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A. R. Luria
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; Curso de Psicologia Geral


I •
Volume II

Sensações e Percepção
Psicologia dos Processos Cognitivos

Tradução de
P aulo B ezerra
»
Revisão técnica de
H elmuth R. ICrüger
Professor de Psicologia da
uprj e da uerj

civilização
brasileira
Titulo do original em russo:
OSCHUSCHÊNIYA I VOSPRIYATIE

Capa:
DOUNÈ

Revisão:
U m b e r t o F. P i n t o
с N ilo F e rn a n d e s

Direitos desta edição adquiridos,


com exclusividade para a língua portuguesa, pela
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
Rua Muniz Barreto, 91/93,
RIO DE JANEIRO — RI,
que se reserva a propriedade desta tradução.

1979

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Sumário

I — S en sa çõ es 1

O problema (
A sensação como fonte de conhecimento 2
Teorias receptora e reflectora das sensações (S
Classificação das sensações 8
Classificação sistemática da sensações 9
Tipos de sensações exteroceptivas 14
Interação das sensações e o fenômeno da
sinestesia 15
Níveis de organização das sensações 18
Medição das sensações. Estudos do limiar abso­
luto das sensações 21
Estudo da sensibilidade relativa (diferencial) '27
Variação da sensibilidade (adaptação e sensi­
bilização) 79

П — P ercepçXo 37
A atividade perceptiva do homem. Característi­
cas gerais 37
Percepção tôtil 45
Formas simples de percepção tátil 45
Formas complexas de percepção tátil 49
Percepção visual 54
Estrutura do sistema visual 55
Percepção das estruturas 61
Percepção dos objetos e situações 64
Fatores determinantes da percepção de objetos
complexos „ 68
Métodos de estudo da percepção visual falsa 72
Desenvolvimento da percepção material 75
Patologia da percepção material 77
Percepção do espaço 82
Percepção auditiva 86
Bases fisiológicas e morfológicas da audição 86
Organização psicológica da percepção auditiva 89
Patologia da percepção auditiva 93
Percepção do tempo 96
I

Sensações

O problema

A à s e n s a ç õ e s constituem a fonte básica dos nosso»


conhecimentos atinentes ao mundo exterior e ao nosso pró­
prio corpo. Elas representam os principais canais, por onde
a informação relativa aos fenômenos do mundo exterior e
ao estado do organismo chega ao cérebro, permitindo ao
homem compreender o meio ambiente e o seu próprio cor­
po. Se esses canais estivessem fechados e os órgãos dos sen­
tidos não fornecessem a informação necessária, nenhuma
atividade consciente seria possível.
Há fatos conhecidos segundo os quais o homem, pri­
vado da afluência constante de informação, cai em estado
de sonolência. Esses casos se verificam quando o homem
perde subitamente a visão, a audição e o olfato e quando
suas sensações táteis são limitadas por algum processo
patológico. '

Г
Obtém-se resultado semelhante quando, durante algum
tempo, coloca-se o homem numa câmara à prova de som
e luz, que o isola do contato com o mundo exterior e ele
se mantém na mesma posição (deitado) durante certo
tempo. Essa situação a princípio provocava sono, toman­
do-se mais tarde dificilmente suportável para os sujeitos
experimentais*.
Inúmeras observações demonstraram que a interrupção
da afluência de informação na tenra infância, suscitada por
surdez e cegueira, provoca bruscas contenções do desenvol­
vimento psíquico. Se as crianças que nasceram cegas e sur­
das ou perderam a audição e a visão em idade tenra não
receberem educação por métodos especiais, que compensem
esses defeitos à custa do tato, tornar-se-á impossível seu de­
senvolvimento psíquico normal e elas não conseguirão desen­
volver-se com autonomia.

A sensação como fonte de conhecimento

As sensações permitem ao homem perceber os sinais e


refletir as propriedades e os indícios dos objetos do mundo
exterior e dos estados do organismo. Elas ligam o homem
ao mundo exterior e tanto representam a fonte principal do
conhecimento quanto a condição fundamental do desenvol­
vimento psíquico do indivíduo.
No entanto, apesar da evidência dessa tese, essa afirma­
ção fundamental foi reiteradamente posta em dúvida na his­
tória da filosofia idealista.
Os filósofos idealistas expressavam freqüentemente a
idéia segundo a qual a fonte autêntica da nossa vida cons­
ciente não é constituída pelas sensações mas pelo estado inte­
rior da consciência e pela capacidade do conhecimento racio­
nal, que são dados pela natureza e independentes da afluên­
cia da informação que chega do mundo exterior.
Essas concepções serviram de base à filosofia do “ra­
cionalismo” (eles tiveram expressão nítida em Cristian

• Em testes psicológicos empregaremos sempre o termo "sujeito”, suben­


tendendo “sujeito experimentai”. (N . do T.)

2
Wolf, filósofo racionalista alemão). A essência dessa filo­
sofia consiste em que os processos psíquicos não são um
produto do complexo desenvolvimento histórico e seus adep­
tos interpretavam erroneamente a consciência e a razão não
como o resultado de uma complexa evolução histórica mas co­
mo uma propriedade primária e inexplicável do “espírito”
humano. É fácil perceber que todos os dados da ciência
moderna, antes referidos, rejeitam radicalmente essa tese.
Mas os filósofos idealistas e psicólogos a eles afetos ten­
taram reiteradamente refutar uma tese que pareceria eviden­
te — a tese segundo a qual as sensações colocam o homem
em contato com o mundo exterior — e demonstrar uma
teso oposta e paradoxal, segundo a qual as sensações sepa­
ram o homem do mundo exterior por serem uma muralha
intransponível entre ele e esse mundo.
Essa tese partiu de filósofos idealistas como G. Ber­
keley, D. Hume e E. Mach e psicólogos como H. Helmholtz
e Johannes Müller, que formularam a teoria da “energia
específica dos órgãos dos sentidos”.
Segundo essa teoria, os órgãos dos sentidos (o olho, o
ouvido, a língua e a pele) não refletem a influência do mun­
do exterior nem informam acerca dos processos reais que
ocorrem no meio ambiente, limitando-se a receber das ações
exteriores os impulsos que lhes estimulam os seus próprios
processos. Para essa teoria, cada órgão dos sentidos possui
sua própria “energia específica”, que é estimulada por qual­
quer ação procedente do mundo exterior. Assim sendo, bas­
ta; pressionar o olho, agindo sobre ele através de choque
elétrico, para ele ter a sensação de luz; é bastante uma ex­
citação mecânica ou elétrica do ouvido para surgir a sen­
sação do som. Logo, os órgãos dos sentidos não refletem
as influências exteriores mas são apenas excitados por elas
e o homem não percebe os objetos do mundo exterior mas
somente os seus próprios estados subjetivos, que refletem a
atividade dos órgãos dos sentidos. Noutros termos, isto sig­
nifica que os órgãos dos sentidos não põem o homem em
contato com o mundo exterior mas, ao contrário, o separam
deste. Percebe-se facilmente que essa teoria levou à afirma­
ção: “o homem não pode perceber o mundo exterior e a
única realidade são os processos subjetivos, que refletem a
atividade dos órgãos dos sentidos, estes sim criadores dos
‘elementos do mundo’ subjetivamente perceptíveis”.

3
Todas essas teses foram tomadas por base da filosofia
do “idealismo subjetivo”, por afirmarem que o homem só
pode conhecer a si mesmo e não dispõe de nenhuma prova
de que existe alguma coisa além dele. Essa teoria idealista
recebeu o nome de “solipsismo” (do latim solus, só, e ipse,
eu próprio: existo só [um] eu próprio).
A teoria do idealismo subjetivo, inteiramente oposta às
concepções materialistas da possibilidade de representação
objetiva do mundo (particularmente a “teoria do reflexo"
de Lênin) foi a fonte de um profundo equívoco cuja essên­
cia se torna cada vez mais evidente com as sucessivas con­
quistas da ciência.
O estudo atento da evolução dos órgãos dos sentidos
mostra de modo convincente que, no processo de um longo
desenvolvimento histórico, formaram-se órgãos especiais de
percepção (órgãos dos sentidos ou receptores), que se espe­
cializaram em refletir tipos especiais de formas objetivamen­
te existentes de movimento da matéria (ou “energias”); re­
ceptores da pele, que refletem as influências mecânicas;
receptores auditivos, que refletem as oscilações sonoras; re­
ceptores visuais, que refletem certos diapasões das oscila­
ções eletromagnéticas, etc.
Examinemos os dados atinentes à elevadíssima especia­
lização dos órgãos receptores e aos tipos concretos de mo­
vimento da matéria que cada um deles percebe.
A tabela 1 apresenta dados gerais.
Vemos que entre todos os possíveis tipos de movimen­
to da matéria, dispostos em ordem de redução do compri­
mento da onda e aumento do número de oscilações por
segundo, apenas alguns são refletidos por aparelhos altamen­
te especializados dos órgãos dos sentidos. Assim, ondas me­
cânicas de determinado diapasão são percebidas pela pele,
provocando sensações de tato ou pressão; oscilações sono­
ras com onda acima de 12mm de comprimento e freqüência
inferior a 20-30 oscilações por segundo e com onda de mais
de 12mm de comprimento, freqüência superior a 30000 os­
cilações, não são percebidas, ao passo que oscilações sono­
ras com onda de 12-13mm de comprimento e freqüência de
20 a 20000 oscilações por segundo são percebidas pelo ouvi­
do humano e provocam sensações auditivas.

4
TABELA 1
Característica das influências objetivas,
dos aparelhos perceptivos e das sensações

Processos Compri­ Número de Órgão per­ Scnsaçõo


físicos m ento das oscilações ceptivo
ondas em por segundo
mm

mecfinicos até 1,5 mil pele tfttil


oscilações
sonoras acima de abaixo de ouvido in­ auditiva
12 20 terno
12-13 20-20 000
ultra-som abaixo de acima de
12 30 000 — —
ondas elétri­ até 0Д 30.1012 — —
cas 0,1-0.004 8.1014 pele calor
ondas lumino­ 0.008-0.004 4.10»“» retina luz, cor
sas 8.104 olhos —
0.004- 8.10K-
ondas radio­ 0.00001 Í.101» — —
lógicas 0.0000008- 4.10* — —
0.0000005 6.10Ю

Oscilações elétricas com onda de 0,1mm. de compri-


mento e 30.1014 de freqüência também não são percebidas,
embora a pele perceba como calor as mesmas oscilações
com onda de 0.1 a 0.004mm de comprimento e freqüência de
8.1014 oscilações por segundo. Ê sobretudo interessante o
quadro que surge em relação à percepção das ondas sono­
ras: a retina do olho humano percebe ondas sonoras de
0.008-0.004mm de comprimento com freqüência de 4.1014­
8.1014 oscilações por segundo, provocando sensações de luz
e cor. No entanto ela não percebe ondas luminosas
de 0.004 a 0.00001 mm de comprimento e freqüência de
8.10,4-5.1015 oscilações por segundo; as ondas radiológicas
também não têm receptores especializados nem provocam
sensação no homem. Uma análise atenta desses dados mos­
tra que os nossos aparelhos perceptivos se especializaram em
distinguir apenas algumas influências e continuam imunes a
outras influências. Isto tem fundamento biológico. Se a re­
tina percebesse influência abaixo e acima do referido dia-

5
pasão, o homem perceberia o calor do seu próprio corpo
como sensação visual e transformaria em sensações visuais
as influências que para ele não têm importância biológica.
O mesmo se refere ao funcionamento dos analisadores audi­
tivos: se o homem percebesse com o ouvido oscilações ullra-
sonoras, suas percepções auditivas seriam acrescidas de mui­
tos ruídos excessivos que dificultariam a distinção de exci­
tações sonoras essenciais para ele.
É característico o fato de que оз animais têm outros
limites de sensações: o morcego, por exemplo, ao voar na
escuridão e enfrentar obstáculos, o faz através do reflexo
de ondas ultra-sonoras, seu aparelho auditivo lhe serve de
radar e ele percebe oscilações ultra-sonoras que o homem
não percebe.
Assim, na evolução dos organismos surgiram aparelhos
especializados na percepção de diversos tipos de movimento
da matéria (diferentes “energias”) с nós, em realidade, não
possuímos “energias específicas dos órgãos dos sentidos”
mas órgãos específicos que refletem obfetivamente diver­
sos tipos de energia.
O fato de que, quando estímulos inadequados ao olho
ou ao ouvido agem sobre esses órgãos, surge uma sensação
“específica” (visual ou auditiva), alude apenas à alta espe­
cialização desses dispositivos perceptivos e à incapacida­
de de refletir as influências em cuja recepção cies nfio
são especializados.
Como veremos adiante, a alta especialização de diversos
órgãos receptores se baseia não só nas peculiaridades da es­
trutura dos “receptores” periféricos (órgãos dos sentidos)
mas também na elevadíssima especialização dos neurônios
que integram a composição dos aparelhos nervosos centrais,
aos quais chegam os sinais percebidos pelos órgãos perifé­
ricos dos sentidos. Este fato será novamente focalizado
quando abordamos os tipos especiais de sensações.

Teorias receptora e reflectora das sensações

Formou-se na Psicologia clássica a concepção segundo


a qual um órgão dos sentidos (receptor) reage passivamente
às influências dos estímulos sendo essa reação passiva
constituída pelas sensações correspondentes. Chamava-se a
essa concepção teoria receptora das sensações, segundo
a qual a sensação enquanto processo passivo se opunha ao
movimento que era visto como processo ativo.
Hoje essa teoria é considerada inconsistente e refutada
pela maioria dos estudiosos, que a ela opõem a concep­
ção da sensação como processo ativo. Essa concepção
serve de base a outra teoria, denominada teoria reflecto­
ra das sensações.
A o examinar as sensações dos animais já observamos o
fato de que estas não têm caráter passivo, indiferente e que
os animais distinguem ativamente entre as influências do
mundo exterior somente aquelas de grande importância bio­
lógica para eles. Já dissemos que a abelha reage a cores mis­
tas de modo bem mais ativo do que a cores puras; observa­
mos que o esmerilhão reage aos cheiros de podre, ignorando
os cheiros de relva e grãos, ao passo que o pato revela pe­
culiaridades opostas em suas reações; o gato distingue ativa­
mente o ruído do rato mas não reage aos sons do diapa-
são que lhe são indiferentes. Este fato indica o caráter ativo
e seletivo das sensações.
Os fatos posteriores mostram que, em termos fisioló­
gicos, a sensação não é absolutamente Um processo pas­
sivo mas sempre incorpora à sua composição componen­
tes motores.
Assim, as observações realizadas pelo psicolólogo ame­
ricano Neff, há mais de quarenta anos, deram oportunidade
para que nos convencêssemos de que, se observarmos pelo
microscópio a parte da pele irritada por uma agulha, pode­
remos ver que o momento do surgimento da sensação é
acompanhado por reações reflectoras motoras dessa área da
pele. Posteriormente, foi estabelecido através de inúmeras
pesquisas que a composição de cada sensação é integra­
da por um movimento, às vezes em forma de reação vege­
tativa (compressão dos vasos, reflexo cutânco-galvônico), às
vezes em forma de reações musculares (virada de olhos, ten­
são dos nervos do pescoço, reações motoras do ’
Foi estabelecido que as sensações complet
gem a distinção ou identificação de um objeto,
sem movimentos ativos. Assim, para distinguir,
chados, um objeto, é necessário apalpá-lo ati
Indícios como os aspecto plano ou rugoso de
suas dimensões, etc., são percebidos apenas se a mão que
os apalpa é ativa; as sensações que surgem do objeto da
superfície passiva da pele, são extremamente imperfeitas.
O mesmo foi estabelecido em relação à percepção vi­
sual. Setchenov já indicara que, para perceber visualmente
o objeto, é necessário que o olho o “apalpe”. Ultimamente
foi estabelecido que cada percepção visual se realiza de fato
com a participação ativa dos movimentos dos olhos, que às
vezes têm caráter de grandes “movimentos de apalpaçào”,
tomando às vezes o aspecto de pequenos movimentos dos
olhos. Ainda abordaremos especialmente o fato de que a
sensação auditiva ocorre com a participação imediata dos
componentes motores tanto no próprio aparelho auditivo
como no aparelho oral a ela relacionado. Ê sabido que para
definir um som é necessário cantá-lo e só neste caso o som
será suficientemente preciso e separado dos sons semelhan­
tes a ele.
Tudo isto mostra que as sensações não são absoluta­
mente processos passivos, que elas têm caráter ativo e a
participação de componentes motores na sensação pode ser
efetuada em nível variado, ocorrendo, às vezes, como pro­
cesso reflector elementar (por exemplo, na redução dos va­
sos ou das tensões musculares que surgem em resposta a
cada excitação sentida), às vezes como um complicado pro­
cesso de atividade receptora intensa (por exemplo, durante
a palpação ativa do objeto ou a contemplação de uma ima­
gem complexa).
A teoria reflectora das sensações consiste justamente em
indicar o caráter ativo de todos esses processos.
Ainda veremos a grande importância dessa teoria tan­
to para a teoria dos processos cognitivos do homem quanto
para a análise das mudanças que ocorrem na sensação e na
percepção durante os estados patológicos do cérebro.

Classificação das sensações

Há muito tempo costuma-se distinguir cinco tipos bási­


cos (modalidades) de sensações, distinguindo-se o tato, o
olfato, o paladar, a audição e a visão.

.8
Para uma resposta suficientemente completa ao proble­
ma das modalidades principais de sensações, devemos con­
siderar que sua classificação pode ser feita pelo menos se­
gundo dois princípios básicos: o princípio sistemático e o
genético, noutros termos, pelo princípio da modalidade, por
um lado, e pelo princípio da complexidade ou do nível de
sua construção, por outro.

Classificação sistemática das sensações

: Ao distinguimos os grupos maiores e mais importantes


de sensações, podemos dividi-las em três tipos principais:
sensações interoceptivas, proprioceptivas e extraceptivas. As
primeiras reúnem os sinais que nos chegam do meio interior
do organismo e garantem a regulação das inclinações ele­
mentares; as proprioceptivas garantem a informação sobre o
corpo no espaço e a posição do aparelho de apoio e movi­
mento, assegurando a regulação dos nossos movimentos; as
extraceptivas constituem o maior grupo e asseguram a re­
cepção de sinais do mundo exterior, criando a base do nosso
comportamento consciente.
Examinemos separadamente os três tipos básicos de
sensações.
As sensações interoceptivas, que produzem sinais acerca
do estado dos processos internos do organismo, fazem che­
gar ao cérebro as excitações procedentes das paredes do in­
testino e do estômago, do coração e do sistema sanguíneo,
bem como de outros órgãos viscerais. Esse grupo constitui
o grupo mais antigo e mais elementar de sensações. Os apa­
relhos receptores dessas sensações estão dispersos nas pa­
redes dos órgãos internos que acabamos de citar. Os
impulsos que surgem passam pelos filamentos que integram
parcialmente a composição do sistema vegetativo, particular­
mente a composição das colunas laterais da medula espi­
nhal. O aparelho central, que recebe os impulsos interocep-
tivos, é constituído parcialmente pelos núcleos das formações
subcorticais (núcleo medial do tálamo ótico), parcialmente
pelos órgãos do córtex antigo (límbico) do encéfalo. É
a isto que se deve o fato de que as sensações intero­
ceptivas estão entre as formas menos conscientes e mais

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difusas e sempre conservam sua semelhança com os es­
tados emocionais.
O caráter elementar e difuso dessa modalidade de sen­
sações manifesta-se no fato de que, na Psicologia, não exis­
te uma classificação precisa desses fenômenos. Situam-se en­
tre as interoceptivas a sensação de fome, a “sensação de des­
conforto”, que pode surgir como sintoma inicial de doença
dos órgãos internos, “a sensação de tensão” que surge com
frustração de uma necessidade qualquer e “a sensação de
calma” ou “conforto” que indica a satisfação das necessida­
des ou o desenvolvimento normal dos processos viscerais.
Vemos que, em todos esses casos, as sensações intero­
ceptivas se manifestam como o ponto intermediário entre as
sensações autênticas e as emoções; apesar de a Psicologia
ainda ter estudado de modo muito insuficiente as manifes­
tações subjetivas dessas sensações, incluindo-as no campo das
“sensações obscuras”, o conhecimento destas é necessário
tendo em vista que a sua mudança pode desempenhar pa­
pel decisivo para a descrição do “quadro interior da doen­
ça” que surge nos estados patológicos dos órgãos interiores
e desempenha papel considerável no diagnóstico das doen­
ças interiores (A. R. Luria). Essas sensações não-conscien-
tizadas podem manifestar-se muito cedo, podendo sua ex­
pressão assumir formas originais: elas podem aparecer em
forma de “pressentimentos” que o homem não pode for­
mular, podem manifestar-se nos sonhos que, às vezes, é
como se anunciassem a doença que está em início (em es­
sência, elas apenas refletem mudanças que começaram cedo
e foram pouco conscientizadas, ou seja, mudanças das sen­
sações interoceptivas, que surgem em fases iniciais da doen­
ça). Elas se manifestam na mudança do estado de espírito
e nas reações emocionais, provocando na criança freqüentes
manifestações singulares no comportamento. Sabe-se, por
exemplo, que uma criança doente, que ainda não tem cons­
ciência das mudanças interoceptivas, apresenta indícios de
mudança geral de comportamento, ou começa a acalentar e
dar remédio a uma boneca “doente", refletindo deste modo
mudanças em suas próprias sensações interoceptivas.
A importância objetiva das sensações interoceptivas é
muito grande: elas são fundamentais na regulação da balan­
ça dos processos internos de metabolismo ou daquilo a que
se chama homeostase dos processos de troca no organismo.

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Os sinais que surgem por via interoceptiva provocam um
comportamento voltado para a satisfação de inclinações ou
para a eliminação dos estados de tensão (“stress”) que po­
dem manifestar-se em decorrência de fatores que perturbam
o funcionamento equilibrado dos órgãos internos. Por isto
a consideração das sensações interoceptivas desempenha pa­
pel decisivo na parte da medicina denominada “psicossomá-
tica”, que estuda a correlação dos processos somáticos e vis­
cerais e dos estados psíquicos.
Os mecanismos fisiológicos, com a participação da in-
terocepçâo, foram minuciosamente estudados por К . M. Bi-
kov e V. N. Tchemigovsky, que descreveram os mecanismos
da atividade reflectora condicionada, que surgem à base de
sensações interoceptivas.
O segundo grande grupo é constituído pelas sensações
proprioceptivas, que asseguram os sinais referentes à posi­
ção do corpo no espaço e, em primeiro lugar, à posição do
aparelho de apoio e movimento no espaço. Elas represen­
tam a base aferente dos movimentos do homem e desempe­
nham papel decisivo na regulação destes.
Os receptores periféricos da sensibilidade propriocepti-
va ou profunda encontram-se nos músculos e superfícies ar-
ticulatórias (tendões, ligamentos) e apresentam formas de
corpos nervosos especiais (corpos de Paccini). As excitações
que surgem nesses corpos refletem as mudanças que ocor­
rem na distensão dos músculos e na mudança da posição das
articulações, passam pelos filamentos que compõem as co­
lunas posteriores da substância branca da medula espinhal.
As excitações irrompem nas zonas inferiores dos núcleos de
Holl e Burdach e, passando para o lado oposto, avançam,
atingindo os nós subcorticais (do sistema talâmico-estriado)
e terminando na região parietal do córtex do hemisfério, opos­
to (particularmente na região pós-central). Por isto o inter­
valo entre os condutores da sensibilidade proprioceptiva ou
profunda, em qualquer ponto desta via (afecção das colu­
nas posteriores dos núcleos de Holl e Burdach, das vVias con-
dutoras ou do córtex da circunvolução pós-central), sem per­
turbar a sensibilidade superficial (tátil), leva a perturbações
da sensibilidade proprioceptiva ou profunda cujos sintomas
são perfeitamente conhecidos pelos neuropatologistas. A pes-,
soa doente não é capaz de determinar a posição do seu braço
(ou perna) no espaço, sente às vezes indícios de mudança do

11
“esquema do corpo” (o tamanho dos membros. ou do corpo
começa a lhe parecer incomum, às vezes imensamente gran­
de). É natural que em decorrência da perturbação ou queda
da sensibilidade proprioceptiva (ou profunda), ela comece a
experimentar grandes dificuldades nos movimentos: os im­
pulsos que costumam partir dos receptores muscular-articula-
tórios e constituem a base aferente dos movimentos, neste
caso são perturbados e os movimentos, privados do apoio
sensorial, tornam-se incontroláveis.
Na fisiología e psicofisiologia modernas, o papel da pro-
priocepção como base aferente dos movimentos nos animais
foi detalhadamente estudado por A. A. Orbeli, P. K. Ano-
khin; em relação ao homem, o problema foi estudado por
N. A. Bernstein.
Ainda voltaremos à análise do papel da sensibilidade
proprioceptiva na construção dos movimentos quando exa­
minarmos, em caráter especial, a psicofisiologia dos processos
motores.
O grupo de sensações, que indica a posição do corpo no
espaço, tem entre seus componentes uma modalidade espe­
cial de sensibilidade, denominada sensação de equilíbrio ou
sensação estática. Os receptores periféricos dessas sensações
estão situados nos canais semicirculares do ouvido interno,
que estão distribuídos em três superfícies mutuamente per­
pendiculares: o líquido que enche esses canais muda de po­
sição dependendo da posição do corpo, particularmente da
cabeça, excita células “capilares” específicas que se mistu­
ram sob a influência do fluxo desse líquido (endolinfa) e,
deste modo, anuncia as mudanças da posição da cabeça no
espaço. A excitação, que surge como resultado dessas esti­
mulações, é transmitida através dos filamentos que compõem
o nervo auditivo como parte especial deste (o chamado ner­
vo vestibular) e se dirige às regiões têmpo-parietais do cór-
tex cerebral e do aparelho do cerebelo.
Ao contrário dos aparelhos da sensibilidade sinestésica
(profunda), os aparelhos da sensibilidade vestibular estão
estreitamente relacionados com a visão, que também parti­
cipa do processo de orientação no espaço. Por isto o cons­
tante vislumbramento de excitações visuais (por exemplo,
quando se passa de carro ao longo de uma floresta densa)
pode provocar a sensação de perda do equilíbrio e enjôo.
Sensação análoga (acompanhada da mudança do esquema
do corpo) pode ser provocada também durante um vôo com
rápidas mudanças da posição do corpo no espaço. As mes­
mas perturbações da sensação de equilíbrio podem ser pro­
vocadas também por processos patológicos, (inchações, por
exemplo) localizados nas regiões têmporo-parietais do cére­
bro ou no cerebelo. •
O terceiro — e maior — grupo de sensações é consti­
tuído pelas sensações exteroceptivas. Estas fazem chegar ao
homem a informação procedente do mundo exterior e são o
principal grupo de sensações que colocam o homem em con­
tato com o meio exterior. É justamente entre esse grupo que
se situa o olfato, o paladar, o tato, a visão e a audição.
Convencionou-se dividir todo o grupo de sensações ex­
teroceptivas em dois subgrupos: as sensações de contato e
distância.
Entre as sensações de contato, situam-se aquelas nas
quais a ação que provoca a sensação deve ser aplicada ime­
diatamente à superfície de um corpo e ao respectivo órgão
perceptivo. O exemplo típico da sensação de contato pode
ser visto no tato e no paladar. É perfeitamente compreensí­
vel que os dois tipos de sensação possam ser provocados por
ações à distância.
Entre as sensações de distância, ao contrário, situam-se
aquelas nas quais o estímulo provoca sensações que atuam
sobre os órgãos dos sentidos a partir de certa distância. A
estas pertencem o olfato, e especialmente a visão e a audi­
ção. O estímulo situado às vezes à grande distância do
sujeito (por exemplo, o som de uma campainha, a luz de
uma lâmpada) pode provocar sensações mesmo que a fonte
destas esteja distante e as respectivas ações (por exemplo,
ondas sonoras ou luminosas) devam percorrer uma grande
distância antes de que possam atuar sobre os respectivos ór­
gãos dos sentidos.
A classificação de todos os tipos de sensações é repre­
sentada no seguinte esquema:
Sensações interoceptivas
Sensações proprioceptivas
Sensações exteroceptivas — de contato
(paladar, tato)
de distância ,
(olfato, visão, audição)

13
Tipos de sensações exteroceptivas

Como se sabe, entre as sensações exteroceptivas situam-


se as cinco “modalidades” acima referidas: olfato, paladar,
tato, audição e visão. Esta enumeração é correta mas não
esgota os cinco tipos de sensibilidade.
No entanto cabe acrescentar a essa relação duas catego­
rias: as sensações intermediárias ou intermoáais e os tipos
não específicos de sensação.
Ê fato notório que se o tato percebe sinais das influên­
cias mecânicas e a audição percebe sinais das ondas sonoras
com uma freqüência de vinte-trinta a vinte-trinta mil oscila­
ções por segundo, o homem é capaz de perceber oscilações
de freqüência inferior à das ondas sonoras acima referidas.
Entre essas oscilações situam-se as vibrações cuja freqüên­
cia é calculada em aproximadamente 10-15 oscilações por
segundo. Essas vibrações não são percebidas pelo ouvido
mas pelos ossos (do crânio ou dos membros), enquanto que
as sensações que percebem essas vibrações são denominadas
sensibilidade vibrátil. O exemplo típico dessa sensibilidade é
a percepção dos sons pelos surdos. Sabe-se que os surdos
podem perceber a música mantendo a mão na coberta do
instrumento de som, percebendo os sons, às vezes, até por
meio de vibrações do piso ou de um móvel. Deste modo, a
sensibilidade vibrátil é um exemplo de sensação intermodal,
que ocupa posição intermediária entre a visão e o tato.
Outro exemplo de sensibilidade intermodal é a percep­
ção de alguns cheiros agudos por sensações agudas de sabor,
bem como de sons ultrafortes ou luz ultraforte; todas essas
ações provocam sensações mistas, situadas entre as sensa­
ções táteis, auditivas ou visuais e as sensações de dor que
se difundem a filamentos sensoriais não específicos. Na neu­
rologia esses componentes não específicos dessas modalida­
des de sensibilidade são conhecidos pomo “trigeminais” do
nervo trifacial cuija excitação é incorporada à sensação bási­
ca em caso de iirritações superfortes.
O segundo acréscimo à classificação comum das sensa­
ções exteroceptiwas é a existência de uma forma não espe­
cifica de sensibiilidade. Essa “sensibilidade não específica”
pode ser constituiída pela fotossensibilidade da pele, que é a
capacidade de percepção dos matizes de cor pela pele da
mão ou das pontas dos dedos. Os fenómenos da fotossensi-
bilidade não específica foram descritos por A. N. Leontyev
e outros. Esse autor realizou um estudo preciso no qual a
superfície da mão recebeu luz colorida (verde ou vermelha),
sendo que, neste caso, a temperatura dos raios luminosos foi
igualada por um filtro de água. Após várias centenas de
combinações de determinado sinal colorido com o estímulo
de dor, foi demonstrado que, sob a condição de uma
orientação ativa do sujeito, era possível ensiná-lo a distinguir
os raios luminosos pela pele da mão, embora essa distinção
fosse dúbia e difusa.
A natureza da fotossensibilidade da pele continua obs­
cura até hoje, embora se possa supor que ela esteja relacio­
nada com o fato de o sistema nervoso e a pele terem sido
originados por um embrião de folha (ectoderma) e na pele
possam encontrar-se elementos fotossensíveis difusos e rudi­
mentares que começam a agir com êxito sob condições es­
peciais (particularmente sob excitação elevada dos sistemas
subcorticais, palâmicos).
Existem formas de sensibilidade ainda não suficiente­
mente estudadas às quais pertencem, por exemplo, o “sentido
de distância” (ou o “sexto sentido”) dos cegos, que lhes per­
mite perceber à distância o obstáculo que surge à sua fren­
te. H á fundamentos para supor que a base do “sexto senti­
do” é a percepção das ondas de calor pela pele do rosto ou
o reflexo das ondas sonoras do obstáculo distante (essas on­
das atuam à semelhança do radar). No entanto essas formas
de sensibilidade ainda não foram suficientemente estudadas,
sendo ainda difícil falar dos seus mecanismos fisiológicos.

Interação das sensações e o fenômeno da sinestesia

Alguns órgãos dos sentidos que acabamos de descrever


uem sempre funcionam isoladamente. Eles podem estar em in­
teração, podendo essa interação assumir duas formas.
Por um lado, algumas sensações podem influenciar-se
mutuamente, sendo que o funcionamento de um órgão do
sentido pode estimular ou reprimir o funcionamento de outro
órgão do sentido. Por outro lado, existem formas mais pro­
fundas de interação sob as quais os órgãos dos sentidos tra­
balham em conjunto, condicionando uma nova modalidade
materna de sensibilidade que em Psicologia recebeu a deno­
minação de Sinestesia.
Examinemos separadamente cada uma dessas formas de
interação. Os estudos efetuados pelos psicólogos (particular­
mente o psicólogo soviético S. V. Kravkov) mostraram que
o funcionamento de um órgão dos sentidos não deixa de
influir no processo de trabalho de outros órgãos dos sentidos.
Verificou-se, por exemplo, que a irritação sonora (um as­
sobio, por exemplo) pode aguçar o trabalho da sensação vi­
sual, aumentando-lhe a sensibilidade aos estímulos lumi­
nosos. Assim alguns cheiros também influem, aumentando
ou diminuindo a sensibilidade sonora e auditiva. Ao que
parece, semelhante influência de umas sensações sobre outras
ocorre no nível das regiões superiores do tronco cerebral e
no tálamo ótico, onde os filamentos que conduzem as excita­
ções de diversos órgãos dos sentidos se aproximam, tornando
possível uma realização perfeita da transmissão das excita­
ções de um sistema a outro. Os fenômenos do estímulo mú­
tuo e da inibição mútua do funcionamento dos órgãos dos
sentidos constituem um grande interesse prático em situa­
ções sob as quais surge a necessidade de estimular ou repri­
mir artificialmente a sensibilidade desses órgãos (por exem­
plo, nas condições de vôo na hora do crepúsculo quando
não há direção automática).
Em Psicologia são bastante conhecidos os fatos da “au­
dição colorida", que é acionada em muitas pessoas e se ma­
nifestam com nitidez especial em alguns músicos (em
Skryabin, por exemplo). Assim sendo, é fato amplamente
conhecido que os sons altos são considerados “claros" en­
quanto os sons baixos são considerados “escuros”. O mesmo
ocorre eom os cheiros, pois, como é sabido, uns são consi­
derados “claros” e outros, “escuros”.
Esses fatos não são casuais ou subjetivos; são regidos
por lei, o que foi demonstrado pelo psicólogo alemão Hom-
bostel que sugeriu aos sujeitos uma série de cheiros e pro­
pôs compará-los a uma série de tons e uma série de tona­
lidades de luz. Os resultados foram muito interessantes e de-
moristíaram uma grande permanência; ó que foi mais impor­
tante porém é que os cheiros das substâncias cujas moléculas
continham um grande número de átomos de carbono foram
comparados a tonalidades escuras enquanto que os cheiros
das substâncias cujas moléculas continham poucas moléculas
de carbono foram comparados a matizes de luz. Isto mostra
que a sinestesia se baseia em propriedades objetivas (ainda
não suficientemente estudadas) dos agentes que atuam sobre
o homem.
É característico que o fenômeno da sinestesia nem de
longe se difunde em pessoas idênticas. Ele se manifesta com
nitidez especial nas pessoas de excitabilidade elevada das
formações subcorticais. Sabemos que ele predomina nos casos
de histerismo, pode aumentar visivelmente no período de
gravidez e ser artificialmente provocado pelo uso de várias
substâncias farmacológicas (a mescalina, por exemplo).
Em alguns casos, os fenômenos da sinestesia se mani­
festam com absoluta nitidez. Um dos sujeitos com manifes­
tação muito acentuada de sinestesia, o conhecido mnêmico S.,
foi estudado minuciosamente na Psicologia soviética (A. R.
Luria). Esse homem percebia todas as vozes como sendo
coloridas e dizia freqüentemente que a voz da pessoa que a
ele se dirigia era “amarela e dispersa”. Os tons que ele ou­
via lhe provocavam sensações visuais de diversos matizes (de
amarelo-claro a negro-prateadò ou violeta). As cores perce­
bidas eram por ele sentidas como “sonoras” ou “surdas”,
como “salgadas” ou “estaladas”. Semelhantes fenômenos são
encontrados em formas mais obliteradas com xnuita freqüên­
cia como tendência direta a “pintar” os números, dias da se­
mana, nomes dos meses em diferentes cores.
O fenômeno da sinestesia representa grande interesse
para a psicopatologia, onde a sua análise pode adquirir im­
portância diagnóstica.
As formas descritas de interação das sensações são as
mais elementares e parecem ocorrer predominantemente no
nível do tronco superior e das formações subcorticais. No
entanto existem formas mais complexas de interação dos
órgãos dos sentidos ou, segundo Pavlov, analisadores. Sábe­
se que, às vezes, quase não percebemos as irritações táteis,
visuais e auditivas isoladamente: ao percebermos os objetos
do mundo exterior, nós os vemos com os olhos, sentimos
pelo contato, às vezes lhes percebemos o cheiro e o som,
etc. É natural que isso exige a interação dos órgãos dos
sentidos (ou analisadores) e é determinado pelo trabalho
sintético deles. Esse trabalho sintético dos órgãos dos sen­
tidos ocorre com a participação imediata do córtex cerebral
e antes de tudo das zonas “terciárias” ou (“zonas de cober­
tura”) nas quais estão representados os neurônios pertencen­
tes a várias modalidades. Essas “zonas de cobertura” (a elas
já nos referimos) são as que asseguram as formas mais com­
plexas de funcionamento conjunto dos analisadores» as quais
servem de base à percepção dos objetos. Adiante faremos
uma análise psicológica das formas básicas de funcionamento
desses analisadores.

Níveis de organização das sensações

A classificação das sensações não se limita à descrição


de sensações isoladas de “modalidades” diversas. Paralela­
mente à classificação sistemática das sensações, existe a clas­
sificação patético-estrutural, ou melhor existe uma relação
com diferentes níveis de organização e a discriminação das
sensações que surgem em diversas etapas da evolução e tem
uma estrutura de complexidade variada.
Quando antes nos referimos às sensações interoceptivas,
observamos o caráter primitivo e difuso que se manifestava
na sua semelhança com os estados emocionais e no fato de
que é difícil distribuí-las em categorias isoladas precisas.
Passando às sensações exteroceptivas, tivemos oportuni­
dade de observar também a diferença de complexidade des­
tas. Assim as sensações olfativas e gustativas têm caráter
bem mais subjetivo e conservam uma relação bem maior
com os estados emocionais (a sensação do agradável e do
desagradável) do que as sensações visuais (particularmente
as auditivas) que refletem os objetos do mundo exterior,
que podem ocorrer sem provocar obrigatoriamente proble­
mas emocionais e têm caráter bem mais objetivo e diferen­
ciado, refletindo a forma, as dimensões e a disposição espa­
cial dos objetos que atuam sobre o homem. Por último as
sensações táteis têm duplo caráter, englobando tanto compo­
nentes primitivos, semelhantes aos problemas emocionais

18
(por exemplo, a sensação do calor, do frio, de dor) quanto
componentes complexos (sensação das dimensões, da forma
e da disposição dos objetos que atuam sobre a pele).
Isto levou os estudiosos a discriminar duas formas ou
dois níveis de sensação e, por sugestão do neurologista in­
glês H. Head, falar de sensações primitivas — proiopáticas
e complexas — epicríticas.
Por sensações proiopáticas (do grego protos — tenro e
patos — emoção) costuma-se entender as formas mais anti­
gas de sensação que ainda não têm caráter objetivo diferen­
ciado. Essas sensações são separáveis dos estados emocio­
nais e não refletem com a devida precisão os objetos con­
cretos do mundo exterior, têm caráter imediato, estão dis­
tante do pensamento e não podem ser divididas em catego­
rias precisas qué se possam designar com certos termos ge­
néricos. As sensações interoceptivas são o exemplo mais ní­
tido dessa sensibilidade protopática.
Por sensações epicríticas (do grego superior, superficial,
suscetível de elaboração complexa) entendem-se os tipos su­
periores de sensação que não têm caráter subjetivo, estão
separados dos estados emocionais, apresentam estrutura di­
ferenciada, refletem as coisas objetivas do mundo exterior
e estão bem mais próximos dos complexos processos inte­
lectuais. Esse tipo de sensação surgiu em etapas mais tar­
dias da evolução e tem como exemplo mais patente as
sensações visuais,
i A sensibilidade protopática e a epicrítica tôm organtea-
ção cerebral diversa. Seus aparelhos nervosos centrais se lo­
calizam em diferentes níveis. Os aparelhos cerebrais da sen-
eibilidade protopática estão localizados no nível do tronco
superior, do tálamo ótico e do córtex límbico antigo, ao pas-
bo que os aparelhos da sensibilidade epicrítica são representa­
dos nas áreas respectivas do córtex visual, auditivo e tátil
com sua organização complexa e suas zonas de cobertura,
ísto explica o fato de que as mudanças patológicas da sen-
Bibil idade protopática (por exemplo, o alto tônus emocio­
nal das sensações, a estreita ligação entre estas e as sensa­
ções de dor) surgem com a afecção do tálamo ótico e das
paredes dos ventrículos cerebrais, ao passo que a pertuTba-
çRo da sensibilidade epicrítica manifesta-se como resultado
do afecções locais das respectivas áreas do córtex cerebral.
Observares mostraram que no funcionamento de qua­
se todos os órgãos dos sentidos há elementos da sensibilida­
de tanto prctopática como epicrítica, embora isso se verifique
em correlações diferentes. Assim sendo, nas sensações vi­
suais os componentes protopáticos são representados pelo
tono emocicnal das cores “frias” e “mornas'’, enquanto os
componentes epicríticos são representados pela percepção de
grupos de cores que podem ser designados pelos conceitos
genéricos d* “vermelho”, “ amarelo”, “verde”, “ azul”, etc.
Ocorrência análoga nas sensações auditivas, onde o tônus
emocional d) som pertence à sensibilidade protopática e seu
caráter concreto (o som de uma campainha, das badaladas
do relógio, *,tc.) se situa entre os componentes epicríticos.
Os componentes protopáticos e epicríticos se manifestam
com nitidez especial nas sensações táteis. Os componentes
protopáticos se manifestam acima de tudo nas sensações de
frio e calor que sempre são agradáveis ou desagradáveis,
bem como nas sensações de dor quais os elementos das sen­
sações quase não podem ser separados das manifestações
emocionais. Os componentes epicríticos atuam na precisa
localização dg cada excitação, na discriminação de dois con­
tatos simultâ-ieos, na avaliação do sentido no qual se pro­
duz a irritação da pele (por exemplo, na irritação da pele
numa direçãc, distante ou próxima) e, por último, na con>
plexa avaliaçso da forma dos riscos feitos na pele por via
tátil. Os neuropatologistas conhecem perfeitamente todos
procedimento* especiais que permitem distinguir o estado da
sensibilidade protopática e epicrítica e os aplicam com êxito
para revelar 0 nível em que se situa o foco patológico.
As sensibilidades protopáticas e epicríticas não estão
apenas descritas mas também separadas experimentalmen­
te uma da outra.
O neuropatologista inglês Hed fez em si mesmo um teste
clássico desta separação experimental das sensibilidades pro­
topática e epicrítica. Com fins experimentais, ele cortou em
sua própria rião uma ramificação de cada nervo sensível e
observou o restabelecimento paulatino da sensibilidade que
começava na medida em que crescia o corte central do ner­
vo seccionado em decorrência do seu corte periférico. Esse
experimento permitiu a Hed estabelecer certa ordem de res­
tauração da sensibilidade. Durante vários meses inexistiu in­
teiramente serlSibilidade da pele na respectiva área da mão.

20
Em seguida surgiram sensações vagas dificilmente localizá-
veis, que apresentavam caráter emocional expresso e se si­
tuava no limite entre as sensações táteis e as de dor: era o
período em que a sensibilidade protopática primitiva já co­
meçava a restabelecer-se e a complexa sensibilidade epicrí-
tica era capaz de localizar a irritação em determinado; pon*:
to da pele, de distinguir a direção dessa irritação e suas for­
mas. Nessa etapa mais tardia já se podia falar do restabele­
cimento de uma sensibilidade mais nova — a ерісгШсаЦ...
Os experimentos de Hed tiveram grande importância
teórica e prática. Mostraram que a sensação engloba meca­
nismos construídos em diversos níveis, deram fundamento
f>ara uma classificação genética das sensações que permitiram
estabelecer uma série de indícios da perturbação da sensibi­
lidade, que são de grande importância para o diagnóstico
tópico das afecções cerebrais.

' • • v M f g
Medição das sensações.
Estudos do limiar absoluto das sensações

. Até agora nós nos detivemos na análise qualitativa de di­


ferentes modalidades de sensação. No entanto não é menos
importante o estudo quantitativo, noutros termos, a medição
das sensações.
É sabido que os órgãos das sensações humanas são apa­
relhos que funcionam com uma precisão impressionante. O
olho humano, por exemplo, pode distinguir um sinal lumino­ Ж
so de 1/1000 velas a um quilômetro de distância. A ener­
gia dessa excitação é tão insignificante que seriam necessá­
rios 60 mil anos para com ela aquecer um centímetro cúbico
de água a 1°C. O ouvido humano é tão sutil que se o dupli­
cássemos poderíamos ouvir o movimento browniano das par­ ■■
tículas. O nosso olfato e o paladar são capazes de sentir o i
cheiro ou gosto de uma partícula de substância diluída um 4
milhão de vezes. •
Surge, porém, um problema: como medir a sutileza das
sensações (ou dos limiares absolutos da sensibilidade)? Que
métodos podem ser aplicados para esse fim e em que unida­
des objetivas pode-se expressar a sutileza das sensações?
Há dois métodos básicos de medição das sensações: o
primeiro deles é o método direto (ou método de avaliação
subjetiva), o segundo, o método indireto (ou método objeti­
vo de avaliação dos indícios da existência da sensação).
O método direto (ou método das avaliações verbais das
excitações) consiste no seguinte: propõe-se ao sujeito um
determinado estímulo (um contato de pele, um som, uma
luz) que inicialmente tem uma intensidade mínima que em
seguida cresce paulatinamente. Propõe-se-lhe responder quan­
do sentir a primeira respectiva sensação.
Para medir a sensibilidade da pele, aplica-se um dis­
positivo especial denominado estesiômetro.
A sutileza da sensibilidade auditiva se mede por meio
de um gerador de som ou audiómetro, que permite definir
sons de intensidade variada, ou por meio de um mecanismo
mais simples no qual o som é provocado pela queda de uma
pequena esfera de diferentes alturas.
A sutileza da sensibilidade visual é medida por um ins­
trumento que permite levar ao olho do sujeito, situado em
ambiente escuro, um raio de luz de intensidade variada, co­
meçando com um de intensidade baixa ainda não percebida
que aumenta paulatinamente.
A sutileza das sensibilidades paladar e olfativa é medida
por meio de dispositivos especiais que permitem anunciar ao
sujeito crescentes excitações do paladar e do olfato, come­
çando por dissoluções mínimas de uma substância saborosa
ou cheirosa com aumento paulatino da concentração dessas
dissoluções.
Variantes simples desses instrumentos são amplamente
empregadas na prática clínica.
O sujeito, com â qual se faz semelhante experimento,
deve observar o momento em que ele começa a perceber pela
primeira vez o estímulo. A excitação mínima, inicialmente
denominada sensação, que o sujeito ressalta no seu relató­
rio verbal, denomina-se limiar inferior da sensação. O limiar
inferior das sensações da sensibilidade tátil é expresso em
bares (unidade de pressão), o limiar inferior da sensibilidade
auditiva se traduz em decibéis (unidades de intensidade acústi­
ca), o limiar inferior da sensibilidade à luz mede-se em
luxos (unidade de intensidade da luz), etc. Quanto maior é a
agudeza da sensibilidade tanto menor é o seu limiar, em ou^
tros termos, a agudeza da sensibilidade é inversamente pro-

22
porcional aos índices do limiar inferior em unidades de inten­
sidade do respectivo estímulo.
I

sendo E a sensibilidade absoluta, P a grandeza do limiar


inferior das sensações.
Os índices dos limiares inferiores das diversas sensações
não constituem uma grandeza nitidamente “delineada”. Exis­
te toda uma faixa de influências mínimas nas quais o sujei­
to ora percebe, ora não percebe a presença do respectivo
estímulo ou, por último, questiona que tenha havido tal estí­
mulo. Por isto adota-se como limiar inferior da sensação,
habitualmente, uma grandeza na qual o número de respostas
positivas, que indicam que o sujeito teve a respectiva sen­
sação, é superior a 50%. Este limiar é denominado limiar
inferior estatisticamente autêntico das sensações.
É característico que os limiares inferiores das sensações
não continuam constantes, mudando na dependência de vá­
rios fatores: da habituação aos estímulos, do fundo inicial
e das condições suplementares que podem elevar ou reduzir
a sensibilidade.
Paralelamente aos limiares inferiores das sensações po­
demos discriminar os seus limiares superiores. Entende-se
por limiar superior a grandeza máxima do estímulo além de
cujos limites o estímulo não é percebido ou começa a assu­
mir um novo colorido, sendo substituído pelo estímulo
doloroso. 'Í ''W
Já dissemos que o ouvido humano pode регсеЬет osci­
lações sonoras num diapasão de 20 a 20000 oscilações por
segundo, sendo que as baixas freqüências sãò percebidas
como tons baixos e as altas como tons altos. Se apresen­
tarmos ao sujeito sons com freqüências acima de 20-30 mil
oscilações por segundo (hertz-Hz), i.e., ultra-sons, ele não
os perceberá. Assim, os sons situados além dos limites dos
limiares superiores deixam de suscitar sensações.
Por sua intensidade, os sons provocam sensações auditi­
vas apenas em certos limites. Sons de intensidade inferior a
1 decibel podem não ser percebidos e constituem o limiar
inferior das sensações, ao passo que os sons de intensidade
superior a 130 decibéis começam a suscitar sensações dolo­

23
rosas e constituem o limiar superior das sensações auditivas.
A mensuração dos limiares superiores e inferiores das
sensações são de grande importância prática: ela permite dis­
tinguir as pessoas de sensibilidade reduzida de um ou outro
analisador, enquanto o sintoma de redução da sensibilidade
pode ser empregado para os diagnósticos da afecção (perifé­
rica ou central). Assim, a perturbação da sensibilidade tá-
til pode ser sintoma de afecção situada na circunvolução cen­
tral posterior do hemisfério oposto ou numa das etapas de
suas vias condutoras. A redução da sensibilidade visual pode
sugerir a afecção da retina, das áreas centrais da via audi­
tiva ou da região occipital (a redução da agudeza da visão,
vinculada a ocorrências de estagnação no fundo do olho, é
freqüentemente um sintoma de aumento da pressão craniana
interna, que surge nos casos de tumor no cérebro). A re­
dução da sensibilidade auditiva em um ouvido pode indicar
afecção do receptor auditivo periférico (ouvido interno) ou
um foco patológico na área temporal dq hemisfério oposto.
Neste caso é essencial o fato (descoberto por G. V. Gershu-
nil, A. V. Baru e T. A. Karaseva) de que, nos casos de
afecção do lobo temporal, cai acentuadamente no doente a
sensibilidade aos sons breves (cuja duração é de 1 a 5 milisse-
gundos), ou seja, aumentam os limiares da percepção des­
ses estímulos. A importância deste fato consiste em que ele
é, amiúde, o único sintoma a indicar a afecção da região
temporal do cérebro.
Não é menos importante a medição dos limiares supe­
riores das sensações.
Um exemplo do valor prático dessas medições é o esta­
belecimento de limiares superiores das sensações auditivas
nas pessoas de audição difícil.
É sabido que essas pessoas não percebem sons fracos.
Poderia parecer que para a superação desse defeito seria bas­
tante aumentar a intensidade dos sons através de mecanismos
de intensificação. No entanto, a intensificação desmedida dos
sons que chegam aos duros de ouvido logo começa a pro­
vocar sensações de dor, pois a “zona de conforto” (isto é,
o diapasão em cujos limites os sons começam a provocar
sensações auditivas plenas) é neles muito restrita. Por isto
a medição precisa dos limiares inferiores e superiores das
sensações auditivas permite indicar os limites nos quais se
devem intensificar os sons para que estes conservem o efeito

24

«
necessário. Ê fácil perceber a grande importância que isto tem
para a construção de aparelhos de intensificação do som.

Até agora analisamos fatos obtidos com a mudança das


sensações mediante a aplicação do primeiro dos referidos mé­
todos, ou seja, o método da avaliação subjetiva das sensa­
ções (011 método do relatório verbal do surgimento ou desa­
parecimento das sensações). Existe, entretanto, uma segunda
via de medição das sensações, através da aplicação de mé­
todos objetivos ou indiretos, noutros termos, mediante a ava­
liação dos indícios objetivos do surgimento das sensações.
Essa via é 0 resultado de pesquisas realizadas nos últi­
mos decênios em vários laboratórios psicofisiológicos e foi
elaborada de maneira especialmente minuciosa pelos psicólo­
gos soviéticos G. V. Guershuni, E. N. Sokolov, O. S. Vino-
gradova e outros. '« L ir ih
Como já indicamos, as sensações não constituem ura
processo passivo, são sempre acompanhadas de uma série
de mudanças dos processos vegetativos, eletrofisioIÓgicos с
respiratórios e são reflectores por natureza. É este fato que
permite usar as mudanças reflectoras que acompanham as
sensações como indicador objetivo da manifestação destas.
É sabido que cada estímulo, que leva ao surgimento
das sensações, provoca processos que surgem por via reflec­
tora como o estreitamente dos vasos, o surgimento do refle­
xo pele-galvânico (mudança da capacidade de resistência elé­
trica da pele), mudança das freqüências da atividade elétrica
do cérebro (antes de tudo o surgimento da depressão do
alfa-ritmo, a virada do olho em direção ao estímulo, a ten­
são dos músculos do pescoço, etc.) i\
Todos esses sintomas objetivos surgem quando 0 estímu­
lo chega ao sujeito e provoca sensações. SSo èfles que
podem ser usados como indicador objetivo do surgimento das
sensações.
Os testes realizados por pesquisadores mostraram que se
propusermos ao sujeito um estímulo muito fraco, este não
provoca nenhuma sensação e não se verificam as mudanças
reflectoras descritas. Se a intensidade do estímulo aumenta,
ultrapassa os limites do limiar inferior e começa a provocar
sensações, surgem mudanças objetivas nas reações vasculares
eletrofisiológicas e musculares. É justamente por isto que o

2$
surgimemc ¿as mudanças descritas pode servir de indicador
objetivo Óqs limiares inferiores da sensação,
É digto de atenção o fato de que quanto mais intensivo
é ° estímalo tanto mais forte é a reação vascular e eletro-
fisiológica qUe e¡e provoca. Isto dá fundamentos para em­
pregar essis procedimentos com o fim de medir objetivamen­
te a intens¡¿a¿e das sensações, o que foi muito difícil quando
se aplicanm apenas os métodos subjetivos.
Cabe observar que as reações vasculares ou as eletro-
fisiológicas a estímulos mal distinguíveis (“pré-liminares”)
podem ser expressas de modo bem mais acentuado do que
aos estímaos comuns bem perceptíveis. Este fato reflete
objetivamente as dúvidas que o sujeito experimenta quando
se lhe propõem excitações dificilmente perceptíveis e o fun­
do emocional em que ocorrem as tentativas de distinguir
nitidamenU 0 estímulo dos sons neutros. Por isto a inten­
sificação qas reações objetivas às excitações pré-liminares
(mal perceptíveis) pode ser utilizada como importante indi­
cador complementar do diapasão pré-liminar das sensações.
É fácil notar que os métodos objetivos de medição das
sensações ^qU¡ descritos são de importância especialmente sé­
rias nos C£SOs em que, por motivos desconhecidos, é impos­
sível a obt2nção de dados mediante enquête direta aos sujei­
tos (entre crianças pequenas, alguns doentes mentais ou sob
estímulo intencional). '
No entanto surge uma pergunta natural: qual é a rela­
ção entre cs dados obtidos por questionário direto e os dados
obtidos pel0 estudo de indicadores fisiológicos objetivos? Da
resposta a essa pergunta depende a resposta a outra: sere­
mos capazes de empregar com a suficiente fidedignidade índi­
ces objetivas como sintomas seguros do surgimento de sen­
sações subjetivas?
Pesquisas realizadas pelo psicólogo soviético J. V. Guer-
shuni mostraram que é norma os indicadores objetivos dos
limiares dcs sensações corresponderem com precisão aos li­
miares subjetivos, noutros termos, as mudanças descritas das
reações pele-galvânicas e eletroencefalográficas manifestam-se
justamente quando, no sujeito, as sensações subjetivas surgem
pela primeira vez. As divergências entre os indicadores sub­
jetivos e objetivos surgem apenas em alguns casos especiais,
por exempl0; nos estados inibitórios do córtex. Isto ocor­
re, por exemp]0) nos casos da chamada queda pós-contusão

26

4*
da audição ou surdez pós-contusão, que começa como resul­
tado do golpe de uma onda de ar.
Entre os sujeitos desse grupo, cujo córtex auditivo en­
contra-se em estado de inibição patológica, a apresentação
de estímulos sonoros não provoca quaisquer sensações sub­
jetivas, embora leve ao surgimento das mudanças fisioló­
gicas objetivas das reações pele-galvânicas e eletroencefalo-
gráficas. Entre esses sujeitos, a apresentação do som (que o
dcente não registra) provoca um nítido reflexo cócleo-pupi-
lar (compressão da pupila em resposta à excitação sonora).
Essa divergência entre as reações objetivas e subjetivas às
excitações auditivas permitiu a Guershuni lançar a tese se­
gundo a qual o homem tem um diapasão subsensorial espe­
cial, que indica as reações fisiológicas não-conscientizáveis
e estímulos não sensíveis. À medida da evolução inversa
da doença, os limiares das sensações subjetivas se restringem
paulatinamente e no fim das contas começam a coincidir.
As pesquisas do diapasão subsensorial, realizadas por
Guershuni, são de grande importância teórica e prática para
o diagnóstico de algumas formas do estado inibitório do
córtex.

Estudo da sensibilidade relativa (dijerencial)

Até agora nós nos detivemos na mudança da sensibilida­


de absoluta dos nossos órgãos dos sentidos: dos limiares su­
periores e inferiores das sensações. Existe, não obstante,
sensibilidade relativa (diferencial), que também pode
dida embora a medição apresente grandes dificu!dad<
Se nos encontrarmos num quarto escuro, ilumir’
uma vela acesa, o acréscimo de outra vela idôi
mente percebido; neste caso a iluminação se
diferença de claridade será facilmente
rio ocorre se estivermos numa sala
muitas lâmpadas acesas; neste caso
o acréscimo de outra vela como
de 100 velas (neste caso a
e sua mudança permanecerá
O mesmo podemos dizer ï&| . f . ....
lêncio absoluto distinguimos perfeitamente um mfniraoí
num lugar barulhento, esse mesmo som será imperceptível. ; :

27.
Isto significa que a sensibilidade relativa (ou dijerencial)
pode expressar-se em medidas diferentes das que se empre­
gam na sensibilidade absoluta. Se a sensibilidade absoluta se
expressa na intensidade de uma excitação mínima que gera a
primeira sensação, a sensibilidade relativa se manifesta no
acréscimo relativo ao fundo inicial, acréscimo esse que é su­
ficiente para que o sujeito perceba a sua mudança.
É essencial que essa sensibilidade relativa, que pela pri­
meira vez se torna distinguível, se manifeste em números va­
riados para os diversos órgãos dos sentidos: para as sensa­
ções visuais é bastante acrescentar 1/100 da iluminação an­
terior para que a mudança desta seja perceptível; para o ou­
vido esse acréscimo relativo deve superar em 1/10 o fundo
sonoro inicial; para o tato é bastante aumentar em 1/30 a
força do contato inicial.
Os pesquisadores tentaram traduzir essa lei numa fór­
mula matemática única; esta foi encontrada pelos pesquisa-*
dores (os psicofisiologistas alemães Weber e Fechner) e foi
expressa na fórmula:
P
E = ------- (1)
Др

onde E é o índice de sensibilidade variável, P é o fundo ini­


cial e Ap é a magnitude da adição a essa sensibilidade
inicial, magnitude que é suficiente para que se manifeste a
sensação de mudança. É característico que a magnitude desse
acréscimo (Др) varia para diferentes modalidades que se
expressam na fórmula:
Др
------- = К (2)
P

A possibilidade de medição da sensibilidade relativa é


considerada pelos psicólogos como шла grande conquista da
ciência, pois verificou-se que emoções que pareceriam muito
subjetivas como o surgimento de diferenças no fundo inicial
das sensações, são acessíveis à análise quantitativa. Foi por
isto que o psicofisiologista Fechner supôs que só esse aumen­
to muito pouco perceptível da excitação (ou o limiar dife-
ЛВЯЯИВШ

rencial da sensação) deve ser considerado uma unidade de


sensação. Nas suas pesquisas posteriores ele chegou à con­
clusão de que esse limiar relativo (diferencial) pode ser tra-
du2Ído em fórmula matemática segundo a qual a magnitude
da sensação é proporcional ao logaritmo da intensidade da
excitação ativa. Essa fórmula, que foi denominada lei de
Fechner, foi uma das primeiras leis exatas formuladas na
Ciência Psicológica.
A regra de Weber-Fechner (as fórmulas 1 e 2) é ade­
quada apenas numa zona média (embora bastante ampla)
de excitações. Nos casos em que a intensidade do estímulo
é muito baixa (e se aproxima do limiar) ou muito alta, a
sensibilidade relativa é bem mais aproximada. Este fato su­
gere uma certa condicionalidade biológica dos limiares rela­
tivos e exige ainda explicação complementar.

Variação da sensibilidade (adaptação e sensibilização)

Seria errôneo pensar que tanto a sensibilidade relativa


como a absoluta dos nossos órgãos dos sentidos conti­
nuam invariáveis e seus limiares se manifestam em nú­
meros permanentes.
Como mostraram as pesquisas, a sensibilidade dos nos­
sos órgãos dos sentidos pode variar em limites muito
grandes. Essa variação da sensibilidade depende tanto das
condições do meio exterior como de uma série de condições
interiores (fisiológicas e psicofisiolÓgicas), de influências quí­
micas das orientações do sujeito, etc.
Distinguem-se duas formas básicas de mudança da sen­
sibilidade, entre as quais uma depende das condições do meio
e é chamada adaptação, e a outra das condições do estado
do organismo e é denominada sensibilização.
Examinemos separadamente cada forma de mudança da
sensibilidade.
Adaptação. Sabe-se que na escuridão a nossa visão se
aguça e sua sensibilidade diminui sob iluminação forte. Isto
nós percebemos quando passamos de um quarto escuro para
um claro ou de um ambiente muito iluminado para um çs-
curo. No primeiro caso, os nossos olhos começam a sentir

29
)
)
) '

uma dor lancinante, ficamos “cegos” por um instante e é


y necessário algum tempo para que os olhos se adaptem à cla­
ridade intensa. No segundo caso, observa-se um fenômeno
inverso. Quando passamos de um ambiente intensamente ilu-
, minado ou de um recinto aberto com luz solar para um re­
cinto escuro, inicialmente não enxergamos nada e precisamos
de uns 20-30 minutos para nos orientarmos bem na escuridão.
, Isto mostra que, dependendo da situação ambiente (da
iluminação), a sensibilidade visual do homem muda brusca­
mente. Como mostraram as pesquisas, essa mudança é mui­
to grande e a sensibilidade dos olhos se aguça em 200 mil
vezes quando ele passa da iluminação intensa para o escuro!
A fisiología conhece bem os mecanismos que servem de
base a essa grande mudança da sensibilidade. No funciona­
mento dos olhos há vários mecanismos específicos dessa na­
tureza. ' Alguns destes, ao distinguirem a claridade, fazem mu­
dar a faixa de luz da pupila (a pupila se expande na escuri­
dão e se restringe na claridade, podendo mudar sua faixa de
luz em 17 vezes), regulando, desse modo, o fluxo global
de luz. Outro mecanismo consiste em que, na retina, ocorre
um deslocamento do pigmento, que é uma espécie de obstá­
culo protetor contra a penetração excessiva de raios lumino­
sos na camada sensível. É de igual importância para o au­
mento da sensibilidade da retina na escuridão o processo de
restabelecimento da púrpura visual, essa importantíssima subs­
tância fotossensível, que faz parte na composição das células
sensíveis à luz. Como mostraram estudos especiais (P. G.
Snyakh), a retina do olho possui ainda um mecanismo es­
pecial de “mobilização” de um número máximo de elemen­
tos fotossensíveis ativos na escuridão e de “desmobilização”
ou inclusão de um número considerável de elementos fotos­
sensíveis na claridade; por este motivo, varia a sensibilidade
da retina em horas diferentes do dia e da noite e inclusive
)em períodos diferentes do ano. Por último, ocorrem na reti­
na importantes reorganizações funcionais que consistem em
que, sob as condições de claridade (de dia) entram em ação
aparelhos fotossensíveis menos sensíveis — “pequenas ma-
trazes” — que, não obstante, são capazes de distinguir as
cores. Continuam ativos outros aparelhos da retina — os
bacilos, que possuem maior sensibilidade mas não podem
discriminar as tonalidades das cores; é exatamente a isto que
)
) 30

)
>
se deve o fato de o homem deixar de distinguir as cores no
crepúsculo, embora sua visão se aguce. '„
Paralelamente aos mecanismos periféricos de mudan­
ça da sensibilidade aqui descritos, existem mecanismos cen­
trais que permitem regular a agudez da sensibilidade depen­
dendo das condições ambientais. Situam-se entre eles os me­
canismos que mudam o tônus do córtex sob a influência dos
impulsos que a estes chegam através dos filamentos da for­
mação reticular. •.
As referidas mudanças da sensibilidade, que dependem
das condições do meio e são chamadas de adaptação dos
iórgãos dos sentidos às condições ambientes, existem também
no campo do olfato, do tato e do paladar (mudança da sen­
sibilidade auditiva em condições de silêncio e ruído).
A mudança da sensibilidade, que ocorre segundo o tipo
de adaptação, não é imediata, requer certo tempo e muda
suas características temporais.
■ , O importante é que essas características temporais são
'diferentes para os diversos órgãos dos sentidos. Sabemos
perfeitamente que para a visão adquirir a necessária sensibi­
lidade no recinto escuro, deve passar-se cerca de 30 minu­
tos e só após isto o homem adquire a capacidade de orien­
tar-se bem na escuridão. O processo de adaptação dos ór­
gãos auditivos é bem mais rápido. O ouvido do homem se
adapta ao fundo ambiente em 15 segundos. Com essa mesma
rapidez, ocorre a mudança da sensibilidade no tato (um con­
tato fraco com a pele deixa de ser percebido em alguns
segundos).
São bem conhecidos os fenômenos de adaptação ao ca­
lor (adaptação à mudança de temperatura); esses fenômenos,
entretanto, se manifestam com nitidez apenas numa faixa
média, quase não ocorrendo adaptação ao frio intenso ou
. ao calor forte assim como às excitações de dor. São conheci­
dos tamb'ém os fenômenos de adaptação aos cheiros. Nestes
casos, a mudança da sensibilidade ocorre lentamente: o chei­
ro de cânfora deixa de ser sensível em 1-2 minutos. Ë ca­
. racterístico que a adaptação aos cheiros intensos que provo­
cam excitações de dor (ou incluem o componente trigémi­
na!) não ocorre de modo algum.
A adaptação é um dos tipos mais importantes da sen­
sibilidade, que sugere uma grande plasticidade do organismo
em seu processo de adaptação às condições do meio. ■

31
)
)

Sensibilização. O processo de sensibilização difere do


processo de adaptação em dois sentidos. Por um lado, sc
no processo de adaptação a sensibilidade muda em ambos os
sentidos, aumentando e reduzindo a sua agudez, já no pro­
) cesso de sensibilização muda apenas no seniido do aumenío
da agudez. Por outro lado, se no processo de adaptação as
mudanças de sensibilidade dependem das condições do meio
ambiente, no processo de sensibilização elas dependem pre­
dominantemente da mudança do próprio organismo — de
condições fisiológicas ou psicológicas.
) Distinguem-se dois aspectos básicos do aumento da
sensibilidade conforme o tipo de sensibilização: um desses
aspectos tem caráter longo e permanente e depende predo­
minantemente de mudanças estáveis que ocorrem no orga­
nismo; o segundo tem caráter provisório e depende de in­
fluências extraordinárias sobre o estado do sujeito — de
influências fisiológicas ou psicológicas.
Entre o primeiro grupo de condições que mudam a sen­
sibilidade situam-se a idade, as condições tipológicas, os
deslocamentos endocrinos e o estado geral do sujeito relacio­
nado com a estafa.
) A idade do sujeito está nitidamente relacionada com a
mudança da sensibilidade. As pesquisas mostraram que a su­
tileza da sensibilidade dos órgãos dos sentidos aumenta com
a idade, atingindo o seu ponto máximo na faixa de 20-30
anos para, posteriormente, decair em termos graduais. Esse
processo reflete o dinamismo geral do funcionamento do sis­
tema nervoso do organismo.
) As peculiaridades substanciais do funcionamento dos ór­
gãos dos sentidos dependem do tipo de sistema nervoso do
sujeito. Ê sabido que pessoas dotadas de um forte sistema
nervoso apresentam grande resistência e estabilidade, ao pas­
so que as pessoas dotadas de um sistema nervoso fraco são
) dotadas de menor resistência e maior sensibilidade (В. M.
Teplov).
É de grande importância para a sensibilidade a balança
endócrina do organismo. É sabido que durante a gravidez a
capacidade olfativa pode aguçar-se acentuadamente, ao pas­
so que a agudez da sensibilidade visual e auditiva decresce.
) Devemos, evidentemente, mencionar os fenômenos essen­
ciais do aguçamento da sensibilidade, que se verificam duran­

) 32
)
)
te alguns distúrbios endócrinos, como,
perfunção da tireóide.
Mudanças importantes da sensibilidade podem ocorrer,
por último, em estado de estafa. A estafa, que provoca esta­
dos inibitórios (fásicos) do córtex, pode provocar inicial­
mente o agravamento da sensibilidade para, em seguida,
com a evolução desse agravamento passar à redução da
sensibilidade.
É necessário indicar ainda que as mudanças longas e
estacionárias da sensibilidade podem começar durante 0 es­
tado asténico do sistema nervoso conhecido como “debilida­
de excitadora”, por um lado, e das manifestaçõss clássicas de
histerismo, por outro.
Dessas mudanças estacionárias da sensibilidade depen­
dem as formas de mudança (de agravamento) da sensibilida­
de, provocadas por fatores extraordinários e que, via de re­
gra, apresentam caráter relativamente breve.
Entre os fatores que provocam a sensibilidade extra si­
tuam-se antes de tudo as influências farmacológicos. É sabi­
do que existem substâncias que provocam o aguçamento da
sensibilidade. Entre tais fatores situa-se, por exemplo, a
adrenalina, cuja ingestão provoca excitação do sistema ner­
voso vegetativo e através da formação reticular pode sus­
citar um nítido aguçamento da sensibilidade. Ação análoga,
que aguça a sensibilidade dos receptores, pode ser provocada
por substâncias como fenalina (bengidrina) e várias outras
substâncias. Ao contrário, as substâncias cuja ingestão leva
a uma nítida queda da sensibilidade; entre estas situa-se a
pilocarpina.
Nos últimos decênios, a aplicação de meios farmacológi­
cos como vias de regulação do funcionamento do sistema
nervoso, particularmente de mudança da sensibilidade, acumu­
lou grande experiência e hoje podemos mencionar vários pre­
parados que exercem grande influência sobre a regulação do
funcionamento dos órgãos dos sentidos.
A ação farmacológica não é o único meio de provocar a
sensibilização extra das sensações. O segundo meio é a inte­
ração das sensações. Já lembramos que a ação sobre o órgão
da percepção pode provocar aumento da sensibilidade de ou­
tro órgão. Assim, o acadêmico P. P. Lazarev mostrou que, se
num auditório ecoa um som demorado, a inclusão da luz faz
com que a produção do tom comece a parecer mais intensiva,

33
-■■■ u 'ttfT ‘ i »■*

Ao contrário, a ação de um ruído forte pode provocar a re­


dução da sensibilidade à luz. Estímulos bastante fracos de
analisador idêntico podem possuir capacidade sensibilizadora
para mudar a sensibilidade. Assim, se a iluminação da peri­
feria da retina por luz fraca pode aumentar a sensibilidade de
outras áreas da retina, a iluminação de um olho aumenta a
sensibilidade do outro olho. Por último, foi demonstrado nu­
ma série de experimentos que a excitação sonora e, às vezes,
a excitação da pele podem provocar aumento da sensibilida­
de visual.
Todos esses experimentos não só mostram a estreita in­
teração de formas particulares de sensação como também
abrem caminho para um aumento mais complexo da sensi­
bilidade por reflexo condicionado. O famoso fisiologista so­
viético A. O. Dolin mostrou numa série de experimentos
essa possibilidade.
Verificou-se que se dermos inicialmente ao sujeito um
som metronômico, este não exerce grande influência sobre a
mudança da sensibilidade à luz; mas se combinarmos este
som com a luz dos olhos várias vezes seguidas, dentro de
certo tempo a simples aplicação do som provocará uma que­
da da sensibilidade.
É digno de nota que semelhantes mudanças da sensibili­
dade podem ser provocadas se usarmos uma palavra qual­
quer como estímulo condicionado. Esse efeito é sobretudo
nítido quando, antes de testar a sensibilidade do olho, pro­
nuncia-se uma palavra que tivera sentido de luz no teste an­
terior do sujeito. Dolin mostrou em seus experimentos que
mudança idêntica da sensibilidade ocorria quando ante a me­
dição da sensibilidade o sujeito pronunciava a palavra “dra­
ma”, não ocorrendo esse efeito quando o sujeito pronuncia­
va uma palavra de som aproximado mas de significado dife­
rente como, por exemplo, a palavra “trama”.
Todos esses experimentos mostram como são grandes as
possibilidades através das quais podemos provocar mudança
da sensibilidade, aplicando procedimentos fisiológicos (inclu­
sive o reflexo condicionado).
Mudanças consideráveis da sensibilidade podem ser pro­
vocadas por via psicológica, mudando-se os interesses ou os
“objetivos do sujeito”.
Já sabemos que o animal é especialmente sensível a
ações substanciais de importância biológica. O mesmo fe-

34
ÆHÊÊÊÊk _ dSBSBÊÊk

nâmeno podemos verificar no homem se, sem mudar as par­


ticularidades físicas dos estímulos que atuam sobre ele, nós
lhe mudarmos o significado através da instrução verbal.
Podemos citar apenas alguns exemplos de como a mu­
dança do significado do estímulo pode aumentar substan­
cialmente a sensibilidade (ou reduzir os limiares absolutos
da percepção da excitação).
Podem servir de exemplo ilustrativo os testes de labo­
ratório do conhecido psicofisiologista soviético G. V. Guei-
shuni. Nesses testes propuseram-se ao sujeito dois quadra­
dos iluminados entre os quais havia um ponto luminoso fra­
co (imperceptível). Em condições habituais o sujeito não
percebia esse ponto. O ponto luminoso fraco começava
ser percebido pelo sujeito quando era reforçado por um estí­
mulo de dor, enquanto a outra combinação dos dois qua­
drados iluminados entre os quais não havia esse ponto lumi­
noso, não era reforçada por nenhum estímulo e, conse­
qüentemente, as excitações luminosas subliminares pela inten­
sidade se tomavam o único indício pelo qual era possível dis­
tinguir a combinação acompanhada da dor da combinação
indiferente. É íácil perceber que esse experimento mostra de
maneira patente a possibilidade de aguçar a sensibilidade dan­
do-se à excitação subliminar fraca o valor de sinal.
Elevação análoga da sensibilidade pode ser obtida, en­
tretanto, por meio de uma simples instrução verbal, na qual
se dá o valor de “sinal” ao indício fracamente distinguido.
Neste sentido os psicólogos soviéticos A. V. Zaporojets e
T. V. Endovitskaya fizeram um experimento interessante com
crianças de idade pré-escolar e estudaram a maneira pela
qual a atribuição de significado a um certo estímulo aumen-
t£ua agudez da percepção visual. Foram tomados como mé­
todos de avaliação da agudeza da percepção visual círculos
não fechados, nos quais a ruptura se encontra ora em cima,
ora embaixo (os chamados círculos de Lamdoldt, aplicados
pelos oculistas). Num experimento propõe-se às crianças
avaliar a posição da ruptura apertando um botão se a ruptu­
ra estiver situada embaixo, apertando outro botão se a rup­
tura estiver na parte superior. Noutro experimento a avalia­
ção da posição da ruptura era incluída num jogo: colocava-
se o círculo de Lamdoldt sobre portões dos quais saía um
automóvel de brinquedo quando a avaliação da posição da
ruptura era correta. O experimento mostrou que, se a íns-

3$
trução verbal que dava à posição da ruptura o valor de sinal
ainda não influenciava a agudeza da sensibilidade visual das
crianças pequenas, ela exercia influência substancial nas crian­
ças em idade igual e superior a 5-6 anos. As crianças que,
sob as condições do teste indiferente distinguiam a posição
da ruptura do círculos de Lamdoldt apenas a uma distância
de 200-300cm, captavam a posição dessa ruptura a uma dis­
tância de 310-320 cm quando se dava a essa posição valor
de sinal correspondente.
Esses experimentos, que mostram o quanto a atribuição
de valor de sinal ao estímulo pode aguçar a sensibilidade,
são de grande importância psicológica, constituindo um exem­
plo da extraordinária plasticidade que existe no funciona­
mento dos órgãos dos nossos sentidos e varia dependendo da
importância do estímulo.
O aumento da sutileza da sensibilidade sob a influên­
cia do significado do indício perceptível pode ocorrer tanto
na sensibilidade absoluta quanto na relativa. Sabc-se que a
discriminação dos matizes da cor, das mudanças significan­
tes do tom ou das mínimas variações gustativas pode tornar­
se acentuadamente aguda como resultado de atividade pro­
fissional. Foi estabelecido que os pintores podem distinguir
de 50 a 60 matizes do negro; os fundidores de aço distinguem
os matizes mais sutis do fluxo incandescente de metal, que
indicam mudanças mínimas de impurezas estranhas, cuja dis­
tinção é inacessível a observador de fora. Ê sabido que su­
tileza pode atingir a discriminação de nuances gustativas en­
tre os degustadores, que são capazes de determinar a marca
do vinho ou do tabaco pelos mínimos matizes da degusta­
ção, chegando às vezes até a dizer de que lado do desfiladei­
ro foi cultivada a uva usada para o preparo de urn deter­
minado vinho. Por último, sabe-se a que sutileza pode che­
gar a capacidade dos músicos para distinguir os sons; eles se
tomam capazes de captar variações de tons absolutamente
imperceptíveis para o ouvinte comum.
Todos esses fatos demonstram que, sob as condições do
desenvolvimento de formas complexas dc atividade conscien­
te, a agudeza da sensibilidade absoluta e da diferencial pode
mudar substancialmente, e que a inclusão desse ou daquele
indício na atividade consciente do homem pode. em limites
consideráveis, mudar a agudeza dessa sensibilidade.

36
Percepção

A atividade perceptiva do homem.


Características gerais

A t é a g o r a examinamos as formas mais elementares de


reflexo da realidade, os processos através dos quais o homem
reflete indícios particulares do mundo exterior ou os sinais
que indicam o estado do seu organismo.
Vimos que esses processos, que sâo as fontes básicas
da informação que o homem recebe dos meios exterior e in­
terior, são executados por órgãos dos sentidos pertencentes
a modalidades distintas; esses órgãos receptores pertencem
aos grupos dos intero, próprio e extero-receptores, dividin­
do-se o último grupo, por sua vez, em dois subgrupos de re­
ceptores de contato (tato, paladar) e receptores de distân­
cia (olfato, visão e audição). Vimos ainda que os proces­
sos de percepção dos indícios do mundo exterior e do meio
interno podem distribuir-se em níveis variados e apresentai
complexidade diversa. À forma protopática estruturalmente
mais elementar de sensibilidade pertencem antes de tudo o
olfato e o paladar, bem como as formas mais simples de
sensibilidade tátil; à forma de sensibilidade epicrítica estru­
turalmente mais complexa pertencem a visão, a audição e os
tipos mais complexos de atividade tátil.
Vimos, por último, que os processos de reflexo de in­
dícios particulares que atuam sobre o homem a partir do
meio exterior ou interior ou os processos das sensações po­
dem ser objetivamente medidos; tomamos conhecimento dos
meios de medição da sensibilidade absoluta e relativa с
dos fenômenos da variação dessa sensibilidade.
Nada do que falamos no capítulo anterior foi além dos
limites do estudo das formas mais elementares de reflexo ou
dos limites do estudo de elementos particulares de reflexo
do mundo exterior ou interior. Mas os processos reais de re­
flexos do mundo exterior vão muito além dos limites das for­
mas mais elementares. O homem não vive em um mundo de
pontos luminosos ou coloridos isolados, de sons ou conta­
tos, mas em um mundo de coisas, objetos e formas, em um
mundo de situações complexas; independentemente de ele
perceber as coisas que o cercam em casa, na rua, as árvores
e a relva dos bosques, as pessoas com quem se comunica, os
quadros que examina e os livros que lê, ele está invariavel­
mente em contato não com sensações isoladas mas com ima­
gens inteiras; o reflexo dessas imagens ultrapassa os limites
das sensações isoladas, baseia-se no trabalho conjunto dos
órgãos dos sentidos, na síntese de sensações isoladas e nos
complexos sistemas conjuntos. Essa síntese pode ocorrer tan­
to nos limites de uma modalidade (ao analisarmos um qua­
dro, reunimos impressões visuais isoladas numa imagem inte­
gral) como nos limites de várias modalidades (ao perceber­
mos uma laranja, unimos de fato impressões visuais, táteis e
gustativas e acrescentamos os nossos conhecimentos a respei­
to da fruta). Somente como resultado dessa unificação é que
transformamos sensações isoladas numa percepção integral,
passamos do reflexo de indícios isolados ao reflexo de obje­
tos ou situações inteiros.
Seria profundamente errôneo pensar que esse processo
de transição de sensações relativamente simples a sensações
complexas é um simples processo de soma de sensações iso­

38
lada ou, como costumam dizer os psicólogos, o resultado de
simples “associações” de indícios isolados.
Em realidade, o processo de percepção (ou o reflexo de
objetos inteiros ou situações) é bem mais complexo.
Esse processo requer que se discriminem do conjunto de
indícios atuantes (cor, forma, propriedades táteis, peso, sa­
bor, etc.) os indícios básicos determinantes com a abstra­
ção simultânea de indícios inexistentes. Requer a unificação
do grupo dos principais indícios e o cotejo do conjunto de
indícios percebidos e despercebidos com os conhecimentos an­
teriores do objeto. Se no processo dessa comparação a hi­
pótese do objeto proposto coincidir com a informação que
chega, ocorrerá a identificação do objeto e o processo de per­
cepção deste se concluirá; se como resultado dessa compa­
ração não ocorrer a coincidência da hipótese com a informa­
ção que realmente chega ao sujeito, a procura da solução
adequada continuará enquanto o sujeito não encontrá-la, nou­
tros termos, enquanto ele não identificar o objeto ou não
incluí-lo em determinada categoria.
Na percepção de objetos conhecidos (um copo, uma gar­
rafa, uma mesa), esse processo de identificação do objeto
ocorre com muita rapidez, bastando ao homem unir dois-três
indícios perceptíveis para chegar à solução adequada. Na
percepção de objetos novos ou desconhecidos, o processo de
sua identificação é bem mais complexo e assume formas bem
mais desenvolvidas.
Imaginemos que o homem examina um dispositivo his­
tológico desconhecido para a obtenção de delicadíssimos cor­
tes de tecidos: o micrótomo. Inicialmente ele percebe uma
complexa construção instalada numa pesada base de ferro
fundido, em seguida distingue partes metálicas isoladas e
pode ter a súbita impressão de tratar-se de uma balança. No
entanto ele não vê os pratos indispensáveis à balança ou as
escalas que representam o peso. Ele continua a examinar
esse objeto desconhecido até que seus olhos distinguem a su­
perfície plana do aparelho, e uma lâmina muito afiada. En­
tão ele pode lembrar-se de que viu algo semelhante numa
mercearia e que esse aparelho era empregado para cortar
presunto ou salame em fatias finas. Somente depois disto a
lâmina aguda, contígua à superfície metálica, toma-se indí­
cio determinante e o sujeito começa a formar a idéia de que
o objeto percebido tem relação cora os instrumentos de cor­
te cujas hélices micrmétricas parecem assegurar uma regu­
lação precisa da espessura dos cortes. Deste modo, a per­
cepção plena do objeto surge como resultado de um com­
plexo trabalho de análises e síntese, que ressalta os indícios
essenciais e inibe os indícios secundários, combinando os de­
talhes percebidos num todo apreendido.
É a esse processo complexo de reflexo de objetos ou
situações inteiras que em Psicologia se chama sensação.
Vê-se facilmente que a sensação é o processo complexo
e ativo que às vezes requer um considerável trabalho de
análise e síntese.
Eis porque a percepção, num grau ainda menor do que
a sensação, pode ser considerada reflexo passivo da realida­
de, registro passivo da informação que chega ao organismo.
Esse caráter complexo e ativo da percepção manifesta­
se em toda uma série de indícios que requerem uma análise
especial.
O processo de informação não é, de modo algum, o
resultado da simples excitação dos órgãos dos sentidos e da
simples chegada ao córtex cerebral das excitações que sur­
gem nos receptores periféricos (a pele, os olhos). No pro­
cesso de percepção estão sempre incluídos componentes mo­
tores em forma de apalpação do objeto, de movimento dos
olhos que distingue os pontos mais informativos, de emis­
são de sons correspondentes que desempenham papel essen­
cial no estabelecimento das peculiaridades mais importantes
do fluxo sonoro. Ainda abordaremos essa tese básica quando
analisarmos os diversos tipos de percepção. Por isso é mais
correto considerar o processo de percepção como atividade
receptora do sujeito.
A seguir o processo de percepção está intimamente liga­
do à reanimação dos remanescentes da experiência anterior,
à comparação da informação que chega ao sujeito com as
concepções anteriores, ao cotejo das ações atuais com as con­
cepções do passado, com a discriminação dos indícios essen­
ciais, com a criação de hipóteses do valor suposto da in­
formação que a ele chega e com a sintetização dos indí­
cios perceptíveis em totalidades e com a (tomada de deci­
são) a respeito da categoria a que pertence o objeto per­

40
ceptível. Noutros termos, a atividade receptora do sujeito se
assemelha aos processos de pensamento direto e essa seme­
lhança será tanto maior quanto mais novo e mais complexo
for o objeto perceptível.
Por isto é natural que a atividade perceptiva quase
nunca se limita a uma modalidade mas compreende o resul­
tado do trabalho conjunto dos vários órgãos dos sentidos
(analisadores) em cujo processo formaram-se as concepções
do sujeito. Por último é essencial, ainda, a circunstância de
que o processo de percepção do objeto nunca se realiza em
nível elementar e sua composição tem sempre como inte­
grante o nível superior de atividade psíquica, particularmen­
te a fala (discurso).
O homem não contempla simplesmente os objetos ou
lhes registra passivamente os indícios. Ao discriminar e reu­
nir os indícios essenciais, ele sempre designa pela palavra os
objetos perceptíveis, nomeando-os, e deste modo apreende-
lhes mais a fundo as propriedades e as atribui a determina­
das categorias. Ao perceber o relógio e nomeá-lo mental­
mente com essa palavra, ele abstrai indícios secundários como
a cor, o tamanho, a forma e põe em destaque o traço funda­
mental representado no nome relógio, destaca a função de
indicar o tempo (as horas); ao mesmo tempo, ele situa o
objeto perceptível em determinada categoria, separa-о de ou­
tros objetos exteriormente semelhantes mas pertencentes a
outras categorias (o telefone, por exemplo, que também tem
mostrador com os respectivos números mas sua função é in­
teiramente distinta). Tudo isso torna a confirmar a tese se­
gundo a qual a atividade receptora do sujeito pode, pela es-
truftira psicológica, aproximar-se do pensamento direto. O ca­
ráter complexo e ativo da atividade receptora do homem leva
a uma série de particularidades da percepção humana que
pertencem, no mesmo grau, a todas as formas dessa per­
cepção.
O primeiro traço peculiar da percepção consiste em seu
caráter ativo e imediato. Como já lembramos, a percepção do
homem é mediada pelos seus conhecimentos anteriores, decor­
rentes da experiência anterior e constitui uma complexa ativi­
dade de análise e síntese que compreende a criação da hipó­
tese do caráter do objeto perceptível e a decisão acerca da
correspondência do objeto perceptível a essa hipótese.

41
A segunda peculiaridade da percepção do homem consis­
te em seu caráter material e genérico. Como já indicamos, o
homem percebe não só o conjunto de indícios que lhe che­
gam mas também analisa esse conjunto como um objeto de­
terminado, não se limitando a estabelecer os traços indicado­
res desse objeto mas sempre atribuindo-o a certa categoria,
considerando-o “relógio”, “mesa”, “edifício”, "animal”, etc.
Esse caráter generalizado da percepção evolui com a idade
e o desenvolvimento mental, tornando-se cada vez mais níti­
do e refletindo o objeto perceptível com profundidade cada
vez maior, englobando todo o grande número de traços essen­
ciais que caracterizam o objeto e as conexões e relações сш
que este entra.
A terceira peculiaridade da percepção humana consiste
em sua constância e correção (ortoscopicidade). A experiên­
cia com objetos nos dá uma informação bastante precisa das
suas propriedades fundamentais; sabemos que o prato e re­
dondo, que a caixa de fósforo é retangular, que o lírio é
branco, o rato é pequeno e o cavalo 6 grande.
Esse conhecimento anterior do objeto incorpora-se à sua
percepção direta e toma esta mais constante с mais correta
(ortoscópica) ; compreende certa correção às peculiaridades
que a percepção do objeto pode adquirir em condições va­
riáveis.
É fato conhecido que se girarmos um prato para o qual
o sujeito está olhando, a marca desse objeto na retina muda­
rá, assumindo paulatinamente um caráter oval ou até de um
retângulo alongado; mas continuamos por muito tempo a per­
ceber a forma que muda a posição do prato como "redondo”
fazendo a respectiva correção do conhecimento real da forma
desse objeto.
O mesmo ocorre na percepção da cor. É sabido que um
pedaço de carvão colocado num ambiente de iluminação cla­
ra, reflete mais raios luminosos do que um pedaço de papel
branco ao crepúsculo. No entanto continuamos a perceber o
carvão como negro, corrigindo imediatamente a impressão
imediata que muda em decorrência da situação. Em suma, a
última peculiaridade da percepção humana consiste em seí
ela móvel e dirigível.
O processo de atividade perceptiva é sempre determi­
nado pela tarefa que se coloca diante do sujeito. Ao exami­

42
nar um quadro, visando a determinar o método de trabalho
do pintor, o homem ignora o conteúdo e destaca a maneira
da distribuição da tinta no quadro; propondo-se a tarefa de
determinar o tempo a que pertence o quadro, ele destaca as
maneiras do desenho, a roupa dos personagens representados,
a forma arquitetônica dos edifícios; tentando analisar a ima­
gem do quadro ou o acontecimento nele representado, ele
amplia o círculo de informações que vai recebendo e analisa
todo o quadro em conjunto; ao contrário, propondo-se a ta­
refa de captar a mímica das pessoas representadas no qua­
dro, ele restringe aparentemente o volume de sua percepção e
se concentra em detalhes isolados do quadro.
É natural que esse determinismo da percepção pela ta­
refa que se coloca diante do homem ou do seu objetivo tor­
na a percepção elástica e dirigível, e essas peculiaridades da
percepção humana dependem altamente do papel que na ati­
vidade receptora desempenha a experiência prática do su­
jeito e o seu discurso interior, que permite formular e mudar
as tarefas.
É perfeitamente compreensível que tudo isto distingue
essencialmente a atividade receptora do homem da percepção
do animal, que, apesar de. toda a sua mobilidade, carece das
qualidades dirigíveis e arbitrárias que caracterizam a ativida­
de perceptiva consciente do homem.
Todas as referidas peculiaridades da atividade receptora
do homem permitem compreender melhor as condições das
quais ela depende.
É natural que a percepção correta dos complexos obje­
tos não depende apenas da precisão do funcionamento dos
nossos órgãos dos sentidos mas também de várias outras con­
dições essenciais. Situam-se entre estas a experiência ante­
rior do sujeito e a amplitude de profundidade das suas con­
cepções, a tarefa a que ele se propõe ao analisar determina­
do objeto, o caráter ativo, coerente e crítico da sua atividade
receptora, a manutenção dos movimentos ativos que inte­
gram a atividade receptora, a capacidade de reprimir a tempo
as hipóteses do significado do objeto perceptível se estas não
corresponderem à informação afluente.
A complexidade do desempenho perceptivo ativo permite
explicar também as falhas que se verificam na percepção da

43
criança nas etapas tenras do desenvolvimento bem como as
peculiaridades do distúrbio da percepção que podem surgir
nos estados patológicos do cérebro. Essas peculiaridades po­
dem assumir caráter variado dependendo do elo da atividade
receptora insuficientemente desenvolvido ou perturbado.
Assim, a insuficiente agudez da sensibilidade (visual ou
auditiva) pode acarretar erros de percepção que, não obstan­
te. podem ser compensados com êxito com o emprego de
aparelhos de reforço da sensibilidade ou pela concentração
da atenção do sujeito.
As falhai, relacionadas com a distorção da síntese dos
indícios perceptíveis (verificadas na afecção das zonas ter­
ciárias e sintéticas do córtex cerebral), podem levar a que
alguns indícios do objeto visível continuem a ser bem perce­
bidos enquanto o sujeito se mostra incapaz de perceber o
objeto no conjunto e é forçado a fazer angustiantes conjetu­
ras tentando descobrir o que pode significar a combinação
dos indícios por ele percebidos.
É inteiramente distinto o caráter das falhas da percepção
durante a perturbação do processo de percepção ativo. Nes­
tes casos, todo o complexo processo de discriminação dos in­
dícios essenciais do objeto e a comparação da hipótese que
surge com a informação que realmente chega pode ser per­
turbado e o homem pode limitar-se a fazer suposições impul­
sivas do significado do objeto perceptível com base nos indí­
cios particulares deste e, às vezes, com base cm detalhes mais
nítidos ou que mais saltam à vista, sem comparar a sua hi­
pótese com a informação que recebe nem corrigir as suas
conjeturas errôneas.
Por último, podem adquirir novamente outro caráter as
falhas da percepção nos casos em que o objetivo do homem
adquire inércia patológica e ele começa a perceber não o que
corresponde às peculiaridades do objeto que atua sobre ele
quanto o que ele espera ver e que corresponde aos seus obje­
tivos inertes preconcebidos. Algumas formas de engano da
percepção, que ocorrem em determinados grupos de doentes
com patologia cerebral, adquirem justamente esse caráter.
Analisamos as teses mais gerais da psicologia da ativida­
de perceptiva do homem e agora podemos passar ao exa­
me de algumas formas isoladas de percepção humana.

44
Percepção tátil

Formas simples de percepção tátil

Como já dissemos o tato é uma forma de sensibilida­


de. que compreende tanto componentes elementares (proto-
páticos) quanto complexos (epicríticos).
Entre os primeiros situam-se a sensação de frio e calor
e a sensação de dor, situando-se entre os últimos as sensa­
ções propriamente táteis (contatos e pressões) e os tipos de
sensibilidade profunda e sinestésica que fazem parte da com­
posição das sensações proprioceptivas.
Os aparelhos periféricos da sensação de calor e frio são
os pequenos “bulbos” espalhados pelas camadas da pele. O
aparelho das sensações de dor é constituído pelas extremi­
dades livres dos filamentos nervosos finos, que percebem
os sinais de dor; o aparelho periférico das sensações de
contato e pressão é constituído por formações nervosas sul
gcneris conhecidas como corpúsculos de Maysner, corpús­
culos de Fater-Paccini, também distribuídas nas camadas da
pele. Os receptores da sensibilidade profunda (propriocepti­
vas) são os mesmos aparelhos situados na superfície das
articulações, dos ligamentos e no âmago dos músculos.
Os aparelhos receptores que acabamos de enumerar estão
distribuídos na superfície da pele de maneira desigual e a
densidade de sua distribuição tem base biológica: quârito rtials
sutil é a sensibilidade que se requer do trabalho de um órgão,
tanto maior é a densidade com que se distribuem em sua su­
perfície os respectivos componentes receptores e tanto mais
baixos são os limiares da percepção que a eles chegam, nou­
tros termos, tanto maior é a sua sensibilidade.
A tabela 2 apresenta um quadro da freqüência média com
a qual se encontram os respectivos receptores em 1 milímetro
quadrado de pele de determinada região do corpo.
Verificamos que nas pontas dos dedos há freqüência má­
xima e um número relativamente grande de receptores de dor,
ao passo que não há um só receptor de frio e calor. Quadro
diferente se observa na pele do antebraço que, como se sabe,
não tem participação ativa no apalpamento: aqui o número de
elementos táteis por mm2 diminui, aumentando o número

45
de receptores de dor, calor e frio. O mesmo se verifica na
pele das costas.

TABELA 2

Número de diversos receptores da sensibilidade


da pele e n lmmü de diferentes partes da pele

de dor táteis de frio de calor

Pontas dos
dedos 60 120 0 0
D o antebraço 203 15 6 0.4
Costas j. +
Língua + + +

(Segundo Anancv.)

Nota-se que, se na ponta dos dedos, o número de apare­


lhos periféricos por mm! de pele é igual a 120, este é de ape­
nas 14 por m rtf de pele das costas da mão, 15 de pele da
palma da mão, 29 do peito, 50 da testa t 100 da ponta do
nariz. Percebe-se facilmente a importância biológica dessa
distribuição dos elementos táteis em diversos pontos da pele.
A sutileza da sensibilidade de diferentes superficies do
corpo é assegurada não só pela densidade da distribuição
dos receptores periféricos ñas respectivas áreas da pele mas
também pela área relativa das zonas pós-centrais do córtex
cerebral, aonde chegam os filamentos originários das respec­
tivas áreas da periferia. Já dissemos que quanto mais sutil é
a função dessa ou daquela área da pele, tanto maior é a
área que sua projeção ocupa no córtex cerebral.
Os fatos que acabamos de descrever mostram que a sensi­
bilidade da pele constitui um sistema especial, adaptado à
análise tátil e sinestésica dos sinais oriundos do mundo ex­
terior e do próprio corpo. Lembremos que enquanto os im­
pulsos táteis procedentes dos receptores da pele chegam aos
cornos posteriores da medula espinhal, fazem parte da com­
posição das colunas laterais desta e, mudando de rumo nos
nós subcorticais, terminam no córtex da circunvolução pos­
terior central, os impulsos condutores dos sinais da sensibili­


dade profunda (propriocepliva) chegam inicialmente aos cor­
nos posteriores da medula espinhal e avançam pelas colunas
laterais e, cessando nos núcleos de Holl e Burdach, chegam
ao córtex da circunvolução posterior central e às suas áreas
secundárias. Cabe observar que a divergência das vias con-
dutoras da sensibilidade superficial, por um lado, e da sen­
sibilidade profunda (sinestésica), por outro, explica o fato
de que, durante a afecção das colunas posteriores ou dos
núcleos de Holl e Burdach, mantém-se a sensibilidade super­
ficial e perturba-se simultaneamente a profunda. É justa­
mente este caso que se verifica na tabe da espinha (tabes
dorsalis), na qual a afecção atinge os sistemas da sensibili­
dade profunda sem se manifestar no sistema da sensibilida­
de superficial. Merece destaque também a segunda diver­
gência substancial que é importante levar em conta por tèr
grande significado clínico.
Isto leva à possibilidade de distanciamento entre я sen­
sibilidade tátil e a de dor, que surge nos casos dé afecção
da substância parda situada ao redor do canal dá medula
espinhal (siringomielia). Nestes casos, os filamentos por­
tadores dos impulsos da sensibilidade tátil podem chegar ao
córtex, enquanto os filamentos que conduzem os impulsos da
sensibilidade à dor se interrompem e passam pára o lado
óposto.
Resulta daí a manutenção da sensibilidade superficial
(tátil) do doente, desaparecendo a sensibilidade à dor; o
doente não percebe as queimaduras que recebe ao tocar obje­
tos quentes embora continue a sentir o contato com estes.
Por último, cabe observar que os impulsos da sensibili­
dade tátil, que são conduzidos através dos filamentos sen­
síveis grossos, são percebidos mais rapidamente .do que os
«inais de dor que passam através de filamentos ' mais finos.
Esta tese é bem ilustrada pela observação atenta da seqüên­
cia das sensações táteis e de dor que temos ao tocarmos uma
chapa quente.
Como já dissemos, a sensibilidade tátil é de estrutura he­
terogênea; a ela pertencem as formas mais simples de sen­
sibilidade superficial (sensação de contato e pressão) e as
formas mais complexas de sensibilidade tátil como a sensa­
ção de localização do contato, a sensibilidade distintiva (sen­
sação da distância entre dois contatos em relação às áreas
próximas da pele) e, por último, a sensação do sentido do

47
) .. — ------
)
) '

esticamento da pele (quando a pele do antebraço é esticada.


) no sentido da mão ou a partir desta) e a sensação da forma
feita pelo contato de urna lâmina que produz na pele uma fi­
gura de círculo, triángulo, número ou letra (esta última é
freqüentemente chamada em neurologia de “sensação de Fors-
ter”). Situam-se entre as formas complexas também a sensi­
bilidade profunda (sinestésica) que permite identificar a posi-
) ção em que se encontra o braço direito que se move passiva­
mente, ou dá ao braço direito a posição que se dá passiva­
mente ao esquerdo (e vice-versa). Percebe-se facilmente que
as últimas modalidades de sensibilidade são de caráter espe­
cialmente complexo e de sua realização participam as com­
plexas zonas secundárias das áreas pós-centrais do córtex.
Por isto, se a supressão das formas elementares de sensibi­
lidade tátil pode ocorrer com a afecção de quaisquer áreas
da via tátil do lado oposto do cérebro, a perturbação das
formas superiores de sensibilidade tátil com a conservação
de suas formas elementares pode servir de sintoma da afec­
ção de áreas secundárias mais complexas do córtex pós-central
do cérebro. Eis porque o estudo separado de diversas for­
mas de sensibilidade tátil é de grande importância para o
diagnóstico tônico das afecções cerebrais.
Para estudar os diferentes tipos de sensibilidade tátil ou
proprioceptivas, empregam-se procedimentos simples que hoje
integram solidamente o exame neurológico dos doentes.
Para estudar a sensibilidade tátil simples, toca-se uma
área da pele com a ponta afiada ou rombuda de um alfinete
ou de um lápis e propõe-se ao sujeito responder se sente o
contato, qual o caráter deste e em que lugar ele sente a picada.
¡Numa pesquisa exata, emprega-se o estenciômetro ou um
conjunto de fios de diferentes comprimentos.
Para estudar a sensação de localização, aplica-se a ponta
a várias áreas do antebraço e propõe-se ao sujeito indicar o
lugar que foi tocado pelo pesquisador.
) Para estudar a sensibilidade distintiva, aplica-se o esten­
ciômetro de Weber cujas hastes são colocadas em distâncias
diferentes. Um índice da sutileza da sensibilidade distintiva
I é a distância mínima na qual o sujeito distingue não um mas
dois contatos separados.
Outro procedimento muito importante é o teste de Talber,
) no qual o pesquisador toca simultaneamente dois pontos si­
métricos do peito e do rosto. A afecção de um dos hemisfé-
)
) 48
rios manifesta-se no fato de que o doente que percebe bem
cada contato isolado, ignora um dos contatos com os pontos
simétricos caso esses contatos sejam simultâneos. Neste caso,
costuma cessar a sensação de contato com ponto oposto ao
hemisfério afetado. Por último, é muito importante o estudo
da sensibilidade pele-sinestésica (para cuja análise conduz-se
a pele do antebraço no sentido da mão ou a partir desta, de­
vendo o sujeito determinar o sentido do deslocamento passivo
da pele) ou o estudo da sensibilidade profunda; aqui o pes­
quisador curva (ou descurva) o braço ou um dedo do sujeito,
propondo-lhe determinar em que sentido foi feito o movi­
mento, ou coloca o braço numa posição e propõe ao sujeito
colocar o outro nessa mesma posição. A perturbação da sensi­
bilidade profunda em um dos braços sugere a afecção das
áreas sinestéticas complexas do córtex do hemisfério oposto.
Por último, o estudo do sentido espacial bidimensional
(ou sentido de Fõrster) é feito da seguinte maneira: o pesqui­
sador desenha com a ponta de uma agulha ou de um fósforo
uma figura (ou número) na pele do antebraço e propõe de­
terminar o tipo de figura ou número que foi desenhado. A
impossibilidade de executar essa tarefa com tentativas ativas
do sujeito sugere a afecção das áreas secundárias do córtex
parietal do hemisfério oposto.

Formas complexas de percepção tátil

Até agora examinamos formas relativamente sii


sensibilidade sinestésica e da pele, que refletem
cios relativamente elementares (pressão, contato
membros no espaço).
No entanto existem formas mais complex
tátil, na qual o homem pode determinar pC
formas do objeto e às vezes até identificar
Essa forma de sensibilidade tátil 6 de grane
Psicologia.
Já indicamos que a mão em estado de r ___
tar apenas indícios isolados de um objeto estático que atua
sobre ela (a temperatura, o tamanho e as peculiaridades da
superfície do objeto) mas não pode lhe captar a forma nem o
conjunto de indícios que o distinguem. É natural que em
tais condições não se pode falar de nenhuma percepção com>

49
plexa do objeto. Para passar da avaliação de traços isolados
à percepção tátil de todo o objeto, é necessário que a mão
esteja em movimento, isto é, que a percepção tátil passiva
seja substituída por apalpamento ativo do objeto.
É por isto que o estudo da maneira pela qual se desen­
volve o processo de tateamento do objeto e de como neste
processo o homem passa paulatinamente da avaliação de in­
dícios isolados à identificação do objeto tateado constitui uma
das questões mais importantes da Psicologia da percepção tátil.
Na percepção tátil do objeto, a questão mais importante
é a transformação paulatina da informação que recebemos
sucessivamente acerca de indícios particulares do objeto em
sua imagem integral (simultânea).
Suponhamos que tateamos de olhos fechados um objeto
qualquer, uma chave, por exemplo. A princípio temos a im­
pressão de tocarmos algo frio, liso e comprido. Nesta fase po­
demos supor que tateamos uma haste metálica ou um tubo
ou mesmo um lápis metálico. Em seguida, nossa mão se des­
loca e começa a tatear apenas o anel da chave; o primeiro
grupo de suposições é imediatamente afastado mas ainda não
surge uma hipótese nova. Continuamos a tatear e o nosso
dedo se desloca no sentido do palhetão da chave com seu
corte característico. Aqui distinguimos os pontos mais infor­
mativos, a reunião de todos os indícios sucessivamente percep­
tíveis e então surge a última hipótese: “é uma chave!” ; esta
hipótese será confirmada pela verificação posterior.
Vemos facilmente que o processo de identificação da
imagem do objeto, que ocorre de imediato na visão, no tato
tem caráter desdobrado e ocorre por meio de uma cadeia su­
cessiva de testes com a discriminação dos indícios particulares,
a criação e a formação de várias alternativas e a obtenção
da hipótese definitiva.
Por isto o processo de percepção tátil (ativa), a qual sur­
ge no processo de apalpação, pode servir de modelo de qual­
quer percepção cujos elos particulares são aqui desdobrados
e especialmente acessíveis à análise.
O processo de percepção tátil foi minuciosamente estuda­
do pelos psicólogos soviéticos B. G. Ananev, P. F. Lomov,
L. M. Vekker. As pesquisas desses autores revelaram vários
fatos essenciais.

50
Confirmaram, antes de tudo, que a percepção da forma
do objeto sem uma apalpação ativa e sucessiva deste é abso­
lutamente inacessível.
Mostrou ainda a pesquisa que a mão do sujeito deve apal­
pai ativamente o objeto, tentando distinguir os pontos que
oferecem maior informação e reuni-los numa só imagem. A
passagem passiva do objeto pela mão ou da mão sobre o obje­
to, excluindo movimentos ativos de procura, não leva ao devido
resultado, possibilitando um reflexo do objeto apenas parcial
e por isto falso.
Por isto, a apalpação ativa é realmente necessária para
identificar os traços do objeto e reuni-los numa imagem única.
A pesquisa posterior mostrou ainda que a apalpação ativa do
objeto é um processo complexo.
A estrutura sutil dos movimentos tateantes permitiu um
conhecimento mais aproximado do processo destes. Verificou-
se que os movimentos de apalpação se realizam com o papel
determinante do dedo médio, que, no processo de evolução,
apenas no homem começa a opor-se aos outros dedos, e do
indicador, que no homem adquire mobilidade especial. Em
seguida os movimentos de apalpação se alternam com inter­
valos, sendo que o tempo gasto com o movimento é uma vez
e meia maior do que o movimento de retenção ou parada.
Esses fatos levam a pensar que durante essas paradas distin-
guem-se os componentes menores ou “quantas” da informa­
ção tátil (Ananev).
Cabe notar que, na percepção tátil do objeto, os movi­
mentos de apalpação são heterogêneos, que neles podemos dis­
tinguir os mínimos deslocamentos dos dedos (de 2 a 100mm),
que param nos pontos '‘críticos” (ou mais informativos), du­
rante os quais o sujeito continua a receber uma informação
fracionada dos traços do objeto, podendo-se distinguir gran­
des movimentos que reúnem os indícios isolados e têm a fun­
ção de verificar as hipóteses surgidas.
Ë importante que esse caráter dos movimentos se man­
tém inclusive nos casos em que o sujeito tateia não com o
dedo mas com uma haste (um lápis, por exemplo), ou nos
casos em que, tendo sido amputada a mão, a apalpação é fei­
ta por outras partes do braço, por exemplo pelo antebraço
estilhaçado (as chamadas “pinças de Krukenberg”) .
Na medida em que se desenvolve o exercício, o processo
de apalpação, indispensável à identificação tátil do objeto,

51
pode ' reduzir-se paulatinamente; se nas primeiras etapas era
necessário comparar muitos dos indícios discriminados para
identificar o objeto, numa segunda apalpaçâo o número des-
sses indícios diminui cada vez mais, de forma que, ao térmi­
no do processo, é bastante um indício mais informativo para
que o objeto possa ser identificado. Ê interessante que esse
processo de redução paulatina do número de testes, nos quais
se destacam os indícios informativos necessários, ocorre de
modo relativamente mais lento nas crianças pequenas e co­
meça a ser mais expressivo nas crianças de б a 7 anos de ida­
de. Nos adultos é especialmente rápida essa redução ou “re­
tardamento” dos movimentos de busca, indispensáveis à iden­
tificação tátil do objeto. Na tabela 3 apresentamos dados
acerca da redução paulatina dos testes de orientação, duran­
te a percepção tátil do objeto; esses dados foram obtidos pelos
psicólogos soviéticos V. P. Zintchenko e B. F. Lomov em
pesquisas com crianças de diversas faixas etárias.

TABELA 3

Número de testes necessário? para a identificação tátil de um ob­


jeto por crianças de diferentes faixas etárias.
ll
N .° Idade Anos Anos Anos Anos
d с testes 3-4 4-5 5-6 6-9

I apresentação 5,8 6,0 5.8 5.0


IV apresentação 4.0 3,9 2,9 1,0!
1.

A percepção tátil, que começou nos testes com a apalpa-


ção dos objetos, prosseguiu numa série especial de testes e
pesquisas, propostos pelo psicólogo soviético E. N. Sokolov.
Essa pesquisa teve como finalidade estudar a estrutura pro­
vável do processo de percepção e consistiu no seguinte: pro­
punha-se ao sujeito tatear com o dedo uma letra, feita de
alguns elementos isolados, por exemplo, de botões. Via
de regra, eram letras cujos traços se distinguiam apenas pela
posição de um ou dois elementos.
Propunha-se ao sujeito tatear sucessivamente com o dedo
a estrutura que lhe fora dada e dizer a qual dos dois botões

52
ela pertencia. O teste mostrou que, a princípio, a apalpação
tinha caráter desdobrado, que era seguida o processo se de-
sèrivolvia paulatinamente e, por último, o sujeito dirigia logo
sua atenção aos pontos mais informativos cujo contato lhe dava
de imediato informação positiva (a existência do elemento que
diferenciava uma letra da outra) ou informação negativa
(inexistência do elemento necessário), que lhe permitia chegaT
à solução necessária.
Cabe notar que a afecção de determinadas áreas do cére­
bro levava a perturbações originais do processo aqui descri­
to de identificação tátil. Os doentes com afecção das áreas
subparietais do cérebro e privados da capacidade de sintetizar
os elementos em um todo, mostraram-se incapazes de utilizar
a informação por eles obtida e criar mentalmente uma ima­
gem integral de uma figura a partir dos elementos separada­
mente percebidos. Os doentes com afecção dos lobos fron­
tais do cérebro revelaram inconsistência no próprio processo
de obtenção da informação necessária: a fase de ação orien­
tada с planejada cessava ou em certo sentido se perturbava
e os pacientes começavam não raro a fazer conclusões impul­
sivas acerca da letra que tateavam, sem levar a pesquisa até
o fim nem distinguir os indícios de apoio necessários (O. K.
Tikhomírov).
A complexa estrutura psicofisiológica do processo de iden­
tificação tátil do objeto leva a um fenômeno amplamente co­
nhecido na clínica como astereognose, chamado por alguns
autores de síntese amorfa (perturbação da percepção tátil tri­
dimensional do objeto ou perturbação do processo de síntese
de uma imagem integral do objeto, constituída de elementos
isolados). Esse fenômeno consiste em que o doente, conser­
vando a sensibilidade tátil elementar, revela-se incapaz de
identificar o objeto que tateia e sintetizar em um todo único
indícios isolados. O quadro clássico da astereognose surge
nas afecções das áreas secundárias e terciárias da região parie­
tal do córtex e está relacionado com a perturbação da capa­
cidade de reunir sinais táteis isolados numa estrutura una.
Esse quadro surge, via de regra, num braço do lado oposto
do foco. Em todos os casos de astereognose clássica, o pa­
ciente tateia ativamente o objeto que lhe foi dado, tenta sin­
tetizar-lhe Os traços mas é incapaz de fazê-lo e identificar o
objeto. Do quadro clássico de astereognose distinguem-se
essencialmente as dificuldades na identificação tátil de dado

53
objeto, que surgem nos casos de afecção dos lobos frontais
do cérebro. Nestas circunstâncias, que, via de regra, provo­
cam uma brusca queda da atividade do paciente e a impossi­
bilidade de cotejar o efeito da sua ação com a intenção ini­
cial, é diferente o caráter da natureza da dificultação na per­
cepção tátil do objeto. Nestes casos, o doente não tenta ta­
tear ativamente o objeto ou não faz tentativas sistemáticas
suficientes neste sentido, interrompendo em fase inicial o
processo de orientação e lançando prematuramente uma hi­
pótese baseada simplesmente numa distinção fragmentária do
objeto. Observações atentas permitem perceber o elo preciso
em que foi perturbado o processo de identificação tátil do
objeto e tirar desse fato conclusões diagnósticas.

Percepção visual

O sistema visual se caracteriza, à primeira vista, por traços


grandemente opostos ao sistema tátil.
Se na percepção tátil o homem capta apenas traços iso­
lados do objeto e só posteriormente os reúne numa imagem
integral, por meio da visão ele percebe de uma só vez a ima­
gem completa do objeto; se o tato é um processo de captação
desdobrada e sucessiva de traços e sua síntese posterior, a vi­
são dispõe de um aparelho para perceber simultaneamente as
formas complexas do objeto.
Essa característica da percepção visual, que pareceria evi­
dente, suscitou o surgimento de uma teoria que dominou du­
rante muito tempo e segundo a qual a visão funciona como
um sistema receptor relativamente passivo, no qual a imagem
das formas exteriores e das coisas se fixa na retina e, pos­
teriormente, sem quaisquer mudanças, se transmite inicialmen­
te às formações visuais subcorticais (corpo caloso superficial)
e, em seguida, às áreas occiptais do córtex cerebral.
No entanto, apesar da aparente evidência, essa teoria não
foi capaz de responder a uma série de questões.
Continuou obscuro o papel desempenhado na percepção
visual por milhões de neurônios de que dispõe o corpo caloso
superficial (aparelho subcortical da visão) e principalmente
o córtex visual occipital dos grandes hemisférios. Ficou sem
esclarecimento o papel desempenhado pela repetida reprodu-
ção da imagem» que antes se reflete na retina e depois se re­
pete sem mudança nas formações subcorticais e no córtex
visual. Por último, ficou obscura a via de realização do pro­
cesso de seleção dos componentes necessários da percepção
visual bem como a plasticidade da imagem perceptível, que
permite distinguir uns elementos, abstrair outros e adaptar a
imagem refletível à tarefa que o sujeito coloca para a sua
percepção.
Para compreender melhor os mecanismos internos da per­
cepção visual e destacar a posição nela ocupada pela repre­
sentação integral das formas e dos objetos, por um lado, e a
possibilidade de discriminar os menores indícios e recodificá-
los em quadros sintéticos elásticos, precisamos analisar, ini­
cialmente, em maiores detalhes, a estrutura do sistema visual
(ou do “analisador” visual) para, em seguida, passarmos à
descrição das formas básicas de funcionamento desse sistema.

Estrutura do sistema visual

O sistema visual possui uma completa estrutura hierár­


quica que o distingue acentuadamente do sistema de sensibi­
lidade tátil.
Se as áreas periféricas da sensibilidade tátil representam
membros simples dos nervos sensíveis e corpúsculos ou no­
velos receptores relativamente simples, a área periférica da
percepção visual — o olho — representa um complexlssimo
aparelho que se divide em vários componentes. No aparelho
do olho podemos distinguir a parte sensível à luz (retina) e
vários dispositivos auxiliares de caráter motor; dentre estes
um (a íris e o cristalino) assegura a afluência dos raios lu­
minosos que chegam à retina, a focalização da imagem e a
proteção do aparelho contra influências estranhas (a cór» '
e permite realizar o movimento do dispositivo complexo
músculos do olho).
Examinemos mais detidamente as partes do olho
enumeradas.
A retina é um dispositivo muito complexo que, <.....
mente dos membros periféricos do sistema tátil, não tem;
lutamente o caráter dos membros simples das céluláa
veis mas constitui um aparelho altamente complexo qüe

■ v.
.r
„ V.I
' , V4
(U ¡ V MV. h
1
)
) '

tanto elementos especiais fotossensíveis como complexos ele­


mentos nervosos. Pela caracterização de alguns autores, a re­
tina do olho é uma minipartícula do córtex cerebral de locali­
)
zação exterior, capaz de exercer, com autonomia, funções bas­
) tante complexas.
O componente mais importante da retina é a camada de
células sensíveis especiais, bastonetes с matrazes, que são
complexos dispositivos fotoquímicos, capazes de distinguir uma
substância fotossensível (a púrpura visual) e transformar a
energia da luz em energia do nervo. Os bastonetes se distin-
j guem por serem consideravelmente mais sensíveis do que as
matrazes mas nâo podem reagir separadamente às ondas lu­
minosas de comprimentos variados, assegurando, desta forma,
a visão da cor (cromática). O número de bastonetes na re­
tina é muito grande, em tomo de 130 milhões, e estão dispos­
tos em toda a área da retina, sobretudo na periferia. Assegu­
ram a visão noturna turva, que não consegue refletir a cor,
sendo por isto uma visão “acromática”. O número de matra­
zes é bem menor (em tomo de 7 milhões). Estas estão si­
tuadas na parte central da retina, responsável pela visão colo­
rida (cromática). É bem conhecida na clínica a hemeralopia
'(cegueira noturna), que é um distúrbio da capacidade de en­
xergar na penumbra. Isto se deve ao distúrbio do funciona­
mento do aparelho dos bastonetes, distúrbio esse relacionado
com a carência de vitamina AI, que impede a restauração da
púrpura visual nos bastonetes. Já o distúrbio da capacidade de
distinguir certas cores (caso dos daltônicos) se deve a fa­
lhas no funcionamento do aparelho dos bastonetes.
É característico que o acúmulo de elementos fotossensí­
veis (sobretudo matrazes) 11a parte central da retina faz desta
uma (“mancha amarela" ou “ mácula”) especialmente sensí­
vel; ao contrário, na parte da retina onde sai o nervo ótico e
ela carece de elementos fotossensíveis, não há a capacidade de
perceber a luz que é chamada de “mancha cega”,
O processo nervoso que surge nos bastonetes e nas ma­
trazes sob a influência da luz é transmitido ao sistema inte­
gral altamente complexo de células nervosas, que formam as
partes internas da retina. As camadas da retina, assim como
as do córtex cerebral, se dividem em várias películas, com­
postas por elementos nervosos de diversos tipos. Entre estes
) situam-se as células bipolares, capazes de captar as excita­
ções, surgidas em elementos fotossensíveis isolados, e trans-

) 56
)

\
portá-los para camadas mais profundas cujos dendritas estão
situados na superfície horizontal e são capazes de reunir a
excitação surgida num grupo de elementos fotossensíveis; as
células ganglionares, situadas na camada interior da retina e
capazes de reunir a excitação e transmiti-la ao nervo óptico,
que é o início da parte condutora do sistema visual. Na re­
tina ocupam posição especial as “células amácrinas”, que se
distinguem por apresentarem uma disposição dos dendritos
e axônios oposta à verificada em todas as células enumera­
das: seus dendritos estão dispostos no sentido da parte inter­
na e os axônios na parte externa (fotossensível da retina).
Há fundamentos para se supor que elas são um aparelho efe­
rente da retina, que, assegurando a chegada da retina aos ele­
mentos fotossensíveis, garantem que cheguem aos elementos
fotossensíveis as excitações surgidas no centro, permitindo re­
gular a sensibilidade dos aparelhos receptores aos objetivos
internos do sujeito.
A irritação da retina pela luz provoca nela ocorrências es­
táveis de excitação, que podem ser registradas em forma de
oscilação de potencialidades elétricas (eletrorretinogramas),
que refletem cada irritação luminosa que chega à retina. Ca­
be notar que a aceleração das excitações permite observar
aceleração rítmica das respostas elétricas da retina. O ele-
trorretinograma pode ser empregado com êxito para o diag­
nóstico de mudanças patológicas da retina.
O aparelho da retina aqui descrito é o primeiro disposi­
tivo fotossensível básico que faz parte da parte periférica do
receptor visual. Mas para o funcionamento normal, é necessá­
rio um segundo aparelho complementar do olho, que regula a
afluência da excitação luminosa que chega aos elementos fo­
tossensíveis da retina e garantem os movimentos do olho, que
poderiam produzir uma imagem com o máximo de precisão
na retina e permitiriam ao olho acompanhar os objetos
perceptíveis.
O aparelho que regula a afluência dos raios luminosos
tem entre seus componentes a íris do olho, que, graças aos
nervos nela situados, pode restringir ou ampliar a pupila, fi
fato conhecido que, sob iluminação forte, a pupila do olho
se restringe e se amplia sob iluminação fraca, regulando a
afluência de luz na câmara interna do olho. É sabido que os
aparelhos que regulam a compressão e a ampliação da pupila
estão situados nos corpos quadrigêmeos, razão pela qual o

57
:ШЖ

distúrbio da compressão da pupila na claridade pode servir


de sintoma de afecção dessa área do sistema nervoso central.
Entre os aparelhos que regulam a afluência de luz aos ele­
mentos fotossensíveis da retina, situa-se também o movimento
do pigmento que, sob iluminação intensa, se desloca para a
parte externa da retina, formando uma espécie de obstáculo
luminoso; sob iluminação fraca, ele se desloca para as ca­
madas internas da retina, tomando os elementos fotossensí­
veis acessíveis à ação imediata da luz.
Uma parte importante do aparelho complementar do olho
é o cristalino, que é uma lente móvel refratária aos raios lu­
minosos. Dependendo da distância do objeto examinado pelo
sujeito, a curvatura do cristalino pode mudar, de maneira que
a imagem que cai sobre a retina se toma nítida. O processo
de mudança da curvatura do cristalino, que assegura a maior
nitidez da imagem na retina, é denominado acomodação. Na
velhice, a regulação das mudanças da curvatura do cristalino
é perturbada, requerendo-se o emprego de lentes complemen­
tares para garantir a correta acomodação do olho.
Os aparelhos descritos asseguram a possibilidade do refle­
xo de imagens integrais na retina do olho. Este fato é facil­
mente verificado se examinarmos o olho de um animal que
acaba de ser morto. Neste caso, aparecem nitidamente na re­
tina os contornos do objeto que o olho percebeu imediata­
mente ante a morte. O procedimento de análise dessa ima­
gem, que permanece na retina da pessoa que acaba de mor­
rer, vem sendo empregado com sucesso em criminología.
O terceiro aparelho complementar (motor) do olho é o
sistema de nervos acionadores dos olhos (nervos diretos e in­
diretos). Através deles asseguram-se os movimentos do globo
ocular, que permitem realizar os movimentos de coordenação
(a convergência) de ambos os olhos, graças ao que a imagem,
obtida em ambas as retinas, cai num ponto (se esses movi­
mentos de coordenação dos olhos sofrem distúrbios, como
ocorre na afecção das áreas superiores do tronco cerebral,
surge o fenômeno da “bifurcação”); ainda através deles tor­
nam-se possíveis os movimentos da visão, que permitem ao
olho deslocar-se de um objeto para outro. Adiante analisare­
mos mais os mecanismos centrais que regulam a vista e o pa­
pel do movimento dos olhos na percepção visual.
A retina do olho e seu aparelho complementar (motor)
são dispositivos periféricos do sistema visual ou o início de

58
-иateu

uma via visual de construção hierárquica; esses dispositivos


hierárquicos asseguram tanto a chegada dos sinais recebidos
aos dispositivos nervosos centrais (e cora isto a codificação
dos sinais visuais) como a regulação do movimento dos olhos,
que asseguram a correta orientação da vista.
Cabe ainda lembrar que os filamentos, oriundos de áreas
diversas da retina, terminam cm áreas rigorosamente determi­
nadas do campo visual projetor, de forma que a afecção de
uma pequena parte deste campo leva à supressão de uma área
perfeitamente determinada do campo de visão; essa supressão
do campo de visão é denominada escotoma. Como ocorre em
outros analisadores, os filamentos, que conduzem os impulsos
das partes inferiores do campo de visão, terminam nas partes
superiores do campo visual primário (projetor) enquanto os
filamentos que conduzem os impulsos das partes superiores
terminam nas partes inferiores do córtex visual projetor. Por
isto a afecção das partes superiores do córtex visual proje­
tor provoca a supressão da parte inferior do campo de visão
(hemianopsia quadrada inferior), provocando a afecção de
suas partes inferiores a supressão das partes superiores do
campo de visão (hemianopsia quadrada superior). .
Vê-se facilmente a importância desses sintomas para um
diagnóstico preciso do lugar (tópico) da afecção cerebral.
Já dissemos que os neurônios, integrantes tanto do corpo
caloso exterior como das áreas de projeção do córtex visual,
distinguem-se por uma elevadíssima especialização. Uns rea­
gem apenas às linhas planas, outros, apenas às linhas agudas;
uns reagem apenas aos movimentos do objeto do centro à
periferia, outros, apenas aos movimentos do objeto da peri­
feria ao centro, etc. ..r
Esse caráter dos neurônios do córtex visual permite fra-
donar a percepção em indícios mínimos, que, nas etapas sur
cessivas do sistema visual, podem reunir-se formando quais­
quer estruturas móveis. O processo de percepção visual não
termina, entretanto, quando os respectivos sinais chegam ao
campo visual projetor. Daqui as excitações são transmitidas
aos campos visuais secundários (campos 18 e 19 de Broad-
m an), onde predominam complexos neurônios associativos da
segunda e terceira camada e os impulsos fracionados obtidos
podem ser unificados e codificados de acordo com as tarefas
propostas ao sujeito. Já apresentamos uma caracterização fun­
cional desses campos e mostramos que os fenômenos, que

59
)

surgem com a sua afecção, e as perturbações da percepção


visual, que surgem com essa afecção, são bem conhecidos na
j clínica como fenômenos de agonia visual. Esses fenômenos
consistem em que o doente, com os campos visuais secundá-
) rios afetados, não perde a agudez da visão, distingue bem cer­
tos detalhes do objeto mas é incapaz de sintetizá-los num todo
único, experimentando as mesmas dificuldades que experimen-
) ta o doente coin afecção das áreas secundárias do córtex sen­
sível e com ocorrências de asteriognose, que surgem quando
ele tateia o objeto.
) As vias do sistema visual não se esgotam com as etapas
de organização da percepção visual que acabamos de descre­
ver. O aparelho periférico da visão tem, entre seus compo­
nentes, tanto dispositivos básicos (propriamente visuais) como
dispositivos complementares (ôptico-motores), sendo que estes
últimos também têm uma organização funcional absolutamente
determinada.
É sabido que os filamentos dos nervos, que orientam
tanto a redução e a ampliação da pupila, como o processo de
convergência, contatam os nervos do olhos com os aparelhos
centrais das áreas superiores do tronco, em cuja afecção sur­
gem ocorrências de perturbação de reações da pupila à clari­
dade e fenômenos da “bifurcação” dos olhos.
Os filamentos do aparelho, que dirige os movimentos or­
ganizados da vista, estão incluídos num sistema bem mais com­
plexo e terminam no córtex cerebral. Constitui o maior inte­
resse o fato de existir no córtex cerebral não um “centro mo­
tor dos olhos” mas dois "centros" especiais que dirigem os
movimentos da vista. Entre estes, o centro posterior está si­
tuado nas áreas parietal-occiptais do córtex cerebral e, ao que
parece, serve à regulação refletora dos movimentos da vista,
assegurando o ato de fixação e acompanhamento do ponto em
movimento. O centro ântero-motor dos olhos está situado nas
áreas intermediárias da zona pré-motora (campo 8 de Broad-
man) e, segundo todos os dados, é um aparelho que regula
o deslocamento arbitrário dos olhos e ativos movimentos de
busca da vista. Esse fato é confirmado pela circunstância
de oue. nas pessoas com afeccão das áreas parietal-occioital
posteriores do córtex, perturba-se o ato de fixação do pon­
to imóvel e do acompanhamento refletor do ponto móvel pe­
) la vista, enquanto o deslocamento ativo dos olhos é bem
mais estável. Ao contrário, nos doentes com afecção do cen-

) 60

\
tro ântero-motor dos olhos, tanto o ato de fixação como о
ato de acompanhamento do ponto móvel continuam rela­
tivamente estáveis mas se perturba grosseiramente o deslo­
camento arbitrário do olho segundo o comando visual, afe­
tando-se fortemente os movimentos ativos de busca dos
olhos. •

Percepção das estruturas

Descrevemos a estrutura morfológica do sistema visual e


agora podemos passar à análise das leis básicas da percepção
visual. .
Dissemos anteriormente que não vivemos em um mundo
de pontos isolados ou pontos coloridos perceptíveis visual­
mente mas em um mundo de figuras geométricas, objetos e
situações.
Quais são as leis da ocorrência da percepção desses ele­
mentos?
Já vimos que tanto a estrutura da retina, com sua dispo­
sição plana das camadas de elementos fotossensíveis e nervo­
sos, como a disposição plana das camadas de células ner­
vosas no córtex visual projetor asseguram não só a percep­
ção de indícios isolados como também a percepção de formas
geométricas integrais ou estruturas. As leis dessa, percepçSo
foram minuciosamente estudadas em seu tempo por um grupo
de psicólogos alemães, que criaram a corrente conhecida cómo
Psicologia da G estait ou Psicologia da forma. De acordo
com as teses básicas do gestaltismo, a percepção visual não é
um processo de associação de elementos isolados mas um
processo integral estruturalmente organizado. Wolfgang Kõh-
ler, um dos fundadores dessa corrente, via no caráter integral
do processo uma propriedade que une a percepção visual com
os processos físicos. Se lançarmos uma pedra na água parada
de um lago, veremos que, na superfície, surgirão círculos per­
feitos que se desfazem paulatinamente sem perder sua forma
correta. Essa mesma estrutura corretamente organizada carac­
teriza os campos magnéticos.
Organização estrutural análoga podemos observar na per­
cepção visual. Essa percepção integral das figuras geométri­
cas ocorre em iguais proporções no homem e nos animais.

61
Isto foi observado reiteradamente na literatura especializa­
da e antes de tudo nos experimentos dos psicólogos america­
nos K. Lashley e H. Kiiver.
Esses pesquisadores treinaram um animal (um rato ou um
macaco) para reagir positivamente a uma figura de um triân­
gulo negro em fundo branco, verificando que, após o treina­
mento, o animal reage imediatamente de modo positivo ao
triângulo branco em fundo negro, a um triângulo hachurado
ou pontilhado, reagindo inclusive às linhas que formam um
ângulo agudo.
É evidente que o animal abrange não só os traços da
figura mas todà a estmtura; aqui, o caráter integral da per­
cepção constitui o traço fundamental da atividade receptora
do animal.
' Experimento análogo foi realizado por Matilda Herz, dis­
cípula de Kõhler. Nesse experimento ela colocou num lugar
vários vidros, colocando uma noz sob um deles. Um pássaro
era treinado para voar até os vidros, virá-los com a asa e apa­
nhar a noz. Se os vidros estivessem distribuídos de maneira
desordenada, virava-os ao acaso, se estivessem distribuídos em
ordem circular, com um deles separado, o pássaro derrubava
invariavelmente este, talvez percebendo todos os outros como
uma estrutura fechada.
‘ A percepção da cor tinha esse mesmo caráter integral.
Num conhecido experimento de Kõhler, treinou-se uma gali­
nha para bicai grãos de fundo pardo-claro, colocando-se grãos
num fundo pardo-escuro. Se à galinha dava-se um teste de
controle, no qual o quadrado pardo-escuro (antes reforçado
negativamente) era colocado ao lado do quadrado negro, ela
começava imediatamente a bicar os grãos nesse quadrado par­
do-escuro. Ê evidente que a galinha percebia os matizes co­
loridos não isoladamente mas em determinadas relações entre
si, noutros termos, em determinada estrutura.
Os gestaítistas descreveram várias leis às quais se subor­
dina a percepção da forma.
‘ A primeira delas é a lei da nitidez da estmtura, segundo
á qual a nossa percepção distingue antes de tudo as estrutu-
fas mais nítidas pelas propriedades geométricas.
Assim sendo, se ao sujeito propõe-se uma complexa es-
rhitura geométrica, o primeiro- que ele distingue nestas são as
Imagens mais nítidas. A lei da nitidez da percepção visual de­
sempenhou importante papel na técnica de defesa, quando, ao
tentar-se camuflar uma figura complexa, era bastante ocultá-la
em estruturas mais fortes. .
A segunda lei da percepção visual das formas, formulada
pelos gestaltistas, foi a lei do fechamento (lei da complemen-
tação do todo estrutural). Segundo essa lei, as estruturas ní­
tidas mas não acabadas eram sempre ampliadas até atingi­
rem o todo geométrico nítido. • • 4
As duas referidas leis permitiram explicar o processo de
unificação de vários fenômenos da percepção visual cuja ex­
plicação continua difícil.
O primeiro desses fenômenos pode ser o fato da unifica­
ção de figuras geométricas isoladas. •
O caráter estrutural da percepção visual explica o fato
de que, se percebemos as estruturas como dispostas numa su­
perfície, percebemos outras tridimensionalmente como folhas
que ultrapassam a superfície plana.
O caráter estrutural da percepção explica também um
fenômeno denominado imagem dupla.
Por último, as leis da percepção estrutural integral ex­
plicam ainda algumas das chamadas ilusões ótico-geomêtricas.
Todas essas peculiaridades das ilusões geométricas de­
vem-se ao fato de que a nossa percepção geométrica não é
constituída de elementos isolados mas tem todos os traços de
úma percepção integral estruturalmente organizada.
A teoria da Psicologia estrutural (Psicologia da Gestalt)
deu contribuição importante e inovadora à análise da percep­
ção integral das formas. Mas ela tem também as suas limita­
ções. Concebendo as leis da percepção das estruturas como o
reflexo natural das leis integrais dos processos fisiológicos e,
até físicos, ela abstrai o fato de que, todos os fenômenos da
percepção humana, por ela descritos, formaram-se em deter­
minadas condições históricas e não podem ser interpretados
definitivamente sem se levarem em conta essas condições. Eis
porque, como mostram os fatos, as leis da “nitidez da per­
cepção”, “da conclusão do todo” (fechamento), atffC36tmda5
pelos partidários do gestaltismo como leis naturais de cada
percepção, na realidade revelaram-se plenamente úteis apenas
para a percepção do homem, formada nas condições de uma
determinada cultura; elas não são confirmadas no estudo da
percepção dos homens daquelas formações históricas nas quais
a percepção das formas geométricas não tem o caráter abs­
trato que a distingue atualmente. As pesquisas histórico-com-

63
parativas, realizadas nos últimos decênios, limitaram substan­
cialmente as leis descritas na Psicologia da Gestalt e permi­
tiram que nos convencêssemos de que, em diferentes etapas do
desenvolvimento histórico e da prática social, os processos de
percepção podem subordinar-se a diferentes leis. Um exem­
plo disto pode ser visto no fato de que, em certas culturas, um
círculo não fechado não é percebido como um círculo nSo
acabado mas como um “bracelete”, percebendo-se um triân­
gulo não fechado não como um triângulo não acabado mas
como um “amuleto” ou uma “ medida de querosene”, etc.
Um estudo da maneira pela qual se estrutura a percep­
ção das figuras geométricas nas condições do pensamento con­
creto direto ainda fará, indubitavelmente, correções substan­
ciais das leis da percepção estrutural, estabelecidas pelos psi­
cólogos gestaltistas.

Percepção dos objetos e situações

Como acabamos de ver, a percepção visual das formas


simples ocorre momentaneamente e dispensa buscas longas e
desdobradas com a discriminação dos indícios identificadores
e com sua síntese posterior numa estrutura integral.
Ë diferente o que ocorre na percepção dos objetos com­
plexos, bem como de suas formas ou situações plenas.
Nestes casos, apenas os objetos mais simples e bem co­
nhecidos são percebíveis simultaneamente. Na percepção de
objetos complexos e mal conhecidos ou de situações inteiras,
toma-se necessário um processo de discriminação dos indí­
cios identificadores com sua síntese posterior e a comparação
da hipótese inicial com a informação que realmente chega.
Quanto mais complexa é a imagem apresentada tanto mais
desdobrado é o caráter desse processo de orientação prévia
no processo perceptivo ou situação e tanto mais ele se aproxi­
ma do processo sucessivo de identificação que descrevemos ao
observarmos o processo de percepção tátil de um objeto
apalpável.
O processo de percepção visual dos objetos complexos
constitui uma atividade receptora complexa e ativa e, embo­
ra ele se desenvolva de modo incomparavelmente mais resu*

N
mido do que o processo de identificação tátil do objeto, aque­
le, contudo, requer a participação de componentes motores,
aproximando-se assim da percepção tátil.
Este fato foi previsto por I. M. Setchenov, quando indi­
cou que o olho que examina um objeto realiza movimentos
apalpadores basicamente idênticos ao da mão; mas só ultima­
mente tomou-se claro porque os movimentos dos olhos são tão
necessários no exame de um objeto.
Como mostrou o conhecido psicofisiologista soviético A. L.
Yarbus, o problema consiste em que o olho imóvel pode man­
ter a imagem percebida apenas durante um tempo muito bre­
ve, após o qual a imagem deixa de ser percebida e o homem
passa a ver um “campo vazio”. Para demonstrar essa tése, o
pesquisador fixou à córnea do olho uma ventosa, na qual se
fixara um ponto luminoso. Era fácil perceber que, ésse ponto
se movia juntamente com o movimento do olho, noutros ter­
mos, mantinha-se imóvel em relação ao olhó e sua imagem
caía sempre na mesma zona da retina. Pelos resultados, obti­
dos por Yarbus, o sujeito percebia nitidamente a imagem do
ponto luminoso apenas durante uma fração muito pequena
de tempo (1-2 segundos), após o que ela desaparecia e o su­
jeito começava a perceber um “campo vazio”.
H á fundamentos para pensar que esse efeito está ligado
ao fato de que a longa excitação de um mesmo ponto da re­
tina provoca certa excitação (parabiótica) nesse ponto e leva
ao seu desligamento funcional.
Por conseguinte, para assegurar a possibilidade de uma
longa conservação da imagem, são necessários movimentos do
olho que desloquem a imagem de uns pontos da retina para
outros, O mesmo efeito pode ser obtido se o objeto imóvel
começar a ser percebido numa rápida alternância de cores de
tonalidades iguais (V. P. Zintchenko). Neste caso. os movi­
mentos do olho são retardados pela excitação intermitente
da retina por ondas de comprimentos variados.
O experimento de Yargus mostra que, para a longa per­
cepção do objeto, são realmente necessários pequenos movi­
mentos dos olhos, que deslocam a imagem para zonas da re­
tina próximas umas das outras, bem como movimentos do
olho aue examina o objeto foram realmente estabelecidos em
pesquisa especial.
O método proposto por Yarbus apresentava grande pre­
cisão, mas é incômodo porque requer uma anestesia prévia

65
do olho por solução de novocaína e o sujeito pode manter
um espelhinho colado à esclerótica por uma fração de tempo
muito pequena (de 3-4 minutos). Por isto na prática da pes­
quisa psicológica foram propostos outros métodos de re­
gistro dos movimentos do olho.
Um desses métodos consiste na filmagem dos movimentos
do olho do sujeito que examina a imagem e na análise dos
quadros sucessivos. A dificuldade desse método consiste em
que o processamento dos resultados obtidos (transferência da
posição do olho em alguns quadros para uma curva) requer
longo trabalho.
Essa dificuldade é evitada por dois outros métodos que
entraram solidamente na literatura especializada.
O primeiro destes consiste em colar nos nervos do olho
eletrodos fixados nas áreas temporal, nasal, superior e inferior
da pele; as mudanças nas correntes da ação, que surgem com
sucessivos movimentos dos olhos, são registradas numa película
correspondente. Esse método pode apresentar precisão sufi­
ciente, embora as curvas assim obtidas possam ser observadas
durante período relativamente curto e necessitem de correção.
O segundo método, proposto por A. D. Vladímirov, con­
siste no seguinte: sobre o olho do sujeito deitam-se raios de
luz que passam por um filtro infravermelho; o olho não per­
cebe a ação seguinte desses raios, sentindo apenas o calor. A
diferença entre o reflexo da luz a partir de uma pupila escura
e uma íris clara se transforma em diferença de potenciais e
deslocamento do ponto que separa a pupila da íris; essa di­
ferença é registrada em película. A vantagem desse método
consiste em que ele não requer nenhuma fixação da ventosa à
esclerótica do olho, dando imediatamente o registro da traje­
tória dos movimentos e esse registro pode ter longa duração.
. Os testes coin registro do movimento do olho durante o
exame de objetos complexos permitiram que nos convencêsse­
mos de que, no processo de exame atento do objeto, ocorrem
pelo menos dois tipos de movimentos dos olhos.
, O primeiro deles são micromovimentos dos olhos, que
deslocam a imagem para os pontos contíguos da retina; esses
movimentos são notados até na fixação de um ponto imóvel
pelo olho. Sua importância para- a conservação de uma ima­
gem estável fica clara graças ao teste acima descrito, que
mostra que a imagem imóvel em relação ao olho se mantém
na retina apenas durante um tempo muito breve.

56
O outro tipo de movimento é de caráter bem diferente e
tem outra importância funcional: consiste em grandes movi­
mentos do olho, que o deslocam de um ponto a outro e en­
globa tanto movimentos em forma de salto como movimentos
cadenciados (de deriva) do olho. Há fundamentos para con­
siderar que esses movimentos asseguram uma função suces­
siva do olho em pontos isolados do objeto perceptível e per­
mitem discriminar sucessivamente os pontos mais informativos
(indícios do objeto), compará-los entre si e sintetizar um con­
junto definitivo de indícios indispensáveis à identificação do
objeto. ' ’'
O estudo dos movimentos dos olhos, através dos quais o
sujeito se orienta no objeto que examina, tornou-se um dos
importantes métodos de estudo da percepção dos objetos e
imagens complexas. !
Os fatos mostraram que o olho, ao examinar um objeto
complexo, nunca se movimenta sobre ele de maneira unifor­
me mas sempre procura e discrimina os pontos mais infor­
mativos que atraem a atenção de quem os examina.
Constitui interesse especial a aplicação desse métodò ao
estudo do processo de análise da composição de quadros com­
plexos. Os dados assim obtidos mostram que o sujeito, ao
examinar um quadro complexo, não só destaca neste os de­
talhes essenciais como também muda o sentido do seu exame
e a discriminação de detalhes particulares, dependendo da ta­
refa que lhe foi proposta. ;
• Uma análise atenta mostra que mudam nitidamente os mo--
vimentos dos olhos da pessoa que analisa um quadro com
instruções variadas, que o olho começa a “tatear” a situação
em uns casos, as roupas, em outros, e os intensivos movi­
mentos do olho, que fazem uma comparação visual de figuras
isoladas, surgem com as sucessivas instruções.
r Tudo isto leva a entender o grande trabalho executado
pelo olho no processo de percepção e o quanto esse trabalho,
depende da complexidade da tarefa. ‘ - ■ • ,
,• Esta última circunstância se torna especialmente nítida
nos casos em que se dá ao sujeito a tarefa de fazer um com­
plexo trabalho mental como, por exemplo, avaliar no olho-,
quantas vezes o tamanho de um corte cabe numa determina- ■
da figura. ¡Nesses testes, realizados por U. B. Hippenreuder,,
foi demonstrado que os movimentos dos olhos ратесет fixar.
certa medida na superfície do objeto examinado, tomando as<
sim possível a realização da tarefa.

Fatores determinantes da percepção de objetos complexos

Descrevemos o processo de percepção visual de objetos


e situações complexas, vimos a importância aqui desempenha­
da pelos ativos movimentos de busca dos olhos.
Surge uma questão: de que é que depende o caráter da
percepção de complexos objetos visuais? Quais são os fato­
res que determinam a percepção consciente dos objetos e
situações?
O fator primeiro e mais importante, que determina a
percepção de objetos complexos, é a tarefa que se coloca
ao sujeito e a atividade prática que ele desenvolve com esse
objeto.
A influência desse fator pode ser demonstrada num teste
simples, realizado pelo conhecido psicólogo soviético A. V.
Zaporojets. Ele deu a um grupo de sujeitos a tarefa de traçar
um círculo com compasso e em seguida representar esse com­
passo. Deu a um segundo grupo de sujeitos um compasso
desmontado; estes deviam inicialmente montar o compasso e
só depois traçar com ele um círculo; somente depois dista
propunha-se-lhes representar o compasso num desenho. Os
resultados dos testes com ambos os grupos de sujeitos foram
Inteiramente distintos.
Para a percepção de uma imagem complexa, é de suma
importância a assimilação do tema da situação em que ela
está incluída.
Fatos análogos foram observados por outros psicólogos, que
efetuaram testes com estudo do processo de percepção em
condições de culturas diferentes. Verificou-se que a conhecida
ilusão na qual, entre duas linhas-T de imagem de tamanho
idêntico, a vertical sempre parece mais longa do que a hori­
zontal, ocorre apenas entre as pessoas que vivem em condi­
ções de estruturas verticalmente dispostas, não se observando
entre as pessoas que vivem em cabanas redondas e não têm
experiência acumulada no processo de habitação em constru­
ções verticalmente orientadas.

68
Para a percepção do objeto e sua forma, é de impor­
tância essencial o valor de indícios isolados. Assim, em ex­
perimentos realizados durante a II Guerra Mundial, A. I.
Bogoslovsky mostrou que a precisão da percepção das formas
aumenta substancialmente se à figura examinada atribuía-se a
significação de “nosso” avião ou avião “inimigo”.
Vê-se facilmente que os traços essenciais para o trabalho
profissional do homem (por exemplo, os matizes do aço in­
candescente, que anunciam a existência de impurezas indese­
jáveis) são percebidos pelo especialista de maneira bem su­
perior à do homem para o qual tal traço não tem importância.
É de grande importância para a percepção a experiência
anterior do homem e a percepção material das imagens corres­
pondentes.
O primeiro grupo de fatos, que demonstram essa tese, íoi
obtido em testes pelo psicólogo soviético D. N. Uznadze e
seus colaboradores.
Se durante longo tempo o sujeito tateia com a mão es­
querda uma esfera grande e, com a direita, uma esfeia peque­
na e, se após 10-15 testes semelhantes, ele coloca nas mãos
esferas idênticas, a esfera que se encontra na mão direita
parecerá maior em contraste com a esfera pequena. Podere­
mos obter efeito análogo se apresentarmos visualmente ao su­
jeito duas circunferências, sendo a da esquerda de diâmetro
maior do que a da direita, e, depois de 10-15 exposições se­
melhantes, sugerirmos duas circunsferdncias do mesmo tama­
nho. Neste caso, a circunferência da esquerda parecerá, m edoc
pelo contraste com a experiência anterior. Os testes com a
influência da experiência anterior sobre a percepção posterior
podem ser feitos também em forma mais direta. Por exemplo,
se mandarmos um sujeito 1er um texto em latim e em seguida
lhe propusermos uma palavra formada por letras neutras
(iguais no alfabeto russo e no latino), como a palavra
р а м к а , e l e a lerá de acordo com a transcrição latina; se antes
disto pedirmos que e le leia o texto em russo, a mesma pala­
vra será lida de acordo com a transcrição russa.
O mesmo poderemos obter se propusermos ao sujeito
uma figura de interpretação dupla: a percepção desta figura
dependerá do objetivo criado pela experiência anterior. Por
exemplo, depois de uma rápida exposição do quadro “barcos
à vela”, mostrou-se aos sujeitos o quadro “flores do lótus.”.

69
Via de regra eles também a perceberam como um barco; em
outras condições se observava tal ilusão.
O fenômeno que acabamos de descrever é muito conhe­
cido em Psicologia como apercepçâo e pode ser observado
em muitos exemplos. Assim, por exemplo, a inscrição “ n ã o
c o n s e r v a r ” , pendurada num auditório, é habitualmente lida

pelas pessoas como “não conversar” . São conhecidos casos


em que o homem muito faminto e procurando refeitório numa
cidade estranha lê o letreiro “obuv” (calçados) como “o b ed r
(almoços). Um grande número de erros de percepção, veri­
ficados em casos de elevada prontidão e reduzida crítica do
sujeito tem caráter análogo.
O fator da influência da experiência prática sobre a per­
cepção serviu de base às conhecidas pesquisas do psicólogo
austríacos I. Kõhler com a reestrutura da organização espacial
da percepção. Este psicólogo pôs no sujeito óculos com len­
tes prismáticas, que reviravam a imagem perceptível “de per­
nas para o ar” ou da direita para a esquerda. A princípio os
sujeitos não conseguiam, de maneira nenhuma, orientar-se no
meio ambiente, permanecendo inteiramente imobilizados; mas
com o uso demorado e permanente de semelhantes óculos,
eles se adaptaram de tal forma a estes que a imagen» assim
obtida deixou de influenciar os seus movimentos e eles não
mais perceberam a irregularidade do quadro percebido pelos
seus olhos.
A influência de uma sólida experiência anterior sobre a
percepção pode levar a ilusões evidentes.
Podem servir de exemplo típico os famosos testes do psi­
cólogo americano Ames. Este sugeriu ao sujeito a maquete
de um quarto onde as relações reais das paredes haviam
sido modificadas de tal modo que a sua projeção coincidia
com a projeção das partes distantes e próximas do quarto na
retina. A noção das correlações reais das paredes do quarto
dominou de tal forma que as suas correlações distorcidas na
maquete não foram percebidas e o sujeito que foi colocado
junto à parede distante começou aparecer bem menor do que
o colocado junto à parede de entrada. No entanto, a influên­
cia da experiência anterior pode levar não apenas a ilusões,
como indicamos no início do presente capítulo, mas também
assegurar elevada constância e dar legitimidade (caráter ortos»
cópico) à percepção. -
Já demos anteriormente um exemplo de como o conheci­
mento da forma do objeto (da forma arredondada do prato,
por exemplo) aumenta a constância da percepção da forma
e torna o homem mais estável para a percepção correta da
forma durante a mudança da posição do objeto.
A mesma influência da experiência anterior pode mani­
festar-se no aumento considerável da constância da percepção
de suas dimensões. Um exemplo de semelhantes influências da
experiência anterior e da percepção material sobre a constân­
cia das dimensões pode ser visto no experimento do psicólo­
go soviético E. S. Bein. É sabido que, na medida em que o
objeto se distancia, sua imagem na retina do olho diminui
proporcionalmente à distância. Isto pode ser estabelecido se
propusermos ao sujeito, afastando deste, uma imagem inde­
finida (uma mancha de tinta, por exemplo) e igualá-la a man­
chas de tamanhos variados, situadas diante dele. Se, porém,
substituirmos a imagem indefinida por uma imagem material,
pela finura de um gato, por exemplo, o sujeito continuará
a avaliar o seu tamanho de modo muito mais constante do
que o tamanho da mancha indefinida. Neste caso a noçSo
constante do tamanho do objeto, formada na experiência an­
terior, corrige o reflexo paulatinamente decrescente desse obje­
to na retina e cria a possibilidade de conservar uma avalia­
ção mais constante do tamanho, avaliação essa que se aproxi­
ma do tamanho autêntico do objeto.
As diferenças individuais das pessoas podem constituir
um fator essencial que influencia a percepção.
No início deste século, o famoso psicólogo francês A.
Binet deu a dois grupos de sujeitos a tarefa de descrever um
cigarro que lhes havia sido mostrado. Uns sujeitos descreviam
o cigarro em termos objetivos (“é um canudo de papel lo n -;
go; de um de seus lados, aparece num papel fino uma ] ....
marrom rugosa; tem 10-12cm” ; etc.). O segundo;,
corpora à descrição muitos componentes í
nais (“é um cigarro perfumado. . . n a ' ......
vel dar uma fumadinha; quando a geftti
dável sentir o seu cheiro”). Essescl ”
falar de um tipo objetivo e um>-
rentes a pessoas diversas. Não sSo menos importantes otitras
diferenças individuais de percepção, como o predomínio da
percepção analítica com a discriminação de muitos detalhes
em uns e da percepção sintética integral, em outros.

71
Essas diferença? da percepção podem manifestar-se niti­
damente quando se examinam manchas indefinidas de tinta.
Esse método, a p lic ó 0 em seu temP° PcI° psicólogo suíço
Rorshach (amplamente conhecido como “manchas de Rors-
hach”), permitiu mostrar 4ue> se uns sujeitos manifestam a
tendência a discrim ^ar pequenos detalhes e, via de regra,
ignoram o todo, oiltros avaliam nas manchas de Rorshach
apenas os contorneas genéricos, omitindo detalhes isolados ©
não se detendo nestes-
O método da percepção das manchas do Rorshach foi
amplamente difundido na prática do diagnóstico, revelando
peculiaridades essei*c‘a*s percepção indireta e detalhada dos
epilépticos, da percepção emocional e variável dos histéricos,
etc. , ,
É natural que 0 processo de percepção sofre influência
muito séria do nfvel intelectual do sujeito.
Ê fato conhec^o que o sujeito normal percebe o objeto
que lhe é proposto> discriminando neste uma infinidade do
traços, incluindo-c em diferentes situações e generalizando-o
numa categoria com objetos exteriormente diferentes mas es­
sencialmente sem ejantes. Como mostrou o conhecido psicó­
logo soviético I. Solovêv, os sujeitos intelectualmente atra­
sados discriminam no objeto examinado um número conside­
ravelmente inferior traços, incluem com dificuldade o obje­
to em exame em diferentes contextos e, por isto, sua percep­
ção é bem mais P°bre e indireta do que a percepção do su­
jeito normal.

Métodos de estudo da percepção visual falsa

O estudo da percepção e sobretudo dos processos de dis-


criminacão da iniaSern um fnndo ambiente, da constância
e da generalidade da imagem perceptível pode ser de grande
importância para a avaliação do desenvolvimento psíquico ge­
ral da criança, d estabelecimento das peculiaridades psíquicas
importantes para alguns tipos de atividade profissional e para
o diagnóstico de alguns estados patológicos do cérebro.
É de importância especial para esse fim o estudo de di­
versas formas d; percepção material, de percepção das rela­
ções espaciais e percepção de quadros e temas complexos.
A Psicologia elaborou uma série de procedimentos para
semelhantes pesquisas. Os procedimentos básicos de estudo
da percepção material consistem no seguinte: apresentam-se
ao sujeito imagens de objetos feitas às vezes de maneira rea­
lista, às vezes de maneira esquemática ou apenas rascunhadas
com os traços básicos; no último caso, empregam-se quadros
nos quais um objeto está representado com uma plenitude em
ordem crescente e propõe-se ao sujeito identificar a imagem
que lhe é proposta.
Até pequenos desvios no processo pleno de percepção
são facilmente verificados pelo fato de que os sujeitos, que
percebem facilmente as imagens realistas, são incapazes de
identificar o objeto caso sua imagem seja apresentada em for­
ma esquemática ou incompleta.
O segundo procedimento de estudo da percepção mate­
rial consiste em apresentar ao sujeito contornos de imagens
dos objetos, sublinhados com linhas de fora ou superpostos
uns aos outros (as chamadas “figuras de Poppelroite”) .
Por último, os procedimentos aplicados com êxito para o
estudo da precisão de percepção material consiste em propor
a imagem do objeto em condições de “ruído”, noutros termos,
em condições nas quais é difícil distingui-lo do fundo cir­
cundante.
Às vezes, até distúrbios insignificantes da percepção ma­
terial, não percebidos em condições normais, manifestam-se
facilmente durante a aplicação desses testes.
O estudo da percepção espacial se propõe a estabelecer
o quanto o sujeito está em condições de orientar-se num “es­
paço assimétrico”, sem confundir o lado esquerdo, o quanto
o sujeito pode conceber mentalmente a correlação espacial das
partes num todo complexo.
Para a primeira tarefa, propõe-se ao sujeito um esquema
de relógio sem os números do mostrador e avaliar a hora in­
dicada pelos ponteiros. Em testes dificultados, sugerem-se-lhe
avaliar duas imagens — a de um relógio e a de um mapa
geográfico, num dos quais as imagens são corretas e no outro
são especulares. O sujeito com distúrbios da percepção espa­
cial mistura facilmente as duas imagens e começa a sentir di­
ficuldade de avaliá-las.
O nível da percepção espacial pode ser avaliado tanto
pelo número de erros cometidos como pelo tempo gasto pelo
sujeito na solução de determinado número de tarefas.

73
O estudo da possibilidade de imaginar mentalmente a cor­
relação das partes no espaço é efetuado com êxito através de
um teste no qual se propõe ao sujeito a imagem esquemática
de uma figura composta de cubos, sugerindo-lhe indicar o
número total de cubos incluídos nessa figura (testes de
Yerkes).
Para o estudo da percepção e do nível de seu desenvol­
vimento, são de grande importância os testes de avaliação de
quadros temáticos. A finalidade desses testes é fazer uma aná­
lise das ligações que o sujeito estabelece entre os elementos
particulares de uma complexa situação evidente, da maneira
pela qual ele procura os detalhes mais informativos, cria hi­
póteses, compara estas com a imagem real e chega a uma
solução correspondente. Pelo seu conteúdo, esse estudo da
percepção se assemelha ao estudo do pensamento direto.
Para esse fim, a Psicologia emprega dois procedimentos:
o procedimento da análise de um quadro temático e comple­
xo e o procedimento de análise de uma série de quadros.
Para o êxito da aplicação do primeiro procedimento em­
pregam-se quadros temáticos cujas idéias não possam ser per­
cebidas de imediato, de maneira unívoca, e para cuja inter­
pretação correia é necessário examinar atentamente detalhes
isolados, compará-los entre si, distinguir os mais importantes
e criar hipóteses correspondentes do sentido geral do quadro
que, posteriormente, devem ser comparadas ao conteúdo real
do quadro.
A avaliação prematura, sem base numa análise minuciosa
do conteúdo do quadro, pode levar a conjeturas inadequadas.
A análise de semelhantes quadros pode produzir matéria im­
portante para avaliação do nível geral de desenvolvimento
mental da criança. Pode ser uma indicação disto a limitação
da atividade pela simples nomeação de objetos isolados ou
ações isoladas que se verificam nas etapas tenras de desen­
volvimento e se mantêm numa idade mais tardia em caso de
retardamento mental.
Um procedimento útil de estudo das formas complexas
de percepção, situadas na fronteira com o pensamento direto,
é a análise de uma série de quadros nos quais as etapas de
um tema ordenado se refletem na série de quadros isolados.
O desvio no desenvolvimento mental, bem como o distúrbio
do pensamento direto manifestam-se facilmente no fato de que
cada um desses quadros começa a ser avaliado separadamente
e o sujeito se revela incapaz de descrever um tema integral
cm desenvolvimento, incluindo nesses quadros partes não re­
presentadas em quadros isolados.
O estudo da avaliação dos quadros temáticos e de suas
séries é amplamente empregado na prática e na Psicologia
clínica.

Desenvolvimento da percepção material

Seria incorreto pensar que, desde o início, a percepção


tem as leis que observamos no adulto.
Como mostraram as pesquisas, a percepção percorre um
longo caminho de desenvolvimento. A essência desse desen­
volvimento consiste não tanto no enriquecimento quantitativo
quanto na profunda reorganização qualitativa cujo resultado
é a substituição das formas elementares imediatas por uma
complexa atividade perceptiva, constituída tanto pela atividade
prática de conhecimento do objeto quanto pela análise das
particularidades essenciais deste, análise essa que é feita com
a participação imediata do discurso.
É sabido que a percepção de um bebê é muito difusa
e ele percebe não tanto os objetos destacados quanto os seus
traços difusos particulares (matizes, traços expressivos, etc.).
Por isto as reações do bebê diante do mundo depende em alto
grau de um sorriso, uma pose ou da maneira como a mãe
está vestida, etc. H á fundamentos para se pensar que as pri­
meiras percepções constantes dos objetos começam a formar­
se na criança no processo em que ela agarra, manipula as
coisas, etc. N o entanto os vestígios do estágio difuso tenro
de desenvolvimento da percepção ainda persistem durante um
tempo bastante longo.
Como mostraram as pesquisas do psicólogo soviético G. L.
Rosengardt-Punko, a criança de 1,5-2 anos continua a dis­
tinguir no objeto traços isolados, sem revelar a constância da
percepção do objeto que é própria da percepção dos adultos.
Quando se pede a uma criança para trazer um brinquedo como
o urso de pelúcia que lhe foi mostrado, ela pode trazer um
pano macio de pelúcia, reagindo à maciez, ao aspecto peludo
e à cor e não ao objeto em conjunto. Quando se lhe pede
para trazer o pato de porcelana que lhe foi mostrado, ela pode
trazer qualquer figura de porcelana ou uma bola com uma
ponta fina (“o bico”), etc. Somente depois que o objeto co­
meça a ser designado pela palavra (“urso”, “pato”) é que a
percepção da criança adquire caráter material constante e ela
deixa de cometer os erros aqui descritos.
Os testes, realizados pelo psicólogo soviético A. A. Lyu-
blinsky, mostraram que a incorporação da palavra transforma
radicalmente o processo de percepção, permite distinguir mais
nitidamente as imagens com base não em indícios isolados mas
no seu caráter material complexo (após assimilar a represen­
tação verbal do objeto, a criança deixa de cometer erros de
percepção, elabora um processo bem mais preciso, rápido e
constante de diferenciação). Por conseguinte, sob a influên­
cia da linguagem, a percepção da criança se transforma radi­
calmente numa percepção material complexa e concreta.
Pesquisas posteriores mostraram que, a par com a lin­
guagem, participam da formação da percepção complexa os
movimentos (movimentos da mão que tateia o objeto) táteis
e os movimentos dos olhos, que distinguem os traços informa­
tivos essenciais do objeto e os sintetizam. Esses movimentos
têm inicialmente caráter amplamente desdobrado e caótico e
só paulatinamente se tornam organizados e cada vez mais re­
duzidos.
Deste modo, o desenvolvimento da percepção é essencial­
mente o movimento das ações voltadas para a descoberta das
particularidades essenciais dos objetos e a sua identificação.
A identificação rápida e simultânea dos objetos visualmente
perceptíveis é, de fato, o resultado do desenvolvimento paulati­
no de uma atividade desdobrada de orientação e pesquisa e
sua transformação em “ação perceptiva” interna.
Processo análogo de redução dos movimentos analisadores
e identificadores dos olhos, que se manifesta no processo de
desenvolvimento, pode ser visto também no estudo do pro­
cesso de análise de complexos quadros temáticos.
Dados igualmente essenciais foram obtidos no estudo do
desenvolvimento de formas mais complexas de atividade per­
ceptiva nas crianças. Como mostraram os experimentos de
A. V. Zaporojets e seus colaboradores, atos como a avaliação
de uma magnitude, da forma e até da cor dos objetos não
são funções congênitas simples mas se formam através de uma
atividade de orientação e pesquisa que se “desprende” da ati­
vidade prática e começa paulatinamente a apoiar-se na apli­
cação de “medidas” ;ou "padrões” conhecidos e elaborados
pela criança, sendo que a aplicação destes “padrões” começa
a ter caráter cada vez mais reduzido.
Tudo isto mostra que a percepção material do homem
sc forma no processo de uma ampla atividade perceptiva, sen­
do a própria percepção material um produto "reduzido" dessa
atividade.
Ao estudarmos o desenvolvimento da percepção na infân­
cia, não podemos omitir um importante episódio da história
desse problema.
Em seu livro sobre Psicologia infantil, o famoso psicólogo
alemão William Stern lançou a hipótese de que a percepção de
quadros e situações na criança revela quatro estágios básicos:
no primeiro a criança percebe apenas objetos isolados, no se­
gundo, ações, no terceiro, as qualidades da coisa, no quarto,
as complexas relações entre as coisas.
Essa concepção das vias de desenvolvimento da percepção
manteve-se na Psicologia durante um período muito longo. Mas
em meados da década de 20 do nosso século o psicólogo so­
viético S. Vigotsky mostrou que essa hipótese estava em con­
tradição com o fato de que a criança percebe inicialmente si­
tuações inteiras e só depois é capaz de separar nela os com­
ponentes isolados. Vigotsky demonstrou essa afirmação pro­
pondo a crianças não narrar mas representar ativamente o te­
ma de um quadro. A criança, que através das palavras podia
designar apenas alguns objetos isolados, conseguia entender
facilmente e “representar” o tema do quadro.
Isto levou Vigotsky a levantar a hipótese de que os está­
gios descritos por Stem em realidade não são estágios de de­
senvolvimento da percepção mas estágios de desenvolvimento
do discurso infantil, no qual, como se sabe, predominam ini­
cialmente os substantivos e só mais tarde discriminam-se as
palavras que significam ações, qualidades e relações.
Esse fato (que analisaremos adiante) indica o grande pa­
pel desempenhado na percepção da criança pela linguagem
e constitui um dos fatos mais importantes da Psicologia atual.

Patologia da percepção material

Se a percepção do homem tem uma estrutura tão comple­


xa e percorre uma via tão complexa de desenvolvimento fun-

7T
)
> '

cional, compreende-se perfeitamente que em estados patoló-


) gicos ela possa apresentar distúrbios variados.
Em diversos estados patológicos do cérebro, esse proces­
so pode apresentar distúrbios em diferentes níveis: em uns ca­
) sos o distúrbio é resultado do fato de que a informação senso­
rial não chega ao córtex ou provoca excitações apenas insufi-
) cientemente estáveis e excitações insuficientemente limitadas;
noutros casos, as excitações que chegam ao córtex deixam,
) devidamente, de unificar-se em sistemas e codificar-se; em
) terceiros, o distúrbio atinge o elo ativo da atividade percepti­
va e o doente ou não começa um ativo trabalho de procura,
destinado a discriminar os pontos mais informativos, ou não
) mantém a “ tomada definitiva da decisão” a respeito do obje­
to que se encontra à sua frente e toma uma decisão prematu­
ra partindo apenas de um fragmento parcial do quadro perce­
bido. Por último, podem ocorrer formas de patologia nas quais
o doente é incapaz de separar as influências estranhas das
propriedades fundamentais do objeto examinado e começa a
cometer erros, confundindo o esperado com o real ou as exci­
tações casuais com os objetos autênticos.
Essa patologia da percepção pode ser observada tanto nas
afecções locais do cérebro como nas clínicas de doenças psí­
quicas. Mencionaremos apenas os dados mais importantes que
permitem responder a essa pergunta.
A afecção das áreas occiptais do cérebro (áreas primá­
rias do córtex visual) elimina a possibilidade de perceber o
objetivo visual, tendo em vista que as excitações que partem
da retina do olho não chegam, neste caso, ao córtex cerebral.
Se essa afecção é de caráter parcial e leva à abolição do ponto
limitado do campo de visão, o sujeito pode compensar esse
defeito por meio de um ativo movimento dos olhos. São co­
nhecidos os casos em que o doente, com restrição muito gran­
de do campo visual, pode executar com êxito o trabalho de
arquivista, reunindo ordenadamente manuscritos e em segui­
da reunindo desenhos complexos.
Distúrbios consideravelmente graves da percepção de ob-
) jetos e imagens complexas surgem durante o distúrbio das
áreas secundárias do córtex (campos 18 e 19 de Broadman).
Nestes casos, o doente continua a perceber bem detalhes iso-
) lados do objeto ou de sua imagem mas é incapaz de sinteti­
zá-los num todo único, razão pela qual ele não percebe todo
o objeto e é forçado a conjeturar do significado da imagem
)
) ™
por indícios isolados. Alguns doentes, ao examinarem o de­
senho de um óculos, podem dizer: .. o que é isto ?.. . é um
círculo e mais um círculo. . . e uma barra. . . na certa é uma
bicicleta?” ; ou examinando o desenho de um galo ele pode
dizer: “ ...m a s o que é isto ? ... aqui tem um c la r o ... um
verm elho... um v e rd e ... não serão Iingüetas de fo g o ? ...”
Os ativos movimentos dos olhos, incluídos por esses doentes
no processo de exame dos objetos, freqüentemente não os aju­
dam a identificar o desenho complexo justamente porque,
neste caso, está deformada a síntese dos indícios isolados numa
imagem integral.
Uma forma original de distúrbio da percepção visual sur­
ge durante a afecção das áreas parietal-occiptais do cérebro,
que provoca os fenômenos da chamada “agnosia simultânea”
(A. R. L uria). Nestes casos, o doente é capaz de identificar
bem objetos isolados ou imagens destes; no entanto, o volume
da percepção visual se reduz como resultado da patologia do
córtex visual que o doente fica em condições de operar simul­
taneamente com apenas um ponto excitado, ficando os pontos
restantes como que inibidos. Por isto esses doentes podem
perceber apenas uma das duas figuras que se lhes mostram
simultaneamente e só após várias exposições rápidas (de um
triângulo e um círculo, por exemplo) eles declaram: “ora,
eu sei que aqui há duas figuras, um triângulo e um círculo,
mas vejo cada vez apenas u m a ...”.
É característico, que nesses casos, as dimensões da figura
percebida não têm importância para a sua percepção e o doen­
te pode perceber do mesmo modo uma agulha ou um cavalo
mas é incapaz de perceber simultaneamente duas ou várias
imagens. É natural que um doente como este não pode atin­
gir o centro de um círculo com um lápis porque ele vê si­
multaneamente ou a ponta do lápis ou o círculo, cometendo,
por isto, erros característicos. Por esse mesmo motivo ele não
consegue traçar o contorno que lhe foi proposto nem ir alóm
de uma linha ao escrever uma carta. Os movimentos dos olhos
desse doente são desorganizados e ele, ao acompanhar facil­
mente um ponto em movimento, não pode transferir a vista
de um ponto a outro. Compreende-se que para deslocar o
olhar de um ponto a outro é necessário conservar a capacida­
de de perceber simultaneamente dois pontos: um, para o qual
o homem está olhando, e o outro, que se encontra na periferia
do campo de visão e para o qual o olhar deve ser deslocado.
ІЙ Н Ш В Я Ш П

Essa condição é abolida durante o estreitamento da percepção


visual e sua limitação a um foco acessível de excitação, tor­
nando-se impossível o deslocamento organizado do olhar de.
um objeto a outro.
É natural que se torne acentuadamente complexa para
esses doentes a análise de quadros temáticos difíceis. Eles dei­
xam de “ abranger” todo o quadro, percebem-llie apenas frag­
mentos isolados e são forçados a “conjeturar” o seu conteúdn
onde o homem normalmente o percebe.
Uma forma especial de perturbação da percepção visual
surge com a afecção unilateral (mais freqüentemente do lado
direito) das áreas occiptal-parietais do cérebro. Nestes casos,
pode-se observar um fenômeno sul generis, que na clínica re­
cebeu o nome de agnosia ótica unilateral. Este fenômeno
consiste em que o doente deixa de perceber um lado (habi­
tualmente o esquerdo) do desenho ou da imagem complexa
que se lhe apresenta. As peculiaridades dessa forma consis­
tem em que, diferentemente da percepção unilateral do cam­
po visual primário, provocada pela hemianopsia, esses doentes,
não recebendo sinais do respectivo lado do campo perceptível,
simplesmente ignoram esse lado; por isto não conseguem
contar o número de figuras representadas no quadro e nos
casos mais graves chegam a ignorar até o lado esquerdo de
dado objeto. É característico que, diante disto, nos movimen­
tos dos olhos de semelhantes doentes aparecem várias pertur­
bações. Ao fixar o lado direito do objeto que examina e fa­
zendo um movimento complementar do olho no sentido desse
lado direito, tais doentes não passam a vista sobre o lado es­
querdo do quadro, o que sugere uma original “diaferentação”
da metade esquerda da visão.
É inteiramente distinto o quadro do distúrbio que surge
nos doentes com afecções maciças dos lóbulos frontais do cé­
rebro. Esses doentes conservam a percepção de detalhes isola­
dos e imagens inteiras. No entanto os movimentos ativos dos
olhos, que efetuam a busca dos detalhes mais informativos,
são aqui grosseiramente perturbados e às vezes cessam intei­
ramente; o doente deixa de examinar o quadro e não tenta
orientar-se nele; pode sugerir uma hipótese do seu conteúdo
sem verificá-la, sem comparar os detalhes isolados do qua­
dro e os erros de sua percepção não estão vinculados a fa­
lhas da síntese visual mas de sua atividade de procura. Tudo
isto se manifesta no fato de que os movimentos de seus olhos

80

t
ИИИИКМіИЙИЦЙйЛівіііМііг ■ *»-г«ате»...^идгц-

I são passivos e caóticos e em que as diversas instruções que


lhes são dadas não mudam o sentido e o caráter desses mo­
vimentos dos olhos.
Um dos fatores essenciais, que serve de base à patologia
da percepção visual nos doentes com afecção dos lóbulos
frontais do cérebro, é a inércia patológica, que se manifesta
tanto na avaliação dos objetos visuais como no movimento dos
olhos desses doentes.
A segunda fonte de perturb: ;ão da percepção visual de
objetos complexos em doentes “ .afecção dos lóbulos fron­
tais do cérebro é a perturbaçi de comparação
da informação real com a essa que re­
presenta um fragmento de mat¡
a causa do distúrbio da perf
atividade perceptiva e a proli
da “ação aceptora”. ;
Os distúrbios da percepçf
nos estados patológicos de ati
ção geral do córtex cerebral e pelos deslocamentos funcionais
que estão relacionados com a patologia geral na estrutura da
atividade psíquica.
Deste modo, entre os doentes com retardamento mental e
demência orgfinica, podemos observar atraso ou desintegração
da análise de uma situação complexa com degradação da per­
cepção visual de um quadro difícil até a enumeração de ob­
jetos isolados; por isto o experimento de análise de um qua­
dro temático tornou-se um dos pontos de apoio mais impor­
tante no diagnóstico do retardamento mental.
Podemos observar distúrbios substanciais também nos
casos de psicose, particularmente nos casos de esquizofrenia.
As peculiaridades típicas da percepção consistem em que
a influência da experiência anterior sobre a análise de um
quadro polissêmico pode ser consideravelmente perturbada nes­
te caso; se na pessoa normal essa análise ocorre sob a in­
fluência reguladora da experiência anterior, graças à qual as
relações pouco prováveis são abandonadas e as altamente pro­
váveis determinam a avaliação do sentido do quadro, já no es­
quizofrênico essa influência desaparece, ele pode avaliar o $
tido do quadro através de detalhes diretos, revelando-se
condições de controlar as hipóteses pouco prováveis qi
afloram na mente.
0 estudo psicológico do distúrbio da percepção dos esta­
dos patológicos do cérebro é de grande importância tanto
para o diagnóstico prático das afecções cerebrais como para
um estudo mais aproximado da estrutura da atividade percep­
tiva de um homem normal.

Percepção do espaço

A percepção do espaço muito se distingue da percepção


da forma e do objeto. Sua diferença consiste em que ela se
baseia em outros sistemas de analisadores de funcionamento
simultâneo e pode ocorrer em diferentes níveis.
Durante muito tempo, a filosofia discutiu se a percepção
do espaço é congênita (como consideravam os “nativistas”) on
resultado de aprendizagem (como consideravam os partidá­
rios do empirismo).
Hoje é absolutamente claro que, embora a percepção do
espaço tenha por base vários aparelhos específicos, sua estru­
tura é muito complexa e as formas desenvolvidas de percep­
ção do espaço podem ocorrer em diferentes níveis.
A percepção do espaço tridimensional se baseia na fun­
ção de um aparelho especial — os canais semicirculares (ou o
aparelho vestibular) — situado no ouvido intemo. Esse apa­
relho tem a forma de três tubos curvos semicirculares, situa­
dos nos planos vertical, horizontal e sagital, preeenchidos por
um líqxúdo. Quando a pessoa muda a posição da cabeça, o
líquido que enche os canais muda de posição e o aparelho
otolítico situado nos canais (sacos membranosos, que incluem
cristais muito miúdos) mudam de posição, provocando excita­
ção das células capilares, que leva ao surgimento de mudan­
ças na sensação de estabilidade do corpo (“sensações estáti­
cas”). Esse aparelho que reage sutilmente ao reflexo dos três
planos fundamentais do espaço é o receptor específico deste.
Esse aparelho está estreitamente vinculado ao aparelho
dos músculos motores dos olhos e cada mudança do apare­
lho vestibular provoca mudanças reflectoras na posição dos
olhos; nas mudanças rápidas e demoradas da posição do cor­
po no espaço, começam os movimentos de pulsação dos olhos
denominados mistagmo (iridocinesia), e na mudança rítmica
demorada das excitações visuais (por exemplo, nas que sur­

82
gem quando passamos de automóvel por uma aléia com árvo­
res, que “passam” rápida e constantemente, ou quando fixa­
mos longamente o olhar num tambor giratório com faixas
transversais) surge um estado de instabilidade acompanhado
de enjôo. Essa estreita relação mútua entre o aparelho vestibu­
lar e o aparelho motor dos olhos, que provoca reflexos ótico-
vestibulares, são um componente essencial do sistema que as­
segura a percepção do espaço.
O segundo aparelho importante, que assegura a percep­
ção do espaço e acima de tudo da profundidade, e o disposi­
tivo de percepção visual binocular e de sensação dos esforços
musculares produzidos pela convergência dos olhos.
É fato bem conhecido que a profundidade (distância)
dos objetos é sobretudo bem percebida quando observamos o
objeto com ambos os olhos. Para perceber os objetos com a
necessária nitidez, a imagem do objeto em observação deve
cair sobre os pontos correspondentes da retina; para assegurar
isto é necessária a convergência de ambos os olhos. Se na
convergência dos olhos surge uma insignificante disparidade
de imagens, aparece a sensação de distância do objeto ou o
efeito estereoscópico; com maior disparidade dos pontos da
retina de ambos os olhos sobre os quais cai a imagem, surge
uma bifurcação do objeto. Deste modo, os impulsos deriva­
dos da tensão relativa dos músculos dos olhos, que assegu­
ram a convergência e o deslocamento da imagem em ambas
as retinas, constitui o segundo componente importante da per­
cepção do espaço.
O terceiro componente importante da percepção do espa­
ço são as leis da percepção estrutural, que já descrevemos an­
teriormente e em determinadas condições se bastam por si
mesmas para provocar a percepção da profundidade. A essas
leis incorpora-se uma última condição — a influência da ex­
periência anterior bem reforçada, que pode influenciar subs­
tancialmente a percepção da profundidade mas em alguns
casos, como já indicamos, pode levar ao surgimento de
ilusões.
A percepção do espaço não se limita, portanto, à perceo-
ção da profundidade. Uma parte essencial dela é constituída
pela percepção das disposições dos objetos em relação uns aos
outros, o que requer uma análise especial.
O espaço que percebemos nunca tem caráter simétrico;
em maior ou menor grau, ele é sempre assimétrico. Uns obje-
los estão situados acima de nós, outros, abaixo; uns são mais
distantes, outros, mais próximos; uns estão à direita, outros,
à esquerda. Nesse espaço assimétrico, as diferentes disposi­
ções espaciais dos objetos têm, freqüentemente, importância
decisiva. Um exemplo disto podemos ver nas situações em
que temos necessidade de nos orientar na disposição dos cô­
modos, de manter o plano de um caminho, etc.
Nas condições em que podemos nos apoiar em sinais vi­
suais complementares (distribuição das coisas nos corredores,
formas variadas dos edifícios nas ruas), essa orientação no
espaço é facilmente realizada. Quando esse ponto comple­
mentar de apoio visual é obliterado (isto ocorre, por exem­
plo, em corredores absolutamente idênticos, nas estações do
metrô em que há duas saídas opostas absolutamente idênticas
pela forma), essa orientação se torna acentuadamente difícil.
Cada um sabe perfeitamente como a orientação se perde fa­
cilmente da disposição espacial na pessoa que adormece no
escuro absoluto.
A orientação nesse espaço assimétrico é tão complexa, que
apenas os mecanismos acima descritos não são suficientes. Pa­
ra assegurá-la, tornam-se necessários mecanismos suplementa­
res, antes de tudo a distinção da mão direita "principal” com
cujo apoio o homem faz uma análise complexa do espaço
anterior e do sistema de representações espaciais abstrataт
(direita-esquerda) que, como mostraram observações psicoló­
gicas, é de origem histórico-social.
É absolutamente natural que, em determinada etapa da
ontogênese, quando a mão direita ainda não se separou e o
sistema de conceitos espaciais não foi assimilado, os aspectos
simétricos do espaço tenham sido confundidos durante muito
tempo. Esses fenômenos, característicos dos estágios iniciais
de todo desenvolvimento normal, manifestam-se na chamada
“escrita especular”, e começa em muitas crianças entre os três
e os quatro anos e se estendem caso a mão principal (a di-
deita) não se destaque por algum motivo.
O complexo conjunto de dispositivos que servem de base
à percepção do espaço requer, naturalmente, idêntica organi­
zação complexa dos órgãos que efetuam a regulamentação
central da percepção espacial. Esse órgão centrai é constituí­
do pelas zonas terciárias do córtex cerebral ou zonas de co­
bertura, que unificam o funcionamento dos analisadores vi­
sual, tátil-sinestésico e vestibular. É justamente por isto que
,a afecção das áreas subparietais do córtex cerebral, que não
afeta a percepção normal das formas dos objetos e de sua
profundidade (distância) leva, via de regra, a um distúrbio
profundo das formas superiores de organização da percepção
espacial.
Os doentes com afecção das áreas subparietais do cére­
bro não experimentam grandes dificuldades na percepção vi­
sual das figuras e objetos; eles continuam a distinguir a dis­
tância e não manifestam dificuldade de avaliação da perspec­
tiva. Mas eles mostram nítidas dificuldades de orientar-se no
espaço, não conseguem distinguir os lados direito e esquerdo
dos objetos, confundem-se para encontrar o caminho correto e
andam para a direita quando precisam andar para a esquerda;
cometem erros na avaliação da posição dos ponteiros dos re­
lógios, não distinguindo os números simetricamente distribuí­
dos (por exemplo, confundem os ponteiros nas posições de
"três horas” e “nove horas'’)*, perdem a capacidade de orien­
tar-se no mapa geográfico e de avaliar os algarismos roma­
nos simetricamente dispostos (por exemplo, XI e rx) ; per­
dem a capacidade de orientar-se corretamente no "espaço sim­
bólico” necessário para operações com a estrutura da classe
do número e com o cálculo. Como veremos adiante, eles ex­
perimentam visíveis dificuldades em operações lógico-grama-
ticais e necessitam de orientação num espaço complexo (assi­
métrico) .
Deste modo, o estudo da maneira pela qual mudam as
formas complexas de orientação no espaço nos doentes com
afecção das áreas subparietais do cérebro não apenas permi­
te penetrar mais a fundo nas bases dessa forma de percep­
ção como permite ainda estabelecer quais as formas de pro­
cessos psíquicos conscientes que ocorrem com a sua parti­
cipação.
Os distúrbios do esquema do corpo são formas espe­
ciais de distúrbio da percepção espacial. Eles surgem com a
irritação patológica das áreas proprioceptivas do córtex sub-
pariental e se manifestam numa mudança sui generis das sen­
sações do próprio corpo: doentes com semelhante afecção
podem ter a sensação de que um lado do seu corpo tomou-
se estranhamente maior, e a cabeça “inchou” , tomando-se
maior do que todo o corpo, etc. O distúrbio do esquema
do corpo constitui um importante sintoma de apoio para o

85
diagnóstico dos focos patológicos nas áreas subparietais do
córtex e nas respectivas formações subcorticais.

Percepção auditiva

A percepção auditiva é radicalmente distinta tanto da


percepção tátil como da visual.
Se as percepções tátil e visual refletem o mundo dos
objetos dispostos no espaço, já a percepção auditiva está re­
lacionada com uma sucessão de irritações que ocorrem no
tempo.
Essa diferença radical foi observada pelo grande fisio-
logista russo I. M. Setchenov, segundo o qual os dois tipos
básicos de atividade sintética que o homem possui são, por
um lado, a reunião de excitações isoladas em grupos simul­
tâneos e acima de tudo espaciais e, por outro, a reunião das
excitações que chegam ao cérebro em séries sucessivas.
A percepção auditiva se relaciona antes de tudo com o
segundo tipo de síntese e é nisto que reside a sua impor­
tância fundamental.

Bases fisiológicas e morfológicas da audição

O nosso ouvido percebe tons e ruídos. Os tons são os-


cilacões rítmicas regulares do ar; e a freqüência dessas osci­
lações determina a altura do tom (quanto maior é a fre­
qüência, mais alto é o tom), enquanto a amplitude dessas
oscilações determina a intensidade do som (ou a sua sonori­
dade subjetiva). Os ruídos são o resultado de um comple­
xo de oscilações subpostas umas às outras, encontrando-se
a freqüência dessas oscilações em relações casuais indivisí­
veis entre si. O ruído composto de um grande número de
diferentes oscilações de intensidade idêntica (onde nenhum
componente predomina) é chamado “ruído branco” (em ana­
logia com a cor branca que, como se sabe, é o resultado da
mistura de cores diferentes).
Cabe observar que só tons como os de um diapasão
são constituídos por uma série de oscilações e denominados

86
tons puros. Os tons da voz ou de quaisquer instrumen­
tos se distinguem pelo fato de que as oscilações têm aqui
um caráter complexo e as partes componentes destas es­
tão em relações divisíveis entre si e neste caso a altu­
ra do tom é determinada pela freqüência das oscilações de
amplitude máxima e o número total de oscilações incluídas
(harmonia) determina o timbre de determinado tom. A al­
tura do tom é expressa em hertz (número de oscilações por
segundo) e sua força em decibéis (um decibel=l/10bel; en­
tende-se por “bel” o aumento da pressão mínima da onda
de 10 vezes; sendo o bel não uma unidade demasiadamente
grande, usam-se na prática os decibéis).
Como já foi dito, o homem é capaz de distinguir sons
num diapasão de 20 a 20 000 Hertz, enquanto o diapasão das
intensidades dos sons percebidos pelo homem constitui uma
escala de 1 (sons liminares) a 130 decibéis.
O aparelho periférico do ouvido é formado por um com­
plexo conjunto de dispositivo. Os tons que atuam sobre o
homem e os ruídos passam pela entrada do ouvido e che­
gam ao tímpano, uma película elástica dotada da capacida­
de de oscilar-se em ritmo com o som. Através do sistema
de ossículos situados no ouvido médio (bigorna, martelo, es­
tribo), essas oscilações são transmitidas através da janela oval
ao aparelho do ouvido interno, onde está situado o apare­
lho da recepção auditiva — a cóclea, cheia de líquido (en-
dolinfa). As oscilações, transmitidas pelo referido aparelho
do ouvido médio, põem em movimento o líquido da cóclea
e provocam oscilações correspondentes nesse sistema fecha­
do. Na membrana básica da cóclea, está situado um disposi­
tivo especial que transforma as oscilações do líquido em ex­
citações nervosas — o órgão de ICortiv —, dispositivo extra­
ordinário dotado da propriedade de transformar oscilações
sucessivas em excitação de células nervosas isoladas espacial­
mente distribuídas. Essa “codificação” se conclui pelo fato
de que o órgão de Kortiv é constituído de um sistema de
células capilares nervosas, cada uma das quais ligada a um
filamento transversal de determinado comprimento incluído no
canal da cóclea. São esses filamentos que fazem repercutir
as oscilações do líquido de freqüência diferente e, como na
cóclea há até 24 mil desses filamentos, surge a possibilida­
de de perceber os tons no diapasão de freqüência acima
indicado.
Deste modo, cada som que chega ao aparelho do recep­
tor auditivo provoca oscilação de uma ou várias séries de
cordas e essas oscilações excitam as células capilares corres­
pondentes e provocam excitações dos nervos. Neste caso, os
sons altos provocam oscilações das cordas mais curtas e os
sons baixos, das cordas mais longas; as excitações nervosas
daí resultantes são conduzidas através dos respectivos fila­
mentos do nervo auditivo.
A “ teoria da ressonância do ouvido”, proposta em seu
tempo pelo notável fisiologista alemão Helmholtz, é adotada
pela maioria dos pesquisadores; só ultimamente ela recebeu
correções do famoso fisiologista do ouvido Bekeshy, que in­
dicou que a membrana fundamental da cóclea não é alonga­
da e as cordas a ela fixas reagem às oscilações do líquido
segundo leis hidrodinámicas.
O fato de o processo fundamental que ocorre no corte
periférico do receptor auditivo ser realmente a transforma­
ção das oscilações mecânicas em complexos fenômenos ner­
vosos (elétricos) é demonstrado pelo chamado efeito tele­
fônico (ou microfónico), descrito pelos fisiologistas ameri­
canos Wyver e Brain. Se desviarmos as correntes da ação do
nervo auditivo de um gato e, após aumentá-las, desviá-las
para um microfone situado numa sala contígua, pronuncian­
do em seguida uma palavra no ouvido do gato, poderemos
ouvir essa palavra pelo microfone. Esse teste mostra que o
receptor auditivo funciona pelo princípio do microfone, que
traduz as oscilações mecânicas do som em oscilações elé­
tricas. Os filamentos do nervo sonoro, que partem do órgão
de Kortiv, fazem parte da “via auditiva”. Neste caso, os fi­
lamentos que partem de ambos os nervos auditivos, ao pro­
duzir o ramo que segue para o corpo quadrigêmeo inferior,
seguem na composição do “nó interior” no sentido dos apa­
relhos centrais dos dois hemisférios. Eles cessam no corpo
caloso interno (aparelho subcortical do ouvido), de onde se
dirigem para a circunvolução transversal da área temporal (cir-
cunvolução de Geshel), que é a zona auditiva primária (ou
de projeção) do córtex. Como ocorre em outras zonas de
projeçüo, os filamentos que conduzem impulsos de diferentes
freqüências dispõem-se nessa zona de projeção em ordem
rigorosa: nas áreas internas (mediáis) da circunvolução de
Geshel terminam os filamentos que conduzem os impulsos dos
tons altos e nas áreas laterais da circunvolução de Geshel

88
terminam os filamentos que conduzem os impulsos dos tons
baixos. . . . • ...
Via de regra, a afecção da circunvolução de Geshel de
um hemisfério leva apenas à redução parcial da audição no
ouvido oposto (como já foi lembrado, os filamentos oriun­
dos dos dois receptores periféricos da audição chegam tan­
to ao hemisfério direito como ao esquerdo).
É essencial o fato descoberto pelo psicólogo soviético
Guershuni, segundo o qual a afecção do córtex da área tem­
poral, sem se refletir nitidamente nos limiares da percepção
dos tons longos, leva a uma nítida elevação dos limiares (ou
a redução da sensibilidade), sons ultracurtos (de 1 a 5m.seg.),
que se manifestam no ouvido oposto. Esse fato leva a pen­
sar que o papel do córtex auditivo não consiste apenas em
perceber os sinais sonoros que chegam ao receptor periférico
mas também em estabilizá-los, permitindo ao homem levar
em conta componentes mais fracionados e mais curtos desses
sinais, . ...
As excitações que chegam à circunvolução de Geshel são
sucessivamente transmitidas aos aparelhos das áreas externas
(conveccionais) do córtex temporal (campo 22 de Broadman)
que constituem a zona auditiva secundária. O predomínio dos
neurônicos da II e III camada, que distinguem essa zona, bem
como as suas íntimas ligações com outras áreas (motoras) do
córtex convertem a zona auditiva secundária no aparelho mais
importante, que permite discriminar os elementos essenciais
da informação auditiva, sintetizar os indícios desta e codificar
os sons em sistemas complexos, noutros termos, permitem
realizar processos de uma complexa percepção sonora.

Organização psicológica da percepção auditiva

, Falando da organização da sensibilidade tátil e visual,


já observamos que as formas e objetos do mundo exterior são
os. fatores que as organizam em determinados sistemas. O Ï6-
fléxo dessas formas leva à codificação dos processos táteis с
visuais em determinados sistemas e sua transformação numa
percepção tátil e visual organizada.
Quais são os fatores que levam à organização dos pro­
cessos auditivos no complexo sistema de percepção àuditiva1?1
É sabido que a audição dos animais é organizada por de­
terminados programas congênitos, que lhes permitem distin­
guir os componentes biologicamente essenciais dos sons e reu­
ni-los em determinados sistemas biologicamente importantes,
que o animal distingue facilmente dos outros ruídos (podem
servir de exemplo o ruído do rato ou o miado de um gatinho,
que são facilmente distinguíveis pelo gato entre todos os
outros ruídos). À diferença disto, o mundo das excitações
sonoras do homem é determinado por outros fatores de ori­
gem não biológica mas histórico-social.
Podemos distinguir dois sistemas objetivos, que se formaram
no processo da história social da humanidade e exercem gran­
de influência na codificação das sensações auditivas do homem
em complexos sistemas de percepção auditiva. O primeiro
deles 6 o sistema rttmico-melódico (ou musical) de códigos,
o segundo, o sistema fonemdtico de códigos (ou sistema de
códigos sonoros da língua). São esses dois fatores que orga­
nizam em complexos sistemas de percepção auditiva os sons
percebidos pelo homem.
Graças ao papel decisivo desses fatores, se o ouvido do
animal tem, às vezes, uma sensibilidade ao som bem mais
aguda do que o ouvido do homem, este apresenta como carac­
terística uma complexidade bem maior, uma riqueza maior e
uma elasticidade mais intensa dos códigos sonoros.
É sabido que o sistema de códigos rítmico-melódicos (ou
musicais), que determina a audição musical, 6 constituído de
dois componentes básicos.
Um desses componentes é constituído pelas relações dos
sons altos, que permitem organizar os sons em acordes con­
sonantes e formar séries sucessivas dessas relações sonoras que
fazem parte da composição das melodias. O segundo é cons­
tituído pelas relações rítmicas (ou prosódicas) das alternâncias
regulares da duração e dos intervalos de sons isolados. Essas
relações podem criar complexas imagens rítmicas inclusive dos
sons de uma freqüência (a fração de um tambor pode servir
de exemplo desses sons ritmicamente organizados).
A função básica da audição musical é distinguir as rela­
ções sonoras altas e prosódicas (rítmicas), sintetizá-las em es­
truturas melódicas, criar sons melódicos correspondentes que
expressam determinado estado emocional e conservar esses sis­
temas rítmico-melódicos. Vê-se facilmente que, se nas eta­
pas iniciais de desenvolvimento da audição musical, esse pro­

90
cesso de codificação do sistema sonoro tem caráter desdo­
brado, na medida em que vai sendo exercitado esse processo
se reduz, formando-se no homem unidades maiores de audi­
ção musical e tomando-se capaz de distinguir e conservar
vastos sistemas integrais de melodias musicais.
O sistema da linguagem sonora é o segundo sistema
que determina o processo de percepção sonora e assegura a
codificação dos seus elementos isolados e sua conversão era
formas complexas de percepção sonora.
A linguagem humana dispõe de todo um sistema de có­
digos sonoros, à base dos quais se constroem os seus ele­
mentos significantes: as palavras. Para distinguir os sons do
discurso ou fonemas não basta possuir um ouvido agudo;
para percebê-los é necessário efetuar um complexo trabalho
de discriminação dos indícios essenciais do som do discurso
e de abstTação dos traços estranhos, secundários para tal
distinção.
Cada etapa historicamente formada possui um comple­
xo código de traços essenciais, que permitem distinguir o
sentido de uma palavra pronunciada; na língua portuguesa
esses traços são, por exemplo, as marcas de sonoridade ou
surdez das consoantes (sons muito semelhantes que se dis­
tinguem por apenas um desses traços como, por exemplo,
“b” e “p”, “d” e “t” que permitem mudar o significado da
palavra. Podemos tomar como exemplo a distinção entre pa­
lavras como “braça” e “praça”, “bala” e “pala”, “dote” e
“pote”. Esses traços sonoros, de significado semântico dis­
tintivo, são denominados traços fonemáticos; aqui a essência
da captação auditiva do discurso consiste em distinguir esses
traços na cadeia falada, torná-los dominantes, abstraindo si­
multaneamente o timbre com o qual são pronunciadas as pa­
lavras e a altura do tom que distingue a voz de quem as
pronuncia.
A assimilação do sistema fonemático objetivo (variado
em língua diferente) constitui a condição que organiza o ou­
vido do homem e assegura a percepção do discurso sonoro.
Sem o domínio desse sistema fonemático, a audição fica de­
sorganizada e a pessoa que não domina o sistema fonético
de uma outra língua não só “não o entende” como não dis­
tingue os traços fonéticos essenciais para essa língua, noutros
termos, “não escuta” os sons que o compõem.
Examinaremos mais detalhadamente os códigos fonemá-
tícos da língua quando analisarmos a psicologia da fala; aqui
nos limitaremos a breves comentários.
A codificação dos sons para sistemas correspondentes de
audição musical ou discursiva não é um processo passivo.
Como o sistema de percepção tátil ou visual do objeto,
a complexa percepção auditiva constitui um processo ativo,
que engloba componentes motores. A diferença entre a per­
cepção auditiva e a tátil e visual consiste apenas em que se
na percepção tátil e visual os componentes motores estão
incluídos no mesmo sistema de analisadores (os movimen­
tos de npalpação da mão, oa movimentos de busca dos
olhos), na percepção auditiva eles estão separados do siste­
ma auditivo с reunidos distintivamente num sistema especial
de canto vocal para .audição musical e de pronunciação para
audição do discurso.
O trabalho dos psicólogos soviéticos (A. N. Leôntyev,
О. V. Ovtchinnikova), bem como a experiência de músicos-
pedagogos que ensinam a língua estrangeira mostra que 6
justamente a produção dos tons necessários que constitui a
condição que permite distinguir e precisar a altura necessá­
ria do tom, sendo a produção dos sons do discurso a condi­
ção importante que permite precisar-lhe a composição sono­
ra, abstraindo em cada caso os componentes sonoros es­
tranhos.
Uma boa prova disto são os testes de Leôntyev; aqui
nestes propóe-se ao sujeito avaliar a altura dos tons a ele
apresentados num timbre suplementar dos sons “i” e “u ”.
O teste mostrou que tons de altura idêntica, apresentados
com essas diferenças de timbre são semnre percebidos como
diferentes pela altura; o tom apresentado no timbre “i” foi
avaliado como o mais alto, o tom apresentado no timbre
“u”, como mais baixo.
Foi necessário incluir no processo de análise da altura
do tom o próprio canto do suieito para que este fosse caoaz
de abstrair os traços secundários dos timbres e sua sensibi­
lidade à altura do tom aumentasse bruscamente.
É característico que tais fenômenos da redução da audi­
ção altamente sonora sobre o efeito do timbre tenham sido
observados em pessoas que falavam línguas “tímbricas” (rus­
so, inglês, francês), não se observando em pessoas que fa­
lam línguas “tonais” (o vietnamita), nas quais não é o tim-

92
bre mas a altura do tom que constituí o traço semântico
distintivo.
Deste modo, a observação aqui descrita mostra a gran­
de importñncia que tem para a sutileza do ouvido a sua
inclusão no sistema da língua e o papel que o componente
motor “solfejo” do tom desempenha na abstração desses in­
dícios estranhos.
Papel análogo é desempenhado pelo componente motor
na precisão do ouvido fonemático, com a única diferença
de que o solfejo é aqui substituído pela pronúncb dos sons
do discurso. As pessoas que lecionam língua estrangeira sa­
bem perfeitamente que é o pronunciamento ativo que per­
mite distinguir os traços fonemâticos necessários, dominar o
sistema fonemático objetivo da língua e deste modo precisar
essencialmente a audição fonemática do discurso.

Patologia da percepção auditiva

O distúrbio dos processos auditivos pode surgir com afec-


ção de diferentes elos da cadeia auditiva e apresenta caráter
diversificado.
Com a afecção da área periférica da via auditiva do
ouvido interno, surge a surdez ou a redução da audição. Essa
redução está não raro relacionada com distúrbios da sen­
sibilidade vestibular, tendo em vista que os dois aparelhos
periféricos — a cóclea e os canais semicirculares — estão
concentrados no ouvido interno.
A afecção da área periférica da via auditiva, relaciona­
da com ocorrências inflamatórias do nervo auditivo, provo­
ca não apenas a redução da audição como também restrição
considerável do diapasão útil da audição. O aparelho afeta­
do começa muito rapidamente a reagir ao aumento da in­
tensidade do som através de sensações de dor (esse fenô­
meno ficou conhecido como recruitment) . ,, й
A afecção do corpo quadrigêmeo, aonde chegam as.r^» .
mificações do nervo auditivo, não provoca visíveis perturbj$*,y,‘-
ções do ouvido mas leva à perturbação das ligações elernèn-
tares entre os sistemas auditivo e visual e àquela do "reflexo
cócleo-pupilar” (redução da pupila em resposta a uma súbl*
ta excitação auditiva). A supressão desse reflexo constitui
uma importante prova objetiva da perturbação da função au­
ditiva onde outras vias e métodos de estabelecimento de sua
patologia são inacessíveis.
A afecção das áreas primárias (projetoras) do córtex
auditivo leva a um nítido distúrbio da audição (a chamada
“surdez central") apenas nos raríssimos casos de afecção si*
multfinea das áreas de projeção dos dois hemisférios. No
caso de afecção unilateral das áreas de projeção do córtex
auditivo, a audição não sofre acentuadamente e só através
de um minucioso estudo experimental consegue-se constatar
certa elevaçãu dos liiniarc.v (noutros termos, a redução da
sensibilidade auditiva) em sinais muito curtos (Guershuni).
Surgem nítidos distúrbios das formas complexas de per­
cepção auditiva com a afecção das áreas secundárias do cór­
tex auditivo mas essas perturbações apresentam caráter intei­
ramente distinto durante a afecção da área temporal no he­
misfério esquerdo (dominante) e do direito (subdominante).
A afecção das áreas posteriores da circunvolução tem­
poral superior do hemisfério esquerdo não perturba, via de
regra, a complexa audição musical mas leva à perturbação
da capacidade de distinguir sons semelhantes (fonemas) da
fala. Doentes com essa afecção são incapazes de distinguir
fonemas semelhantes como “b” e “p”, “d” e “p” ou “z” e
“s”, razão pela qual começam a ter dificuldades de entender
o discurso a eles dirigido. Esse fenômeno, conhecido na prá­
tica clínica como “afasia sensória" não é acompanhado da
redução da sensibilidade auditiva geral nem da capacidade de
distinguir os sonsdos objetos (as badaladas do relógio, os
sons de louça, o ruído dos automóveis); isto sugere que as
áreas secundárias do córtex auditivo do hemisfério esquerdo
estão intimamente ligadas ao sistema da linguagem. Foram
descritos casos em que músicos e compositores, com grave
afecção dessa área, mantiveram a capacidade não só de per­
ceber a música mas também de continuar a sua atividade de
músico e compositor.
Um sintoma importante da afecção central desse tipo de
audição 6 a impossibilidade de captar e reproduzir ritmos
complexos (por exemplo, !!...!! . . . ou !. .!.). Esses dis­
túrbios, a par com a perturbação da capacidade de captar
e reproduzir relações altamente sonoras, são importantes in­
dícios de afecção do córtex auditivo.

94
A neurologia ainda sabe pouca coisa a respeito dos apa­
relhos cerebrais que asseguram audição musical normal. Al­
guns dados sugerem que na organização cerebral da audição
musical participa a área temporal direita (subdominante) e
possivelmente as áreas anteriores da região temporal.
Cabe observar que a afecçâo auditiva tenra de qualquer
origem pode criar dificuldades essenciais para o desenvolvi­
mento intelectual da criança. As crianças que em idade tenra
tiveram reduzida a audição, começam a experimentar visí­
veis dificuldades de percepção do discurso que lhes é dirigido
e como resultado a comunicação verbal dessas crianças é di­
ficultada e perturba-se a formação do seu próprio discurso
e, simultaneamente, o desenvolvimento intelectual geral. É
por isto que as crianças duras de ouvido e com atraso se­
cundário do discurso são freqüentemente confundidas com
crianças mentalmente retardadas. O diagnóstico diferencial
do atraso secundário das crianças duras de ouvido com
atraso mental primário representa dificuldades consideráveis
e requer procedimentos especiais.
Com a afecção das áreas têmporo-parietais do córtex,
podem surgir formas especiais de distúrbio da audição. Nes­
tes casos, os sons procedentes dos dois receptores periféri­
cos começam a chegar irregularmente ao córtex, resultando
daí a perturbação do “efeito binário”, que permite localizar
nitidamente os sons no espaço.
Os sintomas que acabamos de descrever são sintomas de
queda ou redução da junção desse ou daquele elo do anali-
sador auditivo. No entanto, não são menos importantes os
sintomas de irritação desses aparelhos.
Esses sintomas, que acompanham a irritação tanto da
parte condutora como da parte central como da via auditiva,
manifestam-se nos fenômenos das alucinações auditivas: sur­
gimento de sensações de tons, ruídos, sons de música ou
fala na ausência de causas reais. Esses fenômenos podem ser
provocados por via experimental. Como mostraram observa­
ções de neurologistas (Forfoerster, Penfield), a irritação das
áreas primárias (projetoras) do córtex auditivo pode provocar
a sensação de ruídos ou tons, enquanto a irritação das áreas
secundárias do córtex auditivo leva a pessoa afetada a ouvir
música, falas, etc. Semelhantes ocorrências podem ser pro-

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vocadas também por causas patológicas como, por exemplo,,


cortes que irritam essas áreas do cérebro; nestes casos as
alucinações auditivas se manifestam como anuncios de ataque
epiléptico e são clinicamente chamadas de “aura auditiva”.
As alucinações auditivas estáveis podem ser provocadas
por focos constantes de excitação nessa região e integrar о
quadro das doenças psíquicas. Não raro, nos casos de into­
xicação por alcoolismo ou substâncias químicas nocivas, sur­
ge nos doentes estado patológico do córtex durante o quaS
os estímulos estranhos pouco importantes começam a pro­
vocar imagens que brotam descontroladamente e o doente
confunde con, л realidade; essas imagens nítidas podem às
vezes ameUiçar-se com os estados de delírio do doente.
A oiigofii с as tournas das alucinações representam uma
parte importante da psicopatologia geral.

Percepção do iempo

Se. após a análise das leis fundamentais da percepção


tátil e visual tivemos de abordar detidamente as leis psico­
lógicas da percepção do espaço, seria natural que após o
exame das leis básicas da percepção auditiva (e motora) nós
nos detivéssemos brevemente na análise da psicologia da per­
cepção do (empo. Apesar da grande importância desta seção
da Psicologia, ela apresenta elaboração bem inferior à do
problema da percepção do espaço.
Podemos salientar que a percepção do tempo tem aspec­
tos variados e se realiza em diferentes níveis. As formas
mais elementares são constituídas pelos processos de percep­
ção da duração da sucessão, que se baseiam em fenômenos
rítmicos elementares conhecidos pela denominação de “horas
biológicas”. Situam-se entre estes os processos rítmicos, que
ocorrem nos neurônios do córtex e das formações subcorti-
cais, a substituição dos processos de excitação e inibição, que
surge durante uma longa atividade do sistema nervoso e é
percebida como reforços ondulatórios alternantes e enfraque­
cimentos do som durante uma escuta longa e atenta. Si­
tuam-se ainda entre eles fenômenos cíclicos como as pulsa»
çôes do coração, o ritmo da respiração e, para intervalos

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mais longos, o ritmo de mudança do sono e da vigília, o sur­
gimento de fome, etc.
Todas as condições aqui enumeradas servem de base às
avaliações mais simples e imediatas do tempo.
Elas podem surgir nos animais no processo de elabora­
ção dos “reflexos do tempo” ou dos “reflexos retardatários”
e podem ser modificadas pela ação de agentes farmacológicos
que exercem influência sobre o sistema nervoso vegetativo.
Os efeitos desses agentes podem ser verificados também no
homem. Já foi mostrado que uns preparados (a anfetamina
e o óxido nitroso, por exemplo) abreviam essencialmente a
avaliação de pequenos cortes do tempo, ao passo que outros
preparados (o l s d , por exemplo) alongam a avaliação de
pequenos intervalos de tempo.
Das formas imediatas elementares de sensação do tem­
po devemos distinguir as formas complexas de percepção do
tempo, que se baseiam nos “padrões” de avaliação do tempo
criados pelo homem. Entre esses padrões de mediação da
avaliação do tempo, situam-se medidas de tempo como os
segundos e os minutos, bem como vários padrões que se
formam na prática da percepção da música. É justamente
em virtude disto que a precisão dessa percepção mediata do
tempo pode aumentar visivelmente, pois, como mostraram as
observações (В. M. Teplov) feitas com músicos, pára-que­
distas e pilotos, ela pode aguçar-se visivelmente no processo
de exercidos em que o homem começa a cotejar lapsos de
tempo que mal se percebem. Segundo alguns dados, por esse
caminho pode-se levar a precisão da percepção de pequenos
lapsos de tempo a um nível impressionante, como, por exem­
plo, fazendo as pessoas adquirirem a capacidade de distin­
guir intervalos de 1/18 segundos de intervalos de 1/20 se­
gundos (S. G. Hellerstein).
Da avaliação de intervalos breves devemos distinguir a
avaliação de intervalos longos (as horas do dia, os dias e
meses do ano, etc.), noutros termos, devemos distinguir a
orientação nos cortes longos do tempo. Esta forma de ava­
liação do tempo é sobretudo complexa pela estrutura, asse­
melhando-se aos fenômenos da codificação intelectual do
íempo.
É interessante que a perturbação da avaliação do tempo
em forma de falhas grosseiras na avaliação das horas do dia
a as perturbações da noção do tempo no ano, datas, etc.,

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podem surgir durante as afecções de algumas áreas do cére­
bro (por exemplo, durante as afecções das zonas profundas
do lobo temporal e das formações subcorticais, relacionadas
com a regulação dos processos vegetativos) e servir de sin­
tomas de apoio para o diagnóstico dessas afecções.
Formas especiais de perturbação da percepção do tempo
podem surgir também nos estados psicóticos, nos quais, se­
gundo alguns autores, elas se constituem num índice da per­
turbação das funções vitais profundas.

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