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Lígia Ziggiotti de Oliveira

JOSafá Moreira da Cunha


Rafael GOS Santos Kirchhoff
(Orgs.)

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Organização:
Ligia Ziggiotti de Oliveira
Josafá Moreira da Cunha
Rafael dos Santos Kirchhoff

EDUCAÇÃO E
INTERSECCIONALIDADES

© NEAB-UFPR

Realização: Apoio:

Curitiba
2018
Universidade Federal do Paraná

Reitor
Ricardo Marcelo Fonseca

Vice-Reitora
Graciela Bolzón de Muniz

Superintendência de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade


Paulo Vinicius Baptista da Silva

Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros


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Paulo Vinicius Baptista da Silva

Conselho Editorial
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Dra. Aparecida de Jesus Ferreira – UEPG
Dra. Conceição Evaristo – Escritora
Dr. Eduardo David de Oliveira – UFBA
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Dr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso – UDESC
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Copyright © 2018 NEAB-UFPR

Coordenação Editorial
Paulo Vinicius Baptista da Silva

Organização
Ligia Ziggiotti de Oliveira
Josafá Moreira da Cunha
Rafael dos Santos Kirchhoff
Projeto gráfico e Editoração
Vitor Atsushi Nozaki Yano

Capa
Vinícius Miranda de Morais

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ


BIBLIOTECA CENTRAL
SISTEMA
– COORDENAÇÃO DE PROCESSOS TÉCNICOS
DE BIBLIOTECAS

E24 Educação e interseccionalidades / organização: Ligia


Ziggiotti de Oliveira, Josafá Moreira da Cunha, Rafael
dos Santos Kirchhoff. – 1ª. ed. - Curitiba : Ed. NEAB
UFPR, 2018.
313 p. ; 21 cm.

Vários autores.
ISBN 978-85-66278-21-7

1. Educação inclusiva. 2. Diversidade. 3. Pluralismo cultural.


I. Oliveira, Ligia Ziggiotti de, 1989-. II. Cunha, Josafá Moreira
da. III. Kirchhoff, Rafael dos Santos. IV. Título.

CDD: 371.9
CDU: 376

Bibliotecário: Arthur Leitis Junior - CRB 9/1548


SUMÁRIO
Prefácio
Roberto Dalmo Varallo Lima de Oliveira......................................................................... 9

Apresentação
Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff............................................................ 13

1. O que não tem nome não existe! Feminismo negro e o percurso histórico do
conceito de Interseccionalidade
Megg Rayara Gomes de Oliveira....................................................................................... 19

2. Mobilidade Social: até onde o negro (não) pode ir


Marielli Pinheiro e Emerson Velozo.................................................................................. 49

3. A experiência social das adolescentes negras na escola pública e os treze anos da lei
10.639/03: ideologia e a PEC 55
Ana Carolina Dartora..................................................................................................... 63

4. Ideologia de gênero: a gênese de um discurso


Kaciane Daniella de Almeida e Nancy Stancki da Luz....................................................... 75

5. Identidade de gênero e orientação sexual no currículo: fundamentos e ameaças de


direitos LGBTI
Ingrid Viana Leão e William Glauber Teodoro Castanho.................................................. 87

6. Da ideologia de gênero à família heteronormativa: uma análise dos artigos 3º e 4º do


Plano Municipal de Educação de Curitiba
Amanda da Silva, Maria Rita de Assis César e Nayara Silveira Bernardes de Assis..............103

7. Discriminação entre estudantes no ensino superior brasileiro: uma revisão


sistemática
Vitor Atsushi Nozaki Yano e Josafá Moreira da Cunha......................................................117

8. Bullying escolar e as relações de gênero


Michelle Popenga Geraim Monteiro, Everton Ribeiro e Araci Asinelli-Luz.........................137
9. Educação, relações de gênero e diversidade sexual nas escolas: uma questão de
Direitos Humanos
Eduardo Felipe Hennerich Pacheco e Sirley Terezinha Filipak........................................... 149

10. Gênero e sexualidade em discurso: práticas de in/exclusão escolar


Thais Vieira de Matos...................................................................................................... 165

11. Desconstruir tabus e preconceitos para construir a (com)vivência com as diferenças:


um relato de experiência sobre diálogos de gênero e diversidade em um projeto de
extensão no IFPR de Irati-PR
Thaysa Zubek Valente e Arthur Leonardo Costa Novo....................................................... 173

12. O curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE) da Universidade Federal do Paraná


(UFPR): uma análise de ações interventivas no cenário escolar
Renata de Fátima Tozetti, Marcos Claudio Signorelli e Daniel Canavese de Oliveira........ 187

13. Diálogos sobre gênero na escola: práticas da Psicologia na educação profissional


técnica de nível médio
Thaysa Zubek Valente...................................................................................................... 199

14. Feminismo e direito: experiências de módulo em instituição de ensino jurídico


superior
Francielle Elisabet Nogueira Lima e Lígia Ziggiotti de Oliveira......................................... 213

15. Educação, Direito e Sociedade Civil: simbiose de uma atuação internacional


visando garantir o direito à educação livre, plural e sem censura no Brasil
Ananda Hadah Rodrigues Puchta, Camille Vieira da Costa e
Sandra Lia Bazzo Barwinski........................................................................................... 213

16. Religião, sexualidade e saúde sexual nas Ciências da Religião da Universidade


Federal de Sergipe e no Ensino Religioso público estadual
Daniela Senger e Ingrit Machado Jeampietri de Paiva....................................................... 213

17. Mas ela vai voltar? Implicações das decisões judiciais nos processos de abandono
intelectual de alunas grávidas e mães
Célia Ratusniak, Carla Clauber da Silva e Maria Rita de Assis César............................... 253

18. Práticas de leitura com leitoras-reeducandas em cumprimento de pena no


Serrotão/PB
Fabíola Mônica da Silva Gonçalves (UEPB)................................................................... 267
19. Inclusão da mulher no espaço educacional brasileiro: aspectos históricos da
trajetória feminina na educação superior
Alexandre Godoy Dotta e Larissa Ribeiro Tomazoni..........................................................283

20. Brilhar e resistir: poder e transgressão nas ocupações estudantis secundaristas de


São Paulo
Dhyego Câmara de Araujo e Gustavo Bussmann Ferreira...................................................299
PREFÁCIO
O convite para prefaciar o livro “Educação e Interseccionalidades”, organizado por Ligia
Ziggiotti, Josafá de Cunha e Rafael Kirchhoff, desperta em mim muitos sentimentos e, o
primeiro processo para falar sobre tal obra foi uma reflexão pessoal. Conto para vocês que
não me conhecem. Mia Couto, um de meus autores favoritos, diz:

“Sou um branco que é africano; um ateu não praticante; um poeta que


escreve em prosa; um homem com nome de mulher; um cientista que tem
poucas certezas sobre a ciência; um escritor em terra de oralidade”.

Eu, em diálogo com Mia Couto, com os(as) organizadores(as) deste livro e
autores(as) de cada um desses belos capítulos, digo: Sou um branco que não é africano e que
até certo tempo caía nas armadilhas discursivas que reforçam os racismos. Sou um homem
cis, heterossexual que até certo tempo caía nas armadilhas discursivas que reforçam as
LGBT-fobias, sou um homem que até certo tempo caía nas armadilhas discursivas que
reforçam os machismos. Escrevo para um livro de Educação, mas minha formação é como

licenciado em química. Percebam a dificuldade que é fazer esse prefácio! Em um primeiro


momento a sensação foi – Não vou fazer! Outras pessoas deveriam estar nesse lugar... Mas,
por outro lado, surge tamanha honra por ser, a mim, confiada essa tarefa. Logo eu? O que
os organizadores viram em mim? Após a tentativa de negação, decido que o respeito a
confiança delegada precisa ser maior do que todas as inseguranças. Quando digo que há
alguns anos reproduzia deliberadamente discursos racistas, lgbt-fóbicos, machistas,

compreendo que a Educação é um caminho para a transformação das mentes, caminho para
apreciação de valores mais humanos e caminho parar aprendermos a conviver. Por perceber

todas as transformações em mim, acredito na transformação dos outros – talvez essa crença,
em um momento político tão difícil de acreditar em um futuro diferente, seja o que chamou

a atenção e fez com que me convidassem. Talvez porque esse livro também traz consigo uma
esperança. Esperança de transformação do mundo e construção de uma sociedade mais justa.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 9


O trabalho que me dedico é a formação de professores a partir de princípios da
Educação em Direitos Humanos – é com esses óculos que interpreto o mundo e busco
conduzir transformações.

A professora Vera Candau e colaboradores(as) (2013) nos estimula na construção de


um olhar que permita perceber o mundo construído por assimetrias de poder. Considero

que seja um dos elementos mais difíceis da formação na Educação em Direitos Humanos.
Como fazer com que as pessoas percebam as assimetrias de poder existentes? Como fazer
com que as pessoas percebam que pessoas negras não possuem o mesmo poder na sociedade

que pessoas brancas? Que pessoas LGBT não possuem o mesmo poder na sociedade que
pessoas cis, heterossexuais? Como fazer com que homens percebam que as mulheres não
possuem o mesmo poder na sociedade que eles? Como fazer pessoas entenderem que
mulheres negras e LGBT estão em um espectro do poder, diferente de homens negros cis

e heterossexuais? Como fazer as pessoas perceberem... Árdua tarefa – uns não percebem
porque não foi dada a oportunidade de perceber, afinal, até alguns anos o grito maior era
luta pela igualdade e muitos caem nas armadilhas do discurso da igualdade. Sim. Pensar em

igualdade sem perceber as desigualdades é uma grande cilada. Há um tempo mais curto,
começamos a pensar em termos de “Diferenças” - sendo um grande desafio estabelecer o

diálogo entre igualdade e diferença. Se, por um lado o discurso da igualdade gera uma
armadilha, a luta pela diferença, sem a igualdade, também nos gera uma armadilha de
incomunicabilidade entre as diferenças. Assim, após perceber as assimetrias de poder
existentes e refletir sobre igualdade e diferença precisamos estimular praticas que
empoderem grupos historicamente marginalizados, que denunciem violações de direitos,
com o intuito de que essas violações não voltem a ocorrer – princípio chamado de “Educar
para nunca mais”. Além disso, – olha quanta coisa! – precisamos estimular a formação de

sujeitos que conheçam seus direitos, acreditem na possibilidade de ser coautor(a) das
transformações do mundo, tornando-se ativos nas lutas sociais.

Brecht nos dizia que “nada deve parecer impossível de mudar”, mas tem horas que
confesso, fica difícil. Como avançar nesses pontos em uma época de descrença com a política,
com o judiciário, em época de escola “sem partido”, em um momento no qual deputados

que espalham discursos de ódio são aplaudidos e percebidos, por alguns, como a salvação

10 Educação e Interseccionalidades
para o país? Algo precisa nos fazer acreditar e, esse livro contribui com isso. Ler “Educação

e Interseccionalidades” nos dá fôlego.

Esse livro, caro leitor(a), será um forte aliado para uma educação que contribua no
enfrentamento aos desafios de estimular um olhar para as assimetrias de poder, formar

sujeitos de direito, educar para nunca mais, estimular a construção da democracia – afinal,
só é possível falarmos em democracia quando todos(as) tem o poder, não só de falar, mas de
serem ouvidos. Vocês encontrarão textos que provocam reflexões sobre questões étnico

raciais, gênero, religiosidades, abandono intelectual, bullying, etc. Uns são textos teóricos,
outros são de pesquisa em Educação e de experiências educacionais. Porém, cada capítulo,
em cada uma de suas diferentes abordagens, pode ser simbolizado como representantes das

diversas vozes, silenciadas, marginalizadas. Esses capítulos, compilados em forma de livro,


dão as mãos e avançam lutando e contribuindo simultaneamente para que você perceba as
desigualdades e assimetrias de poder existentes, mas que a gente tenha fôlego para nos
transformarmos, cada dia mais, em um/a co-autor(a) das transformações sociais.

Roberto Dalmo Varallo Lima de Oliveira


Uberlândia, agosto de 2018.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 11


12 Educação e Interseccionalidades
APRESENTAÇÃO:
Educação e Interseccionalidades

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff

Em 2016, como primeiro ato de mandato, o presidente interino Michel Temer


anunciou a extinção de Ministérios como o das Mulheres, o da Igualdade Racial e o de
Direitos Humanos. A medida inaugurou uma sequência de recuos ao reconhecimento
institucional de vulnerabilidades agravadas no contexto brasileiro, e, consequentemente, têm
se retraído as providências estatais para promoção da cidadania.

Se, por um lado, a violência estatal contra determinados grupos e indivíduos à


margem da fruição plena da dignidade se torna uma ameaça concreta e brutaliza tais
vivências, por outro, a resistência se articula, em espaços diversificados, para dinamizar uma
série de lutas contra os retrocessos. Nesta cadência de transformar cinzas em potência é que
surgiu a motivação para a organização desta obra.

O eixo da educação se torna central em razão de um profícuo diálogo, também


produzido a partir de um nefasto projeto político, que uniu esforços de uma parcela de
juristas e de educadoras(es).

No Paraná, com as votações dos planos que traçariam as metas da educação para os
próximos dez anos, as comissões de Diversidade Sexual e de Gênero e de Estudos Sobre
Violência de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e a Universidade Federal

do Paraná, por meio de seus núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e de Direitos Humanos e


Vulnerabilidades, iniciaram um conjunto de ações para, em reforço às resistências que já se
exerciam por outros atores políticos, participar e ampliar as discussões sobre a crescente
onda que pretendia retirar dos projetos da lei programática os esforços de construção de uma
educação em direitos humanos que contemplasse as diversas experiências de exclusão no
espaço educacional tais como as relacionadas a gênero, raça, orientação sexual, identidade de
gênero e classe social.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 13


Tratava-se de um ambiente de disputa de narrativas, em que ganhava muita força a

que passou a ser chamado de “ideologia de gênero”. Essa pauta foi assumida no Brasil pelo
Movimento Escola sem Partido, adormecido desde 2004, sem apoio popular, e, tempos

depois, pelo Movimento Brasil Livre – MBL. Com isso, as práticas escolares passaram a ter
uma vigilância inédita na fase democrática do país. Diversos municípios aprovaram

legislações locais que censuravam o uso das palavras “gênero” e “orientação sexual” em sala
de aula, e professoras(es) passaram a sofrer ameaças através de notificações extrajudiciais ou
de processos administrativos e judiciais.

Nas ações conjuntas entre OAB e UFPR, produziram-se notas públicas e pareceres

demonstrando a contrariedade das emendas aos projetos de lei com aquela intenção ao
direito nacional e internacional, participou-se das audiências públicas nas casas legislativas,
promoveram-se reuniões abertas na OAB com a presença de representantes da academia, da
classe docente e de movimentos sociais, num esforço para se pensarem coletivamente as
resistências possíveis naquele contexto de retrocesso, infelizmente, mais aprofundado no
momento em que lançamos este livro. A obra nasce deste encontro entre academia,
advocacia e militância, e se consolidou com o Seminário Interseccionalidades: Pesquisa,

Educação e Diversidade, realizado nos dias 21 e 22 de fevereiro de 2017, que marcou o


lançamento do projeto Pré-Pós de formação para a pós-graduação. Daí, também, a inspiração
para o título.

O eixo da interseccionalidade se torna central a partir da preocupante percepção de


um fortalecimento, nos discursos hegemônicos, de um sujeito universal, abstrato, e

desconectado das necessidades materiais de parcela considerável da população. O


entendimento de que as transformações abruptas aprofundam estigmas relacionados a raça,
gênero e classe social demanda de nosso contra-argumento o registro constante de
corporalidades que, em contextos educacionais, tensionam a pretensa neutralidade da norma
vigente.

A este desejo, contudo, não se apresenta um campo sem paradoxos. O primeiro deles
consistiu no próprio desenho de sumário que organiza os estudos aprovados para a nossa
publicação. A divisão, por eixos temáticos, certamente não pactua com a percepção de

interseccionalidades em que acreditamos.

14 Educação e Interseccionalidades
As posições marcadas por raça, gênero e classe social, para se mencionar apenas as
três mais lembradas nos esforços teóricos, não podem se definir como compartimentadas,
tampouco como fixas ou como únicos elementos capazes de esgotar a configuração de uma
situação de injustiça.

Mesmo assim, utilizamos os marcadores mais presentes em cada um dos textos para
reuni-los, em termos de proximidade, sem, contudo, dividi-los em partes específicas. Como
segundo critério didático, ainda, preferimos aproximar aqueles que apresentavam análises
mais teóricas e aqueles que apresentavam análises mais práticas em torno da temática
proposta, tentando tecer aproximações entre os capítulos por afinidade não só temática, mas
também metodológica, a despeito da inegável originalidade de cada uma das iniciativas.

Sabemos dos inevitáveis riscos em se anunciar uma pretensa dicotomia entre teoria

e prática, que, em última análise, é equivocada. Mesmo assim, a organização se apresentou


como uma alternativa didática para se proceder uma conexão plausível - ainda que singela -
entre os variados trabalhos que compõem esta obra.

A necessidade, da qual não podemos nos esquivar, de fornecer às reflexões uma


ordem de leitura possível conduziu as nossas respostas provisórias, desde que, com a
apresentação, pudéssemos contornar as eventuais insuficiências de nossas escolhas. É o

conteúdo de cada capítulo que, felizmente, oferece as tonalidades complexas entre


interseccionalidade e educação, as quais, por certo, não couberam, à plenitude, na concepção
formal do livro.

Megg Rayara de Oliveira, travesti, preta e doutora em educação dá início à série de


artigos abordando a trajetória histórica do conceito de interseccionalidade, com ênfase para

a contribuição de feministas negras brasileiras para o debate. A autora ressalta como a


interseccionalidade oferece plataforma para destacar temas como os estudos das relações
étnico-raciais, os estudos culturais, de gênero e diversidade sexual, as teorias pós

estruturalistas e pós-coloniais, em sua constante evolução.

A seguir, o capítulo 2 destaca avanços e limites das políticas de ações de inclusão


racial em uma universidade pública. Se a políticas afirmativas abrem caminhos para a inclusão

da população negra no ensino superior, ressaltam as barreiras estruturais ainda existentes

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 15


para a mobilidade social e plena participação de pessoas negras, particularmente em processos

de produção do conhecimento. E como destaca a autora do terceiro capítulo, se o lugar de


crianças e adolescentes negras é a escola, a efetivação de políticas de inclusão está articulada

a necessidade contínua de ações para romper as barreiras de "senzalas simbólicas" ainda


existentes nos currículos e políticas educacionais.

E ainda que os primeiros anos deste século foram marcados por ampliação na
inclusão, tanto de pessoas quanto de temas no âmbito educacional, também foram palco de
avanço de narrativas como a chamada “ideologia de gênero”, cujo desenvolvimento é

analisado no quarto capítulo, considerando o uso desta por grupos contrários à discussão de
gênero no processo do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, bem como seus
impactos na construção de documentos como a Base Nacional Curricular Comum (Capítulo
5), e o Plano Municipal de Educação de Curitiba (Capítulo 6).

E em que medida as próprias práticas escolares produzem e reforçam desigualdades?


O sétimo capítulo apresenta revisão sistemática de estudos sobre experiências de
discriminação vivenciadas por estudantes no âmbito do ensino superior, destacando a ampla
lacuna de material empírico associado à temática. Uma exceção a esta tendência é
apresentada no capítulo sexto, onde as autoras examinam as assimetrias relacionadas ao
gênero de estudantes que caracterizam processos de bullying no âmbito escolar, assimetrias

que podem estar vinculadas à própria prática e organização do trabalho pedagógico.

O oitavo capítulo revisa desafios e perspectivas para a inclusão do debate sobre gênero
e diversidade sexual em ambientes educacionais sendo que os quatro capítulos que seguem
sintetizam relatos de experiências para a transposição do debate sobre gênero e diversidade
sexual para o âmbito da educação básica (Capítulos 9, 10 e 11) e ensino superior (Capítulos
12 e 13).

Partindo da análise da atuação da Comissão de Estudos Sobre Violência de Gênero


da OAB/PR, o capítulo 13 revela possibilidades de articulação entre a Educação e o Direitos
na promoção de escolas livres de censura, que ofereçam ambientes seguros e respeitosos para
aprender e ensinar.

16 Educação e Interseccionalidades
E ainda que a abordagem das relações étnico-raciais, estudos de gênero e de
diversidade sexual seja desafiadora no âmbito de marcos normativos educacionais, tal
mudança é vazia sem a necessária tradução para as práticas educacionais. No capítulo 14, as
autoras, partindo de análise do Referencial Curricular da Rede Estadual de Ensino de
Sergipe, as autoras demonstram a possibilidade de articulação da religião, sexualidade e saúde
sexual, interligados à noção de gênero, no âmbito do ensino religioso. Apesar disso, ao passar
para a análise de currículo de formação de professores de ensino religioso em uma instituição

de ensino superior no mesmo estado, verifica-se uma abordagem ainda tímida sobre
possibilidades de abordagem já presentes no referencial curricular.

Quais as condições de acesso e permanência de mulheres em ambientes educacionais?


No capítulo 15, são destacadas as repercussões das decisões judiciais nos processos de evasão
escolar de alunas grávidas e mães. A seguir, o capítulo 16 sublinha desafios para a inclusão
educacional de mulheres encarceradas. E ainda que a análise oferecida pelas autoras do
capítulo 17 aponte ampliação nos índices de matrícula de mulheres nos diferentes níveis de
ensino, ainda há barreiras para a inclusão educacional de mulheres, também marcadas por

desigualdades.

Concluindo esta obra, o capítulo 19 oferece análise sobre como, diante das estratégias
de regulação e controle da sexualidade e do gênero nas escolas, estudantes secundaristas que
ocuparam a Assembleia Legislativa de São Paulo em 2016 criaram novos modos de se

relacionar estética e politicamente com seus corpos, nas margens da subversão das regras de
gênero. São elas e eles que, com brilho e resistência, apontam caminhos para reconstruir
contextos educacionais onde todas e todos possam aprender, ensinar e pesquisar com

liberdade.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 17


18 Educação e Interseccionalidades
O QUE NÃO TEM NOME NÃO EXISTE!
Feminismo negro e o percurso histórico do conceito
de Interseccionalidade

Megg Rayara Gomes de Oliveira1

Ser mulheres juntas não era suficiente. Nós éramos diferentes.


Ser lésbicas não era suficiente. Nós éramos diferentes.
Ser Negras juntas não era suficiente. Nós éramos diferentes.
Ser mulheres Negras juntas não era suficiente. Nós éramos diferentes.
Ser sapatonas Negras juntas não era suficiente. Nós éramos diferentes.
Isso foi um pouco antes de conseguirmos entender que
nosso lugar era a própria casa da diferença, mais do que
a segurança de qualquer diferença específica.

Audre Lorde

Neste artigo procuro fazer o percurso histórico do conceito de interseccionalidade,


desenvolvido pela jurista negra estadunidense Kimberlé Crenshaw, destacando as reflexões
do feminismo negro dos EUA, das décadas de 1970 e 1980, nesse processo. Evidencio
também que, no Brasil, as feministas negras na década de 1980 estavam sintonizadas com
essas discussões e apresentavam em suas produções teóricas elementos constitutivos de uma
interseccionalidade com características nacionais. Afirmo que o uso deste conceito
possibilita o revezamento entre diversas áreas do conhecimento, como por exemplo, os
estudos das relações étnico-raciais, os estudos culturais, de gênero e diversidade sexual, as
teorias pós-estruturalistas e pós-coloniais. Um debate interseccional permite colocar em
evidência reflexões que emergem de setores variados de nossa sociedade, como o movimento
social de negras e negros, o movimento LGBT e o movimento feminista, dentre outros.
Nenhuma categoria aqui debatida é tratada como algo estático, fixo, cristalizado, numa
oposição declarada às visões essencialistas que generalizam existências e desconsideram os
múltiplos processos que as envolvem.

Palavras-chave: Mulheres; raça; feminismo negro; interseccionalidade.

1Travesti preta, doutora em Educação - Universidade Federal do Paraná; mestra em Educação - Universidade
Federal do Paraná; especialista em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, Educação e Ações Afirmativas
no Brasil - Universidade Tuiuti do Paraná; especialista em História da Arte - Escola de Música e Belas Artes
do Paraná; Licenciada em Desenho - Escola de Música e Belas Artes do Paraná.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 19


INTRODUÇÃO2

A percepção da necessidade de produzir uma discussão interseccional relaciona-se


com minha trajetória pessoal e profissional, marcada pelo racismo, pela homofobia e pela
transfobia e com a minha militância no Movimento Social de Negras e Negros e no
movimento LGBT. Em ambos os espaços e em diversas situações, observei empiricamente

que pessoas negras LGBT tinham pouca ou nenhuma representatividade e raramente


exerciam alguma liderança.

Minha inquietação foi se constituindo em uma narrativa comum produzida também


por outras pessoas negras que apresentavam expressões de gênero e orientações sexuais

discordantes da norma cis3 heterossexual.

Desta forma, este trabalho nasce de uma inquietação pessoal, compartilhada por

vários/as sujeitos/as que, assim como eu, se movem em busca de ocupação de espaços. Tal
afirmativa justifica-se a partir de minhas incursões pela pesquisa acadêmica pela qual tive
acesso a trabalhos que discutem separadamente gênero, identidade de gênero, diversidade
sexual e relações étnico-raciais. Entendo que as pesquisas acadêmicas têm alcance limitado

e procuram problematizar temas bem específicos e se utilizam de conceitos, teorias e práticas


condizentes com os obstáculos que se propuseram a transpor.

2 Este artigo foi extraído da minha tese de doutorado intitulada O Diabo em Forma de Gente: (R)existências
de Gays Afeminados, Viados e Bichas Pretas na Educação, defendida em 30 de março de 2017 na Universidade
Federal do Paraná.
3 A noção de cisgeneridade é proposta pela transexual Julia Serano, em 2007, na obra Whipping girl: a

transsexual woman on sexism and the scapegoating offemininity “a partir do exercício de analisar a origem da
terminologia - trans-: o outro, o desajuste. Ligações químicas cruzadas espontaneamente, de forma inesperada.
O oposto disso, o termo – cis -, também existe no campo da química orgânica: seria a ligação química esperada,
a mais comum de se ocorrer entre os elementos. A ligação química “normal”. Porém, as moléculas da química
orgânica são imprevisíveis. Assim como as subjetividades são imprevisíveis. Portanto, a cisgeneridade indica a
existência de uma norma que produz efeitos de ideal regulatório, ou seja, efeitos de expectativas e
universalização da experiência humana. Em termos gerais, o que diferentes ativistas e os movimentos
transfeministas têm proposto é que a norma cisgênera é uma das matrizes normativas das estruturas sociais,
políticas e patriarcais, cujos ideais regulatórios produzem efeitos de vida e de atribuição identitária
extremamente rígidos. A atribuição identitária, de forma compulsória no momento de registro de cada pessoa,
define e naturaliza a designação de uma pessoa a um dos polos do sistema de sexo/gênero ao nascer, a partir
de uma leitura restrita, baseada na aparência dos órgãos genitais. Além disso, a norma cisgênera afirma que
essa designação é imutável, fixa, cristalizada ao longo da vida da pessoa.” (Maria Luiza Rovaris CIDADE, 2016,
p. 13-14). Cis é a abreviação de cisgênero/a.

20 Educação e Interseccionalidades
Assim, para colocar em debate temas que problematizam situações como o racismo,

o machismo e a LGBTfobia de forma simultânea, por exemplo, é necessário teorias e


conceitos adequados. Nesse sentido o conceito de interseccionalidade desenvolvido pela

jurista negra estadunidense Kimberlé Crenshaw em 1989 (Mara Viveros VIGOYA, 2016)4,
apresenta-se como a melhor alternativa, permitindo que reflexões antes separadas, em nome

de um rigor acadêmico, se somem, dando maior potência ao debate. Este conceito é


amplamente discutido no Documento Para o Encontro de Especialistas em Aspectos da
Discriminação Racial Relativos ao Gênero traduzido e publicado no Brasil em 2002 na

Revista Estudos Feministas.

Entre seus argumentos Crenshaw (2002) destaca que as intersecções entre raça e
gênero contribuem de maneira efetiva para estruturar as experiências de mulheres negras,

marcadas, sobretudo pelo racismo e pelo machismo. Crenshaw (2002) assinala, porém, que
o racismo e o machismo não são os únicos marcadores que podem ser pautados em uma
discussão interseccional e questões relativas à orientação sexual e geração, dentre outras,
podem ser problematizadas.

Assim, defendo a utilização deste conceito como uma alternativa para a pesquisa na
área das ciências humanas por possibilitar o revezamento entre diversas áreas do
conhecimento. No caso desse trabalho com os estudos das relações étnico-raciais, os estudos
culturais, de gênero e diversidade sexual, as teorias pós-estruturalistas e pós-coloniais.

FEMINISMO NEGRO NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA E AS


BASES PARA UMA DISCUSSÃO INTERSECCIONAL

São as feministas negras dos Estados Unidos, na década de 1970, que primeiro
problematizaram a posição universalista do movimento feminista. Essas mulheres integravam

o Blackfeminism, “movimento social que contestou a representação majoritária do feminismo

4Por defender uma educação não sexista, além de utilizar o gênero feminino e masculino para me referir às
pessoas em geral, na primeira vez que há a citação de um/a autor/a, transcrevo seu nome completo para a
identificação do sexo (gênero) e, consequentemente, para proporcionar maior visibilidade às pesquisadoras e
estudiosas.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 21


branco e de classe média nos Estados Unidos” (Fernando Altair POCAHY, 2011, p. 20) e
heteronormativo.

A problematização feita por elas destacava dois pontos principais, a hegemonia da


branquitude5 na política e as desigualdades econômicas entre mulheres negras e brancas
(POCAHY, 2011).

A luta de feministas negras, segundo Mercedes Jabardo Velasco (2012), surge no


contexto da escravização, em um momento em que confluem e produzem tensão entre os
movimentos abolicionistas e o sufragismo (VELASCO, 2012):

En Estados Unidos, las tempranas y cortas alianzas entre las luchas


abolicionistas y las luchas feministas del siglo XIXylas superposiciones de
estas reivindicaciones em campañas comunes por el sufragio de la población
negra y de las mujeres pusieron em evidencia las similitudes de
funcionamiento del racismo y del sexismo (VIGOYA, 2016, p. 3).

Na luta inicial, as mulheres, negras ou brancas, buscavam o seu reconhecimento

como indivíduos.

No entanto, as mulheres negras enfrentavam uma situação muito pior, já que tanto
para o regime escravista quanto para o movimento sufragista, caracterizados por uma visão

racializada de sociedade, elas não eram consideradas pessoas, portanto não eram mulheres.

A decisão dos delegados da Convenção pelo Direito das Mulheres de criar, em maio
de 1866, uma associação pela igualdade de direitos que lutaria ao mesmo tempo pelo direito de
votos dos negros e das mulheres foi rapidamente contestada por parte dos militantes
abolicionistas e pelas feministas brancas que se consideravam superiores às pessoas negras

(Elsa DORLIN, 2016).

5A branquitude passa a ser discutida como um estágio de conscientização e negação do privilégio vívido pelo
indivíduo branco que reconhece a inexistência de direito à vantagem estrutural em relação aos negros. Já a
nomenclatura branquidade toma o lugar que até então dizia respeito à branquitude, para definir as práticas
daqueles indivíduos brancos que assumem e reafirmam a condição ideal e única de ser humano, portanto, o
direito pela manutenção do privilégio perpetuado socialmente (Camila Moreira de JESUS, 2012). A partir
dessas definições de branquitude e branquidade, entendo que Pocahy (2011) esteja se referindo à branquidade,
e não à branquitude, uma vez que está se reportando à hegemonia da população branca que não se incomoda
de usufruir das vantagens de ser branco numa sociedade racista.

22 Educação e Interseccionalidades
Para as associações formadas apenas por mulheres brancas era necessário evidenciar

“a moralidade duvidosa das militantes negras como justificativa para recusar uma aliança. A
fabricação de uma norma da feminilidade se faz por oposição às mulheres negras, vistas como

lascivas, violentas, primitivas, ‘más mães’ ou ‘matriarcas abusivas’” (DORLIN, 2016, p. 256).

Em se tratando de uma sociedade racialmente dividida, as sufragistas que defendiam

o direito ao voto apenas às mulheres brancas viam “el sufragio femenino blanco como el
medio más adecuado para alcanzar la supremacía racial” (VELASCO, 2012, p. 30).

É em nome de um direito racializado que as sufragistas brancas vão lutar.

Como esposas suaves, moralmente irrepreensíveis, religiosas, sensíveis, pudicas e


maternais, as feministas oriundas das classes dirigentes encarnavam o sujeito do feminismo

e da categoria mulher (DORLIN, 2016) e tomaram para si o direito de falar em nome de


todas.

A posição racista adotada pelo movimento sufragista não refletia a opinião das
mulheres brancas como um todo.

Antes da abolição do regime escravista dos EUA em 1863, muitas mulheres brancas,
esposas e trabalhadoras, tomaram a luta antiescravagista como modelo para suas
reivindicações e entendiam que a opressão masculina precisava ser enfrentada por todas as
mulheres, independentemente do pertencimento racial.

Sarah e Angelina Grimké “foram as que mais consistentemente ligaram a questão da


escravatura à opressão das mulheres”. (Angela DAVIS, 2013, p. 37).

Nascidas numa família proprietária de pessoas escravizadas na Carolina do Sul, as


irmãs Grimké desenvolveram uma irascível abominação pelo regime escravista e decidiram
em 1836, quando adultas, viajar para o norte para juntar-se aos esforços abolicionistas.

Os textos publicados pelas irmãs Grimké foram entusiasticamente recebidos por

muitas mulheres que estavam ativas no movimento feminino antiescravista, mas algumas
lideranças masculinas do movimento abolicionista “reclamaram que a questão dos direitos
das mulheres confundiria e alienaria aqueles que estavam apenas interessados em derrotar a
escravatura”. (DAVIS, 2013, p. 38).

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 23


A luta das irmãs Grimké pelo fim do regime escravista colocava em pauta ainda a
necessidade de que as mulheres brancas no Norte e do Sul aliassem suas lutas com as mulheres
negras, contrariando o pensamento racista em vigor à época.

Lucretia Mott (1793-1880), Prudence Crandall (1803-1890), Maria Chapman (1806


1885), Elizabeth Cady Stanton (1815-1902), mulheres brancas que lutavam contra a
escravização negra, a exemplo de outras ativistas brancas, à medida que foram trabalhando
com o movimento abolicionista, “aprenderam sobre a opressão da natureza humana e nesse

processo aprenderam importantes lições sobre a sua própria subjugação”. (DAVIS, 2013, p.
36).

Assim, a luta antiescravista pode ser tomada como a base de organização das lutas

feministas.

Na década de 1830, são fundadas nos EUA as primeiras organizações formadas e

lideradas por mulheres, mesmo período em que o movimento abolicionista6 se organiza.

A primeira sociedade feminina antiescravista foi formada por mulheres negras em


1832 em Salem, Massachusetts. Nos anos seguintes, foram fundadas outras sociedades
abolicionistas por mulheres negras e brancas, entre elas a Philadelphia Female Anti-Slavery

Society (Sociedade Feminina Antiescravatura da Filadélfia), a Boston Female Anti-Slavery


Society (Sociedade Feminina Antiescravatura de Boston), a Bangor Female Anti-Slavery
Society (Sociedade Feminina Antiescravatura de Bangor) e a Newport Young Ladies Juvenil
Anti-Slavery Society (Sociedade Antiescravatura de Mulheres Jovens) (DAVIS, 2013).

Muitas mulheres brancas que lutavam contra o regime escravista entendiam a


necessidade de lutar contra a opressão que incidia sobre todas as mulheres:

Desde que a abolição da escravatura se tornou a maior necessidade política,


elas chamaram a urgência das mulheres a juntarem-se a essa luta

6A Revolta de Nat Turner em 1831 que aconteceu no condado de Southampton no estado da Virgínia marca
o nascimento do movimento abolicionista nos EUA. Apesar da rebelião liderada por Nat Turner (1800-1831)
não ter conseguido o sucesso pretendido, ela despertou a população negra escravizada para a necessidade de lutar,
de forma organizada, pela extinção do criminoso regime escravista. Nat Turner foi morto por enforcamento em 11
de novembro de 1831.

24 Educação e Interseccionalidades
compreendendo que a sua própria opressão se sustentava e perpetuava na
continuidade da existência do sistema da escravatura (DAVIS, 2013, p. 39).

No entanto, de modo geral, a luta contra o regime escravista não era uma luta contra

o racismo e, por isso mesmo, os movimentos que mais tarde lutariam pelo direito das mulheres
brancas negariam às mulheres negras o status de pessoa, o que dificultaria enormemente o
acesso a um sistema formal de educação, o direito à propriedade e à herança, o direito sobre os
filhos, entre outros.

A dificuldade de acesso à linguagem escrita fazia com que muitas reivindicações das
ativistas negras fossem difundidas através da oralidade, uma ferramenta de alcance limitado,

embora importante para que suas ideias circulassem em espaços variados, graças ao exercício
da oratória praticada comumente nas igrejas evangélicas (VELASCO, 2012).

A capacidade de argumentação de mulheres iletradas ligadas aos movimentos que


lutavam pelos direitos da comunidade negra pode ser exemplificada no discurso da ex

escravizada Sojourner Truth, em 1851, na Women’s Rights Convention, em Akron, Ohio. O


discurso de Truth foi proferido em uma reunião de clérigos em que se discutia os direitos
da mulher (PINHO, 2014). Esse discurso representa um marco fundacional do movimento
feminista negro, dado a sua importância no sentido de questionar não apenas o direito das
mulheres como categoria, mas também de problematizar o alcance do conceito de mulher,

que dizia respeito, até então, especificamente às mulheres brancas.

Sojourner Truth levantou-se para falar após ouvir de pastores presentes que as
mulheres não deveriam ter os mesmos direitos que os homens, porque seriam frágeis,
intelectualmente débeis, porque Jesus foi um homem e também porque a primeira mulher
foi uma pecadora. (PINHO, 2014):

Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em
carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o
melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em
carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor
lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus
braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum
poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar
tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 25


oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher?
Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando
eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E
não sou uma mulher?
Daí eles falam dessa coisa na cabeça; como eles chamam isso... [alguém da
audiência sussurra, ‘intelecto’). É isso querido. O que é que isso tem a ver com
os direitos das mulheres e dos negros? Se o meu copo não tem mais que um
quarto, e o seu está cheio, porque você me impediria de completar a minha
medida?
Daí aquele homenzinho de preto ali disse que a mulher não pode ter os
mesmos direitos que o homem porque Cristo não era mulher! De onde o seu
Cristo veio? De onde o seu Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem
não teve nada a ver com isso.
Se a primeira mulher que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo
de cabeça para baixo por sua própria conta, todas estas mulheres juntas aqui
devem ser capazes de conserta-lo, colocando-o do jeito certo novamente. E
agora que elas estão exigindo fazer isso, é melhor que os homens as deixem
fazer o que elas querem. (PINHO, 2014).

Nesse discurso, é visível os cruzamentos relativos a gênero e raça, já que Sojouner


Truth aspirava “ser libre, no sólo de la opresión racista, sino también de la dominación sexista”

(VELASCO, 2012, p. 29) e o confronto da “concepción burguesa de la feminidad con su propia


experiencia como mujer negra, trabajadora incansabley madre de muchos hijos vendidos como
esclavos, mediante la pregunta insistente al auditorio: ‘¿Acaso no soy una mujer?’”. (VIGOYA,
2016, p. 3).

Essas questões serão a tônica das reivindicações do movimento feminista negro desde
sua origem, como atestam os primeiros textos publicados por autoras negras a partir da década

de 1890, período em que muitas delas conseguiram ingressar no ensino superior e passaram a
fazer uso do letramento na luta antirracista.

Um importante exemplo foi Ida B. Well7 (1862-1931), jornalista, professora


universitária e sufragista, teve sua primeira publicação conhecida em 1892, período em que o

7 Ida B. Well foi uma das fundadoras da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP)
(Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor) em 1909, uma das mais influentes instituições que
lutava pelos direitos civis nos EUA. Em 1954 a NAACP tornou-se a maior organização de defesa dos direitos
civis no mundo, tendo em torno de 500 mil associados.

26 Educação e Interseccionalidades
racismo assumia um papel importante na distribuição dos espaços de poder, e reproduzia, em
certa medida, uma ideologia com arquitetura semelhante ao regime escravista. Em suas
reflexões, a exemplo de Truth (1851), Well aciona questões de gênero e raça como marcadores
importantes no processo de interdição. Ela discute ainda a situação vivenciada por homens

negros hipersexualizados pelo discurso racista, descritos como potenciais estupradores de


mulheres brancas.

Para Frederick Douglas8 (1894) a imagem do homem negro estuprador foi construída

no período seguinte a abolição da escravatura, quando os homens brancos sulistas privados da


mão de obra escravizada encontraram uma justificativa para seu ódio racista e afirmavam que
os homens negros estupravam naturalmente mulheres brancas.

Os escritos de Douglas serviram de referência para as reflexões de Andrea Dworkin

(1982) em um dos raros trabalhos em que uma feminista branca se propõe a problematizar os
linchamentos de homens negros nos Estados Unidos no final do século XIX e início do século
XX.

Nas palavras de Andrea Dworkin (1982), o fim da escravização emasculou os senhores


brancos e os ex-escravizados os lembravam a cada momento da masculinidade perdida, do

poder perdido, bem como o direito perdido de estuprar as mulheres de qualquer cor.

Reiterando o discurso de Douglass (1894), a pesquisadora concorda que a imagem


do homem negro estuprador foi criada para justificar a perseguição e o assassinado
sistemático de homens negros.

Dworkin (1982) interpreta essas acusações de estupro como um crime de roubo. O


suposto negro estuprador era acusado de um crime de roubo, só que o que ele roubava não
era uma mulher branca: ele roubava a masculinidade do senhor.

8 Frederick Douglass (1818-1895), ex-escravizado, foi abolicionista, estadista, sufragista e escritor


estadunidense. Foi dos um dos mais importantes afro-americanos do seu tempo e um dos mais influentes na
história dos Estados Unidos. Tornou-se conselheiro de Abraham Lincoln, representante do governo federal
estadunidense para o Distrito de Colúmbia, tabelião do registro de imóveis de Washington. Em 1884, casou
se pela segunda vez, agora com a feminista branca Hellen Pitts. Seu último cargo foi como ministro na
República do Haiti. Morreu em Washington em 1895 (GELEDÉS, 2009).

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 27


Assim, as acusações por crime de estupro não tinha nada a ver com as mulheres. Os

homens brancos, emasculados, estavam acusando o negro de tê-los estuprados. A mulher


branca era usada como uma testa de ferro, um tampão, uma transmissora sexual simbólica,

transmissora do sexo de homem a homem. Ela quase sempre é isso. (DWORKIN, 1982).

As mulheres brancas, como propriedade, representavam mais que a pureza de uma raça.

Representavam a pureza de uma cultura onde o regime escravista operava numa lógica de sua
preservação. O final desse regime possibilitava que essa cultura fosse maculada.

Nesse sentido, os linchamentos de homens negros era uma resposta a uma suposta
violência cometida contra os homens brancos, uma violência que estava estreitamente ligada

à perda de poderes econômicos e políticos com o fim do regime escravista.

Embora esses linchamentos indiquem uma tentativa dos homens brancos, alcançados

pela decadência financeira, de preservarem seus privilégios, não se pode ignorar o componente
racista dessas ações. O linchamento impunha aos negros, e somente aos negros, a inferioridade

e a sujeição por meio do terror da violência privada. (José Souza MARTINS, 1995).

O objetivo de tamanha brutalidade era manter a população negra nos limites de sua
casta, dissuadindo-a de invocar os direitos recém-conquistados e assegurados em forma de leis.

(MARTINS, 1995). Havia ainda o interesse em preservar uma suposta pureza atribuída ao
corpo branco presente nos discursos religiosos que autorizava e estimulava, em certa medida,

tais atrocidades.

Segundo um estudo da Equal Justice Initiative (EJI)31, publicado em 2015, o terror


do linchamento racial era uma tática destinada a exercer pressão sobre a comunidade negra
e não apenas para castigar um suposto culpado. Entre os anos de 1877 e 1970 ocorreram,
oficialmente, 3.959 linchamentos em várias regiões dos EUA, principalmente nos estados do
Sul: Alabama, Arkansas, Florida, Geórgia, Kentucky, Louisiana, Mississipi, Carolina do
Norte, Carolina do Sul, Tennessee, Texas e Virgínia. (Jonathan ALCORN, 2015).

O estudo aponta que centenas de pessoas foram assassinadas sem terem sido
formalmente acusadas de um crime sério. As acusações eram as mais triviais, como se recusar a
descer de uma calçada ou empurrar acidentalmente uma mulher branca.

28 Educação e Interseccionalidades
De acordo com a Equal Justice Initiative, tais linchamentos tornaram-se um
espetáculo macabro que reunia grande número de espectadores. Em meio ao público que

bebia tranquilamente limonada ou uísque, era possível observar a presença de vendedores


ambulantes que ofereciam vários tipos de comida. Partes dos corpos das vítimas eram

distribuídas entre o público como recordação. Tudo devidamente registrado em fotografias


que mais tarde seriam transformadas em cartões postais (ALCORN, 2015).

O modo como esses linchamentos eram interpretados colocava em lados opostos


mulheres negras e brancas.

Se, por um lado, as mulheres brancas viam nesses abusos uma maneira “justa” para
coibir supostos ataques de motivação sexual contra elas, já que concordavam que os homens

negros podiam estuprá-las, para as mulheres negras era uma das muitas estratégias utilizadas
para impedir a ascensão social de homens negros e suas famílias. O simples contato verbal
entre um homem negro e uma mulher branca era o suficiente para uma acusação de violação,

que quase sempre resultava em um assassinato brutal do acusado. No entanto, as violências


sexuais cometidas por homens brancos contra mulheres negras eram vistas como legítimas e
não mereceram a atenção das feministas brancas. (VELASCO, 2012).

Os abusos sexuais que eram rotineiros durante o regime escravista continuaram após

a abolição.

Era fato que as mulheres negras continuavam sendo tratadas como uma presa legítima
do homem branco e, caso elas resistissem aos seus ataques sexuais, eram frequentemente
atiradas à prisão para serem tratadas novamente como se estivem de volta ao regime escravista.

(DAVIS, 2013).

Essa situação contribuiu para que as feministas negras se aliassem, parcialmente, a


homens negros e à classe operária para que suas reivindicações ganhassem consistência. Juntos,
mulheres e homens negros desenvolveram uma campanha sufragista em separado das
mulheres brancas em que exigiam o direito ao voto a todas as pessoas negras,

indistintamente.

As perseguições pelas quais passavam os homens negros, subalternizados inclusive por


mulheres brancas, justificavam a decisão das feministas negras em caminhar ao lado deles na

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 29


luta contra o racismo, o que não significava que elas fizessem vistas grossas às opressões

machistas presentes no movimento antirracista. Nas palavras de Sojourner Truth: “los


hombres de color aprenderán, como el resto de los hombres, a ser una especie de amos”
(VELASCO, 2012, p. 63), inclusive com as próprias esposas.

Ao longo de quase todo o século XX, o feminismo hegemônico silenciou as mulheres

negras e somente na década de 1970 é que essa situação sofreu algumas mudanças no sentido
de se reconhecer que o racismo era um marcador fundamental no processo de opressão delas.

Essas mudanças, de relevância inquestionável, pois inauguram um debate que procura


aproximar feministas negras e brancas, ainda são consideradas insuficientes. Dessa maneira, o
feminismo negro continua sendo importante “porque las mujeres negras estadounidenses

constituyen un grupo oprimido” (Patrícia Hill COLLINS, 2012, p. 101) e a função principal
“del pensamiento feminista negro estadounidense es resistir a la opresión, tanto a sus
prácticas como a las ideas que la justifican” (p. 101). Collins (2012) reconhece os avanços do
feminismo negro, mas chama a atenção para a necessidade de não se perder de vista qual o

papel das feministas negras não apenas em relação ao feminismo hegemônico, mas em relação
à sociedade como um todo.

A esse respeito, feministas negras denunciam que a exemplo do que acontecia no final
do século XIX e início do século XX “as mulheres brancas que dominam o discurso feminista
raramente questionam se sua perspectiva sobre a realidade da mulher se aplica as experiências
de vida das mulheres como coletivo”. (bell hooks, 2015, p. 195)9. Além disso, as mulheres
brancas de classe média que “fazem e formulam a teoria feminista – tem pouca ou nenhuma
compreensão da supremacia branca como estratégia, do impacto psicológico da classe, de sua
condição política dentro de um Estado racista, sexista e capitalista”. (hooks, 2015, p.196).

Havia e continua havendo, de acordo com hooks (2015), uma tentativa deliberada

em transformar a tirania sexista em um vínculo comum entre todas as mulheres mascarando


as situações de privilégios e hierarquias baseadas na raça e na classe. A estratégia seria tratar

9A pesquisadora e feminista negra bell hooks assina seus textos em letras minúsculas. Argumenta hooks de
que ela mesma não deve ser reduzida a um nome e seu trabalho não deve ser levado em consideração apenas
por sua assinatura. Atendendo suas reivindicações, mantenho a grafia do seu nome em letras minúsculas.

30 Educação e Interseccionalidades
como universais as situações de opressão vivenciadas pelas feministas brancas e torná-las um
traço comum entre todas as mulheres, desconsiderando o fato de que “a identidade de raça e
classe gera diferenças no status social, no estilo e qualidade de vida, que prevalecem sobre a
experiência que as mulheres compartilham”. (hooks, 2015, p. 197).

A essa situação, Kimberlé Crenshaw (2002) chamou de superinclusão, ou seja, quando


um problema ou condição imposta a um grupo de mulheres é definido como um problema

de todas as mulheres. A superinclusão acontece “na medida em que os aspectos que o tornam
um problema interseccional são absorvidos pela estrutura de gênero, sem qualquer tentativa

de reconhecer o papel que o racismo ou alguma outra forma de discriminação possa ter
exercido em tal circunstância”. (CRENSHAW, 2002, p. 174).

O problema de uma abordagem superinclusiva, explica Crenshaw (2002), é que os


problemas, simultaneamente produtos da subordinação de raça e de gênero, por exemplo,

escapam de análises efetivas. Assim, os esforços no sentido de remediar a condição ou abuso


em questão tendem a ser tão anêmicos quanto é a compreensão na qual se apoia a
intervenção.

As preocupações da autora dizem respeito principalmente a situações em que as

dimensões raciais potencializam ou determinam a situação de opressão ou violência que


incidem sobre determinadas mulheres ou determinados grupos de mulheres e, ainda assim,
são ignorados ou minimizados por estarem subordinados a categorias consideradas mais
importantes, como o gênero e a classe, por exemplo.

No entanto, nem sempre o gênero é um marcador importante na avaliação de certas


formas de violência e o fato de ser mulher nem sempre é levado em conta em algumas

situações.

Violências que incidem sobre um determinado grupo étnico, por exemplo, podem
ocultar problemas que sejam específicos das mulheres e, assim, não serem debatidos na

devida medida. Crenshaw (2002) denominou essa situação de subinclusão, justamente porque
nesses casos as questões relativas às mulheres são subincluídas. “Em resumo, nas abordagens
subinclusivas da discriminação, a diferença torna invisível um conjunto de problemas;

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 31


enquanto que, em abordagens superinclusivas, a própria diferença é invisível” (CRENSHAW,
2002, p. 176, grifo da autora).

Daí a importância de se fazer uma abordagem interseccional, a fim de evitar que

determinadas questões sejam invisibilizadas comprometendo não só a análise que se faz de um


problema, mas também as ações para possíveis enfrentamentos.

No entanto:

A discriminação interseccional é particularmente difícil de ser identificada em


contextos onde forças econômicas, culturais e sociais silenciosamente
moldam o pano de fundo, de forma a colocar as mulheres em uma posição
onde acabam sendo afetadas por outros sistemas de subordinação. Por ser tão
comum, a ponto de parecer um fato da vida, natural ou pelo menos imutável,
esse pano de fundo (estrutural) é, muitas vezes, invisível. O efeito disso é que
somente o aspecto mais imediato da discriminação é percebido, enquanto
que a estrutura que coloca as mulheres na posição de ‘receber’ tal
subordinação permanece obscurecida (CRENSHAW, 2002, p. 176),

como acontece com o racismo no Brasil. Totalmente enraizado em nossa sociedade, o

racismo faz parte das estruturas de poder a ponto de torna-se invisível.

FEMINISMO NEGRO NO BRASIL E AS BASES PARA UMA


DISCUSSÃO INTERSECCIONAL COM CARACTERÍSTICAS
NACIONAIS

No Brasil, a luta das mulheres negras contra as múltiplas formas de opressão a que
estão sujeitas também tem início durante o regime escravista, e estas atuaram ao lado de homens

negros, por não haver, naquele momento, pautas específicas sobre o ser mulher negra.

Guerrearam e manifestaram insistentemente a recusa em aceitar a coisificação à qual


foram expostas, embora a historiografia oficial por muito tempo tenha silenciado sobre sua
presença e atuação, bem como a de homens negros. (Aline Najara da Silva GONÇALVES,
2011).

32 Educação e Interseccionalidades
Luiza Mahin foi uma dessas guerreiras, mas é “importante ressaltar que sua luta não
foi isolada. Nomes como Aqualtune, Acotirene, Zeferina e Maria Felipa não só merecem como
precisam ser lembrados como símbolo de resistência negra” (GONÇALVES, 2011, p. 7),
assim como Tereza de Benguela, Xica da Silva, Dandara dos Palmares, Ana Joaquina do

Livramento, entre tantas outras, silenciadas pela tradição machista da historiografia brasileira
que tem se dedicado a registrar os feitos de homens brancos. Esses feitos são tratados como
de importância para toda a sociedade, diferentemente daqueles protagonizados por mulheres
e por pessoas negras, interpretados como de relevância apenas para o grupo racial do qual
fazem parte.

Maria Felipa de Oliveira e Ana Joaquina do Livramento, por exemplo, são figuras
emblemáticas na Guerra de Independência da Bahia em 1822.

Ambas pegaram em armas e combateram ao lado de homens brancos e negros e de


algumas mulheres brancas pobres. “É bem provável que mais escravas, libertas e mulheres livres
tenham entrado em combates, mas há pouquíssimos registros disso”. (Hendrik KRAAY,
2015).

Esquecida pela historiografia oficial “a tradição oral de Itaparica registra o papel da


negra Maria Felipa de Oliveira na defesa da ilha contra o ataque português de janeiro de 1823.
Ela teria liderado mais de 40 mulheres negras e índias” (KRAAY, 2015) na defesa das praias.

“Armadas com peixeiras e galhos de cansanção surravam os portugueses para depois atear fogo
aos barcos usando tochas feitas de palha de coco e chumbo” (Lucas Borges dos SANTOS,
2014, p. 30). Ao todo incendiaram 42 embarcações.

Esse pequeno fragmento da história de Maria Felipa de Oliveira, esquecida por quase
duzentos anos, serve para ilustrar o processo de invisibilização de personalidades negras na
história oficial do Brasil, que opera inclusive para apagar a memória do ativismo negro, levando
a acreditar que se trata de uma prática recente, logo, destituída de historicidade.

Outra questão aí envolvida diz respeito à participação das mulheres negras na luta
contra o regime escravista em pé de igualdade com os homens, portanto, com a mesma

importância.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 33


Os poucos nomes preservados (ou recuperados por pesquisadoras negras) atestam que
participaram ativamente desse processo, usando estratégias variadas, como a compra de cartas

de alforrias, através da liberdade jurídica10, participando de sociedades abolicionistas e de


clubes recreativos, criando e comandando irmandades religiosas e ranchos carnavalescos,
organizando e comandando fugas, individualmente ou em grupos, bem como criando e
administrando quilombos em várias partes do país.

Outra questão que aparece de forma recorrente na luta dessas mulheres, durante e

depois do regime escravista, é o direito de acesso à educação formal, interpretado como um


mecanismo de promoção de ascensão social.

As pesquisas que discutem as “experiências escolares de negros em período anterior à

década de 1960” (Mariléia dos Santos CRUZ, 2005, p. 21) confirmam que a apropriação do
saber escolar por parte da população negra já era observada ainda durante o regime imperial:
“[...] embora não de forma massiva, camadas populacionais negras atingiram níveis de
instrução quando criavam suas próprias escolas; recebiam instrução de pessoas escolarizadas;
ou adentravam a rede pública, asilos de órfão e escolas particulares”. (CRUZ, 2005, p. 27).

Entre as escolas fundadas pela comunidade negra durante o regime escravista, temos
como exemplo o Colégio Perseverança ou Cesarino, primeiro colégio feminino de Campinas,
São Paulo, fundado em 1860; a Irmandade de São Benedito, que oferecia aulas públicas em
São Luís do Maranhão até 1821; ou ainda a Escola de Ferroviários de Santa Maria no Rio

Grande do Sul. (CRUZ, 2005).

Como resultado dessas ações, já no início do século XX muitas mulheres negras


conseguiram não apenas o acesso à escola normal, mas também passaram a atuar como

professoras e diretoras de muitas escolas, principalmente nos estados de São Paulo e Rio de
Janeiro.

10A liberdade jurídica consistia em questionar na justiça a condição de escravizado/a quando o/a interessado/a
entrava com uma ação de liberdade, alegando muitas vezes que era vítima de maus-tratos e/ou de abandono
ou discordava de uma possível troca de proprietário/a ou ainda quando lhes era negado o direito de compra da
carta de alforria (Eduardo Spiller PENA, 1990).

34 Educação e Interseccionalidades
Esse quadro, porém, não permaneceu por muito tempo e no final da década de 1920
tem início uma política estatal para destituir essas professoras (e os professores negros) de suas

funções, bem como do cargo de diretoras/es das escolas primárias e técnicas.

Nos anos iniciais da década de 1930, as netas de ex-escravizadas haviam sido expulsas

da profissão de normalistas. A escola pública projetada para formar o espírito da nação havia
se tornado praticamente branca através de políticas adotadas pelo Instituto de Educação do
Distrito Federal na era Vargas (Maria Lúcia MÜLLER, 2003, grifo meu) que tinha como um

de seus objetivos embranquecer o sistema educacional do país.

A política de eugenia do governo brasileiro nos anos 1930 interveio no processo de


integração dos negros no sistema escolar de modo a branqueá-lo como um caminho à
modernidade (José Jorge de CARVALHO, 2006).

No entanto, as elites brasileiras sempre preferiram manter o silêncio sobre as


características raciais específicas da nação, pois uma dada especificação contraria os interesses

e os objetivos populistas do nacionalismo. O racismo, por sua vez, “jamais encontrou qualquer
dificuldade de maior envergadura ao ser absorvido nos discursos nacionais, tendo sido
invariavelmente bastante compatível com todas as variações do discurso nacionalista”

(Sebastião NASCIMENTO; Osmar Ribeiro THOMAZ, 2008, p. 2003).

Ao longo de todo o século XX, o movimento negro denunciou a situação de exclusão

de negros e negras e tratou como pauta principal o acesso à educação formal e ao mercado de
trabalho e geração de renda, pauta similar ao do movimento feminista hegemônico. Ambos os
movimentos, porém, deixaram à margem questões que tratavam especificamente das mulheres
negras.

A exemplo do que acontecia nos EUA, as feministas negras brasileiras, a partir da


década de 1980, denunciaram o sexismo do movimento social de negras e negros e o racismo
do movimento feminista.

As feministas negras brasileiras, então, inauguram no país um debate em que é possível

identificar as origens das discussões interseccionais, justamente pela capacidade em articular


distintas formas de dominação e posições de desigualdade acionadas nos discursos regulatórios

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 35


de gênero, raça/etnia, classe social, idade, entre outros marcadores sociais. (Tomaz Tadeu da
SILVA, 2007).

A mulher negra que emerge nesse cenário:

exibe orgulhosa um corpo politizado, valorizado pelo discurso cujo principal


objetivo é resgatar a autoestima negra. A emergência desse discurso deriva
inevitavelmente, de uma investida antirracista e antissexista no sentido de
reinventar, reconstruir o corpo negro. (Ângela FIGUEIREDO, 2008, p.
242).

Nas palavras de Patrícia Hill Collins (2000), citada por Figueiredo (2008), as
mulheres que se autodefinem como negras recusam serem construídas pelo olhar do outro.

É preciso desconstruir para reconstruir uma nova imagem, ou melhor, é preciso assumir o
controle da própria imagem.

Para a pesquisadora negra brasileira Sueli Aparecida Carneiro (2003), as mulheres


negras tiveram que enegrecer a agenda do movimento feminista e sexualizar a do movimento
negro, promovendo uma diversificação das concepções e práticas políticas em uma dupla

perspectiva, tanto afirmando novos sujeitos políticos quanto exigindo reconhecimento das
diferenças e desigualdades entre esses novos sujeitos.

É na década de 1980 que nomes como os de Thereza Santos (1930-2012), Luiza


Bairros (1953-2016), Beatriz Nascimento (1942-1995), Lélia Gonzalez (1935-1994), Sueli
Carneiro (1950), Edna Roland (1951), Jurema Werneck (1944), Nilza Iraci da Silva (1950) e

Petronilha Beatriz Gonçalves (1948), entre outros, ganham notoriedade “contribuindo para o
aprofundamento dos debates internos sobre a importância de se pensar gênero articulado ao
pertencimento racial, apontando que racismo e sexismo devem ser trabalhados juntos”
(Cristiano RODRIGUES, 2013).

Essas pensadoras “promovieron la teoría de la triada de opresiones “raza-clase-género”


para articular las diferencias entre mujeres brasileñas que el discurso feminista dominante
había pretendido ignorar” (VIGOYA, 2016, p. 5).

A reflexão proposta por elas colocava sob suspeita a solidariedade das feministas
brancas com questões relativas ao racismo e denunciam que mesmo “mulheres brancas de

36 Educação e Interseccionalidades
orientações políticas mais progressistas negavam a importância da raça e suas implicações nas
vivências das mulheres negras, sendo tal hesitação fruto de seu próprio privilégio advindo do
racismo”. (RODRIGUES, 2013, p. 3).

Assim, o segmento branco, parte ativa no processo de reprodução das desigualdades,

é esquecido, deixado de lado, como se fosse inexistente e o racismo concebido como algo
externo aos brancos (Maria Aparecida Silva BENTO, 2000) e:

[...] a indignação diante da opressão de gênero e classe não inclui


‘naturalmente’ à indignação de raça. Ou seja, o simples fato de ser branco em
nossa sociedade favorece um determinado posicionamento de vantagens
estruturais e de privilégios raciais, sejam concretos ou simbólicos, que molda
a experiência, a identidade e a visão de mundo das pessoas brancas: logo,
molda suas concepções e práticas políticas (BENTO, 2000, p. 298).

A respeito das posições políticas das feministas brancas, Bento (2000) destaca o
trabalho da socióloga branca estadunidense Ruth Frankenberg (1993), que estudou a maneira
pelo qual o racismo modela a vida dessas mulheres nos EUA. Frankenberg (1993)

problematizou as vantagens que a branquidade garante às mulheres brancas, retirando o foco


das discussões sobre relações das mulheres não brancas (Donna HARAWAY, 2007).

A conclusão de Frankenberg (1993) é de a que a branquidade é exercida como um


poder que se estrutura e se reafirma quando aqueles que o tem, podem ver apenas os outros
como diferentes. (HARAWAY, 2007).

O racismo, de acordo com Frankenberg (1993), é interpretado como um problema


com o qual apenas as pessoas não brancas se defrontam e têm que lutar contra (BENTO,
2000). Com essa posição, explica a pesquisadora, o trabalho antirracista “é tratado como um
ato de compaixão, um projeto extra, opcional, mas não íntima e organicamente ligado as suas

próprias vidas”. (BENTO, 2000, p. 297).

As desvantagens socioeconômicas e educacionais das mulheres negras diante dos

homens, negros e brancos, e das mulheres brancas seriam um indicativo da falta de


comprometimento do movimento feminista no combate ao racismo, da mesma maneira que
aponta também para a manutenção do sexismo no movimento negro. Apesar de um
investimento significativo em educação e de uma maior qualificação profissional, “persiste, e

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 37


por vezes aumenta, a distância econômica que separa a mulher negra de outros grupos, tal qual

o de homens negros e o de mulheres e homens brancos” (BENTO, 2000, p. 299).

A respeito do machismo que incide sobre elas, talvez, o único espaço de solidariedade
entre homens negros e brancos faz aumentar “a exploração sobre as mulheres negras, pois é

somente diante delas que os homens negros se beneficiam dessa solidariedade, na medida em
que em uma sociedade racista estes não desfrutam plenamente os privilégios da condição
masculina” (RODRIGUES, 2013, p. 4).

Até a década de 1990, não apenas o movimento feminista, mas o movimento sindical
também negava a importância da raça como um marcador social importante, período em que
as três maiores organizações sindicais do país, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a

Central Geral do Trabalho (CGT) e a Força Sindical reconheceram a necessidade de se


problematizar os efeitos do racismo no acesso ao mercado de trabalho e na geração de renda
admitindo “que o movimento sindical tem algo a ver com o problema” (BENTO, 2000, p.
304).

Como resultado concreto dessa problematização, algumas convenções e conferências


foram organizadas a partir de 1992 em que a discriminação racial no mercado de trabalho e

estratégias para o seu combate foram os temas centrais. Em 1995 a CUT, a CGT e a Força
Sindical se uniram para criar o Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial
(Inspir), com o apoio da Central AFL-CIO e da Organização Interamericana dos
Trabalhadores, esta com sede em Caracas, na Venezuela. Essa iniciativa teve desdobramentos
dentro do Ministério do Trabalho, que criou, por decreto, em 1996 o Grupo de Trabalho
para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação (GTEDEO) (BENTO, 2000).

O reconhecimento da existência do racismo no mercado de trabalho se soma às


discussões sobre gênero que já vinham sendo problematizadas por sindicalistas brancas, que
denunciavam a situação de desvantagens em que se encontravam as mulheres no mercado de
trabalho.

No entanto, as mulheres negras não foram contempladas de imediato, ficando fora de


ambas as discussões: das que foram propostas pelas mulheres brancas e as que foram

denunciadas pelo movimento negro. Quando a imprensa e algumas pesquisas tratavam do

38 Educação e Interseccionalidades
assunto, atribuíam a situação de desvantagens das trabalhadoras negras ao seu baixo nível
educacional, silenciando a respeito do racismo (BENTO, 2000).

A responsabilidade pelos baixos salários, por não ocupar cargos de chefia e


desempenhar as funções consideradas de menor importância, seria da própria mulher negra.
Assim, a militância das mulheres negras trabalhadoras exigiu uma postura onde as questões
de raça, gênero e classe fossem tratadas deforma interseccional.

Além do movimento feminista e do movimento sindical, as teóricas citadas

anteriormente direcionavam suas reflexões também para a academia que omitia de forma
sistemática o problema das desigualdades raciais.

Nos EUA, as feministas negras, a exemplo das brasileiras, denunciavam a necessidade

de que as feministas brancas adquirissem uma consciência crítica a respeito do papel do


racismo na vida das mulheres negras e problematizassem essa situação em suas produções
teóricas (RODRIGUES, 2013).

Ao contrário do que acontecia no Brasil, houve uma compreensão dessa necessidade


e, a partir do início da década de 1980, aumentou substancialmente a produção teórica

estadunidense em que se percebia a articulação entre raça, gênero e classe.

A dificuldade das feministas negras brasileiras em sensibilizar o universo acadêmico


residia (e reside) inclusive na ausência de pesquisadoras negras nas universidades. Essa situação
difere da observada nos Estados Unidos, que contavam com a contribuição de nomes
importantes como Hazel Carby, bell hooks, Patrícia Hill Collins, Patrícia J. Williams e

Kimberlé Willians Crenshaw, entre outras, que utilizaram seu conhecimento acadêmico e suas
experiências pessoais, como trabalhadoras e ativistas, para darem suporte teórico e visibilidade
para os discursos interseccionais tão presentes nas denúncias e reivindicações das feministas

negras, aqui e lá nos Estados Unidos.

Sandra Azerêdo (1994) compara teorias e práticas feministas entre o Brasil e os


Estados Unidos e tenta entender porque, em uma sociedade racista e desigual como a
brasileira, a questão racial permanece silenciada em grande parte de nossa produção teórica.

A respeito da experiência feminista, em que ela mesma se inclui como ativista e

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 39


pesquisadora, Azerêdo (1994) afirma que a questão racial tem geralmente ficado a cargo das
mulheres pretas, como se apenas estas fossem marcadas pela raça.

Em um estudo mais recente, que apresenta um estado da arte das pesquisas sobre

sexualidade e direitos sexuais realizadas no Brasil de 1990 a 2002, Maria Teresa Citeli (2005)
também conclui que no campo dos estudos de gênero são escassas as produções sobre gênero

e raça.

Apesar de presente nas discussões propostas pelas feministas negras ainda no final

do século XIX nos EUA e ao longo de todo o século XX, o conceito de interseccionalidade
propriamente dito só ganha forma no “trabalho de investigação da jurista feminista afro
americana Kimberlé W. Crenshaw” (POCAHY, 2011, p. 19).

O termo “interseccionalidade”, para designar a interdependência das relações de poder


de raça, sexo e classe, foi utilizado pela primeira vez por Crenshaw. Ela explica que:

a interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as


consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos
da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras (CRENSHAW, 2002, p. 177).

A importância desse conceito para os estudos de gênero e de relações étnico-raciais


gradualmente foi sendo reconhecida por teóricos/as que antes acionavam apenas um marcador
em suas reflexões:

Com a proposta da articulação de categorias relacionadas às formas de


dominação e desigualdade social, essas feministas acionaram enfrentamentos
táticos à hegemonia branca no interior da luta das mulheres, revelando o
caráter produtivo do poder, bem como de conjuntos de produções discursivas
que definem as relações sociais, mesmo em sua posição dita periférica ou
minoritária. (POCAHY, 2011, p. 19).

A produtividade desse conceito, explica Pocahy (2011), reside justamente no fato de


possibilitar que formas variadas de dominação e posições de desigualdades sejam acionadas em
discursos que tratam de gênero, raça, classe social, geração, entre outros marcadores sociais.

40 Educação e Interseccionalidades
Em suas reflexões, Pocahy (2011) se utiliza dos escritos de feministas importantes,

como Sirma Bilge (2009) que não hesita em afirmar que:

a interseccionalidade é uma das mais importantes contribuições teóricas


atualmente no campo dos estudos feministas, constituindo-se como uma das
quatro principais perspectivas da terceira onda do feminismo, juntamente
com as abordagens pós-estruturalistas e pós-modernas, a teoria feminista
pós-colonial e as demandas das novas gerações feministas [...]. A
interseccionalidade transpõe a soma das dominações ou arranjos de
identidades e diferenças, possibilitando-nos avançar em perspectiva e prática
de problematização rizomática de uma teoria transdisciplinar visando
apreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais, através
de uma abordagem integrada (POCAHY, 2011, p. 19).

Entendo, então, que esse conceito não trata especificamente das questões que
envolvem as mulheres negras, podendo ser aplicado a outros grupos.

No entanto, são necessários alguns cuidados no uso desse conceito. A pesquisadora

branca alemã Ina Kerner (2012) pergunta: tudo é interseccional?

Embora ela não se proponha a apontar os limites teóricos para o uso da


interseccionalidade, chama a atenção para que se definam de maneira objetiva quais marcadores
serão interseccionados em um trabalho de pesquisa.

No caso de um estudo que intersecte racismo e sexismo, Kerner (2012) destaca o fato

de que envolve três dimensões de análise:

Dimensão epistêmica que abarca o conhecimento racista e sexista e seus


discursos correspondentes; uma dimensão institucional, referente a formas
institucionalizadas de racismo e de sexismo; e uma dimensão pessoal, que,
além de posicionamentos individuais a respeito da identidade ou da
subjetividade, também abrange ações individuais e interações pessoais
(KERNER, 2012, p.46).

Num estudo interseccional, as concepções de sexismo devem ser interpretadas como


parte do problema a ser analisado, assim como a categoria de raça, adotando-se uma visão
crítica a respeito desses temas.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 41


Dessa maneira, é possível afastar-se de visões que operam para naturalizar o binarismo
de gênero e o caráter biológico do conceito de raça, mesmo porque “tanto racismos quanto
sexismos podem ser entendidos como fenômenos complexos de poder que operam no
contexto de atribuição de diferenças categoriais” (KERNER, 2012, p. 47).

Esses fenômenos não são estáticos e diferem de acordo com o contexto, “por isso,
afirmações gerais sobre sua relação não podem ser outra coisa que não propostas a respeito das
possíveis características dessas relações” (KERNER, 2012, p. 49). Assim, racismo e sexismo não
devem ser tratados como problemas análogos, mas interpretados em seus múltiplos
entrelaçamentos e combinações. Ou seja, a partir do que propõem as feministas negras, o
racismo precisa ser entendido sob a perspectiva de gênero e o sexismo precisa ser racializado
(KERNER, 2012). Essa proposta se justifica pelo fato de que as figuras de referência na
tematização do racismo eram em sua ampla maioria homens heterossexuais, enquanto as
discussões sexistas priorizavam a situação de mulheres brancas heterossexuais e de classe média.

Não apenas questões distintas se somam em um estudo interseccional. Uma mesma


categoria, como raça, por exemplo, pode apresentar uma pluralidade de questões que precisam
ser destacadas. Estereótipos e atributos da feminilidade negra se diferenciam de normas de
gênero concernentes a mulheres brancas ou asiáticas. No entanto, esses mesmos estereótipos

e atributos da feminilidade negra também se diferenciam entre si. (KERNER, 2012).

Ao tratar a feminilidade negra no plural, a pesquisadora chama a atenção para o fato

de que se trata de uma categoria que não se constrói apenas a partir das relações de colaboração,
mas que também apresenta conflitos e pode reproduzir hierarquias baseadas nos sistemas de
poder hegemônicos, como, por exemplo, entre mulheres negras heterossexuais e mulheres
negras lésbicas, que ocupam espaços reduzidos nos debates sobre feminismo negro.

As relações entre feminismo, branco ou negro, e lesbianidade apresentam grandes


tensões. “Poderíamos assim pensar que nos estudos feministas, de modo geral, a agenda política

da mulher lésbica ainda é catalisadora da tensão conceitual entre as categorias gênero e sexo”.
(Sandra Regina de Souza MARCELINO, 2014, p. 2). No caso de mulheres transexuais e
travestis, a situação é ainda mais grave, pois elas simplesmente não existem:

42 Educação e Interseccionalidades
Levando em consideração todos esses aspectos, podemos então dizer que as
intersecções entre racismo e sexismo não constituem algo unitário, mas tem
significados distintos dependendo da dimensão especifica. E o que difere aqui
e sobretudo a forma, a configuração das relações de intersecção. Nesse
sentido, intersecções significam: primeiro, normas de gênero pluralizadas e
normas que dizem respeito aos pertencentes de uma ‘raça’ ou de um grupo
definido etnicamente; segundo, cruzamentos institucionais com efeitos que
diferenciam grupos sociais; e, em terceiro lugar, processos multifatoriais de
formação de identidades (KERNER, 2012, p. 58).

Tanto o racismo quanto o sexismo são categorias plurais e assim devem ser tratadas,

o que faz da interseccionalidade uma ferramenta fundamental nesse processo, já que um


estudo pode apresentar falhas quando desconsidera os múltiplos fatores que envolvem o
objeto investigado, em especial nos estudos de gênero e relações raciais.

Assim, a partir do que revelam os estudos de Bento (2000), Pocahy (2011) e

Rodrigues (2013), é possível afirmar que houve no Brasil um aumento no interesse de


pesquisadores/as em interseccionar questões de raça, gênero, sexualidade, classe, geração e
outros marcadores sociais em seus trabalhos. No entanto, a maioria das pesquisas sobre

gênero, diversidade sexual e relações étnico-raciais desenvolvidas no Brasil mantiveram a divisão


por tema, priorizando apenas um entre os vários marcadores sociais que incidem sobre as
pessoas.

Essa situação promove a invisibilização de certos sujeitos, como acontece com pessoas
LGBTs nos estudos das relações étnico-raciais e com pessoas negras nos estudos de gênero

e diversidade sexual.

A fragmentação dessas pesquisas se justifica em nome do rigor acadêmico, mas pode


operar para naturalizar formas de representações sociais que acabam sendo incorporadas como
regras no cotidiano de nossa sociedade reforçando o preconceito e conduzindo à

estigmatização dessas pessoas. Subjetividades marginais os colocam em um lugar diferente,


subjugados, reduzindo-os a pessoas inferiores, desacreditadas (Nadia Patrícia NOVENA,
2004).

As interrogações que consideram o conceito de interseccionalidade permite analisar


as estruturas sociais, as representações simbólicas e as subjetividades que, naturalizadas,

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 43


produzem e reproduzem as desigualdades de gênero, de identidade de gênero, orientação sexual,
classe, geração, capacidades e raça em nossa sociedade.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Embora o conceito de interseccionalidade possibilite o revezamento entre diversas


áreas do conhecimento, ainda é pouco utilizado no Brasil dado ao fato que o sucesso
alcançado por ele date da segunda metade dos anos 2000 (DORLIN, 2016).

Mesmo que o conceito de interseccionalidade não seja acionado diretamente, é


possível identificá-lo em muitos trabalhos onde gênero, raça e classe se somam, já que o
gênero não pode ser desassociado coerentemente da raça e da classe, como afirma Elsa Dorlin

(2009), citada por Vigoya (2016).

Ainda assim, a pesquisa brasileira se refere a pequenos domínios e se concentram

especificamente em um dos múltiplos marcadores sociais que incidem sobre uma pessoa.

Constatei que a maioria dos trabalhos que discutem relações étnico-raciais ignora a

diversidade de gênero e de orientações sexuais, naturalizando a ideia de que a população


negra do país é composta especificamente por pessoas cisgêneras heterossexuais.

Da mesma maneira, a produção teórica desenvolvida por feministas brancas e negras


cisgêneras, contribui para confirmar a heterossexualidade como única orientação sexual
possível. São raros os trabalhos que problematizam a existência de mulheres bissexuais,
lésbicas, e mais raros ainda trabalhos que discutem as experiências de travestis e mulheres
transexuais negras e/ou brancas.

Já os trabalhos que discutem gênero (incluindo aí a produção teórica de feministas


brancas) e diversidade sexual tendem a silenciar a respeito do pertencimento racial das
pessoas e/ou grupos de pessoas pesquisados, contribuindo para confirmar a ideia corrente de

que se tratam de discussões envolvendo o grupo racial branco. A exceção se observa nas
pesquisas desenvolvidas por um grupo reduzido de pessoas negras LGBTs que
problematizam, de maneira recorrente, as múltiplas identidades de gêneros e orientações

sexuais.

44 Educação e Interseccionalidades
Afirmo que o pouco interesse em interseccionar raça e gênero deriva do número

reduzido de pesquisadores/as negros/as LGBTs em atividade nas universidades brasileiras, já


que a classe, a raça, o gênero, a identidade de gênero e a orientação sexual do/a pesquisador/a
interferem sim na escolha do tema a ser pesquisado, contribuindo para que a pesquisa brasileira
seja caracterizada pelo “conhecimento situado” ou “perspectiva parcial” (Helena HIRATA,
2014) por se concentrar, como sugere Gilles Deleuze (1979)11, em pequenos domínios.

Ainda que o conceito de interseccionalidade se mostre uma alternativa concreta para


promover o revezamento entre áreas variadas do conhecimento, como o estudo das relações
étnico-raciais, os estudos culturais, de gênero e diversidade sexual, as teorias pós

estruturalistas e pós-coloniais, não há como ignorar a importância das pesquisas


caracterizadas pelo conhecimento situado ou perspectiva parcial (HIRATA, 2014), pois
continuam colocando em evidência categorias que podem ser utilizadas e ampliadas em um

estudo interseccional.

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11Numa conversa entre Foucault e Gilles Deleuze, no texto Os intelectuais e o poder, Deleuze explica que as
relações teoria-prática são parciais e fragmentárias e que uma teoria é sempre local, relativa a um pequeno
domínio. E quando uma teoria penetra em seu próprio domínio, encontra obstáculos que tornam necessário
que seja revezada por outro tipo de discurso.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 45


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48 Educação e Interseccionalidades
MOBILIDADE SOCIAL:
até onde o negro (não) pode ir

Marielli Pinheiro e Emerson Velozo

E você vê uma turma de cinquenta e dois alunos [na UEPG],


dois são negros, você vê uma diferença sim. É estranho, né.
Por que tem só dois negros em uma turma de cinquenta?

(Estevão, participante da pesquisa)

As desigualdades de “raça” dificultam o ingresso e a mobilidade dos negros nas diversas


esferas da sociedade, dentre elas, a universidade. A cor aparece como sinônimo da dificuldade
que os negros têm de mover-se na estrutura social e as oportunidades para negros e brancos
ainda são desiguais. Existe um sistema hierarquizado, muitas vezes de modo subjetivo, que
rege os espaços físicos e interacionais destinados a cada pessoa ou grupo na sociedade, na
comunidade, no trabalho, na escola etc. No que tange à educação e às possibilidades de
mobilidade do negro, ações afirmativas, como as cotas raciais, foram criadas a fim de
minimizar essa diferença. Ingressar em uma universidade não garante a mobilidade social
dos negros, todavia, é uma marca significativa de rompimento dessa fronteira entre estar ou
não na universidade. Apesar disso, essa fronteira ainda parece difícil de ser ultrapassada
devido à própria universidade não criar condições efetivas de permanência para o negro
concluir seus estudos. Acreditamos que se trata de um direito conquistado, porém, que não
dá garantias de continuidade após a formação superior, especialmente se continuar havendo
preconceito e o se negro permanecer no grupo inferiorizado e, por consequência, se sua
mobilidade social continuar comprometida.
Palavras-Chave: mobilidade social; questão étnico-racial; ensino superior; negros; cota.

INTRODUÇÃO

Nesta escrita, nossa proposta é trazer uma discussão sobre as desigualdades no Brasil

que atuam, entre outras coisas, na mobilidade social do negro. Entendemos que, ao falar
sobre mobilidade social, tratamos dos mais diferentes contextos em que as pessoas se
encontram, ao mesmo tempo, nos referimos ao direito de ir e vir que todo cidadão brasileiro
tem, porém, que nem todos conseguem exercer, por motivos diversos.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 49


O que pretendemos destacar neste capítulo é a mobilidade social do negro,
especialmente no âmbito da educação, mais precisamente no ensino superior. Para tanto,
traremos as vozes de acadêmicos cotistas negros que contribuíram com a nossa pesquisa de

mestrado em Educação1 da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO),


concluída em 2014. Nosso campo de pesquisa foi, a saber, a Universidade Estadual de Ponta
Grossa (UEPG) e o principal objetivo da pesquisa era dar voz aos acadêmicos cotistas negros
para conhecermos suas experiências e percepções enquanto participantes dessa ação

afirmativa.

O alcance desse objetivo se deu por meio de entrevistas com acadêmicos que
ingressaram na UEPG pelo sistema de cotas para alunos negros de escola pública e que
estavam regularmente matriculados na universidade em 2014. Para localizarmos os

acadêmicos cotistas na UEPG e conseguirmos entrevistá-los, precisamos passar por


diferentes setores da universidade em busca de informações sobre quem seriam esses alunos,
cursos que frequentavam, seus contatos, possíveis indicações para entrevista etc. Para as
entrevistas, houve um roteiro com questões norteadoras que trataram, por exemplo, da
percepção sobre as cotas raciais, da identidade étnica dos graduandos, da diversidade no
contexto educacional, da promoção da (des)igualdade social/educacional, entre outros. A

composição da nossa pesquisa pode ser observada na tabela 1.

Tabela 1. Participantes da pesquisa e seus respectivos cursos de graduação.

Nome Fictício2 Curso


Estevão (Silva) Engenharia Civil
Benedita (da Silva) Engenharia Civil
Emanoel (Araújo) Engenharia Civil
José (Piolho) Educação Física – noturno
Abdias (do Nascimento) Direito – noturno
Mercedes (Baptista) Direito – matutino

1PINHEIRO, Marielli Ramos. Cotas raciais na universidade pública brasileira: com a palavra, o cotista negro.
2014. 132 p. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual do Centro-Oeste, Irati/PR, 2014.

2 Utilizamos nomes fictícios advindos de pessoas negras importantes na história do Brasil, a fim de não

identificar os alunos e as alunas que participaram desta pesquisa.

50 Educação e Interseccionalidades
Chiquinha (Gonzaga) Direito – matutino
João (do Pulo) Administração – noturno
Carolina (Maria de Jesus) Administração – noturno
Teresa (de Benguela) Química – noturno
Fonte: autoria própria.

Cabe explicar, brevemente, que a Lei de Cotas Raciais, como é conhecida a Lei

Federal N° 12.711, foi promulgada em 29 de agosto de 2012, e

dispõe sobre o ingresso de pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas nas


universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível
médio. Trata-se, portanto, de uma política de ação afirmativa que tem a
finalidade de oportunizar a ampliação do acesso à educação aos negros a partir
da reserva de uma porcentagem de vagas do vestibular, conhecida também
por cotas raciais (PINHEIRO; VELOZO, 2017, p. 257).

Além disso, é relevante mencionar que apenas as instituições federais de ensino têm

a obrigatoriedade de oferecer uma porcentagem de vagas ao referido público, sendo


facultativo às outras instituições, como as estaduais.

É significativo mencionar que a implantação de cotas raciais para negros em


universidades públicas brasileiras faz emergir discussões sobre cor e classificação racial no

Brasil, uma vez que essa ação afirmativa é destinada a uma parcela da população que apresenta
características específicas a nível socioeconômico e étnico. Isso significa que as cotas raciais
foram planejadas e implantadas com vistas a ampliar a oportunidade de acesso ao ensino

superior aos negros brasileiros, cuja renda seja igual ou inferior a 1,5 salários mínimo per
capita e que tenham cursado o ensino médio em escola pública, características que se
apresentam como obstáculos no que tange à mobilidade social dessa população.

A MOBILIDADE SOCIAL DO NEGRO NO BRASIL

Sobre a mobilidade social dos negros no Brasil, percebe-se que a diferença racial se
apresenta como uma das dificuldades de seu ingresso em diversas esferas da sociedade. Tal
como o preconceito racial que ainda existe em nosso país, as barreiras nos processos de

mobilidade social dos negros também têm resquícios do período de escravidão. Apesar de

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 51


muitos estudiosos terem a intenção de fazer crer que as desigualdades decresceram com o
passar do tempo, ainda podemos perceber cotidianamente que as oportunidades não são
iguais para todos, especialmente no que se refere ao branco e ao negro.

A mobilidade social do negro no Brasil, portanto, inicia timidamente pouco antes


da Lei Áurea, quando negros que já se encontravam em situação de liberdade começaram a
frequentar espaços na sociedade que permitiam sua presença, porém, em muitos deles ainda
não eram bem-vindos e continuam, muitas vezes, não sendo. Osório (2004) retoma pesquisas

de Oracy Nogueira, referente ao fim dos anos 1940, que apontam a sociedade brasileira
dividida em classes – alta, média e baixa. Os negros, por sua vez, encontravam-se na classe
baixa. Tais constatações embasaram a cor como sinônimo da dificuldade que os negros
tiveram de mover-se na estrutura social, por consequência, permanecendo em posição
próxima a que se encontravam no fim da escravidão.

Existe, no Brasil, um sistema hierarquizado, muitas vezes de modo subjetivo, que


rege os espaços destinados a cada pessoa ou grupo de pessoas na sociedade, na comunidade,
no trabalho, na escola etc. Quando falamos de espaços, nos referimos tanto aos espaços
físicos quanto aos contextos de interação. Na leitura de Santos (2012), por exemplo, os
espaços em que as pessoas se aproximam ou se afastam se dão no âmbito das relações sociais,
logo, nos contextos de interação.

Ao citar a população negra brasileira dentro do sistema de hierarquia social,


recorremos a Fernandes (1978) para mostrar que ela encontrava-se no espaço mais baixo,
inclusive abaixo dos imigrantes europeus. A inserção do negro nas fábricas, durante o
período de industrialização do Brasil, mostra claramente que as melhores oportunidades
raramente eram dadas a ele, sendo que apenas os trabalhos mais pesados e arriscados, não
realizados pelos imigrantes caucasianos, eram os “serviços de negros”. As mulheres negras
serviam de empregadas domésticas às famílias tradicionais, tendo dificuldade até para

poderem aprender o ofício de tecelãs. Nos demais ramos do comércio, quando se via algum
negro trabalhando era em serviço braçal, considerado próprio para ele por não requerer

qualificação, nem bom salário. Aliás, é válido ressaltar que possuir ou não qualificação
profissional não oferecia garantia de permanência no emprego, tampouco ascensão de cargo.

A maioria dessas pessoas “precisava viver de expedientes, pequenos serviços, prestados aqui

52 Educação e Interseccionalidades
e ali, sem nenhuma perspectiva de engajamento assalariado” (CAMPOS, 2012, p. 84). O
mesmo continua acontecendo no mercado de trabalho, pois a inserção dos negros permanece

sendo em cargos inferiores, em um nível hierárquico mais baixo, e sua ascensão funcional
não se dá da mesma maneira como a de seus colegas brancos (CARVALHO, 2006).

A hierarquização pode ser observada em todos os sentidos, contudo, sempre do


dominador para o dominado, daquele que detém maior poder para o que detém menor ou
nenhum, do que tem um pouco mais para o que tem um pouco menos. Essa relação social

hierarquizada pode ser observada no exemplo proposto por Santos (2012, p. 42) no que se
refere às diferenças de gênero, raça, religião: “ser mulher, negra, praticante de candomblé e
baiana condiciona experiências sociais distintas das de um homem, branco, cristão e paulista

– e isso vale tanto na Bahia quanto em São Paulo”. Não está elencada, nesse exemplo, a
classe dos sujeitos envolvidos, ambos poderiam estar em mesmo nível hierárquico em uma
empresa, contudo, suas experiências em termos de dominação e exploração apresentam
grande possibilidade de serem distintas.

Sobre isso, Elias e Scotson (2000, p. 23) chamam a atenção para a “sociodinâmica da
estigmatização”, isto é, o modo como um grupo estigmatiza outro. Os autores perceberam
na pequena comunidade da Inglaterra que estudaram, e notamos que isso é válido também
para as questões raciais que discutimos aqui, o quanto é comum um grupo determinar o que

o outro é e fazer com que o rótulo prevaleça, de modo que isso ocorre em função da relação
estabelecida entre ambos os grupos. Ademais, nessa perspectiva, eles mencionam a tendência
a olhar o problema de estigmatizar como algo demonstrado individualmente pelas pessoas,
chamado por eles de preconceito. No entanto, essa classificação não ocorre simplesmente
em nível individual, e sim em nível da interdependência dos grupos, uma vez que tanto o
grupo dominador quanto o dominado aceitam os papéis que lhes são designados, muitas
vezes, pelo fato de pertencerem a este ou àquele grupo.

Chiquinha, estudante de Direito, participante da nossa pesquisa, comenta que sua


descendência por parte dos avós paternos e maternos é composta por negro, italiano,
ucraniano e polonês, e brinca dizendo que “eu tinha três descendências pra ser polaca, né,
nasci morena, eu falei: ‘ah sangue mais forte’. Fazer o quê? Ainda bem, né”. No entanto,
apesar de reconhecer ter orgulho de sua cor, Chiquinha relatou ser vítima de preconceito

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 53


racial em diferentes situações. Quando está com sua mãe, que é branca e loira, ela percebe

que as pessoas questionam, “se a gente andar na rua assim, de mão dada, vão dizer que a
gente é namorada. Ninguém acredita que ela é minha mãe, só acredita depois que eu mostro

a foto”. Além disso, pela sua fala, parece ser algo recorrente na vida delas, pois, como ela
mesma afirma, “por a gente saber e tal, qualquer coisa que acontece a gente já nota. A gente

já fica esperando assim, também, é estranho. É como a minha mãe disse: ‘Nossa! Eu não
acredito que aconteceu isso’”.

Outra situação que Chiquinha expõe diz respeito a frequentar o comércio em Ponta
Grossa: “[...] esses tempos eu cheguei a ser perseguida numa loja por ser morena. O cara
começou a andar atrás de mim, o segurança, daí eu cheguei e contei [para a mãe]. Daí ela
falou: eu não acredito, nossa, você... não existe isso. Eu falei: existe!”. Percebemos, com essa
vivência de Chiquinha, que a mobilidade dos negros está comprometida, também, quando
eles se colocam em situações cotidianas, enquanto consumidores nos estabelecimentos

locais, por exemplo, e não necessariamente em comparação e/ou concorrência com pessoas
não negras. Ao mesmo tempo, parece haver uma aceitação dessa condição quando Chiquinha

diz que é “normal. A gente se sente mal, né, dá vontade de chegar assim, virar e falar: ‘Pô,
por que isso?’ Mas a gente vai fazer o quê? Muitas vezes, até os seguranças são
afrodescendentes, são negros e eles têm esse preconceito com eles”.

Sobre esse controle exercido por pessoas que parecem pertencer a um mesmo grupo,
mas que passam a estigmatizar seus pares, podemos relacionar com a posição social e o poder

implicado na condição que está posta ao sujeito. No caso apresentado, percebemos uma
inferência de que os seguranças afrodescendentes tenham internalizado o preconceito latente
na sociedade devido à própria função que ocupam, pois, como disse Chiquinha, é uma “[...]

questão cultural. Acho assim que as pessoas elas criam, têm um preconceito já assim, já
nascem achando que porque você é afrodescendente você é bandido, você é isso, você é
aquilo”.

Novamente, percebemos que os espaços ocupados pelos indivíduos não dizem


respeito, necessariamente, ao território físico, mas simbólico, visto que se constroem nas
relações sociais e se reconstroem cotidianamente. De acordo com Souza (2007) apud Campos

(2012, p. 86), o território é “um campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais que,

54 Educação e Interseccionalidades
a par de sua complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade: a
diferença entre ‘nós’, os insiders, e ‘outros’, outsiders” (grifos do autor). Além disso, Santos
(2012) traz uma diferenciação entre “espaços negros” e “espaços brancos”, referindo-se a
lugares que, geograficamente, são marcados pela distinção social. No caso do Brasil, Porto
Gonçalves (2003) apud Santos (2012, p.56) afirma que: “a população negra é francamente
majoritária nos presídios e absolutamente minoritária nas universidades”. Esse quadro ainda

é reflexo de uma sociedade marcada pelo racismo, que sempre estipulou lugares em que os
negros poderiam ou não ter acesso. Até a década de 1980, por exemplo, haviam clubes
separados para negros e brancos, sendo que os brancos poderiam frequentar os clubes

destinados aos negros e o contrário não era permitido.

Não é à toa que existem discrepâncias entre o número de negros que conseguem
uma formação universitária em relação ao número de negros que buscam sua sobrevivência
por outros meios. Isso pode se dar em função da condição social em que a maioria nos negros
brasileiros se encontra, a qual envolve o local em que moram, geralmente, a periferia, ter

que auxiliar desde cedo no sustento da família, não ter oportunidades melhores de trabalho
e lazer, e ainda contar com um sistema educacional que em grande parte desvaloriza a cultura
negra, ratificando sua posição de inferioridade, e não oportunizando sua permanência nos
bancos escolares ou chances de ingresso em uma universidade, considerando que isso poderia
potencializar seu crescimento pessoal e profissional – sua mobilidade.

MOBILIDADE SOCIAL DO NEGRO E EDUCAÇÃO

Podemos perceber que a mobilidade social do negro e do branco tem delineamentos

diferentes atribuídos, principalmente, ao preconceito racial que ainda vivemos/presenciamos


no nosso país. A fim de embasar isso, apresentaremos mais alguns relatos dos acadêmicos
cotistas negros que participaram da nossa pesquisa e traremos algumas reflexões acerca da

mobilidade social do negro no âmbito educacional que é o nosso foco de estudo.

Estevão, estudante de Engenharia Civil, citou na entrevista que essa diferença de

mobilidade é percebida no espaço educacional desde as séries iniciais, no entanto, não é

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 55


necessariamente sentida naquele momento pela criança que, muitas vezes, só passa a
percebê-la quando se depara com outras desigualdades.

Eu era sempre, eu era o mais pobre ali e tal, na minha escola. Só que quando
eu era criança, eu não tive, não tinha esse pensamento de classe social. Só
que eu sabia que tinha pessoas que eram mais, que tinha mais bem de vida
ali e os que eram mais pobre ali, né. No caso eu era um dos mais pobres. [...]
E você vê uma turma de cinquenta e dois alunos [na UEPG], dois são negros,
você vê uma diferença sim. É estranho, né, por que tem só dois negros em
uma turma de cinquenta?

No que tange à educação e às possibilidades de mobilidade do negro no Brasil, foram


criadas ações afirmativas, as quais incluem as cotas raciais, em prol da valorização dessa etnia.

Podemos citar como exemplo a implantação, na educação brasileira, de conteúdos que


abordem a História e Cultura Afro-Brasileira (pela Lei N° 10.639/2003) em todo currículo
escolar e nos cursos de licenciatura das universidades. Além disso, é ampla a discussão sobre

a representação do negro nos livros didáticos, conforme Ribeiro e Menegassi (2008), Silva
(2011) e Mesquita e Schiavon (2013), que apontam que em sua maioria são eurocêntricos e
não contemplam a diversidade cultural, nem valorizam a cultura afro-brasileira. Acredita-se

que o aluno, ao ser respeitado em sua diferença, tenha a possibilidade de permanecer na


escola e concluir os estudos e com isso é possível que diminua a evasão escolar.

Ingressar em uma universidade não garante a mobilidade social dos negros, todavia,

é uma marca significativa de rompimento dessa fronteira que existe entre os dois mundos:
estar fora e estar dentro da universidade. Essa fronteira tem sido difícil de ser ultrapassada
pelo negro em virtude de a própria universidade não criar condições efetivas de permanência
para ele concluir seus estudos. Essas condições não dizem respeito apenas a auxílio financeiro

(bolsas, financiamentos, moradia, alimentação, transporte) que algumas poucas


universidades públicas têm condições de proporcionar, mas também, e principalmente, a
ruptura das fronteiras dos espaços sociais, em que as próprias relações raciais constrangem
os grupos que não são bem-vindos dentro de determinados contextos. Outro fator que

dificulta o progresso e permanência de estudantes negros (e não negros) na universidade é a


condição socioeconômica, que faz com que eles tenham uma jornada dupla de estudo e

trabalho, sendo bastante difícil conciliá-los.

56 Educação e Interseccionalidades
A respeito dessas questões aos alunos cotistas da UEPG, existem diferentes sugestões
apontadas pelos entrevistados. Segundo os alunos, é importante desenvolver programas que

acolham todos os alunos cotistas, negros e de escola pública, a fim de auxiliá-los no início
da vida acadêmica, pois os professores têm expectativas de que os alunos saibam e/ou
lembrem-se de conteúdos escolares necessários para iniciarem suas disciplinas, e nem sempre
os alunos tiveram acesso a esses conteúdos previamente ou estão fora de sala de aula há
bastante tempo. Por outro lado, alguns dos participantes acreditam que não é necessário
subsidiar os alunos cotistas por considerar que eles são alunos da região de Ponta Grossa e,

quando são de municípios distantes da região, escolhem a UEPG porque têm condições
financeiras para manterem-se na cidade.

Na opinião de Emanoel, estudante de Engenharia Civil, acerca de auxílio


institucional para moradia e alimentação, ele disse:

Eu acho que isso na verdade não é tão necessário porque a UEPG, por
exemplo, ela atende a uma demanda de cidades aqui do interior, aqui da
região mesmo, pega aí de Guarapuava até mais ou menos Curitiba. Eu acho
que não precisa não, porque até nem precisaria existir porque não, a maioria
é de Ponta Grossa mesmo e não precisa disso. O negro que vem de fora
provavelmente tem uma situação melhor, o pai dele vai vir aqui e vai dar um
jeito, pra ajudar.

Contudo, essa não é a realidade de Mercedes, acadêmica de Direito, que migrou de


Maringá para estudar em Ponta Grossa e precisou buscar um emprego para poder se manter
nos estudos devido ao valor alto de moradia, alimentação e outras despesas pessoais, mesmo

porque recebe apenas um salário mínimo de pensão por morte de sua mãe. Semelhante a
ela, são os casos de Benedita (Engenharia Civil), José (Educação Física) e Teresa (Química)

que cursam ensino superior na UEPG em função de seus empregos serem em Ponta Grossa.
E de Estevão que trabalha aos finais de semana porque seu curso na UEPG é em período
integral e ele precisa contribuir financeiramente com sua família.

Teresa traz uma informação relevante quanto à necessidade de compreender que os


alunos cotistas, de modo geral, são egressos de escola pública. Essa preocupação parte da sua

dificuldade com conteúdos que são considerados básicos para o curso de Química, mas que
ela não lembra e/ou não aprendeu na escola.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 57


A minha dificuldade maior aqui tem sido principalmente com relação à
atenção ao curso. Não por ser cotista, mas eu me enquadro na necessidade
do cotista, como eu te falei, do apoio para aquilo que todo mundo sabe que
a gente chega aqui deficiente, de apoio pra base pra gente poder seguir aqui
dentro. Uma vez eu ouvi uma frase da professora que dava aula pra gente de
fundamentos da educação que ela falou que se oferece igualdade de
oportunidade, mas em diferentes condições. E eu me enquadrei assim no que
ela falou. Oportunidade tá aí pra todo mundo, mas as condições que a gente
chega aqui são muito diferentes, então, dificulta muito da gente prosseguir
aqui dentro. Essa falta de apoio, porque quando foi aberto as cotas, sabiam
que a gente ia chegar aqui precisando. Essa que eu acho que é a maior
dificuldade.

Chiquinha também comentou sobre esse tema, no sentido de perceber diferenças no


ritmo de estudos entre alunos cotistas e não cotistas e a mudança que isso teve no decorrer

do seu curso, atribuindo essa disparidade entre alunos de escolas públicas e particulares para
ingressar no ensino superior, ou seja, os alunos oriundos de escolas públicas, no início dos
seus estudos acadêmicos, precisariam redobrar seus esforços para atingir satisfatoriamente a

dinâmica universitária de estudos, ao contrário dos alunos oriundos de escolas particulares,


haja vista que na sua rotina escolar já há uma preocupação no sentido de instrumentalizá
los para o ensino superior.

No começo, talvez, sim, porque eles [não cotistas] estão mais acostumados
com uma rotina mais pesada do que qualquer cota. Agora com o passar do
tempo, tipo no primeiro ano, geralmente quem entrava assim, que estudou
em colégio particular, eles têm mais facilidade, porque eles liam mais do que
a gente e tal, mas agora, já no terceiro ano, já é diferente, muitas vezes, os de
escola pública são, têm médias melhores, são mais, se esforçam mais do que
os outros.

No que tange ao apoio educacional para alunos cotistas, Emanoel aponta ser
necessário, inclusive, por presenciar essa situação com seu colega em sala de aula.

Um aluno de escola pública, o aluno negro que entra, já entra com uma nota
muito menor que os outros, eles deveriam ter esse acompanhamento. [...]
Meu colega que faz engenharia civil também, ele foi muito mal nas primeiras
provas e ele estava quase desanimando do curso, entendeu? Aí eu fui lá e
falei: “é assim mesmo, tem que batalhar mesmo, a gente vai sofrer um pouco
no primeiro semestre, mas você tem que estudar, tem que continuar”. Então,

58 Educação e Interseccionalidades
o aluno acaba até se desmotivando porque não tem uma ajuda assim, nesse
sentido. Se tivesse aula, sei lá, de matemática básica, essas coisas, né, no meu
caso que tinha esse problema, matemática básica, esse tipo de coisa no curso,
eu acho que talvez seria muito mais interessante pra o aluno conseguir
acompanhar o curso.

Portanto, se refletirmos sobre as cotas raciais como uma possibilidade de ingresso

do negro ao ensino superior e considerando que aquelas pessoas cujos níveis elevados de
estudo têm maiores e melhores oportunidades de ingressar na universidade e no mercado
de trabalho, poderíamos dizer que cursar uma graduação e se pós-graduar é suficiente para
o negro alcançar sua ascensão social? Acreditamos que se trata de um direito conquistado,
porém, que não dá garantias de continuidade pós-formação se continuar havendo
preconceito. De acordo com Osório (2004, p. 12), os “negros permaneceram prestando os
mesmos serviços para os quais a ideologia racial os considerava ‘naturalmente’ adequados,
apenas sob condições distintas”. Mesmo assim, o autor acredita que essa situação poderia ser

revertida criando oportunidades ao negro para sua ascensão com vistas ao melhor
aproveitamento de seu potencial na estrutura ocupacional, algo trazido à baila com a Lei Nº

12.990/2014 sobre as vagas para negros em concursos públicos.

CONCLUSÃO

Tratamos, neste texto, de mostrar o quanto a mobilidade social dos negros está
comprometida quando comparada à mobilidade social dos brancos nas diferentes esferas da
sociedade, dando ênfase ao ensino superior. Entendemos que, apesar dos esforços

legislativos, dos movimentos sociais, das denúncias de cidadãos comuns, entre outros, na
direção de minimizar e, também, de cessar as desigualdades raciais no Brasil, isso ainda é o
início de um longo e pedregoso caminho a ser percorrido.

A construção espacial apresenta-se como resultado de um “aprendizado” social, por


isso, mesmo que não seja consciente ao negro e ao branco, eles compreendem os espaços
em que a raça e a cor são ou não referentes enquanto critério regulador das relações sociais.
De acordo com Santos (2012), essa organização espaço-temporal que permeia as relações
sociais é o que reproduz as desigualdades raciais e mobiliza hierarquicamente os sujeitos,

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 59


delimitando os lugares e momentos de acesso à educação, ao emprego, à saúde, às posições
de poder, entre outros. Para tanto, ele cita um exemplo que consideramos essencial expor
neste momento para refletirmos onde se instalam as relações sociais verticalizadas e

horizontalizadas:

Um profícuo exemplo é a disputa pelo acesso a um posto de emprego: dois


amigos, um branco e um negro, se apresentam em busca de uma vaga de
emprego. Nesse momento há, como situação predominante em nosso tecido
social, uma vantagem do postulante branco em relação ao postulante negro
– o acesso ao emprego é um dos campos onde a assimetria é a marca das
relações raciais, inclusive nas situações em que há igualdade nas variáveis que
poderiam configurar diferenciais entre os postulantes (mesma qualificação,
mesma idade, etc.). Esses dois postulantes podem ser os melhores amigos, e,
ao sair da entrevista, se põem a comentar: “Como foi a sua entrevista? O que
te perguntaram?”, sentados numa praça, ou dentro do ônibus a caminho de
suas casas. Nesse momento, eles voltam a ter uma interação marcada pela
horizontalidade nas relações inter-raciais, momento esse que foi sutilmente
precedido por outro onde a assimetria era a tônica. E se, quando estão ambos
dentro de um ônibus, esse veículo de transporte coletivo for parado pela
polícia? Terão igualdade de tratamento? As chances de ser abordado pela
polícia, e ter um tratamento de desrespeito e suspeita por parte do policial
são as mesmas? (SANTOS, 2012, p.44-46).

O que se pode observar nessa situação exemplificada é que o contexto de interação


delimita as relações sociais num mesmo espaço e tempo. São as fronteiras que organizam as
experiências e definem os comportamentos e o pertencimento dos indivíduos na sociedade,
além de hierarquizá-los. Vale lembrar que essas construções são reproduzidas socialmente,
por isso a razão do surgimento de movimentos que lutam pela ressignificação identitária

dessas construções, a fim de proporcionar espaços de valorização dos indivíduos


marginalizados.

Nesse cenário, a questão racial no Brasil precisa ser reconhecida, haja vista que é uma
temática que apresenta diferentes contornos (para não dizer, polêmica). Por um lado,

reconhecer os meandros que a temática aciona contempla uma demanda de discussão sobre
o tratamento igualitário entre negros e brancos. Por outro lado, ao reconhecer a importância
dessa discussão, abre-se caminho para avançar naquilo que se refere à desnaturalização da
pobreza. Para tanto, urge a necessidade de enfrentar a estrutura social tradicional que

60 Educação e Interseccionalidades
reproduz hierarquias sociais e vantagens, por meio do preconceito e da discriminação e,
talvez, o espaço criado na universidade pública por meio das cotas raciais seja profícuo para

isso.

REFERÊNCIAS

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universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá
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das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos
públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações
públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela
União. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011
2014/2014/Lei/L12990.htm> Acesso em 04 out. 2014.

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relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de
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universidade pública brasileira. IN: SAPELLI, Marlene Lucia Siebert (Org.). Uma face da
hidra capitalista: crítica às políticas educacionais para a classe trabalhadora. Curitiba:
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e racismo no espaço urbano. IN: ______. (Org.). Questões urbanas e racismo. Petrópolis,
RJ: DP et Alii; Brasília, DF: ABPN, 2012. p. 36-67.

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por que mudou? Salvador: EDUFBA, 2011.

OSÓRIO, Rafael Guerreiro. A mobilidade social dos negros brasileiros. Brasília: IPEA,
2004.

62 Educação e Interseccionalidades
A EXPERIÊNCIA SOCIAL DAS
ADOLESCENTES NEGRAS NA ESCOLA
PÚBLICA E OS TREZE ANOS DA LEI
10.639/03:
ideologia e a PEC 55

Ana Carolina Dartora1

Este artigo se propõem a trazer uma reflexão a respeito da importância de compreender a


ideologia que existe no fundo da Proposta de Emenda Constitucional 55, a famosa “pec do
teto” dos gastos públicos, sua intenções e impactos que pode provocar ao longo do tempo,
tomando como exemplo os dados da pesquisa qualitativa de mestrado realizada na cidade de
Curitiba-PR, As Adolescentes Negras da Escola Pública e os Trezes anos da lei 10.639/03.
A questão que se pretende demonstrar, é que algumas politicas educacionais, como a lei
10.639/03, se tornam diretrizes para o projeto de nação brasileira, formando os cidadãos das
novas gerações e, a depender da ideologia existente como pano de fundo na elaboração, ou
na extinção de determinadas politicas publicas, fomenta ou compromete os mais altos ideias
de democracia e o sucesso de uma nação, compreendendo como sucesso, uma nação
equânime, justa, formada por cidadãos conscientes, críticos e autônomos.

Palavras-chave: Educação, Lei 10.639/03, Adolescentes Negras, Ideologia.

INTRODUÇÃO

A Lei Federal 10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação


Nacional (LDB, Lei 9.394/96) e tornou obrigatório o estudo sobre a cultura e história afro
brasileira e africana nas instituições publicas e privadas de ensino do Brasil, e as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a implementação da lei (SILVA, 2012), tratam-se de politicas

de ações afirmativas.

Ações afirmativas com a lei 10.639/03 são resultado de muitos anos de luta dos

diversos Movimentos Negros do país para que o racismo fosse reconhecido, bem como seu

1 Mestra em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná
(UFPR).

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 63


males que atingem subjetivamente e objetivamente a vida da população negra na sociedade
brasileira. Em 2003, ano da posse recente do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o
mesmo promulgou esta lei, a primeira que foi assinada em seu mandato (SILVA, 2012,
p.104), ela então serviria como um instrumento legal de educação das relações raciais no

Brasil, não apenas para que se adotassem novos conteúdos, mas que servisse como recomeço
na busca de como as culturas se comunicam, e incentivo para novas posturas diante das
pessoas.

A busca por essas novas posturas seria feita então via educação formal, para isto o
governo convocou todas as instituições de ensino para o engajamento na luta antirracismo
brasileira. O reconhecimento da história do negro e suas contribuições incorporada nos
currículos resinifica a História do Brasil, mexe no projeto da sociedade brasileira e na vida

das pessoas que encontram condições para também exercer poder sobre os destinos da
sociedade.

O currículo tem significados que vão muito além daqueles aos quais as teorias
tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço, território. O
currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O
currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja
nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é
documento de identidade (SILVA, 1999, p. 150).

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e


para o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (BRASIL, 2004) foram

estabelecidas, e suas alterações foram regulamentadas a partir da lei 10.630/03 aprovada em


10/03/2004 pelo Conselho Nacional de Educação pelo parecer CNE/CP06/2002, tornando
se obrigatória (BRASIL, 2003).

Tal parecer tratando-se de uma ação afirmativa buscou trazer uma resposta na área

da educação, almejando reparação através do reconhecimento e valorização da cultura e


identidade da população afrodescendente (Brasil, 2004). “Trata-se de uma política curricular
fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas [...] em busca de combater o
racismo e as discriminações que atingem particularmente os negros” (BRASIL, 2004, p.06
apud SILVA, 2012).

64 Educação e Interseccionalidades
As políticas de reparação são demandas da população negra para que se desfaça

folclorizações e esteriotipações que refletem o racismo e se garanta o ingresso e permanência


na educação escolar, assim como, a valorização da história e cultura afro-brasileira e africana,

almejando visibilidade, justiça e igualdade de direitos sociais, civis e econômicos e valorização


da diversidade, problematizando os desdobramentos das discriminações e do “mito da
democracia racial” (BRASIL, 2004, apud SILVA, 2012).

O artigo 26-A foi posteriormente alterado pela Lei 11.645/2008, com a introdução
da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura dos Povos Indígenas Brasileiros, a
aprovação e a paulatina execução dessa legislação, fruto das pressões sociais e proposições

dos diversos movimentos negros brasileiros, juntamente com os demais aliados da luta
antirracista, sinalizou avanços na efetivação de direitos sociais educacionais, e implicou o

reconhecimento da necessidade de superação de imaginários, representações sociais,


discursos e práticas racistas na educação escolar.

Em pesquisa realizada na cidade de Curitiba-PR, sob o título: As Adolescentes


Negras da Escola Pública e os Treze Anos da lei 10.639/03, pôde-se observar como essa
politica pública chegou no chão da escola, a principio a ideia era pesquisar apenas a questão

das “desigualdades multiplicadas” (DUBET, 2003) das adolescentes negras, desigualdades


por ser mulher, jovem, negra, pobre e a combinação entre machismo e racismo, mas quando
em campo, ouvindo, observando e entrevistando, a influência da lei tornou-se muito visível,

e acabou se tornando também parte do objeto de pesquisa.

O conceito chave da pesquisa foi o de “Experiência Social” que foi desenvolvido por
François Dubet, nascido em 23 de maio de 1946 na França. Dubet destaca a experiência
como objeto sociológico:

A sociologia da experiência social visa definir a experiência como uma


combinatória de lógicas de ação que vinculam o ator a cada uma das
dimensões de um sistema. O ator deve articular estas lógicas de ação
diferentes e a dinâmica que resulta dessa atividade constitui a subjetividade
do ator e sua reflexividade (DUBET, 2003, p.105).

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 65


A experiência social das adolescentes negras no Colégio Estadual Leôncio Correia,
Curitiba/PR, não se diferencia muito da experiência de meninas de outras escolas públicas

de Curitiba, sempre minoria nas escolas do sul do país.

PERCEPÇÃO DE SER O OUTRO

Existem marcas profundas na vida dos sujeitos negros que são deixadas pela maneira
como a sociedade o enxerga e emite opiniões sobre seu cabelo, seu corpo, sua estética.

A vivência escolar se torna um importante momento no processo de construção da


identidade negra que é permeada por estereótipos e representações negativas sobre o seu
padrão estético. Desde as séries iniciais o negro é reforçado como o “outro”, pois, explicita
se fortemente o padrão de estética branca que assume como norma a branquidade e

invisibiliza os negros negando a plenitude de sua existência (GIROUX, 2009).

A complexidade do ser negro em uma sociedade em que essa condição


aparece associado a pobreza, inferioridade, incompetência, feiura, atraso
cultural tornam a construção da identidade racial dos negros e negras um
grande desafio (BENTO, 2011, p.99).

Os meninos negros raspam seus cabelos para estar mais em conformidade, pois os

homens podem exibir um cabelo bem curto, mas as meninas negras2 não têm essa opção, a
cor da pele e principalmente o cabelo crespo são determinantes nos sentimentos e
impressões sobre suas vidas, como observou-se:

Claudiene, 17 anos: Já vivi muitas vezes as pessoas jogando coisas no meu cabelo
pra grudar e rir, já pegaram borracha para tentar me clarear. Sempre falam que
vou assaltar e coisas assim... Muitas pessoas pedem e dão comando pra eu alisar
meu cabelo, me sinto mal, pois gosto dele com cachos...

Desta forma, pelas longas vivências de hostilidade, as meninas negras se descobrem


como os “outros”, o racismo é uma questão de discurso, de violência, de agressão, de
estigmas, e se torna fundamental na experiência social destes indivíduos.

2 Os nomes utilizados são fictícios para respeitar a privacidade das entrevistadas.

66 Educação e Interseccionalidades
Quando adquire as noções de outro, e de diferente, também em termos
raciais, a criança já se apropriou dos elementos para a interpretação dessa
diferença. As noções de diferença e de hierarquias raciais em nossa sociedade
são adquiridas na família, no espaço da rua, nas organizações religiosas e,
posteriormente, nas creches e nas escolas. Crianças brancas e negras
aprendem que ser branco é uma vantagem e ser preto, uma desvantagem
(BENTO, 2011, p.102).

As maneiras de ver e de pensar constituem o campo simbólico, desta forma a

produção da violência simbólica dá-se nesse mesmo âmbito. Assim, “a violência simbólica
é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita daqueles que a sofrem e também,
frequentemente daqueles que a exercessem na medida em que uns e outros são inconscientes
de a exercer ou de a sofrer” (BOURDIEU, 1996, p. 16), “e são formas de coerção que se
baseiam em acordos não conscientes entre as estruturas objetivas e as estruturas mentais”.

(Id. 2012, p. 239). Então:

O estado é a posse do monopólio da violência física e simbólica: [...] é o que


funda a integração lógica e a integração moral do mundo social e, por aí, o
consenso fundamental sobre o sentido do mundo é a condição mesma dos
conflitos do mundo Social (BOURDIEU, 2012, p.15).

Desta maneira, percebe-se que vivemos em uma sociedade que aboliu a escravidão,
não existem mais a “casa grande e a senzala” (FREYRE, 1933), no entanto, o racismo
estrutural adaptou seus mecanismos e reduziu as meninas negras à “senzala simbólica”.

A SENZALA SIMBÓLICA

Atualmente não vivemos mais em um Regime Escravocrata, mas as pessoas negras


têm sua humanidade negada e lugar social demarcado de várias formas, o racismo é
onipresente na vida das adolescentes negras, e nem sempre se manifesta de maneira explicita,
muitas vezes se mostra em olhares e atitudes implícitas como se percebe na seguinte fala:

Carol, 18 anos: ...Eles acham que somos favelados, que não sabemos nos comportar
em público, que roubamos que não temos caráter, que não temos capacidade, que
não pensamos.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 67


Além disso, a coisificação para as meninas negras é ainda mais forte do que para os
meninos, devido ao machismo da sociedade ainda patriarcal. Enquanto nas antigas senzalas
elas eram objeto sexual dos senhores de engenho, na atualidade, o corpo negro feminino é

vendido na forma da “mulata globeleza”, “da mulata exportação”, são vistas como mulheres
fáceis para o sexo, mas não são opção no valor moderno da escolha amorosa, ou a “mulher
pra casar”.

Marilin, 18 anos: ...Pensam que as adolescentes negras são vulgares e biscates.

Ana Paula, 16 anos: Dizem que você deve ser linda pra dar por que você é fácil...
Sempre estou em segundo plano, por que sou uma mulher negra.

Isabele, 12 anos: Édifícil porque as pessoas, principalmente os meninos não querem


namorar com você, só porque você é negra...

A estrutura social permanece quase a mesma, e o racismo sutilmente segrega,


dificulta certos casamentos, certos empregos, certos bairros, certas escolas, certas faculdades:

Carol, 18 anos: Até hoje sabemos que há privilégios para brancos, por exemplo se
tem uma menina loira de olhos azuis fazendo um teste para modelo, e uma
menina negra de cabelo crespo, a loira que vai passar, porque o padrão de beleza
é esse.

Desta forma constata-se um ambiente escolar pouco acolhedor muitas vezes, e que

chega a ser hostil para com essas adolescentes, o que resulta nas razões complexas da evasão
ou torna a trajetória educacional muito acidentada, e que acaba resultando também na
grande dificuldade de inserção em igualdade de condições no mercado de trabalho, desta
forma as meninas negras são atiradas na “Senzala Simbólica”, que mantém certa ordenação

da sociedade, maneiras de agir, de pensar, de produzir a vida e as possibilidades de inserção


social.

Porém o dado novo e gratificante percebido foi o de que algumas das entrevistadas

demonstram uma clara noção de sua condição social, e fazem uma relação entre a história,
o racismo e os lugares sociais. Interessante notar, que algumas meninas apresentaram a

68 Educação e Interseccionalidades
questão de gênero, além da condição negra apenas, o que entra em consonância com os
atuais discursos sobre feminismo, autonomia e feminismo negro3.

Esses discursos têm sido vistos na mídia, em propagandas, reconhecendo a população


negra na sociedade brasileira, mas é também, sem sombra de dúvida fruto da lei 10.639/03

que completa 13 anos e se faz sentir no chão da escola. Para além disso, existem outras
medidas complementares a essa, por exemplo, a lei 12.288, de 20 de julho de 2010, também
da gestão do ex-presidente Lula, que Institui o Estatuto da Igualdade Racial, que prevê,
entre outras medidas, incentivos fiscais às empresas que contratarem negros, e que visa entre

outros.

VII - Implementação de programas de ação afirmativa destinados ao


enfrentamento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura,
esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação
de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à Justiça (BRASIL, 2010).

Desta forma, diversos fatores se somam na escola, processos autônomos, processos


políticos, fruto de pressões dos movimentos sociais, posturas individuais, percebe-se, que
em comparação com pesquisas anteriores, os 13 anos da lei, trouxe à tona o debate e o

esforço pela consolidação da lei.

Porém medidas como a lei 10639/03 extrapolam os muros da escola e são perigosa
arma na luta antirracista e na mitigação das diferenças sociais existentes historicamente no
país, diferenças essas, que no Brasil sempre tiveram uma cor, a cor negra, ou seja, é uma

questão contra-ideológica, e para que isso se torne claro é necessário trazer a tona ou
relembrar a questão da ideologia, afinal quando a entendemos, a crise politica e social vigente
se torna mais compreensível.

3 O feminismo negro é uma escola de pensamento que defende que o sexismo, a opressão de classes, a
identidade de gênero e o racismo estão inextrincavelmente ligados. A forma como estes se relacionam entre si
é chamado Intersecionalidade, uns dos principais ícones é Angela Davis.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 69


AMEAÇAR PRIVILÉGIOS É TOCAR EM VESPEIRO

As políticas públicas para a população negra e seus resultados que foram diversos,

desde a área educacional como vimos no exemplo da pesquisa acima, até em dados como da
diminuição da pobreza, mais acesso a bens de consumo, melhoria da saúde, inclusão social,
bate de frente com a questão ideológica, arranhar os privilégios daqueles que historicamente
sempre tiveram o poder assusta e a reação não poderia ter sido diferente a de um vespeiro

assanhado. Rememorando a questão da ideologia de acordo com Marilena Chauí:

A ideologia consiste precisamente na transformação das ideias da classe


dominante em ideias dominantes para a sociedade como um todo, de modo
que a classe que domina no plano material (econômico, social e politico),
também domina no plano espiritual (das ideias) (CHAUÌ, 1994, p.93)

Desta forma, uma postura estatal de intervenção e construção de uma política


educacional que toma em consideração a diversidade e que se contrapõe à presença do
racismo e de seus efeitos, seja na política educacional mais ampla, na organização e

funcionamento da educação escolar, nos currículos da formação inicial e continuada de


professores, nas práticas pedagógicas e nas relações sociais na escola, bem como em outros
âmbitos, bate de frente com a ideologia que sempre se fez presente, e causou as mais diversas
reações.

Após 13 anos de avanços vivemos num momento de atentado aos direitos

fundamentais, o ponto alto foi a aprovação da PEC. 55 (Proposta de Emenda à Constituição


nº 55, de 2016, mais conhecida como a PEC do teto dos gastos públicos):

Institui o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da


Seguridade Social da União, que vigorará por 20 exercícios financeiros,
existindo limites individualizados para as despesas primárias de cada um dos
três Poderes, do Ministério Público da União e da Defensoria Pública da
União; sendo que cada um dos limites equivalerá: I - para o exercício de
2017, à despesa primária paga no exercício de 2016, incluídos os restos a pagar
pagos e demais operações que afetam o resultado primário, corrigida em
7,2% e II - para os exercícios posteriores, ao valor do limite referente ao
exercício imediatamente anterior, corrigido pela variação do Índice Nacional
de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA. Determina que não se incluem
na base de cálculo e nos limites estabelecidos: I - transferências

70 Educação e Interseccionalidades
constitucionais; II - créditos extraordinários III - despesas não recorrentes da
Justiça Eleitoral com a realização de eleições; e IV - despesas com aumento
de capital de empresas estatais não dependentes (BRASIL, 2016).

Esta proposta limita de forma drástica o investimento em saúde e educação por 20


anos, é um aviltamento, sobretudo para a população negra e periférica, se torna importante
nomear o quanto essas medidas são racistas.

Promulgou-se em 16 de fevereiro de 2017 a Lei 13.415, que versa sobre o novo


ensino médio, e como já dito anteriormente alterou trechos da LDB, não está esclarecido
ao certo como isso resulta na questão da lei 10.639/03, porém compreende-se que alterar
sem consulta popular prévia dos movimentos sociais, bem como dos pesquisadores da área
uma lei que levou tanto tempo para ser construída e efetivada, no momento em que começa
se a colher os primeiros frutos da mesma, é aterrador.

Torna-se então clara a ideologia do grupo político em questão, os impactos que


resultarão de suas ações na nação brasileira e seu projeto de nação, que em última analise
significa a manutenção da população negra na condição pobre e periférica e manutenção da

ideologia vigente.

Portanto é necessário ter a compreensão de “por que a ideologia é possível:


qual sua origem, quais seus fins, quais seus mecanismos e quais seus efeitos
históricos, isto é, sociais, econômicos, políticos e culturais”, para continuar a
construção de uma sociedade justa (CHAUÍ, 1994, p.21).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É fundamental continuar olhando para o futuro, haja vista a importância da luta


autônoma, mas também a importância das organizações sociais e democratização dos

aparelhos políticos e ideológicos, bem como manter viva a noção de que mudanças nem
sempre são boas, algumas podem ser retrocessos, desta maneira se faz necessário ter
compreensão das conjunturas politicas e dos desejos individuais em todos os âmbitos da

sociedade.

Destaca-se também a importância do debate racial como prioritário da luta contra

ideológica, aos retrocessos que virão e em todas as políticas de modo transversal, tivemos

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 71


avanços significativos em relação à promoção da igualdade racial, sobretudo na área da
educação, com a ampliação das Universidades Federais e a Lei de Cotas, em vez da ampliação

dessas conquistas, assiste-se a saídas regressivas que se intensificam após o impedimento da


ex-presidenta Dilma Rousseff.

O esforço de reflexão apresentado neste artigo é para demonstrar a necessidade da


luta permanente não só pela conquista de mais direitos, mas pela manutenção dos direitos

já adquiridos, bem como manter viva a noção de que a luta democrática no Brasil, é uma
luta por autonomia e busca de consciência crítica dos atores sociais, mas também uma luta
contra-ideológica.

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infantil, igualdade racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos e conceituais. São
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72 Educação e Interseccionalidades
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Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 73


74 Educação e Interseccionalidades
IDEOLOGIA DE GÊNERO:
a gênese de um discurso

Kaciane Daniella de Almeida e Nancy Stancki da Luz

Este artigo tem como objetivo analisar a gênese da ideologia de gênero, termo que ganhou
grande visibilidade durante o processo de tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE)
2014-2024. Nesse período, alguns setores da sociedade reagiram negativamente em relação
à diretriz do Plano que previa a promoção da igualdade de gênero e a orientação sexual como
forma de superação das desigualdades educacionais, associando-a ao termo ideologia de
gênero. Para discutir essa questão, foi realizada uma pesquisa em sítios da internet, por meio
de busca livre no Google, a qual evidenciou que as postagens sobre o tema estavam em sítios
com algum tipo de vinculação religiosa. O termo ideologia de gênero, utilizado inicialmente
em documentos internos da igreja católica, teve maior divulgação durante a IV Conferência
Mundial sobre a Mulher em 1995, particularmente utilizado por grupos contrários à
discussão de gênero. O argumento mais recorrente em oposição à ideologia de gênero foi a
defesa da família contra o feminismo e a homossexualidade, questões também utilizadas por
setores contrários a essa discussão no PNE.
Palavras-chave: Ideologia de gênero; Gênero; Plano Nacional de Educação.

INTRODUÇÃO

A tramitação do PNE (2014-2024)1 teve, dentre seus principais debates, a polêmica


sobre a alteração da diretriz que previa a superação das desigualdades educacionais, retirando

a ênfase na promoção de igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual.

O período de 2010 a 2014 foi marcado por intensas e tensas discussões entre grupos
contrários e grupos favoráveis à alteração, o que evidenciou a polêmica gerada pela inserção

de gênero e orientação sexual no PNE. Esse embate ocasionou uma grande visibilidade do
termo ideologia de gênero e dos grupos/movimentos contrários a qualquer tipo de discussão
sobre gênero, sexualidade, diversidade sexual ou orientação sexual no ambiente escolar.

1 O projeto de lei do Executivo foi enviado para o parlamento em dezembro de 2010, tendo o término da
tramitação ocorrido em 2014 (Lei nº 13.005/2014).

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 75


Essa disputa, caracterizada por grandes articulações e mobilizações, culminou com a
alteração da redação final da Lei do PNE (lei N°. 13.005/2014). A proposta inicial que

contemplava:

a superação das desigualdades educacionais com ênfase na promoção da


igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” foi substituída por
“superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da
cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação.

Essa nova redação suprimiu as discussões de gênero e orientação sexual, uma vez que

o PNE deixou de fazer qualquer menção a essa questão.

Nesse embate de ideias, a internet se revelou como veículo poderoso de comunicação,

divulgando continuamente informações sobre os perigos da ideologia de gênero na educação.


O grande alastramento dessas discussões gerou a questão orientadora deste texto: qual a
origem do discurso de ideologia de gênero que tanto se propagou durante o PNE 2014
2024? Essa indagação advém de um contexto marcado por manifestações de setores
religiosos, movimentos sociais, participação popular em debates e votações, pressão política
sobre parlamentares, proposição de petições públicas, articulação entre Frentes
Parlamentares (Evangélica e Católica, por exemplo), confronto de ideias e interesses entre
favoráveis e contrários à discussão de gênero e diversidade sexual na escola, ou seja, um
momento de efervescência política e social.

Ao desvelar a gênese do uso do termo ideologia de gênero pretende-se auxiliar na


compreensão das formas como esse discurso foi rapidamente acolhido por determinados
setores da sociedade. Nesta perspectiva, a pesquisa realizada em sítios da internet, além de
analisar as primeiras formas de uso do termo, também objetivou desvendar o sentido

atribuído e as ideias associadas ao termo.

A investigação foi realizada a partir de uma pesquisa livre no Google, usando as


palavras-chave “ideologia de gênero” e “ideologia de gênero no PNE”, o que possibilitou
selecionar, no período de 2004 a 2014, 35 textos/reportagens/matérias, cujo escopo era a

discussão da ideologia de gênero.

76 Educação e Interseccionalidades
Embora a gênese do discurso da ideologia de gênero não esteja relacionada a questões

educacionais brasileiras, mas a textos da igreja católica de décadas atrás, o período de


tramitação do PNE foi profícuo às reflexões e à propagação tanto das discussões sobre gênero

e educação quanto à propagação do discurso de ideologia de gênero e os supostos riscos para


a educação.

Ressalta-se que a forma como o termo ideologia de gênero foi difundido e as ideias

que foram a ele vinculadas contribuíram tanto para a alteração do texto do PNE quanto para
a difusão da negação da possibilidade de dar continuidade de políticas educacionais para o
enfrentamento às desigualdades de gênero na escola, mesmo que não se tenha qualquer

vedação legal para ações com esse objetivo.

O PNE E A DISSEMINAÇÃO DO DISCURSO DA IDEOLOGIA DE


GÊNERO

O Plano Nacional de Educação, documento que cumpre o disposto do art. 214 da


Constituição Federal de 1988, estabelece diretrizes e metas de vigência decenal para a
educação do país. O Plano prevê ainda a elaboração de planos estaduais, distrital e municipais
em consonância com diretrizes, metas e estratégias do PNE.

A discussão do PNE 2014-2024 colocou em destaque o debate sobre gênero e


orientação sexual, particularmente pela visibilidade das ações de movimentos contrários à
inclusão dessa discussão no ambiente escolar, focando suas argumentações em uma investida
contra o termo “ideologia de gênero”.

O ponto polêmico que evidenciou as discussões sobre ideologia de gênero foi o artigo
2º, inciso III que estabelece as diretrizes do PNE. A discussão pautou-se na manutenção ou
não da explicitação das formas de desigualdades educacionais, ou seja, na manutenção ou
supressão do texto sobre superação das desigualdades étnico/raciais, regionais, de gênero e
orientação sexual.

O levantamento realizado nos sítios da internet revelou que o período de tramitação


do PNE, de 2010 a 2014, foi de grande destaque e de propagação do termo no país, conforme
exposto na tabela 1.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 77


Tabela 1. Número de postagens sobre ideologia de gênero – 2010-2014
Ano 2010 2011 2012 2013 2014 Total

01 02 12 07 11 33
Fonte: as autoras

Para dimensionar o crescimento do número de textos sobre ideologia de gênero nos

sítios deve-se considerar que foram encontradas, entre os anos 2004 a 2009, apenas duas
reportagens que faziam menção ao termo, todavia, entre 2010 e 2014 (período de discussão

do PNE) foram encontradas trinta e três.

Salienta-se que os textos dos sítios, até a data de votação do PNE na Câmara dos
Deputados, contrapunham-se ao conceito de gênero como construção social e alertavam
para possíveis riscos do termo ideologia de gênero, conforme pode ser observado nos títulos

das matérias publicadas:

• Vaticano se posiciona contra o feminismo e a ideologia de gênero (UOL,


2004).
• A ideologia do gênero: seus perigos e alcances (CANÇÃO NOVA, 2008)
• Ideologia de gênero: a ideologia contra Biologia (PORTAL DA FAMÍLIA,
2010).
• Loucura da ideologia de gênero: escola na Suécia proíbe que crianças sejam
tratadas como meninos e meninas (IPCO, 2011).
• Ideologia do Gênero: ciência nega categoricamente que o gênero seja
“construção social”. (COM SHALOM, 2012).

A aprovação em 2012, pela Câmara dos Deputados, do texto do PNE que continha
a redação original na diretriz III: “a superação das desigualdades educacionais com ênfase na
promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” desencadeou uma
série de postagens na internet que vinculavam o PNE ao termo ideologia de gênero e a defesa

da homossexualidade, conforme se observa nos seguintes títulos de notícias:

• PNE: Câmara vota Plano que contém ideologia de gênero


(ARQUIDIOCESE DO RIO, 2013).
• Senado vota esta semana projetos de lei que favorece ideologia de gênero e
homossexualismo (ACI DIGITAL, 2013).
• A ideologia sexualista proposta pela Organização Mundial da Saúde: a
Organização Mundial da Saúde pretende implementar a ideologia de gênero
nas escolas e negociar a moral na educação (ALETEIA, 2013).
• Marisa Lobo faz alerta sobre “ideologia de gênero” no Plano Nacional de

78 Educação e Interseccionalidades
Educação (GOSPELMAIS, 2014).

O resultado desse processo de discussões e de divulgação de textos que


desqualificavam os estudos de gênero e passavam a associá-los ao termo ideologia de gênero,
compreendido como uma ameaça à educação das crianças e à moral nas escolas, foi a alteração
do texto final do PNE, suprimindo a diretriz “a superação das desigualdades educacionais
com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”,
substituindo-a por “a superação das desigualdades educacionais com ênfase na promoção da

cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”.

Embora o movimento que se posicionou contrário à promoção da igualdade de


gênero como uma diretriz do PNE tenha dado grande destaque a essa discussão, o termo

ideologia de gênero já era propagado antes desse período, como forma de se contrapor aos
estudos de gênero e a consolidação da igualdade de direitos independente de sexo, gênero,
orientação sexual, identidade de gênero, etc.

IDEOLOGIA DE GÊNERO: UMA RESISTÊNCIA AOS ESTUDOS DE


GÊNERO

Os estudos de gênero evidenciaram desigualdades baseadas no sexo e permitiram


mudanças nas relações entre homens e mulheres, bem como alterações de atitudes e valores
no sentido de concretizar processos de igualdade social.

A partir da década de 1980, novos movimentos sociais explicitaram relações de poder


que negavam os direitos fundamentais a uma parcela significativa da humanidade. Na
academia, teorias pós-estruturalistas e estudos queer passaram a visibilizar identidades
excluídas e desafiar/desestabilizar a ordem de gênero, estabelecendo novas formas de analisar
e interpretar o mundo.

Esse contexto marcado por lutas, reivindicações e novos estudos acadêmicos parecia
não mais aceitar a segregação, a marginalização e a exclusão social, a partir de preconceitos

e discriminação associados ao gênero e à sexualidade. Contudo, a mesma conjuntura que


proporcionou o desenvolvimento de estudos que buscavam explicar/explicitar as
desigualdades associadas ao sexo/gênero e que possibilitou um processo de reconhecimento

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 79


e valorização das diferenças humanas, também foi fecunda para a organização de movimentos
contrários aos estudos de gênero e aos avanços de direitos de mulheres, lésbicas, gays,
bissexuais, transexuais e intersexuais.

Assim, se por um lado, a partir dos estudos de gênero, em particular de Scott (1995),
passam a ser rejeitadas as explicações biológicas para a subordinação feminina e para as

desigualdades de gênero, assim como se evidencia o caráter político das relações sociais
baseadas no sexo, a imbricação da construção do gênero com as diversas instituições sociais,
as formas como as diferenças entre papeis sociais de homens e mulheres podem fundamentar
as relações de poder presentes nos diversos âmbitos sociais; por outro, uma reação opositora

a essa teoria passa a ganhar força, na medida em que as discussões de gênero ganham espaço
e legitimidade e conquistam agendas internacionais.

Destaca-se que a Igreja Católica, na década de 1990, já se posicionava contrária aos

estudos de gênero. Claudia Costa, em um artigo de 1998, já chamava a atenção de que o


Vaticano apresentava resistência ao uso da palavra gênero durante a IV Conferência Mundial
sobre a Mulher em Pequim (1995):

Ao passo que estados e agências inter-governamentais abraçavam o gênero,


o Vaticano, durante os preparativos para a Conferência em 1995 sobre a
Mulher em Beijing, e temeroso das consequências que o uso da palavra
gênero poderia acarretar – como aceitação da homossexualidade, a destruição
da família (patriarcal) e a disseminação do feminismo – estava orquestrando
ferrenho ataque ao conceito de gênero, “associando-o a sinistra influência
estrangeira”. Como nos relata Franco, segundo a advertência do Bispo
Auxiliar de Buenos Aires, a utilização da palavra gênero “como um
constructo meramente cultural separado do biológico... torna-nos
companheiros de viagem do feminismo radical” (COSTA, 1998, p. 128-129).

As principais preocupações da igreja naquele momento, segundo Costa (1998), era a


aceitação da homossexualidade, a destruição da família (patriarcal) e a disseminação do

feminismo.

Nesse contexto, emerge o termo ideologia de gênero como forma de resistência aos

estudos de gênero e sua potencialidade para a desestabilização de estruturas de poder,


particularmente as estabelecidas a partir de diferenças sexuais.

80 Educação e Interseccionalidades
Embora a Igreja Católica tenha se posicionado contrariamente à discussão de gênero
no contexto da Conferência da Mulher, em 1995, o primeiro documento oficial que trata

de Ideologia de gênero refere-se a um texto preparado para a Conferência Episcopal Peruana


de 1998.

Esse documento questiona a construção social do gênero, a partir da crítica do livro


Problemas de gênero: Feminismo e subversão de Judith Butler.

Enquanto muitos poderiam continuar considerando o termo "gênero" apenas


como uma forma cortês de se dizer "sexo", para evitar o sentido secundário
que "sexo" possui em inglês, e que, portanto, "gênero" se refere a seres
humanos masculinos e femininos, existem outros que, já há alguns anos,
decidiram difundir toda uma "nova perspectiva" do termo. Esta perspectiva -
para a surpresa de muitos - refere-se ao termo "gênero" como "papéis
socialmente construídos" (CONFERÊNCIA PERU, 1998).

Vale destacar que os argumentos contrários à ideologia de gênero baseiam-se


principalmente na Biologia para, a partir da suposta constatação de que naturalmente
existem dois sexos distintos – homem/masculino e mulher/feminino –, combater a base
cultural dos estudos de gênero.

Além das críticas ao conceito de gênero, o documento aborda ainda discussões como

o feminismo, neo-marxismo, natureza/cultura, biológico/social, desconstrução da sociedade,


família, religião, saúde e direitos sexuais/reprodutivos. Nestas discussões, destacam-se
argumentos como: o feminismo, associado à luta de classes, não está preocupado com a
situação da mulher, mas na separação do homem e da família; o debate de gênero abre espaço
para uma agenda homossexual, lésbica, bissexual e transgênero ou ainda, o perigo do
feminismo do gênero que ao se difundir nos países desenvolvidos, pode afetar o mundo

inteiro.

Esse texto, embora tivesse a intenção de facilitar as atividades pastorais dos bispos

do Peru, teve grande relevância por colocar gênero em pauta e abrir espaço para que outros
documentos e proposições tanto da Igreja Católica como de outros âmbitos assumissem a
discussão da ideologia de gênero como um perigo para a sociedade.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 81


Outro documento que deve ser considerado na discussão sobre a gênese do uso da
expressão ideologia de gênero é a “Carta aos bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do

homem e a mulher na Igreja e no mundo” de maio de 2004, destinada a Congregação para


a Doutrina da Fé2. Este documento traz como problemática as novas abordagens para o
tema mulher, tendo como ponto principal a participação/colaboração do homem e da
mulher na igreja e como destaque as virtudes das mulheres, os valores femininos para a
sociedade e para a igreja.

Embora o texto busque historicizar o papel da mulher e do homem nos livros da

Bíblia e discuta a colaboração entre ambos, apresenta maior destaque para o papel da mulher,
salientando que ela deve aceitar sua missão: uma vida com valores e de amor pelo outro.

Estes dois textos referenciados anteriormente se revelam paradigmáticos para as

discussões de ideologia de gênero, pois se o primeiro desvela o uso inicial do termo, o


segundo apresenta o papel social desejado para as mulheres, questões que ressurgem na

discussão de ideologia de gênero no PNE.

Todavia, deve-se enfatizar que foi a IV Conferência Mundial sobre a Mulher,


realizada em Pequim no ano de 1995, que suscitou a ampliação da difusão do termo gênero,

percebido como inovação (pela Conferência), mas também sendo taxado de ideológico (por
setores que se opunham ao seu uso).

O discurso de ideologia de gênero não se destacou em relação às discussões/estudos


de gênero que passaram a fazer parte de agendas públicas e ações governamentais que
paulatinamente vão assumindo compromissos com o enfrentamento das desigualdades de
gênero. Todavia, as ideias vinculadas à ideologia de gênero permaneceram vivas,
particularmente em determinados espaços religiosos.

A permanência dessa discussão pode ser exemplificada no livro Ideologia de Gênero:


neototalitarismo e a morte da família, de autoria de Jorge Scala e cujo lançamento, no Brasil
em 2012, teve o estímulo de setores da igreja católica. O livro apresenta gênero como

2A Congregação para a Doutrina da Fé tem a função de expandir os preceitos da fé católica no mundo.

82 Educação e Interseccionalidades
ideologia totalitária, uma teoria falsa e antinatural imposta por uma nova antropologia que
visa mudar a antropologia dos seres humanos, ou seja, as diferenças “naturais” entre homens

e mulheres, eliminar o casamento da sociedade e mudar pautas morais da sociedade


(SCALA, 2015).

Essa concepção de ideologia de gênero, adormecida por um tempo, ressurgiu no


período de tramitação do PNE e trouxe consequências para o enfrentamento de um grande

desafio educacional da atualidade: implementar o direito à educação para todos e todas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O discurso da ideologia de gênero passou a ser mais difundido no Brasil a partir da


tramitação do PNE 2014-2024. Na ocasião, a inserção da promoção da igualdade de gênero

e de orientação sexual dentre as diretrizes do Plano teve grande resistência e apresentou


como principal argumento contrário a associação dessa diretriz ao termo ideologia de gênero

e seus supostos riscos para a moral e a família.

A divulgação de reportagens em sítios da internet evidenciou a força, a aceitação e


adesão ao discurso da ideologia de gênero por parte de setores mais conservadores da igreja

e que contribuíram para a propagação de postagens que desvalorizavam os estudos de gênero


e sua potencialidade para a superação das desigualdades na escola.

A gênese do discurso da ideologia de gênero pode ser associada a uma reação


contrária, por parte de grupos religiosos, ao desenvolvimento e consolidação de estudos

acadêmicos, movimentos sociais reivindicatórios e políticas públicas voltadas à igualdade de


gênero.

O discurso da ideologia de gênero buscou contrapor ao caráter social das relações de


gênero e a construção social das desigualdades sociais. A partir de uma base determinista e

essencialista do ser humano, os grupos que reforçam as consequências negativas da discussão


de gênero nas escolas, enfatizam uma suposta natureza fixa e imutável do que é ser homem
ou ser mulher e rejeitam as discussões sobre diversidade sexual, identidades de gênero e

feminismos.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 83


Desde a década de 1990, a negação/não aceitação da homossexualidade, de alterações
na estrutura das famílias e do feminismo embasou a discussão contrária ao que foi chamado

de ideologia de gênero. Esses mesmos argumentos puderam ser percebidos na principal base
de contestação do texto do PNE 2014-2014 que previa a promoção da igualdade de gênero
e orientação sexual.

Embora possa ser considerada como forma de leitura do mundo, deve-se observar

que tais ideias, ao serem inseridas no espaço público como forma de argumentação para as
discussões de políticas públicas, ferem o princípio da laicidade do estado e não contribuem
para o enfrentamento das desigualdades sociais e de gênero, auxiliando sobretudo para
obstaculizar e retardar a efetivação do direito à educação no pais, particularmente no que se
refere ao acesso e à permanência de todos e todas na escola.

Assim, destaca-se que discussões sobre o direito à educação, efetivado a partir de


políticas públicas, devem continuar considerando a necessidade da promoção da igualdade

de gênero na sociedade, seja para concretizar uma educação de qualidade, seja para efetivar a
igualdade que reconheça as diferenças dos seres humanos, o que contribuirá para finalizar as
tristes estatísticas sobre violência contra a mulher e os lamentáveis casos de
homo/lesbo/trans/bifobia. Considera-se finalmente que a escola deve assumir a construção
da igualdade de gênero, pois assim poderá contribuir para cessar a produção e a reprodução
de desigualdades sociais e das violências construídas a partir das diferenças humanas.

REFERÊNCIAS

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gênero e homossexualismo. Disponível em: <http://www.acidigital.com/noticias/senado
vota-esta-semana-projetos-de-lei-que-favorecem-ideologia-de-genero-e
homossexualismo-48164/> Acesso em: 26/07/2017.

ARQUIDIOCESE DO RIO. PNE: Câmara vota Plano que contém ideologia de gênero.
Disponível em: <http://arqrio.org/noticias/detalhes/2031/pne-camara-vota-plano-que
contem-ideologia-de-genero> Acesso em: 26/07/2017.

BRASIL, Lei nº 13.005, DE 25 DE JUNHO DE 2014. Aprova o Plano Nacional de


Educação - PNE e dá outras providências. Diário Oficial da União - Seção 1 - Edição
Extra – 26 de junho de 2014.

84 Educação e Interseccionalidades
COM SHALOM. Ideologia do Gênero: ciência nega categoricamente que o gênero seja
“construção social”. Disponível em:<http://blog.comshalom.org/carmadelio/30773
ideologia-do-genero-ciencia-nega-categoricamente-que-o-genero-seja-construcao-socia>l.
Acesso em: 26/07/2017.

CONFERÊNCIA EPISCOPAL PERUANA. A IDEOLOGIA DO GÊNERO: seus


perigos e alcances. Tradução: Apostolado VeritatisSplendor - C.D.T. junho de 2008.
Disponível em:
ConferenciaEpiscopalPeruana.pdf. Acesso: 23 de setembro de 2016.Gender Ideology in
http://img.cancaonova.com/noticias/pdf/281960_IdeologiaDeGenero_PerigosEAlcances_

PNE andfundamentalism in education.

COSTA, Claudia de Lima. O tráfico de gênero. In:Cadernos Pagu, 11, Campinas, p. 127
140, 1998. Disponível em:
<file:///C:/Users/USER/Downloads/cadpagu_1998_11_11_COSTA.pdf>. Acesso em: 14
de março de 2017.

GOSPEL MAIS. Marisa Lobo faz alerta sobre “ideologia de gênero” no Plano Nacional
de Educação.Disponível em:<http://noticias.gospelmais.com.br/marisa-lobo-alerta
ideologia-genero-plano-nacional-educacao-67075.html>.Acesso em: 26/07/2017.

IPCO. Loucura da ideologia de gênero: escola na Suécia proíbe que crianças sejam
tratadas como meninos e meninas. Disponível em: <http://ipco.org.br/ipco/loucura-da
ideologia-de-genero-escola-maternal-na-suecia-proibe-que-criancas-sejam-tratadas
como-meninos-e-meninas/#.V-UWJCErLIU>.Acesso em: 26/07/2017.

ONU. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher.


Pequim 1995. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/wp
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PESCE, Paolo. A ideologia sexualista proposta pela Organização Mundial da Saúde: a


Organização Mundial da Saúde pretende implementar a ideologia de gênero nas escolas e
negociar a moral na educação. In: ALETEIA, Disponível
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PORTAL DA FAMÍLIA. Ideologia de gênero: a ideologia contra Biologia. Disponível


em: <http://www.portaldafamilia.org/artigos/artigo916.shtml> Acesso em: 26/07/2017.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, Porto
Alegre, v.20, n.2, p.71-99, jul./dez., 1995.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 85


UOL. Vaticano se posiciona contra o feminismo e a ideologia de gênero. Disponível em:
<https://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2004/07/31/ult1766u4859.jhtm.> Acesso em:
26/07/2017.

86 Educação e Interseccionalidades
IDENTIDADE DE GÊNERO E
ORIENTAÇÃO SEXUAL NO CURRÍCULO:
fundamentos e ameaças de direitos LGBTI

Ingrid Viana Leão1 e William Glauber Teodoro Castanho2

A proposta considera a tensão na política nacional de educação e igualdade de gênero. Entre


tantas situações, problematiza a experiência da violência pela população LGBTI no Brasil.
Inicialmente será afirmado o que se compreende sobre estudos de gênero e conceitos para
uma visão de educação em direitos humanos. Em seguida, um levantamento das ameaças
para chegar às questões sobre a Base Nacional Comum Curricular, documento que suprimiu
identidade de gênero e orientação sexual do texto para debate público. Não se pode negar
um contexto maior sobre violência, desigualdade de gênero e políticas públicas. Para tanto,
serão consideradas as ameaças a um currículo escolar plural e comprometido com a afirmação
de direitos da população LGBTI, bem como o que fundamenta a questão sob a perspectiva
de direitos. A polêmica não se restringe à argumentação teórica e alcança o cotidiano escolar
com procedimentos de constrangimentos aos profissionais de educação. O texto analisará
tais ações e suas políticas discriminatórias.

Palavras-chave: Identidade de Gênero; Orientação Sexual; População LGBTI; Educação;


Currículo.

GÊNERO, IDENTIDADE DE GÊNERO E ORIENTAÇÃO SEXUAL

Ideologia de gênero versus identidade de gênero

A adoção do termo “ideologia de gênero” em detrimento de identidade de gênero e


orientação sexual nos debates acerca de políticas públicas quando das recentes discussões nas
políticas educacionais – motivação para escrever este texto – tem justamente, por má-fé ou

desconhecimento conceitual dos debatedores, o objetivo de embaralhar o entendimento


sobre promoção, efetivação e proteção de direitos humanos no ambiente escolar. É difícil

1Doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP, onde também concluiu Mestrado em
Direitos Humanos. É advogada feminista, educadora, integra a rede CLADEM – Comitê da América Latina
e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres.
2 Doutor em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP, onde também concluiu Mestrado em

Direitos Humanos com pesquisa sobre direitos LGBT. É jornalista e graduando em Direito pela UniFMU.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 87


ouvir tal expressão e ao mesmo tempo conhecer os estudos de gênero e os objetivos das
políticas públicas brasileiras a partir do campo educacional e ver coesão no argumento, isto
com base em duas premissas conceituais.

Primeiramente, reconhecer orientação sexual e identidade de gênero como

marcadores de desigualdades sociais não é “apologia”3 ou campanha, encabeçada pela


comunidade LGBTI, para uma suposta supressão da heterossexualidade, uma vez que a
sexualidade, em sentido mais amplo, incumbe-se de buscar e de dar respostas às mais variadas
expressões de desejos e comportamentos humanos. Em segundo lugar, almeja-se que o
Estado articule não a promoção de uma determinada forma de expressão sexual, mas
reafirme, com base nos princípios constitucionais vigentes, a dignidade da pessoa humana,

a liberdade, a igualdade e o pluralismo.

A noção de campanha contra a heterossexualidade ganhou força em 2011 quando


um programa contra a homofobia foi classificado como “kit gay”4. O episódio foi um marco

do retrocesso na política educacional, uma vez que a errônea adjetivação repercutiu na


suspensão dos materiais educativos (vídeos e livro-texto) e contou com a declaração da
Presidenta da República de que seu governo não faria “propaganda de opção sexual” nem
iria “intervir na vida privada”5 quando aquele programa já passara por diferentes instâncias

da administração pública e do planejamento no Ministério da Educação. Neste caso, o uso


da expressão propaganda remete à noção de que o direito ao reconhecimento se configura
como a imposição de uma experiência aos demais e de que ainda seria possível “vender”

3 O uso da palavra apologia é habitual na divulgação de práticas criminosas; “fazer, publicamente, apologia de
fato criminoso ou de autor de crime”, diz o Código Penal em seu artigo 287. No entanto, a homossexualidade
não é crime ou contravenção penal no Brasil tal qual em alguns países. Ao contrário, existe uma proposta de
criminalização da homofobia (SUG5/2016), debate que se iniciou com o PL 122/2001 e convive com iniciativas
legislativas locais. Com isso, o uso desse termo revela bastante sobre as concepções de quem o usa, diz respeito
à noção de proibido, mesmo que metaforicamente, o que de fato só seria assim compreendido do ponto de
vista moral, recaindo em uma redundância do próprio movimento que se configura como ideológico, embora
repudie as ideologias na escola.
4 Para conhecer o Kit Escola Sem Homofobia ver NOVA ESCOLA. Uma análise do caderno Escola sem

Homofobia. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/1579/uma-analise-do-caderno-escola-sem


homofobia>. Acesso em 24.07.2017.
5Ver G1. Governo não fará ‘propaganda de opção sexual’, diz Dilma sobre kit, em 26.05.2011, Disponível em:

<http://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/05/governo-nao-fara-propaganda-de-opcao-sexual-diz-dilma
sobre-kit.html>. Acesso em 24.07.2017.

88 Educação e Interseccionalidades
qualquer orientação sexual a terceiros. O próprio termo “opção sexual” se coaduna com a
noção de venda de ideias por uns e adesão por outros.

Para superar esse erro no trato de questão tão importante para os direitos humanos,
os conceitos de identidade de gênero e orientação sexual são imprescindíveis. Estes são
conceitos amplos e abertos que abarcam tanto as expressões de gênero e sexuais da população

heterossexual como da homossexual – logo, mulher e homem, na concepção geral do termo,


continuarão a se afirmar como pessoas que são sujeitos de direitos. Gênero, porém, refere
se à identidade assumida por um indivíduo perante si e a sociedade, que pode se transfigurar
em marcador de preconceito e discriminação em razão da heteronormatividade e da

heterossexualidade compulsória. Gênero – tanto feminino quanto masculino – significa a


forma identitária de um indivíduo para posicionar os contornos de seu corpo diante da
sociedade. Desta forma, questões biológicas, morais ou religiosas não são a chave do

reconhecimento dessas pessoas. Nesse conceito estão cisgeneridade, travestilidade,


transexualidade e transgeneridade6. Por outro lado, a orientação sexual estabelece o
“objeto”/sujeito de desejo sexual: heterossexualidade ou homossexualidade; o
“objeto”/sujeito de desejo sexual se projeta em um indivíduo de mesmo sexo ou sexo
diferente. Esses conceitos não estão restritos ao debate acadêmico, estão compreendidos em
base jurídica de soft low tal qual são os princípios sobre a aplicação da legislação internacional
de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero - Princípios de
Yogyakarta – parâmetros para a ação estatal (2006).

A presença de indivíduos – meninas e meninos ou mulheres e homens – que


transitam entre os gêneros e se expressam diversamente da maioria (cisgênera e

heterossexual) desperta atenção na escola, na rua ou na família. Entender essas diferenças


não interessa apenas aos discentes, importa para as pessoas LGBTI que também estão no

quadro de profissionais da educação ou àquelas que são mães, pais, irmãos daqueles que

6 Os estudos contemporâneos sobre gênero e sexualidade conceituam a cisgeneridade. O prefixo “cis”, de


origem latina, significa “igual” e acrescido o sufixo “gênero” forma o neologismo “cisgênero”. Cisgênero é todo
o indivíduo cuja identidade de gênero corresponde ao seu sexo biológico, seja ela/ele heterossexual, seja ela/ele
homossexual. Dessa forma, transgêneros são aquelas e aqueles indivíduos que particular e/ou socialmente
transitam entre os dois gêneros – dragqueens e drag kings, por exemplo. Travestis adotam o gênero diverso ao
de seu sexo de nascimento. Transexuais não correspondem à expectativa do sexo biológico de nascimento e
identificam-se como sujeitos do sexo oposto.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 89


frequentam o ambiente escolar. Diga-se entender para além de uma abordagem em saúde,
logo também despatologizante (ADRIAN, 2010).

Por que considerar identidade de gênero e orientação sexual na escola?

Ainda sobre os estudos de gênero7, Linda Nicholson (2000, p. 4) avançou nos


apontamentos sobre essa categoria por imprimir rupturas com (i) o determinismo biológico

e (ii) o fundacionalismo biológico. O determinismo biológico consiste na fixação da


identidade de gênero e da orientação sexual única e exclusivamente no sexo biológico – essa
visão consiste em afirmar o sujeito atrelado, desde o seu nascimento (ou até mesmo durante

a gestação), à sua genitália, uma vagina ou um pênis, para se estruturar social e sexualmente
sua identidade de gênero (feminina ou masculina) e sua orientação sexual (heterossexual).

O fundacionalismo biológico, ao tentar expandir as possibilidades sobre a sexualidade, atém


se ainda à biologia para diferenciar expressões sexuais marcadas por elementos sociais: sexo
trata-se de anatomia (em outras palavras, fêmea e macho), enquanto gênero responde às
experiências sociais expressas pelo corpo: masculino ou feminino; desse modo, sexo, para o

fundacionalismo biológico, é um dado da natureza e gênero, um construto social.

O debate sobre considerar ou não orientação sexual e identidade de gênero na política


educacional é igual a debater se uma parte da população merece ou não ser titular de direitos
pelo que é. É ignorar que “o sujeito é uma questão crucial para a política” (BUTLER, 2010,
p.19). Diante de identidade de gênero e orientações sexuais negadas e afirmadas na
sociedade, Judith Butler acentua que: “o poder jurídico ‘produz’ inevitavelmente o que alega
representar; consequentemente, a política tem de se preocupar com essa função dual do

poder: jurídica e produtiva” (ibidem, p. 19). Deste modo, a população LGBTI reivindica
ações específicas que, sem minorar os direitos de pessoas héteros-cis-normativas, garantam

lhe, após mobilizações coletivas, promoção, efetivação e proteção de direitos que integram a
dignidade de LGBTI.

As estruturas jurídicas da linguagem e da política constituem o campo


contemporâneo do poder; (...) E a tarefa é justamente formular, no interior

7Ver CARVALHO, M. O Conceito de gênero: uma leitura com base nos trabalhos do GT Sociologia da
Educação da ANPED (1999-2009). Ver. Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, v.16, n. 46, jan-abr, 2011.

90 Educação e Interseccionalidades
dessa estrutura constituída, uma crítica às categorias de identidade que as
estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam
(ibidem, p. 22).

Considerar, portanto, “identidade de gênero e orientação sexual” nas ações e nos


programas educacionais significa propiciar uma abordagem justamente contra estruturas que
naturalizam e imobilizam as expressões humanas, significa a ampliação dos horizontes de

discussão acerca da sexualidade cuja consequência é uma vida sem violência do ponto de
vista individual e uma sociedade inclusiva do ponto de vista coletivo. Esta é a noção que está
na arena dos deveres estatais, não se trata de moderna noção teórica, por assim dizer.

Quem é contrário a essa abordagem nega que, nessa arena ampliada de


problematização, o desafio é o rompimento com a heterossexualidade compulsória e afirma

que há uma “perseguição” à heterossexualidade. Porém, Butler (2010, p.23) argumenta, na


esteira de Nicholson (2000), que tanto sexo quanto gênero são construtos sociais, soterrando

o fundacionalismo biológico. Gênero, assim, é um “artifício flutuante” que desafia


parâmetros tradicionais da sociedade que, ao reafirmá-lo como fixo e rígido, assegura

privilégios de um lado e violência de outro. Contra essa noção estática, Butler discorre sobre
o “binário, unitário e além” (2010, p. 33) e critica “gêneros inteligíveis” que buscam
estabelecer “relações de coerência e continuidade” em relação a expressões (de gênero e
sexuais) que, por sua vez, são múltiplas (ibidem, p. 38). Por isso, como sexo e gênero são
construtos sociais, a autora afirma que o gênero é performativo, uma cópia mal-acabada de
uma realidade imposta por uma matriz heterossexual:

A replicação de construtos heterossexuais em estruturas não heterossexuais


salienta o status cabalmente construído do assim chamado heterossexual
original. Assim, o gay é para o hétero não o que uma cópia é para o original,
mas, em vez disso, o que uma cópia é para uma cópia. A repetição imitativa
do “original” revela que o original nada mais é do que uma paródia da ideia
do natural e do original (ibidem, p. 57).

A resistência a um original naturalizado e parodiado implica negar um caráter


ontológico da sexualidade (ibidem, p. 195) a fim de afastar preconceitos e discriminações
contra aquelas e aqueles sujeitos que expressam identidade de gênero e orientação sexual

diversas daquelas concebidas e socialmente manifestadas como originais e naturais. Neste

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 91


sentido, Guacira Lopes Louro (2000, p. 2) afasta a tentativa de “fixar uma identidade,
afirmando que o que somos agora é o que, na verdade, sempre fomos”. Para ela, quando se
trata de gênero e sexo, tem-se que “a sexualidade é ‘aprendida’, ou melhor, é construída, ao
longo de toda a vida e de muitos modos, por todos os sujeitos” (ibidem, p. 2). A escola, por
excelência, é o espaço de aprendizagem, ou melhor, como diz Louro, de construção. Negar

identidade de gênero e orientação sexual neste ambiente de ensino/aprendizagem implica o


tolhimento da multiplicidade dos sujeitos.

A sexualidade, neste bojo que congrega identidade de gênero e orientação sexual,


“não é apenas uma questão pessoal, mas é social e política” (ibidem, p. 2). Deste modo, uma
sociedade democrática exige uma escola apartada da discriminação, do preconceito e da
violência. “Os grupos sociais que ocupam as posições centrais, ‘normais’ (de gênero, de

sexualidade, de raça, de classe, de religião etc.), têm possibilidade não apenas de representar
a si mesmos, mas também de representar os outros” (ibidem, p. 6).

A escola, obviamente, é uma arena, enquanto aparelho ideológico do Estado8, porém


atribuir às relações sociais aqui mencionadas um caráter doutrinador é fugir da noção de
escola democrática – isto é, um lugar que problematiza essas expressões sexuais e sociais da

diversidade humana.

Travestilidade, transexualidade e violência de gênero

Diante do binarismo de gênero que determina a meninas e meninos as posições


centrais forjadas pela heteronormatividade e heterossexualidade compulsória, travestis e
transexuais, no ambiente escolar, enfrentam grandes desafios no sentido de que “as coisas se
complicam ainda mais para aqueles e aquelas que se percebem com interesses ou desejos

distintos da norma heterossexual” (ibidem, p. 15). A homofobia, assim como a lesbofobia,


a transfobia, ou, de um modo geral, a LGBTfobia9, resulta da produção da

8 Segundo Althusser (1974, p. 21), a escola, como um aparelho ideológico de Estado, é o ambiente que “ensina”
técnicas e conhecimentos para assegurar a reprodução do modo de produção, como também “ensina” regras
dos bons costumes: “as regras da moral, a consciência cívica e profissional”. Em razão desses ensinamentos,
Althusser afirma que o aparelho de Estado número 1, “e, portanto, dominante, é o aparelho escolar”.
9 Ver Balanço Anual da Ouvidoria de Direitos Humanos, da SDH, Disponível em:
<http://www.sdh.gov.br/noticias/2016/janeiro/CARTILHADIGITALBALANODODISQUE1002015.pdf>.
Acesso em 23.07.2017.

92 Educação e Interseccionalidades
heterossexualidade acompanhada pela negação da homossexualidade – “esse sentimento,
experimentado por mulheres e homens, parece ser mais fortemente incutido na produção

da identidade masculina” (ibidem, p. 15).

Com isto, quem se expressa com identidade feminina está mais vulnerável a
experiências de violência do que outros sujeitos LGBTI, como se sabe da própria experiência

das travestis10. Entende-se tal escala da violência de gênero porque a “travesti subverte
inteiramente a distinção entre os espaços psíquicos interno e externo e zomba efetivamente

do modelo expressivo do gênero e da ideia de uma verdadeira identidade de gênero”


(BUTLER, 2010, p. 196). Portanto, “a noção de uma identidade original ou primária do
gênero é frequentemente parodiada nas práticas culturais do travestismo e na estilização das

identidades butch/femme11” (ibidem, p. 196). Butler explica que “a performance da drag brinca
com a distinção entre a anatomia performista e o gênero que está sendo performado”

(ibidem, p. 196).

No cotidiano escolar um problema comum sobre a compreensão da diferença é o uso

do banheiro por travestis e o nome social, sem contar o bullying12 transfóbico. Nesse

10
O Relatório 2016 – Assassinatos de LGBT no Brasil, do Grupo Gay da Bahia, aponta o registro de 343
homicídios de LGBTI no País em 2016. De acordo com o documento, a cada 25 horas um LGBT é assassinado
no Brasil vítima de LGBTfobia. Segundo o relatório, do total de vítimas, 173 eram gays (50%), 144 (42%)
trans (travestis e transexuais), 10 lésbicas (3%), 4 bissexuais (1%) e 12 heterossexuais, como os amantes de
transexuais (“T-lovers”). O GGB afirma também que “as travestis e transexuais são as mais vitimizadas: o risco
de uma “trans” ser assassinada é 14 vezes maior do que um gay, e, se compararmos com os Estados Unidos, as
144 travestis brasileiras assassinadas em 2016 face às 21 trans americanas, as brasileiras têm 9 vezes mais chance
de morte violenta do que as trans americanas”. Disponível em:
<https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/01/relatc3b3rio-2016-ps.pdf>. Acesso em 23.07.2017.
11Butch e femme são expressões da língua inglesa que designam identidades lésbicas. Butch é a mulher lésbica

que, na expressão individual e social, apresenta-se com trejeitos e usa vestimenta neutra e/ou masculina. Femme
é a mulher lésbica que corresponde à identidade de gênero (social) feminina. São expressões pejorativas, assim
como podem ser identificadas na língua portuguesa por meio de “caminhoneira” ou “bicha”, para se referir a
um homossexual feminino ou masculino, entre outros termos, que são apreendidas e subvertidas em sentido
linguístico no meio da comunidade LGBT e ressignificadas.
12“É possível que bullys se valham
de todo um conhecimento social de desvantagens que um(a) colega possa
ter, não apenas para escolhê-lo(a) como vítima, mas também para se manter insuspeito(a) se for acusado de
abuso. Assim, são as desigualdades manifestadas na vida social que interferem nas interações escolares,
legitimam ou deslegitimam crianças e adolescentes no contexto escolar e fazem com que alguns indivíduos
vitimizem outros com certa possibilidade de não serem pegos(as) desde que não extrapolem limites toleráveis
(como aqueles enquadrados nos discursos do ‘foi sem querer’ ou ‘foi apenas uma brincadeira’”. (VENCATO,
2014, p.44-45).

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 93


sentido, Elizabeth Franco Cruz (2011) pensa na questão: travestis e transexuais, então,

podem (e devem) usar qual banheiro?

A questão do banheiro nas escolas fica candente porque esta matriz se


pretende universal, contudo esta universalidade escorre pelos dedos diante da
pluralidade de configurações que a relação entre estes elementos pode
desenhar. A escola fica impactada diante daquilo que lhe escapa pelas mãos e
o que vai acontecer em cada cotidiano dependerá de muitos fatores – das
políticas públicas ao modo como se estabelecem as relações de saber-poder
no microcosmo da sala de aula (grifos nossos) (ibidem, p. 196).

É possível ignorar as relações violentas na escola? É difícil, do ponto de vista


humanístico, ao perceber as consequências na vida pessoal de cada estudante (CRUZ, 2011)
– entre essas a mais marcante é o abandono escolar que impacta o perfil socioeconômico da
população travesti13 – e não é possível do ponto de vista dos direitos humanos – um
compromisso estatal. Essas violências se maximizam quando essas expressões de gênero estão
em um corpo negro14.

CURRÍCULO ESCOLAR: DEBATE ATUAL E TENSÕES ANTIGAS

Os planos de educação no Brasil (2014-2015)

Se vida sem violência para toda cidadã e todo cidadão parece ser um valor com algum
consenso para a cidadania brasileira, o mesmo não se percebe quando uma política pública,
por ventura, assume as razões motivadoras de formas de discriminação e violência. Um marco

dessa tensão são as políticas educacionais, para as quais já existe um movimento de


reconhecimento de razões de abandono e evasão escolar de pessoas alvo de violência na escola
ou fora dela ou ainda o importante papel que o currículo escolar assume para a cidadania

(BRASIL, 2015; AÇÃO EDUCATIVA, 2013).

13
Ver O ESTADO DE S. PAULO: Transgêneros, transexuais e travestis: os desafios para a inclusão do grupo no
mercado de trabalho. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/blogs/ecoando/transgenero-transexual
travesti-os-desafios-para-a-inclusao-do-grupo-no-mercado-de-trabalho/> Acesso em 26.07.2017.
14Ver CIDH-OEA. Violência contra pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexo nas Américas, 12 de

novembro de 2015, OEA/Ser.L/V/II. Doc.36/15 Rer.1.

94 Educação e Interseccionalidades
Esse dissenso foi explícito no processo de construção do Plano Nacional de Educação

e o que era considerada uma oportunidade para definir novas metas para a base da ação
estatal a favor do direito à educação passou a ser a janela de um novo tabu: falar de gênero
na escola – a palavra gênero e os sentidos de igualdade de gênero, orientação sexual e

identidade de gênero. Noções desinformadas sobre esses conceitos vão de barreiras para um
currículo favorável à igualdade até a criminalização de práticas escolares. As disputas sobre o

conteúdo do PNE afirmaram a falsa noção de “ideologia de gênero” na escola, que teria por
intuito “ensinar às crianças de que não existe mais homem e mulher”, alegando que “certos
grupos desejam impor suas verdades a nossas crianças e tomar o lugar das famílias no lugar

da educação de nossos filhos”. Tal posicionamento não se restringiu ao ano de 2014 quando
foi encaminhada a votação do texto do PNE.

O questionamento sobre gênero no currículo surgiu no item sobre superação das


desigualdades, com a tentativa de explicitar as diferenças para além da palavra direitos
humanos, bastante generalista para a complexidade das relações interpessoais na escola ou
fora dela. Isto é, prevaleceu uma recusa em delimitar as bases discriminatórias a serem
enfrentadas pela educação, com a adoção da expressão “todas as formas de discriminação” e

o início de uma campanha que banisse qualquer expressão com a palavra gênero e
principalmente orientação sexual – “são diretrizes do PNE a superação das desigualdades

educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de


orientação sexual”. Essas supressões atingiram também as relações raciais, o que contraria
até o atual estágio da política nacional de direitos humanos no Brasil, que desde 2003
organizou a estrutura gerenciadora das políticas públicas em pastas específicas para promoção

da igualdade racial e políticas para as mulheres. Isto é, a maturidade democrática e a


formulação de políticas de direitos humanos caminhavam na direção da especialização do
conteúdo dos direitos humanos dos sujeitos excluídos de uma cidadania ativa.

Para a organização da ação governamental, depois da lei federal, os legislativos

estaduais e os municipais também debatem e aprovam seus planos de educação. A exclusão


de uma formulação genérica no PNE não se confunde com a sua proibição até porque não
cabe a ele essa competência, no entanto, quando a questão chegou às casas legislativas
municipais alguns planos adotaram uma linha proibicionista, sob o fundamento de que a

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 95


exclusão de gênero do texto no PNE era a sua proibição. Com isso, hoje as escolas vivenciam

duas tensões quanto aos planos: (i) o uso do argumento de que a exclusão da palavra gênero
deve ser compreendida como uma blindagem contra o debate de gênero. A consequência
dessa linha interpretativa não revoga toda a normativa de amparo ao debate de gênero na
escola, porém constrange professores e diretores na sua prática cotidiana15; (ii) o convívio
com planos municipais que foram além da sua atribuição constitucional e se constituíram
em leis inconstitucionais ao afirmar conteúdo proibido, e assim são objeto de ação judicial
local e de recentes ações no Supremo.

Notificações extrajudiciais, projetos de lei e movimento ‘Escola sem Partido’

Á medida em que há retirada da palavra gênero do PNE e não proíbe o debate sobre
questões de gênero na escola, surgiu o incentivo de que a família poderia enviar uma
notificação extrajudicial à direção da escola, de acordo com um modelo a ser divulgado pelo
movimento autodenominado “Escola sem Partido”. A situação chegou à Procuradoria

Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) que publicou nota técnica no sentido de contestar
tanto a atribuição da família sobre a educação formal como a ausência de fundamento

jurídico do documento, e acrescentou:

O modelo de notificação em análise incorre em inconstitucional


discriminação ao referir-se de forma preconceituosa à homossexualidade,
bissexualidade e transexualidade como critério para a diferenciação entre o
que deve e o que não deve ser falado no ambiente escolar. A censura a
assuntos relacionados à orientação sexual e identidade de gênero nas
escolas constitui também grave obstáculo ao direito fundamental de acesso
e permanência de crianças e adolescentes na escola, pois contribui para um
ambiente hostil no qual as diferenças não são respeitadas, dificultando o
aprendizado e o processo de socialização. (grifo no original, BRASIL, 2017,
p. 31)

Esse parecer sobre notificações às escolas vem para reforçar o que já se sabe: elas não
têm valor jurídico com força para limitar a atividade escolar. Com isto, outra movimentação
com o mesmo fim das notificações se expande: projetos de lei que proíbem gênero na escola

15
Ver episódio em São Paulo em <http://amorimlima.org.br/2016/10/carta-em-reposta-a-notificacao-contra
a-semana-de-genero/>. Acesso em 03.12.2016.

96 Educação e Interseccionalidades
sob a argumentação de que seja doutrinação ideológica. Tais projetos continuam a

desenvolver, em outras frentes legislativas, o mesmo argumento presente nos debates dos
planos de educação, porém com a tentativa de formalizar uma criminalização sem
precedentes contra a comunidade escolar. A seriedade da questão recebeu pronunciamento

da ONU cuja reação dos protagonistas do projeto “Escola sem Partido”, ou como é
conhecido “Lei da Mordaça”16, foi de deslegitimar a expertise de três relatorias temáticas da

ONU – direito à educação, direito à liberdade de expressão e direito à liberdade religiosa.17


Em síntese, a ONU afirma serem legítimos os objetivos de proteger os estudantes de

doutrinação quando associado ao direito de liberdade de expressão, apesar disso, os


instrumentos propostos na lei colocam em risco “o desenvolvimento do pensamento crítico
entre os estudantes e a capacidade de refletir, concordar ou discordar do que foi exposto nas
aulas” (ONU, 2017).

Base Nacional Comum Curricular e meias palavras sobre dignidade LGBTI

Após o protagonismo do legislativo no debate sobre planos de educação e em

projetos de leis contra o pluralismo na educação, é a vez do Executivo federal assumir uma
posição de destaque ao ignorar as desigualdades com base em diversidade. O recuo agora foi
na articulação do conteúdo educacional a partir da Base Nacional Comum Curricular

(BNCC) com a supressão das palavras que remetem às questões de gênero na escola,
explicitamente orientação sexual e identidade de gênero18. Longe deste instrumento gerar

a melhor das expectativas quanto ao modelo educacional que se quer19, ele é o terreno de

16
Projeto de Lei 867/2015 na Câmara e Projeto de Lei 193/2016.
17
Ver Relatório Igualdade Gênero na Educação e Liberdade de Expressão. Disponível em:
<http://generoeeducacao.org.br/wp-content/uploads/2016/12/ebook_Brasil_RPU.pdf>. Acesso em
27.07.2017.
18Ver NOVA ESCOLA. Retirada dos termos “gênero” e “orientação sexual” da Base é criticada na ONU, em
30.05.2017. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/4985/retirada-dos-termos-genero-e
orientacao-sexual-da-base-e-criticada-na-onu>. Acesso em 27.07.2017; O GLOBO. Bancada religiosa pediu a
Temer retirada de questão de gênero da Base. Em 07.04.2017. Disponível
em:<https://m.oglobo.globo.com/sociedade/educacao/bancada-religiosa-pediu-temer-retirada-de-questao
de-genero-da-base-21179389>. Acesso em 26.07.2017.
19 Ver XIMENES, S; CÁSSIO, F. Uma Base em falso. Disponível
em:<https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2017/Uma-Base-em-falso>. Acesso em 26.07.2017.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 97


acordar competências, habilidades e conhecimentos a serem garantidos pela educação
formal, tal qual estabelece a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n.º 9.394/96). Isto
é, trata-se de uma etapa da organização dos serviços educacionais, com caráter propositivo

de comprometimento da política educacional nacional.

O recuo não significa proibição ou criminalização do debate e enfrentamento das


discriminações com base em orientação sexual e identidade de gênero, mas enfraquece o
compromisso do Estado por não haver uma institucionalização: o agir da administração
pública se sustenta em linhas e palavras cheias. Bom dizer que a construção do documento
conta com consultas e debates, que, de acordo com as declarações governamentais, foram
satisfatórias até o momento. No entanto, vale dizer que o recuo está mais associado a
negociações político-partidárias, aos moldes feitos nos planos de educação, do que diálogo

democrático que paute no centro a cidadania das minorias como um ponto inegociável. É
oportuno mencionar que tanto a BNCC como os instrumentos de participação social do seu

conteúdo estão a serviço de uma realidade social e dos princípios que fundamentam o Estado
brasileiro, como a dignidade humana. É daí por diante que meias palavras reforçam práticas
cruéis com a população LGBTI.

DIREITOS HUMANOS LGBT: RESPOSTA À DISCRIMINAÇÃO


CONTRA A DIVERSIDADE

O termo LGBTI, para se referir a lésbicas, bissexuais, gays, travestis, transexuais e


intersexuais, reúne esse grupo de pessoas com vulnerabilidade de direitos e com

questionamentos sobre suas dignidades, mas sem explicar os pontos de tensão na agenda
por reivindicações por liberdade, igualdade e direitos humanos, especialmente quanto aos

direitos sexuais. Esse espaço com tantas letras20 converge para explicitar a diversidade de

20
O movimento LGBT no Brasil surge nos anos 1970 como movimento homossexual. Com o passar dos anos
e a ampliação da discussão acerca da comunidade, passa-se a adotar movimento GLS (gays, lésbicas e
simpatizantes) nos anos 1980 e 1990. Insuficiente para designar a luta identitária desta comunidade, a sigla é
recomposta em GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais) e, nos anos 2000, para aumentar a
visibilidade lésbica, adota-se LGBT, que, ainda em expansão, ganha a letra “I”, de intersexual.

98 Educação e Interseccionalidades
experiências no exercício da sexualidade e para questionar o ideal de sujeito universal –
modelo a ser seguido por todas as pessoas.

Na afirmação simbólica na nomenclatura LGBTI, orientação sexual e identidade de


gênero se apresentam como conceitos distantes da fundamentação jurídica e, por
conseguinte das políticas públicas, embora também façam parte da experiência de pessoas

que se reconhecem e se expressam como heterossexuais. Isto logo se compreende em razão


de orientação sexual e identidade de gênero atingirem direitos de uma população não hetero
hegemônica, como as poucas estatísticas que aferem essas desigualdades sociais já informam
sobre um cenário de desigualdades, até mesmo entre os próprios sujeitos com a identidade
LGBTI, como já afirmado neste texto.

No conjunto de experiências de exclusão é novidade assumir a prevenção da violência

a partir das políticas educacionais. Antes dos anos 2000, a vida da população LGBTI estava
atrelada ao debate das ações governamentais sobre a prevenção de DST/aids, com diálogo
restrito ao Ministério da Saúde, pelo menos até o programa Brasil sem Homofobia: Programa
de Combate à Violência e à Discriminação contra LGBT e de Promoção da Cidadania

Homossexual (2004). Nesse percurso, as principais conquistas LGBTI se destacam com foco
no reconhecimento21 e nos direitos civis, como o direito à união homoafetiva e adoção por
casais homoafetivos – direitos estes “consagrados” pelo Judiciário22. O viés dessas

reivindicações segue a centralidade do indivíduo “(seu prazer, sua alegria, sua felicidade)

21A virada da década de 1990 para os anos 2000 sedimenta a visibilidade LGBT no Brasil. A Associação
Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), por exemplo, criada em 31 de
janeiro de 1995, salta de 31 entidades fundadoras para 308 organizações afiliadas em 2016 e é considerada a
maior rede LGBT da América Latina. A Parada do Orgulho LGBT de São Paulo certamente é o maior feito
de massa do movimento LGBT ao aliar ativismo e festividade ao estilo de uma mobilização carnavalesca. A
primeira passeata, com cerca de dois mil participantes, foi realizada em 28 de junho de 1997, dois anos depois
da primeira edição de uma parada no Brasil, realizada no Rio de Janeiro.
22
O reconhecimento da união estável de pessoas do mesmo sexo no Brasil deu-se a partir de 5 de maio de
2011, quando o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, julgou procedentes a Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI/4.277), proposta pela Procuradoria-Geral da República, e a Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF/132), ajuizada pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro.
No mesmo ano, em 25 de outubro, em conformidade com a jurisprudência vinculante erga omnes do STF, o
Superior Tribunal de Justiça (STJ), corte máxima de direito infraconstitucional, autorizou o casamento civil
de duas lésbicas. Passados dois anos, em 14 de maio de 2013, sob a presidência do ministro Joaquim Barbosa,
o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que regula o funcionamento da Justiça brasileira, aprovou e editou a
Resolução 175 que veda todos os cartórios do País e o Ministério Público de recusar habilitação, celebração
ou conversão de união estável de pessoas do mesmo sexo em casamento civil.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 99


como único interessado” (SOUSA FILHO, 2009, p.71). Apesar dessa afirmação de família

diversa, o que por si já contraria setores sociais que tradicionalmente se colocam como o
padrão universal legítimo para casar, ter filhos ou circular pelos espaços públicos, tais direitos
não se traduziram em menos violência ou ainda que os direitos civis como a liberdade de
expressão, a integridade física e o direito à vida fossem mais respeitados a partir dessas
conquistas judiciais.

Ainda sobre as ações judiciais, a discriminação por identidade de gênero configura


como foco de processos judiciais ainda em análise pelo Supremo Tribunal Federal. Trata-se

do direito ao nome social sem condicionar à cirurgia de redesignação sexual (BENTO, 2009),
que também é objeto de uma lei que posiciona reivindicações do movimento trans no
legislativo – Lei João Nery (Lei n.º 5.002/2003).

É fato que não existe uma previsão legal que ampare atos discriminatórios contra
LGBTI, mas aqueles institutos disponíveis sobre igualdade entre mulheres e homens são

insuficientes quanto às diferenças entre esses sujeitos e ainda quanto aos marcadores de
diferenças, a serem considerados quando se pensa em violações de direitos humanos
(CRENSHAW, 2002; SANTOS, 2008). Neste sentido, tais marcadores sociais passam a
desafiar o direito e as políticas públicas comprometidas com a cidadania e a dignidade. A
educação é um campo-chave para essa abordagem. É essa a questão: violência e discriminação
com base em orientação sexual e identidade de gênero.

REFERÊNCIAS

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luz del examen del derecho comparado. In: ARILHA, M et alli. Transexualidade,
Travestilidade e Direito à saúde. São Paulo: Oficina Editorial, 2010, p. 9-74.

EDUCATIVA, AÇÃO; CARREIRA, D. Informe Brasil: Gênero e Educação. Ed. Rev.


São Paulo: Ação Educativa, 2013.

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. Tradução: Joaquim José


de Moura Ramos. Lisboa: Editorial Presença e Martins Fontes, 1974.

100 Educação e Interseccionalidades


BENTO, Berenice. A diferença que faz a diferença: corpo e subjetividade na
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BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão de identidade. Tradução:


Renato Aguiar. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,


Diversidade e Inclusão. Diretoria de Políticas de Educação em Direitos Humanos e
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BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Nota
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102 Educação e Interseccionalidades


DA IDEOLOGIA DE GÊNERO À FAMÍLIA
HETERONORMATIVA:
Uma análise dos artigos 3º e 4º do Plano Municipal
de Educação de Curitiba

Amanda da Silva1, Maria Rita de Assis César2 e


Nayara Silveira Bernardes de Assis3

Considerando o momento político brasileiro atual e o forte enfrentamento aos temas de


gênero e sexualidade nos planos nacional, estaduais e municipais de educação, este artigo
propõe-se a analisar as emendas feitas ao projeto de lei que deu origem ao Plano Municipal
de Educação de Curitiba, buscando compreender como um discurso biológico serviu de
suporte para justificar as ações de retirada dos termos ligados à diversidade dos planos
educacionais, fazendo com que uma norma heterossexual, fosse, sempre, reiterada. Em vista
disso, surge o problema central dessa pesquisa: Quais foram as condições que possibilitaram
que um modelo de família heteronormativa fosse incorporado ao texto da lei e se constituísse
como argumento central para retirada dos termos ligados à diversidade dos Planos de
Educação? Como uma ideia de valores morais da família passa a caminhar lado a lado com a
educação? Assim, a partir de uma teorização pós-estruturalista, ancorada principalmente em
Michel Foucault e suas estudiosas contemporâneas, este artigo propõe-se a pensar a
sexualidade do ponto de vista político, percebendo o impacto que o que ficou conhecido
como “ideologia de gênero” causa na educação.

Palavras chave: Ideologia de gênero; Pós-estruturalismo, Educação.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná da linha de


pesquisa Diversidade, Diferença e Desigualdade Social. Bacharel e Licenciada em Dança pela Universidade
Estadual do Paraná. Membro do Laboratório de Investigação em corpo, gênero e subjetividade na educação
(CNPq/UFPR). E-mail: amanda.bsv@hotmail.com.
2 Pró-reitora de Assuntos Estudantis da Universidade Federal do Paraná. Professora do quadro permanente

do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE/UFPR). Doutora em Educação pela Universidade


Estadual de Campinas. Coordenadora do Laboratório de Investigação em corpo, gênero e subjetividade na
educação (CNPq/UFPR). E-mail: mritacesar@yahoo.com.br.
3 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná da linha de

pesquisa Cultura, Escola e Ensino. Bacharel e Licenciada em Dança pela Universidade Estadual do Paraná. E
mail:nayara_bernardes@live.com

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 103


O CENÁRIO DOS PLANOS DE EDUCAÇÃO

Chegou o tempo de pensar sobre o sexo. Para alguns a sexualidade pode


parecer um tópico sem importância, um desvio frívolo de problemas mais
críticos como a pobreza, guerra, doença, racismo, fome ou aniquilação
nuclear. Mas é em tempos como esse, quando vivemos com a possibilidade
de destruição sem precedentes, que as pessoas são mais propensas a se
tornarem perigosamente malucas sobre a sexualidade. Conflitos
contemporâneos sobre valores sexuais e condutas eróticas têm muito em
comum com disputas religiosas de séculos anteriores. Eles passam a ter um
imenso peso simbólico. Disputas sobre o comportamento sexual muitas vezes
se tornam o veículo para deslocar ansiedades sociais, e descarregar a
concomitante intensidade emocional. Consequentemente, a sexualidade
deveria ser tratada com especial atenção em tempos de grande estresse social.
(RUBIN, 2003. p.01).

Em 1984, Gayle Rubin publicava “Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the
Politics of Sexuality” e já demonstrava que, em um contexto norte americano, a extrema

direita e o fundamentalismo religioso, muito bem articulados, promoveram inúmeras e


incansáveis batalhas contra os direitos gays, a educação sexual, o aborto e o currículo escolar.
Esses conflitos deixaram marcas na forma de leis e decretos e modificaram a dinâmica social,
fazendo com que a as maneiras de se viver a sexualidade fossem diretamente afetadas. Era
1984, mas não poderia deixar de ser mais atual. Ao descrever os diversos ataques que a

comunidade LGBT sofreu no final do século XIX e no século XX, Gayle Rubin faz uma
espécie de previsão do que aconteceria no cenário político-educacional brasileiro no período

de construção do Plano Nacional de Educação (PNE) de 20144.

Como previsto na Lei Nº9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as

diretrizes e bases da educação nacional (LDB), a União deverá encaminhar, ao Congresso


Nacional, o Plano Nacional de Educação com diretrizes e metas para os dez anos seguintes,

4 Ao evidenciar o movimento de exclusão das pautas LGBT no PNE 2014, MOREIRA (2016) investiga os
modos pelos quais se constroem políticas públicas para a população LGBT, analisando as formas de produção
de exclusão no interior do exercício do poder e demonstrando como se constituiu um pânico moral permanente
em torno da “ideologia de gênero”.

104 Educação e Interseccionalidades


em sintonia com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, produzida na

Conferência de Jomtien, em 1990. Entretanto, com a representação expressiva de ruralistas,


latifundiários, evangélicos5 e defensores de propostas ligadas à segurança pública no
Congresso Nacional, presenciamos uma onda fundamentalista tomando conta do País e

conquistando cada vez mais espaço no poder público. O que se vê nesse período é um cenário
político conservador e a emergência de um discurso religioso fundamentalista que se
materializa no que ficou conhecido, no Brasil, como “ideologia de gênero”6.

Tramitando no Congresso Nacional desde 2011 e submetido ao Senado em 25 de

Outubro de 2012 o Projeto de Lei nº 8.035/2010, que daria origem ao PNE 2014, volta para
a Câmara em 02 de Janeiro de 2014 por ter sido modificado pelos Senadores. (BRASIL,
2014). Uma das principais modificações feitas no Projeto de Lei estava no inciso III do artigo
2º que define a superação das desigualdades educacionais como uma das diretrizes do Plano
Nacional de Educação. O texto aprovado originalmente na Câmara definia que a superação

das desigualdades educacionais teria ênfase na “promoção da igualdade racial, regional, de


gênero e de orientação sexual" (BRASIL, 2012). Já no texto sugerido pelo Senado a
superação das desigualdades educacionais estava representada de forma genérica e global e
teria ênfase na “promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”

(BRASIL, 2012b). Após um debate que mobilizou políticos, universidades, a comunidade


de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) e as lideranças religiosas, o
conflito terminou favorável ao Senado e todas as menções a gênero e a orientação sexual
foram excluídas da redação final do PNE, aprovado em 03 de Junho de 2014. (BRASIL,
2014).

5 Mesmo considerando que a utilização das formas "o/a", "a/o" tem seu caráter político importante uma vez
que deixam claro o apagamento histórico do feminino na língua, e que os sinais "X" e "@" indicam um
rompimento com a dicotomia feminino/masculino, iremos, nesse texto, transitar entre o masculino e o
feminino como modo de facilitar a leitura e, também, de manter uma posição teórico-política que acredita na
fluidez e na transitoriedade dos sujeitos e da língua.
6 A primeira referência, em um documento oficial, ao termo ideologia ligado ao conceito de gênero, aparece
em 1998 em uma nota intitulada “La ideologia de género: suspeligros y alcances.” emitida na conferência episcopal
do Peru. O documento é dividido em onze tópicos e ao longo de suas dezesseis páginas discorre sobre a
existência de uma natureza humana, originada em uma lei natural completamente imutável, criada por Deus
e comprovada cientificamente pela biologia, demonstrando como os “defensores de uma ideologia de gênero”,
segundo eles, promovem uma desconstrução da família, da educação, da cultura e, principalmente, da religião.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 105


Neste caminho, os Planos de educação das esferas estaduais e municipais tiveram até

o ano de 2015 para adequar suas metas e estar em consonância com o proposto no PNE. Ou
seja, esse enfrentamento aos termos gênero e orientação sexual não aconteceu somente em
nível nacional. A Lei nº 18.492, que aprova o Plano Estadual de Educação (PEE) do Paraná,
foi votada na Assembleia Legislativa no dia 23 de junho de 2015 e omitiu qualquer referência

a palavra gênero. Seguindo o mesmo exemplo, diversas vereadoras submeteram emendas


substitutivas, modificativas e supressivas – relacionadas ao tema da diversidade – ao projeto

de lei que deu origem ao Plano Municipal de Educação (PME) de Curitiba. A sessão de
votação7 do PME de Curitiba foi marcada por manifestações entre religiosos, pesquisadoras

e militantes, que ocuparam a capacidade máxima do plenário e, mesmo com a mobilização


dos movimentos feministas e LGBT, a Lei Nº14.681/2015 foi aprovada em 24 de Junho de
2015 e não contava com os termos diversidade, gênero e orientação sexual. Nesse sentido,
toma-se como objeto de análise a emenda modificativa que alterou a redação do Artigo 3º e

do Artigo 4º do Plano Municipal de Educação de Curitiba, buscando compreender o que


fez com que o Estado passasse a se apropriar de um discurso científico e biológico para

justificar suas ações, reiterando, sempre, uma norma heterossexual.

A ESTATIZAÇÃO DO BIOLÓGICO E O DISPOSITIVO DA


SEXUALIDADE

O que presenciamos no momento de aprovação dos Planos de Educação foi um


cenário que tinha a sexualidade como protagonista. Michel Foucault (2001) já nos alertava

que desde o século XIX o sexo foi posto, exaustivamente, em discurso.

7 Relação de vereadores que votaram a Lei nº14.681/2015: Aladim Luciano (PV), Aldemir Manfron (PP),
Beto Moares (PSDB), Cacá Pereira (PSDC), Carla Pimentel (PSC), Chicarelli (PSDC), Chico do Uberaba
(PMN), Colpani (PSB), Dirceu Moreira (PSL), Dona Lourdes (PSB), Felipe Braga Cortes (PSD), Geovane
Fernandes (PTB), Helio Wirbiski (PPS), Jairo Marcelino (PSD), Jorge Bernardi (REDE), Mauro Ignacio
(PSB), Mestre Pop (PSC), Noemia Rocha (PMDB), Paulo Rink (PR), Paulo Salamuni (PV), Pier Petruzziello
(PTB), Professor Galdino (PSDB), Rogério Campos (PSC), Sabino Picolo (DEM), Serginho do Posto
(PSDB), Tico Kuzma (PROS), Tito Zeglin (PDT), Toninho da Farmácia (PDT), Zé Maria (SD). Votos
contrários: Professora Josete (PT), Pedro Paulo. (PDT).

106 Educação e Interseccionalidades


Nesse momento os prazeres mais singulares eram solicitados a sustentar um
discurso de verdade sobre si mesmos, discurso que deveria articular-se não
mais àquele que fala do pecado e da salvação, da morte e da eternidade, mas
ao que fala do corpo e da vida — o discurso da ciência. Bastava para tornar
trêmulas as palavras; constituía-se, então, essa coisa improvável: uma ciência
confissão, ciência que se apoiava nos rituais da confissão e em seus conteúdos,
ciência que supunha essa extorsão múltipla e insistente e assumia como
objeto o inconfessável-confesso. (FOUCAULT, 2001, p. 72)

Neste contexto a confissão se estabeleceu como elemento fundamental para


constituição, progressiva, de “um grande arquivo dos prazeres do sexo” (FOUCAULT, 2001,
p.71) que foi solidificado ao encontrar a medicina, a psiquiatria e a pedagogia. Essa extorsão

da confissão sexual em formas científicas consolidou uma fronteira entre a normalidade e a


patologia, além de constituir, no século XIX, uma scientia sexualis. Ou seja, uma prática
discursiva, uma produção de discursos verdadeiros sobre o sexo, a formulação de saberes e
de uma verdade regulada sobre ele. Contudo, desde a segunda metade do século XVIII já se
observava uma emergência de dispositivos disciplinares que exerciam uma regulação, uma
gerência, uma administração sobre os corpos e, consequentemente, sobre o sexo. O sexo se
torna, então, “questão de “polícia” [...] não como repressão da desordem e sim como
majoração ordenada das forças coletivas e individuais [...] Polícia do sexo: isto é, necessidade

de regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição”.
(FOUCAULT, 2001, p. 27-28).

Neste momento uma ideia de norma, além de servir de base para produção desse

discurso científico em torno da sexualidade, passa, através de diversos mecanismos de


controle, a guiar o comportamento não só de corpos individuais, mas também de toda uma

população. Isso não quer dizer que o corpo individual deixa de ser alvo de controle do poder,
mas que esse poder sobre a vida se manifesta de duas maneiras: a primeira, disciplinar, que
se constituiu a partir do século XVII8 como uma anátomo-política, centrou-se no corpo

individual, em fazê-lo útil, produtivo, eficaz e dócil, a partir da vigilância, do treinamento,

8 Veiga-Neto (1996) situa a emergência desse pólo na segunda metade do século XVI – praticamente meio
século antes do que o proposto por Foucault – por já encontrar indícios de um movimento de ressignificação
e progressiva expansão das disciplinas nesse período. O autor deixa claro que isso não significa que seja possível
determinar, ou até mesmo que exista sentido em buscar com precisão uma data de passagem exata de uma
episteme para outra, mas que essa transição acontece continuamente, com justaposições e interações.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 107


da punição, ou seja, de processos de individualização; já a segunda, reguladora, se constituiu
por volta da metade do século XVIII como uma biopolítica das populações, centrou-se no
corpo como espécie, no corpo como suporte de processos biológicos, regulou as questões
ligadas ao nascimento, ao óbito, a reprodução, a fecundidade e a longevidade, se apoiou,
portanto, em processos de massificação. (FOUCAULT, 2001). Dessa maneira, a biopolítica
não suplanta a anátomo-política, não faz a anátomopolítica desaparecer. Do mesmo modo

que o biopoder9, esse poder sobre a vida, não representa a eliminação do poder disciplinar,
mas a partir de um ponto ambas passam a caminhar juntas, uma dando suporte à outra e
servindo de referência no que diz respeito ao controle tanto dos corpos individuais como de
corpos populacionais, fazendo com que as estratégias de controle se intensifiquem.

(FOUCAULT, 2005). Por mais que as estratégias anátomo-políticas e biopolíticas operem


por caminhos distintos, ambas são estratégias de normalização, ou seja, miram o mesmo
fim: a norma. A norma aparece como esse elemento que articula essas duas instâncias. Dessa
maneira, o biopoder se caracteriza como um poder da norma e não como um poder da lei,
assim, “a lei funciona cada vez mais como norma, e a instituição judiciária se integra cada
vez mais num contínuo de aparelhos [...] cujas funções são sobretudo reguladoras. Uma
sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida”.

(FOUCAULT, 2001, p. 156). Uma sociedade de normalização é, portanto, o local onde “se
cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da
regulamentação”. (FOUCAULT, 2005, p. 302). O objetivo dessa tecnologia de poder é,
então, investir de maneira calculada sobre a vida, gerenciando-a. Nesse sentido, pensar na
assunção da vida pelo biopoder significa tomar o homem como ser vivo e pensar quando o

biológico – a vida – passa a ser alvo do poder do Estado. Esse movimento de estatização do
biológico (FOUCAULT, 2005), um dos fenômenos fundamentais do século XIX, apresenta
seus desdobramentos ainda hoje.

9 Por mais que Foucault não tenha feito uma distinção clara entre “biopoder” e “biopolítica”, entende-se aqui
que o biopoder se refere “às ações que tomam por objeto a vida tanto dos corpos individuais quanto do corpo
espécie” (VEIGA-NETO, 2014 p. 39), enquanto a biopolítica seria um conjunto de estratégias de intervenção
e regulação que efetivam o biopoder.

108 Educação e Interseccionalidades


Foucault (2001) já assinalava que a sexualidade passa a funcionar como uma
engrenagem do poder, como uma instância a partir da qual o biopoder vai ser posto em ação.
Assim, o dispositivo10 da sexualidade vai ser um dos elementos fundamentais de
implementação, de exercício, de um modo de operar do biopoder. É, então, através do

dispositivo da sexualidade que, ao ocuparem um gradiente normativo, as práticas sexuais


passam a demarcar as fronteiras entre normalidade e anormalidade. Desse modo, a ideia de
um sexo bem educado, isto é, consolidado pelo casamento, pelas práticas heterossexuais,
monogâmicas e com foco na reprodução, só é possível através das descrições das práticas não
normativas, ou seja, as sexualidades periféricas vão produzir o outro da normalidade,

definindo, assim, aquilo que é normal. Essas chamadas práticas periféricas ou insubmissas
são a parte de sustentação de um discurso central: o discurso da normalidade dos corpos,

das práticas e dos prazeres. O dispositivo da sexualidade vai produzir, assim, uma ideia de
sexualidade totalmente ligada à natureza, como algo que faz parte de um instinto, de uma
biologia. Em contraponto, os (des)viados serão tomados como parte de uma natureza
perversa e, consequentemente, suas práticas serão atreladas à loucura e a doença. Dessa
maneira, o dispositivo da sexualidade passa a operar de outro ângulo, tirando o alvo do casal
monogâmico reprodutor e o reapontando para as sexualidades periféricas. (FOUCAULT,
2001). Em um jogo entre poder, saber e prazer, o dispositivo da sexualidade se junta a uma
série de novas tecnologias de regulação, capturando o corpo e a sexualidade e instaurando
um controle sobre as populações.

O PLANO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE CURITIBA

Um dos discursos mais correntes nas bases conservadoras que defendem a retirada

de termos ligados a gênero e a orientação sexual do PME de Curitiba, embasa-se no que


alguns vereadores têm chamado de “ideologia de gênero”. Esses setores ultraconservadores

10
Para Foucault (2004, p. 244), dispositivo designaria: “[...] um conjunto decididamente heterogêneo que
engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma: o dito e o não
dito [...]” Desta maneira, dispositivo é qualquer elemento que faça com que a disciplina e o biopoder entrem
em ação.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 109


unidos a diversos grupos religiosos colocam seus alvos de ataque nos movimentos sociais e
nas produções acadêmico-científicas que defendem questões referentes às minorias. Esse
processo de ataque e de desqualificação das demandas LGBT é facilitado, uma vez que tanto
os movimentos sociais quanto os grupos acadêmicos sofrem com disputas internas. Por sua
vez, os grupos conservadores apresentam um discurso unificado: através de dogmas e
posições religiosas eles dizem que prezam pela proteção da família – aquela família nuclear,

consagrada no matrimônio e no arranjo pai, mãe e filhos – e que por meio de projetos e
políticas públicas para diversidade (principalmente as no âmbito educacional) se tem imposto
às crianças uma ideologia baseada em princípios antinaturais e antifamiliares. Ou seja, o que
tem sido chamado de “ideologia de gênero” nada mais é do que um ato antidemocrático,

que fere a laicidade do Estado e tenta deslegitimar toda uma área de conhecimento
reconhecida e relevante para as práticas educacionais.

Deste modo, os vereadores evocam dimensões religiosas (de valores, de uma moral)

e biológicas para compor o texto de um documento que orienta as práticas educativas no


município de Curitiba, como pode ser visto na emenda modificativa abaixo:

EMENDA MODIFICATIVA11
Código: 034.00069.2015
Iniciativa: Carla Pimentel
Partido: PSC
Estado: Aprovada

Texto:
Modifique-se os Artigos e incisos previstas no Projeto de Lei Ordinária,
Proposição nº 005.00129.2015, de iniciativa do Prefeito Municipal, que
Aprova o Plano Municipal de Educação PME, da cidade de Curitiba:
Que o inciso III do Art 3°, abaixo descrito:
Art 3° São diretrizes do Plano Municipal de Educação PME:
III - superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da
cidadania e na superação de todas as formas de discriminação;
Altera-se o texto originário do item abaixo, passando a vigorar com a
seguinte redação:

11Disponível em: <https://goo.gl/xSVJdj> Acesso em: 18 Jun 2017.

110 Educação e Interseccionalidades


III - superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da
cidadania, de valores da família, e na superação de todas as formas de
discriminação;
Que o inciso IX do Art 3°, abaixo descrito:
IX– promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade
e à sustentabilidade socioambiental;
Altera-se o texto originário, passando a vigorar com a seguinte redação:
IX– promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade
cultural, e à sustentabilidade socioambiental; com direito à identidade
biológica (do homem e da mulher)
Que o Art 4° nº 005.00129.2015, abaixo descrito:
Art 4° As metas e estratégias, previstas no Anexo desta Lei, serão cumpridas
no prazo de vigência do Plano Municipal de Educação do Município PME.
Altera-se o texto originário, passando a vigorar com a seguinte redação:
Art 4° As metas e estratégias, previstas no Anexo desta Lei, serão cumpridas
no prazo de vigência do Plano Municipal de Educação do Município PME.
Em estrita conformidade ao Plano Nacional de Educação lei 13005, de 24 de
Junho de 2014.
Justificativa ou Mensagem:
Hoje a sociedade encontra-se num processo permanente de transformação
afetando diretamente seus valores. Infelizmente alguns valores importantes
que forjam caráter, deveres e direitos, que se reproduzem no seio familiar são
abalados. Ciente desse quadro é que apresentamos essa emenda modificativa.
A Valorização da Família busca realçar o papel da família, apontando sua
importância e seu papel na orientação do indivíduo na sociedade através das
escolas públicas estaduais, municipais e particulares. Entendemos que é na
escola que podemos realçar os princípios, o respeito e a consciência de valores
morais na criança e no adolescente.
A dinâmica do tempo moderno onde o estímulo e a atenção à tecnologia
com todo o seu aparato, assim como a presença da internet realçam e
valorizam outros valores, o que tende a desprezar o convívio familiar. Esse
distanciamento acaba por desqualificar ou desprezar valores de solidariedade,
respeito e harmonia que são características naturais de uma família
equilibrada. Considero de grande importância o resgate de valores familiares
no âmbito das escolas através de confecção de murais, promoção de peças
teatrais, sessões de cinema, concurso de redação, etc. Assim como realçar o
dever das instituições em zelar pela família e pela promoção do seu
fortalecimento, destacar o seu papel na construção da sociedade e promover
a reflexão, a discussão acerca do seu conceito na sociedade atual e seus
problemas econômicos, sociais, culturais, éticos e morais. Entendo que, por
seu importante valor social e moral, o Projeto em tela deve ser apreciado e
solicito apoio dos nobres vereadores dessa digna Casa de Lei.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 111


O que fica claro na justificativa das emendas e nas mudanças feitas ao texto do projeto
que deu origem ao PME de Curitiba é que os vereadores evocam noções da natureza, da
anatomia e da biologia para sustentar seus argumentos de que há apenas dois modos de
existir no mundo (como homem cis12 ou mulher cis), ou em outras palavras, como traz o
inciso IV do Artigo 3º: “com direito a identidade biológica do homem e da mulher”. Ao
trazer essa compreensão binária do sexo, sem considerar seus processos produtivos, impõem
se restrições à concepção de gênero e, assim, mira-se o objetivo desse movimento que se

coloca a favor da moral e dos bons costumes: tornar a heterossexualidade o único destino.
O que implica, consequentemente, a formação de uma família baseada nos mesmos
princípios, ou seja, a família heteronormativa13. Percebe-se, ainda, o papel central que a
figura da criança ocupa, pois é da educação dela que está se falando. O que se defende nessa

justificativa é o poder de educar as crianças em uma norma sexual e de gênero, presumindo


que todas elas são heterossexuais, fazendo ser dever dos pais corrigir as crianças que não se
encaixam nessa norma. Essa infância e adolescência em quem eles alegam querer realçar os

princípios, o respeito e a consciência de valores morais é reduzida a uma identidade sexual e


de gênero e defendida pelo direito de discriminar, punir e corrigir os desvios, trazendo terror,
exclusão e morte. O que acontece aqui é a heteronormatividade sequestrando as famílias e

transformando pais e mães em soldados de uma norma sexual compulsória. (PRECIADO,


2013)

A antiga redação do Artigo 3º abordava a superação das desigualdades educacionais


de uma maneira ampla, trazia a promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos
e da diversidade. Já a nova redação acrescenta a palavra cultural ao lado de diversidade,
justamente para que nada ligado à diversidade sexual ou de gênero possa ser abarcado. Além
disto, a nova redação traz a ideia de valores morais da família junto à ideia de “identidade

12
O termo cis tem origem no Latim e significa ‘deste lado’, é também usado na química para diferenciar
moléculas isômeras (compostos que apresentam a mesma fórmula molecular, mas diferentes fórmulas
estruturais) Nessa lógica, de maneira simplificada, o termo surge para representar as pessoas que se identificam
com o gênero que lhes foi designado ao nascer. Para saber mais consultar: <http://transfeminismo.com/>
Acesso em: 04 Ago. 2016.
13
Para Tamsim Spargo (2006, p. 67) a heteronormatividade “[...] especifica a tendência, no sistema sexo
gênero de ver as relações heterossexuais como a norma, e todas as outras formas de comportamento sexual
como desvios dessa norma”. (grifos da autora).

112 Educação e Interseccionalidades


biológica do homem e da mulher” o que, consequentemente abrange apenas um arranjo
familiar: o construído por um homem, uma mulher e filhos. O Artigo 4º que antes versava
apenas sobre o cumprimento das metas e estratégias que compõe o PME no prazo de
vigência do documento traz, agora, a noção de simetria entre o Plano Nacional de Educação

e o Plano Municipal. O que mostra que esse cerceamento da linguagem no plano das leis
não é uma ação isolada, exclusiva do município de Curitiba, mas que, pelo contrário, é um
movimento calculado e muito bem planejado por setores ultraconservadores que querem
trazer a ideia de valores morais da família heteronormativa para o campo da educação.

Por mais que o movimento de retirada dos termos relacionados à diversidade dos
Planos de Educação tentem reinstalar uma ideia de que a educação é um processo puramente
técnico que deveria ser realizado em um ambiente de pura neutralidade, ausente de

perspectivas políticas, relegando muitos aspectos da educação para a família, esse movimento
instaura uma contradição interessante: ao mesmo tempo em que professores estão sendo
cerceados da sua liberdade de cátedra e que as instâncias de silenciamento têm sido cada vez
mais incidentes, os estudantes vêm, crescentemente, demonstrando mais interesse e

procurando outros modos de acesso às discussões de gênero e sexualidade. Exemplo disto


foram as ocupações das escolas que tomaram conta do País no último ano. Claro que isso
não quer dizer que a proibição do debate em torno do gênero e da sexualidade no ambiente
escolar não seja um retrocesso nas políticas educacionais. Mas é importante pensar que esse

discurso muito corrente de que a escola não fala sobre sexo faz parte, em alguma medida,
do próprio dispositivo da sexualidade. Ou seja, a escola nunca parou de falar sobre o sexo,
talvez ela só não tenha falado do modo como gostaríamos, isto é: a partir de alguns
parâmetros da diversidade e da não violência.

Deste movimento fundamentalista contra o que ficou conhecido como “ideologia de


gênero”, o que se tem como resultado é um aglomerado de ações e projetos de lei que visam
cada vez mais à norma heterossexual, fazendo com que as conquistas do movimento LGBT

sejam colocadas em risco. Neste sentido, pode se dizer que antes nos questionávamos sobre
o paradoxo a partir do qual se desenvolveram as políticas de inclusão da população LGBT.
Tratava-se de um paradoxo que envolvia, por um lado, as demandas de inserção no mercado

de trabalho em uma lógica de governamento neoliberal e por outro lado, o controle dos

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 113


corpos por meio de dispositivos de normalização. Portanto, ao mesmo tempo em que era
necessária a produção de um sujeito de direito para construção de políticas públicas, definir
uma identidade gerava dispositivos de captura e a exclusão de sujeitos que não se encaixavam
naquele padrão. Criava-se, assim, um gradiente de normalização que imputava aos sujeitos
LGBT um modo de viver a sexualidade mais próximo ao modelo hegemônico branco,

heterossexual e de classe média, de forma que indivíduos que se afastavam daquele modelo
estavam propensos a não serem contemplados por aquelas políticas públicas. (MOREIRA,
2016). O ponto central das agendas de pesquisa era, então, investigar essa lógica identitária

de inclusão, desconfiando de uma parceria entre os movimentos sociais e o Estado que não
questionavam a norma heterossexual. Talvez, neste momento, essa questão não seja mais o
foco, uma vez que parece que não há mais uma parceria firmada entre os movimentos sociais
LGBT e o Estado, parece que o que há, de fato, é um panorama ultraconservador, bem

diferente do das políticas de inclusão. Desse modo, parece-me que, mais do que nunca, deve
se questionar a norma, problematizando os efeitos de sua naturalização. Em alguma medida,

o que importa, nesse momento, é notar como os enunciados em torno da ideologia de


gênero estão sendo ditos, verificar quais outros discursos (como o da família e da moral)
estão colados neles para que se promova essa onda conservadora, além de, é claro, perceber

de que forma tais discursos tem se convertido em um projeto de implementação de um saber


e de um poder sobre a sexualidade.

Por mais que no Brasil essa onda ultraconservadora tenha uma maior representação

dos movimentos ligados a uma vertente neopentecostal, pode-se perceber que esses
movimentos atuais que se colocam em defesa da moral e dos bons costumes têm embasado
seus argumentos também em princípios cristãos. Assim, a aposta desse trabalho é que os

discursos que têm sido produzidos em torno deste tema formam-se através da junção de
dois discursos distintos: o primeiro, puramente religioso, que versava sobre o corpo, a carne
e o desejo e já apresentava traços da biologia para reafirmar a importância do matrimônio e
da constituição de uma família; e o segundo, mais recente, que apresenta pretensões
científicas, almeja uma continuidade entre o sistema sexo-gênero-desejo-prática sexual

(BUTLER, 2013) e está centrado nos aspectos psicológicos e comportamentais da criança.


Parece-me que mais do que nunca, vivemos um momento em que, para que se possa

descontruir qualquer projeto que intente inscrever nos corpos e nas práticas um domínio de

114 Educação e Interseccionalidades


verdade específico e baseado na natureza – como foi possível perceber na justificativa da
emenda acima –, se torna essencial uma intensificação política da sexualidade. Ou seja, o
que temos a fazer, inspiradas em Michel Foucault é insistir em uma tomada da sexualidade
a partir de uma história dos discursos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Projeto de lei Nº 8.035-B de 2010. Câmara dos Deputados, Brasília, 2012.

BRASIL. PLC n. 103/2012 - Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras


providências. Senado Federal, Brasília, 2012b.

BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação


(PNE) e dá outras providências. Câmara dos Deputados, Edições Câmara, Brasília, 2014.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad.


Renato Aguiar. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2013.

CURITIBA. Fórum Municipal de Educação. Regimento Interno. 2013. Disponível em:


<https://goo.gl/ZtKKNq >Acesso em: 13 Mar. 2017.

ENS, Romilda Teodora. et al. Política Educacional: Participação democrática no Plano


Municipal de Educação de Curitiba. Interacções, Paraná, N. 40, p.89-109, 2016.
Disponível em: <https://goo.gl/sfJRBY>. Acesso em: 22 Maio 17.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. V. 1. 14 ed. Rio de


Janeiro: Graal, 2001.

______. Microfísica do poder. 19 ed. São Paulo: Graal, 2004.

______. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005

MOREIRA, Jasmine. Janelas fechadas: o percurso da pauta LGBT no PNE 2014.


Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Paraná. Mestrado em Educação.
Curitiba, 2016.

PRECIADO, Paul. Quem defende a criança queer? 2013. Disponível em:


<https://goo.gl/hIib4E>. Acesso em 22 Maio 17.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 115


RUBIN, Gayle. Pensando o sexo: notas para uma teoria radical das políticas da
sexualidade. Cadernos Pagu, Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, n. 21, p. 1
88, 2003.

SPARGO, Tamsim. Foucault e a Teoria Queer. Rio de Janeiro:Pazulin; Juiz de Fora: Ed.
UFJF, 2006.

VEIGA-NETO, Alfredo. A ordem das disciplinas. Tese de Doutorado. Universidade


Federal do Rio Grande do Sul. Doutorado em Educação. Porto Alegre, 1996.

______. Ecopolítica: um novo horizonte para a biopolítica. In: Revista Eletrônica do


Mestrado em Educação Ambiental, Rio Grande, RS, p. 31-49, 2014.

116 Educação e Interseccionalidades


DISCRIMINAÇÃO ENTRE ESTUDANTES
NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO:
uma revisão sistemática

Vitor Atsushi Nozaki Yano1 e Josafá Moreira da Cunha2

O bullying, ou vitimização, é o fenômeno de contínua e repetida exposição de uma pessoa a


ações negativas por parte de seus pares, sendo mais comumente observado no contexto
escolar. No ambiente universitário, a ocorrência de discriminação, preconceito, assédio
moral e violência entre estudantes também é frequente, porém menos estudada no meio
acadêmico e científico. Com o objetivo de verificar esse pressuposto, este trabalho buscou
investigar como vem sendo pesquisada e registrada, na literatura acadêmica e científica, a
manifestação da discriminação entre estudantes de ensino superior no Brasil, bem como suas
percepções sobre a ocorrência deste fenômeno e suas consequências. Por meio de uma
revisão sistemática de literatura, foram levantados estudos empíricos que tenham investigado
a discriminação, o preconceito e a violência, em suas diferentes formas de manifestação, e
suas consequências entre estudantes de nível superior brasileiros. Tal revisão foi realizada
através de busca na base de periódicos SciELO, e relatada de acordo com a recomendação
PRISMA (Principais Itens para relatar Revisões Sistemáticas e Meta-Análises). Uma
pesquisa booleana usando termos relacionados às diferentes formas de discriminação
juntamente com termos relacionados ao contexto do ensino superior resultou em um
conjunto de 204 artigos. Após primeira seleção pela avaliação dos títulos e resumos, foram
excluídos 167 trabalhos por não se enquadrarem nos critérios propostos. A partir da leitura
dos textos completos dos 37 estudos restantes, outros 13 foram descartados. Verificou-se
que de fato há pouca pesquisa sobre o assunto sendo publicada nos principais periódicos
científicos brasileiros. A principal forma de discriminação abordada nos trabalhos revisados
é a racial, principalmente em estudos que visam avaliar a percepção das políticas afirmativas
de cotas raciais. Há pouca pesquisa e discussão sobre as consequências da discriminação e da
violência entre estudantes de ensino superior no Brasil.

Palavras-chave: revisão sistemática; discriminação; ensino superior.

1Uma pessoa. E-mail:vitoryano@gmail.com

2Graduado em Psicologia, Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atua
como professor e como chefe de departamento (2016-2019) no Departamento de Teoria e Fundamentos da
Educação da Universidade Federal do Paraná. E-mail: josafas@ufpr.br

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 117


INTRODUÇÃO

A discriminação é um fenômeno social que consiste na associação de uma pessoa “a


um destino embasado numa característica que não se escolhe” (CASTEL, 2008). Trata-se

de qualquer forma de tratamento diferenciado de uma pessoa ou grupo no sentido da


exclusão ou da restrição de acesso a direitos. Normalmente está associada a algum tipo de
preconceito, ou seja, uma atitude “hostil contra uma pessoa que pertence a um grupo
simplesmente porque ela pertence àquele grupo e está, portanto, presumido que

objetivamente ela tem as qualidades atribuídas ao grupo” (ALLPORT, 1954 apud


FLEURY; TORRES, 2007).

Há, portanto, diversas formas de preconceito e discriminação, motivadas tanto por

diferenças étnicas, culturais e raciais, como por razões políticas, religiosas, de identidade de
gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade física ou intelectual, idade, entre outras.

No contexto escolar, o termo bullying ou vitimização tem sido usado no meio


científico, principalmente a partir da década de 1980, para descrever a exposição repetida e
crônica de um estudante a atos negativos de parte de um ou mais estudantes (OLWEUS,
2003 apud VILLAÇA; PALÁCIOS, 2010), sendo esses atos negativos relacionados à
intenção de causar lesão ou desconforto, normalmente associados à violência física, verbal
ou psicológica.

Sobre o nível superior, no entanto, verifica-se informalmente cada vez mais

discussões sobre casos de discriminação e violência, mas há pouca informação sobre pesquisas
nessa área. Na Universidade Federal do Paraná, por exemplo, planeja-se a realização de uma
pesquisa de clima universitário que envolverá toda a comunidade discente, levantando
informações sobre violência e discriminação que até hoje nunca foram coletadas. Por isso,

acredita-se que há uma falta de estudos sobre discriminação, preconceito e violência entre
estudantes de ensino superior em todo o meio científico nacional.

Visando embasar posteriores pesquisas, neste trabalho foi realizada uma revisão
sistemática de literatura, através da busca de estudos empíricos sobre percepção e
experiências de discriminação entre estudantes de ensino superior no Brasil. A partir desta
revisão, pretendeu-se verificar o que se tem pesquisado, quais tipos de discriminação são

118 Educação e Interseccionalidades


abordados, quais os objetivos das pesquisas e os métodos e instrumentos utilizados,

buscando também verificar se, de fato, há uma lacuna de estudos sobre esse assunto.

REVISÃO DA LITERATURA

Para a realização da revisão sistemática deste trabalho, foi utilizada a recomendação

PRISMA (Principais Itens para relatar Revisões Sistemáticas e Meta-Análises) (MOHER et


al., 2009). Embora desenvolvida com foco na área da saúde, com o objetivo normatizar e
garantir um nível de qualidade na forma de sintetizar dados e resultados de ensaios clínicos

randomizados e avaliações de intervenções, a recomendação também serve como um modelo


para a sistematização em outras áreas de pesquisa.

Baseado na recomendação QUORUM (Qualidade dos Relatos de Meta-análises), a


recomendação PRISMA é composta de um fluxograma a ser seguido para o processo de
revisão e de uma lista 27 de itens a serem verificados no relato da mesma, a fim de garantir

que as informações essenciais para uma revisão sistemática estejam presentes no trabalho a
ser publicado. Além disso, por ser sistemática, visa também permitir a reprodução do
processo, tornando-o mais confiável, ao permitir a verificação de sua consistência. O
fluxograma é composto por quatro etapas principais: identificação, seleção, elegibilidade e

inclusão.

Na primeira etapa, são identificados os trabalhos a partir de uma busca em uma ou


mais bases de dados. A estratégia de busca eletrônica deve ser relatada de modo a permitir
sua reprodução por qualquer outra pessoa interessada. Trabalhos duplicados, no caso de
busca em mais de uma base, devem ser identificados e eliminados.

Na etapa de seleção, devem ser definidos os critérios de triagem. Como apenas os


termos da busca eletrônica podem retornar resultados que não têm relação com o propósito

da revisão, uma primeira avaliação dos títulos e/ou resumos dos trabalhos permite descartar
uma grande parte desses artigos.

Com os registros restantes, os critérios são testados novamente após a leitura dos
textos completos, avaliando sua elegibilidade para inclusão na síntese. Nesta etapa, a

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 119


recomendação é que sejam justificados os motivos das exclusões dos trabalhos, já que, em
alguns casos, a avaliação dos critérios pode ser subjetiva.

Por fim, com os resultados incluídos, procede-se para a revisão, seja por meio de
síntese qualitativa ou quantitativa dos estudos selecionados.

Além de relatar cada uma dessas etapas em um fluxograma, indicando a quantidade

de registros em cada fase, a recomendação PRISMA também define que sejam explicitados
os critérios de seleção, os métodos de avaliação de risco de viés nos estudos, os métodos de
combinação dos dados e resultados, no caso de meta-análises, as características dos estudos,
as limitações dos estudos e da revisão e as conclusões.

MATERIAIS E MÉTODOS

A revisão sistemática foi realizada seguindo a recomendação PRISMA (MOHER et


al., 2009). A princípio, planejou-se realizar a busca na base de periódicos SciELO3 (Scientific

Electronic Library Online) e no Banco de Teses & Dissertações da CAPES4 (Coordenação


de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), por concentrarem grande parte das
publicações científicas brasileiras em periódicos e trabalhos acadêmicos. Dada a quantidade

de trabalhos encontrados na busca inicial, no entanto, decidiu-se por utilizar apenas a


primeira base.

Foi realizada uma busca booleana na plataforma SciELO, contendo qualquer um dos
seguintes termos: [preconceito, discriminação, racismo, sexismo, machismo, misoginia, lgbtfobia,
homofobia, lesbofobia, transfobia, xenofobia, capacitismo, bullying, assédio, abuso, violência]

juntamente com um termo entre: [universidade, faculdade, ensino superior, educação superior,
nível superior, graduação]. Na busca, foi considerada a presença dos termos tanto nos títulos
quanto nos resumos dos trabalhos.

3 http://www.scielo.br/
4 http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/

120 Educação e Interseccionalidades


A pesquisa foi realizada no dia 14 de junho de 2017, retornando 204 resultados. Um
artigo foi identificado como duplicado, sendo o mesmo estudo publicado em dois periódicos

na mesma data.

Foram definidos critérios de inclusão para a realização da síntese: pesquisas


empíricas; realizadas no Brasil; relacionadas a qualquer tipo de discriminação, preconceito
ou violência entre estudantes de ensino superior. Não foram definidos critérios com relação
ao idioma nem ao ano de publicação, sendo incluídos artigos em português, inglês e espanhol

de 1996 a 2016.

Como os critérios podem apresentar características subjetivas, a primeira etapa, de


triagem a partir da leitura dos títulos e resumos dos trabalhos, foi realizada

independentemente por dois pesquisadores e seus resultados foram comparados.

O primeiro pesquisador excluiu a princípio 161 trabalhos, enquanto o segundo


descartou 151. Os casos de divergência foram principalmente devido ao entendimento do
critério de discriminação no ensino superior: se incluiriam apenas estudos relacionados a
experiências de estudantes como vítimas ou como perpetradores de discriminação em relação

a outros grupos. Além disso, também se verificou disparidade em relação a pesquisas


relacionadas à violência sofrida fora do ambiente universitário.

Após discussão, definiu-se que seriam incluídos aqueles trabalhos que tivessem,
mesmo que apenas como parte do estudo, estudantes como sujeitos da pesquisa, e que de
alguma forma relacionassem violência ou discriminação com o contexto universitário, seja
por seu local de ocorrência ou por suas consequências. Ao final dessa etapa, foram excluídos
166 trabalhos, restando 37 artigos.

Os principais motivos de exclusão foram: se tratar de ensaio, discussão teórica ou


revisão de literatura; pesquisa realizada em outro país ou com outros sujeitos que não
incluíam estudantes; outra aplicação semântica dos termos pesquisados (por exemplo:
modelo para discriminação de risco de doença coronariana; preconceito contra homeopatia).

Na segunda etapa, com a leitura dos 37 textos completos, outros 14 artigos foram

excluídos, conforme apresentado no Quadro 1.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 121


Quadro 1. Artigos em texto completo excluídos

Trabalho Justificativa para exclusão

KERR-CORRÊA et al., 1999 Analisa a prevalência do uso de drogas em uma instituição de


ensino superior, mas não faz relação com discriminação ou
violência.
LISBOA; MOURA; REIS, 2006 Aborda expectativas de estudantes sobre a violência no cotidiano
profissional, não tratando de discriminação nem do ambiente
universitário.

MIRANDA et al., 2007 Investiga o consumo de álcool entre estudantes, mas não faz
relação com discriminação ou violência.
JUSTICIA et al., 2007 O estudo tem como sujeitos de pesquisa apenas trabalhadores
universitários, não incluindo estudantes.

MONTICELLI et al., 2008 A pesquisa é feita com egressas e investiga as percepções da


violência no ambiente profissional, não na universidade.

ROSA et al., 2010 O trabalho investiga a visão conceitual que estudantes têm da
violência de forma geral, sem abordar especificamente a
discriminação ou o ambiente universitário.

OLIVEIRA; CHAMON; O trabalho explora a visão que estudantes têm da violência de


MAURICIO, 2010 forma geral, sem abordar especificamente a discriminação ou o
ambiente universitário.
SPINK, 2010 Embora os sujeitos incluam estudantes, não trata especificamente
do contexto universitário, nem sobre violência ou discriminação.

BARBOSA, 2011 A pesquisa é feita com egressas e investiga as percepções da


violência no ambiente profissional, não na universidade.
BAUMGARTEN; GOMES; Investiga o consumo de álcool entre estudantes, mas não faz
FONSECA, 2012 relação com discriminação ou violência.
SILVA; ROSA, 2013 Trata da visão e da formação de estudantes a respeito de
vitimização no ambiente escolar, mas não faz referência ao
ambiente universitário.
SILVA, 2013 A pesquisa não trata de discriminação ou violência no ambiente
universitário, mas sim de memórias escolares que estudantes
possuem.

SCHILLING, 2013 A pesquisa não trata de discriminação ou violência no ambiente


universitário, fazendo um debate teórico sobre justiça no
ambiente escolar.
ZANATTA; MOTTA, 2015 O trabalho investiga a visão conceitual que estudantes têm da
violência de forma geral, sem abordar especificamente a
discriminação ou o ambiente universitário.

FONTE: elaborado pelos autores.

Todos os 23 trabalhos incluídos tiveram pesquisadores principais vinculados a


universidades públicas federais ou estaduais, com exceção de dois (FLEURY; TORRES,

122 Educação e Interseccionalidades


2007; MARIN; ARAÚJO; ESPIN NETO, 2009), cujos pesquisadores estavam ligados a

universidades católicas.

Apenas cinco trabalhos indicaram fontes de financiamento da pesquisa, todas


instituições de fomento governamentais, sendo duas federais e duas estaduais: CNPq

(Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) (CROCHÍK, 2005;


FORMIGA, 2007); CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior) (NUNES; CAMINO, 2011); FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro) (BASTOS et al., 2012); e FAPESP (Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo): (ZOTARELI et al., 2012). Não foi considerado que essas
condições pudessem oferecer risco de viés aos estudos.

A Figura 1 apresenta o fluxo das fases envolvidas na realização desta revisão


sistemática.

Figura 1. Fluxo da revisão sistemática realizada

N. de relatos identificados no banco N. de relatos identificados em outras


de dados de busca=204 fontes = 0

N. de relatos após eliminar duplicados = 203

N. de relatos rastreados = 203 N. de relatos excluídos = 166

N. de para
artigos
elegibilidade 37
completos =avaliados N. de artigos em texto completo
excluídos, com justificativa = 14

N. de estudos incluídos em síntese


qualitativa = 23

N. de estudos incluídos em síntese


quantitativa (meta-análise) = 23

Fonte: adaptado de MOHER et al., 2009.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 123


RESULTADOS E DISCUSSÃO

O Quadro 2 apresenta os 23 artigos incluídos na revisão sistemática, classificados por


ano de publicação. Para uma primeira abordagem, os trabalhos foram categorizados por tipo

de discriminação tratada: raça, gênero, sexualidade, hierarquia, múltiplos e outros.

Na categoria de sexualidade, ambos os estudos encontrados (LACERDA;

PEREIRA; CAMINO, 2002; FLEURY; TORRES, 2007) se referiam exclusivamente à


homofobia, ou seja, a discriminação contra homossexuais. A categoria hierarquia inclui
discriminação e violência de professores contra estudantes (CAVACA et al., 2010; CRUZ;
PEREIRA, 2013) e de “veteranos” contra “calouros” (MARIN; ARAÚJO; ESPIN NETO,
2009; VILLAÇA; PALÁCIOS, 2010; SIQUEIRA et al., 2012). Algumas pesquisas abordam
mais de um tipo de discriminação e foram incluídas na categoria múltiplos. Outros tipos de

discriminação e preconceito abordados incluem: capacitismo (BASTOS et al. 2012),


antissemitismo (CROCHÍK, 2005) e por condição socioeconômica (FONTELE;

CRISÓSTOMO, 2016).

A maioria dos estudos encontrados se referem exclusivamente à discriminação racial.


Além disso, dos 7 artigos que se enquadram nessa categoria, 6 estão relacionados às visões e
percepções de estudantes a respeito das políticas de ações afirmativas nas universidades
públicas. Neste sentido, Machado e Barcelos (2001), Neves e Lima (2007), São Paulo (2010)

e Lima, Neves e Silva (2014) realizaram levantamentos sobre a opinião de universitários


antes ou logo após a implantação da política de cotas raciais em suas universidades. Nos três
casos, realizados por diferentes métodos de coleta e análise de dados, concluiu-se que há
consciência do racismo existente no Brasil e de sua injustiça, mas ao mesmo tempo há uma

tendência de afastamento do fenômeno e grande rejeição às cotas por não serem entendidas
como melhor forma de se combater esse tipo de discriminação. Curiosamente, nos três

estudos, não se verificou relação entre a autoclassificação racial dos sujeitos e a posição com
relação às cotas raciais.

Weller e Silveira (2008) e Nery e Costa (2009) apresentam estudos de casos de


cotistas, ambos da Universidade de Brasília, constatando que, embora essas estudantes

concordem com a essas políticas afirmativas, também relatam a necessidade de melhorias,

124 Educação e Interseccionalidades


apresentando como principais dificuldades a permanência e a dupla discriminação sofrida,
por serem negras e cotistas. De modo semelhante, Fontele e Crisóstomo (2016) observam,
em um levantamento realizado com 50 beneficiários do PROUNI (Programa Universidade
para Todos), um grupo de 30% de respondentes que relatam a ocorrência de discriminação,
tanto por parte de professores e funcionários quanto por colegas não-bolsistas, por meio de
afirmações relacionadas à sua capacidade intelectual ou mesmo de condição econômica.

Num outro enfoque com relação ao racismo no ambiente universitário, Nunes e


Camino (2011) avaliam a relação entre preconceito racial, inserção social e atitude político

ideológica por meio da análise quantitativa de um questionário aplicado a 206 estudantes.


Conclui-se que aquelas pessoas que se identificam com o que é chamado de ideologia de 1º
mundo tendem a expressar atitudes mais preconceituosas. Além disso, a participação em
atividades extracurriculares, tais como movimento estudantil e outras interações sociais para
além do ensino, pesquisa e extensão, é preditiva de menor expressão de preconceito.

Quadro 2. Artigos incluídos na revisão sistemática

Trabalho Tipo de
discriminação Sujeitos da pesquisa de sujeitos Método de
Quantidade
análise
NÓBREGA et al., 1996 gênero estudantes de pós-
graduação 4 qualitativo

MACHADO; BARCELOS, raça estudantes de graduação 1306 + 23(a) misto


2001
FORMIGA; GOLVEIA; gênero estudantes de graduação 200 quantitativo
SANTOS, 2002

LACERDA; PEREIRA; sexualidade estudantes de graduação 220 quantitativo


CAMINO, 2002
CROCHÍK, 2005 múltiplos estudantes de graduação 139 quantitativo

FORMIGA, 2007 gênero estudantes de graduação 200 quantitativo

de graduação / 122 + 1154(b) quantitativo


NEVES; LIMA, 2007 raça estudantes
pré-vestibulandos(as)

FLEURY; TORRES, 2007 sexualidade estudantes de pós-


graduação 135 quantitativo

WELLER; SILVEIRA, 2008 raça estudantes de graduação 3 qualitativo

MARIN; ARAÚJO; ESPIN múltiplos estudantes de graduação 208 quantitativo


NETO, 2009

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 125


NERY; COSTA, 2009 raça estudantes de graduação 10 qualitativo

ZALAF; FONSECA, 2009 gênero estudantes de graduação 8 qualitativo


130 + 40(c) quantitativo
CAVACA et al., 2010 hierarquia docentes de graduação /
estudantes

SÃO PAULO, 2010 raça estudantes de graduação 316 quantitativo

VILLAÇA; PALÁCIOS, 2010 hierarquia docentes de graduação /


estudantes 11 qualitativo

NUNES; CAMINO, 2011 raça estudantes de graduação 206 quantitativo

SIQUEIRA et al., 2012 múltiplos estudantes de graduação 11 qualitativo

BASTOS et al., 2012 múltiplos estudantes de graduação 424 quantitativo

ZOTARELI et al., 2012 gênero estudantes de graduação 2430 quantitativo

CRUZ; PEREIRA, 2013 hierarquia estudantes de graduação 12 qualitativo

LIMA; NEVES; SILVA, 2014 raça estudantes de graduação 220 + 114(d) misto

COELHO; BASTOS; múltiplos estudantes de graduação 1264 quantitativo


CELESTE, 2015
FONTELE; CRISÓSTOMO, outro estudantes de graduação 50 misto
2016
NOTA: (a) análise quantitativa de 1.306 respostas a questionário, qualitativa de 23 entrevistas gravadas
(b) foram realizados dois estudos: um com 122 pré-vestibulandos e o outro com 1.154 graduandos
(c) os sujeitos foram divididos em 130 estudantes e 40 professores
(d) foram realizados dois estudos: um com 220 estudantes em 2005 e outro com 114 em 2010

FONTE: elaborado pelos autores.

Considerando um âmbito mais geral, Crochík (2005) busca analisar a relação entre
preconceito, ideologia e personalidade. A partir das bases teóricas e de instrumentos
propostos por Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Stanford (1950 apud CROCHÍK,
2005), 139 estudantes participaram da pesquisa, utilizando cinco escalas: escala de

autocategorização política (escala C), escala de tendência ao fascismo (escala F), escala da
ideologia da racionalidade tecnológica (escala I), escala de características narcisistas de
personalidade (escala N) e escala de manifestação de preconceitos (escala P), tendo esta
última questões relacionadas a quatro grupos sociais distintos: judeus, negros, deficientes
físicos e deficientes intelectuais. Com relação à manifestação de preconceitos, verificou-se
baixa correlação com a escala C e alta correlação com as escalas F, I e N, concluindo que há
relação entre personalidade, ideologia e preconceito.

126 Educação e Interseccionalidades


Bastos et al. (2012) também desenvolve um instrumento de avaliação de experiências

de discriminação, porém busca analisar seus efeitos sobre condições e comportamentos em


saúde. Nesta escala, discriminação e preconceito são tratados de forma geral, independente

do motivo. Em uma aplicação em um grupo de 424 estudantes universitários, verificou-se


um índice de discriminação estatisticamente superior em pessoas autodeclaradas como
negras, mulheres, cotistas e pessoas de baixo nível socioeconômico. Fumantes, pessoas com
problemas de saúde mental e nível de cuidados com a saúde baixo e muito baixo estiveram
mais associados a altos índices de discriminação.

Na mesma direção, Coelho, Bastos e Celeste (2015) e Zalaf e Fonseca (2009)


abordam o uso de álcool e outras drogas no contexto acadêmico. Enquanto o primeiro

estudo tem como objetivo verificar a associação entre a discriminação e o consumo dessas
substâncias, o último aborda a discriminação de gênero e a violência sexual praticada contra
mulheres usuárias. No estudo quantitativo (COELHO; BASTOS; CELESTE, 2015)
realizado com 1.264 estudantes, constatou-se que há fatores moderadores entre

discriminação e abuso de álcool, havendo maior relação entre ambos em estudantes de


último ano de graduação, provavelmente devido à combinação com outras situações
estressantes. Já no estudo qualitativo (ZALFA; FONSECA, 2009), todos os oito
participantes da pesquisa afirmaram ter sofrido algum nível discriminação por serem usuários

de drogas, porém as consequências para as entrevistadas mulheres foram muito mais severas,
incluindo abuso sexual e estupro.

Sobre violência sexual e de gênero entre estudantes universitários, Zotareli et al.

(2012) constataram, por meio de um estudo transversal com participação de 2.430 discentes
de uma universidade pública de São Paulo, que 56,3% das mulheres sofreram algum tipo de
violência, independentemente de idade, estado civil, cor da pele, emprego ou renda familiar.

11,4% dos homens declararam ter praticado violência de gênero e 3,3% violência sexual,
independentemente de religião ou da importância dada à religião. Os autores alertam, no
entanto, que a amostra selecionada pode não ser representativa da população de estudantes

da universidade, havendo uma diferença significativa com respeito à idade e área de estudo,
podendo haver um viés de seleção. É sugerida a necessidade de mais estudos nessa mesma
linha, em outras universidades também.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 127


Para a avaliação de outras formas de diferenciação por gênero, Formiga, Golveia e
Santos (2002) adaptaram o Inventário de Sexismo Ambivalente (GLICK; FISKE, 1996 apud

FORMIGA; GOLVEIA; SANTOS, 2002), um instrumento que visa avaliar a ocorrência de


dois fatores distintos: o sexismo hostil e o sexismo benévolo. O inventário foi aplicado em
200 estudantes de graduação em Psicologia e constatou relação entre esses fatores e o gênero:

homens tendem a apresentar maior sexismo hostil, enquanto mulheres apresentam maior
sexismo benévolo. Formiga (2007) posteriormente analisa a relação entre esses dois fatores

e valores humanos, concluindo que o critério de orientação valorativa social se relaciona com
o sexismo benévolo, enquanto o pessoal se associa com ambos.

Nóbrega et al. (1996), por outro lado, investiga por meio de um estudo qualitativo

de natureza exploratório-descritiva, o preconceito que homens mestrandos em enfermagem


sofrem com relação à sua escolha profissional. Constata-se na fala de todos os entrevistados

a percepção deste preconceito, que está associado à visão que o cuidado é uma característica
feminina.

Com relação à discriminação por orientação sexual, Lacerda, Pereira e Camino

(2002) e Fleury e Torres (2007) analisam as formas de ocorrência da homofobia entre


estudantes de ensino superior. A partir da perspectiva das representações sociais
(LACERDA; PEREIRA; CAMINO, 2002), verifica-se, por meio de estudo quantitativo
realizado com 220 estudantes de graduação que o preconceito flagrante tem ocorrência maior
entre as pessoas que endossam explicações ético-morais e religiosas para a homossexualidade.
Preconceituosos sutis tendem a atribuir causas biológicas e psicológicas, enquanto não
preconceituosos aderem mais a explicações psicossociológicas. Entre estudantes de pós
graduação (FLEURY; TORRES, 2007), constata-se que a homofobia se expressa muito
mais de forma sutil. Neste último estudo, no entanto, há risco de viés por ter sido realizado
com uma amostra composta por 87% de mulheres com média de idade de 30 anos. Além

disso, não há informação sobre a orientação sexual das pessoas participantes.

Questões de gênero e sexualidade também aparecem nos trotes universitários

(MARIN; ARAÚJO; ESPIN NETO, 2008; VILLAÇA; PALÁCIOS, 2010; SIQUEIRA et


al., 2012). Em entrevista com estudantes do curso de Farmácia, Siqueira et al. (2012)
verificam a prevalência de sexismo, homofobia e assédio moral. Embasadas em teorias pós

128 Educação e Interseccionalidades


estruturalistas, as autoras alertam sobre a importância da universidade como espaço de
construção identitária e a influência da cultura institucional para a perpetuação dos
comportamentos. Visando analisar a percepção do trote em um curso de Medicina, Marin,

Araújo e Espin Neto (2008) elaboraram um questionário quantitativo, aplicado a 208


estudantes de primeiros anos do curso. Verificou-se que homens aplicam mais trote e
recebem menos de mulheres. As mulheres tendem a achar o trote mais pesado do que

homens e estes concordam mais com a ideia do trote como integração. Villaça e Palácios
(2010), com o objetivo de analisar as concepções deste evento entre estudantes de graduação
e, também, para professores em cargos de chefia, apresentam um estudo de caso em que 11
pessoas são entrevistadas com relação a conceitos de abuso e violência e suas percepções do
trote universitário. Conclui-se que há pouca reflexão e não se reconhece a ocorrência de
violência nesses casos, sendo justificados pela tradição e aceitação. Com base em Dejours e
Arendt, as autoras ressaltam a importância da formação para o diálogo.

Por fim, dois estudos tratam especificamente da violência nas relações entre docentes

e discentes do ensino superior. Cruz e Pereira (2013), com base na teoria da violência e do
poder simbólico de Bourdieu, verificam, por meio de entrevistas com 12 estudantes de
graduação, que a violência se manifesta de diferentes formas e em alguns casos não é

percebida devido à reprodução da ordem simbólica. Conclui-se que há necessidade de


repensar a prática docente, pois a violência nas relações pedagógicas produz efeitos de curto

e de longo prazo. Cavaca et al. (2010), em estudo realizado com 130 discentes e 40 docentes
de odontologia, constatam também relatos de boas relações, embora estudantes se sintam
mais coagidos por professores do que estes se sentem coercivos.

A Figura 2 apresenta a distribuição da quantidade de trabalhos incluídos nesta revisão


por tipo de discriminação.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 129


Figura 2. Distribuição de trabalhos por tipo de discriminação

Distribuição de trabalhos por tipo de discriminação

4%
raça
22% 30%
gênero
sexualidade
hierarquia
13% múltiplos
outro
9% 22%

Fonte: elaborado pelo autor.

Com relação ao ano de publicação, observa-se uma quantidade maior de publicações


entre os anos de 2007 e 2012, concentrando mais de 60% do total de trabalhos encontrados.
Nos últimos cinco anos – de 2013 a 2017 – há menos de um artigo publicado por ano. Isso

evidencia a hipótese de que, embora o tema da diversidade e da discriminação seja cada vez
mais discutido nos últimos anos, há pouca pesquisa científica sobre esse assunto justamente
no contexto do ensino superior. A Figura 3 apresenta a distribuição da quantidade de

trabalhos incluídos nesta revisão por ano de publicação.

Figura 3. Quantidade de trabalhos publicados por ano de publicação

Quantidade de trabalhos por ano de publicação


4
so
lh
ab 3
art
ed
ed 210
aid
tn
au
Q

6991 79 89 99 00 1002 2002 30 40 5002 60 70 8002 9002 01 11 21 31 4102 51 6102


91 91 91 02 02 02 02 02 02 02 02 02 02
Ano de publicação

Fonte: elaborado pelo autor.

130 Educação e Interseccionalidades


Outro dado importante de se observar é a região onde as pesquisas foram realizadas.

Sendo o Brasil um país de dimensão continental, é importante também considerar que


podem haver diferenças regionais na frequência dessas pesquisas. Dos trabalhos incluídos,
de fato verifica-se que quase 74% (17 dos 23) foram realizados nas regiões Sudeste e
Nordeste do país. Apenas um artigo se refere a uma pesquisa realizada na região Sul e
nenhum referente à região Norte foi incluído na revisão. A Figura 4 apresenta o gráfico da

distribuição dos trabalhos por região.

Figura 4. Distribuição de trabalhos por região da pesquisa

Distribuição de trabalhos por região do Brasil

4%

22%
sudeste
39%
nordeste
centro-oeste
sul

35%

Fonte: elaborado pelo autor.

Também é interessante analisar a distribuição dos trabalhos com relação às áreas de


publicação, já que há uma variedade nas naturezas e enfoques das pesquisas que envolvem

discriminação entre estudantes de ensino superior. A maioria dos trabalhos,


aproximadamente 43% (10 dos 23) foram publicados em periódicos da área da saúde

(Medicina, Enfermagem, Farmácia, Odontologia, Saúde Pública). Mais de um terço (8 dos


23) podem ser classificados na área da Psicologia e os demais na área da Educação e
Sociologia. A Figura 5 apresenta a distribuição dos trabalhos incluídos nessa revisão por área

de publicação.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 131


Figura 5. Distribuição de trabalhos por área de publicação

Distribuição de trabalhos por área de publicação

9%

13%
saúde
43% psicologia
educação
sociologia

35%

Fonte: elaborado pelo autor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho foi apresentada uma revisão sistemática de pesquisas sobre

discriminação e violência entre estudantes de ensino superior no Brasil. Verificou-se que, de


fato, há poucos estudos sobre o assunto sendo publicados em periódicos científicos

nacionais.

Os artigos revisados possuem natureza e objetivos diversos. Alguns deles utilizam

estudantes universitários como sujeitos de pesquisa por se tratar do local de trabalho dos
pesquisadores, mas não abordam aspectos específicos do fenômeno nesse contexto. A maior
parte dos trabalhos que se referem a casos de discriminação, preconceito ou violência

especificamente no ambiente universitário tem relação com uma avaliação da percepção das
políticas de cotas raciais ou dos trotes universitários.

Quanto aos efeitos, apenas um estudo estabelece a relação entre discriminação e


consumo de álcool. Pesquisas relacionadas a consequências à vida universitária, tais como

engajamento, desempenho acadêmico e evasão não foram encontradas nesta revisão. Os


termos bullying e vitimização ainda são pouco associados aos casos de violência entre pares

no caso de estudantes universitários. Também não foi encontrada referência à xenofobia ou


transfobia em nenhum dos artigos encontrados.

132 Educação e Interseccionalidades


Grande parte dos trabalhos apresenta como conclusão a necessidade de se realizar
mais estudos na área e comparar os resultados com amostras de outras universidades. Isso

indica que há uma percepção mais ampla da necessidade de se pesquisar esse assunto.

A partir dessa constatação, pode-se pensar na realização de pesquisas, inclusive


direcionando as questões que se pretende abordar caso se deseje fazer comparações com
estudos anteriores. Há também protocolos e instrumentos de pesquisa encontrados nessa
revisão que podem ser avaliados e adaptados para eventuais necessidades posteriores.

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136 Educação e Interseccionalidades


BULLYING ESCOLAR E AS RELAÇÕES
DE GÊNERO

Michelle Popenga Geraim Monteiro1,


Everton Ribeiro2 e Araci Asinelli-Luz3
O objetivo do presente estudo é descrever como crianças do 5º ano do ensino fundamental
contextualizam o fenômeno bullying escolar em uma escola pública municipal de Curitiba,
na perspectiva das relações de gênero. Reconhecemos a escola como um microssistema de
diversidades e o bullying, sendo uma das manifestações de intolerância que nela se faz
presente. Esta pesquisa se enquadra na perspectiva dos estudos da violência com base nas
questões de gênero e tem a Bioecologia do Desenvolvimento Humano como fundamento
para análise. A pesquisa, recorte de uma dissertação de Mestrado em Educação Profissional,
investiga a percepção do bullying junto a duas turmas de quinto ano do ensino fundamental,
envolvendo 38 estudantes com idades entre 9 e 11 anos, meninos e meninas. Para a coleta
de dados foi utilizado um questinário semiestruturado com 26 questões voltadas a identificar
o perfil sociodemográfico do participante e seu conhecimento sobre o bullying. A análise dos
dados é de natureza qualitativa. Os resultados permitem identificar os tipos comuns de
bullying, a participação das crianças enquanto autores, alvos e testemunhas e a sua
manifestação entre meninos e meninas. Evidenciam as relações de poder, revelam que o
bullying se manifesta de forma comum no cenário escolar e caracterizam tipos diferentes
de bullying em decorrência do gênero. Verificamos que o bullying reflete a dinâmica social
entre gêneros. Os meninos são evidenciados como autores mais do que as meninas no
bullying direto (agressões físicas) reforçando a força física como característica de gênero. As
meninas se destacam como alvos. Quando autoras preferem o bullying indireto (verbal).
Nessa perspectiva reforçam a fragilidade e a sensibilidade do feminino. Consideramos o
microssistema escola, ambiente importante para as transições e validações ecológicas,
enquanto espaço de cultura, necessárias ao desenvolvimento humano, que acolha as
diversidades, respeite os direitos humanos e estimule a cultura de paz e não-violência.
Palavras-chave: Bullying; gênero; ensino fundamental; violência escolar; bioecologia do
desenvolvimento humano.

1Pedagoga. Especialista em Neuropedagogia e Mestra em Educação (UFPR). Professora da Rede Municipal


de Curitiba e do curso de Pedagogia da FACEL. Email: mizinhadobru@yahoo.com.br

2 Graduado em Artes Cênicas e Pedagogia. Especialista em Estética e Filosofia da Arte e em História, Arte e
Cultura. Mestre e Doutorando em Educação (UFPR). Professor do Instituto Federal do Paraná. Email:
everton.ribeiro@ifpr.edu.br
3 Doutora em Educação. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação do Setor de Educação da

Universidade Federal do Paraná. Secretária Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Email: araciasinelli@hotmail.com

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 137


INTRODUÇÃO

A violência escolar tem se tornado um grave problema social. Observa-se que esta
temática tem ocupado o espaço da mídia e dos meios de comunicação, bem como várias
pesquisas voltadas à educação devido ao aumento crescente desta prática no microssistema
escola. Destaca-se, portanto, o ambiente escolar, caracterizado como importante
microssistema de desenvolvimento humano depois do ambiente familiar, como um dos
espaços de manifestação do fenômeno da violência, sendo considerado como um problema

de saúde pública (FANTE, 2005; LOPES NETO, 2011; ABRAMOVAY; LIMA;


VARELLA, 2002). Esta cultura da violência tem se manifestado, em muitos casos, por
meio do fenômeno bullying, forma de violência que vem ganhando espaço nos estudos e
pesquisas acadêmicas. Embora o bullying seja considerado um tema atual, a prática é antiga,

e com certeza, pode-se recorrer a memórias de colegas que passaram por momentos
constrangedores e de agressões em tempos escolares passados.

O bullying pode ser compreendido como um conjunto de atitudes agressivas,


intencionais e repetitivas, que acontece entre pares dentro de um desequilíbrio de poder,
sem uma motivação em destaque (LOPES NETO, 2011; FANTE, 2005).

Considera-se o bullying como um fenômeno relacional e sistêmico que abrange e


atinge todos os envolvidos, pois cresce em função de atitudes individuais e/ou coletivas,

dentro de um contexto favorável à sua manifestação e que encontra validade ecológica no


meio familiar, social e da própria escola. Urie Bronfenbrenner (2011), na Teoria Bioecológica

do Desenvolvimento Humano, permite pressupor que o bullying acontece através das


interações dinâmicas do indivíduo nos diversos ambientes em que ele convive que sofre
influências e mudanças assim como também é capaz de influenciar. Este fenômeno envolve

quatro componentes: Processo, Pessoa, Contexto e Tempo – o PPCT (DESSEN; COSTA


JUNIOR, 2005). Reforça-se essa ideia relacional quando se percebe que o autor do bullying
não somente é um agente da violência na escola, mas também vítima de um ambiente
familiar ou social agressivo. Tal atitude reproduz o que ele vivencia em seu ambiente de

desenvolvimento (SCHULTZ; DUQUE; SILVA; SOUZA; ASSINI; CARNEIRO, 2012).

138 Educação e Interseccionalidades


Os papéis se dividem dentro deste cenário de violência: alvos, autores e testemunhas.

Os alvos são as crianças agredidas que, por algum motivo, não conseguem se defender das
agressões. Em geral, são crianças introvertidas, tímidas e possuem baixa autoestima. Os
autores são os que praticam as agressões e apresentam características associadas a uma
perigosa liderança. São populares, confiantes e seguros de si. E as testemunhas são aquelas

que não se envolvem diretamente, mas convivem com o fenômeno sem reagirem a ele. São
representados pela maioria dos estudantes, independente do gênero (LOPES NETO, 2011;
2005; FANTE, 2005).

As diferenças nos modos de agir e reagir de meninos e meninas em situações de


agressão são produzidas pelo comportamento estabelecido pelas diferentes instancias sociais,

que, de certa forma, legitimam como os papéis sociais devem ser desenvolvidos. Neste
sentido, autores apontam diferenças entre meninos e meninas em relação ao bullying escolar

(LOPES NETO, 2011; 2005; FANTE, 2005; BANDEIRA; HULTZ, 2012; MOURA;
CRUZ; QUEVEDO, 2011). Os meninos, em geral, são os que praticam o bullying físico com
mais frequência e possuem dificuldades de socialização, enquanto as meninas mostram-se
mais propensas a realizarem o bullying psicológico e verbal, fator este, que dificulta a

identificação, por não ser uma forma de violência explícita. As meninas tendem a ser mais
empáticas e prestam ajuda aos alvos mais do que os meninos. Em geral, meninas possuem
maior índice de baixa autoestima do que os meninos.

A escola, como uma instituição social e espaço de diversidade cultural, possui um


papel importante na formação dos indivíduos e por isso não pode se omitir na discussão de
temas relevantes, como o gênero e a violência. Babiuk, Fachini e Santos (2013) observam

que nas escolas, mesmo que muito sutil, as meninas são estimuladas a se comportarem de
forma delicada, investindo em uma feminilidade que enfatiza a fragilidade e os meninos, o
papel de competitividade e dominação. A educação formal das meninas ainda mostra os
limites colocados pela sociedade, que as ensinam a brincar de “casinha” e “boneca”, como
uma forma de preparação para os cuidados da casa, o casamento e a maternidade. Por isso,
em muitos momentos, as meninas sofrem bullying ou outras formas de violência por serem
vistas como frágeis e incapazes de se defenderem.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 139


Portanto, entende-se que as instâncias sociais produzem encaminhamentos nas quais
as relações de gênero são construídas por meio dos atributos que marcam o comportamento

de meninos e meninas, estabelecendo padrões de feminilidade e masculinidade. As diferenças


evidenciadas neste estudo revelam que existe entre os gêneros uma herança sociocultural
que determina, de certa forma, o modo como meninos e meninas devem se comportar na
sociedade. Os meninos são criados para serem fortes e terem autonomia frente às diversas
situações, estimulando o comportamento agressivo (modelo social machista), enquanto
meninas são criadas para serem delicadas e frágeis. Até mesmo as relações de amizade
seguem padrões de relacionamentos estabelecidos pela sociedade, na qual as meninas podem
expressar amizades íntimas com colegas do mesmo sexo, enquanto para os meninos esta

questão pode levá-los a situações de preconceito e vitimização. Os papéis sociais são


fundamentados pelos valores estabelecidos na sociedade. As diferenças de comportamento
que aparecem entre o masculino e o feminino reforçam a forma como os microssistemas
escola e família educam para os papéis sociais, bem como o macrossistema estimula a
estrutura dos ambientes de desenvolvimento humano voltada para o modelo

heteronormativo.

Deste modo, diante da questão da fragilidade/vulnerabilidade, optou-se por analisar


os dados pertinentes às relações de gênero no contexto escolar, pois, no atual cenário social,

a violência atua como um fenômeno mundial, ocorrendo tanto em espaços públicos como
privados. Neste sentido, a escola, como um microssistema de convivência social, pode
manifestar situações de violência e agressão e aquela ainda encontra dificuldades para abordar

a problemática. Assim, os estudos voltados ao bullying e gênero são relevantes para que haja
uma diminuição da violência no ambiente escolar em relação às meninas e os meninos, bem
como pesquisas que aprofundem a temática a fim de promover a paz dentro das escolas e a
cultura da prevenção e do desenvolvimento saudável das crianças.

METODOLOGIA

A pesquisa em questão é de natureza qualitativa, permitindo a compreensão e análise


das relações sociais no ambiente pesquisado, sem desprezar os dados quantitativos que
emergiram na pesquisa empírica (PIOVESAN; TEMPORINI, 1995; SILVEIRA;

140 Educação e Interseccionalidades


CÓRDOVA, 2009; MINAYO; SANCHES, 1993). A pesquisa seguiu os critérios exigidos
pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos da Universidade Federal do
Paraná (Parecer n° 1671640).

Foi realizada em uma escola municipal de Curitiba, no bairro Cajuru. A escola em

questão atende em média 140 (cento e quarenta) alunos do 5º ano do Ensino Fundamental,
no período matutino e vespertino. A população que frequenta a escola é de classe
média/baixa e o bairro possui pontos de tráfico de drogas e violência. A escolha do campo

de pesquisa se deu pela facilidade de acesso dos pesquisadores à escola.

Os participantes da pesquisa são estudantes oriundos de duas turmas de 5º ano do


Ensino Fundamental, aproximadamente 70 (setenta) alunos, entre 9 e 11 anos de idade, do
período vespertino. Do total de alunos, 38 (trinta e oito) trouxeram o TCLE (Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido) assinado e autorizado pelos pais/responsáveis,
tornando-se assim, os participantes do estudo: 22 (vinte e dois) meninas e 16 (dezesseis)

meninos.

Para a coleta dos dados da pesquisa foi realizado um questionário semiestruturado,


composto por 26 (vinte e seis) questões. Para o presente artigo, foram analisadas as questões
pertinentes ao gênero feminino e a ocorrência do bullying entre as meninas, bem como o

olhar destas sobre o fenômeno.

ANÁLISE, RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os dados foram analisados a partir da Técnica dos Núcleos de Significação

(Figura 1), de Aguiar e Ozella (2006), que propõe ao pesquisador a instrumentalização das
significações da realidade no qual o individuo está inserido, trazendo a riqueza do sentido

das palavras (AGUIAR; SOARES; MACHADO, 2015). Os núcleos foram elaborados


segundo os “Quatro princípios-pilares do conhecimento” (UNESCO, 2010), caracterizando
as significações que desejam ser explicadas na discussão dos dados.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 141


Figura 1. Fluxograma sobre a formação dos Núcleos de Significação

Estereótipos
Julgamentos
Denúncia
Gênero de valor
Pré-indicadores
Ambiente
e estéticos
delação Ambiente/contexto
Aspectos
Indicadores
morais Viver juntos
Núcleos

Fazer
Gênero
Ser
Autoconceito/autoimagem
Conhecer
Tipos de violência
Características emocionais
Agressão física

Fonte: Os autores

Verificou-se as respostas entre os meninos e as meninas sobre algumas perguntas do

questionário voltadas ao bullying: tipo mais comum; quem mais pratica e quem mais sofre
agressões e as características mais observadas em autores do bullying. Encontraram-se

diferenças entre os gêneros nos diferentes papéis de bullying mostrando que as meninas se
identificaram mais como alvos e testemunhas e os meninos, mais como autores.

É possível notar os tipos de bullyingmais utilizados contra os alvos. Entre eles, o tipo
mais utilizado pelos estudantes foi o verbal (89,4% são xingamentos), na forma de apelidos,
insultos ou deboches, seguido da agressão física (chutes, socos e empurrões – 21% ). Os
meninos em geral utilizaram mais o bullying físico para agredir seus colegas, enquanto as
meninas preferem o tipo verbal. Estes dados confirmam os estudos de Bandeira e Hultz

(2012).

Para trazer mais clareza a este questionamento, propõe o núcleo Viver juntos que

pode caracterizar os modos de convivência, respeitando a diferença do outro. Nota-se que


ainda há julgamento de valores e o uso de estereótipos estéticos, utilizando-se de
xingamentos e ameaças aos outros, confirmando os estudos de Bandeira e Hultz (2012) que
afirmam que os motivos para o bullying são os estereótipos (28,4%), seguido da comparação
social. Estes dados confirmam a relevância do trabalho, junto a comunidade escolar, com a
sensibilização sobre o bullying, já que este pode ser percebido como uma brincadeira entre

estudantes e traz um alerta sobre a naturalização do fenômeno, além de uma falta de empatia
e senso de coletividade.

142 Educação e Interseccionalidades


Para evidenciar o trabalho em equipe e noções de convivência, no que concerne o

trabalho e a empatia com o outro, propõe-se o núcleo Fazer. Os dados mostram que as
meninas são mais empáticas em relação aos alvos que sofrem bullying e que são presenciados.
Elas se mostram também propensas a serem estes alvos (63,1%), por serem frágeis e
sensíveis, o que ressalta a questão da vulnerabilidade apontada por Babiuk, Fachini e Santos

(2013).

No Bullying, os alvos relataram que os ataques são na maioria realizados por autores
meninos, alegando que estes são provocadores, agressivos e insensíveis. Tanto meninos como
meninas identificaram os meninos como autores, na maioria dos casos (86,8%),

corroborando com os estudos de Bandeira e Hultz (2012) que ressaltam o “predomínio do


sexo masculino entre os agressores” (p. 42). Os dados mostram que onze estudantes, de um
total de dezesseis meninos, se identificaram como autores.

Sob o ponto de vista da Teoria Bioecológica, entende-se que os autores são

produtores da violência, mas que também podem ser frutos de um ambiente permeado de
violência, no qual seu desenvolvimento foi moldado, reproduzindo estes padrões agressivos
em outros contextos, conceituando o termo da validade ecológica (SCHULTZ; DUQUE;
SILVA; SOUZA; ASSINI; CARNEIRO, 2012).

O núcleo Ser valoriza o ser crítico, como individuo, dotado de características únicas.
A importância do trabalho com as crianças nos valores e no respeito ao outro fazem jus a
este núcleo. Observa-se que as meninas sofrem muito com estereótipos que destacam seu
físico e o seu jeito de ser. Bandeira (2009) revela em sua pesquisa que as meninas possuem

índices mais elevados de baixa autoestima do que os meninos. A agressão verbal ganhou
destaque entre a forma de bullying mais utilizada, no que tange ao uso de xingamentos sobre
a forma de ser de cada um, confirmando os estudos de Matos e Jaeger (2015) que dizem que
os alunos que mais sofrem com o bullying são aqueles que possuem diferenças em relação ao
grupo “como obesidade, deficiência física, inteligência acima da média ou dificuldades de
aprendizagem” (p. 355).

Ao observar este apontamento, o uso de apelidos e xingamentos mais usados contra


as meninas é de ordem estética, que para os meninos, os mesmos xingamentos incidem para

o lado da sexualidade. Nesta questão, é importante evidenciar a questão social e cultural que

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 143


estabelecem padrões de comportamento diferenciados para meninos e meninas. As meninas,
precisam se preocupar com a aparência, enquanto meninos, com sua masculinidade e

heterossexualidade (MATOS; JAEGER, 2015). Macrossistemas como patriarcado e o


capitalismo também são incentivadores do bullying. O patriarcado define o masculino com
valores e poderes diferentes do que ao feminino, mostrando uma sociedade machista, que

inferioriza as mulheres. Estas concepções influenciam no desenvolvimento humano das


meninas e dos meninos de maneiras diferentes. O sistema capitalista impulsiona o

individualismo, a competitividade, privilegiando o sucesso pessoal em detrimento da


coletividade, fator este que impulsiona o bullying nas escolas (SCHULTZ; DUQUE;

SILVA; SOUZA; ASSINI; CARNEIRO, 2012). Por isso é muito comum no ambiente
escolar a perpetuação de valores baseado nas relações de gênero. Espera-se da menina que
ela seja passiva, tolerante, compreensiva, caprichosa. Enquanto do menino que ele seja

questionador, líder, ativo, desleixado. E estas características são tidas como naturais, pois
temos no nosso imaginário o que é feminilidade e masculinidade incondicionalmente, sem
nem mesmo refletir que estas características não são inatas, mas construídas culturalmente.
Este tipo de percepção do adulto que educa – especialmente no espaço escolar – interfere

decididamente no processo de ensino-aprendizagem das crianças. Carvalho (2001)


encontrou interferências diretas das relações de gênero sobre as avaliações processuais, com
base nos próprios discursos de professoras do Ensino Fundamental.

Do ponto de vista das professoras, os cadernos parecem materializar certas


características relativas ao gênero, expressando a feminilidade através de
limpeza, organização, cores, capricho, decalques e enfeites, e a masculinidade
através de desleixo, desorganização, sujeira. E neste caso o bom desempenho
estaria relacionado às características tidas como femininas,
independentemente do sexo do dono ou dona do caderno (CARVALHO,
2001, p. 566).

Por fim, elenca-se o núcleo Conhecer, o qual menciona a importância do aprender.


Ressalta-se mais uma vez a importância da sensibilização em relação ao fenômeno de forma
geral, pois ainda é visto como algo comum e tido como “brincadeiras da idade”, confirmando
os estudos de Fante (2005), que insiste em uma formação continuada dos profissionais da
educação e da comunidade escolar em geral sobre o bullying.

144 Educação e Interseccionalidades


Novos projetos e estudos precisam ser apresentados às crianças que aprofundem o
conceito e as características do fenômeno, a fim de promover entendimento e consciência
acerca do bullying e às diferenças de gênero. As estratégias para minimizar as ações do bullying
na escola necessitam de comprometimento e investimento no mesossistema família-escola,
adotando condutas adequadas para reduzir a violência de forma eficaz (BANDEIRA, 2009).

Os dados coletados em nossa pesquisa endossam temáticas emergentes no debate


contemporâneo acerca de violência, sexualidade e educação sexual. O alto índice de violência
contra a mulher, no Brasil, é um sintoma da naturalização da subjugação de meninas desde

o seu nascimento. Assim, não parece causar estranheza o fato das meninas serem os
principais alvos de atitudes de bullying no ambiente escolar. No entanto, os autores do
bullying também são vítimas deste processo, pois buscam corresponder a um modelo social

de masculinidade que lhe é apresentado muito cedo, alinhado aos padrões heteronormativos.
Em síntese, as relações de gênero são geradoras de violência pelo simples fato de promover

desigualdades permanentemente. Ainda, estas desigualdades são defendidas e silenciadas por


grupos políticos conversadores com base em projetos megalômanos como os conhecidos
escola sem partido e ideologia de gênero, temas atinentes à continuidade desta pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta investigação revela uma importante leitura da relação sobre o fenômeno do


bullying com as relações de gênero. A heteronormatividade e a naturalização do machismo
nas relações sociais influenciam no impacto da violência entre crianças em idade escolar. É
por isso que ser agressivo empregando, inclusive, violência física, são expressões
sumariamente atribuídas a crianças do sexo masculino. Tendo em vista que a maioria dos
alvos apontados pelos estudantes são as meninas, a misoginia também aparece nas relações
entre os estudantes, pois denota-se intolerância a quaisquer elementos que representam o
feminino. Por conseguinte, adolescentes do gênero masculino gays e bissexuais sofrem mais
bullying – 48 e 24% respectivamente – que adolescentes do gênero feminino lésbicas em

idade escolar – 15%, segundo dados de estudo realizado pela The Globe Alliance for LGBT
Education (2009).

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 145


Dados como estes revelam o quanto a violência na escola está relacionada à
diversidade sexual e às relações de gênero. Esta violência neste microssistema é apenas reflexo
de um macrossistema no qual impera a normatividade. Neste macrossistema, presenciamos
de forma naturalizada a homofobia, a violência contra a mulher e o racismo, por exemplo,
como uma espécie de “fatalidade” na qual o ambiente pouco pode fazer para modificar. O

que não é verdade. Do ponto de vista de um modelo bioecológico para o desenvolvimento


humano, devemos compreender o bullying – enquanto fenômeno de violência na escola – de
maneira sistêmica, influenciado por todos os indivíduos que compõem o espaço educativo.

Logo, se tais indivíduos contribuem para a perpetuação da violência, são estes os


mesmos que podem subverter práticas discriminatórias no espaço escolar desvelando ações
em prol da educação em direitos humanos e do respeito às diferenças.

REFERÊNCIAS

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Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 147


148 Educação e Interseccionalidades
EDUCAÇÃO, RELAÇÕES DE GÊNERO E
DIVERSIDADE SEXUAL NAS ESCOLAS:
uma questão de Direitos Humanos

Eduardo Felipe Hennerich Pacheco1 e Sirley Terezinha Filipak2

O presente trabalho tem como foco principal refletir sobre a problemática das relações de
identidade, gênero e diversidade sexual nas escolas. O problema que orientou a pesquisa
buscou responder a seguinte questão: como ocorrem os processos de exclusão e fabricação
identitária dos sujeitos que estão inseridos na comunidade escolar em relação às
problemáticas de gênero, orientação sexual e diversidade sexual? O objetivo geral do trabalho
é compreender quais são os mecanismos criados a partir dessa problemática que excluem os
sujeitos que não se adequam a normatividade social imposta. A reflexão elaborada tem como
referência metodológica a pesquisa documental e bibliográfica referendada nos estudos de:
Louro (2001, 2012), Silva (1996), Foucault (2004) entre outros, e nos documentos da
legislação vigente como a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN n.º 9.394 de 1996) e no Plano Nacional de Educação (2014
2024). Em suas considerações finais foi apontado a importância de trazer essas reflexões para
a educação pois os espaços educativos devem ser entendidos como espaços de cidadania e de
garantia e respeito aos Direitos Humanos.

Palavras-chave: Educação; Gênero; Identidade; Sexualidade; Direitos Humanos.

INTRODUÇÃO

O presente capítulo traz para a discussão a temática das relações de identidade,


gênero e diversidade sexual nas escolas. O estudo se justifica por sua atualidade e relevância
em termos de compreender que a educação não é de maneira alguma uma atividade neutra

e desprovida de intencionalidades políticas, ao contrário, a educação por ser uma atividade

1Mestre em Educação, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2017). Possui graduação em Filosofia
(2014), e é especialista em Antropologia Cultural ambas pela PUCPR (2016). E-mail:
eduardo.pva@hotmail.com
2 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2011). Atualmente é professora
pesquisadora do Programa de Mestrado e Doutorado da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail:
sirley.filipak@pucpr.br

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 149


política carrega consigo o signo da ambiguidade porque ou reproduz a hegemonia excludente
presente na sociedade ou a transforma.

Partindo do pressuposto que a educação possui uma natureza política e ambígua, o


problema que orientou a presente discussão buscou responder a seguinte questão: como
ocorrem os processos de exclusão e fabricação identitária dos sujeitos que estão inseridos na

comunidade escolar em relação às problemáticas de gênero, orientação sexual e diversidade


sexual? E para refletir sobre essa temática há necessidade de compreender quais são os
mecanismos criados que excluem os sujeitos que não se adequam à normatividade social.

As análises dessas questões desenvolvem-se ao longo de três itens: relações de gênero

e diversidade sexual na educação; mecanismos de exclusão e subjetivação dos sujeitos; o


papel da educação em e para Direitos Humanos como ferramenta para a superação dos pré
conceitos excludentes que permeiam as relações de gênero na educação.

Para indagar essas questões, optou-se metodologicamente pela pesquisa documental

e bibliográfica, pois se constitui em uma “preciosa fonte de informações” (SANTOS, 2000,


p. 31) e é “[...] desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente

de livros e artigos científicos” (GIL, 2002, p. 44). Dessa maneira, a partir da


metodologia escolhida realizou-se uma análise da problemática com base nos argumentos
teóricos da legislação vigente, tais como: a Constituição da República Federativa do Brasil

(BRASIL, 1988), a Lei n.º 9.394 de 1996 que estabelece as Diretrizes da Educação Nacional
(BRASIL, 1996), a Lei n.º 13.005 de 25 de junho de 2014 que aprova o Plano Nacional de
Educação – PNE 2014-2014 (BRASIL, 2014). O aporte teórico da pesquisa foi
proporcionado pelos estudos elaborados por: Arroyo (2001), Bento (2008), Britzman (1996),
Foucault (2004), Louro (2001, 2012), Ferreira e Luz (2009), Junqueira (2011) entre outros.

RELAÇÕES DE GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL NA


EDUCAÇÃO

Cotidianamente as instituições escolares são enriquecidas com uma multiplicidade

de diversidades que adentram seus portões. Diversidades essas que são asseguradas pela
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que garante a todos os cidadãos

150 Educação e Interseccionalidades


brasileiros além da igualdade de direitos e deveres a dignidade da pessoa humana, o bem de

todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação, bem como a prevalência dos direitos humanos e a igualdade de condições
para o acesso e permanência na escola (BRASIL, 1988).

Por sua vez, a LDBEN n.º 9.394, de 1996, reiterando os princípios constitucionais,
novamente afirma o direito de todos os cidadãos a uma educação baseada na liberdade,
tolerância e igualdade de condições de acesso e permanência na escola (BRASIL, 1996).

Em 2014 com a Lei n.º 13.005 que aprova o Plano Nacional de Educação (PNE
2014-2024), previsto no artigo 214 da Constituição Federal, assegura em seu artigo 2.º a

“superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na


erradicação de todas as formas de discriminação” (BRASIL, 2014), da mesma maneira que
estabelece na estratégia 3.13 da meta 3 a implementação de “políticas de prevenção à evasão

motivada por preconceito e discriminação racial, por orientação sexual ou identidade de


gênero, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão” bem como o

fortalecimento e acompanhamento do acesso e permanência dos estudantes em situações de


“discriminação, preconceitos e violências na escola” (BRASIL, 2014).

Todavia, mesmo com todas essas confirmações legais, na maioria das vezes, as
instituições não estão preparadas para lidar com essa gama de diversidade de gênero, sexual,
étnica e de identidade. E não lidando com a diversidade acaba por omiti-las e/ou excluí-las.
Para Ferreira e Luz (2009) as instituições escolares quando não traduzem essa diversidade
em seus currículos, práticas pedagógicas e vivências educacionais, criam aparatos de
fabricação e subjetivação de sujeitos que promovem uma verdadeira invisibilidade dos

sujeitos que não são considerados “normais”. Para as autoras

[...] o espaço escolar é um espaço relevante e que produz, reproduz, reafirma,


desconstrói e legitima imagens e representações de gênero e sexualidade. Esse
espaço é no entanto, contraditório, pois assim como pode reproduzir, pode
também transformar (FERREIRA; LUZ, 2009, p. 37).

Como destacado pelas teóricas a educação torna-se um espaço contraditório e muitas


vezes hostil quando ignora a multiplicidade de identidades que a compõe. Berenice Bento

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 151


comentando acerca do silenciamento que os alunos diferentes sofrem nas instituições
escolares exemplifica bem essa questão quando enfatiza que

[...] a escola, que se apresenta como uma instituição incapaz de lidar com a
diferença e pluralidade, funciona como uma das principais instituições
guardiãs das normas de gênero e produtora da heterossexualidade. Para os
casos em que as crianças são levadas a deixar a escola por não suportarem o
ambiente hostil é limitador falarmos em “evasão”. No entanto, não existem
indicadores para medir a homofobia de uma sociedade e, quando se fala na
escola, tudo aparece sob o manto invisibilizante da evasão. Na verdade há um
desejo em eliminar e excluir aqueles que contaminam o espaço escolar. Há
um processo de expulsão e não de evasão (BENTO, 2008, p. 129).

A educação e o cotidiano escolar tornam-se um ambiente privilegiado de vigilância


das normas hegemônicas de gênero e sexualidade promovidos pelos processos de
heteronomatividade. Tais processos:

[...] que são pedagógicos e curriculares – produzem e alimentam a homofobia


e a misoginia, especialmente entre os meninos e rapazes. Para eles, o “Outro”
passa a ser principalmente as mulheres e os gays e, para merecerem suas
identidades masculinas e heterossexuais, deverão dar mostras contínuas de
terem exorcizado de si mesmo a feminilidade e a homossexualidade. À
disposição deles estará um inesgotável arsenal “inofensivo” de piadas e
brincadeiras (racistas, misóginas e homofóbicas). E eles deverão se distanciar
do mundo das meninas e ser cautelosos na expressão de intimidade com
outros homens, conter a camaradagem e as manifestações de afeto, e somente
se valer de gestos, comportamentos e ideias autorizados para o “macho”
(JUNQUEIRA, 2011, p. 98).

Essa vigilância promove a construção de estereótipos e ressignificações dos sujeitos

que fazem parte da comunidade educativa, pois a “escola entende disso. Na verdade, a escola
produz isso. Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação distintiva” (LOURO,
2012, p. 61), criando e recriando as imagens do bom aluno e da boa aluna, do bom professor

e da boa professora. Essas “imagens quebradas” (ARROYO, 2007) inclui, exclui e subjetivam
os sujeitos por meio de mecanismos de inclusão e exclusão dos indivíduos que são
representados - e por isso são incluídos - ou dos sujeitos que são invisibilizados e por isso

excluídos.

152 Educação e Interseccionalidades


MECANISMOS DE INCLUSÃO/EXCLUSÃO E SUBJETIVAÇÃO
DOS SUJEITOS

Michel Foucault em seus primeiros escritos da fase arqueológica do saber examina


os processos de subjetivação e objetivação que os discursos realizam nos sujeitos. Para ele

“os processos de subjetivação e de objetivação que fazem com que o sujeito possa se tornar,
na qualidade de sujeito, objeto de conhecimento” (FOUCAULT, 2004, p. 236). Dito de
outra forma, a maneira que os sujeitos se identificam, constroem suas identidades e se

relacionam com os outros e consigo mesmo são intrinsicamente ligados aos mecanismos que
subjetivam o discurso e os sujeitos.

Esses mecanismos de subjetivação e construção identitária na educação são tão

diversos e quase sempre tão naturais que nem sempre é possível identificá-los. Eles estão
presentes nas linguagens utilizadas ou não; nos conteúdos que são considerados aptos a
serem ensinados ou não; no material didático que exprime a concepção de reflexão que a
escola adota e que será levada para casa dos estudantes; no modelo de gestão e organização

que a escola vivencia; e, principalmente nos currículos visíveis e ocultos que permeiam o
ambiente educacional (LOURO, 2012).

Para Guacira Louro (2012) esses mecanismos de subjetivações são os principais


responsáveis pelas construções e marcações das diferenças e desigualdades entre os gêneros

e para a autora “a linguagem é, seguramente, o campo mais eficaz e persistente – tanto


porque ela atravessa e constitui a maioria de nossas práticas, como porque ela nos parece
quase sempre, muito ‘natural’ [...]” (LOURO, 2012, p. 69).

O poder que a linguagem assume nas práticas cotidianas escolares (LOURO, 2012)
expressa duas características: as relações de poder existentes no interior das instituições; e
os lugares que são instituídos, e que cada qual deve pertencer (ou não). Essas características
exprimem e fixam as diferenças de gêneros, de raça, de cor, de etnias, de orientação sexual,

de classes entre outras.

A linguagem é tão eficiente que na concepção de Denise Portinari a linguagem “[...]


é um turbilhão e nos usa muito mais do que nós a usamos. Ela nos carrega. Molda, fixa,

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 153


esmaga (seria talvez a depressão: sou esmagada pela palavra) e ressuscita (não há a “palavra

da salvação”?)” (PORTINARI, 1989, p. 18).

O esmagamento que a linguagem promove no cotidiano escolar é tão eficaz que ela:

[...] institui e demarca os lugares dos gêneros não apenas pelo ocultamento
do feminino, e sim, também, pelas diferenciadas adjetivações que são
atribuídas aos sujeitos, pelo uso (ou não) do diminutivo, pela escolha dos
verbos, pelas associações e pelas analogias feitas entre determinadas
qualidades, atributos ou comportamentos e os gêneros (do mesmo modo
como utiliza esses mecanismos em relação às raças, etnias, classes,
sexualidades etc.). Além disso, tão ou mais importante do que escutar o que
é dito sobre os sujeitos, parece ser perceber o não dito, aquilo que é silenciado
– os sujeitos que não são, seja porque não podem ser associados aos atributos
desejados, seja porque não podem existir por não poderem ser nomeados.
Provavelmente nada é mais exemplar disso do que o ocultamento ou a
negação dos/as homossexuais – e da homossexualidade – pela escola
(LOURO, 2012, p. 71).

Assim como a linguagem o currículo escolar desempenha um enorme papel na


construção e subjetivação identitária dos sujeitos que nele estão inseridos. O termo

currículo:

[...] deriva da palavra latina curriculum (cuja raiz é a mesma de cursus e currere)
[...]. Em sua origem currículo significava o território demarcado e regrado
do conhecimento correspondente aos conteúdos que professores e centro de
educação deveria cobrir; ou seja, o plano de estudos proposto e imposto pela
escola aos professores (para que o ensinassem) e aos estudantes (para que o
aprendessem) (SACRISTÁN, 2013, p. 16).

Os currículos nas instituições escolares demarcam a posição política que as


instituições escolares aderem. Demarcam o tipo de conhecimento que a instituição considera

válido ou não a ser ensinado. O currículo assume dois distintos papeis na fabricação
identitária dos sujeitos: um visível que designa as disciplinas que serão ministradas, os
conteúdos ensinados (ou não), as avaliações, as relações de ensino-aprendizagem e a relação
de gestão escolar (que pode ser democrática, participativa ou hierárquica e de poder); e um
oculto que “é constituído por aqueles aspectos do ambiente escolar que, sem fazerem parte

do currículo oficial, contribuem, de forma implícita, para aprendizagens sociais relevantes”

154 Educação e Interseccionalidades


(SILVA, 2009, p. 78), ou seja, o currículo oculto é caracterizado pelas ações implícitas que
permeiam as instituições escolares e modelam a conduta e a construção identitária dos

sujeitos circundantes.

Para as teorias críticas do currículo, é o currículo oculto que “ensina, em geral, o


conformismo, a obediência, o individualismo” (SILVA, 2009, p. 78), e que mantêm a

hegemonia social, econômica e política dominante.

Nesta perspectiva, podemos analisar os elementos que contribuem para essa prática,
principalmente, quando evocamos no cotidiano escolar as relações de gênero, identidade,

sexualidade, os rituais, as regras e regulamentos, a meritocratização entre “os mais” e “os


menos” capazes por exemplo.

Autores como Libâneo, Oliveira e Toschi (2012), que comentam acerca da influência

que o currículo oculto exerce na educação sugere que, “embora recôndito, atua de forma
poderosa nos modos de funcionar das escolas e na prática dos professores. Tanto isso é
verdade, que os mesmos professores tendem a agir de forma diferente em cada escola em
que trabalham” (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012, p. 44). Por essa razão, é
necessário “desocultar” o currículo, para assim compreender o que esses conhecimentos e
práticas sugerem, para só assim “assegurarmos a escola como espaço e garantia do direito à

qualidade social” (EYNG, 2013, p. 32), independente das diferenças.

No currículo oculto as relações de gênero estão embutidas nos arranjos


institucionais, basta pensarmos, por exemplo, na generificação dos conhecimentos (áreas

consideradas masculinas e áreas tidas como femininas). E muitos desses símbolos não são
exportados do exterior das instituições escolares, ao contrário, muitos deles são criados pela
própria instituição que demarca essa dinâmica formadora de identidades.

Esses mecanismos utilizados pelas instituições escolares promovem um verdadeiro


ocultamento dos sujeitos que não estão “adequados” a essa hegemonia dominante. Louro

(2001) comentando acerca desses mecanismos utilizados pelas instituições escolares, mais
especificamente em relação à homossexualidade reflete que

O processo de ocultamento de determinados sujeitos pode ser


flagrantemente ilustrado pelo silenciamento da escola em relação aos/às

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 155


homossexuais. No entanto, a pretensa invisibilidade dos/as homossexuais no
espaço institucional pode se constituir, contraditoriamente, numa das mais
terríveis evidências da implicação da escola no processo de construção das
diferenças. De certa forma, o silenciamento parece ter por fim “eliminar”
esses sujeitos, ou, ou pelo menos, evitar que os alunos e as alunas “normais”
os/as conheçam e possam desejá-los/as. A negação e a ausência aparecem,
nesse caso, como uma espécie da garantia da “norma” (LOURO, 2001, p.
89).

Esse ocultamento apontado por Louro (2001), também é descrito por Britzman

(1996), que ao analisar a cultura escolar da “naturalidade” e “normalidade” da sexualidade e


dos gêneros promovida pelas instituições escolares comenta que o diferente é sempre
ocultado, pois as instituições entendem que:

[...] a mera menção da homossexualidade vá encorajar práticas homossexuais


e vá fazer com que os/as jovens se juntem às comunidades gays e lésbicas. A
ideia é que as informações e as pessoas que as transmitem agem com a
finalidade de “recrutar” jovens inocentes [...]. Também faz parte desse
complexo mito a ansiedade de que qualquer pessoa que ofereça
representações gays e lésbicas em termos simpáticos será provavelmente
acusada de ser gay ou de promover uma sexualidade fora-da-lei. Em ambos
os casos, o conhecimento e as pessoas são considerados perigosos, predatórios
e contagiosos (BRITZMAN, 1996, p. 79-80).

No imaginário coletivo, tem-se uma ideia que ao tratar dos assuntos ligados à

sexualidade, gênero e orientação sexual eles possam despertar mudanças repentinas no


comportamento da comunidade escolar e isso faz com que os sujeitos que não estejam no

padrão imposto socialmente, além de não serem representados nas práticas pedagógicas e
nos currículos, sejam expurgados lentamente dos ambientes educativos. Normalmente essa
expurgação é denominada de evasão escolar pelas autoridades competentes e a normalidade

que essas situações apresentam revela que essas práticas são socialmente aceitas e raramente
questionadas.

Para Ferreira e Luz (2009, p. 41) estas questões não podem ser indiferentes e

silenciadas pela educação, pois as mesmas fazem parte do cotidiano da comunidade escolar.
Assuntos como:

156 Educação e Interseccionalidades


[...] da identidade, da diferença e do outro é um problema pedagógico e
curricular, especialmente, se o outro é o outro gênero, é a cor diferente, é a
outra sexualidade, é a outra etnia, é a outra nacionalidade, é o corpo diferente.
Problema maior ainda quando o outro não é aceito pela própria escola
(FERREIRA; LUZ, 2009, p.41)

Quando não trabalhadas e evidenciadas pelas instituições escolares, essas questões


ficam à margem dos conteúdos tidos como “oficiais” e “essenciais” para a formação dos

educandos. Essa omissão e indiferença não representam uma opção segura, ao contrário, de
acordo com Ferreira e Luz (2009, p. 40-41).

[...] a pedofilia, a violência sexual, a violência doméstica, a homofobia, o


sexismo, o racismo, entre outras questões revelam que o silêncio sobre o tema
não representa possibilidades de se viver em uma sociedade que respeite as
diferenças. O que tem imperado é o individualismo, a indiferença, o egoísmo,
contribuindo para gerar relações que, em muitos casos, podem ser
classificadas como patológicas e criminosas, como nos casos de abuso e de
violência sexual e de gênero.

Os mecanismos de subjetivação dos sujeitos que as instituições escolares adotam,


além de não incluir a diversidade presente na sociedade acaba por excluí-la. E isso além de
ferir gravemente a dignidade dos indivíduos promove um verdadeiro desrespeito aos Direitos

Humanos conquistados por lutas e resistência de indivíduos historicamente excluídos pelo


poder dominante.

Desta maneira, apoiados em uma concepção multicultural crítica de Direitos

Humanos e em consonância com o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos


elaborado pelo Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos acreditamos que a
efetiva inserção de práticas e vivencias dos Direitos Humanos nos currículos e nas posturas

pedagógicas possam garantir conhecimentos, cultura e valores à uma formação integral dos
indivíduos rumo a um reconhecimento e valorização das diversidades sexuais, identitárias,
étnicas, religiosas, de gênero... reconhecimento não do Outro como desigual, estranho,
estrangeiro, sub-humano, inexistente e oculto mas, reconhecimento do Outro como sujeitos

de sua história, como sujeitos de direito.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 157


EDUCAÇÃO EM E PARA OS DIREITOS HUMANOS:
POSSIBILIDADES PARA A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL DA
EDUCAÇÃO

Como possibilidade de transformação social da educação a perspectiva dos Direitos

Humanos - inseridos e vivenciados de maneira autêntica nas práticas educacionais - podem


contribuir para trazer visibilidade aos sujeitos que são invisibilizados pelos mecanismos de
exclusão que permeiam as relações de identidade, sexualidade e gênero na educação.

Os conteúdos referentes aos Direitos Humanos no currículo das instituições

educacionais entraram em vigor a partir da elaboração do Plano Nacional de Educação em


Direitos Humanos (PNEDH) em 2007. Todavia, a LDBEN (Lei n.º 9.394/96) vai incluir
na legislação a efetiva promoção do PNEDH a partir da Lei n.º 13.010, de 26 de junho de
2014 que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069, de 13 de julho de
1990).

O objetivo principal da inserção da educação em Direitos Humanos como temas


transversais nos currículos escolares é a abrangência de

[...] conhecimentos e técnicas – aprender sobre os direitos humanos e os


mecanismos para sua proteção, bem como adquirir a capacidade de aplicá-los
na vida cotidiana; valores, atitudes e comportamentos – promover valores e
fortalecer atitudes e comportamentos que respeitem os direitos humanos;
adoção de medidas – fomentar a adoção de medidas para defender e difundir
os direitos humanos (UNESCO, 2012, p. 14).

Diante dessa prerrogativa, a Educação em e para Direitos Humanos (EDH) deve ser

entendida como um instrumento efetivo de proteção contra as violências de gênero que


permeiam a educação além de ser considerada como, “parte do direito à educação e, ao
mesmo tempo, um direito humano fundamental de toda pessoa em se informar, saber e
conhecer seus Direitos Humanos e os modos de defendê-los e protegê-los” (ZENAIDE,
2008, p. 128), pois o grande desafio enfrentado pelas instituições escolares é o de:

[...] reconhecer a diversidade como parte inseparável da identidade nacional


e dar a conhecer a riqueza apresentada por essa diversidade etnocultural que

158 Educação e Interseccionalidades


compõe o patrimônio sociocultural brasileiro, investindo na superação de
qualquer tipo de discriminação e valorizando a trajetória particular dos grupos
que compõem a sociedade. Nesse sentido, a escola deve ser local de
aprendizagem de que as regras do espaço público permitem a coexistência,
em igualdade, dos diferentes (BRASIL, 1997, p. 23).

A vivência dos Direitos Humanos deve permear todas as práticas educativas, pois
somente conhecendo seus direitos os indivíduos podem reivindicá-los. Neste caminho, a

Educação em Direitos Humanos permite socializar os conhecimentos, conteúdos e valores


para a promoção de uma cultura em Direitos Humanos que valorize as diferenças presentes
na comunidade escolar, especialmente nas relações de gênero e sexualidade.

Valorização essa não apoiada em “um vago e benevolente apelo à tolerância e ao


respeito para com a diversidade e a diferença” (SANTOS, 2014, p. 73) que no fim acaba
apenas por naturaliza-las, cristaliza-las e essencializá-las (SANTOS, 2014), mas uma
valorização que permita “deixar que o outro seja diferente de mim tal como eu sou diferente

(do outro)” (PARDO,1996, p. 154). Valorização que não esvazie e apazigue as diferenças e
desigualdades, mas que indague as relações políticas e de poder que as relações de gênero,
identidade e sexualidade trazem em seus âmagos.

A Educação em Direitos Humanos, deve atuar como ferramenta de estímulo a


exploração das possibilidades identitária, individuais e diferentes contribuindo para a
concepção da multiplicidade das identidades como algo em constante movimento, em fluxo

e sempre questionadora das esferas do poder dominante.

Nessa perspectiva a Educação em Direitos Humanos:

[...] é essencialmente a formação de uma cultura de respeito à dignidade


humana através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça,
da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz.
Portanto, a formação desta cultura significa criar, influenciar, compartilhar e
consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que
decorrem, todo, daqueles valores essenciais citados – os quais devem se
transformar em práticas (BENEVIDES, 2000, p.1).

Assim como sugere o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, “a


educação em direitos humanos vai além de uma aprendizagem cognitiva, incluindo o

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 159


desenvolvimento social e emocional de quem se envolve no processo ensino-aprendizagem”
(PNEDH/2006). Portanto, a EDH deve estar constantemente orientada para a plena
realização dos indivíduos, bem como para a efetiva promoção da paz e da justiça social, das

diferenças e da igualdade nas diferenças.

Contudo, um dos limites que percebemos na inserção da EDH nos currículos


escolares é a própria transversalidade desses conteúdos compartilhados. Essa

transversalidade, por vezes, fica vaga e difusa na legislação cabendo a própria instituição
adotar (ou não) na parte diversificada dos currículos. Além disso, se pensarmos o delicado
momento político que a sociedade brasileira vem enfrentando - basta lembrarmos dos(as)

professores(as) que sofreram represálias por parte da sociedade por trabalharem em sala de
aula questões acerca de gênero, sexualidade e identidade - esses conteúdos podem acabar
por serem tratados de forma leviana e supérflua, não cumprindo assim seus verdadeiros

objetivos.

Apesar disso, quando trabalhada de forma adequada e crítica, a educação em Direitos

Humanos pode tornar-se uma importante ferramenta para que as instituições escolares
contribuam para a desconstrução de estereótipos, violências e pré-conceitos ligados as

questões de gênero, diversidade sexual, identidade, classe social e poder econômico, raça e
etnia, religiosidades e demais temáticas que fazem parte do cotidiano escolar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve por objetivo investigar como ocorrem os processos de


exclusão e fabricação identitária dos sujeitos que estão inseridos na comunidade escolar em
relação às problemáticas de gênero, orientação sexual e diversidade sexual.

Mediante o exposto, concluímos que a educação deve ser entendida com um espaço
democrático de promoção do direito que cada um tem na sua igualdade e nas suas diferenças
(SANTOS, 1997). A educação em e para Direitos Humanos deve proporcionar
conhecimentos capazes de emancipar os sujeitos inseridos no contexto educacional. Esses
conhecimentos devem traduzir e nortear as práticas pedagógicas, os currículos e

160 Educação e Interseccionalidades


principalmente contribuir para um autorreconhecimento como sujeito de direitos na luta
contra as hegemonias excludentes.

A temática abordada no presente trabalho é de extrema importância e tem permeado


as discussões acerca da garantia dos Direitos Humanos expressos em diversos documentos

oficiais nacionais e internacionais.

A escola não deveria ser um espaço de exclusão, mas sim um espaço de cultivo e
valorização das diversidades existentes na sociedade, não só dos educandos, mas também

dos(as) professores(as) e funcionários(as) que não se adequam à normatividade social


estabelecida e imposta.

Entender a relação da educação com o tema da diversidade é compreender uma


relação política, no sentido de que, se buscamos um país e uma sociedade que garanta aos
seus cidadãos, condições dignas de se viver, é de extrema importância que a educação
promova práticas de proteção contra qualquer forma de violência de identidade, gênero,

diversidades culturais, de raça e demais possiblidades de construções identitárias.

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Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 161


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Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 163


164 Educação e Interseccionalidades
GÊNERO E SEXUALIDADE EM
DISCURSO:
práticas de in/exclusão escolar

Thais Vieira de Matos

Essa pesquisa toma a noção de análise do discurso elaborada por Michel Foucault, bem como
os Estudos de Gênero, para destacar e questionar as redes discursivas em que se atrelam as
concepções de gênero e sexualidade expressas nos textos de professoras, utilizados aqui como
corpus, diante do contexto de inclusão escolar – via formação docente no “Curso de
Aperfeiçoamento GDE – Gênero e Diversidade na Escola”, oferecido em 2013/2014 pelo
Setor Litoral, da Universidade Federal do Paraná – UFPR. Logo, dá continuidade às
discussões contemporâneas sobre os processos, simultâneos, de in/exclusão, discutindo sua
relação específica com o gênero e a sexualidade. Concluiu-se que as práticas discursivas e
políticas que não interrogam os critérios de inteligibilidade, para definição dos sujeitos, da
matriz heteronormativa, correm o risco de perpetuá-la, pois deixam de diagnosticar os
limites, artificialmente, produzidos para a materialização de identidades de gênero e
sexualidade tidas como “normativas” ou “diversas” ao promover a inclusão das últimas –
representadas pelas identidades LGBT –, solicitando o respeito e a tolerância das primeiras,
ou seja, adentrar na escola nessas condições pré-determinadas, sob o signo da “diversidade”,
é adentrar no paradoxo da in/exclusão.
Palavras-chave: gênero; sexualidade; discurso; in/exclusão.

INTRODUÇÃO

No contexto brasileiro recente, gênero e sexualidade faz parte tanto das discussões e
políticas de abertura à “diversidade” quanto das iniciativas conservadoras que procuram
minar tais práticas, as quais foram remontadas nesse estudo, sobretudo, no que tem a ver
com as políticas de inclusão escolar. Por esse motivo, nesse ensaio, mesmo diante do fato de

que as “minorias” vêm perdendo o espaço conquistado, a ideia de que as políticas públicas
em questão seriam, exclusivamente, positivas se vê problematizada.

Os textos analisados como corpus foram escritos por professoras no processo seletivo
para o “Curso de Aperfeiçoamento GDE – Gênero e Diversidade na Escola”, oferecido em

2013/2014 pelo Setor Litoral, da Universidade Federal do Paraná – UFPR. A partir das

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 165


discursividades acionadas pelas docentes no GDE, foram destacadas as concepções de gênero
e sexualidade e questionados os efeitos de promover políticas públicas educacionais baseadas
na perspectiva identitária atual. Pois,

[...] relacional e subjetivamente a discriminação contra o outro ainda se


mantém em nossa cultura, constituindo muitas práticas que podemos ver nas
escolas, nas ruas, no mercado de trabalho, etc. Portanto, assumimos a noção
de in/exclusão por reconhecermos que modificar os números da inclusão no
País não é o mesmo que mudar o êthos ou a cultura de discriminação que
constitui os sujeitos. (LOPES; FABRIS, 2013, p.116).

Na análise das discursividade, que em sua recorrência indicam planos amplos de


significação, próprios de nossos dias, não investigo opiniões das professoras em si, mas
aquelas suscitadas pelas redes discursivas que permeiam as próprias políticas públicas

educacionais, já que as docentes falam do GDE e para ingressar nesse curso, essas falas estão
dirigidas para a seleção e posterior participação no curso de formação. Uma dessas
discursividades recorrentes considera que existem discentes “iguais” e outras “diversas”. Nas
palavras de Michel Foucault:

Tentaríamos ver se o comportamento político de uma sociedade, de um


grupo ou de uma classe, não é atravessado por uma prática discursiva
determinada e descritível. Essa positividade não coincidiria, evidentemente,
nem com as teorias políticas da época, nem com as determinações
econômicas: da política, ela definiria o que pode tornar-se objeto de
enunciação, as formas que tal enunciação pode tomar, os conceitos que aí se
encontram empregados e as escolhas estratégicas que aí se operam.
(FOUCAULT, 1987, p. 220).

De modo prático, foram considerados os enunciados, acionados por inúmeras

docentes em circunstâncias similares, reconduzindo efeitos de poder globais, descritíveis em


meio a redes discursivas específicas.

GDE E A INCLUSÃO ESCOLAR

Os efeitos de in/exclusão, advindos de discursos que instituem concepções universais

de gênero e sexualidade, a partir da matriz de inteligibilidade heteronormativa, ao serem

166 Educação e Interseccionalidades


reconduzidos pelas políticas públicas de inclusão escolar, especialmente, dentro da proposta
de formação docente no GDE, inscrevem os termos dessa matriz no cerne do processo
inclusivo.

As docentes que participaram como cursistas do GDE, ao dissertarem sobre suas


expectativas em relação ao curso, dizem se sentir responsáveis pelo destino maior traçado
para ele, o da inclusão social, elas passam por um processo de responsabilização indicado
pelas autoras Meyer, Dal’Igna, Klein e Silveira (2014), em sua investigação dos mecanismos

do Estado para, por meio das políticas públicas, estabelecer formas pré-determinadas de ação
para as pessoas envolvidas no jogo paradoxal da inclusão.

É preciso incluir para conhecer, controlar, vigiar e governar. Pode-se, desde


esse ponto de vista, questionar certa banalização de um conceito unívoco de
inclusão como resposta à exclusão para compreendê-la como prática de
regulação e controle; Como conjunto de práticas que agem sobre o indivíduo
e a população; como um imperativo. (MEYER; DAL’IGNA; KLEIN;
SILVEIRA, 2014, p. 1010).

Por um lado, muitas vezes, a inclusão é considerada estritamente necessária e


positiva, por outro lado, pensá-la como imperativo requer considerar as práticas simultâneas
ou antecedentes de in/exclusão. Assim, na direção de perseguir dada inclusão, localiza-se a

responsabilização das profissionais quanto aos rumos do GDE, no que ele vai ou não produzir
na realidade das questões impostas pelas desigualdades sociais demarcadas pelo gênero e/ou
pela sexualidade.

Na medida em que o gênero e a sexualidade são tomados como temas a se

compreender, e não como produtos da matriz heteronormativa e do dispositivo de


sexualidade, “[...] essa ênfase acaba funcionando para naturalizar lugares e funções
socialmente construídas como femininas/masculinas, desconsiderando os efeitos sociais e
políticos que tais discursos promovem e reforçam.” (MEYER; KLEIN; DAL’IGNA;
ALVARENGA, 2014, p. 898). Vejamos a seguinte indicação de que a escola:

[...] como instituição de produção e transmissão de conhecimentos e valores


historicamente institucionalizados deve orientar e esclarecer o indivíduo
objetivando a formação crítica cidadã livre de estereótipos e preconceitos que

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 167


circundam o senso comum; [...] para aceitação do diferente como normal.
(LT 14).

O ensino proposto, nesses termos, sugere que se a “inclusão” existir, essa se dará,
conforme reforce as práticas normalizadas como tais, e, ao mesmo tempo, pacifique aquelas

que são dissidentes. A política identitária indica, em primeiro lugar, esse mesmo norte,
apontado também pelas professoras, como se pode ler a seguir: “A escola não pode se privar

de (re) conhecer os diferentes sujeitos que por ela circulam e a integram, sob pena de tratar
os desiguais como iguais.” (LT 1)1. Estas discursividades derivam do compromisso do
Estado com a valorização da “diferença”, no intuito de que suas “representantes” estejam

incluídas e não sofram mais com a violência da discriminação negativa.

O embate por si só merece especial atenção de estudiosos/as culturais e


educadores/as. Mas o que o torna ainda mais complexo é sua contínua
transformação e instabilidade. O grande desafio não é apenas assumir que as
posições de gênero e sexuais se multiplicaram e, então, que é impossível lidar
com elas apoiadas em esquemas binários; mas também admitir que as
fronteiras vêm sendo constantemente atravessadas e – o que é ainda mais
complicado – que o lugar social no qual alguns sujeitos vivem é exatamente
a fronteira. (LOURO, 2015, p. 28).

O “Curso de Aperfeiçoamento GDE – Gênero e Diversidade na Escola” foi proposto


em decorrência da articulação maior feita pelo Ministério da Educação e pela Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres em diálogo com os Estados, Municípios e sociedade
civil organizada em movimentos sociais ou não, a fim de implementar políticas públicas

educacionais que possam: a) combater o racismo e valorizar a diversidade étnico-racial; b)


promover a equidade de gênero e c) combater todas as formas de discriminação social.

DROIT ET DIVERSITÉ

A ideia de criar e demarcar as diferenças, com intuito de manter as desigualdades


sociais, desde sempre foi o maior empreendimento do conservadorismo, por isso, garantir o
exercício dos direitos sem, para tanto, recorrer à limitação das diferenças em identidades

1A sigla LT significa Letras e PG Pedagogia, elas representam a área de formação inicial da docente.

168 Educação e Interseccionalidades


singulares, é o grande desafio da atualidade para quem se dedica a pensar a educação
contemporânea e a inclusão escolar, pois se “[...] procurar uma estrutura invariante e
permanente da várias formações históricas de direita através desses dois últimos séculos da
modernidade, tal estrutura se encontra nisto: na denegação do direito.” (PIERUCCI, 2013,
p. 29). Os excertos a seguir indicam a relação estrita da diversidade com o campo do direito:

[...] ações que invadem os direitos das pessoas. (PG 2);


Enquanto Profissionais da Educação temos a obrigação de fortalecer aos
alunos a garantia que lhe é assegurada dos direitos de cada cidadão. (PG 4);
Todos só temos a crescer nessa discussão e o principal desafio é contribuir na
prática e garantir a efetividade do direito à educação. (PG 14);
Enquanto educadora, participo de grupos de estudo para debater esta
temática, e entendemos que já conquistamos importantes resultados na
ampliação do acesso e no exercício dos direitos. (PG 15);
Trabalhei Gênero e Diversidade, debatendo e informando: os tipos de
violência, as conquistas dos movimentos sociais, o direito de igualdade na
vida social e profissional. (LT 10);

Se as movimentações à direita constrangem o acesso ao exercício dos direitos, e


aquelas a esquerda lutam para ampliar tal acesso, não quer dizer que não compartilhem do
mesmo processo de diferenciação e identificação que coloca à margem determinadas

populações, por exemplo, a LGBT, quando consideramos a luta pelo direto à diferença
(PIERUCCI, 2013). César e Sierra (2016) lembram que Foucault, durante a década de 1980,

“[...] já explicitava clara preocupação em relação aos limites presentes nessa


forma de luta social pela aquisição de direitos, pois a aceitação de práticas
sexuais homossexuais no interior de uma ordem heterossexual não seria capaz
de operar transformações sociais significativas”. (p. 2014).

As discursividades analisadas aqui, em sua funcionalidade e produtividade


características, jamais transparentes e reveladoras, operam sujeições, pois são constituídas
por mecanismos de exclusão, que estabelecem fronteiras entre normal/anormal,

igual/diverso, e assim por diante, bem como por suas regulações internas que permitem, ou
não, que determinadas redes discursivas sejam reativadas, em distintos lugares, como no

encadeamento compulsório entre sexo, gênero e desejo (BUTLER, 2016), como exemplifica
o seguinte trecho, ao indicar que as pessoas alojadas sob o signo da diversidade “[...] têm os

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 169


mesmos direitos de respeito que os demais.” (LT 5). Os demais seriam aqueles que vivem
em conformidade com as normas propostas neste encadeamento.

No momento da reativação dos discursos existe a possibilidade de subverter os


processos de captura, já que algo sempre se desloca, escapando numa subjetivação imprevista
pela normatividade do gênero e da sexualidade. É nesse cenário, cada dia mais “inclusivo”,

que ações governamentais derivadas do biopoder foram efetivas, por meio de biopolíticas
interessadas em contabilizar e regular a população ostensivamente, dificultando o
apontamento de pessoas “excluídas” (LOPES; FABRIS, 2013).

A inclusão escolar permite investigar se os critérios normativos de inteligibilidades


das identidades de gênero e sexuais estão sendo revistos e desconstruídos no interior das
políticas educacionais de formação docente. Fica o dilema do nosso tempo, ampliar o
alcance efetivo dos direitos sem limitar a diferença pela lógica identitária e pela
governamentalidade implícita nos arranjamentos biopolíticos, que instalam o paradoxo da

in/exclusão.

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 10.ed. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

CÉSAR, Maria Rita de Assis; SIERRA, Jamil Cabral. Gênero, Sexualidade e Educação: a
Crítica feminista e a Teoria Queer. In: HAGEMEYER, Regina Cely C.; GABARDO,
Cleusa Valério; SÁ, Ricardo A. (Orgs.). Diálogos epistemológicos e culturais. Curitiba:
W&A Editores, 2016. p. 205-2016.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 1987.

LOPES, Maura Corcini; FABRIS, Eli Henn. Inclusão & Educação. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2013.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer.
2ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

MEYER, Dagmar Estermann; KLEIN, Carin; DAL’IGNA, Maria Cláudia;


ALVARENGA, Luiz Fernando. Vulnerabilidade, gênero e políticas sociais: a feminização

170 Educação e Interseccionalidades


da inclusão social. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 22, n.3, p. 885-904,
2014.

PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença. 3.ed. São Paulo: Editora 34, 2013.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 171


172 Educação e Interseccionalidades
DESCONSTRUIR TABUS E
PRECONCEITOS PARA CONSTRUIR A
(COM)VIVÊNCIA COM AS DIFERENÇAS:
um relato de experiência sobre diálogos de gênero
e diversidade em um projeto de extensão no IFPR
de Irati-PR

Thaysa Zubek Valente1 e Arthur Leonardo Costa Novo2

A escola está implicada na produção de corpos e sujeitos atravessados por normas sociais que
determinam padrões de conduta, sobretudo no que se refere às normativas de
gênero. Partindo dessa problematização, apoiada nas perspectivas pós-estruturalistas dos
Estudos de Gênero, esse trabalho consiste em um relato de experiência das atividades de um
projeto de extensão. O projeto teve como proposta orientadora o diálogo sobre os temas
gênero e diversidade com estudantes de Ensino Médio e Fundamental de outra(s) escola(s).
Analisamos, neste relato, os discursos e as representações sobre “mulher”, “violências de
gênero”, “homossexualidade”, “exercício/vivência da sexualidade” etc, que denotam o
modo como as relações, identidades e expressões de gênero são produzidas nas relações
sociais. Consideramos, ao final, que muitas(os) estudantes possuem ideias e
posicionamentos conflitantes, entre uma perspectiva disciplinadora e conservadora e uma
perspectiva crítica e aberta a mudanças, mantendo padrões de conduta transmitidos
intergeracionalmente, de um lado, e propondo novos modos de pensá-los, de outro.

Palavras-chave: Gênero; Sexualidades; Diversidade; Educação.

INTRODUÇÃO

Este trabalho é resultado da experiência de diálogos travados sobre os temas gênero

e diversidade e suas problemáticas, com um grupo de adolescentes que fez parte do projeto
de extensão intitulado “(Des)construindo tabus e preconceitos para construir a

1Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Psicóloga do Instituto Federal
de Educação do Paraná – Campus Irati. Irati-PR, Brasil. E-mail: thaysavalente@uol.com.br.

2 Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); doutorando em
Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal-RN, Brasil. E-mail:
arthurleocn@gmail.com.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 173


(com)vivência com as diferenças: diálogos sobre gênero e diversidade na escola”. Esse projeto
foi desenvolvido após aprovação pelo Edital n. 14/2015 da Pró-Reitoria de Extensão,
Pesquisa e Inovação – PROEPI do Instituto Federal do Paraná – IFPR, no Campus Irati,
com a participação de duas estudantes bolsistas do Ensino Médio, e envolveu mais de uma
instituição de ensino da cidade.

Para o presente relato foi feito um recorte do trabalho realizado durante o ano de
2016, a fim de apresentar a análise dos discursos que circularam nos encontros. Apenas um
grupo de adolescentes foi considerado, por ter sido esse o único a concluir a participação em
cinco encontros previamente organizados dentro das seguintes temáticas: “Gênero e

Cotidiano”, as desigualdades de gênero presentes nas práticas cotidianas e nos processos de


subjetivação; “Lugares sociais (im)possíveis a homens, mulheres e sujeitos que não

correspondem aos padrões cis-hetero-normativos”, no qual os diferentes modos de


construção dos corpos em função do gênero e os padrões de feminilidade e masculinidade
foram trabalhados; “Violências de gênero – as lutas pelo respeito e a garantia da vivência e
manifestação da diversidade sexual”, no qual as bases de sustentação e os mecanismos de
proteção e segurança que podem garantir o direito das mulheres e da população LGBT
foram discutidos, bem como a desconstrução e reinvenção dos padrões de masculinidade ou

da masculinidade hegemônica nos quais se ancoram os processos de subjetivação dos


meninos-homens; e, por fim, “Sexualidade, prevenção a ISTs e gravidez precoce”, no qual
abordamos a produção dos afetos e desejos, as questões de orientação sexual e de exercício

da sexualidade e os direitos reprodutivos.

O método utilizado para a realização desta reflexão pautou-se nas técnicas de pesquisa
qualitativa, partindo de instrumentos de registros das atividades, inspirados no uso dos
recursos de diário de campo e de observação participante, e com a gravação de áudio das falas

das(os) participantes para posterior análise dos materiais (GOLDENBERG, 1997). Por meio
desses registros, identificamos e problematizamos os discursos produzidos a cada encontro,
suas emergências e deslocamentos, sobre os temas, considerando quais práticas e lugares
sociais eles sustentam ou como propõem a sua desconstrução.

Valemo-nos de uma perspectiva histórica e política de gênero, na medida em que tal

perspectiva desnaturaliza as categorias unitárias e universais pelas quais se constroem

174 Educação e Interseccionalidades


representações e referências do que é ser “homem” e do que é ser “mulher” (MARCON;

PRUDÊNCIO; GESSER, 2016) e pelas quais se justificam as práticas de discriminação,


violência, exclusão e marginalização. Assim, concordamos com a ideia de que

Problematizar as estratégias discursivas que naturalizam a heterossexualidade


e essencializam as performances de gênero, associando-as linearmente à
ordem biológica do sexo, visa à promoção da justiça social para quem vivencia
a sexualidade e o gênero de modo dissonante à matriz de inteligibilidade
heterossexual, que configura atualmente o padrão moral hegemônico
(LIONÇO; DINIZ, 2008, p. 321).

A escolha pela escola, como lócus de pesquisa e intervenção, se deu em razão da sua
função como instituição que opera sobre os processos de subjetivação dos indivíduos que
por ela transitam e nela se formam, não apenas por meio da educação formal senão também

das relações sociais (e relações de poder) que se estabelecem nesse ambiente, profundamente
marcadas por questões de gênero, classe social, raça-etnia etc.

Neste sentido, nas escolas, os sujeitos são frequentemente submetidos a práticas

disciplinadoras em lugar de emancipatórias (LOURO, 2004). Práticas essas que são


sustentadas por discursos e relações de poder que modelam e regulam as condutas dos
sujeitos de forma substancialmente cis-hetero-normativa3, reforçando as normas da
heterossexualidade sob diferentes formas para meninos e meninas (LOURO, 1997). Isso
porque a escola participa do controle dos corpos e da produção de subjetividades engendradas
pela sexualidade – entendida como dispositivo (FOUCAULT, 1988).

O que acontece muito frequentemente nas escolas é que esse parâmetro de


normalidade, o da heterossexualidade, produz práticas pedagógicas que reforçam as
desigualdades de gênero, a patologização e o preconceito para com as identidades, ou
expressões dissidentes, na medida em que se baseiam em valores morais, religiosos e aos
saberes biomédicos presentes no imaginário e na condução das vidas das pessoas que

3 A norma da heterossexualidade se pauta na essencialização da feminilidade e da masculinidade e no regime


binário de sexualidade, vinculados à determinação biológica dos corpos, e produz “identidades mutuamente
excludentes e cerceadoras das possibilidades de derivação passível de apropriação pessoal, social, cultural e
histórica do feminino e do masculino, por pessoas de ambos os sexos” (LIONÇO; DINIZ, 2008, p. 310).

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 175


integram a comunidade escolar, e que a sustentação da norma da heterossexualidade se dá
também pelas vias de captura dos sujeitos4 que fogem à norma, e são marginalizados

(MARCON; PRUDÊNCIO; GESSER, 2016). Ressignificar essas formas de ver e


compreender esses corpos-sujeitos compreende pautar a sexualidade em uma perspectiva
ético-política pela qual se possa respeitar a autonomia e garantir o respeito aos direitos

humanos dos indivíduos na construção dos seus corpos e no exercício da sua sexualidade.

Dito isso, visualiza-se a escola como um espaço em que o heterossexismo e o


machismo são reproduzidos por meio de padrões de conduta disseminados nas práticas de

pedagogização dos corpos e sexualidades, e, portanto, de subjetividades. Mecanismos de


silenciamento e dominação simbólica dos sujeitos operam sobre os corpos a fim de que esses
aprendam a conduzir-se, nas suas expressões e nos seus afetos, de acordo com as normativas

de gênero (MARCON; PRUDÊNCIO; GESSER, 2016; JUNQUEIRA, 2009; LOURO,


1999).

As “brincadeiras” heterossexistas e homofóbicas (não raro, acionadas como


recurso didático) constituem poderosos mecanismos heterorreguladores de
objetivação, silenciamento (de conteúdos curriculares, práticas e sujeitos),
dominação simbólica, normalização, ajustamento, marginalização e exclusão.
Essa pedagogia do insulto se faz seguir de tensões de invisibilização e
revelação, próprias de experiências do “armário”. Uma pedagogia que se
traduz em uma pedagogia do armário, que se estende e produz efeitos sobre
todos(as) (JUNQUEIRA, 2009, p. 484-485).

No entanto, ao mesmo tempo em que a escola contribui para a manutenção e


reprodução de relações de gênero que se valem da desigualdade de gênero, da normalização

dos corpos e subjetividades em padrões do que é considerado próprio do feminino, e das


meninas/mulheres, e próprio do masculino, dos meninos/homens, e corrigindo (por meio

de punições, opressões ou repressões) aqueles corpos-sujeitos que desviam – de modo mais


ou menos explícito – da norma, as escolas também são espaços por onde circula a

4 “Isso quer dizer que é a partir da heterossexualidade, tomada como parâmetro da normalidade, que toda e
qualquer expressão da sexualidade é valorada. Configura uma norma, um princípio ordenador segundo o qual
a pluralidade das experiências sexuais é significada” (LIONÇO; DINIZ, 2008, p. 309).

176 Educação e Interseccionalidades


diversidade, os modos plurais de existir pelos quais os sujeitos se constituem e dentro dos
quais resistem e querem ser reconhecidos; para que essas vidas possam ser vistas como vidas
vivíveis5. Por essa razão é que “A vida escolar não se resume à socialização formal de crianças

e adolescentes, pois é também uma experiência potencial de revisão e crítica de práticas


sociais injustas e discriminatórias” (LIONÇO, DINIZ, 2008, p. 309), sendo a escola um
lugar potencialmente apto a promover a transformação social.

Essas ideias estão em consonância com algumas diretrizes6 pautadas em legislações


brasileiras que norteiam as políticas educacionais. Contudo, essas mesmas diretrizes têm sido

colocadas em xeque na atual conjuntura política legislativa, que conta com uma bancada
religiosa fundamentalista que confronta a perspectiva educacional de promoção e respeito à

diversidade e atua provocando retrocessos sobre os programas e as políticas inclusivas e


afirmativas; seja na formação docente, na garantia do acesso à educação pelo respeito à

diversidade sexual e de gênero, e na proposição de práticas educativas que trabalhem pela


valorização e afirmação das diferenças e contra todas as formas de violência que a elas se

dirigem.

Por essa razão, acreditamos, como Graupe e Bragagnolo (2015), que a escola é um
espaço fundamental para discutir as desigualdades de gênero e outros temas relacionados a
opressões em nossa sociedade. É uma instituição capaz de fomentar as mudanças sociais
necessárias, por promover um espaço em que é possível o (re)conhecimento dos vários
modos possíveis de produção existência, trabalhando para que todos sejam respeitadas. E
por tensionar o instituído e desestabilizar as fronteiras e demarcações que mantêm lugares
normativos de existência e anulam potências de vida.

5 Toneli e Amaral (2011) abordam as políticas investidas no corpo a partir das normas de gênero (que circulam
pela e se produzem na sociedade, cultura e política) que produzem vidas vivíveis. Ao definirem parâmetros de
existências possíveis aos sujeitos – as vidas vivíveis – essas mesmas normas produzem vidas sem valor, sujeitos
abjetos, tal como conceituados por Judith Butler.
6 Tais como a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 e os
Parâmetros Curriculares Nacionais, que determinam a abordagem dos temas gênero e diversidade como
transversais no currículo escolar, devendo ser tratados em todas as disciplinas.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 177


OS CAMINHOS DO PROJETO...

O projeto intitulado “Desconstruindo tabus e preconceitos para construir a


(com)vivência com as diferenças: diálogos sobre gênero e diversidade na escola”7 foi pensado
como meio de criar espaços de reflexão e trocas de experiências sobre as temáticas em

questão com estudantes de outras escolas do município de Irati-PR. O objetivo central que
conduziu as ações do projeto foi o de promover um novo olhar para a formação dos sujeitos

(estudantes), inserindo temas que fazem parte do seu cotidiano em um espaço de diálogo
mais crítico e reflexivo, de modo a desnaturalizar condutas e práticas preconceituosas,
opressoras e excludentes e promover a abertura à escuta das suas vivências, entendendo que
elas também são marcadas pela heteronorma, pelo machismo e pelas práticas de violência
em razão do gênero. Nestes diálogos, buscamos cruzar opiniões, posições, ideias e valores, e
tecer possibilidades de agir de modo mais respeitoso e acolhedor frente à diversidade
presente em si e no outro, afetando-se de modo transformador por ela.

A etapa de preparação das ações se deu mediante estudos teóricos, visita a escolas
indicadas8 pelo Núcleo Regional de Educação (NRE) da Rede Estadual de Ensino9 do
município, e programação de cada encontro. Os encontros foram construídos com um
caráter dinâmico e participativo – que horizontalizasse a relação com as(os) adolescentes –
com frequência semanal, e duraram em média de 1h e 30min a 2h cada um. Quanto aos
instrumentos utilizados, recorreu-se a materiais audiovisuais, imagens, frases, notícias,
relatos, Leis e Projetos de Lei, para sensibilização e desencadeamento de debates e reflexões.

7 Financiado pelo Programa Institucional de Bolsas de Extensão (PIBEX) do IFPR.


8 Segundo a necessidade avaliada pela equipe do NRE, devido à presença de sujeitos que não correspondiam
aos padrões normativos de gênero no ambiente escolar e manifestações de vivências diversas da sexualidade, e
o conhecimento sobre práticas de violência e conflitos que ocorriam nessas instituições, além de dificuldades
de o corpo docente trabalhar com os temas.

9 O projeto foi encaminhado à aprovação da Secretaria Estadual da Educação do Paraná (SEED/PR), uma vez
que a ideia inicial era de realizar os encontros nas instituições estaduais de origem das(os) estudantes
participantes e foi negado pela Superintendente da Educação. Acredito que esse posicionamento faz parte da
reação em cadeia iniciada com a exclusão dos termos “gênero” e “sexualidade” dos Planos de Educação
(Nacional, Estadual e Municipal), em 2015, que é resultado da expressividade do movimento que se expandiu
nacionalmente em 2014 contra o que se denominou “ideologia de gênero”, articulado por entidades e lideranças
religiosas católicas e evangélicas com o apoio político conquistado nas Câmaras Municipais de Vereadores e
Assembleias Legislativas Estaduais, assim como no Congresso Nacional (COSTA NOVO, 2015).

178 Educação e Interseccionalidades


Como já anunciado, para a análise de campo do presente trabalho, dos três grupos

constituídos, fizemos o recorte das ações realizadas com um deles apenas. De todos os
encontros, participaram em média 18 estudantes de séries diferentes, em sua maioria

brancas(os), oscilando o número de participantes a cada encontro, e o grupo foi


acompanhado, em todos os encontros, por uma funcionária do colégio que se prontificou a
isso, de acordo com a decisão da diretora pedagógica da instituição.

RE-OLHAR, RE-VISITAR, TENSIONAR O INSTITUÍDO...

As representações sobre o que é ser menino/homem e menina/mulher dentro dos

padrões heteronormativos, baseados também em padrão de masculinidade hegemônica,


foram tratadas em mais de um dos encontros, sendo movimentadas pelas técnicas utilizadas

e suscitando relatos de vivências das(os) adolescentes. No primeiro encontro, ao utilizarmos


frases machistas e denotativas da desigualdade de gênero, presentes no cotidiano das relações
sociais e na relação de cada um(a) com o seu corpo, a representação do que se entende por

“mulher”, no lugar de um sujeito disciplinado pelos olhos e necessidades dos outros,


compareceu nos discursos ao serem comentadas as frases “Saindo de casa desse jeito, você
não vai conseguir arranjar ninguém” e “Hoje ajudei minha irmã/mãe/esposa na casa”,
respectivamente:

Sempre as pessoas pensam que têm que ser em prol de alguém. Tipo, por
que você não pode sair de casa do jeito que você se sentir bem? Por que tem
que ser pra alguém e não pra você mesma? [...] Por que sempre tem que
arranjar alguém?! Como se a principal questão fosse você arranjar um
namorado, ou ficar bonita para a sociedade, pra se sentir bem.
[...] eu me sinto sobrecarregada de atividades em casa. [...] então, eu preciso
ser filha, porque eu tenho uma mãe, eu preciso ser esposa, amante, eu preciso
ser profissional... [...] É coisa de mãe, mas eu me sinto sufocada (comentário
da funcionária que acompanhava o grupo de estudantes).

O que se desenha nestes discursos é a imagem de uma mulher que está mais
direcionada aos olhares dos homens e da moral social vigente, e ao cuidado dos outros, em
detrimento do cuidado de si (o que leva a se sentir “sufocada”), estando este cuidado

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 179


associado às marcações sociais a que deve responder cotidianamente, sendo sobrepostos seus
papeis de mulher-mãe-esposa-trabalhadora. Outra representação que se dá a ver é aquela de

que para se sentir bem, a mulher deveria corresponder a algumas normas sociais, quais sejam:
a de ser bonita e a de ter um parceiro, homem. Pode-se supor também, dentro dessa lógica,
o projeto de vida que se espera de uma mulher: de preferência, casar-se, cuidar dos afazeres
domésticos, e, melhor ainda, para as normas sociais tradicionais, ter filhos.

O disciplinamento do corpo da mulher pelo olhar do outro, seja ele a moral do social,
ou do homem, pai ou marido, foi recobrado no segundo encontro10, pelos seguintes relatos:

[...] eu tinha a vontade de cortar meu cabelo bem curtinho [...] só que o meu
pai é muito machista [...] e ele não aceitava, de jeito nenhum.
Do lado da minha casa tem um bar; a minha casa fica atrás. Tipo, a gente
não pode usar calção porque vai se mostrar pros homens que passam ali. [...]
Como que a gente vai se sentir bem usando as roupas que os outros querem?
[...] Eu tinha que ir trocar de roupa porque me olhavam diferente.

Há aqui uma negação do uso que a mulher pode fazer do próprio corpo, o que se
repete, não apenas nas relações com o pai, ou parentes próximos, mas pode se reatualizar
com futuros parceiros, que tolhem a liberdade e autonomia da mulher ao dizerem o que

deve ou não vestir, como deve ou não se comportar, com quem deve ou não estabelecer
relações próximas, quando pode ou não pode sair etc. E uma rigidez moral nas repreensões

(que acontecem na família, na escola, e em outros espaços de convivência social), apontando


desvios destes corpos e subjetividades que experimentam o que é fixado como masculino e
o feminino, dentro de uma determinada cultura (costumes e tradições), mesmo que esses
sujeitos permaneçam identificados dentro de posições binárias de gênero.

A crítica às violências praticadas contra a população LGBT fizeram-se no primeiro e


terceiro encontro (quando as fobias de gênero foram tratadas por meio da discussão de
reportagens e casos noticiados), quando a representação que tem o gay no imaginário social

é contrastada na resposta à seguinte frase: “Um viadinho brasileiro foi espancado, aí é que

10
Quando as(os) estudantes responderam, em uma folha de papel, às seguintes perguntas: “O que você já
deixou de fazer por ser mulher/homem?” e “O que você sente que deve fazer por ser homem/mulher?”

180 Educação e Interseccionalidades


está o erro, ele deveria ter sido é morto, acabe com a AIDS, mate um gay” por duas

estudantes e um estudante, respectivamente:

É como se voltasse a culpa de algo ruim à pessoa, só porque ela é o que é.


[...] Não é só porque a pessoa é do jeito que é que algo ruim vai ter.
Também tem essa de que hétero se envolve menos... que os homossexuais
se envolvem com todo mundo, por isso têm mais doenças... [...] E...é
transmitido do mesmo jeito...
As mães não aceitam também e falam que é só um cara pegar que ela
[menina/mulher lésbica] vai gostar [...] Você tem que virar mulher, porque
você foi feita assim, você tem que ter filhos...mas ela não quer aquilo.

Estes discursos revelam o modo corretivo com que se tende a lidar com aqueles

sujeitos que desviam das normas sociais, e um modo de exercer a ameaça ou provocar o
medo naqueles que puderem vir a se tornar desviantes ou viverem experiências semelhantes,
ou mesmo que podem entrar em contato, em relações cotidianas, com pessoas que vivem
com o vírus HIV – o que leva à discriminação e exclusão social.

Sobre a violência contra a mulher, um estudante se posiciona:

[...] geralmente, a violência acontece na casa ou no casamento [...] a mulher


quer ter mais direitos, quer trabalhar, quer ter estudo...e o marido prende ela
dentro da casa, porque ela não pode fazer, porque ela é mulher. [...]
Geralmente, a mulher não tem coragem de denunciar o marido porque tem
medo do que vai acontecer com o marido... [...] “Eu tenho filhos e não vou
poder criar”, aí ela fica presa naqueles pensamentos dela “Ah, eu vou
denunciar, ou então, eu vou aguentar”... então, acontece a morte.

O que se expõe, a partir deste discurso, é a caracterização da violência de gênero


como violência que é praticada contra a mulher simplesmente por ser ela uma mulher e, por
essa razão, estar enredada numa construção de lugar social e de relacionamentos sustentados
pela ideologia machista. O estudante retrata, também, a realidade de vida de muitas
mulheres, que têm a sua liberdade cerceada e os direitos limitados em relações abusivas que

perduram – não sem sofrimento – dentro de uma complexa trama de outras relações que
dificultam o rompimento e que podem levar até mesmo à morte – o feminicídio, mas
também à morte simbólica de mulheres que se perdem como sujeitos de suas próprias vidas.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 181


Os casos de violência contra travestis e transexuais11, que deveriam ter sido tratados
por um grupo de estudantes formado exclusivamente por meninos, não foram discutidos

devido ao desinteresse e descomprometimento do grupo com essa proposta, negando-se a


fazer essa discussão. Percebemos que a grande resistência frente a essa temática, demonstra
não apenas os efeitos da banalização da violência e da destruição dessas vidas, mas o modo
como meninos constroem sua masculinidade a partir da marcação normativa do gênero,

distanciando-se de tudo o que é considerado feminino, até mesmo com repulsa e violência.
A heterossexualidade obrigatória opera pela exclusão ou obnubilação daquilo que há de
feminino no homem e de masculino na mulher, provocando o distanciamento (“divisão

rígida de personalidade”) das características que os aproximam (Rubin, 1993).

No quarto encontro, nos valemos de uma dinâmica na qual, em cada canto da sala
foi fixada uma folha de cartolina com as seguintes respostas: “Concordo”, “Discordo” e “Não
Sei”. As(os) participantes, ao ouvir os enunciados lidos, escolheram em qual lado se
posicionar, como melhor refletia sua opinião. Nesse encontro, algumas reflexões foram feitas
sobre a autonomia da mulher quando da decisão de práticas sexuais dentro de

relacionamentos amorosos, a liberdade sexual feminina conquistada e o desejo pela


manutenção da virgindade como valor instituído pelo casamento, e o lugar da mulher (e do

homem) na relação com a gravidez (maternidade/paternidade) e as práticas abortivas;


reflexões essas que se deram a partir das frases “Se o meu namorado me pedir para ter relações
sexuais com ele, devo aceitar para provar o meu amor”, “Pra fazer foi fácil, criar (o bebê)
agora não quer né?!” e “Se não quer ter filho feche as pernas”, e resultaram nos seguintes
posicionamentos:

Eu discordo, porque a pessoa é livre pra fazer o que ela quiser, namorado
nenhum vai obrigar ela fazer algo que não queira. (Menino)
Porque eu vou casar pura [...] que eu não vou aprontar antes da lua de mel;
o que eu aprendi com a minha vó (Menina)

11Que dizem respeito a uma população que não dispõe de nenhum dispositivo legal para atender
às suas demandas de acesso à identidade e apenas recentemente passou a ser contemplada
nas políticas de saúde do SUS, com a publicação da Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de
2013.

182 Educação e Interseccionalidades


Eu acho que até um tempo atrás tinha uma noção de que todas as mulheres
tinham que casar virgem, só que hoje em dia cada um é livre pra escolher
(Menina).
No caso de uma gravidez indesejada, eu acho que eu sou a favor da legalização
do aborto. [...] É porque, muitas vezes, a mulher acaba não tendo esse apoio,
do marido, da família... (Menina 1)
Eu não sou. Porque, assim, tem hoje...orfanato, tem essas coisas... APAE,
têm centros de especialização em deficiências, tipo... não sei, é uma vida
também. [...] Eu já penso assim... se ela não tem apoio, ela espera a gravidez,
ganha neném e dá pra adoção. (Menina 2)

Esses assuntos revelaram posicionamentos machistas sobre a gravidez, como se essa


fosse uma responsabilidade exclusiva da mulher, como também apontaram para a

desigualdade de tratamento entre homens e mulheres no que se refere ao exercício da


paternidade e maternidade, diante do qual, também a mulher que gere deve se
responsabilizar (moral e socialmente), independente da falta de apoio ou de condições
psíquicas que a sustentem, podendo o homem não cumprir com a sua função e se retirar
desse lugar.

Nesse encontro também, a forma como as/os estudantes expuseram seu


entendimento sobre “o que é ser lésbica ou gay” variaram entre representações que se

justificam pela escolha autodeterminada, por um suposto determinismo biológico e pela


patologização da homossexualidade e da transexualidade12, ainda presente em muitos
discursos médicos, psiquiátricos, que a mídia, por exemplo, faz circular e legitima. E
circularam representações sobre o casamento e família, os direitos civis de casais

homossexuais, a hiper-erotização do corpo homossexual (ou de pessoas LGBTs) e o mito


de que casais homossexuais educam suas filhas/seus filhos de modo a levá-los a se entender
como homossexuais.

12
É preciso ressaltar que a homossexualidade já não é mais considerada patologia para a OMS desde 1990 –
na última versão do CID-10, o termo “homossexualismo” foi excluído. Porém, a transexualidade ainda é
efetivamente considerada uma patologia, constando como “transtorno de identidade de gênero” neste mesmo
manual e servindo à autorização das cirurgias de transgenitalização realizadas pelo SUS. A grande luta dos
movimentos trans hoje é justamente a despatologização; luta que também vendo sendo travada pelas(os)
profissionais da Psicologia, por meio da representação do Conselho Federal de Psicologia.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 183


O primeiro ponto que se destaca é a vinculação que se faz do casamento como uma
união pela qual, necessariamente, um casal (heteronormativo ou não) deverá decidir, em
algum momento, ter filhas(os), constituir uma família nessas bases. O segundo, é que a
família, independentemente se corresponde à norma heterossexual, é compreendida dentro

dos limites da heteronorma: sempre haverá um papel masculino/de homem a ser


desempenhado, e sempre haverá um papel feminino/de mulher a ser desempenhado,
representação essa que é aparentemente questionada por um menino que afirmou: “Ele vai
ter dois pais”.

O quinto encontro foi realizado com uma proposta de encerramento do projeto por
meio de uma oficina de cartazes. Os cartazes contemplaram os seguintes temas: a

desconstrução de tabus provocada pela diversidade de gênero ou a desestabilização dos


padrões normativos de gênero (sua expressão e construção identitária); a desigualdade
presente nas relações de gênero e também gerada por outras marcações sociais (como a de
raça-etnia); e a violência contra as mulheres, a erotização e objetificação do corpo feminino.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inserir as discussões sobre gênero e sexualidades no espaço escolar não é um processo

tranquilo ou fácil. Os entraves são dos mais variados, e advém de lugares distintos. Mas
também é um trabalho que revela o quanto se tem a dizer sobre o tema. De modo que, por
meio das intervenções relatadas, construímos espaços de troca de reflexões a respeito de
vivências marcadas por condições de desigualdade de gênero e por práticas de violência.
Neste processo, observamos e compreendemos as nuances, presentes nos discursos, entre a
naturalização de padrões de conduta e de práticas reproduzidas dentro do sistema binário e

das tecnologias que sustentam a heterossexualidade compulsória pela qual os sujeitos são
constituídos, e o questionamento desses padrões e condutas a partir de uma perspectiva mais
emancipadora e libertária. Acreditamos que os diálogos e trocas podem reverberar e se
estender a outras relações e vivências das(os) adolescentes, desestabilizando, de algum modo,
o instituído, e dando espaço à reinvenção das relações de gênero desde um lugar que
privilegie relações mais justas, equânimes e respeitosas, pelas quais possam aprender mas
também serem afetadas(os), transformadas(os), pelas diferenças.

184 Educação e Interseccionalidades


REFERÊNCIAS

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355.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 185


186 Educação e Interseccionalidades
O CURSO GÊNERO E DIVERSIDADE NA
ESCOLA (GDE) DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DO PARANÁ (UFPR):
uma análise de ações interventivas no cenário escolar

Renata de Fátima Tozetti1, Marcos Claudio Signorelli2 e


Daniel Canavese de Oliveira3

Este trabalho publiciza apontamentos de uma pesquisa de mestrado realizada com foco no
curso de formação docente em Gênero e Diversidade na Escola (GDE), em nível de
aperfeiçoamento, ofertado pela Universidade Federal do Paraná entre os anos de 2013-2014.
Utilizou-se numa primeira etapa da pesquisa a análise documental como método,
investigando especificamente 145 Projetos Interventivos de Aprendizagem (PA) de
participantes do curso, identificando estratégias de promoção de equidade no ambiente
escolar. Posteriormente, a técnica da entrevista semi-estruturada também foi utilizada,
visando uma análise qualitativa. O objetivo foi problematizar acerca deste complexo e
relevante tema contemporâneo, analisando as relações entre diferentes interlocutores/as
envolvidos/as. Por meio da análise dos dados foi possível identificar e categorizar diversas
estratégias de promoção de equidade no ambiente escolar da rede pública de ensino do estado
do Paraná, que emergiram a partir de demandas de violência(s), discriminação, desrespeito
e desigualdade, vivenciadas diariamente por professores e professoras e seus/suas estudantes.
As categorias identificadas nos PA foram: a) Ações de respeito à diversidade sexual; b)
Minimização de desigualdades entre homens e mulheres; c) Redução de violência; d)
Promoção da igualdade étnico-racial; e) Inclusão de pessoas com deficiência. A partir desta
pesquisa, observou-se que o curso GDE resultou em estratégias diretamente aplicadas nos
cenários escolares e que docentes egressos/as desempenham um papel central na
multiplicação destas estratégias, transformando temas considerados por alguns como ‘tabus’
em conhecimento crítico e consciente junto dos/as estudantes.

Palavras-chave: Gênero e Diversidade na Escola; Formação de Docentes; Projetos


Interventivos de Aprendizagem.

1Pedagoga pela PUC-PR. Mestra em Desenvolvimento Territorial Sustentável pela UFPR. E-mail:
renazetti@gmail.com
2Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina – UNIFESP.

Professor do PPG em Desenvolvimento Territorial Sustentável pela UFPR. E-mail:


signorelli.marcos@gmail.com
3Doutorem Ciências da Saúde na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FM/USP. Professor
do PPG em Saúde Coletiva pela UFRGS. E-mail: daniel.canavese@gmail.com

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 187


INTRODUÇÃO

Os anos de 2015 e 2016 também foram marcados pela voz das mulheres que
estiveram nas ruas no Brasil manifestando o direito sobre seus corpos. As manifestações
foram midiatizadas de várias formas e houve grande visibilidade nas redes sociais através das

denúncias de assédio sexual, entre outras formas de violência. O ENEM – Exame Nacional
do Ensino Médio, promovido pelo Ministério da Educação (MEC), levou os/as
candidatos/as à reflexão em várias regiões do país no momento de escrever a redação, pois
tratava da violência contra a mulher, bem como citava a filósofa Simone de Beauvoir,
precursora do movimento feminista na França, que alertava já na década de 1950 para as

desigualdades entre homens e mulheres. Num momento de tensão política no país, muitas
mulheres se engajam na luta para fazer valer direitos que historicamente foram adiados e até
mesmo negados.

Faz-se esta introdução para reafirmar a necessidade da busca pela igualdade de

direitos entre mulheres e homens não só no país como em todo o mundo. Apesar de
contemporâneo, rompe-se a barreira do tempo para apresentar que essas e muitas outras

reivindicações estiveram presentes ao longo da história, nas lutas anteriormente conquistadas


pelas mulheres por meio de movimento(s), e que culminaram em três ondas feministas.
Cada uma destas três ondas é descrita na literatura por diferentes autoras: Simone de

Beauvoir (1949), Heleieth Iara Saffioti (1979, 2001), Joan Scott (1995), Judith Butler (2008),
que apresentam características próprias em cada momento histórico, mas sempre almejando
a igualdade de direitos, hegemonicamente alicerçada às questões políticas, sociais,
econômicas e de poder de cada país.

O contexto escolar, por sua vez, permeado por normas, regras e controles é também
território em que diferenças e diversidades se manifestam e mostram suas nuances,
desvelando muitas vezes falta de informação por parte de educadores/as e intolerância entre
estudantes e seus pares. Ainda que de forma bastante recente, estudos e estratégias calcadas
em políticas públicas relacionadas a gênero e diversidade foram surgindo nas últimas décadas.

Ocorreram mudanças significativas nas políticas governamentais que passaram a se preocupar


cada vez mais com os preceitos dos direitos humanos, diversidade e inclusão. Trazemos como
exemplo, estudos realizados por Asinelli-Luz e Cunha (2011) e Junqueira (2009) que

188 Educação e Interseccionalidades


demonstram a relevância de discutir sobre as questões relacionadas à homofobia, e que geram
diferentes formas de violência(s) no contexto escolar.

A partir desta conjuntura, problematiza-se sobre este complexo e relevante tema


contemporâneo, que é a discussão de gênero e diversidade nos espaços escolares,
investigando as relações entre diferentes interlocutores/as envolvidos/as. Neste artigo
buscamos promover tal reflexão, por meio da análise de Projetos Interventivos de

Aprendizagem (PA), produzidos pelos/as egressos do Curso de Aperfeiçoamento em Gênero


e Diversidade na Escola (GDE), ofertado pela UFPR Litoral nos anos de 2013 a 2014. Esta
pesquisa destaca como questão norteadora: em que medida e como o conteúdo formativo
articulado durante o curso GDE pôde ser aplicado nos espaços de atuação profissional dos/as
participantes e, também, quais foram os desdobramentos, limites e possibilidades inerentes
às questões de gênero e diversidade para os/as egressos/as?

Ao revisitar essa política pública de formação em gênero e diversidade, voltada para

a educação básica, a partir dos olhares de egressos/as de um curso específico desta área,
considerou-se também outras políticas vigentes a nível federal e estadual, no caso no Paraná,
como legislações, deliberações, parâmetros curriculares, projetos, programas e conferências,

demonstrando assim suas intersecções manifestadas nos espaços escolares. Discute-se o tema
a partir das relações de poder de Joan Scott (1995), e das intersecções com a Educação
apresentadas Guacira Louro (1997, 2001), Joana Maria Pedro (2005) e Daniela Auad (2006),
arraigadas hegemonicamente numa sociedade heteronormativa e sexista, em que homens e
mulheres, meninos e meninas são tratados/as de forma desigual nos diversos espaços sociais,

inclusive na escola.

O GDE, objeto de pesquisa deste estudo, trata-se de uma política pública


educacional voltada ao enfrentamento do preconceito e da discriminação histórica de grupos
sociais no senso strictu do termo (negros, indígenas, homossexuais, entre outros), ou
minoritários do ponto de vista de representação política como é o caso das mulheres. O

objetivo do curso é fortalecer o papel que professores, professoras e demais profissionais da


educação possam exercer como promotores/as de culturas de respeito à garantia dos direitos

humanos, visando contribuir para que a escola não seja um instrumento da reprodução de
preconceitos, e sim, um espaço mais plural e democrático.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 189


De acordo Heilborn e Carrara (2009, p.13) o objetivo do curso é contribuir para a

“formação continuada de profissionais da rede pública de ensino, promovendo uma


compreensão integral e transversal das problemáticas que emergem dentro e fora do
contexto escolar”. Essa articulação de temas relacionados às questões de gênero, raça, etnia,

e à diversidade de orientação sexual permitiu que os processos fossem analisados à luz dos
direitos humanos, inibindo assim, todas as formas de discriminação.

A nível nacional, o GDE vem sendo ofertado tanto por meio de turmas presenciais
quanto semi-presenciais, ou seja, educação à distância (EaD). Em relação ao formato, o
cardápio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão

(SECADI) possibilita a opção de ofertas em nível de extensão (120 horas), aperfeiçoamento


(180 horas) e/ou especialização (com no mínimo 360 horas).

O curso de Aperfeiçoamento em análise neste estudo possuía uma carga horária de


200 (duzentas) horas, sendo: 40 (quarenta) delas presenciais e 160 (cento e sessenta) de
ensino na modalidade à distância, através de um ambiente colaborativo de aprendizagem,

adaptado especialmente para o projeto pedagógico do curso. O conteúdo dos módulos do


curso ficava disponível em versão impressa, fornecida a cada cursista, e online na plataforma

de Coordenação de Integração de Políticas de Educação a Distância (CIPEAD) Moodle4,


tendo uma equipe pedagógica composta por professores/as, tutores/as presenciais e a
distância, supervisores/as, acompanhando e auxiliando no desenvolvimento das atividades.
Ressalta-se que todo o curso foi ofertado gratuitamente, incluindo os materiais didáticos e

suporte online/presencial fornecidos pela equipe.

METODOLOGIA E ANÁLISE

Ao empregar técnicas usuais da análise de conteúdo, o processo de codificação dos


relatos de experiência contidos nos PA foi “desvelando os conteúdos manifestos e latentes”,
os quais pouco a pouco foram originando as cinco categorias de análise apresentadas neste

4Modular
Object-Oriented Dynamic Learning Environment – um software livre de apoio à aprendizagem, que é
executado em ambiente virtual. Esse programa permite a criação de cursos online, páginas de disciplinas,
grupos de trabalhos e comunidades de aprendizagem.

190 Educação e Interseccionalidades


trabalho (PIMENTEL, 2001, p. 189). De acordo com Sá-Silva et al (2009, ps. 4-5), “a
pesquisa documental é um procedimento que se utiliza de métodos e técnicas para a
apreensão, compreensão e análise de documentos dos mais variados tipos”.

Esses documentos são utilizados como fontes primárias de informações e


apontamentos que em seu conteúdo carregam questões que servirão de prova a posteriori
para outras. De acordo com o interesse e criatividade de cada pesquisador, conforme afirma
Maria Cecília Minayo (2008), ao refletir sobre o conceito e o papel de metodologia nas
pesquisas em ciências sociais. Para a autora “a metodologia inclui as concepções teóricas de
abordagem, o conjunto de técnicas que possibilitam a apreensão da realidade e também o
potencial criativo do pesquisador” (MINAYO, 2008, p. 22).

A pesquisa documental foi realizada a partir da análise de 145 Projetos Interventivos


de Aprendizagem (PA), mapeando estratégias de promoção de equidade no ambiente
escolar. O PA foi desenvolvido e apresentado pelo/a participante ao final do curso GDE,
após a realização dos módulos de conteúdo teórico e consistia em atividade interventiva
realizada nos espaços escolares. Objetivava a atuação dos/as cursistas como multiplicadores/as

dos temas abordados ao longo da formação. Para esta pesquisa documental, os PAs foram
extraídos da plataforma virtual do curso, e após leitura sistemática foi possível depreender
cinco categorias de análise, que foram trabalhadas em outras fases da pesquisa.

Para organizar o material coletado foram realizadas as leituras e os respectivos


fichamentos, separando os dados que se repetiam em todos os PA, conforme discutidos na
seção de resultados. De acordo com Pimentel (2001, p. 184),

organizar o material significa processar a leitura segundo critérios da análise


de conteúdo, comportando algumas técnicas, tais como o fichamento,
levantamento quantitativo e qualitativo de termos e assuntos recorrentes,
criação de códigos para facilitar o controle e o manuseio.

Ao final, 145 cursistas, de um total de 250 concluíram a atividade interventiva, que


foi sistematizada de forma concisa, caracterizando a concepção do PA, a execução da ação
prática na escola e comentários sobre os principais resultados encontrados. O texto com o
resumo expandido do PA foi postado na plataforma virtual do curso, assim como o banner
contendo a descrição da experiência, que serviram como avaliação das/os cursistas no módulo

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 191


intitulado Projeto de Aprendizagem. Os PA também foram apresentados no encontro
presencial final do curso, momento em que cada cursista pode socializar suas experiências
com a equipe docente, tutores e outros/as colegas do curso.

Também foram conduzidas entrevistas semi-estruturadas. Ressalta-se que o roteiro

de entrevista foi elaborado a partir da categorização feita previamente utilizando-se da leitura


e organização dos PA. Nesta fase da pesquisa, os procedimentos éticos relacionados à técnica
da entrevista também foram usados conforme data e hora marcados, mediante as devidas
autorizações para a realização do contato com os/as interlocutores/as. Ao término da
pesquisa, as entrevistas foram transcritas, codificadas e analisadas, sendo considerados os

resultados qualitativos do estudo.

A pesquisa foi avaliada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/UFPR)


por meio do Parecer Consubstanciado nº 1.523.070 de 29 de abril de 2016. Os nomes
apresentados na seção de resultados foram codificados, garantindo o anonimato dos/as
participantes da pesquisa.

RESULTADOS

A Tabela 1 apresenta o perfil dos/as cursistas matriculados/as no curso, sendo que o


público do GDE ofertado pela UFPR era composto em sua maioria por mulheres,

heterossexuais, que seguem o cristianismo e que já possuíam uma especialização.

Ao mapear estratégias de promoção de equidade no cenário escolar, os

desdobramentos foram emergindo a partir da análise documental, oportunizando a criação


de cinco categorias de análise. Destaca-se que dos 145 PA: a) 19% (n=28) foram relacionados
à minimização de desigualdades entre homens e mulheres/meninos e meninas, sendo
abordadas as diferenças de gênero na organização social da vida pública e privada marcadas

historicamente em vários contextos como a escola, a família, o trabalho e a política;b) 32%


(n=47) contemplaram ações de respeito à diversidade sexual; c) 16% (n=24) contribuíram
com a redução de violências no contexto escolar, particularmente situações de bullying e

homofobia; d) 31% (n=45) se dedicaram a promoção da igualdade étnico racial; e) 2% (n=1)


sobre a inclusão de pessoas com deficiência.

192 Educação e Interseccionalidades


Tabela 1. Perfil dos/as cursistas matriculados/as no curso de aperfeiçoamento em Gênero e
Diversidade na Escola ofertado pela UFPR Litoral em 2013-2014 (n = 250)
Gênero Masculino
Feminino 70%
28,5%
Gênero não-binário 1,5%
Religiões ou cultos Evangélica
Nenhuma
Católica 48,6%
17,8%
11,9%
Espírita 9,9%
Outros 7,9%
Matriz africana 2%
Matriz oriental 2%
Orientação sexual Homossexual
Heterossexual 85%
9,9%
Bissexual 3,2%
Nenhum 2%
Escolaridade Superior de Graduação
Especialização 64%
24,5%
Doutorado 8%
Mestrado 6,7%
Outros 4%
Fonte: A/os autora/es (2016).

Em relação ao público-alvo dos PA, a pesquisa documental revelou que 68% (n=63)

dos foram desenvolvidos tendo como público-alvo estudantes e 19,5% (n=18) com
professores/as, levando em conta também que o projeto poderia ser aplicado paralelamente
com mais de um tipo de público. Os PA foram desenvolvidos nas escolas de atuação
profissional dos/as participantes no período de abril a maio de 2014. Todos/as oriundos/as

de escolas públicas, localizadas em diferentes municípios do estado do Paraná, abrangência


esta que só foi possível devido ao formato do curso à distância.

O perfil dos/as egressos/as revelou que 58% (n=43) são professores/as da rede pública
de ensino, atuantes como docentes da educação básica, seguidos por 13,5% (n=10) que
atuam como pedagogos/as, sendo 9,5% (n=7) em função administrativa/técnica, 8,1% (n=6)

responderam como outro, mas não especificaram, 5,4% (n=4) na direção, 4,5% (n=3) como
coordenador ou coordenadora, e 1,35% (n=1) não respondeu.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 193


Os maiores desafios revelados pela pesquisa documental em termos qualitativos para
implementação dos PA nas escolas foram às próprias dificuldades trazidas pelos/as estudantes
no cotidiano e a falta de conhecimento ao abordar o assunto. No entanto, após as
intervenções práticas relatadas nos PA, constatou-se por meio das entrevistas que a grande
potência foi a aceitação e o envolvimento dos/as estudantes nas atividades propostas pelos/as

cursistas/docentes, que na sala de aula tornavam-se mediadores/as dos problemas, buscando


ações efetivas e promotoras do respeito e da educação, conforme nota-se no relato
apresentado por uma das cursistas:

“Precisei fazer seminário, uma discussão de mesa redonda com os alunos,


explicando primeiramente o que significa homofobia, o que é ser
homossexual, o que é ser heterossexual, da onde começa, como começa (...)
e com perguntas dos alunos. Depois foi feito esse seminário, e eles fizeram
cartazes coletivamente para demonstrar o que tinham aprendido sobre o
assunto” (Professora Patrícia).

Na narrativa dessa professora, nota-se a preocupação em conceituar a homofobia de


forma aberta e participativa, usando termos adequados e os recursos do diálogo e mesa
redonda. Esse posicionamento é importante se iniciar na escola, para que seja enriquecido e

aprofundado, pois é por meio do conhecimento que se pode evitar o preconceito e a


violência. Neste sentido, o relato da entrevistada converge com os estudos de Tortato (2014)

que enfatizam que a questão de gênero perpassa os conteúdos do currículo, requerendo,


além do conhecimento, aprofundamento e envolvimento.

Em relação ao PA, para Araújo (2003), a adoção de diferentes abordagens

pedagógicas como mesas redondas, seminários, ou projetos “integra os conteúdos e


habilidade de forma transdisciplinar” e desenvolve capacidades como “trabalho em equipe,
tomada de decisões, comunicação, liderança e empreendedorismo”, visando a ruptura de
modelos cartesianos que fragmentam e reduzem o conhecimento. E, quando estas
capacidades são aliadas à criatividade, surgem diferentes intervenções pedagógicas que foram
exploradas pelos/as cursistas em seus PA, dentre elas: vídeos, filmes e documentários,
palestras, debates, rodas de conversa, dinâmicas, questionários, entrevistas, uso das redes

194 Educação e Interseccionalidades


sociais, seminários, fotografia, oficinas, apresentação de músicas e danças, confecção de
material informativo, produção de texto, livros de literatura e obra de arte.

Partindo dessa proposta, da aprendizagem por projetos e entendendo os recursos


pedagógicos como “estratégia”, Araújo (2003, p. 69), considera que a “articulação dos
conhecimentos científicos com os saberes populares e cotidianos, propicia condições para

que os conhecimentos científicos sejam respondidos à luz das curiosidades dos alunos”.
Assim, tal definição vai ao encontro do relato apresentado em um dos PA que tratava a
respeito da temática bullying e homofobia pelo fato de estar acontecendo com frequência na
escola em que o cursista/docente lecionava. O professor descreve que o projeto foi

desenvolvido de forma transversal nas aulas de artes visuais com professores/as e


funcionários/as durante o intervalo de recreio e também com as turmas do 5º ano. A
atividade consistia em uma sessão de cinema do Filme: Billy Elliot, a qual apresenta-se a
seguir trecho da experiência:

Observamos o interesse dos alunos com a história de Billy Elliot e a questão


sofrida pelo personagem querer ser um bailarino e sua família achar que por
isso ele era homossexual. O sofrimento do personagem chamou muito a
atenção de alguns alunos que trouxeram pesquisas sobre o bullying
homofóbico sofrido por diversos jovens (Professor Vilmar).

É importante frisar que 16%, ou seja, vinte e quatro PA sinalizaram contribuir com
a redução de violências no contexto escolar, particularmente situações de bullying e
homofobia, indicando conforme estudo recente de Machado e Wanzinack (2014) que o
fenômeno é compreendido como um problema no âmbito escolar, sinalizando um alto índice

de prevalência de estudantes que sofrem ou já sofreram bullying na escola. No entanto, tal


problema pode ser combatido diante de estratégias que podem ser desenvolvidas a curto,
médio e longo prazo, para minimização desse tipo de violência, como é o caso do curso de
formação de docentes apresentado nesta pesquisa.

Constatou-se pela diversidade de estratégias pedagógicas adotadas, que os/as


participantes exploraram ao máximo a temática com seus/suas estudantes (ou com seu
público-alvo), e ainda dentre todas estas intervenções, verificou-se que 15% (n=22) foram

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 195


relacionadas a exibição de vídeos, filmes e/ou documentários, seguidas, respectivamente, de
12% (n=18) tendo o debate como ferramenta na execução dos PA. Adicionalmente, 9%

(n=13), utilizaram a confecção de material informativo como cartazes, painéis, cartilhas e


panfletos na abordagem e discussão das temáticas.

Por fim, verificou-se que a estratégia de formação em GDE vem demonstrando ser
uma política pública de caráter intersetorial eficiente e ao mesmo tempo desafiadora na
promoção de uma educação inclusiva, de equidade e uma cultura de paz, ancorada na
formação de novos/as multiplicadores/as (docentes) para o exercício da igualdade de gênero

e respeito à diversidade nos espaços escolares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa revelou que um curso de formação docente na área de gênero e


diversidade na escola permite que professores e professoras e até mesmo outros/as
profissionais que atuam em interface com a educação ampliem seus conhecimentos, e

tenham subsídios para inserir em suas práticas profissionais os conteúdos apreendidos,


mesmo diante de situações conflituosas e de violência. A intenção é minimizar diariamente
as práticas desiguais entre estudantes e professores/as, entre docentes, e também entre

estudantes buscando aproximação com seus familiares e grupos de convivência, fazendo


reflexões sobre temas considerados por alguns como “tabus”.

O conteúdo formativo recebido no curso de aperfeiçoamento em Gênero e


Diversidade na Escola foi aplicado nos espaços de atuação dos/as participantes de diversas e
criativas formas, alcançando diferentes públicos, por meio de ações práticas desenvolvidas
nos PA. A estratégia como um todo foi capaz de formar/preparar novos/as multiplicadores/as

de ações em escolas e espaços de atuação profissional, que desenvolvem projetos e/ou


atividades sobre o tema, e, consequentemente, contribuem na promoção de uma cultura
equânime, qualificando assim os espaços escolares para melhor enfrentamento das diversas
violências e opressões que afetam o desenvolvimento humano.

No entanto, reconhecendo a limitação deste estudo, seria importante também, que


pesquisas futuras investigassem sobre o curso de especialização GDE ofertado pela mesma

196 Educação e Interseccionalidades


instituição, ou ainda, em turmas disponibilizadas por outras instituições em outros locais do
país, fazendo um comparativo e trazendo novos resultados como condição para manutenção

da política e fortalecimentos dos cursos de formação de docentes no Brasil. O uso de novas


técnicas de coleta de dados e diferentes abordagens metodológicas poderiam ser exploradas,
como, por exemplo, a etnografia para acompanhar professores e professoras em sua prática
profissional, documentando o processo no cotidiano da(s) escola(s).

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198 Educação e Interseccionalidades


DIÁLOGOS SOBRE GÊNERO NA
ESCOLA:
práticas da Psicologia na educação profissional
técnica de nível médio

Thaysa Zubek Valente1

A escola participa da subjetivação dos indivíduos, difundindo normas sociais e padrões de


conduta, de modo a se constituir como um lugar historicamente marcado pela
disciplinarização dos corpos-sujeitos. O que requer uma transformação desse espaço,
abrindo-se à diversidade dos sujeitos e suas vivências, desconstruindo padrões de
normalidade e desnaturalizando práticas de violência. As ações que compõem esse relato de
experiência foram desenvolvidas no Instituto Federal do Paraná – Campus Irati. Buscamos,
com as intervenções realizadas, promover o reconhecimento, por parte das(os) estudantes,
das relações de poder que comparecem nas relações de gênero e de como essas últimas
participam da sua constituição enquanto indivíduos, mobilizando reflexões sobre a urgência
de se produzir práticas de enfrentamento à violência que se manifesta em discursos de ódio,
fobias de gênero e crimes contra a vida. Em todas essas ações, as(os) estudantes trouxeram
à tona discursos e vivências marcadas pela heteronormatividade, que revelam a realidade de
uma sociedade que ainda carece de práticas de respeito e garantia dos direitos humanos. Ao
mesmo tempo, percebemos a inclinação da maior parte das/dos adolescentes em, nas suas
próprias vidas e relações, quebrar tabus e preconceitos e reconstruir padrões de sociabilidade
estabelecidos.
Palavras-chave: Gênero; Sexualidades; Psicologia; Educação.

INTRODUÇÃO

O lugar da escola na formação dos sujeitos, no seu engendramento, não é apenas


ancorado na educação formal senão também o é nos discursos e práticas sociais que circulam
no espaço escolar, marcando corpos, circunscrevendo condutas normais e desviantes,
regulando modos de ser, sentir e se relacionar, a partir de padrões de normalidade produzidos
por saberes médicos, psiquiátricos, psicológicos e pedagógicos, que tratam de compreender,

1Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Psicóloga do Instituto Federal
de Educação do Paraná – Campus Irati. Irati-PR, Brasil. E-mail: thaysavalente@uol.com.br.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 199


explicar e elaborar técnicas de intervenção sobre os corpos e subjetividades no que tange a
forma como esses atuam sobre a performance2 (BUTLER, 2003) de gênero e sobre o
exercício da sua sexualidade. Vista assim, a escola faz parte de uma maquinaria de produção

de sujeitos referenciados em conceitos e modelos do “normal” (FOUCAULT, 1988), e a


norma neste caso é a matriz da heterossexualidade, dentro da qual a instituição escolar e o
sistema educacional se organizam.

O corpo é assinalado desde a mais tenra idade dentro dessa matriz, e a


heterossexualidade como norma é (re)produzida nas instituições e nas relações sociais por
onde esse corpo transita e se territorializa. Há um conjunto de símbolos e significados que
são atribuídos ao corpo no meio social e constituem o que Grossi (1998) define como

“assinalamento de sexo”, e imprimem nele não apenas uma marca biológica, mas subjetiva e
social, abrindo (ou fechando) caminhos, pelo nome, roupas, quarto, brinquedos, modos de
tratamento para com o corpo-sujeito, para a ocupação – ou desocupação – de um lugar de
existência em função do gênero. Sobre esse sujeito e seu lugar são depositadas expectativas

e esperanças comumente voltadas a um dever-ser. Ou seja, a continuidade fixada, histórica


e culturalmente, por meio de estratégias de saber e poder, entre sexo-gênero-desejo
(BUTLER, 2003), e sustentada pela matriz da heterossexualidade é recobrada por práticas
disciplinadoras: normalizadoras (que categorizam e marginalizam os sujeitos), corretivas e
punitivas.

[...] é dado como pressuposto que quem tem pênis é “homem” e, portanto,
deve sentir-se “masculino” e comportar-se como tal. De modo análogo,
quem tem vagina é “mulher”, deve sentir-se “feminina” e comportar-se como
tal. Entre tais comportamentos, desejos e práticas sexuais são fundamentais.

2 Butler (2003) considera que o gênero, por não possuir essência nem existência pré-discursiva – assim como

o são corpo e sexo – é um ato. São os estilos corporais que se expressam no corpo, é pela representação
corporal repetida estilística e esteticamente no corpo que o gênero se constitui. Contudo, “Como efeito de
uma performatividade sutil e politicamente imposta, o gênero é um ‘ato’, por assim dizer, que está aberto a
cisões, sujeito a paródias de si mesmo, a autocríticas e àquelas exibições hiperbólicas do ‘natural’ que, em seu
exagero, revelam seu status fundamentalmente fantasístico” (BUTLER, 2003, p. 198-199; 211), de modo que
o sujeito pode subverter, pelo corpo, as repetições pelas quais se define e se mantém a divisão binária dos
gêneros: como se sentar, como e o que vestir, como sentir, como se relacionar, etc., como ser (e ser
lido/interpretado como) menina/mulher e ser menino/homem; criando, assim, novos estilos – não
normativos.

200 Educação e Interseccionalidades


O homem tem que desejar a mulher e a mulher, o homem (CARRARA et
al., 2010, p. 20).

No entanto, por haver modos de subversão (linhas de fuga, em termos deleuzianos)


às práticas disciplinadoras que compõem os processos de subjetivação, não há de fato uma
correlação linear, tal como se pretende normatizar e disciplinar. O corpo com genitália não

determina o “ser homem” ou “ser mulher”, o se comportar de modo “feminino” ou


“masculino”, ou o desejo por um ou outro gênero. Assim, a construção do desejo
heterossexual como obrigatório e hegemônico em nossa sociedade opera pelo que Gayle
Rubin (1993) denomina heterossexualidade compulsória3 ou obrigatória.

Os discursos que nomeiam e conduzem os corpos, conformando “marcas” ou


categorias identitárias pelas quais esses corpos são lidos, produzem técnicas e tecnologias de
classificação, divisão e distinção entre os sujeitos, e assim as diferenças são demarcadas e
instauradas de modo a constituir relações de poder. O que é afirmado por Louro (2000, p.
62-63):

[...] não é possível ignorar que no processo de atribuição de identidades (e,


ao mesmo tempo, de atribuição de diferenças) está em ação um jogo de
poder. As identidades, constituídas no contexto da cultura, produzem-se em
meio a disputas, supõem classificações, ordenamentos, hierarquias; elas estão
sempre implicadas num processo de diferenciação.

Sendo assim, a violência normativa se impõe no modo como os espaços e as relações


estão organizadas, dentro de uma estrutura heteronormativa, fazendo com que a vida das
pessoas que fogem à norma não seja possível ou não possam ser efetivamente vivida. Vidas
sem valor, vidas não vivíveis, vidas que não cabem dentro do sistema heteronormativo de
representações, de trânsitos, de territorialidades possíveis a corpos e subjetividades

(TONELI; AMARAL, 2011).

3A heterossexualidade compulsória é determinada pela divisão dos sexos, divisão socialmente imposta para a
instituição do casamento e para a divisão sexual do trabalho, operando pela limitação binária do gênero, as
dicotomias feminino-masculino, homem-mulher, e pela coerção da sexualidade feminina. Exclui, assim, o que
há de feminino no homem e de masculino na mulher, provocando o distanciamento das características que os
aproximam (BRAGA, 2011) por mecanismos que operam nas mais diferentes instituições, incluindo a escola.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 201


Há coisas e há sujeitos que são impensáveis no interior de uma determinada
cultura, conforme ensinou Foucault. Eles não se enquadram numa lógica ou
num quadro admissíveis àquela cultura, naquele momento. Essas práticas e
esses sujeitos transgridem a imaginação, são incompreensíveis e então são
recusados, são ignorados.
[...] A heterossexualidade se constitui, assim, na forma compulsória de
sexualidade. Dentro desta lógica, os sujeitos que, por qualquer razão ou
circunstância, escapam da norma e promovem uma descontinuidade na
sequência sexo/gênero/sexualidade serão tomados como “minoria” e serão
colocados à margem das preocupações de uma educação que se pretenda para
a maioria. Paradoxalmente, esses sujeitos “marginalizados” continuam
necessários, pois servem para circunscrever os contornos daqueles que são
normais e que, de fato, se constituem nos sujeitos que importam (LOURO,
2004, s.n).

Quando falamos em desigualdades de gênero no espaço escolar, assim como na


sociedade em geral, falamos de uma condição social, histórica e culturalmente produzida
para manutenção das relações de poder que subordinam mulheres a homens (SAFFIOTI,
2004). Entretanto, se falávamos há algum tempo quase que exclusivamente em desigualdades
existentes entre homens e mulheres, atualmente os discursos e práticas de resistência que
problematizam e se colocam no lugar de enfrentamento às normativas sociais de gênero dão

a ver outras estratificações e marcações sociais que se sobrepõem e/ou fazem surgir novos
mecanismos de exclusão, discriminação e violência.

Portanto, não podemos falar mais de gênero nas escolas desvinculado de marcadores
sociais como identidade de gênero, orientação sexual, classe social, raça-etnia etc. Também
não podemos mais falar apenas de homens e mulheres pautados na divisão binária de gênero,
em sua concepção biologicista (BUTLER, 2003), ou seja, pautada na diferença sexual, pois
as discussões sobre gênero requerem um olhar sobre a diversidade.

A FUNÇÃO ÉTICO-POLÍTICA DA ESCOLA E DA PRÁTICA DA


PSICOLOGIA ESCOLAR

A escola, constituída como um espaço de disciplinamento dos corpos-sujeitos, como


lugar em que se ensina a ser e agir de acordo com as normas sociais, e, deste modo, operando
como reprodutora das desigualdades de gênero e como instituição excludente (na qual a

202 Educação e Interseccionalidades


diversidade é ofuscada e corrigida – não raro, a partir de estratégias punitivas e violentas),
deve ser repensada desde dentro, desde as suas bases, a sua estrutura, a sua histórica função
social, a fim de se transformar e se recompor sobre novos princípios e a partir de novos
olhares sobre os sujeitos. Assim, aqueles que fazem a escola devem se perguntar: o que

queremos da escola? Como queremos educar? Educar para quê e como? Como enxergamos
os sujeitos-estudantes e de que modo queremos que eles participem das práticas

pedagógicas? Um caminho possível para a busca dessas respostas parte do entendimento de


que a escola é: “uma instituição social que consiste em fomentar mudanças, desafiar nos
sujeitos reflexões sobre si e o contexto social no qual estão inseridos” (GRAUPE;
BRAGAGNOLLO, 2015, p. 9).

Se a escola pode fomentar mudanças, essas são possíveis por meio dos atores que
compõe essa instituição, de tal modo que a atuação da(o) profissional da Psicologia nesse
contexto, quaisquer que sejam suas propostas de ação, e aqui, mais especificamente aquelas
referentes à gênero, sexualidade e diversidade, deve estar comprometida(o) a fomentar novos
modos de invenção do sistema educativo mas, sobretudo, de subjetividades (sendo essas
aquelas que mobilizam a transformação do sistema). Para tanto, tomo emprestada as

convocações que Zanella e Molon (2007) e de Kupfer (2004) fazem, desde diferentes lugares,
sobre a abertura de fissuras no contexto escolar, respectivamente: “Nas escolas pulsam vidas

que clamam por espaços de escuta e vazão para que possam eclodir (...) que podem contribuir
para a transformação daquele lugar que aprisiona em lugar de invenção” (2007, p. 264), e se
os discursos e práticas institucionais tendem à repetição, as falas e modos de existência dos

sujeitos provocam rachaduras naquilo que está cristalizado e “É exatamente como ‘auxiliar de
produção’ de tais emergências que um psicólogo pode encontrar seu lugar” (2004, p. 59; grifo da
autora).

A partir deste lugar, este trabalho consiste no relato de experiência das ações
desenvolvidas no contexto do Instituto Federal do Paraná – IFPR, Campus Irati, sobre os
temas gênero e diversidade, desdobrados na problematização das seguintes temáticas:

produção dos corpos-gêneros e desigualdades de gênero; lugares sociais (im)possíveis a


homens, mulheres e pessoas não-binárias; violências de gênero; sexualidade, prevenção a
ISTs e gravidez.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 203


O trabalho com os temas se deu por meio de oficinas, rodas de debate, intervenções
grupais, de propostas de um projeto de extensão e de ensino, ambos intitulados:

“Desconstruindo tabus e preconceitos para construir a (com)vivência com as diferenças:


diálogos sobre gênero e diversidade na escola” (aprovados, respectivamente, pelo Edital n.
14/2015 da Pró-Reitoria de Extensão, Pesquisa e Inovação – PROEPI e pelo Edital de 2016
do Programa de Bolsas de Inclusão Social – PBIS, do Instituto Federal do Paraná – IFPR),
que contaram com a participação de estudantes bolsistas.

GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA: PRÁTICAS POSSÍVEIS

O relato apresentado nesta seção será feito em ordem cronológica e em caráter


descritivo, de modo a referir as condições e momentos em que as ações foram realizadas,
quais foram os objetivos pretendidos com elas, e, ao final, considerações gerais sobre os
resultados percebidos de modo global, a partir das diferentes intervenções efetivadas.

No ano de 2015, realizamos uma oficina, intitulada “O que pode o corpo?”, sobre
gênero, diversidade e práticas de violência, no I Seminário de Inovação, Pesquisa e Extensão

do campus, da qual participaram estudantes, servidoras e docentes do campus, e na qual


foram levantadas, nos diálogos, críticas ao modo como a diversidade sexual é tratada nas
relações sociais bem como as diversas formas de opressão que as mulheres sofrem no

cotidiano (a questão da exploração dos corpos e os desejos, sobretudo). Para este momento,
foram utilizados recursos audiovisuais (vídeos e material em slide), além de materiais de
sensibilização, como imagens e tarjetas de papel com conceitos e questionamentos para
incitar o diálogo. A oficina foi iniciada com uma experimentação estética, com imagens

(fotos de pessoas que não correspondem às normativas pautadas na divisão binária dos
gêneros) e cartazes com frases provocativas sobre diversidade sexual, limites e potencialidades

do corpo, distribuídos nas cadeiras (dispostas em círculo) que foram posteriormente


ocupadas pelas participantes; esse momento foi bastante importante para fazer despontar o
diálogo sobre os temas propostos e provocar desacomodações dos olhares e, por
consequência, das afetações.

204 Educação e Interseccionalidades


Em maio de 2016, propusemos um evento em alusão ao Dia Internacional de
Combate à Homofobia e outras Fobias de Gênero (16 de maio), com três dias de atividades,
nos quais contamos com um cine-debate do filme “Meninos não choram” (1999/EUA), uma
roda de conversa, com participantes externos, que trataram do tema em diferentes âmbitos:
na escola, no trabalho, na família, na política etc., e uma oficina de produção de cartazes,
sobre o enfrentamento das fobias de gênero e o respeito à diversidade.

Da exibição do filme, participaram poucas(os) estudantes e algumas(ns)

servidoras(es). O que revelou a dificuldade das pessoas têm em implicar com temas como
este, visto que essa foi uma atividade proposta em contraturno e que muitas(os) docentes
mantiveram suas atividades de ensino no mesmo horário em que ocorrerria a atividade.
Assim foi também nos outros dois dias. Apenas uma professora propôs a alteração das
atividades de ensino do dia para a participação no cine-debate.

Do filme, decorreram debates sobre as práticas corretivas que incidem sobre os


corpos-sujeitos que fogem à heteronorma, tais como as de estupro, que são banalizadas e,
constantemente, subnotificadas (porque, por vezes, silenciadas, e mantidas em sigilo); sobre

o conservadorismo que marca as práticas de violência, naturalizando-as e tende a promover


a exclusão e a morte (simbólica e real) das diferenças expressivas ou dos sujeitos considerados
desviantes, dissidentes (corpos e sujeitos que, por apontarem para um suposto desvio,
desacomodam verdades, propõem questionamentos e incômodos à norma); e sobre o
tratamento das autoridades em relação às denúncias de estupro ou outros tipos de violência,

o que fez refletir sobre a desqualificação das/dos profissionais que deveriam acolher as vítimas
mas acabam por culpabilizá-las ou revitimizá-las no atendimento (tal como acontece no
filme, quando o policial que recolhe informações sobre a ocorrência, pergunta: “Mas por

que você não simplesmente age como mulher?” e “Durante o ato você estava em que
posição?”).

A roda de conversa contou com a participação de um professor e pesquisador


externo, que falou sobre a sua pesquisa de mestrado, fazendo problematizações a respeito do

“Dia do Orgulho Hétero” e os problemas de nomeação das identidades de gênero e


orientação sexual, em suas múltiplas possibilidades de categorização; representantes da
Secretaria Municipal de Assistência Social e da Rede de Proteção e Enfrentamento às

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 205


Violências do município de Irati-PR, que trataram da rede de assistência e proteção

disponível à população LGBT, e as dificuldades presentes no trabalho destas pessoas pela


garantia do direito de acesso e dos serviços ofertados a população LGBT, que continuam à
margem da cidadania que deveria ser assegurada pelos equipamentos públicos; dois
representantes do Coletivo LGBT Iratiense expuseram as potências e os entraves das suas

trajetórias de vida, marcados pela afirmação identitária e pela orientação sexual não
normativas, que atravessam a autoaceitação, a aceitação e respeito da família, o contexto
escolar e o olhar e tratamento dos outros (pares), a religião etc.; e as bolsistas do projeto de
extensão, que também participaram tratando da homofobia na família e na escola como um
problema grave de violência a ser firmemente combatido.

Em junho, realizei uma intervenção com o primeiro ano do Ensino Médio Técnico

Integrado em Informática e um ato envolvendo todas(os) as(os) estudantes, ambos contra a


“Cultura de Estupro” e todo tipo de conduta que a legitima, em alusão ao estupro coletivo
de uma adolescente, ocorrido no Rio De Janeiro, que ficou conhecido nacionalmente. No
ato, procuramos tratar de todos os tipos de violência contra a mulher bem como do modelo

de masculinidade hegemônica que faz com essa prática seja perpetuada, e sugestões de como
essas violências podem ser enfrentadas, denunciadas e transformadas. Para o ato, contamos
com a participação de estudantes do IFPR-Campus Irati que, no momento do intervalo
entre as aulas do período e sem aviso prévio às turmas, a professora de História do campus
iniciava a leitura do poema “A noite não dorme nos olhos das mulheres” e era seguida

pelas(os) estudantes, que, distribuídos em diferentes pontos dos corredores e escadas,


proferiram frases com dados estatísticos de casos de violência contra a mulher bem como da
realidade dos agressores (e da produção de sujeitos – homens – violentos, dentro das tramas
da educação machista, da masculinidade hegemônica) e outras frases, indicando estratégias
de luta ou práticas de resistência para combater e modificar essas realidades.

A conversa em sala se deu a partir da demanda de um docente responsável por uma


disciplina técnica do curso, com quem as(os) estudantes dialogaram sobre o ocorrido e
começaram a apresentar os seus posicionamentos. Minha entrada em sala se deu numa das
aulas desse professor, e o diálogo foi realizado a partir de material audiovisual, com algumas
imagens e textos em slides, mas iniciado por um vídeo disponível no YouTube, intitulado

206 Educação e Interseccionalidades


“Para além dos seios”, que aborda a “cultura do estupro” desde uma perspectiva histórica, do
período colonial, e racial, de modo a sensibilizar as(os) estudantes para a visualização do lugar

que o corpo das mulheres, e sobretudo da mulher negra, ocupa como objeto de desejo e
exploração sexual e de dominação masculina dentro da sociedade capitalista e machista que
reproduz esse modo de captura dos corpos-subjetividades das mulheres.

Como resultado do projeto de extensão4 (desenvolvido de março a novembro de

2016) citado, realizamos cinco encontros com estudantes de uma escola estadual do

município. Nossa intenção, a partir da indicação do Núcleo Regional de Educação, era a de


ter realizado os encontros programados com três escolas estaduais, sendo uma delas da região
rural. Em contato com as escolas, as direções e equipes foram favoráveis e receptivas, e
inclusive sensibilizadas para a intervenção depois de um pequeno momento de diálogo e
formação que fizemos dentro da semana pedagógica de cada uma delas. No entanto, devido
ao indeferimento do processo de aprovação do projeto pela Secretaria Estadual de Educação

(visto que as ações teriam, a princípio, como lócus, as próprias escolas), acabamos executando
o trabalho completo com apenas uma escola. Com as outras duas, apenas iniciamos, sem ter
sido possível dar continuidade.

Os encontros eram realizados uma vez por semana, completando cinco, e organizados

a partir de diferentes temáticas os seguintes temas, previamente escolhidos: “Gênero e


Cotidiano”, as desigualdades de gênero e os processos de subjetivação que produzem sujeitos
desde uma lógica identitária cis-hetero-normativa; “Lugares sociais (im)possíveis a homens,
mulheres e sujeitos que não correspondem aos padrões cis-hetero-normativos – a questão

da identidade e expressão de gênero e da orientação sexual”; “Violências de gênero – as lutas


pelo respeito e garantia da manifestação da diversidade sexual, desde uma perspectiva dos

direitos humanos e do exercício da cidadania”; e, por fim, “Sexualidade, prevenção a ISTs e


gravidez precoce”.

Como resultado do projeto de ensino (também desenvolvido de março a novembro

de 2016), foram elaborados dois jogos interativos e pedagógicos: um jogo da memória sobre

4 A descrição e análise detalhada pode ser encontrada no link:


https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/173894/TCC%20FINAL%20THAYSA.pdf?sequen
ce=1, como trabalho final do Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 207


ISTs, formado por um conjunto de cartas em que constam os nomes das doenças e imagens
que caracterizam seus sintomas, e outro, em que constam as descrições; e quatro dominós
organizados em quatro conjuntos temáticos, quais sejam: 1. categoria gênero e suas

derivações – categorias e definições de identidade de gênero, gênero, expressão de gênero,


orientação sexual etc.; 2. diversidade sexual–diferentes identidades e orientações sexuais; 3.
violência de gênero/contra a mulher–aspectos sociais e culturais nos quais se sustentam as
práticas de violência (tais como a ideologia machista), tipos de violência, Lei Maria da Penha,
mecanismos de denúncia e de proteção/acolhimento às mulheres; e 4. fobias de gênero. Tais
materiais poderão, por seu caráter lúdico, mostrar-se como um meio facilitador para tratar

de assuntos importantes e que exigem um olhar crítico e também a implicação dos sujeitos
sobre as problemáticas que envolvem. As(os) estudantes do IFPR-Irati poderão fazer uso

desses instrumentos e produzir conhecimentos e posicionamentos a partir deles, tendo


acesso a novos conceitos e ideias sobre temas que fazem parte do seu cotidiano, trocando
saberes com suas/seus colegas e docentes.

Em maio de 2017, também realizamos um evento em alusão ao Dia do Combate à

LGBTfobia, o “Em debate: fobias de gênero”, no qual evidenciamos não apenas a discussão
sobre homofobia, senão também sobre transfobia, ao propormos um cine-debate do filme

“Meu nome é Jacque” (que ainda não está em circulação comercial, mas que foi liberado
para exibição após autorização da produtora) e uma roda de conversa que teve como
participantes uma travesti negra, uma transexual descendente de índios kaigang e

quilombolas e um homossexual e drag queen, ligados à educação nas suas atividades


profissionais (duas professoras, de nível superior e básico, e um pedagogo de escola rural do
acampamento do MST de Cascavel). Na ocasião da roda de debate, cada participante falou

do seu lugar, da sua trajetória de vida desde a marcação não-normativa de identidade de


gênero e das suas práticas de resistência e denúncia às diversas violências que se incidem
sobre os seus modos de existência, recobrando a necessidade de serem vistos e tratados como

sujeitos de direito e, assim, de romperem com as constantes negociações (que exigem a


aproximação ou adequação aos padrões normativos de gênero, na composição de seus corpos

e expressões, atenuando a distância do que é fixado como “normal” dentro dos parâmetros
da cis-hetero-normatividade) que precisam fazer para que suas existências sejam passíveis de
aceitação (atravessada por violências e discriminações) nos mais diversos lugares e fazeres.

208 Educação e Interseccionalidades


Além dessas duas atividades, alunas(os) realizaram uma performance, recitaram
poemas, e organizaram painéis com conteúdos reflexivos sobre a temática e um artista e
professor da cidade participou da programação cultural, com a performance “Picadeiro

Transviado”5.

Essas foram algumas das ações realizadas desde 2015 e outras estão em curso no

IFPR-Irati, sendo previstas, ano a ano, em calendário acadêmico e planejamento pedagógico.

Essas ações ainda refletem o lugar de resistência desde o qual este trabalho se dá,
frente a todas as forças contrárias que incidem sobre a inclusão destes temas no espaço
escolar, para que voltem a ser ou permaneçam alijados dele.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pudemos perceber, por meio das ações realizadas até agora, de que modo as(os)

estudantes se posicionam diante de discursos machistas, de práticas de violência (contra


mulheres e pessoas LGBT), da educação heteronormativa de meninos e meninas, do
exercício – autônomo e consciente – da sexualidade por homens e mulheres e dos seus

direitos sexuais e reprodutivos etc. Inserir os temas gênero e diversidade na escola é uma
ação de prevenção e combate às violências de gênero, sejam elas contra as mulheres ou contra

a população LGBT e também é uma provocação para a reinvenção das relações de gênero
desde um lugar que privilegie relações mais justas, equânimes e respeitosas. Porque a
diversidade nos interpela e é interessante que, diante dessa interpelação, possamos re
descobrir a nós mesmos, respondendo às perguntas que não ousamos responder, ou, ainda
melhor, fazendo as perguntas que não ousamos nos fazer. Por essas razões é que defendo a
proposição de formações que possam qualificar trabalhos (de docentes e outras/os
profissionais) dentro de uma perspectiva mais inclusiva e que responda aos atravessamentos

e diversidades que constituem os sujeitos, profundamente marcados por normativas de


gênero.

5 Um trecho dessa apresentação pode ser acessado pelo link: <https://youtu.be/sQEVUiKmEnA>.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 209


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20 de agosto de 2017.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 211


212 Educação e Interseccionalidades
FEMINISMO E DIREITO:
experiências de módulo em instituição de ensino
jurídico superior

Francielle Elisabet Nogueira Lima1 e Lígia Ziggiotti de Oliveira2

A inserção de perspectivas críticas em relação à dogmática jurídica fundamentadas em


análises interdisciplinares sobre a efetividade dos enunciados normativos em relação à
realidade posta, resta cada vez mais encorajada no âmbito acadêmico pela crescente
importância de se investigar o fenômeno jurídico à luz das complexidades da vida concreta.
Nesse sentido, observa-se que as teorias feministas – principalmente em suas vertentes
interseccionais - revelam-se profícuas ferramentas de construção de um ensino jurídico
pautado no compromisso de se promover a formação de juristas mais atentos aos diversos
marcadores sociais da desigualdade. Baseando-se nestas premissas, e com autorização emitida
pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em Curitiba, verificou-se a possibilidade de
se lecionar o módulo/disciplina “Perspectivas feministas sobre o direito” em referida
instituição, objetivando a paulatina introdução dos debates de gênero e sexualidade na seara
acadêmica do direito, a qual, tradicionalmente, é informada por uma racionalidade
androcêntrica, universalista e binária. Assim, através do presente relato de experiência,
busca-se apresentar as práticas pedagógicas desenvolvidas em tal módulo/disciplina, bem
como se pretende descrever as reflexões extraídas pelas(os) alunas(os) frequentadoras(os),
almejando-se, a partir do(s) relatório(s) de aproveitamento das(os) discentes, traçar
estratégias de incorporação das temáticas de gênero e sexualidade no bojo da educação
jurídica.
Palavras-chave: educação jurídica; direito; feminismo; gênero.

INTRODUÇÃO

Em 1993, constatando a cristalização do ensino jurídico no tempo, com estrutura


curricular praticamente inalterada desde 1973 (ano em que se instituiu nova reforma por

determinação da Resolução n. 3, do Conselho Federal de Educação), a Comissão de Ensino

1Mestranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná.

2 Doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná. Docente no Centro
Universitário Autônomo do Brasil (UNIBRASIL) e na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).
Advogada.
Jurídico da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) externou grande preocupação com o
panorama educacional vigente, indicando urgente necessidade de se transformar o

indiferente conhecimento acadêmico-jurídico em instrumento responsivo às demandas


sociais.3

Atenta a este problema, análise crítico-histórica da construção da educação jurídica

do país elaborada em 20034 mostrou que o paradigma dogmatizante de ensino esteve em


perfeita harmonia com o modelo liberal de mercado e à pretensa neutralidade do direito,

fechando-se às possibilidades de criação de saberes e práticas pedagógicas cientes das


desigualdades constatadas no plano fático.

Embora considerável lapso temporal tenha transcorrido desde então, permanências

deste já conhecido ensino jurídico desmobilizado e acentuadamente tecnicista ainda causam


preocupação5, não sendo estranho afirmar que tal afastamento da concretude vivida parece
ser reflexo da normatividade posta, a qual se forjou em formulações abstratas do sujeito de

direito e em racionalidade androcêntrica, universalista e binária.

Com vistas à implementação de epistemologias e práticas pedagógicas

transformadoras, elegeu-se a interface dos estudos feministas com o direito como conteúdo
a ser lecionado (e construído) em disciplina facultativa – em formato de módulo – ofertada

3 “No caso do curso jurídico, a dificuldade é particularmente agravada porque sua crise não pode ser isolada
da crise do direito e do Estado, neste final do século XX... Há forte consenso entre todos os teóricos,
especialistas e operadores do direito de que os cursos jurídicos não respondem mais às demandas da sociedade
atual, ou o fazer de modo inadequado ou insuficiente.” (In: LÔBO, Paulo Luiz Neto. Critérios de
avaliação externa dos cursos jurídicos. In: Ensino jurídico. Parâmetros para elevação de qualidade e avaliação.
Brasília: OAB, 1993. p. 33). A articulação da Comissão de Ensino Jurídico da OAB ensejou a edição da Portaria
1.886/1994 do MEC, regulando as diretrizes curriculares e o conteúdo mínimo dos cursos jurídicos de
graduação no Brasil. A título de exemplificação, citam-se inovações qualitativas como a imposição de
monografia final, o cumprimento de carga horária de atividades complementares e a obrigatoriedade de
cumprimento do estágio de prática jurídica. (MARTINEZ, Sérgio Rodrigo. A evolução do ensino jurídico no
Brasil. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Sergio_Rodrigo
a0cf2a7769d948080.pdf. Acesso em: 24 de julho de 2017).
Martinez/publication/266185959_A_EVOLUCAO_DO_ENSINO_JURIDICO_NO_BRASIL/links/54dbfa2

4MARTINEZ, Sergio Rodrigo. Manual da EducaçãoJurídica: Inconsciente Coletivo nos Cursos de Direito
- Mitos e Limitações Curriculares e Metodológicas - Uso do Pentagrama Pedagógico como Instrumento
Reurbanizador. Juruá, 2003.
5 Sobre o assunto, ver DE CARVALHO, Cláudio Oliveira de; MACEDO JR., Gilson Santiago. Educação
jurídica e barbárie: quem não beber deste cálice morrerá. Disponível em:
http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/23/educacao-juridica-e-barbarie-quem-nao-beber-deste
calice-morrera/. Acesso em: 24/07/2017.

214 Educação e Interseccionalidades


na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, no primeiro semestre de 2017, sendo o
presente artigo oriundo de relato concernente a esta experiência na referida instituição de
ensino superior.

Pretendeu-se, com o módulo, tecer possíveis estratégias de incorporação das


temáticas de gênero no bojo da educação jurídica, a partir das avaliações de aproveitamento

da disciplina colhidas das(os) discentes, viabilizando, assim, a construção de metodologias


de análise crítica do fenômeno jurídico que não ignorem marcadores de desigualdades sociais
como gênero, raça, classe, deficiências e orientação sexual.

Esclarecimentos preliminares sobre o formato de atuação das facilitadoras

Consoante apontamento feito anteriormente, cinge-se este trabalho à narrativa de


experiência de lecionar em módulo ofertado em instituição privada de ensino superior,
formato de disciplina que se consubstancia em modalidade de horas complementares de

ensino6, as quais não integram, a rigor, a grade regular do curso de graduação em direito7.
Ficou a critério, portanto, das alunas e dos alunos, independentemente do período cursado,
a seleção dos módulos que pretendiam frequentar durante os semestres letivos.

Tendo em vista a desnecessidade de se seguir os conteúdos fixos do currículo


obrigatório, e considerando a redução do número de educandas(os) em relação à composição

quantitativa de discentes que se verifica nas disciplinas regulares, optou-se pela inserção de
metodologia alinhada à perspectiva dialógica do processo de ensino-aprendizagem8,

6 Conforme informação extraída do sítio eletrônico da instituição de ensino (disponível em:


http://www.pucpr.br/graduacao/direito/curitiba/apoioestudante.php. Acesso em: 25/07/2017).
7Nesse sentido, refere-se às disciplinas que fazem parte da estrutura regular do curso de graduação, como, a
título de exemplificação, direito civil, direito processual civil, direito constitucional, direito civil, etc. Para
melhor situação da(o) leitora(leitor), pode-se conferir a grade integral do curso nesta página eletrônica:
http://www.pucpr.br/graduacao/direito/curitiba/estrutura.php5.
8“Assim sendo, ‘o papel do educador não é propriamente falar ao educando, sobre sua visão de mundo ou lhe
impor esta visão, mas dialogar com ele sobre a sua visão e a dele. Sua tarefa não é falar, dissertar, mas
problematizar a realidade concreta do educando, problematizando-se ao mesmo tempo’. (...) É que há um
diálogo invisível, em que não necessito de inventar perguntas ou fabricar respostas. Os educadores democráticos
não estão – são dialógicos” (In: BARRETO, Vera. Paulo Freire para educadores. São Paulo: Arte & Ciência,
1998. p. 65).

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 215


praticando-se o estímulo às(aos) alunas(os) de exporem suas formulações sobre as temáticas
desenvolvidas em sala.

Buscou-se, desta forma, o afastamento da tradicional ministração de aulas


expositivas, em que o conhecimento é transmitido “unilateralmente” e de maneira

verticalizada pela(o) educador(a) em detrimento da interação com as(os) educandas(os),


reafirmando-se a tentativa de implementação de uma dinâmica de classe horizontalizada, o
que se coaduna com o propósito de se repensar a educação jurídica por viés democrático e
inclusivo.

Além das conversas realizadas nos encontros presenciais, ocorridos entre 28 de março

e 20 de junho de 2017 (com, aproximadamente, uma hora e meia de duração cada), foram
indicados variados textos para reflexão do conteúdo aplicado em sala, de natureza não
exclusiva à da categoria científica, e que englobaram temáticas desde a introdução aos estudos

de gênero até considerações de maior densidade filosófica sobre as teorias feministas9.

Não se impôs, contudo, análises pormenorizadas do teor contido em referida


literatura como forma de avaliação ou pressuposto para a compreensão dos encontros, uma
vez que a indicação de tal leitura objetivou apenas o reforço e a elucidação de conceitos
teóricos apresentados para a classe – como feminismos, gênero, sexo, identidade de gênero,
transgeneridade, etc -, que são mais comumente estudados em searas não jurídicas.

9 São eles: APOSTOLOVA, Bistra Stefanova; FONSECA, Lívia Gimenes dias da; SOUSA JR., José Geraldo
de(org.). Introdução Crítica ao Direito das Mulheres. Introdução crítica ao direito das mulheres. Brasília:
CEAD/FUB, 2011; COX, Laverne. “Não sou eu uma mulher?”. Disponível em:
https://traduzidas.wordpress.com/2013/07/14/se-nao-sou-eu-uma-mulher-laverne-cox/. Acesso em:
26/07/2017; iii) PEREIRA, Ana Cláudia. Feminismos e justiça social: as lutas das mulheres negras não cabem
em uma única palavra. Disponível em: http://blogueirasfeministas.com/2013/07/feminismos-e-justica-social
as-lutas-das-mulheres-negras-nao-cabem-em-uma-unica-palavra/. Acesso em: 26/07/2017; iv) CAMPOS
RUBIO. Arantza. Aportaciones iusfeministas a la revisión crítica del Derecho y a la experiencia jurídica. In:
Mujeres y Derecho: Pasado y presente. I. Congreso multidisciplinar de la Sección de Bizkaia de la Facultad de
Derecho. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2874672.pdf. Acesso em: 26/07/2017;
v) FRASER, Nancy. O feminismo, o capitalismo e astúcia da história. In: Revista de Ciências Sociais. Dossiê:
Contribuições do pensamento feminista para as ciências sociais. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/4505. Acesso em: 26/07/2017 e; vi) KASS,
Hailey. que
https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=247132.
O é Acesso em: 26/07/2017.
transfeminismo?. Disponível em:

216 Educação e Interseccionalidades


O módulo foi dividido em dois momentos distintos, sendo o primeiro deles
consubstanciado na introdução aos estudos feministas e de gênero e o posterior em possíveis

diálogos de tais conhecimentos com o direito, os quais serão descritos nos tópicos seguintes.

DOS MOVIMENTOS TEÓRICOS INCIPIENTES ÀS PERSPECTIVAS


PÓS-ESTRUTURALISTAS: CONDUZINDO AS(OS)
EDUCANDAS(OS) À PERCEPÇÃO DOS ESTUDOS FEMINISTAS E
DE GÊNERO

Para melhor compreensão das(dos) discentes, optou-se pela apresentação das


vertentes e dos conceitos trabalhados pelos feminismos através da divisão em “ondas” dos
momentos de articulação destes movimentos sociais e teóricos nos últimos dois séculos10.

Inicialmente, remeteu-se à onda sufragista do movimento feminista, tentando passar


às alunas e aos alunos a percepção de que não havia, ainda, engajamento na produção de
conhecimento científico fundamentado por viés feminista, tampouco se observava discussão
acerca do que a terminologia gênero poderia significar ao movimento, já que as pautas sociais
se organizavam em torno do acesso formal à cidadania11.

Em momento posterior, adentrando-se na explanação sobre a segunda onda


feminista – marcada pelo encorajamento da produção de conhecimento sobre a subordinação
social e invisibilidade política das mulheres12 -, apresentou-se o trabalho de Gayle Rubin
em “O tráfico de mulheres: notas sobre a economia política do sexo”13, na tentativa de

10Nesse sentido, Dagmar E. Meyer explica que “embora os movimentos de mulheres e o feminismo tenham
construído trajetórias que podem ser contadas de diferentes formas e sob diferentes óticas, as historiadoras,
em geral, registram sua história mais recente, fazendo referência a uma primeira e segunda ondas do movimento
feminista” (In: Gênero e Educação: teoria e política. In: FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre;
LOURO, Guacira Lopes (orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação.
Petrópolis: Vozes, 2013. p. 13).
11 Idem.
12 Ibidem, p. 14.
13O texto pode ser visualizado no seguinte endereço eletrônico:
https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/1919.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 217


demonstrar a influência do estruturalismo na incipiente acepção do termo gênero em
oposição a sexo.

Foram induzidas(os) as(os) discentes, então, ao mapeamento de signos comumente


atribuídos ao que se entende por masculino e feminino, resultando em pares de palavras
como “racional e emocional”, “força e delicadeza” e “ativo e passivo”, o que serviu para

demonstrar a dinâmica de oposição sobre a qual se forjou a compreensão que se tinha,


inicialmente, em relação a sexo, reputado como inerente característica biológica, e gênero,

interpretado como a inscrição cultural sobre a matriz do sexo biológico.

Após, problematizou-se essa sistemática dualista consagrada nos trabalhos mais


conhecidos do feminismo de segunda onda, inserindo o questionamento ao antagonismo
fixo da posição ocupada pelos sujeitos “homem” e “mulher” no centro dessas produções,
partindo-se de perspectivas pós-estruturalistas, tendo como referenciais teóricos as obras de

Michel Foucault e de Judith Butler.

A discussão sobre os paradigmas estabelecidos em dois momentos históricos trazidos


à baila (primeira e segunda onda feministas), levou à apresentação de abordagens
interseccionais dentro do feminismo, notadamente a partir da luta por visibilidade das
mulheres negras, lésbicas, com deficiência e das pessoas transgêneras.

Dessa forma, explanou-se a relevância da temática da sexualidade dentro dos


feminismos acadêmicos, entrelaçando-se com uma análise das transformações do
movimento LGBTI e a contribuição dos estudos queer para o desmantelamento da

identidade do sujeito “mulher” dentro das epistemologias feministas.

Tais encontros com (o grupo) perduraram até a data de 09 de maio de 2017,


momento a partir do qual já se passou a aventar a plausibilidade de se utilizar das teorias
feministas como ferramentas críticas à análise do fenômeno jurídico.

218 Educação e Interseccionalidades


POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES DO(S) FEMINISMO(S) ÀS CIÊNCIAS
JURÍDICAS: INTERFACES COM O DIREITO DAS FAMÍLIAS, O
DIREITO DO TRABALHO E O SISTEMA PENAL

Retomando os conteúdos anteriores, e adotando posição crítica em relação à


enunciada neutralidade das ciências jurídicas, na esteira dos apontamentos feitos por Arantza
Campos Rúbio14, indagou-se, inicialmente, de que maneira experiências normativas
anteriores e atuais legitimaram a subalternização da condição feminina. Como o direito
subdivide-se em inúmeras searas, elegeram-se três delas para se concentrar a análise
feminista objetivada: a familista, a trabalhista e a penal.

Em relação ao direito das famílias sobrevieram constatações de como, em passado


recente, pela codificação de 1916, a normatividade apenas se referia à mulher no campo

doméstico, impondo à figura feminina o estado civil de relativamente incapaz pela contração
de matrimônio, além de destinar expressamente ao sujeito masculino a chefia das relações
familiares.

Mencionaram-se também entendimentos jurisprudenciais que vigoraram por boa


parte do século XX, no que tange aos litígios familiares envolvendo a guarda de crianças e
adolescentes, os quais denotavam posicionamento discriminatório do judiciário, ao

questionarem a conduta moral de mulheres adúlteras que pleiteavam a custódia de suas(seus)


filhas(os)15.

14Em suas palavras, a autora enuncia que “el discurso del derecho sobre la mujer ha provocado que las
feministas desarrollen una serie de elaboraciones teóricas sobre la norma jurídica y su lenguaje, así como sobre
el sujeto de derecho. Los tres enfoques: ‘el derecho es sexista’, ‘el derecho es masculino’ y ‘el derecho tiene
género’ (...) resumen los esfuerzos de las feministas em su empeño de dar cuenta de la forma que el derecho
piensa sobra la mujer” (CAMPOS RUBIO. Arantza. Aportaciones iusfeministas a la revisión crítica del
Derecho y a la experiencia jurídica. In: Mujeres y Derecho: Pasado y presente. I. Congreso multidisciplinar de
la de de la
https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2874672.pdf.
Sección Bizkaia Acesso em:
Facultad de 26/07/2017).
Derecho. Portanto, procurou-se
Disponível em:

destacar, nas conversas em sala de aula, de que maneira o direito poderia ser considerado sexista e masculino,
e se poderia ser extraído um gênero do sujeito para o qual se legislou.
15 Nesse sentido, ver DIGIORGI, Beatriz; PIMENTEL, Silvia; PIOVESAN, Flávia. A figura/personagem
mulher em processos de família. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 219


No que se refere à seara trabalhista, discutiu-se sobre as assimetrias entre trabalhos

produtivo e reprodutivo. Problematizou-se, ainda, sobre o impacto das reformas trabalhistas


às mulheres e, quanto à informalidade a que estão submetidas, destacou-se a temática das

empregadas domésticas. Por fim, breves considerações sobre julgados acerca de assédio
sexual foram tecidas, e foi possível observar o discurso machista impregnado em tais

decisões.

O encontro reservado à exploração das relações de gênero no sistema penal elencou


algumas situações em que a condição feminina é mais vulnerabilizada, como as que

denunciam o tratamento de mulheres no cárcere, a violência doméstica, aborto e estupro.

Partindo-se de viés criminológico, procurou-se demonstrar a reiteração de


violências, em seu sentido amplo, no âmbito do sistema penal, perguntando-se se respostas
advindas isoladamente dele (como se verifica com a criminalização do feminicídio) são
suficientes para erradicar desigualdades como a de gênero.

Parece interessante pontuar que tal encontro concentrou o mais acalorado debate.
Parte da turma inclinou-se pela defesa dos mecanismos de penalização para o avanço da
temática de gênero ao passo que outra parte, pela descrença em tais movimentações. Com
efeito, a reação reflete as inquietações das feministas do campo jurídico, que se veem às
voltas com os limites e as possibilidades oferecidos pela ferramenta da criminalização.

Por fim, no último encontro realizado previamente às avaliações da disciplina,

debateram-se as contribuições pós-estruturalistas acerca da exclusão operada pelo direito de


outras vivências que não se enquadram em definições sexuais apreendidas pela norma

jurídica, de cunho eminentemente biologicista, destacando a judicialização da


transgeneridade no cenário atual.

Neste sentido, examinaram-se demandas judiciais englobando o reconhecimento da

identidade de gênero de pessoas transgêneras, especialmente no que diz respeito à garantia


de retificação de prenome e designativo de sexo sem a necessidade de realização de cirurgia
de transgenitalização, questão tratada na ADI 4275 e no RE 670.422, pendentes de
julgamento no STF.

220 Educação e Interseccionalidades


Na oportunidade, reproduziu-se gravação da sustentação oral da advogada Gisele

Alessandra Schmidt, primeira mulher trans a discursar na tribuna como representante de


amicus curiae (pelo Grupo Dignidade), transmitida no início da sessão de julgamento daquela
primeira ação, em 07 de junho de 2017.

AVALIAÇÃO DA DISCIPLINA E RELATOS DE


APROVEITAMENTO DO CURSO

De início, cumpre salientar que, de acordo com o controle de frequência, de um


universo de 66 cursistas matriculadas(os), 24 desistiram ao longo do semestre. Das(os) 42

alunas(os) que persistiram no módulo, 16 responderam à avaliação de aproveitamento da


disciplina, que foi disponibilizada por formulário físico e eletrônico16, composto das
seguintes perguntas relacionadas ao conteúdo tratado em classe:

i) O conteúdo abordado pareceu relevante para a formação em Direito? Por


quê?;
ii) Qual foi a principal motivação para que você se inscrevesse nessa
disciplina?;
iii) Antes de cursar a disciplina, qual era a sua percepção acerca do feminismo?
E agora?;
iv) Destaque um tema tratado em sala de que tenha gostado e outro tema de
que tenha sentido falta;
v) Teve contato com os textos indicados durante a disciplina? Qual foi a sua
maior dificuldade nas leituras realizadas?;
vi) A forma com a qual se expôs o conteúdo do módulo em sala de aula
priorizou o diálogo entre professora e alunas(os)? Qual a sua percepção?

Sintetizando as impressões colhidas, no que diz respeito ao contato das(os)


estudantes com a temática do feminismo previamente ao curso, inferiu-se da maioria das
respostas (em torno de 10 delas) que a percepção que se tinha era de que o movimento era

homogêneo e carente de fundamentação teórica, associando-o à luta por igualdade de

16 O formulário pode ser acessado por este link:


https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSc6xpuITygrewEN3BMeF
qMh5Z8021QZiMgk3kvzdbZNmjdeA/viewform?c=0&w=1.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 221


gênero, e que, após o módulo, passou-se a conceber o feminismo como mobilização
organizada em diversas vertentes.

A dinâmica de priorização do diálogo entre professora e alunas(os) foi aspecto


ressaltado de maneira bastante positiva, ao passo que a maior dificuldade relatada pelas(os)

alunas(os) residiu na compreensão de conceitos filosóficos atrelados à explanação sobre


estruturalismo e pós-estruturalismo; por outro lado, os conteúdos acatados mais
positivamente foram aqueles que enlaçaram as contribuições feministas com o direito das
famílias, o direito penal e o direito trabalhista.

Além disso, mencionaram as(os) discentes terem sentido falta de alguns temas,
como: situação das mulheres e o sistema de segurança pública; abordagem mais concreta da
condição de mulheres negras e trabalhadoras; e questões sobre corporalidade feminina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O engessamento do campo jurídico a influxos críticos não representa constatação


inédita. Ao mesmo tempo, são perceptíveis crescentes zonas de fissuras que possibilitam
novas epistemologias e novas práticas. A inserção do feminismo como lente para a análise

do direito exemplificou tentativa de aprofundá-las no âmbito da graduação, considerada a


relevância desta etapa ao processo de formação discente.

Embora as facilitadoras da disciplina já tivessem se aventurado por outras


experiências de discussão travadas entre feminismo e direito, a exemplo de projetos como
Promotoras Legais Populares e de minicursos como Gênero e Direito17, a iniciativa

17Uma das autoras envolveu-se na 5ª turma do Curso de Promotoras Legais Populares, quando organizado
em Curitiba (PR), em 2016. A propósito, o curso “configura-se como uma ação afirmativa em gênero, baseada
na visão do direito conjuntamente construído a ser concretizada por meio da Educação Jurídica Popular (EJP).
Essa proposta educativa possui como um de seus elementos principais proporcionar a todas as estudantes um
espaço ativo de fala, a fim de que se libertem da antiga forma de educação na qual um/a ensina e o/a outro/a
aprende, com o objetivo de capacitá-las para atuarem na defesa dos direitos femininos e na transformação da
realidade social” (DA FONSECA, Lívia Gimenes Dias; CUSTÓDIO, Cintia Mara Dias. Projeto Direitos
Humanos e Gênero – Promotoras Legais Populares do Distrito Federal: fundamentos e práticas. In:
APOSTOLOVA, Bistra Stefanova; FONSECA, Lívia Gimenes dias da; SOUSA JR., José Geraldo de(org.).
Introdução Crítica ao Direito das Mulheres. Introdução crítica ao direito das mulheres. Brasília: CEAD/FUB,
2011, p. 27. Por outro lado, o minicurso é iniciativa da outra autora em parceria com pesquisadora do campo
e se direciona ao público universitário.

222 Educação e Interseccionalidades


destacou-se como interessante em razão do espaço e do contexto de retrocessos políticos
nos quais se inseriu.

Ilustrativamente, em 2015, a articulação de setores conservadores conduziu à retirada

da questão de gênero de diversos currículos escolares. O estado do Paraná e a cidade de


Curitiba não constituíram exceções. Neste sentido, é revelador que em uma das primeiras
aulas ministradas no presente módulo uma das alunas tenha questionado, ao final, em que

medida o conteúdo transmitido assimilava o que se cunhou chamar de “ideologia de gênero”.

O potencial de diálogo sobre feminismos desenhado nos projetos pedagógicos,


inclusive no âmbito jurídico, talvez signifique pontual resistência diante das mais diversas

investidas contra a temática em um panorama amplo. E, neste arcabouço, ao revés de


hierarquizar os papéis desempenhados em sala, não se buscou oferecer respostas às
problemáticas apresentadas, mas, sim, estimular as angústias que, embora desconfortem,
parecem as principais impulsoras da reflexão e da intervenção em gênero no âmbito

educacional.

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Geraldo de(org.). Introdução Crítica ao Direito das Mulheres. Introdução crítica ao direito
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224 Educação e Interseccionalidades


EDUCAÇÃO, DIREITO E SOCIEDADE
CIVIL:
simbiose de uma atuação internacional visando
garantir o direito à educação livre, plural e sem
censura no Brasil.

Ananda Hadah Rodrigues Puchta1, Camille Vieira da Costa2 e


Sandra Lia Bazzo Barwinski3

O presente artigo tem como objetivo apresentar, brevemente, as violações de direitos


humanos que englobam o movimento político-conservador que, atrelado às mudanças nos
Planos de Educação (PEs) e na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), corroboram para
que o ambiente escolar deixe de cumprir seu papel emancipador, plural e democrático. Num
primeiro momento, faz-se necessário contextualizar a relação entre o movimento político
que permitiu a aprovação dos PEs e da BNCC. Posteriormente, será abordado o histórico
da Comissão de Estudos Sobre Violência de Gênero da OAB/PR, entidade que deu início à
articulação nacional que representou a sociedade civil na Comissão Interamericana de
Direitos Humanos. Ademais, serão abordados os direitos protegidos pela Convenção
Americana de Direitos Humanos e que, em decorrência das violações, foram descumpridos
pelo Estado brasileiro. Por fim, serão tecidas considerações práticas tanto ao Estado
brasileiro quanto à comunidade escolar. Dessa forma, busca-se aliar teoria e prática como a
Educação e o Direito se inter-relacionam numa simbiose necessária com a sociedade civil
para garantir o direito a uma educação livre, plural e sem censura, bem como um ambiente
escolar saudável e libertador.
Palavras-chave: Planos de Educação; Direito à Educação; Direito Internacional dos Direitos
Humanos.

1Advogada, graduada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pesquisadora do Núcleo de Estudos em
Sistemas Direitos Humanos da UFPR – NESIDH, membro da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero
de
da OAB/PR, Coordenadora Jurídica de Organismos Internacionais do Grupo Dignidade. E-mail:
ananda.hadah.rp@gmail.com.
2Defensora Pública, graduada pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas, Coordenadora
do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Paraná. E-mail:
camillevc@gmail.com.
3Advogada, graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), mestranda em Direito pelo
Centro Universitário Internacional UNINTER. Presidente da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero
da OAB/PR. Integrante do Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM/Brasil).
E-mail: sandrabazzo@hotmail.com.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 225


INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas o Estado Brasileiro tem sido pressionado por diversos segmentos
sociais pelo reconhecimento da legitimidade de suas diferenças. Neste contexto, a escola é
vista como espaço estratégico para a promoção da igualdade, enfrentamento de preconceitos,

discriminação e violência, assim como para a garantia da inclusão de grupos historicamente


vulneráveis. Isto porque o ambiente escolar é adequado para a promoção da cultura do
reconhecimento da pluralidade das identidades e dos comportamentos relativos à diferença,
sobretudo quando a experiência escolar é guiada por uma perspectiva crítica e
problematizadora.

Em resposta às propostas de políticas públicas educacionais em favor do fomento de


um ambiente educacional plural, projetos de lei baseados no movimento “Escola Sem
Partido” passam a ganhar força. A escola torna-se um cenário de disputas políticas e

ideológicas. Tal movimento tem como base uma combinação de ideias oriundas do
“libertarianismo”, do fundamentalismo religioso e do antigo anticomunismo4, e corrobora,
principalmente após a Lei nº 13.005/2014, para o aumento de propostas de planos de
educação (PEs) municipais e estaduais com o intuito de extinguirem os debates sobre gênero

e diversidade sexual nas escolas.

Em abril de 2017, novo fato gerou grande discussão, quando foi noticiado que o
Ministério da Educação retirou da versão final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

a referência aos termos “identidade de gênero” e “orientação sexual”, justificando tal


providência pela identificação de “redundâncias na redação”.

4MIGUEL, Luiz Felipe. Da “doutrinação marxista” à "ideologia de gênero": Escola Sem Partido e as leis da
mordaça no parlamento brasileiro. IN: Direito e Práxis, Rio de janeiro, v. 7, n. 15, 2016, p. 592.

226 Educação e Interseccionalidades


Por meio de uma articulação com forte atuação concentrada principalmente na
região sul do país, diversas instituições5 representaram a sociedade civil para denunciar e
trazer informações sobre as violações de direitos humanos do Estado brasileiro6.

CONTEXTUALIZAÇÃO DO PNE, BNCCE VIOLÊNCIA NAS


ESCOLAS

No âmbito nacional, a educação constitui condição mínima para o gozo de outros

direitos, constituindo-se como direito fundamental social7. O texto constitucional elenca


ainda as competências dos entes federativos8 e alguns princípios norteadores para a
concretização do direito à educação em seu art. 206, quais sejam: a liberdade de aprender,
ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, além do pluralismo de ideias.

Neste contexto o PNE e a BNCC têm o importante papel de dar densidade ao


previsto nos tratados internacionais de direitos humanos e na Constituição Federal. No ano

de 2015 foi votado o PNE na Câmara dos Deputados sob intensa discussão a respeito dos
temas ligados a gênero e diversidade sexual. Aqueles contrários à discussão destes assuntos
em sala de aula sustentavam que havia uma movimentação de organismos internacionais e

do governo federal para implantar nas escolas uma “doutrinação”, incutindo na cabeça de
crianças e adolescentes que poderiam escolher o gênero que quisessem.

A influência das vozes conservadoras do Congresso Nacional levou à supressão dos


termos gênero, orientação sexual e identidade de gênero de quase todos os PEs - nacional,

estaduais e municipais. Por sua vez, a BNCC, que estabelece a necessidade de as escolas de
todo o país implantarem diretrizes pedagógicas e ministrarem conteúdos mínimos com

5 Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-PR, Defensoria Pública do Estado do Paraná,


Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - ABGLT, Instituto de
Desenvolvimento e Direitos Humanos, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Confederação Nacional
dos Trabalhadores em Educação e Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Estado do Paraná.
6 Sobre a Audiência Temática ver: <https://goo.gl/bqbCWz>. Acesso em 04 ago2017.

7Art. 6° da Constituição Federal. Conteúdo completo em: <https://goo.gl/6poiKx>. Acesso em 04 ago2017.


8Art. 22, inciso XXIV, art. 23, inciso V, art. 24, inciso IX e art. 30, inciso VI, da Constituição Federal.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 227


objetivos de aprendizagem e desenvolvimento de estudantes, também foi alvo da mesma
disputa na qual lograram êxito as vozes conservadoras.

Entidades da sociedade civil e profissionais de diversas áreas científicas refutaram a


ação do Ministério da Educação, ao argumento de que esta medida impede a difusão de

perspectivas plurais de ensino, as quais viabilizam a promoção de debates importantes sobre


diferentes formas de violência que vitimam especialmente mulheres e LGBTIs.

Ambos documentos tiveram a supressão dos termos relacionados à discussão de


gênero e diversidade sexual em desrespeito aos debates e construções feitas ao longo de

diálogos entre poder público e sociedade civil, fazendo com que o dever de combater as
discriminações não contivesse as particularidades que circundam a temática de gênero,
orientação sexual e identidade de gênero.

Ignora-se, assim, o caráter emancipador da educação e a sua dimensão preventiva no


combate à violência, como demonstra a pesquisa de opinião publicada pela Fundação Perseu
Abramo, que chegou a números expressivos sobre a existência de preconceito motivado por

homofobia no Brasil9. Ela revela a escola como o local em que mais entrevistados LGBTI
disseram já terem se sentido discriminados10. Já a pesquisa realizada pela Secretaria de
Educação da ABGLT aduz que 60% dos entrevistados que se declaram LGBTI se sentem
inseguros na escola em decorrência de sua orientação sexual e 43% em decorrência de sua

identidade de gênero11.

9Segundo os dados coletados, 99% dos entrevistados demonstraram algum nível de preconceito contra pessoas
LGBTI. Ver em: VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma (resp. técnicos). Síntese da Pesquisa - Diversidade
Sexual e Homofobia no Brasil: Intolerância e respeito às diferenças sexuais. IN: VENTURI, Gustavo;
BOKANY, Vilma. Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2011. Pp. 190-251. Página, 204

10 Idem., p.219. Em perspectiva semelhante em levantamento nos 27 estados brasileiros, 93,5% dos 18.599
entrevistados relatou algum nível de preconceito em relação a gênero e 87,3% em relação a orientação sexual,
ver em: MAZZON, José Afonso (coord.). Projeto de Estudo sobre ações discriminatórias no âmbito escolar,
organizadas de acordo com áreas temáticas, a saber, étnico-racial, gênero, geracional, territorial,
necessidades especiais, socioeconômicas e orientação sexual. São Paulo: Fundação Instituto de Pesquisas
Econômicas, 2009.
11ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS, TRAVESTIS E TRANSEXUAIS.
Secretaria de Educação. Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional 2015: as experiências de
adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais.
Curitiba: ABGLT, 2016. Página 19.

228 Educação e Interseccionalidades


Ainda sobre a influência do preconceito, sabe-se que a discriminação de gênero tem
impactos especialmente negativos sobre as mulheres. Os dados sobre violência de gênero são

alarmantes12. Acrescenta-se que, segundo o Mapa da Violência 2015, o Brasil ocupa a 5ª


posição entre os 83 países que mais matam mulheres no mundo13. A desigualdade de gênero

é ponto central no enfrentamento da violência contra mulheres.

Tais dados apontam que o enfrentamento da violência contra grupos vulneráveis


como as mulheres e a população LGBT deve ser feita não só como política de segurança
pública, mas igualmente de forma preventiva, o que ocorre de forma eficaz nas salas de aula.

A escola é um lugar crucial para a construção de uma sociedade mais justa, solidária e pautada
na cultura da não violência.

HISTÓRICO DE LUTAS DA CEVIGE: ATUAÇÃO DA ADVOCACIA


NO CONTEXTO ESCOLAR.

A CEVIGE foi criada pela OAB/PR14, em 2013, com a missão de realizar estudos e
ações para contribuir para a superação da violência de gênero, constituída por membros
advogados e consultores, em caráter multidisciplinar. Dentre suas ações, a CEVIGE realizou
em 09 de junho de 2015 o seminário15 Feminicídio: aspectos jurídicos e sociais16, que
contemplava, além dos debates com a sociedade civil e operadores do direito, a participação

12 Segundo a nota técnica sobre estupros no Brasil, “89% das vítimas são do sexo feminino e possuem, em
geral, baixa escolaridade. Do total, 70% são crianças e adolescentes”, sendo que “24,1% dos agressores das
crianças são os próprios pais ou padrastos, e 32,2% são amigos ou conhecidos da vítima. Em geral, 70% dos
estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, o que indica que o principal
inimigo está dentro de casa e que a violência nasce dentro dos lares”. CERQUEIRA, Daniel; COELHO,
Danilo de Santa Cruz. Nota Técnica Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde (versão
preliminar). Disponível em:<https://goo.gl/NFSwC3>. Acesso em 04 ago 2017.
13WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência: Homicídio de Mulheres. Brasília, 2015. Disponível em:
<https://goo.gl/hdjAjn>. Acesso em 04 ago 2017.
14A CEVIGE foi criada por ato do presidente da OABA/PR, Dr. Juliano José Breda - Portaria 58/2013, datada
de 23 de abril de 2013, para a gestão 2013-2015, com 49 membros das áreas de Direito, Antropologia,
Assistência Social, Comunicação, Educação, Enfermagem, Medicina, Planejamento Estratégico, Políticas
Públicas, Psicologia e Sociologia, atuando como voluntários.
15 Notícia disponível em <https://goo.gl/Lp7GYt>. Acesso em 04 ago2017.
16 Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Disponível em: <https://goo.gl/XSCYFp>. Acesso em 04 ago 2017.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 229


de Sílvia Pimentel17. Concluiu-se pela relevância e gravidade dos feminicídios. Todavia,
conforme disposição da Lei nº 11.340/200618, a criminalização das condutas seria ineficaz
sem a correspondente intervenção na cultura e educação, ainda fortemente marcada pela

desigualdade, preconceito e discriminação, recomendando o público presente que a CEVIGE


influenciasse na formulação de políticas públicas na área, em especial ante a iminência da
votação dos PEs estadual e municipais.

Em 15 de junho de 2015, a CEVIGE, depois de articular e unir forças com a


Comissão de Diversidade Sexual (CDS) e com a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos

(CDDH) da OAB/PR, atuou incisivamente junto à Assembleia Legislativa do Paraná19 e à


Câmara Municipal de Curitiba, durante a votação dos planos de educação.

Por fim, o posicionamento da OAB/PR foi oficializado em nota pública, expressando

a “profunda preocupação com o processo político envolvendo a aprovação dos planos de


educação nos âmbitos municipais e estadual no Paraná”, e recomendou-se, dentre outras
coisas, ”que as escolas no Paraná sejam espaços democráticos onde todos sejam merecedores

de igual consideração e respeito, livres e iguais em dignidade e direitos, para que diferenças
não se desdobrem em desigualdades e violências”20.

Dessa mobilização, duas outras ações se originaram: (1) a realização de reuniões

abertas sobre educação, gênero e diversidade sexual, com o objetivo de promover ações de
orientação e sensibilização da população em geral com ênfase nos professores/as da rede

17 Representante brasileira no CEDAW. Para mais informações sobre membros do Comitê CEDAW, acesse:
<https://goo.gl/MBMyT5>. Acesso em 04 ago 2017.
18Art. 8º A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio
de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações
não-governamentais, tendo por diretrizes: [...] VIII - a promoção de programas educacionais que disseminem
valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou
etnia; IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos
direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar
contra a mulher. Lei nº11.340, de 7 de agosto de 2006. Disponível em: <https://goo.gl/rHhYFn>. Acesso em
04 ago 2017.

19Veja íntegra dos documentos em: <https://goo.gl/bKrq25>. Acesso em 04 ago2017.


20
Leia a íntegra da nota pública em <https://goo.gl/Rv6ik2>. Acesso em 04 ago 2017.

230 Educação e Interseccionalidades


pública21; e (2) o projeto Jovens Multiplicadoras de Cidadania (JMCs)22, tendo por escopo
capacitar mulheres jovens propiciando sua atuação na superação das desigualdades de gênero

e na promoção e afirmação de seus direitos com autonomia, bem como para demonstrar a
possibilidade de oposição legítima em contextos de opressão.

Como resultado das reflexões e estudos advindos das reuniões abertas, a CEVIGE,
CDSG e CDDH recomendaram ao Conselho Federal da OAB (CFOAB), a propositura de
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) em relação aos PEs dos

municípios de Cascavel e Paranaguá, por manifesta inconstitucionalidade, cujo requerimento


ainda tramita no CFOAB23. Todavia, a articulação das comissões da OAB/PR com sociedade
civil possibilitou que tais documentos fossem igualmente encaminhados à Procuradoria

Federal dos Direitos do Cidadão24, tendo a Procuradoria-Geral da República ajuizado as


ADPFs nºs 46025 e 46126.

Finalmente, estas ações redundaram na participação da CDSG na audiência pública

convocada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização


dos Estados Americanos (OEA)27, em 25 de maio de 2017, para tratar do tema da educação
livre, plural e sem censura no Brasil, e analisar o projeto “escola sem partido” e a exclusão
na BNCC de questões relacionadas a gênero e diversidade.

21O Ciclo de Reuniões Abertas Educação, Gênero e Diversidade Sexual da OAB/PR foi estruturado em quatro
momentos. A primeira reunião ocorreu no dia 28 de julho de 2015 e tratou do tema a Expectativa de
comportamento e paz social. Reflexões sobre o ódio (disponível em: <https://goo.gl/TfAuWZ>. Acesso em
04.08.17). A segunda, em 31 de agosto de 2015, sobre Gênero e Diversidade Sexual (disponível em:
<https://goo.gl/KcK4HX>. Acesso em 04.08.17), A terceira, em 9 de outubro de 2015, sobre Laicidade e
Multiculturalismo (disponível em: <https://goo.gl/bFa1Ca> e <https://goo.gl/BjbLru>. Acesso em 04 ago
2017), e, a quarta, em 20 de novembro de 2015, sobre O Direito à Educação (Disponível em:
<https://goo.gl/woj8Fs>. Acesso em 04 ago 2017).
22 Disponível em: <https://goo.gl/67t7Ci>. Acesso em 04.ago 2017.
23 Registrado sob nº 490000.2016.00.2888-1

24 Disponível em <http://www.oabpr.org.br/comissoes-da-oab-recebem-procuradora-federal-para-debater
igualdade-de-genero/>. Acesso em 04 ago 2017.
25 Vide andamento processual em <https://goo.gl/F1zrpU>. Acesso em 04 ago2017.

26Vide andamento processual em <https://goo.gl/JDw1ja>. Acesso em 04 ago2017.


27 Disponível em: <https://goo.gl/2BTv7F> e <https://goo.gl/tJSGRz>. Acesso em 04 ago2017.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 231


DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E O
PAPEL DA CIDH

A educação carrega em sua estrutura uma vocação preventiva e permite, ainda,


estabelecer um processo de luta contra os velhos poderes, bem como a consolidação de
espaços pela dignidade concreta. Nesse sentido, a normativa internacional, em particular o
sistema interamericano de direitos humanos (SIDH), aborda o tema com apreço e máxima
proteção, pois confere à educação papel preventivo a possíveis violações de direitos.

A CADH conta apenas com uma resolução expressa sobre direitos sociais,
econômicos e culturais, que é a previsão do direito ao desenvolvimento progressivo em seu
artigo 2628. Este corpus iuris foi densificado em 1999, quando do Protocolo de San Salvador,

que veio ao preenchimento do conteúdo do referido artigo.

Os direitos previstos no Protocolo de San Salvador têm sistema de verificação


próprio, à exceção dos direitos de organização sindical29 e à educação30, únicos a darem
ensejo ao sistema de peticionamento individual perante a CIDH, conforme estabelecido no
art. 19, item 6, do Protocolo de San Salvador31.

Nessa toada, o direito à educação ganha especial relevância, pois surge como mote

da universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos. Tal se justifica pela ideia de que a
garantia integral desses direitos pressupõe uma condição mínima para o seu exercício, o que

pode ser ofertado a partir da garantia do acesso à educação. O direito à educação se torna,
portanto, emancipador, pois é não apenas um fim em si mesmo, mas meio para consecução

dos demais direitos.

28Artigo 26. Desenvolvimento progressivo da CADH conteúdo completo em <https://goo.gl/fwJEhW>.

29Artigo 8. Direitos sindicais do Protocolo de San Salvador, conteúdo completo em <https://goo.gl/Tp3Tn1>.


30
Idem, Artigo 13. Direito à educação.
31Artigo 19. Meios de proteção: 6. Caso os direitos estabelecidos na alínea a do artigo 8, e no artigo 13, forem
violados por ação imputável diretamente a um Estado Parte deste Protocolo, essa situação poderia dar lugar,
mediante participação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, quando cabível, da Corte
Interamericana de Direitos Humanos(...).

232 Educação e Interseccionalidades


No âmbito do SIDH, esta interconectividade entre direitos é evidenciada nos
próprios pronunciamentos da CIDH32, que sempre se volta à análise do direito à educação

de maneira conexa a outros direitos, eis que não raramente sua violação é decorrente de um
cenário complexo de várias outras violações.

Partindo de uma realidade de desrespeito às normas convencionais no tocante à


educação livre, plural e sem censura, a própria CIDH, preocupada com a realidade de
violações decorrentes de movimentos políticos conservadores, agendou de ofício Audiência
Temática para debater tanto a supressão dos termos identidade de gênero e orientação sexual

da BNCC, quanto o movimento Escola Sem Partido. Essa atuação da CIDH permitiu que
a sociedade civil brasileira levasse ao SIDH um compêndio de violações concretas, a fim de
demonstrar ao Estado brasileiro a necessidade de combater esse movimento conservador que
corrobora para perpetuar um ambiente escolar nocivo e violento.

Assim sendo, a atuação da CIDH se torna extremamente importante, pois além de


coagir o Estado brasileiro com uma exposição internacional, possibilita um diálogo mais
profícuo entre o Poder Público e a sociedade civil. Não bastasse isso, ao abordar essa temática
em audiência, realidade que assola não só o Brasil, mas outros países do continente, a CIDH
permite a consolidação do debate em torno do alcance do direito à educação no SIDH.

No entanto, a atuação da sociedade civil não se encerra apenas na participação em

audiência temática. Do contrário, tal evento marca apenas o início de uma organização
coletiva necessária que possibilite o litígio estratégico na CIDH e o debate contínuo do
tema, até que se concretizem políticas inclusivas, impactantes e que tragam real mudança

social.

A CIDH possui, portanto, importante papel de mediação, diálogo e consolidação da


normativa convencional, pois pode exarar informe temático, emitir recomendações ao
Estado brasileiro e até processar um caso concreto. Contudo, em que pese a audiência
temática em questão tenha sido convocada de ofício, cabe à sociedade civil articular e
compilar os dados necessários para instruir a CIDH das violações concretas.

32
Informes da CIDH n° 22-06, 55-07 e 147/11.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 233


Sendo assim, a simbiose interdisciplinar entre a Educação e o Direito, atrelada à
organização dos movimentos sociais parceiros, forma o cerne necessário para que um direito
tão importante e crucial para consolidação da Democracia brasileira seja protegido e

resguardado, também, pelo SIDH.

RECOMENDAÇÕES AO PODER PÚBLICO E À COMUNIDADE


ESCOLAR.

Para avançar na contenção da violência de gênero e discriminação da comunidade


LGBTI no ambiente escolar, algumas medidas se tornam necessárias. A primeira delas é a
atuação enérgica do Poder Público, o qual, a partir de políticas públicas inclusivas e que
visem estancar a ferida do preconceito e da submissão, tem o dever de garantir um ambiente
escolar seguro, plural e democrático. Assim sendo, faz-se mister a cobrança e a atuação dos

Poderes Executivo e Legislativo Municipal, Estadual e Federal, para que olhem com maior
cuidado à essa realidade de violência que coloca o Brasil na liderança dos rankings de agressão

e homicídio de mulheres e LGBTIs.

Outra medida imprescindível é a conscientização dos trabalhadores da educação


acerca da necessidade de se tratar de temas como diversidade sexual e gênero para garantir
um ambiente escolar livre, plural e acolhedor. Professores, diretores e funcionários das
escolas públicas não podem ser penalizados e hostilizados por tratarem dessa realidade de
violência no ambiente escolar. O medo, a censura de professores que abordam essa temática
não pode prosperar, o que confere à comunidade escolar um dever de resistência e luta para

que se consolide um espaço de diálogo plural e diverso.

Dessa forma, cabe ao Poder Público o dever de garantir e atuar em prol de uma
educação pela diversidade; cabe à comunidade escolar o dever de resistência, garantindo aos
alunos a possibilidade de formação plural e livre; e cabe à sociedade civil o dever de fiscalizar,
organizar e cobrar não só o Estado, como também instituições como a CIDH, para que essa

realidade se concretize.

Essa simbiose de atuações demanda força, resistência, diálogo e organização, na busca

de uma sociedade mais justa e segura.

234 Educação e Interseccionalidades


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em 04 ago 2017.

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Sexual e Homofobia no Brasil: Intolerância e respeito às diferenças sexuais. In:
VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma. Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2011. Pp. 190-251.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência: Homicídio de Mulheres. Brasília, 2015.


Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br>.

236 Educação e Interseccionalidades


RELIGIÃO, SEXUALIDADE E SAÚDE
SEXUAL NAS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE
SERGIPE E NO ENSINO RELIGIOSO
PÚBLICO ESTADUAL

Daniela Senger1 e Ingrit Machado Jeampietri de Paiva2

Este artigo busca refletir porque religião, sexualidade e saúde sexual são temáticas que
angariam importância fundamental no currículo do curso Licenciatura em Ciências da
Religião da Universidade Federal de Sergipe (UFS), definindo demandas teórico
metodológicas que surgem a partir dessa tríplice analítica, a saber, as teorias de gênero.
Primeiramente, serão elencados os ditames que compõem a realidade educacional
(diversidade); a seguir, tratar-se-á do Referencial Curricular Rede Estadual de Ensino de
Sergipe, trazendo à baila as Competências Gerais, as Habilidades, os Conteúdos e os
Conceitos Gerais que são listados no referido material para a disciplina de Ensino Religioso
a ser ministrada no Ensino Fundamental Maior e Menor. O texto explicita que religião,
sexualidade e saúde sexual, interligados à noção de gênero, são conteúdos e conceitos que
devem ser trabalhados na disciplina de Ensino Religioso da Rede Estadual de Ensino em
Sergipe. A diversidade que perfaz a vida humana no espaço escolar e a demanda curricular
exposta no Referencial curricular do estado de Sergipe certificam a centralidade das
temáticas arroladas neste estudo para a formação do/da professor/a de Ensino Religioso. Em
que pese esta constatação, o currículo do curso de Licenciatura em Ciências da Religião da
UFS prevê apenas uma disciplina obrigatória (Religião e Saúde) e uma optativa (Religião e
Sexualidade), cujas ementas não refletem a abordagem do eixo conceitual “gênero”.
Palavras-chave: Religião; Sexualidade; Saúde sexual; Gênero; Ciências da Religião e Ensino
Religioso em Sergipe.

1Bacharela e Mestra em Teologia; doutoranda em Sociologia (UFS/Bolsista CAPES). Membra do grupo de


Pesquisa Gênero e Religião (Faculdades EST) e do LABEURC (Laboratório de Estudos Urbanos-UFS). E
mail: danysenger@gmail.com.
2 Mestranda em Ciências da Religião (UFS/Bolsista CAPES); Especialista no Ensino da Filosofia e da Religião

(UNIFIL); Licenciatura em Sociologia (UNIFIL); Bacharela em Teologia (UNIFIL). Membra do Grupo de


Pesquisa Educação e Religiosidade no Candomblé e Umbanda (UFMS). E-mail: ingrit_design@hotmail.com.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 237


INTRODUÇÃO

Este artigo visa refletir porque religião3, sexualidade4 e saúde sexual5 são temáticas
importantes no currículo do curso Licenciatura em Ciências da Religião da Universidade

Federal de Sergipe (UFS)6, definindo demandas teórico-metodológicas a partir das teorias


de gênero. Primeiramente, o estudo tratará da realidade educacional pautada pela diversidade
(sexual e de gênero/DSG, por exemplo), a qual compõe o currículo oculto; a seguir, tratar
se-á do Referencial Curricular Rede Estadual de Ensino de Sergipe (SEED, 2011), elencando
as Competências Gerais, as Habilidades, os Conteúdos e os Conceitos Gerais listados no
referido material para a disciplina de Ensino Religioso (ER) a ser ministrada no Ensino

Fundamental Menor (1º ao 5º ano) e Maior (6º ao 9º ano).

3 Religiões são conjuntos ou sistemas de “símbolos e imagens construtoras e definidoras do sagrado, de


divindades, do transcendente” (NEUENFELDT, Elaine. Abrindo as janelas – Olhares da Teologia Feminista,
Gênero e Religião sobre Epistemologia, Violência e Sexualidade In: NEUENFELDT, Elaine; BERGESCH,
Karen; PARLOW, Mara. Epistemologia, violência e sexualidade: Olhares do II Congresso Latino-Americano de
Gênero e Religião. São Leopoldo: EST; Sinodal, p. 7-12, 2008. p. 11). As religiões são, portanto, formatadoras
de normatividade moral, que visa organizar e controlar as ações humanas e a convivência social. A moralidade
religiosa é a dimensão prática da vida religiosa no campo social e político, bem como na vida privada e na
intimidade dos indivíduos. Ou seja, a religião não é um sistema etéreo e distante da vida, mas é um sistema
vivo, dinâmico e prático que referencia as construções e ações morais e culturais de sociedades humanas. Numa
palavra, compreende-se como religião aquilo que determina o modo de ser e estar no mundo de indivíduos e
grupos humanos.

4 “Sexualidade é um aspecto central do ser humano do começo ao fim da vida e circunda sexo, identidade e
papel de gênero, relação sexual, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade, subjetividade e reprodução. A
sexualidade é vivida e expressa em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos,
práticas, papéis e relacionamentos. Enquanto a sexualidade pode incluir todas estas dimensões, nem todas são
sempre vividas ou expressadas. A sexualidade é influenciada pela interação de fatores biológicos, psicológicos,
sociais, econômicos, políticos, culturais, éticos, legais, históricos, religiosos e espirituais. A sexualidade humana
é complexa, diversa e multifacetada. Por isso há autores que propõem o termo no plural, ‘sexualidades’”. [...]
“Sexo refere-se às características biológicas que definem humanos como mulheres e homens. Enquanto este
conjunto de características biológicas não é mutuamente exclusivo, desde que há indivíduos que possuem
ambas, ele tende a diferenciar os humanos como homens e mulheres”. (CAVENAGHI, Suzana (Org.).
Indicadores municipais de saúde sexual e reprodutiva. Rio de Janeiro: ABEP, Brasília: UNFPA, 2006. p. 53).
5 “Saúde sexual é um estado físico, emocional, mental e social do bem-estar em relação à sexualidade; não é

meramente a ausência de doenças, disfunções ou debilidades. A saúde sexual requer uma abordagem positiva
e respeitosa da sexualidade e das relações sexuais, tanto quanto a possibilidade de ter experiências prazerosas e
relação sexual segura, livre de coerção, discriminação e violência. Para se alcançar e manter a saúde sexual, os
direitos sexuais de todas as pessoas devem ser respeitados, protegidos e satisfeitos”. (CAVENAGHI, 2006. p.
53).
6 O currículo atual está vigente desde 2012/1 e pode ser visualizado na página:
<https://www.sigaa.ufs.br/sigaa/link/public/curso/curriculo/615>. Acesso em: 23 out. 2017.

238 Educação e Interseccionalidades


O texto em vigor no Referencial Curricular em pauta explicita que religião,
sexualidade e saúde sexual – temas lidos, relidos e desconstruídos pelas teorias de gênero –
são conteúdos e conceitos que devem ser trabalhados na rede estadual de Ensino na

disciplina de ER. A realidade da diversidade que circunda a vida humana, também no espaço
escolar, e a demanda curricular exposta no Referencial Curricular do estado de Sergipe
certifica a centralidade das temáticas arroladas neste estudo para a formação do/da

professor/a de ER. Por este prisma, o artigo visa analisar o currículo do curso Licenciatura
em Ciências da Religião da UFS a fim de verificar quais disciplinas ou atividades contemplam
esses eixos conceituais para a formação do/da futuro/a docente de Ensino Religioso.

CURRÍCULO OCULTO, DIVERSIDADE E ENSINO RELIGIOSO

Religião, sexualidade e saúde sexual são núcleos de conhecimento que integram a


formação do ser humano também no campo da educação, seja pela via do currículo

autorizado/formal ou pela via do currículo oculto, a saber, o currículo que permeia o espaço
escolar mesmo que não esteja na lista dos assuntos ensináveis a partir dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) (BRASIL, 1997) e/ou do Projeto Político Pedagógico de

cada escola.

O currículo oculto é descrito por diversos autores a partir de abordagens multifocais


(BERNSTEIN, 2013; SILVA, 1992, 2003; TORRES, 1994, APPLE, 1994;). Neste estudo,
buscar-se-á apresentar brevemente a noção de currículo oculto que abarca a questão do

diálogo e da deliberação de assuntos durante as rotinas e cotidiano escolar, especialmente no


espaço da sala de aula, mas, também, no espaço escolar global.

Através da intercomunicação cotidiana entre os sujeitos, conteúdos culturais são

aprendidos e intercambiados em situações pedagógicas e/ou sociais na escola. Ao mesmo


tempo, preconceitos raciais e de gênero, bem como desigualdades e hierarquias

socioeconômicas são corroboradas e reforçadas (ou desconstruídas) em face de discursos


circulantes, materiais didáticos e situações pedagógicas, ao que Bernstein (2013) dá o nome

de “pedagogia invisível”, mormente no contexto do ensino fundamental. A pedagogia


invisível pode institucionalizar discursos e hierarquias de maneira implícita e tácita, fazendo

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 239


com que tais posições sejam absorvidas pelos agentes como parte da natureza

escolar/pedagógica.

Ainda que as temáticas abordadas neste texto (religião, saúde sexual e sexualidade)
possam ser silenciadas ou pouco trabalhadas no currículo autorizado em escolas privadas ou
públicas no campo escolar brasileiro, com grande probabilidade, estão presentes no currículo
oculto. Os termos supraditos representam dimensões importantes da vida do ser humano,

que são levadas para a vivência escolar por indivíduos em formação, inseridos em contextos
compassados pelas ambiguidades, dúvidas e conflitos que permeiam estes fenômenos.
Destarte, problematizar temas que são naturais ao convívio social na arena educacional é
uma das tarefas do/da docente, além de compreender e reconhecer a diversidade (DSG) das
famílias e indivíduos contemporâneos.

Isto posto, que assuntos permeiam o currículo oculto? Violências, intolerâncias,


religião, questões de gênero, sexismo, sexualidade e saúde sexual são realidades e temas

diariamente experimentados ou debatidos no contexto escolar, tornando-se currículo oculto


em todas as disciplinas. Quer dizer, na aula de matemática o/a docente pode ter que tratar

de questões de gênero; na aula de geografia, talvez haja uma discussão sobre religião e assim
por diante. Estes breves exemplos ilustram a fluidez do currículo oculto, que, apesar do
termo, não é algo negativo, mas uma realidade da prática docente e da vivência escolar em

seu dinamismo correlato.

Por sua vez, na disciplina de Ensino Religioso, existem currículos formais que
contemplam questões de gênero, religião, sexualidade e saúde sexual nos referenciais
curriculares específicos. O escopo contextual explorado no artigo é o Estado de Sergipe:

Universidade Federal de Sergipe (UFS) – currículo do curso de Licenciatura em Ciências da


Religião – e o âmbito da educação pública estadual – documento oficial e vigente nos termos

do estabelecimento de regimento curricular do Estado de Sergipe.

CIÊNCIAS DA RELIGIÃO E ENSINO RELIGIOSO EM SERGIPE

A formação em licenciatura não se priva da necessidade de estudar fenômenos que


são integrantes do currículo oculto em termos gerais ou dentro do próprio Ensino Religioso,

240 Educação e Interseccionalidades


disciplina para a qual o curso de Ciências da Religião7 forma docentes. Ainda que não seja
programado, o currículo oculto é previsível, e a formação docente é o espaço onde torna-se
possível capacitar os/as futuros/as professores/as para antecipar ações que visem à deliberação

destas questões de forma democrática e bem informada na arena educacional


contemporânea, cuja estampa é marcada pela diversidade (DSG).

A Lei de Diretrizes Básicas da Educação (Lei 9.394/96), art.33, §1º, confirma que
“os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do
ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores”.
Assim, as unidades federativas e respectivos municípios têm poder para estipular se o ensino
religioso da rede será confessional ou não confessional. Tal realidade tem sido motivo de
intensos debates entre os/as estudiosos/as da religião no Brasil8, especialmente no âmbito

7 De acordo com o FONAPER (Fórum Nacional Permanente de Ensino Religioso), “o Curso de Graduação
em Ciências da Religião-Licenciatura em Ensino Religioso não está vinculado a uma religião ou a uma teologia,
mas às Ciências da Religião enquanto aporte teórico que lhe oferece possibilidade de investigação das diversas
manifestações do fenômeno religioso na história e nas sociedades, ao mesmo tempo em que é regido por princípios e
fundamentos das Ciências da Educação, enquanto área de conhecimento, levando em conta todas as áreas, subáreas
e especialidades. As diferentes Ciências Humanas, integradas às Ciências da Religião, contribuem na definição
dos conteúdos específicos, considerando que a interlocução entre as mesmas é fundamental para a construção
e a articulação da disciplinaridade e da interdisciplinaridade. O ER tem necessidade de observar tais aspectos,
pois objetiva compreender o fenômeno religioso na diversidade de situações da existência humana. As Ciências
da Religião, ao se constituírem como uma das bases epistemológicas para o ER, contribuem para a
compreensão do humano enquanto ser em/de busca, aberto à transcendência e histórico-culturalmente situado
dentro de referências religiosas, influenciadas por elas de múltiplas maneiras e, muitas vezes, agindo a partir delas.
Nesse sentido, o estudo do fenômeno religioso num Estado laico, a partir de pressupostos científicos, visa à
formação de cidadãos críticos e responsáveis, capazes de discernir a dinâmica dos fenômenos religiosos, que perpassam
a vida em âmbito pessoal, local e mundial. Por outro lado, o pressuposto pedagógico sustenta a proposta do ER
na escola. As diferentes crenças, grupos e tradições religiosas e/ou a ausência delas são aspectos da realidade que não
devem ser meramente classificados como negativos ou positivos, mas sim como dados antropológicos e
socioculturais capazes de fundamentar e interpretar as ações humanas. Nessa perspectiva, a formação específica
em nível superior, em cursos de Graduação em Ciências da Religião-Licenciatura em Ensino Religioso, integra
os pressupostos das áreas: Ciências da Religião e Educação, a fim de que o licenciado possa trabalhar
pedagogicamente numa perspectiva inter-religiosa, enfocando o fenômeno religioso como construção sócio
histórico-cultural”. FONAPER. Propostas de diretrizes curriculares nacionais para o curso de graduação em ciências
da religião-Licenciatura em ensino religioso. Portal FONAPER. 2008. Disponível em:
<http://www.fonaper.com.br/documentos_propostas.php>. Acesso em: 08 fev. 2017. (Grifos nossos).
8 Um exemplo é a fala de Vianna (2013), que corrobora um Ensino Religioso laico e critica o descumprimento

desta premissa constitucional do Estado brasileiro: “o único ensino religioso possível de ser praticado em um
Estado laico é o não confessional, em que os professores são contratados por meio de concursos públicos, sem
que seja levada em conta suas próprias religiões. Se a Constituição veda expressamente em seu artigo 19, inciso
I, que o Estado mantenha qualquer tipo de aliança com igrejas e cultos religiosos, é inadmissível que os
professores de uma escola pública possam ser indicados por qualquer confissão religiosa. Por outro lado, o
programa da disciplina de ensino religioso deve abordar não só as religiões majoritárias como o catolicismo e o
protestantismo, mas também o espiritismo, a umbanda, o candomblé e todas as outras religiões praticadas no

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 241


das Ciências da Religião, que preconiza uma formação docente voltada a um Ensino
Religioso laico9, conforme antevê a Constituição brasileira.

No estado de Sergipe, a UFS oferta o curso de Licenciatura em Ciências da Religião,


formação que titula os/as diplomados/as como professores/as aptos/as a ministrar a disciplina

de Ensino Religioso. A Secretaria de Educação do Estado, em sua última publicação do


Referencial Curricular Rede Estadual de Ensino de Sergipe (2011), deixa implícito que o
modelo de Ensino Religioso a ser aplicado nas escolas estaduais é o “não confessional”, haja
vista a estrutura curricular apresentada no documento em tela, que será exposta doravante.

O material que tomamos para análise, titulado Referencial Curricular Rede Estadual
de Ensino de Sergipe (2011), não introduz nenhuma declaração sobre a natureza do Ensino
Religioso a ser ministrado na rede estadual de Sergipe (confessional ou não confessional),
posto que a única declaração é apresentada conforme segue: “o componente Ensino

Religioso será de oferta obrigatória e matrícula optativa para o aluno. E a oferta do Programa
poderá ocorrer no formato de módulos, seminários e palestras ou na opção do sexto horário,
como rege a legislação vigente” (SEED, 2011, p. 261).

Brasil, bem como o ateísmo e o agnosticismo. Aos professores da disciplina deve ser vedado todo e qualquer
tipo de proselitismo, cabendo a eles tão somente expor a história e os dogmas dessas religiões sem qualquer juízo
de valor de qual seria a melhor ou a pior. O ensino religioso nas escolas públicas não deve se converter em um
instrumento de proselitismo do cristianismo. A sala de aula não é espaço para orações nem para catecismos. Se a
Constituição criou um Estado laico, mas ao mesmo tempo estabeleceu o ensino religioso nas escolas públicas,
foi para permitir às crianças tomar conhecimento de que existem religiões e crenças distintas daquelas
praticadas por seus familiares e aprender a respeitá-las”. VIANNA, Túlio. Blog Revista Fórum. 11/01/2013. O
Ensino Religioso nas Escolas Públicas. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/2013/01/11/o
ensino-religioso-nas-escolas-publicas/>. Acesso em: 10 fev. 2017. (Grifos nossos).
9 Em setembro de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF), na voz de nove ministros/as, decidiu que o Ensino
Religioso público no Brasil pode ter caráter confessional, sendo plausível vinculá-lo a uma religião específica.
O placar da votação foi de 6 a 5. Grande parte da sociedade civil, educadores/as e estudiosos/as do campo das
Ciências da Religião estão questionando esta decisão que contradiz o princípio laico da constituição brasileira
e o próprio direito à liberdade religiosa, haja vista a pluralidade de crenças presentes no espaço público
brasileiro. Esta votação também traz à luz os conflitos epistemológicos nos quais o Ensino Religioso está
historicamente envolvido. Há uma desinformação generalizada sobre as Ciências da Religião no Brasil, área do
conhecimento que vem crescendo e estabelecendo novos cursos em universidades públicas e privadas no campo
educacional superior. Suas premissas dão base a abordagens metodologicamente refletidas acerca do fenômeno
religioso, sob os seus mais diferentes aspectos. Esta base científica seria a mais legítima para quaisquer
“escolarizações” do tema da religião, afirmando-o como objeto não apenas de crença, mas, efetivamente, de
conhecimento. Ao ignorar as Ciências da Religião, a votação do STF prejudica esta área e contraria a natureza
da própria instituição escolar.

242 Educação e Interseccionalidades


As competências e habilidades gerais do ER (1º ao 9º ano) são listadas como segue,

dadas as omissões que não acrescentam importância ao estudo em tessitura:

perceber a prática religiosa como uma ação cultural; conhecer as


manifestações religiosas das culturas indígena e africana; [...] reconhecer o
significado da religião; compreender a religião enquanto um sistema de
controle social; respeitar as manifestações religiosas do povo Xokó e
comunidades quilombolas de Sergipe; identificar as formas de controle social
desenvolvido pelas diferentes religiões(1); [...] reconhecer a religião como
uma construção social; respeitar as diversidades religiosas; compreender o que é
e como se estabelece um mito; entender o que é mito e religião”(2); [...]
compreender a origem do universo e do homem [sic] segundo a visão
religiosa e científica; perceber as manifestações religiosas a partir da dimensão
histórica(3); perceber as transformações e dinâmica “evolutiva” das religiões;
analisar o papel das tradições religiosas na estruturação e tradição das
diversidades culturais e manifestações socioculturais(4); compreender as
explicações filosóficas para origem e desenvolvimentos das religiões; analisar
deforma crítica o posicionamento religioso frente aos fatos sociais(5); diferenciar
os conhecimentos mitológicos e religiosos do conhecimento científico;
compreender a origem do mundo de acordo com o conhecimento científico
e religioso; analisar e compreender a importância do Estado Laico para
liberdade religiosa dos indivíduos; promover o diálogo e incentivar o respeito à
liberdade religiosa, evitando qualquer competição religiosa e ideológica;
compreender o sincretismo religioso brasileiro enquanto manifestação de
resistência e afirmação dos grupos sociais excluídos; analisar as aproximações e os
distanciamentos entre as principais religiões da atualidade e de que forma
suas teses contribuíram, ao longo da história, para muitos dos conflitos étnicos
e preconceitos que persistem em nossos dias(6); distinguir as diversas formas de
cultura e tradições religiosas à luz da razão humana(7).10

Diante de uma análise destas colocações listadas ao longo de todo o referencial do


Ensino Fundamental Maior e Menor, infere-se que o documento deixa implícito,

especificamente nos campos das Competências e Habilidades, que a conjuntura curricular


em tela corrobora um Ensino Religioso não confessional e com traços do modelo de ensino
baseado nas Ciências da Religião (explicado acima na nota 6). As palavras grifadas no excerto
acima encontram eco na colocação do FONAPER ao afirmar que “as diferentes crenças, grupos

10
SEED, 2011, p. 65; (1) p. 67; (2) p. 68; (3) p. 69; (4) p. 257; (5) p. 258; (6) p. 259; (7) p. 260.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 243


e tradições religiosas e/ou a ausência delas são aspectos da realidade que não devem ser
meramente classificados como negativos ou positivos, mas sim como dados antropológicos e

socioculturais capazes de fundamentar e interpretar as ações humanas” (FONAPER, 2008).

REFERENCIAL CURRICULAR REDE ESTADUAL DE ENSINO DE


SERGIPE – RELIGIÃO, SEXUALIDADE E SAÚDE SEXUAL NO
ENSINO RELIGIOSO

O referencial básico dos componentes curriculares do Ensino Religioso é composto


por quatro colunas: Competências Gerais, Habilidades, Conteúdos e Conceitos Básicos.

Observa-se que, para o 1º ano do Ensino Fundamental Menor, a palavra diversidade é


expressa como Conceito Básico a ser ensinado. Nas colunas anteriores, percebe-se que se
trata da diversidade religiosa, da composição variada das famílias e das identidades múltiplas

dos sujeitos (do outro/da alteridade). O referencial para o 2º ano é similar: em Habilidades,
lê-se: “conhecer as diferentes organizações familiares”; em Conteúdos, fala-se de
“organizações familiares”; em Conceitos, aparece a palavra “diversidade” (SEED, 2011, p. 66)

Para o 3º ano, são estipuladas, nas habilidades, as seguintes ações: “desenvolver

atitudes de respeito às diferenças e à diversidade; conhecer e executar ações que colaborem


com a promoção do respeito à diversidade; conhecer as diferentes organizações familiares”

(SEED, 2011, p. 67), tendo como conceito transversal, novamente, o da diversidade. Em


suma, o referencial oportuniza a construção de debates sobre a diversidade das famílias nas
turmas do 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental Menor, englobando, certamente, as famílias

homoafetivas de homens, mulheres e pessoas transgênero, núcleos familiares compostos


apenas pelo pai ou pela mãe e filhos/as, famílias sem filhos/as etc.

Quanto ao 4º ano do Ensino Fundamental Menor, o documento elenca as


Competências Gerais que os/as alunos/as devem desenvolver a partir do Ensino Religioso:

“reconhecer a discriminação de gêneros11 nas atividades/rituais religiosas; compreender as

11O texto faz uso do termo “gênero” no plural. O termo foi mantido na citação, contudo, opta-se pelo termo
“gênero”, no singular, condizendo com o significado vigente e entendido no escopo desta pesquisa, consonante

244 Educação e Interseccionalidades


diferentes visões das religiões sobre o amor, o ódio, a vida, a natureza, sexualidade,
honestidade e riqueza” (SEED, 2011, p. 68); as Habilidades que devem ser desenvolvidas
são: “identificar o papel do homem e da mulher nas diferentes religiões; identificar as
funções ocupadas por homens e mulheres nas diversas religiões; perceber a visão das

diferentes religiões sobre o amor, ódio, morte, vida, natureza, sexualidade”. Os Conceitos
estão assim listados: Religião, Gênero, Subordinação, Violência simbólica, Diversidade,

Afetividade, Respeito, Discriminação, Preconceitos, Direitos.

Já para o 5º ano, as Competências Gerais se pautam em: “entender a sexualidade


como uma construção socialmente instituída; respeitar a diversidade; romper com as formas

de discriminação e preconceito sexuais, étnicos e religiosos; ter atitudes que não partam do
preconceito”. As Habilidades são “respeitar as opções sexuais dos indivíduos; praticar

atitudes que promovam a saúde sexual e o bem-estar; reconhecer a violência, em todas as


suas formas de existência”. Os Conteúdos previstos para o 5º ano são estes: “discriminação

e preconceitos; a visão da sexualidade e do sexo para as diferentes religiões; discriminação


vinculada às questões de gênero, de poder econômico, de etnia, e crenças”. E os seguintes
Conceitos devem ser trabalhados na disciplina: Família, Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DSTs), Gravidez, Sexualidade, Saúde sexual (SEED, 2011, p. 69).

No Ensino Fundamental Maior, 6º ano, questões relacionadas à sexualidade e à saúde


sexual não são elencadas como conteúdos da disciplina de ER. No 7º ano, “analisar os
contextos e as consequências dos atos sexuais na adolescência” aparece como uma das
Competências Gerais. Em termos de Habilidades, cita-se: “identificar as diferentes
organizações familiares da atualidade” e “adotar atitudes de respeito ao corpo e às ideias

com Scott, Lopes e Gebara, que se alinham às circunscrições das teorias de gênero: “Gênero deve ser visto
como elemento constitutivo das relações sociais, baseadas em diferenças percebidas entre os sexos, e como
sendo um modo básico de significar relações de poder”. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise
histórica. Educação e Sociedade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 1990. p. 14. “Gênero não pretende
significar o mesmo que sexo, ou seja, enquanto sexo se refere à identidade biológica de uma pessoa, gênero
está ligado à sua construção social como sujeito masculino ou feminino”. LOURO, Guacira L. Nas Redes do
Conceito de Gênero. In: LOPES, M.J.M. MEYER, D. E. WALDOW, V.R. (Orgs.) Gênero e Saúde sexual.
Porto Alegre/RS: Artes Médicas, 1996. p. 8. “Gênero quer dizer, entre outras coisas, falar a partir de um modo
particular de ser no mundo, fundado, de um lado, no caráter biológico do nosso ser, e de outro lado, num
caráter que vai além do biológico, porque é justamente um fato de cultura, de história, de sociedade, de
ideologia e de religião”. GEBARA, Ivone. Rompendo o Silencio: Uma fenomenologia feminista do mal. São
Paulo: Vozes, 2000. p. 107.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 245


próprias e às das outras pessoas”. Os conteúdos relacionados aos temas em análise aparecem
como segue: “visão religiosa e científica sobre o sexo e gravidez na infância e na adolescência;
preconceito e discriminação”. Os conceitos básicos são: Violência; Sexo; Sexualidade;

Integridade; Individualidade; Privacidade; Preconceito; Discriminação (SEED, 2011, p.


258).

Para o 8º ano, apresenta-se a seguinte Competência Geral que concerne ao estudo:

“analisar as aproximações e os distanciamentos entre as principais religiões da atualidade e


de que forma suas teses contribuíram, ao longo da história, para muitos dos conflitos étnicos
e preconceitos que persistem em nossos dias”. E as Habilidades a serem desenvolvidas são:
“refletir o valor da sexualidade na vida de cada ser humano” e “perceber o radicalismo
religioso como uma manifestação de intolerância e preconceito”. Conteúdos: “a visão das

diferentes religiões sobre o sexo; a religião e a violência; o Estado é laico”. Por fim, são
especificados os Conteúdos Básicos: Sexualidade; Violência; Sexo; Companheirismo
(SEED, 2011, p. 259).

O 9º ano é pautado pela Competência de “compreender o papel mobilizador que a


cultura religiosa desempenha nas relações humanas, enaltecendo valores que possam
contribuir para posturas caracterizadas pela alteridade e pelo respeito à diversidade”. Nos

Conteúdos pertinentes ao texto ora apresentado, apresenta-se: “as ideologias religiosas na


construção do inconsciente individual e coletivo”, tendo como Conceitos Gerais passíveis de
menção: “Moral e Liberdade” (SEED, 2011, p. 260).

Com base nesta breve investigação, que toma como base o documento que lista os
referenciais curriculares da rede estadual de ensino de Sergipe para o Ensino Fundamental
Menor e Maior, é perceptível que religião, sexo, sexualidade, saúde sexual, violência,

discriminação, preconceito e diversidade, explicitamente interligados à noção de gênero, são


conjugados como Conceitos centrais da disciplina de Ensino Religioso na maioria dos anos
escolares fundamentais (1º ao 9º).

Decisivamente, é possível analisar de forma crítica e mais abrangente este documento

a partir do olhar das Ciências da Religião. Neste estudo, entretanto, não nos ateremos a esta
tarefa. Frente ao exposto, os exemplos supraditos justificam a importância de refletirmos
criticamente as temáticas “religião”, “sexualidade” e “saúde sexual” no curso de Ciências da

246 Educação e Interseccionalidades


Religião da UFS, seja por conta do currículo oculto ou pelo currículo formal, que elenca os
referidos conceitos como integrantes do componente curricular da disciplina de Ensino

Religioso da Rede Estadual de Ensino de Sergipe.

Dada a importância dos tópicos investigados, percebe-se que a estrutura curricular


do curso de Licenciatura em Ciências da Religião da UFS (Currículo vigente em 2017, tendo
sido aprovado e implementado no primeiro semestre de 2012), cuja natureza é formar

docentes para a atuação pedagógica no Ensino Religioso, fornece poucas ferramentas


curriculares para garantir o aprofundamento dos assuntos em discussão.

A justificativa para esta conclusão se pauta na constatação de que a grade curricular


do curso oferece apenas uma disciplina obrigatória titulada “Religião e Saúde” (60
horas/aula), cuja ementa permite ler que a disciplina não engloba o viés da “saúde sexual”,
temática amplamente debatida pela sociedade laica atualmente. No âmbito religioso, é

historicamente notória a centralidade com que se tratam as questões envolvendo a


sexualidade humana e a saúde sexual reprodutiva, por exemplo. A ementa elabora os termos
a seguir:

Religião e Saúde: Dicotomia cartesiana mente/corpo. Relações mente/corpo


(metafísica). História da medicina psicossomática. Processo multicausal do
adoecimento. Religião e saúde mental. Terapias alternativas (cognitivo
comportamental, hipnose, meditação, exercícios, relaxamento). Saúde
holística. Medicina popular12.

A disciplina optativa “Religião e Sexualidade” (60 horas/aula), por sua vez, é descrita
levando em conta as novas expressões da sexualidade no mundo contemporâneo, mas o eixo
conceitual “gênero”13 não aparece em nenhuma linha da referida ementa:

12
Disponível em: <https://www.sigaa.ufs.br/sigaa/public/departamento/componentes.jsf>. Acesso em: 12
mar. 2017.
13
Matos explica que “é certo e já estabelecido que gênero, como um conceito, surgiu em meados dos anos 70
e disseminou-se instantaneamente nas ciências a partir dos anos 80. Tal reformulação surgiu com o intuito de
distinguir e separar o sexo – categoria analítica marcada pela biologia e por uma abordagem essencializante da
natureza ancorada no biológico – do gênero, dimensão esta que enfatiza traços de construção histórica, social
e, sobretudo, política, que implicaria análise relacional. Enquanto proposta de um sistema de classificação, a
‘categoria’ gênero, em sua forma mais difusa e difundida, tem sido acionada quase sempre de forma binária
(raramente em formato também tripartite) para se referir à lógica das diferenças entre: feminino e masculino,

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 247


Religião e sexualidade: Discutir como a sexualidade é abordada no universo
religioso buscando compreender, entre outros, a dimensão antropológica da
sexualidade humana, a moral do comportamento ético-sexual, a sexualidade
pré-conjugal e as novas expressões da sexualidade no mundo
contemporâneo14.

Questões de gênero são referenciais para o debate sobre sexualidade, violência, saúde
sexual reprodutiva e direitos sobre o corpo, pois a sexualidade não é apenas uma dimensão

biológica da vida humana, mas uma construção histórico-social perpassada pelas condições
de gênero e pelo “sexo modelado pela cultura”, que, indubitavelmente, conta com a
interferência da religião em diversas sociedades. Nas teorias de gênero, uma faceta desta
construção é nomeada “papéis de gênero”, ou seja, idealizações sobre corpos sexuados de

homens e mulheres com base em “padrões autorizados de vivência sexual” (NEUENFELDT,


2008, p. 9). Por isso, ao se estudar a sexualidade humana e a saúde sexual-reprodutiva,
remete-se diretamente às questões de gênero. Considera-se uma abordagem restrita versar
sobre esta temática sem considerar que a sexualidade humana é erigida culturalmente de
modo distinto para homens, mulheres e pessoas transgênero15 nas sociedades e nas religiões.

A religião, como organismo vivo e produto cultural, também é perpassada por


relações de gênero e de poder; é base de formação de subjetividades, molda comportamentos

e intervém na vida das pessoas, ainda que valha acrescentar, já que estamos falando de
moralidade religiosa, que tal interferência pode se dar tanto para a libertação quanto para o
aprisionamento e opressão dos corpos. Ou seja, a religião como um sistema de símbolos é
legitimadora de discursos e ações não apenas no âmbito religioso, mas, outrossim, na esfera
social, política e doméstica (RUETHER, 1989). Quanto ao aprisionamento e opressão dos
corpos, a estrutura patriarcal, característica de inúmeras religiões cujas hermenêuticas

homens e mulheres e, também, entre a homo e a heterossexualidade, penetrando já aí neste segundo eixo
fundamental deste novo campo que é a fronteira da sexualidade”. MATOS, Marlise. Teorias de gênero ou
teorias e gênero? Se e como os estudos de gênero e feministas se transformaram em um campo novo para as
ciências. Estudos Feministas, Florianópolis, 16(2), p. 333-357, mai/ago 2008. p. 336.
14
Disponível em: <https://www.sigaa.ufs.br/sigaa/public/departamento/componentes.jsf>. Acesso em: 12
mar. 2017.
15
Pessoas cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo dado biologicamente ao nascer: são indivíduos
que passaram por cirurgia de redesignação sexual, tratamento hormonal e/ou encontram-se em período de
transição; contudo, pessoas transgênero ou trans podem não estar em nenhuma destas categorias, comportando
apenas a característica apresentada inicialmente (identidade de gênero não correspondente ao sexo biológico).

248 Educação e Interseccionalidades


pautam-se em leituras unilaterais de textos sagrados, é um dos elementos constitutivos da
violência de gênero e sexual contra mulheres. Neste sentido, poderia se falar ainda da
violência simbólica de gênero que é legitimada por imagens, textos e mitos sacro-religiosos.

Ademais, não só a violência de gênero é decorrente do patriarcalismo, mas as regras


patriarcais religiosas também estão para controlar os corpos, a sexualidade, o desejo e o
prazer, oprimindo e/ou negando a corporeidade e a sexualidade de maneira desnivelada em
termos de gênero. Ao nascermos em um sistema patriarcal (religioso), vamos sendo

formatados/as para ser, estar e agir no mundo em consonância com as regras da comunidade
moral-religiosa. E é a partir desta lógica que a sexualidade humana tem sido historicamente

colocada entre quatro paredes por religiões de corte conservador, defendida como algo
intocável pública e socialmente, sendo perfeitamente vivida dentro da instituição do
casamento heterossexual; antes disso, silêncios e moralismos são ordens, especialmente para

o corpo maternal das mulheres.

Destarte, quando se busca refletir a tríplice “religião, sexualidade e saúde sexual” no


espaço público da escola, tornam-se basilares os referenciais teóricos cunhados no campo de

estudos de gênero – área de conhecimento interdisciplinar que tem discutido e pesquisado


as temáticas em torno da sexualidade humana e da saúde sexual/reprodutiva em interface
com outras dimensões ou fenômenos, inclusive e amplamente com a religião.

Diante do exposto, considera-se epistemológica e metodologicamente limitado


realizar estudos sobre religião, sexualidade e saúde sexual sem levar em conta questões de
gênero. Por estes pontos apresentados, o estudo sublinha a importância da introdução dos

estudos e teorias interdisciplinares de gênero como base referencial para pensar os temas
explanados em cursos de formação de professores/as de ER na arena das Ciências da Religião.
Dada a análise de material curricular referência para a educação estadual de Sergipe,
reiteramos esta constatação especialmente para o micro contexto em tela, a saber, o curso

de Licenciatura em Ciências da Religião da UFS.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 249


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, este texto tratou da tríplice religião, sexualidade e saúde sexual nas
Ciências da Religião e Ensino Religioso a partir de referenciais de gênero, tendo como
contexto o estado de Sergipe. Conclui-se que são assuntos que urgem integrar o currículo

das Ciências da Religião da UFS por se tratarem de núcleos de conhecimento que importam
à formação docente com vistas ao Ensino Religioso, pois circulam no ambiente escolar como
assuntos do currículo oculto e são conteúdos do currículo formal exposto no referencial
curricular vigente no estado de Sergipe. Religião, sexualidade e saúde sexual, interligados a
inúmeros temas laterais e à noção de gênero, são conceitos que devem ser trabalhados na

disciplina de ER desde o 1º até o 9º ano do Ensino Fundamental.

É mister salientar, exatamente devido às temáticas que integram o escopo deste


estudo, que a visão de mundo dos indivíduos, alicerçada em moralidades religiosas, pode ser
fonte de disseminação de posturas exclusivistas e conteúdos morais no meio escolar no que
tange à formação integral de crianças e jovens (sexualidade, diversidade sexual, gênero,
religião, posições políticas, movimentos sociais, violências de gênero/sexual, bullying,

intolerância religiosa etc.). Assim, a disciplina de Ensino Religioso surge como espaço
epistemológico para a reflexão e debate dessas questões adjacentes ao convívio escolar – onde
se produz conhecimento e, também, conflitos frente à diversidade da vida humana – em um
tempo em que uma não abertura para a alteridade revela-se crescente no meio escolar e na

sociedade brasileira da atualidade.

A diversidade que conduz a vida humana e a demanda curricular exposta no


Referencial curricular do estado de Sergipe certificam a centralidade destas temáticas para a
formação do/da professor/a de Ensino Religioso. Em que pese esta constatação, o currículo

do único curso de Licenciatura em Ciências da Religião ofertado no estado de Sergipe pela


UFS prevê apenas uma disciplina obrigatória (Religião e saúde) e uma optativa (Religião e
sexualidade), cujas ementas não refletem a abordagem do eixo conceitual “gênero”.

250 Educação e Interseccionalidades


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252 Educação e Interseccionalidades


MAS ELA VAI VOLTAR?
Implicações das decisões judiciais nos processos de
abandono intelectual de alunas grávidas e mães

Célia Ratusniak1, Carla Clauber da Silva 2 e Maria Rita de Assis César3

Esse texto problematiza os processos de abandono intelectual que criminalizam a evasão


escolar de alunas de escolas públicas que engravidaram. Os processos de abandono intelectual
são constituídos a partir de denúncia do Ministério Público, do Conselho Tutelar e da gestão
escolar, de alunas de 4 a 17 anos, que deixaram de frequentar o Ensino Básico, definido
como obrigatório pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, alterada pela lei
12.796. A pesquisa analisa os processos de abandono intelectual, se configurando como
documental, e se utiliza das contribuições teóricas e metodológicas dos estudos foucaultianos
e dos estudos de gênero. Para o Estado, estar em situação de evasão escolar representa um
risco social, pois a baixa escolaridade é ligada à pobreza e à criminalidade. Para combater esse
risco, são necessárias biopolíticas, que utilizam práticas de controle e de governamento dessas
alunas e de suas famílias. As análises iniciais revelam que o judiciário possui penalizações
distintas para alunos e alunas, considerando o motivo da evasão. Para este trabalho, interessa
os desdobramentos e os efeitos dos processos que citam alunas que se evadiram porque
engravidaram ou passaram a residir com seus companheiros. Nesses casos, a obrigatoriedade
de retorno à escola nem sempre existe, dependendo da vontade da aluna, da permissão do
companheiro e da decisão do judiciário. Também merece atenção o fato de que quando a
aluna está casada ou em união estável, é a família dela que é processada, mesmo sendo o
companheiro o motivo da evasão. Os efeitos da judicialização de suas vidas provocam o
deslocando do lugar de alunas para o lugar de mães, determinando seus modos de viver.
Palavras-chave: Evasão escolar; Gênero; Biopolítica; Judicialização da vida escolar.

INTRODUÇÃO

Esse trabalho é resultado parcial da pesquisa de doutoramento e que tem como

objetivo investigar os efeitos da judicialização na vida escolar. Para tanto, analisa-se os


processos de abandono intelectual da comarca de uma região do sul do Paraná, com

1 Psicóloga, doutoranda em Educação, linha de pesquisa Diversidade, Diferença e Desigualdade Social pela
Universidade Federal do Paraná, Brasil.
2 Pedagoga, doutora em Educação pela Universidade do Estado de Campinas.

3 Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná, linha de


pesquisa Diversidade, Diferença e Desigualdade Social

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 253


municípios de pequeno porte. Os processos estão cadastrados no PROJUDI (Processo
Eletrônico do Judiciário do Paraná) e são compostos por documentos que vão produzindo
saberes sobre a vida dos alunos e sobre as práticas de recondução que se incidem sobre eles

(ofício de comunicação da evasão feita pela escola, notificações do Conselho Tutelar,


convocações do judiciário, audiências extrajudiciais, pesquisa sobre o perfil socioeconômico,
motivos que provocaram a evasão escolar e a sentença do processo). Estes documentos dão

visibilidade a alguns mecanismos que compõem a judicialização da vida escolar.

O texto se inicia com a problematização da judicialização da vida escolar, a partir da


premissa de que um aluno evadido está em situação de risco social. Para tanto, nos apoiamos
nos estudos foucaultianos, especialmente nas práticas biopolíticas presentes na
governamentalidade e de como a judicialização da evasão funciona como uma ferramenta de

recondução à norma.

Posteriormente, problematizamos as formas como o judiciário atua quando a evasão


escolar acontece com alunas. Os dados preliminares desta pesquisa apontam que 48% das
evasões têm como causa principal a gravidez e o casamento/união estável. Nas situações de

gravidez, o processo é suspenso até que a aluna/mãe goze a licença maternidade e tenha as
condições necessárias para voltar a estudar. Neste caso, as biopolíticas que incidem sobre ela
são outras, que objetivam os direitos e deveres da maternidade, e não mais a escolaridade
obrigatória. Este deslocamento produz efeitos que consolidam a posição social prioritária

determinada pelo Estado para as mulheres: a maternidade e a produção da família


estruturada.

Os resultados encontrados evidenciam garantir a obrigatoriedade não é garantir a


permanência. O deslocamento de biopolíticas proposto por este trabalho apresenta/

demonstra que para o Estado, a maternidade se sobrepõe a qualquer outra posição social que
a mulher pode vir a ocupar.

254 Educação e Interseccionalidades


OS PROCESSOS DE ABANDONO INTELECTUAL E A
JUDICIALIZAÇÃO DA VIDA ESCOLAR

A obrigatoriedade da escolarização da população de 4 a 17 anos produz sobre a


infância e a adolescência uma vigilância constante de seus modos de viver. Estas etapas da
vida são consideradas pela Psicologia, pela Medicina e pela Pedagogia uma fase determinante
para o desenvolvimento humano tendo suas condutas normatizadas por saberes produzidos

que traçam o percurso necessário para a produção do sujeito denominado como bom cidadão
(CÉSAR, 2008), ou seja, aquele que cumpre os deveres e exerce seu direito de cumpri-los.
Para proteger a infância e adolescência dos riscos iminentes que possam provocar desvios,
biopolíticas4 de controle e governo dos corpos operam por meio do dispositivo pedagógico5,

produzindo modos de viver adequados ao projeto de vida que o Estado institui para essa
população. Para prevenir esses desvios, produziu-se toda uma maquinaria de vigilância,
operada pelo dispositivo de segurança6 que é constituída de várias formas, segundo Fahri
Neto (2007):

[...] gestão de casos, riscos, perigos, crises, que de alguma forma ameaçam a
vida da população, não eliminando totalmente os acontecimentos nefastos,
mas favorecendo os processos homeostáticos que tendem a restabelecer um
ponto de equilíbrio otimizado (FAHRINETO, 2007, p. 122).

A constatação de que algumas crianças e adolescentes escapam à captura do


dispositivo de segurança se evadindo da escola, tornou-se necessário estender ao sistema
judiciário essa maquinaria, judicializando a vida escolar. A ameaça de criminalizar esses

4Segundo Foucault (1988, p. 134), “deveríamos falar de ‘biopolítica’ para designar o que faz com que a vida e
seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação
da vida humana”.
5 Segundo Larrosa (1994, p. 57), “Um dispositivo pedagógico será, então, qualquer lugar no qual se constitui
ou se transforma a experiência de si. Qualquer lugar no qual se aprendem ou se modifiquem as relações que o
sujeito estabelece consigo mesmo. [...] sempre que esteja orientado à constituição ou à transformação da
maneira pela qual as pessoas se descrevem, se narram, se julgam ou se controlam a si mesmas”.
6 O que o dispositivo de segurança gere, por meio de uma racionalidade ambientalista, é o meio e o que circula
e ocorre nele. Além dessa perspectiva comportamental, o movimento de higienização da cidade, da população
e dos corpos individuais igualmente opera pela seguridade e em uma economia política do controle justificada
pela noção de defesa da sociedade. O dispositivo de segurança, assim, constitui-se como uma rede de relações
constituída por elementos heterogêneos cuja formação atende à função de responder a uma urgência: a
passagem da norma ao risco. (LEMOS et al., 2015, p.334).

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 255


alunos e suas famílias fortaleceu o dispositivo pedagógico, que passa a ser gerido pelo

magistrado, determinando como o aluno deve ser conduzido. Assim, é o juiz que estabelece
quais biopolíticas deverão ser aplicadas à vida desses sujeitos, determinando a qual posição
social ele deverá ser moldado a ocupar: condenado, absolvido e reconduzido ao espaço da

escola.

Neste sentido, a judicialização da educação é antes uma máquina que faz funcionar a
normalização das crianças e dos adolescentes, uma tecnologia da biopolítica. Para Marafon

(2014),

Uma possibilidade específica para pensar a judicialização se dá por meio da


análise da infração jurídico-legal acoplada à disciplina, e aqui fica evidente a
definição jurídico-legal no campo da menoridade ativando e sendo ativada
pelo funcionamento disciplinar, que incluía o olhar da vigilância policial.
Desse modo a lei faz ativar os circuitos para a normalização continuar a
acontecer. Nesse aspecto, ajudicialização se apresenta como um processo que
está acoplado à normalização dos gestos, das pessoas, dos atos. Neste sentido
emerge uma indicação: judicialização e normalização requerem-se
mutuamente (MARAFON, 2014, p. 8).

A evasão escolar passa a ser criminalizada no Código Civil de 1940, em seu artigo
246: “Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar: Pena

– detenção, de quinze dias a um mês, ou multa” (BRASIL, 1940). A obrigatoriedade de


exercer o direito à escolarização ganha novas legislações que colocam a norma em

funcionamento. Ela é reafirmada na Constituição Federal de 1988 e garante o direito à


educação para todos (BRASIL, 1988). Também é expressa no Estatuto da Criança e do

Adolescente, no Capítulo IV, que trata Do Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao


Lazer: “Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno

desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o


trabalho” (BRASIL, 1990). No que diz respeito à frequência, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional – LDBEN (BRASIL, 1996), em seu artigo 12, inciso VII, coloca como
dever dos gestores da escola: “informar pai e mãe, conviventes ou não com seus filhos, e, se
for o caso, os responsáveis legais, sobre a frequência e rendimento dos alunos, bem como
sobre a execução da proposta pedagógica da escola” (BRASIL, 1996, s.p.). A LDBEN

256 Educação e Interseccionalidades


também prevê a comunicação da evasão a outras instâncias que operam no dispositivo

pedagógico. Em seu inciso VIII, determina que a gestão escolar tem obrigação de: “notificar
ao Conselho Tutelar do Município, ao juiz competente da Comarca e ao respectivo
representante do Ministério Público a relação dos alunos que apresentem quantidade de
faltas acima de cinquenta por cento do percentual permitido em lei” (BRASIL, 1996, s.p.).

Alguns sistemas de educação produziram programas específicos de combate à evasão


escolar. O Paraná possui desde 2005 o Programa de Mobilização para Inclusão Escolar e a
Valorização da Vida, chamado Fica Comigo. Implantado pela Secretaria Estadual de

Educação (SEED), em parceria com o Ministério Público Estadual para controlar a


frequência escolar:

O combate à evasão escolar foi (e é) a sua principal meta, entendendo que o


acesso à escola e à educação é um direito subjetivo e inalienável através do
qual, segundo a LDB e o próprio ECA, a criança e o adolescente têm direito
à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o
exercício da cidadania e qualificação para o trabalho (PARANÁ, 2009, p. 6).

Segundo o programa é necessário que a escola investigue todos os casos onde houver
cinco faltas consecutivas e sete faltas alternadas, descobrindo os motivos da evasão e lançando
mão de todas as alternativas para fazer o aluno retornar à escola. Esgotadas todas as

possibilidades, a equipe gestora da escola comunica a evasão ao Conselho Tutelar,


preenchendo uma ficha específica chamada FICA7. Essa ficha será encaminhada ao Conselho

Tutelar, que também investigará os motivos que provocaram a evasão, tentando reconduzir
os alunos aos bancos escolares. Se constatarem aí violação de direitos (expulsão, dificuldades
com transporte, acesso à saúde e aos benefícios assistenciais, atendimento educacional
especializado, violências etc.), acionam os órgãos competentes. Se mesmo assim a evasão
persistir é feita a comunicação ao Ministério Público, que instaura o processo por abandono

intelectual.

O grande número de comunicações de evasão escolar enviados à comarca pesquisada


fomentou em 2008 a criação, em parceria com o Núcleo Regional de Educação, do Projeto

7Ficha de Comunicação do Aluno Ausente.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 257


Combate à Evasão Escolar, cujo objetivo é construir espaços para o “[...] diálogo, com
audiências públicas conduzidas pelo juiz [...], com pais e alunos, oportunizando aos mesmos
esclarecimentos sobre as consequências prejudiciais de tirar o filho da escola” (AMAPAR,
s.d.), que resultou na redução “em aproximadamente 50% os índices de evasão escolar”
(AMAPAR, s.d., s.p.). Chama a atenção que a responsabilidade por ‘tirar os filhos da escola’,
é atribuída aos pais. Os dados são relativos ao ano de 2011.

Quando o aluno não vai à escola, no discurso legitimado, ele está sujeito a vários
riscos, como nos revela o documento Programa Fica: Enfrentamento a Evasão Escolar: “Há

que se destacar os motivos ligados à violência física ou psicológica, à exploração sexual, à


gravidez precoce, ao uso e tráfico de drogas e álcool e às brigas de gangues que são fatores
reais que têm crescido em nossa sociedade e que acabam interferindo no processo

pedagógico” (PARANÁ, 2009, p. 4). A escola protegeria a criança e o adolescente desses


riscos. Neste sentido, ela se configura como uma instituição de tutela e de proteção.

Michel Foucault (2008) problematiza a ideia de risco, que demanda práticas

específicas para garantir a segurança da população, objetivando controlar as condutas e os


modos de vida daqueles que se desviam, ou seja, tecnologias que objetivam conduzir ou

reconduzir o sujeito à norma.

Todo esse sistema de normatização da obrigatoriedade da educação faz operar sobre

a infância e a adolescência as biopolíticas. Para Foucault (1988, p. 134), “Deveríamos chamar


de ‘bio-política’ para designar o que faz com que a vida entre no domínio dos cálculos
explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana”. Será a partir

destes cálculos, dessas médias que o Estado vai operar sobre os modos de vida da população,
determinando padrões de normalidade a partir de regras de higienização, de convivência
pública e privada, de comportamentos esperados nas instituições sociais. Para Foucault

(2008), o elemento que circula entre o poder disciplinar dos indivíduos e o poder
regulamentador das populações é a norma, que controla ao mesmo tempo a ordem dos
corpos e os eventos aleatórios. Também é a norma que define os padrões de comportamento

que cada sujeito deve ter no espaço escolar. Quando há um desvio da norma, são necessárias
correções destes corpos. Portanto, as biopolíticas produzem todo um aparato de tecnologias

258 Educação e Interseccionalidades


e constituem o dispositivo pedagógico, e que têm como objetivo fazer com que os alunos
permaneçam na escola.

O governamento8 das famílias opera a partir da criação e da implantação de


tecnologias biopolíticas específicas, operadas por vários agentes como educadores,
psicólogos, conselheiros tutelares, assistentes sociais, magistrados, que compõe a Rede de
Atenção Psicossocial.9 Quando acontece a evasão escolar, esses agentes são convocados a

reconduzir o aluno à norma, individualmente, ou dentro de programas específicos como o


Fica Comigo e o Projeto de Combate à Evasão Escolar. Essa recondução é pautada na
reafirmação dos benefícios da escolarização para os sujeitos e para o Estado. Para tanto, as
tentativas de recondução (ir até a casa do aluno, fazer com que a família assine termos

circunstanciados, convocações para audiências extrajudiciais) constituem o inquérito, que


produz o processo de abandono intelectual. Se as famílias acatarem as orientações e o aluno
retornar, o processo é suspenso.

Nos ateremos agora a uma dessas práticas de recondução dessas famílias: as

audiências extrajudiciais. O Conselho Tutelar entrega aos familiares de alunos evadidos


convocações, feitas pelo poder judiciário, para reuniões coletivas, que acontecem em lugares
públicos, como escolas, centros comunitários, estádios de futebol, câmara de vereadores, e
são presididas por especialistas convidados a palestrar. As audiências extrajudiciais se utilizam

de tecnologias descritas como Michel Foucault (2008) como pertencentes ao poder pastoral.
Uma delas é denominada pelos técnicos do judiciário como sermão, onde especialistas
produzem falas que aliam a baixa escolaridade ao desemprego e à marginalidade. Para escapar
a essa sina, é preciso que as famílias revejam suas formas de existência, acatando aos
conselhos, recomendações e orientações oferecidas. Ao final, todos são convocados para
outra técnica do poder pastoral: a confissão. Ela se dá no preenchimento do questionário
onde devem informar seu perfil socioeconômico e descrevendo os motivos que provocaram

8 Usa-se “[...] o termo na acepção foucaultiana, que o distingue das ações de governo praticadas pelo Estado.
Nesse caso, governamento se refere ao exercício de ações de governo praticadas por vários agentes (pais,
professores, ONGs, família, igrejas, instituições públicas, organizações privadas, corporações empresariais etc.)”
(COSTA; MOMO, 2009, p. 524).
9 A Rede de Atenção Psicossocial é composta por especialistas das Secretarias Municipais de Educação, Saúde,
Ação Social, Conselho Tutelar, Promotoria Pública, Vara da Infância e da Família, entidades de atendimento
e acolhimento de crianças e adolescentes.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 259


a evasão escolar. Esses dados produzem estatísticas que serão utilizadas para se produzir novas
formas de captura e normalização dos alunos evadidos.

Essas tecnologias de correção das famílias já eram utilizadas na França, no começo

do século XX, e eram concedidas como Escola de Pais, produzindo modos ótimos de se viver,
visando:

a. Ensinar aos pais a se educarem e a se instruírem mutuamente a fim de fazer


de seus filhos futuros valores sociais e morais; b. Trabalhar para o
renascimento do espírito familiar na França; c. salvaguardar os direitos da
família sobre a criança; d. Realizar a união sagrada em torno da família
(DONZELOT, 1986, p. 171).

Reeditando esse modelo, o Projeto de Combate à Evasão Escolar objetiva resgatar a


família estruturada, restabelecendo suas obrigações privadas e sociais. Esse projeto, aliado ao

Programa Orientação Escolar10, opera como um dispositivo de moralização e de normalização


das famílias.

Dessa forma, a obrigatoriedade da escolarização afeta diretamente a vida das crianças

e dos adolescentes e o modo como esses sujeitos estão autorizadas a vivê-las. Isso porque o
biopoder11 exercido na biopolítica ganha sua efetividade por meio dos dispositivos de
segurança e sua articulação com os campos de saberes (FOUCAULT, 2008), que
cartografam tudo o que é preciso saber e fazer para controlar a população dessa faixa etária,
com vistas a garantir a constituição de um adulto capaz de exercer sua cidadania. Se as
práticas exercidas na escola não dão conta dessa condução, aciona-se o judiciário,

judicializando a vida escolar.

10
O Programa de Orientação Escolar é desenvolvido pelo Núcleo Regional de Educação, em parceria com
profissionais locais. É constituído de palestras ministradas por profissionais locais, com temáticas como limites,
educação, famílias, e oficinas com assuntos concernentes à adolescência e juventude (drogas, orientação
profissional, atividades físicas, atividades artísticas, sexualidade). Os familiares e estudantes citados nos
processos de abandono intelectual devem participar dessas atividades.
11
Para Foucault, biopoder é “[...] essa série de fenômenos que me parece bastante importante, a saber, o
conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas
fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder”
(FOUCAULT, 2008, p. 3).

260 Educação e Interseccionalidades


O DESLOCAMENTO DAS BIOPOLÍTICAS: APAGAMENTO DA
ALUNA E INSCRIÇÃO DA MÃE

A gravidez precoce em jovens no documento da SEED Programa Ficar é


compreendida como uma situação de risco, afirmando sua interferência no processo
pedagógico (PARANÁ, 2009). Isto significa que além de risco, ela é endereçada unicamente
ao sexo feminino, pois os pais alunos não são nomeados nessa condição. Quando analisamos
os processos cadastrados no PROJUDI, constatou-se que dos 446 processos analisados, 46%

dizem respeito à evasão de alunas. A faixa etária em que ocorre a evasão é mais significativa
entre os 16 e 18 anos, com 118 processos instaurados. De todos os motivos referentes a
evasão escolar das jovens alunas, 48% estão relacionados à gravidez e ao casamento. Dos
processos citados como alunas concluídas, 115 foram julgados improcedentes, ou seja, não

houve crime de abandono intelectual e 34 foram julgados procedentes, com as famílias


condenadas. Esses dados nos mostram que se a alegação da evasão é o casamento ou a
gravidez, não há a sentença do Judiciário para as estudantes retornarem à escola,
privilegiando a posição social da mãe em detrimento da aluna.

Comparando esses dados com uma pesquisa realizada pela Secretaria Estadual de

Educação (PARANÁ, 2009), o percentual de alunas evadidas por ‘gravidez precoce’12, é de


4,3%. Somando esse índice aos 0,9% causada pelo motivo ‘casamento’, tem-se 5,2% de
evasões cujas causas estão ligadas à maternidade e a vida doméstica. Estes índices são muito

inferiores aos encontrados pela pesquisa aqui discutida, no qual 46% das evasões dizem
respeito à gravidez e ao casamento/união estável. Esta discrepância tão grande entre esses

percentuais nos leva a constatar que há um silenciamento e uma invisibilização da gravidez


como causa da evasão. Cabe ressaltar que os administradores do Estado não são convocados
pelo Judiciário a proporcionar condições adequadas para as jovens alunas poderem exercer
seus direitos a escolarização durante o período de sua gravidez. Quando a evasão se dá por
esse motivo, o processo é suspenso.

12Termo usado na pesquisa.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 261


Chama a atenção o silenciamento da escola sobre a gestação, pois são nas audiências

extrajudiciais onde normalmente se descobre a gravidez como o motivo de evasão. Quando


ela passa a ser dita, recomenda-se a apresentação do atestado médico de licença, e o processo

é suspenso. A partir daí, passa a incidir sobre a adolescente outras biopolíticas, que vão
diluindo a figura de aluna e fazendo emergir a figura da mãe. A partir de agora é preciso
proteger a mãe e sua gravidez. A obrigatoriedade à educação deixa de existir, a lei entra em
suspensão, e há um deslocamento do direito para a proteção da criança que está sendo gerada

e a produção da figura da mãe suficientemente boa. Castel (1987) nos mostra como
Medicina, ancorada na Psicanálise, faz com que o Estado produza recomendações que vão

colocando sobre a mãe a responsabilidade pela produção dos sujeitos saudáveis e das famílias
estruturadas. Para que essa mãe possa exercer seu papel, os agentes da saúde e da assistência
social passam a operar sobre ela. Este deslocamento deixa viver a mãe e faz morrer a aluna.

Esta suspensão da posição de aluna a partir da gravidez, denunciadas apenas como

evadidas ao judiciário, afirma que ser mãe no período de obrigatoriedade escolar é um


interdito, um crime que sentencia os familiares, mas que na prática faz a punição recair sobre
a própria aluna, que não tem assegurado o direito de permanecer na escola. Estas práticas
produzem subjetividades nas vidas dessas jovens, que quase nunca contam suas histórias,
mas antes são contadas a partir do diagnóstico, da classificação, da hierarquização de suas
vidas em uma instituição. Esta suspensão não visa somente à exclusão, mas antes, ligá-las ao

“aparelho de normalização dos indivíduos” (FOUCAULT, 1996, p.114). Salta-nos ao olhar


carregado de espanto que durante a leitura dos processos, a gravidez é apagada. Uma negação

que fortalece a prerrogativa de que uma jovem grávida não precisa permanecer na escola. O
apagamento da gravidez nesse processo ressoa como uma armadilha utilizada pelo

dispositivo13 para capturar vidas. No espaço em branco sua vida é abandonada a sua própria

13
Para Foucault, os dispositivos são “[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são elementos do
dispositivo, O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. Em segundo lugar, gostaria
de demarcar a natureza da relação que pode existir entre esses elementos heterogêneos. Sendo assim, tal
discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite
justificar ou mascarar uma prática que permanece muda; dando-lhe um novo campo de racionalidade. Em
suma, entre esses elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição,
modificações de funções, que também podem ser muito diferentes” (FOUCAULT, 2009, p. 244).

262 Educação e Interseccionalidades


sorte, uma vez que não há lugar para a aluna e para a mãe. Na escola permite-se apenas a
constituição de um corpo, aquele que necessita escolarizar-se.

A constatação da gravidez faz com que outras biopolíticas se incidam sobre as


adolescentes, garantindo a proteção da maternidade. A aluna passa a ser chamada de mãe, e
será encaminhada para os sistemas de saúde, para realizar o pré-natal, para os serviços de
assistência social, se estiver em situação de vulnerabilidade econômica, no qual lhe permitirá
inserir-se no Programa Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Programa Leite das
Crianças, entre outros. E assim a adolescente grávida, que muitas vezes ainda brinca de ser
mãe, não poderá permanecer na escola. Sua relação com outros alunos no espaço escolar será

interditada, priorizando a atenção ao feto que cresce em seu ventre, assumindo a posição de
mãe, a quem o Estado atribui o cuidado da família.

Ao completar 18 anos, atingindo a maioridade, nem a família e nem a escola são


responsáveis pela escolarização dessas adolescentes, ainda que elas encontrassem até essa

idade nas normas todo o aparato legal para conciliar seus estudos e a maternidade durante o
período de gestação. Seus casos são arquivados e a escolarização agora é experienciada como
falta, fracasso e, principalmente, como culpa isentando todos os administradores do biopoder

de qualquer responsabilidade.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

A obrigatoriedade de que todos devem frequentar a escola ocupa a vida dos


indivíduos criando uma paisagem que se naturaliza no cotidiano, sem que se tenha sequer
tempo para pensar sobre a produção de subjetividades que se efetua a partir dessa
obrigatoriedade. Este texto nos permitiu compreender como o corpo é atravessado pelas
práticas de governamento exercidas pelo Estado e os efeitos que são produzidos a partir da
vida que se normatiza pela lógica da escolarização. Assim, o sujeito constitui-se de uma
forma particular ao mesmo tempo em que também aprende a exercer sobre si mesmo sua
própria regulação, tendo como ideário a formação de um sujeito universal. Os efeitos da

multiplicidade que produzem subjetividades são aprisionados quando se reduz a vida a uma
única forma de ser: um sujeito escolarizado.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 263


Neste sentido, não se duvida que o Estado necessite de corpos escolarizados. Duvida
se sim de sua responsabilização em garantir as condições adequadas para que essa vida

escolarizada tão aconteça e se enderece de fato a todos. Assim o espaço de cada um vai sendo
demarcado, controlado e regulado de modo distintivo em cada sujeito. A pesquisa aqui
problematizada nos indica que os reguladores sociais que se incidem sobre os alunos e as
alunas são diferentes. Esta diferença é provocada pelo deslocamento das biopolíticas

destinadas à aluna que se evade quando está grávida ou se torna mãe. A obrigatoriedade da
educação a que tem direito é suspensa, e em seu lugar entram as tecnologias de
governamento que visam proteger a maternidade e reposicionar essa aluna no lugar de mãe

e de responsável pelo cuidado da família.

As decisões do judiciário nos processos de abandono intelectual produzem uma


naturalização do modelo de mulher. Quando a sentença judicial não determina o retorno à
escola das alunas grávidas ou mães, e não garante que o Estado ofereça as condições
necessárias para elas frequentarem a escola, legitima-se o papel da mulher que cuida da
família, bela, recatada e do lar. Inviabiliza-se assim as possibilidades de escapar a esse destino
traçado pelas biopolíticas, num sistema de micropenalidades traduzidos na suspensão de

direitos.

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264 Educação e Interseccionalidades


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266 Educação e Interseccionalidades


PRÁTICAS DE LEITURA COM LEITORAS
REEDUCANDAS EM CUMPRIMENTO DE
PENA NO SERROTÃO/PB

Fabíola Mônica da Silva Gonçalves (UEPB)

Esta produção é parte do processo de ensino-aprendizagem da leitura de gêneros de textos


que regulam a comunicação forense, configurado como projeto de extensão
(PROBEX/UEPB), realizada com um grupo de leitoras-reeducandas, em cumprimento de
pena na unidade feminina do complexo prisional Raimundo Asfora (Campina Grande/PB),
conhecido como Serrotão. Conforme Julião e Paiva (2014) a educação em espaços de
privação de liberdade contribui com a construção da cidadania porque mantém os reclusos
ocupados de forma proveitosa; traz benefícios à qualidade de vida na prisão; e proporciona
resultado útil, tais como ofícios, conhecimentos, compreensão, atitudes sociais e
comportamento, que perdurem além da prisão e permitam ao apenado o acesso ao emprego
ou a uma capacitação superior. Além disso, vai ao encontro da Lei 12.433/2011 que trata da
Remissão da Pena por Estudo e da Portaria Conjunta 276/2012 que disciplina o Projeto da
Remição pela Leitura no Sistema Penitenciário Federal. A metodologia utilizada foi a
Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP), que está centrada no crescimento da pessoa
em situação de aprendizagem, o qual deixa de ser um mero expectador passivo do processo
de ensino-aprendizagem e assume um papel ativo e có-responsável pelo seu desenvolvimento
pleno nas dimensões: sociais, cognitivas e afetivas. (GIL, 2006). O material analisado aqui
foi construído a partir dos encontros pedagógicos em que se explorou as noções de conteúdo
temático e de sequências textuais constitutivas de um texto (BRONCKART, 1999). Um
dado que merece destaque, foi o engajamento das participantes frente as atividades de
linguagem relacionadas à prática de leitura propostas durante os encontros. Como conclusão,
observou-se que as situações de leitura foram produtivas, pois as reeducandas diante dos
ensinamentos realizados, produziram interpretações e demonstraram compreender a função
do conteúdo temático veiculado na comunicação via texto, bem como o funcionamento das
sequências textuais na composição do gêneros de textos trabalhados.
Palavras-chaves: Educação prisonal; Práticas de leitura; Leitoras reenducandas; Gêneros
textuais.

INTRODUÇÃO

A atividade de leitura, dentre muitas finalidades, se constitui como um ato de


cidadania, uma vez que possibilita a transição de uma curiosidade ingênua para uma
consciência crítica dos educandos (FREIRE, 2009, 2006, 2004). Ademais, a educação

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 267


brasileira ainda é tomada por expressivos índices de analfabetismo funcional, que segundo
Ribeiro (2008);

A questão não é mais apenas saber se as pessoas conseguem ou não ler e


escrever mas também o que elas são capazes de fazer com essas habilidades.
Isso quer dizer que, além da preocupação com o analfabetismo, problema que
ainda persiste nos países mais pobres e também no Brasil, emerge a
preocupação com o alfabetismo, ou seja, com as capacidades e usos efetivos
da leitura e escrita nas diferentes esferas da vida social. (p.1)

Com base na afirmação de Ribeiro (2008), considera-se mais agravante o contexto


educacional acerca do ensino da leitura para a cidadania e para o aprimoramento das
capacidades sociocognitivas das leitoras e dos leitores encarcerados em função da exclusão e

do estigma sócio-histórico que vivem este grupo em razão da descontinuidade na


escolarização regular por parte da maioria, como também com aqueles que nunca tiveram a

oportunidade de frequentar a escola.

Assim, pensa-se a leitura como uma possiblidade socioeducativa, e por conseguinte,


como uma prática de emancipação humana por assegurar o direito de aprender a conhecer

(adquirir instrumentos de compreensão), pois ela permite o acesso irrestrito ao


conhecimento; aprender a fazer (para poder agir sobre o contexto sociocultural que se
encontra) porque ao termos domínio da leitura aprimoramos nossa capacidade criativa e
interventiva no mundo, aprender a viver juntos (em cooperação com os outros em todas as
atividades humanas), a interagirmos mais uns com os outros, a expormos nossas ideias e
ouvimos os pontos de vistas alheios, e, finalmente, aprender a ser (concepção principal que
integra todas as anteriores), porque a leitura favorece o nosso autoconhecimento e o
aprimoramento de nossas capacidades. (DELORS, 2012)

Com efeito, concebe-se também leitura como um trabalho simbólico que se


constitui entre o leitor e o autor do texto (leitura ativa, interlocutiva), e não uma ação que
se consuma como sendo uma mera transmissão de informação (leitura passiva, monológica),
mas sim uma questão de graus de legibilidade, de interpretação, que se constituem a partir

de certas condições sócio-históricas de produção implicando que saber ler é transitar


discursivamente entre os explícitos e implícitos que constituem o texto.“[...] Assim,

268 Educação e Interseccionalidades


indefinidamente, haverá modos diferentes de leitura, dependendo do contexto em que se dá
e dos seus objetivos [...]” (ORLANDI, 2006; p. 10).

Desta maneira, os modos diferentes de leitura estão interligados a um conjunto de


relações, dentre as quais evidenciam-se: (i) relação do texto com o autor: o que o autor quis

dizer?; (ii) relação do texto com outros textos: em que este texto difere de tal texto?; (iii)
relação do texto com o para quem lê: (ex.: se for para o professor, se for para o aluno) e (iv)

a relação do texto com o leitor: o que você entendeu?, produzindo assim uma variedade de
sentidos a depender da relação que se estabelece entre os sujeitos envolvidos na situação de
leitura, no caso quem é o autor e quem é o leitor do texto, vai determinar o trabalho de
significação instaurado. (ORLANDI, 2006).

Além de concebermos a leitura como uma ferramenta de emancipação política das


pessoas na prática do convívio social, atribuímos também à universidade, o papel de difusora

da sua produção científica por meio de ações que levem à sociedade os conhecimentos que
ela produz, sendo a extensão o meio por excelência pelo qual esta função se efetiva, já que
se configura como “[...] processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a
pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre universidade e
sociedade.” (Plano Nacional de Extensão Universitária citado no PCI/UEPB, 2012;p.28).

Logo, a atividade extensionista descrita e discutida adiante corrobora com esta


concepção de extensão, pois reúne dois elementos fundamentais que consolidam ações desta
natureza: o ensino e a pesquisa. No caso do ensino, este se concretiza por meio da formação

de futuros professores, os estudantes bolsistas e os estudantes voluntários, pois terão que


desenvolver atividades didático-pedagógicas características do agir docente, é uma
oportunidade de exercitar a articulação entre teoria e prática pedagógica no tocante ao
planejamento e a avaliação do trabalho desenvolvido no campo da extensão.

A outra dimensão, a pesquisa, encontra-se integrada ao ensino, uma vez que o saber
fazer docente implica numa ação investigativa, numa busca de recursos materiais e teóricos

que favoreçam o aprendizado, pois o conhecimento trabalhado é fruto de toda uma cadeia
interdisciplinar de produção intelectual.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 269


Trabalhos desta natureza possuem relevância social, por colaborarem com o

desenvolvimento humano de um segmento social que se encontra em situação de reclusão


prisional, uma vez que a educação em espaços de privação de liberdade contribui com a
construção da cidadania pois mantém os reclusos ocupados de forma proveitosa; traz

benefícios à qualidade de vida na prisão; e proporciona resultado útil, tais como ofícios,
conhecimentos, compreensão, atitudes sociais e comportamento, que perdurem além da
prisão e permitam ao apenado o acesso ao emprego ou a uma capacitação superior. (JULIÃO

e PAIVA, 2014).

Além disso, outro elemento que embasa práticas pedagógicas no espaço prisional é

a Lei 12.433/2011 que trata da remissão da pena por estudo, e em específico na área da
leitura, objeto do nosso trabalho, é a Portaria Conjunta 276/2012 que disciplina o Projeto

da Remição pela Leitura no Sistema Penitenciário Federal. A referida Lei, em termos gerais,
expressa que o apenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir,
por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena (Art 1º). E no caso da
Portaria, esta enfatiza a remição da pena pela leitura, instituindo, no âmbito das
Penitenciárias Federais, o Projeto "Remição pela Leitura", em atendimento ao disposto na
Lei de Execuções Penais, no que tange à assistência educacional aos presos custodiados nas
respectivas penitenciárias federais. (Art 1º).

Diante das considerações realizadas em termos da concepção de leitura assumida, da


relevância social atribuída a atividade de extensão universitária, e, do respaldo jurídico que

podem potencializar a prática educativa no contexto prisional, abordar-se-á em seguida a


noção de gênero textual, já que este elemento se constitui como a ferramenta didática central

de mediação no processo de significação da leitura por um grupo de jovens leitoras


reenducandas privadas de liberdade.

Assim, neste trabalho adotou-se a noção de gênero textual configurada a partir da


concepção sócio-histórica de língua. Em função de necessidades especificas, os sujeitos, no
âmbito das atividades sociais, interagem por meio da comunicação verbal. Um das formas

da ação de linguagem verbal entre os sujeitos é o texto (BRONCKART, 1999, COSTA,


2011). Neste sentido, o gênero textual é concebido como “toda unidade de produção de
linguagem situada, acabada e auto-suficiente (do ponto de vista da ação ou da comunicação).

270 Educação e Interseccionalidades


Na medida em que todo texto se inscreve, necessariamente, em um conjunto de textos ou
em um gênero.” (BRONCKART, 1999; p. 75).

Conforme Costa (2011), a perspectiva de Bronckart sobre gênero textual traz uma
significativa contribuição, pois este autor desenvolve uma análise focalizada nos tipos de

sequências textuais, as quais possibilitam observar as regularidades dos parâmetros


linguísticos de textualização e os mecanismos enunciativos que o constitui. Mas, esta
perspectiva não se limita aos aspectos internos de constituição do textos, pois atribui igual
relevância ao contexto social e histórico, as situações comunicativas e os efeitos de sentido

que estes componentes textuais e contextuais exercem sobre seus receptores, no momento
do trabalho de compreensão textual.

Para proceder com a análise das sequências textuais, Bronckart (1999) recorre ao
posicionamento de alguns estudiosos, os quais se apoiam no princípio dialógico que
constituem as atividades de linguagem entre os sujeitos, observados tanto na produção como
na recepção textual, formulando cinco tipos básicos de sequências textuais, a saber: narrativa,

descritiva, argumentativa, explicativa e dialogal. Bronckart (1999), esclarece que essas


sequências podem aparecer combinadas, e que tanto a variedade como a combinação das
sequências derivam da heterogeneidade composicional dos textos, bem como da
interatividade comunicativa entre os agentes (autor-leitor) de linguagens. No quadro a
seguir, pode-se verificar, em linha gerais, as ações de linguagem produzidas em cada tipo de

sequência textual.

Tabela 1. Quadro síntese das ações de linguagem das sequencias textuais

Tipo de sequência textual Ações de linguagem


Sequência narrativa - Situação inicial: introduz situações que
iniciam com um equilíbrio e com a
Labov e Waletzky (1967), adotado por continuidade da história e introduz uma
Bronckart, (1999). perturbação incial;
- Complicação: desencadeia a perturbação e
cria uma tensão;
- Ações: reúne os acontecimentos por essa
perturbação;
- Resolução: introduz os acontecimentos
que levam a uma redução efetiva da tensão;

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 271


- Situação final: explicita o novo estado de
equilíbrio obtido por essa resolução;
- Avaliação: faz um comentário relativo ao
desenrolar da história e cuja posição na
sequência parece ser totalmente livre;
- Moral: explicita a significação global
atribuída à história, aparecendo geralmente
no início ou no final da sequência;
Sequência descritiva - Ancoragem: é o tema da descrição,
assinalado por uma forma nominal ou tema
Adam (1992, 1993) e Adam e Petitjean título;
(1989) adotado por Bronckart (1999) - Aspectualização: diversos aspetos do
tema-título são enumerados;
- Relacionamento: os elementos escritos
são assimilados a outros, por meio de
operações comparativas ou metafóricas.
Sequência argumentativa - Premissa: propõe uma constatação de
partida;
Apothéloz et al, (1984), Borel (1981), Grize - Argumentos: orientam para a conclusão
(1974, 1981a) e Toulmin (1958) adotado provável, podendo ser elementos apoiados
por Bronckart (1999) em regras gerais, exemplos, etc;
- Contra-argumentos: operam uma
restrição em relação à orientação
argumentativa e que podem ser apoiados ou
refutados por lugares comuns, exemplos,
etc;
- Conclusão: integra os efeitos dos
argumentos e contra-argumentos.
Sequência explicativa - Constatação inicial: introduz um
fenômeno não contestável (objeto, situação
acontecimento, ação, etc.)
Grize (1981b) adotado por Bronckart - Problematização: explicita uma questão
(1999; 229) da ordem do porquê ou do como,
eventualmente associada a um enunciado de
contradição aparente;
- Resolução: introduz os elementos de
informações suplementares capazes de
responder às questões colocadas;
- Conclusão-avaliação: reformula e
completa eventualmente a constatação
inicial.
Sequência dialogal - Abertura: os interecatantes entram em
contato, conforme os ritos e usos da
formação social em que se inscrevem;

272 Educação e Interseccionalidades


Roulet(1992);
(1999)
Adam (1985)Kerbrat-Orecchioni
adotados por Bronckart
(1990) e - Transacional: o conteúdo temático da
interação verbal é có-construído;
- Encerramento: põe fim à interação.
Fonte: elaboração própria

A partir do posicionamento sobre gênero textual e sequência textual aqui


apresentados, planejou-se uma atividade de ensino-aprendizagem de leitura em que um
grupo de leitoras-reeducandas, após a exposição dialógico-conceitual do tema, realizaram a
leitura e a localização das sequências textuais no gêneros lidos.

A finalidade desta atividade foi favorecer este conhecimento às participantes para que
nos encontros posteriores, a produção da leitura dos gêneros que regulam a comunicação
forense fluíssem tanto em termos imediatos da comunicação verbal, restringindo-se ao

conteúdo temático do texto, como em termas das questões contextuais ligadas a situação
comunicativa e funcional da linguagem, como a enunciação do autor e os efeitos de sentidos

produzidos no destinatário. Para tal, nas seções que se seguem, apresentar-se-ão a


metodologia do trabalho e o relato da atividade de leitura seguido das discussões dos dados

produzidos.

A METODOLOGIA ADOTADA

A metodologia de trabalho utilizada foi a Aprendizagem Baseada em Problemas


(ABP), que está centrada no crescimento da pessoa em situação de aprendizagem, o qual
deixa de ser um mero expectador passivo do processo de ensino-aprendizagem e assume um
papel ativo e có-responsável pelo seu desenvolvimento pleno nas dimensões: sociais,
cognitivas e afetivas. (GIL, 2006).

Neste sentido, desenvolveu-se uma atividade extensionista realizada com um grupo

de sete jovens reeducandas, com idade entre 22 e 32 anos, em cumprimento de pena na


unidade prisional do presídio Raimundo Asfora, conhecido como Serrotão, situado na

cidade de Campina Grande/PB, com graus de escolaridade variados: uma delas informou ter
cursado o 5º ano do Ensino Fundamental (EF), outra informou ter cursado até o 9º ano do

EF, duas informaram ter concluído este segmento de ensino, uma delas declarou ter cursado

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 273


até o primeiro ano do Ensino Médio (EM) e, por último, outra, informou ter concluído o
EM. Além disso, o tempo de permanência das participantes neste instituição prisional

variava entre seis meses a um anos e meio de reclusão.

RELATO DA ATIVIDADE DE LINGUAGEM

A atividade apresentada e discutida adiante faz parte do projeto de extensão


intitulado “Leituras de gêneros textuais que regulam a comunicação forense: ação
interventiva com apenadas do Serrotão” (GONÇALVES, 2015). Os encontros aconteceram
na sala de aula da unidade feminina do Campus Avançado da Universidade Estadual da
Paraíba (UEPB), localizada dentro do presídio supracitado. Para este relato, selecionou-se
um encontro pedagógico em que foram abordados dois assuntos em particular: o conteúdo
temático e a sequência textual que constituem a estrutura composicional e a funcionalidade
comunicativa presentes na linguagem verbal materializada via textos.

De modo geral, os encontros seguem uma prática pedagógica composta pelos

encaminhamentos didáticos a saber: (i) abertura do encontro com as boas vindas às


participantes presentes, (ii) breve conversação informal, (iii) recapitulação do encontro
anterior, (iv) exposição dialogada do tema, (v) verificação da aprendizagem por meio de
exercícios relacionados ao tema trabalhado, (vi) avaliação da aprendizagem realizadas pelas
participantes, e por último, o encerramento da aula com informações básicas referente ao
próximo encontro e a despedida. A duração de cada encontro era em torno de 2 horas e a

frequência era quinzenal. Todo o trabalho foi desenvolvido entre novembro de 2015 a
outubro de 2016. A atividade relatada e discutida aqui, aconteceu durante um encontro

realizado no mês de maio de 2015.

Os objetivos de aprendizagem do referido encontro pedagógico, foram: (i) Estudar


as noções sobre gênero e sequência textual; (ii) Reconhecer a importância do gênero textual
para a comunicação e interação social, e; (iii) identificar as sequências textuais predominantes
em cada gênero textual estudado.

Após a exposição dialogada sobre as noções de gênero e sequência textual e a sua


importância comunicativa e interacional, partiu-se para a realização de um exercício de

274 Educação e Interseccionalidades


verificação da aprendizagem com as participantes, em que elas foram convocadas a identificar
nos dois gêneros textuais, dispostos a seguir, quais as sequências textuais predominantes.

(Gênero textual “A”)


Manifestantes pró-Dilma dizem que foram boicotados em ato em Manaus
Estadão Conteúdo 11.05.16 - 23h031
Manifestantes contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff
reclamaram da interrupção da transmissão da sessão de votação no Senado,
em telão montado na Praça do Congresso, Centro de Manaus. O aparelho
foi desligado, segundo os participantes do ato, por um grupo de pessoas que
passava pelo local. O fato ocorreu no momento do discurso da senadora
Vanessa Graziotin (PCdoB-AM).
Com a interrupção da transmissão, os cerca de 100 militantes do partido
comunista contataram a senadora por telefone, que repudiou o suposto
boicote. “Isso é desespero dos golpistas”, afirmou Vanessa por telefone, que
já admitiu a derrota na votação. “O processo não acaba hoje, ainda será
julgado no STF e temos muitas chances”, considerou. Os manifestantes
acompanham a transmissão da votação no Senado entre discursos de
militantes e outros convidados contrários ao impeachment de Dilma.

(Gênero textual “B”)


A casa era grande, branca e antiga. Em sua frente havia um pátio quadrado.
À direita havia um laranjal onde noite e dia corria uma fonte. À esquerda era
o jardim de bruxo, úmido e sombrio, com suas camélias e seus bancos de
azulejo.
O meio da fachada que dava para o pátio havia uma escada de granito coberta
de musgo, Em frente dessa escada, do outro lado do pátio, ficava o grande
portão que dava para a estrada.
A parte de trás de casa era virada ao poente e das suas janelas debruçadas
sobre pomares e campos viam-se ao longe os montes azulados cujos cimos
em certas tardes ficavam roxos. Nas vertentes cavadas em socalco crescia a
vinha.
À direita, entre a várzea e os montes, crescia a mata, a mata carregada de
murmúrios e perfumes e que os outonos tornavam doirada.2

1 TADEU. B. Disponível em: http://www.tribunademinas.com.br/manifestantes-pro-dilma-dizem-que


foram-boicotados-em-ato-em-manaus/. Acesso em: 15 de maio de 2016
2 Sophia de Mello Breyner Andressen “O Jantar do Bispo Calisto”. Disponível em:
http://gardeniaitz.blogspot.com.br/2012/08/textos-descritivos.html. Acesso em: 30 de abril de 2016.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 275


Então, procedeu-se com a leitura coletiva de cada gênero textual, onde cada
participante lia uma passagem do texto em voz alta, na ocasião a coordenadora do projeto
mediou esta atividade. Foi solicitado a pausa após a leitura de cada passagem e em seguida
perguntava-se ao grupo qual ou quais sequências textuais elas achavam que seriam. E assim
foi trabalhado com os dois textos. A medida que se fazia a leitura de uma passagem, se
pausava e se questionava para o grupo a fim de se obter as respostas relacionadas aos temas
enfatizados no encontro pedagógico.

Ao final de cada leitura completa, perguntou-se também qual era ou quais eram as

sequências predominantes em cada gênero textual lido, além disso, chamava-se atenção das
participantes para que elas falassem sobre o conteúdo temático, o que o texto aborda,

gerando um processo de leitura ativa e dialogada entre a professora e as participantes


mediadas pela relação texto e contexto. Daí, na seção seguinte, tratar-se-á da discussão dos

dados.

DISCUSSÃO DOS DADOS PRODUZIDOS

Durante a atividade, as participantes se engajaram na metodologia de trabalho


proposta, trouxeram seus entendimentos, suas compreensões sobre os tipos de sequências

textuais presentes no gênero textual, bem como o conteúdo temático veiculado.

As leitoras identificaram a marcação sociodiscursiva prototípica das sequências

textuais presentes nos gêneros textuais lidos, observaram que apesar da predominância de
um tipo de sequência textual, os gêneros apresentam uma composição heterogênea em
termos das sequências indo ao encontro da proposta de Bronckart (1999) acerca das
atividades de linguagem, textos e discursos.

Outro ponto que merece destaque, diz respeito ao jogo interacional instaurado na
relação autor-leitor via textos, presentes nesta atividade de leitura. As leitoras mantiveram
uma discursividade com os gêneros lidos, pois se remetiam ao contexto de produção da
leitura e chamavam atenção, no caso do gênero textual “A”, para o fato deste descrever e

narrar os eventos comunicativos estabelecidos entre os manifestantes Pró-Dilma do Estado


do Amazonas, em relação ao boicote do Congresso Nacional, ao interromper a transmissão

276 Educação e Interseccionalidades


do momento em que a Senadora Vanessa Graziotin estava parlamentando em defesa da então
presidente da república do Brasil Dilma Rousseff, contra ao processo de Impeachment a ela

impetrado.

As interpretações das participantes foram consideradas como processo de produção

de sentidos na leitura por elas formulados através do trabalho produzido a partir da interação
não só com o texto lido, ou melhor, não apenas com o contexto imediato da interação
propiciado pelo contato com o próprio texto. Mas, também com o contexto de produção
mediato, o qual está articulado com os acontecimentos sócio-históricos em que o texto lido
foi produzido, que no caso, foi a conjuntura política do Brasil na ocasião em relação a

destituição de Dilma Rousseff, do cargo de presidente da república e de todas as


manifestações contra e a favor o processo de afastamento. (FREIRE, 2009, 2006, 2004;
ORLANDI, 2006)

Movimentos estes veiculados em canais midiáticos como no caso das redes de


telecomunicações, pois as reeducandas tem acesso a televisão e jornais impressos, mantendo
as atualizadas sobre os acontecimentos da política nacional. Com isso, também foi trabalhado
na leitura realizada pelas participantes, a questão do conteúdo temático do gênero de texto

lido. (BRONCKART, 1999).

Já no caso do gênero textual B, as leitoras apontaram as sequências textuais

predominantes, a narrativa e a descritiva, perceberam que algumas palavras não eram comuns
em termos da circulação enunciativa atual, ou melhor, palavras que hoje em dia não se usa
com tanta frequência como “socalco”, provocando a curiosidade das leitoras em saber o

significado dicionarizado.

Como não havia dicionário no momento da atividade, então, combinou-se de


retomar esse vocabulário no próximo encontro, levando esta obra de referência para que elas

pudessem pesquisar o significado desta palavra. No presídio não é permitido a utilização de


instrumentos que tenham conectividade como no caso do smartphone, por essa razão, as
atividades de pesquisa, só podem ser realizadas por meio de material impresso, como livros,
revistas, jornais, enciclopédias, dicionários dentre outras fontes de informação e

conhecimento.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 277


Esta atitude de busca de significado das palavras enquanto se lê um texto, demonstra
um trabalho de leitura dialógica e não monológica, uma vez que o leitor procura interagir
com a comunicação veiculada pelo autor, ou melhor com os efeitos de sentido que o autor
provoca no leitor do texto, mas que, ao mesmo tempo, se encontra no contexto de produção

da leitura realizada pelo leitor (ORLANDI, 2006). Esse trabalho de significação do leitor
remente também a concepção de sujeito ativo que transita de uma curiosidade ingênua a um
processo de construção de uma consciência leitora crítico-reflexiva. (FREIRE, 2009).

Por este gênero textual ser um fragmento de um Conto literário, a significação da


leitura realizadas pelas reenducandas acionou mais os aspectos imaginativos constitutivos do

conteúdo temático do texto, despertando o processo criativo na proliferação de sentidos.


Com isso, observou-se que situações de leitura como estas, proporcionadas às pessoas em
restrição de liberdade, favorecem possibilidades de emancipação humana, uma vez que a
leitura permite o acesso aos conhecimentos produzidos socialmente, veiculados no mundo
textual, gerando possibilidade de aprendizagens constituídas pelo ato de conhecer, de fazer,

de viver junto em sociedade, e de ser mais enquanto pessoa. (DOLORS, 2012; FREIRE,
2006, 2004).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atividades de leitura realizadas com jovens reeducandas como a relatada aqui,


configuram-se como propostas pedagógicas de trabalho viáveis para serem desenvolvidas
com a população carcerária por terem um cotidiano marcado por profundos processos de
exclusão e estigma social, atividades desta natureza propicia a estas pessoas um espaço de

discussão significativo, pois auxilia o processo de aprendizagem integral do ser humano.

Além disso, atividades assim dimensionadas, podem contribuir com a prática


reflexiva da realidade em que estas pessoas encontram-se inseridas, uma vez que a
metodologia de trabalho adotada é pautada no princípio da colaboração conjunta e da

dialogicidade entre os agentes envolvidos nas vivências pedagógicas, no caso aqui relatado
entre a professora, os estudantes universitários envolvidos na ação extensionista e as

278 Educação e Interseccionalidades


reenducandas que são as cursistas do projeto de extensão, tendo o texto como uma
ferramenta de mediação do trabalho de significação de leitura.

Em vista do exposto, acredita-se que trabalhos pedagógicos com estas características


vão ao encontro de uma prática extensionista com vistas ao aprimoramento das capacidades

humanas relacionadas à prática social de leitura, ao mesmo tempo, favorecem a


materialização dos dispositivos legais de remissão de pena pelo estudo e pela leitura. No
entanto, defende-se que atividades de leituras e de estudos sejam intensificadas no espaço

prisional, para que as pessoas em cumprimento de pena possam desenvolver capacidades


sociocognitivas para o exercício pleno da cidadania, não apenas quando cumprirem seus
deveres com a Lei e retomarem a liberdade civil, mas também no interior das instituições
prisionais, já que também é um espaço que prescinde de uma prática educativa que promova
transformação social.

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Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 281


282 Educação e Interseccionalidades
INCLUSÃO DA MULHER NO ESPAÇO
EDUCACIONAL BRASILEIRO:
aspectos históricos da trajetória feminina na
educação superior

Alexandre Godoy Dotta1 e Larissa Ribeiro Tomazoni2

A investigação tem como escopo principal descrever o processo histórico de inclusão da


mulher no espaço educacional brasileiro. Orienta-se mediante o seguinte questionamento:
qual são os principais aspectos da trajetória percorrida pelas mulheres para a sua inclusão na
educação brasileira? A investigação desenvolve-se a partir de revisão sistemática de
bibliografias, de documentos normativos e dados estatísticos de organismos oficiais..
Objetiva descrever as principais conquistas da mulher no espaço educacional. Descreve os
principais artifícios de exclusão enfrentados para inserção no ambiente escolar. Relata a
condição da mulher no período colonial e imperial brasileiro, que é caracterizado por um
grande índice de analfabetismo, menosprezo intelectual e da privação total da educação.
Aborda a realidade feminina no período inicial da república e apresenta as principais
alterações legislativas que propiciaram a inserção da mulher no espaço educativo. Descreve
a criação das disciplinas específicas para a mulher voltadas para serviço do lar, economia
doméstica, cuidados com os filhos e a família. Apresenta o surgimento da pós-graduação na
década de 1960 e a expedição dos primeiros diplomas de mestrado e doutorado para mulheres
no Brasil. Analisa os dados do Censo da Educação Superior sistematizados pelo INEP –
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira. Aponta os números ingressantes
e concluintes por gênero nos anos de 2003 e de 2013. Utiliza como fonte de dados
informações compiladas pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico) para demonstrar o crescente número de mulheres no espaço acadêmico
científico da educação superior. Conclui considerando que na atualidade a mulher é maioria
no espaço escolar, notadamente na educação superior, assim como na pós-graduação strictu
sensu. Destaca que em 2014 aproximadamente 61% dos diplomas expedidos eram para
mulheres; do mesmo modo nos cursos de doutorado cerca de 60% das pessoas tituladas
eram mulheres.
Palavras-chave: Educação Brasileira; Inclusão da Mulher; Relações de Gênero na Educação;
História da Mulher.

1Professor de Metodologia da Pesquisa Jurídica da Escola de Direito e Líder do Grupo DIVERGE – Direito,
Diversidade Sexual e Relações de Gênero do UniBrasil; Doutor e Mestre em História da Educação. E-mail:
godoydotta@icloud.com – CV Lattes: <http://lattes.cnpq.br/4830921845612030>.
2 Advogada, Especialista em Gênero e Sexualidade, Mestranda em Direito na UnInter.. E-mail:

lrtomazoni@gmail.com – CV Lattes: <http://lattes.cnpq.br/1693105989075535>.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 283


INTRODUÇÃO

A educação e a questão da desigualdade de gênero são temas atuais nos debates


acadêmicos. A igualdade de oportunidades é um pressuposto para uma sociedade
democrática. Tendo em vista o peso teórico e prático dessa discussão, pretende-se descrever
no contexto da história da educação brasileira a relação da mulher no espaço escolar. Trata
se de uma investigação de natureza social, pois descreverá o caminho percorrido por um ator
social que era no inicio excluído e somente séculos depois conseguiu se inserir no processo
educacional de onde passou de minoria para a maioria quantitativa na educação, e sobretudo,
na educação superior. Como ponto de partida questiona-se: qual foi o caminho percorrido
pelas mulheres dentro da educação brasileira? Como passaram de minoria, para maioria

quantitativa dentro da educação superior? E qual foi o momento em que houve essa inversão
e através de quais mecanismos isso foi possível?

A MULHER NO ESPAÇO ESCOLAR NO PERÍODO COLONIAL E


IMPERIAL

Com a chegada dos colonizadores portugueses ao Brasil, o ensino se concentrou nas


mãos da igreja, especialmente sob a responsabilidade das ordens religiosas, notadamente os

jesuítas (1500-1759). No período colonial a educação se destinava unicamente à formação


da elite branca. A primeira escola de ler e escrever foi erguida na Bahia em 1549. O foco era
voltado para a formação da elite masculina, sendo as mulheres excluídas desse processo pois
estavam destinadas ao casamento, quando muito educavam-se na catequese (STAMATTO,
2014). No período colonial, as mulheres tinham acesso quase nulo à escolarização, podendo
em alguns casos estudar em casa ou em conventos (RIBEIRO, 2000, p.80). A partir de 1759
uma série de reformas administrativas e políticas que perduraram até 1822 com a

independência do Brasil. Uma das consequências foi expulsão dos Jesuítas das colônias
portuguesas, tirando o comando da educação formal da mão dos padres e passando para o
Estado (SECO; AMARAL, 2014). Mas esse novo sistema não impediu a continuação do

oferecimento dos estudos em colégios de outras ordens religiosas (ALGRANTI, 1993, p.61).
Após a expulsão dos jesuítas, os bens dos padres foram confiscados e muitos livros

284 Educação e Interseccionalidades


destruídos. Alguns historiadores afirmam que o desmantelamento da estrutura educacional
montada pela Companhia de Jesus, foi inicialmente prejudicial, pois não houve uma
substituição imediata da educação regular por outras instituições. As reformas “não
conseguiram de imediato introduzir as inovações (...) no Brasil, após ter desmantelado a
estrutura jesuítica, o que teria provocado o retrocesso” da educação no país (ARANHA,
2006, p.191-192). Havia nesse momento, na Colônia, um movimento embebido com as

ideias iluministas, que chegaram ao Brasil por meio dos intelectuais “estrangeirados” pela
formação em Coimbra (SECO; AMARAL, 2014).

A partir das reformas houve permissão para a frequência das mulheres na escola,
contudo, o ensino era separado dos homens. Além do ingresso na escola as mulheres
passaram a ser toleradas no magistério público como profissão. Contudo, essa reforma não
representou um ensino extensivo à população, era totalmente restrito para a população e
para às mulheres quase nulo. Destaca-se que mulheres promoviam sua educação em casa
com a contratação de variados cursos destinado exclusivamente às mulheres, tais como:
costura, bordado, flores, rendas, bolos, enfeites, leitura, contagem, etc (STAMATTO, 2014,
p.3). Por isso pode-se dizer que a maioria das mulheres do Brasil do Império vivia em
situação de dependência e inferioridade. Existia pouca possibilidade de instrução. Em
algumas famílias mais ricas recebiam noções de filosofia, mas se dedicavam principalmente
às prendas domésticas. Destaca-se ainda a rígida formação moral e religiosa, pois o objetivo
prioritário era prepará-las para a vida em matrimônio (ARANHA, 2006, p. 229). No ano de
1825, D. Pedro I autorizou o funcionamento do Seminário da Glória mediante
administração do Estado, retirando-o das mãos dos religiosos. A instituição abrigava as filhas

de militares em serviço e meninas desamparadas. Nesse espaço aprendiam as lições e eram


protegidas “dos vícios e depravações” (ARANHA, 2006, p.229).

No Império, a Lei Geral de 15 de outubro de 1827, foi a primeira legislação específica


sobre ensino primário após o Brasil declarar independência. O texto determinava aulas
regulares para as meninas, mas ainda com a justificativa de prepará-las melhor para o
casamento (ARANHA, 2006, p.229). A lei padronizava as escolas e segregava as mulheres,
pois elas não aprendiam todas as disciplinas que eram ensinadas aos meninos. Atentava-se
somente sobre afazeres domésticos e como cuidar da família. Destaca-se que, segundo a lei

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 285


do período, as aulas deveriam ser ministradas por “senhoras honestas e prudentes”, das quais
não se exigiria grandes conhecimentos, uma vez que, em aritmética, por exemplo, bastava
ensinar as quatro operações. O problema, porém, decorria da impossibilidade de conseguir
mulheres que tivessem o mínimo preparo, e, quando tinham pelo menos um pouco, podiam
não ser aceitas se desconhecessem as “artes da agulha”. Estima-se que em 1832, pela falta de

professorado idôneo e pela remuneração parca, o número de escolas para meninas não
chegava a vinte em todo o Brasil (ARANHA, 2006, p.229). A título ilustrativo cita-se que
em 1873, na Província de São Paulo, haviam somente 174 escolas primárias (ARANHA,
2006, p.230). As matérias consideradas mais racionais como geometria, filosofia, matemática
não constavam na grade da educação feminina, pois havia o entendimento de que a
capacidade cognitiva de homens e mulheres era diferente, sendo este um dos argumentos
para a educação separada, “pois as meninas seriam incapazes de seguir o mesmo ritmo dos
meninos, além do perigo que os excessivos exercícios intelectuais causassem danos à sua
frágil constituição física e psicológica” (CHAMON, 2014, p.6). Era consensual a atribuição

de diferentes funções a cada um, o que exigiria habilidades e comportamentos diferentes e


específicos, e justificava o currículo diferenciado. Assim foi tratada a educação das mulheres
durante todo o período colonial (Jesuítico 1500-1759 e Pombalino 1759-1822) e o imperial
(1822-1889) no Brasil.

O costume motivava a separação entre meninos e meninas a fim de evitar


promiscuidade. Porém, posteriormente, com o Decreto nº 1.331-A, de 17 de fevereiro de
1854, que regulamentava a educação primária e secundária, determinou-se que a educação

deveria ser ministrada separadamente. Ainda versava que a educação secundária era exclusiva
para o sexo masculino (BRASIL, 1854). Essa normatização tinha raízes sociais, mas
principalmente era uma demanda por parte da Igreja que compreendia a educação mista
como uma educação promíscua. O ideário religioso pregava que o lugar natural da mulher
era no lar (CHAMON, 2014). Somente na fase pré-republicana do final do século XIX é

que a educação feminina começou a despertar maior interesse, vindo à tona o tema da
coeducação, o que supunha oferecer as mulheres os estudos que antes eram reservados
exclusivamente aos rapazes. De um lado os mais conservadores temiam o desmonte do
sistema patriarcal e o desmantelamento da família. Usavam o argumento da natureza inferior

da inteligência feminina. E, de outro, os liberais, que destacavam a importância de sua

286 Educação e Interseccionalidades


educação para o exercício das funções de esposa e mãe (ARANHA, 2006, p.230). A reforma

de Carlos Leôncio de Carvalho, em 1879, (Decreto nº 7.247) trouxe a liberação do ensino,


a mudança do currículo, a revogação da obrigatoriedade do ensino da doutrina cristã e no
seu art. 4°, parágrafo 3°, a introdução das escolas mistas no ensino primário para crianças
até 10 anos, o que permitiu menores custos aos cofres públicos e dava preferência para que
as mulheres regessem essas classes mistas (BRASIL, 1879). A educação conjunta ficava

circunscrita à infância e apresentava currículos diferentes. Para as meninas havia o ensino


dos trabalhos manuais femininos, pois não se concebia na época uma mulher sem essas
habilidades essenciais para o exercício do papel de esposa e mãe (CHAMON, 2014, p.8-9).

A MULHER NO ESPAÇO ESCOLAR NO PERÍODO REPUBLICANO

Com o regime republicano (primeira república 1889-1930), iniciou-se o processo de


renovação do ideário que envolvia a educação. Ocorreu uma revisão dos métodos e da
organização das escolas e criação de novos estabelecimentos de ensino (ALVES, 2014, p. 6).
Nas primeiras décadas do século XX, além da reformulação das políticas, surgem os centros

de pesquisas aplicadas à educação. Nesse período surgem escolas voltadas especificamente


para as mulheres, com a inclusão de disciplinas voltadas à economia doméstica e
puericultura; em suma, agora cabia à escola e não mais a família a preparação da dona de
casa, através de um método científico e racional (GARCIA, 2014, p. 4-5). As décadas de
1920-1930 foram férteis em discussões sobre pedagogia. Os conservadores eram defensores

da pedagogia por meio de uma abordagem tradicional. Os liberais simpatizavam com as ideias
da Escola Nova, que se consagrava na tentativa de superar a escola tradicional. A escola do
período era magistocêntrica e voltada para a memorização dos conteúdos e o que se buscava
era uma educação mais dinâmica e voltada para a realidade e que se adequasse ao mundo em
constante transformação na tentativa de recuperar o atraso na educação brasileira quando

comparada a índices de outros países (AZEVEDO; FERREIRA, 2006, p. 215). Em 1932,


foi publicado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. O documento defendia a
obrigatoriedade da educação pública, gratuita e laica como um dever do Estado. Além disso,

dispunha sobre o caráter discriminatório e antidemocrático da educação brasileira. A


proposta era de estabelecer uma base comum para todos com uma escola secundária unitária.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 287


Contudo, estas e outras reivindicações não foram acolhidas na Constituição de 1934

(ARANHA, 2006, p.303-304). Durante a Era Vargas (1930-1945) foi dada uma atenção
especial à educação feminina, todavia ressaltava-se que à elas deveria ser destinada a instrução

adequada ao seu papel familiar (GARCIA, 2014, p.5). Às mulheres foi reservado um projeto
pedagógico de retorno ao lar, lugar onde poderiam servir à pátria e à família. Ao mesmo
tempo, esse retorno ao espaço privado apresentou um retrocesso significativo em relação as
conquistas anteriores.

Com o advento do Estado Novo (1937-1945), implantado de forma autoritária por


meio de golpe e legitimada pela Constituição de 1937, o Estado buscou agir nos setores da
economia, saúde, trabalho, comunicação e educação. O núcleo central do projeto

estadonovista era a construção da nacionalidade, ou seja, a afirmação da identidade nacional


brasileira e a “construção de um homem novo para um Estado que se pretendia novo”

(BOMENY, 1999, p. 151). Dessa forma, “o fortalecimento do Estado era o argumento usado
pelo Estado Novo para justificar o discurso produzido na época” (NAHES, 2007, p. 41), e o
então Ministro da Educação, Gustavo Capanema, foi um personagem fundamental na
manutenção do regime. O discurso integralista acabava por reforçar a ideologia de uma
mulher submissa, dócil, quase beatificada. A mulher ideal era a mulher do lar. Nesse período,

o “projeto de mulher” era “aperfeiçoado por meio de uma intensa campanha do Ministério
da Educação, que via na figura feminina um de seus principais aliados quando o assunto era
educação nacional” (NAHES, 2007, p. 50).

Nesse período, entendia-se que se as mulheres estivessem servindo à família, estariam


servindo à nação. Sua única função era a de mãe, esposa e educadora, sendo vedado qualquer
função masculina, ficando assim, alheias aos problemas sociais e alienadas do contexto
político. Dessa forma, ficava claro que uma família forte era necessariamente um Estado
forte e vice-versa. Prova disso é o discurso proferido em dezembro de 1937 por Capanema
no evento do centenário do colégio Dom Pedro II. Suas palavras reforçavam estereótipos de
gênero e endossavam o projeto de mulher estadonovista. Conforme o processo de
urbanização no Sudeste se intensificava, transformando o Brasil em um país mais moderno

e industrial, mais a posição da mulher se modificava. Lentamente e sem esquecer a visão


idealizada da mulher. Apenas no período de redemocratização do país, a mulher irá “...

288 Educação e Interseccionalidades


demarcar presença nas universidades e ocupar cargos no mercado de trabalho” (NAHES,
2007, p.69). O chamado Período Populista se estendeu desde a deposição de Getúlio em
1945 até o Golpe Militar em 1964, o Brasil retornava ao Estado de Direito. O populismo
surgiu com a emergência das classes populares urbanas resultantes do processo de

industrialização, quando o modelo agrário foi substituído pelo nacional desenvolvimentismo.


Diante de operários insatisfeitos com as condições de vida e trabalho, o governo populista
mostrava-se ambíguo pois de um lado reconhecia os anseios populares e de outro

desenvolveu uma “política de massa” que visava manipular essas aspirações. Assim: “o sistema
escolar passou a sofrer pressão social por níveis crescentes de acesso à educação, mas o acordo

das elites no poder buscava manter o caráter ‘aristocrático’ da escola e conter a pressão
popular pela democratização do ensino” (BELTRÃO; ALVES, 2009, p.5).

O grande debate teve como pano de fundo o anteprojeto da Lei de Diretrizes e Bases
que foi apresentado em 1948 pelo Ministro Clemente Mariani. A grande divergência estava
no fato de os católicos criticarem o tema republicano da laicidade e do outro lado estavam
os “pioneiros da educação nova” que defendiam a escola pública. Por conta dessas

divergências, o projeto só entrou em vigor treze anos depois, em 1961 - Lei nº 4.024, de 30
de dezembro (ARANHA, 2006, p. 309-310). Com a consolidação da supremacia dos EUA
no Pós-Guerra, logo se fez presente a invasão econômica e cultural norte americana no
governo de JK (1956-1961). As indústrias multinacionais entraram definitivamente no

Brasil. O modelo brasileiro começou a entrar em contradição com o processo de


internacionalização da economia devido à instalação das multinacionais (ARANHA, 2006,
p. 295-309). Nos anos JK (1956-1961) o Brasil vivia o fervor desenvolvimentista embalado
pelo mote “50 anos em 5”. O alvo da política do presidente Juscelino era impulsionar e
completar o processo de industrialização do país. Vivia-se então a franca esperança no

desenvolvimento do país. A ditadura militar seguiu com um modelo tecnicista de educação.


O discurso didático-pedagógico contribuía para os interesses dos militares, e havia um rígido
controle sobre as atividades culturais e educacionais (LOURO, 2006, p.14). A intenção dos
militares em “educar politicamente” a juventude se revelou quando em 1969 a Junta Militar
baixou um decreto-lei tornando obrigatório o ensino de educação moral e cívica nas escolas
em todos os graus e modalidades de ensino (ARANHA, 2006, p.314). O foco dos militares
no que diz respeito à educação era a vinculação da educação pública aos interesses e

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 289


necessidades do mercado, ou seja, a educação formava o capital humano para o
desenvolvimento econômico de acordo com a ordem capitalista.

O ensino superior era voltado para atender a demanda do mercado por profissionais
qualificados (SAVIANI, 2008, p.295-296). A “educação das mulheres só conseguiu romper
as últimas barreiras legais em 1971 com a LDB (Lei nº 5.692, de 11 de agosto) que atribuiu

equivalência entre os cursos secundários” (GOMES, 2014, p.6). Dessa forma, o curso normal
secundário amplamente frequentado por mulheres, também dava acesso ao ensino superior,
pois, conforme o art. 23: “os estudos correspondentes à 4ª série do ensino de 2º grau poderão,

quando equivalentes, ser aproveitados em curso superior da mesma área ou de áreas afins”.
Durante o processo de redemocratização e com a instauração da “Nova República”, em 1985,

o ensino no Brasil continuou a se expandir. Na década de 1990 políticas públicas como a


Bolsa Escola fomentaram o acesso da população à educação básica. No ensino superior, com
a criação de programas como o FIES (Fundo de Financiamento Estudantil) e PROUNI
(Programa Universidade para Todos) e com o aumento das universidades privadas, que
ultrapassou em muito o número de alunos matriculados em relação a universidade pública,
favoreceu especialmente as mulheres.

A MULHER NO ESPAÇO ACADÊMICO: EDUCAÇÃO SUPERIORE


PÓS-GRADUAÇÃO

Os brasileiros da Colônia precisavam se encaminhar para a França e Portugal para a

diplomação universitária. Com a vinda da família real portuguesa, foram criados cursos como
a Escola Politécnica (engenharia civil), a Academia Militar, cursos médicos-cirúrgicos,
química, agricultura, economia, matemática, filosofia, desenho, historia, entre outros. No
Primeiro Império, por volta de 1827, implantou-se o ensino jurídico em São Paulo e Recife

(ARANHA, 2006, p. 306). O ingresso das mulheres ao ensino superior ocorreu pela primeira
vez nos EUA em 1837 através da criação das universidades exclusivas. Contudo, eram
ofertados apenas os cursos de bacharelado, sendo quase inexistentes os cursos de mestrado

e doutorado (BEZERRA, 2014, p. 6). Em 1875, foi criada uma seção feminina na Escola
Normal, onde as moças poderiam se profissionalizar na carreira do magistério. E no final do
século a classe docente começou a se tornar predominantemente feminina. Todavia, a

290 Educação e Interseccionalidades


educação secundaria para mulheres quase não existia, poucas instituições públicas ofertavam
cursos para o público feminino. Somente as mais abastadas frequentavam as aulas em
instituições particulares mas, mesmo concluindo a educação secundária, estariam excluídas

da possibilidade de acesso a educação superior que era destinado exclusivamente aos homens.
Somente no final do século XIX, através do Decreto nº 7.247, de 19 de abril de 1879, é que
as mulheres tiveram autorização para ingressar na educação superior. A primeira mulher a
se matricular na faculdade de medicina do Rio de Janeiro foi Ambrozina de Magalhães, em
1881 (ARANHA, 2006, p.229).

Mesmo com essa autorização, a profissionalização e educação da mulher ainda não


estava descolada dos papéis sociais de gênero para ela definidos. Prova disso era o Curso de
Economia Doméstica da Universidade de Pelotas. Na década de 1960 os professores da
Escola de Agronomia Eliseu Maciel, após visitar a Europa e os EUA e conhecer instituições

de ciências domésticas, se interessaram em criar uma organização desse cunho em Pelotas.


O objetivo do curso era formar profissionais para orientar as famílias do meio rural em
questões como alimentação, higiene, puericultura, habitação, aproveitamento e
condicionamento de alimentos, além de dietas básicas de acordo com o clima e a atividade.

O curso foi criado em 1960, reconhecido em 1966, regulamentado em 1985 e formou


aproximadamente 500 bacharéis (GARCIA, 2014, p. 8). Em meados de 1970 houve grande
expansão na universidade. A LDB de 1971 deu equivalência entre os cursos secundários,
permitindo que os egressos dos cursos normais, que eram predominantemente femininos,
tivessem acesso à educação superior. A partir de então, os cursos normais não foram mais

discriminados e entendidos apenas como profissionalizantes, uma vez que possibilitavam o


acesso ao ensino superior, rompendo assim, as últimas barreiras legais ao ensino superior.

(GOMES, 2014, p. 3-8). Devido a industrialização e modernização do Brasil e também aos


programas de inclusão no ensino superior é possível perceber a maior inserção feminina na
educação. A fim de demonstrar essa reversão, analisa-se os dados do INEP. O recorte
temporal que será aqui trabalhado é de uma década, especificamente os anos de 2003 e 2013,

a partir do primeiro governo Lula, onde foi facilitado o acesso ao ensino superior, até o
Censo da Educação Superior de 2013, de onde os dados utilizados nessa pesquisa foram

retirados.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 291


Gráfico 1. Número de ingressantes e número de
concluintes em cursos de graduação no Brasil em 2003

Fonte: INEP, 2015.

Conforme o Gráfico 1 criado a partir das informações do censo, em 2003 ingressaram


no ensino superior 1.262.954 pessoas, sendo 699.607 mulheres e 563.347 homens. Os dados
mostram que os acadêmicos do sexo masculino ingressaram em 45% das vagas enquanto

que as mulheres ficaram com 55% destas. Ainda em 2003 62% dos acadêmicos que
concluíram o ensino superior são do sexo feminino e apenas 38% do sexo masculino. Sobre

o ensino público e privado, o censo de 2013 mostra que 54% dos ingressantes no ensino
superior público eram do sexo feminino e 46% do sexo masculino. Já no ensino privado,
56% dos que ingressaram eram mulheres e 44% homens. Ainda na educação privada, 63%

de mulheres concluiram o ensino superior enquanto 37% dos concluintes eram do sexo
masculino. Na rede pública de ensino, 62% de mulheres concluiram o ensino superior e
apenas 38% de homens (Brasil. INEP, 2015).

Em 2003, as mulheres eram maioria em relação aos homens tanto no ingresso quanto
na conclusão do ensino superior. O mesmo acontece tanto no ensino público como no
privado: as mulheres são maioria e a diferença é considerável pois quanto aos concluintes, as
mulheres são mais da metade. Uma década depois, em 2013, as mulheres continuam sendo
maioria no ensino superior. Os dados da pesquisa do MEC demonstraram que, em 2013, do
total de 1.951.354 ingressantes no ensino superior, 1.066.652 eram mulheres. Segundo os

dados expostos, os acadêmicos do sexo masculino ingressaram em 45% das vagas enquanto

292 Educação e Interseccionalidades


que as mulheres ficaram com 55% destas. Ainda em 2013, 59% dos acadêmicos que
concluíram o ensino superior são do sexo feminino e apenas 41% do sexo masculino. Na
universidade pública, 51% dos ingressantes e 57% dos concluintes eram do sexo feminino,
enquanto 49% dos ingressantes eram homens, e desses, 43% concluíram a graduação. No
ensino privado, 56% dos ingressantes eram mulheres e 44% homens, mantendo-se a mesma
porcentagem de 2003. Dessa forma, não houve alteração. Quanto aos concluintes do ensino
privado, a alteração foi pequena em comparação com 2003: 60% eram do sexo feminino e
40% homens. Em suma, em 2013 as mulheres ainda são maioria no ensino superior,
principalmente no ensino privado (INEP, 2015). Mediante a um comparativo do ano de
2003 com o de 2013, os resultados gerais demonstram que houve aumento tanto no ingresso

quanto na conclusão do ensino superior. Em 2003, 699.607 mulheres ingressaram na


faculdade; dez anos depois esse número subiu para 1.066.652 mulheres. Em 2003 o número
total de mulheres que concluiu a educação superior foi de 329.311, em 2013 esse número
aumentou para 491.738. Em comparação com outros gráficos já analisados, percebe-se que,
em 2003, exatamente 55% dos ingressantes eram do sexo feminino e uma década depois
não houve alteração dessa porcentagem. Quanto aos concluintes, o resultado foi inverso. Em
2003 62% dos que concluíram o ensino superior eram mulheres, mas em 2013 esse número
caiu para 59%.

Gráfico 2. Número de ingressantes e número de


concluintes em cursos de graduação no Brasil 2013

Fonte: INEP, 2015.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 293


Sobre o ensino público e privado é interessante observar que, em 2003, 54% dos que
ingressaram em instituições públicas eram mulheres, mas dez anos depois esse número caiu
para 51%. Enquanto isso, nas instituições privadas, a porcentagem permaneceu a mesma no
período analisado: 56% em 2003, que se manteve em 2013. Quanto aos que concluíram o
ensino superior, houve queda nas duas modalidades de ensino. Em 2003, 63% dos
concluintes da rede pública eram do sexo feminino, em 2013 esse número caiu para 57%.
Levando em conta o lapso de tempo analisado, trata-se de uma queda expressiva. No ensino
privado a diminuição foi de 63% em 2003 para 60% em 2013, uma queda menos expressiva

comparando com a educação pública (INEP, 2015). É possível perceber a partir dos dados
apresentados, que a educação privada tem sido mais acessível às mulheres do que o ensino
público. Mesmo havendo queda no número de pessoas que concluíram o ensino superior,
conforme demonstrado anteriormente, ainda assim a educação privada supera o número de
concluintes da rede pública. Uma das possíveis explicações para isso é o financiamento

estudantil. O FIES foi criado em 1999 durante o governo de FHC e ampliado no Governo
Lula, sendo sucessor do crédito educativo, criado em 1976 pelos militares. Conforme consta
no site do MEC, entre 2010 e 2012, o FIES firmou 598,3 mil contratos com os estudantes
e, segundo os dados disponíveis sobre a evolução do fies no site do INEP, 59% dos bolsistas
são mulheres. O PROUNI foi criado em 2005 com a Lei nº 11.096 e objetiva conceder
bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de graduação em instituições privadas de
ensino superior. Segundo informações disponíveis no site do MEC, no primeiro ano do

PROUNI, foram ofertadas 112.275 bolsas e, em 2013, o número de bolsas foi 252.374. Os
dados disponíveis sobre o PROUNI vão de 2005 (ano de criação do programa) até o segundo
semestre de 2014 e demonstra que dos bolsistas, 53% eram do sexo feminino, enquanto
47% eram do sexo masculino (um total de 790.668 mulheres foram beneficiadas pelo
programa). Sendo assim, mais da metade dos estudantes que conseguiram acesso ao ensino

superior através do PROUNI são do sexo feminino (INEP, 2015).

O espaço da pós-graduação strictu sensu no Brasil foi inaugurado na década de 1960.


Todavia, o primeiro diploma de doutorado expedido para uma mulher foi em 1966, o
primeiro diploma de mestrado foi emitido dois anos depois, em 1968. Desde o início, o
espaço dos programas de mestrado e doutorado era predominantemente masculino. Neste
sentido, o ano de 1999 é paradigmático pois o número de mulheres diplomadas mestres

294 Educação e Interseccionalidades


ultrapassa o número de homens. Oito anos depois, em 2007, o número de mulheres

diplomadas doutoras também ultrapassa o número de homens. A Tabela 1 mostra a evolução


do número de mulheres diplomadas mestras e doutoras entre 1990 até 2015.

Tabela 1. Número e porcentagem de diplomadas mestras e doutoras entre 1990 até 2015

Ano NMestras% Doutoras%


N Ano NMestras% Doutoras
N %
1990 231 45% 220 31% 2003 4653 51% 2.478 47%
1991 216 40% 255 30% 2004 4624 52% 2.550 49%
1992 306 42% 354 34% 2005 5646 53% 2.909 48%
1993 335 41% 376 32% 2006 6164 53% 3.083 49%
1994 424 44% 474 35% 2007 6906 54% 3.425 51%
1995 537 45% 566 37% 2008 8505 55% 3.861 50%
1996 710 47% 724 38% 2009 10031 55% 4.100 51%
1997 952 49% 932 40% 2010 11761 55% 4.468 52%
1998 1149 47% 1.007 41% 2011 15002 56% 5.103 51%
1999 1561 72% 1.218 42% 2012 19869 56% 6.250 52%
2000 2343 51% 1.386 42% 2013 24334 56% 7.340 52%
2001 2884 49% 1.690 45% 2014 24955 56% 8.751 53%
2002 4030 51% 1.978 46% 2015 24580 56% 9.847 53%
Fonte: CNPQ, 2015.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da exposição é possível verificar o processo histórico, legislativo e social


em que esteve submetida a educação feminina. No início da colonização a maioria da

população era analfabeta e às mulheres era negado o direito à educação. Conforme


demonstrado, durante séculos as mulheres foram consideradas biologicamente inferiores e
menos inteligentes do que os homens, o que dificultou o acesso das mulheres à educação.

Entendia-se que a mulher estava reservada unicamente ao espaço doméstico, seu papel era
cuidar da família, e isso refletiu na educação destinada à elas. Somente em 1879 as mulheres
foram autorizadas por Dom Pedro II a frequentar o ensino superior. Na segunda metade do

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 295


século XX as mulheres superaram as últimas barreiras educacionais e reverteram o hiato de
gênero na educação. A grande expansão universitária na década de 1970, notadamente com

a LDB, que atribuiu equivalência ao ensino secundário, simplificou o acesso das mulheres
ao ensino superior. As mudanças ocorreram por meio do engajamento das próprias
mulheres, que historicamente tem conquistado direitos até então exclusivamente
masculinos e a lei refletiu esse processo de organização social. Além disso, os elementos que

facilitaram o acesso ao ensino superior foram os programas sociais e o financiamento


estudantil. Os dados do MEC mostram que a maioria das matriculas e dos concluintes são
do sexo feminino. Contudo, a partir desses dados constata-se que em uma década os
números ainda não são satisfatórios, pois embora o número de ingressantes seja considerável,

o número de concluintes é preocupante. Em resumo, muitas mulheres ingressam na


educação superior, mas nem todas conseguem concluir. Os dados também demonstram que

a educação superior privada tem captado mais mulheres, simplificando, ao menos em termos
numéricos, tanto o acesso quanto a conclusão do nível superior. Apesar da expansão da
educação feminina que trouxe avanços nas relações sociais, de gênero, na política e na
economia, há que se pensar que esse avanço deve se estender a todas as camadas da

população, inclusive as mais pobres. Contudo, esse foi apenas um obstáculo vencido pelas
mulheres. Atualmente o desafio é adentrar nas áreas de predominância masculina. É
necessário equilibrar as relações de gênero a fim de construir uma sociedade materialmente

democrática. Este processo, todavia, está em franco desenvolvimento no Brasil.

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298 Educação e Interseccionalidades


BRILHAR E RESISTIR:
poder e transgressão nas ocupações estudantis
secundaristas de São Paulo

Dhyego Câmara de Araujo1 e Gustavo Bussmann Ferreira2

Em 2016 alguns secundaristas de São Paulo ocuparam escolas e a Assembleia Legislativa


como forma de resistência diante da iminência do golpe jurídico-político-midiático contra
a então presidência da república, bem como frente aos desmandos do governo estadual. Na
ocasião os adolescentes reivindicavam a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito
para investigação de fraudes nas políticas públicas do Estado e da crise ética que se
enfrentava. Todavia as manifestações foram além como se pode depreender dos brados de
“Brilhar e resistir” - sobre o que se propõe o foco deste trabalho no sentido de responder
em que medida são as manifestações políticas, também estéticas. Tal manifestação serve de
reforço às pautas de inclusão de questões de gênero no contexto da educação, uma vez que
as práticas ali alavancadas foram capazes de explicitar o caráter estético da resistência, de uma
estética existencial. Ainda, vídeos dos estudantes maquiados e cobertos por tecidos
multicoloridos denunciavam a economia que gere às vestimentas e os corpos das mulheres,
assim como as regras de gênero conformadoras de corpos masculinos e femininos segundo
uma matriz heterossexual. Por meio de tais atos, se estabelece o diagnóstico das malhas de
poder a recobrir os corpos generificados ao mesmo tempo em que explicitam que o gênero
e a sexualidade não se restringem a espaços secundários ou subjacentes daquilo que se
consideraria eminentemente político no bojo das reivindicações. Assim, além de incursões
nas teorias referentes às identidades sexuais e de gênero, o presente trabalho buscará
compreender como estas relações se dão no interior de um jogo complexo e interligado que
não separa, de forma estanque, os corpos, a política, a ética e a estética. Desse modo,
constroem-se as escolas como espaços de resistência, pois que instalada no interior daquele
jogo cujos marcadores de gênero e sexualidade encontram-se inexoravelmente dispostos nos
corpos.
Palavras-chave: gênero; educação; ocupações; sexualidade.

1 Mestre e Doutorando em Direito do Estado pelo programa de Pós-Graduação em Direito Universidade


Federal do Paraná. Membro do grupo de pesquisa Direitos Humanos e Vulnerabilidades da Universidade
Federal do Paraná. E-mail: dhyegohirota@hotmail.com
2 Mestre e Doutorando em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal do Paraná. Bolsista CAPES do Programa de Excelência Acadêmica. E-mail: gus.bussmann@gmail.com

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 299


INTRODUÇÃO

A título de ambientar o presente trabalho no contexto brasileiro em relação à


população LGBTI, é importante relembrarmos alguns aspectos do cenário nacional referente
a tais sujeitos sob as lentes da heteronormatividade. Não obstante a existência de diversas
leis e tratados que se referem à proibição de discriminação em virtude de orientação sexual
e identidade de gênero3, a realidade ainda se mostra pouco favorável para a vida digna e
segura desta população. Se por um lado os standards internacionais reconhecem avanços no
Brasil em virtude de inexistência de criminalização das condutas LGBTI e da possibilidade
de casamento entre pessoas do mesmo sexo, o ambiente doméstico se mostra muito menos
favorável para a vivência das subjetividades e singularidades que fujam ao padrão
heteronormativo. Isso se confirma na medida em que a cada 28 horas ocorre uma morte
provocada por homo-lesbo-trans-fobia e o estado se resguarda de investigar e julgar os
motivos que possibilitam esta realidade4.

No mesmo diapasão, insta ressaltar a gravidade que envolve as experiências de


estudantes LGBTI em ambientes educacionais extremamente hostis. O que se percebe,
neste sentido, é que 60,2% dos estudantes ouvidos em coleta de dados datada de 2016
afirmaram se sentir inseguros/as na instituição educacional no último ano por causa de sua
orientação sexual; também, 42,8% se sentiam inseguros/as por causa da maneira como

3 Por exemplo: Declaração Universal dos Direitos Humanos - 1948; Declaração do Direito ao
Desenvolvimento - 1986; Declaração e Programa de Ação de Viena -1993; Declaração de Pequim - 1995
(Declaração de Pequim adotada pela Quarta Conferência Mundial Sobre As Mulheres: Ação Para Igualdade,
Desenvolvimento e Paz); Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem - 1948 (por mais
inconsistente que pareça a nomenclatura); Preceitos da Carta das Nações Unidas - 1945; Convenção contra o
Genocídio - 1949; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos - 1966; Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais - 1966; Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
contra a Mulher - 1984; Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes 1984; Convenção Americana sobre Direitos Humanos - 1969; Convenção Interamericana para
Prevenir e Punir a Tortura - 1985; Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a violência
contra a Mulher - 1994. Ver mais em: PROCURADORIA GERAL do Estado de São Paulo. Instrumentos
Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. Disponível na Internet via:
http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sumario.htm. Acessado em
06.fev.2017.
4Para mais informações sobre os dados mencionados nesta seção verificar as pesquisas realizadas pelo Grupo
Gay da Bahia, associação de defesa dos direitos da população de SOGI diversa no país desde 1980. Página
disponível na Internet via: http://www.ggb.org.br/. Acessado em 08.fev.2017.

300 Educação e Interseccionalidades


expressavam o gênero5. Os ambientes vinculados às instituições de ensino que foram
apontados como passíveis de risco pelos/pelas estudantes são dos mais variados: banheiros,
aulas de educação física, vestuários, quadras ou instalações esportivas da instituição
educacional, lanchonete ou refeitório, corredores / escadas, ônibus / transporte escolar,
dentre outros.

Referido estudo demonstrou também que os estudantes que se sentiam inseguros


e/ou constrangidos na instituição de ensino tinham afetados o seu desempenho acadêmico
- sobretudo quando alçamos estes dados à reflexão sobre os índices de suicídio da população
jovem LGBTI e sobre os dados de violência mortal acima mencionados.

Desta forma, considera-se que o aparato jurídico nacional se apresenta em


descompasso à necessária promoção de novas realidades que compreendam o indivíduo não
como algo abstrato, mas como membro de uma comunidade e portador de singularidades,
identidades, proveniências e heranças - o que, defende-se, deve se iniciar nas escolas e na
juventude da população de orientação sexual e identidade de gênero diversas. E no sentido
de trazer os holofotes aos ocorridos de 2016, pode-se perceber que os estudantes não são
apenas objeto das políticas de controle de sexualidade e vítimas da violência estrutural; são
também sujeitos e protagonistas de lutas, diálogos e transformações.

Na ocasião, as reivindicações estudantis pleiteavam abertura de investigações dos


desvios cometidos pelo governo de São Paulo em políticas públicas de educação, bem como
buscavam a manutenção e/ou inclusão das discussões de gênero no contexto escolar. A partir
dos protestos de “brilhar e resistir”, bem como pelos desfiles e manifestações improvisadas
entre lantejoulas e glitter, maquiagens e trajes, as/os secundaristas puderam rastrear as
malhas de poder a recobrir os corpos generificados, ao mesmo tempo em que explicitaram
que o gênero e a sexualidade não se restringem a espaços secundários ou subjacentes ao
domínio das escolas.

5 Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Secretaria de Educação. Pesquisa
Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2015: as experiências de adolescentes e jovens lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais. Curitiba: ABGLT, 2016.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 301


Assim, além de incursões nas teorias referentes às identidades sexuais e de gênero, o
presente trabalho buscará compreender como estas relações se dão no interior de um jogo
complexo e interligado que não separa, de forma estanque, os corpos, a política, a ética e a
estética. Desse modo, constroem-se as escolas como espaços de resistência, pois que
instalada no interior daquele jogo, cujos marcadores de gênero e sexualidade encontram-se
inexoravelmente dispostos nos corpos.

A primeira seção deste trabalho, portanto, tem o fito de explicitar as estratégias de


regulação e controle da sexualidade e do gênero nas escolas, a fim de demarcar tal ambiente
como produtor de regularidades sexuais (ex: separação da turma entre meninos e meninas
nas atividades; reforço de estereótipos nas disciplinas, atrelando meninos às áreas exatas e
meninas às humanas;...). A demonstração desses mecanismos reforça a hipótese apresentada
e abre a discussão para o próximo tópico; deste modo, a segunda seção do trabalho busca
explicitar o caráter constitutivo do gênero e da sexualidade em relação ao próprio debate
referente a políticas públicas educacionais, tendo inspiração no desfile realizado pelas/pelos
secundaristas na ocupação da Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP). Ao denunciar
a violência contida no modelo de heterossexualidade compulsória, pode-se compreender o
gênero em seu caráter performativo atrelando este ao próprio fazer político, promovendo,
assim, possíveis aberturas para a transgressão desse regime reforçador de estigmas e
preconceitos que dilacera corpos e identidades diariamente.

BRILHAR: DAS MALHAS DE PODER AOS TECIDOS DE


TRANSGRESSÃO

Um dos fatos que mais me chamaram atenção na parceria homoerótica foi a


ausência de um vocabulário que permitisse a expressão de sentimentos
positivos entre os parceiros. Em nossa cultura, toda linguagem amorosa, que
é essencialmente a linguagem do amor romântico, foi imaginariamente
rebatida sobre o casal heteroerótico. Da primeira "paquera" até o altar e
depois ao berçário, tudo o que podemos dizer sobre o amor está
imediatamente associado às imagens do homem e da mulher. (...) Hoje,
quando um homossexual sente amor por outro homem, torna-se, querendo
ou não, um intruso, como o personagem do romance homônimo de
Faulkner. Assim como o negro de Faulkner, para ingressar no convívio dos

302 Educação e Interseccionalidades


senhores, tinha que imitar as maneiras da mesa e de salão da burguesia branca
(...), assim também o homossexual é visto como um impostor ou um
usurpador quando se apropria de um vocabulário que não o seu para
exprimir-se amorosamente. Tudo que parece sublime ou edificante na boca
de um homem ou de uma mulher, ao se dirigirem um ao outro na situação
amorosa, soa grotesco, ridículo e "aviadado" na boca de um homossexual
(COSTA, 2002, 93-94)

Compreender as estruturas de significação do homossexual que resultam na criação


de normas reguladoras das práticas e legitimidades desses indivíduos permite explicitar que
as estratégias de regulação e controle das sexualidades não é algo abstratamente difuso na
sociedade, mas algo palpável na realidade das escolas. Todavia, o comportamento dos
estudantes se mostra na contramão da mera aceitação desta realidade de supremacia
heterossexual. Judith Butler, neste sentido, corrobora a necessidade de compreensão das
identidades não como algo estanque, mas como uma prática significante. Por tal expressão
a filósofa busca demarcar que os sujeitos são “culturalmente inteligíveis como efeitos
resultantes de um discurso amarrado por regras, e que se insere nos atos disseminados e
corriqueiros da vida lingüística”(BUTLER, 2016, 218).

Ainda, não se pode olvidar de que esta compreensão das práticas também perpassa a
noção de que a existência de uma identidade rígida e fixa é meramente ilusória e perpetuada
apenas discursivamente. Para Butler (2016, 134) essa rede de regulações dos corpos se dá
dentro de um contexto tempo-espacial e suas interpretações a partir de lentes culturais, de
modo parcial e limitador, portanto, que compreende a sexualidade dentro do quadro da
heterossexualidade, apenas. E uma análise cultural nos permite perceber que desde a
medicina, conforme exposto, até os sistemas de ensino, a realidade heterossexual é
perpetuada como o padrão e o ideal a ser alcançado tendo início já na infância.

A perpetuação do citado modelo, que divide as crianças a partir dos ideários de


masculinidade e feminilidade, forjando suas preferências, bem como seus futuros, segundo
padrões e critérios tidos como adequados ao sexo biológico que lhes fora designado no
momento do nascimento, tem continuidade e reiteração na realidade escolar desde a
primeira infância. Da separação entre meninos e meninas, da pré-concepcão de que uns
gostarão de esportes e outros de artes, até a proibição da prática de certos esportes durante

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 303


a aula de educação física (que conforme dados acima apresentados coloca os jovens em
situação de permanente medo), a economia das sexualidades se impregna nas pessoas e
perpetua práticas de opressão e inferiorização daquelas e daqueles que não se reconhecem
no modelo hegemônico.

Não por acaso, também, assusta o fato de não haver no país uma preocupação clara
em se avaliar a saúde mental das/dos estudantes e prestar apoio neste sentido. Desde 1989
o Department of Health and Human Services dos Estados Unidos da América lançam
reportes enfrentando as principais causas do suicídio juvenil naquele país. Não
surpreendentemente, dos motivos mais alarmantes constavam o bullying e a discriminação
em razão de orientação sexual e identidade de gênero. Em suas conclusões assim constou
que os jovens LGBTI naquele país teriam três vezes mais chances de cometer suicídio que
qualquer outra camada da população.

Em contrapartida, apesar de o Brasil ser um dos países mais perigosos do mundo


para se viver enquanto LGBTI, faltam dados e pesquisas institucionais neste sentido. Mais
que vulneráveis, portanto, o que se percebe é a construção de camadas desse grupo tão
heterogênero como abjetas - mais ainda em se tratando de pessoas trans. Mas esta abjeção
foi desafiada pelas condutas apresentadas pelos estudantes das escolas paulistas; na medida
em que gênero e sexualidades são constitutivos inalienáveis também dos espaços escolares.
Os manifestos brilhantes e a utilização de adereços supostamente femininos pelos meninos
se mostraram, além de transgressores, um pedido de atenção para o fato de que nem todos
aqueles que nascem com genitália masculina têm desejos iguais, afetos similares ou
expressões homogêneas. O que se percebe, portanto, é a difícil percepção de onde está o
poder e “onde estamos nós. O que ele nos dita e o que nós dele queremos. Nós próprios nos
encarregamos de administrar nosso controle, e o próprio desejo já se vê inteiramente
capturado” (PELBART, 2003, 58).

Contudo, apesar das condutas pré determinadas nas quais se pretende limitar a
existência da população, cujos efeitos se percebem nas relações espaciais e interpessoais, bem
como atravessando as formas de vida, tem-se, em contrapartida, a ocorrência de
transgressões cotidianas às constrições da matriz heterossexual. Já houve no país
manifestações contra a proibição de alunos do sexo masculino usarem saia ou batom, as

304 Educação e Interseccionalidades


quais se somam os apelos das ocupações, de utilizar peças de roupa e maquiagem - a priori
consideradas exclusivamente femininos, para chamar a atenção para o violento e limitador
exercício de poderes que regulam e constrangem as vivências das identidades e das
sexualidades.

O que se percebe, nestas condutas, são as injunções de poder operando nas relações
espaciais e interpessoais, colonizando as formas de vida do corpo social e demonstrando
algumas estratégias pontuais para sua subversão e transgressão. Todavia, a tentativa de
pertencer e a repressão de aspectos da vida – na tentativa de adequação às curvas de
normalidade propostas – guardam também a possibilidade de resistir, de se inconformar.
Desta forma, no enfrentamento das opressões de gênero se viu também, mediante protestos
desprovidos de violência, que ao vestirem-se de brilhos, as/os secundaristas implicitamente
lutavam também pela possibilidade de viverem as sensibilidades a elas/eles negadas, de viver
uma juventude queer6 que destoasse do padrão heterossexual.

A partir destas compreensões, pode-se ultrapassar a mera aceitação do modo único


de pensar e buscar o reconhecimento da vida de cada sujeito em suas singularidades,
promovendo algumas aberturas nas limitações de rotulação e contornos de naturalidade que
algumas práticas recebem. Partindo-se de premissas de que as concepções de sexualidade e
papeis sociais são temporalidades socialmente construídas (BUTLER, 2016, 141), evitam
se divisões puramente binárias para reconhecer todas as potencialidades guardadas pelo
indivíduo e o existir dos muitos silêncios que atravessam as estratégias e discursos como nas
salas de aula que dividem o mundo e as identidades em rosa e azul.

6 Conforme documentado e partilhado pelo Centro de Pesquisa em equidade de Gênero da Universidade de


Berkeley, concorda-se com a afirmação de que se identificar como queer é também um ato politico no sentido
de romper com concepções binárias e reconhecer orientação sexual e identidade de género como
potencialmente fluídos - como um simples conceito que se propõe a acolher uma complexa gama de
comportamentos e desejos sexuais. Assim, ao se pensar sobre pessoas queer, não deve ser considerada uma
forma de identidade, mas um conceito guarda-chuva que acoberta todas as possibilidades de viver as
sexualidades para além dos tradicionais papėis dominantes hetero-cis.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 305


RESISTIR: PROTESTOS E REIVINDICAÇÕES NAS ESCOLAS E
SOCIEDADE

Se as malhas de poder estão a recobrir todo o espaço escolar – desde o currículo

(BRITZMAN, 2016) até a arquitetura dos banheiros (PRECIADO, 2006) – segundo


marcadores de gênero e sexualidade, as tentativas de afastar das escolas os debates relativos
a tais questões relegando-os apenas ao espaço familiar restam, não apenas incongruentes,
como também ineficazes. Ineficazes porque a despeito da persecução e cassação das tentativas
de se trabalhar gênero e diversidade sexual nas escolas, a efetividade das normas regulatórias
de gênero continuará a grassar seus efeitos naqueles espaços. O problema é que tal ineficácia
se inscreve em um aparente paradoxo: se, por um lado, não garante que tais questões sejam
colocadas para fora dos portões das escolas – como desejam os adeptos da “ideologia de gênero”
– reforça, por outro, os mecanismos e técnicas da matriz heterossexual a produzir
corporalidades segundo o continnum sexo-gênero-desejo (BUTLER, 2016).

Tal paradoxo é apenas aparente pois a contínua produção de subjetividades


normalizadas é exatamente o que pretendem os projetos de lei visando coibir as tentativas
de discussão e debate. Ou seja, não é que se busca uma “escola sem partido” e livre da “ideologia
de gênero”, como ardilosamente vendem os discursos marqueteiros de seus interessados, mas
uma escola em que se preserve a manutenção de normas de gênero que reforçam
preconceitos, desigualdades e violências contra aqueles que destoam do tido padrão de
comportamento considerado normal, qual seja, heterossexual e cisgênero.

Na impossibilidade de tomarmos o espaço escolar como livre de relações de poder,


ele surge exatamente como seu oposto: saturado por regras de gênero. Quando
algumas/alguns secundaristas paulistas ocuparam, para além das escolas, também a ALESP,
reivindicando melhores condições de ensino, elas/eles revelaram que a crise instalada na rede
de educação brasileira passa também pelas questões de gênero e sexualidade.

Se o mote para a ocupação das escolas paulistas foi a indignação diante das fraudes

nas políticas públicas destinadas à educação, a resistência das/dos estudantes ganhou novos
matizes ao agregar no debate ético e político o gênero como fator crucial. A compreensão
da matriz heterossexual como constitutiva da realidade (BUTLER, 2016) não poderia

306 Educação e Interseccionalidades


desconsiderar que a resistência ético-política frente aos desmandos do (des)governo do
estado não passaria também pelo elemento estético-político do gênero. A resistência das/dos
secundaristas ao ocuparem a ALESP explicita o caráter estético da resistência política ao
mesmo tempo em que reafirma a impossibilidade de se pensar as escolas sem um debate que
leve a sério questões de gênero e diversidade sexual.

Entre os brados de “Só saio daqui com uma CPI”, referindo-se à abertura de
Comissão Parlamentar de Inquérito para investigação de fraude nas merendas escolares, as/os
estudantes se montaram com tecidos multicoloridos, maquiaram-se e desfilaram pela
ALESP, emendando o coro de “Brilhar e Resistir!”. Enquanto, por um lado, figura como
ultraje para adeptos da “ideologia de gênero”, de outro, a resistência ético-estético-política
das/dos secundaristas é capaz de explicitar as próprias amarras em que se encontra o debate
público sobre educação.

Ao ocuparem as escolas públicas e alargarem as ocupações para o interior da ALESP,


as/os jovens promoveram uma série de deslocamentos que desterritorializaram (DELEUZE,
1992) concepções a respeito do que se entende por espaço da política e do corpo em
performatividade nesses espaços (BUTLER, 2015a).

Se tradicionalmente se compreende o lugar da política como aquele marcado pelas

deliberações mais fundamentais para o corpo social por nossos representantes eleitos, a
exemplo das assembleias legislativas, nos últimos anos temos acompanhado um contínuo
processo de crise de representatividade política em razão do inflacionamento da troca de
interesses privados na mesma medida do esvaziamento do debate público. A ocupação da
ALESP pelas/pelos secundaristas devolve à casa legislativa o debate referente à moralidade
da Administração Pública, assim como explicita o caráter político dos corpos generificados,
sobretudo daqueles destoantes da normatividade de gênero, tidos como abjetos (BUTLER,
2015b).

Enquanto a performatividade de gênero refere-se ao efeito estilístico de construção


dos corpos através da reiteração contínua de regras de gênero (BUTLER, 2016), a

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 307


performatividade política agrega a tal compreensão o conceito de precariedade7 desenvolvido
posteriormente pela autora. Tal deslocamento não representa o abandono das questões
relacionadas a gênero e diversidade sexual pela filósofa, senão a explicitação do caráter
eminentemente político dos corpos generificados e catalogados diferentemente como vidas
que valem mais que outras, isto é, como vidas mais precárias que outras (BUTLER, 2015b).
Sobre o tema, merece destaque as palavras da filósofa:

por certo a precariedade está diretamente associada às normas de gênero, pois


sabemos que aqueles que não vivem seu gênero de maneiras inteligíveis
encontram-se sob alto risco de assédio e violência. Normas de gênero têm
tudo que ver com o modo e a maneira pela qual podemos aparecer no espaço
público; com o modo e a maneira pela qual se distinguem o público e o
privado e como essa distinção é instrumentalizada a serviço de uma política
sexual; quem será criminalizado com base em sua aparência pública; quem
não será protegido pela lei ou, mais especificamente, pela polícia, na rua, no
trabalho ou no lar. Quem será estigmatizado; quem será objeto de fascinação
e de consumo de prazer? Quem terá cuidados médicos perante a lei? Quais
relações íntimas e de parentesco serão de fato reconhecidas perante a lei?
(Butler 2009, p.ii).

Com efeito, o desfile organizado e realizado pelas/pelos estudantes na ocupação da


ALESP exprime com perfeição as ideias da filósofa. Não apenas demonstram o caráter
performativo do gênero ao se montarem com tecidos embaralhando os padrões daquilo que
se considera masculino e feminino, como também desmontam qualquer tentativa de
suprimir o “gênero” das escolas, pela singela sugestão de que não há escola sem corpos, e de
que corpos são sempre lidos através da grade do gênero (BUTLER, 2016), ainda que sob tal
lente apareçam como corpos anormais, não-humanos, abjetos (BUTLER, 2011).

7Sobre o conceito de vulnerabilidade, ou de precariedade, interessantes as contribuições da filósofa Judith


Butler que o compreende em uma perspectiva política ampla e generalizada, afastando-se de um discurso de
vitimização dos vulneráveis. Segundo a autora (2015, p. 46), todos nós nos inscrevemos em uma rede de
proteção e cuidado alheio desde o momento do nascimento, sob pena de desvanecermos. A existência humana
é definida pela autora como precária tendo em vista essa dependência em relação a pessoas, instituições e
ambientes externos, daí decorrendo o caráter precário e vulnerável da vida humana. Muito embora estejamos
todos emaranhados nessa rede de vulnerabilidade generalizada, verificamos regiões de mais alta precariedade
em relação a outras em que esta é menor. A epidemia de aids, olhada por esta perspectiva, não mais técnica
individualizada, mas política-estruturante, pode auxiliar na compreensão de condições politicamente induzidas
nas quais “certas populações sofrem com redes sociais e econômicas de apoio deficientes e ficam expostas de
forma diferenciada às violações, à violência e à morte”, em uma situação de “maximização de precariedade”.

308 Educação e Interseccionalidades


Queremos escolas que nos auxiliem na compreensão da pluralidade de formas de
vida, na busca de promover uma constante abertura dessa noção de humano (BUTLER,
2004, p. 36), condizente àquele que tem garantido seu direito fundamental à educação ou
buscamos uma escola que atue como vetor dessa complexa rede de discriminações e
preconceitos afastando do espaço escolar aqueles tidos como abjetos? Essa é a pergunta que
o desfile lança para a ALESP, mas cuja resposta as/os próprias/próprios estudantes já
manifestavam: “Brilhar e Resistir!”.

Se a definição estética dos corpos passa pela política, a transformação da ALESP em

uma passarela torna clara a pretensão de se extinguir o “gênero” das escolas. O desfile, para
além de nos alertar sobre tal impossibilidade, sinaliza para os efeitos concretos da
heteronormatividade (BERLANT, WERLANT, 2000) que incessantemente ocorrem. Ao
brincarem com os tecidos e o modo de ajustá-los em seus corpos, as/os estudantes nos
contam sobre a perversidade dos efeitos de um modelo de sociedade que estabelece como
humano o homem heterossexual (WINTER, 2003) e cujo padrão tende a ser reforçado por
medidas que buscam suprimir das escolas a compreensão de tal construção.

A quantidade de normas referentes aos modos como as meninas devem se vestir


diferem do número e intensidade de atuação daquelas destinadas aos meninos. No desfile,
quando as/os secundaristas subvertem a economia da moda a gerir corpos masculinos e
femininos, denunciam a dureza das regras que recaem sobre os corpos tidos como femininos
no ambiente escolar. A criação artística das roupas pelas estudantes escancara a rede de
diferenciações, muitas vezes invisível, a regular os espaços de liberdade das/dos alunas/alunos
de maneira desigual a depender do seu sexo/gênero.

Na sequência do desfile, meninos desfilavam tecidos ornamentando seus corpos


numa espécie de saia, em seus rostos maquiagem, nas unhas, esmalte. Agregavam-se,
destarte, à mesma rede de denúncias contra os efeitos excludentes e discriminatórios de uma
escola heteronormativa. Por meio do desfile demonstravam toda uma série de mecanismos
atuantes nas escolas e que estabelecem a heterossexualidade como norma (FOUCAULT,
2011), padrão, regra de comportamento, tendo na homossexualidade o seu desvio,
degeneração, anomalia.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 309


Vemos, assim, desenharem-se na ocupação da ALESP os contornos que envolvem
os corpos na sua manifestação política, sobretudo daqueles inseridos em uma rede de mais
alta precariedade.

Compreender o gênero em seu caráter performativo e este, como a própria


manifestação da política, traz para o debate sobre as escolas que queremos a centralidade do
conceito de precariedade. Quando colocamos em pauta essa construção, catalogação e
hierarquização dos corpos segundo padrões de sexo e gênero, verificamos os intrincados
mecanismos utilizados nesse processo de fabricação do humano, tendo em contrapartida a
verificação daqueles que não alcançam tal estatuto. A questão que fica é se gostaríamos de
escolas que nos auxiliassem na compreensão desse ardiloso processo de estandardização social
segundo normas de gênero, ou se preferiríamos a tentativa inócua de apartar a escola de tal
debate, apontando, paradoxalmente, para um cenário de reforço dos estigmas e preconceitos.

CONCLUSÃO

Conforme dispõe comando constitucional, a educação é direito humano e


fundamental de todas e todos, sendo proibida qualquer tipo de discriminação. Sendo assim,
a explicitação do regime que produz os sujeitos que desfrutarão de uma escola acolhedora –
em geral, homem cis heterossexual – nos auxilia no questionamento da pretensa
universalidade desse direito. A lição proposta por Butler, inspirada em Foucault, remete a
impossibilidade de se pensar o ambiente escolar que não seja atravessado pela matriz
heterossexual. Se assim o é, e se esta atua na construção desigual dos humanos portadores
de direitos, a compreensão dos seus mecanismos se apresenta como tática fundamental para
a construção de escolas plurais, por permitir o constante questionamento dessa noção de
humano tão cara para o debate jurídico e pedagógico.

A manifestação política e estética das/dos secundaristas na ALESP se insere nesse


movimento de resistência ao reativar naquele ambiente algo que lhe é constitutivo, do
mesmo modo como ocorre nos espaços escolares: a normatividade de gênero. Se, de um
lado, apontam para violações do princípio constitucional da moralidade administrativa, de
outro, demonstram que a precarização do ensino envolve, de forma inescapável, a

310 Educação e Interseccionalidades


compreensão do direito à educação visto sob o prisma da precariedade. Ainda, vale dizer que
as/os estudantes desenvolveram uma consciência para além de suas individualidades, que
reorganizaram-se na compreensão de suas demandas enquanto grupo - em situações que
demonstravam a interseccionalidade entre as diversas insatisfações existentes e entre as
questões de gênero e sexualidade, dentro e fora dos muros escolares.

Pensar a educação, o gênero e a coletividade sob o viés da precariedade nos remete


às constrições normalizadoras cotidianas que atuam nos corpos buscando aproximá-los de
um padrão cisgênero e heterossexual e que encontram nas escolas vetor de sua aplicação. Ao
mesmo tempo, nos permite verificar, acompanhando os desígnios dessas relações de
normalização, as estratégias para a sua subversão ao explicitar os corpos tidos como humanos
no interior do espaço escolar e aqueles que não atingiram tal estatuto. A ocupação da ALESP
é eficaz no rastreamento dessas redes de precariedade.

Se, conforme exposto, por meio do desfile as/os estudantes foram capazes de criar
novos modos de se relacionar estética e politicamente com seus corpos, assim o fizeram
porque localizados nas margens da subversão das regras de gênero. Ao desse modo
procederem, remetiam às mesmas condições que vivenciam cotidianamente no espaço
escolar, qual seja, da luta pelos pequenos espaços de liberdade ante às constrições normativas
do poder. Na ocupação da ALESP as/os estudantes se encontravam em grau de precariedade
elevado, na medida em que permaneciam a contragosto em espaço reservado para
deliberações parlamentares, todavia, evocavam, por meio do desfile, a própria precariedade
dos seus corpos quando situados em uma escola heteronormativa.

A compreensão dos efeitos perversos da heteronormatividade nas escolas apenas


pode se dar a partir do entendimento do direito à educação lido sob as lentes da precariedade.
Essa leitura, por sua vez, só se realiza quando possibilitados o debate e discussões que
paulatinamente vemos ser suprimidos ou proibidos. A ocupação das escolas e da ALESP e,
em especial, o desfile realizado pelas/pelos estudantes, servem exatamente para nos lembrar
da face heteronormativa do ambiente escolar, mas sobretudo de que, frente a ela, os corpos
resistem e persistem aos brados de “Brilhar e Resistir!".

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 311


REFERÊNCIAS

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FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade – Volume 1: a vontade de saber.


Tradução de Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro:
Graal, 2011.

PELBART, Peter Pal. Vida Capital: Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.

PRECIADO, Beatriz. Basura y género. Mear/Cagar. Masculino/Feminino. Eutsi – Pagina


izquierda Antiautoritaria, 2006, p. 1-2.

312 Educação e Interseccionalidades


WINTER, Sylvia. Unsettling the Coloniality of Being/Power/Truth/Freedom. Towards
the Human, After Man, Its Overrepresentation – An Argument. New Centennial Review
3/3 (2003), 257-337.

Ligia Ziggiotti, Josafá da Cunha e Rafael Kirchhoff 313


Se, por um lado, a violência estatal contra determinados grupos e indivíduos à margem da
fruição plena da dignidade se torna uma ameaça concreta e brutaliza tais vivências, por
outro, a resistência se articula, em espaços diversificados, para dinamizar uma série de
lutas contra os retrocessos. Nesta cadência de transformar cinzas em potência é que
surgiu a motivação para a organização desta obra.
O eixo da educação se torna central em razão de um profícuo diálogo, também produzido
a partir de um nefasto projeto político, que uniu esforços de uma parcela de juristas e de
educadoras(es).
O eixo da interseccionalidade se torna central a partir da preocupante percepção de um
fortalecimento, nos discursos hegemônicos, de um sujeito universal, abstrato, e
desconectado das necessidades materiais de parcela considerável da população. O
entendimento de que as transformações abruptas aprofundam estigmas relacionados a
raça, gênero e classe social demanda de nosso contra-argumento o registro constante de
corporalidades que, em contextos educacionais, tensionam a pretensa neutralidade da
norma vigente.

ISBN 978-856-6278-21-7

9 788566 278217

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