Você está na página 1de 8

Nascem os "estudos sobre currículo":

as teorias tradicionais

A existência de teorias sobre o currí- tucionalização do estudo do currículo como


culo está identificada com a emergência campo especializado, não deixaram de fazer
do campo do currículo como um campo especulações sobre o currículo, mesmo que
profissional, especializado, de estudos e pes- não utilizassem o termo.
quisas sobre o currículo. As professoras e Mas as teorias educacionais e peda-
os professores de todas as épocas e lugares gógicas não são, estritamente falando,
sempre estiveram e nvolvidos, de uma forma teorias sobre o currículo. Há anteceden-
ou outra, com o currículo, antes mesmo que tes, na história da educação ocidental
o surgimento de uma palavra especializada moderna, institucionalizada, de preocu-
como "currículo" pudesse designar aquela pações com a organização da atividade
parte de suas atividades que hoje conhe- educacional e até mesmo de uma atenção
cemos como "currículo". A emergência consciente à questão do que ensinar. A
do currículo como campo de estudos está Didactica magna, de Comenius, é um des-
estreitamente ligada a processos tais como ses exemplos. A própria emergência da
a formação de um corpo de especialistas so- palavra curriculumJ no sentido que moder-
bre currículo, a formação de disciplinas e de- namente atribuímos ao termo, está ligada
partamentos universitários sobre currículo, a a preocupações de organização e método,
institucionalização de setores especializados como ressaltam as pesquisas de David
sobre currículo na burocracia educacional Hamilt on. O termo curriculum, entretanto,
do estado e o surgimento de revistas acadê- no sentido que hoje lhe damos, só passou
micas especializadas sobre currículo. a ser utilizado em países europeus como
De certa forma, todas as teorias peda- França,Alemanha, Espanha, Portugal muito
gógicas e educacionais são também teorias recentemente, sob influência da literatura
sobre o currículo. As diferentes filosofias educacional americana.
educacionais e as diferentes pedagogias, É precisamente nessa literatura que
em diferentes épocas, bem antes da insti- o termo surge para designar um . campo

21
w~~~~w g
especializado de estudos. Foram talvez as '\ os contorno~ ~a escolarizaçã<: de massas'7'
condições associadas com a institucionaliza- Quais os obJet1vos da educaçao escolari-
ção da educação de massas que permitiram zada: formar o trabalhador especializado
que o campo de estudos do currículo sur- ou proporcionar uma educação geral,
gisse, nos Estados Unidos, como um campo acadêmica, à população? O que se deve
profissional especializado. Estão entre essas ensinar: as habilidades básicas de escre-
condições: a formação de uma burocracia ver, ler e contar; as disciplinas acadêmicas
estatal encarregada dos negócios ligados à humanísticas; as disciplinas científicas; as
educação; o estabelecimento da educação habilidades práticas necessárias para as
como um objeto próprio de estudo científi- ocupações profissionais? Quais as fontes
co; a extensão da educação escolarizada em principais do conhecimento a ser ensinado:
níveis cada vez mais altos a segmentos cada o conhecimento acadêmico; as disciplinas
vez maiores da população; as preocupações científicas; os saberes profissionais do mun-
com a manutenção de uma identidade do ocupacional adulto? O que deve estar
nacional, como resultado das sucessivas no centro do ensino: os saberes "objetivos"
ondas de imigraç,ã · rõ-c-esse~ cres- do conhecimento organizado ou as per-
cente industria ·zação e urbanização. cepções e as experiências "subjetivas" das
É nesse con xto que Bobbitt escreve, crianças e dos jovens? Em termos sociais,
em 1918, o livro · s~r consider quais devem ser as finalidades da educação:
o marco no estabeleci u o ajustar as crianças e os jovens à sociedade
como um campo especializado de estudos: tal como ela existe ou prepará-los para
The curriculum. O livro de Bobbitt é escrito transformá-la; a preparação para a econo-
num momento crucial da história da educa- \t 'ia ou a preparação para a democracia? =-\!
ção estadunidense, num momento em que ._ As respostas de Bobbitt eram claramente
diferentes forças econômicas, políticas e conservadoras, embora sua intervenção bus-
culturais procuravam moldar os objetivos e casse transformar radicalmente o sistema
as formas da educação de massas de acordo educacional. Bobbitt propunha que a escola
~om suas diferentes e particulares visões. funcionasse da mesma forma que qualquer
E nesse momento que se busca responder outra empresa comercial ou industrial.
questões cruciais sobre as finalidades e Tal como uma indústria, Bobbit queria

22
que o sistema educacional fosse capaz de tinha escrito, em 1902, um livro que tinha
especificar precisamente que resultados a palavra "currículo" no título, The chi/d and
pretendia obter, que pudesse estabelecer the curriculum. Neste livro, Dewey estava
métodos para obtê-los de forma precisa e muito mais preocupado com a construção
formas de mensuração que permitissem sa- da democracia que com o funcionamento
ber com precisão se eles foram realmente da economia. Também em contraste com
alcançados. O sistema educacional deveria Bobbitt, ele achava importante levar em
começar por estabelecer de forma precisa consideração, no planejamento curricu-
quais são seus objetivos. Esses objetivos, lar, os interesses e as experiências das
por sua vez, deveriam se basear num crianças e jovens. Para Dewey, a educa-
exame daquelas habilidades necessárias ção não era tanto uma preparação para
para exercer com eficiência as ocupações a vida ocupacional adulta, como um local
profissionais da vida adulta. O modelo de de vivência e prática direta de princípios
Bobbitt estava claramente voltado para a democráticos. A influência de Dewey,
economia. Sua palavra-chave era "eficiên- entretanto, não iria se refletir da mesma
cia". O sistema educacional deveria ser tão forma que a de Bobbitt na formação do
eficiente quanto qualquer outra empresa currículo como campo de estudos.
econômica. Bobbitt queria transferir para A atração e influência de Bobbitt de-
a escola o modelo de organização propos- vem-se provavelmente ao fato de que
to por Frederick Taylor. Na proposta de sua proposta parecia permitir à educação
Bobbitt, a educação deveria funcionar de tornar-se científica. Não havia por que
acordo com os princípios da administração discutir abstratamente as finalidades últi-
científica propostos por Taylor. mas da educação: elas estavam dadas pela
A orientação dada por Bobbitt iria própria vida ocupacional adulta. Tudo
constituir uma das vertentes dominantes o que era preciso fazer era pesquisar e
da educação estadunidense no restante do mapear quais eram as habilidades neces-
século XX. Mas ela iria concorrer com sárias para as diversas ocupações. Com
vertentes consideradas mais progressistas, um mapa preciso dessas habilidades, era
como a liderada por John Dewey, por possível, então, organizar um currículo
exemplo. Bem antes de Bobbitt, Dewey que permitisse sua aprendizagem. A tarefa
23
do especialista em currículo consistia, educação, tal como a usina de fabricação
pois, em fazer o levantamento dessas de aço, é um processo de moldagem".
habilidades, desenvolver currículos que O exemplo dado pelo próprio Bobbitt é
permitissem que essas habilidades fossem esclarecedor. Numa oitava série, ilustra
i' desenvolvidas e, finalmente, planejar e ele, algumas crianças realizam adições "a
} elaborar instrumentos de medição que um ritmo de 35 combinações por minuto",
~ possibilitassem dizer com precisão se elas enquanto outras, "ao lado, adici.onam a
~
·5:foram realmente aprendidas. um ritmo médio de 105 combinações por
8 Na perspectiva de Bobbitt, a questão do minuto". Para Bobbitt, o estabelecimento
'C) currículo se transforma numa questão de
de um padrão permitiria acabar com essa
: : organização. O currículo é simplesmente variação. Nas últimas décadas, diz ele, os
~ uma mecânica. A atividade supostamente educadores vieram a "perceber que é
...... científica do especialista em currículo possível estabelecer padrões definitivos
\. não passa de uma atividade burocrática. para os vários produtos educacionais. A
Não é por acaso que o conceito central, capacidade para adicionar a uma velocidade
nessa perspectiva, é "desenvolvimento de 65 combinações por minuto [...] é uma
curricular", um conceito que iria dominar especificação tão definida quanto a que se
a literatura estadunidense sobre currículo pode estabelecer para qualquer aspecto
até os anos 80. Numa perspectiva que do trabalho da fábrica de aços".1
considera que as finalidades da educação O modell.J-~ tt:Jt-FJ.:JLC
estão dadas pelas exigências profissionais enco ar sua consolidaça definitiva num
da vida adulta, o currículo se resume a livr de Ralph Tyler, public o em 1949.
uma questão de desenvolvimento, a uma O radigma estabelecid por Tyler iria
questão técnica. domi n a r ~ rrículo n~s Esta-
Tal como na indústria, é fundamental, dos Unidos, com influência em diversos
na educação, de acordo com Bobbitt, que se países, incluindo o Brasil, pelas próximas
estabeleçam padrões. O estabelecimento quatro décadas. Com o livro de Tyler, os
de padrões é tão importante na educação estudos sobre currículo se tornam decidi-
quanto, digamos, numa usina de fabricação damente estabelecidos em torno da ideia
de aços, pois, de acordo com Bobbitt, "a de organização e desenvolvimento.Apesar
24
de admitir a filosofia e a sociedade como levada em consideração: 1• estudos sobre
possíveis fontes de objetivos para o cur- os próprios aprendizes; 2. estudos sobre
rículo, o paradigma formulado por Tyler a vida contemporânea fora da educação; 3.
centra-se em questões de organização e sugestões dos especialistas das diferentes
desenvolvimento. Tal como no modelo de disciplinas. Aqui, Tyler expande o modelo
Bobbitt, o currículo é, aqui, essencialmen- de Bobbitt, ao incluir duas fontes que ~
<::-,
te, uma questão técnica.Vejamos, de forma não eram contempladas por Bobbitt: a e<::::,
sintética, o modelo proposto por Tyler. psicologia e as disciplinas acadêmicas. -..> '" <F1
A organização e o desenvolvimento do A segunda fonte é uma demonstração ~ ~
currículo deve buscar responder, de acor- de certa continuidade relativamente ao (_..,,
do com Tyler, quatro questões básicas: modelo de Bobbitt.
"1. que objetivos educacionais deve a es- Essas fontes gerariam, entretanto, um
r./)
cola procurar atingir?; 2. que experiências número excessivo de objetivos, os quais
Si
educacionais podem ser oferecidas que poderiam, além disso, ser mutuamente
~ tenham probabilidade de alcançar esses contraditórios. Para consertar essa situ-
!:5
fu propósitos?; 3. como organizar eficiente- ação, Tyler sugere submetê-los a duas
G,. mente essas experiências educacionais?; 4. espécies de "filtros": a filosofia social e
0 como podemos te r certeza de que esses educacional com a qual a escola está com-
~ objetivos estão sendo alcançados?" As prometida e a psicologia da aprendizagem.
quatro perguntas de Tyler correspondem Tyler insiste na afirmação de que os
à divisão tradicional da atividade educa- " objetivos devem ser claramente definidos
cional: "currículo" ( 1), "ensino e iflstrução" e estabelecidos. Os objetivos devem ser
(2 e 3) e "ava11açao
. _ ,, (4)
.
vnx., nco
formulados em termos de comportamento
Em termos estritos, pois, apenas a pri- explícito. Essa orientação comportamen-
meira questão diz respeito a "currículo". talista iria se radicalizar, aliás, nos anos 60,
É precisamente a esta questão que Tyler com o revigoramento de uma tendência
dedica a maior parte de seu livro. Tyler fortemente · · a na educação estadu-
identifica três fontes nas quais se devem nide , representada, so etudo, por um
buscar os objetivos da educação, afirman- livr de Robert Mager, Análi de objetivos,
do que cada uma delas deve ser igualmente tamb influente n na mesma
25
época. É apenas através dessa formulação uma "teoria" do currículo. Basicamente,
precisa, detalhada e comportamental dos nesse modelo, o objetivo era introduzir
objetivos que se pode responder às outras os estudantes ao repertório das grandes
perguntas que constituem o paradigma de obras literárias e artísticas das heranças
Tyler. A decisão sobre quais experiências clássicas grega e latina, incluindo o domí-
devem ser propiciadas e sobre como nio das respectivas línguas. Supostamente,
organizá-las depende dessa especificação essas obras encarnavam as melhores rea-
precisa dos objetivos. Da mesma forma, é lizações e os mais altos ideais do espírito
impossível avaliar, como adiantava Bobbitt, humano. O conhecimento dessas obras
sem que se estabelecesse com precisão não estava separado do objetivo de formar
quais são os padrões de referência. um homem (sim, o macho da espécie) que
É interessante observar que tanto os encarnasse esses ideais.
modelos mais tecnocráticos, como os Cada um dos modelos curriculares
de Bobbitt e Tyler, quanto os modelos contemporâneos, o tecnocrático e o pro-
mais progressistas de currículo, como gressista, ataca o modelo humanista por
o de Dewey, que emergiram no início um flanco. O tecnocrático destacava a abs-
do século XX, nos Estados Unidos, cons- tração e a suposta inutilidade - para a vida
tituíam, de certa forma, uma reação ao moderna e para as atividades laborais - das
currículo clássico, humanista, que havia habilidades e conhecimentos cultivados pelo
dominado a educação secundária desde currículo clássico. O latim e o grego - e
sua institucionalização. Como se sabe, suas respectivas literaturas - pouco serviam
esse currículo era herdeiro do currículo como preparação para o trabalho da vida
das chamadas "artes liberais" que, vindo profissional contemporânea. Não se aceita-
da Antiguidade Clássica, se estabelecera va, aqui, nem mesmo os argumentos que no
na educação universitária da Idade Média e século XIX tinham sido desenvolvidos pela
do Renascimento, na forma dos chamados perspectiva do "exercício mental", segundo
trivium (gramática, retórica, dialética) e a qual a aprendizagem de matérias como o
quadrivium (astronomia, geometria, músi- latim, por exemplo, servia para exercitar os
ca, aritmética). Obviamente, o currículo "músculos mentais", de uma forma que po-
clássico humanista tinha implicitamente dia se aplicar a outros conteúdos. O modelo
26
progressista, sobretudo aquele "centrado Leituras
na criança", atacava o currículo clássico HAMILTON, David. "Sobre as origens dos termos
por seu distanciamento dos interesses e classe e curriculum". Teoria e educação, 6, 1992:
das experiências das crianças e dos jovens. p.33-51 .

Por estar centrado nas matérias clássicas, KLIEBARD, Herbert M. "Os princípios de Tyler".
o currículo humanista simplesmente ln Rosemary G. Messick, Lyra Paixão e Lília da
R. Bastos (org.). Currículo: análise e debate. Rio:
desconsiderava a psicologia infantil.
Zahar, 1980: p.39-52.
Ambas as contestações só puderam surgir,
obviamente, no contexto da ampliação KLIEBARD, Herbert M. "Burocracia e teoria do cur-
rículo". ln Rosemary G. Messick, Lyra Paixão e
da escolarização de massas, sobretudo da
Lília da R. Bastos (org.). Currículo: análise e debate.
escolarização secundária que era o foco Rio: Zahar, 1980: p. l 07-126.
do currículo clássico humanista. O cur-
MOREIRA, Antonio F. B. e SILVA, Tomaz T. da.
~ rículo clássico só pôde sobreviver no "Sociologia e teoria crítica do currículo: uma
~ contexto de uma escolarização secundária introdução". ln Antonio F. B. Moreira e Tomaz
\ de acesso restrito à classe dominante. A T. da Silva (orgs.). Currículo, sociedade e cultura.
~
<D democratização da escolarização secundá- São Paulo: Cortez, 1999: p. 7-38.
ria significou também o fim do currículo TYLER, Ralph W. Princípios básicos de currículo e
humanista clássico. ensino. Porto Alegre: Globo, 1974.
Os modelos mais tradicionais de cur-
rículo, tanto os técnicos quanto os pro- Nota
gressistas de base psicológica, por sua vez, 'Para não sobrecarregar o texto, as fontes de todas
só iriam ser definitivamente cont t :; ) , as citações estão listadas ao final do livro, na seção
"Referências".
nos Estados Unidos, a partir dos nos 70,
com o chamado movimento de "re om::.e -
tualização do currículo". 1 as esta é uma
outra história.

,, 0.?> Qe(Ql\Jce~1UJ\ L\S\ QS"


o o o

27

Você também pode gostar