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Curso de Psicologia Geral

Volume2
SUMÁRIO
I — SENSAÇÕES 1
O problema 1
A sensação como fonte de conhecimento 2
Teorias receptora e reflectora das sensações 6
Classificação das sensações 8
Classificação sistemática da sensações 9
Tipos de sensações exteroceptivas 14
Interação das sensações e o fenômeno da sinestesia 15
Níveis de organização das sensações 18
Medição das sensações. Estudos do limiar absoluto das sensações21
Estudo da sensibilidade relativa (diferencial) 27
Variação da sensibilidade (adaptação e sensibilização) 29
II — PERCEPÇÃO 37
A atividade perceptiva do homem. Características gerais 37
Percepção tátil 45
Formas simples de percepção tátil 45
Formas complexas de percepção tátil 49
Percepção visual 54
Estrutura do sistema visual 55
Percepção das estruturas 61
Percepção dos objetos e situações 64
Fatores determinantes da percepção de objetos complexos 68
Métodos de estudo da percepção visual falsa 72
Desenvolvimento da percepção material 75
Patologia da percepção material 77
Percepção do espaço 82
Percepção auditiva 86
Bases fisiológicas e morfológicas da audição 86
Organização psicológica da percepção auditiva 89
Patologia da percepção auditiva 93
Percepção do tempo 96
I
Sensações
O problema
As SENSAÇÕES constituem a fonte básica dos nossos conhecimentos atinentes ao mundo exterior e ao
nosso próprio corpo, Elas representam os principais canais, por onde a informação relativa aos fenômenos
do mundo exterior e ao estado do organismo chega ao cérebro, permitindo ao homem compreender o
meio ambiente e o seu próprio corpo. Se esses canais estivessem fechados e os órgãos dos sentidos não
fornecessem a informação necessária, nenhuma atividade consciente seria possível.
Há fatos conhecidos segundo os quais o homem, privado da afluência constante de informação, cai em
estado de sonolência. Esses casos se verificam quando o homem perde subitamente a visão, a audição e o
olfato e quando suas sensações táteis são limitadas por algum processo patológico.
Obtém-se resultado semelhante quando, durante algum tempo, coloca-se o homem numa câmara à prova
de som e luz, que o isola do contato com o mundo exterior e ele se mantém na mesma posição (deitado)
durante certo tempo. Essa situação a princípio provocava sono, tornando-se mais tarde dificilmente
suportável para os sujeitos experimentais*.
Inúmeras observações demonstraram que a interrupção da afluência de informação na tenra infância,
suscitada por surdez e cegueira, provoca bruscas contenções do desenvolvimento psíquico. Se as crianças
que nasceram cegas e surdas ou perderam a audição e a visão em idade tenra não receberem educação por
métodos especiais, que compensem esses defeitos à custa do tato, tornar-se-á impossível seu
desenvolvimento psíquico normal e elas não conseguirão desenvolver-se com autonomia.
A sensação como fonte da conhecimento
As sensações permitem ao homem perceber os sinais e refletir as propriedades e os indícios dos objetos
do mundo exterior e dos estados do organismo. Elas ligam o homem ao mundo exterior e tanto
representam a fonte principal do conhecimento quanto a condição fundamental do desenvolvimento
psíquico do indivíduo.
No entanto, apesar da evidência dessa tese, essa afirmação fundamental foi reiteradamente posta em
dúvida na história da filosofia idealista.
Os filósofos idealistas expressavam freqüentemente a idéia segundo a qual a fonte autêntica da nossa vida
consciente não é constituída pelas sensações mas pelo estado interior da consciência e pela capacidade do
conhecimento racional, que são dados pela natureza e independentes da afluência da informação que
chega do mundo exterior.
Essas concepções serviram de base à filosofia do "racionalismo" (eles tiveram expressão nítida
em Cristían Wolf, filósofo racionalista alemão). A essência dessa filosofia consiste em que os processos
psíquicos não são um produto do complexo desenvolvimento histórico e seus adeptos interpretavam
erroneamente a consciência e a razão não como o resultado de uma complexa evolução histórica mas
como uma propriedade primária e inexplicável do "espírito" humano. É fácil perceber que todos os dados
da ciência moderna, antes referidos, rejeitam radicalmente essa tese.
Mas os filósofos idealistas e psicólogos a eles afetos tentaram reiteradamente refutar uma tese que
pareceria evidente — a tese segundo a qual as sensações colocam o homem em contato com o mundo
exterior— e demonstrar uma tese oposta e paradoxal, segundo a qual as sensações separam o homem do
mundo exterior por serem uma muralha intransponível entre ele e esse mundo.
Essa tese partiu de filósofos idealistas como G. Ber-keley, D. Hume e E. Mach e psicólogos como H.
Heimholtz e Johannes Müller, que formularam a teoria da "energia específica dos órgãos dos sentidos".
Segundo essa teoria, os órgãos dos sentidos (o olho, o ouvido, a língua e a pele) não refletem a influência
do mundo exterior nem informam acerca dos processos reais que ocorrem no meio ambiente, limitando-se
a receber das ações exteriores os impulsos que lhes estimulam os seus próprios processos. Para essa
teoria, cada órgão dos sentidos possui sua própria "energia específica", que é estimulada por qualquer
ação procedente do mundo exterior. Assim sendo, basta: pressionar o olho, agindo sobre ele através de
choque elétrico, para ele ter a sensação de luz; é bastante uma ex-citação mecânica ou elétrica do ouvido
para surgir a sensação do som. Logo, os órgãos dos sentidos não refletem as influências exteriores mas
são apenas excitados por elas' e o homem não percebe os objetos do mundo exterior mas somente os seus
próprios estados subjetivos, que refletem a atividade dos órgãos dos sentidos. Noutros termos, isto
significa que os órgãos dos sentidos não põem o homem em contato com o mundo exterior mas, ao
contrário, o separam deste. Percebe-se facilmente que essa teoria levou à afirmação: "o homem não pode
perceber o mundo exterior e a única realidade são os processos subjetivos, que refletem a atividade dos
órgãos dos sentidos, ,estes sim criadores dos 'elementos do mundo' subjetivamente perceptíveis".
Todas essas teses foram tomadas por base da filosofia do "idealismo subjetivo", por afirmarem que o
homem só pode conhecer a si mesmo e não dispõe de nenhuma prova de que existe alguma coisa além
dele. Essa teoria idealista recebeu o nome de "solipsismo" (do latim solus, só, e ipse, eu próprio: existo só
[um] eu próprio).
A teoria do idealismo subjetivo, inteiramente oposta às concepções materialistas da possibilidade de
representação objetiva do mundo (particularmente a "teoria do reflexo" de Lênin) foi a fonte de um
profundo equívoco cuja essência se torna cada vez mais evidente com as sucessivas conquistas da ciência.
O estudo atento da evolução dos órgãos dos sentidos mostra de modo convincente que, no processo de
um longo desenvolvimento histórico, formaram-se órgãos especiais de percepção (órgãos dos sentidos ou
receptores), que se especializaram em refletir tipos especiais de formas objetivamente existentes de
movimento da matéria (ou "energias"); receptores da pele, que refletem as influências mecânicas;
receptores auditivos, que refletem as oscilações sonoras; receptores visuais, que refletem certos diapasões
das oscilações eletromagnéticas, etc.
Examinemos os dados atinentes à elevadíssima especialização dos órgãos receptores e aos tipos concretos
de movimento da matéria que cada um deles percebe.
A tabela 1 apresenta dados gerais.
Vemos que entre todos os possíveis tipos de movimento da matéria, dispostos em ordem de redução do
comprimento da onda e aumento do número de oscilações por segundo, apenas alguns são refletidos por
aparelhos altamente especializados dos órgãos dos sentidos. Assim, ondas mecânicas de determinado
diapasão são percebidas pela pele, provocando sensações de tato ou pressão; oscilações sonoras com onda
acima de 12mm de comprimento e freqüência inferior a 20-30 oscilações por segundo e com onda de
mais de 12mm de comprimento, freqüência superior a 30000 oscilações, não são percebidas, ao passo que
oscilações sonoras com onda de 12-13mm de comprimento e freqüência de 20 a 20000 oscilações por
segundo são percebidas pelo ouvi do humano e provocam sensações auditivas.

TABELA 1
Característica das influências objetivas, dos aparelhos perceptivos e das sensações
Processos Compri- Número de Órgão per- Sensação
físicos mento das oscilações cepíivo
ondas em por segundo
mm
mecânicos até 1,5 mil pele tátil
oscilações
sonoras acima de abaixo de ouvido in- auditiva
12 12-13 20 terno
20-20000
ultra-som abaixo de acima de
12 30000 — —
ondas elétri- até 0,1 30.1012 _ —
cas 0,1-0.004 8.10" pele calor
ondas lumino- 0.008-0.004 4.10" retina luz, cor
sas 0.004- 8.1014 olhos . —
8.1014-
ondas radio- 0.00001 5.10" — —■
lógícas 0.0000008- 4.10? 6.1010
0.0000005
Oscilações elétricas com onda de 0,lmm de comprimento e 30.10 14 de freqüência também não são
percebidas, embora a pele perceba como calor as mesmas oscilações com onda de 0.1 a 0.004mm de
comprimento e freqüência de 8.1014 oscilações por segundo. É sobretudo interessante o quadro que surge
em relação à percepção das ondas sonoras: a retina do olho humano percebe ondas sonoras de Ü.008-
Q.OÜ4mm de comprimento com freqüência de 4.10 14-S.10!4 oscilações por segundo, provocando
sensações ■ de luzv e cor. No entanto ela não percebe ondas luminosas de 0.004 a O.OOOOlmm de
comprimento e freqüência de 8.10l4-5.1015 oscilações por segundo; as ondas radiológicas também não têm
receptores especializados nem provocam sensação no homem. Uma análise atenta desses dados mostra
que os nossos aparelhos perceptivos se especializaram em distinguir apenas algumas influências e
continuam imunes a outras influências. Isto tem fundamento biológico. Se a retina percebesse influência
abaixo e acima do referido diapasão, o homem perceberia o calor do seu próprio corpo como sensação
visual e transformaria em sensações visuais as influências que para ele não têm importância biológica. O
mesmo se refere ao funcionamento dos analisadores auditivos: se o homem percebesse com o ouvido
oscilações ultra-sonoras, suas percepções auditivas seriam acrescidas de muitos ruídos excessivos que
dificultariam a distinção de excitações sonoras essenciais para ele. ■ É característico o
fato de que os animais têm outros limites de sensações: o morcego, por exemplo, ao voar na escuridão e
enfrentar obstáculos, o faz através do reflexo
de ondas ultra-sonoras, seu aparelho auditivo lhe serve de radar e ele percebe oscilações ultra-sonoras que
o homem não percebe.
Assim, na evolução dos organismos surgiram aparelhos especializados na percepção de diversos tipos de
movimento da matéria (diferentes "energias") e nós, em realidade, não possuímos "energias específicas
dos órgãos dos sentidos" mas órgãos específicos que refletem objetivamente diversos tipos de energia.
O fato de que, quando estímulos inadequados ao olho ou ao ouvido agem sobre esses órgãos, surge uma
sensação "específica" (visual ou auditiva), alude apenas à alta especialização desses dispositivos
perceptivos e à incapacidade de refletir as influências em cuja recepção eles não são especializados.
Como veremos adiante, a alta especialização de diversos órgãos receptores se baseia não só nas
peculiaridades da estrutura dos "receptores" periféricos (órgãos dos sentidos) mas também na
elevadíssima especialização dos neurônios que integram a composição dos aparelhos nervosos centrais,
aos quais chegam os sinais percebidos pelos órgãos periféricos dos sentidos. Este fato será novamente
focalizado quando abordamos os tipos especiais de sensações.
Teorias receptora e reflectora das sensações
Formou-se na Psicologia clássica a concepção segundo a qual um órgão dos sentidos (receptor) reage
passivamente às influências dos estímulos sendo essa reação passiva constituída pelas sensações
correspondentes. Chamava-se a essa concepção teoria receptora das sensações, segundo a qual a
sensação enquanto processo passivo se opunha ao movimento que era visto como processo ativo.
Hoje essa teoria é considerada inconsistente e refutada pela maioria dos estudiosos, que a ela opõem a
concepção da sensação como processo ativo. Essa concepção serve de base a outra teoria, denominada
teoria reflectora das sensações.
Ao examinar as sensações dos animais já observamos o fato de que estas não têm caráter passivo,
indiferente e que os animais distinguem ativamente entre as influências do mundo exterior somente
aquelas de grande importância biológica para eles. Já dissemos que a abelha reage a cores mistas de modo
bem mais ativo do que a cores puras; observamos que o esmerilhão reage aos cheiros de podre, ignorando
os cheiros de relva e grãos, ao passo que o pato revela peculiaridades opostas em suas reações; o gato
distingue ativamente o ruído do rato mas não reage aos sons do diapa-são que lhe são indiferentes. Este
fato indica o caráter ativo e seletivo das sensações.
Os fatos posteriores mostram que, em termos fisiológicos, a sensação não é absolutamente um processo
passivo mas sempre incorpora à sua composição componentes motores.
Assim, as observações realizadas pelo psicolólogo americano Neff, há mais de quarenta anos, deram
oportunidade para que nos convencêssemos de que, se observarmos pelo microscópio a parte da pele
irritada por uma agulha, poderemos ver que o momento do surgimento da sensação é acompanhado por
reações reflectoras motoras dessa área da pele. Posteriormente, foi estabelecido através de inúmeras
pesquisas que a composição de cada sensação é integrada por um movimento, às vezes em forma de
reação vegetativa (compressão dos vasos, reflexo cutâneo-galvânico), às vezes em forma de reações
musculares (virada de olhos, tensão dos nervos do pescoço, reações motoras do braço, etc).
Foi estabelecido que as sensações complexas, que exigem a distinção ou identificação de um objeto, são
possíveis sem movimentos ativos. Assim, para distinguir, de olhos fechados, um objeto, é necessário
apalpá-lo ativamente; até indícios como os aspecto plano ou rugoso de um objeto, suas dimensões,
etc, são percebidos apenas se a mão que os apalpa é ativa; as sensações que surgem do objeto da
superfície passiva da pele, são extremamente imperfeitas.
O mesmo foi estabelecido em relação à percepção visual. Setchenov já indicara que, para perceber
visualmente o objeto, é necessário que o olho o "apalpe". Ultimamente foi estabelecido que cada
percepção visual se realiza de fato com a participação ativa dos movimentos dos olhos, que às vezes têm
caráter de grandes "movimentos de apalpaçâo", tomando às vezes o aspecto de pequenos movimentos dos
olhos. Ainda abordaremos especialmente o fato de que a sensação auditiva ocorre com a participação
imediata dos componentes motores tanto no próprio aparelho auditivo como no aparelho oral a ela
relacionado. É sabido que para definir um som é necessário cantá-lo e só neste caso o som será
suficientemente preciso e separado dos sons semelhantes a ele.
Tudo isto mostra que as sensações não são absolutamente processos passivos, que elas têm caráter ativo
e a participação de componentes motores na sensação pode ser efetuada em nível variado, ocorrendo, às
vezes, como processo rejlector elementar (por exemplo, na redução dos vasos ou das tensões musculares
que surgem em resposta a cada excitação sentida), às vezes como um complicado processo de atividade
receptora intensa (por exemplo, durante a palpação ativa do objeto ou a contemplação de uma imagem
complexa).
A teoria reflectora das sensações consiste justamente em indicar o caráter ativo de todos esses processos.
Ainda veremos a grande importância dessa teoria tanto para a teoria dos processos cognitivos do homem
quanto para a análise das mudanças que ocorrem na sensação e na percepção durante os estados
patológicos do cérebro.
Classificação das sensações
Há muito tempo costuma-se distinguir cinco tipos básicos (modalidades) de sensações, distinguindo-se o
tato, o olfato, o paladar, a audição e a visão.
Para uma resposta suficientemente completa ao problema das modalidades principais de sensações,
devemos considerar que sua classificação pode ser feita pelo menos segundo dois princípios básicos: o
princípio sistemático e o genético, noutros termos, pelo princípio da modalidade, por um lado, e pelo
princípio da complexidade ou do nível de sua construção, por outro.
Classificação sistemática das sensações
Ao distinguirmos os grupos maiores e mais importantes de sensações, podemos dividi-las em três tipos
principais: sensações interoceptivas, proprioceptivas e extraceptivas. As primeiras reúnem os sinais que
nos chegam do meio interior do organismo e garantem a regulação das inclinações elementares; as
proprioceptivas garantem a informação sobre o corpo no espaço e a posição do aparelho de apoio e
movimento, assegurando a regulação dos nossos movimentos; as extraceptivas constituem o maior grupo
e asseguram a recepção de sinais do mundo exterior, criando a base do nosso comportamento consciente.
Examinemos separadamente os três tipos básicos de sensações.
As sensações interoceptivas, que produzem sinais acerca do estado dos processos internos do organismo,
fazem chegar ao cérebro as excitações procedentes das paredes do intestino e do estômago, do coração e
do sistema sangüíneo, bem como de outros órgãos viscerais. Esse grupo constitui o grupo mais antigo e
mais elementar de sensações. Os aparelhos receptores dessas sensações estão dispersos nas paredes dos
órgãos internos que acabamos de citar. Os impulsos que surgem passam pelos filamentos que integram
parcialmente a composição do sistema vegetativo, particularmente a composição das colunas laterais da
medula espinhal. O aparelho central, que recebe os impulsos interoceptivos, é constituído parcialmente
pelos núcleos das formações subcorticais (núcleo mediai do tálamo ótico), parcialmente pelos órgãos do
córtex antigo (límbico) do encéfalo. É a isto que se deve o fato de que as sensações interoceptivas estão
entre as formas menos conscientes e mais difusas e sempre conservam sua semelhança com os
estados emocionais,
O caráter elementar e difuso dessa modalidade de sensações manifesta-se no fato de que, na Psicologia,
não existe uma classificação precisa desses fenômenos. Situam-se entre as interoceptivas a sensação de
fome, a "sensação de desconforto", que pode surgir como sintoma inicial de doença dos órgãos internos,
"a sensação de tensão" que surge com frustração de uma necessidade qualquer e "a sensação de calma" ou
"conforto" que indica a satisfação das necessidades ou o desenvolvimento normal dos processos viscerais.
Vemos que, em todos esses casos, as sensações interoceptivas se manifestam como o ponto intermediário
entre as sensações autênticas e as emoções; apesar de a Psicologia ainda ter estudado de modo muito
insuficiente as manifestações subjetivas dessas sensações, incluindo-as no campo das "sensações
obscuras", o conhecimento destas é necessário tendo em vista que a sua mudança pode desempenhar
papel decisivo para a descrição do "quadro interior da doença" que surge nos estados patológicos dos
órgãos interiores e desempenha papel considerável no diagnóstico das doenças interiores (A. R. Luria).
Essas sensações não-conscientizadas podem manifestar-se muito cedo, podendo sua expressão assumir
formas originais: elas podem aparecer em forma de "pressentimentos" que o homem não pode formular,
podem manifestar-se nos sonhos que, às vezes, é como se anunciassem a doença que está em início (em
essência, elas apenas refletem mudanças que começaram cedo e foram pouco conscientizadas, ou seja,
mudanças das sensações interoceptivas, que surgem em fases iniciais da doença). Elas se manifestam na
mudança do estado de espírito e nas reações emocionais, provocando na criança freqüentes manifestações
singulares no comportamento. Sabe-se, por exemplo, que uma criança doente, que ainda não tem
consciência das mudanças interoceptivas, apresenta indícios de mudança geral de comportamento, ou
começa a acalentar e dar remédio a uma boneca "doente", refletindo deste modo mudanças em suas
próprias sensações interoceptivas.
A importância objetiva das sensações interoceptivas é muito grande: elas são fundamentais na regulação
da balança dos processos internos de metabolismo ou daquilo a que se chama homeostase dos processos
de troca no organismo.
Os sinais que surgem por via interoceptiva provocam um comportamento voltado para a satisfação de
inclinações ou para a eliminação dos estados de tensão ("stress") que podem manifestar-se em
decorrência de fatores que perturbam o funcionamento equilibrado dos órgãos internos. Por isto a
consideração das sensações interoceptivas desempenha papel decisivo na parte da medicina denominada
"psicossomática", que estuda a correlação dos processos somáticos e viscerais e dos estados psíquicos.
Os mecanismos fisiológicos, com a participação da interocepção, foram minuciosamente estudados por K.
M. Bi-kov e V. N. Tchernigovsky, que descreveram os mecanismos da atividade reflectora condicionada,
que surgem à base das sensações interoceptivas.
O segundo grande grupo é constituído pelas sensações proprioceptivas, que asseguram os sinais
referentes à posição do corpo no espaço e, em primeiro lugar, à posição do aparelho de apoio e
movimento no espaço. Elas representam a base aferente dos movimentos do homem e desempenham
papel decisivo na regulação destes.
Os receptores periféricos da sensibilidade proprioceptiva ou profunda encontram-se nos músculos e
superfícies articulatórias (tendões, ligamentos) e apresentam formas de corpos nervosos especiais (corpos
de Paccini). As excitações que surgem nesses corpos refletem as mudanças que ocorrem na distensão dos
músculos e na mudança da posição das articulações, passam pelos filamentos que compõem as colunas
posteriores da substância branca da medula espinhal. As excitações irrompem nas zonas inferiores dos
núcleos de Holl e Burdach e, passando para o lado oposto, avançam, atingindo os nós subcorticais (do
sistema talâmico-estriado) e terminando na região parietal do córtex do hemisfério, oposto
(particularmente na região pós-central) a Por isto o intervalo entre os condutores da sensibilidade
proprioceptiva ou profunda, em qualquer ponto desta via (afecção das colunas posteriores dos núcleos de
Holl e Burdach, das .vias condutoras ou do córtex da circunvolução pós-central), sem perturbar a
sensibilidade superficial (tátil), leva a perturbações da sensibilidade proprioceptiva ou profunda cujos
sintomas são perfeitamente conhecidos pelos neuropatologistas. A pessoa doente não é capaz de
determinar a posição do seu braço (ou perna) no espaço, sente às vezes indícios de mudança do "esquema
do corpo" (o tamanho dos membros. ou do corpo começa a lhe parecer incomum, às vezes imensamente
grande). É natural que em decorrência da perturbação ou queda da sensibilidade proprioceptiva (ou
profunda), ela comece a experimentar grandes dificuldades nos movimentos: os impulsos que costumam
partir dos receptores muscular-articula-tórios e constituem a base aferente dos movimentos, neste caso
são perturbados e os movimentos, privados do apoio sensorial, tornam-se incontroláveis.
Na fisiologia e psicofisiologia modernas, o papel da propriocepção como base aferente dos movimentos
nos animais foi detalhadamente estudado por A. A. Orbeli, P. K. Ano-khin; em relação ao homem, o
problema foi estudado por N. A. Bernstein.
Ainda voltaremos à análise do papel da sensibilidade proprioceptiva na construção dos movimentos
quando examinarmos, em caráter especial, a psicofisiologia dos processos motores.
O grupo de sensações, que indica a posição do corpo no espaço, tem entre seus componentes uma
modalidade especial de sensibilidade, denominada sensação de equilíbrio ou sensação estática. Os
receptores periféricos dessas sensações estão situados nos canais semicirculares do ouvido interno, que
estão distribuídos em três superfícies mutuamente perpendiculares: o líquido que enche esses canais muda
de posição dependendo da posição do corpo, particularmente da cabeça, excita células "capilares"
específicas que se misturam sob a influência do fluxo desse líquido (endolinfa) e, deste modo, anuncia as
mudanças da posição da cabeça no espaço. A excitação, que surge como resultado dessas estimulações, é
transmitida através dos filamentos que compõem o nervo auditivo como parte especial deste (o chamado
nervo vestibular) e se dirige às regiões têmpo-parietais do córtex cerebral e do aparelho do cerebelo.
Ao contrário dos aparelhos da sensibilidade sinestésica (profunda), os aparelhos da sensibilidade
vestibular estão estreitamente relacionados com a visão, que também participa do processo de orientação
no espaço. Por isto o constante vislumbramento de excitações visuais (por exemplo, quando se passa de
carro ao longo de uma floresta densa) pode provocar a sensação de perda do equilíbrio e enjôo. Sensação
análoga (acompanhada da mudança do esquema do corpo) pode ser provocada também durante um
vôo com rápidas mudanças da posição do corpo no espaço. As mesmas perturbações da sensação de
equilíbrio podem ser provocadas também por processos patológicos, (inchações, por exemplo) localizados
nas regiões têmporo-parietais do cérebro ou no cerebelo.
O -terceiro — e maior — grupo de sensações é constituído pelas sensações exteroceptivas. Estas fazem
chegar ao homem a informação procedente do mundo exterior e são o principal grupo de sensações que
colocam o homem em contato com o meio exterior. É justamente entre esse grupo que se situa o olfato, o
paladar, o tato, a visão e a audição.
Convencionou-se dividir todo o grupo de sensações exteroceptivas em dois subgrupos: as sensações de
contato e distância.
Entre as sensações de contato, situam-se aquelas nas quais a ação que provoca a sensação deve ser
aplicada imediatamente à superfície de um corpo e ao respectivo órgão perceptivo. O exemplo típico da
sensação de contato pode ser visto no tato e no paladar. É perfeitamente compreensível que os dois tipos
de sensação possam ser provocados por ações à distância.
Entre as sensações de distância, ao contrário, situam-se aquelas nas quais o estímulo provoca' sensações
que atuam sobre os órgãos dos sentidos a partir de certa, distância. A estas pertencem o olfato, e
especialmente a visão e a audição. O estímulo situado às vezes à grande distância do sujeito (por
exemplo, o som de uma campainha, a luz de uma lâmpada) pode provocar sensações mesmo que a fonte
destas esteja distante e as respectivas ações (por exemplo, ondas sonoras ou luminosas) devam percorrer
uma grande distância antes de que possam atuar sobre os respectivos órgãos dos sentidos.
A classificação de todos os tipos de sensações é representada no seguinte esquema:
Sensações interoceptivas
Sensações proprioceptivas
Sensações exteroceptivas — de contato
(paladar, tato)
de distância
(olfato, visão, audição)
Tipos de sensações exteroceptivas
Como se sabe, entre as sensações exteroceptivas situam-se as cinco "modalidades" acima referidas:
olfato, paladar, tato, audição e visão. Esta enumeração é correta mas não esgota os cinco tipos de
sensibilidade.
No entanto cabe acrescentar a essa relação duas categorias: as sensações intermediárias ou intermodais e
os tipos não específicos de sensação.
É fato notório que se o tato percebe sinais das influências mecânicas e a audição percebe sinais das ondas
sonoras com uma freqüência de vinte-trinta a vinte-trinta mil oscilações por segundo, o homem é capaz de
perceber oscilações de freqüência inferior à das ondas sonoras acima referidas. Entre essas oscilações
situam-se as vibrações cuja freqüência é calculada em aproximadamente 10-15 oscilações por segundo.
Essas vibrações não são percebidas pelo ouvido mas pelos ossos (do crânio ou dos membros), enquanto
que as sensações que percebem essas vibrações são denominadas sensibilidade vibrátil. O exemplo típico
dessa sensibilidade é a percepção dos sons pelos surdos. Sabe-se que os surdos podem perceber a música
mantendo a mão na coberta do instrumento de som, percebendo os sons, às vezes, até por meio de
vibrações do piso ou de um móvel. Deste modo, a sensibilidade vibrátil é um exemplo de sensação
intermodal, que ocupa posição intermediária entre a visão e o tato.
Outro exemplo de sensibilidade intermodal é a percepção de alguns cheiros agudos por sensações agudas
de sabor, bem como de sons ultrafortes ou luz ultraforte; todas essas ações provocam sensações mistas,
situadas entre as sensações táteis, auditivas ou visuais e as sensações de dor que se difundem a filamentos
sensoriais não específicos. Na neurologia esses componentes não específicos dessas modalidades de
sensibilidade são conhecidos como "trigeminais" do nervo trifacial cuja excitação é incorporada à
sensação básica em caso de irritações superfortes.
O segundo acréscimo à classificação comum das sensações exteroceptivas é a existência de uma forma
não específica de sensibilidade. Essa "sensibilidade não específica" pode ser constituída pela
fotossensibilidade da pele, que é a capacidade de percepção dos matizes de cor pela pele da mão ou das
pontas dos dedos. Os fenômenos da fotossensibilidade não específica foram descritos por A. N. Leontyev
e outros. Esse autor realizou um estudo preciso no qual a superfície da mão recebeu luz colorida (verde ou
vermelha), sendo que, neste caso, a temperatura dos raios luminosos foi igualada por um filtro de água.
Após várias centenas de combinações de determinado sinal colorido com o estímulo de dor, foi
demonstrado que, sob a condição de uma orientação ativa do sujeito, era possível ensiná-lo a distinguir os
raios luminosos pela pele da mão, embora essa distinção fosse dúbia e difusa.
A natureza da fotossensibilidade da pele continua obscura até hoje, embora se possa supor que ela esteja
relacionada com o fato de o sistema nervoso e a pele terem sido originados por um embrião de folha
(ectoderma) e na pele possam encontrar-se elementos fotossensíveis difusos e rudimentares que começam
a agir com êxito sob condições especiais (particularmente sob excitação elevada dos sistemas
subcorticais, palâmicos).
Existem formas de sensibilidade ainda não suficientemente estudadas às quais pertencem, por exemplo, o
"sentido de distância" (ou o "sexto sentido") dos cegos, que lhes permite perceber à distância o obstáculo
que surge à sua frente. Há fundamentos para supor que a base do "sexto sentido'' é a percepção das ondas
de calor pela pele do rosto ou o reflexo das ondas sonoras do obstáculo distante (essas ondas atuam à
semelhança do radar). No entanto essas formas de sensibilidade ainda não foram suficientemente
estudadas, sendo ainda difícil falar dos seus mecanismos fisiológicos.
Interação das sensações e o fenômeno da sinestesia
Alguns órgãos dos sentidos que acabamos de descrever nem sempre funcionam isoladamente. Eles podem
estar em interação, podendo essa interação assumir duas formas.
Por um lado, algumas sensações podem influenciar-se mutuamente, sendo que o funcionamento de um
órgão do sentido pode estimular ou reprimir o funcionamento de outro órgão do sentido. Por outro lado,
existem formas mais profundas de interação sob as quais os órgãos dos sentidos trabalham em conjunto,
condicionando uma nova modalidade materna de sensibilidade que em Psicologia recebeu a denominação
de Sinestesia.
Examinemos. separadamente cada uma dessas formas de interação. Os estudos efetuados pelos psicólogos
(particularmente o psicólogo soviético S. V. Kravkov) mostraram que o funcionamento de um órgão dos
sentidos não deixa de influir no processo de trabalho de outros órgãos dos sentidos. Verificou-se, por
exemplo, que a irritação sonora (um assobio, por exemplo) pode aguçar o trabalho da sensação visual,
aumentando-lhe a sensibilidade aos estímulos luminosos. Assim alguns cheiros também influem,
aumentando ou diminuindo a sensibilidade sonora e auditiva. Ao que parece, semelhante influência de
umas sensações sobre outras ocorre no nível das regiões superiores do tronco cerebral e no tálamo ótico ,
onde os filamentos que conduzem as excitações de diversos órgãos dos sentidos se aproximam, tornando
possível uma realização perfeita da transmissão das excitações de um sistema a outro. Os fenômenos do
estímulo mútuo e da inibição mútua do funcionamento dos órgãos dos sentidos constituem um grande
interesse prático em situações sob as quais surge a necessidade de estimular ou reprimir artificialmente a
sensibilidade desses órgãos (por exemplo, nas condições de vôo na hora do crepúsculo quando não há
direção automática).
Em Psicologia são bastante conhecidos os fatos da "audição colorida", que é acionada em muitas pessoas
e se manifestam com nitidez especial em alguns músicos (em Skryabin, por exemplo). Assim sendo, é
fato amplamente conhecido que os sons altos são considerados "claros" enquanto os sons baixos são
considerados "escuros". O mesmo ocorre com os cheiros, pois, como é sabido, uns são considerados
"claros" e outros, "escuros".
Esses fatos não são casuais ou subjetivos; são regidos por lei, o que foi demonstrado pelo psicólogo
alemão Horn-bosteí que sugeriu aos sujeitos uma série de cheiros e propôs compará-los a uma série de
tons e uma série de tonalidades de luz. Os resultados foram muito interessantes e demonstraram uma
grande permanência; o que foi mais importante porém é que os cheiros das substâncias cujas moléculas
continham um grande número de átomos de carbono foram comparados a tonalidades escuras enquanto
que os cheiros das substâncias cujas moléculas continham poucas moléculas de carbono foram
comparados a matizes de luz. Isto mostra que a sinestesia se baseia em propriedades objetivas (ainda não
suficientemente estudadas) dos agentes que atuam sobre o homem.
É característico que o fenômeno da sinestesia nem de longe se difunde em pessoas idênticas. Ele se
manifesta com nitidez especial nas pessoas de excitabilidade elevada das formações subcorticais.
Sabemos que ele predomina nos casos de histerismo, pode aumentar visivelmente no período de gravidez
e ser artificialmente provocado pelo uso de várias substâncias farmacológicas (a mescalina, por
exemplo).
Em alguns casos, os fenômenos da sinestesia se manifestam com absoluta nitidez. Um dos sujeitos com
manifestação muito acentuada de sinestesia, o conhecido mnêmico S., foi estudado minuciosamente na
Psicologia soviética (A. R. Luria). Esse homem percebia todas as vozes como sendo coloridas e dizia
freqüentemente que a voz da pessoa que a ele se dirigia era "amarela e dispersa". Os tons que ele ouvia
lhe provocavam sensações visuais de diversos matizes (de amarelo-claro a negro-prateado ou violeta). As
cores percebidas eram por ele sentidas como "sonoras" ou "surdas", como "salgadas" ou "estaladas".
Semelhantes fenômenos são encontrados em formas mais obliteradas com muita freqüência como
tendência direta a "pintar" os números, dias da semana, nomes dos meses em diferentes cores.
O fenômeno da sinestesia representa grande interesse para a psicopatologia, onde a sua análise pode
adquirir importância diagnostica.
As formas descritas de interação das sensações são as mais elementares e parecem ocorrer
predominantemente no nível do tronco superior e das formações subcorticais. No entanto existem formas
mais complexas de interação dos órgãos dos sentidos ou, segundo Pavlov, analisadores. Sabe-se que, às
vezes, quase não percebemos as irritações táteis, visuais e auditivas isoladamente: ao percebermos os
objetos do mundo exterior, nós os vemos com os olhos, sentimos pelo contato, às vezes lhes percebemos
o cheiro e o som, etc. É natural que isso exige a interação dos órgãos dos sentidos (ou analisadores) e é
determinado pelo trabalho sintético deles. Esse trabalho sintético dos órgãos dos sentidos ocorre com a
participação imediata do córtex cerebral e antes de tudo das zonas "terciárias" ou ("zonas de cobertura")
nas quais estão representados os neurônios pertencentes a várias modalidades. Essas "zonas de cobertura"
(a elas já nos referimos) são as que asseguram as formas mais complexas de funcionamento conjunto dos
analisadores, as quais servem de base à percepção dos objetos. Adiante faremos uma análise psicológica
das formas básicas de funcionamento desses analisadores.
Níveis de organização das sensações
A classificação das sensações não se limita à descrição de sensações isoladas de "modalidades" diversas.
Paralelamente à classificação sistemática das sensações, existe a classificação patético-estrutural, ou
melhor existe uma relação com diferentes níveis de organização e a discriminação das sensações que
surgem em diversas etapas da evolução e tem uma estrutura de complexidade variada.
Quando antes nos referimos às sensações interoceptivas, observamos o caráter primitivo e difuso que se
manifestava na sua semelhança com os estados emocionais e no fato de que é difícil distribuí-las em
categorias isoladas precisas.
Passando às sensações exteroceptivas, tivemos oportunidade de observar também a diferença de
complexidade destas. Assim as sensações olfativas e gustativas têm caráter bem mais subjetivo e
conservam uma relação bem maior com os estados emocionais (a sensação do agradável e do
desagradável) do que ás sensações visuais (particularmente as auditivas) que refletem os objetos do
mundo exterior, que podem ocorrer sem provocar obrigatoriamente problemas emocionais e têm caráter
bem mais objetivo e diferenciado, refletindo a forma, as dimensões e a disposição espacial dos objetos
que atuam sobre o homem. Por último as sensações táteis têm duplo caráter, englobando tanto
componentes primitivos, semelhantes aos problemas emocionais (por exemplo, a sensação do calor,
do frio, de dor) quanto componentes complexos (sensação das dimensões, da forma é da disposição dos
objetos que atuam sobre a pele).
Isto levou os estudiosos a discriminar duas formas ou dois níveis de sensação e, por sugestão do
neurologista inglês H. Head, falar de sensações primitivas — protopâticas e complexas — epicríticas.
Por sensações protopâticas (do grego protos —■ tenro e patos — emoção) costuma-se entender as
formas mais antigas de sensação que ainda não têm caráter objetivo diferenciado. Essas sensações são
separáveis dos estados emocionais e não refletem com a devida precisão os objetos concretos do mundo
exterior, têm caráter imediato, estão distante do pensamento é não podem ser divididas em categorias
precisas que se possam designar com certos termos genéricos. As sensações interoceptivas são o exemplo
mais nítido dessa sensibilidade protopática.
Por sensações epicríticas (do grego superior, superficial, suscetível de elaboração complexa) entendem-se
os tipos superiores de sensação que não têm caráter subjetivo, estão separados dos estados emocionais,
apresentam estrutura diferenciada, refletem as coisas objetivas do mundo exterior e estão bem mais
próximos dos complexos processos intelectuais. Esse tipo de sensação surgiu em etapas mais tardias da
evolução e tem como exemplo mais patente as sensações visuais.
A sensibilidade protopática e a epicrítica têm organização cerebral diversa. Seus aparelhos nervosos
centrais se localizam em diferentes níveis. Os aparelhos cerebrais da sensibilidade protopática estão
localizados no nível do tronco superior, do tálamo ótico e do córtex límbico antigo, ao passo que os
aparelhos da sensibilidade epicrítica são representados nas áreas respectivas do córtex visual, auditivo e
tátil com sua organização complexa e suas zonas de cobertura. Isto explica o fato de que as mudanças
patológicas da sensibilidade protopática (por exemplo, o alto tônus emocional das sensações, a estreita
ligação entre estas e as sensações de dor) surgem com a afecção do tálamo ótico e das paredes dos
ventrículos cerebrais, ao passo que a perturbação da sensibilidade epicrítica manifesta-se como resultado
de afecções locais das respectivas áreas do córtex cerebral.
Observações mostraram que no funcionamento de quase todos os órgãos dos sentidos há elementos da
sensibilidade tanto protopática como epicrítica, embora isso se verifique em correlações diferentes. Assim
sendo, nas sensações visuais os componentes protopáticos são representados pelo tono emocional das
cores "frias" e "mornas", enquanto os componentes epicríticos são representados pela percepção de
grupos de cores que podem ser designados pelos conceitos genéricos de "vermelho", "amarelo", "verde",
"azul", etc. Ocorrência análoga nas sensações auditivas, onde o tônus emocional do som pertence à
sensibilidade protopática e seu caráter concreto (o som de uma campainha, das badaladas do relógio, etc.)
se situa entre os componentes epicríticos.
Os componentes protopáticos e epicríticos se manifestam com nitidez especial nas sensações táteis. Os
componentes protopáticos se manifestam acima de tudo nas sensações de frio e calor, que sempre são
agradáveis ou desagradáveis, bem como nas sensações de dor quais os elementos das sensações quase não
podem ser separados das manifestações emocionais. Os componentes epicríticos atuam na precisa
localização de cada excitação, na discriminação de dois contatos simultâneos, na avaliação do sentido no
qual se produz a irritação da pele (por exemplo, na irritação da pele numa direção distante ou próxima) e,
por último, na complexa avaliação da forma dos riscos feitos na pele por via tátil. Os neuropatologistas
conhecem perfeitamente todos procedimentos especiais que permitem distinguir o estado da sensibilidade
protopática e epicrítica e os aplicam com êxito para revelar o nível em que se situa o foco patológico.
As sensibilidades protopáticas e epicríticas não estão apenas descritas mas também separadas
experimentalmente uma da outra.
O neuropatologista inglês Hed fez em si mesmo um teste clássico desta separação experimental das
sensibilidades protopática e epicrítica. Com fins experimentais, ele cortou em sua própria mão uma
ramificação de cada nervo sensível e observou o restabelecimento paulatino da sensibilidade que
começava na medida em que crescia o corte central do nervo seccionado em decorrência do seu corte
periférico. Esse experimento permitiu a Hed estabelecer certa ordem de restauração da sensibilidade.
Durante vários meses inexistiu inteiramente sensibilidade da pele na respectiva área da mão.
Em seguida surgiram sensações vagas dificilmente localizáveis, que apresentavam caráter emocional
expresso e se situava no limite entre as sensações táteis e as de dor: era o período em que a sensibilidade
protopática primitiva já começava a restabelecer-se e a complexa sensibilidade epicrítica era capaz de
localizar a irritação em determinado ponto da pele, de distinguir a direção dessa irritação e suas formas.
Nessa etapa mais tardia já se podia falar do restabelecimento de uma sensibilidade mais nova — a
epicrítica.
Os experimentos de Hed tiveram grande importância teórica e prática. Mostraram que a sensação engloba
mecanismos construídos em diversos níveis, deram fundamento para uma classificação genética das
sensações que permitiram estabelecer uma série de indícios da perturbação da sensibilidade, que são de
grande importância para o diagnóstico tópico das afecções cerebrais.
Medição das sensações. Estudos do limiar absoluto das sensações
Até agora nós nos detivemos na análise qualitativa de diferentes modalidades de sensação. No entanto
não é menos importante o estudo quantitativo, noutros termos, a medição das sensações.
É sabido que os órgãos das sensações humanas são aparelhos que funcionam com uma precisão
impressionante. O olho humano, por exemplo, pode distinguir um sinal luminoso de 1/1000 velas a um
quilômetro de distância. A energia dessa excitação é tão insignificante que seriam necessários 60 mil anos
para com ela aquecer um centímetro cúbico de água a 1°C. O ouvido humano é tão sutil que se o
duplicássemos poderíamos ouvir o movimento browniano das partículas. O nosso olfato e o paladar são
capazes de sentir o cheiro ou gosto de uma partícula de substância diluída um milhão de vezes.
Surge, porém, um problema: como medir a sutileza das sensações (ou dos limiares absolutos da
sensibilidade)? Que métodos podem ser aplicados para esse fim e em que unidades objetivas pode-se
expressar a sutileza das sensações?
Há dois métodos básicos de medição das sensações: o primeiro deles é o método direto (ou método de
avaliação subjetiva), o segundo, o método indireto (ou método objetivo de avaliação dos indícios da
existência da sensação).
O método direto (ou método das avaliações verbais das excitações) consiste no seguinte: propõe-se ao
sujeito um determinado estímulo (um contato de pele, um som, uma luz) que inicialmente tem uma
intensidade mínima que em seguida cresce paulatinamente. Propõe-se-lhe responder quando sentir a
primeira respectiva sensação.
Para medir a sensibilidade da pele, aplica-se um dispositivo especial denominado estesiômetro.
A sutileza da sensibilidade auditiva se mede por meio de um gerador de som ou audiômetro, que permite
definir sons de intensidade variada, ou por meio de um mecanismo mais simples no qual o som é
provocado pela queda de uma pequena esfera de diferentes alturas.
A sutileza da sensibilidade visual é medida por um instrumento que permite levar ao olho do sujeito,
situado em ambiente escuro, um raio de luz de intensidade variada, começando com um de intensidade
baixa ainda não percebida que aumenta paulatinamente.
A sutileza das sensibilidades paladar e olfativa é medida por meio de dispositivos especiais que permitem
anunciar ao sujeito crescentes excitações do paladar e do olfato, começando por dissoluções mínimas de
uma substância saborosa ou cheirosa com aumento paulatino da concentração dessas dissoluções.
Variantes simples desses instrumentos são amplamente empregadas na prática clínica.
O sujeito, com o qual se faz semelhante experimento, deve observar o momento em que ele começa a
perceber pela primeira vez o estímulo. A excitação mínima, inicialmente denominada sensação, que o
sujeito ressalta no seu relatório verbal, denomina-se limiar inferior da sensação. O limiar inferior das
sensações da sensibilidade tátil é expresso em bares (unidade de pressão), o limiar inferior da
sensibilidade auditiva se traduz em decibéis (unidades de intensidade acústica), o limiar inferior da
sensibilidade à luz mede-se em luxos (unidade de intensidade da'luz), etc. Quanto maior é a agudeza da
sensibilidade tanto menor é o seu limiar, em outros termos, a agudeza da sensibilidade é inversamente
proporcional aos índices do limiar inferior em unidades de intensidade do respectivo estímulo.
I E = -, ■■ P
sendo E a sensibilidade absoluta, P a grandeza do limiar inferior das sensações.
Os índices dos limiares inferiores das diversas sensações não constituem uma grandeza nitidamente
"delineada". Existe toda uma faixa de influências mínimas nas quais o sujeito ora percebe, ora não
percebe a presença do respectivo estímulo ou, por último, questiona que tenha havido tal estímulo. Por
isso adota-se como limiar inferior da sensação, habitualmente, uma grandeza na qual o número de
respostas positivas, que indicam que o sujeito teve a respectiva sensação, é superior a 50%. Este limiar é
denominado limiar inferior estatisticamente autêntico das sensações.
É característico que os limiares inferiores das sensações não continuam constantes, mudando na
dependência de vários fatores: da habituação aos estímulos, do fundo inicial e das condições
suplementares que podem elevar ou reduzir a sensibilidade.
Paralelamente aos limiares inferiores das sensações podemos discriminar os seus limiares superiores.
Entende-se por limiar superior a grandeza máxima do estímulo além de cujos limites o estímulo não é
percebido ou começa a assumir um novo colorido, sendo substituído pelo estímulo doloroso.
Já dissemos que o ouvido humano pode perceber oscilações sonoras num diapasão de 20 a 20000
oscilações por segundo, sendo que as baixas freqüências são percebidas como tons baixos e as altas como
tons altos. Se apresentarmos ao sujeito sons com freqüências acima de 20-30 mil oscilações por segundo
(hertz-Hz), i.e., ultra-sons, ele não os perceberá. Assim, os sons situados além dos limites dos limiares
superiores deixam de suscitar sensações.
Por sua intensidade, os sons provocam sensações auditivas apenas em certos limites. Sons de intensidade
inferior a 1 decibel podem não ser percebidos e constituem o limiar inferior das sensações, ao passo que
os sons de intensidade superior a 130 decibéis começam a suscitar sensações dolorosas e constituem o
limiar superior das sensações auditivas.
A mensuração dos limiares superiores e inferiores das sensações são de grande importância prática: ela
permite distinguir as pessoas de sensibilidade reduzida de um ou outro analisador, enquanto o sintoma de
redução da sensibilidade pode ser empregado para os diagnósticos da afecção (periférica ou central).
Assim, a perturbação da sensibilidade tátil pode ser sintoma de afecção situada na circunvolução central
posterior do hemisfério oposto ou numa das etapas de suas vias condutoras. A redução da sensibilidade
visual pode sugerir a afecção da retina, das áreas centrais da via auditiva ou da região occipital (a redução
da agudeza da visão, vinculada a ocorrências de estagnação no fundo do olho, é freqüentemente um
sintoma de aumento da pressão craniana interna, que surge nos casos de tumor no cérebro). A redução da
sensibilidade auditiva em um ouvido pode indicar afecção do receptor auditivo periférico (ouvido interno)
ou um foco patológico na área temporal do hemisfério oposto. Neste caso é essencial o fato (descoberto
por G. V. Gershu-nil, A. V. Baru e T. A. Karaseva) de que, nos casos de afecção do lobo temporal, cai
acentuadamente no doente a sensibilidade aos sons breves (cuja duração é de 1 a 5 milissegundos), ou
seja, aumentam os limiares da percepção desses estímulos. A importância deste fato consiste em que ele
é, amiúde, o único sintoma a indicar a afecção da região temporal do cérebro.
Não é menos importante a medição dos limiares superiores das sensações.
Um exemplo do valor prático dessas medições é o estabelecimento de limiares superiores das sensações
auditivas nas pessoas de audição difícil.
É sabido que essas pessoas não percebem sons fracos. Poderia parecer que para a superação desse defeito
seria bastante aumentar a intensidade dos sons através de mecanismos de intensificação. No entanto, a
intensificação desmedida dos sons que chegam aos duros de ouvido logo começa a provocar sensações de
dor, pois a "zona de conforto" (isto é, o diapasão em cujos limites os sons começam a provocar sensações
auditivas plenas) é neles muito restrita. Por isto a medição precisa dos limiares inferiores e superiores das
sensações auditivas permite indicar os limites nos quais se devem intensificar os sons para que estes
conservem o efeito
necessário. É fácil perceber a grande importância que isto tem para a construção de aparelhos de
intensificação do som.
Até agora analisamos fatos obtidos com a mudança das sensações mediante a aplicação do primeiro dos
referidos métodos, ou seja, o método da avaliação subjetiva das sensações (ou método do relatório verbal
do surgimento ou desaparecimento das sensações). Existe, entretanto, uma segunda via de medição das
sensações, através da aplicação de métodos objetivos ou indiretos, noutros termos, mediante a avaliação
dos indícios objetivos do surgimento das sensações.
Essa via é o resultado de pesquisas realizadas nos últimos decênios em Vários laboratórios
psicofisiológicos e foi elaborada de maneira especialmente minuciosa pelos psicólogos soviéticos G. V.
Guershuni, E. N. Sokolov, O. S. Vino-gradova e outros.
Como já indicamos, as sensações não constituem um processo passivo, são sempre acompanhadas de uma
série de mudanças dos processos vegetativos, eletrofisiológicos e respiratórios e são reflectores por
natureza. É este fato que permite usar as mudanças reflectoras que acompanham as sensações como
indicador objetivo da manifestação destas.
É sabido que cada estímulo, que leva ao surgimento das sensações, provoca processos que surgem por via
reflectora como o estreitamento dos vasos, o surgimento do reflexo pele-galvânico (mudança da
capacidade de resistência elétrica da pele), mudança das freqüências da atividade elétrica do cérebro
(antes de tudo o surgimento da depressão do alfa-ritmo, a virada do olho em direção ao estímulo, a tensão
dos músculos do pescoço, etc.)
Todos esses sintomas objetivos surgem quando o estímulo chega ao sujeito e provoca sensações. São eles
que podem ser usados como indicador objetivo do surgimento das sensações.
Os testes realizados por pesquisadores mostraram que se propusermos ao sujeito um estímulo muito
fraco, este não provoca nenhuma sensação e não se verificam as mudanças reflectoras descritas. Se a
intensidade do estímulo aumenta, ultrapassa os limites do limiar inferior e começa a provocar sensações,
surgem mudanças objetivas nas reações vasculares eletrofisiológicas e musculares. É justamente por isto
que o surgimento das mudanças descritas pode servir de indicador objetivo dos limiares interiores da
sensação.
É digno de atenção o fato de que quanto mais intensivo é o estímulo tanto mais forte é a reação vascular
e eletro-fisiológica que ele provoca. Isto dá fundamentos para empregar esses procedimentos com o fim
de medir objetivamente a intensidade das sensações, o que foi muito difícil quando se aplicaram apenas
os métodos subjetivos.
Cabe observar que as reações vasculares ou as eletro-fisiológicas a estímulos mal distinguíveis ("pré-
liminares") podem ser expressas de modo bem mais acentuado do que aos estímulos comuns-bem
perceptíveis. Este fato reflete objetivamente as dúvidas que o sujeito experimenta quando se lhe propõem
excitações dificilmente perceptíveis è o fundo emocional em que ocorrem as tentativas de distinguk
nitidamente o estímulo dos sons neutros. Por isto a intensificação das reações objetivas às excitações pré-
liminares (mal perceptíveis) pode ser utilizada como importante indicador complementar do diapasão
pré-liminar das sensações.
É fácil notar que os métodos objetivos de medição das sensações aqui descritos são de importância
especialmente sérias nos casos em que, por motivos desconhecidos, é impossível a obtenção de dados
mediante enquête direta aos sujeitos (entre crianças pequenas, alguns doentes mentais ou sob estímulo
intencional).
No entanto surge uma pergunta natural: qual é a relação entre os dados obtidos por questionário direto e
os dados obtidos pelo estudo de indicadores fisiológicos objetivos? Da resposta a essa pergunta depende a
resposta a outra: seremos capazes de empregar com a suficiente fidedignidade índices objetivos como
sintomas seguros do surgimento de sensações subjetivas?
Pesquisas realizadas pelo psicólogo soviético J. V. Guer-shuni mostraram que é norma os indicadores
objetivos dos limiares das sensações corresponderem com precisão aos limiares subjetivos, noutros
termos, as mudanças descritas das reações pele-galvânicas e eletroencefalográficas manifestam-se
justamente quando, no sujeito, as sensações subjetivas surgem pela primeira vez. As divergências entre os
indicadores subjetivos e objetivos surgem apenas em alguns casos especiais, por exemplo, nos estados
inibitórios do córtex. Isto ocorre, por exemplo, nos casos da chamada queda pós-contusão da audição ou
surdez pós-contusão, que começa como resultado do golpe de uma onda de ar.
Entre os sujeitos desse grupo, cujo córtex auditivo encontra-se em estado de inibição patológica, a
apresentação de estímulos sonoros não provoca quaisquer sensações subjetivas, embora leve ao
surgimento das mudanças fisiológicas objetivas das reações pele-galvânicas e eletroencefalo-gráficas.
Entre esses sujeitos, a apresentação do som (que o doente não registra) provoca um nítido reflexo cócleo-
pupilar (compressão da pupila em resposta à excitação sonora). Essa divergência entre as reações
objetivas e subjetivas às excitações auditivas permitiu a Guershuni lançar a tese segundo a qual o homem
tem um diapasão subsensorial especial, que indica as reações fisiológicas não-conscientizáveis e
estímulos não sensíveis. À medida da evolução inversa da doença, os limiares das sensações subjetivas se
restringem paulatinamente e no fim das contas começam a coincidir.
As pesquisas do diapasão subsensorial, realizadas por Guershuni, são de grande importância teórica e
prática para o diagnóstico de algumas formas do estado inibitório do córtex.
Estudo da sensibilidade relativa (diferencial)
Até agora nós nos detivemos na mudança da sensibilidade absoluta dos nossos órgãos dos sentidos: dos
limiares superiores e inferiores das sensações. Existe, não obstante, a sensibilidade relativa (diferencial),
que também pode ser medida embora a medição apresente grandes dificuldades.
Se nos encontrarmos num quarto escuro, iluminado por uma vela acesa, o acréscimo de outra vela
idêntica será facilmente percebido; neste caso a iluminação se duplicará e a diferença de claridade será
facilmente percebida. O contrário ocorre se estivermos numa sala muito iluminada, com muitas lâmpadas
acesas; neste caso não perceberemos não só o acréscimo de outra vela como até mesmo de uma lâmpada
de 100 velas (neste caso a iluminação aumentará de 1/1000 e sua mudança permanecerá imperceptível).
O mesmo podemos dizer a respeito da audição: no silêncio absoluto distinguimos perfeitamente um som
mínimo; num lugar barulhento, esse mesmo som será imperceptível.
Isto significa que a sensibilidade relativa (ou diferencial) pode expressar-se em medidas diferentes das
que se empregam na sensibilidade absoluta. Se a sensibilidade absoluta se expressa na intensidade de
uma excitação mínima que gera a primeira sensação, a sensibilidade relativa se manifesta no acréscimo
relativo ao fundo inicial, acréscimo esse que é suficiente para que o sujeito perceba a sua mudança.
É essencial que essa sensibilidade relativa, que pela primeira vez se torna distinguível, se manifeste em
números variados para os diversos órgãos dos sentidos: para as sensações visuais é bastante acrescentar
1/100 da iluminação anterior para que a mudança desta seja perceptível; para o ouvido esse acréscimo
relativo deve superar em 1/10 o fundo sonoro inicial; para o tato é bastante aumentar em 1/30 a força do
contato inicial.
Os pesquisadores tentaram traduzir essa lei numa fórmula matemática única; esta foi encontrada pelos'
pesquisa-* dores (os psicofisiologistas alemães Weber e Fechner) e foi expressa na fórmula:

E=P (1)
Ap
onde E é o índice de sensibilidade variável, P é o fundo inicial e Ap é a magnitude da adição a essa
sensibilidade inicial, magnitude que é suficiente para que se manifeste a sensação de mudança. É
característico que a magnitude desse acréscimo (Ap) varia para diferentes modalidades que se expressam
na fórmula:
Ap
------ = K (2)
P
A possibilidade de medição da sensibilidade relativa é considerada pelos psicólogos como uma grande
conquista da ciência, pois verificou-se que emoções que pareceriam muito subjetivas como o surgimento
de diferenças no fundo inicial das sensações, são acessíveis à análise quantitativa. Foi por isto que o
psicofisiologista Fechner supôs que só esse aumento muito pouco perceptível da excitação (ou o limiar
diferencial da sensação) deve ser considerado uma unidade de sensação. Nas suas pesquisas posteriores
ele chegou à conclusão de que esse limiar relativo (diferencial) pode ser traduzido em fórmula
matemática segundo a qual a magnitude da sensação é proporcional ao logaritmo da intensidade da
excitação ativa. Essa fórmula, que foi denominada lei de Fechner, foi uma das primeiras leis exatas
formuladas na Ciência Psicológica.
A regra de Weber-Fechner (as fórmulas 1 e 2) é adequada apenas numa zona média (embora bastante
ampla) de excitações. Nos casos em que a intensidade do estímulo é muito baixa (e se aproxima do
limiar) ou muito alta, a sensibilidade relativa é bem mais aproximada. Este fato sugere uma certa
condicionalidade biológica dos limiares relativos e exige ainda explicação complementar.
Variação da sensibilidade (adaptação e sensibilização)
Seria errôneo pensar que tanto a sensibilidade relativa como a absoluta dos nossos órgãos dos sentidos
continuam invariáveis e seus limiares se manifestam em números permanentes.
Como mostraram as pesquisas, a sensibilidade dos nossos órgãos dos sentidos pode variar em limites
muito grandes. Essa variação da sensibilidade depende tanto das condições do meio exterior como de uma
série de condições interiores (fisiológicas e psicofisiológicas)," de influências químicas das orientações
do sujeito, etc.
Distinguem-se duas formas básicas de mudança da sensibilidade, entre as quais uma depende das
condições do meio e é chamada adaptação, e a outra das condições do estado do organismo e é
denominada sensibilização.
Examinemos separadamente cada forma de mudança da sensibilidade.
Adaptação. Sabe-se que na escuridão a nossa visão se aguça e sua sensibilidade diminui sob iluminação
forte. Isto nós percebemos quando passamos de um quarto escuro para um claro ou de um ambiente muito
iluminado para um escuro. No primeiro caso, os nossos olhos começam a sentir uma dor lancinante,
ficámos "cegos" por um instante e é necessário algum tempo para que os olhos se adaptem à claridade
intensa. No segundo caso, observa-se um fenômeno inverso. Quando passamos de um ambiente
intensamente iluminado ou de um recinto aberto com luz solar para um recinto escuro, inicialmente não
enxergamos nada e precisamos de uns 20-30 minutos para nos orientarmos bem na escuridão.
Isto mostra que, dependendo da situação ambiente (da iluminação), a sensibilidade visual do homem
muda bruscamente. Como mostraram as pesquisas, essa mudança é muito grande e a sensibilidade dos
olhos se aguça em 200 mil vezes quando ele passa da iluminação intensa para o escuro!
A fisiologia conhece bem os mecanismos que servem de base a essa grande mudança da sensibilidade. No
funcionamento dos olhos há vários mecanismos específicos dessa natureza. Alguns destes, ao
distinguirem a claridade, fazem mudar a faixa de luz da pupila (a pupila se expande na escuridão e se
restringe na claridade, podendo mudar sua faixa de luz em 17 vezes), regulando, desse modo, o fluxo
global de luz. Outro mecanismo consiste em que, na retina, ocorre um deslocamento do pigmento, que é
uma espécie de obstáculo protetor contra a penetração excessiva de raios luminosos na camada sensível.
É de igual importância para o aumento da sensibilidade da retina na escuridão o processo de
restabelecimento da púrpura visual, essa importantíssima substância fotossensível, que faz parte na
composição das células sensíveis à luz. Como mostraram estudos especiais (P. G. Snyakh), a retina do
olho possui ainda um mecanismo especial de "mobilização" de um número máximo de elementos
fotossensíveis ativos na escuridão e de "desmobilização" ou inclusão de um número considerável de
elementos fotossensíveis na claridade; por este motivo, varia a sensibilidade da retina em horas diferentes
do dia e da noite e inclusive em períodos diferentes do ano. Por último, ocorrem na retina importantes
reorganizações funcionais que consistem em que, sob as condições de claridade (de dia) entram em ação
aparelhos fotossensíveis menos sensíveis — "pequenas ma-trazes" — que, não obstante, são capazes de
distinguir as cores. Continuam ativos outros aparelhos da retina — os bacilos, que possuem maior
sensibilidade mas não podem discriminar as tonalidades das cores; é exatamente a isto que se deve o fato
de o homem deixar de distinguir as cores no crepúsculo, embora sua visão se aguce.
Paralelamente aos mecanismos periféricos de mudança da sensibilidade aqui descritos, existem
mecanismos ceriT trais que permitem regular a agudez da sensibilidade dependendo das condições
ambientais. Situam-se entre eles os mecanismos que mudam o tônus do córtex sob a influência dos
impulsos que a estes chegam através dos filamentos da formação reticular.
As referidas mudanças da sensibilidade, que dependem das condições do meio e são chamadas de
adaptação dos órgãos dos sentidos às condições ambientes, existem também no campo do olfato, do tato e
do paladar (mudança da sensibilidade auditiva em condições de silêncio e ruído).
A mudança da sensibilidade, que ocorre segundo o tipo de adaptação, não é imediata, requer certo tempo
e muda suas características temporais.
O importante é que essas características temporais são diferentes para os diversos órgãos dos sentidos.
Sabemos perfeitamente que para a visão adquirir a necessária sensibilidade no recinto escuro, deve
passar-se cerca de 30 minutos e só após isto o homem adquire a capacidade de orientar-se bem na
escuridão. O processo de adaptação dos órgãos auditivos é bem mais rápido. O ouvido do homem se
adapta ao fundo ambiente em 15 segundos. Com essa mesma rapidez, ocorre a mudança da sensibilidade
no tato (um contato fraco com a pele deixa de ser percebido em alguns segundos).
São bem conhecidos os fenômenos de adaptação ao calor (adaptação à mudança de temperatura); esses
fenômenos, entretanto, se manifestam com nitidez apenas numa faixa média, quase não ocorrendo
adaptação ao frio intenso ou ao calor forte assim como às excitações de dor. São conhecidos também os
fenômenos de adaptação aos cheiros. Nestes casos, a mudança da sensibilidade ocorre lentamente: o
cheiro de cânfora deixa de ser sensível em 1-2 minutos. É característico que a adaptação aos cheiros
intensos que provocam excitações de dor (ou incluem o componente trigeminal) não ocorre de modo
algum.
A adaptação é um dos tipos mais importantes da sensibilidade, que sugere uma grande plasticidade do
organismo em seu processo de adaptação às condições do meio.
Sensibilização. O processo de sensibilização difere do processo de adaptação em dois sentidos. Por um
lado, se no processo de adaptação a sensibilidade muda em ambos os sentidos, aumentando e reduzindo a
sua agudez, já no processo de sensibilização muda apenas no sentido do aumento da agudez. Por outro
lado, se no processo de adaptação as mudanças de sensibilidade dependem das condições do meio
ambiente, no processo de sensibilização elas dependem predominantemente da mudança do próprio
organismo — de condições fisiológicas ou psicológicas.
Distinguem-se dois aspectos básicos do aumento da sensibilidade conforme o tipo de sensibilização: um
desses aspectos tem caráter longo e permanente e depende predominantemente de mudanças estáveis que
ocorrem no organismo; o segundo tem caráter provisório e depende de influências extraordinárias sobre o
estado do sujeito — de influências fisiológicas ou psicológicas.
Entre o primeiro grupo de condições que mudam a sensibilidade situam-se a idade, as condições
tipológicas, os deslocamentos endócrinos e o estado geral do sujeito relacionado com a estafa.
A idade do sujeito está nitidamente relacionada com a mudança da sensibilidade. As pesquisas mostraram
que a sutileza da sensibilidade dos órgãos dos sentidos aumenta com a idade, atingindo o seu ponto
máximo na faixa de 20-30 anos para, posteriormente, decair em termos graduais. Esse processo reflete o
dinamismo geral do funcionamento do sistema nervoso do organismo.
As peculiaridades substanciais do funcionamento dos órgãos dos sentidos dependem do tipo de sistema
nervoso do sujeito. É sabido que pessoas dotadas de um forte sistema nervoso apresentam grande
resistência e estabilidade, ao passo que as pessoas dotadas de um sistema nervoso fraco são-dotadas de
menor resistência e maior sensibilidade (B. M. Teplov).
É de grande importância para a sensibilidade a balança endócrina do organismo. É sabido que durante a
gravidez a capacidade olfativa pode aguçar-se acentuadamente, ao passo que a agudez da sensibilidade
visual e auditiva decresce.
Devemos, evidentemente, mencionar os fenômenos essenciais do aguçamento da sensibilidade, que se
verificam durante alguns distúrbios endócrinos, como, por exemplo, na hiperfunção da tireoide.
Mudanças importantes da sensibilidade podem ocorrer, por último, em estado de estafa. A estafa, que
provoca estados inibitórios (fásicos) do córtex, pode provocar inicialmente o agravamento da
sensibilidade para, em seguida,
com a evolução desse agravamento passar à redução da sensibilidade.
É necessário indicar ainda que as mudanças longas e estacionárias da sensibilidade podem começar
durante o estado astênico do sistema nervoso conhecido como "debilidade excitadora", por um lado, e das
manifestações clássicas de histerismo, por outro.
Dessas mudanças estacionárias da sensibilidade dependem as formas de mudança (de agravamento) da
sensibilidade, provocadas por fatores extraordinários e que, via de regra, apresentam caráter
relativamente breve.
Entre os fatores que provocam a sensibilidade extra situam-se antes de tudo as influências
farmacológicas. É sabido que existem substâncias que provocam o aguçamento da
sensibilidade. Entre tais fatores situa-se, por exemplo, a adrenalina, cuja ingestão provoca excitação do
sistema nervoso vegetativo e através da formação reticular pode suscitar um nítido aguçamento da
sensibilidade. Ação análoga, que aguça a sensibilidade dos receptores, pode ser provocada por
substâncias como fenalina (bengidrina) e várias outras substâncias. Ao contrário, as substâncias cuja
ingestão leva a uma nítida queda da sensibilidade; entre estas situa-se a pilocarpina. ,
Nos últimos decênios, a aplicação de meios farmacológicos como vias de regulação do funcionamento do
sistema nervoso, particularmente de mudança da sensibilidade, acumulou grande experiência e hoje
podemos mencionar vários preparados que exercem grande influência sobre a regulação do
funcionamento dos órgãos dos sentidos.
A ação farmacológica não é o único meio de provocar a sensibilização extra das sensações. O segundo
meio é a interação das sensações. Já lembramos que a ação sobre o órgão da percepção pode provocar
aumento da sensibilidade de outro órgão. Assim, o acadêmico P. P. Lazarev mostrou que, se num
auditório ecoa um som demorado, a inclusão da luz faz com que a produção do tom comece a parecer
mais intensiva.
Ao contrário, a ação de um ruído forte pode provocar a redução da sensibilidade à luz. Estímulos bastante
fracos de analisador idêntico podem possuir capacidade sensibilizadora para mudar a sensibilidade.
Assim, se a iluminação da periferia da retina por luz fraca pode aumentar a sensibilidade de outras áreas
da retina, a iluminação de um olho aumenta a sensibilidade do outro olho. Por último, foi demonstrado
numa série de experimentos que a excitação sonora e, às vezes, a excitação da pele podem provocar
aumento da sensibilidade visual.
Todos esses experimentos não só mostram a estreita interação de formas particulares de sensação como
também abrem caminho para um aumento mais complexo da sensibilidade por reflexo condicionado. O
famoso fisiologista soviético A. O. Dolin mostrou numa série de experimentos essa possibilidade,
Verjficou-se que se dermos inicialmente ao sujeito um som metronômico, este não exerce grande
influência sobre a mudança da sensibilidade à luz; mas se combinarmos este som com a luz dos olhos
várias vezes seguidas, dentro de certo tempo a simples aplicação do som provocará uma queda da
sensibilidade.
É digno de nota que semelhantes mudanças da sensibilidade podem ser provocadas se usarmos uma
palavra qualquer como estímulo condicionado. Esse efeito é sobretudo nítido quando, antes de testar a
sensibilidade do olho, pronuncia-se uma palavra que tivera sentido de luz no teste anterior do sujeito.
Dolin mostrou em seus experimentos que mudança idêntica da sensibilidade ocorria quando ante a
medição da sensibilidade o sujeito pronunciava a palavra "drama", não ocorrendo esse efeito quando o
sujeito pronunciava uma palavra de som aproximado mas de significado diferente como, por exemplo, a
palavra "trama".
Todos esses experimentos mostram como são grandes as possibilidades através das quais podemos
provocar mudança da sensibilidade, aplicando procedimentos fisiológicos (inclusive o reflexo
condicionado).
Mudanças consideráveis da sensibilidade podem ser provocadas por via psicológica, mudando-se os
interesses ou os "objetivos do sujeito".
Já sabemos que o animal é especialmente sensível a ações substanciais de importância biológica. O
mesmo fenômeno podemos verificar no homem se, sem mudar as particularidades físicas dos estímulos
que atuam sobre ele, nós lhe mudarmos o significado através da instrução verbal.
Podemos citar apenas alguns exemplos de como a mudança do significado do estímulo pode aumentar
substancialmente a sensibilidade (ou reduzir os limiares absolutos da percepção da excitação).
Podem servir de exemplo ilustrativo os testes de laboratório do conhecido psicofisiologista soviético G.
V. Guer-shuni. Nesses testes propuseram-se ao sujeito dois quadrados iluminados entre os quais havia um
ponto luminoso fraco (imperceptível). Em condições habituais o sujeito não percebia esse ponto. O ponto
luminoso fraco começava ser percebido pelo sujeito quando era reforçado por um estímulo de dor,
enquanto a outra combinação dos dois quadrados iluminados entre os quais não havia esse ponto
luminoso, não era reforçada por nenhum estímulo e, conseqüentemente, as excitações luminosas
subliminares pela intensidade se tornavam o único indício pelo qual era possível distinguir a combinação
acompanhada da dor da combinação indiferente. É fácil perceber que esse experimento mostra de maneira
patente a possibilidade de aguçar a sensibilidade dando-se à excitação subliminar fraca o valor de sinal.
Elevação análoga da sensibilidade pode ser obtida, entretanto, por meio de uma simples instrução verbal,
na qual se dá o valor de "sinal" ao indício fracamente distinguido. Neste sentido os psicólogos soviéticos
A. V. Zaporojets e T. V. Endovitskaya fizeram um experimento interessante com crianças de idade pré-
escolar e estudaram a maneira pela qual a atribuição de significado a um certo estímulo aumenta a agudez
da percepção visual. Foram tomados como métodos de avaliação da agudeza da percepção visual círculos
não fechados, nos quais a ruptura se encontra ora em cima, ■ora embaixo (os chamados círculos de
Lamdoldt, aplicados pelos oculistas). Num experimento propõe-se às crianças avaliar a posição da ruptura
apertando um botão se a ruptura estiver situada embaixo, apertando outro botão se a ruptura estiver na
parte superior. Noutro experimento a avaliação da posição da ruptura era incluída num jogo: colocava-se
o círculo de Lamdoldt sobre portões dos quais saía um automóvel de brinquedo quando a avaliação da
posição da ruptura era correta. O experimento mostrou que, se a ins-trução verbal que dava à posição
da ruptura o valor de sinal ainda não influenciava a agudeza da sensibilidade visual das crianças
pequenas, ela exercia influência substancial nas crianças em idade igual e superior a 5-6 anos. As crianças
que, sob as condições do teste indiferente distinguiam a posição da ruptura do círculos de Lamdoldt
apenas a uma distância de 200-300cm, captavam a posição dessa ruptura a uma distância de 310-320 cm
quando se dava a essa posição valor de sinal correspondente.
Esses experimentos, que mostram o quanto a atribuição de valor de sinal ao estímulo pode aguçar a
sensibilidade, são de grande importância psicológica, constituindo um exemplo da extraordinária
plasticidade que existe no funcionamento dos órgãos dos nossos sentidos e varia dependendo da
importância do estímulo.
O aumento da sutileza da sensibilidade sob a influência do significado do indício perceptível pode ocorrer
tanto na sensibilidade absoluta quanto na relativa. Sabe-se que a discriminação dos matizes da cor, das
mudanças significantes do tom ou das mínimas variações gustativas pode tornar-se acentuadamente aguda
como resultado de atividade profissional. Foi estabelecido que os pintores podem distinguir de 50 a 60
matizes do negro; os fundidores de aço distinguem os matizes mais sutis do fluxo incandescente de metal,
que indicam mudanças mínimas de impurezas estranhas, cuja distinção é inacessível a observador de fora.
É sabido que sutileza pode atingir a discriminação de nuances gustativas entre os degustadores, que são
capazes de determinar a marca do vinho ou do tabaco pelos mínimos matizes da degustação, chegando às
vezes até a dizer de que lado do desfiladeiro foi cultivada a uva usada para o preparo de um determinado
vinho. Por último, sabe-se a que sutileza pode chegar a capacidade dos músicos para distinguir os sons;
eles se tornam capazes de captar variações de tons absolutamente imperceptíveis para o ouvinte comum.
Todos esses fatos demonstram que, sob as condições do desenvolvimento de formas complexas de
atividade consciente, a agudeza da sensibilidade absoluta e da diferencial pode mudar substancialmente, e
que a inclusão desse ou daquele indício na atividade consciente do homem pode, em limites
consideráveis, mudar a agudeza dessa sensibilidade.

II
Percepção
A atividade perceptiva do homem. Características gerais
ATÉ AGORA examinamos as formas mais elementares de reflexo da realidade, os processos através dos
quais o homem reflete indícios particulares do mundo exterior ou os sinais que indicam o estado do seu
organismo.
Vimos que esses processos, que são as fontes básicas da informação que o homem recebe dos meios
exterior e interior, são executados por órgãos dos sentidos pertencentes a modalidades distintas; esses
órgãos receptores pertencem aos grupos dos intero, próprio e extero-receptores, dividindo-se o último
grupo, por sua vez, em dois subgrupos de receptores de contato (tato, paladar) e receptores de distância
(olfato, visão e audição). Vimos ainda que os processos de percepção dos indícios do mundo exterior e do
meio interno podem distribuir-se em níveis variados e apresentar complexidade diversa. À forma
protopática estruturalmente mais elementar de sensibilidade pertencem antes de tudo o olfato e o paladar,
bem como as formas mais simples de sensibilidade tátil; à forma de sensibilidade epicrítica
estruturalmente mais complexa pertencem a visão, a audição e os tipos mais complexos de atividade tátil.
Vimos, por último, que os processos de reflexo de indícios particulares que atuam sobre o homem a partir
do meio exterior ou interior ou os processos das sensações podem ser objetivamente medidos; tomamos
conhecimento dos meios de medição da sensibilidade absoluta e relativa e dos fenômenos da variação
dessa sensibilidade.
Nada do que falamos no capítulo anterior foi além dos limites do estudo das formas mais elementares de
reflexo ou dos limites do estudo de elementos particulares de reflexo do mundo exterior ou interior. Mas
os processos reais de reflexos do mundo exterior vão muito além dos limites das formas mais
elementares. O homem não vive em um mundo de pontos luminosos ou coloridos isolados, de sons ou
contatos, mas em um mundo de coisas, objetos e formas, em um mundo de situações complexas;
independentemente de ele perceber as coisa&^ue o cercam em casa, na rua, as árvores e a relva dos
bosques, as pessoas com quem se comunica, os quadros que examina e os livros que lê, ele está
invariavelmente em contato não com sensações isoladas mas com imagens inteiras; o reflexo dessas
imagens ultrapassa os limites das sensações isoladas, baseia-se no trabalho conjunto dos órgãos dos
sentidos, na síntese de sensações isoladas e nos complexos sistemas conjuntos. Essa síntese pode ocorrer
tanto nos limites de uma modalidade (ao analisarmos um quadro, reunimos impressões visuais isoladas
numa imagem integral) como nos limites de várias modalidades (ao percebermos uma laranja, unimos de
fato impressões visuais, táteis e gustativas e acrescentamos os nossos conhecimentos a respeito da fruta).
Somente como resultado dessa unificação é que transformamos sensações isoladas numa percepção
integral, passamos do reflexo de indícios isolados ao reflexo de objetos ou situações inteiros.
Seria profundamente errôneo pensar que esse processo de transição de sensações relativamente simples a
sensações complexas é um simples processo de soma de sensações isolada ou, como costumam dizer os
psicólogos, o resultado de simples "associações" de indícios isolados.
Em realidade, o processo de percepção (ou o reflexo de objetos inteiros ou situações) é bem mais
complexo.
Esse processo requer que se discriminem do conjunto de indícios atuantes (cor, forma, propriedades
táteis, peso, sabor, etc.) os indícios básicos determinantes com a abstração simultânea de indícios
inexistentes. Requer a unificação do grupo dos principais indícios e o cotejo do conjunto de indícios
percebidos e despercebidos com os conhecimentos anteriores do objeto. Se no processo dessa comparação
a hipótese do objeto proposto coincidir com a informação que chega, ocorrerá a identificação do objeto e
o processo de percepção deste se concluirá; se como resultado dessa comparação não ocorrer a
coincidência da hipótese com a informação que realmente chega ao sujeito, a procura da solução
adequada continuará enquanto o sujeito não encontrá-la, noutros termos, enquanto ele não identificar o
objeto ou não inclüí-lò em determinada categoria.
Na percepção de objetos conhecidos (um copo, uma garrafa, uma mesa), esse processo de identificação
do objeto ocorre com muita rapidez, bastando ao homem unir dois-três indícios perceptíveis para chegar à
solução adequada. Na percepção de objetos novos ou desconhecidos, o processo de sua identificação é
bem mais complexo e assume formas bem mais desenvolvidas.
Imaginemos que o homem examina um dispositivo his-tológico desconhecido para a obtenção de
delicadíssimos cortes de tecidos: o micrótomo. Inicialmente ele percebe uma complexa construção
instalada numa pesada base de ferro fundido, em seguida distingue partes metálicas isoladas e pode ter a
súbita impressão de tratar-se de uma balança. No entanto ele não vê os pratos indispensáveis à balança ou
as escalas que representam o peso. Ele continua a examinar esse objeto desconhecido até que seus olhos
distinguem a superfície plana do aparelho e uma lâmina muito afiada. Então ele pode lembrar-se de que
viu algo semelhante numa mercearia e que esse aparelho era empregado para cortar presunto ou salame
em fatias finas. Somente depois disto a lâmina aguda, contígua à superfície metálica, torna-se indício
determinante e o sujeito começa a formar a idéia de que o objeto percebido tem relação com os
instrumentos de corte cujas hélices micrmétricas parecem assegurar uma regulação precisa da espessura
dos cortes. Deste modo, a percepção plena do objeto surge como resultado de um complexo trabalho de
análises e síntese, que ressalta os indícios essenciais e inibe os indícios secundários, combinando os
detalhes percebidos num todo apreendido.
É a esse processo complexo de reflexo de objetos ou situações inteiras que em Psicologia se chama
sensação.
Vê-se facilmente que a sensação é o processo complexo e ativo que às vezes requer um considerável
trabalho de análise e síntese.
Eis porque a percepção, num grau ainda menor do que a sensação, pode ser considerada reflexo passivo
da realidade, registro passivo da informação que chega ao organismo.
Esse caráter complexo e ativo da percepção manifesta-se em toda uma série de indícios que requerem
uma análise especial.
O processo de informação não é, de modo algum, o resultado da simples excitação dos órgãos dos
sentidos e da simples chegada ao córtex cerebral das excitações que surgem nos receptores periféricos (a
pele, os olhos). No processo de percepção estão sempre incluídos componentes motores em forma de
apalpação do objeto, de movimento dos olhos que distingue os pontos mais informativos, de emissão de
sons correspondentes que desempenham papel essencial no estabelecimento das peculiaridades mais
importantes do fluxo sonoro. Ainda abordaremos essa tese básica quando analisarmos os diversos tipos de
percepção. Por isso é mais correto considerar o processo de percepção como atividade receptora do
sujeito.
A seguir o processo de percepção está intimamente ligado à reanimação dos remanescentes da
experiência anterior, à comparação da informação que chega ao sujeito com as concepções anteriores, ao
cotejo das ações atuais com as concepções do passado, com a discriminação dos indícios essenciais, com
a criação de hipóteses do valor suposto da informação que a ele chega e com a sintetização dos indícios
perceptíveis em totalidades e com a (tomada de decisão) a respeito da categoria a que pertence o objeto
perceptível. Noutros termos, a atividade receptora do sujeito se assemelha aos processos de pensamento
direto e essa semelhança será tanto maior quanto mais novo e mais complexo for o objeto perceptível.
Por isto é natural que a atividade perceptiva quase nunca se limita a uma modalidade mas compreende o
resultado do trabalho conjunto dos vários órgãos dos sentidos (analisadores) em cujo processo formaram-
se as concepções do sujeito. Por último é essencial, ainda, a circunstância de que o processo de percepção
do objeto nunca se realiza em nível elementar e sua composição tem sempre como integrante o nível
superior de atividade psíquica, particularmente a fala (discurso).
O homem não contempla simplesmente os objetos ou lhes registra passivamente os indícios. Ao
discriminar e reunir os indícios essenciais, ele sempre designa pela palavra os objetos perceptíveis,
nomeando-os, e deste modo apreende-lhes mais a fundo as propriedades e as atribui a determinadas
categorias. Ao perceber o relógio e nomeá-lo mentalmente com essa palavra, ele abstrai indícios
secundários como a cor, o tamanho, a forma e põe em destaque o traço fundamental representado no
nome relógio, destaca a função de indicar o tempo (as horas); ao mesmo tempo, ele situa o objeto
perceptível em determinada categoria, separa-o de outros objetos exteriormente semelhantes mas
pertencentes a outras categorias (o telefone, por exemplo, que também tem mostrador com os respectivos
números mas sua função é inteiramente distinta). Tudo isso torna a confirmar a tese segundo a qual a
atividade receptora do sujeito pode, pela estrutura psicológica, aproximar-se do pensamento direto. O
caráter complexo e ativo da atividade receptora do homem leva a uma série de particularidades da
percepção humana que pertencem, no mesmo grau, a todas as formas dessa percepção.
O primeiro traço peculiar da percepção consiste em seu caráter ativo e imediato. Como já lembramos, a
percepção do homem é mediada pelos seus conhecimentos anteriores, decorrentes da experiência anterior
e constitui uma complexa atividade de análise e síntese que compreende a criação da hipótese do caráter
do objeto perceptível e a decisão acerca da correspondência do objeto perceptível, a essa hipótese.
A segunda peculiaridade da percepção do homem cogite em seu caráter material e genérico. Como já
indicamos, -homem percebe não só o conjunto de indícios que lhe gam mas também analisa esse conjunto
como um objeto terminado, não se limitando a estabelecer os traços indi res desse objeto mas sempre
atribuindo-o a certa cate considerando-o "relógio", "mesa", "edifício", "animal", Esse caráter generalizado
da percepção evolui com a id e o desenvolvimento mental, tornando-se cada vez mais nítido e refletindo o
objeto perceptível com profundidade cada vez maior, englobando todo o grande número de traços
essenciais que caracterizam o objeto e as conexões e relações eu que este entra.
A terceira peculiaridade da percepção humana consisti cm sua constância e correção (ortoscopicidade).
A experiência .com objetos nos dá uma informação bastante precisa das suas propriedades fundamentais;
sabemos que o prato é redondo, que a caixa de fósforo é retangular, que o lírio é branco, o rato é pequeno
e o cavalo é grande.
Esse conhecimento, anterior do objeto incorpora-se à sua percepção direta e torna esta mais constante e
mais correta (ortoscópica); compreende certa correção às peculiaridades que a percepção do objeto pode
adquirir em condições variáveis.
É fato conhecido que se girarmos um prato para o qual o sujeito está olhando, a marca desse objeto na
retina mudará, assumindo paulatinamente um caráter oval ou até de um retângulo alongado; mas
continuamos por muito tempo a perceber a forma que muda a posição do prato como "redondo" fazendo a
respectiva correção do conhecimento real da forma desse objeto.
O mesmo ocorre na percepção da cor. É sabido que um pedaço de carvão colocado num ambiente de
iluminação clara, reflete mais raios luminosos do que um pedaço de papel branco ao crepúsculo. No
entanto continuamos a perceber o carvão como negro, corrigindo imediatamente a impressão imediata
que muda em decorrência da situação. Em suma, a última peculiaridade da percepção humana consiste em
sei ela móvel e dirigível.
O processo de atividade perceptiva é sempre determi* nado pela tarefa que se coloca diante do sujeito.
Ao examinar um quadro, visando a determinar o método de trabalho do pintor, o homem ignora o
conteúdo e destaca a maneira da distribuição da tinta no quadro; propondo-se a tarefa de determinar o
tempo a que pertence o quadro, ele destaca as maneiras do desenho, a roupa dos personagens
representados, a forma arquitetônica dos edifícios; tentando analisar a imagem do quadro ou o
acontecimento nele representado, ele amplia o círculo de informações que vai recebendo e analisa todo o
quadro em conjunto; ao contrário, propondo-se a tarefa de captar a mímica das pessoas representadas no
quadro, ele restringe aparentemente o volume de sua percepção e se concentra em detalhes isolados do
quadro.
É natural que esse -determinismo da percepção pela tarefa que se coloca diante do homem ou do seu
objetivo torna a percepção elástica e dirigível, e essas peculiaridades da percepção humana dependem
altamente do papel que na atividade receptora desempenha a experiência prática do sujeito e o seu
discurso interior, que permite formular e mudar as tarefas.
É perfeitamente compreensível que tudo isto distingue essencialmente a atividade receptora do homem da
percepção do animal, que, apesar de toda a sua mobilidade, carece das qualidades dirigíveis e arbitrárias
que caracterizam a atividade perceptiva consciente do homem.
Todas as referidas peculiaridades da atividade receptora do homem permitem compreender melhor as
condições das quais ela depende.
É natural que a percepção correta dos complexos objetos não depende apenas da precisão do
funcionamento dos nossos órgãos dos sentidos mas também de várias outras condições essenciais.
Situam-se entre estas a experiência anterior do sujeito e a amplitude de profundidade das suas
concepções, a tarefa a que ele se propõe ao analisar determinado objeto, o caráter ativo, coerente e crítico
da sua atividade receptora, a manutenção dos movimentos ativos que integram a atividade receptora, a
capacidade de reprimir a tempo as hipóteses do significado do objeto perceptível se estas não
corresponderem à informação afluente.
A complexidade do desempenho perceptivo ativo permite explicar também as falhas que se verificam na
percepção da criança nas etapas tenras do desenvolvimento bem como as peculiaridades do distúrbio da
percepção que podem surgir nos estados patológicos do cérebro. Essas peculiaridades podem assumir
caráter variado dependendo do elo da atividade receptora insuficientemente desenvolvido ou perturbado.
Assim, a insuficiente agudez da sensibilidade (visual ou auditiva) pode acarretar erros de percepção que,
não obstante, podem ser compensados com êxito com o emprego de aparelhos de reforço da sensibilidade
ou pela concentração da atenção do sujeito.
As falhas, relacionadas com a distorção da síntese dos indícios perceptíveis (verificadas na afecção das
zonas ter-ciárias e sintéticas do córtex cerebral), podem levar a que alguns indícios do objeto visível
continuem a ser bem percebidos enquanto o sujeito se mostra incapaz de perceber o objeto no conjunto e
é forçado a fazer angustiantes conjetu-ras tentando descobrir o que pode significar a combinação dos
indícios por ele percebidos.
É inteiramente distinto o caráter das falhas da percepção durante a perturbação do processo de percepção
ativo. Nestes casos, todo o complexo processo de discriminação dos indícios essenciais do objeto e a
comparação da hipótese que surge com a informação que realmente chega pode ser perturbado e o
homem pode limitar-se a fazer suposições impulsivas do significado do objeto perceptível com base nos
indícios particulares deste e, às vezes, com base em detalhes mais nítidos ou que mais saltam à vista, sem
comparar a sua hipótese com a informação que recebe nem corrigir as suas conjeturas errôneas.
Por último, podem adquirir novamente outro caráter as falhas da percepção nos casos em que o objetivo
do homem adquire inércia patológica e ele começa a perceber não o que corresponde às peculiaridades do
objeto que atua sobre ele quanto o que ele espera ver e que corresponde aos seus objetivos inertes
preconcebidos. Algumas formas de engano da percepção, que ocorrem em determinados grupos de
doentes com patologia cerebral, adquirem justamente esse caráter.
Analisamos as teses mais gerais da psicologia da atividade perceptiva do homem e agora podemos passar
ao exame de algumas formas isoladas de percepção humana.
Percepção tátil
Formas simples de percepção tátil
Como já dissemos o tato é uma forma de sensibilidade, que compreende tanto componentes elementares
(proto-páticos) quanto complexos (epicríticos).
Entre os primeiros situam-se a sensação de frio e calor e a sensação de dor, situando-se entre os últimos
as sensações propriamente táteis (contatos e pressões) e os tipos de sensibilidade profunda e sinestésica
que fazem parte da composição das sensações proprioceptivas.
Os aparelhos periféricos da sensação de calor e frio são os pequenos "bulbos" espalhados pelas camadas
da pele. O aparelho das sensações de dor é constituído pelas extremidades livres dos filamentos nervosos
finos, que percebem os sinais de dor; o aparelho periférico das sensações de contato e pressão é
constituído por formações nervosas sui generis conhecidas como corpúsculos de Maysner, corpús-culos
de Fater-Paccini, também distribuídas nas camadas da pele. Os receptores da sensibilidade profunda
(proprioceptivas) são os mesmos aparelhos situados na superfície das articulações, dos ligamentos e no
âmago dos músculos.
Os aparelhos receptores que acabamos de enumerar estão distribuídos na superfície da pele de maneira
desigual e a densidade de sua distribuição tem base biológica: quanto mais sutil é a sensibilidade que se
requer do trabalho de um órgão, tanto maior é a densidade com que se distribuem em sua superfície os
respectivos componentes receptores e tanto mais baixos são os limiares da percepção que a eles chegam,
noutros termos, tanto maior é a sua sensibilidade.
A tabela 2 apresenta um quadro da freqüência média com a qual se encontram os respectivos receptores
em 1 milímetro quadrado de pele de determinada região do corpo.
Verificamos que nas pontas dos dedos há freqüência máxima e um número relativamente grande de
receptores de dor, ao passo que não há um só receptor de frio e calor. Quadro diferente se observa na pele
do antebraço que, como se sabe, não tem participação ativa no apalpamento: aqui o número de elementos
táteis por mm2 diminui, aumentando o número de receptores de dor, calor e frio. O mesmo se
verifica na pele das costas.
TABELA 2
Número de diversos receptores da sensibilidade da pele em lmm2 de diferentes partes da pele
de dor táteis de frio de calor
Pontas dos
dedos 60 120 0 0
Do antebraço 203 15 6 0.4
Costas + +
Língua + 4- +
(Segundo Ananev.)
Nota-se que, se na ponta dos dedos, o número de aparelhos periféricos por mm 2 de pele é igual a 120, este
é de apenas 14 por mm2 de pele das costas da mão, 15 de pele da palma da mão, 29 do peito, 50 da testa e
100 da ponta do nariz. Percebe-se facilmente a importância biológica dessa distribuição dos elementos
táteis em diversos pontos da pele.
A sutileza da sensibilidade de diferentes superfícies do corpo é assegurada não só pela densidade da
distribuição dos receptores periféricos nas respectivas áreas da pele mas também pela área relativa das
zonas pós-centrais do córtex cerebral, aonde chegam os filamentos originários das respectivas áreas da
periferia. Já dissemos que quanto mais sutil é a função dessa ou daquela área da pele, tanto maior é a área
que sua projeção ocupa no córtex cerebral.
Os fatos que acabamos de descrever mostram que a sensibilidade da pele constitui um sistema especial,
adaptado à análise tátil e sinestésica dos sinais oriundos do mundo exterior e do próprio corpo.
Lembremos que enquanto os impulsos^ táteis procedentes dos receptores da pele chegam aos cornos
posteriores da medula espinhal, fazem parte da composição das colunas laterais desta e, mudando de
rumo nos nós subcorticais, terminam no córtex da circunvolução posterior central, os impulsos condutores
dos sinais da sensibilização
dade profunda (proprioceptiva) chegam inicialmente aos cornos posteriores da medula espinhal e
avançam pelas colunas laterais e, cessando nos núcleos de Holl e Burdach, chegam ao córtex da
circunvolução posterior central e às suas áreas secundárias. Cabe observar que a divergência das vias con-
dutoras da sensibilidade superficial, por um lado, e da sensibilidade profunda (sinestésica), por outro,
explica o fato de que, durante a afecção das colunas posteriores ou dos núcleos de Holl e Burdach,
mantém-se a sensibilidade superficial e perturba-se simultaneamente a profunda. É justamente este caso
que se verifica na tabe da espinha (tabes dorsalisj, na qual a afecção atinge os sistemas da sensibilidade
profunda sem se manifestar no sistema da sensibilidade superficial. Merece destaque também a segunda
divergência substancial que é importante levar em conta por ter grande significado clínico.
Isto leva à possibilidade de distanciamento entre a sensibilidade tátil e a de dor, que surge nos casos de
afecção da substância parda situada ao redor do canal da medula espinhal (siringomielia). Nestes casos, os
filamentos portadores dos impulsos da sensibilidade tátil podem chegar ao córtex, enquanto os filamentos
que conduzem os impulsos da sensibilidade à dor se interrompem e passam para o lado oposto.
Resulta daí a manutenção da sensibilidade superficial (tátil) do doente, desaparecendo a sensibilidade à
dor; o doente não percebe as queimaduras que recebe ao tocar objetos quentes embora continue a sentir o
contato com estes.
Por último, cabe observar que os impulsos da sensibilidade tátil, que são conduzidos através dos
filamentos sensíveis grossos, são percebidos mais rapidamente do que os sinais de dor que passam através
de filamentos mais finos. Esta tese é bem ilustrada pela observação atenta da seqüência das sensações
táteis e de dor que temos ao tocarmos uma chapa quente.
Como já dissemos, a sensibilidade tátil é de estrutura heterogênea: a ela pertencem as formas mais
simples de sensibilidade superficial (sensação de contato e pressão) e as formas mais complexas de
sensibilidade tátil como a sensação de localização do contato, a sensibilidade distintiva (sensação da
distância entre dois contatos em relação às áreas próximas da pele) e, por último, a sensação do sentido
do esticamento da pele (quando a pele do antebraço é esticada n& sentido da mão ou a partir desta) e a
sensação da forma feita pelo contato de uma lâmina que produz na pele uma figura de círculo, triângulo,
número ou letra (esta última é freqüentemente chamada em neurologia de "sensação de Fõrs-ter").
Situam-se entre as formas complexas também a sensibilidade profunda (sinestésica) que permite
identificar a posição em que se encontra o braço direito que se move passivamente, ou dá ao braço direito
a posição que se dá passiva* mente ao esquerdo (e vice-versa). Percebe-se facilmente que as últimas
modalidades de sensibilidade são de caráter especialmente complexo e de sua realização participam as
complexas zonas secundárias das áreas pós-centrais do córtex. Por isto, se a supressão das formas
elementares de sensibilidade tátil pode ocorrer com a afecção de quaisquer áreas da via tátil do lado
oposto do cérebro, a perturbação das formas superiores de sensibilidade tátil com a conservação de suas
formas elementares pode servir de sintoma da afecção de áreas secundárias mais complexas do córtex
pós-central do cérebro. Eis porque o estudo separado de diversas formas de sensibilidade tátil é de grande
importância para o diagnóstico tônico das afecções cerebrais.
Para estudar os diferentes tipos de sensibilidade tátil ou proprioceptivas, empregam-se procedimentos
simples que hoje integram solidamente o exame neurológico dos doentes.
Para estudar a sensibilidade tátil simples, toca-se uma área da pele com a ponta afiada ou rombuda de um
alfinete ou de um lápis e propõe-se ao sujeito responder se sente o contato, qual o caráter deste e em que
lugar ele sente a picada. Numa pesquisa exata, emprega-se o estenciômetro ou um conjunto de fios de
diferentes comprimentos.
Para estudar a sensação de localização, aplica-se a ponta a várias áreas do antebraço e propõe-se ao
sujeito indicar o lugar que foi tocado pelo pesquisador.
Para estudar a sensibilidade distintiva, aplica-se o estenciômetro de Weber cujas hastes são colocadas em
distâncias diferentes. Um índice da sutileza da sensibilidade distintiva é a distância mínima na qual o
sujeito distingue não um mas dois contatos separados.
Outro procedimento muito importante é o teste de Talber, no qual o pesquisador toca simultaneamente
dois pontos simétricos do peito e do rosto. A afecção de um dos hemisférios manifesta-se no fato de que o
doente que percebe bem cada contato isolado, ignora um dos contatos com os pontos simétricos caso
esses contatos sejam simultâneos. Neste caso, costuma cessar a sensação de contato com ponto oposto ao
hemisfério afetado. Por último, é muito importante o estudo da sensibilidade pele-sinestésica (para cuja
análise conduz-se a pele do antebraço no sentido da mão ou a partir desta, devendo o sujeito determinar o
sentido do deslocamento passivo da pele) ou o estudo da sensibilidade profunda; aqui o pesquisador
curva (ou descurva) o braço ou um dedo do sujeito, propondo-lhe determinar em que sentido foi feito o
movimento, ou coloca o braço numa posição e propõe ao sujeito colocar o outro nessa mesma posição. A
perturbação da sensibilidade profunda em um dos braços sugere a afecção das áreas sinestéticas
complexas do córtex do hemisfério oposto. Por último, o estudo do sentido espacial bidimensional (ou
sentido de Forster) é feito da seguinte maneira: o pesquisador desenha com a ponta de uma agulha ou de
um fósforo uma figura (ou número) na pele do antebraço e propõe determinar o tipo de figura ou número
que foi desenhado. A impossibilidade de executar essa tarefa com tentativas ativas do sujeito sugere a
afecção das áreas secundárias do córtex parietal do hemisfério oposto.
Formas complexas de percepção tátil
Até agora examinamos formas relativamente- simples de sensibilidade sinestésica e da pele, que refletem
apenas indícios relativamente elementares (pressão, contato, posição dos membros no espaço).
No entanto existem formas mais complexas de percepção tátil, na qual o homem pode determinar por
apalpamento as formas do objeto e às vezes até identificar o próprio objeto. Essa forma de sensibilidade
tátil é de grande interesse para a Psicologia.
Já indicamos que a mão em estado de repouso pode captar apenas indícios isolados de um objeto estático
que atua sobre ela (a temperatura, o tamanho e as peculiaridades da superfície do objeto) mas não pode
lhe captar a forma nem o conjunto de indícios que o distinguem. É natural que em tais condições não se
pode falar de nenhuma percepção complexa do objeto. Para passar da avaliação de traços isolados à
percepção tátil de todo o objeto, é necessário que a mão esteja em movimento, isto é, que a percepção tátil
passiva seja substituída por apalpamento ativo do objeto.
É por isto que o estudo da maneira pela qual se desenvolve o processo de tateamento do objeto e de como
neste processo o homem passa paulatinamente da avaliação de indícios isolados à identificação do objeto
tateado constitui uma das questões mais importantes da Psicologia da percepção tátiL
Na percepção tátil do objeto, a questão mais importante é a transformação paulatina da informação que
recebemos sucessivamente acerca de indícios particulares do objeto em sua imagem integral
(simultânea).
Suponhamos que tateamos de olhos fechados um objeto qualquer, uma chave, por exemplo. A princípio
temos a impressão de tocarmos algo frio, liso e comprido. Nesta fase podemos supor que tateamos uma
haste metálica ou um tubo ou mesmo um lápis metálico. Em seguida, nossa mão se desloca e começa a
tatear apenas o anel da chave; o primeiro grupo de suposições é imediatamente afastado mas ainda não
surge uma hipótese nova. Continuamos a tatear e o nosso dedo se desloca no sentido do palhetão da chave
com seu corte característico. Aqui distinguimos os pontos mais informativos, a reunião de todos os
indícios sucessivamente perceptíveis e então surge â última hipótese: "é uma chave!"; esta hipótese será
confirmada pela verificação posterior.
Vemos facilmente que o processo de identificação da imagem do objeto, que ocorre de imediato na visão,
no tato tem caráter desdobrado e ocorre por meio de uma cadeia sucessiva de testes com a discriminação
dos indícios particulares, a criação e a.formação de várias alternativas e a obtenção da hipótese definitiva.
Por isto o processo de percepção tátil (ativa), a qual surge no processo de apalpação, pode servir de
modelo de qualquer percepção cujos elos particulares são aqui desdobrados e especialmente acessíveis à
análise.
O processo de percepção tátil foi minuciosamente estudado pelos psicólogos soviéticos B. G. Ananev, P.
F. Lomov, L. M. Vekker. As pesquisas desses autores revelaram vários fatos essenciais.
Confirmaram, antes de tudo, que a percepção da forma do objeto sem uma apalpação ativa e sucessiva
deste é absolutamente inacessível.
Mostrou ainda a pesquisa que a mão do sujeito deve apalpai ativamente o objeto, tentando distinguir os
pontos que oferecem maior informação e reuni-los numa só imagem. A passagem passiva do objeto pela
mão ou da mão sobre o objeto, excluindo movimentos ativos de procura, não leva ao devido .resultado,
possibilitando um reflexo do objeto apenas parcial e por isto falso.
Por isto, a apalpação ativa é realmente necessária para identificar os traços do objeto e reuni-los numa
imagem única. A pesquisa posterior mostrou ainda que a apalpação ativa do objeto é um processo
complexo.
A estrutura sutil dos movimentos tateantes permitiu um conhecimento mais aproximado do processo
destes. Verificou-se que os movimentos de apalpação se realizam com o papel determinante do dedo
médio, que, no processo de evolução, apenas no homem come.ça a opor-se aos outros dedos, e do
indicador, que no homem adquire mobilidade especial. Em seguida os movimentos de apalpação se
alternam com intervalos, sendo que o tempo gasto com o movimento é uma vez e meia maior do que o
movimento de retenção ou parada. Esses fatos levam a pensar que durante essas paradas distin-guem-se
os componentes menores ou "quantas" da informação tátil (Ananev).
Cabe notar que, na percepção tátil do objeto, os movimentos de apalpação são heterogêneos, que neles
podemos distinguir os mínimos deslocamentos dos dedos (de 2 a lOOmm), que param nos pontos
"críticos" (ou mais informativos), durante os quais o sujeito continua a receber uma informação
fracionada dos traços do objeto, podendo-se distinguir grandes movimentos que reúnem os indícios
isolados e têm a função de verificar as hipóteses surgidas.
É importante que esse caráter dos movimentos se mantém inclusive nos casos em que o sujeito tateia não
com o dedo mas com uma haste (um lápis, por exemplo), ou nos casos em que, tendo sido amputada a
mão, a apalpação é feita por outras partes do braço, por exemplo pelo antebraço estilhaçado (as chamadas
"pinças de Krukenberg").
Na medida em que se desenvolve o exercício, o processo de apalpação, indispensável à identificação
tátil do objeto, pode reduzir-se paulatinamente; se nas primeiras etapas era necessário comparar muitos
dos indícios discriminados para identificar o objeto, numa segunda apalpação o número des-sses indícios
diminui cada vez mais, de forma que, ao término do processo, é bastante um indício mais informativo
para -que o objeto possa ser identificado. É interessante que esse processo de redução paulatina do
número de testes, nos quais se destacam os indícios informativos necessários, ocorre de modo
relativamente mais lento nas crianças pequenas e começa a ser mais expressivo nas crianças de 6 a 7 anos
de idade. Nos adultos é especialmente rápida essa redução ou "retardamento" dos movimentos de busca,
indispensáveis à identificação tátil do objeto. Na tabela 3 apresentamos dados acerca da redução paulatina
dos testes de orientação, durante a percepção tátil do objeto; esses dados foram obtidos pelos psicólogos
soviéticos V. P. Zintchenko e B. F. Lomov em pesquisas com crianças de diversas faixas etárias.
TABELA 3
Número de testes necessários para a identificação tátil de um objeto por crianças de diferentes faixas
etárias.
N.° idade Anos Anos 4-5 Anos 5-6 Anos 6-9
de testes 3-4

I apresentação IV 5,8 4.0 6,0 3,9 5,8 2,9 5,0 1,0!


apresentação

A percepção tátil, que começou nos testes com a apalpação dos objetos, prosseguiu numa série especial
de testes e pesquisas, propostos pelo psicólogo soviético E. N. Sokolov. Essa pesquisa teve como
finalidade estudar a estrutura provável do processo de percepção e consistiu no seguinte: propunha-se ao
sujeito tatear com o dedo uma letra, feita de alguns elementos isolados, por exemplo, de botões. Via de
regra, eram letras cujos traços se distinguiam apenas pela posição de um ou dois elementos.
Propunha-se ao sujeito tatear sucessivamente com o dedo a estrutura que lhe fora dada e dizer a qual dos
dois botões ela pertencia. O teste mostrou que, a princípio, a apalpação tinha caráter desdobrado, que em
seguida o processo se desenvolvia paulatinamente e, por último, o sujeito dirigia logo sua atenção aos
pontos mais informativos cujo contato lhe dava de imediato informação positiva (a existência do
elemento que diferenciava uma letra da outra) ou informação negativa (inexistência do elemento
necessário), que lhe permitia chegar à solução necessária.
Cabe notar que a afecção de determinadas áreas do cérebro levava a perturbações originais do processo
aqui descrito de identificação tátil. Os doentes com afecção das áreas subparietais do cérebro e privados
da capacidade de sintetizar os elementos em um todo, mostraram-se incapazes de utilizar a informação
por eles obtida e criar mentalmente uma imagem integral de uma figura a partir dos elementos
separadamente percebidos. Os doentes com afecção dos lobos frontais do cérebro revelaram
inconsistência no próprio processo de obtenção da informação necessária: a fase de ação orientada e
planejada cessava ou em certo sentido se perturbava e os pacientes começavam não raro a fazer
conclusões impulsivas acerca da letra que tateavam, sem levar a pesquisa até o fim nem distinguir os
indícios de apoio necessários (O. K. Tikhomírov).
A complexa estrutura psicofisiológica do processo de identificação tátil do objeto leva a um fenômeno
amplamente conhecido na clínica como astereognose, chamado por alguns autores de síntese amorfa
(perturbação da percepção tátil tridimensional do objeto ou perturbação do processo de síntese de uma
imagem integral do objeto, constituída de elementos isolados). Esse fenômeno consiste em que o doente,
conservando a sensibilidade tátil elementar, revela-se incapaz de identificar o objeto que tateia e sintetizar
em um todo único indícios isolados. O quadro clássico da astereognose surge nas afecções das áreas
secundárias e terciárias da região parie-tal do córtex e está relacionado com a perturbação da capacidade
de reunir sinais táteis isolados numa estrutura una. Esse quadro surge, via de regra, num braço do lado
oposto do foco. Em todos os casos de astereognose clássica, o paciente tateia ativamente o objeto que lhe
foi dado, tenta sintetizar-lhe os traços mas é incapaz de fazê-lo e identificar o objeto. Do quadro clássico
de astereognose distinguem-se essencialmente as dificuldades na identificação tátil de dado objeto, que
surgem nos casos de afecção dos lobos frontais do cérebro. Nestas circunstâncias, que, via de regra,
provocam uma brusca queda da atividade do paciente e a impossibilidade de cotejar o efeito da sua ação
com a intenção inicial, é diferente o caráter da natureza da dificultação na percepção tátil do objeto.
Nestes casos, o doente não tenta tatear ativamente o objeto ou não faz tentativas sistemáticas suficientes
neste sentido, interrompendo em fase inicial o processo de orientação e lançando prematuramente uma
hipótese baseada simplesmente numa distinção fragmentária do objeto. Observações atentas permitem
perceber o elo preciso em que foi perturbado o processo de identificação tátil do objeto e tirar desse fato
conclusões diagnosticas.
Percepção visual
O sistema visual se caracteriza, à primeira vista, por traços grandemente opostos ao sistema tátil.
Se na percepção tátil o homem capta apenas traços isolados do objeto e só posteriormente os reúne numa
imagem integral, por meio da visão ele percebe de uma só vez a imagem completa do objeto; se o tato é
um processo de captação desdobrada e sucessiva de traços e sua síntese posterior, a visão dispõe de um
aparelho para perceber simultaneamente as formas complexas do objeto.
Essa característica da percepção visual, que pareceria evidente, suscitou o surgimento de uma teoria que
dominou durante muito tempo e segundo a qual a visão funciona como um sistema receptor relativamente
passivo, no qual a imagem das formas exteriores e das coisas se fixa na retina e, posteriormente, sem
quaisquer mudanças, se transmite inicialmente às formações visuais subcorticais (corpo caloso
superficial) e, em seguida, às áreas occiptais do córtex cerebral.
No entanto, apesar da aparente evidência, essa teoria não foi capaz de responder a uma série de questões.
Continuou obscuro o papel desempenhado na percepção visual por milhões de neurônios de que dispõe o
corpo caloso superficial (aparelho subcortical da visão) e principalmente o córtex visual occipital dos
grandes hemisférios. Ficou sem esclarecimento o papel desempenhado pela repetida reprodu-
ção da imagem, que antes se reflete na retina e depois se repete sem mudança nas formações subcorticais
e no córtex visual. Por último, ficou obscura a via de realização do processo de seleção dos componentes
necessários da percepção visual bem como a plasticidade da imagem perceptível, que permite distinguir
uns elementos, abstrair outros e adaptar a imagem refletível à tarefa que o sujeito coloca para a sua
percepção.
Para compreender melhor os mecanismos internos da percepção visual e destacar a posição nela ocupada
pela representação integral das formas e dos objetos, por um lado, e a possibilidade de discriminar os
menores indícios e recodificá-los em quadros sintéticos elásticos, precisamos analisar, inicialmente, em
maiores detalhes, a estrutura do sistema visual (ou do "analisador" visual) para, em seguida, passarmos à
descrição das formas básicas de funcionamento desse sistema.
Estrutura do sistema visual
O sistema visual possui uma completa estrutura hierárquica que o distingue acentuadamente do sistema
de sensibilidade tátil.
Se as áreas periféricas da sensibilidade tátil representam membros simples dos nervos sensíveis e
corpúsculos ou novelos receptores relativamente simples, a área periférica da percepção visual — o olho
— representa um complexíssimo aparelho que se divide em vários componentes. No aparelho do olho
podemos distinguir a parte sensível à luz (retina) e vários dispositivos auxiliares de caráter motor; dentre
estes um (a íris e o cristalino) assegura a afluência dos raios luminosos que chegam à retina, a focalização
da imagem e a proteção do aparelho contra influências estranhas (a córnea) e permite realizar o
movimento do dispositivo complexo (os músculos do olho).
Examinemos mais detidamente as partes do olho aqui enumeradas.
A retina é um dispositivo muito complexo que, diferentemente dos membros periféricos do sistema tátil,
não tem absolutamente o caráter dos membros simples das células sensíveis mas constitui um aparelho
altamente complexo que inclui tanto, elementos especiais fotossensíveis como complexos elementos
nervosos. Pela caracterização de alguns autores, a retina do olho é uma minipartícul-a do córtex cerebral
de localização exterior, capaz de exercer, com autonomia, funções bastante complexas.
O componente mais importante da retina é a camada ií células sensíveis especiais, bastonetes e matrazes,
que ?1: complexos dispositivos fotoquímicos, capazes de distinguir \iii substância fotossensível (a
púrpura visual) e transformar i energia da luz em energia do nervo. Os bastonetes se distir-guem por
serem consideravelmente mais sensíveis do que n matrazes mas não podem reagir separadamente às
ondas luminosas de comprimentos variados, assegurando, desta fonr.í. a visão da cor (cromática). O
número de bastonetes na retina é muito grande, em torno de 130 milhões, e estão dispostos em toda a área
da retina, sobretudo na periferia. Asseguram a visão noturna turva, que não consegue refletir a cc: sendo
por isto uma visão "acromática". O número de matrazes é bem menor (em torno de 7 milhões). Estas
estão situadas na parte centrai da retina, responsável pela visão colorida (cromática). É bem conhecida na
clínica a hemeralopic (cegueira noturna), que é um distúrbio da capacidade de enxergar na penumbra. Isto
se deve ao distúrbio do funcionamento do aparelho dos bastonetes, distúrbio esse relacionado com a
carência de vitamina AI, que impede a restauração ds púrpura visual nos bastonetes. Já o distúrbio da
capacidade de distinguir certas cores (caso dos daltônicos) se deve a falhas no funcionamento do aparelho
dos bastonetes.
É característico que o acúmulo de elementos fotossensíveis (sobretudo matrazes) na parte central da retina
faz desta uma ("mancha amarela" ou "mácula") especialmente sensível; ao contrário, na parte da retina
onde sai o nervo ótico e ela carece de elementos fotossensíveis, não há a capacidade de perceber a luz que
é chamada de "mancha cega".
O processo nervoso que surge nos bastonetes e nas matrazes sob a influência da luz é transmitido ao
sistema integral altamente complexo de células nervosas, que formam as partes internas da retina. As
camadas da retina, assim come as do córtex cerebral, se dividem em várias películas, compostas por
elementos nervosos de diversos tipos. Entre estes situam-se as células bipolares, capazes de captar as
excita-ções, surgidas em elementos fotossensíveis isolados, e transportá-los para camadas mais profundas
cujos dendritos estão situados na superfície horizontal e são capazes de reunir a excitação surgida num
grupo de elementos fotossensíveis; as células ganglionares, situadas na camada interior da retina e
capazes de reunir a excitação e transmiti-la ao nervo óptico, que é o início da parte condutora do sistema
visual. Na retina ocupam posição especial as "células amácrinas", que se distinguem por apresentarem
uma disposição dos dendritos e axônios oposta à verificada em todas as células enumeradas: seus
dendritos estão dispostos no sentido da parte interna e os axônios na parte externa (fotossensível da
retina). Há fundamentos para se supor que elas são um aparelho efe-rente da retina, que, assegurando a
chegada da retina aos elementos fotossensíveis, garantem que cheguem aos elementos fotossensíveis as
excitações surgidas no centro, permitindo regular a sensibilidade dos aparelhos receptores aos objetivos
internos do sujeito.
A irritação da retina pela luz provoca nela ocorrências estáveis de excitação, ,que podem ser registradas
em forma de oscilação de potencialidades elétricas (eletrorretinogramas), que refletem cada irritação
luminosa que chega à retina. Cabe notar que a aceleração das excitações permite observar aceleração
rítmica das respostas elétricas da retina. O ele-trorretinograma pode ser empregado com êxito para o
diagnóstico de mudanças patológicas da retina.
O aparelho da retina aqui descrito é o primeiro dispositivo fotossensível básico que faz parte da parte
periférica do receptor visual. Mas para o funcionamento normal, é necessário um segundo aparelho
complementar do olho, que regula a afluência da excitação luminosa que chega aos elementos
fotossensíveis da retina e garantem os movimentos do olho, que poderiam produzir uma imagem com o
máximo de precisão na retina e permitiriam ao olho acompanhar os objetos perceptíveis.
O aparelho que regula a afluência dos raios luminosos tem entre seus componentes a íris do olho, que,
graças aos nervos nela situados, pode restringir ou ampliar a pupila. É fato conhecido que, sob iluminação
forte, a pupila do olho se restringe e se amplia sob iluminação fraca, regulando a afluência de luz na
câmara interna do olho. É sabido que os aparelhos que regulam a compressão e a ampliação da pupila
estão situados nos corpos quadrigêmeos, razão pela qual o distúrbio da compressão da pupila na
claridade pode servir de sintoma de afecção dessa área do sistema nervoso central. Entre os aparelhos que
regulam a afluência de luz aos elementos fotossensíveis da retina, situa-se também o movimento do
pigmento que, sob iluminação intensa, se desloca para a parte externa da retina, formando uma espécie de
obstáculo luminoso; sob iluminação fraca, ele se desloca para as camadas internas da retina, tornando os
elementos fotossensíveis acessíveis à ação imediata da luz.
Uma parte importante do aparelho complementar do olho é o cristalino, que é uma lente móvel refratária
aos raios luminosos. Dependendo da distância do objeto examinado pelo sujeito, a curvatura do cristalino
pode mudar, de maneira que a imagem que cai sobre a retina se torna nítida. O processo de mudança da
curvatura do cristalino, que assegura a maior nitidez da imagem na retina, é denominado acomodação. Na
velhice, a regulação das mudanças da curvatura do cristalino é perturbada, requerendo-se o emprego de
lentes complemen-tares para garantir a correta acomodação do olho.
Os aparelhos descritos asseguram a possibilidade do reflexo de imagens integrais na retina do olho. Este
fato é facilmente verificado se examinarmos o olho de um animal que acaba de ser morto. Neste caso,
aparecem nitidamente na retina os contornos do objeto que o olho percebeu imediata» mente ante a morte.
O procedimento de análise dessa imagem, que permanece na retina da pessoa que acaba de morrer, vem
sendo empregado com sucesso em crirninologia.
O terceiro aparelho complementar (motor) do olho é o sistema de nervos acionadores dos olhos (nervos
diretos e indiretos). Através deles asseguram-se os movimentos do globo ocular, que permitem realizar os
movimentos de coordenação (a convergência) de ambos os olhos, graças ao que a imagem, obtida em
ambas as retinas, cai num ponto (se esses movimentos de coordenação dos olhos sofrem distúrbios, como
ocorre na afecção das áreas superiores do tronco cerebral, surge o fenômeno da "bifurcação"); ainda
através deles tornam-se possíveis os movimentos da visão, que permitem ao olho deslocar-se de um
objeto para outro. Adiante analisaremos mais os mecanismos centrais que regulam a vista e o papel do
movimento dos olhos na percepção visual.
A retina do olho e seu aparelho complementar (motor) são dispositivos periféricos do sistema visual ou o
início de uma via visual de construção hierárquica; esses dispositivos hierárquicos asseguram tanto a
chegada dos sinais recebidos aos dispositivos nervosos centrais (e com isto a codificação dos sinais
visuais) como a regulação do movimento dos olhos, que asseguram a correta orientação da vista.
Cabe ainda lembrar que os filamentos, oriundos de áreas diversas da retina, terminam em áreas
rigorosamente determinadas do campo visuat projetor, de forma que a afecção de uma pequena parte
deste campo leva à supressão de uma área perfeitamente determinada do campo de visão; essa supressão
do campo de visão é denominada escotoma. Como ocorre em outros analisadores, os filamentos, que
conduzem os impulsos das partes inferiores do campo de visão, terminam nas partes superiores do campo
visual primário (projetor) enquanto os filamentos que conduzem os impulsos das partes superiores
terminam nas partes inferiores do córtex visual projetor. Por isto a afecção das partes superiores do córtex
visual projetor provoca a supressão da parte inferior do campo de visão (hemianopsia quadrada inferior),
provocando a afecção de suas partes inferiores a supressão das partes superiores do campo de visão
(hemianopsia quadrada superior).
Vê-se facilmente a importância desses sintomas para um diagnóstico preciso do lugar (tópico) da
afecção cerebral.
Já dissemos que os neurônios, integrantes tanto do corpo caloso exterior como das áreas de projeção do
córtex visual, distinguem-se por uma elevadíssima especialização. Uns reagem apenas às linhas planas,
outros, apenas às linhas agudas; uns reagem apenas aos movimentos do objeto do centro à periferia,
outros, apenas aos movimentos do objeto da periferia ao centro, etc.
Esse caráter dos neurônios do córtex visual permite ^racionar a percepção em indícios mínimos, que, nas
etapas sucessivas do sistema visual, podem reunir-se formando quaisquer estruturas móveis. O processo
de percepção visual não termina, entretanto, quando os respectivos sinais chegam ao campo visual
projetor. Daqui as excitações são transmitidas aos campos visuais secundários (campos 18 e 19 de Broad-
man), onde predominam complexos neurônios associativos da segunda e terceira camada e os impulsos
fracionados obtidos podem ser unificados e codificados de acordo com as tarefas propostas ao sujeito. Já
apresentamos uma caracterização funcional desses campos e mostramos que os fenômenos, que
surgem com a sua afecção, e as perturbações da percepçã visual, que surgem com essa afecção, são bem
conhecidos n clínica como fenômenos de agonia visual. Esses fenômeno consistem em que o doente,
com os campos visuais secundários afetados, não perde a agudez da visão, distingue bem certos detalhes
do objeto mas é incapaz de sintetizá-los num todo único, experimentando as mesmas dificuldades que
experimenta o doente com afecção das áreas secundárias do córtex sensível e com ocorrências de
asteriognose, que surgem quando ele tateia o objeto.
As vias do sistema visual não se esgotam com as etapas de organização da percepção visual que
acabamos de descrever. O aparelho periférico da visão tem, entre seus componentes, tanto dispositivos
básicos (propriamente visuais) como dispositivos complementares (óptico-motores), sendo que estes
últimos também têm uma organização funcional absolutamente determinada.
É sabido que os filamentos dos nervos, que orientam tanto a redução e a ampliação da pupila, como o
processo de convergência, contatam os nervos do olhos com os aparelhos centrais das áreas superiores do
tronco, em cuja afecção surgem ocorrências de perturbação de reações da pupila à claridade e fenômenos
da "bifurcação" dos olhos.
Os filamentos do aparelho, que dirige os movimentos organizados da vista, estão incluídos num sistema
bem mais complexo e terminam no córtex cerebral. Constitui o maior interesse o fato de existir no córtex
cerebral não um "centro motor dos olhos" mas dois "centros" especiais que dirigem os movimentos da
vista. Entre estes, o centro posterior está situado nas áreas parietal-occiptais do córtex cerebral e, ao que
parece, serve à regulação refletora dos movimentos da vista, assegurando o ato de fixação e
acompanhamento do ponto em movimento. O centro ântero-motor dos olhos está situado nas áreas
intermediárias da zona pré-motora (campo 8 de Broad-man) e, segundo todos os dados, é um aparelho
que regula o deslocamento arbitrário dos olhos e ativos movimentos de busca da vista. Esse fato é
confirmado pela circunstância de que, nas pessoas com afecção das áreas parietal-occipital posteriores do
córtex, perturba-se o ato de fixação do ponto imóvel e do acompanhamento refletor do ponto móvel pela
vista, enquanto o deslocamento ativo dos olhos é bem mais estável. Ao contrário, nos doentes com
afecção do centro ântero-motor dos olhos, tanto o ato de fixação como o ato de acompanhamento do
ponto móvel continuam relativamente estáveis mas se perturba grosseiramente o deslocamento arbitrário
do olho segundo o comando visual, afetando-se fortemente os movimentos ativos de busca dos olhos.
Percepção das estruturas
Descrevemos a estrutura morfológica do sistema visual e agora podemos passar à análise das leis básicas
da percepção visual.
Dissemos anteriormente que não vivemos em um mundo de pontos isolados ou pontos coloridos
perceptíveis visualmente mas em um mundo de figuras geométricas, objetos e situações.
Quais são as leis da ocorrência da percepção desses elementos?
Já vimos que tanto a estrutura da retina, com sua disposição plana das camadas de elementos
fotossensíveis 'e nervosos, como a disposição plana das camadas de células nervosas no córtex visual
projetor asseguram não só a percepção de indícios isolados como também a percepção de formas
geométricas integrais ou estruturas. As leis dessa percepção foram minuciosamente estudadas em seu
tempo por um grupo de psicólogos alemães, que criaram a corrente conhecida como Psicologia da
Gestalt ou Psicologia da forma. De acordo com as teses básicas do gestaltismo, a percepção visual não é
um processo de associação de elementos isolados mas um processo integral estruturalmente organizado.
Wolfgang Kõh-ler, um dos fundadores dessa corrente, via no caráter integral do processo uma
propriedade que une a percepção visual com os processos físicos. Se lançarmos uma pedra na água parada
de um lago, veremos que, na superfície, surgirão círculos perfeitos que se desfazem paulatinamente sem
perder sua forma correta. Essa mesma estrutura corretamente organizada caracteriza os campos
magnéticos.
Organização estrutural análoga podemos observar na percepção visual. Essa percepção integral das
figuras geométricas ocorre em iguais proporções no homem e nos animais.
Isto foi observado reiteradamente na literatura especializada e antes de tudo nos experimentos dos
psicólogos americanos K. Lashley e H. Küver.
Esses pesquisadores treinaram um animal (um rato ou um macaco) para reagir positivamente a uma figura
de um triângulo negro em fundo branco, verificando que, após o treinamento, o animal reage
imediatamente de modo positivo ao triângulo branco em fundo negro, a um triângulo hachurado ou
pontilhadó, reagindo inclusive às linhas que formam um ângulo agudo.
É evidente que o animal abrange não só os traços da figura mas toda a estrutura; aqui, o caráter integral da
percepção constitui o traço fundamental da atividade receptora do animal.
Experimento análogo foi realizado por Matilda Herz, discípula de Kõhler. Nesse experimento ela colocou
num lugar vários vidros, colocando uma noz sob um deles. Um pássaro era treinado para voar até os
vidros, virá-los com a asa e apanhar a noz. Se os vidros estivessem distribuídos de maneira desordenada,
virava-os ao acaso, se estivessem distribuídos em ordem circular, com um deles separado, o pássaro
derrubava invariavelmente este, talvez percebendo todos os outros como uma estrutura fechada.
A percepção da cor tinha esse mesmo caráter integral. Num conhecido experimento de Kõhler, treinou-se
uma galinha para bicai grãos de fundo pardo-claro, colocando-se grãos num fundo pardo-escuro. Se à
galinha dava-se um teste de controle, no qual o quadrado pardo-escuro (antes reforçado negativamente)
era colocado ao lado do quadrado negro, ela começava imediatamente a bicar os grãos nesse quadrado
pardo-escuro. É evidente que a galinha percebia os matizes coloridos não isoladamente mas em
determinadas relações entre si, noutros termos, em determinada estrutura.
Os gestaltistas descreveram várias leis às quais se subordina a percepção da forma.
A primeira delas é a lei da nitidez da estrutura, segundo a qual a nossa percepção distingue antes de tudo
as estruturas mais nítidas pelas propriedades geométricas.
Assim sendo, se ao sujeito propõe-se uma complexa estrutura geométrica, o primeiro que ele distingue
nestas são as imagens mais nítidas. A lei da nitidez da percepção visual desempenhou importante papel na
técnica de defesa, quando, ao tentar-se camuflar uma figura complexa, era bastante ocultá-la em
estruturas mais fortes.
A segunda lei da percepção visual das formas, formulada
pelos gestaltistas, foi a lei do fechamento (lei da complemen-tação do todo estrutural). Segundo essa lei,
as estruturas nítidas mas não acabadas eram sempre ampliadas até atingirem o todo £eométrico nítido.
As duas referidas leis permitiram explicar o processo de unificação de vários fenômenos da percepção
visual cuja explicação continua difícil.
O primeiro desses fenômenos pode ser o fato da unificação de figuras geométricas isoladas.
O caráter estrutural da percepção visual explica o fato de que, se percebemos as estruturas como dispostas
numa superfície, percebemos outras tridimensionalmente como folhas que ultrapassam a superfície
plana.
O caráter estrutural da percepção explica também um fenômeno denominado imagem dupla.
Por último, as leis da percepção estrutural integral explicam ainda algumas das chamadas ilusões ótico-
geométricas.
Todas essas peculiaridades das ilusões geométricas devem-se ao fato de que a nossa percepção
geométrica não é constituída de elementos isolados mas tem todos os traços de uma percepção integral
estruturalmente organizada.
A teoria da Psicologia estrutural (Psicologia da Gestalt) deu contribuição importante e inovadora à análise
da percepção integral das formas. Mas ela tem também as suas limitações. Concebendo as leis da
percepção das estruturas como o reflexo natural das leis integrais dos processos fisiológicos e até físicos,
ela abstrai o fato de que, todos os fenômenos da percepção humana, por ela descritos, formaram-se em
determinadas condições históricas e não podem ser interpretados definitivamente sem se levarem em
conta essas condições. Eis porque, como mostram os fatos, as leis da "nitidez da percepção", "da
conclusão do todo" (fechamento), apresentadas pelos partidários do gestaltismo como leis naturais de
cada percepção, na realidade revelaram-se plenamente úteis apenas •para a percepção do homem,
formada nas condições de uma determinada cultura; elas não são confirmadas no estudo da percepção dos
homens daquelas formações históricas nas quais a percepção das formas geométricas não tem o caráter
abstrato que a distingue atualmente. As pesquisas histórico-comparativas, realizadas nos últimos
decênios, limitaram substancialmente as leis descritas na Psicologia da Gestalt e permitiram que nos
convencêssemos de que, em diferentes etapas do desenvolvimento histórico e da prática social, os
processos de percepção podem subordinar-se a diferentes leis. Um exemplo disto pode ser visto no fato
de que, em certas culturas, um círculo não fechado não é percebido como um círculo não acabado mas
como um "bracelete", percebendo-se um triângulo não fechado não como um triângulo não acabado mas
como um "amuleto" ou <uma "medida de querosene", etc.
Um estudo da maneira pela qual se estrutura a percepção das figuras geométricas nas condições do
pensamento concreto direto ainda fará, indubitavelmente, correções substanciais das leis da percepção
estrutural, estabelecidas pelos psicólogos gestaltistas.
Percepção dos objetos e situações
Como acabamos de ver, a percepção visual das formas simples ocorre momentaneamente e dispensa
buscas longas e desdobradas com a discriminação dos indícios identificadores e com sua síntese posterior
numa estrutura integral.
É diferente o que ocorre na percepção dos objetos complexos, bem como de suas formas ou situações
plenas.
Nestes casos, apenas os objetos mais simples e bem conhecidos são percebíveis simultaneamente. Na
percepção de objetos complexos e mal conhecidos ou de situações inteiras, torna-se necessário um
processo de discriminação dos indícios identificadores com sua síntese posterior e a comparação da
hipótese inicial com a informação que realmente chega. Quanto mais complexa é a imagem apresentada
tanto mais desdobrado é o caráter desse processo de orientação prévia no processo perceptivo ou situação
e tanto mais ele se aproxima do processo sucessivo de identificação que descrevemos ao observarmos o
processo de percepção tátií de um objeto apalpável.
O processo de percepção visual dos objetos complexos constitui uma atividade receptora complexa e
ativa e, embora ele se desenvolva de modo incomparavelmente mais resumido do que o processo de
identificação tátil do objeto, aquele, contudo, requer a participação de componentes motores,
aproximando-se assim da percepção tátil.
Este fato foi previsto por I. M. Setchenov, quando indicou que o olho que examina um objeto realiza
movimentos apalpadores basicamente idênticos ao da mão; mas só ultimamente tornou-se claro porque os
movimentos dos olhos são tão necessários no exame de um objeto.
Como mostrou o conhecido psicofisiologista soviético A. L. Yarbus, o problema consiste em que o olho
imóvel pode manter a imagem percebida apenas durante um tempo muito breve, após o qual a imagem
deixa de ser percebida e o homem passa a ver um "campo vazio". Para demonstrar essa tese, o
pesquisador fixou à córnea do olho uma ventosa, na qual se fixara um ponto luminoso. Era fácil perceber
que esse ponto se movia juntamente com o movimento do olho, noutros termos, mantinha-se imóvel em
relação ao olho e sua imagem caía sempre na mesma zona da retina. Pelos resultados, obtidos por
Yarbus, o sujeito percebia nitidamente a imagem do ponto luminoso apenas durante uma fração muito
pequena de tempo (1-2 segundos), após o que ela desaparecia e o sujeito começava a perceber um "campo
vazio".
Há fundamentos para pensar que esse efeito está ligado ao fato de que a longa excitação de um mesmo
ponto da retina provoca certa excitação Cparabiótica) nesse ponto e leva ao seu desligamento funcional.
Por conseguinte, para assegurar a possibilidade de uma longa conservação da imagem, são necessários
movimentos do olho que desloquem a imagem de uns pontos da retina para outros. O mesmo efeito pode
ser obtido se o objeto imóvel começar a ser percebido numa rápida alternância de cores de tonalidades
iguais (V. P. Zintchenko). Neste caso, os movimentos do olho são retardados pela excitação intermitente
da retina por ondas de comprimentos variados.
O experimento de Yargus mostra que, para a longa percepção do objeto, são realmente necessários
pequenos movimentos dos olhos, que deslocam a imagem para zonas da retina próximas umas das outras,
bem como movimentos do olho que examina o objeto foram realmente estabelecidos em pesquisa
especial.
O método proposto por Yarbus apresentava grande precisão, mas é incômodo porque requer uma
anestesia prévia do olho por solução de novocaína e o sujeito pode manter um espelhinho colado à
esclerótica por uma fração de tempo muito pequena (de 3-4 minutos). Por isto na prática da pesquisa
psicológica foram propostos outros métodos de registro dos movimentos do olho.
Um desses métodos consiste na filmagem dos movimentos do olho do sujeito que examina a imagem e na
análise dos quadros sucessivos. A dificuldade desse método consiste em que o processamento dos
resultados obtidos (transferência da posição do olho em alguns quadros para uma curva) requer longo
trabalho.
Essa dificuldade é evitada por dois outros métodos que -entraram solidamente na literatura especializada.
O primeiro destes consiste em colar nos nervos do olho eletrodos fixados nas áreas temporal, nasal,
superior e inferior da pele; as mudanças nas correntes da ação, que surgem com sucessivos movimentos
dos olhos, são registradas numa película correspondente. Esse método pode apresentar precisão
suficiente, embora as curvas assim obtidas possam ser observadas durante período relativamente curto e
necessitem de correção.
O segundo método, proposto por A. D. Vladímirov, consiste no seguinte: sobre o olho do sujeito deitam-
se raios de luz que passam por um filtro infravermelho; o olho não percebe a ação seguinte desses raios,
sentindo apenas o calor. A diferença entre o reflexo da luz a partir de uma pupila escura e uma íris clara
se transforma em diferença de potenciais e deslocamento do ponto que separa a pupila da íris; essa
diferença é registrada em película. A vantagem desse método consiste em que ele não requer nenhuma
fixação da ventosa à esclerótica do olho, dando imediatamente o registro da trajetória dos movimentos e
esse registro pode ter longa duração.
Os testes com registro do movimento do olho durante o exame de objetos complexos permitiram que nos
convencêssemos de que, no processo de exame atento do objeto, ocorrem pelo menos dois tipos de
movimentos dos olhos.
O primeiro deles são micromovimentos dos olhos, que deslocam a imagem para os pontos contíguos da
retina; esses movimentos são notados até na fixação de um ponto imóvel pelo olho. Sua importância para
a conservação de uma imagem estável fica clara graças ao teste acima descrito, que mostra que a imagem
imóvel em relação ao olho se mantém na retina apenas durante um tempo muito breve.
O outro tipo de movimento é de caráter bem diferente e tem outra importância funcional: consiste em
grandes movimentos do olho, que o deslocam de um ponto a outro e engloba tanto movimentos em forma
de salto como movimentos cadenciados (de deriva) do olho. Há fundamentos para considerar que esses
movimentos asseguram uma função sucessiva do olho em pontos isolados do objeto perceptível e
permitem discriminar sucessivamente os pontos mais informativos (indícios do objeto), compará-los
entre si e sintetizar um conjunto definitivo de indícios indispensáveis à identificação do objeto.
O estudo dos movimentos dos olhos, através dos quais o sujeito se orienta no objeto que examina, tornou-
se um dos importantes métodos" de estudo da percepção dos objetos e imagens complexas.
Os fatos mostraram que o olho, ao examinar um objeto complexo, nunca se movimenta sobre ele de
maneira uniforme mas sempre procura e discrimina os pontos mais informativos que atraem a atenção de
quem os examina.
Constitui interesse especial a aplicação desse método ao estudo do processo de análise da composição de
quadros complexos. Os dados assim obtidos mostram que o sujeito, ao examinar um quadro complexo,
não só destaca neste os detalhes essenciais como também muda o sentido do seu exame e a discriminação
de detalhes particulares, dependendo da tarefa que lhè foi proposta.
Uma análise atenta mostra que mudam nitidamente os movimentos dos olhos da pessoa que analisa um
quadro com instruções variadas, que o olho começa a "tatear" a situação em uns casos, as roupas, em
outros, e os intensivos movimentos do olho, que fazem uma comparação visual de figuras isoladas,
surgem com as sucessivas instruções.
Tudo isto leva a entender o grande trabalho executado pelo olho no processo de percepção e o quanto esse
trabalho depende da complexidade da tarefa.
Esta última circunstância se torna especialmente nítida nos casos em que se dá ao sujeito a tarefa de fazer
um complexo trabalho mental como, por exemplo, avaliar no olho quantas vezes o tamanho de um corte
cabe numa determinada figura. Nesses testes, realizados por U. B. Hippenreuder, foi demonstrado que os
movimentos dos olhos parecem fixar certa medida na superfície do objeto examinado, tornando assim
possível a realização da tarefa.
Fatores determinantes da percepção de objetos complexos
Descrevemos o processo de percepção visual de objetos e situações complexas, vimos a importância aqui
desempenhada pelos ativos movimentos de busca dos olhos.
Surge uma questão: de que é que depende o caráter da percepção de complexos objetos visuais? Quais são
os fatores que determinam a percepção consciente dos objetos e situações?
O fator primeiro e mais importante, que determina a percepção de objetos complexos, é a tareja que se
coloca ao sujeito e a atividade prática que ele desenvolve com esse objeto.
A influência desse fator pode ser demonstrada num teste simples, realizado pelo conhecido psicólogo
soviético A. V. Zaporojets. Ele deu a um grupo de sujeitos a tarefa de traçar um círculo còm compasso e
em seguida representar esse compasso. Deu a um segundo grupo de sujeitos um compasso desmontado;
estes deviam inicialmente montar o compasso e só depois traçar com ele um círculo; somente depois dis fo
propunha-se-lhes representar o compasso num desenho. Os resultados dos testes com ambos os grupos de
sujeitos foram inteiramente distintos.
Para a percepção de uma imagem complexa, é de suma importância a assimilação do tema da situação em
que ela está incluída.
Fatos análogos foram observados por outros psicólogos, que efetuaram testes com estudo do processo de
percepção em condições de culturas diferentes. Verificou-se que a conhecida ilusão na qual, entre duas
linhas-T de imagem de tamanho idêntico, a vertical sempre parece mais longa do que a horizontal, ocorre
apenas entre as pessoas que vivem em condições de estruturas verticalmente dispostas, não se observando
entre as pessoas que vivem em cabanas redondas e não têm experiência acumulada no processo de
habitação em construções verticalmente orientadas. .>,,,
Para a percepção do objeto e sua forma, é de importância essencial o valor de indícios isolados. Assim,
em experimentos realizados durante a II Guerra Mundial, A. I. Bogoslovsky mostrou que a precisão da
percepção das formas aumenta substancialmente se à figura examinada atribuía-se a significação de
"nosso" avião ou avião "inimigo".
Vê-se facilmente que os traços essenciais para o trabalho profissional do homem (por exemplo, os
matizes do aço incandescente, que anunciam a existência de impurezas indesejáveis) são percebidos pelo
especialista de maneira bem superior à do homem para o qual tal traço não tem importância.
É de grande importância para a percepção a experiência anterior do homem e a percepção material das
imagens correspondentes.
O primeiro grupo de fatos, que demonstram essa tese, foi obtido em testes pelo psicólogo soviético D. N.
Uzuadze e seu^ colaboradores.
Se durante longo tempo o sujeito tateia com a mão esquerda uma esfera grande e, com a direita, uma
esfera pequena e, se após 10-15 testes semelhantes, ele coloca nas mãos esferas idênticas, a esfera que se
encontra na mão direita parecerá maior em contraste com a esfera pequena. Poderemos obter efeito
análogo se apresentarmos visualmente ao sujeito duas circunferências, sendo a da esquerda de diâmetro
maior do que a da direita, e, depois de 10-15-exposições semelhantes, sugerirmos duas circunsferências
do mesmo tamanho. Neste caso, a circunferência da esquerda parecerá menor pelo contraste com a
experiência anterior. Os testes com a influência da experiência anterior sobre a percepção posterior
podem ser feitos também em forma mais direta. Por exemplo, se mandarmos um sujeito ler um texto em
latim e em seguida lhe propusermos uma palavra formada por letras neutras (iguais no alfabeto russo e no
latino), . como a palavra PAMKA, ele a lera de acordo com a transcrição latina; se antes disto pedirmos que
ele leia o texto em_ russo, a mesma palavra será lida de acordo com a transcrição russa.
O mesmo poderemos obter se propusermos ao sujeito uma figura de interpretação dupla: a percepção
desta figura dependerá do objetivo criado pela experiência anterior. Por exemplo, depois de uma rápida
exposição do quadro "barcos à vela", mostrou-se aos sujeitos o quadro "flores do lótus".
Via de regra eles também a perceberam como um barco; em outras condições se observava tal ilusão.
O fenômeno que acabamos de descrever é muito conhecido em Psicologia como apercepção e pode ser
observado em muitos exemplos. Assim, por exemplo, a inscrição "NÃO CONSERVAR", pendurada num
auditório, é habitualmente lida pelas pessoas como "não conversar". São conhecidos casos em que o
homem muito faminto e procurando refeitório numa cidade estranha lê o letreiro "ofeuv" (calçados) como
"obedF (almoços). Um grande número de erros de percepção, verificados em casos de elevada prontidão
e reduzida crítica do sujeito tem caráter análogo.
O fator da influência da experiência prática sobre a percepção serviu de base às conhecidas pesquisas do
psicólogo austríacos I. Kõhler com a reestrutura da organização espacial da percepção. Este psicólogo pôs
no sujeito óculos com lentes prismáticas, que reviravam a imagem perceptível "de pernas para o ar" ou da
direita para a esquerda. A princípio os sujeitos não conseguiam, de maneira nenhuma, orientar-se no meio
ambiente, permanecendo inteiramente imobilizados; mas com o uso demorado e permanente de
semelhantes óculos, eles se adaptaram de tal forma a estes que a imagem assim obtida deixou de
influenciar os seus movimentos e eles não mais perceberam a irregularidade do quadro percebido pelos
seus olhos.
A influência de uma sólida experiência anterior sobre a percepção pode levar a ilusões evidentes.
Podem servir de exemplo típico os famosos testes do psicólogo americano Ames. Este sugeriu ao sujeito a
maquete de um quarto onde as relações reais das paredes haviam sido modificadas de tal modo que a sua
projeção coincidia com a projeção das partes distantes e próximas do quarto na retina. A noção das
correlações reais das paredes do quarto dominou de tal forma que as suas correlações distorcidas na
maquete não foram percebidas e o sujeito que foi colocado junto à parede distante começou aparecer bem
menor do que o colocado junto à parede de entrada. No entanto, a influência da experiência anterior pode
levar não apenas a ilusões, como indicamos no início do presente capítulo, mas também assegurar elevada
constância e dar legitimidade (caráter ortos-cópico) à percepção.
Já demos anteriormente um exemplo de como o conhecimento da forma do objeto (da forma arredondada
do prato, por exemplo) aumenta a constância da percepção da forma e torna o homem mais estável para a
percepção correta da forma durante a mudança da posição do objeto.
A mesma influência da experiência anterior pode manifestar-se no aumento considerável da constância da
percepção de suas dimensões. Um exemplo de semelhantes influências da experiência anterior e da
percepção material sobre a constância das dimensões pode ser visto no experimento do psicólogo
soviético E. S. Bein. É sabido que, na medida em que o objeto se distancia, sua imagem na retina do olho
diminui proporcionalmente à distância. Isto pode ser estabelecido se propusermos ao sujeito, afastando
deste, uma imagem indefinida (uma mancha de tinta, por exemplo) e igualá-la a manchas de tamanhos
variados, situadas diante dele. Se, porém, substituirmos a imagem indefinida por uma imagem material,
pela figura de um gato, por exemplo, o sujeito continuará a avaliar o seu tamanho de modo muito mais
constante do que o tamanho da mancha indefinida. Neste caso a noção constante do tamanho do objeto,
formada na experiência anterior, corrige o reflexo paulatinamente decrescente desse objeto na retina e cria
a possibilidade de conservar uma avaliação mais constante do tamanho, avaliação essa que se aproxima
do tamanho autêntico do objeto.
As diferenças individuais das pessoas podem constituir um fator essencial que influencia a percepção.
No início deste século, o famoso psicólogo francês A. Binet deu a dois grupos de sujeitos a tarefa de
descrever um cigarro que lhes havia sido mostrado. Uns sujeitos descreviam o cigarro em termos
objetivos ("é um canudo de papel longo; de um de seus lados, aparece num papel fino uma massa marrom
rusosa; tem 10-12cm": etc). O sesundo grano incorpora à descrição muitos componentes subjetivos
emocionais ("é um cigarro perfumado... na certa é muito agradável dar uma fumadinha; quando a gente
está cansada, é agradável sentir o seu cheiro"). Esses dados permitiram a Binet falar de um tipo objetivo e
um subjetivo de percepção, inerentes a pessoas diversas. Não são menos importantes outras diferenças
individuais de percepção, como o predomínio da percepção analítica com a discriminação de muitos
detalhes em uns e da percepção sintética integral, em outros.
Essas diferenças da percepção podem manifestar-se nitidamente quando se examinam manchas
indefinidas de tinta. Esse método, aplicado em seu tempo pelo psicólogo suíço Rorshach (amplamente
conhecido como "manchas de Rors-hach"), permitiu mostrar que, se uns sujeitos manifestam a tendência
a discriminar pequenos detalhes e, via de regra, ignoram o todo, outros avaliam nas manchas de Rorshach
apenas os contornos genéricos, omitindo detalhes isolados e não se detendo nestes.
O método da percepção das manchas do Rorshach foi amplamente difundido na prática do diagnóstico,
revelando peculiaridades essenciais da percepção indireta e detalhada dos epilépticos, da percepção
emocional e variável dos histéricos, etc.
É natural que o processo de percepção sofre influência muito séria do nível intelectual do sujeito.
É fato conhecido que o sujeito normal percebe o objeto que lhe é proposto, discriminando neste uma
infinidade de traços, incluindo-o em diferentes situações e generalizando-o numa categoria com objetos
exteriormente diferentes mas essencialmente semelhantes. Como mostrou o conhecido psicólogo
soviético I. M. Solovêv, os sujeitos intelectualmente atrasados discriminam no objeto examinado um
número consideravelmente inferior de traços, incluem com dificuldade o objeto em exame em diferentes
contextos e, por isto, sua percepção é bem mais pobre e indireta do que a percepção do sujeito normal.
Métodos de estudo da percepção visual falsa
O estudo da percepção e sobretudo dos processos de discriminação da imagem de um fundo ambiente, da
constância e da generalidade da imagem perceptível pode ser de grande importância para a avaliação do
desenvolvimento psíquico geral da criança, o estabelecimento das peculiaridades psíquicas importantes
para alguns tipos de atividade profissional e para o diagnóstico de alguns estados patológicos do cérebro.
É de importância especial para esse fim o estudo de diversas formas de percepção material, de percepção
das relações espaciais e percepção de quadros e temas complexos.
A Psicologia elaborou uma série de procedimentos para semelhantes pesquisas. Os procedimentos básicos
de estudo da percepção material consistem no seguinte: apresentam-se ao sujeito imagens de objetos
feitas às vezes de maneira realista, às vezes de maneira esquemática ou apenas rascunhadas com os traços
básicos; no último caso, empregam-se quadros nos quais um objeto está representado com uma plenitude
em ordem crescente e propõe-se ao sujeito identificar a imagem que lhe é proposta.
Até pequenos desvios no processo pleno de percepção são facilmente verificados pelo fato de que os
sujeitos, que percebem facilmente as imagens realistas, são incapazes de identificar cr objeto caso sua
imagem seja apresentada em forma esquemática ou incompleta.
O segundo procedimento de estudo da percepção material consiste em apresentar ao sujeito contornos de
imagens dos objetos, sublinhados com linhas de fora ou superpostos uns aos outros (as chamadas "figuras
de Poppelroite").
Por último, os procedimentos aplicados com êxito para o estudo da precisão de percepção material
consiste em propor a imagem do objeto em condições de "ruído", noutros termos, em condições nas quais
é difícil distingui-lo do fundo cir-cundante.
Às vezes, até distúrbios insignificantes da percepção material, não percebidos em condições normais,
manifestam-se facilmente durante a aplicação desses testes.
O estudo da percepção espacial se propõe a estabelecer o quanto o sujeito está em condições de orientar-
se num "espaço assimétrico", sem confundir o lado esquerdo, o quanto o sujeito pode conceber
mentalmente a correlação espacial das partes num todo complexo.
Para a primeira tarefa, propõe-se ao sujeito um esquema de relógio sem os números do mostrador e
avaliar a hora indicada pelos ponteiros. Em testes dificultados, sugerem-se-lhe avaliar duas imagens — a
de um relógio e a de um mapa geográfico, num dos quais as imagens são corretas e no outro ciai mistura
facilmente as duas imagens e começa a sentir dificuldade de avaliá-las.
D vire) às percepção espsóa) pode ser avaliado tanto pelo número de erros cometidos como pelo tempo
gasto pelo sujeito na solução de determinado número de tarefas.
O estudo da possibilidade de imaginar mentalmente a correlação das partes no espaço é efetuado com
êxito através de um teste no qual se propõe ao sujeito a imagem esquemática de uma figura composta de
cubos, sugerindo-lhe indicar o número total de cubos incluídos nessa figura (testes de Yerkes).
Para o estudo da percepção e do nível de seu desenvolvimento, são de grande importância os testes de
avaliação de quadros temáticos. A finalidade desses testes é fazer uma análise das ligações que o sujeito
estabelece entre os elementos particulares de uma complexa situação evidente, da maneira pela qual ele
procura os detalhes mais informativos, cria hipóteses, compara estas com a imagem real e chega a uma
solução correspondente. Pelo seu conteúdo, esse estudo da percepção se assemelha ao estudo do
pensamento direto.
Para esse fim, a Psicologia emprega dois procedimentos: o procedimento da análise de um quadro
temático e complexo e o procedimento de análise de uma série de quadros.
Para o êxito da aplicação do primeiro procedimento empregam-se quadros temáticos cujas idéias não
possam ser percebidas de imediato, de maneira unívoca, e para cuja interpretação correta é necessário
examinar atentamente detalhes isolados, compará-los entre si, distinguir os mais importantes e criar
hipóteses correspondentes do sentido geral do quadro que, posteriormente, devem ser comparadas ao
conteúdo real do quadro.
A avaliação prematura, sem base numa análise minuciosa do conteúdo do quadro, pode levar a conjeturas
inadequadas. A análise de semelhantes quadros pode produzir matéria importante para avaliação do nível
geral de desenvolvimento mental da criança. Pode ser uma indicação disto a limitação da atividade pela
simples nomeação de objetos isolados ou ações isoladas que se verificam nas etapas tenras de
desenvolvimento e se mantêm numa idade mais tardia em caso de retardamento mental.
Um procedimento útil de estudo das formas complexas de percepção, situadas na fronteira com o
pensamento direto, é a análise de uma série de quadros nos quais as etapas de um tema ordenado se
refletem na série de quadros isolados. O desvio no desenvolvimento mental, bem como o distúrbio do
pensamento direto manifestam-se facilmente no fato de que cada um desses quadros começa a ser
avaliado separadamente e o sujeito se revela incapaz de descrever um tema integral em desenvolvimento,
incluindo nesses quadros partes não representadas em quadros isolados.
O estudo da avaliação dos quadros temáticos e de suas séries é amplamente empregado na prática e na
Psicologia clínica.
Desenvolvimento da percepção material
Seria incorreto pensar que. desde o inícios a percepção tem as leis que observamos no adulto.
Como mostraram as pesquisas, a percepção percorre um longo caminho de desenvolvimento. A essência
desse desenvolvimento consiste não tanto no enriquecimento quantitativo quanto na profunda
reorganização qualitativa cujo resultado é a substituição das formas elementares imediatas por uma
complexa atividade percepíiva, constituída tanto pela atividade prática de conhecimento do objeto quanto
pela análise das particularidades essenciais deste, análise essa que é feita com a participação imediata do
discurso.
É sabido que a percepção de um bebê é muito difusa e ele percebe não tanto os objetos destacados quanto
os seus traços difusos particulares (matizes, traços expressivos, etc). Por isto as reações do bebê diante do
mundo depende em alto grau de um sorriso, uma pose ou da maneira como a mãe está vestida, etc. Há
fundamentos para se pensar que as primeiras percepções constantes dos objetos começam a formar-se na
criança no processo em que ela agarra, manipula as coisas, etc. No entanto os vestígios do estágio difuso
tenro de desenvolvimento da percepção ainda persistem durante um tempo bastante longo,
Como mostraram as pesquisas do psicólogo soviético G. L. Rosengardt-Punko, a criança de 1,5-2 anos
continua a distinguir no objeto traços isolados, sem revelar a constância da percepção do objeto que é
própria da percepção dos adultos. Quando se pede a uma criança para trazer um« brinquedo como o urso
de pelúcia que lhe foi mostrado, ela pode trazer um pano macio de pelúcia, reagindo à maciez, ao aspecto
peludo e à cor e não ao objeto em conjunto. Quando se lhe pede para trazer c pato de porcelana que lhe
foi mostrado, ela pode trazer qualquer figura de porcelana ou uma bola com uma ponta fina ("o bico"),
etc. Somente depois que o objeto começa a ser designado pela palavra ("urso", "pato") é que a percepção
da criança adquire caráter material constante e ela deixa de cometer os erros aqui descritos.
Os testes, realizados pelo psicólogo soviético A. A. Lyu-blinsky, mostraram que a incorporação da
palavra transforma radicalmente o processo de percepção, permite distinguir mais nitidamente as imagens
com base não em indícios isolados mas no seu caráter material complexo (após assimilar a representação
verbal do objeto, a criança deixa de cometer erros de percepção, elabora um processo bem mais preciso,
rápido e constante de diferenciação). Por conseguinte, sob a influência da linguagem, a percepção da
criança se transforma radicalmente numa percepção material complexa e concreta.
Pesquisas posteriores mostraram que, a par com a linguagem, participam da formação da percepção
complexa os movimentos (movimentos da mão que tateia o objeto) táteis e os movimentos dos olhos, que
distinguem os traços informativos essenciais do objeto e os sintetizam. Esses movimentos têm
inicialmente caráter amplamente desdobrado e caótico e só paulatinamente se tornam organizados e cada
vez mais reduzidos.
Deste modo, o desenvolvimento da percepção é essencialmente o movimento das ações voltadas para a
descoberta das particularidades essenciais dos objetos e a sua identificação. A identificação rápida e
simultânea dos objetos visualmente perceptíveis é, de fato, o resultado do desenvolvimento paulatino de
uma atividade desdobrada de orientação e pesquisa e sua transformação em "ação perceptiva" interna.
Processo análogo de redução dos movimentos analisadores e identificadores dos olhos, que se manifesta
no processo de desenvolvimento, pode ser visto também no estudo do processo de análise de complexos
quadros temáticos.
Dados igualmente essenciais foram obtidos no estudo do desenvolvimento de formas mais complexas de
atividade perceptiva nas crianças. Como mostraram os experimentos de A. V. Zaporojets e seus
colaboradores, atos como a avaliação de uma magnitude, da forma e até da cor dos objetos não são
funções congênitas simples mas se formam através de uma atividade de orientação e pesquisa que se
"desprende" da atividade prática e começa paulatinamente a apoiar-se na aplicação de "medidas" ou
"padrões" conhecidos e elaborados pela criança, sendo que a aplicação destes "padrões" começa a ter
caráter cada vez mais reduzido.
Tudo isto mostra que a percepção material do homem se forma no processo de uma ampla -atividade
perceptiva, sendo a própria percepção material um produto "reduzido" dessa atividade.
Ao estudarmos o desenvolvimento da percepção na infância, não podemos omitir um importante episódio
da história desse problema.
Em seu livro sobre Psicologia infantil, o famoso psicólogo alemão William Stern lançou a hipótese de que
a percepção de quadros e situações na criança revela quatro estágios básicos: no primeiro a criança
percebe apenas objetos isolados, no segundo, ações, no terceiro, as qualidades da coisa, no quarto, as
complexas relações entre as coisas.
Essa concepção das vias de desenvolvimento da percepção manteve-se na Psicologia durante um período
muito longo. Mas em meados da década de 20 do nosso século o psicólogo soviético S. Vigotsky mostrou
que essa hipótese estava em contradição com o fato de que a criança percebe inicialmente situações
inteiras e só depois é capaz de separar nela os componentes isolados. Vigotsky demonstrou essa
afirmação propondo a crianças não narrar mas representar ativamente o tema de um quadro. A criança,
que através das palavras podia designar apenas alguns objetos isolados, conseguia entender facilmente e
"representar" o tema do quadro.
Isto levou Vigotsky a levantar a hipótese de que os estágios descritos por Stern em realidade não são
estágios de desenvolvimento da percepção mas estágios de desenvolvimento do discurso infantil, no qual,
como se sabe, predominam inicialmente os substantivos e só mais tarde discriminam-se as palavras que
significam ações, qualidades e relações.
Esse fato (que analisaremos adiante) indica o grande papel desempenhado na percepção da criança pela
linguagem c constitui um dos fatos mais importantes da Psicologia atual.
Patologia da percepção material
Se a percepção do homem tem uma estrutura tão complexa e percorre uma via tão complexa de
desenvolvimento funCional, compreende-se perfeitamente que em estados patológicos ela possa
apresentar distúrbios variados.
Em diverso estados patológicos do cérebro, esse processo pode apresentar distúrbio em diferentes níveis:
em uns casos o distúrbio é resultado do fato de que a informação sensorial não chego ao córtex ou
provoca excitação apenas insuficiente estáveis e excitações insuficiente limitadas; noutros casos, as
excitações que chegam ao córtex deixam, devidamente, de unificar-se em sistemas e codificar-se; em
terceiros, o distúrbio atinge o elo ativo da atividade perceptiva e o doente ou não começa um ativo da
atividade trabalho de procura, destinado a discriminar os pontos mais informativos, ou não mantém a
“tomada definitiva da decisão” a respeito do objetivo que se encontra à sua frente e toma uma decisão
prematura partindo apenas de um fragmento parcial do quadro percebido. Por último, podem ocorrer
formas de patologia nas quais o doente é incapaz de separar as influências estranhas das propriedades
fundamentais do objetivo examinado e começa a cometer erros, confundindo o esperado com o real ou as
excitações casuais com os objetivos autênticos.
Essa patologia da percepção pode ser observada tanto nas afecções locais do cérebro como nas clínicas de
doenças psíquicas. Mencionaremos apenas os dados mais importantes que permitem responder a essa
pergunta.
A afecção das áreas occiptais do cérebro (áreas primarias do córtex visual) elimina a possibilidade de
perceber o objetivo visual, tendo em vista que as excitações que partem da retina do olho não chegam,
neste caso, ao córtex cerebral. Se essa afecção é de caráter parcial e leva à abolição do ponto limitado do
campo de visão, o sujeito pode compensar esse defeito por meio de um ativo movimento dos olhos. São
conhecidos os casos em que o doente, com restrição muito grande do campo visual, pode executar com
êxito o trabalho de arquivista, reunindo ordenadamente manuscrito e em seguida reunindo desenhos
complexos.
Distúrbios consideravelmente graves da percepção de objetos e imagens complexas surgem durante o
distúrbio das áreas secundarias do córtex (campos 18 e 19 de Broadman). Nestes casos, o doente continua
a perceber bem detalhes isolados do abjeto ou de sua imagem mas é incapaz de sintetiza-los num todo
único, razão pela qual ele não percebe todo o abjeto e é forçado a conjeturar do significado do imagem
por indícios isolados. Alguns doentes, ao examinarem o desenho de um óculos, podem dizer: "... o que é
isto?... é ura círculo e mais um* círculo... e uma barra... na certa é uma bicicleta?"; ou examinando o
desenho de um galo ele pode dizer: "...mas o que é isto?... aqui tem um claro... um vermelho... um verde...
não serão lingüetas de fogo?..." Os ativos movimentos dos olhos, incluídos por esses doentes no processo
de exame dos objetos, freqüentemente não os aludam a identificar o desenho complexo justamente
porque, neste caso, está deformada a síntese dos indícios isolados numa imagem integral.
Uma forma original de distúrbio da percepção visual surge durante a afecção das áreas paríetal-occiptais
do cérebro, que provoca os fenômenos da chamada "agnosia simultânea" (A. R. Luria). Nestes casos, o
doente é capaz de identificar bem objetos isolados ou imagens destes; no entanto, o volume da percepção
visual se reduz como resultado da patologia do córtex visual que o doente fica em condições de operar
simultaneamente com apenas um ponto excitado, ficando os pontos restantes como que inibidos. Por isto
esses doentes podem perceber apenas uma das duas figuras que se lhes mostram simultaneamente e só
após várias exposições rápidas (de um triângulo e um círculo, por exemplo) eles declaram: "ora, €ií sei
que aqui há duas figuras, um triângulo e um círculo, mas vejo cada vez apenas uma...".
É característico, que nesses casos, as dimensões da figura percebida não têm importância para a sua
percepção e o doente pode perceber do mesmo modo uma agulha ou um cavalo mas é incapaz de perceber
simultaneamente duas ou várias imagens. É natural que um doente como este não pode atingir o centro de
um círculo com um lápis porque ele vê simultaneamente ou a ponta do lápis ou o círculo, cometendo, por
isto, erros característicos. Por esse mesmo motivo ele não consegue traçar o contorno que lhe foi proposto
nem ir além de uma linha ao escrever uma carta. Os movimentos dos olhos desse doente são
desorganizados e ele, ao acompanhar facilmente um ponto em movimento^-não pode transferir a vista de
um ponto a outro. Compreende-se que para deslocar o olhar de um ponto a outro é necessário conservar a
capacidade de perceber simultaneamente dois pontos: um, para o qual o homem está olhando, e o outro,
que se encontra na periferia do campo de visão e para o qual o olhar deve ser deslocado.
Essa condição é abolida durante o estreitamento da percepção visual e sua limitação a um foco acessível
de excitação, tornando-se impossível o deslocamento organizado do olhar de um objeto a outro.
É natural que se torne acentuadamente complexa para esses doentes a análise de quadros temáticos
difíceis. Eles deixam de "abranger" todo o quadro, percebem-lhe apenas fragmentos isolados e são
forçados a "conjeturar" o seu conteúdo onde o homem normalmente o percebe.
Uma forma especial de perturbação da percepção visual surge com a afecção unilateral (mais
freqüentemente do lado direito) das áreas occiptal-parietais do cérebro. Nestes casos, pode-se observar
um fenômeno sui generis, que na clínica recebeu o nome de agnosia ótica unilateral.
Este fenômeno consiste em que o doente deixa de perceber um lado (habitualmente o esquerdo) do
desenho ou da imagem complexa que se lhe apresenta. As peculiaridades dessa forma consistem em que,
diferentemente da percepção unilateral do campo visual primário, provocada pela hemianopsia, esses
doentes, não recebendo sinais do respectivo lado do campo perceptível, simplesmente ignoram esse lado;
por isto não conseguem contar o número de figuras representadas no quadro e nos casos mais graves
chegam a ignorar até o lado esquerdo de dado objeto. É característico que, diante disto, nos movimentos
dos olhos de semelhantes doentes aparecem várias perturbações. Ao fixar o lado direito do objeto que
examina e fazendo um movimento complementar do olho no sentido desse lado direito, tais doentes não
passam a vista sobre o lado esquerdo do quadro, o que sugere uma original "diaferentação" da metade
esquerda da visão.
É inteiramente distinto o quadro do distúrbio que surge nos doentes com afecções maciças dos lóbulos
frontais do cérebro. Esses doentes conservam a percepção de detalhes isolados e imagens inteiras. No
entanto os movimentos ativos dos olhos, que efetuam a busca dos detalhes mais informativos, são aqui
grosseiramente perturbados e às vezes cessam inteiramente; o doente deixa de examinar o quadro e não
tenta orientar-se nele; pode sugerir uma hipótese do seu conteúdo sem verificá-la, sem comparar os
detalhes isolados do quadro e os erros de sua percepção não estão vinculados a falhas da síntese visual
mas de sua atividade de procura. Tudo isto se manifesta no fato de que os movimentos de seus olhos são
passivos e caóticos e em que as diversas instruções que lhes são dadas não mudam o sentido e o caráter
desses movimentos dos olhos.
Um dos fatores essenciais, que serve de base à patologia da percepção visual nos doentes com afecção
dos lóbulos frontais do cérebro, é a inércia patológica, que se manifesta tanto na avaliação dos objetos
visuais como no movimento dos olhos desses doentes.
A segunda fonte de perturbação da percepção visual de objetos complexos em doentes com afecção dos
lóbulos frontais do cérebro é a 'perturbação do processo de comparação da informação real com a
hipótese, informação essa que representa um fragmento de material perceptível. Nestes casos, a causa do
distúrbio da percepção é o processo defeituoso de atividade perceptiva e a profunda perturbação do
mecanismo da "ação aceptora".
Os distúrbios da percepção visual podem ocorrer também nos estados patológicos de atividade,
provocados por uma afecção geral do córtex cerebral e pelos deslocamentos funcionais que estão
relacionados com a patologia geral na estrutura da atividade psíquica.
Deste modo, entre os doentes com retardamento mental e demência orgânica, podemos observar atraso ou
desintegração da análise de uma situação complexa com degradação da percepção visual de um quadro
difícil até a enumeração de objetos isolados; por isto o experimento de análise de um quadro temático
tornou-se um dos pontos de apoio mais importante no diagnóstico do retardamento mental.
Podemos observar distúrbios substanciais também nos casos de psicose, particularmente nos casos de
esquizofrenia.
As peculiaridades típicas da percepção consistem em que a influência da experiência anterior sobre a
análise de um quadro polissêmico pode ser consideravelmente perturbada neste caso; se na pessoa normal
essa -análise ocorre sob a influência reguladora da experiência anterior, graças à qual as relações pouco
prováveis são abandonadas e as altamente prováveis determinam a avaliação do sentido do quadro, já no
esquizofrênico essa influência desaparece, ele pode avaliar o sentido do quadro através de detalhes
diretos, revelando-se sem condições de controlar as hipóteses pouco prováveis que lhe afloram na mente.
O estudo psicoiógico do distúrbio da percepção dos estados patológicos do cérebro é de grande
importância tanto para o diagnóstico prático das afecções cerebrais como para um estudo mais
aproximado da estrutura da atividade percep-tiva de um homem normal.
Percepção do espaço
A percepção do espaço muito se distingue da percepção ■da forma e do objeto. Sua diferença consiste em
que ela se "baseia em outros sistemas de analisadores de funcionamento simultâneo e pode ocorrer em
diferentes níveis.
Durante muito tempo, a filosofia discutiu se a percepção do espaço é congênita (como consideravam os
"nativistas") ou resultado de aprendizagem (como consideravam os partidários do empirismo).
Hoje é absolutamente claro que, embora a percepção do espaço tenha por base vários aparelhos
específicos, sua estrutura é muito complexa e as formas desenvolvidas de percepção do espaço podem
ocorrer em diferentes níveis.
A percepção do espaço tridimensional se baseia na função de um aparelho especial — os canais
semicirculares (ou o aparelho vestibular) — situado no ouvido interno. Esse aparelho tem a forma de três
tubos curvos semicirculares, situados nos planos vertical, horizontal e sagitai, preeenchidos por um
líquido. Quando a pessoa muda a posição da cabeça, o líquido que enche os canais muda de posição e o
aparelho otolítico situado nos canais (sacos membranosos, que incluem cristais muito miúdos) rnudam de
posição, provocando excita-ção das células capilares, que leva ao surgimento de mudanças na sensação de
estabilidade do corpo ("sensações estáticas"). Esse aparelho que reage sutilmente ao reflexo dos três
planos fundamentais do espaço é o receptor específico deste.
Esse aparelho está estreitamente vinculado ao aparelho dos músculos motores dos olhos e cada mudança
do aparelho vestibular provoca mudanças reflectoras na posição dos olhos; nas mudanças rápidas e
demoradas da posição do corpo no espaço, começam os movimentos de pulsação dos olhos denominados
mistagmo (iridocinesia), e na mudança rítmica demorada das excitações visuais (por exemplo, nas que
surgem quando passamos de automóvel por uma aléía com árvores, que "passam" rápida e
constantemente, ou quando fixamos longamente o olhar num tambor giratório com faixas transversais)
surge um estado de instabilidade acompanhado de enjôo. Essa estreita relação mútua entre o aparelho
vestibular e o aparelho motor dos olhos, que provoca reflexos ótico-vestibulares, são um componente
essencial do sistema que assegura a percepção do espaço.
O segundo aparelho importante, que assegura a percepção do espaço e acima de tudo da profundidade, e c
dispositivo de percepção visual binocular e de sensação dos esforços musculares produzidos pela
convergência dos olhos.
É fato bem conhecido que a profundidade (distância) dos objetos é sobretudo bem percebida quando
observamos o objeto com ambos os olhos. Para perceber os objetos com a necessária nitidez, a imagem
do objeto em observação deve cair sobre os pontos correspondentes da retina; para assegurar isto é
necessária a convergência de ambos os olhos. Se na convergência dos olhos surge uma insignificante
disparidade de imagens, aparece a sensação de distância do objeto ou o efeito estereoscópico; com maior
disparidade dos pontos da retina de ambos os olhos sobre os quais cai a imagem, surge uma bifurcação do
objeto. Deste modo, os impulsos derivados da tensão relativa dos músculos dos olhos, que asseguram a
convergência e o deslocamento da imagem em ambas as retinas, constitui o segundo componente
importante da percepção do espaço.
O terceiro componente importante da percepção do espaço são as leis da percepção estrutural, que já
descrevemos anteriormente e em determinadas condições se bastam por si mesmas para provocar a
percepção da profundidade. A essas leis incorpora-se uma última condição — a influência da experiência
anterior bem reforçada, que pode influenciar substancialmente a percepção da profundidade mas em
alguns casos, como já indicamos, pode levar ao surgimento de ilusões.
A percepção do espaço não se limita, portanto, à perceo-ção da profundidade. Uma parte essencial dela é
constituída pela percepção das disposições dos objetos em relação uns aos outros, o que requer uma
análise especial.
O espaço que percebemos nunca tem caráter simétrico; em maior ou menor grau, ele é sempre
assimétrico. Uns objetos estão situados acima de nós, outros, abaixo; uns são mais distantes, outros, mais
próximos; uns estão à direita, outros, à esquerda. Nesse espaço assimétrico, as diferentes disposições
espaciais dos objetos têm, freqüentemente, importância decisiva. Um exemplo disto podemos ver nas
situações em que temos necessidade de nos orientar na disposição dos cômodos, de manter o plano de um
caminho, etc.
Nas condições em que podemos nos apoiar em sinais visuais complementares (distribuição das coisas nos
corredores, formas variadas dos edifícios nas ruas), essa orientação no espaço é facilmente realizada.
Quando esse ponto complementar de apoio visual é obliterado (isto ocorre, por exemplo, em corredores
absolutamente idênticos, nas estações do metrô em que há duas saídas opostas absolutamente idênticas
pela forma), essa orientação se torna acentuadamente difícil. Cada um sabe perfeitamente como a
orientação se perde facilmente da disposição espacial na pessoa que adormece no escuro absoluto.
A orientação nesse espaço assimétrico é tão complexa, que apenas os mecanismos acima descritos não
são suficientes. Para assegurá-la, tornam-se necessários mecanismos suplementares, antes de tudo a
distinção da mão direita "principal" cora cujo apoio o homem faz uma análise complexa do espaço
anterior e do sistema de representações espaciais abstratas (direita-esquerda) que, como mostraram
observações psicológicas, é de origem histórico-social.
É absolutamente natural que, em determinada etapa da qntogênese, quando a mão direita ainda não se
separou e o sistema de conceitos espaciais não foi assimilado, os aspectos simétricos do espaço tenham
sido confundidos durante muito tempo. Esses fenômenos, característicos dos estágios iniciais de todo
desenvolvimento normal, manifestam-se na chamada "escrita especular", e começa em muitas crianças
entre os três e os quatro anos e se estendem caso a mão principal (a di-deita) não se destaque por algum
motivo.
O complexo conjunto de dispositivos que servem de base à percepção do espaço requer, naturalmente,
idêntica organização complexa dos órgãos que efetuam a regulamentação central da percepção espacial.
Esse órgão central é constituído pelas zonas terciárias do córtex cerebral ou zonas de cobertura, que
unificam o funcionamento dos analisadores visual, tátil-sinestésico e vestibular. É justamente por isto que
a afecção das áreas subparietais do córtex cerebral, que não afeta a percepção normal das formas dos
objetos e de sua profundidade (distância) leva, via de regra, a um distúrbio profundo das formas
superiores de organização da percepção espacial.
Os doentes com afecção das áreas subparietais do cérebro não experimentam grandes dificuldades na
percepção visual das figuras e objetos; eles continuam a distinguir a distância e não manifestam
dificuldade de avaliação da perspectiva. Mas eles mostram nítidas dificuldades de orientar-se no espaço,
não conseguem distinguir os lados direito e esquerdo dos objetos, confundem-se para encontrar o
caminho correto e andam para a direita quando precisam andar para a esquerda; cometem erros na
avaliação da posição dos ponteiros dos relógios, não distinguindo os números simetricamente distribuídos
(por exemplo, confundem os ponteiros nas posições de "três horas" e "nove horas");~ perdem a
capacidade de orientar-se no mapa geográfico e de avaliar os algarismos romanos simetricamente
dispostos (por exemplo, xi e rx); perdem a capacidade de orientar-se corretamente no "espaço simbólico"
necessário para operações com a estrutura da classe do número e com o cálculo. Como veremos adiante,
eles experimentam visíveis dificuldades em operações lógico-grama-ticais e necessitam de orientação
num espaço complexo (assimétrico) .
Deste modo, o estudo da maneira pela qual mudam as formas complexas de orientação no espaço nos
doentes com afecção das áreas subparietais do cérebro não apenas permite penetrar mais a fundo nas
bates dessa forma de percepção como permite ainda estabelecer quais as formas de processos psíquicos
conscientes que ocorrem com a sua participação.
Os distúrbios do esquema do corpo são formas especiais de distúrbio da percepção espacial. Eles surgem
com a irritação patológica das áreas proprioceptivas do córtex sub-pariental e se manifestam numa
mudança sui generis das sensações do próprio corpo: doentes com semelhante afecção podem ter a
sensação de que um lado do seu corpo tornou-se estranhamente maior, e a cabeça "inchou", tornando-se
maior do que todo o corpo, etc. O distúrbio do esquema do corpo constitui um importante sintoma de
apoio para o diagnóstico dos focos patológicos nas áreas subparietais do córtex e nas respectivas
formações subcorticais.
Percepção auditiva
A percepção auditiva é radicalmente distinta tanto da percepção tátil como da visual.
Se as percepções tátil e visual refletem o mundo dos objetos dispostos no espaço, já a percepção auditiva
está relacionada com uma sucessão de irritações que ocorrem no tempo.
Essa diferença radical foi observada pelo grande fisio-logista russo I. M. Setchenov, segundo o qual os
dois tipos básicos de atividade sintética que o homem possui são, por um lado, a reunião de excitações
isoladas em grupos simultâneos e acima de tudo espaciais e, por outro, a reunião das excitações que
chegam ao cérebro em séries sucessivas.
A percepção auditiva se relaciona antes de tudo com o segundo tipo de síntese e é nisto que reside a sua
importância fundamental.
Basejs. fisiológicas e morfológicas da audição
O nosso ouvido percebe tons e ruídos. Os tons são oscilações rítmicas regulares do ar; e a freqüência
dessas oscilações determina a altura do tom (quanto maior é a freqüência, mais alto é o tom), enquanto a
amplitude dessas oscilações determina a intensidade do som (ou a sua sonoridade subjetiva). Os ruídos
são o resultado de um complexo de oscilações subpostas umas às outras, encontrando-se a freqüência
dessas oscilações em relações casuais indivisíveis entre si. O ruído composto de um grande número de
diferentes oscilações de intensidade idêntica (onde nenhum componente predomina) é chamado "ruído
branco" (em analogia com a cor branca que, como se sabe, é o resultado da mistura de cores diferentes).
Cabe observar que só tons como os de um diapasão são constituídos por uma série de oscilações e
denominados tens puros. Os tons da voz ou de quaisquer instrumentos se distinguem pelo fato de que as
oscilações têm aqui um caráter complexo e as partes componentes destas estão em relações divisíveis
entre si e neste caso a altura do tom é determinada pela freqüência das oscilações de amplitude máxima e
o número total de oscilações incluídas (harmonia) determina o timbre de determinado tom. A altura do
tom é expressa em hertz (número de oscilações por segundo) e sua força em decibéis (um
decibel=l/10bel; entende-se por "bel" o aumento da pressão mínima da onda de 10 vezes; sendo o bel não
uma unidade demasiadamente grande, usam-se na prática os decibéis).
Como já foi dito, o homem é capaz de distinguir sons num diapasão de 20 a 20 000 Hertz, enquanto o
diapasão das intensidades dos sons percebidos pelo homem constitui uma escala de 1 (sons liminares) a
130 decibéis.
O aparelho periférico do ouvido é formado por um complexo conjunto de dispositivo. Os tons que atuam
sobre o homem e os ruídos passam pela entrada do ouvido e chegam ao tímpano, uma película elástica
dotada da capacidade de oscilar-se em ritmo com o som. Através do sistema de ossículos situados no
ouvido médio (bigorna, martelo, es-tribo), essas oscilações são transmitidas através da janela oval ao
aparelho do ouvido interno, onde está situado o aparelho da recepção auditiva — a cóclea, cheia de
líquido (en-dolinfa). As oscilações, transmitidas pelo referido aparelho do ouvido médio, põem em
movimento o líquido da cóclea e provocam oscilações correspondentes nesse sistema fechado. Na
membrana básica da cóclea, está situado um dispositivo especial que transforma as oscilações do líquido
em ex-citações nervosas — o órgão de Kortiv —, dispositivo extraordinário dotado da propriedade de
transformar oscilações sucessivas em excitação de células nervosas isoladas espacial-mente distribuídas.
Essa "codificação" se conclui pelo fato' de que o órgão de Kortiv é constituído de um sistema de células
capilares nervosas, cada uma das quais ligada a um filamento transversal de determinado comprimento
incluído no canal da cóclea. São esses filamentos que fazem repercutir as oscilações do líquido de
freqüência diferente e, como na cóclea há até 24 mil desses filamentos, surge a possibilidade de perceber
os tons no diapasão de freqüência acima indicado.
Deste modo, cada som que chega ao aparelho do receptor auditivo provoca oscilação de uma ou várias
séries de cordas e essas oscilações excitam as células capilares correspondentes e provocam excitações
dos nervos. Neste caso, os sons altos provocam oscilações das cordas mais curtas e os sons baixos, das
cordas mais longas; as excitações' nervosas daí resultantes são conduzidas através dos respectivos
filamentos do nervo auditivo.
A "teoria da ressonância do ouvido", proposta em seu tempo pelo notável fisiologista alemão Helmholtz,
é adotada pela maioria dos pesquisadores; só ultimamente ela recebeu correções do famoso fisiologista do
ouvido Bekeshy, que indicou que a membrana fundamental da cóclea não é alongada e as cordas a ela
fixas reagem às oscilações do líquido segundo leis hidrodinâmicas.
O fato de o processo fundamental que ocorre no corte periférico do receptor auditivo ser realmente a
transformação das oscilações mecânicas em complexos fenômenos nervosos (elétricos) é demonstrado
pelo chamado efeito telefônico (ou microfônico), descrito pelos fisiologistas americanos Wyver e Brain.
Se desviarmos as correntes da ação do nervo auditivo de um gato e, após aumentá-las, desviá-las para um
microfone situado numa sala contígua, pronunciando em seguida uma palavra no ouvido do gato,
poderemos ouvir essa palavra pelo microfone. Esse teste mostra que o receptor auditivo funciona pelo
princípio do microfone, que traduz as oscilações mecânicas do som em oscilações elétricas. Os filamentos
do nervo sonoro, que partem do órgão de Kortiv, fazem parte da "via auditiva". Neste caso, os filamentos
que partem de ambos os nervos auditivos, ao produzir o ramo que segue para o corpo quadrigêmeo
inferior, seguem na composição do "nó interior" no sentido dos aparelhos centrais dos dois hemisférios.
Eles cessam no corpo caloso interno (aparelho subcortical do ouvido), de onde se dirigem para a
circunvolução transversal da área temporal (cir-cunvoluçào de Geshel), que é a zona auditiva primária (ou
de projeção) do córtex. Como ocorre em outras zonas de projeção, os filamentos que conduzem impulsos
de diferentes freqüências dispõem-se nessa zona de projeção em ordem rigorosa: nas áreas internas
(mediais) da circunvolução de Geshel terminam os filamentos que conduzem os impulsos dos tons altos
e nas áreas laterais da circunvolução de Geshel terminam os filamentos que conduzem os impulsos dos
tons baixos.
Via de regra, a afecção da circunvolução de Geshel de um hemisfério leva apenas à redução parcial da
audição no ouvido oposto (como já foi lembrado, os filamentos oriundos dos dois receptores periféricos
da audição chegam tanto ao hemisfério direito como ao esquerdo).
É essencial o fato descoberto pelo psicólogo soviético Guershuni, segundo o qual a afecção do córtex da
área temporal, sem se refletir nitidamente nos limiares da percepção^ dos tons longos, leva a uma nítida
elevação dos limiares (ou a redução da sensibilidade), sons ultracurtos (de 1 a 5m.seg.), que se
manifestam no ouvido oposto. Esse fato leva a pensar que o papel do córtex auditivo não consiste apenas
em perceber os sinais sonoros que chegam ao receptor periférico mas também em estabilizá-los,
permitindo ao homem levar em conta componentes mais fracionados e mais curtos desses sinais.
As excitações que chegam à circunvolução de Geshel são sucessivamente transmitidas aos aparelhos das
áreas externas (conveccionais) do córtex temporal (campo 22 de Broadman) que constituem a zona
auditiva secundária. O predomínio dos neurônicos da II e III camada, que distinguem essa zona, bem
como as suas íntimas ligações com outras áreas (motoras) do córtex convertem a zona auditiva secundária
né-aparelho mais importante, que permite discriminar os elementos essenciais da informação auditiva,
sintetizar os indícios desta e codificar os sons em sistemas complexos, noutros termos, permitem realizar
processos de uma complexa percepção sonora.
Organização psicológica da percepção auditiva
Falando da organização da sensibilidade tátil e visual, já observamos que as formas e objetos do mundo
exterior são os fatores que as organizam em determinados sistemas. O reflexo dessas formas leva à
codificação dos processos táteis e visuais em determinados sistemas e sua transformação numa percepção
tátil e visual organizada.
Quais são os fatores que levam à organização dos processos auditivos no complexo sistema de percepção
auditiva?
Ê sabido que a audição dos animais é organizada por determinados programas congênitos, que lhes
permitem distinguir os componentes biologicamente essenciais dos sons e reuni-los em determinados
sistemas biologicamente importantes, que o animal distingue facilmente dos outros ruídos (podem servir
de exemplo o ruído do rato ou o miado de um gatinho, que são facilmente distinguíveis pelo gato entre
todos os outros ruídos). À diferença disto, o mundo das excitações sonoras do homem é determinado por
outros fatores de origem não biológica mas histórico-social.
Podemos distinguir dois sistemas objetivos, que se formaram no processo da história social da
humanidade e exercem grande influência na codificação das sensações auditivas do homem em
complexos sistemas de percepção auditiva. O primeiro deles é o sistema rítmico-meiódico (ou musical)
de códigos, o segundo, o sistema fonemático de códigos (ou sistema de códigos sonoros da língua). São
esses dois fatores que organizam em complexos sistemas de percepção auditiva os sons percebidos pelo
homem.
Graças ao papel decisivo desses fatores, se o ouvido do animal tem, às vezes, uma sensibilidade ao som
bem mais aguda do que o ouvido do homem, este apresenta como característica uma complexidade bem
maior, uma riqueza maior e uma elasticidade mais intensa dos códigos sonoros.
É sabido que o sistema de códigos rítmico-melódicos (ou musicais), que determina a audição musical, é
constituído de dois componentes básicos.
Um desses componentes é constituído pelas relações dos sons altos, que permitem organizar os sons em
acordes con-sonantes e formar séries sucessivas dessas relações sonoras que fazem parte da composição
das melodias, O segundo é constituído pelas relações rítmicas (ou prosódicas) das alternâncias regulares
da duração e dos intervalos de sons isolados. Essas relações podem criar complexas imagens rítmicas
inclusive dos sons de uma freqüência (a fração de um tambor pode servir de exemplo desses sons
ritmicamente organizados).
A função básica da audição musical é distinguir as relações sonoras altas e prosódicas (rítmicas),
sintetizá-las em estruturas melódicas, criar sons melódicos correspondentes que expressam determinado
estado emocional e conservar esses sistemas rítmico-melódicos. Vê-se facilmente que, se nas etapas
iniciais de desenvolvimento da audição musical, esse processo de codificação do sistema sonoro tem
caráter desdobrado, na medida em que vai sendo exercitado esse processo se reduz, formando-se no
homem unidades maiores de audição musical e tornando-se capaz de distinguir e conservar vastos
sistemas integrais de melodias musicais.
O sistema da linguagem sonora é o segundo sistema que determina o processo de percepção sonora e
assegura a codificação dos seus elementos isolados e sua conversão em formas complexas de percepção
sonora.
A linguagem humana dispõe de todo um sistema de códigos sonoros, à base dos quais se constróem os
seus elementos significantes: as palavras. Para distinguir os sons do discurso ou jonemas não basta
possuir um ouvido agudo; para percebê-los é necessário efetuar um complexo trabalho de discriminação
dos indícios essenciais do som do discurso e de abstração dos traços estranhos, secundários para tal
distinção.
Cada etapa historicamente formada possui um complexo código de traços essenciais, que permitem
distinguir o sentido de uma palavra pronunciada; na língua portuguesa esses traços são, por exemplo, as
marcas de sonoridade ou surdez das consoantes (sons muito semelhantes que se distinguem por apenas
um desses traços como, por exemplo, "b" e "p", "d" e "t" que permitem mudar o significado da palavra.
Podemos tomar como exemplo a distinção entre palavras como "braça" e "praça", "bala" e "pala",
"dote"_e "pote". Esses traços sonoros, de significado semântico distintivo, são denominados traços
jonemáticos; aqui a essência da captação auditiva do discurso consiste em distinguir esses traços na
cadeia falada, torná-los dominantes, abstraindo simultaneamente o timbre com o qual são pronunciadas as
palavras e a altura do tom que distingue a voz de quem as pronuncia.
A assimilação do sistema fonemático objetivo (variado em língua diferente) constitui a condição que
organiza o ouvido do homem e assegura a percepção do discurso sonoro. Sem o domínio desse sistema
fonemático, a audição fica desorganizada e a pessoa que não domina o sistema fonético de uma outra
língua não só "não o entende" como não distingue os traços fonéticos essenciais para 'essa língua, noutros
termos, "não escuta" os sons que o compõem.
Examinaremos mais detalhadamente os códigos fonemá-ticos da língua quando analisarmos a psicologia
da fala; aqui nos limitaremos a breves comentários.
A codificação dos sons para sistemas correspondentes de audição musical ou discursiva não é um
processo passivo.
Como o sistema de percepção tátil ou visual do objeto, a complexa percepção auditiva constitui um
processo ativo, que engloba componentes motores. A diferença entre a percepção auditiva e a tátil e
visual consiste apenas em que se na percepção tátil e visual os componentes motores estão incluídos no
mesmo sistema de analisadores (os movimentos de apalpação da mão, os movimentos de busca dos
olhos), na percepção auditiva eles estão separados do sistema auditivo e reunidos distintivamente num
sistema especial de canto vocal para audição musical e de pronunciação para audição do discurso.
O trabalho dos psicólogos soviéticos (A. N. Leôntyev. O. V. Ovtchinnikova), bem como a experiência de
músicos-pedagogos que ensinam a língua estrangeira mostra que é justamente a produção dos tons
necessários que constitui a condição que permite distinguir e precisar a altura necessária do tom, sendo a
produção dos sons do discurso a condição importante que permite precisar-lhe a composição sonora,
abstraindo em cada caso os componentes sonoros estranhos.
Uma boa prova disto são os testes de Leôntyev; aqui nestes propõe-se ao sujeito avaliar a altura dos tons a
ele apresentados num timbre suplementar dos sons "i" e "u". O teste mostrou que tons de altura idêntica,
apresentados com essas diferenças de timbre são sempre percebidos como diferentes pela altura; o tom
apresentado no timbre "i" foi avaliado como o mais alto, o tom apresentado no timbre "u", como mais
baixo.
Foi necessário incluir no processo de análise da altura do tom o próprio canto do sujeito para que este
fosse caoaz de abstrair os traços secundários dos timbres e sua sensibilidade à altura do tom aumentasse
bruscamente.
É característico que tais fenômenos da redução da audição altamente sonora sobre o efeito do timbre
tenham sido observados em pessoas que falavam línguas "tímbricas" (russo, inglês, francês), não se
observando em pessoas que falam línguas "tonais" (o vietnamita), nas quais não é o timbre mas a altura
do tom que constitui o traço semântico distintivo.
Deste modo, a observação aqui descrita mostra a grande importância que tem para a sutileza do ouvido a
sua inclusão no sistema da língua e o papel que o componente motor "solfejo" do tom desempenha na
abstração desses indícios estranhos.
Papel análogo é desempenhado pelo componente motor na precisão do ouvido fonemático, com a única
diferença de que o solfejo é aqui substituído pela pronúncia dos sons do discurso. As pessoas que
lecionam língua estrangeira sabem perfeitamente que é o pronunciamento ativo que permite distinguir os
traços fonemáticos necessários, dominar o sistema fonemático objetivo da língua e deste modo precisar
essencialmente a audição fonemática do discurso.
Patologia da percepção auditiva
O distúrbio dos processos auditivos pode surgir com afec-ção de diferentes elos da cadeia auditiva e
apresenta caráter diversificado.
Com a afecção da área periférica da via auditiva do ouvido interno, surge a surdez ou a redução da
audição. Essa redução está não raro relacionada com distúrbios da sensibilidade vestibular, tendo em vista
que os dois aparelhos periféricos — a, cóclea e os canais semicirculares — estão concentrados no ouvido
interno.
A afecção da área periférica da via auditiva, relacionada com ocorrências inflamatórias do nervo
auditivo, provoca não apenas a redução da audição como também restrição considerável do dnpasão
útil da audição. O aparelho afetado começa rapidamente a reagir ao aumento da intensidade do som
através de sensações de dor (esse fenômeno ficou conhecido como recruitment).
A afecção do corpo quadrigêmeo, aonde chegam as ramificações do nervo auditivo, não provoca
visíveis perturbações ouvido mas leva à perturbação das ligações elementares entre os sistemas auditivo
e visual e àquela do "reflexo cócleo-pupilar " (redução da pupila em resposta a uma súbita excitação
auditiva). A supressão desse reflexo constitui uma importante prova objetiva da perturbação da função
auditiva onde outras vias e métodos de estabelecimento de sua patologia são inacessíveis.
A afecção das áreas primárias (projetoras) do córtex auditivo leva a um nítido distúrbio da audição (a
chamada "surdez central") apenas nos raríssimos casos de afecção simultânea das áreas de projeção dos
dois hemisférios. No caso de afecção unilateral das áreas de projeção do córtex auditivo, a audição não
sofre acentuadamente e só através de um minucioso estudo experimental consegue-se constatar certa
elevação dos limiares (noutros termos, a redução da sensibilidade auditiva) em sinais muito curtos
(Guershuni).
Surgem nítidos distúrbios das formas complexas de percepção auditiva com a afecção das áreas
secundárias do córtex auditivo mas essas perturbações apresentam caráter inteiramente distinto durante a
afecção da área temporal no hemisfério esquerdo, (dominante) e do direito (subdominante).
A afecção das áreas posteriores da circunvolução temporal superior do hemisfério esquerdo não perturba,
via de regra, a complexa audição musical mas leva à perturbação da capacidade de distinguir sons
semelhantes (fonemas) da fala. Doentes com essa afecção são incapazes de distinguir fonemas
semelhantes como "b" e "p", "d" e "p" ou "z" e "s", razão pela qual começam a ter dificuldades de
entender o discurso a eles dirigido. Esse fenômeno, conhecido na prática clínica como "afasia sensória"
não é acompanhado da redução da sensibilidade auditiva geral nem da capacidade de distinguir os sons
dos objetos (as badaladas do relógio, os sons de louça, o ruído dos automóveis); isto sugere que as áreas
secundárias do córtex auditivo do hemisfério esquerdo estão intimamente ligadas ao sistema da
linguagem. Foram descritos casos em que músicos e compositores, com grave afecção dessa área,
mantiveram a capacidade não só de perceber a música mas também de continuar a sua atividade de
músico e compositor.
Um sintoma importante da afecção central desse tipo de audição é a impossibilidade de captar e
reproduzir ritmos complexos (por exemplo, !!...!! ... ou !. .!.). Esses distúrbios, a par com a perturbação da
capacidade de captar e reproduzir relações altamente sonoras, são importantes indícios de afecção do
córtex auditivo.
A neurologia ainda sabe pouca coisa a respeito dos aparelhos cerebrais que asseguram audição musical
normal. Alguns dados sugerem que na organização cerebral da audição musical participa a área temporal
direita (subdominante) e possivelmente as áreas anteriores da região temporal.
Cabe observar que a afecção auditiva tenra de qualquer origem pode criar dificuldades essenciais para o
desenvolvimento intelectual da criança. As crianças que em idade tenra tiveram reduzida a audição,
começam a experimentar visíveis dificuldades de percepção do discurso que lhes é dirigido e como
resultado a comunicação verbal dessas crianças é dificultada e perturba-se a formação do seu próprio
discurso e, simultaneamente, o desenvolvimento intelectual geral. É por isto que as crianças duras de
ouvido e com atraso secundário do discurso são freqüentemente confundidas com crianças mentalmente
retardadas. O diagnóstico diferencial do atraso secundário das crianças duras de ouvido com atraso mental
primário representa dificuldades consideráveis e requer procedimentos especiais.
Com a afecção das áreas têmporo-parietais do córtex, podem surgir formas especiais de distúrbio da
audição. Nestes casos, os sons procedentes dos dois receptores periféricos começam a chegar
irregularmente ao córtex, resultando daí a perturbação do "efeito binário", que permite localizar
nitidamente os sons no espaço.
Os sintomas que acabamos de descrever são sintomas de queda ou redução da função desse ou daquele
elo do anali-sador auditivo. No entanto, não são menos importantes os sintomas de irritação desses
aparelhos.
Esses sintomas, que acompanham a irritação tanto da parte condutora como da parte central como da via
auditiva, manifestam-se nos fenômenos das alucinações auditivas: surgimento de sensações de tons,
ruídos, sons de música ou fala na ausência de causas reais. Esses fenômenos podem ser provocados por
via experimental. Como mostraram observações de neurologistas (Forfoerster, Penfield), a irritação das
áreas primárias (projetoras) do córtex auditivo pode provocar a sensação de ruídos ou tons, enquanto a
irritação das áreas secundárias do córtex auditivo leva a pessoa afetada a ouvir música, falas, etc.
Semelhantes ocorrências podem ser provocadas também por causas patológicas como, por exemplo,
cortes que irritam essas áreas do cérebro; nestes casos as alucinações auditivas se manifestam como
anúncios de ataque
epiléptico e são clinicamente chamadas de "aura auditiva".
As alucinações auditivas estáveis podem ser provocadas por focos constantes de excitação nessa região e
integrar o quadro das doenças psíquicas. Não raro, nos casos de intoxicação por alcoolismo ou
substâncias químicas nocivas, surge nos doentes estado patológico do córtex durante o qual os estímulos
estranhos pouco importantes começam a provocar imagens que brotam descontroladamente e o doente
confunde com a realidade; essas imagens nítidas podem às vezes entrelaçar-se com os estados de
delírio do doente.
A origem e as formas das alucinações representam uma parte importante da psicopatologia geral.
Percepção do tempo
Se após a análise das leis fundamentais da percepção tátil e visual tivemos de abordar detidamente as leis
psicológicas da percepção do espaço, seria natural que após o exame das leis básicas da percepção
auditiva (e motora) nós nos detivéssemos brevemente na análise da psicologia da percepção do tempo.
Apesar da grande importância desta seção da Psicologia, ela apresenta elaboração bem inferior à do
problema da percepção do espaço.
Podemos salientar que a percepção do tempo tem aspectos variados e se realiza em diferentes níveis. As
formas mais elementares são constituídas pelos processos de percepção da duração da sucessão, que se
baseiam em fenômenos rítmicos elementares conhecidos pela denominação de "horas biológicas".
Situam-se entre estes os processos rítmicos, que ocorrem nos neurônios do córtex e das formações
subcorti-cais, a substituição dos processos de excitação e inibição, que surge durante uma longa atividade
do sistema nervoso e é percebida como reforços ondulatórios alternantes e enfraquecimentos do som
durante uma escuta longa e atenta. Situam-se ainda entre eles fenômenos cíclicos como as pulsações do
coração, o ritmo da respiração e, para intervalos mais longos, o ritmo de mudança do sono e da
vigília, o surgimento de fome, etc.
Todas as condições aqui enumeradas servem de base às avaliações mais simples e imediatas do tempo.
Elas podem surgir nos animais no processo de elaboração dos "reflexos do tempo" ou dos "reflexos
retardatários" e podem ser modificadas pela ação de agentes farcnacológicos que exercem influência
sobre o sistema nervoso vegetativo. Os efeitos desses agentes podem ser verificados também no homem.
Já foi mostrado que uns preparados (a anfetamina e o oxido nitroso, por exemplo) abreviam
essencialmente a avaliação de pequenos cortes do tempo, ao passo que outros preparados (o LSD, por
exemplo) alongam a avaliação de pequenos intervalos de tempo.
Das formas imediatas elementares de sensação do tempo devemos distinguir as formas complexas de
percepção do tempo, que se baseiam nos "padrões" de avaliação do tempo criados pelo homem. Entre
esses padrões de mediação da avaliação do tempo, situam-se medidas de tempo como os segundos e os
minutos, bem como vários padrões que se formam na prática da percepção da música. É justamente em
virtude disto que a precisão dessa percepção mediata do tempo pode aumentar visivelmente, pois, como
mostraram as observações (B. M. Teplov) feitas com músicos, pára-que-distas e pilotos, ela pode aguçar-
se visivelmente no processo de exercícios em que o homem começa a cotejar lapsos de tempo que mal se
percebem. Segundo alguns dados, por esse caminho pode-se levar a precisão da percepção de pequenos
lapsos de tempo a um nível impressionante, como, por exemplo, fazendo as pessoas adquirirem a
capacidade de distinguir intervalos de 1/18 segundos de intervalos de 1/20 segundos (S. G. Hellerstein).
Da avaliação de intervalos breves devemos distinguir a avaliação de intervalos longos (as horas do dia, os
dias e meses do ano, etc), noutros termos, devemos distinguir a orientação nos cortes longos do tempo.
Esta forma de avaliação do tempo é sobretudo complexa pela estrutura, asse-melhando-se aos fenômenos
da codificação intelectual do tempo.
É interessante que a perturbação da avaliação do tempo em forma de falhas grosseiras na avaliação das
horas do dia e as perturbações da noção do tempo no ano, datas, etc,
Podem surgir durante as afecções de algumas áreas do cérebro (por exemplo, durante as afecções das
zona profundas do lobo temporal e das formações subcorticais, relacionadas com a regulação dos
processos vegetativos) e servir de sintomas de apoio para o diagnóstico dessas afecões.
Formas especiais de perturbação da percepção do tempo podem surgir também nos estados psicóticos, nos
quais, segundo alguns autores, elas se constituem num índice da perturbação das funções vitais profundas.

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