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Marcia Moraes
Começo esta minha breve fala aqui hoje comentando a escolha que fiz pelo título
Esta maneira de dar título a minha fala tem para mim um sentido. Trata-se de
uma pergunta que de um lado, aponta para o caráter nada evidente do que vem a ser o
objeto da psicologia e de outro lado, deve ser considerada na forma das perguntas de
criança. As perguntas de criança costumam chamar a nossa atenção: são muitas vezes
dirigidas para coisas que aos nossos olhos parecem indiscutíveis, óbvias e ao mesmo
tempo, difíceis de responder. São as crianças quem formulam questões como: por que
quando chove a água cai aos pingos e não toda de uma vez? Se na Arca de Noé havia
muitos animais selvagens, por que um não comeu o outro? De onde vem o vento e para
onde ele vai? Estas perguntas atingem a nossa perplexidade com a agudeza de uma
fisga. É desse mesmo modo que eu levanto a questão que dá título à minha fala. São
questões como estas que eu encontro na sala de aula, com os alunos dos primeiros
períodos do curso de Psicologia da UFF, onde leciono uma disciplina que tem o
métodos.
psiquismo humano. Mas estas afirmações são elas também bastante problemáticas,
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porque se a psicologia é o estudo da alma, teríamos que saber o que é a alma, onde está
a alma. E mais, se este fosse o caso, quais seriam as relações entre a psicologia e a
religião? Parece então que somos levados de uma pergunta à outra, indefinidamente.
psicologia, a história é sempre um bom caminho para a reflexão. Não se trata de buscar
formulamos.
finalidade de dar conta de uma questão muito precisa, questão presente na filosofia
desde o século XVII: por que os sentidos enganam? Por que nossa experiência cotidiana
é o tempo todo atravessada por ilusões, equívocos, erros? Todos nós já passamos por
situações como estas, quando, por exemplo, estamos na barca e a barca ao lado daquela
em que estamos começa a se locomover, temos a sensação nítida de que é a nossa barca
A psicologia do século XIX lidava com questões deste tipo, questões que diziam
Significa dizer que a psicologia é uma disciplina moderna, ou seja, tem ambição
de se definir como ciência nos mesmos moldes das ciências naturais, cujo modelo data
que retira da experiência tudo o que é da ordem do acidente, do casual, tudo o que é
opera uma importante cisão: aquela que separa o homem da natureza. O homem é
complexo, histórico e regido por uma ordem diversa daquela ordem mecânica que
mundo, uma visão de mundo que luta contra qualquer forma de dogmatismo e que por
isso mesmo, desconsidera tudo aquilo que advém do senso comum, da experiência
vivida. O senso comum é dogmático, faz afirmações para as quais não pode dar provas.
verdade que está ao lado dos fatos e não das preferências e gostos de cada um.
Ora este modelo de racionalidade instala duas maneiras de lidar com a questão
das humanidades: a primeira consiste em defini-las ao modo das ciências físicas, como
No primeiro caso, teríamos que definir a psicologia como uma ciência natural,
como ciência experimental. Nesse caso, para dar conta do erro que os sentidos
que explicasse o erro. Não basta dizer que os sentidos enganam porque cada um vê o
mundo de um modo. É preciso explicar, ou seja, encontrar uma relação causal, passível
não é conhecer como cada um vê o mundo, mas como todos nós devemos ver o mundo
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se o quisermos conhecer de modo objetivo. Dizer que cada um vê o mundo a seu modo
é o que faz o senso comum. Nesse sentido, caberia à psicologia investigar o modo como
objeto natural, isto é, regido segundo os mesmos princípios que caracterizam a natureza
– a extensão e o movimento.
conhecer o mundo.
XIX, e ainda nos dias de hoje, podemos dizer que há, no século XIX uma outra maneira
modelo máquina, que reduz a natureza à extensão e ao movimento não pode dar conta
humanas são subjetivas. Não podem ser reduzidas a puro mecanismo. É preciso então
buscar um modo de explicação próprio para as ciências humanas e mais do que isso, é
preciso definir o seu objeto de investigação como algo que é marcado pela história, pela
transformação, em suma, por algo que é complexo. De um certo modo, esta maneira de
lidar com a questão das humanidades consiste em resgatar para o campo das
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humanidades tudo aquilo que o modelo experimental lançava para o campo do senso
E mais uma vez lembremos o mestre Wundt. Ciente dos limites da definição
complexos que caracterizam a experiência humana seria necessário uma outra definição
estudar o conhecimento como um fato natural, a psicologia devia estudá-lo como fato
histórico. Tal era o objetivo daquilo que este autor chamava Psicologia dos Povos.
Wundt afirmava ser a Psicologia dos Povos “a” definição mesma de psicologia. Seria
este estudo histórico aquilo o que marcaria a especificidade da psicologia. Ciente dos
Wundt foi duramente criticado por seus contemporâneos. Afinal, o século XIX
era marcado pelo estilo positivista de fazer ciência e o que se buscava era uma definição
do objeto da psicologia ao modo do objeto das ciências naturais. Seria então Wundt não
retorno de algo complexo para o campo do objeto da psicologia. Desse modo, o objeto
da psicologia parecia escapar àqueles dois registros que mencionei acima: nem
psicologia, estamos lidando com o referencial moderno. Podemos dizer que, ao definir a
psicologia como disciplina histórica, como Psicologia dos Povos, Wundt guarda ainda
registro da modernidade: isto é, o que está em tela é uma certa oposição entre natureza e
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um lado a natureza com suas leis e regularidades, de outro lado a cultura. Wundt situa a
psicologia no seio desta oposição e é neste sentido que podemos dizer que a psicologia é
uma disciplina moderna. Podemos dizer que a definição que Wundt apresenta de
Será que com isso encerramos o debate em torno do objeto da psicologia? Será
então que podemos dizer que o objeto da psicologia é em parte um objeto natural e em
parte um objeto social e como isso encerramos nossa conversa? Penso que não. Situar
interessa nesta história não são os meandros das recentes descobertas científicas, mas as
natureza distante daquela natureza mecânica afirmada nas teses de Galileo. Noções que
pareciam restritas aos domínios das humanidades passam a estar articuladas no seio
humanas parecem não ter mais sentido porque esta distinção estava assentada numa
distinções entre humano e não humano, natureza e cultura, sujeito e objeto e estas eram
dicotomias que teciam o nosso mundo moderno. Este colapso das distinções modernas
repercutem nas disciplinas que sobre elas se ergueram: a psicologia é, como vimos, uma
dessas disciplinas.
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Somos, portanto reconduzidos a pergunta com a qual iniciamos: que objeto para
a psicologia? Nem natural, nem social porque não estamos lidando com o paradigma
moderno, mas com um período de transição no qual as nossas antigas convicções estão
colocadas em xeque. Que lugar para a psicologia neste mundo? Parece que voltamos ao
ponto de partida. Mas não sejamos ingênuos porque este retorno da questão - que objeto
bem como delimitar, como conhecer. É preciso então nos lançar na tarefa de mais uma
Para dar conta desta pergunta faz-se necessário o recurso a outras ferramentas
objeto da psicologia era natural – logo, extirpado de qualquer conexão social, ou quando
separação entre social e natural, mas sim no que se passa entre, nas relações de conexão
cultura. Penso que perguntar que objeto para a psicologia ? é para nós psicólogos, um
desafio extremamente atual. São questões éticas e políticas que estão implicadas nesta
pergunta.