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AZEVEDO, Celia Maria Marinho de.

Onda Negra, Medo Branco: o negro no


imaginário das elites — século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

IV

ABOLICIONISMO E CONTROLE SOCIAL

p. 215: “Enquanto na Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo os


políticos forjavam uma política imigrantista, começando a solucionar deste modo o
problema da substituição do escravo pelo trabalhador livre, continuava pendente a
grande questão debatida desde o início do século XIX: o que fazer com o negro em
liberdade?

(...) para além dos debates legislativos divididos entre a euforia dos primeiros
passos da grande imigração italiana e a preocupação em encontrar uma saída
institucional para o término da escravidão, persistia um cotidiano pleno de conflitos
sociais, cujas consequências a curto prazo poderiam pôr em risco os interesses dos
grandes' proprietários e, com isso, até mesmo a possibilidade de se concretizar com
inteiro sucesso a política imigrantista”.

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p. 217: “A descrição deste movimento ainda pouco pesquisado, mas muito


citado pela historiografia, transmite a ideia de um movimento planejado de fugas de
escravos das fazendas, ida para Santos e, em muitos casos, retorno como trabalhadores
agrícolas assalariados, sob a firme direção dos abolicionistas de A Redempção. É que
esta ideia vem no bojo de uma outra, responsável pelo direcionamento metodológico de
muitos trabalhos de pesquisa histórica: o movimento abolicionista de cunho urbano e a
resistência escravocrata, rural, expressariam o embate entre dois tempos históricos
distintos, o primeiro significante de progresso e desenvolvimento econômico-político-
social (racionalidade) e o segundo, de retrocesso e paralisia (irracionalidade)”.

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p. 220: “

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1. A DEFESA DA ORDEM”

p. 220-21: “Vamos tentar nos aproximar um pouco dos abolicionistas de A


Redempção buscando o modo como eles explicavam a escravidão, bem como a
necessidade de acabar com ela. Teremos assim a compreensão de como eles
representavam o seu próprio papel social ou a sua atuação política naquele momento
histórico. Em primeiro lugar, o texto de um redator de linha marcantemente positivista e
republicana, publicado em 1º de março de 1888:”

p. 221: “

‘As instituições se moldam de acordo com o meio social; tudo tem sua
época, sua quadra, tudo tem sua fase de florescência e vigor,
decadência e desaparecimento, dando lugar a novas reformas, cada
vez mais aperfeiçoadas de harmonia com a marcha evolutiva da
humanidade. As sociedades e as civilizações variam, melhoram, se
modificam e se aperfeiçoam na razão direta do adiantamento
intelectual da humanidade’.

Após enaltecer a civilização atual com todo o seu progresso técnico e filosófico,
em comparação com o atraso de épocas anteriores, o autor passa à segunda parte de seu
artigo, onde demonstra que a origem dos agrupamentos humanos ligava-se à
necessidade de defesa e exalta o papel da guerra como poderoso fator de organização
social (com ela apareceram o chefe e a disciplina) e de desenvolvimento industrial
(aperfeiçoamento das armas). A escravidão teria surgido ‘com os primeiros vislumbres
da civilização’, afirmando-se como uma “instituição humanitária” na medida em que, ao
invés de matar-se os prisioneiros, passou-se a escravizá-los. E uma vez demonstrado
que até mesmo a escravidão teve o seu tempo de legitimidade, o autor esforça-se por
traçar um corte bem nítido entre a velha e a nova era:

‘Certas instituições, como a escravidão, as monarquias e algumas


mais, foram medidas provisórias para garantir a sociedade naquele
tempo, cuja estabilidade e permanência em nosso tempo constituem
um atentado, pecam por obsoletas’”.
p. 221-22: “Em resumo, para este redator, escravidão e monarquia não passavam
de ‘dois trambolhos’, sendo, portanto, preciso lutar contra ambos a fim de que o país
pudesse equiparar-se às ‘grandes nacionalidades’”.

p. 222: “A necessidade de abrir o país ao progresso, o que significava acabar


com instituições caducas, é também o móvel do artigo ‘Immigração’, publicado em duas
partes, respectivamente nos dias 17 e 20 de fevereiro de 1887. Nele o autor quer provar
que o Brasil necessita de imigrantes porque eles constituem ‘importação de trabalho e
de capital’. São em suma “a vida” que falta à nação, os dois elementos necessários “para
explorar e desenvolver as suas imensas riquezas naturais”. Por isso a escravidão, ou
seja, a negação da vida no país, precisa ser urgentemente abolida, abrindo espaço para
aqueles que virão vivificar a pátria e que se não o fizeram até agora em maior número
foi apenas devido à repugnância despertada pelo regime escravista.

A preocupação do autor em justificar o papel dos abolicionistas diante dos


fazendeiros é muito grande e ocupa uma parte considerável do texto. A abolição não
deve ser associada à ideia de desordem, muito pelo contrário, ela trará ordem na medida
em que o negro fique sob permanente coação, além de possibilitar a riqueza, isto é, a
imigração1.

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Neste artigo pode-se discernir duas imagens bem distintas que caracterizariam o
período pós-escravista, conforme previa o autor: de um lado o imigrante, significante de
riqueza, de trabalho livre, de vida; de outro, o liberto, aquele que não tem nenhuma
renda e que pode significar vagabundagem e, portanto, necessidade de trabalho sob
coação. Em suma, o imigrante seria a ordem, o progresso, e o negro poderia vir a ser a
desordem, o retrocesso”. [cap. III]

p. 223: “O papel dos abolicionistas estaria justamente em coibir a desordem e


viabilizar a ordem.

Esta associação do negro com a ideia de negação da ordem e do progresso


aparece em vários artigos. Há, no entanto, no caso dos abolicionistas, um esforço em
associar tais conotações maléficas do negro com a sua vivência de escravo. Mas nem
sempre se consegue isto (...). [cap. III]

1
Cf. AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites
— século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 222.
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Ao longo destes três artigos podemos visualizar um projeto abolicionista que,


embora não fosse homogêneo — na medida em que o jornal contava com colaboradores
de diversas correntes políticas (liberais, conservadores, republicanos) —, oferece
algumas linhas mestras. Em primeiro lugar, a escravidão não tem razão de ser porque
não se enquadra na fase atual de progresso e civilização; consequentemente, é preciso
aboli-la e de forma imediata. Em segundo lugar, é necessário garantir a ordem, sem a
qual não há progresso; por ordem entende-se a Abolição acompanhada de medidas
capazes de impedir a desordem, isto é, a ação desgovernada dos negros; a Abolição com
ordem será complementada com os elementos do progresso, os imigrantes. Em terceiro
lugar, sem a escravidão, as famílias ficarão livres dos negros e os costumes até então
pervertidos por eles encontrarão o seu caminho ordeiro”. [cap. II]

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p. 225: “

Ordem e coação

Manter a ordem para assegurar a prosperidade da nação, e mais precisamente da


província, por vezes explicitada em termos da própria riqueza dos fazendeiros era,
conforme já se apontou acima, a grande preocupação dos colaboradores de A
Redempção. A percepção de que os negros constituíam uma ameaça aos interesses
materiais da grande propriedade sobressai em vários artigos do jornal, alguns dirigidos
aos próprios proprietários e outros destinados a orientar a ação dos caifazes na
província”. [cap. III]

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p. 227: “

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Mas o que se escondia atrás do fantasma da anarquia, da desordem? Como já


vimos acima, o negro, quando aparece nos artigos dos caifazes, está sempre muito
associado a estas imagens (...)”. [cap. II]
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p. 228: “

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Mas, ao que parece, no momento em que não foi mais viável a aplicação de
planos como este, o jornal adotou a firme posição de reivindicar a abolição imediata e
sem condições (...).

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p. 231: “

Ordem e orientação

A partir do momento em que o jornal assume firmemente a posição de abolição


imediata e incondicional, segue-se uma série de artigos dedicados à orientação prática a
e pedagógica do negro. Procurava-se com isso integrá-lo socialmente a fim de que a
ordem pudesse ser restabelecida e o progresso alcançado (...)”.

p. 232: “

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A crítica da imigração e a defesa do ex-escravo e seus descendentes aparece num


longo artigo de Rei-Lottor (...)”.

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p. 233: “

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Embora não descarte a vinda do imigrante, bem como a concessão de favores a


ele, Rei-Lottor coloca muito enfaticamente a necessidade de incluir o negro dentro das
medidas de organização do mercado de trabalho livre (...)”.

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p. 236: “O progresso (...) seria alcançado caso os ‘brasileiros patriotas’, isto é, os


abolicionistas, usassem de sua Inteligência para coagir os negros ao trabalho onde ele
fosse mais necessário à prosperidade do país, prosperidade esta que parecia coincidir
com os próprios interesses da grande propriedade, conforme artigos referidos
anteriormente.

(...). A ideia de colônias de negros em regiões distantes cede lugar à ideia do


emprego dos negros como assalariados nas fazendas das próprias província (...)”.

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p. 238: “

2. DENÚNCIA DO RACISMO

A crítica dos privilégios concedidos ao imigrante em detrimento do nacional e a


denúncia do preconceito racial em relação ao negro podem ser vistas como dois lados da
mesma moeda. Tratava-se de assegurar um espaço ao negro a fim de que ele pudesse ser
aproveitado pelo mercado de trabalho livre, integrando-se socialmente (...)”.

p. 239: “É muito significativa desta última postura a seguinte notícia publicada


em 21 de 1887, sob o título ‘Quanto Vale um Negro de Batuta na Mão’:

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Embora tenha como objetivo esclarecer as capacidades dos negros e provar a


igualdade das raças, o redator não critica (...) desigualdades raciais (...). Pelo contrário,
ele recorre ao teórico máximo do positivismo, Auguste Comte, para exaltar uma
qualidade que seria específica dos negros: a capacidade de sofrimento. ‘Para se avaliar o
que vale a raça negra basta lembrar que ela resiste mais às intempéries do tempo e aos
sofrimentos da vida’”. [cap. III, seção I, rodapé]

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p. 247: “

3. INTEGRAÇÃO E CIDADANIA

Até aqui demonstrei como o esforço pelo controle social foi um componente
muito forte no discurso dos abolicionistas de A Redempção. Lutava-se contra a
escravidão, mas ao mesmo tempo procurava-se garantir a ordem, orientando-se o negro
para buscar ocupação onde fosse mais necessário aos interesses dominantes. Em um
primeiro momento propõe-se a sua coação, mas em seguida, pressionados pela crescente
radicalização do processo abolicionista (fugas em massa e desordenadas de escravos),
os caifazes limitam-se à pretensão de orientá-los, lutando ao mesmo tempo contra as
injustiças resultantes de uma sociedade discriminatória em termos raciais.

A ânsia de controlar, de não esperar a iniciativa das autoridades, revela-se com


mais ímpeto nos últimos meses do jornal, que correspondem também ao período
imediatamente pré-abolicionista, traduzindo um sentimento de crise e de descrença
acentuada nos partidos, no clero e no governo. Muito ilustrativa desta fase são as
críticas do jornal à atuação moderada do abolicionista Joaquim Nabuco. Se Nabuco e os
chefes caifazes trocavam cartas cordiais, publicadas em 20 de fevereiro de 1887,
tecendo-se elogios grandiloquentes ao então reconhecido dirigente abolicionista, apenas
um ano depois a aliança e o respeito se rompiam em artigos cheios de sarcasmo. Em
‘Esperem pelo Papa’, Nabuco é ridicularizado e acusado implicitamente de
colaboracionista do regime escravista, na medida em que preferia desertar do campo de
luta e procurar Leão XIII na Europa para pedir uma encíclica em prol da abolição”.

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p. 248: “

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(...) havia uma política de privilegiamento do imigrante no mercado de trabalho,


tornando ainda mais difícil a integração social do negro, pois a discriminação contra ele
crescia no mesmo ritmo do aumento da concorrência representada pelo europeu.

A percepção de uma sociedade dividida não só em termos sociais como também


raciais, em que o racismo não ficava camuflado como hoje em dia, significava também
a consciência da possibilidade sempre latente de revanchismo social. Tal revanchismo
poderia aflorar em insurreições sangrentas ou no mero, negativismo no espaço cotidiano
das relações de produção. Tanto um como outro significariam desordens,
impossibilidade de dar continuidade a um modo de produção com base na exploração e
opressão da força de trabalho de uma maioria de não brancos. [cap. III, seção 1;
conclusão]
Por isso, se se quisesse realmente integrar esta maioria na ordem social instituída
pela minoria branca, era preciso tornar esta ordem algo abrangente a ponto de ser
incorporada e assumida pelos não-brancos”. [epígrafe]

p. 249: “Tornava-se urgente, portanto, assegurar a igualdade não só no plano


jurídico, como também ao nível das relações sociais cotidianas. Os negros deveriam ser
tratados com respeito assim como os brancos, tornando-se cidadãos não só por direito,
como de fato”.

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p. 252: “

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(...) mais do que trabalhadores livres, estes autores pretendiam formar a longo
prazo uma cidadania ou nacionalidade, tentando assim se antecipar aos problemas que
poderiam decorrer de um país cujos habitantes não agiam como um ‘povo’ e sim como
partes heterogêneas, exercendo livremente seus conflitos sociais, sem a mediação
padronizante e contemporizadora do Estado”.

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p. 254: “

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– a concepção de transição, ou seja, a necessidade de se instituir um tempo


transitório em que o escravo seria substituído gradualmente pelo trabalhador livre, é um
quarto elemento deste discurso. O tempo de transição denota ordem, segurança pública,
defesa da propriedade privada — em particular a grande propriedade agrícola —, início
ou retomada do desenvolvimento, enfim, um caminhar sereno e certo rumo ao tempo de
progresso. Era o que então se representou como a passagem do ‘velho’ para o ‘novo
Brasil’. Neste período a irracionalidade do regime escravista seria erradicada
gradativamente, na medida em que os escravos irracionais fossem sendo substituídos
pelos imigrantes, isto é, os trabalhadores livres que incorporavam a capacidade de agir
racionalmente. O silêncio em torno do destino dos ex-escravos e nacionais em geral a
partir deste tempo de transição tem sua lógica na negação da sua capacidade para o
trabalho livre, contraposta à afirmação da capacidade dos seres que eram considerados
étnica e racialmente superiores”.
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p. 258: “(...) se é preciso reconhecer a existência sempre renovada de ‘heranças’


do passado escravista, é preciso buscá-las sobretudo no profundo racismo herdado do
imigrantismo, além da concepção emancipacionista e abolicionista de que o negro,
embora cidadão, devia continuar sujeito aos interesses da elite branca devido ao seu
passado ou ‘sangue escravo’.

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