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Organização:
Ligia Ziggiotti de Oliveira
Josafá Moreira da Cunha
Rafael dos Santos Kirchhoff
EDUCAÇÃO E
INTERSECCIONALIDADES
© NEAB-UFPR
Realização: Apoio:
Curitiba
2018
Universidade Federal do Paraná
Reitor
Ricardo Marcelo Fonseca
Vice-Reitora
Graciela Bolzón de Muniz
Coordenação Editorial
Paulo Vinicius Baptista da Silva
Conselho Editorial
Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos – UFABC
Dr. Alex Ratts – UFG
Dr. Alexsandro Rodrigues – UFES
Dr. Ari Lima – UNEB
Dra. Aparecida de Jesus Ferreira – UEPG
Dra. Conceição Evaristo – Escritora
Dr. Eduardo David de Oliveira – UFBA
Dra. Eliane Debus – UFSC
Dra. Florentina da Silva Souza – UFBA
Dr. José Endoença Martins – FURB
Dra. Lucimar Rosa Dias – UFPR
Dr. Marcio Rodrigo Vale Caetano – UFRG
Dr. Moisés de Melo Santana – UFRPE
Dra. Nilma Lino Gomes – UFMG
Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – USFCAR
Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso – UDESC
Dra. Wilma Baía Coelho – UFPA
Copyright © 2018 NEAB-UFPR
Coordenação Editorial
Paulo Vinicius Baptista da Silva
Organização
Ligia Ziggiotti de Oliveira
Josafá Moreira da Cunha
Rafael dos Santos Kirchhoff
Projeto gráfico e Editoração
Vitor Atsushi Nozaki Yano
Capa
Vinícius Miranda de Morais
Vários autores.
ISBN 978-85-66278-21-7
CDD: 371.9
CDU: 376
Apresentação
Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff............................................................ 13
1. O que não tem nome não existe! Feminismo negro e o percurso histórico do
conceito de Interseccionalidade
Megg Rayara Gomes de Oliveira....................................................................................... 19
3. A experiência social das adolescentes negras na escola pública e os treze anos da lei
10.639/03: ideologia e a PEC 55
Ana Carolina Dartora..................................................................................................... 63
17. Mas ela vai voltar? Implicações das decisões judiciais nos processos de abandono
intelectual de alunas grávidas e mães
Célia Ratusniak, Carla Clauber da Silva e Maria Rita de Assis César............................... 253
Eu, em diálogo com Mia Couto, com os(as) organizadores(as) deste livro e
autores(as) de cada um desses belos capítulos, digo: Sou um branco que não é africano e que
até certo tempo caía nas armadilhas discursivas que reforçam os racismos. Sou um homem
cis, heterossexual que até certo tempo caía nas armadilhas discursivas que reforçam as
LGBT-fobias, sou um homem que até certo tempo caía nas armadilhas discursivas que
reforçam os machismos. Escrevo para um livro de Educação, mas minha formação é como
compreendo que a Educação é um caminho para a transformação das mentes, caminho para
apreciação de valores mais humanos e caminho parar aprendermos a conviver. Por perceber
todas as transformações em mim, acredito na transformação dos outros – talvez essa crença,
em um momento político tão difícil de acreditar em um futuro diferente, seja o que chamou
a atenção e fez com que me convidassem. Talvez porque esse livro também traz consigo uma
esperança. Esperança de transformação do mundo e construção de uma sociedade mais justa.
que seja um dos elementos mais difíceis da formação na Educação em Direitos Humanos.
Como fazer com que as pessoas percebam as assimetrias de poder existentes? Como fazer
com que as pessoas percebam que pessoas negras não possuem o mesmo poder na sociedade
que pessoas brancas? Que pessoas LGBT não possuem o mesmo poder na sociedade que
pessoas cis, heterossexuais? Como fazer com que homens percebam que as mulheres não
possuem o mesmo poder na sociedade que eles? Como fazer pessoas entenderem que
mulheres negras e LGBT estão em um espectro do poder, diferente de homens negros cis
e heterossexuais? Como fazer as pessoas perceberem... Árdua tarefa – uns não percebem
porque não foi dada a oportunidade de perceber, afinal, até alguns anos o grito maior era
luta pela igualdade e muitos caem nas armadilhas do discurso da igualdade. Sim. Pensar em
igualdade sem perceber as desigualdades é uma grande cilada. Há um tempo mais curto,
começamos a pensar em termos de “Diferenças” - sendo um grande desafio estabelecer o
diálogo entre igualdade e diferença. Se, por um lado o discurso da igualdade gera uma
armadilha, a luta pela diferença, sem a igualdade, também nos gera uma armadilha de
incomunicabilidade entre as diferenças. Assim, após perceber as assimetrias de poder
existentes e refletir sobre igualdade e diferença precisamos estimular praticas que
empoderem grupos historicamente marginalizados, que denunciem violações de direitos,
com o intuito de que essas violações não voltem a ocorrer – princípio chamado de “Educar
para nunca mais”. Além disso, – olha quanta coisa! – precisamos estimular a formação de
sujeitos que conheçam seus direitos, acreditem na possibilidade de ser coautor(a) das
transformações do mundo, tornando-se ativos nas lutas sociais.
Brecht nos dizia que “nada deve parecer impossível de mudar”, mas tem horas que
confesso, fica difícil. Como avançar nesses pontos em uma época de descrença com a política,
com o judiciário, em época de escola “sem partido”, em um momento no qual deputados
que espalham discursos de ódio são aplaudidos e percebidos, por alguns, como a salvação
10 Educação e Interseccionalidades
para o país? Algo precisa nos fazer acreditar e, esse livro contribui com isso. Ler “Educação
Esse livro, caro leitor(a), será um forte aliado para uma educação que contribua no
enfrentamento aos desafios de estimular um olhar para as assimetrias de poder, formar
sujeitos de direito, educar para nunca mais, estimular a construção da democracia – afinal,
só é possível falarmos em democracia quando todos(as) tem o poder, não só de falar, mas de
serem ouvidos. Vocês encontrarão textos que provocam reflexões sobre questões étnico
raciais, gênero, religiosidades, abandono intelectual, bullying, etc. Uns são textos teóricos,
outros são de pesquisa em Educação e de experiências educacionais. Porém, cada capítulo,
em cada uma de suas diferentes abordagens, pode ser simbolizado como representantes das
No Paraná, com as votações dos planos que traçariam as metas da educação para os
próximos dez anos, as comissões de Diversidade Sexual e de Gênero e de Estudos Sobre
Violência de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e a Universidade Federal
que passou a ser chamado de “ideologia de gênero”. Essa pauta foi assumida no Brasil pelo
Movimento Escola sem Partido, adormecido desde 2004, sem apoio popular, e, tempos
depois, pelo Movimento Brasil Livre – MBL. Com isso, as práticas escolares passaram a ter
uma vigilância inédita na fase democrática do país. Diversos municípios aprovaram
legislações locais que censuravam o uso das palavras “gênero” e “orientação sexual” em sala
de aula, e professoras(es) passaram a sofrer ameaças através de notificações extrajudiciais ou
de processos administrativos e judiciais.
Nas ações conjuntas entre OAB e UFPR, produziram-se notas públicas e pareceres
demonstrando a contrariedade das emendas aos projetos de lei com aquela intenção ao
direito nacional e internacional, participou-se das audiências públicas nas casas legislativas,
promoveram-se reuniões abertas na OAB com a presença de representantes da academia, da
classe docente e de movimentos sociais, num esforço para se pensarem coletivamente as
resistências possíveis naquele contexto de retrocesso, infelizmente, mais aprofundado no
momento em que lançamos este livro. A obra nasce deste encontro entre academia,
advocacia e militância, e se consolidou com o Seminário Interseccionalidades: Pesquisa,
A este desejo, contudo, não se apresenta um campo sem paradoxos. O primeiro deles
consistiu no próprio desenho de sumário que organiza os estudos aprovados para a nossa
publicação. A divisão, por eixos temáticos, certamente não pactua com a percepção de
14 Educação e Interseccionalidades
As posições marcadas por raça, gênero e classe social, para se mencionar apenas as
três mais lembradas nos esforços teóricos, não podem se definir como compartimentadas,
tampouco como fixas ou como únicos elementos capazes de esgotar a configuração de uma
situação de injustiça.
Mesmo assim, utilizamos os marcadores mais presentes em cada um dos textos para
reuni-los, em termos de proximidade, sem, contudo, dividi-los em partes específicas. Como
segundo critério didático, ainda, preferimos aproximar aqueles que apresentavam análises
mais teóricas e aqueles que apresentavam análises mais práticas em torno da temática
proposta, tentando tecer aproximações entre os capítulos por afinidade não só temática, mas
também metodológica, a despeito da inegável originalidade de cada uma das iniciativas.
Sabemos dos inevitáveis riscos em se anunciar uma pretensa dicotomia entre teoria
E ainda que os primeiros anos deste século foram marcados por ampliação na
inclusão, tanto de pessoas quanto de temas no âmbito educacional, também foram palco de
avanço de narrativas como a chamada “ideologia de gênero”, cujo desenvolvimento é
analisado no quarto capítulo, considerando o uso desta por grupos contrários à discussão de
gênero no processo do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, bem como seus
impactos na construção de documentos como a Base Nacional Curricular Comum (Capítulo
5), e o Plano Municipal de Educação de Curitiba (Capítulo 6).
O oitavo capítulo revisa desafios e perspectivas para a inclusão do debate sobre gênero
e diversidade sexual em ambientes educacionais sendo que os quatro capítulos que seguem
sintetizam relatos de experiências para a transposição do debate sobre gênero e diversidade
sexual para o âmbito da educação básica (Capítulos 9, 10 e 11) e ensino superior (Capítulos
12 e 13).
16 Educação e Interseccionalidades
E ainda que a abordagem das relações étnico-raciais, estudos de gênero e de
diversidade sexual seja desafiadora no âmbito de marcos normativos educacionais, tal
mudança é vazia sem a necessária tradução para as práticas educacionais. No capítulo 14, as
autoras, partindo de análise do Referencial Curricular da Rede Estadual de Ensino de
Sergipe, as autoras demonstram a possibilidade de articulação da religião, sexualidade e saúde
sexual, interligados à noção de gênero, no âmbito do ensino religioso. Apesar disso, ao passar
para a análise de currículo de formação de professores de ensino religioso em uma instituição
de ensino superior no mesmo estado, verifica-se uma abordagem ainda tímida sobre
possibilidades de abordagem já presentes no referencial curricular.
desigualdades.
Concluindo esta obra, o capítulo 19 oferece análise sobre como, diante das estratégias
de regulação e controle da sexualidade e do gênero nas escolas, estudantes secundaristas que
ocuparam a Assembleia Legislativa de São Paulo em 2016 criaram novos modos de se
relacionar estética e politicamente com seus corpos, nas margens da subversão das regras de
gênero. São elas e eles que, com brilho e resistência, apontam caminhos para reconstruir
contextos educacionais onde todas e todos possam aprender, ensinar e pesquisar com
liberdade.
Audre Lorde
1Travesti preta, doutora em Educação - Universidade Federal do Paraná; mestra em Educação - Universidade
Federal do Paraná; especialista em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, Educação e Ações Afirmativas
no Brasil - Universidade Tuiuti do Paraná; especialista em História da Arte - Escola de Música e Belas Artes
do Paraná; Licenciada em Desenho - Escola de Música e Belas Artes do Paraná.
Desta forma, este trabalho nasce de uma inquietação pessoal, compartilhada por
vários/as sujeitos/as que, assim como eu, se movem em busca de ocupação de espaços. Tal
afirmativa justifica-se a partir de minhas incursões pela pesquisa acadêmica pela qual tive
acesso a trabalhos que discutem separadamente gênero, identidade de gênero, diversidade
sexual e relações étnico-raciais. Entendo que as pesquisas acadêmicas têm alcance limitado
2 Este artigo foi extraído da minha tese de doutorado intitulada O Diabo em Forma de Gente: (R)existências
de Gays Afeminados, Viados e Bichas Pretas na Educação, defendida em 30 de março de 2017 na Universidade
Federal do Paraná.
3 A noção de cisgeneridade é proposta pela transexual Julia Serano, em 2007, na obra Whipping girl: a
transsexual woman on sexism and the scapegoating offemininity “a partir do exercício de analisar a origem da
terminologia - trans-: o outro, o desajuste. Ligações químicas cruzadas espontaneamente, de forma inesperada.
O oposto disso, o termo – cis -, também existe no campo da química orgânica: seria a ligação química esperada,
a mais comum de se ocorrer entre os elementos. A ligação química “normal”. Porém, as moléculas da química
orgânica são imprevisíveis. Assim como as subjetividades são imprevisíveis. Portanto, a cisgeneridade indica a
existência de uma norma que produz efeitos de ideal regulatório, ou seja, efeitos de expectativas e
universalização da experiência humana. Em termos gerais, o que diferentes ativistas e os movimentos
transfeministas têm proposto é que a norma cisgênera é uma das matrizes normativas das estruturas sociais,
políticas e patriarcais, cujos ideais regulatórios produzem efeitos de vida e de atribuição identitária
extremamente rígidos. A atribuição identitária, de forma compulsória no momento de registro de cada pessoa,
define e naturaliza a designação de uma pessoa a um dos polos do sistema de sexo/gênero ao nascer, a partir
de uma leitura restrita, baseada na aparência dos órgãos genitais. Além disso, a norma cisgênera afirma que
essa designação é imutável, fixa, cristalizada ao longo da vida da pessoa.” (Maria Luiza Rovaris CIDADE, 2016,
p. 13-14). Cis é a abreviação de cisgênero/a.
20 Educação e Interseccionalidades
Assim, para colocar em debate temas que problematizam situações como o racismo,
jurista negra estadunidense Kimberlé Crenshaw em 1989 (Mara Viveros VIGOYA, 2016)4,
apresenta-se como a melhor alternativa, permitindo que reflexões antes separadas, em nome
Entre seus argumentos Crenshaw (2002) destaca que as intersecções entre raça e
gênero contribuem de maneira efetiva para estruturar as experiências de mulheres negras,
marcadas, sobretudo pelo racismo e pelo machismo. Crenshaw (2002) assinala, porém, que
o racismo e o machismo não são os únicos marcadores que podem ser pautados em uma
discussão interseccional e questões relativas à orientação sexual e geração, dentre outras,
podem ser problematizadas.
Assim, defendo a utilização deste conceito como uma alternativa para a pesquisa na
área das ciências humanas por possibilitar o revezamento entre diversas áreas do
conhecimento. No caso desse trabalho com os estudos das relações étnico-raciais, os estudos
culturais, de gênero e diversidade sexual, as teorias pós-estruturalistas e pós-coloniais.
São as feministas negras dos Estados Unidos, na década de 1970, que primeiro
problematizaram a posição universalista do movimento feminista. Essas mulheres integravam
4Por defender uma educação não sexista, além de utilizar o gênero feminino e masculino para me referir às
pessoas em geral, na primeira vez que há a citação de um/a autor/a, transcrevo seu nome completo para a
identificação do sexo (gênero) e, consequentemente, para proporcionar maior visibilidade às pesquisadoras e
estudiosas.
como indivíduos.
No entanto, as mulheres negras enfrentavam uma situação muito pior, já que tanto
para o regime escravista quanto para o movimento sufragista, caracterizados por uma visão
racializada de sociedade, elas não eram consideradas pessoas, portanto não eram mulheres.
A decisão dos delegados da Convenção pelo Direito das Mulheres de criar, em maio
de 1866, uma associação pela igualdade de direitos que lutaria ao mesmo tempo pelo direito de
votos dos negros e das mulheres foi rapidamente contestada por parte dos militantes
abolicionistas e pelas feministas brancas que se consideravam superiores às pessoas negras
5A branquitude passa a ser discutida como um estágio de conscientização e negação do privilégio vívido pelo
indivíduo branco que reconhece a inexistência de direito à vantagem estrutural em relação aos negros. Já a
nomenclatura branquidade toma o lugar que até então dizia respeito à branquitude, para definir as práticas
daqueles indivíduos brancos que assumem e reafirmam a condição ideal e única de ser humano, portanto, o
direito pela manutenção do privilégio perpetuado socialmente (Camila Moreira de JESUS, 2012). A partir
dessas definições de branquitude e branquidade, entendo que Pocahy (2011) esteja se referindo à branquidade,
e não à branquitude, uma vez que está se reportando à hegemonia da população branca que não se incomoda
de usufruir das vantagens de ser branco numa sociedade racista.
22 Educação e Interseccionalidades
Para as associações formadas apenas por mulheres brancas era necessário evidenciar
“a moralidade duvidosa das militantes negras como justificativa para recusar uma aliança. A
fabricação de uma norma da feminilidade se faz por oposição às mulheres negras, vistas como
lascivas, violentas, primitivas, ‘más mães’ ou ‘matriarcas abusivas’” (DORLIN, 2016, p. 256).
o direito ao voto apenas às mulheres brancas viam “el sufragio femenino blanco como el
medio más adecuado para alcanzar la supremacía racial” (VELASCO, 2012, p. 30).
A posição racista adotada pelo movimento sufragista não refletia a opinião das
mulheres brancas como um todo.
Antes da abolição do regime escravista dos EUA em 1863, muitas mulheres brancas,
esposas e trabalhadoras, tomaram a luta antiescravagista como modelo para suas
reivindicações e entendiam que a opressão masculina precisava ser enfrentada por todas as
mulheres, independentemente do pertencimento racial.
muitas mulheres que estavam ativas no movimento feminino antiescravista, mas algumas
lideranças masculinas do movimento abolicionista “reclamaram que a questão dos direitos
das mulheres confundiria e alienaria aqueles que estavam apenas interessados em derrotar a
escravatura”. (DAVIS, 2013, p. 38).
processo aprenderam importantes lições sobre a sua própria subjugação”. (DAVIS, 2013, p.
36).
Assim, a luta antiescravista pode ser tomada como a base de organização das lutas
feministas.
6A Revolta de Nat Turner em 1831 que aconteceu no condado de Southampton no estado da Virgínia marca
o nascimento do movimento abolicionista nos EUA. Apesar da rebelião liderada por Nat Turner (1800-1831)
não ter conseguido o sucesso pretendido, ela despertou a população negra escravizada para a necessidade de lutar,
de forma organizada, pela extinção do criminoso regime escravista. Nat Turner foi morto por enforcamento em 11
de novembro de 1831.
24 Educação e Interseccionalidades
compreendendo que a sua própria opressão se sustentava e perpetuava na
continuidade da existência do sistema da escravatura (DAVIS, 2013, p. 39).
No entanto, de modo geral, a luta contra o regime escravista não era uma luta contra
o racismo e, por isso mesmo, os movimentos que mais tarde lutariam pelo direito das mulheres
brancas negariam às mulheres negras o status de pessoa, o que dificultaria enormemente o
acesso a um sistema formal de educação, o direito à propriedade e à herança, o direito sobre os
filhos, entre outros.
A dificuldade de acesso à linguagem escrita fazia com que muitas reivindicações das
ativistas negras fossem difundidas através da oralidade, uma ferramenta de alcance limitado,
embora importante para que suas ideias circulassem em espaços variados, graças ao exercício
da oratória praticada comumente nas igrejas evangélicas (VELASCO, 2012).
Sojourner Truth levantou-se para falar após ouvir de pastores presentes que as
mulheres não deveriam ter os mesmos direitos que os homens, porque seriam frágeis,
intelectualmente débeis, porque Jesus foi um homem e também porque a primeira mulher
foi uma pecadora. (PINHO, 2014):
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em
carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o
melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em
carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor
lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus
braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum
poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar
tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse
Essas questões serão a tônica das reivindicações do movimento feminista negro desde
sua origem, como atestam os primeiros textos publicados por autoras negras a partir da década
de 1890, período em que muitas delas conseguiram ingressar no ensino superior e passaram a
fazer uso do letramento na luta antirracista.
7 Ida B. Well foi uma das fundadoras da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP)
(Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor) em 1909, uma das mais influentes instituições que
lutava pelos direitos civis nos EUA. Em 1954 a NAACP tornou-se a maior organização de defesa dos direitos
civis no mundo, tendo em torno de 500 mil associados.
26 Educação e Interseccionalidades
racismo assumia um papel importante na distribuição dos espaços de poder, e reproduzia, em
certa medida, uma ideologia com arquitetura semelhante ao regime escravista. Em suas
reflexões, a exemplo de Truth (1851), Well aciona questões de gênero e raça como marcadores
importantes no processo de interdição. Ela discute ainda a situação vivenciada por homens
Para Frederick Douglas8 (1894) a imagem do homem negro estuprador foi construída
(1982) em um dos raros trabalhos em que uma feminista branca se propõe a problematizar os
linchamentos de homens negros nos Estados Unidos no final do século XIX e início do século
XX.
poder perdido, bem como o direito perdido de estuprar as mulheres de qualquer cor.
transmissora do sexo de homem a homem. Ela quase sempre é isso. (DWORKIN, 1982).
As mulheres brancas, como propriedade, representavam mais que a pureza de uma raça.
Representavam a pureza de uma cultura onde o regime escravista operava numa lógica de sua
preservação. O final desse regime possibilitava que essa cultura fosse maculada.
Nesse sentido, os linchamentos de homens negros era uma resposta a uma suposta
violência cometida contra os homens brancos, uma violência que estava estreitamente ligada
Embora esses linchamentos indiquem uma tentativa dos homens brancos, alcançados
pela decadência financeira, de preservarem seus privilégios, não se pode ignorar o componente
racista dessas ações. O linchamento impunha aos negros, e somente aos negros, a inferioridade
e a sujeição por meio do terror da violência privada. (José Souza MARTINS, 1995).
O objetivo de tamanha brutalidade era manter a população negra nos limites de sua
casta, dissuadindo-a de invocar os direitos recém-conquistados e assegurados em forma de leis.
(MARTINS, 1995). Havia ainda o interesse em preservar uma suposta pureza atribuída ao
corpo branco presente nos discursos religiosos que autorizava e estimulava, em certa medida,
tais atrocidades.
O estudo aponta que centenas de pessoas foram assassinadas sem terem sido
formalmente acusadas de um crime sério. As acusações eram as mais triviais, como se recusar a
descer de uma calçada ou empurrar acidentalmente uma mulher branca.
28 Educação e Interseccionalidades
De acordo com a Equal Justice Initiative, tais linchamentos tornaram-se um
espetáculo macabro que reunia grande número de espectadores. Em meio ao público que
Se, por um lado, as mulheres brancas viam nesses abusos uma maneira “justa” para
coibir supostos ataques de motivação sexual contra elas, já que concordavam que os homens
negros podiam estuprá-las, para as mulheres negras era uma das muitas estratégias utilizadas
para impedir a ascensão social de homens negros e suas famílias. O simples contato verbal
entre um homem negro e uma mulher branca era o suficiente para uma acusação de violação,
Os abusos sexuais que eram rotineiros durante o regime escravista continuaram após
a abolição.
Era fato que as mulheres negras continuavam sendo tratadas como uma presa legítima
do homem branco e, caso elas resistissem aos seus ataques sexuais, eram frequentemente
atiradas à prisão para serem tratadas novamente como se estivem de volta ao regime escravista.
(DAVIS, 2013).
indistintamente.
negras e somente na década de 1970 é que essa situação sofreu algumas mudanças no sentido
de se reconhecer que o racismo era um marcador fundamental no processo de opressão delas.
constituyen un grupo oprimido” (Patrícia Hill COLLINS, 2012, p. 101) e a função principal
“del pensamiento feminista negro estadounidense es resistir a la opresión, tanto a sus
prácticas como a las ideas que la justifican” (p. 101). Collins (2012) reconhece os avanços do
feminismo negro, mas chama a atenção para a necessidade de não se perder de vista qual o
papel das feministas negras não apenas em relação ao feminismo hegemônico, mas em relação
à sociedade como um todo.
A esse respeito, feministas negras denunciam que a exemplo do que acontecia no final
do século XIX e início do século XX “as mulheres brancas que dominam o discurso feminista
raramente questionam se sua perspectiva sobre a realidade da mulher se aplica as experiências
de vida das mulheres como coletivo”. (bell hooks, 2015, p. 195)9. Além disso, as mulheres
brancas de classe média que “fazem e formulam a teoria feminista – tem pouca ou nenhuma
compreensão da supremacia branca como estratégia, do impacto psicológico da classe, de sua
condição política dentro de um Estado racista, sexista e capitalista”. (hooks, 2015, p.196).
Havia e continua havendo, de acordo com hooks (2015), uma tentativa deliberada
9A pesquisadora e feminista negra bell hooks assina seus textos em letras minúsculas. Argumenta hooks de
que ela mesma não deve ser reduzida a um nome e seu trabalho não deve ser levado em consideração apenas
por sua assinatura. Atendendo suas reivindicações, mantenho a grafia do seu nome em letras minúsculas.
30 Educação e Interseccionalidades
como universais as situações de opressão vivenciadas pelas feministas brancas e torná-las um
traço comum entre todas as mulheres, desconsiderando o fato de que “a identidade de raça e
classe gera diferenças no status social, no estilo e qualidade de vida, que prevalecem sobre a
experiência que as mulheres compartilham”. (hooks, 2015, p. 197).
de todas as mulheres. A superinclusão acontece “na medida em que os aspectos que o tornam
um problema interseccional são absorvidos pela estrutura de gênero, sem qualquer tentativa
de reconhecer o papel que o racismo ou alguma outra forma de discriminação possa ter
exercido em tal circunstância”. (CRENSHAW, 2002, p. 174).
situações.
Violências que incidem sobre um determinado grupo étnico, por exemplo, podem
ocultar problemas que sejam específicos das mulheres e, assim, não serem debatidos na
devida medida. Crenshaw (2002) denominou essa situação de subinclusão, justamente porque
nesses casos as questões relativas às mulheres são subincluídas. “Em resumo, nas abordagens
subinclusivas da discriminação, a diferença torna invisível um conjunto de problemas;
No entanto:
No Brasil, a luta das mulheres negras contra as múltiplas formas de opressão a que
estão sujeitas também tem início durante o regime escravista, e estas atuaram ao lado de homens
negros, por não haver, naquele momento, pautas específicas sobre o ser mulher negra.
32 Educação e Interseccionalidades
Luiza Mahin foi uma dessas guerreiras, mas é “importante ressaltar que sua luta não
foi isolada. Nomes como Aqualtune, Acotirene, Zeferina e Maria Felipa não só merecem como
precisam ser lembrados como símbolo de resistência negra” (GONÇALVES, 2011, p. 7),
assim como Tereza de Benguela, Xica da Silva, Dandara dos Palmares, Ana Joaquina do
Livramento, entre tantas outras, silenciadas pela tradição machista da historiografia brasileira
que tem se dedicado a registrar os feitos de homens brancos. Esses feitos são tratados como
de importância para toda a sociedade, diferentemente daqueles protagonizados por mulheres
e por pessoas negras, interpretados como de relevância apenas para o grupo racial do qual
fazem parte.
Maria Felipa de Oliveira e Ana Joaquina do Livramento, por exemplo, são figuras
emblemáticas na Guerra de Independência da Bahia em 1822.
“Armadas com peixeiras e galhos de cansanção surravam os portugueses para depois atear fogo
aos barcos usando tochas feitas de palha de coco e chumbo” (Lucas Borges dos SANTOS,
2014, p. 30). Ao todo incendiaram 42 embarcações.
Esse pequeno fragmento da história de Maria Felipa de Oliveira, esquecida por quase
duzentos anos, serve para ilustrar o processo de invisibilização de personalidades negras na
história oficial do Brasil, que opera inclusive para apagar a memória do ativismo negro, levando
a acreditar que se trata de uma prática recente, logo, destituída de historicidade.
Outra questão aí envolvida diz respeito à participação das mulheres negras na luta
contra o regime escravista em pé de igualdade com os homens, portanto, com a mesma
importância.
Outra questão que aparece de forma recorrente na luta dessas mulheres, durante e
década de 1960” (Mariléia dos Santos CRUZ, 2005, p. 21) confirmam que a apropriação do
saber escolar por parte da população negra já era observada ainda durante o regime imperial:
“[...] embora não de forma massiva, camadas populacionais negras atingiram níveis de
instrução quando criavam suas próprias escolas; recebiam instrução de pessoas escolarizadas;
ou adentravam a rede pública, asilos de órfão e escolas particulares”. (CRUZ, 2005, p. 27).
Entre as escolas fundadas pela comunidade negra durante o regime escravista, temos
como exemplo o Colégio Perseverança ou Cesarino, primeiro colégio feminino de Campinas,
São Paulo, fundado em 1860; a Irmandade de São Benedito, que oferecia aulas públicas em
São Luís do Maranhão até 1821; ou ainda a Escola de Ferroviários de Santa Maria no Rio
professoras e diretoras de muitas escolas, principalmente nos estados de São Paulo e Rio de
Janeiro.
10A liberdade jurídica consistia em questionar na justiça a condição de escravizado/a quando o/a interessado/a
entrava com uma ação de liberdade, alegando muitas vezes que era vítima de maus-tratos e/ou de abandono
ou discordava de uma possível troca de proprietário/a ou ainda quando lhes era negado o direito de compra da
carta de alforria (Eduardo Spiller PENA, 1990).
34 Educação e Interseccionalidades
Esse quadro, porém, não permaneceu por muito tempo e no final da década de 1920
tem início uma política estatal para destituir essas professoras (e os professores negros) de suas
Nos anos iniciais da década de 1930, as netas de ex-escravizadas haviam sido expulsas
da profissão de normalistas. A escola pública projetada para formar o espírito da nação havia
se tornado praticamente branca através de políticas adotadas pelo Instituto de Educação do
Distrito Federal na era Vargas (Maria Lúcia MÜLLER, 2003, grifo meu) que tinha como um
e os objetivos populistas do nacionalismo. O racismo, por sua vez, “jamais encontrou qualquer
dificuldade de maior envergadura ao ser absorvido nos discursos nacionais, tendo sido
invariavelmente bastante compatível com todas as variações do discurso nacionalista”
de negros e negras e tratou como pauta principal o acesso à educação formal e ao mercado de
trabalho e geração de renda, pauta similar ao do movimento feminista hegemônico. Ambos os
movimentos, porém, deixaram à margem questões que tratavam especificamente das mulheres
negras.
Nas palavras de Patrícia Hill Collins (2000), citada por Figueiredo (2008), as
mulheres que se autodefinem como negras recusam serem construídas pelo olhar do outro.
É preciso desconstruir para reconstruir uma nova imagem, ou melhor, é preciso assumir o
controle da própria imagem.
perspectiva, tanto afirmando novos sujeitos políticos quanto exigindo reconhecimento das
diferenças e desigualdades entre esses novos sujeitos.
Petronilha Beatriz Gonçalves (1948), entre outros, ganham notoriedade “contribuindo para o
aprofundamento dos debates internos sobre a importância de se pensar gênero articulado ao
pertencimento racial, apontando que racismo e sexismo devem ser trabalhados juntos”
(Cristiano RODRIGUES, 2013).
A reflexão proposta por elas colocava sob suspeita a solidariedade das feministas
brancas com questões relativas ao racismo e denunciam que mesmo “mulheres brancas de
36 Educação e Interseccionalidades
orientações políticas mais progressistas negavam a importância da raça e suas implicações nas
vivências das mulheres negras, sendo tal hesitação fruto de seu próprio privilégio advindo do
racismo”. (RODRIGUES, 2013, p. 3).
é esquecido, deixado de lado, como se fosse inexistente e o racismo concebido como algo
externo aos brancos (Maria Aparecida Silva BENTO, 2000) e:
A respeito das posições políticas das feministas brancas, Bento (2000) destaca o
trabalho da socióloga branca estadunidense Ruth Frankenberg (1993), que estudou a maneira
pelo qual o racismo modela a vida dessas mulheres nos EUA. Frankenberg (1993)
A respeito do machismo que incide sobre elas, talvez, o único espaço de solidariedade
entre homens negros e brancos faz aumentar “a exploração sobre as mulheres negras, pois é
somente diante delas que os homens negros se beneficiam dessa solidariedade, na medida em
que em uma sociedade racista estes não desfrutam plenamente os privilégios da condição
masculina” (RODRIGUES, 2013, p. 4).
Até a década de 1990, não apenas o movimento feminista, mas o movimento sindical
também negava a importância da raça como um marcador social importante, período em que
as três maiores organizações sindicais do país, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a
estratégias para o seu combate foram os temas centrais. Em 1995 a CUT, a CGT e a Força
Sindical se uniram para criar o Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial
(Inspir), com o apoio da Central AFL-CIO e da Organização Interamericana dos
Trabalhadores, esta com sede em Caracas, na Venezuela. Essa iniciativa teve desdobramentos
dentro do Ministério do Trabalho, que criou, por decreto, em 1996 o Grupo de Trabalho
para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação (GTEDEO) (BENTO, 2000).
38 Educação e Interseccionalidades
assunto, atribuíam a situação de desvantagens das trabalhadoras negras ao seu baixo nível
educacional, silenciando a respeito do racismo (BENTO, 2000).
anteriormente direcionavam suas reflexões também para a academia que omitia de forma
sistemática o problema das desigualdades raciais.
Kimberlé Willians Crenshaw, entre outras, que utilizaram seu conhecimento acadêmico e suas
experiências pessoais, como trabalhadoras e ativistas, para darem suporte teórico e visibilidade
para os discursos interseccionais tão presentes nas denúncias e reivindicações das feministas
Em um estudo mais recente, que apresenta um estado da arte das pesquisas sobre
sexualidade e direitos sexuais realizadas no Brasil de 1990 a 2002, Maria Teresa Citeli (2005)
também conclui que no campo dos estudos de gênero são escassas as produções sobre gênero
e raça.
Apesar de presente nas discussões propostas pelas feministas negras ainda no final
do século XIX nos EUA e ao longo de todo o século XX, o conceito de interseccionalidade
propriamente dito só ganha forma no “trabalho de investigação da jurista feminista afro
americana Kimberlé W. Crenshaw” (POCAHY, 2011, p. 19).
40 Educação e Interseccionalidades
Em suas reflexões, Pocahy (2011) se utiliza dos escritos de feministas importantes,
Entendo, então, que esse conceito não trata especificamente das questões que
envolvem as mulheres negras, podendo ser aplicado a outros grupos.
No caso de um estudo que intersecte racismo e sexismo, Kerner (2012) destaca o fato
Esses fenômenos não são estáticos e diferem de acordo com o contexto, “por isso,
afirmações gerais sobre sua relação não podem ser outra coisa que não propostas a respeito das
possíveis características dessas relações” (KERNER, 2012, p. 49). Assim, racismo e sexismo não
devem ser tratados como problemas análogos, mas interpretados em seus múltiplos
entrelaçamentos e combinações. Ou seja, a partir do que propõem as feministas negras, o
racismo precisa ser entendido sob a perspectiva de gênero e o sexismo precisa ser racializado
(KERNER, 2012). Essa proposta se justifica pelo fato de que as figuras de referência na
tematização do racismo eram em sua ampla maioria homens heterossexuais, enquanto as
discussões sexistas priorizavam a situação de mulheres brancas heterossexuais e de classe média.
de que se trata de uma categoria que não se constrói apenas a partir das relações de colaboração,
mas que também apresenta conflitos e pode reproduzir hierarquias baseadas nos sistemas de
poder hegemônicos, como, por exemplo, entre mulheres negras heterossexuais e mulheres
negras lésbicas, que ocupam espaços reduzidos nos debates sobre feminismo negro.
da mulher lésbica ainda é catalisadora da tensão conceitual entre as categorias gênero e sexo”.
(Sandra Regina de Souza MARCELINO, 2014, p. 2). No caso de mulheres transexuais e
travestis, a situação é ainda mais grave, pois elas simplesmente não existem:
42 Educação e Interseccionalidades
Levando em consideração todos esses aspectos, podemos então dizer que as
intersecções entre racismo e sexismo não constituem algo unitário, mas tem
significados distintos dependendo da dimensão especifica. E o que difere aqui
e sobretudo a forma, a configuração das relações de intersecção. Nesse
sentido, intersecções significam: primeiro, normas de gênero pluralizadas e
normas que dizem respeito aos pertencentes de uma ‘raça’ ou de um grupo
definido etnicamente; segundo, cruzamentos institucionais com efeitos que
diferenciam grupos sociais; e, em terceiro lugar, processos multifatoriais de
formação de identidades (KERNER, 2012, p. 58).
Tanto o racismo quanto o sexismo são categorias plurais e assim devem ser tratadas,
Essa situação promove a invisibilização de certos sujeitos, como acontece com pessoas
LGBTs nos estudos das relações étnico-raciais e com pessoas negras nos estudos de gênero
e diversidade sexual.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
especificamente em um dos múltiplos marcadores sociais que incidem sobre uma pessoa.
Constatei que a maioria dos trabalhos que discutem relações étnico-raciais ignora a
que se tratam de discussões envolvendo o grupo racial branco. A exceção se observa nas
pesquisas desenvolvidas por um grupo reduzido de pessoas negras LGBTs que
problematizam, de maneira recorrente, as múltiplas identidades de gêneros e orientações
sexuais.
44 Educação e Interseccionalidades
Afirmo que o pouco interesse em interseccionar raça e gênero deriva do número
estudo interseccional.
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11Numa conversa entre Foucault e Gilles Deleuze, no texto Os intelectuais e o poder, Deleuze explica que as
relações teoria-prática são parciais e fragmentárias e que uma teoria é sempre local, relativa a um pequeno
domínio. E quando uma teoria penetra em seu próprio domínio, encontra obstáculos que tornam necessário
que seja revezada por outro tipo de discurso.
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48 Educação e Interseccionalidades
MOBILIDADE SOCIAL:
até onde o negro (não) pode ir
INTRODUÇÃO
Nesta escrita, nossa proposta é trazer uma discussão sobre as desigualdades no Brasil
que atuam, entre outras coisas, na mobilidade social do negro. Entendemos que, ao falar
sobre mobilidade social, tratamos dos mais diferentes contextos em que as pessoas se
encontram, ao mesmo tempo, nos referimos ao direito de ir e vir que todo cidadão brasileiro
tem, porém, que nem todos conseguem exercer, por motivos diversos.
afirmativa.
O alcance desse objetivo se deu por meio de entrevistas com acadêmicos que
ingressaram na UEPG pelo sistema de cotas para alunos negros de escola pública e que
estavam regularmente matriculados na universidade em 2014. Para localizarmos os
1PINHEIRO, Marielli Ramos. Cotas raciais na universidade pública brasileira: com a palavra, o cotista negro.
2014. 132 p. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual do Centro-Oeste, Irati/PR, 2014.
2 Utilizamos nomes fictícios advindos de pessoas negras importantes na história do Brasil, a fim de não
50 Educação e Interseccionalidades
Chiquinha (Gonzaga) Direito – matutino
João (do Pulo) Administração – noturno
Carolina (Maria de Jesus) Administração – noturno
Teresa (de Benguela) Química – noturno
Fonte: autoria própria.
Cabe explicar, brevemente, que a Lei de Cotas Raciais, como é conhecida a Lei
Além disso, é relevante mencionar que apenas as instituições federais de ensino têm
Brasil, uma vez que essa ação afirmativa é destinada a uma parcela da população que apresenta
características específicas a nível socioeconômico e étnico. Isso significa que as cotas raciais
foram planejadas e implantadas com vistas a ampliar a oportunidade de acesso ao ensino
superior aos negros brasileiros, cuja renda seja igual ou inferior a 1,5 salários mínimo per
capita e que tenham cursado o ensino médio em escola pública, características que se
apresentam como obstáculos no que tange à mobilidade social dessa população.
Sobre a mobilidade social dos negros no Brasil, percebe-se que a diferença racial se
apresenta como uma das dificuldades de seu ingresso em diversas esferas da sociedade. Tal
como o preconceito racial que ainda existe em nosso país, as barreiras nos processos de
mobilidade social dos negros também têm resquícios do período de escravidão. Apesar de
de Oracy Nogueira, referente ao fim dos anos 1940, que apontam a sociedade brasileira
dividida em classes – alta, média e baixa. Os negros, por sua vez, encontravam-se na classe
baixa. Tais constatações embasaram a cor como sinônimo da dificuldade que os negros
tiveram de mover-se na estrutura social, por consequência, permanecendo em posição
próxima a que se encontravam no fim da escravidão.
poderem aprender o ofício de tecelãs. Nos demais ramos do comércio, quando se via algum
negro trabalhando era em serviço braçal, considerado próprio para ele por não requerer
qualificação, nem bom salário. Aliás, é válido ressaltar que possuir ou não qualificação
profissional não oferecia garantia de permanência no emprego, tampouco ascensão de cargo.
A maioria dessas pessoas “precisava viver de expedientes, pequenos serviços, prestados aqui
52 Educação e Interseccionalidades
e ali, sem nenhuma perspectiva de engajamento assalariado” (CAMPOS, 2012, p. 84). O
mesmo continua acontecendo no mercado de trabalho, pois a inserção dos negros permanece
sendo em cargos inferiores, em um nível hierárquico mais baixo, e sua ascensão funcional
não se dá da mesma maneira como a de seus colegas brancos (CARVALHO, 2006).
hierarquizada pode ser observada no exemplo proposto por Santos (2012, p. 42) no que se
refere às diferenças de gênero, raça, religião: “ser mulher, negra, praticante de candomblé e
baiana condiciona experiências sociais distintas das de um homem, branco, cristão e paulista
– e isso vale tanto na Bahia quanto em São Paulo”. Não está elencada, nesse exemplo, a
classe dos sujeitos envolvidos, ambos poderiam estar em mesmo nível hierárquico em uma
empresa, contudo, suas experiências em termos de dominação e exploração apresentam
grande possibilidade de serem distintas.
Sobre isso, Elias e Scotson (2000, p. 23) chamam a atenção para a “sociodinâmica da
estigmatização”, isto é, o modo como um grupo estigmatiza outro. Os autores perceberam
na pequena comunidade da Inglaterra que estudaram, e notamos que isso é válido também
para as questões raciais que discutimos aqui, o quanto é comum um grupo determinar o que
o outro é e fazer com que o rótulo prevaleça, de modo que isso ocorre em função da relação
estabelecida entre ambos os grupos. Ademais, nessa perspectiva, eles mencionam a tendência
a olhar o problema de estigmatizar como algo demonstrado individualmente pelas pessoas,
chamado por eles de preconceito. No entanto, essa classificação não ocorre simplesmente
em nível individual, e sim em nível da interdependência dos grupos, uma vez que tanto o
grupo dominador quanto o dominado aceitam os papéis que lhes são designados, muitas
vezes, pelo fato de pertencerem a este ou àquele grupo.
que as pessoas questionam, “se a gente andar na rua assim, de mão dada, vão dizer que a
gente é namorada. Ninguém acredita que ela é minha mãe, só acredita depois que eu mostro
a foto”. Além disso, pela sua fala, parece ser algo recorrente na vida delas, pois, como ela
mesma afirma, “por a gente saber e tal, qualquer coisa que acontece a gente já nota. A gente
já fica esperando assim, também, é estranho. É como a minha mãe disse: ‘Nossa! Eu não
acredito que aconteceu isso’”.
Outra situação que Chiquinha expõe diz respeito a frequentar o comércio em Ponta
Grossa: “[...] esses tempos eu cheguei a ser perseguida numa loja por ser morena. O cara
começou a andar atrás de mim, o segurança, daí eu cheguei e contei [para a mãe]. Daí ela
falou: eu não acredito, nossa, você... não existe isso. Eu falei: existe!”. Percebemos, com essa
vivência de Chiquinha, que a mobilidade dos negros está comprometida, também, quando
eles se colocam em situações cotidianas, enquanto consumidores nos estabelecimentos
locais, por exemplo, e não necessariamente em comparação e/ou concorrência com pessoas
não negras. Ao mesmo tempo, parece haver uma aceitação dessa condição quando Chiquinha
diz que é “normal. A gente se sente mal, né, dá vontade de chegar assim, virar e falar: ‘Pô,
por que isso?’ Mas a gente vai fazer o quê? Muitas vezes, até os seguranças são
afrodescendentes, são negros e eles têm esse preconceito com eles”.
Sobre esse controle exercido por pessoas que parecem pertencer a um mesmo grupo,
mas que passam a estigmatizar seus pares, podemos relacionar com a posição social e o poder
implicado na condição que está posta ao sujeito. No caso apresentado, percebemos uma
inferência de que os seguranças afrodescendentes tenham internalizado o preconceito latente
na sociedade devido à própria função que ocupam, pois, como disse Chiquinha, é uma “[...]
questão cultural. Acho assim que as pessoas elas criam, têm um preconceito já assim, já
nascem achando que porque você é afrodescendente você é bandido, você é isso, você é
aquilo”.
(2012, p. 86), o território é “um campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais que,
54 Educação e Interseccionalidades
a par de sua complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade: a
diferença entre ‘nós’, os insiders, e ‘outros’, outsiders” (grifos do autor). Além disso, Santos
(2012) traz uma diferenciação entre “espaços negros” e “espaços brancos”, referindo-se a
lugares que, geograficamente, são marcados pela distinção social. No caso do Brasil, Porto
Gonçalves (2003) apud Santos (2012, p.56) afirma que: “a população negra é francamente
majoritária nos presídios e absolutamente minoritária nas universidades”. Esse quadro ainda
é reflexo de uma sociedade marcada pelo racismo, que sempre estipulou lugares em que os
negros poderiam ou não ter acesso. Até a década de 1980, por exemplo, haviam clubes
separados para negros e brancos, sendo que os brancos poderiam frequentar os clubes
Não é à toa que existem discrepâncias entre o número de negros que conseguem
uma formação universitária em relação ao número de negros que buscam sua sobrevivência
por outros meios. Isso pode se dar em função da condição social em que a maioria nos negros
brasileiros se encontra, a qual envolve o local em que moram, geralmente, a periferia, ter
que auxiliar desde cedo no sustento da família, não ter oportunidades melhores de trabalho
e lazer, e ainda contar com um sistema educacional que em grande parte desvaloriza a cultura
negra, ratificando sua posição de inferioridade, e não oportunizando sua permanência nos
bancos escolares ou chances de ingresso em uma universidade, considerando que isso poderia
potencializar seu crescimento pessoal e profissional – sua mobilidade.
Eu era sempre, eu era o mais pobre ali e tal, na minha escola. Só que quando
eu era criança, eu não tive, não tinha esse pensamento de classe social. Só
que eu sabia que tinha pessoas que eram mais, que tinha mais bem de vida
ali e os que eram mais pobre ali, né. No caso eu era um dos mais pobres. [...]
E você vê uma turma de cinquenta e dois alunos [na UEPG], dois são negros,
você vê uma diferença sim. É estranho, né, por que tem só dois negros em
uma turma de cinquenta?
a representação do negro nos livros didáticos, conforme Ribeiro e Menegassi (2008), Silva
(2011) e Mesquita e Schiavon (2013), que apontam que em sua maioria são eurocêntricos e
não contemplam a diversidade cultural, nem valorizam a cultura afro-brasileira. Acredita-se
Ingressar em uma universidade não garante a mobilidade social dos negros, todavia,
é uma marca significativa de rompimento dessa fronteira que existe entre os dois mundos:
estar fora e estar dentro da universidade. Essa fronteira tem sido difícil de ser ultrapassada
pelo negro em virtude de a própria universidade não criar condições efetivas de permanência
para ele concluir seus estudos. Essas condições não dizem respeito apenas a auxílio financeiro
56 Educação e Interseccionalidades
A respeito dessas questões aos alunos cotistas da UEPG, existem diferentes sugestões
apontadas pelos entrevistados. Segundo os alunos, é importante desenvolver programas que
acolham todos os alunos cotistas, negros e de escola pública, a fim de auxiliá-los no início
da vida acadêmica, pois os professores têm expectativas de que os alunos saibam e/ou
lembrem-se de conteúdos escolares necessários para iniciarem suas disciplinas, e nem sempre
os alunos tiveram acesso a esses conteúdos previamente ou estão fora de sala de aula há
bastante tempo. Por outro lado, alguns dos participantes acreditam que não é necessário
subsidiar os alunos cotistas por considerar que eles são alunos da região de Ponta Grossa e,
quando são de municípios distantes da região, escolhem a UEPG porque têm condições
financeiras para manterem-se na cidade.
Eu acho que isso na verdade não é tão necessário porque a UEPG, por
exemplo, ela atende a uma demanda de cidades aqui do interior, aqui da
região mesmo, pega aí de Guarapuava até mais ou menos Curitiba. Eu acho
que não precisa não, porque até nem precisaria existir porque não, a maioria
é de Ponta Grossa mesmo e não precisa disso. O negro que vem de fora
provavelmente tem uma situação melhor, o pai dele vai vir aqui e vai dar um
jeito, pra ajudar.
porque recebe apenas um salário mínimo de pensão por morte de sua mãe. Semelhante a
ela, são os casos de Benedita (Engenharia Civil), José (Educação Física) e Teresa (Química)
que cursam ensino superior na UEPG em função de seus empregos serem em Ponta Grossa.
E de Estevão que trabalha aos finais de semana porque seu curso na UEPG é em período
integral e ele precisa contribuir financeiramente com sua família.
dificuldade com conteúdos que são considerados básicos para o curso de Química, mas que
ela não lembra e/ou não aprendeu na escola.
do seu curso, atribuindo essa disparidade entre alunos de escolas públicas e particulares para
ingressar no ensino superior, ou seja, os alunos oriundos de escolas públicas, no início dos
seus estudos acadêmicos, precisariam redobrar seus esforços para atingir satisfatoriamente a
No começo, talvez, sim, porque eles [não cotistas] estão mais acostumados
com uma rotina mais pesada do que qualquer cota. Agora com o passar do
tempo, tipo no primeiro ano, geralmente quem entrava assim, que estudou
em colégio particular, eles têm mais facilidade, porque eles liam mais do que
a gente e tal, mas agora, já no terceiro ano, já é diferente, muitas vezes, os de
escola pública são, têm médias melhores, são mais, se esforçam mais do que
os outros.
No que tange ao apoio educacional para alunos cotistas, Emanoel aponta ser
necessário, inclusive, por presenciar essa situação com seu colega em sala de aula.
Um aluno de escola pública, o aluno negro que entra, já entra com uma nota
muito menor que os outros, eles deveriam ter esse acompanhamento. [...]
Meu colega que faz engenharia civil também, ele foi muito mal nas primeiras
provas e ele estava quase desanimando do curso, entendeu? Aí eu fui lá e
falei: “é assim mesmo, tem que batalhar mesmo, a gente vai sofrer um pouco
no primeiro semestre, mas você tem que estudar, tem que continuar”. Então,
58 Educação e Interseccionalidades
o aluno acaba até se desmotivando porque não tem uma ajuda assim, nesse
sentido. Se tivesse aula, sei lá, de matemática básica, essas coisas, né, no meu
caso que tinha esse problema, matemática básica, esse tipo de coisa no curso,
eu acho que talvez seria muito mais interessante pra o aluno conseguir
acompanhar o curso.
do negro ao ensino superior e considerando que aquelas pessoas cujos níveis elevados de
estudo têm maiores e melhores oportunidades de ingressar na universidade e no mercado
de trabalho, poderíamos dizer que cursar uma graduação e se pós-graduar é suficiente para
o negro alcançar sua ascensão social? Acreditamos que se trata de um direito conquistado,
porém, que não dá garantias de continuidade pós-formação se continuar havendo
preconceito. De acordo com Osório (2004, p. 12), os “negros permaneceram prestando os
mesmos serviços para os quais a ideologia racial os considerava ‘naturalmente’ adequados,
apenas sob condições distintas”. Mesmo assim, o autor acredita que essa situação poderia ser
revertida criando oportunidades ao negro para sua ascensão com vistas ao melhor
aproveitamento de seu potencial na estrutura ocupacional, algo trazido à baila com a Lei Nº
CONCLUSÃO
Tratamos, neste texto, de mostrar o quanto a mobilidade social dos negros está
comprometida quando comparada à mobilidade social dos brancos nas diferentes esferas da
sociedade, dando ênfase ao ensino superior. Entendemos que, apesar dos esforços
legislativos, dos movimentos sociais, das denúncias de cidadãos comuns, entre outros, na
direção de minimizar e, também, de cessar as desigualdades raciais no Brasil, isso ainda é o
início de um longo e pedregoso caminho a ser percorrido.
horizontalizadas:
Nesse cenário, a questão racial no Brasil precisa ser reconhecida, haja vista que é uma
temática que apresenta diferentes contornos (para não dizer, polêmica). Por um lado,
reconhecer os meandros que a temática aciona contempla uma demanda de discussão sobre
o tratamento igualitário entre negros e brancos. Por outro lado, ao reconhecer a importância
dessa discussão, abre-se caminho para avançar naquilo que se refere à desnaturalização da
pobreza. Para tanto, urge a necessidade de enfrentar a estrutura social tradicional que
60 Educação e Interseccionalidades
reproduz hierarquias sociais e vantagens, por meio do preconceito e da discriminação e,
talvez, o espaço criado na universidade pública por meio das cotas raciais seja profícuo para
isso.
REFERÊNCIAS
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ensino superior. 2. ed. São Paulo: Attar Editorial, 2006.
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e racismo no espaço urbano. IN: ______. (Org.). Questões urbanas e racismo. Petrópolis,
RJ: DP et Alii; Brasília, DF: ABPN, 2012. p. 36-67.
SILVA, Ana Célia da. A representação social do negro no livro didático: o que mudou?
por que mudou? Salvador: EDUFBA, 2011.
OSÓRIO, Rafael Guerreiro. A mobilidade social dos negros brasileiros. Brasília: IPEA,
2004.
62 Educação e Interseccionalidades
A EXPERIÊNCIA SOCIAL DAS
ADOLESCENTES NEGRAS NA ESCOLA
PÚBLICA E OS TREZE ANOS DA LEI
10.639/03:
ideologia e a PEC 55
INTRODUÇÃO
de ações afirmativas.
Ações afirmativas com a lei 10.639/03 são resultado de muitos anos de luta dos
diversos Movimentos Negros do país para que o racismo fosse reconhecido, bem como seu
1 Mestra em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná
(UFPR).
Brasil, não apenas para que se adotassem novos conteúdos, mas que servisse como recomeço
na busca de como as culturas se comunicam, e incentivo para novas posturas diante das
pessoas.
A busca por essas novas posturas seria feita então via educação formal, para isto o
governo convocou todas as instituições de ensino para o engajamento na luta antirracismo
brasileira. O reconhecimento da história do negro e suas contribuições incorporada nos
currículos resinifica a História do Brasil, mexe no projeto da sociedade brasileira e na vida
das pessoas que encontram condições para também exercer poder sobre os destinos da
sociedade.
O currículo tem significados que vão muito além daqueles aos quais as teorias
tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço, território. O
currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O
currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja
nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é
documento de identidade (SILVA, 1999, p. 150).
Tal parecer tratando-se de uma ação afirmativa buscou trazer uma resposta na área
64 Educação e Interseccionalidades
As políticas de reparação são demandas da população negra para que se desfaça
O artigo 26-A foi posteriormente alterado pela Lei 11.645/2008, com a introdução
da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura dos Povos Indígenas Brasileiros, a
aprovação e a paulatina execução dessa legislação, fruto das pressões sociais e proposições
dos diversos movimentos negros brasileiros, juntamente com os demais aliados da luta
antirracista, sinalizou avanços na efetivação de direitos sociais educacionais, e implicou o
O conceito chave da pesquisa foi o de “Experiência Social” que foi desenvolvido por
François Dubet, nascido em 23 de maio de 1946 na França. Dubet destaca a experiência
como objeto sociológico:
Existem marcas profundas na vida dos sujeitos negros que são deixadas pela maneira
como a sociedade o enxerga e emite opiniões sobre seu cabelo, seu corpo, sua estética.
Os meninos negros raspam seus cabelos para estar mais em conformidade, pois os
homens podem exibir um cabelo bem curto, mas as meninas negras2 não têm essa opção, a
cor da pele e principalmente o cabelo crespo são determinantes nos sentimentos e
impressões sobre suas vidas, como observou-se:
Claudiene, 17 anos: Já vivi muitas vezes as pessoas jogando coisas no meu cabelo
pra grudar e rir, já pegaram borracha para tentar me clarear. Sempre falam que
vou assaltar e coisas assim... Muitas pessoas pedem e dão comando pra eu alisar
meu cabelo, me sinto mal, pois gosto dele com cachos...
66 Educação e Interseccionalidades
Quando adquire as noções de outro, e de diferente, também em termos
raciais, a criança já se apropriou dos elementos para a interpretação dessa
diferença. As noções de diferença e de hierarquias raciais em nossa sociedade
são adquiridas na família, no espaço da rua, nas organizações religiosas e,
posteriormente, nas creches e nas escolas. Crianças brancas e negras
aprendem que ser branco é uma vantagem e ser preto, uma desvantagem
(BENTO, 2011, p.102).
produção da violência simbólica dá-se nesse mesmo âmbito. Assim, “a violência simbólica
é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita daqueles que a sofrem e também,
frequentemente daqueles que a exercessem na medida em que uns e outros são inconscientes
de a exercer ou de a sofrer” (BOURDIEU, 1996, p. 16), “e são formas de coerção que se
baseiam em acordos não conscientes entre as estruturas objetivas e as estruturas mentais”.
Desta maneira, percebe-se que vivemos em uma sociedade que aboliu a escravidão,
não existem mais a “casa grande e a senzala” (FREYRE, 1933), no entanto, o racismo
estrutural adaptou seus mecanismos e reduziu as meninas negras à “senzala simbólica”.
A SENZALA SIMBÓLICA
Carol, 18 anos: ...Eles acham que somos favelados, que não sabemos nos comportar
em público, que roubamos que não temos caráter, que não temos capacidade, que
não pensamos.
vendido na forma da “mulata globeleza”, “da mulata exportação”, são vistas como mulheres
fáceis para o sexo, mas não são opção no valor moderno da escolha amorosa, ou a “mulher
pra casar”.
Ana Paula, 16 anos: Dizem que você deve ser linda pra dar por que você é fácil...
Sempre estou em segundo plano, por que sou uma mulher negra.
Carol, 18 anos: Até hoje sabemos que há privilégios para brancos, por exemplo se
tem uma menina loira de olhos azuis fazendo um teste para modelo, e uma
menina negra de cabelo crespo, a loira que vai passar, porque o padrão de beleza
é esse.
Desta forma constata-se um ambiente escolar pouco acolhedor muitas vezes, e que
chega a ser hostil para com essas adolescentes, o que resulta nas razões complexas da evasão
ou torna a trajetória educacional muito acidentada, e que acaba resultando também na
grande dificuldade de inserção em igualdade de condições no mercado de trabalho, desta
forma as meninas negras são atiradas na “Senzala Simbólica”, que mantém certa ordenação
Porém o dado novo e gratificante percebido foi o de que algumas das entrevistadas
demonstram uma clara noção de sua condição social, e fazem uma relação entre a história,
o racismo e os lugares sociais. Interessante notar, que algumas meninas apresentaram a
68 Educação e Interseccionalidades
questão de gênero, além da condição negra apenas, o que entra em consonância com os
atuais discursos sobre feminismo, autonomia e feminismo negro3.
que completa 13 anos e se faz sentir no chão da escola. Para além disso, existem outras
medidas complementares a essa, por exemplo, a lei 12.288, de 20 de julho de 2010, também
da gestão do ex-presidente Lula, que Institui o Estatuto da Igualdade Racial, que prevê,
entre outras medidas, incentivos fiscais às empresas que contratarem negros, e que visa entre
outros.
Porém medidas como a lei 10639/03 extrapolam os muros da escola e são perigosa
arma na luta antirracista e na mitigação das diferenças sociais existentes historicamente no
país, diferenças essas, que no Brasil sempre tiveram uma cor, a cor negra, ou seja, é uma
questão contra-ideológica, e para que isso se torne claro é necessário trazer a tona ou
relembrar a questão da ideologia, afinal quando a entendemos, a crise politica e social vigente
se torna mais compreensível.
3 O feminismo negro é uma escola de pensamento que defende que o sexismo, a opressão de classes, a
identidade de gênero e o racismo estão inextrincavelmente ligados. A forma como estes se relacionam entre si
é chamado Intersecionalidade, uns dos principais ícones é Angela Davis.
As políticas públicas para a população negra e seus resultados que foram diversos,
desde a área educacional como vimos no exemplo da pesquisa acima, até em dados como da
diminuição da pobreza, mais acesso a bens de consumo, melhoria da saúde, inclusão social,
bate de frente com a questão ideológica, arranhar os privilégios daqueles que historicamente
sempre tiveram o poder assusta e a reação não poderia ter sido diferente a de um vespeiro
70 Educação e Interseccionalidades
constitucionais; II - créditos extraordinários III - despesas não recorrentes da
Justiça Eleitoral com a realização de eleições; e IV - despesas com aumento
de capital de empresas estatais não dependentes (BRASIL, 2016).
ideologia vigente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
aparelhos políticos e ideológicos, bem como manter viva a noção de que mudanças nem
sempre são boas, algumas podem ser retrocessos, desta maneira se faz necessário ter
compreensão das conjunturas politicas e dos desejos individuais em todos os âmbitos da
sociedade.
ideológica, aos retrocessos que virão e em todas as políticas de modo transversal, tivemos
já adquiridos, bem como manter viva a noção de que a luta democrática no Brasil, é uma
luta por autonomia e busca de consciência crítica dos atores sociais, mas também uma luta
contra-ideológica.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, P. (2007). A economia das trocas simbólicas (5a ed.). São Paulo:
Perspectiva.
72 Educação e Interseccionalidades
BRASIL. Plano Nacional de Implementação das diretrizes curriculares nacionais para
educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afrobrasileira e
africana. Secretaria Eespecial de Políticas de Promoção da Igualdade racial. Subsecretaria
de Políticas de Ações Afirmativas. Brasília: MEC, 2010.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro, Maia & Schmidt, José
Olympio, 1933.
HELLER, Agnes. Sociología de la vida cotidiana. Trad. José Francisco Ivars e Enric Pérez
Nadal. Barcelona: Península, 2002.
Este artigo tem como objetivo analisar a gênese da ideologia de gênero, termo que ganhou
grande visibilidade durante o processo de tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE)
2014-2024. Nesse período, alguns setores da sociedade reagiram negativamente em relação
à diretriz do Plano que previa a promoção da igualdade de gênero e a orientação sexual como
forma de superação das desigualdades educacionais, associando-a ao termo ideologia de
gênero. Para discutir essa questão, foi realizada uma pesquisa em sítios da internet, por meio
de busca livre no Google, a qual evidenciou que as postagens sobre o tema estavam em sítios
com algum tipo de vinculação religiosa. O termo ideologia de gênero, utilizado inicialmente
em documentos internos da igreja católica, teve maior divulgação durante a IV Conferência
Mundial sobre a Mulher em 1995, particularmente utilizado por grupos contrários à
discussão de gênero. O argumento mais recorrente em oposição à ideologia de gênero foi a
defesa da família contra o feminismo e a homossexualidade, questões também utilizadas por
setores contrários a essa discussão no PNE.
Palavras-chave: Ideologia de gênero; Gênero; Plano Nacional de Educação.
INTRODUÇÃO
O período de 2010 a 2014 foi marcado por intensas e tensas discussões entre grupos
contrários e grupos favoráveis à alteração, o que evidenciou a polêmica gerada pela inserção
de gênero e orientação sexual no PNE. Esse embate ocasionou uma grande visibilidade do
termo ideologia de gênero e dos grupos/movimentos contrários a qualquer tipo de discussão
sobre gênero, sexualidade, diversidade sexual ou orientação sexual no ambiente escolar.
1 O projeto de lei do Executivo foi enviado para o parlamento em dezembro de 2010, tendo o término da
tramitação ocorrido em 2014 (Lei nº 13.005/2014).
contemplava:
Essa nova redação suprimiu as discussões de gênero e orientação sexual, uma vez que
76 Educação e Interseccionalidades
Embora a gênese do discurso da ideologia de gênero não esteja relacionada a questões
Ressalta-se que a forma como o termo ideologia de gênero foi difundido e as ideias
que foram a ele vinculadas contribuíram tanto para a alteração do texto do PNE quanto para
a difusão da negação da possibilidade de dar continuidade de políticas educacionais para o
enfrentamento às desigualdades de gênero na escola, mesmo que não se tenha qualquer
O ponto polêmico que evidenciou as discussões sobre ideologia de gênero foi o artigo
2º, inciso III que estabelece as diretrizes do PNE. A discussão pautou-se na manutenção ou
não da explicitação das formas de desigualdades educacionais, ou seja, na manutenção ou
supressão do texto sobre superação das desigualdades étnico/raciais, regionais, de gênero e
orientação sexual.
01 02 12 07 11 33
Fonte: as autoras
sítios deve-se considerar que foram encontradas, entre os anos 2004 a 2009, apenas duas
reportagens que faziam menção ao termo, todavia, entre 2010 e 2014 (período de discussão
Salienta-se que os textos dos sítios, até a data de votação do PNE na Câmara dos
Deputados, contrapunham-se ao conceito de gênero como construção social e alertavam
para possíveis riscos do termo ideologia de gênero, conforme pode ser observado nos títulos
A aprovação em 2012, pela Câmara dos Deputados, do texto do PNE que continha
a redação original na diretriz III: “a superação das desigualdades educacionais com ênfase na
promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” desencadeou uma
série de postagens na internet que vinculavam o PNE ao termo ideologia de gênero e a defesa
78 Educação e Interseccionalidades
Educação (GOSPELMAIS, 2014).
ideologia de gênero já era propagado antes desse período, como forma de se contrapor aos
estudos de gênero e a consolidação da igualdade de direitos independente de sexo, gênero,
orientação sexual, identidade de gênero, etc.
Esse contexto marcado por lutas, reivindicações e novos estudos acadêmicos parecia
não mais aceitar a segregação, a marginalização e a exclusão social, a partir de preconceitos
Assim, se por um lado, a partir dos estudos de gênero, em particular de Scott (1995),
passam a ser rejeitadas as explicações biológicas para a subordinação feminina e para as
desigualdades de gênero, assim como se evidencia o caráter político das relações sociais
baseadas no sexo, a imbricação da construção do gênero com as diversas instituições sociais,
as formas como as diferenças entre papeis sociais de homens e mulheres podem fundamentar
as relações de poder presentes nos diversos âmbitos sociais; por outro, uma reação opositora
a essa teoria passa a ganhar força, na medida em que as discussões de gênero ganham espaço
e legitimidade e conquistam agendas internacionais.
feminismo.
Nesse contexto, emerge o termo ideologia de gênero como forma de resistência aos
80 Educação e Interseccionalidades
Embora a Igreja Católica tenha se posicionado contrariamente à discussão de gênero
no contexto da Conferência da Mulher, em 1995, o primeiro documento oficial que trata
Além das críticas ao conceito de gênero, o documento aborda ainda discussões como
inteiro.
Esse texto, embora tivesse a intenção de facilitar as atividades pastorais dos bispos
do Peru, teve grande relevância por colocar gênero em pauta e abrir espaço para que outros
documentos e proposições tanto da Igreja Católica como de outros âmbitos assumissem a
discussão da ideologia de gênero como um perigo para a sociedade.
Bíblia e discuta a colaboração entre ambos, apresenta maior destaque para o papel da mulher,
salientando que ela deve aceitar sua missão: uma vida com valores e de amor pelo outro.
percebido como inovação (pela Conferência), mas também sendo taxado de ideológico (por
setores que se opunham ao seu uso).
82 Educação e Interseccionalidades
ideologia totalitária, uma teoria falsa e antinatural imposta por uma nova antropologia que
visa mudar a antropologia dos seres humanos, ou seja, as diferenças “naturais” entre homens
CONSIDERAÇÕES FINAIS
feminismos.
de ideologia de gênero. Esses mesmos argumentos puderam ser percebidos na principal base
de contestação do texto do PNE 2014-2014 que previa a promoção da igualdade de gênero
e orientação sexual.
Embora possa ser considerada como forma de leitura do mundo, deve-se observar
que tais ideias, ao serem inseridas no espaço público como forma de argumentação para as
discussões de políticas públicas, ferem o princípio da laicidade do estado e não contribuem
para o enfrentamento das desigualdades sociais e de gênero, auxiliando sobretudo para
obstaculizar e retardar a efetivação do direito à educação no pais, particularmente no que se
refere ao acesso e à permanência de todos e todas na escola.
de gênero na sociedade, seja para concretizar uma educação de qualidade, seja para efetivar a
igualdade que reconheça as diferenças dos seres humanos, o que contribuirá para finalizar as
tristes estatísticas sobre violência contra a mulher e os lamentáveis casos de
homo/lesbo/trans/bifobia. Considera-se finalmente que a escola deve assumir a construção
da igualdade de gênero, pois assim poderá contribuir para cessar a produção e a reprodução
de desigualdades sociais e das violências construídas a partir das diferenças humanas.
REFERÊNCIAS
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gênero e homossexualismo. Disponível em: <http://www.acidigital.com/noticias/senado
vota-esta-semana-projetos-de-lei-que-favorecem-ideologia-de-genero-e
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ARQUIDIOCESE DO RIO. PNE: Câmara vota Plano que contém ideologia de gênero.
Disponível em: <http://arqrio.org/noticias/detalhes/2031/pne-camara-vota-plano-que
contem-ideologia-de-genero> Acesso em: 26/07/2017.
84 Educação e Interseccionalidades
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“construção social”. Disponível em:<http://blog.comshalom.org/carmadelio/30773
ideologia-do-genero-ciencia-nega-categoricamente-que-o-genero-seja-construcao-socia>l.
Acesso em: 26/07/2017.
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IPCO. Loucura da ideologia de gênero: escola na Suécia proíbe que crianças sejam
tratadas como meninos e meninas. Disponível em: <http://ipco.org.br/ipco/loucura-da
ideologia-de-genero-escola-maternal-na-suecia-proibe-que-criancas-sejam-tratadas
como-meninos-e-meninas/#.V-UWJCErLIU>.Acesso em: 26/07/2017.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, Porto
Alegre, v.20, n.2, p.71-99, jul./dez., 1995.
86 Educação e Interseccionalidades
IDENTIDADE DE GÊNERO E
ORIENTAÇÃO SEXUAL NO CURRÍCULO:
fundamentos e ameaças de direitos LGBTI
1Doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP, onde também concluiu Mestrado em
Direitos Humanos. É advogada feminista, educadora, integra a rede CLADEM – Comitê da América Latina
e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres.
2 Doutor em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP, onde também concluiu Mestrado em
Direitos Humanos com pesquisa sobre direitos LGBT. É jornalista e graduando em Direito pela UniFMU.
3 O uso da palavra apologia é habitual na divulgação de práticas criminosas; “fazer, publicamente, apologia de
fato criminoso ou de autor de crime”, diz o Código Penal em seu artigo 287. No entanto, a homossexualidade
não é crime ou contravenção penal no Brasil tal qual em alguns países. Ao contrário, existe uma proposta de
criminalização da homofobia (SUG5/2016), debate que se iniciou com o PL 122/2001 e convive com iniciativas
legislativas locais. Com isso, o uso desse termo revela bastante sobre as concepções de quem o usa, diz respeito
à noção de proibido, mesmo que metaforicamente, o que de fato só seria assim compreendido do ponto de
vista moral, recaindo em uma redundância do próprio movimento que se configura como ideológico, embora
repudie as ideologias na escola.
4 Para conhecer o Kit Escola Sem Homofobia ver NOVA ESCOLA. Uma análise do caderno Escola sem
<http://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/05/governo-nao-fara-propaganda-de-opcao-sexual-diz-dilma
sobre-kit.html>. Acesso em 24.07.2017.
88 Educação e Interseccionalidades
qualquer orientação sexual a terceiros. O próprio termo “opção sexual” se coaduna com a
noção de venda de ideias por uns e adesão por outros.
Para superar esse erro no trato de questão tão importante para os direitos humanos,
os conceitos de identidade de gênero e orientação sexual são imprescindíveis. Estes são
conceitos amplos e abertos que abarcam tanto as expressões de gênero e sexuais da população
quadro de profissionais da educação ou àquelas que são mães, pais, irmãos daqueles que
a gestação), à sua genitália, uma vagina ou um pênis, para se estruturar social e sexualmente
sua identidade de gênero (feminina ou masculina) e sua orientação sexual (heterossexual).
poder: jurídica e produtiva” (ibidem, p. 19). Deste modo, a população LGBTI reivindica
ações específicas que, sem minorar os direitos de pessoas héteros-cis-normativas, garantam
lhe, após mobilizações coletivas, promoção, efetivação e proteção de direitos que integram a
dignidade de LGBTI.
7Ver CARVALHO, M. O Conceito de gênero: uma leitura com base nos trabalhos do GT Sociologia da
Educação da ANPED (1999-2009). Ver. Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v.16, n. 46, jan-abr, 2011.
90 Educação e Interseccionalidades
dessa estrutura constituída, uma crítica às categorias de identidade que as
estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam
(ibidem, p. 22).
discussão acerca da sexualidade cuja consequência é uma vida sem violência do ponto de
vista individual e uma sociedade inclusiva do ponto de vista coletivo. Esta é a noção que está
na arena dos deveres estatais, não se trata de moderna noção teórica, por assim dizer.
privilégios de um lado e violência de outro. Contra essa noção estática, Butler discorre sobre
o “binário, unitário e além” (2010, p. 33) e critica “gêneros inteligíveis” que buscam
estabelecer “relações de coerência e continuidade” em relação a expressões (de gênero e
sexuais) que, por sua vez, são múltiplas (ibidem, p. 38). Por isso, como sexo e gênero são
construtos sociais, a autora afirma que o gênero é performativo, uma cópia mal-acabada de
uma realidade imposta por uma matriz heterossexual:
sexualidade, de raça, de classe, de religião etc.), têm possibilidade não apenas de representar
a si mesmos, mas também de representar os outros” (ibidem, p. 6).
diversidade humana.
8 Segundo Althusser (1974, p. 21), a escola, como um aparelho ideológico de Estado, é o ambiente que “ensina”
técnicas e conhecimentos para assegurar a reprodução do modo de produção, como também “ensina” regras
dos bons costumes: “as regras da moral, a consciência cívica e profissional”. Em razão desses ensinamentos,
Althusser afirma que o aparelho de Estado número 1, “e, portanto, dominante, é o aparelho escolar”.
9 Ver Balanço Anual da Ouvidoria de Direitos Humanos, da SDH, Disponível em:
<http://www.sdh.gov.br/noticias/2016/janeiro/CARTILHADIGITALBALANODODISQUE1002015.pdf>.
Acesso em 23.07.2017.
92 Educação e Interseccionalidades
heterossexualidade acompanhada pela negação da homossexualidade – “esse sentimento,
experimentado por mulheres e homens, parece ser mais fortemente incutido na produção
Com isto, quem se expressa com identidade feminina está mais vulnerável a
experiências de violência do que outros sujeitos LGBTI, como se sabe da própria experiência
das travestis10. Entende-se tal escala da violência de gênero porque a “travesti subverte
inteiramente a distinção entre os espaços psíquicos interno e externo e zomba efetivamente
identidades butch/femme11” (ibidem, p. 196). Butler explica que “a performance da drag brinca
com a distinção entre a anatomia performista e o gênero que está sendo performado”
(ibidem, p. 196).
do banheiro por travestis e o nome social, sem contar o bullying12 transfóbico. Nesse
10
O Relatório 2016 – Assassinatos de LGBT no Brasil, do Grupo Gay da Bahia, aponta o registro de 343
homicídios de LGBTI no País em 2016. De acordo com o documento, a cada 25 horas um LGBT é assassinado
no Brasil vítima de LGBTfobia. Segundo o relatório, do total de vítimas, 173 eram gays (50%), 144 (42%)
trans (travestis e transexuais), 10 lésbicas (3%), 4 bissexuais (1%) e 12 heterossexuais, como os amantes de
transexuais (“T-lovers”). O GGB afirma também que “as travestis e transexuais são as mais vitimizadas: o risco
de uma “trans” ser assassinada é 14 vezes maior do que um gay, e, se compararmos com os Estados Unidos, as
144 travestis brasileiras assassinadas em 2016 face às 21 trans americanas, as brasileiras têm 9 vezes mais chance
de morte violenta do que as trans americanas”. Disponível em:
<https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/01/relatc3b3rio-2016-ps.pdf>. Acesso em 23.07.2017.
11Butch e femme são expressões da língua inglesa que designam identidades lésbicas. Butch é a mulher lésbica
que, na expressão individual e social, apresenta-se com trejeitos e usa vestimenta neutra e/ou masculina. Femme
é a mulher lésbica que corresponde à identidade de gênero (social) feminina. São expressões pejorativas, assim
como podem ser identificadas na língua portuguesa por meio de “caminhoneira” ou “bicha”, para se referir a
um homossexual feminino ou masculino, entre outros termos, que são apreendidas e subvertidas em sentido
linguístico no meio da comunidade LGBT e ressignificadas.
12“É possível que bullys se valham
de todo um conhecimento social de desvantagens que um(a) colega possa
ter, não apenas para escolhê-lo(a) como vítima, mas também para se manter insuspeito(a) se for acusado de
abuso. Assim, são as desigualdades manifestadas na vida social que interferem nas interações escolares,
legitimam ou deslegitimam crianças e adolescentes no contexto escolar e fazem com que alguns indivíduos
vitimizem outros com certa possibilidade de não serem pegos(as) desde que não extrapolem limites toleráveis
(como aqueles enquadrados nos discursos do ‘foi sem querer’ ou ‘foi apenas uma brincadeira’”. (VENCATO,
2014, p.44-45).
Se vida sem violência para toda cidadã e todo cidadão parece ser um valor com algum
consenso para a cidadania brasileira, o mesmo não se percebe quando uma política pública,
por ventura, assume as razões motivadoras de formas de discriminação e violência. Um marco
13
Ver O ESTADO DE S. PAULO: Transgêneros, transexuais e travestis: os desafios para a inclusão do grupo no
mercado de trabalho. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/blogs/ecoando/transgenero-transexual
travesti-os-desafios-para-a-inclusao-do-grupo-no-mercado-de-trabalho/> Acesso em 26.07.2017.
14Ver CIDH-OEA. Violência contra pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexo nas Américas, 12 de
94 Educação e Interseccionalidades
Esse dissenso foi explícito no processo de construção do Plano Nacional de Educação
e o que era considerada uma oportunidade para definir novas metas para a base da ação
estatal a favor do direito à educação passou a ser a janela de um novo tabu: falar de gênero
na escola – a palavra gênero e os sentidos de igualdade de gênero, orientação sexual e
identidade de gênero. Noções desinformadas sobre esses conceitos vão de barreiras para um
currículo favorável à igualdade até a criminalização de práticas escolares. As disputas sobre o
conteúdo do PNE afirmaram a falsa noção de “ideologia de gênero” na escola, que teria por
intuito “ensinar às crianças de que não existe mais homem e mulher”, alegando que “certos
grupos desejam impor suas verdades a nossas crianças e tomar o lugar das famílias no lugar
da educação de nossos filhos”. Tal posicionamento não se restringiu ao ano de 2014 quando
foi encaminhada a votação do texto do PNE.
o início de uma campanha que banisse qualquer expressão com a palavra gênero e
principalmente orientação sexual – “são diretrizes do PNE a superação das desigualdades
duas tensões quanto aos planos: (i) o uso do argumento de que a exclusão da palavra gênero
deve ser compreendida como uma blindagem contra o debate de gênero. A consequência
dessa linha interpretativa não revoga toda a normativa de amparo ao debate de gênero na
escola, porém constrange professores e diretores na sua prática cotidiana15; (ii) o convívio
com planos municipais que foram além da sua atribuição constitucional e se constituíram
em leis inconstitucionais ao afirmar conteúdo proibido, e assim são objeto de ação judicial
local e de recentes ações no Supremo.
Á medida em que há retirada da palavra gênero do PNE e não proíbe o debate sobre
questões de gênero na escola, surgiu o incentivo de que a família poderia enviar uma
notificação extrajudicial à direção da escola, de acordo com um modelo a ser divulgado pelo
movimento autodenominado “Escola sem Partido”. A situação chegou à Procuradoria
Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) que publicou nota técnica no sentido de contestar
tanto a atribuição da família sobre a educação formal como a ausência de fundamento
Esse parecer sobre notificações às escolas vem para reforçar o que já se sabe: elas não
têm valor jurídico com força para limitar a atividade escolar. Com isto, outra movimentação
com o mesmo fim das notificações se expande: projetos de lei que proíbem gênero na escola
15
Ver episódio em São Paulo em <http://amorimlima.org.br/2016/10/carta-em-reposta-a-notificacao-contra
a-semana-de-genero/>. Acesso em 03.12.2016.
96 Educação e Interseccionalidades
sob a argumentação de que seja doutrinação ideológica. Tais projetos continuam a
desenvolver, em outras frentes legislativas, o mesmo argumento presente nos debates dos
planos de educação, porém com a tentativa de formalizar uma criminalização sem
precedentes contra a comunidade escolar. A seriedade da questão recebeu pronunciamento
da ONU cuja reação dos protagonistas do projeto “Escola sem Partido”, ou como é
conhecido “Lei da Mordaça”16, foi de deslegitimar a expertise de três relatorias temáticas da
projetos de leis contra o pluralismo na educação, é a vez do Executivo federal assumir uma
posição de destaque ao ignorar as desigualdades com base em diversidade. O recuo agora foi
na articulação do conteúdo educacional a partir da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) com a supressão das palavras que remetem às questões de gênero na escola,
explicitamente orientação sexual e identidade de gênero18. Longe deste instrumento gerar
a melhor das expectativas quanto ao modelo educacional que se quer19, ele é o terreno de
16
Projeto de Lei 867/2015 na Câmara e Projeto de Lei 193/2016.
17
Ver Relatório Igualdade Gênero na Educação e Liberdade de Expressão. Disponível em:
<http://generoeeducacao.org.br/wp-content/uploads/2016/12/ebook_Brasil_RPU.pdf>. Acesso em
27.07.2017.
18Ver NOVA ESCOLA. Retirada dos termos “gênero” e “orientação sexual” da Base é criticada na ONU, em
30.05.2017. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/4985/retirada-dos-termos-genero-e
orientacao-sexual-da-base-e-criticada-na-onu>. Acesso em 27.07.2017; O GLOBO. Bancada religiosa pediu a
Temer retirada de questão de gênero da Base. Em 07.04.2017. Disponível
em:<https://m.oglobo.globo.com/sociedade/educacao/bancada-religiosa-pediu-temer-retirada-de-questao
de-genero-da-base-21179389>. Acesso em 26.07.2017.
19 Ver XIMENES, S; CÁSSIO, F. Uma Base em falso. Disponível
em:<https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2017/Uma-Base-em-falso>. Acesso em 26.07.2017.
democrático que paute no centro a cidadania das minorias como um ponto inegociável. É
oportuno mencionar que tanto a BNCC como os instrumentos de participação social do seu
conteúdo estão a serviço de uma realidade social e dos princípios que fundamentam o Estado
brasileiro, como a dignidade humana. É daí por diante que meias palavras reforçam práticas
cruéis com a população LGBTI.
questionamentos sobre suas dignidades, mas sem explicar os pontos de tensão na agenda
por reivindicações por liberdade, igualdade e direitos humanos, especialmente quanto aos
direitos sexuais. Esse espaço com tantas letras20 converge para explicitar a diversidade de
20
O movimento LGBT no Brasil surge nos anos 1970 como movimento homossexual. Com o passar dos anos
e a ampliação da discussão acerca da comunidade, passa-se a adotar movimento GLS (gays, lésbicas e
simpatizantes) nos anos 1980 e 1990. Insuficiente para designar a luta identitária desta comunidade, a sigla é
recomposta em GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais) e, nos anos 2000, para aumentar a
visibilidade lésbica, adota-se LGBT, que, ainda em expansão, ganha a letra “I”, de intersexual.
98 Educação e Interseccionalidades
experiências no exercício da sexualidade e para questionar o ideal de sujeito universal –
modelo a ser seguido por todas as pessoas.
a partir das políticas educacionais. Antes dos anos 2000, a vida da população LGBTI estava
atrelada ao debate das ações governamentais sobre a prevenção de DST/aids, com diálogo
restrito ao Ministério da Saúde, pelo menos até o programa Brasil sem Homofobia: Programa
de Combate à Violência e à Discriminação contra LGBT e de Promoção da Cidadania
Homossexual (2004). Nesse percurso, as principais conquistas LGBTI se destacam com foco
no reconhecimento21 e nos direitos civis, como o direito à união homoafetiva e adoção por
casais homoafetivos – direitos estes “consagrados” pelo Judiciário22. O viés dessas
reivindicações segue a centralidade do indivíduo “(seu prazer, sua alegria, sua felicidade)
21A virada da década de 1990 para os anos 2000 sedimenta a visibilidade LGBT no Brasil. A Associação
Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), por exemplo, criada em 31 de
janeiro de 1995, salta de 31 entidades fundadoras para 308 organizações afiliadas em 2016 e é considerada a
maior rede LGBT da América Latina. A Parada do Orgulho LGBT de São Paulo certamente é o maior feito
de massa do movimento LGBT ao aliar ativismo e festividade ao estilo de uma mobilização carnavalesca. A
primeira passeata, com cerca de dois mil participantes, foi realizada em 28 de junho de 1997, dois anos depois
da primeira edição de uma parada no Brasil, realizada no Rio de Janeiro.
22
O reconhecimento da união estável de pessoas do mesmo sexo no Brasil deu-se a partir de 5 de maio de
2011, quando o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, julgou procedentes a Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI/4.277), proposta pela Procuradoria-Geral da República, e a Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF/132), ajuizada pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro.
No mesmo ano, em 25 de outubro, em conformidade com a jurisprudência vinculante erga omnes do STF, o
Superior Tribunal de Justiça (STJ), corte máxima de direito infraconstitucional, autorizou o casamento civil
de duas lésbicas. Passados dois anos, em 14 de maio de 2013, sob a presidência do ministro Joaquim Barbosa,
o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que regula o funcionamento da Justiça brasileira, aprovou e editou a
Resolução 175 que veda todos os cartórios do País e o Ministério Público de recusar habilitação, celebração
ou conversão de união estável de pessoas do mesmo sexo em casamento civil.
diversa, o que por si já contraria setores sociais que tradicionalmente se colocam como o
padrão universal legítimo para casar, ter filhos ou circular pelos espaços públicos, tais direitos
não se traduziram em menos violência ou ainda que os direitos civis como a liberdade de
expressão, a integridade física e o direito à vida fossem mais respeitados a partir dessas
conquistas judiciais.
do direito ao nome social sem condicionar à cirurgia de redesignação sexual (BENTO, 2009),
que também é objeto de uma lei que posiciona reivindicações do movimento trans no
legislativo – Lei João Nery (Lei n.º 5.002/2003).
É fato que não existe uma previsão legal que ampare atos discriminatórios contra
LGBTI, mas aqueles institutos disponíveis sobre igualdade entre mulheres e homens são
insuficientes quanto às diferenças entre esses sujeitos e ainda quanto aos marcadores de
diferenças, a serem considerados quando se pensa em violações de direitos humanos
(CRENSHAW, 2002; SANTOS, 2008). Neste sentido, tais marcadores sociais passam a
desafiar o direito e as políticas públicas comprometidas com a cidadania e a dignidade. A
educação é um campo-chave para essa abordagem. É essa a questão: violência e discriminação
com base em orientação sexual e identidade de gênero.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Nota
Técnica n. 2, Brasília, 15 de março de 2017.
LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da Sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (org.).
O Corpo Educado. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
ONU. Alto Comissariado das Nações Unidades. Carta dos Relatores da ONU ao Brasil, 13
de abril de 2017. Disponível em:
<http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Opinion/Legislation/OLBrazileducation.pdf>.
Acesso em 27.07.2017.
pesquisa Cultura, Escola e Ensino. Bacharel e Licenciada em Dança pela Universidade Estadual do Paraná. E
mail:nayara_bernardes@live.com
Em 1984, Gayle Rubin publicava “Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the
Politics of Sexuality” e já demonstrava que, em um contexto norte americano, a extrema
comunidade LGBT sofreu no final do século XIX e no século XX, Gayle Rubin faz uma
espécie de previsão do que aconteceria no cenário político-educacional brasileiro no período
4 Ao evidenciar o movimento de exclusão das pautas LGBT no PNE 2014, MOREIRA (2016) investiga os
modos pelos quais se constroem políticas públicas para a população LGBT, analisando as formas de produção
de exclusão no interior do exercício do poder e demonstrando como se constituiu um pânico moral permanente
em torno da “ideologia de gênero”.
conquistando cada vez mais espaço no poder público. O que se vê nesse período é um cenário
político conservador e a emergência de um discurso religioso fundamentalista que se
materializa no que ficou conhecido, no Brasil, como “ideologia de gênero”6.
Outubro de 2012 o Projeto de Lei nº 8.035/2010, que daria origem ao PNE 2014, volta para
a Câmara em 02 de Janeiro de 2014 por ter sido modificado pelos Senadores. (BRASIL,
2014). Uma das principais modificações feitas no Projeto de Lei estava no inciso III do artigo
2º que define a superação das desigualdades educacionais como uma das diretrizes do Plano
Nacional de Educação. O texto aprovado originalmente na Câmara definia que a superação
5 Mesmo considerando que a utilização das formas "o/a", "a/o" tem seu caráter político importante uma vez
que deixam claro o apagamento histórico do feminino na língua, e que os sinais "X" e "@" indicam um
rompimento com a dicotomia feminino/masculino, iremos, nesse texto, transitar entre o masculino e o
feminino como modo de facilitar a leitura e, também, de manter uma posição teórico-política que acredita na
fluidez e na transitoriedade dos sujeitos e da língua.
6 A primeira referência, em um documento oficial, ao termo ideologia ligado ao conceito de gênero, aparece
em 1998 em uma nota intitulada “La ideologia de género: suspeligros y alcances.” emitida na conferência episcopal
do Peru. O documento é dividido em onze tópicos e ao longo de suas dezesseis páginas discorre sobre a
existência de uma natureza humana, originada em uma lei natural completamente imutável, criada por Deus
e comprovada cientificamente pela biologia, demonstrando como os “defensores de uma ideologia de gênero”,
segundo eles, promovem uma desconstrução da família, da educação, da cultura e, principalmente, da religião.
o ano de 2015 para adequar suas metas e estar em consonância com o proposto no PNE. Ou
seja, esse enfrentamento aos termos gênero e orientação sexual não aconteceu somente em
nível nacional. A Lei nº 18.492, que aprova o Plano Estadual de Educação (PEE) do Paraná,
foi votada na Assembleia Legislativa no dia 23 de junho de 2015 e omitiu qualquer referência
de lei que deu origem ao Plano Municipal de Educação (PME) de Curitiba. A sessão de
votação7 do PME de Curitiba foi marcada por manifestações entre religiosos, pesquisadoras
7 Relação de vereadores que votaram a Lei nº14.681/2015: Aladim Luciano (PV), Aldemir Manfron (PP),
Beto Moares (PSDB), Cacá Pereira (PSDC), Carla Pimentel (PSC), Chicarelli (PSDC), Chico do Uberaba
(PMN), Colpani (PSB), Dirceu Moreira (PSL), Dona Lourdes (PSB), Felipe Braga Cortes (PSD), Geovane
Fernandes (PTB), Helio Wirbiski (PPS), Jairo Marcelino (PSD), Jorge Bernardi (REDE), Mauro Ignacio
(PSB), Mestre Pop (PSC), Noemia Rocha (PMDB), Paulo Rink (PR), Paulo Salamuni (PV), Pier Petruzziello
(PTB), Professor Galdino (PSDB), Rogério Campos (PSC), Sabino Picolo (DEM), Serginho do Posto
(PSDB), Tico Kuzma (PROS), Tito Zeglin (PDT), Toninho da Farmácia (PDT), Zé Maria (SD). Votos
contrários: Professora Josete (PT), Pedro Paulo. (PDT).
de regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição”.
(FOUCAULT, 2001, p. 27-28).
Neste momento uma ideia de norma, além de servir de base para produção desse
população. Isso não quer dizer que o corpo individual deixa de ser alvo de controle do poder,
mas que esse poder sobre a vida se manifesta de duas maneiras: a primeira, disciplinar, que
se constituiu a partir do século XVII8 como uma anátomo-política, centrou-se no corpo
8 Veiga-Neto (1996) situa a emergência desse pólo na segunda metade do século XVI – praticamente meio
século antes do que o proposto por Foucault – por já encontrar indícios de um movimento de ressignificação
e progressiva expansão das disciplinas nesse período. O autor deixa claro que isso não significa que seja possível
determinar, ou até mesmo que exista sentido em buscar com precisão uma data de passagem exata de uma
episteme para outra, mas que essa transição acontece continuamente, com justaposições e interações.
que o biopoder9, esse poder sobre a vida, não representa a eliminação do poder disciplinar,
mas a partir de um ponto ambas passam a caminhar juntas, uma dando suporte à outra e
servindo de referência no que diz respeito ao controle tanto dos corpos individuais como de
corpos populacionais, fazendo com que as estratégias de controle se intensifiquem.
(FOUCAULT, 2001, p. 156). Uma sociedade de normalização é, portanto, o local onde “se
cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da
regulamentação”. (FOUCAULT, 2005, p. 302). O objetivo dessa tecnologia de poder é,
então, investir de maneira calculada sobre a vida, gerenciando-a. Nesse sentido, pensar na
assunção da vida pelo biopoder significa tomar o homem como ser vivo e pensar quando o
biológico – a vida – passa a ser alvo do poder do Estado. Esse movimento de estatização do
biológico (FOUCAULT, 2005), um dos fenômenos fundamentais do século XIX, apresenta
seus desdobramentos ainda hoje.
9 Por mais que Foucault não tenha feito uma distinção clara entre “biopoder” e “biopolítica”, entende-se aqui
que o biopoder se refere “às ações que tomam por objeto a vida tanto dos corpos individuais quanto do corpo
espécie” (VEIGA-NETO, 2014 p. 39), enquanto a biopolítica seria um conjunto de estratégias de intervenção
e regulação que efetivam o biopoder.
definindo, assim, aquilo que é normal. Essas chamadas práticas periféricas ou insubmissas
são a parte de sustentação de um discurso central: o discurso da normalidade dos corpos,
das práticas e dos prazeres. O dispositivo da sexualidade vai produzir, assim, uma ideia de
sexualidade totalmente ligada à natureza, como algo que faz parte de um instinto, de uma
biologia. Em contraponto, os (des)viados serão tomados como parte de uma natureza
perversa e, consequentemente, suas práticas serão atreladas à loucura e a doença. Dessa
maneira, o dispositivo da sexualidade passa a operar de outro ângulo, tirando o alvo do casal
monogâmico reprodutor e o reapontando para as sexualidades periféricas. (FOUCAULT,
2001). Em um jogo entre poder, saber e prazer, o dispositivo da sexualidade se junta a uma
série de novas tecnologias de regulação, capturando o corpo e a sexualidade e instaurando
um controle sobre as populações.
Um dos discursos mais correntes nas bases conservadoras que defendem a retirada
10
Para Foucault (2004, p. 244), dispositivo designaria: “[...] um conjunto decididamente heterogêneo que
engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma: o dito e o não
dito [...]” Desta maneira, dispositivo é qualquer elemento que faça com que a disciplina e o biopoder entrem
em ação.
consagrada no matrimônio e no arranjo pai, mãe e filhos – e que por meio de projetos e
políticas públicas para diversidade (principalmente as no âmbito educacional) se tem imposto
às crianças uma ideologia baseada em princípios antinaturais e antifamiliares. Ou seja, o que
tem sido chamado de “ideologia de gênero” nada mais é do que um ato antidemocrático,
que fere a laicidade do Estado e tenta deslegitimar toda uma área de conhecimento
reconhecida e relevante para as práticas educacionais.
Deste modo, os vereadores evocam dimensões religiosas (de valores, de uma moral)
EMENDA MODIFICATIVA11
Código: 034.00069.2015
Iniciativa: Carla Pimentel
Partido: PSC
Estado: Aprovada
Texto:
Modifique-se os Artigos e incisos previstas no Projeto de Lei Ordinária,
Proposição nº 005.00129.2015, de iniciativa do Prefeito Municipal, que
Aprova o Plano Municipal de Educação PME, da cidade de Curitiba:
Que o inciso III do Art 3°, abaixo descrito:
Art 3° São diretrizes do Plano Municipal de Educação PME:
III - superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da
cidadania e na superação de todas as formas de discriminação;
Altera-se o texto originário do item abaixo, passando a vigorar com a
seguinte redação:
coloca a favor da moral e dos bons costumes: tornar a heterossexualidade o único destino.
O que implica, consequentemente, a formação de uma família baseada nos mesmos
princípios, ou seja, a família heteronormativa13. Percebe-se, ainda, o papel central que a
figura da criança ocupa, pois é da educação dela que está se falando. O que se defende nessa
12
O termo cis tem origem no Latim e significa ‘deste lado’, é também usado na química para diferenciar
moléculas isômeras (compostos que apresentam a mesma fórmula molecular, mas diferentes fórmulas
estruturais) Nessa lógica, de maneira simplificada, o termo surge para representar as pessoas que se identificam
com o gênero que lhes foi designado ao nascer. Para saber mais consultar: <http://transfeminismo.com/>
Acesso em: 04 Ago. 2016.
13
Para Tamsim Spargo (2006, p. 67) a heteronormatividade “[...] especifica a tendência, no sistema sexo
gênero de ver as relações heterossexuais como a norma, e todas as outras formas de comportamento sexual
como desvios dessa norma”. (grifos da autora).
e o Plano Municipal. O que mostra que esse cerceamento da linguagem no plano das leis
não é uma ação isolada, exclusiva do município de Curitiba, mas que, pelo contrário, é um
movimento calculado e muito bem planejado por setores ultraconservadores que querem
trazer a ideia de valores morais da família heteronormativa para o campo da educação.
Por mais que o movimento de retirada dos termos relacionados à diversidade dos
Planos de Educação tentem reinstalar uma ideia de que a educação é um processo puramente
técnico que deveria ser realizado em um ambiente de pura neutralidade, ausente de
perspectivas políticas, relegando muitos aspectos da educação para a família, esse movimento
instaura uma contradição interessante: ao mesmo tempo em que professores estão sendo
cerceados da sua liberdade de cátedra e que as instâncias de silenciamento têm sido cada vez
mais incidentes, os estudantes vêm, crescentemente, demonstrando mais interesse e
discurso muito corrente de que a escola não fala sobre sexo faz parte, em alguma medida,
do próprio dispositivo da sexualidade. Ou seja, a escola nunca parou de falar sobre o sexo,
talvez ela só não tenha falado do modo como gostaríamos, isto é: a partir de alguns
parâmetros da diversidade e da não violência.
sejam colocadas em risco. Neste sentido, pode se dizer que antes nos questionávamos sobre
o paradoxo a partir do qual se desenvolveram as políticas de inclusão da população LGBT.
Tratava-se de um paradoxo que envolvia, por um lado, as demandas de inserção no mercado
de trabalho em uma lógica de governamento neoliberal e por outro lado, o controle dos
heterossexual e de classe média, de forma que indivíduos que se afastavam daquele modelo
estavam propensos a não serem contemplados por aquelas políticas públicas. (MOREIRA,
2016). O ponto central das agendas de pesquisa era, então, investigar essa lógica identitária
de inclusão, desconfiando de uma parceria entre os movimentos sociais e o Estado que não
questionavam a norma heterossexual. Talvez, neste momento, essa questão não seja mais o
foco, uma vez que parece que não há mais uma parceria firmada entre os movimentos sociais
LGBT e o Estado, parece que o que há, de fato, é um panorama ultraconservador, bem
diferente do das políticas de inclusão. Desse modo, parece-me que, mais do que nunca, deve
se questionar a norma, problematizando os efeitos de sua naturalização. Em alguma medida,
Por mais que no Brasil essa onda ultraconservadora tenha uma maior representação
dos movimentos ligados a uma vertente neopentecostal, pode-se perceber que esses
movimentos atuais que se colocam em defesa da moral e dos bons costumes têm embasado
seus argumentos também em princípios cristãos. Assim, a aposta desse trabalho é que os
discursos que têm sido produzidos em torno deste tema formam-se através da junção de
dois discursos distintos: o primeiro, puramente religioso, que versava sobre o corpo, a carne
e o desejo e já apresentava traços da biologia para reafirmar a importância do matrimônio e
da constituição de uma família; e o segundo, mais recente, que apresenta pretensões
científicas, almeja uma continuidade entre o sistema sexo-gênero-desejo-prática sexual
descontruir qualquer projeto que intente inscrever nos corpos e nas práticas um domínio de
REFERÊNCIAS
BRASIL. Projeto de lei Nº 8.035-B de 2010. Câmara dos Deputados, Brasília, 2012.
SPARGO, Tamsim. Foucault e a Teoria Queer. Rio de Janeiro:Pazulin; Juiz de Fora: Ed.
UFJF, 2006.
2Graduado em Psicologia, Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atua
como professor e como chefe de departamento (2016-2019) no Departamento de Teoria e Fundamentos da
Educação da Universidade Federal do Paraná. E-mail: josafas@ufpr.br
diferenças étnicas, culturais e raciais, como por razões políticas, religiosas, de identidade de
gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade física ou intelectual, idade, entre outras.
discussões sobre casos de discriminação e violência, mas há pouca informação sobre pesquisas
nessa área. Na Universidade Federal do Paraná, por exemplo, planeja-se a realização de uma
pesquisa de clima universitário que envolverá toda a comunidade discente, levantando
informações sobre violência e discriminação que até hoje nunca foram coletadas. Por isso,
acredita-se que há uma falta de estudos sobre discriminação, preconceito e violência entre
estudantes de ensino superior em todo o meio científico nacional.
Visando embasar posteriores pesquisas, neste trabalho foi realizada uma revisão
sistemática de literatura, através da busca de estudos empíricos sobre percepção e
experiências de discriminação entre estudantes de ensino superior no Brasil. A partir desta
revisão, pretendeu-se verificar o que se tem pesquisado, quais tipos de discriminação são
buscando também verificar se, de fato, há uma lacuna de estudos sobre esse assunto.
REVISÃO DA LITERATURA
que as informações essenciais para uma revisão sistemática estejam presentes no trabalho a
ser publicado. Além disso, por ser sistemática, visa também permitir a reprodução do
processo, tornando-o mais confiável, ao permitir a verificação de sua consistência. O
fluxograma é composto por quatro etapas principais: identificação, seleção, elegibilidade e
inclusão.
da revisão, uma primeira avaliação dos títulos e/ou resumos dos trabalhos permite descartar
uma grande parte desses artigos.
Com os registros restantes, os critérios são testados novamente após a leitura dos
textos completos, avaliando sua elegibilidade para inclusão na síntese. Nesta etapa, a
Por fim, com os resultados incluídos, procede-se para a revisão, seja por meio de
síntese qualitativa ou quantitativa dos estudos selecionados.
de registros em cada fase, a recomendação PRISMA também define que sejam explicitados
os critérios de seleção, os métodos de avaliação de risco de viés nos estudos, os métodos de
combinação dos dados e resultados, no caso de meta-análises, as características dos estudos,
as limitações dos estudos e da revisão e as conclusões.
MATERIAIS E MÉTODOS
Foi realizada uma busca booleana na plataforma SciELO, contendo qualquer um dos
seguintes termos: [preconceito, discriminação, racismo, sexismo, machismo, misoginia, lgbtfobia,
homofobia, lesbofobia, transfobia, xenofobia, capacitismo, bullying, assédio, abuso, violência]
juntamente com um termo entre: [universidade, faculdade, ensino superior, educação superior,
nível superior, graduação]. Na busca, foi considerada a presença dos termos tanto nos títulos
quanto nos resumos dos trabalhos.
3 http://www.scielo.br/
4 http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/
na mesma data.
de 1996 a 2016.
Após discussão, definiu-se que seriam incluídos aqueles trabalhos que tivessem,
mesmo que apenas como parte do estudo, estudantes como sujeitos da pesquisa, e que de
alguma forma relacionassem violência ou discriminação com o contexto universitário, seja
por seu local de ocorrência ou por suas consequências. Ao final dessa etapa, foram excluídos
166 trabalhos, restando 37 artigos.
Na segunda etapa, com a leitura dos 37 textos completos, outros 14 artigos foram
MIRANDA et al., 2007 Investiga o consumo de álcool entre estudantes, mas não faz
relação com discriminação ou violência.
JUSTICIA et al., 2007 O estudo tem como sujeitos de pesquisa apenas trabalhadores
universitários, não incluindo estudantes.
ROSA et al., 2010 O trabalho investiga a visão conceitual que estudantes têm da
violência de forma geral, sem abordar especificamente a
discriminação ou o ambiente universitário.
universidades católicas.
N. de para
artigos
elegibilidade 37
completos =avaliados N. de artigos em texto completo
excluídos, com justificativa = 14
CRISÓSTOMO, 2016).
tendência de afastamento do fenômeno e grande rejeição às cotas por não serem entendidas
como melhor forma de se combater esse tipo de discriminação. Curiosamente, nos três
estudos, não se verificou relação entre a autoclassificação racial dos sujeitos e a posição com
relação às cotas raciais.
Trabalho Tipo de
discriminação Sujeitos da pesquisa de sujeitos Método de
Quantidade
análise
NÓBREGA et al., 1996 gênero estudantes de pós-
graduação 4 qualitativo
LIMA; NEVES; SILVA, 2014 raça estudantes de graduação 220 + 114(d) misto
Considerando um âmbito mais geral, Crochík (2005) busca analisar a relação entre
preconceito, ideologia e personalidade. A partir das bases teóricas e de instrumentos
propostos por Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Stanford (1950 apud CROCHÍK,
2005), 139 estudantes participaram da pesquisa, utilizando cinco escalas: escala de
autocategorização política (escala C), escala de tendência ao fascismo (escala F), escala da
ideologia da racionalidade tecnológica (escala I), escala de características narcisistas de
personalidade (escala N) e escala de manifestação de preconceitos (escala P), tendo esta
última questões relacionadas a quatro grupos sociais distintos: judeus, negros, deficientes
físicos e deficientes intelectuais. Com relação à manifestação de preconceitos, verificou-se
baixa correlação com a escala C e alta correlação com as escalas F, I e N, concluindo que há
relação entre personalidade, ideologia e preconceito.
estudo tem como objetivo verificar a associação entre a discriminação e o consumo dessas
substâncias, o último aborda a discriminação de gênero e a violência sexual praticada contra
mulheres usuárias. No estudo quantitativo (COELHO; BASTOS; CELESTE, 2015)
realizado com 1.264 estudantes, constatou-se que há fatores moderadores entre
de drogas, porém as consequências para as entrevistadas mulheres foram muito mais severas,
incluindo abuso sexual e estupro.
(2012) constataram, por meio de um estudo transversal com participação de 2.430 discentes
de uma universidade pública de São Paulo, que 56,3% das mulheres sofreram algum tipo de
violência, independentemente de idade, estado civil, cor da pele, emprego ou renda familiar.
11,4% dos homens declararam ter praticado violência de gênero e 3,3% violência sexual,
independentemente de religião ou da importância dada à religião. Os autores alertam, no
entanto, que a amostra selecionada pode não ser representativa da população de estudantes
da universidade, havendo uma diferença significativa com respeito à idade e área de estudo,
podendo haver um viés de seleção. É sugerida a necessidade de mais estudos nessa mesma
linha, em outras universidades também.
homens tendem a apresentar maior sexismo hostil, enquanto mulheres apresentam maior
sexismo benévolo. Formiga (2007) posteriormente analisa a relação entre esses dois fatores
e valores humanos, concluindo que o critério de orientação valorativa social se relaciona com
o sexismo benévolo, enquanto o pessoal se associa com ambos.
Nóbrega et al. (1996), por outro lado, investiga por meio de um estudo qualitativo
a percepção deste preconceito, que está associado à visão que o cuidado é uma característica
feminina.
homens e estes concordam mais com a ideia do trote como integração. Villaça e Palácios
(2010), com o objetivo de analisar as concepções deste evento entre estudantes de graduação
e, também, para professores em cargos de chefia, apresentam um estudo de caso em que 11
pessoas são entrevistadas com relação a conceitos de abuso e violência e suas percepções do
trote universitário. Conclui-se que há pouca reflexão e não se reconhece a ocorrência de
violência nesses casos, sendo justificados pela tradição e aceitação. Com base em Dejours e
Arendt, as autoras ressaltam a importância da formação para o diálogo.
Por fim, dois estudos tratam especificamente da violência nas relações entre docentes
e discentes do ensino superior. Cruz e Pereira (2013), com base na teoria da violência e do
poder simbólico de Bourdieu, verificam, por meio de entrevistas com 12 estudantes de
graduação, que a violência se manifesta de diferentes formas e em alguns casos não é
e de longo prazo. Cavaca et al. (2010), em estudo realizado com 130 discentes e 40 docentes
de odontologia, constatam também relatos de boas relações, embora estudantes se sintam
mais coagidos por professores do que estes se sentem coercivos.
4%
raça
22% 30%
gênero
sexualidade
hierarquia
13% múltiplos
outro
9% 22%
evidencia a hipótese de que, embora o tema da diversidade e da discriminação seja cada vez
mais discutido nos últimos anos, há pouca pesquisa científica sobre esse assunto justamente
no contexto do ensino superior. A Figura 3 apresenta a distribuição da quantidade de
4%
22%
sudeste
39%
nordeste
centro-oeste
sul
35%
de publicação.
9%
13%
saúde
43% psicologia
educação
sociologia
35%
CONSIDERAÇÕES FINAIS
nacionais.
estudantes universitários como sujeitos de pesquisa por se tratar do local de trabalho dos
pesquisadores, mas não abordam aspectos específicos do fenômeno nesse contexto. A maior
parte dos trabalhos que se referem a casos de discriminação, preconceito ou violência
especificamente no ambiente universitário tem relação com uma avaliação da percepção das
políticas de cotas raciais ou dos trotes universitários.
indica que há uma percepção mais ampla da necessidade de se pesquisar esse assunto.
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2 Graduado em Artes Cênicas e Pedagogia. Especialista em Estética e Filosofia da Arte e em História, Arte e
Cultura. Mestre e Doutorando em Educação (UFPR). Professor do Instituto Federal do Paraná. Email:
everton.ribeiro@ifpr.edu.br
3 Doutora em Educação. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação do Setor de Educação da
Universidade Federal do Paraná. Secretária Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Email: araciasinelli@hotmail.com
A violência escolar tem se tornado um grave problema social. Observa-se que esta
temática tem ocupado o espaço da mídia e dos meios de comunicação, bem como várias
pesquisas voltadas à educação devido ao aumento crescente desta prática no microssistema
escola. Destaca-se, portanto, o ambiente escolar, caracterizado como importante
microssistema de desenvolvimento humano depois do ambiente familiar, como um dos
espaços de manifestação do fenômeno da violência, sendo considerado como um problema
e com certeza, pode-se recorrer a memórias de colegas que passaram por momentos
constrangedores e de agressões em tempos escolares passados.
Os alvos são as crianças agredidas que, por algum motivo, não conseguem se defender das
agressões. Em geral, são crianças introvertidas, tímidas e possuem baixa autoestima. Os
autores são os que praticam as agressões e apresentam características associadas a uma
perigosa liderança. São populares, confiantes e seguros de si. E as testemunhas são aquelas
que não se envolvem diretamente, mas convivem com o fenômeno sem reagirem a ele. São
representados pela maioria dos estudantes, independente do gênero (LOPES NETO, 2011;
2005; FANTE, 2005).
que, de certa forma, legitimam como os papéis sociais devem ser desenvolvidos. Neste
sentido, autores apontam diferenças entre meninos e meninas em relação ao bullying escolar
(LOPES NETO, 2011; 2005; FANTE, 2005; BANDEIRA; HULTZ, 2012; MOURA;
CRUZ; QUEVEDO, 2011). Os meninos, em geral, são os que praticam o bullying físico com
mais frequência e possuem dificuldades de socialização, enquanto as meninas mostram-se
mais propensas a realizarem o bullying psicológico e verbal, fator este, que dificulta a
identificação, por não ser uma forma de violência explícita. As meninas tendem a ser mais
empáticas e prestam ajuda aos alvos mais do que os meninos. Em geral, meninas possuem
maior índice de baixa autoestima do que os meninos.
que nas escolas, mesmo que muito sutil, as meninas são estimuladas a se comportarem de
forma delicada, investindo em uma feminilidade que enfatiza a fragilidade e os meninos, o
papel de competitividade e dominação. A educação formal das meninas ainda mostra os
limites colocados pela sociedade, que as ensinam a brincar de “casinha” e “boneca”, como
uma forma de preparação para os cuidados da casa, o casamento e a maternidade. Por isso,
em muitos momentos, as meninas sofrem bullying ou outras formas de violência por serem
vistas como frágeis e incapazes de se defenderem.
heteronormativo.
a violência atua como um fenômeno mundial, ocorrendo tanto em espaços públicos como
privados. Neste sentido, a escola, como um microssistema de convivência social, pode
manifestar situações de violência e agressão e aquela ainda encontra dificuldades para abordar
a problemática. Assim, os estudos voltados ao bullying e gênero são relevantes para que haja
uma diminuição da violência no ambiente escolar em relação às meninas e os meninos, bem
como pesquisas que aprofundem a temática a fim de promover a paz dentro das escolas e a
cultura da prevenção e do desenvolvimento saudável das crianças.
METODOLOGIA
questão atende em média 140 (cento e quarenta) alunos do 5º ano do Ensino Fundamental,
no período matutino e vespertino. A população que frequenta a escola é de classe
média/baixa e o bairro possui pontos de tráfico de drogas e violência. A escolha do campo
meninos.
(Figura 1), de Aguiar e Ozella (2006), que propõe ao pesquisador a instrumentalização das
significações da realidade no qual o individuo está inserido, trazendo a riqueza do sentido
Estereótipos
Julgamentos
Denúncia
Gênero de valor
Pré-indicadores
Ambiente
e estéticos
delação Ambiente/contexto
Aspectos
Indicadores
morais Viver juntos
Núcleos
Fazer
Gênero
Ser
Autoconceito/autoimagem
Conhecer
Tipos de violência
Características emocionais
Agressão física
Fonte: Os autores
questionário voltadas ao bullying: tipo mais comum; quem mais pratica e quem mais sofre
agressões e as características mais observadas em autores do bullying. Encontraram-se
diferenças entre os gêneros nos diferentes papéis de bullying mostrando que as meninas se
identificaram mais como alvos e testemunhas e os meninos, mais como autores.
É possível notar os tipos de bullyingmais utilizados contra os alvos. Entre eles, o tipo
mais utilizado pelos estudantes foi o verbal (89,4% são xingamentos), na forma de apelidos,
insultos ou deboches, seguido da agressão física (chutes, socos e empurrões – 21% ). Os
meninos em geral utilizaram mais o bullying físico para agredir seus colegas, enquanto as
meninas preferem o tipo verbal. Estes dados confirmam os estudos de Bandeira e Hultz
(2012).
Para trazer mais clareza a este questionamento, propõe o núcleo Viver juntos que
estudantes e traz um alerta sobre a naturalização do fenômeno, além de uma falta de empatia
e senso de coletividade.
trabalho e a empatia com o outro, propõe-se o núcleo Fazer. Os dados mostram que as
meninas são mais empáticas em relação aos alvos que sofrem bullying e que são presenciados.
Elas se mostram também propensas a serem estes alvos (63,1%), por serem frágeis e
sensíveis, o que ressalta a questão da vulnerabilidade apontada por Babiuk, Fachini e Santos
(2013).
No Bullying, os alvos relataram que os ataques são na maioria realizados por autores
meninos, alegando que estes são provocadores, agressivos e insensíveis. Tanto meninos como
meninas identificaram os meninos como autores, na maioria dos casos (86,8%),
produtores da violência, mas que também podem ser frutos de um ambiente permeado de
violência, no qual seu desenvolvimento foi moldado, reproduzindo estes padrões agressivos
em outros contextos, conceituando o termo da validade ecológica (SCHULTZ; DUQUE;
SILVA; SOUZA; ASSINI; CARNEIRO, 2012).
O núcleo Ser valoriza o ser crítico, como individuo, dotado de características únicas.
A importância do trabalho com as crianças nos valores e no respeito ao outro fazem jus a
este núcleo. Observa-se que as meninas sofrem muito com estereótipos que destacam seu
físico e o seu jeito de ser. Bandeira (2009) revela em sua pesquisa que as meninas possuem
índices mais elevados de baixa autoestima do que os meninos. A agressão verbal ganhou
destaque entre a forma de bullying mais utilizada, no que tange ao uso de xingamentos sobre
a forma de ser de cada um, confirmando os estudos de Matos e Jaeger (2015) que dizem que
os alunos que mais sofrem com o bullying são aqueles que possuem diferenças em relação ao
grupo “como obesidade, deficiência física, inteligência acima da média ou dificuldades de
aprendizagem” (p. 355).
o lado da sexualidade. Nesta questão, é importante evidenciar a questão social e cultural que
SILVA; SOUZA; ASSINI; CARNEIRO, 2012). Por isso é muito comum no ambiente
escolar a perpetuação de valores baseado nas relações de gênero. Espera-se da menina que
ela seja passiva, tolerante, compreensiva, caprichosa. Enquanto do menino que ele seja
questionador, líder, ativo, desleixado. E estas características são tidas como naturais, pois
temos no nosso imaginário o que é feminilidade e masculinidade incondicionalmente, sem
nem mesmo refletir que estas características não são inatas, mas construídas culturalmente.
Este tipo de percepção do adulto que educa – especialmente no espaço escolar – interfere
o seu nascimento. Assim, não parece causar estranheza o fato das meninas serem os
principais alvos de atitudes de bullying no ambiente escolar. No entanto, os autores do
bullying também são vítimas deste processo, pois buscam corresponder a um modelo social
de masculinidade que lhe é apresentado muito cedo, alinhado aos padrões heteronormativos.
Em síntese, as relações de gênero são geradoras de violência pelo simples fato de promover
CONSIDERAÇÕES FINAIS
idade escolar – 15%, segundo dados de estudo realizado pela The Globe Alliance for LGBT
Education (2009).
REFERÊNCIAS
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meninos e meninas. Estudos Feministas. Florianópolis. v. 9. n. 2, p. 554-574, 2001.
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paz. Campinas: Verus Editora, 2005.
MOURA, Danilo Rolim de; CRUZ, Ana Catarina Nova; QUEVEDO, Luciana de Ávila.
Prevalência e características de escolares vítimas de bullying. Jornal de Pediatria. v. 87. n.
1, p. 19-23, 2011.
O presente trabalho tem como foco principal refletir sobre a problemática das relações de
identidade, gênero e diversidade sexual nas escolas. O problema que orientou a pesquisa
buscou responder a seguinte questão: como ocorrem os processos de exclusão e fabricação
identitária dos sujeitos que estão inseridos na comunidade escolar em relação às
problemáticas de gênero, orientação sexual e diversidade sexual? O objetivo geral do trabalho
é compreender quais são os mecanismos criados a partir dessa problemática que excluem os
sujeitos que não se adequam a normatividade social imposta. A reflexão elaborada tem como
referência metodológica a pesquisa documental e bibliográfica referendada nos estudos de:
Louro (2001, 2012), Silva (1996), Foucault (2004) entre outros, e nos documentos da
legislação vigente como a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN n.º 9.394 de 1996) e no Plano Nacional de Educação (2014
2024). Em suas considerações finais foi apontado a importância de trazer essas reflexões para
a educação pois os espaços educativos devem ser entendidos como espaços de cidadania e de
garantia e respeito aos Direitos Humanos.
INTRODUÇÃO
1Mestre em Educação, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2017). Possui graduação em Filosofia
(2014), e é especialista em Antropologia Cultural ambas pela PUCPR (2016). E-mail:
eduardo.pva@hotmail.com
2 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2011). Atualmente é professora
pesquisadora do Programa de Mestrado e Doutorado da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail:
sirley.filipak@pucpr.br
(BRASIL, 1988), a Lei n.º 9.394 de 1996 que estabelece as Diretrizes da Educação Nacional
(BRASIL, 1996), a Lei n.º 13.005 de 25 de junho de 2014 que aprova o Plano Nacional de
Educação – PNE 2014-2014 (BRASIL, 2014). O aporte teórico da pesquisa foi
proporcionado pelos estudos elaborados por: Arroyo (2001), Bento (2008), Britzman (1996),
Foucault (2004), Louro (2001, 2012), Ferreira e Luz (2009), Junqueira (2011) entre outros.
de diversidades que adentram seus portões. Diversidades essas que são asseguradas pela
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que garante a todos os cidadãos
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação, bem como a prevalência dos direitos humanos e a igualdade de condições
para o acesso e permanência na escola (BRASIL, 1988).
Por sua vez, a LDBEN n.º 9.394, de 1996, reiterando os princípios constitucionais,
novamente afirma o direito de todos os cidadãos a uma educação baseada na liberdade,
tolerância e igualdade de condições de acesso e permanência na escola (BRASIL, 1996).
Em 2014 com a Lei n.º 13.005 que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE
2014-2024), previsto no artigo 214 da Constituição Federal, assegura em seu artigo 2.º a
Todavia, mesmo com todas essas confirmações legais, na maioria das vezes, as
instituições não estão preparadas para lidar com essa gama de diversidade de gênero, sexual,
étnica e de identidade. E não lidando com a diversidade acaba por omiti-las e/ou excluí-las.
Para Ferreira e Luz (2009) as instituições escolares quando não traduzem essa diversidade
em seus currículos, práticas pedagógicas e vivências educacionais, criam aparatos de
fabricação e subjetivação de sujeitos que promovem uma verdadeira invisibilidade dos
[...] a escola, que se apresenta como uma instituição incapaz de lidar com a
diferença e pluralidade, funciona como uma das principais instituições
guardiãs das normas de gênero e produtora da heterossexualidade. Para os
casos em que as crianças são levadas a deixar a escola por não suportarem o
ambiente hostil é limitador falarmos em “evasão”. No entanto, não existem
indicadores para medir a homofobia de uma sociedade e, quando se fala na
escola, tudo aparece sob o manto invisibilizante da evasão. Na verdade há um
desejo em eliminar e excluir aqueles que contaminam o espaço escolar. Há
um processo de expulsão e não de evasão (BENTO, 2008, p. 129).
que fazem parte da comunidade educativa, pois a “escola entende disso. Na verdade, a escola
produz isso. Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação distintiva” (LOURO,
2012, p. 61), criando e recriando as imagens do bom aluno e da boa aluna, do bom professor
e da boa professora. Essas “imagens quebradas” (ARROYO, 2007) inclui, exclui e subjetivam
os sujeitos por meio de mecanismos de inclusão e exclusão dos indivíduos que são
representados - e por isso são incluídos - ou dos sujeitos que são invisibilizados e por isso
excluídos.
“os processos de subjetivação e de objetivação que fazem com que o sujeito possa se tornar,
na qualidade de sujeito, objeto de conhecimento” (FOUCAULT, 2004, p. 236). Dito de
outra forma, a maneira que os sujeitos se identificam, constroem suas identidades e se
relacionam com os outros e consigo mesmo são intrinsicamente ligados aos mecanismos que
subjetivam o discurso e os sujeitos.
diversos e quase sempre tão naturais que nem sempre é possível identificá-los. Eles estão
presentes nas linguagens utilizadas ou não; nos conteúdos que são considerados aptos a
serem ensinados ou não; no material didático que exprime a concepção de reflexão que a
escola adota e que será levada para casa dos estudantes; no modelo de gestão e organização
que a escola vivencia; e, principalmente nos currículos visíveis e ocultos que permeiam o
ambiente educacional (LOURO, 2012).
O poder que a linguagem assume nas práticas cotidianas escolares (LOURO, 2012)
expressa duas características: as relações de poder existentes no interior das instituições; e
os lugares que são instituídos, e que cada qual deve pertencer (ou não). Essas características
exprimem e fixam as diferenças de gêneros, de raça, de cor, de etnias, de orientação sexual,
O esmagamento que a linguagem promove no cotidiano escolar é tão eficaz que ela:
[...] institui e demarca os lugares dos gêneros não apenas pelo ocultamento
do feminino, e sim, também, pelas diferenciadas adjetivações que são
atribuídas aos sujeitos, pelo uso (ou não) do diminutivo, pela escolha dos
verbos, pelas associações e pelas analogias feitas entre determinadas
qualidades, atributos ou comportamentos e os gêneros (do mesmo modo
como utiliza esses mecanismos em relação às raças, etnias, classes,
sexualidades etc.). Além disso, tão ou mais importante do que escutar o que
é dito sobre os sujeitos, parece ser perceber o não dito, aquilo que é silenciado
– os sujeitos que não são, seja porque não podem ser associados aos atributos
desejados, seja porque não podem existir por não poderem ser nomeados.
Provavelmente nada é mais exemplar disso do que o ocultamento ou a
negação dos/as homossexuais – e da homossexualidade – pela escola
(LOURO, 2012, p. 71).
currículo:
[...] deriva da palavra latina curriculum (cuja raiz é a mesma de cursus e currere)
[...]. Em sua origem currículo significava o território demarcado e regrado
do conhecimento correspondente aos conteúdos que professores e centro de
educação deveria cobrir; ou seja, o plano de estudos proposto e imposto pela
escola aos professores (para que o ensinassem) e aos estudantes (para que o
aprendessem) (SACRISTÁN, 2013, p. 16).
válido ou não a ser ensinado. O currículo assume dois distintos papeis na fabricação
identitária dos sujeitos: um visível que designa as disciplinas que serão ministradas, os
conteúdos ensinados (ou não), as avaliações, as relações de ensino-aprendizagem e a relação
de gestão escolar (que pode ser democrática, participativa ou hierárquica e de poder); e um
oculto que “é constituído por aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazerem parte
sujeitos circundantes.
Nesta perspectiva, podemos analisar os elementos que contribuem para essa prática,
principalmente, quando evocamos no cotidiano escolar as relações de gênero, identidade,
Autores como Libâneo, Oliveira e Toschi (2012), que comentam acerca da influência
que o currículo oculto exerce na educação sugere que, “embora recôndito, atua de forma
poderosa nos modos de funcionar das escolas e na prática dos professores. Tanto isso é
verdade, que os mesmos professores tendem a agir de forma diferente em cada escola em
que trabalham” (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012, p. 44). Por essa razão, é
necessário “desocultar” o currículo, para assim compreender o que esses conhecimentos e
práticas sugerem, para só assim “assegurarmos a escola como espaço e garantia do direito à
consideradas masculinas e áreas tidas como femininas). E muitos desses símbolos não são
exportados do exterior das instituições escolares, ao contrário, muitos deles são criados pela
própria instituição que demarca essa dinâmica formadora de identidades.
(2001) comentando acerca desses mecanismos utilizados pelas instituições escolares, mais
especificamente em relação à homossexualidade reflete que
Esse ocultamento apontado por Louro (2001), também é descrito por Britzman
No imaginário coletivo, tem-se uma ideia que ao tratar dos assuntos ligados à
padrão imposto socialmente, além de não serem representados nas práticas pedagógicas e
nos currículos, sejam expurgados lentamente dos ambientes educativos. Normalmente essa
expurgação é denominada de evasão escolar pelas autoridades competentes e a normalidade
que essas situações apresentam revela que essas práticas são socialmente aceitas e raramente
questionadas.
Para Ferreira e Luz (2009, p. 41) estas questões não podem ser indiferentes e
silenciadas pela educação, pois as mesmas fazem parte do cotidiano da comunidade escolar.
Assuntos como:
educandos. Essa omissão e indiferença não representam uma opção segura, ao contrário, de
acordo com Ferreira e Luz (2009, p. 40-41).
pedagógicas possam garantir conhecimentos, cultura e valores à uma formação integral dos
indivíduos rumo a um reconhecimento e valorização das diversidades sexuais, identitárias,
étnicas, religiosas, de gênero... reconhecimento não do Outro como desigual, estranho,
estrangeiro, sub-humano, inexistente e oculto mas, reconhecimento do Outro como sujeitos
Diante dessa prerrogativa, a Educação em e para Direitos Humanos (EDH) deve ser
A vivência dos Direitos Humanos deve permear todas as práticas educativas, pois
somente conhecendo seus direitos os indivíduos podem reivindicá-los. Neste caminho, a
(do outro)” (PARDO,1996, p. 154). Valorização que não esvazie e apazigue as diferenças e
desigualdades, mas que indague as relações políticas e de poder que as relações de gênero,
identidade e sexualidade trazem em seus âmagos.
transversalidade, por vezes, fica vaga e difusa na legislação cabendo a própria instituição
adotar (ou não) na parte diversificada dos currículos. Além disso, se pensarmos o delicado
momento político que a sociedade brasileira vem enfrentando - basta lembrarmos dos(as)
professores(as) que sofreram represálias por parte da sociedade por trabalharem em sala de
aula questões acerca de gênero, sexualidade e identidade - esses conteúdos podem acabar
por serem tratados de forma leviana e supérflua, não cumprindo assim seus verdadeiros
objetivos.
Humanos pode tornar-se uma importante ferramenta para que as instituições escolares
contribuam para a desconstrução de estereótipos, violências e pré-conceitos ligados as
questões de gênero, diversidade sexual, identidade, classe social e poder econômico, raça e
etnia, religiosidades e demais temáticas que fazem parte do cotidiano escolar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mediante o exposto, concluímos que a educação deve ser entendida com um espaço
democrático de promoção do direito que cada um tem na sua igualdade e nas suas diferenças
(SANTOS, 1997). A educação em e para Direitos Humanos deve proporcionar
conhecimentos capazes de emancipar os sujeitos inseridos no contexto educacional. Esses
conhecimentos devem traduzir e nortear as práticas pedagógicas, os currículos e
A escola não deveria ser um espaço de exclusão, mas sim um espaço de cultivo e
valorização das diversidades existentes na sociedade, não só dos educandos, mas também
REFERÊNCIAS
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e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13005.htm. Acesso
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GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
Essa pesquisa toma a noção de análise do discurso elaborada por Michel Foucault, bem como
os Estudos de Gênero, para destacar e questionar as redes discursivas em que se atrelam as
concepções de gênero e sexualidade expressas nos textos de professoras, utilizados aqui como
corpus, diante do contexto de inclusão escolar – via formação docente no “Curso de
Aperfeiçoamento GDE – Gênero e Diversidade na Escola”, oferecido em 2013/2014 pelo
Setor Litoral, da Universidade Federal do Paraná – UFPR. Logo, dá continuidade às
discussões contemporâneas sobre os processos, simultâneos, de in/exclusão, discutindo sua
relação específica com o gênero e a sexualidade. Concluiu-se que as práticas discursivas e
políticas que não interrogam os critérios de inteligibilidade, para definição dos sujeitos, da
matriz heteronormativa, correm o risco de perpetuá-la, pois deixam de diagnosticar os
limites, artificialmente, produzidos para a materialização de identidades de gênero e
sexualidade tidas como “normativas” ou “diversas” ao promover a inclusão das últimas –
representadas pelas identidades LGBT –, solicitando o respeito e a tolerância das primeiras,
ou seja, adentrar na escola nessas condições pré-determinadas, sob o signo da “diversidade”,
é adentrar no paradoxo da in/exclusão.
Palavras-chave: gênero; sexualidade; discurso; in/exclusão.
INTRODUÇÃO
No contexto brasileiro recente, gênero e sexualidade faz parte tanto das discussões e
políticas de abertura à “diversidade” quanto das iniciativas conservadoras que procuram
minar tais práticas, as quais foram remontadas nesse estudo, sobretudo, no que tem a ver
com as políticas de inclusão escolar. Por esse motivo, nesse ensaio, mesmo diante do fato de
que as “minorias” vêm perdendo o espaço conquistado, a ideia de que as políticas públicas
em questão seriam, exclusivamente, positivas se vê problematizada.
Os textos analisados como corpus foram escritos por professoras no processo seletivo
para o “Curso de Aperfeiçoamento GDE – Gênero e Diversidade na Escola”, oferecido em
2013/2014 pelo Setor Litoral, da Universidade Federal do Paraná – UFPR. A partir das
educacionais, já que as docentes falam do GDE e para ingressar nesse curso, essas falas estão
dirigidas para a seleção e posterior participação no curso de formação. Uma dessas
discursividades recorrentes considera que existem discentes “iguais” e outras “diversas”. Nas
palavras de Michel Foucault:
do Estado para, por meio das políticas públicas, estabelecer formas pré-determinadas de ação
para as pessoas envolvidas no jogo paradoxal da inclusão.
responsabilização das profissionais quanto aos rumos do GDE, no que ele vai ou não produzir
na realidade das questões impostas pelas desigualdades sociais demarcadas pelo gênero e/ou
pela sexualidade.
O ensino proposto, nesses termos, sugere que se a “inclusão” existir, essa se dará,
conforme reforce as práticas normalizadas como tais, e, ao mesmo tempo, pacifique aquelas
que são dissidentes. A política identitária indica, em primeiro lugar, esse mesmo norte,
apontado também pelas professoras, como se pode ler a seguir: “A escola não pode se privar
de (re) conhecer os diferentes sujeitos que por ela circulam e a integram, sob pena de tratar
os desiguais como iguais.” (LT 1)1. Estas discursividades derivam do compromisso do
Estado com a valorização da “diferença”, no intuito de que suas “representantes” estejam
DROIT ET DIVERSITÉ
1A sigla LT significa Letras e PG Pedagogia, elas representam a área de formação inicial da docente.
populações, por exemplo, a LGBT, quando consideramos a luta pelo direto à diferença
(PIERUCCI, 2013). César e Sierra (2016) lembram que Foucault, durante a década de 1980,
igual/diverso, e assim por diante, bem como por suas regulações internas que permitem, ou
não, que determinadas redes discursivas sejam reativadas, em distintos lugares, como no
encadeamento compulsório entre sexo, gênero e desejo (BUTLER, 2016), como exemplifica
o seguinte trecho, ao indicar que as pessoas alojadas sob o signo da diversidade “[...] têm os
que ações governamentais derivadas do biopoder foram efetivas, por meio de biopolíticas
interessadas em contabilizar e regular a população ostensivamente, dificultando o
apontamento de pessoas “excluídas” (LOPES; FABRIS, 2013).
in/exclusão.
REFERÊNCIAS
CÉSAR, Maria Rita de Assis; SIERRA, Jamil Cabral. Gênero, Sexualidade e Educação: a
Crítica feminista e a Teoria Queer. In: HAGEMEYER, Regina Cely C.; GABARDO,
Cleusa Valério; SÁ, Ricardo A. (Orgs.). Diálogos epistemológicos e culturais. Curitiba:
W&A Editores, 2016. p. 205-2016.
LOPES, Maura Corcini; FABRIS, Eli Henn. Inclusão & Educação. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2013.
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer.
2ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença. 3.ed. São Paulo: Editora 34, 2013.
A escola está implicada na produção de corpos e sujeitos atravessados por normas sociais que
determinam padrões de conduta, sobretudo no que se refere às normativas de
gênero. Partindo dessa problematização, apoiada nas perspectivas pós-estruturalistas dos
Estudos de Gênero, esse trabalho consiste em um relato de experiência das atividades de um
projeto de extensão. O projeto teve como proposta orientadora o diálogo sobre os temas
gênero e diversidade com estudantes de Ensino Médio e Fundamental de outra(s) escola(s).
Analisamos, neste relato, os discursos e as representações sobre “mulher”, “violências de
gênero”, “homossexualidade”, “exercício/vivência da sexualidade” etc, que denotam o
modo como as relações, identidades e expressões de gênero são produzidas nas relações
sociais. Consideramos, ao final, que muitas(os) estudantes possuem ideias e
posicionamentos conflitantes, entre uma perspectiva disciplinadora e conservadora e uma
perspectiva crítica e aberta a mudanças, mantendo padrões de conduta transmitidos
intergeracionalmente, de um lado, e propondo novos modos de pensá-los, de outro.
INTRODUÇÃO
e diversidade e suas problemáticas, com um grupo de adolescentes que fez parte do projeto
de extensão intitulado “(Des)construindo tabus e preconceitos para construir a
1Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Psicóloga do Instituto Federal
de Educação do Paraná – Campus Irati. Irati-PR, Brasil. E-mail: thaysavalente@uol.com.br.
2 Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); doutorando em
Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal-RN, Brasil. E-mail:
arthurleocn@gmail.com.
Para o presente relato foi feito um recorte do trabalho realizado durante o ano de
2016, a fim de apresentar a análise dos discursos que circularam nos encontros. Apenas um
grupo de adolescentes foi considerado, por ter sido esse o único a concluir a participação em
cinco encontros previamente organizados dentro das seguintes temáticas: “Gênero e
O método utilizado para a realização desta reflexão pautou-se nas técnicas de pesquisa
qualitativa, partindo de instrumentos de registros das atividades, inspirados no uso dos
recursos de diário de campo e de observação participante, e com a gravação de áudio das falas
das(os) participantes para posterior análise dos materiais (GOLDENBERG, 1997). Por meio
desses registros, identificamos e problematizamos os discursos produzidos a cada encontro,
suas emergências e deslocamentos, sobre os temas, considerando quais práticas e lugares
sociais eles sustentam ou como propõem a sua desconstrução.
A escolha pela escola, como lócus de pesquisa e intervenção, se deu em razão da sua
função como instituição que opera sobre os processos de subjetivação dos indivíduos que
por ela transitam e nela se formam, não apenas por meio da educação formal senão também
das relações sociais (e relações de poder) que se estabelecem nesse ambiente, profundamente
marcadas por questões de gênero, classe social, raça-etnia etc.
humanos dos indivíduos na construção dos seus corpos e no exercício da sua sexualidade.
4 “Isso quer dizer que é a partir da heterossexualidade, tomada como parâmetro da normalidade, que toda e
qualquer expressão da sexualidade é valorada. Configura uma norma, um princípio ordenador segundo o qual
a pluralidade das experiências sexuais é significada” (LIONÇO; DINIZ, 2008, p. 309).
colocadas em xeque na atual conjuntura política legislativa, que conta com uma bancada
religiosa fundamentalista que confronta a perspectiva educacional de promoção e respeito à
dirigem.
Por essa razão, acreditamos, como Graupe e Bragagnolo (2015), que a escola é um
espaço fundamental para discutir as desigualdades de gênero e outros temas relacionados a
opressões em nossa sociedade. É uma instituição capaz de fomentar as mudanças sociais
necessárias, por promover um espaço em que é possível o (re)conhecimento dos vários
modos possíveis de produção existência, trabalhando para que todos sejam respeitadas. E
por tensionar o instituído e desestabilizar as fronteiras e demarcações que mantêm lugares
normativos de existência e anulam potências de vida.
5 Toneli e Amaral (2011) abordam as políticas investidas no corpo a partir das normas de gênero (que circulam
pela e se produzem na sociedade, cultura e política) que produzem vidas vivíveis. Ao definirem parâmetros de
existências possíveis aos sujeitos – as vidas vivíveis – essas mesmas normas produzem vidas sem valor, sujeitos
abjetos, tal como conceituados por Judith Butler.
6 Tais como a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 e os
Parâmetros Curriculares Nacionais, que determinam a abordagem dos temas gênero e diversidade como
transversais no currículo escolar, devendo ser tratados em todas as disciplinas.
questão com estudantes de outras escolas do município de Irati-PR. O objetivo central que
conduziu as ações do projeto foi o de promover um novo olhar para a formação dos sujeitos
(estudantes), inserindo temas que fazem parte do seu cotidiano em um espaço de diálogo
mais crítico e reflexivo, de modo a desnaturalizar condutas e práticas preconceituosas,
opressoras e excludentes e promover a abertura à escuta das suas vivências, entendendo que
elas também são marcadas pela heteronorma, pelo machismo e pelas práticas de violência
em razão do gênero. Nestes diálogos, buscamos cruzar opiniões, posições, ideias e valores, e
tecer possibilidades de agir de modo mais respeitoso e acolhedor frente à diversidade
presente em si e no outro, afetando-se de modo transformador por ela.
A etapa de preparação das ações se deu mediante estudos teóricos, visita a escolas
indicadas8 pelo Núcleo Regional de Educação (NRE) da Rede Estadual de Ensino9 do
município, e programação de cada encontro. Os encontros foram construídos com um
caráter dinâmico e participativo – que horizontalizasse a relação com as(os) adolescentes –
com frequência semanal, e duraram em média de 1h e 30min a 2h cada um. Quanto aos
instrumentos utilizados, recorreu-se a materiais audiovisuais, imagens, frases, notícias,
relatos, Leis e Projetos de Lei, para sensibilização e desencadeamento de debates e reflexões.
9 O projeto foi encaminhado à aprovação da Secretaria Estadual da Educação do Paraná (SEED/PR), uma vez
que a ideia inicial era de realizar os encontros nas instituições estaduais de origem das(os) estudantes
participantes e foi negado pela Superintendente da Educação. Acredito que esse posicionamento faz parte da
reação em cadeia iniciada com a exclusão dos termos “gênero” e “sexualidade” dos Planos de Educação
(Nacional, Estadual e Municipal), em 2015, que é resultado da expressividade do movimento que se expandiu
nacionalmente em 2014 contra o que se denominou “ideologia de gênero”, articulado por entidades e lideranças
religiosas católicas e evangélicas com o apoio político conquistado nas Câmaras Municipais de Vereadores e
Assembleias Legislativas Estaduais, assim como no Congresso Nacional (COSTA NOVO, 2015).
constituídos, fizemos o recorte das ações realizadas com um deles apenas. De todos os
encontros, participaram em média 18 estudantes de séries diferentes, em sua maioria
Sempre as pessoas pensam que têm que ser em prol de alguém. Tipo, por
que você não pode sair de casa do jeito que você se sentir bem? Por que tem
que ser pra alguém e não pra você mesma? [...] Por que sempre tem que
arranjar alguém?! Como se a principal questão fosse você arranjar um
namorado, ou ficar bonita para a sociedade, pra se sentir bem.
[...] eu me sinto sobrecarregada de atividades em casa. [...] então, eu preciso
ser filha, porque eu tenho uma mãe, eu preciso ser esposa, amante, eu preciso
ser profissional... [...] É coisa de mãe, mas eu me sinto sufocada (comentário
da funcionária que acompanhava o grupo de estudantes).
O que se desenha nestes discursos é a imagem de uma mulher que está mais
direcionada aos olhares dos homens e da moral social vigente, e ao cuidado dos outros, em
detrimento do cuidado de si (o que leva a se sentir “sufocada”), estando este cuidado
que para se sentir bem, a mulher deveria corresponder a algumas normas sociais, quais sejam:
a de ser bonita e a de ter um parceiro, homem. Pode-se supor também, dentro dessa lógica,
o projeto de vida que se espera de uma mulher: de preferência, casar-se, cuidar dos afazeres
domésticos, e, melhor ainda, para as normas sociais tradicionais, ter filhos.
O disciplinamento do corpo da mulher pelo olhar do outro, seja ele a moral do social,
ou do homem, pai ou marido, foi recobrado no segundo encontro10, pelos seguintes relatos:
[...] eu tinha a vontade de cortar meu cabelo bem curtinho [...] só que o meu
pai é muito machista [...] e ele não aceitava, de jeito nenhum.
Do lado da minha casa tem um bar; a minha casa fica atrás. Tipo, a gente
não pode usar calção porque vai se mostrar pros homens que passam ali. [...]
Como que a gente vai se sentir bem usando as roupas que os outros querem?
[...] Eu tinha que ir trocar de roupa porque me olhavam diferente.
Há aqui uma negação do uso que a mulher pode fazer do próprio corpo, o que se
repete, não apenas nas relações com o pai, ou parentes próximos, mas pode se reatualizar
com futuros parceiros, que tolhem a liberdade e autonomia da mulher ao dizerem o que
deve ou não vestir, como deve ou não se comportar, com quem deve ou não estabelecer
relações próximas, quando pode ou não pode sair etc. E uma rigidez moral nas repreensões
é contrastada na resposta à seguinte frase: “Um viadinho brasileiro foi espancado, aí é que
10
Quando as(os) estudantes responderam, em uma folha de papel, às seguintes perguntas: “O que você já
deixou de fazer por ser mulher/homem?” e “O que você sente que deve fazer por ser homem/mulher?”
Estes discursos revelam o modo corretivo com que se tende a lidar com aqueles
sujeitos que desviam das normas sociais, e um modo de exercer a ameaça ou provocar o
medo naqueles que puderem vir a se tornar desviantes ou viverem experiências semelhantes,
ou mesmo que podem entrar em contato, em relações cotidianas, com pessoas que vivem
com o vírus HIV – o que leva à discriminação e exclusão social.
perduram – não sem sofrimento – dentro de uma complexa trama de outras relações que
dificultam o rompimento e que podem levar até mesmo à morte – o feminicídio, mas
também à morte simbólica de mulheres que se perdem como sujeitos de suas próprias vidas.
distanciando-se de tudo o que é considerado feminino, até mesmo com repulsa e violência.
A heterossexualidade obrigatória opera pela exclusão ou obnubilação daquilo que há de
feminino no homem e de masculino na mulher, provocando o distanciamento (“divisão
No quarto encontro, nos valemos de uma dinâmica na qual, em cada canto da sala
foi fixada uma folha de cartolina com as seguintes respostas: “Concordo”, “Discordo” e “Não
Sei”. As(os) participantes, ao ouvir os enunciados lidos, escolheram em qual lado se
posicionar, como melhor refletia sua opinião. Nesse encontro, algumas reflexões foram feitas
sobre a autonomia da mulher quando da decisão de práticas sexuais dentro de
Eu discordo, porque a pessoa é livre pra fazer o que ela quiser, namorado
nenhum vai obrigar ela fazer algo que não queira. (Menino)
Porque eu vou casar pura [...] que eu não vou aprontar antes da lua de mel;
o que eu aprendi com a minha vó (Menina)
11Que dizem respeito a uma população que não dispõe de nenhum dispositivo legal para atender
às suas demandas de acesso à identidade e apenas recentemente passou a ser contemplada
nas políticas de saúde do SUS, com a publicação da Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de
2013.
12
É preciso ressaltar que a homossexualidade já não é mais considerada patologia para a OMS desde 1990 –
na última versão do CID-10, o termo “homossexualismo” foi excluído. Porém, a transexualidade ainda é
efetivamente considerada uma patologia, constando como “transtorno de identidade de gênero” neste mesmo
manual e servindo à autorização das cirurgias de transgenitalização realizadas pelo SUS. A grande luta dos
movimentos trans hoje é justamente a despatologização; luta que também vendo sendo travada pelas(os)
profissionais da Psicologia, por meio da representação do Conselho Federal de Psicologia.
O quinto encontro foi realizado com uma proposta de encerramento do projeto por
meio de uma oficina de cartazes. Os cartazes contemplaram os seguintes temas: a
CONSIDERAÇÕES FINAIS
tranquilo ou fácil. Os entraves são dos mais variados, e advém de lugares distintos. Mas
também é um trabalho que revela o quanto se tem a dizer sobre o tema. De modo que, por
meio das intervenções relatadas, construímos espaços de troca de reflexões a respeito de
vivências marcadas por condições de desigualdade de gênero e por práticas de violência.
Neste processo, observamos e compreendemos as nuances, presentes nos discursos, entre a
naturalização de padrões de conduta e de práticas reproduzidas dentro do sistema binário e
das tecnologias que sustentam a heterossexualidade compulsória pela qual os sujeitos são
constituídos, e o questionamento desses padrões e condutas a partir de uma perspectiva mais
emancipadora e libertária. Acreditamos que os diálogos e trocas podem reverberar e se
estender a outras relações e vivências das(os) adolescentes, desestabilizando, de algum modo,
o instituído, e dando espaço à reinvenção das relações de gênero desde um lugar que
privilegie relações mais justas, equânimes e respeitosas, pelas quais possam aprender mas
também serem afetadas(os), transformadas(os), pelas diferenças.
Este trabalho publiciza apontamentos de uma pesquisa de mestrado realizada com foco no
curso de formação docente em Gênero e Diversidade na Escola (GDE), em nível de
aperfeiçoamento, ofertado pela Universidade Federal do Paraná entre os anos de 2013-2014.
Utilizou-se numa primeira etapa da pesquisa a análise documental como método,
investigando especificamente 145 Projetos Interventivos de Aprendizagem (PA) de
participantes do curso, identificando estratégias de promoção de equidade no ambiente
escolar. Posteriormente, a técnica da entrevista semi-estruturada também foi utilizada,
visando uma análise qualitativa. O objetivo foi problematizar acerca deste complexo e
relevante tema contemporâneo, analisando as relações entre diferentes interlocutores/as
envolvidos/as. Por meio da análise dos dados foi possível identificar e categorizar diversas
estratégias de promoção de equidade no ambiente escolar da rede pública de ensino do estado
do Paraná, que emergiram a partir de demandas de violência(s), discriminação, desrespeito
e desigualdade, vivenciadas diariamente por professores e professoras e seus/suas estudantes.
As categorias identificadas nos PA foram: a) Ações de respeito à diversidade sexual; b)
Minimização de desigualdades entre homens e mulheres; c) Redução de violência; d)
Promoção da igualdade étnico-racial; e) Inclusão de pessoas com deficiência. A partir desta
pesquisa, observou-se que o curso GDE resultou em estratégias diretamente aplicadas nos
cenários escolares e que docentes egressos/as desempenham um papel central na
multiplicação destas estratégias, transformando temas considerados por alguns como ‘tabus’
em conhecimento crítico e consciente junto dos/as estudantes.
1Pedagoga pela PUC-PR. Mestra em Desenvolvimento Territorial Sustentável pela UFPR. E-mail:
renazetti@gmail.com
2Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina – UNIFESP.
Os anos de 2015 e 2016 também foram marcados pela voz das mulheres que
estiveram nas ruas no Brasil manifestando o direito sobre seus corpos. As manifestações
foram midiatizadas de várias formas e houve grande visibilidade nas redes sociais através das
denúncias de assédio sexual, entre outras formas de violência. O ENEM – Exame Nacional
do Ensino Médio, promovido pelo Ministério da Educação (MEC), levou os/as
candidatos/as à reflexão em várias regiões do país no momento de escrever a redação, pois
tratava da violência contra a mulher, bem como citava a filósofa Simone de Beauvoir,
precursora do movimento feminista na França, que alertava já na década de 1950 para as
desigualdades entre homens e mulheres. Num momento de tensão política no país, muitas
mulheres se engajam na luta para fazer valer direitos que historicamente foram adiados e até
mesmo negados.
direitos entre mulheres e homens não só no país como em todo o mundo. Apesar de
contemporâneo, rompe-se a barreira do tempo para apresentar que essas e muitas outras
Beauvoir (1949), Heleieth Iara Saffioti (1979, 2001), Joan Scott (1995), Judith Butler (2008),
que apresentam características próprias em cada momento histórico, mas sempre almejando
a igualdade de direitos, hegemonicamente alicerçada às questões políticas, sociais,
econômicas e de poder de cada país.
O contexto escolar, por sua vez, permeado por normas, regras e controles é também
território em que diferenças e diversidades se manifestam e mostram suas nuances,
desvelando muitas vezes falta de informação por parte de educadores/as e intolerância entre
estudantes e seus pares. Ainda que de forma bastante recente, estudos e estratégias calcadas
em políticas públicas relacionadas a gênero e diversidade foram surgindo nas últimas décadas.
a educação básica, a partir dos olhares de egressos/as de um curso específico desta área,
considerou-se também outras políticas vigentes a nível federal e estadual, no caso no Paraná,
como legislações, deliberações, parâmetros curriculares, projetos, programas e conferências,
demonstrando assim suas intersecções manifestadas nos espaços escolares. Discute-se o tema
a partir das relações de poder de Joan Scott (1995), e das intersecções com a Educação
apresentadas Guacira Louro (1997, 2001), Joana Maria Pedro (2005) e Daniela Auad (2006),
arraigadas hegemonicamente numa sociedade heteronormativa e sexista, em que homens e
mulheres, meninos e meninas são tratados/as de forma desigual nos diversos espaços sociais,
inclusive na escola.
humanos, visando contribuir para que a escola não seja um instrumento da reprodução de
preconceitos, e sim, um espaço mais plural e democrático.
e à diversidade de orientação sexual permitiu que os processos fossem analisados à luz dos
direitos humanos, inibindo assim, todas as formas de discriminação.
A nível nacional, o GDE vem sendo ofertado tanto por meio de turmas presenciais
quanto semi-presenciais, ou seja, educação à distância (EaD). Em relação ao formato, o
cardápio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
METODOLOGIA E ANÁLISE
4Modular
Object-Oriented Dynamic Learning Environment – um software livre de apoio à aprendizagem, que é
executado em ambiente virtual. Esse programa permite a criação de cursos online, páginas de disciplinas,
grupos de trabalhos e comunidades de aprendizagem.
dos temas abordados ao longo da formação. Para esta pesquisa documental, os PAs foram
extraídos da plataforma virtual do curso, e após leitura sistemática foi possível depreender
cinco categorias de análise, que foram trabalhadas em outras fases da pesquisa.
RESULTADOS
Em relação ao público-alvo dos PA, a pesquisa documental revelou que 68% (n=63)
dos foram desenvolvidos tendo como público-alvo estudantes e 19,5% (n=18) com
professores/as, levando em conta também que o projeto poderia ser aplicado paralelamente
com mais de um tipo de público. Os PA foram desenvolvidos nas escolas de atuação
profissional dos/as participantes no período de abril a maio de 2014. Todos/as oriundos/as
O perfil dos/as egressos/as revelou que 58% (n=43) são professores/as da rede pública
de ensino, atuantes como docentes da educação básica, seguidos por 13,5% (n=10) que
atuam como pedagogos/as, sendo 9,5% (n=7) em função administrativa/técnica, 8,1% (n=6)
responderam como outro, mas não especificaram, 5,4% (n=4) na direção, 4,5% (n=3) como
coordenador ou coordenadora, e 1,35% (n=1) não respondeu.
que os conhecimentos científicos sejam respondidos à luz das curiosidades dos alunos”.
Assim, tal definição vai ao encontro do relato apresentado em um dos PA que tratava a
respeito da temática bullying e homofobia pelo fato de estar acontecendo com frequência na
escola em que o cursista/docente lecionava. O professor descreve que o projeto foi
É importante frisar que 16%, ou seja, vinte e quatro PA sinalizaram contribuir com
a redução de violências no contexto escolar, particularmente situações de bullying e
homofobia, indicando conforme estudo recente de Machado e Wanzinack (2014) que o
fenômeno é compreendido como um problema no âmbito escolar, sinalizando um alto índice
Por fim, verificou-se que a estratégia de formação em GDE vem demonstrando ser
uma política pública de caráter intersetorial eficiente e ao mesmo tempo desafiadora na
promoção de uma educação inclusiva, de equidade e uma cultura de paz, ancorada na
formação de novos/as multiplicadores/as (docentes) para o exercício da igualdade de gênero
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
AUAD, D. Educar meninos e meninas. Relações de gênero na escola. São Paulo: Editora
Contexto, 2006.
BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Fatos e mitos. 4. ed. São Paulo: Difusão europeia do
livro, 1949.
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto
Alegre, v.20. n.2, p.71-99, jul/dez.1995.
INTRODUÇÃO
1Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Psicóloga do Instituto Federal
de Educação do Paraná – Campus Irati. Irati-PR, Brasil. E-mail: thaysavalente@uol.com.br.
“assinalamento de sexo”, e imprimem nele não apenas uma marca biológica, mas subjetiva e
social, abrindo (ou fechando) caminhos, pelo nome, roupas, quarto, brinquedos, modos de
tratamento para com o corpo-sujeito, para a ocupação – ou desocupação – de um lugar de
existência em função do gênero. Sobre esse sujeito e seu lugar são depositadas expectativas
[...] é dado como pressuposto que quem tem pênis é “homem” e, portanto,
deve sentir-se “masculino” e comportar-se como tal. De modo análogo,
quem tem vagina é “mulher”, deve sentir-se “feminina” e comportar-se como
tal. Entre tais comportamentos, desejos e práticas sexuais são fundamentais.
2 Butler (2003) considera que o gênero, por não possuir essência nem existência pré-discursiva – assim como
o são corpo e sexo – é um ato. São os estilos corporais que se expressam no corpo, é pela representação
corporal repetida estilística e esteticamente no corpo que o gênero se constitui. Contudo, “Como efeito de
uma performatividade sutil e politicamente imposta, o gênero é um ‘ato’, por assim dizer, que está aberto a
cisões, sujeito a paródias de si mesmo, a autocríticas e àquelas exibições hiperbólicas do ‘natural’ que, em seu
exagero, revelam seu status fundamentalmente fantasístico” (BUTLER, 2003, p. 198-199; 211), de modo que
o sujeito pode subverter, pelo corpo, as repetições pelas quais se define e se mantém a divisão binária dos
gêneros: como se sentar, como e o que vestir, como sentir, como se relacionar, etc., como ser (e ser
lido/interpretado como) menina/mulher e ser menino/homem; criando, assim, novos estilos – não
normativos.
3A heterossexualidade compulsória é determinada pela divisão dos sexos, divisão socialmente imposta para a
instituição do casamento e para a divisão sexual do trabalho, operando pela limitação binária do gênero, as
dicotomias feminino-masculino, homem-mulher, e pela coerção da sexualidade feminina. Exclui, assim, o que
há de feminino no homem e de masculino na mulher, provocando o distanciamento das características que os
aproximam (BRAGA, 2011) por mecanismos que operam nas mais diferentes instituições, incluindo a escola.
a ver outras estratificações e marcações sociais que se sobrepõem e/ou fazem surgir novos
mecanismos de exclusão, discriminação e violência.
Portanto, não podemos falar mais de gênero nas escolas desvinculado de marcadores
sociais como identidade de gênero, orientação sexual, classe social, raça-etnia etc. Também
não podemos mais falar apenas de homens e mulheres pautados na divisão binária de gênero,
em sua concepção biologicista (BUTLER, 2003), ou seja, pautada na diferença sexual, pois
as discussões sobre gênero requerem um olhar sobre a diversidade.
queremos da escola? Como queremos educar? Educar para quê e como? Como enxergamos
os sujeitos-estudantes e de que modo queremos que eles participem das práticas
Se a escola pode fomentar mudanças, essas são possíveis por meio dos atores que
compõe essa instituição, de tal modo que a atuação da(o) profissional da Psicologia nesse
contexto, quaisquer que sejam suas propostas de ação, e aqui, mais especificamente aquelas
referentes à gênero, sexualidade e diversidade, deve estar comprometida(o) a fomentar novos
modos de invenção do sistema educativo mas, sobretudo, de subjetividades (sendo essas
aquelas que mobilizam a transformação do sistema). Para tanto, tomo emprestada as
convocações que Zanella e Molon (2007) e de Kupfer (2004) fazem, desde diferentes lugares,
sobre a abertura de fissuras no contexto escolar, respectivamente: “Nas escolas pulsam vidas
que clamam por espaços de escuta e vazão para que possam eclodir (...) que podem contribuir
para a transformação daquele lugar que aprisiona em lugar de invenção” (2007, p. 264), e se
os discursos e práticas institucionais tendem à repetição, as falas e modos de existência dos
sujeitos provocam rachaduras naquilo que está cristalizado e “É exatamente como ‘auxiliar de
produção’ de tais emergências que um psicólogo pode encontrar seu lugar” (2004, p. 59; grifo da
autora).
A partir deste lugar, este trabalho consiste no relato de experiência das ações
desenvolvidas no contexto do Instituto Federal do Paraná – IFPR, Campus Irati, sobre os
temas gênero e diversidade, desdobrados na problematização das seguintes temáticas:
No ano de 2015, realizamos uma oficina, intitulada “O que pode o corpo?”, sobre
gênero, diversidade e práticas de violência, no I Seminário de Inovação, Pesquisa e Extensão
cotidiano (a questão da exploração dos corpos e os desejos, sobretudo). Para este momento,
foram utilizados recursos audiovisuais (vídeos e material em slide), além de materiais de
sensibilização, como imagens e tarjetas de papel com conceitos e questionamentos para
incitar o diálogo. A oficina foi iniciada com uma experimentação estética, com imagens
(fotos de pessoas que não correspondem às normativas pautadas na divisão binária dos
gêneros) e cartazes com frases provocativas sobre diversidade sexual, limites e potencialidades
servidoras(es). O que revelou a dificuldade das pessoas têm em implicar com temas como
este, visto que essa foi uma atividade proposta em contraturno e que muitas(os) docentes
mantiveram suas atividades de ensino no mesmo horário em que ocorrerria a atividade.
Assim foi também nos outros dois dias. Apenas uma professora propôs a alteração das
atividades de ensino do dia para a participação no cine-debate.
o que fez refletir sobre a desqualificação das/dos profissionais que deveriam acolher as vítimas
mas acabam por culpabilizá-las ou revitimizá-las no atendimento (tal como acontece no
filme, quando o policial que recolhe informações sobre a ocorrência, pergunta: “Mas por
que você não simplesmente age como mulher?” e “Durante o ato você estava em que
posição?”).
trajetórias de vida, marcados pela afirmação identitária e pela orientação sexual não
normativas, que atravessam a autoaceitação, a aceitação e respeito da família, o contexto
escolar e o olhar e tratamento dos outros (pares), a religião etc.; e as bolsistas do projeto de
extensão, que também participaram tratando da homofobia na família e na escola como um
problema grave de violência a ser firmemente combatido.
Em junho, realizei uma intervenção com o primeiro ano do Ensino Médio Técnico
de masculinidade hegemônica que faz com essa prática seja perpetuada, e sugestões de como
essas violências podem ser enfrentadas, denunciadas e transformadas. Para o ato, contamos
com a participação de estudantes do IFPR-Campus Irati que, no momento do intervalo
entre as aulas do período e sem aviso prévio às turmas, a professora de História do campus
iniciava a leitura do poema “A noite não dorme nos olhos das mulheres” e era seguida
que o corpo das mulheres, e sobretudo da mulher negra, ocupa como objeto de desejo e
exploração sexual e de dominação masculina dentro da sociedade capitalista e machista que
reproduz esse modo de captura dos corpos-subjetividades das mulheres.
2016) citado, realizamos cinco encontros com estudantes de uma escola estadual do
(visto que as ações teriam, a princípio, como lócus, as próprias escolas), acabamos executando
o trabalho completo com apenas uma escola. Com as outras duas, apenas iniciamos, sem ter
sido possível dar continuidade.
Os encontros eram realizados uma vez por semana, completando cinco, e organizados
de 2016), foram elaborados dois jogos interativos e pedagógicos: um jogo da memória sobre
de assuntos importantes e que exigem um olhar crítico e também a implicação dos sujeitos
sobre as problemáticas que envolvem. As(os) estudantes do IFPR-Irati poderão fazer uso
LGBTfobia, o “Em debate: fobias de gênero”, no qual evidenciamos não apenas a discussão
sobre homofobia, senão também sobre transfobia, ao propormos um cine-debate do filme
“Meu nome é Jacque” (que ainda não está em circulação comercial, mas que foi liberado
para exibição após autorização da produtora) e uma roda de conversa que teve como
participantes uma travesti negra, uma transexual descendente de índios kaigang e
e expressões, atenuando a distância do que é fixado como “normal” dentro dos parâmetros
da cis-hetero-normatividade) que precisam fazer para que suas existências sejam passíveis de
aceitação (atravessada por violências e discriminações) nos mais diversos lugares e fazeres.
Transviado”5.
Essas foram algumas das ações realizadas desde 2015 e outras estão em curso no
Essas ações ainda refletem o lugar de resistência desde o qual este trabalho se dá,
frente a todas as forças contrárias que incidem sobre a inclusão destes temas no espaço
escolar, para que voltem a ser ou permaneçam alijados dele.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pudemos perceber, por meio das ações realizadas até agora, de que modo as(os)
direitos sexuais e reprodutivos etc. Inserir os temas gênero e diversidade na escola é uma
ação de prevenção e combate às violências de gênero, sejam elas contra as mulheres ou contra
a população LGBT e também é uma provocação para a reinvenção das relações de gênero
desde um lugar que privilegie relações mais justas, equânimes e respeitosas. Porque a
diversidade nos interpela e é interessante que, diante dessa interpelação, possamos re
descobrir a nós mesmos, respondendo às perguntas que não ousamos responder, ou, ainda
melhor, fazendo as perguntas que não ousamos nos fazer. Por essas razões é que defendo a
proposição de formações que possam qualificar trabalhos (de docentes e outras/os
profissionais) dentro de uma perspectiva mais inclusiva e que responda aos atravessamentos
KUPFER, M. C. O que toca à/a Psicologia Escolar. In: KUPFER, M. C.; MACHADO,
A. M.; SOUZA, M. P. R. (Orgs.). Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. Capítulo 3. p. 55-65.
LOURO, G. Corpo, escola e identidade. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 25, n. 2,
'jul./dez. 2000, p. 59-76. Disponível em:
<http://www.seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/viewFile/46833/29119>. Acesso em
20 de agosto de 2017.
INTRODUÇÃO
2 Doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná. Docente no Centro
Universitário Autônomo do Brasil (UNIBRASIL) e na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).
Advogada.
Jurídico da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) externou grande preocupação com o
panorama educacional vigente, indicando urgente necessidade de se transformar o
transformadoras, elegeu-se a interface dos estudos feministas com o direito como conteúdo
a ser lecionado (e construído) em disciplina facultativa – em formato de módulo – ofertada
3 “No caso do curso jurídico, a dificuldade é particularmente agravada porque sua crise não pode ser isolada
da crise do direito e do Estado, neste final do século XX... Há forte consenso entre todos os teóricos,
especialistas e operadores do direito de que os cursos jurídicos não respondem mais às demandas da sociedade
atual, ou o fazer de modo inadequado ou insuficiente.” (In: LÔBO, Paulo Luiz Neto. Critérios de
avaliação externa dos cursos jurídicos. In: Ensino jurídico. Parâmetros para elevação de qualidade e avaliação.
Brasília: OAB, 1993. p. 33). A articulação da Comissão de Ensino Jurídico da OAB ensejou a edição da Portaria
1.886/1994 do MEC, regulando as diretrizes curriculares e o conteúdo mínimo dos cursos jurídicos de
graduação no Brasil. A título de exemplificação, citam-se inovações qualitativas como a imposição de
monografia final, o cumprimento de carga horária de atividades complementares e a obrigatoriedade de
cumprimento do estágio de prática jurídica. (MARTINEZ, Sérgio Rodrigo. A evolução do ensino jurídico no
Brasil. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Sergio_Rodrigo
a0cf2a7769d948080.pdf. Acesso em: 24 de julho de 2017).
Martinez/publication/266185959_A_EVOLUCAO_DO_ENSINO_JURIDICO_NO_BRASIL/links/54dbfa2
4MARTINEZ, Sergio Rodrigo. Manual da EducaçãoJurídica: Inconsciente Coletivo nos Cursos de Direito
- Mitos e Limitações Curriculares e Metodológicas - Uso do Pentagrama Pedagógico como Instrumento
Reurbanizador. Juruá, 2003.
5 Sobre o assunto, ver DE CARVALHO, Cláudio Oliveira de; MACEDO JR., Gilson Santiago. Educação
jurídica e barbárie: quem não beber deste cálice morrerá. Disponível em:
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/23/educacao-juridica-e-barbarie-quem-nao-beber-deste
calice-morrera/. Acesso em: 24/07/2017.
ensino6, as quais não integram, a rigor, a grade regular do curso de graduação em direito7.
Ficou a critério, portanto, das alunas e dos alunos, independentemente do período cursado,
a seleção dos módulos que pretendiam frequentar durante os semestres letivos.
quantitativa de discentes que se verifica nas disciplinas regulares, optou-se pela inserção de
metodologia alinhada à perspectiva dialógica do processo de ensino-aprendizagem8,
Além das conversas realizadas nos encontros presenciais, ocorridos entre 28 de março
e 20 de junho de 2017 (com, aproximadamente, uma hora e meia de duração cada), foram
indicados variados textos para reflexão do conteúdo aplicado em sala, de natureza não
exclusiva à da categoria científica, e que englobaram temáticas desde a introdução aos estudos
9 São eles: APOSTOLOVA, Bistra Stefanova; FONSECA, Lívia Gimenes dias da; SOUSA JR., José Geraldo
de(org.). Introdução Crítica ao Direito das Mulheres. Introdução crítica ao direito das mulheres. Brasília:
CEAD/FUB, 2011; COX, Laverne. “Não sou eu uma mulher?”. Disponível em:
https://traduzidas.wordpress.com/2013/07/14/se-nao-sou-eu-uma-mulher-laverne-cox/. Acesso em:
26/07/2017; iii) PEREIRA, Ana Cláudia. Feminismos e justiça social: as lutas das mulheres negras não cabem
em uma única palavra. Disponível em: http://blogueirasfeministas.com/2013/07/feminismos-e-justica-social
as-lutas-das-mulheres-negras-nao-cabem-em-uma-unica-palavra/. Acesso em: 26/07/2017; iv) CAMPOS
RUBIO. Arantza. Aportaciones iusfeministas a la revisión crítica del Derecho y a la experiencia jurídica. In:
Mujeres y Derecho: Pasado y presente. I. Congreso multidisciplinar de la Sección de Bizkaia de la Facultad de
Derecho. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2874672.pdf. Acesso em: 26/07/2017;
v) FRASER, Nancy. O feminismo, o capitalismo e astúcia da história. In: Revista de Ciências Sociais. Dossiê:
Contribuições do pensamento feminista para as ciências sociais. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/4505. Acesso em: 26/07/2017 e; vi) KASS,
Hailey. que
https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=247132.
O é Acesso em: 26/07/2017.
transfeminismo?. Disponível em:
diálogos de tais conhecimentos com o direito, os quais serão descritos nos tópicos seguintes.
10Nesse sentido, Dagmar E. Meyer explica que “embora os movimentos de mulheres e o feminismo tenham
construído trajetórias que podem ser contadas de diferentes formas e sob diferentes óticas, as historiadoras,
em geral, registram sua história mais recente, fazendo referência a uma primeira e segunda ondas do movimento
feminista” (In: Gênero e Educação: teoria e política. In: FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre;
LOURO, Guacira Lopes (orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação.
Petrópolis: Vozes, 2013. p. 13).
11 Idem.
12 Ibidem, p. 14.
13O texto pode ser visualizado no seguinte endereço eletrônico:
https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/1919.
doméstico, impondo à figura feminina o estado civil de relativamente incapaz pela contração
de matrimônio, além de destinar expressamente ao sujeito masculino a chefia das relações
familiares.
14Em suas palavras, a autora enuncia que “el discurso del derecho sobre la mujer ha provocado que las
feministas desarrollen una serie de elaboraciones teóricas sobre la norma jurídica y su lenguaje, así como sobre
el sujeto de derecho. Los tres enfoques: ‘el derecho es sexista’, ‘el derecho es masculino’ y ‘el derecho tiene
género’ (...) resumen los esfuerzos de las feministas em su empeño de dar cuenta de la forma que el derecho
piensa sobra la mujer” (CAMPOS RUBIO. Arantza. Aportaciones iusfeministas a la revisión crítica del
Derecho y a la experiencia jurídica. In: Mujeres y Derecho: Pasado y presente. I. Congreso multidisciplinar de
la de de la
https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2874672.pdf.
Sección Bizkaia Acesso em:
Facultad de 26/07/2017).
Derecho. Portanto, procurou-se
Disponível em:
destacar, nas conversas em sala de aula, de que maneira o direito poderia ser considerado sexista e masculino,
e se poderia ser extraído um gênero do sujeito para o qual se legislou.
15 Nesse sentido, ver DIGIORGI, Beatriz; PIMENTEL, Silvia; PIOVESAN, Flávia. A figura/personagem
mulher em processos de família. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993.
empregadas domésticas. Por fim, breves considerações sobre julgados acerca de assédio
sexual foram tecidas, e foi possível observar o discurso machista impregnado em tais
decisões.
Parece interessante pontuar que tal encontro concentrou o mais acalorado debate.
Parte da turma inclinou-se pela defesa dos mecanismos de penalização para o avanço da
temática de gênero ao passo que outra parte, pela descrença em tais movimentações. Com
efeito, a reação reflete as inquietações das feministas do campo jurídico, que se veem às
voltas com os limites e as possibilidades oferecidos pela ferramenta da criminalização.
Além disso, mencionaram as(os) discentes terem sentido falta de alguns temas,
como: situação das mulheres e o sistema de segurança pública; abordagem mais concreta da
condição de mulheres negras e trabalhadoras; e questões sobre corporalidade feminina.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
17Uma das autoras envolveu-se na 5ª turma do Curso de Promotoras Legais Populares, quando organizado
em Curitiba (PR), em 2016. A propósito, o curso “configura-se como uma ação afirmativa em gênero, baseada
na visão do direito conjuntamente construído a ser concretizada por meio da Educação Jurídica Popular (EJP).
Essa proposta educativa possui como um de seus elementos principais proporcionar a todas as estudantes um
espaço ativo de fala, a fim de que se libertem da antiga forma de educação na qual um/a ensina e o/a outro/a
aprende, com o objetivo de capacitá-las para atuarem na defesa dos direitos femininos e na transformação da
realidade social” (DA FONSECA, Lívia Gimenes Dias; CUSTÓDIO, Cintia Mara Dias. Projeto Direitos
Humanos e Gênero – Promotoras Legais Populares do Distrito Federal: fundamentos e práticas. In:
APOSTOLOVA, Bistra Stefanova; FONSECA, Lívia Gimenes dias da; SOUSA JR., José Geraldo de(org.).
Introdução Crítica ao Direito das Mulheres. Introdução crítica ao direito das mulheres. Brasília: CEAD/FUB,
2011, p. 27. Por outro lado, o minicurso é iniciativa da outra autora em parceria com pesquisadora do campo
e se direciona ao público universitário.
educacional.
REFERÊNCIAS
APOSTOLOVA, Bistra Stefanova; FONSECA, Lívia Gimenes dias da; SOUSA JR., José
Geraldo de(org.). Introdução Crítica ao Direito das Mulheres. Introdução crítica ao direito
das mulheres. Brasília: CEAD/FUB, 2011.
BARRETO, Vera. Paulo Freire para educadores. São Paulo: Arte & Ciência, 1998.
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Critérios de avaliação externa dos cursos jurídicos. In: Ensino
jurídico. Parâmetros para elevação de qualidade e avaliação. Brasília: OAB, 1993.
PEREIRA, Ana Cláudia. Feminismos e justiça social: as lutas das mulheres negras não cabem
em uma única palavra. Disponível em:
http://blogueirasfeministas.com/2013/07/feminismos-e-justica-social-as-lutas-das
mulheres-negras-nao-cabem-em-uma-unica-palavra/. Acesso em: 26/07/2017.
RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a “economia política do sexo”. Tradução de
Christine Rufino Dabat, Edileusa Oliveira da Rocha e Sônia Corrêa. Recife: SOS Corpo,
1993. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/1919. Acesso
em: 26/07/2017.
1Advogada, graduada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pesquisadora do Núcleo de Estudos em
Sistemas Direitos Humanos da UFPR – NESIDH, membro da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero
de
da OAB/PR, Coordenadora Jurídica de Organismos Internacionais do Grupo Dignidade. E-mail:
ananda.hadah.rp@gmail.com.
2Defensora Pública, graduada pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas, Coordenadora
do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Paraná. E-mail:
camillevc@gmail.com.
3Advogada, graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), mestranda em Direito pelo
Centro Universitário Internacional UNINTER. Presidente da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero
da OAB/PR. Integrante do Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM/Brasil).
E-mail: sandrabazzo@hotmail.com.
Nas últimas décadas o Estado Brasileiro tem sido pressionado por diversos segmentos
sociais pelo reconhecimento da legitimidade de suas diferenças. Neste contexto, a escola é
vista como espaço estratégico para a promoção da igualdade, enfrentamento de preconceitos,
ideológicas. Tal movimento tem como base uma combinação de ideias oriundas do
“libertarianismo”, do fundamentalismo religioso e do antigo anticomunismo4, e corrobora,
principalmente após a Lei nº 13.005/2014, para o aumento de propostas de planos de
educação (PEs) municipais e estaduais com o intuito de extinguirem os debates sobre gênero
Em abril de 2017, novo fato gerou grande discussão, quando foi noticiado que o
Ministério da Educação retirou da versão final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
4MIGUEL, Luiz Felipe. Da “doutrinação marxista” à "ideologia de gênero": Escola Sem Partido e as leis da
mordaça no parlamento brasileiro. IN: Direito e Práxis, Rio de janeiro, v. 7, n. 15, 2016, p. 592.
de 2015 foi votado o PNE na Câmara dos Deputados sob intensa discussão a respeito dos
temas ligados a gênero e diversidade sexual. Aqueles contrários à discussão destes assuntos
em sala de aula sustentavam que havia uma movimentação de organismos internacionais e
do governo federal para implantar nas escolas uma “doutrinação”, incutindo na cabeça de
crianças e adolescentes que poderiam escolher o gênero que quisessem.
estaduais e municipais. Por sua vez, a BNCC, que estabelece a necessidade de as escolas de
todo o país implantarem diretrizes pedagógicas e ministrarem conteúdos mínimos com
diálogos entre poder público e sociedade civil, fazendo com que o dever de combater as
discriminações não contivesse as particularidades que circundam a temática de gênero,
orientação sexual e identidade de gênero.
homofobia no Brasil9. Ela revela a escola como o local em que mais entrevistados LGBTI
disseram já terem se sentido discriminados10. Já a pesquisa realizada pela Secretaria de
Educação da ABGLT aduz que 60% dos entrevistados que se declaram LGBTI se sentem
inseguros na escola em decorrência de sua orientação sexual e 43% em decorrência de sua
identidade de gênero11.
9Segundo os dados coletados, 99% dos entrevistados demonstraram algum nível de preconceito contra pessoas
LGBTI. Ver em: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma (resp. técnicos). Síntese da Pesquisa - Diversidade
Sexual e Homofobia no Brasil: Intolerância e respeito às diferenças sexuais. IN: VENTURI, Gustavo;
BOKANY, Vilma. Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2011. Pp. 190-251. Página, 204
10 Idem., p.219. Em perspectiva semelhante em levantamento nos 27 estados brasileiros, 93,5% dos 18.599
entrevistados relatou algum nível de preconceito em relação a gênero e 87,3% em relação a orientação sexual,
ver em: MAZZON, José Afonso (coord.). Projeto de Estudo sobre ações discriminatórias no âmbito escolar,
organizadas de acordo com áreas temáticas, a saber, étnico-racial, gênero, geracional, territorial,
necessidades especiais, socioeconômicas e orientação sexual. São Paulo: Fundação Instituto de Pesquisas
Econômicas, 2009.
11ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS, TRAVESTIS E TRANSEXUAIS.
Secretaria de Educação. Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional 2015: as experiências de
adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais.
Curitiba: ABGLT, 2016. Página 19.
A escola é um lugar crucial para a construção de uma sociedade mais justa, solidária e pautada
na cultura da não violência.
A CEVIGE foi criada pela OAB/PR14, em 2013, com a missão de realizar estudos e
ações para contribuir para a superação da violência de gênero, constituída por membros
advogados e consultores, em caráter multidisciplinar. Dentre suas ações, a CEVIGE realizou
em 09 de junho de 2015 o seminário15 Feminicídio: aspectos jurídicos e sociais16, que
contemplava, além dos debates com a sociedade civil e operadores do direito, a participação
12 Segundo a nota técnica sobre estupros no Brasil, “89% das vítimas são do sexo feminino e possuem, em
geral, baixa escolaridade. Do total, 70% são crianças e adolescentes”, sendo que “24,1% dos agressores das
crianças são os próprios pais ou padrastos, e 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima. Em geral, 70% dos
estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, o que indica que o principal
inimigo está dentro de casa e que a violência nasce dentro dos lares”. CERQUEIRA, Daniel; COELHO,
Danilo de Santa Cruz. Nota Técnica Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (versão
preliminar). Disponível em:<https://goo.gl/NFSwC3>. Acesso em 04 ago 2017.
13WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência: Homicídio de Mulheres. Brasília, 2015. Disponível em:
<https://goo.gl/hdjAjn>. Acesso em 04 ago 2017.
14A CEVIGE foi criada por ato do presidente da OABA/PR, Dr. Juliano José Breda - Portaria 58/2013, datada
de 23 de abril de 2013, para a gestão 2013-2015, com 49 membros das áreas de Direito, Antropologia,
Assistência Social, Comunicação, Educação, Enfermagem, Medicina, Planejamento Estratégico, Políticas
Públicas, Psicologia e Sociologia, atuando como voluntários.
15 Notícia disponível em <https://goo.gl/Lp7GYt>. Acesso em 04 ago2017.
16 Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Disponível em: <https://goo.gl/XSCYFp>. Acesso em 04 ago 2017.
de igual consideração e respeito, livres e iguais em dignidade e direitos, para que diferenças
não se desdobrem em desigualdades e violências”20.
abertas sobre educação, gênero e diversidade sexual, com o objetivo de promover ações de
orientação e sensibilização da população em geral com ênfase nos professores/as da rede
17 Representante brasileira no CEDAW. Para mais informações sobre membros do Comitê CEDAW, acesse:
<https://goo.gl/MBMyT5>. Acesso em 04 ago 2017.
18Art. 8º A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio
de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações
não-governamentais, tendo por diretrizes: [...] VIII - a promoção de programas educacionais que disseminem
valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou
etnia; IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos
direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar
contra a mulher. Lei nº11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: <https://goo.gl/rHhYFn>. Acesso em
04 ago 2017.
e na promoção e afirmação de seus direitos com autonomia, bem como para demonstrar a
possibilidade de oposição legítima em contextos de opressão.
Como resultado das reflexões e estudos advindos das reuniões abertas, a CEVIGE,
CDSG e CDDH recomendaram ao Conselho Federal da OAB (CFOAB), a propositura de
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) em relação aos PEs dos
21O Ciclo de Reuniões Abertas Educação, Gênero e Diversidade Sexual da OAB/PR foi estruturado em quatro
momentos. A primeira reunião ocorreu no dia 28 de julho de 2015 e tratou do tema a Expectativa de
comportamento e paz social. Reflexões sobre o ódio (disponível em: <https://goo.gl/TfAuWZ>. Acesso em
04.08.17). A segunda, em 31 de agosto de 2015, sobre Gênero e Diversidade Sexual (disponível em:
<https://goo.gl/KcK4HX>. Acesso em 04.08.17), A terceira, em 9 de outubro de 2015, sobre Laicidade e
Multiculturalismo (disponível em: <https://goo.gl/bFa1Ca> e <https://goo.gl/BjbLru>. Acesso em 04 ago
2017), e, a quarta, em 20 de novembro de 2015, sobre O Direito à Educação (Disponível em:
<https://goo.gl/woj8Fs>. Acesso em 04 ago 2017).
22 Disponível em: <https://goo.gl/67t7Ci>. Acesso em 04.ago 2017.
23 Registrado sob nº 490000.2016.00.2888-1
24 Disponível em <http://www.oabpr.org.br/comissoes-da-oab-recebem-procuradora-federal-para-debater
igualdade-de-genero/>. Acesso em 04 ago 2017.
25 Vide andamento processual em <https://goo.gl/F1zrpU>. Acesso em 04 ago2017.
A CADH conta apenas com uma resolução expressa sobre direitos sociais,
econômicos e culturais, que é a previsão do direito ao desenvolvimento progressivo em seu
artigo 2628. Este corpus iuris foi densificado em 1999, quando do Protocolo de San Salvador,
Nessa toada, o direito à educação ganha especial relevância, pois surge como mote
da universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos. Tal se justifica pela ideia de que a
garantia integral desses direitos pressupõe uma condição mínima para o seu exercício, o que
pode ser ofertado a partir da garantia do acesso à educação. O direito à educação se torna,
portanto, emancipador, pois é não apenas um fim em si mesmo, mas meio para consecução
de maneira conexa a outros direitos, eis que não raramente sua violação é decorrente de um
cenário complexo de várias outras violações.
da BNCC, quanto o movimento Escola Sem Partido. Essa atuação da CIDH permitiu que
a sociedade civil brasileira levasse ao SIDH um compêndio de violações concretas, a fim de
demonstrar ao Estado brasileiro a necessidade de combater esse movimento conservador que
corrobora para perpetuar um ambiente escolar nocivo e violento.
audiência temática. Do contrário, tal evento marca apenas o início de uma organização
coletiva necessária que possibilite o litígio estratégico na CIDH e o debate contínuo do
tema, até que se concretizem políticas inclusivas, impactantes e que tragam real mudança
social.
32
Informes da CIDH n° 22-06, 55-07 e 147/11.
Poderes Executivo e Legislativo Municipal, Estadual e Federal, para que olhem com maior
cuidado à essa realidade de violência que coloca o Brasil na liderança dos rankings de agressão
Dessa forma, cabe ao Poder Público o dever de garantir e atuar em prol de uma
educação pela diversidade; cabe à comunidade escolar o dever de resistência, garantindo aos
alunos a possibilidade de formação plural e livre; e cabe à sociedade civil o dever de fiscalizar,
organizar e cobrar não só o Estado, como também instituições como a CIDH, para que essa
realidade se concretize.
Este artigo busca refletir porque religião, sexualidade e saúde sexual são temáticas que
angariam importância fundamental no currículo do curso Licenciatura em Ciências da
Religião da Universidade Federal de Sergipe (UFS), definindo demandas teórico
metodológicas que surgem a partir dessa tríplice analítica, a saber, as teorias de gênero.
Primeiramente, serão elencados os ditames que compõem a realidade educacional
(diversidade); a seguir, tratar-se-á do Referencial Curricular Rede Estadual de Ensino de
Sergipe, trazendo à baila as Competências Gerais, as Habilidades, os Conteúdos e os
Conceitos Gerais que são listados no referido material para a disciplina de Ensino Religioso
a ser ministrada no Ensino Fundamental Maior e Menor. O texto explicita que religião,
sexualidade e saúde sexual, interligados à noção de gênero, são conteúdos e conceitos que
devem ser trabalhados na disciplina de Ensino Religioso da Rede Estadual de Ensino em
Sergipe. A diversidade que perfaz a vida humana no espaço escolar e a demanda curricular
exposta no Referencial curricular do estado de Sergipe certificam a centralidade das
temáticas arroladas neste estudo para a formação do/da professor/a de Ensino Religioso. Em
que pese esta constatação, o currículo do curso de Licenciatura em Ciências da Religião da
UFS prevê apenas uma disciplina obrigatória (Religião e Saúde) e uma optativa (Religião e
Sexualidade), cujas ementas não refletem a abordagem do eixo conceitual “gênero”.
Palavras-chave: Religião; Sexualidade; Saúde sexual; Gênero; Ciências da Religião e Ensino
Religioso em Sergipe.
Este artigo visa refletir porque religião3, sexualidade4 e saúde sexual5 são temáticas
importantes no currículo do curso Licenciatura em Ciências da Religião da Universidade
4 “Sexualidade é um aspecto central do ser humano do começo ao fim da vida e circunda sexo, identidade e
papel de gênero, relação sexual, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade, subjetividade e reprodução. A
sexualidade é vivida e expressa em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos,
práticas, papéis e relacionamentos. Enquanto a sexualidade pode incluir todas estas dimensões, nem todas são
sempre vividas ou expressadas. A sexualidade é influenciada pela interação de fatores biológicos, psicológicos,
sociais, econômicos, políticos, culturais, éticos, legais, históricos, religiosos e espirituais. A sexualidade humana
é complexa, diversa e multifacetada. Por isso há autores que propõem o termo no plural, ‘sexualidades’”. [...]
“Sexo refere-se às características biológicas que definem humanos como mulheres e homens. Enquanto este
conjunto de características biológicas não é mutuamente exclusivo, desde que há indivíduos que possuem
ambas, ele tende a diferenciar os humanos como homens e mulheres”. (CAVENAGHI, Suzana (Org.).
Indicadores municipais de saúde sexual e reprodutiva. Rio de Janeiro: ABEP, Brasília: UNFPA, 2006. p. 53).
5 “Saúde sexual é um estado físico, emocional, mental e social do bem-estar em relação à sexualidade; não é
meramente a ausência de doenças, disfunções ou debilidades. A saúde sexual requer uma abordagem positiva
e respeitosa da sexualidade e das relações sexuais, tanto quanto a possibilidade de ter experiências prazerosas e
relação sexual segura, livre de coerção, discriminação e violência. Para se alcançar e manter a saúde sexual, os
direitos sexuais de todas as pessoas devem ser respeitados, protegidos e satisfeitos”. (CAVENAGHI, 2006. p.
53).
6 O currículo atual está vigente desde 2012/1 e pode ser visualizado na página:
<https://www.sigaa.ufs.br/sigaa/link/public/curso/curriculo/615>. Acesso em: 23 out. 2017.
disciplina de ER. A realidade da diversidade que circunda a vida humana, também no espaço
escolar, e a demanda curricular exposta no Referencial Curricular do estado de Sergipe
certifica a centralidade das temáticas arroladas neste estudo para a formação do/da
professor/a de ER. Por este prisma, o artigo visa analisar o currículo do curso Licenciatura
em Ciências da Religião da UFS a fim de verificar quais disciplinas ou atividades contemplam
esses eixos conceituais para a formação do/da futuro/a docente de Ensino Religioso.
autorizado/formal ou pela via do currículo oculto, a saber, o currículo que permeia o espaço
escolar mesmo que não esteja na lista dos assuntos ensináveis a partir dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) (BRASIL, 1997) e/ou do Projeto Político Pedagógico de
cada escola.
escolar/pedagógica.
Ainda que as temáticas abordadas neste texto (religião, saúde sexual e sexualidade)
possam ser silenciadas ou pouco trabalhadas no currículo autorizado em escolas privadas ou
públicas no campo escolar brasileiro, com grande probabilidade, estão presentes no currículo
oculto. Os termos supraditos representam dimensões importantes da vida do ser humano,
que são levadas para a vivência escolar por indivíduos em formação, inseridos em contextos
compassados pelas ambiguidades, dúvidas e conflitos que permeiam estes fenômenos.
Destarte, problematizar temas que são naturais ao convívio social na arena educacional é
uma das tarefas do/da docente, além de compreender e reconhecer a diversidade (DSG) das
famílias e indivíduos contemporâneos.
de questões de gênero; na aula de geografia, talvez haja uma discussão sobre religião e assim
por diante. Estes breves exemplos ilustram a fluidez do currículo oculto, que, apesar do
termo, não é algo negativo, mas uma realidade da prática docente e da vivência escolar em
Por sua vez, na disciplina de Ensino Religioso, existem currículos formais que
contemplam questões de gênero, religião, sexualidade e saúde sexual nos referenciais
curriculares específicos. O escopo contextual explorado no artigo é o Estado de Sergipe:
A Lei de Diretrizes Básicas da Educação (Lei 9.394/96), art.33, §1º, confirma que
“os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do
ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores”.
Assim, as unidades federativas e respectivos municípios têm poder para estipular se o ensino
religioso da rede será confessional ou não confessional. Tal realidade tem sido motivo de
intensos debates entre os/as estudiosos/as da religião no Brasil8, especialmente no âmbito
7 De acordo com o FONAPER (Fórum Nacional Permanente de Ensino Religioso), “o Curso de Graduação
em Ciências da Religião-Licenciatura em Ensino Religioso não está vinculado a uma religião ou a uma teologia,
mas às Ciências da Religião enquanto aporte teórico que lhe oferece possibilidade de investigação das diversas
manifestações do fenômeno religioso na história e nas sociedades, ao mesmo tempo em que é regido por princípios e
fundamentos das Ciências da Educação, enquanto área de conhecimento, levando em conta todas as áreas, subáreas
e especialidades. As diferentes Ciências Humanas, integradas às Ciências da Religião, contribuem na definição
dos conteúdos específicos, considerando que a interlocução entre as mesmas é fundamental para a construção
e a articulação da disciplinaridade e da interdisciplinaridade. O ER tem necessidade de observar tais aspectos,
pois objetiva compreender o fenômeno religioso na diversidade de situações da existência humana. As Ciências
da Religião, ao se constituírem como uma das bases epistemológicas para o ER, contribuem para a
compreensão do humano enquanto ser em/de busca, aberto à transcendência e histórico-culturalmente situado
dentro de referências religiosas, influenciadas por elas de múltiplas maneiras e, muitas vezes, agindo a partir delas.
Nesse sentido, o estudo do fenômeno religioso num Estado laico, a partir de pressupostos científicos, visa à
formação de cidadãos críticos e responsáveis, capazes de discernir a dinâmica dos fenômenos religiosos, que perpassam
a vida em âmbito pessoal, local e mundial. Por outro lado, o pressuposto pedagógico sustenta a proposta do ER
na escola. As diferentes crenças, grupos e tradições religiosas e/ou a ausência delas são aspectos da realidade que não
devem ser meramente classificados como negativos ou positivos, mas sim como dados antropológicos e
socioculturais capazes de fundamentar e interpretar as ações humanas. Nessa perspectiva, a formação específica
em nível superior, em cursos de Graduação em Ciências da Religião-Licenciatura em Ensino Religioso, integra
os pressupostos das áreas: Ciências da Religião e Educação, a fim de que o licenciado possa trabalhar
pedagogicamente numa perspectiva inter-religiosa, enfocando o fenômeno religioso como construção sócio
histórico-cultural”. FONAPER. Propostas de diretrizes curriculares nacionais para o curso de graduação em ciências
da religião-Licenciatura em ensino religioso. Portal FONAPER. 2008. Disponível em:
<http://www.fonaper.com.br/documentos_propostas.php>. Acesso em: 08 fev. 2017. (Grifos nossos).
8 Um exemplo é a fala de Vianna (2013), que corrobora um Ensino Religioso laico e critica o descumprimento
desta premissa constitucional do Estado brasileiro: “o único ensino religioso possível de ser praticado em um
Estado laico é o não confessional, em que os professores são contratados por meio de concursos públicos, sem
que seja levada em conta suas próprias religiões. Se a Constituição veda expressamente em seu artigo 19, inciso
I, que o Estado mantenha qualquer tipo de aliança com igrejas e cultos religiosos, é inadmissível que os
professores de uma escola pública possam ser indicados por qualquer confissão religiosa. Por outro lado, o
programa da disciplina de ensino religioso deve abordar não só as religiões majoritárias como o catolicismo e o
protestantismo, mas também o espiritismo, a umbanda, o candomblé e todas as outras religiões praticadas no
O material que tomamos para análise, titulado Referencial Curricular Rede Estadual
de Ensino de Sergipe (2011), não introduz nenhuma declaração sobre a natureza do Ensino
Religioso a ser ministrado na rede estadual de Sergipe (confessional ou não confessional),
posto que a única declaração é apresentada conforme segue: “o componente Ensino
Religioso será de oferta obrigatória e matrícula optativa para o aluno. E a oferta do Programa
poderá ocorrer no formato de módulos, seminários e palestras ou na opção do sexto horário,
como rege a legislação vigente” (SEED, 2011, p. 261).
Brasil, bem como o ateísmo e o agnosticismo. Aos professores da disciplina deve ser vedado todo e qualquer
tipo de proselitismo, cabendo a eles tão somente expor a história e os dogmas dessas religiões sem qualquer juízo
de valor de qual seria a melhor ou a pior. O ensino religioso nas escolas públicas não deve se converter em um
instrumento de proselitismo do cristianismo. A sala de aula não é espaço para orações nem para catecismos. Se a
Constituição criou um Estado laico, mas ao mesmo tempo estabeleceu o ensino religioso nas escolas públicas,
foi para permitir às crianças tomar conhecimento de que existem religiões e crenças distintas daquelas
praticadas por seus familiares e aprender a respeitá-las”. VIANNA, Túlio. Blog Revista Fórum. 11/01/2013. O
Ensino Religioso nas Escolas Públicas. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/2013/01/11/o
ensino-religioso-nas-escolas-publicas/>. Acesso em: 10 fev. 2017. (Grifos nossos).
9 Em setembro de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF), na voz de nove ministros/as, decidiu que o Ensino
Religioso público no Brasil pode ter caráter confessional, sendo plausível vinculá-lo a uma religião específica.
O placar da votação foi de 6 a 5. Grande parte da sociedade civil, educadores/as e estudiosos/as do campo das
Ciências da Religião estão questionando esta decisão que contradiz o princípio laico da constituição brasileira
e o próprio direito à liberdade religiosa, haja vista a pluralidade de crenças presentes no espaço público
brasileiro. Esta votação também traz à luz os conflitos epistemológicos nos quais o Ensino Religioso está
historicamente envolvido. Há uma desinformação generalizada sobre as Ciências da Religião no Brasil, área do
conhecimento que vem crescendo e estabelecendo novos cursos em universidades públicas e privadas no campo
educacional superior. Suas premissas dão base a abordagens metodologicamente refletidas acerca do fenômeno
religioso, sob os seus mais diferentes aspectos. Esta base científica seria a mais legítima para quaisquer
“escolarizações” do tema da religião, afirmando-o como objeto não apenas de crença, mas, efetivamente, de
conhecimento. Ao ignorar as Ciências da Religião, a votação do STF prejudica esta área e contraria a natureza
da própria instituição escolar.
10
SEED, 2011, p. 65; (1) p. 67; (2) p. 68; (3) p. 69; (4) p. 257; (5) p. 258; (6) p. 259; (7) p. 260.
dos sujeitos (do outro/da alteridade). O referencial para o 2º ano é similar: em Habilidades,
lê-se: “conhecer as diferentes organizações familiares”; em Conteúdos, fala-se de
“organizações familiares”; em Conceitos, aparece a palavra “diversidade” (SEED, 2011, p. 66)
11O texto faz uso do termo “gênero” no plural. O termo foi mantido na citação, contudo, opta-se pelo termo
“gênero”, no singular, condizendo com o significado vigente e entendido no escopo desta pesquisa, consonante
diferentes religiões sobre o amor, ódio, morte, vida, natureza, sexualidade”. Os Conceitos
estão assim listados: Religião, Gênero, Subordinação, Violência simbólica, Diversidade,
de discriminação e preconceito sexuais, étnicos e religiosos; ter atitudes que não partam do
preconceito”. As Habilidades são “respeitar as opções sexuais dos indivíduos; praticar
com Scott, Lopes e Gebara, que se alinham às circunscrições das teorias de gênero: “Gênero deve ser visto
como elemento constitutivo das relações sociais, baseadas em diferenças percebidas entre os sexos, e como
sendo um modo básico de significar relações de poder”. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise
histórica. Educação e Sociedade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 1990. p. 14. “Gênero não pretende
significar o mesmo que sexo, ou seja, enquanto sexo se refere à identidade biológica de uma pessoa, gênero
está ligado à sua construção social como sujeito masculino ou feminino”. LOURO, Guacira L. Nas Redes do
Conceito de Gênero. In: LOPES, M.J.M. MEYER, D. E. WALDOW, V.R. (Orgs.) Gênero e Saúde sexual.
Porto Alegre/RS: Artes Médicas, 1996. p. 8. “Gênero quer dizer, entre outras coisas, falar a partir de um modo
particular de ser no mundo, fundado, de um lado, no caráter biológico do nosso ser, e de outro lado, num
caráter que vai além do biológico, porque é justamente um fato de cultura, de história, de sociedade, de
ideologia e de religião”. GEBARA, Ivone. Rompendo o Silencio: Uma fenomenologia feminista do mal. São
Paulo: Vozes, 2000. p. 107.
diferentes religiões sobre o sexo; a religião e a violência; o Estado é laico”. Por fim, são
especificados os Conteúdos Básicos: Sexualidade; Violência; Sexo; Companheirismo
(SEED, 2011, p. 259).
Com base nesta breve investigação, que toma como base o documento que lista os
referenciais curriculares da rede estadual de ensino de Sergipe para o Ensino Fundamental
Menor e Maior, é perceptível que religião, sexo, sexualidade, saúde sexual, violência,
a partir do olhar das Ciências da Religião. Neste estudo, entretanto, não nos ateremos a esta
tarefa. Frente ao exposto, os exemplos supraditos justificam a importância de refletirmos
criticamente as temáticas “religião”, “sexualidade” e “saúde sexual” no curso de Ciências da
A disciplina optativa “Religião e Sexualidade” (60 horas/aula), por sua vez, é descrita
levando em conta as novas expressões da sexualidade no mundo contemporâneo, mas o eixo
conceitual “gênero”13 não aparece em nenhuma linha da referida ementa:
12
Disponível em: <https://www.sigaa.ufs.br/sigaa/public/departamento/componentes.jsf>. Acesso em: 12
mar. 2017.
13
Matos explica que “é certo e já estabelecido que gênero, como um conceito, surgiu em meados dos anos 70
e disseminou-se instantaneamente nas ciências a partir dos anos 80. Tal reformulação surgiu com o intuito de
distinguir e separar o sexo – categoria analítica marcada pela biologia e por uma abordagem essencializante da
natureza ancorada no biológico – do gênero, dimensão esta que enfatiza traços de construção histórica, social
e, sobretudo, política, que implicaria análise relacional. Enquanto proposta de um sistema de classificação, a
‘categoria’ gênero, em sua forma mais difusa e difundida, tem sido acionada quase sempre de forma binária
(raramente em formato também tripartite) para se referir à lógica das diferenças entre: feminino e masculino,
Questões de gênero são referenciais para o debate sobre sexualidade, violência, saúde
sexual reprodutiva e direitos sobre o corpo, pois a sexualidade não é apenas uma dimensão
biológica da vida humana, mas uma construção histórico-social perpassada pelas condições
de gênero e pelo “sexo modelado pela cultura”, que, indubitavelmente, conta com a
interferência da religião em diversas sociedades. Nas teorias de gênero, uma faceta desta
construção é nomeada “papéis de gênero”, ou seja, idealizações sobre corpos sexuados de
e intervém na vida das pessoas, ainda que valha acrescentar, já que estamos falando de
moralidade religiosa, que tal interferência pode se dar tanto para a libertação quanto para o
aprisionamento e opressão dos corpos. Ou seja, a religião como um sistema de símbolos é
legitimadora de discursos e ações não apenas no âmbito religioso, mas, outrossim, na esfera
social, política e doméstica (RUETHER, 1989). Quanto ao aprisionamento e opressão dos
corpos, a estrutura patriarcal, característica de inúmeras religiões cujas hermenêuticas
homens e mulheres e, também, entre a homo e a heterossexualidade, penetrando já aí neste segundo eixo
fundamental deste novo campo que é a fronteira da sexualidade”. MATOS, Marlise. Teorias de gênero ou
teorias e gênero? Se e como os estudos de gênero e feministas se transformaram em um campo novo para as
ciências. Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2), p. 333-357, mai/ago 2008. p. 336.
14
Disponível em: <https://www.sigaa.ufs.br/sigaa/public/departamento/componentes.jsf>. Acesso em: 12
mar. 2017.
15
Pessoas cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo dado biologicamente ao nascer: são indivíduos
que passaram por cirurgia de redesignação sexual, tratamento hormonal e/ou encontram-se em período de
transição; contudo, pessoas transgênero ou trans podem não estar em nenhuma destas categorias, comportando
apenas a característica apresentada inicialmente (identidade de gênero não correspondente ao sexo biológico).
formatados/as para ser, estar e agir no mundo em consonância com as regras da comunidade
moral-religiosa. E é a partir desta lógica que a sexualidade humana tem sido historicamente
colocada entre quatro paredes por religiões de corte conservador, defendida como algo
intocável pública e socialmente, sendo perfeitamente vivida dentro da instituição do
casamento heterossexual; antes disso, silêncios e moralismos são ordens, especialmente para
estudos e teorias interdisciplinares de gênero como base referencial para pensar os temas
explanados em cursos de formação de professores/as de ER na arena das Ciências da Religião.
Dada a análise de material curricular referência para a educação estadual de Sergipe,
reiteramos esta constatação especialmente para o micro contexto em tela, a saber, o curso
Em suma, este texto tratou da tríplice religião, sexualidade e saúde sexual nas
Ciências da Religião e Ensino Religioso a partir de referenciais de gênero, tendo como
contexto o estado de Sergipe. Conclui-se que são assuntos que urgem integrar o currículo
das Ciências da Religião da UFS por se tratarem de núcleos de conhecimento que importam
à formação docente com vistas ao Ensino Religioso, pois circulam no ambiente escolar como
assuntos do currículo oculto e são conteúdos do currículo formal exposto no referencial
curricular vigente no estado de Sergipe. Religião, sexualidade e saúde sexual, interligados a
inúmeros temas laterais e à noção de gênero, são conceitos que devem ser trabalhados na
intolerância religiosa etc.). Assim, a disciplina de Ensino Religioso surge como espaço
epistemológico para a reflexão e debate dessas questões adjacentes ao convívio escolar – onde
se produz conhecimento e, também, conflitos frente à diversidade da vida humana – em um
tempo em que uma não abertura para a alteridade revela-se crescente no meio escolar e na
GEBARA, Ivone. Rompendo o Silencio: Uma fenomenologia feminista do mal. São Paulo:
Vozes, 2000.
LOURO, Guacira L. Nas Redes do Conceito de Gênero. In: LOPES, M.J.M. MEYER,
D. E. WALDOW, V.R. (Orgs.) Gênero e Saúde sexual. Porto Alegre/RS: Artes Médicas,
1996.
RUETHER, Rosemary R. The western religious tradition and violence against women in
the home. In: BROWN, Carole R. (org). Christianity, patriarchy and abuse: a feminist
critique. Cleveland, Ohio: The Pilgrim Press, 1989.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Sociedade,
Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 1990.
SILVA, T. T. O que produz e o que reproduz em educação. Porto Alegre: Artmed, 1992.
VIANNA, Túlio. O ensino religioso nas escolas públicas. Blog Revista Forum. 11/01/2013.
Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/2013/01/11/o-ensino-religioso-nas
escolas-publicas/>. Acesso em: 12 mar. 2017.
INTRODUÇÃO
1 Psicóloga, doutoranda em Educação, linha de pesquisa Diversidade, Diferença e Desigualdade Social pela
Universidade Federal do Paraná, Brasil.
2 Pedagoga, doutora em Educação pela Universidade do Estado de Campinas.
recondução à norma.
gravidez, o processo é suspenso até que a aluna/mãe goze a licença maternidade e tenha as
condições necessárias para voltar a estudar. Neste caso, as biopolíticas que incidem sobre ela
são outras, que objetivam os direitos e deveres da maternidade, e não mais a escolaridade
obrigatória. Este deslocamento produz efeitos que consolidam a posição social prioritária
demonstra que para o Estado, a maternidade se sobrepõe a qualquer outra posição social que
a mulher pode vir a ocupar.
que traçam o percurso necessário para a produção do sujeito denominado como bom cidadão
(CÉSAR, 2008), ou seja, aquele que cumpre os deveres e exerce seu direito de cumpri-los.
Para proteger a infância e adolescência dos riscos iminentes que possam provocar desvios,
biopolíticas4 de controle e governo dos corpos operam por meio do dispositivo pedagógico5,
produzindo modos de viver adequados ao projeto de vida que o Estado institui para essa
população. Para prevenir esses desvios, produziu-se toda uma maquinaria de vigilância,
operada pelo dispositivo de segurança6 que é constituída de várias formas, segundo Fahri
Neto (2007):
[...] gestão de casos, riscos, perigos, crises, que de alguma forma ameaçam a
vida da população, não eliminando totalmente os acontecimentos nefastos,
mas favorecendo os processos homeostáticos que tendem a restabelecer um
ponto de equilíbrio otimizado (FAHRINETO, 2007, p. 122).
4Segundo Foucault (1988, p. 134), “deveríamos falar de ‘biopolítica’ para designar o que faz com que a vida e
seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação
da vida humana”.
5 Segundo Larrosa (1994, p. 57), “Um dispositivo pedagógico será, então, qualquer lugar no qual se constitui
ou se transforma a experiência de si. Qualquer lugar no qual se aprendem ou se modifiquem as relações que o
sujeito estabelece consigo mesmo. [...] sempre que esteja orientado à constituição ou à transformação da
maneira pela qual as pessoas se descrevem, se narram, se julgam ou se controlam a si mesmas”.
6 O que o dispositivo de segurança gere, por meio de uma racionalidade ambientalista, é o meio e o que circula
e ocorre nele. Além dessa perspectiva comportamental, o movimento de higienização da cidade, da população
e dos corpos individuais igualmente opera pela seguridade e em uma economia política do controle justificada
pela noção de defesa da sociedade. O dispositivo de segurança, assim, constitui-se como uma rede de relações
constituída por elementos heterogêneos cuja formação atende à função de responder a uma urgência: a
passagem da norma ao risco. (LEMOS et al., 2015, p.334).
magistrado, determinando como o aluno deve ser conduzido. Assim, é o juiz que estabelece
quais biopolíticas deverão ser aplicadas à vida desses sujeitos, determinando a qual posição
social ele deverá ser moldado a ocupar: condenado, absolvido e reconduzido ao espaço da
escola.
Neste sentido, a judicialização da educação é antes uma máquina que faz funcionar a
normalização das crianças e dos adolescentes, uma tecnologia da biopolítica. Para Marafon
(2014),
A evasão escolar passa a ser criminalizada no Código Civil de 1940, em seu artigo
246: “Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar: Pena
pedagógico. Em seu inciso VIII, determina que a gestão escolar tem obrigação de: “notificar
ao Conselho Tutelar do Município, ao juiz competente da Comarca e ao respectivo
representante do Ministério Público a relação dos alunos que apresentem quantidade de
faltas acima de cinquenta por cento do percentual permitido em lei” (BRASIL, 1996, s.p.).
Segundo o programa é necessário que a escola investigue todos os casos onde houver
cinco faltas consecutivas e sete faltas alternadas, descobrindo os motivos da evasão e lançando
mão de todas as alternativas para fazer o aluno retornar à escola. Esgotadas todas as
Tutelar, que também investigará os motivos que provocaram a evasão, tentando reconduzir
os alunos aos bancos escolares. Se constatarem aí violação de direitos (expulsão, dificuldades
com transporte, acesso à saúde e aos benefícios assistenciais, atendimento educacional
especializado, violências etc.), acionam os órgãos competentes. Se mesmo assim a evasão
persistir é feita a comunicação ao Ministério Público, que instaura o processo por abandono
intelectual.
Quando o aluno não vai à escola, no discurso legitimado, ele está sujeito a vários
riscos, como nos revela o documento Programa Fica: Enfrentamento a Evasão Escolar: “Há
destes cálculos, dessas médias que o Estado vai operar sobre os modos de vida da população,
determinando padrões de normalidade a partir de regras de higienização, de convivência
pública e privada, de comportamentos esperados nas instituições sociais. Para Foucault
(2008), o elemento que circula entre o poder disciplinar dos indivíduos e o poder
regulamentador das populações é a norma, que controla ao mesmo tempo a ordem dos
corpos e os eventos aleatórios. Também é a norma que define os padrões de comportamento
que cada sujeito deve ter no espaço escolar. Quando há um desvio da norma, são necessárias
correções destes corpos. Portanto, as biopolíticas produzem todo um aparato de tecnologias
de tecnologias descritas como Michel Foucault (2008) como pertencentes ao poder pastoral.
Uma delas é denominada pelos técnicos do judiciário como sermão, onde especialistas
produzem falas que aliam a baixa escolaridade ao desemprego e à marginalidade. Para escapar
a essa sina, é preciso que as famílias revejam suas formas de existência, acatando aos
conselhos, recomendações e orientações oferecidas. Ao final, todos são convocados para
outra técnica do poder pastoral: a confissão. Ela se dá no preenchimento do questionário
onde devem informar seu perfil socioeconômico e descrevendo os motivos que provocaram
8 Usa-se “[...] o termo na acepção foucaultiana, que o distingue das ações de governo praticadas pelo Estado.
Nesse caso, governamento se refere ao exercício de ações de governo praticadas por vários agentes (pais,
professores, ONGs, família, igrejas, instituições públicas, organizações privadas, corporações empresariais etc.)”
(COSTA; MOMO, 2009, p. 524).
9 A Rede de Atenção Psicossocial é composta por especialistas das Secretarias Municipais de Educação, Saúde,
Ação Social, Conselho Tutelar, Promotoria Pública, Vara da Infância e da Família, entidades de atendimento
e acolhimento de crianças e adolescentes.
do século XX, e eram concedidas como Escola de Pais, produzindo modos ótimos de se viver,
visando:
e dos adolescentes e o modo como esses sujeitos estão autorizadas a vivê-las. Isso porque o
biopoder11 exercido na biopolítica ganha sua efetividade por meio dos dispositivos de
segurança e sua articulação com os campos de saberes (FOUCAULT, 2008), que
cartografam tudo o que é preciso saber e fazer para controlar a população dessa faixa etária,
com vistas a garantir a constituição de um adulto capaz de exercer sua cidadania. Se as
práticas exercidas na escola não dão conta dessa condução, aciona-se o judiciário,
10
O Programa de Orientação Escolar é desenvolvido pelo Núcleo Regional de Educação, em parceria com
profissionais locais. É constituído de palestras ministradas por profissionais locais, com temáticas como limites,
educação, famílias, e oficinas com assuntos concernentes à adolescência e juventude (drogas, orientação
profissional, atividades físicas, atividades artísticas, sexualidade). Os familiares e estudantes citados nos
processos de abandono intelectual devem participar dessas atividades.
11
Para Foucault, biopoder é “[...] essa série de fenômenos que me parece bastante importante, a saber, o
conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas
fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder”
(FOUCAULT, 2008, p. 3).
dizem respeito à evasão de alunas. A faixa etária em que ocorre a evasão é mais significativa
entre os 16 e 18 anos, com 118 processos instaurados. De todos os motivos referentes a
evasão escolar das jovens alunas, 48% estão relacionados à gravidez e ao casamento. Dos
processos citados como alunas concluídas, 115 foram julgados improcedentes, ou seja, não
Comparando esses dados com uma pesquisa realizada pela Secretaria Estadual de
inferiores aos encontrados pela pesquisa aqui discutida, no qual 46% das evasões dizem
respeito à gravidez e ao casamento/união estável. Esta discrepância tão grande entre esses
é suspenso. A partir daí, passa a incidir sobre a adolescente outras biopolíticas, que vão
diluindo a figura de aluna e fazendo emergir a figura da mãe. A partir de agora é preciso
proteger a mãe e sua gravidez. A obrigatoriedade à educação deixa de existir, a lei entra em
suspensão, e há um deslocamento do direito para a proteção da criança que está sendo gerada
e a produção da figura da mãe suficientemente boa. Castel (1987) nos mostra como
Medicina, ancorada na Psicanálise, faz com que o Estado produza recomendações que vão
colocando sobre a mãe a responsabilidade pela produção dos sujeitos saudáveis e das famílias
estruturadas. Para que essa mãe possa exercer seu papel, os agentes da saúde e da assistência
social passam a operar sobre ela. Este deslocamento deixa viver a mãe e faz morrer a aluna.
que fortalece a prerrogativa de que uma jovem grávida não precisa permanecer na escola. O
apagamento da gravidez nesse processo ressoa como uma armadilha utilizada pelo
dispositivo13 para capturar vidas. No espaço em branco sua vida é abandonada a sua própria
13
Para Foucault, os dispositivos são “[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são elementos do
dispositivo, O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. Em segundo lugar, gostaria
de demarcar a natureza da relação que pode existir entre esses elementos heterogêneos. Sendo assim, tal
discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite
justificar ou mascarar uma prática que permanece muda; dando-lhe um novo campo de racionalidade. Em
suma, entre esses elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição,
modificações de funções, que também podem ser muito diferentes” (FOUCAULT, 2009, p. 244).
interditada, priorizando a atenção ao feto que cresce em seu ventre, assumindo a posição de
mãe, a quem o Estado atribui o cuidado da família.
idade nas normas todo o aparato legal para conciliar seus estudos e a maternidade durante o
período de gestação. Seus casos são arquivados e a escolarização agora é experienciada como
falta, fracasso e, principalmente, como culpa isentando todos os administradores do biopoder
de qualquer responsabilidade.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
multiplicidade que produzem subjetividades são aprisionados quando se reduz a vida a uma
única forma de ser: um sujeito escolarizado.
escolarizada tão aconteça e se enderece de fato a todos. Assim o espaço de cada um vai sendo
demarcado, controlado e regulado de modo distintivo em cada sujeito. A pesquisa aqui
problematizada nos indica que os reguladores sociais que se incidem sobre os alunos e as
alunas são diferentes. Esta diferença é provocada pelo deslocamento das biopolíticas
destinadas à aluna que se evade quando está grávida ou se torna mãe. A obrigatoriedade da
educação a que tem direito é suspensa, e em seu lugar entram as tecnologias de
governamento que visam proteger a maternidade e reposicionar essa aluna no lugar de mãe
direitos.
REFERÊNCIAS
______. (2009). Sobre a História da sexualidade. In: Microfísica do poder. São Paulo,
Graal
INTRODUÇÃO
dizer?; (ii) relação do texto com outros textos: em que este texto difere de tal texto?; (iii)
relação do texto com o para quem lê: (ex.: se for para o professor, se for para o aluno) e (iv)
a relação do texto com o leitor: o que você entendeu?, produzindo assim uma variedade de
sentidos a depender da relação que se estabelece entre os sujeitos envolvidos na situação de
leitura, no caso quem é o autor e quem é o leitor do texto, vai determinar o trabalho de
significação instaurado. (ORLANDI, 2006).
da sua produção científica por meio de ações que levem à sociedade os conhecimentos que
ela produz, sendo a extensão o meio por excelência pelo qual esta função se efetiva, já que
se configura como “[...] processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a
pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre universidade e
sociedade.” (Plano Nacional de Extensão Universitária citado no PCI/UEPB, 2012;p.28).
A outra dimensão, a pesquisa, encontra-se integrada ao ensino, uma vez que o saber
fazer docente implica numa ação investigativa, numa busca de recursos materiais e teóricos
que favoreçam o aprendizado, pois o conhecimento trabalhado é fruto de toda uma cadeia
interdisciplinar de produção intelectual.
benefícios à qualidade de vida na prisão; e proporciona resultado útil, tais como ofícios,
conhecimentos, compreensão, atitudes sociais e comportamento, que perdurem além da
prisão e permitam ao apenado o acesso ao emprego ou a uma capacitação superior. (JULIÃO
e PAIVA, 2014).
Além disso, outro elemento que embasa práticas pedagógicas no espaço prisional é
a Lei 12.433/2011 que trata da remissão da pena por estudo, e em específico na área da
leitura, objeto do nosso trabalho, é a Portaria Conjunta 276/2012 que disciplina o Projeto
da Remição pela Leitura no Sistema Penitenciário Federal. A referida Lei, em termos gerais,
expressa que o apenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir,
por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena (Art 1º). E no caso da
Portaria, esta enfatiza a remição da pena pela leitura, instituindo, no âmbito das
Penitenciárias Federais, o Projeto "Remição pela Leitura", em atendimento ao disposto na
Lei de Execuções Penais, no que tange à assistência educacional aos presos custodiados nas
respectivas penitenciárias federais. (Art 1º).
Conforme Costa (2011), a perspectiva de Bronckart sobre gênero textual traz uma
significativa contribuição, pois este autor desenvolve uma análise focalizada nos tipos de
que estes componentes textuais e contextuais exercem sobre seus receptores, no momento
do trabalho de compreensão textual.
Para proceder com a análise das sequências textuais, Bronckart (1999) recorre ao
posicionamento de alguns estudiosos, os quais se apoiam no princípio dialógico que
constituem as atividades de linguagem entre os sujeitos, observados tanto na produção como
na recepção textual, formulando cinco tipos básicos de sequências textuais, a saber: narrativa,
sequência textual.
A finalidade desta atividade foi favorecer este conhecimento às participantes para que
nos encontros posteriores, a produção da leitura dos gêneros que regulam a comunicação
forense fluíssem tanto em termos imediatos da comunicação verbal, restringindo-se ao
conteúdo temático do texto, como em termas das questões contextuais ligadas a situação
comunicativa e funcional da linguagem, como a enunciação do autor e os efeitos de sentidos
produzidos.
A METODOLOGIA ADOTADA
cidade de Campina Grande/PB, com graus de escolaridade variados: uma delas informou ter
cursado o 5º ano do Ensino Fundamental (EF), outra informou ter cursado até o 9º ano do
EF, duas informaram ter concluído este segmento de ensino, uma delas declarou ter cursado
frequência era quinzenal. Todo o trabalho foi desenvolvido entre novembro de 2015 a
outubro de 2016. A atividade relatada e discutida aqui, aconteceu durante um encontro
Ao final de cada leitura completa, perguntou-se também qual era ou quais eram as
sequências predominantes em cada gênero textual lido, além disso, chamava-se atenção das
participantes para que elas falassem sobre o conteúdo temático, o que o texto aborda,
dados.
textuais presentes nos gêneros textuais lidos, observaram que apesar da predominância de
um tipo de sequência textual, os gêneros apresentam uma composição heterogênea em
termos das sequências indo ao encontro da proposta de Bronckart (1999) acerca das
atividades de linguagem, textos e discursos.
Outro ponto que merece destaque, diz respeito ao jogo interacional instaurado na
relação autor-leitor via textos, presentes nesta atividade de leitura. As leitoras mantiveram
uma discursividade com os gêneros lidos, pois se remetiam ao contexto de produção da
leitura e chamavam atenção, no caso do gênero textual “A”, para o fato deste descrever e
impetrado.
de sentidos na leitura por elas formulados através do trabalho produzido a partir da interação
não só com o texto lido, ou melhor, não apenas com o contexto imediato da interação
propiciado pelo contato com o próprio texto. Mas, também com o contexto de produção
mediato, o qual está articulado com os acontecimentos sócio-históricos em que o texto lido
foi produzido, que no caso, foi a conjuntura política do Brasil na ocasião em relação a
predominantes, a narrativa e a descritiva, perceberam que algumas palavras não eram comuns
em termos da circulação enunciativa atual, ou melhor, palavras que hoje em dia não se usa
com tanta frequência como “socalco”, provocando a curiosidade das leitoras em saber o
significado dicionarizado.
conhecimento.
da leitura realizada pelo leitor (ORLANDI, 2006). Esse trabalho de significação do leitor
remente também a concepção de sujeito ativo que transita de uma curiosidade ingênua a um
processo de construção de uma consciência leitora crítico-reflexiva. (FREIRE, 2009).
de viver junto em sociedade, e de ser mais enquanto pessoa. (DOLORS, 2012; FREIRE,
2006, 2004).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
dialogicidade entre os agentes envolvidos nas vivências pedagógicas, no caso aqui relatado
entre a professora, os estudantes universitários envolvidos na ação extensionista e as
REFERÊNCIAS
DELORS, J. Educação: um tesouro a descobrir. 7ª edição. São Paulo. Cortez. Brasília, DF.
MEC/UNESCO. 2012.
FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 50ª ed. São
Paulo. Cortez, 2009.
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 29ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
GRIZE, J. B. Pour aboner les structures du discours quotidian. Langue Française, n. 50.
1981a. p. 7-19.
GRIZE, J. B. Logique naturelle et explication. Revue européenne des sciences sociales, n. 19.
1981b. p. 7-14.
1Professor de Metodologia da Pesquisa Jurídica da Escola de Direito e Líder do Grupo DIVERGE – Direito,
Diversidade Sexual e Relações de Gênero do UniBrasil; Doutor e Mestre em História da Educação. E-mail:
godoydotta@icloud.com – CV Lattes: <http://lattes.cnpq.br/4830921845612030>.
2 Advogada, Especialista em Gênero e Sexualidade, Mestranda em Direito na UnInter.. E-mail:
quantitativa dentro da educação superior? E qual foi o momento em que houve essa inversão
e através de quais mecanismos isso foi possível?
independência do Brasil. Uma das consequências foi expulsão dos Jesuítas das colônias
portuguesas, tirando o comando da educação formal da mão dos padres e passando para o
Estado (SECO; AMARAL, 2014). Mas esse novo sistema não impediu a continuação do
oferecimento dos estudos em colégios de outras ordens religiosas (ALGRANTI, 1993, p.61).
Após a expulsão dos jesuítas, os bens dos padres foram confiscados e muitos livros
ideias iluministas, que chegaram ao Brasil por meio dos intelectuais “estrangeirados” pela
formação em Coimbra (SECO; AMARAL, 2014).
A partir das reformas houve permissão para a frequência das mulheres na escola,
contudo, o ensino era separado dos homens. Além do ingresso na escola as mulheres
passaram a ser toleradas no magistério público como profissão. Contudo, essa reforma não
representou um ensino extensivo à população, era totalmente restrito para a população e
para às mulheres quase nulo. Destaca-se que mulheres promoviam sua educação em casa
com a contratação de variados cursos destinado exclusivamente às mulheres, tais como:
costura, bordado, flores, rendas, bolos, enfeites, leitura, contagem, etc (STAMATTO, 2014,
p.3). Por isso pode-se dizer que a maioria das mulheres do Brasil do Império vivia em
situação de dependência e inferioridade. Existia pouca possibilidade de instrução. Em
algumas famílias mais ricas recebiam noções de filosofia, mas se dedicavam principalmente
às prendas domésticas. Destaca-se ainda a rígida formação moral e religiosa, pois o objetivo
prioritário era prepará-las para a vida em matrimônio (ARANHA, 2006, p. 229). No ano de
1825, D. Pedro I autorizou o funcionamento do Seminário da Glória mediante
administração do Estado, retirando-o das mãos dos religiosos. A instituição abrigava as filhas
professorado idôneo e pela remuneração parca, o número de escolas para meninas não
chegava a vinte em todo o Brasil (ARANHA, 2006, p.229). A título ilustrativo cita-se que
em 1873, na Província de São Paulo, haviam somente 174 escolas primárias (ARANHA,
2006, p.230). As matérias consideradas mais racionais como geometria, filosofia, matemática
não constavam na grade da educação feminina, pois havia o entendimento de que a
capacidade cognitiva de homens e mulheres era diferente, sendo este um dos argumentos
para a educação separada, “pois as meninas seriam incapazes de seguir o mesmo ritmo dos
meninos, além do perigo que os excessivos exercícios intelectuais causassem danos à sua
frágil constituição física e psicológica” (CHAMON, 2014, p.6). Era consensual a atribuição
deveria ser ministrada separadamente. Ainda versava que a educação secundária era exclusiva
para o sexo masculino (BRASIL, 1854). Essa normatização tinha raízes sociais, mas
principalmente era uma demanda por parte da Igreja que compreendia a educação mista
como uma educação promíscua. O ideário religioso pregava que o lugar natural da mulher
era no lar (CHAMON, 2014). Somente na fase pré-republicana do final do século XIX é
que a educação feminina começou a despertar maior interesse, vindo à tona o tema da
coeducação, o que supunha oferecer as mulheres os estudos que antes eram reservados
exclusivamente aos rapazes. De um lado os mais conservadores temiam o desmonte do
sistema patriarcal e o desmantelamento da família. Usavam o argumento da natureza inferior
da pedagogia por meio de uma abordagem tradicional. Os liberais simpatizavam com as ideias
da Escola Nova, que se consagrava na tentativa de superar a escola tradicional. A escola do
período era magistocêntrica e voltada para a memorização dos conteúdos e o que se buscava
era uma educação mais dinâmica e voltada para a realidade e que se adequasse ao mundo em
constante transformação na tentativa de recuperar o atraso na educação brasileira quando
(ARANHA, 2006, p.303-304). Durante a Era Vargas (1930-1945) foi dada uma atenção
especial à educação feminina, todavia ressaltava-se que à elas deveria ser destinada a instrução
adequada ao seu papel familiar (GARCIA, 2014, p.5). Às mulheres foi reservado um projeto
pedagógico de retorno ao lar, lugar onde poderiam servir à pátria e à família. Ao mesmo
tempo, esse retorno ao espaço privado apresentou um retrocesso significativo em relação as
conquistas anteriores.
(BOMENY, 1999, p. 151). Dessa forma, “o fortalecimento do Estado era o argumento usado
pelo Estado Novo para justificar o discurso produzido na época” (NAHES, 2007, p. 41), e o
então Ministro da Educação, Gustavo Capanema, foi um personagem fundamental na
manutenção do regime. O discurso integralista acabava por reforçar a ideologia de uma
mulher submissa, dócil, quase beatificada. A mulher ideal era a mulher do lar. Nesse período,
o “projeto de mulher” era “aperfeiçoado por meio de uma intensa campanha do Ministério
da Educação, que via na figura feminina um de seus principais aliados quando o assunto era
educação nacional” (NAHES, 2007, p. 50).
desenvolveu uma “política de massa” que visava manipular essas aspirações. Assim: “o sistema
escolar passou a sofrer pressão social por níveis crescentes de acesso à educação, mas o acordo
das elites no poder buscava manter o caráter ‘aristocrático’ da escola e conter a pressão
popular pela democratização do ensino” (BELTRÃO; ALVES, 2009, p.5).
O grande debate teve como pano de fundo o anteprojeto da Lei de Diretrizes e Bases
que foi apresentado em 1948 pelo Ministro Clemente Mariani. A grande divergência estava
no fato de os católicos criticarem o tema republicano da laicidade e do outro lado estavam
os “pioneiros da educação nova” que defendiam a escola pública. Por conta dessas
divergências, o projeto só entrou em vigor treze anos depois, em 1961 - Lei nº 4.024, de 30
de dezembro (ARANHA, 2006, p. 309-310). Com a consolidação da supremacia dos EUA
no Pós-Guerra, logo se fez presente a invasão econômica e cultural norte americana no
governo de JK (1956-1961). As indústrias multinacionais entraram definitivamente no
O ensino superior era voltado para atender a demanda do mercado por profissionais
qualificados (SAVIANI, 2008, p.295-296). A “educação das mulheres só conseguiu romper
as últimas barreiras legais em 1971 com a LDB (Lei nº 5.692, de 11 de agosto) que atribuiu
equivalência entre os cursos secundários” (GOMES, 2014, p.6). Dessa forma, o curso normal
secundário amplamente frequentado por mulheres, também dava acesso ao ensino superior,
pois, conforme o art. 23: “os estudos correspondentes à 4ª série do ensino de 2º grau poderão,
quando equivalentes, ser aproveitados em curso superior da mesma área ou de áreas afins”.
Durante o processo de redemocratização e com a instauração da “Nova República”, em 1985,
diplomação universitária. Com a vinda da família real portuguesa, foram criados cursos como
a Escola Politécnica (engenharia civil), a Academia Militar, cursos médicos-cirúrgicos,
química, agricultura, economia, matemática, filosofia, desenho, historia, entre outros. No
Primeiro Império, por volta de 1827, implantou-se o ensino jurídico em São Paulo e Recife
(ARANHA, 2006, p. 306). O ingresso das mulheres ao ensino superior ocorreu pela primeira
vez nos EUA em 1837 através da criação das universidades exclusivas. Contudo, eram
ofertados apenas os cursos de bacharelado, sendo quase inexistentes os cursos de mestrado
e doutorado (BEZERRA, 2014, p. 6). Em 1875, foi criada uma seção feminina na Escola
Normal, onde as moças poderiam se profissionalizar na carreira do magistério. E no final do
século a classe docente começou a se tornar predominantemente feminina. Todavia, a
da possibilidade de acesso a educação superior que era destinado exclusivamente aos homens.
Somente no final do século XIX, através do Decreto nº 7.247, de 19 de abril de 1879, é que
as mulheres tiveram autorização para ingressar na educação superior. A primeira mulher a
se matricular na faculdade de medicina do Rio de Janeiro foi Ambrozina de Magalhães, em
1881 (ARANHA, 2006, p.229).
a partir do primeiro governo Lula, onde foi facilitado o acesso ao ensino superior, até o
Censo da Educação Superior de 2013, de onde os dados utilizados nessa pesquisa foram
retirados.
que as mulheres ficaram com 55% destas. Ainda em 2003 62% dos acadêmicos que
concluíram o ensino superior são do sexo feminino e apenas 38% do sexo masculino. Sobre
o ensino público e privado, o censo de 2013 mostra que 54% dos ingressantes no ensino
superior público eram do sexo feminino e 46% do sexo masculino. Já no ensino privado,
56% dos que ingressaram eram mulheres e 44% homens. Ainda na educação privada, 63%
de mulheres concluiram o ensino superior enquanto 37% dos concluintes eram do sexo
masculino. Na rede pública de ensino, 62% de mulheres concluiram o ensino superior e
apenas 38% de homens (Brasil. INEP, 2015).
Em 2003, as mulheres eram maioria em relação aos homens tanto no ingresso quanto
na conclusão do ensino superior. O mesmo acontece tanto no ensino público como no
privado: as mulheres são maioria e a diferença é considerável pois quanto aos concluintes, as
mulheres são mais da metade. Uma década depois, em 2013, as mulheres continuam sendo
maioria no ensino superior. Os dados da pesquisa do MEC demonstraram que, em 2013, do
total de 1.951.354 ingressantes no ensino superior, 1.066.652 eram mulheres. Segundo os
dados expostos, os acadêmicos do sexo masculino ingressaram em 45% das vagas enquanto
comparando com a educação pública (INEP, 2015). É possível perceber a partir dos dados
apresentados, que a educação privada tem sido mais acessível às mulheres do que o ensino
público. Mesmo havendo queda no número de pessoas que concluíram o ensino superior,
conforme demonstrado anteriormente, ainda assim a educação privada supera o número de
concluintes da rede pública. Uma das possíveis explicações para isso é o financiamento
estudantil. O FIES foi criado em 1999 durante o governo de FHC e ampliado no Governo
Lula, sendo sucessor do crédito educativo, criado em 1976 pelos militares. Conforme consta
no site do MEC, entre 2010 e 2012, o FIES firmou 598,3 mil contratos com os estudantes
e, segundo os dados disponíveis sobre a evolução do fies no site do INEP, 59% dos bolsistas
são mulheres. O PROUNI foi criado em 2005 com a Lei nº 11.096 e objetiva conceder
bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de graduação em instituições privadas de
ensino superior. Segundo informações disponíveis no site do MEC, no primeiro ano do
PROUNI, foram ofertadas 112.275 bolsas e, em 2013, o número de bolsas foi 252.374. Os
dados disponíveis sobre o PROUNI vão de 2005 (ano de criação do programa) até o segundo
semestre de 2014 e demonstra que dos bolsistas, 53% eram do sexo feminino, enquanto
47% eram do sexo masculino (um total de 790.668 mulheres foram beneficiadas pelo
programa). Sendo assim, mais da metade dos estudantes que conseguiram acesso ao ensino
Tabela 1. Número e porcentagem de diplomadas mestras e doutoras entre 1990 até 2015
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entendia-se que a mulher estava reservada unicamente ao espaço doméstico, seu papel era
cuidar da família, e isso refletiu na educação destinada à elas. Somente em 1879 as mulheres
foram autorizadas por Dom Pedro II a frequentar o ensino superior. Na segunda metade do
a LDB, que atribuiu equivalência ao ensino secundário, simplificou o acesso das mulheres
ao ensino superior. As mudanças ocorreram por meio do engajamento das próprias
mulheres, que historicamente tem conquistado direitos até então exclusivamente
masculinos e a lei refletiu esse processo de organização social. Além disso, os elementos que
a educação superior privada tem captado mais mulheres, simplificando, ao menos em termos
numéricos, tanto o acesso quanto a conclusão do nível superior. Apesar da expansão da
educação feminina que trouxe avanços nas relações sociais, de gênero, na política e na
economia, há que se pensar que esse avanço deve se estender a todas as camadas da
população, inclusive as mais pobres. Contudo, esse foi apenas um obstáculo vencido pelas
mulheres. Atualmente o desafio é adentrar nas áreas de predominância masculina. É
necessário equilibrar as relações de gênero a fim de construir uma sociedade materialmente
REFERÊNCIAS
CHAMON, Carla Simone. Ensinando meninos e meninas: a co-educação dos sexos na corte
carioca no final do império. Disponível em:
<http://sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe3/Documentos/Individ/Eixo4/304.pdf>. Acesso
em: 17jun.2017.
NAHES, S. Revista Fon Fon: A imagem da mulher no Estado Novo. São Paulo: Arte &
Ciência, 2007.
3 Por exemplo: Declaração Universal dos Direitos Humanos - 1948; Declaração do Direito ao
Desenvolvimento - 1986; Declaração e Programa de Ação de Viena -1993; Declaração de Pequim - 1995
(Declaração de Pequim adotada pela Quarta Conferência Mundial Sobre As Mulheres: Ação Para Igualdade,
Desenvolvimento e Paz); Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem - 1948 (por mais
inconsistente que pareça a nomenclatura); Preceitos da Carta das Nações Unidas - 1945; Convenção contra o
Genocídio - 1949; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos - 1966; Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais - 1966; Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
contra a Mulher - 1984; Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes 1984; Convenção Americana sobre Direitos Humanos - 1969; Convenção Interamericana para
Prevenir e Punir a Tortura - 1985; Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência
contra a Mulher - 1994. Ver mais em: PROCURADORIA GERAL do Estado de São Paulo. Instrumentos
Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. Disponível na Internet via:
http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sumario.htm. Acessado em
06.fev.2017.
4Para mais informações sobre os dados mencionados nesta seção verificar as pesquisas realizadas pelo Grupo
Gay da Bahia, associação de defesa dos direitos da população de SOGI diversa no país desde 1980. Página
disponível na Internet via: http://www.ggb.org.br/. Acessado em 08.fev.2017.
5 Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Secretaria de Educação. Pesquisa
Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2015: as experiências de adolescentes e jovens lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais. Curitiba: ABGLT, 2016.
Ainda, não se pode olvidar de que esta compreensão das práticas também perpassa a
noção de que a existência de uma identidade rígida e fixa é meramente ilusória e perpetuada
apenas discursivamente. Para Butler (2016, 134) essa rede de regulações dos corpos se dá
dentro de um contexto tempo-espacial e suas interpretações a partir de lentes culturais, de
modo parcial e limitador, portanto, que compreende a sexualidade dentro do quadro da
heterossexualidade, apenas. E uma análise cultural nos permite perceber que desde a
medicina, conforme exposto, até os sistemas de ensino, a realidade heterossexual é
perpetuada como o padrão e o ideal a ser alcançado tendo início já na infância.
Não por acaso, também, assusta o fato de não haver no país uma preocupação clara
em se avaliar a saúde mental das/dos estudantes e prestar apoio neste sentido. Desde 1989
o Department of Health and Human Services dos Estados Unidos da América lançam
reportes enfrentando as principais causas do suicídio juvenil naquele país. Não
surpreendentemente, dos motivos mais alarmantes constavam o bullying e a discriminação
em razão de orientação sexual e identidade de gênero. Em suas conclusões assim constou
que os jovens LGBTI naquele país teriam três vezes mais chances de cometer suicídio que
qualquer outra camada da população.
Contudo, apesar das condutas pré determinadas nas quais se pretende limitar a
existência da população, cujos efeitos se percebem nas relações espaciais e interpessoais, bem
como atravessando as formas de vida, tem-se, em contrapartida, a ocorrência de
transgressões cotidianas às constrições da matriz heterossexual. Já houve no país
manifestações contra a proibição de alunos do sexo masculino usarem saia ou batom, as
O que se percebe, nestas condutas, são as injunções de poder operando nas relações
espaciais e interpessoais, colonizando as formas de vida do corpo social e demonstrando
algumas estratégias pontuais para sua subversão e transgressão. Todavia, a tentativa de
pertencer e a repressão de aspectos da vida – na tentativa de adequação às curvas de
normalidade propostas – guardam também a possibilidade de resistir, de se inconformar.
Desta forma, no enfrentamento das opressões de gênero se viu também, mediante protestos
desprovidos de violência, que ao vestirem-se de brilhos, as/os secundaristas implicitamente
lutavam também pela possibilidade de viverem as sensibilidades a elas/eles negadas, de viver
uma juventude queer6 que destoasse do padrão heterossexual.
Se o mote para a ocupação das escolas paulistas foi a indignação diante das fraudes
nas políticas públicas destinadas à educação, a resistência das/dos estudantes ganhou novos
matizes ao agregar no debate ético e político o gênero como fator crucial. A compreensão
da matriz heterossexual como constitutiva da realidade (BUTLER, 2016) não poderia
Entre os brados de “Só saio daqui com uma CPI”, referindo-se à abertura de
Comissão Parlamentar de Inquérito para investigação de fraude nas merendas escolares, as/os
estudantes se montaram com tecidos multicoloridos, maquiaram-se e desfilaram pela
ALESP, emendando o coro de “Brilhar e Resistir!”. Enquanto, por um lado, figura como
ultraje para adeptos da “ideologia de gênero”, de outro, a resistência ético-estético-política
das/dos secundaristas é capaz de explicitar as próprias amarras em que se encontra o debate
público sobre educação.
deliberações mais fundamentais para o corpo social por nossos representantes eleitos, a
exemplo das assembleias legislativas, nos últimos anos temos acompanhado um contínuo
processo de crise de representatividade política em razão do inflacionamento da troca de
interesses privados na mesma medida do esvaziamento do debate público. A ocupação da
ALESP pelas/pelos secundaristas devolve à casa legislativa o debate referente à moralidade
da Administração Pública, assim como explicita o caráter político dos corpos generificados,
sobretudo daqueles destoantes da normatividade de gênero, tidos como abjetos (BUTLER,
2015b).
uma passarela torna clara a pretensão de se extinguir o “gênero” das escolas. O desfile, para
além de nos alertar sobre tal impossibilidade, sinaliza para os efeitos concretos da
heteronormatividade (BERLANT, WERLANT, 2000) que incessantemente ocorrem. Ao
brincarem com os tecidos e o modo de ajustá-los em seus corpos, as/os estudantes nos
contam sobre a perversidade dos efeitos de um modelo de sociedade que estabelece como
humano o homem heterossexual (WINTER, 2003) e cujo padrão tende a ser reforçado por
medidas que buscam suprimir das escolas a compreensão de tal construção.
CONCLUSÃO
Se, conforme exposto, por meio do desfile as/os estudantes foram capazes de criar
novos modos de se relacionar estética e politicamente com seus corpos, assim o fizeram
porque localizados nas margens da subversão das regras de gênero. Ao desse modo
procederem, remetiam às mesmas condições que vivenciam cotidianamente no espaço
escolar, qual seja, da luta pelos pequenos espaços de liberdade ante às constrições normativas
do poder. Na ocupação da ALESP as/os estudantes se encontravam em grau de precariedade
elevado, na medida em que permaneciam a contragosto em espaço reservado para
deliberações parlamentares, todavia, evocavam, por meio do desfile, a própria precariedade
dos seus corpos quando situados em uma escola heteronormativa.
______. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. London and New York:
Routledge, 2011.
______. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução de Sérgio Tadeu
de Niemeyer Lamarão; Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2015b.
DELEUZE, Giles. GUATARRI, Félix. O que é a filosofia? (Tradução de Bento Prado Jr.
e Alberto Alonso Muñoz). Rio de Janeiro: Ed 34, 1992. (Coleção TRANS).
PELBART, Peter Pal. Vida Capital: Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.
ISBN 978-856-6278-21-7
9 788566 278217