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Plano de Voo:
I. Clínica do Real
II. Bisturis
Freud
Lacan
Forbes
I. Clínica do Real
Quando Freud criou a psicanálise o mundo vivia a era industrial, uma época em que o
pai ou seu representante (chefe, governo) era o eixo e dava a direção. O laço social era
vertical, piramidal e o pai ficava no alto da pirâmide. Porque ele detinha o saber, os
sintomas podiam ser tratados pelo sentido, pela interpretação. O software criado por
Freud, próprio a esse mundo, foi o complexo de Édipo. E pode-se dizer que continuou
assim até a década de 60.
Lacan foi um visionário, previu as mudanças pelas quais o mundo ia passar e nos deixou
uma clínica própria para o mundo de agora. Forbes (2001) no texto “Lacan, analista do
futuro” afirma que “na impossibilidade de se garantir através de uma explicação
causalista e reducionista do seu passado, o analisando é levado a inventar um futuro
para si próprio, sem nenhuma outra razão além daquela do seu desejo” (p. 52). A clínica
do Real é a clínica do homem desbussolado; ela não tem uma bula. Não é um prêt-à-
porter, algo pronto para vestir. É alta-costura. É para cada um. Por isso, os bisturis.
Lacan cria a expressão “Desabonado do inconsciente” (LACAN, 1975-76, 2007, p. 160) para
se referir a alguém que não adere ao senso comum, ao modo banal de usar as palavras
e que pode nomear sua singularidade. Ao desistir da compreensão, o desabonado do
inconsciente está livre da expectativa do outro e aberto à criatividade.
II. Bisturi
Freud. Bisturi é usado na medicina como instrumento cirúrgico. Freud usa este termo
como metáfora cirúrgica. Em “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”
(1912/69) indica que tomem como modelo um cirurgião que durante o tratamento
psicanalítico não se prende a seus sentimentos e se concentra no objetivo de realizar a
operação tão competentemente quanto possível (p. 153). Ele também recomenda ao
médico utilizar seu inconsciente como instrumento da análise (p. 154). Ao dar esta
instrução, considero que, já em 1912, está implícita a ideia de bisturi em psicanálise. E
este bisturi é o inconsciente do analista. Freud (1917/1976) volta ao tema na Conferência
XXVIII – Terapia analítica: “O tratamento psicanalítico pode ser comparado a uma
operação cirúrgica e exigir, de modo similar, que seja efetuado sob condições que serão
as mais favoráveis para seu êxito. … A intervenção dos parentes é perigo real e não se
sabe como enfrentar.” (534-5) “Não há instrumento ou método médico garantido contra
mau uso; se um bisturi não corta, tampouco pode ser usado para curar” (539). Em
Análise Leiga, afirma que “ … a atividade de um analista não formado causa menos mal a
seus pacientes do que a de um cirurgião inábil.” (FREUD, 1926/1976, p. 264)
Forbes. Jorge Forbes (2013) propõe não separar a cirurgia da psicanálise, pois se cirurgia
implica perigo, a psicanálise é igualmente perigosa. Freud usou o termo bisturi como
metáfora, Forbes agora o propõe em termos do Real. Por exemplo, em caso atendido na
Clínica de Psicanálise do Genoma -USP, um paciente com distrofia muscular se queixa
dizendo, “- Doutor, o senhor tem ideia do que é acordar, olhar para a porta do banheiro,
olhar para a bengala e não saber se vou conseguir chegar até lá?”. – Não tenho a menor
ideia, responde ele (FORBES, 2009). É impressionante como este bisturi abriu a clínica.
A psicanálise é uma ética (p. 135). A psicanálise não consente com o uso de ferramentas
morais tipo: Vou me associar a seu lado sadio para tratar seu lado mau. Não traça uma
linha asséptica entre o bem e o mal (p. 155). Bisturi enferrujado é o bisturi superegoico
(FORBES, 2013).
Os bisturis da Clínica do Real, mais do que conceitos, dizem respeito ao ato analítico.
Não dissemos que a Psicanálise toma o relevo de sua época? Hoje a hegemonia não é do
simbólico, mas do Real. Por que bisturi? Porque não se espera a solução, opera-se. A
operação é direta e rápida. Promove a separação do corpo com os significantes que
marcaram a pessoa e a parasitaram. “Tire isso de mim!” Como disse Lacan, no Seminário
23 (1975-76/2007), “a fala é um parasita, a fala é uma excrescência, a fala é a forma de
câncer pela qual o ser humano é afligido” (p. 92). A operação analítica visa a levar à
invenção e responsabilidade.
Neste caso o bisturi opera assim: se a pessoa age segundo certa expectativa, o analista
faz com que ela mude o paradigma da sua expressão. Introduz uma surpresa, algo que
toma a pessoa de modo que ela se sente ultrapassada: ‘Mais forte que eu.’ O caso
atendido por Forbes (2009) Não tenho a menor ideia é outro exemplo. Há uma quebra da
expectativa de sentido. Esse foi o bisturi utilizado.
2. A crueza
Para descrever este tipo de bisturi, recorremos a um exemplo da clínica de Jorge Forbes.
Um senhor o procura angustiado devido a um câncer avançado. Lamuria: “É duro,
Doutor, a gente ficar dependente, saber que vai durar pouco, que está piorando, que
logo vai morrer”. O analista, sem colocar emplastos, diz: “Claro que é duro saber que
está para morrer. É isto”. Assim, ao nomear o que falta para continuar a existir – “É isto o
que te falta” -, paradoxalmente a morte se apresenta em sua brutalidade essencial. Esta
intervenção possibilita que a pessoa se dê conta da existência do impossível e conclua:
“Não, não é isto” (FORBES, 1999, p. 176).
O caso já mencionado Não tenho a menor ideia também ilustra o bisturi crueza,
contrapondo-o à compaixão. Daí nosso trabalho na Clínica do Genoma ter sido
denominado Desautorização do sofrimento prêt-à-porter. Lacan disse que o analista tem
horror a seu ato. A coragem tem a ver com o horror ao ato. Coragem de romper com o
pacto moral. A crueza pode ser necessária. Covardia é identificação com o pacto moral.
Coragem é responsabilidade pelo impacto ético.
3. A nomeação do gozo
Para apresentar este tipo de bisturi tomo mais um exemplo do livro de Allouch (1999). A
paciente para Lacan: – Como dizer o que se passou com você (referindo-se a si
mesma)? Lacan: – É isso exatamente, como dizer? (p. 78). Outro exemplo utilizando a
mesma referência. A paciente fala a Lacan de suas análises precedentes. Muito rápido,
ele responde: – É de uma desanálise que você precisa. (p. 44)
Esse bisturi possibilita à pessoa sair da adaptação (na doença) para a responsabilidade
por seu modo de gozo. Como diz Forbes (1999): “a análise retifica (alinha) a posição do
sujeito com o gozo impeditivo do ato” (p. 135).
5. Empréstimo de consequência
O analista responde dando consequência ao que a pessoa diz. Ela espera sentido e o
analista empresta consequência. Ao emprestar consequência, consequência do que se
diz, o analista não espera nada além do dito.
6. O ato analítico
Pierre Rey (1990) indica uma situação de impacto em sua análise com Lacan: “Com
palavras muito duras, Lacan ameaçou suspender o tratamento se eu não encontrasse
uma maneira de saldar minhas dívidas. … A primeira etapa de minha análise devia
passar por um retorno ao real: sem o eletrochoque de sua exaltação, que me deixava em
pânico, será que eu teria podido dar esse passo?” (p. 82).
“O ato psicanalítico, ao contrário da ação, a qual faz crer ao sujeito que ele é mestre do
que faz, o ato ultrapassa o analista, do qual ele é o autor.” (FORBES, 1999, p. 45)
Mais um exemplo de ato analítico da clínica de Jorge Forbes. A paciente diz: – Sou uma
merda. Sou uma merda. Sou uma merda. Na saída, ela estende a mão a ele que faz um
movimento de lhe dar a mão para em seguida retirá-la bruscamente. O analista suporta
o ato, não realiza o ato. O ato nos ultrapassa.
O gozo desbussolado pode ser apreendido pela palavra-ato que ordena o excesso de
gozo. A palavra-ato marca e nomeia. A palavra poética, que capta algo do ser, conquista
esse gozo.
7. O ator
8. A clínica irônica
Da clínica de Lacan: Quem é paciente? Carta de Lacan a um analisante: “Eu espero você.
Pacientemente”. (ALLOUCH, 1999, p. 86)
Na clínica irônica o analista não dá o mesmo valor que o analisando ao que é dito. Se o
analista for solidário ao que é dito, não abre a clínica. Na clínica irônica você muda
rápido a expressão do sofrimento, a rapidez dá um efeito de chiste. A ironia é uma
resposta fora do eixo que desloca o sujeito.
9. A interpretação descompleta
Você não diz nada! Quando o analista busca recuperar um significado anterior, do
passado da pessoa, ele faz uma clínica ortopédica, de restabelecer o que era. O
problema é que não temos um molde de nós mesmos. A interpretação descompleta é
um meio-dizer. Coloca um enigma. Ela não põe culpa, mas responsabiliza o analisando
(FORBES, 1999, p. 25-8). Esse bisturi pode deixar um mal-entendido, que não é um
defeito, mas expressão do desejo, desejo rebelde à acomodação coletiva (p. 178).
A palavra, que antes dizia, hoje toca (FORBES, 2003, p. 28, 154). Genesini (2013) relata o
caso de uma moça com distrofia muscular, que se queixa: “É difícil alguém se interessar
por mim. Eu estava com um cara que me falou: você é tortinha.” Na discussão clínica, foi
evocada uma possível intervenção: “- E aí, comeu? É um bisturi da ressonância. Do
tortinha do corpo para tortinha de comer. Tira-se da tragédia e vai para o drama.
Passamos de uma transmissão de razões à transmissão do ressoar. Jogo de palavras
(raisonner e résonner). Não importa tanto a coerência, mas o impacto poético. A
ressonância se encontra no nível do real, como um terceiro ou seja, o que faz acordo
entre o corpo e a linguagem (Lacan, 1975-76, p. 40). Repito a citação: afirma-se no corpo
e não na razão. O ressoar permite o laço social baseado na articulação de monólogos.
11. O silêncio
Silêncio do Real. O silêncio tem a ver com o Real do corpo. Em um momento em uma
análise, seja porque esgotou o simbólico, seja porque seu gesto foi direto ao real, isola-
se os elementos do impacto e chega-se em uma coisa esquisita, estranha. A saída é a
invenção. Mas como saber que a invenção não é loucura? Porque é invenção e
responsabilidade. Uma análise vai permitir que a pessoa encontre um amor para lidar
com essa coisa esquisita que não foi marcada pela palavra, esse ponto de silêncio.
(FORBES, 2003, p. 120)
12. A palavra poética
Palavras não são só palavras, os poetas que o digam. (FORBES, 2003, p. 207). Quem não
experimentou o sabor das palavras? Exemplo de uma palavra poética como bisturi no
caso de uma moça que fazia escarificações: As marcas são portos: eu passei por aqui. Os
amantes se contam pelas marcas. É em face do real – do corpo do analista, de seu ser,
como parlêtre, que realiza uma interpretação poética e de ressonância – que o
analisando experimentará a passagem da presença do analista, disruptiva como
a tiquê, para o “analista presente”, que ele levará consigo como essas “marcas
propiciadoras” de novas respostas na vida, que não repitam sua ficção. … sua forma de
gozo será do curto-circuito da palavra, apenas o ressoar. Como monólogos, assim
perdendo a referência ao outro. (FORBES, 2012b, p. 82)
O caso a seguir marca o que seja a presença do analista (ALLOUCH, 1999). Primeira
sessão com Lacan. A paciente pede a ele para retomar sua análise, pois seu analista
tinha morrido e seria enterrado naquele dia. Lacan: Quando? Paciente: Agora. Lacan:
Você não pretende ir ao enterro? Ela, hesitante: … sim. Lacan: Você dispõe de um meio
de locomoção? Sim, diz a paciente. E Lacan, dirigindo-se à sua secretária: – Gloria, meu
casaco! Abandonando os clientes que se amontoavam na sala de espera e na biblioteca,
eis Lacan no carro daquela mulher, acompanhando-a ao enterro de seu ex-psicanalista.
Foi assim a primeira sessão com Lacan.
14. O analista
O analista é um bisturi princeps. Não é sem consequência o analista que você escolhe. O
bisturi principal numa análise é o próprio ser do analista. Os bisturis que ele utiliza são
decorrência. Como visto acima, Freud (1912/69) já indicava ao médico utilizar seu
inconsciente como instrumento da análise (p. 154). O inconsciente do analista é o bisturi
por excelência.
Lacan aponta para um gozo impossível de satisfazer. Impossível. O analista é aquele que
suporta este impossível que está além do semblante, mas estreitamente vinculado a ele.
“O analista não pode lavar as mãos” (LACAN, 1973/2003, p. 554).
Há uma forma de sintoma, fruto de uma análise, o osso duro a suportar: o psicanalista
(FORBES, 2012b). O bisturi – o analista – está trabalhado no texto de Forbes (2014) O que
esperar de um analista? “Temos hoje outro momento para a psicanálise e para o mundo.
Não se trata aqui de fazer história e, sim, de fazer o futuro, em diferença ao passado,
respondendo à questão sobre os desafios e impasses de uma psicanálise em um novo
mundo, o de hoje. Há um novo saber fazer do analista cidadão.”
Referências
ALLOUCH, Jean. – Alô, Lacan? – É claro que não. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,
1999.
FORBES, Jorge. Não tenho a menor ideia. Opção Lacaniana – Revista Brasileira
Internacional de Psicanálise, n. 55, 2009, p. 67-72.
FORBES, Jorge. Você quer o que deseja? São Paulo: Best Seller, 2003.
FORBES, Jorge. Jacques Lacan, o analista do futuro. Opção Lacaniana – Revista Brasileira
Internacional de Psicanálise, n. 32, 2001, p. 52-53.
FORBES, Jorge. Da palavra ao gesto do analista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
FREUD, Sigmund. (1926) A questão da Análise Leiga, vol. XX. Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 205-293.
FREUD, Sigmund. (1912) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, vol. XII.
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago,
1969, p. 147-159.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23 O sinthoma, 1975-76. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2007.
PIERRE, Rey. Uma temporada com Lacan – relato. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.