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CÉREBRO: ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Qual o sentido do humano? Por que somos gente e não ursos pandas ou
chimpanzés? Existem várias razões óbvias: mantemos uma postura ereta para
caminharmos apoiados nas patas traseiras; temos as mãos livres para fabricar
ferramentas e desenvolver tecnologias, temos um córtex cerebral desenvolvido.
Cresceu o nosso cérebro e, sobretudo, a capacidade de utilizá-lo. Utilizá-lo como?
Por exemplo, para o desenvolvimento de uma linguagem complexa, que poderia
ser considerada sinônimo do sentido de sermos humanos. A linguagem permitiu a
construção de cadeias de pensamento abstrato ou simbólico. O desenvolvimento
de uma comunicação simbólica complexa com certeza afetou outros aspectos da
vida humana, como as relações sociais.
Mas há um conceito que, na minha opinião, nos faz muito mais gente do
que o resto das espécies: a consciência. Consciências há muitas. Posso ser
consciente que prendi o dedo na porta e que ele está doendo. O termo
consciência também é usado para referir-se a organismos despertos (“o paciente
está consciente”). Serei mais preciso. Refiro-me à consciência de que existimos,
de que somos um corpo e sentimentos, que aconteceram e acontecerão coisas
em nossas vidas. A isto poderíamos chamar de “autoconsciência”, por exemplo.
Eu daria uma definição um pouco mais simples, em uma só palavra: “eu”. Deve-se
esclarecer que este “eu” não tem uma definição clara na perspectiva
neurofisiológica. Existem definições do “eu” na psicologia, na filosofia, até na
literatura, mas não há um consenso sobre seu significado. Neste “eu” reside um
dos maiores problemas da neurobiologia. Conta Francis Crick (que ganhou o
prêmio Nobel em 1962 por seu trabalho sobre a determinação da estrutura do
DNA) que em uma ocasião alguém que assistia a uma de suas palestras
interrompeu para dizer que achava muito complexo este assunto do eu, o cérebro
e a percepção. Crick perguntou-lhe como ele acreditava ver o mundo. O
espectador respondeu algo como “bem, é como se em alguma parte de minha
cabeça existisse um aparelho de televisão, pequenininho”. Crick respondeu: “Pois
bem, e quem assiste à televisão?”. Parece que o espectador está até hoje
pensando na resposta...

O problema mente-cérebro

Neste tema, há um problema de definições, mesclado de questões


ideológicas, religiosas e filosóficas nas quais os neurobiólogos não chegaram a
um acordo. A questão é: Onde estão situados processos como pensamentos e
emoções? Onde está e quem é o personagem que “assiste à televisão”? Há uma
mente de um lado e um cérebro do outro? Eles se conhecem? O problema torna-
se mais complicado porque estamos acostumados a pensar em uma mente - às
vezes se usa “alma” quase como sinônimo - que é parte de nosso cotidiano: “o
poder infinito da mente”, “sua alma descansa em paz”.
Basicamente, existem três formas básicas que representam as três
posturas históricas de encarar o problema:
1. Dizer que estão todos loucos, e que não há nenhum problema, e que as coisas
são como eu digo e acabou;
2. Aceitar que há um problema, mas é o mesmo que se não houvesse, porque é
um problema sem solução, assim é melhor não nos preocuparmos e sairmos
todos de férias;
3. Considerar que existe um problema de verdade que pode ter solução e
devemos procurá-la.

Vamos considerar a opção três como a mais interessante (além do mais, é


a única que pode ser considerada científica). Se reformularmos a pergunta e nos
concentrarmos no problema de que há uma mente além de um cérebro, podemos
questionar se cérebro e mente são coisas independentes entre si ou não. A partir
desta pergunta, podemos obter as seguintes respostas:

1. Há uma coisa só. Esta postura se chama monismo e possui três variantes:
a) Só há mente (idealismo). Esta postura é mais mística que científica: tudo
existe só na nossa mente ou na mente de Deus;
b) Tudo é cérebro: só existe o mundo material. Esta postura é conhecida como
materialista-reducionista. Uma outra forma de dizer seria que a mente é um
conjunto de coisas físicas e que, conhecendo bem o cérebro, poderíamos explicar
tudo;
c) A única coisa material é o cérebro, que possui algumas propriedades que se
organizam de maneira particular, formando o que conhecemos como “mente, que
é um processo do cérebro. Esta postura é conhecida como materialismo
emergentista.

2. A postura contrária à primeira seria o dualismo: a mente e o cérebro são


“coisas” separadas, e nenhum é explicado completamente a partir do outro.
Dentro desta postura, existem as seguintes possibilidades:
a) A mente e o cérebro são completamente independentes (autonomismo).
b) O cérebro “produz” a mente, que se torna independente (epifenomenalismo).
c) A mente “controla” o cérebro, através de suas propriedades de “alma”
(animismo);
d) A mente e o cérebro, se bem que cada um na sua, interagem de alguma forma
(interacionismo). Esta é a postura que popularizou o filósofo René Descartes,
que viveu no século XVII; cérebro e mente até teriam um local de interação - a
pineal, uma pequena glândula situada no interior do cérebro, que depois
descobriu-se que secreta o hormônio melatonina, de importância na sincronização
dos ritmos biológicos.

Com tantos “ismos”, é fácil nos perdermos! Em geral dizemos que as duas
posturas dualistas, as que propõem que há uma coisa que se chama mente e
outra que se chama cérebro estão desacreditadas. Alguns neurobiólogos ainda
tentam uma saída honrosa, mas tornam-se ainda mais místicos diante do
problema. Não é de se estranhar que estes dualistas tenham uma profunda
inclinação religiosa. E os monistas (incluindo o autor deste texto) estão de
parabéns: pouco a pouco estamos conhecendo como funciona a mente que há no
cérebro, e até vamos conhecendo um pouco sobre a consciência. Para esta
finalidade ajudam muito os estudos de pacientes com lesões em regiões
localizadas do cérebro: parece que, juntamente com a lesão cerebral, perderam
um pouco da “mente”, no sentido de autoconsciência. Entretanto, a questão se
complica pois não temos elementos neurobiológicos para interpretar os
transtornos mentais de pacientes com cérebros aparentemente “normais”. Sobre
as posturas monistas, aquelas materialistas-reducionistas extremas não possuem
fundamento: não podemos dizer que a sensação de frio ou a ordem para mover
as mãos é semelhante à possibilidade de pensamentos completamente abstratos
ou processos originais de criatividade. O cérebro, portanto, deve possuir algumas
propriedades bem mais “cerebrais” e outras bem mais “mentais”. Há alguns anos
tornou-se popular a idéia de que o cérebro poderia ser comparado a um
computador. O cérebro seria o “hardware” e a mente o “software”. Para os
monistas, isto nada mais é do que um dualismo disfarçado, que mantém a divisão
entre cérebro e mente.
Podemos propor uma abordagem do problema cérebro-mente que resuma
as idéias atuais e que seja bem mais simples: o cérebro é uma bolsa de
neurônios, glia e outros componentes, que estão em constante interação. Em
alguns casos essa interação produz processos novos que não podem ser
explicados mesmo que saibamos, separadamente, tudo sobre o funcionamento
destes componentes. A esses processos novos chamamos processos
emergentes. Um destes processos que surgem do funcionamento do cérebro é a
mente, ou seja, a consciência. É mais uma forma de dizer que “o todo é mais do
que a soma de suas partes”. A consciência, seria, então, uma propriedade
emergente das funções cerebrais.

O que temos na cabeça, então?

O cérebro foi, durante muito, tempo, considerado uma caixa preta:


podemos muito bem saber o que entra e o que sai, mas o que se passa dentro
dela é um mistério. Muito lentamente aprendemos a introduzir as mãos nesta
caixa. Sabemos que a informação entra através dos sentidos, e que sai em
respostas mais ou menos complexas. No meio, ficam memórias, pensamentos,
emoções.
Estamos estudando o cérebro com a ajuda do instrumento mais preciso
que conhecemos: outro cérebro, que também processa informação, tem memória,
sente fome. De qualquer forma, estamos dotados de um órgão fascinante, que
podemos (e devemos) usar quando quisermos, para conhecermos mais, nos
divertirmos, para nos perdermos nos palácios e nas cavernas. O cérebro é uma
arma carregada de futuro.

Traduzido e adaptado com autorização do autor de Golombek, D. A. Cerebro:


ultimas noticias, Ediciones Colihue, Buenos Aires, 1998.

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