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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Matos, Pedro Arcanjo


Toda dor do mundo : uma introdução a ontologias
não-especistas / Pedro Arcanjo Matos. -- 1. ed. --
Brasília, DF : Ed. do Autor, 2010.

Bibliografia
ISBN 978-85-910969-0-9

1. Filosofia 2. Ontologia 3. Pensamentos


4. Singularidades (Filosofia) I. Título.

10-12543 CDD-111

Índices para catálogo sistemático:

1. Ontologia : Filosofia 111

Capa, diagramação e projeto gráfico: Flávio Bá


Ilustração da contra-capa: Mario de Alencar
Ilustrações de início de capítulo: Laerte

EDITORA QUINTA MÃO: quintamao@gmail.com

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Sumário

Apresentação ..................................................................................... 09

Prefácio – Hilan Bensusan


Um futuro selvagem para a filosofia .................................................. 11

1 - Sobre o massacre de quem não


sente o mundo da mesma forma ........................................................ 15

2 - Definição como oposição ............................................................. 25

3 - O jardim da natureza passiva habitada


por soberanos sujeitos autônomos ..................................................... 35
Sobre Sujeitos ..................................................................... 37
Muito Além do Jardim ........................................................ 41

4 - Sobre galinhas e soberanos.


A epistemologia do reconhecimento .................................................. 45
Aparatos da experiência ....................................................... 47
Políticas de concessões ........................................................ 50
Jogos de Linguagem, jogos de exclusão .............................. 52

5 - Influências humanistas e liberais .................................................. 59

6 - Para confundir pronomes, para embaralhar o mundo ................... 69


Aparência e domesticação .................................................... 71
Vergonha da espécie ............................................................. 74
Animais políticos dentro da biopolítica ............................... 76
Em busca da inumanidade .................................................... 81

Referências Bibliográficas .................................................................. 87

Alice Gabriel - A outra metade ........................................................... 93


Frederico Santos Soares de Freitas - O impulso da automação ...... 111
Wanderson Flor do Nascimento - Por uma zoofilia ontológica ....... 123

Agradecimentos ................................................................................ 139

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wanderson flor do nascimento1
Por uma zoofilia ontológica.
Notas sobre “Toda dor do mundo”

Muito do que aprendemos na história do pensamento, foi in-


verter o sentido das palavras. Qualquer incipiente estudioso da etimo-
logia das palavras entenderia que a palavra zoofilia deveria determinar
a amizade por animais, uma vez que em grego a palavra zoon significa
animal e philen significa amizade. Mas a maneira tacanha como nossa
sociedade lida com os animais faz com que esta, que deveria ser uma
bonita palavra para uma bonita relação entre os animais humanos e
não-humanos, se verta em uma prática sexual “doentia” e que explora
os animais não-humanos uma vez mais. Os torna objeto de uma prática
sexual onde animais não podem ser nunca sujeitos, sendo assim, uma
prática sexual opressiva.
Lendo o cuidadoso texto “Toda dor do mundo” de Pedro Ar-
canjo, fiquei pensando se não seria o caso de abandonar o sentido pejo-
rativo e violento da palavra zoofilia para recuperar seu sentido etimoló-
gico, na tentativa de buscar uma relação não opressiva com os animais.
E minha leitura partirá da possibilidade de uma zoofilia interessante
não apenas para os animais humanos, mas para os outros animais. De
agora em diante, a palavra zoofilia não aparecerá mais aqui com uma
conotação opressiva, mas na tentativa de um abandono da opressão.

1 Como alice gabriel, o autor prefere que seu nome seja escrito em minúsculas.
Segundo ele: A grafia do nome próprio em letras minúsculas deve-se ao fato o autor
vincular-se as ideias da ativista negra bell hooks que adota as letra minúsculas para
afirmar a posição identitária de recusa de autoria exclusivamente individual das idéias e
afirmação do lugar de vozes excluídas que muitas vezes é vilipendiado, ao mesmo tempo
em que afirma que as idéias são pensadas no coletivo, no diálogo com quem se lê.

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Acolhendo a perspectiva de Pedro, este texto apresentará al-
gumas notas que discutirão alguns lugares de silenciamentos e falas na
história da filosofia sobre projetos opressivos, frisando aspectos polí-
ticos do pensamento vinculados com a subjetividade, explicitando as
impressões que “Toda dor do mundo” causou em minhas reflexões.

A ideia da produção de ontologias não-especistas


O texto de Pedro levanta uma série de questões zoófilas muito
importantes, não apenas para os animais não-humanos, mas para toda a
rede de relações possíveis também para humanos. E a proposta de uma
ontologia não-especista apareceria não apenas como um benefício para
os animais não humanos, mas para todos os animais, incluso os que nós
mesmos somos.
Se a produção de ontologias é algo que, do ponto de vista con-
ceitual, é uma atividade humana, as consequências desta produção são
sentidas por todo o planeta. As ontologias são diretrizes que nos dizem
não apenas o que os seres são, mas também como podemos agir com
esses seres a partir da descrição que fazemos deles. O especismo não é,
por isso, apenas uma descrição das “espécies” como sendo diferentes
entre si e valorando essas diferenças. Mas um guia de relações opressi-
vas entre as espécies. Neste sentido, uma ontologia não-especista tem,
como bem marcou Pedro, a característica de ser um guia para outras
relações, para relações não opressivas.
A opressão é um determinante do modo como estamos no
mundo. É impossível pensar com precisão nosso mundo atual sem a
presença da opressão. Se o mundo, com todas as suas benesses, é o
que é, é em função da presença da opressão neste mesmo mundo. Por
isso, uma ontologia não-especista, um mundo não-especista seria um
novo mundo. Um mundo outro, um mundo que não sabemos ainda

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qual é, mas certamente um mundo muito diverso deste. Desta maneira, a
tentativa de uma ontologia não-especista, para a realização de um mun-
do não-especista, implica em uma revisão dos pilares fundamentais das
maneiras como enxergamos a nós mesmos, os outros, o mundo e nossa
relação com tudo isso. A mudança das imagens que temos dos animais
(e das funções que a eles determinamos) significaria a mudança na nossa
própria imagem, e na imagem que temos do mundo como um todo e das
relações éticas e políticas que estabelecemos com todo o mundo.
Quem sabe a proposta de uma zoofilia ontológica, ou de um
mundo zoofilicamente descrito, não pudesse fazer da amizade um mar-
co mais forte nas relações éticas e políticas que estabelecemos com o
mundo. É uma aposta; que me parece valer muito a pena.

O que a história da filosofia cala: uma teologia


contra-antropocêntrica dos franciscanos primeiros
Apesar da novidade no contexto moderno da proposta zoofí-
lica de Pedro, ela não é a primeira. Entretanto, no contexto da produ-
ção da história da filosofia, temos um processo curioso de esconder, de
silenciar aquilo que não nos interessa por algum motivo. E não estou
trazendo este elemento para desmerecer seu trabalho, mas para agregar
mais vozes a essa difícil tentativa de construir ontologias não opressi-
vas. Tampouco estou afirmando que Pedro seja o responsável por esse
silenciamento. Apenas a história padrão da filosofia que até a ele che-
gou é já comprometida por esse processo de silenciamento. Penso que
denunciar a dinâmica silenciadora da história da filosofia possa servir
para dar um pouco mais de proteção para esse projeto audacioso e ne-
cessário apresentado pelo autor. Quem sabe esta denúncia possa fazer
com que se tenha mais cuidado ao tentar silenciar uma proposta como
a de Pedro, que deveria ser uma proposta de qualquer movimento que
se pretenda anti-opressivo.

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A figura de Francisco de Assis, o santo, pode parecer trazer
um elemento polêmico na medida em que é um elemento religioso
(ainda mais quando sabemos que um dos mais fortes elementos de hie-
rarquização ontológica entre animais humanos e não-humanos vem de
ontologias religiosas). Entretanto, me parece que a teologia iniciada
por Francisco de Assis tinha por base uma ontologia radicalmente anti-
-opressiva e que via na natureza uma espécie de continuum entre hu-
manos e não humanos, de modo que irmanados, o homem não deveria
agredir à natureza (e, sobretudo os animais, a quem Francisco chamava
de irmãos – da mesma maneira que chamava os outros frades de sua
ordem, que ficou conhecida como Ordem dos Irmãos Menores).
Juntamente com essa teologia, que pensava num deus presen-
te em toda a natureza (e, por isso, presente nos animais), Francisco
pensava em um outro modo de vida. Um modo de vida mendicante.
Essa mendicância consistia em uma outra relação com a cidade, que
não a de exploração dos recursos naturais e da riqueza (seja de outros
homens, seja da natureza). A ideia da mendicância nos orienta a viver
com o que a natureza nos “cede” e não com o que retiramos dela. Por
isso, por muitos anos Francisco e os franciscanos primeiros viveram de
pão e vinho que eram dados por outras pessoas e por frutas encontradas
nos bosques.
É famosa a defesa que Francisco faz de um feroz Lobo que,
ao ser ameaçado de morte por camponeses de Agóbio, uma pequena
cidade da Itália, é amansado (e o amansamento aqui é uma conversa
que lembra que da fome do lobo e da sua necessidade de defesa contra
o ódio das pessoas de Agóbio ele atacava também os humanos). E, este
amansamento foi também um amansamento do povo que se compro-
metia a não atacar o lobo, sendo que a casa do lobo, a floresta, fora já
invadida pelos humanos da cidade, em busca de lenha e outras coisas.

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Este gesto de Francisco nos releva que a própria estrutura da
cidade fora responsável pela ira do lobo, que é visto como vilão da ci-
dade que não vê que é ela mesma responsável pela fúria do lobo. Selar a
harmonia entre homens e lobo significaria pensar em uma outra relação
entre a cidade e a floresta onde o lobo vivia.
Este exemplo nos mostra que na base da visão de mundo sus-
tentada por Francisco já havia a ideia de que os humanos, em sua saga
de ampliar seus domínios e suas cidades, findavam por invadir lares
que funcionavam bem e que ainda vilanizava quem nunca havia antes
atacado os humanos, que não notavam que eles mesmos eram respon-
sáveis pelo ataque e transferiam a responsabilidade para o animal que
atacava numa dinâmica de resistência às investidas urbanas.
É fácil compreender que a história da filosofia tenha tornado
essa filosofia e teologia – que retirava o opressor humano do centro
das discussões exatamente no momento em que o antropocentrismo
humanista se constituía – uma narrativa apenas folclórica e mítica, sem
conteúdo sério. Como pensar com seriedade um pensamento que irma-
na homem e natureza sob a filiação de um deus que não é opressor e
nem hierarquizador? É muito mais fácil relegar ao ostracismo este tipo
de pensamento do que lê-lo com seriedade e absorver as contribuições
dele a um projeto de um mundo não opressivo, quando não há um com-
promisso com tal projeto.
Não estou propondo aqui que o argumento de Pedro deva ter
uma base teológica, mas apenas mostrar que tipo de receptividade pen-
samentos anti-opressivos que historicamente se expressaram tiveram
por parte da história da filosofia e também indicar que há outras vozes
com quem dialogar, mas estas vozes não são, nunca, hegemônicas.

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O que a história da filosofia fala:
a subjetividade moderna e a produção de alteridades
Ao mesmo tempo em que a história da filosofia silencia alguns
posicionamentos estruturalmente anti-opressivos, nos conta algumas
outras narrativas que nos permitem entender os modos como nos torna-
mos estruturalmente opressivos, muito embora não seja este o objetivo
dessas narrativas. Pedro nos conta, em uma interessante incursão pelo
cânone filosófico moderno, acerca de algumas posturas que legitimam
um certo tipo de constituição de subjetividade que se estrutura com
base na opressão.
Esta incursão introduz o “Toda dor do mundo” no bojo das
críticas mais mordazes e interessantes à Modernidade. E o específico
da crítica feita pelo texto de Pedro, desde uma perspectiva que se rei-
vindica antes política do que ética, traz muitos elementos importantes
para a elaboração de uma perspectiva zoofílica para a ontologia.
Na contraposição de uma subjetividade baseada em uma on-
tologia zoofílica, a Modernidade filosófica nos lega uma ontologia zoo-
fóbica. Isto se dá por um específico modo de subjetivação, que é mar-
cado pela constituição de sujeitos que acontece de maneira que quem
se torna sujeito deve se relacionar com o mundo, no contexto moderno,
de um modo específico.
A Modernidade criou um modo de sujeito que se estrutura
como constituidor dos objetos, sendo por isso uma espécie de autori-
dade frente a estes objetos. A relação sujeito e objeto (S – O) pode ser
equacionada da seguinte maneira: S > O. E o sujeito só se legitima e é
reconhecido, como bem nota Pedro, quando faz objetos, quando institui
alteridades, quando o outro se torna um objeto através das ações deste
sujeito. A produção de alteridades inferiorizadas é a marca da constitui-
ção do sujeito. O sujeito é sempre senhor de um escravo, e só se torna

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sujeito quando essa relação se institui.
E esta relação de escravidão é sempre violenta. E, ao contrário
do escravo da dialética Senhor/Escravo de Hegel, não há a possibili-
dade, no contexto moderno quando referente aos animais, de que estes
se rebelem contra seus senhores, tornem seus senhores dependentes,
pois algo curioso na constituição dessa subjetividade zoofóbica é que
devemos produzir muitas vidas animais matáveis. A constituição de
um bestia saccer – em uma paráfrase a Agamben – é parte essencial
da subjetivação dos sujeitos ocidentais modernos. E quanto mais vidas
animais matáveis, menor é a possibilidade de uma sublevação animal.
A vida desse bestia saccer é produzida em escala industrial
para o consumo. E isso se dá pela coincidência da subjetivação mo-
derna com a subjetivação capitalista. Se é verdade que sem a opressão
animal o sujeito moderno não existiria, também é verdade que sem o
processo de mercantilização da vida (sobretudo a vida animal) tal su-
jeito não existiria como é.
Todos esses processos são atravessados por uma profunda
marca violenta, vinculados a um processo de colonização da vida.

O especismo como dinâmica colonial moderna:


o animal como subalterno.
Em minha leitura de “Toda dor do mundo” não pude deixar
de ver um paralelo entre o diagnóstico feito por Pedro e o modo como
os estudos sobre a colonialidade interpretam a Modernidade e que dão
elementos para entender melhor o processo de colonização da vida.
Os estudos sobre a colonialidade surgem como uma propos-
ta política de crítica à Modernidade feita a partir da América Latina.
O suposto básico destes estudos é que a Modernidade é constituída
por um processo colonizador. A colonialidade é o sistema estrutural de

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poder da Modernidade. A colonialidade seria este modo específico de
exercer o poder que funciona a partir da hierarquização entre alguém
que coloniza e alguém que é colonizado e sem esse exercício de poder
os processos de modernização e desenvolvimento não se dariam. Esse
exercício de poder supõe (e constrói) modos de conhecimentos e ima-
gens da vida que o legitimam.
Para Aníbal Quijano, elaborador do conceito de colonialidade,
a categoria fundamental de articulação do modelo colonial de poder
é a raça. A raça seria não apenas um conceito descritivo das diferen-
ças entre os seres humanos entre eles, mas um marcador hierárquico
das relações entre as diferentes raças. A Modernidade não cria as raças
apenas para classificar as pessoas, mas principalmente para estabelecer
um regime de dominação entre as diferentes figuras classificadas pelas
raças, tendo uma imagem de natureza que sustenta tal dominação.
O racismo seria, então, o sustentáculo fundamental da consti-
tuição da Modernidade. Sem menosprezar os sofrimentos que o racis-
mo tenha provocado aos seres humanos, podemos seguir a intuição de
Pedro e pensar que a dinâmica do racismo e a do especismo funcionam
de modos semelhantes e tem alguns supostos comuns, sobretudo no
que diz respeito a uma dinâmica da subjetividade.
Neste sentido, poderíamos pensar que o especismo está cons-
tituído no mesmo solo colonial moderno. Só que em vez de colonizar-
mos apenas as outras vidas humanas, colonizamos também a vida ani-
mal. E esta colonização se sustenta por toda uma série de saberes e de
imagens de vida que a legitima. O imperialismo subjetivo típico da Mo-
dernidade não apenas hierarquiza alguns seres humanos sobre outros,
mas também algumas espécies (pensadas como raças) sobre outras.
E isto faz bastante sentido, quando pensamos que nunca an-
tes da Modernidade tantas vidas animais foram desperdiçadas para

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o exercício de um poder de manutenção de algumas outras vidas. E
parte da dinâmica da colonialidade é a aplicação da violência de uma
minoria quantitativa sobre uma maioria quantitativa. Os números que
Pedro traz logo no início do livro tomam, diante deste registro, uma
inteligibilidade ainda mais perniciosa. Não começou agora a mortanda-
de animal em função do consumo humano, mas o regime moderno de
extermínio de vida animal alcança níveis numericamente impossíveis
de ser reproduzidos antes do período moderno. E a sofisticação dos
métodos modernos de extermínios faz parecer que eles sejam menos
cruéis, mais aceitáveis, mais desenvolvidos (aliás, o desenvolvimento
é uma das marcas mais fortes da dinâmica moderna da colonialidade).
Entretanto, junto com esse processo se desenvolve numerica-
mente a escala de mortandade. Desenvolve-se a insensibilidade frente à
quantidade absurda de vidas mortas desnecessariamente, a insensibili-
dade frente ao desperdício de vidas (e desperdício dos subprodutos das
mortes – ver, por exemplo, o fato de que quando se joga fora carne não
consumida nos abatedouros, açougues ou nos lares, lastima-se apenas o
dinheiro investido que fora perdido e não as vidas que se perderam...).
As consequências dessa colonialidade da vida e, especifica-
mente, da vida animal parece, entretanto muito pouco problematizada
por um modo de pensar filosófico que elegeu o ser humano como foco
de suas reflexões. E mesmo as reflexões ambientalistas ocupam-se mui-
to pouco dessa tecnologia de produção, cada vez crescente, de bestias
saccer. É como se esse fato não fosse um problema, como se essa dinâ-
mica de opressão ou não fosse problema ou que o caso da mortandade
animal não fosse um problema importante para os humanos.
Neste cenário, a insensibilidade afetiva cada vez se amplia. E
não apenas a insensibilidade ao fato de se provocar a dor, o sofrimento
e a morte a animais, mas a insensibilidade à dor em geral.

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A dinâmica das amizades entre as espécies.
Em busca de uma zoofilia filosófica, política e experiencial.
No fim do “Toda dor do mundo”, Pedro traz a discussão sobre
a amizade entre as espécies. Para alguém que tem o meu percurso filo-
sófico, a temática da amizade é fundamental não apenas para a filosofia,
mas para a ética, a política e a experiência cotidiana.
Tudo o que, danosamente, os humanos fizeram em relação aos
animais se fez, normalmente, em função de decisões humanas. Penso
que, em um primeiro momento, também deva ser uma decisão humana
que deva reverter essa crítica situação opressiva. Não se deve espe-
rar do oprimido todas as condições para o fim da opressão, como se o
opressor não tivesse alguma responsabilidade e um dever de esforço
para desconstruir a prática que ele mesmo instituiu. E me parece que
a decisão do estabelecimento de relações amistosas com os animais
deverá ser humana, não com o objetivo primeiro de restabelecer a dig-
nidade da vida dos animais, mas para desconstruir a dinâmica opressiva
que se constituiu nas relações de dominação entre humanos e animais,
dinâmica esta que foi uma decisão humana.
A ideia de amizade elaborada por Foucault me parece inte-
ressante aqui para acompanhar esta discussão. No final de sua vida,
Foucault pensava sobre os modos como opressão e subjetividade se
relacionavam. Para ele, o modo como as relações de dominação se se-
guiam de um modo de subjetivação que se dava em um regime de poder
onde as relações ficavam com os lugares marcados, onde as relações
se cristalizavam, onde alguém exerce poder sobre outro que não tem o
espaço de resistência. É aqui que ele distingue as relações de poder dos
estados de dominação, sendo estes marcados pela opressão. Nas rela-
ções de poder, necessariamente, há o espaço de resistência; nos estados
de dominação, não.

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A questão é que os processos de subjetivação se dão tanto nas
relações de poder quanto nos estados de dominação. E na busca de
modos de vida, de modos de subjetivação um pouco mais livres da
opressão, Foucault pensa que a amizade pode ser um destes processos
de resistência. Ela seria uma relação que deveria toda ser inventada,
como diz Foucault “de A a Z”. Mas não uma relação inventada do nada,
mas inventada a partir da certeza da opressão que se quer combater. É o
saber da opressão que deve estar, a cada passo, marcando a construção
desta nova relação. Uma relação que funda um novo modo de vida, que
recusa os lugares dados, os lugares prontos de opressor e oprimido.
Não para fingir que tudo é fácil e que a opressão não é mais um risco,
mas para assumir que, uma vez que somos feitos, em parte, de opres-
são, que devemos lutar constantemente contra essa parte de nós que
tem ganas de oprimir.
A amizade seria a criação de um espaço de encontros para a
produção mútua de prazer, sem a aniquilação da possibilidade de pra-
zer do outro para a afirmação de meu próprio prazer. Obviamente, que
se formos pensar em uma relação zoófila, não podemos prescrever o
campo de prazer do animal, mas não podemos retirar dele a condição
fundamental para ter prazer, que é estar vivo. Criar as condições para
minimamente reparar os males opressores que os animais humanos
criaram para os outros animais implica em estabelecer as bases para
que suas vidas não sejam retiradas para a nossa própria manutenção,
seja alimentar, vestuária, de saúde ou qualquer outra.
A invenção desta amizade para com os animais, mais do que
a prescrição de uma relação animal com os animais, como indica De-
leuze – o que dá margens para interpretações do tipo “na natureza, ani-
mais comem animais” que pode ser tão facilmente e nietzscheanamente
afirmada –, é uma decisão humana de estabelecer um espaço livre das

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opressões humanamente criadas. Como a amizade é uma relação por
ser inventada, não podemos ainda dizer como ela se dará. Teremos que
pensar, conjuntamente (aqueles e aquelas que estão certos/as de que as
atuais relações entre animais humanos e outros animais é opressiva)
nas diretrizes desta relação que terá sempre a marca autocrítica que
evite o restabelecimento de espaços opressivos.

Antes que se resolva concluir:


Entre ontologias não-especistas e novas ontologias urbanas.
Como crítica da Modernidade, “Toda a dor do mundo”, traz
uma denúncia urgente. Devemos, na medida em que nos incomodamos
com um modo de ser opressivo, repensar as relações com esses outros
colonizados que são os animais não humanos.
Como já notamos, uma ontologia não-especista com repercus-
sões políticas não deixaria o mundo sendo como é, mudando apenas a
relações com os outros animais. Todo o mundo seria diferente. Uma de
minhas maiores inquietações frente a nossa modernidade é a relação
com a cidade. A cisão entre campo e espaço urbano, sendo toda a cida-
de sustentada por um esquema de violenta exploração do campo é uma
das características da cidade moderna.
Toda a vida moderna funciona em torno de um modo especí-
fico de alimentar as super-povoadas cidades. E é neste circuito que o
extermínio animal ganha fôlego. Por outro lado, uma cidade como São
Paulo, ou mesmo Brasília, como poderia se manter se todas as pessoas
destas cidades não vivessem alimentarmente do extermínio dos ani-
mais? Eu não penso que um êxodo urbano seja a solução, pois disto não
se segue que a relação com os outros animais seja modificada.
Uma outra ontologia urbana se faz urgente. Sequer consigo
imaginar como seria a cidade atual sem a presença de abatedouros,
açougues, sem o consumo de vidas. Eu arriscaria dizer que um dos

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combustíveis da cidade é o sangue animal (humano e não humano). A
estrutura urbana moderna, como toda a Modernidade, é zoófoba. Como
seria uma nova cidade, uma cidade zoófila? Que modos de vida seriam
necessários para que um outro tipo de relação urbana se estabelecesse?
Como se organizariam as pessoas em uma cidade? Como comeriam,
já que o modo de alimentação padrão da modernidade é onívoro ou
ultraconsumista e esgotador de recursos naturais?
Essas perguntas seguem abertas, mas, de todo modo, a tentati-
va de respondê-las é um esforço que me parece essencial para que uma
ontologia zoófila se estabeleça e ofereça uma alternativa efetiva para o
modo de vida zoófobo que vivemos. E assim como o projeto de amiza-
de zoófila é conjunto, penso que também conjunto deva ser o esforço
por pensar em uma ontologia urbana zoófila, que acolha a crítica de
“Toda dor do mundo”.

wanderson flor é professor de filosofia,


onde junta esforços pra desmoronar cânones.

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Referências Bibliográficas
DUSSEL, Enrique. 1492. O encobrimento do outro. A origem do
Mito da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993.
ESCOBAR, Arturo. “Mundos y conocimientos de otro modo”:
el programa de investigación de modernidad/colonialidad
Latinoamericano. Tabula Rasa (1), 2003.
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard, vol. IV,
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FRANCISCO, São. I fioretti de São Francisco. Rio de Janeiro:
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MIGNOLO, Walter. Histórias locais/Projeto globais: colonia-
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