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The animals of the world exist for their own reasons, they were not created for men anymore than black
people were created for whites or women for men."
Alice Walker
Uma das coisas que os feminismos me ensinaram é que toda fala, toda ação é
política. Todo texto surge de algum lugar, tem conexões, tem ecos, se inscreve de certa
forma nos jogos de poderes. Por isso a pretensão a imparcialidade sempre me assusta,
sempre parece uma artimanha de apagar pegadas. “Importa-me escrever sobre algo que
vivo, respiro” – diz Poney cuja alcunha já anuncia o parentesco partilhado (ou desejado)
entre pessoas humanas e animais – apelando para uma filosofia encorporada3, um fazer
filosófico onde x filósofx4 se implica e se localiza numa cartografia específica de
conexão ou desconexão (pretendida talvez) com uma tradição filosófica, e também
“cultural”.
1
Texto
escrito
para
o
livro
de
Pedro
Arcanjo
Matos
(aka
Poney)
Toda
Dor
do
Mundo:
uma
introdução
a
ontologias
não
especistas,
editado
pela
Quinta
Mão
editora
em
2010.
2
O
emprego
de
maiúsculas
serve
geralmente
para
estabelecer
uma
hierarquia
entre
palavras
no
texto,
que
palavras
são
mais
importantes
(ou
ocupam
lugar
de
destaque)?
Como
o
jeito
que
pensamos
está
centrado
numa
valorização
do
sujeito
humano
como
o
agente,
nomes
próprios
aparecem
destacados.
Essa
idéia
de
que
o
sujeito
é
a
fonte
por
excelência
da
ação
(e
o
pensamento
é
aqui
entendido
como
ação)
está
bem
conectada
a
outra
de
que
ele
age
por
si,
sozinho,
individualmente.
Seguindo
a
teórica
bell
hooks
opto
por
escrever
meu
nome
sem
maiúsculas,
num
esforço
de
sacudir
um
pouco
a
estrutura
de
privilégios
“do
autor”
e
tentando
apontar
para
uma
produção
teórica
que
é
mais
coletiva
e
partilhada
(confabulada
eu
diria)
do
que
original
e
individual.
3
Uso
o
neologismo
‘encorporada’
para
traduzir
a
expressão
inglesa
‘embodied’
seguindo
Viveiros
de
Castro
(2002),
visto
que
nem
“encarnar”
nem
mesmo
“incorporar”
parecem
termos
adequados.
4
Uso
o
‘x’
para
suprimir
a
marcação
de
gênero
da
palavra,
seguindo
a
percepção
de
que
o
plural
no
masculino
não
apenas
não
abrange,
mas
torna
invisível
o
feminino.
Essa
discussão
é
polêmica
e
divide
simpatias.
Não
acho,
no
entanto,
que
é
por
acaso
que
o
universal
seja
equacionado
com
o
masculino
e,
de
fato,
desde
1949
quando
Simone
de
Beauvoir
publicou
o
Segundo
Sexo
essa
tem
sido
uma
crítica
feminista
relevante:
entendemos
o
masculino
como
universal,
o
não-‐marcado,
e
o
feminino
como
o
parcial,
como
a
marca,
o
que
é
específico,
diferente.
Nem
sempre
acho
que
a
forma
mais
aceita
de
marcar
a
diferença
sexual
‘os/as’
seja
eficiente
ou
suficiente.
Porque,
de
fato,
há
quem
não
se
reconheça
nesse
binarismo
homem/mulher.
O texto do Poney dialoga não apenas com a filosofia, mas com uma comunidade
de pensamento, e também afetiva, que tem sido a cena punk/hardcore. De certa forma, o
título do texto aponta para isso, mas aponta para outra coisa também, que é central para
esse texto. O nome, toda dor do mundo era o nome da minha finada banda, formada por
quatro garotas que partilhávamos alguns sonhos e idéias, mas também certas posturas
políticas em nossas vidas: o feminismo era uma delas, o vegetarianismo outra. O nome
saiu da letra da música a marca do medo que falava sobre violência sexista5 e para mim
não é estranho ou coincidência que esse mesmo nome possa apontar para o especismo.
Esse texto é mais um esforço de responder por que, aos meus olhos6 (e boca e nariz e
mãos e orelhas), o vegetarianismo e feminismo andam de mãos dadas.
5
O
nome
do
presente
texto,
bem
como
os
nomes
de
suas
partes
são
retirados
dessa
mesma
música.
6
Preciso
dizer
que
quando
digo
‘meus
olhos’
não
quero
apelar
para
uma
originalidade,
mas
antes,
quero
apontar
as
conexões
que
faço
amparada
por
leituras
heterogêneas,
mas
também
por
uma
comunidade
de
pensamento.
Sou
especialmente
grata
aos
textos
apaixonantes
de
Donna
Haraway,
JM
Coetzee,
Greta
Gaard,
Audre
Lorde
e
às
conversas
com
Tate,
Tatu,
Flores,
mas
também
Andrei,
Hery
e
Poney.
7
Curiosamente,
parece
ser
um
modo
de
seguir
o
conselho
final
dado
por
Michel
Foucault
na
introdução
ao
Anti-‐Édipo
de
Gilles
Deleuze
e
Félix
Guattari:
não
caia
de
amores
pelo
poder!
escolha pessoal, mas nem por isso é menos política. Recusar tomar parte na opressão de
animais não-humanos (e humanos) é uma ação que já nasce com um significado político
específico: tem a ver com recusar o lugar do opressor, com repensar os privilégios e as
práticas cotidianas que mantém o funcionamento da máquina especista. O texto que se
inicia tenta fazer dialogar esses dois temas, que podem parecer desconectados para
alguns olhos e ouvidos: feminismo e vegetarianismo. Tento caracterizar a estratégia
especista como uma que conecta as seguintes ações: a negação da pessoalidade (num
sentido fraco porque não consigo encontrar palavra melhor) dos animais – e a conexão
entre pessoas humanas subalternizadas e animalidade que tem a ver com o ato de
chamar alguns de ‘não gente’ para que outros possam se sentir mais gente– e sua
construção como vítimas que desejam a opressão, a separação entre humanidade e
animalidade dentro e fora do sujeito humano e a desvalorização da empatia (que é
marcada sexualmente) humana. E tento fazer pontes com o feminismo a partir dessa
visão geral da estratégia especista. Espero que eu tenha sucesso em explicitar as
conexões que pra mim são evidentes – porque ao contrário do que se poderia pensar,
aquilo que parece mais evidente tem se mostrado, ao menos para mim, como o que há
de mais fugidio.
Não é novidade essa afirmação de que os pares binários (tão apreciados por nosso
pensamento ocidentalizado) cultura/natureza, eu/mundo, sujeito/objeto, mente/corpo,
dentro/fora, bom/mau, homem/animal8, claro/escuro, masculino/feminino, hetero/homo
não apenas partilham a característica de apresentarem uma hierarquia entre o primeiro e
o segundo termo, mas se ligam metaforicamente, de forma a mutuamente reforçar a
relação de subalternidade dos termos que ocupam o segundo lugar. Algumas
ecofeministas9 apontam as relações entre heterossexismo, racismo, classismo,
8
Acredito
mesmo
que
não
há
equívoco
em
colocar
o
par
como
homem/animal,
apesar
de
me
esforçar
continuadamente
para
desarticular
o
masculino
genérico
na
minha
escrita,
acho
que
a
presença
da
palavra
‘homem’
querendo
significar
humanidade
nesse
par
binário
vem
a
calhar.
Não
é
por
acaso
que
homem
é
uma
palavra
que
designa
a
humanidade:
o
geral
é
masculino
porque
o
sujeito
é
masculino.
Luce
Irigaray
já
dizia
lá
nos
idos
de
1975
que
toda
teoria
do
sujeito
pressupõe
um
sujeito
masculino;
isso
nada
mais
é
do
que
um
eco
deformado
das
afirmações
de
Simone
de
Beauvoir
sobre
a
problemática
relação
da
subjetividade
universal
e
da
particularidade
da
situação
feminina.
9
Ver
Carol
J.
Adams,
mas
também
Greta
Gaard.
especismo (poderíamos acrescentar o cissexismo10?), afirmando que o feminismo não é
apenas sobre mulheres e suas lutas como mulheres, mas um esforço coletivo para
eliminar todas as formas de opressão11. Podemos entender que essas relações são
metafóricas, mas também de fato, porque a feminização da natureza e a naturalização ou
animalização das mulheres (e negrxs, e LGBT) serviu como uma justificativa para a
dominação dessas pessoas, dos animais e da terra; parece que a ligação entre corpo,
natureza, feminino, animalidade, negritude, sexualidades não normatizadas e pobreza
funciona criando um conjunto de expurgo, daquilo que é (e tem que ser) excluído da
morada da subjetividade, para que ele o Sujeito com ‘s’ maiúsculo exista soberano – é a
‘outra metade’, sem a qual (e isso é importante ressaltar) o próprio sujeito não faz
sentido. Essa ‘outra metade’ orbita o sujeito e sem a referência negativa a ela o sujeito
não se define – o que podemos nos perguntar é em que medida essa definição por
oposição conecta os âmbitos do sujeito e da ‘outra metade’ e, além disso, quais são os
processos de emancipação desse vínculo pela negação.
10
Cisgênero
ou
cissexual
são
expressões
cunhadas
por
militantes
transexuais/transgênero
para
se
referir
a
pessoas
que
não
transitaram
entre
sexos/gêneros.
“Trans”
significa
“através”
ou
“do
lado
oposto
de,”
enquanto
“cis”
significa
“do
mesmo
lado
de.”
Então
se
alguém
teve
um
sexo
atribuído
no
nascimento
e
passa
a
se
identificar
e
vive
como
membro
do
outro
sexo,
essa
pessoa
é
chamada
“transexual”
(porque
ela
cruzou
de
um
sexo
para
outro),
e
se
alguém
vive
e
se
identifica
com
o
sexo
atribuído
no
nascimento,
essa
pessoa
é
chamada
“cissexual”.
Ver
http://www.eminism.org
e
http://juliaserano.livejournal.com/
para
mais
informações
sobre
a
nomenclatura
‘cis’/’trans’
e
o
(cyber)ativismo
de
pessoas
transexuais.
11
Esse
é
um
nó
(quase
cego)
na
disputa
entre
diferentes
teorias
feministas,
porque
há
quem
defenda
que
esse
esforço
de
eliminação
de
todas
as
opressões
seja
um
esforço
feminista
já
de
saída
ou
porque
todas
as
opressões
bebem
na
fonte
do
sexismo
(algo
como:
todas
as
demais
opressões
ou
hierarquizações
têm
por
base
a
diferença
sexual
que
é
entendida
como
a
mais
primária
diferenciação
política;
assim
algumas
teóricas
explicam
como
o
gênero
é
o
elemento
básico
da
violência
contra
‘outros’
ou
sujeitos
alterizados),
ou
porque
uma
ética
do
cuidado
é
uma
ética
feminina
(algo
como:
porque
somos
socialmente
ensinadas
a
cuidar
de
outras
pessoas
e
coisas
uma
aproximação
genuinamente
feminina
à
questões
éticas
configura
uma
ética
do
cuidado
e
a
preocupação
com
outros
tipos
de
subalternização).
Essas
duas
posições
que
caricaturei
neste
pequeno
espaço
de
nota
de
roda-‐pé
são
bastante
controversas.
Questiona-‐se
bastante
a
centralidade
do
gênero
para
as
análises
feministas
que
cada
vez
mais
buscam
incluir
outras
variáveis
em
suas
análises:
classe,
raça,
etnia,
orientação
sexual
(inclusive
uma
forma
de
definir
a
segunda
e
a
terceira
onda
do
feminismo
é
mediante
esse
eixo
da
centralidade
do
gênero).
E,
quanto
a
ética
do
cuidado,
essa
é
mais
uma
daquelas
áreas
do
feminismo
onde
o
sinal
vermelho
do
essencialismo
(porque
o
cuidado
é
entendido
como
‘próprio
das
mulheres’)
diz
que
não
podemos
passar,
ou
não
podemos
fazê-‐lo
sem
correr
risco
de
multa.
No
entanto,
de
fato
a
vontade
de
incluir
cada
vez
mais
variáveis
na
análise
da
realidade
social,
de
estar
atenta
as
conexões
entre
os
mecanismos
de
poder
é
partilhada
por
boa
parte
das
teorias
feministas
em
voga,
sejam
por
estas
ou
por
outras
razões.
Poney já apresentou uma versão desse argumento da ‘outra metade’ em sua
discussão sobre os pronomes: a separação entre ‘nós’ e ‘eles’ nada mais é do que o
processo de expurgo do ‘eles’ de ‘nós’ – a separação e abjeção da animalidade que cria
o domínio do humano. É a máquina antropológica descrita por Giorgio Agamben em
L’Aperto que funciona jogando para fora do sujeito a animalidade. Júlia Kristeva propõe
um conceito interessante para pensar esse processo: o conceito de abjeção. Falando
sobre a gênese de um sujeito atômico e coerente, Kristeva define abjeção como um
processo de projeção de coisas para fora do corpo (o vômito é um dos exemplos
didáticos trazidos por ela para explicar o processo psicológico da abjeção: através do
vômito que as crianças desenvolveriam um sentido de inteireza de si e de divisão entre
eu e mundo – isso será deslocado para o âmbito psicológico para entendermos que tipo
de coisa é foracluída de maneira que o sujeito tome sentido), e é através desse jogar pra
fora que o próprio corpo torna-se uma fronteira, isto é, que faz sentido distinguir entre o
dentro e o fora de mim – porém essa distinção é sempre precária, está sempre ameaçada
pela proximidade com aquilo que foi jogado para fora12. Judith Butler (seguindo Iris
Young) ampliará esse conceito psicológico ou de desenvolvimento de uma noção de
“eu” de Kristeva para pensar a abjeção como processo de criação de uma unidade
social: é através do expurgo de certas pessoas que a noção de grupo social passa a fazer
sentido. Butler vai falar sobre a abjeção no processo de criação de uma sociedade onde a
heterossexualidade13 é a norma como o expurgo de pessoas cujo gênero (entendido
como uma coerência entre anatomia, desejo, práticas sexuais, papel social e uma série
de outras coisas, e que tem como pano de fundo a pressuposição da naturalidade da
heterossexualidade) não é coerente. Podemos ver como os processos descritos por
Agamben e Butler são similares:
12
Em
outras
palavras:
o
abjeto
é
aquilo
do
qual
um
‘pré-‐eu’
deve
se
libertar
para
se
tornar
de
fato
um
‘eu’,
mas
algo
que
é
tão
íntimo,
tão
conectado
ao
sujeito
que
a
sua
proximidade
é
ameaçadora.
Outro
exemplo
que
Kristeva
dá
é
o
horror
frente
a
um
defunto,
um
corpo
morto;
essa
visão
produz
nojo
e
serve
para
lembrar
da
própria
mortandade
do
‘eu’.
13
Entendo
a
heterossexualidade
aqui
não
apenas
como
uma
prática
sexual,
mas
como
um
regime
político
seguindo
Monique
Wittig.
anti-naturais tenham ao mesmo tempo uma profusão de referências a
animalidade.
Dessa forma, fica mesmo parecendo que a domesticação tem que ocorrer de um lado
e de outro da fronteira eu/mundo. E é como se a abjeção de dentro impedisse qualquer
conexão no fora, como se porque a animalidade tivesse de ser expurgada de cada ‘eu’
pouca ou quase nenhuma simpatia com animais fosse possível. É como se fôssemos
selecionadas socialmente por nossa falta de empatia com animais. Quem falha em
empatizar com os animais entra com sucesso na vida adulta. Seguindo mais uma vez o
texto de Poney: quem consegue sobreviver às doenças ligadas ao confinamento de
animais (ele lista algumas: sarampo, varíola, coqueluche) entra com sucesso na vida
adulta. As doenças que Poney afirma serem resultado da prática de confinamento de
animais não são apenas
metáforas para a relação violenta entre humanos/animais elas
são a inscrição no corpo do que é a crueldade com animais, você tem que ser capaz de
14
Propus
em
um
texto
anterior
que
a
tradução
para
o
termo
‘gendered’
bastante
utilizado
por
Butler
em
Problemas
de
Gênero
–
e
traduzido
de
maneira
descuidada
–
fosse
a
palavra
‘generadx’,
que
já
anunciaria,
por
sua
oposição
com
o
‘degeneradx’
o
caráter
adquirido
do
gênero
e,
ainda
mais,
permitiria
uma
palavra
específica
para
práticas
que
questionam
(ou
no
linguajar
da
Butler:
subvertem)
a
ordenação
do
gênero.
15
Diz
o
velho
livro
empoeirado
de
filosofia
antiga
que
apresenta
um
desfile
de
homens
igualmente
velhos
e
cobertos
de
poeira
que
Aristóteles
dividia
as
faculdades
da
alma
em
nutritiva,
sensitiva
e
intelectiva.
Essa
divisão
da
alma
reflete
a
divisão
dos
seres
vivos
em
três
conjuntos:
o
dos
vegetais,
dos
animais
e
dos
seres
humanos.
Só
aos
seres
humanos
está
relacionada
a
alma
intelectiva.
superar corporalmente o confinamento, ser capaz de conviver tranquilamente com a
exploração animal para sobreviver e entrar com sucesso na vida adulta.
Não é raro que crianças descubram a origem de sua comida e recusem-se a comer
carne. Acontece todo dia, já aconteceu na minha família: é a manifestação de algum tipo
de empatia com o animal que, morto, servirá de jantar. Porém existe um investimento
contínuo para que a criança volte a comer carne como as demais pessoas, entre na
norma, e o custo a ser pago é a simpatia com animais. Podemos lembrar também de
organizações sociais que apresentam ritos de passagem para idade adulta relacionados à
morte de animais. A prática da caça entre homens nos EUA foi entendida por Catriona
Sandilands como um ritual de passagem masculino – como se ao matar um animal
selvagem o menino se tornasse homem. O movimento que constitui o homem é o
mesmo movimento que o separa da animalidade, através da morte do animal e que o
separa de uma “feminilidade” caracterizada pela empatia ou piedade para com o animal.
Sabemos – informadas tanto por feministas, como por teóricos homossexuais – que
o projeto de construção da masculinidade é um de detectar, envelopar e expurgar o que
é feminino – um projeto somatofóbico, que recusa ou tem ojeriza ao corpo, tendo em
vista a conexão entre corporalidade e feminilidade – mas não parece ser suficiente
apenas conectar feminino/corpo/animalidade para pensar o projeto da subjetividade
humanista como uma tentativa de se afastar dessa tríade; não parece ser suficiente
porque apaga as sutilezas. Não é apenas que feminizamos a natureza ou naturalizamos
as mulheres, de certa forma, as mulheres estão mais próximas a natureza, ou mais
atentas ao seu habitat do que os homens, do jeito que nos organizamos socialmente; e
isso se liga ao papel de manutenção que as mulheres ocupamos dentro de uma sociedade
dividida em famílias nucleares: porque muitas de nós lidamos diariamente com o
preparo de alimentos, com a água que é própria para beber, com o cuidado com as
crianças e pessoas idosas (que constituem as faixas etárias de saúde mais vulnerável)
estaríamos mais atentas para os primeiros sintomas de contaminação das águas, solo e
do ambiente em geral; é também por isso que o movimento ambientalista de mulheres
vem crescendo bastante nos chamados países ‘de terceiro mundo’. É também, de certa
forma, porque ocupamos esse espaço do cuidado e porque cultivamos dentro de nós
mesmas valores que servirão para nos inscrevermos numa economia patriarcal como
cuidadoras de outras pessoas que está mais aguçada em nós a capacidade de sentir
empatia, inclusive com pessoas não humanas. Não estou dizendo que a capacidade de
empatia com animais é exclusividade de nós mulheres, mas que é, ela mesma, uma
capacidade identificada em certo grau com o feminino. Não é por outro motivo que
homens vegetarianos escutarão repetidamente piadinhas misóginas e/ou homofóbicas
que liguem a recusa ao especismo à feminilidade. E parece ser por esse mesmo motivo
que as defesas acadêmicas do vegetarianismo tem sido pouco ‘emotivas’.
16
Poderia
dizer
“ostenta
uma
marca
de
gênero”,
mas
tenho
me
esforçado
por
não
utilizar
a
categoria
de
gênero,
a
não
ser
quando
discuto
autoras
que
a
utilizam,
como
foi
o
caso
da
rápida
discussão
de
Butler.
-‐crimes
diários
sob
a
cumplicidade
de
quem
não
mete
a
colher
na
tradição-‐
Não é comum ouvirmos que os animais amam nos servir? Que existem para esse
propósito? Ou que não poderiam viver sem a relação específica de cultivo/domínio
humano? A epígrafe de Alice Walker responde a esse tipo de pressuposto. E, além
disso, institui uma tênue divisão entre ‘existir por suas próprias razões’ e ‘ser criada
para homens’; essa distinção não é apenas importante, ela é necessária. Porque boa parte
dessa retórica especista do ‘amor a escravidão’ se baseia na idéia de que os animais
foram criados por um deus para servir de alimento, vestimenta e mão-de-obra aos seres
humanos. É uma imagem de mundo onde o ser humano – especificamente o homem,
visto que na cosmologia cristã, ao menos, a mulher aparece como um ser humano de
segunda classe – permanece no centro, como soberano (a imagem e semelhança do
próprio arquiteto do mundo). Nem os animais nem as mulheres foram criados para os
homens, nem as pessoas negras para as brancas, antes disso: mulheres, animais e
pessoas negras existem por seus próprios propósitos (ou sem propósito algum).
Percebam que a mesma palavra se refere ao grupo que preda animais e mulheres, e não
é um ‘ato fálico’ de Alice Walker, ela está consciente de toda a questão que circunda a
universalidade do masculino e o problema do uso de ‘homens’ para referir-se a
‘humanidade’, porém parece querer utilizar esse intercruzamento para sublinhar as
conexões entre feminismo e anti-especismo.
Deixo como reticência – uma vez que essa é uma primeira aproximação formal a
esse tema, só um punhado de observações que não produzem um fechamento – um
trecho de uma poesia chamada ‘notícias coloniais’ da minha poetiza (negra e lesbo-
feminista e que ousa fazer parte da ‘outra metade’) favorita, tatiana nascimento dos
santos:
Bibliografia
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BUTLER, Judith. Bodies that matter – on the discursive limits of “sex” London:
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