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Alexandre Cheptulin

ADIALEÏ1CA
MAŒHAUSDV
Oategorias e eis da didétioa
Alexandre
Cheplulin
C ategorías e leis
d a dialética

Categorias eleis da dialétiGa


A DIALÉTICA
MATERIALISTA
É com o objetivo de trazer ao público leitor brasileiro a visão da ciência
marxista — como ela é pensada e praticada nos países que elegeram a
dialética materialista como fundamento para sua práxis econômica, cultu
ral e social — que a Editora Alfa-Omega lança A dialética materialista —
Categorias e leis da dialética, do filósofo soviético Alexandre Cheptulin, edi
tado originalmente em russo pela Editorial Progresso (Moscou, 1975).
O livro procura analisar as principais categorias e leis da dialética mate­
rialista, colocando-as em evidência, e expõe “a essência do materialismo
dialético, enquanto teoria filosófica particular". Estas categorias e leis, ad­
verte o autor, são apresentadas “sob a forma de um sistema de conceitos
interdependentes, um determinando o outro e um decorrendo do outro” e
podem ser consideradas “como reflexos das propriedades e relações reais,
como graus e formas de desenvolvimento do conhecimento da sociedade e
como princípios do conhecimento dialético e de uma transformação orien
tada pela realidade”.
Alexandre Cheptulin é doutor em filosofia, professor e autor de vá­
rias monografias dedicadas ao materialismo dialético, publicadas pelas
principais editoras soviéticas. A dialética materialista — Categorias e leis
da dialética é seu primeiro trabalho a aparecer em língua portuguesa e foi
especialmente traduzido para a Editora Alfa-Omega por Leda Rita Cintra
Ferraz.

A
Livros para o pensamento e a a ç ã o sociãl
ISBN 85-29b 00*1 '

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A D IA LÉTIC A M ATERIALISTA
Categorias e Leis da Dialética
BIBLIOTECA ALFA-OMEGA DE CIÊNCIAS SOCIAIS
Série l.a — Volume 2

Coleção
FILOSOFIA
ALEXANDRE CHEPTULIN

A DIALÉTICA MATERIALISTA
Categorias e Leis da Dialética
Tradução
Leda Rita Cintra Ferraz

!k

A
EDITORA ALFA-OMEGA
São Paulo
2004
Planejamento Gráfico e Produção
Anselmo da Silva Filho

Título do original francês


Catégories et lois de la dialectique
Éditions du Progrès — Moscou
© VAAP — Moscou — URSS

Capa
Jayme Leão

Revisão
Eunice Aparecida de Jesus

Composto/Impresso
Gráfica A Tribuna - Santos/SP.

Direitos reservados
EDITORA ALFA-OMEGA LTDA.
Rua Lisboa, 489 - 05413-000 - São Paulo - SP
Tel. (Oxxl 1) 3062-6400 — Fax (Oxxll) 3083-0746

Site: http://www.alfaomega.com.br
e-mail: alfaomega@alfaomega.com.br

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
SOBRE O AUTOR

Alexandre Cheptulin é doutor em Filosofia, professor e autor


de várias monografias dedicadas ao materialismo dialético,
dentre as quais podemos citar Sistema das categorias dialéticas,
Leis da dialética materialista, Filosofia do marxismo-leninismo.
Este é um estudo dos problemas fundamentais da filosofia
marxista, uma análise das categorias e das leis dialéticas. Neste
estudo, o autor procura apresentá-las sob a forma de um sistema
de conceitos interdependentes, um determinando o outro e um
decorrendo do outro. Ele considera essas categorias e leis
como reflexos das propriedades e relações reais, como graus
e formas de desenvolvimento do conhecimento da sociedade e
como princípios do conhecimento dialético e de uma transfor­
mação orientada pela realidade.

V
IN D IC E DE A SSU NTO S

Sobre o Autor ............................................................................................ V

Introdução ............................................................................................ 1

I. NATUREZA DAS CATEGORIAS....................... 5


II. O PROBLEMA DA CORRELAÇÃO DAS
CATEGORIAS DA DIALÉTICA .................................... 19
1. Resolução do problema da correlação das categorias
na filosofia pré-marxista ................................................ 20
2. Do princípio de partida e dos princípios de edificação
do sistema das categorais da dialética ........................ 55

[II. L MATÉRIA E CONSCIÊNCIA ............................... 62


1. A matéria ......................................................................... 62
2. Matéria e formação material. Aspectos da matéria 73
3. Da substancialidade da matéria ................................. 76
4. O reflexo ......................................................................... 78
5. O psíquico e o fisiológico ................................. 85
6. A consciência ................................................................... 88

IV. AS CATEGORIAS COMO GRAUS DO


DESENVOLVIMENTO DO CONHECIMENTO
SOCIAL E DA PRÁTICA .......................................... 124
1. A relação entre as categorias da dialética enquanto
graus do desenvolvimento do conhecimento ........... 125
2. Ordem de aparecimento e de aplicação das catego­
rias da dialética no curso do desenvolvimento do
conhecimento científico ................................................ 128

351
3. A relação das categorias como pontos centrais,
considerada sob o ângulo do desenvolvimento do
pensamento filosófico .................................................... 133
4. As categorias enquanto graus do desenvolvimento
da prática social .............................................................. 137
5. O desenvolvimento das formas do pensamento no
processo do movimento do conhecimento de uma
categoria à outra ............................................................ 142

V. O P A R T IC U L A R , O M O V IM E N T O , A
RELAÇÃO ...................................................................................... 157
1. O particular ...................................................................... 157
2. O movimento .................................................................... 157
a) O conceito de movimento .................................... 157
b) O movimento e o repouso .................................... 163
c) O movimento e o desenvolvimento ..................... 165
3. A re la ç ã o ............................................................................ 176
4. O espaço e o tempo ....................................................... 181

V I. O S IN G U L A R , O P A R T IC U L A R E O G E R A L 191
1. Crítica das concepções idealistas e metafísicas do
singular e do geral .......................................................... 191
2. A relação do singular e do geral .................................. 194
3. O geral e o particular ..................................................... 196
4. A correlação do geral e do particular no momento
do movimento da matéria do inferior para o superior 199

V II. A Q U A L ID A D E E A Q U A N T I D A D E ................ 203


1. Js conceitos de qualidade e de quantidade ........... 203
2. O problema da multiplicidade das qualidades das
coisas ................................................................................ 208
3. Lei da passagem das mudanças quantitativas às
mudanças qualitativas e vice-versa ........................... 212
4. Salto. Tipos de saltos .................................................... 216

V III. A C A U S A E O E F E I T O .......................................... 224


1. A evolução dos conceitos da causalidade na filo­
sofia pré-marxista ........................................................ 224
2. A concepção marxista dacausalidade ................... 229
3. Causalidade e necessidade ......................................... 232

352
IX . O N E C E S S Á R IO E O C O N T I N G E N T E ............. 242
1. Os conceitos de necessidade e de contingência___ 242
2. A crítica das concepções idealistas e metafísicas da
correlação da necessidade e da contingência ......... 246
3. A concepção marxista da correlação do necessário
e do contingente ............................................................ 250

X. A L E I ...................................................................................... 2 53
1. O conceito de lei ............................................................ 252
2 . As leis dinâmicas e estatísticas .................................... 254
3. As leis gerais e as específicas, suarelação ............... 256

X I. O C O N T E Ú D O E A F O R M A .................................. 263
1. Os conceitos de conteúdo e de forma ..................... 263
2. Crítica das concepções idealistas e metafísicas de
conteúdo e de forma ...................................................... 265
3. Leis da correlação do conteúdo e da forma ............. 268
4. Parte e todo, elemento e estrutura ........................... 270

X II. A E S S Ê N C IA E O F E N Ô M E N O ........................ 276


1. Os conceitos de essência e de fenômeno ............... 276
2 . As leis de correlação da essência e do fenômeno .. 278
3. O fundamento e o fundamentado ............................ 280

X III. A C O N T R A D IÇ Ã O . A L E I D A U N ID A D E
E D A L U T A D O S C O N T R Á R I O S ..................................... 286
1. A contradição como unidade e luta dos contrários 286
2. Contradição e diferença ........................................... 290
3. Os graus do desenvolvimento da contradição . .. 293
4. A contradição como forma universal do ser . . . . 295
5. A contradição como origem do movimento e do
desenvolvimento ........................................................... 300
6. As leis do conhecimento da contradição............... 302
7. Os tipos de contradições e sua importância para
a prática ....................................................................... 307

X IV . A N E G A Ç Ã O D A N E G A Ç Ã O ............................. 313
1. A negação dialética .................................................... 313
2. A negação dialética e o movimento do abstrato ao
concreto ......................................................................... 316
3. A lei da negação da negação ................................ 328

353
XV. A POSSIBILIDADE E A REALIDADE . . . . 334
1. As concepções idealistas e metafísicas da possibi­
lidade e da realidade ................................................. 334
2. A concepção dialética e materialista da possibili­
dade e da realidade ................................................... 337
3. Tipos de possibilidade e seu alcance na prática .. 341

X V I. D A R E L A Ç Ã O D A S L E IS E D A S
C A T E G O R IA S D A D IA L É T IC A ....................................... 345

354
INTRO DUÇ ÃO

Este livro dedica-se à análise das principais categorias e


leis da dialética materialista. Colocando em evidência o con­
teúdo das categorias e das leis da dialética, exporemos a
essência do materialismo dialético, enquanto teoria filosófica
particular.
O materialismo dialético estuda as formas gerais do ser, os
aspectos e os laços gerais da realidade, as leis do reflexo desta
última na consciência dos homens. As formas esoenciais da
interpretação filosófica, do reflexo das propriedades e das cone­
xões universais da realidade e das leis do funcionamento e do
desenvolvimento do conhecimento são as categorias e as leis da
dialética. Como elementos necessários da teoria filosófica, elas
têm uma função ideológica, gnoseológica e metodológica.
Quando estas categorias e leis são usadas pelo homem, para
elaborar um sistema de concepções do mundo e uma concepção
única dos fenômenos que aqui são produzidos, elas cumprem a
função de concepção do mundo ideológico. O conhecimento
das propriedades e das conexões universais da realidade, que
se exprimem nas categorias filosóficas, é absolutamente indis­
pensável ao homem para sua orientação, para que possa deter­
minar as vias que lhe permitirão resolver as tarefas práticas
que surgem no processo de desenvolvimento da sociedade. For­
necendo um sistema global de idéias sobre a realidade ambiente,
a filosofia ajuda o homem a elaborar uma atitude em relação à
vida social, ao regime social, a compreender a essência da polí­
tica adotada por um Estado e, por isso mesmo, permite-lhe
participar de forma consciente da vida política da sociedade, da
luta pelo progresso social e da realização dos grandes ideais da
humanidade.
1
Representando o conhecimento das formas universais do
ser, das propriedades e das relações universais das coisas,
e ocupando, dessa maneira, a função ideológica, as categorias
e leis da dialética refletem as leis do desenvolvimento do
conhecimento, além de constituírem os pontos centrais, os graus
e as formrj do funcionamento e do desenvolvimento do pro­
cesso de cognição. Por tudo isso elas podem ser usadas para
apreender a essência da atividade cognitiva e das leis de sua
obra. No presente caso, as leis e as categorias da dialética
desempenham uma função gnoseológica. Sua assimilação per­
mite um desenvolvimento da faculdade cognitiva, da capacidade
de pensar com exatidão.
Sendo o reflexo das formas universais do ser e das relações
que se manifestam no mundo material e no conhecimento, as
categorias e as leis da dialética permitem a formulação dos im­
perativos, aos quais devem-se submeter a atividade do pensa­
mento e a atividade prática. Esses imperativos constituem os
princípios do pensamento dialético, do método dialético do
conhecimento e da transformação criativa da realidade. O
conhecimento desses princípios eleva o nível do pensamento,
alarga suas possibilidades criativas.
A aptidão das leis e das categorias da dialética, para de­
sempenhar uma função gnoseológica e metodológica, coloca
em evidência a necessidade de seu estudo e de sua utilização
consciente na atividade do pensamento. Em suma: o homem,
diferentemente do animal, cuja conduta repousa nos instintos
e nos reflexos, é dotado de uma consciência. Todos os seus
atos têm um caráter consciente. Antes de praticá-los, ele
analisa a situação, fixa objetivos adequados, define os modos
e os meios para sua realização. No decorrer desse processo, ele
pensa de maneira contínua. Se ele pensar de forma correta,
poderá facilmente ter uma idéia clara da situação que se cria,
orientar-se, fixar um objetivo exato, utilizar os meios mais
racionais para atingir esse objetivo. Se seu nível de pensamento
é baixo, ele tem tendência a se confundir mesmo diante das
situações mais simples; não consegue orientar-se corretamente.
É importante lembrar o quanto é importante para cada homem
o saber pensar corretamente e com certo espírito criativo, nota-
damente no século da revolução científica e técnica e das gran­
diosas transformações sociais, onde os homens têm de resolver
problemas particularmente complexos, tanto técnicos como

2
tecnológicos, além de determinar as vias e as formas do pro­
gresso social. Mas, um pensamento criativo correto, corres­
pondente ao nível atual de desenvolvimento da ciência e da
prática social, faz supor que os homens conheçam as leis do
funcionamento e do desenvolvimento do conhecimento, as leis
da atividade do pensamento, e que aprendam a usá-las racio­
nalmente para resolver as tarefas práticas. O especialista
contemporâneo deve dominar perfeitamente o método dialético
do conhecimento, deve conhecer e aplicar conscientemente os
princípios da dialética, as formas e os procedimentos lógicos da
pesquisa científica e da criação. Tudo isso mostra a necessi­
dade de um estudo profundo da teoria da dialética, de suas
categorias e de suas leis.
O estudo das leis e das categorias da dialética tem um
papel importante na elevação do nível cultural do homem. £
isso porque os resultados do desenvolvimento do conhecimento
científico e da prática social concentram-se nas leis e categorias
filosóficas. As categorias e leis são graus do desenvolvimento
do conhecimento e da prática sociais, conclusões tiradas da
história do desenvolvimento da ciência e da atividade prática.
Familiarizar os homens com as categorias e as leis da dialética,
fazê-los assimilar sua essência, nada mais é do que os iniciar
na cultura humana e alargar seus horizontes.
Em sua exposição das principais categorias e leis, o autor
procura mostrar as funções gnoseológicas, metodológicas c
ideológicas que elas desempenham; ele as considera como
formas do reflexo de propriedades e relações universais da
realidade, como graus e formas do desenvolvimento do conhe­
cimento social, como princípios do método dialético do conhe­
cimento e da transformação orientada pela realidade.
Segundo o autor, essa análise permite que se evidencie o
papel importante desempenhado pelas categorias e leis da dialé­
tica na atividade teórica e prática dos homens.

3
I. N A T U R E Z A DA S CATEGORIAS

A definição da natureza das categorias, de seu lugar e de


seu papel, no desenvolvimento do conhecimento está direta-
mente ligada à resolução do problema da correlação entre o
particular e o geral na realidade objetiva e na consciencia, assim
como à colocação em evidência da origem das essências ideais
e da relação destas últimas com as formações materiais, com os
fenômenos da realidade objetiva.
Esse problema nasceu com a Filosofia e sempre foi o
centro de atenção durante toda a sua história. Estreitamente
ligado à questão fundamental da Filosofia (isto é, à questão
que decide o que vem primeiro: a matéria ou a consciência),
ele foi objeto de discussões intermináveis entre as diferentes
escolas filosóficas, entre os representantes das tendências mate­
rialistas e idealistas. Ludwig Feuerbach tinha razão quando
afirmava que “esta questão é uma das mais importantes e, ao
mesmo tempo, uma das mais difíceis do conhecimento humano
e da Filosofia. . . , toda a história da Filosofia está, no fundo,
centralizada nesta questão”1.
Na Filosofia da antiga Grécia, esse problema foi colocado
de forma muito precisa e uma solução para ele foi apresentada
pelos pitagóricos que, depois de estudar o aspecto quantitativo
das coisas e descobrir sua semelhança com o número, con­
cluíram que o número representa uma essência universal
independente das coisas individuais e singulares e determina
sua natureza e sua existência. A propósito dessa questão,
Aristóteles indica que os pitagóricos observaram que os núme-

>L. Feuerbach, Vorlesungen über das Wesen der Religion, Leipzig,


1851, p. 153.

5
ros tinham muitos traços de semelhança, e que é por essa
razão que eles decidiram que os princípios dos números deve­
riam ser os princípios de todas as coisas e que os números deve­
riam ocupar o primeiro lugar na natureza, medir e reger as
coisas singulares, constituindo sua essência.
Os pitagóricos colocaram em evidência um dos aspectos
(propriedades) universais dos objetos e dos fenômenos da rea­
lidade: as relações quantitativas. Mas, abstraindo todas as
outras relações e propriedades (singulares e gerais) das coisas,
eles erigiram a categoria da quantidade, transformando-a em
essência ideal autônoma.
Platão desenvolveu essa doutrina pitagórica das categorias.
Segundo Platão, o ser verdadeiro e real é formado pelas idéias
— as essências ideais que são autônomas, independentes das
coisas singulares e que criam estas últimas, unindo-se à matéria.
Essa matéria existe nelas durante um determinado tempo e
depois elas retornam novamente para o mundo ideal, provocan­
do com isso o desaparecimento das coisas. As essências ideais,
segundo Platão, são eternas e imutáveis. As coisas sensíveis
são transitórias, elas aparecem e desaparecem.
Aristóteles critica o ponto de vista pitagórico e platônico
relativo à natureza das categorias. Segundo ele, as categorias,
que são noções gerais, não existem antes das coisas singulares,
mas são, pelo contrário, o resultado do conhecimento destas,
assim como o reflexo das propriedades e das relações que lhes
são próprias. Ainda segundo Aristóteles, percebendo as coisas
singulares, nós conhecemos não apenas o singular, mas também
o geral, que se reproduz em numerosos objetos ou mesmo em
todos eles. No processo da percepção reiterada das coisas, o
geral, que lhes é próprio, cristaliza-se na consciência dos
homens e exprime-se sob a forma de um conceito geral que
existe ao lado das imagens singulares. Quando o geral inicial
já foi fixado no espírito, conceitos ainda mais gerais são
formados a partir dele refletindo as propriedades e as ligações
de um grupo maior de coisas, e depois os conceitos mais gerais
de todos — que são chamados categorias, que refletem as
formas universais do ser — são formados.
A teoria de Aristóteles sobre a natureza das categorias,
embora sendo justa na sua essência, não é conseqüente. De­
clarando que, na realidade objetiva, o elemento análogo do
conteúdo dos conceitos gerais são a matéria e a forma, Aris­

6
tóteles acreditava que a forma era ideal, que ela podia ter uma
existência autónoma, independente das coisas materiais. Isso
não significa que todo o geral, próprio ao mundo objetivo,
seja material e que exista apenas por meio das coisas indivi­
duais, singulares. Uma parte do geral possui uma natureza
ideal e existe independentemente e fora das coisas sensíveis.
Isso é uma concessão séria feita a Platão e ao mesmo tempo
à visão idealista do problema.
Na Idade Média, a concepção da natureza das categorias,
assim como a solução encontrada para outros problemas filo­
sóficos, adquiriu uma coloração teológica. Os filósofos que
representavam a tendência realista retomavam, sob uma forma
ou outra, o ponto de vista platônico sobre as categorias, que
eles consideravam como essências ideais autônomas, existindo
independentemente dos homens e das coisas. Os nominalistas
repudiavam essa concepção das categorias, negando-lhes uma
existência independente não apenas na realidade objetiva, mas
também na consciência.
Johannes Scotus Erigena, por exemplo, filósofo realista
da Idade Média, afirmava que os conceitos gerais eram criados
por Deus e constituíam a natureza primeira. Deus, intervindo
no princípio enquanto universal indeterminado, criou um mundo
ideal que constitui o princípio primeiro e a essência das coisas.
Esse mundo ideal divide-se em noções de gênero e espécie que,
reunidas umas às outras, formam as coisas singulares. Assim,
para Erigena, as categorias sendo elementos do mundo ideal,
não podiam ser reflexos de formações materiais e de coisas
sensíveis, e sim suas criadoras, existindo anterior e indepen­
dentemente das últimas. O nominalista Roscelin, pelo contrá­
rio, partiu essencialmente da solução aristotélica do problema,
mas, estabelecendo como absoluta sua negação da existência
independente do geral na realidade, ele terminou por negar
completamente a existência do geral, isto é, negou sua exis­
tência na realidade, não apenas sob a forma de uma existência
ideal independente, mas também sob a forma de qualidades,
de propriedades das coisas singulares. Esse filósofo considerou
que os gêneros e as espécies (as noções de gênero e de espécie)
não existiam realmente, eram apenas nomes dados pelos homens
para coisas particulares, coisas que eram absolutamente singu­
lares e que não tinham nada de geral.

7
A tentativa de conciliar a visão realista e a nominalista
sobre as noções e categorias gerais foi feita por Tomás de
Aquino. Da mesma maneira que Aristóteles, ele achava que
as coisas singulares apareciam em decorrência da união da
matéria com a forma, que constitui a essência. O fato de que
existiam, na realidade, várias coisas possuindo uma mesma
matéria e uma mesma forma mostrava, segundo ele, que a
essência se manifestava enquanto geral nas coisas singulares.
No processo de conhecimento, o homem pode distinguir o que
é geral e concebê-lo como tal. Em decorrência disso, aparece
na razão o geral em seu estado puro, isto é, ao lado do singular.
Mas, a partir do fato de que, segundo esse filósofo, existem
duas razões — a humana e a divina — a existência ideal do
geral é dupla. Por um lado, o geral existe na razão divina
sob a forma de modelo das coisas singulares e, por outro, ele
existe na razão humana sob a forma de noções surgidas em
conseqüência do desligamento do geral das coisas singulares.
As essências ideais gerais, que se encontram na razão divina,
manifestam-se sempre, segundo Tomás de Aquino, em seu
estado puro, fora de qualquer ligação com o singular. Elas
engendram e determinam as coisas singulares. Essas mesmas
essências ideais que existem sob a forma de conceitos, de
categorias, na consciência dos homens, não são autônomas,
nem independentes das coisas particulares, são o resultado
do conhecimento dessas últimas. Pelo fato de que a essência
de uma coisa particular qualquer é determinada pela essência
ideal, que se encontra no pensamento divino, os conceitos e
as categorias, criados pelos homens, devem ser o reflexo dessa
essência ideal, isto é, do geral, existindo de forma autônoma,
e não das propriedades reais das coisas.
Assim, a tentativa de Tomás de Aquino de conciliar as
soluções nominalista e realista, apresentadas para a questão
da natureza dos conceitos gerais e das categorias, terminou
em fracasso. Essa tentativa limitou-se ao plano das posições
do realismo do reconhecimento do ser autônomo, independente
das coisas materiais singulares, e das essências ideais que cons­
tituem o conteúdo dos conceitos e das categorias.
Os materialistas dos tempos modernos (Francis Bacon,
Thomas Hobbes, John Locke etc.) negaram a concepção
realista da natureza das essências ideais (dos conceitos gerais
e das categorias) e procuraram desenvolver o ponto de vista
8
aristotélico sobre o conceito, considerado como urna forma do
reflexo do geral na realidade (da natureza geral, das proprie­
dades gerais, das qualidades das coisas singulares).
Hobbes, por exemplo, considerava que, na realidade, exis­
tiam apenas coisas singulares que se caracterizavam por pro­
priedades determinadas ou acidentes. Algumas dessas proprie­
dades ou acidentes pertenciam a todas as coisas e outras a
apenas algumas dentre elas. Refletindo o processo do conhe­
cimento das propriedades das coisas, o homem criou os con­
ceitos correspondentes. A partir do fato de que os objetos
possuem propriedades universais, os conceitos que refletiam
essas propriedades eram aplicáveis a todas as coisas. São
nomes universais2.
Assim, segundo Hobbes, as categorias não representam as
essências ideais gerais autônomas, que determinam a natureza
das coisas, mas são apenas o reflexo das propriedades gerais,
dos acidentes próprios das coisas. Locke desenvolveu esse
mesmo ponto de vista, mas de forma mais conseqüente3.
George Berkeley opôs-se a essa concepção da natureza
de conceitos gerais e de categorias. Partindo do fato de que
o geral, na realidade objetiva, existe somente nas coisas sin­
gulares, ele procurou provar a impossibilidade da existência de
conceitos e de categorias. Segundo Berkeley, todos os conceitos
são singulares, representam as idéias das coisas particulares
que podemos perceber. Ninguém jamais percebeu idéias gerais,
ele afirma.
O posterior desenvolvimento filosófico das idéias sobre
a natureza das categorias e dos conceitos gerais ultrapassa a
concepção fundamentalmente nominalista de Berkeley e passa
pela reabilitação do ponto de vista de Locke. Essa atitude
foi desenvolvida particularmente pelos materialistas franceses
do século XVIII (Denis Diderot, Paul-Henri Holbach, Claude-
Adrien Helvétius etc.).
Emanuel Kant expôs um outro ponto de vista sobre a
natureza das categorias. Segundo ele, as categorias não são
o reflexo de aspectos ou de conexões da realidade objetiva,

*T. Hobbes, Leviathan or the Matter, Form and Power of a Com­


monwealth Ecclesiasticall and Civil, Londres, 1928, p. 19-20.
3J. Locke, Essai philosophique concernant l’entendement humain,
Paris, 1975, t. 1, p. 290-8; t. 2, p. 257-61; t. 3, p. 58-71 e 176-80.

9
mas representam as formas da atividade do pensamento, con­
cedidas à consciência pela natureza. Seu conteúdo é determi­
nado pela consciência, representa uma ou outra forma de suas
características e é introduzido no mundo dos fenômenos pelo
sujeito no decorrer do processo da atividade cognitiva que se
produz porque o sujeito dispõe a priori das categorias corres­
pondentes.
Os pensamentos de Kant encerram uma boa parte racional
se tomarmos um homem isolado, o indivíduo, como sujeito do
conhecimento. Com relação a cada indivíduo, as categorias são
as formas da atividade do pensamento próprias da consciência
social anterior a qualquer experiência de conhecimento, anterior
a toda ação cognitiva, a priori. É apenas assimilando-as que
um indivíduo pode pensar de acordo com sua época e assim
conhecer a realidade que o rodeia. Mas o sujeito real do
conhecimento não é um indivíduo, é a sociedade. Com relação
à sociedade, as categorias não são absolutamente nada que
preceda o conhecimento, e também não são formas da atividade
do pensamento que a priori lhes são próprias. Sob essa relação,
elas são formas do reflexo da realidade, que se formaram no
decorrer do processo da atividade prática e do desenvolvimento,
a partir dela, do conhecimento. Seu conteúdo é determinado
não pela consciência, mas pela atividade objetiva, e se mani­
festa como um reflexo das características das formas universais
do ser. Ele não é subjetivo, nem é introduzido no mundo dos
fenômenos pelo sujeito, que o tira da realidade objetiva e o
expressa sob uma forma ideal.
O subjetivismo da concepção kantiana da natureza das
categorias e a tese, segundo a qual o caráter universal de seu
conteúdo é condicionado pela consciência dos homens, foram
criticados por Hegel: “O material sensível é, segundo a filosofia
crítica, profundamente individual . . . e apenas o entendimento
que o examina lhe traz unidade e o erige, por meio da abstração,
como universal”4. Continuando, ele diz ainda: “A afirmativa
de Kant consiste no fato de que as determinações do pensa­
mento têm sua origem no “eu”, e é então o “eu” que determina
o universal e o necessáráio. Assim, o “eu” seria uma espécie

4G. W. F. Hegel, Werke. Vollständige Ausgabe, Berlim, 1843, v. 6,


p. 85-91.

10
de cadinho onde o fogo devora a multiplicidade indiferente e a
reconduz à unidade”^.
Embora criticando Kant por seu subjetivismo na concepção
da natureza das categorias, Hegel não adotou o ponto de vista
materialista. Ele criticou Kant não por seu idealismo, não por
deduzir do pensamento o universal, a necessidade e as leis da
consciência, mas porque ele não podia seguir logicamente esse
ponto de vista, porque parou no meio do caminho e também
porque entendia a atividade das leis da consciência e do pen­
samento como relacionada unicamente com os fenômenos e
não com o mundo todo, isto é, com a “coisa em si”; ele o
criticava porque Kant deduzia da consciência apenas o neces­
sário, o universal e as leis, mas não tudo o que existia, isto é,
não as coisas particulares; criticava-o porque Kant deduzia o
universal e o necessário da consciência humana e do pensa­
mento e não da consciência e do pensamento como tais; criti­
cava-o ainda porque Kant construía um muro intransponível
entre o subjetivo e o objetivo, entre o conceito e a coisa, entre
a idéia e a realidade e depois não os fundia em um todo
único, não fazia da realidade um momento da idéia, do con­
ceito.
Hegel interpretava a natureza das categorias no plano do
idealismo objetivo. Segundo ele, essas categorias apareciam
não no decorrer do processo do reflexo da realidade na cons­
ciência dos homens, mas em decorrência do desenvolvimento
da idéia, que existe anterior e independentemente da existência
do mundo material, das coisas sensíveis.
A idéia absoluta desenvolve seu conteúdo por meio das
categorias que aparecem sucessivamente, e ela se transforma
em natureza, em mundo material, se encarna nas formações
materiais e nas coisas. Então, sem ter consciência de si mesma,
ela sofre um certo desenvolvimento. Em seguida, depois de
rejeitar a forma do ser físico que lhe é estranha, a idéia absoluta
volta novamente para seu elemento espiritual adequado; depois,
por meio da tomada de consciência do caminho percorrido no
decorrer do processo de desenvolvimento do conhecimento,
regressa definitivamente para si mesma, para existir, em seguida,
eternamente sob a forma de espírito absoluto.

‘Hegel, op. cit., p. 91.

11
Assim, para Hegel, as categorias representam essências
ideais que exprimem os momentos correspondentes da idéia
absoluta, assim como os graus de seu desenvolvimento dialético.
Sendo as formas da atividade criadora da idéia, as categorias
determinam a essência das coisas materiais, essência que se
manifesta nelas e que se reproduz no estado puro, em decor­
rência do conhecimento.
Após ter apresentado sob uma forma universal a dialética
do autodesenvolvimento das categorias, e de haver pressentido
a multiplicidade das leis gerais reais do desenvolvimento da
realidade objetiva e do conhecimento, Hegel transforma a dia­
lética das categorias em uma dialética determinante que submete
a si mesma a dialética das coisas, transformando esta última em
um caso particular da lógica.
Embora sem deixar de reconhecer o mérito considerável de
Hegel na elaboração da dialética, Marx e Engels criticaram
severamente sua concepção idealista da natureza das categorias.
Eles assinalaram que, para Hegel, as coisas que existem obje­
tivamente são apenas motivos, cujas categorias lógicas são o
esboço. Sendo tiradas das coisas pela abstração do particular
e do singular, as categorias são, segundo Hegel, essências autô­
nomas, que existem independentemente das coisas e antes delas,
fazendo o papel de substância dessas últimas. “Quando, traba­
lhando sobre realidades, maçãs, peras, morangos, amêndoas, eu
formo a idéia geral de “fruto”; quando, indo ainda mais longe,
eu imagino que minha idéia abstrata do “fruto”, deduzida de
fatos reais, é um ser que existe fora de mim e, ainda mais, que
constitui a essência verdadeira da pera, da maçã etc., eu de­
claro •— em linguagem especulativa — que o “fruto” é a
“substância” da pera, da maçã, da amêndoa etc.6”.
“Ora, tanto é fácil, escrevem Marx e Engels ainda, par­
tindo de úutos reais, engendrar a representação abstrata do
“fruto”, como é difícil, partindo da idéia abstrata do “fruto”,
engendrar frutos reais’”?.
A razão especulativa procura sair desse embaraço expli­
cando o conceito geral não por uma essência morta, desprovida
de diferenças, mas por uma essência viva, que distingue, no seu*7

9K. Marx, F. Engels, La Sainte-famille, Paris, Editions Sociales, 1969,


p. 73-4.
7K. Marx, F. Hengels, op. cit., p. 74.

12
interior, as coisas concretas e as faz nascer no curso de seu
desenvolvimento. O resultado é que frutos reais podem ser
manifestações diversas do fruto como tal, isto é, de urna
essência ideal.
“Pode-se ver por isso, concluem Marx e Engels, que
enquanto a religião cristã conhece apenas uma encarnação de
Deus, a filosofia especulativa tem tantas encarnações quantas
são as coisas; é assim que ela possui, neste caso, em cada fruto,
uma encarnação da substância do fruto absoluto”®.
Na filosofia burguesa contemporânea, a concepção realista,
que supõe o reconhecimento da existência autônoma das cate­
gorias sob a forma de essências ideais particulares — as uni­
versais — , foi desenvolvida pelo filósofo inglês G. E. Moore.
Segundo ele, o mundo é composto por três espécies de coisas:
os objetos sensíveis, as verdades ou os fatos e os universais®.
Moore critica particularmente o ponto de vista segundo
o qual existem apenas as coisas sensíveis singulares, enquanto
que as universais são consideradas como produtos do pensa­
mento. Ele acredita que tal ponto de vista nasceu do emprego
das palavras “idéia”, “conceito”, “pensamento” e “abstração”
com duplo sentido. “Nós empregamos, diz Moore, a mesma
palavra “idéia”, “conceito” e “abstração” tanto para o ato do
pensamento como para os objetos. Sabemos que todos os
universais são, em um certo sentido, abstrações, isto é, coisas
ideais por sua própria natureza. É por isso que vários filósofos
pensam que quando chamamos uma coisa de abstração, suben­
tendemos que ela é um produto do cérebro. Entretanto, esse
é um erro grave. Há, é verdade, um processo físico chamado
abstração. Mas, no decorrer desse processo, os universais não
são criados, apenas tomamos consciência deles. E é exata­
mente a consciência que nós temos deles que é o produto do
processo, e não os universais em si”*0.
Apresentando a existência objetiva das categorias (deno­
minadas universais), fora da consciência humana e das dife­
rentes coisas, Moore segue o raciocínio: “A última vez eu8*0

8K. Marx, F. Hengels, op. cit., p. 75.


°G. E. Moore, Some main problems o f philosophy, Londres-New
York, 1953, p. 372.
I0G. E. Moore, op. cit., p. 371.

13
tomei o exemplo de coisas diferentes, que estão todas a uma
certa distância de uma mesma coisa”11.
Designando as coisas que se encontram à distância de
uma única e mesma coisa pelas letras B, C, e D e a coisa que
serve de referência pela letra A, ele prossegue: a pro­
priedade de encontrar-se a uma certa distância de A é uma
propriedade que é comum às três coisas B, C, D e é um “uni­
versal”, uma “idéia geral”, apesar do fato de que esta proprie­
dade consiste em ter uma relação com A, isto é, com alguma
coisa que é não-universal”12.
Examinemos a propriedade que Moore chama de universal.
Ela é apenas um momento geral, um aspecto em várias relações
particulares: B/A, C/A, D/A. Essa propriedade existe ao lado
das relações particulares estudadas? Não. Ela existe apenas
mediante essas relações particulares, no interior dessas relações.
Se é assim, quais os fundamentos de Moore para classificá-la
de universal? Será por que ela pertence a todas essas coisas —
B, C e D? Isso apenas prova que essa propriedade pertence
da mesma maneira às três coisas em questão. Mas, não prova
que ela existe independentemente das coisas e ao lado delas.
Assim, a prova apresentada por Moore da existência real, fora
da consciência, de idéias e de universais, não resiste à crítica.
A concepção das categorias apresentada por K. Popper
é bastante próxima da de Moore. Para Popper, há três mun­
dos: o mundo físico, o mundo espiritual de um homem concreto
e o mundo das essências ininteligíveis ou das idéias. O terceiro
mundo encerra não apenas os conceitos universais, mas tam­
bém todas as afirmações e as teorias. Criando a existência
autônoma das categorias — conceitos universais — Popper
agiu exatamente da mesma forma que Moore. Segundo ele, os
objetos do terceiro mundo — as idéias objetivas — são fre­
quentemente tomados por idéias subjetivas, por objetos perten­
centes ao segundo mundo, embora isso seja totalmente falso.
As essência? ideais universais são objetivas, elas existem fora
e independentemente do espírito humano e formam um mundo
à parte.
Essas reflexões de Popper são uma transposição da con­
cepção platônica da natureza das categorias. O autor, aliás,

"G. E. Moore, op. cit., p. 371.


12G. E. Moore, op. cit., p. 312.

14
não esconde o laço que existe entre sua própria concepção e
a teoria das idéias de Platão.
A concepção realista da natureza das categorias inclui a
possibilidade de conclusões idealistas. Efetivamente, se o geral,
como declaram os realistas, existe de maneira autônoma, inde­
pendentemente do singular, a única forma possível de sua
existência é a ideal porque, entre as coisas materiais, ninguém
jamais observou o que quer que seja de geral existindo de
modo independente, mas todo o mundo pode observá-lo nos
pensamentos sob a forma de idéias e de conceitos gerais. E se o
geral, como pode-se deduzir das reflexões dos realistas, precede
as coisas materiais e as engendra, o ideal, o pensamento, vem
em primeiro lugar, determinante, enquanto o material, as coisas
sensíveis, é secundário do ideal, dos conceitos, das idéias.
Opostamente ao ponto de vista realista sobre a natureza
das categorias, desenvolve-se na filosofia burguesa atual a con­
cepção nominalista. Essa concepção nominalista é encontrada
nos trabalhos de vários positivistas e particularmente nos tra­
balhos dos semânticos. Como exemplo de interpretação extre­
mamente nominalistas da natureza das categorias, podemos
citar as reflexões de Stuart Chase e de Walpole Hugh.
Chase, como Moore e Popper, analisa esse problema
começando por colocar em evidência as razões que determinam
a confusão de idéias surgidas na consciência do homem com
relação às coisas que existem objetivamente. E como Moore
e Popper, ele também considera que essas razões vêm do
emprego abusivo das abstrações e das noções gerais. Entre­
tanto, Chase tira disso uma conclusão diametralmente oposta
à dos dois primeiros. Se, partindo do fato de que os homens
têm o hábito de confundir os produtos de seus cérebros e os
modelos ideais, surgidos em sua consciência, com o que visa a
consciência, Moore e Popper concluem que os homens negam
abusivamente a existência dos universais. Chase, por sua vez,
partindo do mesmo ponto, chega à conclusão de que os homens
consideram de modo errôneo como existindo objetivamente o
que não passa de um símbolo, uma palavra. “Nós confundi­
mos constantemente, escreve Chase, a etiqueta com os objetos
não-verbais e damos assim uma falsa validez à palavra, como
se fosse algo vivo”13. É precisamente, segundo Chase, esta

I3S. Chase, The Tyranny of Words, New York, 1938, p. 9.

15
concepção que faz com que as pessoas considerem noções tão
abstratas — as de “liberdade”, de “justiça” e de “eternidade”
— como essências existindo realmente, enquanto que na reali­
dade objetiva existem apenas objetos e fenômenos singulares
e não há nem pode haver nada que se assemelhe a essas
essências gerais1*.
Assim, segundo Chase, existem, na realidade objetiva,
apenas coisas singulares e fenômenos particulares, enquanto
que os conceitos gerais e as categorias são somente palavras
vazias que não exprimem nem significam nada, já que no
mundo objetivo não há coisas (pontos de referência) às quais
eles possam corresponder.
No mundo, efetivamente, não há coisas existindo de modo
autônomo que representem essa ou aquela categoria ou conceito
geral. Mas isso não quer absolutamente dizer que os conceitos
gerais não exprimem nada e que não possamos pensar neles
como tais sem relacioná-los com um ponto de referência con­
creto (objeto particular). Os conceitos gerais relacionam-se
com os objetos particulares não como tais, mas somente na
medida em que eles possuam essa ou aquela propriedade e
aspecto gerais. Essas propriedades e aspectos gerais, que se
repetem em cada objeto particular desse ou daquele grupo, são
os pontos de referência que se refletem nesse ou naquele con­
ceito geral ou categoria.
Walpole Hugh defende uma posição análoga sobre a na­
tureza dos conceitos gerais e das categorias. Como Chase, ele
nega o conteúdo real dos conceitos e das categorias, conside­
rando-os como ficções, pelo fato de que o que eles definem não
existe na realidade objetiva. “Um homem da rua que diz ‘que
não existe justiça’ diz coisas mais precisas do que ele próprio
pode imaginar. Esse tipo de coisa nunca existiu. A justiça
é uma ficção, assim como suas companheiras: a amizade, a
disciplina, a democracia, a liberdade, o socialismo, o isolacio-
nismo e o apaziguamento. Não se pode indicar seus pontos
de referência”1^. Como Chase, Walpole Hugh não compreende
ou não quer compreender que os homens, em consequência da
atividade da abstração e do pensamento, separam o geral do*IS

” S. Chase, op. cit., p. 9.


ISW. Hugh, Semantics. The nature of Words and their Meaning,
New York, 1941, p. 159.

16
particular e o fixam em conceitos gerais. Que é precisamente
esse geral refletido e fixado no conceito geral e na categoria
que constitui o conteúdo, e que é exatamente dele que se trata
quando os conceitos gerais ou as categorias são utilizados para
exprimir o pensamento. Eles realmente não dispõem de pontos
de referência individuais, mas possuem, em compensação, uma
grande quantidade de pontos de referência, já que existem
objetos concretos encerrados nos limites desse ou daquele
conceito geral. E isso testemunha não sua ficção, mas sua
realidade.
A concepção nominalista da natureza das categorias pro­
voca toda uma série de conclusões anticientíficas. Se, como
afirmam os nominalistas, o geral não existe realmente, se é
apenas uma denominação, uma palavra vazia, e na realidade
existem somente coisas sensíveis e singulares, não há matéria,
ninguém jamais a percebeu, ninguém jamais a viu, ela é apenas
uma palavra sem significado, equivalente ao termo “nada”.
Mas se é assim, também o materialismo é falso, já que ele
parte da concepção da matéria como alguma coisa que real­
mente existe. Foi precisamente essa a maneira que Berkeley
escolheu para refutar o materialismo. Mas, se os conceitos gerais
não significam nada, se na realidade não existe nada a que
eles possam corresponder, então, sua utilização não pode per­
mitir aos homens que se orientem em sua atividade, na resolução
das tarefas práticas e, ainda mais, esses conceitos gerais indu­
zem os homens ao erro, engendram todas as ilusões possíveis e
imagináveis.
Assim, na história do desenvolvimento do pensamento fi­
losófico, quatro tendências (sem contar a tendência marxista)
aparecem na concepção das categorias: alguns filósofos consi­
deram que as categorias existem fora e independentemente da
consciência humana, sob a forma de essências ideais particula­
res (tendência realista); outros declaram que essas mesmas
categorias são ficções, palavras vazias que não exprimem nem
designam nada (tendência nominalista); outros, ainda consi­
deram as categorias como formas da atividade do pensamento,
a priori próprias à consciência do homem e constituindo suas
características e suas propriedades inerentes (tendência kantia­
na); e finalmente os últimos, que consideram as categorias
como imagens ideais que se formam no decorrer do desenvol­
vimento da consciência da realidade objetiva e que refletem

17
I os aspectos e os laços correspondentes das coisas materiais
(Aristóteles, Locke, os materialistas franceses do séc. XVIII).
A teoria materialista dialética das categorias representa o
desenvolvimento da quarta concepção que foi elaborada na
história da Filosofia, em geral, pelos representantes do mate­
rialismo.
Como os materialistas pré-marxistas, também os fundado­
res do materialismo dialético consideravam que as categorias
representam as imagens ideais que refletem os aspectos e os
laços correspondentes das coisas materiais. Entretanto, à di­
ferença dos materialistas pré-marxistas, que afirmam que o
conteúdo dessas imagens coincide diretamente com as proprie­
dades e os laços correspondentes das coisas, o marxismo con­
sidera que essas imagens são o resultado da atividade criadora
do sujeito no decorrer da qual este último distingue o geral
do singular. Esse geral exprime as propriedades e as correla­
ções internas necessárias. É por isso que a imagem ideal que
representa o conteúdo dessa ou daquela categoria, sendo a uni­
dade do subjetivo e do objetivo, não coincide ¡mediatamente
com os fenômenos, com os quais se encontra na superfície das
coisas. Pelo contrário, ela se distingue sensivelmente dos
fenômenos e chega mesmo a contradizê-los, já que eles não
coincidem com sua essência. O conteúdo das categorias deve
coincidir e coincide até determinado ponto, não com o fenô­
meno, mas com sua essência, com esse ou aquele de seus
aspectos.

18
II. O PROBLEMA
D A CORRELAÇÃO
DAS CATEGORIAS
DA DIALÉTICA

As formações materiais do mundo objetivo simplesmente


existem e nada mais. Elas encontram-se em contínua intera­
ção. Nesse processo de interação manifestam-se suas proprie­
dades, que as caracterizam como corpos isolados, determinados,
fenômenos que, em certas circunstâncias, passam uns pelos
outros. O resultado disso é que todos os fenômenos da reali­
dade se encontram em um estado de correlação e de interde­
pendência universais. Mas, nesse caso, os conceitos, pelos
quais o homem reflete, em sua consciência, a realidade am­
biente, devem ser igualmente interdependentes, ligados uns aos
outros, móveis e, em determinadas circunstâncias, passar uns
pelos outros e transformar-se em seus contrários, porque é
somente dessa maneira que eles podem refletir a situação rea!
das coisas. “Os conceitos humanos, escreveu Lenin, não são
inamovíveis, mas, pelo contrário, eles movem-se perpetuamente,
mudam-se uns nos outros, escoam-se um no outro, porque,
sem isso, eles não refletem a vida existente”1. É por isso que
o estudo dos conceitos faz supor que se evidencie sua correlação
e suas mudanças recíprocas de um no outro, as dm como a
criação de um sistema que reproduza as relações necessárias
dos diferentes aspectos do objeto estudado.
O que caracteriza o estudo dos conceitos, em geral, rela-
ciona-se igualmente, é claro, ao estudo das categorias — dos
conceitos que refletem as formas universais do ser, os aspectos
e os laços universais da realidade objetiva. Desvendar a riqueza
das leis dialéticas só é possível se analisarmos as categorias que

‘V. Lenin, Oeuvres, t. 38, p. 238.

19
as refletem em sua correlação e em sua interdependência, se
fizermos um sistema no qual cada uma delas ocupará um lugar
rigorosamente definido e no qual terá o relacionamento neces­
sário com todas as outras.

1. RESOLUÇÃO DO PROBLEMA
DA CORRELAÇÃO DAS CATEGORIAS
NA FILOSOFIA PRÉ-MARXISTA

Foi Aristóteles quem, primeiramente, procedeu a uma


pesquisa sistemática das relações das categorias e fez destas
últimas um sistema determinado. Mas a classificação aristo­
télica não reproduzia a correlação real das categorias porque
baseava-se total e unicamente nos princípios da lógica formal.
O defeito da classificação aristotélica reside igualmente no fato
de que ela não englobava todas as categorias já estudadas na
cpoca do próprio Aristóteles.
Depois de Aristóteles, Kant dedicou-se muito tempo à
análise da correlação das categorias. Entretanto, sua classifi­
cação ainda contém todos os defeitos próprios à classificação
de Aristóteles. Ela baseou-se igualmente nos princípios da
lógica formal, na qual as categorias eram divididas em grupos,
não segundo o lugar histórico que ocupavam no processo do
conhecimento, mas a partir desse ou daquele traço comum;
além disso elas não eram apresentadas por seus laços naturais
e necessários, mas sim por sua associação contingente. O
sistema kantiano, assim como o sistema aristotélico, estava
longe de incluir todas as categorias existentes.
Embora tenha reagrupado as categorias como já o fazia
Aristóteles, Kant colocou-as em uma certa dependência das
etapas do desenvolvimento do conhecimento e esforçou-se em
mostrar que a cada grau de conhecimento correspondem de­
terminadas categorias. Assim, por exemplo, o estágio da per­
cepção sensível dos fenômenos, segundo Kant, corresponde às
categorias de espaço e de tempo; o estágio do pensamento
discursivo, às categorias de quantidade, de qualidade, de relação
e de modalidade. Ao mesmo tempo, na resolução do problema
das categorias, Kant deu um passo atrás em relação a Aristóteles.
Ao contrário de Aristóteles, que considerava que as categorias
representavam uma forma particular do reflexo das coisas e das

20
relações reais, Kant declarou que as categorias são formas
subjetivas da atividade do pensamento, próprias à consciência
antes de qualquer experiência.
Foi apenas com a filosofia de Hegel que houve uma apre­
sentação global do problema. Hegel criticou vivamente a
concepção kantiana das categorias e, em particular, sua ten­
dência subjetivista. É verdade que Hegel criticava Kant a
partir das bases do idealismo, e foi sobre essas mesmas bases
que ele deu sua própria resolução para o problema da corre­
lação das categorias da dialética. Mostrando a correlação das
categorias a partir do quadro da solução idealista dada para a
questão concernente ao relacionamento entre a matéria e a
consciência, Hegel colocou, ao mesmo tempo, os princípios
dialéticos como base para seu sistema de categorias. Ele
procurou apresentar as categorias em seu desenvolvimento,
em suas passagens de umas às outras. Para Hegel, as catego­
rias são momentos ou graus do desenvolvimento da idéia exis­
tindo fora e independentemente do mundo material e do homem.
A categoria da qual parte seu sistema é a do ser puro, que
representa uma vacuidade pura, desprovida de qualquer con­
teúdo preciso23. Sob essa forma o ser puro é idêntico ao
“nada”3.
Sendo idêntico ao “nada”, o “ser puro” de Hegel não é
fixo, não se encontra eternamente no mesmo estado e, agindo
com o “nada”, transforma-se em um “vir-a-ser” que, sendo o
resultado da unidade do ser puro com o “nada”, chega à abstra­
ção absoluta, ao vazio, e adquire um certo conteúdo, trazendo
à luz uma nova categoria — o “ser-aqui”.
É evidente que nem na realidade objetiva nem no conhe­
cimento é possível que algum vir-a-ser possa transformar o
“nada” em um ser concreto determinado, e a correlação das
categorias do ser puro, do vir-a-ser e do ser-aqui, que nos é
apresentada por Hegel, é absolutamente artificial. Mas há algo
racional, e isso se dá quando Hegel coloca na qualidade de
princípio de partida da passagem de uma categoria para a outra
o movimento condicionado pela unidade dos contrários — o

2G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, in Sämtliche Werke,


Stuttgart, 1928, v. 4, p. 87-8.
3Hegel, Werke. Vollständige Ausgabe, v. 6, p. 169.

21
“ser puro” e o “nada” —, sua luta e a passagem de um para
o outro.
O “ser-aqui” que apareceu em Hegel representa o ponto
de partida do movimento ulterior do pensamento, de sua pas­
sagem para outras categorias. A partir do fato de que, segundo
Hegel, o “ser-aqui” à diferença do “ser puro” possui uma certa
determinação, ele manifesta-se como qualidade. Analisado sob
o ponto de vista interior, a qualidade manifesta-se como “algu­
ma coisa”.
No movimento das categorias, Hegel captou os laços e
as relações reais, próprios ao processo de conhecimento. Todo
“ser-aqui”, toda forma determinada de existência da matéria
é percebida pelo sujeito, antes de tudo pelo ângulo da quali­
dade, e o sujeito chega à conclusão de que a qualidade dada
possui sua própria especificidade; ela é diferente das outras
qualidades, ela não é nem uma nem a outra.
Depois de ter colocado em evidência a categoria de “algu­
ma coisa”, que reflete o momento rea! do processo de conhe­
cimento da qualidade, Hegel, seguindo o método dialético e
sua profunda intuição histórica, esclareceu passo a passo outros
momentos do desenvolvimento desse processo. Ele concentra
sua atenção sobre o fato de que no decorrer de uma análise
rigorosa o “alguma coisa” deixa aparecer sua natureza contra­
ditória e revela ser a unidade dos contrários. Por um lado, ele
encerra um momento positivo, por outro, um momento negativo.
Enquanto momento positivo, ele representa a realidade, isto é,
o ser real (ou, segundo a expressão de Hegel, o ser-em-si),
enquanto momento negativo, ele é o ser-outro (ou o “ser-para-
um-outro” ) .
De tudo isso depreende-se nitidamente o pensamento de
Hegel, segundo o qual, mesmo que esse ou aquele ser determina­
do exista por si mesmo, possua seu próprio ser, sua natureza
original, ainda assim ele não está isolado, desligado de outras
formas determinadas do ser, mas sim estreitamente ligado a elas,
existindo apenas graças a elas, às outras formas do ser, porque
estas últimas lhe estão tão estreitamente ligadas que se integram
a ele enquanto momentos determinados de sua natureza interna.
Sendo um aspecto interno do “ser-aqui” ou de “alguma
coisa”, a negação do ser-outro (ou “ser-para-um-outro” ), en­
contrando-se em interação com a realidade, com o ser-em-si,

22
determina seu limite que, por sua vez, não lhe é exterior (ao
“alguma coisa”), mas “penetra todo ser-aqui”4.
“Alguma coisa”, segundo Hegel, modificando-se, transfor­
ma-se em “outra coisa”, mas esta outra é em si mesma uma
certa “alguma coisa”. Ê por isso que, modificando-se por sua
vez, esta outra coisa transforma-se mais cedo ou mais tarde
em uma outra alguma coisa, e esta última, por sua vez, em
outra alguma coisa etc., até o infinito^. Ê assim que surge a
categoria do infinito.
Apresentando a categoria do infinito enquanto progresso,
Hegel não pára aí. E ainda mais, ele não considera o conceito
do infinito verdadeiro, porque, como ele mesmo declara: “aqui
nós não temos nada mais do que uma mudança superficial que
não sai jamais do domínio do finito”*6. O verdadeiro infinito,
segundo Hegel, não é um movimento eterno e uniforme indo
de alguma coisa para outra sempre nova, mas um movimento
graças ao qual alguma coisa original, no decorrer do processo
da passagem de uma para a outra, não se perde, não desaparece
na série infinita de outras coisas, mas, pelo contrário, volta
para si mesma, “em sua outra, regressa para si mesma”7.
Em outros termos, se, no momento do exame dessa ou
daquela coisa, nós fazemos a abstração daquilo a que ela está
ligada, e se dessa relação ela se revela e se distingue como
possuindo uma natureza específica, uma qualidade, transforma-
se inevitavelmente em “um” que não se distingue tie nada.
O aparecimento e a explicação da categoria do um, em
Hegel, corresponde plenamente ao processo real da formação do
conceito. A história do conhecimento mostra que o “um”, en­
quanto categoria, foi elaborado e utilizado para designar o que
foi reconhecido como o único existente, não se distinguindo
de nada e incluindo, em si mesmo, tudo (a água de Thales, o
ar de Anaxímenes, o fogo de Heráclito, o “um” dos Eleatas
etc.).
Mas o um, uma vez aparecido, não permanece, segundo
Hegel, em repouso, ele relaciona-se ¡mediatamente consigo
mesmo e diferencia-se de si mesmo. Esta relação do um con-

4HegeI, Werke cit., p. 182.


6Hegel, Werke cit., p. 184.
8HegeI, Werke cit., p. 185.
’Hegel, Werke cit., p. 184.

23
sigo mesmo nada mais é do que a repulsa de si por si mesmo.
Em consequência de tal repulsa aparece o múltiplo. Assim,
Hegel deduz a categoria do múltiplo da categoria do um.
No processo de repulsão do um com relação a ele mesmo,
e da posição de si mesmo como múltiplo, o um intervém não
apenas como “repelente” e os múltiplos não apenas como “re­
pelidos”, “cada um dos múltiplos, diz Hegel, é ele próprio
um”8, e como tal repele igualmente o outro. Mas essa repulsa
universal transforma-se necessariamente em seu contrário, em
atração universal e, no lugar de uma repulsa unilateral, nós
observamos a unidade da repulsa e da atração.
A despeito do caráter artificial da dedução da repulsa
e da atração, Hegel captou de maneira genial a lei da correlação
desses processos e, em particular, suas passagens de umas para
as outras e de sua unidade. Efetivamente, no processo do
conhecimento desse ou daquele grupo de fenômenos, o sujeito
conhecedor, analisando os fenômenos um depois do outro, age
como se ele se afastasse de um objeto (do um) para dirigir-se
a outros (como se se dirigisse para os múltiplos), mas, ao
mesmo tempo, evidenciando os aspectos e características gerais
dos objetos estudados, unindo-os em um conceito geral, ele
liga-os em um todo, evidenciando e conservando sua unidade
(como se ele os obrigasse a unirem-se novamente um ao outro).
Hegel termina seu estudo da categoria da qualidade pela
análise das categorias do um e do múltiplo e passa ao estudo
da categoria da quantidade. A passagem da qualidade para a
quantidade, a despeito de seu caráter artificial, reflete e exprime,
em Hegel, em traços gerais, o processo real do desenvolvimento
do conhecimento. No decorrer da assimilação, pelo homem, da
realidade objetiva, tanto na prática como no conhecimento,
dever-se-ia efetuar necessariamente, como já o dissemos acima,
a passagem de um objeto pelos outros, e, no momento da
evidenciação da identidade desses (múltiplos) objetos, a deter­
minação qualitativa de cada um deles (pelo menos no plano
de um grupo comparado e comparável) daria a impressão de
ter sido anulada em cada um dos outros (e ela permaneceria a
mesma, indistinta). Ao mesmo tempo, a base real se criaria,
primeiro, pela evidenciação das diferenças quantitativas de

8Hegel, Werke cit., p. 192.

24
objetos de uma mesma ordem, sob um ponto de vista qualitativo,
e, depois, por sua quantidade.
Em sua análise da categoria da quantidade, Hegel, sempre
fiel à dialética, prende-se primeiramente aos momentos contrá­
rios que existem na quantidade e a representa como a unidade
dos contrários, e mais precisamente como a unidade da conti­
nuidade e da descontinuidade. A essência contraditória da
quantidade, segundo Hegel, é o desenvolvimento ulterior da
essência contraditória da qualidade. Como já vimos acima,
Hegel caracteriza a qualidade pelo fato de que ela encerra os
momentos contraditórios do um e do múltiplo, condicionados
pelos processos de repulsa e de atração próprios à qualidade.
Com a passagem evolutiva da qualidade para a quantidade,
em decorrência desses dois processos diretamente contrários
(repulsão e atração), a unidade transforma-se em continuidade
e a multiplicidade em descontinuidade.
A categoria de quantidade, assim como as categorias pre­
cedentes, é apresentada por Hegel não sob uma forma fixa,
mas em movimento. Surgindo a um certo estágio do desenvol­
vimento da categoria de qualidade, ela própria transpõe vários
estágios de evolução. No particular, ela manifesta-se primeira­
mente sob a forma de quantidade abstrata, pura, de quantidade
como tal. Depois ela transforma-se em uma dada quantidade.
Transpondo, no decorrer de seu desenvolvimento, os está­
gios de quantidade pura e determinada, a quantidade em seu
estágio supremo transforma-se, segundo Hegel, em qualidade,
isto é, age como se ela retornasse a seu ponto de partida, repete
a etapa já transposta, mas repete-a sobre uma outra base. A
qualidade à qual retorna a quantidade, no estágio supremo de
seu desenvolvimento, já não é mais indiferente frente a frente
com a qualidade, não se manifesta mais como alguma coisa de
independente em relação a ela, mas sim como alguma coisa
que lhe é organicamente ligada. Com a colocação em evidência
da correlação e da interdependência da qualidade e da quanti­
dade, surge uma nova categoria — a categoria de medida que
inclui sob uma forma anulada a quantidade e a qualidade9.
O desenvolvimento ulterior da quantidade e da qualidade,
assim como sua passagem de uma para a outra, no decorrer do8

8Hegel, Wissenschaft cit., in Samtliche Werke, p. 409-10

25
processo desse desenvolvimento, conduzem necessariamente,
em Hegel, à colocação em evidência e, ao mesmo tempo, ao
aparecimento de uma nova categoria, a categoria da essência.
“Apenas con. a migração de uma qualidade para a outra, apenas
com a passagem da qualidade para a quantidade e vice-versa,
declara Hegel, nós não chegamos ao fim; há ainda nas coisas
uma permanência e essa é primeiramente a essência”111.
A passagem à essência marca o fim da primeira e o co­
meço da segunda etapa do desenvolvimento da idéia hegeliana.
Até aqui o desenvolvimento realizava-se completamente apenas
no plano do ser; as categorias de quantidade, de qualidade e
de medida eram momentos do ser, graus de seu desenvolvimento.
Com o aparecimento da essência, o ser como tal se apaga, ele
parece retornar para dentro de si mesmo, transformar-se em
um momento da essência, em sua aparência.
A essência relaciona-se antes de mais nada com ela mesma,
e Hegel indica que “ela se identifica com ela mesma”11. Então,
aparece a categoria de identidade. Na análise da categoria de
identidade, Hegel destaca particularmente a noção de identi­
dade como igualdade formal, desprovida de toda diferenciação,
abstraída dela própria, e a critica ao mesmo tempo em que
acentua a insuficiência da lei de identidade da lógica formal.
À identidade formal, Hegel opõe a verdadeira identidade que
não apenas não é desprovida de diferenças, mas ainda as
encerra nela mesma. E efetivamente, em Hegel, a identidade
surgiu em decorrência da relação da essência com ela mesma.
A essência aparece em decorrência da anulação e da negação
do ser e de suas determinações que, como conseqüência, não
desapareceram, mas conservaram-se, transferidos para a essên­
cia e continuando a existir nela sob uma forma anulada cons­
tituindo seu ser-outro e ao mesmo tempo sua diferença em
relação a ela mesma. “Aqui — escreve Hegel — o ser-outro
— do qual nós vimos a essência — não é mais um ser-outro
qualitativo, uma determinação, um limite, mas. . . uma diferen­
ça, um formulado, uma mediação que se encontra na essência”12.
Entretanto, sendo identidade, a essência “comporta essencial-

i°Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 225.


“ Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 229.
,2Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 233.

26
mente em si a determinação da diferença”13. A diferença
transformou-se em seu contrário.
A tese de Hegel, segundo a qual toda identidade está
necessariamente ligada à diferença, supõe a diferença e que a
diferença supõe a identidade, corresponde ao estado real das
coisas. Na realidade objetiva não há identidade abstrata, pura,
nem diferença abstrata e pura. Toda identidade é a identidade
do diferente, assim como toda diferença é a diferença do
idêntico. A idéia, segundo a qual, no processo do movimento,
a identidade transforma-se em diferença e a diferença em seu
contrário, e segundo a qual a contradição manifesta-se não sob
uma forma acabada, mas se desenvolve a partir da diferença
que aparece primeiramente como exterior, não essencial, depois
transforma-se em essencial e em seguida em seu contrário, é
igualmente justa.
Entretanto, o aparecimento das categorias de identidade e
de diferença no estágio do movimento do conhecimento, indo
da medida à essência, e sua representação como momentos ou
graus precisamente dessa etapa do desenvolvimento do saber
contradizem a história do conhecimento. Essas categorias ma­
nifestam-se muito antes e, mais exatamente, desde os primeiros
estágios do conhecimento da natureza pelo homem, no estágio
de seu movimento, indo de um ser-aqui ao outro, no estágio
da evidenciação de “alguma coisa”. No processo do movimen­
to do pensamento de um ser-aqui ao outro, há necessariamente
comparação e ao mesmo tempo evidenciação da identidade e
da diferença. O aparecimento das primeiras representações e
conceitos gerais c o resultado da tomada de consciência, pelos
homens, da identidade do diferente que se manifesta na prática.
A distinção dos aspectos quantitativos, das características e,
logo, a formação do conceito de quantidade só podem produzir-
se a partir da descoberta da diferença do idêntico, de um e do
semelhante no múltiplo, isto é, sobre a base de uma certa
tomada de consciência da identidade e da diferença.
As categorias de identidade e de diferença são consideradas
por Hegel, aqui, e não anteriormente (não na seção da qualida­
de e da quantidade onde seu exame impõe-se e onde elas apare­
cem sob uma forma ou outra), sem dúvida, porque elas tornam

13HegeI, Werke cit., p. 232.

27
particularmente fácil a passagem aos contrários e depois à
contradição.
Analisando a contradição, Hegel mostra que ela é geral,
que entra no conteúdo de cada coisa, de cada ser. “Tudo o
que existe, escreve Hegel, é alguma coisa de concreto e, logo,
alguma coisa de diferente e oposta em si. O caráter finito das
coisas, continua Hegel, consiste em que seu ser imediato não
corresponde a sua essência”14, por isso, elas esforçam-se sempre
para resolver esta contradição e realizar o que elas têm nelas
mesmas e, em decorrência, elas modificam-se constantemente.
A modificação das coisas é, pois, a conseqüência de seu caráter
contraditório. Em outros termos, a contradição é a fonte do
movimento e da vitalidade; “ . . . é apenas na medida em que
alguma coisa comporta em si uma contradição que ela se move;
que ela possui um impulso, uma atividade”15. Opondo-se aos
autores que consideravam que não se pode pensar a contradição,
Hegel exclama: “É a contradição que, na realidade, põe o
mundo em movimento, logo, é ridículo dizer que é impossível
pensar a contradição”16.
O pensamento de Hegel, segundo o qual tudo o que existe
encerra em si uma contradição e de que a contradição é a
origem do movimento, o impulso da vida, é na realidade um
pensamento genial, que entrou na história da ciência para
tornar-se o centro da dialética.
Na nossa opinião, Hegel também conseguiu determinar
corretamente o lugar das categorias de “contrário” e de “con­
tradição”. Os aspectos e os laços que elas refletem só são
efetivamente assimilados no estágio do movimento do conheci­
mento, dirigido para a essência, quando aparece a necessidade
de apresentar o objeto em seu movimento, em seu aparecimento
e em seu desenvolvimnto, quando, a propósito disso, surge a
questão da origem do movimento, da força motora que con­
diciona seu vir-a-ser, sua vitalidade e a passagem de um estágio
de desenvolvimento para outro.
Nascida da diferença, a contradição, segundo Hegel, não
é eterna; a um determinado estágio de seu desenvolvimento ela

I4Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 242.


15Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 562.
I6Hegel, Werke cit., p. 242.

28
se resolve e se transforma ou, segundo os próprios termos de
Hegel, mergulha até a sua base (fundamento). “A contradição
resolvida é, em conseqüência, o fundamento”1'?.
“Jé por isso que no fundamento, escreve Hegel, o contrário
e sua contradição são igulamente destruídos ou conservados”718.
Eles são destruídos enquanto existentes de forma autônoma
e são conservados enquanto momentos de identidade e de
diferença, característica do fundamento”18.
A passagem da contradição para seu fundamento, como
a apresenta Hegel, a despeito de seu caráter artificial, encerra
muitos elementos racionais. Hegel exprimiu aqui certas leis
reais da correlação dos aspectos refletidos pelas categorias que
examinamos. A resolução da contradição própria a essa ou
àquela formação material conduz necessariamente a sua trans­
formação e, em certas circunstâncias, ao aparecimento de uma
nova formação material. O aparecimento do novo é, portanto,
a conseqüência da resolução de uma contradição e a resolução
da contradição é a base que trouxe à vida essa conseqüência.
O fundamento foi representado inicialmente por Hegel sob
a forma de fundamento absoluto, que em seguida se determina
como forma e matéria.
A forma, segundo Hegel, está organicamente ligada à
essência. Ela encerra a essência da mesma forma que a es­
sência encerra em sua natureza a forma.
Embora sendo no fundo idêntica à forma, a essência
distingue-se e manifesta-se, com relação à forma, como alguma
outra coisa, como um indeterminado, como uma “identidade
informe”. Sob esse aspecto, a essência, segundo Hegel, é a
matéria.
Para Hegel, a matéria apresenta-se como alguma coisa
passiva, enquanto que a forma é ativa. Pelo fato de que a
forma tem uma contradição própria, ela afasta-se de si mesma
e determina-se na matéria. A matéria, por sua natureza, é algo
que só pode relacionar-se consigo mesmo e por isso ela é indi­
ferente a qualquer coisa além dela. Mas, ao mesmo tempo,
ela encerra, sob um aspecto velado, a forma, e esta inclui nela

I7Hegel, Werke cit., p. 242.


18Hegel, Werke cit., p. 242.
1“Hegel, Werke cit., p. 242.

29
mesma o princípio da matéria20. Tudo isso faz com que a
matéria ganhe, então, forma e a forma tem de se materializar21.
A matéria transformada em forma representa a categoria do
conteúdo.
O conteúdo, segundo Hegel, possui primeiramente uma
certa forma e uma certa matéria e é de fato sua unidade22.
O conteúdo é o que é idêntico ao mesmo tempo à forma e à
matéria. Essas últimas são, de certa forma, suas determinantes
exteriores. Mas esta identidade é a identidade do fundamento
que, desta maneira, adquire um conteúdo e uma forma e con­
verte-se em um fundamento determinado.
O fundamento determinado relaciona-se negativamente
com ele mesmo e transforma-se em um estabelecido. E é ape­
nas no decorrer de seu estabelecimento que ele torna-se o
fundamento de um ser estabelecido.
A idéia de Hegel concernente à correlação orgânica, ao
estabelecer mútuo, às passagens recíprocas do fundamento e
do estabelecido é verdadeira. Ela reflete a dialética real do
fundamento e do estabelecido que observamos no mundo ex­
terior e no conhecimento. Na realidade, um aspecto dado de
uma formação material torna-se um fundamento unicamente
na medida em que ele começa a influir de maneira sensível
sobre seus outros aspectos, a determinar a orientação de suas
transformações e a condicionar, dessa maneira, a formação de
uma nova qualidade. Além disso, um aspecto dado torna-se
determinado ou condicionado unicamente na medida em que
sua existência, seu funcionamento e sua transformação come­
cem a depender de um outro aspecto ou relação que se revelem
nas condições dadas determinantes, isto é, o fundamento. E,
ainda mais, o que, em certas condições, em certo estágio do
desenvolvimento da formação material torna-se determinante,
em outras condições, em outros estágios do desenvolvimento
da formação material toma-se determinado, isto é, estabelecido,
e o determinado torna-se um fundamento determinante do fun­
cionamento e da orientação das transformações de todos os
outros aspectos do todo dado.

20Cf. Hegel, Werke cit., p. 258.


21Ver Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 562.
22Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 566.

30
Uma lei análoga é observada no conhecimento. Uma
suposição dada torna-se fundamento apenas quando outras
suposições forem deduzidas dela e desde que outras suposições
sejam assim fundamentadas. E estas últimas serão fundamen­
tadas unicamente graças a seu laço com o fundamento. Sendo
fundamentadas, elas podem servir de fundamento para outras
idéias, outras suposições e, em certas condições, fundamentar
seu próprio fundamento.
Tendo sido determinado por meio do estabelecimento de
si mesmo e do fundamentado, o fundamento, segundo Hegei,
não permanece em repouso, imutável, mas continua a se trans­
formar e a se desenvolver. Ele começa como fundamento
formal, depois torna-se fundamento real e, finalmente, trans­
forma-se em fundamento completo.
Hegei passa da categoria de fundamento para a categoria
de condição.
O laço da condição e do fundamento não se esgota, em
Hegei, pelo fato de que a condição é a premissa do fundamento,
a mediadora; a condição depende, ela própria, do fundamento
e ela mesma é determinada por ele. E, efetivamente, o fato de
que um ser dado seja ou não condição de um fundamento dado
depende da natureza desse fundamento que, por seu funciona­
mento, exige condições rigorosamente determinadas.
Supondo-se mutuamente e passando de um para o outro,
por meio deles mesmos, a condição e o fundamento formam
um todo, uma certa unidade de conteúdo e de forma e manifes­
tam-se como um incondicionado “verdadeiro”, como “uma
coisa pensada a partir dela mesma”23. Dessa forma, para
Hegei, a coisa pensada representa a unidade ou a identidade
do fundamento com a sua condição.
Hegei escreve que: “Quando todas as condições de uma
coisa pensável estão reunidas, ela entra na existência”24.
A dialética da correlação do fundamento e da condição é
apresentada aqui por Hegei de maneira bastante completa e
em sua essência justa. O fundamento não pode efetivamente
dar nascimento a esse ou àquele ser imediato, a não ser em
condições rigorosamente determinadas que, sendo o ser-aqui,*2

23Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 590.


2,*Hegel, Wissenschaft cit., in Sämtliche Werke, p. 594.

31
não estejam ligadas imediatamente com o fundamento dado,
não dependam dele no seu aparecimento e na sua existência,
mas, pelo contrário, possuam seu próprio fundamento em um
outro. Sendo autônomo e independente, com relação a um
fundamento dado, o ser-aqui é a condição do fundamento, mas
não está menos ligado a ele (ao fundamento). O fato de que
seja a condição do fundamento dado depende não apenas dele
mesmo, mas igualmente do fundamento, de sua natureza, e é
precisamente o fundamento que dita suas condições, determina
qual ser-a. ui é necessário para sua realização. A idéia de
Hegel de que a condição, ainda que necessária para a realização
do fundamento, não é a força motora que obriga o fundamento
a dar nascimento ao fundamentado, que esta força motora está
contida no próprio fundamento e que este se desenvolve sob a
pressão de contradições internas que lhe são próprias, nos
parece justa.
Igualmente justa é a tese de Hegel segundo a qual as
condições não permanecem indiferentes ao processo do esta­
belecimento do fundamento, mas, pelo contrário, são atraídas
por esse processo, contribuem para a formação do fundamen­
tado e, em uma determinada medida, transformam-se neste
último, tornando-se um momento de seu conteúdo.
No que concerne às afirmações de Hegel, de que o con­
teúdo do fundamento com suas condições conduz primeiro ao
aparecimento da coisa pensada e depois ao aparecimento de sua
existência, essas idéias não correspondem à realidade; isso é
apenas uma conseqüência do idealismo de Hegel, em cujo
quadro ele era obrigado a construir seu sistema de categorias.
Da categoria de coisa, Hegel passa ao fenômeno que se
apresenta como a existência da coisa anulando a si própria do
interior dela mesma25. Por meio do fenômeno, a essência re-
flete-se na outra e relaciona-se com ele de maneira determinada.
A existência de um fenômeno não é assim nada além de
outra relação. Hegel considera esta última como a verdade de
toda a existência, como o modo geral de manifestação das
coisas26.
A unidade da essência e da existência constitui em Hegel

25Hegel, Werke cit,, p. 260.


26Hegel, Werke cit., p. 260.

32
a realidade2?. A realidade manifesta-se primeiro sob a forma
de possibilidade que representa o que é essencial para a reali­
dade, mas que ainda é abstrata e que se opõe à unidade concreta
do real23. Sendo abstrata, a possibilidade aparece como con­
tingente em uma realidade concreta dada. Hegel considera
como contingente o que “tem o fundamento de seu ser não em
si mesmo, mas em um outro”29. A unidade da possibilidade e
da realidade constitui a necessidade. Considerada do interior,
a necessidade manifesta-se como uma relação absoluta em si;
sob sua forma imediata há a relação de substancialidade e de
acidentalidadeSO, a qual, em decorrência, manifesta-se como
relação causal desenvolvendo-se em interação272893031. A base da
interação encontra-se o conceito que constitui a verdade do ser
e da essência.
Por meio desses esquemas artificiais da correlação das
categorias de essência e de fenômeno, de possibilidade, de
realidade, de necessidade e de causalidade transparece, em Hegel,
a dialética real, e, sob uma forma mistificada, exprime-se uma
série de teses importantes que constituem um passo considerável
no conhecimento das leis de relacionamento das formas gerais
do ser, refletidas nas categorias em questão. É verdade que a
ordem — aqui apresentada por Hegel — do movimento do
pensamento de uma categoria a outra não reflete, na nossa
opinião, o processo real do conhecimento humano. No co­
nhecimento, o homem não vai do possível ao real, como diz
Hegel, mas, pelo contrário, ele vai da realidade para a possi­
bilidade, e não vai da necessidade à causalidade e à interação,
mas sim da interação (correlação) à causalidade e à necessi­
dade.
Analisemos o movimento ulterior das categorias na lógica
de Hegel.
Segundo Hegel, com a passagem ao conceito, o pensa­
mento sai da essência. Esta última é negada pelo conceito,
o qual, em consequência, parece voltar sobre o ser e repetir o
que já se passou sobre uma nova base. O ser e a essência

27Hegel, Werke eit., p. 281.


28HegeI, Werke eil., p. 284.
29Hegel, Werke eil., p. 288.
30Hegel, Werke eit., p. 299-300.
31Hegel, Werke cit., p. 307.

33
entram, sob uma forma anulada, no conteúdo do conceito e
nele constituem todos os momentos necessários. O conceito é,
portanto, a “verdade do ser e da essência”3233. Ou, então, em
outros termos, ele é a “essência que volta sobre o ser como
sobre uma simples imediação”33.
O conceito, segundo Hegel, encerra três momentos: a
universalidade, a particularidade e a singularidade34. No con­
ceito, esses momentos encontram-se em estado de interdepen­
dência e de correlações orgânicas. Eles perdem-se um no outro,
dissolvem-se um no outro e manifestam-se como momentos
confundidos do conceito. Hegel considera que no conceito é
impossível reter todos esses momentos, um fora do outro, sob
uma forma isolada.
No decorrer do movimento ulterior do pensamento, diz
Hegel, o conceito atinge a objetividade, prosseguindo assim o
desenvolvimento de seus novos aspectos e fazendo-se sempre
de modo mais concreto.
Hegel recorreu às construções mais complexas e mais
fantasiosas. Entretanto, o que torna válidas todas essas ma­
nobras astuciosas é que elas refletem algumas relações reais
(captadas ou adivinhadas) entre as coisas ou no interior das
coisas que, em virtude de sua repetição ocorrida alguns milha­
res de vezes, foram fixadas na consciência humana sob a forma
de figuras lógicas determinadas.
Da objetividade, Hegel passa à idéia. A idéia é a unidade
do subjetivo e do objetivo, do conceito e da realidade. A
categoria de idéia é uma categoria mais concreta do que as
categorias precedentes; ela as inclui sob uma forma anulada e,
todas juntas, elas apresentam-se como o vir-a-ser da idéia. “Os
graus do ser e da essência objetiva examinados até o presente,
assim como os graus do conceito e da objetividade, escreve
Hegel, não são, nessa diferença que lhes é própria, alguma
coisa imóvel, existindo de forma autônoma. Não, eles mos-
traram-se como dialéticos e sua verdade consiste em ser mo­
mentos da idéia35.

32Hegel, Werke cit., p. 311.


33Hegel, Werke cit., p. 312.
3,*Hege!, Werke cit., p. 320.
35Hegel, Werke cit., p. 387-8
Segundo Hegel, no decorrer de seu desenvolvimento, a
idéia transpõe três graus. Ela manifesta-se primeiramente sob
forma de vida, depois sob forma de conhecimento e, finalmente,
sob forma de idéia absoluta.
Transformando a realidade objetiva, o conceito realiza-se
nela e a torna idêntica a ele mesmo. É dessa maneira que se
completa a passagem à idéia absoluta. Essa categoria é a mais
concreta de todas as que já examinamos até agora. Seu con­
teúdo é formado por todo o sistema do qual, em traços gerais,
acompanhamos o desenvolvimento. “Pode-se dizer, escreve
Hegel, que a idéia absoluta é o universal, mas não apenas
enquanto forma abstrata à qual todo conteúdo particular opõe-
se como alguma outra coisa, e sim enquanto forma absoluta
à qual todas as determinações, toda a plenitude do conteúdo
estabelecido por elas estão voltadas”36.
É pela idéia absoluta que termina o processo do desen­
volvimento lógico. Impregnada de toda a diversidade do
conteúdo do movimento dialético das categorias, a idéia abso­
luta, a partir da forma ideal, transforma-se em seu contrário,
“aliena-se”, toma corpo e manifesta-se na qualidade de natu­
reza, onde, sem ter consciência dela mesma, sofre um certo
desenvolvimento e, depois de ter rejeitado a forma de ser físico
que a tomou estranha, ela volta a seu elemento espiritual
adequado e, no decorrer do processo de seu desenvolvimento
ulterior, volta-se sobre ela mesma.
Como podemos ver, Hegel, ao contrário de Aristóteles e
de Kant, estabeleceu as categorias sobre uma base histórica e as
apresentou em movimento e em desenvolvimento, em seu apare­
cimento e em sua formação. Entretanto, ele realizou tudo isso
no plano da idéia pura, do pensamento puro, o que faz com que
as categorias manifestem-se em sua obra não como graus do
desenvolvimento do processo do conhecimento, pelo homem,
do mundo exterior, mas como graus do desenvolvimento do
pensamento puro e da idéia, em sua existência anterior à na­
tureza. É por isso, se não foi por acaso, que, a despeito de
seu gênio e de sua aptidão para prever a situação real das
coisas, Hegel foi obrigado, para seguir os seus princípios idea­
listas e aplicá-los, a contradizer a todo instante a realidade e

a6Hegel, Werke cit., p. 409.

35
dela afastar-se. Mas, apesar disso, Hegel conseguiu em seu
sistema incrivelmente artificial e contraditório das categorias,
reproduzir uma série de ligações e de leis profundas e universais.
Depois de Hegel, numerosos filósofos burgueses tentaram
criar sistemas de categorias, mas as soluções que eles propu­
seram não acrescentavam nada ao estudo do problema e cons­
tituíam um passo para trás em relação a Hegel.
Examinemos algumas dessas teorias relativas à correlação
dessas categorias. Wilhelm Windelband37, filósofo alemão,
apresenta um sistema de categorias que é o seguinte: ele consi­
dera as categorias como funções sintéticas elementares do
pensamento. Sendo diferentes tipos de síntese, elas são, se­
gundo ele, diferentes formas de ligação ou de relação e existem
sob o aspecto de noções e julgamentos correspondentes. Win-
delband divide primeiramente todas as categorias em dois
grupos. Em um ele inclui as categorias que têm um “valor
objetivo”, que existem fora e independentemente do pensamento
e que só por este último podem ser constatadas. No outro ele
inclui as categorias que existem no pensamento e têm por isso
mesmo apenas “um valor representativo”. As categorias do
primeiro grupo são chamadas de constitutivas e as do segundo,
reflexivas. As categorias constitutivas, por sua vez, subdivi­
dem-se em categorias principais e categorias secundárias.
Entre as categorias reflexivas, Windelband considera que
a “diferença” é uma categoria determinante. Ele destaca que,
sem a diferença, não se pode pensar nenhuma relação, nenhum
sistema, e, portanto, nenhuma categoria, pelo fato de que essas
categorias não representam nada mais do que diferentes formas
de relação ou de síntese. A categoria de “diferença” está,
segundo ele, ligada à representação. Sua função é o desmem­
bramento da diversidade dada na representação, em elementos
correspondentes, e sua síntese em novas associações que marcam
a passagem da representação ao conceito.
A diferença, no decorrer de seu desenvolvimento, trans­
forma-se em “identidade”, que Windelband define como um
caso particular (limite) da diferença. A função da categoria
de “identidade” é a comparação, a confrontação mútua dos
diferentes elementos e o estabelecimento da identidade no seu37

37W. Windelband, Vom System der Kategorien, Tübingen, 1924.

36
conteúdo. As categorias de identidade e de diferença, segundo
Windelband, estão indissoluvelmente ligadas e não podem fun­
cionar uma sem a outra. “A comparação, ele sublinha, é
impossível sem a diferença e, reciprocamente, a diferença é
impossível sem a comparação”38.
A categoria de “identidade”, em Windelband, nas condi­
ções correspondentes (quando o “grau do idêntico é relativa­
mente pouco importante em relação ao diferente” ), transforma­
se em categoria de “conformidade”. A categoria de “diferença”
transforma-se em categoria de cálculo (quantidade), que repre­
senta a soma do diferente sobre a base de uma identidade dada.
A categoria de cálculo, ocupando a função de medida, desen­
volve-se em categorias de “graus”, de “medida” e de “grandeza”.
Sobre a base da categoria de “diferença” e de “identidade”,
aparece toda uma série de categorias ditas lógicas. Trata-se
antes de tudo da “abstração” da “determinação”, da “subordi­
nação”, da “coordenação”, da “divisão” e da “separação”, que
constituem o primeiro grupo; depois vêm as categorias da silo­
gística, às quais Windelband relaciona as diferentes formas da
dependência lógica.
Ao número das principais categorias constitutivas, Windel­
band acrescenta as categorias de “realidade” e de “causalidade”.
Segundo ele, elas são formas essenciais pelas quais deve ser
pensada “a dependência recíproca real dos conteúdos”39.
Windelband deduz igualmente essas categorias, da função sin­
tética do pensamento, de nossa faculdade de pensar um certo
conteúdo como uma coisa ou como um processo necessário.
Às categorias constitutivas secundárias, submissas à cate­
goria de “realidade”, Windelband acrescenta: a “propriedade
inalienável”, a “qualidade”, o “atributo”, o “modo”, o “estado”,
a “substância”, a “coisa em si”; às categorias secundárias,
submissas à categoria de “causalidade”, ele acrescenta: o “de­
saparecimento”, o “aparecimento”, o “desenvolvimento”, a
“ação”, a “força”, a “possibilidade”, a “dependência teleoló-
gica”, a “lei”.
No pensamento real, as categorias constitutivas e reflexivas,
segundo ele, agem juntas. Isso se deve ao fato de que elas

38E. Lysinski, Die Kategoriensysteme der Philosophie der Gegemvart,


Weida, 1913, p. 21.
39E. Lysinski, Die Kategoriensysteme cit., p. 23.

37
provêm de uma mesma fonte — a atividade sintética do
pensamento.
Pode-se facilmente perceber que os princípios que guia­
ram Windelband na elaboração de seu sistema de categorias são
bastante próximos dos de Kant, embora, no conjunto, seu sis­
tema não seja semelhante ao sistema kantiano de categorias.
Assim, como Kant, é da consciência, de certas funções da ati­
vidade do pensamento que ele deduz as categorias. E também
como em Kant, elas são formas a priori determinadas e puras
da consciência, por meio das quais o homem toma consciência
e ordena o conteúdo daquilo que é percebido no processo de
conhecimento do ser.
A atividade sintética do pensamento, a partir da qual Win-
dclband deduz as categorias e as suas relações, não é uma cate­
goria primária e determinante, mas representa o reflexo dos
processos sintéticos que se desenvolvem na realidade objetiva
e na atividade prática, reproduzindo esses processos em condi­
ções especiais, criadas artificialmente pelo homem. Mas, sendo
assim, ela não pode servir de ponto de partida para a elabora­
ção de um sistema de categorias, para a dedução de certas cate­
gorias de outras categorias. Parece que é preciso procurá-la
nos fatores objetivos, que condicionam o desenvolvimento do
conhecimento humano e a formação das categorias correspon­
dentes, para exprimir os aspectos e as conexões refletidas da
realidade.
O sistema de Günther é um exemplo da teoria subjetivista
de categorias. Günther critica, a partir de uma posição idea­
lista, as análises aristotélicas e kantianas do problema das cate­
gorias, que ele não considera satisfatórias. Em particular, ele
não fica satisfeito com o fato de que Kant proíba a aplicação
das categorias à “coisa em si” e a dedução desta última da
consciência. Günther tem por objetivo “reduzir a forma cris­
talina de ada categoria a seu estado primeiro, maleável e
informe. . . e compreender o ‘corpo morto’ das categorias,
dadas a priori por Kant, a partir da vida empírica do espírito”40.
As categorias, segundo Günther, representam a forma dos pen­
samentos nos quais o espírito, no curso de sua autoconsciência,
exprime-se a si mesmo e exprime sua própria vida.

40M. Klein, Die Genesis der Kategorien in Processe des Selbstbewusst


Werdens, Breslau, 1881, p. 9-10.

38
Na qualidade de categoria determinante, que é a “mãe de
todas as outras categorias”, Günther apresenta a categoria de
“relação”, a qual, para ele, se revela idêntica ao pensamento.
O pensamento, ou a relação (o que é a mesma coisa), segundo
Günther, encerra em si mesmo dois momentos contrários liga­
dos necessariamente entre si: o fenómeno e o número; um
constituindo a categoria de “acidente” e o outro a categoria
de “substância”. Por intermédio da categoria de substância,
a idéia de relação manifesta-se com idéia de substancialidade.
Sendo único, o pensamento tem por correlato necessário o
momento de dualidade. Graças à interação do um e do duplo,
no processo da atividade do pensamento, são obtidas as seguin­
tes categorias: o “único” e o “múltiplo”, o “único” e o “uni­
versal”. Relacionando-se com os contrários que se encontram
em si mesmos como o “único” e o “múltiplo”, o EU pensante
estabelece a relação do todo e da parte. Analisando o “único”
e o “múltiplo”, do ponto de vista da unidade numérica que se
encontra neles, o EU pensante estabelece relações quantitati­
vas e, ao mesmo tempo, a categoria de “quantidade”. A cate­
goria de qualidade é estabelecida a partir da análise do ponto
de vista de sua diferença.
As categorias de qualidade e de quantidade manifestam-se
como momentos da autoconservação e da auto-afirmação da
substância e de sua objetivação. Encontrando-se em estado de
repouso, o EU pensante é a relação da substância com os
acidentes, a relação de si mesmo com seus diferentes estados,
que mudam constantemente, passando de um para outro. Nesse
caso, segundo Günther, o espírito pensante não está inerte,
ele está vivo, é um princípio ativo que engendra os acidentes
na qualidade de fenômenos determinados. Ê por isso que a
relação da substância com os acidentes deve ser considerada
como a relação da causa e da ação. Para Günther, as idéias
de possibilidade, de realidade e de necessidade, que são os
momentos do pensamento causai, estão ligadas à idéia de
causalidade.
Dessa maneira, Günther, passo a passo, reproduz todas as
categorias apresentando-as sob a forma de momentos da cons­
ciência que se desenvolve sobre sua própria base, de momentos
do espírito pensante, sob as formas de objetivação e de auto-
afirmação deste último.

39
Opondo-se a Kant, Günther não encontrou nada melhor
do que retomar certas idéias hegelianas do desenvolvimento das
categorias. É verdade que, ao contrário de Hegel, que em seu
sistema de categorias conseguira reproduzir a grande quanti­
dade de leis reais da correlação das categorias, o sistema das
categorias de Günther não reflete em nenhum lugar a situação
exata das coisas, e esse sistema revela ser, além disso, o fruto
da criação do seu autor, livre de qualquer objetividade parali­
sando o pensamento.
Charles Renouvier, filósofo francês do século XIX, de­
senvolve um ponto de vista próximo ao de Günther, no que
concerne à correlação das categorias. Para ele, as categorias
são igualmente funções do processo psicológico, notadamente
do pensamento e da percepção sensível. Em seu conjunto,
segundo Renouvier, elas constituem a consciência, da qual são
as leis, assim como os fenômenos, que Renouvier considera
como o conteúdo das representações.
Renouvier considera que a categoria de “relação” é a
categoria primeira. Ela representa, em seu pensamento, a
função mais simples da consciência, é uma lei universal, base
de todas as outras categorias, que ele considera como diferentes
formas de relações. Da massa geral das categorias, Renouvier
distingue as categorias ligadas à relação de causa e efeito e
denomina-as dinâmicas. Todas as outras categorias são reuni­
das por ele no grupo das categorias estatísticas.
Às categorias estatísticas ele acrescenta as categorias de
“qualidade” (relação qualitativa), exprimindo a relação de
coordenação do gênero, da espécie e do indivíduo; de “quanti­
dade”, cuja função é a de designar uma maioria indeterminada
e de negá-la, e essa categoria transforma-se em categoria de
número quando a síntese de duas quantidades determinadas
encontra-se realizada: de “duração”, de “espaço” ou de “situa­
ção”. A função dessas categorias, segundo Renouvier, encon­
tra-se na expressão de uma duração indeterminada, na negação
desta última e no estabelecimento de uma fronteira espacial
sob forma de ponto, de linha, de superfície, de figura.
Renouvier considera como categorias dinâmicas a categoria
de “efeito”, que exprime uma relação temporal; a categoria de
“vir-a-ser” (aparecimento), que exprime a modificação no
tempo; a categoria de “finalidade”, que é concernente à relação
do estado presente do ser vivo com seu estado futuro; a

40
categoria de “causalidade”, que representa a síntese da ação
e da força e a categoria de “individualidade”, que é a síntese
de todas as funções da consciência e portanto de todas as
outras categorias.
Todas as categorias consideradas, segundo a teoria de
Renouvier, são aplicáveis apenas ao domínio dos fenômenos,
que constituem o conteúdo das representações; esse domínio,
segundo ele, representa a única realidade.
O sistema de categorias de Renouvier é uma modernização
original da teoria kantiana das categorias. Mas, a pior parte
dessa teoria é, precisamente, a concepção subjetivista e idealista
das categorias e de sua correlação que aí é incluída. A ten­
dência materialista própria da filosofia crítica é, aqui, comple­
tamente rejeitada. Tudo o que existe realmente reduz-se aqui
a um conjunto de fenômenos que estão submetidos às relações
das categorias representando as funções da consciência e as
diferentes formas de sua atividade.
Eduard von Hartmann4! dedicou um grande espaço à
elaboração de um sistema de categorias. Assim como Renou-
vier, Hartmann também entende por categoria as funções sinté­
ticas elementares da consciência. É verdade que Hartmann, à
diferença de Renouvier, que acha que essas funções são cons­
cientes, considera que elas são inconscientes, que são uma
“determinação lógica inconsciente”, que estabelece uma “certa
relação”4142.
E Hartmann construiu seu sistema de categorias mediante
o desmembramento do conteúdo da consciência em partes de­
terminadas, para disso deduzir as relações das categorias cor­
respondentes. Segundo Hartmann, no ponto onde acaba a
relação as categorias deixam de existir.
Apoiando-se na categoria de relação, E. Hartmann esforça-
se por colocar em evidência o conteúdo de todas as outras
categorias. Cada uma delas é apresentada sob a forma de uma
relação.
Embora E. Hartmann esforce-se para mostrar a aplicação
da maior parte das categorias na esfera real objetiva do ser,
ele deduz, contudo, seu conteúdo e sua correlação da esfera
ideal subjetiva, do princípio espiritual que é, para ele, a função

41E. Hartmann, Kategorienlehre, Leipzig, 1923, t. 1-3.


420 . Spann, Kategorienlehre, Jena, 1939, p. 45.

41
fundamental, o atributo da substância, e existe nesta última sob
a forma do lógico e da vontade. Idealista desde a raiz, a
teoria filosófica de E. Hartmann não reproduz a correlação
necessária que existe entre as categorias. Em seu sistema, as
categorias são colocadas uma ao lado das outras segundo as
funções desempenhadas pela percepção sensível e o pensamento.
Ele procura evidenciar as leis que determinam a interdependên­
cia das categorias; as categorias classificam-se, segundo ele, em
grupos de acordo com o princípio da lógica formal e não se­
gundo o lugar que cada uma delas ocupa no desenvolvimento
histórico do conhecimento e da prática, nem na relação das
formas gerais do ser refletidas no. processo desse desenvol­
vimento.
O ponto de partida no sistema de categorias de Wilhelm
Wundt é igualmente o conceito de relação. Wundt considera,
assim como os outros filósofos que analisamos, as categorias
como noções puramente a priori, que exprimem as relações do
pensamento lógico. Wundt cita a “forma” e a “matéria” como
as principais categorias, para a formação das quais se faz
necessário, antes de tudo, o exame de todo objeto da expe­
riência. Segundo ele, elas encontram-se no ponto mais alto
dos conceitos puros de relação e são ainda a base da classifi­
cação de todas as outras*3.
A categoria de matéria, analisada ao mesmo tempo que
a forma, resulta, segundo Wundt, na categoria de conteúdo.
A relação do conteúdo e da forma, faz aparecer as categorias
de “real” e de “formal”, de “real” e de “possível”, que são as
categorias paralelas do conteúdo e da forma.
Em seguida, depois de dar sua relação das categorias de
conteúdo e de forma, todas as outras categorias dividem-se em
conceitos puros de forma e em conceitos puros de conteúdo e
de realidade.
Wundt considera como conceitos gerais de forma as cate­
gorias do um e do múltiplo; os conceitos obtidos pela seqüência
da diferenciação do conceito de múltiplo são os conceitos
especiais de forma: a qualidade e a quantidade como dois
aspectos a oartir dos quais podemos analisar todo múltiplo, o48

48E. Lysinski, Die Kategoriensysteme cit., p. 75.

42
simples e o complexo, e segundo os quais desmembra-se a
qualidade; o singular e o múltiplo que são obtidos em decor­
rência da diferenciação da categoria de quantidade.
Aos conceitos gerais de realidade (de conteúdo), Wundt
acrescenta as categorias de “ser” e de “vir-a-ser” que, trans-
formando-se, tornam-se as categorias de “substância” e de
“causalidade”. Wundt considera a substância como a base do
ser e a causalidade como a correlação do ser. Relacionando-se
uma à outra, a substância diferencia-se nela mesma (substância
no sentido próprio do termo) e em acidente, enquanto que a
causalidade diferencia-se em causa e efeito. Esses dois pares
de categorias reúnem-se em seguida para formar o conceito de
força que se divide em força potencial (inclusive na substância)
e em força atual (manifestando-se na ação); a causalidade
divide-se em causalidade substancial e em causalidade atual
que, em seu desenvolvimento ulterior, transformam-se em causa
e fim.
Segundo Wundt, a categoria de fim é aplicável não apenas
aos atos conscientes do homem, mas igualmente aos processos
da natureza; a relação de finalidade está contida no próprio
fundamento do ser, na substância em si. O idealismo mani­
festa-se aqui de forma particularmente clara.
O sistema de categorias proposto por Wundt, apesar de
um certo rigor lógico e da reprodução de algumas relações de
categorias que existem na realidade (quantidade-um-múltiplo;
conteúdo-substância-acidente; substância-causalidade-causa-efei-
to), é artificial, reúne de forma arbitrária as categorias, que não
encontram entre elas uma correlação e uma interdependência
necessárias. Por exemplo, nem na realidade, nem na consciên­
cia, a forma desmembra-se em um e em múltiplo, as categorias
de “um” e de “múltiplo” não aparecem sobre a base da cate­
goria de forma, como as apresenta Wundt. As categorias de
“qualidade” e de “quantidade” não se manifestam em decor­
rência da diferenciação da categoria de “múltiplo”. O apare­
cimento das categorias de simples e de complexo não nos
parece estar ligado à qualidade etc. Logo, o sistema de cate­
gorias de Wundt não reflete, no final das contas, as leis reais
de relação das categorias. E isso é normal porque o autor
coloca-se em posições idealistas e por essa razão não pode
voltar-se para a esfera da realidade na qual encontram-se os
fatores que condicionam o movimento do pensamento de uma

43
categoria a outra, fatores que determinam sua correlação e sua
interdependência.
Hermann Cohén4445, filósofo alemão do fim do século XIX
e começo do século XX construiu um sistema de categorias um
pouco diferente daquele de Wundt e dos outros sistemas que ana­
lisamos anteriormente. Em sua teoria das categorias, Cohén
parte de Kant. Mas ele o corrige sensivelmente. Em particular,
ele suprime todas as tendências materialistas da teoria kantiana
e nega a existência da “coisa em si”, independentemente da cons­
ciência. Segundo ele, tudo o que existe no mundo depende da
consciência, do “pensamento puro”. Cohén deduz do pensa­
mento puro não apenas as formas a p rlo ri da percepção sensível
e do entendimento, mas também a “coisa em si”, que se transfor­
ma em princípio lógico do conhecimento. De acordo com isso,
o “pensamento puro”, que engendra não apenas os conceitos,
mas também o próprio objeto do conhecimento46, constitui o
princípio primeiro das categorias e de suas relações.
Cohén considera as categorias como elementos do pensa­
mento puro, conceitos elementares a priori. Ao mesmo tempo,
as categorias são para ele formas fundamentais do julgamento46.
É por isso que, construindo seu sistema, Cohén esforçou-se
para deduzir as categorias a partir dos juízos correspondentes.
Ele divide os juízos segundo as quatro formas abaixo:
1) Juízos das leis do pensamento,
2) Juízos da matemática,
3) Juízos da ciência da natureza matemática,
4) Juízos do método.
Cohén acrescenta as categorias de “origem”, de “continui­
dade”, de “identidade” e de “contradição” aos julgamentos das
leis dos pensamentos. As duas primeiras categorias, segundo
ele, são convocadas a produzir os elementos do pensamento
puro, a terceira, a conservar sua identidade e a quarta, a re­
forçar a identidade pela negação de tudo o que não é idêntico.
Dos julgamentos da matemática, Cohén deduz as cate­
gorias de “cálculo”, “tempo”, “número”, “espaço” e “todo”.
A categoria de cálculo cria, segundo ele, a realidade do objeto

44H. Cohen, Logik der reinen Erkenntnis, Berlin, 1902.


45Lysins;d, Die Kategoriensysteme cit.. p. 83.
48Lysinski, Die Kategoriensysteme cit.. p. 84.

44
da matemática. As categorías de tempo e de número produzem
o conteúdo desse objeto sob a forma de diferença numérica ou
de maioria indeterminada. A categoría de “todo” é convocada
para refletir a unidade ideal da multiplicidade infinita do
singular. Aplicado às ciências do espírito, o juízo geral, assim
como o juízo de maioria, manifesta-se sob a forma de categoria
de “sociedade”, e o juízo de realidade sob a forma de categoria
do indivíduo que, segundo Cohén, cria a realidade da mora­
lidade.
Os juízos da ciência da natureza matemática condicionam
as categorias de movimento, de repouso da substância, de
inércia, de lei, de função, de causalidade, de energia, de con­
ceito, de objeto, de sistema, de natureza, de fim, de sujeito
e de ação moral, assim como certas categorias especiais da
ciência da natureza matemática. Ao contrário das categorias
precedentes, que são um meio metafísico de produção dos
objetos do conhecimento em seu isolamento, as categorias aqui
apresentadas por Cohén desempenham um papel de meio de
produção dos objetos do conhecimento em sua correlação, e é
por isso que ele as considera como categorias de relação.
Os juízos do método supõem as categorias de possibilidade,
de consciência, de hipótese, de medida, de realidade, de singular,
de grande, de cronologia, de necessidade, de geral e de par­
ticular. A necessidade da categoria de possibilidade não é
fundamentada por Cohén, já que, segundo ele, ela explica-se
sozinha. A categoria de consciência, para Cohén, é a premissa
de toda possibilidade e graças a ela realizam-se todas as de­
terminações importantes. A categoria de hipótese está colocada
à base de todas as formas de possibilidade e com a categoria
de medida está o meio de produção de objetos novos.
A categoria de grandeza é destinada, por Cohén, à pro­
dução, a partir do pensamento puro, da realidade do singular
e manifesta-se sob a forma de espaço e de tempo. Nas
ciências do espírito, a grandeza exprime-se sob a forma de
cronologia e constitui igualmente um meio de definição da
realidade. As categorias de “geral” e de “particular” têm por
função estabelecer a ligação entre os objetos isolados.
Para Cohén, a dedução das categorias a partir das dife­
rentes formas de juízos reduz-se à determinação das funções
que elas desempenham no processo do pensamento puro que
cria a realidade. O sistema obtido não tem nenhum valor

45
científico, porque não reflete a correlação e a interdependência
necessárias reais entre as categorias, mas apenas representa a
aliança arbitrária de conceitos existindo no conhecimento social.
No sistema de Cohén, as categorias são mais freqüentemente
fixas e descritas do que deduzidas uma da outra, e é por isso
que, se não for por acaso, nesse sistema, elas não se relacionam
umas com as outras, mas simplesmente existem, umas ao lado
das outras. Pelo fato de que o seu princípio de partida é
idealista, Cohén concentra sua atenção não sobre a colocação
em evidência das leis da correlação das categorias, mas sobre
o estabelecimento de seu papel imaginário na produção do ser
real a partir do pensamento puro.
Paul Natorp desenvolveu o ponto de vista de Cohén sobre
a correlação das categorias. Assim como Cohén, também
Natorp esforça-se por criar seu sistema de categorias a partir
da análise do ato do pensamento elementar que, para ele, é
constituído pelo juízo. A essência do juízo e, portanto, do
pensamento representa, segundo Natorp, uma forma de união
da multiplicidade na unidade e, ao mesmo tempo, um certo
desmembramento dessa unidade em multiplicidade.
Analisando a atividade analítica e sintética do pensamento
sob o aspecto exterior e interior, descobrimos, segundo Natorp,
que há nela a quantidade e a qualidade. Natorp considera
que o primeiro grau desta atividade elementar do pensamento
é o estabelecimento da unidade quantitativa e a distinção do
singular do um na qualidade de base da síntese quantitativa.
O segundo grau é a repetição do ato de estabelecimento dessa
unidade e da formação da multiplicidade, a qual, nesse grau,
é indeterminada pelo fato de que a repetição pode realizar-se
até o infinito. No terceiro grau, a repetição dessa mesma
unidade quantitativa limita-se à formação de um todo. Em
decorrência, a multiplicidade indeterminada transforma-se em
multiplicidade determinada, isto é, em número. Em seguida,
tudo se repete igualmente e forma uma nova multiplicidade
indeterminada, depois um todo (um número novo etc., até o
infinito).
A correlação da unidade e da multiplicidade, segundo
Natorp, constitui a qualidade. No primeiro grau do conheci­
mento, a qualidade aparece sob a forma de unidade qualitativa
(identidade), no segundo grau, à unidade qualitativa acrescen­
tam-se outras, e assim fica estabelecida a diferença que aqui
46
é indeterminada. No terceiro estágio do conhecimento, as
identidades diferentes são generalizadas e uma nova unidade
qualitativa aparece, considerada por Natorp como gênero, como
unidade qualitativa dessa ou daquela multiplicidade.
As sínteses qualitativa e quantitativa no desenvolvimento
do pensamento, segundo Natorp, reúnem-se ulteriormente em
uma nova síntese (síntese das sínteses) e formam a “relação”.
A síntese das relações conduz ao aparecimento de um sistema,
depois de uma ordem geral. No primeiro grau da síntese das
relações, estabelece-se uma série fundamental que existe de
maneira imutável em todas as ordens e que representa a substân­
cia, alguma coisa de geral, determinando todas as mudanças
que se produzem. O geral aparece primeiro sob a forma de
tempo, comum a todas as transformações, e, em seguida, sob
a forma de espaço, que engloba em um todo unido todas as
relações (ordens). No segundo grau da síntese das relações
(do conhecimento, da criação, o que é, segundo Natorp, a
mesma coisa) estabelece-se a sucessão dos momentos no tempo,
o que constitui a causalidade. No terceiro grau da síntese
das relações estabelece-se a correlação das séries paralelas que
representam a interação.
Tudo o que foi exposto na obra de Natorp concerne ao
conhecimento, à síntese (e ao mesmo tempo à criação), e não
a um ser concreto qualquer, mas ao ser em geral. Mas, ao lado
desse grau de desenvolvimento do pensamento, Natorp distingue
o grau do conhecimento, da síntese (da criação) do ser con­
creto, do objeto. No estágio do conhecimento (da síntese, da
criação) do objeto, aparecem as categorias de modalidade,
Natorp considera como primeira ação do pensamento, visando
a síntese do objeto, o estabelecimento da possibilidade de uma
tal síntese, depois a verificação dessa possibilidade pela expe­
riência, isto é, na realidade, verificação que se manifesta sob
a forma de determinação progressiva indeterminada e infinita e,
enfim, pela dedução e indução completas, estabelece-se a ne­
cessidade, que Natorp identifica com a dependência lógica4?.
Apesar do idealismo manifesto de Natorp, que considera
o movimento do conhecimento de uma categoria para a outra,
como o processo da síntese (da criação), a partir do “pensa-47

47E. Lysinski, Die Kategoriensysteme cit., p. 109.

47
mento puro”, aspectos e laços gerais refletidos nas categorias,
ele soube exprimir em seu sistema certas relações reais exis­
tentes entre as categorias. Sua apresentação do movimento
do conhecimento indo do um ao múltiplo e depois voltando
ao um, assim como a apresentação do estudo separado da
qualidade e da quantidade com sua correlação, e, por meio
dela, as relações fundamentais de causalidade e de necessidade,
parece-nos correto.
O filósofo alemão Alois Riehl4«, desenvolveu um ponto
de vista sobre a correlação das categorias que é essencialmente
kantiano. Para ele, assim como para Kant, as categorias
representam as funções do pensamento que se resumem ao
estabelecimento da identidade. Esta última representará a única
categoria. As outras categorias, segundo Riehl, são formas
especiais de identidade. Assim, as categorias de espaço e de
tempo aparecem, segundo ele, em decorrência da ação da
função de identidade do pensamento sobre a sensação e a per­
cepção; a categoria de substância aparece no decorrer da
aplicação desta função do pensamento à grandeza do ser real,
a “causalidade” manifesta-se em decorrência de sua aplicação
às transformações temporais etc.
Não é sem fundamento real que as categorias são decla­
radas como constituindo diversas formas de identidade. Sendo
o reflexo de aspectos e de laços gerais da realidade, as catego­
rias refletem incontestavelmente essa ou aquela identidade. Mas
esta particularidade das categorias não permite estabelecer entre
elas a correlação e a interdependência necessárias, nem repre­
sentá-las em movimento, nem mesmo exprimir suas passagens
recíprocas etc. A única solução à qual nós podemos chegar
apoiando-nos sobre este índice das categorias, no decorrer da
elaboração de seu sistema, é dividi-las em grupos de acordo
com as formas particulares de identidade e dispor esses grupos
uns ao lado dos outros, isto é, dar uma classificação lógica e
formal. E foi precisamente isso o que fez Riehl.
Na filosofia de Nicolai Hartmann4849, uma grande atenção
foi dedicada à elaboração do sistema de categorias.

48A. Rieh!, Der philosophische Kriticismus und seine Bedeutung


für dis positive Wissenschaft, Leipzig, 1876/1877, p. 1-2.
49N. Hartmann, Der Aufbau der realen Welt. Grundriss der allge­
meinen Kategorienlehre, Berlin, 1940.

48
Hartmann apresenta o mundo sob a forma de um ser es­
tratificado, portanto, uma das camadas da consciência. Assim,
N. Hartmann suprime a questão fundamental da filosofia,
transformando-a em uma questão particular da relação de uma
camada do ser com a outra. O objetivo fundamental da filo­
sofia, segundo ele, é o estudo do sistema (da estrutura) do
mundo e a construção de um sistema de categorias que expri­
mam essa estrutura. As categorias, segundo Hartmann, são
as diferenças e os traços fundamentais das camadas e dos graus
do ser que é evidenciado. “Todas as diferenças fundamentais
de domínio do existente — graus ou camadas, traços gerais,
que dominem no interior das camadas e relações que os reúnem
— tomam a forma de categorias”50. É por isso que a teoria
das categorias, para Hartmann, “é a ontologia fundamental, isto
é, o estudo das bases gerais do ser que se diferenciam segundo
as esferas do ser e constituem um domínio especial que se
encontra sob o ser”6*.
Ignorar a questão fundamental da filosofia leva Hartmann
à negação da unidade do mundo, tal como é compreendida
pelos materialistas e os idealistas. Segundo ele, a unidade do
mundo consiste em seu caráter estruturado e no fato de que
todas essas camadas encontram-se em relação e em ligação
determinadas que constituem um sistema definido. “Com­
preender a unidade do mundo real significa compreender esse
mundo em sua construção e em seu desmembramento. A
unidade que ele possui não é a unidade da uniformidade, mas
a unidade da disposição e da elevação das variedades formadas
de maneira tal que, dispostas de certa forma, as que são infe­
riores e grosseiras encontram-se na base e as que são superiores,
que repousam sobre as primeiras, elevam-se acima delas”52.
Falando da relação das categorias com as camadas reais,
N. Hartmann destaca que as primeiras estão contidas nas se­
gundas e desempenham nelas um papel permanente, geral e
dominante. Encontrando-se nas camadas reais concretas do
ser, as categorias, segundo ele, podem entrar em uma camada,
em várias ou em todas.

50N. Hartmann, Der Aufbau der realen Well, cit., p. 1.


51N. Hartmann, Der Aufbau der realen Welt, cit., p. 42.
52N. Hartmann, Der Aufbau der realen Welt, cit., p. 197.
Como conseqüência, elas dividem-se em categorias espe­
cíficas de camadas e em categorias fundamentais que, indo de
alto a baixo (do intemporal mais complexo, do ideal eterno,
até às camadas físicas mais simples), penetram todas as ca­
madas e, exatamente por isso, unem-nas. Essas categorias
que constituem a parte “baixa” (no fundamento) do ser, uma
camada particular, são os princípios gerais da relação das
categorias no interior das camadas particulares e entre as ca-
madas53.
Formando uma camada especial, as categorias fundamen­
tais dividem-se em três grupos: categorias modais, categorias
elementares e leis categoriais. Ele acrescenta às categorias mo­
dais, as categorias de possibilidade, de realidade, de necessi­
dade; às categorias elementares, as categorias que têm um ca­
ráter estrutural e que se manifestam sob a forma de termos
opostos, como, por exemplo, o um e o múltiplo, a forma e a
matéria, a qualidade e a quantidade, a continuidade e a des-
continuidade etc.; às leis categoriais, acrescenta as categorias
que definem o princípio de união das categorias no interior de
uma camada, a disposição das camadas de categorias e a de­
pendência que reina entre elas. N. Hartmann chama estas
últimas de as leis da construção do mundo real. Essas leis, se­
gundo ele, são a lei da implicação e as leis da unidade e da
integridade das camadas. Essas três leis exprimem, segundo
ele, a correlação e a dependência mútuas das categorias de uma
camada, a prioridade da integridade do sistema das categorias
sobre as categorias particulares e também o fato de que a essên­
cia de cada categoria encerra-se tanto nela mesma, como nas
outras categorias que lhe estão ligadas.
Hartmann analisa detalhadamente os princípios do co­
nhecimento da relação das categorias no plano de uma camada,
assim como entre as camadas, notadamente indicando que toda
categoria particular é cognoscível unicamente na medida em que
são cognoscíveis todas as outras categorias da camada; ele
indica também que no conhecimento da correlação (coesão)
das categorias de uma camada dada pode-se partir de qualquer
categoria, que as categorias das camadas inferiores devem ser
conhecidas partindo das categorias das camadas superiores e53

53N. Hartmann, Der Aufbau der realen Welt. cit., p. 198-9.

50
que, apoiando-se sobre as categorias da camada inferior, po­
de-se representar a particularidade das categorias da camada
superior etc.
Em seus raciocínios sobre o caráter estratificado do ser,
sobre a especificidade da estrutura de cada camada, sobre a
presença, sob uma forma transformada, da estrutura da camada
inferior na camada superior etc., Hartmann exprime de maneira
confusa teses do materialismo dialético sobre as formas fun­
damentais do movimento da matéria e sua correlação no pro­
cesso do desenvolvimento progressivo desta última. Ao lado
de certos pensamentos justos que concernem às relações do
geral e do particular, do inferior e do superior, Hartmann apre­
senta um grande número de teses errôneas, que visam a conci­
liar o materialismo e o idealismo, a operar a “ontologização”
da consciência, a transformá-la do ideal em uma forma univer­
sal do ser fora do tempo e do espaço e, por isso mesmo, a
criar a resposta idealista para a questão fundamental da Filoso­
fia. Ao mesmo tempo, o sistema de categorias proposto por
Hartmann ainda é uma construção idealista, que faz da Filo­
sofia a ciência das ciências, determinando o lugar e a ligação
recíprocas de todas as outras ciências, nas quais a fantasia su­
planta a ausência de conhecimentos necessários. Em uma única
palavra: Hartmann não apenas não conseguiu ir alér. de Hegel,
mas ainda ficou atrás dele.
Oskar Fechner5* construiu seu sistema de categorias a
partir dos princípios idealistas e metafísicos. Ele rejeita todas
as teorias tradicionais sobre as categorias, considerando-as fal­
sas, e propõe sua solução, dita ontológica sobre o problema:
“Nós não reproduzimos nada, escreve ele, nem as filosofias tra­
dicionais, nem os conceitos estruturais e categoriais científicos,
mas, sim, mediante uma análise profunda, procuramos compre­
ender as categorias apresentadas e autenticamente ontoló­
gicas”55.
Fechner, além da existência das coisas e da consciência
dos indivíduos, reconhece a existência objetiva das ditas “obje­
ções”, idéias, e das “formações gerais”, que não dependem do
homem nem de sua consciência, residem cm diferentes esferas,

«O. Fechner, Das System der ontischen Kategorien, Dammtor-Verlag,


Hildesheim, 1961.
550. Fechner, Das Syistem cit., p. 5.

51
situadas fora da razão humana e são captadas pelo homem no
processo de seu pensamento individual. As “objeções” (idéias
gerais), secundo Fechner, são universais, eternas e imutáveis,
transmitem-se de um sujeito empírico a outro e criam a apa­
rência da modificação dos pensamentos56. Cada “objeção”,
segundo Fechner, possui uma estrutura mental (formal) e obje­
tiva (material). A primeira manifesta-se nos pensamentos (for­
mações gerais); a segunda, nos objetos singulares. Cada objeto
singular, segundo ele, representa uma certa associação de “ob­
jeções”, e é por isso, segundo Fechner, que, conhecer um
objeto particular é apontar sobre ele “objeções captadas” pelo
pensamento empírico e compreendê-lo por meio destas.
Partindo do fato de que os objetos singulares que consti­
tuem o mundo material são formados de “objeções” imutáveis,
segundo a teoria de Fechner, o mundo é imutável em sua base,
ele não possui desenvolvimento, existe eternamente em seu es­
tado uniforme e não contraditório. Apoiando-se nessas teses
metafísicas, Fechner critica Hegel, que apresenta o mundo em
um estado de contradição, condicionando suas mudanças e seu
desenvolvimento permanentes. Ele escreve que a “afirmação
de Hegel, segundo a qual o processo mundial pode ser represen­
tado por meio do desenvolvimento dialético dos conceitos, flu­
tuantes e contraditórios, é errônea. Na verdade, as “objeções”
são sempre universais, constantes e formalmente livres de todas
as contradições”57.
Esses princípios metafísicos e idealistas, em sua essência,
são colocados por Fechner à base de seu sistema de categorias.
Por categorias, Fechner compreende os “elementos estru­
turais ou as estruturas elementares de uma ou de várias esferas
de objetivos”55.
A divisão das categorias em grupos particulares e, no
interior dos grupos, em subgrupos, é efetuada por Fechner se­
gundo os princípios da lógica formal; é por isso que todos esses
grupos, subgrupos e categorias particulares, no sistema que ele
propõe, não se encontrando em uma relação necessária, não
são deduzidos uns dos outros, mas simplesmente coexistem.
Fechner limita-se a fixá-los e a descrevê-los.

»»O. Fechner, Das System cit., p. 8.


¡¡’O. Fechner, Das System cit., p. 20.
5*0. Fechner, Das System cit., p. 37.

52
Archie J. Bahm dá uma classificação de categorias que
repousa igualmente sobre a lógica formal. Embora o princípio
fundamental da construção de seu sistema das categorias seja
a relação de contradição, ele não mostra sua interdependência
necessária, nem as passagens de uma a outra ou seu contrário.
As diferentes formas das contradições desempenham, para ele,
o papel de fundamento lógico e formal da divisão das catego­
rias em diferentes grupos. Em particular, Archie J. Bahm dis­
tingue nove tipos de relações contrárias, das quais examinamos
cinco: one-pole-ism, other-pole-ism, dualismo, aspectism que
se manifestam sob duas formas (extremas e modificadas) e o
organismo, como tipo central. No todo, ele distingue 26 pares
diferentes de contrários polares50.
Wolfgang Cramer construiu seu sistema de categorias no
espírito hegeliano. Ele faz seu sistema repousar sobre o con­
ceito do absoluto. O absoluto é o ponto de partida do movi­
mento do pensamento, indo de uma categoria a outra, que se
realiza por meio da autodeterminação do absoluto. Como
unidade do imediato e do princípio de partida, o alttoluto, se­
gundo Cramer, tende à mediatização e à determinação e mani­
festa-se como sujeito de todas essas determinações e mediatiza-
ções. No processo de autodeterminação e de mediatização, o
absoluto, para Cramer, descobre, um após o outro, os momen­
tos de seu conteúdo e engendra as categorias correspondentes.
Na passagem de uma categoria à outra, ele esforça-se para imi­
tar Hegel: entretanto, a riqueza das idéias incluídas no sistema
hegeliano de categorias não é encontrada nos esquemas que
ele propõe58*60.
Bela von BrandensteinM parte igualmente de Hegel para
construir seu sistema de categorias. Entretanto, à diferença de
Hegel, que toma o “ser puro” — nada idêntico — contraditó­
rio, por sua natureza e, portanto, sua mudança, como ponto de
partida do movimento do pensamento puro de uma categoria a

58Lewis E. Hahn, O f shoes and ships and sealing-wax, and cabbages


and kings, The Journal of Philosophy, Lancaster, 55(2): 55-6, 1958.
60Cf. W. Cramer, Aufgaben und Methoden einer Kategorienlehre.
Kant-Studien, in Philosophische Zeitschrift, 1960/1961, t. 3, v. 52, p.
351-68.
01Bela von Brandestein, Der Aufbau des Seins. System der Philo­
sophie, Tübingen, 1950.

53
outra, Brandenstein parte, por sua vez, da “realidade imutá­
vel” que, sendo eterna, impõe, por sua ação sobre alguma coisa,
as modificações correspondentes e, no decorrer dessas modifi­
cações, engendra as categorias correspondentes.
Fazendo um balanço do exame dos sistemas de categorias
apresentadas pelos filósofos burgueses posteriores a Hegel, é
conveniente salientar que todos esses sistemas não constituem,
em relação a Hegel, uma contribuição nova à pesquisa e ao
estudo do problema da correlação das categorias, mas, na rea­
lidade, eles ficam aquém do sistema de Hegel. E não é por
acaso que isso acontece. Um desenvolvimento ulterior frutífe­
ro da teoria das categorias só seria possível no plano do mate­
rialismo, a partir dos princípios da dialética formulados por
Hegel. Em regra geral, os filósofos, dos quais nós já falamos,
ignoravam, na elaboração de seus sistemas de categorias, tanto
o materialismo como a dialética e, exatamente por isso, eram
obrigados a repetir o que antes disseram Hegel, Kant e até
mesmo Aristóteles. No presente caso, Othmar Spann tem toda
razão quando escreve a respeito dos sistemas de categorias sur­
gidos depois de Hegel: “Em relação a Hegel, todas as teorias
modernas sobre as categorias são um passo atrás, já que, em
vez de seguirem em profundidade os grandes pensamentos do
idealismo alemão, caem na barbárie do gênero empírico e me­
cânico. . . ”62.
Os princípios da construção de um sistema de categorias
da dialética, apresentados por Hegel, foram objeto de uma
interpretação materialista, de um fundamento científico e de um
desenvolvimento unicamente da filosofia marxista. A filosofia
marxista apresenta, pela primeira vez, uma solução científica
para o problema da correlação das categorias. Aplicado à ciên­
cia econômica, esse problema foi analisado, sob todos os ân­
gulos, por Marx em seu Le capital e, aplicado à lógica dialé­
tica, ele foi analisado em Cahiers philosophiques de Lenin.

esO. Spann, op. cit., p. 42.

54
2. DO PRINCÍPIO DE PARTIDA
E DOS PRINCÍPIOS DE EDIFICAÇÃO
DO SISTEMA DAS CATEGORIAS
DA DIALÉTICA

Uma boa solução para o problema da correlação das ca­


tegorias supõe, antes de tudo, uma escolha correta do princípio
de partida, das categorias das quais se parte para que permitam,
no processo de sua análise, que se efetue a passagem de uma
categoria a outra e por ela mesma, a colocação em evidência
das leis de sua relação recíproca e, por meio delas, as leis da
relação recíproca das ligações e das formas universais do ser
que elas refletem.
À primeira vista, pode parecer que a definição das catego­
Na realidade nem rias de partida não é uma coisa muito difícil, já que o marxis­
sempre temos mo determina que, no estudo de todo objeto, se comece pelo
apenas um fator aspecto ou pela relação fundamental e determinante. Entre­
tanto, na realidade, tudo isso não é assim tão simples. Por
determinador, as exemplo, como fazer quando se tem a impressão de que os
vezes temos vatios aspectos ou as relações fundamentais e determinantes não são
fatores um em cada apenas um, mas vários, e que eles são concernentes a diferentes
domínios? Com o estudo das categorias, podemos nos encon­
area que resultarão trar precisamente nessa situação.
em vários produtos Efetivamente, em toda filosofia, incluindo o materialismo
determinados cada dialético, há uma questão fundamental — a questão da relação
um das varias do pensamento com o ser, cuja solução deixa sua impressão na
resolução de todos os outros problemas filosóficos e, em última
combinações análise, determina o caráter da Filosofia, sua essência. É por
possíveis. isso que as categorias ligadas a essa questão e, em particular,
as categorias de matéria e consciência devem necessariamente
ser relacionadas com as categorias fundamentais e determinantes
e a análise deve começar por elas.
Mas, ao mesmo tempo, o materialismo dialético estuda os
aspectos e as relações universais da realidade objetiva. E esses
não são todos semelhantes. Há entre eles alguns que desempe­
nham um papel fundamental e determinante e outros que são
subordinados e determinados. Os clássicos do materialismo
dialético, e em particular Lenin, consideravam como relações
fundamentais e determinantes, na realidade objetiva, as rela­
ções recíprocas entre os aspectos opostos, isto é, a lei da unida­
de e da luta dos contrários. Em conseqüência, as categorias

55
que estão ligadas à lei da unidade e da luta dos contrários
devem igualmente ser relacionadas às categorias de partida,
pelas quais é preciso começar a análise.
As categorias Sendo o reflexo dos aspectos, das ligações e das relações
universais reais, as categorias são, ao mesmo tempo, os produ­
são o que são tos da consciência, da atividade cognitiva dos homens. No co­
independentes nhecimento, há fatores fundamentais e determinantes que mar­
do homem e são cam toda atividade cognitiva e, em particular, seus resultados:
tambem produto são as categorias e sua correlação. Os fundadores do marxismo
consideravam que a prática social é esse fator determinante do
da cognição conhecimento. Engels escreveu: “É precisamente a transfor­
humana mação da natureza pelo homem, e não a própria natureza como
tal, que é o fundamento mais essencial e mais direto do pensa­
mento humano, e a inteligência do homem aumentou na medida
em que ele aprendeu a transformar a natureza”63. Se é assim,
as categorias que refletem esse fator fundamental, determinante
do conhecimento, devem igualmente ser consideradas como ca­
1º fator : as categorias são tegorias de partida.
produtos da consciencia" que se Assim, no exame das categorias chocamo-nos com três
formam do desenvolv do
conhecimento assim como uma
fatores diferentes que são, cada um a sua maneira, fundamen­
copia ou uma foto (apenas tais e determinantes e que podem desempenhar o papel de prin­
representa o real é menor do que cípios de partida. Como resolver a questão de saber qual desses
o real é menor que o todo, é só é um fator de partida, determinante, no momento do exame das
um fragmento do todo capturado categorias e quais categorias devem ser analisadas em primeiro
pela nossa consciencia) lugar?
2º fator : "PARES CATEGORIAIS"
Vejamos o que se produz se, na qualidade de ponto de
e partida, tomamos a questão fundamental da Filosofia, começan­
do pela análise das categorias de “matéria” e de “consciência”.
3º fator : é a "prática" Partindo da solução do problema da relação do pensa­
mento com o ser, da consciência com a matéria, estabelecemos
que as categorias são os produtos da consciência, que elas se
formaram no processo de desenvolvimento do conhecimento,
que seu conteúdo é emprestado da realidade objetiva, que elas
são cópias, fotografias de certos aspectos e ligações do mundo
exterior. Incontestavelmente, todos esses momentos colocados
em evidência são muito importantes. Sem eles, não podemos
compreender a essência das categorias e, sem termos com-63

63F. Engels, La Dialectique de la nature, Paris, Editions Sociales,


1952, p. 233.

56
preendido sua essência, não podemos colocar em evidência sua
relação real, sua ligação recíproca necessária. Mas, mesmo
sendo importantes, os momentos discutidos não são suficientes,
2º fator não encerram os princípios, partindo dos quais poderíamos
estabelecer entre eles semelhante correlação.
A lei de unidade e luta dos contrários
O que aconteceria se, no momento do estudo da correlação
constitui o centro da dialética nos das categorias, apoiássemo-nos no fator essencial determinante
permite explicar a lei de correlaçãoque se relaciona com a realidade objetiva, na lei da unidade
com outrtas leis fundamentais e e da luta dos contrários? Como essa lei constitui o centro da
dialética, ela permite-nos explicar a lei de sua correlação com
categorias da dialética assim comoas outras leis fundamentais e categorias da dialética, assim como
a lei da recíproca dos a lei da ligação recíproca dos pares categoriais, pelo fato de
PARES CATEGORIAIS. que sua relação representa a manifestação concreta da unidade
MAS ISSO tb ñ é suficiente e da luta dos contrários. Mas essa lei, assim como a questão
fundamental da Filosofia, não permite que se determine plena­
precisamos do terceiro fator que mente a correlação e a interdependência das categorias. Apli­
é a pratica. cando essa lei, não podemos estabelecer a ordem a que as
categorias devem seguir.
Dirijamo-nos agora ao terceiro fator fundamental deter­
minante que se encontra no domínio do conhecimento: a
prática.
O conhecimento começa precisamente com a prática, que
funciona e se desenvolve com base na prática e se realiza pela
prática. É precisamente com base na prática que se formam
as categorias nas quais são refletidas e são fixadas as ligações
e as formas universais do ser.
Desenvolvendo-se com base na prática, o conhecimento
representa um processo histórico, no decorrer do qual o homem
penetra cada vez mais profundamente no mundo dos fenômenos.
Nesse processo, as categorias aparecem em uma ordem deter­
minada cada uma delas em um estágio rigorosamente deter­
minado do desenvolvimento do conhecimento. Fixando os
aspectos e as ligações universais colocadas em evidência pelo
conhecimento em um estágio dado do desenvolvimento, as ca­
tegorias refletem as particularidades desse estágio e são, de
certa maneira, graus e pontos de apoio para a elevação do
homem acima da natureza, para o conhecimento desta. Em
outros termos, as categorias, refletindo as ligações e os aspectos
universais do mundo exterior, são, ao mesmo tempo, graus do
desenvolvimento do conhecimento, momentos que fixam a pas­

57
sagem do conhecimento de certos estágios do desenvolvimento
a outros.
A idéia, segundo a qual as categorias são graus, momentos
determinados ou pontos centrais do processo do conhecimento,
foi apresentada pela primeira vez, e com bastante precisão, por
Lenin. Analisando a lógica de Hegel, na qual as categorias
são representadas sob a forma de graus, de momentos do de­
senvolvimento da idéia que existe eternamente fora da natureza
e antes da natureza, Lenin, em seus Cahiers philosophiques,
salientou várias vezes que as categorias são graus, momentos
do conhec'mento. Expondo o conteúdo da categoria de lei,
Lenin nota por exemplo, que “O conceito de lei é um dos graus
do conhecimento, pelo homem, da unidade e da ligação, da
interdependência e da totalidade do processo universal”64. So­
bre as categorias de essência e de fenômeno, ele escreve que: aqui
“O fundamental aqui é que o mundo dos fenômenos e o mundo "fenomenos"
em si são momentos do conhecimento da natureza pelo homem, está no sentido
graus, modificações ou aprofundamentos (do conhecimento)”66.
A categoria de substância, escreve ele, ainda, é “um grau de natureza
essencial no processo de desenvolvimento do conhecimento transformada
humano da natureza e da matéria”66. E, para concluir, ele pelo homem
diz que: “Momentos do conhecimento. . . da natureza para o
homem, eis o que são as categorias lógicas”67.
Ocorre um Upgrade no O aparecimento de toda nova categoria é necessariamente
conceito condicionado pelo curso do desenvolvimento do conhecimento. aqui
de uma categoria a partir do Ela aparece porque o conhecimento, penetrando sempre mais "mundo em si"
profundamente o mundo dos fenômenos, colocou em evidência
novo conhecimento novos aspectos e laços universais que não voltam mais para as seria a natureza
ou melhor categorias existentes e que exigem, para exprimir-se, ser fixados sem ser
a partir do desenvolvimento do em novas categorias. Surgindo, toda nova categoria entra nas transformada
relações e ligações necessárias, determinadas com as categorias
conhecimento já existentes e, assim, ocupa um lugar particular, determinado
pelo homem
pelo processo do conhecimento no conjunto do saber, no sistema
geral das categorias. E se nós dispomos as categorias, na
ordem em que elas apareceram no processo de desenvolvimento
do conhecimento, será fácil encontrar o lugar, o papel e a*5

04V. Lenin, op. cit., p. 142.


S5Lenin, op. cit., p. 144.
í0Lenin, op. cit., p. 149.
07V. Lenin, op. cit., p. 188.

58
importância de cada categoria, de sua relação e de sua corre­
lação. Daí a necessidade do tratamento dialético da história
do pensamento, da ciência e da técnica, assim como a do estudo
da história do pensamento, do ponto de vista do desenvolvi­
mento do sistema de categorias.
É conveniente destacar que é desse modo que Lenin for­
mulava a missão ulterior do estudo da dialética de Hegel e de
Marx. “Continuar a obra de Hegel e de Marx, deve consistir
no tratamento dialético da história do pensamento humano, da
ciência e das técnicas”68.
ver no rodape “Une histoire de la pensée du point de vue du dévelop-
pement e de 1’aplication des concepts et catégories généraux
de la logique — voilà ce qu’il faut!”60*.
acho que aqui ele Indicando que as categorias formaram-se em uma deter­
quiz dizer linearmente minada ordem, não devemos, entretanto, pensar que elas segui­
ram-se historicamente. Algumas dentre elas apareceram ao
mesmo tempo, a um mesmo grau do conhecimento. E ainda
mais, depois de seu aparecimento, elas não conservaram sua
forma original, mas transformaram-se, desenvolvendo-se em teoria e pratica
decorrência do desenvolvimento e da prática. Mas se for assim,
como classificar as categorias para que elas exprimam o movi­
mento do conhecimento de seus graus inferiores a seus graus
superiores?
De acordo com o método dialético, devemos considerar
cada momento do todo estudado “no ponto de desenvolvimento
de sua plena maturidade, na sua pureza clássica”*6970. Levando
isso em conta, devemos ligar cada categoria ao grau de desen­
volvimento do conhecimento no qual seu conteúdo está mais
desenvolvido, no qual ela adquire uma forma clássica.
Considerando as categorias como graus do conhecimento,
isto é, na ordem em que elas apareceram com base no desen­
volvimento da prática social e do conhecimento do qual ela
depende, poderemos não apenas reproduzir na consciência,

88Lenin, op. cit., p. 138


69Lenin, op. cit., p. 167.
* Texto em francês no original russo — “Uma história do pensa­
mento, do ponto de vista do desenvolvimento e da aplicação dos
conceitos e categorias gerais da lógica, se faz necessária!”.
70K. Marx e F. Engels, Oeuvres choisies en trois volumes, Moscou,
Editions du Progrès, 1976, t. 1, p. 535.

59
numa certa ordem, as leis e aspectos universais da natureza, da
sociedade e do pensamento humano, refletidos e fixados nas
categorias, mas igualmente reproduzir o desenvolvimento do
conhecimento, de seus estágios inferiores a seus graus superio­
res, isto é, apresentar oua história e sua teoria, assim como um
método de conhecimento — uma lógica que será aqui efetiva­
mente “uma teoria não das formas exteriores do pensamento,
mas das leis do desenvolvimento de ‘todas as coisas materiais,
naturais e espirituais’ ou seja, das leis de desenvolvimento de
todo o conteúdo concreto do mundo e do conhecimento deste,
isto é, apresentar o balanço, a soma, a conclusão da história
Sem esquecer que o do conhecimento do mundo”?1. Nesse caso, para designar a
lógica, a d.álética e a teoria do conhecimento do materialismo,
ponto de partida deve ser é preciso apenas três palavras: “são a mesma coisa”7172.
antes de tudo ser Tomando como ponto de partida a prática e a tese sobre
considerado como a as categorias consideradas como graus do desenvolvimento do
dialética entre pratica e teoria que conhecimento, realizamos aqui, fora da elaboração do sistema
de categorias e de leis do materialismo dialético, o princípio
resulta em graus de um de identidade da dialética, da lógica e da teoria do conheci­
processo de desenvolvimento mento.
do conhecimento,(e não algo Assim, as categorias de partida, na análise das categorias, As
finalizado e pronto) PARTIMOS devem ser aquelas que refletem o fator fundamental e deter­ categorias da pratica
minante do desenvolvimento do conhecimento, isto é, as cate­ são ponto de partida
para a nova prática que pode ser gorias da prática. Seguindo o desenvolvimento desse fator em uma análise dentro
considerada como um príncipio determinante (prática social), reproduzimos as categorias na de num estudo, porque
elas refletem o fator
de identidade ordem em que elas apareceram no processo da evolução do fundamental e
conhecimento e, assim, nós os apresentamos em sua correlação determinante do
da dialética e em sua interdependência naturais e necessárias. desenvolvimento do
da lógica Mas, tomando como ponto de partida, nesse estudo das conhecimento.
e da teoria do conhecimento categorias, os fatores que se referem ao domínio do conheci­
mento, não podemos e também não devemos ignorar a impor­
tância primordial da questão fundamental da Filosofia. Pelo
contrário, o estudo das categorias deve começar pela análise da A PRATICA
questão fundamental da Filosofia e, depois de haver determinado
a ordem da análise das categorias a partir da ordem de seu
aparecimento no processo de desenvolvimento do conhecimento,
devemos analisar cada uma delas à luz dessa questão, no plano

71V. Lenin, op. cit., p. 90.


72Lenin, op. cit., p. 304.

60
de relação da matéria e da consciência. Depois, seguindo as
categorias na ordem em que elas apareceram, em que elas se
formaram no decorrer do processo de desenvolvimento do co­
nhecimento, e colocando em evidência sua correlação e sua inter­
dependência que apareceram sobre essa base, não podemos
deixar de lado os laços (ligações) que existem entre os aspectos
universais da realidade objetiva e que são refletidos nas cate­
gorias em sua interdependência. Pelo contrário, apresentando
o conteúdo dessa ou daquela categoria, devemos sempre ter
em vista esses aspectos e essas ligações reais, e devemos levá-los
em consideração e apoiar-nos sobre eles.
A decorrência do que acaba de ser dito é que o ponto de
partida, no estudo das leis e das categorias do materialismo
dialético, devem ser as categorias de matéria, de consciência e
de prática. Os princípios diretivos da construção do sistema
devem ser: primeiramente, a concepção das categorias como
graus do desenvolvimento do conhecimento exprimindo a uni­
dade do histórico e do lógico e, em segundo lugar, o princípio
de identidade da dialética, da lógica e da teoria do conheci­
mento.

61
III. M ATÉRIA E CO NSCIÊNCIA

Determinando o princípio de partida da construção do


sistema de categorias da dialética, dissemos que era preciso
empreender i análise a partir da revelação das leis de relacio­
namento entre a matéria e a consciência, visto que a descoberta
da natureza das categorias, de sua correlação e de sua interde­
pendência só é possível levando em consideração essas leis. É
por isso que as primeiras categorias do sistema serão, obrigato­
riamente, as categorias de matéria e de consciência.

1. A MATÉRIA

O conceito de matéria encontra-se em todos os sistemas


filosóficos, com as mais diversas acepções. Apesar da varie­
dade de definições da matéria, dada pelos diferentes filósofos,
os idealistas têm em comum tanto a negação da existência da
matéria, como a negação de sua objetividade.
Berkeley, por exemplo, representante do idealismo subje­
tivo, declara claramente que não há matéria, que nós nunca
a vimos e que, se rejeitarmos o conceito de matéria, seu desa­
parecimento passará desapercebido, porque não designa nada.
“Os senhores podem, escreveu ele dirigindo-se aos materialis­
tas, se fizerem muita questão, usar a palavra ‘matéria’, onde
outros empregam a palavra ‘nada’ A rejeição da matéria
não corresponde apenas ao sistema filosófico de Berkeley,
que reduz o mundo a um conjunto de sensações, mas decorre

‘V. Lenin, Oeuvres, t. 14, p. 24.

62
da maneira usada para defender o idealismo e a religião que
ele escolheu.
Outros representantes do idealismo subjetivo, embora não
cheguem a negar abertamente a existencia da matéria, reduzem-
na, contudo, ou a um conjunto de sensações (Mach) ou à
possibilidade permanente de sensações (Mili, Poincaré) ou,
ainda, a uma concepção racional da experiência original dos
homens (Merleau-Ponty) etc.
Diferentemente dos idealistas subjetivos, os representantes
do idealismo objetivo, considerando que a matéria existe fora
e independentemente da consciência humana e de suas sensa­
ções, colocam, em última análise, sua existência sob a depen­
dência da consciência, do espírito. Na obra de Hegel, por
exemplo, a matéria aparece em decorrência da atividade da
“idéia absoluta” que, a um certo estágio de seu desenvolvimento,
engendra a matéria (seu “ser outro”) e começa a existir sob
a forma de coisas materiais. No sistema filosófico de Leibniz,
a matéria ocupa uma posição similar: à base do mundo en­
contram-se as mónadas, espécie de átomos espirituais que, para
defender sua essência original, tomam a forma de matéria
inerte e grosseira e, por isso mesmo, isolam-se umas das outras.
Ê verdade que há idealistas que não colocam a existência
da matéria na dependência do espírito, considerando que ela
existe por si mesma. Mas, fazendo isso, eles conferem-lhe uma
forma de existência (de ser), que é equivalente ao não-ser, isto
é, ela representa não o ser real, mas apenas o ser possível. A
transformação do ser possível em ser real depende da consciência
(da “idéia”, de Deus). No sistema idealista do filósofo Platão,
por exemplo, a matéria ocupa exatamente esse lugar: ela existe
independentemente da consciência, do espírito, da idéia, mas sua
existência é apenas potencial; sob essa forma ela ainda é apenas
nada. E para que ela se torne realidade, uma idéia e uma
definição matemática devem ser-lhe acrescentadas, isto é, a
realidade da matéria é dada precisamente pelo espírito, pela
idéia.
Diferentemente dessas teorias idealistas conseqüentes da
matéria que acabamos de enumerar, e que não reconhecem sua
existência objetiva, os idealistas não conseqüentes, como Kant,
por exemplo, admitem a existência real, objetiva da matéria,
mas negam que ela possa ser conhecida, consideram-na como

63
“uma coisa em si”, transformando-a assim em uma “abstração
vazia, sem vida”.
Entre os materialistas existem igualmente as concepções
mais diversas da matéria. Mas todos concordam em reconhecer
a existência objetiva da matéria, uma existência independente
da consciência ou do espírito, sejam o que eles forem.
É sabido que os filósofos chineses, indus e babilónicos da
Antigüidade e os primeiros filósofos materialistas gregos con­
sideravam como matéria esse ou aquele corpo concreto sensível,
notadamente a substância mais expandida, que eles considera­
vam como o princípio primeiro de tudo o que existe. Para
Thales, por exemplo, o papel da matéria era desempenhado
pela água, para Anáximenes, pelo ar, e para Heráclito, pelo
fogo.
Tomando por matéria uma certa substância, esses filósofos
csforçavain-se para explicar, a partir dela, a diversidade das
coisas e dc fenômenos observados no mundo. Mas nenhum
desses filósofos conseguiu mostrar de maneira mais ou menos
convincente como toda essa diversidade aparecia a partir de
uma única substância concreta. Era difícil de acreditar que
a quantidade de coisas diversas são a água, o ar ou o fogo em
seus aspectos cambiantes; é por isso que, em decorrência, os
filósofos tomaram como matéria não mais uma substância, mas
várias. Empédocles, por exemplo, já apresenta quatro substân­
cias: a água, o ar, o fogo e a terra. Ulteriormente, essa quan­
tidade foi acrescentada ao infinito. Anaxágoras, por exemplo,
considera que há uma quantidade inumerável de “sementes de
coisas” (que desempenham o papel de matéria primitiva) como
princípio primeiro. Demócrito afirma a mesma coisa e apresenta
como matéria (princípio primeiro) a quantidade inumerável
dos átomos.
Os átomos e o conjunto de substâncias que eles formam
foram considerados como matéria até o fim do século XIX e
começo do XX. É precisamente essa a concepção da matéria
que tinham os materialistas ingleses e franceses, assim como
Feuerbach.
A identificação da matéria com a substância desempenhou
um papel importante no nascimento da crise da ciência da
natureza, na junção dos séculos XIX e XX, quando foram
descobertos o elétron e a radioatividade. Com a descoberta

64
do elétron, percebeu-se que o átomo não é absolutamente o
último elemento do universo, mas que ele próprio é constituido
por partículas menores — os elétrons. E ainda mais, ficou
estabelecido que a massa do elétron varia, não permanece
imutável como acreditava-se antes em relação à massa do átomo.
Viu-se, então, que essa massa aumenta ou diminui de acordo
com a aceleração ou o retardamento do movimento. No co­
meço, pensou-se mesmo que o elétron não possuísse absoluta­
mente massa própria, que toda a sua massa fosse de origem
eletromagnética. Dessa maneira, a matéria dava a impressão
de reduzir-se à eletricidade, logo, ao movimento. Foi nesse
mesmo espírito que foi interpretada a radioatividade. A fissão
do urânio (descoberto em 1894 por Becquerel) e depois, a
do radium, foram consideradas como a transformação da subs­
tância em energia pura. De tudo isso, os idealistas tiraram
imediatamente conclusões contrárias ao materialismo. Eles
começaram a afirmar que a matéria havia desaparecido, que
ela fora substituída pela energia, pelo movimento, e que o ma­
terialismo era refutado por todas as últimas descobertas das
ciências etc.
“A eletricidade, escreveu Lenin, torna-se um auxiliar do
idealismo, já que ela destrói a antiga teoria da estrutura da
matéria, decompõe o átomo e descobre novas formas de mo­
vimento material, tão diferentes das antigas, tão inexploradas,
pouco estudadas, pouco habituais e tão ‘maravilhosas’ que
torna possível a introdução fraudulenta de uma interpretação
da natureza considerada como movimento imaterial (ou seja,
espiritual, mental, psíquico). O que era ontem o limite de
nosso conhecimento das partículas infinitamente pequenas da
matéria desapareceu, logo, conclui o filósofo idealista, a matéria
desapareceu (mas o pensamento permanece). Todo físico e
todo engenheiro sabe que a eletricidade é um movimento (ma­
terial), mas ninguém sabe exatamente o que se move; assim,
conclui o filósofo idealista, podemos enganar as pessoas des­
providas de instrução filosófica, fazendo-lhes esta proposta de
sedutora ‘economia’: Imaginemos o movimento sem matéria”2.
Toma-se necessário generalizar as últimas descobertas
científicas, do ponto de vista do materialismo dialético, assim

2V. Lenin, op. cit., p. 295.

65
como defender o fundamento teórico do marxismo. E esse foi
o trabalho de Lenin. Em Matéricilisme et empiriocriticisme,
Lenin apresentou uma análise das últimas descobertas das
ciências e não apenas provou que elas não desmentiam o ma­
terialismo dialético, mas que, pelo contrário, elas confirmavam
a sua veracidade (sua exatidão). Ele mostrou que o materia­
lismo dialético não reduz e jamais reduziu a matéria aos átomos,
nem a alguns outros elementos imutáveis, a nenhuma essência
imutável, mas sim que o materialismo considera o mundo
infinito em sua diversidade.
O reconhecimento de elementos imutáveis e absolutos do
mundo caracteriza apenas o materialismo metafísico. É por
isso que a descoberta dos elétrons não desmente o materialismo
em geral e, a forliori, o materialismo dialético, mas apenas o
materialismo metafísico. “A física, escreve Lenin, desviou-se
para o idealismo principalmente porque os físicos ignoravam a
dialética. Eles combateram o materialismo metafísico. . . com
sua ‘mecanicidade’ unilateral e fizeram isso de maneira pouco
apropriada. Negando a imutabilidade das propriedades e dos
elementos da matéria até então conhecidos, eles esbarraram na
negação da matéria, isto é, da realidade objetiva do mundo
físico”3.
Religando o conceito da matéria ao da substância e ao
conjunto dos átomos, os filósofos e os físicos de tendência
metafísica consideravam os estados e as propriedades especí­
ficas da substância como propriedades gerais e necessárias da
matéria. E é por isso que a evidenciação, com a descoberta
do elétron e da radioatividade, da relatividade desses estados
foi percebida por eles como a da falência da teoria da matéria,
como a do desaparecimento da matéria. De fato, o que desa­
parecia não era a matéria, mas o limite de nossos conhecimentos
sobre a matéria. “A matéria desaparece, escreve Lenin, isso
quer dizer que desaparece o limite até o qual vai nosso conhe­
cimento da matéria, conhecimento que agora se aprofunda;
propriedades da matéria que antes nos pareciam absolutas,
imutáveis, primordiais (impenetrabilidade, inércia, massa etc.)
desaparecem, reconhecidas agora como relativas, inerentes
apenas a certos estados da matéria”4.

3Lenin, op. cit., p. 272.


■'Lenin, op. cit., p. 363.

66
Tudo isso, é óbvio, testemunha o caráter relativo de
nossos conhecimentos sobre a estrutura da matéria, mas, em
nenhum caso, anula a concepção marxista da matéria como
realidade objetiva, existente fora e independentemente da
consciência humana, que engloba todas as formações materiais:
as que já são conhecidas e as que ainda são desconhecidas pe'a
ciência.
Os pesquisadores que se ocupam do desaparecimento da
matéria a partir das descobertas da Física, das quais já falamos,
e os seguidores de Mach que falam do envelhecimento do
conceito de matéria, especulando sobre essas descobertas, ma-
nifestadamente confundiram a categoria da matéria com a teoria
sobre a estrutura da matéria.
Lenin, mostrando que é errado identificar a matéria com
suas formas ou aspectos concretos, prova que o materialismo
dialético reúne novamente o conceito de matéria à realidade
objetiva e ao mundo exterior, que existe independentemente
da consciência humana e que, segundo o materialismo dialético,
tudo o que é realidade objetiva, tudo o que tem relação com
o mundo exterior refere-se à matéria. É por isso que, para
resolver a questão de saber se o elétron ou qualquer outro
fenômeno recentemente descoberto relacionam-se à matéria, é
preciso estabelecer se se trata ou não de uma realidade objetiva.
A dependência de um fenômeno dado à realidade objetiva é a
prova de sua dependência à matéria.
Criticando os físicos e os filósofos que não negam a exis­
tência da matéria, mas estão inclinados a concluir a impossi­
bilidade de conhecê-la, visto o caráter relativo de nossos
conhecimentos, Lenin salientou que a matéria não é incognos-
cível não é uma “coisa em si”, como diziam os agnósticos, mas
que podemos conhecê-la, que ela é dada ao homem em suas
sensações, que ela é copiada, fotografada pelos sentidos. Esta
última tese, embora tenha sido reconhecida pelos materialistas
pré-marxistas, não foi apresentada como fator necessário para
desvendar o conteúdo do conceito de matéria e é por isso que
ela não figurava nas definições da matéria dadas pelos ma­
terialistas.
Generalizando as descobertas indicadas e desenvolvendo a
teoria marxista da matéria, Lenin deu uma definição clássica
da matéria: “A matéria é uma categoria filosófica que serve
para designar a realidade objetiva dada ao homem por meio

67
de suas sensações, que a copiam, a fotografam, a refletem e
que existe independentemente das sensações”5.
É conveniente considerar esta definição como clássica,
porque ela opõe a concepção marxista da matéria às concepções
exprimidas pelos representantes das diferentes correntes e esco­
las idealistas e metafísicas. Na realidade, a tese segundo a
qual a matéria representa uma realidade, distingue a concspção
marxista da matéria da concepção de Platão e da de Aristó­
teles, entre outras que consideravam que a matéria não possui
existência real, mas apenas uma existência possível, que ela
não representa um ser real, mas apenas um não-ser. O relevo
dado ao fato de que a matéria é uma realidade objetiva, exis­
tente fora e independentemente da consciência, distingue a idéia
marxista da matéria das concepções idealistas. Em seguida,
a tese segundo a qual a matéria não é uma realidade objetiva
concreta qualquer, mas uma realidade objetiva em geral, distin­
gue a concepção marxista da matéria, da concepção que tinham
sobre ela os materialistas da Grécia antiga que identifica­
vam a matéria com qualquer fenômeno qualitativamente de­
terminado (a água, o ar, o fogo), ou ainda com um grupo de
fenômenos (p. ex., a terra, a água, o ar e o fogo); esta tese
distingue-a ainda da tese que tinha o materialismo mecânico
pré-marxista que identificava a matéria com a substância.
Enfim, a idéia segundo a qual a matéria é uma realidade
objetiva, dada ao homem por suas sensações, diferencia a
concepção marxista da matéria da concepção que têm sobre
isso alguns agnósticos e, em particular, Kant, que reconhecia
a existência da matéria, mas considerava que ela é inacessível
aos nossos órgãos sensitivos, que é uma “coisa em si” incognos-
cível.
Não é difícil perceber que a definição leninista da matéria
é dirigida contra os idealistas, os metafísicos e os agnósticos, e
ainda que ela visa exprimir o que distingue fundamentalmente
a concepção materialista dialética desta questão em relação à
concepção que têm sobre ela os representantes das outras ten­
dências filosóficas.
Entre unto, alguns autores não levam isso em conta e,
interpretando livremente a definição leninista da matéria, des­
virtuam seu significado. Segundo eles, “o relevo dado ao fato

6V. Lenin, op. cit., p. 169

68
de que a única propriedade da matéria é a propriedade de ser
uma realidade objetiva, que nos é dada em nossas sensações,
ocupou o primeiro plano na obra de Lenin, Materialisme et em-
piriocriticisme, em razão da luta contra um adversário concreto
— o idealismo subjetivo”. “A limitação da definição da ma­
téria por essa tese, declaram eles, desarma-nos na luta contra
um outro adversário e, em particular, contra as diferentes formas
do idealismo objetivo”. É por isso que eles consideram a
definição mencionada acima insuficiente6.
Em nossa opinião, esses raciocínios são falsos. Eles
partem do fato de que, ao lado da consciência humana, existe
ainda uma consciência não humana, uma consciência em geral.
E, por isso, indicar que a matéria representa uma realidade
objetiva, existente fora e independentemente da consciência
humana, não nos separa, segundo eles, do idealismo objetivo
que pode igualmente considerar a matéria como uma realidade
objetiva existente fora e independentemente da nossa consciên­
cia, mas que se encontra em uma certa dependência da consciên­
cia não humana, da consciência em geral (da idéia absoluta,
da razão suprema, da vontade universal, de Deus etc.).
Mas não há outras consciências além da consciência hu­
mana. A consciência universal apresentada pelos idealistas
objetivos representa a mesma consciência humana, mas sepa­
rada do homem e erigida em absoluta.
Uma outra tendência errônea, em nossa opinião, nasceu
da tentativa de certos autores considerar como matéria não o
mundo objetivo sensível exterior existente independentemente
da consciência humana, não a realidade objetiva, mas certas
propriedades desse mundo, dessa realidade, como, por exemplo,
o espaço, o tempo, o movimento. Este último ponto de vista
é compartilhado por Hanz Klotz, Günther Hõpfner e outros.
“A energia, por exemplo, escreve Klotz, é, no sentido
filosófico, a matéria”?. “A matéria, declara Jantsch, é tudo
o que existe fora da consciência, e deste tudo fazem parte
também todas as relações, propriedades, aspectos e mudanças
(energia), assim como a substância, o campo etc.”. “Seria

eCf. M ysl Filozoficzna, (16) 1955, 2.


7H. Klotz, “Ist die Energie Materie? Bemerkungen zu einem alten
Problem’ in Deutsche Zeitschrift für Philosophie, 1959, v. 2, p. 307.

69
possível, no mais alto grau, podemos ler em Hõpfner, dizer
sobre o sujeito do material que, em relação à consciência, ele
é a matéria”8. “O espaço e o tempo, nos quais se movem
as formas e os fenômenos quantitativa e qualitativamente di­
versificados da matéria, representam a matéria”9.
Esses autores justificam seu ponto de vista, mediante o
seguinte raciocínio: a matéria representa uma realidade objetiva.
Todas as propriedades da matéria, com exceção da consciência,
existem objetivamente, isto é, em relação à consciência elas
representam a matéria.
A tese segundo a qual a existência objetiva, independente
da consciência humana, e suficiente para definir a matéria é
correta. Mas os autores em questão utilizam-na em um plano
em que ela não é aplicável, e disso eles tiram falsas conclusões.
De fato, o marxismo concebe por matéria, enquanto reali­
dade objetiva existente independentemente da consciência e re­
fletindo-se nela, o mundo exterior, a realidade objetiva, na qua­
lidade do todo, como o conjunto de todas as formas do ser
objetivo, com todas suas propriedades características, com todas
as relações que lhe são próprias. O objeto a partir do qual
é abstraído o conceito de matéria é toda a realidade objetiva,
todo o mundo exterior, toda a realidade que rodeia o homem,
isto é, o mundo em sua totalidade. Mas, a tese aplicada ao
objeto considerado como um todo, não é, em regra geral, apli­
cável aos diferentes aspectos, propriedades e relações desse
objeto. Por exemplo, o conceito de “átomo” só pode ser-lhe
aplicado como a um todo, mas ele é inaplicável às propriedades
particulares, às partes e às relações que constituem o átomo.
Não podemos, por exemplo, chamar de átomo o peso que
caracteriza um átomo dado, os elétrons que entram em seu
invólucro, o núcleo, a carga do núcleo e tc .. . Todos esses
momentos do átomo têm sua própria designação e outros
conceitos correspondentes, elaborados especialmente para eles.
Sua ligação com o átomo, sua dependência do átomo exprimem-
se pelo conceito “atômico”, que é utilizado em sua característica.
Usamos freqüentemente expressões como “peso atômico”

8G. Hopfner, Uber den Materiebepriff des dialektischen Materia­


lismus, in Deutsche Zeitschrift für Philosophie, 1958, v. 3, p. 455.
9G. H- pfner, op. cit., p. 457.

70
“núcleo atômico”, “carga atômica”, “involucro eletrônico do
átomo” etc.
E o mesmo acontece com a categoria de “matéria”. Ela
é aplicável à realidade objetiva enquanto tudo, mas ela é ina­
plicável às suas diversas propriedades e relações. Todas essas
propriedades e todas essas relações, pelo fato de que são pro­
priedades e relações da realidade objetiva, refletem-se no con­
ceito de matéria, mas não o constituem. Nós as chamamos de
materiais, e isso é amplamente suficiente para salientar sua
existência objetiva independente da consciência humana.
Esforçando-se para demonstrar, por todos os meios, que
o movimento, o espaço, o tempo e outras propriedades da
matéria constituem a matéria, certos autores chegam a afirmar
a existência de duas matérias. E são, então, obrigados a dis­
tinguir, por um lado, a matéria concebida no plano da questão
fundamental da Filosofia e, por outro lado, a matéria que não
está ligada a essa questão. A primeira é, para eles, toda
propriedade objetiva e real da matéria — o espaço, o tempo,
a energia etc.; a segunda distingue-se dessas propriedades.
“Fora da ligação com a questão fundamental (na qual a ma­
téria é tudo o que possui a propriedade de existência objetiva
real — A. Ch.), quando do estudo da estrutura da realidade
objetiva, escreve Hans Klotz, a matéria não é idêntica às suas
propriedades, o que é óbvio”io.
O resultado disso, no plano da questão fundamental da
Filosofia, é que devemos utilizar um conceito dado da matéria
nesse plano e, fora dele, um outro conceito. Uma tal afirma­
ção não pode ser reconhecida como justa, porque ela vai de
encontro ao princípio da unidade da gnoseologia e da ontologia
no materialismo dialético, e, ainda mais, ela contradiz as regras
elementares da lógica formal e, em particular, a lei de identidade
que exige uma definição unívoca e uma determinação dos
conceitos.
Alguns autores, que estão de acordo com o pensamento de
que não podemos identificar as diferentes propriedades da ma­
téria à matéria enquanto todo, opõem-se a que, na definição
da matéria, seja indicada sua diferença com relação às suas
propriedades. Eles consideram que dessa maneira é possível

10H. Klotz, op. cit., p. 308.

71
confundir a questão de saber, que representa a matéria, com
a questão de sua estrutura e de seus modos de existência.
A definição do que representa a matéria, segundo eles, supõe
unicamente a indicação relativa à sua existência, fora da cons­
ciência11.
A referência ao fato de que a matéria existe fora da
consciência do homem mostra incontestavelmente o que repre­
senta a matéria, mas apenas o que ela representa com relação
à consciência. Mas sua relação com a consciência só pode
existir quando a consciência existe e esta não é eterna, ela
aparece somente em condições muito precisas e existe apenas
enquanto são reunidas essas condições favoráveis. A matéria,
por sua vez, existe eternamente. Ela existe antes do apareci­
mento da consciência, existe em sua presença e existirá depois
de seu desaparecimento, se isto acontecer.
É por isso que, quando definimos a matéria, não temos o
direito de limitar-nos ao estabelecimento de sua relação com a
consciência. Indicando sua relação com a consciência, devemos
igualmente salientar os traços que a caracterizam enquanto tal,
fora da consciência. A diferenciação da matéria dessa ou
daquela de suas propriedades é precisamente a característica
que permite o esclarecimento do que representa a matéria, fora
da consciência, nela mesma.
As discussões relativas ao fato de que a referência a esta
característica leva a uma confusão entre a definição da matéria
com a definição dos modos de sua existência, ou de sua estru­
tura, são artificiais. Dando relevo à diferença entre a matéria
e suas propriedades, chegamos não ao conceito de estrutura,
nem ao conceito de modo ou de forma de existência da ma­
téria, mas ao conceito de matéria, ao que ela representa.
Aqui é igualmente conveniente notar que, a divisão das
características da matéria em três grupos (características da
matéria, características dos modos de sua existência, caracterís­
ticas de sua estrutura), é absolutamente relativa. O que ca­
racteriza os modos da existência e da estrutura da matéria
caracteriza, igualmente, de uma maneira ou de outra, a própria
matéria. E, exatamente por isso, não seria natural colocar

“ Cf. R. Rochhausen, Gegen eine Erweiterung oder Einengung des


Leninisclien Materiebegriffts, in Deutsche Zeitschrift für Philosophie,
1959, v. 2, p. 298.

72
obstáculos a que, na definição do conceito de matéria, recorra-se
a certas características gerais concernentes às estruturas ou aos
modos de existência da matéria. E, ainda mais, se levarmos
em conta, nesse plano, a principal propriedade da matéria (ser
uma realidade objetiva, existir fora e independentemente da
consciência humana), que os autores desse ponto de vista con­
sideram como sua única propriedade, opondo-a a todas as
outras propriedades, que eles relacionam com os modos de
existência ou de estrutura da matéria, não é difícil notar que
ela não é nada mais do que um modo de existência da matéria.
Isso testemunha mais uma vez o caráter artificial da divisão
das propriedades da matéria em seus modos de existência e em
sua estrutura, que a caracterizam.
Se falamos das propriedades da realidade objetiva que
temos o direito de utilizar para descobrir o conteúdo do conceito
da matéria, e daquelas que não podemos utilizar, então será
necessário, antes de tudo, dividir todas as propriedades da
matéria em universais e particulares. As propriedades univer­
sais entram no conteúdo do conceito de matéria, queiramos ou
não. No que concerne às propriedades particulares, caracte­
rísticas de um aspecto dado ou de uma forma concreta da
existência da matéria ou de seus diferentes estados, elas não
entram necessariamente no conteúdo do conceito de matéria e
é por isso que elas não devem ser utilizadas em sua definição.

2. MATÉRIA
E FORMAÇÃO MATERIAL.
ASPECTOS DA MATÉRIA
Esse primeiro paragrafo Sendo uma realidade objetiva, a matéria existe não sob
resume aquilo que
estudamos na semana
o aspecto de uma massa homogênea, mas representa um todo
passada desmembrado, do qual todas as partes, encontrando-se em
correlação universal, estão em um certo isolamento e, em
Então a materia existe decorrência disso, manifestam-se como formações materiais
independente de termos autônomas. Às formações materiais estão ligados conceitos
consciência dela o de como o “corpo”, a “coisa”, o “fenômeno” (no sentido de coisa).
parte dela. Cada formação material representa, assim, uma parte da
A materia possui
caracteristicas proprias matéria, um de seus elos. Juntas, elas constituem a matéria.
espaciais e temporais, Sendo os elos de uma mesma matéria, as diferentes for­
está em constante mações materiais (coisas, corpos, fenômenos) peasuem toda
movimento, tem sua
essencia e sua contradição. 73
A movimentação da materia á modifica e ela se apresenta de varias formas .
uma série de propriedades comuns que entram no conteúdo
do conceito de matéria e é preciso notar que elas existem obje­
tivamente, fora e independentemente da consciência humana,
possuem características espaciais e temporais ,estão em movi­
mento, têm seus próprios aspectos e ligações necessárias c
contingentes, singulares e gerais, possíveis e reais, incluem a
causalidade, a contradição e possuem todas um conteúdo e uma
forma, uma essência e um fenômeno etc.
Mas, ao lado das propriedades e ligações universais pró­
prias de cada formação material particular, o conceito de
matéria inclui em si propriedades e ligações, que são caracterís­
ticas não de cada formação material particular, mas apenas de
todo seu conjunto, isto é, do mundo em sua totalidade. Esses
traços são, por exemplo, a eternidade da existência, a infinidade
espacial.
Cada formação material particular não é eterna. Sua
existência tem um começo e um fim. Ela aparece, existe um
certo tempo e depois desaparece, transforma-se em uma outra
formação material. Nenhuma formação material é ilimitada,
mas, pelo contrário, ocupa um lugar determinado e limitado
no espaço. É apenas o mundo em sua totalidade que é eterno
e infinito.
A decorrência disso é que o conceito de matéria, no sentido
estrito do termo, é inaplicável às formações materiais parti­
culares (corpos, coisas, fenômenos). Seu objeto é apenas o
mundo em seu todo, o conjunto das formações materiais. (O
ponto de vista segundo o qual o conceito de matéria é aplicável
a cada formação material, corpo, fenômeno e coisas é, entre­
tanto, amplamente difundido.).
Isso decorre necessariamente das leis da correlação do
todo e da parte. De fato, cada formação material particular
6 uma parte da matéria. Mas nem tudo o que é próprio ao
todo é próprio a cada uma de suas partes. Por isso, o conceito
de todo não pode ser idêntico ao conceito de uma parte dada
desse todo.
A materia se apresenta diante de nós com As formações materiais por meio das quais, a cada mo­
determinadas formas que variam de acordo mento dado, existe e manifesta-se a matéria estão organica­
com o grau de conhecimento adquirido pelo mente ligadas entre elas e formam toda uma “série de grandes
homem no entanto isso é apenas a grupos bem delimitados”12, que representam certos pontos
percepção e o entendimento do homem
diante da matéria. A matéria independe do
homem ou dos graus de desenvolvimento ,2F. Engels, La dialectique de la mtiire, p. 276.
do conhecimento do homem, que pssam ou não
74
permitir-lhe manipular algumas formas materiais.
centrais, graus do movimento da matéria do inferior ao superior
e constituem formas particulares desta.
Logo, o aspecto da matéria é apenas o conjunto das for­
mações materiais representando, cada uma delas, um certo grau
de seu desenvolvimento.
A questão dos aspectos da matéria continua sendo até
agora uma questão controvertida. Alguns opõem-se à divisão
da matéria em diferentes aspectos; outros consideram que esta
divisão é necessária e discutem entre si sobre o número de
seus aspectos e sobre as formas de existência da matéria que
devem ser considerados como seus aspectos. A divisão da
matéria em dois aspectos — substância e campo — é bastante
difundida. Entretanto, esse ponto de vista não nos parece
fundamentado. Não se pode reduzir a matéria somente à
substância, mas igualmente a dois aspectos como a substân­
cia e o campo. Primeiramente, isso decorre da descoberta
do fato de que toda uma série de partículas que relacio­
namos anteriormente à substância (como p. ex., os mésons,
os elétrons, os pósitrons) relacionam-se igualmente com o
domínio do campo, já que elas formam os campos correspon­
dentes, e as partículas que relacionamos anteriormente, unica­
mente com o campo (como, p. ex., os fótons e os gravitons),
entram na composição da substância. Logo, nào há uma
diferenciação rigorosa entre a substância e o campo. Há toda
uma série de formações materiais que inclui nelas uma e
outra, isto é, elas relacionam-se simultaneamente com a subs­
tância e o campo. Em segundo lugar, a própria substância não
pode desempenhar o papel de um aspecto da matéria, porque
ela integra nela formações materiais que representam graus os
mais diversos do desenvolvimento da matéria. A divisão da
matéria em dois grandes aspectos — a substância e o campo
— é muito rudimentar e inexata. O ponto de vista de que
existem não dois, mas uma grande quantidade de aspectos da
matéria, parece-nos mais correto.
Visto que o aspecto da matéria representa o conjunto de
formações materiais que constituem um nó qualitativo deter­
minado da matéria, correspondente a um grau preciso de sua
evolução, as particularidades características da formação ma­
terial enquanto forma particular da existência da matéria são
igualmente próprias ao aspecto da matéria. O aspecto da ma-

75
téria representa uma realidade independente e possui a facul­
dade de transformar-se em outros aspectos da matéria.

3. DA SUBSTANCIALIDADE
DA MATÉRIA
SE desen volvermos a questão de distinguirmos a
materia de suas formações materiais que são as Se o problema da distinção da matéria, das formações
diversas formas que a materia pode se apresentar materiais (corpos, coisas, fenômenos) e das propriedades for
corpos, coisas, fenomenos, e tambem especificarmos desenvolvido, conduzirá à necessidade de considerar a matéria
as propriedades da materia será preciso considerar a como substância. Na qualidade de substância a matéria opõe-se
materia como substancia.
não à consciência, mas às suas manifestações, entre as quais
Enquanto substancia a materia é a base de tudo. figura também a consciência. Enquanto substância, a matéria
todos os fenomenos do mundo sao diferentes é a base do todo sendo. Todos os fenômenos observados no
manifestações de materia, diferentes formas e estados mundo não representam nada mais do que as diferentes mani­
que por sua vez apresentam diferentes propriedades.
O cérebro e a consciencia também são materia e
festações de uma natureza material única, as diferentes formas
tambem são compostos da mesma substancia. A de sua existência, seus diferentes estados e propriedades. Nesse
consciencia desempenha uma função, ela se apresenta plano, a consciência sendo uma função, uma propriedade de
como produto do cérebro sem deixar de ser a mesma uma das formas da matéria — o cérebro — não se opõe às
sustancia porem com outra forma de apresentação. outras propriedades, mas constitui com elas uma mesma série.
Como as outras propriedades da matéria, ela possui sua causa
a consciência assim como outras propriedades da final, fonte de sua existência na matéria, seja qual for a forma
materia possui uma causa final e é aqui que aparece
a oposição de materia e consciencia que LENIN fala de organização desta última ou seu estado etc. É aqui que
em sua obra Materialismo e empiriocriticismo, cjua aparece de maneira particularmente clara a relatividade da
primeira impressão é de 1909) oposição da matéria e da consciência da qual falou Lenin em
Mateiialisme e empiriocritícisme13.
4º )Se a materia a materia é substancia e se apresenta Analisando a matéria como uma substância manifestando-
atraves de muitas formações materiais ou por meio se por meio da multiplicidade das formações materiais, dos
de fenomenos cada qual com suas propriedades: fenômenos e das propriedades que existem no mundo, é preciso
"é preciso acreditar que esta substancia representa acreditar que esta substância representa alguma coisa de
alguma coisa de Imutável e Absoluto.
Porem
imutável e de absoluto. O reconhecimento de uma substância
o reconhecimento de uma substancia absoluta e absoluta e imutável caracteriza unicamente o materialismo
imutável caracteriza apenas o MAterialismo MEtafísico. metafísico. O materialismo dialético não reconhece, por sua
vez, nenhuma substância absoluta. A substancialidade da ma­
O MAterialismo DIalético NÃO reconhece nebhuma téria, do ponto de vista do materialismo dialético, consiste no
substância absoluta. fato de que, modificando-se continuamente e passando de um
A materia enquanto substancia, para o
estado qualitativo a outro, ela permanece sempre a mesma.
MAterialismo DIalético modifica-se constantemente Isso traduz-se, primeiramente, pelo fato de que ela conserva
passando de um estado para outro e ao mesmo tempo sua quantidade, e, em segundo lugar, ela não perde nenhum
permanece sempre como a mesma substancia marerial
original
13V. Lenin, op. cit., p. 152-255,

76
A materia para o MAterialismo DIAletico
pode modificar-se e ao mesmo tempo
continuar a ser ela mesma porque
uma de suas caracteristicas e a
conservação da quantidade.

no inicio da pagina 77
Cheptulin corrobora com Hegel dizendo que
Se alguma propriedade desaparece em um
certo ponto de uma formação material ela ira
REAPARECER necessariamente em outro lugar,
de seus atributos ou de suas propriedades. Se essa ou aquela
em outras formações materiais. Se não propriedade desaparece em um certo ponto em certas forma­
reaparecesse a materia negando a categoria ções materiais, ela reaparecerá necessariamente em outro lugar,
essência. em outras formações materiais**. Em terceiro lusar, ca:’a
formação material (fenômeno) contém em potencialidade (em
As formações materiais contem em potencialidade sua natureza), todas as propriedades da matéria, todos os seus
todas as propriedades e atributos da materia, atributos, pelo fato de que ela pode, em condições correspon­
pelo fato de que em certas condições uma
dentes, transformar-se em uma outra formação material (fenô­
formação material pode se transformar em outra..
meno). Por exemplo, segundo dados da ciência moderna,
A sustentabilidade da materia está na conservação cada elemento químico, em certas condições, pode transformar-
de seus atributos e propriedades mesmo quando se em um outro elemento químico, cada partícula “elementar”
transmuta sua forma de apresentação. em uma outra partícula “elementar”, uma substância em campo,
um campo em substância etc.
E é importante dizer que não há como dizer
quem foi o primeiro entre a materia e suas
Se a substancialidade da matéria consiste no fato de que
propriedades já que a materia fora de suas
ela jamais perde seus atributos e suas propriedades e de que
propriedades e relações nunca existiu. cada uma de suas formações (fenômeno) encerra nela mesma
potencialmente essas mesmas propriedades é, então, absoluta­
Nesse sentido a unica coisa importante é mente evidente que não podemos dizer quem, entre a matéria
entender quais formações materias (substância) e as suas propriedades, é o primeiro, já que a
quais estados qualitativos,
matéria fora de suas propriedades e relações e antes delas
quais as propriedades e
quais as correlações de passagens recíprocas nunca existiu. Ela existe apenas mediante as formações mate­
são determinantes em relação às outras formações riais particulares, passando uma pela outra e qualitativamente
materiais , aos outros estados qualitativos, são determinadas e possuem propriedade universais e particula­
propriedades e relações. res. A única questão que podemos levantar aqui é a de saber
quais são as formações materiais, os estados qualitativos, as
propriedades e as relações que, na cadeia geral das correlações
e das passagens recíprocas, são as primeiras ou determinantes
em relação às outras (formações materiais, estados qualitativos,
propriedades, relações). O que é primeiro ou secundário
concerne, assim, não às relações da matéria com suas proprie­
Quando estudados a categoria quantidade que
vimos a interdependencia das categorias de
dades e correlações, mas às relações existentes entre as dife­
qualidade/quantidade rentes formas materiais (formações), as diferentes propriedades,
(quem quiser retormar pode ir na as diferentes ligações, os estados qualitativos.14
pag 25 no p1º paragrafo )

14F. Engels escreveu sobre isso que: “A matéria permanece eter­


namente a m esm a... nenhum de seus atributos pode jamais perder-se
e . . . em consequência disso, se ela tiver um dia de exterminar, com umi
necessidade imperiosa, sua floração suprema, o espírito pensante, é
preciso com a mesma necessidade que em outra parte qualquer e em
outra hora ela o reproduza” op. cit., p. 46.

77
4. O REFLEXO

A consciencia é UMA DAS Segundo o materialismo dialético, a consciência não é uma


formas do reflexo, própria de todas as coisas propriedade universal da matéria, ela é própria apenas a certas
do mundo exterior. É a consequencia do
formas altamente organizadas de sua existência e aparece
desenvolvimento progressivo, só aparece
em um certo estagio do desenvolvimento somente em um certo estágio de seu desenvolvimento. Entre­
tanto, a consciência representa não uma manifestação contin­ contingente=
gente da matéria, mas o resultado necessário de seu desenvol­ pode ou não ocorrer;
incerto, duvidoso,
vimento progressivo, a forma superior da faculdade que lhe acidental, casual.
é eternamente própria — o reflexo. A consciência é uma das
formas do reflexo própria a toda a matéria, a todas as coisas e
fenômenos do mundo exterior1^.
O reflexo representa a faculdade de uma formação material
reagir de uma maneira determinada, sob a influência de uma
outra formação material, e, através das modificações correspon­
dentes de certas propriedades ou estados, a faculdade de repre­
sentar ou de reproduzir as particularidades desta outra formação
material.
Partindo do fato de que, sobre cada formação material
existente na realidade objetiva, age não apenas uma formação
material qualquer, mas uma quantidade infinita de formações
materiais, que lhe estão ligadas de uma maneira ou de outra,
ela aqui é a formação material ela reproduz em si, em suas particularidades, em suas proprie­
dades e suas modificações, as particularidades de todas as
formações materiais que agem sobre ela1516.
Refletindo em suas modificações os objetos agentes, a
formação material não é passiva, mas ativa; ela própria age
sobre as formações materiais que lhe estão ligadas, provocando
nelas modificações que reproduzem suas próprias particulari­
dades sob essa ou aquela forma condicionada pela natureza da
formação material correspondente dada.

15“A presença do reflexo como propriedade universal da matéria,


escreve sobre isso o psicólogo soviético S. Rubinstein, significa que a
"eles" os fenomenos psíquicos sensação e os fenômenos psíquicos têm sua base e suas premissas no
mundo material. Eles não são absolutamente estranhos em relação a
Segundo Rubistain O reflexo sendo uma tudo o que existe; eles não devem ser, por essa mesma razão, introduzidos
propriedade universal da materia, do exterior; no próprio fundamento do mundo material, existem as
eles os fenomenos psiquicos, premissas para seu desenvolvimento natural; eles representam uma
tem sua base e suas premisas no mundo forma específica superior da manifestação das propriedades, que toda
material - não são estranhos a tudo que existe natureza possui sob formas elementares qualitativamente diferentes” (S.
no proprio findamento do mundo material L. Rubinstein, Ser e consciência, Moscou, 1957, p. 12. Original em russo).
existem as premisas para o leCf. S. L. Rubinstein, op. cit., p. 11.
seu desenvolvimento ntural.
78são propriedades da materia.
E eles não devem ser introduzidos do exterior pois
O reflexo está ligado tanto a
ação de uma formação material
sobre a outra como também está
ligado a interação entre as
formações materiais
portanta o reflexo esta ligado
a ação e a reação de uma
formação material em relação a
Ela aqui se refere a Formação material
outra formação material.
Pelo fato de que todas as modificações surgidas
nas formações materiais são resultado de uma
interação ou seja, uma ação bilateral, Assim, o reflexo está ligado não apenas à ação de uma
ocorre modificações tanto no determinante formação material sobre a outra, mas também à sua interação,
como no determindado.
em decorrência da qual cada formação material particular é,
E essas modificações acontencem em ao mesmo tempo, refletora e refletida. Ela reproduz sob uma
decorrencia das forças de ação e de reação. forma específica as particularidades dos objetos e dos fenô­
_____
E ainda o reagente pode ser agente e o agente menos que agem sobre ela e reproduz-se ela própria nas par­
também pode ser reagente. ticularidades correspondentes desses objetos e desses fenômenos.
______ Pelo fato de que todas as modificações surgidas na forma­
Os corpos que agem são os refletidos ção material, sob a ação de outras formações materiais, são
e os corpos que recebem a ação são os resultado de uma ação não unilateral, mas bilateral, isto é, de
refletores. uma interação, as particularidades não somente dos corpos que
(aqui eu tinha entendido ao contrario disso)
agem (os refletidos), mas igualmente dos corpos sobre os quais esse "ela" é referente a
essas ações são conduzidas, isto é, os refletores, são represen­ formação material "A"
Aqui na 2ª frase do parágrafo 2, diz:
não é todo o conteudo das modificações
tadas nessas modificações. É por isso que não é todo o con­
surgidas nas formações materiais em teúdo das modificações, surgidas na formação material em
decorrencia de ações de outras formações decorrência da ação de outras formações materiais sobre ela,
Isomorfo para a psicologia :
que serão consideradas reflexo, somente que representa o reflexo destas últimas, mas somente o que é "iso" é igual
as que estiverem ligadas pela determinação isomorfo a esse ou àquele aspecto dos objetos que agem. É e "morfismo" é campo.
de uma sobre a outra verdade que esses aspectos são organicamente construídos com O isomorfismo psiconeural é
a igualdade entre
outros aspectos de modificações que não são representantes das o psíquico (ou consciência) ou
modificações materiais agentes e não podem ser inteiramente produto
separados destes últimos a não ser pela abstração. e o processo neural. ou produtor.
Porém o
Tioukine: As modificações ou ou marcas no Essa idéia é expressa com precisão pelo filósofo soviético processo psíquico é menor
objeto refletido (que é o agente) representa V. Tioukhtine: “As modificações ou as marcas no objeto re­ que o processo neural.
um produto total, integral, como resultado fletido representam um produto total, integral, como resultado
da interação dos objetos. As caracteristicas da interação dos objetos. Em outros termos, as características
dos objetos agentes são adcionadas, dos objetos agentes são adicionadas segundo a lei de sua inte­
ração, embora nas modificações do corpo refletor sejam cifradas
ou codificadas as propriedades do agente, do refletor. O que
aqui eu entendi assim : se segue é que essas modificações não podem ser ainda captadas
embora nas modificações do corpo refletor pelo reflexo em seu sentido exato. O reflexo propriamente dito
(da formação material do refletor-que é realiza-se quando o que caracteriza a fonte do reflexo é desli­
quem sofre a ação de modificação) estejam gado da marca, do produto total da ação e o que pertence ao
suporte do reflexo é “anulado”, “eliminado”!?.
codificadas ou cifradas as propriedades do
agente elas não podem ainda ser captadas A partir disso, certos autores negam compl .^ámente a
pelo reflexo. possibilidade do reflexo dos objetos agentes nas modificações
sobrevindas da formação material em decorrência de sua inte-

,7V. S. Tioukhtine, Sobre a natureza da imagem, Moscou, 1963,


O reflexo só se realiza quando ... p. 112. Original em russo.
não entendi direito esse desligamento
E anulação ??? 79
alguns autores... esse ultimo paragrafo
ler
completo na pagina seguinte
Para alguns autores o reflexo estaria ligado a
modificações que aparecem por
determinação unilateral
MAS Cheptulin salienta que não há
movimento unilateral pois a natureza de tudo
que existe é o movimento.
Nesse sentido então se ocorre uma ação ela
irá provocar( determinar) uma reação
e essa reação também é um movimento.

As formações marteriais se expresam


umas nas outras sendo ao mesmo tempo
agentes e reagentes.
ração com eles. O reflexo, segundo eles, só pode estar ligado
Alguns autores colocam que são as INTERAÇÕES a modificações que aparecem em decorrência de ações orien­
que são as irão representar o reflexo e não ações tadas unilateralmente do refletido sobre o refletor.
unilaterais. Pois aceitar a unilateralidade Esse ponto de vista, em nossa opinião, é errôneo. Na
de um movimento seria negar os realidade objetiva, não há ações puras, orientadas unilateral­
conceitos já vistos. mente. Cada ação está necessariamente ligada a uma reação.
Porém eles acreditavam que o reflexo não era
nada alem de ficção, que o reflexo não existia.
Cada formação material representa um sistema de movimento
relativamente estável, é ativa por sua natureza e, por isso, ela
é não apenas um objeto submetido à ação de outras formações
Aqui no 3º parágrafo e no inicinho do 4º, materiais que lhe estão ligadas, mas é igualmente ela própria
Cheptulin traz a citação de
Leni na qual se apoiam os que pensam que são
um agente sobre estas últimas.
apenas as interações de representam o reflexo, Assim, não é uma ação orientada unilateralmente, mas a
e complementa : interação que é a ligação geral, universal das coisas e das for­
mações materiais. E se a interação exclui o reflexo, isso
LENIN escreveu que o reflexo é significa que este não pode existir na realidade objetiva, isto é,
segundo em relação ao refletido, que o reflexo é uma ficção.
que ele não pode existir sem o refletido,
enquanto o refletido existe independentemente
Os defensores desse ponto de vista referem-se habitual­
do refletoris. mente a Lenin, que escreveu que o reflexo é segundo em
relação ao refletido, que ele não pode existir sem o refletido,
e CHEPTULIN complementa: a interação exclui enquanto o refletido existe independentemente do refletoris.
todo o "primeiro ABSOLUTO" (da Visto isso, temos de raciocinar da seguinte maneira: a interação
formaç.material)
e
exclui todo primeiro absoluto e todo segundo absoluto, pelo
todo o "segundo ABSOLUTO " pelo fato de fato de que ela é um processo bilateral. O reflexo é segundo
que a interação é um processo bilateral. em relação ao refletido, o que significa que no ponto onde há
_____Contudo o reflexo SER segundo em interação, não pode haver reflexo.
relação Contudo, do fato de que o reflexo é segundo em relação
ao refletido (agente) não exclui o reflexo da
interação. ao refletido, e de que o refletido existe independentemente do
refletor, não decorre que a interação exclui o reflexo. Como "nela" aqui se refere
já o dissemos, na interação, cada uma das formações materiais a formação material.
age sobre a outra e provoca nela as modificações correspon­
ler desde como ate modifica
dentes, nas quais são refletidas suas particularidades e as
particularidades da formação material que se modifica. É por
isso que cada uma delas é, ao mesmo tempo, o refletor e o
"ela e nela" se refere a uma refletido, nela é representada uma outra formação material e
formação material¹ ela própria é representada nessa outra. Quando ela desem­ ler essa
& penha o papel de refletor, os elementos do conteúdo de suas
"outra e outra" se refere a
modificações, que reproduzem, sob uma outra forma, as parti­
frase
uma formação material modificada completa
a partir da formação material¹ cularidades da formação material agindo sobre ela, serão
na
próxima
18V. Lenin, op. cit., p. 68-9. pagina
80
Quando ela desempenha o
papel de refletor, os
elementos do conteúdo
O refletido (agente)
de suas modificações, que é independente do refletor
reproduzem, sob uma outra que é a formação material
forma, as particularidades da
formação material agindo
que recebe a ação)
sobre ela, serão segundos com relação ao refletido, pelo fato de que eles
dependem dele, e o representam no refletor. O refletido, nesse
caso, aparece como independente do refletor.
Poderemos sofrer a seguinte objeção: pelo fato de que o
refletido= refletor age sobre o refletido e modifica suas particularidades,
formação não se pode dizer que o refletido existe independentemente
material que do refletor. Esta observação teria um sentido se, na qualidade
de reflexo, nós considerássemos todo o conteúdo das modifi­
age(agente) cações do refletor surgidas em decorrência de sua interação
determinante com o refletido, porque é somente nesse caso que o objeto
refletido será representado no refletor sob a forma que ele tomou refletor=
Reflexo é para cheptulin depois da ação do refletor sobre ele. Por reflexo, nós enten­ formação
não todo conteúdo das demos não todo o conteúdo das modificações do refletor, mas
apenas a parle que representa o refletido, assim como ele é material que
modificações do refletor(formação
material que sofre a ação) mas sim em si mesmo, isto é, independentemente do refletor. É prati­ sofre a ação
a parte que representa o refletido camente possível separar esta parte do conteúdo das modifi­
(o agente) cações, do outro, que depende de sua ação sobre o refletido
e por isso mesmo e reproduzir as particularidades do refletido,
no refletor. Por isso, é preciso colocar em evidência as leis
na última frase do 1º parágrafo da interação do refletido e do refletor e, apoiando-se nelas,
Por isso a necessidade de estabelecer os desvios provocados pela ação de retorno do
evidenciar as leis de interação refletor sobre o refletido.
do refletido (agente) e do O que é característico para uma formação material em
refletor (que sofre a ação)para interação também o é para uma outra. É por isso que não há
poder estabelecer os DESVIOS aqui absolutamente um primeiro lugar, nem um segundo. Mas
provocados pela ação de RETORNO tudo isso só terá lugar quando os considerarmos como elementos
do refletor(sofre açao) sobre o iguais da interação e não sobre o plano do reflexo das parti­
refletido(agente) cularidades de um nas modificações do outro. Se nós os
examinamos sob esse ângulo, considerando a maneira como,
no processo de sua interação, as particularidades de um
O 2º parágrafo e o inicio do 3º fixam-se nas modificações do outro, a primazia aosoluta do
diz: O q é caracteristico para refletido com relação ao reflexo e sua independência com
uma formação material tb é p/ relação a este último e ao refletor serão incontestáveis. O ponto
uma outra, não é preciso e nem de vista oposto, isto é, o de que o reflexo é idêntico à interação,
parece-nos igualmente incorreto.
possivel identificar um 1º lugar
O reflexo está ligado à interação, representa um resultado
lugar entre as formações, desta última, mas não é idêntico a ela. A interação representa
Só que Cheptulin coloca que isso a influência recíproca de formações materiais ligadas entre si,
tudo é só na analise das formaç que provocam certas mudanças nas propriedades, nos estados
materiais, onde os elementos são etc. de cada uma delas. O reflexo é apenas um dos momentos
interativos são iguais. Mas no da correlação de formações materiais que se encontram em
reflexo há sim o primeiro, que é o interação, isto é, a propriedade de cada formação
que age sobre o outro material de reproduzir, nas mudanças surgidas 81
nela mesma, em decor rência da interação, certas
provocando transformações.
particularidades de outras formações materiais
agindo sobre ela.
--------------------------------------//------------------------
O reflexo está ligado a interação mas ele é outro fenomeno não é o proprio reflexo.

O reflexo é apenas UM dos momentos da correlação de formações materiais.

O reflexo é a propriedade de reproduzir nas mudanças surgidas nela mesma, a ação de certas
particularidades de outras formações materiais enquanto elas estão agindo.
NO 1º parágrafo Cheptulin
reforça a concepção materialista
dialética dizendo a respeito do
reflexo que
O reflexo não é a interação
de um objeto sobre o outro, e
tb não é as mudanças que
surgem durante o processo de
interação das formações
interação, isto é, a propriedade de cada formação material
materiais, entretanto, de reproduzir, nas mudanças surgidas nela mesma, em decor­
o reflexo É A faculdade de rência da interação, certas particularidades de outras formações
reproduzir nas mudanças materiais agindo sobre ela.
Logo, o reflexo não é a interação de um objeto sobre um
esses ou aqueles traços ou outro, nem as mudanças que se produzem no decorrer desta,
aspectos que pertencem mas sim a faculdade de reproduzir nessas mudanças esses ou
ao objeto agente. aqueles traços ou aspectos do objeto agente.
Nesse plano, a identificação do reflexo com o movimento,
(ou formaç material refletida) com as mudanças sobrevindas na formação material em decor­
rência de outras formações materiais que ela sofre, não tem
fundamento.
O reflexo não é simplesmente a modificação do objeto
sob a ação de fatores exteriores ou interiores, mas uma repre­
Ler o segindo parágrafo sentação particular, nessas modificações, das particularidades
dos fatores agentes. A modificação do objeto em decorrência
de interações exteriores ou interiores representa não o reflexo,
mas o movimento.
Alguns autores consideram as
Certos autores identificam igualmente o conceito de
propriedades da materia e o reflexo reflexo com o conceito de propriedade. Seu raciocínio é o
como a mesma coisa, pois sendo seguinte: toda propriedade do objeto, sendo seu momento
que as propriedades das formações interior, manifesta-se e existe apenas em suas relações, na
materiais existem e manifestam-se interação desse objeto com outros objetos. No decorrer da
apenas nas relações de interação interação, um objeto reflete-se no outro. As propriedades
desse objeto constituem a forma de seu reflexo em um outro
de uma formação mat com outra(S) objeto. Assim, as propriedades de cada objeto dado existem
então no momento das relações como reflexos de outros corpos.
uma formaç mat reflete-se na outra Sem dúvida alguma, o reflexo de uma formação material
em uma outra está ligado à colocação em evidência de algumas
de suas propriedades. Mas o reflexo não é idêntico às pro­
No 4º parágrafo Cheptulin rebate esse priedades do objeto refletor. As propriedades do objeto refletor
argumento dizendo que é inegável não representam uma forma de reflexo de outros objetos,
que o reflexo de uma formação mas, antes de tudo, uma forma de manifestação de sua essência.
em outra precisa colocar em evidencia Não são as propriedades, mas suas mudanças, reproduzindo
algumas propriedades essas formações as particularidades dos objetos agentes, que são a forma de
(aquelas que estejam sendo alteradas reflexo nele e em outros objetos. A única propriedade à qual
justamente pelo movimento de podemos identificar o reflexo é a faculdade das formações
interação) mas que : materiais de representar nas mudanças de uma ou outra de
as propriedades da formação material suas propriedades outras formações materiais agindo sobre elas.
Mas, mesmo essa propriedade não constitui uma forma de
são essencia e por isso não podem
existência do reflexo de alguns objetos em outros, ela é uma
ser reflexo.
forma de manifestação da natureza interna dos
82
Aqui entendo que como dito Lá na pag próprios objetos refletores.
____paragrafo ___ não são todas as
interações nem todas as propriedades que
irão ser reflexo, mas apenas aquelas que
estiverem sofrendo uma ação do agente (no
caso : sofrendo a ação da formaç material refletida)
Assim o reflexo é uma propriedade uiversal da materia que consiste na capacidade de reproduzir das
formações materiais
aquelas particularidades de outras formações materiais enquanto elas agem sobre si. ou seja ,
o reflexo é a capacidade de reproduzir as propriedades do objeto que está desempenhado o papel agente.

A FORMA de reprodução das


particularidades das formações
materiais agindo é determinada
pela natureza.(do refletor)
A forma do reflexo é determinada pela
natureza da formação material do forma da manifestação da natureza interna dos próprios objetos
refletores.
Sendo a forma do reflexo determinada Assim, o reflexo é uma propriedade universal da matéria,
pela que consiste na capacidade de reproduzir, das formações mate­
natureza, considerando a infinidade da
materia
riais, as particularidades de outras formações materiais agindo
ha tb incontávies formas de reflexo. sobre elas, nessas ou naquelas modificações de seu estado ou
de uma propriedade qualquer.
E a modificação das formas de reflexo são A forma de reprodução das particularidades dos objetos
agindo sobre ela, em uma formação material, é determinada
observadas na passagem de um grau pela sua natureza. É por isso que as formações materiais qua-
qualitativo para outro da materia
litativamente diferentes refletem as mesmas ações sob uma
forma diferente. Assim como a matéria, em sua diversidade
qualitativa é infinita, há, também, uma variedade inumerável
Com o surgimento dos organismos
vivos e sua condição metabolica de
de formas de reflexo. A modificação das formas do reflexo
sobrevivência o carater do reflexo são particularmente observadas na passagem da matéria de
modifica-se se tornando biológico um grau qualitativo de seu desenvolvimento a outro. Assim,
e materializa-se como Irritabilidade, na natureza inanimada, o reflexo toma a forma de uma reação
como ação em retorno que depende física ou química em retomo, que coincide com a mudança
não somente da natureza do
organismo refletor mas tb depende
do estado interno da formação material submetida às ações
do seu estado concreto.
exteriores*9.
Tambem se manifesta Com o surgimento dos organismos vivos, entre os quais
nessa irritabilidade uma certa o metabolismo é uma condição necessária para sua existência,
regularidade de ações, o caráter de reflexo modifica-se. Ele toma-se biológico e
embora de forma embrionária. manifesta-se como irritabilidade, como ação em retorno que
depende não apenas da natureza do organismo refletor, mas
igualmente de seu estado concreto, e na qual se manifesta,
sob uma forma embrionária, uma certa regularidade de ações20.
Aqui, as interações do meio exterior refletem-se sob a forma
de uma ação em retomo seletivo.
Com a evolução da matéria viva, que é contínua pela
no 4º parágrafo :
adaptação sempre mais perfeita dos organismos ao meio, no-
com a evolução da matéria viva, que é
contínua devido ao fato de sua tadamente com o aparecimento dos organismos pluricelulares,
adaptação sempre mais perfeita dos a forma do reflexo, característica dos organismos vivos elemen­
organismos ao meio e com o surgimento dos tares, aperfeiçoa-se. Esse aperfeiçoamento caminha no sentido
organismos pluricelulares, ocorreu um de uma especialização dos diferentes tecidos dos organismos
aperfeiçoamento da forma de reflexo vivos, tendo em vista ocupar certas funções bem determinadas
dos organismos vivos elemetares. de reflexo, e alguns tecidos especializam-se, particular e unica­
Esse aperfeiçoamento caminha n sentido de
mente no reflexo (percepção, fixação) da ação e da excitação18*
uma especialização dos diferentes tecidos dos
organismos vivos. 18S. L. Rubinstein, op. cit., p. 13.
!0F. Engels, op. cit., p. 179.
Alguns tecidos especializam-se, particular e unicamente no reflexo (percepção , fixação) da ação e da exitação que se
segue, enquanto outros especializam-se na transmissão dessa excitação da parte do organismo em que se
efetua a ação imediata a outra parte do organismo.
83
Os tecidos que são especializados na
função do reflexo distinguem-se progressivamente
e formam um orgão especial o sistema nervoso
que se torna uma espécie de mediador entre as que se segue, enquanto outros especializam-se na transmissão
diferentes partes do organismo e o mundo exterior. dessa excitação da parte do organismo em que se efetua a ação
O sistema nervoso exerce um controle sobre a
imediata a outra parte do organismo. Os tecidos que são
ligação recíproca entre o organismo e as especializados na função do reflexo distinguem-se progressiva­
condições exteriores da existência alem disso mente e formam um órgão especial, ou seja, o sistema nervoso
o sistema nervoso contribui equilibrio entre o que se torna uma espécie de mediador entre as diferentes partes
organismo e o as forças exteriores do meio
ambiente. do organismo e o mundo exterior e que exerce um controle sobre
a ligação recíproca entre o organismo e as condições exteriores
O reflexo das forças exteriores que se dá no da existência e, ainda, contribui para estabelecer um equilíbrio
organismo é importante para a adequabilidade entre o organismo e “as forças exteriores do meio ambiente”2i.
das condições vitais e é mediado pelo sistema
nervoso.
O reflexo, pelo organismo, das forças exteriores, que têm para
ele uma importância vital, é mediado pelo sistema nervoso e
Essa forma especializada de reflexo "a irritabilidade" distingue-se em uma forma autônoma de irritabilidade chamada
distingui-se em uma forma autônoma de irritabilidade
chamada excitabilidade.
excitabilidade.
O sistema nervoso, que surgiu primeiramente sob a forma
de fibras e de células nervosas particulares, dispersas no corpo
do animal, complica-se no decorrer da evolução dos organis­
O Sitstema nervoso surgiu primeiramente sob a
mos, tornando-se sempre mais perfeito. Algumas células ner­
forma de fibras e de celulas nervosas patticulares vosas unem-se estreitamente e formam núcleos nervosos que,
por sua vez, unem-se entre eles e formam os centros, a medula
dispersas no corpo do animal, que espinhal e o cérebro.
especializaram-se no decorrer da evolução dos Assim, passo a passo, é constituído o sistema nervoso
organismos tornando-se sempre mais perfeito
central. A forma do reflexo segue o desenvolvimento do sis­
e tema nervoso. Essa forma torna-se sempre mais flexível e
aperfeiçoada e, com o surgimento do sistema nervoso central,
adquire possibilidades que modificam fundamentalmente sua
qualidade e, exatamente por isso, transformam-na em uma
A continuação desse processo nova forma superior de reflexo.
evolutivo da materia costituiu passo Com efeito, entre os organismos que não possuem sistema
a passo o sistema nervoso central. nervoso central, a correlação com o meio ambiente realiza-se
por meio do reflexo e da formação de certas reações aos exci­
tantes que têm uma importância vital para o organismo. Entre
A forma de reflexo segue o os organismos que possuem um sistema nervoso central, esta
desenvolvimento do SNC. correlação realiza-se não apenas por meio do reflexo e da
reação aos excitantes ligados à atividade vital do organismo,
Essa forma torna-se mas igualmente por meio do reflexo e da formação de reações
determinadas aos excitantes, que não apresentam nenhuma
sempre mais flexível e aperfeiçoada importância para a vida do organismo, se sua ação precede
adquirindo possibilidades que no tempo à do excitante tendo uma importância vital.
modificam fundamentalmente
!1I. P. Pavlov, Obras completas, 2? ed. 3, Moscou-Leningrado, 1951,
qualidade. t. 3, Parte 1, Livro 2, p. 124. Original em russo.

As formaç materiais vão se No843º parágrafo a explanação é a respeito da correlação dos organismos com
especializando tanto e sem sistema nervoso central:
(no sentido qualitativo) NAqueles que não tem sistema nervoso central a correlação c/ o meio ambiente é
que ocorre do reflexo se transformar por meio do reflexo e da formação de certas reações aos excitantes que tenham
em uma forma superior de relfexo. uma importância vital.
Naqueles que possuem SNC essa correlação com o meio ambiente realiza-se
tanto por meio do reflexo e da formação de reações aos exitantes ligados
atividade vital do organismo como também por meio do reflexo e das formações
que NÃO apresentam importancia vital para eles.
A reação aos exitantes QUE NÃO TEM
importancia vital imediata para o animal
(e que antecede ação dos excitantes QUE TEM A reação aos excitantes que não têm importância vital
importancia vital imediata para o organismo)
é chamado de reflexo condicionado. (SNC).
imediata para o animal, mas que precedem, algumas vezes no
É decorrente do processo de vida do indivíduo. tempo, a ação dos excitantes que têm uma importância vital
imediata para o organismo, Jeva o nome de reflexo condicio­
A reação aos exitantes QUE TEM para ele
uma importancia direta são chamados de
nado, diferentemente da reação do organismo ao excitante que
reflexo incondicionado.(que seria o tem para ele uma importância direta e constitui o reflexo incon­
Sist nervoso autonomo, ou periférico, ou ainda viceral)dicionado. O reflexo condicionado elabora-se no processo da
É inato, é uma defesa, se transmite
organicamente para as outras gerações.
vida de um indivíduo, no curso de sua experiência pessoal,
enquanto o reflexo incondicionado é inato, isto é, transmite-se
de uma geração a outra.
Para os organismos que tem SNC os Dessa maneira, entre os animais que possuem r m sistema
reflexos condicionados tem um papel nervoso central, os reflexos condicionados começam a desem­
importante na correlação do individuo com penhar um papel importante na correlação do organismo com
o meio, ao lado dos reflexos incondicionados.. o meio, ao lado dos reflexos incondicionados. Graças a eles,

OS que tem SNC reagem com precisão às


esses animais reagem com precisão às modificações das con­
modificações e adaptam-se rapidamente. dições de vida e a elas adaptam-se rapidamente.
O reflexo condicionado, enquanto forma nova, mais ele­
vada do que o reflexo, adquire, diferentemente de todas as
O reflexo incondicionado é biológicos e os formas precedentes ao reflexo que eram puramente biológicas,
os reflexos CONdicionados são psiquicos, um caráter psíquico; é a partir deste reflexo que surge o psiquis­
dependem de elaboração inteligente. mo, forma nova, mais elevada do reflexo da realidade e qua­
litativamente diferente das precedentes.

5. O PSÍQUICO
O reflexo psiquico é um sinal de do mundo E O FISIOLÓGICO
exterior que agem sobre o organismo. não diz respeito direto ao
O reflexo psíquico é um sinal, uma imagem dos objetosindivíduo, não são para ele vitais
do mundo exterior que agem sobre o organismo. (* são os condicionados)
O laço do psíquico com a atividade reflexiva condicionada
não é fortuito. Um traço específico do reflexo condicionado,
Uma caracteristica específica do reflexo como já dissemos, é o reflexo dos fenômenos do mundo exterior
condicionado são os reflexos dos fenômenos que em si mesmos são indiferentes ao organismo, não desem­
do mundo exterior (em sí mesmos) é que penham nenhum papel em sua atividade vital, mas encontram-se,
mesmo não sendo vitais para o organismo contudo, ligados aos fenômenos que têm uma importância
encontram-se ligados aos fenômenos que
tem importancia biológica imediata.
biológica imediata. Esses fenômenos indiferentes manifestam-
se como sinais de outros fenômenos biológicos significantes para
o organismo, representam estes últimos22. Sua ação sobre o

»1. P. Pavlov. Obras completas cit., p. 196.

85
no momento em que ocorre o RC o individuo fara uma correlaçao entre a significancia daquele fenomeno com aqueles outros os RI.
Os RI são primeiros em relação de importancia para o indivíduo pois estão relacionados a sobrevivencia. Mas os RC são reações individuais e particulares
que dependem da visão do mundo que o individuo tenha em sua consciência.

Sua ação -dos RC- sobre o


organismo equivale à ação de fenômenos biologicamente signi­
Os RC tem uma ligação com esse ou aquele RI e
por essa razão que a sua formação é considerada ficantes, dos quais eles são os sinais, isto é, no momento de
como o "surgimento da forma psiquica do sua percepção, a partir de laços temporários formados no córtex
reflexo da realidade" surgem imagens de outros fenômenos biologicamente signifi­
cantes que lhes estão ligados.
Assim, o mecanismo do reflexo condicionado inclui como
um dos momentos necessários o aparecimento (a reprodução)
Cheptulin diferencia as concepções dos vários psicólogos da imagem de um objeto biologicamente significante, a partir
e filosofos que unem o psiquico (uma forma particular
do relfexo da realidade) à atividade reflexiva condicionada: do sinal percebido — do fenômeno indiferente que se encontra
em ligação mais ou menos determinada e estável com esse
O reflexo condicionado aparece para os animais objeto. E é por isso que a sua formação é considerada como
que possuem cortéx (parte responsavel pelo raciocínio
elaborado) e também para os organismos que não
o princípio do surgimento do psíquico, da forma psíquica do
possuem cortéx. reflexo da realidade.
haviam os que consideram que lações temporários Numerosos psicólogos e filósofos unem o psíquico, como
específicos que permitem o RC surgem inclusive para os
protistas( seres vivos unicelulares c/núcleo organizado, uma forma particular do reflexo da realidade, à atividade re­
são os Eucariontes.) flexiva condicionada. Entretanto, há entre eles divergências
quanto à definição do órgão do psiquismo e o estágio de desen­
volvimento do mundo animal no qual ele aparece. A questão
é que a formação do reflexo condicionado é observada não
apenas entre os animais que possuem um córtex, mas igual­
mente entre os que são desprovidos dele. Ainda mais, alguns
autores consideram que os laços temporários específicos, per­
mitindo o reflexo condicionado, surgem inclusive entre os
protistas23. É por isso que, reunindo o aparecimento do psí­
quico à formação dos laços temporários, reflexos condiciona­
dos, devemos reconhecer a existência do psiquismo entre os
organismos que não somente não possuem córtex, mas ainda
não têm sistema nervoso.
Por outro lado, o sábio russo Pavlov, depois de haver
Pavilov salientou que o psiquico é função do descoberto o laço da atividade psíquica e dos reflexos condi­
cérebro, resultado da atividade do córtex: cionados especialmente, salientou que o psíquico é uma função
PAVILOV disse que : "A atividade é resultado
do cérebro, resultado da atividade do córtex: “A atividade
da atividade psicologica de uma certa massa
psíquica é o resultado da atividade psicológica de uma certa
determinada do cérebro"
e que
massa determinada do cérebro”24. Ele disse também que:
a atividade dos hemisférios cerebrais recebeu
“ .. . A atividade dos grandes hemisférios recebeu o nome de
qual nós a sentimos,
o nome de _atividade especial psiquica_
atividade especial, psíquica, de acordo com a maneira pela
percebemo-la em nós
mesmos e supomos sua
e ainda que é por analogia que atribuimos aos
existência entre os animais,
animais aquilo que sentimos. 23A. N. Léontiev, Ensaio sobre o desenvolvimento do psiquismo, por analogia conosco”2^.
Moscou, 1947. Original em russo.
(Ahumanização dos animais é algo que ocorre S4I. P. Pavlov, Reflexos condicionados, in Grande Enciclopédia
em nossas mentes mas o animal é inferior ao Médica, t. 33, p. 43. Original em russo.
homen fisica e psiquicamente. )
86
O sistema nervoso simpático é responsável pelas alterações no
organismo em situações de estresse ou emergência. ... O
O sistema nervoso pode ser dividido em central e periférico sistema nervoso parassimpático tem a função de fazer o
organismo retornar ao estado de calma em que o indivíduo se
encontrava antes da situação estressante.

qual nós a sentimos, percebemo-la em nós mesmos e supomos


O córtex cerebral é formado sua existência entre os animais, por analogia conosco”2^.
pela substância cinzenta (que Apoiando-se na teoria de Pavlov, alguns autores recusam-
contém o corpo celular do se categoricamente a reconhecer a existência do psiquismo entre
neurônio), os animais que não possuem sistema nervoso central, relacio­
nando seu aparecimento apenas ao cérebro, ao córtex.
Só podemos resolver essa disputa respondendo à questão
de saber se todo laço temporário supõe o aparecimento da
imagem do objeto refletido ou se o reflexo em imagem da
realidade constitui uma função do cérebro, resultado da forma­
ção de conexões nervosas no cérebro, sendo dado que o
psíquico, simplesmente não é nem os laços temporários, nem
os próprios reflexos condicionados, mas sim as imagens dos
objetos agentes que eles fazem surgir. A questão de saber
em que estágio do desenvolvimento da matéria viva aparecem
as primeiras imagens dos objetos do mundo exterior ainda não
foi suficientemente estudada. O fato de que elas existem entre
os animais superiores, possuidores de um córtex já foi provado,
mas ninguém pode, com certeza, afirmar que elas existem
também entre os animais que possuem um sistema nervoso
menos desenvolvido, e menos ainda, que elas existem entre
os protistas, que são desprovidos de sistema nervoso.
A identificação do psíquico com o reflexo condicionado
conduz necessariamente à deformação da correlação do psíquico
com o fisiológico e, em particular, a reduzir o psíquico ao
fisiológico e a eliminar o primeiro enquanto fenômeno par­
ticular, qualitativamente determinado.
O psíquico é um dos aspectos interiores do reflexo que
concerne a sua função refletiva social. O psíquico é o reflexo
em imagem da realidade, surgido no processo da formação dos
laços temporários.
Sendo um aspecto do reflexo condicionado e represen­
tando no conjunto um fenômeno fisiológico, o psíquico está
organicamente ligado ao fisiológico, aparece e existe sobre sua
base, é uma conseqüência dela, uma propriedade particular.25

25I. P. Pavlov, Obras completas cit., t. 4, p. 17.

87
6. A CONSCIÊNCIA

A atividade psíquica dos animais superiores, a um certo


grau do desenvolvimento de seu sistema nervoso, do cérebro,
transforma-se necessariamente em urna forma qualitativamente
outra do reflexo da realidade — transforma-se em consciência.
O aparecimento da consciência é condicionado pelo desen­
volvimento do sistema nervoso, do cérebro. Entretanto, esse
desenvolvimento nunca é insuficiente para que apareça a
consciência. O aparecimento da consciência está ligado a
fatores exteriores à fisiologia da atividade nervosa superior.
Como propriedade da matéria altamente organizada, a cons­
ciência é, ao mesmo tempo, o produto do trabalho humano,
o resultado do desenvolvimento social. Um sistema nervoso
altamente desenvolvido cria apenas a possibilidade real do
aparecimento da consciência; mas, a transformação dessa pos­
sibilidade em realidade está ligada ao trabalho. Foi precisa­
mente sob a ação do trabalho que a forma psíquica do reflexo,
própria aos ancestrais animais do homem, transformou-se
progressivamente em consciência, em reflexo consciente da
realidade. O ponto de partida desse processo foi o momento
no qual uma espécie superior de macacos começou a utilizar
objetos da natureza para obter um resultado ligado à satisfação
de uma ou outra necessidade do organismo. No começo, essas
ações constituíam apenas casos isolados, mas, pelo fato de que
elas davam, em geral, resultados positivos, e de que elas con­
tribuíam para a satisfação de uma ou outra necessidade, um
reflexo condicionado elaborou-se a partir delas e, com esse
reflexo, apareceu o hábito de utilizar, em certas condições, os
objetos da natureza como “ferramentas”. Esse hábito conduziu
a mudanças fundamentais no comportamento desses animais.
Sua ligação com a realidade ambiente foi, desde então,
mediatizada pelos objetos da natureza.
Uma tal complicação da ligação do organismo com o
meio ambiente influenciou de maneira positiva o desenvolvi­
mento do sistema nervoso e, em particular, o desenvolvimento
do cérebro que, obrigado a criar novos laços e a cumprir novas
funções cada vez mais complexas, desenvolveu-se e aperfei­
çoou-se, o que, em compensação, exerceu uma influência
benéfica sobre a “utilização das ferramentas” pelos macacos
superiores. Essa atividade complicou-se e desenvolveu-se. A

88
um determinado estágio de seu desenvolvimento, os macacos
superiores, quando da ausência da “ferramenta” necessária
para a execução de um determinado ato, procuravam adaptar
o objeto não adequado, modeiando-o segundo a necessidade.
Surge, então, a tendência de criar as ferramentas necessárias a
partir de objetos da natureza. Pode-se observar tentativas de
transformar um objeto que não é conveniente para vuia função
dada e de criar uma ferramenta necessária, mesmo entre os
macacos atuais2^.
O desenvolvimento dessa tendência entre os ancestrais
animais do homem condicionou a transformação progressiva
dos reflexos em atividade consciente, visando a modificação
da realidade ambiente com a ajuda de ferramentas criadas para
esse fim. Essa atividade tornou-se uma forma necessária de
ligação entre os seres que se distinguem do estado animal,
entre eles próprios, de um lado, e com a realidade ambiente, de
outro. Essa atividade os coloca em relações determinadas
independentes de sua vontade, e assim os reúne em um todo
único, organicamente ligado. Para que tudo isso possa surgir,
funcionar normalmente e desenvolver-se, uma certa coordena­
ção das ações dos indivíduos que a formam é necessária. Mas
isso suporia tomar consciência dos objetivos e das tarefas,
repartir as funções no processo de sua realização. Tudo isso
tornaria necessária uma troca de pensamentos entre indivíduos
que agem em comum. “Logo, os homens em formação chega­
riam a um ponto em que eles teriam reciprocramente alguma
coisa para se dizer”2627. Cada nova necessidade condiciona
também o aparecimento de meios para satisfazê-la. Um desses
meios é a linguagem. Com a linguagem, a consciência recebeu
uma forma material de existência correspondente a sua natureza
social. Por meio dela, os pensamentos de um homem torna-
ram-se acessíveis a outros homens, a um grupo de homens.
Sublinhando o laço orgânico da consciência com a linguagem,
Marx e Engels escreveram: “A linguagem é tão velha quanto
a consciência; a linguagem é a consciência real, prática, exis­

26N. N. Ladiguina-Kots, Desenvolvimento das formas de reflexo no


processo da evolução dos organismos, in Problemas cie filosofia, 1956,
v. 4, p. 101. Original em russo.
27F. Engels, op. cit., p. 174.

89
tindo também, para outros homens, existindo, portanto, so­
mente para eu mesmo também. . . ”28. Por intermédio da
linguagem, os homens trocaram idéias e chegaram a uma coor­
denação de sua atividade necessária para o trabalho coletivo e
para a vida social.
Sendo ligada ao trabalho e à sociedade que a engendrou,
a consciência é dotada de uma natureza social, é um aspecto
necessário da forma social do movimento da matéria, embora
exista na consciência dos indivíduos que formam a sociedade.
Com efeito, cada indivíduo, por intermédio da linguagem, dos
meios de trabalho, dos modos de atividade, assimila a expe­
riência acumulada pela sociedade e transmite sua experiência
individual, encarnando-a em valores culturais e materiais
criados — as formas da vida e da ação.
O fato de que a consciência seja um aspecto da forma
social do movimento da matéria, um “produto social”28, é
freqüentemente deixado de lado pelos autores que estudam
o problema da consciência. A afirmação, segundo a qual a
consciência representa o produto ou o resultado da atividade
fisiológica do cérebro, é muito difundida. Não há dúvida de
que a consciência está ligada a certos processos que se desen­
volvem no cérebro, mas esses processos não têm condições
para engendrar a consciência. Para que ela apareça, o ser
possuidor de um cérebro deve necessariamente estar incluído
em um sistema de relações sociais e agir em comum com outros
homens; ou, em outros termos, deve viver uma vida humana,
social. Logo, os processos fisiológicos do cérebro fazem
nascer a consciência apenas em sua união ou, mais exatamente,
em sua ligação orgânica com as atividades sociais determinadas
que são executadas pelo sujeito, e não pela ligação com o
exercício dessa ou daquela função social. Ainda mais, as
ligações neurodinâmicas do cérebro, ou seja, as estruturas a
partir das quais surge e funciona a consciência, estabelecem-se
sob a ação de fatores sociais, da atividade prática. “O psiquis­
mo do homem, escreve sobre isso o psicólogo soviético A.
Léontiev, é uma função das estruturas cerebrais superiores, que
se formam de maneira ontogênica no processo de assimilação
das formas historicamente constituídas da atividade em relação
28K. Marx e F. Engels, L ’idéologie allemande, Paris, Editions So­
ciales, 1968, p. 59.
ieK. Marx e F. Engels, L ’idéologie cit., p. 59.

90


ao mundo ambiente”33. É por isso que não podemos admitir
a afirmação de que a consciência é uma função, um produto,
uma manifestação ou uma propriedade de interações fisiológi­
cas, isto é, uma forma biológica do movimento da matéria.
Ela é uma propriedade, um produto, um resultado de interações
sociais, uma forma social do movimento da matéria, que
encerra em si, sob uma forma anulada, todas as outras formas
anteriores do movimento, notadamente as formas física, quí­
mica e biológica. Levando tudo isso em conta, parece-nos
mais correto falar dos laços da consciência, não com os pro­
cessos fisiológicos do cérebro, mas com o próprio cérebro e
não simplesmente com o cérebro, mas com o cérebro humano,
porque é aqui que se exprimirá em uma certa medida a idéia
do cérebro, órgão do pensamento, e este com a consciência,
enquanto sua função, representam uma forma mais elevada do
movimento da matéria do que a forma biológica.
A impossibilidade de deduzir o superior do inferior é,
freqüentemente, utilizada pelos filósofos burgueses, assim como
pelos neotomistas, para “refutar” a teoria marxista, segundo a
qual a consciência é uma propriedade da matéria. É sobre
isso que Josef de Vries baseia sua crítica da resposta materia­
lista à questão do laço da consciência e da matéria. “O
materialismo dialético, escreve ele, afirma que todo o ‘psíquico’,
todo o ‘espiritual’, é apenas uma função da matéria ou, mais
exatamente, a função do sistema nervoso central, do cérebro”31.
“Nós consideramos a resposta materialista insuficente, já que
explicamos o que é mais elevado, a alma, o espírito, a partir
do que é inferior, a matéria. . . Seja qual for a grandeza das
forças descobertas da matéria, elas permanecerão sempre insu­
ficientes para produzir qualquer coisa de mais elevado, a alma
ou o espírito”32.
Assim, o existente pode efetivamente engendrar alguma
coisa de mais elevado do que ele mesmo? É claro que sim.
Foi precisamente assim que se produziu a evolução da matéria.

S0A. N. Léontiev, Sobre a abordagem histórica no estudo do psi­


quismo humano, in Ciência Psicológica na URSS, t. 1, p. 41. Original
em russo.
SIJ. de Vries, Die Erkenntnistheorie des dialektischen Materialismus?
Munique, Salsburgo Küln, 19S8, p. 141.
S2J. de Vries, op. cit., p. 166.

91
Algumas formações materiais, em decorrência de interações,
formam outras, mais complexas. E estas últimas, por sua vez,
formam outras ainda mais complexas, e assim sucessivamente
até o infinito.
Tudo o que é novo, mais elevado, provém unicamente do
inferior. Essa é uma lei universal da evolução da matéria.
O filósofo alemão Walter Hollitscher, em seu artigo “Consciência
e matéria” exprimiu esse ponto muito bem. “Uma nova forma
determinada, ele escreve, provém unicamente de uma forma
antiga determinada em suas condições interiores e exteriores,
que são determinadas segundo as leis objetivas determinadas”33.
É verdade que podem-nos fazer uma objeção: a de que
falamos da passagem de formações materiais ou de estados
qualificativos a outros mais elevados. De Vries considerou a
possibilidade da passagem do material ao espiritual como forma
mais elevada e perfeita, do cérebro à consciência. No que
concerne a essa passagem, não há nenhuma relação com a
geração do superior pelo inferior, com a transformação do
segundo em primeiro. A formação material não pode trans-
formar-se em sua propriedade. Ela pode transformar-se uni­
camente em uma outra ou, mais exatamente, em outras forma­
ções materiais ou estados qualificativos. Transformando-se de
uma formação material, ou de um estado qualificativo em uma
outra, ela pode perder algumas propriedades e adquirir outras,
além de modificar e desenvolver terceiras. É por isso que é
totalmente inexato falar da passagem ou da transformação da
matéria em consciência, pelo fato de que esta última é sua
propriedade. Trata-se aqui apenas do aparecimento da cons­
ciência no processo da passagem ou da transformação de
algumas formações materiais ou de alguns estados qualificativos
em outros, do laço dessa propriedade com as interações e as
estruturas nas formações materiais. À essa questão, o mate­
rialismo dialético e a ciência psicológica contemporânea dão
uma resposta muito precisa: a consciência está ligada a algumas
formações estruturais do cérebro e a algumas formas de inte­
ração dos homens, entre eles e com a natureza, e a algumas
formas de sua atividade.
Essa solução não satisfaz a De Vries, porque ela exclui

83W. Hollitscher, Bewusstsein und Materie, in Weg und Ziel, Viena,


1964, v. 2, p. 112.

92
a necessidade de explicar a consciencia apelando para a “alma”
e para Deus. Para ele é necessário mostrar que a ‘alma” c
Deus existem e que sem eles é impossível explicar o apareci­
mento da consciencia. É por isso que ele repudia a limine
todas as tentativas de deduzir a consciencia da matéria. Se­
gundo ele, a consciência não tem nenhuma relação com a
matéria, pelo íato de que ela extrai seu princípio de Deus,
essência puramente espiritual. De Vries declara que não se
pode encontrar a causa da primeira aparição da consciência
sensível ou espiritual nesse mundo. Mas, levando isso em
consideração, a saída para fora dos limites desse mundo torna-se
inevitável, e essa saída contradiz completamente o materialismo
dialético. A causa final de toda vida espiritual nesse mundo,
prossegue De Vries, deve ser uma essência puramente espiritual.
Mas, essa essência supra-universal, puramente espiritual, to­
mada exatamente nesse sentido, não dependente de nada além
dela, é, em conseqüência disso, incondicionada, "absoluta”,
logo, essa essência constitui o que a religião chama, desde há
muito tempo, pelo grande nome de Deus3*.
Refutando, assim, a possibilidade de encontrar as causas
do aparecimento da consciência no mundo realmente existente
e sua explicação a partir da matéria, De Vries teria necessa­
riamente de procurá-las fora desse mundo, em um mundo
supranatural, isto é, no idealismo. Isso é normal, já que existem
apenas dois caminhos para explicar a consciência (assim como
para explicar qualquer outro fenômeno): o materialismo e o
idealismo. Se nós repudiamos o primeiro, queiramos ou não,
engajamo-nos no segundo.
Sendo uma propriedade da matéria altamente desenvolvida,
que se formou a partir do trabalho e das reiações sociais
surgidas entre os indivíduos no decorrer da produção dos meios
necessários para a vida, a consciência representa uma forma
nova, mais elevada do reflexo psíquico da realidade. Ela é
uma fotografia, uma cópia, uma imagem particular desta. E,
como qualquer outio fenômeno psíquico, ela também possui
uma natureza ideal.
A idealidade da consciência exprime-se no fato de que
suas imagens constitutivas não possuem nem as propriedades34

34J. de Vries, op. cit., p. 169-70.

93
dos objetos da realidade refletidos nela, nem as propriedades
dos processos nervosos a partir dos quais essas imagens nas­
ceram. Elas não encerram nem um grão de substância,
característica da realidade refletida e do cérebro. São, além
disso, privadas de peso, de características espaciais e de outras
propriedades físicas. Distinguindo-se fundamentalmente do
material, o ideal lhe é organicamente ligado. Ele aparece e
existe unicamente no material — no cérebro do homem —
e é um produto da interação do homem com a realidade
ambiente, por um lado, e do homem com outros homens, por
outro lado. Seu conteúdo é determinado por essa realidade, a
qual representa o reflexo. Destacando a ligação do ideal
com o material e a dependência do primeiro com relação ao
segundo, Marx salientou que: “ ( • . . ) O movimento do pensa­
mento é apenas a reflexão do movimento real, transportado e
transposto para o cérebro do homem”35.
Constatando que a consciência aparece no cérebro, corpo
material altamente organizado, a partir de conexões nervosas
que se estabelecem, alguns autores sentem-se inclinados a
considerá-la como um fenômeno material, como uma forma
particular do movimento da matéria.
A afirmação de que o psíquico (a consciência) é corporal
e constitu! "uma forma particular do movimento da matéria,
análoga às oscilações eletromagnéticas, não reflete a situação
exata das coisas. A consciência não é um processo corporal,
uma forma particular do movimento da matéria encontrando-se
na mesma série de suas outras formas de movimento, não existe
sob o aspecto de qualquer formação material, ao lado do
cérebro, do homem e da sociedade, ela é uma propriedade
particular do cérebro, o produto de processos que nele desen­
rolam-se em resposta à interação do homem com a realidade
social e natural que o rodeiam, reproduzindo esta realidade,
não sob a forma em que ela existe, nem sob a forma de
propriedades, laços e processos materiais corporais, mas sob
a forma de imagens ideais desprovidas de características físicas.
Embora essas imagens apareçam a partir de processos corporais,
de conexões materiais e, em particular, de conexões nervosas,
elas não são idênticas a esses processos e laços. Seu conteúdo35

35K. Marx, Le Capital, Paris, Editions Sociales, v. 1, p. 21.

94
SE o conteúdo da consciencia fosse
constituido pelas propriedadesmateriais do
cerebro seria palpavel, e tb seria igual para
todos que estivessem nas mesmas é constituído não por esses processos e esses laços, não pelas
condições constitutivas. Mas como são propriedades características destes últimos, mas sim por cópias,
produzidas pelas propriedades fotografias particulares dos processos, das propriedades e dos
interpretativas do cerebro ou seja a laços correspondentes da realidade ambiente.
consciencia e constituida por meio das Alguns autores falam da materialidade da consciência re­
caracteristicas materiais cerebrais porem
sobre o reflexo da realidade com a qual o
ferindo-se à realidade de sua existência. A consciência, consi­
ser humano interage conjuntamente com deram eles, existe na realidade. Tudo o que existe na reali­
os seus iguais. dade é material; em consequência, a consciência é material.
“O materialismo, escreve, por exemplo, I. Shipos, designa é
tradicionalmente, com a ajuda do conceito de matéria do
Universo, o mundo real existente. Assim, tudo o que existe
necessário
na realidade é ‘material’: não há nada de ‘imaterial’ no mundo... ter claro o
Nesse sentido, o pensamento é, ele próprio, material: existe conceito
realmente na qualidade de pensamento, de reflexo”36. de materia
Podemos notar facilmente que os raciocínios de Shipos
encerram uma certa inexatidão, que deforma a teoria marxista-
leninista da matéria e do material. Segundo o materialismo
dialético, tudo o que existe na realidade está longe de ser
material. Não é material o que se relaciona com a matéria
e a caracteriza como algo diferente da consciência, o que se
manifesta como realidade objetiva, isto é, o que existe fora e
independentemente da consciência. O pensamento e a cons­
ciência existem igualmente na realidade, mas não na qualidade
de realidade objetiva, não materialmente, mas sob a forma de
imagens dessa realidade, desprovidos de formas do ser que
a constituem e das propriedades que os caracterizam, isto é,
de forma ideal. Há duas realidades: a realidade objetiva que
existe fora e independentemente da consciência e a realidade
subjetiva engendrada pela primeira, da qual é o reflexo. A
primeira realidade é, por sua natureza, material e a segunda
é ideal.
O método mais utilizado para basear a materialidade da
consciência é o de considerar esta sob dois aspectos: gnoseo­
lògico e ontològico, com relação ao objeto refletido e com
relação ao cérebro. Os partidários desse ponto de vista
afirmam que se examinamos a consciência sobre o plano gno­
seològico, com relação à realidade refletida, ela manifesta-se36

36Problemas de Filosofia marxista-leninista. Artigos de autores


húngaros, Moscou, Ed. Progresso, 1965, p. 424. Originai em russo.

95
como ideal, representa uma imagem ideal, uma fotografia,
uma cópia de objetos e de fenómenos do mundo exterior; e
quando a examinamos sobre o plano ontológico, como pro­
priedade ou produto da atividade do cérebro, a consciência
manifesta-se como fenómeno material37*.
Esse ponto de vista não pode ser considerado justo pelo
fato de que coloca a natureza da consciência na dependencia
da orientação da pesquisa, dos desejos subjetivos do pesquisador
e de sua vontade. Com efeito, segundo esse ponto de vista,
a consciencia é ideal não em si mesma e não sempre, mas
apenas quando a examinamos sob o plano gnoseológico, isto
é, em relação ao objeto refletido. Desde que transportemos
nossa atenção para sua ligação com o cérebro, nós a considera­
mos como uma propriedade deste, e ela perde então sua idea­
lidade e torna-se um fenômeno material, no sentido em que
“falamos, por exemplo, da materialidade da massa, da energia,
do espaço, das relações sociais”33. Segue-se que é o pesquisador
quem decide se a consciência será ideal ou não. Se ele quiser
examiná-la sob o plano gnoseológico ela será ideal, mas se
ele interessa-se pelos aspectos ontológicos, a consciência perderá
sua idealidade e se manifestará sob uma forma material,
semelhante à massa, à energia e ao espaço.
Entretanto, a natureza da consciência, assim como a de
qualquer outro fenômeno, não pode depender do ângulo sob
o qual nó' a examinamos, nem da orientação do pesquisador.
Ê verdade que a consciência, enquanto reflexo da realidade nas
imagens ideais, manifesta-se em sua relação com a realidade,
com o objeto refletido, mas ela é ideal em todas as suas relações
e não apenas nessa aqui. A consciência é ideal por sua natu­
reza, por sua essência, e como tal permanece, qualquer que
seja a maneira como nós a consideremos: tanto em ligação
com a realidade refletida, como com o cérebro, ou, ainda, em
qualquer outra ligação. Na nossa opinião, Rubinstein tem
razão quando escreve que “Na relação gnoseológica com a
realidade objetiva, os fenômenos psíquicos manifestam-se como

37N. P. Antonov, Origem e essência da consciência, Ivanovo, 1959,


p. 283; F. F. Kalhsin, Problemas fundamentais da teoria do conheci­
mento, Oork, 1957, p. 10; Y. A. Ponomariob, Psiquismo e intuição,
Moscou, 1967, p. 64. Originais cm russo.
^Ciências filosóficas, 1968, v. 3, p. 112. Original em russo.

96
uma imagem desta. E é precisamente a essa relação da imagem
com o objeto, da idéia com a coisa que está ligada à caracterís­
tica dos fenômenos psíquicos como ideais, é precisamente no
plano gnoseológico que o psíquico manifesta-se como ideal.
É claro que isso não significa que os fenômenos psíquicos
deixem de ser ideais quando eles são considerados sob um
outro ângulo, por exemplo, como função do cérebro. A ca­
racterística dos fenômenos psíquicos, como de qualquer outro
fenômeno, não depende do ponto de vista segundo o qual eles
são considerados”39. Não é nem a natureza da consciência,
nem sua essência que dependem do ângulo sob o qual a análise
é feita, mas a evidenciação de alguns aspectos. Efetivamen­
te, a idealidade da consciência — isto é, sua existência sob
a forma de imagem, de cópia do objeto — só aparece em sua
relação com o objeto, da mesma maneira que o fato de que
ela é uma propriedade, uma função do cérebro, só é descoberto
no estudo de sua relação com este. Mas, será que sua idea­
lidade desaparece, deixa de ser uma cópia do ideal, uma
fotografia, quando reconhecemos que ela é uma propriedade
do cérebro? É lógico que não. Depois da colocação em
evidência dessas novas características, ela ainda permanece
sendo uma imagem, uma cópia ideal, uma fotografia da rea­
lidade ambiente.
Alguns autores emitem um ponto de vista que diferencia
a consciência, por um lado, como reflexo da realidade, e, por
outro, com uma aptidão para esse reflexo. O reflexo da
realidade objetiva, segundo eles, é ideal, e a aptidão ao reflexo
é material40.
Essa maneira de colocar a questão parece-nos correta.
A aptidão ao reflexo da realidade nas imagens ideais e o reflexo
em si são coisas muito diferentes. A primeira existe objetiva­
mente, fora e independentemente da consciência, e por isso
ela é material. Condiciona o aparecimento das imagens ideais
que reproduzem a realidade e constituem a consciência, mas
não se transforma ela própria nessas imagens, existe fora e
independentemente delas. Ligado organicamente às imagens

39S. L. Rubinstein, op. cit., p. 41.


40K-H Oberländer, Einige Bemerkungen zum Verhältnis von Materie
und Bewusstsein, in Wissenschaftliche Zeitschrift der Universität, Ros­
tock, 1962, t. 3, v. 11, p. 204-5.

97
indicadas, o segundo realiza-se e existe unicamente por meio
delas. E por isso é ideal. A idealidade da consciência é,
portanto, determinada pela idealidade das imagens através
das quais, enquanto forma superior do reflexo, ela existe e
reproduz a realidade que a rodeia.
Existindo sob a forma de imagens ideais surgidas no
cérebro do homem em decorrência da interação com a realidade
que a rodeia, a consciência representa um reflexo subjetivo
da realidade. A subjetividade da consciência exprime-se no
fato de que ela existe como mundo interior, espiritual do
homem-sujeito e da sociedade humana, que reflete o mundo
exterior, a realidade objetiva. Mas, tudo o que constitui o
mundo interior do sujeito, tudo o que entra na esfera de sua
consciência, não depende dele. No mundo subjetivo do
homem há aspectos e momentos que são condicionados pela
realidade objetiva, que correspondem a ela e que não dependem
nem .do homem-sujeito, nem da humanidade. Esses aspectos
e esses momentos representam igualmente o objetivo no subje­
tivo e constituem uma forma particular da existência do mundo
exterior no mundo interior do sujeito. A consciência, sendo
assim o reflexo subjetivo da realidade objetiva, representa a
unidade do subjetivo e do objetivo, a unidade do que depende
do sujeito, do estado de seu sistema nervoso, de sua experiência
individual, de sua situação social, de suas condições de vida
etc. e do que não depende dele, mas que é condicionado pela
realidade ambiente e a reflete.
Surgida sob a ação do trabalho na qualidade de aspecto
da vida social e de função do espírito humano, a consciência
manifestor^e, antes de tudo, como uma tomada de consciência,
pelo ancestral do homem, de seu ser**, de sua própria existência,
de sua separação do mundo exterior e de uma certa relação
com este último. O animal não se distingue da realidade que
o rodeia, não sabe que ela existe. Ele se confunde completa­
mente com sua atividade vital. Para o animal, não há nenhuma
relação com ele mesmo, nem com a realidade que o rodeia.
“Onde existe uma relação, salientam Marx e Engels, ela existe
para mim. O animal 'não está em relação’ com nada, não4

4IK. Marx e F. Engels, L ’idéologie, cit,, p. 51.

98
conhece, no final de contas, nenhuma relação. Para o animal,
suas relações com os outros não existem enquanto relações”42*.
O selvagem, após haver adquirido consciência, percebe
primeiro que ele existe, que está rodeado de objetos e que esses
objetos apresentam certas relações e certas ligações entre eles
e com ele próprio. Tomando consciência de seus instintos e
de seus hábitos, ele progressivamente compreende o que se
passa ao seu redor, em sua realidade ambiente. Assim, a
consciência é a comprensão do que se produz na realidade
ambiente.
Mas a compreensão do que se produz não representa nada
além de seu saber. Como conseqüência, a consciência é um
certo saber. O mundo exterior é apresentado na consciência
sob a forma de imagens produzidas no cérebro humano pela
interação do homem com esse mundo. O conjunto dessas
imagens que refletem a realidade ambiente constitui o saber
do homem. Utilizando essas imagens e a informação que elas
contêm sobre essas ou aquelas propriedades e ligações dos
objetos e fenômenos do mundo exterior, o homem chega à
compreensão do que se produz em torno dele. Assim, o saber
é uma forma da existência da consciência. “O modo de exis­
tência da consciência e o modo de existência de qualquer outra
coisa para ele, escreve Marx, é o saber”43.
Ainda que a consciência manifeste-se como saber, ela está
longe de lhe ser idêntica. A consciência existe não apenas sob
a forma de conhecimentos, mas igualmente sob a forma de
emoções, sentimentos, vontade etc. Por outro lado, todo o
saber não constitui a consciência. O saber representa o con­
junto de informações, sobre a realidade ambiente, do qual
dispõe a sociedade humana. A consciência é formada unica­
mente pela rede de informações que entram no processo con­
creto do pensamento do sujeito e a partir dos quais elabora-se
sua compreensão da situação. Em outros termos, a consciência
não é todo o saber, mas somente aquele do qual o homem
utiliza-se a cada momento dado, que nasce de seu cérebro,
quando da compreensão dessa ou daquela situação concreta.

42K. Marx e F. Engels, L ’idéologie cit., p. 59.


i3K. Marx e F. Engels, Das primeiras obras, p. 633. Original em
russo.

99
No decorrer de sua vida, de sua atividade prática, o
homem passa progressivamente da tomada de consciência
de alguns aspectos e de algumas ligações da realidade para
outros, o que faz com que o conteúdo de sua consciência
modifique-se constantemente. Ao mesmo tempo, o conjunto
de conhecimentos que entram na esfera da consciência também
muda continuamente. Alguns desses conhecimentos animam-
se e entram na esfera da consciência, enquanto outros, depois
de ter cumprido sua função, saem da esfera da consciência e
passam para o domínio do inconsciente.
Alguns autores não levam esse fato em conta e incluem
na consciência todo o saber do qual dispõe a humanidade,
esteja ele contido ou não no processo do pensamento do sujeito,
seja ele utilizado ou não para chegar à compreensão dessa ou
daquela situação**.
Faiando das leis da relação da consciência e do saber,
temos em vista a consciência de um único homem. Mas tam­
bém podemos tratar da consciência referindo-nos não apenas
a um indivíduo, mas igualmente à sociedade. Nesse caso, o
saber não será um modo de existência da consciência social?
A totalidade do saber, o saber enquanto tal também não pode
manifestar-se na qualidade de forma do ser da consciência
social. No conteúdo da consciência social entra apenas a parte
do saber que reflete, de uma maneira ou de outra, o ser social
existente.
O saber é um modo ou uma forma de existência da cons­
ciência que não existe nele mesmo, mas na medida em que
chegamos, por meio dele, à tomada de consciência (intelecção,
compreensão) de um estado de coisas dado.
A tomada de consciência de certos momentos da realidade
efetua-se seja introduzindo-os nos conceitos e representações
correspondentes, dos quais dispõe o sujeito, seja descobrindo
ou penetrando o sentido de novos aspectos e ligações do objeto
considerado, anteriormente desconhecidos do sujeito. A to­
mada de consciência do objeto pela descoberta, nesse objeto,
de novos aspectos e ligações estabelece o conhecimento. O
que significa que a consciência manifesta-se igualmente como
conhecimento da realidade.4

44A. Spirkin, Origem da consciência, Moscou, 1960, p. 9. Original


em russo.

100
Levando em conta o fato de que todos os conhecimentos
dos quais o homem dispõe foram adquiridos no decorrer da
evolução da consciência social e do reflexo da realidade, a
partir de sua modificação na prática, é fácil perceoer que o
conhecimento é um aspecto necessário da essência da consciên­
cia, sem o qual seu funcionamento e seu desenvolvimento são
impossíveis.
Embora sendo um aspecto necessário da consciência e
uma forma de sua manifestação, o conhecimento não esgota o
conteúdo desta, assim como também não exclui suas outras
formas de manifestação. O conhecimento, como já dissemos,
supõe a descoberta do novo, de novas propriedades e ligações
do objeto do qual tomamos consciência. Mas a consciência não
está sempre ligada ao reflexo do novo, ela pode funcionar
igualmente no plano do conhecido, sobre a base de conheci­
mentos já existentes na sociedade. Esse ponto escapa a certos
autores que, para caracterizar a consciência, indicam que ela
está ligada apenas a novos momentos, anteriormente desconhe­
cidos do sujeito, da realidade ambiente, do objeto do qual
tomamos consciência. É por isso que ela manifesta-se apenas
quando o sujeito defronta-se com uma situação desconhecida
e que está ausente nos casos em que se repete o que já aconteceu
uma vez, aquilo com que o sujeito já se defrontou várias vezes.
O sábio alemão E. Schrõdinger desenvolve o seguinte tipo de
ponto de vista sobre a consciência: “Penetram na esfera da
consciência apenas as modificações ou as diferenças graças às
quais uma nova corrente de fenômenos distingue-se das prece­
dentes. . . ”45. Para ilustrar seu pensamento com exemplos, ele
prossegue: “Nós tomamos o caminho habitual para ir para o tra­
balho, passamos do outro lado da rua, atravessamos sempre no
mesmo lugar, pensando em outra coisa. Se produzir-se uma mo­
dificação na situação (p. ex., se o caminho estiver fechado e nós
tivermos de contorná-lo), isso penetra na consciência. A
ramificação do caminho é igualmente fixa. Se a situação
apresenta diversas variantes (como, p. ex., às vezes vamos à
universidade, às vezes ao instituto de física), nós escolhemos
as variantes de nossas reações racionais (ou atravessamos ou

45E. Schrõdinger, Geist und Materie, Braunschweig, Vieweg, 1961,


v. 2, p. 6.

101
continuamos em frente) de maneira automática, completamente
inconsciente. Assim, as diferentes variantes de ramificação
colocam-se umas sobre as outras, em número infinito e somente
as variantes novas, que não requerem treinamento, penetram
na consciência”46. “Eu poderia resumir as coisas da seguinte
maneira: a consciência está ligada à educação da substância
orgânica, à habilidade orgânica e inconsciente”4'?.
Assim, segundo Schrõdinger, todo fenômeno está “ligado
à consciência do sujeito apenas na medida em que ele é novo
para o sujeito”48, e tudo o que se repete “sai da esfera da
consciência”49.
Schrõdinger tem razão quando considera que as ações
uniformes, que se repetem freqüentemente, são automática e
inconscientemente efetuadas pelos homens. Mas isso não quer
absolutamente dizer que eles não têm consciência da situação
na qual eles se encontram, embora ela repita casos precedentes.
Por mais automáticas que possam ser suas ações, os homens
não podem deixar de estar conscientes do lugar em que eles
se encontram, do que eles fazem, do que se produz na realidade
que os rodeia. Em uma palavra, apesar do automatismo da
execução dessa ou daquela ação, o homem não perde jamais a
compreensão do que se passa mesmo que isso não tenha nada
de novo, de diferente em relação a algo que já foi feito várias
vezes. Isso é natural, já que essa compreensão é atingida não
apenas pelo conhecimento, a colocação em evidência do que é
supostamente novo, do que ainda é desconhecido, mas igual­
mente pela utilização das informações das quais dispõe o
sujeito sobre a realidade que o rodeia, de conhecimentos do
que já se repetiu muitas vezes.
Mais acima falamos dos caminhos da compreensão do que
se passa com o sujeito, por um lado, e com a realidade que o
rodeia, por outro. Mas qual o papel que a compreensão do
que se produz desempenha na vida dos homens? Ela é a con­
dição necessária da orientação do homem na realidade.
Apoiando-se sobre uma compreensão justa da realidade, sobre
o conhecimento de certos aspectos e ligações necessários, o

40E. Schrõdinger, op. cit.


47E. Schrõdinger, op. cit.
48E. Schrõdinger, op. cit.
40E. Schrõdinger, op. cit.

102
homem, como se prevesse o futuro, reproduz sob a forma de
imagens o que ainda não existe, mas que deve se produzir em
decorrência dessa ou daquela modificação da realidade que o
rodeia, dessas ou daquelas ações exercidas sobre ele. A partir
desse reflexo antecipado da realidade, o homem fixa objetivos
correspondentes e a eles submete seu comportamento e suas
ações. A antecipação do futuro, baseada no conhecimento dos as­
pectos e ligações necessários dos fenômenos do mundo exterior
e sobre a compreensão do que se passa na realidade ambiente, e
a fixação, em conseqüência disso, constituem a função essencial
da consciência. A execução dessa função é que distingue o
comportamento do homem do comportamento do animal, a
atividade racional do homem, das ações instintivas dos animais.
“Uma aranha, escreve Marx, realiza operações semelhantes às
do tecelão, e a abelha, pela estrutura de suas células de cera,
confunde a habilidade de mais de um arquiteto. Mas o que
distingue, antes de tudo, o pior dos arquitetos, da mais esperta
das abelhas, é que ele constrói a célula em sua cabeça antes
de construí-la na colméia. O resultado ao qual se chega com
o trabalho preexiste idealmente, na imaginação do traba­
lhador”50.
O reflexo antecipado da realidade pela consciência está
não apenas na base da fixação do objetivo, na orientação ra­
cional do sujeito na realidade ambiente, mas igualmente na
base da atividade criadora e transformadora, aspecto necessá­
rio do trabalho. Surgindo sob a ação imediata do trabalho
que supõe a transformação da realidade segundo as necessidades
da sociedade, com a ajuda das ferramentas criadas para esse
fim, a consciência não apenas torna possível a compreensão
dos atos executados, e cria uma imagem ideal do que deve
resultar dessas ações, mas também coloca em correlação, reúne
todas essas ações ao resultado final, isto é, a partir do conheci­
mento da situação efetiva das coisas e das possibilidades reais
que ela condiciona, a consciência cria qualquer coisa de novo,
que não existe na realidade e que, sendo expresso no sistema
de imagens ideais, torna-se um plano real da atividr le material
transformando uma possibilidade dada da matéria em realidade.
Sem esse plano preciso indicando os caminhos da transforma­

b le Marx, op. cit., p. 136.

103
ção da realidade, segundo as necessidades do homem, a ativi­
dade prática, laboriosa, é impossível. Isso confirma o fato de
que a consciência, aspecto necessário da atividade produtiva,
forma-se e desenvolve-se ao mesmo tempo que esta última.
Embora sendo esse aspecto prático que transforma a
realidade objetiva da atividade em interesses da sociedade, a
consciência não se confunde com essa atividade. Essa atividade
6 um processo material. “O trabalho, escreve Marx, c antes
de tudo um ato que se passa entre o homem e a natureza. O
próprio homem desempenha, nesse caso, frente a frente com
a natureza, um papel de potência natural ( . . . ) . As forças
das quais seu corpo é dotado, braços e pernas, cabeça e mãos,
são colocadas em movimento, por ele, a fim de assimilar as
matérias dando-lhes uma forma útil para sua vida”51. Quanto
à consciência, é, por natureza, ideal; ela é o reflexo, a fotografia,
a cópia da realidade existente e a representação, repousando
sobre esse reflexo (sob a forma de um sistema de imagens
ideais e de relações), da realidade futura, que atualmente ainda
não existe. Ela não é o processo real da criação de novas
formações materiais, mas sim o modelo ideal do processo de
criação e seu resultado, assim como o fator que controla o
desenrolar da criação, confrontando constantemente a esse
modelo os atos do sujeito e seus resultados.
Assim, a consciência representa um reflexo consciente
ideal por sua natureza, associado à compreensão, pelo sujeito,
do que é refletido, reflexo que antecipa a realidade, representa
de forma subjetiva o resultado de sua transformação e de
seu desenvolvimento, e, a partir disso, torna possível a fixação
do objetivo e a criação. Em uma palavra, a “consciência
humana não reflete apenas o mundo objetivo, mas também o
criado”52. São somente todos esses momentos, em sua tota­
lidade, em sua correlação e interdependência orgânicas, que
constituem a essência da consciência, sua natureza específica.
A tentativa de reduzir as particularidades da consciência
unicamente ao reflexo da realidade conduz à supressão de sua
especificidade qualitativa e a identificá-la com formas inferiores
do reflexo.

slK. Marx, op. cit., p. 136.


52V. Lenin, op. cit., t. 38, p. 201.

104
Certos críticos contemporâneos da teoria leninista do
reflexo estabelecem da seguinte maneira seu raciocínio: inter­
pretando a consciência como reflexo da realidade, o marxismo
teria eliminado sua essência específica, pelo fato de que ele
a identifica aos processos de reflexo, próprios aos organismos
animais e vegetais e até mesmo às formações materiais da
natureza inanimada.
O filósofo iugoslavo Mihailo Markovic diz, por exemplo,
que o reflexo “não é uma característica específica da consciên­
cia humana; a percepção dos animais, o reflexo das plantas
e mesmo a interação dos objetos da natureza inorgânica são
igualmente formas particulares do refIexo”53. De acordo com
esse ponto de vista, “do qual o representante mais característico
é Lenin, além de muitos outros, entre os quais Todor Pavlov,
Gajo Petrovic declara que toda nossa vida espiritual é, em sua
essência, reflexo. E todas as formas de nossa consciência são
apenas diferentes aspectos do refiexo subjetivo da realidade
objetiva. Mas a consciência não é a única fonte de reflexo; a
matéria possui igualmente uma propriedade próxima da sen­
sação, a propriedade do reflexo. O reflexo é uma propriedade
geral do mundo material. . . ”54.
É correto dizer que o reflexo é próprio de toda a matéria.
Mas a decorrência disso não é a de que a consciência não seja
o reflexo da realidade. A consciência representa uma forma
superior do reflexo que é própria ao homem e que aparece
apenas na sociedade, sobre a base da atividade produtiva trans­
formando a realidade ao redor no interesse do homem. E
por isso que, jogando alguma luz sobre a essência da consciên­
cia, nós não podemos ignorar o fato de que ela representa o
reflexo da realidade. Porém, outra coisa é dizer que essas
características são insuficientes para colocar em evidência a
especificidade da consciência. Indicando que a consciência c
uma forma superior do reflexo da realidade, devemos mostrar
as particularidades dessa forma de reflexo que a diudngue das
outras formas de reflexo da realidade. Essa particularidade
reside no fato de que a consciência é o reflexo consciente da

“ M. Markovic, Humanizam i dijalektika, Belgrado, 1967, p. 129.


64G. Petrovic, Mladost, in FUozofija i marksizam, Zagreb, 1965,
p. 252.

105
realidade, a compreensão pelo sujeito, de seu ser e de seu
relacionamento, com o que o rodeia; que ela está ligada à
fixação do objetivo e à atividade, tendo em vista realizar os
objetivos e, ao mesmo tempo, transformar a realidade; ou,
em outros termos, essa particularidade reside no fato de que
a consciência é um aspecto e uma condição necessários da
atividade criadora. Nenhum desses traços pertence às outras
formas de reflexo, anteriores à consciência.
Mas, será suficiente, na definição da consciência, indicar
apenas os momentos específicos que a diferenciam dos outros
fenômenos, sem mencionar que ela é um reflexo, já que esse
reflexo não a distingue de outras formas de reflexo? Não, isso
não é suficiente. O reflexo da realidade é uma propriedade
fundamental da consciência, que condiciona a possibilidade de
existência de suas outras propriedades. Se a consciência perde
sua faculdade de refletir a realidade, ela perde também, ne­
cessariamente, todas as suas outras propriedades. De fato, a
tomada de consciência, pelo sujeito, de seu ser e de seu
relacionamento com a realidade ambiente, na qualidade de
índice de consciência, é apenas o reflexo da realidade; o sujeito
não compreende o que se passa ao seu redor a não ser por
meio do reflexo, por meio da utilização da informação obtida
dessa maneira. A fixação da meta como função determinada
da consciência apóia-se sobre as informações das quais o
homem dispõe e que são concernentes às propriedades e às
ligações da realidade ambiente, isto é, sobre os resultados do
reflexo, e, em última análise, sobre o reflexo das necessidades
do sujeito e ao mesmo tempo, de seu ser.
Enfim, chegamos à atividade criadora da consciência. Vá­
rios autores que se opõem à concepção da consciência como
reflexo da realidade pensam que o reflexo caracteriza o animal
e não o relacionamento do homem com a realidade. O homem,
declaram eles, é essencialmente criador. A atitude criadora,
praticada com relação à realidade, é característica do homem.
É por isso, segundo eles, que a consciência do homem deve
ser considerada não como o reflexo da realidade, mas como
sua criação. “Quando nós falamos da relação do homem e
da consciência humana com o mundo, declara Mihailo Mar-
kovic, devemos partir do fato de que somos seres práticos,
que antes de tudo nós trabalhamos. Essa é nossa característica
fundamental. É por isso que ( . . . ) a propriedade do reflexo
106
não é típica da consciência humana. Da mesma forma como
a teoria do conhecimento não é típica da filosofia marxista.
O reflexo não é típico da consciência humana, porque ele
existe igualmente na consciência dos animais. O que é típico
para a consciência do homem e sua atitude em relação ao
mundo é o fato de que esta atitude é criadora, ativa, prática”55.
Segundo os partidários desse ponto de vista, o homem
não reflete, mas cria, transforma o mundo, e não o faz apenas
quando age praticamente sobre ele, mas também quando o
interpreta e o explica. Criticando a segunda tese de Marx
sobre Feuerbach, segundo a qual os filósofos marxistas limi­
taram-se a interpretar o mundo de maneiras diferentes, sem
fixar-se como missão transformá-lo, Gajo Petrovic escreve:
“Uma interpretação do mundo que não signifique sua trans­
formação é logicamente impossível. .. Quando o homem
interpreta o mundo, ele muda, pelo menos, sua concepção do
mundo e, modificando sua concepção do mundo, ele não pode
deixar de modificar seu relacionamento com o mundo. Modifi­
cando sua concepção e sua conduta, ele influencia a compreen­
são e atividade de outros homens, que se encontram com ele
em diferentes relacionamentos.
É a prática que mostra até que ponto uma teoria modifica
o mundo. Mas, em princípio, uma teoria filosófica não pode
deixar de modificar o mundo, é impossível porque toda teoria
filosófia e, em geral, toda interpretação do mundo significam
uma certa criação do mundo”56.
Assim, segundo Petrovic, toda explicação, todo conheci­
mento do mundo constitui a criação, mas não o reflexo. O
reflexo é incompatível com a criação. “Não há nada nela de
criador”57. “Como conseqüência, conclui Petrovic, a teoria
leninista do reflexo não tem valor científico, ela é ‘incompa­
tível com a concepção marxista do homem enquanto ser criado,
prático’58. As tentativas de salvar a teoria do reflexo não têm
muitas chances de sucesso”58.

MNeki problemi teorije odraza, Belgrado, 1961, p. 140.


í «G.Petrovic, op. cit., p. 256.
57G. Petrovic, op. cit., p. 257.
68G. Petrovic, op. cit., p. 250.
5«G. Petrovic, op. cit., p. 256.
Vejamos até que ponto esses raciocínios estão bem fun­
damentados. É exato que o traço distintivo do relacionamento
humano com a realidade é a transformação desta no curso da
atividade prática. E é igualmente exato que devemos partir
desse fato para definir a essência da consciência, que surgiu a
partir da atividade laboriosa dos homens e que constitui uma
condição essencial de sua existência e de seu desenvolvimento.
Mas disso não decorre absolutamente que a consciência apenas
cria, sem nada refletir. A consciência não pode criar, não
pode produzir nada de novo sem refletir a realidade, sem
apoiar-se em suas propriedades e ligações necessárias refletidas
nas leis de sua transformação e de seu desenvolvimento, porque
tudo o que é novo, que aparece na realidade objetiva, graças
ao homem, em decorrência da atividade criadora de sua cons­
ciência, deve submeter-se a leis objetivas, existentes fora e
independentemente da consciência. Além disso, toda verda­
deira criação é o reflexo e a realização na consciência e na
realidade de possibilidades reais.
É lógico que, se pela atividade criadora da consciência
compreendemos a criação de qualquer idéia, corresponda ou
não ela à realidade, seja ou não ela realizável, então o reflexo
não será um aspecto necessário da consciência e essa criação
não pode transformar a realidade, fazendo dela um meio de
satisfazer as necessidades da sociedade. É por isso que ela
não pode constituir a essência das relações do homem com a
realidade. O relacionamento do homem com a realidade ca­
racteriza-se unicamente pela criação que conduz a uma trans­
formação real da realidade ambiente, ao estabelecimento de
condições necessárias para a existência e a evolução da socie­
dade. Como decorrência disso, só é possível quando ela reside
no reflexo da realidade existente e de possibilidades reais que
lhe são próprias.
Segundo os críticos da teoria leninista do reflexo, a ativi­
dade criadora da consciência não deve repousar sobre o reflexo.
E se o reflexo é necessário, não será nunca para realizar a
transformação prática da realidade, assim como também não
será para a criação do novo, mas sim para conhecer o que já
foi criado. É por isso que o reflexo realiza-se não na criação,
nem no período que a precede, mas quando a atividade criadora
já foi executada. “Ninguém poderia saber antecipadamente,
escreve sobre isso Dragan Jeremie, qual seria a sociedade

108
iugoslava antes que os políticos e nosso povo tivessem começado
a criá-la. Até 1950, ninguém poderia prever qual seria o
trabalho dos conselhos operários. No começo, foi preciso
observar seu trabalho na prática para, em seguida, compreender
que era uma nova forma de gestão socialista dos meios de
produção.” Mais tarde, “a partir da prática, modificações
foram-se produzindo em nosso sistema econômico. Em con-
seqüência, ele conclui, é preciso agir, criar, modificar e, em
seguida, observar atentamente como se desenrolaram as ações,
a criação, a transform ação...”60. Segundo Jeremie, os ho­
mens criam cegamente, por acaso, sem saber o que resultará
disso.
É fácil compreender que tal criação, assim como a criação
arbitrária das construções conceituais, não constitui a essência
do relacionamento do homem com a realidade, a função ne­
cessária de sua consciência. A essência da atitude do homem
em relação à realidade constitui a criação que repousa sobre
o reflexo da realidade existente e de suas possibilidades reais,
de seus aspectos e ligações necessários, das leis objetivas de
sua transformação e de seu desenvolvimento. É precisamente
a essa atividade criadora que a consciência está ligada, porque
é precisamente ela que determina sua essência específica.
Assim, qualquer que seja o ângulo sob o qual abordemos
a característica da consciência, somos obrigados a nos referir
ao fato de que ela representa o reflexo da realidade, reflexo
específico que se distingue fundamentalmente de outras formas
de reflexo próprias à matéria, mas que dela nada mais são
do que o reflexo.
A tese segundo a qual há, na consciência dr -j homens,
pensamentos, conceitos, juízos que, mesmo sendo verdadeiros,
na realidade nada refletem é habitualmente apresentada para
refutar a concepção da consciência como reflexo da realidade.
“Todos nós, escreve Petrovic, emitimos a cada dia juízos ver­
dadeiros, de cuja veracidade não duvidamos absolutamente,
embora não possamos responder à seguinte pergunta: ‘O que
eles refletem?’ O juízo existencialista negativo, por exemplo,
é verdadeiro, embora o que ele reflete não existe. Podemos
interpretar esse juízo como um reflexo da realidade? O que

00N ekl probleini teorije odraza, p. 141.

109
reflete o juízo: ‘Os centauros não existem’ ou, então, ‘Não há
quadrado redondo’? Todo o sistema dos juízos matemáticos
é um sistema de juízos verdadeiros, embora seja difícil precisar
o que eles refletem. O que reflete, pergunta-se o autor, o
juízo de passado, de futuro, de possibilidade, de impossibili­
dade?"«.
Esse raciocínio não tem nenhum fundamento real. Tem-se
a impressão de que, para o autor, só se pode tratar de reflexo
quando na consciência aparece a idéia de um objeto, de uma
propriedade ou de uma relação, realmente existentes. Entre­
tanto, isso está muito longe da realidade, já que a consciência
fixa não apenas o que existe, o que é próprio a um objeto
dado, mas igualmente o que não existe, o que não caracteriza
o objeto. No primeiro e no segundo casos, os juízos nos
quais realiza-se esta fixação são verdadeiros unicamente porque
eles refletem a situação real das coisas.
Os juízos de passado, de futuro, de possibilidade e de
impossibilidade são considerados por Petrovic a partir dessas
mesmas posições. Ele acha que é possível refletir apenas o
que existe no momento presente, no momento dado. Mas,
os juízos sobre o passado, o futuro, o possível e o impossível
concernem ao que não existe em um momento dado, ao que
não existe no momento presente. O autor não leva em conta
o fato de que o reflexo é não apenas imediato, mas também
mediato. O reflexo imediato supõe um objeto refletido exis­
tindo realmente em um momento dado, enquanto que o reflexo
mediato supõe que o objeto pode não existir realmente em um
momento dado. Sua reprodução na consciência faz-se por
meio do reflexo de outros objetos que permitem a expressão
desse ou daquele juízo verdadeiro sobre ele. O que nos serve
de base para pensar no que foi e no que será, quanto aos
objetos realmente existentes? A reprodução na consciência
do passado e do futuro, a partir do reflexo do presente, é pos­
sível porque o passado existe igualmente sob uma forma anu­
lada no presente. Refletindo a essência dessa ou daquela
formação material e descobrindo as leis de seu funcionamento
e de seu desenvolvimento, reproduzimos, de uma maneira ou
de outra, o processo de seu vir-a-ser, os graus transpostos de61

61G. Petrovic, op. cit., p. 254.

110
seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, os traços que lhe
são próprios. Sendo conhecida a essência da formação ma­
terial existindo realmente e colocando-se em evidência os
aspectos e tendências que lhe são próprios, podemos julgar
no que se tornará essa formação material no futuro, em outras
condições, e dizer como suas propriedades se transformarão,
o que elas virão a ser. Esses juízos serão verdadeiros e refle­
tirão a situação real das coisas.
A veracidade dos juízos de possibilidade e de impossibili­
dade resolve-se também nesse plano. A idéia de possibilidade
ou de impossibilidade repousa sobre o reflexo da realidade,
dos aspectos e ligações que lhe são próprios e necessários, das
leis da transformação.
Para provar que o reflexo não é uma característica necessá­
ria da consciência, alguns se referem igualmente a fenômenos
da consciência, como as emoções e a vontade, que não refletem
nada na realidade. “Quando eu digo, escreve sobre isso Pe-
trovic, que ele (o reflexo — A. Ch.) é incompatível com o
fenômeno da consciência, penso que ele não pode explicar-nos
porque, em que sentido e de que maneira todas as nossas
ações conscientes refletem a realidade. O que reflete a von­
tade e a emoção? O amor, o ódio, a inveja, a maldade serão
diferentes formas do reflexo de objetos exteriores aos quais
eles se dirigem?”62.
Percebe-se facilmente que esses raciocínios repousam
sobre uma compreensão estreita e simplista do reflexo. Se­
gundo esse autor, só pode ser reflexo o que reproduz na
consciência um objeto que se encontra diante de nós, enquanto
que a consciência reflete não apenas os objetos que agem sobre
os órgãos sensitivos do homem, mas também suas condições
de vida, as relações econômicas nas quais ele se encontra.
Ela reflete não apenas sob a forma de imagens ideais, repro­
duzindo esses ou aqueles aspectos dos objetos agentes, mas
também sob a forma de emoções, de aspirações, de estados
de espírito, de sentimentos. Estes últimos, em particular, re­
fletem a importância, para o sujeito, dos fenômenos que agem
sobre ele e sua atitude com relação a eles.
Para provar que a consciência não pode ser um reflexo
da realidade, alguns se referem às leis da correlação do sujeito

62G. Petrovic, op. cit., p. 254.

111
com o objeto, que testemunhariam de fato que a consciência
representa não o reflexo subjetivo da realidade, mas sua criação.
Danko Grlic diz que os que consideram a consciência como
um reflexo subjetivo do mundo objetivo “opõem claramente,
e sem qualquer equívoco, o sujeito a toda realidade objetiva
e assim excluem-na”. “O que representa, pergunta ele, um
determinado sujeito, se ele não é nem uma realidade material,
nem uma realidade objetiva?”. E ele mesmo responde: “Trata­
se então de uma ficção vazia, uma ilusão, uma invenção,
alguma coisa irreal. . . ”63,
A identificação do conceito de sujeito e do conceito de
reflexo subjetivo da realidade objetiva deve reter nesse ponto
nossa atenção. São, de fato, coisas extremamente diferentes.
O sujeito — se não for o reflexo subjetivo da realidade, nem
a consciência, mas sim um sistema material — a sociedade,
formada pelos homens, a partir da produção, da partilha e do
consumo de bens materiais, que são dotados de uma consciência
e, por essa razão, estão em condições de refletir, em imagens
subjetivas, a realidade objetiva. Sendo um sistema social ma­
terial, o sujeito não se exclui da realidade objetiva, mas inter­
vém na qualidade de uma de suas partes constitutivas, de uma
das formas do seu ser. Ele age também sobre outras formas
de existência da matéria que o rodeiam, reflete suas proprie­
dades e suas ligações em imagens subjetivas que aparecem nele
no curso dessa interação e, a partir da informação que elas
contêm, transforma de maneira racional a realidade ambiente.
Entretanto, não se deve pensar que Grlic ignora tudo isso.
Ele sabe o que os marxistas entendem por sujeito e é por isso
que ele se vê obrigado a deter-se especialmente sobre essa
concepção. “Podemos dizer, ele escreve .. .que o sujeito da
teoria marxista do reflexo representa um resultado histórica
e socialmente condicionado, que decorre da interpenetração
das leis dos fatores reais e do grau dado de desenvolvimento
social. Mas a dialética, para certos ‘teóricos’, prossegue, não
é a confusão de conceitos, um ecletismo insensato, que salva
sua inconseqüência por meio de frases sobre a interpenetração
de pólos opostos. Pelo fato de que o sujeito é o produto de
leis sociais, a tentativa de o introduzir na tese da imagem subje­
tiva do mundo objetivo é totalmente absurda. Nesse caso,

e3N eki problemi teorije odraza, p. 134.

112
não seria apenas o sujeito que seria uma ficção, mas também
todas essas leis econômicas, históricas e sociais, que conside­
ramos ilusões não objetivas, ineficazes e vazias e que opõem-se
à realidade” 64.
Assim, o reconhecimento da consciência como imagem
subjetiva da realidade objetiva deve, segundo Grlic, necessa­
riamente transformar o sujeito em alguma coisa de ilusório,
não efetivo, ou, em outras palavras, em uma ficção.
Mas de onde vem tudo isso? Por que então a faculdade
do sujeito de refletir, na consciência, sob uma forma subjetiva,
a realidade objetiva deve excluir o sujeito dessa realidade?
Por que essa faculdade deve transformá-lo em alguma coisa de
irreal? Pelo contrário, é precisamente esse fato, isto é, a
presença no sujeito da capacidade de um reflexo subjetivo da
realidade objetiva, do seu conhecimento, que o transforma em
um sujeito real, capaz de agir sobre o mundo ambiente e de
transformá-lo de forma criativa, porque, como já dissemos,
uma transformação que tende a uma meta da realidade pres­
supõe o conhecimento de suas propriedades e ligações necessá­
rias, das leis do seu funcionamento, do desenvolvimento e das
possibilidades que disso dependem. O sujeito privado da
faculdade de refletir a situação real das coisas, de conhecer as
leis do movimento e do desenvolvimento do mundo ambiente
não está em estado de agir de maneira racional, de transformar
praticamente a realidade, de criar o novo. Sem isso, ele não
pode ser um sujeito real, válido. Isso significa que não é a
presença, no sujeito, da faculdade do reflexo subjetivo da rea­
lidade objetiva, mas sua ausência, que transforma o sujeito em
ficção, em alguma coisa de irreal.
Um outro argumento é apresentado contra a concepção
de que a consciência é o reflexo da realidade: se a consciência
representa o reflexo da realidade, seu desenvolvimento deve
necessariamente conduzir ao conhecimento definitivo da natu­
reza e da sociedade. Mas, nesse caso, o mundo inteiro teria
de ser contido em nossa consciência e, então, esta, como cons­
ciência humana, teria, a nosso ver, de desaparecer, perder sua
atividade e transformar-se em um espelho-refletor universal.
Esse raciocínio, assim como o seu precedente, não tem

^ N e k i problemi teorije odraza, p. 133-4.


,sN eki problemi teorije odraza, p. 134.

113
nenhum fundamento real, não reflete a situação verdadeira das
coisas. Primeiramente, o conhecimento humano nunca atingirá
o ponto <;e desenvolvimento em que tudo será inteiramente
conhecido, em que o mundo inteiro será refletido na consciência
dos homens; isso é impossível, porque a realidade refletida não
é estática, mas transforma-se e desenvolve-se continuamente.
Em segundo lugar, nenhum desenvolvimento do conhecimento
pode conduzir à transformação da consciência de um homem
em consciência universal, porque as possibilidades de um indi­
víduo são sempre limitadas e ele não está em condições de
possuir todos os conhecimentos dos quais dispõe a humanidade.
Em terceiro lugar, o acréscimo dos conhecimentos dos homens
não apenas não elimina sua atividade, mas a reforça pelo fato
de que sua possibilidade criativa e seu campo de atividade
alargam-se.
A crítica da teoria marxista da consciência, considerada
como reflexo da realidade, reserva um lugar importante para
a demonstração da “falsidade” da tese leninista sobre a sensa­
ção como imagem subjetiva da realidade objetiva. Essa
demonstração é feita, em geral, da seguinte forma: toma-se
uma certa sensação, freqüentemente a sensação de cor, e mos­
tra-se que ela não é uma cópia exata, uma fotografia das ondas
luminosas de comprimentos correspondentes. Em seguida,
conclui-se que a teoria leninista das sensações como cópias,
imagens de objetos do mundo exterior é falsa. Procedem
dessa maneira, em particular, A. James Gregor e H. B. Acton.
Tem-se a impressão, diz Gregor, de que a declaração leninista,
segundo a qual as sensações são cópias ou imagens de objetos,
deve ser incontestável, mas mesmo uma análise preliminar será
suficiente para evidenciar mais do que o caráter insensato dessa
afirmação.
“A primeira dificuldade, ele prossegue, surge com o exame
dos simples predicados que devem ser atribuídos aos objetos
do mundo exterior. O que temos em vista, por exemplo,
quando dizemos de alguma coisa que ela é vermelha? A cor
vermelha da qual partimos não pode ser concebida em um
sentido pouco significativo, como uma ‘cópia’, um ‘reflexo’, ou
uma ‘fotografia’ da onda luminosa de um comprimento de
647.760 milionésimos de milímetro”66.68
68A. James Gregor, Lenin on thè nature of sensations, in Studies
on the left, 1963, v. 3, n. 2, p. 35.

.114
“A vibração do éter e a sensação da cor, escreve Acton,
desenvolvendo a mesma idéia exposta acima, são muito diferen­
tes uma da outra, embora pareça estranho supor que as cores
percebidas sejam cópias, fotografias ou espelhos refletores da
vibração”6?.
Torna-se evidente, aqui, que esses autores dão aos termos
“cópia”, “fotografia” e “reflexo” o mesmo sentido que eles
adquirem quando os empregamos para a concepção dos fenô­
menos físicos. Por cópia, eles entendem cópia física, por
fotografia, clichê fotográfico, e por reflexo, reflexo do espelho.
Isso é o que se destaca, em particular, da afirmação de Gregor:
“Nós todos temos consciência do que entendemos quando fa­
lamos de ‘imagens’ no sentido de fotografia, pensamos na
semelhança icônica — como se falássemos da semelhança de
um retrato”6869.
Mas Lenin dava um outro sentido a esses termos. Ele
salientava que as sensações são imagens subjetivas das coisas,
ideais, cópias, clichês ideais e não físicos68. Sendo imagens
subjetivas, isto é, existindo unicamente na consciência dos
homens, as sensações sofrem a influência não apenas do objeto
refletido, ou de suas propriedades, mas também do homem
refletor, dependendo não apenas do objeto, mas também do
sujeito, de seus órgãos sensitivos, de seu sistema nervoso, de
seu estado psíquico. Em outros termos, a sensação é o resul­
tado da interação do objeto com o sujeito, ela traduz a apre­
sentação do objeto ao sujeito e, como todo fenômeno, não
apenas exprime a essência do objeto agente, mas, ao mesmo
tempo, a deforma. Não é por acaso que todo fenômeno,
quando coloca em evidência a essência desse ou daquele objeto,
não coincide com ela, mas dela distingue-se. Isso é ainda
mais característico da sensação, que exprime a essência do
objeto agindo sobre os órgãos sensitivos do homem, não sob
uma forma material, mas sob uma forma ideal, subjetiva.
Segue-se que a sensação não pode ser uma cópia literal e
completa, um espelho refletor fiel aos objetos, mas sim uma

e7A. B. Acton, The illusion o f the epoch. Marxism-leninism as a


Philosophical creed, Londres, 1955, p. 40.
e8A. James Gregor, op. cit., p. 35.
69V. Lenin, op. cit., p. 121.

115
reprodução modificada, segundo as particularidades do sujeito
refletor, desses ou daqueles aspectos, propriedades, do objeto.
Não se deve acreditar que isso tenha escapado aos críticos
da teoria leninista do reflexo. Eles citam especialmente a pas­
sagem em que Lenin faz referência à subjetividade das sensações
e o criticam. “Uma das tendências do marxismo contemporâ­
neo, escreve sobre isso A. J. Gregor, dá uma interpretação das
declarações de Lenin com um espírito crítico realista, isto é,
afirma que a forma da sensação é subjetiva, enquanto seu
conteúdo é objetivo. Em outros termos, a sensação de vermelho
é uma forma subjetiva ‘do conteúdo objetivo’ da onda de
comprimento dos 647.670 milionésimos de milímetro”.
“ ( . . . ) Mas essa interpretação, ele prossegue, é vulnerável
e podemos fazer a ela numerosas objeções”70.
Em seu raciocínio contra a interpretação da sensação
enquanto “imagem subjetiva do mundo objetivo”, Gregor diz
o seguinte: “Se consideramos que a sensação possui uma forma
subjetiva e y.n conteúdo objetivo no sentido anteriormente ci­
tado, poderemos então dizer de forma precisa que as sensações
‘refletem’, ‘representam’, ‘fotografam’ a realidade? Não seria
mais exato dizer que, nas melhores condições, as sensações
‘assinalam’ a ‘realidade’ (isto é, as ondas luminosas, os elétrons,
os fótons etc.), que pode ser deduzida apenas por uma análise
conceituai e uma construção lógica?”7!.
O fato de que a sensação seja uma imagem subjetiva não
exclui um outro fato, o de que ela reflete a realidade objetiva,
da qual ela é uma cópia. A necessidade do pensamento abstra­
to, da análise lógica e da síntese para estabelecer a situação
real das coisas e descobrir a essência do objeto agente sobre
os órgãos sensitivos não mostra que a sensação não reflete a
realidade, mas sim que ela reflete, copia seus aspectos exterio­
res, o que se encontra na superfície, isto é, o fenômeno. E o
fenômeno, como já dissemos, não coincide com a essência, ele
a deforma. Refletindo o fenômeno e os aspectos exteriores
da realidade objetiva, a sensação não está em condições de nos
fornecer o conhecimento da essência. É por isso que surge a
necessidade do pensamento abstrato que, por meio da análise

70A. James Gregor, op. cit., p. 38.


71A. James Gregor, op. cit., p. 38.

116
lógica das sensações e da edificação de construções correspon­
dentes, realiza a passagem do exterior ao interior e reproduz
de maneira mais ou menos precisa a situação exata das coisas.
É preciso salientar aqui que a passagem do exterior ão interior,
da fixação do fenômeno nas sensações à reprodução da essência
do objeto no processo do pensamento abstrato torna-se possível
unicamente porque a realidade objetiva, seus aspectos e seus
momentos são refletidos, são copiados nas sensações, porque
é apenas apoiando-se sobre o conhecimento desses aspectos e
propriedades próprios ao objeto refletido, existente objetiva­
mente com relação à natureza, que o conhecimento teórico
pode edificar construções conceituais, que reproduzirão a
essência do objeto estudado no sistema dos conceitos abstratos.
Assim, a subjetividade das sensações e o fato de que elas
não estão em condições de fornecer o conhecimento da essência
do objeto agente sobre os órgãos sensitivos não provam que
elas não refletem a realidade objetiva.
A segunda objeção de Gregor à subjetividade das sensa­
ções é igualmente sem fundamento. “Se, ele declara, apenas
a forma subjetiva (as sensações) nos é imediatamente dada,
quem pode nos garantir que podemos adivinhar o conteúdo
objetivo da experiência sensível?”'?2'.
Quando Lenin diz que a sensação é uma imagem subjetiva
do mundo objetivo, ele entende por subjetividade a dependência
das sensações ao sujeito, isto é, sua existência na consciência
do homem, como formações ideais, espirituais. Sendo subjetivas
por sua forma de existência, as sensações encerram, em seu
conteúdo, momentos que, sob uma forma específica para o
sujeito (sob a forma de imagens ideais conscientes), refletem
os aspectos correspondentes do objeto agente sobre os órgãos
dos sentidos do homem e têm “um conteúdo independente do
sujeito, independente do homem e da humanidade”73. A
presença desses momentos objetivos no conteúdo das sensações
garante o fato de que a experiência sensível nos dá um conhe­
cimento definido, verdadeiro, do mundo exterior, da realidade
objetiva.
Gregor entende a subjetividade a sua maneira. Para ele,
a subjetividade das sensações designa a ausência no mundo das

72A. James Gregor, op. cit., p. 38.


73V. Lenin, op. cit., p. 125.

117
propriedades das quais tomamos consciência por meio das
sensações. É por isso, e não por acaso, que ele nega a existên­
cia no mundo ambiente de todas as propriedades colocadas em
evidência pelos homens no processo do conhecimento. E ainda
mais, ele faz a imputação dessa negação a Lenin. “ ( • • • ) Ago­
ra, com o aparecimento da relatividade e da física nuclear, ele
declara, não há mais qualidade única das ‘coisas’ que, em um
certo sentido, não seja ‘refutada’. Nem o comprimento, nem
a extensão, nem a cor, nem o gosto, nem a forma, nem a
estrutura, nem a impenetrabilidade podem apresentar-se como
qualidades objetivas no sentido ontológico. Sob a pressão
dessas considerações, Lenin foi obrigado a afirmar que a ‘filo­
sofia do materialismo’ não deve designar qualidades definitivas
do objeto percebido, com exceção da propriedade ‘de existência
incondicional fora da consciência’’4. Depois de ter feito de
Lenin um subjetivista, Gregor escreve que: “Se nós só somos
capazes de determinar corretamente, em parte, as propriedades
objetivas da matéria, como podemos dizer que as sensações
‘copiam’, ‘refletem’ e ‘fotografam’ essas propriedades?”’^.
No que concerne a Gregor, ele deve ter, é claro, liberdade
para ter a representação que ele quiser para essa ou aquela
propriedade. da realidade ambiente. Mas, pelo fato de que ele
confere a Lenin seu próprio ponto de vista, devemos deter-nos
nesse particular e examiná-lo mais detalhadamente.
Em primeiro lugar, nem a teoria da relatividade, nem a
física nuclear refutaram a objetividade da existência das pro­
priedades da matéria como o espaço, o tempo, a forma, a estru­
tura etc. Não é sua objetividade, sua existência fora e indepen­
dentemente da consciência que é refutada, mas seu caráter
absoluto, sua imutabilidade, sua independência com relação às
formas concretas de existência da matéria.
Em segundo lugar, falando da objetividade da existência,
como propriedade única da matéria, em cujo reconhecimento
está ligado o materialismo filosófico, Lenin não negava a exis­
tência, na matéria, de outras propriedades universais e especí­
ficas; como por exemplo, ele salientava especialmente que esta

7,A. James Gregor, op. cit., p. 38-9.


75A. James Gregor, op. cit., p. 39.

118
é inconcebível sem o movimento, fora das cart cterísticas
espaciais e temporais etc. Ele fazia referência não à ausência
na matéria e nas formas concretas de seu ser dessas ou daquelas
propriedades objetivas, mas à relatividade de nossas represen­
tações dessas propriedades, à inevitabilidade da modificação
dessas representações no decorrer do desenvolvimento do co­
nhecimento social e da prática. Mas, falando do caráter rela­
tivo de nossos conhecimentos dessas ou daquelas propriedades
da realidade objetiva, Lenin destacava que elas trazem em si
momentos de absoluto, que nem tudo em seu conteúdo muda
com o desenvolvimento do conhecimento. Algumas idéias,
teses, conceitos, por refletirem de forma justa esse ou aquele
aspecto da realidade, permaneceram e constituem elos que
formam uma corrente infinita da verdade absoluta.
Logo, a afirmação de Gregor, segundo a qual “nós só
podemos determinar corretamente uma parte das propriedades
objetivas da matéria”, é, simplesmente, muito errada, não cor­
responde à situação real. A prática social mostra que podemos
determinar com precisão suficiente numerosas propriedades da
realidade ambiente. Ela demonstra constantemente que nossas
sensações refletem, copiam essas propriedades.
Certos autores, e em particular Acton, apresentam o se­
guinte argumento contra a concepção marxista da sensação
enquanto reflexo, cópia da realidade objetiva: “Se o sujeito
perceptivo, ele declara, nunca tem acesso direto às realidades
materiais que existem fora dele, mas tem apenas acesso às
cópias que essas matérias produzem nele, então o sujeito não
pode saber quais cópias são verdadeiras e quais são falsas,
quais as que se assemelham e quais as que não se assemelham
a seus originais”'?6.
Efetivamente, a realidade objetiva apresenta-se ao homem
sob a forma de imagens subjetivas que são suas cópias, mas
isso não significa que o homem não tenha acesso imediato à
realidade objetiva. Esse acesso é aberto para ele pela atividade
prática, no curso da qual, orientando-se pelas cópias ideais
dos aspectos e ligações dessa realidade que se encontram em
sua consciência, o homem transforma a realidade e assim ele
próprio diz se essas cópias correspondem ou não ao original.78

78H. B. Acton, op. cit., p. 37.

119
Da mesma maneira, referem-se freqüentemente ao fato de
que a concepção da consciência, como reflexo da realidade,
não é específica do marxismo, que não representa o que o
marxismo trouxe de novo para o estudo desse problema e que
tal solução da questão é um feito não apenas de todos os
materialistas pré-marxistas, mas também de certos idealistas.
Alegando a concepção das sensações como cópias, foto­
grafias e imagens de coisas, expressa por Lenin, A. James
Gregor faz notar, por exemplo, que: “Tem-se a impressão de
que Lenin adota esse tipo de representação identificando-se com
o materialismo dos séculos X V II e X V III”77. “A teoria do
reflexo, escreve sobre isso Markovic, não é típica da filosofia
marxista; desde Demócrito, ela foi defendida pelas diferentes
formas do realismo ingênuo e do materialismo mecanicista.
Esta teoria não exprime o elemento novo trazido por Marx à
FiIosofia’T8. Segundo Branko Bosniak, se se trata da teoria
do reflexo, é interessante lembrar que ela não é específica da
teoria do materialismo filosófico. A teoria do reflexo foi
apresentada pela primeira vez no sistema filosófico de Platão,
que considerava que tudo o que existe (o real) deve ter seu
modelo em alguma coisa de absoluto (a idéia). . . ”79. A teoria
do reflexo, declara Dano Grlic, “evidentemente não é um
produto especial do pensamento marxista e os materialistas não
são os únicos a aceitá-la. . . já que ela também é aceita por
vários idealistas objetivos. Platão que, por coisas objetivas
entende as idéias e também considera que o processo cognitivo
desenvolve-se no plano do subjetivo está, sem dúvida alguma,
de acordo com ela. . . ”80.
É verdade que a concepção da consciência como reflexo
da realidade caracteriza não apenas o marxismo, mas também
a filosofia pré-marxista. É também verdade que esta concepção
não constitui o elemento novo trazido pelo marxismo à Filo­
sofia. A filosofia marxista não nasceu do nada, ela é herdeira
de tudo o que é racional, de tudo o que foi obtido pela filosofia
precedente. É precisamente a esse racional que se relaciona
a tese segundo a qual a consciência é um reflexo da realidade.78

77A. James Gregor, op. cit., p. 36.


78M. Markovic, op. cit., p. 129.
™Neki problemi teorije odraza, p. 108.
aoN eki problemi teorije odraza, p. 134.

120
Tendo emprestado essa tese dos filósofos materialistas, Marx
e Engels não a deixaram em sua forma primitiva, mas a desen­
volveram. Eles a livraram de seu caráter contemplativo e
mecanicista. Para Marx e Engels, o reflexo da realidade
objetiva pela consciência não se produz passivamente, como
no espelho, nem de forma estática, como pensavam os materia­
listas pré-marxistas, mas de maneira ativa, criativa, sobre a
base e no decorrer da transformação prática da realidade. E
tudo isso constitui precisamente o elemento novo introduzido
por Marx e Engels na concepção do reflexo da realidade
objetiva pela consciência, concepção da qual parte Lenin na
elaboração da teoria do reflexo. Os críticos da teoria leninista
do reflexo a apresentam como se ela não se distinguisse em
nada das concepções da consciência, apresentadas pelos mate­
rialistas pré-marxistas.
Alguns, como Gajo Petrovic e outros, consideram que o
mérito de Marx e Engels foi o de considerar o homem como
um ser criador e de assim ter transposto o caráter contempla­
tivo do materialismo anterior, mas eles também afirmam que
a teoria do reflexo contradiz a essência da teoria marxista,
embora essas teses tenham sido apresentadas tanto nas obras
de Marx e Engels com nas de Lenin. Sobre isso Petrovic
escreve que: “Eu sublinho que a teoria do reflexo é incompa­
tível com a concepção marxista do homem, como ser criador
prático. Quando digo isso, não afirmo absolutamente que essa
teoria não se encontre nas obras de Engels e Lenin e mesmo
nas de Marx”81. “Os elementos da teoria do reflexo, ele
prossegue, são descobertos até mesmo onde não esperávamos
encontrá-los, como, por exemplo, na primeira parte da tese de
Marx sobre Feuerbach, se a examinamos isoladamente. Em
compensação, essa teoria encontra-se em contradição com toda
a concepção marxista do mundo e do homem”88.
Outros ainda, percebendo a introdução feita por Marx,
do momento da atividade na teoria do conhecimento, dizem
que ele foi obrigado a adotar essa atividade para satisfazer sua
teoria materialista do desenvolvimento social. ( . . . ) Para ga­
rantir, escreve Henry B. Mayo, o fundamento determinista de

8iO. Petrovic, op. cit., p. 255.


82G. Petrovic, op. cit., p. 257.

121
suas leis de aço da história, Marx tinha freqüentemente a ten­
dência de adotar essa atividade (atividade do sujeito manifes-
tando-se no processo de sua interação com a realidade que o
rodeia •— A. Ch.) e fazer dela alguma coisa que se assemelha
às mais simplistas concepções de Engels e de Lenin, segundo
as quais a consciência é um simples reflexo da matéria dia­
lética”^ .
Os críticos da concepção leninista da consciência como
reflexo da realidade não podem ou não querem compreender
que essa tese não somente não contradiz a concepção marxista
do homem enquanto ser prático criador, mas que ela é um
aspecto necessário dessa concepção e que não apenas ela não
conduz à diminuição da atividade do sujeito em sua influência
sobre a realidade ambiente, mas ainda que ela torna possível
o fundamento científico dessa atividade, descobrindo as condi­
ções da ação criadora do sujeito.
No que concerne aos argumentos segundo os quais os
idealistas objetivos compartilham a concepção da consciência
como reflexo da realidade, e segundo os quais uma tal con­
cepção caracteriza a teoria de Platão, esses argumentos não
têm nenhum fundamento real. Para os marxistas, a concepção
da consciência como reflexo da realidade está ligada à solução
materialista da questão fundamental da Filosofia e constitui um
aspecto necessário dessa solução. A consciência é secundária
em relação à matéria, porque é engendrada por ela em um
certo estágio de seu desenvolvimento e também porque é o
reflexo da natéria que existe fora e independentemente dela.
Nenhum idealista pode aceitar essa solução da questão. Para
os idealistas, a consciência não é segunda em relação à matéria,
ela é primeira, engendra a matéria, as coisas sensíveis e, de uma
maneira ou de outra, reflete-se nelas. Para eles, não são as
idéias que a constituem que são fotografias, cópias das coisas
materiais, mas, pelo contrário, estas últimas é que são cópias
das idéias. E isso é também precisamente o que acontece com
a solução dessa questão na teoria de Platão. Parece-nos, então,
muito claro que a concepção marxista da consciência, como
reflexo da realidade, não apenas nada tem em comum com
a concepção idealista e, em particular, com a concepção pla­
tônica, mas ainda que ela é diretamente oposta a elas.8

88H. B. Mayo, Introduction of marxist theory, New York, 1960, p. 44.

122
Examinamos o conjunto dos principais argumentos apre­
sentados por diferentes autores contra a concepção marxista
da consciência como reflexo da realidade e vimos que eles não
têm fundamento. A consciência é uma forma particular, supe­
rior do reflexo do mundo exterior e é unicamente por isso
que ela pode orientar o homem na realidade ambiente e trans­
formá-la, modificá-la de forma criativa.

123
IV. AS CATEGORIAS
COMO G R A U S
DO DESENV O LV IM ENTO
DO CONHECIM ENTO
SOCIAL E D A PRÁTICA

Com o surgimento da consciência, o reflexo da realidade,


pelo sujeito, adquire um caráter consciente e manifesta-se, antes
de tudo, sob a forma de conhecimento, chamado para assegurar
à sociedade os conhecimentos necessários para a organização
e o desenvolvimento da produção, assim como a transformação
do meio ambiente no interese do homem.
Estando ligado organicamente à atividade laboriosa dos
homens e à prática, o conhecimento, como já fizemos observar,
funciona a partir da prática e desenvolve-se da intuição viva
ao pensamento abstrato, e do pensamento abstrato à prática,
como critério de verdade. Repetindo um número infinito de
vezes o ciclo: intuição viva-pensamento abstrato-prática, o co­
nhecimento desenvolve-se, descobre novos aspectos e ligações
e, em um certo estágio de seu desenvolvimento, começa a captar
e a distinguir as propriedades e as ligações universais e a tomar
consciênci? das leis universais da realidade e das formas uni­
versais do ser.
Os aspectos e as ligações universais conhecidos exprimem-
se, como já dissemos, nas categorias que, sendo formas do
reflexo do universal, são também, ao mesmo tempo, pontos
centrais, graus do movimento do conhecimento inferior ao
superior.
Em que ordem realizou-se o conhecimento das formas
universais do ser, das propriedades e das ligações universais da
realidade? Em que ordem surgiram as categorias filosóficas e
qual a relação existente entre elas, enquanto graus do desen­
volvimento do conhecimento social?
Vamos tentar aqui responder a essas perguntas.

124
1. A RELAÇÃO ENTRE
AS CATEGORIAS
DA DIALÉTICA ENQUANTO
GRAUS DO DESENVOLVIMENTO
DO CONHECIMENTO

Sabemos que a forma primeira, a mais simples do apareci­


mento da consciência, é a tomada de consciência, pelo homem,
de sua existência, a separação de si com relação à natureza e a
compreensão de sua relação com ela. O animal não se distingue
da realidade que o rodeia, ele não sabe que existe. “O animal,
escrevem a esse respeito Marx e Engels, ‘não está em relação’
com nada, não conhece, somando tudo, nenhuma relação.
Para o animal, suas relações com os outros não existem en­
quanto relações”1. É o homem que, tendo já adquirido a
consciência, nota pela primeira vez sua existência e toma
consciência de seu relacionamento com o mundo exterior.
Desligando-se da natureza pelo trabalho, o homem toma
consciência de sua autonomia e de seu relacionamento com o
mundo exterior por meio da ação ativa que ele exerce sobre
este último, transformando-o, segundo seu projeto, no interesse
da sociedade. Isso condiciona o fato de que a relação do
homem com o mundo exterior manifeste-se, antes de tudo,
como uma interação com o mundo, cujo resultado é a trans­
formação deste último. Esses momentos do relacionamento
do homem com a realidade ambiente são captados por meio
dos conceitos de correlação e de movimento.
A separação em si, com relação à natureza, supõe a tomada
de consciência pelo homem da espacialidade, da existência dos
objetos fora dele e, ao mesmo tempo, do aparecimento da
representação, depois do conceito de espaço, das características
espaciais. O conhecimento das particularidades das transfor­
mações intervindo na realidade ambiente, em decorrência da
atividade laboriosa, conduz à formação do conceito de tempo,
como medida de toda modificação e de todo movimento con­
cretos.
Confrontando-se no processo do trabalho e na vida quo­
tidiana com o particular, isto é, com os objetos, fenômenos,
processos particulares, o homem distingue aqueles dentre eles

’K. Marx, F. Engels, L ’idéologie alemande, p. 59.

125
que, estando de uma maneira ou de outra ligados a sua atividade
vital, poderiam ser utilizados para a satisfação dessa ou daquela
necessidade da sociedade e os concebia, no começo, como
alguma coisa singular, inédita, jamais encontrada.
Mas, à medida que foi descobrindo outros objetos, capazes
de satisfazer a essa mesma necessidade, o homem os reuniu em
um mesmo grupo e fez deles uma representação geral, depois
um conceito, e assim executou a passagem, na consciência, no
pensamento, do singular ao geral e, no curso do desenvolvi­
mento ulterior da prática, ao universal.
Tomando consciência do particular (objeto, processo,
fenômeno) como singular, o homem julgava-o sob o ângulo de
sua qualidade e esforçava-se para elucidar o que representava
esse objeto. Nesse grau do desenvolvimento do conhecimento
do objeto, as características quantitativas eram indiferenciadas
e manifestavam-se como qualitativas. Mas, à medida que o
homem passava de um objeto para vários, e comparando-os na
prática e na consciência, ressaltava sua semelhança, isto é,
o geral e o diferente (particular), ele começava a tomar cons­
ciência das características quantitativas. Cada aspecto da qua­
lidade, cada uma de suas propriedades pareciam desdobrar-se;
ao lado da manifestação do que ela representava, revelava
também sua grandeza.
As características qualitativas e quantitativas distinguidas
nesse grau do desenvolvimento do conhecimento são considera­
das pelo homem como coexistentes, independentes umas das
outras. O desenvolvimento ulterior do conhecimento do objeto
conduz à descoberta da correlação e da interdependência orgâ­
nicas das características qualitativas e quantitativas, de sua in­
terpenetração e de sua passagem de uma a outra.
Com o conhecimento da correlação entre os diferentes
aspectos da qualidade, entre as características quantitativas e
as passagens recíprocas da quantidade e da qualidade, o ho­
mem consegue tomar consciência de que a transformação de
um aspecto, de uma propriedade, de um fenômeno é condicio­
nada por uma certa modificação de um outro aspecto, uma
outra propriedade, um outro fenômeno. O que engendra o
outro e condiciona seu aparecimento reflete-se no conceito de
causa-, o que é engendrado e condicionado reflete-se no conceito
de efeito.

126
O estudo da ligação de causa e efeito, mostra que, em
certas condições, a causa engendra o efeito corespondente, que
a ligação da causa e do efeito possui um caráter necessário.
Surge, então, o conceito de necessidade. A necessidade é,
antes de tudo, concebida como propriedade da ligação de
causa e efeito. Entretanto, no decorrer do desenvolvimento
do conhecimento, o conteúdo do conceito de necessidade vai
precisando-se. Começa-se a considerar como necessários não
somente os laços causais, mas também todas as ligações que
se manifestam necessariamente em certas condições, e não
apenas as ligações, mas também as propriedades e os aspectos,
próprios ao objeto por sua natureza. As ligações necessárias
estáveis, repetindo-se, começam a ser consideradas como leis,
a ser concebidas mediante o conceito de lei especialmente
criada pelo seu reflexo .
À medida que vão-se acumulando conhecimentos sobre
as propriedades e ligações (leis) necessárias no domínio estu­
dado da realidade, surge a necessidade de reunir todos esses
conhecimentos em um todo único e de considerar todos os
aspectos (propriedades) e ligações (leis) necessárias do objeto
em sua interdependência natural. A reprodução, na consciência
e no sistema, de imagens ideais (conceitos) do conjunto dos
aspectos e ligações necessários próprios ao objeto representa
o conhecimento de sua essência.
O movimento em direção da essência começa com a defi­
nição do fundamento — do aspecto determinante, da relação
— que desempenha o papel de célula original na tomada de
consciência teórica da essência do todo estudado. A dedução
(explicação), desde o princípio de partida, de todos os aspectos
que constituem a essência do objeto supõe a análise do funda­
mento (do aspecto determinante, da relação) em seu movimen­
to, seu aparecimento e seu desenvolvimento, porque é precisa­
mente no curso de seu desenvolvimento que o fundamento faz
nascer e transforma outros aspectos e relações do todo (do
fundamentado) e assim forma sua essência. A representação
da célula original (do fundamento) do todo estudado em mo­
vimento e em desenvolvimento presume a descoberta de ten­
dências contraditórias que lhe são próprias, da luta dos contrá­
rios que condiciona sua passagem de um estado qualitativo a
outro. Assim, o conhecimento, desenvolvendo-se, chega final­
127
mente à necessidade da formação das categorias de “contradi­
ção", de “unidade" e de “luta dos contrários”.
Colocando em evidência a contradição própria do funda-
mento e seguindo seu desenvolvimento e sua resolução, assim
como a transformação do objeto, o sujeito descobre que a
passagem do objeto de um estado qualitativo a outro, efetua-se
mediante a negação dialética de certas formas do ser por outros,
a manutenção do que é positivo no negativo e a repetição do
que já passou sobre uma nova base superior. Os conceitos de
negação dialética e de meação da neeacãn surgiram para re­
fletir essa lei.
O conhecimento do objeto não termina com a reprodução
da essência na consciência. Ele vai ainda mais longe: por
um lado, da essência ao fenômeno (as propriedades e as liga­
ções contingentes exteriores explicam-se a partir dos aspectos
e das ligações interiores), por outro lado, da essência da
ordem primeira à essência da ordem segunda e assim suces­
sivamente até o infinito (à medida que descobrimos novas
propriedades e ligações necessárias do objeto, são produzidas
a elucidação teórica de sua essência e a elaboração de um
jiistema de conceitos por seu reflexo, que é sempre mais pre-
ciso e completo).

2. ORDEM DE APARECIMENTO
E DE APLICAÇÃO DAS CATEGORIAS
DA DIALÉTICA NO CURSO
DO DESENVOLVIMENTO
DO CONHECIMENTO CIENTIFICO
Pode-se observar a lei do movimento do conhecimento
de uma categoria a outra no desenvolvimento dos conhecimen­
tos científicos. Pelo fato de que as categorias são graus ne­
cessários do desenvolvimento do conhecimento social, o mo­
vimento de umas às outras deve necessariamente surgir em
qualquer domínio do saber.
Tomemos como exemplo a história do desenvolvimento do
conhecimento dos fenômenos elétricos. Sabe-se que na Anti­
guidade o âmbar foi descoberto sob a forma de objetos par­
ticulares, existindo de forma autônoma. Com o manuseio do
âmbar, do qual faziam jóias e ornamentos, os homens notaram
que, friccionado, ele adquiria a faculdade de atrair outros

128

\
corpos. A primeira coisa que foi observada nesse fenômeno
foi a ligação existente entre a faculdade do âmbar de atrair
outros corpos e a fricção, e a ligação do âmbar, pela atração,
com outros corpos, assim como as modificações condicionadas
por essas ligações (interações), isto é, o movimento. Tudo
isso no começo não passou de observações isoladas, concernin­
do certos casos de polimento do âmbar. Em seguida, à medida
que esse fenômeno se reproduzia, os homens conceberam a
idéia de que o âmbar era uma substância capaz de manifestar,
por meio da fricção, propriedades elétricas. O desenvolvimento
ulterior do conhecimento da eletricidade prosseguiu com a des­
coberta de novos corpos capazes de manifestar, por meio da
fricção, propriedades elétricas e da formação, assim, de uma
representação sempre mais geral da eletricidade. Na Grécia do
século IV, antes de nossa era, por exemplo, a propriedade de
atrair corpos leves por fricção foi observada em uma pedra
preciosa chamada lynkurion. No fim do século XVI, o sábio
inglês William Gilbert descobriu essa mesma propriedade no
diamante, na safira, na ametista, no cristal de rocha, no enxo­
fre, na resina e em outras substâncias. Em seguida, ficou
estabelecido que a faculdade de uma substância de atrair por
fricção outros corpos (mais leves) pertencia a todos os corpos
maus condutores de eletricidade. Finalmente, no começo do
século XVIII (1729), o físico inglês Stephen Gray descobriu
essa faculdade em corpos que eram também bons condutores
de eletricidade. Ele estabeleceu, então, que se esses corpos
fossem colocados sobre um suporte ¡solante, eles poderiam ser
eletrizados por fricção.
No decorrer dessas pesquisas, as características qualitativas
e quantitativas dos fenômenos elétricos foram colocadas em
evidência. Depois de haver descoberto a propriedade do
âmbar de, friccionado, atrair outros corpos, os homens esfor-
çaram-se, naturalmente, para compreender o que representava
esse fenômeno, isto é, esforçaram-se para elucidar seu aspecto
qualitativo. E para conseguir isso, eles compararam esse a
outros fenômenos. Comparando os fenômenos elétricos com
os fenômenos eletromagnéticos, Gilbert (1600) observou, por
exemplo, que a força elétrica surge graças à fricção, que desa­
parece no momento do contato com alguns corpos, que atrai
os mais diferentes corpos etc. Mais tarde, Guericke (1672)
estabeleceu que ao lado da atração elétrica existe também a

129
repulsão elétrica. Em 1729 Stephen Gray, generalizando várias
experiências com a eletricidade, concluiu que todos os corpos
dividem-se em condutores e em isolantes. Algum tempo depois
(1730), Du Fay estabeleceu que a eletricidade é qualitativa­
mente heterogênea e que há dois tipos de eletricidade. Em
1749, Franklin descobriu que, no momento da eletrificação
dos corpos, manifestam-se sempre dois tipos de eletricidade,
iguais em qualidade. Alguns anos mais tarde, John Cantón
descobriu a faculdade que um corpo, colocado sobre um suporte
¡solante, tem de eletrificar-se, se dele for aproximado um
outro corpo carregado de eletricidade etc. Assim, evidencian­
do uma após a outra, as propriedades da eletricidade, os sábios
formaram uma idéia cada vez mais completa de sua qualidade.
Depois de ter sido dada uma certa explicação sobre o
aspecto qualitativo dos fenômenos elétricos, a atenção dos
pesquisadores voltou-se em direção ao aspecto quantitativo e
às características desses fenômenos. Charles Coulomb deu
um passo decisivo no estudo do aspecto quantitativo da eletri­
cidade. Utilizando um aparelho que ele havia criado para
medir as forças de atração e de repulsão elétricas (balança
de torsão), estabeleceu, em 1784, uma série de características
quantitativas fundamentais da eletricidade.
A partir do século XIX, observa-se a passagem ao estudo
da correlação entre os diferentes aspectos quantitativos e qua­
litativos, assim como entre as características qualitativas e
quantitativas dos fenômenos elétricos. Em 1826, o físico
alemão Ohn provou que a resistência do condutor depende do
comprimento desse condutor, da superfície de sua secção e de
sua natureza. Bem mais tarde, o acadêmico russo Lenz e o
físico inglês Joule estabeleceram que a quantidade de calor
desprendida no momento da passagem da corrente elétrica em
um condutor depende da resistência desse condutor, da inten­
sidade da corrente e de sua duração.
No decorrer da análise da correlação das características
qualitativas e quantitativas dos fenômenos elétricos, foi feita
a tentativa de estabelecer o laço de causa e efeito desses fenô­
menos e de colocar em evidência as causas que os condicionam.
Assim, no começo do século XIX, o italiano Volta explicou
que há o aparecimento de uma corrente elétrica quando metais
diferentes são reunidos por uma articulação úmida. Em 1821,
o francês Arago descobriu que a agulha imantada desvia-se

130
no campo de uma corrente elétrica; em 1831, Faraday explicou
porque a rotação de um círculo de cobre provoca o desvio da
agulha imantada etc.
Os laços de causa e efeito, colocados em evidencia nos
fenômenos elétricos, foram apresentados como necessários, pro­
duzindo-se necessariamente em certas condições. Arago, por
exemplo, apresentou como necessário o laço de causa e efeito
no aparecimento de um campo magnético em torno de um con­
dutor percorrido pela corrente elétrica; o laço do campo
magnético e do desvio da agulha imantada foi apresentado
como necessário por Oersted.
As ligações necessárias mais importantes são concebidas
mediante a categoria de lei. A dependência da resistência
do condutor de sua substância, de seu comprimento e da
superfície de sua secção, por exemplo, colocada em evidência
por Ohm, foi chamada de lei. A quantidade de calor emitida
no momento da passagem da corrente elétrica pelo condutor
depende necessariamente da resistência do condutor, da inten­
sidade da corrente e do tempo; isso foi expresso em uma lei da
Física por Lenz e Joule. Por meio da categoria de lei foi
concebida a ligação necessária, evidenciada por Faraday, entre
a substância depositando-se sobre os elétrons e a quantidade
de eletricidade que atravessa o eletrólito etc.
À medida que houve o acúmulo de conhecimentos sobre
os aspectos e as ligações (leis) concernentes aos fenômenos
físicos, houve também a tentativa de estabelecer sua interde­
pendência, de reuni-los em uma teoria única, isto é, de repro­
duzir na consciência a essência da eletricidade. O período
do desenvolvimento do conhecimento dos fenômenos elétricos,
que começou com a descoberta do elétron e do próton, é um
exemplo do grau do movimento do conhecimento. Com a
descoberta do elétron, portador de carga elétrica negativa, e
depois com a descoberta do próton, cuja carga é positiva, o
átomo foi considerado como uma formação mate- al consti­
tuída por uma quantidade igual de elétrons e de prótons. A
carga do corpo era explicada pelo fato de que, por determina­
das razões, o número de elétrons não correspondia ao número
de prótons. Se havia menos elétrons do que prótons, o corpo era
considerado como tendo carga positiva, se havia mais elétrons
do que prótons, o corpo era considerado como tendo carga
negativa. Segundo essas concepções, a eletrificação dos corpos

131
não representava nada mais do que a criação neles de uma
insuficiência ou de uma superabundância de elétrons para sua
transmissão para outros corpos ou seu empréstimo destes
últimos. Isso explicava porque o aparecimento de uma certa
carga elétrica em um corpo acarreta necessariamente o apare­
cimento de uma carga oposta equivalente em um outro corpo.
Partindo da interação dos elétrons e dos prótons, a divisão da
carga entre os corpos carregados ou não-carregados no mo­
mento de seu contato, assim como o desaparecimento da carga
no momento do contato de corpos carregados opostos e a
introdução eletroestática etc. eram facilmente explicados. A
descoberta do elétron, como parte constitutiva do átomo de
qualquer substância, permitia igualmente a compreensão do
fato de que certos corpos são condutores de eletricidade,
enquanto outros corpos não o são. Esse fenômeno está ligado
à estrutura da camada eletrônica dos átomos. Partindo da
estrutura eletrônica, a essência de alguns fenômenos elétricos
torna-se compreensível, como, por exemplo, a corrente galvâ-
nica, a termoeletricidade, a introdução eletromagnética etc.
Dessa forma, o elétron constitui a base, o elo fundamental e
decisivo a partir do qual poderia ser explicado o conjunto
dos fenômenos elétricos, representando-os como um todo, como
uma corrente única da manifestação da natureza eletrônica da
substância. Nesse estágio de seu desenvolvimento, o conheci­
mento consegue captar a essência da eletricidade e compreender
as propriedades (fenômenos) elétricas em sua ligação necessá­
ria e em sua interdependência.
Assim, o desenvolvimento do conhecimento da eletricidade
testemunha que o conhecimento começa com a colocação em
evidência do particular, dos fenômenos particulares, de seu
isolamento e que passa ao reflexo de sua correlação, de sua
interação e da modificação (do movimento) desses fenômenos
particulares, que ele acarreta. No começo, o particular era
percebido como singular, depois, no curso da comparação com
outros fenômenos (objetos) particulares, o geral distinguiu-se
e houve o movimento do menos geral para o mais geral e,
enfim, para o universal. No processo do movimento do co­
nhecimento, do singular para o geral, efetua-se a evidenciação
da qualidade e da quantidade do objeto estudado e a passagem
da primeira à segunda, assim como sua correlação e, depois,

132
a passagem à causalidade, à necessidade, à lei, ao fundamento,
à contradição e à essência.

3. A RELAÇÃO DAS CATEGORIAS


COMO PONTOS CENTRAIS,
CONSIDERADA SOB O ÂNGULO
DO DESENVOLVIMENTO
DO PENSAMENTO FILOSÓFICO
A lei do movimento do conhecimento de uma categoria a
outra, que mencionamos acima, aparece claramente na história
da Filosofia, na ordem do estudo das categorias e da elaboração
das formas de movimento do pensamento filosófico. Para
examinar esse ponto, deteremo-nos um pouco na história da
Filosofia ocidental.
Os primeiros filósofos gregos, Thales, Anaximenes e Ana-
ximandro davam uma importância excepcional às categorias
de “ligação” e de “movimento”. Essas categorias desempe­
nhavam o papel de princípios iniciais na elaboração de suas
concepções do mundo. O estudo das categorias de correlação
e de movimento tornou necessária a análise dos conceitos de
espaço e de tempo. Os filósofos da Antigüidade referiam-se
aos conceitos de espaço para fundamentar o ser real das coisas
e de seu movimento. Para a existência e o movimento das
coisas, segundo eles, é preciso um lugar, isto é, o espaço. Lu­
crecio, por exemplo, dizia que se não houvesse nem espaço,
nem lugar — o que nós chamamos de vazio — os corpos
não poderiam encontrar-se em lugar algum e também não
poderiam deslocar-se. A formação do conceito f>' 'sófico de
espaço encerrou-se com a filosofia de Aristóteles que foi o pri­
meiro a utilizar esse conceito como categoria. Considerando
o espaço como um lugar ocupado alternadamente pelas coisas,
ele relaciona essa categoria com o limite que separa um corpo
do outro e assim reúne a categoria de espaço à categoria de
relação. No que concerne ao conceito de tempo, apenas Aris­
tóteles o estabeleceu definitivamente como categoria. Ò tempo,
segundo Aristóteles, é uma característica do movimento que
exprime nele a duração. O tempo, salientava Aristóteles, é
apenas “o número do movimento”2. Para mostrar a ligação
2Aristóteles, Phisique, Paris, I-1V t. 1, v. 1-4, p. 150.

133
orgânica do tempo e do movimento, ele escreveu: . medi­
mos não somente o movimento pelo tempo, mas também o
tempo pelo movimento, porque eles determinam-se reciproca­
mente; já que o tempo determina o movimento, do qual ele é
o número, e o movimento, o tempo”3.
Nesse mesmo período desenvolveu-se a elaboração das
categorias do “singular” e do “geral”. Os primeiros filósofos
gregos e, em particular, os representantes da escola de Mileto
elaboraram suas concepções partindo do particular, do singular
(da água, do ar etc), que tomava, para eles, a forma do ser
dos fenômenos concretos, embora também desempenhasse o
papel de princípio primeiro de tudo o que existe. Para Platão,
a forma determinante do ser é o geral, as essências ideais gerais
que constituem o mundo real; quanto ao particular, ao singular,
Platão denomina-o o mundo das sombras, cópia imperfeita do
mundo das idéias.
Aristóteles empreende a tarefa de colocar em evidência ?.
dialética do singular e do geral, do geral e do particular.
Considerando o mundo exterior, a realidade ambiente por
meio do prisma do particular, do singular, os primeiros filósofos
gregos estudavam os fenômenos que aí se desenvolviam sob o
ângulo de sua qualidade. Os pitagóricos concentraram sua
atenção no aspecto quantitativo dos objetos. No estudo desse
problema, Empédocles e Anaxágoras deslocaram o centro da
gravidade para a correlação da quantidade e da qualidade.
Segundo Empédocles, por exemplo, a qualidade de uma coisa
é determinada pela proporção na qual agrupam-se os quatro
elementos (“princípios”) que a compõem: a água, a terra, o
ar e o fogo. Essa elaboração, e a transformação posterior, dos
conceitos de qualidade e de quantidade e de sua correlação
em categorias foi efetuada por Aristóteles.
A filosofia de Aristóteles encerra o período do movimento
do conhecimento do singular ao geral e, em conseqüência, da
qualidade à quantidade e de sua correlação. Mas, encerrando
uma etapa do movimento do conhecimento, Aristóteles come­
çava outra. Ele analisa as categorias de “causalidade” e de
“forma”. A filosofia da Idade Média nada acrescentou à
contribuição de Aristóteles na elaboração dessas categorias
e também não trouxe nada de novo na análise das categorias3

3Aristóteles, op. cit., p. 153-4.

134
de singular e de geral, que permaneceram, entretanto, sempre
no centro das atenções.
Mais tarde, a intelecção das categorias de causalidade e
de forma entra, juntamente com a filosofia de Francis Bacon,
nos tempos modernos.
Ao contrário de Aristóteles, segundo o qual a causa ori­
ginal encontrava-se fora da matéria, Bacon considerava que
as causas das coisas estão contidas nos elementos (as nature­
zas), a partir dos quais se forma a coisa, isto é, não fora da
matéria, mas nela própria4. Procedendo à análise da causa­
lidade, Bacon pressentiu sua ligação com as categorias de forma
e de lei (necessidade). Segundo ele, as causas das naturezas
particulares (fenômenos, propriedades) são formas que não
representam nada além de leis5.
Na questão da concepção da forma, Francis Bacon deu
um grande passo a frente de Aristóteles que, separando a
forma da matéria, reconhecia a existência de uma matéria
indefinida (informe) e de uma forma imaterial pura e, parti­
cularmente, a forma de todas as formas — Deus. Segundo a
teoria de F. Bacon, a forma é inseparável da coisa material,
existe nela mesma, determina sua natureza, é uma lei à qual
esta coisa é submissa6.
Isso prova, precisamente, que a teoria de Bacon é que
representa esse estágio da história da Filosofia, que corresponde
ao grau de conhecimento ligado à colocação em evidência da
ligação de causa e efeito e à formação dos conceitos de forma
e de lei (necessidade).
Mas esse estágio não se encerra com Francis Bacon. En­
contramos o desenvolvimento da teoria da causalidade e de
sua ligação com a necessidade em Spinoza, que salientou o
caráter geral, universal da ligação da causa e efeito, identifi­
cando com a necessidade. Ao mesmo tempo, Spinoza colocou
a questão da causa primeira, do fundamento dos fenômenos
observados no mundo, da maneira pela qual as coisas começa­
ram a existir e em que tipo de dependência elas encontram-se
com relação à causa primeira; ele via na substância que, sendo

4F. Bacon, Oeuvres de Bacon : Nouvel Organon, Essais de morale


et de politique de la sagesse des anciens, Paris, 1945, p. 86.
5F. Bacon, op. cit., p. 85-6.
6F. Bacon, op. cit., p. 150.

135
sua própria causa, é também o fundamento de tudo o que
existe.
Prosseguindo o estudo da causalidade e da necessidade,
começado por F. Bacon, Spinoza passa para um novo grau,
um novo ponto nodal do desenvolvimento do conhecimento —
passa às categorias do fundamento e do fundamentado. Mas,
tomando a substância como fundamento de tudo o que existe
c declarando-a eterna, infinita, imutável, Spinoza não podia
explicar o aparecimento e a modificação das coisas e dos fenô­
menos limitados no espaço e no tempo.
No começo de sua atividade filosófica, Kant fez a primeira
tentativa para resolver esse problema — deduzir o fundamen­
tado do fundamento. Segundo a hipótese de Kant, o surgi­
mento e o desaparecimento dos mundos, das coisas e dos
fenômenos é o resultado de tendências (forças) contrárias pró­
prias à matéria — a atração e a repulsa. Tendo dado um passo
no estudo da correlação do fundamento e do fundamentado,
que consiste na colocação em evidência da natureza contradi­
tória do fundamento e na explicação, a partir dela, do funda­
mentado (aparecimento e transformação das coisas e dos
fenômenos particulares), Kant dedicou também uma grande
atenção ao problema da lei, da necessidade, da forma, problema
colocado e, de uma certa maneira, resolvido por F. Bacon e
Spinoza. O período do estudo das categorias de necessário e
de contingente, de conteúdo e de forma estende-se até Hegel
que, na análise dialética dessas categorias, delimitou-as rigo­
rosamente, colocando em evidência sua unidade contraditória,
mostrando suas correlações e suas passagens de umas às outras
e que, dessa maneira, marcou o fim dessa etapa do movimento
do pensamento filosófico. Mas isso não é o essencial da filo­
sofia hegeliana. Ao nome de Hegel está ligado o estudo das
leis do movimento do conhecimento dirigido para a essência.
Desenvolvendo a idéia de Spinoza, segundo a qual a
substância é sua própria causa, assim como a causa de tudo o
que existe, e desenvolvendo também a teoria de Kant sobre a
natureza contraditória da causa primeira, Hegel mostrou como
a substância (o fundamento) desenvolve seu conteúdo e en­
gendra a diversidade das formas do ser. Na qualidade de
substância — de fundamento e de causa primeira de tudo o
que existe — é encontrada em Hegel a “idéia absoluta” que,
graças a sua natureza contraditória, no curso da negação

136
dialética de certas formas do ser por outras, cria e, ao mesmo Na pg 136 na ultima frase do último
parágrafo diz : "Na qualidade de
tempo, fundamenta sua essência. Mostrando o processo do substância — de fundamento e
movimento do conhecimento em relação à essência, Hegel re­ de causa primeira de tudo o que
considerou e colocou em uma ligação necessária e em uma existe — é encontrada em
dependência rigorosa todas as outras categorias da dialética. Hegel a “idéia absoluta” que,
Mas foi Marx quem apresentou, com uma base materialista graças a sua natureza
e científica conseqüente, leis da formação e do conhecimento contraditória, no curso da
da essência, aplicadas à formação capitalista. negação dialética de certas
formas do ser por outras, cria e,
Como podemos ver, a ordem da elaboração das categorias ao mesmo tempo, fundamenta
na história da Filosofia corresponde, em seu conjunto, à rela­ sua essência. "
ção entre as categorias enquanto graus do desenvolvimento do
conhecimento social.

4. AS CATEGORIAS ENQUANTO GRAUS


DO DESENVOLVIMENTO
DA PRÁTICA SOCIAL
O conhecimento das formas universais do ser dá-se noAs ligações e as propriedades em
decorrer da atividade prática, no processo da transformação,evidencia exprimem-se por imagens;
orientada em direção a uma meta e à realidade. As ligaçõespor conceitos ideais surgidos do
e as propriedades universais colocadas em evidência exprimem-desenvolvimento do conhecimento e
se não apenas nas imagens e conceitos ideais surgidos notambém se exprimem pelos meios de
decorrer do desenvolvimento do conhecimento, mas igualmente trabalho criados pelo homem e pelas
pelos meios de trabalho criados pelos homens e pelas formasformas de atividade humana.
de sua atividade humana. É por isso que, no curso da for­
mação dessa ou daquela categoria, reflete-se não somente a
especificidade do estágio correspondente ao desenvolvimento
do conhecimento, mas também as particularidades de formas
da atividade dos homens, formas de relacionamentos existentes
entre eles, assim como as existentes entre eles e a natureza, que
são dominantes no período considerado como sendo o do
desenvolvimento histórico da sociedade. Por exemplo, a
correlação, a interação e a modificação (movimento), con­
cebidos pelo homem como formas universais do ser, nos pri­
meiros graus do desenvolvimento do conhecimento, são mo­
mentos necessários e universais do trabalho, da transformação
racional dos objetos da natureza em meios de existência.
Com efeito, a atividade laboriosa tem por meta transfor­
mar esse ou aquele objeto ou fenômeno da natureza, por meio
da ação de outro objeto (ferramenta) sobre ele, isto é, criar
entre esses objetos uma certa ligação. No processo do trabalho,

137
colocando os objetos em uma outra ligação que não aquela
encontrada em seu estado natural e fazendo-os agir uns sobre
os outros, o homem conseguiu sua transformação no sentido
que lhe convinha. Observando milhares de vezes esse fenô­
meno, ele concluiu, inevitavelmente, que tudo na realidade
ambiente encontra-se em correlação, em interação e que tudo
leva a modificações e transformações de um no outro. Ainda
mais, é precisamente essa convicção de que os objetos do
mundo exterior se encontram em correlação, agindo uns sobre
os outros, e, em decorrência, a convicção de que eles podem
transformar-se, que foi uma das condições necessárias para a
organização consciente e o desenvolvimento ulterior da produ­
ção. Se o homem não soubesse ou não tivesse certeza de que
os objetos que o rodeiam pudessem transformar-se, ele não
teria começado a agir sobre eles, não teria igualmente organi­
zado a produção. Na Antigiiidade, o próprio funcionamento
e o desenvolvimento da produção provaram não apenas que
o homem conhecia a capacidade dos objetos do mundo exterior
de se transformar, em decorrência de sua interação, mas tam­
bém que ele utilizava com sucesso esse conhecimento em sua
atividade laboriosa.
A história do desenvolvimento da técnica testemunha a
utilização da interação e das transformações que esta última
implica, na atividade prática e, mais exatamente, no começo
do desenvolvimento do conhecimento. Por exemplo, as pri­
meiras formas de obtenção do fogo baseiam-se no fricciona-
mento de dois objetos, assim como as primeiras máquinas
elétricas basearam-se na interação, e assim por diante.
A influência da atividade prática — e, em particular, das
formas de ligação que se estabelecem na sociedade entre os
homens, das formas de suas relações — sobre a formação das
categorias, é expressa, por exemplo, pela maneira como se
estabelece o fundamento da ligação e do movimento universais
dados por Heráclito e que se baseiam na unidade (comunidade)
da natureza primeira de tudo o que existe. Para provar que
todos os fenômenos do mundo estão ligados e que passam uns
pelos outros, a partir do fato de que eles têm uma natureza
comum — o fogo — , Heráclito compara o papel desempenhado
pelo fogo no mundo das coisas ao papel do ouro nas relações
comerciais da sociedade humana. Esse filósofo dizia que tudo
pode ser trocado pelo fogo e o fogo pode ser trocado por

138
qualquer coisa, assim como toda mercadoria pode ser trocada
pelo ouro e o ouro por qualquer mercadoria.
A ligação da teoria de Aristóteles sobre os quatro tipos
de causas — final, normal, material, produtiva — na prática,
é bastante evidente. Aristóteles expõe a base de sua teoria
da causalidade, tomando, como exemplo, a construção de
uma casa.
Esse exemplo e o próprio fato de que Aristóteles tenha
apresentado quatro tipos de causas mostram que ele procurava
explicar o aparecimento das coisas na realidade ambiente por
analogia com a criação no processo da atividade laboriosa dos
homens.
A dependência da formação das categorias da dialética,
com relação à atividade prática, e o reflexo por elas desses
ou daqueles aspectos e formas surgem igualmente na elaboração
da concepção mecanicista da causalidade na filosofia pré-
marxista. Segundo essa concepção, as causas são forças exte­
riores que são aplicadas aos corpos para provocar o movimento.
Essa representação da causa tem suas raízes na atividade labo­
riosa, exatamente na forma que ela possuía quando realizava-se
essencialmente pela ação do organismo humano sobre o mundo
exterior, assim como no mecanismo terrestre baseado na duali­
dade da relação de causa e efeito: um aspecto sendo ativo e
o outro passivo. Mostrando o caráter limitado da noção pré-
marxista da causa como uma força agindo sobre o corpo, Engels
escreveu: “ ( . . . ) A idéia de força, pelo próprio fato de que
tem sua origem na ação do organismo humano sobre o mundo
exterior e também no mecanismo terrestre, implica que apenas
uma parte é ativa e operante, enquanto a outra é passiva, re­
ceptiva . . .
A idéia de dependência frente a frente com a prática e com
as relações sociais foi aplicada por Marx e Engels a outras
categorias da dialética e, em particular, às categorias do sin­
gular e do geral. Mostrando a ligação dessas teorias com as
formas de vida e de atividade dos homens, Marx escreveu que:
“O que diria, então old (o velho) Hegel se viesse a saber no
outro mundo que o Allgemeine (o geral) em alemão e em nór­
dico, nada mais significa do que o Gemeinland (os bens co-7

7F. Engels, La dialectique de la nature, p. 87.

139
Marx considera que as categorias lógicas resultam das relações humanas
Parágrafo 1
As categorias não são apenas graus
do desenvolvimento da consciência
muns), e o Sundre, Besondere (o particular), nada mais é do
mas são tb graus do desenvolvimento que a pareça particular desligada dos bens comuns? Assim,
da prática social dos homens e suas portanto, as categorias lógicas resultam simplesmente de nossas
relações tanto entre eles quanto relações humanas”8.
deles com a natureza O resultado disso é que as categorias não são apenas
graus do desenvolvimento da consciência, mas também graus
Parágrafo 2 do desenvolvimento da prática social dos homens, de suas re­
As categorias sendo graus do desenvolvimento
social e da prática as categorias refletem :
lações entre eles e deles com a natureza.
*as formas universais do ser; Desempenhando o papel de graus do desenvolvimento do
*as propriedades e ligações universais da conhecimento social e da prática, as categorias refletem não
realidade e suas leis universais;
as leis do movimento do conhecimento do
apenas as formas universais do ser, as propriedades e as ligações
inferior ao superior; universais da realidade e suas leis universais, mas também as
*as leis do funcionamento e do leis do movimento do conhecimento do inferior ao superior, as
desenvolvimento do pensamento.
leis do funcionamento e do desenvolvimento do pensamento.
Parágrafo 3 “ ( . . . ) As categorias do pensamento, escrevia Lenin, não
Lenin
As categorias do pensamento são a expressão são um formulário do homem, mas a expressão das leis que são
das leis obedecidas pelo homem e pela natureza. obedecidas tanto pela natureza como pelos homens”8910. E, em
Lenin cita Hegel : “O movimento da outro ponto, ele escreve, citando a expressão de Hegel: “O
consciência, ‘assim como o desenvolvimento de
toda vida natural e espiritual’, baseia-se na movimento da consciência, ‘assim como o desenvolvimento de
‘natureza das essenicalidades puras que toda vida natural e espiritual’, baseia-se na ‘natureza das essen-
formam o conteúdo da lógica’ cialidades puras que formam o conteúdo da lógica’ além disso
além disso ele salienta que: “
“A inverter: a lógica e a teoria do ele salienta que: “A inverter: a lógica e a teoria do conheci­
conheci mento devem ser deduzidas mento devem ser deduzidas do ‘desenvolvimento de toda vida
do ‘desenvolvimento de toda natural e espiritual’ ”10.
vida natural e espiritual’ ”10.
As categorias, formando-se em uma certa ordem no curso
do desenvolvimento do conhecimento social, estabelecem, en­
tre elas, ligações e relações necessárias e assim formam a estru­
Parágrafo 4 tura da atividade do pensamento dos homens, que se manifesta
As categorias se formam em uma certa ordem sob a forma de uma ordem lógica do conhecimento, sob formas
a partir do desenvolvimento do conhecimento social e universais do movimento do pensamento. No decorrer do co­
por isso ocorre ligações e relações necessárias
nhecimento do objeto, o sujeito o concebe pelo prisma das "Se criou "a partir
As categorias e as relações entre elas formam
a estrutura da atividade do pensamento humano que categorias, que se criou em sua consciência e, realizando uma do real
se manifesta em uma ordem lógica do conhecimento, síntese categorial, coloca em evidência as propriedades e as e não foi criado
sob as formas universais do movimento do pensamento.
ligações próprias a esse objeto e, em seguida, as formas espe­
no decorrer do conhecimento do objeto o sujeito concebe cíficas de sua manifestação em um domínio concreto da reali­
pela consciênciaa
pelo prisma das categorias que se criou em sua consciência.
dade. Ao mesmo tempo, o sujeito também coloca em evidên­ se criou em sua
O sujeito coloca em evidência as propriedades e li conciencia é
ligações próprias desse objeto e em seguida as formas
específicas de sua manifestação em um domínio concreto 8K. Marx e F. Engels, Correspondance, Moscou, Ed. Progresso, totalmente
da realidade. 1971, p. 202. diferente de a
e também coloca em evidência as características qualitativas 9V. Lenin, Oeuvres, t. 38, p. 89.
e quantitativas do objeto. Estuda as ligações de 10Lenin, op. cit., p. 86. conciencia criar
causa e efeito e as leis de funcionamento do seu desenvolvimento.
pois a consciencia
140
criar não é uma
visão materialista
cia as características qualitativas e quantitativas do objeto
estudado, das ligações de causa e efeito que lhe são próprias
Parágrafo 1 e as leis de seu funcionamento e de seu desenvolvimento.
o caráter de universalidade e verdade da
categorias e das correlações entre elas À luz de tudo isso, a estrutura categorial que assegura o
se dá pelas ações cognitivas e práticas movimento do pensamento em direção à verdade é verificada
em cada operação do pensamento, são as em cada ação cognitiva e prática, em cada operação do pensa­
milhares de repetições e confirmações
que vão caracterizar uma concepção do mundo mento e, em virtude de milhares de repetições e de confirma­
ções, na prática, adquire um caráter de universalidade e de
em uma determinada época historica. verdade.
“Quando Hegel, observa V. Lenin, esforça-se — e às
vezes ele chega mesmo a aplicar-se, a esmerar-se — para
introduzir a atividade humana, propondo-se um fim nas cate­
gorias da Lógica, dizendo que essa atividade é um ‘silogismo’ SILOGISMO :
(Schluss), que o sujeito (o homem) desempenha o papel de Aprenda a pronunciar
substantivo masculino
um ‘termo’ da ‘figura’ lógica do ‘silogismo’ etc. LÓGICA raciocínio dedutivo
ISSO NÃO Ê APENAS FORÇA, NÃO E APENAS UM estruturado formalmente a partir
JOGO. HÁ AQUI UM CONTEÚDO MUITO PROFUNDO, de duas proposições
PURAMENTE M ATERIALISTA. E PRECISO INVERTER: (premissas), das quais se obtém
E PRECISO QUE A ATIVID AD E PRÁTICA DO HOMEM por inferência uma terceira
LEVE A CONSCIÊNCIA HUMANA A REPETIR MILHA­ (conclusão) [p.ex.: "todos os
homens são mortais; os gregos
RES DE VEZES AS DIFERENTES FIGURAS LÓGICAS, são homens; logo, os gregos são
PARA QUE ESSAS FIGURAS POSSAM GANHAR O VA­ mortais"].
LOR DE AXIOMAS. NOTA BENE”11.
Assim, sendo um produto da atividade cognitiva, as cate­
gorias refletem as particularidades dos estágios do conhecimento AXIOMA
no próprio momento em que elas se formam e, por meio de /cs,ss/
relações necessárias surgidas entre elas — as leis do movimento Aprenda a pronunciar
substantivo masculino
do conhecimento do inferior ao superior, as leis do funciona­ 1.
mento e do desenvolvimento do pensamento; estando ligadas FILOSOFIA
à prática, que coloca em evidência as formas universais do ser, premissa considerada
necessariamente evidente e
as propriedades e as relações universais das coisas e as mate­ verdadeira, fundamento de uma
rializa nos meios de trabalho criados e nas formas de atividade demonstração, porém ela mesma
— as categorias refletem, de uma maneira ou de outra, as leis indemonstrável, originada, segundo a
tradição racionalista, de princípios
do funcionamento e do desenvolvimento da atividade prática. inatos da consciência ou, segundo os
empiristas, de generalizações da
observação empírica [O princípio
aristotélico da contradição ("nada
pode ser e não ser
simultaneamente") foi considerado
desde a Antiguidade um axioma
fundamental da filosofia.].
2.
“ V. Lenin, op. cit., p. 180-1. POR EXTENSÃO
máxima, provérbio, sentença.
141

Se as categorias refletem as leis do funcionamento e do desenvolvimento e da


atividade prática e se isso sempre são graus do desenvolvimento e da
compreensão a pratica deve ter uma importancia maior ...????

pode ser ate pior a pratica pode ate mesmo ocultar a essesncia
5. O DESENVOLVIMENTO DAS FORMAS
DO PENSAMENTO NO PROCESSO
DO MOVIMENTO DO CONHECIMENTO
DE UMA CATEGORIA A OUTRA

O problema da modificação das formas do pensamento


no curso do desenvolvimento do conhecimento é desconhecido
pelo materialismo metafísico e pela lógica formal. Na lógica
formal, as formas do pensamento não são consideradas nem em
movimento nem em desenvolvimento, mas sim como estáticas
e imutáveis umas ao lado das outras; e a partir desse fato, os
sistemas de classificação elaborados não refletem o processo
histórico do surgimento e do desenvolvimento das formas do
pensamento, nem colocam em evidência sua correlação e sua
interdependência necessárias. Essa classificação das formas do
pensamento é encontrada em Aristóteles, fundador da lógica Para Hegel o ponto de partida
formal, e em Kant, além de outros filósofos. das formas do pensamento é o
Hegel procurou, pela primeira vez, apresentar as formas conceito. Ele não considera a
anterioridade dos processo pelo
do pensamento em seu desenvolvimento. Para ele, o ponto de qual as formas pensamento.
partida das formas do pensamento em movimento é o conceito, o conceito se forma a partir de
embora na realidade isso não seja correto. Historicamente, o "formas de pensamento
anteriores e mais simples"
conceito é precedido por toda uma série de outras formas do E não considera a formação dos
pensamento, formas mais simples cujo desenvolvimento prepara conceitos que se dá pelo juízo e
o terreno para seu aparecimento. O conceito é o resultado do raciocínio.
desenvolvimento e da correlação de formas do pensamento,
assim como o juízo e o raciocínio. £ precisamente a partir do
juízo e do raciocínio que nascem e se constituem os conceitos.
Formando-se, o conceito nega-os e os inclui sob uma forma o desenvolvimento do conceito
anulada na qualidade de momentos necessários de seu conteúdo. condicionam o surgimento dos
juízos e dos raciocínios
Para Hegel, o desenvolvimento do conceito e a descoberta,
no decorrer desse processo, de certos momentos do conteúdo
do conceito condicionam o surgimento dos juízos è dos racio­
cínios. O juízo, para ele, é o isolamento e a confrontação de
momentos do conceito, assim como o singular, o particular e
o universal. O juízo conserva essa função, mesmo quando
ele não concerne o próprio conceito, mas o objeto, as coisas.
Aplicado ao objeto, o juízo representa “o objeto nos diferentes
momentos do conceito. Ele (o juízo — A. Ch.) contém o
objeto na determinação do singular e na determinação do
universal da mesma forma como a relação simples e desprovida
de qualquer conteúdo do predicado com o sujeito — ‘é’ —

142
representa a cópula.”12. “No raciocínio, diz Hegel, devemos
considerar o objeto de duas maneiras: primeiramente, em sua
realidade singular”12, e, em segundo lugar, em seu conceito.
É por isso que aqui o objeto é representado seja como singular
erigido em sua universalidade, seja, o que finalmente dá no
mesmo, como universal tornado singular quando passa para
sua realidade1*. É por isso que, segundo Hegel, o juízo deve
representar a verdade, já que ele exprime nele mesmo a con­
cordância ou a correspondência do conceito e da realidade.
Mas esta correspondência do conceito com a realidade no
juízo somente é atingida, segundo Hegel, no estágio mais ele­
vado do desenvolvimento do juízo. No começo, este engloba
apenas o imediato, apenas o que se encontra na superfície dos
objetos, e é por isso que ele é o juízo do ser-aqui.
Hegel construiu sua classificação dos juízos inteiramente ba­
seado na correlação do singular e do geral e nas passagens do
singular ao geral e vice-versa, assim como no movimento do
exterior, do universal abstrato ao universal subjetivo, ao con­
ceito. O juízo do ser-aqui engloba, então, apenas o laço exte­
rior do singular abstrato com o universal abstrato. Em decor­
rência do desenvolvimento desse juízo, o singular e o universal
voltam para eles mesmos por meio do seguinte elo: o particular.
E a partir de então passam pela primeira vez a apresentar-se
como determinados e não como abstratos.
Em decorrência do desenvolvimento do juízo, e, em par­
ticular, do juízo de reflexão e de necessidade, dá-se o movi­
mento do universal ao particular, que chega a unidade do
universal e do particular. A partir desse momento, o juízo
entra na esfera do conceito e continua a desenvolver-se. No
processo desse desenvolvimento, o singular, por um lado, eleva­
se até o universal por meio do particular e, por outro lado, o
universal (igualmente por meio do particular) desce até o
singular. Em decorrência, a verdadeira natureza do objeto
singular assim como sua correspondência com um certo conceito
aparecem e por esse fato conseguimos obter o saber verdadeiro.
Assim, apesar do caráter artificial de sua classificação
^Vollständige Ausgabe Durch einen V er ein ..., in Hegel’s Werke,
p. 125-6.
,3G. W. F. Hegel: Wissenschaft der Logik, in Sämtliche Werke,
Stuttgard, 1928, v. 5, p. 75.
14Hegel, Wissenschaft der Logik, in Sämtliche Werke cit.

143
dos juízos, Hegel teve sucesso em sua tentativa de exprimir a
lei geral do movimento do conhecimento, pelo homem, do
mundo ambiente. Sua tentativa de determinar o lugar e o
papel correspondentes de cada juízo nesse processo do conhe­
cimento da verdade está assentada sobre uma base objetiva.
O raci- cínio, segundo Hegel, é a representação completa
do conceito. Ele é o ciclo de mediação de todos os seus mo­
mentos que se produz tanto no processo da passagem da natu­
reza universal por meio da particularidade em direção da sin­
gularidade, como no processo que consiste em elevar a singu­
laridade até o estado que lhe é idêntico, por meio do particular
até o universal. O raciocínio, para Hegel, assim como o juízo,
executa um movimento determinado, tem um desenvolvimento.
Em suas formas inferiores, ele engloba apenas as correlações
exteriores do singular, do particular e do universal; e em suas
formas superiores, ele engloba as correlações internas, essenciais,
necessárias.
Os diferentes tipos de raciocínios são classificados por
Hegel na ordem em que eles aparecem no processo do movi­
mento do conceito, a partir da correlação exterior, contingente
de seus movimentos (universal, particular, singular) — assim
como ela aparece no raciocínio do ser-aqui — dirigida para a
necessidade desta ligação que ela adquire em decorrência do
desenvolvimento do raciocínio de reflexão e, daí, para a iden­
tidade, para a unidade imediata desses momentos, fixada na
objetividade imediata do conceito, em sua transformação em
coisas. Ao mesmo tempo, no processo desse movimento
realiza-se a passagem dos momentos abstratos do singular, do
particular, do universal para os momentos concretos, essenciais.
Em seus esquemas, Hegel conseguiu captar uma lei efetiva
do conhecimento do mundo objetivo, pelo homem. O conhe­
cimento vai realmente da apreensão do mundo exterior, da
compreensão das correlações abstratas do singular, do par­
ticular e do universal nas coisas, até o conhecimento e a
representação, mais ou menos correta, de sua natureza interna,
de seu aspecto essencial, portanto, o conhecimento vai do
exterior, do geral superfical ao essencial, ao necessário —
à lei.
Tendo captado, embora confusamente, esta lei do conhe­
cimento, Hegel classifica os diferentes tipos de raciocínio de
maneira extremamente artificial. No conhecimento histórico

144
dos fenômenos do mundo ambiente, pelo homem, os raciocinios
surgiram em uma ordem diferente daquela dada por Hegel.
Por exemplo, antes de raciocinar do geral ao particular e ao
singular, como é o caso para Hegel (mesmo se esse geral é
superficial e abstrato), seria preciso primeiro elaborar repre­
sentações gerais, separar o geral do particular, isto é, seria
preciso primeiramente conduzir os raciocínios do singular ao
particular e deste ao universal. É por isso que o primeiro tipo
de raciocínio não poderia, em nenhum caso, ser o raciocinio
que Hegel apresenta como o raciocinio do ser-aqui. Este
raciocínio deveria ter sido o de indução. Entretanto, Hegel
liga esse raciocinio ao segundo tipo, do segundo grupo de
raciocínio, isto é, ao raciocínio de reflexão.
Em seguida, os raciocínios condicionais e disjuntivos
desempenharam um papel considerável (e, por esta razão,
apareceram de forma verossímil) no estágio do movimento do
conhecimento do geral superficial ao geral essencial, do exterior
ao interior, do efeito à causa, isto é, no momento da elaboração
dos conceitos gerais. Para Hegel, os raciocínios apareceram
para relevar o conceito genérico comum em todas as suas par­
ticularidades e espécies. É evidente que os raciocinios em
questão são utilizados para alcançar esse fim, mas em primeiro
lugar isso é uma etapa ulterior de sua utilização e, em segundo
lugar, isso não constitui sua função essencial. Na história do
conhecimento, eles ocupam um outro lugar e desempenham um
outro papel muito diferente deste.
Assim, embora Hegel tenha pressentido toda uma série
de leis profundas da passagem de certas formas do pensamento
para outras, ele não conseguiu reproduzir seu movimento, e seu
desenvolvimento reais por causa de seus princípios de partida
idealistas.
O desenvolvimento das formas do pensamento está inevi­
tavelmente ligado ao desenvolvimento do conhecimento, a sua
passagem por certos estágios e graus de desenvolvimento a
outros. Com a passagem do conhecimento para estágios novos,
superiores, de novos aspectos da realidade objetiva, novas
relações e ligações, que exigem os meios correspondentes de
expressão e de fixação aparecem. Tudo isso conduz necessa­
riamente a modificações e a aperfeiçoamentos das antigas
formas do pensamento e suscita novas formas destes novos
tipos de juízos, de raciocínios e de conceitos.

145
Vejamos a evolução das formas do pensamento.
A forma mais simples do pensamento é o juízo. É por
isso que o desenvolvimento das formas do pensamento deve
ser observado, antes de tudo, a partir do juízo.
Nós já dissemos que conhecer o meio ambiente é, antes
de tudo, perceber o particular como singular, colocar em evi­
dência essas ou aquelas propriedades singulares que não eram
encontradas anteriormente. Esse saber exprime-se e fixa-se
nos juízos singulares do seguinte tipo: “O particular é o sin­
gular”. No estudo da União Soviética, por exemplo, desco­
brimos várias propriedades que eram desconhecidas antigamente
e que fixamos nos seguintes juízos: “A União Soviética está
procedendo à construção do comunismo”; “Na União Soviética'
impera a propriedade social dos principais meios de produção”
etc. Outro exemplo: desde a Antigiiidade, os homens perce­
beram que o âmbar, quando friccionado com a lã, ou com
algum tecido de lã, apresentava uma propriedade insólita: a de
atrair outros corpos. Eles não haviam observado propriedades
semelhantes em outros corpos. Os homens exprimiram este
conhecimento no juízo: “O particular é o singular”; “O âmbar
adquire propriedades magnéticas pelo friccionamento”.
Todos esses juízos apresentam-se no começo como juízos
singulares indeterminados pelo fato de que não sabemos se as
propriedades fixadas neles pertencem também a outras for­
mações materiais. O processo do conhecimento pode conduzir
à demonstração, posterior, de que essas propriedades não
pertencem a outros objetos de um grupo dado. Nesse caso, o
juízo singular indeterminado torna-se determinado e exprime-se
sob a seguinte forma: “Dentre todos os objetos desse grupo,
apenas esse objeto possui essa propriedade, até então desconhe­
cida”; “Dentre todos os S, um único S dado é P”; “Dentre
todos os objetos estudados, apenas o âmbar adquire, por meio
do friccionamento, propriedades magnéticas”.
Mas à medida que se alarga o círculo dos objetos estudados,
à medida que aprendemos que a propriedade expressa em um
juízo singular determinado não pertence aos objetos de um
grupo dado, nem aos de outros grupos, o juízo singular deter­
minado, desenvolve-se em um juízo singular seletivo: “Apenas
este particular, e unicamente este, possui esta propriedade an­
teriormente desconhecida”; “Apenas o S dado e, unicamente
ele, é P”.

146
Se, no decorrer do estudo de outros objetos de um grupo
dado, descobrimos que a propriedade encontrada no objeto
anteriormente estudado, e que havíamos exprimido em um juízo
singular indeterminado, pertence também a outros objetos estu­
dados do grupo considerado, o juízo singular indeterminado
transforma-se em um juízo singular do seguinte tipo: “O par­
ticular é o geral”; “Na União Soviética (mas não apenas na
União Soviética) a propriedade social dos meios de produção
existe”; “O ámbar (mas não apenas o âmbar) adquire, pelo
friccionamento, a propriedade de atrair outros corpos”.
O juízo, “o particular é o geral”, indicando que o objeto
particular dado possui a propriedade geral dada, destaca exata-
mente, por isso, o fato de que outros objetos particulares
também possuem esta propriedade. Ê por isso que o juízo
singular desse tipo transforma-se necessariamente em um juízo
particular: “Certos objetos particulares possuem essa proprie­
dade”; “Certos S são P”, “Certos países europeus possuem a
propriedade social dos meios de produção”; “Certas substâncias
adquirem, por fricção com outras substâncias, a propriedade de
atrair alguns outros corpos”.
Mas o desenvolvimento posterior do conhecimento também
pode seguir uma outra orientação. Quando do estudo de
outros objetos do grupo dado podemos descobrir que eles
possuem todos a propriedade considerada. O juízo particular
indeterminado torna-se então um juízo geral: “Todos os S são
P” : “Todos os países socialistas possuem a propriedade social
dos meios de produção”; “Em todos os países socialistas é
aplicado o princípio: ‘De cada um segundo suas capacidades,
a cada um segundo seu trabalho’ ”; “Todas as substâncias, em
certas condições, adquirem propriedades magnéticas”.
O juízo geral manifesta-se, antes de tudo, como juízo in­
determinado, porque não sabemos, a princípio, se a propriedade
pertence somente aos objetos considerados ou se ela pertence
também aos objetos de outros grupos.
O desenvolvimento do conhecimento pode conduzir à evi-
denciação do fato de que os objetos de uma série de grupos
estudados não possuam a propriedade indicada. Nesse caso, o
juízo geral indeterminado transforma-se em um juízo geral
determinado: “Dentre todos os grupos de objetos estudados,
apenas o grupo considerado possui a propriedade em questão”;
“Dentre todos os S, apenas os S dados são P”; “Dentre todos os

147
países contemporâneos, somente nos países socialistas existe a
propriedade social dos meios de produção” ; ‘‘Dentre todos os
países contemporâneos, é apenas nos países socialistas que é
aplicado o seguinte princípio: ‘De cada um segundo suas capa­
cidades, a cada um segundo seu trabalho’
Se fica estabelecido que essa ou aquela propriedade das
formações materiais está ausente em todos os outros grupos,
o juízo geral determinado desenvolve-se em um juízo geral
seletivo: “Apenas os objetos em questão e, unicamente eles,
possuem essa propriedade”; Apenas os S em questão e, unica­
mente eles, são P”; “Apenas os países socialistas e, unicamente
eles, aplicam o seguinte princípio: ‘De cada um segundo suas
capacidades, a cada um segundo seu trabalho’
Mas à medida que há o desenvolvimento do conhecimento,
pode parecer que essa ou aquela propriedade fixada em um
juízo geral indeterminado pertence a objetos que se relacionam
com outros grupos. Nesse caso, o juízo geral transforma-se
em um juízo mais geral: “Todos os S (mas não apenas eles)
são P”; “Todos os países socialistas (mas não apenas eles)
têm uma produção mercantil”; “Todos os países socialistas
(mas não apenas eles) têm um Estado”.
Esse juízo mais geral se desenvolverá, por sua vez, em
dois sentidos: por um lado, ele se desenvolverá no plano hori­
zontal, isto é, pode transformar-se em um juízo seletivo, e, por
outro lado, ele se desenvolverá no plano vertical, transforman-
do-se em um juízo ainda mais geral e assim sucessivamente,
enquanto não forem evidenciadas as propriedades universais,
isto é, as propriedades que são próprias a todos os objetos do
grupo estudado ou a todos os objetos em geral.
Assim, no estágio do movimento do conhecimento do
singular ao geral e ao universal, os juízos desenvolvem-se dos
singulares para os juízos particulares e em seguida para os
universais. Ao mesmo tempo, cada um dos grupos indicados
desenvolve-se por sua vez, indo dos juízos indeterminados aos
juízos determinados e depois aos seletivos, isto é, a consciência
leva, por um lado, a uma procissão, uma separação do par­
ticular, e, por outro lado, a uma evidenciação do geral e do
universal.
Todas as formas de juízo examinadas fixam apenas o que
é dado imediatamente a nossa observação, o que se encontra
à superfície dos fenômenos, e por isso seu valor cognitivo não

148
é grande. Por exemplo, se considerarmos todos esses juízos
do ponto de vista da verdade, descobrimos que, nesse estágio
do conhecimento, os juízos gerais (contrariamente aos juízos
singulares e particulares cuja verdade é incontestável, já que
eles fixam o que é) são problemáticos, porque não podemos
observar em uma primeira tentativa — e, aliás, não é apenas
em uma primeira tentativa que não podemos observar — todos
os objetos dessa ou daquela classe mais ou menos extensa.
É por isso que a conclusão, de que todos os objetos dessa ou
daquela classe possuem uma propriedade geral é hipotética.
Baseia-se em uma simples repetição e no fato de que todos os
objetos observados do grupo dado possuem essa propriedade.
Mas o conhecimento não pára nesse estágio de desenvol­
vimento, com a constatação das propriedades gerais, ele esfor­
ça-se para explicar as propriedades gerais dos objetos a partir
de sua natureza, esforça-se para penetrar no interior das coisas.
Os homens constróem hipóteses relativas às causas que condi­
cionam o aparecimento dessas ou daquelas propriedades gerais.
A suposição das causas dessa ou daquela propriedade exprime-
se no juízo de possibilidade: “É possível que esta circunstância
seja a causa do fenômeno estudado”; “É possível que S seja P”;
“Ê possível que a condutibilidade elétrica de um condutor de­
penda de seu comprimento” ; “É possível que as propriedades
químicas dos elementos dependam da carga do ponto de par­
tida”; “É possível que a diferença de velocidade dos corpos
em queda livre provenha da resistência do ar”. Nesses juízos,
é o laço hipotético do efeito com sua causa que se encontra
fixado.
No estudo do laço de causa e efeito, habitualmente, não
é construída uma única hipótese, mas sim várias, e é por isso
que o juízo de possibilidade é substituído pelo juízo disjuntivo,
o primeiro transformando-se no segundo. “S é P ou P I”; “A
condutibilidade elétrica de um condutor depende ou de seu
comprimento ou da composição de sua substância”; ‘‘As pro­
priedades químicas dos elementos dependem ou da carga do
centro ou do peso atômico”; “A diferença de velocidade dos
corpos em queda livre a um ponto dado da terra depende seja
da resistência do ar seja da diferença de sua aceleração”.
Verificando a correlação dessa ou daquela suposição,
chegamos a consequências que devem necessariamente produ­
zir-se se a causa suposta é a causa real da propriedade estudada.

149
Esse movimento do pensamento exprime-se no juízo condicio­
nal: “Se S é P, então SI é P l ”; “Se a condutibilidade elétrica
de um condutor depende de sua secção, os condutores de
grande secção, qualquer que seja a composição de sua substân­
cia, devem conduzir eletricidade”; “Se as propriedades químicas
dos elementos dependem da carga do núcleo, as propriedades
do elemento mudam ao mesmo tempo em que se modifica a
carga do núcleo”.
Os resultados da verificação da presença real do efeito
suposto são fixados em juízos categóricos, nos quais o que é
estabelecido exprime-se sob uma forma incondicional: “S é P” ;
“S não é P”; “A modificação da carga do núcleo de um ele­
mento químico dado levou à transformação desse elemento
(em um outro elemento químico)”; “Um fio condutor de seda
grosso não conduz a eletricidade”.
O juízo categórico fixa o que existe e por isso ele é, na
verdade, um juízo de realidade, contrariamente ao juízo de
possibilidade, do qual tratamos no começo do estudo de causa
e efeito.
A partir dos resultados estabelecidos pela verificação,
concluímos, diante da presença ou da ausência de um laço de
causa e de efeito entre os fenômenos estudados também sob
a forma de juízos categóricos, que “S é P”; ou “S não é P” ;
“A condutibilidade elétrica de um condutor não depende de
sua secção”; “As propriedades químicas de um elemento depen­
dem da carga do núcleo” ; “As propriedades químicas de um
elemento não dependem do peso atômico”.
Mas, diferentementemente dos juízos categóricos que fixam
os resultados da verificação, e que são juízos de realidade, os
juízos dad >s são juízos de necessidade, porque fixam não apenas
o que existe, mas também o que se produz necessariamente em
certas condições: “S é necessariamente P”; “As propriedades
químicas dos elementos dependem necessariamente da carga do
núcleo” ; “A condutibilidade elétrica de um condutor depende
necessariamente da composição de sua substância”.
Assim, no processo do movimento do efeito à causa, do
exterior ao interior e ao necessário, realiza-se a passagem dos
juízos de possibilidade, por meio dos juízos disjuntivos, condi­
cionais e categóricos, para os juízos de realidade e de necessi­
dade. Os juízos disjuntivos, condicionais e categóricos mani­
festam-se sob formas de elos de uma corrente reunindo nova-

150
mente os juízos de possibilidade aos juízos de realidade e de
necessidade.
Da colocação em evidência das ligações particulares ne­
cessárias, o conhecimento, em seu desenvolvimento, dirige-se
para a essência — para a reprodução da correlação necessária
dos aspectos interiores das formações materiais estudadas.
Nesse estágio do movimento do conhecimento, aparecem novos
tipos de juízos.
Se observarmos bem os juízos analisados mais acima,
notaremos facilmente que alguns dentre eles fixam o que se
encontra na superfície, o que existe, o que aparece e existe em
toda sua imediatez, como unidade do contingente e do neces­
sário, enquanto que outros fixam as ligações necessárias.
Em primeiro lugar, o necessário ainda não está bem distin­
guido, separado do contingente, e, em segundo lugar, esse
necessário é pensado enquanto tal, sem ligação com o contin­
gente. Os primeiros juízos, como já vimos, apareceram no
estágio do movimento do conhecimento do singular ao geral,
os segundos no estágio da passagem do efeito à causa, do
exterior ao interior e ao necessário. Engels classifica o primeiro
grupo de juízos, de singularidade, e o segundo, de juízos de
particularidade.
Os juízos de singularidade são caracterizados pelo fato de
que eles fixam o ser-aqui, o ser enquanto fato. Eles ainda não
exprimem os aspectos interiores dos objetos, dos fenômenos;
não refletem, não reproduzem as ligações internas necessárias.
Por exemplo, “a fricção engendra o calor”, “a carga do núcleo
do hidrogênio é um próton”, “o urânio é radioativo”. Em
todos esses juízos está fixado o que existe, o que já foi desco­
berto. Aqui, o interior, o necessário não é refletido, a natureza
dos fenômenos ou das propriedades fixadas não é explicada.
Mas o homem, como já vimos, não se limita a fixar o
ser-aqui. Ele esforça-se para explicar esse ser a partir das
ligações e de suas relações internas, isto é, o homem esforça-se
para compreendê-lo como necessário. A expressão do conhe­
cimento do necessário concretiza-se, como já dissemos, nos
juízos de necessidade, que representam os juízos de particula­
ridade, porque fixam a ligação necessária de um grupo particular
de fenômenos com um outro grupo particular de fenômenos em
condições particulares, rigorosamente determinadas: “Todo mo­
vimento mecânico transforma-se, por fricção, em calor”; “O

151
1

urânio, depois de uma desintegração alfa transforma-se em


tório”; “O radium, passando por uma desintegração alfa, trans­
forma-se em radônio”; “Todos os elementos químicos, cuja
carga do núcleo torna-se igual a duas unidades, adquirem as
propriedades químicas do hélio”.
Todos os juízos citados são juízos particulares, já que
fixam a ligação necessária de certos fenômenos particulares
com outros fenômenos particulares, em condições particulares,
rigorosamente determinadas. No primeiro juízo é fixado o fato
de que uma forma particular do movimento da matéria (movi­
mento mecânico) transforma-se em uma outra forma de mo­
vimento particular (em calor), em condições particulares,
rigorosamente determinadas (por fricção). No segundo juízo
exprime-se a ligação necessária, cujo conteúdo reside no fato
de que um elemento químico particular (o urânio) transforma­
se em um outro elemento químico (o tório), em condições
particulares, rigorosamente determinadas (no momento de sua
desintegração alfa) etc.
Em decorrência do desenvolvimento do conhecimento e
na medida em que se acumulam os conhecimentos de diversos
aspectos gerais necessários desse ou daquele grupo de fenôme­
nos, os homens, tendo distinguido um aspecto fundamental,
decisivo e geral, reproduzem, passo a passo, o conjunto dos
aspectos necessários internos dos fenômenos estudados, sua
essência. Nesse estágio do conhecimento, eles formulam juízos
de universalidade, como por exemplo: “Toda forma de movi­
mento da matéria, em condições rigorosamente determinadas
em cada caso, pode transformar-se e transforma-se inevitavel­
mente em uma outra forma de movimento da matéria”; “Um
elemento químico, em condições rigorosamente determinadas,
pode e deve necessariamente transformar-se em um outro
elemento químico”. Esse juízo fixa não apenas o ser-aqui,
não apenas o que existe, mas igualmente o que se produz ne­
cessariamente; e não somente uma ligação necessária particular,
mas o sistema de ligações necessárias que engloba todos os
objetos de um grupo dado e todos os seus aspectos fundamen­
tais. O juízo dado é, por sua forma e por seu conteúdo, o
desenvolvimento posterior, superior dos conhecimentos do
grupo de fenômenos limitados por esse juízo, que fixa a ligação
de cada objeto do grupo dado com qualquer outro objeto desse
grupo. Nesse juízo, são conferidas a cada objeto do grupo

152
dado todas as propriedades que pertencem a um grupo dado
de objetos (tanto as já reveladas, como as que ainda não o
foram), e isso pelo fato de que se exprime o conhecimento
de que cada objeto pode, em condições determinadas, vir a ser
um outro objeto qualquer, transformar-se em qualquer outro
objeto e, dessa maneira, manifestar as propriedades de cada
um deles. O aparecimento, nesse ou naquele domínio da ciên­
cia, de um tipo dado de juízos, é uma prova direta de que
nesse domínio a ciência alcançou o conhecimento da essência
dos objetos estudados.
Abordemos agora, rapidamente, as transformações dos
raciocínios e dos conceitos no processo do movimento do co­
nhecimento de um grau ao outro.
No primeiro estágio do movimento do conhecimento, apa­
rece o raciocínio indutivo, no qual, a partir de várias premissas
que fixam fatos singulares, chega-se à conclusão de que essa
ou aquela propriedade, ligação ou relação, pertence ou não
pertence a todos os objetos do grupo estudado. Nos raciocínios
indutivos, o pensamento vai do singular ao geral e ao universal.
Os raciocínios dedutivos aparecem no estágio em que se
estabelece o laço de causa e efeito e de necessidade. No racio­
cínio dedutivo, o pensamento vai do geral ao particular, do
geral ao geral, do singular e do particular ao singular e ao
particular. Os raciocínios dedutivos apresentam-se sob nume­
rosas formas. No estágio da descoberta do laço de causa e de
efeito e do estabelecimento da necessidade, os raciocínios dedu­
tivos aparecem sob a forma de um silogismo categórico disjun­
tivo e de um silogismo categórico condicional. Quando, após
ter enunciado uma série de teses sobre as supostas causas desse
ou daquele fenômeno (efeito) e tê-las verificado, raciocinamos
e, consequentemente, exprimimos nossos pensamentos com um
silogismo categórico disjuntivo. Por exemplo, temos duas
suposições concernentes à causa da condutibilidade elétrica.
Como causas, citamos a composição da substância e a secção
do condutor. No decorrer da pesquisa, estabelecemos que uma
suposição é exata, enquanto que a outra não o é. Exprimimos
tudo isso no seguinte raciocínio: “A condutibilidade elétrica
pode depender tanto da secção como da composição da substân ■
cia do condutor. Entretanto, no final, ficou estabelecido que
a condutibilidade elétrica não depende da secção do condutor,
logo, ela depende da composição da substância”.

153
No momento da verificação dessa ou daquela suposição
relativa à causa de um fenômeno dado, quando procedemos a
conclusões, a partir desta suposição, e quando verificamos
como isso acontece na realidade, e, ainda depois, quando resol­
vemos a questão de saber se o laço dado é ou não o da causa
e efeito, exprimimos nossos pensamentos mediante um silogismo
categórico condicional. Por exemplo, quando estudamos a
causa da propriedade que certos corpos têm de conduzir a
eletricidade, raciocinamos da seguinte maneira: “Se a conduti­
bilidade elétrica depende da secção de um condutor, modifican-
do-a, podemos fazê-lo de tal maneira que em um caso esse
condutor conduza a eletricidade e em outro caso não o faça
mais. Modificando a secção de um condutor feito de cobre,
não obtivemos resultado na tentativa de impedi-lo de conduzir
a eletricidade. Isso significa que a propriedade de conduzir
eletricidade não depende da secção do condutor. . . Então, se
a condutibilidade elétrica depende da composição da substância
do condutor, quando modificamos essa composição, chegamos
aos seguintes resultados: no primeiro caso, o condutor conduz
a eletricidade, enquanto no segundo ele não o faz. O fio de
cobre conduz a eletricidade, mas o de seda não a conduz. Isso
significa que a condutibilidade elétrica depende da composição
da substância do condutor”.
As conclusões tiradas dos resultados da verificação dessa
ou daquela suposição, exprimem-se, como já o dissemos, nos
juízos de necessidade. E isso significa que eles refletem
aspectos e propriedades próprias a todos os objetos e fenô­
menos, compreendidos em toda a extensão do sujeito do juízo
dado. Por isso, os juízos de necessidade podem ser usados
para o entendimento do saber, que entra em seu conteúdo e
que, a cada objeto concreto e a cada caso particular, refere-se
ao domínio compreendido pelo juízo indicado. Essa utilização
desses juízos pode-se dar tanto no lugar que lhes é próprio,
como quL .do reproduzem os laços de um aspecto da formação
material com um outro, ou, ainda, no estágio do movimento
do conhecimento, indo da colocação em evidência dos aspectos
particulares comuns a objetos estudados à reprodução de sua
essência, (do conjunto dos aspectos internos necessários) ou,
ainda, finalmente, no estágio da utilização desses ou daqueles
conhecimentos na atividade prática dos homens. Esse movi­
mento do pensamento exprime-se por meio do silogismo cate­

154
górico. Por exemplo: “A carga do núcleo, sendo igual a um
próton, condiciona propriedades químicas, cujo conjunto
caracteriza o hidrogênio. Ou ainda: “Toda mercadoria tem
seu valor. O dinheiro também é uma mercadoria. Isso signi­
fica que o dinheiro deve ter um valor”.
Assim, os diferentes tipos de raciocínio não são fixos,
dados uma vez por todas, existindo um ao lado do outro e um
independentemente do outro. Eles estão em movimento, em
desenvolvimento, em uma ligação orgânica necessária, condi­
cionada pelo processo evolutivo do conhecimento, por suas
passagens de um grau a outro.
Usando os juízos e os raciocínios, os homens elaboram e
formam representações e conceitos nos quais fixam o que é
conhecido. E esses conceitos e essas representações são, de
certa forma, pontos centrais do complexo e contraditório cami­
nho do conhecimento do mundo ambiente. Refletindo o pro­
cesso do movimento e do desenvolvimento do conhecimento,
e formando-se no decorrer desse processo, os conceitos não
permanecem imutáveis, mas, pelo contrário, eles modificam-se
e desenvolvem-se à medida que há o desenvolvimento e a
modificação de seu conteúdo.
No primeiro estágio do conhecimento, no estágio da intui­
ção viva, aparecem e formam-se conceitos concretos que re­
fletem o objeto ou o fenômeno na totalidade de suas proprieda­
des e de seus aspectos. Mas esse concreto nesse estágio é
apenas sensível. É uma representação desordenada, caótica
do todo e, por essa razão, o conceito confunde-se, aqui, com
as representações, aparece como uma representação concreta
sensível. Depois, quando o sujeito conhecedor analisa os
dados concretos sensíveis, começa a distinguir os diferentes
aspectos e propriedades dos objetos estudados e passa do
singular para o geral, e então aparecem e se formam conceitos
abstratos que refletem apenas certos aspectos dos objetos e dos
fenômenos. . Mas, à medida que o conhecimento humano em
desenvolvimento penetra na essência das formações materiais
estudadas, reproduz na consciência, passando de um elo a outro,
todo o sistema de ligações e de relações necessárias e internas,
então aparecem novamente conceitos concretos. Mas esse
concreto, ao contrário do concreto que apareceu no estágio
inicial do conhecimento, não é uma representação visual, sen­

155
sível e caótica do todo; ele reflete a natureza interna das
formações materiais.
Essas são algumas leis do desenvolvimento das formas do
pensamento no processo do movimento do conhecimento de
uma categoria (um grau) a outra.
Examinamos a transformação das principais formas do
pensamento, no decorrer, do desenvolvimento do conhecimento
social, e vimos que elas estão ligadas a estágios determinados
do desenvolvimento do conhecimento social, à intelecção de
formas universais determinadas do ser, de ligações e de pro­
priedades universais da realidade, refletidas pelas categorias
filosóficas correspondentes.
Isso indica que as categorias filosóficas são graus do
desenvolvimento do conhecimento e que sua relação, refletindo
leis universais determinadas do ser, exprime a lei do funcio­
namento e do desenvolvimento do conhecimento.
A parte que se segue nesta nossa obra será dedicada à
análise das diferentes categorias e leis da dialética, que serão
consideradas na ordem em que elas aparecem no processo do
desenvolvimento do conhcimento social e da prática.

156
Particular p. 157:
O movimento é continuo
permanente e o repouso é
relativo pois
ele se dá referente a algo e
não na totalidade da
matéria.
O repouso relativo se dá
nesse ou naquele lugar ou
nesse ou naquele estado. V. O PA R TIC U LA R ,
0 M OVIM ENTO, A RELAÇÃO
O equilíbrio do movimento
(do texto)
é uma percepção (como
uma fotografia- nós tiramos
a foto para podemos 1. O PARTICULAR
recordar aquele momento
Para o materialismo dialético, o movimento e o repouso
depois mas tudo continua relativo, compreendidos como um dos momentos do movimento,
em movimento, só a foto são, por sua natureza, próprios à matéria. O movimento con­
que é estável suficiente diciona “a corrente”, a modificação permanente da matéria;
o repouso acarreta o equilíbrio do movimento, a transformação
para que possamos da matéria, como se interrompesse a corrente contínua, obri-
admira-la e discutí-la ou gando-a a “parar” nesse ou naquele lugar e a manter-se nesse
estuda-la. ou naquele estado, embora a corrente contínua do movimento
Mas mesmo fazendo uma apareça como descontínua, como um conjunto de diferentes
sistemas de movimento. Com base em cada um desses siste­
posse para a foto mas, constitui-se uma formação material, uma coisa particular,
estamos em movimento ou naquele estado, embora a corrente contínua do movimento A matéria só é
é um repouso relativo para constitui uma coisa concreta, cuja natureza é determinada pela percebida pela
forma do movimento que a constitui. Sendo eterno como a
sermos fotografados. matéria, o movimento absoluto assim como o repouso relativo atuação do par
condicionam a existência eterna da matéria, mediante as forma­ dialético movimento
E ao diferenciar-se em uma ções materiais particulares, encerradas no espaço e no tempo. absoluto/repouso
O particular é, portanto, uma forma universal da existência da relativo
matéria. E aqui relacionam-se conceitos de “corpo”, de “coisa”
formação material, tb se e de “objeto”.
torna uma "coisa em
particular" 2. O MOVIMENTO
como um recorte.
sendo que a natureza a) O C o n c e it o de M o v im e n t o
dessa
"coisa em particular" é O movimento como forma universal do ser da matéria foi
analisado pelos pensadores, logo no começo do desenvolvimento
deter-
minada pela FORMA do 157
mo-
vimento que a constitui.

o particular então é uma


forma
universal da existencia da
materia e se relaciona com
os conceitos de :
de corpo
de coisa
de objeto
Cheptiulin coloca: QUE o movimento foi analisado no começo do
desenvolvimento da filosofia e os filósofos tomam como exemplo as transformações
de uma substância concreta (que ira resultar em uma formação material.
O movimento então seria justamente as fazes da transformação constante de uma
coisa concreta(formação material)
em outra,
ou
de um estado
Parágrafo 1 epara
2 outro.
O Filósofo Anaximandro dizia que o infinito é o principio
primeiro do existente "dele tudo nasce e nele tudo se
destrói"(transforma). O movimento como forma universal do ser da matéria
foi analisado
E baseando-se nesse principio de universalidade do pelos pensadores, logo no começo do
movimento ele desenvolve sua teoria dodesenvolvimento
mundo exterior da
Anaximandro foi discípulo de Thales
da Filosofia, como forma particular da consciencia social. Entre
os primeiros filósofos gregos, por exemplo, o movimento desem­
Paragrafo 3 penhou o papel de principio inicial, a partir do qual procura­
OS filósofos : ram explicar todos os fenómenos observados na realidade
Thales, usa a agua como princípio ambiente. Tomando como princípio primeiro uma ou outra
primeiro substância concreta, eles mostraram que todas as formas do ser
Anaximenes, usa o ar como princípio observadas no mundo apareceram em decorrência de certas
primeiro e reconhece o movimento transformações dessa substância (princípio primeiro), e que,
como eterno e como determinante sendo diferentes estados de uma mesma natureza, elas estão
para as transformações das coisas. organicamente ligadas, passando uma pela outra e pelo prin­
cípio inicial.
Ele diz que em decorrência de
Tomando como princípio primeiro o apeiron, uma matéria
modificações que lhe são próprias,
indeterminada, por exemplo, Anaximandro dizia que: “O infi­
as vezes o ar é uma determinada
nito é o princípio primeiro do existente, porque é dele que tudo
substância e as vezes outra nasce e nele tudo se destrói. É dele que ‘se desligaram os
e quando se refaz ele torna-se fogo; céus e os mundos em geral’, cujo ‘número é infinito’ e eles
comprimindo-se, ele torna-se vento ; todos perecem depois que um tempo bastante considerável
e depois nuvem; tenha decorrido desde seu aparecimento; e todos eles executam
e comprimindo- se ainda mais um movimento circular desde tempos imemoriais. . .
torna-se água, É evidente que na obra de Anaximandro a universalidade
depois terra; do movimento desempenha o papel inicial de sua teoria do
e depois pedra; mundo exterior.
e todo o resto nasce
Encontramos uma tese análoga a essa em Thales, que
dessas substâncias. toma como princípio primeiro a água, e também em Anaxi­
menes, que toma esse princípio no ar. Simplicius afirma, por
Paragrafo
Paragráfo 44: exemplo, que na obra de Anaximenes, o princípio primeiro das
coisas (o ar), em decorrência de modificações que lhe são
Quando heráclito diz que próprias, é, às vezes, uma determinada substância, às vezes
a morte do fogo é o nascimento do ar outra substância: quando se rarefaz, ele torna-se fogo; com­
e a morte do ar é o nascimento da agua primindo-se, ele torna-se vento e depois nuvem; comprimindo-
e da morte da terra nasce a agua
se ainda mais, torna-se água, depois terra e depois pedra; e
da morte da agua nasce o ar
da morte do ar nasce o fogo todo o resto nasce dessas substâncias. Simplicius acrescenta
e vice-versa que Anaximenes reconhece que o movimento é eterno e que
ele está se referindo aos processos acarreta as transformações das coisas.
químicos possíveis entre os A idéia de universalidade do movimento é expressa de
4 elementos concepção maneira particularmente clara por Heráclito. Ele diz que a
entendida até o INÍCIO da era moderna morte do fogo é o nascimento do ar, a morte do ar é o nasci­
mento da água; da morte da terra nasce a água, da morte da
Idade Moderna é o período que se água nasce o ar, da morte do ar nasce o fogo e vice-versa.
estendeu de 1453 a 1789.
158
Essas descrições são as transições são as mudanças de
estado físico da matéria.
Parágrafos 1 e 2 ele faz duas colocações que
entendo assim :
P1
As visões de mundo de cada época também
são graus do conhecimento
P2
e "as descobertas se são no estagio inicial do conhecimento" entendo que se observamos algo que não compreendemos e não
tenhamos instrumentos ou condições de análise não se darão descobertas. Mas se tivermos as condições então
ai sim poderemos produzir ciencia e encontrar algo entendimentos, soluções etc...

Parágrafo 3 Assim, os filósofos gregos reconheciam a universalidade


Cheptulin concorda com do movimento dos fenômenos da realidade e elaboravam, a
o PRINCÍPIO de Heráclito partir dela, sua concepção do mundo.
Salientando que o homem descobre o movimento no
estágio inicial do conhecimento e que essa forma universal do
ser é conceitualizada já nas primeiras concepções filosóficas do
Parágrafo 4
mundo, Engels escreveu que: “Quando submetemos ao exame
OS primeiros filósofos gregos do pensamento a natureza ou a história humanas, ou ainda
colocaram o movimento como nossa própria atividade mental, o que temos como primeiro ELEATAS
um processo de destruição de resultado é o quadro de um entrelaçamento infinito de relações no dicionário Oxford
um e o surgimento de outro e de ações recíprocas, no qual nada permanece como era, no Languages (lenguidis)
sobre a mesma base . lugar onde estava anteriormente e como estava, mas em que eleatismo (substantivo
tudo muda, modifica-se, vem a ser e perece... masculino) FILOSOFIA:
Essa maneira primitiva e ingénua, porém fundamental­ doutrina dos filósofos
Parágrafo 5 mente correta, de encarar o mundo, foi a maneira adotada pelos
Os primeiros filosofos colocavam filósofos gregos da Antigiiidade, e o primeiro a formulá-la de pré-socráticos da escola
o conceito do movimento modo claro foi H eráclito.. . ”1. de Eleia, ou escola
em primeiro plano Os primeiros filósofos gregos da Antigiiidade concebiam o eleática (sVI-sV a.C.:
movimento com um processo de destruição de um e do sur­ Xenófanes,
desconsiderando a estabilidade. gimento (sobre essa mesma base) do outro.
Parmênides, Zenão),
Eles colocavam o conceito do movimento, da transforma­
Os Eleatas (ao contrario dos ção em primeiro plano, deixando, dessa maneira, de lado, a caracterizada pela
Jônicos) colocaram a estabilidade. Somente um pouco mais tarde é que outros crença na unidade do
a estabilidade como princípio filósofos e, em particular, os eleatas se interessaram pela esta­ ser e na irrealidade do
bilidade. Ao contrário dos jónicos, eles colocaram a estabili­ movimento ou
inicial chegando a negar o
dade como princípio inicial, erigiram-na como absoluta e che­ transformação.
movimento, chegando a garam finalmente a negar o movimento, porque para eles,
considera-la absoluta. tudo o que existe baseia-se no todo único, imutável e homogêneo,
"Parmênides escreveu que “Há preenchendo tudo. Sobre o ser, escreveu Parmênides: “Há JÔNICOS
mil sinais de que o sendo mil sinais de que o sendo não pode ser engendrado e é impere­ Foi em Mileto, na Jónia, que
não pode ser engendrado e cível, inteiro em seu corpo, contínuo, imóvel, sem começo nem esta escola se desenvolveu.
fim”*2. Os filósofos desta escola
è imperencível, inteiro em seu Empédocles retoma o conceito do movimento, mas con­ procuravam investigar os
corpo, contínuo, imóvel, serva igualmente a estabilidade. Suas quatro “raízes” (a terra, primeiros princípios, partindo
sem começo nem fim”* a água, o ar e o fogo), que constituem os objetos e os fenô­ da observação da natureza. O
menos do mundo exterior, são eternas e imutáveis. Por isso que lhes interessava era
o movimento para ele não é o surgimento de uma coisa e o essencialmente o problema
Parágrafo 6 desaparecimento de outra, como era o caso para os filósofos cosmológico, aparecendo aí o
homem apenas como um ser
Empédocles retoma o conceito de entre os outros que constituem
movimento e junto a isso ele mantem •F. Engels, Anti-Diihring, Paris, Editions Sociales, 1950, p. 52.
a natureza. O homem só
o conceito de estabilidade então ele nega 2Y. Battistini,do
a negação Trois présocratiques, Paris, 1969, p. 113.
movimento. aparece como objeto da
Para ele apenas os 4 elementos (terra, agua, ar e fogo) são imútaveis e o que mais existe são 159
filosofia, de facto, com
Sócrates e, de algum modo
associações e disassociações de determinados elementos contidos num dos 4 elementos, que irão
formar as coisas existentes. com a sofística, mesmo se se
considerar que nos fragmentos
de forma que o movimento não é o surgimento de uma coisa e o desaparecimento de outra de Heraclito já está presente o
homem, algumas vezes
(tal como se entendia o nascimento em sua época) 0u o desaparecimento tal como a morte que finda)
mesmo como centro da
mas o movimento problemática.
para ele é transformação, reagrupamentos. Nada nasce nada morre. O que caracteriza a Escola
Tudo é associação e dissociação (transformação ) Jónica, dentro da temática, já
referida, da cosmologia e da
cosmogonia é a sua conceção
a um tempo unitária e
pluralista do universo, visto
que admite uma substância
única como substância original
de onde o cosmos, na sua
diversidade, descende; mas
defende a pluralidade dos
elementos e dos seres como
de Mileto, assim como para Heráclito. Para Empédocies o
movimento representa apenas um descolamento de raízes e seu
diferente reagrupamento. Ele diz que: “Nada do que é mortal
tem seu nascimento ou seu fim determinado pela morte que
tudo leva. Os elementos apenas associam-se e, urna vez mis­
turados, eles se disassociam. Nascimento é apenas um nome
dado pelos homens para um momento desse ritmo das coisas”3.
Parágrafo 1 Essa questão é resolvida de forma semelhante por Anaxá-
Anaxágoras: Fala em MIsturar-se para se
contrapor ao surgir e desaparecer, desintegra-se.
goras. Ele sustentava que as palavras “aparecimento” e “desa­
parecimento” não eram empregadas corretamente pelos heléni­
Demócrito diz que os átomos eternos e imutáveis cosntituem a
cos, porque, na verdade, não há coisas que apareçam, nem que
base de tudo que existe. E o movimento é o deslocamento e desapareçam, mas cada coisa é formada pela mistura das coisas
reunião e nva separação e assim por diante.
existentes ou delas se separa. Assim, seria mais correto dizer
“misturar-se” no lugar de “aparecer”, e no lugar de “desapa­
recer”, “desintegrar-se”. Esse mesmo conceito pode ser encon­
Parágrafo 2 trado em Demócrito. Os átomos eternos e imutáveis consti­
Para Aristóteles : tuem, segundo ele, a base de tudo o que existe, o movimento
resume-se apenas a seu deslocamento, sua reunião e sua
Depois de estabelecidos os separação.
princípios Demócrito e Leucipo Caracterizando a doutrina de Demócrito, Aristóteles es­
retiram deles (por separação e união creveu, por exemplo, que: “Demócrito e Leucipo, pelo contrá­
da própria formação e sucessivas rio, depois de terem estabelecido as figuras, tiram delas a alte­
transformações ração e a geração: a separação e a união dessas figuras pro­
duzem a geração; e a corrupção, e sua ordem e sua posição,
a alteração”*. Plutarco, analisando a teoria de Demócrito,
Plutarco analisando diz que escreveu que, para ele, “os seres infinitamente numerosos, invi­
os elementos já formados (que síveis e indiferenciáveis, não sendo possuidores de qualidades
descreve como seres invisíveis e (internas), nem submissos a uma ação (exterior), habitam um
indiferenciáveis) assim se espaço vazio; quando eles reaproximam-se, chocam-se ou en­
apresentam trelaçam-se e, dentre essas acumulações (assim formadas),
por estarem em um espécie de espaço algumas
vazio,parecem
no qualser nãoa água,
há outras o fogo e as terceiras parecem
ser plantas e, finalmente, as quartas, o homem; para Demócrito,
elementos com condições de transforma-los, mas quando
elas são apenas esses formas indivisíveis. . . como ele
(na realidade)
se aproximam e se entrelaçam sua forma de apresentação
as chama, e, além delas, nada mais existe”.
se modifica podendo vir a parecer agua ou fogo ou qualquer
Aristóteles desenvolveu posteriormente a teoria do movi­
coisa que exista inclusive o homem. mento e da correlação. Ele retomou o ponto de vista dos
Entendi que : para ele as formas primeiras, jónicos ase de
que Heráclito,
dão origem que consideravam o movimento como o
aparecimento de uma coisa e a destruição de outra. Restabe-3*
são indivisíveis e por isso são as primeiras e as que dão origem
fora delas nada existe. 3Y. Battistini, op. cit., p. 155.
‘Aristóteles, De la génération et de la corruption, Palis, 1951, p. 10.

Parágrafo 3 e inicio da pag 161 160


"Aristóteles desenvolveu posteriormente a teoria do movimento e da correlação. Ele retomou o ponto
de vista dos jónicos e de Heráclito, que consideravam o movimento como o aparecimento de uma coisa e
a destruição de outra " e acrescenta que:
o movimento além de destruição e aparecimento,é tb o crescimento e a diminuição, assim como
o deslocamento dos corpos no espaço.

As palavras aparecimento, destruição, reagrupamento, associação dissociação e outras mais são utilizadas de
forma de diferenciarem-se umas das outras os filósofos utilizam e reutilizam negam ou corroboram para colocar
seus acréscimos nas teorias ou para apresentar novas formas de pensar.
Aristóteles distinguia seis formas de movimento:
a geração, a corrupção, o crescimento, a diminuição, a alteração e
a modificação Para ele o moviment é eterno e sempre existiu é uma
caracteristica das coisas E em outra parte do mesmo texto ele diz que:
não há movimento fora das coisas”

Antes do primeiro paragrafo,


em "lecendo..." e tb no lecendo o que haviam dito os primeiros filósofos gregos, ele
1º Parágrafo diz que: incluía, sob urna forma anulada, em sua teoria do movimento
e da correlação, as concepções de filósofos que se seguiram a
esses primeiros, tais como Empédocles, Anaxágoras e Demó-
Aristóteles desenvolveu 10 crito. Segundo Aristóteles, o movimento não é apenas a des­
truição e o aparecimento, mas igualmente o crescimento e a
categorias e o movimento diminuição, assim como o deslocamento dos corpos no espaço.
funcionava como um Aristóteles distinguia seis formas de movimento: “há seis espé­
conceito unificador para as cies de movimento: a geração, a corrupção, o crescimento, a
diminuição, a alteração e a modificação local”5*7. Destacando
categorias e considerava a eternidade do movimento, o fato de que “o movimento sempre
uma caracteristica existiu e existirá o tempo todo”5, Aristóteles une-o novamente
à natureza e às coisas materiais, porque considerava que o mo­
universal de todas as coisas vimento é urna característica universal das coisas e que não
existe sem elas. “A natureza é o princípio do movimento e da
no parágrafo 2 modificação’”?. E em outra parte do mesmo texto ele diz que:
“ .. . não há movimento fora das coisas”8.
NA filosofia materialista A filosofia de Aristóteles encerra a formação da categoria
predominou a forma do movimento. Embora ele não a tenha incluído entre as dez
categorias que distinguia, utilizava-a como um. conceito unifi­
mecanicista do movimento cador para categorias como as de “posição”, “posse”, “ação”
da matéria durante os e “sofrimento”.
séc XVII E XVIII No período imediatamente posterior de seu desenvolvi­
mento, a filosofia materialista tende a erigir em absoluto a forma
O movimento era mecanicista do movimento da matéria. Nos séculos XVII e
interpretado como um XVIII esta foi uma tendência dominante, e o movimento é,
então, interpretado como um deslocamento dos corpos no
um deslocamento dos espaço. Encontramos essa concepção em Descartes e em
corpos no espaço essa Holbach, que escreveu que: “O movimento é um esforço pelo
concepção está em qual o corpo muda ou pelo menos tende a mudar de lugar,
isto é, a corresponder sucessivamente a diferentes partes do
Descartes e em espaço.. . ”9.
Holbach A concepção do movimento como deslocamento dos
corpos no espaço é limitada e, por essa razão, incorreta.

5Aristóteles, Organon, I. Catégories, II, Palis, 1946, p. 72.


°Aristôteles, Physique, Paris, 1931, t. 2, v. 5-8, p. 138.
7Aristôteles, Physique cit., Paris, 1926, t. 1, v. 1-2, p. 88.
8Aristôteles, Physique cit., p. 90.
9P. Holbach, Système de la nature ou des lois du monde physique
et du monde moral, Londres, 1769, p. 13.

161
Cheptulin coloca
que é incorreto por
não incluir as
Ela não inclui a diversidade das transformações próprias à
transformações matéria. As transformações que se produzem, por exemplo,
próprias da matéria. no núcleo atômico, no organismo vivo, na sociedade etc. não
são apenas simples deslocamentos.
Parágrafo 1 Uma definição científica do movimento foi dada, pela
ENGELS escreveu que: primeira vez, pelos fundadores do materialismo dialético e,
"o movimento aplicado a matéria
em particular, por Engels que escreveu que: “o movimento,
é a modificação em geral"
ELe inclui todoas as mudanças e
aplicado à matéria, é a modificação em geraV’W. Ele “inclui
todos os processos que se todas as mudanças e todos os processos que se produzem no
produzem no universo desde a universo, da simples mudança de lugar até o pensamento”!1.
simples mudança de lugar até O movimento é um atributo da matéria, sua propriedade
o pensamento fundamental. É por isso que ele está indissoluvelmente ligado
a ela. Não houve, não há e não pode haver matéria sem
LER O PARAGRAFO 2 movimento, nem movimento sem matéria.
A lei de correspondência da massa e da energia é teste­
LER O PARÁGRAFO 3 munha desse laço indissolúvel entre a matéria e o movimento.
Segundo essa lei, a cada quantidade determinada de massa Alguns filósofos
burgueses
corresponde uma quantidade muito precisa de energia. Toda
não reconhecem o laço
modificação da massa é acompanhada de uma transformação orgânico do movimento
correspondente de energia e, inversamente, toda transformação com a matéria, e eles
de energia acarreta uma modificação correspondente de massa. estabelecem a
Certos filósofos e físicos burgueses não reconhecem o laço possibilidade
orgânico do movimento com a matéria, eles “estabelecem” a de uma redução da
possibilidade de uma redução da matéria ao movimento e, matéria ao
baseados nisso, consideram a energia como primeira e determi­ movimento. e como base
nante, considerando que a matéria é uma das formas de energia. nisso
Para provar seu ponto de vista, eles se referem à transformação consideram a energia
da substância em luz e, notadamente, à transformação do como
elétron e do pósitron em dois ou três fótons, considerando-os 1ª e a materia
como a transformação da matéria em energia pura. seria então uma das
“A matéria, escreve, por exemplo, o sábio norte-ameri­ formas
cano Roy K. Marshall, é uma das formas de energia. Em da energia
certas condições, a transformação da matéria em energia pura, Para provar eles se
ou da energia pura em matéria, é possível”^ . referem a transformação
É evidente que os partidários desse ponto de vista têm uma da substância em luz, e a
concepção pré-marxista, metafísica da matéria como substância transformação do elétron
o paragrafo 6 vou ler e do pósitron em 2 ou em
e que, dessa forma, eles deformam a realidade. A transforma-10
3 fótons, considerando-os
como a transformação da
10F. Engels, Dialectique de la nature cit., p. 252.
nF. Engels, La dialectique de la nature cit., p. 75. matéria em energia pura.
,2R. K. Marshall, The nature and things, New York, 1951, p. 47.

162
a transformação de elétrons e de pósitrons em fótons — partículas de
luz — não é a transformação da matéria em energia (movimento puro),
mas sim a transformação de uma forma de matéria em outra forma,
porque toda realidade objetiva é matéria. Não apenas a substância
relaciona-se com a matéria, mas também uma variedade infinita de
formas do ser, já conhecidas, assim como as ainda desconhecidas.
ção de elétrons e de pósitrons em fótons — partículas de luz —
não é a transformação da matéria em energia (movimento
puro), mas sim a transformação de uma forma de matéria
em outra forma, porque toda realidade objetiva é matéria. Não
apenas a substância relaciona-se com a matéria, mas também
uma variedade infinita de formas do ser, já conhecidas, assim
como as ainda desconhecidas.
Parágrafo 7
Sendo uma realidade objetiva, existindo fora e independen­
Cheptulin coloca a matéria
temente da consciência humana, a matéria não pode desaparecer
é uma realidade objetiva que
total ou parcialmente, nem se transformar em qualquer coisa
existe fora e independentemente
de imaterial. Ela existe eternamente, passando continuamente
da consciencia humana, de um estado ou aspecto qualitativo a outro. E o mesmo
desta forma ela não pode se acontece com o movimento. Estando organicamente ligado à
transformar em algo imaterial. matéria, ele não pode desaparecer ou se transformar em nenhu­
A matéria passa de um estado ma outra coisa que não seja o movimento, porque sua quanti­
ou aspecto qualitativo a outro dade permanece sempre a mesma. Salientando a eternidade da
assim como o movimento. matéria e do movimento, assim como sua ligação orgânica,
O movimento não altera a Engels escreveu que: “A matéria sem o movimento é tão in­
quantidade mas muda concebível quanto o movimento sem a matéria. O movimento
qualitativamente. é, portanto, tão impossível de ser criado e destruído quanto a
própria matéria. . E mais adiante ele diz que: “ . . . a quan­
tidade de movimento existente no mundo permanece constan­
te”^ .

b ) O M o v im e n t o e o R e po u so
Perguntar da categoria tempo
Quando apresentamos o movimento como uma proprie­
dade fundamental da matéria, não podemos nos esquecer de
indicar sua outra propriedade — uma certa estabilidade e
invariabilidade. A matéria “flui” continuamente, transforma-
se, mas, mesmo se transformando a esse ou àquele grau, ela
permanece imutável, em repouso.
É preciso observar, aqui, que certos autores compreendem
o repouso em um sentido restrito, portanto, de maneira incor­
Alguns autores entendem reta. Eles consideram que o repouso é a ausência de movi­
o movimento como mento, sob essa ou aquela relação. Por exemplo, toma-se um
corpo que se encontra em estado imóvel em relação à Terra
deslocamento portanto e diz-se que esse corpo está em estado de repouso em relação13
incompleta

13F. Engels, Anti-Dühring cit., p. 92.

163
Esses autores usam como referencia Engels que em sua obra Anti-Duhring na qual fala de 1 caracteristica do repouso
porem a interpretação está errada.
O que Engels disse foi que a matéria esta em repouso apenas do ponto de vista da forma mecânica do movimento da
matéria. Porém mesmo durante o repouso mecânico ocorrem movimentos que não dizem respeito ao deslocamento.
Considerando as ligações químicas entre os átomos que formam as moléculas durante o que se pode chamar de
estabilidade em que os átomos se agrupam compondo uma determinada formação estes estão mantendo um
movimento de assim ermanecerem. Ou quando estamos sentados, estamos realizando o movimento de estar sentado.

O repouso pode ser


considerado à Terra. Para confirmar essa idéia, referem-se habitualmente à
o equilíbrio do movimento. característica do repouso que é dada por Engels em sua obra
O sistema solar é um Anti-Dühring, na qual ele cita um caso análogo como exemplo
de repouso. Mas, nessa referência são freqüentemente omitidas
sistema em repouso pois as passagens que mostram o caráter limitado desse exemplo.
apresenta relativa Engels, quando descrevia o caso em questão, indicava também
estabilidade das partículas que a noção de repouso é tomada aqui em um sentido mecânico,
e que o corpo está em repouso apenas do ponto de vista da
que o compôem mantendo forma mecânica do movimento da matéria14. De fato, se a
uma constância enquanto forma mecânica do movimento é o deslocamento dos corpos
no espaço, então, o repouso, no quadro dessa forma do movi­
não sofrem a ação de mento será, naturalmente, a ausência de deslocamento, a “liga­
reagentes. ção” com um certo lugar.
Além disso, os autores que citam esse exemplo de repouso
não precisam a que forma de movimento ele é aplicável, permi­
E precisamente isso ou tindo, dessa maneira, que se entenda que ele é um exemplo
seja a não ausência do clássico do repouso em geral e é exatamente por isso que eles
movimento que é uma deformam a concepção marxista do repouso e sua essência.
Sendo o contrário do movimento, o repouso representa,
propriedade universal do entretanto, não a ausência de movimento, mas sua forma
repouso. particular, ou seja, o movimento em equilíbrio. De fato, o
sistema solar é um sistema em repouso, não porque ele seja
isento de movimento (ele está em movimento constante e diver­
Lembrar do conceito de sificado), mas porque há um equilíbrio entre suas diferentes
matéria e das suas partes: o átomo de uma substância, enquanto formação mate­
rial, possui o repouso não porque ele está imóvel, assim como
propriedades. suas partes, mas porque é um sistema de movimento relativa­
o movimento é uma mente estável das partículas “elementares”, um sistema de
equilíbrio. É precisamente isso, ou seja, a presença de um
propriedade da -matéria . movimento em equilíbrio, e não a ausência de movimento, que
é uma propriedade universal do repouso. Se o repouso é
em química na escola igualmente movimento, movimento em equilíbrio, então as teses
do materialismo dialético, assim como “o repouso é um movi­
aprendemos que mento do movimento” e “o repouso é um caso particular do
o que faz um corpo em movimento”, tornam-se perfeitamente claras.
O sistema de movimento relativamente estável que cons­
movimento parar é o atrito. titui uma coisa dada não esgota todo o movimento dessa coisa.
Ao lado do movimento em equilíbrio, próprio a uma formação

UF. Engels, Anti-Dühring cit., p. 92.

164
O sistema de movimento relativamente estável que cons titui uma coisa dada não
esgota todo o movimento dessa coisa. Ao lado do movimento em equilíbrio, próprio
a uma formação
Ler e
observar
a
material, produzem-se transformações contínuas, tanto no qua­ coerência
dro desse sistema, como nas relações dele com outros sistemas das
de movimento relativamente estável. propriedades
Por exemplo, em um átomo, ao lado do sistema relativa­ das
categorias
mente estável, do movimento dos elétrons em redor do núcleo, já estudadas
dos prótons e de outras partículas, produzem-se certas modifi­
cações no estado energético das partículas “elementares”. O
elétron pode passar de uma órbita a outra, perdendo uma certa
quantidade de energia ou mesmo adquirindo-a; o átomo pode
perder um ou vários elétrons e, em interação com outros
átomos, pode constituir um sistema de movimento relativamente
Enquanto se mantem a relativa
estabilidade de um corpo ou um
estável e mais complexo etc.
sistema ocorrem Em uma única palavra, paralelamente ao movimento em
outros movimentos em outros corpos equilíbrio, no quadro, e ao lado desse movimento, produz-se
ou sistemas que poderão interagir ou uma massa de outras transformações e de outros movimentos.
não
Todas essas transformações incorporando-se até um certo mo­
com o primeiro naquele momento
observado, e em outro momento, um
mento ao sistema de movimento dado, relativamente estável,
poderá não comprometem o equilíbrio de suas diferentes partes. Mas
interferir no equilibrio do outro, a partir desde, que essas transformações atinjam um nível em que elas
de si mesmos e de ultrapassem o quadro do sistema de movimento relativamente
suas transformações ou de interações estável, o equilíbrio é perturbado, o sistema fica arruinado e.
que um deles sofra por interferencia de em seu lugar, aparecem um ou outros sistemas de movimento
um terceiro.
de forma que sempre haverá
relativamente estável, representando novas formações materiais
interligações entre uma formação ou novas coisas. Nesses novos sistemas de movimento relati­
material e outra de forma direta ou vamente estável produz-se a mesma coisa: as transformações
indireta. que afetam alguns de seus elementos não influem, no começo,
sobre seu equilíbrio e permanecem em seu quadro. Mas, a
Tudo isso tem relação seguir, desde que um certo nível seja atingido, essas transforma­
com a categoria tempo (confirmar)
ções destróem esses sistemas e fazem aparecer sistemas novos,
e assim por diante. Destruição= transformação
As reações às interferências podem ser pois não há uma destruição
da matéria e sim uma
mínimas ou podem até mesmo c) O M o v im e n t o e o D e sen v o lv im en to tranformação de uma formação
provocarem em outra
a destruição de um sistema inteiro e
fazer Se o movimento condiciona a passagem constante da ma­
aparecer outro sistema e assim téria de um estado estável a outro, a destruição contínua de
sucessivamente. formações materiais e o aparecimento de novas formações que
as substituem, a questão que se coloca é a de saber qual é a
tendência de todas essas transformações, qual é o sentido do
movimento e o que aparece no lugar das formações materiais
destruídas que desaparecem?
Se o movimento é a passagem constante
de um estado para o outro podendo ocasionar inclusive a destruição/transformação 165

quase total de uma forma que a matéria esteja se apresentando, seja um objeto, uma
pessoa ou um sistema solar, o mais importante é sabermos o sentido do movimento
ou seja qual é o determinante e qual é o resultado, qual é o determinado e quais
transformações ocorreram em tais circunstâncias
De acordo com a teoria
do movimento circular,
tudo volta ao seu princípio
e se repete.
Anaximandro dizia que o
princípio primeiro é o Segundo a teoria do movimento circular, todas as trans­
infinito, "dele tudo nasce formações observadas no mundo transpõem os mesmos estágios,
e nele tudo se destrói" voltando, 3 ^ada vez, à posição de partida, isto é, elas descrevem
executando um movimento um círculo. Esta idéia foi formulada de maneira muito precisa
circular com um espaçado
tempo entre a morte e o pelos filósofos gregos da Antigüidade (Thales, Anaximandro e
resurgimento. Anaxímenes). Tomando como princípio primeiro algo conside­
rado como um apeiron, Anaximandro, por exemplo, dizia que:
Os seguidores de Pitágoras “O infinito é o princípio primeiro da existência, porque é dele
tb acreditavam nessa teoria que tudo nasce e nele tudo se destrói”. É do apeiron que “se
circular, chegando a dizer desligaram os céus e, em geral, todos os mundos”, “que perecem
que a repetição se daria
de forma igual, à um tempo
todos depois que um tempo bastante considerável tenha decor­
estaríamos todos rido desde seu aparecimento; e eles todos executam um movi­
aqui novamente, os mento circular, desde tempos imemoriais.. .”.
mesmos corpos Em sua forma mais categórica, que supõe a repetição
repetindo as mesmas literal e absoluta dos estágios já transpostos, a idéia do movi­
ações que estamos mento circular foi expressa pelos pitagóricos que consideravam
praticando agora.
que todos os 760.000 anos, tudo no mundo, volta a seu
estado inicial e repete os estágios já transpostos.
“Os pitagóricos acreditavam, escreve sobre isso Eudeme,
um dos alunos de Aristóteles, que eu falaria novamente a
vocês, que teria nas mãos esta mesma vara, que vocês estariam
sentados no mesmo lugar e que me escutariam. . . ”15.
Segundo uma outra teoria, as transformações que se
Segundo outra teoria as transformações
tendiam a destruição e a morte e o
produzem no mundo não se fazem segundo um círculo, mas
sentido do movimento era a imperfeição. têm uma tendência à destruição, à morte, a ir ao encontro do
Entre essas teorias encontra-se tb a que é cada vez menos perfeito. Entre essas teorias, encontra­
teoria do movimento inverso, a teoria mos também as do “movimento inverso”, da “regressão” etc.
regressão entre outras O astrônomo inglês James Jeans desenvolve uma teoria desse
tipo. Generalizando, em seu livro O movimento das estrelas,
sua experiência no estudo do Universo, ele declara que esse
Universo “vive sua vida e vai do nascimento à morte como
todos nós, já que a ciência não conhece nenhuma outra trans­
formação além da passagem para a velhice e nenhum outro
progresso além do movimento em direção ao túmulo”i 6.
O materialismo dialético reconhece tanto o movimento em
círculo, como o retorno para trás (regressão), mas não consi-15

15L. Vaciliev, Espaço, tempo e movimento, Petrogrado, 1923, p. 7.


Original em russo.
18J. Jeans, The stars iti their courses, Cambridge University Press,
1948, p. 152.

166
O materialismo dialético reconhece o
movimento em círculo como o retorno
para trás, uma regressão e não circular.
O materialismo dialético não nega
a reversibilidade de determindas
reações sob determinadas circunstancias
porém considera que o desenvolvimento
do movimento tem como tendência O materialismo dialético reconhece tanto o movimento
dominante o sentido progressivo que
conduz a passagem do inferior para
em círculo, como o retorno para trás (regressão),
o superior do simples para o mas não consi-
complexo.
A tese do materialismo dialético a respeito do
desenvolvimento que se produz na realidade
dera essas como tendências dominantes. A tendência domi­
objetiva é confirmada pela ciência. nante, no mundo material, é o movimento progressivo, as trans­
formações que conduzem à passagem do inferior ao superior,
O materialismo dialético não é uma teoria de do simples ao complexo, isto é, o desenvolvimento.
suposições, se baseia na materialidade dos fatos
portanto se não vemos as cenas se repetindo A tese do materialismo dialético sobre o desenvolvimento
não considera que isso possa ocorrer. que se produz na realidade objetiva é confirmada, de forma
evidente, pelos dados das ciências contemporâneas, notada-
mente das ciências da natureza e da sociedade.
A ciência moderna, por exemplo, afirma que a luz irra­
diada no Espaço por corpos incandescentes transforma-se, em
certas partes do Universo, em partículas “elementares”, que
Ler possuem uma massa de repouso, isto é, transforma-se em par­
tículas de substâncias que se acumulam em grandes quantida­
des, formam os átomos de elementos químicos, depois as
moléculas de algumas substâncias. Em decorrência da intera­
ção, essas partículas materiais se aquecem, condensam-se e, a
um certo estágio de seu desenvolvimento, formam os corpos
celestes, sobre os quais, à medida que as condições necessárias
aparecem, como por exemplo, sobre a Terra, combinações mais
complexas de substâncias orgânicas nascem e, desenvolvendo-se,
transformam-se em organismos vivos.
Ler o parágrafo 3 Os organismos vivos depois de aparecerem não permane­
Conceito de
_Célula eucarionte: Apresentam o núcleo
cem imóveis, mas, seguindo as modificações do meio ambiente
separado do citoplasma pela carioteca. (maioria e a ele adaptando-se, transformam-se, passam de menos per­
dos seres vivos - protozoários, fungos, plantas feitos para mais perfeitos, de simples para mais complexos e,SUbstancia viva seriam os
aminoácidos ou proteinóides ?
e animais).
_Célula procarionte: A grande característica
em particular, passam de simples bolinhas de substância viva, Os proteinóides eram
das bactérias é não possuir núcleo. O seu material desprovidas de estrutura celular, para organismos unicelulares, aparentemente capazes de agir
genético fica disseminado no citoplasma com e de organismos unicelulares, os mais simples, aos organismoscomo enzimas e catalisar
reações orgânicas.
o DNA de fita dupla de forma circular e pode-se
chamar essa região de nucleóide. pluricelulares e, finalmente, passam de seres dotados unica­
mente de excitabilidade a seres dotados de sensações e de
Na historia da humanidade tb vemos o movimento
rudimentos de pensamento elementar.
do desenvolvimento com o sentido do Na história da sociedade humana, observamos o mesmo
mais simples para o mais complexo com a processo. A humanidade começou a existir sob uma forma
sociedade passando de
primitiva _ escravagista_feudal_capitalista
muito simples, a sociedade primitiva, depois conheceu o regime
e socialista. escravagista, que é mais elevado e mais complexo do que o da
Aqui se considera apenas o nivel de complexidade comunidade primitiva, em seguida, o regime feudal, o regime
e não está se analisando aspectos éticos.
capitalista e, enfim, o socialista, erguendo-se cada vez a um
grau mais elevado, passando a uma forma cada vez mais perfeita
de vida social.
Assim, a história da natureza, da mesma maneira que a
história da sociedade, mostra que, no processo da passagem da

167
NA história da natureza tb é
constatável a tendência do
desenvolvimento do movimento Assim, a história da natureza, da mesma maneira que a história da
de ir do simples para o complexo sociedade, mostra que, no processo da passagem da
e do inferior para o superior
matéria de formações materiais ou de estados qualitativos a
outros, aparece uma tendência ao desenvolvimento, isto é, ao
movimento progressivo, à modificação indo do inferior ao
Parágrafos 1,2 3
superior.
O reconhecimento do desenvolvimento é um dos princípios
Cheptulin sendo dialético traz os de partida tundamentais do materialismo dialético. Entretanto,
diversos pontos de vista do materilismo dialético: na literatura marxista, não encontramos uma concepção única
Molodtsov considerava desenvolvimento do movimento. Existem variados pontos de vista sobre esse
qualquer tipo de modificação material assunto. Levando em conta o laço que existe entre nosso tema
Cheptulin diz que se assim fosse em
e o problema do desenvolvimento, vamos nos deter um pouco
análise da teoria dos fundadores do materialismo
dialético se encontra em Engels, a definição sobre ele.
da dialética, como “a ciência das leis gerais Certos autores entendem por desenvolvimento as diferentes
do movimento "E " do desenvolvimento transformações que se produzem na natureza, na sociedade e
da natureza, da sociedade humana no conhecimento. V. Molodtsov, por exemplo, emite o se­
e do pensamento”. guinte ponto de vista: “Por desenvolvimento, no sentido mais
Não se junta com um “E” palavras
amplo da palavra, a dialética marxista entende as diferentes
que tenham o mesmo significado.
transformações dos objetos da natureza, dos fenômenos da vida
social, assim como as modificações do conhecimento que o
homem tem do mundo objetivo”1'?.
Mas se o desenvolvimento é qualquer modificação, então
não há nenhuma diferença entre desenvolvimento e movi­
mento, e os conceitos de “desenvolvimento” e de “movimento”
designam a mesma coisa. Entretanto, a análise da teoria dos
fundadores do materialismo dialético, concernente ao movi­
mento e ao desenvolvimento, mostra que eles davam um sen­
tido diferente a essas duas noções e também que não as
identificavam. Efetivamente, se o movimento e o desenvolvi­
mento designassem a mesma coisa, Engels, definindo a dialé­
tica, não teria dito que ela é “a ciência das leis gerais do
movimento e do desenvolvimento da natureza, da sociedade
humana e do pensamento”1718. Não se junta com um “e”
palavras que significam a mesma coisa.
Se o movimento e o desenvolvimento fossem noções iguais,
Marx e Engels teriam criticado os materialistas anteriores a eles,
não pela negação do desenvolvimento, como é o caso, mas
por haverem-no reduzido a uma forma mecânica, porque os
materialistas pré-marxistas reconheciam algumas modificações,

17V. Molodtsov, A dialética marxista sobre o desenvolvimento na


natureza e na sociedade, Moscou, 1953, p. 31. Original em russo.
I8F. Engels, Anti-Dühring cit., p. 171-2.

168
tais como o deslocamento dos corpos no espaço. Além disso,
se Marx e Engels entendessem por desenvolvimento todas as
modificações, Engels, analisando o processo da moagem dos
cereais, não teria podido dizer que nenhum desenvolvimento
tinha lugar no decorrer desse processo, já que as transformações
eram nele muito evidentes. Tudo isso mostra que esse ponto
de vista não está de acordo com a teoria dos clássicos do
marxismo-leninismo relativa ao desenvolvimento.
Ao contrário dos partidários do ponto de vista que aca­
bamos de examinar, que reduz o desenvolvimento a qualquer
modificação, os partidários de outro ponto de vista agem de
maneira exatamente diversa. Eles definem corretamente o de­
senvolvimento como movimento, “segundo uma linha ascen­
dente, como um processo infinito de renovação, de surgimento
do novo e de deterioração do antigo”, e declaram ainda que,
todas as modificações são um movimento, segundo uma linha
ascendente, o nascimento do novo e a deterioração do antigo,
o que o materialismo dialético compreende o movimento como
desenvolvimento.
“A natureza, assim como essas diferentes partes, declara
A. Vislobokov, encontra-se em um movimento perpétuo, em
uma mudança perpétua, e esse movimento segue uma linha
ascendente, indo das formas inferiores às formas superiores”19.
“É o movimento, a mudança a cada instante, da existência de
todos os objetos materiais que constituem o mundo material,
prossegue ele, que é o conteúdo do processo do desenvolvi­
mento da matéria dos graus inferiores aos graus superiores”20.
O resultado é o mesmo: identificação do movimento e do
desenvolvimento. A única diferença é que os autores do
primeiro ponto de vista dissolvem o desenvolvimento no mo­
vimento, enquanto que os do segundo, pelo contrário, dissolvem
todo o movimento no desenvolvimento.
F. Kalsine e A. Fourman fundamentam de maneira um
pouco diferente a identificação de qualquer mudança com o
desenvolvimento. Eles estão de acordo quanto ao fato de que,
ao lado do desenvolvimento — movimento do inferior ao supe­
rior na realidade objetiva — há outras formas de mudanças e,

19A. Vislobokov, A indissolubilidade da matéria e do movimento,


Moscou, 1955, p. 29. Original cm russo.
20A. Vislobokov, A indissolubilidade cit., p. 33.

169
em particular, o movimento circular, as mudanças regressivas
etc. Mas, pelo fato de que todas essas mudanças são sempre
aspectos de um processo mais complicado de desenvolvimento,
que condiciona seu aparecimento, devemos considerá-los como
momentos, elos do movimento progressivo, isto é, do desenvol­
vimento. “ ( . . . ) A mudança, escreve Fourman, pode-se dar
em qualquer direção: do simples para o complexo, do com­
plexo para ò simples, em círculos etc. Mas se começarmos a
procurar o porquê da realização dessa ou daquela mudança
regressiva ou circular, poderemos descobrir que sua causa en­
contra-se sempre em um processo mais complexo e mais geral
do desenvolvimento. . . Isso significa que todos os processos
da natureza inanimada e da natureza viva devem ser considera­
dos como diferentes aspectos ou momentos do desenvolvimento
geral e progressivo do mundo”21.
A respeito desse juízo, é preciso dizer, antes de tudo, que
nem todos os movimentos circulares e mudanças regressivas —
mas longe disso — são engendrados pelo processo geral de
desenvolvimento; vários dentre eles são aspectos, elos desse ou
daquele processo geral da degradação, da desagregação desse
ou daquele sistema, e é por isso que eles não podem, absoluta­
mente, ser considerados como momentos do desenvolvimento.
No que concerne aos movimentos circulares e às mudanças
regressivas, que se desenrolam no quadro de um sistema em
desenvolvimento, também estes não são momentos do desen­
volvimento, já que o desenvolvimento representa o movimento
do inferior para o superior. No melhor dos casos, podemos
considerá-los como condições do desenvolvimento se o movi­
mento do sistema do inferior para o superior for impossível sem
eles. Mas a condição do desenvolvimento e seu momento estão
longe de ser a mesma coisa.
Fazendo desse ou daquele movimento circular ou mudança
regressiva um desenvolvimento, unicamente porque ele está li­
gado a esse ou àquele processo mais geral do desenvolvimento,
o autor mostra uma aproximação unilateral, porque ele se limita
a considerá-lo apenas como uma parte do todo. O movimento
circular, sendo uma parte de um todo mais geral, manifesta-se,
ele próprio, como um todo possuidor de suas próprias partes.

21Livro de leitura sobre a filosofia marxista, Moscou, 1960, p. 142-3.


Original em russo.

170
O autor não leva em conta esse aspecto das coisas. A parte e
o todo são noções correlativas; todo fenômeno é, ao mesmo
tempo, parte e todo. Sob uma certa relação ele manifesta-se
como parte, enquanto que, sob uma outra relação, ele aparece
como todo. Por exemplo, a mudança de nossa Terra em relação
às mudanças do sistema solar é uma parte, mas, em relação às
mudanças do mundo vegetal e animal que vivem sobre ela, é
um todo; as mudanças de nosso organismo em relação às
mutações da espécie humana são uma parte e, em relação às
modificações das células ou dos órgãos que as constituem, são
um todo.
Segue-se que não devemos nos limitar a considerar esse mo­
vimento circular unicamente como uma parte desse ou daquele
todo, mas sim estudá-lo como um todo e, portanto, resolver
a questão: um movimento circular ou uma mudançr» regressiva
são um desenvolvimento? Respondendo a essa questão, che­
gamos necessariamente à conclusão de que as mudanças regres­
sivas e os movimentos circulares não se relacionam ao desenvol­
vimento, mas que o desenvolvimento é apenas o movimento do
inferior ao superior.
Denominando todo movimento de desenvolvimento, os
autores, cujo ponto de vista acabamos de analisar, consi­
deram-se vitoriosos na tentativa de ultrapassar a estreiteza da
concepção metafísica relativa a essa questão. Mas, na reali­
dade, embora de forma invertida, a estreiteza metafísica também
está presente em seu ponto de vista. Os metafísicos reduzem
toda mudança, inclusive o desenvolvimento, a uma única forma
de movimento, notadamente ao simples deslocamento dos cor­
pos no espaço. Já os autores do ponto de vista em questão
declaram, contrariamente, que toda mudança, inclusive o deslo­
camento dos corpos no espaço, é um desenvolvimento.
Dialético não é o que vê o desenvolvimento onde ele não
existe, mas sim o que representa a realidade em toda a sua
diversidade, sem confundir progresso e regressão, aquele que
vê na massa das mudanças o que intervém no desenvolvimento
— o movimento progressivo que, “apesar de todos os acasos
aparentes e de todos os retornos para trás, .. .termina por
aparecer”222

22K. Marx e F. Engels, Etudes phylosophiqties, Paris, Editions So-


ciales, 1961, p. 45.

171
Ao contrário dos autores que identificam totalmente o
conceito de desenvolvimento com o de movimento, S. Meliukhin
distingue-os, mas apresenta como critério de sua diferenciação
momentos e aspectos que não constituem a essência específica
do desenvolvimento. Ele considera, por exemplo, a integrali-
dade, o caráter lógico e a espontaneidade das mudanças do
estado qualitativo de uma formação material como principais
particularidades do desenvolvimento. “A noção de desenvol­
vimento, ele escreve, caracteriza apenas a mudança integral,
lógica e espontânea do estado qualitativo de um sistema dado,
como um todo único”23. Incontestavelmente, esses traços ca­
racterizam o processo de desenvolvimento, mas não lhe são
específicos. E eles caracterizam igualmente o movimento
circular e as mudanças regressivas. A especificidade do desen­
volvimento é constituída não pela integridade, o caráter lógico
ou a espontaneidade das mudanças das formações materiais,
mas pelo caráter progressivo das mudanças, pela passagem do
inferior ao superior, do menos perfeito ao mais perfeito. É
precisamente esse caráter que os clássicos do marxismo toma­
ram como critério do desenvolvimento. O autor ignora e,
portanto, deforma o conceito de desenvolvimento. Não é por
acaso que ele dá o nome de desenvolvimento tanto à mudança
das formações materiais, indo do inferior ao superior, como à
mudança do superior ao inferior. Partindo desse critério de
desenvolvimento, o autor termina por pensar que as mudanças
irreversíveis devem ser consideradas como desenvolvimento.
Seu raciocínio é o seguinte:
O Universo não é um sistema integrado, no qual todos os
elementos estariam em uma ligação funcional única, mas re­
presenta “o conjunto da multiplicidade infinita de sistemas
relativamente autônomos, na qual cada um está ligado ao
outro, mas cada um desenvolve-se de maneira completamente
independente”24. Por isso o Universo não se modifica inteira­
mente do inferior ao superior: algumas das formações mate­
riais que o constituem (sistemas relativamente autônomos) se
desenvolvem do inferior ao superior, outras desenvolvem-se
no sentido contrário, e outras, ainda, seguem um movimento

23S. Meliukhin, Sobre a dialética do desenvolvimento da natureza


inorgânica, Moscou, 1960, p. 10. Original em russo.
24S. Meliukhin, Sobre a dialética cit., p. 158.

172
circular. Mas há algo comum a todas essas mudanças, e isso
é o fato de que elas são irreversíveis e de que não repetem
totalmente os estados já transpostos. Por isso não devemos
considerar o desenvolvimento como um movimento progressivo,
mas como uma mudança irreversível.
“Em relação ao conjunto do Universo, escreve Meliukhin,
podemos faiar não de desenvolvimento progressivo, mas de
mudança irreversível, que supõe a impossibilidade de retorno
completo aos estados já transpostos. Os processos de desenvol­
vimento progressivo são apenas casos particulares de sua mu­
dança irreversível geral, pelo fato de que esta última encerra
não apenas a complicação das ligações e das formas do mo­
vimento, mas igualmente a degradação e a desintep tção dos
sistemas materiais”25.
V. Koziutinski defende um ponto de vista análogo. Em seu
artigo “De la direction du développement des objets cosmiques”,
ele escreve: “Qual é, então, o critério de desenvolvimento dos
sistemas cósmicos e dos elementos que os constituem? Se o
desenvolvimento se resumisse principalmente a uma mudança se­
guindo uma linha ascendente, a resposta seria clara: o critério
do desenvolvimento é o grau de “complicação” da estrutura,
das ligações e das formas de movimento da matéria, atingidas
pelo sistema. Mas, desde que a matéria inanimada não se
desenvolve em um sentido preferencial, e desde que o desen­
volvimento dos objetos cósmicos consiste em sua passagem a
novos estados qualitativos, que dão a impressão de ser, a cada
vez, originais e únicos em seu gênero, mas que nem sempre
são mais complexos do que os estados que os precedem, é
preciso introduzir, então, um novo critério de desenvolvimento
O desenvolvimento pode ser determinado como processo de
transformações qualitativas irreversíveis do objeto. No desen­
volvimento “ascendente”, o novo significa ao mesmo tempo a
ascenção a um novo grau qualitativo. Mas o desenvolvimento
“ascendente” é apenas uma das direções do desenvolvimento
irreversível dos objetos cósmicos, uma das ramificações de
processos extremamente complexos que se desenrolam na Me-
tagaláxia”26.256

25S. Meliukhin, op. cit., p. 159.


26V. Koziutinsky, Sobre o sentido de desenvolvimento dos objetos
cósmicos, in Ciências filosóficas, 1961, v. 4, p. 91-2. Original em russo.

173
Nesses raciocínios é ressaltado o caráter não fundamenta­
do das conclusões relativas à necessidade de expandir a noção
de desenvolvimento e de estender, a todos, os processos irre­
versíveis.
Esses autores descobriram que o movimento do inferior
ao superior não engloba todos os processos que se desenrolam
no mundo, que existem ainda os movimentos circulares e des­
cendentes. A partir disso, eles concluíram que o conceito de
desenvolvimento como movimento do inferior ao superior é
insuficiente, que é preciso substituí-lo por um outro conceito
que possa englobar todas as mudanças observáveis. Segundo
eles, esse conceito seria o da irreversibilidade das mudanças.
Ele caracteriza tão bem o movimento do inferior ao superior,
como os movimentos circulares e as mudanças regressivas. Vê-
se então, claramente, que as tentativas desses autores para
expandir a noção de desenvolvimento, qualificando de desen­
volvimento qualquer mudança que intervenha na realidade
objetiva, decorrem da vontade de mostrar o caráter universal
do desenvolvimento.
Afirmando que toda mudança não é desenvolvimento e
que, ao lado dos processos de desenvolvimento, observamos
movimentos circulares e mudanças regressivas, não estaremos
colocando em dúvida a universalidade do desenvolvimento? É
evidente que não. O desenvolvimento é uma propriedade uni­
versal da matéria, necessariamente própria a todas as formações
materiais. Ele existe sob a.forma de capacidade à complicação
e à passagem do inferior ao superior. Sendo próprio a toda
a matéria e a cada formação material, esta capacidade, como
qualquer outra, aparece apenas em condições adequadas. Onde
essas condições reúnem-se, há necessariamente mudança do
inferior ao superior, do simples ao complexo; onde essas con­
dições não são criadas há, ou movimento circular, ou mudanças
regressivas. As formações materiais que participam do movi­
mento circular ou sofrem mudanças regressivas não perdem a
capacidade de passar do inferior ao superior. Essa capacidade
conserva-se sob todas as transformações e mudanças, manifes­
tando-se desde que as condições favoráveis sejam reunidas.
A idéia segundo a qual a capacidade de passagem do
inferior ao superior é necessariamente própria da matéria e de
que ela se manifesta necessariamente onde são criadas condi­
ções correspondentes foi exposta de uma maneira particular­

174
mente clara por Engels: “A matéria move-se em um ciclo
eterno: ciclo que, é bem verdade, só executa sua revolução
nas durações pelas quais nosso ano terrestre é apenas uma
unidade de medida suficiente, ciclo no qual a hora do supremo
desenvolvimento, a hora da vida orgânica e, ainda mais, a hora
em que vivem os seres que têm consciência deles mesmos e da
natureza é medida com tanto mais de parcimônia quanto o
espaço no qual existem a vida e a consciência de si; ciclo no
qual todo modo de vida finito de existência da matéria — seja
ele o Sol ou nebulosas, animal singular ou gênero de animais,
combinação ou dissociação química — é igualmente, ransitório
e no qual nada é eterno, a não ser a matéria em eterna mu­
dança, em eterno movimento, e as leis segundo as quais ela se
move e se modifica. Mas, qualquer que seja a freqüência e
qualquer que seja o inexorável rigor com os quais o ciclo se
complete no tempo e no espaço; qualquer que seja o número dos
milhões de sóis e de terras que nascem e que perecem; por
maior que seja o tempo necessário para que, em um sistema
solar, as condições de vida orgânica estabeleçam-se, mesmo
que apenas em um único planeta; por mais numerosos que
sejam os seres orgânicos que terão primeiro de aparecer e
perecer antes que saiam de seu seio animais com um cérebro
capaz de pensar e, mesmo que eles encontrem, apenas por um
curto lapso de tempo, condições próprias a sua vida, para em
seguida ser exterminados sem piedade, ainda assim, temos a
certeza de q u e .. . se ela (a matéria) tiver um dia de exter­
minar sobre a Terra, com uma necessidade imperiosa, sua
floração suprema, o espírito pensante, será preciso que, com
a mesma necessidade, em algum outro lugar e em alguma outra
hora, ela o reproduza”2?.
Desse raciocínio de Engels destaca-se o fato de que os
clássicos do marxismo, considerando o movimento da matéria
do inferior ao superior como uma evolução, levavam em conta
movimentos circulares infinitos próprios à matéria, a presença
de mudanças regressivas e o caráter temporário da existência
de cada sistema, de cada formação material.
Analisamos vários pontos de vista relativos à concepção
do desenvolvimento, diferentes, todos eles, do que havíamos

27F. Engels, La dialectique cít., p. 45-6.

175
exposto anteriormente, e acreditamos que a teoria mais justa
do desenvolvimento é a que o considera como um movimento
progressivo, segundo uma linha ascendente, como mudança no
decorrer da qual se produz a passagem do inferior ao superior,
do simples ao complexo, do menos perfeito ao mais perfeito.

3. A RELAÇÃO
As diferentes formações materiais, sendo sistemas de
movimento relativamente estáveis, não coexistem simnlesmen-
te, mas agem umas sobre as outras, provocando mudanças
mútuas e encontrando-se, assim, em correlação e interdepen­
dência de; armiñadas.
A lieação é a relação entre os obietos da realidade. Mas
nem toda relação é lisação. O conceito de “relação” é mais
vasto do que o de “ligação”. Esse conceito engloba não apenas
a ligação entre os fenômenos da realidade, mas igualmente seu
isolamento, sua separação, não apenas sua interdependência,
mas também uma certa independência, uma relativa autononra.
A ligação é uma relação entre dois fenômenos quando a mo­
dificação de um supõe uma certa transformação do outro,
quando a essa ou àquela modificação em um correspondem
essas ou aquelas modificações no outro. Por exemplo, o mo­
vimento do corpo está organicamente ligado a sua massa, já
que a modificação do primeiro acarreta necessariamente a
modificação da segunda; as propriedades químicas dos elemen­
tos estão ligadas à carga do núcleo atômico, porque sua mo­
dificação acarreta uma certa modificação dessas propriedades;
os organismos animais e vegetais estão em correlação com o
mundo exterior: mudanças precisas do meio acarretam neces­
sariamente mudanças correspondentes nos organismos; as
ferramentas de trabalho estão em correlação com o objeto
do trabalho e toda modificação da ferramenta provoca uma
modificação rigorosamente determinada do objeto. Por sua
vez, a transformação do objeto do trabalho acarreta certas
modificações das ferramentas de trabalho etc.
O isolamento (a separação) é uma relação entre os fenô­
menos da realidade feita de tal forma que as mudanças de um
deles não afetam os outros fenômenos, não acarretam mudanças
nestes últimos. Por exemplo, os princípios morais da sociedade

176
e a natureza exterior estão em estado de isolamento, as modi­
ficações dos princípios morais não acarretam uma mudança da
natureza e vice-versa, as mudanças na natureza não modificam
os princípios morais. Fenômenos como a natureza biológica
do homem e a luta de classes, as jazidas de carvão e de ferro
etc. não estão ligados entre si. Uma modificação de um não
acarreta uma modificação de outro.
Dando esses exemplos de correlação e de isolamento (sepa­
ração), nós não queremos absolutamente dizer que a correlação
é particular a certos fenômenos, enquanto o isolamento é ex­
clusivo de outros. No caso da correlação que consideramos
mais acima, há igualmente isolamento, assim como no caso de
isolamento há também correlação. A única diferença é que,
em certos casos, a correlação está em primeiro plano, enquanto
que, em outros, é o isolamento, a separação. Tendo fixado por
meta mostrar o que representa a correlação, escolhemos, natu­
ralmente, exemplos em que ela aparece de maneira particular­
mente clara, em que ela predomina sobre o isolamento.
E procedemos da mesma forma para mostrar o que repre­
senta a separação (o isolamento). A correlação e a separação
(o isolamento) existem conjuntamente e caracterizam todos os
fenômenos, sem exceção.
No mundo, todos os fenômenos estão, ao mesmo tempo,
ligados e isolados. Eles estão ligados sob certas relações e não
o estão sob outras; neles são produzidas tanto mudanças que
supõem outras correspondentes em outros fenômenos, como
mudanças que não implicam absolutamente em correspondentes.
O núcleo atômico, por exemplo, está organicamente ligado à
camada eletrônica, embora esteja, ao mesmo tempo, separado
dela (isolado). Nesse núcleo produzem-se modificações que
acarretam modificações correspondentes na camada eletrônica,
e outras que não a afetam. Assim, a modificação da carga do
núcleo acarreta uma modificação de sua camada eletrônica.
Mudanças, como a troca permanente de mésons, que se efetua
entre os núcleos que é acompanhada por suas transformações
uns nos outros, não acarretam nenhuma modificação da camada
eletrônica, assim como uma modificação nesta última e, em
particular, a perda ou a aquisição de elétrons não acarreta
mudanças no núcleo.
A relação organismo-meio é um exemplo manifesto da
unidade da ligação e da separação (isolamento). O organismo
177
está indissoluvelmente ligado ao meio e, ao mesmo tempo, está
separado dele; porque o organismo possui uma certa autonomia,
conhece um certo isolamento. Algumas mudanças no meio
engendram necessariamente mudanças no organismo, enquanto
outras não o fazem. Apenas as mudanças do meio que con­
cernem aos aspectos e aos fatores ligados à atividade vital do
organismo influem sobre ele. As mudanças do meio que não
afetam a atividade vital do organismo não acarretam mudanças
para ele.
As idéias de separação, de isolamento da existência dos
fenômenos e de sua correlação surgiram com o nascimento da
Filosofia. Assim, entre os primeiros filósofos gregos, a corre­
lação desempenhou um papel de princípio inicial na explicação
dos fenômenos observados na realidade ambiente.
Tomando como princípio inicial uma substância ou um
fenômeno natural (a água, o ar, o fogo), os filósofos da Anti­
guidade mostraram que todos os fenômenos observados no
mundo provinham de modificações dessa substância (fenô­
meno) e que, sendo diferentes estados de uma mesma natureza,
eles estão organicamente ligados, passam um no outro e no
princípio inicial.
A idéia da correlação universal dos fenômenos foi muito
claramente exprimida por Heráclito que tomava o fogo como
princípio inicial e dele fazia o fundamento de toda separação
e de toda ligação.
Nas teorias dos primeiros filósofos gregos, a correlação
era compreendida como a passagem dos fenômenos uns nos
outros. Mas logo depois, esse ponto de vista foi substituído
por um outro, segundo o qual a correlação manifesta-se sob a
forma de junção e de disjunção mecânicas dos mesmos elemen­
tos invariáveis. Esse ponto de vista foi particularmente desen­
volvido por Empédocles e Anaxágoras. Foi somente Aristó­
teles quem conseguiu superar esse ponto de vista limitado.
Para ele, a correlação é a interdependência das coisas. Ele
ensina que tudo o que é correlativo a qualquer outra coisa é
expresso em relação às coisas que estão em interdependência.
Aristóteles foi o primeiro a denominar de categoria o conceito
de “relação”, dando-lhe, dessa maneira, o caráter geral neces­
sário.
A categoria de “relação” foi, em seguida, desenvolvida por
Kant, para quem a relação compreende, ao mesmo tempo, a

178
ligação e a separação. Ele destacava que, no juízo, os con­
ceitos estão, ao mesmo tempo, ligados e separados, e que
todo juízo fixa tanto a presença de ligação, como sua ausência.
Por exemplo, o juízo “o lobo é um animal” exprime que o lobo
está ligado aos animais e também que ele está separado de todos
os outros animais, com exceção de seus semelhantes, isto é, dos
lobos. Desenvolvendo a justa idéia de que a ligação e a sepa­
ração são dois aspectos que se condicionam em qualquer rela­
ção, Kant deu um grande passo à frente na resolução desse
problema. Mas, ao mesmo tempo, deu um passo atrás. Ele
negava a presença da correlação dos fenômenos no mundo
exterior, na realidade objetiva. Para ele, a correlação é intro­
duzida no mundo dos fenômenos pelo sujeito pensante. Hegel
opunha-se a essa afirmação de Kant. Ele afirmava que a cor­
relação e as relações são, por natureza, próprias às coisas. É
precisamente por meio das relações que as coisas manifestam
sua essência. Hegel dizia que: “Tudo o que existe encontra-se
em relação, e essa relação é a verdade de toda existência”28.
Embora demonstrasse que a ligação e a relação são próprias
às coisas, Hegel estava longe de adotar posições materialistas.
Ele acreditava que as relações são, por sua natureza, ideais,
que elas constituem momentos ou graus do desenvolvimento
da idéia absoluta que existe fora e antes do mundo material
e das coisas sensíveis.
Além da concepção dialética das relações desenvolvida
pelos filósofos já citados, aparece na história da Filosofia uma
concepção metafísica, cujos partidários erigiam em absoluto o
isolamento, a separação e, de uma maneira ou de outra, negavam
a correlação dos fenômenos da realidade. Essa concepção
nasceu do fato de que, em um determinado estágio do desen­
volvimento da consciência social (séculos XV e XVI), os sábios
passaram do estudo do mundo em seu conjunto, como se fazia
anteriormente, ao estudo dos objetos particulares, que forma­
vam esse mundo, e de suas propriedades. Eles distinguiram
os objetos uns dos outros, desmembraram-nos em partes e
examinaram cada uma delas separadamente, fora de qualquer
laço com as outras partes e objetos. Esses modo de pesquisa28

28G. W. F. Hegel, Werke, Vollständige Ausgabe, Berlin, 1843, t.


6, p. 267.

179
engendrou o hábito de considerar o mundo, a realidade como
um conjunto de corpos, de propriedades e de elementos iso­
lados, sem nenhuma ligação entre eles.
Essa concepção filosófica das relações dos fenômenos da
realidade foi elaborada de uma maneira ou de outra por Francis
Bacon e John Locke. Dentre os filósofos burgueses contem­
porâneos, são os partidários da teoria pluralista que a adotam.
Segundo essa teoria, cada objeto apresenta-se como alguma
coisa encerrada em si mesma, portanto, não pode haver ligação
entre os objetos.
Em oposição aos metafísicos que erigiram o isolamento
em absoluto e negaram a correlação dos fenômenos da reali­
dade, e também em oposição aos idealistas que deduzem a
correlação da consciência, o materialismo dialético acredita
que esta última é uma forma universal do ser, própria a todos
os fenômenos da realidade. Todos os fenômenos que existem
no mundo representam elos de uma matéria única, “um con­
junto coerente de corpos”29.
Por exemplo, segundo os dados da ciência, a Terra tem
uma certa ligação com o Sol e os outros planetas do sistema
solar. O Sol é um elo da Galáxia que encerra uma grande
quantidade de outras estrelas ligadas entre elas. A Galáxia
faz parte de um sistema ainda mais imenso e, nos limites desse
sistema, está ligada a uma série de outras formações estelares
etc., até o infinito. Observamos um fenômeno análogo, quando
penetramos a matéria. De fato, todo corpo celeste representa
um conjunto de diferentes substâncias ligadas entre elas de
diferentes maneiras; cada substância é um conjunto de molé­
culas ligadas entre elas de uma maneira bem determinada; a
molécula é um conjunto de átomos em ligação recíproca; o
átomo é um conjunto de partículas “elementares” ligadas entre
elas. A ligação dos corpos celestes efetua-se por meio dos
campos de gravitação. A ligação das substâncias que consti­
tuem um corpo assim como a ligação dos átomos na molécula
e da camada eletrônica com o núcleo atômico realizam-se por
meio dos campos de gravitação e eletromagnéticos.
A natureza viva e a natureza inanimada, o mundo vegetal
e o mundo animal, a natureza e a sociedade, os diferentes

2BF. Engels, Dialectique cit., p. 76.

180
aspectos da vida social, os fenômenos da consciência e do
conhecimento estão todos ligados entre eles de forma deter­
minada.
Logo, na realidade, tudo está em correlação, “cada coisa
(fenômeno, processo etc.) está ligada a uma outra coisa qual­
quer”30.

4. O ESPAÇO E O TEMPO

Como já fizemos observar, a matéria, que possui um mo­


vimento absoluto e um repouso relativo, existe não sob a forma
de massa totalmente homogênea, mas divide-se em um con­
junto de formações materiais particulares. Cada formação
material particular, enquanto parte do mundo material, possui
uma certa extensão e está em correlação, de uma maneira ou
de outra, com outros objetos e formações materiais particulares
que a rodeiam .
A extensão das formações materiais particulares e a
relação entre cada uma delas com as outras formações mate­
riais que a rodeiam é o espaço.
Pelo fato de que a matéria possui como próprio um
movimento e um repouso relativo, cada formação material
particular não é eterna, mas aparece em decorrência da negação
de formações materiais determinadas que lhe são anteriores,
transpõe certos estágios de desenvolvimento e desaparece,
transformando-se em outras formações materiais, isto é, ela
possui uma duração determinada de existência e está em relação
determinada com as formações materiais que a precedem e
com as que a seguem.
A duração da existência das formações materiais e a
relação de cada uma delas com as formações anteriores e pos­
teriores é o tempo.
Os idealistas, como de regra, negam a existência objetiva
do tempo e do espaço. Assim, por exemplo, Berkeley, repre­
sentando o idealismo subjetivo, reduz o mundo a um conjunto
de sensações e declara que todo laço ou extensão existe apenas
no espírito, na consciência, e que não há, fora da consciência

?°V. Lenin, Oeuvres t. 38, p. 210.

181
e de nossas sensações, nem espaço, nem tempo. O tempo,
segundo Berkeley, transforma-se em nada se afastamos a su­
cessão de idéias em nosso espírito.
Outros representantes do idealismo subjetivo têm um ponto
de vista semelhante, como por exemplo Ernest Mach, físico e
filósofo austríaco da segunda metade do século XIX e começo
do século XX. Para ele, o tempo e o espaço representam
sistemas ordenados (ou harmonizados) de séries de sensações.
Kant acreditava que o espaço não constitui a propriedade das
coisas, mas que, assim como o tempo “que não é alguma coisa
que exista em si, ou que pertença às coisas”, ele representa
“exatamente uma forma de sentimentos exteriores”, uma forma
de intuição, que o homem utiliza para abordar o mundo dos
fenômenos, por meio da qual ele as percebe”31.
Poincaré apresentou igualmente um ponto de vista subje­
tivo do espaço e do tempo. Segundo ele, o tempo e o espaço
são apenas conceitos elaborados pelo homem, para sua como­
didade.
A concepção idealista do espaço e do tempo caracteriza a
maioria dos filósofos burgueses contemporâneos, assim como
certos físicos que, não sabendo adotar o ponto de vista do ma­
terialismo dialético, para explicar estes ou aqueles fenômenos
físicos, tendem para o idealismo. Assim, o astrônomo inglês
J. Jeans reprova o materialismo dialético por fazer do espaço
e do tempo “qualidades primeiras” e por acreditar que todos
os fenômenos podem ser inteiramente representados no espaço
e no tempo, quando a física moderna mostra que o espaço e o
tempo são próprios apenas aos aspectos exteriores das coisas
e que não caracterizam os processos internos32. Segundo Jeans,
só pertence ao espaço e ao tempo o que está na superfície, os
processos internos existem fora do espaço e do tempo, isto é,
representam uma espécie de mundo à parte.
O físico contemporâneo Arthur Eddington também não
reconhece a realidade do espaço e dq tempo para o mundo das
partículas elementares. Referindo-se a esses estados da maté­
ria ele declara que: “Para tais estados, o espaço e o tempo não
existem — ou pelo menos eu não tenho nenhuma razão para

3lKant’s Werke, Berlim, 1904, t. 3, p. 55.


32J. Jeans, The new background oj Science, Cambridge, 1933, p. 81.

182
pensar que eles existam”33. Os materialistas que, ao contrário
das diferentes concepções idealistas do espaço e do tempo,
consideram que a matéria, a natureza são primeiras, iniciais,
determinantes e que a consciência, o espírito são segundos,
derivados da matéria e que constituem uma propriedade da
matéria que aparece apenas em um estágio determinado de
seu desenvolvimento, reconhecem a existência objetiva e real
do espaço e do tempo, existência independente da consciência.
Segundo o materialismo dialético, o espaço e o tempo são pro­
priedades fundamentais da matéria, formas determinadas de
sua existência, formas objetivamente reais do ser. “O Universo,
escreve Lenin, é apenas matéria em movimento, e essa matéria
em movimento só pode mover-se no espaço e no tempo”34.
Se o espaço e o tempo são propriedades fundamentais da
matéria, formas de sua existência, é totalmente normal e ne­
cessário que eles estejam em ligação orgânica com a matéria.
Mas, na história da Filosofia, foi a opinião contrária que pre­
valeceu por muito tempo. Os filósofos acreditavam que o
espaço e o tempo, embora existindo objetiva e independente­
mente da consciência, não estavam absolutamente ligados à
matéria, não dependiam dela. Essa idéia já fora exposta de
maneira bastante clara pelos filósofos gregos da Antigüidade,
e, em particular, pelo pitagórico Archytas de Tárente, em cuja
obra encontramos a afirmação de que o espaço existe realmente
e de que ele lembra uma imensa caixa na qual encontram-se
coisas e números separados, e que ele não depende das coisas
e que pode existir sem elas. Demócrito reconheceu igualmente
a independência do espaço com relação às coisas materiais.
Segundo ele, o espaço existe sob a forma de um vazio, no qual
movem-se os átomos. Aristóteles expôs um ponto de vista
semelhante; é verdade que ele não falou de espaço vazio, mas
escreveu que o espaço é apenas um lugar ocupado alternada­
mente pelas coisas.
Foi Newton que, em sua teoria do espaço absoluto, desen­
volveu a tese da independência do espaço com relação à
matéria, que tornou-se um pilar da física clássica. Segundo

33A. S. Eddington, The nature o f the physical world, New York,


The Macmillan Company, 1929, p. 198.
34V. Lenin, op. cit., t. 14, p. 181.

183
essa teoria, o espaço não está ligado às coisas de forma neces­
sária, não depende delas; ele é eterno, imutável e imóvel, en­
quanto que as coisas particulares dependem do espaço, existem
no espaço, movem-se com relação a ele.
Na história da Filosofia, houve tentativas de ligar o espaço
à matéria, às coisas materiais. Giordano Bruno (Itália, Renas­
cença), por exemplo, tentou disseminar a idéia de que não
existe nenhum espaço vazio, que o espaço está indissoluvelmente
ligado à matéria e em especial ao éter, o qual, sendo penetrável,
incorpora todas as coisas existentes.
Descartes reúne de maneira mais clara o espaço à matéria.
Para ele, o espaço não está ligado a uma forma qualquer da
matéria, como dizia Bruno, mas a todas as formas de sua
existência. A verdade é que ele praticamente caiu em um outro
extremo identificando o espaço à matéria.
A tese da ligação orgânica do espaço com a matéria foi
igualmente sustentada por outros filósofos e, em particular, por
Spinoza (Holanda, séc. XVII), segundo o qual o espaço é um
atributo da matéria, e pelo filósofo inglês John Locke
(1632/1704), que identificava o espaço à grandeza dos corpos,
à sua “extensão”.
Os materialistas pré-marxistas que salientaram, com justa
razão, a ligação do espaço e da matéria, pensavam, entretanto,
que o espaço é o mesmo para todos os corpos, que possui as
mesmas qualidades e obedece às mesmas leis, o que manifesta­
mente não corresponde à situação real das coisas e é o resul­
tado da influência metafísica própria do materialismo pré-
marxista.
Apenas o materialismo dialético rompeu definitivamente
com a metafísica na interpretação da correlação do espaço e
da matéria. Ele considera que o espaço não está apenas orga­
nicamente ligado à matéria, às coisas materiais, mas também
que depende igualmente da matéria, de suas formas de exis­
tência e que não é, em conseqüência, o mesmo para todos os
corpos, mas que muda de uma forma de existência da matéria
a outra. Assim, por exemplo, os gazes, cuja atração molecular
é tão fraca que as moléculas podem deslocar-se em todas as
direções, possuem relações espaciais determinadas. Os líquidos
caracterizam-se por outras relações espaciais: suas moléculas
têm uma a,ração muito mais forte e, por esse motivo, elas não
podem mover-se livremente, seus movimentos são atrapalhados

184
pelas moléculas vizinhas e deslocam-se apenas com elas.
Outras relações espaciais existem, por exemplo, nos sólidos,
nos metais em que as moléculas e os átomos estão dispostos
em uma ordem rigorosa e formam uma rede cristalina estável.
As aquisições da física contemporânea e, em particular,
a teoria geral da relatividade são um poderoso testemunho da
dependência imediata do espaço com relação à natureza das
formações materiais. Segundo essa teoria, as características
espaciais dependem da divisão e do movimento das massas
em atração, isto é, da densidade da matéria que constitui essa
ou aquela parte do Universo e de suas forças de atração
(campos de gravitação), que ela determina. Em particular,
nas partes do Universo caracterizadas por uma forte densidade
de matéria e por grandes forças de atração, o espaço curva-se
tanto mais quanto a densidade e a força de atração cresçam.
O problema da matéria e do tempo é análogo. Durante
muitos anos, acreditou-se que o tempo não estava ligado à
matéria, não dependia da natureza das formações materiais,
mas existia em si mesmo, corria de maneira regular, repetindo
o mesmo ritmo. Spinoza, por exemplo, escreveu que: “A
duração é a continuação indefinida da existência. . . ela não
pode jamais ser determinada pela própria natureza da coisa
que existe; nem pode ser determinada pela causa eficiente”35.
Essa idéia foi levada ao extremo por Newton que acreditava
que o tempo, enquanto tal, era absoluto, que existia em si
mesmo, independente dos acontecimentos; que corria de forma
igual, uniforme.
A separação do tempo da matéria, dos acontecimentos
que se davam na realidade objetiva, pode ser encontrado igual­
mente na literatura filosófica soviética. Certos filósofos sovié­
ticos defendem e desenvolvem a teoria de um tempo puro que
não será preenchido, nem “sujado” por nenhum acontecimento
Como tempo puro, eles propõem o tempo futuro. O futuro,
efetivamente, não está preenchido pelos acontecimentos, como
é o caso do presente e do passado. Mas, por enquanto, ele
não é real, é apenas um tempo possível. Por isso não é válido
compará-lo aos acontecimentos presentes, podemos confrontá-
lo apenas com acontecimentos possíveis, com acontecimentos-
que se produzirão no futuro. E desde que colocamos a questão

S5Spinoza, Ethique, Paris, 1908, p. 64.

185
nesse plano, a “pureza” do tempo futuro desaparecerá imedia­
tamente, este verificar-se-á “sujo”, preenchido pelos aconte­
cimentos, e precisamente pelos acontecimentos futuros. O ma­
terialismo dialético não reconhece nenhum tempo puro existindo
fora e independentemente dos acontecimentos que têm lugar
nesse mundo.
O tempo, assim como o espaço, está organicamente ligado
à matéria, depende dessa ou daquela forma de sua existência.
A dependência do tempo com relação às formas de existência
da matéria é confirmada pelos dados mais recentes da ciência
da natureza contemporânea. Por exemplo, segundo a teoria
da relatividade, o decorrer do tempo, seu ritmo dependem da
densidade da substância desse ou daquele sistema e das forças
de atração que agem entre os corpos dados: quanto mais a
densidade da substância é elevada, tanto mais lentamente corre
o tempo.
A dependência do espaço e do tempo, com relação à
matéria, sua determinação pelas formas concretas de existência
da matéria decorrem necessariamente do fato de que o espaço
e o tempo estão organicamente ligados ao movimento. Com
efeito, mesmo o movimento mecânico é testemunha dessa cor­
relação. Por exemplo, a distância percorrida por um corpo
em movimento uniforme é determinada pelo produto do tempo,
pela velocidade. A distância é a medida do espaço; a veloci­
dade, a medida do movimento. Portanto, o espaço é, aqui,
determinado pelo movimento e pelo tempo. A dependência da
duração da existência de certas partículas “elementares” com
relação à sua velocidade testemunha igualmente que o tempo
depende do movimento. Por exemplo, o méson existe tanto
mais tempo, quanto maior for sua velocidade. Isso se encontra
confirmado em certas teses da teoria da relatividade e, em
particular, no fato de que, em um sistema em movimento,
comparado a um sistema em repouso, as relações espaciais
modificam-se, reduzem-se, e poderíamos mesmo dizer que o
corpo é comprimido no sentido do movimento, que os períodos
temporais aumentam e que o escoar do tempo torna-se mais
lento.
Se o espaço e o tempo estão ligados ao movimento, e se
o movimento é um atributo da matéria, o tempo e o espaço
estão, no entanto, organicamente ligados à matéria, dependem
das formas de seu movimento e, portanto, de sua existência.

186
A característica do espaço é a de ser tridimensional. A
representação das três dimensões do espaço é dada por três
linhas perpendiculares uma a outra, passando por um único
e mesmo ponto do espaço. Uma delas vai da esquerda para
a direita, a outra de cima para baixo e a terceira da frente
para trás. Esses três eixos são totalmente suficientes para
que possamos, deslocando-nos paralelamente a eles, atingir
qualquer que seja o corpo e localizá-lo no espaço.
Certos filósofos idealistas contestam essa tese, afirmando
que as três dimensões não são absolutamente necessárias para
todos os corpos, nem para todos os seres. Ernest Mach, por
exemplo, acreditava que os átomos dos elementos químicos não
são tridimensionais. Por isso, segundo Mach, “nós não deve­
mos representar-nos os elementos químicos em um espaço com
três dimensões”36. Outros representantes do idealismo e, em
particular, os espiritualistas, procuraram justificar um espaço
com quatro dimensões e seres também com quatro dimensões.
O professor Zelner, espiritualista, chegou a recorrer ao seguinte
raciocínio: Admitamos que existam seres com duas dimensões,
que só podem deslocar-se da esquerda para a direita, para
frente e para trás, mas não de baixo para cima. Eles seriam
parecidos com um peixe chato, por exemplo, o linguado, colo­
cado em um aquário chato, e privado da possibilidade de se
deslocar para o alto e para baixo. Esses seres viventes não
sabem nada da terceira dimensão espacial que nós conhecemos,
já que somos seres de três dimensões. É por isso que, para
chegar ao centro do círculo, esses seres só podem deslocar-se
no sentido do raio e, assim, eles cortarão forçosamente a
circunferência. Quanto a nós, podemos chegar ao centro do
círculo de outra maneira, seguindo a terceira dimensão, isto é,
aproximando-nos do alto para baixo e de baixo para o alto.
Segundo Zelner, nós, os seres de três dimensões, estamos em
relação aos seres de quatro dimensões como os seres de duas
dimensões estão em relação a nós mesmos. Efetivamente, não
podemos chegar ao centro de uma esfera evitando sua superfície,
nem podemos entrar em uma casa sem passar pela porta ou
pela janela etc., porque só conhecemos três dimensões e todas
elas passam pela superfície das formações indicadas (esfera,

S5E, Mach, Erhaltung der Arbeit, Praga, 1872, p. 54-5.

187
casa); os seres sobrenaturais que conhecem outras direções
podem penetrar na esfera ou na casa sem passar por sua super­
fície. Daí todas as maravilhas sobrenaturais que não podemos
compreender nem explicar, a partir do ponto de vista de nosso
espaço de três dimensões.
Esses raciocínios mostram o quanto a quarta dimensão é
necessária a certos filósofos para fundamentar a existência de
Deus e todo o misticismo.
Quanto às teorias físicas de um espaço com quatro, cinco,
ou mesmo um número infinito de dimensões, não têm nada a
ver com as afirmações que acabamos de examinar e relletem
certas leis do mundo objetivo sem, entretanto, invalidar a tese
do espaço de três dimensões. Quando os físicos falam de
quatro dimensões, eles consideram, na verdade, quatro coorde­
nadas, das quais três se relacionam ao espaço e a suas dimen­
sões e a quarta é o tempo. A mesma coisa acontece quando
se fala em espaço pluridimensional. Quando os físicos ou os
matemáticos falam de dimensões, eles, habitualmente, têm em
vista não somente as dimensões do espaço, mas igualmente as
de outros aspectos e propriedades das coisas, que são em
número infinito. Tudo isso não enfraquece em nada a teoria
do espaço de três dimensões, mas simplesmente mostra que
os termos “espaço de quatro dimensões”, “espaço de várias
dimensões” ou “espaço de n dimensões” não correspondem a
seu conteúdo, mas são empregados para definir as característi­
cas que ultrapassam grandemente o quadro das dimensões
espaciais.
Ao contrário do espaço, o tempo possui apenas uma di­
mensão, ele vai sempre em um único sentido: para a frente,
do passado para o presente e depois para o futuro. Não pode­
mos mudar a disposição dos momentos nem modificar o curso
do tempo, porque o tempo é irreversível.
Outra particularidade do tempo e do espaço é que eles
são infinitos. Embora a matéria exista apenas mediante for­
mações materiais limitadas no espaço e no tempo, enquanto
tudo, ela é infinita. Cada formação material, colocada à parte,
possui suas relações espaciais, mas é apenas um elo da corrente
das coisas materiais. Cada coisa está ligada a uma quantidade
infinita de outras coisas, e é por isso que as relações espaciais
de uma coisa, de uma formação material transformam-se m e­
diatamente em relações espaciais de outras coisas, e assim até

188
o infinito. Embora a existencia de cada formação material seja
marcada por um começo e um fim, já existia antes déla um
número infinito de formações materiais, da mesma maneira
que, depois de seu desaparecimento, existirão outras formações
materiais. O desaparecimento de uma conduz ao surgimento
de outra e, assim, sucessivamente. O mundo nunca teve co­
meço, nem terá fim, eie existia e existirá eternamente.
Entretanto, o caráter infinito do espaço e do tempo é
contestado pelos representantes das diferentes escolas idealistas,
assim como pelos teólogos. Os teólogos resumem o caráter
finito do mundo, no espaço e no tempo, à doutrina religiosa da
criação do mundo por Deus. Deus, segundo eles, tem uma
existência eterna e náo tem necessidade nem de espaço, nem de
tempo. O espaço e o tempo apareceram, dizem eles, depois
da criação do mundo, que Deus situou no espaço e no qual
Ele deixou um lugar para a marcha dos acontecimentos. Os
teólogos propõem-se a aceitar sua doutrina do espaço e do
tempo como uma fé e recusam-se a qualquer discussão sobre
seu lundainento e sua lógica. Quando, por exemplo, pergunta­
vam para Luther: “Onde se encontrava Deus e o que Ele fazia
antes da criação do mundo?”, ele respondia que Deus estava
sentado em um bosque de bétulas e preparava açoites para os
que nzessem perguntas desse tipo.
Nos últimos tempos, a noção de um mundo limitado no
tempo e no espaço é frequentemente ligada à teoria da relati­
vidade, a algumas de suas teses e deduções. Segundo a teoria
da relatividade, a julgar pela densidade da substância e pelas
forças de atração que condiciona, o Universo representa uma
esfera fechada, limitada no espaço. Concluir pelo caráter
finito do mundo no espaço, resulta em equações da teoria geral
da relatividade, que supõem que a matéria é repartida de forma
homogênea nesse espaço. Entretanto, os últimos dados da
astronomia mostram o contrário: a divisão da matéria no
espaço é extremamente heterogênea37.
Também não tem nenhum fundamento dizer que o mundo
é finito no espaço e no tempo, referindo-se ao processo de
expansão do Universo. O fato de que os sábios observem o

37V. Ambartsumian, Alguns problernas metodoìógicos da cosmo­


gonia, 1957, p. 6. Originai em russo.

189
deslocamento de raios espectrais na direção do vermelho, quan­
do observam a luz proveniente das estrelas, foi utilizado para
concluir que a parte observada do Universo está em expansão,
que as galáxias afastam-se umas das outras a uma velocidade
inacreditável, atingindo, para algumas estrelas mais afastadas,
a velocidade de 120.000 a 170.000 Km/s. Levando em conta
que a velocidade na qual as galáxias afastam-se umas das
outras e a posição em que foram observadas, os sábios calcula­
ram a época em que essa matéria em recessão ainda permanecia
junto, isto é, eles estabeleceram quando começou essa dilatação
suposta da matéria. Isso representa de 2 a 5 milhões de anos.
Os idealistas e os teólogos imediatamente tiraram conclusões
correspondentes. Assim, foram criadas teorias, segundo as
quais todo o Universo tem por começo um átomo pai, criado
por Deus, isto é, o mundo teve um começo no tempo, portanto,
ele também é limitado no espaço . O papa Pio XII, baseando-se
nessas reflexões, decidiu acrescentar uma correção à Bíblia e
declarou que o mundo foi criado não há 7.500 anos, mas há
vários milhões de anos.
É evidente que esses são raciocínios incorretos. O erro,
nesse caso, reside no fato de que leis próprias a algumas partes
do Universo são estendidas para todo o Universo. Do fato de
que a parte observada do Universo esteja em expansão não
decorre absolutamente que as outras partes também estejam
expandindo-se. Elas tanto podem estar em dilatação, como em
contração. E é mesmo muito provável que algumas partes do
Universo estejam dilatando-se, enquanto outras estejam con­
traindo-se, ou ainda que em um momento elas se dilatam e no
outro se contraiam.

190
VI. O SIN G U L A R ,
O PA R TIC U LA R
E O GERAL

1. CRITICA
DAS CONCEPÇÕES IDEALISTAS
E METAFISICAS DO SINGULAR
E DO GERAL

O problema do singular e do geral nasceu ao mesmo tempo


que a Filosofia. A formação de representações da realidade
exterior, do mundo em seu conjunto e a interpretação dos
fenômenos que aí se produzem supõem que uma explicação
seja dada quanto ao aparecimento e às relações das diferentes
coisas e quanto a sua essência comum. Não é, portanto, por
acaso que todos os filósofos se interessaram por essa questão
e tentaram, de uma maneira ou de outra, resolvê-la
Na história da Filosofia manifestam-se claramente duas
tendências para a resolução desse problema: tendência realista
e tendência nominalista. Os partidários da primeira afirmam
que o geral existe de forma autônoma, independentemente do
singular. Alguns dentre eles consideram que o geral, por sua
própria natureza, existe sob a forma de idéias, de essências
ideais, enquanto que outros declaram-no material, existindo
fora e independentemente da consciência.
Platão, por exemplo, conferia ao geral uma forma ideal
de existência; o geral manifestava-se, para ele, como conceitos
gerais, como idéias particulares e autônomas, existindo fora e
independentemente da sociedade humana. Para os filósofos
de Megara (Euclides, Stilpon), o geral tomava a forma de
idéias de “bem”, de “razão” e de “Deus”. O filósofo inglês

191
contemporâneo George Moorel exprime o geral como relações
espaciais e outras relações. Segundo os filósofos burgueses
contemporâneos, George Santayana2, Alfred Whitehead2 e
outros, o geral é feito de essências ideais, absolutamente inde­
pendentes de coisas materiais.
Os eleatas (Xenófanes, Parmênides, Zenon) acreditavam
que o geral é material, que ele é “um” — uma massa única,
imutável, idêntica a ela mesma e que tudo ocupa. Para o
filósofo da Idade Média, Roscelin, o geral existia sob a forma
de uma classe de objetos singulares, como o exército, o povo etc.
Quanto ao singular, os partidários dessa tendência decla­
ravam-no ou inexistente ou secundário, dependendo do geral e
sendo por ele engendrado. Além disso eles o consideravam
temporário, transitório, surgido sob a influência direta do geral
e desaparecendo em condições correspondentes, enquanto o
geral era constante, imutável, eterno. Por exemplo, as escolas
de EIéia e de Megara negavam a existência real do singular.
Elas declaravam que as coisas e fenômenos singulares são uma
aparência, uma miragem. Platão considerava as coisas singula­
res como o mundo das sombras.
Whitehead demonstra o caráter transitório do singular. As
coisas singulares, segundo ele, tendo características espac'ais e
temporais, são finitas, cambiantes, aparecem e desaparecem. Seu
aparecimento é condicionado pelo geral, por essências ideais,
eternas, existentes fora do mundo espacial-temporal que obser­
vamos.
Os representantes da segunda tendência, a nominalist^,
afirmam, pelo contrário, que não é o geral mas sim o singula’-,
que possui uma existência real. O geral é o produto da ativi­
dade do pensamento dos homens e existe apenas em suas
consciências, sob a forma de nomes gerais, designando ob:etos
singulares.
A teoria de William Occam, filósofo da Idade Média,
fornece um exemplo da concepção nominalista do singu'ar c
do geral; ele declara que o geral não existe realmente na rea­
lidade objetiva, mas que é um produto do pensamento, que existe

'G. E. Moore, Some maine problems of philosophy, Londres-New


York, 1953.
2G. Santayana, The real of essence, New York, 1927.
3A. N. Whitehead, Science and the modern world, Cambridge, 1933.

192
apenas sob a forma de conceito, sinal de numerosas coisas sin­
gulares. Entre os filósofos contemporâneos, a concepção no­
minalista do singular e do geral é aceita, por exemplo, por
Chase*, W. HughS e Cassius4 56. Hugh, por exemplo, considera
que os conceitos gerais são ficções que não refletem nada, mas
que confundem os homens, introduzindo entre eles mal-enten­
didos e conflitos. Segundo ele, apenas as coisas singulares
existem na realidade, e é por isso que apenas os conceitos sin­
gulares e individuais têm um verdadeiro valor.
Decretando que apenas o singular existe realmente, os
nominalistas resolvem de diferentes maneiras a questão da
forma de sua existência. Alguns dentre eles (William Occam
e Richard Midlton) consideram que o singular existe sob a
forma de objetos materiais isolados, outros (Berkeley) afirmam
que ele existe sob a forma de sensações, e outros, ainda (Lei-
bniz), sob a forma de “mónadas”, átomos espirituais únicos
em seu gênero.
Houve na história da Filosofia tentativas de ultrapassar
os defeitos e a estreiteza das concepções realistas e nominalistas
do singular e do geral (Aristóteles, Duns, Scotus, Bacon, Locke
e Feuerbach). Entretanto, eles também não conseguiram che­
gar a nenhuma solução científica do problema, porque partiam
do fato de que apenas o singular tem uma existência verdadeira,
enquanto que o geral existe somente sob a forma de um aspecto,
de um momento do singular.
Erigindo o singular em absoluto, esse ponto de vista
aproximava-se do nominalista e impedia a elucidação do
problema.
Apenas a filosofia marxista conseguiu definitivamente
ultrapassar os defeitos próprios aos nominalistas e aos realistas
e dar uma solução justa e científica para essa questão.

4S. Chase, The tyranny of words, New York, 1938.


5W. Hugh, Semantics. The nature o f words and their meaning,
New York, 1941.
°J. K. Cassius, The rational and the superrational, New York, 1952.

193
2. A RELAÇÃO
DO SINGULAR E DO GERAL

Como já demonstramos nos parágrafos precedentes, as


formações materiais estão em correlação, em interação e modi­
ficam-se mutuamente. Essas modificações são próprias a cada
formação material, porque cada uma delas possui seu próprio
ambiente, diferente do das outras, sua própria série de estados
qualitativos, que diferem das séries anteriores, e sua própria
história presente nela sob uma forma anulada. Tudo isso con­
diciona em cada formação material a existência de propriedades
e ligações que são próprias apenas a ela mesma.
As propriedades e ligações que são próprias apenas a uma
formação dada (coisa, objeto, processo) e que não existem em
outras formações materiais constituem o singular.
O singular para cada coisa é, por exemplo, o fato de que
ela ocupa um lugar dado no espaço, que ela é constituída
justamente por moléculas dadas e que, exposta a uma alta
temperatura, ela emite fótons dados etc.
Cada formação material, possuindo propriedades e ligações
singulares, representa essa ou aquela forma de existência da
matéria, uma forma particular de seu movimento. É por isso
que, em cada formação material, ao lado do singular, do que
não se repete, deve haver o que se repete, o que é próprio não
apenas a ela, mas também a outras formações materiais (coisas,
objetos, processos).
As propriedades e ligações que se repetem nas formações
materiais (coisas, objetos, processos) constituem o geral. O
que é geral nessa ou naquela coisa é, por exemplo, o fato de que
ela existe objetivamente, independentemente de uma consciên­
cia qualquer, que ela está em movimento, que possui caracterís­
ticas espaciais e temporais. O geral no homem é o fato de que
ele é um ser vivo, que vive em sociedade, que sua essência é
determinada pelas relações de produção correspondentes, que
ele é dotado de uma consciência, reflete o mundo ambiente por
meio de um sistema de imagens ideais, possui uma familia etc.
O resultado do que acaba de ser dito é que o singular e o
geral não existem de maneira independente, mas somente por
meio de formações materiais particulares (coisas, objetos, pro­
cessos), que são momentos, aspectos destes últimos. Cada

194
formação material, cada coisa representa a unidade do singular
e do geral, do que não se repete e do que se repete.
Existindo sob a forma de aspectos, momentos das forma­
ções materiais particulares (coisas, processos), o singular e o
geral estão organicamente ligados um ao outro, interpenetram-
se e só podem ser separados no estado puro por abstração. A
correlação do singular e do geral no particular (formação ma­
terial, coisa, processo) manifesta-se como correlação de aspectos
únicos em seu gênero, que são próprios apenas a uma formação
material dada, e a aspectos que se repetem nesse ou naquele
grupo de outras formações materiais.
A correlação do singular e do geral no particular manifec-
ta-se igualmente na transformação do singular em geral e, vice­
versa, no processo do movimento e do desenvolvimento das
formações materiais. Essa lei pode ser observada nas transfor­
mações das propriedades dos vegetais no momento de sua trans­
plantação. Os biólogos acreditam que algumas plantas, subme­
tidas a condições de vida diferentes, adquirem farnidales de
adaptação e que, quando a ação de fatores correspondentes é
reforçada, essas faculdades de adaptação transformam-se em
propriedades gerais que caracterizam primeiro uma parte dos
exemplares de uma espécie e depois toda a espécie. Como
exemplo, podemos nos referir às modificações de algumas pro­
priedades das plantas selvagens que crescem nos Cáucasos.
Na região de Kazbek. essas plantas selvagens têm, em
geral, favas revestidas de pelos e as plantas com favas sem pelos
são raras. O fato de haver favas sem pelos é aqui singular
e é também algo que pertence apenas a algumas plantas. Mais
para o Oeste, as plantas com favas sem pelo predominam cla­
ramente, embora ainda haja 25% de plantas com favas reco­
bertas de pelo. Ainda mais para o Oeste, todas as favas são
desprovidas de pelos. Assim, quando as condições de existência
das plantas mudam, a propriedade singular (favas sem pelo)
torna-se geral e a propriedade geral (favas recobertas por uma
camada de pelo) toma-se singular, excepcional.
Abordamos aqui a correlação do singular e do geral. Mas
é conveniente distinguir especialmente a correlação do particular
e do geral. Se o singular é uma propriedade que não se repete,
e que é próprio apenas a uma formação material dada (coisa,
objeto, processo), o particular é a própria formação material,
a própria coisa, o próprio objeto, o próprio processo. O par-
195
ticular é simplesmente o singular, mas é igualmente o geral. O
particular é a unidade do singular e do geral. A correlação do
particular e do geral representa uma correlação do todo e da
parte, em que o particular é o todo e o geral é a parte. Sendo
uma parte do particular, “todo o geral engloba, apenas aproxi­
mativamente, todos os objetos particulares”, e “todo particular
entra, de n .neira incompleta, no geral”?, já que ele possui o
singular ao lado do geral e que, ao lado das propriedades repe­
titivas, há propriedades únicas em seu gênero, que são próprias
exclusivamente a ele.
Em uma certa medida, cada formação material particular,
em condições adequadas, pode transformar-se em uma outra
formação material (por exemplo, cada elemento químico em
um outro elemento químico, cada partícula “elementar”, em
uma outra partícula “elementar”, a substância em um campo
físico, o campo físico em uma substância), porque “todo par­
ticular” é religado, por milhões de passagens, a particulares de
um outro gênero (coisas, fenômenos, processos) e “existe
apenas nessa ligação que conduz ao geral”78.
Efetivamente capaz, em condições adequadas, de transfor­
mar-se em uma outra formação material (coisa, objeto, proces­
so), cada particular encerra em potencial as propriedades
dessas outras formações materiais (coisas, objetos, processos)
e pode, portanto, ser considerado como sendo-lhe idêntico, isto
é, como geral.

3. O GERAL E O PARTICULAR

Se estudamos um objeto dado, do ponto de vista das


categorias de “singular” e de “geral”, colocamos em evidência,
por um lado, as propriedades e as ligações de caráter único,
próprias somente a esse objeto e, por outro lado, as que se
repetem e que são próprias a toda uma série de objetos. Mas,
freqüentemente na prática, não se trata de evidenciar o que é
único (não repetitivo), mas de estabelecer a identidade (a se­

7V. Lenin, Oeuvres, t. 38, p. 345.


9Lenin, op. cit.

196
melhança) e a diferença entre os objetos confrontados. Torna-
se, portanto, necessário opôr o geral ao particular e não ao
singular.
O que distingue os objetos confrontados constitui o
particular e o que exprime sua semelhança é o geral.
Assim, a predominância da propriedade privada na socie­
dade capitalista e da propriedade social na sociedade socialista
representa o particular dessas sociedades, na medida em que
esse traço distingue uma da outra. Da mesma forma, a explo­
ração do homem nos países capitalistas e sua ausência nos
países socialistas é o particular.
O singular apresenta-se sempre como particular, porque,
sendo próprio apenas a uma formação material dada, ele a
distingue de qualquer outra formação material. \ssim, um
fenômeno único, tal como a instauração do poder dos Sovietes,
pela primeira vez na URSS, representará sempre o particular
para a URSS e marcará a diferença entre ela e qualquer outro
país.
No que concerne ao geral, seu comportamento é cambias­
te. Ele pode, seguindo a natureza de suas relações, desem­
penhar, tanto seu próprio papel, como o papel do partícula'-.
Nesse caso, em que ele anuncia a semelhança das formações
materiais confrontadas, ele encarna o veral, mas quando as
distingue umas das outras, então, desempenha o papel do
particular.
O fato, por exemplo, de que a ditadura do proletariado
na Bulgária existe sob a forma de democracia popular constitui
o geral se compararmos esse país com a Polônia, com a RDA
ou mesmo com a Hungria; e, ao mesmo tempo, se compararmos
a Bulgária com a URSS, esse mesmo fato tornar-se-á o par­
ticular, o regime da democracia popular distinguindo então n
Bulgária da URSS, onde a ditadura do proletariado afirma-se
sob a forma de República dos Sovietes.
É conveniente observar, quando se fala da faculdade que
o geral tem de assumir o papel de particular, que isso não c
absolutamente próprio a qualquer geral. Para desempenhar a
função de particular, o geral deve poder distinguir as formações
materiais umas das outras. E essa faculdade não pertence a
qualquer geral. Por exemplo, as propriedades e as ligações
comuns a todas as formações materiais (objetos, coisas, proces­
sos) não podem distinguir as formações materiais. Assim, a
197
presença, em cada coisa, de uma causa que seja a origem de
sua existência, de uma forma e de um conteúdo determinados,
de ligações e de propriedades necessárias e acidentais, de uma
essência etc. não pode assumir o papel do particular, pelo fato
de que tudo isso caracteriza qualquer coisa ou formação ma­
terial. Abarcando todas as formações materiais, o geral exprime
apenas, quaisquer que sejam suas relações, a semelhança, a
identidade e não pode, portanto, distingui-las umas das outras.
Cada formação material representa, portanto, a unidade
do geral e do particular, a unidade do que a identifica a outras
formações " ateríais, assim como a unidade do que a distingue.
Ê conveniente tirar dessa lei a seguinte conclusão para a
prática e o conhecimento: se cada formação material é a uni­
dade do geral e do particular, então, para poder formar uma
representação exata de um objeto dado é necessário colocar
em evidência o que o identifica e o que o distingue de outras
formações materiais. Assim, se quisermos compreender a es­
sência do poder de Estado da URSS de hoje, devemos explicar
em que ele assemelha-se e em que ele difere do poder de Estado
nesse ou naquele país capitalista, e do poder que existia na URSS
no período da passagem do capitalismo para o socialismo, ou do
poder nos países de democracia popular. Somente assim estará
completa e exata nossa representação da natureza do poder em
questão, de seu conteúdo e de sua forma, de sua essência e da
especificidade de suas manifestações nas circunstâncias dadas.
Prossigamos. Se cada formação material, cada domínio
da realidade possui necessariamente o geral e o particular,
então, para resolver os problemas práticos, teremos de levar
em consideração não somente o geral que se repete, mas
também o particular próprio a um único domínio, a uma única
formação material. Isso determina a diversidade das formas
e dos caminhos para a resolução de um único e mesmo pro­
blema prático. Podemos citar, a título de exemplo, a diversi­
dade das formas que toma a realização da revolução socialista
em diferentes países, em função da diversidade das particulari­
dades nacionais e da evolução histórica. Por exemplo, na União
Soviética, a revolução socialista teve lugar em uma época em
que, em todos os outros países do mundo, o poder pertencia
aos exploradores, à burguesia que se recusava a ceder, o que
explica porque a revolução efetuou-se sob a forma de uma
insurreição armada. Em outros pafses (Bulgária, Romênia,

198
RDA etc.), a revolução socialista desenrolou-se em outras con­
dições, que permitiram a instauração da ditadura do proleta­
riado por vias pacíficas. As diferentes condições nas quais se
desenrolaram as revoluções socialistas na URSS e em outros
países de democracia popular não deixaram de influir na forma
que a ditadura tomou, assim como na resolução de certos
problemas sociais. Assim, a ditadura do proletariado na União
Soviética foi realizada sob a forma de República dos Sovietes,
enquanto que em outros países mencionados ela tomou a forma
de democracia popular. Na União Soviética, a burguesia foi
privada de seus direitos políticos, o que não aconteceu em
outros países, e um sistema político com um pa.ddo único
tomou o seu lugar, enquanto que em certos países de democracia
popular reina o pluripartidarismo.

4. A CORRELAÇÃO DO GERAL
E DO PARTICULAR
NO MOMENTO DO MOVIMENTO
DA MATÉRIA
DO INFERIOR PARA O SUPERIOR

O movimento da matéria, de suas formas inferiores para


suas formas superiores, faz nascer propriedades e ligações
novas, consecutivas ao aparecimento de novas correlações, que
constituem a essência de uma forma nova, superior, do movi­
mento da matéria.
Sabemos que toda forma superior do movimento da ma­
téria encerra nela mesma sua forma inferior modificada e que
por isso tem muitos traços comuns (o geral) com ela. Entre­
tanto, esses traços comuns (o geral) diferem dos que existem
entre as formações materiais que se encontram na mesma etapa
de desenvolvimento e que são refratados mediante a especifi­
cidade das formas superiores do movimento e só podem ser
compreendidos na qualidade do elo que liga o inferior ao
superior.
Consideremos, a título de exemplo, o átomo de um ele­
mento químico e a molécula formada pelos átomos desse
elemento. A molécula contém os átomos, portanto, essas duas
formações possuem vários traços comuns. Assim, as mesmas
partículas “elementares” é que os compõem, portanto, a intera-

199
ção condiciona, no fim das contas, a existência de algumas
propriedades comuns nessas formações. Mas se no átomo essa
interação se produz diretamente na superfície do fenômeno, na
molécula, pelo contrário, ela é refratada através da interação
dos átomos; e estes últimos, sendo o resultado da interação de
partículas “elementares” que constituem o átomo, nem por isso
representam alguma coisa de menos nova em relação à interação
das partículas elementares. Depois de serem refratadas me­
diante essa nova interação, as propriedades do átomo manifes-
tam-se sobre a superfície de uma maneira completamente dife­
rente daquela como se manifesta no átomo livre.
O geral ganhará um aspecto ainda mais cambiante se con­
frontarmos o átomo e um organismo vivo. As propriedades
inerentes a> átomo serão várias vezes “refratadas” — mediante
a interação dos átomos, das moléculas e das proteínas; por isso,
sua manifestação no organismo vivo, será ainda mais modificada.
Segue-se que o que é geral (comum) às formações mate­
riais, que representam diferentes etapas da evolução da matéria,
é muito pobre, insuficiente para caracterizar essas formações,
para exprimir sua essência. Nas formações materiais que per­
tencem ao estágio inferior, esse geral relaciona-se apenas aos
elementos do conteúdo que, de uma maneira ou de outra,
subsistiram e estão presentes nas formações materiais do estágio
superior, e isso ainda sob o aspecto que eles tomaram depois
de ser “refratados” mediante as interações que constituem a
forma superior do movimento, isto é, sob uma forma modificada.
No que concerne às formações da forma superior do mo­
vimento da matéria, esse geral que exprime apenas o que une
essa formação às formações inferiores também não é capaz de
exprimir sua essência. Esse geral deixa de lado exatamente o
que a formação material adquiriu durante sua progressão, o
que a distingue das formações surgidas nos estágios anteriores
de desenvolvimento. Para compreender o significado verda­
deiro desse geral e suas relações com a essência das formações
materiais confrontadas, é preciso preencher as lacunas existen­
tes entre essas formações, restabelecendo os estágios do desen­
volvimento que as separam. Citamos, a seguir, conceitos signi­
ficativos de Engels, que constam da obra Dialectique de la
nature: “Se colocarmos à parte duas coisas extremamente dife­
rentes — como um meteorito e um homem, por exemplo —
e os aproximarmos, não sairá disso grande coisa, no máximo

200
veremos que os dois têm em comum o peso e outras proprie­
dades físicas gerais. Mas entre eles intercala-se uma série
infinita de outras coisas naturais e de outros processos naturais
que nos permitirão completar a série do meteorito ao homem
e de designar o lugar de cada um na conexão natural e, como
conseqüência, poderemos conhecê-los”9.
Restabelecendo os momentos do desenvolvimento que se­
param as formações materiais comparadas, seguimos a passagem
da matéria em evolução, de uma formação material a uma
outra: de uma formação material representando um estágio do
desenvolvimento a uma outra representando um outro estágio,
do inferior ao superior. E exatamente por isso colocamos em
evidência o lugar real, a significação real do geral, assim como
do particular e, ao mesmo tempo, a essência das transforma­
ções materiais estudadas.
A correlação entre o geral e o particular nas formações
materiais que pertencem a um único e mesmo estágio do desen­
volvimento apresenta um aspecto algo diierente. Aqui o geral
é que constitui sua essência, o que elas adquiriram atingindo
esse estágio do desenvolvimento, suas ligações e aspectos neces­
sários e particulares surgidos nesse momento. Por exemplo, o
geral, para os países que chegaram ao estágio capitalista, indica
o que surgiu nesses países depois que eles abordaram esse
estágio de desenvolvimento. E isso é, notadamenle, a domina­
ção da propriedade privada capitalista dos meios de produção,
o modo de produção baseado no assalariado e a exploração dos
operários privados de meios de produção, além da chegada da
burguesia ao poder, a instauraçao de sua ditadura etc. Isso
constitui, na essência, a formaçao sócio-econômica capitalista.
No que concerne ao particular próprio às formações materiais
que pertencem a um único e mesmo estágio de evolução, o
geral não exerce nenhuma influência sobre a essência, sendo
apenas uma forma particular de sua manifestação, um modo
particular de sua existência.
A conclusão que podemos tirar disso, para a prática e o
conhecimento, é a seguinte: se o geral, no seio de formações
materiais que pertencem a diferentes estágios de desenvolvimen­
to não caracteriza nem a essência da formação material do

9F. Engels, La dialectique de la nature, p. 235.

201
estágio inferior nem a essência da formação material do estágio
superior, a comparação dessas formações materiais deve-se
basear essencialmente sobre diferenças e não sobre sua seme­
lhança, isto é, sobre o particular e não sobre o geral. Assim,
quando confrontamos o Estado socialista com o Estado capita­
lista, descobrindo, por um lado, o geral e, por outro lado, o
particular que os caracterizam, o que importa sobretudo é pres­
tar atenção ao particular, ao que os distingue.
O estudo das formações materiais de um único e mesmo
estágio de desenvolvimento deve-se basear essencialmente no
particular que os distingue um do outro e não em sua seme­
lhança, sua identidade. É só então que poderemos explicar sua
essência e, analisando-os sucessivamente, seguir a multiplicida­
de das formas de sua manifestação.

202
VIL A Q U A L ID A D E
E A Q U A N T ID A D E

1. OS CONCEITOS
DE QUALIDADE E DE QUANTIDADE
Como já observamos, cada coisa representa a unidade do
geral e do particular, o que indica sua semelhança com outras
coisas e o que as distingue. Mas, o que distingue uma coisa
das outras, ou o que indica sua semelhança, é uma propriedade.
Assim, a coisa caracteriza-se por uma quantidade infinita de
propriedades diferentes. Algumas dentre elas indicam o que
ela representa, outras indicam suas dimensões, sua grandeza.
Por exemplo, as propriedades da água, assim como sua facul­
dade de dissolver algumas substâncias, de matar a sede e o
fato de que ela seja constituída pelo oxigênio e o hidrogênio
etc. indicam o que ela representa e o que ela é. As proprie­
dades que testemunham o volume da água e seu peso caracteri-
zam-na do ponto de vista de sua grandeza.
O conjunto das propriedades que indicam o que uma coisa
dada representa e o que ela é constitui sua qualidade.
Na literatura filosófica, encontramos definições as mais
variadas de categorias de qualidade e de quantidade.
Numerosos autores consideram que a qualidade é o con­
junto de propriedades que constitui determinismo interno da
coisa e a distingue das outras coisas.
A definição da qualidade como determinismo interno da
coisa é insuficiente, já que não coloca em evidência o conteúdo
da categoria considerada, não permite que seja distinguida, não
apenas de toda a série de outras categorias da dialética, mas
também da categoria de “quantidade”, que lhe é organicamente
ligada.

203
Efetivamente, o determinismo de uma coisa é não apenas
sua qualidade, mas igualmente sua quantidade. O determinismo
do cloro, por exemplo, inclui não somente o fato de que, em
condições habituais, ele é um gás de cor amarelo-esverdeada,
nocivo e ativo, que se liga diretamente com a maioria dos
metais e de outros corpos etc., mas igualmente o fato de que
a carga de seu núcleo atômico é 17, de que a camada eletrônica
de seu núcleo comporta 17 elétrons e sua molécula dois átomos,
que a ligação entre os átomos estabelece-se na molécula com
a ajuda de dois elétrons, que ele é 2,5 vezes mais pesado do
que o ar, que a 0°C e sob pressão normal seu peso específico
é de 3,214 gramas, que sua temperatura de fusão é de 100,98°C
e sua temperatura de ebulição é de 34,05°C etc. Logo, o
determinismo interno do cloro inclui não apenas suas caracte­
rísticas qualitativas, mas igualmente as quantitativas.
E isso é válido também para qualquer formação material,
assim como para qualquer coisa ou qualquer fenômeno.
O “determinismo interno” é insuficiente para distinguir
a categoria de “qualidade” da categoria de “essência” e de
“conteúdo”, porque essas últimas refletem igualmente o deter­
minismo interno da coisa na unidade dialética de seus aspectos
quantitativos e qualitativos.
Esse “determinismo interno” também é insuficiente para
definir a qualidade, assim como para representá-la como um
conjunto das propriedades que distinguem uma coisa das
outras, como sendo ligada ao que distingue e, finalmente, como
sendo algo que traduz apenas a especificidade da coisa.
A qualidade inclui não apenas as propriedades que dis­
tinguem uma coisa das outras, mas igualmente as que indicam
sua semelhança com elas. Por exemplo, a posse de um núcleo
atômico, no qual entrem prótons, nêutrons e outras partículas
“elementares”, e de uma dupla camada eletrônica, além do fato
de ser um metal alcalino, que se liga facilmente aos halogênios,
decompõe a água, expelindo hidrogênio, e dissolve-se nos
ácidos, são componentes essenciais da qualidade do litio. Mas
todas essas propriedades repetem-se em outras substâncias e,
assim, exprimem não apenas a diferença, mas também a seme­
lhança do litio com outros elementos químicos.
A qualidade de toda coisa representa a unidade do singular
e do geral, do geral e do particular.

204
Reunindo a qualidade ao singular, ao particular, os auto­
res do ponto de vista mencionado acima reduzem o geral, o
que se repete nas coisas, direta ou indiretamente à quantidade.
A idéia de que a categoria de “quantidade” reflete somente
o que é o geral nas coisas diferentes é tão incorreta quanto a
idéia de que a categoria de “qualidade” reflete apenas a dife­
rença. A categoria de “quantidade”, assim como a categoria de
“qualidade”, fixa não somente o geral (a semelhança), mas
igualmente o particular (a diferença). Por exemplo, entre as
características do hidrogênio, do litio e do sódio, há não apenas
o fato de que seu átomo possui, em sua camada eletrônica
exterior, um elétron (propriedade geral), mas igualmente o fato
de que cada um desses elementos possui um peso atômico
específico.
Assim, embora a categoria de qualidade reflita o que dis­
tingue uma formação material dada de outras formações ma­
teriais, esse traço não constitui seu conteúdo específico, da
mesma forma como na categoria de “quantidade” o reflexo do
geral nas coisas não constitui seu conteúdo específico.
As duas categorias refletem tanto a semelhança como a
diferença das coisas. O reflexo da diferença entre as coisas
é o conteúdo específico das categorias do “particular” e do
“singular” e não o da categoria de “qualidade”. O reflexo da
semelhança é o conteúdo específico das categorias do “geral”,
da “identidade”, e não o da categoria da “quantidade”.
Certos autores identificam a qualidade às propriedades
fundamentais12. A definição da qualidade como propriedade
fundamental ou conjunto de propriedades essenciais não pode
ser considerada como exata. Se todas as propriedades essen­
ciais das coisas relacionam-se à qualidade, apenas o domínio
do não-essencial deve pertencer à quantidades.
Mas, na realidade, nem todas as características quantita­
tivas de uma coisa são essenciais. Apenas algumas dentre elas
são essenciais e necessariamente ligadas a sua natureza. Por
exemplo, é essencial, para cada elemento químico, que o número
de prótons que entra em seu elemento atômico seja rigorosa­

1Uemov, Coisas, propriedades e relações, Editora da Academia de


Ciências da URSS, 1963, p. 39. Original em russo.
2M. N. Rutkebiych, Materialismo dialético, 1959, p. 329. Original
em russo.

205
mente determinado, assim como o número de átomos de sua
molécula. Essa particularidade é claramente exposta na lei
química da composição constante da substância.
O fato de que toda mudança afeta as características quan­
titativas dadas acarreta necessariamente a modificação da essên­
cia do fenômeno correspondente, sua transformação em um
outro fenômeno, testemunha de seu caráter essencial. Por
exemplo, a grandeza da velocidade de 7.910 m /s é essencial
para o vôo “terrestre” porque seu crescimento, mesmo que seja
de apenas um metro por segundo, transforma o vôo terrestre
em um vôo cósmico. São essenciais para um vôo cósmico as
grandezas da velocidade do corpo: 7.911 e 11.188 m/s; a
diminuição da primeira transforma o vôo cósmico em vôo
terrestre, o crescimento da segunda transforma o movimento
cósmico elíptico em parabólico. É essencial para o oxigênio
a presença, em sua molécula, de dois átomos (O 2); 0 aumento
de um átomo acarreta a transformação do oxigênio em uma
nova substância qualitativa, o ozônio (O 3). Para o óxido de
carbono (^ O ), a presença, na molécula, de um átomo de car­
bono e de um átomo dc oxigênio é essencial porque o aumento
de um átomo de oxigênio conduz à transformação do óxido de
carbono em gás carbônico (CO 2).
Em conseqüência disso, a definição da qualidade como
propriedade essencial já é inexata pelo fato de que ela elimina
0 limite entre a qualidade e a quantidade e conduz à confusão
entre as características qualitativas e quantitativas.
Decretando as características quantitativas com não-essen-
ciais, os autores do ponto de vista considerado não relacionam,
entretanto, todas as propriedades não essenciais das coisas às
características quantitativas. Entre as características quantita­
tivas, elas conservam unicamente as propriedades ligadas à
intensidade, à grandeza, ao número, ao volume, ao grau de
maturidade de uma coisa, de um fenômeno etc., ligadas a seu
crescimento. Eles só relacionam à qualidade as propriedades
essenciais. O resultado disso é que as coisas possuem, além de
suas propriedades que constituem a qualidade e a quantidade,
propriedades que não são nem qualitativas, nem quantitativas.
Mas será que propriedades que não constituem nem o
aspecto qualitativo nem o aspecto quantitativo de uma coisa
podem pertencer a essa coisa? É óbvio que não. As catego-

206
rias de “qualidade” e de “quantidade”, desdobrando uma coisa
em aspectos, excluem-se mutuamente e, quando há ligação
entre eles, englobam todas as suas propriedades e todo seu
conteúdo. Tudo o que há em uma coisa, seja quaniídade, seja
qualidade, indica ou o que a coisa representa ou, então, sua
grandeza, sua dimensão. Não há, nem pode haver proprieda­
des fora da qualidade e da quantidade de uma coisa. Ê por
isso que todas as propriedades que não são concernentes às
dimensões de uma coisa, nem à sua grandeza, seu volume, seu
número, à velocidade de seu deslocamento ou à intensidade de
sua cor etc. relacionam-se com sua qualidade. Entre essas
propriedades, há algumas essenciais, que são sempre próprias
à coisa, em qualquer que seja a condição e em todos os estágios
de seu desenvolvimento, propriedades sem as quais a coisa não
pode existir, e há também outras, que não são essenciais, que
se manifestam em certas condições, em certos estágios de sua
existência e que desaparecem em outras condições, em outros
estágios. A qualidade do cobre, por exemplo, será sempre
relacionada não apenas ao fato de que ele é um metal de cor
vermelha, muito maleável, bom condutor de eletricidade e de
calor, mas igualmente ao fato de que ele liquidifica-se entre
1.083°C e 2.360°C e toma-se gasoso a uma temperatura superior
a 2 . 360°C, e ainda que ele fica coberto por uma camada cinza-
esverdeada etc., sob a ação do ar, da umidade e do gás sulfu­
roso.
O principal critério de dependência dessa ou daquela
propriedade à qualidade de uma coisa não é seu caráter essen­
cial, mas sua capacidade para caracterizar essa coisa, partindo
do que ela representa, e indicar o que ela é. É fácil observar
que não apenas o primeiro grupo de propriedades do cobre
(propriedades essenciais) mas igualmente o segundo (proprie­
dades não-essenciais) indicam o que ele representa, o que ele
é, e é por isso que todas essas propriedades devem entrar na
composição de sua qualidade, porque todas elas são caracterís­
ticas qualitativas.
O fato de pertencer ao essencial ou ao não-essencial em
uma coisa é o critério de distinção não da qualidade e da
quantidade, mas da própria essência do fenômeno. Assim, a
definição da qualidade como conjunto de propriedades essen­
ciais e da quantidade como conjunto de propriedades não-
essenciais representa, na realidade, a identificação das catego­

207
rias de “qualidade” e de “quantidade” com as categorias de
“essência” e de “fenômeno”.
Parece-nos mais exato definir a qualidade como o conjunto
das propriedades que indicam o que uma coisa dada repre­
senta, o que ela é, e a quantidade como o conjunto das pro­
priedades que exprimem suas dimensões, sua grandeza. Essa
definição destaca os momentos específicos do conteúdo das
categorias de “qualidade” e de “quantidade”, que as distinguem
uma da outra e também das outras categorias da dialética, e
conferem a elas a autonomia e a autodeterminação necessárias.
Falando da qualidade e da quantidade, temos em vista
aspectos, propriedades e características determinadas das coisas.
Entretanto, a qualidade e a quantidade são próprias apenas às
coisas, embora pertençam igualmente às suas propriedades.
Por exemplo, cada ângulo é uma das propriedades do triângulo,
mas possui igualmente uma qualidade e uma quantidade rigoro­
samente definidas. O fato de que ele seja formado por círculos
partindo de um mesmo ponto e de que ele tenha outras pro­
priedades constitui sua qualidade, enquanto que sua grandeza
concreta, sua dimensão, expressa em graus, constituem sua
quantidade
Tomemos um outro exemplo: uma das propriedades da
água é a de dissolver o sal de cozinha. Entretanto, assim como
a água, essa propriedade possui qualidade e quantidade. As
particularidades que caracterizam o processo de dissolução e
indicam o que ele representa são a qualidade dessa propriedade,
e o quanto de sal a água pode dissolver, ou dissolveu, constitui
sua quantidade.

2. O PROBLEMA
DA MULTIPLICIDADE
DAS QUALIDADES DAS COISAS

A aplicação das categorias de “qualidade” e de “quanti­


dade” às diferentes propriedades das coisas permite encontrar
a solução do seguinte debate: uma coisa possui uma ou várias
qualidades?
Na literatura filosófica soviética, há dois pontos de vista
diretamente opostos sobre essa questão. Certos autores con-

208
sideram que cada coisa possui apenas uma qualidade3. Outros
acreditam que elas possuem várias qualidades4.
Qual desses dois pontos de vista é o correto? Parece-nos
que o segundo é o mais exato. A necessidade de reconhecer
nas coisas uma mutiplicidade de qualidades decorre do fato
de que a coisa possui uma multiplicidade de propriedades, cada
uma das quais tem sua qualidade, diferente das outras proprie­
dades e da coisa em si.
É verdade que, a uma primeira aproximação, pode parecer
que a definição de qualidade que demos contradiz o fato de
que a coisa possui uma multiplicidade de qualidades. Com
efeito, se a qualidade da coisa é o conjunto de propriedades que
indica o que a coisa representa, a coisa deve, então, possuir
uma única qualidade, porque todas as propriedades que cons­
tituem esse ou aquele determinismo qualitativo entram de uma
maneira ou de outra nesse conjunto.
Esse raciocínio seria incontestável se a coisa, em todas as
suas relações e sob qualquer condição, manifestasse todas as
propriedades indicando o que ela representa. Na realidade,
não é assim. Em diferentes relações e sob diferentes condições
concretas, a coisa manifesta propriedades diferentes, rigorosa­
mente determinadas, específicas de cada caso concreto. E se
é assim, em certas relações e sob certas condições, a coisa
representará isso e, em outras, aquilo, e em certas condições e
em certas relações ela terá uma qualidade e, em outras, uma
outra. A propriedade que surgirá em primeiro plano sob uma
relação dada, em condições dadas, representará a coisa nessa
relação e nessas condições, e sua qualidade será considerada
como a qualidade da própria coisa.
Em outros termos, pelo fato de que, em diferentes relações
e sob condições diferentes da existência da coisa, ela manifeste
ou não todas as suas propridades, mas propriedades rigorosa­
mente determinadas, ela pode ser considerada não apenas sob

3Materialismo dialético cit., Caderno 1, p. 48.


■'B. P. Rojin, A dialética marxista-leninista como ciência filosófica,
1957, Ed. da Universidade Estatal de Leningrado, p. 66-7; Original em
russo; I. B. Andreev, Passagem das mudanças quantitativas às qualitati­
vas — o principal elemento “da dialética”, in Problemas do materia­
lismo dialético, 1960, Ed. da Academia de Ciências da URSS, p. 90-1;
Original em russo. Uemov, op. cit., p. 34-42.

209
o ângulo de sua qualidade particular e fundamental, mas igual­
mente do ponto de vista da qualidade dessa ou daquela pro­
priedade que ela possua. Por exemplo, representando uma
substância particular, constituída por dois átomos de hidrogênio
e um átomo de oxigênio, a água, por meio do estado líquido
de gotas, pode manifestar-se como líquido e mostrar, dessa
maneira, sua qualidade de líquido; pelo fato de que ela é capaz
de dissolver algumas substâncias, ela pode ser considerada
como seu dissolvente etc. Segue-se que cada objeto, fenômeno,
além de suas qualidades fundamentais, que exprimem sua na­
tureza específica, pode possuir também uma grande quantidade
de qualidades não fundamentais que aparecem em certas con­
dições e que estão ausentes em outras. Por isso, a perda, pela
coisa, dessa ou daquela qualidade não acarreta a perda ne­
cessária de sua qualidade fundamental e de suas outras qualida­
des não fundamentais. Por exemplo, a perda, pela água, de uma
qualidade, ou seja, do estado líquido, no momento de sua
passagem a um outro estado de agregação (vapor ou gelo),
não acarreta a perda de sua qualidade como substância parti­
cular, constituída de hidrogênio e de oxigênio.
Há pontos de vista os mais diversificados sobre a questão
da qualidade e da quantidade. Certos filósofos negam com­
pletamente a objetividade das diferenças qualitativas, acredi­
tando que elas são apenas aparência, ou, então, eles simples­
mente deixam de reconhecer a existência de um ou de vários
estados qualitativos e negam a multiplicidade infinita dos
outros. Assim, por exemplo, Thales acreditava que a multi­
plicidade das qualidades observadas representava a . mudança
de aspecto de uma única e mesma qualidade, ou seja, a água.
Anaximenes pensava mais ou menos a mesma coisa e colocava
o ar no papel de qualidade universal. Da mesma maneira
Heráclito, que reduzia todos os fenômenos do mundo à mani­
festação de uma mesma e única qualidade — o fogo.
O filósofo inglês Locke dividia a qualidade em dois grupos:
qualidades primárias (existindo independentemente da cons­
ciência do homem) e qualidades secundárias (condicionadas
pela especificidade dos órgãos sensitivos). Ele relacionava, às
primeiras qualidades, a extensão, o movimento, o repouso etc.,
e às segundas, a cor, o gosto, o odor etc.
A divisão de todas as qualidades em primárias e secundá­
rias tornava possível uma conclusão idealista. E esta foi

210
formulada por Berkeley. Ele achava que Locke não era
conseqüente quando afirmava que algumas qualidades são de­
pendentes do sujeito e outras não. Todas as qualidades, de­
clarava Berkeley, dependem do sujeito, ou seja, dependem dele
o movimento, o repouso, a extensão e não apenas a cor, o odor e
o gosto, porque todas as qualidades podem ser reduzidas, em
última análise, às nossas sensações. E daí ele chegava a sua
conclusão: todas as qualidades são diferentes sensações; não
há nada além de MIM e de minhas sensações.
Embora Berkeley identificasse todas as qualidades às sen­
sações, ele também distinguia o sujeito perceptivo como o único
real. Assim, ele cometia a mesma inconseqüência que repro­
vava em Locke. Hume observou essa inconseqüência em Ber­
keley e, desenvolvendo ainda mais seu princípio, chegou à
negação da existência objetiva não apenas das coisas e de suas
qualidades, mas também daquele que é o sujeito perceptivo.
Hume raciocinava da seguinte maneira: se todas as qualidades
que percebemos são nossas sensações subjetivas, então a cons­
ciência de si mesmo também é subjetiva, porque ela só se ma­
nifesta no momento em que experimentamos esse ou aquele
estado que nos é próprio, como a fome, o cansaço, a dor, uma
certa posição do corpo etc. É por isso que não apenas as
diferenças das coisas, mas também o próprio Eu que as percebe
devem ser considerados como um conjunto de sensações.
Assim, Hume mostrou que a redução dessa ou daquela
qualidade às sensações subjetivas conduz necessariamente não
apenas à negação da existência real de todas as coisas, de todos
os fenômenos, mas também à redução do mundo ambiente ao
mundo subjetivo do EU e, em última análise, à negação desse
mesmo EU.
Os partidários do materialismo dialético, contrariamente
aos filósofos que negam a objetividade das qualidades, acredi­
tam que as características qualitativas existem de forma objetiva,
fora e independentemente da consciência humana e que elas
são as relações e as propriedades universais das formações ma­
teriais, formas universais de seu ser.

211
3. LEI DA PASSAGEM
DAS MUDANÇAS QUANTITATIVAS
ÀS MUDANÇAS QUALITATIVAS
E VICE-VERSA

Primeiramente, tem-se a impressão de que a qualidade e


a quantidade comportam-se uma para com a outra de maneira
independente. Por exemplo, as mudanças quantitativas não
são acompanhadas por mudanças qualitativas. Entretanto, as
mudanças quantitativas não acarretam mudanças qualitativas
apenas até um certo limite e em um quadro determinado. Os
limites nos quais as mudanças quantitativas não acarretam
mudanças qualitativas exprimem a medida. Assim, as mudan­
ças qualitativas aparecem apenas no momento em que as mu­
danças quantitativas saem dos limites de uma medida dada. A
destruição de uma medida, em decorrência da ultrapassagem,
pela quantidade, dos limites rigorosamente determinados em
cada caso preciso, não significa, entretanto, que uma coisa dada
(ou um fenômeno dado) tenha entrado em um estado incomen­
surável. A quantidade e a qualidade, fora dos limites de uma
medida, não se comportam de forma caótica, mas, pelo con­
trário, mostram-se ligadas uma à outra, interdependentes, e
constituem uma nova medida. Por exemplo, quando a tempe­
ratura do gelo atinge 0°C, isso acarreta a mudança de quali­
dade desse gelo: ela transforma-se em água. Mas a água não
é um caos de quantidade e de qualidade, ela possui uma me­
dida, notadamente uma escala de temperaturas bem definida:
de 0°C a 100°C. A ultrapassagem desses limites implica, por
sua vez, transformações da qualidade da água, destruição de
sua medida e a entrada no quadro de uma nova medida.
Em outros termos, a transformação de um estado quali­
tativo em outro é a passagem de uma medida a uma outra.
O momento da realização dessa passagem, segundo Hegel, pode
ser classificado de nó, e uma série de tais momentos ou nós, de
linha nodal. Assim, a matéria desenvolve-se pelo desenlaçar
ininterrupto de alguns nós e a criação de outros. Um exemplo
dessa linha nodal é fornecido pelo quadro de classificação pe­
riódica dos elementos de Mendelev, em que cada elemento
representa um nó natural, formado pelo crescimento de uma
unidade dn carga do núcleo (carga do núcleo de hidrogênio —

2 12
um próton; do hélio — dois prótons; do litio — três prótons;
do berílio — quatro prótons etc).
Assim, o aparecimento de uma nova qualidade está ne­
cessariamente ligado a uma mudança de qualidade, ou, em
outros termos, toda mudança qualitativa é o resultado de mu­
danças quantitativas e por elas são provocadas. Essa lei ca­
racteriza um dos aspectos essenciais do processo de movimento
e de desenvolvimento da matéria e é por isso que ela foi
formulada como uma das leis fundamentais da dialética, das
quais Engels definiu da seguinte maneira a essência: “ (•■•) Na
natureza, de uma forma claramente determinada por cada caso
singular, as mudanças qualitativas só podem ter lugar por
acréscimo ou retração quantitativos da matéria ou do movi­
mento (como dizemos geralmente, de energia)”5. Em outros
termos, toda mudança qualitativa é o resultado de certas mu­
danças quantitativas.
Uma qualidade nova, surgida em decorrência de mudanças
quantitativas determinadas, não se comporta de maneira passiva
com relação a essas últimas, mas, pelo contrário, exerce uma
influência de volta, acarretando também mudanças caracterís­
ticas quantitativas rigorosamente determinadas.
Por exemplo, o volume da água é diferente daquele do
vapor, no qual transforma-se a água, quando ela muda de
qualidade. E essa nova quantidade é diretamente condicionada
pela nova qualidade: uma interação determinada das moléculas
que caracterizam o estado gasoso da substância, notadamente
da água. Assim, o desenvolvimento faz-se por meio da mu­
dança de quantidade e de qualidade, mediante a passagem das
mudanças quantitativas às mudanças qualitativas e vice-versa.
Os metafísicos negam habitualmente a correlação e as
passagens recíprocas da quantidade e da qualidade. Os pré-
reformistas, por exemplo, acreditam que toda mudança é apenas
uma mudança de quantidade, que os objetos não se mo­
dificam qualitativamente. O naturalista e filósofo suiço Bonnet
(1720/1793), em particular, acredita que um organismo adulto
já está pré-formado no embrião e que passando para o estado
adulto ele não se modifica qualitativamente, mas simplesmente
aumenta de volume sob todas as relações, manifestando sempre

r,F. Engels, La dialectique de la nature, p. 70.

213
as qualidades presentes, que se encontravam dissimuladas no
estado embrionário.
Ao contrario dos pré-reformistas e, em geral, dos evolucio­
nistas, partidarios da teoria que nega as modificações qualita­
tivas e que reduz todas as mudanças a mudanças quantitativas,
o naturalista francês Georges Cuvier (fins do séc. XVIII e
começo do XIX) afirmava, por exemplo, que a única forma
possível de modificação era a forma qualitativa. Segundo sua
teoria, as modificações entre os animais e os vegetais, assim
como o desaparecimento de certas espécies e o aparecimento de
outras, são o resultado de catástrofes repentinas que se abatem
sobre a Terra. Em decorrência dessas catástrofes, as velhas
formas animais e vegetais desapareciam completamente, en­
quanto que outras apareciam. No período que se escoa entre
essas catástrofes, não há nenhuma modificação no mundo ani­
mal nem no vegetal.
O botánico holandés Hugo de Vries (1848/1935) defende
um ponto de vista análogo: a transformação de uma espécie
em outra executa-se igualmente em decorrência de uma espécie
de explosão — mutação — e, no período entre duas mutações,
não há nenhuma modificação. Ele escreveu que: “Chego à
conclusão de que o progresso no mundo da vida produziu-se
por pulsões. Durante milênios, tudo permaneceu calmo. . .
De vez em quando, entretanto, a natureza procura criar qual­
quer coisa de novo e de melhor. Ela capta uma vez uma
espécie, outra vez outra espécie. A força criadora entra em
movimento e, sobre uma base antiga e até então imutável,
surgem formas novas”67.
O filósofo contemporâneo norte-americano, Sidnay Hook,
considera falsa a tese da correlação e do intercondicionamento
da quantidade e da qualidade. Ele escreve que: “ ( . . . ) Em­
bora as quantidades e as qualidades possam modificar-se e a
relação entre suas modificações possa ser descrita por funções
contínuas e descontínuas, é absurdo dizer que a quantidade
torna-se qualidade ou que a qualidade torna-se quantidade’”!.
A quantidade, segundo Hook, não pode transformar-se em

6H. de Vries, Die Mutationen und die Mutationsperioden bei der


Entstehung der Arten, Leipzig, 1901, p. 38.
7S. Hook, Dialectical materialism and scientific method, Manchester,
1955, p. 20.

214
qualidade, porque esta última precede logicamente a quanti­
dade e não pode existir sem ela. “Não podemos, ele declara,
falar das quantidades sem supor a existência das qualidades,
mas também não podemos falar das qualidades em situações
em que a existência das quantidades é problemática.. . Nin­
guém pode, falando literalmente, definir a quantidade de qua­
lidades tais como a inocência e a perfeição”#.
A afirmação de que a qualidade precede logicamente a
quantidade é correta. No conhecimento, o homem foi histo­
ricamente do conhecimento da qualidade à colocação em
evidência, à tomada de consciência da quantidade. Mas isso não
quer dizer que as mudanças qualitativas não são a conseqüência
de mudanças quantitativas. No conhecimento, somos, às vezes,
obrigados a ir em sentido contrário ao da realidade. Aristóteles
já havia revelado esse fenômeno indicando que o primeiro, na
realidade, é o último no conhecimento e vice-versa, o primeiro
no conhecimento é o último na realidade.
Efetivamente, na realidade, o processo desenvolve-se das
mudanças quantitativas às mudanças qualitativas (da causa ao
efeito). Enquanto que no conhecimento, procedemos da qua­
lidade à quantidade (do efeito à causa). É óbvio que isso
não significa que as ligações e as relações do conhecimento não
refletem as ligações e as relações do mundo exterior, mas
testemunha apenas que, ao lado dessas leis que são fotografias
feitas a partir das leis universais da realidade, o conhecimento
possui igualmente leis, ligações e relações que são condicionadas
por sua natureza e que são próprias apenas a ela. Por isso é
preciso tratar da realidade com base nas leis dessa mesma
realidade.
A afirmação de Sidnay Hook de que a qualidade pode
existir sem a quantidade é totalmente inexata. Os exemplos
que ele dá de uma qualidade pura, com exceção das caracterís­
ticas quantitativas, não são de qualidades puras. A “inocência”
e a “perfeição”, que ele cita como qualidades puras, não são
qualidades puras. Como todo fenômeno, como toda proprie­
dade, elas têm características quantitativas e, notadamente, um
certo grau de manifestação. Além disso, elas estão organica-6

6S. Hook, Dialectical cit.

215
mente ligadas a toda uma série de mudanças quantitativas,
próprias ao homem.
Contrariamente às doutrinas metafísicas, o materialismo
dialético apóia-se sobre dados das ciências da natureza e reco­
nhece não apenas as mudanças quantitativas e qualitativas, e
sua correlação, mas considera também que essa é uma das leis
fundamentais do movimento e do desenvolvimento da matéria.

4. SALTO. TIPOS DE SALTOS

As mudanças quantitativas e qualitativas têm suas parti­


cularidades. As mudanças quantitativas são, habitualmente,
lentas, progressivas, dissimuladas e contínuas; as mudanças
qualitativas, pelo contrário, são bruscas, evidentes, constituindo
uma ruptura de gradação e de continuidade. Por isso, as mu­
danças qualitativas são chamadas de saltos. O salto é o pro­
cesso de passagem de uma coisa de um estado qualitativo a um
outro que é acompanhado por uma ruptura de continuidade.
O salto, que se distingue das mudanças graduais quanti­
tativas por seu caráter evidente, seu ritmo relativamente rápido,
não se realiza sempre da mesma maneira. A forma concreta
de realização do salto, seu ritmo dependem da natureza da
formação material em que se executa a passagem de um estado
qualitativo a outro, das condições concretas nas quais efetua-se
essa passagem. Como há uma quantidade muito grande de
formações materiais, de natureza diferente, também pode haver
um número infinito de formas de salto. Entretanto, a diver­
sidade das formas de saltos pode ser reduzida a dois tipos:
os saltos que se produzem sob a forma de ruptura e aqueles
que se desenvolvem, gradualmente, sob a forma de uma
acumulação gradual dos elementos da nova qualidade e do
enfraquecimento dos elementos da antiga qualidade.
Um dos traços principais do salto-ruptura é o fato de
que ele se produz brutalmente, impetuosamente, e afeta toda a
qualidade em seu conjunto. Um exemplo disso pode ser dado
por uma explosão de dinamite ou de pólvora, que acarrete
uma brusca transformação da substância em uma nova qua­
lidade. Em decorrência da explosão, a substância inicial de­
saparece e, em seu lugar, aparecem novas substâncias. Um
exemplo de salto sob a forma de ruptura é dado pela trans-

216
formação do elétron e do pósitron em dois fótons, quando eles
se chocam. A colisão dessas partículas “elementares” produz
um clarão que marca o surgimento de novas partículas elemen­
tares e o desaparecimento das partículas iniciais. Na sociedade,
um exemplo de salto sob a forma de ruptura pode ser dado
pela revolução social que se efetua mediante a insurreição
armada. No decorrer dessa revolução, produz-se uma trans­
formação impetuosa das formas antigas das relações humanas
em novas formas, que atingem todos os aspectos fundamentais
da vida.
A particularidade do salto sob a forma de acumulação
gradual dos elementos da nova qualidade e do enfraquecimento
dos elementos da antiga qualidade é a de produzir-se de forma
relativamente lenta; no curso desse salto, a qualidade não se
transforma nem inteira, nem rapidamente, mas aos poucos. Um
exemplo desse tipo de salto pode ser dado pelo surgimento de
novas espécies de vegetais e de animais, que se estende por
centenas de milhares de anos e se produz em decorrência da
acumulação gradual de novas propriedades correspondentes à
evolução do meio ambiente, pela transformação gradual de
certas funções e da morfologia desses ou daqueles órgãos.
Na sociedade, esse tipo de salto é característico, por exemplo,
da evolução da língua. O aparecimento de uma nova língua
é o resultado de uma longa acumulação de elementos de uma
nova qualidade e do enfraquecimento dos elementos da antiga
qualidade. No curso do desenvolvimento, da prática e do co­
nhecimento sociais, palavras novas aparecem e se acumulam e,
com o tempo, essas palavras começam a fazer parte do voca­
bulário, enquanto que as palavras velhas tornam-se inúteis,
supérfluas e caem no esquecimento. De maneira análoga é
que se modificam certas formas gramaticais. À medida que as
modificações de fundo léxico e de estruturas gramaticais tor­
nam-se mais importantes, uma nova qualidade da língua
toma-se precisa e uma nova língua vai-se formando.
Falando dos saltos-ruptura e dos saltos que se realizam
por acumulação gradual dos elementos da qualidade nova e
do enfraquecimento da antiga qualidade, tomamos como base
de sua distinção o caráter do desenvolvimento do salto. O
salto-ruptura é súbito, brutal e engloba a qualidade em seu
conjunto, em todos os seus aspectos e suas ligações. O salto
que se realiza por acumulação gradual dos elementos da qua­

217
lidade nova desenvolve-se lentamente e modifica a qualidade
aos poucos e gradualmente.
Mas, para classificar os saltos, podemos apoiar-nos não
apenas no caráter de seu desenvolvimento, mas também no
caráter das transformações qualitativas que se produzem em
decorrência desse ou daquele salto.
Como já dissemos, cada coisa, além de sua qualidade
fundamental, possui também uma multiplicidade de outras qua­
lidades não fundamentais que, sendo qualidades das proprieda­
des particulares da coisa, representam-na sob esses ou aqueles
aspectos ou condições. A mudança da qualidade fundamental
e da qualidade não fundamental da coisa produz-se sob a forma
de saltos, mas esses saltos são completamente diferentes quanto
ao seu fundamental. O salto, no curso do qual modifica-se a
qualidade fundamental da coisa, supõe a destruição radical do
fundamento qualitativo presente, a modificação da essência da
formação material. O salto, no curso do qual modifica-se a
qualidade não fundamental da coisa, não acarreta a destruição
radical de seu fundamento qualitativo, de sua essência, mas
condiciona mudanças qualitativas determinadas da coisa, no
quadro do mesmo determinismo qualitativo, nos limites da
mesma essência. O primeiro tipo de salto representa a forma
revolucionária das mudanças qualitativas e o segundo repre­
senta a forma evolucionista.
A revolução é, portanto, um tipo particular de salto que,
em seu curso, a passagem à nova qualidade é acompanhada pela
destruição radical do antigo fundamento qualitativo e pelo
aparecimento de uma formação material que tenha um funda­
mento qualitativo novo, uma essência nova.
No que diz respeito à evolução, ela é, nesse caso, uma
noção oposta à da revolução e designa um outro tipo de salto,
isto é, o salto em cujo curso a passagem à nova qualidade
realiza-se no quadro da essência dada da coisa, sem a destrui­
ção radical de seu fundamento qualitativo presente.
A passagem de uma formação sócio-econômica a outra,
assim como a passagem de um elemento químico a outro, ou
a transformação de uma partícula “elementar” em outra, são
exemplos de revolução. Por exemplo, a transformação do
rádio em radônio, a passagem do capitalismo ao socialismo etc.
serão revoluções.
Como caso de passagem evolucionista de um estado qua­

218
litativo a outro, podemos citar a passagem da substância de um
estado de agregação a outro, como, por exemplo, do gelo à
água, da água ao vapor e vice-versa, a passagem do capitalismo
pré-monopolista ao capitalismo monopolista, a passagem do
socialismo ao comunismo etc.
Certos autores utilizam os conceitos de evolução e de
revolução em um sentido um pouco diferente9. Por revolução
eles entendem um salto-ruptura e não toda modificação em
cujo curso produz-se a destruição radical do fundamento qua­
litativo da coisa, e por evolução, eles entendem um salto que
se realiza por acumulação gradual dos elementos da nova
qualidade e do enfraquecimento gradual dos elementos da
antiga qualidade.
A identificação da revolução com o salto-ruptura e da
evolução com a passagem de um estado qualitativo a outro, por
acumulação dos elementos da nova qualidade e o enfraqueci­
mento dos elementos da antiga qualidade, não nos parece
justificada. A revolução distingue-se da evolução não pela
forma com que se realiza a passagem de uma qualidade a uma
outra, mas pelo caráter, a profundidade, o grau de transforma­
ção da coisa, se essa passagem é acompanhada da destruição
radical da qualidade existente, da transformação da coisa em
uma outra coisa ou simplesmente de uma modificação de seu
aspecto, de um desenvolvimento no quadro do próprio funda­
mento qualitativo.
Outros autores10 entendem por revolução as mudanças
qualitativas e por evolução as mudanças quantitativas. Entre­
tanto, embora a utilização dos conceitos de “revolução” e de
“evolução” nesse sentido esteja profundamente enraizado na
literatura filosófica, esta significação não constitui o conteúdo
específico das categorias em questão, não é sua significação
categorial.
O que é fundamental e específico no conteúdo desses
conceitos é que um deles — “revolução” — designa um salto,
que supõe a destruição radical do antigo fundamento quali­

9L, V. Vorobiov, V. M. Kagarov, A. E. Furman, A s categorias e


leis fundamentais da dialética materialista, Ed. da Universidade Estatal
de Moscou, 1961, p. 220-39. Original em russo.
10N. I. Borin, A lei de passagem das mudanças quantitativas às
qualitativas, 1960, p. 21. Original em russo.

219
tativo da formação material existente e o surgimento de uma
nova formação material, enquanto que o outro — “evolução”
— designa um salto que supõe a passagem de uma formação
material de um estado qualitativo a um outro, no quadro de
um fundamento qualitativo dado, no quadro de sua essência.
São esses momentos do conteúdo dos conceitos em questão que
lhes conferem a autonomia e o caráter categorial necessários.
Os conceitos de revolução e de evolução são universais,
aplicáveis a todos os domínios da realidade. Entretanto, esses
conceitos adquirem um caráter específico quando são utilizados
para exprimir as leis da passagem de um estado qualitativo a
outro, nesse ou naquele domínio concreto da natureza ou da
vida social.
Se na natureza, a revolução é sempre um salto que provoca
a destruição radical do antigo fundamento qualitativo, em alguns
domínios da vida social, nos quais o desenvolvimento está
ligado à ação de um fato subjetivo, a revolução não será abso­
lutamente a passagem de uma qualidade a uma outra, que é
acompanhada pela destruição radical do fundamento qualitativo
presente, mas apenas a passagem que engendra formações mais
perfeitas, isto é, a passagem do inferior ao superior. No que
concerne aos saltos ligados à destruição radical do fundamento
qualitativo presente, em decorrência dos quais opera-se a pas­
sagem de uma formação mais aperfeiçoada a uma formação
menos aperfeiçoada, isto é, do superior ao inferior, estes não
representam uma revolução, mas uma contrarevolução. Uma
revolução é, por exemplo, a passagem do poder político de uma
classe historicamente condenada a uma classe progressista,
como o dos senhores feudais para a burguesia, ou o da bur­
guesia para o proletariado. E a contrarevolução é o restabele­
cimento provisório da dominação econômica e política da
classe historicamente condenada e destruída no curso da
revolução.
A evolução aplicada a fenômenos sociais dados manifes­
ta-se como reforma ligada, como já sabemos, a mudanças
qualitativas no quadro do próprio fundamento qualitativo e
mudanças que não colocam em questão a essência do regime
econômico ou político da sociedade.
Tendo indicado a diferença entre as mudanças reformistas
e revolucionárias, Lenin escreveu que: “A ciência histórica nos
diz que o que distingue uma mudança reformista de uma mu-

220
dança não reformista em um regime político dado é, em geral,
que, no primeiro caso, o poder permanece nas mãos da antiga
classe dominante, e que, no segundo caso, o poder passa das.
mãos dessa classe para as de uma nova”1!. Mas ao mesmo
tempo ele destacava que: “seria absolutamente falso pensar
que, para lutar diretamente a favor da revolução socialista,
possamos ou devamos abandonar a luta pelas reformas. Não
é isso absolutamente. Nós não podemos saber em quanto
tempo alcançaremos o sucesso e em que momento condições
objetivas permitirão o acontecimento dessa revolução. É pre­
ciso que sustentemos qualquer melhoria, toda melhoria real da
situação econômica e política das massas”*12.
Desde que a passagem de um estado qualitativo a outro
efetua-se por meio de saltos, no que concerne às transformações
da sociedade, assim como às relações sociais, e ainda a qualquer
outro problema concreto, é preciso ser revolucionário, não ter
medo de derrubar tudo o que já está ultrapassado, tudo o que
já envelheceu.
Pelo fato de que os saltos, em decorrência dos quais pro­
duz-se a passagem da antiga qualidade à nova qualidade, não
têm o mesmo caráter, nem a mesma forma, é preciso, na prática,
que, no momento de uma ação consciente sobre esse ou aquele
processo da transformação de uma qualidade a outra, estudemos
minuciosamente a situação e que escolhamos a melhor forma
de salto, correspondente às condições concretas dadas, porque
somente dessa maneira estaremos livres de erros e poderemos
realmente acelerar o curso objetivo dos acontecimentos.
Os clássicos do marxismo-leninismo conferiram sempre
uma grande importância a essa questão primordial e souberam
utilizar as leis de mudanças qualitativas em sua atividade prá­
tica. Levando em conta as condições concretas ou uma nova
situação, eles freqüentemente apresentaram uma forma de pas­
sagem a uma nova qualidade no lugar de uma ouLa forma já
elaborada e adotada porque, em condições novas, a anterior
correspondia menos ao fundo do problema do que a nova.
Por exemplo, nos anos 70 do século XIX, K. Marx e F. Engels,
levando em conta o fato de que na Inglaterra e nos EUA não

nV. Lenin, Oeuvres, t. 18, p. 588.


12V. Lenin, op. cit., t. 23, p. 174.

221
havia o aparelho burocrático que caracterizava os outros países
capitalistas, e também que esses países ainda não estavam
extremamente militarizados, fizeram uma exceção quanto a
esses países, no que concerne às formas da passagem ao socia­
lismo. Se em todos os outros países, segundo Marx e Engels,
essa passagem tivesse de ser efetuada sob a forma de insurreição
armada, na Inglaterra e nos EUA, pelo contrário, ela poderia
dar-se pela via pacífica. Em seguida, quando o capitalismo
entrou em seu último estágio de desenvolvimento — o imperia­
lismo, e quando a tendência ao fascismo do Estado e à hiper­
trofia do aparelho burocrático e militar tornou-se característica
de vários países capitalistas, essa exceção perdeu seu funda­
mento real e deixou de corresponder à nova situação. Por isso
Lenin, no começo do século XX, substituiu a tese de Marx e
de Engels por uma tese nova emitindo a idéia de que, na época
atual, a passagem ao socialismo é impossível por via pacífica
e que esta só é possível sob a forma de insurreição armada —
de ruptura. Mas, depois de fevereiro de 1917, quando na
Rússia um concurso de circunstâncias (dualidade do poder,
fraqueza da burguesia russa e de seu governo provisório etc.)
criou a possibilidade de uma passagem pacífica do poder para
o proletariado, Lenin substituiu o slogan de insurreição armada
pelo de tomada do poder por via pacífica, obtida pela modifi­
cação da composição dos Sovietes, graças à eliminação dos
mencheviques e dos S. R. e a satisfação da exigência da devo­
lução de todo o poder aos Sovietes. Mas, depois dos aconteci­
mentos de julho, quando os mencheviques desempenharam
abertamente o papel de valetes da burguesia, que o período de
dualidade do poder chegou ao fim e que todo o poder já se
encontrava nas mãos da burguesia e de seu governo provisório,
o período pacífico da revolução também chegou a seu fim. Nes­
sas novas condições, a única forma possível e justa para con­
seguir a vitória da revolução socialista tornou-se a insurreição
armada. Por isso Lenin colocou na ordem do dia a insurreição
armada que, como sabemos, conduziu à derrubada da burguesia
e ao estabelecimento da ditadura do proletariado.
A tese de Lenin sobre a insurreição armada, como a forma
melhor adaptada para a conquista da ditadura do proletariado
nas condições do imperialismo, correspondeu durante muito
tempo à situação real das coisas e permaneceu aplicável a
qualquer país capitalista. Entretanto, com a vitória do socia-

2 22
lismo na URSS e, em particular, com o surgimento do sistema
mundial do socialismo surgiu também a necessidade de precisar
e de desenvolver essa tese de acordo com as novas condições do
desenvolvimento social. O XX Congresso do PCUS, genera­
lizando a experiência da revolução socialista em diferentes
países e analisando a nova situação internacional (nascimento,
desenvolvimento e fortalecimento do sistema socialista mundial,
enfraquecimento geral do capitalismo e agravamento de suas
contradições, crescimento dos efetivos, do grau de organização
e da coesão da classe operária, alargamento do número de seus
aliados objetivamente interessados na luta contra o imperialis­
mo, aumento dos efetivos dos partidos comunistas e operários
e de seu prestígio), apresentou e criou a idéia da possibilidade,
nas condições atuais, de efetuar, em alguns países, a revolução
socialista pela via pacífica, assim como a de utilizar o parlamento
burguês. Essa idéia foi desenvolvida e firmada no Programa
adotado no XXII Congresso do PCUS. Esse programa destaca,
em particular, que: “Nas atuais condições, em alguns países
capitalistas, a classe operária, sob a direção de sua vanguarda,
tem a possibilidade de, baseada em um confronto popular e
operário ou em outras formas eventuais de acordo e de cola­
boração política de diversos partidos e organizações sociais, unir
a maioria do povo, conquistar o poder de Estado sem guerra
civil e de fazer passar os principais meios de produção para as
mãos do povo. Apoiando-se na maioria do povo e opondo-se
resolutamente aos elementos oportunistas, incapazes de renun­
ciar à política de conciliação com os capitalistas e os agrários,
a classe operária pode infligir uma derrota às forças antipopula­
res, reacionárias, e conquistar uma sólida maioria no parla­
mento, transformando-o de um instrumento ao serviço dos
interesses da classe da burguesia em um instrumento ao serviço
do povo trabalhador, além de desenvolver amplamente a luta
extraparlamentar das massas, quebrar a resistência das forças
da reação e criar as condições necessárias para a realização
pacífica da revolução socialista”13.

n Rum o ao comunismo, compilação dos documentos do X X I I Con­


gresso do Partido Comunista da União Soviética, (17-31 de outubro de
1961), Moscou, Edições em línguas estrangeiras, p. 517, 1961.

223
V ili. A C A U SA E O EFEITO

1. A EVOLUÇÃO DOS CONCEITOS


DA CAUSALIDADE
NA FILOSOFIA PRÊ-MARXISTA

Com o nascimento da Filosofia surgiu uma certa concepção


da causa. Entretanto, entre os primeiros filósofos, ela era
extremamente confusa e indeterminada. Para eles a causa ainda
não se distinguia do princípio primeiro, da matéria que se
encontra à base das coisas e dos fenômenos existentes. Na
filosofia grega, ela adquire primeiramente a forma de água
(Thales), de ar (Anaxímenes) e de fogo (Heráclito), que
engendram, no curso de sua transformação todos os fenômenos
observados no mundo. Em seguida, a causa é representada por
átomos eternos e imutáveis, que se distinguem entre eles por
sua forma, posição, ordem e que formam, quando se chocam,
diferentes corpos. Aristóteles caracterizava da seguinte ma­
neira a concepção dessa questão que havia em Leucipo e De-
mócrito: eles “admitem que há certas diferenças (os átomos
— A. Ch.), que são as únicas causas de todo o resto dos
fenômenos. Entretanto, eles reduzem essas diferenças a apenas
três: a forma, a ordem e a posição”1.
Mais tarde, foram considerados como causas todos os
fatores que condicionam o aparecimento de coisas particulares.
Para Platão, esses fatores eram: a matéria informe, uma idéia
determinada, a relação matemática e a idéia de “bem supremo”.
Segundo sua teoria, cada coisa particular aparece em decorrên­

‘Aristóteles, Métaphysique d'Aristote, Paris, 1879, p. 43-4.

224
cia da interação do não-ser (matéria) com o limite (limitação
matemática). O modelo da coisa em formação é essa ou
aquela idéia, que penetra na coisa sensível e, com a relação
matemática, constitui sua essência. O elemento motor dessas
transformações é a idéia de “bem supremo”, situado fora e
acima delas.
Aristóteles agrupa esses fatores em quatro tipos distintos
de causa: l.°) — a material, que representa a matéria parti­
cipando da formação da coisa; 2.°) a formal, que comunica
uma forma à matéria; 3.°) a produtiva, que une a forma à
matéria no processo de formação da coisa; e 4.°) — a finalista,
que representa o objetivo que se realiza no curso do apareci­
mento da coisa.
Aristóteles explica o processo do aparecimento das coisas
por analogia com sua criação pelos homens. Não foi por acaso
que, para exprimir a manifestação das quatro causas, ele tomou
exemplos da prática da criação, pelos homens, desses ou da­
queles valores materiais. Em particular, ele cita o exemplo da
construção de uma casa, em que o material de base desempenha
o papel de causa material; o plano, o papel de causa formal; o
trabalho do arquiteto e sua experiência, o de causa produtiva;
o objetivo que deve ser realizado ao fim da construção, o de
causa final. Ele escreveu que, nesse caso, a arte e o construtor
são o começo do movimento; o produto é “o porquê” (.o obje­
tivo); a terra e as pedras são a matéria; a concepção é a forma.
A concepção aristotélica da causalidade domin >u durante
muito tempo na história da filosofia. A filosofia da Idade
Média nada acrescentou à contribuição de Aristóteles na ela­
boração dessas categorias. Utilizando sua teoria das causas
formal e final, ela foi inteiramente absorvida pelo fundamento
da existência de Deus e da criação divina do mundo sensível.
Francis Bacon deu um passo a frente no conhecimento da
causalidade. Embora ele reconhecesse as quatro causas aristo­
télicas (material, produtiva, formal e final), só conferiu, entre­
tanto, uma importância categorial a uma delas: a causa formal
que, para ele, encontra-se não fora da coisa, como era para
Aristóteles, mas na própria coisa, porque ela representa a lei de
existência da coisa2.

2F. Bacon, Oeuvres de Bacon, Nouvel Organum, Paris, 1845, p. 138.

225
Ao contrário de F. Bacon, Hobbes rejeita as causas
formal e final e considera como reais apenas duas causas: a
produtiva (para ele, eficaz) e a material. Por causa produtiva,
ele entende o conjunto de propriedades (acidentes) do corpo
ativo que acarreta mudanças correspondentes no corpo passivo;
por causa material, o conjunto de propriedades (acidentes) do
corpo passivo que assegura o aparecimento dessas mudanças3*.
Se F. Bacon, na definição de causa, apoiava-se no fato de
que ela pertence ao domínio interior da coisa, à sua natureza,
Hobbes, por sua vez, concede, à causa, o domínio exterior,
liga-a aos acidentes, às propriedades flutuantes e acessórias;
enfim, a reduz à ação de um corpo sobre o outro.
Em Spinoza, igualmente, a causa situa-se fora dos fenô­
menos concretos singulares dos corpos: “Toda coisa singular
ou, em outros termos, toda coisa finita e que tem uma existência
limitada não pode existir, nem ser determinada a agir, se ela
não for determinada a isso, por uma outra causa, que é ela
própria finita e que tem igualmente uma existência limitada..A
Entretanto, o próprio Spinoza percebe o caráter restrito dessa
concepção da causalidade e procura atenuá-lo. Ele coloca a
questão da necessidade de pesquisar as causas da existência
das coisas nas próprias coisas e, a esse respeito, apresenta o
conceito de causa sui. Por “causa sui”, ele entende “aquilo cuja
essência envolve a existência, ou seja, aquilo cuja natureza só
pode ser concebida como existente”5. É verdade que a causa
de sua existência, segundo Spinoza, pode ser contida somente
no mundo tomado em seu conjunto, na natureza absoluta infi­
nita. Quanto às coisas finitas, as causas de sua existência estão
contidas não nelas mesmas, mas fora delas, em outras coisas
finitas.
A idéia extremamente progressista de que a natureza en­
cerra nela mesma a causa de sua existência, e de que não tem
absolutamente necessidade de uma forma exterior, fora dela mes­
ma, desempenhou um grande papel na luta contra o idealismo
e a religião, mas ela era insuficiente para ultrapassar a concepção
metafísica da causalidade, que reduzia o laço de causa e efeito
à ação de um corpo sobre o outro. É por isso que não é de

3T. Hobbes, Hobbes Sélections, Chicago, 1930, p. 94-5.


■•Spinoza, Ethique, Paris, 1908, p. 43.
5Spinoza, op. cit., p. 13.

226
espantar que a causa sui de Spinoza não tenha trazido nenhuma
modificação para a concepção de causalidade da época. Nas
ciências da natureza, assim como na Filosofia, continuavam a
entender por causa a ação de uma força exterior sobre essa
ou aquela coisa. Encontramos essa definição da causa em
Newton, nos materialistas franceses do século XVIII etc. As
causas, escreve, por exemplo, Newton, são as forças que é
preciso conferir aos corpos a fim de produzir o movimento.
Holbach salienta, por sua vez, que: “Uma causa é um ser que
coloca um outro em movimento ou que produz alguma mu­
dança nele”6.
Reduzir a causa do aparecimento e do desenvoxvimento de
uma coisa à ação de uma outra coisa acarreta toda uma série
de dificuldades para o domínio do conhecimento. Efetivamen­
te, o conhecimento de uma coisa supõe o conhecimento de sua
causa. Aristóteles já sabia disso. Então, se a causa de uma
coisa dada está contida em uma outra coisa, para conhecer a
coisa dada devemos também conhecer a outra coisa, a que é
a causa da primeira. Mas o conhecimento da segunda coisa
supõe a colocação em evidência de sua causa que, por sua vez,
encontra-se em uma terceira coisa, cuja causa encontra-se ainda
em uma quarta coisa. E assim sucessivamente até o infinito.
Em conseqüência, o conhecimento de qualquer coisa conduz-nos
necessariamente ao infinito e supõe o conhecimento de um
número infinito de outras coisas, o que, é claro, é irrealizável.
Spinoza já havia observado isso e chegara à conclusão da
impossibilidade de um conhecimento adequado das coisas sin­
gulares.
É verdade que os filósofos e os naturalistas do século
XVIII, que haviam apresentado o princípio metafísico de cau­
salidade, não viam a contradição que necessariamente o acom­
panha. Guiando-se por esse princípio, não somente eles não
duvidavam da possibilidade de conhecer a coisa estudada, mas
ainda consideravam-no como suficiente para obter um conhe­
cimento completo de todo o Universo, para explicar qualquer
fenômeno que tivesse acontecido no passado e para prever
qualquer acontecimento do futuro? Isso é explicado pelo67

6P. Holbach, Système de la nature ou des loix du monde physique


et du monde moral, Londres, 1769, p. 13.
7P. Laplace, Essai philosophique sur les probabilités, Paris, 1920, p. 8.

227
fato de que eles reduziam todos os fenômenos, todas as mu­
danças ocorridas no mundo a simples deslocamentos mecânicos
e acreditavam que podiam explicá-los a partir das leis da mecâ­
nica clássica. O nível de desenvolvimento da física de então
permitia, desde que se conhecesse a força que agia sobre os
corpos, as coordenadas e a velocidade de seu movimento em
um dado instante, determinar suas coordenadas e sua veloci­
dade em qualquer outro momento do futuro. Mas se essa
concepção de laço de causa e efeito é aceitável, em uma certa
medida, para explicar os fenômenos do movimento mecânico
simples em que a mudança do estado de um sistema isolado
não está ligada à mudança de sua qualidade, ela é absoluta­
mente inaceitável para explicar os fenômenos de outras formas,
mais complexas, de movimento, cujo aparecimento está ligado
a certas m-Janças qualitativas condicionadas não tanto pela
ação de forças exteriores, como pela interação no interior do
objeto.
Hegel foi o primeiro a chamar a atenção para o caráter
restrito e contraditório da concepção metafísica da causalidade.
Mostrando que a aproximação metafísica do laço de causa e
efeito dos fenômenos conduz necessariamente a um infinito
errôneo (cada fenômeno que desempenha o papel de causa e
de efeito tem, por sua vez, sua causa em outros fenômenos etc.),
Hegel recusou essa concepção de causalidade e propôs uma
solução dialética para o problema. Segundo ele, a causa e o
efeito estão em interação dialética.
A causa, sendo uma substância ativa, age sobre a substân­
cia passiva e acarreta nessa certas mudanças que produzem nela
um efeito. A substância passiva exerce uma ação de retorno
e anula, dessa maneira, a ação da substância ativa e, assim, de
substância passiva ela transforma-se em substância ativa e
começa a interferir em relação à primeira substância ativa como
alguma coisa de inicial, isto é, como causa.
Graças à interação, a causa e o efeito, segundo Hegel,
passam um pelo outro, mudam de lugar e, ao mesmo tempo,
manifestam-se um frente ao outro, de uma só vez, como causa
e efeito. Como conseqüência, quando se dá o conhecimento
do fenômeno, não há necessidade de considerar um número
infinito de outros problemas que se unem a ele, é suficiente
estudar sua interação. Conhecendo-a, conhecemos também a
causa e, ao mesmo tempo, a natureza dos dois fenômenos. Foi

228
assim que Hegel, baseado na interação da causa e do efeito,
anulou, de fato, o caráter limitado da concepção metafísica da
causalidade.
Tomando como ponto de partida a interação da causa e
do efeito, Hegel aproximou-se muito da concepção marxista da
causalidade.

2. A CONCEPÇÃO MARXISTA
DA CAUSALIDADE

A definição da causa como fenômeno que condiciona o


aparecimento de um outro fenômeno e do efeito como fenôme­
no engendrado pelo primeiro fenômeno está amplamente difun­
dida na literatura filosóficas.
Mas essas definições de causa e de efeito parecem-nos
insuficientes. Elas não permitem a captação da diferença exis­
tente entre a concepção marxista da causalidade e a do mate­
rialismo mecanicista pré-marxista. Segundo essas definições, a
causa de qualquer fenômeno encontra-se fora dele, em um outro
fenômeno. Essa tese servia de ponto de partida para a con­
cepção da causalidade feita pelos materialistas pré-marxistas,
que consideravam a causa como a ação de um corpo sobre o
outro e o efeito como mudanças surgidas nesse segundo corpo.
O materialismo dialético não nega as ações exteriores e
suas possibilidades de acarretar mudanças correspondentes nos
fenômenos submetidos a essa ação. Mas, não reduz a causa do
aparecimento e da existência de fenômenos às ações exteriores
que eles sofrem, nem procura essa existência no exterior, em
outros fenômenos, mas no próprio fenômeno, em sua natureza
interna.
É verdade que o termo “fenômeno” pode ser utilizado não
somente no sentido de “corpo”, de “coisa”, de “formação ma­
terial”, mas igualmente no sentido de manifestação, à superfície
da essência de uma coisa, de um corpo, de uma formação
material. Será possível que a utilização, nesse sentido, da

aMaterialismo dialético, Moscou, 1962, p. 262. Redação de A. B.


Makarov, A. V. Yostrikov e E. N. Tchesnákov. Original em russo. N. A.
Mussabaeva, O problema da causalidade ua filosofia e na biologia,
Alma-Ata, 1962, p. 9. Original em russo.

229
palavra “fenômeno” possa nos ajudar a evitar os erros observa­
dos nas definições já estudadas da causa e do efeito?
Não, já que uma tal utilização do termo “fenômeno” não
salva a situação, não evidencia a essência da concepção dialé­
tico-materialista da causalidade. Com efeito, se o fenômeno
representa o aspecto exterior de uma coisa, a forma da manifes­
tação, à superfície de sua essência, então, quando definimos a
causa como fenômeno que engendra um outro fenômeno e o
efeito, como sendo esse segundo fenômeno engendrado pelo
primeiro, reduzimos, exatamente por esse processo, o laço de
causa e de efeito às ligações exteriores, às ligações dos aspectos,
das propriedades exteriores, das formações materiais.
Na realidade, o laço de causa e de efeito é próprio não
somente aos aspectos exteriores dos objetos, não somente ao
domínio dos fenômenos, mas igualmente aos aspectos internos
e necessários, ao domínio da essência, assim como à correlação
do interno com o externo, da essência com o fenômeno.
Portanto, se partimos da definição da causa, como um
fenômeno qpe engendra um outro fenômeno, engendrado pelo
primeiro, chegamos inevitavelmente à negação da existência das
causas internas e do laço de causa e efeito entre os aspectos
internos e externos de uma coisa, entre a essência e o fenômeno.
Decretar como causa o conjunto de circunstâncias necessá­
rias ao aparecimento desse ou daquele fenômeno (efeito) é uma
tentativa de ultrapassar os defeitos dessas definições da causa910.
Esse ponto de vista sobre a causa, embora sendo uma
reação à tendência de reduzir a causa à ação exterior, não é
novo. Ele foi desenvolvido pelo positivista John-Stuart Mill.
“A causa, escreveu ele, é, filosoficamente falando, a soma total
das condições positivas e negativas do fenômeno, tomadas em
conjunto, a totalidade de toda espécie de contingências cuja
presença acarreta necessariamente o efeito”*0.
O defeito dessa definição da causa reside no fato de que,
dissolvendo a causa no conjunto dos fatores necessários ao
aparecimento desse ou daquele fenômeno, esquecemos o essen­
cial, o que constitui uma parte fundamental do conteúdo da

9L. B. Vorobiov, V. M. Kaganov, A. E. Furman, A s categorias e


leis fundamentais da dialética materialista, Moscou, 1962, p. 60. Ori­
ginal em russo.
10J. S. Mill, System o f logic, 6? ed., Londres, 1865, v. 1, p. 372.

230
categoria de causa, ou seja, o momento da atividade, o fato de
que a causa é um elemento motor, que impulsiona as mudanças
correspondentes nas coisas e nos fenômenos.
Parece-nos mais correto definir a causa como ■' interação
de dois ou mais corpos ou, ainda, como a interação de elemen­
tos ou aspectos de um mesmo corpo acarretando certas mu­
danças nos corpos, elementos ou aspectos, agindo uns sobre os
outros, e o efeito como as mudanças surgidas nos corpos,
elementos e aspectos agindo uns sobre os outros, em decorrência
de sua interação. Foi precisamente assim que os fundadores
do materialismo dialético e, em particular, Engels definiram a
causa: “ ( . . . ) A ação recíproca é a verdadeira causa finalis
das coisas”*!.
A interação conduz à modificação dos corpos ou aspectos
em interação, assim como ao aparecimento de novos fenômenos
e à passagem de um estado qualitativo a outro. Por exemplo,
a interação das classes antagônicas condiciona o aparecimento
do Estado, a mudança do sistema social e de estado e a passa­
gem da sociedade de uma formação sócio-econômica a uma
outra. A causa da corrosão do metal está na interação química
dos metais e dos gases presentes no ar assim como na água e
nas substâncias que nela são dissolvidas. A causa do apare­
cimento da corrente indutiva em um circuito fechado, deslocan­
do-se em um campo magnético, é a interação do circuito fechado
e do campo magnético. A causa da incandescência do fila­
mento de uma lâmpada elétrica não é a corrente elétrica que
a atravessa, como pensam certos autores!2, mas a interação da
corrente elétrica com a substância da qual é feito o filamento.
Tomando evidentes as raízes do caráter limitado e da
insuficiência da concepção da causa como ação unilateral dessa
ou daquela força sobre o objeto, a coisa, Engels salientou a
idéia de que a causa de todo fenômeno é dupla e que ela re­
presenta a interação de duas partes, ou melhor:
“Todos os processos naturais são duplos, baseiam-se na
relação de pelo menos duas partes agentes, a ação e a reação.
Então, a idéia de força, pelo fato de ter sua origem na açao
do organismo humano sobre o mundo exterior e, em seguida,

n F. Engels, La dialectique de la nature, p. 234.


í2A s categorias da dialética materialista, Moscou, 1957, p. 93.
Original em russo.

231
da mecânica terrestre, implica que apenas urna parte seja ativa,
operante, e que a outra seja passiva, receptiva. . . A reação
da segunda parte, sobre a qual a força age, aparece mais do
que tudo como uma reação passiva, como uma resistência”13.
Mais adiante ele diz que: “A força de refração da luz tanto é
inerente à luz, quanto aos corpos transparentes. No que con­
cerne à aderência e à capilaridade, a força encontra-se segu­
ramente tanto na superfície sólida, como na líquida. Para a
eletricidade de contato é, de qualquer forma, certeza que os
dois metais contribuem e a “força de afinidade química”,
quando encontrada, mostra que, nesse caso, as duas partes
combinam”l4.
Mesmo os partidários do materialismo mecanicista, que
apresentaram a idéia da causa como ação mecânica de um corpo
sobre o outro, foram obrigados, quando da elaboração de sua
teoria da causalidade, a levar em conta de uma maneira ou de
outra, a retroação do segundo corpo sobre o primeiro. Com
efeito, segundo seu ponto de vista, o estado futuro (efeito) do
movimento mecânico de um corpo depende do estado desse
corpo (das coordenadas e da velocidade de seu movimento)
em um dadc momento e da força que age sobre o corpo durante
todo o movimento, isto é, da interação dos corpos considerados.
Segue-se que, do ponto de vista do materialismo dialético,
a noção de causa designa a interação dos corpos ou dos elemen­
tos, dos aspectos de um mesmo corpo, que acarreta em mu­
danças correspondentes nos corpos, elementos e aspectos em
interação. O conteúdo do conceito de “efeito” é constituído
pelas mudanças que aparecem nos corpos, elementos e aspectos
em interação, em decorrência de sua interação.

3. CAUSALIDADE E NECESSIDADE

O laço entre a causa e o efeito que ela acarreta, é neces­


sário. O laço de causa e efeito representa, portanto, uma das
fo*rças da existência da necessidade. Esse momento é desta­
cado, com justa razão, por David Bohm em seu livro Causali-

13F. Engels, op. cit., p. 87.


!1F. Engels, op. cit., p. 87.

232
dade e contingente na física moderna. “A causalidade. . . é
uma forma particular, mas muito difundida da nec?sidade”i5.
O caráter necessário do laço de causa e efeito é reconhecido
por vários autores1^.
Ao mesmo tempo, certos autores acreditam que não é
cada laço de causa e efeito que é necessário, mas que há
efeitos que estão ligados às suas causas de maneira necessária,
e efeitos que estão ligados às suas causas de maneira contin­
gente. Esses autores justificam seus pontos de vista pelo fato
de que todos os fenômenos (tanto os necessários, como os
contingentes) têm uma causa para seu aparecimento. Se for
assim, a ligação causal, segundo eles, pode-se manifestar
tanto sob uma forma necessária, como sob uma forma con­
tingente^. -
Que os fenômenos contingentes tenham causas que os
produzam é verdade, mas disso não decorre absolutamente
que a ligação desses fenômenos (efeitos) com as causas que
os engendrou seja contingente. Uns ou outros fenômenos são
considerados contingentes, não porque eles não decorrem ne­
cessariamente de suas causas, mas porque são engendrados
por causas contingentes. A destruição das sementes pelo
granizo é reconhecida como contingente não porque a interação
do gelo com os organismos vegetais (causa) não condicione
necessariamente a destruição desses últimos (efeito), mas porque
essa interação, o granizo, nessa época do ano, é apenas o
resultado do acaso, não decorrendo nem da natureza das
condições climáticas, nem do lugar, nem das leis do funciona­
mento e do desenvolvimento dos vegetais. A morte de um
homem, em decorrência da queda de uma pedra, que cai de
um telhado, sob o efeito do vento, deve-se ao acaso não porque
a ligação da causa (interação de uma pedra, de um certo peso
e do organismo humano) com o efeito (a morte do homem)
seja contingente. Ela é necessária. O choque de uma pedra
de tamanho adequado sobre a cabeça de um homem acarreta
necessariamente a morte desse último. A morte do homem é15*7

15D. Bohm, Causality and chance in m odem physics, Londres,


Routledge and Kegan Paul Ltd., 1957, p. 2.
18Problemas de causalidade na física contemporânea, Moscou, 1960,
p. 380. Original em russo.
17N. A. Mussabaeva, op. cit., p. 108.

233
contingente porque a causa que a acarreta é contingente, con­
dicionada por toda uma série de circunstâncias. Da natureza
da pedra e do homem não decorre necessariamente sua colisão.
Essa colis.ão poderia não ter acontecido, isto é, a causa poderia
não se apresentar, mas como ela se produziu, porque o choque
teve lugar, o efeito — a morte do homem — tornou-se neces­
sária e inevitável.
Outros autores, e, em particular, Mário Bunge, reconhe­
cem igualmente a existência do laço contingente de causa e
efeito. Bunge acredita que seu domínio de manifestação é o
movimento dos microcorpos, no qual a situação de um acon­
tecimento (causa) não condiciona a necessidade do apareci­
mento de um outro acontecimento (efeito), como acontece no
domínio do movimento dos macrocorpos, mas somente a pro­
babilidade de seu aparecimento. Ele denomina esse laço de
causa e efeito de “determinismo estatístico” (statistical déter-
minacy) *8.
Como exemplo, provando o dito caráter contingente do
laço de causa e efeito no micromundo, é citado o caso da
passagem dos elétrons através da abertura de um diafragma
situado em sua trajetória. Como sabemos, os elétrons idênticos
que se deslocam na mesma direção não caem em um mesmo
ponto, mas dispersam-se sobre todo o écran. Concluímos disso
que o laço ua causa (o elétron em movimento) e do efeito (seu
ponto de impacto sobre o écran não é necessário, unívoco,
mas que, aqui, a mesma causa e as mesmas condições engen­
dram os efeitos os mais diversos.
Será essa dedução exata? Em nossa opinião, ela é in­
correta.
O fato de que os elétrons, depois de haver transposto a
mesma abertura, terminem em pontos diversos do écran, não
exclui o caráter necessário do laço de causa e efeito, concer­
nente a esse impacto. Embora os elétrons estejam em interação
com um mesmo objeto (o diafragma), essas interações não são,
entretanto, absolutamente idênticas. No diafragma, com o qual
os elétrons estão em interação, assim como no meio ambiente
que eles atravessam quando se dirigem para o écran, cada
elétron provoca, em sua passagem, certas mudanças e, por esse18

18M. Bunge, Causality, Harvard University Press, p. 14-7.

234
fato, cada elétron não está em interação nem com o mesmo
objeto, nem com o mesmo meio, mas com objetos e com meios
cada vez diferentes. É por isso que não podemos dizer que,
em todos os casos, a causa é a mesma. Existe, nesse caso,
tantas causas diferentes quanto são os elétrons em movimento.
Cada uma delas condiciona necessariamente a queda do elétron
sobre um ponto dado do écran. Em outros termos, embora
cada elétron em movimento possua diferentes possibilidades de
cair sobre esse ou aquele ponto do écran, somente uma dentre
elas realiza-se e, precisamente, realiza-se aquela para a qual
estão reunidas as condições adequadas, e ela o faz de maneira
necessária.
O laço da causa (interação do elétron, do diafragma e do
meio ambiente) e do efeito (sua queda sobre um ponto preciso
do écran) é necessário. O que será contingente aqui não é a
queda desse ou daquele elétron sobre esse ou aquele ponto do
écran, mas a divisão dessas quedas sobre o écran, pelo fato
de que cada elétron, em seu movimento, tendo seu meio am­
biente específico, entre em interações únicas em seu gênero,
que condicionam sua queda em um ponto dado do écran. O
ponto da queda de outros elétrons não depende necessaria­
mente do ponto da queda do elétron indicado e encontra-se
com ele e com todos os outros em relações contingentes. É
isso, precisamente que condiciona o caráter estatístico das leis
das partículas em movimento.
O raciocínio de G. Svetchnikov a esse respeito parece
plenamente justificado. Ele escreve que: “Na interação das
micropartículas e dos microcorpos existe um traço particular,
que determina o caráter estatístico da mecânica quântica...
No interior de um macroambiente dado produzem-se micro-
processos que exercem uma influência fundamenatl sobre o
comportamento de um microobjeto considerado, mas que são
não essenciais para o macroambiente em seu conjunto, conside­
rado do ponto de vista da física clássica. Isso conduz a que
o ambiente macroscópico dado possa ser realizado por todas as
combinações dos microprocessos; essas combinações distin-
guem-se entre elas no nível microscópico, mas não são discer-
níveis no nível macroscópico. Cada combinação dada dos
microscópicos que se desenvolvem no quadro de um ambiente
macroscópico dado acarreta um comportamento bem definido
do microobjeto. A interação do microobjeto e dos micropro-

235
cessos que constituem o microambiente dado condiciona seu
comportamento. . .
Segundo essas concepções, o caráter estatístico da mecâ­
nica quântica é a expressão do fato de que, por um lado, o
movimento de cada microobjeto individual depende de sua
interação com um número considerável de microprocessos, que
constituem seu ambiente real e, por outro lado, a mecânica
contemporânea considera o ambiente de um microobjeto dado
de maneira macroscópica, sem uma análise detalhada da estru­
tura microscópica desse ambiente”19.
O caráter necessário do laço de causa e efeito foi situado,
na base da explicação do movimento das partículas “elemen­
tares”, pelo filósofo alemão Herbert Hõrz. Analisando o com­
portamento das partículas elementares, quando de sua passa­
gem através de uma fenda estreita, ele escreve: “A queda da
partícula sobre um ponto determinado do écran situado atrás
da fenda é condicionada de maneira causal. . . A partícula
encontra-se necessariamente em um ponto determinado do
écran. Esse é o resultado do fato de que à causa relacione-se
o conjunto de todas as condições necessárias e suficientes, que
conduziram a isso”20. A partícula elementar em movimento
encontra-se, segundo Hõrz, em numerosas ligações causais com
o meio ambiente. Qualquer modificação, por mais leve que
seja, no comportamento da partícula, é o resultado da ação da
causa correspondente que lhe é diretamente ligada. O conjunto
dessas cargas determina a orientação do movimento da par­
tícula e sua queda sobre um ponto dado do écran.
Falando do laço necessário de causa e efeito no movimento
dos microobjetos, é conveniente lembrar que, em virtude da
diferença essencial entre o microobjeto e o macroobjeto e, em
particular, pelo fato de que o primeiro representa a unidade
das propriedades corpusculares e ondulatórias, é impossível
observar esse laço e traduzi-lo sob a forma de leis dinâmicas
adequadas. A natureza da micropartícula, ao contrário do ma-
crocorpo, não permite a definição simultânea e exata de sua
posição e de sua velocidade. Quanto mais o lugar da micro-

leO Problema da causalidade na física contemporânea, p. 355-6.


Original em russo.
20Hörz, Zum Verhältnis von Kausalität und Determinismus, DZFPh,
n. 2, p. 155-7, 1963.

236
partícula for determinado com precisão, tanto mais sua veloci­
dade ou sua impulsão se tornará imprecisa. E, pelo contrário,
quanto mais a velocidade seja definida com precisão, tanto
mais será impreciso seu lugar. Essa circunstância exclui a
posssibilidade de prever de forma unívoca o comportamento
futuro do objeto, tendo como base o conhecimento de sua
posição no momento presente.
Certos físicos e filósofos, que identificam o princípio de
causalidade com o determinismo mecânico (dito determinismo
de Laplace), que permite, a partir do conhecimento da velocida­
de e da posição de um objeto em um momento dado, calcular
sua posição e sua velocidade em um outro momento, deduziram,
da relação de indeterminismo, a impossibilidade de aplicar o
princípio da causalidade ao micromundo.
Gerhard Hennemann diz que é precisamente em relação
à questão da possibilidade de prever o curso dos futuros pro­
cessos naturais que aparece o conflito entre as concepções
causais da física clássica e os dados da mecânica quântica. Ao
mesmo tempo em que a primeira considera como evidente que
todo fenômeno da natureza está completamente determinado, e
pode também ser determinado no futuro, a mecânica quântica,
escreve ele, recusa-se a reconhecer a possibilidade de prever
até o fim o curso futuro dos acontecimentos na natureza, e
exatamente por isso destrói a convicção, segundo a qual todos
os fenômenos da natureza estão submissos a um condiciona­
mento causal universal2'!. Arthur Lukowsky, tendo em vista o
princípio de indeterminismo de Heisenberg, escreveu que: “(...)
Esses dados revolucionários da física moderna levaram à ques­
tão de saber se as noções fundamentais da física clássica per­
deram seu fundamento, ou pelo menos seu fundamento na
esfera do fenômeno atômico. No caso da lei da causalidade,
essa dúvida parece absolutamente necessária. . . ”22.
Mesmo Heisenberg, que, pela primeira vez, estabeleceu a
relação dos indeterminados, chegou a essa conclusão. A teoria
quântica “conduz necessariamente a formular leis, exatamente21

21G. Hennemann, Das Verhältnis der Quantenmechanik zur Klassis­


chen Physik, Bonn, 1947, p. 16-7.
22A. Lukowsky, Uber die Entwicklung des Kausalbegriffes, in Kant-
Studien, 1955/1956, vol. 47, p. 362.

237
em sua qualidade de leis estatísticas, e a rejeitar o determinis­
mo de forma categórica”2324.
Paulette Fevrier classifica a teoria quântica de indetermi­
nista, porque não pode “indicar medidas tais que, a partir de
seu resultado, possamos prever com certeza o resultado de
qualquer medida anterior”2*.
Todos esses raciocínios sobre a impossibilidade de aplicar
o princípio de causalidade ao micromundo vêm do fato de
que a essência desse princípio é a questão da possibilidade
de predizer com uma certeza unívoca o comportamento futuro
do objeto, partindo de suas coordenadas e de sua impulsão
presentes. Entretanto, isso não é verdade. A essência do
princípio de causalidade, na realidade, é o reconhecimento do
fato de que todo fenômeno pode ser condicionado de forma
causal e de que o laço de causa e de efeito é necessário. A
previsão do comportamento futuro do objeto é a conseqüência
do reflexo mais ou menos completo do laço de causa e efeito
na consciência, assim como nas teorias elaboradas, e a eviden-
ciação de toda uma série de momentos que marcam de forma
suficientemente exata o estado inicial do objeto e o caráter de
sua interação com o meio ambiente, no processo do movimento.
A mecânica quântica, no estado atual de seu desenvolvimento,
não dá nem um nem outro. É por isso que ela só pode expri­
mir, no momento atual, o laço de causa e efeito, no domínio
do micromundo, sob a forma de lei estatística.
Focalizamos aqui os pontos de vista que negam o caráter
necessário do laço de causa e efeito no micromundo e consta­
tamos que eles não resistem a uma análise . Mas, ao lado desse
ponto de vista, há outros que negam completamente o laço
necessário da causa e efeito e que o consideram contingente,
mesmo no que concerne ao macromundo. Entre esses autores,
encontramos particularmente Robert Havemann. Ele explica
a tese do laço necessário de causa e efeito como uma sobrevi­
vência do materialismo mecanicista.
“No mecanicismo clássico, escreve ele, a causalidade
designou a ligação como absolutamente necessária entre causa
e efeito. Na concepção do mundo mecânico clássico, uma

23W. Heisenberg, Das Naturbild der heutigen Physik, Hamburgo,


1955, p. 28.
24P. Fevrier, Déterminisme et indéterminisme, Paris, 1955, p. 9.

238
causa, em condições correspondentes, só pode ter um efeito,
ou seja, aquele que ela produz. Então, ‘X engendra necessa­
riamente Y’. Nessa fórmula, encontramos a antiga concepção
materialista mecanicista da causalidade. Nossa concepção da
causalidade deve ser outra. . . De uma causa nasce apenas um
efeito, entretanto, cada causa pode ter várias possibilidades. E
aquele dos efeitos possíveis que se manifesta é objetivamente
contingente”2526. Ele escreveu mais adiante que: “Se uma causa
engendra um certo efeito sem necessidade e pode produzir toda
uma série de efeitos diferentes, então um desses efeitos será
sempre contingente”25.
Assim, segundo Havemann, a causa está ligada a seu efeito
de forma contingente, engendra-o, mas não poderia absoluta­
mente engendrar um outro.
A idéia do autor, segundo a qual uma mesma causa, em
condições semelhantes, pode engendrar não apenas um efeito,
mas uma grande quantidade de efeitos diversos, é inexata e
contradiz o estado real das coisas.
De fato, o hidrogênio reunido ao oxigênio na proporção
de 2 por 1, em condições adequadas, sempre resulta em água;
a água a 100°C e sob pressão normal transforma-se em vapor;
um elétron que entra em interação, nas condições requeridas,
engendra, com um pósitron, um par de fótons; um fuzil carre­
gado sempre atira se pressionarmos o gatilho. Se, em um dos
casos, o efeito esperado não se produz, por exemplo, se a água
não ferve a 100°C, se um fuzil não dispara depois de apertado
o gatilho, isso mostra não que o laço de causa e efeito é
contingente, mas que uma das condições foi violada, que a
causa necessária não agiu e que uma outra causa entrou em
ação, produzindo um outro efeito, que não o esperado. Na
análise desses casos, podemos desembaraçar a causa da não-
realização do efeito esperado e, assim, demonstrar o caráter
necessário do laço de causa e efeito.
Quando Havemann escreve que toda causa tem uma
grande quantidade de possibilidades diferentes e pode engendrai
uma série de efeitos, ele está identificando manifestamente a
causa ao objeto, à coisa. O objeto (coisa, processo) tem

2SR, Havemann, Dialektik ohne Dogma? Naturwissenschaft und


Weltanschauung, Reinbeck, Hamburgo, 1964, p. 99-100.
26R. Havemann, op. cit., p. 86.

239
efetivamente uma grande quantidade de possibilidades de mu­
danças e de transformações. Mas o objeto e a causa são coisas
muito diferentes. A identificação da causa com o objeto ca­
racteriza apenas o materialismo metafísico. O materialismo
dialético não entende por causa o objeto, a coisa, mas a
interação dos objetos, das coisas ou dos elementos e dos as­
pectos que formam o objeto, a coisa; e, por efeito, as mudanças
surgidas nos corpos, nos elementos e nos aspectos em interação.
Uma mesma interação, em condições apropriadas, não acarreta
mudanças diferentes, mas apenas idênticas. Por exemplo, o
hidrogênio, aquecido e sob a pressão de 5.000 atmosferas, mis-
tura-se com o ozônio para formar o gás amoníaco (NH 3). O
objeto pode efetivamente engendrar diferentes mudanças (efei­
tos), mas isso deve-se ao fato de que ele entra em diferentes
interações. Assim, o hidrogênio em interação com o oxigênio
forma a água, em interação com o flúor, produz o gás
fluorídrico (H F), em interação com o cloro, produz o gás
clorídrico, em interação com o carbono, a uma temperatura de
1400/1800°C, produz o etilênio (C 2H 4) e a uma temperatura
superior a 1800°C, produz o acetileno (C 2H 2 ) etc. Embora
em todos esses casos figure sempre uma mesma substância, o
hidrogênio, as causas são nele diferentes. No primeiro exemplo,
a causa é a interação do hidrogênio com o oxigênio, no segundo
com 0 flúor, no terceiro com o cloro, no quarto com o carbono.
Assim, embora cada objeto tenha a possibilidade de acar­
retar uma grande quantidade de efeitos diferentes, isso não
significa absolutamente que todos esses efeitos serão engendra­
dos por uma mesma causa. Cada um deles terá sua própria cau­
sa, ou seja, a interação concreta à qual está necessariamente
ligado o 'aparecimento de um efeito preciso. A presença de uma
grande quantidade de possibilidades diferentes nas formações
materiais não exclui, portanto, 0 laço necessário de causa e
efeito.
Mas, se todo fenômeno está ligado a uma causa que o
engendra, então a existência do contingente e do acaso não
estaria sendo posta em dúvida? É precisamente com base
nisso que os representantes do materialismo metafísico negavam
a existência objetiva do acaso.
O reconhecimento do caráter de necessidade de todo laço
de causa e efeito acarreta a negação da existência objetiva da
contingência somente quando permanecemos em posição no

240
materialismo mecanicista na compreensão da causalidade, isto
é, quando entendemos por causas os próprios corpos, quando
um corpo desempenha o papel de suporte da causa e um outro
corpo é o suporte do efeito.
Se, por causa, entendemos a interação dos corpos ou dos
elementos que constituem um único e mesmo corpo, e por
efeito, entendemos as mudanças que se produzem nos corpos
ou nos elementos, em decorrência de sua interação, o reconhe­
cimento do laço necessário de causa e efeito não conduz à
negação da contingência. Com efeito, os corpos ou os elemen­
tos que os constituem podem entrar em interação, mas eles
podem igualmente não o fazer; se eles entram em interação,
essa acarretará necessariamente, neles, as mudanças correspon­
dentes. Por exemplo, o hidrogênio pode ou não entrar em
interação com o flúor, mas se ele entra nessa interação, a for­
mação do ácido fluorídrico é inevitável, em condições apro­
priadas.
Assim, a esfera de existência da contingência não é a
correlação de causa e efeito, mas a dos elementos que causam
a interação dos corpos e dos elementos que os constituem.

241
IX. O NECESSÁRIO
E O C O N T IN G EN TE

1. OS CONCEITOS
DE NECESSIDADE E DE CONTINGÊNCIA

Há várias definições diferentes das categorias de necessário


e de contingente.
Robert Havemann esforça-se em tirar da dialética, da pos­
sibilidade e da realidade o conteúdo das categorias de “neces­
sidade” e de “contingência”. Seu raciocínio é o seguinte:
quando, nos manuais teóricos falamos dessa ou daquela ne­
cessidade ou lei, descrevemos não o que é na realidade, não o
que se passou, mas o que deve produzir-se de acordo com a lei.
E não pode ser diferente, ele prossegue, porque apenas as
possibilidades são definidas com necessidade. A transformação
das possibilidades em realidade está ligada às contingências.
Elas podem transformar-se em realidade e podem não se trans­
formar. “ ( . . . ) Se uma coisa é definida apenas como possível,
segundo a lei e com a necessidade, ela só pode aparecer na
realidade de forma contingente. Sendo apenas possível, ela
pode aparecer ou não e, se ela aparece, isso se produz sem
necessidade, somente de forma contingentel.
A idéia segundo a qual a necessidade existe apenas como
possibilidade é falsa, contradiz o estado real das coisas. Os
aspectos e as ligações necessárias existem não somente na pos­
sibilidade, mas igualmente na realidade. A presença de oito
prótons no núcleo atômico do oxigênio e de um próton no1

1R. Havermann: Dialekik ohne Dogma? Naturwissenschaft und


Weltanschauung, p. 90.

242
átomo do hidrogênio é inevitável, necessária não somente para
os átomos do hidrogênio e do oxigênio que aparecerão, mas
igualmente para aqueles que já apareceram e existem. É abso­
lutamente a mesma coisa no que concerne às relações dos
átomos de sódio e de cloro na molécula do sal de cozinha.
Ê necessário para todas as moléculas do sal, tanto para as que
existem atualmente, como para as que ainda não existem, mas
que podem aparecer.
Reunindo a realização da possibilidade necessária à con­
tingência, Havemann deforma igualmente o conteúdo da cate­
goria de “possibilidade”, identificando-a à categoria de “contin­
gente”. Efetivamente, a possibilidade é definida por ele como
o que pode ser e o que pode não ser. Mas esse traço específico
não é o da possibilidade, e sim o da contingência. A possibi­
lidade designa não o que pode surgir ou não, mas o que acon­
tecerá em certas condições.
O elo intermediário entre a possibilidade e a realidade não
é a contingência, como pensa esse autor, mas as condições con­
cretas. Se elas são reunidas, a possibilidade não pode deixar
de se transformar em realidade, ela realiza-se necessariamente
e torna-se realidade. Isso se produzirá em qualquer lugar e
sempre, desde que haja possibilidade e as condições correspon­
dentes. “Sabemos, diz F. Engels, salientando a inevitabilidade
da realização dessa ou daquela possibilidade, quando do apare­
cimento de condições que lhe correspondem, que o cloro e o
hidrogênio, em certos limites de temperatura e de pressão e
sob a ação da luz, juntam-se em uma explosão para formar o
gás clorídrico e, tendo consciência disso, sabemos também que
isso se dá sempre e em qualquer lugar, desde que as condições
citadas estejam reunidas. . . ”2.
Se a realização da possibilidade real, em presença das con­
dições correspondentes, não fosse necessária, o homem não
poderia organizar a produção, porque não conseguiria fazer
com que certas ações produzissem mudanças rigorosamente
determinadas.
A existência e o desenvolvimento da produção, da ativi­
dade laboriosa dos homens demonstram que a possibvdade, em
condições apropriadas, realiza-se com necessidade e que certas

2F. Engels, La dialectique de la nature, p. 236.

243
ações não produzem quaisquer mudanças, mas apenas aquelas
muito precisas. Em outros termos, a atividade prática mostra
a existência objetiva e real da necessidade. Os clássicos da
filosofia marxista e, em particular, Engels, mais de uma vez
chamaram a atenção para esse aspecto do problema. Criticando
Hume, que acreditava que fosse impossível demonstrar a exis­
tência objetiva da necessidade, ele escreveu que: “ ( . . . ) A
prova da necessidade está na atividade humana, na experiência,
no trabalho: se eu posso produzir o post hoc, ele torna-se
idêntico ao propter hoc”3.
Havemann ignora tudo isso e, fiel a seu ponto de vista,
crê que a atividade prática dos homens não se fundamenta
na necessidade, mas na contingência, na probabilidade, que
exprime esse ou aquele grau de possibilidade de um aconte­
cimento contingente determinado. Por isso a atividade prática
e a vida humana, em geral, segundo ele, estão constantemente
ligadas a algum risco, porque na prática o resultado esperado
é contingente e não necessário, isto é, ele pode ter ou não ter
lugar. Também o homem, antes de empreender uma ação,
deve medir todas as chances que podem assegurar seu sucesso.
Todas as pessoas são incapazes de determinar o grau de pro­
babilidade do resultado de suas atividades, que é passivo e não
ativo. “Nossa vida, salienta Havemann, é sempre um risco.
A cada nova empreitada, esforçamo-nos numa estimativa de
nossas chances. E há mesmo alguns que não chegam jamais
a cometer qualquer ato, já que são incapazes de fazer as contas
exatas de suas chances”34.
Se fosse efetivamente assim, como prevê o autor, se todos
os homens baseassem sua atividade na contingência, no acaso,
a sociedade humana teria deixado de existir em razão da im­
possibilidade de organizar a produção contínua dos bens ma­
teriais. Mas nada de semelhante a isso acontece, unicamente
porque o homem, em sua atividade, apóia-se não no acaso,
mas na necessidade, guia-se não pelo que pode acontecer ou
deixar de acontecer, mas pelo que acontecerá necessariamente,
sob certas condições.
Certos autores identificam as categorias de “necessidade”

3F. Engels, La dialectique cit., p. 232.


4R. Havemann, op. cit., p. 100.

244
e de “contingente” às categorias de “geral” e de “singular”. O
geral, segundo eles, sempre tem um caráter necessário, pelo fato
de que é determinado por leis internas, pela essência interna dos
fenômenos. O singular, como manifestação do geral, depende
das condições exteriores e por isso ele possui necessariamente
aspectos contingentes.
A idéia segundo a qual o geral, determinado por leis
internas, pela essência interna dos fenômenos, é necessário, é
uma idéia cm si justa. Mas disso não se segue absolutamente
que todo geral é necessário. O geral pode manifestar-se ao
mesmo tempo sob a forma de necessário e sob a forma de
contingente, porque a repetição é condicionada não apenas
pela presença de uma grande quantidade de formações mate­
riais, de fenômenos tendo uma essência comum, submetidos
às mesmas leis internas, mas igualmente pelo fato de que as
diferentes formações materiais, os diversos fenômenos surgem
e existem freqüentemente em condições semelhantes, que im­
primem neles suas impressões. Por exemplo, a análise de
várias gotas de água pode mostrar em todas elas a presença
do sal. Então, a presença deste, em todas as gotas de água,
representa uma propriedade geral. Mas será essa uma pro­
priedade necessária da água? É lógico que não, porque ela
não decorre da natureza interna dos elementos que constituem
a água, mas é condicionada por um concurso de circunstâncias
e, em particular, pelo fato de que a água, antes de surgir da
terra, transpôs uma camada salina. O fato de que a água tenha
passado através dessa camada salina e tenha também dissolvido
o sal é contingente, porque ela teria podido igualmente ter
deixado de atravessá-la.
Mas se o geral não é idêntico ao necessário, se ele pode
existir tanto como contingente quanto como necessário, se­
gue-se que o contingente também não é idêntico ao singular.
A essência específica do singular consiste no fato' de que ele
é único, enquanto que o contingente, como vimos, pode-se
repetir.
Além disso, um traço específico do contingente é o de
ser condicionado pelas circunstâncias exteriores, enquanto que
o singular pode ser o efeito da interação dos aspectos internos,
das tendências, da manifestação de leis internas do desenvol­
vimento desse ou daquele processo, de uma formação material.
Por exemplo, a vitória da revolução socialista na Rússia, em

245
1917, há muito tempo'constitui um fenômeno único, mas ela
deve sua explosão não a causas exteriores, mas interiores; ela
foi o efeito necessário do desenvolvimento de processos inter­
nos, o que explica que ela seja considerada como necessária
e não como um fenômeno contingente.
O necessário traz, portanto, em si mesmo a causa de seu
aparecimento e de sua existência e também se produz, inevita­
velmente, nas circunstâncias adequadas, enquanto que a razão
de ser do contingente não está nele mesmo, mas em uma outra
coisa®.
A definição das categorias de “necessário” e de ’’contin­
gente”, a partir da categoria de causalidade, é em nossa opinião,
justa, porque os conceitos de “necessário” e de “contingente”
estão geneticamente ligados à causalidade, decorrem dela e
representam o grau seguinte, depois da causalidade, do apro­
fundamento do conhecimento humano do mundo dos fenô­
menos.

2. A CRITICA
DAS CONCEPÇÕES IDEALISTAS
E METAFÍSICAS
DA CORRELAÇÃO DA NECESSIDADE
E DA CONTINGÊNCIA

O problema da necessidade e da contingência foi objeto


de estudos filosóficos ao longo de toda a história da Filosofia
e as soluções apresentadas para ele, pelos mais diferentes filó­
sofos, são variadas.
Os idealistas subjetivos negaram a existência objetiva da
necessidade, que eles situavam unicamente na esfera da cons­
ciência, do pensamento. Por exemplo, o filósofo norte-ameri­
cano Santayana tem uma concepção subjetivista da necessidade:
ele não a vê na realidade objetiva. A realidade apresenta-se,
para ele, como uma “corrente de contingência”. Segundo seu
ponto de vista, o que os homens consideram habitualmente co­
mo necessidade é “um complô de contingências”6. Segundo o*8

8G. W. F. Hegel, Werke. Vollständige Ausgabe, v. 6, p. 288.


8G. Satayana, The realm of matter, New York-Londres, 1930.

246
filósofo inglês contemporâneo Wittgenstein, apenas as contin­
gências existem no mundo.
O sociólogo alemão-oriental Walter Theimer nega a ne­
cessidade na história. Segundo ele, várias contingências agem
na história e excluem completamente o determinismo, assim
como toda necessidade. É por isso, afirma ele, que tudo na
vida depende das próprias pessoas, de sua vontade, de suas
aspirações subjetivas1?.
Günter Jacobi esforça-se bastante em sua argumentação
sobre a ausência da necessidade na natureza. Segundo ele, os
sistemas ontológicos e os elementos que os constituem são
baseados uns nos outros. E são desprovidos de qualquer iden­
tidade de ligação. E sem essa identidade, nenhuma necessidade
é concebível. Segundo Jacobi, a necessidade só pode ser lógica,
psicocognitiva. Ela reside na sistemática lógica, na identidade
do sistema dos conceitos mediante os quais esforçamo-nos para
refletir e abarcar o sistema ontológico8.
Johannes Hessen fundamenta à sua maneira a concepção
idealista da necessidade. Ele faz dessa concepção um postu­
lado, uma hipótese que os homens admitem como tese inicial
para conhecer a realidade, mas aos quais nada corresponde
na natureza. Seu raciocínio é o seguinte: os homens, em
razão de sua organização particular, da natureza humana, não
podem explicar o mundo a não ser mediante o reconhecimento
das ligações necessárias de um fenômeno com outro. Mas a
natureza não tem, absolutamente, nenhuma razão para condu­
zir-se da maneira como nos é conveniente, como nós lhe pres­
crevemos8.
Com uma tal concepção da realidade, o homem não
poderia explicar nenhum dos fenômenos da realidade ambiente
e muito menos poderia modificá-la no curso de su* atividade
finalista, porque baseia-se na evidenciação de sua ligação ne­
cessária com sua causa e com outros fenômenos, e sua mudança
orientada para uma meta precisa baseia-se nessas ligações ne­
cessárias e em sua utilização. A existência e a evolução da78

7W. Theimer, Der Marxismus. Lehre-Wirkung-Kritik, Berna, 1957,


p. 49-51.
8Bruno, Baron von Freitag-Löringhoff, Zum Problem des Zufalls,
in Philosophia Naturalis, t. 2, v. 7, p. 163.
“J. Hessen, Das Kausalprinzip, Augsburg, 1928, p. 228.

247
ciência e da produção testemunham, de forma evidente, que
a necessidade existe na realidade e que ela é concebida e utili­
zada pelo homem com sucesso em suas ações.
Contrariamente aos idealistas, os materialistas, como de
regra, reconhecem a existência objetiva da necessidade e
consideram-na como uma das propriedades fundamentais da
natureza. Estando de acordo sobre a questão do reconheci­
mento do caráter objetivo da necessidade, os materialistas,
entretanto, divergem fundamentalmente na resolução de outras
questões e, em particular, no que concerne ao caráter objetivo
da contingência. Alguns representantes do materialismo pré-
marxista, como Demócrito, Spinoza, Holbach, negavam total­
mente a existência objetiva da contingência. Eles acreditavam
que o homem inventou a contingência para disfarçar sua igno­
rância, sua falta de conhecimentos nesse ou naquele domínio
dos fenômenos. Segundo Demócrito, os homens inventaram o
mito do acaso para que servisse de pretexto para disfarçar sua
própria inconseqüência. Spinoza dizia que: “Mas uma coisa
só pode ser chamada de contingente relativamente à nossa falta
de conhecimento”™.
Entre os filósofos burgueses contemporâneos, esse ponto
de vista é desenvolvido pelo filósofo francês Henri Berr. Ele
classifica o reconhecimento do acaso como uma “sobrevivência
do antropomorfismo primitivo”!!. E acredita que essa sobre­
vivência encontra-se “exatamente quando o jogo da causalidade
nos escapa, nós falamos facilmente do acaso como de coisa
real. . . ” De fato, “o acaso é alguma coisa de puramente
subjetiva, de relativa a nós, ao estado de nossos conhecimen­
tos”10*12. Segundo Berr, pelo fato de que não conhecemos um
certo domínio da realidade, também não podemos prever, nesse
domínio, o aparecimento desse ou daquele fenômeno e, então,
inclinamo-nos a acreditar que esse fenômeno dado é contin­
gente. Para ele o acaso não é mais do que um “capricho im­
previsto” que desaparece com o desenvolvimento do conheci­
mento.

10Oeuvres de Spinoza, Ethique, Paris, 1872, t. 3, p. 187.


“ H. Berr La synthèse en histoire, Paris, Ed. Albin Michel, 1951,
p. 57.
,2H. Berr, op. cit., p. 57.

248
O filósofo alemão Bruno Barón von Freitag-Lõringhoff
declara igualmente que a contingência é o fruto da atividade
consciente do homem. “Quando agimos de forma consciente
e planificada, nós a provocamos inevitavelmente”^ . Ligando
o aparecimento do acaso à atividade consciente do homem, o
autor a considera como o resultado do caráter limitado de nosso
saber. “No quadro de nosso conhecimento, seja ele grande ou
pequeno, ele declara, a categoria de “acaso” exprime de forma
curta e insuficiente o caráter fundamentalmente limitado de
toda explicação”14.
Para negar a existência objetiva da contingência, a maioria
dos autores parte do caráter universal do princípio de causa­
lidade. O seu raciocínio é o seguinte: todo fenómeno tem sua
causa independentemente do fato de que nós a conheçamos
ou não. A causa está sempre necessariamente ligada ao efeito.
Sendo assim, não há fenômenos contingentes, eles são neces­
sariamente engendrados por sua causa.
A afirmação de que todos os fenômenos têm sua causa e de
que toda causa está necessariamente ligada ao seu efeito é justa.
Mas disso não decorre que eles sejam todos semelhantemente
necessários. A necessidade desse ou daquele fenômeno é con­
dicionada não pela necessidade de sua ligação com a causa que
o acarreta, mas pela necessidade da causa. E isso porque as
causas podem ser necessárias ou contingentes. Sabemos que
as causas dos fenômenos estão em interação entre as formações
materiais ou, então, entre os elementos, os aspectos de uma
mesma formação material.
A interação das formações materiais ou de seus elementos,
de seus aspectos, pode tanto ser contingente, isto é devido a
um concurso de circunstâncias, quanto necessária, em razão de
sua natureza específica. Por exemplo, na sociedade capitalista,
o fato de que o operário venda ao empregador sua força de
trabalho e de que este seja explorado pelo último não é nem
contingente, nem devido a um concurso de circunstâncias exte­
riores, é necessário: isso ê necessariamente condicionado pelo
modo de produção dominante na sociedade capitalista e pela
situação econômica do proletariado e da burguesia, que é de-

“ Bruno Barón von Freitag-Lõringhoff, op. cit., p. 166.


“ Bruno Barón von Freitag-Lõringhoff, op. cit.

249
terminada por esse modo de produção, isto é, pela própria
natureza dos aspectos em interação; e o fato de que o operário
trabalhe justamente para esse capitalista e justamente com esses
operários, e não com outros, é um fenômeno (momento) con­
tingente condicionado por uma série de circunstâncias exteriores.
O caráter necessário da correlação da causa e do efeito
não exclui, portanto, a possibilidade da existência objetiva da
contingência, forma universal do ser, assim como a necessidade.
Somente que, ao contrário da necessidade, que se manifesta
no domínio da correlação dos elementos que constituem as
causas e no domínio do laço das causas com seus efeitos, a.
contingência manifesta-se apenas no domínio das causas, no
domínio da interação das formações materiais (e nas forma­
ções materiais), acarretando as mudanças correspondentes.

3. A CONCEPÇÃO MARXISTA
DA CORRELAÇÃO
DO NECESSÁRIO E DO CONTINGENTE

A necessidade e a contingência não existem de forma


separada, uma ao lado da outra. Elas encontram-se em ligação
orgânica e em interdependência e pertencem aos mesmos fenô­
menos. Cada fenômeno, cada formação material é, ao mesmo
tempo, necessário e contingente. Algumas de suas proprie­
dades e ligações são condicionadas pelas causas internas e
traduzem a natureza de seus elementos formadores, outras
são condicionadas por suas causas externas, por sua interação
com o meio ambiente. Por exemplo, cada organismo vivo,
no decorrer de seu desenvolvimento e de sua existência, ma­
nifesta uma série de propriedades que o caracterizam como
representante de uma certa espécie. Essas propriedades são
condicionadas por sua natureza, por seus aspectos e ligações
internos e são também programadas neles e constituem o ne­
cessário.
Por outro lado, surgem nesse organismo vivo, propriedades
que são engendradas pelas condições individuais de sua existên­
cia, por sua interação com outras formações materiais e com o
meio ambiente. Elas formam o contingente. As propriedades
necessárias do organismo vivo existem nele, não ao lado das
propriedades contingentes, mas nelas mesmas, e manifestam-se

2 50
por meio delas. As propriedades e as ligações contingentes são
uma forma de manifestação das propriedades e das ligações
necessárias. A necessidade cria seu caminho por meio de uma
massa de desvios contingentes que, exprimindo-a como uma
tendência, introduzem no processo o fenômeno concreto, e uma
grande quantidade de novos elementos que não decorrem da
necessidade, mas que são condicionados por circunstâncias
exteriores. Por exemplo, a dependência do preço da merca­
doria da quantidade de trabalho socialmente necessária, gasta
para produzi-la, existe não ao lado da dependência do preço
com relação a outros fatores e, em particular, com relação à
correlação entre a oferta e a procura existentes no mercado,
mas manifesta-se nela, sob a forma de tendência, mediante
uma grande quantidade de desvios nesse ou naquele sentido,
que acompanham as operações de trocas.
Pelo fato de que a necessidade é condicionada pela natu­
reza da coisa e realiza-se necessariamente, enquanto a contin­
gência é chamada à vida por circunstâncias exteriores e pode
dar-se ou não, na prática, não devemos orientar-nos pela con­
tingência, mas sim pelas propriedades e ligações necessárias.
Segue-se igualmente que o conhecimento da necessidade é uma
tarefa fundamental da ciência. Mas, como o necessário não
existe no estado puro e se manifesta mediante uma grande
quantidade de desvios contingentes, seu conhecimento só é
possível por meio do estudo do contingente e a colocação em
evidência, nele, das tendências necessárias.
A contingência, sendo uma forma da manifestaç aO da ne­
cessidade é, ao mesmo tempo, seu complemento, porque ela
encerra não somente a natureza específica da formação material
estudada, mas igualmente as particularidades de outras forma­
ções materiais com as quais ela entra em interação. Encontran­
do-se em correlação orgânica e em interdependência, o contin­
gente e o necessário passam um no outro no curso do movi­
mento e do desenvolvimento da formação material, do fenô­
meno, e mudam de lugar: o contingente torna-se necessário e
o necessário, contingente.
A passagem recíproca do contingente no necessário, e
vice-versa, no curso do desenvolvimento da matéria, pode ser
claramente observada quando da análise das mudanças das
formas animais e vegetais. Como testemunha, a Biologia, em
um passado distante, os organismos vivos existiam e desenvol­

251
viam-se apenas na água. Mas, quando os mares secaram, os
animais aquáticos tiveram, cada vez mais freqüentemente, de
viver em terra firme e algumas espécies de peixes, sob a forma
de desvios contingentes, foram dotados de órgãos que permi­
tiam que usassem o oxigênio do ar. Esses desvios, que per­
mitiram que os organismos vivos sobrevivessem em terra firme,
desenvolveram-se e transformaram-se em órgãos capazes de
absorver o oxigênio do ar. O resultado disso é que certos
animais aquáticos adotaram um modo de vida terrestre; e, por
essa razão, suas brânquias não tinham mais utilidade e desa­
pareceram pouco a pouco, transformando-se em alguma coisa
de contingente, totalmente desligadas da natureza interna das
formações materiais em questão.
Tomemos um outro exemplo. Na sociedade primitiva a
economia natural imperava. Cada comunidade assegurava seus
próprios meios de vida. Em consequência do baixo nível de
desenvolvimento das forças produtivas, tudo o que era produ­
zido na comunidade era consumido. Nessas condições, a
permuta de uma produção por outra produção era um fenô­
meno contingente. Mas, à medida que as forças produtivas
desenvolveram-se, tornou-se possível a produção de bens
materiais que excedessem o número necessário para assegurar
a vida de seus produtores diretos, então, a permuta de uma
produção contra a outra expandiu-se e, com o surgimento da
propriedade privada, transformou-se em um momento neces­
sário do modo de produção escravagista, surgido das ruínas do
regime da comunidade primitiva. Assim, no processo de desen­
volvimento, o contingente transforma-se em necessário e o
necessário em contingente.
Pelo fato de que o contingente pode transformar-se em
necessário e o necessário em contingente, se conhecermos as
condições em que essa passagem se efetua, poderemos recriá-las
artificialmente e transformar as propriedades contingentes em
necessárias e vice-versa, em função de interesses práticos.

252
X. A LEI

1. O CONCEITO DE LEI

Como já fizemos observar no capítulo precedente, a


necessidade existe sob forma de propriedades e ligações dos
fenômenos. Algumas relações e ligações necessárias são cha­
madas de lei. A lei é, portanto, o que se manifesta, necessa­
riamente, nas condições apropriadas. Por exemplo, a lei do
valor, que exprime a dependência do preço da mercadoria da
quantidade de trabalho socialmente necessária para sua pro­
dução e que age necessariamente em qualquer lugar em que
haja uma produção mercantil. Tomemos um outro exemplo:
a lei física da dependência da resistência de um condutor e a
composição de sua substância, seu comprimento e :.ua secção,
que se manifesta necessariamente à cada passagem de corrente
elétrica, porque eia depende da natureza da substância, da
qual é fabricado o condutor, e das características objetivas que
lhe são próprias.
Indicando que a lei representa uma ligação necessária,
ainda não definimos totalmente sua especificidade. Efetiva­
mente, nem todas as ligações necessárias são leis. Por exemplo,
ligações necessárias, singulares (individuais) não podem de­
sempenhar o papel de leis. A lei é unicamente uma ligação
necessária geral, isto é, uma ligação própria a vários fenômenos.
Por exemplo, a lei do período de radioatividade, segundo
a qual, em um certo intervalo de tempo, próprio a cada subs­
tância, a metade da substância decompõe-se, qualquer que seja
a quantidade de substância considerada, manifesta-se não em
um processo radioativo qualquer, mas em todos os processos
análogos, e é própria a todas as substâncias radioativas, isto é,

253
uma ligaç. j geral. Isso concerne a qualquer lei da natureza,
da sociedade e do pensamento.
Sendo uma ligação geral e iterativa, a lei é, ao mesmo
tempo, uma ligação estável. Ela existe enquanto dura a forma
do movimento da matéria (ou de um estágio dado de seu
desenvolvimento) ou do pensamento e permanece enquanto
existem os fenômenos que representam essa forma de movi­
mento. Por exemplo, a lei do condicionamento da consciência
dos homens, por seu ser social, surgiu com o nascimento da
sociedade humana e existirá enquanto esta última existir. Um
outro exemplo: a lei do valor entrou em ação com o desmoro­
nar da comunidade primitiva e permaneceu efetiva nas socieda­
des escravagista e feudal, é ainda efetiva na sociedade capitalista
e continua a existir inclusive nas condições do socialismo. Essa
lei só será afastada com a construção do comunismo no mundo
inteiro, quando a necessidade da produção mercantil tiver
desaparecido completamente.

2. AS LEIS DINÂMICAS
E ESTATÍSTICAS

Manifcstando-se como ligações (relações), as leis apare­


cem em uma grande quantidade de fenômenos. Entretanto, a
forma de sua manifestação varia. Algumas leis agem em cada
um dos fenômenos (ou formações materiais) que representam
esse ou aquele domínio da realidade, enquanto que outras agem
apenas na massa dos fenômenos. As primeiras leis, habitual­
mente, são denominadas leis dinâmicas, e as segundas, leis
estatísticas.
Como exemplo de leis dinâmicas, podemos citar a lei de
Ohm, que exprime a dependência da resistência do condutor,
da composição de sua substância, da superfície de sua secção
e de seu comprimento. Essa lei concerne uma grande quanti­
dade de condutores diferentes e age em cada condutor particular.
Um outro exemplo de lei dinâmica pode ser fornecido pelo laço
descoberto por Faraday entre a substância que aparece nos
elétrodos e a eletricidade que atravessa o eletrólito, essa lei
exprime a dependência proporcional da massa da substância
descarregada sobre o elétrodo e da quantidade de eletricidade
que atravessou o eletrólito. Essa lei é uma característica de

254
todos os casos de passagem da corrente através de um eletrólito
e manifesta-se em cada um deles.
A correlação das mudanças de pressão do gás e seu volume
a uma temperatura constante, evidenciada por Mariotte e Boyle,
tem um caráter estatístico. Essa lei é concernente apenas à
massa das moléculas que se deslocam de maneira caótica e que
constituem esse ou aquele volume do gás. Uma molécula
isolada não é submetida a essa lei. Entretanto, chocando-se
com outras moléculas, a molécula modifica a direção de seu
movimento e sua velocidade. Em consequência, a força com
a qual essa ou aquela molécula de gás atinge a parede do reci­
piente é contingente, depende de uma quantidade infinita de
circunstâncias. Mas, mediante essas inúmeras mudanças da
velocidade do movimento e, portanto, da força de impacto
sobre a parede do recipiente das diferentes moléculas que
constituem esse volume, nasce uma lei determinada: a pressão
do gás é inversamente proporcional a seu volume.
As leis da mecânica quântica, relacionando-se com o mo­
vimento das micropartículas são igualmente estatísticas; não
podem definir o movimento de cada uma das partículas, mas
determinam o movimento dos grupos de partículas dessa ou
daquela multiplicidade.
As leis dinâmicas têm a particularidade distintiva de per­
mitir a previsão, de forma bastante precisa, do surgimento do
fenômeno correspondente e a modificação de suas propriedades
e estados. Por exemplo, apoiando-se na lei da dependência
proporcional da massa da substância que se desprende sobre
o elétrodo com relação à quantidade de eletricidade que atra­
vessa o eletrólito, podemos prever com exatidão a quantidade
de substância que será desprendida em um caso preciso.
Ao contrário das leis dinâmicas, as leis estatísticas não
permitem que se preveja com exatidão, o aparecimento ou o
não-aparecimento de algo denominado concreto, nem a direção
e o caráter da mudança dessas ou daquelas de suas caracterís­
ticas. Baseados nas leis estatísticas, não podemos definir o grau
de probabilidade, nem o do surgimento ou da modificação do
fenômeno correspondente.

255
3. AS LEIS GERAIS
E AS ESPECIFICAS, SUA RELAÇÃO

Embora todas as leis sejam ligações (relações) gerais, nem


todas agem nos mesmos círculos de fenômenos. Algumas
dentre elas abarcam um grande círculo de coisas e, outras,
um círculo mais restrito.
As leis que agem em um grande círculo de fenômenos são,
com relação às leis que agem em um círculo mais restrito, leis
gerais, enquanto que as segundas são as leis específicas ou
particulares.
Por exemplo, a lei da dependência das propriedades dos
elementos químicos, em relação à carga do núcleo atômico, que
é aplicada a todos os elementos químicos, é geral em relação à
lei do deslocamento de Soddy-Fajans, que concerne unicamente
aos elementos radioativos.
O conceito de lei geral e, em consequência, o de lei par­
ticular são relativos. Uma mesma lei, em diferentes condições,
pode ser geral ou particular. Com relação à lei que é con­
cernente a um grande círculo de fenômenos, esta será particular,
e com relação à lei que age em um círculo mais restrito, esta
será geral. Por exemplo, a lei do valor, com relação à lei da
correspondência do caráter das relações de produção ao nível
de desenvolvimento das forças produtivas, é particular, pelo
fato de que ela não age em todas as sociedades, como a pri­
meira, mas apenas onde existe uma produção mercantil. Mas,
em relação à lei da mais valia, ela é geral, pelo fato de que
essa última manifesta-se em um círculo mais restrito de fenô­
menos: a ação da lei da mais valia está ligada não a toda a
produção mercantil, mas somente à produção mercantil capita­
lista.
Ao lado dessas leis que, em função de relações concretas,
podem agir como gerais ou como particulares, há outras leis
que, sob qualquer relação, são gerais. Essas leis são chamadas
universais. E são próprias a todos os domínios da realidade.
Em relação a elas, todas as outras leis são particulares, pelo
fato de que elas só estão ligadas a alguns domínios da realidade.
As leis universais são estudadas pela Filosofia. E as leis
ligadas a essa ou àquela forma de movimento, de matéria, são
estudadas pelas ciências particulares.

256
Como agem as leis particulares e as leis gerais? As leis
gerais podem agir de forma autônoma e manifestar-se por meio
das leis particulares quando tanto umas, quanto as outras são
concernentes às mesmas ligações (relações). Quando as leis
gerais e particulares concernem a ligações diferentes (relações),
elas agem e existem lado a lado.
Tomemos como exemplo a lei do deslocamento de Soddy-
Fajans. Segundo essa lei, um átomo de um elemento radioativo,
submetido a uma desagregação, sofre as seguintes transforma­
ções: pela emisssão de uma partícula alfa, a carga do núcleo
do elemento inicial diminui de duas unidades. Em consequên­
cia, o elemento é deslocado duas colunas à esquerda, no quadro
periódico dos elementos, em relação ao elemento inicial. Com
a emissão de uma partícula beta. aparece um novo elemento,
que é deslocado de uma coluna à direita, em relação ao elemento
inicial, de acordo com o aumento da carga do núcleo e em
conseqüência do aumento de uma unidade no número atômico.
Essa lei, sendo geral, existe mediante as leis especificas, seu
conteúdo constitui apenas um momento ou um aspecto do
conteúdo das leis específicas. Por exemplo, o rádio, quando
desagrega-se, transforma-se em radônio. É uma lei específica
para o rádio. Ela fixa a transformação do rádio em radônio.
Mas um dos momentos dessa transformação é o deslocamento
de duas colunas à esquerda no quadro periódico. Esse momen­
to, o deslocamento de duas colunas à esquerda, é repetido por
todos os outros elementos radioativos, quando da emissão de
uma partícula alfa pelos núcleos de seus átomos. Outros mo­
mentos, como, por exemplo, a transformação, quando da desa­
gregação alfa, do rádio precisamente em radônio, e não em
um outro elemento químico qualquer, não se repetem entre
todos os outros elementos radioativos, eles são próprios unica­
mente aos átomos do rádio. O urânio nos fornece um exemplo
análogo. Quando da desagregação alfa, o urânio transforma-
se em tório que se encontra, por sua vez, duas colunas mais à
esquerda, no quadro periódico, isto é, o tório possui uma carga
atômica duas unidades inferior à do urânio. A transformação
em tório é uma lei válida unicamente para o urânio, mas, na
qualidade de momento no conteúdo dessa lei, encontramos o
deslocamento de duas colunas à esquerda, que é comum a todos
os elementos radioativos.

257
Essa manifestação da lei geral por meio das leis específicas
não se deve ao acaso: ela é concernente à mesma ligação da
mesma relação. Outro exemplo: a lei geral da constância da
composição química age por meio de leis particulares que in­
dicam quais os elementos e em qual correlação constituem essas
ou aquelas associações (combinações). Isso se produz porque
a primeira e as segundas concernem às mesmas ligações, às
mesmas ruações.
Descobrimos também outra coisa na correlação da lei geral
de Mariotte-Boyle, concernente a todos os gases ideais e que
indica que, para uma massa dada, à temperatura constante, a
pressão do gás é inversamente proporcional a seu volume, e
descobrimos também que a lei particular de Dalton, que se
relaciona não a todos os gases ideais, mas unicamente àqueles
que estão presentes na mistura com outros gases ideais, deter­
mina a ligação entre a pressão particular do gás constituinte
dessa mistura. Essas duas leis existem lado a lado, mas seu
conteúdo absolutamente não coincide.
Aqui, as leis gerais e particulares são concernentes às dife­
rentes relações e ligações. Se a primeira lei, a de Mariotte-
Bovle, caracteriza a correlação entre a pressão e o volume do
gás em condições determinadas, a segunda, a de Dalton, define
a correlação entre a pressão geral da mistura e a pressão
particular dos diferentes gases que constituem essa mistura.
Encontramos uma situação análoga a essa na correlação
da lei da correspondência do caráter das relações de produção
com o nível do desenvolvimento das forças produtivas (lei geral)
e a lei fundamental econômica do socialismo que exige a sa­
tisfação máxima das necessidades materiais e culturais dos
homens, graças ao desenvolvimento da produção socialista,
baseada em uma técnica altamente desenvolvida (lei particular).
A primeira caracteriza o laço entre o nível de desenvolvimento
das forças produtivas e as relações de produção, e a segunda,
o laço entre o crescimento contínuo da produção e as necessi­
dades dos homens. O conteúdo da primeira lei indica a neces­
sidade de mudar as relações de produção na medida em que
se processa o desenvolvimento das forças produtivas, o conteúdo
da segunda indica a finalidade da produção e os meios de
atingi-la. No que concerne às diferentes relações e ligações,
essas leis não podem manifestar-se uma por meio da outra e
agem de forma totalmente autônoma, uma ao lado da outra.

258
Embora autônomas, não estão isoladas, mas, pelo contrário,
estão organicamente ligadas; essa interdependência distingue-se,
entretanto, radicalmente da manifestação de alguma;' leis por
meio de outras.
A correlação que examinamos aqui, entre leis gerais e
específicas, decorre das leis universais do desenvolvimento da
matéria. No processo do desenvolvimento realiza-se a negação
de algumas formações materiais e o aparecimento de outras
que representam um grau mais elevado. Toda formação ma­
terial de um estágio mais elevado de desenvolvimento inclui,
sob uma forma anulada (transformada), o que era próprio à
formação de um estágio inferior de desenvolvimento, isto é.
retém tudo o que era positivo, tudo o que foi obtido pela ma­
téria em sua evolução anterior. Mas, ao lado disso, entre as
formações materiais de um estágio mais elevado de evolução,
aparecem novas propriedades específicas que provêm do apa­
recimento de novos modos de interação, de ligações e de
relações novas. Por exemplo, quando da passagem do átomo
à molécula, esta última, retendo tudo o que era condicionado
pela interação das partículas “elementares”, aue constituem
esse átomo, adquire novas propriedades específicas, condicio­
nadas pelas novas relações, pelo novo modo de interação —
interação dos átomos entre si. Quando da passagem das
formas de vida não celular para os organismos celulares, estes
últimos conservam algumas relações e ligações próprias aos
primeiros e, ao mesmo tempo, formam um novo sistema de
ligações e de relações. A mesma coisa acontece quando da
passagem, na sociedade, de uma formação econômica a outra.
Mas, pelo fato de que, quando da passagem da matéria
de um estágio de desenvolvimento a outro, relações e ligações
novas aparecem nas novas formações materiais, ao lado das
antigas leis que agiam nas formações materiais dos estágios
inferiores de desenvolvimento, leis específicas novas também
entram em jogo, com o nascimento de novas ligações e relações
específicas. Assim, na molécula, ao lado das leis que regiam
a relação das partículas “elementares”, que constituíam os
átomos, começam a agir novas leis que regem a relação dos
átomos. Na sociedade socialista, ao lado de certas leis próprias
às formações precedentes (leis da correspondência das relações
de produção, no nível do desenvolvimento das forças produti­
vas, leis da produção em expansão etc.), começam a agir novas

259
leis (lei fundamental do socialismo, lei da distribuição social,
segundo o trabalho etc.). Essas novas leis são específicas em
relação às antigas leis, que passaram para as novas formações
materiais com as antigas relações e ligações que sobreviveram.
As antigas leis são gerais, pelo fato de que as primeiras agem
unicamente nas formações materiais que representam o grau
superior dado do desenvolvimento, enquanto que as segundas
agem, além disso, nas formações materiais de todos os estágios
inferiores do desenvolvimento.
Sendo específicas, essas novas leis não podem ser a forma
de manifestação das leis antigas, porque regem relações quali­
tativamente novas, que refletem o novo grau, mais elevado de
desenvolvimento de uma classe dada de fenômenos.
Consideramos, aqui, a relação das leis gerais e específicas
estudadas pelas ciências particulares. Mas o que acontece na
correlação das leis da dialética e das leis das ciências particula­
res? As leis da dialética são universais e só se manifestam por
meio de outras leis que são particulares em relação a elas.
Por exemplo, a lei da passagem das mudanças quantitativas
para as qualitativas não se manifesta fora das leis particulares,
concretas, da correlação das mudanças qualitativas e quantitati­
vas, próprias às formas concretas do movimento da matéria e
aos fenômenos concretos, mas age somente por meio deles. A
lei da unidade e da luta dos contrários comporta-se de forma
análoga. Agindo em cada fenômeno concreto, ela manifesta­
se por meio das leis gerais e específicas que caracterizam a uni­
dade e a luta dos aspectos opostos desse fenômeno. E o
mesmo acontece com outras leis gerais que a filosofia marxista
estuda. As leis da dialética manifestam-se por meio das leis
particulares e específicas e estão organicamente ligadas com
todo seu conteúdo, mas elas têm, entretanto, seu conteúdo
particular, que permite que se diga que elas são leis autônomas.
Seu conteúdo particular é precisamente o que se repete em
todas as leis e processos particulares correspondentes. O que
é específico, particular para cada domínio concreto em que se
manifesta essa ou aquela lei da dialética, não entra no conteúdo
da lei universal.
Analisando a lei da negação da negação, Engels escreveu
que: “ ( . . . ) Eu não digo absolutamente nada do processo de
desenvolvimento particular seguido, por exemplo, pelo grão de
cevada, desde a germinação até o enfraquecimento da planta

2 60
que traz o fruto, quando digo que ele é a negação da negação.
Cora efeito. . . o cálculo diferencial é igualmente negação da
negação. . . Se eu disser de todos esses processos que eles são
a negação da negação, estou entendendo-os todos conjunta­
mente, sob essa única lei do movimento e, por esse fato, não
levo precisamente em conta as particularidades de cada processo
especial, tomado à parte”!. O particular (específico), o que
caracteriza esse ou aquele processo concreto, constitui precisa­
mente o conteúdo fundamental das leis específicas, particulares.
Ê exatamente por isso que o conhecimento dessa ou daquela
lei da dialética, é insuficiente para orientar esse ou aquele
processo concreto. É preciso, antes de tudo, conhecer as leis
específicas, particulares, que regem o processo concreto dado.
Assim, as leis da dialética, sendo leis universais, agem
em todas as esferas do movimento da matéria e têm seu con­
teúdo particular, que permite distingui-las das outras leis,
menos gerais. Entretanto, elas não agem de forma autônoma,
mas somente por meio de outras leis que são, em relação a
elas, leis específicas.
Aqui, podemos encontrar a mesma lógica: as leis gerais
dadas manifestam-se por meio de outras, específicas, somente
porque elas são concernentes às mesmas relações e ligações.
Se as leis da dialética existem e se manifestam unicamente
por meio de leis específicas estudadas pelas ciências concretas,
o método geral de conhecimento e de ação elaborado a partir
delas deve ser aplicado, em cada caso concreto, de forma par­
ticular e somente por meio de leis específicas que estão a seu
serviço nos fenômenos estudados.
O método elaborado a partir das leis gerais descobertas
pelas ciências concretas só pode ser aplicado ao conhecimento
de fenômenos nos quais essas leis gerais agem. Por exemplo,
o método de conhecimento, elaborado com base na lei geral
(para todas as formações econômicas e sociais) da correspon­
dência do caráter das relações de produção e do nível de desen­
volvimento das forças produtivas, ou com base na lei do papel
determinante da base econômica em relação à superestrutura,
não pode ser aplicado ao conhecimento das leis do desenvol­
vimento e do funcionamento da língua, porque essas leis gerais*

*F. Engels, Anti-Dühring, p. 171-2.

261
não se manifestam por meio dessas últimas. Mas esse método
é sempre aplicável, por exemplo, ao conhecimento das leis
específicas da interação da base e da superestrutura na socie­
dade socialista, ou ao das leis específicas da correspondência
das relações de produção socialistas com as forças produtivas,
que existem na sociedade socialista, e que se manifestam, é
claro, por meio das leis específicas dessa formação.

262
XI. 0 CO NTEÚDO E A FORM A

1. OS CONCEITOS
DE CONTEÚDO E DE FORMA

Os conceitos de “conteúdo” e de “forma” são definidos de


maneira diferente.
Certos autores consideram que o conteúdo, enquanto cate­
goria filosófica, designa o conjunto dos elementos, dos aspectos
que constituem uma coisa dada, um objeto dado1.
Entretanto, vários outros autores opõem-se a essa defini­
ção de conteúdo. Eles a consideram como não-dialética. E,
em nossa opinião, eles têm razão. Com efeito, ela perde de
vista a atividade do conteúdo que é representado, aqui, como
inerte, em estado de repouso, desprovido de vitalidade. O
conteúdo não pode ser o simples conjunto dos elementos ou
aspectos que constituem a coisa, ele é um processo no qua!
todos esses elementos e aspectos encontram-se constantemente
em interação, em movimento, mudam-se um no outro e mani­
festam às vezes uma, às vezes outra de suas propriedades.
A concepção de conteúdo como aspecto principal, funda­
mento da coisa, definindo o determinismo qualitativo e mani­
festando-se em todas as suas propriedades, é muito difundida2.
Definir o conteúdo como fundamento das coisas significa
identificá-lo com a essência, mas estes são coisas diferentes. A
essência é o que é estável, o que permanece na coisa, enquanto

*0 materialismo dialético e as ciências naturais contemporâneas,


Moscou, 1957, p. 340. Original em russo.
2F. T. Zunnurov, Conteúdo e forma, Volgogrado, 1957, p. 3. Ori­
ginal em russo.

263
o conteúdo é o que se desloca, o que é instável, em movimento
permanente, o que se renova; a essência representa o geral na
coisa, no objeto, o conteúdo representa sempre o individual e
inclui em si mesmo tanto o geral, como o singular; a essência
é o necessário na coisa, o conteúdo é a unidade do necessário
e do contingente.
Identificando o conteúdo com o elemento principal, fun­
damental da coisa, esses autores entendem, pela forma, a estru­
tura interna do conteúdo. Mas se o conteúdo é o fundamental
e o principal, na coisa, e sua forma é a estrutura interna do
conteúdo, então: primeiro, na coisa, no objeto, apenas o prin­
cipal, o fundamental devem ter uma forma, um conteúdo;
quanto ao acessório, ao não-fundamental, este deverá represen­
tar alguma coisa de informe, de amorfo, de indeterminado, vazio
de conteúdo; segundo, além do conteúdo e da forma, deve
haver na coisa algo que não seja nem o conteúdo, nem a forma.
Tanto o primeiro como o segundo pontos contradizem o estado
real das coisas. No objeto, tudo — o fundamental e o não-
fundamental, o principal e o acessório — tem seu conteúdo
e sua forma; sua estrutura; no objeto, não há aspectos, momen­
tos ou propriedades que não se relacionem nem ao conteúdo,
nem à forma. Mediante as categorias de “conteúdo” e de
“forma”, o homem desdobra a coisa em dois aspectos contrá­
rios, organicamente ligados e que se mudam um no outro e
incluem o ser da coisa.
Definindo o conteúdo, salientamos, às vezes, que ele re­
presenta o domínio do interior na coisa, que ele é o conjunto
dos processos internos das propriedades.
Se o conteúdo constitui o domínio do interior que é,
vejamos bem, oposto à forma, a forma não pode ser a estrutura
interna do conteúdo, ela deve ser sua expressão exterior. A
essas conclusões chegam inevitavelmente os autores das defini­
ções consideradas.
Refletir o interior não é a função específica da categoria
de “conteúdo”, assim como refletir o exterior não é a função
específica da categoria de “forma”. As categorias de “exterior”
e de “interior” são o reflexo da especificidade do exterior e
do interior. Além disso, o interior, enquanto necessário na
coisa e constituindo sua natureza, e o exterior, na qualidade
de manifestação dessa mesma natureza e desse necessário,

264
mediante uma grande quantidade de desvios contingentes,
refletem-se nas categorias de “essência” e de “fenômeno”.
A especificidade, para a categoria de “conteúdo”, é a de
refletir o conjunto dos processos próprios à coisa. Uma parte
dentre eles é concernente ao domínio interior e a outra parte
ao domínio exterior. Por exemplo, no conteúdo desse ou da­
quele organismo vivo entram não apenas os processos que se
desenrolam no interior do organismo, mas também todo o
comportamento do organismo, todas as ações que ele produz
em resposta aos fatores exteriores correspondentes. O conteúdo
do homem, na qualidade de ser social, será constituído não
somente pelos processos que se desenvolvem nele, como sujeito,
mas também por aqueles (e essencialmente por estes) que estão
ligados à ação finalista sobre o mundo exterior e à sua inte­
ração com outros homens. O conteúdo desse ou daquele objeto
é formado não somente pelas interações que existem entre os
elementos e os aspectos que o constituem, mas também pelas
ações que ele exerce sobre os outros objetos ao seu redor.
O específico para a categoria de “forma” é refletir o laço
entre os elementos, os momentos que constituem o conteúdo da
estrutura do conteúdo e não da manifestação, não da expressão
do interior no exterior. Sendo uma estrutura do conteúdo que
inclui tanto os processos internos, como os externos da coisa,
do objeto, a forma penetra tanto no domínio interior, como no
domínio exterior, tanto na essência, como no fenômeno.

2 C R ÍT IC A
DAS CONCEPÇÕES IDEALISTAS
E METAFÍSICAS
DE CONTEÚDO E DE FORMA

Na história da Filosofia, alguns autores separam metafisi­


camente o conteúdo e a forma e tentam fundamentar sua exis­
tência como autónoma e independente. Foi exatamente assim
que Aristóteles apresentou a correlação do conteúdo e da forma.
Segundo sua doutrina, o conteúdo e a forma existem primeira-
mente em si, independentemente um do outro. E é apenas
depois, quando da formação de uma coisa determinada, que
eles se encontram em correlação orgânica. Assim, um conteúdo
puro, desprovido de qualquer forma será, para Aristóteles, a

265
“matéria primeira”, a matéria que se encontra na base de todas
as coisas existentes. Ao mesmo tempo, Aristóteles propõe uma
forma pura — Deus — que para ele desempenha o papel de
forma de todas as formas.
A separação entre a forma e o conteúdo é, na obra de
Aristóteles, a conseqüência inevitável da tendência idealista
que encontramos em suas concepções filosóficas e de uma
aproximação metafísica que coexiste em sua doutrina com
alguns elementos isolados da dialética.
O método idealista, que observamos na obra de Aristóte­
les, da resolução do problema da correlação do conteúdo e da
forma, foi desenvolvido na filosofia burguesa contemporânea.
Certos autores e sábios contemporâneos levaram ao extremo a
separação do conteúdo e da forma. Não somente eles reco­
nhecem a existência de uma forma pura, mas declaram-na,
também, a única forma do ser. Reconhecer a existência real
do conteúdo é, na opinião deles, uma concessão ao materia­
lismo, porque esse reconhecimento pode conduzir ao reconhe­
cimento da existência da matéria.
Essa é a idéia que é defendida, por exemplo, pelo físico
contemporâneo Erwin Schrõdinger. Quando ele “cria” sua
concepção idealista do mundo, que nega a existência objetiva
da matéria, do substrato material, ele declara que a forma não
pode ser indissoluvelmente ligada ao conteúdo, que ela pode
existir sem o conteúdo, no estado puro, que o conteúdo absolu­
tamente não existe, que as partículas “elementares” que se
encontram à base do mundo representam uma forma pura. Ele
escreveu que: “Quando ouvimos pronunciar as palavras “figura”
ou “forma”, o hábito da linguagem cotidiana nos induz ao
erro e parece exigir que seja a figura ou a forma de alguma
coisa, qui haja um substrato material a essa forma. No plano
científico, essa atitude nos faz reaproximar de Aristóteles, de
suas causa materialis e causa formalis. Mas quando chegamos
às partículas elementares, que constituem a matéria, verifica­
mos que não há nenhum ponto de vista sobre elas, enquanto
formadoras da própria matéria. Elas são, e isso desde sempre,
uma forma pura, nada além de uma forma, o que nos remete
cada vez mais a um estudo aprofundado dessa forma e não ao
estudo de uma partícula individual da matéria”3.
3E. Schrõdinger, Science and humanism. Physics in our time, Cam­
bridge, 1952, p. 21.

266
Todos esses raciocínios contradizem a realidade. No
mundo real não existe nenhuma forma pura. Toda forma, todo
sistema relativamente estável de ligações é um sistema de ligação
desses ou daqueles elementos da realidade objetiva, uma estru­
tura relativamente estável dos processos materiais. Em outros
termos, toda figura é organicamente ligada a um certo conteúdo,
do qual ela é a estrutura.
Grõbner, professor da Universidade de Innsbruk, apre­
senta um ponto de vista fundamentalmente idealista sobre a
relação do conteúdo e da forma. Caracterizando os fenôme­
nos observados no mundo, ele afirma que eles são considerados
“como estruturas” de dados que são organizados segundo certas
leis matemáticas e geométricas. Assim, o “elétron não é, na
realidade, nada além do que uma estrutura, nascida dos resul­
tados das medidas.. . ”4.
Mas se as partículas “elementares” não representam nada
mais do que formas puras, as “estruturas” são construídas
pelos homens segundo as leis matemáticas, e se na realidade
objetiva tudo é constituído pelas partículas “elementares”, então
a matéria, enquanto realidade objetiva, desaparece. A cons­
ciência, que cria todas as estruturas lógicas possíveis — as
“formas puras” — e que as transfere para o mundo dos fenô­
menos observados, torna-se determinante.
O caráter idealista desses raciocínios é evidente. Não há
nenhuma “forma” não material na realidade objetiva e nem
pode haver. Toda forma existente no mundo exterior é a es­
trutura dessa ou daquela formação material. Quanto às estru­
turas elaboradas e expressas por fórmulas matemáticas e lógi­
cas, essas também não são formas puras, mas encerram um
conteúdo determinado que reflete direta ou indiretamente a
correlação entre os elementos correspondentes do mundo exte­
rior. Estando, de uma maneira ou de outra, ligadas às forma­
ções materiais, essas estruturas não somente não podem ser
introduzidas no mundo dos fenômenos, determiná-los e orde­
ná-los, mas ainda, elas próprias, são deduzidas do mundo
exterior e são determinadas por ligações e relações das forma­
ções materiais, pelas estruturas que lhes são próprias.
Assim, os raciocínios sobre a existência de formas puras
contradizem a realidade.

4W. Grõbner, Scientia, ano 51, 1957, n. 1, série 6, p. 4.

267
3. LEIS DA CORRELAÇÃO
DO CONTEÚDO
E DA FORMA

Na realidade, toda forma está organicamente ligada ao


conteúdo, é uma forma de ligação dos processos que o consti­
tuem. A forma e o conteúdo estando em correlação orgânica,
dependem um do outro, e essa dependência não é equivalente.
O papel determinante nas relações conteúdo-forma é desem­
penhado pelo conteúdo. Ele determina a forma e suas mu­
danças acarretam mudanças correspondentes da forma. Por
sua vez, a forma reage sobre o conteúdo, contribui para seu
desenvolvimento ou o refreia.
Pelo fato de que o conteúdo representa o conjunto dos
processos e das mudanças que ele acarreta, próprias a uma
formação dada, ele está ligado ao movimento absoluto, que
é uma característica de toda formação material. A forma está
ligada ao repouso relativo, porque ela é um sistema relativa­
mente estável de ligações de momentos (elementos) do con­
teúdo. Estando ligado a um movimento absoluto, o conteúdo
muda constantemente, enquanto que a forma, que deve seu
aparecimento e sua existência a um repouso relativo, perma­
nece imutável e estável durante um tempo mais ou menos longo.
Inicialmente, as mudanças que se produzem no conteúdo
não influem no sistema relativamente estável das ligações da
forma; elas instalam-se completamente em seu quadro e, por
esse fato, o conteúdo evolui rápida e imperiosamente. Mas há
um ponto em que as mudanças no conteúdo atingem um nível
em que os quadros desse sistema de correlação tomam-se muito
estreitos. O sistema relativamente estável começa a entravar
o desenvolvimento do conteúdo, a reprimi-lo. Nesse estágio
de desenvolvimento do conteúdo, a forma deixa de corresponder
ao conteúdo, contrariamente ao primeiro estágio, em que ela
correspondia-lhe e dava-lhe toda possibilidade de desenvolvi­
mento. A não-correspondência da forma com o novo conteúdo,
à medida que esse se desenvolve, torna-se sempre mais aguda
e finalmente um conflito explode entre o conteúdo e a forma:
o novo conteúdo rejeita a antiga forma, destrói o sistema rela­
tivamente estável de movimento e, baseado em um novo sistema
relativamente estável de movimento (isto é, da forma), trans-
forma-se, passando a um outro nível qualitativo.

268
Inicialmente, a nova forma corresponde a seu conteúdo,
dá-lhe toda possibilidade de se expandir, então o conteúdo
começa a desenvolver-se impetuosamente. Mas, no curso de
seu desenvolvimento, chega a um estágio em que a forma co­
meça novamente a comprimi-lo, a refrear seu desenvolvimento,
donde o aparecimento de uma discordância entre a forma e o
conteúdo que, em decorrência do desenvolvimento, leva à
rejeição da antiga forma, inserindo-se nessa nova forma que,
em decorrência do desenvolvimento, conhece a mesma sorte.
E assim sucessivamente até o infinito.
A matéria desenvolve-se por meio da luta do conteúdo e
da forma, da rejeição da antiga forma e da criação de urna
forma nova.
Quando, na literatura, falamos da rejeição e da destruição
da antiga forma e da criação de urna forma nova, temos, em
geral, em vista as mudanças na forma que a adaptam ao desen­
volvimento do conteúdo no quadro da antiga forma. O resul­
tado disso é que o conteúdo da nova formação material e do
novo estado qualitativo, surgido em decorrência da substituição
da antiga forma pela nova, é criado inteiramente no seio da
antiga formação material ou do antigo estado qualitativo, e o
salto em decorrência do qual foi quebrada a antiga forma e
criada a nova não representa uma modificação qualitativa do
conteúdo, mas unicamente a aquisição, para ele, de urna nova
forma. Tudo isso contradiz o estado real das coisas. Na reali­
dade, o processo da destruição da antiga forma é um processo
de transformação qualitativa radical do conteúdo. Quando
dessa destruição, certas interações e processos são eliminados,
enquanto outros aparecem e outros ainda mudam de forma.
Por exemplo, quando é quebrado o sistema de ligação ca­
racterístico das moléculas do octano e das moléculas do oxigê­
nio, durante a combustão da essência, e que se forma um
sistema de ligações próprio às moléculas do gás carbônico e
da água, em decorrência dessa reação química, produz-se não
somente uma mudança qualitativa do conteúdo, uma transfor­
mação não somente da estrutura das moléculas e das substân­
cias que participam da reação, mas igualmente das próprias
substâncias. As moléculas de octano, quando da combustão
da essência, são submetidas ao choque das moléculas de oxigê­
nio e são destruídas ao mesmo tempo que as últimas. As
forças que unem, nas moléculas da essência, um ou dois átomos

269
de carbono e um átomo de hidrogênio, assim como as forças
que unem dois átomos de oxigênio em urna molécula de
oxigênio, não podem opôr-se, como se diz na química, à afini­
dade mais forte entre os átomos de oxigênio, por um lado e
os átomos de carbono e de hidrogênio, por outro. Por isso,
as antigas interações dos átomos das moléculas (conteúdo) são
destruídas e os átomos reagrupam-se e criam novas formações
estáveis com um novo sistema relativamente estável de ligações
(forma) e um novo conteúdo, ou seja, moléculas de gás car­
bónico e de água. As substâncias que aparecem em decorrência
dessas mudanças possuem, assim, não somente as novas estru­
turas (forma), mas igualmente um conteúdo novo, qualitati­
vamente diferente daquele das substâncias iniciais.

4. PARTE E TODO,
ELEMENTO E ESTRUTURA
Quando analisamos a coisa do ponto de vista de seu
conteúdo, este aparece como um todo, como o conjunto de
todos os processos que lhe são próprios e que incluem um
sistema relativamente estável de ligações, no quadro do qual
esses processos se desenvolvem. Ê exatamente nessa forma
global, nessa totalidade, que o conteúdo se relaciona com a
forma. Mas, à medida que se dá o desenvolvimento do conhe­
cimento do objeto, a característica global de seu conteúdo
torna-se insuficiente e um estudo mais detalhado dos diferentes
momentos do conteúdo, assim como dos processos e relações
que o constituem, torna-se necessário. O conteúdo decompõe-
se em partes qualitativamente isoladas, e a análise dessas partes
conduz à necessidade de colocar em evidência as leis de sua
correlação mútua com o todo. Essas leis da correlação das
partes isoladas, com o todo que as contém, refletem-se nas
categorias de “todo” e de “parte” ; as leis da correlação das
partes entre elas, no quadro do todo, refletem-se nas categorias
de “elem? ítos” e de “estrutura”.
A parte é o objeto (processo, fenômeno, relação) que
entra na composição de um outro objeto (processo, fenômeno,
relação) e que se manifesta na qualidade de momento de seu
conteúdo. O todo representa o objeto (processo e fenômeno),
incluindo em si, na qualidade de parte constitutiva, outros obje­
tos organicamente ligados entre eles (fenômenos, processos,

270
relações) e possuindo propriedades que não se reduzem às
propriedades das partes que o constituem.
Cada formação material representa um todo constituído
de partes bem determinadas. Por exemplo, a molécula da
água, enquanto todo, é constituída por um átomo de oxigênio
e por dois átomos de hidrogênio. Na molécula da água, ao
redor do núcleo de oxigênio, gravitam dez elétrons, sendo que
a primeira camada conta com dois elétrons e a segunda camada
com oito. Dentre esses oito elétrons, quatro gravitam unica­
mente ao redor do núcleo do átomo do oxigênio e os quatro
outros são comuns: dois com um átomo de hidrogênio,
dois com o outro; eles gravitam não somente ao redor do
núcleo do átomo de hidrogênio. Em decorrência disso,
na molécula da água, os átomos de oxigênio e de hidro­
gênio estão organicamente ligados e formam um todo úni­
co que possui uma nova qualidade distinta daquelas do
oxigênio e do hidrogênio. Cada átomo e cada elétron que
entra na molécula da água, sendo uma parte do todo, não se
perde nesse todo, não se funde com sua qualidade, mas conserva
seu determinismo qualitativo específico, possui uma certa
autonomia e independência, o que lhe permite ocupar um
lugar determinado no todo e desempenhar um papel bem defi­
nido. A molécula representa, portanto, um todo desmembrado
complexo que inclui certas partes, tendo seu próprio conteúdo
específico. Mas seu conteúdo específico, seu papel específico
no todo é determinado não somente pela sua natureza especí­
fica, mas igualmente pela natureza geral do todo. É por isso
que eles não se manifestam no papel específico de forma inde­
pendente, mas como uma parte do todo. Por outro lado, a
natureza geral do todo, no caso da molécula, depende da
natureza específica de suas partes constitutivas e, em particular,
dos átomos.
Por isso, o desmembramento da formação material em
partes é uma condição necessária de sua existência enquanto
todo, possuindo uma natureza e uma essência próprias, enquanto
que a correlação de suas partes com o todo é uma condição
necessária de sua existência enquanto partes, tendo uma essência
específica.
Assim, cada formação material manifesta-se ao mesmo
tempo como alguma coisa de dividido em partes e como um
todo organicamente ligado.

271
A correlação do todo com a parte, que se exprime em
particular na dependência da qualidade do todo da natureza
específica de suas partes constitutivas, e na dependência das
qualidades das partes da natureza específica do todo, é a con­
sequência de urna certa correlação das partes, em seu conjunto,
que forma a estrutura do todo. É exatamente a correlação
desses ou daqueles elementos que condiciona o aparecimento
do todo e sua transformação em partes constitutivas deste
último. Sem estrutura não existe todo. Ela é a condição
primordial para a existência do todo.
O conceito de “estrutura” designa a forma de união e de
correlação dos elementos do todo. “Na categoria de estrutura,
escreve Igor Hrusovsky, evidenciando o conteúdo do conceito,
exprimimos, sob uma forma resumida, a unidade específica das
relações e das funções lógicas, as ligações causais e dialéticas
do objeto, a unidade de sua diferenciação interna”5.
O conceito de “elementos” designa os componentes do
todo que se encontram entre eles em uma certa correlação e
interdependência.
A correlação desses ou daqueles objetos (processos, fenô­
menos, relações), que forma o todo e torna-se sua estrutura,
transforma-os simultaneamente em partes do todo e em ele­
mentos da estrutura correspondente. Entretanto, os conceitos
de “elemento” e de “parte” não são idênticos. E isso já foi
observado por vários autores6. Mas, em nossa opinião, os
autores não indicam toda a diferença real que existe entre esses
conceitos. L. Valt, por exemplo, vê essa diferença no fato de
que o conceito de “parte” designa os objetos, os fenômenos,
os processos que constituem esse ou aquele todo, seja quando
eles se encontram unidos, seja quando estão em um estágio
anterior a essa união. O conceito de “elemento” designa,
segundo ele, apenas os objetos, fenômenos e processos que se
encontram em correlação correspondente, formando um todo,
isto é no quadro de uma estrutura dada. Essa ou aquela

*1. Hr- ovsky, Die Kategorie der Struktur, in Wissenschaft-liche


Zeitschrift der Martin-Luther Universität, 1960, t. 9, v. 2, p. 165.
6G. A. Yugai, A dialética da parte e do todo, Alma-Ata, 1965,
p. 93-4. Original em russo. L. O. Valht, Correlação entre a estrutura
e os elementos, in Problemas de filosofia, 1963, v. 5, p. 45-6. Original
em russo.

272
parte, segundo Valt, torna-se elemento somente depois de sua
entrada em uma união determinada, que forma um todo, e
depois de uma certa mudança sob a influência dessa união;
antes disso, ela hão é elemento, embora seja parte.
Dizer que esse ou aquele objeto (processo, fenômeno)
torna-se elemento somente depois de sua entrada em uma
ligação correspondente que forma um todo é exato. Mas o que
não é exato é a concepção, segundo a qual, um objeto (pro­
cesso, fenômeno) já era parte antes de sua entrada nessa ligação,
nessa união. Esse objeto tomou-se parte somente depois de
sua entrada na ligação dada, em decorrência da formação desse
todo. Antes desse todo, fora dele, o objeto não era parte.
É por isso que as noções de “elemento” e de “parte”, nesse
caso, coincidem, já que elas designam objetos (fenômenos,
processos) que se encontram em correlação correspondente,
que formam um todo possuidor de sua especificidade qualita­
tiva e não se reduz às qualidades dos objetos que o constituem
(processos, fenômenos).
Também não podemos concordar com a afirmação, se­
gundo a qual o elemento distingue-se da parte, pelo fato de que
tudo o que faz o objeto, o que se relaciona com seus compo­
nentes, pode tornar-se elemento, enquanto que apenas os
componentes, nos quais reflete-se a especificidade do objeto na
qualidade de todo, podem tomar-se parte?. Cada elemento
que entra na estrutura correspondente exprime, de uma forma
ou de outra, a especificidade do todo, que possui essa estrutura.
Exprimir a especificidade do todo é, portanto, uma caracterís­
tica não apenas das partes, mas igualmente dos elementos.
Mas onde, então, está a diferença entre o elemento e a
parte? Os elementos manifestam seu conteúdo específico na
relação com a estrutura, com um certo sistema de ligações que
se estabelece entre eles. Possuindo uma certa autonomia e um
certo isolamento qualitativo, os elementos distinguem-se funda­
mentalmente da correlação na qual eles se encontram. En­
quanto que o conteúdo específico das partes manifesta-se não
em sua relação com a ligação existente entre elas, mas em
sua relação com o todo, e é por isso que elas não podem ser7

7G. A. Yugai, A dialética da parle e do todo, p. 93. Original em


russo.

273
opostas às ligações que constituem a estrutura do todo, pelo
fato de que essas ligações são, elas mesmas, partes do todo.
O conceito de “parte” é, portanto, mais extenso do que o de
“elemento”. As partes do todo não são somente os elementos
que se encontram em uma certa correlação, mas as próprias
correlações entre os elementos, isto é, a estrutura. No que
concerne ao conteúdo específico do conceito de “estrutura”,
este é a designação do modo de ligação das partes (elementos)
no quadro desse ou daquele sistema integral. É verdade que,
nessa designação, o conceito de “estrutura” confunde-se com
o de “forma”, mas esse fato é inevitável e absolutamente natu­
ral, porque apareceu com base no desenvolvimento do conceito
e representa sua concretização.
Sendo a concretização do conteúdo da categoria de “for­
ma”, o conceito de “estrutura”, entretanto, exprime não apenas
as leis da correlação do conteúdo e da forma quando ele se
manifesta em relação à categoria de “conteúdo”, mas igual­
mente as leis da correlação dos elementos do conteúdo entre
eles, quando ele se manifesta em relação ao conceito de “elemen­
to”. Essa última correlação, em particular, caracteriza-se pelo
fato de que cada elemento, estando qualitativamente isolado,
possuindo uma autonomia relativa, uma independência relativa
no quadro do todo, depende essencialmente de outros elemen­
tos que constituem esse todo, do caráter de suas ligações com
eles. Essas ligações, em um certo grau, determinam seu lugar,
seu papel e sua importância no todo, além de suas caracterís­
ticas quantitativas e qualitativas.
Por outro lado, a mesma ligação entre os elementos de­
pende de sua natureza, de suas características qualitativas e
quantitativas. Por exemplo, as características qualitativas e
quantitativas do nucleón, elemento constitutivo do núcleo atô­
mico, estão estreitamente ligadas à natureza de toda uma série
de outras partículas “elementares”, que entram no núcleo etc.
Por sua vez, as propriedades dessas outras partículas “elemen­
tares” dependem essencialmente dos núcleons. Por exemplo,
a transformação de um méson em próton e antipróton está
ligada à ação dos núcleons e dos antinúcleons, assim como ao
campo de forças existente ao redor dele, do qual os quanta
são os núcleons. Por intermédio desse mesmo campo nucleo­
ideo, a interação entre os próprios mésons fica assegurada. O
fato de que o nêutron seja estável na qualidade de parte inte-

274
grante do núcleo atômico, enquanto que em estado livre ele
é extremamente instável e desagrega-se em um próton, um
elétron e um neutrino, prova igualmente a dependência das
propriedades do elemento da estrutura do todo, do qual ele é um
componente.
A interdependência da estrutura e dos elementos foi intei­
ramente provada por V. Zveguintsev: “Cada elemento da
estrutura, escreve ele, . . . estando isolado da estrutura e sendo
considerado fora das ligações internas que existem nela, fica
privado das qualidades que lhe são conferidas por seu lugar
na estrutura dada, e é por isso que seu estudo isolado não
fornece uma justa representação de sua natureza real. Entran­
do na composição da estrutura, todo elemento adquire uma
‘qualidade de estruturalidade’. . . ”8.
Assim, as propriedades dos elementos dependem da estru­
tura do todo que eles constituem e a estrutura desse todo
depende desses elementos, de sua natureza e de sua quantidade.
Em outros termos, os elementos que constituem esse ou aquele
objeto e a estrutura própria a esse objeto — o modo de ligação
dos elementos — encontram-se em uma interdependência ne­
cessária, em uma unidade dialética.
Todas essas leis que se refletem na categoria de “estrutura”
estão diretamente ligadas à categoria de “forma”.

8V. A. Zveguintsev, Ensaios de linguística geral, Moscou, 1962,


p. 66. Original em russo.

275
XII. A ESSÊNC IA E O FENÔ M ENO

1. OS CONCEITOS
DE ESSÊNCIA E DE FENÔMENO

À medida que explicamos, um após o outro, os processos


que constituem o conteúdo do objeto estudado, à medida que
colocamos em evidência os aspectos e as ligações necessários
que lhes são próprios, surge a necessidade de reagrupar esses
conhecimentos em um todo único, de os fundamentar em um
princípio único, de se representar todos os aspectos e ligações
necessários em sua interdependência e sua correlação.
A resolução dessa tarefa leva à reprodução, na consciência,
da essência do fenômeno estudado, que representa precisamente
o conjunto de todos os aspectos e ligações necessários e internos
(leis), próprios do objeto, tomados em sua interdependência
natural. E o fenômeno representa a manifestação desses as­
pectos e ligações, na superfície, mediante uma grande quan­
tidade de desvios contingentes. Definindo a essência como o
conjunto das ligações e aspectos internos e o fenômeno como
a manifestação exterior da essência, isto é, como exterior,
devemos elucidar o conteúdo das categorias de “interior” e
de “exterior”.
A designação do que está na coisa, do que é inseparável
dela, do que é, nela, necessário e específico para a categoria
de “interior”. Se adotamos essa concepção do interior, diri­
gido para o exterior, teremos, então, o que não é condicionado
pela natureza interna da coisa, o que lhe é contingente.
Entretanto, ao lado dessa utilização dos termos “interior”
e “exterior”, nós os vemos também ser utilizados para designar
o que é interior ou exterior espacialmente.

276
Para caracterizar a essência enquanto interior, tanto urna
como a outra significação dessas categorias é válida, porque a
essência representa o interior, ao mesmo tempo, como cons­
tituinte da natureza da coisa, inseparável dela, como espacial­
mente interior, encontrando-se no interior da coisa e não em
sua superfície.
Salientando, com justa razão, que a essência constitui o
interior ou o aspecto interior — da coisa, certos autores con­
sideram que isso é um indício suficiente para a elucidação do
conteúdo da categoria estudada1. Entretanto, isso não é exa­
tamente assim. O aspecto interior da coisa não é somente a
essência, mas igualmente a causa, a necessidade, a lei. Dizendo
apenas que a essência é o aspecto interior da coisa, não pode­
remos distingui-la dessas categorias. Certos autores, indicando
que a essência é o aspecto interior da coisa, acrescentam que
ela é também o fundamento da coisa2.
Não podemos admitir a redução da essência ao funda­
mento da coisa. O fundamento constitui uma parte da essência,
representa as ligações e os aspectos necessários e principais e
determinantes da coisa, enquanto que a essência inclui ainda
as ligações e os aspectos necessários não-fundamentais, não-
principais.
Certos autores, que se opõem à redução da ftsência ao
que é principal e determinante na coisa e, em particular, à lei
fundamental de funcionamento e de desenvolvimento do objeto,
definem a essência como o conjunto de todas as leis que agem
na coisa3. Mas essa definição é igualmente insuficiente. Não
apenas as leis às quais estão subordinados seu funcionamento
e seu desenvolvimento relacionam-se à essência da coisa, mas
igualmente todos os aspectos próprios e necessários da coisa.
Embora haja divergências entre os filósofos na concepção
da essência, há uma quase unanimidade no que concerne à
concepção do fenômeno. O fenômeno é, habitualmente, defi-*

*G. M. Chemanin, Possibilidade e realidade. Essência e fenômeno,


in Materialismo dialético, Moscou, 1960, (Col.) Cad. 2, p. 46. Original
em russo.
*S. T. Sebastianov, Conteúdo e forma, essência e fenômeno, in
Problemas do materialismo dialético, Voronej, 1958, (Col.) p. 138. Ori­
ginal em russo.
3Coletânea de artigos sobre o materialismo dialético, Moscou, 1959,
p. 203. Original em russo.

277
nido como o aspecto exterior, cambiante do objeto e que
exprime sua essência. E isso está correto. O fenômeno é o
conjunto aos aspectos exteriores, das propriedades, e é uma
forma de manifestação da essência.

2. AS LEIS DE CORRELAÇÃO
DA ESSÊNCIA E DO FENOMENO

Embora sendo uma forma de expressão da essência, o


fenômeno não coincide com ela, mas dela distingue-se e chega
mesmo a deformá-la. A deformação produz-se pelo fato de
que a essência do objeto manifesta-se mediante a interação
desse último com outros objetos que o rodeiam, que têm in­
fluência sobre o fenômeno, introduzem certas modificações em
seu conteúdo e, exatamente por isso, o enriquecem. Em de­
corrência disso, o fenômeno aparece como a síntese do que
vem da essência, do que é condicionado por ela e do que é
introduzido do exterior, do que é condicionado pela ação da
realidade que rodeia o objeto, isto é, de outros objetos que
lhe estão ligados.
Certos autores não levam em conta essa circunstância e
afirmam que nem todos os fenômenos deformam a essência,
e que há fenômenos que transmitem a essência assim como
ela é4*6.
Reconhecer a existência de fenômenos que não deformam
a essência pode conduzir a duvidar da universalidade da tese
do materialismo dialético sobre a não-coincidência do fenômeno
e da essência, sobre a diferença e a oposição entre a essência
e o fenômeno, e pode, inclusive, levar a afirmar que a essência
de alguns fenômenos pode ser conhecida por sua percepção
direta. Não é por acaso que esses autores, que reconhecem
uma dessas teses, são obrigados, dessa ou daquela maneira, a
reconhecer a outra. Por exemplo, N. Vakhtomin escreve que:
“Se um objeto dado é tal qual a essência, então é, nesse caso,
absolutamente natural que as sensações forneçam uma repre­
sentação exata do objeto”^. E ainda: “Se os fenômenos defor-

4N. K. Vakhtomin, Sobre o papel das categorias de essência e fenô­


meno no conhecimento, Moscou, 1963, p. 52. Original em russo.
6N. K. Vakhtomin, op. cit., p. 52.

2 78
mam a essência do objeto, as sensações fornecem uma falsa
representação deste; se os fenômenos não deformam a essência
do objeto, as sensações fornecem uma representação justa”6.
O fenômeno não pode nunca ser “como a essência”, já que
ele distingue-se sempre dela e, de urna forma ou de outra, a
deforma. É por isso que a percepção dos fenômenos não nos
fornece nunca um conhecimento verdadeiro da essência.
Pelo fato de que o conteúdo do fenómeno é definido não
somente pela essência — conjunto dos aspectos e das ligações
necessários internos da coisa — mas igualmente pelas condi­
ções exteriores de sua existência, por sua interação com outras
coisas — e essas últimas estão em constante mudança — o
conteúdo dos fenômenos deve ser flutuante, cambiante, en­
quanto que a essência representa alguma coisa de estável, que
se conserva em todas as mudanças. Por exemplo, os preços
dessa ou daquela mercadoria mudam constantemente, enquanto
que seu valor permanece imutável durante um certo tempo. E
o mesmo acontece com as condições de vida dos homens e, em
particular, com as condições de vida dos operários na sociedade
capitalista. Elas variam de um operário a outro, de um período
(ou fase) do desenvolvimento da produção a outro em par­
ticular, da retomada da expansão, da crise à depressão. En­
tretanto, o conjunto das relações de produção (essência), que
determina a situação material dos homens, permanece relati­
vamente imutável, estável.
Exprimindo essa lei da correlação da essência e do fenô­
meno, Lenin escreveu que: “ ( . . . ) O que não é essencial, o
aparente, o superficial, desaparece mais freqüentemente, não é
tão ‘sólido’, tão ‘firmemente instalado’, como a ‘essência’ ”7.
Embora sendo estável com relação ao fenômeno, a essên­
cia também não permanece totalmente imutável. Ela se
modifica, embora o faça mais lentamente do que o fenômeno.
Sua modificação é condicionada pelo fato de que, no processo
do desenvolvimento da formação material, certos aspectos e
ligações necessários começam a ser reforçados e a desempenhar
um grande papel, enquanto que outros são rejeitados para um
segundo plano ou desaparecem completamente. Um exemplo

9N. K. Vakhtomin, op. cit.


TV. Lenin, Oeuvres, t. 38, p. 124. Original em russo.

279
da modificação da essência no decorrer do desenvolvimento da
formação material pode ser fornecido pela passagem que se
efetua no capitalismo no estágio pré-monopolista para o estágio
imperialistf Se no período pré-monopolista da existência do
capitalismo domina a livre concorrência a exportação das
mercadorias sem que os monopólios desempenhem um papel
considerável, no período do imperialismo, a livre concorrência,
embora ainda existente, é muito limitada pelo monopólio que
se torna, então, um fenômeno universal e que começa a desem­
penhar um papel determinante na vida da sociedade. A
exportação de mercadorias, nesse mesmo período, passa para
um segundo plano e o que se torna então dominante é a
exportação de capitais etc. Tudo isso mostra que, com a
chegada do capitalismo ao estágio do imperialismo, sua essência
sofre certas mudanças, embora sua natureza tenha permane­
cido imutável.

3. O FUNDAMENTO E O FUNDAMENTADO

O movimento do conhecimento a partir da evidenciação


do conteúdo e da forma do objeto estudado e de sua essência
— a reprodução dos aspectos e das ligações (leis) necessários
internos que lhes são próprios, em sua correlação natural —
começa com o estabelecimento de seu fundamento, de seus
aspectos e relações fundamentais, determinantes.
O fundamento, como aspecto ou relação determinante,
representa o interior do todo estudado, é o momento mais
profundo de sua essência; entretanto, o sujeito conhecedor
procura a essência primeiramente no nível do exterior, do
fenômeno, para representá-la sob a forma de aspectos e de
traços determinados deste último. O fundamento assim repre­
sentado é o fundamento formal e ele o é — nesse grau inicial
do conhecimento — porque é totalmente idêntico ao funda­
mentado, pelo conteúdo, do qual distingue-se apenas pela forma:
ele é considerado como alguma coisa de determinante e o fun­
damentado como alguma coisa de determinado.
A identidade do fundamento formal com o fundamentado
não exprime a identidade real, necessariamente própria ao
fundamento e aos fenômenos condicionados por ele, mas a
expressão diferente de um único e mesmo conteúdo: o do

280
fundamentado. É por isso que o fundamento formal é, de fato,
tautológico, porque exprime-se aqui sob a forma de fundamento,
quando, em regra geral, ele é o que foi exprimido sob a forma
de fundamentado. Por exemplo, na qualidade de fundamento
dos fenômenos elétricos, ele intervém como a “força elétrica”,
como fundamento dos vegetais, como a “força vegetal”, como
fundamento do calor, como o “flogisto” etc. Por isso, seu
valor gnoseológico é medíocre, sua evidenciação não traz ne­
nhum novo conhecimento ao objeto estudado. E o que é
enunciado aqui sob a forma de fundamento é o que ele foi sob
a forma de fundamentado.
O caráter limitado e tautológico do fundamento desse tipo
foi bem demonstrado por Hegel: “Uma tal indicação dos fun­
damentos, escrevia ele, analisando o tipo de fundamento con­
siderado, é acompanhado. . . pelo mesmo vazio que os enun­
ciados conformados à proposição sobre sua identidade*8. São
discursos tautológicos vazios. Com efeito, prossegue ele, de­
clarar fundamento de uma forma de cristalização, uma dispo­
sição particular das moléculas, não é uma tautologia Mas “a
cristalização em questão é precisamente essa mesma disposição
que chamamos de fundamento”9. Uma coisa análoga se pro­
duz, segundo Hegel, no raciocínio de um lógico que, conferindo
ao fundamento da lei toda a razão, declara que nossa faculdade
de pensar é feita dessa maneira e que nós somos obrigados a
inquirir sobre os fundamentos de qualquer coisa: seja junto
ao médico, quando este explica que a morte do afogado deve-se
ao fato de que “o homem é feito de uma determinada maneira,
e por isso não pode viver sob a água”, seja junto ao jurista
quando este explica a necessidade de punir o criminoso pelo
fato de que “a sociedade civil é feita de forma que os crimes
não podem permanecer impunes”10.
Em todos esses casos, declara Hegel, o fundamento é um
conteúdo que temos imediatamente diante de nós “e toda a
diferença reside simplesmente no fato de que o conteúdo é então
transferido para a forma do interior”11.

8G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, in Sämtliche Werke,


Sttutgart, 1928, v. 4, p. 570.
8G. W. F. Hegel, Werke, Vollständige Ausgabe, v. 6, p. 244-5.
,0G. W. F. Hegel, Werke cit., p. 246.
nG. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, in Sämtliche Werke, cit.,
p. 570.

281
O fundamento formal está ligado aos graus iniciais do
desenvolvimento do conhecimento, quando o sujeito conhecedor
evidencia e fixa as características, propriedades e relações
singulares e gerais, qualitativas e quantitativas, e as considera
como coexistentes. Com a passagem do conhecimento da coe­
xistência à causalidade e à evidenciação das causas dos fenô­
menos esudados, modifica-se sensivelmente a concepção do
fundamento que, então, aparece como fundamento real.
Como o fundamento real reflete a causa real que condi­
ciona o aparecimento do fundamento, podemos então, partindo
dele, explicar e destacar o fundamentado. Extrair o funda­
mentado de um fundamento real dado, nada mais é do que
estabelecer a identidade entre o fundamento e o fundamentado.
O fundamentado é idêntico ao fundamento porque é a forma
de manifestação e de existência de seu conteúdo. Entretanto,
nem tudo no conteúdo do fundamentado é extraído do funda­
mento, alguns de seus momentos são condicionados, não pela
causa evidenciada, mas por circunstâncias exteriores. É por
isso que, entre o fundamento e o fundamentado, há não apenas
identidade, mas também diferença.
O conteúdo do fundamentado, determinado pela causa
que o engendra e deduzido, de uma forma ou de outra, dessa
causa, como real, é considerado como essencial, enquanto que
o conteúdo do fundamentado que é introduzido no exterior e
condicionado por circunstâncias exteriores é considerado como
não essencial.
Mas, desde o que é considerado não essencial no conteúdo
do fundamentado tem igualmente sua causa e, portanto, seu
fundamento, pode ser considerado como essencial. Enquanto
que tudo o que não decorre desse fundamento será considerado,
em relação a ele, como não essencial, condicionado por circuns­
tâncias exteriores.
O resultado disso é que o fundamentado possui, ao mesmo
tempo, uma grande quantidade de fundamentos reais diferentes,
ou seja, completamente opostos. É por isso que cada coisa
concreta pode receber muitas definições diferentes e, partindo
do “fundamento real”, é impossível determinar qual é a essen­
cial. O fundamentado não contém, em si, nada que indique
qual dessas muitas definições do objeto deve ser considerada
como essencial. Dessa maneira, a escolha de uma delas, assim
como a característica desse ou daquele aspecto, que entra no

282
conteúdo do fundamentado, enquanto necessário ou contingen­
te, dependerá não da natureza objetiva da coisa, mas da posição
subjetiva do sujeito conhecedor.
Foi Hegel quem, pela primeira vez, chamou a atenção
sobre essa carência do fundamento real. “Isso permanece. . .
indeterminado, escreveu ele, ou seja, qual, dentre as numerosas
definições do conteúdo de uma coisa concreta, deveria ser
admitida como essencial e qual como fundamento. É por isso
que a escolha entre elas permanece livre”12.
Assim, a descoberta das causas do fenômeno estudado,
de um ou de outro de seus aspectos e ligações necessários,
condiciona a passagem do fundamento formal ao fundamento
real que, contrariamente ao primeiro que é fictício, representa
o fundamento real, determinando e explicando o fundamentado
não em toda sua diversidade, em toda a riqueza de seu con­
teúdo, mas somente no nível de algumas de suas propriedades.
No que concerne às outras propriedades, elas expl? am-se à
medida que há a descoberta de outros laços de causa e efeito,
assim como de aspectos e de ligações necessários, que aparecem
sob a forma de novos fundamentos reais, autônomos do todo
estudado. O crescimento do número de fundamentos diferentes
e contrários de uma coisa cria condições para escolher arbitra­
riamente uns e ignorar outros. Torna-se, então, necessário
reunir todos esses fundamentos e as propriedades que eles con­
dicionam em um todo único e explicá-los a partir de um
princípio único, isto é, passar a um novo fundamento, mais
aprofundado. Esse novo fundamento, que constitui um todo
único, e que explica todo o conteúdo do fundamentado, é um
fundamento completo.
O fundamento completo é constituído pelos aspectos
(relações) essenciais do todo estudado. Desde que os aspectos
e as relações essenciais determinem a formação, a mudança e
a correlação de todos os outros aspectos da formação material,
se nós os separarmos e adotarmos como princípio de partida,
poderemos explicar todos esses aspectos, evidenciar sua corre­
lação e determinar o lugar, o papel e o alcance de cada um
deles.

12G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, in Sämtliche Werke, cit.,


p. 577.

283
Se considerarmos um elemento químico, seu “fundamento
completo” será a carga do núcleo atômico. Partindo deste,
podemos explicar as propriedades e as ligações mais ou menos
fundamentais do elemento químico, incluindo os “fundamentos
reais”, que determinam algumas de suas propriedades, notada-
mente a estrutura do envólucro eletrônico e a presença de uma
certa quantidade de elétrons na camada eletrônica externa etc.
Para a sociedade em geral, o papel desse fundamento é desem­
penhado elo modo de produção, e para a sociedade capitalista,
em particular, pela mercadoria, as relações comerciais etc.
O “fundamento completo”, ao contrário do “fundamento
real”, determina não somente a identidade do fundamento e do
fundamentado, mas igualmente sua diferença; ele encerra, sob
uma forma anulada, todos os fundamentos reais da coisa, todas
as suas determinações, assim como sua correlação. A categoria
de “fundamento completo” exprime, de maneira mais ou menos
adequada, o fundamento do objeto estudado.
O movimento do conhecimento do fundamento, que vai
do “fundamento formal”, que é idêntico ao fundamentado e
não é nada mais do que uma outra expressão de seu conteúdo,
ao “fundamento real”, que exprime a identidade e a diferença
entre fundamento e fundamentado, revela a grande quantidade
de fundamentos do fundamentado, que se excluem mutuamente
e que, finalmente, chegam ao “fundamento completo”, que de­
termina e explica todos os aspectos do fundamentado e sua
correlação, traduz a tendência histórica real do desenvolvimento
do conhecimento.
Na Antigüidade, por exemplo, consideravam a eletricidade
(matéria elétrica), que se encontrava no âmbar e que se ma­
nifestava por fricção, como o fundamento dos fenômenos elé­
tricos. Temos aqui uma identificação completa do fundamento
e do fundamentado. Depois, foi estabelecido que os fenômenos
elétricos são engendrados pela fricção de duas substâncias, pelo
contato de diferentes materiais colocados em uma mesma solu­
ção, pelo contato de diferentes metais possuindo temperaturas
diferentes, pelo deslocamento de um condutor encerrado em um
campo magnético, pela irradiação dos condutores metálicos etc.
O fundamento e o fundamentado nunca coincidem. Descobri­
mos diferentes fundamentos em um mesmo fundamentado. E
ainda mais, manifestaram-se propriedades que não decorriam
desses fundamentos. Por exemplo, estabelecemos que a eletri­

284
cidade desprende uma centelha, eleva a temperatura do objeto,
decompõe os líquidos e os gases, provoca um movimento
mecânico, atravessa alguns corpos e não atravessa outros, atrai
certos corpos e repudia outros. Tudo isso não decorria do
fato de que ela foi engendrada pela fricção, nem porque ela
surgiu em um circuito constituído por diferentes materiais co­
locados em uma solução alcalina, nem mesmo do fato de que
ela surgiu em decorrência do deslocamento de um condutor
encerrado em um campo magnético, ou ainda como conse-
qüência da irradiação dos corpos ou de seu aquecimento. Essas
propriedades foram explicadas a partir de outros fundamentos.
Mas, quando foram descobertos os elétrons e as leis de sua
interação com os prótons, e entre eles, começamos a explicar
todos esses fundamentos e propriedades dos fenômenos elétri­
cos e de sua correlação a partir de um princípio único: a estru­
tura eletrônica da substância. Esse princípio desempenhou,
então, o papel de fundamento completo determinante, em últi­
ma análise, das propriedades dos fenômenos elétricos e de sua
correlação.
Tendo atingido a compreensão do fundamento, que se
manifesta sob a forma de fundamento completo, o sujeito co­
nhecedor, apoiando-se sobre ele, pode explicar todos os outros
aspectos e ligações necessários, que constituem a essência do
objeto estudado e reproduzir na consciência, no sistema dos
conceitos abstratos, a interdependência necessária, que existe
entre eles.

285
XIII. A CO NTRADIÇÃO .
A LEI D A U N ID A D E
E D A LUTA
DOS CONTRÁRIOS

1. A CONTRADIÇÃO
COMO UNIDADE E LUTA
DOS CONTRÁRIOS

Para extrair do fundamento todos os outros aspectos e


ligações necessários que caracterizam a essência do objeto
estudado, é necessário considerar o fundamento (o aspecto
determinante, a relação) e a própria formação material, em
seu aparecimento e em seu desenvolvimento. Isso supõe a
evidenciação da fonte do desenvolvimento da força, motora,
que faz avançar e condiciona sua passagem de um estágio do
desenvolvimento a outro. Essa fonte é a contradição, a unida­
de e a “luta” dos contrários. Assim, o conhecimento choca-se,
em seu desenvolvimento, com a necessidade de descobrir as
contradições, os aspectos e as tendências contrários próprios
de todas as coisas e fenômenos da realidade objetiva.
O que representam esses contrários e essa contradição?
São os chamados contrários, os aspectos cujos sentidos de
transformação são opostos e cuja interação constitui a contra­
dição ou a “luta” dos contrários. Por exemplo, os aspectos
que constituem o singular e o geral nas formações materiais
particulares são contrários, pelo fato de que eles possuem ten­
dências diretamente opostas: o singular tem a tendência de
não se repetir, o geral repete-se sempre. O conteúdo e a forma
também são contrários. A mudança permanente, a flutuação
são uma tendência do conteúdo; a imutabilidade relativa, a
estabilidade, uma tendência da forma.
Possuindo tendências opostas em seu funcionamento, sua
mudança, e seu desenvolvimento, os contrários excluem-se reci­

286
procamente e encontram-se em estado de luta permanente;
entretanto, eles não são divergentes e não se destróem mutua­
mente; existem juntos e não apenas coexistem, mas estão ligados
organicamente, interpenetram-se e supõem-se um ao outro, o
que equivale dizer que eles são unidos e representam a unidade
dos contrários.
Com efeito, o singular não existe em si mesmo, indepen­
dentemente do geral, mas unicamente em ligação orgânica, em
unidade com o geral; não há fenômeno, ou forma sem conteúdo;
cada forma possui um ¿ímteúdo, cada conteúdo, uma forma,
portanto, o conteúdo e a forma existem sempre em ligação
indissolúvel.
A unidade dos contrários é, portanto, antes de *udo, seu
estabelecimento recíproco, isto é, os aspectos ou tendências
contrários não podem existir uns sem os outros. Mas, para­
lelamente, a unidade exprime igualmente uma certa coinci­
dência dos contrários, nesses ou naqueles momentos ou ten­
dências. Pelo fato de que os contrários caracterizam uma
única e mesma formação, uma única e mesma essência, eles
devem necessariamente ter muitas coisas em comum, coincidir
em toda uma série de propriedades essenciais porque, em caso
contrário, sua interação não poderia criar uma {contradição)
dialética viva;, não poderia tornar-se o fundamento da existên­
cia do fenômeno qualitativamente determinado correspondente.
Mostrando o que é comum aos. contrários que são recipro­
camente ligados e que constituem essa ou aquela contradição
dialética, Karl Marx escreveu que: “ . . . o pólo Norte e o pólo
Sul são igualmente pólos, sua essência é idêntica, e o mesmo
acontece com o sexo feminino e o sexo masculino, que formam
uma única e mesma espécie, uma única essência — a essência
humana. O Norte e o Sul são determinações contrárias de uma
única e mesma essência, são diferenças da mesma essência que
alcançou o estágio supremo de seu desenvolvimento. Eles
representam uma essência diferenciada. São o que são, unica­
mente como determinação diferenciada e precisamente como
essa determinação diferenciada da essência”!.
Os contrários, sendo aspectos diferentes de uma única e
mesma essência, não apenas excluem-se uns aos outros, mas

'K. Marx e F. Hengels, Oeuvres ed. russa, t. 1, p. 321.

287
também coincidem entre si, e exprimem não apenas a diferença,
mas também a identidade. E é unicamente graças a uma certa
coincidência de sua natureza, graças à identidade que trans­
parece pela sua diferença, que eles interpenetram-se e supõem-
se uns aos outros, e que eles constituem uma contradição
dialética. Assim, a identidade dos contrários é um momento
da contradição, que é tão necessária, quanto sua diferença.
A equivalência dos contrários é uma das formas de sua
identidade, de sua coincidência que aparece no estágio de
desenvolvimento da contradição em que se estabelece um certo
equilíbrio de forças opostas, em que estas parecem tornar-se
equivalentes. Üm exemplo da equivalência dos contrários pode
ser fornec. j Ò pela relação das forças da revolução e da contra-
revolução na Rússia de 1905. Analisando essa situação, Lenin
escreveu que: “Balanço realizado nesse dia (30 [17] de outu­
bro, segunda-feira): equilíbrio de forças: . . . o czarismo não
tem mais a força necessária para vencer, e a revolução ainda
não a tem"2. Uma situação análoga a essa foi criada na Rússia
de 1917, depois da revolução de Fevereiro, quando o governo
de Kerensky passou abertamente para a repressão do proleta­
riado revolucionário. Nesse momento, os Sovietes, submetidos
à direção dos democratas pequeno-burgueses, eram impotentes,
e a burguesia ainda não era suficientemente forte para li­
quidá-los.
A equivalência dos contrários exprime o estado de matu­
ridade da contradição e caracteriza-se por uma exasperação da
luta de forças contrárias. “ ( . . . ) Longe de excluir a luta, o
equilíbrio das forças a torna, ao contrário, particularmente
aguda”3.
A identidade (coincidência) dos contrários encontra sua
expressão, a mais completa, no momento da passagem dos
contrários um no outro. Esse momento da luta dos contrários
ganha uma importância particular pelo fato de que ele designa
a resolução da contradição e a passagem do objeto a um novo
estado qualitativo, o que quer dizer que ele é um ponto nodal
do desenvolvimento. Levando em conta a importância par­
ticular desse momento, no desenvolvimento da contradição,*

*V. Lenin, Oeuvres, t. 9, p. 429.


SV. Lenin, op. cit., p. 464.

288
dessa forma de manifestação da identidade dos contrários,
Lenin definia a dialética como a teoria da identidade dos con­
trários, das leis da passagem de um no outro. “A dialética é a
teoria da forma pela qual contrários podem ser e habitualmente
são (porque assim eles se tornam) idênticos — condições nas
quais eles são idênticos mudando-se um no outro — razões
por que o espírito humano não deve tomar esses contrários
por mortos, fixos, mas por vivos, condicionados, móveis, mu­
dando-se um no outro”4.^
Assim, a contradição é a unidade dos contrários e a luta
de contrários que se excluem e se supõem mutuamente.
Sendo um momento necessário da contradição, a unidade
e a luta dos contrários não ocupam, entretanto, a mesma po-
sição. A unidade dos contrários é sempre relativa, enquanto
que a “luta” deles é absoluta. O caráter relativo da unidade
dos contrários exprime-se antes de tudo no fato de que ela é
temporária, aparece em certas condições apropriadas, existe
durante um certo tempo e, em deccorrência do desenvolvimento
da “luta” dos contrários que a constituem, é destruída e subs­
tituída por uma nova unidade que, sob a pressão da “luta” dos
contrários que lhe são próprios, a um certo estágio de desen­
volvimento da contradição, encontra-se igualmente excluída e
substituída por uma outra, melhor adaptada às novas condições.
Essa última, depois de existir um certo tempo, é igualmente
eliminada e substituída por uma nova, e assim sucessivamente
até o infinito.
Além de sua existência temporária, o caráter relativo de
cada unidade concreta manifesta-se igualmente na coincidência
incompleta dos contrários, na ausência de um acordo total no
funcionamento e no desenvolvimento desses últimos, assim co­
mo no caráter transitório de sua equivalência.
O absoluto da “luta” dos contrários está no fato de que
ela está presente em todos os estágios da existência dessa ou
daquela unidade, de que é o elo que faz a ligação entre ela
mesma e a outra, que a substitui, e também no fato de que é
precisamente baseados nela que se produzem o aparecimento, a
mudança, o desenvolvimento de toda a unidade concreta e sua
passagem para uma nova unidade.

4V. Lenin, op. cit., t. 38, p. 107.

289
Lenin unia o caráter relativo da unidade dos contrários ao
repouso relativo e o caráter absoluto da luta dos contrários ao
movimento absoluto5.

2. CONTRADIÇÃO E DIFERENÇA

Dizendo que a contradição representa a unidade e a luta


dos contrários, temos em vista a contradição que já chegou
à maturidade e já está completamente formada. Mas ela não
está ligada somente aos contrários, como pensam alguns autores.
Unir a contradição unicamente aos contrários significa consi­
derar estes como dados, sob uma forma já pronta, enquanto
que eles aparecem e desenvolvem-se a partir de outras formas
do ser.
As diferenças constituem a forma geral do ser, a partir
da qual desenvolvem-se as contradições. É por isso que con­
cordamos com os autores que relacionam as primeiras fases da
existência da contradição com a diferença67. Alguns desses
autores ultrapassam os limites e cometem um grave erro, quando
declaram que toda diferença é contradição. Esse ponto de
vista é expresso, por exemplo, por Ai Sy-tsi: “As diferenças
são uma forma de manifestações das contradições, as diferenças
trazem nelas mesmas esses elementos da contradição, e é por
isso que não podemos dizer que as diferenças não são contra­
dições”?.
Se toda diferença se apresentasse como uma contradição
ou uma forma de manifestação da contradição — e as diferen­
ças existem em todo lugar, entre outras formações materiais e
aspectos de uma mesma formação material — não poderíamos
distinguir na realidade outras ligações e relações além das
contradições, que representariam a única forma de correlação
dos objetos e de seus aspectos. A diversidade das ligações e
das relações que existem na realidade objetiva está longe de

5V. Lenin, op. cit., t. 38, p. 344.


eB. D. Morozov, As contradições internas e seu papel no desenvol­
vimento, in O Caráter contraditório do desenvolvimento, Minsk, 1961,
(Col.) p. 18-41. Original em russo.
7Ai Sy-Tsi, Lições de materialismo dialético, Moscou, 1959, p. 175.
Original em russo.

290
reduzir-se às contradições. O caráter contraditório é universal,
mas ele não é a única forma de ligação. Na realidade objetiva,
existem também relações de harmonia, de concordância, de
correspondência.
O ponto de vista que decreta que toda diferença é uma
contradição não permite a elucidação da natureza da contradi­
ção, pelo fato de que deixa na obscuridade, precisamente, os
elementos que constituem a essência desta última e concentra
a atenção sobre o aspecto.',exterior. Além disso, esse ponto de
vista pode desorientar os homens em sua atividade prática e
cognitiva, porque confunde as relações mais diferentes e, exata­
mente por isso, entra o discernimento das contradições reais
que determinam a vida interior, o movimento autônomo e o
desenvolvimento do todo estudado.
Embora percebendo a divergência manifesta entre esse
ponto de vista e a realidade, alguns autores esforçam-se para
limitar o círculo das diferenças consideradas como contradições.
Alguns registram como contradições apenas as diferenças fun­
damentais9, outros, as diferenças internas9. Entretanto, nem
o fato de pertencerem ao domínio interno dos fenômenos nem
o caráter essencial permitem distinguir a simples diferença da
diferença-contradição. Na realidade, há diferenças essenciais e
internas que não são contraditórias, e vice-versa, há diferenças
não -essenciais e externas que são contradições. Por exemplo, as
diferenças entre os órgãos dos sentidos do homem são internas,
essenciais e, ao mesmo tempo, não são contraditórias e funcio­
nam de maneira coordenada. Da mesma forma, as diferenças
entre as seções particulares da produção socialista são internas e
fundamentais; entretanto, quando os organismos de planejamen­
to da economia funcionam normalmente, não pode haver contra­
dições entre as diversas seções da produção. Por outro lado, as
diferenças entre alguns capitalistas, que são, por seu caráter,
externas e não essenciais, desempenham o papel de contradi­
ções. As diferenças entre os partidos burgueses são igualmente

8E. B. Chur, Problemas de filosofia, 1956, v. 4, p. 71. Original em


russo.
8V. P. Rojin, A dialética marxista-leninista como ciência filosófica,
Leningrado, 1957, p. 52-3. Original em russo. B. C. Ucraintsev, A. C.
Kovalhtchik, V. P. Tchertkov, A dialética da transformação do socialis­
mo em comunismo, p. 26-7. Original em russo.

291
não-essenciais, extemas, mas manifestam-se, como é preciso,
mediante essas ou aquelas contradições.
Tudo isso mostra que pertencer ao domínio interno do
fenômeno, assim como ter caráter essencial, não são os traços
determinantes que transformam a simples diferença em contra­
dição.
Não é nem o fato de pertencer ao domínio interno nem
o caráter essencial das diferenças que faz delas contradições
(porque as contradições não são somente internas, mas também
externas, não somente essenciais, mas também não-essenciais),
mas sim o fato de que essas diferenças podem relacionar-se a
tendências opostas da mudança desses ou daqueles aspectos em
interação. Apenas os aspectos diferentes que têm tendências
e orientações de mudança e de desenvolvimento diferentes
encontram-se em contradição. Por exemplo, as contradições
entre certas seções da produção socialista que surgem, às vezes,
em decorrência do trabalho insuficientemente exato das orga­
nizações do planejamento aparecem não porque essas seções
sejam diferentes, mas porque no desenvolvimento dessas seções
aparecem diferentes tendências e uma discordância. Isso tam­
bém explica o aparecimento de contradições entre certos Esta­
dos socialistas, embora a comunidade de seu regime sócio-
político faça com que eles tenham a mesma perspectiva de
desenvolvimento, voltado para o socialismo e o comunismo.
Essa comunidade acarreta, é óbvio, uma concórdia e uma har­
monia necessárias em suas relações. Entretanto, há momentos
em que, na aproximação dessa ou daquela questão do movimen­
to comunista, desse ou daquele problema econômico ou político,
divergências ou tendências diferentes surgem entre certos Es­
tados socialistas. Nesse caso, podemos falar do surgimento de
contradições, que encontram sua solução em ações coordenadas,
na elaboração de uma aproximação comum do problema em
questão.
Assim toda diferença é apenas contradição, mas ela o é
quando concerne a tendências do desenvolvimento, e orienta­
ções das mudanças desse ou daqueles aspectos. Apenas os
aspectos diferentes desse tipo estão em estado de “luta” e, no
curso de seu desenvolvimento, estão, inclusive, prontos para
transformar-se em contrários, isto é, eles constituem o estágio
inicial da existência de contradições.

292
3. OS GRAUS DO DESENVOLVIMENTO
DA CONTRADIÇÃO

A contradição começa a partir de uma diferença não-


essencial e passa em seguida ao estágio de diferença essencial.
Nas condições adequadas, as diferenças essenciais tornam-se
contrários. A partir desse estágio e em seu desenvolvimento,
as contradições chegai* ao estágio dos extremos, em que os
contrários entram em conflito, passam um no outro, tornam-se
idênticos e, exatamente por isso, condicionam a resolução das
contradições. Uma vez as contradições resolvidas, a formação
material chega a um novo estado qualitativo, incluindo um novo
grupo de contradições.
Tomemos um exemplo concreto, o do desenvolvimento da
contradição entre o proletariado e a burguesia. Essa contradi­
ção tem suas raízes em um passado longínquo, apareceu no
período da produção artesanal e manifestou-se nesse estágio,
primeiramente sob a forma de uma diferença não-essencial entre
o contramestre (patrão), por um lado, e os ajudantes e apren­
dizes, por outro lado. De fato, no começo, entre o contra­
mestre que dirigia o atelier e os ajudantes e aprendizes que exe­
cutavam suas ordens, a diferença não era essencial, porque,
nessa época, em virtude do estatuto do aprendizado, o aluno,
depois de ter passado por um círculo de formação, tomava-se
automaticamente um ajudante, e o ajudante, depois de ter
adquirido uma certa experiência, podia tornar-se contramestre
(patrão). Isso significa que os ajudantes e os aprendizes eram
contramestres em potencial, e que entre eles a única diferença
era proveniente do tempo e da experiência.
Mas, no curso do desenvolvimento da produção em um
atelier, essa ordem das relações mútuas entre contramestre,
ajudantes e aprendizes foi substituída por uma nova ordem,
segundo a qual os aprendizes e os ajudantes não podiam mais
tornar-se automaticamente contramestres e permaneciam sempre
na situação de subordinados, de assalariados. A diferença não-
essencial entre aprendizes, ajudantes e contramestres transfor­
ma-se, então, em uma diferença essencial. Depois que o
artesanato foi substituído pela manufatura, essa contradição
passou do estágio das diferenças essenciais ao dos contrários.
Se anteriormente, na produção artesanal, o proprietário do
atelier trabalhava ainda com seus aprendizes e alunos, na ma­

293
nufatura, o patrão fica à parte e não participa diretamente da
produção, vive inteiramente às custas do trabalho dos assalaria­
dos, graças a sua exploração.
Desde então, os interesses do patrão e dos operários
tornam-se radicalmente opostos. Mas esse ainda não é o fim
dessa contradição. À medida que há o desenvolvimento da
produção capitalista, essa contradição acentua-se, torna-se
mais aguda e, depois de ter atingido sua forma suprema, en­
contra sua resolução na revolução socialista. No curso dessa,
o proletariado de classe oprimida e explorada torna-se a classe
dominante, estabelece sua ditadura, enquanto que a burguesia
vê-se afastada do poder e torna-se a classe oprimida. Os con­
trários transformam-se um no outro, trocam suas posições e
tornam-se como que idênticos. Em decorrência, o antigo estado
qualitativo da sociedade — a antiga forma de relações — é
liquidado e o novo estado qualitativo forma-se, acompanhado
de novas contradições.
Vemos nesse exemplo como, depois de seu nascimento, a
contradição transpõe em seu desenvolvimento vários estágios,
desde as formas inferiores até as formas superiores de manifes­
tação. Mas esse movimento da contradição de um estágio a
outro realiza-se não somente no sentido indicado, isto é, das
formas inferiores para as superiores, mas igualmente em sentido
inverso, ou seja, das formas superiores e extremas para as
formas sempre mais inferiores, até o seu completo desapare­
cimento.
Essa orientação no movimento da contradição pode ser
observada na resolução, na União Soviética, da contradição
entre a cidade e o campo. Às vésperas da revolução socialista,
essa contradição atingira o estágio de oposição extrema dos
contrários. À base dessa oposição estava a opressão do campo
(camponeses trabalhadores) pela cidade (burguesia urbana).
No curso da revolução socialista, com a limitação da burguesia
urbana, a cidade não podia mais explorar o campo que, na
pessoa dos Koulaks, pôs-se a explorar a cidade, especulando
sobre os produtos agrícolas. No curso da coletivização da
agricultura, toda a base de oposição entre a cidade e o campo
desapareceu e essa contradição passou para o estágio de dife­
rença essencial. Com efeito, entre a classe operária soviética
e os kolkhoziens ainda há algumas diferenças essenciais, que
são concernentes, em primeiro lugar, às formas de propriedade

294
(a classe operária está ligada à propriedade social socialista,
enquanto que os camponeses Kolkhozianos estão ligados à pro­
priedade coletiva), às condições de trabalho e às formas de
remuneração. Na URSS, com a elevação da propriedade
kolkhoziana ao nível de propriedade de todo o povo, com base
na mecanização progressiva da produção agrícola e da apro­
ximação das condiçqjs de trabalho nas cooperativas agrícolas,
com as condições das empresas do Estado, a contradição entre
a cidade e o campo, entre a classe operária e os camponeses,
passará ao estágio de diferença não-essencial. Atingindo o
estágio de diferença não-essencial, os aspectos da contradição,
assim como no estágio de oposição mais aguda, passam um no
outro, parecem tornar-se idênticos, porque eles são chamados
a ocupar, sob qualquer relação, a mesma posição e representam
um todo único: os trabalhadores de uma sociedade sem classe.
Assim, a contradição não é uma coisa fixa, imutável, mas
encontra-se em movimento incessante, em mudança permanente,
passando das formas inferiores às superiores, e vice-versa, en­
quanto os contrários passam um pelo outro, tornam-se idênticos,
e a formação material que os possui propriamente entra em um
novo estado qualitativo.

4. A CONTRADIÇÃO
COMO FORMA UNIVERSAL
DO SER
Os metafísicos, como era inevitável, negam o caráter
contraditório da natureza das coisas, de sua essência, acredi­
tando que as coisas não podem contradizer-se a elas mesmas.
Assim, Kant declarava que a “coisa em si” não encerra nenhu­
ma contradição, que as contradições encontram-se unicamente
no pensamento, quando este esforça-se para captar a incognos-
cível “coisa em si”, o que testemunha a fraqueza da razão
humana e sua incapacidade de sair do quadro do fenômeno.
Max Hartmann defendia um ponto de vista análogo, quan­
do afirmava que “o que é contraditório não é o que existe em
si, não é a razão em si, mas a exigência de que a razão englobe
o existente em sua totalidade”io.10

10M. Hartmann, Die philosophischen Grundlagen der Naturwissen­


schaften, Jena, 1948, p. 36.

295
O filósofo norte-americano Sidnay Hook nega a existência
objetiva das contradições. Segundo ele, o termo “contradição”
é inaplicável às coisas. Apenas os pensamentos e os juízos
podem ser contraditórios, não as coisas. Sidnay escreveu que:
“A tese fundamental de todas as leis da dialética é a convicção
de que a contradição está ‘objetivamente presente ñas coisas e
nos processos’. Isto é, no mínimo, uma utilização estranha
do termo “contradição”, e principalmente na medida em que,
desde Aristóteles, o fato de que as proposições, os juízos ou
as afirmações são contraditórios, e não as coisas ou os aconte­
cimentos, tornou-se um laço comum da teoria lógica”11. Hook
justifica da seguinte maneira seu ponto de vista: “Se tudo que
existe é contraditório. .. e se todo pensamento correto é urna
imagem ou um reflexo das coisas, a consequência disso seria
um caráter infalível do falso. E as ciências que consideram
a conseqüéncia como uma condição necessária da verdade não
poderiam progredir”. Prosseguindo, ele diz que: “Se tudo o
que existe é contraditório, então Engels não tinha o direito de
dizer que o pensamento, sendo um produto da natureza, deve
‘corresponder’ à natureza, em vez de contradizê-la”12.
A contradição, assim como a inconsequência do pensa­
mento, só é efetivamente própria ao pensamento quando ele é
incorreto. Sendo um dos traços de um pensamento incorreto,
essa forma de contradição não é a conseqüéncia do reflexo, na
consciência, da contradição das coisas, e também não pode ser
um princípio lógico do pensamento correto. Se a contradição
só existisse sob a forma de inconseqüência do pensamento, de
contradição dos enunciados, dos juízos e das afirmações, Sidnay
Hook teria uma certa razão. Mas a contradição existe não
apenas sob a forma de inconseqüência do pensamento, ela
existe, e antes de tudo, sob a forma de aspectos e de tendências
contrárias, próprias às coisas e aos fenômenos do mundo exte­
rior e a seu reflexo no conhecimento. Como conseqüéncia,
um pensamento justo tem por meta reproduzir na consciência,
sob a forma de sistema de imagens ideais, a realidade objetiva
das coisas, as ligações e relações reais do objeto estudado, e
não pode ignorar esse caráter contraditório das coisas, a pre-

nS. Hook, Dialectical Materialism and Scientific M ethod, Manches­


ter, 1955, p. 7.
12S. Hook, op. cit.

296
sença nelas de aspectos e tendências contrários, da mesma
maneira como também não pode ignorar uma certa conse-
qüência dos fenômenos. É por isso que, entre os princípios
lógicos do pensamento, ao lado da exigência de conseqüência
deve estar presente a exigência do desdobramento necessário
do objeto do pensamerfk) em aspectos contrários, assim como
o conhecimento de sua natureza contraditória. O reconheci­
mento da contradição das coisas e da necessidade de levar isso
em conta no processo do conhecimento, do pensamento, não
somente não contradiz a exigência de que os pensamentos
correspondam à verdade, mas, pelo contrário, é uma das con­
dições mais importantes para atingir essa correspondência.
O filósofo inglês contemporâneo Philip Spratt defende um
ponto de vista análogo àquele de Sidnay Hook. Ele declara
que: “se reconhecemos que, em determinados casos, um mesmo
juízo é, ao mesmo tempo, verdadeiro e falso, segue-se de ma­
neira simples e rigorosa que todos os juízos são verdadeiros e
que suas negações são verdadeiras também”13. Em outros
termos, se reconhecemos como verdadeiros dois juízos contra­
ditórios, seremos obrigados a reconhecer como verdadeiros to­
dos os juízos, mesmo se eles se contradizem. E isso não é
nada mais do que “uma confusão linguística”1*.
O erro do raciocínio de Spratt é evidente. O reconheci­
mento, como verdadeiro, de dois juízos contrários, como, por
exemplo, “um corpo em movimento encontra-se em um ponto
dado”, e “um corpo em movimento não se encontra em um
ponto dado”, não implica absolutamente a necessidade de
reconhecer como verdadeiros dois juízos contraditórios. A
exatidão dos juízos depende não do fato de que eles se encon­
trem ou não em contradição, ou em concordância, mas do fato
de que eles reflitam ou não a situação real das coisas. E, pelo
contrário, qualquer que seja o grau das contradições entre os
juízos, eles serão verdadeiros se corresponderem à situação real
das coisas, se refletirem a natureza contraditória do objeto do
pensamento.
Para o metafísico que nega o caráter contraditório das
coisas e do conhecimento, o reconhecimento da exatidão desses*14

lsPh. Spratt, A new look at Marx, Londres, 1957, p. 19.


14Ph. Spratt, op. cit.

297
ou daqueles juízos contraditórios assemelha-se efetivamente, a
uma confusão de linguagem: o espírito metafísico não é efeti­
vamente capaz de captar o processo real em toda sua com­
plexidade e em toda sua contradição e também não pode
representar a coisa como a unidade dos contrários.
Johann Fischl15, teólogo alemão contemporâneo, assim
como o filósofo inglês Herbert Wood e outros tentaram igual­
mente refutar a tese do materialismo dialético, sobre a contra­
dição das coisas e dos processos, a partir da lei da lógica formal
sobre a contradição (não-contradição).
Uma tendência análoga nasceu entre certos filósofos mar­
xistas. Os teóricos poloneses Kazimier Ajdukiewicz, Adam
Schaff e outros negam, como sendo incompatível com as leis
da lógica formal sobre a contradição o caráter contraditório do
movimento mecânico (por exemplo: um corpo em movimento
encontra-se em um único e mesmo lugar e não se encontra).
Kazimier Ajdukiewicz, por exemplo, escreve que: “ ( . . . )
O enunciado, segundo o qual um objeto em movimento encon­
tra-se em cada momento de seu movimento em algum lugar e,
ao mesmo tempo, não se encontra nesse lugar, poderia ser
compreendido no sentido de que, a cada momento de seu mo­
vimento, esse corpo em movimento chega a um certo lugar, mas
não permanece aí. Se aceitamos essa interpretação da tese. . .
não poderemos encontrar nela a confirmação da afirmação,
segundo a qual, o movimento inclui a contradição. Porque
não é menos contraditório afirmar que, a cada momento de seu
movimento, o corpo encontra-se em algum lugar e, ao mesmo
tempo, não se encontra nesse lugar, se o termo “encontrar-se
em algum lugar” na primeira metade da frase é utilizado em
um outro sentido do empregado na segunda parte dessa mesma
frase”167. Ele conclui dizendo que: “Assim, devemos refutar a
premissa essencial na demonstração procurada, que deveria
mostrar que a mudança inclui a contradição”1,1.
Adam Schaff, no decorrer de seus raciocínios, chega a
uma conclusão análoga. Depois de ter precisado os termos

16J. Fischl, Die Weltanschauung des sowjetrussischen Materialismus,


Vortrag im Katholischen Bildungswerk in Linz a. d. Donau, 1953.
19K. Ajdukiewicz, Uber Fragen der Logik, in Deutsche Zeitschrift
für Philosophie, 1956, v. 3, p. 318-38.
I7K. /„‘Jukiewicz, op. cit.

298
que traduzem a presença e a não-presença, em um ponto dado,
de um corpo em movimento, ele declara que: “O objeto que
se move transpõe ura ponto dado do espaço, e é unicamente
nesse sentido que ele ‘e ‘ e que ele ‘encontra-se’ nele. Se dize­
mos que um corpo em movimento encontra-se em um ponto
qualquer do espaço e, ao mesmo tempo, não se encontra nesse
ponto e, se entendemos por isso que esse corpo atravessa esse
ponto e, ao mesmo tempo, não o atravessa, emitimos, então,
um juízo que se contradiz, que é evidentemente inexato, porque
um corpo que se desloca atravessa certos pontos do espaço”18.
Mais adiante, para mostrar a incompatibilidade do caráter con­
traditório do movimento com as leis da lógica formal, ele
prossegue dizendo que: “Se nós a reconhecemos (a lógica for­
mal — A. Ch.), não podemos conciliar esse reconhecimento
com o reconhecimento do caráter contraditório lógico, disso
decorre necessariamente da adoção do caráter contraditório do
objeto encerrado no movimento material. Porque senão, ou é
a lógica formal que é falsa ou, então, a tese sobre o caráter
contraditório objetivo do movimento está errada. Não estamos
preservados da necessidade de resolver esse problema, nem
pelas frases ‘dialética’, nem pelas acusações de revisionismo
A verdade científica está acima de tudo. Eu estou convencido
de que uma tal posição corresponde inteiramente ao espírito do
marxismo”18.
Toda a argumentação da negação do caráter contraditório
do movimento está baseada na lei da lógica formal sobre a
contradição (a não-contradição). Para os autores, o que é
decisivo não é a concordância dos juízos que negam e fixam
o caráter contraditório do movimento com a situação real das
coisas, mas sua concordância com a lei lógica da contradição.
Entretanto, essa lei, exprimindo a exclusão recíproca e a in­
compatibilidade de certos fenômenos e propriedades, na reali­
dade objetiva, não pode exprimir a unidade da exclusão e do
estabelecer recíprocos, da interpenetração e da intercorrelação
dos contrários. É por isso que, exatamente no ponto em que
essa unidade contraditória se reflete, ela é insuficiente.

18A. Schaff, Über Fragen der Logik, in Deutsche Zeitschrift für


Philosophie, 1956, v. 3, p. 338-52.
'^Studie Philozoficzne, 1957, v. 1, p. 210.

299
Ao contrário do materialismo metafísico, o materialismo
dialético não somente reconhece a existência das contradições,
mas acredita que a contradição é uma condição universal da
existência da matéria, uma forma universal do ser. Segundo
o materialismo dialético, qualquer que seja a formação material
considerada, quaisquer que sejam os domínios que focalizamos,
descobrimos necessariamente a presença de aspectos e de ten­
dências contrários, a unidade dos contrários, e a presença de
contradições. Em particular, para toda sociedade, a contradi­
ção entre a produção e o consumo é um fato, para a sociedade
de classes, há também a contradição entre as diferentes classes;
para o pensamento, há a interação da análise e da síntese; para
a atividade nervosa superior, há a excitação e a inibição, a irra­
diação e a concentração dos estímulos. No organismo vivo
desenvolvem-se permanentemente processos contraditórios de
absorção e de rejeição, de hereditariedade e de mutações; na
molécula, há processos de atração e de repulsão; no átomo, há
a interação dos elétrons e dos prótons, dos elétrons e dos pósi-
trons, dos prótons e dos antiprótons; a própria partícula “ele­
mentar” representa igualmente a unidade dos contrários e, em
particular, o elétron é caracterizado como unidade de onda e
do corpúsculo, e assim também é o caso do fóton, unidade de
energia luminosa. Na mecânica, encontramos a ação e a re-
troação; na eletricidade, a carga negativa e a positiva; no
magnetismo, o pólo Norte e o pólo Sul; na matemática, o mais
e o menos etc. Logo, não há fenômenos em que não possamos
descobrir contradições, não há formação material ou ideal que
não represente uma unidade dos contrários.
Sendo uma forma universal da existência da matéria, a
contradição — unidade e luta dos aspectos contrários — é a
lei fundamental da realidade objetiva e do conhecimento, assim
como uma das leis fundamentais da dialética.

5. A CONTRADIÇÃO COMO ORIGEM


DO MOVIMENTO E DO
DESENVOLVIMENTO

O reconhecimento da contradição, da unidade e da luta


dos contrários, enquanto condição universal da existência da
matéria, enquanto lei universal da realidade, permite ao ma-

300
terialismo dialético resolver científicamente a questão da origem
do movimento e do desenvolvimento.
Os metafísicos, negancio a existência objetiva das contra­
dições, fecharam para si mesmos o caminho de uma resolução
mais ou menos satisfatória do problema da origem do movi­
mento, da força motriz da matéria, e foram obrigados a se virar
para a impulsão inicial como já o fizera Newton, ou, então,
recorreram a Deus, com o fizeram Aristóteles e Wetter, filósofo
idealista alemão contemporâneo ou, ainda, negaram a realidade
do movimento, classificando-o de aparente, como fez, em sua
época, o filósofo grego Zenon.
O materialismo dialético, ao contrário do materialismo
metafísico, considera as contradições, a luta dos aspectos e das
tendências próprios da formação material como a origem do
movimento e do desenvolvimento. A idéia da contradição
como origem do movimento foi enunciada, sob uma forma
geral, pelo filósofo grego Heráclito e posteriormente desenvol­
vida e generalizada por Hegel que a aplicou ao conhecimento.
“A contradição, escrevia Hegel, é o que realmente move o mun­
do e é ridículo dizer que não podemos pensar a con trad ição”20.
“A contradição. . . é a raiz de todo movimento e de toda vita­
lidade”21.
Essa tese foi científicamente criada e desenvolvida, com
uma base materialista, por Marx e Engels, depois por Lenin,
isto é, apenas pelo materialismo dialético. “O que constitui o
movimento dialético é a coexistência de dois lados contraditó­
rios, sua luta e sua fusão em uma nova categoria”22. O movi­
mento, declara Engels, seguindo Marx, faz-se “pela oposição
dos contrários que, por seu conflito constante. . . condicionam
precisamente a vida da natureza”23. “O desenvolvimento, diz
Lenin, é a ‘luta’ dos contrários”2*.
Com efeito, a contradição representa a interação dos as­
pectos e das tendências contrárias. Essa interação condiciona

S°G. W. F. Hegel, Werke, Vollständige Ausgabe, v. 6, p. 242.


S1G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, in Sämtliche Werke, v. 4,
p. 546.
22K. Marx, Misère de la philosophie, Paris, Editions Sociales, 1961,
p. 122.
2SF. Engels, La dialectique de la nature, p. 213.
2,,V. Lenin, op. cit., t. 38, p. 344.

301
sempre, e ainda mais fortemente, quando eia se realiza entre
os contrários, as mudanças constantes nos aspectos ou entre os
corpos em interação.
Por exemplo, a interação da produção e do consumo, que
são aspectos contrários da sociedade, condiciona uma mudança
incessante neles mesmos e nos domínios correspondentes da
vida social. Com efeito, pela produção de bens, os homens
aperfeiçoam-se e suas necessidades modificam-se. As novas
necessidades que aparecem fixam novos objetivos para a pro­
dução. Para satisfazer essas necessidades, a produção desen­
volve-se necessariamente e os homens aperfeiçoam-se no
decorrer de seu desenvolvimento. Adquirem novas necessi­
dades, que fixam a produção de novos objetivos e assim
sucessivamente. A produção em desenvolvimento acarreta o
desenvolvimento das necessidades, sua mudança, e as necessi­
dades que se modificam trazem certas mudanças na produção.
À medida que se acumulam as mudanças na produção, à me­
dida que se aperfeiçoam as forças produtivas, estas últimas
ultrapassam sensivelmente, em seu desenvolvimento, as relações
de produção, que começam, então, a refrear o desenvolvimento
das forças produtivas e acarretam suas mudanças que, por sua
vez, acarretam mudanças correspondentes nos órgãos do poder,
na política, no direito, na ética etc.
Tudo isso deixa evidente que a luta dos contrários condi­
ciona necessariamente mudanças correspondentes nos aspectos
em interação da formação material e naqueles que lhes estão
ligados e, ao mesmo tempo, condiciona seu desenvolvimento,
sua passagem para um estado novo, qualitativamente mais
elevado, isto é, a luta dos contrários é a origem do movimento
e do desenvolvimento, a impulsão da vida.

6. AS LEIS DO CONHECIMENTO
DA CONTRADIÇÃO

Ainda que a necessidade do desdobramento do “um” em


aspectos contrários, da evidenciação da natureza contraditória
do objeto estudado, tenha surgido no estágio da reprodução, na
consciência, de sua essência, o conhecimento das contradições
começa muito mais cedo. Os primeiros passos nessa direção

302
foram dados praticamente no estágio da colocação em evidência
das características qualitativas e quantitativas.
O momento primeiro, inicial, do conhecimento da con-
tradição é a descoberta, no objeto estudado, de fenômenos
diferentes e contrários que, no começo, são considerados, fora
de sua correlação e de sua interdependência, como completa­
mente autônomos e coexistindo independentemente.
No curso do desenvolvimento posterior do conhecimento,
estabeíeceu-se sua ligação recíproca, sua colocação mútua e sua
passagem recíproca de um pelo outro, e isso levou a considerá-
los como aspectos indissoluvelmente ligados de um mesmo
fenômeno, como a unidade dos contrários.
A história do conhecimento da eletricidade ilustra muito
bem essa lei do movimento do conhecimento.
Sabemos que os primeiros fenômenos elétricos foram obser­
vados na Antigüidade com o âmbar, graças a sua faculdade de
atrair outros corpos, quando friccionados. Em seguida, foi
descoberta essa mesma propriedade na ágata, no diamante, no
cristal de rocha, no enxofre e em outros corpos. Na segunda
metade do século XVII, Guericke descobriu que, ao lado do
fenômeno de atração existia também o da repulsão elétrica e
concluiu que a atração elétrica manifesta-se quando há a inte­
ração de um corpo eletrizado com um corpo não eletrizado,
enquanto que a repulsão produz-se entre dois corpos ele-
trizados.
A atração e a repulsão elétricas são consideradas, aqui,
como dois fenômenos autônomos não ligados entre si, embora
eles sejam produzidos por uma única e mesma força elétrica.
Logo depois, Du Fay estabeleceu que nem todos os corpos
eletrizados se repudiam e que há mesmo alguns, dentre eles,
como a resina e o vidro, que se atraem. Estudando esse fe­
nômeno, ele concluiu que há dois tipos de eletricidade que se
atraem mutuamente e repudiam seus semelhantes. Ao primeiro
tipo, ele deu o nome de eletricidade de vidro e, ao segundo, o
nome de eletricidade de resina. O primeiro aparece (depois
de friccionado) no vidro (daí o nome), nas pedras preciosas,
nos cabelos etc.; o outro aparece no âmbar, na resina, na
seda etc. A diferença essencial entre esses dois tipos de
eletricidade está no fato de que cada um deles repudia a
eletricidade do mesmo gênero que a dele e atrai a de gênero
diferente.

303
Nesse nível do conhecimento dos fenômenos elétricos, es­
ses dois gêneros de eletricidade parecem ser independentes um
do outro e ligados de forma exterior, isto é, contingente.
Benjamín Franklin, em 1747, procurou explicar a atração
e a repulsão elétricas a partir de um princípio único e de
apresentá-las sob a forma de diferentes manifestações, ou esta­
dos, de um mesmo tipo de eletricidade. Ele pensava que
existisse uma matéria elétrica única (fluido), que penetrava
todos os corpos. As partículas dessa matéria repelem-se entre
si, mas são atraídas pelas partículas de um corpo. Quando o
corpo encerra tanta matéria elétrica quanto ele pode conter,
não manifesta propriedades elétricas, não é eletrizado, e quando
aparece nesse corpo uma sobrecarga de matéria elétrica, ele
torna-se eletrificado positivamente (eletricidade de vidro).
Mas há casos em que o corpo encerra menos matéria elétrica
do que pode conter, então, ele é eletrificado negativamente
(eletricidade de resina).
Franklin explicava a eletrificação dos corpos da seguinte
maneira: por friccionamento, a matéria elétrica passa de um
corpo para outro, assim, um deles possui mais matéria elétrica
do que a regra geral, enquanto que o outro possui menor
quantidade dessa matéria. A repulsão recíproca dos corpos
positivamente carregados era explicada pela propriedade de
repulsão das partículas da matéria elétrica e a atração recíproca
dos corpos carregados diferentemente, pelo fato de que os
corpos portadores de uma carga positiva tendem a transmitir
suas sobrecargas, enquanto que os corpos carregados negativa­
mente tendem a preencher sua insuficiência com partículas da
matéria elétrica. A tendência da eletricidade de se repartir
de maneira igual servia de explicação à atração de um corpo
eletrificado e de um corpo não eletrificado. A teoria de
Franklin da eletricidade fornece um certo fundamento teórico
para os fenômenos elétricos observados com a garrafa de Leyde.
Embora tendo explicado alguns fenômenos elétricos, a
teoria de Franklin não pode, entretanto, explicar de forma
satisfatória o fenômeno da repulsão recíproca dos corpos car­
regados negativamente. A hipótese de que as partículas que
não possuem uma quantidade normal de matéria elétrica são
repulsivas parece extremamente artificial e não consegue con­
vencer ninguém.

304
Por isso, essa teoria não pode suplantar o ponto de vista
da existência de dois gêneros de eletricidade, que continua a
ser desenvolvida por vários estudiosos.
Uma explicação científica lógica da contradição que está
à base dos fenômenos elétricos, só se tomou possível no fim
do século XIX, depois da descoberta do elétron — vetor de
uma carga negativa — e do próton, de carga positiva, cujas
interações permitem elucidar as contradições que condicionam
os fenômenos elétricos, tais como “unidade” e “luta” dos con­
trários que, em condições adequadas, passam um pelo outro.
Assim, o desenvolvimento do conhecimento da eletricidade
mostra que o conhecimento das contradições efetua-se por
meio da descoberta, no objeto estudado, dos diferentes fenô­
menos contrários e de sua correlação e interdependência orgâ­
nicas.
Uma lei análoga pode ser encontrada no desenvolvimento
do conhecimento do calor e, em particular, da irradiação
térmica.
No curso do estudo do calor, observamos que certos
corpos emitem raios térmicos e que outros os absorvem. A
irradiação térmica era ligada ao processo de combustão ou de
aquecimento dos corpos, enquanto que a absorção do calor era
ligada aos corpos, cuja temperatura era inferior àquela dos
corpos que emitiam o calor. No começo, os fenômenos con­
trários eram considerados como autônomos, independentes um
do outro e divididos entre vários corpos. Depois, no fim do
século XVIII, procuraram estabelecer a ligação necessária entre
esses fenômenos. Assim, em 1791, o físico genovês Pierre
Prévost emitiu a idéia de que a irradiação e a absorção térmicas
são próprias de todos os corpos e que cada corpo emite e
absorve os raios térmicos. Segundo esse ponto de vista, a
quantidade dos raios emitidos e absorvidos depende da tempe­
ratura do corpo e do estado do meio ambiente. Se o corpo
emite tanto calor quanto recebe dos corpos que o rodeiam,
estabelece-se entre eles um equilíbrio térmico. Se um certo
número de corpos revela-se mais aquecido, estes emitirão uma
quantidade maior de raios térmicos do que aquela que absorvem,
enquanto que os corpos menos aquecidos absorverão uma
quantidade maior de raios do que aquela que emitirão.
Assim, segundo Prévost, a irradiação térmica e a absorção
de calor não intervêm isoladamente, como afirmavam anterior-

305
mente, mas em correlação, e essas propriedades não pertencem
a corpos diferentes, mas são as propriedades de cada corpo.
Possuindo tendências contrárias, os corpos, segundo Prévost,
estão em interação e, no curso desta, a tendência dominante
será às vezes uma, às vezes outra. Logo, ele considera a irra­
diação e a absorção como a unidade dos contrários, que estão
em “luta” permanente entre eles.
O sábio escocês John Leslie procedeu a um estudo mais
detalhado do laço entre a irradiação e a absorção dos raios
térmicos. Em particular, ele descobriu que os corpos que têm
uma forte capacidade de irradiação possuem, igualmente, uma
forte capacidade de absorção, e vice-versa.
O fundamento teórico da unidade da capacidade de irra­
diação e de absorção foi dado por Gustav Robert Kirchhoff em
1854. Ele formulou a lei que traz o seu nome e que pode ser
resumida da seguinte maneira: para todos os corpos, indepen­
dentemente de sua natureza, a relação do poder emissivo es­
pectral ao poder absorvente espectral é a função do compri­
mento da onda e da temperatura e é igual ao poder emissivo
de um corpo negro nessa temperatura.
Assim, o desenvolvimento do conhecimento da contradj-
ção ligada à irradiação térmica passou para a fixação dos
fenômenos contrários, o estudo de cada um deles fora de seus
Tãços com os outros, o estabelecimento de seu condicionamento
recíproco e de sua “luta” e a tomada de consciência de sua
unidade, de sua identidade, enquanto que os contrários excluem-
se e estabelecem-se mutuamente.
A questão dos graus do conhecimento da contradição foi
colocada sob uma forma geral por F. Vikkerov que, correta­ â
mente, indicou os pontos de partida do movimento do pensa-
mento rumo às contradições. Segundo ele, o conhecimento da \
contradição objetiva subdivide-se em “dois graus” : no começo,
colocamos em evidência as diferenças essenciais e os aspectos
contrários existentes no seio do fenômeno, depois a contradição
que se esconde por trás deles, e cuias formas de existência são,
justamente, a diferença e o contrârk>25.

í5F. F. Vikkerov, Sobre o problema dos degraus do conhecimento


da contradição objetiva, in Problemas de teoria do conhecimento, Perm,
1961, (Col.) p. 49. Original em russo.

306
B . K edrov, em seu livro A U n i d a d e d a d ia lé tic a , d a ló g ic a ^
e da teoria do conhecimento (orig. em russo)26, forneceu uma
formulação mais completa dessa lei do movimento do conhe­
cimento.

7. OS TIPOS DE CONTRADIÇÕES
E SUA IMPORTÂNCIA
PARA A PRÁTICA

Jâ observamos que cada formação material encerra uma


contradição e que ela é á unidade dos aspectos contrários^ .
Mas isso não significa que toda formação material -Contém Jx
apenas tuna única contradição. Possuindo uma quantidade
inumerável de aspectos e de propriedades, cada formação ma­
terial particular encerra uma multidão de contradições que
estão longe de desempenhar o mesmo papel em seu desen­
volvimento.
Todas as contradições, próprias a essa ou àquela formação
material, podem ser divididas em internas e externas, essenciais
e não essenciais, fundamentais e não-fundamentais, principais e
secundárias.

Tt *
As interações das tendências ou dos aspectos opostos de ^
uma única e mesma formação material são contradições (Intèr)
fnãsi) As interações de tendências e aspectos opostos próprios
a formações materiais diferentes são contradições (gxtérnàs^ Um
exemplo de contradições internas nos é fornecido pelas contra­
dições entre o consumo e a produção, próprios a essa ou àquela
sociedade, a contradição entre a excitação e a inibição, próprias
à atividade nervosa, a contradição entre a onda e o corpúsculo,
que aparece no movimento de partículas elementares, assim
como o elétron ou o fóton. Um exemplo das contradições
externas pode ser fornecido pela contradição entre a URSS
e um país capitalista, a contradição entre um elétron e um
pósitron etc.
As contradições internas e externas não têm a mesma
importância no desenvolvimento das formações materiais. Às

20B. M. Kedrov, A unidade da dialética, da lógica e da teoria do


conhecimento, Moscou, 1963. Original em russo.

307
contradições ¿Internas) desempenham nessas formações materiais
o papel decisivo, porque condicionam _ a autolocomoção do
odjeto e é precisamente seu desenvolvimento e sua solução que
provocam a passagem de um fenômeno de uma qualidade a
outra e a um novo estágio de desenvolvimento. Quanto às con­
tradições (externad sua influência é sempre exercida mediante
as contradições internas e sua importância concreta depende de
sua correspondência ou de sua não correspondência às contra-
dições internas dessa ou daquela formação material. Se elas
correspondem de uma forma ou de outra às contradições inter­
nas, sua influência é positiva, e em caso contrário, ela é negativa.
As interações entre aspectos e tendências contrários, ca­
racterísticos da essência da formação material, são contradições
essenciais; as interações entre aspectos e tendências contrários,
próprios de um domínio do fenômeno, de ligações e relações
contingentes, não são essenciais. As contradições entre as
relações contingentes, não são essenciais. As contradições
entre as relações de produção e as forças produtivas da so­
ciedade socialista, que aparecem, periodicamente, à medida
que há o desenvolvimento das forças produtivas, são essenciais,
porque relacionam-se com a essência do modo de produção.
cujo conteúdo (forças produtivas 1, modificando-se continua­
mente, condiciona o caráter contraditório da relação recíproca
com a forma. É igualmente essencial a contradição entre as
cargas elétricas positivas e negativas, porque ela é uma das
características da essência da eletricidade. Uma contradição
não-essencial é, por exemplo, a não correspondência do desen­
volvimento de alguns domínios da indústria socialista, que
resulta, às vezes, do trabalho impreciso de alguns organismos
de planejamento, porque ela não decorre da natureza do regime
socialista, da essência da indústria socialista. As contradições /
entre os diferentes partidos políticos burgueses são igualmente
contradições não-essenciais. Todas essas contradições não
alcançam aÇessênélà) das formações materiais consideradas, mas
são concernentes aos (aspectos exteriores) às ligações e às rela-
ções não-essenciais.
As contradições essenciais desempenham, sem nenhuma
dúvida, um papel fundamental e decisivo no desenvolvimento
dessa ou daquela formação material. Com efeito, se as con­
tradições essenciais relacionam-se ao domínio da essência de
uma formação material, seu desenvolvimento e sua resolução

308
repercutem-se obrigatoriamente sobre a própria e ssência da
formação material, acarretando para essa última mudanças cor­
respondentes. As contradições não-essenciais são concernentes
às ligações e às relações contingentes, portanto, seu desenvolvi­
mento e sua resolução podem não afetar a essência da formação
material. É por isso que seu papel no desenvolvimento das
formações materiais não é importante.
As contradições essenciais caracterizam a natureza das
formações materiais e, por sua vez, subdividem-se em funda­
mentais) e não-fundamentais. As contradições fundamentais
são aquelas que determinam o estado e o desenvolvimento dos
aspectos mais ou menos essenciais da formação material e de­
sempenham esse papel em todas as etapas de sua existência e
de seu desenvolvimento. As contradições não-fundamentais
são aquelas que caracterizam um dqg aspectos da formação
material, condicionam o funcionamento e o desenvolvimento
de um domínio qualquer dos fenômenos. Por exemplo, a con­
tradição entre o caráter social do trabalho e a forma privada
de apropriação na sociedade capitalista, a interação entre a
absorção e a rejeição ocorrida nos organismos vivos, entre os
processos de excitação e de inibição na atividade nervosa
superior, a correlação entre a análise e a síntese no ato cogniti-
—vo relacionam-se às contradições fundamentais porque, de uma
maneira ou de outra, elas marcam, com suas pegadas todos
os outros aspectos característicos do domínio correspondente
dos fenômenos. Assim, as contradições características de alguns
domínios da vida da sociedade capitalista ou de alguns aspectos
da atividade cognitiva também não são fundamentais. Por
exemplo, a contradição entre o desenvolvimento planificado da
produção em algumas empresas capitalistas e a anarquia no
conjunto da sociedade; a contradição entre a tendência à ex­
pansão ilimitada da produção capitalista e o consumo limitado
das massas populares que há nesses regimes; a contradição entre
a quantidade de germes produzidos pelo organismo e a quanti­
dade de germes que subsistem etc. são contradições não-fun­
damentais, porque caracterizam apenas alguns aspectos de
objetos determinados.
Além da contradição fundamental que age em todas as
etapas da existência e do desenvolvimento da formação ma­
terial, distinguimos jin d a uma contradição (principal que deter­
mina igualmente todos os outros aspectos da formação material

309
e deixa nesta uma marca determinada, mas que só age em um
estágio dado do desenvolvimento e no quadro deste. A con­
tradição principal está organicamente ligada à contradição
fundamental e é, habitualmente, um dos aspectos desta, uma.
(fiarte constitutive ou uma forma concreta de sua manifestação.
Da resolução da contradição principal depende o desenvolvi-
mento da formação material e sua passagem para o estagio
seguinte.
Todos os tipos de contradições consideradas são univer­
sais, isto é produzem-se em todas as formas de existência da
matéria.
As contradições que se manifestam em todas as formas do
movimento da matéria apresentam, entretanto, outras particula­
ridades, ao lado daquelas já observadas, que são condicionadas
pela especificidade do domínio dos fenômenos e pela forma de
movimento da matéria nos quais elas aparecem. Por exemplo,
alguns traços característicos são próprios das contradições da
natureza inanimada, outros são próprios ao mundo vegetal e
animal e outros, ainda, são próprios à vida social.
Levando em conta a especificidade da manifestação e da
resolução das contradições na sociedade, todas as contradições
que concernem à vida social podem ser divididas em antagônicas
e não-antagônicas. São antagônicas as contradições entre as
classes e outros grupos sociais que têm interesses opostos. São
não-antagônicas as contradições entre as classes ou outros gru­
po sociais que têm interesses comuns em questões fundamentais
da vida e interesses opostos ou diferentes em questões não-
fundamentais, particulares.
Assim, as contradições entre os escravos e seus donos,
entre os senhores feudais e seus servos, entre a burguesia e o
proletariado, entre os países imperialistas e os povos coloniais,
entre o mundo socialista e o mundo capitalista etc. são contra­
dições antagônicas. As contradições entre a classe operária e
os camponeses na sociedade socialista, entre as forças produti­
vas e as relações de produção socialistas não são antagônicas. .
Um traço particular das contradições antagônicas é que
sua resolução acarreta no desaparecimento e na destruição da
unidade, do estado qualitativo ao qual elas são próprias. Por
exemplo, com a resoliíção da contradição entre os escravos e
seus donos desaparece a escravatura. A resolução da contra­
dição entre o proletariado e a burguesia é acompanhada igual-

310
^mente pela extinção da unidade constituída pelas classes. O
modo de produção capitalista caracterizado por essa contradição
é substituído pelo modo de produção socialista, pela nova
unidade.
Ao contrário das contradições antagônicas, as contradições
não-antagônicas não têm essa propriedade. Sua resolução não
somente não destrói a unidade ou o estado qualitativo mas, em
vez disso, reforça-os. Por exemplo, a resolução dessa ou
daquela contradição, surgida entre as forças produtivas e as
relações de produção no curso do desenvolvimento da socie­
dade socialista, não destrói o modo de produção socialista, mas
acarreta seu reforço e seu aperfeiçoamento.
As contradições antagônicas caracterizam-se por uma ten­
dência a tomar mais agudos e, a transformar seus asp-.ctos cons­
titutivos ao extremo. Essa tendência é condicionada pela
própria natureza dessas contradições e pelo caráter inconciliável
dos interesses de classe, no qual estão baseadas. É por isso que
os socialistas de direita e os revisionistas estão errados quando
afirmam que, com a transformação do capitalismo em capita­
lismo monopolista de Estado, as contradições antagônicas,
próprias da sociedade capitalista, desaparecem e que a socie­
dade envereda pelo caminho de um desenvolvimento planifi­
cado, harmonioso e sem crises. O capitalismo monopolista
de Estado não modifica a natureza das contradições próprias
ao capitalismo e é por isso que ele não pode evitar que essas
contradições tendam a tornar-se mais agudas. Além disso,
sendo a expressão máxima da natureza reacionária do imperia­
lismo, o capitalismo monopolista de Estado apenas reforça essa
tendência, aprofundando ainda mais as contradições sociais, e,
exatamente por isso, aproxima o momento de sua resolução.
“O poderio enorme dos monopólios internacionais tornou a
concorrência ainda mais impiedosa. Os governos dos países
capitalistas fazem sucessivas tentativas para suplantar a crise.
Mas a natureza do imperialismo é de tal ordem que cada um
procura obter vantagens às custas dos outros e impôr sua
vontade. Os desentendimentos manifestam-se sob novas for­
mas, e as contradições explodem com uma força cada vez
maior”27.

270 X X V Congresso do PCUS. Documentos e resoluções, Moscou,


Edições da Agência de Imprensa Nóvosti, 1976, p. 35.

311
Diferentemente das contradições antagônicas, as contradi­
ções não-antagônicas não encerram tendências à exacerbação,
porque baseiam-se em interesses comuns, nas questões funda­
mentais, o que faz com que os grupos sociais que constituem
as diferentes partes dessa ou daquela contradição não-antagô-
nica, estejam fundamentalmente interessados em ultrapassá-la
e no desenvolvimento do domínio correspondente do fenômeno.
Entretanto, isso não significa que a contradição não-anta^ônica
nunca se tome mais acentuada. Se não tomamos medidas
oportunas para resolvê-la, os aspectos que a constituem podem
transformar-se em extremos.
O qu* é específico para a sociedade socialista e o período
de construção do comunismo é que o desenvolvimento engendra
e destrói as contradições não-antagônicas. A resolução dessas
contradições produz-se sem conflitos de classe, com base na
unidade moral e política de toda a sociedade. O partido co­
munista desempenha, aliás, na resolução desse caso, um grande
papel. É ele que toma as medidas necessárias para resolver
essas contradições em tempo oportuno: revela as causas dessas
ou daquelas contradições, define os caminhos e os métodos
para resolvê-las e mobiliza os recursos humanos e materiais
para executar as tarefas que resultam disso.

312
XIV. A N EG A Ç Ã O
D A N EG A Ç Ã O*

1. A NEGAÇÃO DIALÉTICA

Como já fizemos observar, em um estágio dado do de­


senvolvimento da contradição, os contrários mudam-se seja
um pelo outro, seja pelas formas superiores, condicionando a
resolução da contradição e, ao mesmo tempo, a eliminação do
antigo estado qualitativo e o aparecimento de um estado novo.
O aparecimento deste resulta, portanto, da negação do antigo
estado qualitativo que já está anulado. O resultado disso é
que a negação é um momento necessário do desenvolvimento.
Mas, mediante a negação de uma formação material (ou
de um estado) por uma outra, produz-se não somente o desen­
volvimento do inferior ao superior, do menos perfeito ao mais
perfeito, mas igualmente um movimento circular e uma re­
gressão — passagem do superior ao inferior, do mais perfeito
ao menos perfeito. Portanto, é necessário distinguir a negação
em decorrência da qual realiza-se a passagem do inferior ao
superior, da negação que se produz no curso do movimento
circular ou de regressão.
Em decorrência da evidenciação das partículas da negação
ligada à evolução surgiu a noção de negação dialética. Distin­
guir a negação dialética entre a massa de negações observadas
na realidade objetiva não significa, entretanto, que na realidade
objetiva, ao lado da negação dialética submissa às leis da
dialética, exista uma negação metafísica que escapa às leis da
dialética. A dialética estuda as leis gerais do movimento e,
portanto, de um movimento que não é evolutivo, que não é
acompanhado pela passagem do inferior ao superior, mas que

313
representa mudanças regressivas ou um movimento circular —
repetição do passado sobre a mesma base.
Por que chamamos de dialética a negação ligada à evolu­
ção, quando a negação ligada à regressão e ao movimento
circular é classificada de não-dialética?
Essas denominações são convencionais e ligadas às par­
ticularidades históricas do aparecimento e do desenvolvimento
da teoria da dialética. O aparecimento da dialética como
ciência está ligado ao reconhecimento do desenvolvimento do
mundo exterior, da realidade objetiva. Enquanto que a me­
tafísica nega a evolução, o movimento do inferior ao superior,
reconhece o movimento regressivo e circular. A teoria do
desenvolvimento, de suas leis e de suas formas partiu essencial­
mente da dialética. Designar como dialética a negação em
decorrência da qual realiza-se a passagem do inferior para o
superior, ou seja, a evolução, é exprimir novamente essa par­
ticularidade da dialética que a distingüe da metafísica e que
constitui seu conteúdo principal. É exatamente essa idéia que
devemos ter em vista quando analisamos o conceito de nega­
ção dialética. Quais são os traços fundamentais da negação
dialética que a distinguem da negação dita não-dialética?
Como traço distintivo da negação dialética, citamos fre-
qüentemente a objetividade, a realidade de sua existência e o
fato de que ela é uma conseqüência da luta das forças e ten­
dências contrárias internas, próprias à formação material (ou
ao estado qualitativo) negado, isto é, ela é uma autonegação.
No que concerne a esses momentos, eles são incontesta­
velmente próprios à negação dialética, mas não constituem sua
especificidade. O que é objetivo e o que se produz realmente
é não somente a negação característica dos processos evolutivos,
mas igualmente a negação característica do movimento circular
e das mudanças regressivas. Alguma coisa análoga produz-se
com o condicionamento da negação dialética pela natureza con­
traditória interna da formação (ou do estado) que é negado.
O resultado da luta dessas forças internas, da interação das
tendências contrárias internas pode ser não somente a passagem
do inferior para o superior, mas igualmente a passagem do
superior para o inferior, assim como o movimento em círculo.
Por exemplo, a morte por velhice de um organismo vivo, ou
a desagregação dos átomos dessa ou daquela substância radioa­
tiva, ou ainda a pulsação das estrelas que é acompanhada por

314
modificações da temperatura de sua superfície são produzidas
com base e em decorrência da luta de forças e de tendências
contraditórias, mas esses processos não constituem uma negação
dialética, porque eles não condicionam a passagem do inferior
ao superior.
Alguns autores consideram como um traço específico da
negação dialética a passagem de uma coisa negada pelo seu
contrário.
A passagem da coisa em seu contrário é característica da
negação dialética, mas nem toda negação dialética significa a
passagem de um fenômeno negado em seu contrário; pode acon­
tecer que, no curso da negação dialética, o fenômeno transfor­
me-se ou não em seu contrário, ou em qualquer outra coisa,
superior em relação ao estado qualitativo anterior. Por exem­
plo, quando da passagem, em decorrência da negação dialética,
do litio para berilo e do berilo para bório etc. não se produzem
transformações da formação material negada em seu contrário.
A negação da propriedade escravagista dos meios de produção
pela propriedade privada feudal, e a negação desta última pela
propriedade capitalista etc. não constituem uma passagem para
o contrário.
Ao mesmo tempo, essa lei (passagem do fenômeno em seu
contrário) pode ser observada nos casos de negação não-
dialética. Por exemplo, as passagens do vivo para o morto,
da substância orgânica em substância inorgânica, de partículas
elementares possuidoras de uma massa em repouso a partículas
elementares que não possuem massa etc. constituem diferentes
casos de passagem de fenômenos em seu contrário; entretanto,
nenhum deles está ligado à negação dialética.
Uma característica da negação dialética que a distingüe da
negação não-dialética é o fato de que a primeira desempenha
o papel de elo de ligação entre o inferior e o superior. E isso
se dá, porque a negação dialética, sendo uma conseqüência da
evolução e da resolução das contradições próprias à formação
material negada, não é uma simples destruição desse ou daquele
determinismo qualitativo, mas representa uma negação no curso
da qual tudo o que havia de positivo no estado negado, en-
contra-se retido e transplantado para um estado qualitativo
novo.

315
2. A NEGAÇÃO DIALÉTICA
E O MOVIMENTO DO ABSTRATO
AO CONCRETO

Se no curso da negação dialética de algumas formações


materiais (ou estados qualitativos), por outras, conserva-se e
se desenvolve todo o positivo atingido no curso do desenvolvi­
mento precedente, então toda formação material (ou estado
qualitativo) surgida no processo da negação dialética deve
possuir um conteúdo mais rico, porque encerra sob uma forma
anulada tudo o que era positivo e próprio às formações mate­
riais precedentes e possui como próprio alguma coisa específica
que surgiu quando da passagem da matéria a um novo estágio
de desenvolvimento. Em conseqüência disso, no processo da
negação d:alética de algumas formações materiais por outras
produz-se um movimento não somente do inferior ao superior,
mas do conteúdo menos rico, limitado e, em um certo sentido
abstrato, para um conteúdo mais rico, diversificado e concreto.
Essa lei do desenvolvimento da matéria foi assinalada
pela primeira vez por Aristóteles. Como princípio primeiro de
desenvolvimento, ele tomava a matéria inicial que, sendo inde­
terminada e informe, não possui quase nenhum conteúdo. Ela
nem mesmo tem propriedade de existência real. É apenas uma
possibilidade. A transformação da matéria indeterminada em
matéria determinada realiza-se, para Aristóteles, pela união dela
com uma forma qualquer. E dessa união nascem as coisas e,'
em particular a água, o ar e a terra, que já têm algum conteúdo
concreto. Assim, para Aristóteles, efetua-se a passagem do
indeterminado ao determinado, do abstrato ao concreto. As
coisas que aparecem dessa forma podem, por sua vez, associar-
se a outras formas e constituir novas coisas, além de poder ser
apresentadas em seu conteúdo sob a forma de substrato geral
da matéria. Essas novas coisas têm uma essência mais rica do
que aquelas a partir das quais formaram-se, porque além da
essência das coisas anteriores, elas encerram, sob uma forma
anulada, os momentos e aspectos condicionados pela nova
forma. Estas últimas coisas, assim como as precedentes, po­
dem associar-se a uma nova forma e formar coisas novas, que
terão uma essência ainda mais rica, pelo fato de que elas
incluirão, sob uma forma anulada, tudo o que era próprio às

316
coisas que serviram de ponto de partida ao seu aparecimento e
terão, além disso, o que for trazido pela nova forma.
Segundo Aristóteles, o aparecimento de formações novas
no conteúdo sempre mais complexo e mais rico se produzirá
enquanto todas as formas não forem esgotadas. A forma
suprema e a mais perfeita é Deus. Ele representa o ponto
máximo da evolução.
Podemos facilmente observar que Aristóteles captou, em
traços gerais, o princípio do desenvolvimento, segundo o qual
produz-se a negação de algumas formações materiais por outras,
assim como a retenção do conteúdo positivo do que é negado
e o movimento do abstrato ao concreto, do conteúdo menos
rico a um conteúdo sempre mais rico. Aristóteles captou real­
mente esses momentos, mas apresentou, entretanto, de maneira
deformada, o mecanismo e a origem da negação de certas
formações materiais por outras. Segundo ele, essa negação é
o resultado da ação que uma forma existente fora e independen­
temente desse ou daquele ser exerce sobre ele. Ele não com­
preendeu que a negação é o resultado da evolução e da resolu­
ção das contradições próprias à formação material negada.
A estreiteza da concepção aristotélica do desenvolvimento
do ser, através da negação periódica de um pelo outro, foi
suplantada pela filosofia de Hegel.
Como ponto de partida, Hegel apresenta o ser abstrato,
puro, indeterminado, colocando em evidência as tendências
contrárias que lhe são próprias e mostrando como, em decor­
rência da luta dessas tendências contrárias, produz-se a negação
de um e o aparecimento do outro, em um conteúdo mais con­
creto e mais rico.
Assim, tendo estabelecido o “ser puro” como princípio
primeiro, Hegel o declara desprovido de qualquer conteúdo
determinado e equivalente ao “nada”. O “nada” e o “ser puro”
constituem a unidade, o que engendra a vida, o movimento,
graças ao que o “ser puro” entra em seu vir-a-ser ou desempe­
nha o papel de vir-a-ser. A categoria de vir-a-ser já possui um
certo conteúdo, um certo concreto, embora ainda pouco impor­
tante. O vir-a-ser leva ao aparecimento do “ser-aqui” que,
ao contrário do ser puro, já é um ser determinado, isto é, já
possui uma qualidade.
A categoria de qualidade é ainda mais concreta do que a
categoria de vir-a-ser e possui um conteúdo mais rico. Não

317
é mais o “nada” que se opõe à qualidade, mas um outro ser
determinado, uma outra qualidade. Um outro ser determinado
limita o ser dado, e aparece a finalidade. Sendo relacionado
com ele mesmo, o ser dado transforma-se em ser por si, em
qualquer coisa de único, em unidade. A categoria de quanti­
dade aparece. A quantidade manifesta-se primeiramente como
indeterminada e indiferente à qualidade da coisa. Depois,
sendo colocada em certos limites, ela toma-se uma quantidade
determinada. Relacionando-se com uma outra quantidade, ou
com ela mesma, a quantidade determinada coloca em evidência
sua qualidade. Observamos, então, uma certa unidade da
quantidade e da qualidade. Aparece a categoria de medida.
Uma certa mudança de qualidade conduz a uma mudança da
qualidade dada e ao aparecimento de uma nova qualidade e,
com esta última, de uma nova quantidade. Uma medida é
destruída, uma outra aparece.
Mas, por trás de todas essas mudanças, esconde-se alguma
coisa estável e constante: as categorias de substância e de
essência, qae privam de autonomia as categorias de quantidade,
de qualidade e de medida; estas últimas transformam-se em
momentos das categorias indicadas, tornando, dessa forma, seu
conteúdo ainda mais rico, mais concreto. Existindo por meio
de suas propriedades, a coisa desaparece nelas e torna-se fenô­
meno. A unidade da essência e do fenômeno constitui a
realidade. A realidade manifesta-se no começo sob a forma
de possibilidade. A unidade da possibilidade e da realidade
manifesta-se sob forma de necessidade. É a partir da necessi­
dade que se efetua a passagem à causalidade, ao laço de causa
e efeito. O laço entre a causa e o efeito transforma-se em
interação, enquanto à base da interação está o conceito.
Assim, Hegel passa ao “conceito do conceito”. O con­
ceito constitui o verdadeiro conteúdo da essência. A categoria
de conceito intervém aqui como generalizadora de todo o sis­
tema das categorias precedentes, as quais representam apenas
os estágios, momentos determinados do vir-a-ser do conceito,
e é essa a razão pela qual as categorias citadas são contidas
nele, sob uma forma anulada.
“Em geral, diz Hegel, é preciso considerar o conceito
como o terceiro elemento, tanto em relação ao ser e à essência,
como em relação ao imediato e à reflexão. O ser e a essência
são, nessa medida, apenas instantes de seu vir-a-ser; mas o

318
I

conceito é seu fundamento e sua verdade, enquanto identidade


na qual são criados e contidos. E eles são contidos no conceito
porque este resulta deles, mas não mais na qualidade de ser e de
essência; porque estes últimos só são definidos dessa maneira
na medida em que ainda não regressaram para essa unidade
que é a deles”i, isto é, enquanto estiverem anulados pelo con­
ceito. Por esse fato, a categoria de conceito revela ser a mais
concreta com relação às categorias que a precedem.
Assim, à medida que há o movimento antes do pensa­
mento, à medida que o pensamento afasta-se do princípio pri­
meiro, aparecem as categorias sempre mais concretas, que en­
cerram, sob uma forma anulada, todos os momentos do caminho
percorrido.
Assim, torna-se óbvio que Hegel representou a evolução
como um movimento do abstrato ao concreto sempre mais
concreto, condicionado pelas contradições internas, que se reali­
za mediante a negação de um pelo outro e a manutenção, sob
uma forma anulada, do conteúdo positivo do que foi negado,
O movimento progressivo, escreve ele, caracteriza-se pelo
fato de que “começa a partir de simples determinações e de
que as determinações seguintes tornam-se sempre mais ricas e
concretas. Porque o resultado contém nele mesmo seu próprio
começo e o desenrolar deste o enriquece de uma determinação
nova”*2.
A resolução, feita por Hegel, dessa questão apresenta
o defeito de considerar essa lei somente como a lei do desen­
volvimento da idéia, do espírito, rejeitando sua aplicação
à natureza. A natureza, segundo Hegel, é incapaz de evoluir.
Suas formas apenas coexistem no espaço. O desenvolvi­
mento é característico somente do conceito de natureza, que
está à base de todos os fenômenos que se desenvolvem
nela e os reúne. “Aqui, ele observa quanto à natureza, nenhum
processo natural, físico é engendrado, isso se produz apenas
no seio da idéia interior que constitui o fundamento da natu­

‘G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, in Sämtliche We’ke, v. 5,


p. 5-6.
2G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, in Sämtliche Werke, cit.,
p. 349.

319
reza. Apenas o conceito, enquanto tal, metamorfoseia-se,
porque apenas as mudanças representam um desenvolvimento”3.
A filosofia marxista é a única a dar uma concepção global
e a prosseguir na elaboração com uma base materialista e
científica dessa lei, que foi estudada com aplicação à natureza,
à sociedade e ao conhecimento. A partir daí, foi estabelecido
que o movimento (no processo da evolução), indo das forma­
ções de um conteúdo menos rico às formações de um conteúdo
mais rico, isto é, do abstrato ao concreto, é uma lei universal.
Ela manifesta-se em qualquer lugar, na natureza, na sociedade,
no conhecimento.
Tirando dessa lei uma conclusão relativa à atividade men­
tal do sujeito conhecedor, Karl Marx elaborou um método de
ascensão do abstrato ao concreto, no processo do conhecimento,
da intelecção da essência do objeto, de sua expressão em um
sistema de imagens, de conceitos ideais. Antes de Marx, os
homens de ciências que estudavam esse ou aquele domínio dos
fenômenos aplicavam, em geral, o método da ascensão do con­
creto sensível ao abstrato. Segundo esse método, o estudo de
um domínio dado dos fenômenos devia começar pelo todo
concreto. Para estudar esse todo, era necessário isolar os
aspectos, as propriedades e estudá-los enquanto tais, fora de
sua ligação com outros aspectos, e chegar, dessa maneira, aos
conceitos mais simples que refletiam algumas propriedades gerais
ou particulares. A elucidação das propriedades ou relações
gerais ou universais, mesmo das mais simples, era considerada
como suficiente para conhecer o todo estudado, para dele fa­
zer-se uma certa idéia.
Como exemplo de fundamento teórico desse método, po­
demos nos referir a Hobbes e a Locke que, em suas obras
filosóficas, dedicaram-lhe grande atenção. Como exemplo de
sua utilização, podemos recorrer aos economistas do século
XVII que, em seus estudos econômicos, sempre começavam
pelo todo concreto e, em particular, pela população e, no de­
correr de um estudo posterior, iam dos conceitos sempre mais
simples, rumo às abstrações mais elaboradas, até que chegavam
às noções mais simples, como aquelas de “trabalho”, “divisão

K). W. F. Hegel, System der Philosophie. 2 Teil. Die Naturphiloso­


phie, in Sämtliche Werke, Stuttgart, 1929, v. 9, p. 58.

320
de trabalho”, “valor de troca” etc. “Os economistas do século
XVII, por exemplo, dizia Marx analisando seu método de co­
nhecimento, começam sempre pelo todo vivo, pela população,
pela nação, pelo Estado, vários Estados etc., mas acabam
sempre por uma análise que distingue algumas relações abstratas
universais e determinantes, assim como a divisão de trabalho,
de dinheiro, de valor etc. . . ”4.
Depois das propriedades e dos aspectos particulares do
todo serem conhecidos e traduzidos em noções gerais as mais
simples (“abstrações elaboradas”), só era preciso, de acordo
com esse método, reunir de forma mecânica esses conceitos e
abstrações mais simples, para conhecer a essência desse todo.
E óbvio que não se chega a nenhum conhecimento da
essência orientando-se por esse princípio, porque a essência não
é uma totalidade mecânica, nem tampouco é a simples associa­
ção das propriedades e dos aspectos do objeto, mas sua unidade
dialética, um todo dialético, cujos aspectos encontram-se em
correlação e interdependência necessárias e naturais.
Ê por isso que, embora sendo necessário no estágio inicial
do desenvolvimento do conhecimento, no estágio da distinção
e da fixação das propriedades, dos aspectos e das ligações mais
simples do todo estudado, esse método não é absolutamente
aplicável ao conhecimento da essência desse todo, nem à repro­
dução, na consciência, do conjunto de seus aspectos e ligações
necessários (leis), em sua interação, em sua interdependência
natural.
De acordo com esse princípio do conhecimento, a pesquisa
deve ser começada não pelo concreto, mas pelo abstrato, pelos
conceitos que refletem os aspectos ou relações gerais ou univer­
sais os mais simples. Além disso, como elo inicial, como ponto
de partida, não se deve tomar qualquer aspecto (simples, uni­
versal), mas um aspecto que seja decisivo no todo estudado,
que determine todos os seus outros aspectos. Depois de ter
distinguido o aspecto decisivo principal, devemos, de acordo
com esse princípio de pesquisa, tomá-lo em seu desenvolvimen­
to, isto é, observar como ele surgiu, quais os estágios transpos­
tos e de que maneira, no curso desse desenvolvimento, ele
influi sobre todos os outros aspectos de uma formação material

4 K. Marx e F. Engels, Werke.

321
dada, condicionando nela as mudanças correspondentes. Dessa
maneira, reproduziremos, passo a passo, na consciência, o
processo do desenvolvimento da formação material estudada e,
ao mesmo tempo, o conjunto de seus aspectos e ligações neces­
sários, que lhe são próprios, isto é, de sua essência.
Elaborando seu quadro de classificações periódicas dos
elementos químicos, Mendelev utilizou espontaneamente algu­
mas exigências desse método de estudo como princípios direti­
vos da atividade gnoseológica. Estudando os elementos quími­
cos, ele constatou que todos eles têm seu próprio peso atômico
e que, além disso, cada elemento é caracterizado por seu próprio
peso atômico, rigorosamente específico. A partir disso, ele
chegou à conclusão de que as propriedades dos elementos quí­
micos dependem de seu peso atômico, e decidiu fazer desse
peso o ponto de partida do estudo das propriedades desses
elementos. Partindo do peso atômico, como princípio geral ou
como fundamento geral da classificação de todos os elementos
químicos, e levando em conta toda a riqueza do particular
próprio a essa ou àquela parte desses elementos, ele criou
um sistema único, rigoroso, que não somente sistematizava os
elementos químicos já conhecidos e precisava suas propriedades
particulares, mas que dava ainda a possibilidade de prever a
existência novos elementos químicos ainda não descobertos
e de jogar alguma luz sobre propriedades novas, ainda desco­
nhecidas. Mendelev escreveu a esse rspeito: “Com apenas
algumas exceções, adotei os mesmos grupos de elementos aná­
logos de meus predecessores. Mas fixei, como meu objetivo,
estudar as leis das relações recíprocas dos grupos e, assim,
cheguei ao princípio geral citado mais acima (a dependência
periódica das propriedades dos elementos químicos em relação
a seu peso atômioo — A. Ch.), que é aplicável a todos os
elementos e engloba várias analogias já mencionadas, mas que
admite igualmente consequências que, anteriormente eram
impossíveis”5.
Se analisarmos agora o processo do movimento do conhe­
cimento no caso considerado, podemos observar que ele está
essencialmente submetido aos imperativos do método do movi-

5D. I. Mendelev, O b r a s e sc o lh id a s . Leningrado, 1934, t. 2, p. 222.


Original em russo.

322
mento do abstrato ao concreto. De fato, Mendélev tomou,
como ponto de partida, o aspecto universal mais simples que,
segundo ele, era determinante em relação a todos os outros
aspectos ou propriedades das formações materiais estudadas.
Em seguida, ele observou suas mudanças, o desenvolvimento
das manifestações inferiores para as superiores, a influência
dessas mudanças sobre a qualidade dos elementos químicos.
Seguindo as mudanças desse aspecto de um elemento químico a
outro, Mendelev ia, na realidade, do abstrato para o concreto,
de um conteúdo menos rico para um conteúdo mais rico.
Efetivamente, quando ele realizava a passagem de um aspecto
do elemento químico (peso atômico) para todos os seus aspec­
tos e para o conjunto de suas propriedades (ele deduzia essas
propriedades e as explicava a partir do peso atômico), o que
ele fazia era realizar a passagem do abstrato universal (o peso
atômico é a propriedade universal dos elementos químicos)
para o concreto (o conjunto de propriedades de um elemento
químico dado), de um conceito com um conteúdo pobre para
um conceito com um conteúdo mais rico.
Depois, seguindo a mudança do peso atômico, e passando
de um elemento químico a outro, ele reconstituía, passo a passo,
e reproduzia na consciência, um depois do outro, os elos desse
sistema complexo dos elementos químicos e, assim, estabelecia
um quadro sempre mais completo dos objetos estudados, isto
é, ia rumo a um concreto sempre mais completo.
É preciso observar aqui que não é nada simples isolar e
definir o ponto de partida, o aspecto geral que será efetiva­
mente determinante nos fenômenos estudados e que desempe­
nhará também um papel diretivo em seu desenvolvimento. No
caso que analisamos, o que foi tomado como ponto de partida
e como aspecto determinante não era, na realidade, o aspecto
que possui essas qualidades. O nível de desenvolvimento da
ciência naquela época não permitia isolar um tal aspecto. E
pelo fato de que esse aspecto determinante permanecia desco­
nhecido, não se podia dar uma explicação suficiente, nem che­
gar a nenhuma conclusão que comprovasse o conteúdo concreto
dos elementos químicos e, portanto, do conhecimento de sua
essência. Partindo do que se podia observar na superfície dos
fenômenos, Mendelev indicou o domínio ou o aspecto que
determina efetivamente as propriedades dos elementos, mas não
podia explicar nem por que, nem de que maneira esse aspecto

323
é determinante, poique há uma repetição periódica das proprie­
dades. Também sua tese, segundo a qual as propriedades dos
elementos químicos são determinadas por seu peso atómico,
baseia-se antes de tudo na simples observação do fenômeno da
repetição e não no estabelecimento de um laço de causa e efeito.
Apesar disso, a classificação periódica dos elementos quí­
micos de Mendelev reproduzia de forma tão exata a ligação
real desses elementos que, todas as descobertas posteriores
quanto à estrutura dos átomos dos elementos químicos, que
levaram à definição dos aspectos reais que desempenham um
papel decisivo na determinação do conjunto das propriedades
dos elementos químicos (carga do núcleo atômico) não a
modificaram de forma sensível. Mas, pelo contrário, a classi­
ficação elaborada por Mendelev serviu de guia para os pes­
quisadores que trabalhavam na estrutura dos átomos, orientando
de maneira notável seus trabalhos.
A teoria mecanicista do calor, teoria que se deve a dois
físicos da segunda metade do século XIX, é um outro exemplo
de conhecimento por ascensão do abstrato ao concreto.
No período precedente, a atenção dos sábios estava voltada
para o estudo de algumas propriedades do calor, de alguns
fenômenos que se ligavam a isso. Em decorrência dessas
pesquisas, foram elaborados vários conceitos gerais abstratos,
que refletiam certos aspectos e ligações dos fenômenos térmicos,
isto é, condutibilidade térmica, irradiação térmica, ponto de
fusão, ponto de ebulição, capacidade calorífera etc. Da mesma
forma foram descobertas algumas relações gerais e necessárias
— leis próprias ao calor. Assim, Boyle, em 1665, formulou
a lei de constância dos pontos de fusão dos corpos; Galileu
Galilei, em 1693, descobriu a lei de constância do ponto de
ebulição da água; e um pouco mais tarde, Newton descobriu
a lei de constância do produto das capacidades térmicas e dos
pesos atômicos específicos; Fourier, em 1822, encontrou de
forma experimental a lei segundo a qual uma corrente de calor,
que atravessa uma camada dada, é diretamente proporcional à
diferença de temperaturas nos limites dessa camada, da super­
fície da camada e inversamente proporcional à espessura da
camada.
Mas, reunir todos esses conhecimentos em um todo uni­
ficado, fundi-los em um princípio único, só foi possível na
segunda metade do século XIX, quando foi estabelecido que

324
*

o calor representa urna forma particular do movimento da


materia, ou seja, o movimento das moléculas. Com a deseo-
berta da natureza do calor, foi estabelecido o elo fundamental,
o principio determinante, a partir do qual puderam ser explica­
dos todos os fenómenos condicionados pelo calor, além de
representá-los em sua correlação e em sua interdependência
necessárias e naturais, isto é, reproduzir sua essência na
consciência.
A explicação dos fenômenos térmicos, partindo da idéia
de que o calor é uma forma particular do movimento das
menores partículas da matéria, foi fornecida pela teoria mecâ­
nica do calor. De acordo com essa teoria, o calor representa
um movimento caótico progressivo, rotativo ou de balanço das
menores partículas: moléculas, átomos, íons etc., que permutam
continuamente sua energia.
Partindo dessa concepção do calor, podemos facilmente
explicar todos os fenômenos que se ligam a ela e, em par­
ticular, a condutibilidade e a irradiação térmicas, assim como
a passagem de um estado de agregação a um outro, os diferentes
pontos de fusão e de ebulição das diversas substâncias etc.
Com efeito, a condutibilidade térmica pode ser apresen­
tada da seguinte maneira: as moléculas das partes aquecidas
do corpo agitam-se e chocam-se com as coléculas das partes
vizinhas, transmitindo-lhes uma parte de sua energia e aumen­
tando sua velocidade. Essas outras moléculas, por sua vez,
agem da mesma maneira sobre as moléculas vizinhas etc. Em
decorrência disso, a energia interna do corpo parece passar das
partes com temperatura elevada para as partes com temperatura
inferior.
A energia do movimento térmico transmite-se de uma
parte do corpo a outra, não apenas mediante a interação das
moléculas, mas igualmente através da interação dos elétrons,
dos átomos e dos íons. Por isso, não é por acaso que os
metais possuem uma grande quantidade de elétrons livres capa­
zes de se deslocar em todo condutor, sejam eles bons ou maus
condutores de calor. Os elétrons que se deslocam livremente
em um sentido ou em outro chocam-se com os átomos e com
os íons do metal, trocam uma parte de sua energia e, assim,
aceleram o movimento da energia das partes mais aquecidas
do corpo, rumo às menos aquecidas.

325
Ao lado da passagem de certas partículas para outras,
uma quantidade notável de energia interna do movimento tér­
mico é continuamente emitida para o exterior, sob a forma de
quanta e essa energia é completada sem cessar pela absorção
de quanta emitido por outros corpos. Por isso, fala-se do poder
de irradiação e do poder de absorção de um corpo, e da trans­
missão, por irradiação, da energia de um corpo para outro,
quando estes se encontram a uma certa distância dele.
Partindo do calor como forma particular do movimento
das moléculas e de outras partículas, podemos facilmente
explicar a presença de três estados de agregação e a passagem
dos corpos uns pelos outros. Assim, o estado sólido dos
corpos deve-se à atração recíproca das moléculas, que é aqui
particularmente importante, o que faz com que as moléculas
sejam solidamente ligadas entre si e operem um movimento de
balanceamento, apenas em relação a certas posições de equilí­
brio, ou seja, aos nós da rede cristalina. Quando há o aqueci­
mento de um sólido, as moléculas que se chocam recebem
uma energia suplementar e aumentam a amplitude e a veloci­
dade de seu balanceamento. Em decorrência, o corpo se dilata.
À medida que prossegue o aquecimento, as moléculas aumen­
tam sua velocidade e afastam-se sempre mais umas das outras.
Finalmente a distância entre elas aumenta de tal forma que as
forças de atração não conseguem mais manter seu balancea­
mento perto da posição constante de equilíbrio. Esse equilíbrio
é destruído e as moléculas, continuando a exercer uma certa
influência umas sobre as outras e a se atrair, começam a se
deslocar nesse ou naquele sentido, embora sendo acompanha­
das pelas moléculas vizinhas. Assim, o corpo perde sua forma
determinada e passa ao estado líquido.
As forças de atração entre as moléculas, sendo diferentes
segundo as substâncias, provocam a liquefação destas últimas,
em diferentes temperaturas. Mas os sólidos representam uma
única e mesma substância e se liquefazem a uma única e cons­
tante temperatura. É verdade que, a pressão sob a qual o
sólido se encontra influi sobre esse ponto de fusão. Mas a
explicação, inclusive desse fenômeno, está ligada ao movimento
térmico das moléculas que acarreta uma mudança de volume.
Se é próprio ao corpo em fusão diminuir seu volume (gelo),
o aumento de pressão acarretará no abaixamento de seu ponto
de fusão, completando, dessa maneira, uma parte da energia

326
do movimento molecular, necessário à reestruturação das liga­
ções e relações moleculares, no sentido da diminuição de volume.
Se o corpo em fusão se dilata (enxofre), o aumento de pressão
acarretará uma elevação de seu ponto de fusão, porque, aqui,
para a reestruturação das ligações e das relações moleculares
que são acompanhadas pela dilatação do corpo, isto é, pelo
aumento da distância entre as moléculas que o compõem, será
preciso uma energia complementar para vencer as forças da
pressão exterior que entravam o aumento do volume do corpo.
O fato de que a temperatura do corpo que recebe o calor
não mude no momento da fusão decorre de que essa energia
serve não para o crescimento da energia do movimento mo­
lecular, mas para vencer a resistência das forças de atração das
moléculas do sólido.
Quanto à transformação de um corpo sólido em gás, esta
desenvolve-se de forma análoga: com a elevação da temperatura
do líquido, a velocidade das moléculas e seu afastamento cres­
cem continuamente. Finalmente a energia do movimento das
moléculas aumenta a tal ponto que as colisões térmicas destróem
as ligações entre as moléculas e a substância começa a entrar
em estado gasoso. É preciso observar, entretanto, que a
transformação de uma substância em um estado gasoso está
igualmente ligada à pressão exterior exercida sobre o líquido,
que também se esforça para manter o conjunto das moléculas.
Por isso, o ponto de ebulição também depende não somente
das forças de atração recíproca das moléculas, que caracterizam
esse ou aquele líquido, mas igualmente da pressão exterior.
Quando a pressão aumenta, o ponto de ebulição eleva-se, e
vice-versa.
Assim, partindo do princípio único da noção geral e
abstrata do calor, como forma particular do movimento das
menores partículas, que está ligado à troca de energia entre
elas, efetua-se o movimento rumo a um concreto sempre mais
denso, no curso do qual explicam-se e reúnem-se em um todo
único, todos os fenômenos térmicos e, exatamente por isso,
chegamos ao conhecimento da essência do objeto estudado.
Esse é o fundamento do princípio da lógica dialética da
ascensão do abstrato para o concreto.

327
3. A LEI DA NEGAÇÃO
DA NEGAÇÃO
No curso da negação dialética de algumas coisas, por
outras, observamos não somente a passagem das formações
materiais tendo um conteúdo menos rico, para as formações
materiais que possuem um conteúdo cada vez mais rico, mas
igualmente uma volta para trás, a repetição do que já foi
transposto, sobre uma base nova. A “volta aparente ao antigo”«,
não é um fenômeno contingente, mas uma lei universal neces­
sária do desenvolvimento. Essa volta é determinada pelo fato
de que no processo da negação de certas formações materiais
ou estados qualitativos por outros efetua-se a passagem dos
fenômenos (qualidades, traços, aspectos, propriedades) não
somente para um estado diferente, mais elevado (mais perfeito),
mas também em seu contrário. “ ( . . . ) Não há nenhum fenô­
meno que não possa, em certas condições, transformar-se em
seu contrário’”!.
Depois de ter-se transformado em seu contrário, o fenô­
meno, no curso de outras negações, transforma-se novamente
em seu contrário e dá, assim, a impressão de voltar a seu estado
inicial. Vem daí a repetição do estado já transposto, mas sobre
outra base, mais elevada, porque, no fenômeno que volta a seu
estado inicial, encontramos sob uma forma anulada, o conteúdo
positivo adquirido no curso do desenvolvimento posterior, em
decorrência da passagem do fenômeno por outros estados qua­
litativos mais elevados e em seu contrário.
A idéia de um laço entre a repetição dos graus já trans­
postos no curso do desenvolvimento da matéria, por um lado, e
a transformação dos fenômenos em seu contrário, por outro
lado, foi claramente exprimida por Plekhanov: “No término de
seu vir-a-ser, todo fenômeno transforma-se em seu contrário,
escrevia ele, mas como esse novo fenômeno, antitético ao
primeiro, transforma-se, por sua vez, em seu contrário, a ter­
ceira etapa da evolução apresenta uma analogia de forma com
a primeira”8.
'V. Lenin, O e u v re s, t. 38, p. 210.
TV . Lenin, op. cit., t. 22, p. 332.
®G. Plekhanov, E n s a io s o b r e o d e s e n v o lv im e n to d a c o n c e p ç ã o
m o n ista d a h istó r ia , Paris-Moscou, Editions Sociales, Ed. Progresso,
1973, p. 81-82. Original em russo.

328
A repetição, sobre uma nova base, superior do que já foi
transposto no curso da negação dialética constitui a essência
da lei da negação da negação. Em sua obra Karl Marx, Lenin
colocou em evidência o conteúdo dessa lei e chamou atenção
precisamente para esta particularidade da evolução. Ele indi­
cou que: “a negação da negação” é “uma evolução que parece
reproduzir os estágios já conhecidos, mas sob uma outra forma,
em um grau mais elevado. . . ”9.
A forma elementar de manifestação da lei da negação da
negação é o retomo ao ponto de partida, a repetição do que já
foi transposto, sobre uma base nova, por meio de duas nega­
ções. Isso produz-se quando a transformação do fenômeno em
seu contrário efetua-se no curso de uma única negação. Em
decorrência da primeira negação, o fenômeno transforma-se em
seu contrário e, em decorrência da segunda, esse novo fenô­
meno, transformando-se, por sua vez, em seu contrário, repete
(sobre uma base nova) o primeiro, o inicial.
A repetição do que já foi transposto, sobre uma base mais
elevada, por meio de duas negações, não é uma coisa rara.
Encontramos casos desse tipo na natureza, na sociedade, no
conhecimento. Por exemplo, grão-planta-grão; borboleta-crisá­
lida-borboleta. Entretanto, na realidade, observamos, ao lado
dessa, uma outra lei. A volta para trás, a repetição, sobre
uma nova base, do que já foi transposto, pode ser feita não
apenas por meio de düas negações, mas por três, quatro, cinco
ou mais. Isso se deve ao fato de que o fenômeno transforma-se,
no começo, em um estado qualitativo mais elevado e, somente
depois, em seu contrário. Em conseqüência, para voltar à po­
sição inicial, é preciso mais de duas negações. Seu número
depende da natureza específica das formações materiais.
Por exemplo, quando da passagem do litio, cujas proprie­
dades metálicas são claramente definidas, ao berílio, observa­
mos a transformação do fenômeno, não em seu contrário, mas
em um outro estado qualitativo. O berílio apresenta muitos
traços comuns ao litio e, em particular, às propriedades metá­
licas, embora essas sejam menos claras no berílio do que no
litio. Também não há transformação em seu contrário, quando
da passagem para o boro, que se segue à do berílio. O boro9

9V. Lenin, op. cit., t. 21, p. 49.

329
possui igualmente propriedades metálicas, embora ele já ma­
nifeste também as dos metaloides. Em seguida, quando da
passagem ao carbono, ao ozônio e ao oxigênio, as propriedades
metálicas desaparecem completamente, enquanto que as pro­
priedades metaloides acentuam-se, o que significa uma trans­
formação gradual do fenômeno inicial em seu contrário. Essa
passagem só está definitivamente terminada quando chega ao
flúor, metaloide particularmente ativo. A passagem de um
elemento químico, cujas propriedades metálicas estejam nitida­
mente marcadas, em um elemento químico possuidor de pro­
priedades não-metálicas, nitidamente marcadas, efetua-se em
seis negações.
A volta no curso do desenvolvimento posterior ao ele­
mento dotado de propriedades metálicas é mais brutal e efetua-
se somente por meio de duas negações — a negação do flúor
pelo neônio, gás inerte desprovido de propriedades dos metais
e dos metalóides, e a negação do neônio pelo sódio que, como
o litio, possui propriedades metálicas nitidamente marcadas. A
volta para trás, a repetição da etapa já transposta, sobre uma
base nova, realiza-se, portanto, por meio de oito negações. Há
casos em que essa passagem se faz por meio de dezoito nega­
ções (do potássio ao rubídio), por meio de 32 negações (do
césio ao frâncio) e por meio de 4 negações (da propriedade da
comunidade primitiva à propriedade social socialista) etc.
Certos autores ignoram esse ponto' de vista e ligam a lei
da negação a apenas duas negações10.
A necessidade de duas negações para a repetição, sobre
uma nova base, do que já foi transposto, provém da concepção
da negação dialética como transformação do fenômeno em seu
contrário. E desde que toda negação dialética condiciona a
passagem de uma coisa em seu contrário, para que possa dar-se
a volta à posição inicial, são suficientes duas negações: no
curso da primeira, a coisa transforma-se em seu contrário e, no
curso da segunda, há uma volta ao ponto de partida e a repe­
tição do grau já transposto, sobre uma nova base11.

10G. M. Domratchiov, S. F. Efimov, A. V. Timofeev, A lei da


negação, Moscou, 1961, p. 116. Original em russo.
nV. Baguirov, A lei da negação da negação, p. 151. Original em
russo.

330
Esse raciocínio seria incontestavelmente e xa to hc , nn um »II
dade, cada negação dialética representasse a passagem do fmio
meno em seu contrário. Entretanto, sabemos quo nem todas
as negações dialéticas constituem a passagem do estado quatl
tativo negado em seu contrário. Freqüentemente, no curso da
negação dialética, a coisa transforma-se não em seu contrário,
mas em qualquer outra coisa, em um outro estado qualitativo.
Desde que isso acontece, é absolutamente incorreto apreciar a
dupla negação como um traço característico da lei da negação
da negação. O aspecto necessário dessa lei não é a dupla
negação, mas a repetição dos graus da etapa já transposta sobre
uma nova base, mais elevada, repetição que é condicionada
pela passagem do fenômeno em seu contrário, no curso da
negação de certos estados qualitativos por outros.
É evidente que os autores em questão percebem que seu
esquema contradiz a situação real das coisas. Eles têm cons­
ciência disso e esforçam-se para adaptar esse esquema aos fatos.
Por exemplo, compreendendo que nem toda negação dialética
condiciona a passagem de uma coisa em seu contrário, e que
para essa passagem são precisas várias negações, eles conside­
ram como uma única negação dialética toda a série de negações
necessárias para a passagem desse ou daquele fenômeno em seu
contrário. Eles privam de autonomia qualquer negação que
entre nessa série e consideram-na como uma etapa, uma fase,
um grau da mudança qualitativa da coisa ou de sua passagem
em seu contrário. Em decorrência de todas essas transforma­
ções, a repetição de uma nova etapa, por meio de duas nega­
ções do que já foi transposto, transformou-se, segundo eles, em
uma lei universal.
Em nossa opinião, todas essas transformações não são
justificadas. Como já sabemos, a negação dialética é a destrui­
ção da coisa condicionada por suas contradições internas, no
curso da qual o conteúdo positivo da formação negada é con­
servado e desenvolve-se no interior da formação material mais
perfeita, surgida em decorrência dessa destruição. Por isso,
não há absolutamente fundamento para privar de autonomia
uma negação dialética, como, por exemplo, a transformação,
no decorrer do desenvolvimento histórico, da propriedade pri­
vada escravagista em propriedade feudal e da propriedade
feudal em capitalista, porque ela contém todos os indícios
necessários da negação dialética. O processo da negação dia­

331
lética é condicionado aqui pelo desenvolvimento das contra­
dições internas e é acompanhado pela manutenção e pela repe­
tição, em um estágio superior, do conteúdo positivo do estágio
inferior negado. Ê verdade que aqui não há passagem do fe­
nômeno em seu contrário, mas, como já dissemos, isso não é
obrigatório para a negação dialética. Os autores mencionados
acima erigem em absoluto esse caso particular e dele fazem uma
forma universal, a única forma possível de negação dialética e,
exatamente por isso, deformam a realidade.
Assim, na realidade, não é toda negação dialética que
constitui uma passagem da coisa em seu contrário e, portanto,
a repetição do que já foi transposto, sobre uma nova base, não
se realiza sempre por meio de duas negações; o número de
negações é extremamente variável.
Esforçando-se para justificar, a qualquer preço, a tese
segundo a qual a dupla negação é a única forma de manifes­
tação da lei da negação da negação, certos autores declaram
que toda passagem de uma formação material de um estado
qualitativo a um outro representa uma dupla negação, que é
acompanhada de uma volta ao ponto de partida de uma repe­
tição, sobre uma nova base, do que já foi transposto. Seu
raciocínio é o seguinte: o salto, em decorrência do qual realiza­
se a passagem da coisa de um estado qualitativo a um outro,
encerra dois momentos: a destruição da antiga qualidade e a
afirmação da qualidade nova. A destruição da antiga qualidade
é a primeira negação, condiciona a passagem da coisa em seu
contrário. A afirmação da nova qualidade é a segunda negação
— negação da negação. E condiciona a volta ao ponto de
partida, sobre uma nova base (rumo a uma nova qualidade)12.
A idéia de que o salto-negação encerra ao mesmo tempo
um momento de destruição e um momento de criação e repre­
senta a unidade da negação e da afirmação é correta. O que
é incorreto é dizer que cada um desses momentos representa
uma fase particular e independente da transformação de um
fenômeno em outro, ou em seu contrário, e que cada um dentre
eles constitui uma negação dialética particular.1

1SM. Vorobiov, Sobre o conteúdo e as formas da lei da negação da


negação, Boletim da Universidade de Leningrado, n. 23, 1956, Caderno 4,
p. 60 (Série Economia, Filosofia e Direito). Original em russo.

332
No salto, a destruição e a criação não são momentos ou
fases isoladas, autônomas, mas representam dois aspectos,
organicamente ligados, e não podem existir um sem o outro,
de um mesmo processo de transformação de um fenômeno em
um outro, de uma qualidade em uma qualidade nova.
Na realidade, não há negação que destrua sem criar, e
vice-versa, porque cada negação é ao mesmo tempo destruição
e criação — destruição de uma e criação de outra, porque a
negação nada mais é do que a transformação de uma formação
material ou de um estado qualitativo em outros.
Por isso, o salto não é duas negações, das quais uma seria
chamada a destruir a antiga qualidade e a outra a criar uma
nova qualidade, mas uma única negação que é chamada a
transformar a antiga qualidade em uma nova qualidade pela
eliminação dos aspectos e das ligações que não correspondem
às novas condições.
Se, no processo da evolução, as novas formações materiais
repetem periodicamente, em traços gerais e sobre uma nova
base, mais elevada, os graus já transpostos, então, é absoluta­
mente natural que o desenvolvimento não possa seguir uma
linha diretamente ascendente, mas dê-se segundo uma espiral,
em que cada volta dê a impressão de repetir a precedente, mas
sobre uma base mais elevada.

333
XV. A PO SSIBILIDAD E
E A R E A L ID A D E

1. AS CONCEPÇÕES IDEALISTAS
E METAFISICAS
DA POSSIBILIDADE
E DA REALIDADE

Com a passagem do fenômeno à essência, o conhecimento


não pára nem cessa o seu movimento, mas penetra sempre mais
profundamente os objetos estudados, coloca em evidência as­
pectos e ligações sempre novos, e passa, assim, da essência de
primeira ordem à essência de segunda ordem, e assim até o
infinito. Por esse fato, torna-se necessário formar e utilizar
novas categorias.
Por exemplo, colocando em evidência a essência das for'
mações estudadas, o conhecimento volta-se para o passado,
segue a história do surgimento e do desenvolvimento dessas
formações materiais. Depois de atingir a essência e, apoiando-
se nela, o conhecimento olha para a frente, para o futuro, e
descobre imediatamente novas formas e ligações universais do
ser, novos aspectos e relações universais. Com efeito, repro­
duzindo a essência dessas ou daquelas formações materiais,
podemos apreciar não somente o que representa essa ou aquela
coisa em um momento dado, em suas relações dadas, mas
igualmente qual será seu comportamento em um outro mo­
mento, em outras relações. E, ainda mais, se sabemos como
essa coisa surgiu, os principais estágios que transpôs em sua
evolução, podemos também prever com exatidão no que ela
vai se transformar e o que ela poderá se tornar no futuro, em
outras condições.

334
Logo, se conhecemos a essência de uma formação ma­
terial, conhecemos tanto seus estados reais, como seus estados
possíveis, os que ainda não existem, mas que surgirão neces­
sariamente em certas condições. Mas, o estado real não é
idêntico ao estado possível, o que existe não é idêntico ao que
ainda não existe, ao que será unicamente em certas condições.
O alcance de um e do outro está longe de ser o mesmo para
a prática dos homens.
Por isso torna-se necessário separar, distinguir o real do
possível, colocar em evidência as particularidades de um e do
outro, compreender a dialética das transformações de um e do
outro e recorrer às categorias de “possibilidade” e de “realidade”.
O problema da possibilidade e da realidade preocupa há
muito tempo os filósofos, inclusive os da Antiguidade. Platão,
por exemplo, procurou resolvê-lo distinguindo a existência
possível e a existência real. Segundo ele, é o mundo das idéias,
das essências ideais que possui um ser real, enquanto que o
mundo das coisas possui apenas um ser possível. Estando no
estado de possibilidade, o mundo das coisas, para Platão, não
pode transformar-se em realidade, adquirir uma existência
real. O ser real e o ser possível estão separados por uma
fronteira intransponível. Ele diz, por exemplo, que o que
sempre existe não conhece o vir-a-ser, enquanto que o que está
sempre no vir-a-ser não conhece o ser.
Aristóteles, ao contrário de Platão, reconhece a existência
separada, independente da possibilidade e da realidade, e nega
que uma fronteira intransponível as separe. Ele acredita que
o possível pode tornar-se real, assim como o real pode tomar-se
possibilidade. Para Aristóteles, a possibilidade pura manifes­
ta-se como matéria primeira, a realidade pura é a firma que
se confunde, no final das contas, com Deus — forma de todas
as formas. A união da forma e da matéria faz surgir fcoisas
qualitativamente determinadas, que possuem um ser possível e
um ser real.
Aristóteles diz que as essências, as qualidades e os outros
aspectos do ser principal apresentam-se tanto como realidade,
quanto como possibilidade, ou sob uma forma ou sob outra,
ao mesmo tempo, enquanto que as mudanças em todos os do­
mínios do ser produzem-se de acordo com as determinações
contrárias que existem em cada um deles.

335
Para Aristóteles, a passagem da possibilidade à realidade
não se faz a partir das forças, das tendências internas, da coisa,
mas está ligada à ação de fatores exteriores, de uma força
exterior, isto é, a essa ou àquela coisa realmente existente,
“ . . . porque, dizia ele, se é sempre do ser em potencial que vem
o ser em ato, é apenas graças à influência prévia de um ser
que este próprio ser torna-se igualmente em ato”l.
Apoiando-se nessa tese de Aristóteles, Tomás de Aquino
defendeu a necessidade da existencia de uma realidade pura
que, por sua ação, acarrete a transformação dessa ou daquela
possibilidade em realidade. Segundo ele, apenas Deus pode
representar uma realidade tão pura.
A ruptura metafísica entre a possibilidade e a realidade,
assim como sua criação em absoluto, leva necessariamente ao
idealismo, à procura de um princípio ativo, capaz de unir a
possibilidade e a realidade e de criar, exatamente por isso, a
diversidade das coisas e dos fenômenos que nós observamos.
Giordano Bruno opôs-se categoricamente à ruptura entre
a possibilidade e a realidade. Segundo ele, a possibilidade não
pode existir fora da realidade, independentemente dela, já que
lhe está organicamente ligada. “ ( . . . ) A possibilidade de ser,
escreve ele, existe na realidade junto com o ser e não o pre­
cede”*.
Thomas Hobbes desenvolveu essa mesma idéia; demons­
trando a correlação orgânica da possibilidade e da realidade, ele
destacou que elas são ambas da mesma natureza, concernem
aos mesmos fenômenos. A possibilidade, ou o potencial, e a
causa agente significam, no fundo, a mesma coisa mas, exa­
minados em ligações diferentes: quando falamos da causa,
temos em vista a ação que já começou; quando falamos da
possibilidade, temos em vista a ação que deve ainda produzir-se3.
Leibniz tratou da correlação dialética da possibilidade e
da realidade, pelo fato de que as possibilidades de todas as
mudanças das coisas estão contidas na coisa em si, em sua
natureza interna. Ele dizia que a coisa não recebe do exterior
nada que já não esteja contido nela como possível, e que tudo*3

‘Aristóteles, Métaphysique d ’Aristote, Paris, 1879, t. 2, p. 451.


‘O. Bruno, Dialoghi italiani, Sansoni-Firenze, 1958, p. 281.
3T. Hobbes, Hobbes Selections, Chicago, 1930, p. 100.

336
o que ela experimenta produz-se apenas porque o fundamento
encontra-se no seio dessa coisa4.
Kant tinha um outro ponto de vista. Segundo ele, a
possibilidade e a realidade não são próprias às coisas, ao
mundo exterior, mas são características da razão humana, de
suas faculdades cognitivas. “A distinção entre as coisas pos­
síveis e reais, diz ele, só tem sentido enquanto distinção subje­
tiva para a razão humana”5.
Hegel criticou a aproximação subjetivista de Kant da pos­
sibilidade e da realidade. Desenvolvendo o pensamento de
Leibniz sobre o laço orgânico da possibilidade e da realidade
imediata, ele mostrou não somente o condicionamento da pri­
meira pela segunda, mas igualmente a dialética da transforma­
ção de uma na outra. Segundo ele, “a realidade imediata
contém um germe de alguma coisa completamente diferente
dela. No começo dessa outra coisa, só há possibilidade, mas
depois essa forma anula-se e transforma-se em realidade. Essa
nova realidade. .. é o interior autêntico da realidade imediata,
que absorve esta última. Assim, as coisas tomam uma outra
imagem, entretanto, nada de novo aparece, porque a primeira
realidade estabelece apenas sua essência”6.
A realidade é, segundo Hegel, a unidade do interno e do
externo, da essência e da existência, o necessário e sua mani­
festação (sua existência) por meio do contingente.

2. A CONCEPÇÃO DIALÉTICA
E MATERIALISTA
DA POSSIBILIDADE
E DA REALIDADE

As leis da correlação do possível e do real percebidas


por Hegel foram assimiladas de forma materialista e foram
também cientificamente fundamentadas no materialismo dialé­
tico. Do ponto de vista do materialismo dialético, a realidade

4 L. Feuerbach, Geschichte der Neuer. Philosophie. Ansbach, 1837,


p. 208-9.
iKant’s Werke, v. 5, p. 402.
aG. W. F. Hegel, Werke. Vollständige Ausgabe, v. 6, p. 292.

337
é o que existe realmente e a possibilidade é o que pode produ-
zir-se quando as condições são propícias.
Podemos objetar que: “Se a realidade representa o que
existe realmente, não podemos distingui-la da possibilidade,
porque a possibilidade também tem uma existência real”. A
possibilidade tem, efetivamente, uma existência real, mas so­
mente como propriedade, capacidade da matéria de transfor­
mar-se em condições correspondentes, de uma coisa ou de um
estado qualitativo em um outro. Sob essa forma, isto é, como
capacidade de transformar-se de um em outro, a possibilidade
é um momento da realidade, como existência real.
Quando falamos da possibilidade como de alguma coisa
que ainda não existe, que ainda não tem existência real, temos
em vista não a capacidade de uma formação material (ou de
um estado) de transformar-se em outro, mas da capacidade
dessas outras formações materiais, ou estados, em condições
correspondentes, transformarem-se em uma formação material
ou um estado qualitativo dado. Eles não têm ser real, não
se encontram ainda na realidade, mas podem proauzír-se, ma-
nifestar-se.
Assim, por possibilidade, entendemos as formações mate­
riais, propriedades, estados, que não existem na realidade, mas
que podem manifestar-se em decorrência da capacidade das
coisas materiais (da matéria) de passar umas nas outras.
A possibilidade, realizando-se, transforma-se em realidade,
e é por isso que podemos definir a realidade como uma possi­
bilidade já realizada e a possibilidade como realidade potencial.
Ao lado dessa definição da realidade, encontramos outras,
segundo as quais a realidade não é tudo o que existe realmente,
mas somente o que ainda é necessário e lógico?.
Procuramos justificar a identificação da categoria de rea­
lidade com as categorias de necessidade e de lei por meio do
argumento de que, nesse caso, poderíamos conhecer mais pro­
fundamente a realidade, isolar as tendências principais no
mundo ambiente e, assim, orientar-nos melhor em nossa ativi­
dade prática.7

7A. K. Sukhotin, Sobre o problema do conteúdo da categoria da


realidade e sua relação com a necessidade, in Ciências filosóficas, 1960,
v. 4, p. 49.

338
Não há dúvida de que isolar, na realidade que rodeia os
homens, as grandes tendências, as ligações determinantes, se­
parar o necessário, o essencial do contingente, do não-essencial,
tem uma importância de primeira ordem para o conhecimento
e a prática. Mas isso não exige absolutamente a identificação
das categorias de realidade e de necessidade. A isso podemos
chegar pela intelecção da realidade, pelas categorias de “neces­
sário”, de “contingente”, de “lei”, de “fundamental”, de “não-
fundamental”, de “essencial” e de “não-essencial”.
Além disso, dizer que as ligações e as relações contingen­
tes não são reais, não impedirá a revelação de toda a riqueza
da realidade ambiente, nem de se ter nela uma boa orientação,
porque, na prática, assim como na vida cotidiana e na história,
o contingente, as ligações e as relações contingentes desempe­
nham igualmente um papel considerável. É preciso, na ativi­
dade prática, levá-los em conta como realidades efetivas.
Sendo uma forma universal de manifestação da necessidade,
eles são inseparáveis da realidade, da qual são o lado essencial.
Os autores desse ponto de vista referem-se a Engels que,
analisando a concepção hegeiiana da realidade como necessi­
dade, teria expresso sua concordância com esse ponto de vista.
Entretanto, essa referência não está fundamentada. Primeira­
mente, indicando que, “para Hegel, tudo o que existe não é
absolutamente real logo à primeira vista”, que “o atributo da
realidade só se aplica, para ele, ao que é ao mesmo tempo
necessário”8*10, Engels tinha por objetivo esclarecer a essência
da concepção hegeiiana dessa questão e não abordou, absolu­
tamente, sua resolução na filosofia marxista. Em segundo lugar,
para Hegel, ao lado dessa concepção da realidade há uma outra,
que reconhece a realidade e a contingência. “A realidade, de­
clara Hegel, é a unidade tornada imediata, da essência e da
existência ou do interior e do exterior”8. É precisamente a
contingência que constitui, em Hegel, o aspecto exterior da
realidade18. “Considerado de muito perto, o exterior acima
mencionado da realidade, escreve Hegel, sobre a relação entre

8K. Marx, F. Hengels, Etudes philosophiques, Paris, Editions So­


ciales, 1961, p. 16.
6G. W. F. Hegel, W e rk e cit., p. 281.
10G. W. F. Hegel, W e r k e cit., p. 287.

339
a contingência e a realidade, mostra que a contingencia, en­
quanto realidade imediata, é o que é idêntico a si mesmo; mas
ela é o essencial idêntico a si mesmo, unicamente como o
estabelecido que é, ao mesmo tempo, anulado — é o exterior
presente”11. “ ( . . . ) A contingência é um momento unilateral
da realidade”^ .
Assim, Hegel não exclui a contingência da realidade, não
a declara uma irrealidade, como pensam os autores que mantêm
esse ponto de vista, mas a considera como seu momento, o
aspecto exterior da realidade. Parece-nos mais justo considerar
a realidade como a unidade realmente existente do necessário e
do contingente, do interior e do exterior, da essência e do
fenômeno.
A possibilidade transforma-se em realidade não em qual­
quer momento, mas somente nas condições determinadas, que
são um conjunto de fatores necessários à realização da possibili­
dade. Por exemplo, a transformação da possibilidade da
revolução socialista nos países capitalistas em realidade não
pode dar-se em qualquer momento, mas apenas nas condições
determinadas, ou seja, quando for criada no país uma tal situa­
ção que “a base” não possa mais viver como anteriormente e
a “cúpula” não possa mais governar à maneira antiga, quando
“a miséria agravar-se e a atividade das massas ganhar uma
maior intensidade”, quando “a classe operária tornar-se capaz
‘de conduzir ações revolucionárias de massa’”, quando “ela
possuir um partido, e puder organizar e dirigir essas massas,
a fim de derrubar as classes decadentes”^ .
Se qualquer pòssibilidade só se transforma em realidade
quando existem condições determinadas, podemos, conhecendo
essas ou aquelas possibilidades, interferir no curso objetivo dos
acontecimentos e, criando artificialmente as condições requeri­
das, acelerar ou refrear sua transformação em realidade.
Toda atividade prática dos homens baseia-se exatamente
nessa lei. Com efeito, todas as operações do trabalho nada
mais são do que ações que visam criar as condições necessárias
para a realização dessas ou daquelas possibilidades conhecidas,
próprias aos objetos e aos fenômenos da natureza, introduzidas*1

“ Hegel, W e r k e cit., p. 291.


“Hegel, W e rk e cit., p. 290.
1SV. Lenin, O e u v re s, t. 21, p. 216-7.

340
nos processos de produção. Se a atividade prática dos homens
baseia-se na utilização consciente da transformação ria possibi
lidade em realidade, toma-se indispensável analisar a fundo
essas leis e estudar as possibilidades sob seus diferentes
aspectos.

3. TIPOS DE POSSIBILIDADE
E SEU ALCANCE NA PRATICA

Pelo fato de que cada formação material constitui a


unidade de uma quantidade infinita de diferentes aspectos e
tendências contrários, ela possui também uma quantidade infi­
nita de diferentes possibilidades, que estão longe de ter, todas,
o mesmo alcance na atividade prática.
Na literatura filosófica, é uma regra comum distinguir as
possibilidades reais das possibilidades formais. Chamamos de
reais as possibilidades que são condicionadas pelos aspectos e
ligações necessários, pelas leis do funcionamento e do desenvol­
vimento do objeto; chamamos de formais as ligações que são
condicionadas pelas ligações e pelas relações contingentes.
Levando em conta o que vem do dito ser, compreendemos
facilmente, por exemplo, que a possibilidade da revolução
socialista nos países capitalistas é uma possibilidade real, por­
que decorre das ligações e das relações necessárias, próprias
a essa sociedade capitalista, condicionada pelas leis internas
do funcionamento e do desenvolvimento da formação capitalista.
É igualmente real a possibilidade da gestão planificada da
economia nos países socialistas, pelo fato de que ela decorre
inelutavelmente da propriedade social, que é o fundamento
econômico da sociedade socialista, que é condicionada pela lei
do desenvolvimento planejado e proporcional, que se manifesta
nesses países. É formal a possibilidade da transformação do
operário em capitalista, assim como a possibilidade da introdu­
ção de uma economia planejada no quadro do capitalismo,
porque isso não decorre da natureza interna da sociedade
capitalista, não é necessariamente condicionado pelas leis de
seu funcionamento e de seu desenvolvimento, mas depende de
todo tipo de circunstâncias, isto é, da contingência. Do ponto
de vista da possibilidade formal, esse ou aquele fenômeno é

341
tanto possível quanto impossível, porque a lógica da contingên­
cia é tal que ela (a contingência) pode produzir-se ou não.
Segue-se que a importância da possibilidade formal para
a atividade prática dos homens é fraca, porque a atividade
prática baseia-se inteiramente nas ligações e relações que se
repetem e se produzem necessariamente em condições determi­
nadas, isto é, sobre possibilidades reais.
Engendradas pelos aspectos e relações necessários da reali­
dade, as possibilidades reais distinguem-se entre si segundo suas
ligações com as condições necessárias para a sua realização.
E, segundo suas formas de ligação com essas condições, elas
dividem-se em possibilidades abstratas ou concretas.
Uma possibilidade concreta é a possibilidade para cuja
realização podem ser reunidas, no momento presente, as con­
dições correspondentes; a possibilidade abstrata é uma possibi­
lidade para cuja realização não há, no momento presente,
condições necessárias. Para que essa última se realize, a for­
mação m .erial que a contém deve transpor vários estágios
de desenvolvimento.
Uma possibilidade concreta é, por exemplo, na época
contemporânea, a possibilidade da passagem ao socialismo de
todos os países capitalistas e dos países que estão no estágio
pré-capitalista de desenvolvimento. Um exemplo de possibili­
dade concreta pode ser fornecido pela possibilidade de crises
econômicas na própria produção mercantil. Para transformar
essa possibilidade em realidade, não existem as condições ne­
cessárias na própria produção mercantil, por isso seria preciso
que a produção mercantil transpusesse muitos estágios de de­
senvolvimento e passasse por várias transformações qualitativas
e, em particular, que ela se transformasse em produção mercantil
capitalista e que essa última, por sua vez, atingisse um nível
determinado de desenvolvimento. Por tudo isso, não se pode
dizer que foi por acaso que a primeira crise econômica deu-se
apenas em 1825.
A distinção e a consideração das possibilidades concretas
e abstratas reais apresentam uma grande importância para a
atividade prática dos homens e, em particular, para realizar a
planificação concreta e a planificação a longo prazo. A con­
fusão dos diferentes tipos de possibilidades pode conduzir a
graves erros. Como conseqüência dessa confusão, podemos
citar os erros que foram cometidos durante a coletivização na

342
União Soviética, quando os dirigentes locais decidiram passar
a pequena produção mercantil privada, não para os kolkhozes,
mas diretamente para os comunistas. A passagem para a co­
muna é uma possibilidade real que decorre da natureza interna
do Estado soviético, e das leis do seu funcionamento e de seu.
desenvolvimento. Mas, naquela época, essa possibilidade era
abstrata, porque as condições necessárias para sua realização
não existiam; para que essas condições surgissem, a sociedade
soviética, sua economia e sua cultura deveriam, ainda, transpor
vários estágios de desenvolvimento e conhecer várias transfor­
mações qualitativas.
Segundo essas particularidades do processo de transfor­
mação dessa ou daquela possibilidade em realidade, as possibi­
lidades podem ser agrupadas em reversíveis ou irreversíveis.
Por exemplo, a possibilidade do movimento mecânico
transformar-se em calor é reversível, porque, com sua realiza­
ção, o que anteriormente era realidade (movimento mecânico)
torna-se possibilidade. Com efeito, o calor encerra a possibi­
lidade de passagem ao movimento mecânico. Mas é irrever­
sível a possibilidade da transformação da energia química do
carvão em eletricidade. Realizando-se, a realidade inicial
transforma-se em impossibilidade: a eletricidade não tem possi­
bilidade de se transformar em carvão.
As diferentes possibilidades, próprias a uma mesma forma­
ção material, são correlativas e interdependentes. Levando em
conta o caráter da ligação das possibilidades, podemos diferen­
ciá-las em coexistentes ou excludentes.
Chamamos de coexistente (com relação a uma outra pos­
sibilidade) uma possibilidade cuja realização não implica o
desaparecimento de outra; e chamamos excludente, uma possi­
bilidade cuja realização implica a exclusão de uma outra.
Um exemplo de possibilidade coexistente é a possibilidade
do camponês tornar-se koulak (pequeno proprietário explora­
dor da terra), com relação à possibilidade de tornar-se adminis­
trador de terras. Quando ele se torna um pequeno proprietário
explorador de suas terras {koulak), não pode fazer frente à
concorrência, como conseqüência, vai à falência e torna-se um
operário agrícola assalariado (administrador de terras). A
possibilidade do camponês da URSS tornar-se kolkhozien é
excludente com relação à possibilidade de tomar-se um pequeno
proprietário explorador de terras. Com a transformação da

343
pequena produção privada em economia coletiva, socialista, a
exploração do homem pelo homem tornou-se impossível na
União Soviética.
A realização das diferentes possibilidades próprias a uma
formação material não age da mesma forma sobre sua essência.
A realização de algumas dentre elas não modifica a essência,
enquanto que a realização de outras acarreta mudanças na
formação material, leva à transformação desta em uma outra
formação material. A possibilidade cuja realização não modi­
fica a essência da coisa é denominada de possibilidade de
fenômeno; a possibilidade cuja realização está ligada à modi­
ficação da essência da coisa, com sua transformação em uma
outra coisa, é denominada possibilidade de essência.
Por exemplo, a possibilidade de obter um aumento de
salário que os operários têm, em decorrência da luta contra os
capitalistas, é uma possibilidade de fenômeno, porque sua reali­
zação não modifica a essência social desses operários. Eles
permanecem o que eram anteriormente, privados da propriedade
dos meios de produção, afastados do poder, explorados pela
burguesia. A possibilidade da revolução socialista nos países
capitalistas é uma possibilidade de essência. Sua realização
acarreta a modificação da essência do regime social e a socie­
dade capitalista transforma-se em uma sociedade socialista.
As particularidades das possibilidades reversíveis e irrever­
síveis, coexistentes e excludentes, assim como as das possibi­
lidades de fenômeno e de essência, estão em relação direta
com a atividade prática humana e sua consideração permite
assegurar uma orientação mais justa, uma escolha mais correta
das vias e dos meios de chegar a esse ou àquele resultado prático.
Examinamos as particularidades das diferentes possibilida­
des e do processo de sua transformação em realidade. Entre­
tanto, com a transformação da possibilidade em realidade, a
possibilidade não desaparece enquanto tal, não é eliminada; o
aparecimento de uma nova realidade, em decorrência da reali­
zação dessa ou daquela possibilidade, é acompanhado pelo
aparecimento de novas possibilidades. Passando de um estado
qualitativo a outro, a matéria não pode, portanto, jamais esgotar
suas possibilidades. Suas possibilidades são ilimitadas.

344
1

XVI. D A RELAÇÃO D A S LbIS


E D A S CATEGO RIAS
D A D IA LÉTIC A

O que há de comum às leis e às categorias da dialética é


que tanto umas como as outras refletem as leis universais do ser,
as ligações e os aspectos universais da realidade objetiva. A
interpenetração dos contrários, a passagem recíproca entre a
qualidade e a quantidade, a repetição, sobre uma nova base,
do que já foi transposto, tanto os elementos refletidos nas
principais leis da dialética, quanto os que são tão universais
como a relação, além da causa e do efeito, do necessário e do
contingente, da forma e do conteúdo, exprimidos nas categorias
correspondentes.
Ao mesmo tempo, as leis e as categorias apresentam dife­
renças importantes que são concernentes, antes de tudo, ao
objeto do reflexo. As leis da dialética refletem as ligações e
as relações universais, enquanto que as categorias refletem,
além disso, as propriedades e os aspectos universais da reali­
dade objetiva, o que faz com que o conteúdo das categorias
revele-se mais rico do que o das leis. Por exemplo, a lei da
passagem das mudanças quantitativas reflete simplesmente a
correlação da quantidade e da qualidade; as categorias de
qualidade e de quantidade, incluindo essa lei, refletem igual­
mente os aspectos que constituem a qualidade e a quantidade
e a ligação de uma característica qualitativa ou quantitativa
com uma outra.
A diferença entre as leis e as categorias concerne igual­
mente às formas do reflexo. As leis da dialética, assim como
as leis de qualquer outra ciência, são juízos, enquanto que as
categorias são uma forma particular de conceitos.
Certos autores pensam que as categorias refletem somente
os aspectos, as propriedades, mas não refletem as correlações

345
desses aspectos entre si, que são, segundo esses autores, fixados
pelas leis correspondentes. Entretanto, a realidade está muito
longe de ser assim. Esses autores confundem o conteúdo das
determinações dessas ou daquelas categorias com o conteúdo
das próprias categorias. As determinações das categorias não
contêm, efetivamente, leis da correlação dos aspectos ou dos
momentos da realidade que são refletidos por essas categorias.
Elas fixam somente o específico e o essencial, que permitem
distinguir as categorias uma da outra e das outras. Mas a'
determinação das categorias, como de qualquer outro conceito,
não esgota, nem pode esgotar, todo seu conteúdo. Ele é mais
diversificado e mais rico do que as propriedades e os traços
englobados pela determinação. E encerra não somente os
aspectos, as propriedades correspondentes, mas igualmente a
correlação entre eles e os outros aspectos de formações ma­
teriais.
Em particular, o conteúdo da categoria de quantidade
está longe de ser esgotado pelo conjunto das propriedades que
traduzem o volume e as dimensões da coisa que figuram
habitualmente nas determinações dessa categoria. Ele encerra
igualmente o fato de que a categoria está organicamente ligada
à qualidadi . e de que em um estágio determinado de sua mu­
dança produz-se uma mudança de qualidade e que suas caracte­
rísticas dependem das características qualitativas. Em outros
termos, a categoria de quantidade inclui em seu conteúdo, ao
mesmo tempo, as propriedades que caracterizam a qualidade
e as leis da correlação da quantidade e da qualidade.
O mesmo ocorre com o que concerne à categoria de qua­
lidade, que tem por conteúdo não somente as propriedades que
indicam o que é a qualidade, mas ainda as propriedades que
traduzem sua correlação com a quantidade e, em particular, o
fato de que suas diferenças sejam determinadas pelas mudanças
quantitativas, que ela modifica sob a influência das mudanças
quantitativas etc.
Podemos observar a mesma coisa na análise da relação
entre o conteúdo da lei da unidade e da “luta” dos contrários
e o conteúdo de uma categoria como a de “contradição”. A
lei da unidade e da “luta” dos contrários reflete e fixa o fato de
que há luta entre os contrários (contrários característicos dessa
ou daquela formação material) que se excluem e, ao mesmo
tempo, estão unidos, e que essa luta, em última análise, leva

346
à solução da dita contradição e à passagem da coi .u de um
estado qualitativo a um outro. A categoria de “contradição”
contém todos esses momentos e ainda vários outros, que entram
no conteúdo da lei da unidade e da “luta” dos contrários. De
fato, a categoria de “contradição” fixa o fato de que a contra­
dição é uma interação entre aspectos opostos ou uma luta dos
contrários. Além disso, a categoria de “contradição” inclui
igualmente a necessidade de distinguir as contradições: inte­
riores e exteriores, essenciais e não-essenciais, fundamentais e
não-fundamentais, principais e acessórias; e fixa também os
momentos concernentes a seu papel e à sua importância no
desenvolvimento das formações materiais e, em particular, o
fato de que elas são a origem do movimento e do desenvolvi­
mento etc.
Assim, o conteúdo da categoria de “contradição” é
muito mais rico do que o da lei da unidade e da “luta” dos
contrários.
Encontramos um fenômeno análogo examinando as rela­
ções das outras categorias e das leis que lhes correspondem.
Tomemos as categorias de conteúdo e de forma e a lei que diz
que o conteúdo determina a forma. Essa lei diz unicamente
que o conteúdo é determinante na relação conteúdo-forma e
que a forma aparece e muda em resposta ao aparecimento e à
mudança do conteúdo. No que diz respeito às categorias de
conteúdo e de forma, estas refletem, além desse, vários outros
momentos. A categoria de conteúdo, por exemplo, quando
fixa o momento em que o conteúdo é determinante em relação
à forma, inclui a idéia de que o conteúdo é o conjunto dos
aspectos e processos internos do fenômeno ou da coisa, que
ele muda continuamente, “corre” e, em seu desenvolvimento,
ultrapassa a forma, e que a forma que lhe corresponde oferece-
lhe grandes possibilidades de desenvolvimento etc.
As categorias incluem em seu conteúdo as leis correspon­
dentes: o fato de que a maioria das leis da diajética não se
manifestem na qualidade de objetos de estudo autônomos, mas
sejam consideradas como momentos determinados do conteúdo
dessas ou daquelas categorias é uma prova disso. Por exemplo,
a lei de causalidade não é estudada como tal, em si mesma, mas
somente em ligação com as categorias de causa e efeito, so­
mente como momento de seu conteúdo. O mesmo acontece
para a lei da correlação do necessário e do contingente, estu­

347
dada em ligação com a colocação em evidência do conteúdo
das categorias do necessário e do contingente. Também não
são estudadas, isoladamente, a lei da passagem recíproca do
singular em geral e do geral em singular; a lei segundo a qual
a forma é determinada pelo conteúdo; a lei da ação ativa da
forma sobre o conteúdo. Essas leis são reproduzidas na cons­
ciência somente como elementos constitutivos das categorias de
singular e de geral, de forma e de conteúdo.
É verdade que algumas leis da dialética apresentam-se a
nós, não sob a forma de momentos do conteúdo dessas ou
daquelas categorias, mas como elas mesmas. Por exemplo, a
lei da transformação das mudanças quantitativas em mudanças
qualitativas; lei da unidade e da “luta” dos contrários; a lei
da negação da negação. Essas leis são estudadas de maneira
autônoma, não porque seu conteúdo não entre no conteúdo
das categorias correspondentes, mas porque, ao contrário das
outras leis da dialética, essas são leis fundamentais que deter­
minam as outras leis e que, de uma maneira ou de outra, ma­
nifestam-se por meio delas. Assim, por exemplo, a lei da
unidade e da “luta” dos contrários determina algumas leis da
correlação do singular e do geral, da quantidade e da qualidade,
da causa e do efeito, da forma e do conteúdo, do necessário
e do contingente, da possibilidade e da realidade etc. e, sob
uma forma ou sob outra, ela manifesta-se por meio delas.
Com efeito, o singular e o geral, a forma e o conteúdo, assim
como o necessário e o contingente, a possibilidade e a realidade
etc. são contrários que, em certas condições, mudam-se um no
outro, tornando-se idênticos.
O mesmo acontece na lei da passagem das mudanças
quantitativas em mudanças qualitativas. Essa lei manifesta-se
em particular, de maneira determinada, na interação dos mo­
mentos ou aspectos, refletidos por todas as categorias duplas.
Por exemplo, a mudança da quantidade do singular transfor­
ma-o necessariamente em geral (nova qualidade) e, inversa­
mente, uma mudança quantitativa determinada do geral condi­
ciona sua transformação em singular. Em decorrência do
acúmulo das mudanças quantitativas no conteúdo, haverá, cedo
ou tarde, uma mudança da forma, que é acompanhada pela
passagem da formação material para um novo estado qualitativo.
Finalmente, um certo reforço desse ou daquele caráter contin­
gente, correspondente às condições de existência da formação

348
material, leva a sua transformação em necessário, que é, pelo
caráter dado, um novo estado qualitativo etc.
Úesde que essas leis da dialética são fundamentais e deter­
minam todas as outras ligações e relações universais, é abso­
lutamente normal e necessário distingui-las do conteúdo das
categorias correspondentes e dedicar-lhes mais atenção.

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