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Enfrentando a Homofobia e
o Sexismo em sala de aula
(Versão preliminar)
(Versão preliminar)
Não conseguimos ver, por exemplo, que estudantes como da nossa mesma, já que
ao citarmos em sala papéis mostrando de o trabalho de construção da subjetividade
modo fixo e separado tarefas para ho- não acontece só quando estamos na con-
mens e mulheres, estamos reforçando dição de estudantes... é um trabalho da
uma imagem sexista da divisão sexual do vida inteira. Uma postura crítica das práti-
trabalho. Imagens de como as relações cas escolares pode ser uma chave para
acontecem estão presentes em nossos pensarmos em uma outra produção de
cotidianos. E devemos estar atentas/os outras subjetividades, menos oprimidas,
para que essas imagens não se perpetuem menos opressoras.
como normas: elas devem ser problemati-
zadas e examinadas para ver se não es-
condem em si mecanismos opressivos. Os
livros didáticos, nossos exemplos, nossas Para observar...
atividades, sobretudo nas séries iniciais, Olhe com cuidado livros didáticos das séries iniciais e observe
devem ser lidos e pensados com cuidado, se nas gravuras aparecem apenas mulheres ou meninas reali-
para não naturalizar papéis que são soci- zando trabalho doméstico, e se em imagens da realização de
almente construídos. trabalhos públicos ou funções executivas aparecem apenas
homens; veja que cores de peles aparecem nas imagens liga-
As imagens televisivas são muito utilizadas das à pobreza ou ao trabalho subvalorizado. É importante
como recursos didáticos no espaço esco- discutir com nossas/os estudantes essas imagens, pois elas se
lar, podendo ser muito interessantes pe- internalizam e fica parecendo que não apenas o mundo é
dagogicamente. Podemos utilizá-las para assim, como também, de algum modo, deve ser.
desconstruir os papéis naturalizados, des-
de que questionemos imagens naturaliza-
das dos papéis atribuídos a mulheres e
homens, ou aquelas que sustentam que a
1.2 – O PAPEL DO GÊNERO E DA
única forma de família é a heterossexual,
SEXUALIDADE NA CONSTRUÇÃO DE
ou que pessoas negras são úteis apenas
SUJEITOS
em trabalhos subvalorizados etc. Além de
criticar essas imagens, podemos buscar E falar em subjetividades nos remete ao
outras, que construam referências positi- debate sobre as sexualidades, as afetivida-
vas e apontem outras formas de relações des e as relações de gênero, que são ins-
raciais ou de gênero e sexualidades. No tâncias muito importantes na formação
final desse guia, você vai encontrar uma das pessoas. Por quê? Porque definem a
lista de sugestões com filmes, livros, músi- maneira pela qual as pessoas vão se rela-
cas, um calendário e outros materiais pa- cionar consigo mesmas, e umas com as
radidáticos para trabalhar em sala de aula. outras. Veremos, nos módulos 02 e 03,
que o gênero é uma ferramenta de distin-
É essencial que estejamos atentas/os a
ção entre seres que acaba organizando
como temos trabalhado em nossa prática
modos de vida, sociedades e costumes. A
pedagógica, mesmo sem saber, para a
divisão sexual do trabalho, por exemplo, é
manutenção de valores opressivos. É um
uma prática recorrente em muitas civiliza-
trabalho difícil, mas que é importante, já
ções humanas, ou seja, muitas sociedades
que estamos contribuindo para a forma-
atribuem, para seu funcionamento e ma-
ção da subjetividade tanto de nossas/os
Vidas Plurais: Guia Docente 5
subjetividade, ou seja, ela é um dos espa- consigo essas marcas, as distribuem, mul-
ços de subjetivação. Vimos também que tiplicam,.
um dos aspectos fundamentais da consti- A escola é um dos mais importantes es-
tuição da subjetividade é formado pelas paços de socialização de nossa cultura.
imagens de gênero e as expectativas soci- Socialização pode ser entendida como
ais de quais relações afetivo/sexuais são processo de aprender a viver e a ser em
possíveis entre homens e mulheres e os sociedade. Em nossa sociedade, as manei-
valores agregados a estas expectativas. ras como nos relacionamos com as outras
A escola é também um espaço de encon- pessoas, conosco e com tudo o mais são
tro entre pessoas diferentes, e que se rela- aprendidas através dos processos sociali-
cionam de maneiras diversas com os pa- zadores; é neles que parte de nosso pro-
péis que delas se esperam socialmente. cesso de subjetivação ocorre.
Uma das várias formas que esses encon- Nesses processos, os valores, preconcei-
tros assume é a violência, tanto física tos, desafetos são igualmente aprendidos.
quanto simbólica9. É também a escola uma espécie de labo-
Esta violência não apenas agride as pes- ratório onde experimentamos – sob uma
soas, mas também as subjetiva, também criteriosa supervisão das outras pessoas
as ensina a ser como elas são. Dentre as envolvidas nos mesmos processos sociais
diversas violências visíveis no espaço esco- – as condutas que devemos ter diante de
lar, estão presentes as que se conectam nosso mundo social. Na escola aprende-
com o gênero e com a sexualidade. A mos sobre diversos papéis sociais e tam-
violência misógina e as violências lesbofó- bém sobre que tipos de relação estabele-
bica, homofóbica, bifóbica, travestifóbica ceremos nossas condutas, sabendo, assim,
ou transfóbica são vistas rotineiramente quais são os papéis valorizados e quais
no ambiente da escola e assumem um devemos desvalorizar. E nesse processo
caráter muito importante na constituição de aplicar os valores, aprendemos a fazer
da sociabilidade e da individualidade das circular e até mesmo a criar e recriar valo-
pessoas que perpassam o espaço escolar: res.
docentes, estudantes e todo o restante da
comunidade escolar. Nesse cenário violen-
to aprende-se a ser heterossexual (violan-
do quem não é) e aprende-se a não ser Para observar...
heterossexual sofrendo violências, escon- Nas práticas pedagógicas de sua escola é possível ver piadas
dendo seus afetos ou sendo menos inteiro que envolvam ou reforcem papéis estereotipados de homens e
nas aparições públicas; aprende-se a ser mulheres, ou ainda que condenem a diversidade de orienta-
homem inferiorizando-se as mulheres; ções sexuais? Pense em como transformá-las em exemplos
aprende-se, normalmente, a ser mulher didáticos. Que tipo de impacto você pensa que pode haver na
subjetividade de um/a adolescente ou criança que cresce sen-
sendo objetificada pelos homens. E a vio-
do educadas com esse tipo de exemplos? Vale a pena obser-
lência se institui como uma das marcas de
var, por exemplo, as aulas de educação física e ver como esses
constituição da subjetividade das pessoas elementos se articulam...
que estão na escola e, saindo dela, levam
10
cias que o habitam – tanto no plano físico que mais existências diversas sejam per-
como no simbólico –, de forma que a cebidas e mencionadas de maneira positi-
existência da diversidade seja sempre a- va.
nunciada. Isso amplia a possibilidade de
Sugestão de atividade...
Que outras formas de preconceito a linguagem apresenta? Pense, com suas alunas e alunos, alternativas a essas formas
e crie um glossário de usos não-discriminatórios de linguagem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NASCIMENTO, wanderson flor do. Esboço de crítica à escola disciplinar. São Paulo: Loyo-
la, 2004.
12 Módulo 1: Subjetivação, Gênero e Sexualidade
O sexo possui um lugar central na organi- pessoa, bem como dela sobre si mesma e
zação de nossa sociedade, perpassando a forma como ela se percebe, dá sentido
nosso cotidiano e quase todos os aspectos a sua experiência, seu corpo, suas rela-
de nossa vida (se não todos). ções e as posições sociais que ocupa.
“Vamos falar de sexo?” Ao ver uma mulher grávida, a pergunta
quase instantânea que surge em nossa
Com essa pergunta poderíamos supor
mente é: é menino ou menina? Por que
que esse é um tema sobre o qual quase
essa informação é importante e por que
não falamos ou temos medo de conver-
ela passa a organizar um conjunto enor-
sar; mas, se observarmos e olharmos a-
me de expectativas sobre aquele ser? Por
tentamente para o nosso cotidiano, per-
que essa informação organiza a nossa
ceberemos justamente o contrário: fala-
prática educacional, orientando os com-
mos o tempo todo sobre sexo. Ele está na
portamentos, gostos, desejos, afetos que
televisão (seja nos desenhos animados,
julgamos ser ou não adequados a esse ou
seja nos reality shows), nas revistas, nas
aquele sexo? Por que essa informação
propagandas (seja nas de cerveja, seja nas
guiará os olhares atentos que vigiarão
de brinquedos infantis), nas conversas do
esse corpo durante toda sua vida, pres-
dia-a-dia (daquelas ditas em voz alta até as
tando bastante atenção aos seus gestos,
cochichadas) e em espaços centrais em
práticas, desejos, comportamentos, rela-
nossa vida como a família, os grupos de
cionamentos e afetos? Por que frente à
amizade e a escola.
complexidade das características das pes-
O sexo é uma palavra cheia de significa- soas e suas singularidades, esse divisão
dos. Refere-se à divisão da humanidade binária da humanidade faz tanto sentido e
em mulheres e homens; ao conjunto de é utilizada para organizar as relações soci-
caracteres segundo o qual se divide os ais e instituições? Por que o sexo importa
seres vivos em classificações de fêmea ou tanto?
macho; aos órgãos genitais externos; ao
Investigar o que chamamos de “sexo” e
conjunto de práticas, desejos, relações e
denunciar seu processo de naturalização
afetos concebidos como sexualidade; ao
faz parte do esforço intelectual de histori-
ato sexual em si etc. Esses múltiplos signi-
adoras, antropólogas e teóricas feminis-
ficados são, na maioria das vezes, pensa-
tas, e outras pesquisadoras e pesquisado-
dos de forma conectada e são constante-
res do gênero. Naturalização é o processo
mente utilizados para dar sentido a nossa
como algo que é produzido culturalmente,
realidade, classificar seres e objetos e or-
através das práticas sociais e relações de
ganizar nossas instituições. O sexo está
poder, passa a ser visto como natural e
presente nas poesias, nas novelas, nas
como causa daquilo que na verdade é
piadas, nas brincadeiras, nas divisões de
consequência. Passamos a considerar
banheiros públicos, nos formulários que
que a divisão de papéis sexuais é natural
preenchemos e, principalmente, em nós
pois assim se mascara o dispendioso e
mesm@s. O sexo organiza um conjunto de
violento processo de adequação das pes-
expectativas das/os outras/os sobre uma
soas a esses papéis.
14 Módulo 2: Desnaturalizando o Sexoe
se.”4 Ela busca desconstruir a naturaliza- Essa percepção mascara o grande empe-
ção da feminilidade, mostrando que não é nho social em construir o que é chamado
resultado da natureza, mas de relações de “instinto”. Basta uma ida a uma loja de
sociais específicas. A autora dava um pas- brinquedos infantis para perceber o esfor-
so fundamental para a crítica da opressão ço pedagógico que é empreendido para
às mulheres: conceber que as pessoas não que crianças ocupem essas posições soci-
nascem com um sexo que as destina ins- ais: enquanto os brinquedos voltados para
tintivamente a ocupar uma posição na menino insistem no estímulo da agressivi-
sociedade, mas que são as relações sociais dade e competitividade (bonecos guerrei-
concretas que colocam as pessoas em ros, carrinhos, armas etc), os brinquedos
posições sociais construindo-as e catego- voltados para menina estimulam a vaidade
rizando-as como homens e mulheres. e a maternidade (brinquedos que simulam
atividades domésticas, bonecas nenéns
para serem cuidadas, bonecas modelos
para serem enfeitadas etc). Mesmo o que
pode aparecer como simples brincadeira é
utilizado de forma coerciva para delimitar
papéis sociais. Para quem duvida dessa
coerção, basta imaginar qual é normal-
mente a reação de uma família quando
seu filho deseja brincar apenas com bone-
cas ou quando uma menina diz que quer
brincar de cowboy.
Sugestões de filmes
Alguns filmes podem ser interessantes para levantar dis-
cussões sobre o papel opressor das expectativas de gênero
desenvolvidas pela sociedade:
“Uma escola do babado” (Jamie Babbit, 1999) é uma co-
média sobre uma adolescente líder de torcida que é inter-
nada por familiares e amig@s num centro de heterossexua-
lização, por acharem-na parecida com uma lésbica, mesmo
tendo um namorado. Lá ela conhece outras pessoas e
redescobre sua sexualidade.
Normalmente a natureza é apontada co- “Billy Elliot” (Stephen Daldry, 2000) conta a história de um
mo causa da construção de papéis sociais garoto de 11 anos que ao, ver aulas de balé na academia
baseada no sexo, por exemplo: “As mu- onde faz aulas de boxe, fica fascinado por dança e, contra
lheres devem ficar em casa cuidando das as expectativas de seu pai, deseja se tornar um grande
dançarino.
filhas e filhos, porque a natureza quis as-
“Minha vida em cor de rosa” (Alain Berliner, 1993) é um
sim. As mulheres são instintivamente ma-
drama que conta a história de um menino que decide se
ternais”, “homens são naturalmente a- vestir apenas com roupas consideradas femininas, causan-
gressivos”, “homens não choram” etc. do grande furor e comoção na pequena cidade onde mora.
Esses filmes discutem o difícil processo de quem manifesta
4 BEAUVOIR, 1980, p. 9. um desejo, uma vontade, uma prática, um jeito de ser, um
sonho diferente do é que esperado pela sociedade a partir
da normatização sexual.
Vidas Plurais: Guia Docente 17
mas que esse processo é mascarado para nas formas diferentes como se disciplinam
que pensemos que essa divisão já existe os corpos das meninas e dos meninos etc.
antes de qualquer processo social. Assim A pesquisadora Guacira Lopes Louro cita,
Wittig afirma que o sexo é produto do por exemplo, como meninas e meninos
sexismo, da opressão institucionalizada possuem diferente inserção no espaço
que divide hierarquicamente os seres, escolar e usufruem de forma diferente o
normatiza os corpos, as relações e os tempo. A ideologia do dispositivo da se-
comportamentos a partir da categoria de xualidade mascara, no entanto, a opres-
sexo.8 são, naturalizando os papéis sexuais soci-
ais e fazendo pensarmos que isso é “natu-
ral”, “necessário” e que faz parte dos dife-
“A ideologia da diferença sexual funciona como uma cen- rentes processos de desenvolvimento.
sura em nossa cultura, que mascara, por naturalização, a Como afirma Louro, “Tal „naturalidade‟
oposição social entre homens e mulheres. Masculi-
tão fortemente construída talvez nos im-
no/feminino, macho/fêmea são categorias que servem
peça de notar que, no interior das atuais
para ocultar o fato de que diferenças sociais sempre per-
tencem a uma ordem econômica, política, ideológica. escolas, onde convivem meninos e meni-
Todo sistema de dominação estabelece divisões no nível nas, rapazes e moças, eles e elas se mo-
material e econômico.” Monique Wittig9 vimentam, circulam e se agrupam de for-
mas distintas. Observamos, então, que
eles parecem „precisar‟ de mais espaço do
Wittig9 nos alerta, assim como Simone de que elas, parecem preferir „naturalmente‟
Beauvoir, que os sexos são feitos, fabrica- atividades ao ar livre, enquanto que outras
dos nas relações sociais e que funcionam tenham de trabalhar após o horário esco-
como uma ideologia ao mascarar a opres- lar; que algumas devam „poupar‟ enquan-
são que os constitui. O processo de fabri- to que outras tenham direito a „matar‟ o
cação dos sexos é cotidiano e perpassa as tempo. Um longo aprendizado vai, afinal,
relações de trabalho, as relações familia- „colocar cada um em seu lugar‟”10
res, a produção de conhecimento, os pro-
cessos educacionais. No espaço escolar, o
sexo é fabricado e afirmado o tempo to- 2.3- O CONCEITO DE GÊNERO
do: quando se divide a turma em mulhe- O termo “gênero” pode ser utilizado co-
res e homens em uma fila e para a execu- mo sinônimo do termo “sexo” no sentido
ção de uma atividade, quando construí- de uma categoria social. No entanto, é
mos expectativas diferentes para alunas e importante salientar que esse se trata de
alunos, nas figuras presentes nos murais e um termo em disputa, sobre o qual se
nos livros didáticos que representam famí- constróem diferentes abordagens teóricas
lias heterossexuais com divisões de traba- e emergem importantes debates. Nos
lhos bem definidas, nos exemplos que anos 70, feministas de países ocidentais
utilizamos para explicar um conceito ou de língua inglesa construíram uma abor-
construir um problema de matemática, dagem que ficou conhecida por “sistema
8
sexo/gênero”, que concebia o sexo e o
O conceito de Sexismo e outras expressões da
violência de gênero serão discutidos no próximo gênero como conceitos que se referem a
módulo.
9 WITTIG, 1992, p. 2. 10 LOURO, 1997, p. 60.
Vidas Plurais: Guia Docente 19
mais íntimas delas) e como organiza posi- cas e violentas. No último parágrafo do
ções de prestígio e status em nossa socie- livro em que analisa esses povos, ela afir-
dade. A violência do gênero se expressa ma:
tanto em casos extremos, como estupro “Historicamente, nossa própria cultura
de guerra, quanto em situações que jul- apoiou-se, para a criação de valores con-
gamos inofensivas: o jeito que falamos, as trastantes, em muitas distinções artificiais
expectativas que temos das pessoas e os das quais a mais impressionante é o sexo.
termos que usamos para falar de nosso Não será pela mera abolição dessas dis-
corpo e de nossas relações. tinções que a sociedade desenvolverá
padrões em que os dons individuais hão
de receber o seu lugar, em vez de serem
O vocabulário que usamos para se referir às nossas rela- forçados a um molde mal-ajustado. Se
ções também constroem a forma que essas relações se quisermos alcançar uma cultura mais rica
dão. A força desses termos não deve ser ignorada e é em valores contrastantes, cumpre reco-
importante que, ao ouvirmos estudantes utilizando ter- nhecer toda a gama das potencialidades
mos violentos para significar seu corpo e suas práticas, humanas e tecer assim uma estrutura
façamos uma crítica que não seja somente moral – do
social menos arbitrária, na qual cada dote
tipo: “não fale palavrões” –, mas que debata sobre o que
humano diferente encontrará um lugar
seu uso representa.
adequado”14
Mead sugere que numa cultura em que o
processo educacional se alicerçasse sobre
2.5- UMA EDUCAÇÃO VOLTADA a diversidade as pessoas não seriam for-
PARA DIVERSIDADE. çadas a encenar padrões aprisionantes de
comportamento. Uma cultura assim per-
Sem dúvida o sexo/gênero está extrema-
mitiria que as potencialidades de cada
mente enraizado em nossa cultura, mas
indivíduo emergissem e fossem valoriza-
isso não quer dizer que ela não pode ser
das em sua singularidade. Construir uma
transformada. A desnaturalização é a pri-
cultura assim é uma tarefa diária de todas
meira etapa, pois ela nos ensina algo mui-
as pessoas, numa crítica cotidiana das
to importante: é possível fazer diferente.
violências que perpassam nosso cotidiano.
Margareth Mead, ao se deparar com a
O próximo módulo tratará justamente
forma em que as categorias mulheres e
sobre as formas e expressões da violência
homens se construíam entre o povo Ara-
de gênero. Saber identificá-las é central
pesh, Mundugumor e Tchambuli, come-
para atuar em sua desconstrução e en-
çou a pensar justamente sobre como era
frentamento.
o gênero em sua cultura. Esse é um exer-
cício de desnaturalização! Frente à multi-
plicidade de formas como uma cultura
pode se construir, a antropóloga se per-
guntou se não seria muito mais interes-
sante viver em uma sociedade que se edi-
ficasse sobre padrões de diversidade e
não sobre diferenças arbitrárias, hierárqui-
14 MEAD, 2000, p. 303.
Vidas Plurais: Guia Docente 23
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Violência de gênero é geralmente enten- bem como quais são seus contextos e em
dida como sinônimo de violência contra que consistem essas diferentes expressões
as mulheres, „gênero‟ aparecendo como de violência de gênero. Entender para
outra forma de falar sobre „questões de detectar. Detectar para intervir, para mo-
mulheres‟. Porém, já vimos nos módulos dificar.
anteriores que gênero é um sistema que
classifica os diferentes corpos, afetos e
modos de ser no mundo. Classificação 3.1- SEXISMO E HETEROSSEXISMO
tem a ver com valoração – as várias loca- Você já ouviu falar em „sexismo‟? Se não
lizações neste sistema dão valores diferen- ouviu, com certeza já escutou e até usou
tes e organizam hierarquicamente os cor- o termo „machismo‟. O machismo apare-
pos/seres aí inscritos. O sistema classifi- ce quando alguém afirma uma hierarquia
catório do gênero se apóia em dois con- social, política, econômica ou até cultural
juntos de crenças intimamente relaciona- entre homens e mulheres. É machista
das: o sexismo e o heterossexismo, que aquela afirmação comum no trânsito,
servem para legitimar as diferentes ex- perante uma barbeiragem de uma moto-
pressões de violência de gênero – misogi- rista: “tinha que ser mulher!”, e é também
nia, homofobia, lesbofobia, travestifobia, machista a pressuposição de que meninas
transfobia e bifobia. A aproximação ou não são boas em matemática. Muitas ve-
distanciamento do modelo normativo de zes entendidas como sinônimos, „ma-
gênero implicam em maior ou menor chismo‟ e „sexismo‟ são aparentadas, mas
vulnerabilidade à violência. diferentes: machismo é um tipo de sexis-
A violência de gênero na escola aparece mo.
não apenas em ações e atitudes de dis- Chamamos de sexismo o conjunto de
criminação a pessoas LGBT (lésbicas, crenças que sustenta a separação e a su-
gays, bissexuais, travestis e transexuais) perioridade de um grupo sexual frente a
ou mulheres heterossexuais, mas também outros, isto é, que institui uma diferencia-
se manifesta no reforço de crenças na ção sexual entre, pelo menos, homens e
naturalidade da heterossexualidade ou da mulheres, porque de fato esses dois gru-
divisão hierárquica entre homens e mulhe- pos não esgotam as possibilidades exis-
res, por exemplo. Por causa da possibili- tentes de grupos sexuais. O sexismo é,
dade de reverter o ciclo de reprodução portanto, um sistema de crenças que fun-
desses conjuntos de crenças, a escola ciona instaurando grupos sexuais (poderí-
pode ser uma peça chave no desmonte da amos listar rapidamente como exemplos
violência de gênero. Porém, para poder- de outros grupos sexuais: homens hetero,
mos nos aprofundar nas discussões sobre mulheres hetero, homens gays, mulheres
diversidade sexual e afetiva no contexto lésbicas, transexuais, travestis, trangê-
escolar, precisamos entender melhor os nerxs) e reforçando um esquema de hie-
conceitos de heterossexismo e sexismo, rarquia entre eles.
Vidas Plurais: Guia Docente 25
Violência institucional cometida pelo Em relação ao tipo de agressão, 59% dos casos
Estado ou seus agentes. analisados envolvem violência física, em 18%
houve violência psicológica (agressão verbal), em
A noção de propriedade está bastante
13% a agressão foi auto-infligida e em 5% ocor-
presente em nossos valores, como pano
reu violência sexual.
de fundo sobre família e relações afeti-
vas/familiares, uma vez que vivemos num Fonte: G1
regime patriarcal – tipo de organização
social cujo átomo é a família nuclear cen-
Mas a violência no espaço público tam-
trada na figura paterna3, que detém a
bém opera largamente amparada nessa
autoridade sobre mulheres e crianças.
ideologia patriarcal que vê mulheres como
Como reflexo dessa organização social, a
posse de um sujeito masculino. Judith
violência contra mulheres é ainda mais
Butler4 discute a noção da rua como um
recorrente no espaço privado, onde tem
espaço ameaçador para mulheres sendo
seu ponto mais alto de incidência (ver Box
complementar a essa noção da mulher
a seguir). Os agentes desse tipo de abuso
como propriedade doméstica. Butler nos
são, na maioria dos casos, maridos, com-
conta de um caso de estupro na cidade de
panheiros, pais, padrastos, tios, irmãos,
New Bradford (EUA) que foi parar no
namorados ou demais membros da famí-
tribunal; a base de sua análise é uma frase
lia.
do advogado de defesa que faz à ré a
seguinte pergunta: “se você de fato vive
3
com um homem, o que estava fazendo
Curioso pensar que mesmo que boa parte das
famílias brasileiras sejam chefiadas por mulheres a correndo por aí e sendo estuprada?”. A
organização e a ideologia patriarcal continua pre- atitude de culpabilizar a agredida5 é muito
sente. Algumas pessoas chegam a classificar tal comum em casos de violência sexual, e
esquema de um „patriarcado sem pais‟. O patriar-
cado possui uma estrutura complexa “no sentido
de que não é preciso a presença masculina para 4BUTLER, 1998.
vê-lo „em ação‟. É um sistema que permeia as 5Outros exemplos de jogar a culpa da violência
relações humanas por adentrar na esfera da cultu- na mulher que a sofreu são os questionamentos
ra e gerar implicações nos hábitos e costumes da quanto a vestimenta da mulher que sofreu estupro,
grande maioria dos indivíduos.”. ou frases do tipo “ele não sabe porque está baten-
Ver: MEDEIROS, 2009. do mas ela sabe porque está apanhando”.
Vidas Plurais: Guia Docente 29
bia aparece como uma prática violenta família, bem como maus-tratos e abusos
que policia os limites dos gêneros. no ambiente familiar. Motiva também
demissões no ambiente de trabalho (não é
O que o sexismo é para misoginia o hete-
incomum na área de educação, por e-
rossexismo é para a homofobia. Ela apa-
xemplo, que professoras/es sejam demiti-
rece como a manifestação material do
dos por assumirem sua orientação afetivo-
sistema de pensamento heterossexista,
sexual publicamente). Além disso, a ho-
impedindo a liberdade de se envolver com
mofobia representa um desafio à forma-
alguém do mesmo sexo. De acordo com a
ção educacional de estudantes LGBT: a
poetisa lesbiana, negra e feminista Audre
evasão escolar entre a população LGBT é
Lorde, a "homofobia é um terror que cir-
bastante alta e de fato as agressões, insul-
cunda os sentimentos de amor entre
tos, piadas ofensivas, ameaças, abusos
membros do mesmo sexo e, portanto, um
verbais e exclusões do convívio dirigidas a
ódio desses sentimentos em outras pesso-
el@s são banalizadas no ambiente escolar.
as"8. Muitas vezes a homofobia se mani-
Em muitos casos a homofobia (dentro e
festa como um medo desses mesmos sen-
fora da escola) chega ao cúmulo da vio-
timentos se mostrarem dentro de si: é a
lência física e ao assassinato de homosse-
homofobia internalizada. A homofobia é
xuais. O Brasil é atualmente considerado
muitas vezes uma ação de manter distân-
o país mais homofóbico do mundo, cam-
cia, porque a homossexualidade represen-
peão no assassinato de lésbicas, gays,
taria constante ameaça de contágio. Des-
bissexuais, transexuais e travestis -
sa forma, esse preconceito também man-
LGBT10.
tém pessoas homossexuais isoladas de
uma sociedade onde o heterossexismo é Porém, se homofobia é o nome geral que
dominante, com pouca esperança de em- identifica o preconceito contra homosse-
patia. xuais, existem termos específicos para o
preconceito contra lésbicas, travestis,
Uma pesquisa feita pela UNESCO9 en-
transexuais e bissexuais. Você se lembra
volvendo estudantes brasileiras/os do
da discussão sobre linguagem inclusi-
ensino fundamental, seus pais e professo-
va/não-discriminatória? Pois bem, lá fa-
ras/es, “revelou que as/os professoras/es
lamos um pouco sobre os mecanismos
não apenas tendem a se silenciar frente à
que fazem o masculino aparecer como
homofobia, mas, muitas vezes, colaboram
referência primeira de mundo, de forma
ativamente na reprodução de tal violên-
que „homem‟ e „humanidade‟ se tornem
cia”.
sinônimos. Aqui funciona um mecanismo
A homofobia se expressa de diferentes parecido, e „homofobia‟ acaba servindo
formas: impede a expressão afetiva de ao mesmo tempo para designar a descri-
casais em ambientes públicos – motivando
expulsão de bares, lojas, restaurantes, 10 Uma pesquisa feita pelo Grupo Gay da Bahia
escolas, praças etc –, leva a maus-tratos e fez o levantamento de mais de 2700 assassinatos
violência nas ruas e parques, motiva ex- e mais de 5 mil relatos de outras formas de violên-
cia contra LGBT registradas no período de o
pulsões de casa e rompimento com a período de 1980-2007 em veículos diversos de
informações: jornais, revistas, noticiários de rádio
e televisão, assim como informações prestadas
8 LORDE, 1984, p. 225. diretamente na sede da entidade
9 Brasil sem Homofobia.
32 Módulo 3: Expressões da Violência de Gênero
minação específica sofrida por gays (ho- ca entre os homens), que tem a audácia
mens homossexuais) e a descriminação de afirmar a primazia das suas próprias
geral sofrida por pessoas LGBT, como se, necessidades. Ter esta etiqueta aplicada a
novamente, a experiência masculina fosse pessoas que estão ativas no movimento
a medida de todas as coisas, o que ofusca de libertação das mulheres é apenas o
a especificidade das experiências lésbicas, episódio mais recente de uma longa histó-
travestis, transexuais e bissexuais. Para ria; as mulheres mais velhas lembrar-se-ão
que possamos entender a especificidade que não há muito tempo, qualquer mulher
do preconceito contra cada uma dessas independente que tivesse sucesso e não
experiências é preciso nomeá-los. orientasse toda a sua vida à volta de um
homem ouviria esta palavra12.
c) Lesbofobia é o termo que designa especi-
ficamente a repulsa que algumas pessoas Nesse sentido, a lesbofobia está conecta-
sentem em relação às lésbicas e às práti- da com um regime sexista que entende
cas sexuais e afetivas entre mulheres. Por que o afeto feminino deva estar direcio-
extensão, chama-se lesbofobia todo e nado para um homem. O homem (seja o
qualquer tratamento discriminatório dirigi- marido, o filho, o pai ou o irmão) é o
do a mulheres lésbicas ou que são supos- objeto de afeto número um de cada mu-
tas lésbicas. É um conceito necessário lher dentro de um ideal patriarcal – por
uma vez que o preconceito sofrido por isso que um dos desafios mais importan-
lésbicas carrega de maneira específica as tes do feminismo foi (e continua sendo)
marcas do cruzamento entre misoginia e retomar os laços de amizade, afeto e a-
homofobia. mor entre as mulheres. A idéia de filogini-
a, ou amor pelo feminino, é, então, opos-
A lesbofobia é, entre outras coisas, um
ta à de misoginia e significa “solidariedade
mecanismo bastante eficiente de desmon-
entre mulheres” como uma proposta polí-
te das articulações políticas e afetivas en-
tica e afetiva.
tre mulheres. Isso foi bem explorado por
um manifesto lesbiano feminista escrito na Além disso, a lesbofobia é marcada parti-
década de 1970 por um grupo dos EUA cularmente por uma invisibilidade da se-
que se auto-denominava Radical Lesbi- xualidade das mulheres; vivemos num
ans11. Nesse manifesto, A mulher que se regime sexual que está centrado na sexua-
identifica com mulheres, as autoras de- lidade masculina, a própria noção de ato
fendem que a palavra “lésbica” tem sido sexual predominante em nossa cultura
usada historicamente como um insulto está centrada na penetração (seja pênis-
para desagregar as organizações e desfa- vagina, a cópula entendida como „natu-
zer os laços afetivos entre mulheres: ral‟, ou no sexo anal, que não é centrado
na procriação13) e os corpos femininos
Lésbica é uma etiqueta inventada pelo
ainda são vistos majoritariamente como
homem para atirar a qualquer mulher que
posses potenciais de homens ou objetos
queira ser sua igual, que tenha a audácia
de desafiar as prerrogativas dos homens
(incluindo a prerrogativa de todas as mu- 12 RADICAL LESBIAN, 1973.
13 Muitos sistemas de pensamento, especialmente
lheres serem usadas como moeda de tro-
os religiosos, entendem que a finalidade do sexo é
a reprodução, por causa disso algumas práticas
11 Em inglês, “Lésbicas Radicais”. sexuais são vistas como desvios.
Vidas Plurais: Guia Docente 33
Por causa da transfobia, pessoas transgê- 6. É improvável que alguém me pergunte sobre meus
nero são muitas vezes entendidas como genitais ou queira saber coisas a respeito das minhas
características sexuais secundárias, ou me pedir para vê-
doentes, com transtornos psicológicos ou
las como seu eu fosse atração de circo.
simplesmente degeneradas – como se
houvesse algo intrinsecamente errado em 7. É totalmente improvável que eu seja afastada/o do
seu modo de ser no mundo. Isso acontece convívio com minha família, isolada/o das minhas amigas
porque sua identificação de gênero desafia e amigos, separada/o de minhas filhas e/ou meus filhos,
dispensada/o do meu emprego, desalojada/o da minha
a norma heterossexista dominante em
casa, ou que receba assistência médica de qualidade infe-
nossa sociedade. Por causa da transfobia,
rior, sofra abuso ou violência sexual, seja ridicularizada/o
travestis e mulheres transexuais não são pelos meios de comunicação ou humilhada/o e repudia-
vistas como mulheres “de verdade”, e da/o por organizações religiosas simplesmente por assu-
homens transexuais não são vistos como mir meu gênero publicamente.
homens “de verdade”. Assim, essa dis-
8. Nunca foi uma preocupação minha que o meu gênero
criminação se manifesta fortemente nos transformasse pessoas que sempre disseram me amar em
privilégios que as pessoas cisgênero po- pessoas completamente iradas e violentas.
dem exercer. Cisgênero é o termo inven-
9. Meu sono infantil jamais foi perturbado com desespe-
tado pela militância transexual dos EUA
radas orações à divindade para que no outro dia eu acor-
para nomear pessoas cuja identidade de
dasse no sexo oposto ao meu.
gênero está em consonância com o gêne-
ro atribuído a elas ao nascer. É de extre- 10. Na minha adolescência não tive que pensar que o
meu corpo estava se transformando em algo que eu não
ma importância que pessoas transgênero
definitivamente não queria.
dêem um nome ao que é vulgarmente
entendido como a „norma‟, porque esse é Fonte: Definição de Cisgênero no site da ativista transe-
xual Letícia Lanz (com adaptações). Disponível em:
http://www.leticialanz.org/
Vidas Plurais: Guia Docente 35
muitas vezes tais valores incluem modelos ção sexual, essas crianças e adolescentes
de masculinidade e feminilidade – que acabam por perceber-se como desviantes,
ocupações, qualidades e comportamentos doentes ou até mesmo anormais. Muitas
são adequados para cada um dos sexos, se suicidam.
que tipo de divisão sexual do trabalho c. nas relações pedagógicas:
ocorre dentro de uma família, e que tipo
específico de organização afetiva constitui Quando um/uma professor/a de matemá-
uma família „de verdade‟ (iinvisibilizando tica endereça suas perguntas unicamente
outras organizações possíveis e que exis- a alunos, ele está reproduzindo uma no-
tem de fato, como a homoparentalidade). ção de que mulheres e matemática não se
Quando livros didáticos e os exemplos em relacionam: um pressuposto sexista de
sala somente mostram somente um tipo como são todas as mulheres está operan-
de prática sexual/afetiva ou de organiza- do. As pessoas costumam reproduzir
ção familiar, reforça-se a normalidade de comportamentos assim sem pestanejar;
um único tipo de relação possível: a hete- entende-se que existem atividades, práti-
rossexualidade. cas e assuntos que naturalmente interes-
sam mais a meninas do que a meninos, e
b. nos currículos: vice versa. Esse tratamento diferenciado é
Um exemplo bem fácil de visualizar a bem mais evidente nas séries iniciais, on-
ação do heterossexismo nos currículos é o de parecem ser bem aceitos e, por isso
que acontece nas aulas de educação sexu- mesmo, reproduzidos os pressupostos de
al, por exemplo. As aulas são ministradas gênero – por exemplo, que os meninos
tendo como pressuposto que as relações sejam “naturalmente” mais agitados, curi-
sexuais possíveis são relações hetero. osos ou assertivos e que as meninas sejam
Pode-se ler isso como uma tentativa de mais carinhosas, cuidadosas e caprichosas
eliminar a diversidade sexual – muitas – porém os ecos dessas velhas melodias
vezes em nome da “manutenção de uma permanecem até o ensino médio.
inocência” da criança ou adolescente na Se a divisão entre tarefas e comportamen-
escola. Tal noção confunde inocência tos típicos de meninos e meninas marca
com ignorância e por isso mesmo com as primeiras séries do ensino fundamen-
intolerância, uma vez que o silêncio incô- tal, um dos problemas graves no ensino
modo sobre questões de diversidade se- médio é o assédio sexual. O assédio sexu-
xual no ambiente escolar deixa de intervir al é um tipo de coação de caráter sexual
na prática discriminatória que entende praticada por uma pessoa em posição
pessoas lésbicas, gays, bissexuais, traves-
hierárquica superior em relação à outra
tis e transexuais como desviantes, estra- pessoa a ela subordinada, normalmente
nhas, exóticas e, principalmente, distan- em local de trabalho ou ambiente escolar.
tes. Isso contribui para a manutenção do O assédio sexual caracteriza-se por algu-
preconceito, mas também para um tipo ma ameaça ou hostilidade contra a subor-
de homofobia internalizada ou sentimento dinada, com fundamento no sexo. São
de solidão profunda entre aquelas alunas exemplos de assédio sexual: a) a aproxi-
e alunos LGBT. Na ausência de exem- mação sexual não desejada nem bem-
plos, referências e amparos que lhes fa- vinda; b) os comentários sugestivos (sobre
çam sentir confortáveis com sua orienta- roupas, o corpo das e dos estudantes etc);
Vidas Plurais: Guia Docente 37
c) os abraços, toques ou beijos não dese- As piadas e brincadeiras são muitas vezes
jados; d) a solicitação de favores sexuais; vistas como um modo eficaz de quebrar o
e) a retaliação e a ameaça de retaliação gelo e conectar professoras/es e alu-
no caso do assédio ser denunciado; f) os nas/os, mas muitas vezes elas são ofensi-
desenhos pornográficos. vas. Piadas homofóbicas, sexistas e racis-
tas são amplamente difundidas no senso
d. nas chamadas:
comum e acontecem em profusão dentro
A evasão escolar entre transexuais e tra- da sala de aula, muitas vezes entre os/as
vestis é bastante acentuada e muitas vezes próprios/as alunos/as, porém, muitas
o estopim do preconceito é a prática coti- vezes são repetidas por professores/as
diana da chamada. O descompasso entre (que de fato deveriam intervir nessas prá-
o nome de registro civil da aluna na cha- ticas para coibi-las) sem muita reflexão.
mada – aquele que lhe foi atribuído ao
As violências de gênero também apare-
nascer – e o modo como ela se apresenta
cem em bilhetes que circulam, em dese-
para o mundo, com seu nome social que
nhos e escritos nas carteiras e quadros,
é como de fato se nomeia e deseja ser
chamada, anuncia a não-aceitação de sua nas portas e paredes dos banheiros (com
suas acusações direcionadas a certos/as
travestilidade, causando desconforto e
estudantes), nas brigas entre alunos/as,
permitindo abusos físicos e psicológicos
nas ameaças e humilhações, nas agres-
pela turma. Devido a reivindicação de
sões físicas e na exclusão do convívio. É
pessoas transexuais e travestis, alguns
importante lembrar que nem sempre a
estados no Brasil já permitem a inclusão
vitimada pela violência é a/o aluno/a,
do nome social de travesti na lista de
frequentemente essas práticas de intimi-
chamada das escolas.
dação baseada no gênero atinge professo-
No dia 10 de fevereiro de 2010 foi publi- ras/es e funcionárias/os. Muitas vezes
cada no Diário Oficial do DF a portaria nº acontece de professores/as e funcioná-
13 da Secretaria de Educação do Distrito rias/os serem demitidas/os ou não pro-
Federal, determinando a inclusão no no- gredirem em seu emprego devido a sua
me social de travestis e transexuais (aque- orientação sexual ou a sua identidade de
le nome pelo qual el@s são conhecidas gênero – ou terem que de fato esconder
socialmente) nas listas de chamada da sua orientação sexual para permanecer no
rede pública do DF. Esse é um passo im- emprego.
portante para a inclusão e acolhimento de
Intervindo nas relações opressoras de
travestis e transexuais no ambiente esco-
gênero entre alunos/as, questionando as
lar: quando a escola atende à demanda de
dinâmicas de esteriotipação e poder em
estudantes travestis ou transexuais de que
atuação nas relações escolares, exami-
sejam chamad@s por seu nome social,
nando o material didático empregado e,
não só está respeitando-lhes como são,
caso seja necessário, trabalhando o con-
mas mostrando o respeito a sua auto-
teúdo em sala de aula de maneira a des-
identificação e anunciação.
construir as mensagens sexis-
e. nas brincadeiras e piadas “inofen- tas/heterossexistas nele contidas, ou seja,
sivas”: repensando suas práticas em sala de aula,
as/os professoras/es estarão contribuindo
38 Módulo 3: Expressões da Violência de Gênero
para quebrar a reprodução dos mecanis- tenção, que a pornografia "abra novos
mos de violência de gênero no contexto horizontes, dê-lhe lições sobre sexo e so-
escolar. Se a escola é, de fato, o lugar bre como deve responder a ele, propicie-
privilegiado de construção de subjetivida- lhe meios para aliviar-se, para fantasiar
des, de transmissão de valores para uma em torno de oportunidades eróticas"15.
nova geração e de negociação de valores Na ausência de conversas francas sobre
entre as pessoas, atuar neste ambiente é sexualidade e/ou aulas sobre o tema, a
o primeiro passo no projeto de construir pornografia se manifesta como a pedago-
uma sociedade respeitosa, justa e plural, gia sexual por excelência, mas haja vista a
que acolha a diversidade sexual. profundidade da ideologia sexista em nos-
sas representações do sexo, ela é também
uma pedagogia da violência de gênero. É
3.5- REVISITAR A PORNOGRAFIA:
muito importante que estejamos aten-
OLHARES CRÍTICOS SOBRE UM
tas/os ao que se ensina na pornografia,
INSTRUMENTO PEDAGÓGICO.
pois esses ensinamentos, em sua absoluta
O acesso à pornografia é muito facilitado maioria, são elementos concorrentes ao
a estudantes atualmente, sobretudo com a que discutimos aqui. Os papéis das/os
internet, além da rotineira oferta em ban- parceiras/os são fixamente apresentados
cas de jornais e locadoras. Mas o que tem na pornografia, além de ela ser ao mesmo
a ver a pornografia com conversar sobre tempo uma reprodução e um manual de
educação? comportamento de mulheres e homens
Além do fato de que a pornografia circula em relação a sua sexualidade.
na escola, nos encontros entre estudantes, Muito do que vemos na pornografia é
o material pornográfico tem uma função expressão da objetificação e da violência
pedagógica. Além da função erótica de contra mulheres e alguns homossexuais.
excitação, no material pornográfico mui- Dificilmente se vê na pornografia uma
tas coisas são aprendidas. A pornografia é relação entre duas pessoas: normalmente,
uma linguagem, e como vimos antes, a vemos UMA das pessoas que se oferece
linguagem não é apenas uma expressão como objeto de prazer de outra, e não na
de alguma coisa. A pornografia, como partilha de um encontro sexual. Para além
qualquer linguagem, expressa, mas tam- das fantasias, a pornografia mostra um
bém informa, ensina, performa, cria. sujeito do prazer e seu objeto. Normal-
A pornografia não apenas expressa um mente não vemos dois sujeitos em uma
certo modo de exercer a sexualidade, mas relação, mas um sujeito e um objeto. E
também ensina seu exercício. E o que se normalmente o objeto é desconsiderado
vê na pornografia não é apenas um con- como "algo" que precise ter prazer. Nor-
junto de atos sexuais, mas expressões malmente o sujeito é um: o homem na
daquilo que seriam desejos e modos de pornografia heterossexual, ou o "ativo"
tratar as/os parceiras/os sexuais. Os de- (aquele que penetra) na pornografia ho-
sejos e os modos de tratamento são práti- mossexual masculina.
cas aprendidas. E as imagens têm um
forte poder educativo. Além da diversão,
muitas pessoas buscam, mesmo sem in- 15 Paul, 2006, p. 21
Vidas Plurais: Guia Docente 39
Sugestão de Atividade
Analise com suas/seus estudantes algum funk proibidão. De que forma algumas correntes dessa vertente musical banali-
zam a violência sexual? De que forma as mulheres produtoras e cantoras de funk estão mudando essa situação, fazendo
letras em que surgem como protagonistas de seu prazer? Reflita e instigue a produção textual acerca da dupla-moral se-
xual que vigora em nossa socidade: de um lado, há um super-incentivo à sexualização (através da mídia, de filmes e mú-
sicas etc), enquanto de outro lado há toda uma proibição e censura sobre o sexo entre adolescentes. De que forma isso
cria grandes expectativas em torno da experiência sexual sem oferecer construções coletivas de conhecimentos e apren-
dizados positivos sobre o sexo prazeroso, consensual e protegido?
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JUNQUEIRA, Rogério. (org). Diver- 541-553
sidade Sexual na Educação: proble-
Vidas Plurais: Guia Docente 41
edades que dita: “Serás hetero ou não monstrar afeição está relacionada a nossa
existirás!” (WITTIG, 1992, p. 28). Quem percepção de quem concebemos como
não é heterossexual nem mesmo É. Um semelhante e diferente de nós. Nesse
exemplo bem cotidiano dessa desumani- sentido é bastante provável que nos com-
zação está nos xingamentos utilizados padeçamos muito menos do assassinato
contra homossexuais que associam as de uma travesti noticiado em um canto de
práticas homoeróticas à animalidade, é jornal do que da morte de um jovem
muito comum no Brasil e em vários ou- branco da classe média. Por não se consi-
tros países que se usem nomes de animais derar uma travesti nem mesmo humana
para ofender homossexuais. 2 (ou tão humana quanto heterossexuais),
não se percebe a travesti como alguém
com quem deve se compadecer ou sentir
É bastante comum o uso de nomes de animais para xin- empatia, nem se revoltar com sua morte.
gar homossexuais, como forma de afirmar a não- Por isso, o esforço para desconstruir os
humanidade dessas pessoas. No Brasil é comum o uso processos de estigmatização não é uma
do termo “viado/veado”, “frango” ou “bicha”. Esse tarefa apenas externa, mas implica prin-
processo ocorre de forma semelhante em outros países: cipalmente em desconstruir nossos valo-
pájaro ou pássaro, pato e mariposa ou borboleta no Ca- res e nossos afetos e em perceber que,
ribe hispânico; duck nos Estados Unidos da América; muitas vezes inconscientemente, damos
duckie, na Inglaterra; fiegele (derivado de pássaro) no ií- diferentes valores a diferentes vidas.
diche. O termo “bicha” talvez seja um dos mais signifi-
cativos, pois reúne a idéia de não-humanidade com a de
sujeira. 2
Em 2008 foram noticiados no Brasil os assassinatos
Dentro desse mesmo mecanismo de de- de 190 de pessoas, mortas por serem homossexuais
sumanização, inferiorização e desqualifi- e travestis, a grande maioria com absurda crueldade.
cação, as práticas homoeróticas masculi- Provavelmente uma grande parte dos assassinatos
nas, assim como as pessoas nelas envol- ocorridos nem chegou a ser noticiado na mídia. E
vidas, foram e têm sido consideradas co- provavelmente esses 190 que foram noticiados des-
pertaram o compadecimento de quase ninguém. Veja
mo aberração, anomalia, ato imoral, cri-
o relatório anual do Grupo Gay da Bahia de assassi-
me, degenerescência sexual, delito sexual,
natos de homossexuais no Brasil em 2008 em
desqualificação social, desvio moral e se- http://www.ggb.org.br/assassinatosHomossexuaisBr
xual, disfunção orgânica, doença, inversão asil_2008_pressRelease.html.
sexual, loucura, neuropatia, patologia
psíquico-somática, perigo social, perver-
são e transtorno sexual, vício, anormali- B) Muitas vezes há uma conexão entre
dade e mesmo problema de saúde públi- diferentes estigmas. É bastante comum,
ca.3 por exemplo, a ligação dos estigmas que
Esse processo de desumanização implica recaem sobre a população LGBT e às
em como nos relacionamos com as pes- pessoas vivendo com HIV/Aids.
soas e na empatia com seu sofrimento.
Nossa capacidade de sentir afeto e de-
2 FOUNTAIN-STROKES, 2004.
3 TREVISAN, 2002, passim.
44 Módulo 4: Desconstruindo Estigmas
No Brasil, a Aids foi oficialmente noticia- diferente, o opressor e quem deve ser
da em 1983. A partir desse ano, as popu- oprimido.6
lações LGBT passaram a ter a sua ima-
gem cada vez mais associada à Aids –
chamada, então, de Peste Gay. Como Em 1985, por exemplo, apenas dois anos depois da
aponta Susan Sontag, as doenças desco- primeira morte por essa síndrome oficialmente anunciada
nhecidas costumam ser usadas “como no Brasil, um farmacêutico paulistano negava-se a aplicar
metáfora para o que se considera social injeções em efeminados, justificando-se: “E se eu me
ou moralmente errado”4; nesse caso, a contaminar? Lá em casa ninguém ia querer saber da
Aids tornou-se metáfora da impureza, do história. Todo mundo ia achar que eu „virei a mão‟” 6 .
temor e do risco de contaminação que Ele tinha medo de contaminar-se não do vírus da síndro-
me da imunodeficiência adquirida, mas de uma marca da
eram parte da população LGBT. João
homossexualidade – e a Aids era considerada uma dessas
Silvério Trevisan narra uma cena emble-
marcas.
mática, acontecida há poucos anos em
um ônibus em São Paulo: “recusando-se a
se sentar num banco, de onde dois deli- As estigmatizações sofridas pela popula-
cados rapazes tinham acabado de se le- ção LGBT e por pessoas vivendo com
vantar, um homem alertou a outro: „Não HIV/Aids se conectam e se retroalimen-
senta aí que você pega Aids‟”5. Mais que tam. Ao conhecer uma pessoa homosse-
um medo resultante de um desconheci- xual, muitas pessoas já supõem de início
mento das formas de contaminação do que se trata de uma pessoa vivendo com
vírus do HIV, a associação entre a Aids e HIV/Aids e, inversamente, ao conhecer
a homossexualidade através das idéias de uma pessoa vivendo com HIV/Aids, já
impureza e contaminação faz uma popu- supõem que se trata de uma pessoa ho-
lação aparecer não só como desumana e mossexual.7
perigosa, mas como instauradora de ur-
gente necessidade de controle, vigilância e
eliminação. Como afirma João Silvério Trevisan: “(...) salvo prova em
Nos anos 90 havia um grande número de contrário, o doente de Aids é culpado[a] de sua doença.
piadas que ligavam a homossexualidade à Se diante da fatalidade do câncer as pessoas sadias sen-
Aids. As piadas são formas centrais atra- tem pena, diante da Aids elas tendem a sentir raiva, a
partir do julgamento moral que a vê como doença do
vés das quais os processos de estigmati-
corpo resultante de uma alma conspurcada”. 7
zação aparecem e se fortalecem, são em
si mesmas violentas e funcionam como
uma pedagogia da opressão. A piada, C) Há no processo do estigma a tendência
expressando o que é risível e o que não, de se tomar a parte pelo todo. Por exem-
quem pode fazer rir e de quem se deve plo, é bastante comum que pessoas vi-
rir, marca posições, hierarquiza pessoas e vendo com HIV/Aids sejam chamadas
ajuda a delinear o certo e o errado, o pejorativamente de “aidéticas”. A doença,
normal e o anormal, o semelhante e o nesse caso, passa a significar toda a tota-
lidade da pessoa. O mesmo não ocorre sexual constante. Esse estigma impede
com outras doenças, não nos referimos a uma plena inserção social e a livre expres-
uma pessoa com câncer de “cancerígena” são de todas as potencialidades de uma
ou a uma pessoa com problema no cora- pessoa.8
ção de “cardiopata”.
zação em sala de aula. A tarefa de cons- agente educacional e cada ator e atriz
trução de uma escola não excludente e dentro do espaço escolar de rever e ques-
que contribua com a diminuição de pro- tionar seus atos e concepções cotidiana-
cessos de opressão não deve ser apenas mente, de não se omitir perante atos de
um lema vazio ou um slogan panfletário, violência e de contribuir com a valo-
mas deve ser o compromisso de cada rização e promoção da diversidade.
Saiba mais...
O sociólogo Erving Goffman (1922-1982) foi o principal responsável por apresentar o estigma como
um processo social. Para conhecer mais sobre o processo de produção dos estigmas vale a pena co-
nhecer seu livro “Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1983.
Na internet...
O sítio virtual do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde
(http://www.aids.gov.br/) traz um conjunto de informações muito úteis sobre HIV/Aids e outras doen-
ças sexualmente transmissíveis, bem como informações sobre os direitos das pessoas vivendo com HIV
e Aids. Essas informações podem subsidiar atividades em sala de aula. É importante que atividades que
envolvam uma discussão sobre Aids e HIV não se restrinjam apenas em informações sobre prevenção,
mas que abram um espaço para a crítica de processos de discriminação e estigmatização sofridos por
pessoas vivendo com HIV e Aids e por grupos historicamente associados a essas doenças.
Sugestões de filmes...
O filme “Filadélfia” de Ron Nyswaner (1993) pode ser um interessante instrumento para levantar a dis-
cussão sobre os estigmas que recaem sobre a população LGBT e sobre pessoas vivendo com HIV/Aids.
O filme conta a história de um advogado, interpretado por Tom Hanks, que é despedido de uma grande
empresa quando os empresário descobrem que ele está com o vírus da Aids. O filme apresenta sua luta
para ter seus direitos garantidos frente a todos os estigmas, preconceitos e discriminações da sociedade.
No filme Garota Positiva, de Peter Werner (2007), uma adolescente do ensino médio é contaminada pe-
lo HIV mas se recusa a fazer o exame. O surgimento de uma professora vivendo com o vírus e o encon-
tro da história dessas duas personagens tem impacto na comunidade escolar, e na forma como as e os
adolescentes discutem e vivem suas vidas sexuais. O filme aponta o aumento da contaminação de jo-
vens pelo HIV nos EUA, uma vez que, por não acreditarem que estão suscetíveis ao vírus, adotam
comportamentos sexuais de risco.
O filme “A letra escarlate”, de Roland Joffé (1995), narra uma história de opressão social pela estigma-
tização. Conta a história de uma mulher que em 1666, por ser acusada de adultério, é obrigada a portar
um “A” bordado em cores vermelha em suas roupas. Esse “A”, um estigma, é o símbolo de seu crime
perante a sociedade local. Trata-se de um bom filme para discutir a história dos processos de estigmati-
zação e da opressão das mulheres.
Vidas Plurais: Guia Docente 49
.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
públicas de reparação dos danos da es- conta da diversidade de grupos ali repre-
cravização passada mas não superada, e sentados, e quando cria-se um nicho de
de combate às mazelas do racismo atuali- profissionais negras e negros nas mais
zado e cotidiano, que traz um sistema de diversas áreas, não estando mais restrit@s
benefícios para parte da população (não- a subrepresentações ou funções de pouco
negra) em detrimento de outra parte (ne- prestígio social (serventes, sub-empregos,
gra). postos informais ou associados a margina-
lização etc).
dos. Isso implica considerar que a escola verdade sobre o mundo. Como muitas
não é uma instituição pronta, acabada, vezes costumamos ligar a nossa noção de
inflexível, mas uma estrutura que deve verdade com o que é correto, com o que
acompanhar o ritmo dos educadores e é bom fazer, criamos sistemas de educa-
dos educandos, em um processo que re- ção, punição e condução ligados com
quer diálogo nos coletivos de trabalho, na nossas imagens do que é verdadeiro e,
relação com a comunidade escolar e com por isso, bom. Isso faz com que, muitas
os outros campos do conhecimento.”7 vezes, as pessoas criem vulnerabilidades e
opressões a outras pessoas que sustentem
crenças diferentes das nossas: e muitas
5.4.- DIVERSIDADE RELIGIOSA vezes o fazem com boas intenções, já que
As pessoas se relacionam com o sentido julgam que estão sendo guiadas pelo que
de suas próprias vidas de muitas manei- é verdadeiro, bom, justo. 8
ras. Um dos mais importantes modos de
lidar com a vida, com o modo como se
enxerga o mundo, com a maneira de en- Você sabia?
carar as experiências consigo mesmas,
Segundo o último senso do IBGE – de 2000 – há
com as outras pessoas e com o mundo é
30 nomes de denominações religiosas diferentes no
a religião. Brasil (sem contar que se agruparam as crenças
indígenas, as/os “espiritualistas”, diversas igrejas
Existem em nosso país muitas práticas
evangélicas e outras religiões)? Isso faz aparecer
religiosas e muitas pessoas envolvidas centenas de denominações quando desagrupadas.8
nelas, ao mesmo tempo em que encon-
tramos pessoas sem nenhum tipo de
crença ou prática religiosa. Esse fato cria
um rico ambiente de olhares sobre o
A busca do respeito pelas diversas cren-
mundo e também cria dificuldades, já que
ças religiosas (e ausência delas) deve ser
nem sempre essas visões são conciliáveis.
um tópico permanente nas nossas atua-
As diversas visões religiosas e as visões
ções enquanto educadoras/es. Devemos
não religiosas de mundo muitas vezes se
lembrar que a escola, enquanto institui-
negam entre si, gerando conflitos entre
ção, é parte de um Estado Laico, sendo
pessoas religiosas e não religiosas e, prin-
responsável, por isso, por cuidar para que
cipalmente, entre pessoas de diferentes
todas as expressões religiosas – mesmo a
visões, crenças e práticas religiosas.
expressão de ausência de crença – sejam
Um dos grandes desafios para a constru- possíveis sem silenciamento ou opressão
ção de um mundo menos opressivo é o das demais. Essa é uma tarefa difícil, mas
convívio entre as idéias e práticas que a proposição do diálogo respeitoso entre
temos em relação à percepção religiosa pessoas de diferentes perspectivas religio-
do mundo. E esse desafio se estrutura sas e não religiosas deve ser estimulada
exatamente porque normalmente as pes- na busca de um espaço de encontro não
soas pensam que suas visões religiosas violento.
(ou não religiosas) se conectam com a
alternativas anti-racistas a que TODOS os quem é diretamente atingid@ por ele, mas
grupos raciais e étnicos devem aderir. O de toda a comunidade escolar e da socie-
racismo não é problema exclusivo de dade, uma vez que denun
cia o trato violento da diversidade como de várias instâncias do convívio social,
rotina. inclusive o escolar.
Sabe-se que a educação tem, por sua vez,
uma inegável relação com acesso a bens
5.6- CONSEQÜÊNCIAS DA
materiais, já que a escolarização é uma
DISCRIMINAÇÃO
das formas de ascensão social. Por isso, a
evasão escolar se reflete na precarização
“O conhecimento exige uma presença da situação econômica de muitas pessoas.
curiosa do sujeito em face do mundo. Sem escolaridade e capacitação profissio-
Requer uma ação transformadora sobre a nal, boa parte das travestis, por exemplo,
realidade. Demanda uma busca constante. não têm muitas alternativas de produção
Implica em invenção e em reinvenção.” de renda além da prostituição. O precon-
Paulo Freire ceito no mercado de trabalho, e a ausên-
cia de políticas públicas para acesso a
Em 2009, o Brasil ganhou o triste título
emprego desse segmento, também agra-
de país mais homofóbico do mundo, se-
vam o quadro.
gundo pesquisa do Grupo Gay da Bahia,
que considerou os registros de assassina- É muito perverso que essa exclusão ocor-
tos de homossexuais e travestis noticiados ra no espaço por excelência dos aprendi-
pela mídia. A pesquisa Revelando Tramas zados. Se a escola não ensina algo além
(DF, 2009) aponta que nas escolas pes- de desrespeitar, excluir, segregar e maltra-
quisadas “os tipos de discriminação mais tar, então está falhando com seu objetivo
relatados foram a homofobia, com 63,1% de promover uma educação que participe
das respostas das/os alunas/os e 56,5% na construção, nos dizeres do mestre Pau-
das/os professoras/es ... e o racismo lo Freire, da “convivência com o diferen-
(55,7% d@s alun@s e 41,2% d@s profes- te”, está executando sua aniquilação pela
sor@s”.1 negação. Reverter essa situação é um
passo imprescindível na construção de
O racismo e a homofobia têm uma rela-
uma sociedade efetiva e amplamente de-
ção antiga com a evasão escolar; as atitu-
mocrática, para todxs, todas e todos que
des hostis em relação a pessoas conside-
ali queiram estar e permanecer.
radas negativamente diferentes são estru-
turais (sub-representação em materiais
didáticos, por exemplo) e também cotidi-
anas (professor que se nega a ler, durante
a chamada, o nome social da aluna tra-
vesti; piadas depreciativas a crianças gor-
das; vistas-grossas à violência contra ho-
mossexuais etc), e expulsam tais pessoas
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64 Módulo 6: Pequeno Inventário de Conquistas do Movimento de Mulheres e LGBT
anarquista, mulheres ganhavam espaço e feminista. Não havia até então um órgão
colocavam em pauta – juntamente com a governamental de caráter federal que to-
opressão de classe – as opressões especí- casse nessas questões. O CNDM “foi cri-
ficas das mulheres trabalhadoras2. ado junto ao Ministério da Justiça, com
orçamento próprio, tendo sua presidente
Porém, se as primeiras décadas do século
status de ministra”3; durante sua vigência
XX foram marcadas por uma organização
o conselho tratou de temas centrais para
jamais vista de mulheres, o golpe de 1937
a luta feminista no Brasil, porém sua vida
deu uma freada na organização da socie-
foi curta (1985-1990), pois o presidente
dade civil como um todo; a movimenta-
Fernando Collor de Melo, durante seu
ção das mulheres só foi retomar seu fôle-
mandato, cortou o orçamento do conse-
go por volta da década de 1970. Consi-
lho, através da Medida Provisória 150 de
dera-se 1975, decretado pela ONU como
15 de agosto de 1990.
o Ano Internacional da Mulher, o momen-
to que inaugura o novo movimento femi- A maior contribuição do CNDM foi a atu-
nista no Brasil, de caráter mais contesta- ação junto à Assembléia Nacional Consti-
dor e radical, no sentido de atento não tuinte de 1988. De acordo com Cynthia
apenas às manifestações do problema da Mara Miranda, o CNDM:
submissão feminina, mas tentando enten- ...trabalhou com eficiência para que as
der a raiz do problema; radical desde a reivindicações das mulheres fossem in-
raiz. Naquele ano também aconteceu a corporadas à Constituinte. Conduzindo
Conferência da Cidade do México – uma uma campanha nacional com o tema
das muitas conferências internacionais “Constituinte para valer tem que ter pa-
para avaliar a condição e tratar os obstá- lavra de mulher”, o movimento conse-
culos que impedem o avanço dos direitos guiu mobilizar muitas outras organiza-
humanos das mulheres. Tais conferências, ções de mulheres, possibilitando com is-
como a Convenção sobre a Eliminação de so a sistematização de suas propostas
em um único documento intitulado Carta
Todas as Formas de Discriminação contra
das Mulheres à Assembléia Constituinte.
a Mulher, também chamada de CEDAW,
Essa intensa mobilização dos movimen-
a Conferência de Belém do Pará, a Con- tos de mulheres, movimentos feministas,
ferência de Beijing etc estabeleceram al- CNDM e parlamentares da bancada fe-
guns eixos que acabaram por orientar as minina foi exitosa e a Constituição de
políticas públicas para mulheres no Brasil 1988 trouxe várias conquistas para as
e em vários outros países do mundo. brasileiras. Entre elas, destaca-se a ga-
rantia de igualdade a todos os brasileiros
A partir da década de 1980, o movimento
perante a lei, sem qualquer tipo de dis-
feminista no Brasil foi marcado por uma tinção; a ampliação da licença-
crescente institucionalização, com a cria- maternidade; a concessão de aposenta-
ção de conselhos que cuidassem das ques- doria para as trabalhadoras rurais e 13º
tões específicas das mulheres. Em 1985 salário e férias anuais de 30 dias para as
foi criado o Conselho Nacional de Direitos empregadas domésticas4
da Mulher (CNDM) para atender a de-
mandas do movimento de mulheres e
2Para saber mais sobre a história das mulheres no 3 PINTO, Regina Céli, 2003, pg 72
Brasil ver: PINTO, 2003. 4 MIRANDA, 2007, pg 10,
66 Módulo 6: Pequeno Inventário de Conquistas do Movimento de Mulheres e LGBT
Também na década de 1980 um impor- Junto à criação das DEAMs por pressão
tante passo na luta contra a violência mi- do movimento feminista, mobilizou-se um
sógina foi dado: a criação das Delegacias esforço crítico e uma vontade de reformu-
Especializadas de Atendimento à Mulher lar os Códigos Civil e Penal para retirar
(DEAM). Antes disso as mulheres sofriam ou alterar passagens que apresentavam
todo tipo de violações e abusos no âmbito uma linguagem retrógrada e destilavam
privado/particular silenciadas, com quase sexismo. Isso representou um passo em
nenhuma perspectiva de denúncia e puni- direção ao reconhecimento efetivo da
ção para seus perpetradores. Foi a partir cidadania feminina. As alterações incidi-
da década de 1970, com o crescimento ram em temas como:
da movimentação feminista no país ques- a organização da família; as regras de
tionando a distinção entre privado e polí- matrimônio; direitos iguais à administra-
tico, que as questões intra-familiares co- ção de bens e responsabilidades na soci-
meçaram a ser entendidas como parte de edade conjugal; o respeito à integridade
uma política sexual e, por isso mesmo, física e à vontade da mulher nos casos
passíveis de intervenção. Colocar em de violência sexual, precedendo os inte-
questão o velho dito de que “em briga de resses morais de quem quer que seja; a
marido e mulher não se mete a colher” eliminação de dispositivos abertamente
injustos como a virgindade da mulher
era (e continua sendo) extremamente im-
como qualidade essencial de pessoa, a
portante para salvar (e melhorar) vidas de
expressão mulher honesta, e de figuras
muitas mulheres. Em 1986 é criada, a-
criminais como o adultério e a sedução;
tendendo a pressões do movimento femi- a inclusão do assédio sexual como crime
nista, a primeira DEAM do Brasil, na ci- relativo ao uso de poder do agente sobre
dade de São Paulo. Tal implantação teve a vítima por cargo, profissão ou ativida-
o mérito de tornar visível a violência con- de religiosa, entre outros. As alterações
tra mulheres, abrir o debate sobre a ques- conquistadas vieram a reforçar a luta
tão, bem como o mérito óbvio de estimu- contra a discriminação5.
lar a denúncia de casos de violência. A A década de 1990 foi marcada por uma
criação da DEAM era necessária frente à mudança significativa no movimento fe-
grande discriminação que enfrentavam as minista. De articulações e grupos autô-
mulheres em situação de violência quando nomos, manifestação nas ruas e etc o
denunciavam seus agressores no sistema feminismo se volta para uma maior insti-
policial comum; isso se dava não apenas tucionalização com a criação de organiza-
pela noção já citada de que brigas conju- ções não governamentais, ONGs. Forma-
gais não são questões a serem publiciza- das por militantes ou por pesquisadoras
das, mas também pelo processo de cul- acadêmicas, essas ONGs atuam normal-
pabilização da vítima. Fato é que os a- mente junto ao governo e com o apoio de
gressores encontravam no sistema policial organismos internacionais, preenchendo
um aliado. Assim a DEAM surge como algumas lacunas na criação e manutenção
um serviço vital para o combate à violên- de políticas públicas para mulheres – em
cia contra mulheres: um espaço onde (ao uma terceirização de serviços e responsa-
menos teoricamente) as atingidas pela bilidades que deveriam ser do próprio
violência misógina receberiam o acolhi-
mento necessário. 5 CAMARGO e AQUINO, 2003, pg 41.
Vidas Plurais: Guia Docente 67
Estado, com controle social. Algumas Vinte anos após a criação da primeira
ONGs também atuam pressionando o DEAM no país, a Secretaria de Políticas
governo por mudanças legislativas (advo- para Mulheres (SPM) criou uma central de
cacy), e pelo cumprimento das políticas atendimento telefônico que funciona vinte
voltadas às mulheres. e quatro horas por dia recebendo denún-
cias de violência e maus tratos contra
Em 2003 foi criada, atendendo a pressão
mulheres: o Ligue 108. A central, que
política do movimento feminista e suprin-
fornece um serviço gratuito de utilidade
do o vácuo deixado pela extinção do
pública, recebe não apenas denúncias de
CNDM, a Secretaria Especial de Políticas
violência, mas também registra reclama-
para as Mulheres (SPM), vinculada ao
ções sobre o funcionamento da rede de
gabinete da presidência, e cuja Secretária
atendimento as mulheres, além de “orien-
goza do status de Ministra. A criação da
tar as mulheres sobre seus direitos, enca-
SPM acena para um reconhecimento por
minhando-as para os serviços da Rede de
parte do governo federal na urgência na
Atendimento à Mulher em Situação de
formulação de políticas públicas específi-
Violência, quando necessário”. Desde sua
cas para mulheres.
criação, foram efetuados mais de 700 mil
atendimentos a mulheres de todo o país.
Outra conquista importantíssima no senti-
É competência da SPM: do de combater a violência misógina foi a
assessorar direta e imediatamente o Presidente da promulgação, em 2006, da Lei nº
República na formulação, coordenação e articulação 11.340, também conhecida como Lei
de políticas para as mulheres; Maria da Penha. A nova lei confere a
elaborar e implementar campanhas educativas e não importância devida ao enfrentamento da
discriminatórias de caráter nacional;
violência doméstica e familiar contra mu-
elaborar o planejamento de gênero que contribua na
lheres ao entender sua natureza específi-
ação do governo federal e das demais esferas de go-
ca, coibir e tipificá-la como um crime. Ela
verno;
veio preencher uma lacuna na legislação
promover a igualdade de gênero; articular, promover
e executar programas de cooperação com organis- brasileira, que não tratava diretamente (e
mos nacionais e internacionais, públicos e privados, por isso mesmo adequadamente) da ques-
voltados à implementação de políticas para as mulhe- tão: a violência doméstica era tratada da
res; mesma forma que delitos de trânsito, por
promover o acompanhamento da implementação de exemplo. Já havia uma pressão interna
legislação de ação afirmativa e definição de ações por melhorias legislativas (entre outras)
públicas que visem ao cumprimento dos acordos, ligadas a essas questões, mas a nova lei
convenções e planos de ação assinados pelo Brasil, também atende às recomendações de
nos aspectos relativos à igualdade entre mulheres e tratados e convenções internacionais assi-
homens e de combate à discriminação, tendo como nados pelo Brasil nas últimas décadas.
estrutura básica o Conselho Nacional dos Direitos da
Com sua promulgação, o Brasil passou a
Mulher, o Gabinete e três Subsecretarias.
ser o 18º país da América Latina e Caribe
Fonte:
a contar com uma lei de combate à vio-
http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia lência doméstica e familiar contra mulhe-
/sepm/ res.
68 Módulo 6: Pequeno Inventário de Conquistas do Movimento de Mulheres e LGBT
Tipificação da violência doméstica e familiar contra a mulher: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral;
Criação dos Juizados ou Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para julgar os crimes, com atendi-
mento multidisciplinar;
Criação de novas Defensorias Públicas da Mulher;
Abertura de inquérito policial composto por depoimentos da vítima (sic), do agressor e de provas documentais e peri-
ciais;
Prisão em flagrante do agressor;
Medidas protetivas de urgência (suspensão do porte de armas, afastamento do agressor do lar, suspensão de visitas
aos filhos etc);
Inclusão das mulheres em programas oficiais de assistência social;
Atendimento à mulher em situação de violência por serviços articulados em rede, incluindo saúde, segurança, justiça,
assistência social, educação, habitação e cultura.
Além disso, as delegacias ganharam força, pois a Lei restabeleceu o papel da autoridade policial no enfrentamento à vio-
lência contra a mulher. Entre as inovações estão a obrigatoriedade de abertura de inquérito policial composto por depo-
imentos da vítima (sic), do agressor e de provas documentais e periciais e a solicitação das medidas protetivas para as
mulheres junto aos Juizados. O agressor também pode ser preso em flagrante ou ter a prisão preventiva decretada.
Fonte: http://200.130.7.5/spmu/docs/violencia_2007.pdf
É interessante notar que no texto da cita- III - em qualquer relação íntima de afeto,
da lei há o reconhecimento de organiza- na qual o agressor conviva ou tenha con-
ções familiares não heteronormativas, o vivido com a ofendida, independentemen-
que faz com que a Lei Maria da Penha te de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais e-
seja aplicável também em relações homo-
nunciadas neste artigo independem de ori-
afetivas:
entação sexual”6.
“Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configu-
Segundo a Desembargadora do Tribunal
ra violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou omissão baseada
de Justiça do Rio Grande do Sul, Dra.
no gênero que lhe cause morte, lesão, so- Maria Berenice Dias, essa afirmação con-
frimento físico, sexual ou psicológico e da- tida no parágrafo único supracitado –
no moral ou patrimonial: caracterização de relação familiar inde-
I - no âmbito da unidade doméstica, com- pendentemente da orientação sexual da
preendida como o espaço de convívio ofendida e de seu agressor – faz com que
permanente de pessoas, com ou sem vín- a lei seja aplicável não apenas a mulheres
culo familiar, inclusive as esporadicamente em relações heterossexuais, mas também
agregadas; a lésbicas, travestis, transexuais e transgê-
II - no âmbito da família, compreendida
neros que mantenham “relação íntima de
como a comunidade formada por indiví-
duos que são ou se consideram aparenta-
dos, unidos por laços naturais, por afini- 6Texto da LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO
dade ou por vontade expressa; DE 2006. Grifos meus.
Vidas Plurais: Guia Docente 69
8
Em 2009, a SEDH lançou o Plano Na- Em novembro de 2006 reuniu-se na cidade de
Yogyakarta na Indonésia um grupo de especialis-
cional de Promoção da Cidadania e Direi- tas em direitos humanos e ratificaram uma carta
tos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexu- de princípios de aplicação da legislação de direitos
ais, Travestis e Transexuais respondendo humanos para as questões de orientação sexual e
identidade de gênero, tal documento ficou conhe-
a pressão e as demandas do Movimento cido como Princípios de Yogyakarta. Tais princí-
LGBT, e nele assumindo a responsabili- pios afirmam a obrigação primária dos Estados
dade de implementar políticas públicas implementarem os direitos humanos e acompanha
cada princípio uma lista de recomendações aos
que tenham como foco a população Estados. São 29 princípios dentre os quais cons-
LGBT, bem como fortalecer o programa tam o direito à vida, direito à igualdade, à não
discriminação, à educação, à segurança pessoal, à
Brasil Sem Homofobia. O Plano é fruto privacidade, à liberdade de opinião ou expressão
da I Conferência Nacional GLBT (2008) e (inclusive expressão de gênero), à constituição de
por isso representa o esforço tanto da família.
72 Módulo 6: Pequeno Inventário de Conquistas do Movimento de Mulheres e LGBT
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74 Módulo 7: Direitos Humanos
PANORAMA DOS DIREITOS não é um fato óbvio que tais direitos de-
HUMANOS – 60 ANOS DE DDHH vam ser reconhecidos por todos(as).”1
Os Direitos Humanos nasceram formal- É pela falta desse reconhecimento que,
mente em 1948, com a Declaração Uni- passados 60 anos de sua declaração, ain-
versal dos Direitos Humanos sendo ado- da assistimos violações rotineiras aos Di-
tada pela ONU – a Organização das Na- reitos Humanos por todo o planeta: gru-
ções Unidas – em um contexto social, pos de extermínio, trabalho escravo, ex-
político e econômico de muita tensão: sob ploração sexual de crianças e adolescen-
os escombros da Segunda Guerra Mundial tes, tráfico de mulheres e travestis para
e das atrocidades cometidas naquele perí- exploração sexual, assassinatos de ho-
odo principalmente pelo nazismo, mas mossexuais, desrespeito aos direitos das
também pela guerra e seus custos huma- comunidades tradicionais (extrativistas,
nos e ambientais de manutenção. indígenas, quilombolas...)...
É interessante notar, então, que os Direi- Mas por que os Direitos Humanos, que
tos Humanos como política mundial são são universais, não funcionam universal-
pensados e consolidados num contexto de mente para todas e todos?
extensa violação: assassinatos, políticas
eugenistas, ascensão do racismo, grandes
impactos socioambientais no planeta, a. A quem se destinam os DDHH e por
modificações econômicas e culturais ori- que as violações atingem a alguns gru-
undas das demandas de guerra... Ou seja, pos mais que a outros?
quando estavam ameaçados de forma Grupos humanos em situação de maior
massiva, foram demandados pela organi- vulnerabilidade2 social são os grandes
zação popular e universalmente declara- atingidos pelas violações dos Direitos
dos pelos Estados e suas organizações Humanos. Por vivermos em uma socieda-
internacionais. de patriarcal, as mulheres estão entre
Não podemos esquecer que os Direitos eles. Da mesma forma, grupos de minori-
Humanos não são, portanto, uma conces- as étnicas (como indígenas e cigan@s), ou
são dos Estados, mas sim conquistas po- ainda grandes grupos raciais atravessados
pulares, em especial pela luta dos movi- por processos históricos de exclusão e
mentos sociais atuantes à época: pacifis- exploração (como é o caso dos povos
tas, sindicalistas, movimento de mulheres, afro-descendentes nas Américas), tem
de direitos civis de minorias étnicas etc... enfrentado essas violações de forma coti-
“A prática de declarar direitos significa, diana, oriundas do racismo e de outras
em primeiro lugar, que não é um fato formas de preconceito e discriminação.
óbvio para todas as pessoas que elas são
portadoras de direitos e, por outro, que
1
CHAUÍ, 2006, p. 9.
2
No capítulo 05 fizemos uma discussão extensa
sobre situações de vulnerabilidade.
Vidas Plurais: Guia Docente 75
7 8
CARVALHO, 2004, p. 21. CEPIA, 1999, p. 8.
Vidas Plurais: Guia Docente 77
c. Uma educação em Direitos Humanos turalismo que está presente em toda sala
pode desconstruir a homofobia e o se- de aula. Das várias religiões e origens às
xismo? várias expressões de sexualidade, passan-
“A educação deve orientar-se para o ple- do pelas muitas matrizes raciais e étnicas,
no desenvolvimento da personalidade a escola é um espaço multicultural, onde
humana e do sentido de sua dignidade, e coexistem sujeitos sociais em diversidade.
deve fortalecer o respeito pelos direitos Muitas vezes, essa diversidade é entendida
humanos e pelas liberdades fundamen- como algo a ser excluído. Cria-se um
tais”. Pacto Internacional de direitos eco- campo de conflitos violentos no lugar de
nômicos, sociais e culturais. Art. 13, § 1. haver um de coexistência e resolução
A educação é compreendida como uma dialógica de conflitos, e a escola torna-se
das dinamizadoras de “processos sociais, outro espaço de violações e exclusões.
políticos e educacionais que propiciem “Nossa maneira de nos situar em relação
uma internalização cada vez mais forte aos „outros‟ tende, „naturalmente‟, isto é,
dos direitos humanos e da dignidade hu- está construída, a partir de uma perspec-
mana, tanto por parte de cada cidadão e tiva etnocêntrica. Incluímos no „nós‟ todas
cidadã, como no imaginário coletivo”13. aquelas pessoas e grupos sociais que têm
Pesquisas locais e nacionais apontam para referenciais semelhantes aos nossos, que
têm hábitos de vida, valores, estilos, vi-
as relações entre evasão e fracasso esco-
sões de mundo que se aproximam dos
lar e a persistência de esterótipos e dis-
nossos e os reforçam. Os „outros‟ são os
criminações, conforme vimos nos módu-
que se confrontam com estas maneiras de
los anteriores. Isso nos leva à pergunta: a situar-nos no mundo por sua classe soci-
função de educar em direitos humanos al, etnia, religião, valores, tradições
tem sido realizada pela escola? etc.”14
É preciso definir o que entendemos por Na escola, nós também estamos em cons-
educar em direitos humanos. O Brasil tante formação. O processo de aprendi-
viveu mais de 20 anos sob um regime zagem é coletivo: implica adesão de to-
ditatorial militar, e os resquícios desse das(os) atrizes/atores presentes no pro-
período são amplamente vistos na educa- cesso. Então, como professoras e profes-
ção formal (escolar): distribuição de cartei- sores, precisamos reconhecer nosso papel
ras em sala de forma hierarquizada, con- de agentes na construção de uma cultura
teúdos voltados para o mercado de traba- de DDHH, mas sem esquecer que tam-
lho (tecnicismo), e até recentemente a bém reproduzimos valores. Se vemos
existência curricular de “Educação Moral e nossos valores como dominantes, esta-
Cívica” são algumas dessas marcas que mos agindo de forma etnocêntrica, e não
conformaram o que Paulo Freire definiu criando um espaço de acolhimento à di-
como uma “educação bancária” que for- versidade e à prática de respeito aos direi-
ma sujeitos autômatos ao invés de autô- tos humanos de todas e todos.
nomos, críticos, solidários.
Professoras e professores podemos dar
A empatia e a solidariedade são funda- “valiosa contribuição para a formação de
mentais para a compreensão do multicul- uma nova sociedade, em que a dignidade
13 14
CANDAU, 2009, p. 67. CANDAU, 2009, p. 73.
Vidas Plurais: Guia Docente 79
De acordo com o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, “a educação em direitos humanos é compreendi-
da como um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito de direitos, articulando as se-
guintes dimensões:
a) apreensão de conhecimentos historicamente construídos sobre direitos humanos e a sua relação com os contextos
internacional, nacional e local;
b) afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos direitos humanos em todos os espa-
ços da sociedade;
c) formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer presente em níveis cognitivo, social, ético e político;
d) desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção coletiva, utilizando linguagens e ma-
teriais didáticos contextualizados;
e) fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos em favor da promoção, da prote-
ção e da defesa dos direitos humanos, bem como da reparação das violações”.
Fonte: PNEDH, 2008, p. 25.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BRASIL SEM HOMOFOBIA. Programa questões e buscas. Revista Múltiplas Leitu-
de Combate à Violência e à Discrimina- ras, v.2, n. 1, p. 65-82, jan. / jun. 2009.
ção contra GLTB e de Promoção da Ci- CARVALHO, José Sérgio (org). Educa-
dadania Homossexual. 2 ed. Brasília: ção, Cidadania e Direitos Humanos. Pe-
Câmara dos Deputados, 2004. trópolis, RJ: Vozes, 2004.
Que tal utilizar essas datas para mobilizar debates e atividades culturais em sua escola? Elas
podem propiciar momentos muito interessantes para fazer discussões mais amplas de direi-
tos humanos e enfrentamento às violências e discriminações.
Vidas Plurais: Guia Docente 83
GLOSSÁRIO
Crossdressers Dispositivo
Crossdressers é um termo em inglês que Em português, dispositivo pode ser definido
também designa travestismo no sentido de se como: adj. Que contém disposição, ordem,
vestir como uma pessoa do outro gênero. preceito. / S.m. Regra, prescrição, artigo de
Porém o termo se aplica a homens (muitas lei: o dispositivo constitucional. / Aparelho
vezes heterossexuais) que gostam ou sentem ligado ou adaptado a instrumento ou máqui-
prazer em se vestir de mulher em sua intimi- na, que se destina a alguma função adicional
dade. ou especial.
drag queens e kings O uso que propomos aqui é derivado do uso
proposto por Michel Foucault. Em algum
„To drag‟ em inglês é algo como se travestir,
sentido a proposição de Foucault é inspirada
no sentido de se vestir como uma pessoa do
no uso corrente do termo 'dispositif' em
outro gênero. A nossa noção de travesti é
francês porque tem uma dimensão do que é
um pouco diferente, porque a travesti não
artificial ou maquínico de um lado, e a di-
apenas se veste de roupas que identificam-se
mensão da normatividade do outro. O dispo-
ao outro gênero, mas produz de fato mu-
sitivo é uma rede articulada entre certas
danças corporais (que são mais permanen-
normas, regras, práticas, eunciados científi-
tes). Drag Queen é um termo que se refere à
cos, instituições, que atende a uma urgência
homens que se vestem de mulher, normal-
e materializa uma certa realidade. O exemplo
mente para um show ou apresentação. A
que usamos no nosso guia é o da sexualida-
drag tem um caráter mais cômico e debo-
de. O dispositivo da sexualidade é a rede de
chado, é uma caricatura das normas de fe-
saberes (médicos, religiosos, morais, higienis-
minilidade. Já Drag King designa mulheres
tas, biológicos, fisiológicos, anatômicos, etc)
que se vestem de homens.
e poderes que estabelecem uma realidade do
Desconstruir, Desconstrução sexo e da sexualidade. A conexão desses
saberes cria a materialidade de um sexo que
A desconstrução é um esforço político de
passa a ser entendido como natural.
crítica da realidade social. Não se refere a
uma destruição, mas ao trabalho de identifi- Epistemologia, espistemológico
car e visibilizar fraturas na realidade social
Epistemologias num sentido amplo são sis-
que desmascaram a aparente estabilidade do
temas de conhecimento, ou modos de en-
mundo. Trata-se de um trabalho político de
tender e interpretar o mundo.
desmontar e remontar a realidade social
como se fosse uma máquina, para, ao fazer Estado Laico
isso, ver o que ele esconde e encontrar pos-
Estado Laico é o Estado que não prega ne-
sibilidades de transformação.
nhuma religião, não baseia suas leis em prin-
Desnaturalização cípios religiosos e não utiliza concepções
religiosas para beneficiar algumas pessoas
Desnaturalização é o esforço político de
em detrimento de outras. Não se trata de um
perceber os processos sociais e a relações de
Estado que negue a importância da religiosi-
poder que constroem nossa realidade, que
dade na vida das pessoas e desconsidere as
muitas vezes são mascaradas e percebidas
tradições religiosas na formulação de políti-
como "naturais", fazendo-nos acreditar que a
cas públicas, mas que justamente perceba a
realidade não pode ser diferente do que é
diversidade das tradições religiosas e não
hoje.
valorize uma em detrimento de outras, ga-
Ver: naturalização.
rantindo a liberdade de credo e, inclusive, os
direitos das pessoas que não professam ou
Vidas Plurais: Guia Docente 85
Sexista, sexismo
Sexismo é um sistema de pensamento que
institui grupos sexuais e instaura uma hierar-
quia entre eles. Geralmente dizemos que
uma atitude, fala, pensamento ou ação é
sexista quando ela reforça essa diferença de
poderes entre os diferentes grupos sexuais.