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QUE OBJETO PARA A PSICOLOGIA ?

Marcia Moraes

Famath / 13 de setembro de 2003

Começo esta minha breve fala aqui hoje comentando a escolha que fiz pelo título

em forma de pergunta. Que objeto para a Psicologia?

Esta maneira de dar título a minha fala tem para mim um sentido. Trata-se de

uma pergunta que de um lado, aponta para o caráter nada evidente do que vem a ser o

objeto da psicologia e de outro lado, deve ser considerada na forma das perguntas de

criança. As perguntas de criança costumam chamar a nossa atenção: são muitas vezes

dirigidas para coisas que aos nossos olhos parecem indiscutíveis, óbvias e ao mesmo

tempo, difíceis de responder. São as crianças quem formulam questões como: por que

quando chove a água cai aos pingos e não toda de uma vez? Se na Arca de Noé havia

muitos animais selvagens, por que um não comeu o outro? De onde vem o vento e para

onde ele vai? Estas perguntas atingem a nossa perplexidade com a agudeza de uma

fisga. É desse mesmo modo que eu levanto a questão que dá título à minha fala. São

questões como estas que eu encontro na sala de aula, com os alunos dos primeiros

períodos do curso de Psicologia da UFF, onde leciono uma disciplina que tem o

objetivo de discutir o que é a psicologia, qual é o seu objeto de investigação, seus

métodos.

No senso comum, ouvimos dizer que a psicologia é o estudo da alma, do

psiquismo humano. Mas estas afirmações são elas também bastante problemáticas,
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porque se a psicologia é o estudo da alma, teríamos que saber o que é a alma, onde está

a alma. E mais, se este fosse o caso, quais seriam as relações entre a psicologia e a

religião? Parece então que somos levados de uma pergunta à outra, indefinidamente.

Façamos um corte para nos dedicarmos a analisar um pouco da história da

psicologia, a história é sempre um bom caminho para a reflexão. Não se trata de buscar

na história uma resposta, mas de buscar na história o sentido da pergunta que

formulamos.

Se lançarmos um olhar histórico para este campo de investigação, vemos que a

psicologia, como disciplina independente da filosofia, aparece no século XIX, com a

finalidade de dar conta de uma questão muito precisa, questão presente na filosofia

desde o século XVII: por que os sentidos enganam? Por que nossa experiência cotidiana

é o tempo todo atravessada por ilusões, equívocos, erros? Todos nós já passamos por

situações como estas, quando, por exemplo, estamos na barca e a barca ao lado daquela

em que estamos começa a se locomover, temos a sensação nítida de que é a nossa barca

a que se move. Só depois de um tempo somos advertidos de que na verdade, de fato, o

que se move é a barca ao lado. Por que isso ocorre?

A psicologia do século XIX lidava com questões deste tipo, questões que diziam

respeito ao papel dos sentidos no exercício do conhecimento. Antes do século XIX a

psicologia se confundia com um capítulo da filosofia. É no século XIX que a psicologia

se distingue da filosofia, lançando mão de um método de investigação cujos princípios

básicos eram a quantificação e a redução da complexidade. O que significa dizer isso?

Significa dizer que a psicologia é uma disciplina moderna, ou seja, tem ambição

de se definir como ciência nos mesmos moldes das ciências naturais, cujo modelo data

do século XVII. A ciência moderna se define por buscar na natureza a constância, a

regularidade, a permanência. Trata-se de uma natureza que se define como extensão e


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movimento, uma natureza-máquina acessível ao conhecimento através da quantificação

e da redução da complexidade que marca a nossa experiência cotidiana. O método

experimental consiste no caminho para a produção do conhecimento verídico uma vez

que retira da experiência tudo o que é da ordem do acidente, do casual, tudo o que é

complexo. Reduzindo a experiência ao experimento controlado, a ciência moderna

opera uma importante cisão: aquela que separa o homem da natureza. O homem é

complexo, histórico e regido por uma ordem diversa daquela ordem mecânica que

marca a natureza. Há no advento da ciência moderna a afirmação de uma nova visão de

mundo, uma visão de mundo que luta contra qualquer forma de dogmatismo e que por

isso mesmo, desconsidera tudo aquilo que advém do senso comum, da experiência

vivida. O senso comum é dogmático, faz afirmações para as quais não pode dar provas.

A ciência moderna afirma um outro modo de conhecer: só é válido o conhecimento

comprovado através de um experimento controlado, acessível a todos. Trata-se de uma

verdade que está ao lado dos fatos e não das preferências e gostos de cada um.

Ora este modelo de racionalidade instala duas maneiras de lidar com a questão

das humanidades: a primeira consiste em defini-las ao modo das ciências físicas, como

ciências experimentais. A segunda consiste em buscar para elas um estatuto próprio, um

estilo próprio, diverso do modelo experimental presente nas ciências da natureza.

No primeiro caso, teríamos que definir a psicologia como uma ciência natural,

como ciência experimental. Nesse caso, para dar conta do erro que os sentidos

provocam na produção do conhecimento caberia à psicologia encontrar uma lei geral

que explicasse o erro. Não basta dizer que os sentidos enganam porque cada um vê o

mundo de um modo. É preciso explicar, ou seja, encontrar uma relação causal, passível

de ser verificada experimentalmente e que justifique o erro. O que a psicologia busca

não é conhecer como cada um vê o mundo, mas como todos nós devemos ver o mundo
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se o quisermos conhecer de modo objetivo. Dizer que cada um vê o mundo a seu modo

é o que faz o senso comum. Nesse sentido, caberia à psicologia investigar o modo como

conhecemos o mundo tomando o conhecimento que temos do mundo num referencial

mecanicista. Trata-se, portanto, de uma investigação mecanicista do próprio conhecer.

O objeto de investigação da psicologia seria então o conhecer considerado como um

objeto natural, isto é, regido segundo os mesmos princípios que caracterizam a natureza

– a extensão e o movimento.

No século XIX, um autor famoso, Wundt, funda um laboratório de psicologia

experimental cuja finalidade era investigar experimentalmente o nosso modo de

conhecer o mundo.

Embora este modo de conceber a psicologia seja bastante pregnante no século

XIX, e ainda nos dias de hoje, podemos dizer que há, no século XIX uma outra maneira

de lidar com as humanidades. Ao invés de buscar definir a psicologia à imagem e

semelhança das ciências da natureza, reinvindica-se para a psicologia um estatuto

epistemológico próprio, uma especificidade. Este movimento é, aliás, característico de

outras disciplinas, como a antropologia, a sociologia. É um movimento que reinvindica

para as humanidades uma especificidade. Em última instância, o argumento básico é

que o homem não pode ser investigado através do modelo-máquina da natureza. Um

modelo máquina, que reduz a natureza à extensão e ao movimento não pode dar conta

da especificidade do homem, da especificidade da experiência humana. As ações

humanas são subjetivas. Não podem ser reduzidas a puro mecanismo. É preciso então

buscar um modo de explicação próprio para as ciências humanas e mais do que isso, é

preciso definir o seu objeto de investigação como algo que é marcado pela história, pela

transformação, em suma, por algo que é complexo. De um certo modo, esta maneira de

lidar com a questão das humanidades consiste em resgatar para o campo das
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humanidades tudo aquilo que o modelo experimental lançava para o campo do senso

comum: o subjetivo, o histórico, o casual.

E mais uma vez lembremos o mestre Wundt. Ciente dos limites da definição

experimental do objeto da psicologia, Wundt afirmava ser necessário que a psicologia

adotasse também um método histórico-comparativo. Para estudar os fenômenos

complexos que caracterizam a experiência humana seria necessário uma outra definição

de psicologia, uma outra delimitação do objeto de estudo da psicologia. Longe de

estudar o conhecimento como um fato natural, a psicologia devia estudá-lo como fato

histórico. Tal era o objetivo daquilo que este autor chamava Psicologia dos Povos.

Wundt afirmava ser a Psicologia dos Povos “a” definição mesma de psicologia. Seria

este estudo histórico aquilo o que marcaria a especificidade da psicologia. Ciente dos

limites do experimento para a investigação da experiência humana, Wundt afirmava a

importância da psicologia como disciplina histórica.

Wundt foi duramente criticado por seus contemporâneos. Afinal, o século XIX

era marcado pelo estilo positivista de fazer ciência e o que se buscava era uma definição

do objeto da psicologia ao modo do objeto das ciências naturais. Seria então Wundt não

um cientista, mas um filósofo, um metafísico. Seria Wundt então responsável por um

retorno de algo complexo para o campo do objeto da psicologia. Desse modo, o objeto

da psicologia parecia escapar àqueles dois registros que mencionei acima: nem

quantificável, nem simples.

É interessante notar que neste debate que se trava em torno da definição de

psicologia, estamos lidando com o referencial moderno. Podemos dizer que, ao definir a

psicologia como disciplina histórica, como Psicologia dos Povos, Wundt guarda ainda

um lugar para a psicologia como ciência experimental Estamos ainda operando no

registro da modernidade: isto é, o que está em tela é uma certa oposição entre natureza e
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cultura. Então a definição do objeto da psicologia se faz no registro desta oposição: de

um lado a natureza com suas leis e regularidades, de outro lado a cultura. Wundt situa a

psicologia no seio desta oposição e é neste sentido que podemos dizer que a psicologia é

uma disciplina moderna. Podemos dizer que a definição que Wundt apresenta de

psicologia pertence ao paradigma da ciência moderna.

Será que com isso encerramos o debate em torno do objeto da psicologia? Será

então que podemos dizer que o objeto da psicologia é em parte um objeto natural e em

parte um objeto social e como isso encerramos nossa conversa? Penso que não. Situar

desse modo o objeto da psicologia é desconhecer as recentes polêmicas que se travam

no campo das ciências. E que se passa na atualidade?

Na atualidade, inúmeras foram as questões levantadas no campo das ciências da

natureza que colocaram em xeque o alcance do método experimental. O que nos

interessa nesta história não são os meandros das recentes descobertas científicas, mas as

questões epistemológicas que elas levantam. Noções como imprevisibilidade, desordem,

criatividade tomaram o lugar das noções de determinismo, ordem e necessidade que

caracterizavam a visão moderna de natureza. O que está em jogo é a afirmação de uma

natureza distante daquela natureza mecânica afirmada nas teses de Galileo. Noções que

pareciam restritas aos domínios das humanidades passam a estar articuladas no seio

mesmo das ciências da natureza. A distinção entre ciências da natureza e ciências

humanas parecem não ter mais sentido porque esta distinção estava assentada numa

visão mecanicista de natureza. Os avanços recentes das ciências colocam em questão as

distinções entre humano e não humano, natureza e cultura, sujeito e objeto e estas eram

dicotomias que teciam o nosso mundo moderno. Este colapso das distinções modernas

repercutem nas disciplinas que sobre elas se ergueram: a psicologia é, como vimos, uma

dessas disciplinas.
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Somos, portanto reconduzidos a pergunta com a qual iniciamos: que objeto para

a psicologia? Nem natural, nem social porque não estamos lidando com o paradigma

moderno, mas com um período de transição no qual as nossas antigas convicções estão

colocadas em xeque. Que lugar para a psicologia neste mundo? Parece que voltamos ao

ponto de partida. Mas não sejamos ingênuos porque este retorno da questão - que objeto

para a psicologia ? – não é o retorno do mesmo, do idêntico. É um retorno de algo

estranho, um misto de natureza e cultura, de humano e não-humano que já não sabemos

bem como delimitar, como conhecer. É preciso então nos lançar na tarefa de mais uma

vez perguntar: o que é a psicologia? Que objeto para a psicologia?

Para dar conta desta pergunta faz-se necessário o recurso a outras ferramentas

epistemológicas, filosóficas, conceituais. Já não se trata de delimitar um objeto,

isolando-o, ao modo como fazíamos no paradigma moderno quando afirmávamos que o

objeto da psicologia era natural – logo, extirpado de qualquer conexão social, ou quando

afirmávamos que o objeto da psicologia era social – logo, recortado de qualquer

determinação natural. A definição do objeto da psicologia não se faz mais a partir da

separação entre social e natural, mas sim no que se passa entre, nas relações de conexão

que fazem de nós híbridos de natureza e cultura. Híbridos indissociáveis de natureza e

cultura. Penso que perguntar que objeto para a psicologia ? é para nós psicólogos, um

desafio extremamente atual. São questões éticas e políticas que estão implicadas nesta

pergunta.

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