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A outra metade1

Por alice gabriel2

The animals of the world exist for their own reasons, they were not created for men anymore than black
people were created for whites or women for men."
Alice Walker

Uma das coisas que os feminismos me ensinaram é que toda fala, toda ação é
política. Todo texto surge de algum lugar, tem conexões, tem ecos, se inscreve de certa
forma nos jogos de poderes. Por isso a pretensão a imparcialidade sempre me assusta,
sempre parece uma artimanha de apagar pegadas. “Importa-me escrever sobre algo que
vivo, respiro” – diz Poney cuja alcunha já anuncia o parentesco partilhado (ou desejado)
entre pessoas humanas e animais – apelando para uma filosofia encorporada3, um fazer
filosófico onde x filósofx4 se implica e se localiza numa cartografia específica de
conexão ou desconexão (pretendida talvez) com uma tradição filosófica, e também
“cultural”.

                                                                                                                         
1
 Texto  escrito  para  o  livro  de  Pedro  Arcanjo  Matos  (aka  Poney)   Toda  Dor  do  Mundo:  uma  
introdução  a  ontologias  não  especistas,  editado  pela  Quinta  Mão  editora  em  2010.  
2
   O  emprego  de  maiúsculas  serve  geralmente  para  estabelecer  uma  hierarquia  entre  palavras  no  
texto,  que  palavras  são  mais  importantes  (ou  ocupam  lugar  de  destaque)?  Como  o  jeito  que  pensamos  
está  centrado  numa  valorização  do  sujeito  humano  como  o  agente,  nomes  próprios  aparecem  
destacados.  Essa  idéia  de  que  o  sujeito  é  a  fonte  por  excelência  da  ação  (e  o  pensamento  é  aqui  
entendido  como  ação)  está  bem  conectada  a  outra  de  que  ele  age  por  si,  sozinho,  individualmente.  
Seguindo  a  teórica  bell  hooks  opto  por  escrever  meu  nome  sem  maiúsculas,  num  esforço  de  sacudir  um  
pouco  a  estrutura  de  privilégios  “do  autor”  e  tentando  apontar  para  uma  produção  teórica  que  é  mais  
coletiva  e  partilhada  (confabulada  eu  diria)  do  que  original  e  individual.  

3
   Uso   o   neologismo   ‘encorporada’   para   traduzir   a   expressão   inglesa   ‘embodied’   seguindo  
Viveiros   de   Castro   (2002),   visto   que   nem   “encarnar”   nem   mesmo   “incorporar”   parecem   termos  
adequados.  
4
   Uso  o  ‘x’  para  suprimir  a  marcação  de  gênero  da  palavra,  seguindo  a  percepção  de  que  o  plural  
no  masculino  não  apenas  não  abrange,  mas  torna  invisível  o  feminino.  Essa  discussão  é  polêmica  e  
divide  simpatias.  Não  acho,  no  entanto,  que  é  por  acaso  que  o  universal  seja  equacionado  com  o  
masculino  e,  de  fato,  desde  1949  quando  Simone  de  Beauvoir  publicou  o  Segundo  Sexo  essa  tem  sido  
uma  crítica  feminista  relevante:  entendemos  o  masculino  como  universal,  o  não-­‐marcado,  e  o  feminino  
como  o  parcial,  como  a  marca,  o  que  é  específico,  diferente.  Nem  sempre  acho  que  a  forma  mais  aceita  
de  marcar  a  diferença  sexual  ‘os/as’  seja  eficiente  ou  suficiente.  Porque,  de  fato,  há  quem  não  se  
reconheça  nesse  binarismo  homem/mulher.  
O texto do Poney dialoga não apenas com a filosofia, mas com uma comunidade
de pensamento, e também afetiva, que tem sido a cena punk/hardcore. De certa forma, o
título do texto aponta para isso, mas aponta para outra coisa também, que é central para
esse texto. O nome, toda dor do mundo era o nome da minha finada banda, formada por
quatro garotas que partilhávamos alguns sonhos e idéias, mas também certas posturas
políticas em nossas vidas: o feminismo era uma delas, o vegetarianismo outra. O nome
saiu da letra da música a marca do medo que falava sobre violência sexista5 e para mim
não é estranho ou coincidência que esse mesmo nome possa apontar para o especismo.
Esse texto é mais um esforço de responder por que, aos meus olhos6 (e boca e nariz e
mãos e orelhas), o vegetarianismo e feminismo andam de mãos dadas.

A preocupação de politizar nossos pratos e panelas também descende do velho


slogan tantas vezes repetido por vozes feministas: “o pessoal é político”. Falo
especificamente da experiência de uma feminista vegetariana – de alguém que chegou
ao vegetarianismo depois de contaminada pelo feminismo. Entendo que muitas podem
ser as motivações para o vegetarianismo, algumas delas não poderiam estar mais
distantes das motivações feministas, porém sei, ao mesmo tempo, que muitas mulheres
engajadas com o feminismo abraçam o vegetarianismo como uma continuidade de suas
posturas políticas. Greta Gaard, por exemplo, afirma que o ecofeminismo vegetariano
surge do desenvolvimento coerente das premissas do feminismo; sou menos efusiva,
acho que é um curso possível ou provável se levamos às últimas conseqüências a
vontade feminista de escrutinar nossas próprias vidas, buscando desmantelar os
mecanismos de manutenção de poder7.

Por causa da herança feminista, a dúvida de se o vegetarianismo é pessoal ou


político é, para mim, um falso dilema: escolher o que entra ou não boca adentro é uma

                                                                                                                         
5
   O  nome  do  presente  texto,  bem  como  os  nomes  de  suas  partes  são  retirados  dessa  mesma  
música.  
6
   Preciso  dizer  que  quando  digo  ‘meus  olhos’  não  quero  apelar  para  uma  originalidade,  mas  
antes,  quero  apontar  as  conexões  que  faço  amparada  por  leituras  heterogêneas,  mas  também  por  uma  
comunidade  de  pensamento.  Sou  especialmente  grata  aos  textos  apaixonantes  de  Donna  Haraway,  JM  
Coetzee,  Greta  Gaard,  Audre  Lorde  e  às  conversas  com  Tate,  Tatu,  Flores,  mas  também  Andrei,  Hery  e  
Poney.  
7
   Curiosamente,  parece  ser  um  modo  de  seguir  o  conselho  final  dado  por  Michel  Foucault  na  
introdução  ao  Anti-­‐Édipo  de  Gilles  Deleuze  e  Félix  Guattari:  não  caia  de  amores  pelo  poder!  
escolha pessoal, mas nem por isso é menos política. Recusar tomar parte na opressão de
animais não-humanos (e humanos) é uma ação que já nasce com um significado político
específico: tem a ver com recusar o lugar do opressor, com repensar os privilégios e as
práticas cotidianas que mantém o funcionamento da máquina especista. O texto que se
inicia tenta fazer dialogar esses dois temas, que podem parecer desconectados para
alguns olhos e ouvidos: feminismo e vegetarianismo. Tento caracterizar a estratégia
especista como uma que conecta as seguintes ações: a negação da pessoalidade (num
sentido fraco porque não consigo encontrar palavra melhor) dos animais – e a conexão
entre pessoas humanas subalternizadas e animalidade que tem a ver com o ato de
chamar alguns de ‘não gente’ para que outros possam se sentir mais gente– e sua
construção como vítimas que desejam a opressão, a separação entre humanidade e
animalidade dentro e fora do sujeito humano e a desvalorização da empatia (que é
marcada sexualmente) humana. E tento fazer pontes com o feminismo a partir dessa
visão geral da estratégia especista. Espero que eu tenha sucesso em explicitar as
conexões que pra mim são evidentes – porque ao contrário do que se poderia pensar,
aquilo que parece mais evidente tem se mostrado, ao menos para mim, como o que há
de mais fugidio.

-­‐condenação  perpétua  por  ser  a  outra  metade-­‐  

Não é novidade essa afirmação de que os pares binários (tão apreciados por nosso
pensamento ocidentalizado) cultura/natureza, eu/mundo, sujeito/objeto, mente/corpo,
dentro/fora, bom/mau, homem/animal8, claro/escuro, masculino/feminino, hetero/homo
não apenas partilham a característica de apresentarem uma hierarquia entre o primeiro e
o segundo termo, mas se ligam metaforicamente, de forma a mutuamente reforçar a
relação de subalternidade dos termos que ocupam o segundo lugar. Algumas
ecofeministas9 apontam as relações entre heterossexismo, racismo, classismo,

                                                                                                                         
8
   Acredito   mesmo  que   não  há   equívoco  em  colocar  o  par  como  homem/animal,  apesar  de  me  
esforçar  continuadamente  para  desarticular  o  masculino  genérico  na  minha  escrita,  acho  que  a  presença  
da   palavra   ‘homem’   querendo   significar   humanidade   nesse   par   binário   vem   a   calhar.   Não   é   por   acaso  
que   homem   é   uma   palavra   que   designa   a   humanidade:   o   geral   é   masculino   porque   o   sujeito   é  
masculino.   Luce   Irigaray   já   dizia   lá   nos   idos   de   1975   que   toda   teoria   do   sujeito   pressupõe   um   sujeito  
masculino;  isso  nada  mais  é  do  que  um  eco  deformado  das  afirmações  de  Simone  de  Beauvoir  sobre  a  
problemática  relação  da  subjetividade  universal  e  da  particularidade  da  situação  feminina.  
9
   Ver  Carol  J.  Adams,  mas  também  Greta  Gaard.  
especismo (poderíamos acrescentar o cissexismo10?), afirmando que o feminismo não é
apenas sobre mulheres e suas lutas como mulheres, mas um esforço coletivo para
eliminar todas as formas de opressão11. Podemos entender que essas relações são
metafóricas, mas também de fato, porque a feminização da natureza e a naturalização ou
animalização das mulheres (e negrxs, e LGBT) serviu como uma justificativa para a
dominação dessas pessoas, dos animais e da terra; parece que a ligação entre corpo,
natureza, feminino, animalidade, negritude, sexualidades não normatizadas e pobreza
funciona criando um conjunto de expurgo, daquilo que é (e tem que ser) excluído da
morada da subjetividade, para que ele o Sujeito com ‘s’ maiúsculo exista soberano – é a
‘outra metade’, sem a qual (e isso é importante ressaltar) o próprio sujeito não faz
sentido. Essa ‘outra metade’ orbita o sujeito e sem a referência negativa a ela o sujeito
não se define – o que podemos nos perguntar é em que medida essa definição por
oposição conecta os âmbitos do sujeito e da ‘outra metade’ e, além disso, quais são os
processos de emancipação desse vínculo pela negação.

                                                                                                                         
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   Cisgênero  ou  cissexual  são  expressões  cunhadas  por  militantes  transexuais/transgênero  para  
se  referir  a  pessoas  que  não  transitaram  entre  sexos/gêneros.  “Trans”  significa  “através”  ou  “do  lado  
oposto  de,”  enquanto  “cis”  significa  “do  mesmo  lado  de.”  Então  se  alguém  teve  um  sexo  atribuído  no  
nascimento  e  passa  a  se  identificar  e  vive  como  membro  do  outro  sexo,  essa  pessoa  é  chamada  
“transexual”  (porque  ela  cruzou  de  um  sexo  para  outro),  e  se  alguém  vive  e  se  identifica  com  o  sexo  
atribuído  no  nascimento,  essa  pessoa  é  chamada  “cissexual”.  Ver  http://www.eminism.org  e  
http://juliaserano.livejournal.com/  para  mais  informações  sobre  a  nomenclatura  ‘cis’/’trans’  e  o  
(cyber)ativismo  de  pessoas  transexuais.  
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   Esse  é  um  nó  (quase  cego)  na  disputa  entre  diferentes  teorias  feministas,  porque  há  quem  
defenda  que  esse  esforço  de  eliminação  de  todas  as  opressões  seja  um  esforço  feminista  já  de  saída  ou  
porque  todas  as  opressões  bebem  na  fonte  do  sexismo  (algo  como:  todas  as  demais  opressões  ou  
hierarquizações  têm  por  base  a  diferença  sexual  que  é  entendida  como  a  mais  primária  diferenciação  
política;  assim  algumas  teóricas  explicam  como  o  gênero  é  o  elemento  básico  da  violência  contra  
‘outros’  ou  sujeitos  alterizados),  ou  porque  uma  ética  do  cuidado  é  uma  ética  feminina  (algo  como:  
porque  somos  socialmente  ensinadas  a  cuidar  de  outras  pessoas  e  coisas  uma  aproximação  
genuinamente  feminina  à  questões  éticas    configura  uma  ética  do  cuidado  e  a  preocupação  com  outros  
tipos  de  subalternização).  Essas  duas  posições  que  caricaturei  neste  pequeno  espaço  de  nota  de  roda-­‐pé  
são  bastante  controversas.  Questiona-­‐se  bastante  a  centralidade  do  gênero  para  as  análises  feministas  
que  cada  vez  mais  buscam  incluir  outras  variáveis  em  suas  análises:  classe,  raça,  etnia,  orientação  sexual  
(inclusive  uma  forma  de  definir  a  segunda  e  a  terceira  onda  do  feminismo  é  mediante  esse  eixo  da  
centralidade  do  gênero).  E,  quanto  a  ética  do  cuidado,  essa  é  mais  uma  daquelas  áreas  do  feminismo  
onde  o  sinal  vermelho  do  essencialismo  (porque  o  cuidado  é  entendido  como  ‘próprio  das  mulheres’)  
diz  que  não  podemos  passar,  ou  não  podemos  fazê-­‐lo  sem  correr  risco  de  multa.  No  entanto,  de  fato  a  
vontade  de  incluir  cada  vez  mais  variáveis  na  análise  da  realidade  social,  de  estar  atenta  as  conexões  
entre  os  mecanismos  de  poder  é    partilhada  por  boa  parte  das  teorias  feministas  em  voga,  sejam  por  
estas  ou  por  outras  razões.  
Poney já apresentou uma versão desse argumento da ‘outra metade’ em sua
discussão sobre os pronomes: a separação entre ‘nós’ e ‘eles’ nada mais é do que o
processo de expurgo do ‘eles’ de ‘nós’ – a separação e abjeção da animalidade que cria
o domínio do humano. É a máquina antropológica descrita por Giorgio Agamben em
L’Aperto que funciona jogando para fora do sujeito a animalidade. Júlia Kristeva propõe
um conceito interessante para pensar esse processo: o conceito de abjeção. Falando
sobre a gênese de um sujeito atômico e coerente, Kristeva define abjeção como um
processo de projeção de coisas para fora do corpo (o vômito é um dos exemplos
didáticos trazidos por ela para explicar o processo psicológico da abjeção: através do
vômito que as crianças desenvolveriam um sentido de inteireza de si e de divisão entre
eu e mundo – isso será deslocado para o âmbito psicológico para entendermos que tipo
de coisa é foracluída de maneira que o sujeito tome sentido), e é através desse jogar pra
fora que o próprio corpo torna-se uma fronteira, isto é, que faz sentido distinguir entre o
dentro e o fora de mim – porém essa distinção é sempre precária, está sempre ameaçada
pela proximidade com aquilo que foi jogado para fora12. Judith Butler (seguindo Iris
Young) ampliará esse conceito psicológico ou de desenvolvimento de uma noção de
“eu” de Kristeva para pensar a abjeção como processo de criação de uma unidade
social: é através do expurgo de certas pessoas que a noção de grupo social passa a fazer
sentido. Butler vai falar sobre a abjeção no processo de criação de uma sociedade onde a
heterossexualidade13 é a norma como o expurgo de pessoas cujo gênero (entendido
como uma coerência entre anatomia, desejo, práticas sexuais, papel social e uma série
de outras coisas, e que tem como pano de fundo a pressuposição da naturalidade da
heterossexualidade) não é coerente. Podemos ver como os processos descritos por
Agamben e Butler são similares:

1- sabemos que abundam metáforas de animalidade quando o assunto é


sexualidade, ainda mais quando o assunto são as sexualidades desviantes. E é
bastante curioso que comportamentos que são vulgarmente entendidos como

                                                                                                                         
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   Em  outras  palavras:  o  abjeto  é  aquilo  do  qual  um  ‘pré-­‐eu’  deve  se  libertar  para  se  tornar  de  
fato  um  ‘eu’,  mas  algo  que  é  tão  íntimo,  tão  conectado  ao  sujeito  que  a  sua  proximidade  é  ameaçadora.  
Outro  exemplo  que  Kristeva  dá  é  o  horror  frente  a  um  defunto,  um  corpo  morto;  essa  visão  produz  nojo  
e  serve  para  lembrar  da  própria  mortandade  do  ‘eu’.  
13
   Entendo  a  heterossexualidade  aqui  não  apenas  como  uma  prática  sexual,  mas  como  um  
regime  político  seguindo  Monique  Wittig.  
anti-naturais tenham ao mesmo tempo uma profusão de referências a
animalidade.

2- é a abjeção da animalidade (ou de degeneradxs14) que torna coerente o conceito


de humanidade– ainda mais, podemos pensar que as imagens de abjeção que
Butler e Agamben propõem articulam dois níveis, um que é esse processo de
separar dois grupos: humanos de um lado, animais de outro; o outro é a
separação entre animalidade e humanidade no próprio sujeito humano (ou no
caso de Butler a separação entre o que é coerente com uma matriz heterossexual
que dá inteligibilidade aos corpos e o que não é coerente com ela- tanto dentro
quanto fora do sujeito). Esse segundo nível pode ser entendido se pensarmos nas
divisões da alma propostas por Aristóteles15, ou se pensarmos em toda a
conversa recorrente do drama humano que é luta íntima do ‘instinto’ com a
‘razão’. Enfim, é a idéia que dentro de nós existe um resquício de animalidade
que tem de ser separado, trabalhado e domesticado.

Dessa forma, fica mesmo parecendo que a domesticação tem que ocorrer de um lado
e de outro da fronteira eu/mundo. E é como se a abjeção de dentro impedisse qualquer
conexão no fora, como se porque a animalidade tivesse de ser expurgada de cada ‘eu’
pouca ou quase nenhuma simpatia com animais fosse possível. É como se fôssemos
selecionadas socialmente por nossa falta de empatia com animais. Quem falha em
empatizar com os animais entra com sucesso na vida adulta. Seguindo mais uma vez o
texto de Poney: quem consegue sobreviver às doenças ligadas ao confinamento de
animais (ele lista algumas: sarampo, varíola, coqueluche) entra com sucesso na vida
adulta. As doenças que Poney afirma serem resultado da prática de confinamento de
animais não são apenas   metáforas para a relação violenta entre humanos/animais elas
são a inscrição no corpo do que é a crueldade com animais, você tem que ser capaz de
                                                                                                                         
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   Propus  em  um  texto  anterior  que  a  tradução  para  o  termo  ‘gendered’  bastante  utilizado  por  
Butler  em    Problemas  de  Gênero  –  e  traduzido  de  maneira  descuidada  –  fosse  a  palavra  ‘generadx’,  que  
já  anunciaria,  por  sua  oposição  com  o  ‘degeneradx’  o  caráter  adquirido  do  gênero  e,  ainda  mais,  
permitiria  uma  palavra  específica  para  práticas  que  questionam  (ou  no  linguajar  da  Butler:  subvertem)  a  
ordenação  do  gênero.  
15
   Diz  o  velho  livro  empoeirado  de  filosofia  antiga  que  apresenta  um  desfile  de  homens  
igualmente  velhos  e  cobertos  de  poeira  que  Aristóteles  dividia  as  faculdades  da  alma  em  nutritiva,  
sensitiva  e  intelectiva.  Essa  divisão  da  alma  reflete  a  divisão  dos  seres  vivos  em  três  conjuntos:  o  dos  
vegetais,  dos  animais  e  dos  seres  humanos.  Só  aos  seres  humanos  está  relacionada  a  alma  intelectiva.  
superar corporalmente o confinamento, ser capaz de conviver tranquilamente com a
exploração animal para sobreviver e entrar com sucesso na vida adulta.

Não é raro que crianças descubram a origem de sua comida e recusem-se a comer
carne. Acontece todo dia, já aconteceu na minha família: é a manifestação de algum tipo
de empatia com o animal que, morto, servirá de jantar. Porém existe um investimento
contínuo para que a criança volte a comer carne como as demais pessoas, entre na
norma, e o custo a ser pago é a simpatia com animais. Podemos lembrar também de
organizações sociais que apresentam ritos de passagem para idade adulta relacionados à
morte de animais. A prática da caça entre homens nos EUA foi entendida por Catriona
Sandilands como um ritual de passagem masculino – como se ao matar um animal
selvagem o menino se tornasse homem. O movimento que constitui o homem é o
mesmo movimento que o separa da animalidade, através da morte do animal e que o
separa de uma “feminilidade” caracterizada pela empatia ou piedade para com o animal.

Sabemos – informadas tanto por feministas, como por teóricos homossexuais – que
o projeto de construção da masculinidade é um de detectar, envelopar e expurgar o que
é feminino – um projeto somatofóbico, que recusa ou tem ojeriza ao corpo, tendo em
vista a conexão entre corporalidade e feminilidade – mas não parece ser suficiente
apenas conectar feminino/corpo/animalidade para pensar o projeto da subjetividade
humanista como uma tentativa de se afastar dessa tríade; não parece ser suficiente
porque apaga as sutilezas. Não é apenas que feminizamos a natureza ou naturalizamos
as mulheres, de certa forma, as mulheres estão mais próximas a natureza, ou mais
atentas ao seu habitat do que os homens, do jeito que nos organizamos socialmente; e
isso se liga ao papel de manutenção que as mulheres ocupamos dentro de uma sociedade
dividida em famílias nucleares: porque muitas de nós lidamos diariamente com o
preparo de alimentos, com a água que é própria para beber, com o cuidado com as
crianças e pessoas idosas (que constituem as faixas etárias de saúde mais vulnerável)
estaríamos mais atentas para os primeiros sintomas de contaminação das águas, solo e
do ambiente em geral; é também por isso que o movimento ambientalista de mulheres
vem crescendo bastante nos chamados países ‘de terceiro mundo’. É também, de certa
forma, porque ocupamos esse espaço do cuidado e porque cultivamos dentro de nós
mesmas valores que servirão para nos inscrevermos numa economia patriarcal como
cuidadoras de outras pessoas que está mais aguçada em nós a capacidade de sentir
empatia, inclusive com pessoas não humanas. Não estou dizendo que a capacidade de
empatia com animais é exclusividade de nós mulheres, mas que é, ela mesma, uma
capacidade identificada em certo grau com o feminino. Não é por outro motivo que
homens vegetarianos escutarão repetidamente piadinhas misóginas e/ou homofóbicas
que liguem a recusa ao especismo à feminilidade. E parece ser por esse mesmo motivo
que as defesas acadêmicas do vegetarianismo tem sido pouco ‘emotivas’.

Essa é, aliás, uma das críticas feministas a pensadores anti-especistas importantes,


como Peter Singer e Tom Regan: existiria, segundo elas, um vazio no pensamento deles
sobre a relevância da empatia com animais para a recusa ao especismo. Esses autores
apelariam apenas para a razão em seus escritos, presos que estão à oposição
razão/emoção. Sinto o projeto de Poney intuitivamente ligado a essa crítica
ecofeminista vegetariana quando ele se questiona se o tribunal da razão serve para
desbancar a própria razão (as ferramentas do senhor servem para desmantelar a casa
grande?), uma vez que é em nome da racionalidade do sujeito e por causa dela que a
vala entre animais e humanos é cavada.

Podemos notar, também, como a materialização social de um sexo específico e


de um modo sexuado de estar no mundo no qual ao feminino é relegado o cuidado, a
emoção, a conexão em núcleos ou agrupamentos e ao masculino, a razão e a
individualidade, resulta numa dinâmica específica da simpatia com animais. Pode ser
que a capacidade que temos de sentir empatia é aquilo que está na base da percepção
moral, e justamente por isso há quem se assuste. A empatia parece necessitar de um
chão comum, ela acontece quando entre o sujeito da empatia e seu objeto há alguma
proximidade. Já ouvi gente usando esse apelo a empatia para falar que a ‘vida’ de um
feto em formação é mais especial que a vida de uma vaca que ocupa um lugar ao sol,
respira, pasta interage com outros animais – porque com um feto poderíamos empatizar,
afinal somos, nós e o feto, humanos. Há também quem pense que uma eco-ética
veganamente implicada poderia estar centrada nesta mesma noção de empatia. Porém,
se essa capacidade de empatizar está marcada sexualmente16 não poderíamos deixar de
pensar como um projeto vegano (nesses termos) está implicado em/com um projeto
feminista.

                                                                                                                         
16
   Poderia  dizer  “ostenta  uma  marca  de  gênero”,  mas  tenho  me  esforçado  por  não  utilizar  a  
categoria  de  gênero,  a  não  ser  quando  discuto  autoras  que  a  utilizam,  como  foi  o  caso  da  rápida  
discussão  de  Butler.  
-­‐crimes  diários  sob  a  cumplicidade  de  quem  não  mete  a  colher  na  tradição-­‐  

A violência especista parece ser como a violência doméstica contra mulheres em


dois sentidos que se ligam: é uma prática assustadoramente cotidiana perante a qual
muitxs se calam (e o silêncio que circunda essas práticas é uma das garantias de sua
perpetuação e, infelizmente, muitas vezes silêncio é igual a morte), (porque) é uma
prática banalizada, generalizada e cujo peso é apagado porque as mulheres, como os
animais são entendidxs como propriedade de alguém que lhes trata como bem entende –
alguém que é soberano sobre suas vidas. Não sei até onde estou disposta a levar adiante
essa comparação, porque de fato, continuar a comparar esposas a animais domesticados
é reforçar a lógica de dominação das mulheres numa economia heterossexual. Entendo
porque aqui devemos ter certa cautela. Ao mesmo tempo, nutro a perspectiva de que
existem subprodutos da ideologia dominante que podem ser utilizados contra-
hegemonicamente. Apelar para uma ponte entre animalidades e feminilidades pode ser
especialmente relevante para um projeto de ruptura com o patriarcado capitalista e
especista (de supremacia branca, cristã e hetero-cis-sexual). Tento no resto de texto que
se segue, brincar de aplicar o argumento de Monique Wittig a questão especista; é uma
brincadeira, mas que tem sua fonte em uma imagem bastante assustadora e que aparece
em situações bem distintas como o sexismo, o racismo e (principalmente) o especismo,
a idéia da ‘felicidade na escravidão’. Acredito que essa seja uma das retóricas mais
recorrentes sobre o especismo.

A discussão de Monique Wittig no texto ‘A Categoria de Sexo’ pode ser


deslocada para pensarmos o especismo. Neste texto Wittig examina o funcionamento da
categoria de sexo, essa idéia permanente de que o ‘sexo’ é um dado natural, a priori, que
organiza naturalmente as pessoas em dois grupos distintos: os homens e as mulheres.
Ela argumentará que esses dois grupos longe de serem naturalmente dados, são classes
políticas – seguindo Beauvoir que separava ‘mulher’ da ‘fêmea da espécie humana’ – e
define a meta de seu projeto feminista como a destruição das categorias sexuais: assim
como escravizadxs só fazem sentido referindo-se a mestres, mulheres só fariam sentido
em referência a homens. As epígrafes que abrem esse texto são intrigantes e, talvez, dê
pra falar de especismo através da discussão delas. Isso porque muito recorrente na
retórica de dominação é o apelo ao desejo da oprimida pela opressão. Se pensarmos que
todo discurso tem sua erótica, esse apelo é o sado-masoquismo levado a suas últimas
conseqüências. O texto de Monique Wittig começa com duas epígrafes retiradas do
prefácio de Jean Paulhan, ao livro A Estória de O, de Pauline de Réage. Trata-se de um
livro erótico sobre uma mulher masoquista, e o prefácio tem como título “Felicidade na
Escravidão”; os trechos que Wittig cita relacionam o masoquismo de O com o amor à
escravidão de certo grupo de pessoas escravizadas em Barbados que, após a abolição,
pedem a seu antigo mestre que os retome como escravxs. Tanto O como as pessoas
escravizadas de Barbados amavam a escravidão, a submissão – segundo Paulhan. Então
não é que a opressão seja horrenda, é que de fato não há opressão – é o que o texto quer
que a gente conclua: “é que os escravos de Glenelg estavam apaixonados pelo seu
senhor, é que não podiam viver sem ele, nem sem o seu domínio”.

Não é comum ouvirmos que os animais amam nos servir? Que existem para esse
propósito? Ou que não poderiam viver sem a relação específica de cultivo/domínio
humano? A epígrafe de Alice Walker responde a esse tipo de pressuposto. E, além
disso, institui uma tênue divisão entre ‘existir por suas próprias razões’ e ‘ser criada
para homens’; essa distinção não é apenas importante, ela é necessária. Porque boa parte
dessa retórica especista do ‘amor a escravidão’ se baseia na idéia de que os animais
foram criados por um deus para servir de alimento, vestimenta e mão-de-obra aos seres
humanos. É uma imagem de mundo onde o ser humano – especificamente o homem,
visto que na cosmologia cristã, ao menos, a mulher aparece como um ser humano de
segunda classe – permanece no centro, como soberano (a imagem e semelhança do
próprio arquiteto do mundo). Nem os animais nem as mulheres foram criados para os
homens, nem as pessoas negras para as brancas, antes disso: mulheres, animais e
pessoas negras existem por seus próprios propósitos (ou sem propósito algum).
Percebam que a mesma palavra se refere ao grupo que preda animais e mulheres, e não
é um ‘ato fálico’ de Alice Walker, ela está consciente de toda a questão que circunda a
universalidade do masculino e o problema do uso de ‘homens’ para referir-se a
‘humanidade’, porém parece querer utilizar esse intercruzamento para sublinhar as
conexões entre feminismo e anti-especismo.

Seguindo a discussão em companhia de Monique Wittig, podemos pensar,


jogando com sua proposta de quebra da categoria sexual, que a própria categoria
‘animalidade’ só existe em relação à categoria de ‘humanidade’ – não é nada de muito
novo ou brilhante; nada que já não tenha aparecido nesse mesmo texto. Mas é
interessante recordar que o projeto especista e o projeto humanista estão em
consonância desde o início. E um projeto de questionar a vala cavada entre humanos e
animais é justamente um projeto de questionar cada uma dessas categorias – como em
Wittig: devemos entender que existe um pressuposto político em demarcarmos a
distância e, a partir desse conhecimento, tentarmos desarticular essas categorias. Isso
significa, dentre outras coisas, colocar para jogo, questionar, repensar a nossa própria
noção de humanidade – essa noção que deixa tanta gente, efetivamente, de fora.

Deixo como reticência – uma vez que essa é uma primeira aproximação formal a
esse tema, só um punhado de observações que não produzem um fechamento – um
trecho de uma poesia chamada ‘notícias coloniais’ da minha poetiza (negra e lesbo-
feminista e que ousa fazer parte da ‘outra metade’) favorita, tatiana nascimento dos
santos:

os homens chegaram com botas de pele


pele de alguém de quem não sabiam o nome
pisando nos corações da gente-de-cor
como comeram os corações da gente-de-pelo
gente-de-bico
gente-de-pena
gente-de-escamas
gente que os homens chamaram de "não gente"
pra se sentir
mais gente

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