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Onde a crítica começa:

ideologia, reprodução, resistência

Como sabemos, a década de 60 foi uma de para a chamada "nov soc~OGll'!!I'


década de grandes agitações e transforma- educação", um movimen o identificado
ções. Os movimentos de independência com o sociólogo inglês Michael Young.
das anti~ colonias europe~a~;os protest~ s _ma revisão brasileira não deixaria de
estudant1s_na F~nça e em :anos outros p -~ s inalar o importante papel da obra de
ses;a contmuaçao do movimento dos dir aulo Freire, enquanto os franceses certa-
tos civis nos Estados Unidos; os protestos mente não deixariam de destacar o papel
contra a guerra do Vietnã; os movimentos \\ dos ensaios fundamentais de Althusser, (FQ)
de contracultura; o movimento feminista; a ~ lêourdie~ e Passeron, Baudelot e Establet: Y
liberação sexual; as lutas contra a ditadura Uma avaliação mais equilibrada argumen-
militar no Brasil: são apenas alguns dos taria, entretanto, que o movimento de
importantes movimentos sociais e culturais renovação da teoria educacional que iria
que caracterizaram os anos 60. Não por abalar a teoria educacional tradicional,
coincidência foi também nessa década que tendo influência não apenas teórica, mas
surgiram livros, ensaios, teorizações que inspirando verdadeiras revoluções nas
colocavam em xeque o pensamento e a próprias experiências educacionais, "ex-
estrutura educacional tradicionais. plodiu" em vários locais ao mesmo tempo.
É compreensível que as pessoas en- As teorias críticas do currículo efetuam
volvidas em revisar esses movimentos uma completa inversão nos fundamentos
tendam a reivindicar a precedência para das teorias tradicionais. Como vimos, os
aqueles movimentos iniciados em seu modelos tradicionais, como o de Tyler,
próprio país.Assim, para a literatura edu- por exemplo, não estavam absolutamente
cacional estadunidense, a renovação da preocupados em fazer qualquer tipo de
teorização sobre currículo parece ter sido questionamento mais radical relativamente-
exclusividade do chamado "movimento de aos arranjos educacionais existentes, às
recon · ão". Da mesma fo rma, formas dominantes de conhecimento ou, de
a lit a reivindica priorida- modo mais geral,à forma social dominante.
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Ao tomar o status quo como referência movimento de reconceptualização" da te-
desejável, as teorias tradicionais se con- oria curricular. É importante, de qualquer
centravam, pois, nas formas de organização forma, revisar também aquelas teorias crí-
e elaboração do currículo. Os modelos ticas mais gerais sobre educação pela influ-
tradicionais de currículo restringiam-se à ência que teriam sobre o desenvolvimento
atividade téc · orno fazer o currícu- da teoria crítica do currículo. Poderíamos
lo. teorias críticas s , bre o currículo, começar por uma breve cronologia dos
em con , çam por colocar em marcos fundamentais tanto da teoria edu-
questão precisamente os pressupostos -~ ca~i.onal crítica mais_ ge~I quanto da teoria
do s presentes arranjos sociais e educa- -dcnt1ca
.._,
sobre o curr1culo.
cio nais. As teorias críticas desconfiam do ,e 1970- Paulo Freire, A pedagogia do oprimido
status quo, responsabilizando-o pelas de- e1970 - Louis Althusser, A ideologia e os
sigualdades e injustiças sociais. As teorias ~ aparelhos ideológicos de estado
t~adicionais era_m teorias . de ª:~itaç~o, -:, 1970 - Pierre Bourdieu e Jean-Claude
0
a1 uste e adaptaçao. As teorias criticas sao r~ Passeron, A reprodução
teo rias de desconfiança, questionamento
e transformação radical. Para as teorias 631971 - Baudelot e Establet, L'école capita-
críticas o importante não é desenvolver
li liste en France
técnicas de como fazer O currículo, mas '§ 197 1 - Basil Bernstein, Class, codes and
desenvolver conceitos que nos permitam 6--- contrai, v. I
compreender o que o currículo faz. ~ 1971 - Michael Young, Knowledge and
Épreciso fazer uma distinção, inicialmen- :J control: new directions forthe sociology
te, entre, de um lado, as teorizações críticas ! of education
mais gerais como, por exemplo, 0 importan- .ã 1976 - Samuel Bowles e Herbert Gintis,
te ensaio de Althusser sobre a ideologia ou ~ Schooling in capitalist America
o livro conjunto de Bourdieu e Passero~,A e;} 1976-William Pinar e Madeleine Grumet,
reprodução, e, de outro, aquelas teorizações ~--;, Toward a poor curriculum
centradas de forma mais localizada em 1979 - Michael Apple, Ideologia e currículo
questões de currículo, como, por exemplo, o agora famoso ensaio do filósofo
a "nova sociologia da educação" ou o " francês Louis Althusser, A ideologia e os

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aparelhos ideológicos de Estado, iria for- Na primeira parte do ensaio, Althusser
necer as bases para as críticas marxistas dá, implicitamente, uma definição bastante
da educação que se seguiriam. Parti- simples de ideologia.A ideologia é consti-
cularmente, Althusser, nesse ensaio, tuída por aquelas crenças que nos levam
iria fazer a importante conexão entre a aceitar as estruturas sociais (capitalistas)
educação e ideologia que seria central às existentes como boas e desejáveis. Essa
subsequentes teorizações críticas da edu- definição é substancialmente modificada
cação e do currículo baseadas na análise na segunda parte do ensaio, na qual o
marxista da sociedade. A referência que conceito de ideologia se torna bastante
Althusser faz à educação neste breve en- mais complexo, mas esta é uma outra
saio é bastante sumária. Essencialmente, discussão. A produção e a disseminação
argumenta Althusser, a permanência da da ideologia é feita, como vimos, pelos
Q sociedade capitalista depende da reprodu- aparelhos ideológicos de estado, entre os
, ~ ção de seus componentes propriamente-~ quais se situa, de modo privilegiado, na
~ econômicos (força de trabalho, meios .~~ gumentação de Althusser, justamente a
~ de produção) e da reprodução de seus ~escola.A escola constitui-se num aparelho
~ ( componentes ideológicos. Além da con- J.- ideológico central por ue afirma Althus-
~ I_ti nu idade das condições de sua produção ~ ser, atinge ~ ica~
'
sust entaria se não houvesse mecanism~s d
C::i
toda a po ação
~ material a sociedade capitalista não se 2 por um pe todo prolongado de tempo.
Co o a escola transmite a ideologia?

e instituições encarregadas de garantir A e cola atua ideologicame nte através
que o status quo não fosse contestado. QJ de eu currículo, seja de uma fo rma mais
i
Isso pode ser obtido através da fo rça ou di eta, através das matérias mais suscet íveis
~o convenciment o, da repres~ão o u d~ ~ a tran_sp~':e de crenças explícitas so~~e
ideologia. O primeiro meca ismo esta a dese1abil 1dade das estrutu ras soc1a1s
a cargo dos aparelhos rep r ssivos de e istentes, como Estudos Sociais, Histó ria;
estado (a polícia, o judiciário); o segundo Ge rafia, por exemplo; seja de uma for
é responsabilidade dos apar lhos ideo- mais in ·i:e....~_através de disciplinâs
lógicos de estado (a religião a mídia, a "técnicas", como- Ciên_cias e emática.
escola, a família). V Além disso, a ideologia atua de fo rma
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QCH)ee. etcr\....;Q M\ tC / f (\)0De'<'2
CGPlf7 r,, , \ t i o /, a::-i-oe~ S\J\ \?JOLl co e ~ Qe~ Grid"T I en
lista ao transmitir, através das matérias
discriminatória: ela inclina as pessoas das
escolares, as crenças que nos fazem ver
classes subordinadas à submissão e à obe-
os arranjos sociais existentes como bons
diência, enquanto as pessoas das classes
dominantes aprendem a comandar e a e desejáveis. Baudelot e Establet, num livro
controlar. Essa diferenciação é garantida também agora clássico, A escola capitalista
pelos mecanismos seletivos que fazem na França, iriam desenvolver, em detalhes,
com que as crianças das classes dominadas a tese althusseriana. Caberia, entretanto,
sejam expelidas da escola antes de chega- a dois economistas estadunidenses, Sa-
rem àqueles níveis onde se aprendem os muel Bowles e Herbert Gintis, fornecer
hábitos e habilidades próprios das classes uma resposta um pouco diferente àquela
dominantes. pergunta central sobre as conexões entre
A problemática central da análise mar- produção e educação.
xista da educação e da escola consiste, Em seu livro, A escola capitalista na
como mostra o exemplo de Althusser, em América, Bowles e Gintis introduzem o
buscar estabelecer qual é a ligação entre conceito de correspondência para estabe-
a escola e a economia, ent re a educação e lecer a natureza da conexão entre escola
a produção. Uma vez que, na análise mar- e produção. Como vimos, Althusser en-
xista, a economia e a produção estão no fatizava o papel do conteúdo das matérias
centro da dinâmica social, qual é o papel escolares na transmissão da ideologia
da educação e da escola nesse processo? capitalista, embora a definição de ideolo-
Como a escola e a educação contribuem gia que ele dava na segunda parte de seu
para que a sociedade continue sendo ensaio (a ideologia como prática) apon-
capitalista, para que a sociedade continue tasse para a possibilidade de uma outra
sendo dividida entre capitalistas (proprie- utilização desse conceito. Em contraste
tários dos meios de produção), de um com essa ênfase no conteúdo, Bowles e
lado, e trabalhadores (proprietários uni- Gintis enfatizam a aprendizagem, através
camente de sua capacidade de trabalho), da vivência das relações sociais da escola,
de outro? Althusser nos deu, como vimos, das atitudes necessárias para se qualificar
t um tipo de resposta: a escola contribui como um bom trabalhador capitalista. As
para a reprodução da sociedade capita- relações sociais do local de trabalho capi-

' 32
talista exigem certas atitudes por parte do a reprodução das relações sociais de pro-
trabalhador: obediência a ordens, pontua- dução da sociedade capitalista. Trata-se de
lidade, assiduidade, confiabilidade, no caso um processo bidirecional. Num primeiro
do trabalhador subordinado; capacidade movimento, a escola é um reflexo da eco-
de comandar, de formular planos, de se nomia capitalista ou, mais especificamente,
conduzir de forma autônoma, no caso do local de trabalho capitalista. Esse refle-
dos trabalhadores situados nos níveis mais xo, por sua vez, garante que, num segundo
altos da escala ocupacional. Como, no es- movimento, de retorno, o local de trabalho
quema de Bowles e Gintis, a escola garante capitalista receba justamente aquele tipo
que essas atitudes sejam incorporadas à de trabalhador de que necessita.
psique do estudante, ou seja, do futuro ~ crítica da escola capitalista, nesse es-
trabalhador? tágio inicial, não ficaria limitada, entretanto,
A escola contribui para esse processo à análise marxista. Os sociólogos franceses
G>
~ não propriamente através do conteúdo Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron
& explícito de seu currículo, mas ao espe- iriam desenvolver uma crítica da educação
~ lhar, no seu funcionamento, as relações que, embora centrada no conceito de "re-
5; sociais do local de trabalho. As escolas
V')
produção", afastava-se da análise marxista ~
~ dirigidas aos trabalhadores subordinados em vários aspectos. Além do conceito de <t)
"reprodução",a análise de Bourdieu e Pas-
ê5
OJ tendem a privilegiar relações sociais nas
~
!5 quais, ao praticar papéis subordinados, seron desenvolvia-se através de conceitos
2
- os estudantes aprendem a subordinação. que eram devedores, embora apenas me-
Em contraste, as escolas dirigidas aos taforicamente, de conceitos econômicos. ~
Mas, contrariamente à análise marxista, o
trabalhadores dos escalões superiores da
escala ocupacional tendem a favorecer funcionamento da escola e das instituições e
t:

J
relações sociais nas quais os estudantes culturais não é deduzido do funcionamen- C»
têm a oportunidade de praticar atitudes de to da economia. Bourdieu e Passeron v
comando e autonomia. É, pois, através de vêem, entretanto, o funcionamento da
uma correspondência entre as relações so- escola e da cultura através de metáforas
ciais da escola e as relações sociais do local econômicª Nessa análise, a cultura não
de trabalho que a educação contribui para depende da economia: a cultura funciona
33
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(2 ;S~O
fl -QI\J\SliO
como uma economi , como demonstra,
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Q'.)ll Ct~rtM~
.

O domínio simbólico, que é O domínio


por exemplo, a utiliz ção do conceito de por excelência da cultura, da significa ão
"capital cultural" atua através de um ardiloso mecanisçmo.'
Para Bourdieu e Passeron, a dinâmica da Ele adquire sua força precisamente ao
reprodução social está centrada no processo definir a cultura dominante como sendo a
de reprodução cultural. É através da repro- i cultura. Os valores, os hábitos e costumes,
e
dução da cultura dominante que a reprodu- os comportamentos da classe dominante
ção mais ampla da sociedade fica garantida. ..nsão
_, aqueles que são considerados como
A cultura que tem prestígio e valor social é ~ constituindo a cultura. Os valores e hábi-
justamente a cultura das classes dominantes: 'l> tos de outras classes podem ser qualquer
seus valores, seus gostos seus costumes <r outra coisa, mas não são a cultura. Agora
' ' ( 1

seus hábitos, seus modos de se comportar, 3 é que vem o truque. A eficácia dessa de-
de agir. Na medida em que essa cultura tem iOfinição da cultura dominante como sendo
valor em termos sociais; na medida em que o cultura depende de uma importante
ela vale alguma coisa; na medida em que ela operação. Para qÚe essa definição alcance
faz com que a pessoa que a possui obtenha sua máxima eficácia é necessário que ela
vantagens materiais e simbólicas, ela se não apareça como tal, que ela não apareça
constitui como capital cultural. Esse capital justamente como o que ela é, como uma

) cultural existe em diversos estados. Ela definição arbitrária, como uma definição
pode se manifestar em~ tado objetiva que não tem qualquer base objetiva, como
as obras de arte,as obras litera- s,as o ras uma definição que está baseada apenas na
teatrais ura pode existir também força (agora propriamente econômica) da
ob a forma de títulos, e rtificados e diplo- classe dominante. É essa força original que
mas: é o capita cultural institucionaliza permite que a classe dominante possa defi-
Finalmente, 0 capita -se nir suo cultura como a cultura, mas nesse
de forma incorporada, introjetada, interna- mesmo ato de definição oculta-se a força
lizada. Nessa última forma ele se confunde que torna possível que ela possa impor
e~~ o\\tiêbw~7 pr~cisamente o termo essa definição arbitrária. Há, portanto,
ut1h~d~ por Bourd1eu ~ :asseron para se aqui, dois processos em funcionamento: de
referir as e~trutur~s soc1a1s e culturais que um lado, a imposição e, de outro, a ~c~l-
se tornam mternahzadas. 1% ta - d t de uma impos1çao,
~ ~f:l ~ çao e que se tra a

O~~J~ ~
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que aparece, então, como natural. É a esse estranho e alheio. O resultado é que as
duplo mecanismo que Bourdieu e Passeron crianças e jovens das classes dominantes
chamam de dupla violência do processo de são bem-sucedidas na escola, o que lhes
dominação cultural. \J\Otê ~ C) S'{~(?J)L!l'~ permite o acesso aos graus superiores do
Agora, onde entram a escola e a edu- sistema educacional. As crianças e jovens
cação nesse processo? Em Bourdieu e das classes dominadas,em troca,só podem
Passeron, contrariamente a outras análises encarar o fracasso, ficando pelo caminho.
críticas, a escola não atua pela inculcação As crianças e jovens das classes dominan-
o da cultura dominante às crianças e jovens tes veem seu capital cultural reconhecido
das classes dominadas, mas, ao contrário, e fortalecido.As crianças e jovens das classes
por um mecanismo que acaba por funcio- dominadas têm sua cultura nativa desvalo-
nar como um mecanismo de exclusão. o rizada, ao mesmo tempo que seu capital
currículo da escola está baseado na cult ura êÚltu=;;I, já inicialmente baixo ou nulo, não
dominante: ele se expressa na linguagem sofre qualquer aumento ou valorização.
dominante, ele é transmitido através do Completa-se o ciclo da reprodução cultural.
código cultural dominante. As crianças Éessencialmente através dessa reprodução
das classes dominantes podem facilmente cultural, por sua vez, que as classes sociais
Q
compreender esse código, pois durante se mantêm tal como existem, garantindo
toda sua vida elas estiveram imersas, o O processo de reprodução social.

tempo todo, nesse código. Esse código é Em geral, tem-se deduzido da análise de
natural para elas. Elas se sentem à vontade Bourdieu e Passeron (e, particularmente,
no clima cultural e afetivo construído por das análises individuais de Bourdieu) uma
esse código. É o seu ambiente nativo. Em pedagogia e um currículo que, em oposição
contraste, para as crianças e jovens das ao currículo baseado na cultura dominante,
classes dominadas, esse código é simples- se centrariam nas culturas dominadas. Tra-
mente indecifrável. Eles não sabem do que ta-se, provavelmente, de um mal-entendido.
se trata. Esse código funciona como uma Sua análise não nos diz que a cultura domi-
linguagem estrangeira: é incompreensível. nante é indesejável e que a cultura domi-
A vivência familiar das crianças e jovens nada seria, em troca, desejável. Dizer que
das classes dominadas não os acostumou a classe dominante define arbitrariamente
a esse código, que lhes aparece como algo sua cultura como desejável não é a mesma
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coisa que dizer que a cultura dominada é BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Petrópolis:
Vozes, 1999. (Organização de Maria Alice No-
que é desejável. O que Bourdieu e Passeron gueira e Afrânio Catani)
propõem, através do conceito de pedago-
BOWLES, Samuel e GINTIS, Herbert. La instrucción
gia racional, é que as crianças das classes escolar en la América capitalista. México: Siglo
dominadas tenham uma educação que XXI, 1981.
lhes possibilite ter - na escola - a mesma SILVA, Tomaz Tadeu da. O que produz e o que repro-
.,
~ imersão duradoura na cultura dominante duz em educação. Porto Alegre: Artes Médicas,
1992.
.>-... que faz parte - na família - da experiência
3) das crianças das classes dominantes. Fun-
:> damentalmente, sua proposta pedagógica
~ consist e e m advogar uma pedagogia e um
:> currículo que reproduzam, na escola, para
")

5 as crianças das classes dominadas, aquelas


?-- condições que apenas as crianças das classes
\ dominantes têm na família.
L Em seu conjunto, esses textos formam a
base da teoria educacional crítica que iria se
desenvolver nos anos seguintes. Eles podem
ter sido amplamente criticados e questiona-
dos na explosão da literatura crítica ocorrida
nos anos 70 e 80, sobretudo por seu suposto
determinismo econômico, mas, depois deles,
a teoria curricular seria radicalmente modifi-
cada.A teorização curricular recente ainda
vive desse legado.

Leituras
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado.
Rio: Graal, 1983.

BOURDIEU, Pierre e PASSERON , jean-Claude.


A reprodução. Rio: Francisco Alvez, 1975.

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Contra a concepção técnica:
os reconceptualistas

No final dos anos sessenta, podia-se ganizada pelo grupo, na Universidade de


já dizer que a hegemonia da concepção Rochester, Nova York, em 1973. O mo-
técnica do currículo estava com seus dias vimento de reconceptualização exprimia
contados. Como vimos, esboçavam-se, em uma insatisfação crescente de pessoas do
vários países, ao mesmo tempo, movimen- campo do currículo com os parâmetros
tos de reação às concepções burocráticas tecnocráticos estabelecidos pelos modelos
e administrativas de currículo. Em países de Bobbitt e Tyler. As pessoas identifica-
como França e Inglaterra, os contornos das com o que passou a ser conhecido
mais gerais de uma teoria educacional crítica como "movimento de reconceptualização"
tendiam a partir de campos não diretamente começavam a perceber que a compre-
pedagógicos ou educacionais, como a so- ensão do currículo como uma atividade
ciologia crítica (Bourdieu, por exemplo) e a meramente técnica e administrativa não
filosofia marxista (Althusser, por exemplo). se enquadrava muito bem com as teorias
Nos Estados Unidos e Canadá, entretanto, sociais de origem sobretudo europeia
o movimento de crítica às perspectivas com as quais elas estavam familiariza-
conservadoras sobre currículo tinha origem das: a fenomenologia, a hermenêutica, o
no próprio campo de estudo da educação. marxismo, a teoria crítica da Escola de
Os antecedentes da rejeição dos pres- Frankfurt. Aquilo que, nas perspectivas
supostos da concepção técnica de currí- tradicionais, era entendido como currículo
culo tal como consolidada pelo modelo era precisamente o que, de acordo com
de Tyler esboçavam-se já nos escritos de aquelas teorias sociais, precisava ser ques-
autores como James McDonald e Dwayne tionado e criticado. Assim, por exemplo,
Huebner. Um movimento mais organizado do ponto de vista da fenomenologia, as
e visível, entretanto, somente ia ganhar categorias de aprendizagem, objetivos,
impulso sob a liderança de William Pinar, medição e avaliação nada tinham a ver
com a I Conferência sobre Currículo or- com os significados do "mundo da vida"

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através dos quais as pessoas constroem ideologia, capitalismo, controle, dominação
e percebem sua experiência. De acordo de classe), mas nos significados subjetivos
com a perspectiva fenomenológica, essas que as pessoas dão às suas experiências
categorias tinham que ser "postas entre pedagógicas e curriculares. Em ambas as
parênteses", questionadas, para se chegar perspectivas tratava-se de desafiar os mo-
à "essência" da educação e do currículo. delos técnicos dominantes; em ambas as
Do ponto de vista marxista, para tomar perspectivas procurava-se lançar mão de es-
um outro exemplo, a ênfase na eficiência e tratégias analíticas que permitissem colocar
na racionalidade administrativa apenas re- em xeque as compreensões naturalizadas do
fletia a dominação do capitalismo sobre a mundo social e, em particular, da pedagogia
educação e o currículo, contribuindo para e do currículo. No caso da fenomenologia,
a reprodução das desigualdades de classe. da hermenêutica, da autobiografia, entre-
Esses dois exemplos refletem, aliás, um tanto, desnaturalizar as categorias com as
antagonismo entre os dois campos nos quais, ordinariamente, compreendemos e
quais, nos Estados Unidos, dividiu-se a crí- vivemos o cotidiano, significa focalizá-las
tica dos modelos tradicionais. De um lado, através de uma perspectiva profundamente
estavam aquelas pessoas que utilizavam os pessoal e subjetiva. Há um vínculo com o
conceitos marxistas, filtrados através de social, na medida em que essas categorias
análises marxistas contemporâneas, como são criadas e mantidas, intersubjetivamente
as de Gramsci e da Escola de Frankfurt, e através da linguagem, mas, em última
para fazer a crítica da escola e do currículo análise, o foco está nas experiências e nas
existentes. Essas análises enfatizavam o significações subjetivas. Em contraste, na
papel das estruturas econômicas e políticas crítica de inspiração marxista, desnatura-
na reprodução cultural e social através da lizar o mundo "natural" da pedagogia e
educação e do currículo. De outro lado, do currículo significa submetê-lo a uma
colocavam-se as críticas da educação e do análise científica, centrada em conceitos
currículo tradicionais inspiradas em estra- que rompem com as categorias de senso
tégias interpretativas de investigação, como comum com as quais, ordinariamente,
a fenomenologia e a hermenêutica. Aqui, a vemos e compreendemos aquele mundo.
ênfase não estava no papel das estruturas O movimento de reconceptualização, tal
ou em categorias teóricas abstratas (como como definido por seus próprios iniciadores,
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pretendia incluir tanto as vertentes feno- fundamental consiste em submeter o
menológicas quanto as vertentes marxistas, entendimento que normalmente temos
mas as pessoas envolvidas nessas últimas re- do mundo cotidiano a uma suspensão.
cusaram, em geral, uma identificação plena A investigação fenomenológica começa
com aquele movimento. Na verdade, pro- por colocar os significados ordinários do
curaram até distanciar-se de um movimento cotidiano "entre parênteses". Aqueles
que viam como excessivamente centrado significados que tomamos como naturais
em questões subjetivas, como um movimen- constituem apenas a "aparência" das coi-
to muito pouco político. Para autores de sas. Temos que colocar essa aparência em
inspiração marxista, como Michael Apple, dúvida, em questão, para que possamos
o movimento de reconceptualização, em- chegar à sua "essência".A investigação fe-
bora constituísse um questionamento do nomenológica coloca em questão, assim, as
modelo técnico dominante, era visto como categorias do senso comum, mas elas não
um recuo ao pessoal, ao narcisístico e ao são substituídas por categorias teóricas e
subjetivo.Ao final, o rótulo da "reconcep- científicas abstratas. Ela está focalizada, em
tualização" que caracterizou um movimen- vez disso, na experiência vivida, no "mundo
to hoje dissolvido no pós-estruturalismo, da vida", nos significados subjetiva e inter-
no feminismo, nos estudos culturais, ficou subjetivamente construídos. O conceito de
limitado às concepções fenomenológicas, "significado" não tem, para a fenomeno-
hermenêuticas e autobiográficas de crítica logia, o mesmo sentido que, depois, teria
aos modelos tradicionais de currículo. É para uma semiologia estruturalista, a qual
por isso que, nesta seção, limitaremos surge e se desenvolve, de certa forma,
nossa discussão a essas concepções. As precisamente em reação e oposição a ela.
perspectivas mais marxistas e estruturais, O "significado", para a fenomenologia,
como a de Michael Apple e a de Henry não pode ser simplesmente determinado
Giroux, serão tratadas em outra seção. por seu valor "objetivo" numa cadeia de
A concepção contemporânea de feno- oposições estruturais, como na semiologia.
menologia tem origem, como sabemos, em O significado é,ao invés disso,algo profun-
Edmund Husserl, sendo posteriormente damente pessoal e subjetivo. Sua conexão
desenvolvida por autores como Heiddeger com o social se dá não através de estru-
e Merleau-Ponty. O ato fenomenológico turas sociais impessoais e abstratas, mas
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através de conexões intersubjetivas. Para disciplinas ou matérias. Para a perspectiva
a fenomenologia, o significado manifesta-se fenomenológica, com sua ênfase na expe-
na linguagem, através da linguagem, mas é riência, no mundo vivido, nos significados
também aquilo que de certa forma escapa subjetivos e intersubjetivos, pouco sentido
à linguagem ordinária, ao senso comum fazem as formas de compreensão técnica
implantado na linguagem. Os verdadeiros e científica implicadas na organização e
significados de nossas experiências têm estruturação do currículo em torno de
de voltar à linguagem para encontrar sua disciplinas. As disciplinas tradicionais
expressão, mas eles têm, antes, de certa estão concebidas em torno de concei-
forma, de ser recuperados embaixo da tos científicos, instrumentais, isto é, do
linguagem, naquilo que foge à linguagem, mundo de segunda ordem dos conceitos
no seu substrato. e não do mundo de primeira ordem das
Intelectuais como Max van Mannen, experiências diretas. No máximo, as dis-
Ted Aoki (ambos do Canadá) e Madeleine ciplinas e matérias tradicionais aparecem
Grumet (Estados Unidos), que estiveram como categorias a serem questionadas,
centralmente envolvidos, naqueles países, a serem "colocadas entre parênteses".
no desenvolvimento de uma compreensão Na perspectiva fenomenológica, o currí-
fenomenológica do currículo, não esta- culo não é, pois, constituído de fatos, nem
vam preocupados tanto com os aspectos mesmo de conceitos teóricos e abstratos:
filosóficos da fenomenologia quanto com o currículo é um local no qual docentes e
as possibilidades que a fenomenologia aprendizes têm a oportunidade de exami-
apresentava para o estudo do currículo.A nar, de forma renovada, aqueles significados
perspectiva fenomenológica de currículo é, da vida cotidiana que se acostumaram a
em termos epistemológicos, a mais radical ver como dados e naturais. O currículo é
das perspectivas críticas, na medida em que visto como experiência e como local de
representa um rompimento fundamental interrogação e questionamento da expe-
com a epistemologia tradicional.A tradição riência. Na perspectiva fenomenológica, são,
fenomenológica de análise do currículo primeiramente, as próprias categorias das
é aquela que talvez menos reconhece a perspectivas tradicionais sobre currículo,
estruturação tradicional do currículo em sobre pedagogia e sobre ensino que são
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submetidas à suspensão e à redução feno- evitar, antes de mais nada, uma descrição
menológicas. "Objetivos", "aprendizagem", que se limitasse ao significado comumente
"avaliação", "metodologia" são todos con- atribuído a uma situação como essa, assim
ceitos de segunda ordem, que aprisionam como buscaria fugir de uma descrição de-
a experiência pedagógica e educacional do masiadamente dependente de categorias
mundo vivido de docentes e estudantes. abstratas ou científicas. Ela se centraria,
Depois, é a própria experiência dos estu- ao invés disso, na singularidade do signi-
dantes que se torna objeto da investiga- ficado que essa experiência tem para ela.
ção fenomenológica. Assim, enquanto no Ela buscaria a "essência" dessa experi-
currículo tradicional os estudantes eram ência, não no sentido de uma "essência"
encorajados a adotar a atitude supostamen- anterior, pré-existente, mas no sentido
te científica que caracterizava as disciplinas de uma "essência" que esteja para além
acadêmicas, no currículo fenomenológico das categorias tanto do senso comum
eles são encorajados a aplicar à sua própria quanto da ciência. Além de uma demorada
experiência, ao seu próprio mundo vivido introspecção, a professora, transforma-
a atitude que caracteriza a investigação da em analista fenomenológica, poderia
fenomenológica. lançar mão dos significados que outras
A atitude fenomenológica envolve, pri- pessoas atribuem a essa situação, bem
meiramente, selecionar temas que possam como dos significados com que a situação
ser submetidos à análise fenomenológica. possa ter sido descrita na literatura e na arte.
Em geral, esses temas, como se depreende A análise fenomenológica termina numa
dos exemplos desenvolvidos na literatura escrita fenomenológica, na qual a analista
educacional de análise fenomenológica, são reconstitui, através da linguagem (sempre
temas que fazem parte da vida cotidiana, uma experiência de segunda ordem), a
rotineira, seja da própria pessoa que faz a experiência vivida por ela ou por outras
análise, seja das pessoas envolvidas na situ- pessoas envolvidas na situação.
ação analisada. Assim, para dar um exem- Os temas submetidos à análise na literatu-
plo pedagógico, uma professora iniciante ra fenomenológica sobre currículo parecem
poderia analisar sua própria experiência quase sempre "banais", precisamente porque
ao dar suas primeiras aulas. Ela procuraria são retirados da experiência banalizada da
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vida cotidiana. Em certo sentido, o que a vivida - o aqui e o agora - que a análise
análise fenomenológica procura é desbana- fenomenológica procura destacar.A aná-
lizá-los, torná-los, outra vez, significativos. lise fenomenológica foge dos universais
Assim, por exemplo, um conjunto de textos e abstratos do conhecimento científico,
fenomenológicos divulgados recentemente conceituai, para se focalizar no concreto
pelo canadense Max van Manen, na Internet, e no histórico do mundo vivido.A análise
focaliza os seguintes temas, entre outros: fenomenológica é, assim, profundamente
a espera; o sentir-se em casa; a saudação pessoal, subjetiva, idiossincrática. Em seus
"como vai você?"; a experiência de ser ma- momentos mais reveladores, ela é co-
drasta; a "malhação" (exercício físico); bem movedoramente poética. Ela revela mais
como temas nem tão banais como a morte, por evocar e sugerir do que por mostrar
a doença e a experiência de se receber um e convencer.
diagnóstico médico. Algumas vezes o objeto Na teorização sobre currículo, a análi-
da análise fenomenológica coincide com se fenomenológica tem sido, frequentemen-
o objeto de outros tipos de análise, mas te, combinada com duas outras estratégias
a abordagem é radicalmente diferente. de investigação: a hermenêutica e a auto-
Um dos textos mencionados focaliza, por biografia. Por exemplo, Max van Manen,
exemplo, a noção de tempo da criança. já citado, pratica aquilo que ele chama de
Pode-se comparar, aqui, essa análise com "hermenêutica fenomenológica", uma
aquelas análises de inspiração piagetiana da abordagem que combina as estratégias
mesma temática.A análise piagetiana estaria da descrição fenomenológica com as es-
centrada, provavelmente, numa descrição tratégias interpretativas da hermenêutica.
objetiva, abstrata, universalizada, dos con- De forma geral, a hermenêutica, tal
ceitos de tempo utilizados pela criança. como desenvolvida modernamente por
Uma análise fenomenológica, em contraste, autores como Gadamer, destaca, em
procuraria destacar os aspectos subjetivos, contraste com a suposta existência de
vividos, concretos, situados, da experiência um significado único e determinado, a
de tempo da criança. possibilidade de múltipla interpretação
É precisamente o caráter situacional, que têm os textos - entendidos, aqui,
singular, único, concreto da experiência não apenas como o texto escrito, mas
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como qualquer conjunto de significados. vida escolar, educacional, mas à nossa
Embora a fenomenologia, tal como de- vida inteira.
finida originalmente por Husserl, esteja Em oposição tanto às perspectivas
centrada numa descrição das coisas tais tradicionais quanto às perspectivas críticas
como elas são, ela também envolve, em macrossociológicas, o método autobiográ-
última análise, a utilização de uma gama fico, na visão de Pinar, permite focalizar
de estratégias interpretativas. o concreto, o singular, o situacional, o
Já a autobiografia tem sido combinada histórico na nossa vida. Ele permite co-
com uma orientação fenomenológica nectar o individual ao social de uma forma
para enfatizar os aspectos formativos que as outras perspectivas não fazem.
do currículo, entendido, de forma ampla, O método autobiográfico não se limita
como experiência vivida. Em alguns au- a desvelar os momentos e os aspectos
tores, como Wiliam Pinar, por exemplo, formativos de nossa vida, sobretudo de
recorre-se também a recursos analíticos nossa vida educacional e pedagógica: ele
da psicanálise. Nessa perspectiva, o próprio tem uma dimensão formativa,
método autobiográfico nos permitiria autotransformativa. Em última análise,
investigar as formas pelas quais nossa ao menos na linguagem dos anos iniciais
subjetividade e identidade são formadas. de desenvolvimento da perspectiva
William Pinar recorre à etimologia da pa- autobiográfica,• a autobiografia tem um
lavra curriculum para dar-lhe um sentido objetivo libertador, emancipador. Ao
renovado. Ele destaca que essa palavra, permitir que se façam conexões entre
significando originalmente "pista de cor- o conhecimento escolar, a história de
rida", deriva do verbo currere, em latim, vida e o desenvolvimento intelectual
correr. É, antes de tudo, um verbo, uma e profissional, a autobiografia contribui
atividade e não uma coisa, um substanti- para a transformação do próprio eu. Na
vo. Ao enfatizar o verbo, deslocamos a perspectiva da autobiografia, uma maior
ênfase da "pista de corrida" para o ato compreensão de si implica um agir mais
de "percorrer a pista". É como atividade consciente, responsável e comprometido.
que o currículo deve ser compreendido Tal como a perspectiva mais geral de
- uma atividade que não se limita à nossa análise fenomenológica do currículo, a
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autobiografia, como uma visão epistemoló- Leituras
gica que vai contra as formas racionalistas MARTINS, Joel. Um enfoque fenomenológico do
de conhecer das ciências sociais, não com- currículo: educação como poíesis. São Paulo·
Cortez, 1992. ·
bina bem com a forma como o currículo
oficial está organizado, isto é, em torno de DOMINGUES, José Luiz. "Interesses humanos e
matérias ou disciplinas. Talvez seja por isso paradigmas curriculares". Revista brasileira de
estudos pedagógicos, 67( 156), 1986: p.351-66.
que os exemplos dados nessa literatura
tendam a se referir à área de formação
docente. William Pinar, por exemplo, su-
gere que se examine autobiograficamente
nossa vida escolar e educacional: como
foi nossa experiência educacional quando
entramos na escola; quais episódios lem-
bramos; quais nossos sentimentos nesses
episódios; quais as conexões entre nosso
eu e o conhecimento formal? Por seu
caráter autotransformativo, essa investi-
gação autobiográfica seria extremamente
importante no processo de formação
docente. A literatura autobiográfica é
menos clara no que se refere à aplicação
do método autobiográfico à educação
de crianças e jovens. Pode-se imaginar
como a autobiografia poderia ser utiliza-
da como um recurso educacional nesse
nível educacional, mas fica difícil pensar
na autobiografia como uma abordagem
única do processo curricular.

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