por quantidade, do tempo
que houvesse servido; mas que se Deus o tirasse daquele perigo são e
salvo e sem pagar resgate, podia ter por muito mais que certa a
prometida ilha.
De novo tornou a chorar Sancho, ouvindo de novo as lastimosas
razões de seu bom senhor, e determinou de não deixá-lo até o último
trânsito e fim daquele negócio.
Destas lágrimas e determinação tão honrada de Sancho Pança
conclui o autor desta história que devia ser bem nascido, e, pelo
menos, cristão velho. Cujo sentimento enterneceu algo a seu amo, mas
não tanto que mostrasse fraqueza alguma; antes, dissimulando o
melhor que pôde, começou a caminhar até o lugar de onde lhe pareceu
que o ruído da água e do golpear vinha.
Seguia-o Sancho a pé, levando, como tinha costume, pelo cabresto o
seu jumento, perpétuo companheiro de suas prósperas e adversas
fortunas; e, havendo andado um bom pedaço por entre aqueles
castanheiros e árvores sombrias, deram num pradozinho ao pé de
umas altas penhas, das quais se precipitava um grandíssimo golpe de
água. Ao pé das penhas, estavam umas casas mal feitas, que mais
pareciam ruínas de edifícios que casas, de entre as quais perceberam
que saía o ruído e estrondo daquele golpear, que ainda não cessava.
Alvoroçou-se Rocinante com o estrondo da água e dos golpes, e,
sossegando-o dom Quixote, foi-se chegando pouco a pouco às casas,
encomendando-se de todo coração a sua senhora, suplicando-lhe que
naquela temerosa jornada e empresa o favorecesse, e de caminho se
encomendava também a Deus, que não o olvidasse. Não saía Sancho do
seu lado, o qual alargava quanto podia o pescoço e a vista por entre as
pernas de Rocinante, por ver se veria já o que tão suspenso e medroso
o tinha.
Outros cem passos seriam os que andaram, quando, ao dobrar de
uma ponta, pareceu descoberta e patente a mesma causa, sem que
pudesse ser outra, daquele horríssono e para eles espantável ruído,
que tão suspensos e medrosos toda a noite os havia tido. E eram (não
tenhas, oh leitor!, pesar e nojo) seis macetes, que com seus
alternativos golpes aquele estrondo formavam.
Quando dom Quixote viu o que era, emudeceu e petrificou-se.
Mirou-o Sancho, e viu que tinha a cabeça inclinada sobre o peito, com
mostras de estar envergonhado. Olhou também dom Quixote para
Sancho, e viu que tinha as bochechas inchados e a boca cheia de riso,
com evidentes sinais de querer rebentar com ele, e não pôde sua
melancolia tanto com ele que, à vista de Sancho, pudesse deixar de
rir; e, como viu Sancho que seu amo havia começado, relaxou de
maneira que teve necessidade de apertar as ilhargas com os punhos,
para não rebentar rindo. Quatro vezes sossegou, e outras tantas
voltou a seu riso com o mesmo ímpeto que no começo; do que já se
dava ao diabo dom Quixote, e mais quando o ouviu dizer, como por
brincadeira:
- “Hás de saber, oh Sancho amigo!, que eu nasci por querer do céu
nesta nossa idade de ferro para ressuscitar nela a dourada, ou de
ouro. Eu sou aquele para quem estão guardados os perigos, as façanhas
grandes, os valorosos feitos...”
E por aqui foi repetindo todas ou as mais razões que dom Quixote
disse a vez primeira em que ouviram os temerosos golpes.
Vendo, pois, dom Quixote que Sancho fazia burla dele, vexou-se e
irritou-se de tal maneira, que alçou o chuço e lhe assentou dois golpes,
tais que, se, como os recebeu nas costas, os recebesse na cabeça,
ficaria livre de pagar-lhe o salário, se não fosse a seus herdeiros.
Vendo Sancho que sofria tão maus castigos por suas burlas, com
temor de que seu amo continuasse com eles, com muita humildade lhe
disse:
- Sossegue vossa mercê; que, por Deus, que estou brincando.
- Pois porque vós brincais, não brinco eu - respondeu dom Quixote. -
Vinde cá, senhor alegre: parece-vos que, se como estes foram macetes
de madeira, fossem outra perigosa aventura, não havia eu mostrado o
ânimo que convinha para emprendê-la e acabá-la? Estou eu obrigado,
por acaso, sendo, como sou, cavaleiro, a conhecer e distinguir os sons
e saber quais são de macete ou não? E mais, que poderia ser, como é
verdade, que nunca os vi em minha vida, como vós os havereis visto,
como vilão ruim que sois, criado e nascido entre eles. Se não, fazei vós
que estes seis macetes se transformem em seis gigantes, e incitai-os
contra mim um a um, ou todos juntos, e, quando eu não der com todos
de patas para cima, fazei comigo a brincadeira que quiserdes.
- Já chega, senhor meu - replicou Sancho, - que eu confesso que
andei algo risonho em demasia. Mas diga-me vossa mercê, agora que
estamos em paz, assim Deus o salve de todas as aventuras que lhe
sucederem tão são e salvo como salvou desta: não foi coisa de rir, e o
é de contar, o grande medo que tivemos? Ao menos, o que eu tive; que
de vossa mercê já eu sei que não o conhece, nem sabe o que é temor
nem espanto.
- Não nego eu - respondeu dom Quixote - que o que nos sucedeu não
seja coisa digna de riso, mas não é digna de contar-se; pois não são
todas as pessoas tão discretas que saibam dar o devido valor às
coisas.
- Ao menos - respondeu Sancho, - soube vossa mercê dar valor ao
chuço, apontando-me à cabeça, e dando-me nas costas, graças a Deus
e à diligência que pus em virar-me de lado. Mas vá, que afinal sairá
toda a verdade; que eu ouvi dizer: “Esse te quer bem, que te faz
chorar”; e mais, que costumam os principais senhores, após uma má
palavra que dizem a um criado, dar-lhe logo umas calças; embora não
sei o que lhe costumam dar após haver-lhe dado golpes, se já não é que
os cavaleiros andantes dão após golpes ilhas ou reinos em terra firme.
- Tal poderia deparar-lhe a sorte - disse dom Quixote - que tudo o
que dizes viesse a ser verdade; e perdoa o passado, pois és discreto e
sabes que os primeiros impulsos não estão no domínio do homem, e
esteja advertido daqui em diante de uma coisa, para que te abstenhas
e moderes em não falar demasiado comigo; que em quantos livros de
cavalarias tenho lido, que são infinitos, jamais achei que nenhum
escudeiro falasse tanto com seu senhor como tu com o teu. E em
verdade que o tenho por grande falta, tua e minha: tua, porque me
estimas pouco; minha, porque não me deixo estimar mais. Sim, que
Gandalin, escudeiro de Amadis de Gaula, conde foi da Ilha Firme; e se
lê dele que sempre falava a seu senhor com o boné na mão,
inclinada a cabeça e dobrado o corpo more turquesco. Então, que
diremos de Gasabal, escudeiro de dom Galaor, que foi tão calado que,
para declarar-nos a excelência de seu maravilhoso silêncio, só uma vez
se nomeia seu nome em toda aquela tão grande como verdadeira
história? De tudo o que disse hás de inferir, Sancho, que é mister
fazer diferença de amo a moço, de senhor a criado e de cavaleiro a
escudeiro. Assim que, de hoje em diante, havemo-nos de tratar com
mais respeito, sem embromar-nos, porque, de qualquer maneira que eu
me zangue convosco, há de ser mal para o cântaro. As mercês e
benefícios que eu vos prometi chegarão a seu tempo; e se não
chegarem, o salário, ao menos, não se há de perder, como já vos disse.
- Está bem quanto vossa mercê diz - disse Sancho, - mas queria eu
saber, por se acaso não chegasse o tempo das mercês e fosse
necessário atender ao dos salários, quanto ganhava um escudeiro de
um cavaleiro andante naqueles tempos, e se se acertavam por meses,
ou por dias, como pedreiros.
- Não creio eu - respondeu dom Quixote - que jamais os tais
escudeiros estiveram a salário, senão à mercê. E se eu agora te
indiquei no testamento fechado que deixei em minha casa, foi pelo que
podia suceder; que ainda não sei como prova nestes tão calamitosos
tempos nossos a cavalaria, e não queria que por ninharias penasse
minha alma no outro mundo. Porque quero que saibas, Sancho, que
neste não há estado mais perigoso que o dos aventureiros.
- Assim é verdade - disse Sancho, - pois só o ruído dos macetes
pôde alvoroçar e desassossegar o coração de um tão valoroso andante
aventureiro como é vossa mercê. Mas, bem pode estar seguro que,
daqui em diante, não despregue meus lábios para fazer donaire das
coisas de vossa mercê, se não for para honrá-lo, como a meu amo e
senhor natural.
- Dessa maneira - replicou dom Quixote, - viverás sobre a face da
terra; porque, depois de aos pais, aos amos se há de respeitar como se
o fossem.
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXIII
- Por essa trova - disse Sancho - não se pode saber nada, se já não
é que por esse fio que está aí se encontre o novelo de todo.
- Que fio está aqui? - disse dom Quixote.
- Parece-me - disse Sancho - que vossa mercê nomeou aí fio.
- Não disse senão Fili - respondeu dom Quixote, - e este, sem
dúvida, é o nome da dama de quem se queixa o autor deste soneto; e à
fé que deve ser razoável poeta, ou eu sei pouco de arte.
- Logo, também - disse Sancho - entende vossa mercê de trovas?
- E mais do que tu pensas - respondeu dom Quixote, - e o verás
quando leves uma carta, escrita em verso de cima abaixo, a minha
senhora Dulcineia do Toboso. Porque quero que saibas, Sancho, que
todos ou os mais cavaleiros andantes da idade passada eram grandes
trovadores e grandes músicos; que estas duas habilidades, ou graças,
por melhor dizer, são anexas aos enamorados andantes. Verdade é que
as coplas dos passados cavaleiros têm mais de espírito que de primor.
- Leia mais vossa mercê - disse Sancho, - que já achará algo que nos
satisfaça.
Voltou a folha dom Quixote e disse:
- Isto é prosa, e parece carta.
- Carta de família, senhor? - perguntou Sancho.
- No princípio não parece senão de amores - respondeu dom
Quixote.
- Pois leia vossa mercê alto - disse Sancho, - que gosto muito destas
coisas de amores.
- Com prazer - disse dom Quixote.
E lendo-a alto, como Sancho lhe havia rogado, viu que dizia desta
maneira:
Tua falsa promessa e minha certa desventura me levam ao lugar onde antes
voltarão a teus ouvidos as novas de minha morte que as razões de minhas
queixas. Descartaste-me, oh ingrata!, por quem tem mais, não por quem vale mais
que eu; mas se a virtude fosse riqueza que se estimasse, não invejaria eu
felicidades alheias nem choraria desditas próprias. O que levantou tua
formosura derrubaram tuas obras: por ela entendi que eras anjo, e por elas
conheço que és mulher. Fica em paz, causadora de minha guerra, e faça o céu
que os enganos de teu esposo estejam sempre encobertos, para que tu não
fiques arrependida do que fizeste e eu não tome vingança do que não desejo.
CAPÍTULO XXIV
Diz a história que era grandíssima a atenção com que dom Quixote
escutava o andrajoso Cavaleiro da Serra, o qual, prosseguindo sua
conversa, disse:
- Por certo, senhor, quem quer que sejais, que eu não vos conheço,
eu vos agradeço as mostras e a cortesia que comigo usastes; e
quisesse eu achar-me em termos que com mais que a vontade pudesse
servir a que mostrastes ter-me no bom acolhimento que me fizestes,
mas não quer minha sorte dar-me outra coisa com que corresponda às
boas obras que me fazem, que bons desejos de satisfazê-las.
- Os que eu tenho - respondeu dom Quixote - são de servir-vos;
tanto, que tinha determinado de não sair destas serras até achar-vos
e saber de vós se a dor que na estranheza de vossa vida mostrais ter
se podia achar algum gênero de remédio; e se fosse mister buscá-lo,
buscá-lo com a diligência possível. E quando vossa desventura fosse
daquelas que têm fechadas as portas a todo gênero de consolo,
pensava ajudar-vos a chorá-la e lamentá-la como melhor pudesse, que
sempre é consolo nas desgraças achar quem se doa com elas. E se é
que meu bom intento merece ser agradecido com algum gênero de
cortesia, eu vos suplico, senhor, pela muita que vejo que em vós se
encerra, e juntamente vos conjuro pela coisa que nesta vida mais
haveis amado ou amais, que me digais quem sois e a causa que vos
trouxe a viver e a morrer entre estas solidões como bruto animal, pois
morais entre eles tão alheio de vós mesmo qual o mostra vosso traje e
pessoa. E juro - acrescentou dom Quixote, - pela ordem de cavalaria
que recebi, embora indigno e pecador, e pela profissão de
cavaleiro andante, que se nisto, senhor, me comprazeis, de servir-vos
com as verdades a que me obriga o ser quem sou: ora remediando
vossa desgraça, se tem remédio, ora ajudando-vos a chorá-la, como
vos prometi.
O Cavaleiro do Bosque, que de tal maneira ouviu falar ao da Triste
Figura, não fazia senão olhá-lo, e reolhá-lo e torná-lo a olhar de cima
abaixo; e, depois que o olhou bem, disse-lhe:
- Se têm algo que dar-me a comer, por amor de Deus que me deem;
que, depois de haver comido, eu farei tudo o que se me manda, em
agradecimento de tão bons desejos como aqui me mostraram.
Logo tiraram, Sancho de seu saco e o cabreiro de seu surrão, com
que satisfez o Roto sua fome, comendo o que lhe deram como pessoa
apalermada, tão depressa que não dava espaço de um bocado ao outro,
pois antes os engolia que mastigava; e, enquanto comia, nem ele nem os
que o olhavam falavam palavra. Quando acabou de comer, fez-lhes
sinais que o seguissem, o que fizeram, e ele os levou a um verde
pradozinho que à volta de uma penha pouco desviada dali estava. Em
chegando a ele se estendeu no chão, em cima da erva, e os demais
fizeram o mesmo; e tudo isto sem que nenhum falasse, até que o Roto,
depois de haver-se acomodado em seu assento, disse:
- Se gostais, senhores, que vos diga em breves razões a imensidade
de minhas desventuras, haveis-me de prometer de que com nenhuma
pergunta, nem outra coisa, não interrompereis o fio de minha triste
história; porque no ponto que o façais, nesse ficará o que for
contando.
Estas razões do Roto trouxeram à memória de dom Quixote o conto
que lhe havia contado seu escudeiro, quando não acertou o número das
cabras que haviam passado o rio e ficou a história pendente. Mas,
voltando ao Roto, prosseguiu dizendo:
- Esta prevenção que faço é porque queria passar brevemente pelo
conto de minhas desgraças; que o trazê-las à memória não me serve
de outra coisa que acrescentar outras de novo, e, quanto menos me
perguntardes, mais depressa acabarei eu de dizê-las, posto que não
deixarei por contar coisa alguma que seja de importância para
satisfazer de todo vosso desejo.
Dom Quixote o prometeu, em nome dos demais, e ele, com este
seguro, começou desta maneira:
- Meu nome é Cardênio; minha pátria, uma cidade das melhores
desta Andaluzia; minha linhagem, nobre; meus pais, ricos; minha
desventura, tanta que a devem de haver chorado meus pais e sentido
minha linhagem, sem podê-la aliviar com sua riqueza; que para
remediar desditas do céu pouco costumam valer os bens de fortuna.
Vivia nesta mesma terra um céu, onde pôs o amor toda a glória que eu
quisera desejar-me: tal é a formosura de Lucinda, donzela tão nobre e
tão rica como eu, mas de mais ventura e de menos firmeza da que a
meus honrados pensamentos se devia. A esta Lucinda amei, quis e
adorei desde meus ternos e primeiros anos, e ela me quis com aquela
singeleza e bom ânimo que sua pouca idade permitia. Sabiam nossos
pais nossos intentos, e isso não lhes dava pesar, porque bem viam que,
quando refletissem, não podiam ter outro fim que o de casar-nos,
coisa que quase o impunha a igualdade de nossa linhagem e riquezas.
Cresceu a idade, e com ela o amor de ambos, de modo que ao pai de
Lucinda pareceu que por bons respeitos estava obrigado a negar-me a
entrada em sua casa, quase imitando nisto os pais daquela Tisbe tão
cantada pelos poetas. E foi esta negação juntar chama a chama e
desejo a desejo, porque, embora pusessem silêncio às línguas, não lhes
puderam pôr às penas, as quais, com mais liberdade que as línguas,
costumam dar a entender a quem querem o que na alma está
encerrado; que muitas vezes a presença da coisa amada turva e
emudece a intenção mais determinada e a língua mais atrevida. Ai
céus, e quantos bilhetes lhe escrevi! Quão regaladas e honestas
respostas tive! Quantas canções compus e quantos enamorados versos,
onde a alma declarava e trasladava seus sentimentos, pintava seus
acesos desejos, entretinha suas memórias e recreava sua vontade!
Com efeito, vendo-me apurado, e que minha alma se consumia com o
desejo de vê-la, determinei pôr em prática e concluir rapidamente o
que me pareceu que mais convinha para sair com meu desejado e
merecido prêmio; e foi o pedi-la a seu pai por legítima esposa, como o
fiz; ao que ele me respondeu que me agradecia a vontade que mostrava
de honrá-lo, e de querer honrar-me com prendas suas, mas que, sendo
meu pai vivo, a ele tocava de justo direito fazer aquela demanda;
porque, se não fosse com muita vontade e gosto seu, não era Lucinda
mulher para tomar-se nem dar-se a furto. Eu lhe agradeci seu bom
intento, parecendo-me que levava razão no que dizia, e que meu pai
conviria nisso conforme eu o dissesse; e com este intento, logo
naquele mesmo instante, fui dizer a meu pai o que desejava, e ao
tempo que entrei num aposento onde estava, achei-o com uma carta
aberta na mão, a qual, antes que eu lhe dissesse palavra, entregou-a e
disse: “Por essa carta verás, Cardênio, a vontade que o duque Ricardo
tem de fazer-te mercê”. Este duque Ricardo, como já vós, senhores,
deveis saber, é um grande da Espanha que tem seus domínios no
melhor desta Andaluzia. Tomei e li a carta, a qual vinha tão encarecida
que a mim mesmo me pareceu mal se meu pai deixasse de cumprir o
que nela se lhe pedia, que era que me enviasse logo onde ele estava;
que queria que fosse companheiro, não criado, de seu filho o maior, e
que ele tomava a cargo o pôr-me no patamar que correspondesse à
estima em que me tinha. Li a carta e emudeci lendo-a, e mais quando
ouvi que meu pai me dizia: “Daqui a dois dias partirás, Cardênio, a
fazer a vontade do duque; e dá graças a Deus que te vai abrindo
caminho por onde alcances o que eu sei que mereces”. Acrescentou a
estas outras razões de pai conselheiro. Chegou a época de minha
partida, falei uma noite a Lucinda, disse-lhe tudo o que se passava, e o
mesmo fiz a seu pai, suplicando-lhe se entretivesse alguns dias e
dilatasse o dar-lhe a mão até que eu visse o que Ricardo me queria. Ele
o prometeu e ela o confirmou com mil juramentos e mil desmaios. Vim,
enfim, onde o duque Ricardo estava. Fui dele tão bem recebido e
tratado, que desde logo começou a inveja a fazer seu ofício, tendo-a
os criados antigos, parecendo-lhes que as mostras que o duque dava
de fazer-me mercê haviam de ser em prejuízo seu. Mas o que mais se
alegrou com minha ida foi um filho segundo do duque, chamado
Fernando, moço galhardo, gentil-homem, liberal e enamorado, o qual,
em pouco tempo, quis que fosse tão seu amigo, que dava que dizer a
todos; e, embora o maior me queria bem e me fazia mercê, não chegou
ao extremo com que dom Fernando me queria e tratava. É, pois, o caso
que, como entre os amigos não há coisa secreta que não se comunique,
e o valimento que eu tinha de dom Fernando deixava de sê-lo para ser
amizade, todos seus pensamentos me declarava, especialmente um
enamorado, que lhe dava um pouco de desassossego. Queria bem a uma
lavradora, vassala de seu pai, e vassalos ela os tinha muito ricos, e era
tão formosa, recatada, discreta e honesta que ninguém que a conhecia
saberia dizer em qual destas coisas tivesse mais excelência nem mais
se avantajasse. Estas tão boas qualidades da formosa lavradora
levaram a tal ponto os desejos de dom Fernando, que decidiu, para
poder alcançá-lo e conquistar a virgindade da lavradora, dar-lhe
palavra de ser seu esposo, porque de outra maneira era procurar o
impossível. Eu, obrigado de sua amizade, com as melhores razões que
soube e com os mais vivos exemplos que pude, procurei convencê-lo e
afastá-lo de tal propósito. Mas, vendo que não conseguia, decidi
contar o caso ao duque Ricardo, seu pai. Mas dom Fernando, como
astuto e discreto, receou isto, por parecer-lhe que estava eu
obrigado, como bem educado, não ter encoberta coisa que tão em
prejuízo da honra de meu senhor o duque vinha; e assim, por distrair-
me a atenção e enganar-me, me disse que não achava outro melhor
remédio para poder afastar da memória a formosura que tão sujeito o
tinha, que o ausentar-se por alguns meses; e que queria que a ausência
fosse que os dois viéssemos em casa de meu pai, por ocasião que
dariam ao duque que vinha ver e comprar uns muito bons cavalos que
em minha cidade havia, que é mãe dos melhores do mundo. Apenas lhe
ouvi eu dizer isto, quando, movido de minha afeição, embora sua
decisão não fosse tão boa, aprovei-a eu por uma das mais acertadas
que se podiam imaginar, por ver quão bom motivo e conjuntura se me
oferecia de voltar a ver a minha Lucinda. Com este pensamento e
desejo, aprovei seu parecer e endossei seu propósito, dizendo-lhe que
o pusesse em prática com a brevidade possível, porque, com efeito, a
ausência fazia seu ofício, apesar dos mais firmes pensamentos. Já
quando ele me veio dizer isto, segundo depois se soube, havia
desfrutado da lavradora a título de esposo, e esperava a ocasião de
manifestá-lo oportunamente, temeroso do que o duque seu pai faria
quando soubesse de seu disparate. Sucedeu, pois, que, como o amor
nos moços, na maior parte, não o é, senão apetite, o qual, como tem
por último fim o deleite, chegando a alcançá-lo se acaba, e há de
voltar atrás aquilo que parecia amor, porque não pode passar adiante
do termo que lhe pôs a natureza, o qual termo não pôs ao que é
verdadeiro amor, quero dizer que, assim que dom Fernando desfrutou
da lavradora, aplacaram-se seus desejos e resfriaram seus afincos; e
se primeiro fingia querer-se ausentar, por remediá-los, agora deveras
procurava ir-se, por não pô-los em execução. Deu-lhe o duque licença,
e mandou-me que o acompanhasse. Vimos à minha cidade, recebeu-o
meu pai como quem era; vi eu logo Lucinda, tornaram a viver (embora
não estivessem mortos nem amortecidos) meus desejos, dos quais dei
conta, por meu mal, a dom Fernando, por parecer-me que, na lei da
muita amizade que mostrava, não lhe devia encobrir nada. Louvei a
formosura, donaire e discrição de Lucinda de tal maneira, que minhas
louvações moveram nele os desejos de querer ver donzela de tantas
boas qualidades adornada. Cumpri-los eu, para minha pequena sorte,
mostrando-a uma noite, à luz de uma vela, por uma janela por onde os
dois costumávamos falar-nos. Viu-a de camisola, tal, que todas as
belezas até então por ele vistas as pôs no olvido. Emudeceu, perdeu o
sentido, ficou absorto e, finalmente, tão enamorado qual o vereis no
decurso do conto de minha desventura. E para acender-lhe mais o
desejo (que a mim ocultava e só ao céu descobria), quis o destino que
achasse um dia um bilhete dela pedindo-me que a pedisse a seu pai por
esposa, tão discreto, tão honesto e tão enamorado que, lendo-o, disse-
me que unicamente em Lucinda se encerravam todas as graças de
formosura e de entendimento que nas demais mulheres do mundo
estavam repartidas. Bem é verdade que quero confessar agora que,
posto que eu via com quão justas causas dom Fernando a Lucinda
louvava, pesava-me ouvir aquelas louvações de sua boca, e comecei a
temer e a recear-me dele, porque não se passava momento onde não
quisesse que tratássemos de Lucinda, e ele movia para aí a conversa,
embora por pouco que fosse, coisa que despertava em mim um não sei
quê de ciúmes, não porque eu temesse revés algum da bondade e da fé
de Lucinda, mas, então, me fazia temer minha sorte o mesmo que ela
me assegurava. Procurava sempre dom Fernando ler os papéis que eu a
Lucinda enviava e os que ela me respondia, a título que da discrição
dos dois gostava muito. Aconteceu, pois, que, havendo-me pedido
Lucinda um livro de cavalarias para ler, de quem era ela muito
aficionada, que era o de Amadis de Gaula...
Não bem ouviu dom Quixote nomear livro de cavalarias, quando
disse:
- Se me dissesse vossa mercê, ao princípio de sua história, que sua
mercê a senhora Lucinda era aficionada a livros de cavalarias, não
seria mister outro encarecimento para dar-me a entender a alteza de
seu entendimento, porque não o tivesse tão bom como vós, senhor, o
haveis pintado, se carecesse do gosto de tão saborosa leitura: assim
que, para comigo, não é mister gastar mais palavras em declarar-me
sua formosura, valor e entendimento; que, por só haver entendido sua
afeição, a confirmo pela mais formosa e mais discreta mulher do
mundo. E quisesse eu, senhor, que vossa mercê lhe houvesse enviado
junto com Amadis de Gaula ao bom de Don Rugel de Grécia, que eu sei
que gostaria a senhora Lucinda muito de Daraida e Geraya, e das
discrições do pastor Darinel e daqueles admiráveis versos de suas
bucólicas, cantadas e representadas por ele com todo donaire,
discrição e desenvoltura. Mas tempo poderá vir em que se emende
essa falta, e não dura mais em fazer-se a emenda de quanto queira
vossa mercê ser servido de vir comigo a minha aldeia, que ali lhe
poderei dar mais de trezentos livros, que são o regalo de minha alma e
o entretenimento de minha vida; embora tenha para mim que já não
tenho nenhum, mercê à malícia de maus e invejosos encantadores. E
perdoe-me vossa mercê o haver contravindo ao que prometemos de
não interromper sua conversa, pois, ouvindo coisas de cavalarias e de
cavaleiros andantes, assim está em minhas mãos deixar de falar neles,
como o está nas dos raios do sol deixar de aquecer, nem umedecer nas
da lua. Assim que, perdão e prosseguir, que é o que agora faz mais ao
caso.
Enquanto dom Quixote estava dizendo o que fica dito, Cardênio
deixara cair a cabeça sobre o peito, dando mostras de estar
profundamente pensativo. E posto que duas vezes lhe disse dom
Quixote que prosseguisse sua história, nem alçava a cabeça nem
respondia palavra; mas, ao cabo de um bom espaço, levantou-a e disse:
- Não se me pode tirar do pensamento, nem haverá quem mo tire no
mundo, nem quem me dê a entender outra coisa, e seria um tonto o que
o contrário entendesse ou acreditasse, senão que aquele velhacão do
cirurgião Elisabat estava amancebado com a rainha Madásima.
- Isso não, voto a tal! - respondeu com muita cólera dom Quixote, e
lançou-lhe esta jura, como tinha costume, - e essa é uma muito grande
malícia, ou velhacaria, por melhor dizer: a rainha Madásima foi muito
principal senhora, e não se há de presumir que tão alta princesa se
havia de amancebar com um mau cirurgião; e quem o contrário
entender, mente como muito grande velhaco. E eu o darei a entender,
a pé ou a cavalo, armado ou desarmado, de noite ou de dia, ou como
mais gosto lhe der.
Estava-o olhando muito atentamente Cardênio, que já compreendera
o acidente de sua loucura e não estava para prosseguir sua história;
nem tampouco dom Quixote a ouviria, segundo o desgostara o que de
Madásima ouvira. Estranho caso; que assim a defendeu como se
verdadeiramente fosse sua verdadeira e natural senhora, tal como
seus excomungados livros o tinham! Digo, pois, que, como já Cardênio
estava louco e se ouviu tratar de mentiroso e de velhaco, com outras
injúrias semelhantes, pareceu-lhe mal a burla, e alçou um seixo que
achou junto a si, e deu com ele nos peitos tal golpe a dom Quixote que
o fez cair de costas. Sancho Pança, que de tal modo viu parar a seu
senhor, arremeteu ao louco com o punho fechado; e o Roto o recebeu
de tal sorte que com uma murro deu com ele a seus pés, e logo subiu
sobre ele e lhe magoou as costelas muito a seu sabor. O cabreiro, que
o quis defender, correu o mesmo perigo. E depois que os teve a todos
rendidos e moídos, deixou-os e se foi, com gentil sossego, emboscar-
se na montanha.
Levantou-se Sancho, e, com a raiva que tinha de ver-se aporreado
tão sem merecê-lo, acudiu a tomar a vingança do cabreiro, dizendo-lhe
que ele tinha a culpa de não haver-lhes avisado que àquele homem o
tomava a tempos a loucura; que, se isto soubessem, estariam prontos
para poder-se guardar. Respondeu o cabreiro que já o havia dito, e que
se ele não o havia ouvido, que não era sua a culpa. Replicou Sancho
Pança, e tornou a replicar o cabreiro, e foi o fim das réplicas
agarrarem-se as barbas e dar-se tais murros que, se dom Quixote não
os pusesse em paz, far-se-iam em pedaços. Dizia Sancho, preso com o
cabreiro:
- Deixe-me vossa mercê, senhor cavaleiro da Triste Figura, que
neste, que é vilão como eu e não está armado cavaleiro, bem posso a
meu salvo satisfazer-me do agravo que me fez, lutando com ele mão a
mão, como homem honrado.
- Assim é - disse dom Quixote, - mas eu sei que ele não tem
nenhuma culpa do sucedido.
Com isto os apaziguou, e dom Quixote voltou a perguntar ao
cabreiro se seria possível achar Cardênio, porque ficava com
grandíssimo desejo de saber o fim de sua história. Disse-lhe o
cabreiro o que antes lhe havia dito, que era não conhecer ao certo sua
guarida, mas que se andasse muito por aqueles contornos, não deixaria
de achá-lo, ou lúcido ou louco.
CAPÍTULO XXV
Que trata das estranhas coisas que na Serra Morena sucederam ao
valente cavaleiro da Mancha, e da imitação que fez à penitência do
Belo Tenebroso
- Por vida de meu pai, - disse Sancho ouvindo a carta, - que é a mais
alta coisa que jamais ouvi. Pese a mim, e como que lhe diz vossa mercê
aí tudo quanto quer, e que bem que encaixa na assinatura O Cavaleiro
da Triste Figura! Digo de verdade que é vossa mercê o mesmo diabo, e
que não haja coisa que não saiba.
- Tudo é mister - respondeu dom Quixote, - para o ofício que trago.
- Eia, pois - disse Sancho, - ponha vossa mercê nessa outra volta a
cédula dos três asninhos e assine-a com muita claridade, porque a
reconheçam vendo-a.
- Com prazer, - disse dom Quixote.
E havendo-a escrito, leu-a; que dizia assim:
Mandará vossa mercê, por esta primeira de asninhos, senhora sobrinha, dar
a Sancho Pança, meu escudeiro, três dos cinco que deixei em casa e estão a
cargo de vossa mercê. Os quais três asninhos os mando liberar e pagar por
outros tantos aqui recebidos de contado, que consta, e com sua carta de
pagamento serão bem dados. Feita nas entranhas de Serra Morena, a vinte
e dois de agosto deste presente ano.
CAPÍTULO XXVI
Buscando as aventuras
por entre as duras penhas,
maldizendo entranhas duras,
que entre penhascos e entre brenhas
acha o triste desventuras,
feriu-o amor com seu açoite,
não com sua branda correia;
e, tocando-lhe o cangote,
aqui chorou dom Quixote
ausências de Dulcineia
do Toboso.
CAPÍTULO XXVII
SONETO
LUCINDA A CARDENIO
Cada dia descubro em vós valores que me obrigam e forçam a que em mais vos
estime; e assim, se quiserdes tirar-me desta dúvida sem executar-me na honra,
o podereis muito bem fazer. Pai tenho, que vos conhece e que me quer bem, o
qual, sem forçar minha vontade, cumprirá a que será justo que vós tenhais, se é
que me estimais como dizeis e como eu creio.
- Por este bilhete me movi a pedir Lucinda por esposa, como já vos
contei, e isto foi por quem ficou Lucinda na opinião de dom Fernando
por uma das mais discretas e avisadas mulheres de seu tempo; e este
bilhete foi o que o pôs em desejo de destruir-me, antes que o meu se
efetuasse. Disse eu a dom Fernando do que fazia questão o pai de
Lucinda, que era que meu pai a pedisse, o que eu não lhe ousava dizer,
temeroso que não faria isso, não porque não tivesse bem conhecida a
qualidade, bondade, virtude e formosura de Lucinda, e que tinha
qualidades bastantes para enobrecer qualquer outra linhagem da
Espanha, senão porque eu entendia dele que desejava que não me
casasse logo, até ver o que o duque Ricardo fazia comigo. Em suma,
disse-lhe que não me aventurava a dizê-lo a meu pai, assim por aquele
inconveniente como por outros muitos que me acovardavam, sem saber
quais eram, senão que me parecia que o que eu desejava jamais havia
de ter efeito. A tudo isto me respondeu dom Fernando que ele se
encarregava de falar a meu pai e fazer com ele que falasse ao de
Lucinda. Oh Mário ambicioso, oh Catilina cruel, oh Sila facinoroso, oh
Galalão embusteiro, oh Vellido traidor, oh Julião vingativo, oh Judas
cobiçoso! Traidor, cruel, vingativo e embusteiro, que desserviços te
havia feito este triste, que com tanta lhaneza te descobriu os
segredos e alegrias de seu coração? Que ofensa te fiz? Que palavras
te disse, ou que conselhos te dei, que não fossem todos encaminhados
a acrescentar tua honra e teu proveito? Mas, de que me queixo?,
desventurado de mim!, pois é coisa certa que quando trazem as
desgraças o curso dos astros, como vêm de alto a baixo, despenhando-
se com furor e com violência, não há força na terra que as detenha,
nem indústria humana que prevê-las possa. Quem poderia imaginar que
dom Fernando, cavaleiro ilustre, discreto, obrigado de meus serviços,
poderoso para alcançar o que o desejo amoroso lhe pedisse onde quer
que o ocupasse, havia de sujar-se, como costuma dizer-se, em tomar-
me a mim uma só ovelha, que ainda não possuía? Mas deixem-se estas
considerações à parte, como inúteis e sem proveito, e retomemos o
roto fio de minha desditada história.
“Digo, pois, que, parecendo a dom Fernando que minha presença lhe
era inconveniente para pôr em execução seu falso e mau pensamento,
decidiu enviar-me a seu irmão maior, para pedir-lhe uns dinheiros para
pagar seis cavalos, que por indústria, e só para este efeito de que me
ausentasse, para poder melhor sair com seu danado intento, no mesmo
dia que se ofereceu a falar a meu pai os comprou, e quis que eu viesse
pelo dinheiro. Pude eu prever esta traição? Pude, porventura, imaginá-
la? Não, por certo; antes, com grandíssimo gosto, me ofereci a partir
logo, contente da boa compra feita. Aquela noite falei com Lucinda, e
lhe disse o que com dom Fernando ficava acertado, e que tivesse
firme esperança de que teriam efeito nossos bons e justos desejos.
Ela me disse, tão segura como eu da traição de dom Fernando, que
procurasse voltar logo, porque acreditava que não tardaria mais a
conclusão de nossas vontades que tardasse meu pai de falar ao seu.
Não sei o que foi, que, acabando de dizer-me isto, se lhe encheram os
olhos de lágrimas e um nó se lhe atravessou na garganta, que não a
deixava falar palavra de outras muitas que me pareceu que procurava
dizer-me. Fiquei admirado deste novo acidente, até ali jamais nela
visto, porque sempre nos falávamos, as vezes que a boa fortuna e
minha diligência o concedia, com todo regozijo e alegria, sem misturar
em nossas conversas lágrimas, suspiros, zelos, suspeitas ou temores.
Tudo era engrandecer eu minha ventura, por haver-ma dado o céu por
senhora: exagerava sua beleza, admirava-me de seu valor e
entendimento. Dava-me ela o troco, louvando em mim o que, como
enamorada, lhe parecia digno de louvação. Com isto, nos contávamos
cem mil ninharias e acontecimentos de nossos vizinhos e conhecidos, e
ao que mais se entendia minha desenvoltura era tomar-lhe, quase por
força, uma de suas belas e brancas mãos, e chegá-la a minha boca,
segundo dava lugar a estreiteza de uma baixa grade que nos dividia.
Mas a noite que precedeu ao triste dia de minha partida, ela chorou,
gemeu e suspirou, e se foi, e me deixou cheio de confusão e
sobressalto, espantado de haver visto tão novas e tão tristes mostras
de dor e sentimento em Lucinda. Mas, por não destruir minhas
esperanças, tudo o atribuí à força do amor que me tinha e à dor que
costuma causar a ausência nos que bem se querem. Enfim, eu parti
triste e pensativo, cheia a alma de imaginações e suspeitas, sem saber
o que suspeitava nem imaginava: claros indícios que me mostravam o
triste sucesso e desventura que me estava guardada. Cheguei ao lugar
onde era enviado. Dei as cartas ao irmão de dom Fernando; fui bem
recebido, mas não bem despachado, porque me mandou aguardar, bem
a meu desgosto, oito dias, e em lugar onde o duque, seu pai, não me
visse, porque seu irmão lhe escrevia que lhe enviasse certo dinheiro
sem seu conhecimento. E tudo foi invenção do falso dom Fernando,
pois não faltavam a seu irmão dinheiros para despachar-me logo.
Ordem e mandato foi este que me pôs em condição de não obedecê-lo,
por parecer-me impossível sustentar tantos dias a vida no ausência de
Lucinda, e mais, havendo-a deixado com a tristeza que vos contei; mas,
mesmo assim, obedeci, como bom criado, embora visse que havia de
ser à custa de minha saúde. Mas, aos quatro dias que ali cheguei,
chegou um homem em minha busca com uma carta, que me deu, que no
sobrescrito conheci ser de Lucinda, porque a letra dele era sua. Abri-
a, temeroso e com sobressalto, crendo que coisa grande devia ser a
que a havia movido a escrever-me estando ausente, pois presente
poucas vezes o fazia. Perguntei ao homem, antes de lê-la, quem a havia
dado e o tempo que havia tardado no caminho. Disse-me que acaso,
passando por uma rua da cidade à hora de meo-dia, uma senhora muito
formosa o chamou desde uma janela, os olhos cheios de lágrimas, e que
com muita pressa lhe disse: “- Irmão: se sois cristão, como pareceis,
por amor de Deus vos rogo que encaminheis logo logo esta carta ao
lugar e à pessoa que diz o sobrescrito, que tudo é bem conhecido, e
nisto fareis um grande serviço a Nosso Senhor; e para que não vos
falte comodidade de podê-lo fazer, tomai o que vai neste lenço”. “E
dizendo isto, me arrojou pela janela um lenço, onde vinham atados cem
reais e este anel de ouro que aqui trago, com essa carta que vos dei. E
logo, sem aguardar resposta minha, se afastou da janela; embora
primeiro viu como eu tomei a carta e o lenço, e, por sinais, disse-lhe
que faria o que me mandava. E assim, vendo-me tão bem pago do
trabalho que podia tomar em trazer-vo-la e conhecendo pelo
sobrescrito que éreis vós a quem se enviava, porque eu, senhor, vos
conheço muito bem, e obrigado também das lágrimas daquela formosa
senhora, decidi não fiar-me em outra pessoa, senão vir eu mesmo a
dar-vo-la; e em dezesseis horas que há que me entregou, fiz o
caminho, que sabeis que é de dezoito léguas”.
“Enquanto que o agradecido e novo correio isto me dizia, estava eu
pendurado de suas palavras, tremendo-me as pernas de maneira que
apenas podia suster-me. Com efeito, abri a carta e vi que continha
estas razões:
A palavra que dom Fernando vos deu de falar a vosso pai para que falasse ao
meu, cumpriu-a mais em seu gosto que em vosso proveito. Sabei, senhor, que ele
me pediu por esposa, e meu pai, levado da vantagem que ele pensa que dom
Fernando vos faz, concedeu, com tantas veras que daqui a dois dias se há de
fazer o desposório, tão secreto e tão a sós, que só hão de ser testemunhos os
céus e alguma gente de casa. Como estou, imaginai; se vos cumpre vir, vinde; e se
vos quero bem ou não, o sucesso deste caso vo-lo dará a entender. A Deus preze
que esta chegue a vossas mãos antes que a minha se veja em condição de juntar-
se com a de quem tão mal sabe guardar a fé que promete.
CAPÍTULO XXVIII
CAPÍTULO XXIX
CAPÍTULO XXX
CAPÍTULO XXXI
CAPÍTULO XXXII
CAPÍTULO XXXIII
Assim que não evitarás com o segredo tua dor; antes, terás que
chorar continuamente, se não lágrimas dos olhos, lágrimas de sangue
do coração, como as chorava aquele ingênuo doutor que nosso poeta
nos conta que fez a prova do vaso, que, com melhor razão, se escusou
de fazê-la o prudente Reinaldo; que, posto que aquilo seja ficção
poética, tem em si encerrados segredos morais dignos de ser
advertidos e entendidos e imitados. Quanto mais que, com o que agora
penso dizer-te, acabarás de vir em conhecimento do grande erro que
queres cometer. Diz-me, Anselmo, se o céu, ou a sorte boa, te
houvesse feito senhor e legítimo possuidor de um finíssimo diamante,
de cuja bondade e quilates estivessem satisfeitos quantos lapidários o
vissem, e que todos a uma voz e de comum parecer dissessem que
chegava em quilates, bondade e fineza a quanto se podia estender a
natureza de tal pedra, e tu mesmo o cresses assim, sem saber outra
coisa em contrário, seria justo que te viesse em desejo de tomar
aquele diamante, e pô-lo entre uma bigorna e um martelo, e ali, a pura
força de golpes e braços, provar se é tão duro e tão fino como dizem?
E mais, se o pusesses em prática; que, caso a pedra fizesse
resistência a tão néscia prova, não por isso se lhe juntaria mais valor
nem mais fama; e se se rompesse, coisa que poderia ser, não se
perderia tudo? Sim, por certo, deixando a seu dono no conceito de que
todos o tenham por bruto. Pois faz de conta, Anselmo amigo, que
Camila é finíssimo diamante, assim em teu conceito como no alheio, e
que não é razão pô-la em contingência de que se quebre, pois, embora
fique com sua integridade, não pode subir a mais valor do que agora
tem; e se faltasse e não resistisse, considera desde agora como
ficarias sem ela, e com quanta razão te poderias queixar de ti mesmo,
por haver sido causa de sua perdição e a tua. Vê que não há joia no
mundo que tanto valha como a mulher casta e honrada, e que toda a
honra das mulheres consiste na opinião boa que delas se tem; e, pois a
de tua esposa é tal que chega ao extremo de bondade que sabes, para
que queres pôr esta verdade em dúvida? Vê, amigo, que a mulher é
animal imperfeito, e que não se lhe hão de pôr embaraços onde
tropece e caia, senão tirá-los e limpar-lhe o caminho de qualquer
inconveniente, para que sem pesar corra ligeira a alcançar a perfeição
que lhe falta, que consiste no ser virtuosa. Contam os naturais que o
arminho é um animalejo que tem uma pele branquíssima, e que quando
querem caçá-lo, os caçadores usam deste artifício: que, sabendo os
lugares por onde costuma passar, os atapetam de lodo, e depois,
espantando-o com a voz, encaminham-no até aquele lugar, e assim que
o arminho chega ao lodo, fica parado e se deixa prender e cativar, a
troco de não passar pela lama e perder e sujar sua brancura, que a
estima mais que a liberdade e a vida. A honesta e casta mulher é
arminho, e é mais que neve branca e limpa a virtude da honestidade; e
o que quiser que não a perca, antes a guarde e conserve, há de usar de
outro estilo diferente que com o arminho se tem, porque não lhe hão
de pôr diante a lama dos regalos e serviços dos importunos amantes,
porque quiçá, e ainda sem quiçá, não tem tanta virtude e força natural
que possa por si mesma atropelar e passar por aqueles embaraços, e é
necessário tirá-los e pôr-lhe diante a limpeza da virtude e a beleza
que encerra em si a boa fama. É também a boa mulher como espelho
de cristal luzente e claro; mas está sujeito a empanar-se e escurecer-
se com qualquer alento que o toque. Há-se de usar com a honesta
mulher o estilo que com as relíquias: adorá-las e não tocá-las. Há-se
de guardar e estimar a mulher boa como se guarda e estima um
formoso jardim que está cheio de flores e rosas, cujo dono não
consente que ninguém lhe passeie nem manuseie; basta que desde
longe, e por entre as cancelas de ferro, gozem de sua fragrância e
formosura. Finalmente, quero dizer-te uns versos que me vieram à
memória, que os ouvi em uma comédia moderna, que me parece que
vêm a propósito do que vamos tratando. Aconselhava um prudente
velho a outro, pai de uma donzela, que a recolhesse, guardasse e
encerrasse, e entre outras razões, disse-lhe estas:
É de vidro a mulher;
mas não se há de provar
se se pode ou não quebrar,
porque tudo poderia ser.
E é mais fácil o quebrar-se,
e não é cordura pôr-se
a perigo de romper-se
o que não pode soldar-se.
E nesta opinião estejam
todos, e em razão a fundo:
que se há Dânaes no mundo,
há chuvas de ouro também.
CAPÍTULO XXXIV
Assim como costuma dizer-se que parece mal o exército sem seu general e o
castelo sem seu castelão, digo eu que parece muito pior a mulher casada e moça
sem seu marido, quando justíssimas ocasiões não o impedem. Eu me acho tão mal
sem vós, e tão impossibilitada de não poder suportar esta ausência, que se logo
não vindes, me haverei de ir passar uma temporada em casa de meus pais,
embora deixe sem guardião a vossa; porque o que me deixastes, se é que ficou
com tal título, creio que olha mais por seu gosto que pelo que a vós vos toca; e,
pois sois discreto, não tenho mais que dizer-vos, nem ainda é bem que mais vos
diga.
Esta carta recebeu Anselmo, e entendeu por ela que Lotário havia
já começado a empresa, e que Camila devia haver respondido como ele
desejava; e, alegre sobremaneira por tais novas, respondeu a Camila,
por meio de um emissário, que não saísse de sua casa de modo nenhum,
porque ele voltaria com muita brevidade. Admirada ficou Camila da
resposta de Anselmo, que a pôs em mais confusão que antes, porque
nem se atrevia a estar em sua casa, nem menos ir-se à de seus pais;
porque ao ficar corria perigo sua honestidade, e na ida ia contra o
mandamento de seu esposo.
Enfim, se resolveu no que lhe esteve pior, que foi no ficar, com
determinação de não fugir à presença de Lotário, por não dar que
dizer a seus criados; e já lhe pesava haver escrito o que escreveu a
seu esposo, temerosa de que pensasse que Lotário havia visto nela
alguma desenvoltura que o houvesse movido a não guardar-lhe o
decoro que devia. Mas, confiante em sua bondade, confiou-se a Deus e
a seu bom pensamento, com que pensava resistir calando a tudo aquilo
que Lotário dizer-lhe quisesse, sem dar mais conta a seu marido, por
não pô-lo em alguma pendência e trabalho. E ainda andava buscando
maneira como desculpar Lotário com Anselmo, quando lhe perguntasse
o motivo que a havia movido a escrever-lhe aquele papel. Com estes
pensamentos, mais honrados que acertados nem proveitosos, esteve
no outro dia escutando Lotário, o qual carregou a mão de maneira que
começou a titubear a firmeza de Camila, e sua honestidade teve muito
que fazer em atender aos olhos, para que não dessem mostra de
alguma amorosa compaixão que as lágrimas e as razões de Lotário em
seu peito haviam despertado. Tudo isto notava Lotário, e todo o
incendiava.
Finalmente, a ele pareceu que era preciso, no espaço e lugar que
dava a ausência de Anselmo, apertar o cerco àquela fortaleza. E assim,
confirmou sua pretensão com as louvações de sua formosura, porque
não há coisa que mais rápido renda e invada as fortificadas torres da
vaidade das formosas que a mesma vaidade, posta nas línguas da
adulação. Com efeito, ele, com toda diligência, minou a cidadela de sua
integridade, com tais apetrechos que, embora Camila fosse toda de
bronze, viria ao chão. Chorou, rogou, ofereceu, adulou, porfiou, e
fingiu Lotário com tantos sentimentos, com mostras de tantas veras,
que deu ao través com o recato de Camila e veio a triunfar do que
menos pensava e mais desejava.
Rendeu-se Camila, Camila se rendeu; mas é demais, se a amizade de
Lotário desmoronou? Exemplo claro que nos mostra que só se vence a
paixão amorosa fugindo-lhe, e que ninguém se há de pôr a braços com
tão poderoso inimigo, porque é mister forças divinas para vencer as
suas humanas. Só soube Leonela a fraqueza de sua senhora, porque
não a puderam encobrir os dois maus amigos e novos amantes. Não quis
Lotário dizer a Camila a pretensão de Anselmo, nem que ele lhe havia
dado lugar para chegar àquele ponto, porque não tivesse em menos seu
amor e pensasse que assim, acaso e sem pensar, e não de propósito, a
havia requestado.
Voltou dali a poucos dias Anselmo à sua casa, e não viu o que
faltava nela, que era o que em menos tinha e mais estimava. Foi logo
ver Lotário, e achou-o em sua casa; abraçaram-se os dois, e Anselmo
perguntou pelas novas de sua vida ou de sua morte.
- As novas que te poderei dar, oh amigo Anselmo! - disse Lotário, -
são de que tens uma mulher que dignamente pode ser exemplo e coroa
de todas as mulheres boas. As palavras que lhe disse as levou o ar, os
oferecimentos foram tidos em pouco, as dádivas não se admitiram, de
algumas lágrimas fingidas minhas fez burla notável. Em suma, assim
que Camila é compêndio de toda beleza, é arquivo onde habita a
honestidade e vive o comedimento e o recato, e todas as virtudes que
podem fazer louvável e bem afortunada uma honrada mulher. Volte a
tomar teus dinheiros, amigo, que aqui os tenho, sem haver tido
necessidade de tocar neles; que a integridade de Camila não se rende
a coisas tão baixas como são dádivas nem promessas. Contenta-te,
Anselmo, e não queiras fazer mais provas que as feitas; e pois a pé
enxuto passaste o mar das dificuldades e suspeitas que das mulheres
costumam e podem ter-se, não queiras entrar de novo no profundo
pélago de novos inconvenientes, nem queiras fazer experiência com
outro piloto da bondade e fortaleza do navio que o céu te deu em
sorte para que nele passasses o mar deste mundo, senão acredita que
estás já em seguro porto, e aferra-te com as âncoras da boa
consideração, e deixa-te estar até que te venham cobrar a dívida, a da
morte, que não há fidalguia humana que de pagá-la se escuse.
Contentíssimo ficou Anselmo pelas palavras de Lotário, e assim
nelas acreditou como se fossem ditas por algum oráculo, mas, então,
rogou-lhe que não deixasse a empresa, embora não fosse mais que por
curiosidade e entretenimento, embora não se utilizassem daí em
diante tão veementes diligências como até então; e que só queria que
lhe escrevesse alguns versos em sua louvação, debaixo do nome de
Clori, porque ele daria a entender a Camila que andava enamorado de
uma dama, a quem lhe havia posto aquele nome por poder celebrá-la
com o decoro que a sua honestidade lhe devia; e que, se Lotário não
quisesse tomar trabalho de escrever os versos, ele os faria.
- Isso não será preciso - disse Lotário, - pois não me são tão
inimigas as musas que em algumas épocas do ano não me visitem. Diz tu
a Camila o que disseste do fingimento de meus amores, que os versos
eu os farei; se não tão bons como o sujeito merece, serão, pelo menos,
os melhores que eu puder.
Fizeram este acordo o impertinente e o traidor amigo; e, voltou
Lotário (lapso do A.; deveria ser Anselmo. N. do T.) à sua casa,
perguntou a Camila o que ela já se maravilhava de que não o houvesse
perguntado: que foi que lhe dissesse o motivo por que lhe havia escrito
o papel que lhe enviou. Camila lhe respondeu que lhe havia parecido que
Lotário a olhava um pouco mais desenvoltamente que quando ele estava
em casa; mas que já estava desenganada e cria que havia sido
imaginação sua, porque já Lotário fugia de vê-la e de estar com ela a
sós. Disse-lhe Anselmo que bem podia estar segura daquela suspeita,
porque ele sabia que Lotário andava enamorado de uma donzela
principal da cidade, a quem ele celebrava debaixo do nome de Clori, e
que, embora não o estivesse, não havia que temer da verdade de
Lotário e da muita amizade de ambos. E a não estar avisada Camila por
Lotário de que eram fingidos aqueles amores de Clori, e que ele o havia
dito a Anselmo por poder ocupar-se algum tempo nas mesmas
louvações de Camila, ela, sem dúvida, cairia na desesperada rede dos
ciúmes; mas, por estar já advertida, passou aquele sobressalto sem
tristeza.
No outro dia, estando os três à sobremesa, rogou Anselmo a Lotário
dissesse alguma coisa das que havia composto a sua amada Clori; que,
pois Camila não a conhecia, seguramente podia dizer o que quisesse.
- Embora a conhecesse - respondeu Lotário, - não encobriria eu
nada, porque quando algum amante louva a sua dama por formosa e a
percebe cruel, nenhum opróbrio faz a seu bom crédito. Mas, seja o
que for, o que sei dizer é que ontem fiz um soneto à ingratidão desta
Clori, que diz assim:
SONETO
SONETO
CAPÍTULO XXXV
“Até aqui escreveu Anselmo, por onde se viu que naquele ponto, sem
poder acabar a razão, se lhe acabou a vida. No outro dia deu aviso seu
amigo aos parentes de Anselmo de sua morte, os quais já sabiam de
sua desgraça, e o monastério onde Camila estava, quase no termo de
acompanhar a seu esposo naquela forçosa viagem, não pelas novas do
morto esposo, mas pelas que soube do ausente amigo. Diz-se que,
embora se visse viúva, não quis sair do monastério, nem, menos, fazer
votos de monja, até que, não dali a muitos dias, lhe vieram novas de
que Lotário havia morrido em uma batalha que naquele tempo deu
monsieur de Lautrec ao Grande Capitão Gonçalo Fernández de
Córdova, no reino de Nápoles, onde havia ido parar o tarde
arrependido amigo; o qual sabido por Camila, fez os votos, e acabou em
breves dias a vida às rigorosas mãos de tristezas e melancolias. Este
foi o fim que tiveram todos, nascido de um tão desatinado princípio.”
- Bem - disse o padre - me parece esta novela, mas não me posso
persuadir que isto seja verdade; e se é fingido, fingiu mal o autor,
porque não se pode imaginar que haja marido tão néscio que queira
fazer tão custosa experiência como Anselmo. Se este caso
acontecesse entre um galã e uma dama, poder-se-ia crer, mas entre
marido e mulher, algo tem de impossível; e, no que toca ao modo de
contar, não me descontenta.
CAPÍTULO XXXVI
Que trata da brava e descomunal batalha que dom Quixote teve com
uns odres de vinho tinto (ocorrida no capítulo anterior: provável erro de
revisão. N. do T.) , com outros raros sucessos que na estalagem
sucederam
CAPÍTULO XXXVII
Tudo isto escutava Sancho, não com pouca dor de sua alma, vendo
que se lhe desapareciam e iam em fumaça as esperanças de seu título
de nobreza, e que a linda princesa Micomicona se havia transformado
em Doroteia, e o gigante em dom Fernando, e seu amo estava
dormindo a sono solto, bem descuidado de todo o sucedido. Não se
podia assegurar Doroteia se era sonhado o bem que possuía. Cardênio
estava no mesmo pensamento, e o de Lucinda corria pela mesma conta.
Dom Fernando dava graças ao céu pela mercê recebida e haver-lhe
tirado daquele intrincado labirinto, onde se achava tão a pique de
perder o crédito e a alma; e, finalmente, quantos na estalagem
estavam, estavam contentes e gozosos do bom sucesso que haviam
tido tão travados e desesperados negócios.
Tudo esclarecia o padre, como discreto, e a cada um dava os
parabéns pelo bem alcançado; mas quem mais jubilava e se contentava
era a vendeira, pela promessa que Cardênio e o padre lhe haviam feito
de pagar-lhe todos os danos e interesses que por conta de dom
Quixote lhe houvessem vindo. Só Sancho, como já se disse, era o
aflito, o desventurado e o triste; e assim, com melancólico semblante,
acometeu seu amo, o qual acabava de despertar, a quem disse:
- Bem pode vossa mercê, senhor Triste Figura, dormir tudo o que
quiser, sem cuidado de matar nenhum gigante, nem de levar a princesa
a seu reino: que já tudo está feito e concluído.
- Isso creio eu bem - respondeu dom Quixote, - porque tive com o
gigante a mais descomunal e desaforada batalha que penso ter em
todos os dias de minha vida; e de um revés, zás!, lhe derrubei a cabeça
no chão, e foi tanto o sangue que lhe saiu, que os arroios corriam pela
terra como se fossem de água.
- Como se fossem de vinho tinto, poderia vossa mercê dizer melhor
- respondeu Sancho, - porque quero que saiba vossa mercê, se é que
não o sabe, que o gigante morto é um odre perfurado, e o sangue, seis
arrobas de vinho tinto que encerrava em seu ventre; e a cabeça
cortada é a puta que me pariu, e leve-o tudo Satanás.
- E que é o que dizes, louco? - replicou dom Quixote. - Estás em teu
juízo?
- Levante-se vossa mercê - disse Sancho, - e verá a boa conquista
que fez, e o que temos que pagar; e verá a rainha convertida em uma
dama particular, chamada Doroteia, com outros sucessos que, se os
conhece, lhe hão de admirar.
- Não me maravilharia de nada disso - replicou dom Quixote, -
porque, se bem te recordas, a outra vez que aqui estivemos te disse
eu que tudo quanto aqui sucedia eram coisas de encantamento, e não
seria muito que agora fosse o mesmo.
- Tudo o acreditaria eu - respondeu Sancho, - se também meu
manteamento fosse coisa desse jaez, mas não o foi, senão real e
verdadeiramente; e vi eu que o vendeiro que aqui está hoje segurava
uma ponta da manta, e me jogava até o céu com muito donaire e brio, e
com tanto riso como força; e quanto a conhecer-se as pessoas, tenho
para mim, embora ingênuo e pecador, que não há encantamento algum,
senão muito moimento e muita má ventura.
- Agora bem, Deus o remediará - disse dom Quixote. - Ajuda-me a
vestir e deixa-me sair lá fora, que quero ver os sucessos e
transformações que dizes.
Ajudou-o a vestir-se Sancho, e, enquanto se vestia, contou o padre
a dom Fernando e aos demais as loucuras de dom Quixote, e do
artifício que haviam usado para tirá-lo da Penha Pobre, onde ele
imaginava estar por desdéns de sua senhora. Contou-lhes também
quase todas as aventuras que Sancho havia contado, de que não pouco
se admiraram e riram, por parecer-lhes o que a todos parecia: ser o
mais estranho gênero de loucura que podia caber em pensamento
disparatado. Disse mais o padre: que, pois já o bom sucesso da
senhora Doroteia impedia passar com seu desígnio adiante, que era
preciso inventar e achar outro para poder levá-lo à sua terra.
Ofereceu-se Cardênio a prosseguir o começado, e que Lucinda faria e
representaria a pessoa de Doroteia.
- Não - disse dom Fernando, - não há de ser assim: que eu quero que
Doroteia prossiga sua invenção; que, se não for muito longe daqui o
lugar deste bom cavaleiro, eu gostarei de que se procure seu remédio.
- Não está a mais de dois dias daqui.
- Pois, embora estivesse mais, gostaria eu de caminhá-los, a troco
de fazer tão boa obra.
Saiu nisto dom Quixote, armado de todos seus apetrechos, com o
elmo, embora amassado, de Mambrino na cabeça, embraçando sua
rodela e arrimado a seu tronco o chuço. Suspendeu a dom Fernando e
aos demais a estranha presença de dom Quixote, vendo seu rosto de
meia légua de andadura, seco e amarelo, a desigualdade de suas armas
e sua comedida postura, e estiveram calados até ver o que ele dizia, o
qual, com muita gravidade e repouso, postos os olhos na formosa
Doroteia, disse:
- Estou informado, formosa senhora, deste meu escudeiro que a
vossa grandeza se aniquilou, e vosso ser se desfez, porque de rainha e
grande senhora que costumáveis ser vos haveis transformado em uma
particular donzela. Se isto foi por ordem do rei nigromante de vosso
pai, temeroso que eu não vos desse a necessária e devida ajuda, digo
que não soube nem sabe da missa a metade, e que foi pouco versado
nas histórias cavaleirescas, porque se ele as houvesse lido e passado
tão atentamente e com tanto espaço como eu as passei e li, acharia a
cada passo como outros cavaleiros de menor fama que a minha haviam
levado a efeito coisas mais dificultosas, não sendo-o muito matar um
gigantinho, por arrogante que seja; porque não há muitas horas que eu
me vi com ele, e... Quero calar, porque não me digam que minto; mas o
tempo, descobridor de todas as coisas, o dirá quando menos o
pensemos.
- Enfrentastes dois odres, não um gigante - disse então o vendeiro.
Ao qual mandou dom Fernando que calasse e não interrompesse a
conversa de dom Quixote de maneira alguma; e dom Quixote
prosseguiu dizendo:
- Digo, enfim, alta e deserdada senhora, que se pela causa que disse
vosso pai fez esta metamorfose em vossa pessoa, que não lhe deis
crédito algum, porque não há nenhum perigo na terra por onde não
abra caminho minha espada, com a qual, pondo a cabeça de vosso
inimigo em terra, na vossa porei a coroa em breves dias.
Não disse mais dom Quixote, e esperou que a princesa lhe
respondesse, a qual, como já sabia a determinação de dom Fernando
de que se prosseguisse adiante no engano até levar dom Quixote à sua
terra, com muito donaire e gravidade, respondeu-lhe:
- Quem quer que vos disse, valoroso cavaleiro da Triste Figura, que
eu me havia mudado e trocado de meu ser, não vos disse o certo,
porque a mesma que ontem fui sou hoje. Verdade é que alguma
mudança fizeram em mim certos acontecimentos de boa ventura, que
ma deram a melhor que eu poderia desejar, mas não por isso deixei de
ser a de antes e de ter os mesmos pensamentos de valer-me do valor
de vosso valoroso e invulnerável braço que sempre tive. Assim que,
senhor meu, vossa bondade restitua a honra ao pai que me engendrou,
e tenha-lhe por homem advertido e prudente, pois com sua ciência
achou caminho tão fácil e tão verdadeiro para remediar minha
desgraça; que eu creio que se por vós, senhor, não fosse, jamais
acertaria a ter a ventura que tenho; e nisto digo tanta verdade como
são bons testemunhos dela os mais destes senhores que estão
presentes. O que resta é que amanhã nos ponhamos a caminho, porque
já hoje se poderá fazer pouca jornada, e no demais do bom sucesso
que espero, o deixarei a Deus e ao valor de vosso peito.
Isto disse a discreta Doroteia, e, ouvindo-o dom Quixote, se voltou
a Sancho, e, com mostras de muita zanga, disse-lhe:
- Agora te digo, Sanchico, que és o maior velhacote que há na
Espanha. Diz-me, ladrão vagabundo, não me acabaste de dizer agora
que esta princesa se havia transformado em uma donzela que se
chamava Doroteia, e que a cabeça que entendo que cortei a um gigante
era a puta que te pariu, com outros disparates que me puseram na
maior confusão que jamais estive em todos os dias de minha vida?
Voto... - e olhou para o céu e apertou os dentes - que estou por fazer
um estrago em ti, que ponha inteligência na moleira a todos quantos
mentirosos escudeiros houver de cavaleiros andantes, daqui em
diante, no mundo!
- Vossa mercê sossegue, senhor meu - respondeu Sancho, - que bem
poderia ser que eu me houvesse enganado no que toca à mutação da
senhora princesa Micomicona; mas, no que toca à cabeça do gigante,
ou, ao menos, à perfuração dos odres e ao de ser vinho tinto o sangue,
não me engano, vive Deus, porque os odres ali estão feridos, à
cabeceira do leito de vossa mercê, e o vinho tinto fez um lago o
aposento; e se não, ao frigir dos ovos o verá; quero dizer que o verá
quando aqui sua mercê o senhor vendeiro lhe peça a indenização de
tudo. Do demais, de que a senhora rainha esteja como estava, me
regozijo na alma, porque tenho minha parte, como cada filho de
vizinho.
- Agora eu te digo, Sancho - disse dom Quixote, - que és um
mentecapto; e perdoa-me, e basta.
- Basta - disse dom Fernando, - e não se fale mais nisto; e, pois a
senhora princesa diz que se caminhe amanhã, porque já hoje é tarde,
faça-se assim, e esta noite a poderemos passar em boa conversação
até o vindouro dia, onde todos acompanharemos ao senhor dom
Quixote, porque queremos ser testemunhos das valorosas e inauditas
façanhas que há de fazer no decurso desta grande empresa que a seu
cargo leva.
- Eu sou o que tenho de servir-vos e acompanhar-vos - respondeu
dom Quixote, - e agradeço muito a mercê que me faz e a boa opinião
que de mim tem, a qual procurarei que saia verdadeira, ou me custará
a vida, e ainda mais, se mais custar-me pode.
Muitas palavras de comedimento e muitos oferecimentos passaram
entre dom Quixote e dom Fernando; mas a tudo pôs silêncio um
passageiro que naquele momento entrou na estalagem, o qual em seu
traje mostrava ser cristão recém vindo de terra de mouros, porque
vinha vestido com uma casaca de pano azul, curta de fraldas, com
meias mangas e sem pescoço; os calções eram também de fino pano
azul, com barrete da mesma cor; trazia uns borzeguins cor de tâmara
e um alfanje mourisco, posto numa tira de couro que lhe atravessava o
peito. Entrou logo atrás dele, em cima de um jumento, uma mulher à
mourisca vestida, coberto o rosto com uma touca na cabeça; trazia um
barretinho de brocado, e vestida uma túnica, que desde os ombros aos
pés a cobria.
Era o homem de robusto e gracioso talhe, de idade de pouco mais
de quarenta anos, algo moreno de rosto, largo de bigodes e a barba
muito bem posta. Em suma, ele mostrava em sua postura que se
estivesse bem vestido o julgariam por pessoa de qualidade e bem
nascida.
Pediu, ao entrar, um aposento, e como lhe disseram que na
estalagem não havia, mostrou tristeza e, chegando-se à que no traje
parecia moura, a apeou em seus braços. Lucinda, Doroteia, a vendeira,
sua filha e Maritornes, levadas do novo e para elas nunca visto traje,
rodearam a moura, e Doroteia, que sempre foi graciosa, comedida e
discreta, parecendo-lhe que assim ela como o que a trazia se
angustiavam pela falta do aposento, disse-lhe:
- Não vos dê muita pena, senhora minha, a decente comodidade que
aqui falta, pois é próprio de estalagens não achar-se nelas; mas, então,
se gostardes de passar conosco - indicando Lucinda, - quiçá no decurso
deste caminho havereis achado outros não tão bons acolhimentos.
Não respondeu nada a isto a embuçada, nem fez outra coisa que
levantar-se de onde sentado se havia, e, postas ambas as mãos
cruzadas sobre o peito, inclinada a cabeça, dobrou o corpo em sinal de
que o agradecia. Por seu silêncio imaginaram que, sem dúvida alguma,
devia ser moura, e que não sabia falar cristão. Chegou, nisto, o cativo,
que ocupado em outra coisa até então havia estado, e, vendo que todas
tinham cercado a que com ele vinha, e que ela a quanto lhe diziam
calava, disse:
- Senhoras minhas, esta donzela apenas entende minha língua, nem
sabe falar outra nenhuma senão conforme a sua terra, e por isto não
deve haver respondido, nem responde, ao que se lhe perguntou.
- Não se lhe pergunta outra coisa nenhuma - respondeu Lucinda -
senão oferecer-lhe por esta noite nossa companhia e parte do lugar
onde nos acomodaremos, onde se lhe fará o regalo que a comodidade
oferecer, com a vontade que obriga a servir a todos os estrangeiros
que disso tiverem necessidade, especialmente sendo mulher a quem se
serve.
- Por ela e por mim - respondeu o cativo - vos beijo, senhora minha,
as mãos, e estimo muito e no que é razão a mercê oferecida; que em
tal ocasião, e de tais pessoas como vosso parecer mostra, bem se vê
que há de ser muito grande.
- Dizei-me, senhor - disse Doroteia: - esta senhora é cristã ou
moura? Porque o traje e o silêncio nos faz pensar que é o que não
queríamos que fosse.
- Moura é no traje e no corpo, mas na alma é muito grande
cristã, porque tem grandíssimos desejos de sê-lo.
- Então não é batizada? - replicou Lucinda.
- Não houve lugar para isso - respondeu o cativo - depois que saiu de
Argel, sua pátria e terra, e até agora não se viu em perigo de morte
tão perto que obrigasse a batizá-la sem que soubesse primeiro todas
as cerimônias que nossa Madre a Santa Igreja manda; mas Deus será
servido que logo se batize com o decoro que a qualidade de sua pessoa
merece, que é mais do que mostra seu traje e o meu.
Com estas razões pôs vontade em todos os que escutando-o
estavam de saber quem fosse a moura e o cativo, mas ninguém o quis
perguntar por então, por ver que aquela ocasião era mais para dar-lhes
descanso que para perguntar-lhes de suas vidas. Doroteia a tomou pela
mão e a levou a sentar junto a si, e lhe rogou que tirasse o embuço. Ela
olhou para o cativo, como se lhe pedisse que dissesse o que diziam e o
que ela faria. Ele, em língua arábica, disse-lhe que lhe pediam que
tirasse o embuço, e que o fizesse; e assim, o tirou, e descobriu um
rosto tão formoso que Doroteia a teve por mais formosa que Lucinda,
e Lucinda por mais formosa que Doroteia, e todos os circunstantes
reconheceram que se alguém poderia igualar ao das duas, era o da
moura, e ainda houve alguns que o avantajaram em alguma coisa. E
como a formosura tenha prerrogativa e graça de reconciliar os ânimos
e atrair as vontades, logo se renderam todos ao desejo de servir e
acariciar à formosa moura.
Perguntou dom Fernando ao cativo como se chamava a moura, o qual
respondeu que Lela Zoraida; e, assim que isto ouviu, ela entendeu o
que haviam perguntado ao cristão, e disse com muita pressa, cheia de
angústia e donaire:
- Não, não Zoraida: Maria, Maria! - dando a entender que se
chamava Maria e não Zoraida.
Estas palavras, o grande afeto com que a moura as disse, fizeram
derramar mais de uma lágrima a alguns dos que a escutaram,
especialmente às mulheres, que de sua natureza são ternas e
compassivas. Abraçou-a Lucinda com muito amor, dizendo-lhe:
- Sim, sim, Maria, Maria.
A que respondeu a moura:
- Sim, sim: Maria: Zoraida macange! - que quer dizer não.
Já, nisto, chegava a noite, e, por ordem dos que vinham com dom
Fernando, havia o vendeiro posto diligência e cuidado em preparar-
lhes com que jantar o melhor que a ele lhe foi possível. Chegada, pois,
a hora, sentaram-se todos a uma larga mesa, como de refeitório,
porque não a havia redonda nem quadrada na estalagem, e deram a
cabeceira e principal assento, embora ele o recusasse, a dom Quixote,
o qual quis que estivesse a seu lado a senhora Micomicona, pois ele era
seu protetor. Logo se sentaram Lucinda e Zoraida, e fronteiro delas
dom Fernando e Cardênio, e logo o cativo e os demais cavaleiros, e, ao
lado das senhoras, o padre e o barbeiro. E assim, jantaram com muita
alegria, e acrescentou-se-lhes mais vendo que, deixando de comer dom
Quixote, movido por outro semelhante espírito que o que o moveu a
falar tanto como falou quando jantou com os cabreiros, começou a
dizer:
- Verdadeiramente, se bem se considera, senhores meus, grandes e
inauditas coisas veem os que professam a ordem da andante cavalaria.
Se não, qual dos viventes haverá no mundo que agora pela porta deste
castelo entrasse, e da sorte que estamos nos vir, que julgue e creia
que nós somos quem somos? Quem poderá dizer que esta senhora que
está a meu lado é a grande rainha que todos sabemos, e que eu sou
aquele cavaleiro da Triste Figura que anda por aí na boca da fama?
Agora não há que duvidar, senão que esta arte e exercício excede a
todas aquelas e aqueles que os homens inventaram, e tanto mais se há
de ter em estima quanto a mais perigos está sujeito. Tirem-me de
diante os que disserem que as letras fazem vantagem às armas, que
lhes direi, e sejam quem forem, que não sabem o que dizem. Porque a
razão que os tais costumam dizer, e ao que isso mais se atêm, é que os
trabalhos do espírito excedem aos do corpo, e que as armas só com o
corpo se exercitam, como se fosse seu exercício ofício de ganha-pães,
para quem não é preciso mais que boas forças; ou como se nisto que
chamamos armas os que as professamos não se encerrassem os atos
da fortaleza, os quais pedem para executá-los muito entendimento; ou
como se não trabalhasse o ânimo do guerreiro que tem a seu cargo um
exército, ou a defesa de uma cidade sitiada, assim com o espírito
como com o corpo. Se não, veja-se se se alcança com as forças
corporais saber e conjeturar o intento do inimigo, os desígnios, os
estratagemas, as dificuldades, o previr os danos que se temem; que
todas estas coisas são ações do entendimento, em que não tem parte
alguma o corpo. Sendo pois assim, que as armas requerem espírito,
como as letras, vejamos agora qual dos dois espíritos, o do letrado ou
o do guerreiro, trabalha mais. E isto se virá a conhecer pelo fim e
paradeiro a que cada um se encaminha, porque aquela intenção se há
de estimar em mais quem tenha por objeto mais nobre fim. É o fim e
paradeiro das letras..., e não falo agora das divinas, que têm por alvo
levar e encaminhar as almas ao céu, que a um fim tão sem fim como
este nenhum outro se lhe pode igualar; falo das letras humanas, que é
seu fim esclarecer a justiça distributiva e dar a cada um o que é seu,
entender e fazer que as boas leis se guardem. Fim, por certo,
generoso e alto e digno de grande louvação, mas não de tanta como
merece aquele a que as armas atendem, as quais têm por objeto e fim
a paz, que é o maior bem que os homens podem desejar nesta vida. E
assim, as primeiras boas novas que teve o mundo e tiveram os homens
foram as que deram os anjos a noite que foi nosso dia, quando
cantaram nos ares: “Glória seja nas alturas, e paz na terra, aos
homens de boa vontade”; e à saudação que o melhor cirurgião da terra
e do céu ensinou a seus achegados e favoritos, foi dizer-lhes que
quando entrassem em alguma casa, dissessem: “Paz esteja nesta casa”;
e outras muitas vezes lhes disse: “Minha paz vos dou, minha paz vos
deixo: paz seja convosco”, bem como joia e prenda dada e deixada de
tal mão; joia que sem ela, na terra nem no céu pode haver bem algum.
Esta paz é o verdadeiro fim da guerra, que o mesmo é dizer armas que
guerra. Pressuposta, pois, esta verdade, que o fim da guerra é a paz, e
que nisto faz vantagem ao fim das letras, venhamos agora aos
trabalhos do corpo do letrado e aos do professor das armas, e veja-se
quais são maiores.
De tal maneira e por tão bons termos ia prosseguindo em sua
palestra dom Quixote que obrigou a que, por então, nenhum dos que
escutando-o estavam o tivesse por louco; antes, como todos os mais
eram cavaleiros, a quem são próprias as armas, o escutavam de muito
bom grado; e ele prosseguiu dizendo:
- Digo, pois, que os trabalhos do estudante são estes:
principalmente pobreza, não porque todos sejam pobres, senão por pôr
este caso em todo o extremo que possa ser; e, em haver dito que
padece pobreza, me parece que não havia que dizer mais de sua má
ventura, porque quem é pobre não tem coisa boa. Esta pobreza a
padece por suas partes, já em fome, já em frio, já em desnudez, já em
tudo junto; entretanto, não é tanta que não coma, embora seja um
pouco mais tarde do que se usa, embora seja das sobras dos ricos; que
é a maior miséria do estudante esta que entre eles chamam “andar à
sopa”; e não lhes falta algum alheio braseiro ou chaminé, que, se não
esquenta, ao menos diminui seu frio, e, enfim, à noite dormem debaixo
de coberta. Não quero chegar a outras minudências, convém a saber,
da falta de camisas e não sobra de sapatos, a raridade e pouco pelo do
vestido, nem aquele empanturrar-se com tanto gosto, quando a boa
sorte lhes depara algum banquete. Por este caminho que pintei, áspero
e dificultoso, tropeçando aqui, caindo ali, levantando-se acolá,
tornando a cair cá, chegam ao grau que desejam; o qual alcançado, a
muitos temos visto que, havendo passado por estas Sirtes e por estas
Cilas e Caribdes como levados em voo pela favorável fortuna, digo que
os temos visto mandar e governar o mundo desde uma cadeira,
trocada sua fome em fartura, seu frio em refrigério, sua desnudez em
galas, e seu dormir em uma esteira em repousar em holandas e
damascos: prêmio justamente merecido de sua virtude. Mas,
contrapostos e comparados seus trabalhos com os do soldado
guerreiro, ficam muito atrás em tudo, como agora direi.
CAPÍTULO XXXVIII
Que trata do curioso discurso que fez dom Quixote das armas e
das letras
CAPÍTULO XXXIX
SONETO
SONETO
Quando eu era menina, tinha meu pai uma escrava, a qual em minha língua me
mostrou a oração cristã, e me disse muitas coisas de Lela Marién. A cristã
morreu, e eu sei que não foi ao fogo, senão com Alá, porque depois a vi duas
vezes, e me disse que me fosse à terra de cristãos para ver Lela Marién, que me
queria muito. Não sei eu como vá: muitos cristãos vi por esta janela, e nenhum
me pareceu cavaleiro senão tu. Eu sou muito formosa e moça, e tenho muitos
dinheiros que levar comigo: vê tu se podes fazer como nos vamos, e serás lá meu
marido, se quiseres, e se não quiseres, não se me dará nada, que Lela Marién me
dará com quem me case. Eu escrevi isto; vê a quem o dás a ler: não confies em
nenhum mouro, porque são todos traidores. Disto tenho muita preocupação:
queria que não te descobrisses a ninguém, porque se meu pai o sabe, me jogará
logo num poço, e me cobrirá com pedras. Na vara porei um fio: ata ali a resposta;
e se não tens quem te escreva arábico, diz por sinais, que Lela Marién fará que
te entenda. Ela e Alá te guardem, e essa cruz que eu beijo muitas vezes; que
assim me mandou a cativa.
Isto dizia e continha o segundo papel. O que visto por todos, cada
um se ofereceu a querer ser o resgatado, e prometeu ir e voltar com
toda pontualidade, e também eu me ofereci ao mesmo; a tudo o qual se
opôs o renegado, dizendo que de maneira alguma consentiria que
nenhum saísse de liberdade até que fossem todos juntos, porque a
experiência lhe havia mostrado quão mal cumpriam os livres as
palavras que davam no cativeiro; porque muitas vezes haviam usado
daquele remédio alguns principais cativos, resgatando a um que fosse a
Valência, ou Mallorca, com dinheiros para poder preparar uma barca e
voltar pelos que o haviam resgatado, e nunca haviam voltado; porque a
liberdade alcançada e o temor de voltar a perdê-la lhes apagava da
memória todas as obrigações do mundo. E em confirmação da verdade
que nos dizia, nos contou brevemente um caso que quase naquela
mesma época havia acontecido a uns cavaleiros cristãos, o mais
estranho que jamais sucedeu naquelas partes, onde a cada passo
sucedem coisas de grande espanto e de admiração. Com efeito, ele
veio a dizer que o que se podia e devia fazer era que o dinheiro que se
havia de dar para resgatar o cristão, que se desse a ele para comprar
ali em Argel uma barca, com intenção de fazer-se mercador e
tratante em Tetuán e naquela costa; e que, sendo ele senhor da barca,
facilmente se daria oportunidade para tirá-los do banho e embarcá-los
a todos. Quanto mais, que se a moura, como ela dizia, dava dinheiros
para resgatá-los a todos, que, estando livres, era facilíssima coisa
ainda embarcar-se no meio do dia; e que a dificuldade que se oferecia
maior era que os mouros não consentem que renegado algum compre
nem tenha barca, se não é baixel grande para ir em corso, porque
temem que o que compra barca, principalmente se é espanhol, não a
quer senão para ir a terra de cristãos; mas que ele facilitaria este
inconveniente com fazer que um mouro tagarino fosse à parte com ele
na companhia da barca e na compra das mercadorias, e sob esta
aparência ele viria a ser senhor da barca, com que dava por acabado
todo o demais. E posto que a mim e a meus camaradas nos havia
parecido melhor o de enviar alguém para obtenção da barca em
Mallorca, como a moura dizia, não ousamos contradizer-lhe, temerosos
de que, se não fizéssemos o que ele dizia, nos havia de descobrir e pôr
a perigo de perder as vidas, se descobrisse o trato de Zoraida, por
cuja vida daríamos todos as nossas. E assim, decidimos pôr-nos nas
mãos de Deus e nas do renegado, e daquele mesmo modo se respondeu
a Zoraida, dizendo-lhe que faríamos tudo quanto nos aconselhava,
porque o havia advertido tão bem como se Lela Marién o houvesse
dito, e que nela só estava dilatar aquele negócio, ou pô-lo logo em
prática. Ofereci-me de novo a ser seu esposo, e com isto, no outro dia
que aconteceu de estar só o banho, em diversas vezes, com a vara e o
pano, nos deu dois mil escudos de ouro, e um papel onde dizia que o
primeiro jumá, que é a sexta-feira, ia à casa de campo de seu pai, e
que antes que fosse nos daria mais dinheiro, e que se aquilo não
bastasse, que o avisássemos, que nos daria quanto lhe pedíssemos: que
seu pai tinha tantos, que não o daria menos, quanto mais, que ela tinha
as chaves de tudo. Demos logo quinhentos escudos ao renegado para
comprar a barca; com oitocentos me resgatei, dando o dinheiro a um
mercador valenciano que à época se achava em Argel, o qual me
resgatou do rei, tomando-me sob sua palavra, dando-a de que com o
primeiro baixel que viesse de Valência pagaria meu resgate; porque se
logo desse o dinheiro, seria dar suspeitas ao rei que havia muitos dias
que meu resgate estava em Argel, e que o mercador, para seu
proveito, o havia calado. Finalmente, meu amo era tão caviloso que de
maneira alguma me atrevi a que logo se desembolsasse o dinheiro. Na
quinta antes da sexta-feira que a formosa Zoraida havia de ir à casa
de campo, deu-nos outros mil escudos e nos avisou de sua partida,
rogando-me que, se me resgatasse, localizasse logo a casa de campo
de seu pai, e que em todo caso buscasse ocasião de ir lá e vê-la.
Respondi-lhe em breves palavras que assim o faria, e que tivesse
cuidado de encomendar-nos a Lela Marién, com todas aquelas orações
que a cativa lhe havia ensinado. Feito isto, tomaram providências para
que os três companheiros nossos se resgatassem, por facilitar a saída
do banho, e porque, vendo-me a mim resgatado, e a eles não, pois havia
dinheiro, não se alvoroçassem e lhes persuadisse o diabo que fizessem
alguma coisa em prejuízo de Zoraida; que, posto que o ser eles quem
eram me podia assegurar deste temor, desse modo, não quis pôr o
negócio em perigo, e assim, os fiz resgatar pelo mesmo modo pelo qual
me resgatei, entregando todo o dinheiro ao mercador, para que, com
certeza e segurança, pudesse fazer a fiança; ao qual nunca
descobrimos nosso trato e segredo, pelo perigo que havia.
CAPÍTULO XLI
CAPÍTULO XLII
CAPÍTULO XLIII
Aqui deu fim a voz, e Clara princípio a novos soluços. Tudo o que
acendia o desejo de Doroteia, que desejava saber a causa de tão suave
canto e de tão triste choro. E assim, lhe voltou a perguntar que era o
que lhe queria dizer antes. Então Clara, temerosa de que Lucinda a
ouvisse, abraçando estreitamente a Doroteia, pôs sua boca tão junto
do ouvido de Doroteia, que seguramente podia falar sem ser de outro
ouvida, e assim lhe disse:
- Este que canta, senhora minha, é um filho de um cavaleiro natural
do reino de Aragão, senhor de dois lugares, o qual vivia fronteiro da
casa de meu pai na corte; e, embora meu pai tinha as janelas de sua
casa com cortinas no inverno e gelosias no verão, eu não sei o que foi,
nem o que não, que este cavaleiro, que era estudante, me viu, nem sei
se na igreja ou em outra parte: finalmente, ele se enamorou de mim, e
mo deu a entender desde as janelas de sua casa com tantos sinais e
com tantas lágrimas, que eu o tive de crer, e ainda querer, sem saber
quanto me queria. Entre os sinais que me fazia, era um de juntar uma
mão com a outra, dando-me a entender que se casaria comigo; e,
embora eu me alegrasse muito que assim fosse, como só e sem mãe,
não sabia com quem comunicá-lo, e assim, o deixei estar sem dar-lhe
outro favor se não era, quando estava meu pai fora de casa e o seu
também, alçar um pouco a cortina ou a gelosia e deixar-me ver toda,
do que ele fazia tanta festa, que dava sinais de enlouquecer. Chegou
nisto o tempo da partida de meu pai, a qual ele soube, e não de mim,
pois nunca pude dizê-lo. Adoeceu, ao que eu entendo, de tristeza; e
assim, o dia em que partimos em nenhuma ocasião pude vê-lo para
despedir-me dele, sequer com os olhos. Mas, a cabo de dois dias que
caminhávamos, ao entrar em uma pousada, num lugar uma jornada
daqui, o vi à porta da estalagem, posto em traje de moço de mulas, tão
naturalmente que se eu não o trouxesse tão retratado em minha alma
seria impossível reconhecê-lo. Reconheci-o, admirei-me e alegrei-me;
ele me viu a furto de meu pai, de quem ele sempre se esconde quando
atravessa por diante de mim nos caminhos e nas pousadas onde
chegamos; e, como eu sei quem é, e considero que por amor de mim
vem a pé e com tanto trabalho, morro de tristeza, e onde ele põe os
pés ponho eu os olhos. Não sei com que intenção vem, nem como pôde
escapar-se de seu pai, que o quer extraordinariamente, porque não
tem outro herdeiro, e porque ele o merece, como o verá vossa mercê
quando o veja. E mais lhe sei dizer: que tudo aquilo que canta o tira de
sua cabeça; que ouvi dizer que é muito grande estudante e poeta. E há
mais: que cada vez que o vejo ou o ouço cantar, tremo toda e me
sobressalto, temerosa de que meu pai o reconheça e venha em
conhecimento de nossos desejos. Em minha vida nunca lhe falei, e,
desse modo, quero-o de maneira que não hei de poder viver sem ele.
Isto é, senhora minha, tudo o que vos posso dizer deste músico, cuja
voz tanto vos contentou; que unicamente nela bem vereis que não é
moço de mulas, como dizeis, senão senhor de almas e lugares, como eu
vos disse.
- Não digais mais, senhora dona Clara - disse então Doroteia, e isto,
beijando-a mil vezes, - não digais mais, digo, e esperai que venha o
novo dia, que eu espero em Deus encaminhar de maneira tal vossos
negócios que tenham o feliz fim que tão honestos princípios merecem.
- Ai senhora! - disse dona Clara, - que fim se pode esperar, se seu
pai é tão principal e tão rico que lhe parecerá que ainda eu não posso
ser criada de seu filho, quanto mais esposa? Pois casar-me eu a furto
de meu pai, não o farei por quanto há no mundo. Não queria senão que
este moço voltasse e me deixasse; quiçá que ao não vê-lo e com a
grande distância do caminho que seguimos se me aliviaria a pena que
agora levo, embora sei dizer que este remédio que imagino me há de
aproveitar bem pouco. Não sei que diabos foi isto, nem por onde
entrou este amor que lhe tenho, sendo eu tão moça e ele tão moço,
que em verdade creio que somos de uma mesma idade, e que eu não
tenho cumpridos dezesseis anos, que para o dia de São Miguel que virá
diz meu pai que os cumpro.
Não pôde deixar de rir-se Doroteia ouvindo quão como menina
falava dona Clara, a quem disse:
- Repousemos, senhora, o pouco que creio fica da noite, e
amanhecerá Deus e tudo se arranjará, ou muito má sorte hei de ter.
Sossegaram-se com isto, e em toda a estalagem se guardava um
grande silêncio; somente não dormiam a filha da vendeira e
Maritornes, sua criada, as quais, como já sabiam o humor de que
pecava dom Quixote, e que estava fora da estalagem armado e a
cavalo fazendo a guarda, decidiram as duas fazer-lhe alguma burla, ou,
ao menos, passar um pouco o tempo ouvindo seus disparates.
É, pois, o caso que em toda a estalagem não havia janela que desse
para o campo, senão um buraco de um palheiro, por onde colocavam a
palha. A este buraco se puseram as duas semidonzelas, e viram que
dom Quixote estava a cavalo, recostado sobre seu chuço, dando de
quando em quando tão dolentes e profundos suspiros que parecia que
com cada um se lhe arrancava a alma; e também ouviram que dizia com
voz branda, regalada e amorosa:
- Oh minha senhora Dulcineia do Toboso, extremo de toda
formosura, fim e remate da discrição, arquivo do melhor donaire,
depósito da honestidade, e, por último e perfeitamente, ideia de todo
o proveitoso, honesto e deleitável que há no mundo! E que fará agora a
tua mercê? Se terás porventura o pensamento em teu cativo
cavaleiro, que a tantos perigos, por só servir-te, de sua vontade quis
pôr-se? Dá-me tuas novas dela, oh luminária das três caras! Quiçá com
inveja da sua a estás agora olhando; que, ou passeando-se por alguma
galeria de seus suntuosos palácios, ou já posta de peitos sobre algum
balcão, está considerando como, salva sua honestidade e grandeza, há
de amansar a tormenta que por ela este meu coitado coração padece,
que glória há de dar a minhas penas, que sossego a meu cuidado e,
finalmente, que vida à minha morte e que prêmio a meus serviços. E tu,
sol, que já deves estar depressa encilhando teus cavalos, por
madrugar e sair a ver a minha senhora, assim que a vejas, suplico-te
que de minha parte a saúdes; mas guarda-te que ao vê-la e saudá-la
não a beijes no rosto, que terei mais ciúmes de ti que tu os tiveste
daquela ligeira ingrata que tanto te fez suar e correr pelos planos da
Tessália, ou pelas ribeiras de Peneu, que não me lembro bem por onde
correste então ciumento e enamorado.
A este ponto chegava então dom Quixote em seu tão lastimoso
arrazoado, quando a filha da vendeira lhe começou a cecear e a
dizer-lhe:
- Senhor meu, chegue aqui vossa mercê se faz o favor.
A cujos sinais e voz voltou dom Quixote a cabeça, e viu, à luz da
lua, que então estava em toda sua claridade, que o chamavam do
buraco que a ele lhe pareceu janela, e ainda com grades douradas,
como convém que as tenham tão ricos castelos como ele imaginava que
era aquela estalagem; e logo no instante se lhe representou em sua
louca imaginação que outra vez, como a passada, a donzela formosa,
filha da senhora daquele castelo, vencida de seu amor, tornava a
requestá-lo; e com este pensamento, por não mostrar-se descortês e
desagradecido, voltou as rédeas a Rocinante e se chegou ao buraco, e,
assim que viu as duas moças, disse:
- Lástima vos tenho, formosa senhora, de que pusestes vossas
amorosas mentes em parte onde não é possível corresponder-vos
conforme merece vosso grande valor e gentileza; do que não deveis
dar culpa a este miserável andante cavaleiro, a quem tem amor
impossibilitado de poder entregar sua vontade a outra que aquela que,
no momento em que seus olhos a viram, a fez senhora absoluta de sua
alma. Perdoai-me, boa senhora, e recolhei-vos em vosso aposento, e
não queirais, ao confirmar-me vossos desejos, que eu me mostre mais
desagradecido; e se do amor que me tendes achais em mim outra coisa
com que satisfazer-vos, que o mesmo amor não seja, pedi-ma; que eu
vos juro, por aquela ausente inimiga doce minha, de dá-la
imediatamente, se bem me pedísseis uma madeixa dos cabelos de
Medusa, que eram todos cobras, ou já os mesmos raios do sol
encerrados em uma redoma.
- Não precisa nada disso minha senhora, senhor cavaleiro - disse
então Maritornes.
- Então de que precisa, discreta dona, vossa senhora? - respondeu
dom Quixote.
- Só uma de vossas formosas mãos - disse Maritornes, - por poder
desafogar com ela o grande desejo que a este buraco a trouxe, tão a
perigo de sua honra que se seu senhor pai a percebesse, a maior
talhada dela seria a orelha.
- Já quisera eu ver isso! - respondeu dom Quixote. - Mas ele se
guardará bem disso, se já não quer ter o mais desastrado fim que pai
teve no mundo, por haver posto as mãos nos delicados membros de sua
enamorada filha.
Pareceu a Maritornes que sem dúvida dom Quixote daria a mão que
lhe haviam pedido, e, propondo em seu pensamento o que havia de
fazer, desceu do buraco e foi à cavalariça, onde tomou o cabresto do
jumento de Sancho Pança, e com muita presteza voltou a seu buraco,
no momento em que dom Quixote se pôs de pé sobre a sela de
Rocinante, para alcançar a janela gradeada, onde imaginava estar a
donzela ferida de amor; e, ao dar-lhe a mão, disse:
- Tomai, senhora, essa mão, ou, por melhor dizer, esse verdugo dos
malfeitores do mundo; tomai essa mão, digo, a quem não tocou outra
de mulher alguma, nem ainda a daquela que tem inteira possessão de
todo meu corpo. Não vos a dou para que a beijeis, senão para que
mireis a contextura de seus nervos, a juntura de seus músculos, a
largura e tamanho de suas veias; de onde tirareis que tal deve ser a
força do braço que tal mão tem.
- Agora o veremos - disse Maritornes.
E fazendo uma laçada corrediça no cabresto, a fechou no pulso, e,
descendo do buraco, amarrou o que ficava ao trinco da porta do
palheiro muito fortemente. Dom Quixote, que sentiu a aspereza do
cordel em seu pulso, disse:
- Mais parece que vossa mercê me rala que me regala a mão; não a
trateis tão mal, pois ela não tem culpa do mal que minha vontade vos
faz, nem é bem que em tão pouca parte vingueis o todo de vossa ira.
Vede que quem quer bem não se vinga tão mal.
Mas todas estas razões de dom Quixote já não as escutava
ninguém, porque, assim que Maritornes o amarrou, ela e a outra se
foram, mortas de riso, e o deixaram preso de maneira que foi
impossível soltar-se.
Estava, pois, como se disse, de pé sobre Rocinante, metido todo o
braço pelo buraco e amarrado pelo pulso, e ao trinco da porta, com
grandíssimo temor e cuidado, que se Rocinante se desviasse para um
lado ou a outro, havia de ficar pendurado pelo braço; e assim, não
ousava fazer movimento algum, embora da paciência e quietude de
Rocinante bem se podia esperar que estaria sem mover-se um século
inteiro.
Em suma, vendo-se dom Quixote amarrado, e que já as damas se
haviam ido, se deu a imaginar que tudo aquilo se fazia por via de
encantamento, como a vez passada, quando naquele mesmo castelo o
moeu aquele mouro encantado do arreeiro; e maldizia consigo sua
pouca discrição e raciocínio, pois, havendo saído tão mal a vez primeira
daquele castelo, se havia aventurado a entrar nele a segunda, sendo
advertimento de cavaleiros andantes que, quando provaram uma
aventura e não saíram bem dela, é sinal que não está para eles
guardada, senão para outros; e assim, não têm obrigação de prová-la
segunda vez. Desse modo, puxava o braço, para ver se podia soltar-se;
mas ele estava tão bem preso, que todas suas provas foram em vão.
Bem é verdade que puxava com cuidado, para que Rocinante não se
movesse; e, embora ele quisesse sentar-se e pôr-se na sela, não podia
senão estar em pé, ou arrancar a mão.
Ali foi o desejar a espada de Amadis, contra quem não tinha força
encantamento algum; ali foi o maldizer de sua fortuna; ali foi o
exagerar a falta que faria no mundo sua presença o tempo que ali
estivesse encantado, que sem dúvida alguma acreditava estar; ali o
recordar-se de novo de sua querida Dulcineia do Toboso; ali foi o
chamar a seu bom escudeiro Sancho Pança, que, sepultado em sonho e
estendido sobre a albarda de seu jumento, não se recordava naquele
instante da mãe que o havia parido; ali chamou aos sábios Lirgandeo e
Alquife, que o ajudassem; ali invocou a sua boa amiga Urganda, que o
socorresse, e, finalmente, ali o achou a manhã, tão desesperado e
confuso que bramava como um touro; porque não esperava ele que com
o dia se remediasse sua coita, porque a tinha por eterna, tendo-se por
encantado. E fazia-o crer isto ver que Rocinante pouco nem muito se
movia, e cria que daquela sorte, sem comer nem beber nem dormir,
haviam de estar ele e seu cavalo, até que aquele mal influxo das
estrelas passasse, ou até que outro mais sábio encantador o
desencantasse.
Mas enganou-se muito em sua crença, porque, apenas começou a
amanhecer, quando chegaram à estalagem quatro homens a cavalo,
muito bem postos e aparelhados, com suas escopetas sobre os arções.
Chamaram à porta da estalagem, que ainda estava fechada, com
grandes golpes; o qual, visto por dom Quixote desde onde ainda não
deixava de fazer a sentinela, com voz arrogante e alta disse:
- Cavaleiros ou escudeiros ou quem quer que sejais: não tendes para
que chamar às portas deste castelo; que assaz claro está que a tais
horas, ou os que estão dentro dormem, ou não têm por costume abrir-
se as fortalezas até que o sol esteja estendido por todo o chão.
Afastai-vos um pouco, e esperai que aclare o dia, e então veremos se
será justo ou não que vos abram.
- Que diabos de fortaleza ou castelo é este - disse um, - para
obrigar-nos a guardar essas cerimônias? Se sois o vendeiro, mandai
que nos abram, que somos caminhantes que não queremos mais que dar
cevada a nossas cavalgaduras e passar adiante, porque vamos com
pressa.
- Parece-vos, cavaleiros, que tenho eu talhe de vendeiro? -
respondeu dom Quixote.
- Não sei de que tendes talhe - respondeu o outro, - mas sei que
dizeis disparates ao chamar castelo a esta estalagem.
- Castelo é - replicou dom Quixote, - e ainda dos melhores de toda
esta província; e gente tem dentro que teve cetro na mão e coroa na
cabeça.
- Melhor fora ao contrário - disse o caminhante: - o cetro na cabeça
e a coroa na mão. E será, se vem ao caso, que deve estar aí alguma
companhia de atores, dos quais é ter amiúde essas coroas e cetros que
dizeis, porque em uma estalagem tão pequena, e onde se guarda tanto
silêncio como esta, não creio eu que se alojam pessoas dignas de coroa
e cetro.
- Sabeis pouco do mundo - replicou dom Quixote, - pois ignorais os
casos que costumam acontecer na cavalaria andante.
Cansavam-se os companheiros que com o perguntante vinham do
colóquio que com dom Quixote passava, e assim, tornaram a chamar
com grande fúria; e foi de modo que o vendeiro despertou, e ainda
todos quantos na estalagem estavam; e assim, se levantou a perguntar
quem chamava. Sucedeu neste tempo que uma das cavalgaduras em que
vinham os quatro que chamavam se aproximou para cheirar Rocinante,
que, melancólico e triste, com as orelhas caídas, sustinha sem mover-
se seu estirado senhor; e como, enfim, era de carne, embora
parecesse de pau, não pôde deixar de ressentir-se e tornar a cheirar
quem lhe chegava a fazer carícias; e assim, não se moveu um
pouquinho, quando se desviaram os juntos pés de dom Quixote, e,
resvalando da sela, dariam com ele no chão, se não ficasse pendurado
pelo braço: coisa que lhe causou tanta dor que creu ou que o pulso lhe
cortavam, ou que o braço se lhe arrancava; porque ele ficou tão perto
do chão que com os extremos das pontas dos pés beijava a terra, que
era em seu prejuízo, porque, como sentia o pouco que lhe faltava para
pôr as plantas na terra, fatigava-se e estirava-se quanto podia para
alcançar o chão, bem assim como os que estão na tortura da garrucha,
postos a “toca, não toca”, que eles mesmos são causa de acrescentar
sua dor, com o afinco que põem em estirar-se, enganados da esperança
que se lhes representa que com pouco mais que se estirem chegarão
ao chão.
CAPÍTULO XLIV
CAPÍTULO XLV
CAPÍTULO XLVI
CAPÍTULO XLVII
CAPÍTULO XLVIII
Onde prossegue o cônego a matéria dos livros de cavalarias, com
outras coisas dignas de seu engenho
CAPÍTULO XLIX
Onde se trata do discreto colóquio que Sancho Pança teve com seu
senhor dom Quixote
Se não, digam-me também que não é verdade que foi cavaleiro andante
o valente lusitano João de Merlo, que foi à Borgonha e combateu na
cidade de Arras contra o famoso senhor de Charny, chamado
monsieur Pierres, e depois, na cidade de Basileia, com monsieur
Enrique de Remestán, saindo de ambas as empresas vencedor e cheio
de honrosa fama; e as aventuras e desafios que também
empreenderam em Borgonha os valentes espanhóis Pedro Barba e
Gutierre Quijada (de cuja estirpe eu descendo em linha reta de
varão), vencendo aos filhos do conde de São Polo. Neguem-me também
que não foi buscar as aventuras na Alemanha dom Fernando de
Guevara, onde combateu contra micer Jorge, cavaleiro da casa do
duque de Áustria; digam que foram burla as justas de Suero de
Quiñones, do Paso; as empresas de monsieur Luís de Falces contra
dom Gonçalo de Guzmão, cavaleiro castelhano, com outras muitas
façanhas feitas por cavaleiros cristãos, destes e dos reinos
estrangeiros, tão autênticas e verdadeiras, que torno a dizer que o
que as negasse careceria de toda razão e boas palavras.
Admirado ficou o cônego de ouvir a mescla que dom Quixote fazia
de verdades e mentiras, e de ver a notícia que tinha de todas aquelas
coisas tocantes e concernentes aos feitos de sua andante cavalaria; e
assim, lhe respondeu:
- Não posso eu negar, senhor dom Quixote, que não seja verdade
algo do que vossa mercê disse, especialmente no que toca aos
cavaleiros andantes espanhóis; e, também, quero conceder que houve
Doze Pares da França, mas não quero crer que fizeram todas aquelas
coisas que o arcebispo Turpin deles escreve; porque a verdade disso é
que foram cavaleiros escolhidos pelos reis da França, a quem
chamaram pares por serem todos iguais em valor, em qualidade e em
valentia; ao menos, se não o eram, era razão que o fossem e era como
uma religião das que agora se usam de Santiago ou de Calatrava, que
se pressupõe que os que a professam hão de ser, ou devem ser,
cavaleiros valorosos, valentes e bem nascidos; e, como agora dizem
“cavaleiro de São João”, ou “de Alcântara”, diziam naquele tempo
“cavaleiro dos Doze Pares”, porque não foram doze iguais os que para
esta religião militar se escolheram. No de que houve Cid não há dúvida,
nem menos Bernardo de Carpio, mas de que fizeram as façanhas que
dizem, creio que a há muito grande. No outro da cravilha que vossa
mercê diz do conde Pierres, e que está junto à sela de Babieca na
armaria dos reis, confesso meu pecado; que sou tão ignorante, ou tão
pequeno de vista, que, embora vi a sela, não vi a cravilha, e mais sendo
tão grande como vossa mercê disse.
- Pois ali está, sem dúvida alguma - replicou dom Quixote; - e, por
mais sinais, dizem que está metida em uma funda de vaqueta, para que
não mofe.
- Tudo pode ser - respondeu o cônego; - mas, pelas ordens que
recebi, que não me lembro de havê-la visto. Mas, posto que conceda
que está ali, não por isso me obrigo a crer nas histórias de tantos
Amadises, nas de tanta turbamulta de cavaleiros como por aí nos
contam; nem é razão que um homem como vossa mercê, tão honrado e
de tão boas qualidades, e dotado de tão bom entendimento, se dê a
entender que são verdadeiras tantas e tão estranhas loucuras como as
que estão escritas nos disparatados livros de cavalarias.
CAPÍTULO L
CAPÍTULO LI
- A três léguas deste vale está uma aldeia que, embora pequena, é
das mais ricas que há em todos estes contornos; na qual havia um
lavrador muito honrado, e tanto, que, embora é próprio ao ser rico o
ser honrado, mais o era ele pela virtude que tinha que pela riqueza que
possuía. Mas o que o fazia mais ditoso, segundo ele dizia, era ter uma
filha de tão extremada formosura, rara discrição, donaire e virtude,
que o que a conhecia e a olhava se admirava de ver as extremadas
qualidades com que o céu e a natureza a haviam enriquecido. Sendo
menina era formosa, e sempre foi crescendo em beleza, e na idade de
dezesseis anos era formosíssima. A fama de sua beleza começou a
estender-se por todas as circunvizinhas aldeias, que digo eu pelas
circunvizinhas não mais, se se estendeu às afastadas cidades, e ainda
entrou pelas salas dos reis, e pelos ouvidos de todo gênero de gente;
que, como a coisa rara, ou como a imagem de milagres, de todos os
lados vinham para vê-la? Guardava-a seu pai, e guardava-se ela; que
não há cadeados, guardas nem fechaduras que melhor guardem a uma
donzela que as do recato próprio.
“A riqueza do pai e a beleza da filha moveram a muitos, assim do
povoado como forasteiros, que por mulher a pedissem; mas ele, como a
quem tocava dispor de tão rica joia, andava confuso, sem saber
determinar a quem a entregaria dos infinitos que o importunavam. E
entre os muitos que tão bom desejo tinham, fui eu um, a quem deram
muitas e grandes esperanças de bom sucesso conhecer que o pai
conhecia quem eu era, o ser natural do mesmo povoado, limpo em
sangue, na idade florescente, nos bens muito rico e no engenho não
menos acabado. Com todas estas mesmas qualidades a pediu também
outro do mesmo povoado, que foi causa de suspender e pôr em balança
a vontade do pai, a quem parecia que com qualquer de nós estava sua
filha bem empregada; e, por sair desta confusão, determinou dizê-lo a
Leandra, que assim se chama a rica que em miséria me tem posto,
advertindo que, pois os dois éramos iguais, ficava bem deixar à
vontade de sua querida filha o escolher a seu gosto: coisa digna de
imitar por todos os pais que a seus filhos querem casar: não digo eu
que os deixem escolher em coisas ruins e más, mas que as proponham
boas, e das boas, que escolham a seu gosto. Não sei eu o que teve
Leandra; só sei que o pai nos entreteve a ambos com a pouca idade de
sua filha e com palavras gerais, que nem o obrigavam, nem nos
desobrigava tampouco. Chama-se meu competidor Anselmo, e eu
Eugênio, para que saibais os nomes das pessoas que nesta tragédia se
contêm, cujo fim ainda está pendente; mas bem se deixa entender que
será desastrado.
“Nesta ocasião, veio a nossa vila um tal Vicente da Roca, filho de
um pobre lavrador do mesmo lugar; o qual Vicente vinha das Itálias e
de outras diversas partes, de ser soldado. Levou-o de nosso lugar,
sendo moço de uns doze anos, um capitão que com sua companhia por
ali acertou passar, e voltou o moço dali a outros doze, vestido à
soldadesca, pintado com mil cores, cheio de mil enfeites de cristal e
sutis correntes de aço. Hoje punha uma veste e amanhã outra; mas
todas sutis, falsas, de pouco peso e menos importância. A gente
lavradora, que de seu é maliciosa, e dando-lhe o ócio lugar é a mesma
malícia, o notou, e contou ponto por ponto suas vestes e adornos, e
achou que os vestidos eram três, de diferentes cores, com suas ligas e
meias; mas ele fazia tantos guisados e invenções delas, que se não se
os contassem, haveria quem jurasse que havia feito mostra de mais de
dez pares de trajes e de mais de vinte plumagens. E não pareça
impertinência e demasia isto que dos trajes vou contando, porque eles
têm uma boa parte nesta história. Sentava-se num banco que debaixo
de um grande álamo está em nossa praça, e ali nos tinha a todos de
boca aberta, pendentes das façanhas que nos ia contando. Não havia
terra em todo o orbe que não houvesse visto, nem batalha onde não se
houvesse achado; havia matado mais mouros que tem Marrocos e
Túnis, e entrado em mais singulares desafios, segundo ele dizia, que
Gante e Luna, Diego Garcia de Paredes e outros mil que nomeava; e de
todos havia saído com vitória, sem que lhe houvessem derramado uma
só gota de sangue. Por outra parte, mostrava sinais de feridas que,
embora não se divisavam, nos fazia entender que eram arcabuzaços
dados em diferentes combates e facções. Finalmente, com uma não
vista arrogância, chamava de vós a seus iguais e aos mesmos que o
conheciam, e dizia que seu pai era seu braço, sua linhagem, suas obras,
e que debaixo de ser soldado, ao mesmo rei não devia nada.
Acrescentou-se-lhe a estas arrogâncias ser um pouco músico e tocar
uma guitarra ao rasgado, de maneira que diziam alguns que a fazia
falar; mas não pararam aqui suas graças, que também a tinha de poeta,
e assim, de cada ninharia que acontecia no povoado, compunha um
poema de légua e meia de escritura. Este soldado, pois, que aqui pintei,
este Vicente da Roca, este bravo, este galã, este músico, este poeta
foi visto e visto muitas vezes por Leandra, desde uma janela de sua
casa que tinha a vista à praça. Enamorou-a o ouropel de seus vistosos
trajes, encantaram-na seus poemas, que de cada um que compunha
dava vinte traslados, chegaram a seus ouvidos as façanhas que ele de
si mesmo havia referido, e, finalmente, que assim o diabo o devia ter
ordenado, ela veio a enamorar-se dele, antes que nele nascesse
presunção de requestá-la. E como nos casos de amor não há nenhum
que com mais facilidade se cumpra que aquele que tem de sua parte o
desejo da dama, com facilidade se acertaram Leandra e Vicente; e,
antes que algum de seus muitos pretendentes pressentisse seu
desejo, já ela o tinha cumprido, havendo deixado a casa de seu querido
e amado pai, que mãe não a tem, e se ausentado da aldeia com o
soldado, que saiu com mais triunfo desta empresa que de todas as
muitas que ele se atribuía. Admirou o acontecido a toda a aldeia, e
ainda a todos os que dele notícia tiveram; eu fiquei suspenso, Anselmo,
atônito, o pai triste, seus parentes afrontados, solícita a justiça, os
quadrilheiros rápidos; tomaram-se os caminhos, esquadrinharam-se os
bosques e quanto havia, e, ao cabo de três dias, acharam a caprichosa
Leandra em uma cova de um monte, só em camisa, sem os muitos
dinheiros e preciosíssimas joias que de sua casa havia tirado.
Levaram-na à presença do lastimado pai; perguntaram-lhe sua
desgraça; confessou voluntariamente que Vicente da Roca a havia
enganado, e debaixo de sua palavra de ser seu esposo a persuadiu que
deixasse a casa de seu pai; que ele a levaria à mais rica e mais viciosa
cidade que havia em todo o universo mundo, que era Nápoles; e que
ela, mal advertida e pior enganada, havia acreditado nele; e, roubando
seu pai, tudo lhe entregou na mesma noite em que fugira; e que ele a
levou a um áspero monte, e a fechou naquela cova onde a haviam
achado. Contou também como o soldado, sem tirar sua honra, lhe
roubou quanto tinha, e a deixou naquela cova e se foi: acontecimento
que de novo pôs em admiração a todos. Duro nos foi acreditar na
continência do moço, mas ela o afirmou com tantas veras, que foram
parte para que o desconsolado pai se consolasse, não fazendo conta
das riquezas que lhe levavam, pois lhe haviam deixado sua filha com a
joia que, se uma vez se perde, não deixa esperança de que jamais se
cobre. No mesmo dia que apareceu Leandra a desapareceu seu pai de
nossos olhos, e a levou a encerrar num monastério de uma vila que está
aqui perto, esperando que o tempo gaste alguma parte da má opinião
em que sua filha se pôs. Os poucos anos de Leandra serviram de
desculpa de sua culpa, ao menos para aqueles que não tinham algum
interesse em que ela fosse má ou boa; mas os que conheciam sua
discrição e muito entendimento não atribuíram à ignorância seu
pecado, senão à sua desenvoltura e à natural inclinação das mulheres,
que, pela maior parte, costuma ser desatinada e mal composta.
Encerrada Leandra, ficaram os olhos de Anselmo cegos, ao menos sem
ter coisa que olhar que prazer lhe desse; os meus em trevas, sem luz
que a nenhuma coisa de gosto lhes encaminhasse; com a ausência de
Leandra, crescia nossa tristeza, apoucava-se nossa paciência,
maldizíamos as roupas do soldado e abominávamos a pouca prudência
do pai de Leandra. Finalmente, Anselmo e eu combinamos de deixar a
aldeia e vir a este vale, onde ele, apascentando uma grande quantidade
de ovelhas suas próprias, e eu um numeroso rebanho de cabras,
também minhas, passamos a vida entre as árvores, dando descanso a
nossas paixões, ou cantando juntos louvações ou vitupérios da formosa
Leandra, ou suspirando sós e a sós compartindo com o céu nossas
querelas. À imitação nossa, outros muitos dos pretendentes de
Leandra vieram a estes ásperos montes, usando o mesmo exercício
nosso; e são tantos, que parece que este sítio se converteu na pastoral
Arcádia, segundo está cheio de pastores e de apriscos, e não há parte
nele onde não se ouça o nome da formosa Leandra. Este a maldiz e a
chama caprichosa, vária e desonesta; aquele a condena por fácil e
ligeira; tal a absolve e perdoa, e tal a justiça e vitupera; um celebra
sua formosura, outro renega sua condição, e, enfim, todos a desonram,
e todos a adoram, e de todos se estende a tanto a loucura, que há
quem se queixe de desdém sem haver-lhe jamais falado, e ainda quem
se lamente e sinta a raivosa enfermidade dos ciúmes, que ela jamais
deu a ninguém; porque, como já disse, antes se soube seu pecado que
seu desejo. Não há oco de penha, nem margem de arroio, nem sombra
de árvore que não esteja ocupada por algum pastor que suas
desventuras aos ares conte; o eco repete o nome de Leandra onde
quer que possa formar-se: “Leandra” ressoam os montes, “Leandra”
murmuram os arroios, e Leandra nos tem a todos suspensos e
encantados, esperando sem esperança e temendo sem saber de que
tememos. Entre estes disparatados, o que mostra que menos e mais
juízo tem é meu competidor Anselmo, o qual, tendo tantas outras
coisas de que queixar-se, só se queixa de ausência; e ao som de uma
rabeca, que admiravelmente toca, com versos onde mostra seu bom
entendimento, cantando se queixa. Eu sigo outro caminho mais fácil, e
a meu parecer o mais acertado, que é dizer mal da ligeireza das
mulheres, de sua inconstância, de seu dúbio trato, de suas promessas
mortas, de sua fé rompida, e, finalmente, da pouca razão que têm em
saber colocar seus pensamentos e intenções; e este foi o motivo,
senhores, das palavras e razões que disse a esta cabra quando aqui
cheguei; que por ser fêmea a tenho em pouco, embora seja a melhor
de todo meu aprisco. Esta é a história que prometi contar-vos; se fui
prolixo ao contá-la, não serei em servir-vos curto: perto daqui tenho
minha cabana, e nela tenho fresco leite e muito saborosíssimo queijo,
com outras várias e sazonadas frutas, não menos à vista que ao gosto
agradáveis.
CAPÍTULO LII
O MONICONGO,
ACADÊMICO DA ARGAMASILLA,
À SEPULTURA DE DOM QUIXOTE
Epitáfio
Soneto
DO FANTÁSTICO, DISCRETÍSSIMO
ACADÊMICO DA ARGAMASILLA,
EM LOUVOR DE ROCINANTE,
CAVALO DE DOM QUIXOTE DA MANCHA
Soneto
DO ENGANADOR,
ACADÊMICO ARGAMASILLESCO,
A SANCHO PANÇA
Soneto
DO CACHIDIABO,
ACADÊMICO DA ARGAMASILLA,
NA SEPULTURA DE DOM QUIXOTE
Epitáfio
DO TIQUITOC,
ACADÊMICO DA ARGAMASILLA,
NA SEPULTURA DE DULCINEIA DO TOBOSO
Epitáfio
FINIS
PORTADA
SEGUNDA PARTE
DO ENGENHOSO
CAVALEIRO DOM
QUIXOTE DA
MANCHA.
Por Miguel de Cervantes Saavedra, autor de sua primeira parte.
Dirigida a dom Pedro Fernández de Castro, Conde de Le-
mos, de Andrade, e de Villalba, Marquês de Sarria, Gentil-
homem da Câmara de Sua Majestade, Comendador da
Encomenda de Penafiel, e a Sarça da Ordem de Al-
cântara, Vice-rei, Governador, e Capitão General
do Reino de Nápoles, e Presidente do Su-
premo Conselho da Itália.
Ano 1615
COM PRIVILÉGIO
Em Madrid, Por Juan de Cuesta.
Vende-se em casa de Francisco de Robles, livreiro do Rei N.S.
TAXA
Eu, Fernando de Vallejo, escrivão de Câmara do Rei nosso Senhor, dos
que residem em seu Conselho, dou fé que, havendo-se visto pelos
senhores dele um livro que compôs Miguel de Cervantes Saavedra,
intitulado Dom Quijote da Mancha, Segunda parte, que com licença de
Sua Majestade foi impresso, taxaram-no a quatro maravedis cada
folha, o qual tem setenta e três folhas, que ao dito respeito soma e
monta duzentos e noventa e dois maravedis; e mandaram que esta
taxa se ponha ao princípio de cada volume do dito livro, para que se
saiba e entenda o que por ele se há de pedir e levar, sem que se
exceda nisso de maneira alguma, como consta e parece pelo auto e
decreto original sobre ele dado e que fica em meu poder, a que me
refiro. E de mandamento dos ditos senhores do Conselho e de pedido
da parte do dito Miguel de Cervantes, dei esta fé em Madri, a vinte e
um dias do mês de outubro de mil e seiscentos e quinze.
Fernando de Vallejo
FÉ DE ERRATAS
Vi este livro intitulado Segunda parte de dom Quixote da Mancha,
composto por Miguel de Cervantes Saavedra, e não há nele coisa digna
de notar que não corresponda a seu original. Dada en Madrid a vinte e
um de outubro, mil e seiscentos e quinze.
O Licenciado Francisco Murcia de la Llana
APROVAÇÃO DO DOUTOR
GUTIERRE DE CETINA
Por comissão e mandado dos senhores do Conselho, fiz ver o livro
contido neste memorial. Não contém coisa contra a fé e bons
costumes, antes é livro de muito entretenimento lícito, mesclado de
muita filosofia moral. Pode-se dar licença para imprimi-lo. Em Madri, a
cinco de novembro de mil seiscentos e quinze.
Doctor Gutierre de Cetina
APROVAÇÃO DO MESTRE
JOSEF DE VALDIVIELSO
APROVAÇÃO DO LICENCIADO
MÁRQUEZ TORRES
PRIVILÉGIO
Por quanto por parte de vós, Miguel de Cervantes Saavedra, nos foi
feita relação que havíeis composto a Segunda parte de dom Quixote
da Mancha, da qual fazíeis apresentação, e por ser livro de história
agradável e honesta, e haver-vos custado muito trabalho e estudo, nos
suplicastes vos mandássemos dar licença para o poder imprimir e
privilégio por vinte anos, ou como a nossa mercê fosse; o qual visto
pelos do nosso Conselho, por quanto no dito livro se fez a diligência
que a lei por nós sobre ele feita dispõe, foi acordado que devíamos
mandar dar esta nossa cédula na dita razão, e nós o tivemos por bem.
Pela qual vos damos licença e faculdade para que por tempo e espaço
de dez anos cumpridos primeiros seguintes, que corram e se contem
desde o dia da data desta nossa cédula em diante, vós, ou a pessoa que
para isso vosso poder tiver, e não outra alguma, possais imprimir e
vender o dito livro de que acima se faz menção, e pela presente damos
licença e faculdade a qualquer impressor de nossos reinos que
nomeardes para que durante no dito tempo o possa imprimir pelo
original que no nosso Conselho se viu, que vai rubricado e firmado ao
fim por Fernando de Vallejo, nosso escrivão de Câmara e um dos que
nele residem, com que antes e primeiro que se venda o tragais ante
eles, juntamente com o dito original, para que se veja se a dita
impressão está conforme a ele, ou tragais fé em pública forma como
por corretor por nós nomeado se viu e corrigiu a dita impressão pelo
dito original. E mandamos ao dito impressor que assim imprimir o dito
livro não imprima o princípio e primeira folha dele, nem entregue mais
de um só livro com o original ao autor e pessoa a cuja custa o imprimir,
nem a outra alguma, para efeito da dita correção e taxa, até que antes
e primeiro o dito livro esteja corrigido e taxado pelos do nosso
Conselho; e estando feito, e não de outra maneira, possa imprimir o
dito princípio e primeira folha, no qual imediatamente ponha esta
nossa licença e a aprovação, taxa e erratas, nem o possais vender nem
vendais vós nem outra pessoa alguma até que esteja o dito livro na
forma dita acima, sob pena de cair e incorrer nas penas contidas na
dita lei e leis de nossos reinos que sobre isso dispõem. E mais que
durante o dito tempo pessoa alguma sem vossa licença não o possa
imprimir nem vender, sob pena que o que o imprimir e vender haja
perdido e perca quaisquer livros, moldes e aparelhos que dele tiver, e
mais incorra em pena de cinquenta mil maravedis por cada vez que o
contrário fizer, da qual dita pena seja a terça parte para nossa
Câmara, e a outra terça parte para o juiz que o sentenciar, e a outra
terça parte para o que o denunciar. E mais aos do nosso Conselho,
presidentes, ouvidores das nossas Audiências, alcaides, meirinhos da
nossa Casa e Corte e Chancelarias, e a outras quaisquer justiças de
todas as cidades, vilas e lugares dos nossos reinos e senhorios e a
cada um em sua jurisdição, assim aos que agora são como aos que
serão daqui em diante, que vos guardem e cumpram esta nossa cédula
e mercê que assim vos fazemos, e contra ela não vão nem passem de
maneira alguma, sob pena da nossa mercê e de dez mil maravedis para
a nossa Câmara. Dada em Madri, a trinta dias do mês de março de mil
e seiscentos e quinze anos.
EU O REI
CAPÍTULO PRIMEIRO
E sem dúvida, que isto foi como profecia; que os poetas também se
chamam vates, que quer dizer “adivinhos”. Vê-se esta verdade clara,
porque, depois aqui, um famoso poeta andaluz chorou e cantou suas
lágrimas, e outro famoso e único poeta castelhano cantou sua
formosura.
- Diga-me, senhor dom Quixote - disse então o barbeiro, - não
houve algum poeta que haja feito alguma sátira a essa senhora
Angélica, entre tantos que a louvaram?
- Bem creio eu - respondeu dom Quixote - que se Sacripante ou
Roldão fossem poetas, que já houvessem insultado a donzela; porque é
próprio e natural dos poetas desdenhados e não admitidos por suas
damas (fingidas, ou fingidas com efeito por aqueles) a quem eles
escolheram por senhoras de seus pensamentos, vingar-se com sátiras
e libelos, vingança, por certo, indigna de peitos generosos; mas até
agora não chegou à minha notícia nenhum verso infamatório contra a
senhora Angélica, que agitou o mundo.
- Milagre! - disse o padre.
E nisto ouviram que a ama e a sobrinha, que já haviam deixado a
conversação, davam grandes vozes no pátio, e atenderam todos ao
ruído.
CAPÍTULO II
Que trata da notável pendência que Sancho Pança teve com a sobrinha
e ama de dom Quixote, com outros assuntos graciosos
CAPÍTULO IV
Onde Sancho Pança satisfaz ao bacharel Sansão Carrasco sobre
suas dúvidas e perguntas, com outros sucessos dignos de saber-se e
de contar-se
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
Do que passou dom Quixote com seu escudeiro, com outros sucessos
famosíssimos
Apenas viu a ama que Sancho Pança se encerrava com seu senhor,
quando se deu conta de seus planos; e, imaginando que daquela
consulta havia de sair a resolução de sua terceira saída e tomando seu
manto, toda cheia de angústia e tristeza, foi procurar o bacharel
Sansão Carrasco, parecendo-lhe que, por ser bem falado e amigo
recente de seu senhor, poderia persuadi-lo a que deixasse tão
desvairado propósito.
Achou-o passeando pelo pátio de sua casa, e, vendo-o, se deixou cair
ante seus pés, tressuando e angustiada. Quando a viu Carrasco com
mostras tão doloridas e sobressaltadas, disse-lhe:
- Que é isto, senhora ama? Que lhe aconteceu, que parece que se
lhe quer arrancar a alma?
- Não é nada, senhor Sansão meu, senão que meu amo vai embora;
vai sem dúvida!
- E para onde vai, senhora? - perguntou Sansão. - Rompeu-lhe
alguma parte do corpo?
- Não vai - respondeu ela, - senão pela porta de sua loucura. Quero
dizer, senhor bacharel de minha alma, que quer sair outra vez, que
com esta será a terceira, a buscar por esse mundo o que ele chama
venturas, que eu não posso entender como lhes dá este nome. A vez
primeira no-lo trouxeram atravessado sobre um jumento, moído a
golpes. A segunda veio num carro de bois, metido e encerrado em uma
jaula, onde ele dava a entender que estava encantado; e vinha tal o
triste, que não o conheceria a mãe que o pariu: magro, amarelo, os
olhos fundidos nos últimos recantos do cérebro, e, para fazê-lo voltar
algum tanto a si, gastei mais de seiscentos ovos, como o sabe Deus e
todo o mundo, e minhas galinhas, que não me deixarão mentir.
- Isso creio eu muito bem - respondeu o bacharel; - que elas são tão
boas, tão gordas e tão bem criadas, que não dirão uma coisa por outra,
ainda que rebentassem. Com efeito, senhora ama: não há outra coisa,
nem sucedeu outro desmando algum, senão o que se teme que quer
fazer o senhor dom Quixote?
- Não, senhor - respondeu ela.
- Pois não se preocupe - respondeu o bacharel, - senão vá em hora
boa para sua casa, e prepare-me alguma coisa quente para almoçar, e,
no caminho, vá rezando a oração de Santa Apolônia se é que a sabe,
que eu irei logo lá, e verá maravilhas.
- Coitada de mim! - replicou a ama. - A oração de Santa Apolônia diz
vossa mercê que reze? Isso seria se meu amo tivesse dor de dentes,
mas não a tem senão da cachola.
- Eu sei o que digo, senhora ama: vá e não se ponha a disputar
comigo, pois sabe que sou bacharel por Salamanca, que não há mais que
bacharelar - respondeu Carrasco.
E com isto se foi a ama, e o bacharel foi logo procurar o padre, para
conversar com ele o que se dirá a seu tempo.
No tempo em que estiveram encerrados dom Quixote e Sancho,
passaram as razões que com muita pontualidade e verdadeira relação
conta a história.
Disse Sancho a seu amo:
- Senhor, já eu tenho reluzida a minha mulher a que me deixe ir com
vossa mercê onde quiser levar-me.
- Reduzida hás de dizer, Sancho - disse dom Quixote, - que não
reluzida.
- Uma ou duas vezes - respondeu Sancho, - se mal não me lembro,
supliquei a vossa mercê que não me emende os vocábulos, se é que
entende o que quero dizer com eles, e que, quando não os entenda,
diga: “Sancho, ou diabo, não te entendo”; e se eu não me explicar,
então poderá emendar-me; que eu só tão fócil...
- Não te entendo, Sancho - disse logo dom Quixote, - pois não sei
que quer dizer sou tão fócil.
- Tão fócil quer dizer - respondeu Sancho - “sou tão assim”.
- Menos te entendo agora - replicou dom Quixote.
- Pois se não me pode entender - respondeu Sancho, - não sei como
o diga: não sei mais, e Deus esteja comigo.
- Já, já sei - respondeu dom Quixote: - tu queres dizer que és tão
dócil, suave e esperto que aceitarás o que eu te disser, e seguirás o
que te ensinar.
- Apostarei eu - disse Sancho - que desde o princípio me entendeu,
mas quis confundir-me para ouvir-me dizer outras duzentas
patacoadas.
- Poderá ser - replicou dom Quixote. - E com efeito, que diz
Teresa?
- Teresa diz - disse Sancho - que me assegure bem no trato feito
com vossa mercê, e que falem cartas e calem barbas, porque quem
corta não baralha, pois mais vale um toma que dois te darei. E eu digo
que o conselho da mulher é pouco, e o que não o toma é louco.
- E eu o digo também - respondeu dom Quixote. - Dizei, Sancho
amigo; passai adiante, que falais hoje por pérolas.
- É o caso - replicou Sancho - que, como vossa mercê melhor sabe,
todos estamos sujeitos à morte, e que hoje existimos e amanhã não, e
que tão logo se vai o cordeiro como o carneiro, e que ninguém pode
prometer-se neste mundo mais horas de vida das que Deus quiser dar-
lhe, porque a morte é surda, e, quando chega a chamar às portas de
nossa vida, sempre vai depressa e não a farão deter nem rogos, nem
forças, nem cetros, nem mitras, segundo é pública voz e fama, e
segundo no-lo dizem por esses púlpitos.
- Tudo isso é verdade - disse dom Quixote, - mas não sei onde
pretendes chegar.
- Quero chegar - disse Sancho - em que vossa mercê me estipule
salário conhecido do que me há de dar cada mês pelo tempo que o
servir, e que o tal salário se me pague de seus bens; que não quero
estar por mercês, que chegam tarde, ou mal, ou nunca; com o meu me
ajude Deus. Enfim, eu quero saber o que ganho, pouco ou muito que
seja, que sobre um ovo põe a galinha, e muitos poucos fazem um muito,
e quando se ganha algo não se perde nada. Verdade seja que se
sucedesse, o qual nem o creio nem o espero, que vossa mercê me desse
a ilha que me tem prometida, não sou tão ingrato, nem levo as coisas
tão pelos fins, que não quererei que se aprecie o que montar a renda
da tal ilha, e se desconte de meu salário gata por quantidade.
- Sancho amigo - respondeu dom Quixote, - às vezes, tão boa
costuma ser uma gata como uma rata.
- Já entendo - disse Sancho: - eu apostarei que havia de dizer rata,
e não gata; mas não importa nada, pois vossa mercê me entendeu.
- E tanto entendi - respondeu dom Quixote - que penetrei o último
de teus pensamentos, e sei ao alvo que atiras com as inumeráveis
setas de teus refrãos. Vê, Sancho: eu bem te estipularia salário, se
houvesse achado em alguma das histórias dos cavaleiros andantes
exemplo que me descobrisse e mostrasse, por algum pequeno
resquício, que é o que costumavam ganhar cada mês, ou cada ano; mas
eu li todas ou as mais de suas histórias, e não me lembro de haver lido
que nenhum cavaleiro andante haja estipulado conhecido salário a seu
escudeiro. Só sei que todos serviam à mercê, e que, quando menos o
pensavam, se a seus senhores houvesse corrido bem a sorte, se
achavam premiados com uma ilha, ou com outra coisa equivalente, e,
pelo menos, ficavam com título e senhoria. Se com estas esperanças e
aditamentos vós, Sancho, gostais de voltar a servir-me, seja em boa
hora: que pensar que eu hei de tirar de seus termos e normas a antiga
usança da cavalaria andante é pensar em vão. Assim que, Sancho meu,
voltai a vossa casa, e declarai a vossa Teresa minha intenção; e se ela
gostar e vós gostardes de estar à mercê comigo, bene quidem, e se
não, tão amigos como antes; que se ao pombal não falta ceva, não lhe
faltarão pombas. E adverti, filho, que vale mais boa esperança que
ruim possessão, e boa queixa que má paga. Falo desta maneira, Sancho,
por dar-vos a entender que também como vós sei eu lançar refrãos em
abundância. E finalmente, quero dizer, e vos digo, que se não quereis
vir à mercê comigo e correr a sorte que eu correr, que Deus fique
convosco e vos faça um santo; que a mim não me faltarão escudeiros
mais obedientes, mais solícitos, e não tão lerdos nem tão faladores
como vós.
Quando Sancho ouviu a firme resolução de seu amo se lhe nublou o
céu e caíram as asas do coração, porque tinha acreditado que seu
senhor não iria sem ele por todos os haveres do mundo; e assim,
estando suspenso e pensativo, entrou Sansão Carrasco com a ama e a
sobrinha, desejosas de ouvir com que razões persuadia seu senhor a
não tornar a buscar aventuras. Chegou Sansão, socarrão famoso, e,
abraçando-o como na primeira vez e com voz levantada, disse-lhe:
- Oh flor da andante cavalaria; oh luz resplandecente das armas! Oh
honra e espelho da nação espanhola! Tomara Deus todo-poderoso,
onde mais largamente se contém, que a pessoa ou pessoas que puserem
impedimento e perturbarem tua terceira saída, que não a achem no
labirinto de seus desejos, nem jamais se lhes cumpra o que mal
desejarem.
E voltando-se à ama, disse-lhe:
- Bem possa a senhora ama não rezar mais a oração de Santa
Apolônia; que eu sei que é determinação precisa das esferas que o
senhor dom Quixote volte a executar seus altos e novos pensamentos,
e eu carregaria muito minha consciência se não intimasse e
persuadisse este cavaleiro que não tenha mais tempo encolhida e
detida a força de seu valoroso braço e a bondade de seu ânimo
valentíssimo, porque defrauda com sua tardança o direito dos tortos,
o amparo dos órfãos, a honra das donzelas, o favor das viúvas e o
arrimo das casadas, e outras coisas deste jaez, que tocam, atêm-se,
dependem e são próprias à ordem da cavalaria andante. Eia, senhor
dom Quixote meu, formoso e bravo, antes hoje que amanhã se ponha
vossa mercê e sua grandeza a caminho; e se alguma coisa faltar para
pô-lo em execução, aqui estou eu para supri-la com minha pessoa e
bens; e se for necessidade servir a tua magnificência de escudeiro, o
terei por felicíssima ventura!
Então, disse dom Quixote, voltando-se a Sancho:
- Não te disse eu, Sancho, que me haviam de sobrar escudeiros? Vê
quem se oferece a sê-lo, senão o inaudito bacharel Sansão Carrasco,
perpétuo bufão e regozijador dos pátios das escolas salmanticenses,
são de sua pessoa, ágil de seus membros, calado, sofredor assim do
calor como do frio, assim da fome como da sede, com todas aquelas
qualidades que se requerem para ser escudeiro de um cavaleiro
andante. Mas não permita o céu que, por seguir meu gosto, desfaça e
quebre a coluna das letras e o vaso das ciências, e trunque a palma
eminente das boas e liberais artes. Fique o novo Sansão em sua pátria,
e, honrando-a, honre juntamente as cãs de seus anciãos pais; que eu
com qualquer escudeiro estarei contente, já que Sancho não se digna
de vir comigo.
- Sim, digno-me - respondeu Sancho, enternecido e cheios de
lágrimas os olhos; e prosseguiu: - Não se dirá por mim, senhor meu: o
pão comido e a companhia desfeita; sim, que não venho eu de alguma
estirpe desagradecida, que já sabe todo o mundo, e especialmente
meu povoado, quem foram os Panças, de quem eu descendo, e mais, que
tenho conhecido e calado por muitas boas obras, e por melhores
palavras, o desejo que vossa mercê tem de fazer-me mercê; e se
regateei acerca de meu salário, foi por comprazer a minha mulher; a
qual, quando encasqueta com uma coisa, não há macete que tanto
aperte os aros de uma cuba como ela aperta a que se faça o que quer;
mas, com efeito, o homem há de ser homem, e a mulher, mulher; e,
pois eu sou homem onde quer, que não o posso negar, também o quero
ser em minha casa, pese a quem pesar; e assim, não há mais que fazer,
senão que vossa mercê ordene seu testamento com suas cláusulas, de
modo que não se possa revolgar, e ponhamo-nos logo a caminho, para
que não padeça a alma do senhor Sansão, que diz que sua consciência
lhe dita que persuada a vossa mercê a sair pela terceira vez por esse
mundo; e eu de novo me ofereço a servir a vossa mercê fiel e
legalmente, tão bem e melhor que quantos escudeiros serviram a
cavaleiros andantes nos passados e presentes tempos.
Admirado ficou o bacharel de ouvir o momento e modo precisos de
falar de Sancho Pança; pois, embora houvesse lido a primeira história
de seu senhor, nunca creu que era tão gracioso como ali o pintam; mas,
ouvindo-o dizer agora “testamento e cláusulas que não se possam
revolgar”, em lugar de “testamento e cláusulas que não se possam
revogar”, creu em tudo o que dele havia lido, e confirmou-o por um dos
mais solenes mentecaptos de nossos séculos; e disse consigo que tais
loucos como amo e moço não se haveriam visto no mundo.
Finalmente, dom Quixote e Sancho se abraçaram e ficaram amigos,
e com parecer e beneplácito do grande Carrasco, que por então era
seu oráculo, se ordenou que dali a três dias fosse sua partida; nos
quais haveria lugar de preparar o necessário para a viagem, e de
buscar uma elmo de encaixe, que de toda maneira disse dom Quixote
que o havia de levar. Ofereceu-o Sansão, porque sabia não o negaria
um amigo seu que o possuía, embora estivesse mais escuro pela
ferrugem e o mofo que clara e limpa pelo aço polido.
As maldições que as duas, ama e sobrinha, lançaram ao bacharel não
tiveram conta: arrancaram seus cabelos, arranharam seus rostos, e, ao
modo das carpideiras que se usavam, lamentavam a partida como se
fosse a morte de seu senhor. O desígnio que teve Sansão, para
persuadi-lo a que outra vez saísse, foi fazer o que adiante conta a
história, tudo por conselho do padre e do barbeiro, com quem ele
antes havia conversado.
Em suma, naqueles três dias dom Quixote e Sancho se abasteceram
do que lhes pareceu convir-lhes; e, havendo aplacado Sancho sua
mulher, e dom Quixote sua sobrinha e sua ama, ao anoitecer, sem que
ninguém visse, senão o bacharel, que quis acompanhá-los até meia
légua do lugar, se puseram a caminho do Toboso: dom Quixote sobre
seu bom Rocinante, e Sancho sobre seu antigo ruço, providos os
alforjes de coisas tocantes à boca, e a bolsa, de dinheiros, que lhe deu
dom Quixote para o que se oferecesse. Abraçou-o Sansão, e suplicou-
lhe o deixasse a par de sua boa ou má sorte, para alegrar-se com esta
ou entristecer-se com aquela, como as leis de sua amizade pediam.
Prometeu-o dom Quixote, Sansão voltou a seu lugar, e os dois
tomaram o rumo da grande cidade do Toboso.
CAPÍTULO VIII
Onde se conta o que sucedeu a dom Quixote, indo ver sua senhora
Dulcineia do Toboso
CAPÍTULO IX
Má a tivestes, franceses,
nessa de Roncesvales.
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
SONETO
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XVI
Saí de meu povoado natal, empenhei meus bens, deixei meu regalo, e
entreguei-me nos braços da fortuna, que me levassem onde mais fosse
servida. Quis ressuscitar a já morta andante cavalaria, e há muitos
dias que, tropeçando aqui, caindo ali, despenhando-me aqui e
levantando-me acolá, cumpri grande parte de meu desejo, socorrendo
viúvas, amparando donzelas e favorecendo casadas, órfãos e pupilos,
próprio e natural ofício de cavaleiros andantes; e assim, por minhas
valorosas, muitas e cristãs façanhas mereci andar já em estampa em
quase todas ou as mais nações do mundo. Trinta mil volumes se
imprimiram de minha história, e chegará a imprimir-se trinta mil vezes
de milhares, se o céu não o impede. Finalmente, por encerrar tudo em
breves palavras, ou em uma só, digo que eu sou dom Quixote da
Mancha, por outro nome chamado o Cavaleiro da Triste Figura; e,
embora as próprias louvações envileçam, é-me forçoso dizer eu talvez
as minhas, e isto se entende quando não se acha presente quem as
diga; assim que, senhor gentil-homem, nem este cavalo, esta lança,
nem este escudo, nem escudeiro, nem todas juntas estas armas, nem a
amarelidão de meu rosto, nem minha atenuada magreza, vos poderá
admirar daqui em diante, havendo já sabido quem sou e a profissão que
tenho.
Calou dizendo isto dom Quixote, e o de verde, segundo tardava em
responder-lhe, parecia que não acertava em fazê-lo; mas dali a bom
espaço lhe disse:
- Acertastes, senhor cavaleiro, em perceber por minha suspensão
meu desejo; mas não haveis acertado em tirar-me a maravilha que em
mim causa o haver-vos visto; que, embora, como vós, senhor, dizeis,
que o saber já quem sois mo poderia tirar, não foi assim; antes, agora
que o sei, fico mais suspenso e maravilhado. Como é possível que haja
hoje cavaleiros andantes no mundo, e que haja histórias impressas de
verdadeiras cavalarias? Não me posso persuadir que haja hoje na
terra quem favoreça viúvas, ampare donzelas, nem honre casadas, nem
socorra órfãos, e não o creria se em vossa mercê não o houvesse visto
com meus olhos. Bendito seja o céu!, que com essa história, que vossa
mercê diz que está impressa, de suas altas e verdadeiras cavalarias,
se haverão posto em olvido as inumeráveis dos fingidos cavaleiros
andantes, de que estava cheio o mundo, tão em dano dos bons
costumes e tão em prejuízo e descrédito das boas histórias.
- Há muito que dizer - respondeu dom Quixote - em razão de se são
fingidas, ou não, as histórias dos andantes cavaleiros.
- Então, há quem duvide - respondeu o Verde - que não são falsas as
tais histórias?
- Eu o duvido - respondeu dom Quixote, - e fique isto aqui, que se
nossa jornada dura, espero em Deus dar a entender a vossa mercê que
fez mal em seguir a corrente dos que têm por certo que não são
verdadeiras.
Desta última razão de dom Quixote entendeu o caminhante que dom
Quixote devia ser algum louco, e aguardava que com outras o
confirmasse; mas, antes que se divertissem em outros arrazoados,
dom Quixote lhe rogou lhe dissesse quem era, pois ele lhe havia dado
parte de sua condição e de sua vida. Ao que respondeu o do Verde
Gabão:
- Eu, senhor Cavaleiro da Triste Figura, sou um fidalgo natural de
um lugar onde iremos almoçar hoje, se Deus for servido. Sou mais que
medianamente rico e é meu nome dom Diego de Miranda; passo a vida
com minha mulher, e com meus filhos, e com meus amigos; meus
exercícios são o da caça e pesca, mas não mantenho nem falcão nem
galgos, senão algum perdigão manso, ou algum furão atrevido. Tenho
até seis dúzias de livros, uns em castelhano e outros em latim, de
história alguns e de devoção outros; os de cavalarias ainda não
entraram pelos umbrais de minhas portas. Folheio mais os que são
profanos que os devotos, como sejam de honesto entretenimento, que
deleitem com a linguagem e admirem e suspendam com a invenção,
embora destes haja muito poucos na Espanha. Alguma vez almoço com
meus vizinhos e amigos, e muitas vezes os convido; são meus convites
limpos e asseados, e nada escassos; nem gosto de murmurar, nem
consinto que diante de mim se murmure; não esquadrinho as vidas
alheias, nem sou cúmplice dos feitos dos outros; ouço missa cada dia;
reparto meus bens com os pobres, sem fazer alarde das boas obras,
para não dar entrada em meu coração à hipocrisia e vanglória, inimigos
que brandamente se apoderam do coração mais recatado; procuro pôr
em paz os que sei que estão desavindos; sou devoto de nossa Senhora,
e confio sempre na misericórdia infinita de Deus nosso Senhor.
Atentíssimo esteve Sancho à relação da vida e entretenimentos do
fidalgo; e, parecendo-lhe boa e santa e que quem a fazia devia fazer
milagres, se arrojou do ruço, e com grande pressa lhe foi pegar o
estribo direito, e com devoto coração e quase lágrimas lhe beijou os
pés uma e muitas vezes. Visto o que pelo fidalgo, lhe perguntou:
- Que fazeis, irmão? Que beijos são estes?
- Deixem-me beijar - respondeu Sancho, - porque me parece vossa
mercê o primeiro santo à gineta que vi em todos os dias de minha vida.
- Não sou santo - respondeu o fidalgo, - senão grande pecador; vós
sim, irmão, que deveis ser bom, como vossa simplicidade o mostra.
Voltou Sancho a montar o asno, fazendo rir seu amo apesar de sua
profunda melancolia e causando nova admiração a dom Diego.
Perguntou-lhe dom Quixote quantos filhos tinha, e disse-lhe que uma
das coisas em que punham o sumo bem os antigos filósofos, que
careceram do verdadeiro conhecimento de Deus, foi nos bens da
natureza, nos da fortuna, em ter muitos amigos e em ter muitos e
bons filhos.
- Eu, senhor dom Quixote - respondeu o fidalgo, - tenho um filho,
que, a não tê-lo, quiçá me julgara por mais ditoso do que sou; e não
porque ele seja mau, senão porque não é tão bom como eu quisera.
Será de idade de dezoito anos: seis esteve em Salamanca, aprendendo
as línguas latina e grega; e, quando quis que passasse a estudar outras
ciências, achei-o tão embebido na da poesia (se é que se pode chamar
ciência), que não é possível fazê-lo enfrentar a das leis, que eu queria
que estudasse, nem da rainha de todas, a teologia. Quisera eu que
fosse coroa de sua linhagem, pois vivemos em século onde nossos reis
premiam altamente as virtuosas e boas letras; porque letras sem
virtude são pérolas na esterqueira. Todo o dia passa em averiguar se
disse bem ou mal Homero em tal verso da Ilíada, se Marcial andou
desonesto, ou não, em tal epigrama; se se hão de entender de uma
maneira ou outra tais e tais versos de Virgílio. Enfim, todas suas
conversações são com os livros dos referidos poetas, e com os de
Horácio, Pérsio, Juvenal e Tibulo; que dos modernos autores não faz
muita conta; e, com todo o mau carinho que mostra ter à poesia em
língua vulgar, tem agora perturbados os pensamentos em fazer uma
glosa a quatro versos que lhe enviaram de Salamanca, e penso que são
de concurso literário.
A tudo o que respondeu dom Quixote:
- Os filhos, senhor, são pedaços das entranhas de seus pais, e
assim, se hão de querer, ou bons ou maus que sejam, como se querem
as almas que nos dão vida; aos pais toca o encaminhá-los desde
pequenos pelos passos da virtude, da boa criação e dos bons e cristãos
costumes, para que quando grandes sejam báculo da velhice de seus
pais e glória de sua posteridade; e no de forçá-los que estudem esta
ou aquela ciência não o tenho por acertado, embora o persuadi-los não
será danoso; e quando não se há de estudar para pane lucrando, sendo
tão venturoso o estudante que lhe deu o céu pais que o mantenham,
seria eu de parecer que o deixem seguir aquela ciência a que mais o
virem inclinado; e, embora a da poesia seja menos útil que deleitável,
não é daquelas que costumam desonrar a quem as possui. A poesia,
senhor fidalgo, a meu parecer, é como uma donzela tenra e de pouca
idade, e em todo extremo formosa, a quem têm cuidado de enriquecer,
polir e adornar outras muitas donzelas, que são todas as outras
ciências, e ela se há de servir de todas, e todas se hão de beneficiar
com ela; mas esta tal donzela não quer ser manuseada, nem trazida
pelas ruas, nem publicada pelas esquinas das praças nem pelos cantos
dos palácios. Ela é feita de uma alquimia de tal virtude, que quem a
sabe tratar a transformará em ouro puríssimo de inestimável preço;
há de tê-la, o que a tiver, nos trilhos, não deixando-a correr em
torpes sátiras nem em desalmados sonetos; não há de ser vendível de
maneira alguma, se já não for em poemas heroicos, em lamentáveis
tragédias, ou em comédias alegres e artificiosas; não se há de deixar
tratar pelos truões, nem pelo ignorante vulgo, incapaz de reconhecer
nem estimar os tesouros que nela se encerram. E não penseis, senhor,
que eu chamo aqui vulgo somente à gente plebeia e humilde; que todo
aquele que não sabe, embora seja senhor e príncipe, pode e deve
entrar à conta de vulgo. E assim, o que com os requisitos que disse
tratar e tiver à poesia, será famoso e estimado seu nome em todas as
nações civilizadas do mundo. E ao que dizeis, senhor, que vosso filho
não estima muito a poesia em língua vulgar, dou-me a entender que não
anda muito acertado nisso, e a razão é esta: o grande Homero não
escreveu em latim, porque era grego, nem Virgílio escreveu em grego,
porque era latino. Em suma, todos os poetas antigos escreveram na
língua que mamaram no leite, e não foram buscar as estrangeiras para
declarar a alteza de seus conceitos. E sendo isto assim, razão seria se
estendesse este costume por todas as nações, e que não se
desestimasse o poeta alemão porque escreve em sua língua, nem o
castelhano, nem ainda o biscainho, que escreve na sua. Mas vosso filho,
ao que eu, senhor, imagino, não deve estar mal com a poesia em língua
vulgar, senão com os poetas que só escrevem em vulgar, sem saber
outras línguas nem outras ciências que adornem e despertem e ajudem
seu natural impulso; e ainda nisto pode haver erro; porque, segundo é
opinião verdadeira, o poeta nasce: querem dizer que do ventre de sua
mãe o poeta natural sai poeta; e, com aquela inclinação que lhe deu o
céu, sem mais estudo nem artifício, compõe coisas, que faz verdadeiro
o que disse: “Est Deus in nobis”, etc. Também digo que o natural poeta
que se ajudar da arte será muito melhor e se avantajará ao poeta que
só por saber a arte quiser sê-lo; a razão é porque a arte não se
avantaja à natureza, senão aperfeiçoa-a; assim que, misturadas a
natureza e a arte, e a arte com a natureza, farão um perfeitíssimo
poeta. Seja, pois, a conclusão de minha conversa, senhor fidalgo, que
vossa mercê deixe caminhar seu filho por onde sua estrela o chama;
que, sendo ele tão bom estudante como deve ser, e havendo já subido
felizmente o primeiro escalão das essências, que é o das línguas, com
elas por si mesmo subirá ao cume das letras humanas, as quais tão bem
parecem num cavaleiro de capa e espada, e assim lhe adornam, honram
e engrandecem, como as mitras aos bispos, ou como as togas aos
peritos jurisconsultos. Reprenda vossa mercê a seu filho se fizer
sátiras que prejudiquem as honras alheias, e castigue-o, e rasgue-as,
mas se fizer sermões ao modo de Horácio, onde repreenda os vícios
em geral, como tão elegantemente ele o fez, louve-o: porque lícito é ao
poeta escrever contra a inveja, e dizer em seus versos mal dos
invejosos, e assim dos outros vícios, não nomeando pessoa alguma; mas
há poetas que, a troco de dizer uma malícia, se porão em perigo que os
desterrem às ilhas do Ponto. Se o poeta for casto em seus costumes,
o será também em seus versos; a pena é língua da alma: quais forem os
conceitos que nela se engendrarem, tais serão seus escritos; e quando
os reis e príncipes veem a milagrosa ciência da poesia em sujeitos
prudentes, virtuosos e graves, os honram, os estimam e os
enriquecem, e ainda os coroam com as folhas da árvore a quem não
ofende o raio, como em sinal que não hão de ser ofendidos por ninguém
os que com tais coroas veem honradas e adornadas suas têmporas.
Admirado ficou o do Verde Gabão do arrazoado de dom Quixote, e
tanto, que foi perdendo a opinião que dele tinha, de ser louco. Mas, a
meio desta conversa, Sancho, por não ser muito de seu gosto, se havia
desviado do caminho a pedir um pouco de leite a uns pastores que ali
junto estavam ordenhando umas ovelhas; e, nisto, já voltava a renovar
a conversa o fidalgo, satisfeito em extremo da discrição e bom
discurso de dom Quixote, quando, alçando dom Quixote a cabeça, viu
que pelo caminho por onde eles iam vinha um carro cheio de bandeiras
reais; e, crendo que devia ser alguma nova aventura, a grandes vozes
chamou Sancho que viesse dar-lhe o elmo. O qual Sancho, ouvindo-se
chamar, deixou os pastores, e a toda pressa picou o ruço, e chegou
onde seu amo estava, a quem sucedeu uma espantosa e desatinada
aventura.
CAPÍTULO XVII
Conta a história que quando dom Quixote dava vozes a Sancho que
lhe trouxesse o elmo, estava ele comprando uns requeijões que os
pastores lhe vendiam; e, acossado pela muita pressa de seu amo, não
soube o que fazer deles, nem em que trazê-los, e, para não perdê-los,
que já os tinha pago, resolveu colocá-los na elmo de seu senhor, e com
esta precaução voltou a ver o que lhe queria; o qual, em chegando,
disse-lhe:
- Dá-me, amigo, esse elmo; que eu sei pouco de aventuras, ou o que
ali descubro é alguma que me há de necessitar e me necessita a tomar
minhas armas.
O do Verde Gabão, que isto ouviu, estendeu a vista por todos os
lados, e não descobriu outra coisa senão um carro que até eles vinha,
com duas ou três bandeiras pequenas, que lhe deram a entender que o
tal carro devia trazer carregamento de Sua Majestade, e assim o
disse a dom Quixote; mas ele não lhe deu crédito, sempre crendo e
pensando que tudo o que lhe sucedesse haviam de ser aventuras e mais
aventuras, e assim, respondeu ao fidalgo:
- Homem preparado, meio trabalho feito: não se perde nada em que
eu me prepare, que sei por experiência que tenho inimigos visíveis e
invisíveis, e não sei quando, nem onde, nem em que tempo, nem em que
figuras me hão de atacar.
E voltando-se a Sancho, lhe pediu o elmo; o qual, como não teve
tempo de tirar os requeijões, lhe foi forçoso dá-lo como estava.
Tomou-o dom Quixote, e, sem que visse o que dentro vinha, com toda
pressa o encaixou na cabeça; e, como os requeijões se apertaram e
espremeram, começou a correr o soro por todo o rosto e barbas de
dom Quixote, do que recebeu tal susto, que disse a Sancho:
- Que será isto, Sancho, que parece que se me amolecem os miolos,
ou se me derretem os juízos, ou que suo dos pés à cabeça? E se é que
suo, em verdade que não é de medo; sem dúvida creio que é terrível a
aventura que agora quer suceder-me. Dá-me, se tens, com que me
limpe, que o copioso suor me cega os olhos.
Calou Sancho e deu-lhe um pano, e deu, com ele, graças a Deus de
que seu senhor não houvesse percebido a coisa. Limpou-se dom
Quixote e tirou o elmo por ver que coisa era a que, a seu parecer, lhe
enfriava a cabeça, e, vendo aquelas papas brancas dentro do elmo, as
chegou ao nariz, e cheirando-as disse:
- Por vida de minha senhora Dulcineia do Toboso, que são requeijões
os que aqui me puseste, traidor, biltre e malvisto escudeiro.
Ao que com grande fleugma e dissimulação respondeu Sancho:
- Se são requeijões, dai-mos vossa mercê, que eu os comerei... Mas
coma-os o diabo, que deveu ser o que aí os pôs. Eu havia de ter
atrevimento de sujar o elmo de vossa mercê? Bom atrevido achastes!
À fé, senhor, ao que Deus me dá a entender, também devo eu ter
encantadores que me perseguem como à vossa mercê, e haverão posto
aí essa imundície para mover à cólera sua paciência e fazer que me
moa, como costuma, as costelas. Pois em verdade que desta vez deram
salto no vazio, que eu confio na boa razão de meu senhor, que haverá
considerado que nem eu tenho requeijões, nem leite, nem outra coisa
que o valha, e que se a tivesse, antes a poria em meu estômago que no
elmo.
- Tudo pode ser - disse dom Quixote.
E tudo olhava o fidalgo, e de tudo se admirava, especialmente
quando, depois de haver-se limpado dom Quixote cabeça, rosto e
barbas e elmo, o encaixou; e, firmando-se bem nos estribos,
conferindo a espada e pegando a lança, disse:
- Agora, venha o que vier, que aqui estou com ânimo de lutar com o
mesmo Satanás em pessoa.
Chegou nisto o carro das bandeiras, no qual não vinha outra gente
que o carreteiro, nas mulas, e um homem sentado na dianteira. Pôs-se
dom Quixote diante e disse:
- Aonde ides, irmãos? Que carro é este, o que levais nele e que
bandeiras são estas?
Ao que respondeu o carreteiro:
- O carro é meu; o que vai nele são dois bravos leões enjaulados, que
o general de Orã envia à corte, presenteados à Sua Majestade; as
bandeiras são do rei nosso Senhor, em sinal que aqui vai coisa sua.
- E são grandes os leões? - perguntou dom Quixote.
- Tão grandes - respondeu o homem que ia à porta do carro, - que
não vieram maiores, nem tão grandes, da África à Espanha jamais; e eu
sou o cuidador de leões, e trouxe outros, mas como estes, nenhum.
São fêmea e macho: o macho vai nesta jaula primeira, e a fêmea na de
trás, e agora vão famintos porque não comeram hoje; e, assim, vossa
mercê se afaste, que é preciso chegar logo onde lhes demos de comer.
Ao que disse dom Quixote, sorrindo-se um pouco:
- Leõezinhos para mim? Para mim leõezinhos, e a tais horas? Ora,
por Deus que hão de ver esses senhores que aqui os enviam se sou eu
homem que se espanta com leões! Apeai-vos, bom homem, e, já que
sois o cuidador, abri essas jaulas e soltai essas bestas, que em meio
deste campo lhes darei a conhecer quem é dom Quixote da Mancha, a
despeito e pesar dos encantadores que a mim os enviam.
- Bom, bom! - disse então consigo o fidalgo. - Deu sinal de quem
é nosso bom cavaleiro: os requeijões sem dúvida lhe amoleceram os
miolos e as ideias.
Chegou-se nisto a ele Sancho e disse-lhe:
- Senhor, por quem Deus é que vossa mercê faça de maneira que
meu senhor dom Quixote não lute com estes leões, que se luta, aqui
nos hão de fazer em pedaços a todos.
- Então, tão louco é vosso amo - respondeu o fidalgo, - que temeis, e
credes que há de lutar com tão feros animais?
- Não é louco - respondeu Sancho, - senão atrevido.
- Eu farei que não o seja - replicou o fidalgo.
E chegando-se a dom Quixote, que estava dando pressa ao cuidador
que abrisse as jaulas, disse-lhe:
- Senhor cavaleiro, os cavaleiros andantes hão de enfrentar as
aventuras que prometem esperança de sair bem delas, e não aquelas
que em tudo a tiram; porque a valentia que entra na jurisdição da
temeridade, mais tem de loucura que de fortaleza. Quanto mais, que
estes leões não vêm contra vossa mercê, nem o sonham: vão
presenteados a Sua Majestade, e não será bom detê-los nem impedir-
lhes sua viagem.
- Vá vossa mercê, senhor fidalgo - respondeu dom Quixote, -
entender-se com seu perdigão manso e com seu furão atrevido, e
deixe a cada um fazer seu ofício. Este é o meu, e eu sei se vêm a mim,
ou não, estes senhores leões.
E voltando-se ao cuidador, disse-lhe:
- Voto a tal, dom velhaco, que se não abris logo logo as jaulas, que
com esta lança vos hei de pregar ao carro!
O carreteiro, que viu a determinação daquela armada fantasma,
disse-lhe:
- Senhor meu, vossa mercê seja servido, por caridade, deixar-me
desjungir as mulas e pôr-me a salvo com elas antes que se
desembainhem os leões, porque se as matam, ficarei arruinado por
toda minha vida; que não tenho outros bens senão este carro e estas
mulas.
- Oh homem de pouca fé! - respondeu dom Quixote, - apeia-te e
desjunge, e faz o que quiseres, que logo verás que trabalhaste em vão
e que poderias poupar esta diligência.
Apeou-se o carreteiro e desjungiu com grande pressa, e o cuidador
disse a grandes vozes:
- Sejam-me testemunhos quantos aqui estão como contra minha
vontade e forçado abro as jaulas e solto os leões, e de que protesto a
este senhor que todo o mal e dano que estas bestas fizerem corra e
vá por sua conta, com mais meus salários e direitos. Vossas mercês,
senhores, se ponham a salvo antes que abra, que eu seguro estou que
não me hão de fazer dano.
Outra vez o persuadiu o fidalgo que não fizesse loucura semelhante,
que era tentar a Deus cometer tal disparate. Ao que respondeu dom
Quixote que ele sabia o que fazia. Respondeu-lhe o fidalgo que o visse
bem, que ele entendia que se enganava.
- Agora, senhor - replicou dom Quixote, - se vossa mercê não quer
assistir a esta que a seu parecer há de ser tragédia, pique a tordilha e
ponha-se a salvo.
Ouvido o que por Sancho, com lágrimas nos olhos lhe suplicou
desistisse de tal empresa, em cuja comparação haviam sido tortas e
pão pintado a dos moinhos de vento e a temerosa dos macetes, e,
finalmente, todas as façanhas que havia cometido em todo o decurso
de sua vida.
- Veja, senhor - dizia Sancho, - que aqui não há encanto nem coisa
que o valha; que eu vi por entre as cancelas e resquícios da jaula uma
unha de leão verdadeiro, e vejo por ela que o tal leão, do qual deve ser
a tal unha, é maior que uma montanha.
- O medo, ao menos - respondeu dom Quixote, - te fará parecer
maior que a metade do mundo. Retira-te, Sancho, e deixa-me; e se
aqui morrer, já sabes nosso antigo acerto: atenderás a Dulcineia, e não
te digo mais.
A estas acrescentou outras razões, com que tirou as esperanças de
que havia de deixar de prosseguir seu desvairado intento. Quisera o
do Verde Gabão opor-se-lhe, mas viu-se desigual nas armas, e não lhe
pareceu prudência lutar com um louco, que já o havia parecido de toda
maneira dom Quixote; o qual, voltando a dar pressa ao cuidador e a
reiterar as ameaças, deu ocasião ao fidalgo a que picasse a égua, e
Sancho o ruço, e o carreteiro suas mulas, procurando todos afastar-se
do carro o mais que pudessem, antes que os leões fossem soltos.
Chorava Sancho a morte de seu senhor, que daquela vez sem dúvida
cria que chegava nas garras dos leões; maldizia sua ventura, e chamava
minguada a hora em que lhe veio ao pensamento voltar a servir-lhe;
mas não por chorar e lamentar-se deixava de bater no ruço para que
se distanciasse do carro. Vendo, pois, o cuidador que já os que iam
fugindo estavam bem desviados, tornou a requerer e a intimar dom
Quixote o que já lhe havia requerido e intimado, o qual respondeu que
o ouvia, e que não cuidasse de mais intimações e requerimentos, que
tudo seria de pouco fruto, e que se desse pressa.
No espaço que tardou o cuidador em abrir a primeira jaula, esteve
considerando dom Quixote se seria bom fazer a batalha antes a pé
que a cavalo; e, enfim, se decidiu de fazê-la a pé, temendo que
Rocinante se espantasse com a vista dos leões. Por isto saltou do
cavalo, tomou a lança e embraçou o escudo, e, desembainhando a
espada, passo a passo, com maravilhoso denodo e coração valente, se
pôs diante do carro, encomendando-se a Deus de todo coração, e logo
à sua senhora Dulcineia.
E é de saber que, chegando a este passo, o autor desta verdadeira
história exclama e diz: “Oh forte e sobre todo encarecimento animoso
dom Quixote da Mancha, espelho onde se podem olhar todos os
valentes do mundo, segundo e novo dom Manuel de Leão, que foi glória
e honra dos espanhóis cavaleiros! Com que palavras contarei esta tão
espantosa façanha, ou com que razões a farei crível aos séculos
vindouros, ou que louvações haverá que não te convenham e quadrem,
embora sejam hipérboles sobre todas as hipérboles? Tu a pé, tu só, tu
intrépido, tu magnânimo, com só uma espada, e não das cortadoras
com a marca do cãozinho, com um escudo não de muito luzente e polido
aço, estás aguardando e afrontando os dois mais feros leões que
jamais criaram as africanas selvas. Teus mesmos feitos sejam os que
te louvem, valoroso manchego, que eu os deixo aqui em seu ponto, por
faltar-me palavras com que encarecê-los”.
Aqui cessou a referida exclamação do autor, e passou adiante,
amarrando o fio da história, dizendo que, vendo o cuidador dom
Quixote já posto em postura, e que não podia deixar de soltar o leão
macho, sob pena de cair na desgraça do indignado e atrevido cavaleiro,
abriu de par em par a primeira jaula, onde estava, como se disse, o
leão, o qual pareceu de grandeza extraordinária e de espantável e feia
catadura. A primeira coisa que fez foi revolver-se na jaula, onde vinha
fechado, e estender a garra, e espreguiçar-se todo; abriu logo a boca
e bocejou muito devagar, e, com quase dois palmos de língua que tirou
para fora, sacudiu o pó dos olhos e lavou o rosto; feito isto, tirou a
cabeça para fora da jaula e olhou para todos os lados com os olhos
feitos brasas, olhar e gesto para pôr espanto à mesma temeridade. Só
dom Quixote o olhava atentamente, desejando que saltasse já do
carro e viesse com ele às mãos, entre as quais pensava fazê-lo em
pedaços.
Até aqui chegou o extremo de sua jamais vista loucura. Mas o
generoso leão, mais comedido que arrogante, não fazendo caso de
ninharias, nem de bravatas, depois de haver olhado para uma e outra
parte, como se disse, voltou as costas e mostrou suas partes traseiras
para dom Quixote, e com grande fleugma e calma voltou a deitar-se na
jaula. Vendo o que dom Quixote, mandou o cuidador que lhe desse
golpes e o irritasse para que saísse.
- Isso não farei eu - respondeu o cuidador, - porque se eu o instigo,
o primeiro a quem fará em pedaços será a mim mesmo. Vossa mercê,
senhor cavaleiro, se contente com o feito, que é tudo o que pode
dizer-se em gênero de valentia, e não queira tentar segunda fortuna.
O leão tem aberta a porta: em sua mão está sair, ou não sair; mas, pois
não saiu até agora, não sairá em todo o dia. A grandeza do coração de
vossa mercê já está bem declarada: nenhum bravo pelejador, segundo
a mim alcança, está obrigado a mais que desafiar seu inimigo e esperá-
lo em campo; e se o contrário não acode, nele fica a infâmia, e o
desafiante ganha a coroa da vitória.
- Assim é verdade - respondeu dom Quixote: - fecha, amigo, a
porta, e dá-me por testemunho, na melhor forma que puderes, o que
aqui me viste fazer, convém a saber: como tu abriste ao leão, eu o
esperei, ele não saiu; voltei a esperar, voltou a não sair e voltou a
deitar-se. Não devo mais, e encantos afora, e Deus ajude à razão e à
verdade, e à verdadeira cavalaria; e fecha, como disse, enquanto faço
sinais aos fugidos e ausentes, para que saibam de tua boca esta
façanha.
Fê-lo assim o cuidador, e dom Quixote, pondo na ponta da lança o
lenço com que havia limpado o rosto da chuva dos requeijões,
começou a chamar os que não deixavam de fugir nem de voltar a
cabeça a cada passo, todos em tropa e seguidos pelo fidalgo; mas,
vendo Sancho o sinal do pano branco, disse:
- Que me matem se meu senhor não venceu as feras bestas, pois
nos chama.
Detiveram-se todos, e reconheceram que o que fazia os sinais era
dom Quixote; e, perdendo algum tanto do medo, pouco a pouco se
foram acercando até onde claramente ouviram as vozes de dom
Quixote, que os chamava. Finalmente, voltaram ao carro, e, chegando,
disse dom Quixote ao carreteiro:
- Voltai, irmão, a jungir vossas mulas e a prosseguir vossa viagem; e
tu, Sancho, dá-lhe dois escudos de ouro, para ele e para o cuidador,
em recompensa do que por mim se detiveram.
- Esses darei eu de muito bom grado - respondeu Sancho, - mas que
se fez dos leões? Estão mortos, ou vivos?
Então o cuidador, miudamente e com grandes pausas, contou o fim
da contenda, exagerando, como ele melhor pôde e soube, o valor de
dom Quixote, de cuja vista o leão, acovardado, não quis nem ousou sair
da jaula, embora havia tido um bom tempo aberta a porta da jaula; e
que, por haver ele dito àquele cavaleiro que era tentar a Deus irritar o
leão para que por força saísse, como ele queria que se irritasse, mau
grado seu e contra toda sua vontade, havia permitido que a porta se
fechasse.
- Que te parece isto, Sancho? - disse dom Quixote. - Há encantos
que valham contra a verdadeira valentia? Bem poderão os
encantadores tirar-me a ventura, mas o esforço e o ânimo, será
impossível.
Deu os escudos Sancho, jungiu o carreteiro, beijou as mãos o
cuidador a dom Quixote pela mercê recebida, e prometeu-lhe contar
aquela valorosa façanha ao mesmo rei, quando na corte se visse.
- Pois, se acaso Sua Majestade perguntar quem a fez, dir-lhe-eis
que o Cavaleiro dos Leões , que daqui em diante quero que neste se
troque, cambie, volte e mude o que até aqui tive do Cavaleiro da Triste
Figura; e nisto sigo a antiga usança dos andantes cavaleiros, que
mudavam os nomes quando queriam, ou quando lhes convinha.
Seguiu seu caminho o carro, e dom Quixote, Sancho e o do Verde
Gabão prosseguiram o seu.
Em todo este tempo não havia falado palavra dom Diego de Miranda,
todo atento a olhar e a notar os feitos e palavras de dom Quixote,
parecendo-lhe que era um lúcido louco e um louco que tirava a lúcido.
Não havia ainda chegado a seu conhecimento a primeira parte de sua
história; que se a houvesse lido, cessaria a admiração em que o punham
seus feitos e suas palavras, pois já soubera o gênero de sua loucura;
mas, como não a sabia, já o tinha por lúcido e já por louco, porque o
que falava era acertado, elegante e bem dito, e o que fazia,
disparatado, temerário e tonto. E dizia entre si: “Que mais loucura
pode ser que pôr o elmo cheio de requeijões e dar a entender que lhe
amoleciam os miolos os encantadores? E que maior temeridade e
disparate que querer lutar por força com leões?”
Destas imaginações e deste solilóquio o tirou dom Quixote, dizendo-
lhe:
- Quem duvida, senhor dom Diego de Miranda, de que vossa mercê
não me tenha em sua opinião por um homem disparatado e louco? E não
seria muito que assim fosse, porque minhas obras não podem dar
testemunho de outra coisa. Pois, assim, quero que vossa mercê advirta
que não sou tão louco nem tão minguado como devo haver-lhe parecido.
Bem parece um galhardo cavaleiro, aos olhos de seu rei, no meio de
uma grande praça, dar uma lançada com feliz êxito em um bravo touro;
bem parece um cavaleiro, armado de resplandecentes armas, intervir
em alegres justas diante das damas, e bem parecem todos aqueles
cavaleiros que em exercícios militares, ou que o pareçam, entretêm e
alegram, e, se se pode dizer, honram as cortes de seus príncipes; mas
sobre todos estes parece melhor um cavaleiro andante, que pelos
desertos, pelas solidões, pelas encruzilhadas, pelas selvas e pelos
montes anda buscando perigosas aventuras, com intenção de dar-lhes
ditoso e bem afortunado fim, só por alcançar gloriosa fama e
duradoura. Melhor parece, digo, um cavaleiro andante, socorrendo a
uma viúva em algum despovoado, que um cortesão cavaleiro,
galanteando uma donzela nas cidades. Todos os cavaleiros têm seus
particulares exercícios: sirva às damas o cortesão; autorize a corte
de seu rei com librés; sustente os cavaleiros pobres com o esplêndido
prato de sua mesa; concerte justas, mantenha torneios e mostre-se
grande, liberal e magnífico, e bom cristão, sobretudo, e desta maneira
cumprirá com suas precisas obrigações. Mas o andante cavaleiro
busque os fins do mundo; entre nos mais intrincados labirintos;
enfrente a cada passo o impossível; resista nos páramos despovoados
aos ardentes raios do sol no meio do verão, e no inverno a dura
inclemência dos ventos e dos gelos; não o assombrem leões, nem o
espantem monstros, nem atemorizem endríagos; que buscar estes,
enfrentar aqueles e vencê-los a todos são seus principais e
verdadeiros exercícios. Eu, pois, como me coube em sorte ser um do
número da andante cavalaria, não posso deixar de atacar tudo aquilo
que a mim me parecer que cai debaixo da jurisdição de meus
exercícios; e assim, o enfrentar os leões que agora enfrentei
diretamente me tocava, embora reconheci ser temeridade
exorbitante, porque bem sei o que é valentia, que é uma virtude que
está posta entre dois extremos prazenteiros, como são a covardia e a
temeridade; mas menos mal será que o que é valente toque e suba ao
ponto de temerário, que não que baixe e toque no ponto de covarde;
que assim que é mais fácil vir o pródigo a ser liberal que ao avaro,
assim é mais fácil dar o temerário em verdadeiro valente que não o
covarde subir à verdadeira valentia; e, nisto de acometer aventuras,
creia-me vossa mercê, senhor dom Diego, que antes se há de perder
por carta de mais que de menos, porque melhor soa nas orelhas dos
que o ouvem: “ O tal cavaleiro é temerário e atrevido” que não “O tal
cavaleiro é tímido e covarde”.
- Digo, senhor dom Quixote - respondeu dom Diego, - que tudo o
que vossa mercê disse e fez vai nivelado com o fiel da mesma razão, e
que entendo que se as ordenanças e leis da cavalaria andante se
perdessem, se achariam no peito de vossa mercê como em seu mesmo
depósito e arquivo. E demo-nos pressa, que se faz tarde, e cheguemos
à minha aldeia e casa, onde descansará vossa mercê do passado
trabalho, que se não foi do corpo, foi do espírito, que costuma talvez
redundar em cansaço do corpo.
- Tenho o oferecimento por grande favor e mercê, senhor dom
Diego - respondeu dom Quixote.
E picando mais do que até então, seriam como as duas da tarde
quando chegaram à aldeia e à casa de dom Diego, a quem dom Quixote
chamava “o Cavaleiro do Verde Gabão”.
CAPÍTULO XVIII
Glosa
SONETO
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
Apenas a branca aurora havia dado lugar a que o luzente Febo, com
o ardor de seus quentes raios, as líquidas pérolas de seus cabelos de
ouro enxugasse, quando dom Quixote, sacudindo a preguiça de seus
membros, se pôs em pé e chamou seu escudeiro Sancho, que ainda
roncava; o qual visto por dom Quixote, antes que o despertasse, disse-
lhe:
- Oh tu, bem-aventurado sobre quantos vivem sobre a face da
terra, pois sem ter inveja nem ser invejado, dormes com sossegado
espírito, nem te perseguem encantadores, nem sobressaltam
encantamentos! Dorme, digo outra vez, e o direi outras cem, sem que
te tenham em contínua vigília zelos de tua dama, nem te desvelem
pensamentos de pagar dívidas que devas, nem do que hás de fazer
para comer no outro dia tu e tua pequena e angustiada familia. Nem a
ambição te inquieta, nem a pompa vã do mundo te fatiga, pois os
limites de teus desejos não se estendem a mais que o cuidar de teu
jumento, que o de tua pessoa sobre meus ombros o puseste,
contrapeso e carga que pôs a natureza e o costume sobre os senhores.
Dorme o criado, e está velando o senhor, pensando como o há de
sustentar, melhorar e fazer mercês. A angústia de ver que o céu se
faz de bronze sem atender à terra com o conveniente orvalho não
aflige o criado, senão o senhor, que há de sustentar na esterilidade e
fome o que lhe serviu na fertilidade e abundância.
A tudo isto não respondeu Sancho, porque dormia, nem despertaria
tão logo se dom Quixote com o cabo da lança não o fizesse voltar a si.
Despertou, enfim, sonolento e preguiçoso, e, voltando o rosto a todos
os lados, disse:
- Da parte desta enramada, se não me engano, sai um tufo e cheiro
farto mais de torresmos assados que de juncos e tomilhos: bodas que
por tais olores começam, para minha bênção que devem ser
abundantes e generosas.
- Anda, glutão - disse dom Quixote; - vem, vamos ver estes
desposórios, para ver o que faz o desdenhado Basílio.
- Mas que faça o que quiser - respondeu Sancho: - não fosse ele
pobre e casar-se-ia com Quitéria. Não há mais senão ter um quarto e
querer alçar-se às nuvens? À fé, senhor, eu sou de parecer que o
pobre deve contentar-se com o que achar, e não pedir o impossível. Eu
apostarei um braço que pode Camacho envolver Basílio em reais; e se
isto é assim, como deve ser, bem boba seria Quitéria em descartar as
galas e as joias que lhe deve haver dado, e lhe pode dar Camacho, por
escolher o atirar a barra e o jogar a espada negra de Basílio. Por um
bom tiro de barra ou por uma gentil finta de espada não dão um
quartilho de vinho na taberna. Habilidades e graças que não são
vendíveis, por mais que as tenha o conde Dirlos; mas, quando as tais
graças caem sobre quem tem bom dinheiro, tal seja minha vida como
elas parecem. Sobre um bom cimento se pode levantar um bom
edifício, e o melhor cimento e alicerce do mundo é o dinheiro.
- Por quem Deus é, Sancho - disse então dom Quixote, - conclui tua
arenga; que tenho para mim que se te deixassem seguir nas que a cada
passo começas, não te ficaria tempo para comer nem para dormir, que
todo o gastarias em falar.
- Se vossa mercê tivesse boa memória - replicou Sancho, - deveria
lembrar dos capítulos de nosso acerto antes que esta última vez
saíssemos de casa: um deles foi que me havia de deixar falar tudo
aquilo que quisesse, contanto que não fosse contra o próximo nem
contra a autoridade de vossa mercê; e até agora me parece que não
contravim contra o tal capítulo.
- Eu não me lembro, Sancho - respondeu dom Quixote, - do tal
capítulo; e, embora seja assim, quero que cales e venhas, que já os
instrumentos que ontem à noite ouvimos voltam a alegrar os vales, e
sem dúvida os desposórios se celebrarão no frescor da manhã, e não
no calor da tarde.
Fez Sancho o que seu senhor lhe mandava, e, pondo a sela em
Rocinante e a albarda no ruço, subiram os dois, e passo ante passo
foram entrando pela enramada.
A primeira coisa que se ofereceu à vista de Sancho foi, espetado
num assador de um tronco de olmo inteiro, um inteiro novilho; e no
fogo onde se havia de assar ardia um mediano monte de lenha, e seis
panelas que ao redor da fogueira estavam não se haviam feito no
comum molde das demais panelas, porque eram seis meios potes, que
em cada um cabia a carne de um matadouro: assim embebiam e
encerravam em si carneiros inteiros, escondendo-os, como se fossem
pombinhos; as lebres já sem pele e as galinhas sem pena que estavam
penduradas pelas árvores para sepultá-las nas panelas não tinham
número; os pássaros e caça de diversos gêneros eram infinitos,
pendurados das árvores para que o ar os amaciasse.
Contou Sancho mais de sessenta odres de mais de duas arrobas
cada um, e todos cheios, segundo depois pareceu, de generosos vinhos;
assim havia montes de pão branquíssimo, como os costuma haver de
montões de trigo nas eras; os queijos, postos como ladrilhos
entrecruzados, formavam uma muralha, e duas caldeiras de azeite,
maiores que as de um tintureiro, serviam para fritar empanadas, que
com duas grandes pás as tiravam fritas e as mergulhavam em outra
caldeira de preparado mel que ali junto estava.
Os cozinheiros e cozinheiras passavam de cinquenta: todos limpos,
todos diligentes e todos contentes. No dilatado ventre do novilho
estavam doze tenros e pequenos leitões, que, costurados por cima,
serviam para dar-lhe sabor e torná-lo tenro. As especiarias de
diversas sortes não pareciam ter sido compradas por libras, senão por
arrobas, e todas estavam à vista em uma grande arca. Finalmente, o
aparato da boda era rústico, mas tão abundante que podia sustentar
um exército.
Tudo olhava Sancho Pança, e tudo contemplava, e de tudo se
aficionava: primeiro o cativaram e renderam o desejo as panelas, de
onde ele pegara com boníssima vontade um mediano cozido; depois lhe
aficionaram a vontade os odres; e, ultimamente, as empanadas de
frigideira, se é que se podiam chamar frigideiras as tão bojudas
caldeiras; e assim, sem conseguir fazer outra coisa, aproximou-se de
um dos solícitos cozinheiros, e, com corteses e famintas razões, lhe
rogou o deixasse molhar um pão dormido em uma daquelas panelas. Ao
que o cozinheiro respondeu:
- Irmão, este dia não é daqueles sobre o qual tem jurisdição a
fome, mercê ao rico Camacho. Apeai-vos e vede se há por aí uma
concha, e pegai uma galinha ou duas, e bom proveito vos façam.
- Não vejo nenhuma - respondeu Sancho.
- Esperai - disse o cozinheiro. - Pecador de mim, e que melindroso e
apoucado deveis ser!
E dizendo isto, pegou um caldeirão, e, encaixando-o em um dos
meios potes, pôs nele três galinhas e dois gansos, e disse a Sancho:
- Comei, amigo, e desjejuai-vos com esta espuma, enquanto chega a
hora do jantar.
- Não tenho em que levá-la - respondeu Sancho.
- Pois levai - disse o cozinheiro - a concha e tudo, que a riqueza e a
alegria de Camacho tudo supre.
Enquanto isto fazia Sancho, estava dom Quixote olhando como, por
uma parte da enramada, entravam até doze lavradores sobre doze
formosíssimas éguas, com ricos e vistosos jaezes de campo e com
muitos guizos nos peitorais, e todos vestidos de regozijo e festas; os
quais, em acertado tropel, correram não uma, senão muitas carreiras
pelo prado, com regozijada algazarra e grita, dizendo:
- Vivam Camacho e Quitéria: ele tão rico como ela formosa, e ela a
mais formosa do mundo!
Ouvindo o que dom Quixote, disse entre si:
- Bem parece que estes não viram a minha Dulcineia do Toboso, que
se a houvessem visto, eles se moderariam nas louvações desta sua
Quitéria.
Dali a pouco começaram a entrar por diversas partes da enramada
muitas e diferentes danças, entre as quais vinha uma de espadas, de
até vinte e quatro rapazes de galhardo parecer e brio, todos vestidos
de delgado e branquíssimo tecido, com suas toucas, lavradas de várias
cores de fina seda; e ao que os guiava, que era um ligeiro mancebo,
perguntou um dos das éguas se se havia ferido algum dos dançantes.
- Por agora, bendito seja Deus, não se feriu ninguém: todos vamos
sãos.
E logo começou a enredar-se com os demais companheiros, com
tantas voltas e com tanta destreza que, embora dom Quixote estava
afeito a ver semelhantes danças, nenhuma lhe havia parecido tão bem
como aquela.
Também lhe pareceu bem outra que entrou de donzelas
formosíssimas, tão moças que, ao parecer, nenhuma baixava de
quatorze nem chegava a dezoito anos, vestidas todas de luxuoso
tecido verde, os cabelos parte trançados e parte soltos, mas todos
tão loiros, que com os do sol podiam competir, sobre os quais traziam
grinaldas compostas de jasmins, rosas, amaranto e madressilva.
Guiava-as um venerável velho e uma anciã matrona, mas mais ligeiros e
soltos que seus anos prometiam. Fazia-lhes o som uma gaita zamorana,
e elas, levando nos rostos e nos olhos a honestidade e nos pés a
ligeireza, se mostravam as melhores bailadoras do mundo.
Depois desta entrou outra dança de artifício e das que chamam
faladas. Era de oito ninfas, repartidas em duas fileiras: de uma fileira
era guia o deus Cupido, e da outra, o Interesse; aquele, adornado de
asas, arco, aljava e setas; este, vestido de ricas e diversas cores de
ouro e seda. As ninfas que ao Amor seguiam traziam às costas, em
pergaminho branco e letras grandes, escritos seus nomes: Poesia era o
título da primeira, o da segunda Discrição, o da terceira Boa linhagem,
o da quarta Valentia; do modo mesmo vinham assinaladas as que ao
Interesse seguiam: dizia Liberalidade o título da primeira, Dádiva o da
segunda, Tesouro o da terceira, e o da quarta, Possessão pacífica.
Adiante de todos vinha um castelo de madeira, o qual puxavam quatro
selvagens, todos vestidos de hera e de cânhamo tingido de verde, tão
ao natural, que por pouco espantaram Sancho. Na fronteira do castelo
e em todas as quatro partes de seus quadros trazia escrito: Castelo
do bom recato. Faziam-lhes o som quatro destros tocadores de
tamborim e flauta.
Começava a dança Cupido, e havendo feito dois passos, alçava os
olhos e flechava o arco contra uma donzela que se punha entre as
ameias do castelo, à qual desta sorte disse:
- Em dulcíssimos conceitos,
A dulcíssima Poesia,
altos, graves e discretos,
senhora, a alma te envia
envolta entre mil sonetos.
Se acaso não te importuna
minha porfia, tua fortuna,
de outras muitas invejada,
será por mim levantada
sobre o cerco da lua.
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
CAPÍTULO XXIV
Onde se contam mil bagatelas tão impertinentes como necessárias
ao verdadeiro entendimento desta grande história
À guerra me leva
minha necessidade;
se tivesse dinheiros,
não iria, em verdade.
CAPÍTULO XXV
CAPÍTULO XXVI
Onde prossegue a graciosa aventura do titereiro, com outras coisas
em verdade muito boas
E aquele personagem que ali assoma, com coroa na cabeça e cetro nas
mãos, é o imperador Carlos Magno, pai putativo da tal Melisendra, o
qual, mofino de ver o ócio e descuido de seu genro, sai a repreendê-lo;
e observem a veemência e afinco com que o repreende, que não parece
senão que lhe quer dar com o cetro meia dúzia de coscorões, e ainda
há autores que dizem que os deu, e muito bem dados; e, depois de
haver-lhe dito muitas coisas acerca do perigo que corria sua honra em
não procurar a liberdade de sua esposa, dizem que lhe disse: “- Muito
vos disse: vede-o.” Vejam vossas mercês também como o imperador
volta as costas e deixa despeitado dom Gaiferos, o qual já veem como
arroja, impaciente da cólera, longe de si o tabuleiro e as tábuas, e
pede depressa as armas, e a dom Roldão, seu primo, pede emprestada
sua espada Durindana, e como dom Roldão não a quer emprestar,
oferecendo-lhe sua companhia na difícil empresa em que se põe; mas o
valoroso irado não o quer aceitar; antes, diz que ele só é bastante
para resgatar sua esposa, se bem estivesse metida no mais fundo
centro da terra; e, com isto, se começa a armar, para pôr-se logo a
caminho. Voltem vossas mercês os olhos àquela torre que ali aparece,
que se pressupõe que é uma das torres do alcácer de Saragoça, que
agora chamam a Aljaferia; e aquela dama que naquele balcão aparece,
vestida ao mouro, é a sem par Melisendra, que dali muitas vezes se
punha a olhar o caminho da França, e, posta a imaginação em Paris e
em seu esposo, se consolava em seu cativeiro. Vejam também um novo
caso que agora sucede, quiçá não visto jamais. Não veem aquele mouro
que caladinho e passinho a passo, posto o dedo na boca, se chega pelas
costas de Melisendra? Pois vejam como lhe dá um beijo nos lábios, e
às pressas ela se põe a cuspir, e a limpá-los com a branca manga de sua
camisa, e como se lamenta, e se arranca de pesar seus formosos
cabelos, como se eles tivessem a culpa do malefício. Vejam também
como aquele grave mouro que está naqueles corredores é o rei
Marsílio de Sansonha; o qual, por haver visto a insolência do mouro,
embora fosse um parente e grande privado seu, o mandou logo
prender, e que lhe dessem duzentos açoites, levando-o pelas ruas
costumeiras da cidade,
CAPÍTULO XXVII
Por esta insígnia concluiu dom Quixote que aquela gente devia ser
do povoado do zurro, e assim o disse a Sancho, declarando-lhe o que
no estandarte vinha escrito. Disse-lhe também que o que lhes havia
dado notícia daquele caso havia errado em dizer que dois vereadores
haviam sido os que zurraram; mas que, segundo os versos do
estandarte, não haviam sido senão alcaides. Ao que respondeu Sancho
Pança:
- Senhor, nisso não há que reparar, que bem pode ser que os
vereadores que então zurraram viessem com o tempo a ser alcaides de
seu povoado, e assim, se podem chamar com ambos os títulos; quanto
mais, que não vem ao caso à verdade da história ser os zurradores
alcaides ou vereadores, como eles uma por uma hajam zurrado; porque
tão a pique está de zurrar um alcaide como um vereador.
Finalmente, conheceram e souberam como a vila vexada saía a lutar
com outra que a vexava mais do que era tolerável e do que se devia à
boa vizinhança.
Foi-se chegando a eles dom Quixote, não com pouco pesar de
Sancho, que nunca foi amigo de achar-se em semelhantes jornadas. Os
do esquadrão o recolheram em meio, crendo que era algum dos de sua
facção. Dom Quixote, alçando a viseira, com gentil brio e postura,
chegou até o estandarte do asno, e ali se lhe puseram ao redor todos
os mais principais do exército, por vê-lo, admirados com a admiração
costumeira em que caíam todos aqueles que a vez primeira o viam. Dom
Quixote, que os viu tão atentos a olhá-lo, sem que nenhum lhe falasse
nem lhe perguntasse nada, quis aproveitar-se daquele silêncio, e,
rompendo o seu, alçou a voz e disse:
- Bons senhores, quão encarecidamente posso, vos suplico que não
interrompais um arrazoado que quero fazer-vos, até que vejais que
vos desgosta e enfada; que se isto sucede, com o mais mínimo sinal que
me façais porei um selo em minha boca e uma mordaça em minha
língua.
Todos lhe disseram que dissesse o que quisesse, que de bom grado o
escutariam. Dom Quixote, com esta licença, prosseguiu dizendo:
- Eu, senhores meus, sou cavaleiro andante, cujo exercício é o das
armas, e cuja profissão a de favorecer aos que precisam de favor e
atender aos necessitados. Dias há que soube vossa desgraça e porque
vos move a tomar as armas a cada passo, para vingar-vos de vossos
inimigos; e, havendo refletido uma e muitas vezes em meu
entendimento sobre vosso negócio, acho, segundo as leis do duelo, que
estais enganados em ter-vos por afrontados, porque nenhum
particular pode afrontar a um povoado inteiro, se não é desafiando-o
de traidor conjuntamente, porque não sabe em particular quem
cometeu a traição pela qual o desafia. Exemplo disto temos em dom
Diego Ordónhez de Lara, que desafiou a toda a vila zamorana, porque
ignorava que só Vellido Dolfos havia cometido a traição de matar seu
rei, e assim, desafiou a todos, e a todos tocava a vingança e a
resposta; embora bem é verdade que o senhor dom Diego andou algo
demasiado, e ainda passou muito adiante dos limites do desafio,
porque não tinha para que desafiar os mortos, as águas, nem os pães,
nem os que estavam por nascer, nem as outras minudências que ali se
declaram; mas, vá!, pois quando a cólera sai de mãe, não tem a língua
pai, aio nem freio que a corrija. Sendo, pois, isto assim, que um só não
pode afrontar a reino, província, cidade, república nem povoado
inteiro, fica em limpo que não há para que sair à vingança do repto da
tal afronta, pois não o é; porque, bom seria que se matassem a cada
passo os da vila da Reloja com quem se o chama, nem os caçaroleiros,
berinjeleiros, baleotes, saboeiros, nem os de outros nomes e apelidos
que andam por aí em boca dos moços e de gente de pouco mais ou
menos! Bom seria, por certo, que todos estes insignes povoados se
vexassem e vingassem, e andassem continuamente as espadas
desembainhadas para qualquer pendência, por pequena que fosse! Não,
não, nem Deus o permita ou queira. Os varões prudentes, as repúblicas
bem concertadas, por quatro coisas hão de tomar as armas e
desembainhar as espadas, e pôr a risco suas pessoas, vidas e bens: a
primeira, por defender a fé católica; a segunda, por defender sua
vida, que é de lei natural e divina; a terceira, em defesa de sua honra,
de sua família e bens; a quarta, em serviço de seu rei, na guerra justa;
e se lhe quiséssemos juntar a quinta, que se pode contar por segunda,
é em defesa de sua pátria. A estas cinco causas, como capitais, se
podem agregar algumas outras que sejam justas e razoáveis, e que
obriguem a tomar as armas; mas tomá-las por ninharias e por coisas
que antes são de riso e passatempo que de afronta, parece que quem
as toma carece de todo razoável argumento; quanto mais, que o tomar
vingança injusta, que justa não pode haver alguma que o seja, vai
diretamente contra a santa lei que professamos, na qual se nos manda
que façamos bem a nossos inimigos e que amemos aos que nos
aborrecem; mandamento que, embora parece algo dificultoso de
cumprir, não o é senão para aqueles que têm menos de Deus que do
mundo, e mais de carne que de espírito; porque Jesus Cristo, Deus e
homem verdadeiro, que nunca mentiu, nem pôde nem pode mentir,
sendo legislador nosso, disse que seu jugo era suave e sua carga leve;
e assim, não nos havia de mandar coisa que fosse impossível o cumpri-
la. Assim que, meus senhores, vossas mercês estão obrigados por leis
divinas e humanas a sossegar-se.
- O diabo me leve - disse então Sancho consigo - se este meu amo
não é tólogo; e se não o é, que o parece como um ovo a outro.
Tomou um pouco de alento dom Quixote, e, vendo que ainda lhe
prestavam silêncio, quis passar adiante em sua conversa, como
passaria se não se pusesse em meio a agudeza de Sancho, o qual, vendo
que seu amo se detinha, tomou a mão por ele, dizendo:
- Meu senhor dom Quixote da Mancha, que um tempo se chamou “o
Cavaleiro da Triste Figura” e agora se chama “o Cavaleiro dos Leões”,
é um fidalgo muito prudente, que sabe latim e romance como um
bacharel, e em tudo quanto trata e aconselha procede como muito bom
soldado, e tem todas as leis e ordenanças do que chamam o duelo na
unha; e assim, não há mais que fazer senão deixar-se levar pelo que
ele disser, e sobre mim se o errarem; quanto mais, que isso se está
dito que é necedade correr-se por só ouvir um zurro, que eu me
lembro, quando moço, que zurrava quando queria, sem que ninguém me
fosse à mão, e com tanta graça e propriedade que, zurrando eu,
zurravam todos os asnos da vila, e não por isso deixava de ser filho de
meus pais, que eram honradíssimos; e, embora por esta habilidade era
invejado de mais de quatro dos ditos superiores de meu povoado, não
me davam dois tostões. E porque se veja que digo verdade, esperem e
escutem, que esta ciência é como a do nadar: que, uma vez aprendida,
nunca se olvida.
E logo, posta a mão no nariz, começou a zurrar tão fortemente, que
todos os vales ao redor retumbaram. Mas um dos que estavam junto a
ele, crendo que fazia burla deles, alçou um varapau que na mão tinha, e
deu-lhe tal golpe com ele, que, sem poder fazer outra coisa, deu com
Sancho Pança no chão. Dom Quixote, que viu tão estropiado a Sancho,
arremeteu ao que lhe havia dado, com a lança sobre mão, mas foram
tantos os que se puseram em meio, que não foi possível vingá-lo; antes,
vendo que chovia sobre ele uma chuva de pedras, e que o ameaçavam
mil encaradas bestas e não menos quantidade de arcabuzes, voltou as
rédeas a Rocinante, e a todo o que seu galope pôde, saiu de entre eles,
encomendando-se de todo coração a Deus, que daquele perigo o
livrasse, temendo a cada passo lhe entrasse alguma bala pelas costas e
lhe saísse ao peito; e a cada ponto recolhia o alento, para ver se lhe
faltava.
Mas os do esquadrão se contentaram com vê-lo fugir, sem atacá-lo.
A Sancho o puseram sobre seu jumento, apenas voltado a si, e o
deixaram ir atrás de seu amo, não porque ele tivesse sentido para
guiá-lo; mas o ruço seguiu as pegadas de Rocinante, sem o qual não se
achava um ponto. Alongado, pois, dom Quixote bom trecho, voltou a
cabeça e viu que Sancho vinha, e esperou-o, vendo que ninguém o
seguia.
Os do esquadrão estiveram ali até a noite, e, por não haver saído à
batalha seus contrários, voltaram a seu povoado, regozijados e
alegres; e se eles soubessem o costume antigo dos gregos, levantariam
naquele lugar e sítio um monumento.
CAPÍTULO XXVIII
CAPÍTULO XXIX
Por seus passos contados e por contar, dois dias depois que saíram
da alameda, chegaram dom Quixote e Sancho ao rio Ebro, e vê-lo foi
de grande gosto a dom Quixote, porque contemplou e viu nele a
amenidade de suas margens, a claridade de suas águas, o sossego de
seu curso e a abundância de seus líquidos cristais, cuja alegre vista
renovou em sua memória mil amorosos pensamentos. Especialmente foi
e veio em pensamento no que havia visto na cova de Montesinos; que,
embora o mono de mestre Pedro lhe havia dito que parte daquelas
coisas eram verdade e parte mentira, ele se atinha mais às
verdadeiras que às mentirosas, bem ao revés de Sancho, que todas as
tinha pela mesma mentira.
Indo, pois, desta maneira, se lhe ofereceu à vista um pequeno barco
sem remos nem outras enxárcias algumas, que estava atado na orla a
um tronco de uma árvore que na margem estava. Olhou dom Quixote a
todos os lados, e não viu pessoa alguma; e logo, sem mais nem mais,
apeou de Rocinante e mandou Sancho que o mesmo fizesse do ruço, e
que a ambas as bestas as atasse muito bem, juntas, ao tronco de um
álamo ou salgueiro que ali estava. Perguntou-lhe Sancho a causa
daquele súbito apeamento e daquele ligamento. Respondeu dom
Quixote:
- Hás de saber, Sancho, que este barco que aqui está, direitamente
e sem poder ser outra coisa em contrário, me está chamando e
convidando a que entre nele, e vá nele a dar socorro a algum cavaleiro,
ou a outra necessitada e principal pessoa, que deve estar posta em
alguma grande coita, porque este é estilo dos livros das histórias
cavaleirescas e dos encantadores que nelas se intrometem e praticam:
quando algum cavaleiro está posto em algum trabalho, que não pode
ser liberado dele senão pela mão de outro cavaleiro, embora estejam
distantes um do outro duas ou três mil léguas, e ainda mais, ou o
arrebatam em uma nuvem ou lhe deparam um barco em que entre, e em
menos de um abrir e fechar de olhos o levam, ou pelos ares, ou pelo
mar, onde querem e onde é precisa sua ajuda; assim que, oh Sancho!,
este barco está posto aqui para o mesmo efeito; e isto é tão verdade
como é agora de dia; e antes que este passe, ata juntos o ruço e
Rocinante, e à mão de Deus, que nos guie, que não deixarei de
embarcar-me se mo pedissem frades descalços.
- Pois assim é - respondeu Sancho, - e vossa mercê quer dar a cada
passo nestes que não sei se os chame disparates, não há senão
obedecer e baixar a cabeça, atendendo ao refrão: “faz o que teu amo
te manda, e senta-te com ele à mesa”; mas, assim, pelo que toca ao
desencargo de minha consciência, quero advertir a vossa mercê que a
mim me parece que este tal barco não é dos encantados, senão de
alguns pescadores deste rio, porque nele se pescam as melhores
sabogas do mundo.
Isto dizia, enquanto atava as bestas, Sancho, deixando-as à
proteção e amparo dos encantadores, com farta dor de sua alma. Dom
Quixote lhe disse que não tivesse pena do desamparo daqueles
animais, que o que os levaria a eles por tão longínquos caminhos e
regiões teria conta de sustentá-los.
- Não entendo isso de logíquos - disse Sancho, - nem ouvi tal
vocábulo em todos os dias de minha vida.
- Longínquos - respondeu dom Quixote - quer dizer “afastados”, e
não é maravilha que não o entendas, que não estás tu obrigado a saber
latim, como alguns que presumem que o sabem e o ignoram.
- Já estão atados - replicou Sancho. - Que havemos de fazer agora?
- Quê? - respondeu dom Quixote. - Benzer-nos e levantar ferro;
quero dizer, embarcar-nos e cortar a amarra com que este barco está
atado.
E dando um salto nele, seguindo-o Sancho, cortou o cordel, e o
barco se foi afastando pouco a pouco da margem; e quando Sancho se
viu obra de duas varas dentro do rio, começou a tremer, temendo sua
perdição; mas nenhuma coisa lhe deu mais pena que o ouvir zurrar o
ruço e o ver que Rocinante pugnava por desatar-se, e disse a seu
senhor:
- O ruço zurra, condoído de nossa ausência, e Rocinante procura
pôr-se em liberdade para arrojar-se atrás de nós. Oh caríssimos
amigos, ficai em paz, e a loucura que nos aparta de vós, convertida em
desengano, nos volte à vossa presença!
E nisto, começou a chorar tão amargamente que dom Quixote,
mofino e colérico, disse-lhe:
- Que temes, covarde criatura? Por que choras, coração de
manteiguinhas? Quem te persegue, ou quem te acossa, ânimo de ratão
caseiro, ou que te falta, necessitado no meio das entranhas da
abundância? Por acaso vais caminhando a pé e descalço pelas
montanhas rifeias, senão sentado em uma tábua, como um arquiduque,
pelo sossegado curso deste agradável rio, de onde em breve tempo
sairemos ao mar dilatado? Mas já havemos de haver saído, e
caminhado, pelo menos, setecentas ou oitocentas léguas; e se eu
tivesse aqui um astrolábio com que tomar a altura do polo, eu te diria
as que caminhamos; embora, ou eu sei pouco, ou já passamos, ou
passaremos logo, pela linha equinocial, que divide e corta os dois
contrapostos polos em igual distância.
- E quando cheguemos a essa lenha que vossa mercê diz - perguntou
Sancho, - quanto haveremos caminhado?
- Muito - replicou dom Quixote, - porque de trezentos e sessenta
graus que contém o globo, da água e da terra, segundo o cômputo de
Ptolomeu, que foi o maior cosmógrafo que se sabe, a metade
haveremos caminhado, chegando à linha que disse.
- Por Deus - disse Sancho, - que vossa mercê me traz por
testemunho do que diz a uma gentil pessoa, maricas e leproso, com o
acréscimo de mijão, ou mijado, ou não sei como.
Riu-se dom Quixote da interpretação que Sancho havia dado ao
nome e ao cômputo e conta do cosmógrafo Ptolomeu, e disse-lhe:
- Saberás, Sancho, que os espanhóis e os que embarcam em Cádis
para ir às Índias Orientais, um dos sinais que têm para entender que
passaram a linha equinocial que te disse é que a todos os que vão no
navio se lhes morrem os piolhos, sem que lhes fique nenhum, nem em
todo o baixel o acharão, se o pesam a ouro; e assim, podes, Sancho,
passear uma mão por uma coxa, e se topares coisa viva, sairemos
desta dúvida; e se não, passamos.
- Eu não creio nada disso - respondeu Sancho, - mas, contudo, farei
o que vossa mercê me manda, embora não sei para que há necessidade
de fazer essas experiências, pois eu vejo com meus mesmos olhos que
não nos afastamos da margem cinco varas, nem de onde estão as
alimárias duas varas, porque ali estão Rocinante e o ruço no próprio
lugar onde os deixamos; e tomada a medida, como eu a tomo agora,
voto a tal que não nos movemos nem andamos ao passo de uma formiga.
- Faz, Sancho, a averiguação que te disse, e não cuides de outra, que
tu não sabes que coisa sejam coluros, linhas, paralelos, zodíacos,
eclípticas, polos, solstícios, equinócios, planetas, signos, pontos,
medidas, de que se compõe a esfera celeste e terrestre; que se todas
estas coisas soubesses, ou parte delas, verias claramente quais
paralelos cortamos, quais signos vimos e quais imagens deixamos atrás
e vamos deixando agora. E torno-te a dizer que te tenteies e pesques,
que eu para mim tenho que estás mais limpo que uma folha de papel
liso e branco.
Tenteou-se Sancho, e, chegando com a mão com cuidado e com
tento até a curva esquerda, alçou a cabeça e olhou seu amo, e disse:
- Ou a experiência é falsa, ou não chegamos onde vossa mercê diz,
nem com muitas léguas.
- Então o quê? - perguntou dom Quixote, - topaste algo?
- E ainda algos! - respondeu Sancho.
E sacudindo os dedos, lavou toda a mão no rio, pelo qual
sossegadamente deslizava o barco por meio da corrente, sem que o
movesse alguma inteligência secreta, nem algum encantador escondido,
senão o mesmo curso da água, brando então e suave.
Nisto, descobriram uns grandes moinhos d'água que no meio do rio
estavam; e apenas os viu dom Quixote, quando com voz alta disse a
Sancho:
- Vês? Ali, oh amigo!, se descobre a cidade, castelo ou fortaleza
onde deve estar algum cavaleiro oprimido, ou alguma rainha, infanta ou
princesa estropiada, para cujo socorro sou aqui trazido.
- Que diabos de cidade, fortaleza ou castelo diz vossa mercê,
senhor? - disse Sancho. - Não vê que aqueles são moinhos que estão no
rio, onde se mói o trigo?
- Cala, Sancho - disse dom Quixote; - que, embora pareçam moinhos,
não o são; e já te disse que todas as coisas trastrocam e mudam de
seu ser natural os encantos. Não quero dizer que as mudam de um em
outro ser realmente, senão que o parece, como o mostrou a
experiência na transformação de Dulcineia, único refúgio de minhas
esperanças.
Nisto, o barco, entrado no meio da corrente do rio, começou a
caminhar não tão lentamente como até ali. Os moleiros, que viram vir
aquele barco pelo rio, e que se ia a embocar pelo caudal
das rodas, saíram com presteza muitos deles com varas largas a
detê-lo, e, como saíam enfarinhados, e cobertos os rostos e as
vestes do pó da farinha, representavam uma má vista. Davam vozes
grandes, dizendo:
- Demônios de homens! Onde ides? Vindes desesperados? Que
quereis, afogar-vos e fazer-vos pedaços nestas rodas?
- Não te disse eu, Sancho - disse então dom Quixote, - que
havíamos chegado onde hei de mostrar onde chega o valor de meu
braço? Vê quantos gatunos e baderneiros me saem ao encontro, veja
quantos monstros se me opõem, veja quantas feias cataduras nos
ameaçam... Pois agora o vereis, velhacos!
E posto em pé no barco, com grandes vozes começou a ameaçar os
moleiros, dizendo-lhes:
- Canalha malvada e pior aconselhada, deixai em sua liberdade e
livre alvedrio à pessoa que nessa vossa fortaleza ou prisão tendes
oprimida, alta ou baixa, de qualquer sorte ou qualidade que seja, que
eu sou dom Quixote da Mancha, chamado o Cavaleiro dos Leões por
outro nome, a quem está reservada por ordem dos altos céus o dar fim
feliz a esta aventura.
E dizendo isto, pegou a espada e começou a esgrimi-la no ar contra
os moleiros; os quais, ouvindo e não entendendo aquelas
sandices, se puseram com suas varas a deter o barco, que já ia
entrando no caudal e canal das rodas.
Pôs-se Sancho de joelhos, pedindo devotamente ao céu o livrasse de
tão manifesto perigo, como o fez, pela indústria e presteza dos
moleiros, que, opondo-se com seus golpes ao barco, o detiveram, mas
não de maneira que deixassem de virar o barco e dar com dom
Quixote e com Sancho ao través na água; mas veio-lhe bem a dom
Quixote, que sabia nadar como um ganso, embora o peso das armas o
levasse ao fundo duas vezes; e se não fosse pelos moleiros, que se
arrojaram à água e os tiraram a ambos, ali havia sido Troia para os
dois.
Postos, pois, em terra, mais molhados que mortos de sede, Sancho,
posto de joelhos, as mãos juntas e os olhos cravados no céu, pediu a
Deus com uma larga e devota prece o livrasse daí em diante dos
atrevidos desejos e enfrentamentos de seu senhor.
Chegaram nisto os pescadores donos do barco, a quem haviam feito
pedaços as rodas dos moinhos; e, vendo-o roto, acometeram a
desnudar a Sancho, e a pedir a dom Quixote que o pagasse; o qual,
com grande sossego, como se não houvesse passado nada por ele, disse
aos moleiros e pescadores que ele pagaria o barco com boníssima
vontade, com condição que lhe dessem livre e sem cautela a pessoa ou
pessoas que naquele seu castelo estavam oprimidas.
- Que pessoas ou que castelo diz - respondeu um dos moleiros, -
homem sem juízo? Queres levar porventura as que vêm a moer trigo
nestes moinhos?
- Basta! - disse consigo dom Quixote. - Aqui será pregar em deserto
querer convencer esta canalha a que por rogos faça virtude alguma. E
nesta aventura se devem haver encontrado dois valentes
encantadores, e um perturba o que o outro intenta: um me deparou o
barco, e o outro deu comigo ao través. Deus o remedeie, que todo este
mundo é máquinas e manhas, contrárias umas às outras. Eu não posso
mais.
E alçando a voz, prosseguiu dizendo, e olhando os moinhos:
- Amigos, quem quer que sejais, que nessa prisão estais encerrados,
perdoai-me; que, por minha desgraça e pela vossa, eu não vos posso
tirar de vossa coita. Para outro cavaleiro deve estar guardada e
reservada esta aventura.
Dizendo isto, se concertou com os pescadores, e pagou pelo barco
cinquenta reais, que os deu Sancho de muito má vontade, dizendo:
- A duas barcadas como estas, daremos com todo o caudal ao fundo.
Os pescadores e moleiros estavam admirados, olhando aquelas duas
figuras tão fora do uso, ao parecer, dos outros homens, e não
acabavam de entender onde se encaminhavam as razões e perguntas
que dom Quixote lhes dizia; e, tendo-os por loucos, os deixaram e se
recolheram a seus moinhos, e os pescadores a seus ranchos. Voltaram
a suas bestas, e a ser bestas, dom Quixote e Sancho, e este fim teve
a aventura do encantado barco.
CAPÍTULO XXX
CAPÍTULO XXXI
CAPÍTULO XXXII
Conta, pois, a história, que Sancho não dormiu aquela sesta, senão
que, por cumprir sua palavra, após almoçar veio ver a duquesa; a qual,
com o gosto que tinha de ouvi-lo, o fez sentar junto a si em uma
cadeira baixa, embora Sancho, de puro bem educado, não queria
sentar-se; mas a duquesa lhe disse que se sentasse como governador e
falasse como escudeiro, embora por ambas as coisas merecia o mesmo
assento do Cid Ruy Diaz Campeador.
Encolheu Sancho os ombros, obedeceu e sentou-se, e todas as
donzelas e amas da duquesa a rodearam atentas, com grandíssimo
silêncio, a escutar o que diria; mas a duquesa foi a que falou primeiro,
dizendo:
- Agora que estamos sós, e que aqui não nos ouve ninguém, queria eu
que o senhor governador me resolvesse certas dúvidas que tenho,
nascidas da história que do grande dom Quixote anda já impressa;
uma das quais dúvidas é que, pois o bom Sancho nunca viu Dulcineia,
digo, à senhora Dulcineia do Toboso, nem lhe levou a carta do senhor
dom Quixote, porque ficou no livro de memória em Serra Morena,
como se atreveu a fingir a resposta, e aquilo de que a achou limpando
trigo, sendo tudo burla e mentira, e tão em dano da boa opinião da sem
par Dulcineia, e todas que não vêm bem com a qualidade e fidelidade
dos bons escudeiros.
A estas razões, sem responder com alguma, se levantou Sancho da
cadeira, e, com passos silenciosos, o corpo encurvado e o dedo posto
sobre os lábios, andou por toda a sala levantando os dosséis; e logo,
isto feito, se voltou a sentar e disse:
- Agora, senhora minha, que vi que não nos escuta ninguém à socapa,
fora dos circunstantes, sem temor nem sobressalto responderei ao
que me perguntou, e a tudo aquilo que me perguntar; e a primeira coisa
que digo é que eu tenho a meu senhor dom Quixote por louco
rematado, embora algumas vezes diz coisas que, a meu parecer, e
ainda de todos aqueles que o escutam, são tão discretas e por tão bom
trilho encaminhadas, que o mesmo Satanás não as poderia dizer
melhores; mas, mesmo assim, verdadeiramente e sem escrúpulo, a mim
está claro que é um mentecapto. Pois, como eu tenho isto no
pensamento, me atrevo a fazer-lhe crer o que não tem pés nem
cabeça, como foi aquilo da resposta da carta, e o de haverá seis ou
oito dias, que ainda não está em história, convém a saber: o do encanto
de minha senhora dona Dulcineia, que lhe dei a entender que está
encantada, o que está longíssimo da verdade.
Rogou-lhe a duquesa que lhe contasse aquele encantamento ou burla,
e Sancho contou tudo do mesmo modo que se havia passado, de que
não pouco gosto receberam os ouvintes; e prosseguindo em sua
conversa, disse a duquesa:
- Do que o bom Sancho me contou me anda brincando um escrúpulo
na alma e um certo sussurro chega a meus ouvidos, que me diz: “Pois
dom Quixote da Mancha é louco, minguado e mentecapto, e Sancho
Pança seu escudeiro o conhece, e, assim, o serve e o segue e vai preso
às vãs promessas suas, sem dúvida alguma deve ser ele mais louco e
tonto que seu amo; e, sendo isto assim, como o é, mal contado te será,
senhora duquesa, se ao tal Sancho Pança lhe dás ilha que governe,
porque o que não sabe governar-se a si, como saberá governar a
outros?”
- Por Deus, senhora - disse Sancho, - que esse escrúpulo vem a
propósito; mas diga-lhe vossa mercê que fale claro, ou como quiser,
que eu conheço que diz verdade: que se eu fosse discreto, dias há que
havia de haver deixado meu amo. Mas esta foi minha sorte, e este meu
infortúnio; não posso mais, tenho de segui-lo: somos de um mesmo
lugar, comi seu pão, quero-o bem, é agradecido, deu-me seus asninhos,
e, sobretudo, eu sou fiel; e assim, é impossível que nos possa afastar
outro sucesso que o da pá e enxadão. E se vossa altaneria não quiser
que se me dê o prometido governo, por menos me fez Deus, e poderia
ser que o não dar-mo redundasse em pro de minha consciência; que,
embora tonto, entendo aquele refrão de “por seu mal nasceram asas à
formiga”; e ainda poderia ser que se fosse mais cedo Sancho
escudeiro ao céu, que não Sancho governador. Tão bom pão fazem aqui
como na França; e de noite todos os gatos são pardos, e assaz de
desditada é a pessoa que às duas da tarde não desjejuou; e não há
estômago que seja um palmo maior que outro, o qual se pode encher,
como costuma dizer-se, de palha e de feno; e as avezinhas do campo
têm a Deus por seu provedor e despenseiro; e mais aquecem quatro
varas de pano de Cuenca que outras quatro de sarja de Segóvia; e ao
deixar este mundo e meter-nos terra adentro, por tão estreita senda
vai o príncipe como o jornaleiro, e não ocupa mais pés de terra o corpo
do Papa que o do sacristão, embora seja mais alto um que o outro; que
ao entrar no buraco todos nos ajustamos e encolhemos, ou nos fazem
ajustar e encolher, mal que nos pese e boas-noites. E torno a dizer
que se vossa senhoria não me quiser dar a ilha por tonto, eu saberei
não dar-me nada por discreto; e eu ouvi dizer que detrás da cruz está
o diabo, e que não é ouro tudo o que reluz, e que de entre os bois,
arados e cangas trouxeram o lavrador Bamba para ser rei da Espanha,
e de entre os brocados, passatempos e riquezas trouxeram Rodrigo
para ser comido por cobras, se é que as trovas dos romances antigos
não mentem.
- E como que não mentem! - disse então dona Rodríguez a ama, que
era uma das escutantes: - que um romance há que diz que meteram o
rei Rodrigo, vivo vivo, em uma tumba cheia de sapos, cobras e lagartos,
e que dali a dois dias disse o rei desde dentro da tumba, com voz
dolente e baixa:
Já me comem, já me comem
por onde mais pecado havia;
e, segundo isto, muita razão tem este senhor em dizer que quer mais
ser mais lavrador que rei, se o hão de comer vermes.
Não pôde a duquesa reter o riso, ouvindo a simplicidade de sua ama,
nem deixou de admirar-se em ouvir as razões e refrãos de Sancho, a
quem disse:
- Já sabe o bom Sancho que o que uma vez promete um cavaleiro
procura cumpri-lo, embora lhe custe a vida. O duque, meu senhor e
marido, embora não seja dos andantes, não por isso deixa de ser
cavaleiro, e assim, cumprirá a palavra da prometida ilha, apesar da
inveja e da malícia do mundo. Esteja Sancho de bom ânimo, que quando
menos o pense se verá sentado na cadeira de sua ilha e na de seu
estado, e empunhará seu governo, que vá melhorando e ganhando
sempre. O de que eu lhe encarrego é que veja como governa seus
vassalos, advertindo que todos são leais e bem nascidos.
- Isso de governá-los bem - respondeu Sancho - não há para que
encarregar-me, porque eu sou caritativo de meu e tenho compaixão
pelos pobres; e a quem coze e amassa, não lhe furtes fogaça; e para
minha bênção que não me hão de jogar dado falso; sou cão velho, e
entendo tudo tus, tus, e sei despertar-me a seus tempos, e não
consinto que me turvem os olhos, porque sei onde me aperta o sapato:
digo-o porque os bons terão comigo apoio e refúgio, e os maus, nem pé
nem entrada. E parece-me que nisto dos governos tudo é começar, e
poderia ser que a quinze dias de governador almejasse exercer o
ofício e soubesse mais dele que do labor do campo, em que me criei.
- Vós tendes razão, Sancho - disse a duquesa, - que ninguém nasce
ensinado, e dos homens se fazem os bispos, que não das pedras. Mas,
voltando à conversa que há pouco tratávamos do encanto da senhora
Dulcineia, tenho por coisa certa e mais que averiguada que aquela ideia
que Sancho teve de burlar a seu senhor e dar-lhe a entender que a
lavradora era Dulcineia, e que se seu senhor não a conhecia devia ser
por estar encantada, toda foi invenção de algum dos encantadores que
perseguem o senhor dom Quixote; porque real e verdadeiramente eu
sei de boa parte que a vilã que deu o pulo sobre a asninha era e é
Dulcineia do Toboso, e que o bom Sancho, pensando ser o enganador, é
o enganado; e não há pôr mais dúvida nesta verdade que nas coisas que
nunca vimos; e saiba o senhor Sancho Pança que também temos aqui
encantadores que nos querem bem, e nos dizem o que passa pelo
mundo, pura e singelamente, sem enredos nem máquinas; e creia-me
Sancho que a vilã brincadora era e é Dulcineia do Toboso, que está
encantada como a mãe que a pariu; e quando menos pensemos, a
havemos de ver em sua própria figura, e então sairá Sancho do engano
em que vive.
- Bem pode ser tudo isso - disse Sancho Pança; - e agora quero crer
o que meu amo conta do que viu na cova de Montesinos, onde diz que
viu a senhora Dulcineia do Toboso no mesmo traje que eu disse que a
havia visto quando a encantei por só meu gosto; e tudo deveu ser ao
revés, como vossa mercê, senhora minha, diz, porque de meu ruim
engenho não se pode nem deve presumir que fabricasse num instante
tão agudo embuste, nem creio eu que meu amo é tão louco que com tão
fraca e magra persuasão como a minha cresse uma coisa tão fora de
todo termo. Mas, senhora, não por isto será bem que vossa bondade
me tenha por malévolo, pois não está obrigado um tonto como eu a
perfurar os pensamentos e malícias dos péssimos encantadores: eu
fingi aquilo por escapar-me das repreensões de meu senhor dom
Quixote, e não com intenção de ofendê-lo; e se saiu ao revés, Deus
está no céu, que julga os corações.
- Assim é a verdade - disse a duquesa; - mas diga-me agora, Sancho,
que é isto que diz da cova de Montesinos, que gostaria de sabê-lo.
Então Sancho Pança lhe contou ponto por ponto o que fica dito
acerca da tal aventura. Ouvindo o que a duquesa, disse:
- Deste sucesso se pode inferir que, pois o grande dom Quixote diz
que viu ali a mesma lavradora que Sancho viu à saída do Toboso, sem
dúvida é Dulcineia, e que andam por aqui os encantadores muito listos
e demasiadamente ativos.
- Isso digo eu - disse Sancho Pança, - que se minha senhora
Dulcineia do Toboso está encantada, pior para ela, que eu não me
tenho de tomar, eu, com os inimigos de meu amo, que devem ser
muitos e maus. Verdade seja que a que eu vi foi uma lavradora, e por
lavradora a tive, e por tal lavradora a julguei; e se aquela era
Dulcineia, não há de estar à minha conta, nem há de correr por mim,
ou sobre isso, pendência. Não, senão andem a cada momento comigo a
diz-me e direi-te, “Sancho o disse, Sancho o fez, Sancho tornou e
Sancho voltou”, como se Sancho fosse algum qualquer, e não fosse o
mesmo Sancho Pança, o que anda já em livros por esse mundo adiante,
segundo me disse Sansão Carrasco, que, pelo menos, é pessoa
bacharelada por Salamanca, e os tais não podem mentir se não é
quando desejam ou lhes vem muito a conto; assim que, não há para que
ninguém se tome comigo, e pois que tenho boa fama, e, segundo ouvi
dizer a meu senhor, que mais vale o bom nome que as muitas riquezas,
encaixem-me esse governo e verão maravilhas; que quem foi bom
escudeiro será bom governador.
- Tudo quanto aqui disse o bom Sancho - disse a duquesa - são
sentenças catonianas, ou, pelo menos, tiradas das mesmas entranhas
do mesmo Micael Verino, “florentibus occidit anis" (“morreu na flor da
idade”: N. do T.). Enfim, enfim, falando a seu modo, debaixo de má
capa costuma haver bom bebedor.
- Em verdade, senhora - respondeu Sancho, - que em minha vida
bebi por malícia; com sede bem poderia ser, porque não tenho nada de
hipócrita: bebo quando tenho vontade, e quando não a tenho e quando
me dão, por não parecer ou melindroso ou malcriado; que a um brinde
de um amigo, que coração há de haver tão de mármore que não aceite?
Mas, embora as calce, não as sujo (as calças: N. do T.); quanto mais,
que os escudeiros dos cavaleiros andantes, quase de ordinário bebem
água, porque sempre andam por florestas, selvas e prados, montanhas
e penhascos, sem achar uma misericórdia de vinho, se dão por ela um
olho.
- Eu o creio assim - respondeu a duquesa. - E por agora, vá Sancho a
repousar, que depois falaremos mais largo e daremos ordem como vá
logo a encaixar-se, como diz, aquele governo.
De novo beijou as mãos Sancho à duquesa, e lhe suplicou lhe fizesse
mercê de que se tivesse boa conta com seu ruço, porque era a luz de
seus olhos.
- Que ruço é este? - perguntou a duquesa.
- Meu asno - respondeu Sancho, - que por não nomeá-lo com este
nome, costumo chamá-lo “o ruço”; e a esta senhora ama roguei, quando
entrei neste castelo, tomasse conta dele, e enfureceu-se de maneira
como se lhe houvesse dito que era feia ou velha, devendo ser mais
próprio e natural das amas alimentar jumentos que abrilhantar as
salas. Oh, valha-me Deus, e quão mal estava com estas senhoras um
fidalgo de meu lugar!
- Seria algum vilão - disse dona Rodríguez, a ama, - que se ele fosse
fidalgo e bem nascido, ele as poria nos cornos da lua.
- Agora bem - disse a duquesa, - não haja mais: cale dona Rodríguez
e sossegue o senhor Pança, e fique a meu cargo o regalo do ruço; que,
por ser joia de Sancho, lhe porei eu sobre as meninas de meus olhos.
- Na cavalariça basta que esteja - respondeu Sancho, - que sobre as
meninas dos olhos de vossa grandeza nem ele nem eu somos dignos de
estar só um momento, e assim o consentiria eu como dar-me
punhaladas; que, embora diz meu senhor que nas cortesias antes se há
de perder por carta de mais que de menos, nas jumentis e asininas se
há de ir com o compasso na mão e com medido termo.
- Leve-o - disse a duquesa - Sancho ao governo, e lá lhe poderá
regalar como quiser, e ainda aposentá-lo do trabalho.
- Não pense vossa mercê, senhora duquesa, que disse muito - disse
Sancho; - que eu vi ir mais de dois asnos aos governos, e que levasse
eu o meu não seria coisa nova.
As palavras de Sancho renovaram na duquesa o riso e o
contentamento; e, enviando-o a repousar, ela foi dar conta ao duque
do que com ele havia passado, e entre os dois deram manha e ordem
de fazer uma burla a dom Quixote que fosse famosa e viesse bem com
o estilo cavaleiresco, no qual lhe fizeram muitas, tão próprias e
discretas, que são as melhores aventuras que nesta grande história se
contêm.
CAPÍTULO XXXIV
- Esse foi um rei godo - disse dom Quixote, - que, indo à caça de
montaria, o comeu um urso.
- Isso é o que eu digo - respondeu Sancho: - que não queria eu que
os príncipes e os reis se pusessem em semelhantes perigos, a troco de
um gosto que parece que não o havia de ser, pois consiste em matar
um animal que não cometeu delito algum.
- Antes vos enganais, Sancho - respondeu o duque, - porque o
exercício da caça de monte é o mais conveniente e necessário para os
reis e príncipes que outro algum. A caça é uma imagem da guerra: há
nela estratagemas, astúcias, insídias para vencer a salvo o inimigo;
padecem-se nela frios grandíssimos e calores intoleráveis; menoscaba-
se o ócio e o sonho, corroboram-se as forças, agilizam-se os membros
do que a usa, e, em suma, é exercício que se pode fazer sem prejuízo
de ninguém e com gosto de muitos; e o melhor que ele tem é que não é
para todos, como o é o dos outros gêneros de caça, exceto o da
volataria, que também é só para reis e grandes senhores. Assim que,
oh Sancho!, mudai de opinião, e, quando sejais governador, ocupai-vos
na caça e vereis como vos vale um pão por cem.
- Isso não - respondeu Sancho: - o bom governador, a perna
quebrada, e em casa. Bom seria que viessem os negociantes a buscá-lo
fatigados e ele estivesse no monte divertindo-se! Assim em hora má
andaria o governo! Minha fé, senhor, a caça e os passatempos mais hão
de ser para os folgazões que para os governadores. No que eu penso
entreter-me é em jogar truco de vez em quando, e boliche nos
domingos e festas, que essas caças nem caços não dizem com minha
condição nem fazem com minha consciência.
- Praza a Deus, Sancho, que assim seja, porque do dito ao feito há
grande trecho.
- Haja o que houver - replicou Sancho, - que ao bom pagador não lhe
faltam garantias, e mais vale ao que Deus ajuda que ao que muito
madruga, e tripas levam pés, que não pés a tripas; quero dizer que se
Deus me ajuda, e eu faço o que devo com boa intenção, sem dúvida que
governarei melhor que um falcão. Não, senão ponham-me o dedo na
boca e verão se aperta ou não!
- Maldito sejas de Deus e de todos seus santos, Sancho maldito -
disse dom Quixote, - e quando será o dia, como outras muitas vezes
disse, onde eu te veja falar sem refrãos uma razão corrente e
concertada! Vossas grandezas deixem a este tonto, senhores meus,
que lhes moerá as almas, não só postas entre dois, senão entre dois
mil refrãos, trazidos tão a propósito e tão a tempo quanto lhe dê Deus
a ele a saúde, ou a mim se os quisesse escutar.
- Os refrãos de Sancho Pança - disse a duquesa, - embora são mais
que os do Comendador Grego, não por isso são menos de estimar, pela
brevidade das sentenças. De mim sei dizer que me dão mais gosto que
outros, embora sejam melhor trazidos e com mais propósito
acomodados.
Com estes e outros divertidos arrazoados, saíram da tenda ao
bosque, e em procurar algumas tocaias, e logo, se lhes passou o dia e
se lhes veio a noite, e não tão clara nem tão serena como a época do
ano pedia, que era a meio do verão; mas um certo claro-escuro que
trouxe consigo ajudou muito à intenção dos duques; e, assim que
começou a anoitecer, um pouco mais adiante do crepúsculo, de repente
pareceu que todo o bosque por todas as quatro partes ardia, e logo se
ouviram por aqui e por ali, e por aqui e por acolá, infinitas cornetas e
outros instrumentos de guerra, como de muitas tropas de cavalaria
que pelo bosque passava. A luz do fogo, o som dos bélicos
instrumentos, quase cegaram e atroaram os olhos e os ouvidos dos
circunstantes, e ainda de todos os que no bosque estavam.
Logo se ouviram infinitas algaravias, ao uso de mouros quando
entram nas batalhas, soaram trombetas e clarins, retumbaram
tambores, ressoaram pífaros, quase todos a um tempo, tão contínuo e
tão depressa, que não teria sentido o que não ficasse sem ele ao som
confuso de tantos intrumentos. Pasmou-se o duque, suspendeu-se a
duquesa, admirou-se dom Quixote, tremeu Sancho Pança, e,
finalmente, ainda até os mesmos sabedores da causa se espantaram.
Com o temor lhes colheu o silêncio, e um postilhão que em traje de
demônio lhes passou por diante, tocando em voz de corneta um oco e
descomedido chifre, que um rouco e espantoso som despedia.
- Olá, irmão correio! - disse o duque, - quem sois, aonde vais, e que
gente de guerra é a que por este bosque parece que atravessa?
Ao que respondeu o correio com voz horríssona e desenfadada:
- Eu sou o Diabo; vou a buscar dom Quixote da Mancha; a gente que
por aqui vem são seis tropas de encantadores, que sobre um carro
triunfante trazem a sem par Dulcineia do Toboso. Encantada vem com
o galhardo francês Montesinos, a dar ordem a dom Quixote de como
há de ser desencantada a tal senhora.
- Se vós fôsseis diabo, como dizeis e como vossa figura mostra, já
haveríeis reconhecido o tal cavaleiro dom Quixote da Mancha, pois o
tendes diante.
- Em Deus e em minha consciência - respondeu o Diabo - não via
isso, porque trago em tantas coisas desviados os pensamentos, que do
principal a que vinha me olvidava.
- Sem dúvida - disse Sancho - que este demônio deve ser homem de
bem e bom cristão, porque, a não sê-lo, não jurara “em Deus e em
minha consciência”. Agora eu tenho para mim que ainda no mesmo
inferno deve haver boa gente.
Logo o Demônio, sem apear-se, encaminhando a vista a dom Quixote,
disse:
- A ti o Cavaleiro dos Leões, que entre as garras deles te veja eu,
me envia o desgraçado mas valente cavaleiro Montesinos, mandando-
me que de sua parte te diga que o esperes no mesmo lugar que te
topar, porque traz consigo a que chamam Dulcineia do Toboso, com
ordem de dar-te a que é preciso para desencantá-la. E por não ser
para mais minha vinda, não há de ser mais minha estada: os demônios
como eu fiquem contigo, e os anjos bons com estes senhores.
E dizendo isto, tocou o desaforado chifre, e voltou as costas e
foi-se, sem esperar resposta de ninguém.
Renovou-se a admiração em todos, especialmente em Sancho e dom
Quixote: em Sancho, ao ver que, a despeito da verdade, queriam que
estivesse encantada Dulcineia; em dom Quixote, por não poder
assegurar-se se era verdade ou não o que lhe havia passado na cova de
Montesinos. E estando elevado nestes pensamentos, o duque lhe disse:
- Pensa vossa mercê esperar, senhor dom Quixote?
- Ora, não? - respondeu ele. - Aqui esperarei intrépido e forte, se
me viesse a atacar todo o inferno.
- Pois se eu vejo outro diabo e ouço outro chifre como o passado,
assim esperarei eu aqui como em Flandres - disse Sancho.
Nisto se fechou mais a noite e começaram a correr muitas luzes
pelo bosque, como correm pelo céu as exalações secas da terra, que
parecem à nossa vista estrelas que correm. Ouviu-se também um
espantoso ruído, ao modo daquele que é causado pelas rodas maciças
que costumam trazer os carros de bois, de cujo chiado áspero e
continuado se diz que fogem os lobos e os ursos, se os há por onde
passam. Acrescentou-se a toda esta tempestade outra que as
aumentou todas, que foi que parecia verdadeiramente que às quatro
partes do bosque se estavam dando a um mesmo tempo quatro
combates ou batalhas, porque ali soava o duro estrondo de espantosa
artilharia, acolá se disparavam infinitas escopetas, perto quase
soavam as vozes dos combatentes, longe se reiteravam as algaravias
agarenas.
Finalmente, as cornetas, os chifres, as buzinas, os clarins, as
trombetas, os tambores, a artilharia, os arcabuzes, e, sobretudo, o
temeroso ruído dos carros, formavam todos juntos um som tão
confuso e tão horrendo, que foi preciso que dom Quixote se valesse
de todo seu coração para suportá-lo; mas o de Sancho veio à terra, e
deu com ele desmaiado nas fraldas da duquesa, a qual o recebeu nelas,
e a grande pressa mandou que lhe jogassem água no rosto. Fez-se
assim, e ele voltou a si, a tempo que já um carro das rechinantes rodas
chegava àquele posto.
Puxavam-no quatro preguiçosos bois, todos cobertos de paramentos
negros; em cada chifre traziam atada e acesa uma grande tocha de
cera, e em cima do carro vinha posto um assento alto, sobre o qual
vinha sentado um venerável velho, com uma barba mais branca que a
mesma neve, e tão longa que lhe passava da cintura; sua veste era uma
roupa larga de negro bocaxim, que, por vir o carro cheio de infinitas
luzes, se podia bem divisar e discernir tudo o que nele vinha. Guiavam-
no dois feios demônios vestidos do mesmo bocaxim, com tão feios
rostos, que Sancho, havendo-os visto uma vez, fechou os olhos por não
vê-los outra. Chegando, pois, o carro junto ao posto, se levantou de
seu alto assento o velho venerável, e, posto em pé, dando uma grande
voz, disse:
- Eu sou o sábio Lirgandeu.
E passou o carro adiante, sem falar mais palavra. Atrás deste
passou outro carro da mesma maneira, com outro velho entronizado; o
qual, fazendo com que o carro se detivesse, com voz não menos grave
que o outro, disse:
- Eu sou o sábio Alquife, o grande amigo de Urganda a
Desconhecida.
E passou adiante.
Logo, da mesma maneira, chegou outro carro; mas o que vinha
sentado no trono não era velho como os demais, senão homenzarrão
robusto e de má catadura, o qual, ao chegar, levantando-se, como os
outros, disse com voz mais rouca e mais endiabrada:
- Eu sou Arcalaus o encantador, inimigo mortal de Amadis de Gaula
e de toda sua parentela.
E passou adiante. Pouco desviados dali fizeram alto estes três
carros, e cessou o enfadonho ruído de suas rodas, e logo se ouviu
outro, não ruído, senão um som de uma suave e concertada música, com
que Sancho se alegrou, e o teve por bom sinal; e assim, disse à
duquesa, de quem um ponto nem um passo se apartava:
- Senhora, onde há música não pode haver coisa má.
- Tampouco onde há luzes e claridade - respondeu a duquesa.
Ao que replicou Sancho:
- Luz dá o fogo e claridade as fogueiras, como o vemos nas que nos
cercam, e bem poderia ser que nos abrasassem, mas a música sempre
é indício de regozijos e de festas.
- Isso se verá - disse dom Quixote, que tudo escutava.
E disse bem, como se mostra no capítulo seguinte.
CAPÍTULO XXXV
- Voto a tal! - disse então Sancho. - Não digo eu três mil açoites,
mas assim me darei eu três como três punhaladas. Valha-te o diabo
por modo de desencantar! Eu não sei que têm que ver meus assentos
com os encantos! Par Deus que se o senhor Merlim não achou outra
maneira de desencantar a senhora Dulcineia do Toboso, encantada se
poderá ir à sepultura!
- Apanhar-vos-ei eu - disse dom Quixote, - dom vilão, farto de
alhos, e amarrar-vos-ei a uma árvore, desnudo como vossa mãe vos
pariu; e não digo eu três mil e trezentos, senão seis mil e seiscentos
açoites vos darei, tão bem pregados que não se arranquem com três
mil e trezentos puxões. E não me repliqueis palavra, que vos arrancarei
a alma.
Ouvindo o que Merlim, disse:
- Não há de ser assim, porque os açoites que há de receber o bom
Sancho hão de ser por sua vontade, e não por força, e no tempo que
ele quiser; que não se lhe põe prazo marcado; mas permite-se-lhe que
se ele quiser redimir sua vexação por meio desta sova, pode deixar
que se os dê alheia mão, embora seja algo pesada.
- Nem alheia, nem própria, nem pesada, nem por pesar - replicou
Sancho: - a mim não me há de tocar alguma mão. Pari eu, porventura, à
senhora Dulcineia do Toboso, para que paguem minhas nádegas o que
pecaram seus olhos? O senhor meu amo sim, que é parte sua, pois a
chama a cada passo “minha vida”, “minha alma”, sustento e arrimo seu,
se pode e deve açoitar por ela e fazer todas as diligências necessárias
para seu desencanto; mas, açoitar-me eu...? De maneira nenhuma.
Apenas acabou de dizer isto Sancho, quando, levantando-se a
lantejoulada ninfa que junto ao espírito de Merlim vinha, tirando o
sutil véu do rosto, o descobriu tal, que a todos pareceu mais que
demasiadamente formoso, e, com um desenfado varonil e com uma voz
não muito adamada, falando diretamente com Sancho Pança, disse:
- Oh desventurado escudeiro, alma de cântaro, coração de sobreiro,
de entranhas duras como pedra! Se te mandassem, ladrão descarado,
que te arrojasses de uma alta torre ao chão; se te pedissem, inimigo
do gênero humano, que comesses uma dúzia de sapos, duas de lagartos
e três de cobras; se te persuadissem a que matasses tua mulher e
teus filhos com algum truculento e agudo alfanje, não seria maravilha
que te mostrasses melindroso e esquivo; mas fazer caso de três mil e
trezentos açoites, que não há menino de orfanato, por ruim que seja,
que não os leve cada mês, admira, assombra, espanta a todas as
entranhas piedosas dos que o escutam, e ainda as de todos aqueles que
o vierem a saber com o decurso do tempo. Põe, oh miserável e
endurecido animal!, põe, digo, esses teus olhos de machinho
espantadiço nas meninas destes meus, comparados a rutilantes
estrelas, e vê-los-ás chorar fio a fio e madeixa a madeixa, fazendo
sulcos, carreiras e sendas pelos formosos campos de minhas faces.
Move-te, socarrão e mal-intencionado monstro, que a idade tão florida
minha, que ainda está no dez e... tais anos, pois tenho dezenove e não
chego a vinte, se consome e murcha debaixo da cortiça de uma rústica
lavradora; e se agora não o pareço, é mercê particular que me fez o
senhor Merlim, que está presente, só porque te enterneça minha
beleza; que as lágrimas de uma aflita formosura voltam em algodão os
penhascos, e os tigres em ovelhas. Dá-te, dá-te nessas carnaças,
bestão indômito, e desperta esse brio, que a só comer e mais comer te
inclina, e põe em liberdade a lisura de minhas carnes, a mansidão de
minha condição e a beleza de minha face; e se por mim não queres
abrandar-te nem reduzir-te a algum razoável termo, faze-o por esse
pobre cavaleiro que a teu lado tens; por teu amo, digo, de quem estou
vendo a alma, que a tem atravessada na garganta, não a dez dedos dos
lábios, que não espera senão tua rígida ou branda resposta, ou para
sair pela boca, ou para voltar ao estômago.
Apalpou-se a garganta dom Quixote ouvindo isto, e disse, voltando-
se ao duque:
- Por Deus, senhor, que Dulcineia disse a verdade, que aqui tenho a
alma atravessada na garganta, como um pivô de besta.
- Que dizeis vós a isto, Sancho? - perguntou a duquesa.
- Digo, senhora - respondeu Sancho, - o que disse: que dos açoites,
abernúncio.
- Abrenúncio haveis de dizer, Sancho, e não como dizeis - disse o
duque.
- Deixe-me vossa grandeza - respondeu Sancho, - que não estou
agora para olhar em sutilezas nem em letras mais ou menos; porque me
têm tão turbado estes açoites que me hão de dar, ou me tenho de dar,
que não sei o que digo, nem o que faço. Mas queria eu saber da senhora
minha senhora dona Dulcineia do Toboso aonde aprendeu o modo de
rogar que tem: vem pedir-me que me abra as carnes a açoites, e
chama-me “alma de cântaro” e “bestão indômito”, com uma litania de
maus nomes, que o diabo os suporte. Porventura são minhas carnes de
bronze, ou depende de mim algo em que se desencante ou não? Que
canastra de roupa branca, de camisas, de toucadores e de escarpins,
ainda que não os gaste, traz diante de si para abrandar-me, senão um
vitupério e outro, sabendo aquele refrão que dizem por aí, que um asno
carregado de ouro sobe ligeiro por uma montanha, e que dádivas
quebrantam penhas, e a Deus rogando e com o malho dando, e que mais
vale um toma que dois te darei? Pois o senhor meu amo, que havia de
mimar-me e adular-me para que eu me fizesse de lã e de algodão
cardado, diz que se me apanha me amarrará desnudo a uma árvore e
me dobrará a parada dos açoites; e haviam de considerar estes
lastimados senhores que não somente pedem que se açoite um
escudeiro, senão um governador; como quem diz: “bebe com ginjas”.
Aprendam, aprendam muito em hora má a saber rogar, e a saber pedir,
e a ter criação, que não são todos os tempos unos, nem estão os
homens sempre de um bom humor. Estou eu agora rebentando de pena
por ver meu saio verde roto, e vêm a pedir-me que me açoite por
minha vontade, estando ela tão alheia disso como de eu virar cacique.
- Pois em verdade, amigo Sancho - disse o duque, - que se não vos
abrandais mais que um figo maduro, que não haveis de empunhar o
governo. Bom seria que eu enviasse a meus insulanos um governador
cruel, de entranhas de pedra, que não se dobra às lágrimas das aflitas
donzelas, nem aos rogos de discretos, imperiosos e antigos
encantadores e sábios! Em suma, Sancho, ou haveis de ser açoitado, ou
vos hão de açoitar, ou não haveis de ser governador.
- Senhor - respondeu Sancho, - não se me dariam dois dias de prazo
para pensar o que me está melhor?
- Não, de maneira alguma - disse Merlim -; aqui, neste instante e
neste lugar, há de ficar assentado o que há de ser deste negócio, ou
Dulcineia voltará à cova de Montesinos e a seu prístino estado de
lavradora, ou já, no ser que está, será levada aos elísios campos, onde
estará esperando se cumpra o número de açoites.
- Eia, bom Sancho - disse a duquesa, - bom ânimo e boa
correspondência ao pão que comestes do senhor dom Quixote, a quem
todos devemos servir e agradar, por sua boa condição e por suas altas
cavalarias. Dai o sim, filho, a esta coça, e vá-se o diabo para o diabo e
o temor para o mesquinho, que um bom coração quebranta má ventura,
como vós bem sabeis.
A estas palavras respondeu com estas disparatadas Sancho, que,
falando com Merlim, lhe perguntou:
- Diga-me vossa mercê, senhor Merlim: quando chegou aqui o diabo
correio, deu a meu amo um recado do senhor Montesinos, mandando de
sua parte que o esperasse aqui, porque vinha a dar ordem de que a
senhora dona Dulcineia do Toboso se desencantasse, e até agora não
vimos Montesinos nem coisa que o valha.
A que respondeu Merlim:
- O Diabo, amigo Sancho, é um ignorante e um grandíssimo velhaco:
eu o enviei em busca de vosso amo, mas não com recado de
Montesinos, senão meu, porque Montesinos está em sua cova
entendendo, ou, por melhor dizer, esperando seu desencanto, que
ainda lhe falta coisa por cumprir. Se vos deve algo, ou tendes alguma
coisa que negociar com ele, eu vo-lo trarei e porei onde vós mais
quiserdes. E por agora, acabai de dar o sim a esta disciplina, e crede-
me que vos será de muito proveito, assim para a alma como para o
corpo: para a alma, pela caridade com que a fareis; para o corpo,
porque eu sei que sois de compleição sanguínea, e não vos poderá fazer
dano tirar-vos um pouco de sangue.
- Muitos médicos há no mundo: até os encantadores são médicos
- replicou Sancho. - Mas, pois todos mo dizem, embora eu não o veja,
digo que só me contento em dar-me os três mil e trezentos açoites,
com a condição que os tenho de dar cada e quando que eu quiser, sem
que se me ponha taxa nos dias nem no tempo; e eu procurarei sair da
dívida o mais breve que seja possível, porque goze o mundo da
formosura da senhora dona Dulcineia do Toboso, pois, segundo parece,
ao revés do que eu pensava, com efeito é formosa. Há de ser também
condição que não hei de estar obrigado a tirar-me sangue com a
disciplina, e que se alguns açoites forem frouxos, se me hão de tomar
em conta. Item, que se errar no número, o senhor Merlim, pois sabe
tudo, há de ter cuidado de contá-los e de avisar-me os que me faltam
ou os que me sobram.
- Das sobras não haverá que avisar - respondeu Merlim, - porque,
chegando ao cabal número, logo ficará imediatamente desencantada a
senhora Dulcineia, e virá buscar, agradecida, o bom Sancho, e dar-lhe
graças, e ainda prêmios, pela boa obra. Assim que não há de que ter
escrúpulo das sobras nem das faltas, nem o céu permita que eu engane
a ninguém, embora seja num pelo da cabeça.
- Eia, pois, à mão de Deus! - disse Sancho. - Eu consinto em minha
má ventura; digo que eu aceito a penitência com as condições
apontadas.
Apenas disse estas últimas palavras Sancho, quando voltou a soar a
música das charamelas e se voltaram a disparar infinitos arcabuzes, e
dom Quixote se pendurou no pescoço de Sancho, dando-lhe mil beijos
na fronte e nas faces. A duquesa e o duque e todos os circunstantes
deram mostras de haver recebido grandíssima alegria, e o carro
começou a caminhar; e, ao passar, a formosa Dulcineia inclinou a
cabeça aos duques e fez uma grande reverência a Sancho.
E já, nisto, vinha rapidamente o alvorecer, alegre e risonho: as
florezinhas dos campos se destacavam e erguiam, e os líquidos
cristais dos arroiozinhos, murmurando por entre brancos e pardos
seixos, iam dar tributo aos rios que os esperavam. A terra alegre, o
céu claro, o ar limpo, a luz serena, cada um por si e todos juntos,
davam manifestos sinais de que o dia, que à aurora vinha pisando as
fraldas, havia de ser sereno e claro. E satisfeitos os duques da caça e
de haver conseguido sua intenção tão discreta e felizmente, voltaram
a seu castelo, com pressuposto de continuar em suas burlas, que para
eles não havia veras que mais gosto lhes dessem.
CAPÍTULO XXXVI
Se bons açoites me davam, bem a cavaleiro iria; se bom governo tenho, bons
açoites me custa. Isto não o entenderás tu, Teresa minha, por agora; em outra
ocasião o saberás. Hás de saber, Teresa, que tenho determinado que andes em
coche, que é o que vem ao caso, porque todo outro andar é andar de gatas. Mulher
de um governador és, veja se alguém falará mal de ti! Aí te envio um traje verde de
caçador, que me deu minha senhora a duquesa; acomoda-o de modo que sirva de
saia à nossa filha. Dom Quixote, meu amo, segundo ouvi dizer nesta terra, é um
louco lúcido e um mentecapto gracioso, e que eu não lhe fico atrás. Estivemos na
cova de Montesinos, e o sábio Merlim lançou mão de mim para o desencanto de
Dulcineia do Toboso, que aí se chama Aldonça Lourenço: com três mil e trezentos
açoites, menos cinco, que me hei de dar, ficará desencantada como a mãe que a
pariu. Não dirás disto nada a ninguém, porque dize-o, e uns dirão que é branco e
outros que é negro. Daqui a poucos dias partirei ao governo, onde vou com
grandíssimo desejo de fazer dinheiros, porque me disseram que todos os
governadores novos vão com este mesmo desejo; tomar-lhe- ei o pulso, e avisar-te-
ei se hás de vir a estar comigo ou não. O ruço está bom, e se te encomenda muito; e
não o penso deixar, embora me levassem a ser Grande Turco. A duquesa minha
senhora te beija mil vezes as mãos; dá-lhe o retorno com dois mil, que não há coisa
que menos custe nem seja mais barata, segundo diz meu amo, que os bons
comedimentos. Não foi Deus servido de deparar-me outra maleta com outros cem
escudos, como a de antes, mas não te dê pena, Teresa minha, que a salvo está o que
reclama, e tudo sairá na barrela do governo; senão que me deu grande pena que me
dizem que se uma vez o provo, tenho de morrer por ele; e se assim fosse, não me
custaria muito barato, embora os estropiados e mancos já têm seu ganho na esmola
que pedem; assim que, por uma via ou por outra, tu hás de ser rica, de boa ventura.
Deus ta dê, como pode, e a mim me guarde para servir-te.
Deste castelo, a vinte de julho 1614.
CAPÍTULO XXXVII
CAPÍTULO XXXIX
CAPÍTULO XL
CAPÍTULO XLI
CAPÍTULO XLII
Dos conselhos que deu dom Quixote a Sancho Pança antes que fosse
governar a ilha, com outras coisas bem consideradas
CAPÍTULO XLIII
CAPÍTULO XLIV
CAPÍTULO XLV
De como o grande Sancho Pança tomou posse de sua ilha, e do modo
que começou a governar
CAPÍTULO XLVI
CAPÍTULO XLVII
A minha notícia chegou, senhor dom Sancho Pança, que uns inimigos meus e
dessa ilha lhe hão de dar um assalto furioso, não sei que noite; convém velar e
estar alerta, para que não o tomem desapercebido. Sei também, por espias
verdadeiras, que entraram nesse lugar quatro pessoas disfarçadas para tirar-
vos a vida, porque temem vosso engenho; abri o olho, e vede quem chega a
falar-vos, e não comais de coisa que vos presentearem. Eu terei cuidado de
socorrer-vos se vos virdes em perigo, e em tudo fareis como se espera de
vosso entendimento. Deste lugar, a dezesseis de agosto, às quatro da manhã.
CAPÍTULO XLVIII
CAPÍTULO XLIX
CAPÍTULO LI
Ouviu Sancho a carta com muita atenção, e foi celebrada e tida por
discreta pelos que a ouviram; e logo Sancho se levantou da mesa, e,
chamando o secretário, se encerrou com ele em seu quarto, e, sem
dilatá-lo mais, quis responder logo a seu senhor dom Quixote, e disse
ao secretário que, sem juntar nem tirar coisa alguma, fosse
escrevendo o que ele lhe dissesse, e assim o fez; e a carta da resposta
foi do teor seguinte:
A ocupação de meus negocios é tão grande que não tenho lugar para coçar a
cabeça, nem ainda para cortar as unhas; e assim, as trago tão crescidas qual
Deus o remedie. Digo isto, senhor meu de minha alma, para que vossa mercê não
se espante se até agora não dei aviso de meu bem ou mal estar neste governo, no
qual tenho mais fome que quando andávamos os dois pelas selvas e pelos
despovoados.
Escreveu-me o duque, meu senhor, outro dia, dando-me aviso que haviam entrado
nesta ilha certas espias para matar-me, e até agora eu não descobri outra que
um certo doutor que está neste lugar assalariado para matar a quantos
governadores aqui vierem: chama-se o doutor Pedro Recio, e é natural de
Tirteafora: porque veja vossa mercê que nome para não temer que hei de
morrer em suas mãos! Este tal doutor diz ele mesmo de si mesmo que ele não
cura as enfermidades quando as há, senão que as previne, para que não venham;
e as medicinas que usa são dieta e mais dieta, até pôr a pessoa em ossos limpos,
como se não fosse maior mal a fraqueza que a quentura. Finalmente, ele me vai
matando de fome, e eu vou morrendo de despeito, pois quando pensei vir a este
governo a comer quente e a beber frio, e a recrear o corpo entre lençóis de
holanda, sobre colchões de pena, vim fazer penitência, como se fosse ermitão; e,
como não a faço por minha vontade, penso que, ao cabo ao cabo, me há de levar o
diabo.
Até agora não toquei em direitos nem levei suborno, e não posso pensar em que
vai isto; porque aqui me hão dito que os governadores que a esta ilha costumam
vir, antes de entrar nela, ou lhes deram ou lhes emprestaram os da vila muitos
dinheiros, e que esta é ordinária usança nos demais que vão a governos, não
somente neste.
Ontem à noite, andando de ronda, topei uma muito formosa donzela em traje de
varão e um irmão seu em traje de mulher; da moça se enamorou meu camareiro-
mor, e a escolheu em sua imaginação para sua mulher, segundo ele disse, e eu
escolhi o moço para meu genro; hoje os dois poremos em prática nossos
pensamentos com o pai de ambos, que é um tal Diego da Llana, fidalgo e cristão
velho quanto se quer.
Eu visito os mercados, como vossa mercê mo aconselha, e ontem achei uma
tendeira que vendia avelãs novas, e averiguei que havia misturado com uma saca
de avelãs novas outra de velhas, vãs e apodrecidas; dei-as todas para os meninos
órfãos, que as saberiam bem distinguir, e sentenciei-a que por quinze dias não
entrasse no mercado. Disseram-me que o fiz valorosamente; o que sei dizer a
vossa mercê é que é fama neste povoado que não há gente mais má que as
vendedoras, porque todas são desavergonhadas, desalmadas e atrevidas, e eu
assim o creio, pelas que vi em outros povoados.
De que minha senhora a duquesa haja escrito a minha mulher Teresa Pança e
enviado-lhe o presente que vossa mercê diz, estou muito satisfeito, e procurarei
mostrar-me agradecido a seu tempo: beije-lhe vossa mercê as mãos de minha
parte, dizendo que digo eu que não o pôs em saco furado, como verá pela obra.
Não queria que vossa mercê tivesse desgostos com esses meus senhores, porque
se vossa mercê se enfada deles, claro está que há de redundar em meu dano, e
não será bem que, pois se me dá por conselho que seja agradecido, que vossa
mercê não o seja com quem tantas mercês lhe tem feitas e com tanto regalo foi
tratado em seu castelo.
Aquilo do gateado não entendo, mas imagino que deve ser alguma das más
feitorias que com vossa mercê costumam usar os maus encantadores; eu o
saberei quando nos vejamos.
Quisera enviar a vossa mercê alguma coisa, mas não sei o que envie, se não é
alguns canudos de canas, que para com bexigas os fazem nesta ilha muito
curiosos; embora se me dura o ofício, eu buscarei enviar, do modo que seja.
Se me escrever minha mulher Teresa Pança, pague vossa mercê o porte e envie-
me a carta, que tenho grandíssimo desejo de saber do estado de minha casa, de
minha mulher e de meus filhos. E com isto, Deus livre a vossa mercê de mal
intencionados encantadores, e a mim me tire com bem e em paz deste governo,
que o duvido, porque o penso deixar com a vida, segundo me trata o doutor
Pedro Recio.
Criado de vossa mercê,
Sancho Pança o Governador.
Muita alegria me deu, senhora minha, a carta que vossa grandeza me escreveu,
que em verdade que a tinha bem desejada. O colar de corais é muito bom, e o
traje de caça de meu marido não lhe fica atrás. De que vossa senhoria haja feito
governador a Sancho, meu consorte, recebeu muito gosto todo este lugar,
embora não há quem o creia, principalmente o padre, e mestre Nicolás o
barbeiro, e Sansão Carrasco o bacharel; mas a mim não se me dá nada; que, como
isso seja assim, como o é, diga cada um o que quiser; embora, se vai a dizer
verdade, a não vir os corais e o traje, tampouco eu o creria, porque neste
povoado todos têm a meu marido por um tonto, e que, exceto o governar um
bocado de cabras, não podem imaginar para que governo possa ser bom. Deus o
faça, e o encaminhe como vê que o precisam seus filhos.
Eu, senhora de minha alma, estou determinada, com licença de vossa mercê, a
aproveitar esta boa ocasião, indo à corte a estender-me num coche, para
quebrar os olhos a mil invejosos que já tenho; e assim, suplico a vossa excelência
mande meu marido me envie algum dinheirinho, e que seja algo de consideração,
porque na corte são os gastos grandes: que o pão vale a real, e a carne, a libra, a
trinta maravedis, o que é um assombro; e se quiser que não vá, que mo avise com
tempo, porque me estão bulindo os pés por pôr-me a caminho; que me dizem
minhas amigas e minhas vizinhas que, se eu e minha filha andamos bojudas e
pomposas na corte, virá a ser conhecido meu marido por mim mais que eu por ele,
sendo forçoso que perguntem muitos: “- Quem são estas senhoras deste coche?”
E um criado meu responder: “- A mulher e a filha de Sancho Pança, governador
da ilha Baratária”; e desta maneira será conhecido Sancho, e eu serei estimada,
e adiante sem medo.
Pesa-me quanto pesar-me pode, que este ano não se colheram bolotas neste
povoado; mesmo assim, envio a vossa alteza até dois litros, que uma a uma as fui
eu colher e escolher ao monte, e não as achei maiores; eu queria que fossem
como ovos de avestruz.
Não se olvide a vossa pomposidade de escrever-me, que eu cuidarei da resposta,
avisando de minha saúde e de tudo o que houver que avisar deste lugar, onde
fico rogando a Nosso Senhor guarde a vossa grandeza, e a mim não olvide.
Sancha, minha filha, e meu filho beijam a vossa mercê as mãos.
A que tem mais desejo de ver a vossa senhoria que de escrever-lhe, sua
criada
Teresa Pança.
Tua carta recebi, Sancho meu de minha alma, e eu te prometo e juro como
católica cristã que não faltaram dois dedos para ficar louca de alegria. Vê,
irmão: quando eu cheguei a ouvir que és governador, pensei ali cair morta de
puro gozo, que já sabes tu que dizem que assim mata a alegria súbita como a dor
grande. A Sanchica, tua filha, se lhe foram as águas sem senti-lo, de puro
contentamento. O traje que me enviaste tinha diante, e os corais que me enviou
minha senhora a duquesa ao pescoço, e as cartas nas mãos, e o portador delas ali
presente, e, mesmo assim, cria e pensava que era tudo sonho o que via e o que
tocava; porque, quem podia pensar que um pastor de cabras havia de vir a ser
governador de ilhas? Já sabes tu, amigo, que dizia minha mãe que era preciso
viver muito para ver muito: digo-o porque penso ver mais se vivo mais; porque
não penso parar até ver-te alugador ou arrendador de impostos, que são ofícios
que, embora leva o diabo a quem mal os usa, enfim enfim, sempre têm e manejam
dinheiros. Minha senhora a duquesa te dirá o desejo que tenho de ir à corte;
pensa nisso, e avisa-me de teu gosto, que eu procurarei honrar-te nela andando
em coche.
O padre, o barbeiro, o bacharel e ainda o sacristão não podem crer que és
governador, e dizem que tudo é embuste, ou coisas de encantamento, como são
todas as de dom Quixote teu amo; e diz Sansão que há de ir buscar-te e tirar-te
o governo da cabeça, e a dom Quixote a loucura dos cascos; eu não faço senão
rir-me, e olhar meu colar, e dar jeito do traje que tenho de fazer do teu à nossa
filha.
Umas bolotas enviei a minha senhora a duquesa; eu queria que fossem de ouro.
Envia-me tu alguns colares de pérolas, se se usam nessa ilha.
As novas deste lugar são que a Berroca casou a sua filha com um pintor de mão
ruim, que chegou a este povoado a pintar o que saísse; mandou-o a Câmara pintar
o escudo das armas de Sua Majestade sobre as portas do Ajuntamento, pediu
dois ducados, deram-nos adiantados, trabalhou oito dias, ao cabo dos quais não
pintou nada, e disse que não acertava pintar tantas bagatelas; devolveu o
dinheiro, e, mesmo assim, se casou a título de bom oficial; verdade é que já
deixou o pincel e tomou a enxada, e vai ao campo como gentil-homem. O filho de
Pedro de Lobo se ordenou de graus e coroa, com intenção de fazer-se clérigo;
soube-o Minguinha, a neta de Mingo Silvato, e pôs-lhe demanda de que lhe deu
palavra de casamento; más línguas querem dizer que está grávida dele, mas ele o
nega de pés juntos.
Este ano não há azeitonas, nem se acha uma gota de vinagre em todo este
povoado. Por aqui passou uma companhia de soldados; levaram no caminho três
moças deste povoado; não te quero dizer quem são: quiçá voltarão, e não faltará
quem as tome por mulheres, com seus defeitos bons ou maus.
Sanchica faz pontas de rendas; ganha cada dia oito maravedis limpos, que os vai
pondo em um cofrinho para ajuda a seu enxoval; mas agora que é filha de um
governador, tu lhe darás o dote sem que ela trabalhe. A fonte da praça secou;
um raio caiu na bomba, e isso não me importa.
Espero resposta desta, e a resolução de minha ida à corte; e, com isto, Deus te
guarde mais anos que a mim ou tantos, porque não queria deixar-te sem mim
neste mundo. Tua mulher
Teresa Pança.
As cartas foram solenizadas, ridas, estimadas e admiradas; e, para
completar, chegou o correio, o que trazia a que Sancho enviava a dom
Quixote, que também se leu publicamente, a qual pôs em dúvida a
sandice do governador.
Retirou-se a duquesa, para saber do pajem o que lhe havia sucedido
no lugar de Sancho, o qual o contou muito por extenso, sem deixar
circunstância que não referisse; deu-lhe as bolotas, e mais um queijo
que Teresa lhe deu, por ser muito bom, que se avantajava aos de
Tronchão. Recebeu-o a duquesa com grandíssimo gosto, com o qual a
deixaremos, por contar o fim que teve o governo do grande Sancho
Pança, flor e espelho de todos os insulanos governadores.
CAPÍTULO LIII
“Pensar que nesta vida as coisas dela hão de durar sempre num
estado é pensar no impossível; antes parece que ela anda toda em
redondo, digo, ao redor: a primavera segue ao verão, o verão ao estio,
o estio ao outono, e o outono ao inverno, e o inverno à primavera, e
assim torna a andar o tempo com esta roda contínua; só a vida humana
corre a seu fim ligeira mais que o tempo, sem esperar renovar-se se
não é na outra, que não tem termos que a limitem”. Isto diz Cide
Hamete, filósofo maomético, porque isto de entender a ligeireza e
instabilidade da vida presente, e da duração da eterna que se espera,
muitos sem luz de fé, senão com a luz natural, o entenderam; mas aqui,
nosso autor o diz pela presteza com que se acabou, se consumiu, se
desfez, se foi como em sombra e fumaça o governo de Sancho.
O qual, estando a sétima noite dos dias de seu governo em sua cama,
não farto de pão nem de vinho, senão de julgar e dar pareceres e de
fazer estatutos e decretos, quando o sono, a despeito e apesar da
fome, lhe começava a fechar as pálpebras, ouviu tão grande ruído de
sinos e de vozes, que não parecia senão que toda a ilha se afundava.
Sentou-se na cama, e esteve atento e escutando, por ver se descobria
o que podia ser a causa de tão grande alvoroço; mas não só não o
soube, mas, somando-se ao ruído de vozes e sinos o de infinitas
trombetas e tambores, ficou mais confuso e cheio de temor e
espanto; e, levantando-se, pôs umas chinelas, pela umidade do chão, e,
sem pôr roupão, nem coisa que se parecesse, saiu à porta de seu
aposento, a tempo de ver por uns corredores mais de vinte pessoas
com tochas acesas nas mãos e com as espadas desembainhadas,
gritando todos a grandes vozes:
- Alarma, alarma, senhor governador, alarma!; que entraram
infinitos inimigos na ilha, e estamos perdidos se vossa indústria e valor
não nos socorre.
Com este ruído, fúria e alvoroço chegaram onde Sancho estava,
atônito e estupefato do que ouvia e via; e, quando chegaram a ele, um
lhe disse:
- Arme-se logo vossa senhoria, se não quer perder-se e que toda
esta ilha se perca!
- Que me tenho de armar - respondeu Sancho, - nem que sei eu de
armas nem de socorros? Estas coisas melhor será deixá-las para meu
amo dom Quixote, que num instante as despachará e porá em cobro;
que eu, pecador fui a Deus, não entendo nada destas agonias.
- Ah, senhor governador! - disse outro. - Que pachorra é esta?
Arme-se vossa mercê, que aqui lhe trazemos armas ofensivas e
defensivas, e saia a essa praça, e seja nossa guia e nosso capitão, pois
de direito lhe toca ser, sendo nosso governador.
- Armem-me em boa hora - replicou Sancho.
E num instante lhe trouxeram dois paveses, que vinham providos
deles, e lhe puseram em cima da camisa, sem deixá-lo tomar outro
traje, um pavês diante e outro detrás, e, por umas concavidades que
traziam feitas, lhe puseram os braços, e o ligaram muito bem com uns
cordéis, de modo que ficou emparedado e entabuado, direito como um
fuso, sem poder dobrar os joelhos nem mexer-se um só passo.
Puseram-lhe nas mãos uma lança, à qual se arrimou para poder ter-se
em pé. Quando assim o tiveram, disseram-lhe que caminhasse, e os
guiasse e animasse a todos; que, sendo ele seu norte, sua lanterna e
seu luzeiro, teriam bom fim seus negócios.
- Como tenho de caminhar, desventurado eu - respondeu Sancho, -
que não posso mover as articulações dos joelhos, porque mo impedem
estas tábuas que tão cosidas tenho com minhas carnes? O que hão de
fazer é levar-me em braços e pôr-me, atravessado ou em pé, em algum
postigo, que eu o guardarei, ou com esta lança ou com meu corpo.
- Ande, senhor governador - disse outro, - que mais o medo que as
tábuas lhe impedem o passo; ande e mexa-se, que é tarde, e os
inimigos crescem, e as vozes aumentam e o perigo ataca.
Por cujas persuasões e vitupérios tentou o pobre governador
mover-se, e foi dar consigo no chão tão grande golpe, que pensou que
se havia feito em pedaços. Ficou como tartaruga encerrada e coberta
com seus cascos, ou como meio toucinho metido entre duas masseiras,
ou bem assim que barca que fica ao través na areia; e não por vê-lo
caído aquela gente burladora lhe tiveram compaixão alguma; antes,
apagando as tochas, tornaram a reforçar as vozes, e a reiterar o
alarma! com tão grande pressa, passando por cima do pobre Sancho,
dando-lhe infinitas cutiladas sobre os paveses, que se ele não se
recolhesse e encolhesse, metendo a cabeça entre os paveses, passaria
muito mal o pobre governador, o qual, naquela estreiteza recolhido,
suava e tressuava, e de todo coração se encomendava a Deus que
daquele perigo o tirasse.
Uns tropeçavam nele, outros caíam, e tal houve que se pôs em cima
um bom espaço, e dali, como desde atalaia, governava os exércitos, e a
grandes vozes dizia:
- Aqui os nossos, que por esta parte atacam mais os inimigos! Aquele
postigo se guarde, aquela porta se feche, aquelas escalas se tranquem!
Venham bolas de fogo, piche e resina em caldeiras de azeite fervendo!
Barriquem-se as ruas com colchões!
Enfim, ele nomeava com todo afinco todas as bagatelas e
instrumentos e apetrechos de guerra com que costuma defender-se o
assalto de uma cidade, e o moído Sancho, que o escutava e sofria tudo,
dizia entre si: “Oh, se meu Senhor fosse servido que se acabasse já
de perder esta ilha, e me visse eu ou morto ou fora desta grande
estreiteza!” Ouviu o céu sua petição, e, quando menos o esperava,
ouviu vozes que diziam:
- Vitória, vitória! Os inimigos vão de vencida! Eia, senhor
governador, levante-se vossa mercê e venha gozar do vencimento e a
repartir os despojos que se tomaram aos inimigos, pelo valor desse
invencível braço!
- Levantem-me - disse com voz dolente o dolorido Sancho.
Ajudaram-no a levantar, e, posto em pé, disse:
- O inimigo que eu houver vencido quero que mo imprimam na fronte.
Eu não quero repartir despojos de inimigos, senão pedir e suplicar a
algum amigo, se é que o tenho, que me dê um trago de vinho, que estou
seco, e me enxugue este suor, que viro água.
Limparam-no, trouxeram-lhe o vinho, soltaram-lhe os paveses,
sentou-se sobre seu leito e desmaiou do temor, do sobressalto e do
trabalho. Já pesava aos da burla havê-la feito tão pesada; mas o haver
voltado a si Sancho lhes moderou a pena que lhes havia dado seu
desmaio. Perguntou que hora era, responderam-lhe que já amanhecia.
Calou, e, sem dizer outra coisa, começou a vestir-se, todo sepultado
em silêncio, e todos o olhavam e esperavam em que havia de dar a
pressa com que se vestia. Vestiu-se, enfim, e pouco a pouco, porque
estava moído e não podia ir muito a muito, se foi à cavalariça,
seguindo-o todos os que ali se achavam, e, chegando-se ao ruço, o
abraçou e lhe deu um beijo de paz na fronte, e, não sem lágrimas nos
olhos, disse-lhe:
- Vinde cá, companheiro meu e amigo meu, e colaborador de meus
trabalhos e misérias: quando eu me avinha convosco e não tinha outros
pensamentos que os que me davam os cuidados de remendar vossos
aparelhos e de sustentar vosso corpinho, ditosas eram minhas horas,
meus dias e meus anos; mas, depois que vos deixei e subi sobre as
torres da ambição e da soberba, entraram-me pela alma adentro mil
misérias, mil trabalhos e quatro mil desassossegos.
E enquanto estas razões ia dizendo, ia também albardando o asno,
sem que ninguém nada lhe dissesse. Albardado, pois, o ruço, com
grande pena e pesar subiu sobre ele, e, encaminhando suas palavras e
razões ao mordomo, ao secretário, ao camareiro-mor e a Pedro Recio o
doutor, e a outros muitos que ali presentes estavam, disse:
- Abri caminho, senhores meus, e deixai-me voltar à minha antiga
liberdade; deixai-me que vá buscar a vida passada, para que ressuscite
desta morte presente. Eu não nasci para ser governador, nem para
defender ilhas nem cidades dos inimigos que quiserem atacá-las.
Melhor entendo de arar e cavar, podar e escorar as vinhas, que de dar
leis nem de defender províncias nem reinos. Bem está São Pedro em
Roma: quero dizer, que bem está cada um usando o ofício para que foi
nascido. Melhor me está uma foice na mão que um cetro de
governador; mais quero fartar-me de sopas que estar sujeito à
miséria de um médico impertinente que me mate de fome; e mais
quero recostar-me à sombra de uma azinheira no verão e vestir-me
com pele de cordeiro no inverno, em minha liberdade, que deitar-me
com a sujeição do governo entre lençóis de holanda e vestir-me com
pele de marta. Vossas mercês fiquem com Deus, e digam ao duque meu
senhor que desnudo nasci, desnudo me acho: nem perco nem ganho;
quero dizer, que sem prata entrei neste governo e sem ela saio, bem
ao revés de como costumam sair os governadores de outras ilhas. E
afastem-se: deixem-me ir, que vou pôr emplastros; que creio que
tenho machucadas todas as costelas, mercê aos inimigos que esta
noite passearam sobre mim.
- Não há de ser assim, senhor governador - disse o doutor Recio, -
que eu darei a vossa mercê uma bebida contra quedas e moimentos,
que logo o volte em sua prístina integridade e vigor; e, no da comida,
eu prometo a vossa mercê emendar-me, deixando-lhe comer
abundantemente de tudo aquilo que quiser.
- Tarde piache (Piaste tarde (N. do T.))! - respondeu Sancho. -
Assim deixarei de ir como tornar-me turco. Não são estas burlas para
duas vezes. Por Deus que assim fique neste, nem admita outro
governo, embora mo dessem na bandeja, como voar ao céu sem asas.
Eu sou da linhagem dos Panças, que todos são birrentos, e se uma vez
dizem ímpares, ímpares hão de ser, embora sejam pares, apesar de
todo o mundo. Fiquem nesta cavalariça as asas da formiga, que me
levantaram no ar para que me comessem gaviões e outros pássaros, e
voltemos a andar pelo chão com pé descalço, que, se não adornarem
sapatos de pele de cabra, não lhe faltarão alpargatas toscas de corda.
Cada ovelha com sua parelha, e ninguém estenda mais a perna de
quanto for largo o lençol; e deixem-me passar, que se me faz tarde.
Ao que o mordomo disse:
- Senhor governador, de muito bom grado deixaríamos ir vossa
mercê, embora nos pesará muito perdê-lo, que seu engenho e seu
cristão proceder obrigam a desejá-lo; mas já se sabe que todo
governador está obrigado, antes que se ausente do lugar onde
governou, a fazer primeiro um relatório: dê-o vossa mercê dos dez
dias que tem o governo, e vá-se à paz de Deus.
- Ninguém mo pode pedir - respondeu Sancho, - se não é quem
ordenar o duque meu senhor; eu vou ver-me com ele, e a ele o darei
como devo; quanto mais que, saindo eu desnudo, como saio, não é
preciso outro sinal para dar a entender que governei como um anjo.
- Por Deus que tem razão o grande Sancho - disse o doutor Recio, -
e sou de parecer que o deixemos ir, porque o duque há de gostar
infinito de vê-lo.
Todos convieram nisso, e o deixaram ir, oferecendo-lhe primeiro
companhia e tudo aquilo que quisesse para o regalo de sua pessoa e
para a comodidade de sua viagem. Sancho disse que não queria mais
que um pouco de cevada para o ruço e meio queijo e meio pão para ele;
que, pois o caminho era tão curto, não era preciso maior nem melhor
provimento. Abraçaram-no todos, e ele, chorando, abraçou a todos, e
os deixou admirados, assim de suas razões como de sua determinação
tão resoluta e tão discreta.
CAPÍTULO LIV
O haver-se detido Sancho com Ricote não lhe deu lugar a que
naquele dia chegasse ao castelo do duque, embora chegasse a meia
légua dele, onde o encontrou a noite, algo escura e fechada; mas, como
era verão, não lhe deu muita tristeza; e assim, afastou-se do caminho
com intenção de esperar a manhã; e quis sua curta e desventurada
sorte que, buscando lugar onde melhor acomodar-se, caíram ele e o
ruço em uma funda e escuríssima caverna que entre uns edifícios
muito antigos estava, e ao tempo do cair, encomendou-se a Deus de
todo coração, pensando que não havia de parar até o profundo dos
abismos. E não foi assim, porque a pouco mais de cinco metros chegou
ao fundo o ruço, e ele se achou em cima dele, sem haver recebido
lesão nem dano algum.
Apalpou todo o corpo, e reteve a respiração, por ver se estava são
ou ferido em alguma parte; e, vendo-se bom, inteiro e católico de
saúde, não se fartava de dar graças a Deus nosso Senhor da mercê
que lhe havia feito, porque sem dúvida pensou que estava feito em mil
pedaços. Apalpou também com as mãos as paredes da caverna, para
ver se seria possível sair dela sem ajuda de ninguém; mas todas as
achou lisas e sem apoio algum, do que Sancho se lastimou muito,
especialmente quando ouviu que o ruço se queixava terna e
dolorosamente; e não era muito, nem se lamentava sem motivo, pois, na
verdade, não estava muito bem parado.
- Ai - disse então Sancho Pança, - e quão não pensados sucessos
costumam suceder a cada passo aos que vivem neste miserável mundo!
Quem diria que o que ontem se viu entronizado governador de uma
ilha, mandando em seus serventes e em seus vassalos, hoje se havia de
ver sepultado em uma caverna, sem haver pessoa alguma que o
remedeie, nem criado nem vassalo que acuda em seu socorro? Aqui
haveremos de perecer de fome eu e meu jumento, se já não morremos
antes, ele moído e quebrantado, e eu pesaroso. Ao menos, não serei eu
tão venturoso como o foi meu senhor dom Quixote da Mancha quando
desceu e baixou à cova daquele encantado Montesinos, onde achou
quem o regalasse melhor que em sua casa, que não parece senão que
teve a mesa posta e a cama feita. Ali viu ele visões formosas e
aprazíveis, e eu verei aqui, ao que creio, sapos e cobras. Desditado de
mim, e em que deram minhas loucuras e fantasias! Daqui tirarão meus
ossos, quando o céu seja servido que me descubram, limpos, brancos e
raspados, e os de meu bom ruço com eles, por onde quiçá se verá quem
somos, ao menos dos que tiverem notícia de que nunca Sancho Pança
se afastou de seu asno, nem seu asno de Sancho Pança. Outra vez
digo: miseráveis de nós, que não quis nossa curta sorte que
morrêssemos em nossa pátria e entre os nossos, onde já que não
achasse remédio nossa desgraça, não faltaria quem disso se doesse, e
na hora última de nosso passamento nos fecharia os olhos! Oh
companheiro e amigo meu, que mal paga te dei de teus bons serviços!
Perdoa-me e pede à fortuna, do melhor modo que souberes, que nos
tire deste miserável sofrimento em que estamos postos os dois; que
eu prometo pôr-te uma coroa de louros na cabeça, para que não
pareças senão um laureado poeta, e dar-te as rações dobradas.
Desta maneira se lamentava Sancho Pança, e seu jumento o
escutava sem responder-lhe palavra alguma: tal era o aperto e
angústia em que o pobre se achava. Finalmente, havendo passado toda
aquela noite em miseráveis queixas e lamentações, veio o dia, com cuja
claridade e resplendor viu Sancho que era impossível de toda
impossibilidade sair daquele poço sem ser ajudado, e começou a
lamentar-se e gritar, por ver se alguém o ouvia; mas todos os seus
gritos eram dados no deserto, pois por todos aqueles contornos não
havia pessoa que pudesse escutá-lo, e então se acabou de dar por
morto.
Estava o ruço de boca para cima, e Sancho Pança o acomodou de
modo que o pôs em pé, que apenas se podia manter; e, tirando dos
alforjes, que também haviam tido a mesma sorte da queda, um pedaço
de pão, o deu a seu jumento, que não lhe soube mal, e disse-lhe
Sancho, como se o entendesse:
- Todos as dores com pão são boas.
Nisto, descobriu a um lado da caverna um buraco, capaz de caber
por ele uma pessoa, se se encurvasse e encolhesse. Acudiu a ele
Sancho Pança, e, agachando-se, entrou por ele e viu que por dentro
era espaçoso e largo, e pôde-o ver, porque pelo que se podia chamar
teto entrava um raio de sol que o descobria todo. Viu também que se
dilatava e alargava por outra concavidade espaçosa; vendo o que,
voltou a sair onde estava o jumento, e com uma pedra começou a
desmoronar a terra do buraco, de modo que em pouco tempo fez por
onde com facilidade pudesse entrar o asno, como o fez; e, pegando-o
pelo cabresto, começou a caminhar por aquela gruta adiante, por ver
se achava alguma saída por outra parte. Às vezes ia às escuras, e às
vezes sem luz, mas nenhuma vez sem medo.
“Valha-me Deus todo-poderoso! - dizia consigo -. “Esta que para
mim é desventura, melhor seria aventura para meu amo dom Quixote.
Ele sim teria estas profundidades e masmorras por jardins floridos e
por palácios de Galiana, e esperaria sair desta escuridão e estreiteza
a algum florido prado; mas eu, sem ventura, falto de conselho e
menoscabado de ânimo, a cada passo penso que debaixo dos pés de
improviso se há de abrir outra caverna mais profunda que a outra, que
acabe de tragar-me. Bem venhas mal, se vens só.”
Desta maneira e com estes pensamentos lhe pareceu que haveria
caminhado pouco mais de meia légua, ao cabo da qual descobriu uma
confusa claridade, que pareceu ser já de dia, e que por alguma parte
entrava, que dava indício de ter fim aberto aquele, para ele, caminho
da outra vida.
Aqui o deixa Cide Hamete Benengeli, e volta a tratar de dom
Quixote, que, alvoroçado e contente, esperava o prazo da batalha que
havia de fazer com o roubador da honra da filha de dona Rodríguez, a
quem pensava endireitar o torto e agravo que maldosamente lhe
tinham feito.
Sucedeu, pois, que, saindo uma manhã a estudar e ensaiar o que
havia de fazer no transe em que no outro dia pensava ver-se, dando
um repelão ou arremetida a Rocinante, chegou a pôr os pés tão junto a
uma cova, que, a não puxar-lhe fortemente as rédeas, seria impossível
não cair nela. Enfim, deteve-o e não caiu, e, chegando-se algo mais
perto, sem apear-se, mirou aquela fundura; e, estando-a olhando, ouviu
grandes vozes dentro; e, escutando atentamente, pôde perceber e
entender que o que as dava dizia:
“- Ah de cima! Há algum cristão que me escute, ou algum cavaleiro
caritativo que se doa de um pecador enterrado em vida, ou um
desditado desgovernado governador?”
Pareceu a dom Quixote que ouvia a voz de Sancho Pança, de que
ficou suspenso e assombrado, e, levantando a voz tudo o que pôde,
disse:
- Quem está lá embaixo? Quem se queixa?
- Quem pode estar aqui, ou quem se há de queixar - responderam, -
senão o angustiado Sancho Pança, governador, por seus pecados e por
sua má andança, da ilha Baratária, escudeiro que foi do famoso
cavaleiro dom Quixote da Mancha?
Ouvindo o que dom Quixote, se lhe dobrou a admiração e se lhe
acrescentou o pasmo, vindo-se-lhe ao pensamento que Sancho Pança
devia estar morto, e que estava ali penando sua alma, e levado por
esta imaginação disse:
- Conjuro-te por tudo aquilo que posso conjurar-te como católico
cristão, que me digas quem és; e se és alma em pena, diz-me que
queres que faça por ti; que, pois é minha profissão favorecer e
acorrer aos necessitados deste mundo, também o serei para acorrer e
ajudar aos necessitados do outro mundo, que não podem ajudar-se por
si próprios.
- Dessa maneira - responderam, - vossa mercê que me fala deve ser
meu senhor dom Quixote da Mancha, e ainda pelo timbre da voz não é
outro, sem dúvida.
- Dom Quixote sou - replicou dom Quixote, - o que professo
socorrer e ajudar em suas necessidades aos vivos e aos mortos. Por
isso diz-me quem és, que me tens atônito; porque se és meu escudeiro
Sancho Pança, e morreste, se não te levaram os diabos, e, pela
misericórdia de Deus, estejas no purgatório, sufrágios tem nossa
santa mãe a Igreja Católica Romana bastantes a tirar-te das penas em
que estás, e eu, que o solicitarei com ela, por minha parte, com quanto
meus bens alcançar; por isso, acaba de declarar-te e diz-me quem és.
- Voto a tal! - responderam, - e pelo nascimento de quem vossa
mercê quiser, juro, senhor dom Quixote da Mancha, que eu sou seu
escudeiro Sancho Pança, e que nunca morri em todos os dias de minha
vida; senão que, havendo deixado meu governo por coisas e causas que
é preciso mais espaço para dizê-las, ontem à noite caí nesta caverna
onde jazo, o ruço comigo, que não me deixará mentir, pois, por mais
sinais, está aqui comigo.
E há mais, que não parece senão que o jumento entendeu o que
Sancho disse, porque num instante começou a zurrar, tão forte, que
toda a cova retumbava.
- Famoso testemunho! - disse dom Quixote. - O zurro conheço como
se o parisse, e tua voz ouço, Sancho meu. Espera-me; irei ao castelo
do duque, que está aqui perto, e trarei quem te tire desta caverna,
onde teus pecados te devem haver posto.
- Vá vossa mercê - disse Sancho, - e volte logo, por um só Deus, que
já não posso suportar o estar aqui sepultado em vida, e estou
morrendo de medo.
Deixou-o dom Quixote, e foi ao castelo contar aos duques o sucesso
de Sancho Pança, de que não pouco se maravilharam, embora bem
entenderam que devia haver caído pela outra boca daquela gruta que
há tempos imemoriais estava ali feita; mas não podiam pensar como
havia deixado o governo sem ter eles aviso de sua vinda. Finalmente,
como dizem, levaram cordas e cordames; e, à custa de muita gente e
de muito trabalho, tiraram o ruço e Sancho Pança daquelas trevas à
luz do sol. Viu-o um estudante, e disse:
- Desta maneira haviam de sair de seus governos todos os maus
governadores, como sai este pecador do profundo do abismo: morto de
fome, descolorido, e sem prata, ao que eu creio.
Ouviu-o Sancho, e disse:
- Oito dias ou dez há, irmão murmurador, que entrei a governar a
ilha que me deram, nos quais não me vi farto de pão sequer um hora;
neles me perseguiram médicos, e inimigos me machucaram os ossos;
nem tive lugar de fazer subornos, nem de cobrar direitos; e, sendo
isto assim, como o é, não merecia eu, a meu parecer, sair desta
maneira; mas o homem põe e Deus dispõe, e Deus sabe o melhor e o
que está bem a cada um; e qual o tempo, tal o tento; e ninguém diga
“desta água não beberei”, que onde se pensa que há toucinhos, não há
estacas; e Deus me entende, e basta, e não digo mais, embora
pudesse.
- Não te zangues, Sancho, nem recebas pesar do que ouvires, que
será nunca acabar: vem tu com segura consciência, e digam o que
disserem; e é querer atar as línguas dos maldizentes o mesmo que
querer pôr portas ao campo. Se o governador sai rico de seu governo,
dizem dele que foi um ladrão, e se sai pobre, que foi um curto de gênio
e um mentecapto.
- Seguramente - respondeu Sancho - que por esta vez antes me hão
de ter por tonto que por ladrão.
Nestas conversas chegaram, rodeados de moços e de outra muita
gente, ao castelo, onde em uns corredores estavam já o duque e a
duquesa esperando dom Quixote e Sancho, o qual não quis subir a ver
o duque sem que primeiro não houvesse acomodado o ruço na
cavalariça, porque dizia que havia passado muito má noite na pousada;
e logo subiu a ver seus senhores, ante os quais, posto de joelhos,
disse:
- Eu, senhores, porque o quis assim vossa grandeza, sem nenhum
merecimento meu, fui governar vossa ilha Baratária, na qual entrei
desnudo, e desnudo me acho: nem perco, nem ganho. Se governei bem
ou mal, testemunhos tive diante, que dirão o que quiserem. Declarei
dúvidas, sentenciei pleitos, sempre morto de fome, por havê-lo
querido assim o doutor Pedro Recio, natural de Tirteafora, médico
insulano e governadoresco. Atacaram-nos inimigos de noite, e,
havendo-nos posto em grande aperto, dizem os da ilha que saíram
livres e com vitória pelo valor de meu braço, que tal saúde lhes dê
Deus como eles dizem verdade. Em suma, neste tempo eu tenteei as
cargas que traz consigo, e as obrigações, o governar, e achei por
minha conta que não as poderão levar meus ombros, nem são peso de
minhas costelas, nem flechas de minha aljava; e assim, antes que
desse comigo ao través o governo, quis eu dar com o governo ao
través, e ontem de manhã deixei a ilha como a achei: com as mesmas
ruas, casas e telhados que tinha quando entrei nela. Não pedi
emprestado a ninguém, nem meti-me em negócios; e, embora pensava
fazer algumas ordenanças proveitosas, não fiz nenhuma, temeroso que
não se haviam de guardar: que é o mesmo fazê-las que não fazê-las.
Saí, como digo, da ilha sem outro acompanhamento que o de meu ruço;
caí em uma caverna, vim por ela adiante, até que, esta manhã, com a
luz do sol, vi a saída, mas não tão fácil que, a não deparar-me o céu
meu senhor dom Quixote, ali ficaria até o fim do mundo. Assim que,
meus senhores duque e duquesa, aqui está vosso governador Sancho
Pança, que granjeou em só dez dias que teve o governo conhecer que
não se lhe há de dar nada para ser governador, não apenas de uma ilha,
senão de todo o mundo; e, com este posto, beijando a vossas mercês
os pés, imitando o jogo dos moços, que dizem “Salta tu, e dá-ma tu”,
dou um salto do governo, e passo ao serviço de meu senhor dom
Quixote; que, enfim, nele, embora como o pão com sobressalto, farto-
me, ao menos, e para mim, se eu estiver farto, não importa que seja de
cenouras ou de perdizes.
Com isto deu fim a seu longo discurso Sancho, temendo sempre dom
Quixote que havia de dizer nela milhares de disparates; e, quando o
viu acabar com tão poucos, deu em seu coração graças ao céu, e o
duque abraçou Sancho, e lhe disse que lhe pesava na alma que
houvesse deixado tão logo o governo; mas que ele faria de sorte que
se lhe desse em seu estado outro ofício de menos carga e de mais
proveito. Abraçou-o a duquesa também, e mandou que o regalassem,
porque dava sinais de vir mal moído e pior parado.
CAPÍTULO LVI
CAPÍTULO LVII
CAPÍTULO LVIII
CAPÍTULO LX
CAPÍTULO LXI
CAPÍTULO LXIII
CAPÍTULO LXIV
CAPÍTULO LXV
CAPÍTULO LXVI
Que trata do que verá o que o ler, ou o ouvirá o que o escutar ler
Ninguém as mova
que estar não possa
com Roldão a prova.
CAPÍTULO LXVIII
Era a noite algo escura, embora a lua estivesse no céu, mas não em
parte que pudesse ser vista: que talvez a senhora Diana vai passear
nos antípodas, e deixa os montes negros e os vales escuros. Cumpriu
dom Quixote com a natureza dormindo o primeiro sono, sem dar lugar
ao segundo; bem ao revés de Sancho, que nunca teve segundo, porque
lhe durava o sono desde a noite até a manhã, em que se mostrava sua
boa compleição e poucos cuidados. Os de dom Quixote o desvelaram
de maneira que despertou Sancho e lhe disse:
- Maravilhado estou, Sancho, da liberdade de tua condição: eu
imagino que és feito de mármore, ou de duro bronze, em quem não
cabe movimento nem sentimento algum. Eu velo quando tu dormes, eu
choro quando cantas, eu desmaio de jejum quanto tu estás preguiçoso
e desalentado de puro farto. De bons criados é conlevar as penas de
seus senhores e sentir seus sentimentos, pelo bem parecer sequer. Vê
a serenidade desta noite, a solidão em que estamos, que nos convida a
intrometer alguma vigília entre nosso sonho. Levanta, por tua vida, e
desvia algum trecho daqui, e com bom ânimo e denodo agradecido dá-
te trezentos ou quatrocentos açoites à boa conta dos do desencanto
de Dulcineia; e isto rogando to suplico, que não quero vir contigo aos
braços, como a outra vez, porque sei que os tens pesados. Depois que
te hajas dado, passaremos o que resta da noite cantando, eu minha
ausência e tu tua firmeza, dando desde agora princípio ao exercício
pastoral que havemos de ter em nossa aldeia.
- Senhor - respondeu Sancho, - não sou eu religioso para que do
meio de meu sono me levante e me discipline, nem menos me parece
que do extremo da dor dos açoites se possa passar ao da música.
Vossa mercê me deixe dormir e não me aperte no do açoitar-me; que
me fará fazer juramento de não tocar-me jamais no pelo do saio, não
que no de minhas carnes.
- Oh alma endurecida! Oh escudeiro sem piedade! Oh pão mal
empregado e mercês mal consideradas as que te fiz e penso de fazer-
te! Por mim te viste governador, e por mim te vês com esperanças
próximas de ser conde, ou ter outro título equivalente, e não tardará o
cumprimento delas mais de quanto tarde em passar este ano; que eu
“post tenebras spero lucem” (depois das trevas espero a luz (N. do
T.)).
- Não entendo isso - replicou Sancho; - só entendo que, enquanto
durmo, nem tenho temor, nem esperança, nem trabalho nem glória; e
bem haja o que inventou o sono, capa que cobre todos os humanos
pensamentos, manjar que tira a fome, água que afugenta a sede, fogo
que esquenta o frio, frio que modera o ardor, e, finalmente, moeda
geral com que todas as coisas se compram, balança e peso que iguala o
pastor com o rei e o ingênuo com o discreto. Só uma coisa tem má o
sono, segundo ouvi dizer, e é que se parece à morte, pois de um
adormecido a um morto há muito pouca diferença.
- Nunca te ouvi falar, Sancho - disse dom Quixote, - tão
elegantemente como agora, por onde venho a conhecer ser verdade o
refrão que tu algumas vezes costumas dizer: “Não com quem nasces,
senão com quem pasces”.
- Ah, pese a tal - replicou Sancho, - senhor nosso amo! Não sou eu
agora o que ensarta refrãos, que também a vossa mercê se lhe caem
da boca de dois em dois melhor que a mim, senão que deve haver entre
os meus e os seus esta diferença: que os de vossa mercê virão a tempo
e os meus de repente; mas, com efeito, todos são refrãos.
Nisto estavam, quando sentiram um surdo estrondo e um áspero
ruído, que por todos aqueles vales se estendia. Levantou-se dom
Quixote e pegou a espada, e Sancho se agachou debaixo do ruço,
pondo-se aos lados o molho das armas, e a albarda de seu jumento, tão
tremendo de medo como alvoroçado dom Quixote. De momento a
momento ia crescendo o ruído, e, chegando perto dos dois temerosos:
ao menos, de um, que do outro, já se conhece sua valentia.
É, pois, o caso que levavam uns homens a vender em uma feira mais
de seiscentos porcos, com os quais caminhavam àquelas horas, e era
tanto o ruído que levavam e o grunhir e o bufar, que ensurdeceram os
ouvidos de dom Quixote e de Sancho, que não advertiram o que podia
ser. Chegou de tropel a estendida e grunhidora manada, e, sem ter
respeito à autoridade de dom Quixote, nem à de Sancho, passaram
por cima dos dois, desfazendo as trincheiras de Sancho, e derrubando
não só dom Quixote, senão levando por acréscimo Rocinante. O tropel,
o grunhir, a presteza com que chegaram os animais imundos, pôs em
confusão e pelo chão albarda, as armas, o ruço, Rocinante, Sancho e
dom Quixote.
Levantou-se Sancho como melhor pôde, e pediu a seu amo a espada,
dizendo-lhe que queria matar meia dúzia daqueles senhores e
descomedidos porcos, que já havia reconhecido que o eram. Dom
Quixote lhe disse:
- Deixa-os estar, amigo, que esta afronta é pena de meu pecado, e
justo castigo do céu é que a um cavaleiro andante vencido o comam
chacais, e o piquem vespas e pisem-no porcos.
- Também deve ser castigo do céu - respondeu Sancho - que aos
escudeiros dos cavaleiros vencidos os puncem moscas, os comam
piolhos e lhes invista a fome. Se os escudeiros fôssemos filhos dos
cavaleiros a quem servimos, ou parentes seus muito próximos, não
seria muito que nos alcançasse a pena de suas culpas até a quarta
geração; mas, que têm que ver os Panças com os Quixotes? Agora
bem: tornemos a acomodar-nos e durmamos o pouco que fica da noite,
e amanhecerá Deus e tudo se arranjará.
- Dorme tu, Sancho - respondeu dom Quixote, - que nasceste para
dormir; que eu, que nasci para velar, no tempo que falta daqui ao dia,
darei rédea a meus pensamentos, e os desafogarei num madrigalzinho,
que, sem que tu o saibas, ontem à noite compus na memória.
- A mim me parece - respondeu Sancho - que os pensamentos que
dão lugar a fazer coplas não devem ser muitos. Vossa mercê copleie
quanto quiser, que eu dormirei quanto puder.
E logo, tomando do chão quanto quis, encolheu-se e dormiu a sono
solto, sem que fianças, nem dúvidas, nem dor alguma o perturbasse.
Dom Quixote, arrimado a um tronco de uma faia ou de um sobreiro
(que Cide Hamete Benengeli não distingue a árvore que era), ao som de
seus mesmos suspiros, cantou desta sorte:
- Amor, quando eu penso
no mal que me dás, terrível e forte,
vou correndo à morte,
pensando assim acabar meu mal imenso;
mas, chegando ao passo
que é porto neste mar de meu tormento,
tanta alegria sinto,
que a vida se esforça e não o passo.
Assim o viver me mata,
que a morte me torna a dar a vida.
Oh condição não ouvida,
a que comigo morte e vida trata!
- Não mais - disse então um dos dois que pareciam reis: - não mais,
cantor divino; que fora proceder em infinito representar-nos agora a
morte e as graças da sem par Altisidora, não morta, como o mundo
ignorante pensa, senão viva nas línguas da fama e na pena que
para volvê-la à perdida luz há de passar Sancho Pança, que está
presente; e assim, oh tu, Radamanto, que comigo julgas nas cavernas
lôbregas de Dite!, pois sabes tudo aquilo que nos inescrutáveis fados
está determinado acerca de voltar a si esta donzela, di-lo e declara-o
logo, para que não se nos dilate o bem que com sua nova volta
esperamos.
Apenas disse isto Minos, juiz e companheiro de Radamanto, quando,
levantando-se Radamanto, disse:
- Eia, serviçais desta casa, altos e baixos, grandes e pequenos, acudi
uns atrás de outros e acariciai o rosto de Sancho com vinte e quatro
tabefes, e doze beliscões e seis alfinetadas nos braços e lombos, que
nesta cerimônia consiste a saúde de Altisidora!
Ouvindo isso Sancho Pança rompeu o silêncio e disse:
- Voto a tal, assim me deixe eu acariciar o rosto nem manusear a
cara como tornar-me moro! Corpo de mim! Que tem que ver manusear-
me o rosto com a ressurreição desta donzela? Gostou a velha das
acelgas. Encantam Dulcineia, e açoitam-me para que se desencante;
morre Altisidora de males que Deus quis dar-lhe, e hão-na de
ressuscitar fazer-me a mim vinte e quatro tapões, e crivar-me o corpo
a alfinetadas e cardar-me os braços a beliscões. Essas burlas, a um
cunhado, que eu sou cão velho, e não há comigo tus, tus!
- Morrerás! - disse em alta voz Radamanto. - Abranda-te, tigre;
humilha-te, Nembrot soberbo, e sofre e cala, pois não te pedem
impossíveis. E não te metas em averiguar as dificuldades deste
negócio: estapeado hás de ser, crivado te hás de ver, beliscado hás de
gemer. Eia, digo, serviçais, cumpri meu mandamento; se não, pela fé de
homem de bem, que haveis de ver para o que nascestes!
Apareceram nisto, as quais pelo pátio vinham, até seis amas em
procissão, uma atrás de outra, as quatro com óculos, e todas
levantadas as mãos direitas, com quatro dedos de fora, para fazer as
mãos mais largas, como agora se usa. Apenas as viu Sancho, quando,
bramando como um touro, disse:
- Bem poderei eu deixar-me manusear por todo o mundo, mas
consentir que me toquem amas, isso não! Gateiem-me o rosto, como
fizeram a meu amo neste mesmo castelo; traspassem-me o corpo com
pontas de adagas aguçadas; atenazem-me os braços com tenazes de
fogo, que eu o levarei em paciência, farei o que estes senhores
querem; mas que me toquem amas não o consentirei se me levasse o
diabo.
Rompeu também o silêncio dom Quixote, dizendo a Sancho:
- Tem paciência, filho, e dá gosto a estes senhores, e muitas graças
ao céu por haver posto tal poder em tua pessoa, que com o martírio
dela desencantes os encantados e ressuscites os mortos.
- Menos cortesia; menos cremes, senhora ama - disse Sancho; - que
por Deus que trazeis as mãos cheirando a vinagre!
Finalmente, todas as amas o esbofetearam, e outra muita gente de
casa o beliscaram; mas o que ele não pôde suportar foi a punção dos
alfinetes; e assim, se levantou da cadeira, ao parecer mofino, e,
pegando uma tocha acesa que junto a ele estava, correu atrás das
amas, e atrás de todos seu verdugos, dizendo:
- Fora, serviçais infernais, que não sou eu de bronze, para não
sentir tão extraordinários martírios!
Nisto, Altisidora, que devia estar cansada por haver estado tanto
tempo deitada de costas, se voltou para um lado; visto o que pelos
circunstantes, quase todos a uma voz disseram:
- Viva é Altisidora! Altisidora vive!
Mandou Radamanto a Sancho que depusesse a ira, pois já se havia
alcançado o intento que se procurava.
Assim que dom Quixote viu Altisidora mexer-se, foi-se pôr de
joelhos diante de Sancho, dizendo-lhe:
- Agora é tempo, filho de minhas entranhas, não que escudeiro meu,
que te dês alguns dos açoites que estás obrigado a dar pelo
desencanto de Dulcineia. Agora, digo, que é o tempo onde tens
sazonado o poder, e com eficácia de obrar o bem que de ti se espera.
Ao que respondeu Sancho:
- Isto me parece tormento sobre tormento, e não mel na panqueca.
Bom seria que atrás de beliscões, tabefes e alfinetadas viessem agora
os açoites. Não têm mais que fazer senão tomar uma grande pedra, e
atá-la ao pescoço, e dar comigo num poço, do que a mim não pesaria
muito, se é que para curar os males alheios tenha eu de ser a vaca da
boda. Deixem-me; se não, por Deus que ponho tudo a perder.
Já nisto, se havia sentado no túmulo Altisidora, e no mesmo
instante soaram as charamelas, a quem acompanharam as flautas e as
vozes de todos, que aclamavam:
- Viva Altisidora! Altisidora viva!
Levantaram-se os duques e os reis Minos e Radamanto, e todos
juntos, com dom Quixote e Sancho, foram receber Altisidora e a
baixá-la do túmulo; a qual, fingindo que as forças lhe faltavam, se
inclinou aos duques e aos reis, e, olhando de través a dom Quixote,
disse-lhe:
- Deus te perdoe, desamorado cavaleiro, pois por tua crueldade
estive no outro mundo, a meu parecer, mais de mil anos; e a ti, oh o
mais compassivo escudeiro que contém o orbe!, te agradeço a vida que
possuo. Dispõe desde hoje, amigo Sancho, de seis camisas minhas que
te mando, para que faças outras seis para ti; e, se não são todas
novas, ao menos são todas limpas.
Beijou-lhe por isso as mãos Sancho, com a mitra na mão e os joelhos
no chão. Mandou o duque que a tirassem, e lhe devolvessem o capuz, e
lhe pusessem o saio, e lhe tirassem a roupa das chamas. Suplicou
Sancho ao duque que lhe deixassem a roupa e a mitra, que as queria
levar a sua terra, por sinal e memória daquele nunca visto sucesso. A
duquesa respondeu que sim deixariam, que já sabia ele quão grande
amiga sua era. Mandou o duque evacuar o pátio, e que todos se
recolhessem a seus aposentos, e que a dom Quixote e a Sancho os
levassem aos que eles já sabiam.
CAPÍTULO LXX
Do que a dom Quixote sucedeu com seu escudeiro Sancho indo a sua
aldeia
CAPÍTULO LXXII
CAPÍTULO LXXIII
Dos agouros que sentiu dom Quixote ao entrar em sua aldeia, com
outros sucessos que adornam e acreditam esta grande história
À entrada do qual, segundo diz Cide Hamete, viu dom Quixote que
nas eiras do lugar estavam brigando dois moços, e um disse ao outro:
- Não te canses, Pedrinho, que não a hás de ver em todos os dias de
tua vida.
Ouviu-o dom Quixote, e disse a Sancho:
- Não advertes, amigo, o que aquele moço disse: “não a hás de ver
em todos os dias de tua vida”?
- Pois bem, que importa - respondeu Sancho - que haja dito isso o
moço?
- Quê? - replicou dom Quixote. - Não vês tu que, aplicando aquela
palavra à minha intenção, quer significar que não tenho de ver mais
Dulcineia?
Queria-lhe responder Sancho, quando o perturbou ver que por
aquele campo vinha fugindo uma lebre, seguida de muitos galgos e
caçadores, a qual, temerosa, veio recolher-se e agachar debaixo dos
pés do ruço. Colheu-a Sancho facilmente com a mão e apresentou-a a
dom Quixote, o qual estava dizendo:
- Malum signum! Malum signum! (Mau sinal! Mau sinal! (N. do T.))
Lebre foge, galgos a seguem: Dulcineia não aparece!
- Estranho é vossa mercê - disse Sancho; - pressuponhamos que
esta lebre é Dulcineia do Toboso e estes galgos que a perseguem são
os perversos encantadores que a transformaram em lavradora: ela
foge, eu a colho e a ponho em poder de vossa mercê, que a tem em
seus braços e a regala: que mau sinal é este, nem que mal agouro se
pode tomar daqui?
Os dois moços da pendência se achegaram para ver a lebre, e a um
deles perguntou Sancho por que brigavam. E foi-lhe respondido pelo
que havia dito “não a verás mais em toda tua vida” que ele havia
tomado ao outro moço uma jaula de grilos, a qual não pensava devolvê-
la em toda sua vida. Tirou Sancho quatro quartos da algibeira e deu-os
ao moço pela jaula, e pô-la nas mãos de dom Quixote, dizendo:
- Eis aqui, senhor, rompidos e desbaratados estes agouros, que não
têm a ver mais com nossos sucessos, segundo eu imagino, embora
tonto, que com as nuvens de antanho. E se não me lembro mal, ouvi
dizer ao padre de nossa vila que não é de pessoas cristãs nem
discretas olhar nestas ninharias; e ainda vossa mercê mesmo mo disse
os dias passados, dando-me a entender que eram tontos todos aqueles
cristãos que olhavam em agouros. E não é preciso fazer finca-pé nisto,
senão passemos adiante e entremos em nossa aldeia.
Chegaram os caçadores, pediram sua lebre e deu-a dom Quixote;
passaram adiante e à entrada da vila toparam num pradozinho rezando
o padre e o bacharel Carrasco. E é de saber que Sancho Pança havia
posto sobre o ruço e sobre o molho das armas, para que servisse de
guarnição, a túnica de algodão, pintada de chamas de fogo que lhe
vestiram no castelo do duque na noite que voltou a si Altisidora.
Acomodou-lhe também a mitra na cabeça, que foi a mais nova
transformação e adorno com que se viu jamais jumento no mundo.
Foram logo reconhecidos os dois pelo padre e o bacharel, que
vieram a eles com os braços abertos. Apeou-se dom Quixote e
abraçou-os estreitamente; e os moços, que não se lhes oculta nada,
divisaram a mitra do jumento e vieram vê-lo, e diziam uns a outros:
- Vinde, moços, e vereis o asno de Sancho Pança mais galante que
Mingo, e a besta de dom Quixote mais magra hoje que no primeiro dia.
Finalmente, rodeados de moços e acompanhados do padre e do
bacharel, entraram no povoado, e foram à casa de dom Quixote, e
acharam à porta dela a ama e a sua sobrinha, a quem já haviam
chegado as novas de sua vinda. Nem mais nem menos as haviam dado a
Teresa Pança, mulher de Sancho, a qual, desgrenhada e meio desnuda,
trazendo pela mão Sanchica, sua filha, veio ver seu marido; e, vendo-o
não tão bem alinhado como ela pensava que havia de estar um
governador, disse-lhe:
- Como vindes assim, marido meu, que me parece que vindes a pé e a
pés estropiados, e mais trazeis semelhança de desgovernado que de
governador?
- Cala, Teresa - respondeu Sancho, - que muitas vezes onde há
estacas não há toucinhos, e vamos para nossa casa, que lá ouvirás
maravilhas. Dinheiros trago, que é o que importa, ganhos por minha
indústria e sem dano de ninguém.
- Trazei dinheiros, meu bom marido - disse Teresa, - e sejam
ganhos por aqui ou por ali, que, como queira que os hajais ganho, não
havereis feito usança nova no mundo.
Abraçou Sanchica a seu pai, e perguntou-lhe se trazia algo, que o
estava esperando como a água de maio; e, tomando-o de um lado do
cinto, e sua mulher da mão, puxando sua filha o ruço, foram à sua casa,
deixando dom Quixote na sua, em poder de sua sobrinha e de sua ama,
e em companhia do padre e do bacharel.
Dom Quixote, sem esperar nada, naquele mesmo instante se afastou
a sós com o bacharel e o padre, e em breves razões lhes contou sua
derrota, e a obrigação em que havia ficado de não sair de sua aldeia
em um ano, a que pensava guardar ao pé da letra, sem traspassá-la em
um átomo, bem assim que cavaleiro andante, obrigado pela
pontualidade e ordem da andante cavalaria, e que tinha pensado fazer-
se aquele ano pastor, e entreter-se na solidão dos campos, onde à
rédea solta podia dar vazão a seus amorosos pensamentos,
exercitando-se no pastoral e virtuoso exercício; e que lhes suplicava,
se não tinham muito que fazer e não estavam impedidos em negócios
mais importantes, quisessem ser seus companheiros; que ele compraria
ovelhas e gado suficiente que lhes desse nome de pastores; e que lhes
fazia saber que o mais principal daquele negócio estava feito, porque
lhes tinha posto os nomes, que lhes viriam a calhar. Disse-lhe o padre
que os dissesse. Respondeu dom Quixote que ele se havia de chamar o
pastor Quijótiz; e o bacharel, o pastor Carrascón; e o padre, o pastor
Padriambro; e Sancho Pança, o pastor Pancino.
Pasmaram todos de ver a nova loucura de dom Quixote; mas, para
que não se lhes fosse outra vez da vila a suas cavalarias, esperando
que naquele ano poderia ser curado, concederam com sua nova
intenção, e aprovaram por discreta sua loucura, oferecendo-se por
companheiros em seu exercício.
- E mais - disse Sansão Carrasco, - que, como já todo o mundo sabe,
eu sou celebérrimo poeta e a cada passo comporei versos pastoris, ou
cortesãos, ou como mais me convier, para que nos entretenhamos por
esses ermos onde havemos de andar; e o que mais é preciso, senhores
meus, é que cada um escolha o nome da pastora que pensa celebrar em
seus versos, e que não deixemos árvore, por dura que seja, onde não a
rotule e grave seu nome, como é uso e costume dos enamorados
pastores.
- Isso está perfeito - respondeu dom Quixote, - embora eu esteja
livre de buscar nome de pastora fingida, pois está aí a sem par
Dulcineia do Toboso, glória destas ribeiras, adorno destes prados,
sustento da formosura, nata dos donaires, e, finalmente, sujeito sobre
quem pode assentar bem toda louvação, por hipérbole que seja.
- Assim é verdade - disse o padre, - mas nós buscaremos por aí
pastoras dóceis, que se não nos quadrarem, nos servirão bem.
Ao que acrescentou Sansão Carrasco:
- E quando faltarem, dar-lhes-emos os nomes das estampadas e
impressas, do que está cheio o mundo: Fílidas, Amarílis, Dianas,
Fléridas, Galateias e Belisardas; que, pois as vendem nas praças, bem
as podemos comprar nós e tê-las por nossas. Se minha dama, ou, por
melhor dizer, minha pastora, porventura se chamar Ana, a celebrarei
debaixo do nome de “Anarda”; e se Francisca, a chamarei eu
“Francênia”; e se Lúcia, “Lucinda”, que tudo há lá; e Sancho Pança, se é
que há de entrar nesta confraria, poderá celebrar a sua mulher
Teresa Pança com nome de “Teresaina”.
Riu-se dom Quixote da aplicação do nome, e o padre lhe louvou
infinito sua honesta e honrada resolução, e se ofereceu de novo a
fazer-lhe companhia todo o tempo que lhe vagasse para atender a suas
forçosas obrigações. Com isto, se despediram dele, e lhe rogaram e
aconselharam tivesse conta com sua saúde, com regalar-se o que fosse
bom.
Quis a sorte que sua sobrinha e a ama ouviram a conversa dos três;
e, assim como se foram, entraram ambas com dom Quixote, e a
sobrinha lhe disse:
- Que é isto, senhor tio? Agora que pensávamos nós que vossa
mercê voltava a permanecer em sua casa, e passar nela uma vida
quieta e honrada, se quer meter em novos labirintos, fazendo-se
“pastorzinho, tu para que vens, pastorzinho, tu para que vais?” Pois em
verdade que está já dura a cevada para flautas.
Ao que acrescentou a ama:
- E poderá vossa mercê passar no campo as sestas do verão, os
serenos do inverno, o uivo dos lobos? Não, por certo, que este é
exercício e ofício de homens robustos, curtidos e criados para tal
ministério quase desde as faixas e cueiros. Ainda, mal por mal, melhor
é ser cavaleiro andante que pastor. Veja, senhor, tome meu conselho,
que não lhe dou por estar farta de pão e vinho, senão em jejum, e por
cinquenta anos que tenho de idade: esteja em sua casa, atenda a seus
bens, confesse-se amiúde, favoreça aos pobres, e que venha sobre
minha alma se mal lhe for.
- Calai, filhas - lhes respondeu dom Quixote, - que eu sei bem o que
me cumpre. Levai-me ao leito, que me parece que não estou muito bom,
e tende por certo que, agora seja cavaleiro andante ou pastor por
andar, não deixarei sempre de atender ao que precisardes, como o
vereis pela obra.
E as boas filhas (que o eram sem dúvida ama e sobrinha) o levaram à
cama, onde lhe deram de comer e regalaram o possível.
CAPÍTULO LXXIV
Para mim só nasceu dom Quixote, e eu para ele; ele soube obrar e eu
escrever; só os dois somos para um, a despeito e pesar do escritor
fingido e tordesilhesco que se atreveu, ou se há de atrever, a
escrever com pena de avestruz grosseira e mal alinhada as façanhas
de meu valoroso cavaleiro, porque não é carga para seus ombros, nem
assunto para seu frio engenho; a quem advertirás, se acaso chegas a
conhecê-lo, que deixe repousar na sepultura os cansados e já
apodrecidos ossos de dom Quixote, e não o queira levar, contra todos
os foros da morte, a Castela a Velha, fazendo-o sair da fossa onde
real e verdadeiramente jaz estendido, impossibilitado de fazer
terceira jornada e saída nova; que, para fazer burla de tantas como
fizeram quantos andantes cavaleiros, bastam as duas que ele fez, tão
a gosto e beneplácito das gentes a cuja notícia chegaram, assim
nestes como nos estranhos reinos. E com isto cumprirás com tua
cristã profissão, aconselhando bem a quem mal te quer, e eu ficarei
satisfeito e ufano de haver sido o primeiro que gozou o fruto de seus
escritos inteiramente, como desejava, pois não foi outro meu desejo
que pôr em aborrecimento dos homens as fingidas e disparatadas
histórias dos livros de cavalarias, que, pelas de meu verdadeiro dom
Quixote, vão já tropeçando, e hão de cair de todo, sem dúvida
alguma.” Vale.
FIM