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É uma relação extremamente estreita. Não há dúvida que grande parte da filosofia
passou para a ciência. Isto é perfeitamente natural dado que o que a filosofia começou
por ser é tudo aquilo que ainda hoje é, mas também tudo aquilo que a ciência hoje é.
Aquilo a que chamamos "mente" é uma coleção de processos biológicos. E, dado que
estes processos são físicos, a mente é necessariamente um processo físico. Mas é
preciso pensar que a física desses processos biológicos não é necessariamente a física
corrente. Ter uma mente em funcionamento não é o mesmo do que ter um pedaço de
mármore. Um dos grandes problemas que as pessoas têm é que quando pensam em
matéria, quando pensam em qualquer coisa de físico, a imagem a que recorrem é a do
cimento, da parede, da pedra, do pedaço de metal. E é evidente que o processo mental
– é um processo, note-se, um constante desenrolar de acontecimentos, e não uma
coisa – não pode ser concebido como esse tipo de matéria.
Uma das coisas mais curiosas que está a acontecer é uma modificação da forma como
os físicos concebem a matéria. A matéria não é apenas cimento e pedra, é também
energia e fluxos. Assim, o nível de fenómeno biológico em que se desenrola a mente é
de um nível físico que ainda está por definir completamente. O que lhe posso dizer é
que tenho a convicção que há uma matéria do pensar, da mente consciente, matéria
essa que é biológica e altamente complexa, que está ligada ao funcionamento de redes
nervosas – e que permite a própria perspetiva da primeira pessoa – e que nada tem a
ver com a nossa conceção da matéria e dos objetos de pedra e cal e aço que temos à
nossa volta.
Julgo que tudo depende da perspetiva. Como pode ver no meu livro, respeito a
perspetiva interior. Não há dúvida que a nossa mente e que a consciência são
fenómenos privados e internos. Isto é perfeitamente compatível com uma ligação
entre esses fenómenos de primeira pessoa e os fenómenos de terceira pessoa que
decorrem da nossa observação de comportamentos. O que é preciso é manter uma
visão dupla dos fenómenos – aquilo que é interior e aquilo que é exterior. Mas o facto
é que eles estão ligados. Tudo aquilo que você tem do ponto de vista interior e que
não é revelável ou visível para mim tem uma tradução, por vezes extremamente
subtil, em fenómenos visíveis na perspetiva da terceira pessoa. Alguns desses
fenómenos são comportamentais, outros podem revelar-se na análise de fenómenos
que podemos fazer com um scanner ou um eletroencefalograma. Tudo isso são
manifestações de uma outra coisa; mas não são essa coisa. Como digo várias vezes no
livro, olhar para o eletroencefalograma de uma pessoa que está a pensar um
determinado pensamento é diferente de olhar para esse pensamento. Não podemos
olhar para o pensamento, mas podemos olhar para uma manifestação que está
correlacionada com ele. O grande desafio da ciência atual é fazer esta triangulação
entre certos índices de funcionamento biológico, de certos comportamentos visíveis
exteriormente, e essa outra coisa que é a primeira pessoa, que é a nossa própria
experiência.
Um dos dogmas de alguma da filosofia do século XX tem sido a ideia de que sem
linguagem não há pensamento. Esta ideia parece também decisivamente
refutada por alguns resultados experimentais apresentados no seu livro.
Outro exemplo desta curiosa distorção, de que também falo no livro é a seguinte:
quando se pensa na marcha do conhecimento é óbvio que sabemos muito mais sobre a
consciência moral, do ponto de vista biológico, filosófico e das ciências sociais, do
que sobre a consciência cognitiva. Curiosamente, o nosso conhecimento marcha
muitas vezes no sentido menos previsível. Começamos por compreender coisas muito,
muito complexas e depois, a pouco e pouco, vamos chegando às coisas mais
escondidas, que são também complexas, mas que são ao mesmo tempo mais simples.
Claro que há a razão a que chamo "aristotélica", a curiosidade humana, que para mim
é mais do que suficiente. Se alguém me dissesse que não havia qualquer valor prático
no trabalho que nós fazemos eu teria mesmo assim imenso gosto em fazer esse
trabalho. O que é curioso é que há um valor prático. Quanto mais nós soubermos
sobre a maneira como o cérebro produz certos fenómenos complexos da mente mais
nos vai ser possível delinear programas de reabilitação. Há várias consequências
práticas no nosso conhecimento que vale a pena sublinhar e que justificam o esforço e
o tornam ainda mais valioso.
Acho que é a melhor área para trabalhar neste momento. O que se está a passar nas
ciências cognitivas, com a sua ligação à neurobiologia, é semelhante ao que se passou
nos anos 60 e 70 com o desenvolvimento da biologia molecular. Trata-se de penetrar
num conjunto de fenómenos extremamente complexos graças a várias descobertas.
No caso da biologia molecular foi a descoberta da estrutura do ADN e a descoberta do
código genético. Uma vez feitas essas descobertas abriu-se todo um novo campo,
tanto de técnicas como de teorias e de possível entendimento.