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Diferença e identidade:

o currículo multiculturalista

Tornou-se lugar-comum destacar a É nesse contexto que devemos analisar


diversidade das formas culturais do mun- as conexões entre currículo e multicultu-
do contemporâneo. É um fato paradoxal, ralismo. O chamado "multiculturalismo" é
entretanto, que essa suposta diversidade um fenômeno que, claramente, tem sua
conviva com fenômenos igualmente sur- origem nos países dominantes do Norte.
preendentes de homogeneização cultural. O multiculturalismo, tal como a cultura
Ao mesmo tempo que se tornam visíveis contemporânea, é fundamentalmente am-
manifestações e expressões culturais de bíguo. Por um lado, o multiculturalismo é
grupos dominados, observa-se o predo- um movimento legítimo de reivindicação
mínio de formas culturais produzidas e dos grupos culturais dominados no interior
veiculadas pelos meios de comunicação daqueles países para terem suas formas
de massa, nas quais aparecem de forma culturais reconhecidas e representadas na
destacada as produções culturais esta- cultura nacional. O multiculturalismo pode
dunidenses. Vejam-se, por exemplo, as ser visto, entretanto, também como uma
vinhetas intituladas "sons e imagens de ...", solução para os "problemas" que a pre-
veiculadas pela CNN, a poderosa rede sença de grupos raciais e étnicos coloca,
estadunidense de TV a cabo, nas quais se no interior daqueles países, para a cultura
apresentam, a cada vez, de forma sintética, nacional dominante. De uma forma ou de
supostos aspectos de diversas culturas outra, o multiculturalismo não pode ser se-
nacionais. A "diversidade" cultural é, aqui, parado das relações de poder que, antes de
fabricada por um dos mais poderosos ins- mais nada, obrigaram essas diferentes cul-
trumentos de homogeneização. Trata-se turas raciais, étnicas e nacionais a viverem
de um exemplo claro do caráter ambíguo no mesmo espaço. Afinal, a atração que
dos processos culturais pós-modernos. O movimenta os enormes fluxos migratórios
exemplo também serve para mostrar que em direção aos países ricos não pode ser
não se pode separar questões culturais de separada das relações de exploração que
questões de poder. são responsáveis pelos profundos desní-
8S
·f
veis entre as nações do mundo. Os dizeres seriam o resultado das diferentes formas
de uma camiseta vestida por um imigrante pelas quais os variados grupos humanos,
num metrô de Londres, embora se refiram submetidos a diferentes condições am-
mais especificamente apenas às relações bientais e históricas, realizam o potencial
de exploração coloniais, expressam bem criativo que seria uma característica co-
essa conexão: "Nós estamos aqui porque mum de todo ser humano. As diferenças
vocês estiveram lá". culturais seriam apenas a manifestação
Apesar dessa ambiguidade ou, quem superficial de características humanas mais
sabe, exatamente por causa dessa ambigui- profundas. Os diferentes grupos culturais
dade, o multiculturalismo representa um se tornariam igualados por sua comum
importante instrumento de luta política. O humanidade.
multiculturalismo transfere para o terreno Essa perspectiva está na base daquilo
político uma compreensão da diversidade que se poderia chamar de um "multi-
cultural que esteve restrita, durante muito culturalismo liberal" ou "humanista". É
tempo,a campos especializados como o da em nome dessa humanidade comum que
Antropologia. Embora a própria Antropo- esse tipo de multiculturalismo apela para
logia não deixasse de criar suas próprias o respeito, a tolerância e a convivência
relações de saber-poder, ela contribuiu pacífica entre as diferentes culturas. Deve-
para tornar aceitável a ideia de que não se se tolerar e respeitar a diferença porque
pode estabelecer uma hierarquia entre as sob a aparente diferença há uma mesma
culturas humanas, de que todas as culturas humanidade.
são epistemológica e antropologicamente Essa visão liberal ou humanista de
equivalentes. Não é possível estabelecer multiculturalismo é questionada por
nenhum critério transcendente pelo qual perspectivas que se poderiam caracterizar
uma determinada cultura possa ser julgada como mais políticas ou críticas. Nestas
superior a outra. perspectivas, as diferenças culturais não
É essa compreensão antropológica da podem ser concebidas separadamente de
cultura que fundamenta, de certa forma, relações de poder. A referência do mul-
grande parte do atual impulso multicultu- ticulturalismo liberal a uma humanidade
ralista. Nessa visão, as diversas culturas comum é rejeitada por fazer apelo a uma
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essência, a um elemento transcendente, a com relações de poder. São as relações
uma característica fora da sociedade e da de poder que fazem com que a "diferença"
história. Na perspectiva crítica não é ape- adquira um sinal, que o "diferente" seja
nas a diferença que é resultado de relações avaliado negativamente relativamente ao
de poder, mas a própria definição daquilo "não diferente". Inversamente, se há sinal,
que pode ser definido como "humano". se um dos termos da diferença é avaliado
A perspectiva crítica de multicultu- positivamente (o "não diferente") e o
ralismo está dividida, por sua vez, entre outro, negativamente (o "diferente"), é
uma concepção pós-estruturalista e uma porque há poder.
concepção que se poderia chamar de Essa visão pós-estruturalista da dife-
"materialista". Para a concepção pós-es- rença pode ser criticada, entretanto, por
truturalista, a diferença é essencialmente seu excessivo textualismo, por sua ênfase
um processo linguí~tico e discursivo. A em processos discursivos de produção da
diferença não pode ser concebida fora dos diferença. Uma perspectiva mais "mate-
processos linguísticos de significação. A rialista", em geral inspirada no marxismo,
diferença não é uma característica natural: enfatiza, em troca, os processos institucio-
ela é discursivamente produzida. Além nais, econômicos, estruturais que estariam
disso, a diferença é sempre uma relação: na base da produção dos processos de
não se pode ser"diferente" de forma abso- discriminação e desigualdade baseados na
luta; é-se diferente relativamente a alguma diferença cultural. Assim, por exemplo, a
outra coisa, considerada precisamente análise do racismo não pode ficar limitada
como "não diferente". Mas essa "outra a processos exclusivamente discursivos,
coisa" não é nenhum referente absoluto, mas deve examinar também (ou talvez
que exista fora do processo discursivo de principalmente) as estruturas institucionais
significação: essa "outra coisa", o "não di- e econômicas que estão em sua base. O
ferente", também só faz sentido, só existe, racismo não pode ser eliminado simples-
na "relação de diferença" que a opõe ao mente através do combate a expressões
"diferente". Na medida em que é uma re- linguísticas racistas, mas deve incluir tam-
lação social, o processo de significação que bém o combate à discriminação racial no
produz a "diferença" se dá em conexão emprego, na educação, na saúde.
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Quais as implicações curriculares des- intactas as relações de poder que estão na
sas diferentes visões de multiculturalismo? base da produção da diferença.Apesar de
Nos Estados Unidos, o multiculturalismo seu impulso aparentemente generoso, a
originou-se exatamente como uma ques- ideia de tolerância, por exemplo, implica
tão educacional ou curricular. Os grupos também uma certa superioridade por parte
culturais subordinados - as mulheres, os de quem mostra "tolerância". Por outro
negros, as mulheres e os homens homosse- lado, a noção de "respeito" implica um
xuais - iniciaram uma forte crítica àquilo que certo essencialismo cultural, pelo qual as
consideravam como o cânon literário, esté- diferenças culturais são vistas como fixas,
tico e científico do currículo universitário como já definitivamente estabelecidas,
tradicional. Eles caracterizavam esse cânon restando apenas "respeitá-las". Do ponto
como a expressão do privilégio da cultura de vista mais crítico, as diferenças estão
branca, masculina, europeia, heterossexual. sendo constantemente produzidas e re-
O cânon do currículo universitário fazia pas- produzidas através de relações de poder.
sar por"culturacomum" uma cultura bastante As diferenças não devem ser simplesmente
particular - a cultura do grupo culturalmente respeitadas ou toleradas. Na medida em
e socialmente dominante. Na perspectiva que elas estão sendo constantemente
dos grupos culturais dominados, o currículo feitas e refeitas, o que se deve focalizar
universitário deveria incluir uma amostra que são precisamente as relações de poder
fosse mais representativa das contribuições que presidem sua produção. Um currículo
das diversas culturas subordinadas. inspirado nessa concepção não se limitaria,
Embora as várias perspectivas multi- pois, a ensinar a tolerância e o respeito,
culturalistas aceitem esse princípio mí- por mais desejável que isso possa parecer,
nimo comum, elas divergem, entretanto, mas insistiria, em vez disso, numa análise
em aspectos importantes. A perspectiva dos processos pelos quais as diferenças
liberal ou humanista enfatiza um currículo são produzidas através de relações de
multiculturalista baseado nas ideias de tole- assimetria e desigualdade. Num currículo
rância, respeito e convivência harmoniosa multiculturalista crítico, a diferença, mais
entre as culturas. Da perspectiva mais do que tolerada ou respeitada, é colocada
crítica, entretanto, essas noções deixariam permanentemente em questão.
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Nos Estados Unidos, a posição multi- Aquilo que unifica não é o resultado de um
culturalista tem sido ferozmente atacada processo de reunião das diversas culturas
por grupos conservadores e tradiciona- que constituem uma nação, mas de uma
listas. Na verdade, até mesmo pessoas luta em que regras precisas de inclusão e
consideradas progressistas têm dirigido exclusão acabaram por selecionar e nomear
críticas ao multiculturalismo. Na versão uma cultura específica, particular, como a
mais conservadora da crítica, o multicultu- "cultura nacional comum".
ralismo representa um ataque aos valores De um ponto de vista mais episte-
da nacionalidade, da família, da herança mológico, o multiculturalismo tem sido
cultural comum. Em termos curriculares, criticado por seu suposto relativismo. Na
o multiculturalismo, nessa visão, pretende visão dessa crítica, existem certos valores
substituir o estudo das obras consideradas e certas instituições que são universais,
como de excelência da produção intelec- que transcendem as características cul-
tual ocidental pelas obras consideradas turais específicas de grupos particulares.
intelectualmente inferiores produzidas por Curiosamente, entretanto, esses valores e
representantes das chamadas "minorias" - instituições tidos como universais acabam
negros, mulheres, homossexuais. São os coincidindo com os valores e instituições
próprios valores da civilização ocidental, das chamadas "democracias representati-
por outro lado, que estão em risco quan- vas" ocidentais, concebidos no contexto
do o estilo de vida dos homossexuais, do Iluminismo e consolidados no período
por exemplo, se torna matéria curricular. chamado "moderno". Qualquer posição
Numa versão mais progressista da crítica, que questione esses valores e essas institui-
o multiculturalismo, ao enfatizar a mani- ções é vista como relativista. Da perspectiva
festação de múltiplas identidades e tradi- multiculturalista crítica, não existe nenhuma
ções culturais, fragmentaria uma cultura posição transcendental, privilegiada, a partir
nacional única e comum, com implicações da qual se possam definir certos valores ou
políticas regressivas. O problema com instituições como universais. Essa posição
esse tipo de crítica é que ela deixa de ver é sempre enunciativa, isto é, ela depende da
que a suposta "cultura nacional comum" posição de poder de quem a afirma, de quem
confunde-se com a cultura dominante. a enuncia. A questão do universalismo e do
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relativismo deixa, assim, de ser epistemológica Leituras
para ser política. DAYRELL, Juarez (org.). Múltiplos olhares sobre
educação e cultura. Belo Horizonte: Editora da
Parece haver uma evidente continuida-
UFMG, 1996.
de entre a perspectiva multiculturalista e a
HALL, Stuart. " Identidade cultural e diáspora". Re-
tradição crítica de currículo. Ao ampliar e
vista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
radicalizar a pergunta crítica fundamental 24, 1996: p.68-75.
relativamente ao currículo (o que conta
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernida-
como conhecimento?), o multiculturalismo
de. Rio: DP&A, 1998.
aumentou nossa compreensão sobre as
bases sociais da epistemologia. A tradição GONÇALVES, Luiz A. O . e SILVA, Petronilha B.
G. O jogo das diferenças: o multiculturalismo e
crítica inicial chamou nossa atenção para
seus contextos. Belo Horizonte:Autêntica, 1998.
as determinações de classe do currículo. O
multiculturalismo mostra que o gradiente da
desigualdade em matéria de educação e cur-
rículo é função de outras dinâmicas, como as
de gênero, raça e sexualidade, por exemplo,
que não podem ser reduzidas à dinâmica de
classe. Além disso, o multiculturalismo nos
faz lembrar que a igualdade não pode ser
obtida simplesmente através da igualdade
de acesso ao currículo hegemônico exis-
tente, como nas reivindicações educacio-
nais progressistas anteriores. A obtenção
da igualdade depende de uma modificação
substancial do currículo existente. Não
haverá "justiça curricular", para usar uma
expressão de Robert Connell, se o cânon
curricular não for modificado para refletir
as formas pelas quais a diferença é pro-
duzida por relações sociais de assimetria.
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As relações de gênero e a pedagogia feminista

Inicialmente, a teorização crítica sobre sexual, o termo "gênero" refere-se aos


a educação e o currículo concentrou-se na aspectos socialmente construídos do proces-
análise da dinâmica de classe no processo so de identificação sexual. Essa separação é
de reprodução cultural da desigualdade hoje questionada por algumas perspectivas
e das relações hierárquicas na socieda- teóricas, que argumentam que não existe
de capitalista. A crescente visibilidade identidade sexual que não seja já, de alguma
do movimento e da teorização feminista, forma, discursiva e socialmente construída,
entretanto, forçou as perspectivas críticas mas a distinção conserva sua utilidade.
em educação a concederem importância Na crítica do currículo, a utilização do
crescente ao papel do gênero na produção conceito de gênero segue uma trajetória
da desigualdade. semelhante à da utilização do conceito de
O próprio conceito de gênero tem uma classe. As perspectivas críticas sobre cur-
história relativamente recente. Aparente- rículo tornaram-se crescentemente ques-
mente, a palavra "gênero" foi utilizada pela tionadas por ignorarem outras dimensões
primeira vez num sentido próximo do atual da desigualdade que não fossem aquelas
pelo biólogo estadunidense John Money, ligadas à classe social. Especificamente,
em 1955, precisamente para dar conta dos questionavam-se as perspectivas críticas
aspectos sociais do sexo. Antes disso, a por deixarem de levar em consideração
palavra "gênero", em inglês, tal como em o papel do gênero e da raça no processo
português, estava restrita à gramática, para de produção e reprodução da desigualda-
designar o "sexo" dos substantivos. Poste- de. O feminismo vinha mostrando, com
riormente, sua definição foi se tornando força cada vez maior, que as linhas do
crescentemente mais sofisticada. "Gênero" poder da sociedade estão estruturadas
opõe-se, pois, a "sexo": enquanto este não apenas pelo capitalismo, mas também
último termo fica reservado aos aspectos pelo patriarcado. De acordo com essa
estritamente biológicos da identidade teorização feminista, há uma profunda
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desigualdade dividindo homens e mulheres, educação devia-se a crenças e atitudes
com os primeiros apropriando-se de uma profundamente entranhadas nas pessoas
parte gritantemente desproporcional dos e nas instituições. Particularmente, ques-
recursos materiais e simbólicos da socie- tionavam-se os estereótipos ligados ao
dade. Essa repartição desigual estende-se, gênero como responsáveis pela relegação
obviamente, à educação e ao currículo. das mulheres a certos tipos "inferiores"
de currículos ou de profissões. Os este-
Tal como ocorreu com a análise da
reótipos de gênero estavam não apenas
desigualdade centrada na classe social, a
amplamente disseminados, mas eram
análise da dinâmica do gênero em educa-
parte integrante da formação que se dava
ção esteve preocupada, inicialmente, com
nas próprias instituições educacionais. O
questões de acesso. Estava claro, para
currículo educacional refletia e reproduzia
essa análise, que o nível de educação das
os estereótipos da sociedade mais ampla.
mulheres, em muitos países, sobretudo
A literatura crítica concentrou-se em anali-
naqueles situados na periferia do capitalis-
sar, por exemplo, os materiais curriculares,
mo, era visivelmente mais baixo que o dos
tais como os livros didáticos, que caracte-
homens, refletindo seu acesso desigual às
risticamente faziam circular e perpetuavam
instituições educacionais. Mesmo naqueles
esses estereótipos. Um livro didático que
países em que o acesso era aparentemente
sistematicamente apresentasse as mulhe-
igualitário, havia desigualdades internas
res como enfermeiras e os homens como
de acesso aos recursos educacionais: os
médicos, por exemplo, estava claramente
currículos eram desigualmente divididos
contribuindo para reforçar esse estere-
por gênero. Certas matérias e disciplinas
ótipo e, consequentemente, dificultando
eram consideradas naturalmente mascu-
que as mulheres chegassem às faculdades
linas, enquanto outras eram consideradas
de Medicina. De forma similar, os estere-
naturalmente femininas. Da mesma forma,
ótipos e os preconceitos de gênero eram
certas carreiras e profissões eram consi-
internalizados pelos próprios professores
der~das monopólios masculinos, estando
e professoras que inconscientemente
praticamente vedadas às mulheres.
esperavam coisas diferentes de meninos
Nesse tipo de ana'I·ise, considerava-se
e de meninas. Essas expectativas, por sua
que o acesso diferencial das mulheres à vez, determinavam a carreira educacional
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desses meninos e dessas meninas, repro- baixas. Vamos supor ainda que o mundo
duzindo, assim, as desigualdades de gênero. estivesse feito à escala das pessoas altas, ou
A análise dos estereótipos de gênero seja, que tudo estivesse construído levando
já prenunciava, entretanto, uma questão em conta esta sua altura. Numa tal situação,
que iria dominar aquilo que se poderia parece evidente que qualquer reivindicação
chamar de segunda fase da análise de gê- de igualdade por parte das pessoas baixas
nero no currículo. Nessa segunda fase, a não poderia se limitar a ganhar acesso a
ênfase desloca-se do acesso para o quê do esse mundo talhado à medida das pessoas
acesso. Não se trata mais simplesmente altas, mas deveria tentar modificar esse
de ganhar acesso às instituições e formas próprio mundo para que ele refletisse tam-
de conhecimento do patriarcado mas de bém a experiência das pessoas mais baixas.
transformá-las radicalmente para refletir Os arranjos sociais e as formas de co-
os interesses e as experiências das mu- nhecimento existentes são aparentemente
lheres. O simples acesso pode tornar as apenas humanos: eles refletem a história e
mulheres iguais aos homens - mas num a experiência do ser humano em geral, sem
mundo ainda definido pelos homens. distinção de gênero. O que a análise feminista
As análises feministas mais recentes vai questionar é precisamente essa aparente
enfatizam, de forma crescente, que o neutralidade - em termos de gênero - do
mundo social está feito de acordo com mundo social. A sociedade está feita de
os interesses e as formas masculinas de acordo com as características do gênero
pensamento e conhecimento. Podemos dominante, isto é, o masculino. Na análise
utilizar uma comparação para nos ajudar feminista, não existe nada de mais masculino,
a compreender a mudança radical que está por exemplo, do que a própria ciência. A
envolvida nesse deslocamento. Vamos ciência reflete uma perspectiva eminente-
transferir, por um momento, a questão da mente masculina. Ela expressa uma forma
divisão entre os gêneros para uma hipotética de conhecer que supõe uma separação
divisão em termos de altura. Vamos supor rígida entre sujeito e objeto. Ela parte de
um impulso de dominação e controle:
que o mundo estivesse dividido em duas
sobre a natureza e sobre os seres huma-
metades: uma metade de pessoas altas e
nos. Ela cinde corpo e mente, cognição e
outra metade de pessoas extremamente
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desejo, racionalidade e afeto. Essa análise 0 currículo existente é também claramente
da masculinidade da ciência pode ser es- masculino. Ele é a expressão da cosmovisão
tendida para praticamente qualquer campo masculina. O currículo oficial valoriza a
ou instituição social. separação entre sujeito e conhecimento, o
A perspectiva feminista implica, pois, domínio e o controle, a racionalidade e a
uma verdadeira reviravolta epistemológica. lógica, a ciência e a técnica, o individualismo
Ela amplia o insight, desenvolvido em certas e a competição. Todas essas características
vertentes do marxismo e na sociologia refletem as experiências e os interesses
do conhecimento, de que a epistemolo- masculinos, desvalorizando, em troca, as
gia é sempre uma questão de posição. estreitas conexões entre quem conhece e o
Dependendo de onde estou socialmente que é conhecido, a importância das ligações
situado, conheço certas coisas e não ou- pessoais, a intuição e o pensamento diver-
tras. Não se trata simplesmente de uma gente, as artes e a estética, o com unitarismo
questão de acesso, mas de perspectiva. e a cooperação - características que estão,
De acordo com certas análises, as formas todas, ligadas às experiências e aos interes-
de conhecimento das pessoas em situação ses das mulheres.A solução não consistiria
de desvantagem social seriam, inclusive, simplesmente numa inversão, mas em cons-
epistemologicamente melhores. Da pers- truir currículos que refletissem, de forma
pectiva feminista que aqui nos interessa, é equilibrada, tanto a experiência masculina
suficiente, entretanto, reter o fato de que quanto a feminina. Seria desejável que to·
a epistemologia não é nunca neutra, mas das as pessoas cultivassem características
reflete sempre a experiência de quem co- que normalmente são consideradas como
nhece.Apenas numa concepção que separa pertencendo a apenas um dos gêneros.
quem conhece daquilo que é conhecido é Algumas qualidades consideradas masculi-
que se pode conceber um conhecimento nasseriam, entretanto, claramente menos
objetivamente neutro. desejáveis que as femininas, como é o caso,
É essa reviravolta epistemológica que por exemplo, da necessidade de controle
torna a perspectiva feminista tão impor- e domínio.
tante para a teoria curricular. Na medida A celebração das qualidades e ex·
em que reflete a epistemologia dominante, periências femininas na epistemologia e
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······· · ·· · · · · ·· ~
no currículo não é, entretanto, feita sem radas como femininas e desejáveis.A tensão
problemas. Um grupo de feministas ligadas entre as duas posições não será facilmente
à educação advogam um currículo que resolvida. Na verdade, talvez ela não deva
inclua aquelas características consideradas ser mesmo resolvida, pois reflete a tensão
femininas por considerarem que elas são e os dilemas do próprio processo social.
altamente desejáveis do ponto de vista A introdução do conceito de gênero na
humano. Desse ponto de vista, a expe- teoria feminista teve o mérito de chamar a
riência da maternidade - real ou poten- atenção para o caráter relacional das rela-
cial - levaria as mulheres, por exemplo, ções entre os sexos. Um termo relacional
a enfatizarem as conexões pessoais ou, ajuda a deslocar o foco da análise: não são
de forma mais geral, uma conexão com o simplesmente as mulheres que são vistas
mundo que não faz parte da experiência como problema, mas principalmente os ho-
dos homens, a não ser de forma indireta. mens, na medida em que estão situados no
Essa necessidade de conexão é uma quali- pólo de poder da relação. Embora tenha sua
dade mais desejável do que, por exemplo, origem no campo dos Estudos das Mulhe-
a necessidade de controle e domínio, vista res, "análise de gênero" não é sinônimo de
como uma característica eminentemente "estudo das mulheres". Essa compreensão
masculina. Outras análises argumentam tem levado a um aumento significativo nos
que enfatizar essas características supos- estudos que focalizam a questão da masculi-
tamente femininas significa simplesmente nidade. De forma geral, a pergunta é: como
reforçar estereótipos que relegam as mu- se forma a masculinidade, como se faz
lheres a papéis considerados socialmente in- do homem um homem? De forma mais
feriores.As defensoras da primeira posição importante, pergunta-se: como a formação
argumentariam, talvez, que elas não estão da masculinidade está ligada à posição privi-
afirmando que as mulheres deveriam se legiada de poder que os homens detêm na
restringir aos papéis que tradicionalmente sociedade? Ou ainda: como certas caracte-
lhes foram atribuídos, mas que deveriam rísticas sociais, que podem ser vistas como
transformar todas as instituições em que indesejáveis do ponto de vista de uma socie-
trabalham ou vivem, para que reflitam dade justa e igualitária, como a violência e
aquelas qualidades e experiências conside- os impulsos de domínio e controle, estão

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ligadas à formação da masculinidade? Em questões pedagógicas ligadas ao ensino un;.
termos curriculares, pode-se perguntar: versitário de temas feministas e de gênero,
como o currículo está implicado na forma- dedicando pouca ou nenhuma atenção às
ção dessa masculinidade? Que conexões questões pedagógicas dos outros níveis de
existem entre as formas como o currículo ensino. Em segundo lugar, como uma Prá-
produz e reproduz essa masculinidade e as tica que se desenvolvia precisamente nos
formas de violência, controle e domínio cursos e aulas dedicados ao feminismo e ao
que caracterizam o mundo social mais gênero, a pedagogia feminista centrava-se
amplo? Esse tipo de investigação mostra mais na questão da pedagogia do que na
que as questões de gênero têm implicações questão de um currículo que fosse inclusi-
que não são apenas epistemológicas: elas vo em termos de gênero. De certa forma,o
têm a ver com problemas e preocupações gênero já estava lá, por definição.Assim, a
que são vitais para o mundo e a época em pedagogia feminista preocupou-se, sobre-
que vivemos. tudo, em desenvolver formas de ensino
Ao mesmo tempo em que a teoria edu- que refletissem os valores feministas e
cacional e curricular reconhecia, de forma que pudessem formar um contraponto
crescente, a importância das questões de às práticas pedagógicas tradicionais, que
gênero, desenvolvia-se, na área originalmen- eram consideradas como expressão de
te conhecida como "Estudos da Mulher" valores masculinos e patriarcais. A pedagogia
(Women's Studíes), sobretudo nos Estados feminista tentava construir um ambiente
Unidos, uma preocupação com uma "pe- de aprendizagem que valorizasse o traba-

' dagogia feminista".A chamada "pedagogia


feminista" tem uma história que é bastante
independente da história das preocupações
lho coletivo, comunitário e cooperativo,
facilitando o desenvolvimento de uma
solidariedade feminina, em oposição ao
com gênero na teoria educacional. Em espírito de competição e individualismo
primeiro lugar, estando localizada princi- dominante na sala de aula tradicional. Mes·
palmente na universidade, sobretudo nos mo não estando centrada especificamente
então recentemente criados departamen- em questões curriculares, a pedagogia
tos de "Estudos da Mulher", a pedagogia feminista pode servir de inspiração para
feminista centrava-se precisamente em uma perspectiva curricular preocupada
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com questões de gênero, na medida em Leituras
que o currículo não pode ser separado LOURO, Guacira L. Gênero, sexualidade e educação.
da pedagogia. Petrópolis:Vozes, 1997.
Não se pode dizer que o currículo GORE,Jennifer M. Controversias entre las pedagogías.
oficial tenha incorporado sequer parte Discursos críticos y feministas como regímenes de
dos importantes insights da pedagogia fe- verdad. Madrid: Morata, 1996.
minista e dos estudos de gênero. Nenhuma WALKERDINE, Valerie. "O raciocínio em tempos
perspectiva que se pretenda "crítica" ou modernos". Educação e realidade, 20(2), 1995:
p.207-226.
pós-crítica pode, entretanto, ignorar as
estreitas conexões entre conhecimento,
identidade de gênero e poder teorizadas
por essas análises. O currículo é, entre
outras coisas, um artefato de gênero: um
artefato que, ao mesmo tempo, corporifica
e produz relações de gênero. Uma pers-
pectiva crítica de currículo que deixasse de
examinar essa dimensão do currículo cons-
tituiria uma perspectiva bastante parcial e
limitada desse artefato que é o currículo.

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