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Entrevista com António Damásio

Tema principal: A mente

Que fatores o conduziram ao problema da consciência?

Para mim o problema da consciência foi sempre importante e interessante. Na altura


em que estava a fazer a investigação que conduziu ao Erro de Descartes a questão
que eu considerava mais vexante em matéria de ciência era o facto de ser difícil
compreender – no que dizia respeito especificamente às emoções – como é que se
sabe que se tem uma emoção. Há um capítulo no Erro de Descartes em que eu me
refiro a esse problema, dizendo que julgo compreender como funcionam a emoções e
que julgo compreender em parte como funciona o sentimento, do ponto de vista
neurobiológico, mas não consigo compreender como é que sei que tenho uma emoção
ou um sentimento. E esse parece-me ser um problema crítico.

Assim, cheguei ao problema da consciência muito diretamente porque não conseguia


acabar de resolver os problemas que tinha com a emoção. Apesar de ter pensado
durante muito tempo que nunca iria escrever sobre a consciência, por ser uma perda
de tempo e por isso me fazer entrar em discussões que iriam criar controvérsia e que
não resolveriam o problema, acabei por achar que era um desafio necessário. Já na
altura do Erro de Descartes tinha muitas das ideias que apresento agora neste livro,
mas não estavam tão amadurecidas. E na altura não discuti propositadamente muito
mais o problema da consciência porque não queria distrair o leitor da questão
principal que era o da relação entre a emoção e a decisão. Neste livro desenvolvo a
ideia original de que as emoções fazem parte de um grande sistema de regulação
biológica e que este sistema está intimamente ligado à emergência da consciência.

Como vê as relações entre o seu trabalho científico e experimental e a filosofia, já


que os problemas da mente-corpo e da consciência têm sido dos mais discutidos
em filosofia?

É uma relação extremamente estreita. Não há dúvida que grande parte da filosofia
passou para a ciência. Isto é perfeitamente natural dado que o que a filosofia começou
por ser é tudo aquilo que ainda hoje é, mas também tudo aquilo que a ciência hoje é.

Em relação às ciências cognitivas, a todo o campo que hoje está incluído na


neurociência ou na neurobiologia, a filosofia continua a ser essencial. Em primeiro
lugar, para fazer a relação entre o que fazemos hoje em dia na ciência e o modo como
as mesmas questões têm sido tratadas pela filosofia. Em segundo lugar, porque há
problemas de relação geral entre cérebro, mente, biologia (no sentido geral), ciências
sociais, cultura, física… há uma complexidade cada vez maior porque todas as
ciências continuam a produzir resultados. A filosofia vai ter o papel de ajudar a
organizar o campo intelectual e ajudar a fazer a crítica da forma como as várias
soluções são apresentadas. Não há, pois, qualquer risco de a filosofia desaparecer; vai
continuar a ser necessária.

Do seu ponto de vista, a consciência é um mecanismo biológico, fruto da evolução


natural. Significa isto que a ideia tradicional e religiosa de uma alma incorpórea
que de alguma maneira escapa às leis da natureza não passa afinal de uma
quimera? Como é que vê exatamente as relações entre a mente e o corpo?

Aquilo a que chamamos "mente" é uma coleção de processos biológicos. E, dado que
estes processos são físicos, a mente é necessariamente um processo físico. Mas é
preciso pensar que a física desses processos biológicos não é necessariamente a física
corrente. Ter uma mente em funcionamento não é o mesmo do que ter um pedaço de
mármore. Um dos grandes problemas que as pessoas têm é que quando pensam em
matéria, quando pensam em qualquer coisa de físico, a imagem a que recorrem é a do
cimento, da parede, da pedra, do pedaço de metal. E é evidente que o processo mental
– é um processo, note-se, um constante desenrolar de acontecimentos, e não uma
coisa – não pode ser concebido como esse tipo de matéria.

Uma das coisas mais curiosas que está a acontecer é uma modificação da forma como
os físicos concebem a matéria. A matéria não é apenas cimento e pedra, é também
energia e fluxos. Assim, o nível de fenómeno biológico em que se desenrola a mente é
de um nível físico que ainda está por definir completamente. O que lhe posso dizer é
que tenho a convicção que há uma matéria do pensar, da mente consciente, matéria
essa que é biológica e altamente complexa, que está ligada ao funcionamento de redes
nervosas – e que permite a própria perspetiva da primeira pessoa – e que nada tem a
ver com a nossa conceção da matéria e dos objetos de pedra e cal e aço que temos à
nossa volta.

A sua teoria parece refutar alguns argumentos filosóficos anti-fisicalistas que se


apoiam na ideia de que os qualia e a perspetiva da primeira pessoa são
insuscetíveis de serem cientificamente tratados.

Esses pontos de vista têm a ver com um período diferente do desenvolvimento da


neurociência. Claro que há imensas pessoas – tanto da neurociência como da filosofia
– que concordariam com esses argumentos. Mas nos capítulos do meu livro em que
falo da experiência mental da neurocientista Mary ("What Mary Didn’t Know", de
Frank Jackson), pode ver como este exemplo não funciona. Há um erro de lógica na
experiência mental de Mary. A ideia de Mary poder saber tudo quanto é possível
saber sobre a biologia da cor e de mesmo assim não ser capaz de ter experiência da
cor é perfeitamente coerente; a experiência da cor depende de um outro tipo de
conhecimento, de outro tipo de fenómeno biológico que nada tem a ver com o nosso
conhecimento externo como cientistas e como filósofos daquilo que é a neurobiologia
da cor. O argumento da Mary é muito curioso porque algumas pessoas que
concordavam com ele passaram a achar que está errado, depois de terem lido o meu
livro. É simpático ver que as coisas mudam, que as pessoas podem aceitar a mudança
de opinião.

Julgo que tudo depende da perspetiva. Como pode ver no meu livro, respeito a
perspetiva interior. Não há dúvida que a nossa mente e que a consciência são
fenómenos privados e internos. Isto é perfeitamente compatível com uma ligação
entre esses fenómenos de primeira pessoa e os fenómenos de terceira pessoa que
decorrem da nossa observação de comportamentos. O que é preciso é manter uma
visão dupla dos fenómenos – aquilo que é interior e aquilo que é exterior. Mas o facto
é que eles estão ligados. Tudo aquilo que você tem do ponto de vista interior e que
não é revelável ou visível para mim tem uma tradução, por vezes extremamente
subtil, em fenómenos visíveis na perspetiva da terceira pessoa. Alguns desses
fenómenos são comportamentais, outros podem revelar-se na análise de fenómenos
que podemos fazer com um scanner ou um eletroencefalograma. Tudo isso são
manifestações de uma outra coisa; mas não são essa coisa. Como digo várias vezes no
livro, olhar para o eletroencefalograma de uma pessoa que está a pensar um
determinado pensamento é diferente de olhar para esse pensamento. Não podemos
olhar para o pensamento, mas podemos olhar para uma manifestação que está
correlacionada com ele. O grande desafio da ciência atual é fazer esta triangulação
entre certos índices de funcionamento biológico, de certos comportamentos visíveis
exteriormente, e essa outra coisa que é a primeira pessoa, que é a nossa própria
experiência.

Um dos dogmas de alguma da filosofia do século XX tem sido a ideia de que sem
linguagem não há pensamento. Esta ideia parece também decisivamente
refutada por alguns resultados experimentais apresentados no seu livro.

Exatamente. E, sobretudo, a ideia de que a consciência é uma consequência da


linguagem parece-me estar completamente errada e há neste momento, entre os dados
experimentais e a reflexão sobre esses dados, razões para a esquecer rapidamente. O
que não há dúvida é que os níveis mais elevados de consciência, aquilo a que chamo
"consciência alargada", necessitam de linguagem. Mas mesmo assim estou
convencido de que há seres não humanos com consciência alargada que não têm
qualquer linguagem e que organizam a consciência de uma forma não verbal.

É compreensível que as pessoas tenham pensado que a linguagem é necessária para a


consciência. Apesar de a linguagem ser um dos processos mais complexos a nível
biológico é evidentemente um grande fenómeno de comunicação, o que nos faz sentir
que quase tudo tenha de passar pela linguagem porque nós usamos a linguagem para
chegar aos pontos mais altos do nosso raciocínio e da nossa criatividade. Veja aliás
como é irónico que a neurociência tenha começado exatamente pela linguagem. A
neurociência começou pelo estudo da relação entre o cérebro e a linguagem. Isto é
espantoso. A neurociência não começou por estudar fenómenos simples, não começou
pelos neurónios; quase que se pode dizer que começou pelo ponto mais alto, que são
os fenómenos da linguagem. Isso deu a ideia falsa de que tudo provinha da
linguagem.

Outro exemplo desta curiosa distorção, de que também falo no livro é a seguinte:
quando se pensa na marcha do conhecimento é óbvio que sabemos muito mais sobre a
consciência moral, do ponto de vista biológico, filosófico e das ciências sociais, do
que sobre a consciência cognitiva. Curiosamente, o nosso conhecimento marcha
muitas vezes no sentido menos previsível. Começamos por compreender coisas muito,
muito complexas e depois, a pouco e pouco, vamos chegando às coisas mais
escondidas, que são também complexas, mas que são ao mesmo tempo mais simples.

Um dos aspetos que me impressionou no seu livro, do ponto de vista humano, é o


facto de se notar a compaixão que sente por alguns dos doentes com que
trabalha. É para si por vezes difícil lidar com alguns destes dramas humanos?

É extremamente difícil e não é preciso ser especialmente "simpático", no verdadeiro


sentido do termo, para sentir compaixão por estes doentes. Basta apenas pensar em
nós próprios se estivéssemos na mesma situação. É extremamente difícil ver um
músico exímio, por exemplo, que perdeu a capacidade de processamento auditivo ou
um pintor que perdeu a capacidade de utilizar a cor ou, mais simplesmente, uma
pessoa que nos parece extremamente agradável e inteligente, que tinha uma vida feliz
e que perdeu alguns aspetos da memória ou da linguagem. A única palavra possível
para descrever isto é dizer que são situações horrorosas para a pessoa e para os que
estão à sua volta. É extremamente difícil lidar com isto. E esta é uma das razões pelas
quais é importante estudar estes problemas.

Claro que há a razão a que chamo "aristotélica", a curiosidade humana, que para mim
é mais do que suficiente. Se alguém me dissesse que não havia qualquer valor prático
no trabalho que nós fazemos eu teria mesmo assim imenso gosto em fazer esse
trabalho. O que é curioso é que há um valor prático. Quanto mais nós soubermos
sobre a maneira como o cérebro produz certos fenómenos complexos da mente mais
nos vai ser possível delinear programas de reabilitação. Há várias consequências
práticas no nosso conhecimento que vale a pena sublinhar e que justificam o esforço e
o tornam ainda mais valioso.

A área das ciências da cognição tem sido extremamente frutuosa e estimulante


nos últimos anos. Tem alguma palavra especial para estudantes portugueses que
estejam interessados nessa área?

Acho que é a melhor área para trabalhar neste momento. O que se está a passar nas
ciências cognitivas, com a sua ligação à neurobiologia, é semelhante ao que se passou
nos anos 60 e 70 com o desenvolvimento da biologia molecular. Trata-se de penetrar
num conjunto de fenómenos extremamente complexos graças a várias descobertas.
No caso da biologia molecular foi a descoberta da estrutura do ADN e a descoberta do
código genético. Uma vez feitas essas descobertas abriu-se todo um novo campo,
tanto de técnicas como de teorias e de possível entendimento.

O mesmo está a acontecer agora nas ciências cognitivas. Começou-se por um


entendimento a nível molecular e celular de redes nervosas; e, agora, a possibilidade
de termos scanners para estudar os fenómenos a nível dos sistemas está a
desenvolver-se de uma forma extraordinária. Não tenho qualquer dúvida que nas duas
próximas décadas o progresso será ainda maior. Portanto, quem trabalha nas ciências
cognitivas está no lugar certo. As pessoas que quiserem compreender os grandes
temas da filosofia e das humanidades podem perfeitamente fazê-lo nas ciências
cognitivas. É uma atividade maravilhosa.

Desidério Murcho, Texto publicado no suplemento Livros do jornal O Independente


(junho de 2000). http://criticanarede.com/entrevistas.html (consultado em 2009-01-
21)

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