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RAZÃO SEM CORPO: uma crítica ao transcendentalismo de Rawls a partir do realismo

corporificado.

Fábio Marçal Lima1


Monica Fontenelle Carneiro2

SUMÁRIO. 1 Introdução. 2 O Transcendentalismo de Uma Teoria Da Justiça de Rawls. 3 As Ciências Cognitivas e


o Realismo Corporificado. 4 O transcendentalismo rawlsiano visto pelas lentes do realismo corporificado. 6
Conclusão. Referências.

RESUMO
O que resta da teoria da justiça como equidade de John Rawls (1997) se confrontada com o realismo corporificado de
Lakoff e Johnson (1999)? O presente trabalho busca descrever o procedimentalismo puro de Rawls e as premissas
filosóficas nas quais se fundamenta, sobretudo a sua concepção de razão dotada de autonomia, nos moldes propostos
por Kant. Em seguida, o realismo corporificado de Lakoff e Johnson (1999) é introduzido e desenvolvido,
conferindo-se destaque para as suas três premissas fundamentais: mente inerentemente corporificada; pensamento
principalmente inconsciente; sistema conceptual, em grande medida, metafórico. Por fim, a abordagem
transcendentalista de Rawls será submetida ao crivo crítico do realismo corporificado, de maneira a investigar as
possibilidades de o procedimento da posição original oferecer realmente princípios de justiça universais alcançados a
partir de uma razão pública descorporificada.

Palavras-chave: Justiça como equidade. Rawls. Transcendentalismo. Realismo corporificado.

ABSTRACT
What remains of the theory of justice as fairness of John Rawls (1997) confronted with the embodied realism of
Lakoff and Johnson (1999)? The present work seeks to describe Rawls's pure procedure and the philosophical
premises on which it is based, especially its conception of reason endorsed with autonomy, in the ways proposed by
Kant. Then, Lakoff and Johnson's embodyed realism (1999) is introduced and developed, highlighting its three
fundamental tenets: inherently embodied mind; mostly unconscious thinking; metaphorical conceptual system in a
large way. Finally, Rawls's transcendentalist approach will be submitted to the critical view of embodied realism, in
order to investigate if the original position procedure can offer universal principles of justice from a disembodied
public reason.

Keywords: Justice as fairness. Rawls. Transcendentalism. Embodied realism.

1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objeto o transcendentalismo proposto por Rawls em sua
obra Uma Teoria da Justiça (1997), resultado da compilação de artigos escritos pelo autor ao
longo de duas décadas. A obra foi lançada em uma época na qual as discussões filosóficas

1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Federal
do Maranhão (PPGDIR/UFMA). Defensor Público do Estado do Maranhão. E-mail: fabiomarlim@uol.com.br
2
Professora Doutora e Mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora do
Departamento de Letras - DELER - e do quadro permanente dos Programas de Pós-Graduação em Letras -
PPGLETRAS (Campus de São Luís) e PPGLB (Campus de Bacabal) da UFMA, Professora colaboradora do
PPGDIR -Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMA. Endereço postal:Programa de Pós-Graduação em
Direito e Instituições do Sistema de Justiça–UFMA, Rua do Sol, 117, Centro -São Luís -MA –CEP: 65020-590E-
mail: monicafcarneiro@gmail.com
gravitavam em torno da Filosofia da Linguagem e, no plano da Filosofia Moral e Política, tinham
destaque as teorias utilitaristas e intuicionistas (OLIVEIRA, 2015).
Rawls propõe um procedimentalismo puro em bases kantianas, compromisso
expressamente assumido em sua obra, ao ponto de o próprio autor negar originalidade às suas
ideias (1997). Pretendeu oferecer uma teoria da justiça dotada de alto grau de generalização e
abstração, valendo-se de uma concepção transcendente de razão, uma razão capaz de operar
descorporificada e independente de qualquer contextualização.
O procedimento de Rawls pode ser sintetizado na posição original. Nela, sujeitos
hipotéticos racionais, iguais, livres, morais e razoáveis definem a estrutura básica da sociedade
em um processo de deliberação “às cegas”. Dessa forma, tais sujeitos desconhecerão qual posição
irão ocupar na sociedade concreta que virá a ser constituída a partir dos princípios de justiça que
escolherem em comum acordo.
Aqui, a proposta de Rawls será confrontada com as descobertas das Ciências
Cognitivas, especialmente com a teoria filosófica que as aglutina, o realismo corporificado
(LAKOFF; JOHNSON, 1999). Fundado em um renovado empirismo, o realismo corporificado
funda-se em premissas diametralmente opostas às assunções filosóficas que estruturam a teoria
da justiça como equidade de John Rawls (1997), a exemplo da fundamentação da razão na
interação concreta do corpo com o mundo e de sua estrutura dependente da metáfora.
Assim, o presente trabalho busca comparar os dois paradigmas epistemológicos, para
definir o que resta do transcendentalismo rawlsiano, caso se compreenda a razão como uma
consequência da configuração de corpos e cérebros, e da interação dessa biologia com o mundo.
A hipótese trabalhada é a de que a razão humana corporificada, dependente do
aparato sensório-motor e das estruturas neurais dos cérebros, bem como o pensamento em grande
medida inconsciente e o sistema conceptual metafórico tornam o transcendentalismo de Rawls
um projeto malogrado, pois parte de premissa falsas: a autonomia da razão, a literalidade do
conceito de justiça e o desprezo pela influência do contexto nas questões da justiça.

2 O TRANSCENDENTALISMO DE UMA TEORIA DA JUSTIÇA DE RAWLS


Rawls (1997) pretendeu construir uma teoria da justiça como equidade fundada em
um procedimentalismo puro, em moldes análogos aos propostos por Kant, para quem o homem
detém valor absoluto e por isso deve se tornar autônomo pela força da razão, independente de
todas as forças externas de motivação (HERRERO, 2001). Seu propósito não era propor uma
teoria definitiva e incontrastável, daí o uso do artigo indefinido singular. Sua intenção primordial
foi construir uma teoria superior àquelas que então possuíam protagonismo na filosofia política
(RAWLS, 1997).
Por outro lado, Rawls propôs uma teoria que não deveria ter compromisso
apriorístico com algum modelo político, pois pretende discutir a justiça em grau elevado de
generalização e abstração (1997, p. 12), escopo que explica a sua matriz kantiana. Ao contrário da
ética teleológica que precedeu o iluminismo, Kant conferiu à razão humana posição
absolutamente central, sustentando que essa seria uma faculdade do homem que o habilitaria a
construir juízos analíticos e sintéticos que permitiriam o avanço do conhecimento. Para Kant, não
seria mais necessário apelar para Deus, uma vez que as escrituras religiosas não mais serviam de
norte, de elemento externo definidor dos fins do ser humano. Para Kant, portanto, a ética torna-se
deontológica, defendendo que o homem, por si só, através da razão, constrói o conhecimento e
determina as regras de comportamento que precisa seguir (OLIVEIRA, 2015).
Na sua obra Crítica da Razão Pura, Kant (2020) examina as potencialidades e limites
da razão, com o objetivo de examinar se a razão pode ser pura, sem qualquer contaminação por
elementos externos na construção do conhecimento de per si. Depois da Crítica da Razão Pura,
Kant aplica seu sistema de pensamento à Filosofia Moral na Crítica da Razão Prática, na qual a
razão se volta para o convívio humano, para a criação de princípios morais, perfilhando-se, pois,
que a razão pura pode ser prática. Assim como a razão constrói o conhecimento, também pode,
sem interferência de elementos externos, determinar as normas morais a serem seguidas pelas
pessoas (OLIVEIRA, 2015).
Entra em cena, então, o célebre imperativo categórico de Kant, um procedimento
criado para avaliar se uma pretensa norma de conduta é legítima ao ponto de ser validada como
regra moral. O procedimento do imperativo categórico possui como formulação fundamental o
dever de ação segundo a máxima pela qual se possa querer a universalização da regra de conduta.
As outras três fórmulas, derivadas da fórmula fundamental, são a da autonomia da razão prática,
a do reino dos fins e a da necessidade de tratamento de cada pessoa como fim em si mesma
(HERRERO, 2001, p. 30). Assim, ilustrando esta última fórmula, um comerciante que decide ser
honesto deve fazê-lo simplesmente porque esse é um dever moral compatível com o imperativo
categórico; por outro lado, se assim procede simplesmente porque a desonestidade põe em risco o
seu negócio, trata o consumidor como meio, instrumentalizando-o em nome de um fim externo
(heteronomia).
Portanto, a ética de Kant é deontológica, porque o sujeito deve agir somente pelo
dever, pelo fato de que a regra de conduta passou pelo teste do imperativo categórico. Nos
modelos teleológicos, como o tomista, existem finalidades previamente dadas, externas à razão,
embora se reconheça a razão como instrumento importante para a descoberta desses fins. O
modelo de Kant, pois, é procedimental, porque não existem valores dados a priori. Os princípios
morais são, portanto, construídos conforme um procedimento estruturado exclusivamente a partir
da razão.
Dessa breve exposição, infere-se como a teoria da justiça como equidade, de John
Rawls, inspira-se na Razão Prática kantiana. Uma diferença importante pode ser a constatação de
que Rawls não pretende construir uma filosofia moral abrangente, mas uma de natureza
exclusivamente política (moralidade política) – o seu recorte, portanto. Enquanto o imperativo
categórico de Kant tem como alvo as normas morais, preocupando-se até com a motivação das
pessoas nas suas escolhas particulares (razão prática), Rawls não se ocupa das concepções de
bem pessoais dos sujeitos na vida familiar, religiosa e íntima, mas sim do ser humano na
condição de cidadão, atuando na esfera pública ou política (razão pública). O autor adota um
método de abstinência epistêmica, no qual o foco repousa sobre a dimensão da cidadania,
restrição que se explica na intenção de respeitar a liberdade das pessoas na escolha de suas
concepções de vida (consenso sobreposto). Rawls investe sua análise sobre a justiça social,
concebida como valor primordial das instituições sociais (RAWLS, 1997).
Rawls pretende criar um procedimentalismo puro, no qual não existe um resultado
pré-definido a alcançar, mas sim a configuração de um procedimento que, por ser justo, resultará
em um resultado igualmente justo. Seu propósito inicial é construir uma teoria capaz de
determinar os princípios de justiça configuradores da estrutura básica da sociedade, definida
como “as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e
determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social” (RAWLS, 1997, p. 7-8).
Essas instituições mais importantes compreendem “a constituição política e os principais acordos
econômicos e sociais” (RAWLS, 1997, p. 8). É relevante, portanto, esclarecer que se trata de um
momento pré-constituinte, anterior a uma assembleia encarregada de elaborar uma constituição
para uma comunidade política determinada. Na verdade, os princípios da justiça vincularão e
orientarão os legisladores constituintes concretos:
A partir da escolha inicial dos princípios de justiça norteadores das instituições sociais,
seria implementado o que ele denomina de equilíbrio reflexivo, uma ferramenta de
aperfeiçoamento das práticas concretas de existência social de maneira a consolidar o
processo democrático e constitucional (CHAI; OLIVEIRA, 2021, p. 172-173).

O procedimento de Rawls tem como ponto de partida a posição original. A posição


original é um ponto de partida hipotético, na qual sujeitos hipotéticos aparecem como partes. São
esses sujeitos hipotéticos que vão deliberar quais são os melhores princípios de justiça para a
sociedade. As partes da posição original são representantes das pessoas e interesses do mundo
real. Tais sujeitos hipotéticos são: racionais, porque são capazes de escolher racionalmente uma
concepção de bem e possuem conhecimentos necessários para alcançar as vantagens a ela
inerentes; razoáveis, na medida em que são capazes de respeitar a liberdade e a racionalidade dos
demais sujeitos, visto que o objetivo é a adoção de uma concepção pública de justiça, alinhando-
se com o imperativo categórico kantiano, que repele a instrumentalização do homem; iguais, pois
não há hierarquia ou primazia de um sobre o outro; livres; e morais, pois capazes de seguir o que
for determinado (RAWLS, 1997; CAMARÇO, 2015).
Contudo, apesar de as partes hipotéticas serem dotadas desses atributos
(racionalidade, razoabilidade, liberdade, moralidade e igualdade), elas não sabem, embora sejam
representativas de posições sociais específicas, que posição vão efetivamente ocupar na
sociedade, quais serão seus talentos ou deficiências naturais, quais serão seus ideais, que
concepção de bem irão adotar, não sabendo tampouco como serão suas psicologias no mundo
real. É o que Rawls chama de véu de ignorância, construto cuja função é garantir a
imparcialidade dos sujeitos hipotéticos (RAWLS, 1997).
Logo, as partes da posição original sabem que podem figurar entre os mais
desfavorecidos. Assim, propostas extremas como escravidão, castas, meritocracia pura,
aristocracia etc. tendem a ser rejeitadas de plano, até mesmo porque as deliberações na posição
original reclamam unanimidade. Cada sujeito hipotético tem poder de veto. A propósito, as
deliberações na posição original são realizadas conforme o que Rawls chama de equilíbrio
reflexivo, um processo de debate, ponderação e ajuste entre as partes hipotéticas a respeito de
concepções mais ou menos abstratas formuladas por elas. Após idas e vindas, eliminação de
propostas e formulação de consensos, atingir-se-ia uma resolução final equilibrada. Em suma, o
equilíbrio reflexivo seria um mecanismo de justificação de tipo coerentista, embora existam
críticos que afirmam existir aspectos fundacionalistas na teoria da justiça de Rawls (CAMARÇO,
2015).
Rawls defende que o resultado desse procedimento serão dois princípios de justiça,
um de liberdade e outro de igualdade. De acordo com o primeiro princípio, devem ser
distribuídas liberdades máximas iguais para todos. Já o segundo princípio da justiça se bifurca
para determinar que: os cargos e posições de autoridade devem ser abertos a todos em condições
equitativas de acesso; as desigualdades de tratamento devem ser estabelecidas de modo que
favoreçam a todos, especialmente os mais desfavorecidos. Essa segunda ramificação do segundo
princípio de justiça de Rawls estabelece o chamado princípio da diferença (RAWLS, 1997).
A propósito dos dois princípios, Rawls afirma que o primeiro detém prioridade
lexical sobre o segundo, de modo que a liberdade somente pode ser limitada pela própria
liberdade. Para Rawls, a sua teoria da justiça é deontológica e construtivista, analogamente à
filosofia kantiana. Não há um fim apriorístico a alcançar.
Assim, fica evidente a contraposição de Rawls ao utilitarismo e ao intuicionismo. O
utilitarismo é teleológico, porque visa a um fim específico, como, por exemplo, a maximização
da felicidade, caso do modelo teórico de Stuart Mill. Rawls rejeita o utilitarismo tanto por causa
da heteronomia, como também em virtude da violação do imperativo categórico de Kant. Afinal,
em determinados contextos, o utilitarismo vai se contentar em maximizar a satisfação da maioria
em detrimento da minoria, o que significa deixar de reconhecer a dignidade intrínseca de tal
minoria. Rawls não aceita que pessoas tenham bens e direitos sacrificados para beneficiar outros.
Cada indivíduo é portador de uma dignidade humana inviolável. Assim, o utilitarismo colide com
o procedimentalismo puro pretendido por Rawls (1997).
O mesmo ocorre com o intuicionismo, segundo o qual existem princípios de
comportamento antecedentes e externos ao homem. O sujeito vai descobrir algo que já existe, é
preexistente. No intuicionismo, o sujeito é passivo diante do objeto, que são os princípios. Os
princípios têm valor previamente dado e o sujeito não concorre para determinar uma hierarquia
entre esses princípios. Rawls, como Kant, rejeita essa ideia. Para ele, é a razão que vai definir
esses princípios. O homem constrói os princípios de justiça através de um procedimento fundado
exclusivamente na razão. Esse procedimento é a posição original. Nesse sentido, os modelos de
Kant e Rawls são construtivistas.
Em sua obra, Rawls (1997) entende que talentos naturais são dados arbitrários. A
loteria da natureza não é um parâmetro de justiça. Rawls, portanto, se interessa pelos pontos de
partida. O autor reconhece que as pessoas nascem com diferentes habilidades e dons, ou mesmo
com deficiências, de maneira que seus pontos de partida são distintos. Assim, conceder a elas
apenas a liberdade, sem correção de certas diferenças naturais arbitrárias, não seria satisfatório
em uma sociedade justa. Portanto, a teoria de justiça como equidade, reconhecendo as diferenças
de pontos de partida, pretende aproximar as pessoas, potencialmente, dos mesmos pontos de
chegada.
Portanto, Rawls aborda a justiça sob uma perspectiva transcendental, na medida em
que busca um procedimento que ofereça uma configuração perfeitamente justa do que chama de
estrutura básica da sociedade. Como explica Sen (2012, p. 25):
(...) o ponto imediato a notar no contexto do entendimento da abordagem transcendental
é que o exercício da equidade tem como objetivo total identificar os princípios
apropriados para uma sociedade completamente justa e isolar as necessidades
institucionais para a estrutura básica de tal sociedade. Por sua vez, o trabalho dessas
instituições conduz a mais decisões sociais nos estágios posteriores no sistema
rawlsiano, por exemplo, por meio da legislação apropriada (que Rawls chama de “o
estágio legislativo”). A sequência avança passo a passo em linhas especificadas
firmemente, com o desdobramento muito elaborado de arranjos sociais justos.

A abordagem transcendental é criticada por sua fuga da contextualização das questões


da justiça com os traços concretos de uma comunidade política, sua história, cultura e arranjos
sociais reais3.
No presente artigo, pretende-se formular uma crítica do transcendentalismo de certo
modo mais profunda, no sentido de questionar a própria concepção de razão abraçada pelo
transcendentalismo rawlsiano e seu potencial para construir uma sociedade justa a partir de um
esquema abstrato (posição original) pretensamente descolado das injunções implacáveis da
cognição humana e da cultura. Trata-se de uma crítica desenvolvida à luz da linguística cognitiva,
sobretudo do Realismo Corporificado de Lakoff e Johnson (1999; 2002).

3 AS CIÊNCIAS COGNITIVAS E O REALISMO CORPORIFICADO

3
Como pondera Sen (2012, p. 26): “Uma abordagem transcendental não pode, por si própria, abordar as questões
sobre o avanço da justiça e comparar propostas alternativas para se ter uma sociedade mais justa, faltando a proposta
de um salto radical para um mundo perfeitamente justo. De fato, as respostas que uma abordagem transcendental da
justiça dá – ou pode dar – são muito distintas e distantes do tipo de interesses que engajam as pessoas em discussões
sobre a justiça e a injustiça no mundo, por exemplo, iniquidades como fome, analfabetismo, tortura, prisão arbitrária
ou falta de assistência médica, como características sociais particulares que necessitam ser remediadas.”
“A mente é inerentemente corporificada. O pensamento é principalmente
inconsciente. Conceitos abstratos são, em sua maioria, metafóricos.”4 (LAKOFF; JOHNSON,
1999, p. 14, tradução nossa).
Lakoff e Johnson iniciam a obra Philosophy in the Flesh (1999) com essas três
impactantes afirmações que colocam em xeque a tradição filosófica ocidental5. Essa tradição, da
qual o transcendentalismo rawlsiano faz parte, considera a razão um atributo transcendente que
diferencia o ser humano dos demais seres viventes.
Em sentido diametralmente oposto, os próceres da linguística cognitiva 6 defendem
que a razão é corporificada, pois deriva diretamente da forma como funcionam cérebro e corpo
humanos, sendo condicionada pelo modo como as estruturas neurais e o corpo humano em geral
interagem com o mundo. Assim, não existe uma ruptura entre a condição humana e os demais
animais a partir de uma diferenciação promovida por uma razão transcendente, mas sim uma
categorização mais ou menos diferenciada do mundo. Há, pois, uma relação de continuidade, nos
termos de uma visão darwinista da razão.
Todo ser vivo categoriza. Mesmo a ameba categoriza as coisas que encontra como
comida ou não-comida, o que a faz mover-se em direção de algo ou afastar-se. A ameba
não pode escolher se categoriza; ela simplesmente o faz. O mesmo é verdade em todos
os níveis do mundo animal. Animais categorizam comida, predadores, potenciais
parceiros, membros de sua própria espécie, e assim por diante. Como animais
categorizam depende de seus aparatos sensitivos e da habilidade de se moverem e
manipular objetos7 (LAFOFF; JOHNSON, 1999, p. 27, tradução nossa).

Portanto, a categorização é questão de sobrevivência e depende do modo como


cérebro e corpo interagem com o mundo. A universalidade possível da razão restringe-se às

4
Texto original: “The mind is inherently embodied. Thought is mostly unconscious. Abstract concepts are largely
metaphorical.”
5
Ferrari (2001, p. 24) explica que, “No livro ‘Metaphors we live by’ (1980), Lakoff e Johnson argumentam que a
existência de metáforas conceptuais requer que várias suposições fundamentais da tradição filosófica occidental com
relação a significado, conceptualização, razão, conhecimento, verdade e linguagem sejam repensadas. Quase vinte
anos depois, com a publicação de ‘Philosophy in the Flesh’ (Lakoff & Johnson, 1999), várias descobertas empíricas
sobre a natureza da mente advindas da Linguísticas, Pisicologia, Nuerociência Cognitiva e Antropologia tornaram-se
disponíveis, não apenas reforçando as idéias iniciais sobre a natureza consitutiva das metáforas conceptuais, mas
também revelando implicações para as tradições filosóficas bem estabelecidas, como a filosofia analítica anglo-
americana e a filosofia pós-moderna.”
6
O termo “cognitivo” nas ciências cognitivas compreende qualquer operação ou estrutura mental utilizadas na
linguagem, na significação, na percepção, nos sistemas conceptuais e na razão, independentemente de serem
conscientes (LAKOFF; JOHNSON, 1999).
7
Texto original: “Every living being categorizes. Even the amoeba categorizes the things it encounters into food
ornonfood, what it moves toward or moves away from. The amoeba cannot choose whether tocategorize; it just does.
The same is true at every level of the animal world. Animals categorizefood, predators, possible mates, members
of their own species, and so on. How animalscategorize depends upon their sensing apparatus and their ability
to move themselves and tomanipulate objects.”
semelhanças compartilhadas de nossos corpos. Se a razão é corporificada, isto é, se o pensamento
e o sistema conceptual humanos derivam de relações e processos de categorização inconscientes
derivados do modo como nosso corpo experimenta o mundo – nos limites de suas possibilidades
perceptuais determinados por corpo e cérebro –, então a razão é, em grande medida, inconsciente,
pois grande parte do que faz não deriva de construções deliberadas da mente 8. Isso significa que,
mesmo na elaboração consciente de categorias, categorias inconscientes se imiscuem para
determinar as categorias conscientes possíveis (LAKOFF; JOHNSON, 1999; 2002).
Mais importante, não é apenas que nossos corpos e cérebros determinam que precisamos
categorizar; eles também determinam que tipos de categorias teremos e como serão suas
respectivas estruturas. Pense nas propriedades do corpo humano que contribuem para as
peculiaridades do nosso sistema conceptual. Temos olhos e ouvidos, braços e pernas que
funcionam de certas maneiras muito definidas e não de outras. Temos um sistema visual,
com mapas topográficos e células sensíveis à orientação, que fornece estrutura para
nossa capacidade de conceituar as relações espaciais. Nossas habilidades para nos
movermos da maneira que fazemos e captarmos o movimento de outras coisas
desempenham um papel importante em nosso sistema conceptual. O fato de termos
músculos e usá-los para aplicar força de certas maneiras determina a estrutura do nosso
sistema de conceitos causais. O importante não é apenas que temos corpos e que nosso
pensamento está de alguma forma corporificado. O importante é que a natureza peculiar
de nossos corpos molda nossas possibilidades de conceituação e categorização 9
(LAKOFF; JOHNSON, 1999, tradução nossa).

Dentro desse quadro, Lakoff e Johnson (1999; 2002) afirmam que a razão não é
literal, mas em grande parte metafórica, uma vez que concebemos e utilizamos conceitos mais
abstratos por meio de mapeamentos parciais de conceitos mais concretos, esses, de mais fácil
assimilação, porque são corporalmente experimentados. Expressões metafóricas frequentemente
usadas para conceituar entidades abstratas seriam possíveis por causa de mapeamentos cognitivos
entre domínio fonte e domínio alvo (CARNEIRO, 2014). Tais mapeamentos fazem uso de
8
O pensamento é inconsciente não no sentido freudiano, a exemplo de um desejo recalcado, mas sim no sentido de
que o pensamento opera a partir de pressupostos não considerados no nível consciente, a exemplo de premissas
automaticamente assumidas como válidas derivadas da linguagem, da memória, da gramática, do contexto de fala, da
semântica, da pragmática etc. Tais assunções inconscientes não são produto de uma desatenção momentânea, mas
realmente impossíveis de serem controladas pela consciência (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 21). Daí não se infere
que a razão é irracional, mas simplesmente se desvela como a racionalidade de fato se desenvolve, numa relação
indistinguível de corpo e mente.
9
Texto original: “Most important, it is not just that our bodies and brains determine that we will categorize; they also
determine what kinds of categories we will have and what their structure will be. Think of the properties of the
human body that contribute to the peculiarities of our conceptual system. We have eyes and ears, arms and legs that
work in certain very definite ways and not in others. We have a visual system, with topographic maps and
orientation-sensitive cells, that provides structure for our ability to conceptualize spatial relations. Our abilities to
move in the ways we do and to track the motion of other things give motion a major role in our conceptual system.
The fact that we have muscles and use them to apply force in certain ways leads to the structure of our system of
causal concepts. What is important is not just that we have bodies and that thought is somehow embodied. What is
important is that the peculiar nature of our bodies shapes our very possibilities for conceptualization and
categorization.”.
alguns atributos ou traços de um conceito (domínio fonte) projetando realizações metafóricas
sobre o outro (domínio alvo), produzindo metáforas de natureza conceptual que licenciam
expressões linguísticas metafóricas10. Com o reconhecimento de seu papel cognitivo, a metáfora
deixa de ser apenas uma figura de linguagem para ser também uma figura de pensamento,
operando a chamada “virada cognitiva” (VEREZA, 2013, p. 2). 
As consequências para a filosofia são profundas e inevitáveis:
O fato de o pensamento abstrato ser principalmente metafórico significa que respostas a
questões filosóficas sempre foram, e sempre serão, em grande medida metafóricas. Em
si, isso não é bom nem ruim. É simplesmente um fato sobre a capacidade da mente
humana. Mas isso tem enormes consequências para cada aspecto da filosofia. O
pensamento metafórico é a principal ferramenta que torna possível o conhecimento
filosófico e que constrange as formas que a filosofia pode assumir. 11 (LAKOFF;
JOHNSON, 1999, p. 17, tradução nossa).

Lakoff e Johnson rejeitam a ideia de uma verdade absoluta e objetiva. Propõem que
verdades são sempre relativas a um sistema conceptual, o qual é, sobretudo, metaforicamente
estruturado (2002).
Na obra que representou a “virada cognitiva”, os autores explicam que, para entender
o mundo e nele agir, as pessoas categorizam objetos e experiências (LAKOFF; JOHNSON,
2002). Nesse processo de categorização, certas propriedades desses objetos e eventos são
realçadas em graus diferentes, conforme dimensões naturais estabelecidas a partir da interação
humana (corpórea, social, cultural etc.). As categorias são definidas a partir daquilo que Lakoff e
Johnson denominam propriedades interacionais (2002). São interacionais por serem selecionadas
com base no contexto experiencial do ser humano, isto é, nas percepções e intenções que as
pessoas têm ao interagir com o objeto ou evento a ser descrito, classificado, categorizado.
Logo, as propriedades não são inatas, mas mediadas pela interação corpórea e
sociocognitiva. Daí, chega-se à conclusão de que a noção de verdade é pertinente às propriedades

10
Os autores citam diversos exemplos de metáforas conceptuais, tais como: TEORIAS SÃO CONSTRUÇÕES,
IDEIAS SÃO ALIMENTOS, DISCUSSÃO É GUERRA e tantos outros. Como explicam e ilustram ao longo de toda
a obra, parte da estrutura do conceito que serve de domínio fonte (nos exemplos, CONSTRUÇÕES, ALIMENTOS e
GUERRA) é projetada para estruturar o conceito de maior abstração, o domínio alvo (nos exemplos, TEORIA,
IDEIAS e DISCUSSÃO). Segundo os autores, é, em grande medida, com base neste processo cognitivo metafórico
que o sistema conceptual é formado. Ele permite que não se estranhe frases como: “A teoria tem alicerce frágil”;
“Não engoli aquela ideia”; “Promotor e advogado se digladiavam para conquistar o júri” (LAKOFF; JOHNSON,
2002).
11
Texto original: “The fact that abstract thought is mostly metaphorical means that answers to philosophical
questions have always been, and always will be, mostly metaphorical. In itself, that is neither good nor bad. It is
simply a fact about the capacities of the human mind. But it has major consequences for every aspect of philosophy.
Metaphorical thought is the principal tool that makes philosophical insight possible and that constrains the forms that
philosophy can take.”
interacionais que compõem a categoria em questão, as quais são forjadas de acordo com
percepções individuais e socialmente compartilhadas (cultura), bem como pelo contexto em que o
objeto ou evento é avaliado.
As categorias humanas são definidas em termos de protótipos. Protótipos são
exemplos típicos da categoria e estabelecem uma referência de pertencimento, uma escala de
prototipicidade (FERRARI, 2018, p. 41).
Segundo Lakoff e Johnson (1999, p. 28-29), um protótipo é uma estrutura neural que
permite um determinado número de inferências e projeções imagéticas relacionadas a uma
categoria. Pensando em um exemplo simples, imagine-se que o protótipo da categoria cadeira
seja um objeto de madeira dotado de assento, quatro pernas e um encosto para as costas. Em
regra, o raciocínio humano é baseado em protótipos (v.g. estereótipos sociais, exemplares mais
conhecidos etc.), o que significa dizer que ele costuma operar pensando na cadeira de madeira e
quatro pernas, não em uma confortável cadeira de escritório com rodinhas. As características dos
protótipos são responsáveis por definir as categorias, o que é feito com base em uma metáfora
espacial, segundo a qual as categorias são imaginadas como contêineres com partes interna,
externa e balizas: o que possuir atributos prototípicos está dentro do contêiner (categoria), mais
ou menos distante dos limites fixados pelas balizas, conforme as características do protótipo
selecionadas como importantes, o que pode variar de acordo com o contexto.
Todas essas estruturas conceptuais que alimentam o processo de categorização
correspondem a estruturas neurais no cérebro humano. O sistema conceptual é, pois,
corporificado. Como conceitos se distinguem pela capacidade de permitir inferências, pode-se
dizer que grande parte das inferências conceituais são condicionadas pelo sistema sensório-motor.
Em outras palavras, aquela tarefa que se costuma atribuir à razão, a inferência conceitual, habita
o mesmo locus da percepção e do controle motor, todas elas compreendidas como funções
corporais (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 29).
Desse modo, os conceitos não são reflexos do mundo externo, mas construções
moldadas pela interação entre corpo (e cérebro) e ambiente. As cores, por exemplo, não existem
na natureza, mas são conceitos moldados a partir da forma como a luz é capturada pelos cones de
cor dos olhos e como essas informações colhidas são decodificadas no processamento neural.
Essa constatação invalida tanto uma visão objetivista, pois as cores não existem no mundo
externo, como uma visão puramente subjetivista, na medida em que as cores são resultado do
encontro da biologia humana com o mundo, e não produto da cultura. De igual forma, a própria
teoria da verdade como correspondência sofre sério abalo, porque a verdade da cor azul do céu
não corresponde a um céu realmente cujo azul independa da mediação do corpo humano
(LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 33).
O realismo corporificado (LAKOFF; JOHNSON, 1999) – ou experiencialismo da
obra inaugural (LAKOFF; JOHNSON, 2002) – representa, portanto, uma terceira via entre
objetivismo e subjetivismo, empirismo e racionalismo:
A visão experiencialista, portanto, encara a experiência como resultado de estruturas
cognitivas e sensório-motoras corporificadas que geram significado através de interações
permanentes com ambientes em constante mudança (...).
O significado não provém, portanto, apenas de estruturas “internas” ao organismo, nem
tampouco de estruturas “externas”, mas sim de padrões recorrentes de interação entre
organismo e ambiente. É interessante destacar aqui o trabalho de Rohrer (2001) que
apresentou evidências experimentais indicando que a parte do córtex motor conectada
com as mãos se torna ativa não apenas em experiências com as mãos, mas também em
sentenças literais sobre as mãos – e em sentenças metafóricas que têm as mãos como
domínio-fonte (FERRARI, 2001, p. 25).

Assim, embora a corporificação seja responsável por esquemas imagéticos e


metáforas conceptuais inerentes ao compartilhamento da mesma biologia pelos seres humanos,
essas restrições, até mesmo pela sua natureza interacional, são amplamente permeáveis à
influência do meio sociocultural, de modo que são comuns variações culturais no modo como o
processo de categorização, conceptualização e produção de significado é desenvolvido
(FERRARI, 2001).
A propósito, Kovecses (2002, p. 183) identifica variações culturais em metáforas - e
metonímias – conceptuais. Segundo o autor, há dois tipos de variações culturais: a intercultural
(cross-cultural) e a intracultural (within-culture). Quanto às primeiras, pode haver diferenças no
conjunto de metáforas conceptuais que línguas e culturas disponibilizam para a conceptualização
de domínios-alvos, os quais, como visto, são mais abstratos. Em outros casos, duas culturas
podem compartilhar a mesma metáfora conceptual, porém a elaboram de forma diferente.
Ainda em relação às variações interculturais, Kovecses (2002, p. 186) identifica duas
causas: uma é o contexto cultural mais amplo, definido pelos “princípios governantes e os
conceitos-chave em uma determinada cultura”; a outra, o ambiente natural e físico no qual a
cultura se formou e desenvolve.
Assim, conceitos como os de moralidade e justiça, típicos domínios-alvos em virtude
do grau de abstração, estão sujeitos a variações culturais. Afinal, as metáforas conceptuais que
tendem à universalidade são aquelas no “nível genérico” (Kovecses, 2002), o que significa seu
enraizamento mais evidente na experiência corporificada. As questões da justiça, por outro lado,
habitam um “nível específico” (Kovecses, 2002), mais vulneráveis às idiossincrasias de cada
contexto cultural.
Como conclusão, as Ciências Cognitivas concebem uma razão corporificada. A
estrutura do pensamento humano e a produção de significado derivam do modo como corpo e
cérebro funcionam e interagem com o mundo externo. Metodologicamente, pelo fato de a razão
funcionar como funciona, o realismo corporificado repele assunções filosóficas apriorísticas,
investindo em uma investigação empiricamente responsável que assuma um compromisso com a
natureza corporificada da mente humana, com a busca de evidências convergentes na
fundamentação de asserções e com a construção de generalizações não predeterminadas12.

4 O TRANSCENDENTALISMO RAWLSIANO VISTO PELAS LENTES DO REALISMO


CORPORIFICADO
Viu-se no tópico 2 que a teoria da justiça como equidade de Rawls (1997) baseia-se
em um procedimentalismo puro inspirado em Kant. A pureza alude à autonomia, atributo
marcante da ética kantiana e abraçada também por Rawls, que rejeita princípios e finalidades
externas à razão na determinação dos princípios de justiça.
Não é difícil perceber que se trata de uma concepção de razão descorporificada,
dissonante das evidências colhidas pelas Ciências Cognitivas, que tem na corporificação da razão
uma premissa fundamental.
A propósito, Lakoff e Johnson ponderam (1999, p. 15, tradução nossa):
Não existe a pessoa kantiana radicalmente autônoma, com liberdade absoluta e uma
razão transcendente que dita corretamente o que é e o que não é moral. A razão,
decorrente do corpo, não transcendente o corpo. Os aspectos universais da razão surgem
das partes comuns de nossos corpos e cérebros e dos ambientes que habitamos. A
existência desses universais não implica que a razão transcende o corpo. Além disso,

12
De acordo com Lakoff e Johnson (1999), as estruturas conceituais e inferenciais utilizadas pelo realismo
experiencial (categorização, protótipos, domínios, metáforas conceptuais, mapeamento, corporificação etc.) são
descobertas empíricas, não construções puramente racionais e abstratas. Segundo os autores, isso não significa que as
ciências cognitivas não tenham suas assunções filosóficas, as quais, no caso, são de natureza metodológica e
expressam justamente um compromisso com a busca empírica de evidências, sem com isso cair-se em um empirismo
clássico. A propósito, Lakoff e Johnson (1999, p. 87) afirmam-se pós-kuhnianos e entendem que a ciência é uma
prática social, cultural e histórica, bem como que o conhecimento é sempre dependente de um contexto, inclusive
suscetível ao poder. Sem embargo, defendem a possibilidade de produção de conhecimentos estáveis e confiáveis
fundamentados na mais ampla possível convergência de evidências.
uma vez que os sistemas conceituais variam significativamente, a razão não é totalmente
universal13.

Assim, o realismo corporificado identifica um problema fundamental na base


filosófica da teoria da justiça de Rawls. A razão é inerentemente condicionada pela configuração
de corpo e cérebro, ainda que disso não se dê conta o filósofo. Para a Ciência Cognitiva, portanto,
a autonomia da razão é uma assumpção filosófica prévia e incompatível com a rede de evidências
empíricas convergentes que dão suporte aos três pressupostos do realismo corporificado: mente
corporificada, pensamento em larga medida inconsciente e sistema conceptual estruturado
metaforicamente (LAKOFF; JOHNSON, 1999).
A deontologia rawlsiana afirma serem seus princípios da justiça o resultado de um
procedimento asséptico, livre de finalidades, de concepções de bem pessoais e de análises
consequencialistas. As concepções deontológicas da moral são objeto de consideração de Lakoff
e Johnson (1999, p. 296, tradução nossa):
Tipicamente, acredita-se que nossos conceitos e regras morais saem de uma razão
universal e são pensados para ele se vincular universalmente a todas as pessoas,
independentemente de seus fins e propósitos. Isso é o que Rawls quer dizer quando diz
que "a justiça" (princípios morais) precede "o bem" (consequências). O direito pode ser
definido inteiramente independente do bem. Tal suposta divisão entre princípios e fins
parece altamente problemática à luz do caráter metafórico de grande parte do nosso
raciocínio moral. Vimos que, na maioria de nosso raciocínio sobre moralidade, os
padrões de inferência que usamos vêm de domínios de origem pelos quais entendemos o
bem-estar.14

Com efeito, em contraste com a deontologia de Rawls, o realismo corporificado


considera a moralidade uma metáfora. Como tal, o raciocínio moral produz inferências sobre o
domínio-alvo da moralidade em termos de outros domínios (domínio-fonte) ligados à ideia de
bem-estar, o que é uma consequência inescapável da estrutura metafórica do sistema conceptual.
Nossos vários modos de afirmar princípios morais abstratos e nos engajar em raciocínio
moral abstrato surgem de concepções de bem-estar, ou seja, "consequências". Quando
usamos tais padrões metaforicamente derivados de inferência para raciocinar sobre
moralidade, os princípios que temos e usamos são inextricavelmente atados a fins,
objetivos e propósitos. Nesses casos, portanto, o quadro deontológico da deliberação
13
Texto original: “There exists no Kantian radically autonomous person, with absolute freedom and a transcendent
reason that correctly dictates what is and isn't moral. Reason, arising from the body, doesn't transcend the body. What
universal aspects of reason there are arise from the commonalities of our bodies and brains and the environments we
inhabit. The existence of these universals does not imply that reason transcends the body. Moreover, since conceptual
systems vary significantly, reason is not entirely universal.”
14
Texto original: “Typically, our moral concepts and rules are believed to come straight out of a universal reason and
are thought to be binding universally on all people, regardless of their ends and purposes. This is what Rawls means
when he says that "the right"(moral principles) precedes "the good" (consequences). The right can be defined entirely
independent of the good. Such an alleged split between principles and ends looks highly problematic in light of the
metaphorical character of much of our moral reasoning.”
ética simplesmente não se encaixa 15 (LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 297, tradução
nossa).

Nota-se, pois, uma incompatibilidade absoluta entre os dois paradigmas, inclusive em


razão da aversão da teoria rawlsiana ao empirismo que marca profundamente as Ciências
Cognitivas. Para estas, a questão da racionalidade humana é por natureza um problema empírico,
não fugindo à regra a racionalidade moral. Segundo Lakoff e Johnson (1999), a compreensão das
questões morais – e, por conseguinte, de justiça – à luz da metáfora e da corporificação da mente
implica o abandono da inocência cognitiva em matéria de Filosofia Moral16.
Por outro lado, a abordagem transcendental de Rawls repele compromissos
apriorísticos com modelos políticos concretos ou qualquer contextualização relativa a uma
comunidade política existente. No entanto, viu-se que a cognição humana é condicionada pelo
corpo e pelo ambiente externo. A justiça é apenas mais um conceito abstrato cuja elaboração,
compreensão e inserção no discurso depende de um mapeamento metafórico sujeito a
implicações e inferências de um domínio-fonte mais concreto, segundo um processo sujeito a
variações culturais importantes, sobretudo quando as questões da vida real de uma comunidade,
de um grupo ou indivíduo são postas na mesa.
Portanto, a posição original, constituída por sujeitos hipotéticos, é um
empreendimento fantasioso à luz do realismo corporificado. O filósofo que se dedica a esse
compromisso transcendental, por mais que se esforce, fracassará na tentativa de evitação dos
condicionamentos de uma mente corporificada e culturalmente situada. O distanciamento das
concepções de bem é empreendimento tendente ao fracasso, porque formulações sobre
moralidade e justiça estão metaforicamente vinculadas a formas de bem-estar (LAKOFF;
JOHNSON, 1999). Por outro lado, variações interculturais no sistema conceptual metafórico
ocuparão o nível inconsciente da razão do filósofo (KOVECSES, 2002), de modo que os
resultados oferecidos pela posição original em uma comunidade política divergirão, em maior ou

15
Texto original: “Our very modes of stating abstract moral principles and engaging in abstract moral reasoning arise
from modes of well-being, that is, "consequences."When we use such metaphorically derived inference patterns to
reason about morality, the principles we get, and use are inextricably tied up with ends, goals, and purposes. In such
cases, therefore, the deontological picture of ethical deliberation just doesn't fit.”
16
Embora sob premissas epistemológicas distintas, a afirmação da inocência da abordagem transcendentalista
dialoga com a crítica de Wolkmer (2003), para quem o próprio conceito de justiça deve ser disputado, uma vez que
uma concepção abstrata e descontextualizada, apartada da realidade social e histórica do Direito, apenas oculta o
jogo de forças que formata a estrutura jurídica de uma comunidade política.
menor medida, dos resultados alcançados em outra, senão no nível abstrato, certamente no que
diz respeito ao ponto crucial de aplicação concreta dos princípios de justiça17.
Nesses termos, o realismo corporificado nega a possibilidade de uma abordagem
transcendental da justiça e reforça os paradigmas contextualistas 18. A compreensão do caráter
metafórico da moralidade e da justiça sugere o abandono da visão transcendental. Segundo
Lakoff e Johnson (1999, p. 298, tradução nossa):
Nunca mais podemos prosseguir com os negócios como de costume, seja em nosso
raciocínio moral ou em nossa teorização moral. Não há razão moral pura e não há
conceitos morais puros que sejam entendidos unicamente "em si" ou apenas em relação a
outros conceitos éticos puros. Nossa compreensão moral é metafórica, desenhando
padrões de estrutura e inferência de uma ampla gama de domínios experienciais que
envolvem valores, bens, fins e propósitos. Nosso sistema de conceitos morais não é nem
monolítico, nem totalmente consistente, nem fixo e acabado, e certamente não é
autônomo. O que a ciência cognitiva traz à compreensão moral são duas coisas
absolutamente essenciais: primeiro, uma compreensão mais profunda do que é o
raciocínio moral e de onde ele vem; segundo, a capacidade de olhar para os detalhes
finos, saber quais metáforas morais particulares você e outros estão usando e o papel que
cada metáfora desempenha nas conclusões morais alcançadas19.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As abordagens transcendentalistas da justiça se notabilizam pela pretensão de propor


arranjos sociais justos em si, perfeitos e independentes de qualquer contextualização. A teoria da
justiça como equidade de Rawls (1997) encampa esse objetivo com base na proposição de um
procedimento puro que pode ser sintetizado no conceito de posição original.
Fundada em uma premissa contratualista, a posição original é um ponto de partida
hipotético, formada por sujeitos representativos hipotéticos, todos racionais, razoáveis, iguais,

17
Para o bem ou para o mal, a tensão entre liberdade e igualdade assumirá feições distintas em uma comunidade
política marcada por um longo período de escravidão e/ou por profundas desigualdades econômicas e sociais
relativamente a outra sociedade etnicamente homogênea, socialmente menos complexa e mais igualitária.
18
Segundo Sen (2012, p. 30), “A busca pela justiça transcendental é um exercício envolvido em si mesmo, mas
independente de pensarmos a transcendência em termos de o “certo” sem graduação ou se pensamos na
transcendência em uma estrutura de o “melhor” graduado, ela não nos diz muito sobre os méritos comparativos de
muitos – de fato, tipicamente a maioria – dos diferentes arranjos sociais.”
19
Texto original: “We can never again proceed with business-as-usual, either in our moral reasoning or in our moral
theorizing. There is no pure moral reason and there are no pure moral concepts that are understood solely "in
themselves" or in relation only to other pure ethical concepts. Our moral understanding is metaphorical, drawing
structure and inference patterns from a wide range of experiential domains that involve values, goods, ends, and
purposes. Our system of moral concepts is neither monolithic, nor entirely consistent, nor fixed and finished, and
certainly not autonomous. What cognitive science brings to moral understanding are two absolutely essential things:
first, a deeper understanding of what moral reasoning is and where it comes from; second, the ability to look at the
fine details, to know which particular moral metaphors you and others are using and the role each metaphor plays in
the moral conclusions reached.”
morais e livres. Para Rawls, a deliberação desses sujeitos sob o véu de ignorância e com base no
equilíbrio reflexivo terá, como resultado, dois princípios de justiça: um de liberdade e outro de
igualdade, com prioridade lexical para o primeiro. Como visto, a teoria rawlsiana radica
fortemente em Kant, especialmente porque defere à razão um caráter transcendente, capaz de
atingir o conhecimento e o ideal do justo com autonomia.
No entanto, as evidências empíricas produzidas pelas Ciências Cognitivas, da
Linguística Cognitiva à Neurociência, sugerem que a razão humana não funciona como
pretendem Kant e Rawls. A razão não transcende o corpo, mas é corporificada. Isso significa que
a forma como o corpo humano é, a forma como se move e interage com o mundo determinam o
modo como a mente humana funciona. A universalidade possível deriva da semelhança dos
corpos, porém variações estão sempre presentes, tendo em vista que o sistema conceptual é
situado, isto é, responde ao ambiente no qual o corpo interage.
Assim, o realismo corporificado entende que a autonomia da razão é um mito, uma
assumpção meramente ideológica, uma vez que pesquisas empíricas das chamadas Ciências
Cognitivas demonstram que a mente é corporificada, o pensamento é sobretudo inconsciente e o
sistema conceptual se estrutura metaforicamente (LAKOFF; JOHNSON, 1999).
De acordo com este paradigma, moralidade e justiça são conceitos elaborados,
compreendidos e manipulados metaforicamente. Como domínios-alvos, reivindicam o
mapeamento de atributos de domínios fontes mais concretos. Em matéria de raciocínio moral, os
domínios de origem estão ligados a modos de bem-estar; é a partir deles que são produzidas
inferências no campo das questões morais e de justiça.
Se esse é o caso, a heteronomia é uma necessidade insuperável nas discussões
vulgares ou teóricas sobre justiça, consequência da corporificação da mente, da estrutura
metafórica do sistema conceptual humano e da contextualização implacável da razão, sujeita a
variações culturais.
Desse modo, a posição original e seus sujeitos hipotéticos racionais – racionais em
sentido descorporificado – podem ser considerados como um procedimento ingênuo, na medida
em que se ignora como de fato a razão humana opera no e com o mundo.

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