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Alice Gabriel
Universidade de Brasília
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O termo natureza aparece entre gem das ecologias queer para a educação ambiental; e
aspas simples ao logo do texto Keitaro Morita faz uma crítica literária ambientalista, ou
para nos lembrar que ‘natureza’ é ecocrítica. Por isso, essa rápida apresentação dos artigos se
mais um conceito do que uma
coisa que exista no mundo. Várias dividirá em dois momentos: no primeiro, destacarei os
das autoras que trabalhamos aqui argumentos centrais de Gaard e Sandilands, de maneira a
querem justamente prestar entendermos para que serve postular um ecofeminismo queer;
atenção à maneira pela qual no segundo momento, apresentarei rapidamente os demais
moldamos o que constitui o
textos que nos mostram o uso que pode ser feito desse
natural, de acordo com uma pers-
pectiva política específica. Talvez instrumental teórico.
a conexão com os argumentos Por que ecofeminismo queer? O que está em jogo
do filósofo Timothy Morton (e sua nessa adição do termo queer à agenda ecofeminista? Greta
proposta de uma ecologia sem Gaard argumenta em seu texto que, uma vez que o
natureza) seja inevitável e o
próprio termo ‘natureza’ deva ser ecofeminismo tem como uma de suas tarefas expandir sua
abandonado. Por causa da suspei- capacidade de diagnóstico interseccional, de modo a
ta quanto ao termo, e na tentativa pensar e atuar levando em consideração o cruzamento entre
de torná-lo incômodo, coloco a as diferentes opressões (como Carol Adams, por exemplo, que
natureza entre aspas simples.
está pensando a conexão entre a opressão de mulheres
3
Cissexismo é, como o hete-
rossexismo, uma variação do humanas e a de fêmeas de outras espécies – como o espe-
termo sexismo. Se tomamos a cismo e o sexismo se articulam em nossos hábitos alimentares
definição de sexismo como “um ou como se reforçam não apenas real, mas também metafo-
sistema de crenças que funciona ricamente), para tornar o ecofeminismo mais amplo, ele tem
instaurando grupos sexuais e re-
forçando um esquema de que ser queer. Isso ocorre porque boa parte do ecofeminismo
hierarquia entre eles”, facilmente de fato articula as conexões entre sexismo e naturismo (que é
podemos ver como heteros- o termo usado por Gaard para falar da opressão da
sexismo e cissexismo nada mais ‘natureza’2), mas se esquece de colocar em questão o
são do que recortes que apontam
heterossexismo ou o cissexismo.3 Portanto, para Gaard, tornar
para uma maior especificidade
dessa definição. Porque rapida- o ecofeminismo queer4 é ampliá-lo; e seu argumento vai em
mente associamos os grupos direção de entendermos que essa ampliação é o resultado
sexuais descritos na definição de lógico de uma política ecofeminista radical.
sexismo como apenas dois – Catriona Sandilands reforça essa posição: se o
homens e mulheres – precisamos
dos afixos ‘hetero’ e ‘cis’ para ecofeminismo nos faz pensar que a ‘natureza’ é organizada
entendermos que existem outros por nós (mas também se organiza!) por relações complexas
grupos sexuais possíveis. Heteros- de poder, o ecofeminismo queer nada mais faz do que
sexismo coloca a questão de adicionar a categoria sexualidade a estes eixos de poder. A
orientação sexual como uma
sexualidade, enquanto eixo de poder, organiza a maneira
variante que entra no jogo da
distinção de grupos sexuais. Já o como definimos o que vale como ‘natureza’, como enten-
cissexismo coloca a questão da demos e como nos relacionamos com aquilo que chamamos
identidade de gênero. ‘Cis’ é a de natural. Talvez por ser uma noção baseada muito no
terminologia nascida no cyber feminismo da diferença sexual (do jeito que ele se constitui
ativismo de pessoas trans. Julia
Serano (autora de Whipping Girl: nos Estados Unidos), falta a uma parcela do ecofeminismo
A Transsexual Woman on Sexism pensar a que serve propor a diferença sexual como base da
and the Scapegoating of política ou teoria feminista. Monique Wittig denunciava a
Femininity e que mantém o blog proposição da diferença sexual como o pensamento hetero
http://juliaserano.livejournal.com)
em funcionamento.5
o encontrou na rede interna-
cional de computadores, na A perspectiva ecofeminista queer diagnostica três
página de Emi Koyama (http:// questões pelas quais a relação entre sexualidade e ‘natureza’
www.eminism.org). ‘Trans’ significa molda nossa forma de entender, perceber e interagir com o
“através” ou “do lado oposto de”, natural. A primeira, e a mais óbvia, é a naturalização da
enquanto ‘cis’ significa “do mes-
mo lado de”. Então, se alguém heterossexualidade
heterossexualidade. Por causa de um imperativo sexual
teve um sexo atribuído no nasci- repro-centrado (ou seja, centrado na reprodução) ou por
mento e passa a se identificar e causa da erotofobia (medo do erótico, identificado por Greta
vive como membro do outro
sexo, essa pessoa é chamada Gaard na tradição ascética cristã), os saberes a respeito das
“transexual” (porque ela cruzou práticas sexuais foram construídos de modo a considerar que
de um sexo para outro), e se uma orientação heterossexual é mais natural do que uma
alguém vive e identifica-se com orientação homossexual. Porém, Catriona Sandilands e Greta
o sexo atribuído no nascimento,
Gaard nos explicam como, ao mesmo tempo, a homossexua-
essa pessoa é chamada cissexual.
Não se trata de instaurar mais um lidade é vista como antinatural (uma paixão desnaturada) e
dualismo trans/cis, mas de iden- pessoas queer são animalizadas e vistas como mais próximas
tificar que o que muitas de nós à ‘natureza’ (assim como as mulheres na crítica tradicional
entendem como normal ou natu- feminista estavam conectadas à ‘natureza’: opressão e
ral é também um tipo de identi-
ficação de gênero. Para saber animalização andando de mãos dadas). Falas sobre a
mais sobre cis/trans, veja a FAQ natureza incontrolável dos gays ou lésbicas (que apostam
sobre cissexual, cisgênero e privi- fortemente num dualismo mente/corpo, no qual a mente falha
légio agregado a essa posição no em dominar o corpo), ou mesmo as palavras que usamos
mundo no blog de Julia Serano
para falar de pessoas LGBTTT (lésbicas, gays, bissexuais,
(http://juliaserano.livejournal.com/
14700.html) ou a tradução que travestis, transexuais e ‘transgênerxs’6) e que são nomes de
fiz dela e que está disponível no bichos ou coisas naturais7 (veado, bicha, sapa, jacaré, ou os
endereço eletrônico http:// faggots citados por Greta Gaard) apontam nessa direção.8
parlerfemme.onira.org/2010/07/ A segunda é a projeção de uma heterossexua heterossexua--
13/traducao-a-missao/.
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Greta Gaard vai preferir usar o
lidade à ‘natureza’
‘natureza’, nas palavras de Sandilands: “a
dualismo heterossexual/queer ao natureza é heterossexualizada”, o que nada mais é do que
heterossexual/homossexual com um desdobramento do ponto anterior. No processo de
base no termo ‘queer’ ser mais naturalizar a heterossexualidade, é importante mostrar como
amplo que ‘homossexual’. Isso é
a heterossexualidade está não apenas ‘entre nós’, mas
questionável. No Brasil, por exem-
plo, o movimento LGBTTT reivindi- também ‘no mundo’. Assim, passamos a enxergar uma
ca que prestemos mais atenção estrutura política e social (e sexual) específica de um momento
nas especificidades de cada ca- histórico de uma parcela da população humana e
tegoria (assim, o Plano LGBTTT generalizá-la para outras espécies. A sociobiologia é boa
propõe que pensemos como a
lesbofobia, transfobia, travestifo- nisso, em fazer paralelos entre nossas organizações sociais e
bia, bifobia articulam-se de políticas e entre as organizações (sociais e políticas também!)
maneiras diferentes, em vez de de outros animais – o que poderia ser muito interessante se
apenas usar o nome amplo homo- conseguisse ver além da reprodução do padrão hegemônico
fobia); ao mesmo tempo, o
de comportamento humano. Ao contrário, a sociobiologia faz
feminismo reclama da noção de
‘queer’ (do mesmo jeito que ativis- com que entendamos a nossa organização social como
tas lesbianas reclamam do nome natural, no pior sentido possível: no sentido que opõe ‘natureza’
‘homossexual’) porque esse nome à política. Fechando esse parêntese a respeito da
universal para diversas orienta- sociobiologia, a heterossexualização da ‘natureza’ nos faz
ções afetivo-sexuais e configura-
ções identitárias acaba sendo não apenas atribuir a outros animais a mesma estrutura de
identificado com o masculino. heterossexualidade (que de acordo com Monique Wittig é
5
Ver GABRIEL, 2009. um regime político) que encontramos entre nós, mas que a
6
O ‘x’ em ‘transgenerxs’ quer atribuamos a outros seres naturais: entendemos, por exemplo,
abarcar de forma mais contun-
a reprodução das plantas em termos de hetero, e mais,
dente uma não binarização da
sexualidade, recusando o entendemos a relação entre certos animais e certos vegetais
masculino bem como o feminino. em termos de heterossexualidade (por exemplo, a relação
7
AREDA, 2008, fala sobre a entre abelhas e flores).
“coragem de ser bicho” e a A última é a atribuição de um modelo hetero
conexão entre abjeção e anima-
lização no caso dos ‘viados’.
para as relações entre humanas e ‘natureza’ ‘natureza’. Essa
8
Além disso, Gaard aponta outras questão é bem próxima ao diagnóstico ecofeminista de que
Referências bibliográficas
AREDA, Felipe. “Serás hetero ou não serás!”: Abjeção,
violência e purificação. 2008. Monografia (Graduação
em Antropologia) – Instituto de Ciências Sociais,
Universidade de Brasília, 2008.
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion
of Identity. New York: Routledge, 1990. [Edição Brasileira: