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IDEOLOGIA

E
CURRÍCULO
Michael W. Apple
Professor de Curriculo e Ensino
Universidade de Wisconsin

IDEOLOGIA
E
CURRiCULO

center.lário de mon,teiro lobato


Copyright@Routledge& Kegan Paul, 1979.
Título original em Inglês: Ideology and curriculum.

Tradução:
Carl()s E~uardo Ferreira de Carvalho .\

Capa:
Alfredo Aquino

Revisão:
Heitor F. Costa
José E. Andrade

Indlce

---1.. A anâlise da hegemonia ..................... ; . . . . . . . . 9


2. Ideologia e reprodução cultural e econômica ............ 43
3. A economia e o controle na vida escolar cotidiana........ 69
4. História do curriculo e o controle social ................ 95
.........-5. O curriculo oculto e. a natureza do conflito. ... . . . . . . . . . .. 125
6. Modelo sistêmico de administração e a ideologia do con-
trole ........ : ........... :.............................. 159
"/.. Categorias do senso comum e a política de rotulação ..... 185
8. Além da reprodução ideológica ....................... 229
\

j~
editora brasiHense s.a.
01223 - r. general jardim, 160
são paulo - brasil
Agradecimentos

Em outras de minhas obras, mas nesta em especial, várias


pessoas colaboraram com teses e argumentos. Naturalmente, nem
todas concordarão com tudo que nela se acha escrito, mas todas
compartilham uma sua característica. Cada uma delas transmitiu-
me ensinamentos que vieram a se constituir em contribuições para
este livro - por vezes pequenas, mas em sua maior parte grandes
contribuições. Entre essas pessoas encontram-se Ann Becker, Basil
Bernstein, Roger Dale, John Eggleston, Walter Feinberg, Michael
Flude, Barry Franklin, Maxine Greene, Dwayne Huebner, Carl
Kaestle,. Daniel Kallos, Nancy King, Herbert Kliebard, Alan Lock-
wood, James Macdonald, Steve Mann, Vandra Masemann, Fred
Newmann, Michael Olneck, Daniel Pekarsky, Francis Schrag, Ste-
ven Selden, Jonas Soltis, Robert Tabachnick, Gary Wehlage, Philip
e
Wexler, Geolf Whitty Michael F. D. Young. Devo muito tamb~m
a David Godwin, da Routledge & Kegan Paul. Bonnie Garski e
Barbara Selfrood, como sempre, deram provas de seus méritos,
amizade e estima na datilografia dos originais, na apresentação de
sugestões e na paciência que devotaram diante de minhas recon"
siderações.
Também se faz necessária uma palavra àqueles ligados ao
seminário sobre "Ideologia e Conhecimento Escolar" em realização
na Universidade de Wisconsin. Muito do que se acha aqui escrito foi
por eles influenciado. Mais do que estúdantes, são agora amigos e
participantes de uma busca coletiva por uma apreciação mais abran-
gente e crítica da ação das escolas.
8 MICHAEL W. APPLE

É costume incluir nos agradecimentos algumas palavras sobre


a dedicaçãO da mulher e dos filhos. Receio, no entanto, que palavras
sejam insuficientes para transmitir o quanto sou reconhecido a
minha esposa, Rima, cujo apoio, crítica e orientação na história da
mulher bem como na história da ciênciaforam-me de grande impor-
tância. Este livro tornou-se uma realidade graças a seu apoio e aos
membros de minha família, cujas origens e lutas políticas contra a
opressão levaram-me a buscar minha formação política na esquerda
norte-americana.
1
Por fim, qupro dedicar este livro a meus filhos, Peter e Paul. A anlÍDse da hegemonia
Que eles e nós, seus pais, sejamos fortes o bastante para capacitá-los
a perseverar em nossa responsabilidade política.

Versões anteriores de alguns desses capítulos apareceram em


outras publicações: o Capítulo 2 na Comparative Education Review,
XXII (Gct. 1978); o Capítulo 3 na Curriculum Inquiry, VI (n. 4, I
1977); o Capítulo 4 em Community Participation in Education, Carl
Grant (org.), Boston, Allyn & Bacon, 1979; o Capítulo 5 em Inter- Introdução
change, II(n. 4, 1971); o Capítulo 6 em The Joumal of Educational
Research, LXVI (Sept. 1972); e o Capítulo 7 em Schools in Search
Há alguns anos, pediram-me que escrevesse uma exposição
of Meaning, James B. Macdonald e Esther Zaret (orgs.), . Wash-
pessoal para um volume que reeditava alguns de meus artigos. Na-.
ington, Associat;on for Supervision and Cu"iculum Development, quele trabalho, procurei apresentar os tipos de compromissos poli"
1975. Devo aqui meus agradecimentos a Raymond Williams e à New ticos e pessoais que me pareciam constituir o conjunto básico dos
Left Review pela autorização para transcrever passagens de "Base .princípios que orientavam meu trabalho como educador.! Em re-.
and Superstructure in Marxist Cultural Theory" (1973). sumo, sustentei com firmeza que a educação não era um emp·reen-
dimento neutro, que, pela própria natureza da instituição, o edu- \
cador estava implicado, de modo consciente ou não, num ato poli- /
tico. Afirmei que, em última análise, os educadores não poderiam .
separar completamente sua atividade educaci.onal dos programas
institucionais de tendências diversas e das formas de consciência que
dominam economias industrialmente desenvolvidas como a nossa.
Desde a redação daquela exposição, as questões tomaram· se-
me ainda mais instigantes. Ao mesmo tempo, auspiciosamente ob~
tive algum progresso na conquista de uma compreensão màis pro-o
funda dessa relação entre ~educação e estrutura econômica, d~.Hg~:.
ç~~enn:€:c_()!lh~çi!!!~!lto e poder. Fundamentalmente, o problema

(1) Michael W. Apple. "PersonaJ Statement". Curricu/um Theorizing: The


Reconceptua/ists. Berkeley, McCutchan, p; 89-93.
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para mim passou a se constituir cada vez mais nu~a questão estru- Outros, em especial Bowles e Gintis,s enfocaram as escolas de
tural. Progressivamente procurei baseã-Io num conjunto de questões um modo que acentua o papel econômico das instituições educa-
críticas que têm sua origem numa' tradição de argumentaçã.o ~eo­ cionais. A mobilidade, a seleção, a reprodução da divisão do traba-
marxista, tradição essa que me parece oferecer o modelo mais me- lho e outras conseqüências tornam-se então os focos principais para
futável de organizar pensamento e ação quanto a educação. a análise que desenvolvem. Freqüentemente se vê como elemento
Em linhas gerais, a abordagem que julgo mais fértil procura determinante a manipulação econômica consciente por parte daque-
"explicar os reflexos manifestos e latentes ou codificados dos modos les que se acham no poder. Embora seja certamente importante,
de produção material, dos valores ideol6gicos, das relações de classe para se dizer o mínimo, apresenta apenas um dos lados do quadro.
e das estruturas de poder social - raciais e sexuais, bem como A posição economicista fornece uma apreciação pouco adequada da.
político-econômicas - sobre o estado de consciência das pessoas forma como essas conseqüências são criadas pela escola. Não pode )
numa situação hist6rica ou s6cio-econômica determinada". Re~o­
2
esclarecer completamente quais são os mecanismos de dominação e
nheço que há muito aí para uma única frase. Mas a problemá~ca como furwionam na atividade cotidiana da vida escolar. Além do
subjacente é ainda mais complexa. A abordagem a que me refiro mais, é preciso complementar-se uma anãlise econômica com uma
procura representar as formas concretas em que os programas estru- abordagem que se ap6ie solidamente numa orientação cultural e
turais predominantes (e eu acrescentaria alienantes) - as formas ideol6gica, se estamos realmente dispostos a entender as formas
bãsicas como são organizadas e dirigidas as instituições, as pessoas e complexas em que as tensões e contradições sociais, econômicas e
os modos de produção, distribuição e consumo - controlam a.vida políticas são "mediadas" nas práticas concretas dos educadores no
cultural. Isto inclui prãticas cotidianas como as escolas, e o ensmo e desempenho de suas atividades nas escolas. O enfoque, então, deVe-)
os currículos que nelas se encontram. 3 • ria estar também nas mediações ideol6gicas e culturais que existem i(..
Considero isto de importância excepcional para se exammar entre as condições materiais de uma sociedade classista e a formação
as relações entre os conhecimentos manifesto e oculto transmitidos da consciência dos indivíduos. nessa mesma sociedade. Quero, por-
pelas escolas, os princípios de seleção e organização desses conhe- tanto, examinar aqui a .relação entre a dominação econômica e a
cimentos e os critérios e modos de avaliação empregados para se cultural, examinar o que tomamos como dado e que parece produzir
"aferir o êxito" no ensino. Como afirmaram Bernstein e Young, "naturalmente" algumas das conseqüências parcialmente descritas
entre outros, a estruturação do conhecimento e do símbolo em ) por aqueles cujo enfoque se centrou na economia política da edu-
nossas ~nstituições educaci~nais está intimamente relacion.ada ao! cação.
princípIOS de controle social e cultural numa. dada socleda~e.
Adiante, terei Um pouco mais a dizer a respeito disso. Por ora delXe-
me afirmar que um dos nossos .problemas básicos como educa- Sobre a análise da hegemonia
dores e como seres políticos estã em apreender formas de com-
preensão do modo como os tipos de recursos e símbolos cUlturaiS} Acho que estamos começando a ver. mais nitidamente uma
série de coisas que antes se mostravam muito obscuras. Ao apren-
. selecionados e org~nizados pela~Aes~olas, estã? dialetica~ente ,~el~­
cionados com os tipos de conSClenCla normativa e conceitual eXI- dermos a entender a forma como a educação age no setor econômico
gidos" por uma sociedade estratificada. de uma sociedade para reproduzir aspectos importantes da desigual-
dade,6 também estamos aprendendo a desemaranhar uma segunda
esfera importante em que opera a escolarização. Pois não existe
(2) Donald Lazere. "Mass Culture, Political Con~cio\lsness, and English Stu-
dies". CollegeEnglish, XXXVIII (April1979), p. 755.
(3) lbid. (5) Samuel Bowles e Herbert Gintis. Schooling in Capitalist America. New
(4) Veja-se, por exemplo, Basil Bernstein, Class, Codes and Control. Vo- York, Basic Books, 1976.
lume 3: Towards a Theory of EduclI.tional Transmissions. London, Routledge & (6) A pesquisa a este respeito é descrita com mais clareza em Caroline Hodg~s
Kegan Paul, 1975, p. 158. Persell. Education and lnequality. New York, Free Press, 1977.
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somente a propriedade econômica, parece haver também uma pro- sária para começar a desembaraçar essas relações. Situamos a insti-
priedade simb6lica - o capital cultural - que as escolas preservam tuição e a n6s pr6prios de um modo excessivamente determinista.
e distribuem. Assim, podemos agora começar a adquirir uma com- Dizemos que há uma correspondência total e exata entre economia e
.preensão mais completa do modo cpmo instituições de preservaçAo e . consciência, a base econômica determinando "automaticamente", a
distribuição cultural como as escolas produzem e reproduzem for- superestrutura. Isto é muito fácil de dizer, infelizmente, e é por
mas de consciência que permitem a manutenção do controle social demais mecanicista, 8 pois esquece que existe, de fato, uma relação
sem que os grupos· dominantes tenham de re.correr a mecanismos dialéti~a entre cultura e economia. Também pressupõe a idéia de
declarados de dominação. 7 Ampliar nossa compreensão dessarepro- uma manipulação consciente da escolarização por um pequeno
dução está no cerne desta obra. . grupo. de pessoas que detêm o poder. Embora isso tenha sido e ainda
Não se trata, é claro, de um tema fácil de lidar. O que tentarei seja ~gumas vezes assim - algo que de fato documentarei no
fazer neste capitulo introdut6rio será retratar, em traços gerais, . Capitulo 4, quando tratar de algumas das origens hist6ricasda área
os tipos de questões incorporados na abordagem e no plano de do currlculo -, o problema é bem mais complexo. Portanto, para
análise que orientam este livro. Em minha discussão, recorrerei com seguir adiante, é preciso antes· esclarecer o que se entende pela
fre-qüência à obra do critico social e cultural Raymond Williams. noção de que as relações estruturais "çieterminam" esses três aspec-
Embora não seja muito conhecido entre os educadores (o que é tos das escolas. Como demonstrarei, uma das chaves para a com-
lamentável), seu trabalho a respeito da relação entre o controle da preensão disso é o conceito de hegemonia.
forma e conteúdo da cultura e o desenvolvimento ,das instituições e . Ê importante observar que existem duas tradições no emprego
práticas econô}llicas que nos cercam a todos pode nos servir de , do conceito de "determinação". Por um lado, a noção de que pensa-
modelo, tanto a nivel pessoal quanto conceitual, em virtude do tipo mento e cultura são determinados pela estrutura social e econômica
de idéias e compromissos progressistas impostos por essa· abor- tem sido utilizada com a finalidade de implicar o que se disse logo
dagem. . acima, uma correspondência total e exata ..:ntre a consciência social
Há três aspectos do plano de análise que precisam ser arti- e, digamos, o modo de produção. Nossos conceitos sociais são, aqui,
culados desde já: (1) a escola como instituição; (2) as formas de totalmente prefigurados segundo um conjunto preexistente de con-
____ ~ conhecimento; e (3) o pr6prio ~du~~u educ~do!~: Cada um dições econômicas que controlam a atividade cultural, iticluindo
V precisa ser situado dentro do sistema de relaç~s maIS vasto de que é tudo que existe nas escolas. Por outro lado, existe uma posição um
parte integrante. A palavra-chave aqui, evidentemente, é situado. tanto mais flexível que considera a determinação como um com-._,~
Da mesma forma que os analistas econômicos, como Bowles e Gin- plexo de rel~~s ~e, no fim, .são economicamente estabelecidas,
tis, quero dizer com isso que, tanto quanto possivel, precisamos que exerce pressões e impõe limites sobre a prática cultural, inclu-
recolocat o conhecimento que transmitimos, as relações sociais que sive as escolas. 9 Desse modo, a esfera cultural não é um "mero
dominam as, salas de aula, a escola enquanto um mecanismo de reflexo" de práticas econômicas. Pelo contrário, a influência, o
preservação e distribuição cultural e econômica e, finalmente, a n6s "reflexo" ou determinação, é mediada em alto grau 'pelas formas de
\ pr6prios, enquanto pessoas que trabalham nessas instituições, den- ação humana. Ê mediada pelas atividades, contradições e relações
tro do contexto em que tudo e todos existem. Todos esses elementos específicas entre homens e mulheres concretos, como n6s mesmos -
estão sujeitos a uma interpretação de seus respectivos lugares numa à medida que se ocupam com sua vida diária nas instituições que
sociedade complexa, estratificada e desigual. Devemos, no entanto, organizam essa mesma vida. O controle das escolas, do conheci-
ser cautelosos para não fazer um uso impr6prio dessa tradição de
interpretação. Muito freqüentemente esquecemos a sutileza neces-
(8) Vejp.-se a anãlise do conceito de Althusser de "superdeterrninação" em
Miriam Glucksmann. Structuralist Analysis in Contemporary Sociai Thought. Lon-
don, Routledge & Kegan Paul, 1975.
(7) Roger Daleet ai. (eds.). Schooling and Capitalism: A 5ociological Reader. (9) , Raymond Williams. "Base and Superstructure in Marxist Cultural Theo-
London, Routledge &: Kegan Paul, 1976, p. 3. ' ' ry". Schooling and Capitalismo Roger Daleet ai. (eds.), op. cit., p. 202.
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mento e da vida diária pode ser, e é, mais sutil, pois compreende até um nível diferente da "mera opinião" ou "manipulação". Williams
mesmo circunstâncias aparentemente inconseqüentes. O controle é deixa isso claro em seus argumentos referentes à relação entre a
investido nos princípios constitutivos, códigos e, especialmente, na hegemonia e o controle dos recursos culturais. Ao mesmo tempo,
consciência e nas práticas do senso comum subjacentes a nossa vida, mostra como as instituições educacionais podem atuar nesse pro-
assim como pela divisão e manipulação econômica diretas. cesso de saturação. Gostaria de citar aqui um de seus trechos mais
Raymond Williams, ao discutir a hegemonia, conceito mais longos, um que, acx:edito, começa a apreender a complexidade e
completamente desenvolvido na obra de Antonio Gramsci, fornece que ultrapassa a idéia de que a consciência não é senão um mero
um excelente resumo desses aspectos. 10 reflexo da estrutura econômica, completamente determinada por
uma classe que conscientemente a impõe a uma outra. Ao mesmo
A grande contribuição de Gramsci estã em ter dado importância à tempo, o trecho apa~ha o ponto fulcral do modo como o conjunto de
hegemonia e também em tê-la compreendido a uma profundidade significados e práticas ainda leva ao controle econômico e cultural
que julgo rara. A hegemonia pressupõe a existência de alguma coisa desigual, e dele provém. 11
que é verdadeiramente total, que não é apenas secundãria, ou
superestrutural, como o fraco sentido de ideologia, mas sim que é
[Hegemonia] é todo um corpo de prãticas e expectativas; nossas
vivenciada tão profundamente, que satura a um tal ponto a sociedade
tarefas, nossa compreensão comum do homem e de seu mundo. E: um
e que, conforme propõe Gramsci, constitui mesmo o limite do senso
conjunto de significados e valores que, à medida que são experien-
c{)mum para a maioria das pessoas que se acham sob seu domínio,
ciados como prãticas, apresentam-se como se confirmando recipro-
que acaba por corresponder à realidade da experiência social de
camente. Constitui, portanto, um sentido de realidade para a maioria
modo muito mais nítido do que quaisquer outras noções derivadas da
das pessoas na sociedade, um sentido do absoluto, porque experien-
fórmula de base e superestrutura. Pois se a ideologia fosse meramente
ciadós como uma realidade fora da qual é muito difícil para a maioria
uma noção abstrata imposta, se nossas idéias e suposições, e hãbitos
dos membros de uma sociedade instalar-se em grande parte das ãreas
sociais politicos e culturais, fossem apenas o resultado de uma mani-
de suas vidas. Mas não é, exceto na operação de um elemento de
pulação específica, de um tipo de treinamento aberto que pudesse ser anãlise ab'strata, um sistema estãtico. Pelo contrãrio, só podemos
simplesmente encerrado ou destruído, então seria muito mais fãcil compreender uma cultura efetiva e dominante se entendemos o pro-
agir e mudar a sociedade do que vem sendo na prãtica. Essa noção de
cesso social real de que ela depende: refiro-me ao processo de incor-
hegemonia como que saturando profundamente a consciência de uma
poração. Os modos de incorporação são de grande significado, e
sociedade mostra-se funda·mental. ( ... ) Ela ressalta os fatos da domi-
incidentalmente em nosso tipo de sociedade apresentam considerável
nação.
importância econômica. As instituições educacionais. são em geral os
l
principais agentes de transmissão de uma cultura dominante efetiva,
A idéia central engastada neste trecho é a forma como a e esta é agora uma importante atividade econômica bem como cul-
hegemonia atua para "saturar" nossa própria consciência, de ma- tural; na verdade, são as duas simultaneamente. Além do mais, a um
neira que o mundo educàcional, econômico e social que vemos e com nível filosófico, ao verdadeiro nível da teoria e ao nível da história das
que interagimos, e as interpretações fundadas no senso comum que diversas prãticas, hã um processo que chamo ,tradição seletiva: o
qual, nos termos de uma cultura dominante efetiva, é sempre dissi-
a ele atribuímos, tornam:se o mundo tout court, o único mundo. mulado como "a tradição", o passado significativo. Mas a questão é
Portanto, a hegemonia não se refere a um amontoado de signifi- sempre a seletividade, a forma em que, de todo um campo possível de
cados que residem em nível abstrato em algum canto no "topo de passado e presente, escolhem-se como importantes determinados sig-
nossa mente". Refere-se, antes, a um conjunto organizado de signi- nificados e prãticas, ao passo que outros são negligenciados e exclui-
/ ficados e práticas, ao sistema cent~1l1,efetivo e dominante de signi- dos. De modo ainda mais decisivo, alguns desses significados são
\ ficados, valores e ações que são",,~idos;\Precisa ser compreendida a reinterpretados, diluídos ou colocados em formas que apóiam ou ao

(lO) Ibid., p. 204-5. (11) Ibid., p. 205.


IDEOLOGIA E CURRlcULO 17

«
16 MICHAEL W. APPLE

menos não contradizem outros elementos dentro da cultura domi- ideológico latente. É preciso levar muito a sério as questões acerca
nimte efetiva. d.a tradição seletiva, como as seguintes: A quem pertence esse conhe- ~ l J,
clmento? Quem o selecionou? Por que é organizado e transmitido ~
O processo de educação; os processos de uma formação social muito
mais ampla em instituições como a familia; as definições e a organi- dessa forma? E para esse grupo determinado? O mero ato de for-
'zação prâtica do trabalho; a tradição seletiva a um nível intelectual e mular essas questões não basta, no entanto. É também necessário
teórico: todas essas forças estão implicadas num contínuo fazer e que se procure vincular essas investigações a concepções diversas de
refazer de uma cultura dominante efetiva, e delas, enquanto expe- poder social e econômico e de ideologias. Desse modo, pode ter
rienciadas, enquanto integradas em nossa vida, depende a realidade. , início uma apreciação mais concreta das ligações entre o poder
Se o que aprendemos fosse apenas uma ideologia imposta, ou se fosse econômico e político e o conhecimento que é tomado acessível
apenas os significados e prâticas isolâveis da classe dominante, ou de (e o que não é tomado acessível) aos estudantes. 13
um setor da classe dominante, que ê imposta a outras, ocupando A tendência, digamos, nos estudos ~ociais, por um currículo
somento o topo de nossa mente, então seria - e com isto nos "voltado para a formação" vem a se constituir num exemplo. Ensi-
daríamos por satisfeitos - uma coisa bem mais fâcil de derrocar. namos "pesquisa social" como um conjunto de "aptidões", como
uma série de métodos que possibilitarão que o estudante "aprenda
como inquirir a si próprio". Embora este certamente seja melhor
Observe-se o que afirma Williams nesta passagem sobre as
que os modelos de ensino mais automáticos, baseados na memo-
instituições educacionais. É semelhante à questão que formulei a
rização, que prevaleceram nas décadas passadas, pode ao mesmo
respeito da possível relação entre a escola como instituição e a repro-
tempo despolitizar o estudo da vida social. Pedimos a nossos estu-
dução da desigualdade. As escolas, segundo os sociólogos britânicos
dantes para verem o conhecimento como uma construção social,

<
do currículo, não apenas "preparam as pessoas"; elas também
para verem como os sociólogos, historiadores, antropólogos e outros
"preparam ri conhecimento" .12 Desempenham a função de agentes
constroem suas teorias e conceitos. Entretanto, assim fazendo, não
, da hegemonia cultural e ideológica, de agentes da tradição seletiva e
os capacitamos a indagar por que existe uma determinada forma de
da' "incorporação" cultural,' segundo Williams. Mas, como instj-
coletividade social, como ela é mantida e quem dela se beneficia.
tuições, não são apenas um dos meios principais de distribuição de
Existe no desenvolvimento do currículo é no'enSInO'ã}gumi
uma cultura dominante efetiva; entre outras instituições, e aqui
coisa como uma deficiência nervosa. Estamos dispostos a preparar
algumas das interpretações econômicas se mostram bastante fortes,
os estudantes para que admitam "alguma responsabilidade pelo seu
elas também ajudam a formar pessoas (com os valores e significados próprio aprendizado". É de interesse aqui, mas não está em dis-
adequados) que não vêem nenhuma outra possibilidade séria para o cussão, se esses objetivos são porventura realmente alcançados, com
conjunto econômico e cultural agora existente. Isto faz dos conceitos base no que Sarason 14 chamou de regularidades de comportamento
de id~ologia, hegemonia e tradição seletiva elementos decisivos no
da instituição. De igual importância é o fato de aquilo sobre o que se
fundamento da análise política que se realiza nesta obra.
"reflete criticamente" ser em geral vazio, a-histórico, parcial e pos-
Por exemplo, como discuto mais adiante, as' questões que cer-
suidor de carga ideológica. Portanto, como irei demonstrar no Capí-
cam o conhecimento que é realmente transmitido nas escolas, que
tulo 5, por exemplo, a estrutura constitutiva da maioria dos currí-
cercam o que se considera como o conhecimento socialmente legí-
culos escolares acha-se centrada em tomo do consenso. São poucas
timo, não são de pequena importância para a tomada de consciência
as tentativas sérias de tratar do conflito (de classes, cientifico, ou
da posição cultural, econômica e política da escola. Aqui, a ação
outros). Pelo contrário, "investiga-se" uma ideologia do consenso
básica implica problematizar as formas de currículo encontradas
nas escolas, de maneira que se possa desmascarar seu conteúdo
. (13) Michael W. Apple. "Power arrd School Knowledge". The Review 01 Edu·
catlollllI(January-February 1977),26·49, e capítulos 2 e 3 a seguir.
(12) Veja-se, por exemplo, Michael F. D. Young (ed.). Knowledge and Con- (14) Seymour Sarason. The Culture olthe School and the Problem 01 Change.
trai. London, Collier·Macmillan, 1971. Boston, Allyn & Bacon, 1971.
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que guarda pouca semelhança com os vínculos e contradições com- A reivindicação de neutralidade é importante nessa repre-
plexas que cercam o controle e a organização da vida social. Por sentaçã~, não apenas ?a vida social em geral, mas na educação
isso, a tradição seletiva prescreve que não ensinemos, ou irá sele- em partIcular. PresumImos que nossa atividade seja neutra, que,
tivamente reinterpretar (e, portanto, irá em seguida ignorar) a histó- por não tomarmos uma posição política, estejamos sendo objetivos.
ria da classe operária ou a história da mulher. No entanto, ensi- Isto é significativamente adulterado, contudo, de duas formas. Em
namos a história das elites e a história tpilitar. Qualquer que seja a primeiro lugar, existe um acúmulo crescente de provas de que a
economia ensinada, ela será dominada por uma perspectiva que se instituição de ensino não é uma empresa neutra em termos de seus
origina da Federação Nacional das Indústrias, ou de algo que o resultados econômicos. Conforme deverei observar, como Basil
valha. E é difícil encontrar-se informações honestas a respeito de Bernstein, Pierre Bourdieu e outros procuraram expor, e como ficou
países que se organizaram quanto a princípios sociais alternativos. ~emonstrado com as citações extraídas da obra de Raymond Wil-
Naturalmente, estes são apenas uns poucos exemplos do papel da hams, neste capítulo introdutório, embora as escolas possam estar
escola na criação de um falso consenso. de fato a serviço dos interesses de muitos, e isso não deveria ser
negado, ao mesmo tempo, no entanto, empiricamente elas também
p~recem fazer as vezes de poderosos agentes da reprodução econô-
I
mIca e cultural das relações de classe numa sociedade estratificada '
Neutralidade e justiça
como é a nossa. Essa é uma questão com muitas implicações; mas,
com? deverá ser discutido na próxima seção deste capítulo e no
~0 O próprio fato dé que tendemos a reduzir nossa compreensão CapItulo 2, aumenta de maneira impressionante a literatura sobre o
'das forças econômicas e sociais, que se encontram na base de nossa papel desempenhado pelas escolas na estratificação econômica e
sociedade classista, a um conjunto de habilidadefi; às técnicas do cultural.
"como fazer", reflete umi questão muito mais ampla. Deixe-me Deixe-me agora observar, na verdade reiterar, a segunda ra-
antecipar algumas das teses que irei desenvolver mais pormenori- zão por que uma reivindicação de neutralidade tem pouco funda-
zadamente nos Capítulos 6, 7 e 8. Essa redução da compreensão
confirma a tecnização da vida em economias industrialmente desen-
mento. Essa reivindicação ignora o fato de que o conhecim~l)tQ_que
agora se introduz nas escolas já éumaesçoll1~ de umuiíi~erso muit~ >
k;~av~:t~a~~t:~~~~~::~n~~e p~~1~~::í;~:~ :~:%!;~a~
volvidas. Nos termos de Habermas, formas utilitário-racionais, ou
instrumentais, de raciocínio e ação substituem os sistemas simbó- e •• )
licos de ação. Os debates políticos e econômicos, e até mesmo edu- reflete as perspectivas e crenças de poderosos segmentos de nossa '
cacionais, entre pessoas reais em seu cotidiano, são substituídos por coletividade social. Já na sua produção e propagação como merca-
considerações de eficiência, de habilidades técnicas. A "responsa- doria econômica e pública - na forma de livros, filmes, materiais e
bilidade" através da análise de comportamento, modelos sistêmicos assim por diante - é continuamente filtrado através de víncuÍos
de administração, e assim por diante, tornam-se representações ideológicos e econômicos. Valores sociais e econômicos, portanto, já
hegemônicas e ideológicas. E, ao mesmo tempo, as considerações da estão engastados no projeto das instituições em que trabalhamos no
justiça da vida social são progressivamente despolitizadas e trans- "corpus formal do conhecimento escolar" que preservamos' em
formadas em enigmas supostamente neutros que podem ser resol- nossos currículos, nas nossas maneiras de ensinar, e em nossos
vidos pelo acúmulo de fatos empíricos neutros,15 que, quando reali- princípios, padrões e formas de avaliação. Uma vez que esses valores
mentados em instituições neutras como as escolas, podem ser diri- agora agem através de nós, quase sempre inconscientemente . a
gidos pela instrumentação neutra dos educadores. questã~ não está em como se manter acima da escolha. Está, ant~s,
em quaIS são os valores que se devem, fundamentalmente, escolher.
Mas i~to põe à frente um outro aspecto do problema - aque-
(15) O relato de Trent Schroyer desse processo é útil aqui. Veja-se The Cri- ,. les valores fIrmemente arraigados que já residem não no topo, mas
tique of Domination. New York, George Braziller, 1973. bem no "fundo" de nossa mente. Estão freqüentel?ente em dis-
20 MICHAEL W. APPLE
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cussão as próprias categorias que utilizamos para avaliar nossa
responsabilidade social, as regras do senso comum ou constitutivas o primeiro desejâvel e que se quer ampliar; estes lamentavelmente
que empregamos para avaliar as práticas sociais predominantes em necessârios e que se quer ver limitados. Desse tipo de pensamento,
nossa sociedade. Entre as mais básicas dessas categorias incluem-se segue-se inevitavelmente o desequillbrio físico. A menos que alcan-
tanto a nossa visão de "ciência" como, com igual importância, nosso cemos algum sentido realista de comunidade, nosso padrão de vida
continuarâ a ser distorcido. ( ... ) Poderiam então ser adequadamente
compromisso com o indivíduo abstrato. O caso é que nosso sentido
discutidas questões não apenas do equillbrio na distribuição de obras
comunitário está desgastado. Encontramos formas de transformar o e recursos, mas também dos efeitos de determinados tipos de tra-
indivíduo concreto em uma abstração e, ao mesmo tempo, sepa- balho, tanto sobre os usuârios quanto sobre os produtores. ( ... ) 8
ramos o indivíduo dos movimentos sociais mais amplos que pode- exatamente a falta de um sentido adequado de comunidade que estâ
riam conferir significado às carências, necessidades e visões "indi- nos prejudicando.
viduais" de justiça. 16 Isto é fortemente sustentado pela noção de que
a pesquisa do currículo é uma "atividade científica neutra" que não
nos prende aos outros de formas estruturais importantes. Encontram-se nesta passagem muitas das idéias de Williams,
Nossa incapacidade de pensar a não ser em termos indivi- embora entre elas se achem também as seguintes. O interesse pelo
dualistas abstratos é mais uma vez habilmente expressa por Ray- indivíduo abstrato em nossa vida social, econômica e educacional é
mond Williams, em sua demonstração de que a dominância do exatamente este - o de que não passa de uma abstração. Não situa
indivíduo burguês distorce a compreensão de nossas verdadeiras a vida do indivíduo (e a nós próprios como educadores), enquanto
relações sociais com os outros e de nossa dependência para eles. 17 um ser econômico e social, no contexto das relações estruturais desi-
guais que produzem o conforto desfrutado pelo indivíduo. Pode
atuar como uma pressuposição ideológica que nos impede de esta-
Lembro-me do que me disse um mineiro sobre alguém de quem
comentâvamos: "Ele é o tipo de homem que se levanta pela manhã,
belecer qualquer sentido genuíno de relacionamento com aqueles
aperta um botão e fica à espera de que surja alguma luz". Todos nós que produzem nosso conforto, tornando desse modo ainda mais
estamos, até certo porito, nessa posição, na medida em que nossos difícil superar a atrofia do compromisso coletivo. Portanto, a ênfase
modos de pensar habitualmente suprimem grandes ãreas de nossas superacentuada no indivíduo em nossa vida educacional, emocional
relações reais, inclusive nossa dependência real dos outros. O que se e-social é idealmente adequada para manter uma ética manipulativa
pensa é em meu dinheiro, minha luz, nesses termos ingênuos, porque do consumo e o retraimento da sensibilidade política e econômica.
partes de nossa própria idéia de sociedade estão completamente des- . Os efeitos latentes de se fazer do indivíduo um absoluto e de se
gastadas. Dificilmente poderemos ter alguma concepção, em nosso (1~fuür1!2.~~~~~~p~fç~!íí~~técnicõs·neutrõs·aservTçõ~dã··melhorla,·por
sistema atual, do custeio de nossas finalidades sociais a partir do conseguinte, tornam quase que impossível que os educàdores' e
produto social, um'método que nos mostraria incessantemente, em oUtrõsdes~.!.~!~li1!l.\ll1l.aanálise aguda da injustiça sociafe econ6-
termos reais, o que é e o que faz nossa sociedade. Numa sociedade
mic~.~. Tornam seus currículos eprãticas deensiIl() relativamente
cujos produtos dependem quase que inteiramente de cooperação
complexa e constante e de organização social, esperamos consumir
impotentes para explorar a natureza da .ordem social de que fazem
como se fôssemos indivíduos separados, à nossa moda. Somos então
parte.
forçados ao tolo paralelo de consumo individual e impostos sociais - Um elemento excepcionalmente importante neste tipo de
argumento é a idéia de relação. O que tenho ernvista é o que poderia
ser melhor denominado "análise relacional". Implica ver a atividade
(16) Parte do que se segue aqui apresenta-se de forma ampliada em Michael social - em que a educação;~t~ãc()m-;;-~ma forma particular dessa
W. Apple. "Humanism and the Politics of Educational Argumentation". Humanistic atividade - vinculada ao programa mais amplo das instituições que
Education: Visions and Realities. ·Richard Weller (ed.). Berkeley, McCutchan, 1977, distribuem os recursos, de modo que alguns grupos e classes sociais
p.315-30.
(17) Raymond Williams. The Long Revolution. London, Chatto & W.indus, têm sido historicamente favorecidos, ao passo que outros têm rece-
1961, p. 298-300. bido tratamento menos adequado. Fundamentalmente, a ação so-
cial, os acontecimentos e artefatos culturais e educacionais (o que
MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 23
22

Bourdieu chamaria de capital cultural) são "definidos" não por suas dade da tortura, que se deve enfrentar ao responder ou até ao
qualidades imediatamente evidentes. Em lugar dessa abordagem formular a questão de "Onde eu me situo?". Esse tipo de questão já
mais positivista, atribuem-se racionalmente significados às coisas, pressupõe ao menos uma percepção inicial das respostas às minhas
por meio de seus vínculos e ligações complexas com a forma como outras perguntas quanto à relação entre capital cultural e controle
uma sociedade é organizada e controlada. As próprias relações são econômico e social. Exige uma análise de quais são os grupos e
as características definidoras. 18 Desse modo, para compreender, classes sociais e econômicos que parecem ser favorecidos pela forma
digamos, as noções de ciência e de indivíduo, como são particular- como são organizadas e controladas as instituições em nossa socie-
mente empregadas em educação, precisamos vê-las como categorias dade, e de quais os grupos que não o são. 21
J basicamente ideológicas e econômicas, essenciais tanto à produção O fato de ser tão difícil lidar com essa questão, o sentimento
Z de agentes para ocupar os papéis econômicos existentes quanto à de desamparo que se apodera de nós ao fazê-la (o que eu, como
produção de tendências e significados, nesses agentes, que "farão" educador, posso fazer agora?), demonstra a importância absoluta

l com que aceitem esses papéis alienantes sem muito questiona-


mento. 19 Passam a ser assim aspectos da hegemonia.
das proposições de Gramsci e de Williams sobre a natureza da
hegemonia. Submeter nossas atividades diáriás enquanto educa-
Para compreender essas relações hegemônicas, cumpre lem- dores a exame político e econômico rigoroso, ver a escola como parte
brar algo sustentado por Gramsci - de que existem duas condições de um sistema de mecanismos de reprodução cultural e econômica,
necessárias para a hegemonia ideológica. Não se trata apenas de que não consiste apenas em desafiar as práticas educacionais dominan-
nosso sistema econômico "produz" categorias e estruturas de senti- tes. Se fosse "apenas" isso, então poderíamos talvez mudar essas
mento que saturam nossa vida cotidiana. Ligado a isso, deve haver práticas por meio do treinamento de professores, de melhores currí-
um grupo de "intelectuais" que empregam e conferem legitimidade culos e assim por diante. Essas práticas podem precisar de mudan-
às categorias, que fazem com que as formas ideológicas pareçam ças, é claro, e ainda há lugar para essas reformas gradativas, algu-
neutras. 20 Assim, um exame das categorias e dos procedimentos mas das quais são propostas mais à frente neste livro. Mas os tipos
'-{) empregados por "intelectuais" como os educadores precisa ser um de exame minucioso crítico que venho propondo desafiam todo um
dos primeiros enfoques de nossa investigação. conjunto de valores e ações que se acham "fora" da instituição de
Por enquanto tenho visto de modo bastante geral o que julgo ensino. E a questão é exatamente esta, pois, se encarada seriamente,
pertencer muito mais à realidade que se acha por trás das escolas pode levar a um conjunto de compromissos que podem ser total-
enqual}to instituições, as formas de conhecimento que seletivamente mente diferentes daqueles que muitos de nós aceitamos com base no
preservamos, reinterpretamos e distribuímos, algumas das catego- senso comum. Exige uma articulação progressiva de uma ordem
rias que utilizamos para refletir sobre isso e o papel do educador social e um compromisso com essa ordem, que tem em seus funda-
como participante "neutro" nos resultados em grande escala da mentos básicos, não a acumulação de artigos, lucros e títulos acredi-
escolarização. Ainda restam, no entanto, algumas poucas observa- tícios, mas a maximização da igualdade econômica, social e educa-
ções finais a serem feitas quanto a este último aspecto do plano de cional.
análise e abordagem que estou apresentando aqui - o próprio edu- Tudo isso está centrado em torno de uma teoria de justiça
cador como ser político. Esta é uma questão muito pessoal, que é de social. Eu próprio me acho inclinado a defender algo que se encon-
longe a mais difícil. Estou bastante cônscio da dificuldade, em ver- tra à ~erda de uma posição rawlsiana. Pois, para que uma socie-
dad~"~~ja ju~!ª,_~~r~ç<!~()_-'lu:~,<~l~,~f«n!!º",l!ma questão <tanto de prin-
cípio quanto de ação, contribua para fav~i~~~;~-men~STa:Vore-
(18) Apple. "Power and School Knowledge". Op. cito
(19) Ian Hextall e Madan Sarup. "School Knowledge, Evaluation and Alie-
nation". Society, State and Schooling. Michael Young e Geoff Whitty (eds.). Gui!-
ford, Inglaterra, FalmerPress,1977, p.lSI-71. (21) Veja-se Paul Baran e Paul Sweezy. Monopoly Capital. New York, Mon-
(20) Carl Boggs. Gramsci's Marxism. London, Pluto Press, 1976, p. 9; e thly Review Press, 1968. Veja-se também a anâlise exemplar em Vicente Navarro.
Persell,op. cit., p. 7-11. Medicine Under Capitalism. New York, Neale Watson Academic Publications, 1976.
MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 2S

cidos. 22 Isto é, suas relações estruturais devem ser tais, que equa- é importante, fui convencido pelas provas a que todos temos acesso,
lizem não apenas o acesso às in~!i!u.i~i)(ls 5!ulturais, sociais e princi- se estamos realmente dispostos a pesquisar e a questionar, ·se pode-
palmente econômicas, mas também o controle real dessas institui- mos aprender a analisar a hegemonia. De fato; isto faz parte do
ções. 23 Agora, istot':-,~:jgiJj~_!Uais dQ_9!le ~t:!!~!()_ reparo da máquina plano de análise que gostaria de explicar aqui. Uma coisa deveria
social,jJois implica uma reestruturação das instituições e um rea- ficar clara: esse plano também requer uma boa dose do antigo tra-
juste fundamental do contrato social que supostamente nos une. balho "intelectual", árduo e direto. Exige mais qte uma quantidade
Essa teoria de justiça social que se encontra por trás de um pro- módica de leitura, estudo e debate honesto em áreas em que muitos
grama como esse não pode originar-se apenas numa ideologia pes- de nós temos apenas uma formação limitada. Estamos desacostu- )
soal. Fundamenta-se também em uma série de exigências empíricas. mados a ver a atividade educacional de um ponto de vista ético,
Por exemplo, a defasagem entre os ricos e os pobres em nações político e econômico, para não se dizer crítico, haja vista a natureza
industrialmente desenvolvidas. A distribuição e o controle de bens e verdadeiramente difícil (e o consumo de tempo e o desgaste emocio-
serviços de saúde, nutricionais e educacionais é basicamente desi- nal necessários) de ser um educador decente. Essa tarefa é dificul- I
gual nessas mesmas nações industrializadas. 24 O poder econômico tada ainda mais pelo que poderia se chamar de política de distri-
e cultural está se centralizando cada vez mais em grandes corpo- buição do conhecimento. Ou seja, os tipos de instrumentos e mode-
rações, que são menos sensíveis às necessidades sociais que aos los que relacionei não são prontamente distribuídos pelas institui-
lucros. Após algumas conquistas sociais, o relativo progresso das ções de preservação e distribuição cultural como as escolas e os
mulheres e de muitos grupos minoritários ou se estagna ou se atrofia meios de comunicação de massa. Essas tradições críticas são elas
lentamente. Em virtude dessas e de outras razões, estou cada vez próprias vítimas da tradição seletiva. Se estão corretas minhas pro-
mais convencido de que essas condições advêm "naturalmente" de posições, aqui e em outras passagens da obra, a respeito da natureza
uma determinada ordem social. Conforme demonstrarei nesta obra, do conhecimento que se introduz nas escolas, isto pode ser lamen-
nossos dilemas educacionais, as realizações desiguais, os lucros desi- tável, mas é de esperar. Contudo, se não aceitamos a responsabi-
guais, a tradição e a incorporação seletiva, também são natural- lidade de dominar essas tradições, de reaprendê-las, ignoramos o
mente "advindos" desse programa social. Pode ser que essas institui- fato de que os tipos de programas institucionais e culturais que nos
ções sejam organizadas e controladas de maneira a exigir mudanças controlam foram construídos por nós. Também eles podem ser
em grande escala em suas relações, caso devamos atingir algum reconstruídos.
progresso na eliminação de quaisquer dessas condições. Até o momento propus que qualquer apreciação séria do papel
Percebo que isto é muito controverso, para se dizer o mínimo. desempenhado pela educação numa sociedade complexa deve apre-
Tampouco espero que todos aceitem tudo que venho escrevendo sentar, como parte principal de seu plano, pelo menos três elemen-
aqui. No entanto, não cheguei primeiro à proposição de que nossas tos. Ê preciso que ela situe o conhecimento, a escola e o educador
questões educacionais são em sua origem éticas, econômicas e polí- nas reais condições sociais que "determinam" esses elementos. Pro- ,
ticas, para então procurar comprovação disso. Pelo contrário, e isto ponho, ainda, que esse ato de situar deva ser orientado por uma
i
visão de justiça social e econômica, caso haja de ser significativo.
Por isso, sustento que a posição do educador não é neutra nem nas ~
(22) John Rawls. A Theory ofJustice. Cambridge, Mass., Harvard University, formas de capital culturãIdistribuído e empregado peÍas escolas
Press, 1971. nem nos resultados econômicos e culturais do próprio empreendi-
(23) Para uma discussão interessante do debate em educação sobre o prin- mento de escolarização. Essas questões encontram melhor análise
cípio social de igualdade de oportunidade, veja-se Walter Feinberg. Reason and Rhe- através dos conceitos de hegemonia, ideologia e tradição seletiva,).
torie: The Intellectual Foundations of Twentieth Century Liberal Educational Policy.
e só podem ser entendidas plenamente por meio de uma análise .
New York, John Wiley, 1915. Vejam-se também os artigos sobre o controle pelos
trabalhadores do local de trabalho publicados em Working Papers for a New Society
relacional. l

há alguns anos. Como foi mencionado, no entanto, existe uma tradição crítica
(24) Navarro, op. cito da educação que pretende levar a sério esse plano de análise rela-
26 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 27

cional. Vejamos agora em mais pormenores essa tradição e o objeto mais conhecimento" (a questão dominante em nosso campo com
de estudo desta obra. uma inclinação pela eficiência), mas "por que e como determinados
aspectos da cultura coletiva são apresentados na escola como conhe-
cimento objetivo, factual". Como, concretamente, pode o conheci-
n mento oficial representar configurações ideológicas dos interesses
dominantes 'numa sociedade? Como as escolas podem legitimar
A tradição crítica e o ato de "situar" esses padrões limitados e parciais do saber como verdades não-ques-
tionadas? É preciso que sejam formuladas ao menos essas questões a
Em seu prefácio à tradução inglesa da obra clássica de Karl respeito de três áreas da vida escolar: (1) como as regularidades
Mannheim,ldeology and Utopia, Louis Wirth afirma: "As coisas diárias básicas das escolas contribuem para o aprendizado pelos
mais importantes (. .. ) que podemos saber a respeito de um homem é estudantes dessas ideologias; (2) como as formas específicas do
o que ele admite como certo, e os fatos mais elementares e impor- conhecimento curricular, tanto no passado como no presente, refle-
tantes a respeito de uma sociedade são os que raramente encontram tem essas configurações; e (3) como essas ideologias se refletem nas
discussão e que em geral são vistos como estabelecidos".25 Ou seja, perspectivas fundamentais empregadas pelos educadores para orde-
para se adquirir discernimento, compreensão, da atividade desen- nar, guiar e conferir significado à sua própria atividade.
volvida por homens e mulheres em um período histórico específico, A primeira dessas questõe~ se refere ao ç!!!IlcutQ_Q~!ili2-11as
é preciso que se parta do questionamento daquilo que lhes é inques- escolas - a distribuição tácita de normas, valores e tendências que
tionável. Como diria Marx, não se aceitam as ilusões de uma época, se realiza simplesmente pelo fato de os alunos viverem as expec-
as apreciações baseadas no senso comum das atividades intelectuais tativas e rotinas institucionais das escolas dia após dia durante anos.
e programáticas (embora sejam sem dúvida importantes); o inves- A segunda questão, nos pede para problematizar o próprio conhe-
tigador deve, antes, situar essas atividades em um campo de ação cimento educacional, para dar mais atenção ao "conteúdo" do
mais amplo de conflito econômico, ideológico e social. currículo, para indagar de onde provém e a quem pertence esse
Como observei, a educação enquanto um campo de estudo não conhecimento, a que grupos sociais apóia, e assim por diante. A
p.ossui uma forte tradição desse ato de "situar". De fato, caso fosse questão final procura tomar os educadores mais conscientes dos
preciso apontar uma das áreas mais ignoradas pela tradição crítica compromissos ideológicos e epistemológicos que tacitamente acei-
em educação, ela seria exatamente esta, o estudo crítico da relação tam e promovem com a utilização de determinados modelos -
entre as ideologias e a teoria e a prática educacional, o estudo da digamos, um positivismo vulgar, modelos sistêmicos de adminis-
extensão das suposições aparentemente fundadas no senso comum tração, funcionalismo estrutural, um processo de rotulação social,
que dirigem nosso campo com uma inclinação demasiadamente téc- ou de modificação do comportamento - em seu próprio trabalho.
nica. Esse estudo iria revelar os interesses e compromissos políticos, Sem uma compreensão desses aspectos da vida escolar, sem uma
sociais, éticos e econômicos que são aceitos como "a forma como a compreensão que os vinculasse seriamente à distribuição, qualidade
vida realmente é" em nossas atividades cotidianas como educadores. e controle de trabalho, poder, ideologia e conhecimento cultural
Os estudos das interligações entre ideologia e currículo e entre fora de nossas instituições educacionais, a teoria e a política educa-
ideologia e retórica educacional apresentam importantes implica- cional apresentariam uma influência surpreendentemente menor do
ções para a área do currículo e para a teoria e a política educacional que seria de esperar.
em geral. Pois, como demonstrarei ao longo desta obra, precisamos Sem dúvida, multiplicam-se os exemplos desse ato de situar,
examinar criticamente não apenas "como um estudante adquire de colocar a retórica e as técnicas educacionais em um contexto
maior, mais abrangente. Alguns historiadores da educação, como
Katz, Karier, Kaestle, Feinberg e outros, nos têm fornecido modelos
(25) Louis Wirth. "Preface" a Karl Mannheim. Ideo/ogy and Utopia. New da relação entre, digamos, interesses burocráticos, econômicos e
York, Harcourt, Brace & World, 1936, p. xxii-xxiii. ideológicos e a escolarização que são menos cônscios de seu valor
IDEOLOGIA E CURRlcULO 29
28 MICHAEL W. APPLE
mente relacionados ao modo como determinados tipos de estudantes
que algumas das noções de nosso passado anteriormente aceitas. são organizados e selecionados e, finalmente, estratificados econô-
Junto a isso, estão as análises correntes tanto da economia política mica e socialmente. E tudo isso é abrangido por uma preocupação
da educação quanto das possibilidades de reforma educacional fei- com o poder. Quem o detém? Determinados aspectos do ensino -
tas por Bowles e Gintis, Carnoy e Levin, e outros. Talvez menos a organização e a seleção da cultura e das pessoas (pois de fato isto é )
difundidas, mas nem por' isso menos importantes, são as investi- o que fazem as escolas) - contribuem para uma distribuição mais
gações sociológicas relativamente recentes das ligações entre o conhe- eqüitativa do poder e dos recursos econômicos, ou mantêm as desi-
cimento escolar e esses interesses. Todos esses estudos são orienta- gualdades existentes? Qualquer que seja a resposta que se dê a essas
dos, quer tácita quer muito evidentemente, pela c9nvicção de que se questões, para entender como as escolas realizam isso, é essencial
pode obter uma apreciação mais completa e honesta das questões que se façam duas coisas. Primeiro, deve-se ver como aS escolas
educacionais inserindo-as num quadro de diferentes concepções de operam diretamente. O pesquisador deve compreender como as
justiça, de igualdade social e econômica, e do que seja o poder regularidades diárias de "ensino e aprendizagem nas escolas" pro-
legítimo e de quem deveria possuí-lo. duzem esses resultados. Em segundo lugar, deve-se ter aquela sensi-
Por exemplo, numa recente análise crítica da sociologia da bilidade peculiarmente marxista diante do presente como história,
educação, The Sociology o/ Education: Beyond Equality, Philip para ver as origens e os conflitos históricos que fizeram com que
Wexler reclama uma reorientação radical da pesquisa sociológica essas instituições fossem o que são hoje. Sem esse duplo entendi-
das escolas. 26 Recorrendo a alguns dos trabalhos europeus e norte- mento será bem mais difícil compreender completamente as "fun-
americanos sobre a relação entre ideologia e currículo, e entre as ções" econômicas e culturais de nossas instituições educacionais.
escolas e a criação da desigualdade, demonstra que, para com- Uma forma de se refletir a respeito da cultura na sociedade é
preender satisfatoriamente como funcionam as escolas, precisamos empregando-se uma metáfora da distribuição. Ou seja, pode-se
estudá-las como instituições que "preparam o conhecimento", como pensar o conhecimento como distribuído desigualmente entre as
' instituições que cumprem uma função ideológica. A sociologia da classes sociais e econômicas, grupos profissionais, grupos de dife-
( educação deve tomar-se em grande parte a sociologia do conheci-
rentes faixas etárias e grupos com poderes diferentes. Assim, alguns
\ mento escolar. A tradição crítica do currículo, a compreensão socio- grupos possuem acesso ao conhecimento que lhes é distribuído e que
lógica e o estudo de ideologias políticas e econômicas, portanto, não é a outros. A contraditória disso também é provavelmente ver-
mergulham numa perspectiva unificada que nos permite sondar o dadeira. A/alta de determinados tipos de conhecimento - onde se
/ lugar das escolas na reprod~ção cuftural, ~em como econômica, das localiza um grupo específico no complexo processo de preservação e
'" relações de classe numa socIedade mdustrial. distribuição cultural - relaciona-se, sem dúvida, à ausência, nesse
A percepção de Wexler é muito estimulante por diversas ra- grupo, de determinados tipos de poder político e econômico na
zões. Vê a pesquisa social e educacional em grande prte como um sociedade.
ato político, algo que adiante discutirei um pouco mais aprofunda- Essa relação entre distribuição cultural e distribuição e con-
damente. Também nos convida a voltar nosso enfoque'para o conhe- trole do poder econômico e político - ou, mais claramente, a
cimento e os símbolos a que as escolas e outras instituições cultu- relação entre conhecimento e poder - é reconhecidamente de com-
rais, manifesta e dissimuladamente, dão legitimidade. Isto não sig- preensão bastante difícil, embora uma compreensão do modo como
nifica ignorar o fato de que as escolas, segundo o velho ditado, não o controle das instituições culturais aumenta o poder que determi-
apenas "ensinam conhecimentos", mas também "ensinam crian- nadas classes têm de controlar outras possa fornecer o discerni-
ças". Requer, antes, uma compreensão do modo como os tipos de . mento necessário da forma como a distribuição da cultura se rçla-
símbolos organizados e selecionados pelas escolas estão dialetica- ciona à existência ou ausência de poder em grupos sociais.
Muitos educadores, se não a maioria, não estão muito fami-
liarizados com esse problema. Somos levados a perceber o conhe-
(26) Philip Wexler. The Sociology of Education: Beyond Equality. Indiana- cimento como um "artefato" relativamente neutro. Fazemos dele
polis, Bobbs-Merril, 1976.
30 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 31

um "objeto" psicológico ou um "processo" p.sicológico (o que, e~ estruturas institucionais que cercam a sala de aula. 29 Essas ques-
parte, ele é, naturalmente). Procedendo aSSIm, contudo, despoh- tões carregam muitos sentidos, quando aplicadas ao que cada vez
tizamos quase que totalmente a cultura distribuída pelas escolas - mais se denomina sociologia do conhecimento escolar. Significa
embora exista um grupo cada vez maior de estudios?s do c~rrícu~o. e que, por razões metodológicas, não se supõe que o conhecimento
de sociólogos da educação que estão levando mUlto maIS a seno curricular seja neutro. Pelo contrário, procuram-se interesses sociais
questões como" A quem pertence esta cultura?", "Conh~cimento d.e incorporados na própria forma de conhecimento. Essas questões
que grupo social?" e "No interesse de quem se transmlt; ~eterml­ também implicam que se deva estudar o currículo em uso nas
nado conhecimento (fatos, aptidões, propensões e tendenclas) em escolas. Em lugar dos estudos de desempenho escolar baseados em
instituições culturais como as escolas?". Como observei em outro input-output, o pesquisador precisa "viver" nas salas de aula, ver as
texto 27 os melhores exemplos desse trabalho encontram-se em al- intrincadas formas de interação que nelas ocorrem. Dessa maneira,
guns' volumes recentemente editados na Inglaterra. Entre eles i~­ pode-se conseguir uma resposta mais precisa à pergunta de quais
c1uem-se Michael F. D. Young (ed.), Knowledge and Control; RI- são os determinados "tipos" de estudantes que "obtêm" determi-
chard Brown (ed.), Knowledge, Education and Cultural Change; nados tipos de conhecimento e tendências, e de quais são estes
Basil Bernstein, Class, Codes and Controlo Volume 3: Towards a últimos. Isto evidentemente confere importância especial à análise
Theory of Educational Transmissions; Michael Flude e John Ahier do processo de rotulação que ocorre nas escolas. Além do mais,
(eds.), Educability, Schools and ldeology; e RacheI Sharp e Anthony pode-se ver como o conhecimento é verdadeiramente criado e utili-
Green, Education and Social Control. 28 • zado nas escolas. Finalmente, pode-se comprovar o ensino tácito de
O plano de pesquisa dessas obras e a perspectIva que estou um currículo menos manifesto, de um currículo oculto.
articulando aqui foram influenciados pela afirmação de Raymond Todos esses dados são importantes para nossa compreensão
Williams de que a educação não é umE_odu!o com<>._?~()__?~_'p_a..P.~_~_ das formas como atuam as escolas para distribuir tanto a cultura
mas sim que deve ser vista como uma s~!~~-<>-~_()!_gamzaç~<.>_~~ !()d<.> popular quanto a cultura de elite. Mas, a fim de levar a proposição
conlÍecimento-so~iardlspoíili~l em-uma deterrninada~poca. Uma de Williams bem mais a sério, ainda é preciso dar um passo. O
v~z quê'essã-sêIêção e organIZaçãõ-acarreta opções soci~is e i?eoló- pesquisador deve pensar estruturalmente ou relacionalmente. É pre-
gicas conscientes e inconscientes, então uma tarefa pnmordlal do ciso que vincule esse processo de distribuição cultural às questões de
estudo do currículo será relacionar esses princípios de seleção e poder e controle fora da escola, o que traz os fatores políticos e .
organização do conhecimento à sua estrutura institucional e intera- econômicos ao centro da pesquisa educacional. Isso consiste em um
cional nas escolas e, em seguida, ao campo de ação mais amplo das rompimento bastante significativo com momentos anteriores da pes-
quisa social e educacional, que em geral argumentava (inexata-
mente) que sua posição subjacente era apolítica e que não mantinha
(27) Michael W. Apple. "Curriculum as Ideological Selection". Comparative relações com a forma como o poder e os recursos eram distribuídos
Education Review, XX (June 1976), 209-15; e Michael W. Apple e Philip Wexler. na sociedade.
"Cultural Capital and Educational Transmissions". Educational Theory, XXVII De fato, conquanto deverei explorar isto mais pormenoriza-
(Winter, 1978). damente no Capítulo 2, a proposição geral defendida por aqueles
(28) Michael F. D. Young (ed.). Knowledge and Controlo London, Collier-
Macmillan, 1971; Richard Brown (ed.). Knowledge, Educatio n and Cultural Change. interessados, digamos, por uma análise da reprodução cultural e da
London, Tavistock, 1973; Basil Bernstein, C/ass, Codes and Controlo Volume 3: reprodução econômica é de que a pesquisa do conhecimento escolar
Towards a Theory of Educational Transmissions. 2. ed. London, Rou tiedge & Kegan e as formas mais gerais de pesquisa educacional são, ao menos
Paul, 1977; Michael Flude e John Ahier (eds.). Educability, Schools.and Ideolog~. tacitamente, um ato político. Contudo, ao mesmo tempo que argu-
London, Halstead, 1974; e Rachei Sharp e Anthony Green. EducatlOn and Socwl
mentam a favor de um compromisso político, querem argumentar
Control: A Study in Progressive Primary Education. London, Routiedge & Kegan
Paul, 1975. Uma crítica de grande parte desse trabalho pode ser encontrada em John
Eggleston. The Sociology of the School Curriculum. London, Routiedge & Kegan
Paul,1977. (29) Young, op. cit., p. 24.
32 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 33

contra uma determinada filiação politica que passou a dominar a Talvez a plataforma mais simples e mais importante da ideologia
política educacional e o discurso sobre o currículo - a da tradição liberal da educação seja a de que a educação cria e mantém a
liberal. mudança social. Essa confiança se apóia numa série de suposições
críticas. ( ... ) A primeira é a de que a escolarização afeta fundamen-
Na verdade, algumas das semelhanças entre esses estudiosos talmente o nível de crescimento e progresso econômico através de sua
interessados por uma apreciação mais crítica da escola como uma ligação com a tecnologia. Presume-se que o nível de crescimento
força reprodutiva podem ser vistas mais exatament~ no tratamento tecnológico determine o nível de crescimento econômico, e ele próprio
que dispensam à teoria educacional liberal, com sua relação de é visto como dependente do nível de escolarização. O sistema educa-
dependência na ciência, na neutralidade e na educação como uma cional fornece pessoal tanto para fazer recuar as fronteiras do conhe-
forma de melhoria social. Como observa Feinberg, por exemplo, cimento técnico quanto para consolidar esses avanços e trazê-los para
uma grande fraqueza da teoria liberal surge de sua incapacidade de a nossa vida diária. Através do planejamento do potencial humano,
ver os acontecimentos como indícios de sérias questões estruturais. os imperativos evidentes do processe de produção técnica exercem
pressão sobre o sistema escolar para formar uma força de trabalho
) Transforma as preocupações educacionais em "problemas" admi-
diversamente especializada e qualificada. A expansão e düerenciação
1 nistrativos, em vez de exemplos de conflito econômico, ético e poli- das instituições educacionais é sustentada por uma confiança no
tico. 3O papel de apoio que a educação pode desempenhar no crescimento
Embora existam diferenças entre os fenômenos da escola, tecnológico, e isto levou não só ao rápido crescimento do ensino
aqueles que, como eu, têm procurado situá-los em seu contexto superior na década de 60 mas também à contínua ênfase no ensino
social e econômico, parecem entrar em acordo quanto a um ponto técnico e comercial.
importante, o de que é preciso questionar a maioria dos principais A segunda suposição implica uma visão da educação como capaz de
aspectos de uma visão liberal tanto da sociedade quanto da edu- corrigir as desigualdades sociais, de superar - através da equali-
cação. Embora certamente essa visão não seja homogênea nem uni- zação das oportunidades educacionais - a injusta distribuição das
chances na vida. O sistema educacional é visto como um meio de
tária, nem seja ela a única base da qual se origina a política edu-
fornecer um c,anal para a mobilidade social, de implementar proce-
cacional e curricular, vê-se o liberalismo como uma forma de melho- dimentos objetivos de seleção para o estabelecimento de uma merito-
ria social, em virtude de suas "suposições e dimensões terem se cracia, em que a única qualificação para a ascensão é a "habilidade".
introduzido em padrões de prática educacional de modo mais deci- O sistema educacional torna-se o mecanismo-chave da seleção social,
sivo que qualquer outra ideologia". 31 Vê-se a política educacional para o beneficio da sociedade e do indivíduo.
liberal - com sua ética de auto-realização supostamente baseada no Finalmente, a educação e a cultura, que ela produz e transmite, são
mérito - antes como uma linguagem de justificação, como uma vistas como características independentes e autônomas em nossa
forma ideológica, que como uma descrição minuciosa do modo' sociedade. A política educacional é voltada para a produção tanto de
como funciona a educação. Embora de fato descreva determinados conhecimento quanto de indivíduos instruídos através do amparo à
aspectos da escolarização (alguns indivíduos e grupos realmente pesquisa acadêmica e à reforma curricular. O idealismo na tradição
saem-se bem na escola), deixa de ver a ligação entre, digamos, a liberal mostra a cultura e a escolarização como forças politicamente
"formação" de determinados tipos de pessoa e conhecimento, por neutras para a mudança social.
um lado, e, por outro, a reprodução de uma sociedade estratificada
Em contraposição a esse conjunto de suposições sobre edu-
que determina os papéis para os quais esses agentes são produzidos.
cação e sua relação com uma ordem social, os estudiosos interes-
Mas o que se está exatamente questionando? 32 sados na análise da reprodução econômica e cultural interpretam o
aparelho cultural e educacional como elementos de uma teoria do
controle social. 33 Por isso, desafiam-se pelo menos três noções inter-
.... --~-------
(30) feinberg, op. cit., p. vii.
(31) Roger Dale et ai., op. cit., p. 1.
(32) Ibid., p. 1-2. (33) Ibid., p. 2.
34 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 3S

relacionadas: a de que os processos de seleção são neutros; a de que Sobre a natureza da ideologia
"a habilidade" (em lugar da sociabilização dos estudantes com
normas e valores social e economicamente relacionados) é o que as o significado de ideologia é geralmente problemático. A maio-
escolas realmente enfocam; e se as escolas são realmente organi- ria das pessoas parece concordar que se pode empregar o termo
zadas para transmitir habilitações curriculares técnicas a todos os ideologia em referência a algum tipo de "sistema" de idéias, cren-
estudantes, para que todos tenham oportunidades iguais no mundo ças, compromissos fundamentais ou valores quanto à realidade
econômico. social, mas neste ponto cessa o acordo. 34 As interpretações divergem
Portanto, conforme demonstrado por Bowles e Gintis e por tanto no que toca ao campo de ação ou extensão dos fenômenos que
mim mais à frente, as escolas podem não estar engrenadas para são presumivelmente ideológicos como à/unção - o que as ideolo-
selecionar e formar neutramente uma "força de trabalho diversa- gias realmente fazem pelas pessoas que as "detêm". As interpre-
mente especializada e qualificada". Pelo contrário, parecem estar tações do campo de ação da ideologia variam amplamente. Os fenô-
preocupadas menos com a distribuição de habilitações que com a menos subjacentes a ele podem ser reunidos pelo menos em três
distribuição de normas e tendências adequadas ao lugar que se categorias: (1) racionalizações ou justificações muito específicas das
{ ocupa numa sociedade hierárquica. Mas devemos ser muito caute- atividades de grupos ocupacionais determinados e identificáveis (por
losos aqui para não nos excedermos numa forma muito determi- exemplo, as ideologias profissionais); (2) programas políticos e
nista, pois nem todas essas suposições Íiberais são totalmente incor- movimentos sociais mais amplos; e (3) visões de mundo, pontos de
retas. Como devo mostrar no Capitulo 2, por exemplo, a educação vista, ou o que Berger e Luckmann e outros chamam de universos
está ligada ao desenvolvimento técnico, mas de maneira mais com- simbólicos.
plexa e basicamente menos justa e eqüitativa do que poderíamos Funcionalmente, a ideologia tem sido avaliada historicamente
pensar com base no senso comum. Pois essa ligação entre o conhe- . como uma forma de falsa consciência que distorce a imagem que se
cimento técnico e a escolarização ajuda a gerar, não a reduzir, a faz da realidade social e serve aos interesses das classes d9minantes
desigualdade. Reunidas, no entanto, essas espécies de crítica que numa sociedade. Entretanto, também tem sido tratada, como ex-
são dispostas contra a tradição liberal fornecem a estrutura subja- pressa Geertz, como "sistemas de símbolos que agem entre si" e
cente para uma análise mais crítica da escolarização e da "sabe- fornecem as formas básicas de tornar portadoras de "sentido situa-
doria" convencional que a orienta. Todas incluem a reivindicação de ções sociais que de outro modo seriam incompreensíveis", 3S ou seja,
que boa parte da teoria curricular e da teoria educacional mais geral como criações inevitáveis e essenciais que funcionam como conven-
tem se constituído em um conjunto de bitolas ideológicas que impe- ções de significado compartilhadas, para torriar inteligível uma
dem uma investigação mais séria e minuciosa tanto das estruturas realidade social complexa.
institucionais desiguais da sociedade norte-americana como da re- Essas distinções sobre a função da ideologia não passam, é
. lação entre a escola e essas estruturas. claro, de tipos ideais, de pólos entre os quais incide a maioria das
No entanto, como pode algo que procura tão ardentemente proposições sobre o que é e o que faz a ideologia·. Essas duas propo-
ajudar - como a teoria e a prática educacional liberal procura fazer sições ideais provêm na verdade de tradições, e têm seus advogados
de modo tão claro - ser uma forma ideológica que oculta a reali- contemporâneos. A primeira, que tem sido chamada de a "teoria do
dade da dominação? Afinal, bem poucos educadores dispuseram-se interesse", arraigada como é na tradição marxista, percebe o papel
a ir além da prestação de serviços a sua clientela. Podem os seus
motivos, suas ações, ter uma carga ideológica assim tão forte? De
(34) No exame que se segue, recorro à excelente anãlise da ideologia realizada
modo a deslindar esse problema, a npção de ideologia é importante por Helen M. McClure e George Fischer. "Ideology and Opinion Making: General
aqui e exige um tratamento mais aprofundado. Problems of Analysis". New York, Columbia University Bureau of Applied Social
Research. July 1969. Mimeografado.
(35) Veja-se, por exemplo, Clifford Geertz. "Ideology as a Cultural System".
ldeology and Discontent. David Apter (ed.). New York, Free Press, 1964, p. 47-76.
36 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 37

fundamental da ideologia como a justificação do capital investido tos que tratam da distribuição de recompensas. C.. ) A luta pelo poder
dos grupos políticos, econômicos ou outros, existentes ou confli- está sempre em jogo nas disputas ideológicas, quer ou não os impli-
tantes. O segundo pólo, o da tradição que vê a ideologia como cados reconheçam expressamente essa dimensão.
"deformação do real", tem em Durkheim e Parsons seus advogados 3) Estilo de argumentação - Muitos autores observam que a argu-
mais conhecidos; em geral considera como a função mais importante mentação que se realiza no domínio da ideologia é caracterizada por
da ideologia o seu papel de conferir significado em situações proble- uma retórica muito especial e por uma comoção exaltada. ( ... ) Vê-se
máticas, apresentando uma "definição útil da situação", por assim a retórica como altamente explícita e relativamente sistemática. ( ... )
dizer, tornando possível desse modo a atuação de indivíduos e de Pelo menos duas razões podem explicar essa retórica.
grupos. Em primeiro lugar. a importância fundamental das suposições em
Mesmo com essas orientações bastante divergentes, parece questão para a própria sobrevivência de um grupo cria uma pressão
haver uma base comum entre os que estão preocupados com o pro- por uma explicação mais articulada de suposições que distingam o
blema da ideologia, na medida em que geralmente se considera que grupo exclusivamente, a fim de reforçar a solidariedade e a concor-
elil apresenta três características diferenciadoras. Lida sempre com dância entre seus membros. Inversamente, pareceria existir uma
a legitimação, o conflito de poder e um estilo especial de argumen- tendência para articular as suposições que são compartilhadas - ou
compatíveis - com aquelas contidas em sistemas de pensamento
tação. McClure e Fischer descrevem com clareza cada uma dessas
antagônicos. Neste caso. a clareza é uma tática que procura persua-
características. 36 dir, mobilizar apoio ou converter aqueles que se encontram de fora.
Em segundo lugar. qualquer explicação das suposições e das idéias
1) Legitimação - Os sociólogos parecem estar de acordo quanto ao implícitas num modo de organização da atividade provavelmente
fato de que a ideologia está relacionada à legitimação - a justificação disfarça a qualidade imprecisa dessas suposições e idéias quando
da ação de um grupo e sua aceitação social. Isto é válido quer os postas em prática.
autores falem de racionalização do capital investido, de tentativas de
"manter um determinado papel social", quer falem de atividade
justificatória, apologética, ( ... ) relacionada ao estabelecimento e à Essas características diversificadas da ideologia apresentam
defesa de padrões de opinião. Em cada caso, tratam como uma importantes implicações para a análise tanto da teoria liberal quanto
questão primordial a legitimação da forma como uma atividade é da educação como uma forma hegemônica, pois logo teremos funda-
socialmente organizada. ( ... ) Quando as suposições básicas subja- mentos para ver como a linguagem e a visão de mundo de ciência,
centes a um programa social parecem estar sendo seriamente desa- eficiência e "ajuda", e o indivíduo abstrato desempenham essas
fiadas, a conseqüente necessidade de legitimação pode também to- funções ideológicas para a área do currículo. Pode-se ver desta dis-
mar a forma de interesse pelo sagrado. ( ... ) "A ideologia procura cussão relativamente breve, no entanto, que a ideologia não pode ser
sacralizar a existência submetendo-a ao domínio dos princípios fun- tratada como um simples fenômeno. Nem pode ser empregada
damentalmente corretos." meramente como uma clava com a qual se ataca o adversário na
2) Luta pelo poder - Toda a literatura sociológica liga a ideologia às cabeça (Ah, ah, seu pensamento não passa de ideologia, passível de
lutas pela procura ou pela preservação do poder. Mas alguns autores ser ignorado!) sem que se perca alguma coisa durante esse processo.
têm em mente o poder, ou a política, num sentido mais restrito, ao Pelo contrário, qualquer tratamento sério da ideologia tem de lutar
passo que outros num sentido mais amplo. No sentido mais estrito, tanto com seu campo de ação quanto com sua função, com seu papel
esses termos se referem à distribuição formal, numa sociedade, de duplo como um conjunto de regras que conferem significado, e sua
autoridade e recursos, o que de modo geral ocorre dentro de um
força retórica em discussões sobre poder e recursos. 37
domínio - a esfera da política. No sentido mais amplo, o poder e a
política envolvem qualquer esfera de atividade, e todos os seus aspec-
(37) Para uma discussão aprofundada da questão da ideologia, um dos tra-
balhos mais interessantes do ponto de vista analítico pode ser encontrado em Nigel
(36) McClure e Fischer, op. cit., p. 7-10. Harris. Beliefs in Society: The Problem of Ideology. London, C. A. Watts, 1968.
38 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRtCULO 39

Por exemplo, nos capítulos finais, deverei examinar o papel o último dado, a apresentação de sugestões concretas, elucida
desempenhado pelos modelos dominantes de administração, ava- uma contradição neste livro da qual estou muito cônscio. Em vista
liação e pesquisa do currículo. Deverei explorar como cada um deles do fato de que escrevo como um educador que se dirige a outros
parece ajudar a dar sentido, a organizar nossa atividade como edu- educadores e, sem dúvida, a um grupo interessado de cientistas
cadores de formas que tendemos a julgar econômica e culturalmente sociais, analistas políticos e filósofos, estou consciente de ter sido
neutras e úteis; como esses modelos e tradições dominantes cum- entendido. Pois, ao se empenhar numa análise crítica séria, ainda se
prem funções retóricas fornecendo, aos meios de distribuição de pode ter uma obrigação ética de tornar a vida mais tolerável, mais
recursos e ao "público", uma visão de nossa aparente sofisticação; poética e significativa, para os estudantes que vivem nas instituições
e finalmente como esses modelos ao mesmo tempo disfarçam os que aqui analiso. Desse modo, há reformas gradativas incorporadas
valores, interesses e funções sociais reais que os sustentam. Tanto o através deste volume. Algumas delas relacionam-se aos direitos estu-
campo de ação quanto a função terão de ser reunidos aqui para que dantis, outras dizem respeito ao emprego de procedimentos de pes-
possamos avançar. quisa curricular ética e politicamente conscientes, e outras, ainda,
Mais uma vez, o meio mais proveitoso de refletir sobre as que sugerem formas mais honestas de currículo. Essas sugestões são
características complexas, o campo de ação e as diversas funções da dadas cautelosamente, quase que,com uma certa relutância, embora
ideologia encontra-se no conceito de hegemonia. A idéia de que a também sejam importantes do ponto de vista tático. Afinal, agir de
saturação ideológica permeia nossa experiência vivida nos permite acordo com elas poderá levar à elucidação das possibilidades reais
ver como as pessoas podem empregar modelos que as auxiliam a de se modificarem aspectos da vida escolar e, o que talvez seja mais
organizar seu mundo, bem como lhes possibilitam acreditar que são importante, a uma necessidade de uma ação coletiva mais estrutu-
participantes neutros na neutra instrumentação da escolarização ralmente orientada. São apresentadas, ainda, na esperança de que
(como veremo,s, grande parte da linguagem utilizada pelos educa- outros educadores percorrerão a trilha que me tem conduzido, de
dores tem esse fim), enquanto ao mesmo tempo esses modelos um interesse pela compreensão ética e poética do currículo, para o
atendem a interesses econômicos e ideológicos específicos que lhes que felizmente se constitui nos primórdios de uma procura mais
são ocultados .. Como observou Wexler, a fim de ver como isso madura de uma ordem social justa que permitirá que essa com-
acontece, teremos de entrelaçar análises curriculares, sócio-polí- preensão seja novamente parte integrante de nossa experiência.
ticas, econômicas e éticas de um modo tal que mostrem as conexões Como se acha sucintamente apresentado no índice, os capí-
sutis que existem entre a atividade educacional e esses interesses. tulos seguintes dão conta da relação, por um lado, entre ideologia,
Nos capítulos que seguem, deverei dar início a essa tarefa política e economia e, por outro, tanto do currículo manifesto
examinando mais pormenorizadamente as três áreas principais de quanto do oculto, e das teorias educacionais dominantes. A pri-
investigação que, como afirmei na segunda parte deste capítulo meira área principal (a forma como as regularidades básicas ou o
introdutório, são essenciais a uma compreensão completa da relação currículo escolar oculto representam e transmitem configurações
entre ideologia e experiência escolar. Eram elas: (1) as regularidades ideológicas) é tratada nos Capítulos 2, 3 e S. A segunda área (a
básicas da experiência escolar e qual ensino ideológico dissimulado relação entre ideologia e o próprio conhecimento curricular mani-
ocorre em virtude delas; (2) quais compromissos ideológicos estão festo) acha-se analisada nos Capítulos 2, 3, 4 e S. A questão final
engastados no currículo manifesto; e (3) os fundamentos ideoló- (como os compromissos ideológicos, políticos, éticos e econômicos se
gicos; éticos e avaliativos das formas em que costumeiramente pen- refletem em nossas teorias, políticas e práticas gradualistas) é exa-
samos, planejamos e avaliamós essas experiências. Os capítulos se minada em quatro capítulos, 4, 6, 7 e 8. Dessa forma, o leitor
sucederão numa forma algo dialética - quando necessário, serão encontra uma oportunidade razoavelmente vasta de ver como a
reiterados e tornados mais sutis determinados argumentos críticos, sociedade exerce uma forte influência sobre as teorias educacionais,
ou fundamentados alguns já surgidos anteriormente, e por vezes o conhecimento manifesto e o não tão manifesto transmitidos pelas
serão apresentadas sugestões concretas para a ação por parte dos escolas e os modos de avaliação e reformas gradativas empregados
educadores. pela escola.
40 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 41

Deveremos inicialmente examinar o papel da escola na pro- examina os interesses sociais ainda incorporados nas formas domi-
dução e na reprodução da hegemonia entre os estudantes. Uma vez nantes do conhecimento curricular que hoje se encontram nas esco-
esclarecido isso, passaremos então ao exame da forma como a hege- las, interesses que espelham uma série de pressuposições ideológicas
monia opera "na mente" de "intelectuais" como os educadores. analisadas no Capítulo 4. Analisa o conhecimento manifesto nas
Cada capítulo tratará dessas tarefas da seguinte forma: propostas e no material curricular amplamente aceito em ciências e
Capítulo 2, "Ideologia e reprodução cultural e econômica", em estudos sociais, dando especial atenção mais uma vez à ideologia
aprofunda o exame das tradições agora dominantes no discurso do do consenso que permeia o conhecimento escolar e à falta de distri-
currículo. O enfoque centraliza-se mais claramente na sociologia e buição de conhecimento curricular com maior poder político. É um
na economia do currículo pela análise do papel do currículo na estudo do modo como a tradição seletiva opera para manter uma
inter-relação entre a reprodução cultural e a econômica. Esse capí- cultura dominante efetiva.
tulo irá explorar as ligações entre o acesso à distribuição do conhe- Capítulo 6, "Modelos sistêmicos de administração e a ideo-
cimento legítimo (e a ausência dessa distribuição) e a reprodução da logia do controle", volta nosso exame para a forma como a hege-
desigualdade cultural e econômica, com base no exame de alguns monia opera na base da mente dos educadores, sondando o papel
dos papéis dese'~lpenhados pela escolarização no desenvolvimento das ideologias de administração na organização das escolas e na
técnico. seleção do conhecimento curricular. Demonstra tanto sua falta vital
Capítulo 3, "A economia e o controle da vida escolar coti- de neutralidade ética, social e econômica quanto sua utilização
diana" (em colaboração com Nancy King), examina o outro lado da como mecanismos de quietismo político, consenso e controle social.
moeda. Centralizando-se nas relações sociais e nos currículos infor- Capítulo 7, "As categorias do senso comum e a política de
mais, assim como nos currículos formais, esclarece o ensino ideoló- rotulação", prossegue a investigação da saturação ideológica da
gico ou hegemônico, para cuja realização basta apenas a vivência consciência dos educadores. Centraliza-se no modo como o capital
dos estudantes na escola por períodos de tempo prolongados. O cultural dos grupos dominantes resulta no emprego de categorias
capítulo tem duas partes. Na primeira fornece uma breve análise que "culpam a vítima", a criança, ao invés da escola ou da socie-
histórica de como determinados tipos de conhecimento escolar com dade que produz as condições materiais para o fracasso ou o êxito.
um reconhecido interesse pelo controle social tornaram-se a estru- Comprova como, através de um complexo processo de rotulação
tura subjacente para a organização da vida escolar cotidiana. Na social, as escolas desempenham um papel fundamental na distri-
segunda, apresenta provas empíricas de uma experiência de jardim buição de diferentes tipos de conhecimento e tendências a diferentes
de infância para documentar o papel da escola na transmissão de tipos e classes de pessoas. Esse capítulo analisa a forma como atuam
conhecimento econômico. e ideológico e de tendências que apre- os rótulos escolares e como se originam de pressuposições ideoló-
sentam resultados bastante conservadores. gicas. Apresenta um modelo de análise neomarxista para reunir
Capítulo 4, "A história do currículo e o controle social" (em conhecimento escolar, rótulos e as instituições que cercam a escola,
colaboração com Barry Franklin), procura abordar seriamente a mostrando como o desvio, os "problemas de desempenho", e assim
importância de se adquirir uma "sensibilidade ao presente enquanto por diante, são "naturalmente originados" do funcionamento coti-
história" pelo exame das formas como essas tradições conservadoras, diano da instituição.
em especial um compromisso com o consenso e a conformidade de Capítulo 8, "Além da reprodução ideológica", tenta esclarecer
pensamento, introduziram-se nessa área. Esse capítulo dá continui- os papéis - tanto políticos como educacionais - que poderíamos
dade e aprofunda consideravelmente o breve exame histórico reali- desempenhar na oposição de algumas forças culturais e econômicas
zado na seção anterior. Devassa as origens das forças e compro- analisadas neste livro. Dirige a atenção novamente para a impor-
missos sociais e econômicos que constituem o contexto ideológico tância de uma compreensão das complexas inter-relações que há
para a seleção dos princípios e práticas que ainda prevalecem na entre as escolas e os aspectos da reprodução cultural e econômica,
área do currículo e na educação em geral. para que se ponha em prática a ação adequada. O capítulo sugere
Capítulo S, "O currículo oculto e a natureza do conflito", vários procedimentos para a pesquisa do problema da sociologia e
42 MICHAEL W. APPLE

da economia do conhecimento escolar. Conclui com uma redefinição


do educador, redefinição que não se baseia nas compreensões origi-
nadas do papel do indivíduo abstrato, mas que está, pelo contrário,
fundada na definição de um ~~,Ç,!!Jo entendimento
) e ação estão unidos pelo compromisso ativo contra a hegemonia.
Prossigamos agora com a procura exatamente desse entendimento
adequado.
2 ~

Ideologia
e reprodução cultural e econômica

Reprodução cultural e econômica

Muitos economistas e não poucos sociólogos e historiadores da


educação têm uma forma especial de encarar as escolas. Vêem a
instituição de ensino como alguma coisa semelhante a uma caixa
c ~, -negra. Mede-se o input antes de os alunos ingressarem nas escolas,
e depois se mede o output durante o curso ou quando, "adultos",
entram para í1 força de trabalho. O que realmente se passa dentro
da caixa ri'égfa~ o que se ensina, a experiência concreta de crianças
e de professores - tem menos importância nessa visão que as
considerações mais globais e macroeconômicas da taxa de retorno
do investimento, ou, mais radicalmente, que a reprodução da divi-
são do trabalho. Embora sejam considerações importantes, princi-
palmente talvez o tratamento, como observei no capitulo anterior,
do papel da escola como uma força reprodutiva numa sociedade
classista, pela própria natureza de uma visão da escola como uma
caixa negra não podem demonstrar como se formam esses efeitos
dentro das escolas. Por conseguinte, esses autores são menos exatos
do que poderiam ser ao explicar parte do papel desempenhado pelas
instituições culturais na reprodução que querem descrever. No en-
tanto, como deverei demonstrar aqui, é necessário alcançarem-se es-
sas explicações culturais, o que exige uma orientação diferente, em-
bora complementar, das que são empregadas por esses e outros estu-
diosos.
44 MICHAEL W. APPLE
IDEOLOGIA E CURRlcULO 4S
Existe uma singular combinação de cultura popular e de elite
de que existe uma "construção social da realidade" é, porém, um
nas escolas. Como instituições, elas se constituem em áreas excep-
tanto geral, e não tão útil quanto poderíamos julgar para a com-
cionalmente interessantes, e fortes política e economicamente, para
a investigação dos mecanismos de distribuição cultural numa socie- preensão das relações que existem entre as instituições culturais,
particularmente as escolas, e a estrutura e o entreíaçamento das
dade. Ê importante pensar as escolas como mecanismos de distri-
formas sociais e econômicas em geral. Como expressa Whitty de
buição cultural, uma vez que, conforme observou o marxista ita- maneira sucinta, 4
liano Antonio Gramsci, um elemento decisivo para o aumento dOa
dominação ideológica de algumas classes é o controle do conhe-
cimento que preserva e produz as instituições de uma determinada Superenfatizar a noção de que a realidade é construída socialmente
sociedade.! Assim, nos termos de Mannheim, 2 pode ser necessário parece ter levado a se negligenciar a consideração de como e por que a
particularizar a "realidade" que é selecionada, preservada e distri- realidade chega a ser construída socialmente em formas específicas e
buída pelas escolas e outras instituições culturais, a fim de que essa como e por que determinadas construções da realidade parecem ter o o

poder de combater a subversão.


realidade possa ser vista como uma "construção social" específica
que pode não estar a serviço dos interesses de todos os indivíduos e
grupos da sociedade. Portanto, o princípio geral da construção social da realidade
Agora passou a ser um lugar-comum, na literatura sociológica não explica por que razão determinados significados sociais e cul-
e educacional contemporânea, referir-se à realidade como uma turais, e não outros, são distribuídos através das escolas; nem ex-
construção social. Com isso, esses estudiosos, especialmente os de plica tampouco como o controle do conhecimento que preserva e
tendência fenomenológica, querem dizer duas coisas. 1) Tomar-se produz instituições pode estar ligado à dominação ideológica de
pessoa é um ato social, um processo de iniciação em que o neófito grupos poderosos numa coletividade social.
aceita uma determinada realidade social como a realidade tout O princípio contrário, de que o conhecimento não está rela-
court, como a vida "realmente é". 2) Em uma escala mais ampla, os cionado de forma significativa à organização e ao controle da vida
significados sociais que mantêm e organizam uma coletividade são social e econômica, evidentemente também é problemático, embora
criados pelos padrões de interação entre as pessoas, fundados no isto possa surpreender a muitos teóricos do currículo. Isto é mais
senso comum, à medida que elas seguem o curso de suas vidas. 3 bem colocado por Raymond Willliams em sua análise crítica da
Agora, essa reinserção do elemento social no que passou a ser um distribuição social da cultura. 5
problema psicológico para a sociedade anglo-ocidental certamente
representa um progresso quanto à visão de muitos educadores de
que os padrões de significado que as pessoas empregam para orga- o padrão de significados e valores por meio dos quais as pessoas
nizar suas vidas e procuram transmitir através de suas instituições dirigem toda a sua vida pode por um momento ser visto como autô-
culturais independem de influências sociais ou ideológicas. A noção nomo e como se se desenvolvesse por seus próprios termos; mas é
muito irreal, em última análise, desvincular esse padrão de um sis-
tema politico e econômico específico, o qual pode estender sua in-
fluência às mais inesperadas regiões emocionais e de comportamento.
(1) Thomas R. Bates. "Gramsci and The Theory of Hegemony". Joumal of A prescrição comum da educação, como a chave para a mudança,
the History of Ideas, XXXVI, 36. April-June 1975. ignora o fato de que a forma e o conteúdo da educação são afetados, e
(2) Karl Mannheim. Ideo/ogy and Utopia. New York, Harcourt, Brace &
World,1936.
(3) Naturalmente, isto é melhor colocado por Peter Berger e Thomas Luck-
mann. The Social Construction of Reality. New York, Doubleday, 1966. O desafio (4) Geoff Whitty. "Sociology and the Problem of Radical Educational Chan-
mais articulado à utilização dessas formulações "fenomenológicas" em educação ge". Educability, Schools and ldeology. Michael Flude e John Ahier (eds.). London,
Halstead Press, 1974, p. 125.
encontra-se em Rachei Sharp e Anthony Green. Education and Social Control:
A Study in Progressive Primary Education. London, Routledge & Kegan Paul, 1975. (5) . Raymond Williams. The Long Revolution. London, Chatto & Windus,
-1961, p. 119·20.
46 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRtCULO 47

em alguns casos determinados, pelos sistemas reais de decisão [polí- inerentemente política que poderia dividir o movimento. 7 A apre-
tica] e de base [econômical. ciação de Cobb das causas estruturais mais amplas que se acham
por trás da escolha feita por esses educadores das esferas de ação em
que se deveria atuar pode ou não ser historicamente precisa. Perma-
Tanto Whitty quanto Williams estão levantando questões bas- nece o fato de que, ao menos fenomenologicamente, muitos educa-
tante difíceis sobre o que poderia se chamar de relação entre ideo- dores reconheceram que a cultura, preservada e distribuída pelas
logia e conhecimento escolar, embora o contexto seja geralmente escolas e por outras instituições culturais, não era necessariamente
britânico. Não é de surpreender a existência de uma longa tradição neutra. Perceberam suas próprias ações como quase sempre oriun-
crítica quanto às implicações entre cultura e controle na Inglaterra e das daquele reconhecimento. Infelizmente, como observei, essas
no resto da Europa. Sob um aspecto, os países europeus tiveram um questões, recorrentes e historicamente significativas, não informa-
conjunto de antagonismos de classe menos oculto que os Estados ram a discussão sobre o currículo nos Estados Unidos, tanto quanto
Unidos. O fato de que a tradição da análise ideológica é menos na Inglaterra e na França, por exemplo. E~tretanto, cada vez mais
evidente na crítica educacional e cultural norte-americana vem con- se admite que as escolas em sociedades industriais como a nossa
firmar, no entanto, duas outras relações, a natureza a-histórica da podem servir muito bem aos interesses de algumas classes sociais, e
maioria da atividade educacional e a dominância de uma ética de nada bem aos de outras classes. Portanto, posso pensar em poucas
reformas gradativas por meio de modelos técnicos na maioria do áreas de pesquisa que se me afigurem mais urgentes que a que
discurso sobre o currículo. 6 A natureza a-histórica da área do currí- procura revelar as ligações entre significado e controle em insti-
culo é de grande interesse aqui. Qualquer um que esteja familia- tuições culturais.
rizado com a intensa discussão em torno da Associação de Educação Ainda que não possa apresentar no momento uma teoria
Progressista, ao longo de sua história, logo constata que um dos completamente elaborada de cultura e controle (embora autores
principais pontos de discussão entre os educadores progressistas era como Raymond Williams, Pierre Bourdieu e Basil Bernstein tenham
o problema da doutrinação. Deveriam as escolas, orientadas por começado a empreender essa tarefa),8 gostaria de fazer aqui uma
uma visão de uma sociedade mais justa, transmitir um determinado série de coisas. Em primeiro lugar, quero apresentar uma discussão
conjunto de significados sociais a seus alunos? Deveriam interessar- mais profunda do modelo básico de suposições de acordo com o qual
se apenas por técnicas pedagógicas progressistas em lugar depatro- operam os mais recentes trabalhos a respeito da relação entre ideo-
cinar uma determinada causa social e econômica? Questões dessa logia e experiência escolar. Este será comparado com as tradições
natureza atormentaram no passado os educadores de inclinação que hoje prevalecem na pesquisa do currículo. Em seguida, estu-
democrática, e a controvérsia persiste até nossos dias, embora vei- darei um aspecto da discussão sobre as ligações entre o currículo e a
culada num vocabulário diferente. estrutura ideológica e econômica, e delinearei algumas proposiçÕes
De fato, como afirmou Stanwood Cobb, um dos primeiros .j
gerais a respeito. Essas proposições deveriam ser vistas antes como
organizadores dessa Associação, vários educadores progressistas, ao
longo das primeiras décadas deste século, foram muito cautelosos
(7) Entrevista gravada realizada na Universidade de Wisconsin, Madison.
até mesmo em formular a questão de qual o conteúdo real que
A necessidade de que os movimentos de reforma educacional de grande escala
deveria ser ensinado e avaliado nas escolas. Em geral, preferiam tenham esta aura de cautela e imprecisão é analisada em profundidade por B. Paul
preocupar-se em primeiro lugar com os métodos de ensino, em parte Komisar e James McClellan. "The Logic of Slogans". Language and Concepts in
porque a determinação do currículo era vista como uma questão Education. B. Othanel Smith e Robert Ennis (eds.). Chicago, Rand MacNally, 1961,
p.195-214.
(8) Veja-se, por exemplo, Raymond Williams. The Country and the City. New
York, Oxford University Press, 1973; Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron. Re-
(6) Herbert M. Kliebard. "Persistent Curriculum Issues in Historical Pers- production in Education, Society and Cu/ture. London, Sage, 1977; e Basil Bems-
pective". Curricu/um Theol"izing: The Reconceptualists. William Pinar (ed.). Ber- tein. C/ass, Codes and Controlo Volume 3: Towards a Theory of Educationa/ Trans-
keley, McCutchan, 1975, p. 39-50. missions. 2. ed. London, Routledge & KeganPaul, 1977.
48 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRtCULO 49

hipóteses que como uma comprovação final, e irão sem dúvida exigir ordenar e avaliar esse conhecimento, funcionam na reprodução
investigações históricas, conceituais e empíricas - para não men- cultural e econômica das relações de classe numa sociedade indus-
cionar comparativas - a fim de demonstrar sua fecundidade. Essas trial como a nossa?" 10 Essas questões em gerai não integram o jogo
hipóteses dirão respeito à relação entre qual currículo recebe status de linguagem da psicologia. Examinemos a base conceitual, o tabu-
elevado em nossa sociedade e seus efeitos econômicos e culturais. leiro em que são articulados jogos de linguagem desse tipo.
Deverei demonstrar a dificuldade de se cogitar os problemas pas- Parece haver duas formas bastante distintas em que os educa-
sados e presentes de forma e conteúdo do currículo sem procurar dores (e os psicólogos, sociólogos e economistas) investigaram o co-
revelar o intrincado vínculo entre a reprodução cultural e a econô- nhecimento escolar. Uma está centrada em torno da questão do
mica. Comecemos por um breve exame das tradições existentes - desempenho acadêmico. A segunda está preocupada menos com
como tipos ideais - que tendem a fornecer as bases assuntivas de questões de desempenho que com o papel das escolas como mecanis-
boa parte do estudo que hoje se faz sobre currículo. mos de sociabilização. ll
No modelo de desempenho acadêmico, não se problematiza o
conhecimento curricular. Pelo contrário, o conhecimento introdu-
As tradições de desempenho e de sociabilização zido nas escolas é geralmente aceito como dado, como neutro, de
maneira que se podem fazer comparações entre grupos sociais,
Grande parte das teorias e da crítica educacional e curricular escolas, crianças, etc. Portanto, o desempenho, a diferenciação e a
extraem seu estímulo finalístico e sua confiabilidade lógica das estratificação acadêmica, baseados em pressuposições relativamente
diversas psicologias do aprendizado atualmente disponíveis. Em- ainda n~o estudadas do que deva ser construído como conhecimento
borª Schwab e outros tenham demonstrado ser um erro lógico tentar de valor, constituem os interesses básicos que se acham por trás da
derivar uma teoria do currículo (ou da pedagogia) de uma teoria do pesquisa. O enfoque tende a incidir na determinação das variáveis
aprendizado 9 - o que muitos teóricos do currículo ainda não pare- que exercem forte influência no êxito ou no fracasso de um indivíduo
cem ter percebido -, existe uma outra dificuldade, que é mais ou de um grupo na escola, tais como a "subcultura do adolescente" ,
pertinente a esta minha discussão. Como devo demonstrar mais a distribuição desigual dos recursos educacionais ou, digamos, a
pormenorizadamente adiante, a linguagem do aprendizado tende a formação social dos estudantes. A meta social é maximizar a produ-
ser apolítica e a-histórica, ocultando assim a intrincada ligação tividade acadêmica.
entre poder e recursos políticos e econômicos que se acha por trás de Ao contrário do modelo de desempenho acadêmico, a abor-
uma considerável quantidade de organização e seleção curricular. dagem baseada na sociabilização não deixa necessariamente de
Em resumo, não é um instrumento lingüístico adequado para a examinar o conhecimento escolar. De fato, um de seus interesses
abordagem do que deveria ser um conjunto prioritário de questões fundamentais está em explorar as normas e valores sociais transmi-
do currículo quanto "a algumas das possíveis origens ideológicas do tidos pelas escolas. Contudo, devido a esse interesse, restringe-se ao
conhecimento escolar. Em seus aspectos mais simples', podem-se estudo do que poderia se chamar de "conhecimento moral". Esta-
reduzir essas questões aos seguintes temas: "O que é realmente belece como dado o conjunto de valores sociais e investiga como a
ensinado nas escolas?", "Quais são as funções sociais manifestas e escola, enquanto agente da sociedade, sociabiliza os estudantes com
latentes do conhecimento transmitido pelas escolas?", "Como os
princípios de seleção e organização, empregados para planejar,
(10) Essas questões são discutidas com mais profundidade no Capítulo 3 e em
Geoff Whitty e Michael Young (eds.). Explorations in the Politics 01 School Know-
(9) Joseph Schwab. The Practical: A Languagelor Curriculum. Washington, ledge. Nafferton, Inglaterra, Nafferton Books, 1976.
National Education Association, 1970; e Dwayne Huebner. "Implications of Psycho- (11) Estou recorrendo à exposição perspicaz dessas duas tradições de pesquisa
logical Thought for the Curriculum". Influences in Curriculum Change. Glenys em Philip Wexler. "Ideology and Utopia in American Sociology of Education".
Unruh and Robert Leeper (eds.). Washington, Association for the Supervision and Education in a Changing Society. Antonio Klostowska e Guido Martinotti (eds.).
Curriculum Development, 1968, p. 28-37. London, Sage, 1977, p. 27-58.
50 MICHAELW. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 51

seu conjunto "compartilhado" de regras e tendências normativas. À A sociologia e a economia do conheclniento escolar
pequena obra muito conhecida de Robert Dreeben, On What ls
Learned in Shools, 12 pode se constituir aqui num excelente exemplo.
Naturalmente, essas abordagens não são totalmente erradas e Um ponto de partida fundamental dessa terceira tradição,
contribuíram no passado para nossa compreensão das escolas como mais crítica, é o articulado por Young em sua proposição de que
mecanismos culturais e sociais, embora talvez nem sempre da forma existe uma "relação dialética entre o acesso ao poder e a oportu-
pretendida pelas abordagens. De fato, uma vantagem das expli- nidade de legitimar algumas categorias dominantes, e o processo
cações, digamos, da sociabilização feitas por Dreeben e outros é de pelo qual a acessibilidade dessas categorias a alguns grupos· lhes
que elas intensificam nossa capacidade de elucidar o que se supõe permite assegurar poder e controle sobre outros" .16 Portanto, colo-
como certo, como senso comum, como dado, para que uma abor- cada de um outro modo, a problemática implica examinar como um
dagem como essa seja realmente aceita como uma explicação total- sistema de poder desigual na sociedade é mantido, e em parte
mente convincente. 13 Como tal, voltam-se para a natureza do signi- reproduzido, por meio da "transmissão" de cultura,17 A escola,
ficado e controle nas escolas. É importante o que aceitam taci- como um importante agente de reprodução cultural e econômica
tamente e que, por isso, deixam de questionar: num exame mais (afinal, toda criança vai para a escola e esta exerce influências
atento, cada uma dessas duas tradições de pesquisa é problemática significativas como uma instituição tanto de atribuição de títulos
à sua maneira. O modelo de desempenho acadêmico, influenciado acreditícios quanto de sociabilização), torna-se aqui, evidentemen-
cada vez mais fortemente pelos interesses administrativos de con- te, uma instituição importante.
trole e eficiência técnica, começou a negligenciar o conteúdo real do Como a tradição de sociabilização, o enfoque dessas investi-
próprio conhecimento, deixando assim de considerar com seriedade gações está centrado no modo como uma sociedade se estabiliza.
a possível conexão entre a economia e a estrutura do conhecimento Qual é o lugar das escolas na manutenção da forma como são
escolar, ao invés de discutir, digamos, a importância da "formação" controlados, produzidos e distribuídos os bens e serviços econômicos
de estudantes totalmente determinados pela estrutura escolar, se "se e educacionais? Entretanto, essas perguntas são orientadas por uma
deve observar a democracia rigorosamente", e assim por diante. A postura mais crítica que a de Dreeben, por exemplo. Boa parte do
tradição da sociabilização, embora perspicaz a seu modo, centra-se compromisso desses autores com essa determinada espécie de pro-
no consenso social e nas paralelas que existem entre os valores blema provém de uma afiliação com movimentos socialistas. Parte
"dados" de uma coletividade mais ampla e as instituições. educa- de um princípio semelhante à posição que adotei no Capítulo 1. Isto
cionais. Ignora, portanto, em grande parte, o contexto político e se assemelha de modo geral a uma teoria rawlsiana de justiça: isto é,
econômico em que funcionam esses valores sociais e por· meio do para que uma sociedade seja verdadeiramente justa, deve maxi-
qual alguns conjuntos de valores sociais tornam-se os valores domi- mizar os privilégios dos menos privilegiados. 18 Portanto, é preciso
nantes(por definição de quem?).14 Além do mais,ambas as tra- questionar qualquer sociedade que aumente a relativa defasagem
dições ignoram quase que inteiramente algumas das funções laten- entre, digamos, os ricos e os pobres no controle do "capital" econô-
tes de forma e conteúdo do currículo escolar. E é exatamente isto o mico e cultural e no acesso a ele (conforme demonstram os últimos
que pretende examinar a tradição do que se passou a chamar de relatórios econômicos, assim procede nossa sociedade, por exem-
"sociologia do conhecimento escolar". IS

26-49 (January-February 1977); e Michael W. Apple e Philip Wexler. "Cultural Capi-


(12) Robert Dreeben. On What Is Leamed in Schools. Reading, Mass .• Addi- tal and Educational Transmissions". Educational Theory. XXVIII (Winter 1978).
son Wesley. 1968. (16) Michael F. D. Young. "Knowledge and Control". Knowledge and Con-
(13) Michael F. D. Young. "On tbe Politics of Education Knowledge". Edu- trol. MichaelF. D. Young(ed.), London, Collier-Macmillan, 1971, p. 8.
cation in Great Britain and Ireland. R. Bell (ed.). London. Oxford, 1973, p. 201. (17) Bourdieu e Passeron, op. cit .• p. 5.
(14) Wexler. op. cito . . (18) Analisei os compromissos conceituais e políticos mais profundamente em
(15) Para um exame mais aprofundado das origens dessa tradição, ver Mi- Apple. "Power and School Knowledge". op. cito
chael W. Apple. "Power and School Knowledge". The Review of Education III,
52 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 53

pIo). Como é legitimada essa desigualdade? Por que é admitida? Na França, a investigação da relação entre a reprodução cultural e a
Como diria Gramsci, como é mantida essa hegemonia? reprodução econômica está sendo realizada num veio paralelo p~r
Para muitos desses pesquisadores, essa aparente estabilidade Bourdieu. Ele analisa as regras culturais, que denomina habitus,
social e ideológica está em parte "baseada na interiorização pro- que vinculam o controle e a distribuição cultural e econômica. 23
funda e em geral inconsciente pelo indivíduo dos princípios que Bourdieu enfoca a capacidade do estudante de absorver o que
governam a ordem social existente" .19 No entanto, esses princípios se poderia chamar de "cultura de classe média". Afirma que o
não são percebidos como neutros. São vistos como intimamente capital cultural armazenado nas escolas atua como um filtro eficaz
interligados com a estratificação econômica e política. na reprodução de uma sociedade hierárquica. Por exemplo, as
Por exemplo, nas análises norte-americanas, britânicas e fràn- escolas em parte reproduzem as hierarquias social e econômica da
cesas feitas por Bowles e Gintis, Young e Bourdieu, e outros, a
sociedade mais ampla através do que aparentemente é um processo
percepção subjacente que o indivíduo possui da ordem social de que
neutro de seleção e instrução. Consideram o capital cultural, o
faz parte fornece o lugar de compreensão. Assim, para dar um
habitus, da classe média como natural e o aplicam como se todas a.s
exemplo, segundo um comentador britânico do livro de Bowles e
crianças tivessem igualdade de acesso a ele. No entanto, "ao tomar
Gintis, livro que é interessante, porém mecanicista demais,2O "No
todas as crianças como iguais,· embora implicitamente favoreçam
trabalho de Bowles e Gintis dá-se ênfase à importância da escola-
aquelas que já adquiriram os meios lingüísticos e sociais para manu-
rização na formação de diferentes tipos de personalidade que cor-
sear a cultura de classe média, as escolas tomam por natural o que é
respondem às exigências de um sistema de relações de trabalho num
essencialmente um dom social, isto é, o capital cultural". 24 Bour-
modo econômico de produção'~. 21 Dessa forma, para Bowles e Gin-
dieu pede-nos, então, para pensar o capital cultural como pensa-
tis, não somente a educação estabelece o lugar dos indivíduos num
ríamos o capital econômico. Exatamente como nossas instituições
conjunto relativamente fixo de posições na sociedade - uma distri-
econômicas dominantes são estruturadas de modo a que aqueles que
buição de posições determinada por forças econômicas e políticas
herdem ou já possuam capital econômico saiam-se melhor, da
-, mas o próprio processo de educação, o currículo formal e o
mesma forma também atua o capital cultural. O capital cultural ("o
oculto, sociabiliza as pessoas a aceitarem como legitimos os limitados
bom gosto", alguns tipos de conhecimento anterior, aptidões e
papéis que elas fundamentalmente ocupam na sociedade. 22
formas de linguagem) é em geral distribuído por toda a sociedade e
Outros estudiosos de orientação semelhante adotam uma po-
isto depende em grande parte da divisão do trabalho e do poder
sição comparável ao examinar o efeito que as escolas podem exercer
nessa sociedade. "Selecionando em favor dessas propriedades, as
na formação da consciência dos indivíduos. Assim, por exemplo,
escolas servem para reproduzir a distribuição de poder na socie-
Basil Bernstein afirma que, até um ponto significativo, formam-se
. da educação, as 'estruturas mentais' do individuo (isto é,'
" por melO dade." 25 Para Bourdieu, para compreender completamente o que
fazem as escolas, quem tem êxito e quem fracassa, não se deve ver a
as categorias de pensamento; linguagem e comportamento) e que
cultura como neutra, como necessariamente contribuindo para o pro-
essas estruturas mentais originam-se da divisão social do trabalho".
gresso social. Pelo contrário, deve-se ver a cultura, tacitamente
ministrada pelas escolas, como contribuindo para a desigualdade
fora dessas instituições.
(19) Madeleine MacDonald. The Curriculum and Cultural Reproduction.
Milton Keynes, Open Uníversity Press, 1977, p. 60. Além dessas questões, pois, está a afirmação de que teremos de
(20) Samuel Bowle~ e Herbert Gíntís. Schooling in Capitalist America. New reconhecer que, como a pobreza, um desempenho fraco não é uma
York, Basíc Books, 1976.
(21) MacDonald,op. cit., p. 309. Este artigo também apresenta uma série de
críticas interessantes da dependência de Bowles e Gíntís numa teoria da correspon-
dência. . (23) MacDonald, op. cito
(24) Roger Dale et aI. (eds.). Schooling and Capitalism: A Sociological Rea-
(22) John W. Meyer. "The Effects of Education as an Institution". American
der. London, Routledge & Kegan Paul, 1976, p. 4.
Journal of Sociology, LXXXIII (July 1977),64.
(25) Ibid.
54 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRtCULO 55

aberração .. Tanto a pobreza quanto os problemas curriculares, Procura, antes, trazer ao nível da consciência e problematizar histó-
como, por exemplo, o de um baixo índice de aproveitamento, são rica e empiricamente a relação dialética entre o controle e a distri-
produtos integrais da organização da vida econômica, cultural e buição cultural e a estratificação econômica e politica. 28 Nossas
social como a conhecemos. 26 Brevemente terei mais a dizer quanto a percepções comuns - as que são tiradas dos modelos de desem-
se ver muitos problemas curriculares, como o do desempenho, como penho e de sociabilização - são, assim, equiparadas. O "interesse
"produzidos naturalmente" por nossas instituições, quando consi- cognitivo" subjacente ao plano de pesquisa é ver relacionalmente,
derar o corpus formal do conhecimento escolar na próxima seção caso assim se queira chamar, é pensar o conhecimento escolar como
desta análise. oriundo dos conflitos ideológicos e econômicos que se acham tanto
Em vista de razões desse tipo, o que está fundamentalmente "fora" como "dentro" da educação. Esses conflitos e forças impõem
afirmando essa terceira tradição? 27 limites (não determinam mecanicistamente) às respostas culturais.
Isso exige sutileza e não apreciações que defendam uma correspon-
dência total e exata entre a vida institucional e as formas culturais.
A suposição subjacente à maioria das teorias da "reprodução" é de
que a educação desempenha um papel mediador entre a consciên- Nem todos currículos nem toda cultura são "meros produtos" de
cia individual e a sociedade em geral. Esses te6ricos sustentam simples forças econômicas. 29
que as regras que dirigem o comportamento social, as atitudes, as De fato, desejo agora registrar uma advertência critica. Existe
morais e as crenças, são filtradas desde o macronivel da estruturas aqui um risco evidente, um risco que não pode passar despercebido.
econômicas e políticas até o indivíduo via experiência de trabalho, Problematizar o "conteúdo" real do currículo, submeter o que
processos educacionais e sociabilização familiar. O indivíduo adquire correntemente se toma por conhecimento legitimo a rigoroso exame
uma consciência e percepção específica da sociedade em que vive. E é ideológico, pode levar a uma qualidade vulgar de relativismo. Ou
essa compreensão e essa atitude para com a ordem social que [em seja, ver o conhecimento curricular manifesto e o oculto como pro-
grande parte) constitui sua consciência. dutos sociais e históricos tende em última análise a levantar questões
acerca dos critérios de validade e de verdade utilizados. 3O As ques-
tões epistemológicas que poderiam ser formuladas aqui não são
As escolas, por conseguinte, "preparam" tanto conhecimento desint~ressantes, para se dizer o mínimo. No entanto, o que se acha
como pessoas. Fundamentalmente, o conhecimento formal e infor- por trás dessas investigações não é relativizar totalmente nem nosso
mal é usado como um intrincado filtro para preparar as pessoas, conhecimento nem nossos critérios para garantir sua veracidade ou
freqüentemente por classe; e, ao mesmo tempo, transmitem-se dife- falsidade (embora a tradição marxista tenha uma longa história
rentes tendências e valores a diferentes populações escolares, nova- dessa discussão, como a controvérsia entre os textos de Adorno e os
mente em geral por classe (e sexo e raça). Com efeito, para essa de Popper, por exemplo. Por sinal, temos muito a aprender com as
tradição mais critica, as escolas reproduzem de modo latente as questões epistemológicas e politicas despertadas por essa discus-
disparidades culturais e econômicas, embora com certeza isto não
seja absolutamente o que a maioria dos burocratas das escolas pre-
tendam.
Deixe-me parar por aqui, para esclarecer uma coisa: isto não é (28) A natureza dupla dessa relação - como a cultura e a economia se inter-
penetram e influenciam uma à outra numa forma dinâmica - é mais bem examinada
sustentar que a cultura ou a consciência seja mecanicistamente
por Raymond Williams, "Base and Superstructure in Marxist Cultural Theory". New
determinada (no forte sentido do termo) pela estrutura econômica. Left Review, LXXXII (November/December 1973).
(29) Ibid. Veja-se também o capítulo final, "Aspects of the Relations Between
Education and Production". In: Bernstein, op. cito
(26) R. W. Connell. Ruling Class, Ruling Culture. New York, Cambridge (30) Michael F. D. Young. "Taking Sides Against the Probable". Rationa-
University Press, 1977. Serã mais explorado no Capítulo 3 como isto realmente opera, lity, Education and the Social Organization of Knowledge. London, Routledge &
especialmente através do complexo processo de rotulação que se efetua nas escolas. Kegan Paul, 1977, p. 86-96; e Michael W. Apple. "Curriculum as Ideological Se-
(27) MacDonald, op. cito . lection". Comparative Education Review, XX (June, 1976),209-15.
56 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRtCULO 57

SãO).31 Em vez disso, como acabei de mencionar, trata-se no plano Gostaria agora de considerar um aspecto da relação entre a
do conhecimento de pensar relacional ou estruturalmente. Em ter- distribuição cultural e o poder econômico e explorá-lo mais a fundo.
mos mais claros, dever-se-ia procurar as implicações sutis entre Quero empregar esse modelo crítico para incluir algumas especu-
fenômenos educacionais, como o currículo, e os resultados latentes lações sobre a forma como um conhecimento - particularmente
sociais e econômicos da instituição. aquele conhecimento considerado de maior prestígio nas escolas -
Esses objetivos evidentemente são semelhantes aos que são pode de fato estar ligado à reprodução econômica. Fundamental-
freqüentemente associados aos teóricos críticos da Escola de Frank- mente, quero passar a cogitar algumas das questões associadas à
furt, que sustentaram que o contexto em que percebemos os fatos distribuição de conhecimento e à criação de desigualdade que auto-
sociais, a forma geral como conceitualmente organizamos nosso res como Bourdieu, Bernstein, Young e outros procuraram levantar.
mundo, pode ocultar o fato de que esses fenômenos aparentemente Em nossa mente, creio, deveria estar a idéia de Bourdieu que relatei
comuns servem a interesses específicos. 32 Mas esses interesses não na última seção. Se você quer entender como as formas culturais e
podem ser meramente supostos; precisam ser comprovados. A fim econômico-políticas trabalham interligadas, então pense em ambas
de lançar algumas das bases dessa comprovação, precisaremos nos como aspectos do capital.
voltar para algumas das hipóteses que, como antes referi, gostaria .A fim de sondar as conexões entre essas formas, deverei usar a
de sugerir. Precisaremos explorar como a distribuição cultural e o linguagem das "transmissões" culturais, em verdade considerando
poder econômico estão intimamente entrela~ados, não apenas na os artefatos culturais e o conhecimento como se fossem coisas. A
transmissão do "conhecimento moral" segundo alguns dos teóricos noção de "como se" deve ser entendida exatamente como tal, como
da reprodução, mas no corpus formal do próprio conhecimento uma metáfora para lidar com um processo ético mais complexo em
escolar. que, digamos, os estudantes nã.o apenas recebem informação, atri-
butos culturais, etc., mas também transformam (e às vezes rejeitam)
essas tendências, propensões, habilidades e fatos previstos em signi-
Quanto ao problema do conhecimento de alto nível . ficados biograficamente relevantes. 33 Assim, embora o ato de consi-
derar o conhecimento como uma coisa contribua para facilidade de
discussão, para uma simplificação metodológica, caso assim se
A discussão nas seções anteriores deste capítulo convergiram
. queira chamá-lo, é preciso que seja entendido exatamente como um
para o aprofundamento de nossa compreensão das razões políticas,
ato simplificador. (O fato de que é geralmente considerado como
econômicas e conceituais gerais enfocadas pOI: aqueles estudiosos
uma coisa em nossa sociedade é sinal de sua reificação como uma
interessados no problema de ideologia e currículo. Comparou-se
mercadoria em sociedades industriais.) 34
essa tradição crítica com os modelos de desempenho e sociabilização
predominantes na área. Mais uma vez, uma das idéias de Michael F. D. Young é útil
aqui como ponto de partida. Ele afirma que "aqueles que se encon-
tram em posições de poder tentarão definir o que se considera como
conhecimento, o grau de acessibilidade de qualquer conhecimento a
(31) Veja-se, por exemplo, AlbrechtWellmer. Criticai Theory of Society. New
York, Herder and Herder, 1971, principalmente o Capitulo 1. Veja-se também a diferentes grupos, e quais são as relações aceitas entre diferentes
discussão da posição tomada pelo filósofo marxista francês Louis Althusser, in:
Miriam Glucksmann. Structuralist Analysis in Contemporary Social Thought. Lon:
don, Routledge & Kegan Paul, 1974. Embora possa ser dificillidar com "a demons-
tração" das asserções sociais de orientação crítica usando-se a tradição positivista, (33) Ver os artigos de Mehan e McKay em Hans Peter Dreitzel (ed.). Child-
isto não quer dizer que seja inconseqüente a comprovação empirica de aspectos do hood and Socialization. New York, Macmillan, 1973; e Linda M. McNei!, "Economic
problema. Isto é excelentemente discutido em Connell, op. cito Dimensions of Social Studies Curricula: Curriculum as Institutiona1ized Know-
(32) Ian Hextall e Madan Sarup. "School Knowledge, Evaluation and Aliena- ledge". (Tese de doutoramento não publicada, Universidade de Winconsin, Madison,
tion". Society, State and Schooling. Michael F. D. Young e Geoff Whitty (eds.). 1977.)
London, FalmerPress, 1977, p.1S1-71. (34) Whitty, op. cit_
58 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 59

áreas de conhecimento e entre aqueles que têm acesso a elas e as Nosso tipo de sistema econômico é organizado de uma tal
tornam acessíveis". 35 Embora isto esteja sem dúvida mais relacio- forma que pode criar apenas uma determinada quantidade de em-
nado ao modo çomo atua a hegemonia para saturar nossa consciên- pregos e ainda assegurar elevadas taxas de lucro para as empresas.
cia e nem sempre ou mesmo necessariamente seja um processo Fundamentalmente, o aparelho econômico está em sua maior efi-
consciente de manipulação e controle, podendo, portanto, ser um ciência quando existe um índice de desemprego (medido) de apro-
pouco exagerado, levanta de fato a questão do relativo nível do ximadamente 4-6 por cento (embora saibamos que esta é uma
conhecimento e sua acessibilidade. Pois nessa afirmação encontra-se medida notavelmente imprecisa a que se deveriam acrescentar as
uma proposição que poderia implicar que a posse de um conheci- questões de índices muito mais altos para os negros, elevados níveis
mento de alto nível, conhecimento a que se atribui importância de subemprego e de trabalho sem remuneração feito por muitas
excepcional e que se vincula à estrutura de economias industriali- mulheres no lar). Proporcionar trabalho útil para esses indivíduos
zadas, está relacionada à não-posse por outros, e de fato parece exigiria umc?corte nas taxas aceitáveis de lucro e provavelmente
implicá-la. Fundamentalmente, o conhecimento de alto nível "é es- exigiria pelo menos a reorganização parcial dos assim chamados
casso por definição, e sua escassez está inextrincavelmente ligada à "mecanismos de mercado" que distribuem empregos e recursos. Em
sua instrumentalidade" .36 virtude disso, não seria uma metáfora inadequada descrever nosso
Esta é uma questão excepcionalmente crítica e precisa ser sistema econômico como produzindo naturalmente níveis especifi-
discutida um pouco mais aprofundadamente. Tenho afirmado que cáveis de subemprego e de desemprego. 38 Podemos pensar esse
as escolas não apenas "preparam" pessoas, mas que também "pre- modelo como um modelo que está preocupado em primeiro lugar
param" o conhecimento. Ampliam e dão legitimidade a determina- com a maximização da produção de lucro e apenas secundariamente
dos tipos de recursos culturais que estão relacionados a formas com a distribuição de recursos e de empregos.
econômicas desiguais. Para compreender isso, devemos pensar a Agora, um modelo semelhante parece mostrar-se verdadeiro
respeito das espécies de conhecimento que as escolas consideram quando pensamos o conhecimento em sua relação com uma econo-
como as mais importantes, que elas querem maximizar. Definirei mia como essa. Uma economia industrializada requer a produção de
isto como um conhecimento técnico, não para denegri-lo, mas para elevados níveis de conhecimento técnico para manter o aparelho
diferenciá-lo, digamos, de estética, educação física, e assim por econômico funcionando eficientemente, e para tornar-se ainda mais
diante. A concepção da maximização do conhecimento técnico é um sofisticada na maximização de oportunidades para a expansão eco-
princípio útil, creio, para começar a revelar algumas das ligações nômica. Dentro de certos limites, o que realmente se exige não é a
entre o capital cultural e o capital econômico. 37 distribuição ampla desse conhecimento de alto nível à população em
geral. O que é mais necessário é maximizar sua produção_ Enquanto
a forma de conhecimento é constante e eficientemente produzida,
(35) Michael F. D. Young. "An Approach to the Study of Curricula as Social- a própria escola é eficiente, ao menos nesse importante aspecto de
Iy Organized Knowledge". In: Young. Knowledge and Control, op. cito Hâ paralelos sua função. Assim, podem-se tolerar alguns fracos níveis de desem-
interessantes entre o trabalho de Young e o de Huebner em seu enfoque sobre a penho por parte dos estudantes de grupos minoritArios, os filhos dos
acessibilidade do curriculo. Compare-se Dwayne Huebner. "Curriculum as theAcces- pobres, e assim por diante. Ê de conseqüência menor para a eco-
sibility of Knowledge". (Artigo não publicado apresentado no Grupo de Estudo da
Teoria do Curriculo, em Minneâpolis, em 2 de março de 1970, mimeo.).
(36) Bernice Fischer. "Conceptual Masks; An Essay Review of Fred Inglis,
Ideology and Imagination". Review 01 Education, I (November 1975), 526. Ver (38) Andrew Hacker. "Cutting Classes". New York Review 01 Books, XXIII
também Hextall e Sarup, op. cito (May, 1976), 15. Hacker observa que, em seu emprego total, nossa economia pode
(37) O princípio de que as escolas servem para maximizar a produção de utilizar proveitosamente apenas cerca de 430/0 da população na faixa de trabalho.
conhecimento técnico foi primeiramente observado por Walter Feinberg em seu capí- Não é rentâvel empregar mais do que isso. "Alguns dos 57% desnecessãrios tornam-
tulo "A Criticai Analysis of the Social and Economic Limits to the Humanizing of se donas-de-casa, estudantes universitârios, ou aposentam-se com pensões modestas.
Education". Humanistic Education: Visions and Realities. Richard H. Weller (ed.). Outro, no entanto, devem destinar-se a uma vida de pobreza, porque o sistema
Berkeley, McCutchan, 1977, p. 249-69. Minha anãlise aqui deve muito à dele. econômico não lhes oferece alternativas."
60 MICHAELW. APPLE . IDEOLOGIA E CURRlcULO 61

nomia do que para a produção do próprio conhecimento. Nova- mento do currículo de ciências e matemática, ao passo que se deram
mente, a produção de uma determinada "mercadoria" (no caso, menos recursos às artes e às humanidades. Isto ocorria e ainda
o conhecimento de alto nível) é de maior interesse que a distribuição ocorre por duas razões possíveis. A primeira é a questão da utilidade
dessa determinada mercadoria. Até o ponto em que não interfiram econômica. Os lucros provenientes da maximização da produção de
na produção de conhecimento técnico, podem ser tolerados os inte- conhecimento científico e técnico são facilmente notáveis e, pelo
resses por distribuí-los mais eqüitativamente. menos na época, pareciam fora de controvérsia. Em segundo lugar,
o conhecimento de alto nível mostra-se como conhecimento à parte.
Portanto, exatamente como no "mercado de bens", em que é
Tem Um conteúdo (supostamente) identificável e uma estrutura
mais eficiente ter-se um nível de desemprego relativamente cons-
(ainda supostamente) estável 40 que são tanto ensináveis quanto,
tante, para de fato produzi-lo realmente, assim também as insti-
o que é fundamentalmente importante, verificáveis. As artes e
tuições culturais "naturalmente" criam níveis de desempenho insa-
humanidades evidentemente têm sido encaradas como menos recep-
tisfatório. A distribuição ou escassez de algumas formas de capi- tivas a esses critérios, supostamente em virtude da própria natureza
tal cultural têm menos importância para este cálculo de valores do de seu assunto. Portanto, aqui se encontra em operação uma propo-
que a maximização da produção do próprio conhecimento. sição dupla, quase circular. Vê-se o conhecimento de alto nível como
Isto, creio, explica parcialmente o papel econômico da dis- vantajoso, do ponto de vista macroeconômico, em termos de lucros
cussão sobre níveis culturais e matrícula aberta a todos nas univer- duráveis para a maioria das classes com poder na sociedade, e as
sidades. Também esclarece algumas das razões por que as escolas e definições socialmente aceitas de conhecimento de alto nível impe-
os currículos parecem ser organizados para a vida universitária em dem que se considere o conhecimento não técnico.
termos da predominância dos currículos centrados nas áreas de Ê importante observar a ênfase nas considerações macroeco-
conhecimento e o relativo prestígio oferecido às diferentes áreas nômicas. Evidentemente, o conserto de aparelhos de tv é uma maté-
curriculares. A relação entre a estrutura econômica e o conheci- ria que, se bem aprendida, pode proporcionar lucros econômicos
mento de alto nível poderia também explicar algumas das grandes àquele que a utiliza. Entretanto, a própria economia não será exces-
disparidades nos níveis de distribuição de recursos para inovações sivamente prejudicada se este não receber uma posição de prestígio.
curriculares em áreas técnicas e nas artes, por exemplo. De fato, se a análise de Braverman está correta - de que nossa
A estrutura da tendência de áreas de conhecimento constitui estrutura econômica exige a contínua divisão e desdobramento de
um exemplo interessante de muitas dessas questões sobre poder e habilitações complexas em habilitações menos complexas e mais
cultura. A abordagem centrada nas áreas de conhecimento não era padronizadas -, o controle econômico pode ser corroborado pela
um desafio sério à visão tradicional do currículo. Era antes uma falta de prestígio conferida a uma arte como essa. O mesmo
demonstração de que uma determinada mercadoria - no caso o não parece se mostrar verdadeiro quanto ao conhecimento téc-
conhecimento acadêmico - não estava sendo efetivamente "barga- nico. 41
nhada" por uma determinada comunidade nas escolas. 39 Mesmo
quando era aceita pela maioria dos burocratas das escolas como o
conhecimento curricular mais importante e recebia grandes doses de (40) Esta é uma reivindicação empírica, naturalmente, e é falsificável. Há
apoio federal para auxiliar sua adoção nas escolas, eram claras as uma série de educadores e cientistas que discordariam dessa simplificação da ciência
divergentes reivindicações de poder quanto a qual deveria ser o e da matemática. Veja-se, por exemplo, Thomas Kuhn. The Structure of Scientific
conhecimento de alto nível. Revolutions. University of Chicago Press, 1970. Discutem-se exatamente agora quais
Por exemplo, concederam-se recursos vultosos ao desenvolvi- os aspectos dos "paradigmas" científicos que são estáveis. Ver Imre Lakatos e Alan
Musgrave (eds.). Criticism and the Growth of Knowledge. Cambridge University
Press, 1970; e Stephen Toulmin. Human Understanding. Princeton University Press,
1972.
(41) Harry Braverman. Labor and Monopoly Capital. New York, Month1y
(39) Geoff Whitty e Michael F. D. Young. "The Politics of School Know-
Review Press, 1975.
ledge". Times Educational Supplement, 20. (5 de setembro de 1973.)
62 MICHAELW. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 63

Há dois níveis em operação aqui. As regras sociais e econô- também provavelmente significaria qúe tentativas de se utilizar cri-
micas constitutivas ou subjacentes tornam essencial que sejam ensi- térios diferentes para julgar o valor relativo de diferentes áreas
nados os currículos centrados nas áreas de conhecimento, que se curriculares serão encaradas como incursões ilegítimas, como amea-
confira um status elevado ao conhecimento técnico, o que se deve em ças àquela "ordem" específica. 43
grande parte à função seletiva da escolarização. Embora isto seja Não é difícil encontrar exemplos disso nas áreas de avaliação.
mais complexo do que posso examinar aqui, é mais fácil estratificar Por exemplo, a forma habitual de se avaliar o êxito dos currículos é
os indivíduos segundo "critérios acadêmicos" quando se emprega por meio do emprego de um procedimento técnico, comparando-se
conhecimento técnico. A estratificação ou a articulação em grupos é input com output. O número de pontos obtidos nos testes elevou-se?
importante porque nem todos os indivíduos são vistos como deten- Os estudantes dominaram o material? Este é, naturalmente, o mo-
tores da capacidade de contribuir para a produção da forma de delo de desempenho que descrevi acima. Quando educadores ou
conhecimento necessária. Assim, o conteúdo cultural (o conheci- analistas políticos querem avaliar de um outro modo, menos téc-
mento legítimo ou de alto nível) é usado como um dispositivo ou um nico, seja observando a "qualidade" daquela experiência curricular,
filtro para a estratificação econômica,42 intensificando com isso a seja levantando questões sobre a natureza ética das relações envol-
contínua expansão do conhecimento técnico numa economia como a vidas na interação, eles podem muito simplesmente ser demitidos.
nossa. Ao mesmo tempo, porém, poder-se-ia esperar que, neste O discurso cientifico e técnico em sociedades industriais tem mais
modelo constitutivo, os educadores fossem relativamente livres para legitimidade (status elevado) que o discurso ético. O discurso ético
reagir (ou não reagir) a pressões econômicas mais imediatas, como não pode ser facilmente operacionado numa perspectiva de input-
a educação de carreira e assim por diante. output. E, finalmente, os critérios "científicos" de avaliação resul-
. Em resumo, uma razão importante do predomínio na maioria tam em "conhecimento", ao passo que os critérios éticos conduzem
das escolas de currículos centrados nas áreas de conhecimento, do a considerações puramente subjetivas. Isto apresenta i'11portantes
fato de os currículos integrados encontrarem-se relativamente em implicações para a visão que temos de nós mesmos como neutros, e
poucas escolas, deve-se ao menos em parte ao lugar ocupado pela adquirirá significado maior quando mais tarde analisarmos o modo
escola na maximização da produção de conhecimento de alto nível. como a ciência "funciona" na sociedade.
.Isto está intimamente relacionado ao papel da escola na seleção de Um exemplo corrente podelja ser útil aqui. Após sólidas
agentes para ocupar posições econômicas e sociais numa economia reanálises d~ estudos que relacionam a escolarização à mobilidade
relativamente estratificada que os analistas da economia política da social, Jencks, em Inequality, concluiu ser bastante difícil fazer
educação têm procurado retratar. generalizações a respeito dos papéis desempenhados pelas escolas
Junto com Young, sugeri aqui que algumas das relações entre para aumentar as chances do indivíduo de um futuro melhor.
quem controla recompensa e poder numa sociedade, os padrões de Assim, observa que poderia ser mais sensato dar menos enfoque à
valores dominantes e a organização do capital cultural podem ser mobilidade social e ao desempenho e mais enfoque à qualidade da
experiência concreta de um estudante nas salas de aula, alguma
mais bem reveladas pelo enfoque da estratificação do conhecimento.
coisa com insinuações estranhamente (embora agradavelmente)
Não seria ilógico asseverar que, com base no que demonstrei aqui,
deweynianas. No entanto, a idéia de Jencks de que devemos dar maior
tenderá a ser combatida qualquer tentativa de se fazerem alterações
atenção à qualidade de vida em nossas instituições educacionais tem
de substância na relação entre conhecimento de alto nível e de baixo
nível, igualando, digamos, diferentes áreas de conhecimento. Isto suas origens em considerações éticas e políticas e foi prontamente
lu descartada. Seus critérios para fazer essa afirmação foram julgados
ilegítimos. Tiveram pouca validade no conjunto específico dos jogos

(42) A estreita relação entre os currículos acadêmicos, a distribuição de re-


cursos escassos, e a rotulação e a bitolação do aluno do nível secundãrio é docu-
mentada em James E. Rosenbaum. Making Inequality. New York, John Wiley & (43) Young. "An Approach to the Study of Currículum as Socially Organized
Sons, 1976. Knowledge". Op. cit., p. 34.
64 MICHAEL W. APPLE
IDEOLOGIA E CURRlcULO 65
de lÍnguagem de que participa a avaliação e, desse modo, receberam
pouco status. 44 reprodução social dos valores, normas e tendências transmitidos
Observe-se um outro aspecto sobre o que ocasiona essa insis- pel~ aparelho cultural de uma sociedade oferece parte de uma expli-
tência em critérios técnicos. Ela torna tanto os tipos de questão caça0. Uma forma de reprodução (através da "sociabilização" e do
formulados quanto as respostas que se lhes dão o reduto de espe- que se tem chamado de currículo oculto) que deveremos examinar
cialistas, esses indivíduos que possuem o conhecimento de antemão. nos próximos três capítulos complementa uma outra (o corpus for-
Portanto, o relativo status do conhecimento estã ligado aos tipos de n;al do conhecimento escolar), cada uma das quais parece manter
questões que se julgam aceitãveis, o que por sua vez parece estar vmculos com a desigualdade econômica. Ê na inter-relação entre o
ligado à sua não-posse por outros indivíduos. Alorma das questões conhecimento curricular - o conteúdo que ensinamos a "cultura
torna-se um aspecto da reprodução cultural, desde que essas só legítima" - e as relações sociais da vida na sala de a~la descritas
podem ser respondidas por especialistas a quem jã se distribuiu o pelos teóricos da reprodução, que podemos começar a ver algumas
conhecimento técnico. A estratificação do conh~cimento neste caso das relações reais mantidas pelas escolas com uma estrutura eco-
mais uma vez envolve a estratificação de pessoas, embora menos a nômica desigual.
um nível econômico. ?bserve-se novamente o que estou dizendo, pois faz parte de
uma dIscussão contra as teorias "conspirativas", tão populares em
algumas críticas revisionistas da escolarização. Esse processo de
Hegemonia e reprodução reprodução não é causado (no sentido profundo desse conceito)
por uma elite de administradores que se sentavam ou que agora se
Evidentemente, tudo isso estã muito imbricado, sendo muito sentam à volta de uma mesa para tramar formas de "liqüidar" seus
difícil de deslindar, reconheço. Embora nosso entendimento dessas trabalhadores tanto no local de trabalho quanto na escola. Embora,
relações emaranhadas ainda seja experimental, desperta de uma como ve~emo.s no Capítulo 4, uma explicação como essa possa des-
outra forma uma das questões a que me referi antes. Em vista das crever mmUClosamente alguns aspectos da razão por que as escolas
sutis implicações nesse processo de produção de cultura, assim como fazem o que faz:em,46 não é uma explicação satisfatória da relação
de reprodução econômica, como e por que é aceito? Surge, por- de fo.rças que realmente parece existir. Afirmo, ao contrãrio, que,
tanto, mais uma vez a questão da hegemonia, da estabilidade ideo- em vIrtude das formas econômicas e políticas existentes que agora
lógica, formulada pelos teóricos da reprodução. 45 Pois é aqui que a fornecem.o~ princípios segundo os quais é organizada boa parte de
pesquisa de Bowles e Gintis, Bernstein, Bourdieu e outros sobre a nosso cotidIano, ·esse processo reprodutivo é uma "necessidade ló-
gica" para a contínua manutenção de uma ordem social desigual. O
desequilíbrio econômico e cultural segue-se "naturalmente" .47 .
(44) A análise de Habermas do modo como as formas de utilitário-racionais, Isto pode dificultar aos educadores, como nós, tratar do pro-
ou instrumentais, de linguagem e ação passaram a dominar nossa consciência é de bl~ma. Po?~mos, de f~to,. ter de en~arar seriamente os compro-
grande esclarecimento aqui. Cf. Jürgen Habermas, Knowledge and Human Interests. mIssos políticos e economlCOS que onentam os teóricos da repro-
Boston, Beacon Press, 1971; e Michael W. Apple. "The Process and Ideology of dução. Uma anãlise educacional séria pode exigir uma teoria mais
Valuing in Educational Settings". Educational Evaluation: Analysis and Responsi-
bility. Michael W. Apple et aI. (eds.). Berkeley, McCutchan, 1974, p. 3-34. Gosta- coerente do Estado social e econômico de que fazemos parte. Em-.
riamos de rastrear a valorização das formas utilitário-racionais de ação dentro do bora tenha a~ui explorado mecanismos culturais, é essencial, agora,
crescimento simultâneo de determinados sistemas ecanÔmicos. O corpus do trabalho recordar a afirmação de Raymond Williams de que nem a cultura
.de Raymond Williams fornece modelos fundamentais para esse tipo de pesquisa. Ver
The Long Revolution, op. cito ; e The Country and The City, op. cito
(45) Criticas de algumas das pesquisas mais relevantes sobre a questão da
hegemonia podem ser encontradas em David W. Livingston. "On Hegemony in Cor- (46) Ver também Herbert Gintis e Samuel Bowles. "Educationai Reform in
porate Capitalist States". Sociologicallnquiry, XLVI (números 3 e,4, 1976), 235-50; the U ,S'.: An Historical and Statistical Survey". New York, The World Bank, March.
e R. W. Connell, op. cit., em especial os capítulos 7-10. 1977, mlmeo.
(47) Raymond Williams. The Long Revolution, op. cit., p. 298-9.
66 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRtCULO 67

~em a educação são variáveis independentes. Esquecer isso é ignorar gítimo".49 Essas questões evidentemente exigem muito mais refle-
um campo primordial para ações e compromissos coletivos. xão sobre o problema conceitual da relação dialética entre controle
Parte desse interesse econômico é resumido por Henry Levin. social e estrutura econômica. Como um afeta o outro? Que papel
Numa recapitulação dos efeitos de intervenções educacionais de desempenha o próprio sistema educacional na definição de' deter-
grande escala pelo governo para tentar reduzir a desigualdade eco- minadas formas de conhecimento como de alto nível? Que papel
nômica por meio de reformas no currículo e no ensino, ele conclui exerce em ajudar a criar um processo de distribuição de títulos acre-
que: 48 ditícios baseado na posse (e não-posse) desse capital cultural, um
sistema de títulos que fornece uma quantidade de agentes aproxi-
madamente equivalente às necessidades da divisão de trabalho na
As políticas educacionais que visam resolver os dilemas sociais sur- sociedade? Essas questões implicam algo importante, creio, pois
gidos do mal-funcionamento bâsico das instituições econômicas, so- essa relação não é uma via de mão-única. A educação é aqui tanto .
ciais e políticas da sociedade não são receptivas à solução através da
referma e da política educacional. A ação exeqüível pelo mais bene-
uma "causa" como um "efeito". A escola não é um espelho passivo,
volente reformador educacional e pelo especialista político é limitada mas uma força ativa, uma força que também serve para legitimar as
pela falta de um eleitorado em favor da mudança e pela esmagadora ideologias e as formas econômicas e sociais tão estreitamente ligadas
tendência do processo educacional na direção da reprodução social da a ela. 50 E é exatamente essa ação que precisa ser desvendada.
sociedade politicamente organizada. E existirâ um resultado danoso De costume, não se formulam questões desse tipo em currí-
em nossos esforços se as tentativas de mudar a sociedade procurarem culo, é claro. No entanto, precisamos lembrar que essas preocu-
desviar a atenção do centro do problema, criando e legitimando a pações não são totalmente novas no discurso que cerca a tradição
ideologia de que as escolas podem ser usadas para resolver problemas norte-americana. De fato, não devemos ver esse tipo de estudo do
que não se originaram no setor educacional. currículo de tendência sociológica e econômica como sendo uma
tentativa de realizar uma "reconceituação" do campo do currículo,
Ainda mais uma vez, precisamos ser prudentes com esse tipo embora esse nome tenha sido aplicado a algumas análises do poder e
de abordagem, pois pode nos levar de volta a ver as escolas nova- do conhecimento .escolar. 51 As questões que orientam este trabalho
mente como caixas negras. E isto é o que recusamos desde. o prin- precisam, antes, ser vistas como profundamente fundadas na área
curricular, o que podemos ter infelizmente esquecido, dada a natu-
cípio.
reza a-histórica da educação.
Precisamos apenas recordar o que estimulou os primeiros
reconstrucionistas sociais em educação (Counts, Smith-Stanley-Sho-
Algumas questões conclusivas res, e outros) a começar a perceber que um dos temas que serviam

Quero encerrar aqui, sabendo muito bem que ainda muito (49) Basil Bernstein fez algumas incursões intrigantes nesta ãrea em seus
mais poderia e precisa ser dito sobre os tópicos que levantei. Por "Aspects of the Relations Between Education and Production". In: Bernstein, op. cito
exemplo, a fim de prosseguir com a relação entre o conhecimento Ver também Nicos Poulantzas. Classes in Contemporary Capitalismo London, New
de alto nível e uma ordem social "externa", seria preciso investigar a Left Books, 1975; e Burton Bledstein. The Culture of Professionalism. New York,
história do surgimento concomitante de novas classes de funcioná- Norton, 1976.
(50) Veja·se o interessante ensaio de John W. Meyer, op. cit .. Também é de
rios públicos e o aparecimento de novos tipos de conhecimento "ile- alguma ajuda aqui a tentativa de Randall Collins de articular uma teoria dos
mercados culturais, em "Some Comparative Principies of Educational Stratifica-
tion". É, porém, um tanto confusa do ponto de vista conceitual. Veja-se minha res-
(48) Henry M. Levin. "A Radical Critique of Educational Policy". Stanford, posta a ele em Harvard Educational Review, XLVII (November 1977), 601-2.
Califórnia, Occa~ional Paper of, the Stanford University Evaluation Consortium, (51) William Pinar (ed.). Curriculum Theorizing: The Reconceptualists. Ber-
March, 1977, mimeo., p. 26-7. keley, McCutchan, 1975.
68 MICHAEL W. APPLE

no passado de o.rientação para trabalhos sobre currículo foi o papel .


que as escolas exercem na reprodução de uma sociedade estrati-
ficada. Embora esses autores possam ter sido muito otimistas ao ver
as escolas como poderosos agentes de correção desse desequilíbrio, e
embora vários deles finalmente tenham abandonado modificações
estruturais de grande escala em nossa sociedade politicamente orga-
nizada,52 o princípio de se examinarem as ligações entre as institui-
ções culturais e econômicas é legado valioso de nossa tradição. É 3
hora de torná-lo também nosso presente e nosso futuro.
A economia e o controle
na vida escolar cotidiana
(em colaboração com Nartcy King)

Como vimos no último capitulo, as escolas parecem contribuir


para a desigualdade na medida em que são tacitamente organizadas
para distribuir diferencialmente tipos específicos de conhecimento.
Isto está em parte relacionado tanto ao papel da escola de maxi-
mizar a produção de "mercadorias" culturais técnicas quanto à
função classificatória ou selecionadora das mesmas em alocar pes-
soas para as posições "exigidas" pelo setor econômico da sociedade.
No entanto, como estamos passando a entender mais claramente,
as escolas também desempenham um importante papel na distri-
buição de tipos de elementos normativos e de tendências necessários
para fazer essa desigualdade mostrar-se natural. Ensinam um currí-
culo oculto que parece singularmente adequado a manter a hege-
monia ideológica da maioria das classes que detêm o poder nessa
sociedade. Como colocado no Capitulo 2 pelos te6ricos da reprodu-
ção, a estabilidade ideol6gica e social baseia-se em parte na interio-
rização, bem no fundo de nossa mente, dos princípios e das regras
do senso comum que dirigem a ordem social existente. Sem dúvida,
essa saturação ideol6gica será mais eficaz se feita nos primeiros anos
de vida. Nas escolas, isto significa que, quanto mais cedo, melhor,
basicamente desde o primeiro dia, no jardim de 4tfância. Os prin-
cípios e regras que são transmitidos darão sentido às situações dos
(52) Walter Feinberg. Reason and Rhetoric: The lntellectual Foundations of estudantes (as escolas são, de fato, organizadas de maneira a manter
Twentieth Century Liberal Educational Policy. New York, John Wiley, 1975. essas definições) e ao mesino tempo servirão aos interesses econô-
70 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 71

micos. Estarão presentes, pois, ambos os elementos de uma ideolo- Conquanto não·haja dúvidas de que a apatia de fato exista não
gia efetiva. apenas na opinião de Charles Silberman, não se constitui num
Passemos a observar isto com mais atenção em primeiro lugar instrumento descritivo adequado - não mais que a venalidade ou a
sepultando alguns dos argumentos dos críticos mais românticos da indiferença - para explicar por que as escolas são tão contrárias à
escolarização de que essas configurações ideológicas são transmi- mudança ou por que ensinam o que ensinam. 2 Tampouco é .um
tidas porque os professores não se importam o suficiente. Então instrumento conceitual adequado para pôr às claras o que, preCIsa-
poderemos ver quais normas e tendências economicamente arraiga- mente, se ensina nas escolas ou por que alguns dos significados
das são realmente transmitidas em instituições de preservação e sociais e não outros são utilizados na organização da vida escolar.
distribuição cultural como são as escolas. Ainda, não são apenas os críticos da escola que apresentam
uma análise muito simples do seu significado social e econômico.
Com muita freqüência,o significado social da experiência escolar
Escolarização e capital cultural tem sido aceito como não problemático pelos sociólogos da educa-
ção, ou apenas como problemas de manipulação pelos especialistas
Um dos argumentos menos atraentes nos últimos anos tem em currículo e 0tUr0s educadores com tendência a uma programa-
sido o de que as escolas são relativamente desinteressantes, enfa- ção rígida de conteúdos. A área do currículo, mais do que. outras
donhas ou o que seja, em virtude da apatia. 1 Argumenta-se que as áreas educacionais, tem sido dominada por uma perspectiva que
escolas dissimuladamente ensinam tudo aquilo sobre o que os críti- poderia melhor chamar-se "tecnológica", na medida em que o prin-
cos humanistas tanto gostam de escrever e falar - consenso "com- cipal interesse que orienta seu trabalho implica encontrar o melhor
portamental", objetivos e normas antes institucionais que pessoais, conjunto de meios para se alcançar objetivos educacionais pré-esco-
alienação do produto do trabalho, etc. - e que assim elas procedem Ihidos. 3 Como sugeri, contra essa base relativamente reformista e
porque os professores, administradores e outros educadores real- não crítica, vários sociólogos e estudiosos do currículo, fortemente
mente não sabem o que estão fazendo. influenciados pela sociologia do conhecimento tanto nas suas va-
No entanto, uma perspectiva como essa é, na melhor das riantes marxistas (ou neomarxistas) quanto fenomenológicas, co-
hlpóteses, enganosa. Em primeiro lugar, é completamente a-histó- meçaram a questionar a falta de atenção para com a relação entre o
rica. Ignora o fato de que as escolas foram em parte projetadas para conhecimento escolar e os fenômenos extra-escolares. Vimos que um
ensinar exatamente essas coisas. O currículo oculto, o ensino tácito ponto de partida fundamental para essas investigações f?i muito
de normas e expectativas sociais e econômicas, não é tão oculto ou bem articulado por Michael Young, ao observar que eXIste uma
"descuidado" como acreditam muitos educadores. Em segundo lu- "relação dialética entre o acesso ao poder e a oportunidade para
gar, ignora a tarefa básica desempenhada pelas escolas enq,uanto o legitimar algumas categorias dominantes, e o processo pelo q~al a
conjunto fundamental de instituições em sociedades industriais que acessibilidade a essas categorias a alguns grupos lhes permIte a
certifica a competência do adulto. Afasta as escolas de seu lugar garantia de poder e controle sobre outros". 4 Fundamentalmente,
numa relação maior e muito mais poderosa de instituições econô- assim como existe uma distribuição desigual do capital econômico
micas e políticas que lhes conferem o significado. Ou seja, exata-
mente como em seu papel de maximizar a produção de conheci-
mento técnico, as escolas parecem, de modo geral, fazer o que se (2) Herbert Gintis e Samuel Bowles. "The Contradictions of Liberal Educa-
espera que façam, ao menos em termos de fornecer tendências e tional Reform". Work, Technology, and Education. Walter Feinberg e Henry Rose-
propensões "funcionais" na vida futura numa ordem social e econô- mont, Jr. (eds.). Urbana, University of Illinois Press, 1975, p. 109.
mica complexa e estratificada. (3) Encontrará exame mais aprofundado no Capitulo 6 o fato de que isto não
é simplesmente um interesse "intelectual", mas incorpora compromissos sociais e
ideológicos.
(1) Charles Silbermann. Crisis in the Classroom. New York, Random House, (4) Michael F. D. Young. "Knowledge and Control". Knowledge and Con-
1970. trol. Michael F. D. Young(ed.). London, Collier-Macmillan, 1971, p. 8.
72 MICHAEL W. APPLE iDEOLOGIA E CURRlcULO 73

na sociedad~, há também uma semelhante distribuição do capital são desmascarados se nos guiarmos apenas por reformas gradati-
cultural. 5 Em sociedades industriais, as escolas têm importância vas. 6 Como observado por Kallos, qualquer sistema educacional
singular como distribuidores desse capital cultural, e desempenham possui "funções" tanto latentes quanto manifestas. Estas precisam
um papel fundamental ao dar legitimidade às categorias e formas de ser caracterizadas não apenas em termos educacionais (ou de apren-
conhecimento. O próprio fato de algumas tradições e o "conteúdo" dizado), porém, mais fundamentalmente, em termos político-econô-
normativo serem constniídos como conhecimento escolar é prova micos. Em resumo, as discussões acerca da qualidade de vida edu-
suficiente de sua suposta legitimidade. cacional são relativamente desprovidas de sentido se não se reco-
Quero demonstrar aqui que o problema do conhecimento nhecem as "funções especificas do sistema educacional" . 7
• educacional, do que se ensina nas escolas, tem de ser considerado Se estiver correta grande parte da literatura sobre o que taci-
como -uma forma de distribuição mais ampla de bens e serviços tamente ensinam as escolas, então as funções especificas poderão ser
numa sociedade. Não se trata apenas de um problema analítico (o mais econômicas qu.e intelectuais.
que deve ser construído como conhecimento?), nem simplesmente Neste capitulo, gostaria de enfocar alguns aspectos do pro-
de um problema técnico (como devemos organizar e armazenar blema da escolarização e do significado social e econômico. Deverei
conhecimento de modo que as crianças possam ter acesso a ele e ver as escolas como instituições que incorporam tradições coletivas
"dominá-lo"?), nem, tampouco, de um problema puramente psico- que cumprem determinadas finalidades humanas que, por sua vez,
lógico (como fazer para que os estudantes aprendam x?). Trata-se, são os produtos de ideologias sociais e econômicas identificáveis.
antes, de que o estudo do conhecimento educacional é um estudo em Assim, nosso ponto de partida poderia ser melhor expresso com a
ideologia, a investigação do que é considerado conhecimento legi- questão: "De quem são os significados reunidos e distribuídos atra-
timo (seja conhecimento do tipo lógico do "quê", "como" ou vés dos currículos declarados e ocultos nas escolas?". Ou seja, como
."para") por grupos e classes sociais específicos, em instituições Marx apreciava dizer, a realidade não se achega com um rótulo. O
'específicas, em momentos históricos específicos. Ê, mais ainda, uma currículo nas escolas responde aos recursos ideológicos e culturais
forma de pesquisa de orientação crítica, na medida em que escolhe provenientes de alguma parte e os representa. Nem todas as visões
enfocar como esse conhecimento, enquanto distribuído nas escolas, de grupos são representadas nem se respondem a todos os signifi-
pode contribuir para um desenvolvimento cognitivo e de tendências cados dos grupos. Como, então, as escolas atuam para distribuir
~e fortalece ou reforça os programas institucionais existentes (e em esse capital cultural? A quem pertence a realidade que "irrompe"
geral problemáticos) na sociedade. Em termos mais claros, o conhe- nos corredores e nas salas de aula das escolas norte-americanas?
cimento manifesto e oculto encontrado nos equipamentos escolares, Deverei enfocar· as duas áreas. Primeiro, apresentarei uma
e os princípios de seleção, organização e avaliação desse conheci- descrição (que será consideravelmente aprofundada no Capítulo 4)
mento, são seleções, dirigidas pelo valor, de um universo muito mais do processo histórico através do qual alguns significados sociais
amplo de conhecimento possivel e princípios de seleção. Portanto, tornaram-se particularmente significados escolares e têm assim o
não devem ser aceitos como dados, mas problematizados - ligados, peso de décadas de aceitação por trás de si. Em seguida apresentarei
se assim se quiser chamar - de modo que possam ser rigorosamente provas empíricas de um estudo de experiência em jardim da infân-
examinadas as ideologias sociais e econômicas e os significados cia, para documentar a força e o poder de permanência desses
padronizados que se encop.tram por trás deles. O significado latente significados sociais. Finalmente, deverei questionar se as reformas
e a configuração que está por trás da aceitabilidade fundada no
senso comum de uma posição podem ser atributos mais importan-
tes. E esses significados e relações institucionais ocultos raramente (6) Quanto à necessidade de se ver relacionalmente as instituições, consulte-se
Ollman. Alienation: Marx's Conceptions of Man in Capitalist Society. New York,
Cambridge University Press, 1971.
(7) Daniel Kallos. "Educational Phenomena and Educational Research".
(5) John Kennett. "The Sociology of Pierre Bourdieu". Educational Review, Relatório do Institute of Education, número 54, University of Lund, Lund, Suécia,
XXV (June 1973), 238. mimeo., p. 7.
74 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 7S

graduais, para a eliminação desses significados ideológicos, quer de Se temos de ser honestos com nós mesmos, devemos reconhe-
orientação humanista ou de outras tendências, podem obter êxito cer que a área do currículo tem suas orig(!!l~ n~j:~!!(!!l:9_,QQ_,~!1lL<?!~_
sozinhas. social. Seu paradigma intelectual tomou forma pela primeira vez no
A tarefa de lidar com conjuntos de significados nas escolas li1Iciodeste século e tornou-se um conjunto identiliCáverde procedi:'
tradicionalmente caiu sobre os ombros do especialista em currículo. mentos para seleç-ão 'é-órgaillZ'a'Ção do-cõiihecfíüento'escõrãi:':'prõ:
Historicamente, no entanto, seu interesse pelos significados nas es- cedimentos aserem'--transrnTtidos'i'í;rôfessores e 'a'outros educa-
colas tem estado vinculado a noções diversas de controle social. Isto dores. Naquela época, o interesse fundamental na área do currículo
não nos deveria surpreender. Deveria ser evidente, embora em geral era o de controle social. Parte desse interesse é compreensível.
não o seja, que questões a respeito de significados em instituições Muitas das importantes figuras que influenciaram a área do currí-
sociais tendem a se tornar questões de controle. 8 Ou seja, as formas culo (como Charles C. Peters, Ross Finney e, especialmente, David
de conhecimento (tanto os tipos declarado quanto, oculto) encon- Snedden) tinham interesses que transpunham tanto a área da socio-
tradas nos equipamentos escolares implicam noções de poder e de logia educacional quanto os problemas mais gerais daquilo que real,
recursos e controle econômico. A própria escolha do conhecimento mente deveria acontecer nas escolas. A idéia de controle social
escolar, o ato de projetar contornos escolares, embora possam ser naquela época adquiria cada vez mais importância na American
feitos de modo não consciente, freqüentemente se. baseiam em pres- Sociological Society e era uma idéia que parecia conquistar a ima-
suposições ideológicas e econômicas que fornecem as regras do senso ginação e a energia de muitos membros da intelligentsia nacional,
comum para o pensamento e a ação dos educadores. Talvez as assim como de poderosos segmentos da comunidade-comercial. Por
ligações entre significado e controle nas escolas se tornarão mais conseguinte, não é difícil ver, como também conquistou aquelas
claras se refletirmos sobre um registro relativamente resumido da figuras generalistas, que eram tanto sociólogos como trabalhavam
história do currículo. com currículo. 11
Mas um interesse pela escolarização como mecanismo de con-
trole social não foi tomado de empréstimo apenas à sociologia.
Slgnlflcado e controle na história do currículo ps primeiros l!: se chamarem ~pecialista~,_~~~!!giculo_i!!.()E!~EL
como Franklin Bobbitt e W. W. Charters) estavam preocupados de
O sociólogo britânico Bill Williamson demonstra que os ho- maneira vital com o controle sOCiartaíiib'ém por rai&s~íãeõlogiêii's.
mens e as mulheres "têm de lutar com as formas institucionais e Esses homensestaVâm fortementeinfluencia.rlos'pelomovimentode
ideológicas dos primeiros tempos como os limites básicos ao que Administração Científica e pelo trabalho dos especialistas em quan-
podem realizar". 9 Se essa noção deve ser levada a sério, então é tificação social; 12 eram também orientados pela crença ?e que o
preciso entender o que se fornece e se ensina nas escolas em termos movimento popular de eugenia era uma força social "progressista".
históricos. Como observa Williamson, "As primeiras atitudes edu- Assim, trouxeram o controle social para o centro do campo, cuja
cacionais de grupos dominantes na sociedade ainda possuem in-
1 fluência histórica e são exemplificadas até mesmo nos tijolos e
) no cimento dos próprios prédios das escolas" . 10
(11) Barry Franklin. "The Curriculum Field and the Problem of Social Con-
trol, 1918-1938: A Study in Criticai Theory". Dissertação de doutoramento não
publicada, University of Wisconsin, Madison, 1974, p. 2-3.
(8) Dennis Warwick. "IcÍeologies, Integratlon and Conflicts of Meaning". (12) lbid., p. 4-5. Veja também Steven Selden. "Conservative Ideologies and
Educability, Schools and ldeology. Michael Flude e John Ahier (eds.). London, Curriculum". Educational Theory, XXVII (Summer 1977), 205-22. Dever-se-ia ob-
Halstead Press, 1974, p. 94. Veja também Michael W. Apple, "Curriculum as servar aqui que a própria Administração Científica não foi necessariamente uma
Ideological Selection". Comparative Education Review, XX (June 1976), 209-15. tecnologia neutra para criar instituições mais eficientes. Foi desenvolvida como um
(9) Bill Williamson. "Continuities and Discontinuities in the Sociology of mecanismo para a posterior divisão e controle do trabalho. Isto se acha em Harry
Education". l~: Flude e Ahier, op. cit., p. 10-11. Braverman. Labor and Monopoly Capital: The Degradation of Work in the Twen-
(10) lbid. tieth Century, New York, ~onthly Review Press, 1974.
76 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 77

tarefa era desenvolver critérios de seleção daqueles significados com micas. 14 Como demonstra a análise de Feinberg das origens ideoló-
os quais os estudantes entrariam em contato em .nossas escolas. gicas da politica educacional liberal, mesmo nesse século muitas das
Isto não significa dizer, é claro, que o controle social em si reformas "propostas", tanto nas escolas como em outras áreas,
mesmo seja Sempre indesejável. É quase impossível intuir a vida atenderam latentemente aos interesses sociais conservadores de esta-
social sem algum elemento de controle, ao menos em virtude do fato bilidade. e estratificação social. IS
de as instituições, qua instituições, tenderem a responder às regula- A discussão apresentada até aqui não se destina a desmas-
ridades de interação humana. Pelo contrário, houve historicamente carar os feitos de educadores e reformadores sociais. Pelo contrário,
um conjunto especifico de suposições - de regras do senso comum é uma tentativa de colocar o debate corrente relativo à falta de
- a respeito dos significados e do controle escolar que influenciou humanitarismo nas escolas, o ensino tácito de normas e valores
fortemente os primeiros que trabalharam com currículo. Eles não sociais, e assim por diante, dentro de um contexto histórico mais
apenas admitiram que a sociedade organizada deve manter-se atra" amplo. Sem um tal contexto, não se pode entender completamente a
vés da preservação de algumas de suas sedimentadas formas de relação entre o que as escolas realmente fazem e uma economia
interação e significado (um "fraco" sentido de controle social, muito industrialmente desenvolvida como a nossa. O melhor exemplo
geral e totalmente compreensível). Tiveram também, perfeitamente desse contexto pode ser encontrado no processo de escolarização em
engastado em sua perspectiva ideológica, um "forte" sentido de
controle. Aqui, a educação em geral, e os significados cotidianos dos
currículos nas escolas em particular, eram vistos como elementos
essenciais à preservação dos privilégios sociais, dos interesses e do
conhecimento existentes, que eram as prerrogativas de uma parte da
geral e nos significados curriculares em particular. Por trás de boa
parte dessa discussão acerca do papel da educação formal nos
Estados Unidos durante o século XIX encontra-se uma diversidade
de interesses pela padronização dos "ambientes" educacionais, pelo
ensino, através da interação escolar cotidiana, de valores morais,
I
\ população, mantidas às custas de grupos menos poderosos.!3 Como normativos e de tendências, e pela adequação ao sistema econômico.
veremos consideravelmente em mais pormenores no Capítulo 4, isto Hoje esses interesses recebem o nome de "çurrículo oculto", dado
em geral tomou a forma de uma tentativa de assegurar o controle por Philip Jackson!6 e outros. Mas é a própria questão de sua
especializado e cientifico na sociedade, de eliminar ou "sociabilizar" ocultação que pode nos ajudar a descobrir a relação histórica entre o
grupos raciais ou étnicos indesejados ou suas características, ou de que se ensina nas escolas e o contexto mais amplo das instituições
produzir um grupo de cidadãos economicamente eficientes, a fim que a cercam.
de, como expressa C. C. Peters, çliminuir o desajustamento de Deveríamos estar consCientes do que, historicamente, o currí-
~abalhadoresl!.~~.I!.!!1j>resas. Esse último interesse, o substrato eco:- culo oculto não era absolutamente oculto, mas constituiu, ao con-
nômico da vida escolar cotidiana, adquire importância especial trário, a função manifesta das escolas durante grande parte de seu
quando; mais adiante neste capítulo, virmos o que as escolas ensi- . curso como instituições. Durante o século XIX, a progressiva diver-
nam a respeito de trabalho e lazer. f.; sidade de atributos e estruturas politicas, sociais e culturais "impul-
Naturalmente, o controle social como idéia ou interesse não se sionaram os educadores a recuperar com renovado vigor a lingua-
originou com as primeiras preocupações de utilizar o conhecimento gem do controle e homogeneização social que dominara a retórica
escolar para fins sociais conservadores. Q controle social era um educacional desde o inicio do período colonial" Y A medida que o
objetivo implicito de muitos programas derefonnas sociaTse--p~li:'
ticas desenvolvidos durante o século XIX tanto por meios estatais
'\
quanto particulares. Era sua intenção, também, que a ordem, a (14) Ibid., p. 317.
( estabilidade e o imperativo do crescimento industrial'pudessem ser (15) Walter Feinberg. Reason and Rhetoric: The Intellectual Foundations of
Twentieth Century Liberal Educational Policy. New York, John Wiley, 1975 .
. \ mantidos diante de uma diversidade de mudanças sociais e econô- (16) Philip Jackson. Life in Classrooms. New York, Holt, Rinehart & Wins-
ton, 1968.
(17) Elizabeth Vallance. "Hiding the Hidden Curriculum". Curriculum
(13) Ibid. Theory Network, IV (Fali 1973174), 15.
78 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 79

s6culo avançava, a retórica da reforma - de se justificar a posição sistema econômico, foi construído dentro da verdadeira estrutura da
ideológica contra outros grupos de interesse - não centralizou seu educação formal. Isto não significa que não houve movimentos

C
c) enfoque apenas na necessidade básica de homogeneidade social.
Não bastava usar as escolas como um meio básico de inculcar
valores e de criar uma "comunidade americana". As crescentes
educacionais significativos voltados, digamos, para a auto-realiza-
ção. Mas, antes, por trás dessas escolhas preferenciais quanto às
necessidades do indivíduo, havia um conjunto de expectativas mais
.' pressões de modernização e industrialização também criaram algu- poderoso em torno da escolarização que proporcionava a estrutura
mas expectativas por eficiência e ajustamento ao sistema econômico constitutiva da experiência escolar. Como diversos economistas
junto a algumas classes e a uma elite industrial. Como expresso por observaram recentemente, a "função latente" da vida escolar máis
Vallanee, "a uma..@ciabilização estrita acrescentou-se o enfoque na importante do ponto de vista econômico parece ser a seleção e a
~~iciência organizacional". Portanto, as reformas, c·om maior efeito produção de atributos da personalidade e significados normativos
na organização escolar, e fundamentalmente nos procedimentos e que permitem que se tenha uma suposta chance no sistema econô-
princípios que dirigiam a vida nas salas de aula, eram dominadas mico. 20 Como vimos, isto está estritamente vinculado, também, ao
por interesses na produção, ajustados ao sistema econômico, e em papel cultural da escola de maximizar a produção de conhecimento
habilidades burocráticas, assim como pela linguagem que exprime técnico. Desde que a escola é a única instituição importante que
esses interesses. Nesse processo, as razões subjacentes para a re- figura entre a família e o mercado de trabalho, não é estranho que,
forma lentamente passaram de uma ativa preocupação com o con- tanto histórica como presentemente, sejam distribuídos nas escolas
senso de valores a uma adequação ao Sistema econômico. 18 Mas isso alguns significados sociais de valor diferencial.
sÓ~põder1ã~oc'õrrer"seõ"perlodo anterior, com sua busca de um Mas o que são esses significados sociais? Como são organi-
caráter nacional padronizado, em grande parte construído através zados e dispostos na vida escolar cotidiana? É para essas questões
das caracterlsticas das escolas, tivesse sido aceito e considerado que nos voltamos agora.
como bem-sucedido. Desse modo, os contornos institucionais das
escolas, com suas formas cotidianas de interação relativamente
padronizadas, forneceram os mecanismos pelos quais poderia ser A ideologia e o currículo em uso
"transmitido" um consenso normativo. E nesses contornos gerais,
nessas regularidades "comportamentais" da instituição, caso assim
se queira chamar, firmou-se um conjunto ideológico de regras do Os principais interesses da seção anterior com a relação entre
,!enso comum ~seleçã~o ~!:l!rl~}ll~~_.p_I!:~ª()rg~!!lgª.t:JL~~~.-. ideologia e conhecimento escolar, entre significados e controle, ten-
riência escolar com base na ~!§~~~L.!!.<l.._!l_deqllªção ao sistema dem a ser muito vagos, a menos que se possa vê-los como forças nas
econômico e nas exigências burocráticas. Aquele tornou-se a estru~ atividades dos burocratas das escolas e dos estudantes, à medida
~r~~p'~-ofurida~ o primeiro -;;iirrl~7Io;culto, que envolveu a este que se ocupam de suas vidas nas salas de aula. Como observado
último. Uma vez que o currlculo oculto tornou-se oculto, quando se pelos pesquisadores do curnculo oculto e por outros, os modos
j tornou estabelecido um contexto de aprendizado uniforme e padro- concretos pelos quais se distribui o conhecimento nas salas de aula e
~ <nizado, e quando a seleção e o controle social foram-'consideradõs as práticas comuns de professores e estudantes podem esclarecer as
como d~dos na escolarização, então aí pÔde-se-air-ifénçio-asneces-
sidades do indivíduo ou a õútros interesses mais "etéreos". 19
Portanto, historicamente, um núcleo de significados fundados
·no senso comum, que conjugava o consenso normativo e o ajuste ao (20) Gintis e Bowles, op. cit., p. 133. Esses significados normativos e atri-
butos da personalidade são distribuídos desigualitariamente a diferentes "tipos" de
estudantes, em geral por classe social ou expectativa profissional. Nem todos os
estudantes adquirem os mesmos elementos de tendências nem são os mesmos os
(18) Ibid. significados a eles atribuídos pelo distribuidor de capital cultural. Ver Gintis e
(19) Ibid., p.18'19. Bowles, op. cito , p. 136.
80 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 81

conexões entre a vida escolar e as estruturas de ideologia, poder e sociais e econômicas circundantes quanto nele se sustentam - são
recursos econômicos de que as escolas fazem parte. 21 mantidas e reproduzidas pelas práticas comuns de ensino e avalia-
Exatamente como existe uma distribuição social do capital ção nas salas de aula. 25
cultural na sociedade, também se da uma distribuição social do, Deverei concentrar-me aqui sobre o j~rdim de infância porque

~
conhecimento nas salas de aula. Por exemplo, diferentes "tipos" de este corresponde a um momento deci~ivo no processopelõ-qmii õs-
estudantes recebem diferentes "tipos" de conhecimento. Isto é bem estudantes se tornam aptos nas r~as, normaS;-vâTõres e tendências
documentado por Keddie em seu est:udo do conhecimento que os "necessários" 1 ocupação clefunções na vida institudonal como ela
agora se apresenta. Aprender o papel de estudante é uma atividade
professores possuem de seus alunos e do conhecimento curricular I complexa, que requer tempo e contínua interação com as expec-
que então lhes é transmitido. 22 No entanto, embora a distribuição
diferencial do conhecimento em sala de aula exista de fato, e' tativas institucionais. Dando enfoque ao modo como isto ocorre e ao
embora esteja estreitamente ligada ao processo de rotulação social conteúdo das tendências que constituem, tanto manifesta como
que se empreende nas escolas 23 (algo que documentarei com mais latentemente, parte do conhecimento no jardim de infância, pode-
clareza no Capítulo 7), tem menos importância para minha análise mos passar a esclarecer o conhecimento de base que as crianças
que aquilo que se poderia chamar de a "estrutura profunda" da empregam como princípios de organização para grande parte do
experiência escolar. Que significados subjacentes são 'negociados e resto de sua carreira escolar.
transmitidos nas escolas por trás dos conteúdos reais do curriculo? Em resumo, as definições sociais interiorizadas no início da '.
O que se passa quando o conhecimento é filtrado através dos profes- vida escolar fornecem as regras constitutivas para a vida futura nas '>.;L,
sores? Através de quais categorias de normalidade e desvio esse salas de aula. Assim, os elementos que precisam ser examinados são / \
conhecimento é filtrado? Qual é a estrutura básica e organizadora o que se constrói como trabalho ou lazer, "conhecimento escolar"
do conhecimento normativo e conceitual que os estudantes real- ou apenas "meu conhecimento", normalidade ou desvio. Como ve-
mente recebem? Em resumo, qual é o currículo em uso? É apenas remos, o uso do elogio, as regras de acesso a materiais e o controle
atingindo essa estrutura profunda que podemos passar a demons- do tempo e das emoções, tudo isso resulta em contribuições impor-
trar como as normas sociais, as instituições e as regras ideológicas tantes ao ensino de significados sociais na escola. Mas, como tam-
são continuamente mantidas e mediadas pela interação diária dos bém veremos, são os significados atribuídos à categoria de trabalho
atores comuns, na medida em que exercem suas práticas normais. 24 que elucidam com mais clareza o lugar possível das escolas na com-
Isto é verdadeiro especialmente para as salas de aula. As definições plexa relação das instituições econômicas e sociais que nos circun~
sociais sobre o conhecimento escolar - definições que tanto estão dam a todos.
dialeticamente relacionadas ao contexto mais amplo das instituições A experiência do jardim de infância serve de base para os anos
de escolarização seguintes. As crianças que freqüentaram o jardim
de infância tendem a demonstrar uma superioridade geral de desem-
(21) Veja-se, por exemplo, Michael W. Apple. "Ivan Illich and Deschooling penho nas séries do curso primário quando comparadas àquelas que
Society: The Politics of Slogan Systems". Social Forces and Schooling. Nobuo Shi- não freqüentaram o jardim de infância. No entanto, não deram em
mahara e Adam Scrupski (eds.). New York, David McKay, 1975, p. 337-60; e Mi- resultados conclusivos as tentativas de determinar exatamente quais
chael F. D. Young. "An Approach to the Study of Curricula as Socially Organized as técnicas de ensino e as experiências de aprendizado que contri-
Knowledge". In: Young. KnowledgeandControl, op. cit., p.19·46. buem mais diretamente para o "desenvolvimento intelectual e emo-
(22) Nell Keddie. "Classroom Knowledge". In: Michael F. D. Young. Know- cional" das crianças no jardim de infância. O treinamento do jardim
ledge and Control, op. cit., p. 133-60.
(23) Ver Johll Eggleston. The Sociology 01 the School Curriculum. London,
Routledge & Kegan Paul, 1977.
• ' (24) Este é, naturalmente, um princípio fundamental dos estudos etnometo-
dológicos. Ver Petet McHugh. Defining the Situation. Indianãpolis, Bobbs·Merrill, (25) Para maiores explicações a respeito desse aspecto, ver Basil Bernstein.
196,8; Roy Turner (ed.). Ethnomethodology. Baltimore, Penguins, 1974; e Aaron "On the Classification and Framing of Educational Knowledge". In: Michael F. D.
Young (ed.). Knowledge anâ Control, op. cit., p. 47-69.
Cicoure!. Cognitive Sociology. New York, Free Press, 1974.
82 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 83

de infância parece exercer sua influência mais poderosa e perma- cados dos objetos e acontecimentos na sala de aula não lhes são
nente nas atitudes e no comportamento das crianças aclimatando-as intrínsecos, mas sim formados através da interação social. Esses
à sala de aula. As crianças são iniciadas em seus papéis como alunos significados, como outros aspectos da definição da situação, podem
da escola primária em salas do jardim de infância; é a compreensão variar por um período. Em um determinado momento, porém, eles
e o domínio desse papel que é responsável pelo maior êxito na escola se tornam estáveis e provavelmente não devem ser rediscutidos, a
primária de crianças treinadas no jardim de infância. menos que o fluxo de acontecimentos na sala de aula deixe de ser
A sociabilização nas classes do jardim de infância inclui o sistemático.
aprendizado de normas e definições das interações sociais. Ê o Os significados dos objetos e acontecimentos tornam-se claros
desenvolvimento contínuo de uma definição ativa da situação pelos para as crianças à medida que participam do contorno social. O uso
participantes. De modo a atuar adequadamente numa situação dos materiais, a natureza da autoridade, a qualidade de relações
social, os agentes precisam atingir uma compreensão comum dos pessoais, as observações espontâneas, assim como outros aspectos
significados, limitações e potencial que os equipamentos fornecem da vida cotidiana na sala de aula, todos contribuem para a progres-
para sua interação. Durante as primeiras poucas semanas do ano siva conscientização da criança de seu papel na sala de aula e para a
letivo, as crianças e o professor criam uma definição comum da sua compreensão do contorno social. Por conseguinte, corpo de-
situação a partir da contínua interação na sala de aula. Quando um monstrado no Capítulo 1, para se compreender a realidade social da
conjunto comum de significados sociais é aceito, as atividades na escolarização, é necessário estudá-la no contorno real da sala de
sala de aula decorrerão suavemente. Em geral, esses significados aula. Cada conceito, papel e objeto é uma criação social ligada à
comuns permanecem relativamente estáveis, a menos que o fluxo situação em que é produzido. Os significados da interação na sala de
de acontecimentos nesse contorno seja assistemático. aula não podem ser supostos, precisam ser àescobertos. A abstração
Deveríamos entender que, exatamente como na discussão an- desses significados, junto com as generalizações e intuições deles
terior da metáfora da distribuição cultural, a sociabilização também extraídas, pode ser aplicável a outros contextos, mas as primeiras
não é um processo em um só sentido. 26 Até certo ponto, as crianças descrições, compreensões e interpretações do pesquisador exigem

<I numa sala de aula s9çia'bi!~~~ o professor, assim como elas pró-
prias tornam-se sociabilizadas. No primeiro dia de aula numa classe
. de jardim de infância, o professor possui um conjunto de regras
que os fenômenos sociais sejam encontrados onde são produzidos,
ou seja, na sala de aula. 27
A observação e a entrevista dos participantes em uma deter-
comuns mais altamente organizado do que as crianças. De vez que minada sala de aula de um jardim de infância público, considerado
também ele detém a maior parte do poder de controle sobre os por muitos burocratas de escolas como modelar, revelaram que os
acontecimentos eos recursos na sala de aula, é o seu conjunto de significados sociais dos acontecimentos e materiais foram estabele-
significados que é dominante. Ê claro, mesmo os professores não são cidos notavelmente no início do ano escolar. Como na maioria das
livres para definir a situação na sala de aula da forma que esco- salas de aula, a sociabilização das crianças era uma prioridade pa-
lherem. Como vimos um pouco antes neste capítulo, a escola é uma tente durante ·as primeiras semanas do período escolar. As quatro
instituição bem estabelecida, e talvez nem o professor nem os alunos principais habilidades que a professora esperava que as crianças
..//
! possam perceber mais do que formas marginais de desviar-se signi-
~ \ ficativamente das regras e expectativas baseadas no senso comum
aprendessem durante essas semanas introdutórias eram: comparti-

\ que distínguem as escolas de outras instituições.


A pluraljdade dos significados numa sala de jardim de infân- (27) Pode-se encontrar uma excelente anãlise dessa tradição "etnogrãfica" em
cia é uma fase decisiva na sociabilização das crianças. Os signifi- Philip E. D. Robinson. "An Ethnography of Class rooms". Contemporary Research
in the Sociology of Education, Iohn Eggleston (ed.). London, Methuen, 1974, p.
251-66. Para uma discussão mais aprofundada dessas questões metodológicas e uma
(26) Robert MacKay. "Conceptions of Children and Models of Socia1ization" . anãlise dos dados em que se baseia esta seção do capitulo, ver Nancy R. King. "The
Childhood and Socialization. Hans Peter Drietzel (ed.). New York, Macmillan, 1973, Hidden Curriculum and the Socialization of Kindergarten Children". Tese de Ph.D.
p.27-43 .. não publicada, University of Wisconsin, 1976.
84 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 8S

lhar, ouvir, dar início às atividades e seguir a rotina da classe. Por- A professora deixou claro às crianças que os bons alunos do
tanto, a declaração de seus objetivos para as primeiras experiências jardim de infância eram quietos e cooperavam. Uma certa manhã,
escolares das crianças também constitui sua definição do compor- uma criança trouxe duas grandes bonecas de pano para a escola e
tamento sociabilizado na sala de aula. colocou-as sentadas na sua cadeira. Durante o primeiro período de
As crianças não participavam da organização dos materiais da aula coletiva, a professora se referiu a elas dizendo: "Maria de
classe e relativamente não tinham poder para influir no curso dos Trapo e João de Trapo são dois bons auxiliares! Não disseram uma
acontecimentos cotidianos. A professora não fez nenhum esforço es- só palavra durante toda a manhã".
pecial para deixar as crianças mais à vontade na sala, nem para Como parte do aprendizado para demonstrar comportamento
diminuir sua indecisão quanto ao programa de atividades. Em lugar sociabilizado, as crianças aprenderam a tolerar a ambigüidade e o
de mediar os aspectos impostos pelo contorno, ela optou por exigir desconforto da sala de aula e a aceitar um grau considerável de
que as crianças se acomodassem aos materiais como se apresen- arbitrariedade em suas atividades escolares. Exigia-se delas que
tavam. Quando o barulho de uma outra classe no corredor distraía adaptassem suas reações emocionais para conformar-se àquelas
as crianças, por exemplo, a professora chamava-lhes a atenção, mas consideradas convenientes pela professora. Aprenderam a responder
não fechava a porta. Igualmente, os escaninhos onde as crianças a ela pessoalmente e à maneira pela qual ela organizou a sala de
guardavam seus lápis, guarda-pó e tênis não tinham etiqueta, em- aula.
bora as crianças apresentassem considerável dificuldade de lembrar- Após duas semanas de experiência no jardim de infância, as
se qual escaninho fora designado. Apesar de muitos lápis perdidos e crianças estabeleceram um sistema de categorias para definir e orga-
crianças chorando, a professora se recusava a permitir que uma nizar sua realidade social na sala de aula. As respostas que deram
estagiária pusesse etiquetas nos escaninhos. Ela disse à estagiária nas entrevistas indicaram que as atividades na sala de aula não
que as crianças precisavam aprender a se lembrar de seu escaninho, possuíam significados intrínsecos; as crianças atribuíam significados
pois isto "é trabalho delas". Quando uma menina esqueceu qual era conforme o contexto em que cada atividade era exercida. A profes-
seu escaninho logo no dia seguinte à sua determinação, a professora sora ou apresentou os 'materiais da classe como parte da instrução
a mandou sair da classe, como um exemplo de uma "menina que ou, mais diretamente, discutiu e demonstrou sua utilização à classe.
ontem não ~stava prestando atenção". Isto é grave. O uso de um determinado objeto - a maneira como
Os objetos na sala de aula eram atraentemente dispostos num estamos predispostos a agir com relação a ele - constitui seu
claro convite para que a classe entrasse em interação com eles. A significado para nós. Ao definir os significados das coisas na sala de '
maioria dos materiais eram colocados no chão ou em prateleiras ao aula, a professora definiu as relações entre as crianças e os materiais
alcance das crianças. ,Contudo, as oportunidades de interação com em termos de significados contextuais vinculados ao contorno da
os materiais na sala de aula eram rigorosamente limitadas. A orga- sala de aula.
nização do tempo realizada pela professora na sala de aula contra- Quando interrogadas sobre os objetos da sala de aula, as
riava a acessibilidade dos materiais no contorno físico. Durante a: crianças responderam com notável acordo e uniformidade. As crian-
maior parte do período letivo do jardim de infância, não se permitiu ças dividiam os materiais em duas categorias: coisas com que se
que as crianças manuseassem opjetos. Os materiais, então, eram trabalha e coisas com que se brinca. Nenhuma criança organizou
organizados de modo, que as crianças aprendessem a regular-se; seu material infringindo o que parecia ser o princípio que as orien-
aprenderam a manusear objetos ao seu alcance apenas com a per- . tava. Aqueles materiais que as crianças usavam sob a direção da
missão da professora. As crianças eram "punidas" por tocarem nas professora eram materiais de trabalho. Entre estes, incluíam-se li-
coisas na hora errada e elogiadas nas ocasiões em que demons- vros, papel, argila, cola e outros materiais tradicionalmente asso-
trassem controle. Por exemplo, a professora elogiou-as por sua pron- ciados a tarefas escolares. Nenhuma criança escolheu usar esses
ta obediência quando, ao lhes dizer que assim fizessem, elas rapida- materiais durante a hora de "brincar", no início do ano escolar. Os
mente pararam de arremessar bolas ao cesto no ginásio; ela não fez materiais escolhidos pelas crianças durante a hora de recreio eram
observação alguma quanto a sua destreza no treino com a bola. rotulados como materiais para jogos ou brinquedos. Estes incluíam,
86 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 87

entre outras coisas, jogos, pequenos objetos de armar, a casinha de ramo Essas escolhas não alteravam o princípio de que se mandava as
brinquedo, bonecas e o trenzinho. crianças usar os mesmos materiais da mesma maneira durante os
O significado dos materiais da sala de aula, então, origina-se períodos de trabalho. De qualquer modo, a natureza das opções
da natureza da atividade em que são usados. As categorias de tra- acentuava o princípio geral.
balho e lazer surgiram como poderosos elementos de organização da Não somente toda atividade de trabalho era obrigatória, mas
<
i

sala de aula logo no início do ano escolar. Tanto a professora quanto também cada criança tinha de começar na hora determinada. Toda
as crianças consideravam as atividades de trabalho mais impor- a classe trabalhava simultaneamente em todas as tarefas indicadas.
tantes que as de lazer. A informação que as crianças disseram ter Além do mais, todas as crianças deviam completar as tarefas mar-
aprendido na escola eram todas as coisas que a professora lhes cadas durante o período de trabalho especificado. Durante um inci-
dissera durante as atividades que chamavam de "trabalho". As dente típico, no segundo dia de aula, muitas crianças queixaram-se
atividades de "recreio" eram admitidas apenas se houvesse tempo que não podiam ou não queria terminar um longo projeto de arte.
para elas e se as crianças tivessem terminado suas atividades de A professora disse que todos deviam terminar. Uma criança, ao
trabalho. Dados de observação revelaram que a categoria de tra- perguntar se não poderia acabar da "próxima vez", obteve como
balho tinha vários parâmetros bem definidos que a separavam niti- resposta: "Você precisa terminar agora" .
damente da categoria de lazer. Primeiro, o trabalho inclui toda e Além de exigir que todas fizessem a mesma coisa ao mesmo
qualquer atividade orientada pela professora; apenas as atividades tempo, as atividades de trabalho também as ocupavam com os
de horas livres eram chamadas de "brincadeira" pelas crianças. mesmos materiais e produziam resultados semelhantes ou idênticos.
Atividades como colorir, desenhar, pôr-se em fila, ouvir estórias, Durante os períodos de trabalho, apresentavam-se os mesmos mate-
assistir a filmes, fazer faxina e cantar eram denominadas trabalho. riais a toda a classe simultaneamente, e esperava-se o mesmo resul-
Trabalhar, então, é fazer o que se manda, não importando a natu- tado de cada criança. Esperava-se que todas usassem o material de
reza da atividade em questão. trabalho da mesma forma. Até procedimentos aparentemente incon-
Segundo, todas as atividades de trabalho, e apenas as ativi- seqüentes tinham de ser seguidos por todas. Por exemplo, após a
dades de trabalho, eram compulsórias. Por exemplo, pediu-se que aula coletiva no segundo dia de aula, a professora disse às crianças:
-t':, as crianças fizessem desenhos sobre temas específicos em diversas "Apanhem uma folha de papel e seus lápis e voltem às suas car-
ocasiões. Na hora do canto, a professora freqüentemente fazia inter- teiras". Uma criança, que pegara primeiro seu lápis, foi reinstruída
rupções para estimular ou animar as crianças que não estavam can- a pegar antes o papel.
tando ou que estavam cantando sem vivacidade. Quaisquer opções Os resultados ou habilitações que as crianças demonstravam
durante o período de trabalho eram restringidas para se adequarem ao final de um período de trabalho eram planejados para serem
aos limites de procedimento uniforme aceito. Durante uma dança idênticos, ou pelo menos semelhantes. A professora fazia uma
indígena, por exemplo, a professora permitiu que as crianças "sono- demonstração da maioria dos projetos de arte a toda a classe Mltes
lentas" roncassem se quisessem. Após um passeio ao posto do corpo de que as crianças apanhassem seus materiais. Elas então tentavam
de bombeiros, pediu-se a todas as crianças que fizessem um de- realizar, tanto quanto possível, um produto parecido àquele feito
senho, mas se permitiu a cada uma delas que escolhesse como tema pela professora. Apenas as obras de atividade artística que eram
qualquer trecho do passeio de que mais tivesse gostado. (É claro que quase idênticas ao produto que a professora realizara como demons-
também é verdade que se mandou que cada criança ilustrasse a sua tração eram guardadas e expostas em classe.
parte favorita do passeio.) Ao introduzir um outro projeto de arte, a Os períodos de trabalho, como definidos pelas crianças, então,
professora disse: "Hoje vocês vão fazer um cavalo. Podem fazer o implicavam que todas trabalhassem simultaneamente, ná mesma
seu cavalo da cor que quiserem: preto, cinza ou castanho". De outra atividade, com os mesmos materiais e orientadas para os mesmos
feita, ela enunciou, muito enfática, que as crianças podiam escolher fins. A idéia que dirigia essas atividades de trabalho era fazê-las,
três cores para as flores que estavam fazendo com forminhas de não necessariamente fazê-las bem. Já no segundo dia de aula,
doce. As crianças ficaram boquiabertas de entusiasmo e aplaudi- muitas érianças terminaram rapidamente suas tarefas, a fim de se
88 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 89

juntarem aos amigos que se divertiam com os brinquedos. Nas aulas que a criatividade. Mais uma vez, essa atmosfera era vista como
de música, por exemplo, a professora exortava as crianças a can- uma ponte importante entre o lar e as futuras situações de trabalho.
tarem alto. Não se referia às crianças, nem delas se esperava, har- A professora esperava que as crianças se adaptassem à sala de aula e
monia, ritmo, pureza de tom ou expressão. O que se exigia delas era tolerassem qualquer nível de incômodo que essa adaptação acarre-
uma participação forte e entusiasta. Da mesma forma, a professora tasse.
aceitava qualquer projeto artístico apresentado pelas crianças em Portanto, como parte de sua 1111clação na comunidade do
que tivesse sido despendido tempo suficiente. As tarefas marcadas jardim de infância, as crianças também recebiam sua primeira ini-
eram compulsórias e idênticas, e, ao aceitar todos os produtos aca- ciação na dimensão social do mundo do trabalho. O conteúdo das
bados, a professora quase sempre aceitava trabalhos fracos ou de lições específicas é relativamente menos importante que a experiên- .
qualidade inferior. A aceitação de um trabalho dessa ordem anulava cia de ser um trabalhador. Os atributos pessoais de obediência,
qualquer conceito de avaliação. Encontravam recompensa zelo, per- entusiasmo, adaptabilidade e perseverança são mais valorizados que
severança, obediência e participação. Estas são características das a competência acadêmica. A aceitação inquestionada da autoridade
crianças, não de seu trabalho. Desse modo, o conceito de qualidade e da interação social nos contornos institucionais estão entre as pri-
estava separado do de um trabalho bem realizado ou aceitável e era meiras lições de um jardim de infância. Essa..0!ções fuBdam-se na.
substituído pelo critério de participação adequada. aceitação progressiva, como naturais, como o trabalho tout court,
As crianças, entrevistadas em setembro e novamente em outu- dos significados de conhecimento importante e sem importância,
bro, utilizaram as categorias de trabalho e lazer para criar e des- de trabalho e lazer, de normalidade e desvio.
crever sua realidade social. Suas respostas indicam que as primeiras
semanas na escola são um tempo importante para o aprendizado da
natureza do trabalho na sala de aula. Em setembro, nenhuma Além de um humanismo retórico
criança disse "trabalho" quando lhe perguntaram o que as crianças
faziam no jardim de infância. Em outubro, metade das entrevistas Como demonstrou Gramsci, o controle do conh'!dmento que
já respondiam com a palavra "trabalho". Em outubro, as crianças preserva e produz setores de uma sociedade é um fator decisivo no
falaram mais de trabalhar e menos de brincar do que em setembro. aumento da dominação ideológica de um grupo de pessoas ou de
A professora estava satisfeita com o progt;esso da classe durante as uma classe sobre grupos ou classes menos poderosos. 28 Sob esse \
primeiras semanas de aula e constantemente referia-se às crianças aspecto, não é de pequena importância o papel da escola na seleção, .
como "meus bons trabalhadores". Em geral justificava a apresen- preservação e transmissão de concepções de competência, normas
tação das atividades de trabalho na sala de aula em termos de ideológicas e valores (e com freqüência apenas o "conhecimento" de
preparação das crianças para a escola primária e a idade adulta. determinado grupo) - todos esses engastados tanto no currículo
Por exemplo, ela acreditava que as atividades de trabalho deveriam manifesto quanto no oculto.
ser compulsórias porque as crianças precisavam praticar o cumpri- Pelo menos dois aspectos da vida escolar ~umprem funções
mento de ordens, sem o exercício de opções, como forma de prepa- distributivas sociais e econômicas. Como demonstra a literatura
ração para a réalidade do trabalho adulto. Esperava-se que as cada vez mais vasta sobre os currículos ocultos, e como demonstrei
crianças vissem o jardim de infância como uma preparação para o aqui por meio de provas históricas e empíricas, as formas de inte-
primeiro ano. Ao acentuar a importância de colorir com capricho ou ração na vida escolar podem servir de mecanismos para comunicar
pôr adequadamente em ordem uma série de ilustrações, a professora significados normativos e tendências aos estudantes. Ainda, o corpo
reiterou a necessidade dessas habilitações no primeiro ano e a difi- do próprio conhecimento escolar - o que é incluído e o que se
culdade que teriam no ano seguinte as crianças que foram desa-
tentas no jardim de infância.
As crianças relativamente não tinham poder para influir no (28) Thomas R. Bates. "Gramsci and the Theory of Hegemony". Jouma! of
fluxo dos acontecimentos diários, e valorizava-se mais a obediência the History of Ideas, XXXVI (April-June 1975), 360.
90 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 91

exclui, o que tem importância e o que não tem importância - Igualmente, deveríamos ser cautelosos em não ver esse tipo de
também serve em geral a uma finalidade ideol6gica. professor como insatisfatoriamente treinado, mal-sucedido ou des-
"" Como será demonstrado no Capítulo S, boa parte do conteúdo cuidado. Com freqüência, se dá exatamente o contrário. A profes-
\:) formal do conhecimento cu~cular é dominada po.r u~a .ideologia sora que foi observada é, de fato, considerada competente pelos
. do consenso. O conflito, quer mtelectual ou normativo, e VIsto como administradores, colegas e pais de alunos. Em vista disso, as ativi-
um atributo negativo à vida escolar. Portanto, existe um tipo carac- dades do professor devem ser entendidas, não apenas em termos dos
terístico de redundância no conhecimento escolar. Tanto a expe- padrões de interação social que prevalecem nas salas de aula, mas
riência cotidiana quanto o pr6prio conhecimento curricular apre- sim em termos do padrão mais amplo das relações sociais e econô-
sentam mensagens do consenso normativo e cognitivo. A estrutura micas na estrutura social da qual ele e a pr6pria escola fazem parte. 30
profunda da vida escolar, a estrutura fundamental e organizadora Quando os professores distribuem interpretações normativas,
das regras do senso comum que é discutida, interiorizada e que digamos, de trabalho e lazer, como as interpretações históricas e
parece basicamente conferir significado à nossa experiência em contemporâneas que foram aqui documentadas, faz-se preciso per-
instituições educacionais, afigura-se éstreitamente vinculada às guntar, junto com Sharp e Green, "para que problemas essas solu-
estruturas normativas e comunicativas da vida industrial. 29 Como ções são viáveis aos professores?"3! "Qual é o modelo de interpre-
poderia ser de outra forma? tação comum dos professores e a que conjunto de pressuposições
Talvez possamos esperar um pouco mais da experiência esco- ideológicas ele responde?". Dessa forma, podemos situar o conheci-
lar do que o que se retratou aqui, em vista da distribuição de re- mento e a atividade em classe dentro do quadro mais amplo das
cursos nos Estados Unidos e dos anseios de uma grande parcela de relações estruturais que - ou através do professor e das expectativas
sua coletividade. Uma hip6tese que não deveria ser descartada de dos pais, do contorno da classe, de quais são os problemas que se'
imediato é que, de fato, as escolas realmente funcionam. De forma consideram importantes para que sejam enfocados pelos professo-
singular, elas podem obter êxito na reprodução de uma população res, ou através da relação entre as escolas e, digamos, o setor
que é mais ou menos equivalente à estratificação econômica e social econômico de uma sociedade - em geral determinam o que se passa
na sociedade. Assim, quando se pergunta a respeito das escolas: nas salas de aula.
"Onde está seu humanitarismo?", talvez a questão seja de trato Este capítulo não poderá sozinho defender completamente a
mais difícil do que se espera. idéia de que as escolas parecem atuar de modo latente para aumen-
Por exemplo, este capítulo poderia ser interpretado como uma tar uma ordem social já desigual e estratificada. Juntamente com os
declaração contra o compromisso de uma determinada comunidade demais capítulos, este confirma, porém, várias das análises recentes
com a educação ou contra determinadas espécies de professor, que que demonstram como as escolas, através de sua distribuição das""',
"poderiam ser mais capazes". Isto seria fundamentalmente incor- categorias sociais e ideológicas, contribuem para a promoção de um)
reto, creio. A cidade em que se conduziu este estudo tem uma quadro mais estático das instituições. 32 Assim, minha proposição
preocupação com a educação. Aplica boa parte de seus recursos em não deveria ser vista como uma declaração contra uma escola em
escolarização e sente que faz jus à reputação de possuir um dos particular ou quaisquer grupos específicos de professores. Pelo con-
melhores sistemas escolares da região, se não do país. trário, quero sugerir que os educadores precisam ver os prof~~~or~§
como "encapsulados" num contexto social
..,... -," - - _ . - -~ >..
e- --econômico
-'- ".
que deter-
----"._._..
".~-_.>~~".~-'~-""~~~'~' '"'-.~-,.,...--,.-~- .~.- --~'" ,--'-~-.--_._-

(29) As idéias de Habermas sobre os padrões de competência comunicativa (30) Rachei Sharp e Anthony Green. Education and Social Control: A Study
em "organizações" industriais avançadas são aqui de grande interesse como esquema in Progressive Primary Education. Boston, Routledge & Kegan Paul, 1975, p. 8.
de interpretação. Ver, por exemplo, Jürgen Habermas. "Towards a Theory of Com- (31) Ibid., p. 13.
municative Competence". Recent Sociology, n. 2. Hans Peter Dreitzel (ed.). New (32) Ibid., p. 110-12. Ver também a anãlise que se encontra em Basil Berns-
York, Macmillan, 1970, p. 115-48; e Trent Schroyer. The Critique of Domination. tein. Class, Codes and Control. Volume 3: Towards a Theory of Educational Trans-
New York, George Braziller, 1973. missions. 2. ed. London, Routledge & Kegan Paul, 1977.
92 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 93

mina os problemas por eles enfrentados e as limitações materiais às Portanto, isolar a experiência escolar da complexa totalidade
suas respostas. Esse próprio contexto "externo" fornece legitimação da qual é parte integrante é uma análise por demais limitada. De
substancial para a alocação do tempo e das atividades dos profes- fato, o estudo da relação entre ideologia e conhecimento escolar é de
sores e dos tipos de capital cultural incorporados na própria es- especial importância para nossa compreensão da coletividade social
cola. 33 mais ampla de que todos fazemos parte. Permite-nos passar a ver
Se este for o caso, como veementemente sugiro que é, as como a sociedade se reproduz, como perpetua suas condições de
questões que formulamos devem ultrapassar o nível humanistico existência por meio da seleção e transmissão de determinados tipos
(sem que se perca sua intenção emancipadora e humanistica) para de capital cultural de que depende uma sociedade industrial e
alcançar um nível mais relacional. Embora os educadores conti- classista, e como mantém coesão entre suas classes e individuos com
nuem a perguntar o que há de errado nas escolas e o que pode ser a propagação de ideologias que em última análise sancionam os
feito - se· nossos problemas podem ser resolvidos com professores programas institucionais que podem determinar a desnecessária
mais humanísticos, com mais franqueza, com melhores conteúdos, e estratificação e desigualdade em primeiro lugar. Não temos meios
assim por diante -, é de importância vultosa que passemos a de entender essas coisas?
encarar seriamente questões como "No interesse de quem as escolas Ainda, como observei no Capitulo 1, uma compreensão plena
atuam hoje?", "Qual é a relação entre a distribuição de capital que procure ultrapassar os modelos positivi~t:::.s que agora dominam
cultural e de capital econômico?" e, finalmente, "Podemos lidar nossa consciência deve conjugar uma análise do que realmente se
com as realidades politicas e econômicas de criar instituições que passa nas escolas com uma apreciação de seu desenvolvimento, de
intensifiquem o significado e diminuam o controle?". sua história. Apenas com esta conjugação podemos ver por que
Sharp e Green resumem muito bem esse interesse por um razão essas experiências cotidianas são o que são. E é para essa
humanismo retórico: 34 história ampla que agora iremos nos voltar.

Queremos ressaltar que um interesse humanista pela criança toma


indispensável· uma consciência maior dos limites de ação da auto-
nomia do professor, e colocar questões. "A que interesses atendem as
escolas, os dos pais e das crianças, ou os dos professores e do diretor?"
e "Que interesses mais amplos são atendidos pelas escolas?" e, talvez
mais fundamentalmente, "Como conceituamos 'interesses' na reali-
dade social?". Por conseguinte, em vez de considerar a sala de aula
como um sistema social e, como tal, isolado dos processos estruturais
mais amplos, sugerimos que o professor que desenvolveu uma com-
preensão de seu lugar no processo mais amplo pode estar numa
posição bem melhor para entender onde e como é possível alterar essa
, situação. O educador que é necessariamente um moralista deve se
preocupar com as precondições sociais e econômicas para a realização-
de seus ideais. Em vez de afirmar a separação de politica e educação,
como se faz com base nas suposições liberais fundadas no senso
comum, os autores admitem que toda educação seja em suas impli-
cações um processo politico.

(33) Ibid., p. 116.


(34) Sharp e Green, op. cit., p. x.
4
IDstórla do currículo
e o controle social
{em colaboração com Barry Pranklin}

Agora deve estar ficando mais claro que uma das formas como
as escolas são usadas para finalidades hegemônicas está na sua
transmISsãO-d~-;aiores--e t~ndências culturais e eêonômicas que
supostàmeniesão "compartilhados por todos", enquanto "garante;'
ao mesmo tempo que apenas um número especificado de estudantes
niais
é selecionado para os níveis elevados de ensino, em virtude de
sua "competência" para contribuir para a maximização da pro-
dução do conhecimento técnico também exigido pela economia.
Entretanto, não surgiu da noite para o dia este enfoque do consenso
avaliativo nas regularidades cotidianas da vida escolar e do conco-
mitante encaminhamento de tendências vinculadas à vida econô-
mica. Vem de uma longa tradição na educação norte-americana.
Tanto este capítulo como o seguinte irão enfocar esse problema. Em
primeiro lugar, examinaremos mais pormenorizadamente que no
capítulo anterior como ele surgiu historicamente através da resposta
das escolas a conflitos ideológicos e econômicos entre as classes
numa época de rápida passagem de uma economia baseada no capi-
tal agrícola para uma economia fundamentada no capital industrial
nos princípios deste século. Como veremos, as escolas não foram
necessariamente construídas para aumentar ou preservar o capital
cultural de classes ou comunidades, mas sim dos segmentos mais ')
poderosos da população. Ê bastante claro neste desenvolvimento o
papel hegemônico do intelectual, do educador profissional.
96 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 97

Para demonstrar que a ênfase na hegemonia ideológica não é ajudar a manter esse conjunto de programas institucionais. Você
"simplesmente" de interesse histórico, mas que ainda domina o começa a acreditar, mas acrescenta alguma coisa imporj:ante que o
próprio âmago da vida na sala de aula, deveremos retornar no outro esquecera de verbalizar. Você diz: "Sim, as escolas funcio-
Capítulo 5 ao corpus formal do conheci~enJo escolar e in~~~tigar nam ... para eles". E ambos inclinam afirmativamente a cabeça.
novamente a ênfase no consenso. ~------ -- Esse pequeno esboço literário pretendeu ser mais do que apenas
um exercício de imagina ão. Pretendeu, antes, reiterar idéias que se
7 11
JI acham no centro deste hvro: tanto de que as escolas têm uma histó- ~ 7'J1
Por um sentido do presente como história ria quan~o ~e ~ue estão ligadas, atra;és de sua prática cotidiana, (
a outras l~titulÇõeS poderosas por melOS que são em geral ocultos e . !
Imagine-se vivendo num dos maiores guetos de uma cidade c~~. Essa história e essas ligações precisam ser enteIi(fidã; se \
norte-americana. Um outro membro da comunidade chega para devemos conhecer as reais possibilidades de nossa ação nas escolas )
você e diz: "Você bem sabe, as escolas funcionam". Você o olha um daquela comunidade hipotética.
tanto incrédulo. Afinal, seus filhos estão se saindo relativamente A área do currículo desempenhou um papel importante na
mal nos testes de inteligência e aproveitamento. A maioria dos história da relação entre a escola e a comunidade. Devido a isso,
jovens dessa comunidade consegue empregos com remuneração in- pode também servir como um exemplar excelente para uma análise
ferior à dos brancos. Muitos estão desalentados quanto a seu futuro. das ligações que as escolas mantêm com outras instituições. Dando
Na escola há cada vez mais violência e vandalismo. O currículo aqui enfoque a alguns dos momentos anteriores da área do currí-
parece estar fora de contato com a realidade· e a história de sua culo, espero mostrar que as conclusões das duas personagens da
gente. A comunidade sente, justificadamente, que tem pouco poder estória imaginária de que partimos não são absolutamente tão ima-
de decisão no que se passa na instituição que deve educar seus ginárias. Elas fornecem, infelizmente, uma descrição precisa das
jovens. esperanças, dos planos e da visão conservadora de comunidade de
Você expõe tudo isso a ele, explicando cada um desses tópicos uma parcela significativa de um grupo de educadores que tiveram
e tentando mostrar-lhe que ou ele está totalmente errado ou então é grande influência sobre como e qual conhecimento se escolheu para
uma das pessoas com menos percepção que você já encontrou. as escolas - e finalmente nelas se introduziu.
Então ele diz: "Concordo com tudo que você me disse. Todas as A fim de esclarecer esses pontos, existem várias questões que
coisas que você acabou de mencionar acontecem não apenas aqui, precisamos formular aqui. O que significava "comunidade" para os
mas em todos os Estados Unidos em comunidades onde vivem educadores e intelectuais mais influentes no início da área do currí-
pessoas que são pobres, privadas de direitos políticos e. culturais, ou culo? Que interesses sociais e ideológicos orientaram seu trabalho?
oprimidas". Aqui ele começa a relacionar um conjunto importante Essas questões são fundamentalmente importantes por diversas
de fatos. Cautelosamente, embora num tom um pouco apaixonado, razões. Como se tem constantemente discutido aqui, não é fortuito o
mostra que essas escolas "comunitárias" estão fazendo o que foram conhecim~nto que se introduziu nas escolas no passado e que hoje se
historicamente construídas para fazer. Não foram construídas para introduz. E sel.ecion. ado e orglJ,Ilizado em torno de conjuntos de Prin-i
lhe dar controle; o caso é bem o contrário. A medida que ele fala, cípios e valores que provêm ôe alguma parte, que representam
isto começa lentamente a fazer sentido para você. Mais algumas' determinadas visões de normalidade e desvio, de bom e mau, e do
partes de um grande quadro começam a se ajuntar. E se ele estiver modo como "agem as boas pessoas". Portanto, se devemos entender
certo? E se as escolas e o currículo que nelas se encontra evolveram por que o c91!h~çimen~alguns grupos foi primeiramente
de uma forma tal, que os interesses de minha comunidade devem se representado nas escolas, precisamo~sses sociais que em J
submeter aos interesses lIos mais poderosos? E se os programas geral orientaram a seleção e a organização do currículo.
econômicos e sociais existentes exigem. que alguns sejam relativa- Como demonstrarei aqui, os interesses sociais e econômicos
mente pobres e sem qualificação, e outros não? Então você começa a que serviram como a base para a atuação dos mais influentes espe-
alcançar um entendimento tácito do modo como as escolas podem cialistas em currículo não eram neutros nem fortuitos. Eles incor-
98 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 99

poravam compromissos com estruturas econômicas e políticas edu- numa sociedade. Estão dialeticamente, :entrelaçados, de modo que'
cacionais específicas que, quando postas em prâtica, contribuiram poder e controle econômico estão interligados com poder e controle
para a desigualdade. A política educacional e cultural e a visão da cultural. O próprio sentido de ligação' entre conhecimento ou con-
forma como deveriam operar as comunidades e de quem deveria ter trole cultural e poder econômico mai~ uma vez serve de base para
poderes nelas :serviram de mecanismos de controle social. Esses nossa análise histórica.
mecanismos fizeram pouco para aumentar a relativa eficâcia econô- Até o momento, duas coisas têm sido fundamentais a essa
mica ou cultural desses grupos de pessoas que ainda hoje detêm abordagem. A primeira é que se vêem as escolas como que com-
pouco poder. Mas, antes de examinar as raizes que a ârea do curo- preendidas na sua relação com outras instituições - econômicas,
culo deitou no terreno do controle social, observemos rapidamente a . políticas e culturais, onde as últimas têm relativa autonomia com
perspectiva geral que sustém a anâ1ise critica desenvolvida neste referência às primeiras. Ou seja, as escolas existel!!~~~~~~!
capitulo. relações com outras instituições mais poderosa~_}~!!i~iç~L~~_
estão unidas de um modo tal que produzem desigualdades estrutu-
;ais ,de poder e de acesso 112:e_CUr_~2~.ASêgUndaé-quê--êssãSdesI:
Poder e cultura gualdades são reforçadas e reproduzidas pelas escolas (embora não
//'._-.._...........
apenas por elas, é claro). Através de suas atividades curriculares,
::') ··~-"'O controle social e econÔmico ocorre nas escolas não somente pedagógicas e de avaliação, na vida cotidiana nas salas de aula, aS
na forma de áreas de conhecimento que as escolas possuem ou nas escolas desempenham um papel importante na preservação, senão
tellôêiíêiâs q~ê eilcaniIn~ as regras e as rotinas para manter a na criação dessas desigualdades. Junto com outros mecanismos de
v---ordem o curoculo oculto que reforça as normas de trabalho, obe- preservação e distribuição cultural, as escolas contribuem para o
/,diênci~~poiitualidade,e assim por dianfe:-o-conti-ôleé exercidó que se c.hamou de reprodução cultural das relações de classe em l.
, 1amb6m atráVés~dãs<'Jorm:àsae'srgnlficadõ que a escola ,distribui. sociedades industriai~_~~n5~~as. 3
/ Isto é, o "corpus fornuJ do conhecime-;rto escolar" pode se tornar . Essas duas preocupações centrais - o problema de as escolas "'"
uma forma de controle social e econômico. 1 estarem compreendidas num poderoso conjunto de instituições e o j
As escolas não controlam apenas pessoas; elas também aju- papel da escola na reprodução de desigualdades - significam que a
dam a controlar signifiêad~s-.-Desde que preserVam e distrlbuemo escola é interpretada de uma forma diferente da que é geralmente
qué~'rc;n;ideiad(;c~mo o "conhecimento legítimo" - o conheci- empreendida pelos educadores. Em lugar de interPretá-las como "os
mento que "todos devemos ter" -, as escolas conferem legitimação grandes agentes da democracia" (embora haja nisso um elemento de
cultural ao conhecimento de grupos específicos. 2 Mas isto não é verdade), vêem-se as escolas como instituições que não são necessa-
tudo, pois a capacidade de um grupo tornar seu conhecimento em riamente ou nem sempre forças progressistas. Podem desempenhar \
"conhecimento para todos" estâ relacionada ao poder desse grupo
no campo de ação político e ~conômico mais amplo. P~çl~~_~..s~lturaJ
funções econômicas e culturais e inc~rporar regras ideológicas que I
preservam e aumentam um conjunto de relações estruturais existen- .
então, precisam ser vistos, não como entidades estâticas sem cone- teso Essas relações operam a um nivel fundamental para ajudar
xão entre si, mas como aít1butos das relações econômicas existentes alguns grupos e servir de obstáculo a outros.
Isto não implica que todos os burocratas das escolas sejam
racistas (embora alguns possam ser de fato)" ou que façam pa~te de
(1) Estou empregando aqui o conceit() de Dawe de que o controle envolve a
imposição de signiÍidido sobre um grupo dQminado por um grupo dominante. Ver.
Michael F. D. Young (ed.). Kno"(dedge and Co';trol. London, Collier-Macmillan,
(3) Basil Bernstein. Class, Codes and Controlo Volume 3: Towards a Theory
1971, p. 4. of Educationai Transmissions. 2. ed. London, Routledge & Kegan Paul, 1977. Ver
(2) Pierre Bourdieu. "Intellectual Field and Creative Project". In: Young.
também Samuel Bowles e Herbert Giittis, Schooling in Capitalist America. New
Knowledg'e and Control, op. cito ,'p, 161-88., York, Basic Books, 1976.
100 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRtCULO 101

uma conspiração consciente para "manter as classes inferiores em A urbanização e a função histórica da escolarização
seu lugar". De fato, muitos dos argumentos em favor da "comuni-
dade" e sobre o currículo propostos por alguns dos primeiros edu- Qualquer esforço sério para compreender a quem pertence o
cadores especialistas em currículo e intelectuais que examinarei conhecimento que se introduz nas escolas deve ser, por sua própria
eram baseados nas melhores das intenções liberais de "ajudar as natureza, histórico. Deve começar com ver as idéias correntes sobre
pessoas". Pelo contrário, a proposta aqui oferecida é de que as currículo, pedagogia e controle institucional como resultados de
condições e formas de interação que possuem funções latentes são condições históricas específicas, como idéias que foram e são criadas
"naturalmente" originadas das suposições e práticas, fundadas no pelo papel que as escolas desempenham em nossa ordem social.
senso comum, que muitos dos educadores têm acerca de ensino e Portanto, se podemos começar a compreender as finalidadeseconô-
aprendizado, comportamento normal e anormal. .§. essas funções micas e ideológicas qu~ as escolas cumpriram no passado, então
latentes incluem aspectos d~e muitos educador~Ll!,~~Se.ULf,2"l!"~- podemos começar a ver também as razões por que movimentos
~--,-~'--
ciência. sociais progressistas que objetivam alguns tipos de reformas esco-
------"Como demonstrado em outra passagem, por exemplo, uma lares - tais como a participação da comunidade nas instituições e" !
importante função tácita da escolarização parece ser a transmissão controle delas - têm em geral êxito menor do que o que seus / "
de diferentes valores e tendências a diferentes populações escolares. defensores gostariam que tivessem. Podemos também começar a /
Se um conjunto de estudantes é visto como prováveis membros de elucidar algumas das razões por que as escolas fazem o que as vimos
uma clàsse profissional e empresarial, então suas escolas e seu fazer no capítulo anterior.
currículo parecem estar orga:nizados em torno de flexibilidade, op- Para deixar isso claro, enfocarei sucintamente algumas das
ção, pesquisa, etc. Se, por outro lado, vêem-se as destinações pro- finalidades históricas da escolarização urbana (o modelo a partir do
váveis dos estudantes como a de trabalhadores semi-especializados qual se criou a maior parte da escolarização pública), qual devia ser
ou sem especialização, a experiência escolar tende a enfatizar a seu papel "comunitário" e como funcionava. Em seguida, deverei
pontualidade, o asseio, a formação de hábitos, e assim por diante. me voltar para um exame histórico mais amplo do papel da escola-
Essas expectativas são reforçadas pelos tipos de currículo e de testes rização que trata do conhecimento que os estudantes deveriam
dados pela escola e pelos rótulos atribuídos aos diferentes tipos de "receber" nas escolas - a área do currículo.
,- <estudantes. 4 Portanto, o conhecimento formal e informa~ transmi-
tido pelas escolas, os procedimentos de avaliaç~ e assim por
Devido à natureza a-histórica da educação, corremos o risco
de ignorar muitas das origens das escolas em cidades dos Estados
diante, precisam ser vistos como interligados, do contrário nos esca- Unidos. Isto é lamentável, pois essas origens poderiam ajudar a
pará muito de seu significado real. Essas práticas escolares cotidia- explicar por que muitas comunidades de trabalhadores, negros,
nas estão ligadas a estruturas econômicas, sociais e ideológicas que latinos e outros encontram pouco de sua própria cultura e lingua-
se encontram fora do prédio da escola; precisam, pois, ser reveladas gem nas escolas. Pesquisas recentes do crescimento da educação nos
tanto hoje quanto no passado. Será precisamente esse passado que centros urbanos do leste dos Estados Unidos são bastante úteis a
irá nos interessar aqui. esse respeito. Na cidade de Nova Iorque na década de 1850, por
exemplo, quando o sistema escolar público tornava-se cada vez mais
solidificado, viam-se as escolas como instituições que poderiam
preservar a hegemonia cultural de uma população "nativa" amea-
(4) Cf. Capítulo 7 neste volume e Michael W. Apple. "Power and School çada. A educação era a forma pela qual se deveria proteger a vida,)
Knowledge". The Review of Education, IH (January/February 1977). Ver também os valores e normas comunitários e os privilégios econômicos dos
James E. Rosenbaum. Making lnequality: The Hidden Curriculum of High School
poderosos. As escolas poderiam ser os grandes instrumentos de uma
Tracking. New York, John Wiley, 1976; e Herbert Gintis e Samuel Bowles. "Thé
Contradictions of Liberal Educational Reform". Work, Technology and Education. cruzada moral para tornar iguais a "nós" os filhos dos imigrantes e
Walter Feinberg e Henry Rosemont Jr. (eds.). Urbana, University of Illinois Press, dos negros. Portanto, para muitos que foram importantes no desen-
1975, p. 92-141. volvimento da escolarização, as diferenças culturais não eram abso-
102 MICHAEL W. APÍ'LE IDEOLOGIA E CURRtCULO 103 '

lutamente legítimas. Pelo contrário, essas diferenças eram encara- ambas as quais promoveriam economia e eficiência. Assim, a ênfase
das como a ponta de um iceberg feito de águas que continham em pa aculturação e 'a ênfase na padronização, temas com que ainda
geral impurezas e imoralidade. O historiador urbano Carl Kaestle hoje se defrontam os membros de comunidades, estavam intima-
- apanha excepcionalmente bem essa atitude quando cita um trecho " mente entrelaçadas. Fundamentalmente, "a ética burocrática e a \
extraiqo de um relatório da Assembléia do Estado de Nova Iorque missão moral dos m~~.!res ~~ram do mesmo problema - a rápida )
que advertia que: "Como o vasto Atlântico, devemos decompor e expansão e diversificação da população - e elas tenderam para o
limpar as impurezas que investem contra nosso meio, ou, como o mesmo resultado - um sistema vigorosamente conformista" .7
lago do interior do pais, receberemos seu veneno em todo nosso Essa missão moral com sua ênfase na conformidade cultural
sistema nacional" . 5 não se encontrava apenas em Nova Iorque; nem se limitou ao inicio e
Kaestle observa ainda que: 6 , aos meados do século XIX. Os valores morais tornavam-se cada vez
mais unidos às ideologias e finalidades econômicas, à medida que o
pais ampliava sua base industrial. As escolas de Nova Iorque, Mas-
o Putman,'s Monthly usou a mesma metãfora e indicou a mesma
sachusetts e em outras partes eram vistas cada vez mais como um
solução para o problema da poluição: "Nossos leitores concordarão
conosco que, para a defecação efetiva do curso da vida numa grande
conjunto de instituições que "formariam" pessoas que deteriam os
valores tradicionais da vida comunitária (uma vida que nunca pôde

< cidade, existe apenas um agente retificador - um filtro infalivel- a


escola". ( ... ) ,
A maioria dos mestres provavelmente não era contrãria ao êxito de
realmente ter existido dessa forma ideal) e, também, as normas e
tendências exigidas de um trabalhador diligente, econômico e efi-
ciente para essa base industrial. Não apenas em 1850, mas princi-
números limitados de pobres por meio da educação, mas a: missão das
escolas - e a maioria dos promovedores era bastante franca quanto a
palmente entre 1870-1920, a escola foi declarada a instituição fun-
isso - era inculcar atitudês de cooperação entre as crianças da damental que resolveria os problemas da cidade, o empobrecimento
cidade, o que quer que as vicissitudes da vida urbana lhes pudessem e a decadência moral das massas e, progressivamente, adaptaria os
causar. Aculturação é, portanto, um termo mais preciso para o individuos a seus re~ectivos lugares numa economia industrial. 8
objetivo da escola do que assimilação, embora os termos sejam em O retrato feito por Marvin Lazerson do desenvolvimento da
geral usados como sinônimos. As escolas refletiam a atitude do pú- escolarização nos centros urbanos de Massachusetts' coloca esses
blico nativo geral, que desejava norte-americanizar os hãbitos, não o aspectos de uma forma bastante eficaz: 9
s~atus, dos imigrantes.

Por volta de 1915, dois 'temas centrais tomaram-se manifestos nas


Essa missão moral da escola exerceu um efeito importante nos escolas da cidade de Massachusetts. Um lançava-se sobre os fer-
tipos de seleção curricular e na política escolar geral, como bem se mentos de reforma das décadas entre 1870 e 1900 e via a educação
pode imaginar. Mas isso não foi tudo. A cruzada para eliminar a como a base da melhoria social. A escola 'atingiria e elevaria os
diversidade foi exaltada por um outro conjunto de fatores. A escala ' pobres, especialmente por meio de novas técnicas de transmitir valo- \
dos problemas da cidade crescia à medida que aumentava a popu- res morais tradicionais. O segundo tema; progressivamente emer- I
gente após 1900, acarretava a aceitação da ordem industrial e um (
lação. Alguma coisa tinha de ser feita quanto ao rápido aumento de
interesse em que as escolas refletissem aquela ordem. Fez da ade-
número de crianças "diferentes" para serem aculturadas. A res- quação do indivíduo à economia a principal função da escola. Pelo
posta foi a burocratização - a consolidação aparentemente sensata

<das escolas e a padronização de procedimentos e do currículo,


(7) Ibid., p. 161.
(8) Marvin Lazerson. Origins olthe Urban School. Cambridge, Harvard Uni·
(5) Carl F. Kaestle. The Evolution 01 an Urban School Syst,em. Cambridge, versity Press, 1971, p. xv. Ver também Elizabeth Vallance, "Hiding the Hidden
Mass., Harvard University Press, 1973, p. 141. Curriculum". Curriculum Theory Network, IV (Fali 1973174), 5-21.
(6) Ibid., p. 141-2. (9) Ibid., p. x-xi.
MICHAEL W. APPLE

ensino de habilitaçiks específicas e de padrões de comportamento, as


j IDEOLOGIA E CURRtCULO

paradigma que ainda domina a área. Ficará claro que, historica-


lOS

escolas formariam trabalhadores e cidadãos melhores e mais efi- mente, a teoria e desenvolvimento do currículo estão fortemente
cientes, e o fariam por meio de um processo de seleção (testes) e
orientação. Esses desenvolvimentos transformariam a idêia de igual-
, ligados e influenciados por necessidades e mudanças econômicas e,
como veremos, por uma noção muito interessante do que deveria ser
dade da oportunidade educacional nos Estados Unidos por terem
tornado a segregação - por meio de cu"ículo, classe social e papel
a "comunidade" ideal.

< vocacional planejado - fundamental às atividades da escola. (Os


grifos são meus.)
A função social do currículo
Portanto, na base da escolarização estava um conjunto de
interesses que, reunidos, incorporaram uma ideologia conservadora. Os primeiros membros mais importantes da área do currículo
"Nós" devemos preservar "nossa comunidade" ensinando aos imi- - Franklin Bobbitt, W. W. Charters, Edward L. Thorndike, Ross
grantes nossos valores e adaptando-os aos papéis econômicos exis- L. Finney, Charles C. Peters e David Snedden - definiram qual
tentes. deveria ser a relação entre a estruturação do currículo e o controle e
Esse relato nos fornece um quadro geral do clima ideológico poder da comunidade, definição que continua a influenciar a área
da época, especialmente nas áreas urbanas do leste, quando come- do currículo contemporâneo. 10
, çou a se definir a área do currículo. Era uma clima que não só Ao delimitar o papel social básico que o currículo escolar
_d impregnou a visão do público em geral, mas que também influen- deveria exercer, a questão social e econômica fundamental que
. 0' ciou muitos intelectuais e educadores eloqüentes, mesmo aqueles .Ereocupava esses primeiros teóricos era a industrialização e a divisão
. _~ cujas origens estavam fora dos centros urbanos. Como veremos, nem do trabalho que lhe seguia. Essa divisão, conforme Bobbitt, substi-
hIiu o artesã.~-peí~ especializado. A pequena loja deu lugar
~.
os membros da intelligentsia emergente nem os primeiros membros
, da área do currículo ficaram imunes a essas visões. O papel da à grande corporação. Nessa situação, o indivíduo deixava de ser
~ / escola tanto na parte ética quanto na adaptação à estratificação responsável pelo projeto e produção de um único produto. Em lugar
"econômica foi algo que abordaram com muita tranqüilidade. De disso, era responsável pela produção de apenas uma parte do pro-
11}, fato, a noção de imunidade é imprecisa. Muitos dos primeiros duto, cuja natureza e especificações lhe eram fornecidas por um
i líderes do movimento para tomar a seleção e determinação do currí- supervisor. Além dessa estreita tarefa na produção de um segmento
\ culo numa área de especialização profissional abraçaram convicta- de um produto maior, o trabalhador individual também dependia
"- mente tanto a cruzada moral quanto a ética da adaptação ao sis,terp.a de outros indivíduos, especialmente do supervisor, para direção e
econômico como funções patentes da escolarização. Viam os proce- orientação em seu trabalho. Além do mais, o indivíduo agora estava
dimentospãdroniZad'()sde'seleção'eorgã:nIZãÇãõdo conhecimento quase que inteiramente dependente de outros especialistas em ou-
escolar como uma contribuição para ambas essas finalidades. tras linhas de produção quanto à sua comida, moradia e todas as
Examinando-se o trabalho de alguns dos mais fortes e influen-
tes desses intelectuais e especialistas em currículo, podemos come-
çar a ver os compromissos ideológicos que orientaram grande parte (10) Selecionei estes autores como os primeiros membros mais importantes da
área do curriculo porque acredito que sua identificação com a tendência por efi-
da estruturação de currículos no passado. Pois, exatamente como a ciência social e com a j2sicologia behaviorista c~ na linha central da área. Não
visão da escolarização como uma instituição de aculturação lenta- incluo John Dewey e outros identificados com a educação centrada na criança e com a
mente se uniu à visão da escolarização para a adaptação ao sistemá tradição das necessidades/interesses da criança. Embora suas idéias sejam interes-
econômico na mente do público, assim também começou a vincular santes e importantes, exerceram pouca influência tanto na área do curriculo à medida
as duas uma geração de educadores e cientistas sociais. Podemos que se desenvolvia quanto à prática escolar. Para uma discussão dessa posição com
começar a entender, deste ponto, como um modelo curricular eco- referência a Thorndike, ver Clarence J. Karier. "Elite Views on American Educa-
tion". Education and Social Structure in the Twentieth Century. Walter Laquer e
pômica e culturalmente conservador adquiriu forma e tornou:~t:.~_ George L. Mosse(eds.). New York, HarperTorchbooks, 1967, p. 149-51.
106 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 107

outras condições necessãrias à sobrevivência física. Uma situação Homogeneidade social e o problema da comnnldade
como essa acarretou novas necessidades, que eram desconhecidas na
América rural, agrãria, do século XIX. Por um lado, essa nova São importantes aqui duas características dessa função social
classe operãria, a que Bobbitt se referiu como "grupo de operãrios que autores como Bobbitt e Charters atribuíram ao currículo. Pri-
associados", precisava estar apta a desempenhar sua função espe- meiro, estranhamente, ao definir sua finalidade, esses e,ducadores
cializada no modo hierãrquico de organização que dominava a cor- estavam preocupados em identificar essa função com as necessi-
poração. ll E, por outro lado, esses operários precisavam de um dades da comunidade. Bobbitt de fato insistiu em afirmar que a
conhecimento suficiente de suas tarefas sociais e econômicas que tarefa do currículo deveria ser determinada pela comunidade local
lhes permitisse trabalhar junto para a conclusão de um produto em . em que se situava a escola. 16 Isto parece realmente progressista.
cujo projeto tiveram pequena partioipação. 12 Contudo, a segunda característica pode nos obrigar a ser um pouco
Bobbitt e ClMlrters responderam a essa nova necessidade eco- mais prudentes, pois esses teóricos também viam como papel social
nômica de treinamento especializado adotando os procedimentos do do currículo desenvolver um alto grau de consenso normativo e
mercado de trabalho. Tomaram de empréstimo à Administração cog~ entr~ os el~entos~~<!~~l:!.l!!_~.~~~~de. Era a isso que se
referia Bobbitt como uma "grande consciência de grupo": 17

~
Cientifica e construíram uma teoria de estruturação do currículo
que se baseava na diferenciação de objetivos educacionais em termos
das funções específicas e limitadas da vida adulta. 13 Isto não é de Como desenvolver um sentimento genuino de pertencer a um grupo
pequena importância, pois foi a necessidade na vida adulta de uni- social, quer grande quer pequeno? Parece haver apenas um método, e
gade, cooperação e de uma a~tude de aceitaS!2 el!!!~=es~es operá- el\te é: Pensar e sentir e AGIR com o grupo como parte dele à medida
rios especializados que levou os primeiros teóricos da área a definir que ele exerce suas atividades e se esforça por atingir seus fins. Os
como um dos principais papéis do currículo o de desenvolver a indivíduos são amalgamados em pequenos grupos coesos, os peque-
"comunidade". O currículo seria utilizado para promover a "inte- nos grupos divergentes são amalgamados no grande grupo de coope-
gração social". 14 Bobbitt, por exemplo, via o currículo comomeio ração, quando atuam juntos para fins comuns, com visão comum, e
de desenvolvé'r o que chamou de "grande consciência de grupo", com juízo unificado. (Osgrifos são de Bobbitt.)
o termo que empregou para designar o sentimento experimentado
pelo indivíduo de pertencer a seu grupo ou comunidade social e Esses dois aspectos da tarefa social do currículo são bastante
econômica e seu compromisso com seus fins, valores e padrões de significativos. Ambas as questões, a comunidade e a "afinidade de>
comportamento. 15 No entanto, foi a próE!ia definição de comuni- pensamento", eram temas comuns no pensamento social norte-ame-
dade que tornou esse modelo de seleção e determinação de currículo ricano, especialmente nas áreas recém-surgidas da sociologia, psico-
um modelo excep'~n~!.!Del!~ c9E:sefY.!l~. logia e educação, durante os fins do século XIX e princípios do
século XX. A observação desses temas e do modo como foram
empregados durante esse período irá, acredito, ter muito a nos
informar a respeito da natureza da área do currículo e de sua res-
posta no passado e no presente à relação entre escola e comunidade,
(ll) Franklin Bobbitt. The Curriculum. New York, Àrno Press, 1971, Capo 9,
a respeito de sua resposta ao problema de a quem pertence o
(12) Ibid., p. 95.
(13) Ibid., p. 42. Franklin Bobbitt. How to MaÍce a Curriculum. Boston, conhecimento que deve ser construído como conhecimento legítimo.
Houghton Mifflin, 1924, p. 29, 97; W. W. Charters. Curriculum Construction, New Como o autor do trecho doPutman 's Monthly que citei acima,
York, Amo Press, 1971, Caps. 4-5. os membros formadores da ãrea do currículo, bem como a maioria
, (14) Harold Rugg et ai. "The Foundations of Curriculum-Making". The
Foundations of Curriculum-Making, The Twenty-Sixth Yearbook of the National
Society for the Study of Education, Par! 11. Guy Montrose Whipple (ed.). Blõorriing-
tón, Public School Publishing, 1926, p. 16. (16) Bobbitt. How to Make a Curriculum :op. cit., p.281. .
(17) Bobbitt. The Curriculum, op. cit., p: 131. .• j
(15) Bobbitt, The Curriculum, op. cit., Capo 12.
108 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 109

dos primeiros lideres em sociologia, psicologia e educação, eram por ses e protestantes dessa classe "lavraram de um deserto" parecia
nascimento e criação membros de uma classe média nativa e rural, desmoronar-se diante de uma sociedade urbana e industrial em
de religião protestante e linhagem anglo-saxônica. Ao definir a expansão.
natureza, limites e interesses de seus campos de estudo, esses lideres Desses dois interesses, os primeiros representantes das novas
intelectuais, junto com outros cientistas sociais, refletiram e reafir- ciências sociais centralizaram a maior parte de sua atenção no
maram os interesses da classe média. Especifieamente, refletiram o problema da imigração. Desconfiavam que esses imigrantes, que
q~e .acreditavam ser o pod~r e a influê~.cia em .declinio ,da ~L pareciam ter uma taxa de natalidade mais alta que a população
~ no despertar da translção da Aménca, no final do seculo XIX nativa, logo excederiam em número "a população nativa de boa

>
{
e principio do século XX, de uma sociedade rural, agrária, para raça". O número cada vez maior de imigrantes, com seus enclaves
uma sociedade urbana e industrializada. l8 Definiram os temas de urbanos e diferentes tradições políticas, culturais e religiosas, cons-
uma forma particular, como um problema de perda da comunidade. tituía uma ameaça a uma cultura homogênea. Essa cultura uni-
Como vimos na discussão do crescimento da educação urbana, tária não era apenas a fonte da estabilidade da América ~ uma chave
o período em que esses futuros lideres chegaram à maturidade, de para o progresso, mas era sinônimo, para esses membros da intelli-
1865 a 1900, foi uma época de dúvida e medo para todos os peque- gentsia, da própria idéia de democracia. 19
nos fazendeiros, comerciantes e profissionais que constituíam a Em primeiro lugar, esses intelectuais falaram do· tema da
classe média do país. Sentiram que estava em -risco sua ordem comunidade em termos de uma ameaça à existência da cidade rural.
social, que eles viam como que arraigada na pequena cidade rural, Para Edward A. Ross, um dos primeiros sociólogos norte-ameri-
com suas relações pessoais profundas, diretas. Temiam a emergente canos, as relações diretas, profundas e Íntimas da cidade pequena
dominação de uma nova unidade econômica, a corporação. Tam- proporcionavam um mecanismo natural e espontâneo de controle
bém sentiam que uma nova classe social e econômica rica e pode- sociaI,2° Para Ross e outros dos primeiros cientistas sociais, a cidade
rosa, composta pelos proprietários dessas corporações e por seus pequena adquiria proporções quase místicas como a garantia da
financiadores, ameaçaria a segurança econômica e a influência poli- ordem e estabilidade social. A cidade pequena, sua política, sua
tica da cidade pequena, causando danos à sua base econômica na religião, seus valores, passaram a ser vistos, na expressão do soció-
agricultura e na manufatura de pequena escala. Mas o crescimento logo Robert Nisbet, como a própria essência da comunidade norte-
de uma economia de corporações também estava ligado ao cresci- americana. 21
mento dos centros urbanos. As cidades estavam sendo progressiva~ Posteriormente e de modo mais fundamental, os membros
mente habitadas por imigrantes do leste e do sudeste da Europa e desse novo grupo de intelectuais (que na verdade deviam o surgi-
por negros do sul rural. Essas pessoas diferentes eram vistas como mento de suas profissões e as oportunidades que lhes eram ofere-
uma ameaça a uma cultura norte-americana homogênea, uma cul- cidas tanto à urbanização quanto à industrialização) tomaram uma
{ tura centrada na cidade pequena e sedimentada em crenças e ati-
tudes da classe média. A "comunidade" que os antepassados ingle-
(19) Esses temores pela industrialização e urbanização tiveram implicações
importantes para o desenvolvimento da área do currículo assim como pelas Ciências
Sociais em geral. Ver Barry M. Franklin. "The Curriculum Field and the Problem of
(18) Minha análise aqui não defende a tese de aspiração por status realizada Social Control, 1918-1938: A Study in Criticai Theory". Dissertação de Ph.D não
por Richard Hofstadter como uma explicação para o apoio da classe média às publicada, University of Wisconsin, 1974. Quanto a uma anâlise semelhante do
reformas sociais do movimento progressista. Pelo contrãrio, estou apenas refletindo .. ~ desenvolvimento da ârea da sociologia educacional, ver Phi1ip Wexler. The Sociology
as visões, que de fato documento ao longo deste capitulo, dos primeiros lideres da of Education: Beyond Equality. Indianâpolis, Bobbs-Merril, 1976.
sociologia, psicologia e educação. Para uma exposição da tese veja-se Richard Hofs- (20) Edward A. Ross. Social Controlo New York, Macmillan, 1912, p. 432-6;
tadter. The Age ofReform. New York, Vintage Books, 1956, Capo 4. Para uma R. Jackson Wilson. In Quest of Community: Social Philosophy in The United States,
anâlise e critica interessantes da tese sobre a aspiração por status, ver Robert W. 1860-1920. New York, Oxford University Press, 1968, p. 89-99.
Doherty. "Status Anxiety and American Reform: Some Altematives". American (21) Robert A. Nisbet. The Quest for Community. New York, Oxford·Uni-
Quarterly, XIX (Summer, 1962), 329-36. versity Press, 1967,.p. 54.
. 110/ MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 111
/

posição diferente ao definir o problema da comunidade, uma posi- nos, propunha que geneticamente os imigrantes não pareciam apre-
ção que não exigia deles a defesa da cidade pequena como urna sentar "a capacidade de autonomia e de instituições livres demons-
entidade física. 22 Em vez disso, eles apanharam o que julgavam trada pelos povos do norte e do leste da Europa" . 25 .
) Para lidar com essa suposta ameaça, os intelectuais aderiram
,constituir a base da capacidade da cidade pequena de preservar a
estabilidade, seu consens~ em crenças, valores e pad~J~5..2~.E2.!_:~ ao crescente movimento de fins do século XIX e princípios do século
tamento, e idealizaram essa característica da vida de cidade pe- XX de restrição à imigração. 26 Entretanto, para assegurar a homo-
quena como a base da ordem necessária a uma sociedade urbana e geneidade cultural em face da imigração que já ocorrera, viam a
índustrial que então surgia. Para esses intelectuais, a noção de necessidade de uma segunda linha de defesa. Fundamentalmente,
ç",omunidade passou a ser sinônimo da idéia de homogeneidade e perceberam que a imposição de significado poderia ser um instru-
consenso cultural. Se a criação na cidade rural ensinou alguma coisa mento de 50ntrole sodal.:,. O imrgrantepôderJ.a"serprogress1vamente
a esses indivíduos, ensinou-lhes que a ordem e o progresso depen- acultura?o. aos val?res, crenças ~9-!2!'?s de c011lP_ort~meIi"to_Ji~ ú /
diam do grau em que eram comuns e compartilhados as crenças e o classe medIa.
_~~~~,, __,__ Esse Instrumento!
. de acordo
. . . .com_Ross
t . . :era a escola..!. __",_'_
_______ ;/
comportamento. Aplicando essa visão à sociedade progressivamente Ross raciocina de maneira notavelmente semelhante às atitudes que
urbana em que viviam, defendiam a manutenção de uma cultura vimos ao tratar do clima ideológico que cercava o crescimento das
unitária (o que eles entendiam por um sentido de comunidade) escolas urbanas. 27
arraigada nos valores, nas crenças e no comportamento da classe
média. Quando lhes pareceu que a homogeneidade cultural estava Nacionalizar uma população numerosa exige instituições que disse-
se desfazendo, devido à urbanização, industrialização e imigração, minem determinadas idéias e ideais. Os czares contaram com a Igreja.
e que seu sentido de comunidade estava sendo obscurecido, agiram Ortodoxa de cúpula azul em cada cidadela camponesa para russificar
"atacando quaisquer que fossem os inimigos que sua visão de seus adeptos heterogêneos, enquanto nós, americanos, contamos pa-
mundo lhes permitia ver" . 23 ra a unidade com a "escolinha de tijolos vermelhos".

Controle social e o problema da comunidade


Foi nesse veio que Bobbitt e outros líderes formadores da área
do currículo usaram-no para servir à causa da comunidade. O currí-
culo poderia restaurar o que se estava perdendo.
Em nome do consenso cultural, esses primeiros cientistas so-
ciais "atacaram" com uma paixão especial os imigrantes do leste e
do sul da Europa. Adotando em geral uma perspectiva hereditária,
A área do currículo e o problema da comunidade
viam os imigrantes e os operários como inferiores à população na-
tiva. Em vista da alta taxa de natalidade, temiam que esses imi-
grantes viessem a ameaçar a existência das classes economicamente Os primeiros membros mais influentes da área do currículo
privilegiadas com o que Ross denominou de "suicídio de raça",24 De pareciam em geral compartilhar dessas visões acerca da decadência
maneira mais imediata, no entanto, esses imigrantes foram perce- da classe média e a ameaça representada por imigrantes e outras
pessoas diferentes. Ross L. Finney, não apenas um dos primeiros
bidos como uma ameaça à existência da própria democracia. Char-
teóricos do currículo mas também um dos primeiros sociólogos da
les A. Ellwood, um outro dos primeiros sociólogos norte-america-

(22) RobertH. Wiebe. TheSearchforOrder.NewYork, Hill& Wang, 1967, (25) Charles A. Ellwood. Sociology and Modem Social Problems. New York,
American Book Co., 1913, p. 220.
Cap.5.
(23) Ibid., p. 44. (26) Ibid., p. 217-21; Edward A. RoSs. Principies of Sociology, New York,
(24) Edward A. Ross. Foundations of Sociology. 5. ed. New York, Macmillan, Century, 1920, p. 36-7.
1919, p. 382-5. (27) Ross. Principies of Sociology, ibid., p. 409.
MICHAEL W. APPLE IDEOL.oGIA E CURRlcULO 113
112

educação, como os primeiros cientistas sociais e educadores via a outros, à maneira americana aprovada" .32 De igual importância,
classe média ameaçada de cima por uma classe de capitalistas e por Edward Thorndike, que fez mais do que ninguém para articular a
baixo por um operariado imigrante, que se introduzia na população psicologia behaviorista que. tem prevalecido na área do currículo
em número cada vez maior para atender às exigências da industria- desde seus primórdios, via o negro da mesma forma como esses
lização de mão-de-obra barata. Escrevendo num período de pós-I educadores viam o imigrante. Ele não só duvidava de sua capaci-
Guerra Mundial, ele refletiu a paranóia nacional conhecida como o I
dadede adaptação a instituições democráticas, como também o via
Medo Vermelho. Afirmava que os imigrantes do leste e do sul I como um elemento indesejável na população da maioria das cidades
europeus, que acreditava terem trazido consigo para a América uma norte-americanas. 33 Como deveríamos enfrentar esses elementos
ideologia bolchevista, tentariam derrubar a nação e com ela a classe indesejáveis? Uma vez que os negros já estavam aqui, como pode-
28
média numa revolução semelhante à Revolução Russa de 1917. ríamos torná-los iguais a nós? Como poderíamos restaurar a comu-
Ao fazer sua defesa da classe média, Finney lamentava a nidade?
perda da comunidade. Ele falava longinquamente do que via como Exatamente com'O nos primórdios, esses indivíduos voltaram-
uma época mais serena na história do país, uma época em que a se para as escolas. O currículo escolar poderia criar o consenso de
industrialização não tirara a propriedade da riqueza da nação das valores que era o objetivo de sua política social e econômica. Finney
mãos daqueles que a produziram, processo que acabou por criar a esse respeito sustentava que "uma propaganda muito mais sensata
classes e interesses sociais e econômicos conflitantes. 29 para os operários é a que os aliará e amalgamará com a classe
A solução de Finney para esse problema era familiar. A nação média. E uma tal aliança e amálgama deveria ser imposta às classes
devia instilar os imigrantes com valores e padrões de comportamento inferiores, quer seus agitadores apreciem-na ou não, por meio de leis
específicos. O operariado imigrante tinha de manter os mesmos invariáveis que tornem a graduação em nível secundário pratica-
firmes compromissos com seu trabalho que ele atribuía às pessoas mente universal". 34
de sua própria classe. Era esse compromisso, conforme acreditava, Mas quando esses cientistas sociais e educadores passaram a
que reduziria sua potencial ameaça revolucionária, fazendo com que se ocupar com a parte prática da natureza e projeto do currículo,
se sentissem satisfeitos no cumprimento de funções econômicas de~-se uma importante mudança em seu raciocínio, mudança que se
"mais humildes" que via como a futura sorte da "massa" da popu- mostrou importante tanto para o futuro desenvolvimento da área
lação norte-americana numa sociedade industrial. 30 Junto com quanto para aqueles a quem esses desenvolvimentos afetariam. Em
outros intelectuais de seu tempo, sustentava que, "se a conduta de vez de se referir à necessidade de homogeneidade em termos de
um povo democrático deve ser confiável e harmoniosa, [seus mem- diferenças étnicas, de classe e raciais, começaram a falar acerca da
.
bros] preclsam pensar e sentir. de mo do semeIh ant"
e . 31 questão em termos de diferenças em inteligência. A "ciência" tor-
Outros importantes especialistas em currículo tiveram um ~se a capa retórica, conquanto em geral inconsciente, para ocul-
compromisso semelhante com o consenso cultural. Charles C. Pe- tar decisões sociaise educacionais_ conservadoras, fato que adquirirá
ters, que como Finney foi tanto um influente teórico do currículo
quanto um sociólogo da educação, via os imigrantes como uma
ameaça à civilização norte-americana até que passassem a "pensar
(32) Charles C. Peters. Foundations of Educational Sociology. New York,
e a atuar sobre assuntos políticos, sociais, econômicos, sanitários e Macmillan, 1924, p. 25.
(33) Thorndike aparentemente aceitou os pontos de vista do antropólogo
norte-americano R. H. Lowie de que "os negros revelam propensão inveterada ao
(28) Ross L. Finney. Causes and Cures for the Social Unrest: An Appeal to menos pelas formas monárquicas de governo". Ver Edward L. Thorndike. Your City.
the Middle Class. New York, Macmillan, 1922, p. 167-72. New York, Harcourt, Brace, 1'139, p. 77-SO. Para um exame do behaviorismo de
(29) Ibid., p. 43. Thorndike e de sua influência na área do curriculo, ver Barry M. Franklin. "Curri-
(30) Ross L. Finney. A Sociological Philosophy of Education. New York, culum Thought and Social Meaning: Edward L. Thorndike and the Curriculum
Macmillan, 1924, p. 382-3. Field". Educational Theory, XXVI (Summér 1976),298-309.
(31) Ibid., p. 428. (34) Finney. Causes and Cures for the Social Unrest, op. cit., p. ISO.
114 MICHAEL W. APPLE
IDEOLOGIA E CURRlcULO 115

maior relevância quando passarmos a tratar dos usos que hoje se cidade de funçÕes na vida adulta, diversas porém específicas. 38 Esta)
fazem em educação da linguagem científica e técnica, nos Capítulos e-um-aqüesÜo decisiva. Essas funções adultas (ÜversifiéadTs impli-
6, 7 e 8, e a examinar seu emprego para disfarçar suposições cariam responsabilidades sociais desiguais que concederiam poder e
ideológicas e éticas. privilégios sociais desiguais. Esses educadores acreditavam que os
Finney, por exemplo, pareceu ter mudado sua visão acerca do indivíduos portadores de alto quociente de inteligência eram mais
que constituía o principal problema enfrentado pela sociedade virtuosos, mais dedicados ao trabalho e mais propensos a empregar
norte-americana. A ameaça básica à classe média deixara de ser o seus talentos em benefício da sociedade que a maioria da população.
aumento do operariado imigrante. Mais importância tinha o fato de Conseqüentemente, Thorndike e outros sustentaram que as visões
que "metade da população tem cérebros de qualidade apenas me- desses indivíduos eram de maior significado social que as da maio-
diana ou inferior, da qual uma porcentagem bastante considerável ria. Por conseguinte, mereciam uma posição de destaque social e
tem, de fato, cérebros muito fracos". 35 Aliado a ele nessa visão do político. 39
problema encontrava-se Thorndike, que sustentava que os indiví-
duos com baixo quociente de inteligência constituíam uma ameaça à
Essa visão da distribuição desigual de responsabilidade e 1
poder refletia-se quando se referiam à forma como a diferenciação I
própria existência da "civilização". 36 Bobbitt e outros progressiva-
mente codificaram suas idéias em termos científicos. De fato, até
do currículo atenderia a duas finalidades sociais - educação para
os que se acham na cúpula e educação para os que se acham na i
7
advertiram contra o nacionalismo extremo e a aversão aos europeus base. Os dotados de quociente de inteligência elevado deveriam ser
que ele engendrava. 37 Agora, quando passaram a tratar diretamente educados para guiar o país, ensinando-lhes a compreender as neces-
f da questão da estruturação do currículo, parece que modificaram sidades da sociedade. Também aprenderiam a definir convicções e
,1 /~ sua visão do problema de comunidade. O problema deixara de ser o
\l ~de manter a hegemonia dos membros mai~ privilegiado~ da cO~~!1:i~-._
~~ dade, problema identificado pela maioria dos primeiros líderes nas
t
\
ciências. sociais, pass.ando a se.r. o de manter a heg~i~_~~qu~~~~_~. __
co~~:de inteligência numa sociedade em ~u: a massa
(38) Bobbitt. How to Make a Curriculum, op. cit., p. 41-2, 61-2; Edward L.
Thorndike. Individuality. Boston, Houghton Miff1in, 1911, p. 51; Edward L. Thorn-
dike. Education: A First Book. New York, Macmillan, 1912, p. 137-319; David
da população era Julgada portadora, na melhor das hlpoteses, de Snedden, Sociological Determination of Objectives in Education, Philadelphia, Lip-
inteligência mediana. Como veremos, isto se constitui menos numa pincott, 1921, p. 251; Peters, Foundations of Educational Sociology, op. cit., p. víi.
Finney adotou uma visão da diferenciação um tanto diversa da dos outros
mudança do que se poderia pensar. primeiros teóricos da área. Defendeu o que parecia ser um currículo comum domi-
nado pelas áreas de conhecimento em ciências sociais. Mas fez uma distinção crítica
quanto ao modo como esses temas deveriam ser ensinados a indivíduos com diferente
A diferenciação do currículo e a questão da comunidade capacidade. Àqueles com alto quociente de inteligência se deveria ensinar sua he- .
rança social através de um estudo de Ciências Sociais. Seria um estudo que lhes
ensinaria a entender não apenas sua herança mas as exigências sociais que ela lhes
O traço central da \dsãô da estruturação do currículo que faria. Àqueles com baixo quociente de inteligência, dever-se-iam ensinar apenas as
dominou o pensamento desses primeiros educadores, e de fato ainda próprias Ciências Sociais, mas seriam condicionados a responder a slogans apro-
priados que refletissem o conteúdo dessas áreas de conhecimento e as exigências
domina o pensamento dos teóricos do currículo contemporâneos,
sociais que elas trariam em si. Ver Finney. A Sociological Philosophy of Education,
r- era que o currículo precisava ser difer~ciado -e.~E~_.pr.eJ?~r.a! .iIl~i­ op. cit., Capo 15, p. 393-6, 406, 410. Quanto à importância da diferenciação do
yíduos com iÍ1telig~!lcia e ~.E~~!Elade ~_U~!.~~"p~r.~ ~U}:~lª tllu1tipli- currículo atualmente, ver Herbert M. Kliebard. "Bureaucracy and Currículum
Theory". Freedom, Bureaucracy and Schooling. Vernon F. Haubrich (ed.). Wash-
ington, Association for Supervision and Currículum Development, 1971, p. 89-93.
(39) Finney. A Sociological Philosophy of Education, op. cit., p. 388-9;
(35) Finney. A Sociological Philosophy of Education, op. cit., p. 386. Thorndike, Human Nature and the Social Order, op. cit., p. 77-9, 800-2; Edward L.
(36) Th'orndike. Human Nature and the Social Order, op. cit., p. 440. Thorndike. "A Sociologist's Theory of Education". The Bookman, XXIV (November
(37) Bobbitt. The Curri~ulum, op. cit., p. 158; William Bagley, "Supple- 1906), p. 290-1; Edward L. Thorndike. Selected Writings from a Connectionist's
mentary Statement". In: Rugg,op. cit., p. 38. Psychology. New York, Appleton-Century-Crofts, 1949, p. 338-9.
116 ) MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRtCULO . 117 j
/' ...j

\'---;~drões de comportamento adequados para atender a essas necessi- conquistar seu assentimento. 45 Portanto, algumas pessoas com mais
dades. A massa deveria ser instruída a aceitar essas convicções e >~.l!Q~gopa 91rJsiri~tn. outr~;, O 9"Ue'põderiaha;~~-~!iid~,~Qji~QL "~_'
padrões quer ou não os entendesse ou com eles estivesse de acordo. 40 É exatamente quem seriam essas ~es_~9aLque toma essa vida nada
,i
Como propôs Finney, "em lugar de tentar ensinar beócios a pensar neutra.
por si mesmos, os líderes intelectuais devem pensar por eles e semear
os resultados, por meio de memorização, em suas sinapses". 41
Dessa forma a diferenciação do currículo baseada na "inteligência" Etnicidade, inteligência e comunidade
produziria homogeneidade cultural e, com ela, estabilidade na

l
i} sociedade norte-americana. 42 Como vimos, ao definir a função do currículo muitos dos
tS" (: Em resumo. o interesse dos primeiros a estruturarem currículo membros mais influentes na área, embora parecessem temer e ver
i! i estava na preservação do consenso cultural e, ao mesmo tempo, em com maus olhos os imigrantes, passaram a discutir a questão da
,/ destinar os indivíduos aO seu "lugar" adequado numa sociedade defesa da comunidade como um problema do baiXo quociente de
/ industrial interdependente. Bobbitt aludiu a esse interesse ao iden- inteligência muito comum na população. Mas há provas para suge-
, tificar as duas funções principais da vida industrial, moderna. Havia rir que essa redefinição não era sinal de uma mudança do ponto de
o trabalhador "especializado" que mencionei um pouco acima neste vista que compartilhavam com os primeiros líderes nas ciências
·capítulo. Sua função era ser especializado em uma tarefa estrita sociais. Embora discorressem a respeito da diferenciação do currí-
numa dada organização. Além disso, ele precisava de um conheci- culo em termos de inteligência, tanto Bobbitt quando David Sned-

i
mento limitado da totalidade da organização que lhe permitisse ver den, outro que era tanto especialista em currículo quanto sociólogo
a importância da sua função restrita no grande processo de pro- da educação, sugeriram que a diferenciação deveria ser feita tam-
dução e distribuição e para sua "submissão disposta e inteligente" bém em termos de diferenças de classe social e formação étnica,
aos propósitos da organização. 43 O trabalhador "especializado" respectivamente. 46 Quando Thorndike identificou os que na socie-
precisaria de uma compreensão completa apenas de sua tarefa dade norte-americana possuiriam maior capacidade natural e alto
específica. Fora dessa tarefa, conforme Thorndike, ele apenas preci- quociente de inteligência, ele apontou para o homem de negócios,
sava "saber quando não abstrair e onde encontrar o conhecimento o cientista e o advogado. 47 Ess'as eram ocupações que na 'Sua época
de que necessita'~. 44 E havia o "generalista", termo empregado por eram quase que totalmente monopolizadas por membros da classe
Bobbitt para o gerente ou supêrvisor. Ele não precisava ser espe- média nativa. Os portadores de inteligência superior, portanto,
cializado em tarefa alguma, mas, sim, necessitava. uma compreen- deviam encontrar-se predominantemente nesta classe e não nas mais
são total dos objetivos da organização e um compromisso com eles, baixas. As massas sem inteligência eram os elementos de diversi-
que lhe permitisse dirigir as atividades dos "especializados" e a dade na população, em primeiro lugar os imigrantes d~ leste e do sul
da Europa e, num grau menor, a população negra.J~.2!:,~ll;1!t.'>L~.91.le.
os intelectuais norte-americanos viram originalmente como um pro-
(40) Finney. A Sociological Philosophy of Education, op. cit., p. 386, 389;
bkma c~ltural de diferenças étnicas"edecl~S;~'lõIr;;d~fi~1d;,'''~~
Edward L. Thorndike. "How May We Improve the Selection, Training, and Life linguagem áparentementé'neutra âa ciénciâ;como um: próõlemá.'oo-M
Work of Leaders". How Should a Democratic People Provide for the Selection and diferenças em inteli8êncra;-CÕnlo~iiiilPrõbrema~::~~~é~~::', "
Training of Leaders in the Various Walks of Life. New York, Teachers College Press, diversas para contribuir para a maximização e o controle do, conhe-
1938, p. 41; Walter H. Frost. David Snedden and Education for Social Efficiency.
Madison, University óf WIsconsin Press, 1967, p. 165, 197.
(41) Finney. A Sociological Philosophy of Education, op. cit., p. 395.
(45) Bobbitt. The Curriculum, op. cit., p. 78-86.
(42) Ibid., p. 397-8.
(46) Ibid., p. 42; 'David Snedden. Civic Education. Yonkers on Hudson,
(43) Bobbitt. The Curriculum, op. cit., p. 78-81, 95.
World Book Co., 1922, Capítulo 4.
\ (44) Edward L. Thorndike. "Tl!e Psychology of the Half-Educated Man".
(47) Thorndike.Human NatureandtheSocial Order, op. cit., p. 86-7, 783-5,
Harpers, CXL(AprjI1920), 670 ..
963.
MICHAEL w. APPLE IDEOLOGIA E CURRtCULO 119
,/ 118 ')
J '
~'"CffÚento moral e técnico "especializado", despojando desse modo o Observe-se que essa visão de organização social não procura
,,-~2!>leE1~_~:.. ~~.':l:_~"~l1t~.2:~~~c.::«:)!!.§!!l}co e_social, O controle social, eliminar toda a diversidade, mas, antes, controlá-la estreitando seu \
l'.2!!1!l1t<?/., t<?~nou -se, ~l1C()l:>.~rt9.p~I~)111~.~B:~~.~~.~~ª~~ia'.. ~!~~~9ue
7'\' campo de ação e canalizando-a para áreas que não parecem amea- '!
persiste até hoje. 48 Por meio do controle e diferenciação dos currí- çar os imperativos da estabilidade. social, produção de "conheci-
, cuIos escolaTt~-s~'ãspessoas e as classes também poderiam ser contro- mento especializado" e crescimento econômico. Os industriais, por
ladas e diferenciadas. exemplo, desde a década de 1880 até inicios da década de 20,
Por que o fizeram? Os téoricos formadores da área do currí- período em que esses teóricos amadureceram e levaram avante seu
culo, apesar de sua identificação com a classe média, passaram a ver trabalho, combateram o movimento nacional em favor da restrição
favoravelmente a industrialização e o surgimento das grandes em- da imigração. Pelo contrário, tentaram diminuir a suposta ameaça
presas. Estavam especialmente enamorados da aparente eficiência e dos imigrantes à sociedade norte-americana instilando-os com ati-
produtividade dos processos industriais e, assim, incorporaram à tudes, crenças e padrões de comportamento da classe média. Ao

<
sua concepção de estruturação do currículo os princípios da Admi-
nistração Científica julgados responsáveis por ela. 49 Mas, ~ém dessa
confiança nos procedimentos das grandes empresas, estavam com-
p~Sêom seu modo hierárquico de organização como um
mesmo tempo, empregaram sua aparente "disposição" para traba-
lhar em troca de baixos salários para atender às demandas de indus-
trialização por mão-de-obra barata. 51 Aqui, os membros forma-
dores da área do currículo, ao cOQtrário de alguns dos primeiros
~) modelo para a própria sOciedadé':'IStô"podt-ser'-visto de ~aneira cientistas sociais, pareciam compartilhar dessa visão mantida pelos
~mãiSêTara na visão de Finney para a sociedade norte-americana: 50 industriais. 52 Podem ter acreditado que, em vista do crescente senti-
mento nativista do período em seguida à I Guerra Mundial, pode-
Essa concepção de cúpula e base - levou-nos novamente à noção de riam ser mais bem-sucedidos promovendo a integração de elementos
uma hierarquia graduada de inteligência e instrução. (. .. ) No ãpice diversos da população numa sociedade hierarquicamente organi- '"
desse sistema devem estar os especialistas, que impulsionam a pes- zada se conceituassem essa diversidade em termos de inteligência e /
quisa para setores altamente especializados do front. Atrãs deles, não de etnicidade. No contexto da época, sem dúvida acreditaram
vêm esses homens e mulheres que as universidades deveriam formar, que a sociedade norte-americana estava mais inclinada a lidar com a
que estão familiarizados com as descobertas dos especialistas e são inteligência do que com a diversidade em etnicidade ou raça. 53 Mas
capazes 'de relacionar um segmento com o outro. Esses ,lideres do indubitavelmente se sentiram seguros em sua convicção de que uma
pensamento relativamente independentes proverão mudanças pro-
comunidade "real" poderia ser'c'onstruída através da educação,uma
gressistas e reajustamentos constantes. Atrãs desses, vêm os gradua-
dos no curso secundãrio, que são um tanto familiarizados com o comunidade com líderes "naturais" e discípulos "naturais" e em
vocabulãrio dos que se acham acima deles, têm um sentimento de que pessoas como "nós" pudessem definir ,como deveriam ser "as
familiaridade com as diversas ãreas e um respeito pelo conhecimento outras" .
especializado. Finalmente, vêm as massas mais estúpidas, que repe-
tem os.slogans dos que estão diante de si, imaginam que os entendem (51) John Higham. Strangers in the Land. New Brunswick, Rutgers Univer-
e seguem por imitação. sity Press, 1955, p. 51,187,2..':.7,303-10, Capítulo 9.
(52) Ross, em circunstâncias semelhantes" perdeu seu emprego na Stanford
University porque se irritou com a senhora Leland Stanford, esposa do fundador da
(48) Para um exame desta tendência no pensamento social, ver Trent universidade e sua autoridade principal após a morte do marido. Atacou a comuni-
Schroyer. "Toward a CriticaI Theory for Advanced Industrial Society". Recent Socio- dade comercial por seu apoio à imigração chinesa irrestrita. Ver Walter P. Metzger.
logy n. 2. Hans Peter Dreitzel (ed.). New York, Macmillan, 1970, p. 212. Quanto à Academic Freedom in the Age of the University. New York, Columbia University
adequabilidade desta visão, para interpretar-se a educação norte-americana, ver Press, 1955, p. 164-71; e Bernard J. Stern (ed.). "The Ward-Ross Correspondence 11
Walter Feinberg, Reason and Rethoric. New York, John Wiley, 1975, p. 40. 1897-1901". American Sociological Review, VII (December 1946), 744-6.
(49) Kliebard. "Bureaucracy and Curriculum Theory", op. cit., p. 74-80; e (53) Higham sustenta que na década de 20, periodo em que o currículo surgiu
Raymond E. CaJlaghan. Education and the Cult of Efficiency. University of Chicago como um campo de estudo e em que os educadores aqui em consideração realizaram
Press/ 1962, Capo 4. seu trabalho mais importante, os sentimentos nativistas norte-americanos afastaram-
(50) Finney, A Sociological Philosophy of Education, op. cito se das tentativas de assimilação através de programas de americanização e, pelo
120 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 121

Mas isso não explica tudo. A isto deve-se acrescentar o papel explanatória que se mostrava como se pudesse determinar causas e
da "ciência" mais uma vez como fornecedora dos "princípios fun- inferir razões quanto ao porquê de as coisas ocorrerem ou não ocor-
damentalmente corretos" quanto aos quais deve haver consenso. rerem dentro e fora das escolas. Terceiro, e muito importante, a lin-

~
À medida que aumentava a justificação científica da estratificação, guagem da ciência e tecnologia prosseguia a promessa de melhor
à medi9a que se tornava mais sistemática, ela forneceu a solução controle, dando aos educadores maior facilidade de predição e
ideal para o problema ideológico de justificar o poder de um grupo manipulação. Ajudar-nos-ia em nossa meta de levar diferentes estu-
sobre o outro, combatendo e finalmente ameaçando grupos. E essa dantes do ponto A ao ponto B rápida e eficientemente (embora, se os
solução veio de duas formas: dando uma definição "adequada" da fins e os meios de levar de A a B eram ética e economicamente·
situação desses indivíduos e servindo aos interesses dessas classes na "justos" é uma das questões críticas que não foram adequadamente
luta pelo capital econômico e cultural. Tratando a ciência como uma levantadas por essas pessoas), perfazendo de tal modo um longo
forma de tecnologia, como um método neutro que poderia ser apli- caminho em direção da criação das categorias e procedimentos que
cado aos dilemas econômicos e culturais enfrentados por essas pes- até hoje sustentam o indivíduo abstrato, e o educador e o estudante
",oas no esforço para reproduzir e produzir hegemonia, é evidente o desvinculados.
papel (o campo de ação e a função) de sua visão ideológica. Esses tipos de significados criados por esse sistema lingüístico
Esses "reformadores" se defrontavam com um dilema de inte- eram declarados e provavelmente ajudaram a prover esses educa-
resse. Falando de modo geral, com a ruptura de uma ordem econô- dores com um sentido da integridade de seus esforços. Afinal, quem
mica e social uma vez aceita - causada em parte pela rápida indus- poderia queixar-se de ser mais capaz de descrever, explicar ou con-
trialização, pela mudança de acumulação de capital agrícola para trolar os acontecimentos? Contudo, as funções ideológicas latentes
capital industrial, o crescimento da tecnologia, a imigração, a desin- da ciência e tecnologia como um sistema lingüístico tiveram igualou
tegração da vida comunitária, o aumento da "necessidade" de divi- até mais importância que as manifestas em oferecer uma "definição
dir e controlar a mão-de-obra para aumentar os lucros, e assim por útil da situação". A ciência, com sua suposta lógica de eficiência e
diante -, os vínculos comunitários tornaram-se frágeis. Os signifi- controle, exerceu uma função de legitimação ou justificação. Como
cados que proporcionaram os laços entre as pessoas tinham de ser observa Huebner, a linguagem de legitimação serve para estabelecer
reconstituídos, em geral sobre novas bases. A forma da linguagem a reivindicação de uma pessoa de que ela sabe o que está fazendo ou

~
da ciência e tecnologia forneceu esses laço.s. de. diversos modos para de que ela "tem o direito, responsabilidade, autoridade ou legiti-
(\ . ps educadores, dando-lhes uma nova e completa ordem de signifi- midade para fazê-lo". 55 Em resumo, reafirma a diversos grupos e
'(}! v t\:ados em torno dos quais poderiam se "associar. 54 Primeiro, ela pessoas que o educador conhece e tem o direito de continuar a fazer \
\.Stl oferecia um modo de descrição que parecia mais poderoso. que as o que vem fazendo. Em vista da confiança cada vez maior' nos
/' formas anteriores de discorrer sobre acontecimentos e política edu- modelos industriais e-de eficiência pelas classes que detêm o poder
cacionais, uma forma de descrever a relação' entre as escolas e OS no setor econômico da sociedade, a ciência e a tecnologia uniram-se)
problemas da sociedade, e para descrever o que se passava ou para criar uma forma de linguagem que vinculasse esses educadores
deveria se passar nas salas de aula. ~egundo, era uma linguagem é intelectuais ao sistema de valores da ordem econômica mais
ampla.
Além do mais, não apenas justificou a atividade dos educa-
dores - afinal, criou de fato coesão entre os educadores e assenta-se
contrãrio, voltaram-se em defesa da restrição à imigração. Foi em 1924 que se facilmente numa economia em desenvolvimento com sua exigência
promulgou o ato Johnson-Reed, que estabeleceu firmemente o "principio das origens de eficiência, conhecimento técnico, crescimento industrial e socia-
nacionais""com as restrições que aplicou aos povos do leste e do sul da Europa, na lei
bilização com a "democracia" -, mas também ajudou a recrutar
norte-americana. Ver Higham. Strangers in the Lmd, op. cit., Capo 11.
(54) Dwayne Huebner. "The Tasksof the Curricular Theorist". Curricu/um
Theorizing: The Reconceptualists. William Pinar (ed.). Berkl(.ley, McCutchan, 1975,
p.256. (55) Ibid., p. 255.
122 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 123

.adeptos, indivíduos empenhados que trabalhariam pela causa. pIo, de modelos sistêmicos de administração) como o fora há quase
Finalmente, atuou como um dispositivo de exortação que poderia sessenta anos, quando os lídere; da área voltaram-se para a Admi-
prescrever a ação que deveria ser realizada pelos diversos grupos e nistração Científica para orientação na articulação da natureza da
indivíduos. Este foi inicialmente um uso político da linguagem em estruturação do currículo. Desde que a tendência histórica desse
que a ciência e a tecnologia transmitiam um imperativo 16gtCõe'um~ compromisso é construir a "comunidade" (e os currículos) que
compronUssoidêõIbgíco necessários para convencer as pessoas a.' reflete os valores daqueles que detêm poder econômico e cultural, é
aderirem a um movim~-nto em favor do que parecia ser uma reforma um compromisso que pode estabelecer hoje a mesma ameaça aos
institucional de melhoria. 56 operários, mulheres, negros, latinos e índios americanos que esta-
Em todas essas formas - descritiva, explanatória, prescritiva, beleceu no início do século XX aos negros e imigrantes do leste e sul
legitimadora ou justificatória, e exortativa -, a racionalidade da da Europa. Em vista da tendência de muitos teóricos do currículo
~iênci~ ~. da tecnolõgia e-~~ u~ e~pediente ideal para criar. um novo desde os princípios da área para articular seus compromissos con-
conjunto de significados, uma nova visão do "sagrado", se 'assim se servadores na linguagem científica e aparentemente neutra de inte-
quiser, que reconstruiria os .laços comunitários que haviam se tor- ligência e competência, também constitui uma ameaça que histori-
nado tão frágeis, que recriariam a "comunidade". Mas isso não era camente permaneceu desconhecida. Apenas vendo-se como a área
apenas o caso para educadores. Ciência, p~ogresso, eficiência, cres- do currículo em geral serviu aos interesses conservadores de homo-
cimento industrial e expansão, todos dentro dos limites de estabili- geneidade e controle social podemos começar a ver como funciona
dade social, tornaram-se também uma parte integral da visão de hoje. Podemos ainda descobrir, infelizmente, que a retórica de
mundo ideológica da maioria dos setores mais poderosos da nação. ciência e neutralidade mais oculta do que revela. No mínimo, em-
Seu resquício histórico ainda fornece as regras sociais constitutivas bora possa ser lamentável, não deveríamos esperar que a área do
para a vida cotidiana em sala de aula que examinei no Capítulo 3 currículo destruísse completamente seu passado. Afinal, como em
(as origens da escolarização como um modo de preparar as crianças nossa história imaginária no começo desta análise, as escolas real-
para o "trabalho" evidentemente são muito profundas) e para os mente trabalham ... para "eles". Em educação, como na distribui- )
tipos de conhecimento formal considerados essenciais a uma eco- ção desigual de bens e serviços econômicos, "aqueles" que têm,
nomia industrial que analisamos no Capítulo 2. recebem. 57
Se estamos de fato seriamente empenhados em tornar nossas
instituições sensíveis às comunidades, de formas diferentes das
Conclusão atuais, o primeiro passo está em reconhecer as conexões históricas
entre grupos que detiveram o poder e a cultura que é preservada e
Ê este empenho em manter um sentido de comunidade, ba- distribuída por nossas escolas. Pode nos levar a formular perguntas
seado em homoge~idade cultural e consenso de valores.L9}!~je!!!, semelhantes hoje. Talvez pudéssemos começar retornando à nossa
sido e permanece um dos legados primários, embora tácitos, da área historieta inicial e perguntar novamente: "Para quem as escolas
do currículo. E uma função que está engastada na dependênCia" da ) trabalham?". Alguns educadores podem ficar muito transtornados
área em procedimentos e técnicas tomados de empréstimo a grandes pela resposta. Mas quem foi que disse que tomar consciência da "')
empresas. Como veremos no Capítulo 6, estranhamente (embora posição política tácita deveria deixar alguém à vontade? ./"
talvez não, diante do que vimos quanto ao passado da área), essa
dependência permanece hoje tão forte (com a dominação, por exem-

(56) Quanto aos usos da linguagem exortativa para criação do imaginãrio, (57) Para maiores explicações dessa relação, ver Michael W. Apple e Phllip
ver Murray Edelman. The Symbolic Uses Df Politics. Urbana, University of Illinois Wexler. "Cultural Capital and Educational Transmissions". Educational Thzory,
Press, 1964. XXVIII (Winter 1978).
5
O currículo oculto
e a natureza do conmto

Sustentei no Capítulo 1 que, para entender a relação entre o


currículo e a reprodução cultural e econômica, deveríamos abordar
mais completamente a preservação e o controle de determinadas
formas de ideologia, a hegemonia. Vimos agora como histórica e
presentemente algumas concepções normativas de cultura e valores
legítimos se introduziram no currículo. Entretanto, precisamos res-
saltar que a hegemonia é pr~?uzida e r~@od~~!~.!l?_elo.,~p_rp~s f0!Ell!.! ''';'
do conhecimento escolar, assim como pelo ensino oculto. Como as
citações de Williams indicaram um pouco acima, a tradiçãoe incor-
poração seletivas atuam ao nível do conhecimento manifesto, de
modo que alguns significados e práticas são escolhidos como impor-
tantes (geralmente por um segmento da classe média 1 ) e outros são
menosprezados, excluídos, diluídos ou reinterpretados. Da mesma
forma como muitos educadores e especialistas em currículo per-
deram a noção de suas origens históricas nos interesses de se manter
o consenso através ~a seleção do conhéci;;t;nt;:;b~~e~da !?-umaEi~~'
de uma sociedade estratificada por classe e por critérios de "compe-
~.!!ncia", também a tradição seletiva opera hoje para negar a imeor-
tância tanto do conflito quanto da disputa ideológica séria. O que
... ~ em geral se'constituiu no passado em um"~êSfõrÇõ consciente da

(1) Ver em especial a anâlise de Basil Bemstein em seu novo capitulo "As-
pects of the Relation between Education and Production". Class, Codes and Control.
Volume 3: Towards a Tlzeory of Educational Transmissions. 2. ed. London, Rou-
tledge & Kegan Paul, 1977.
126 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO /~
burguesia de criar um consenso que não havia, tornou-se a única e a cultura com que interagem cotidianamente. Isso exige que as
interpretação viável das possibilidades sociais e intelectuais. O que instituições, as regras do senso comum e o conhecimento sejam
era a princípio uma ideologia na forma de interesses de classe vistos como relativamente pré-dados, neutros e basicamente inalte-
. passou a ser agora a definição da situação na maioria dos currículos ráveis, pois todos continuam a existir por "consenso". Portanto, o
escolares. Devemos analisar isso examinando alguns aspectos do currículo deveria acentuar suposições hegemônicas, que ignoram a l
corpus formal do conhecimento escolar e ver como o que se passa atuação real do poder na vida cultural e social e que apontam para a (
dentro da caixa negra cria as conseqüências que os teóricos da naturalidade de aceitação, prebendas institucionais e uma visão
reprodução econômica procuraram descrever. Mais uma vez, nossa positivista em que o conhecimento está desvinculado dos atores hu-
visão da ciência desempenhará um papel interessante e, neste caso, manos concretos que o criaram. A chave para pôr isso a descoberto,
mais direto. creio, está no tratamento do conflito no currículo.
Antes de prosseguir, porém, é importante observar que, para
que a escola continue a desempenhar de maneira relativamente
suave seus papéis históricos complexos, na maximização da produ- o conflito e o currículo oculto
ção de conhecimento técnico e na sociabilização dos estudantes com
a estrutUrãnormarlvaeldgida por nossa sodedad~~'~l~tem de reali- O fato de as escolas normalmente mostrarem-se neutras e
zar uma outra coisa que se relaciona com ambos os papéis e ajuda a serem patentemente isoladas dos processos políticos e do debate
sustentá-los: tem de tornar legítima uma perspectiva basicamente ideológico tem apresentado qualidades tanto positivas quanto nega-
técnica, uma tensão da consciência que responde ao mundo social e tivas. O isolamento serviu para defender a escola de caprichos ou
{ intelectual de maneira acrítica. Ou ~~ja,!..~ esc~.p!ecisa fazer com modismos que em geral exercem um efeito destrutivo sobre a prática
\ que tudo isso pareça natural. Uma sociedade baseada no capital educacional. Também pode, no entanto, tornar a escola muito
cultUral técnicõ"e-na-ãcli""muTação individual do capital econômico insensível às necessidades das comunidades locais e a uma ordem
precisa mostrar-se como se fora o único mundo possível. Parte do social em mudança. Os prós e contras da escola como uma insti-
papel da escola, em outras palavras, é contribuir para a distribuição tuição "conservadora" têm encontrado discussão inflamada em
do que os teóricos críticos da Escola de Frankfurt poderiam chamar torno dos últimos dez anos. Entre os mais notáveis dos interlocu-
de padrões utiliJário.~r-ªcionais de pensamento e ação: tores encontram-se Edgard Z. Friedenberg e o Jules Henry maduro.
Este é um elemento importante na hegemonia ideológica, Ã parte das discussões do ensino de normas relacionadas ao traba-
pois, como se observou no Capítulo 3, para que se mantenham as lho, o ensino oculto de uma ética da eficiência e do mercado e a
d~finições de situações de estudantes (como aquelas transmitidas em provável substituição de um sistema de valores de "classe média" e
sua experiência escolar inicial), essas definições precisam ser cons- em geral "esquizofrênico" pelos próprios significados biográficos de
tantemente confirmadas. Naturalmente, essa confirmação deve um estudante têm sido alguns dos tópicos mais freqüentemente
acarretar uma continuação dos padrões de interação que prevalecem postos em análise. Como vimos, boa parte do enfoque tem incidido
no jardim de infância. Mas, unia vez que os estudantes, à medida
que crescem, podem raciocinar verbalmente com alguma facilidade
no que Jackson com muita propriedade rotulou de "currículo
oculto" - ou seja, nas normas e valores que são implícita porém lCé)
e podem refletir sobre aspectos de suas condições sociais e culturais, efetivamente transmitidos pelas escolas e que habitualmente não são
o próprio conteúdo do currículo adquire importância ainda maior. mencionados na apresentação feita pelos professores dos fins ou {
Ê . necessário haver uma f!!!!.ificação constante ..~ cada vez mais ~pbt~l.!Y0s. De maneira semelhante à que se encontra no Capítulo 3,
~p~i!~~~a<!llpara a aceitação-das dl.SHnçõesejiap~is~sõCials·~flt~­ embora sem a mesma orientação política, Jackson trata amplamente
.I1or:tilefl.teaptendidos.Essa justificação precisa estabelecer os limi- da forma como os estudantes aprendem a enfrentar os sistemas de
tes ideológicos de uma abordagem como essa, incorporando formas panelas burocráticas, recompensa e poder nas salas de aula: a larga
"adequadas" com as quais os estudantes possam começar-a racio- margem de espera que as crianças são obrigadas a sofrer, o pro-
cinar, através da lógica, por que são de fato legítimas as instituições fessor como o primeiro "patrão" da criança, e da forma como as
128 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 129

crianças aprendem a dissimular alguns aspectos de seu comporta- crianças como lidar e se relacionar com a estrutura de autoridade da
mento para se adaptarem ao sistema de recompensas existente na coletividade a que pertencem por meio de padrões de interação a
maioria das salas de aula. 2 que estão expostas até um certo ponto nas escolas.
Essas criticas da visão de mundo ideológica legitimada nas Evidentemente, não é apenas a escola que contribui para o
escolas são incisivas, embora tenham deixado de enfocar uma carac- "ajustamento à autoridade" por parte de um estudante. Por exem-
teristica predominante da escolarização corrente que contribui signi- plo, grupos de companheiros e em especial a familia, através de suas
ficativamente para manter a hegemonia. Até agora é pouco o exame práticas de educação e de seu estilo de interação interpessoal, podem
sobre o modo como o tratamento do conflito no currículo escolar afetar profundamente a orientação geral de uma: criança para com a
pode conduzir a um quietismo político e à aceitação por parte dos autoridade. s No entanto, existe um forte indício nas últimas pes-
estudantes de uma perspectiva do conflito social e intelectual que quisas de que as escolas são antes rivais acirrados da família como
atua para manter a distribuição existente de poder e racionalidade agentes importantes de ~ociabilização política. Como expresso por.
numa sociedade. Além de seu apoio às funções de formação e socia- Sigel: 6
bilização da escolarização, o tema do conflito é decisivo por duas
razões. O modo como é abordado ajuda a postular o sentido do
[Há] provavelmente pouca dúvida de que as escolas públicas são um
estudante dos meios legítimos de adquirir recursos em sociedades
núcleo de alternativas de escolhas mais para. o tradicional que o
estratificadas. Isso tem e terá cada vez mais importância em áreas inovador, e menos para o radical. Conseqüentemente, facilitam a
de classe operária e urbana. Pode ser muito premente que os estu- sociabilização política dos jovens de posições não radicais e tendem a
dantes oriundos da classe operária e urbana, entre outras, desen- muni-los com os instrumentos necessários para os' papéis específicos
volvam perspectivas positivas quanto ao conflito e à mudança, pers- que se espera venhâm a desempenhar numa dada sociedade. :f: possí-
pectivas que lhes possibilitem lidar com realidades políticas e a vel indispor-se com os papéis diferenciais que o governo e as escolas
dinâmica do poder de sua sociedade, complexas e freqüentemente atribuem aos estudantes, mas é provável que seria consideravelmente
repressoras, de maneira menos propensa a preservar os modos de mais difícil negar a eficácia da escola.
interação institucionais comuns. 3 Também há sugestões programá-
ticas específicas que poderiam ser instituídas de modo razoavel-
mente imediato nos programas escolares para minorar alguns dos (5) Ibid., p. 104.
problemas (e que poderiam ser experimentadas também por razões (6) Ibid., p. 316. Uma afirmação como essa é tanto realista quanto crítica.
táticas). De uma certa forma, os críticos ·das escolas (e este autor em grande parte) são
Pode-se aprender um pouco a respeito da importância do apanhados num dilema. É muito fácil denegrir as estruturas "educacionais" exis-
ensino tácito ou oculto dos textos sobre a sociabilização política. tentes (afinal, todos parecem fazê-lo); no entanto, não é muito fácil apresentar
estruturas alternativas. Aquele que apresentar reformas graduais para algumas das
Está começando a ficar claro que o "aprendizado incidental" con- condições mais enfraquecedoras corre o risco de na verdade ajudar a estabelecer e a
tribui mais para a sociabilização política de um estudante que, di- perpetuar o que pode muito bem ser um conjunto ultrapassado de programas insti-
gamos, as aulas de Educação Moral e Cívica ou outras formas de tucionais. No entanto, não procurar melhorar as condições de formas que em geral
ensino deliberado de orientação de valor específicas. 4 Ensina-se às . são modestas e experimentais é ignorar os seres humanos concretos que habitam as
escolas durante a maior parte de sua vida antes da idade adulta. Portanto, tenta-se
atuar dos dois lados da luta. Criticam-se as suposições ideológicas e econômicas
fundamentais que circundam as escolas da forma como se encontram hoje e, ao mesmo
(2) Philip J ackson. Life in Classrooms. New York, Holt, Rinehart & Winston, tempo, paradoxalmente tenta-se tomar essas mesmas instituições um pouco mais ~
1968, p. 3-37. humanas, um pouco mais educativas. É uma posição ambigua, mas, afinal, assim é
(3) Cf. Peter K. Eisinger. "Protest Behavior and the Integration of Urban qualquer situação geral. Minha discussão da natureza e da necessidade de conflito e
Political Systems". Madison, University of Wisconsin Institute for Research on do ensino tácito que o acompanha mostra essa ambigüidade. No entanto, se a edu-
Poverty, 1970, mimeo. cação em particular tem alguma importânCia (e aqui se deve ler politica e econômica), \
(4) Roberta Sigel (ed.). Leaming About Politics. New York, Random House, então deveriam ser efetuadas mudanças concretas agora enquanto estão sendo arti- )
1970,p.xiii. culadas as críticas mais básicas. Uma não é desculpa para a outra.
130 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 131

Dever-se-ia afirmar que as considerações negativas quanto ao Regras básicas e suposições tácitas
conflito ultrapassam a forma social coma qual é abertamente consi-
derado em qualquer matéria, em Estudos Sociais, por exemplo, área O conceito de hegemonia implica que os padrões fundamen-
em que geralmente se encontra material e ensino a respeito de situa- tais numa sociedade são ligados por suposições ideológicas tácitas,
ções de conflito. Pelo contrário, abordagem negativa e muito irrealis- regras, se assim se quiser denominá-las, que em geral não são cons-
ta parece endêmica a muitas áreas, e especialmente às ciências, área cientes, bem como por controle e poder econômico. Essas regras
em geral associada à objetividade e ao conflito não interpessoal. servem para organizar e legitimar a atividade de muitos indivíduos
Está se tornando cada vez mais claro que o corpus formal do cuja interação constitui uma ordem social. Analiticamente, é útil
I conhecimento escolar encontrado, digamos, nos livros de história e distinguir dois tipos de regr~,=- constitutivas ou bá~icas e de prefe-
J em textos e material de Estudos Sociais vem apresentando, há anos, !.ª~c~. 8 As regras 6ás'íCassào como as regras de um jogo;sãõvastos
'-j uma visão um tanto tendenciosa da verdadeira natureza do volume e parâmetros em que se dá a ação. As regras de preferência, como o
do uso possível da competi~ão destrutiva em. q~e se empenharam nome sugere, são as opções que se têm nas regras do jogo. Tome-se o
J grupos deste e de outros palses. O nosso lado e o bom; o deles, o caso do xadrez, por exemplo. Há regras fundamentais básicas (que
ruim. "Nós" somos pela paz e queremos pôr um fim à luta; "eles" geralmente não são levadas a um nível de consciência) que diferen-
são amantes da guerra e visam dominar. Alista poderia ser am- ciam o jogo de xadrez, digamos, do jogo de damas ou de outros jogos
pliada consideravelmente, em especial no que toca a questões de que façam ou não uso do tabuleiro. E, no jogo de xadrez, há esco-
raça e de classe. 7 Precisamos ultrapassar este tipo de análise, ultra- lhas dos movimentos que podem ser feitos dentro desse parâmetro
passar inclusive a obra dos historiadores revisionistas, cientistas constitutivo. As escolhas possíveis para os peões incluem mover para
políticos, estudantes de sociabilização política e educadores, para a frente (exceto ao "comer" uma pedra do adversário), as torres
alcançar muitas das origens do ensino dessa orientação dominante. movem-se para a frente ou para os lados, e assim por diante. Se o
Examinarei aqui duas áreas específicas - Estudos Sociais e Ciên- peão de um adversário estivesse para saltar sobre três pedras para
cias. Procedendo assim, demonstrarei que a apresentação dessas colocá-lo em cheque, então é claro que ele não estaria seguindo as
duas áreas (entre outras) nas escolas espelha e cria uma ideologia "regras do jogo", nem estaria tampouco seguindo as reiras tacita-
que é orientada para uma visão estática: em Estudos Sociais, das mente aceitas se, digamos, varresse todas as peças do tabuleiro e
)
L, funções construtivas e até mesmo essenciais do conflito social; e, em gritasse: "Ganhei!".
. Ciências da natureza do trabalho e o discurso científicos e do que se No nível mais amplo, uma das regras constitutivas predomi-
I chamou 'de ciência nas escolas é particularmente interessante, uma nantes em nossa sociedade implica a noção de confiança. Quando
l vez que é essencialmente um arquétipo da posição ideológica quanto estamos dirigindo o carro por uma rua, confiamos em que o carro
ao conflito que desejo esclarecer. que se aproxima da direção oposta ficará na sua faixa. A menos que
Duas suposições tácitas parecem ser proeminentes no ensino e haja uma clara manifestação de desvio dessa regra, nunca traremos
nos materiais curriculares. A..Erim~ira,centrª:~!'tn].lmª,PQsiç,ãºIlega- ao nível da consciência como essa regra básica de atividade organiza
tiva quanto à natureza e aos usos do conflito. A segunda enfoca nossas vidas. 9 Uma regra semelhante é a que postula os limites

4 j homens e mulheres enquantó 'receptáculos de valores e instituições,


não como homens e mulheres como produzindo e reproduzindo
valores e instituições. Essas suposições atuam como o parâmetro que (8) Helen McClure e George Fischer. "Ideology and Opinion Making: Gene-
organiza experiências. ral Problems of Analysis". New York, Columbia University Bureau of Applied Social
Research, July 1969, mimeo.
(9) A linguagem das "regras de atividade" é menos problemática do ponto de
vista analítico do que a distinção que freqüentemente se faz entre pensamento e ação,
(7) Ver, por exemplo, Edith F. Gibson. "The Three D's: Distortion, Deletion, de vez que implica que a distinção é um tanto ingênua e permite que a ação - per-
Denial". Social Education, XXXIII (Apri11969), 405-9; e Sidney M. Willhelm. Who ceptual, conceitual e física - seja a categoria fundamental da resposta de um indi-
Needs the Negro?, Cambridge, Mass., Schenkman, 1970. víduo a sua situação. Embora usemos com freqüência as regras de atividade e supo-
132 MICHAEL W. APPLE IDEOLOOIA E CURRlcULO 133

legítimos do conflito. As regras do jogo implicitamente determinam Dreeben examinou algumas das relações entre as suposições
as fronteiras das atividades em que as pessoas se empenham ou não, básicas dominantes numa coletividade e o currículo oc1..1Ío da escola.
os tipos de questões a serem formuladas e a admissão ou rejeição das Sustenta que os estudantes aprendem tacitamente algumas normas
atividades de outros. 10 Dentro dessas fronteiras, existem escolhas sociais identificáveis principalmente por tomarem parte nos encon-
entre uma série de atividades. Podemos recorrer às cortes de justiça, tros e tarefas diárias da vida na sala de aula. É decisivo o fato de
mas não bombardeá-las; podemos discutir, mas não duelar; e assim essas normas aprendidas pelos estudantes se introduzirem em mui-
por diante. Uma suposição básica parece ser a de que o conflito tas áreas da vida futura, de vez que ajuda a documentar como a
entre grupos de pessoas é inerente e fundamentalmente mau e deve- escolarização contribui para o ajustamento individual a uma ordem
ríamos esforçar-nos paraenmi~â.~i~de~t;~~d~ -quàctro'estabelecido social, politica e econômica vigente. Embora sua análise seja conser-
de instituições, em lugar de ver o conflito e a contradição como as vadora, como vimos no Capítulo 2, ainda assim, para Dreeben, a
"forças propulsoras" básicas na sociedade. escolarização, o trabalho e a política nos Estados Unidos são bem ~
Embora algumas das melhoreS escolas e salas de aula estejam, integrados. A primeira age como um distribuidor de uma forma de
em plena atividade com questões e controvérsias, as controvérsias racionalidade que, quando interiorizada p~lo estudante, permite-lhe
freqüentemente apresentadas nas escolas dizem respeito a escolhas atuar nas "instituições ocupacionais e políticas que contribuem par'a
dentro dos parâmetros de regras de atividade implicitamente susten- a estabilidade de uma sociedade industrial", e em geral aceitá-las. 11
tados. Pouca tentativa se fez para enfocar os próprios parâmetros. ~~iê.tlcias, conforme são ensinadas na grande
O currículo oculto nas escolas serve para reforçar as regras maioria das escolas, fornecem alguns dos exemplos mais explicitos
O r
que cercam a natureza e os usos do conflito. Estabelece uma rede do ensino oculto. A minha escolha dessas áreas se deve a duas razões
i de suposições que, quando interiorizadas pelos estudantes, determi- Primeiro, tem se formado uma literatura muito vasta e importante
'" . d,nam os limites de legitimidade. Esse processo é realizado não tanto que está preocupada com a sociologia das áreas de conhecimento de
l~"t \ pelos exemplos explícitos que mostram o valor negativo do conflito, empenho científico. Essa literatura se ocupa com a "lógica em uso"
~ '.) L
mas pêla ausência quase total de exemplos-q~~=-l!lostrem-~~J!!ie~ dos cientistas (ou seja, o que os cientistas parecem realmente fazer)
tância do conflito intelectual e normativo em áreas de conhecimento. enquanto contrária à "lógica reconstruída" dos cientistas (ou seja,
O fato é 'que ess~ suposiç~ ;ão obrig;t6riâs-pàra'ô~-é~~tt;.d~lfltes, o que os filósofos da ciência e outros observadores afirmam que
desde que em nenhum momento as suposições são expressas ou fazem os cientistas) que normalmente se ensina nas escolas. 12 Se-
questionadas. Pelo próprio fato de serem tácitas, de se fundamen- .gundo, em Estudos Sociais os problemas que discutimos podem ser
tarem não no topo, mas na base de nossa mente, aumenta sua po- esclarecidos de modo perfeito recorrendo-se a noções marxistas para
tência como aspectos da hegemonia. mostrar que 'não são inevitáveis as visões do senso comum da vida
social freqüentemente encontradas no ensino de Estudos Sociais.
Examinemos inicialmente as Ciências. Assim fazendo, também
quero propor, como uma das sugestões que gostaria de fazer, con-
forme ob~ervei no Capítulo 1, uma visão alternativa, 'ou,melhor,
sições intercambiavelmente, dever-se-ia insistir que as suposições geralmente cona-
mais ampla, do esforço científico'que deveria ser tomada em consi-
tam uma categoria de fenômenos menos inclusiva e são na verdade sinais dessas
regras e limites socialmente sedimentados que parecem afetar até mesmo nossas deração por educadores e, especialmente, pelos que trabalham com
percepções. Um estudo aprofundado dessas regras pode-se encontrar na literatura currículo, caso devam pelo menos enfocar as suposições ideológicas
etnometOdol6gica e, naturalmente, no Wittgenstein velho. Veja-se, por exemplo,
... Harold Garfinkel. Studies in Ethnomethodology. Englewood Cliffs, N. I., Prentice-
Hall, 1967; e Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations. New York, Mac-
millan, 1953. (11) Robert Dreeben. On What Is Leàrned in Schools. Readjng. Mass.,
(lO) Basicamente, o "sistema" que muitos execram não é apenas uma inter- Addison-Wesley, 1969, p. 144-5.
relação organizada de instituições, mas uma estrutura de suposições fundamentais (12) Michael W. Apple: "Community, Knowledge and the Structure of Disci-
que atuam numa relação dialética com essas instituições. plines". The Educational Forum, XXXVII (November 1972),75-82.
134 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 135

inerentes a muito do que se ensina em nossas instituições educa- No entanto, o que se pode encontrar nas escolas é uma pers-
cionais. pectiva que está próxima do que se tem chamado de o id(!al posi-
tivista. 14 Em nOSSaS escolas, o trabalho científico está sempre taci-
tamente ligado aos padrões aceitos de validade e é visto (e ensinado)
como sujeito sempre à verificação empírica sem influências externas,
o conflito em comunidades científicas quer pessoais ou políticas. As diferentes posturas em ciência não
existem ou, se existem, são empregados critérios "objetivos" para _"
Uma de minhas teses básicas é que a ciência, como apresen- persuadir os cientistas de que um lado está correto e o outro errado.
tada na maioria das classes do curso primário e, em grande propor- Exatamente como ficará claro em nossa discussão do ensino de
ção, do curso secundário, contribui para o aprendizado, por parte Estudos Sociais, apresenta-se às crianças uma teoria consensual da (
dos estudantes, de uma perspectiva basicamente irrealista e essen- ciência, uma teoria que subestima as divergências sérias quanto a
~~~so.n.sm:yadora ~ª!1j:-º...!..!ltil~~ade do conflito. As áreas de metodologia, objetivos e outros elementos que formam os paradigmas
conhecimento científico são apresentadascoriiõCOrpos de conhe- de atividade dos cientistas. Pelo fato de se mostrar constantemente
cimento (os "quê" e "como"), no melhor dos casos organizados em o consenso científico, não se permite que os estudantes vejam que,
torno de algumas regularidades fundamentais como em muitos sem discordância e controvérsia, a ciência não avançaria ou avança-
currículos de áreas de conhecimento e centrados na pesquisa, desen- ria 'a um ritmo mais lento. A controvérsia não apenas eStimUla>
volvidos após a "revolução Bruneriana" e, no pior dos casos, como descobertas por atra~r a atenção de cie~tistas p~ra p~oblemas ~nda-'
dados razoavelmente isolados que se dominam para testes. Quase mentais 15 mas tambem serve para elucldar pOSlÇões mtelectuals con-
nunca é seriamente examinada como uma allto-realizaçã,(j: Exami- flitantes. Essa questão encontrará mais referências adiante em nossa
nemos essa situação mais de perto. discussão.
Uma ciência não é "apenas" uma área de conhecimento ou
~...,........."
Uma outra questão também decisiva é a de que muito prova-
técnicas de descoberta e formulação de justificações; é um grupo (ou velmente o padrão de "objetividade" (é-se tentado a dizer "objeti-
melhor, grupos) de indivíduos, uma comunidade de estudiosos nos vidade vulgar") que se apresenta e ensina nas escolas pode freqüen-
termos de Polanyi, à procura de elaborar projetos mais amplos. 13 temente levar a uma separação do compromisso político. Ou seja,
Como todas as comunidades, é dirigida por normas, valores e(prin- pode não se tratar de neutralidade como patentemente se declara,
cípios que são tanto manifestamente vistos como latentemente sen- mas, sim, um reflexo do profundo temor do conflito intelectual,
tidos. Por ser construída por indivíduos e grupos de estudiosos, moral e políticO. 16 O enfoque nas instituições educacionais do estu-
também possui uma história significativa de debate intelectual e dante/cientista (que é em geral um observador passivo na maioria
interpessoal. Em geral, o conflito é gerado pela introdução de um das salas de aula, apesar da ênfase depositada na pesquisa pelos
. paradigma novo e quase s~~l.)re 'revolU:cionário que desafia as estru- teóricos e pelos especialistas em currículo) como um indivíduo que
türas básiêas de significado anteriormente aceitas pelo corpo de verifica ou deduz racionalmente suposições comprovadas ou que
cientistas, dividindo, desse modo, efetivamente a comunidade. Esses arma e verifica hipóteses ou o que seja, este enfoque distorce a
debates estão relacionados aos modos de aquisição de conhecimento natureza do conflito que em geral ocorre eptre os defensores de so-
verificável, ao que se deve considerar como exatamente científico,
aos próprios fundamentos básicos sobre os quais se sustém a ciência.
Também estão relacionados a situações como as de interpretações (14) Warren Hagstrom. The Scientific Community. New York, Basic Books,
conflitantes de dados, a da propriedade das descobertas e a muitas 1965, p. 256.
outras questões. (15) Ibid., p. 264.
(16) Alvin Gouldner. The Coming Crisis of Western Sociology. New York,
Basic Books, 1970, p. 102-3. Ver também Polanyi, op. cit .. Quanto às relações entre
concepções positivistas de objetividade e formas econômicas e de transmissão, ver
(13) Michael Polanyi. Personal Knowledge. New York, Harper & Row, 1964. Jürgen Habermas, Towards a Rational Society. Boston, Beacon Press, 1970.
136 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 137

luções, interpretações ou modos de procedimentos alternativos nas lidade", procedimentos de verificação de hipóteses e de pesquisa
comunidades científicas. Não pode possibilitar aos estudantes verem não sejam de importância suprema. O que estou dizendo é que a
as dimensões políticas do processo pelo qual os patrocinadores de argumentação científica e a contra-argumentação constituem uma
uma teoria alternativa vencem seus adversários. Tampouco pode r grande parte do empreendimento científico e que as teorias e os
uma tal apresentação da ciência fazer mais do que ignorar siste- modos de procedimento ("estruturas de área de conhecimentos",
~Il].~l!t~-ª-<,ti!l1~p~ão de p~r implicada na retórica científica. caso se prefira) atuam como normas ou compromissos psicológicos
Não apenas se ignorao conflito histórico e contínuo entre que conduzem a controvérsia intensa entre grupos de cientistas. 19
te~rias c~ntrárias nas áreas de conhecimento científico, mas tam- Essa Co!}trºy_érsia _é. fundamental ao progresso elIlciªncia, e é este
bém tem se dado pouca ou nenhuma atenção ao fato de que a veri- conflIfõ constante que é ocultado aos-estUdantes.
ficação de hipóteses e a aplicação de critérios científicos existentes Talvez ess~· questão possaset esClãrecida sondando-se mais
são insuficientes para explicar como e por que se faz uma escolha profundamente algumas das características das áreas de conheci-
{
entre teorias antagÔnicas. Há muitos contra-exemplos que desfigu- mento científicas em geral ocultadas na visão do público e quase
·ram essa visão da ciência. 17 Há muito mais sentido em observar que nunca ensinadas nas escolas. Embora essa discussão tenha se cen-
a própria ciência não é necessariamente de todo acumulativa, nem trado no conflito nas áreas de conhecimento científicas, é algumas
procede de acordo com um critério básico do consenso, mas, sim, vezes difícil separar o conflito da competição. Uma das omissões das
I que é dirigida por revoluções conceituais que fazem com que grupos escolas é a falta de tratamento de qualquer tipo do "problema" da
'\ de cientistas reorganizem e re~onceituem os modelos com os quais competição na ciência ..Ç~!l1~~!ição quanto a prioridade e reconhe- )
prpcuram entender e manipula'!" o mundo. 18 cimento de novas deséoberlas é uma característica de todas as ciên-
cias estabelecidas. 20 Basta ler o relato que Watson faz, em The
A história da ciência é e deveria ser [vista] como uma história de
Double Helix, de sua disputa com Linus Pauling pelo prêmio Nobel
posfuras antagônicas (ou, caso se queira, de "paradigmas" co~ pela descoberta da estrutura <lo DNA, para se constatar quão in-
tantes) mas não se tomou nem deve se tomar-uma~ de tensa pode ser a competitividade e quão humanos são os cientistas
períodos de ciência normal: quanto mais cedo inicie a luta, melhor como indivíduos e em grupos.
para o progresso. Pode-se também ver muito claramente a competição entre
especialistas numa área de conhecimento, não necessariamente
Agora, não estou tentando levantar aqui uma causa em favor quanto às "fronteiras" do conhecimento, como no caso de Watson.
de uma visão da dência que declare que "objetividade" e "neutra- Aqui, como no futebol, a "mercadoria" (se posso falar metafori-
camente) são estudantes exemplares que podem ser recrutados para
aumentar o poder e o prestígio de uma especialidade em surgi-
(17) Thomas Kuhn. The Structure of Scientific Revolutions. 2. ed. U niyersity mento. Existe uma coinpetição constante, mas em geral oculta,
of Chicago Press, 1970. O trabalho germinal de Kuhn é submetido a anãlise mais entre subáreas de conhecimento em ciência quanto ao que se mostra
aguda, e discutido com refutação e contra-refutação em Imre Lakatos e Alan Mus·
.grave(orgs.). Criticism and the Grówth of Knowledge. New York, Oxford University
Press, 1970. Todo o volume é votado aos temas - epistemológicos e sociológicos -
levantados pelo livro de Kuhn. Ver também Stephen Toulmin, Human Unders- (19) Apple,op. cit., e Michael Mulkay, "Some Aspects of Cultural Growth in
tanding. Princeton University Press, 1972. the Natural Sciences". Social Research, XXXVI (Spring 1969), 22-52.
(18) Imre Lakatos. "Falsification and the Methodology of Scientific Ré- e
(20) Hagstrom, op. cit., p. 81. importante distinguir entre conflito e com-
search Programmes". Criticism and the Growth of Knowledge. Imre Lakatos e Alan petição. Ao passo que o conflito parece provir de algumas das condições que exa-
Musgrave (orgs.). New York, Oxford University Press, 1970, p. 155. A ciência normal minamos ou examinaremos - novos paradigmas, divergência quanto a objetivos,
refere-se àquela ciência que }:!ossui acordo (consenso) qUinto aos paradigmas básicos metodologia, etc. -, a competição parece ter suas bases no "sistema de troca" da
de atividade a serem utilizados pelos cientistas para interpretar e influenciar suas ciência. Ver, por exemplo, o exame de Storer do status do reconhecimento profis-
respectivas âreas. Ver Kuhn, op. cit., para uma anllise intensiva da ciência normal e sional e da troca de mercadoria na comunidade científica, em Norman W. Storer.
da revolucionâria. . The Social System of Science. New York, Holt, Rinehart & Winston, 1966, p. 78-9.
138 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 139

como quantidades limitadas de prestígio à disposição. O conflito para a competição. Entre as muitas normas que orientam o compor-
aqui é decisivo. As áreas cujo prestígio é relativamente alto tendem a tamento dos cientistas, talvez a mais importante para nossa dis-
arregimentar membros com muito talento. As áreas com prestígio cussão aqui seja a do ceticismo lógico. Storer o define como segue: 25
relativamente mais baixo podem ter um período muito difícil de
arregimentação de adeptos a seus interesses específicos. Realistica- Essa norma é diretiva, incorporando o princípio de que cada cientista
mente, um fator primordial, se não o fator mais importante, na deveria se manter individualmente responsável por garantir a vali-
pesquisa científica de alto nível é o nível do estudante e da "mão- dade da pesquisa anterior realizada por outros na qual ele se baseia.
de-obra" científica que uma especialidade possa recrutar. O prestí- Não pode ser desculpado por ter aceitado uma idéia falsa e depois
gio tem uma forte influência para atrair estudantes e pode ser alegado inocência "porque o Dr. X disse-me que era verdade". Mes-
intensa a competição quanto ao prestígio relativo, em virtude dessas mo se em particular não pudermos acusá-lo de intencionalmente ter
conseqüências. 21 Isto está evidentemente relacionado ao papel cul- substituído a verdade pelo erro, ele deveria ter sido devidamente

1
tural e econômico da escóla em identificar esses "trabalhadores"
que podem contribuir para a maximização do conhecimento.
Minha intenção aqui não é denegrir (embora, como obser-
varam Rose e Rose em seus últimos trabalhos, a atividade científica
cético quanto ao trabalho do Dr. X desde o começo. ( ... )
O cientista é obrigado também por essa norma a tomar públicas suas
criticas do trabalho de outros quando julga que caíram em erro. (. .. )
Segue-se que nenhuma contribuição de um cientista ao conhecimento
pode e precisa avançar também através de uma posição ideológica pode ser aceita sem exame acurado e atento, e o cientista deve
progressista compartilhada)22 nem apresentar uma visão demoníaca duvidar de suas descobertas tanto quanto das dos outros.
da pesquisa em todas suas ramificações. Ê, antes, a de adotar uma
visão mais realista dessa pesquisa e os usos do conflito entre seus Não é difícil ver como a norma do ceticismo lógico contribui '>
praticantes. O conflito aqui é bastante "funcional". Induz os cien- para as controvérsias nas comunidades científicas. ,/
tistas em cada área a procurar estabelecer uma área de competência São abundantes outros exemplos de conflito. Talvez um dos "'.
em seus temas que lhes pertença especificamente. As pressões "com- mais importantes para o nosso tema seja a existência de subgrupos I
petitivas" às vezes também ajudam a assegurar que não sejam "rebeldes" nas comunidades científicas. As especialidades que se
menosprezadas as áreas de pesquisa menos populares. Ademais, o revoltam contra os objetivos e/ou os meios de uma área de conhe-
forte elemento de competição na comunidade científica pode enco- cimento maior são muito comuns na tradição científica. Esses gru-
rajar seus membros a aceitar riscos, a ultrapassar seus competi- pos rebeldes de pesquisadores são alienados do corpo principal do
dores, aumentando desse modo a possibilidade de novas excitantes discurso científico corrente em suas áreas específicas e podem voar
descobertas 23 (embora também possa ter sido um fator para ignorar faíscas por causa do debate entre os rebeldes e os tradicionalistas.
as contribuições das mulheres na ciência, como demonstra a dis- Aqui, em geral somadas a essa situação, mesmo os debates habi-
cussão de Olby das contribuições menosprezadas de Rosalind tuais que associamos à ciência - isto é, discussões entre grupos e
Franklin à descoberta da estrutura do DNA). 24 indivíduos quanto a questões essenciais como conhecimento veri-
O conflito também é intensificado pela própria estrutura ficado e que tais - misturam-se a discussões sobre metas políticas.
normativa da comunidade científica. De fato, ela pode ser um Até mais significativamente hoje, está-se tomando muito comum (e
agente de contribuição significativo tanto para o conflito quanto felizmente, no meu ponto de vista) a discussão inflamada e a dissen-
são quanto à posição política que uma área de conhecimento deveria
adotar e quanto aos empregos sociais de seu conhecimento. 26
(21) Hagstrom, op. cit., p. 130 e 173.
(22) Hilary Rose e Steven Rose (orgs.). The Radicalization of Science. Lon-
don, Macmillan, 1976. (25) Storer,op. cit., p. 78-9.
(23) Hagstrom, op. cit., p. 82-3. (26) Hagstrom, op. cit., p. 193-4. Periódicos corno Science for the People,
(24) Ver Robert Olby. The Path to the Double Helix. Seattle, University of Marxist Perspectives, Radical Science e Dialectical Psychology fornecem exemplos
Washington Press, 1974. interessantes e importantes desse debate, politieamente vinculado.
140 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 141
Por enquanto tenho documentado a dimensão importante do suposição ideológica (talvez necessariamente inconsciente) de que o
, ;conflito em comunidades cientificas. Tenho sustentado que o conhe- conflito, e especialmente o conflito soc~l, não é uma caracterís!j.ca
cimento cientifico da forma como é transmitido nas escolas tem,
es~d~.~~~~,~~,~:_ rel~~~soci~is_!,~~
'c

i com efeito, estado desvinculado da estrutura da comunidade da t dade.


/ qual se desenvolveu e que atua para criticá-lo. Os estudantes são , /, 'Muito freqüentemente, representa-se uma realidade social )
,I "forçados", em virtude da própria ausência de um quadro realista que aceita tacitamente "a harmonia social" como sendo a forma
/ da forma como as comunidades cientificas partilham o poder e os normal de vida, se não a melhor. Agora deve ficar claro que a
)' recursos econômicos, ainteriorizar uma visão que possui pouca veracidade da afirmação de que a sociedade é um sistema de coope-
força para questionar a legitimidade das suposições tácitas sobre ração (se ao menos todos cooperassem) não pode ser determinada) /
conflito interpessoal que dirigem suas vidas e suas próprias situações empiricamente. É essencialmente uma orientação de valor que aju- I
educacionais, econômicas e políticas. Não apenas lhes é apresentada da a determinar as questões formuladas ou as experiências educa-
uma visão de ciência claramente irrealista, mas, o que tem mais cionais planejadas para os estudantes. E as expenencias educa-

~
importância para a minha proposição, não Íhes é mostrado como o cionais parecem ressaltar o que é fundamentalmente uma visão
debate e o conflito intergrupal (e daí de classes) e interpessoal conservadora.
críti~os se deram em favor do progresso da ciência. Quarido essa A visão encontrada nas escolas apóia-se fortemente no modo
situação é generalizada, numa perspectiva básica da relação que se como todos os elementos de uma sociedade, desde o funcionário dos
mantém com os paradigmas de atividade econômicos e políticos correios e o bombeiro, no nível mais simples, até as instituições
numa sociedade, não.é difícil ver como serve para reforçar o~­ específicas em cursos de Educação Moral e Cívica no secundário,
tismo dos estudantes, conduzi-los a "canais adequados" para modi- estão ligados uns aos outros numa relação funcional, cada um
ficarem essas eSh-uturas, ou ajudar a justificar esse. pro~ama insti- contribuindo para a continuapreservação da so~~dade. A dissensão
tucional, fornecendo as regras fundamentais de pensamento que e~o' conflito interno numa sociêdade'--sãõeíicarados como-riiiU!'-
fazem com que qualquer outra visão do conhecimento pareça ralmentean1ífê11cosl-hãfmofiiãoã'ordem ·s'õCrã1."'N~~~~ente o
nã~ natural.' co;;'sen~oê Ul~a ~ara~teristica marcada. Essaonentação também é
cla~-a na---ênfase implícita sobre os estudantes (e o "homem" em
geral) antes como pessoas que transmitem e recebem valores que
o conflito na sociedade como pessoas que produzem valores na maioria de sua experiência
escolar. 28
A segunda área de ensino em que há debate sobre currículo De há muito se observou o fato de que existe uma série de
oculto e o ensino tácito de suposições constitutivas sobre o conflito, e formas paradigmáticas de percepção do mundo social. Contudo,
que escolhi para enfocar explicitamente, é a de Estudos Sociais. também é importante observar que cada uma delas estabelece uma
Como em nossa discussão da ciência, ao aprofundar a investigação determinada lógica de organização sobre a atividade sodal e cada
nesta área, irei propor uma visão alternativa ou mais ampla do uma tem determinadas pressuposições valorativas subjacentes, em
conflito na sociedade. Quero 'também relacionar alguns dos empre- geral notavelmente diferentes. As diferenças entre a perspectiva
gos sociais do conflito intelectual e normativo, empregos que são durkheimiana e a perspectiva weberiana, mais subjetivista, cons-
ignorados na maioria dos debates sobre currículo encontrados nas tituem um exemplo. Embora menos elaborada do ponto de vista
escolas. econômico que alguns de seus mais recentes trabalhos, a última
Um exame de boa parte da literatura em Estudos Sociais
sugere uma aceitação da sociedade como basicamente um sistema
de cooperação . .observações em classe, como as relatadas no Capí-
(27) Ralf Dahrendorf. Essays in the Theory Df Society. London, Routledge &
tulo 3, realizadas em um extenso período de tempo, revelam uma Kegan Paul, 1968, p. 112.
perspectiva semelhante. A orientação origina-se em grande parte da (28) Gouldner, op. cit., p. 193.
142 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 143

análise feita por Gouldner de teorias sociais funcionais estruturais, Em sua análise das suposições do pensamento social parso-
especialmente as de Parsons, oferece um exemplo mais comum. Seu niano, por exemplo, Gouldner documenta o lugar do debate moral e
exame, que possui uma longa tradição intelectual na sociologia do do conflito de valores, que estão no centro das ciências humanas e de
conhecimento, levanta questões intrigantes a respeito das conse- sua compreensão da sociedade. Então, ele alarga consideravel-
qüências sociais e políticas do pensamento social contemporâneo - mente as fronteiras do conflito possível. Essa posição talvez seja
de que boa parte dos fundamentos de suas suposições é determinada mais evidente em sua crítica ao status teórico que Parsons confere a
pela existência individual e de classe do pensador; de que oferece um processo de sociabilização que implicitamente define "homem"
uma "representação parcial, muito seletiva, da sociedade norte- fundamentalmente como um receptáculo de valores. 31 Censura as
americana", formada para "evitar tensões políticas", e que visa à teorias sociais funcionalistas por serem incapazes de lidar com
noção de que a estabilidade política, digamos, "seria alcançada se "aqueles que se opõem às instituições da ordem social e que lutam
os esforços pela mudança social prudentemente deixassem de mudar para mudar suas regras e exigências feitas à participação". Gould-
as formas estabelecidas de distribuição e justificação de poder". 29 ner opõe-se a essa visão enfocando os seres humanos como enga-
Em resumo, os fundamentos desse paradigma social usado para jados num processo dialético de !(!Ç~l?S~~~.!J~!~~J!Ç!(),~,!çp~ª~_<!e

<
. o organizar e orientar nossas percepções são basicamente orientados
para a legitimação da ordem social vigente. Pelo próprio fato de que
procuram considerar esses temas como equilíbrio social e preser-
vação do sistema, por exemplo, existe uma forte tendência para o
valores e instituições. 32 A contínua reprodução de valores numa r
sô~leaãae'tru~cesso difícil e em geral leva ao conflito entre os'
defensores de modelos de avalia~ão divergentes. É a esse tipo de
conflito, entre outros, que Gouldner procura dar um lugar.
consenso e uma negação da necessidade do conflito. 3O Como a Pela sua própria natureza, os paradigmas sociais estão mu-
tradição da sociabilização da pesquisa do currículo discutida no dando continuamente, em geral "dirigidos" pelo conflito de classe e
Capítulo 2 (que provém do modelo funcional estrutural), esse para- contradições sociais e econômicas. De fato, os últimos trabalhos de
digma admite a existência dos valores sociais, um perfeito acordo Gouldner podem ser vistos como um reflexo e uma parte dessa
entre a consciência ideológica dos intelectuais e as exigências da mudança. Entretanto, deixam atrás de si reificações deles próprios
reprodução das categorías hegemônicas nas crianças. encontradas nos currículos tanto da escola primária quanto do nível
Contrário ao tipo de raciocínio funcional estruturai, Gouldner secundário. Isto pode ser precisamente verdadeiro no caso dos mo-
defende um "paradigma" diferente, fundado na busca do indivíduo delos de compreensão da vida social que hoje se encontram nas
de transformar-se a si mesmo e à sua atividade, e que não coloca a escolas. Esses modelos guardam uma semelhança notável com as
sociedade existente como parâmetro, mas, sim, como a possibilidade posições ideológicas inicialmente articuladas pelos primeiros edu-
de uma mudança estrutural básica atrávés de um compromisso cadores e especialistas em currículo analisadas no capitulo anterior.
apaixonado do indivíduo e de um envolvimento social. A questão da Talvez não exista melhor exemplo da ênfase no consenso, na
legitimação, então, passa a ser menos um processo de estudar como ordem e na ausência de qualquer conflito nos currículos de Estudos
se desenvolvem as tensões institucionais e como podem ser "assen- Sociais do que o encontrado em um dos conjuntos mais populares de
tadas", e mais um esforço para vincular as instituições com seu materiais didáticos, o "equipamento" de economia dos Science
desenvolvimento histórico e com sua necessidade de transformação Research Associates, Our Working World. É projetado para ensinar
de acordo com princípios explicitamente escolhidos com base na os conceitos básicos de economia controlada aos alunos da escola
retórica política, econômica e ética. A perspectiva quanto ao conflito primária. O curso de estudos para a primeira série que leva o
dessa última posição é muito diferente daquela da postura criticada
por Gouldner.
(31) Ibid., p. 206.
(32) Ibid., p.427. Veja-se também a discussão interessante, embora às vezes
(29) Ibid., p. 48. não crítica, em Peter Berger e Thomas Luckmann. The Social Construction of Rea-
(30) Ibid., p. 210-18. Iity. New York, Doubleday, 1966.
144 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 145

subtítulo de "Famílias no Trabalho" é organizado em torno da governo) soluciona os conflitos e facilita as interações entre as pes-
interação social cotidiana, aquilo' com que as crianças estariam soas", vêm as seguintes subgeneralizações, relacionadas em com-
familiarizadas. Afirmações como a seguinte perpassam os mate- plexidade crescente: 34
riais: 33
1. O comportamento dos indivíduos é governado pelas regras
comumente aceitas.
Quando seguimos as regras, somos recompensados; mas, se infrin-
gimos as regras, seremos punidos. Assim, meu caro, eis por que cada
2. Os membros dos grupos familiares são governados por
um se interessa. Eis por que aprendemos costumes e regras, e por que regras e leis.
os seguimos. Porque, se o fizermos, seremos todos recompensados 3. Os grupos comunitários são governados por meio de lide-
com um mundo mais bonito e mais ordenado. rança e autoridade.
4. A interação pacífica do homem depende dos controles
sociais ..
Essa atitude mostrada para com a criaçãQ de novos valores e
S. O modelo de governo depende do controle pela partici-
costumes e para com o valor colocado num----m;:;ndo organizado, sem
pação no sistema político.
conflitos, parece indicar um conjunto mais essencial de suposições
6. A organização pplítica estável desenvolve a qualidade de
relativas ao consenso e à vida social. Quando se percebe que os
vida compartilhada por seus cidadãos.
estudantes são esmágados com exemplos dessa espécie durante todo
J o dia, exemplos em que é bastante difícil achar qualquer valor
Associados a essas generalizações "descritivas", a que os estu-
\( atribuído à desordem de qualquer natureza significativa, é hora de dantes devem ser conduzidos, estão os "enunciados apoiativos", tais
se parar para pensar. como "As regras ajudam a manter a ordem" e "As regras ajudam a
Mesmo a maioria dos currículos centrados em torno da pes- proteger a saúde e a segurança" . 35 Poucos irão se indispor com essas
quisa, embora sem dúvida férteis, mostram um desprezo extraor- afirmações. Afinal, as regras de fato ajudam. Mas, como as supo-
dinário pela eficácia do conflito e pela sua tradição longa e firme- sições que prevalecem nos enunciados econômicos, as crianças se
mente estabelecida nas relações sociais. Por exemplo, as suposições defrontam mais uma vez com uma ênfase tácita num conjunto
básicas de que os conflitos devem ser "solucionados" dentro dos estável de estruturas e na manutenção da ordem.
limites aceitos e de que não é desejável a contínua mudança na O que é intrigante é a falta quase absoluta de consideração ou
estrutura e no entrelaçamento dos programas institucionais podem até de referência ao conflito como uma área focal ou uma categoria
ser vistas nos currículos de Ciências Sociais centrados nas áreas de de pensamento nos currículos de Estudos Sociais mais comuns ou na
conhecimento relativamente sofisticadas que se desenvolvem atual- maioria das salas de aula observadas. Dos materiais mais populares,
mente. Um desses currículos foi lançado pelo Centro para o Estudo apenas 'os desenvolvidos sob a égide dos últimos trabalhos de Hilda
do Ensino, em 1970. Declaradamente apresenta uma abordagem de Taba referem-se a ele como um conceito-chave. No entanto, embora
"esquemas conceituais" que fundamenta uma hierarquia de gene- o currículo de Estudos Sociais de Taba enfoque declaradamente o
ralizações que, idealmente, devem ser interiorizadas pelos estu- conflito, e embora esse enfoque seja em si mesmo um bom sinal, sua
dantes através de sua participação ativa no desempenho de papéis e orientação é para as conseqüências sérias dO.E~!!m!2_~m vez deyara ;r\
na pesquisa. Esses níveis de generalizações oscilam desde os muito muitos aspectos construtivosfumtJê~ados ~o próprio conflito.
simples até os razoavelmente complexos e são classificados sob uma
vasta generalização "descritiva" ou "esquema cognitivo". Por exem-
plo, classificadas sob a generalização "A organização política (o (34) Center for the Study of Instruction. Principies and Practices in the
Teaching of the Social Sciences: Teacher's Edition. New York, Harcourt, Brace &
World, 1970, p. T-17. É questionável se muitos negros ou latinos nos guetos dos
(33) Lawrence Senesh. "Recorded Lessons". Our Working World: Families Estados Unidos dariam apoio incondicional a essa "descrição".
at Work. Lawrence Senesh (org.). Chicago, Science Research Associates, 1964. (35) Ibid., p. T-26.
146 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRtCULO 147

Mais uma vez o conflito é visto como "disfuncional", mesmo quan- laram uma crítica forte aos modos vigentes de controle e atividade
do representado como sempre presente. 36 econômicos e culturais. No entanto, é a solidez da ~esentação
Como observado anteriormente, em grande parte, a socie- tácita da perspectiva do consenso que deve ser posta em dêstâque,
dade, da forma como existe, tanto em seus aspectos positivos quanto ~-como sua ocorrêiicUl liãidiláS áreas exammadas "n:êste 'capí-
negativos, se mantém unida por regras do senso comum implícitas e tulo.
por paradigmas do pensamento, pela hegemonia assim como pelo Não basta, no entanto, para nossos objetivos, "meramente"
poder manifesto. Os materiais de Estudos Sociais como esse (e há esclarecer como o currículo oculto obriga os estudantes a expe-
muitos outros a que não me referi) podem contribuir para o ensino rienciar algumas discussões com regras básicas. É essencial que se
de reforço de algumas suposições básicas dominantes e, portanto, coloque uma visão alternativa e que sejam documentados os usos do
uma estrutura de crença pró-consenso e antidissensão. conflito social a que venho me referindo.
Essa visão está sendo contrariada de algum modo por uma É possível combater a orientação do consenso com um con-
parte do conteúdo que agora se ensina sob a marca de Estudos do junto de suposições um pouco menos ligadas a ele, suposições que se
Negro e da Mulher. Aqui, a luta e o conflito quanto'a uma base mostrem tão empiricamente comprovadas, se não mais, quanto
comum são em geral explícita e verdadeiramente enfocados. 37 aquelas contra as quais levantei objeções. Por exemplo, alguns
Embora muitos especialistas em currículo possam achar essa adoção teóricos sociais tomaram a posição de que "a sociedade não é
manifesta de metas comunitárias um tanto antitética a suas próprias basicamente um ordem em funcionamento harmonioso como um
inclinações, deve-se reconhecer o fato de que tem havido uma tenta- organismo social, um sistema social ou uma estrutura social está-
tiva de apresentar uma perspectiva relativamente realista quanto à tica". Pelo contrário, são características dominantes a mudança
história significativa e aos usos do conflito no progresso de classes e continua nos elementos e a forma estrutural básica da sociedade. Os
grupos sociais, através, por exemplo, dos direitos civis e dos movi- conflitos são os produtos sistemáticos da estrutura em mudança de .
mentos pelo poder negro. Mesmo aqueles que não aprovariam ou uma sociedade e pela sua própria natureza tendem a levar ao
aprovariam apenas uma visão segura ou conservadora dessa maté- progresso. A "ordem" da sociedade, portanto, passa a ser a regula-
ria, deveriam perceber a força e o verdadeiro valor de uma perspec- ridade da mudança. A "realidade" da sociedade é conflito e fluxo,
tiva de se desenvolver uma consciência de grupo e uma coesão até não um "sistema funcional fechado". 38 Tem-se afirmado que a
então impossíveis. Voltarei a essa questão na minha discussão geral
dos usos do conflito em grupos sociais.
Dizer, no entanto, que a maioria dos currículos de Estudos
contribuição mais significativa para a compreensão da sociedade
feita por Marx foi perceber que uma fonte importante de mudança e
inovação é o conflito interno. 39 Fundamentalmente, portanto, GS
>
do Negro apresenta essa mesma peispectiva estaria longe de ser conflitos devem ser encarados como uma dimensão básica e em geral
exato. Também se poderia apontar para a expansão agora manifesta benéfica da dialética de atividade a que se denomina sociedade.
do material histórico sobre o negro em que figuram aqueles negros Um exame de posições dentro dessa orientação geral e a ela
que se mantiveram dentro dos limites considerados legítimos (regras estreitamente ligadas pode ajudar a esclarecer a importância do
constitutivas) de protesto ou que progrediram nos campos aceitos da conflito. Uma das perspectivas mais interessantes aponta para sua
! economia, atletismo, educação ou arte. Em geral,. não se encontra
\ referência a Malcom X, a Marcus Garvey ou a outros que formu-
(38) Ralf Dahrendorf. Class and Class Conflict in Industrial Societies. Stan-
ford, Stanford University Press, 1969, p. 57. Quanto a estudos concretos de conflito
tanto intra quanto interclasses em sociedades industriais, ver R. W. Connell. Ruling
(36) Maxine Durkin et ai. The Taba Social Studies Curriculum: Communities Class, Ruling Culture. Cambridge University Press, 1977; e Nicos Poulantzas. Classes
Around Uso Reading, Mass., Addison-Wesley, 1969, p. v. in Contemporary Capitalism. London, New Left Books, 1975.
(37) Nathan Hare. "The Teaching of Black History and Culture in the Secon- (39) Jack Walker. "A Critique ofthe ElitistTheory of Democracy". Apolitical
dary Schools". Social Education, XXXIII (April 1969), 385-8; e Preston Wilcox. Politics. Charles A. McCoy e John Playford (orgs.). New York, Crowell, 1967,
"Education for Black Liberation". New Generation, LI (Winter 1969),20-1. p.217-18.
148 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 149

utilidade em impedir a reificação das instituições sociais vigentes, A regra bâsica de atividade que constitui o valor negativo
pressionando indivíduos e grupos para que sejam inovadores e cria- inconsciente associado ao conflito tende a levar ao planejamento de
tivos ao realizarem mudanças nas atividades institucionais. Coser experiências que se centrem na dimensão de conflito de "infração de '-... /
expressa isso bem: 40 lei ou regra", embora deveria ficar claro que o conflito conduz não ">-
ap~!1;s à}nf~~~ã~ja l~i2!las é, com~a~bém cria~~o ~ lei. 4y
o conflito intra e intergrupal numa sociedade pode impedir que as Reahza atarefa notavel de apontar para areas que carecehrde---.
acomodações e as relações habituais empobreçam progressivamente a correção. Além do mais, toma conscientes as regras mais bâsicas
criatividade. que governam a atividade sobre a qual hâ conflito, mas que estavam
O entrechoque de valores e interesses, a tensão entre o que ê e o que ocultas. Ou seja, desempenha a função singular de possibilitar aos
alguns sentem que deveria ser, o conflito entre o capital investido e os indivíduos que vejam os imperativos ocultos engastados nas situa-
novos estratos e grupos exigindo sua fração de poder, têm produzido ções que atuam para estruturar suas ações, libertando parcialmente
vitalidade. os indivíduos para que criem padrões de ações relevantes a um grau
que em geral não é possível. Essas propriedades de criação de leis e
de ampliação da consciência, mantidas pelas situações de conflito,
Ê-se energicamente levado a encontrar alguma coisa próxima
apresentam, conjugadas, um efeito muito positivo. Desde que o
dessa orientação na maioria dos materiais e do ensino apresentados
conflito acarreta inerentemente novas situações que em alto grau são
nas escolas. As regras bâsicas de atividade que governam nossa
indefinidas pruassúposfç5es aiíterlores,-·afiiacomo um estímulo para
percepção tendem a levar-nos a representar o conflito como ini-
o estabelecimento de normas de atividade novas e possivelmente
cialmente uma qualidade negativa numa comunidade. No entanto,
mais flexíveis ou circunstancialmente pertinentes. Obrigando lite-
a "cooperação harmoniosa" e o conflito são os dois lados da moeda
ralmente a atenção consciente, as questões são definidas e novas
social, nenhum dos quais é totalmente positivo ou negativo. Embora
dimensões podem ser exploradas e esclarecidas. 43
de fato Coser aqui se refira a uma perspectiva um tanto funciona-
A documentação dos efeitos positivos do conflito não chegaria
lista, essa visão é, ainda assim, eficazmente colocada por ele num de
nem mesmo a ser adequada se se deixasse de mencionar um uso
seus primeiros tratamentos desse tema. 41 importante, especialmente tendo-se em vista meu próprio compro-
misso em tomar a educação, em particular, mais sensível às neces-
Nenhum grupo pode ser inteiramente harmonioso, pois desse modo sidades das comunidades e das classes a que serve. Refiro-me aqui à
seria desprovido de processo e estrutura. Os grupos exigem desarmo- importância do conflito em criar e legitimar um experiência cons- \
nia, tanto quanto harmonia, dissociação assim como associação; e os ciente e especificamen.te de. cla.sse. '. étnica e sexual. AgOra. é ..b. em
conflitos dentro deles não são de modo algum fatores de ruptura. A conhecido que uma das primeiras formas pt;~_~_~!~-º~~pos se
formação do grupo ê conseqüência de ambos os tipos de processos. definem é percebendo~st::..em luta c0!l1_c:lutros grupos e que essã lúta
A crença de que um processo destrói o que o outro construiu, de aumenta a participação dos membros nas ativ:idades do grupo e os }
modo que o que permanece no fim ê o resultado da subtração um do torna mais conscientes dos laços que os unem,44 Não é de pouca
outro, baseia-se numa concepção errônea. Pelo contrário, tanto os
fatores "positivos" quanto os "negativos" formam relações de grupo.
Longe de ser necessariamente disfuncional, um certo grau de conflito (42) Ibid., p. 126. Talvez o melhor exemplo de material sobre a dimensão da
ê um elemento essencial à formação do grupo e à persistência da vida infração da lei alcançada pelo conflito seja um curso de primeiro grau, "Respeito
em grupo. pelas Regras e pela Lei" (New York State Bureau of Elementary Curriculum Deve-
lopment, 1969). Um conjunto de materiais curriculares dá alguns passos interessan-
tes e úteis em permitir uma apreciação mais honesta do conflito. Ver Donald Oliver e
Fred Newmann (orgs.). Harvard Social Studies Project: Public Issues Series. Colum-
(40) Citado em Dahrendorf. Oass and Oass Conflict, op. cito
bus, Ohio, American Educational Publications, 1968 ..
(41) Lewis Coser. The Functions 01 Social Conflict. Chicago, Free Press,
1956, p. 31. (43) Ibid., p.124-5.
(44) Ibid., p. 90.
150 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 151

importância o fato de que a comunidade dos negros e de outras compreensão melhor das suposições ideológicas tácitas que atuam
etnias e a das mulheres tenham, a um grau significativo, se definido para estruturar sua própria atividade.
ao longo dessas linhas "intragrupo e extragrupo", uma vez que
possibilitam maior coesão entre os diversos elementos em suas res-
pectivas comunidades. Valendo-se de "sentimentos básicos" como Considerações programáticas com relação ao currículo
os de classe, raça e sexo, cria-se uma estrutura de significado
comum que torna plausível a existência contínua e singularizada de Existem várias sugestões para a estruturação do currículo que
, um indivíduo e de um grupO.45 Da mesma forma como o conflito poderiam pelo menos parcialmente servir para contrabalançar o
parece ser o meio básico para o estabelecimento de autonomia currículo oculto e a tradição seletiva mais evidentes em Ciências e em
individual e para a diferenciação plena da personalidade do mundo Estudos Sociais como representativas do corpus formal do conheci-o
\ exterior,46 é também efetivo para a plena diferenciação da auto- mento escolar. Embora sejam por sua própria natureza ainda expe-
rimentais e apenas parciais, podem se mostrar muito importantes.
\ nomia comunitária. Fundamentalmente, pode criar uma "pressão
É essencial uma apresentação mais equilibrada de alguns elos' •
para a articulação de suposições que distinguem aquele grupo, para
valores de ciências adotados, especialmente daqueles que se rela-
reforçar a solidariedade e a concórdia entre seus membros", fator
. cionem ao ceticismo lógico. É preciso que se reconheça e enfoque a
que, como vimos no Capítulo 1, é um elemento importante numa
ideologia forte. importância histórica para as comunidades científicas da visão cé-
tica predominante. .
Venho propondo uma visão alternativa da presença e dos usos Pode-se ver a história da ciência como uma dialética contínua
do conflito em grupos sociais. É provável que seja usada como um de controvérsia e conflito entre defensores dos programas e paradig- )
fundamento mais objetivo para planejar currículos e orientar o mas de pesquisa conflitantes, entre as respostas aceitas e os desafios
ensino de modo que o currículo oculto mais estático que os alunos a essas "verdades". Como tal, a própria ciência poderia ser apre-
encontrem possa ser contrabalançado até um certo ponto. O enfo- sentada com uma orientação histórica maior, documentando as
que explícito no conflito como uma categoria legítima de concei- revoluções conceituais necessárias aos rompimentos significativos
tuação e como uma dimensão válida e essencial da vida coletiva por ocorrer.
~ossibil!t~ria ~ desenvolvim~nt~,pelos estudantes de uma ~ec­ Em lugar de aderir a uma visão da ciência como verdade,
~oht1ca e mtelec!!!&-~Ylay.eLtiQÚ~, a partir da qual perce- a apresentação equilibrada da ciência como verdade-até-a-próxima-
bessemsuarelaçãOcom as instituições econômicas e políticas exis- informação, como um processo de mudança constante, poderia
tentes. No mínimo, uma tal perspectiva pode lhes fornecer uma impedir a cristalização de atitude. Nessa associação, também, o
estudo de como procedem as revoluções conceituais na ciência con-
tribuiria para uma perspectiva contrária ao consenso como o único
(45) Peter Berger. The Sacred Canopy. New York, Doubleday, 1967, p. 24-5; modo de progresso. .
e Clifford Geertz. "The Integrative Revolution: Primordial Sentiments and Civil A isto pode-se acrescentar u~ enfoque nos usos e dilemas
Politics in the New States". Old Societies and New States. Clifford Geertz (org.). New
York, Free Press, 1963, p. 118.
morais da ciência. Por exemplo, seria de fato útil individualizar a
A literatura sobre a hist6ria das lutas das mulheres para conseguir essa auto-
história da ciência através de casos éomo os de Oppenheimer, Wat-
nomia está, reconhecidamente, tornando-se muito mais ampla. Algumas das contri- son e, intrigantemente, da controvérsia em torno do caso Veli-
buições recentes mais interessantes à hist6ria desse conflito podem-se ver em Gerda kovsky,47 Quando consideradas em conjunto com uma análise séria,
Lerner, The Female Experience: An American Documentary. Indianápolis, Bobbs- digamos, do papel das mulheres n'à ciência e na medicina, essas
Merrill, 1977; Nancy F. Cott. The Bonds of Womanhood. New Haven, Yale, 1977; sugestões ajudariam a eliminar as pré-noções existentes nos currí-
Linda Gordon, Woman 's Body, Woman's Right. New York, Grossman, 1976; e Mary
P. Ryan. Womanhood in America. New ~ork, New Viewpoints, 1975.
(46) Coser, op. cit., p. 33. Esta talvez seja uma das intuições mais frutíferas
de Piaget. (47) Mulkay, op. cito
152 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRIcULO 153

culos atuais por meio da introdução da idéia de controvérsia e lutas das mulheres, dos negros e de outros grupos, para nos auxiliar
conflito pessoal e interpessoal.~ no combate à tradição seletiva. 50
Podem-se fazer diversas sugestões para a área de Estudos Além dessas sugestões para mudanças curriculares específi-
Sociais. O estudo comparativo da revolução, digamos, norte-ameri- cas, deveria ser observada uma outra área. Os "paradigmas" socio-
cana, francesa, russa, portuguesa e chinesa serviria para enfocar as lógicos também procuram dar a razão da realidade do senso comum
propriedades da condição hu.mana que causam o conflito interpes- em que estudantes e professores se baseiam. As escolas são inte-
soaI e são por ele aperfeiçoadas. Essa sugestão torna-se mais apro- gralmente envolvidas nesta realidade e na sua interiorização. Po-
priada quando associada ao fato de que em muitos países a revo- deria ser sensato levar em consideração empenhar os estudantes na
lução é o modo de procedimento legítimo (no verdadeiro sentido do articulação e no desenvolvimento dos paradigmas de atividade na
termo) para se corrigir injustiças. A isso poder-se-iam acrescentar os sua vida cotidiana nas escolas. Um tal envolvimento poderia possi-
estudos do imperialismo econômico e cultural. 49 bilitar aos estudantes enfrentar e ampliar os discernimentos deci-
Uma avaliação mais realista dos usos do conflito nos movi- sivos de seu próprio condicionamento e liberdade. Esses discerni-
mentos pelos direitos legais e econômicos de negros, índios, mu- mentos poderiam virtualmente alterar o paradigma original e a
lheres, operários e de outros grupos sem dúvida tomaria parte na própria realidade do senso comum. Também se tornaria possível a
formação de uma perspectiva dessas atividades e de outras seme- um grau maior um debate educacional concreto e significativo dos
lhantes como modelos legítimos, de ação. O fato de que as leis estud'antes com o processo de reprodução de valor e institucional.
tiveram de ser infringidas e de que foram posteriormente anuladas Os currículos de ação social e as lutas pelos direitos estudantis,
pelas cortes de justiça geralmente não encontram enfoque nos currí- embora limitados em sua própria aplicabilidade, em virtude do sério
culos de Estudos Sociais. No entanto, foi através desses tipos de risco de "incorporação" , poderiam ser bastante proveitosos aqui por
atividade que boa parte do progresso se fez e se faz. Aqui, os estudos dar aos estudantes um sentido de sua própria competência possível
comunitários e de movimentos sociais da forma como têm se efe- de desafiar as condições hegemônicas em algumas áreas. 51
'. tuado mudanças constitui um processo interessante, processo que
': deveria se mostrar como de importância considerável. Isto sugere
l quão decisivo é que a história da classe operária, por exemplo, seja Conclusões
ensinada nas escolas. Quase sempre minimiza!!!QLaJústória ..nas
lutas concreta~_~l!1,gue os gperários tiVêrãíilde se empenhar e os A pesquisa sobre a sociabilização política das crianças parece
~iffdos'a que se sulJIlieteram. Ao mesmo tempo, os estudantes sugerir a importância do presidente e da polícia como elementos de
podem ser levados a fundar suas próprias experiências familiares e contato entre as crianças e as estruturas de autoridade e legitimi-
pessoais também na história de classe e de grupo étnico. Há extensas dade numa sociedade. 52 Por exemplo, existe um laço inicial forte-
bibliografias sobre temas como os da história da classe operária, as
(50) Entre as bibliografias disponíveis, encontra-se Women in U.S. History:
An Annotated Bibliography. Cambridge, Mass., Common Women Collective, 1976; e
(48) Ver, por exemplo, Mary Roth Walsh. Doctor Wanted. No Women Need Jim O'Brien et ai. A Guide to Working Class History. 2. ed. Somerville, Mass., New
Apply. New Haven, Yale, 1977; Edward T. James, Janet Wilson James e Paul S, England Free Press, si d.
Boyer. Notable American Women 1607-1950. Cambridge, Mass., Belhnap Pres:;: ',~ (51) As propostas para o currículo de ação social feitas por Fred Newmann
1971; e H. J. Mozans. Woman in Science. Cambridge, Mass., Massachusetts Ins- são de interesse aqui. Veja-se sua Education for Citizen Action. Berkeley, McCut-
titute of Technology, 1974. ehan, 1975. Para uma discussão de alguns dos problemas relacionados a essas pro-
(49) Ver, por exemplo, Ariel Dorfman e Armand Mattelart. How to R~ad postas, ver Michael W. Apple. "Humanism and the Politics of Educational Argu-
Donald Duck. New York, International General, 1975; e Martin Carnoy. Education mentation". Humanistic Education: Visions and Realities. Riehard Weller (org.).
as Cultural Imperialism. New York, David McKay, 1974. Um dos mais interessantes Berkeley, McCutchan, 1977, p. 315-30.
livros para crianças que trata de algumas dessas questões é Pai Rydlberg et ai. The (52) David Easton'e Jack Dennis. Children in the Po/itical System. New York,
History Book. 'Culver City, Califórnia, Peace Press, 1974. McGraw-Hill, 1969, p. 162.
154 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 155

mente pessoal entre a criança e esses representantes das estruturas executada apenas pela atividade política. Como se mencionou antes,
de autoridade. À medida que a criança amadurece, esses vínculos pode ser muito provável que desvincular a existência educacional de
muito pessoais são transferidos para instituições mais anônimas, um educador de sua existência política seja esquecer que, enquanto
como o Congresso, ou para atividades políticas, como o voto. A ato de influenciar, a educação também é inerentemente um ato polí- )
tendência para supervalorizar instituições impessoais pode ser uma tico. Ainda com essa sensibilidade política, deve também vir uma me-
fonte muito. importante da relativa estabilidade e durabilidade das dida justa de compreensão econômica e cultural que diga respeito ao
estruturas de autoridade nas sociedades industriais. 53 poder desses significados ideológicos, que os situe nos processos
No entanto, não é bastante seguro que essa formulação real- sociais concretos que,os provocaram.
mente responda às questões que se poderia formular com relação à Portanto, não é de surpreender a existência dessas pré""noções,
estabilidade política e social. A base das tendências e relações tendo-se em vista o debate acerca da "lógica interna" de uma
políticas (concebidas de modo amplo) para com as estruturas polí- determinada forma econômica e ideológica. A tradição seletiva que
ticas e sOCiais está num sistema de crenças que se mantém ele analisei neste capítulo é uma conseqüência "natural" das relações
próprio sobre padrões básicos de suposições "determinados" pela entre nossas instituições culturais e econômicas. Quando uma socie-
atividade social e econômica. Essas regras para a atividade (e jul- dade "exige", tanto a nível econômico quanto cultural, a maximi-
gadas como uma forma fundamental dessa atividade) provavelmente zação (não a distribuição) da produção de conhecimento técnico,
são .mais importantes para a relação de alguém com sua vida e seu então a ciência que se ensina estará desvinculada das práticas huma-
mundo do que podemos perceber. Vimos examinando uma dessas nas concretas que a mantêm. Quando um sociedade "exige", a um
suposições ideológicas constitutivas. nível econômico, a "produção" de agentes que tenham interiorizado
Ê meu ponto de vista que as escolas distorcem sistematica- normas que enfatizem o empenho em trabalho em geral sem sentido
mente as funções do conflito social em coletividades. As manifes- a nível pessoal, a aceitação de nossas instituições políticas e econô-
tações sociais, intelectuais e políticas dessa distorção são múltiplas. micas básicas como estáveis e dadivosas, uma estrutura de crenças
Elas podem contribuir significativamente para as bases ideológicas que se funde no consenso e uma lógica positivista e técnica, então
que servem para orientar fundamentalmente os indivíduos em di- deve-se esperar que os currículos formal e informal, o capital cul-
reção de uma sociedade classista. tural, nas escolas, irão se tomar aspectos da hegemonia. A lógica
Os estudantes na maioria das escolas, e nos centros urbanos interna dessas tensões e dessas expectativas determinará os limites,
em particular, recebem uma visão que serve para legitimar a ordem as regras constitutivas, que irão se tomar nosso senso comum.
}
social vigente, de vez que despreza sistematicamente a mudança, Qualquer outra resposta parecerá desnatural, que é exatamente a
"\ . d .
\ o conflito, e os homens e as mulheres como cna ores assun como idéia mantida por Williams e Gramsci.
t portadores de valores e instituições. Apontei para a solidez da O ensino manifesto e oculto dessas visões da ciência e da vida
apresentação. Agora, novamente é preciso ressaltar um outro as- social combinam-se e justificam a primeira sociabilização. Ambos
pecto - o fato de que essas estruturas de significado são obriga- dificultam muito a consciência da saturação ideológica que se rea-
tórias. Os estudantes as recebem de pessoas que são "importantes" liza. Pois, se os "fatos" do mundo baseiam-se mesmo em nossas
em sua vida, através de seus professores, outros modelos de papéis teorias deles, então o mundo que as pessoas vêem, os significados
sociais em livros e demais meios. Para mudar essa situação, devem econômicos e culturais que elas lhe atribuem, serão definidos de
ser modificadas radicalmente as percepções dos estudantes de quem modo a se autojustificarem. Atribuem-se os significados à forma
devem considerar como os detentores do "conhecimento especiali- como o mundo "realmente é", e também se legitimam os interesses
zado". Em áreas de gueto, uma resposta parcial é, talvez, instituir econômicos e culturais que determinam por que é dessa forma. A
uma perspectiva mais radical nas escolas. Essa mudança pode ser função ideológica é circular. Conhecimento e poder mais uma vez se
acham íntima e sutilmente ligados através dos fundamentos de
nosso senso comum, através da hegemonia.
(53) Ibid., p. 271-6. Uma das primeiras tarefas deste capítulo foi apresentar óticas
156 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 157

que sejam alternativas àquelas que normalmente legitimam muitas uma tentativa constante para trazer a um nível consciente e agir
das atividades e debates que os especialistas em currículo planejam contra aquelas suposições epistemológicas e ideológicas ocultas que
para os estudantes. Ficará mais claro, à medida que este livro ajudam a estruturar as decisões que tomam, os contornos que . ....\

avançar, que a própria área do currículo limitou suas formas de projetam e as tradições que selecionam. Essas suposições funda-
consciência de modo que as suposições políticas e ideológicas que mentais podem exercer um impacto significativo sobre o currículo ,
/ cingem grande parte de seus padrões normais de atividade são tão oculto que os estudantes tacitamente experienciam e que ajuda a
\ ocultas quanto aquelas encontradas pelos estudantes nas escolas. 54 reproduzir a hegemonia.
Apontei para as possibilidades inerentes a uma abordagem mais Sem uma análise e uma compreensão mais ampla dessas supo-
realista da natureza do conflito como uma" forma de consciência" sições latentes, os educadores correm o risco muito real de continuar
alternativa. Ainda quando já se tenha dito tudo, é ainda possível a permitir que os valores ideológicos operem através deles. uma;
levantar a questão de serem essas investigações teóricas heurística, defesa consciente de uma visão e ensino mais realistas da dialética
política e programaticamente úteis. da mudança social contribuiria sem dúvida para preparar os estu-
U ma das dificuldades em procurar desenvolver novas perspec- dantes com os instrumentos políticos e conceituais necessários para
tivas é a distinção evidente e freqüentemente lembrada entre a teoria lidar com a densa realidade que eles devem enfrentar. Mas podemos
e a prática, ou, para colocar na linguagem do senso comum, entre conseguir o mesmo para 'os especialistas em currículo e outros
"apenas" entender o mundo e mudá-lo. Essa discussão está arrai- educadores? Podemos iluminar os instrumentos políticos e concei-
gada em nossa própria linguagem. Ê fundamental lembrar que, tuais necessários para enfrentar a sociedade classista em que eles
embora Marx sentisse que a missão fundamental da filosofia e da também vivem? A forma mais proveitosa de se começar essa tarefa é
teoria não fosse apenas "compreender a realidade", mas mudá-la, é documentar o que fazem agora seus instrumentos conceituais e
também verdade que, de acordo com Marx, o revolucionar o mundo políticos. Mantêm novamente um falso consenso? Como atuam
tem em suas bases um compreensão adequada dele. (Afinal, Marx como aspectos da hegemonia? Quais são suas funções ideológicas
gastou boa parte de sua vida escrevendo Das Kapital, enquanto latentes? Com uma abordagem mais sólida da forma como as esco-
também se engajou na ação política e econômica que serviram para las ajudam na criação da hegemonia através da "sociabilização" dos
esclarecer a perfeição daquela compreensão. A ação e a' reflexão estudantes, é para esta tarefa - como opera a hegemonia na mente
imergiram napraxis.)5S dos educadores - que agora deveremos nos voltar.
O risco significativo não é que a "teoria" não ofereça modo
algum de criticar e mudar a realidade, mas que pode levar a um
quietismo ou a uma perspectiva que, como Hamlet, precisa de um
contínuo solilóquio sobre a !;omplexidade de tudo, enquanto o mun-
do desmorona ao nosso redor. Seria importante observar que uma
comprensão da realidade existente não somente é uma condição
necessária para mudá-la, mas é um grande passo para realmente
efetuar uma reconstrução ética, estética e economicamente ade-
quada. sb No entanto, junto a essa compreensão do contorno social.
em que operam os especialistas em currículo, deve haver também

(54) Dwayne Huebner. "Politics· and the Curriculum". Cu"iculum Cross-


roads. A. Harry Passow (org.). New York, Teachers College Press, 1962, p. 88.
(55) Shlomo Avineri. The Social and Political Thought of Karl Marx. New
York, Cambridge University Press, 1968, p. 137.
(56) Ibid., p. 148.
6
Modelo sistêmico de administração
e a ideologia do controle

No Capítulo 4, vimos como, historicamente, a "ciência" for-


neceu a justificação retórica que ocultou o fato de que os funda-
mentos do currículo baseavam-se cada 'vez mais em pressuposições
ideológicas. Esse processo não se encerrou, quer na forma como
algumas visões da ciência e da vida social são selecionadas como o
conhecimento mais legítimo no currículo manifesto das escolas,
quer nas funções ideológicas da ciência como justificação para a
pesquisa e o processo decisório conservadores. Portanto, teremos de
investigar como funciona ideologicamente no presente a visão da
educação enquanto ciência. Pois, da mesma forma como se mantém
a hegemonia nas escolas através do ensino tácito, também uma visão
acrítica das ínstituições e uma visão excessivamente técnica e posi-
tivista da ciência tornaram-se um aspecto de uma cultura efetiva e
dominante, graças à ação legitimadora dos "intelectuais" que a
faz parecer um conjunto de categorias neutras que dá signifi-
cado, de modo que podemos agir adequadamente para ajudar as
crianças.
Teremos de formular diversas questões acerca da saturação
ideológica da consciência dos educadores, da mesma forma como
perguntamos como a vida dos estudantes na caixa negra contribuiu
para a reprodução econômica e cultural. Qual é o papel latente da
estrutura lingüística e lógica das perspectivas técnicas, de eficiência
e "cientificas" no currículo e na educação em geral? Como essas
categorias e formas de consciência servem de mecanismos articu-
160 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 161

ladores de interesses sociais e econômicos, quando são claramente do lugar ideológico da "ciência" no currículo. Com a permissão do
orientadas pelo ímpeto liberal de ajudar? Quem é "ajudado" por leitor, gostaria de citar essas observações. 1
esses interesses? O indivíduo concreto ou o abstrato?
Os exemplares correntes dessas abordagens, aqueles que se Nos últimos anos desenvolveu-se um debate muito intenso na ãrea do
inserem na longa tradição de trabalho "científico" com currículo currículo e do ensino com relação aos méritos de se fixar os objetivos
baseado nos modelos de desempenho e de sociabilização, são os educacionais em termos de comportamentos mensurãveis do aluno.
modelos sistêmicos de administração e objetivos "comportamen- Como estou completamente compromissado, tanto racional quanto
tais", avaliação educacional técnica e positivistamente orientada, emocionalmente, com a proposição de que os objetivos educacionais
deveriam ser determinados com relação ao comportamento, vejo esse
feita pelos "especialistas", e terminologia e pesquisa clínicas. Cada
debate com uma certa ambivalência. Por um lado, provavelmente é
um desses abriu seu próprio caminho até a base da mente dos agradãvel manter-se uma discussão desse tipo entre especialistas em
educadores. Os dois capítulos seguintes dirjgirão nosso enfoque nossa ãrea. Passamos a nos conhecer melhor - entre um e outro
para essas áreas. A análise principiará com uma das tecnologias em ataque. Verificamos os valores respectivos de posições contrãrias.
maior ascensão no arsenal retórico da educação, a dos modelos Podemos auspiciosamente realizar simpósios tão estim~lantes como
sistêmicos de administração. A "ciência" desempenhará um papel este. Entretanto, como um partidãrio na controvérsia, preferiria con-
importante, fornecendo os "princípios fundamentalmente corretos" tar com apoio unânime à proposição que endosso. Vocês sabem, os
quanto aos quais deve haver consenso. Desta vez, porém, o consenso outros é que estão errados. Aderindo a um dogma filosófico de que o
ideológico estará menos na. mente dos estudantes e mais na dos erro é mau, odeio ver meus amigos caindo em pecado.
intelectuais, como os educadores. Em virtude de sua própria natu-
reza, esse conjunto de "princípios" ideológicos exerce um impacto Prossegue:
significativo sobre as perspectivas fundamentais que os próprios
educadores empregam para organizar, orientar e dar significado à Além do mais, sua forma especifica de pecado é mais perigosa que
sua atividade, sobre os princípios utilizados para organizar e estru- algumas das perversões tradicionais de sociedades civilizadas. Prova-
turar o conhecimento e os símbolos que as escolas selecionam e velmente irã prejudicar mais pessoas do que as formas mais exóticas
distribuem. Pois incluem o filtro através do qual o conhecimento e de pornografia. Acredito que os que desencorajam os educadores a
os símbolos são escolhidos e organizados. E, como em nossas dis- explicar seus objetivos educacionais estão em geral permitindo, se não
cussões anteriores, eles parecem se autojustificar. Tornaram-se promovendo, o mesmo tipo de raciocínio obscuro que em parte tem
parte de nosso senso comum. conduúdo ao baixo nível do ensino neste país.

Acho esta passagem de Popham muito interessante. Primeiro,


documenta a situação intelectual da área do currículo. Embora
Quanto à situação do campo específico muitas das críticas específicas dessa área feitas por autores como
Joseph Schwab sejam tautológicas, acho-me inclinado a concordar
Há alguns anos, um conhecido especialista em currículo co- com sua sugestão de que se percebe a morte iminente de uma
meçou suas propostas em favor de objetivos "comportamentais" - disciplina na utilização cada vez maior que faz de argumentos ad
um dos princípios básicos e precursores dos "modelos sistêmicos de hominem 2 como o que acabamos de citar. Segundo, e de interesse
administração" em educação - com algumas observações bastante
interessantes. Ainda que apontasse para a necessidade de discussão
para se examinar os respectivos valores de diferentes posições quan- (1) W. James Popham. "Probing the Validity of Arguments Against Beha-
to ao assunto controverso de se planejar atividades educacionais em vioral Goals", reimpresso. In: Robert J. Kibler et ai. Behavioral Objectives and
Instruction. Boston, Allyn & Bacon, 1970, p. 115-6.
termos de "comportamentos mensuráveis do aluno", ele fez algu- (2) Joseph J. Schwab. The Practical: A Language for Curriculum. Wash-
mas observações que são muito pertinentes à análise deste Capítulo ington, D.C. National Education Association, 1970, p. 18.
162 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 163

mais amplo, é o conjunto de suposições refletido na afirmação problemas. Pode muito bem ser o caso de que atividades e conse-
citada, suposições que fornecem a base ideológica para o modelo qüências da escolarização quase sempre desiguais e problemá-
sistêmico de administração em educação. Essas suposições estão ticas não serão fundamentalmente modificadas até que deixemos
relacionadas com a defesa tácita de uma visão que mais uma vez de procurar por soluções simples para nossos problemas. Parte da
nega a importância do conflito intelectual e ético, uma perspectiva resposta, mas somente parte dela, está em esclarecer nossas orien-
muito limitada do empenho científico, uma incapacidade de lidar tações políticas e conceituais. É possível que ambas estejam consi-
com a ambigüidade e, finalmente, uma separação obsoleta entre deravelmente interligadas.
questões m{;r-ãi~--e--técnicas. O uso cada vez -maior da linguagem Gostaria de apresentar tendências nos modelos sistêmicos de
/sistêriiica em educação baseia-se neste conjunto de crenças que, administração que em geral se acham vinculadas aos compromissos
\ quando examinado, é quase sempre irrealista, e social e politi- sociais da área do currículo, compromissos que pqdem estar mais
\ camente conservador. ocultos que os defendidos pelos primeiros especialistas em currículo,
De princípio, deixe-me esclarecer algumas de minhas pers- mas nem por isso menos poderosos. Documentam a forma como os
pectivas. Do mesmo modo como vimos em nossa análise da forma interesses ideológicos dos primeiros especialistas em currículo trans-
como o conhecimento oculto e manifesto encontrado nas escolas não formaram-se de patentes interesses de classe em princípios "neu-
\ pode ser considerado independentemente das outras instituições eco- tros" de ajuda. Por exemplo, considerarei a linguagem sistêmica
.:;. nômicas e sociais de uma coletividade - que este conhecimento está como uma retórica social conservadora e representarei sua visão
estreitamente envolvido com as instituições dominantes de uma errônea de ciência. Analisemos inicialmente o modelo sistêmico
sociedade, reflete-as e ajuda a reproduzi-las -, é igualmente impor- como uma estrutura intelectual geral em educação. Deixe-me afir-
tante perceber-se que nossa própria atitude para com o planeja- mar, contudo, que as considerações a serem feitas aqui aplicam-se
/," mento da escolarização e do currículo está também fundamen- aos usos educacionais da lógica sistêmica, e não necessariamente ,ao
talmente ligada à estrutura da ordem social em que vivemos. 3 Em- . conceito sistêmico per se (embora esta última questão permaneça
bora prefira evitar uma interpretação demasiadamente determinista discutível).
i da consciência, tomarei a posição de que a estrutura básica da
maioria do conteúdo do currículo geralmente apóia e aceita a estru-
Os modelos sistêmlcos e o controle técnico
tura econômica, política, ideológica e intelectual existente que dis-
\ tribui oportunidade e poder na sociedade norte-americana. Não Em geral os modelos sistêmicos de abordagem visam a uma
peço ao leitor que compartilhe de todas as minhas percepções a análise mais exata e "científica". No entanto, a visão da atividade
respeito da forma como esta estrutura tende para a sublimação dos científica que fundamenta a utilização desses, modelos rio plane-
séntimentos humanos básicos e para a repressão de muitas pessoas. jamento educacional e do currículo baseia-se menos numa visão
O que peço é que as percepções não sejam descartadas de imediato e precisa dos processos científicos que num exame a posteriori dos
que os especialistas deixem de agir de acordo com suposições tácitas produtos científicos. Uma distinção que se faz útil aqui é entre a
que impedem a concentração de seu enfoque nos seus compromissos lógica em uso de uma ciência e sua lógica reconstruída. 4 A lógica em
ideplógicos e epistemológicos definidos. Parte da tarefa da crítica do uso define o que os cientistas realmente fazem; e que não é neces-
currículo é nos conscientizar dos resultados latentes de nosso tra- sariamente a progressão linear de determinar objetivos absoluta-
balho, pois os valores agem continuamente através de sua utilização mente claros, de teste e verificação ou "falsificabilidade" de hipó-
e estão sedimentados na nossa própria atitude diante de nossos teses (Popper) através de análises estatísticas ou outras, e assim por
diante. A lógica reconstruída define o que os comentadores, filó-

(3) Cf. a análise da relação entre conhecimento e instituições em Peter L.


Berger e Thomas Luckmann. The. Social Construction of Reality. New York, Dou- (4) Abraham Kaplan. The Conduct of lnquiry. San Francisco, Chandler,
bleday Anchor Books, 1966. 1964, p. 3-11.
164 MICHAEL W. APPLE
IDEOLOGIA E CURRICULO 165
sofos da ciência e outros denominam lógica da investigação cientí-
excluída a visão dos modelos sistêmicos como possibilitando uma
fica. Hâ uma tradição excepcionalmente longa na crítica à postura
abordagem mais "científica" dos problemas educacionais, exigem
educacional, desde Snedden até o presente, de tomar de empréstimo
um exame mais aprofundado.
uma lógica reconstruída da atividade científica e esperar que ela seja
Diferentemente da incessante disputa por confiabilidade entre
suficiente para analisar o complexo problema do planejamento do
os educadores, a atividade científica tem-se caracterizado menos
currículo, isso sem falar na "pesquisa" do currículo.
por uma preferência por um saber de rigor, por uma lenta e firme
Isto tem em geral tomado a forma do desenvolvimento de
acumulação de dados técnicos, do que podemos supor. O que a
procedimentos para assegurar a confiabilidade e para racionalizar e
maioria dos membros da comunidade científica rotulariam como
explicitar tantos aspectos das atividades humanas quanto possíveis, "boa ciência" é um processo que se constitui sobre um ato de fé,
quer se trate do pesquisador, do participante do processo decisório uma sensibilidade estética, um compromisso pessoal e, de grande
em educação, quer do estudante. Huebner descreveu essa abor- importância, a capacidade de aceitar ambigüidade e incerteza. 7 \
dagem como "tecnológica" na medida em que procura empregar
Sem essas qualidades, que mantêm a atividade científica como um
formas rigorosas de raciocínio meios-fins ou processo-produto e estâ
artefato essencialmente humano e em mudança, a ciência se toma
de princípio interessada em eficiência, tendendo assim a excluir
mera tecnologia. A visão da ciência utilizada para dar legitimidade a /
outros modos de avaliação. s Entre os exemplos incluem-se o tra-
boa parte do conteúdo do currículo, especialmente aos modelos.y I
balho inicial de Bobbitt, acima mencionado, sobre anâlise de "ativi-
sistêmicos, tem mais a ver com o positivismo do século XIX que com 0'' :/
dade", que pareceu cristalizar o paradigma bâsico da ârea do currí-
culo, e a ênfase ultimamente conferida aos objetivos "comporta-
discurso científico e filosófico atuais. Embora a tendência de um I
reducionismo ingênuo, por exemplo, na anâlise da ação humana
mentais". Cada um desses procurou especificar os limites opera-
tenha se originado na filosofia em torno da década de 30,8 atual-
cionais da interação institucional e foi motivado por uma neces-
mente, como veremos, não tem havido grandes progressos na maio-
sidade de conclusão e confiabilidade. A linha dos objetivos "com-
ria do conteúdo do currículo.
portamentais"" por exemplo, procurou reduzir a ação dos estu-
O problema de se recorrer a uma lógica reconstruída se funda
dantes a formas especificâveis de comportamento manifesto, de
na nossa crença na neutralidade inerente aos modelos sistêmicos de
modo a garantir ao educador a confiabilidade dos resultados. Em-
administração. Parece haver uma suposição tâcita de que esses
bora a necessidade de confiabilidade seja compreensível, em virtude
modelos são simplesmente técnicas "científicas"; neutros, podem
das grandes somas de dinheiro aplicadas em educação, s1,la super-
ser aplicados a manipular quase todos os problemas com que nos
ficialidade perturba. A própria orientação "comportamental" (as-
defrontamos. No entanto, uma anâlise minuciosa revela algumas
sim como muitos aspectos constitutivos dos modelos sistêmicos de
questões provocativas com respeito a essa pré-noção.
administração) tem sido efetivamente considerada nesses primeiros
Para serem precisos, os modelos sistêmicos de administração
trabalhos, tais como na anâlise do conhecimento realizada por Ryle
não são neutros. Seu próprio interesse constitutivo estâ basicamente
de seus sentidos de tendência versus sentidos de auto-realização, no
estudo de Polanyi de formas de conhecimento tâcito e na magistral
anâlise de Hannah Arendt da forma como a necessidade de confia-
bilidade em geral impossibilita a criação de significado pessoal e
efetivamente enfraquece a base da ação política. 6 Essas anâlises, 1966; e Hannah Arendt. The Human Condition. New York, Doubleday Anchor,
1958.
(7) Ver, por exemplo, a discussão das teorias da luz, ondular versus partí-
(5) Dwayne Huebner. "Curricular Language and Classroom Meanings". Lan- culas, em Thomas Kuhn. The Structure 01 Scientific Revolutions. University of
guage and Meaning. James B. MacDonald e Robert R. Leeper (orgs.). Washington, Chicago Press, 1970. Ver também Imre Lakatos e Alan Musgrave (orgs.). Criticism
D.C., Association for Supervision and Curriculum Development, 1966, p. 8-26. and the Growth 01 Knowledge. Cambridge University Press, 1970; e Michael Polanyi.
(6) Cf. Gilbert Ryle. The Concept 01 Mind. New York, Barnes & Noble, Personal Knowledge. New York, Harper Torchbooks, 1964.
1949; Michael Polanyi. The Tacit Dimension. New York, Doubleday Anchor Books, (8) J. O. Urmson. Philosophical Ana/ysis. London, Oxford University Press,
1956, p. 146.
166 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 167)

em efetuar e manter o controle técnico e o rigor cientifico 9 nisto se desejo de evitar o sofrimento, de criar uma ordem transcendente de
constituindo também sua conseqüência social. Como a lógica re- vida imune à diversidade e, portanto, ao conflito inevitãvel entre os
construída do saber de rigor, os modelos sistêmicos visam, funda- homens.
mental e inalteravelmente, às regularidades do comportamento hu-
mano; a linguagem das "diferenças individuais" opera no sentido A ingenuidade filosófica e o aspecto notavelmente determi-
oposto. Ê, pois, essencialmente manipulativo. A perspectiva mani- nista do modelo sistêmico de administração da forma como é apli-
pulativa é inerente .às disputas por confiabilidade. De fato, é difícil cado em educação talvez seja mais evidente na exigência que se faz
prever como uma exigência inflexível de exatidão nos objetivos e nas aos que constroem sistemas educacionais, por exemplo, para que
especificações do comportamento possa ser menos manipulativa, em
virtude das propensões dos seres humanos para existir numa relação
"formulem objetivos de aprendizado específicos, determinando cla-
ramente o que quer que se espere que o aluno venha a ser capaz de >
i
dialética com sua realidade social - isto é dar significado à sua fazer, saber e sentir como resultado de suas experiências de apren-
própria e ultrapassar a estrutura e o entrelaçamento de significados dizado" (os grifos são meus).13 Mesmo um exame superficial das
e instituições socialmente estabelecidos. 10 Ê aqui na formação de análises psicológicas e especialmente das filosóficas da natureza das
um indivíduo abstrato, que mantém uma relação acrítica e total- tendências, consecuções e propensões, e de como essas são "trans-
mente parcial com sua realidade social, que encontramos um exem- mitidas" e ligadas a outros tipos de "conhecimento", mostra a falta
plo básico da orientação conservadora tão profundamente sedimen- de qualquer reflexão significativa sobre como os seres humanos, de
tada nos modelos "tecnológicos" utilizados na educação. fato, operam na vida real. 14 Além do mais, a mentalidade redu-
Um aspecto semelhante é levantado por Sennett em sua dis- cionista em que os componentes de cognição se acham separados de
cussão da tendência dos planejadores urbanos de criar sistemas cujo "sentimento" e podem ser "comportamentalmente" especificados
ideal é que nada "esteja fora de controle", que a vida institucional interpreta de modo fundamentalmente errôneo a natureza da ação
"seja manipulada a cabresto tão curto [que] qualquer procedimento humana. 15 A própria idéia de que os educadores deveriam especificar

I
das diferentes atividades deva ser regulado pelo mínino denomi- todos e mesmo os aspectos básicos da ação de uma pessoa substitui o
nador comum".11 Ele resume sua análise da tendência dos plane- slogan da manipulação pela tarefa aterradora de fazer escolhas
jadores de sistemas integrados de usar modelos tecnológicos e de morais.
produção: 12 Deveria ficar claro que o planejamento do currículo, a criação
de contornos educacionais em que os estudantes devem conviver, é I
Seu impulso foi dar vazão à tendência ( ... ) dos homens de controíar inerentemente um processo político e moral. Envolve concepções o
riscos desconhecidos, eliminando a possibilidade de experimentar a ideológicas e políticas antagônicas onde a equação pessoal está
surpresa. Controlando o quadro do que é acessível à interação social, ligada à atividade educacional referente a valores. Ademais, um de
estã domado o passo seguinte da ação social. A história social é seus componentes básicos é o fato de influenciar outras pessoas - a
substituída pelo produto "passivo" do planejamento social. Imerso saber, os estudantes. A concepção comum em educação, no entanto,
nessa ânsia de préplanejar ao longo de linhas de montagem, estã o

(13) Bela H. Banathly. Instructional Systems. Palo Alto, Calif6rnia, Fearon,


(9) Trent Schroyer. "Toward a Critical Theory for Advanced Industrial So·
1968, p. 22.
ciety". Recent Sociology, 2, Hans Peter Dreitzel (org.). New York, Macmillan, 1970,
p. 215; e Jürgen Habermas. "Knowledge and Interest". Sociological Theory and (14) Cf. Donald Arnstine. Philosophy of Education: Leaming and Schooling.
Philosophical Analysis. Dorothy Emmet e Alasdair Macintyre (orgs.). New York, New York, Harper & Row, 1967; e Stuart Hampshire. Thought and Action. New
Macmillan, 1970, p. 36·54. York, Viking Press, 1959.
(10) Peter L. Berger e Thomas Luckmann, op. cit., p. 129. (15) Essa separação ingênua e· os aspectos destrutivos da especificação do
(11) Richard Sennett. The Uses of Disorder. New York, Vintage Books, 1970, comportamento podem ser mais bem vistos em discussões do pensamento cientifico,
p.94. especialmente a de Michael Polanyi, op. cito Também é muito útil aqui a anãlise de
(12) Ibid., p. 96. Susanne Langer da "mente" em Philosophy in a New Key. New York, Mentor, 1951.
168 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 169

tende a avançar numa direção bastante contrária à de considerações nível em educação é visto apenas em termos de falta de sofisticação
morais e políticas. Pelo contrário, as esferas do processo decisório técnica, podendo ser efetivamente solucionado através da "mani-
são vistas como problemas técnicos que precisam apenas de estra- pulação" . 20 Desmentem essa percepção o crescente descontenta-
tégias instrumentais e informação produzida por especialistas téc- mento dos estudantes para com boa parte da estrutura de signi-
nicos,16 daí afastarem efetivamente as decisões da área do debate ficados obrigatória da escolarização e o desenvolvimento da crítica
político e ético e ocultarem a relação entre o status do conhecimento sobre a relação entre escolarização e desigualdade.
técnico e a reprodução econômica e cultural. Em outras palavras, Como o Tyler Rationale em currículo antes dele, o modelo
ainda que os fundamentos lógicos, como os modelos sistêmicos, sistêmico de administração presume que a eficácia de um sistema
dissimulem-se com a linguagem de "serem realistas", existe uma pode ser avaliada por "quão rigorosamente o output do sistema
forte tendência em sua utilização para nivelar a realidade, para atende à finalidade para a qual ele existe" .21 No entanto, na disputa
definir as complexas ques.tões de avaliação acima da contingência por ~rea de conhecimento, ignora-se virtualmente o processo polí-
usando uma forma de pensamento que é receptiva apenas à compe- tico pelo qual visões de finalidades em geral antagônicas unem-se
tência técnica. Fundamentalmente, o emprego de modelos sistê- umas com as outras e chegam a algum tipo de compreensão. Nova-
micos qua fórmula tende a ocultar do educador o fato de que está mente, como Tyler, alguém - o gerente de uma instituição, talvez
tomando profundas decisões éticas e econômicas com relação a um - "manipula" num mundo irreal. Não avança uma compreensão
grupo de outros seres humanos .. dos difíceis problemas éticos, ideológicos e mesmo estéticos de quem
Agora, a questão real ~ão é que as técnicas sistêmicas produ- decide o que deveriam ser essas finalidades, que existem no mundo
zam informação e realimentação que possam ser usadas por sis- real da educação.
temas de controle social. Elas próprias são sistemas de controle. 17 Ê Agora, o próprio "planejamento de sistemas integrados" é um
também importante o fato de que o sistema de suposições subja- procedimento analítico em si mesmo, com sua própria história e,
centes a elas e a grande parte da área de currículo provêm de uma geralmente, seus modos de autocorreção, quando mantido dentro de
ideologia tecnocrática (e funciona como tal) que em geral serve para sua tradição. No entanto, a orientação educacional rotulada de
legitimar a distribuição de poder e privilégios em nossa sociédade. 18 "planejamento de sistemas integrados" não se avizinha dessa sofis-
A própria linguagem usada por alguns dos defensores dos modelos ticação, nem passa de um empréstimo de uma terminologia super-
sistêmicos de administração em educação transmite suas pré-no- ficial para ocqltar a metáfora dominante que os especialistas em
ções. Conquanto se veja a mudança como importante, ela é geral- currículo vêm usando para ver a escolarização há mais de cinqüenta
mente enfocada por noções como a de ajustamento ao sistema. 19 A anos. Como ficou claro na minha primeira análise histórica, essa "-
base do próprio sistema permanece inquestionada. O emprego de metáfora ou modelo representa a escola como uma fábrica, e tem )
modelos sistêmicos tem como pressuposto que as instituições de suas origens nos princípios do currículo como um campo de estudo, /
ensino são fundamentalmente perfeitas. Ou seja, embora o "nível do especialmente no trabalho de Bobbitt e ClÍarters. 22 Em análise de'
ensino" seja geralmente fraco, o mesmo padrão geral de interação sistemas na área de programação de computador, os inputs e
humana é suficiente para a educação, se a instituição pode ser outputs são informação; nos modelos sistêmicos utilizados em edu-
"afinada", por assim dizer. Os problemas de escola,rização devem
ser resolvidos por "modestos inputs de administração centralizada,
junto com serviços, pesquisa e 'consultoria especializados". O baixo (20) Gouldner,op. cit., p. 161.
(21) Banathy,op. cit., p. 13.
(22) Herbert M. Kliebard. "Bureaucracy and Curriculum Theory". Freedom,
(16) Schroyer, op. cit., p. 212. Bureaucracy and Schooling. Vemon Haubrich (ed.). Washington, D.C., Association
(17) Alvin W. Gouldner. The Coming Crisis of Westem Sociology. New York, for Supervision and Curriculum Development, 1971, p. 74-93. Isto não é uma ligação
Basic Books, 1970, p. 50. inconsciente com a obra dos primeiros teóricos, como o trabalho por vezes proble-
(18) Schroyer,op. cit., p. 210. mático de Bobbitt. Ver, por exemplo, Robert Kibler et ai. Behavioral Objectives and
(19) Banathy,op. cit., p. 10. Instruction. Boston, Allyn & Bacon, 1970, p. lOS.
170 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 171

cação, eles são geralmente os alunos. A escola é a instalação de letos, são representações intelectualmente imprecisas daqueles de-
processamento e o "homens instruído" é o "produto". 23 Em virtude senvolvidos pela área que os cedeu 25 e fornecem pouco dos recursos
do fato de que a linguagem e as construções metafóricas de uma área conceituais necessários para se abordar o problema complexo de pro-
em geral ajudam a determinar seus modos operacionais, o uso da jetar contornos e selecionar e preservar "tradições" que sirvam de me-
linguagem da criança qua produto é apropriado a preservar e inten- diação entre a procura de um estudante e de um grupo concreto por
sificar o caráter já notavelmente manipulativo da educação, um significado pessoal e a necessidade de uma sociedade de manter sua
caráter que se mostrou tão claro nas experiências concretas de produção de instituições e conhecimento socialmente estabelecido.
crianças do jardim de infância, como vimos no Capítulo 3. Esse A análise de sistemas começou não como uma técnica de
caráter também é estimulado pela relativa ausência de discernimento administração, mas como uma forma pela qual se poderia esclarecer
dos educadores nas áreas dos modelos sistêmicos de administração. a complexa natureza dos problemas. Procurou mostrar como os
Há uma forte tendência para se encontrar, na literatura sobre componentes de uma área estavam inter-relacionados e influíam um
os modelos sistêmicos de administração na área do currículo, pouco sobre o outro. A análise de sistemas procurava aumentar nossa
mais que referências ocasionais, por exemplo, aos teóricos de sis- compreensão de mudança e estabilidade - o subsistema A está
temas mais criativos. Quase não se encontram referências ao estru- relacionado de modo X ao subsistema B, que por sua vez está
turalismo de Von Bertalanffy nem à sutileza da forma como ele relacionado de modo Y ao subsistema C. A combinação criou
procura abordar os problemas. Embora se encontrem algumas pou- uma relação diferente, Z. Qualquer alteração de C, portanto, teria
cas referências a ele, é bastante evidente que as noções funda- profundas repercussões em A e B e em todas as ligações entre eles. O
mentais sobre os modelos sistêmicos não são provenientes dessa modelo sistêmico, então, era um modelo para compreender, não
postura. Pelo contrário, vê-se um modelo que é na verdade tirado de necessariamente para controlar. No entanto, muito especialistas em
áreas como tecnologia e indústria de armamentos. 24 O que não se currículo parecem estar empregando-o para controlar seus pro-
encontra, é de importância considerável, em vista de nosso esforço blemas sem antes entender a complexidade das relações entre eles.
para sermos "científicos". O que se encontra, todavia, é a inserção Isto é um dos pontos em que Schwab está correto. Apenas quando
i do modelo da escola como fábrica num conjunto de slogans para dar começamos a ver a natureza intrincada das relações entre os aspec-
1 à área legitimidade intelectual e econômica e um sentido de neutra- tos do contorno educacional é que podemos começar a agir mais do
t lidade. O planejamento de sistemas integrados como campo de que como técnicos. 26 A análise de sistemas é antes um modelo para
estudo científico apresenta intrinsecamente mecanismos de autocor- revelar possibilidades que uma representação do que deveria ser.
reção. A crítica contínua da pesquisa e das idéias e o conflito Como uma estrutura de administração para tomar obrigatórios os
intelectual, na área de sistemas, entre seus membros de convicções significados institucionais, para criar um falso consenso, está bem
divergentes fornecem um contexto que o mantém vivo. Os educa- longe de ser neutra, para se dizer o mínimo.
dores tomaram de empréstimo apenas a linguagem, em geral apenas
a linguagem superficial (o que chamei de lógica reconstruída), e,
daí, afastaram a terminologia de seu contexto de autocorreção. (25) Talvez um dos exemplos mais interessantes disto esteja no trabalho de
Portanto, possuem pouco discernimento da discussão crítica cons- Snedden. Sua apropriação dos piores aspectos da sociologia serviu a interesses ideo·
lógicos conservadores. Ver Walter Drost. David Snedden and Education lor Social
tante na área de planejamento de sistemas integrados que lhe possi-
Efliciency. Madison, University of Wisconsin Press, 1967.
bilita permanecer forte. Temos de aprender ainda os riscos de nos Um outro exemplo é o nosso uso cada vez maior da teoria do aprendizado. Não
apropriarmos de modelos de áreas díspares e aplicá-los à educação. apenas nos ensinou um pouco do que é aplicável à complexa realidade cotidiana da
Muito freqüentemente, os modelos tomam-se rapidamente obso- vida educacional, mas temos permanecido persistentemente inconscientes dos pro-
blemas que a teoria do aprendizado apre~imta em sua própria comunidade científica.
A análise mais completa das dificuldades conceituais pode ser encontrada em Charles
Taylor. The Explanation 01 Behavior. New York, Humanities Press, 1964; e Maurice
(23) Banathy,op. cit., p.17. Merleau-Ponty. The Structure 01 Behavior. Boston, Beacon Press, 1963.
(24) Ibid., op. cit., p. 2. (26) Schwab, op. cit., p. 33-5.
IDEOLOGIA E CURRlcULO 173
172 MICHAEL W. APPLE

Er (bora os defensores dos modelos sistêmicos procurem au- dução. Examinarei então como a preferência atual por ordem no .
mentar o status científico de seu trabalho, como. demonstrei, o currículo cumpre uma função semelhante. Examinemos primeiro a
conceito sistêmico que tomaram de empréstimo não faz parte do questão dos modelos sistêmicos como uma linguagem.
ramo científico da lógica sistêmica. Pelo contrário, optaram por
apropriar-se dos modelos operacionais da comunidade comercial. 27
Isto, é claro, não constitui nenhuma novidade.28 Conquanto fosse Os modelos sistêmicos como retórica
um pouco injusto sugerir que aqueles interesses "bem-sucedidos"
como Lockheed (que exigiu grande intervenção econômica estatal
para impedir que se fosse à bancarrota) são os principais defensores O· princípio wittgensteiniano de que o significado da lingua-
dos modelos sistêmicos para realizações de grande escala, não seria gem depende de seu uso é muito adequado para analisar a lingua-
incorreto sugerir que a subestrutura comercial e econômicà dos gem sistêmica da forma como é aplicada no discurso sobre currí-
Estados Unidos continua a produzir canais que fornecem meios culo. De maneira semelhante à forma como a linguagem da ciência e
extremamente limitad~s de poder e controle iguais para grande tecnologia funcionou para os primeiros especialistas em currículo e
parte da população. E preciso que cada um questione se seus educadores que estudamos no Capítulo 4, a linguagem sistêmica
mOdelOS são de fato adequados para lidar com estudantes. Esta desempenha hoje uma função retórica e política. Sem uma com-
. questão toma-se ainda mais forte quando se percebe que o modelo preensão disso, escapa-nos um aspecto capital. Um de seus usos
básicos, se não latentes, é persuadir os outros do nível sofisticado da
sistêmico ?e ,a~mitiistração foi criado para aumentar a capacidade
dos propnetanos de controlar a mão-de-obra mais efetivamente educação. Se uma área pode convencer aos órgãos de distribuição de
aumentando os lucros e enfraquecendo os movimentos sindicai~
recursos, ao governo ou à população em geral de que estão sendo
\ empregados procedimentos científicos, quer ou não sejam úteis de
emergentes logo no início deste século. 29
fato, aumenta a prob·abilidade de uma maior distribuição de recur-
Há outras questões que poderiam ser formuladas a respeito da
sos financeiros e apoio político. Isto é importante, tendo-se em vista
idéia de que os modelos sistêmicos são "científicos" e técnicas
o elevado status do conhecimento técnico e da ciência nos países
neutras para estabelecer melhores práticas educacionais. Como ob-
industrializados. (Infelizmente, não é a: ciência per se, que é verda-
servei, é uma dentre as. suposições básicas que precisam ser exami-
nadas rigorosamente. Gostaria de aprofundar-me um pouco mais e deiramente vista; é antes a tecnologia e sua aplicabilidade concreta.)
formular algumas questões a respeito de seu possível conservantismo Expressar os problemas de uma área na terminologia sistêmica
latente. Uma questão se refere à linguagem sistêmica como uma evoca significados tácitos em uma audiência geral, significados que
retórica social; a outra se relaciona a um aspecto constitutivo dos apóiam um sistema de crenças pré-científico. De modo mais funda-
modelos sistêmicos da forma como são hoje aplicados em educação mental, de vez que a distribuição de recursos está se tomando
- a saber, a especificação de objetivos educacionais e geralmente
"comportamentais" precisos na medida em que preservam taci-
1 progressivamente centralizada sob o controle governamental, e de
vez que a "experimentação" educacional quase sempre segue a
tamente de forma inquestionável os modos predominantes de inte- distribuição de recursos, a linguagem sistêmica tem como função
básica a tarefa política de produzir dinheiro a partir do governo
ração social numa economia desigual, enquanto aspectos da repro-
federal. Assim, pode-se esperar que a controvérsia "pequena ciên-
cia, grande ciência" que ainda se dá nas ciências físicas venha a
surgir também na educação. 30
(27) Bruce R. Joyce et ai. Implementing Systems Models for Teacher Educa-
tion. Washington, D.C., u. s. Department of Hea1th, Education and Welfare, 1971.
(28) Veja-se Raymond Callahan. Education and the Cult of Efficiency. Uni-
versity of Chicago Press, 1962. (30) Cf. Derek J. De Solla Price. Little Science, Big Science. New York,
(29) Esta história política e econômica é documentada com clareza em Harry
Columbia University Press, 1963; e Warren o. Hagstrom. The Scientific Community.
Braverman. Labor and Monopoly Capital. New York, Month1y Review Press, 1975; e
New York, Basic Books, 1965.
Stanley Aronowitz. False Promises. New York, McGraw-Hill, 1973.
174 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 175

Em vista da tendência alternativa pela descentralização, não quadamente, digamos, as minorias raciais nos Estados Unidos. 33
pode ser ignorada a questão da distribuição de recursos e controle. Pode ser o caso também de que as escolas tenham servido basi-
Os modelos sistêmicos de administração apresentam uma tendência camente para dividir e distribuir as oportunidades que são consis-
pela centralização, mesmo sem a questão da distribuição de recursos tentemente desiguais em termos de classe econômica. O que pode
e retórica. A fim de ser mais eficaz, tantas variáveis quanto possível fazer o emprego de fundamentos "científicos" sofisticados pela invo-
- interpessoais, econômicas, etc. - devem ser subordinadas ao cação de sentimentos de solidariedade, então, é impedir que uma
próprio sistema e por ele controladas. A ordem e o consenso tornam- parcela da população veja que, da forma como são as escolas elas j

se extraordinariamente importantes; o conflito e a desordem são simplesmente não podem atender a muitas das necessidades de
vistos como antitéticos ao funcionamento harmonioso do sistema. É, minorias e de outros segmentos da população. O seu próprio status
Z portanto, mais uma vez ignorado o fato de que o conflito e a institucional está compreendido numa diversidade de outras formas
J desordem são extraordinariamente importantes para impedir a reifi- institucionais - econômicas, por exemplo - que intensifica as
cação de padrões institucionais de interação. 31 . estruturas econômicas e políticas vigentes.
O conteúdo dos modelos sistêmicos é vazio. A teoria sistêmica O quietismo aparece duplicadamente e visa a dois públicos.
é, por assim dizer, um conjunto formal ou metodologia, que pode ser Primeiro, a linguagem dos modelos sistêmicos de administração é
aplicado a problemas educacionais. Ou seja, seu formalismo concei- dirigida aos críticos da atividade educacional em exercício - 'utili-
tual permite que seja aplicado de maneira supostamente "neutra" a zemos mais uma vez o exemplo dos grupos minoritários - e está em
uma série de problemas que exigem a formulação precisa de obje- geral associada à noção de "responsabilidade", dando-lhes assim o
tivos, procedimentos e de dispositivos de realimentação. Uma vez sentimento de que de fato se está fazendo alguma coisa. 34 Afinal, ela
que a metodologia sistêmica veicula esse sentido de neutralidade, é se mostra concisa e objetiva. Mas este não é o lado essencial. Os
idealmente adequada para fomentar o consenso em tomo de si. Esse moradores de guetos, por exemplo, podem não estar muito enamo-
processo de formação de consenso, e o impedimento do conflito, rados da terminologia técnica e terem pouco poder político, tam-
permite que os interesses gerenciais dirijam as questões a respeito de pouco têm influência na distribuição de recursos econômicos como o
escolarização (mas sempre dentro das "determinações" das ligações segundo conjunto de grupos a que esta linguagem se destina. O
reais entre as instituições econômicas e culturais). 32 destinatário básico inclui os membros da classe média e da indús-
Essa evocação de significados tácitos é decisiva no exame dos tria,35 cujo coração sempre bate com força diante da especialização
modelos sistêmicos de administração. Não apenas se produzem técnica e da lógica industrial. Mesmo quando os membros de mino-
formas de solidariedade, mas também aumenta o quietismo polí- rias sociais e de outros grupos determinaram por um período de
tico. Por exemplo, pode ser o caso de que a escola comum e seus tempo que a vida escolar não ficou nem um pouco menos repressiva,
fundamentos ideológicos nunca tenham servido para educar ade- como em geral tem-se dado, o outro público, mais poderoso, devido
J à profundidade da reconhecida aceitação dos benefÍcios advindos da
especialização técnica para resolver problemas humanos, irá prova-
velmente continuar a manifestar seu apoio. Portanto, o modelo
(31) Para um enfoque mais poético desse problema, ver Maxine Greene. "The
Matter of Mystification: Teacher Education in Unquiet Times". Identity and Struc- sistêmico de aoministração confere significado, define a situação.
ture: Issues in the Sociology 01 Education. Denis Gleason (ed.). Driffield, Nafferton
Books, 1977, p. 28-~3.
(32) Gouldner, op. cit., p. 445. Uma visão instigante do modo como essas
"determinações" funcionam no controle da ação educacional pode ser encontrada no (33) Colin Greer. "Immigrants, Negroes, and the Public Schools". The Urban
trabalho do filósofo marxista francês Louis Althusser. Ver Alex Callinicos. Althus- Review, III (January 1969), 9-12.
ser's Marxism. London, Pluto Press, 1976. Ver também Michael Erben e Denis - . (34) Michael W. Apple. "Relevance - Slogans and Meanings". The Educa-
Gleason. "Education as Reproduction". Society, State and Schooling. Michael tional Forum, XXXV (May 1971), 503-7.
Young e Geoff Whitty (orgs.). Guilford, Inglaterra, Falmer Press, 1977, p. 73-92; (35) Murray Edelman. Politics as Symbolic Action. Chicago, Markham,
e Erik Wright. Classes, Crisis and the State. London, New Left Books, 1978. 1971.
176 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 177

Ainda, a definição que postula serve aos interesses daquelas classes tões de educação versus treinamento, e de liberdade e autoridade.
que já "possuem" capital econômico e cultural. Gouldner resume isto muito bem: 38
Para maior exatidão, deveria ser mencionado um outro pú-
blico. Este seria constituído pelos usuários da linguagem sistêmica. À medida que ( ... ) se ampliam os recursos, a ênfase nas metodologias
Boa parte da história do discurso sobre o currículo neste últimos de rigor presume uma função retórica especial. Serve para fornecer
cinqüenta anos tem revelado uma necessidade por parte dos que uma estrutura capaz de resolver diferenças limitadas entre os admi-
trabalham com currículo de que sua área se mostre mais como uma nistradores de organizações e instituições, que apresentam pouco
ciência. Não irei me alongar sobre a possibilidade de psicanalisar conflito quanto aos valores básicos ou a planejamentos sociais, por
essa necessidade de prestígio. Porém, uma função latente da teoria dar a sanção de ciência a escolhas políticas limitadas referentes a
sistêmica é, sem dúvida, que ela confirma psicologicamente os vín- formas e meios. Ao mesmo tempo, sua ênfase cognitiva serve para
culos dos que trabalham com currículo com uma procura por um desfocar o conflito de valores que permanecem envolvidos nas dife-
renças políticas, e para enfocar a disputa em questões de fato, impli-
grupo de referência - no caso, a comunidade científica, e, como
cando que o conflito de valores possa ser solucionado independente-
observei e observarei, uma comunidade científica erroneamente con-
cebida.
mente da política e sem conflito político. _.º_
,p<?~.i!!!Í'§!!l-º-[e perspec.. ".- -/
tivas tais como os modelos sistêmicos de administração que em parte
Deveria ficar claro, então, que as teorias sistêmicas não são dele provêm, eu acrescentaria], portanto, continua a servir como
essencialmente neutras, nem estão apenas desempenhando uma meio de evitar conflitos quanto a planejamentos. No entanto, apesar
função "científica". Por tenderem a fazer com que seus usuários e desse caráter aparentemente neutro, imparcial, o impacto social [des-
outros públicos ignorem alguns possíveis problemas fundamentais sas perspectivas] não é casual ou neutro quanto aos planejamentos
relacionados à escola enquanto instituições, os modelos sistêmicos sociais antagônicos; em virtude de [sua] ênfase no problema de ordem
social, em virtude de suas origens sociais, da educação e do caráter
de administração também atuam para formar e canalizar os senti-
de [seu] próprio quadro de funcionários, e em virtude das dependên-
mentos políticos que apóiam os modos existentes de acesso ao co- cias criadas por [sua~l exigências de recursos, [elas] tendem persis-
nhecimento e ao poder. 36 tentemente a apoiar o status quo.
Além de desempenhar essas funções políticas associadas ao
apoio financeiro e "afetivo", a função retórica da terminologia A idéia de Gouldner é muito interessante e todos deveríamos
sistêmica e de metodologias técnicas tende a sustentar a dominância refletir sobre ela. Será o modelo sistêmico de administração "so-
das instituições existentes de uma outra forma. Lidando com um mente" um modo pelo qual uma elite institucional e dirigente evita o
tipo de conceito sistêmico em sociologia, Gouldner afirma que, com conflito quanto a valores básicos e visões educacionais? Fazendo
exceção de servir para "desfocar as dimensões ideológicas do pro- escolhas sobre opções limitadas dentro do quadro de modos de
cesso decisório, desviando a atenção das diferenças nos valores interação existentes, evitam-se as questões sobre a base da própria
fundamentais e das conseqüências mais remotas da política social estrutura? Como, por exemplo, os modelos sistêmicos de adminis-
para que sua pesquisa é aproveitada", as perspectivas técnicas
tração lidariam com a colisão de duas ideologias conflitantes sobre
supostamente não valorativas fornecem a solução para alguns pro- escolarização em que os objetivos não pudessem ser facilmente
blemas de gerência,37 não para as questões éticas, complexas e definidos? Essas questões exigem exame bem mais minucioso, caso
fundamentais, com que se defronta, digamos, na educação com as instituições educacionais devam ser sensíveis aos seus diversos
respeito às formas adequadas de educar crianças, ou para as ques- públicos.
Venho insistindo ao longo deste Capítulo que se pode ver a
consciência dos próprios especialistas em currículo, como também a
(36) Compare-se aqui com a discussão da teoria sistêmica em sociologia como
sendo uma teoria tâcita de política conservadora, assim como em Gouldner, op. cito
(37) Ibid., p. 105. (38) Ibid.• p. lOS.
178 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 179

de outros educadores, como latentemente política e em geral um Sistemas, ciência e consenso


tanto conservadora. Isto é, eles empregam conceitos que ao menos
em parte provêm da subestrutura' social e econômica existente e da É notável que a visão de ordem e conflito esteja refletida em
distribuição de poder, e podem tacitamente mantê-las, numa socie- boa parte da forma como são utilizadas as teorias sistêmicas em
dade industrial como a nossa. Os modelos sistêmicos de adminis- educação. É sinal da regra constitutiva de atividade, estudada no
tração oferecem um exemplo intrigante desse problema. Darei mais capítulo anterior, que faz com que muitos de nós vejamos a ordem
um exemplo desse aspecto do papel do "intelectual" em aumentar a como positiva e o conflito como negativo. 41 A ordem toma-se uma
hegemonia. necessidade psicológica e isto é muito importante. Como referi
Parte significativa da estrutura dos modelos sistêmicos de antes, as teorias sistêmicas tentam pôr em execução uma solução
administração está relacionada e se baseia na formulação precisa de técnica para problemas políticos e éticos. Nada há de estranho
objetivos, em nível de macrossistema, geralmente com a especifi- quanto a isto. As sociedades industriais mais desenvolvidas parecem
cação de objetivos "comportamentais". Isto é, o comportamento de transformar suas questões éticas, políticas e estéticas, por exemplo,
um estudante é pré-selecionado antes que ele se empenhe numa em problemas de manipulação. 42 O conflito profundo entre posições
atividade educacional, e este comportamento é usado como produto ideológicas e morais contrárias se traduz em enigmas a serem deci-
final do sistema, de modo que se pode obter feedback. Em última frados pela especialização técnica maximizada pelo aparelho cul-
análise, este irá em nivel de macrossistema operacionar macromo- tural. Agora, quando questionados quanto à tendência para eli-
delos de administração. Examinemos isto. O estilo processo/pro- minar o conflito, ou redefini-Io, e procurar pelo consenso, os defen-
duto de raciocínio empregado aqui, um estilo que é mais claro na sores dos modelos sistêmicos de administração em educação pode'-
exigência de objetivos "comportamentais", é bastante funcional riam tomar, e de fato tomam, a posição de que estão simplesmente
para uma sociedade que requer que um grande número de seus tentando ser científicos com relação a seus problemas. Eis onde
trabalhadores se empenhem na produção em linha de montagem se encontra uma dificuldade básica. A visão que têm de ciência
geralmente entediante ou em trabalho burocrático sem importância é notavelmente inexata, como afirmei no início de minha dis-
para o indivíduo que o faz. Aprendendo como trabalhar para os cussão.
objetivos pré-ordenados alheios, os estudantes também aprendem a Na citação dos objetivos educacionais precisos por Popham no
funcionar numa sociedade cada vez mais industrializada e burocra- início deste capítulo, vimos uma perspectiva que legitimava o con-
tizada em que os papéis sociais que se tem de desempenhar já estão senso intelectual, uma perspectiva que pedia acordo total quanto ao
sedimentados na "fábrica social". Cada papel traz em si sua marca "paradigma" a ser usado na ideação do currículo a fim de que
de pensamento,39 e os estudantes se sentirão muito à vontade no pudéssemos ser mais científicos. De fato, os que olharam de sotlaio
desempenho desses papéis em geral relativamente alienantes na para o paradigma aceito foram, com efeito, rotulados como des-
medida em que já se lhes ensinou que este é o modo adequado de viados. Esse universo que mantém a atividade verbal não é errado
viver. Os especialistas em currículo, interiorizando e utilizando uma em si mesmo nem é incomum. 43 Para ligar a racionalidade científica
orientação que se presta a essa pré-ordenação, não podem deixar de
contribuir para a manutenção de uma ordem política e econômica
que cria e defende esses papéis e os significados já distribuídos (41) Para um estudo concreto da forma como um conflito intenso e uma re-
rie1es.40 Este problema está intrincadamente ligado à perspectiva jeição de uma ordem simbólica imposta podem ievar nas pessoas a uma "demons-
quanto à desordem compartilhada pela maioria dos educadores. tração da beleza e do poder do espírito humano", ver a magistral anãlise do desen-
volvimento da cultura e da consciência negra em Eugene Genovese. Role, Jordan,
Role. New York, Random House, 1974.
(42) Ver, por exemplo, o exame instigante mas em geral infundado e proble-
(39) Erving Goffman. The Presentation 01 Sellin Every Day Life. New York, mático do ponto de vista politico e analítico de Jacques Ellul. The Technological
Doubkday Anchor, 1959. Society. New York, Vintage, 1964.
(40) Bergere Luckmann, op. cit., p. 72-9. (43) Berger e Luckmann, op. cit., p. 105.
180 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 181

com o consenso, porém, é preciso fazer um dano à ciência e mostrar A procura de alternativas
um profundo equívoco da história das áreas de conhecimento cien-
tífico. Existem, porém, várias formas de se lidar com algumas das
Precisamos reiterar que a história da ciência e o desenvol- possíveis dificuldades associadas ao emprego de modelos sistêmicos
vimento das áreas de conhecimento específicas não se deu por meio de administração em educação. Em primeiro lugar, os educadores
do consenso. De fato, o progresso mais importante nessas áreas foi devem se empenhar numa análise contínua e aprofundada de outras
ocasionado por conflito intenso, tanto intelectual quanto interpes- formas de teoria sistêmica, que não sejam tomadas de empréstimo
soaI, e por revolução conceitual.44 É decididamente por meio desse aos interesses industriais. A ótica dos sistemas abertos e dos sis-
conflito que se faz um avanço significativo, e não pela acumulação temas biológicos poderia fornecer excelentes modelos de revelação
de dados factuais baseados na resolução de enigmas criados por um para exame aprofundado. Em segundo lugar, podem se absorver
paradigma de que todos devem compartilhar. A própria estrutura nas questões e controvérsias na área de sistemas de modo que se
normativa das comunidades científicas tende para o ceticismo e não conscientizem das dificuldades técnicas e práticas concretas enfren-
necessariamente para o consenso intelectual. 45 A exigência de con- tadas pela análise de sistemas enquanto uma área. Dessa forma, os
senso, portanto, não é uma exigência de ciência. educadores podem impedir que novamente se venha a tomar de
O que a passagem citada deixa claro, no entanto, é o forte empréstimo conhecimento que é arrancado de seu contexto de auto-
compromisso pessoal gerado pelas formas de pensamento domi- correção, sendo, por isso, geralmente superficial ou parcial. Embora
nantes. Isto é provavelmente verdadeiro em qualquer área. Coloca, o uso de teorias sistêmicas tenha uma plausibilidade imediata óbvia,
porém, algo como um elemento limitativo de nosso conceito tradi- não faremos justiça à complexidade intelectual associada à própria
cional de neutralidade. O pensamento dominante, assim, forma teoria sistêmica ou à intrincada natureza das relações institucionais
um compromisso psicológico e ético, uma norma de comporta- em educação (que os modelos sistêmicos podem ao menos par-
mento. Os cientistas estão intensa e pessoalmente compromis- cialmente elucidar) se basearmos nossas análises em concepções de
sados 46 e esta é uma das fontes básicas de conflito nas áreas de sistemas a que se pode dar apenas uma pequena confiabilidade
conhecimento. Por isso, exigir consen~o é exigir umafalta de com- dentro da comunidade de sistemas mais ampla. Existem alternativas
promisso e é ignorar o valor decisivo do incerto e do conflito concei- no discurso dos sistemas por serem exploradas de modo rigoroso
tual no progresso de uma área de conhecimento. A exigência oculta pelos educadores.
de uma falta de compromisso é de importância considerável. Os Essa análise não irá, porém, eliminar todas as dificuldades,
modelos sistêmicos de administração, como mencionado, tendem a pois existem várias outras questões que poderiam ser levantadas
impor soluções técnicas a dilemas morais - que é a forma adequada com respeito aos modelos sistêmicos de administração. Talvez uma
para influenciar um outro ser humano, por exemplo. Se os compro- das mais decisivas centre-se em tomo da verdadeira possibilidade de \'
missos morais estiverem pouco firmes, a tarefa de nivelar a reali- se aumentar a burocratiz,ação e o controle social por meio da racio- /;
dade torna-se muito mais fácil. Quando a "realidade" é desigual, nalização total da educação. Isto não significa levantar o espectro de '

l quando as classes com poder econômico e cultural controlam classes


sem esse poder, o nivelamento apresenta agudas conseqüências.
uma máquina burocrática que invada os interesses humanos. Pelo
contrário, pede-nos que sejamos realistas, se não trágicos. Quem
quer que esteja familiarizado com o crescimento de escolas urbanas
sabe que a história de racionalizar e centralizar o processo decisório,
(44) Kuhn,op. cito Para uma discussão mais aprofundada do lugar do con- não importando quais sejam os sentimentos possivelmente humanos
flito na ciência, uma discussão que sugira antes um modelo darwiniano que um ou liberais que se acham por trás dela, tem quase que invaria-
modelo revolucionãrio, veja-se Stephen Toulmin. Human Understanding. Princeton
University Press, 1962.
velmente levado a uma cristalização e reificação institucional. 47 O
(45) Norman W. Storer. The Social System olScience. New York, Holt, Rine-
hart & Winston, 1966, p. 78-9. (47) Podem-se encontrar anâlises hist6ricas desse problema em Carl Kaestle.
(46) Polanyi,op. cit., p.171. The Evolution of An Urban Schoo/ System. Cambridge, Mass., Harvard University
182 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 183

fato de não estarmos familiarizados com nossa própria história no possibilitem ver e influir sobre a complexidade em vez de defini-la
que diz respeito a "reformas" desta natureza apenas comprova a além do mundo real.
simplicidade com que abordamos nossos problemas. As metáforas dos sistemas como modelos de compreensão
Não se encontram alternativas simples para uma ideologia de podem se mostrar úteis aqui. Mas há questões prioritárias por
administração e controle. Poder-se-ia facilmente expor os problemas considerar. Precisamos aprender (talvez reaprender seja mais exato)
epistemológicos e psicológicos associados aos objetivos "compor- como se empenhar em debate ético e político sério. 49 Nisto os
'''48 por exempI o; ou se poderia comprovar o fato de que a
t amen t alS, educadores podem ser orientados pelo trabalho de análise filosófica
Tyler Rationale no currículo é pouco mais do que um documento que trata das formas de raciocínio ético e argumentação avaliativa.
administrativo que não trata adequadamente da realidade concreta Análises como as de Rawls em sua recente tentativa de explicar
das escolas. No entanto, esse tipo de atividade considera esses posições morais verificáveis,5O adquirem grande importância como
princípios behavioristas como se fossem logicamente fundamen- ponto de partida, dada a intensa controvérsia que hoje cerca as
tados e cientificamente demonstráveis. Pode muito bem se dar que escolas. E isto não é tudo. Precisamos reaprender nossa história. De
eles não o sejam. Como tentei expor, o que de fato parecem ser são onde veio o modelo sistêmico de administração na indústria? Como
expressões de uma consciência industrializada predominante, que ele funciona na acumulação de capital econômico? Quem lucrou
procura confiabilidade acima de tudo. Ou seja, são configurações com seu emprego? Uma vez levantadas essas questões, podemos
sociais e ideológicas que se originam e são um reflexo de um con- então começar a prever as possibilidades de diferentes combinações
junto de regras básicas de pensamento que fazem parte da suposta institucionais para impedir a reificação do presente no futuro. Con-
realidade dos especialistas em currículo e outros educadores. São tudo, a área em geral carece de senso e imaginação estética, econô-
aspectos da hegemonia que ajudam a criar uma "realidade", uma mica e histórica, disciplinadas, para prefigurar as possibilidades de
J realidade que nos leva a procurar por formas relativamente simples contornos educacionais e econômicos alternativos. É bem possível
{I de eliminar os dilemas humanos e as contradições sociais e econô- que a necessidade de resultados operacionalmente pré-especificados
micas implicadas na análise da diversidade e de concepções alter- diminua diante do desenvolvimento dessa imaginação. 51
nativas de atividades com referência a valor. Pedir, então, por um Finalmente, deve-se devotar uma parte significativa da área \
substituto ou por uma alternativa aos modelos sistêmicos de admi- do currículo à responsabilidade de se tornar uma "ciência crítica", / ,
nistração é confirmar a suposição de que finalmente os problemas (noção que irá exigir atenção mais séria no próximo capítulo). Sua /
complexos podem ser solucionados dentro da estrutura aceita, sem a função básica é ser emancipadora na medida em que' reflete criti-
necessidade ambígua e aterradora de envolvimento na tarefa de camente sobre o interesse predominante da área de manter a maio-
desafiar ou de pelo menos esclarecer a própria estrutura. A tarefa ria, se não todos os aspectos do comportamento humano em insti-
não é encontrar a alternativa aceitável que nos possibilitará "sim- tuições educacionais sob controle técnico supostamente neutro. 52
plesmente" controlar melhor nossas escolas. Pelo contrário, é come-' Uma tal responsabilidade está fundada na análise relacional, na
çar a revelar os problemas associados a nossas visões de escola-
rização fundadas no senso comum e começar a abrir e a explorar I

vias conceituais e econômicas que se mostrem férteis e que nos (49) A anâlise feita por Arendt (op. cit.) das formas de discussão e de ação
politica e pessoal dapolis é útil aqui.
(50) Iohn Rawls. A Theory of Justice. Cambridge, Mass., Harvard University
Press, 1971.
(51) Veja-se o interessante debate em Interchange, 11 (n. 1, 1971) sobre alter-
Press, 1973; e David Tyack. The One Best System. ,Cambridge, Mass., Harvard nativas para os modos existentes de escolarização. Quase toda a questão é dedicada
University Press, 1974. ao tema. Quanto à necessidade de visão imaginativa em educação, veja-se William
(48) Michael W. Apple. "Behaviorism and Conservantism". Perspectives for Walsh, The Use of Imagination. New York, Barnes & Noble, 1959; e Fred Inglis.
Reform in Teacher Education. Bruce R. Ioyce e Marsha Weil (eds.). Englewood Ideology and the Imagination. New York, Cambridge University Press, 1975.
Cliffs, N. I., Prentice-Hall, 1972. (52) Habermas,op. cit., p. 45.
184 MICHAEL W. APPLE

procura e no esclarecimento das pressuposições ideológicas e epis-


temológicas do conteúdo do currículo. Procura tomar o especialista
t em currículo mais consciente de si mesmo. Apenas quando essa
~ dialética da consciência critica se inicia, é que os especialistas em
\ currículo podem verdadeiramente afirmar que estão preocupados
com educação e não com a reprodução cultural e econômica. É
então que podemos começar a analisar de modo rigoroso os pro- 7
blemas complexos do planejamento e avaliação das estruturas edu-
cacionais numa diversidade de formas, S3 formas que respondem
As categorias do senso comum
menos às exigências econômicas e culturais de hegemonia e mais às e a política de rotulação
necessidades de todos os indivíduos, grupos e classes concretos que
constituem esta sociedade.
Uma palavra-chave aqui nesta última sentença, contudo, é
avaliar, pois as próprias formas que valorizamos comumente e refle-
timos em nossa atividade educacional constituem uma grande par-
cela do problema ideológico que precisa ser esclarecido.
Como vimos, em virtude do status econômico e cultural de - Rã o mensageiro do Rei, disse a Rainha. Ele estã na prisão,
formas técnicas e positivistas - formas que são transmitidas mani- sendo punido; e o julgamento não começa senão na próxima quarta-
festa e latentemente bem no início da carreira escolar -, outras feira; e naturalmente o crime virã por último.
- Mas suponhamos que ele nunca cometa o crime?, disse
formas de ação e reflexão são afastadas das considerações sérias
Alice.
pelos educadores. Desse modo, exatamente como a maneira em que - Isto seria muito melhor, não seria?, disse a Rainha, enro-
a tradição seletiva estabelece limites aos meios como os estudantes lando a argila em volta de seu dedo com um pedaço de fita.
podem refletir sobre a saturação ideológica que sofrem, também os Alice percebeu que não havia como negar isto. - Naturalmente
tipos de conjuntos de valores e regras constitutivas, fundados no seria muito melhor, disse, mas não seria muito melhor sua punição.
senso comum, que os educadores empregam para avaliar o "êxito" - Você estã errada nisto, de qualquer modo, disse a Rainha.
ou "fracasso" seu e dos estudantes determinam sua própria posição Você jã foi punida alguma vez?
ideológica e o funcionamento real de" suas teorias, princípios e - Apenas por erros, disse Alice.
modos de organização. A próxima área que precisaremos investigar - E você ficou muito melhor por isso, eu sei!, disse a Rainha
é como os procedimentos básicos de linguagem e pensamento que triunfantemente.
- Sim, mas então eu tinha feito as coisas pelas quais fui
hoje prevalecem em educação, por um lado, conferem significado (e
punida, disse Alice. Ai estã a diferença.
latentemente impedem que outras formas de significado sejam seria- - Mas, se você não as tivesse feito, disse a Rainha, isto teria
mente apreciadas) e, por outro, atendem a interesses particulares. sido ainda melhor; melhor, e melhor, e melhor!
Lewis Carrol, Alice no Fundo do Espelho

Ética, ideologia e teoria

(53) Dois artigos de Huebner são muito importantes a esse respeito. Ver Recorrendo ao importante trabalho de Williams e de Gramsci,
Dwayne Huebner. "Curriculum as the Accessibility of Knowledge". Artigo apresen-
tado no Grupo de Estudo de Teoria do Curriculo, em Minneãpolis, em 2 de março de
demonstrei no início deste livro que o controle e a dominação são
1970; e "The Tasks of the Curricular Theorist". Curriculum Theorizing: The Recon- freqüentemente investidos nas práticas e na consciência fundadas no
ceptualists. William Pinar (ed.). Berkeley, McCutchan, 1975, p. 250-70. senso comum subjacentes a nossa vida, assim como pela manipu-
186 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 187

lação econômica e política declarada. A dominação pode ser ideo- dem ser plenamente interpretados sem o uso de uma marca de
lógica, bem como material. pensamento ético. No entanto, há uma série de fatores que fazem
Os modelos sistêmicos de admitiistração e os objetivos "com- com que os educadores percebam seus problemas de formas signi-
portamentais" não são os únicos exemplos da saturação da filosofia ficativamente diferentes desta. Como essa relação causal é excep-
educacional por configurações ideológicas. Embora esses procedi- cionalmente complexa, não se pode esperar que este capítulo ex-
mentos educacionais de fato desempenhem os papéis duais de uma plore todos os aspectos da dificuldade. Isto exigiria uma extensa
ideologia efetiva - dando definições "adequadas" de situações e pesquisa da relação entre ciência, ideologia e filosofia educacional 2 e
servindo aos interesses daqueles que já possuem capital econômico e uma análise mais completa da redução de concepções do humano e
cultural - estão ligados a outros aspectos de nosso aparelho con- das instituições a considerações técnicas em sociedades industriais
ceitual para formar uma pré-noção mais ampla que domina a edu- avançadas em que predominam grandes corporações. 3 Auspicio-
cação. Desafiar o uso dos modelos sistêmicos de administração e que samente, como os demais capítulos desta obra, este servirá de estí-
tais significa que também é preciso formular questões a respeito das mulo à pesquisa destas áreas e, especialmente, dos meios pelos quais
próprias categorias empregadas para organizar nosso pensamento e os burocratas das escolas ignoram as implicações éticas e, como
ação em instituições culturais e econômicas como as escolas. Por veremos, políticas e econômicas de seus atos.
conseguinte, neste capítulo deverei examinar como essas categorias Embora parte de minha análise será mais teórica que, diga-
do senso comum que empregamos para refletir sobre o próprio mos, os primeiros Capítulos a respeito do currículo oculto e mani-
objeto de que tratamos e as reformas parciais que delas se originam festo, na medida em que continuará a pesquisa da forma como a
são também aspectos da configuração hegemônica mais ampla de hegemonia opera nas mãos de intelectuais como os educadores, são
uma cultura dominante efetiva. excepcionalmente importantes suas implicações na densidade coti-
O capítulo anterior ressaltou. a importância de serem anali- diana da vida na sala de aula. Estou utilizando a idéia de uma
sadas as dimensões ética e ideológica de nossa visão dos estudantes, investigação teórica de uma forma muito específica quanto a este
observando que as duas estão entrelaçadas. Isto precisa ser exami- aspecto de minha análise, como um modo de afastamento das
nado com mais profundidade. Como sustentei, as questões educa- categorias ideológicas e das suposições do senso comum que sus-
cionais são, ao menos em parte, questões morais. Admitem escolhas tentam a área do currículo. Parte deste tipo de orientação foi mais
quanto às áreas relevantes de conhecimento especializado que os claramente observada por Douglas em sua afirmação com referência
educadores deveriam usar para compreender as crianças e as esco- às diferenças entre uma posição naturalista e uma teórica. Ele se
las. Como expressa Blum, "toda argumentação l e especialmente a expressa do seguinte modo: 4
argumentação educacional, eu poderia acrescentarl apresenta um
compromisso moral na medida em que faz referência a uma escolha Existem diferentes formas de fazer uso da experiência do senso
autoritária com respeito ao modo como um fenômeno deve ser comum. (. .. ) Há, especialmente, uma distinção fundamental entre
entendido". I Ademais, se as concepções da "moral" dizem respeito adotar a posição natural (ou naturalista) e adotar a posição te6rica,
a questões de dever ou virtude, então deveria ficar claro que as assim denominada já há muito tempo pelos fenomenólogos. Adotar a
questões educacionais também são questões morais segundo esse
critério. Finalmente, pelo próprio fato de que os burocratas das
escolas exercem influências sobre os estudantes, seus atos não po- (2) Cf. Jürgen Habermas. Knowledge and Human Interests. Boston, Beacon
Press, 1971; e Peter Berger e Thomas Luckmann. The Social Construction 01 Reality.
NewYork, Doubleday, 1966.
(3) Ver, por exemplo, Hannah Arendt. The Human Condition. New York,
(1) Alan F. Blum. "Sociology. Wrongdoing, and Akrasia: An Attempt to Doubleday, 1958; e Albrecht Wellmer. Criticai Theory 01 Society. New York, Herder
Think Greek about the Problem of Theory and Practice". Theoretical Perspectives on & Herder, 1971.
Deviance. Robert A. Scott e Jack D; Douglas (eds.). New York, Basic Books, 1972, (4) Jack D. Douglas. American Social Order. New York, Free Press, 1971,
p.343. p .. 9-10.
188 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 189

posição natural consiste basicamente em adotar o ponto de vista do fins do século passado. Ao tentar criar condições mais humanas
senso comum, de agir dentro do senso comum, ao passo que adotar a para a juventude "problemática", essas reformas criaram uma nova
posição teórica consiste em distanciar-se do senso comum e estudar o categoria de desvio chamada "delinqüência juvenil", que no final
senso comum para determinar sua natureza. das contas serviu para reduzir os direitos civis e constitucionais dos
jovens. 6 De diversas maneiras, ainda temos de nos recobrar dessas
Ou seja, para Douglas e para mim, é preciso distanciar-se de "reformas". Como demonstrarei neste capítulo, muitas das reformas
qualquer compromisso com a utilidade do emprego de suposições, eropostas pelos burocratas das escolas e as pré-noçÕes~quesê"encõn­
de modo que possam se tornar objeto de estudo. Dessa forma, trâmpOrtrás delas tiveram o mesmo efeito - essencialmente o de
nossas pressuposições podem ser utilizadas como dados para enfo- prejudicar em vez de ajudar, ocultar questões básicas e conflitos
car o significado latente de grande parte do que inquestionavel- éticos em lugar de contribuir para nossa capacidade de enfrentá-los
mente fazemos nas escolas. Isto é particularmente importante, por- honestamente.
que fornece a lógica básica que organiza nossa atividade e que em Isto é especialmente o caso quanto ao tema principal deste
geral atua como orientação tácita para determinar o êxito ou o Capítulo, o processo de utilização nas escolas de perspectivas, ava-
fracasso de nossos procedimentos educacionais. liações e rótulos, clínicos, psicológicos e terapêuticos especializados
Não se trata, porém, de que essas configurações ideológicas (e "científicos"). Essas formas de linguagem e as perspectivas que
foram construídas conscientemente. O próprio fato de serem hege- incorporam podem ser interpretadas não como instrumentos liberais
mônicas, e de serem aspectos de todo nosso "corpo de práticas, de "ajuda", mas, de um ponto de vista crítico, como mecanismos
expectativas e compreensão comum", torna-as ainda mais difíceis pelos quais as escolas se empenham em anonimizar e classificar
de lidar. Seu questionamento é difícil porque se baseiam em supo- indivíduos abstratos nas áreas sociais, econômicas e educacionais
sições que são inarticuladas e que parecem essenciais à realização de pré-ordenadas. O processo de rotulação, portanto, tende a fun-
algum progresso em educação. Mas outros fatores contribuem para cionar como uma forma de controle social,7 um sucedâneo avaliativo
a falta de discernimento crítico. Na área de educação, essas confi- para a longa linha de mecanismos com que as escolas procuram
gurações são acadêmica e socialmente respeitáveis e são sustentadas homogeneizar a realidade social, eliminar as percepções divergentes
pelo prestígio de um processo que "apresenta todos os sinais de ser e empregar meios supostamente terapêuticos para criar consenso
uma tradição válida, que não prescinde de tabelas de números e de moral, ético e intelectual. 8 Em nossa corrida por "ajudar", quase
uma profusão de notas de rodapé e terminologia científica". Além sempre deixamos para segundo plano o fato de que esse processo
do mais, os elementos altruístas e humanitários dessas posições são possa estar arrefecendo, de que o capital cultural daqueles que se
bastante claros, de modo que é difícil concebê-los como funcio- encontram no poder é utilizado como se fosse natural, aumentando,
nando principalmente para depreciar nossa capacidade de resolver assim, tanto o falso consenso quanto o controle econômico e cul-
problemas sociais ou educacionais. 5 tural, de que resulta a eliminação da diversidade, e que ignora a
Entretanto, uma pesquisa da história de muitos movimentos importância do conflito e da surpresa na interação humana.
de reforma que foram apoiados por pesquisas e perspectivas seme-
lhantes àquelas que continuamos a considerar aqui comprova o
interessante fato de que em geral as reformas gradativas apresen- (6) Anthony Platt. The Child Savers: The Invention of De/inquency. Univer-
taram resultados muito problemáticos. Freqüentemente, acabaram sity of Chicago Press, 1969. Ver também Steven L. Schlossman. Love and the
American Delinquent. University of Chicago Press, 1977.
por prejudicar os indivíduos para os quais se voltaram. É instrutiva
(7) Edwin M. Schur. Lobe/ing Deviant Behavior. New York, Harper & Row,
aqui a análise de Platt da reforma do sistema judicial do menor em 1971, p. 33.
(8) Quanto à dominância de uma ética de controle social nas escolas, ver Cla-
rence Karier, Paul Violas e Joel Spring. Roots of Crisis. Chicago, Rand McNally,
(5) William Ryan. Blaming the Victim. New York, Random House, 1971, 1973; e Barry Franklin. "The Curriculum Field and Social Control". Tese de douto-
p.I-2. ramentonãopublicada, UniversityofWisconsin, 1974.
190 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 191

Nada há de estranho quanto ao fato de em geral não enfo- manifestas e latentes. 11 Como venho demonstrando ao longo desta
carmos os conjuntos básicos de suposições que utilizamos. Primeiro, obra, de vez que as escolas como instituições estão tão interligadas
são conhecidos apenas de modo tácito, permanecem sem expressão e com outras instituições econômicas e políticas, e de vez que as
são muito difíceis de formular explicitamente. Segundo, essas regras escolas em geral atuam sempre no sentido de distribuir conhe-
básicas fazem de tal modo parte de nós, que não têm de ser expres- cimento e valores tanto através do currículo manifesto quanto do
sas. Pelo próprio fato de serem suposições compartilhadas, produto oculto, que em geral atuam para apoiar essas I11fsmas instituições, é
de grupos específicos, e de serem comumente aceitas pela maioria necessário que os educadores se empenhem em analisar as formas
dos educadores (se não pela maioria das pessoas em geral), tornam- pelas quais permitem que valores e compromissos inconsciente-
se problemáticas apenas quando um indivíduo as infringe, ou então mente operem através deles.
quando uma situação rotineira torna-se significativamente alteta- Segundo, é importante demonstrar que a própria atividade de
da. 9 Contudo, se devemos ser honestos para com as exigências de investigação racional exige um estilo crítico. A área do currículo tem
uma análise rigorosa, é necessária uma investigação crítica dos se caracterizado em demasia pela aceitação de posturas que descon-
padrões de rotina de nossa experiência cotidiana. sideram a complexidade da pesquisa e não tem realmente mudado
suas perspectivas básicas por décadas. Tem sido considerada com as
noções de sistematicidade, confiabilidade e controle como o ideal da
Sobre a necessidade de consciência critica atividade programática e conceitual, em seu enfoque da pesquisa e
de pessoas. Isto está vigorosamente espelhado na tendência de obje-
A área do currículo e a educação como um todo têm estado tivos "comportamentais" e na disputa por taxonomias que codificam
voltadas para reformas graduais. Isto é compreensível, em vista da . o comportamento "cognitivo", "afetivo" e "psicomotor". Essas ati-
ideologia liberal que orienta a maioria da atividade educacional e vidades se fundam numa concepção de racionalidade que é hoje'
em vista das pressões e do interesse da área em servir às escolas e aos ineficiente. Não apenas é um tanto limitativap mas também histórica
seus programas e objetivos. A acentuada absorção nas reformas e empiricamente inexata.
parciais causou, porém, alguns efeitos muito prejudiciais. Não ape- Nossa visão postula uma concepção de racionalidade baseada
nas nos forçou a ignorar questões e pesquisas que poderiam no final na ordenação de crenças e conceitos em estruturas lógicas estreitas e
das contas contribuir para nossa compreensão básica do processo de nos paradigmas vigentes que parecem prevalecer na área do currí-
escolarização,1O mas uma orientação como essà despreza' o papel culo em um dado momento. Ainda, qualquer concepção séria de
decisivo a ser desempenhado pela crítica, caso uma área deva per- racionalidade deve estar relacionada não às posições intelectuais
manecer vital. Uma atitude crítica é importante por diversas razões. específicas que um grupo profissional ou um indivíduo emprega em
Primeiro, os especialistas em currículo ajudam a estabelecer e a um dado momento, mas, pelo contrário, as condições em que e à
manter instituições que afetam aos estudantes e a outros numa maneira como este campo de estudo está preparado para criticar e
multiplicidade de formas. Em virtude desses efeitos, devem estar
conscientes das razões e intenções que os orientam. Isto é espe-
cialmente verdadeiro quanto às finalidades ideológicas e políticas,
(11) Novamente estou utilizando o conceito de ideologia para me referir em
parte às visões de mundo fundadas no senso comum mantidas por grupos específicos,
não apenas como visões "politicamente" parciais. Isto se segue da afirmação de
(9) Douglas, op. cit., p. 181. Ver também a discussão de regras de interpre- Harrys de que "as ideologias não são descrições disfarçadas do mundo, mas sim
tação e normativas em Aaron Cicourel. "Basic and Normative Rules in the Nego- descrições reais do mundo a partir de um ponto de vista específico, exatamente como
tiation of Status and Role". Recent Sociology, n. 2. Hans Peter Dreitzel (org.). New . todas as descrições do mundo provêm de um determinado ponto de vista". Nigel
York, Macmillan, 1971, p. 4-45. Harris. Beliels in Society: The Problem olldeology. Londón, A. Watts, 1968, p. 22.
(10) Herbert M. Kliebard. "Persistent Curriculum Issues in Historical Pers- (12) Veja-se a análise de Susanne Karier da necessidade de formas discursivas
pective". Curriculum Theorizing: The Reconceptualists. William Pinar (org.). Ber- e não discursivas de racionalidade em sua Philosophy in a New Key. New York,
keley, McCutchan, 1975, p. 39-50. Mentor, 1951.
192 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 193

mudar essas doutrinas aceitas. 13 Dessa fonna, o fluxo intelectual, técnico) e, por isso, neutro de sua atividade para lhe dar legiti-
não a "imutabilidade intelectual", é a ocorrência esperada e nor- midade, estão ignorando o fato de que boa parte da pesquisa atual-
mal. O que se tem de explicar não é por que deveríamos mudar mente realizada em Ciências Sociais está sendo vigorosamente criti-
nossa estrutura conceitual básica, mas, sim, a estabilidade ou a cada por seu apoio a suposições e instituições burocratizadas que
cristalização das posturas que uma área utilizou durante um certo negam dignidade e opção significativa ao indivíduo e a grupos de
tempo.14 pessoas. Esta crítica não pode ser facilmente afastada pelos educa-
A cristalização e a falta de mudança de perspectivas funda- dores, pois, ao contrário da atividade de muitas pessoas, a sua
mentais não constitui de forma alguma um problema novo na área II exerce influência direta sobre o presente e o futuro de milhares de
crianças. Por serem a primeira instituição por que passam os indi-
do currículo. De fato, fez-se um esforço importante na década de 40
para identificar e considerar exatamente esse interesse. 15 O fato de víduos para se tornarem adultos "competentes", as escolas dão às
que muitos especialistas em currículo não estão conscientes das I crianças pouca opção quanto aos meios pelos quais elas vivem seu
verdadeiras tradições de abordagem da tendência da área para destino social. Como vimos e veremos, a terminologia "científica
fortalecer suas posições evidentemente aponta para a necessidade de I
ml neutra" atua como uma tradição para ocultar este fato e, assim,

r
que se dê mais atenção à análise histórica na área do currículo . torna-se mais ideológica que útil. 16
.O. ~()tlse!y_@fu!!!o intelectual }E~gii(!l1!~l!le.nteé_c.9.e.rente-com Talvez uma das razões fundamentais da estagnação social e
um conservanti~mo soci~l, Não-se trata de que uma perspectiva intelectual da área implica nossa falta de interesse por uma tradição
'críticas'ejâ importante "simplesmente" por informar a estagnação menos positivista, uma falta de interesse que reflete o ideal posi-
da área do currículo. O que é ainda mais decisivo é o fato de que é tivista ensinado aos alunos. Temos estado pouco abertos a fonnas de .
preciso encontrarem-se meios para esclarecer as formas concretas análise que efetivamente contrabalançariam nosso uso de marcas de
como a área do currículo apóia os amplos interesses no controle pensamento que incorporam os interesses de controle e confiabi-
técnico da atividade humana, na racionalização, na manipulação, lidade técnica e social. Essa falta de abertura nos levou a sermos
"incorporação" e burocratização da ação individual e coletiva, e na descuidados com as funções dos próprios sistemas de linguagem que
destruição do estilo pessoal e da diversidade política. Estes são I
I utilizamos e a menosprezar áreas cuja força está em seu interesse
interesses que prevalecem em sociedades industriais avançadas, e por uma perspectiva crítica . .Isto irá exigir um exame mais atento.
contribuem muito para o sofrimento das minorias sociais e das
mulheres, para a alienação dos jovens, para a insatisfação e a falta
de sentido do trabalho para uma grande parcela da população, e As coisas sio como parecem?
para a sensação cada vez maior de impotência e cinismo que pare-
cem predominar em nossa sociedade. Os especialistas em currículo e Enfoquemos primeiro os recursos lingüísticos que utilizamos
outros educadores precisam estar conscientes de todas essas conse- para nos referir aos "estudantes" nas escolas. Minha proposição
qüências, embora existam poucas análises profundas do papel de- básica será que boa parte de nossa linguagem, embora aparen-
sempenhado por nossa postura fundada no senso comum, forçando- temente neutra, não é neutra em seus efeitos nem imparcial com
nos a uma relativa impotência diante desses problemas. relação às instituições de ensino existentes. Uma tese subjacente a
Embora os educadores consistentemente tentem representar a este argumento é de que nossa convicção de que as "técnicas neutras
si mesmos como "científicos", referindo-se ao status "científico" (ou . da ciência e tecnologia" fornecerão soluções para todos os dilemas
com que nos defrontamos está mal colocada e tende a ocultar o fato
(13) Stephen Toulmin. Human Understanding: The Collective Use and Evo-
lution ofConcepts. Princeton University Press, 1972, p. 84. (16) Isto se encontra discutido também em Michael w. Apple. "The Process
(14) Ibid., p. 96. and Ideology of Valuing in Educational Settings". Educational Eva/uation: Analysis
(15) Alice MieI. Changing the Curriculum: a Social Process. New York, and Responsability. Michael W. Apple, Michael I. Subkoviak e Henry S. Lufler, Ir.
D. Appleton-Century, 1946. (orgs.). Berkeley, McCutchan, 1974, p. 3-34.
194 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRtCULO

de que boa parte de nossa pesquisa educacional serve e justifica os . Portanto, de vez que um meio bastante significativo pelo qUal;
sistemas de controle técnico, cultura} e econômico já existentes, os os alunos são cultural e economicamente estratificados é através da
quais aceitam como dada a distribuição de poder na sociedade atribuição a eles de valores e categorias, é fundamental que exami-
norte-americanaY Boa parte desta discussão será estimulada por nemos esses princípios e valores sociais do senso comum. Para isso,
intuições provenientes da recente "teoria crítica" e da tradição precisamos recordar que alguns tipos de capital cultural - tipos de
neo-marxista, em especial da forte noção de que nossas perspectivas desempenho, conhecimento, tendências, auto-realização e propen-
básicas ocultam nossas relações "concretas" com outras pessoas sões - não são intrinsecamente bons. Pelo contrário, tornaram-se
com quem partilhamos conteúdos reais e simbólicos. A análise assim por causa das suposições específicas consideradas como cer-
utilizará idéias da pesquisa sobre o processo de rotulação para tas. São em geral histórica e ideologicamente "condicionados". As
aproximar essa questão inicial ao nosso caso. categorias que utilizamos para pensar o que estamos fazendo com os
Uma análise do processo de rotulação tem aqui importância estudantes, o êxito e o fracasso deles e nosso, estão compreendidos
considerável, pois a rotulação é o projeto final de nossos modos de num processo de avaliação social. Os princípios básicos que utili-')
avaliar nossas próprias ações e as dos estudantes. Está diretamente zamos para planejar, ordenar e avaliar nossa atividade - concep-
relacionada aos princípios que se acham por trás das práticas em ções de desempenho, de êxito e fracasso, de bons e maus alunos -
que nos empenhamos para diferenciar os estudantes de acordo com são construções sociais e econ,ÔmJE.as. Não são automaticamente
sua "competência" e sua posse de determinados tipos de capital inerentes a indivíduos ou grupos. Pelo contrário, são exemplos da
cultural. Assim, como demonstrou Ian Hextall: 18 aplicação de regras sociais identificáveis ao que se deve considerar
bom ou mau desempenho. 19' Desse modo, as próprias formas como
A diferenciação, (. .. ) classificação [e avaliação] que realizamos nas nos referimos aos estudantes fornecem excelentes exemplos dos
escolas está articulada com a divisão social do trabalho mais ampla, mecanismos através dos quais operam as ideologias dominantes. E
mais abrangente. Isto não ê reivinaicar que exista uma ligação direta, as últimas investigações dos teóricos críticos, quando criticamente
total e exata, entre diferenciação em educação e, digamos, a divisão usadas, podem ser muito úteis para revelar esses mecanismos.
dos postos de trabalho. Naturalmente, uma suposição como essa seria A palavra "criticamente" é de importância considerável aqui.
mecanicista e fácil. Mas, por meio de nossas atividades [de avaliação] Há riscos de se empregar a própria teoria crítica não criticamente,
estamos ajudando a estabelecer a estrutura geral da força de trabalho em especial porque ela tendeu a se tornar cada vez mais separada do /'
que o mercado por fim redistribui em categorias ocupacionais espe- estudo de economia política que tão bem a complementa. Com esses
cíficas. Dessa forma, os procedimentos que ocorrem nas escolas riscos em mente, porém, quero utilizar alguns aspectos do plano da ~Z'!->
fazem parte do contexto político-econômico em que elas se localizam.
teoria crítica como modos de revelar como funciona a consciência do i'l
As diferenciações, as avaliações e o juízo de valor realizados nas es-
colas estão fortemente relacionados com formas precisas da divisão
intelectual. Ao mesmo tempo, no entanto, precisamos recordar que, <,
social do trabalho. da mesma forma como uma posição demasiadamente determinista e _ ;','
economicista, por considerar as escolas como caixas negras, está r;,.
muito limitada: a um programa para que entenda como as escolas
criam o que .os economistas políticos querem analisar, também
existem limitaçõessignificativasern qualquer análise totalmente
(17) Podem-se encontrar enfoques perspicazes dessa tese em Roger Dale et ai. "~ultural~}ÕÂ; d~~~ 'preCisam','
iiit~s, ~~tãr integradasp'arà" expli-
-'_"> __ '_"""-"~'"<"'_' e.":' ~~'-"'_""',"'~ .-.~."",.,- _'.'0 <.
Schooling and Capitalism. London, Routledge & Kegan Paul, 1976; Dennis Gleeson
(ed.). Identity and Structure. Driffield, Nafferton Books, 1977; e Trent Schroyer.
"Toward a CriticaI Theory for Advanced Industrial Society". Recent Socio/ogy,
n. 2. HansPeterDreitzel(org.). NewYork, Macmillan, 1970, p. 210-34. (19) Apple. "The Process and Ideology of Valuing in Educational Settings".
(18) Ian Hextall. "Marking Work". Exploration in the Politics of School Op. cito
Knowledge. Geoff Whitty e Michael Young (orgs.). Driffield, Nafferton Books, 1976, (20) Ver Phil Slater. Origin and Significance of the Frankfurt Schoo/. Lon-
p.67. don, Routledge & Kegan Paul, 1977. Ver também a discussão de Marx da relação
196 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 197

car completamente os papéis que as escolas desempenham na repro- necessário, que a natureza rigidamente controlada de diversas socie-
dução cultural e econômica das relações de classe. Portanto, a com- dades modernas guarda pouca relação com as análises singular-
binação de partes selecionadas do programa cultural dos teóricos mente convincentes que se encontram na própria tradição marxista.
críticos (seu enfoque do controle da linguagem e da consciência, por Nosso desprezo dessa tradição se relaciona mais ao passado da
exemplo) com as teorias econômicas mais específicas das últimas sociedade norte-americana dominado pelo medo que aos méritos da
interpretações marxistas da escola (as formas como a escola cola- tradição crítica (em geral inexplorada). Também confirma a idéia
bora na "alocação" de. estudantes às posições adequadas na socie- que mencionei no início desta obra. A própria tradição tornou-se um
dade mais ampla, por exemplo) pode fornecer algum discernimento exemplo da forma como opera a tradição seletiva. Tornou-se vítima
quanto ao modo como as instituições educacionais ajudam a criar as da política de distribuição do conhecimento na medida' em' que
condições que sustentam esse sistema de alocações econômicas. esquecemos nossas origens nesses interesses. ,
Antes de começar, porém, seria sensato examinar algumas Há, ainda, outras explicações mais básicas e menos excessi-
explicações possíveis da razão por que a crítica marxista teve uma vamente políticas para a atrofia' e a falta de aceitação de uma
influência pouco significativa em nosso pensamento fundado no tradição intelectual e política marxista em países como os Estados
senso comum. Isto é estranho, de vez que é considerada excepcio- \, "
' Unidos. A visão atomista, positivista e rigorosamente empiricista,
nalmente forte em outras áreas e na Europa, onde exerceu signifi- tão predominante em nosso pensamento (e muito eficientemente
cativa influência no pensamento filosófico e sociológico francês e ensinada, como vimos no Capitulo 5), tem dificuldades com a.nos:!o
alemão, por exemplo, e nas práticas políticas e econômicas de criticamente orientada da necessidade de pluralidade e de collflitQs
grandes grupos de pessoas. 21 quanto às formas de se ver o mundo. Quanto a isso, a tradição
Existem várias razões por que a tradição marxista recons- crítica mantém uma posição muito semelhante à da fenomenologia,
truída não encontrou um lugar sério na pesquisa educacional anglo- na medida em que a "verdade" de alguma coisa só pode ser vista
americana. Embora, historicamente, o marxismo ortodoxo tenha através do emprego da totalidade de perspectivas que se pode lanç~r
influenciado, na década de 30, educadores como S~ outros, sobre ela. (Embora, é claro, algumas são mais básicas que outras,
perdeu sua força devido à situação política que se seguiu, especial- na medida em que as sutis interpretações econômicas, de classe e
mente ao clima político repressor que ainda não superamos de todo. culturais adotam uma função de organização nas questões formu-
A esse problema, é claro, podem-se acrescentar as interpre- ladas por essa tradição crítica.) 23
tações excessivamente deterministas e dogmáticas de aplicação da Também, a tendência nas sociedades industrializadas ociden-
análise marxista por muitos "marxistas". Parte do problema de se tais de sepa~ar estrita~ente o valor d~ f~to dificultaria. a acei~a~ão'l
aplicar pontos de vista críticos a sociedades industriais avançadas de uma poslção que afirma que a malOna das categonas SOClalse
como a nossa está em libertar esses pontos de vista de seu funda- intelectuais são avaliativas em si mesmas e podem refletir compro-
mento nesse dogmatismo.22 Não se deveria dizer, mas infelizmente é missos ideológicos, fato que irá adquirir importância excepcional
nesta discussão; Ademais, a longa tradição do individualismo abs-
trato e de uma visão fortemente utilitarista sem dúvida afastaria
tanto'uma concepção _mais ~,QÇialcl()_"h.Qm~m" quanto um comp!:Q:.
misso ideal que fosse 'menos propenso a ser gráduallstã. e mais pro-
dialética entre infra-estrutura e superestrutura no Capital, v. 1. New York, New
World, 1967, p. 459-507.
(21) Cf. Jean-Paul Sartre. Search for a Method. New York, Vintage Books,
1963; e Andre Gorz. Strategy for Labor. Boston, Beacon Press, 1967.
(22) Ver, por exemplo, a representação bem escrita da falta de dogmatismo (23) Essa inter-relação sutil entre as interpretações culturais e de classe é
de Marx em Michael Harrington. Socialism. New York, Bantham JJooks, 1972. Para muito bem descrita por ~tcY Eagleton. Marxism and litera.r:LCn'ticis!!.'.. Berkeley,
uma reavaliação do suposto determinismo econômico de Marx, uma que reage a essa University of California Press, 1976. Para uma discussão da teoria fenomenol6gica da
interpretação, ver Bertell Ollman. Alienation: Marx's Conception of Man in Capi- "verdade", ver Aron Gurwitsch. The Field of Conciousness. Pittsburgh, Du,quesne
talist Society. Cambridge University Press, 1971. University Press, 1964, p. 184.
/
198 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRtCULO 199

penso a despertar questões básicas acerca da própria estrutura da que nos possibilitará fazer progressos em revelar ainda mais algu-
vida social e cultural que a sociedade aceita como dada. 24 mas das funções ideológicas da linguagem educacional.
Contrariamente às suposições atomistas predominantes em Pode-se fazer uma última observação. Historicamente, a teo-
nosso pensamento fundado no senso comum, como vimos, um ponto ria crítica e boa parte da análise neomarxista foram reduzidas a
de vista crítico geralmente vê qualquer obje!~_1~~~iQ!!ª,LIIl_er*". variantes do pragmatismo, especialmente por autores como Sidney
Esta é uma chave importante para entender o tipo de análise em que Hook e outros. Embora não queira desmascarar a tradição pragmá-
se poderia ingressar a partir de uma perspectiva como essa. Isto tica na educação norte-americana (afinal, ainda temos muito por
implica duas coisas. Primeiro, qualquer objeto de estudo deve ser aprender com um estudo sério da análise de Dewey dos meios e fins
visto com relação a suas origens históricas - como se desenvolveu, na educação, por exemplo), quero de fato fazer uma advertência
de que condições surgiu, etc. - e suas contradições latentes e ten- quanto ao ajustamento da análise crítica a nossas regras constitu-
dências para o futuro. Este é o caso, porque, no mundo altamente tivas consideradas como certas. Este ajustamento significa uma
complexo da análise crítica, as estruturas existentes são na verdade perda do potencial de uma perspectiva crítica de ultrapassar algu-
alguma coisa semelhante a um movimento contínuo. Ç~wtt:ª,dição, mas das verdadeiras tendências conformistas do pragmatismo.
_rnu~rlç~~E!S_~!lY,2.IY!~~_l!}2- são a, !!.orIlla.e_Qualquer estrutura insti- A posição pragmática tende a ignorar a possibilidade de que algu-
_t!l:çlºnªl.ç-"apJ;nª~::,}lm estágiodo processo. 25 Portanto, a reificação mas teorias devem contradizer a realidade presente e, de fato, tra->
institucional torna-se'problemáticã;'como os padrões de pensamento balhar consistentemente contra ela. 28 Essas críticas são testemunhas
que sustentam essa falta de mudança institucional. Segundo, qual- da negatividade implícita em muitos programas institucionais cor-
quer objeto de estudo é definido não apenas por suas características rentes (econômicos, culturais, educacionais, políticos) e, portanto,
evidentes, mas por seus vínculos menos claros com outros fatores. podem esclarecer a possibilidade de mudança significativa. Dessa
S~~ ess~~.~~J~ç~_t?,~,9..,!e t~r:!!a_rn o tema o que é, e que lhe forma, o ato de crítica contribui para a emancipação na medida em
conferem seus primeiros significados. 26 Desse modo, é considera- que mostra a forma como as instituições lingüísticas ou sociais
velmente ampliada nossa capacidade de esclarecer a interdependên- foram reificadas, ou coisificadas, de modo que os educadores e o
cia e interação dos fatores. público em geral esqueceram por que surgiram e que as pessoas as
Aceitar essa visão relacional significa naturalmente opor-se ao criaram - e podem, portanto, mudâ-Ias. 29
conceito tradicional de que o que vemos é como parece. De fato, Então, é dupla a intenção dessa crítica e dessa tradição crítica
somos enganados pelas suposições que damos por certas, o que em geral. Primeiro, visa esclarecer as tendências para dominação,
constitui uma limitação muito grave ao nosso pensamento e ação. alienação e repressão, injustificadas e quase sempre inconscientes,
Isto é, qualquer coisa é sempre mais do que parece ser, especial- em algumas instituições culturais, políticas, educacionais e econô-
mente quando se lida com instituições complexas e inter-relacio- micas. Segundo, através da exploração de efeitos negativos e contra-
nadas, entre as quais se incluem as escolas. 27 Será exatamente isto dições de muito do que inquestionavelmente se passa nessas insti-
tuições, procura "promover a atividade de libertação [individual e
coletiva] consciente". 30 Isto é, examina o que deve estar aconte-
cendo, digamos, nas escolas quando se adota seriamente a lingua-
(24) Charles Taylor. "Marxism and Empiricism". British Analytic Philoso-
phy_ Bernard Williams e Alan Montifiore (orgs.). New York, Humanities Press, 1966,
p.227-46. (28) Martin Jay. The Dialectical Imagination. Boston, Little, Brown, 1973,
(25) Bertell Ollman, op. cit., p. 18. p. 83. Quanto a uma história da posição ideológica adotada por muitos dos pragmâ-
(26) Íbid., p. 15. Denomi~ou-se essa posição de "filosofia das relações inter- ticos em educação, ver Walter Feinberg. Reason and Rhetoric. New York, John
nas". Estranhamente, essa visão tem uma longa tradição no pensamento norte-ame- Wiley, 1975. --~-.-~--~' .-.-----.--------

ricano, até mesmo na filosofia educacional. Ver, por exemplo, o trabalho de Whi- (29) Ibid., p. 268.
teheadProcess and Reality.
(27) Ibid., p. 90. I
M
I
(30) Trent Schroyer. The Critique 01 Domination. New York, George Bra-
ziller, 1973, p. 30-1.

I
200 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 201

gem e os slogans de muitos dos burocratas das escolas e então nados, não absolutos. Is:tQJl,ª,~9~!Jer ct~e.r"g!!Ç<~~mpre neces-
mostra como essas coisas realmente agem de maneira a destruir <a sariamente erradas; pelo contráriQ, sugere a necessidade de com-
racionalidade ética e o poder institucional e político pessoal. Uma preéndê-fâS-pelü-que são - categorias que se desenvolveram a partir
vez que esse funcionamento real é submetido a exame minucioso, de situações sociais e históricas específicas que se conformam a um
tenta sugerir a atividade concreta que irá conduzir ao desafio dessa modelo específico de suposições e instituições, cujo uso das cate-
atividade supostamente correta. gorias traz também consigo a lógica das suposições institucionais.
Como mencionei, a própria área apresenta uma tendência
para "disfarçar" as relações entre as pessoas como relações entre
Linguagem in$titucional e responsabilidade ética "coisas" ou abstrações. 33 Assim, questões éticas, como o problema
profundamente difícil relativo às formas pelas quais uma pessoa
Uma das questões mais fortes levantadas há anos pela tradi- pode procurar influenciar uma outra, não são geralmente enfocadas
ção crítica é nossa tendência para ocultar o que são as inter-relações como considerações importantes. Ê aqui que se tornam muito sérias
profundas entre as pessoas através do uso de uma linguagem mer- as categorias abstratas surgidas na vida institucional. Se um edu-
. cantil "neutra". 31 A discussão de Williams da função ideológica do cador pode definir outro indivíduo como um "aluno atrasado", um
indivíduo abstrato sugere parte desse problema. Os educadores não " "problema disciplinar" ou outra categoria geral, pode prescrever
são imunes a essa tendência. Isto é, os educadores desenvolveram "tratamentos" gerais que são aparentement~ neutros e úteis. No
categorias e modos de percepção que reificam, ou coisificam, os entanto, pelo próprio fato de que as categorias se baseiam em abs-
indivíduos, para que eles (os educadores) possam enfrentar os estu- . trações institucionalmente definidas (o equivalente do senso cOJ.llum
dantes antes como abstrações institucionais que como pessoas con- das médias estatísticas), o educador se liberta da tarefa mais difícil
cretas com as quais mantêm laços reais no proce:-so de reprodução de examinar o contexto institucional e econômico que fez com que
cultural e econômica. Isto é compreensível, diante da complexidade esses rótulos abstratos fossem atribuídos a um indivíduo concreto.
da educação em massa. No entanto, são profundas as implicações Portanto, a tentativa compreensível de reduzir a complexidade leva
do desenvolvimento dessa forma de linguagem e devem ser exami- ao uso de "tratamentos médios" aplicados para os que desempe-
nadas acuradamente. nham papéis abstratos. Isto preserva o anonimato da relação inter-
Para realizar isso, um· fato precisa ficar claro. De vez que as subjetiva entre "educador" e "aluno", tão essencial caso devam
categorias empregadas pelos especialistas em currículo e por outros prevalecer as definições institucionais de situações. Protege, assim,
educadores são elas próprias construções sociais, também implicam tanto a instituição quanto o educador de duvidarem de si mesmos e
a noção do poder de um grupo de "impor" essas construções sociais da inocência e da realidade da criança.
a outros. Por exemplo, as categorias pelas quais diferenciamos Isto apresenta implicações importantes, para a tradição crítica
crianças "espertas" das "tolas", áreas "acadêmicas" de "não aca- do processo educacional. Usando categorias e construções acadê-
dêmicas", atividades de "lazer" das de "aprendizado" e mesmo micas como as definidas pelas práticas institucionais existentes e
"estudantes" de "professores" são todas construções do senso co- delas I?rovenientes - cujos exemplos poderiam ser os estudos do
mum que surgiram da natureza das instituições existentes. 32 Como "aluno atrasado", "problemas disciplinares" e "recuperação" -,
tal, devem ser consideradas como dados historicamente condicio- os pesquisadores do currículo podem estar cedendo o prestígio retó-
rico de ciência ao que podem ser práticas inquestionáveis de uma
burocracia educacional34 e de um sistema econômico estratificado.
(31) Shlomo Avineri. The Social and Political Thought of Karl Marx. Cam-
bridge University Press, 1968, p. 117. Avineri coloca dessa forma: "Em. última·
instância, uma mercadoria é uma expressão objetivada de uma relação intersubje- (33) Quanto à relação entre essa transformação de interação humana em
tiva". outras formas reificadas e uma estrutura política e econômica ideológica, ver
(32) Michael F. D. Young. "Knowledge and Control". Knowledge and Cim- 011mann,op. cit., p. 198-9.
trol. Michael F.D. Young(org.). London, Macmillan, 1971, p. 2. (34) Douglas, op. cit., p. 70-1.
202 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 203

Isto é, não hâ uma tentativa rigorosa de examinar a culpabilidade aqueles que implicam algum tipo de desvio, "aluno atrasado",
institucional. A noção de atribuição de culpabilidade tem grande "problema disciplinar", "leitor fraco", etc., podem mais uma vez
importância em minha anâlise. Scott deixa isto mais claro em sua servir de "tipos" encontrados nos contornos educacionais - atribuir
discussão dos efeitos de se rotular alguém como diferente ou des- um status inferior aos que assim são rotulados. Isto é atingido por
viado: 35 meio de significados éticos. Geralmente o rótulo de "desviado"
possui uma qualidade essencializadora, na medida em que a relação
total de uma pessoa (no caso, um estudante) com uma instituição é
Uma outra reação comum ao se aplicar uni rótulo de desviado a
alguém é que surge um sentimento na comunidade de que "se deveria condicionada pela categoria que se lhe aplica. Ela é isto e apenas
fazer alguma coisa quanto a ele". Talvez o fato mais importante com isto. A questão é semelhante à idéia de Goffmann de que a pessoa a
respeito a essa reação em nossa sociedade é que quase todos os passos quem é aplicado o rótulo de desviado por outras pessoas ou insti-
que se dão são dirigidos apenas ao desviado. Punição, reabilitação, tuições é geralmente vista como moralmente inferior, e freqüente-
terapia, coerção e outros mecanismos comuns de controle social são mente se interpreta sua "condição" ou comportamento como prova
coisas que lhe fazem, implicando que as causas do desvio se encon- de sua "culpabilidade moral". 37 Portanto, esses rótulos não são
tram na pessoa a quem o rótulo foi fixado, e que as soluções para os neutros, pelo menos não em seu significado para a pessoa. Pelo
problemas que apresenta podem ser alcançadas fazendo-se alguma próprio fato de que os rótulos têm um quê de significação moral - a
coisa por ela. Este é um fato curioso, especialmente quando exami- criança não é apenas diferente, mas também inferior -, sua apli-
nado em relação a essa base da pesquisa em Ciências Sociais sobre o
cação produz um impacto profundo. Dâ ainda mais peso às idéias
desvio que mostra de modo tão claro o papel crucial desempenhado
pelas pessoas comuns em determinar quem é rotulado de desviado e que venho esclarecendo o fato de que esses rótulos, uma vez atri-
como se comporta um desviado. Essa pesquisa sugere que nenhuma buídos, são permanentes, devido à realidade orçamentâria e buro-
das medidas de correção adotadas pode possivelmente ser bem- crâtica de muitas escolas: restrições orçamentârias, as verdadeiras
sucedidas ·da forma pretendida, a menos que seja dirigida àqueles relações estruturais existentes entre a escolarização e o controle
que conferem os rótulos de desviado bem como àqueles em que são econômico e cultural, falta de conhecimento especializado para lidar
aplicados. (Os grifos são meus.) com os "problemas de aprendizado" de estudantes especificos, etc.,
tudo enfim que torna verdadeiramente difícil mudar realmente as
condições que fizeram com que a criança fosse um "aluno atrasado"
Em linguagem mais clara, na escola os estudantes são as
ou qualquer outra categoria. De vez que apenas raramente um
pessoas expressamente enfocadas. Dâ-se primeiramente atenção a
estudante é reclassificado,38 o efeito desses rótulos é imenso, pois
seus "problemas" de comportamento, emocionais ou educacionais
exigem formas de "tratamento" que tendem a confirmar a pessoa na
especificos, e, po~anto, exis~e. uma fo_rte t~nd.ên~ia ~a~a afastar a categoria institucionalmente aplicada.
} atenção tanto das madequabihdades da propna mstitulção educa-
"\ cional 36 quanto de quais são as condições burocrâticas, culturais e I Com freqüência se afirma que esses recursos retóricos como as
categorias e rótulos a que venho me referindo são na verdade usados
i econômicas que determinaram originalmente a necessidade de se
para ajudar a criança. Afinal, uma vez assim caracterizado, pode-se
l aplicarem essas construções.
Vejamos agora um pouco mais aprofundadamente a configu-
ração ideológica e ética que estâ em torno da idéia de culpabilidade.
Trata-se geralmente de que os rótulos institucionais, especialmente (37) Scott, op. cit., p. 14. Ver também a discussão de desvio como uma
ameaça às pré-noções em Berger e Luckmann, op. cito
(38) Cf. Aaron Cicourel e John Kitsuse. The Educational Decision-Makers.
Indianápolis, Bobbs-Merril, 1963. O "fato de que esse processo de rotulação inicia-se
(35) Robert A. Scott. "A Proposed Framework for Analysing Deviance as a logo na entrada dos estudantes para a escola, com a progressiva cristalização dos
Property of Social Order". Scott e Douglas, op. cit., p. 15. rótulos ·iniciais, acha-se documentado em Ray C. Rist. "Student Social Class and
(36) Bonnie Freeman. "Labeling Theory and Bureaucratic Structures in Teacher Expectation: The Self-Fulfilling Prophecy in Ghetto Education". Harvard
Schools". Artigo não publicado, University of Wisconsin, Madison, si d. Educ.ational Review, XL (August, 1970), xx 411-51.
204 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 205

dar ao estudante "tratamento adequado". No entanto, pode ser pobres e étnicas, muito mais que aos filhos dos que são economi-
possível que, tendo-se em vista a realidade de vida nas escolas, e o camente privilegiados e politicamente poderosos.
papel da escola na maximização da produção tanto de alguns tipos . Além da documentação histórica apresentada no Capítulo 4,
de capital cultural quanto de agentes que são "necessários" ao apa- ~x~~te um~ recente e forte prova empírica para defender parte das
relho econômico de uma sociedade, a própria definição de um lde!~s aqUl expostas. Por exemplo, vem confirmar esse quadro a
estudante como alguém com necessidade desse determinado trata- analIse de Mercer do processo pelo qual instituições como as escolas
mento lhe é prejudicial. 39 Como demonstrei, essas definições são rotulam indivíduos como, digamos, mentalmente retardados. 42 São
essencializadoras; elas tendem a ser generalizadas a todas as situa- desproporcionalmente rotuladas crianças com formações sócio-cul-
ções com que se defronta o indivíduo. Como exemplificado por turais "desviantes" e oriundas de grupos minoritários. Isto se deve
Goffmann, em "instituições totais" - e as escolas compartilham de basicamente aos procedimentos de pesquisa nas escolas originados
muitas de suas características -, o rótulo e tudo o que vem com ele quase que totalmente do que a autora chamou de dominância de
será possivelmente usado pelos companheiros do indivíduo e por "anglocentrismo" nas escolas, uma forma de etnocentrismo que faz
seuS responsáveis (por exemplo, outras crianças, professores e admi- com que os burocratas das escolas atuem como se o estilo de vida /
nistradores) para defini-lo. Rege quase que toda a conduta para com a linguagem, a história e a estrutura de valor e normativa de se~
a pessoa e, o que é mais importante, a definição no fim rege a próprio grupo fossem as orientações "básicas" com relação às quais
conduta do estudante para com esses outros, atuando assim para se deveria medir a atividade de todas as outras pessoas. Não apenas
apoiar uma profecia de auto-realização.40 os estudantes de formações sócio-econê>micas inferiores e não bran-
Minha posição aqui não é negar que, no quadro institucional cas eram desproporcionalmente rotulados, mas, o que é ainda mais
da escolarização, existam "coisas" como "alunos atrasados", ou importante, os estudantes méxico-americanos e negros, por exem-
"estudantes fracamente motivados" que possamos identificar a par- plo, que recebiam o rótulo de retardados mentais eram na verdade.
tir do senso comum, embora, como tenho discutido, essa linguagem menos "desviados" que os brancos. Isto é, tinham QI mais alto que
oculte a questão mais básica de pesquisar as condições em que um os "anglos" que eram assim rotulados. Em vista dos argumentos de
grupo de pessoas rotula outras como desviadas ou aplica-lhes al-. Bourdieu citados no Capítulo 2, isto não nos deveria surpreender.
guma outra categoria abstrata. Pelo contrário, gostaria de manter
Ainda um outro fato deveria ser observado. A escola foi em
que esse sistema lingüístico, como é aplicado comumente pelos
geral a única instituição a rotular esses estudantes "desviantes"
burocratas das escolas, não cumpre uma função psicológica ou cien-
co.mo retardados, principalmente em virtude das pré-noções predo-
tífica tanto quanto gostariam de supor. Claramente falando, serve
mmantes de normalidade mantidas pelos burocratas das escolas.
para abater e degradar aqueles indivíduos e classes de pessoas a
Esses estudantes se saíram muito bem, uma vez fora das fronteiras
quem se conferem tão rapidamente as designações.41
dessas instituições.
Um fato que submeteria essa discussão a um enfoque ainda
mais claro - isto é, que o processo de classificação, da forma como Mercer está correta ao menos em parte quando atribui essa
funciona na pesquisa e na prática educacional, é um ato moral e superdistribuição de designação de retardado mental à "maquina-
político e não um neutro ato de ajuda - é a prova de que esses ria" diagnóstica, avaliativa e de teste da escola.43 Baseada como é
em formulações estatísticas que se conformam às suposições insti-
\ rótulos são maciçamente aplicados às crianças das minorias sociais tucionais problemáticas relativas a normalidade e desvio extraídas
das estruturas econômicas e políticas existentes e freqüentemente
(39) Thomas S. Szasz. Ide%gy and Insanity. New York, Doubleday, 1970, parciais, desempenha um importante papel no processo de canalizar
p. 149. o fato de que, uma vez assim rotulados os estudantes, fecham· se comple·
tamente outras oportunidades educacionais e econômicas é documentado com clareza
em James Rosenbaum. Making Inequality. New Y~rk, John Wiley, 1976. (42) Jane R. Mercer. Labeling the Menta//y Retarded. Berkeley, University of
(40) Erving Goffman. Asy/ums. New York, Doubleday, 1961. Califomia Press, 1973. .
(41) Szasz, op. cit., p. 58. (43) Ibid., p. 96·123.
206 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO W7

alguns tipos de estudantes em categorias preexistentes. O fato econômicas, de saúde e comunitárias para definir o indivíduo tam-
lamentável de que essa máquina de avaliação e recuperação, supos- bém sem seu contato com elas. 4S
tamente de auxílio, não satisfaz a realidade da criança é compro- Portanto, enquanto instituições fortemente influenciadas por
vado com o importante estudo de Mehan da reconstrução por crian- modelos operacionais estatísticos e "científicos" para definir norma-
ças supostamente "normais" do significado de uma situação de teste lidade e desvio, modelos que são consistentemente parciais diante
e dos próprios instrumentos de avaliação. 44 Fundamentalmente, das regularidades sociais existentes, as escolas parecem ter um efeito
o que ele descobriu foi que, mesmo nos testes de avaliação mais desproporcional em rotular estudantes. Como as escolas públicas
individualizados, os que os aplicavam estavam propensos a usar dependem quase que exclusivamente de um modelo estatístico para
rótulos especulativos e imprecisos para resumir resultados ainda seu quadro normativo, criam categorias de desvio que são preen-
mais especulativos e imprecisos. Os testes escolares na verdade obs- chidas por indivíduos oriundos principalmente de grupos sócio-eco-
cureceram a compreensão real das crianças dos materiais e tarefas, nômicos inferiores e minorias étnicas. 46 Deveriam ser evidentes as
não deram conta das diversas capacidades das crianças de racioci- implicações éticas, políticas e econômicas dessa criação de identi-
nar adequadamente e não mostraram "as decisões de quantificação" dades desviadas.
discutidas, ligadas ao contexto, que o aplicador de teste faz en- Isto torna muito significativa a noção de que o único meio
quanto computa o comportamento das crianças como "correto" sério de entender a imputação de rótulos nas escolas é analisar as
ou "incorreto". Embora isto fosse especialmente verdadeiro quanto suposições subjacentes às definições de competência que estes acarc
às crianças "desviantes" (neste caso, de língua espanhola), era retam; e isto só pode ser feito em termos de uma pesquisa daqueles
também notavelmente verdadeiro para todos os outros estudantes. que estão numa posição para impor essas definições. 47 Portanto, a
Se essa pesquisa está correta, dada a intensa pressão hoje por noção de poder (qual o grupo econômico ou classe social que real-
"responsabilidade", a dominância da linha de teste processo-pro- mente o detém e como ele está sendo realmente usado) torna-se
duto, então, sem dúvida levará a instituições ainda mais problemá- fundamental se devemos entender por que algumas formas de signi-
ticas, anônimas e parciais do ponto de vista cultural e econômico, ficados sociais - a escolha autoritária a que se refere Blum num
devido aos rótulos que se originam do próprio processo de avaliação. trecho citado no início deste capítulo - são utilizadas para selecio-
Não se pode subestimar a importância que se dá aos testes nas es- nar e organizar o conhecimento .e as visões empregadas pelos edu-
< colas. Os rótulos que provêm dessas avaliações não são facilmente
\ abalados, e são de fato utilizados por outras instituições para pros-
cadores para compreender, ordenar, avaliar e controlar a atividade
em instituições educacionais.
í seguir a atribuição de definições iniciada pela escola.

Isto é, deveria ficar claro que a escola não apenas desempenha


uma função central de atribuir rótulos às crianças no processo de Poder e rotulação
diferenciá-las e, assim, distribuir diferentes conhecimentos, tendên-
cias e visões de si mesmo a cada um desses grupos rotulados, mas, A importância, para nossa compreensão do processo de rotu-
tão importante quanto isso, a escola ocupa a posição central numa lação, de um sentido da forma como opera o poder não deve ser
grande rede de outras instituições. 0s rótulos imputados pelas esco- subestimada ao menos por uma determinada razão. Tem-se desen-
las públicas são tomados de empréstimo por instituições jurídicas, volvido nos últimos anos um grande corpo de pesquisas sobre rotu-
lação. Foi fortemente influenciado pela fenomenologia social, pelo

(44) Hugh Mehan. "Assessing Children's School Performance". Childhood


and Socialization. Hans Peter Dreitzel (org.). New York, Macmillan, 1973, p. 240-64. (45) Mercer, op. cit., p. 96.
Para maior discussão da forma como os modos dominantes de avaliação educacio- (46) Ibid., p. 60-1.
nal ignoram a realidade concreta dos estudantes e funcionam de maneira politica e (47) Michael F. D. Young. "Curriculum and the Social Organization of
epistemológica conservadora, ver Apple. "The Process and Ideology of Valuing in Knowledge". Knowledge. Education. and Cultural Change. Richard Brown (org.).
Educational Settings", op. cito London Tavistock, 1973, p. 350.
208 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 209

interacionismo simbólico e por outras perspectivas que tendem a Sharp e Green estão de acordo com outros sociólogos britâ-
Jver, em parte corretamente, que os rótulos, como a "realidade", são nicos que criticam a pesquisa de orientação fenomenológica como
\ construções sociais. 48 Porém essa tradição muito fenomenológica parcial e fundamentalmente apolítica. Por exemplo, a maioria dos
tem geralmente estado pouco vinculada ao que chamei de análise estudos fenomenológicos visam enfocar a construção social da rea-
relacional. Por isso, precisamos ter desconfiança das limitações lidade da sala de aula, como as interações fundadas no senso co-
significativas na análise comum de categorias e rótulos empreendida mum, tanto de professores como de estudantes, criam e mantêm os
por teóricos da rotulação e outros. conjuntos de significados e identidades que permitem que a vida em
De fato, um enfoque não relacional da rotulação, um enfoque sala de aula se processe de maneira relativamente uniforme. Eis
que não esteja francamente preocupado com as conexões entre o aqui, no entanto, onde aqueles que, influenciados por visões mar-
poder econômico e cultural e as escolas, pode nos levar a uma xistas e neomarxistas, querem avançar. Pois o mundo social, de que
armadilha conceitual e política em que com freqüência têm caído as a educação faz parte, não é simplesmente o resultado dos processos
pesquisas feitas pelos "interacionistas simbólicos", teóricos da rotu- criativos de interpretação em que se empenham os atores, uma
lação e sociólogos fenomenólogos da escola.49 . Examinando o pro- questão tão cara""aos fenomenólogos sociais. É parcialmente isto, é
cesso de rotulação (aqui como um indicador da forma como a satu- claro. Mas o mundo cotidiano com que nos defrontamos em nossa
ração ideológica da mente dos educadores opera de fato na vida vida diária como professores, pesquisadores, pais, filhos, e assim
escolar cotidiana), podemos esquecer que é um indicador de alguma por diante, "é estruturado não apenas pela linguagem e pelo signi-
coisa que está além de si próprio também. Pois, como demonstrou a ficado", por nossas interações simbólicas d~retas e por nossas cons-
passagem de Whitty citada no início desta obra, o mero fato de que truções sociais em constante realização, "mas p_elQ~mQdo~JdQ:rça,s ')
I essas categorias e rótulos são construções sociais não explica por que de produção material e pelo sistema de dominação que está relacio- I
\ existe esse determinado conjunto nem por que é tão contrário à nado <ie al&1l~~'!J2.!!lliLEom·-ã-iealli@~ materllifê-seucontrole';.Só f
'mudança. A descrição e análise fenomenológica de processos sociais e da
A discussão de·Sharp e Green da relação entre poder e rotu- rotulação, embora sem dúvida importantes, levam-nos a esquecer
lação em seu estudo etnogrãfico de uma escola primária inglesa da que existem instituições e estruturas objetivas no mundo exterior>
classe operária fornece várias observações significativas sobre esse que têm poder, que podem controlar nossas vidas e nossas percep-
risco. Para Sharp e Green, a fenomenologia social, o interacionismo ções. Enfocando como a interação social cotidiana reafirma as iden-
simbólico, a teoria da rotulação e assim por diante não fornecem um tidades das pessoas e suas instituições, pode-se afastar a atenção do
quadro analítico adequado para entender por que a estratificação e fato de que a interação e concepção individual é limitada pela
{ rotulação de crianças se desenvolvem em instituições educacionais. realidade material.
Não apenas o modelo é conceitualmente fraco, mas é inerentemente
Não quero dizer que se deveria abandonar aqui a fenomeno-
menos político do que deveria, para que seja possível compreender a
logia social ou a teoria da rotulação. Pelo contrário, pode-se com-
complexa relação entre os significados, práticas e decisões fundadas
biná-la com uma interpretação social mais crítica que veja a criação
no senso comum nas escolas e o aparelho ideológico e institucional
de identidades e significados em instituições específicas como as
que cerca essas instituições culturais.
escolas como ocorrendo dentro de um contexto que em geral deter-
mina os parâmetros do que é discutível ou significativo. Esse con-
texto não reside apenas ao nível da consciência, ele é a relação de
(48) Alguns dos melhores trabalhos deste tipo em educação podem ser encon-
trados em David Hargreaves et ai. Deviance in Classrooms. London, Routledge &
instituições econômicas e políticas, relação que define o objeto das
Kegan Paul, 1975.
(49) Uma série de dificuldades políticas da teoria de rotulação são expostas
por Ian Taylor e Laurie Taylor (orgs.). Politics and Deviance. London, Pelican, 1973; (50) Rachei Sharp e Anthony Green. Education and Social Control. London,
e Ian Taylor, Paul Walton eJock Young. Criticai Criminology. London, Rcutledge & Routledge & Kegan Paul, 1975, p. 25. Minha discussão aqui faz uso da excelente
Kegan Paul, 1974. anâlise teórica que se encontra nos dois primeiros capitulos de sua obra.
210 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 211

escolas, que estabelece limites a esses parâmetros. Esses aspectos parte, pelas condições ambientais reais nas escolas e, freqüente-
têm importantes aplicações para uma análise séria da rotulação em mente, pelas condições econômicas e sociais externas. Portanto,
sala de aula, a utilização de categorias "neutras" por educadores e a para compreender as escola1f, é preciso que se ultrapasse o que os
distribuição de diferentes tipos de conhecimento a crianças diferen- práticos e teóricos educacionais consideram ser avançar, para então
temente rotuladas. ver as conexões entre essas idéias e ações com as condições ideoló-
Por exemplo, boa parte da literatura a respeito da rotulação gicas e materiais tanto dentro quanto fora da escola, que "deter-
de crianças nas escolas tende a se apoiar numa marca peculiar de minam" o que julgamos ser nossos problemas "reais". A chave para
"realismo". Isto é, presume q~e as identidades das crianças são rey(;':lllr isto é o poder.
criadas quase que inteiramente pelas percepções que os professores Entretanto, como venho demonstrando neste livro, o poder
têm dos estudantes em classe. Contudo, não se trata apenas de uma nem sempre é evidente como a manipulação e o controle econômico.
questão de que a consciência dos professores forma a consciência É em geral manifesto como formas de ajuda e como formas de
das crianças - por exemplo, um professor concebe um estudante "conhecimento legítimo", formas que parecem fornecer sua própria
como "realmente tolo" e, daí, a criança se torna "realmente tola", justificação por serem interpretadas como neutras. Portanto, o po-
embora haja algum elemento de verdade quanto a isso, sem dúvida. der é exercido através de instituições que, seguindo seu curso natu-
Também envolve profundamente as circunstâncias e expectativas ral, reproduzem e legitimam o sistema de desigualdade. E tudo isso,
materiais objetivas que tanto criam quanto cercam o contorno esco- é claro, pode de fato parecer ainda mais legítimo através do papel
lar. Como sustentam Sharp e Green: 51 dos intelectuais que exercem profissões de marcado interesse social
como a educação.
Quando se toma em consideração a criação de identidade dos alunos, Isto naturalmente é muito complexo, mesmo se tivéssemos de
por exemplo, a oportunidade do aluno de adquirir qualquer identi- obter apenas uma compreensão parcial, pois, pelo próprio fato de
dade específica relaciona-se não apenas com as categorias conceituais que nos consideramos como profissionais com marcado interesse
da prática que o professor traz em sua consciência, mas também com social, nossa ideologia liberal dominante nos faria lidar com os
as facetas da estrutura da organização da sala de aula que tem de ser problemas de rotulação instituindo uma melhoria limitada. Intro-
entendida em relação com uma série de pressões extraclasse, podendo duziríamos reformas como equipamentos generalistas. A noção que.
ou não ser apreciada pelo professor ou pelos alunos. É importante se acha por trás dessas reformas é de que, ampliando a área de
// tentar entender a estrutura social da sala de aula como produto tanto
escoÍarização, o processo de rotulação se tornaria secundário. As
y" do contexto simbólico quanto das circunstâncias materiais. Estes
crianças poderiam se destacar em qualquer área em que tivessem
\, últimos fatores tendem ãser'sübestim-;dÜs'ílOinteracionismo social e
na fenomenologia social. talento. No entanto, esses tipos de reformas devem ser examinados
muito cuidadosamente. Podem ser contraditórios e na verdade criar
mais de um problema, da mesma forma como vimos no Capítulo
Portanto, os modos de interação em classe, os tipos de con- 2 como os "problemas de desempenho" são criados naturalmente.
trole, a criação e a rotulação de identidade dos alunos precisam ser
Na verdade, como expõem Sharp e Green, o que parece ocor-
compreendidos como uma r~lação dialética entre ideologia e con-
rer é um aumento da série de rótulos que podem ser aplicados em
_.!?~rn<? ma..!~~~!.~~~?I1~mico. Como obsên:eTàntes, às concepções que equipamentos generalistas, especialmente aqueles situados nas áreas
os professores fazem de competência, do que é "um bom desempe-
operárias e culturalmente diferentes, onde a rotulação se faz mais
nho do estudante", de conhecimento importante versus conheci-
intensa. Na sala de aula tradicional, o que se considera como
mento sem importância, de "comportamento adequado", não são
conhecimento generalista e significativo tende a se limitar a "áreas
idéias soltas. Essas produções mentais provêm de alguma parte. São acadêmicas" - matemática, ciências e assim por diante. Portanto,
respostas ao que se percebe como· problemas reais causados, em os alunos podem tender a ser rotulados, quando se utilizam critérios
de desempenho, num conjunto razoavelmente limitado de formas de
(51) Ibid., p. 6. conhecimento público. Entretanto, em equipamentos generalistas,
212 MICHAEL W. APPLE
IDEOLOGIA E CURRlcl1Lo 213

que são parte do sistema escolar público (com seu interesse histórico
Linguagem clínica, o especialista e o controle social
pela estratificação social e "intelectual" e pelo consenso ideológico),
aumenta o que se constrói como conhecimento especificamente es-
Como sustentei nos Capítulos 2 e 3, uma importante função
colar. Há mais interesse pela "criança total", se assim se quiser
latente da escolarização parece ser a distribuição desigual de formas
chamar. Por conseguinte, acrescentam-se atributos como emocio-
de consciência entre os estudantes. Sociologicamente, então, através
nalidade, tendências, atributos físicos e outros mais gerais aos currí-
de sua apropriação dessas tendências e visões, os estudantes estão
culos acadêmicos comuns como áreas generalistas com as quais se
aptos a serem encaminhados aos diversos papéis sedimentados por
deve preocupar. O resultado latente parece ser o aumento da série
toda a "fábrica" de uma sociedade industrial avançada. O processo
de atributos com os quais se podem estratificar os estudantes. Isto é,
de rotulação ocupa um lugar sutil mas essencial nesta distribuição.
mudando a definição do conhecimento escolar de modo que inclua Como as designações, categorias é recursos lingüísticos utilizados
mais elementos pessoais e de tendências, está-se também latente- pelos educadores e, especialmente, pelos membros da área do currí-
mente permitindo a continuidade de uma maior possibilidade de culo com convicções "comportamentais" são considerados como
rotulação em equipamentos mais abrangentes. As identidades dos tendo status "científico" e dispostos para "ajudar" os estudantes,
estudantes podem ser ainda mais fixas que antes. Isto se dá prova- existe pouca ou nenhuma constatação de que a própria linguagem
velmente em virtude de que não são realmente mudados os objetivos
de que fazem uso é idealmente adequada para manter a radonali-
básicos da instituição - por exemplo, diferenciar os estudantes de
dade burocrática (e os efeitos concomitantes de controle e consenso
acordo com o "talento natural", maximizar a produção de conhe-
social) que há muito tempo vem dominando a escolarização. S2
cimento técnico, etc. Ao mesmo tempo, é claro, as salas de aula
Edelman toma uma posição semelhante ao discutir a forma
generalistas em áreas de classe média são idealmente adequadas
como se utiliza o-sistema específico da linguagem das "profissões de
para ensinar o processo decisório, a flexibilidade, e assim por diante,
marcado interesse social" para justificar e dirigir o apoio público
a estudantes que se tornarão administradores e profissionais. Esta
para as práticas profissionais que apresentam profundas conseqüên-
descoberta não é comum, pois, se as salas de aula generalistas em
cias políticas e éticas. S3
instituições tradicionais criam realmente um sistema mais poderoso
de estratificação, então seu funcionamento concreto tem de ser
interpretado em termos de reprodução e não apenas de reformas Como as profissões de marcado interesse social definem os status das
graduais. outras pessoas (e o seu próprio), os termos especiais que empregam
Isto se vincula muito estreitamente à discussão sobre currículo para.categOl:izar clientes e justificar as restrições de seus movimentos
oculto nos capítulos anteriores. À medida que as crianças aprendem físicos e de sua influência moral e intelectual são especialmente reve-
a aceitar como naturais as distinções sociais que as escolas reforçam ladores das funções politicas da linguagem e das múltiplas realidades
e ensinam, entre conhecimento de importância e conhecimento sem que ela ajuda a criar. A linguagem é tanto um indicador sensivel
quanto um poderoso criador de suposições quanto aos niveis de com-
importância, entre normalidade e desvio, entre trabalho e lazer, e as petência e mérito das pessoas. Exatamente como qualquer numeral
sutis regras e normas ideológicas inerentes a essas distinções, elas evoca em nossa mente todo o conjunto numérico, assim também uma
também interiorizam visões tanto da forma como as instituições palavra, uma forma sintãtica ou uma metãfora com conotações poli-
deveriam ser organizadas quanto de seu lugar adequado nessas ins- ticas pode evocar e justificar uma hierarquia de poder em quem a
tituições. Essas coisas são aprendidas um tanto diversamente por empregou e nos grupos que respondem a ela.
diferentes alunos, é claro, e é neste ponto que o processo de rotu-
lação se torna tão importante para a diferenciação de classe social e
econômica. A rotulação dos estudantes e a ideologia de reforma (52) Freernan, op. cit.; e Herbert M. Kliebard. "Bureaucracy and ~urriculurn
gradual das escolas que cerca sua decisão de utilizar determinados Theory". Freedom, Bureaucracy, and Schoo/ing. Vemon Haubrich (org.). Wash-
rótulos sociais exercem um forte impacto sobre quais. são os estu- ington, Association for Supervision and Curriculurn Developrnent, 1971, p. 74-93.
dantes que aceitr.m determinadas distinções como naturais. (53) Murray Edelrnan. "The Political Language of the Helping Professions".
Artigo não publicado, University of Wisconsin, Madison, si d, p. 3-4.
214 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRtCULO 215.

~
A idéia básica de Edelman não é apenas que as formas de um indivíduo ou de um grupo. Ao mesmo tempo, mostrando-se
linguagem empregadas por educadores e outros "organizam" sua científica e "especializada", contribui para o quietismo do público,
realidade, mas também que essas formas latentemente justificam centralizando a atenção em sua "sofisticação" e não em seus resul-
status, poder e autoridade. São fundamentalmente ideológicas nos tados políticos ou éticos. Portanto, historicamente ultrapassadas e
: dois sentidos do termo. Em resumo, é preciso examinar a contra- social e politicamente conservadoras (e resultando com freqüência
dição que há numa perspectiva liberal que existe para ajudar e que em desastres educacionais), as práticas não apenas são levadas
ao mesmo tempo serve à distribuição de 'poder em instituições e na avante, mas também se faz com que se mostrem como se fossem
sociedade.54 Ê dificil faltar essa contradição na linguagem utilizada realmente formas mais iluminadas e eticamente mais sensíveis de se
pelos burocratas das escolas. lidar com crianças.
Talvez este argumento seja mais bem resumido com a citação Como em outras instituições onde exista pouca opção quanto
de mais uma passagem de Edelman: 55 ao direito de um indivíduo (estudante, paciente, recluso) poder ir ou
vir quando lhe convier, definindo os estudantes por meio de uma
terminologia pré-científica e pré-clínica e terapêutica e, assim,
Nos mundos simbólicos evocados pela linguagem das profissões de
marcado interesse social, especulações e fato comprovado provavel- "mostrando" que os estudantes são culpáveis e que são de fato
mente surgem unidos. A linguagem dissemina a incerteza na espe- "diferentes" (não são adultos; não alcançaram um determinado
culação, altera os fatos para fazê-los servir às distinções de status e estágio de desenvolvimento; têm campo de atenção limitado, são
reforçar a ideologia. Os nomes para tipos de doenças mentais, formas "cultural e lingüisticamente carentes", etc.), os educadores não pre-
de delinqüência e para a competência' educacional são os termos cisam enfrentar os aspectos em geral coercitivos de sua própria
básicos. Cada um deles normalmente envolve um alto grau de falibi- atividade. 56 Por conseguinte, não é preciso responder às questões
lidade do diagnóstico, prognóstico e da prescrição de tratamentos de éticas e ideológicas da natureza do controle nos equipamentos esco-
reabilitação, mas também acarreta restrições não ambíguas sobre os lares. A visão liberal, as perspectivas clínicas, a linguagem utilizada,
clientes, especialmente seu confinamento e sujeição ao stalf e às os rótulos de "reforço", tudo o define como pertencendo ao mundo
regras de uma prisão, escola ou hospital. O confinamento e as res-
exterior.
trições são convertidos em atos de liberação e altru{smo pela sua defi-
Ê possível afirmar, então, que essas críticas são na verdade
nição como educação, terapia ou reabilit'{ção. A arbitrariedade e a
especulação no diagn6stico e no progn6stico, por outro lado; são genéricas diante das próprias perspectivas clínicas e dos rótulos de
c()nvertidas em percepções claras e especificas da acessibl1idade de reforço como funcionam na educação, de vez que as suposições em
controle (pelo "grupo de reforço "). Sem levar em conta a arbitra- que se baseiam são elas próprias abertas ao questionamentoY Esses
riedade ou a inafiançabilidade técnica dos termos profissionais, sua pontos de vista se distinguem por uma série de características notá-
utilidade política é manifesta; eles dispõem o apoio popular aos veis: cada uma delas, quando combinada com as demais, parece
critérios profissionais, concentrando a atenção do público nos proce- conduzir logicamente a uma posição conservadora para com os pro-
dimentos e racionalizando de antemão qualquer falha dos procedi- gramas institucionais existentes. A primeira característica é que o
mentos para atingir seus objetivos formais. (Meus grifos.) pesquisador ou o prático estuda ou lida com esses indivíduos que já
foram rotulados pela instituição como diferentes ou desviados. Ao
Isto é, a linguagem supostamente neutra de uma instituição, fazer isso, adota os valores do sistema social que definiram a pessoa
ainda que se baseie em dados altamente especulativos e possa ser
aplicada sem ser realmente adequada, fornece uma estrutura que
(56) Goffman,op. cit., p. 115.
legitima o controle de importantes aspectos do comportamento de (57) Jane R. Mercer. "Labeling the Mentally Retarded". Deviance: The
Interactionist Perspective. Earl Rubington e Martin S. Weinberg (orgs.). New York,
Macmillan, 1968. Para uma abordagem mais completa da postura conservadora de
(54) Ibid., p. 4. pontos de vista clínicos e de reforço, ver Apple. "The Process and Ideology of Valuing
(55) Ibid., p. 7·8. in Educational Settings", op. cito
216 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRtCULO 217

como desviada. Além do mais, presume que os juízos feitos pela vez maior em escolas de guetos e de membros da classe operária,
instituição e baseados nesses valores são as medidas válidas de nor- e em outros locais com crianças "destruidoras", ou com classes
malidade e competência sem questioná-los seriamente. estudantis inteiras, como está se tornando cada vez mais o caso,
A segunda é que essas perspectivas clínicas e de reforço apre- realmente atua como um disfarce para encobrir o fato politico de
sentam uma forte tendência para considerar a dificuldade como um que a natureza das instituições educacionais existentes é insensível a
problema com o indivíduo, como alguma coisa que falta antes no uma grande parcela de estudantes. 59 Além disso, sua linguagem
indivíduo que na instituição. Portanto, combinada com a suposição atua para ocultar a relação alienante salário-produto que se tem
de que a definição oficial é a única definição correta, quase que toda estabelecido e é chamada de educação. Finalmente, a perspectiva,
ação se centraliza em nm<Íaro indivíduo em vez do agente definidor, que se define a si mesma como clinica, oculta as verdadeiras questões
q conie~t~iristitÍldoI1al mais amplo. A terceira é a de que os pês- morais que é preciso formular com relação à adequabilidade da
quis adores e práticos que aceitam as designações e definições insti- própria técnica para lidar com estudantes que não têm opção de
tucionais tendem a presumir que todas as pessoas dentro dessas estar numa instituição.
categorias são iguais. Existe uma suposição de homogeneidade. Um dos aspectos que complementam essa discussão é que
Dessa forma, a complexidade individual é automaticamente nive- essas pessoas que são consideradas como diferentes ou desviadas
lada. O processo real de formação de um indivíduo abstrato é ocul- com relação às expectativas institucionais normais são uma ameaça
tado pela perspectiva pré-individualista. ao cotidiano das escola~, ao padrão operacional normal, que é cons-
Mas isto não é tudo, pois parece haver fortes motivações para tante e, com muita freqüência, relativamente estéril. Com respeito a
o uso já implicitas nesses rótulos e processos no conhecimento espe- isso, o ato de rotular pode ser visto como parte de um complexo
cializado que se encontra por trás deles. Isto é, os que empregam as processo de limitação. Atua para preservar a natureza frágil de
terminologias supostamente avaliativas e terapêuticas precisam en- muitas relações interpessoais com as escolas de que dependem as·
contrar(e, portanto, formar) indivíduos que se ajustem às categorias, "definições adequadas de situações". Porém,. o que é mais impor-
senão o conhecimento especializado é inútil. Isto é provavelmente tante, permite que pessoas como professores, administradores, espe-
um fato educacional geral. Uma vez criado um recurso ou uma cialistas em currículo e outros burocratas defrontem-se com este-
perspectiva "nova" (mas sempre limitada) para "ajudar" as crian- reótipos em lugar de indivíduos, de vez que as escolas não podem
ças, ela tende a se ampliar para além do "problema" para o qual foi lidar com as características diferenciadoras de indivíduos a um grau
originalmente desenvolvida. Os recursos (no caso, avaliativos, tera- significativo. Existe um bom número de pesquisas que sustenta o
pêuticos e lingüísticos) também apresentaram o efeito de redefinir fato de que os desvios de expectativas institucionais geralmente
antigas questões nessas outras áreas em problemas com os quais o resultam na imposição de limites por parte dos que se defrontam
recurso é capaz de lidar. 58 O melhor exemplo é a modificação de com esses indivíduos "desviados". 60 Portanto, aumentam-se a este-
comportamento. Embora aplicável a uma limitada série de dificul- .reotipia e a rotulação e preserva-se a ilusão reconfortante de que as
dades nas escolas, torna-se tanto uma linguagem avaliativa quanto crianças estão sendo ajudadas.
uma forma de "enfoque" de uma série mais ampla de "estudantes-
problema". Portanto, por exemplo, seu emprego e ace~tação cada

(59) Muitos pesquisadores criticos afirmaram que os "problemas de disci-


(58) Deve-se insistir numa questão interessante aqui. As pessoas que empre- plina e de desempenho nas escolas são, de fato, indicios de conflito de classe emer-
gam perspectivas clinicas para lidar com saúde ou desvio são propensas a rotular as gente". Ver Christian Baudelot e Roger Establet. La Escuela Capitalista. Cidade do
pessoas como "doentes" mais do que como "sãs" na maioria dos casos, para evitar o México, Siglo Veintiuno Editores, 1975.
risco do que poderia acontecer ao "paciente" caso estivessem erradas. Aqui, pode-se (60) Schur, op. cit., p. 51. Isto não significa que toda a rotulação se resolva
revelar mais uma motivação para "encontrar" indivíduos que se ajustem a categorias nisto. Significa, sim, que devemos começar a formular questões criticas sobre a forma
institucionais. Thomas Scheff. Being Mentally Il/: A Socio/ogical Theory. Chicago, .como rótulos específicos e a solidez da realidade dessas categorias representam uma
Aldine, 1966, p. 105-6. função nos equipamentos escolares.
218 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 219

Mas como é que se mantém essa ilusão? As escolas são fre- lingüísticos, programáticos, metodológicos e conceituais, e expecta-
qüentemente avaliadas. Tanto os funcionários como o programa são tivas quanto ao modo como devem ser utilizados. Não é muito
constantemente examinados com atenção, agora mais ainda em vir- comum que esses profissionais dêem as costas aos objetivos, proce-
tude da dominância dos modelos sistêmicos de administração estu- dimentos e normas institucionalizados e 1,\0 conhecimento cumula-
dados no Capítulo anterior. Muitos especialistas em pesquisa e ava- tivo que serve a esses objetivos dominantes, construído há anos na
liação despendem tempo e esforços na investigação dos efeitos da , área. Em parte, isto se deve a que esse conjunto de conhecimento e
escolarização. Ainda que esses especialistas vissem as escolas através valores dominantes é reforçado pela necessidade dos administra-
da ótica limitada das tradições de desempenho e sociabilização, não dores institucionais de tipos especiais de consultoria "especiali-
deveria parecer claro o funcionamento real dessa atividade coti- zada". Este é um aspecto excepcionalmente importante.
diana? Não deveriam a forma como se realiza boa parte do trabalho Pesquisadores e avaliadores são "especialistas contratados". \
das escolas e o conhecimento especializado (clínico ou qualquer Não quero com isso denegrir totalmente a posição que ocupam.
outro) que figura por trás de suas funções ser reconhecidos como um Antes, o papel do especialista na sociedade norte-americana é singu- /
aspecto da reprodução cultural e econômica? Não lhes é clara a lar e conduz a algumas expectativas problemáticas nos contornos !
forma como os "intelectuais" empregam seu conhecimento especia- educacionais.
lizado fundado no senso comum? Afinal, a maioria dos burocratas Em vista do status do conhecimento técnico em economias
das escolas e os pesquisadores preocupam-se verdadeiramente com industriais, os "especialistas" estão sob considerável pressão para
seu trabalho e com os estudantes que habitam essas instituições. apresentar suas descobertas como 'informação científica, como co-
Infelizmente, esse reconhecimento é de difícil obtenção. Pri- nhecimento que tem, a um grau significativo, uma verificabilidade
meiro, como tenho afirmado, uma razão importante é a maneira científica e, portanto, uma plausibilidade inerente. 62 Como vimos
como funciona esse conhecimento especializado. É ideológica. For- no Capítulo 2, isto teve um impacto muito grande na rejeição das
nece uma definição básica de uma situação complexa (da mesma 'afirmações políticas feitas por Jencks em Inequality, por exemplo. ,
forma como as condições materiais de um contorno educacional Não apenas se espera que os especialistas, principalmente os espe-
forneceram a justificação para o tempo e a atividade do professor, cialistas em pesquisa e avaliação educacional, expressem suas idéias
no Capítulo 3), enquanto reproduz desigualdades estruturalmente em termos científicos, mas, em virtude de sua posição no sistema
baseadas de conhecimento e poder ao mesmo tempo. Segundo, há social, seus dados e perspectivas são considerados autoritários.
obstáculos a essa consciência de si mesmo que já vem no próprio Ê considerável o peso e o prestígio atribuídos ao conhecimento
papel e na perspectiva tanto do especialista em avaliação numa especializado. 63 Contudo, nossa discussão da forma como os edu-
sociedade industrial quanto no portador desse conhecimento espe- cadores se apropriaram de uma visão inexata da atividade científica
cializado. I torna esse prestígio problemático. Essa apropriação leva a uma difi-
Não é de surpreender que as perspectivas básicas dos "espe- i culdade considerável. Possibilita que os educadores pratiquem uma
),
cialistas" sejam tão fortemente influenciadas pelos valores domi- pesquisa de pouca profundidade e, o que é mais importante, é um
nantes da coletividade a que pertencem e da situação social que componente importànte em sua tendência para confirmar os para-
ocupam nessa sociedade. Esses valores dominantes necessariamente digmas de desempenho e sociabilização segundo os quais trabalham
afetam seu trabalho. 61 De fato, como vimos, essas visões já estão os pesquisadores educacionais, conquanto um progresso substancial
sedimentadas nas formas de linguagem e nas perspectivas implícitas
encontradas nos papéis sociais desempenhados por intelectuais e por
especialistas técnicos. O trabl\lho do avaiiador já traz em si recursos (62) Jack D. Douglas. "Freedom and Tyranny in a Technological Society".
Freedom and Tyranny: Social Problemas in a Technological Society. Jack D. Douglas
(org.). NewYork, AlfredA. Knopf,1970, p.17.
(63) Veja-se a discussão do papel do especialista em Alfred Schutz. "The
(61) James E. Curtis e John W. Petras (org.). The Sociology of Knowledge. Well-informed Citizen: An Essay on the Social Distribution of Knowledge". Collected
New York, Praeger, 1970, p. 48. Papers II: Studies in Social Theory, The Hague, Martinus Nijhoff, 1964, p. 120-34.
220 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 221

possa exigir uma nova estrutura para substituir a vigente. 64 As conceitual, ético e político, e a tradição crítica raramente ultrapas-
várias descobertas de diferença não significativa poderiam apontar sou a superfície das complexidades implicadas. O fato de que essas
exatamente para essa conclusão. "verdades tradicionais" são menos eficazes, em vista das questões
formuladas pelos teóricos da reprodução e outros quanto à natureza
Embora haja consideráveis dificuldades conceituais e técnicas
complexa dos problemas educacionais na área urbana e em outros
(para não falar das ideológicas) com a visão comum do que seja uma
locais, em geral não é considerado impoctante pelos que tomam
pesquisa importante, é evidente que, mesmo em vista dessas dificul-
parte no processo decisório, pois, afinal, é papel do especialista lidar
dades, os burocratas de escolas e os que tomam parte no processo
com essa complexidade. Mas, como vimos, estamos presos num cír-
decisório de fato consideram "de valor" a informação que recebem
culo. O especialista deve fornecer assessoria técnica para ajudar a
dos especialistas.
resolver as necessidades da instituição; porém, a gama de questões e
Uma das tarefas do especialista é fornecer à cúpula adminis- os tipos de respostas que são realmente aceitáveis são ideologica-
trativa de uma instituição o conhecimento especializado que esses mente limitados pelo que o aparelho administrativo já definiu como
burocratas exigem antes que sejam tomadas decisões. A instituição "o problema". Dessa forma, é vicioso o círculo de resultados incon-
burocrática, não o especialista, apresenta os problemas a serem seqüentes.
examinados. Assim, o tipo de conhecimento que o especialista deve
Isso certamente não constitui uma novidade. O conhecimento
fornecer é determinado de antemão. De vez que o especialista não
especializado tem sido utilizado há muito tempo pelos que parti-
arca com responsabilidade alguma até o resultado final de um
cipam do processo político. Deveria ficar claro, no entanto, que,
programa, suas atividades podem ser orientadas pelos interesses
desde o princípio da avaliação dos programas sociais e educacionais,
práticos da cúpula administrativa, aspecto que Gouldner deixou
os tipos de assessoria necessários eram determinados basicamente
bem claro. E o que os administradores não estão procurando são
pelos objetivos políticos dos burocratas e em seu apoio, freqüente-
novas hipóteses ou novas interpretações que não sejam imediata e
mente às custas da auto-responsabilidade da instituição à sua clien-
perceptivelmente relevantes aos problemas práticos existentes - o
tela.66
ensino da leitura, por exemplo. Ê de importância considerável o fato
de que se espera que o especialista trabalhe com problemas práticos Isto desperta uma questão muito provocadora. Ê possível ver o
conforme definidos pela instituição e que não apresente conselhos funcionamento real de seu trabalho, estudar as conseqüências e os
fora desses limites. Tornou-se cada vez mais claro que, por quais- processos reais dos programas educacionais, quando a ação e a
quer razões (sociabilização numa posição, medo diante da pressão pesquisa utilizam categorias e dados derivados da própria institui-
política, uma confiança em que as técnicas de manipulação irão ção e que a ela servem, sem que ao mesmo tempo se apóie o aparelho.
solucionar todos os problemas, as "determinações" ideológicas e cultural e econômico a que servem essas próprias categorias e
materiais que afetam a instituição, e assim por diante), a cúpula dados? 67 Em virtude desse tipo de questão, dever-se-ia observar
administrativa de uma grande organização procura, e deve procu- desta vez um aspecto decisivo. Adquire, então, importância especial
rar, reduzir o novo e o incerto de uma situação complexa com a qual para a pesquisa e avaliação do currículo e para outras finalidades
se defronte numa combinação praticamente segura de "verdades
tradicionais" sobre os processos de escolarização. 6s Entretanto,
(66) Douglas. American Social Order, op. cit., p. 49. Ver também a discussão
poucas áreas são tão complexas quanto a da educação, no plano
de como o conhecimento especializado em manipulação foi utilizado para manter
uma ideologia de administração para controlar a força de trabalho, em David Noble.
America by Design: Science, Technology, and the Rise of Corporate Capitalism. New
(64) Michael W. Apple. "Power and School Knowledge". The Review of York, Knopf, 1977.
Education, III (January/February 1977), 26-49; e Michael W. Apple. "Making Cur- (67) Isto não significa que se ignorem dados oficiais. Como Marx mostrou no
riculum Problematic". The Review of Education, 11 (January/February 1976), 52-68. Capital, os dados oficiais podem ser excepcionalmente importantes para esclarecer o
(65) Florian Znaniecki. The Social Role ofthe Man of Knowledge. New York, funcionamento real de um sistema econômico e as suposições que se encontram por
Harper & Row, 1968, p. 45-9. trás dele.
222 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRICULO 223

! educacionais argumentar contra a tentação de se utilizar não criti- e econômicas enfrentadas pelos educadores. Como vimos, transfor-
<camente estatísticas oficialmente colhidas baseadas nessas catego- mam esses dilemas em problemas de manipulação ou enigmas que
\ rias oficialmente definidas que são em geral prontamente acessíveis. são passíveis de soluções "profissionais" técnicas. Talvez o melhor
Pelo contrário, a questão mais decisiva é: "Quais são os funda- exemplo seja a dependência quase que total da área em perspectivas
mentos ideológicos destes dados?" .68 Formulando-se questões como originadas da psicologia do aprendizado. A terminologia oriunda \
essa, podem-se esclarecer as implicações normativas muito fortes dessa psicologia e suas áreas afins é bastante inadequada, uma vez
que se acham envolvidas quando os educadores designam os estu- que ignora ou afasta a atenção do caráter basicamente moral e
dantes por alguma abstração institucional específica. político da existência social e do desenvolvimento humano. A lin-
Sustentei que a distribuição de rótulos entre uma população guagem de reforço, aprendizado, feedback negativo, e assim por
estudantil é na verdade um processo pelo qual um grupo social faz diante, é um recurso muito fraco para lidar com a contínua intrusão
juízos de valor sobre a pertinência ou não da ação de um outro de contradições sobre a ordem, com a questão do que conta como
grupo. Se essa perspectiva está correta, então os fatores que venho conhecimento legítimo, com a produção e reprodução de significado
articulando sugerem que está por ser realizada boa parte da pes- pessoal e instituições interpessoais, com a natureza reprodutiva da
quisa que mostre como as estruturas ideologicamente hegemônicas escolarização e de outras instituições, e com noções como as de
de grupos dominantes na sociedade norte-americana, quando im- responsabilidade e justiça na conduta social. Fundamentalmente,
postas nas escolas, têm amplas implicações éticas, políticas e sociais como a linguagem sistêmica de administração, a linguagem da
na medida em que podem colaborar na diferenciação dos indivíduos psicologia, conforme é exercida no currículo, "anula o caráter
de acordo com classe, raça e sexo bem no início de sua vida. ético e político das relações humanas e da conduta pessoal" .70
Estas são questões francamente difíceis. Ainda, no próprio ato Por exemplo, boa parte de nosso esforço ativo para definir
de procurar se livrar das responsabilidades e dilemas excessivamente objetivos operacionais e para colocar os "resultados" do estudante
morais e políticos de influenciar os outros, os educadores têm feito o em termos de comportamento pode ser interpretado exatamente
;i que Szasz chama de "mistificar e tecnicizar seus problemas de como tal - trabalho ativo, se me permitem usar terminologia do
vida". É muito significativa a relação disso com a dominância na senso comum. Isto é, por causa da preocupação da área com a reali-
filosofia educacional de modelos psicológicos e metáforas baseados zação de seus objetivos e quantificação de output, afasta-se a aten-
numa image~ de "ciência de rigor" e neutra. 69 ção das implicações políticas e morais decisivas de nossa atividade
As orientações que prevalecem na teoria do currículo e edu- como educadores. Dessa forma, mudam-se os meios em fins e as
cacional, e que de fato a dominaram consistentemente no passado, crianças são transformadas em abstrações manipuláveis e anônimas
efetivamente ocultam e em geral negam as profundas questões éticas chamadas "alunos". Referindo-se à área da sociologia, embora o
mesmo pudesse ser dito acerca de uma grande parcela da linguagem
e da pesquisa sobre currículo, Friedrich expressa claramente parte
do problema.7!
(68) lan Taylor, Paul Walton e Jock Young. "Advances Toward a Criticai
Criminology". Theory and Society, I (Winter, 1974),441-76.
(69) O termo "ciência de rigor" refere-se aqui a áreas cujos interesses funda-
mentais refletem e estão dialeticamente relacionados aos interesses dominantes de Do que os sociólogos parecem completamente inconscientes ê do
sistemas econômicos industriais avançados e, portanto, baseiam-se numa lógica de impacto permanente de chegar a conceber um de seus companheiros
processo-produto ou utilitário-racional. Estes interesses são por regras técnicas, como manipulãvel.
controle e confiabilidade. Entre as áreas que se poderiam apontar estão a sociologia e
a psicologia "comportamental": Ver Jürgen Habermas. "Knowledge and Interest".
Sociological Th~ory and Philosophical Analysis. Dorothy Emmet e Alasdair Mac-
Intyre(orgs.). New York, Macmillan, 1970, p. 36-54; e Michael W. Apple. "Scien- (70) Szasz, op. cit., p. 2.
tific Interests and the Nature of Educational Institutions". Curriculum Theorizing: (71) Robert W. Friedrich. A Sociology of Sociology. New York, Free Press,
The Reconceptualists. William Pinar (org.). Berkeley, McCutchan, 1975, p. 120-30. 1970, p. 172-3.
IDEOLOGIA E CURRlcULO 22..')
224 MICHAEL W. APPLE

A linguagem - e a escolha entre simbolos que ela acarreta - tência e inteligência. 72 Aqueles que fossem desajeitados ou que
impregna toda a ação social significativa, tanto manifesta quanto alcançassem apenas as categorias inferiores de dons físicos poderiam
latentemente, consciente ou inconscientemente. A manipulação sim- então ser discriminados. A estrutura educacional da cultura catego-
bólica do homem não pode ser totalmente isolada do restante das rizaria os indivíduos de acordo com o "nível de seus dons físicos".
relações simbolicamente mediadas de uma pessoa com as outras. A tecnologia seria projetada de modo que fosse necessária elegância
Como a vida intelectual do homem cada vez mais exige essa manipu- em movimento para que fosse utilizada.
lação simbólica, este corre o risco de conceber o homem em outras Além dos dons físicos (que não é realmente um conceito tão
áreas de sua vida em termos que convidam ou que são especialmente bizarro), também se poderia sugerir a possibilidade de avaliar, di-
receptivos a uma relação meios-fins em lugar daquelas que sustentam gamos, a superioridade moral ou o compromisso coletivo, encon-
uma atitude com relação aos outros como fins em si mesmas.
trado em estudantes em muitos países socialistas. Afinal, esses tipos
de elementos de tendência são algum-as das coisas de que trata a
educação, não são? No entanto, como sugere vigorosamente a lite-
Portanto, o caráter manipulativo e as estruturas da dominação ratura sobre o currículo oculto, as regul~ridades básicas das escolas
ideológica de uma sociedade ampla encontram-se no discurso sobre excedem-se em ensinar o contrário. Por exemplo, devido à domi-
currículo, na linguagem de comportamento básico e de enfoque e nância da avaliação individualista - tanto pública quanto privada,
nas categorias utilizadas até para conceber as relações educacionais. de si mesmo e de seus pares - no subterfúgio dos equipamentos
I escolares ensina-se efetivamente a ocultar sentimentos reais, como a
Cria, portanto, e reforça padrões de interação que não apenas refle-
tem, mas na verdade incorporam os interesses pela estratificação, • alegria diante do fracasso de outrem e do próprio, e assim por
diante. Isto ocorre apenas porque o estudante vive numa instituição
. poder desigual, confiabilidade e controle que dominam a consciên-
cia em sociedades industriais avançada~. e tem de enfrentar sua densidade, poder e competitividade. 73
As implicações desses contra-exemplos são muito significati-
vas, pois indicam que, para se mudarem as concepções dominantes
de competência na prática, pode ser preciso mudar as regularidades
Alguns contra-exemplos básicas da estrutura institucional da própria escolarização. As pró-
prias regularidades estão entre os "recursos de ensino" que comu-
Uma série de exemplos alternativos pode ser usada para de- nicam normas e tendências permanentes aos estudantes, que ins-
monstrar que as concepções, categorias e rótulos que estou anali- truem as crianças sobre "como é realmente o mundo". É importante
sando aqui são, de fato, ideológicos e fundados no senso comum e observar as implicações de cada uma dessas concepções alternativas
não são pré-ordenados ou "naturais". Efn nossa sociedade, existe para as instituições comerciais, publicitárias e outras na sociedade.
Atuam como importantes alertas de que a crítica de muitas das
um alto prêmio conferido à inteligência, especialmente com relação
à capacidade do estudante de aumentar a produção de conheci-
mento economicamente importante. As escolas são, é claro, parcial- (72) Lewis A. Dexter. "On the Politics and Sociology of Stupidity in Our
mente organizadas em torno desse conceito e o valorizam. É impor- Society". The Other Side. Howard S. Becker (org.). New York, Free Press, 1964,
tante, mas não é a questão aqui, o fato de que o limitam a versões p.37-49.
muito restritas e principalmente verbais, versões que em geral incor- (73) Jules Henry. Culture Against Man. New York, Random House, 1963; e
poram o capital cultural dos grupos dominantes. Deveríamos obser- PhilipJackson. Life in Classrooms. New York, Holt, Rinehart & Winston, 1968. O
conceito de Goffman de "ajustamentos secundários" é muito útil para interpretar
var, antes, que é possível descrev~r outras concepções em torno das partes do curriculo oculto. Goffman, op. cit., p. 189. Algumas alternativas a essas
quais nossas instituições educacionais e sociais poderiam ser organi- práticas pedagógicas podem ser encontradas em William Kessen (org.). Childhood in
zadas e projetada nossa tecnologia. Por exemplo, imagine-se uma China. New Haven, Yale University Press, 1975; e Geoff Whitty e Michael Young
sociedade em que os dons físicos fossem a característica mais valo- (orgs.). Explorations in the Politics of School Knowledge. Driffield, Nafferton Books,
rizada, e não nossas definições demasiadamente estritas de compe- 1976.
226 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 227

características das escolas e a crítica social, política e cultural devem entre as escolas e o controle econômico e cultural não é alguma coisa
andar de mãos dadas. As escolas não existem num vácuo. pela qual os educadores estejam acostumados a procurar. Isto faz
Por exemplo, parte d~ p~~~-;;~-'d;';~fulação q~e~ênho anali- realmente parte de um problema de reconhecimento errôneo, que é
sando aqui tem em suas origens-um interesse pela eficiência. Isto é, composto pela saturação ideológica da consciência dos educadores.
as escolas enquanto agentes do controle social e da reprodução cul- De vez que se utilizam as tradições de desempenho e sociabilização
tural e econômica em um certo sentido precisam operar como orga- acriticamente, vêem-se como naturais os rótulos, as categorias e o
nizações eficientes, e a rotulação é de grande ajuda quanto a isso. 74 conhecimento legitimo criados a partir dessas perspectivas. As rela-
Tanto quanto possível, a atividade deve ser racionalizada e transfor- ções concretas que essas "diferenciações, avaliações e juizos de
mada em objetivo especifico, de modo que a efetividade e a unifor- valor" mantêm com a divisão social ao trabalho e com o controle
midade do custo operacional sejam elevadas e a "perda", inefi- econômico e cultural são obscurecidas pelo status cientifico aparen-
ciência e incerteza sejam eliminadas. Além do mais, o conflito e a temente neutro das próprias perspectivas. Reunidas, fornecem um
discussão quanto aos objetivos e procedimentos devem ser dimi- meio ideal de hegemonia.
nuídos, a fim de não se pôr em risco os objetivos e procedimentos Existe uma combinação complexa de forças de trabalho aqui.
existentes. Afinal, é vultoso o investimento econômico e psicológico A tradição seletiva opera para que o capital cultural que contribuiu
nessas regularidades básicas. Devem-se desenvolver, então, técnicas para a ascensão de grupos e classes poderosas e para a continua
para controle e manipulação da diferença, a fim de impedir que dominação por el~s transforme-se em conhecimento legitimo e seja
, desordem de qualquer tipo significativo ultrapasse os limites da vida utilizado para criar as categorias pelas quais os estudantes são enfo~
institucional. Se se encontrar uma diferença significativa (quer inte- cados. Por causa do papel econômico da escola em distribuir dife-
lectual, estética, ética ou normativa), é preciso que seja ~corpo­ rencialmente um currículo oculto a diferentes grupos econômicos,
rada, redefinida ~m categorias que possam ser manipuladas pelas culturais, raciais e sexuais, as diferenças lingüísticas, culturais e de
suposições burocráticas e ideológicas existentes. Ignora-se o fato de classe serão enfocadas o máximo possível e rotuladas como des-
que essas suposições não são relativamente examinadas, e que se viadas. O conhecimento técnico será então utilizado como um filtro
autoconfirmam, já que os educadores empregam categorias que complexo para estratificar os estudantes de acordo com sua "compe-
delas se originam. ' tência" para contribuir para sua produção. Isto, portanto, aumenta
Contudo, é uma análise muito limitada apontar as escolas o sentido da neutralidade desse'processo de estratificação econômica
como os originadores desse interesse na educação por eficiência e cultural e tanto oculta quanto torna mais iegitimo o funciona-
acima de tudo. As origens dessa perspectiva estão' numa ideologia mento do poder numa sociedade classista. Conforme expresso por
que fornece a estrutura constitutiva para pensamento e ação em Bourdieu e Passeron, "Todo poder que consiga impor significados e
, todas as sociedades industriais, uma ideologia instrumental que impô-los como legitimos, ocultando as relações de poder que são a
, , coloca em seu núcleo a eficiência, técnica padronizada, lucro, cres- base de sua força, acrescenta sua própria força especialmente sim-
cente divisão e controle do trabalho e consenso. Conseqüentemente, bólica àquelas relações de poder" .76
a compreensão das escolas e éspecialmeute da área do currículo no É na combinação entre o uso que as escolas fazem de perspec-
que Kliebard chamou de "um mod~lo fabril"75 faz parte de um tivas neutras que incorporam os interesses de controle técnico e
problema social mais amplo referente à falta de sensibilidade de confiabilidade e a forma como servem aos interesses de reprodução
nossas principais instituições às necessidades e aos sentimentos hu- econômica e cultural que elas realizam suas variadas funções. As
manos. Perder isso de vista é perder muito do problema real. . perspectivas técnicas, ensinadas aos educadores e por eles utilizadas
Como vimos, porém, o reconhecimento da relação dialética como meros procedimentos, complementam as necessidades de uma

(74) Schur,op. cit., p. 96. (76) Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron. Reproduction in Education,
~7S) Kliebard. "Bureaucracy and Curriculum Theory", op. cito Society and Cu/ture. London, Sage, 1977, p. S.
228 MICHAEL W. APPLE

sociedade classista de maximização da produção de conhecimento


técnico, de distribuição de uma perspectiva acrítica e positivista e de
produção de agentes com as normas e os valores apropriados para
.~\\'v~.
~
preencher as exigências da divisão de trabalho na sociedade.77 Isto é ~
um processo dialético. As escolas também legitimam o papel desse
conhecimento técnico e positivista. Podem, portanto, utilizá-lo como
um conjunto de procedimentos supostamente neutros, baseados em
"princípios fundamentalmente corretos", para estratificar os estu- 8
dantes de acordo com sua contribuição para sua maximização e Além da reprodução ideológica
para as necessidades. econômicas. As formas culturais, pois, que
residem na base de nossa mente, que trabalham atreladas ao sis-

~
tema de relações que a escola mantém com o setor econômico,
ajudam a reproduzir a hegemonia ideológica e estrutural dos que
detêm o poder.
O currículo aberto, o currículo oculto, e a história de cada um
deles, estão vinculados às categorias que utilizamos para dar tão Conhecimento concreto e poder real
facilmente significado à nossa atividade cotidiana, que por sua vez
está vinculada aos interesses sociais e os justifica. Pode ser difícil Em seu sugestivo exame da formação da consciência ideoló-
ver os resultados de nosso trabalho programático e intelectual como gica em sociedades industriais, Stanley Aronowitz rastre~a o desen-
contribuindo com a' hegemonia. No entanto, vendo como esses ele- volvimento de uma determinada idéia que passou a se sedlmentar no.
mentos se ajustam, relacionalmente, às estruturas reais de domina- fundo de nossa mente. A idéia e sua função ideológica são muito
ção numa sociedade, podemos agora começar a entender os meca- semelhantes ao fio que guiou a análise nos capítulos anteriores e
nismos através dos quais se dá nas escolas a reprodução econômica e especialmente no Capítulo 7. Ele suste~ta. ~ue a hegem,onia oper.a }
cultural. Assim, obtemos um quadro mais nítido de por que "aque- em grande parte através do controle do slgmflcado, atraves da mam-
les que têm, recebem". Em virtude de muitas das determinações que pulação das próprias categorias e formas de raciocínio que comu-
examinei nesta obra, nas escolas como em outras instituições, eles mente utilizamos. Portanto, existe uma "tendência interna do capi-
realmente recebem. talismo para cada vez mais dar às relações entre pessoas o caráter de
relações entre coisas. A produção de mercadorias se impõe em todas
as partes do mundo social". 1 E o mundo soci~l. estratificado em ~u.e
vivem os educadores é representado pela relficação, a mercantih-
>
zação, da própria linguagem que utilizam. O controle cul~ral, pois,
como observaram Gramsci e Williams, atua como uma lmportante
força de reprodução. Através da definição, incotporaçãoe seleção
do que se considera como conheciment~egitimo ou '.:.çE!!.cr~~(,
ãtrãVêSéfãpOstiiIãÇãOdeumlalso consenso sobre o que sejam fª~
~ptidões, esperanças e temores apropriados (a forma como todos
deveríamos avaliá-los), estão dialeticamente ligados o aparelho eco-
(77) Um recente e interessante estudo etnogrâfico da forma como essa produ-
ção de agentes opera ao nível cotidiano, um estudo que se afasta da visão das escolas
como caixas negras, pode-se encontrar em Paul Willis. Leaming to Labour. West- (1) Stanley Aronowitz. False Promises. New York, McGraw-Hill, 1973, p. 95.
mead, Saxon House, 1977. Grifo de Aronowitz.
230 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 231

nômico e o cultural. Aqui c21!h~~i,~~~to (poder, mas basicamente Como vimos, as tradições comuns tanto na sociologia da edu-
nas mãos daqueles que já o detêm, que já. controlam o capital cul- 9ação quanto na área do cufrlculo consideram o conhecimento
tural bem como o econômico. escolar, aqueles "princípios, idéias e categorias" que são preser-
Perfizemos um longo trajeto desde Marx para entender as vados e alojados em nossas instituições educacionais como relativa-
conexões entre quais idéias são consideradas como "conhecimento mente neutros. O enfoque tem incidido na quantificação da aqui-
concreto" numa sociedade e a desigualdade de poder econômico e sição de informação, propensões, aptidões e tendêhcias, e no efeito
cultural em sociedades industriais desenvolvidas. A Ideologia Ale- dessa aquisição na vida futura. Quanto maior a aquisição desse
mã, em que expressou que "as classes dominantes irão dar a suas conhecimento, o êxito comum desses "paradigmas", tanto maior
idéias a forma de universalidade e representá-las como as únicas será o sucesso da escola. A tradição alternativa que empreguei aqui,
racionais universalmente válidas", ainda é um importante ponto de profundamente estabelecida na sociologia do conhecimento e na
partida, no entanto, para qualquer tentativa de explicação das rela- sociologia crítica, compreende as formas do conhecimento curri-
ções entre conhecimento, ideologia e poder. Isto é, por complexa cular Um tanto diferentemente. Ela as vê como mecanismos poten-
que seja uma análise (e certamente deve sê-lo), ~l!!_:pril!.<:!pio__~rien­ ciais d~ seleção e CQ!lJr...9le sócio~econômico, e desse modo as têm
tador fundamental dessas investigações é estabelecer as conexões interpretado;" ao menos em parte, através da' ótica da afirmação
~e-asidéias-dom1iiantes de-umãsOc1êdãdee-oslnteiesses~de de Marx.
grupos e classes específicos. ---,----..." - .,~,--"- Essa tradição alternativa, porém, não é vista por seus partici-
~--~InfeHzmêíitê':·Tssólõnntetpretado por muitos como uma teoria pantes (o "nós") como sendo meramente uma postura entre outras.
conspirativa - por exemplo, há um número relativamente grande Pelo contrário, e aqui há total acordo de minha posição, o enfoque
de homens e mulheres no poder que conspiram conscientemente tem estado nas questões prioritárias necessárias que devem ser feitas
para a supressão das classes inferiores. O próprio Marx sem dúvida antes (e talvez no lugar de) que se se empenhe nos tipos comuns de
se referiu a alguma coisa mais complexa com essa afirmação. Sua pesquisa sobre o conhecimento escolar. Portanto, um conjunto prio-
posição, que forneceu a estrutura constitutiva para a análise que ritário de questões com relação àquelas geralmente feitas sobre o
aqui se fez de ideologia e currículo, era de que, "naturalmente" êxito e o fracasso das escolas (por exemplo: Os estudantes alcan-
originados das relações de produção entre os indivíduos e grupos çaram tal ou qual nível de conhecimento?) tem sido de um tipo
sociais, encontram-se os "princípios, as idéias, as categorias" que se lógico e político diferente (A quem pertence esse conhecimento? .Por
conformam a essas relações de produção (desiguais) e as sus- que está sendo transmitido a esse determinado grupo, dessa forma
tentam. 2 determinada? Quais são suas funções reais ou latentes nas comple-
Minha primeira frase foi um tanto enganosa, porém. Embora xas conexões entre o poder cultural e o controle dos modos de
tenha dito "Perfizemos um longo trajeto C.. )", é ainda problemático produção e distribuição de bens e serviços numa economia industrial
determinar quem deve ser incluído nesse grupo. Pois, como obser- avançada como a nossa?). Apenas quando pudermos responder a)
vei nos Capítulos 1 e 2, o pronome "nós" aqui se refere a indivíduos esses tipos de questões é que fará sentido investigar nosso relativo
e grupos de pessoas interessadas que se filiaram ao que poderia ser sucesso em promover a aquisição de determinadas formas de capital
denominado de tradição crítica neomarxista. E este "nós" em geral cultural.
não inclui os sociólogos da educação ou os pesquisadores de currí- Agora deveria ficar claro que esses tipos de investigações
culo, talvez devido à intenção de reformas graduais (compreensível) prioritárias têm a ver com questões ideológicas. Por razões políticas
que orienta essas áreas. J e conceituais, tanto criticam os modos existentes de pesquisa de
currículo quanto sugerem um programa de pesquisa séria como

(2) Rob Bums. "West German Intellectuals and Ideology". New German
Critique, VIII (Spring, 1976),9-10.
(3) Isto não implica que a melhoria seja necessariamente neutra. Como de- ticas gradualistas não deveriam nos deixar otimistas com relação a 'muitas dessas
monstrei nesta obra, as possiveis conseqüências políticas, econômicas e éticas de prã- reformas .•
232 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO

alternativa. Como ressaltaram Young e Bernstein, embora haja Por objetivos retóricos, Goldmann exagerou um pouco sua
alguma consciência do caráter ideológico dos aspectos da educação, afirmação, mas as implicações de sua posição são muito importantes
tem havido pouca ou nenhuma consciência, até muito recentemente, na reflexão sobre nosso próprio trabalho. É somente através de
de que a própria forma e conteúdo das mensagens da sala de aula, nosso compromisso de examinar coletivamente o trabalho prodti-
da vida escolar cotidiana, incorporam "transmissões" ideológicas. A Zido, de usar e ultrapassar determinado nível de obsolescência, com
fim de corrigir isto, a seleção ea transmissão de conhecimento e as perseverança, que se poderia fazer algum progresso sério em nossa
idéias que as orientam, então, precisam tornar-se um foco básico de compreensão coletiva de instituições como as escolas e influir sobre
pesquisa crítica do currículo e sociológica das escolas. 4 elas.
Visto por essa luz, o estudo do currículo, do que se considera Portanto, não deveríamos esperar que uma pessoa responda,
como o conhecimento escolar apropriado e os princípios usados para ou mesmo coloque, todas as questões importantes referentes ao que
selecioná-lo e avaliá-lo integram um problema maior. Ao longo poderia ser mais bem visto como a relação entre poder e conhe-
desta obra, minha posição foi a de que essa investigação fornece cimento. Certamente, não o fiz neste livro. Pelo contrário, grupos

~
uma área através da qual podemos examinar a ~ução cultura!..e concretos de pessoas filiadas a uma tradição social e intelectual mais
~onômica das relações de classe em sociedades estratificadas desi- ampla tornam-se excepcionalmente importantes. Outros, talvez com
gualmente. Em virtude disso, é importante observar que essas inves- a crítica e a destruição do meu texto, serão conduzidos a uma futura
tigações da produção e reprodução de hegemonia adquirem seu clareza política e conceitual.
significado fundamental não "apenas" em virtude de sua contribui- Evidentemente, há ainda importantes passos a serem dados no
ção para nossa compreensão, embora seja sem dúvida importante. plano de análise da sociologia e da economia do conhecimento
Seu significado provém também de situá-las num movimento poli- escolar aqui articulados. Por conseguinte, gostaria de sugerir alguns
ticamente progressista mais amplo. De fato existe uma questão procedimentos que poderiam ser proveitosamente empreendidos por 0:.
política a ser formulada aqui quanto à atuação desse movimento essas análises. Embora haja um risco em reduzir todo conhecimento )-~
político e econômico progressista (e a compreensão que o acom- • ' escolar a conhecimento ideológico, e isso seria uma asserção ingênua ~,
panha). Esse movimento deve incorporar um compromisso coletivo \ do ponto de vista analítico (dois mais dois é ideológico?), muito há "
para com essa compreensão. Esse compromisso com o progresso ainda por ser feito quanto à questão de quais são os grupos espe-
compartilhado naturalmente possui características de uma visão cíficos que controlam a seleção do currículo nas escolas. 6 A quem
neomarxista, quando posto em termos políticos, e encontra melhor pertence o capital cultural, tanto o manifesto como o latente, que é
descrição nos últimos textos de Lucien Goldmann. 5 introduzido no currículo escolar? De quem é a visão da realidade
econômica, racial e sexual, de quem são os princípios de realidade
econômica, de quem são os princípios de justiça social, que estão
Na minha opinião, a principal característica específica do pensa-
engastados no conteúdo da escolarização? Essas questões lidam com
mento marxista ê o conceito de sujeito cole~~: a afirmação de que, "
poder e recursos e controle econômicos (e com a ideologia e a eco-
historicamente, a ação efetiva nunca ê realizada por individuos iso-
lados, mas por grupos sociais, e de que ê apenas em relação com estes nomia da indústria editorial também). São provavelmente bem mais
que se podem compreender acontecimentos, modos de comporta- apreendidos por uma análise neomarxista do conteúdo cultural
mento e instituições. real. Assim, precisam ser desmascaradas em suas representações
concretas nas escolas.
A fim de realizar isso, precisamos de uma s?Ciologia crítiCé\
ra~as formas culturais que esteja ligada ao modo como esses i
(4) Dennis Warwick. "Ideologies, Integration and Conflicts of Meaning".
Educability. Schools. and ldeology. Michael Flude e John Ahier (orgs.). London,
Halstead Press, 1974, p. 89. -(6) Levei avante algumas propostas de pesquisa a esse respeito em Michael W.
(5) Lucien Goldmann. Power and Humanism. London, Spokesman Books, Apple. "Politics and National Curriculum Policy". Curriculum lnquiry, VII (n. 4,
1974, p. 1. 1978),355-61.
234 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 235

artefatos culturais são distribuídos na sociedade. Por conseguinte, dades humanas está relacionada às condições que se desenvolveram
o estudo da relação entre ideologia e currículo precisa ver-se a si historicamente de sistemas econômicos classistas como o nosso. 9
,próprio como detentor de fortes ligações com apreciações sócio- Esses tipos de investigações não se mantêm sozinhos. Uma
''-econômicas de outros mecanismos sociais que preservam e distri- teoria estrutural do conhecimento escolar, e o problema da repro-
buem a cultura de elite e a popular. A obra de Lukacs, Williams, e dução cultural e econômica das relações de classe que se instaura
Goldmann, por exemplo, torna-se muito importante se devemos por trás dele, faz parte de uma tarda mais ampla de demonstrar
começar a entender como o conteúdo e a forma do conhe~imento tanto analítica quanto empiricamente que as desigualdades são

~
escolar (como o conteúdo e a forma de importantes romances e "naturalmente" oriundas dos programas econômicos, sociais e cul-
dramas) estão relacionados com as estruturas do contorno social de turais existentes. Essas desigualdades não são desajustamentos
economias industriais avançadas de tendência individualista como a fixos, mas, pelo contrário, são regularizadas. Estão dialeticamente
nossa. 7 O conhecimento que se introduz nas escolas - aqueles entrelaçadas e conectadas com questões de poder e controle econô-
"princípios, idéias e categorias legítimos" - origina-se de uma mico e cultural. 10 Portanto, qualquer interesse sério pela relação
história específica e de uma realidade econômica e política especí- entre ideologia e currículo torna-se ainda mais forte na medida em
fica. Para ser entendido é preciso recolocá-Io naquele contexto sócio- que visa, também, a explicar a economia política da educação for-
econômico. mal. De fato, pode ser quase impossível haver um sem o outro. 11
Mas como isso deve ser realizado? Para abordar mais comple- Ao longo deste livro, minha posição incorporou um compro-
tamente a relação entre ideologia e cultura, entre poder e conhe- misso político. Implícita na minha exploração de alguns aspectos da
cimento, essas investigações exigem ligações entre nossas conside- formas como as escolas e os intelectuais funcionam na reprodução
rações das formas que dominam as escolas e uma análise mais cultural e econômica das relações de classe encontra-se uma reivin-
estrutural dos tipos de possibilidades imaginativas, que são vistas dicação de que é muito difícil que a teoria educacional e social seja
como legitimas pela sociedade mais ampla. Assim, por exemplo, neutra. Portanto, como afirmei no Capítulo 1, a pesquisa do currí-
teríamos de investigar não apenas o conhecimento escolar manifesto culo e a pesquisa educacional mais geral precisam originar-se numa
e o oculto e as bases ideológicas, éticas e avaliativas das formas como teoria de justiça econômica e social, numa teoria que tenha como
comumente consideramos nossa atividade nas escolas, mas também seu principal enfoque aumentar o privilégio e o poder dos menos
dos outros aspectos do aparelho cultural de 'uma sociedade. A tele- privilegiados. Defender isso é também argumentar que tanto os

~
visão e os meios de comunicação de massa, os museus e anúncios, temas de nossas teorias e pesquisa quanto as explicações finais das /
filmes e livros, todos fazem contribuições perma.nentes à distribu..l·- relações entre os fenômenos estudados são em geral tacitamente /
ção, organização e, acima de tudo, ao controle do significado so: juízos do tipo de sociedade em que vivemos. 12 Talvez, à medida que!
cial. 8 Esses artefatos, quando acrescetrtadOs'ãõs'-fiteiêsses-pêlos adquirirmos uii1}üíZo-mãis clarõ-dõ'Üpo" de sociedade em que vi-
wículos que enfoquei aqui, podem então ser ligados de uma tal .,
- forma que podemos revelar como a organização cultural das quali-
(9) Eberhard Knõdler-Bunte. "The Proletarian Sphere and Political Orga-
nization". New German Critique, IV (Winter, 1975),53.
(lO) Para uma abordagem interessante da forma como essa perspectiva tem
(7) Ver, por exemplo, Fredric Jameson. Marxism and Form. Princeton Uni- sido aplicada a uma área de política social diferente da educação, ver lan Taylor,
versity Press, 1971; Raymond Williams. Marxism and Literature. New York, Oxford Paul Walton e Jock Young. "Towards a Criticai Criminology". Theory and Society, I
University Press, 1977; Raymond Williams. The Long Revolution. London, Chatto & (Winter, 1974).
Windus, 1961; e Lucien Goldmann. Towards a Sociology of the Novel. London, (11) Samuel Bowles e Herbert Gintis. Schooling in Capitalist America. New
Tavistock, 1975. Examinei isto mais profundamente em Michael W. Apple. "Ideo- York, Basic Books, 1976, é o primeiro passo para uma economia política da edu-
logy and Form in Curriculum Evaluation". Qualitative Evaluation. George Willis caçãõ. É, porém, falho na medida em que não leva em conta a reprodução cultural
(ed.). Berkeley, McCutchan, 1978. com exceção de sua discussão das normas e das tendências que as escolas tanto
(8) Ver, por exemplo, Michael W. Apple e Jeffrey Lukowsky. "Television and transmitem quanto reforçam.
Cultural Reproduction" . Journal ofAesthetic Education, no prelo. (12) Taylor, Walton e Young, op. cit., p. 463.
236 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 237

vemos, nossa compreensão dos papéis desempenhados pela escola poder para determinados grupos obterem o que querem às custas de
na reprodução dessa sociedade também irá adquirir maior nitidez. outros. 13
Tentei mostrar aqui aonde poderia proveitosamente chegar a busca
coletiva de uma compreensão como essa, tanto no plano conceitual Deixe-me acentuar aqui que a predominância de membros dos seto-
como no político. Pois, afinal, o juízo pessoal de nosso papel na res industrial, bancário, etc. e da alta classe média em nossos corre-
sociedade em que vivemos não é uma questão abstrata. É uma ques- dores políticos do poder não é a causa mas, sim, um sintoma do
tão que todos devemos enfrentar. Fazer menos é ocupar o papel do padrão de dominância de classe em nossa sociedade. Deixe-me ainda
indivíduo abstrato, que não se encarrega de investigar as relações sublinhar que não presumo que a classe dominante seja uniforme ou
concretas que se mantêm com grupos de pessoas que produzem as que todos seus membros compartilhem os mesmos interesses. De
condições que nos possibilitam realizar nosso trabalho. Deixar de fato, as classes sociais são divididas de acordo com os blocos de poder
que lutam por influência política, e é essa competição que geralmente
considerar isso relacionalmente de fato comprovaria a asserção de passa em nossos meios de comunicação e na academia como o "gran-
Williams de que está desgastada nossa idéia de comunidade. de pluralismo norte-americano".
Talvez Williams tenha razão. As regras conceituais que utili- Mas nessa competição por influência política, os blocos de poder da
zamos para definir nossas situações, para projetar nossas escolas alta classe média e da classe industrial e bancária consistentemente
e selecionar e distribuir as tradições que devem ser preservadas e exercem cada vez mais influência sobre os órgãos do Estado que os blo-
distribuídas por elas mostram um claro menosprezo por essas apre- cos de poder que pertencem à classe média inferior e às classes
ciações críticas. Vencer esse menosprezo exigiria uma teoria crítica e trabalhadoras. Como sugeriu Schattschneider, "A falha no paraíso
coerente da ordem social em que vivemos. Mas esta é exatamente a pluralístico está em que o coro celestial canta num tom muito espe-
questão. Pois não apenas deixamos de situar o conhecimento que cial. ( ... ) O sistema é torto, tendencioso e desequilibrado em favor de
uma fração de uma minoria". De fato, subjacentes e transcendentes a
transmitimos, as escolas que ajudamos a manter e a nós mesmos nas
esses interesses de blocos de poder específico, existem interesses de
relações estruturais básicas de que fazem e fazemos parte, como classe muito mais importantes que são superiores para explicar o
também reconhecemos erroneamente os lucros diferenciais dessas comportamento político de nosso sistema. Portanto, muito freqüen-
próprias estruturas básicas. temente a legislação federal produz um padrão consistente de efeitos
Isto não é sem importância. Exatamente como nossas prá- que beneficiam os 200/0 no topo mais do que os 800/0 que se acham na
ticas, valores e teorias em educação fundadas no senso comum são base de nossa sociedade.
aspectos da hegemonia, nossa consciência (ou falta dela) do funcio-
namento das estruturas de nosso sistema político e econômico opera Portanto, capital econômico leva a capital econômico. E, ain-
de forma semelhante. Também nos força a não pensar estrutural da que nossas convicções ideológicas nos façam crer que seja de
ou relacionalmente. Determina limites quanto ao campo interpre- outro modo, a forma política e os interesses econômicos dos pode-
tativo que damos para definir nosso sistema econômico, cultural e rosos estão reunidos nos benefícios concretos naturalmente origi-
político. Pelo contrário, substituímos uma noção não crítica - que nados dessa conjuntura.
é distribuída pelas escolas, pelos meios de comunicação e outros Tentei elucidar como essa estreita conexão entre poder e con-
mecanismos de uma cultura dominante efetiva - de democracia trole que existe entre o governo e as classes dominantes, como
pluralista que não apresenta uma definição adequada da forma descreve Navarro, também existe entre a escola e esses grupos. É,
como o interesse e o poder realmente operam numa economia indus- pois, conjugando a análise econômica e a cultural, e enfocando os .
trial avançada. mecanismos históricos e presentes que permitem que os educadore.s )
e as escolas continuem em seus papéis de reproduzir o indivíduo ,
A discussão de Navarro sobre a natureza do "pluralismo"
numa sociedade classista é instrutiva aqui, especialmente seus argu-
mentos sobre a forma como uma visão de democracia pluralista (13) Vicente Navarro. Medicine Under Capitalism. New York, Neale Watson
encobre os verdadeiros conflitos que existem e os usos diferenciais de Academic Publications, 1976, p. 91.
238 MICHAEL W. APPLE IDEOLOOIA E CURRICULO 239

abstrato, a tradição seletiva, o consenso ideológico e a hegemonia, mente preservada. Mas, também precisamos lembrar que o verda-
que podem ser esclarecidos esses tipos de conexão. deiro sentido de futilidade pessoal e coletiva que pode surgir dessa
honestidade é ele pr6prio um aspecto de uma cul~ura dominante
efetiva. Enquanto forma ideológica, pode nos afastar da ação con-
Além da reprodução creta sobre as condições que nos negam "os valores que mais preza-

Ao longo deste livro, utilizei a linguagem de distribuição e


reprodução. Essa linguagem tivera a vantagem conceitual de ajudar
mos" .
Existe, entretanto, um outro lado dessa questão de um sentido
de futilidade. Envolve a crença simultânea de que qualqu~r ação a '
t
a desvendar o poder que as instituições existentes têm para crescer, nível de reforma gradativa nas escolas, no local de trabalho ou em
para impor limites à ordem social e às nossas formas de consi- qualquer outro local apenas se prende a um sistema classista. Essa
derá-las, de modo que são maximizados os benefícios dos que detêm posição é exatamente problemática.
o capital cultural e econômico. Mesmo com esse tipo de vantagem Ê uma proposição estranha, creio, a noção de que toda ação
conceitual, as próprias metáforas a que recorri podem ocultar al- de reforma gradativa é uma espécie de suborno inconsciente pago
guma coisa. O conceito de reprodução pode levar a uma suposição pelos reformadores liberais às mulheres, negros, operários e outros,
I de que não exista (e talvez não possa existir) nenhuma oposição um suborno que os impede de fazer pressões por mudanças estru-
~ \ significativa a esse poder. 14 Não é este o caso. A luta continua por turais. Baseia-se numa suposição de probabilidade muito simplista.
direitos democráticos e econômicos empreendida por operários, po- Presume que há uma correspondência total e exata entre procurar
bres, mulheres, negros, índios, latinos e outros serve de forte alerta tomar a vida um pouco melhor hoje ou no futuro próximo e evitar
para a possibilidade e a realidade de ação concreta. Boa parte dessa uma revolução que surgirá naturalmente se apenas esperarmos que
luta permanece relativamente descoordenada e sem uma teoria coe- as condições fiquem suficientemente más para isso. A lógica aqui é
rente de justiça social por trás de si. Parte dela foi "incorporada" em muito estranha, para se dizer o mínimo. O status da palavra "natu-
procedimentos que não constituem ameaça alguma a quaisquer ralmente" é muito estranho, de, vez que implica um retomo a uma
interesses estabelecidos.ls Outra grande parte permanece sem re- concepçãó mecanicista da história. Presume que existam leis imutá-
gistro nos meios de comunicaçíl.o e sem registro no "conhecimento veis de desenvolvimento econômico e político, leis que não são feitas
legítimo" que encontramos nas escolas. No entanto, o próprio fato e refeitas pela prática humana concreta de grupos conscientes de j
de qJ.le novamente existem sérios movimentos democráticos de orien- atores humanos.
tação socialista e grupos de estudo no meio operário, de que existem Ademais, uma noção como essa é singularmente anistórica.
grupos de estudo da história da classe operária entre professores e Como Aileen Kelly elucidou em suas observações sobre a relação
administradores em diversas escolas, de que existem polêmica, de- entre a política socialista e a reforma gradativa, essas lutas são
bate e interesse renovado nas universidades, entre grupos oprimi- decisivas para melhorar as condições cotidianas de nossas institui-
dos, e em outros locais, por uma teoria marxista e ação coletiva - ções econômicas e culturais. Elas pódem transformar-se no que a
, tudo aponta para o problema de se utilizar o conceito de reprodução autora chama de "lutas políticas". 16 Isto é, apenas, com a ação',
não criticamente. sobre questões cotidianas, uma estrutura crítica pode tomar-se sen- /;
Certamente, devemos ser honestos quanto aos meios como o sata. Não se empenhar nessa ação bem elaborada é perder a opor-
poder, o conhecimento e o interesse estão inter-relacionados e mani- tunidade para a educação política e para pôr as teorias em prática. 17
festos, quanto ao modo como a hegemonia é econômica e cultural-
(16) Aileen Kelly. "A Victorian Heroine: 'A Review of Eleànor Marx". New
(14) Agradeço à Professora Yolanda Rojas da Universidade da Costa Rica por York Review of Books, XXIV (26 January 1978), 28.
muitos desses argumentos. Ü 7) Essa combinação de esforços nas questões cotidianas com os objetivos a
(15) Ver a discussão da história de alguns aspectos do movimento trabalhista longo prazo é excepcionalmente relatáda por William Hinton. Fanshen. New York,
norte-americano em Aronowitz, op. cito Vintage, 1966.
240 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 241
Que será do currículo? um potencial nesses grupos, assim como nos movimentos operários,
das mulheres e outros pelo reconhecimento do controle e dominação
Esses aspectos possuem importantes implicações para repen- desnecessários que existem em muitas das instituições da sociedade.
sar algumas de nossas observações ideológicas como especialistas em Além disso, o reconhecimento mesmo de uma pequena parcela da
currículo, pesquisadores e educadores, além das sugestões para comunidade de estudiosos e práticos da educação das perspectivas
análises que discutimos no início deste capítulo. Para levá-las a pré-científicas que dominam suas ações, racionalidade, linguagem e
sério, nosso movimento deveria afastar-se da estrutura administra- pesquisas, teria o efeito construtivo de iluminar o modo como as
tiva e "pré-científica", fundada nas tradições de desempenho e so- formas educacionais e outras de pesquisa e reforma social perdem o
i ciabilizaç,ão gU~~~2[Íe~!a~~.l!!:!llori~ dll~~tr~~os da áre;~ significado ético, econômico e político de seu trabalho. 19 Em outras
voltar-s~a J!!!!ª,_~itt!!tur~U20!í!i<:t!:"~ étis_a~ _Embora certamente palavras, o desenvolvimento de uma perspectiva crítica na comuni-;
exista uma necessidade de conhecimento técnico na área - afinal os dade educacional pode "contribuir para a criação de programas - C<J
especialistas em currículo são exortados a auxiliar no projeto e a~ternativos de pesquisa e desenvolvimento" qu~ de~afiam as supo- r-X'?'
criação de equipamentos concretos baseados em nossas diversas slções fundadas no senso comum em que se baseia a area. \\"
visões educacionais -, em geral uma perspectiva técnica e científica Exatamente tão importante, dessa forma: 20 - "'--

fornece os problemas, e outras considerações como as analisadas


nesta obra são reflexões posteriores, se são de algum modo levadas
em consideração. Uma relação mais apropriada exigiria que a Pode-se criar um conhecimento que se relacione com as necessidades
das pessoas que estão tentando construir a comunidade social, com-
"ciência" educacional e a competência técnica fossem asseguradas bater a manipulação cultural, facilitar os movimentos de descentra-
firmemente numa estrutura que continuamente procurasse ser auto.' aj lização e em geral contribuir para a atualização das necessidades
crítica e colocasse no centro de suas deliberações tanto a responsa- humanas que de outro modo são ignoradas. Reorientando a comuni-
bilidade ética e social quanto a procura por um conjunto de insti- dade cientifica, ou pelo menos parte significativa dela, [as perspec-
tuições econômicas e culturais que torne assim possível essa respon- tivas criticas] podem se tornar uma força material para a mudança;
sabilidade coletiva. contrapondo-se ao impulso corrente da ciência em direção da forma-
Habermas amplia essas idéias e suas implicações para a re- ção e implementação da política estatal.
- -I,

construção da pesquisa e da prática do currículo. Mantém que as -" -


instituições de controle e burocratizadas de sociedades como a nossa , ;" .
Esses argumentos implicam que os modelos de defesa da pes-
exigem cada VeZ mais conhecimeato científico e técnico. A comuni-
quisa e prática são criticamente necessários se deve ser alcançado -
dade científica, por exemplo, cria racionalidades e técnicas novas
algum progresso substancial.
que possibilitam o controle e dominação de indivíduos e grupos por
Aqui se deve, porém, encarar a realidade. Para muitos, a
forças econômicas e ideológicas. Entretanto, embora essas comuni-
própria idéia de se reconquistar algum controle real sobre as insti- \
dades produzam dados que sustentam as marcas específicas e meca-
tuições sociais e o desenvolvimento pessoal é abstrata e "sem sen- (
nismos institucionalizados de reprodução e controle, também se en-
contram numa posição estratégica cada vez mais centralizada. Em tido". Em geral, a hegemonia existe de fato e muitos vêem as
virtude das contradições estruturais nas universidades e em virtude instituições econômicas, sociais e educacionais como basicamente
de as normas sociais básicas que idealmente orientam as diversas autogestivas, com pouca necessidade de sua participação e de que se
manifestem e se coloquem contra os meios e fins dessas mesmas
comunidades "científicas" e "intelectuais" fundamentarem-se for-
temente numa base de comunicação franca e honesta,18 existe instituições. Ainda que seja muito evidente a desintegração de as-

(19) Schroyer. The Critique of Domination. New York, George Brázilier,


(18) Cf. Norman Storer. The Social System of Science. New York, Holt, Rine- 1973, p. 165-6.
hart & Winston, 1966. (20) Ibid., p. 172.
MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 243

pectos da vida familiar, das escolas, trabalho, saúde, etc. (embora a criança em lugar de tornar a estrutura sbcial e intelectual da escola
centralização do controle desses aspectos de nossa vida, coletiva cada vez mais auto-responsável. .
esteja se tornando mais encoberta pela retórica liberal e pluralista), Tome-se em consideração, por exemplo, o rápido crescimento
as categorias básicas da lógica industrial tornaram-se tão parte do atual de Uma linguagem de "enfoque" por parte dos educadores. A
s;nso comum, que muitaspeSsoas-deixaram mes~~de'vera-nec-es.. modificação de comportamento ou uma abordagem de objetivos
sidade -aeemancipação, a não ser em termos de um sentido anômico "comportaI}}entais" pode novamente oferecer alguns "tratamentos"
que perpassa alguns segmentos da população. Isto torna cada vez especificáveis para produzir alguns "resultados" ou efeitos especi-
mais essencial, por exemplo, o desenvolvimento de uma comunidade ficáveis. Descontando-se o fato de que as supostas relações de causa
crítica do currículo, de vez que dela pode se originar uma parte da e efeito entre tratamento e resultado são, psicológica e logicamente,
crítica sistemática das categorias e práticas básicas que povêm das difíceis de estabelecer, existem implicações éticas e especialmente
instituições problemáticas e dos agentes que as ocupam, bem como legais com relação às visões de onde provêm categorias, rÓtulos e
ajudam a produzi-las. 'Isto é, umas das condições fundam~ntais de procedimentos clínicos e terapêuticos que precisam ser postos em
emancipaç ã2.ç .~ . capacicll1cl~A~_~~ver" o func1OilãII1e~~eãCde destaque e que podem fornecer meios táticos para desafiar muitas
instÜüiç5e;- em todã-as~a complexidad~p~~tiva~~~arã das práticas comuns em instituições educacionais.
esclare-cer ascontrãdfções-dasré~ia;id~entese.fin~mente, Vários juristas tomaram a posição de que, antes de serem
ajudar outros (e deixá-los nos ajudar) a "lembrar" as possibilidades adotados programas terapêuticos de qualquer tipo, há alguns crité-
de espontaneidade, opção e modelos de controle mais igualitários. 21 rios que precisam ser satisfeitos. Primeiro, precisamos constatar que
Isto significa que os especialistas em currículo devem tomar o motivo que se acha por trás deles é ~erdadeiramente terapêutico, e
uma posição de defesa quanto .a uma série de fronts críticos, tanto que é improvável que seja pervertido em apenas um mecanismo de
dentro quanto fora da educação. Entre as posições "internas" mais controle social. Como vimos, no entanto, boa parte do trabalho com
importantes, se encontraria a de defesa dos direitos estudantis (e dos currículo no passado, no entanto, funcionou exatamente dessa
direitos democráticos de professores, grupos oprimidos, e outros). forma. Isto vale especialmente quanto à ideologia de controle na
De vez que o currículo enquanto área tem como um de seus inte- linha de avaliação e verificação,23 embora a mesma coisa pudesse
resses primordiais a tarefa de criar acesso ao conhecimento e à ser dita a respeito de muitas práticas educacionais que continuamos
tradição, especialmente àquelas'áreas que têm sido vítimas da tradi- a empregar, os tipos de instituições que projetamos e as formas de
ção seletiva, a questão do direito de o estudante ter livre acesso à interação que as dominam. Esse questionamento deve ser visto não
informação
_ _ _ _ -_,
~_._
política~c1l1t!Iralme!J.te
___,_-' honêSta7à~s-;ã~~-6bii~ã
________
'-....,,~_~~- ~~-~.r::..::::~ .. ,_~-,>-...
apenas com relação ao passado e ao presente, mas também em
c0..!!l bas~p:isto não pode ser separada da nossa própria procur.a de termos de futuro. Nenhum programa .amplo de avaliação e recu-
contornº§J~.4ucativosJustos.2·f ...-.-----.-...-~........-..... ' -- ....
peração, de remediação, melhoria e "apoio", deveria receber en-·
.. Não so;~-;.;t~··~~·-;odelo de defesa e crítica deveria nos guiar dosso institucional com base em que os práticos exigem bem mais
nas questões de direitos econômicos, legais e culturais de estu- flexibilidade nos métodos que podem usar para serem mais eficazes,
dantes, professores e grupos oprimidos, mas há uma profusão de sem ao mesmo tempo mostrar claramente que não excede o que é
I outras questões no uso cada vez maior de model()s.!~.r..apêl1ticºs em necessário para alcançar seus objetivos (se de fato os objetivos e
educação, modelos que servem como desculpa para modificar a meios são ética, política e educacionalmentejustos).
Segundo, o programa deve demonstrar, antes de sua imple- '
mentação, que é çapaz de realizar seus objetivos. Sem isso, "o /
(21) Schroyer, op. cit., p. 248. Ver também Hinton, op. cit., e Ioshua S.
Horn. Away With Ali Pests. New York, MonthIy Review Press, 1969.
(22) Michael W. Apple. "Iustice as a CurricuIum Concern". Multicultural (23) Clarence Karier. "Ideology and Evaluation". Educational Evaluation:
Education. Carl Grant (ed.). Washington, Association for Supervision and Curri- Analysis and Responsability. Michael w. Apple, Michael I. Subkoviak e Henry S.
culum Development, 1977, p. 14-28. Lufler, Ir. (orgs.). 8erkeley, McCutchan, 1974, p. 279-320.
244 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRlcULO 245

programa pode se tornar uma intervenção na vida e nas liberdades lidade instrumental e confiabilidade para "formar" indivíduos que
das pessoas sem nenhuma finalidade aceitável. O indivíduo terá sido se sentem iritegrados em instituições que têm pouco significado
sacrificado, e a sociedade nada terá conquistado". Terceiro, e talvez pessoal? São o equivalente, como desconfio, do aumento do uso de
o mais importante para esta minha análise, quaisquer efeitos cola- procedimentos de Relações Humanas no local do trabalho para "/
terais indesejáveis, quaisquer conseqüências latentes dessa interfe- aumentar o controle da mão-de-obra operária e administrativa? 26
rência na vida de um indivíduo que possam ser antecipadamente Embora não sejam facilmente respondidas, estas questões devem ser
vistos d~ve";' ser conhecidos de antemão e adequadamente pon- . examinadas se os especialistas· em currículo e outros educadores
derados. 24 Como demonstrei aqui, são de fato profundas algumas devem se conscientizar das funções ideológicas latentes de seu tra-
das contradições e das conseqüências éticas e políticas latentes de balho.
nosso próprio trabalho. Deveria ficar claro, portanto, que parte da tarefa de estabe-
Os educadores têm muito a aprender com o fato de que lecer uma base mais firme para a área do currículo e a educação em \
técnicas de controle social e de comportamento novas e notavel- geral está em seus práticos distanciarem-se daqueles que detêm o )
mente crescentes parecem criar um ímpeto ·que as faz serem genera- poder econômico e político e os meios de acesso a eles, hoje muito r
lizadas além de sua situação imediata. Portanto, qualquer uso que limitados. Com isso, não quero dizer que os especialistas em currí-
se proponha fazer delas deve ser examinado muito pormenoriza~ culo não deveriam se empenhar em discussão e análise política e
damente e deve no mínimo incorporar salvaguardas de procedimento econômica. O caso é bem o contrário. Os membros da área precisam
para estudantes e os pais que impeçam o abuso dos ·programas e que afastar-se de sua posição de aceitação total. da ideologia e das
garantam que são compatíveis com uma sociedade (supostamente) instituições que prevalecem em sociedades industriais como a nossa.
diversa e pluralista. 25 Precisam se filiar a grupos culturais, políticos e econômicos que
Essas versões e salvaguardas legais são apenas um passo, no estejam trabalhando conscientemente para modificar os programas
entanto, e de fato representam uma abordagem limitada do pro- institucionais que impõem limites à vida e às esperanças de muitas' .
blema do controle e dos usos éticos de nossas práticas e visões pessoas nesta sociedade. Evidentemente, isto envolve uma forma
fundadas no senso comum, embora possam ser importantes, como difícil de questionamento. Contudo, a menos que olhemos para
observei, para estimular a ação concreta e para a educação política. outras formas de ação e reflexão, como as criadas a partir das
Um segundo passo é examinar e formular criticamente questões tradições a que me referi, tradições que possam nos capacitar a .
sérias a respeito da própria base desses programas e processos e seu levantar temas mais importantes e a nos empenharmos em ação
papel na criação da hegemonia. Como um exemplo cotidiano, tome- coletiva efetiva, estaremos longe de sermos honestos para com nós
se em consideração, por exemplo, o desenvolvimento de um modelo mesmos. Conseqüentemente, luto aqui por uma redefinição de nos- r
terapêutico quanto a valores, materiais e técnicas de esclarecimento sas situações, uma redefinição que .reconheça., não o ideal ideOlógiCO)'{ ~ ~l-r
encontrados em Estudos Sociais. São exemplos da transformação do intelectual descompromissado, mas, sim, por uma redefinição . "U t
contínua de interesses de classe manifestos na linguagem científica e que leve a sério o envolvimento apaixonado que Gramsci exigiu em
liberal de apoio neutro, exemplos do poder da escolarização de seu conceito do' i~telectual orgânico que particip~ a~a .
ampliar seu caráter racionalizador até as tendências mais específicas luta contra a hegemonia.27
e pessoais de estudantes, de modo que estes possam ser mais bem ~nfrente com muit~ franqueza, acredito,
controlados? São indicativas .da necessidade de uma sociedade do- ainda um conjunto final de questões. Podemos, como educadores,
minada por interesses de controle, acumulação de capital, raciona-
(26) Harry Braverman. Labor and Monopoly Capital. New York,Monthly
Review Press, 1975. .
(24) Nicholas N. Kittrie. The Right to Be Different: Deviance and Enforced (27) Carl Boggs. Gramsci's Marxism. London, Pluto Press, 1976, em especial
Therapy. Baltimore, John HQpkins, 1971, p. 336. o Capítulo V. Isto não é apenas um ideal teórico. Podem-se encontrar em Cuba
(25) Ibid., p. 339. . modelos desse papel sobre os quais desejamos refletir.
246 MICHAELW. APPLE
- - - - : - - - - - - - .primeiros vôos
admitir a probabilidade de que a confiabilidade não sobreviverá, de um encontro com ensaístas
que muitas de nossas respostas e de nossas ações serão contingentes que fazem da teoria,
e ambíguas? Com isto em mente, como podemos nos comprometer uma prática inteligente.
com a ação? Parte da resposta a isso está na percepção de que nosso
próprio comprometimento com a 'racionalidade em seu sentido mais
amplo exige que comecemos a dialética da compreensão critica que
fará parte de nossa práxis política. Ainda uma outra parte da
resposta é esclarecida pelas minhas discussões neste livro. Até nossa Assembléia Constituinte,
atividade "neutra" pode não ser assim tão neu,tra,' Nosso irab, a, lhO, já
serve a interesses ideológicos. Não há escolha, a não ser estar com- a legitimidade recuperada
promissado. , - - - - - ,.,--'~,-~... ,,-.~-
\ ..
.-.,."
Raymundo Faoro

Uma Introdução à História


*
Ciro Flamarion Cardoso

*
Alienação e Capitalismo
Laymert Garcia dos Santos

Conservadorismo Romântico
*
origem do totalitarismo
CONSERVADORISMO
ROMANTICO
Roberto Romano
origem do :'~,
totalitarismo ""1'~
roberto romano

Sob a aparência de uma


análise de pensamentos presos
ao sêculo XIX, o raciocínio ê
encaminhado para uma
relnterpretação do aqui e do
agora, sugerindo uma singular
, leitura do fenômeno totalitário.
Fundamentos da Escola
do Trabalho
Pistrak

Instrumento capaz de' conscientizar o /


homem da luta contra uma \ ~
realidade opressora, a Escola do
Traball)o nasce sob as luzes do
método dialético. Segundo Pistrak,
cabe à escola a preparação de
trabalhadores completos; daí a
; f;'
necessidade de ela fornecer às
crianças uma formação bãsica de
cunho técnico e social.

Desregulagens -
Educação, Planejamento e Tecnologia
como Ferramenta Social
Laymert Garcia
dos Santos

Esse trabalho é uma anãlise crítica


do Projeto SACI/EXERN que, no final
da década de 60 e primeira metade
da seguinte, se propunha a
revolucionar a escola primãria
brasileira graças à utilização
planejada e sistemãtica de
tecnologia avançada (satélite
educativa, televisão, computadores).
Uma discussão teórica sobre o papel
da técnica nas sociedades
capitalistas encerra o livro.

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