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• Indivíduo

• Comunidade
• Sociedade 2ª
ediçao

do U niversidmfo de Munique

ZAHAR

bi• b1i 01 eea de ei ê nei as s oei ai s 1~J


EDITORES
IIISTÓ R IA DAS ID É IA S
S O C IA IS

(2 .a edição)

A civilização e a técnica desenvolvem-se cons­


tantemente desde a utilização do primeiro instru­
mento pelo homem de Neandertal até a época da
Máquina.
Os problemas da formação das comunidades
ajustam-se a essa evolução à medida que se m odifi­
cam as tarefas a ser executadas. A passagem da
caça e simples coleta de frutos à agricultura e à
pecuária transforma radicalmente o caráter do ho­
mem, estabelecendo definitivamente a diferença en­
tre o grupo humano e a horda animal. O homem
se transforma também no plano intelectual, desejoso
de conservar e proteger, de dominar e apropriar-se
da natureza.
Quase toda a história humana, e com ela a
história das idéias, é ocupada pelas grandes civili­
zações: egípcia, babilónica, chinesa, indiana, grega,
árabe e ocidental, cujas premissas econômicas e es­
pirituais S p e n g l e r , e depois T o y n b e e , descreveram
morfologicamente em suas origens, prosperidade e
decadência. Na última dessas civilizações, a oci­
dental, surge na Europa a era industrial na qual
vivemos, cujos problemas sociais apareceram pela
primeira vez há cerca de duzentos anos.
Neste livro, porém, o leitor não encontrará
apenas o relato dos eventos ocorridos ao longo do
tempo ou das concepções que floresceram nas dife­
rentes épocas. A história a que se refere o título
do presente volume é vista dentro do fluxo do acon­
tecer, procurando sempre voltar à origem real dos
fatos e das idéias, examinando e descrevendo a pro­
blemática que deu início ao desenvolvimento.
Para analisar os contextos históricos concretos,
K u k t S c h i l l i n g , autor deste trabalho e professor
da matéria na Universidade de M unique, constituiu
um esquema conceituai para permitir, antes, a clara
compreensão dos fatos e das idéias, para, depois,
serem definidos em função da problemática cm que
se originaram.
O último capítulo do livro é dedicado ao es­
tudo da integração política das massas na atualidade,
no qual o autor analisa o fascismo italiano, o na
zismo alemão, o comunismo russo-chinês e o capi­
talismo americano.
T R A D IÇ Ã O E A U T O R ID A D E

EM C IÊ N C IA P O L ÍT IC A

Este livro tem o objetivo preciso de restaurar os


conceitos básicos de Tradição e de Autoridade, ambos fun­
damentais em Ciência Política. A designação incorreta das
coisas induz não só à adulteração de seu sentido como,
ainda, no plano da vida real, produz distorções políticas e
culturais pelas quais- o homem paga penoso preço. O
custo social das nomeações incorretas poderia ser eliminado
ou, pelo menos, atenuado, se os governos se empenhassem
na tarefa de “ retificação dos nomes” para impedir a apli­
cação mistificadora de seus significados.
Tradição e Autoridade em Ciência Política mostra
como os dois conceitos estão intimamente ligados não só
na Teoria Política como na própria Filosofia. Neste último
campo, os iluministas foram os primeiros a identificarem
uma oposição irredutível entre razão e autoridade. E, desde
então, a Tradição passou a ser apanágio do pensamento
conservador e da ação reacionária. O autor destaca o equí­
voco de tal concepção, apoiado na origem latina da palavra.
Tradere: transferir, entregar, é a raiz de Tradição. Como
indica portanto a sua própria etimologia, ela não quer di­
zer imobilismo, mas sim transmissão, ato de legar. E
como a vida não é mais que transmissão de um patrimô­
nio de conquistas, de uma geração a outra, cabendo à
legatária ampliar e enriquecer o legado recebido, a função
da Tradição é vital no corpo político.
Quanto à Autoridade, ela é simples forma de lide­
rança institucionalizada. Não a entenderam assim, porém,
B u r k e , d e B o n n a l d , d e M a i t r e , S ta h l e demais adver­
sários das conquistas humanas instauradas pela Revolução
Francesa. Eles preferiram visualizá-la como sinônimo de
absolutismo e instrumento irracional de dominação. Rela­
ção de dependência, mas relação conformada pelo próprio
consenso social, a Autoridade tem base racional, uma vez
que, como acentua F r i e d r i c h , sua gênese está no valor.
Os dilemas armados entre Autoridade e Liberdade, Autori­
dade e Legitimidade, são examinados neste livro a partir
do reconhecimento do fato de que nunca houve comuni­
dade humana ou ordem política em que Tradição e Auto­
ridade não estivessem presentes.

Z A H AR EDITORES
a cultura a serviço do progresso social
RIO DE JANEIRO
BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS SOCIAIS
KURT SCHILLING
Professor da Universidade de Munique

HISTÓRIA
DAS IDÉIAS SOCIAIS
Indivíduo — Comunidade — Sociedade

Tradução de
F au sto G u im a r ã e s

Segunda edição

ZAHAR EDITORES
RIO DE JA N E IR O
Copyright © 1957 by Alfred Kroner Verlag

Capa de
É r ic o

1974

Direitos para a língua portuguesa adquiridos por


Z A H A R E D IT O R E S
Rua M éxico, 31 — R io de Janeiro
que se reservam a propriedade desta tradução

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
ÍNDICE
I n trodu ção . 7

Primeira Parte
A ANTLGUIDADE
Capítulo I — A Formação dos Primeiros Grupos Humanos . 21
Noção de tarefa — Início das grandes civilizações, da agri­
cultura e da pecuária — A realeza sagrada do Oriente antigo.
C a p í t u l o II — Os Gregos . ....................................................... 34
Governo dos governados independentes — Os diferentes par­
tidos.
Capítulo III — Primeiras R eflexões sobre a Sociedade . 43
Os pré-socráticos e os sofistas — Ideal tirânico do indivíduo.
Capítulo IV — Definição de Comunidade e Sociedade . . . . 53
As diferentes relações que se estabelecem entre os indivíduos
— Contrato e solidariedade — Modelo de relações de comu­
nidade e de sociedade.
Capítulo V — S ó c r a t e s ......................................................................... 63
A postura socrática — A razão como método — O destino
da polis.
Capítulo VI — P l a t ã o ...................................................................... . . 70
O Estado dos cidadãos educados para a independência —
A República e As Leis.
C apítulo VII — A r is t ó t e le s .................................................................. 89
Retorno à tradição — Conhecimento e saneamento da polis.
Capítulo VIII — Fim da A n tig u id a d e............................................ 101
Epicuro e o estoicismo — O indivíduo, v. amizade, o direito
natural.
Segunda Parte
CRISTIANISMO E IDADE MÉDIA
Capítulo IX — Origem da Idéia Social Cristã . . . 123
O reino de Deus — Sociedade, Estado e Igreja.
Capítulo X — Santo A g o s t i n h o ....................................................... 136
A transparência do mundo — O Estado temporal e o cris­
tianismo.
Capítulo XI — Os Germanos ............................................................. 146
Nova estrutura social — O Estado feudal — O imperador e
o papa, representantes do Cristo na Terra.
Capítulo XII — Santo Tomás de A q u i n o ...................................... 157
O império e a cidade — Retomada do aristotelismo — Moisés
e o direito natural.
Capítulo XIII — Decadência da Idéia do Cristo-Rei . . . . 162
São Francisco de Assis e Frederico II — Os diferentes par­
tidos — Dante.
T erceira P arte
OS TEM P O S M O D ERN O S
C a pítu lo X IV — P re m issa s............................... .............................. 177
A estrutura social — A questão do sentido do Estado — A
evolução religiosa.
Capítulo X V — Prelúdio U tóp ico .................................................... 183
A Utopia, de Thom as More — A Cidade do Sol, de Cam -
panella — A Nova Atlântida, de Fran cis Bacon.
C a p ít u lo X V I ------ Maquiavel e B o d in ......................................... 188
A fundamentação teórica do Estado absolutista com bases ter­
renas.
Capítulo X V II — Althusen e G r o tiu s ......................................... 200
Lim itação do poder do Estado — O consensus de Althusen —
A s guerras boas e más de Grotius.
Capítulo X V III — Hobbes e Spinoza ............................................... 207
O reino da paz na Terra — A reelaboração das idéias de
Hobbes por Spinoza.
Capítulo X IX — A Comunidade Religiosa: Milton . . . . . 223
Os direitos fundamentais — A comunidade americana.
Capítulo X X — LocJce e M ontesquieu ......................................... 232
Trabalho e divisão do poder — A noção de aquisição da
propriedade — A m onarquia constitucional de Montesquieu.
Capítulo X X I — Rousseau . . . . .......................................... 246
A vontade m oral do povo — O contrato social — A demo­
cracia plebiscitária.
Capítulo X X II — Visão Retrospectiva e Perspectivas . . . 259
A s variantes partidárias modernas e sua origem intelectual.
Capítulo X X III — Kant, Fichte e H e g e l ............................... ..... 265
O epílogo dos tempos modernos — O direito natural e o
direito da razão — A moralidade.

Q u a rta P a rte
A E R A IN D U S T R IA L
Capítulo X X IV — P rem issa s ......................................................... 289
O modo de vida técnico — Transform ação da estrutura social.
Capítulo X X V — Schoperihauer .................................................... 295
A s possibilidades de uma privatização do indivíduo — A
obra de arte como fruição solitária.
Capítulo X X V I — A Economia Política In glesa .......................... 303
Adam Sm ith e Bentham — A idéia de justiça econômica do
liberalism o.
Capítulo X X V II — O Socialism o P ré -M a rx ista .......................... 310
Owen — Fou rier — Proudhon — Saint-Sim on — Comte —
O aparecimento da Sociologia.
Capítulo X X V III — Karl M a r x .................................................... 320
Revolução do proletariado e sociedade sem classes — Eco­
nomia e sociedade.
Capítulo X X IX — N ie tz s c h e ......................................................... 331
A massa e o guia — Id eal antigo e ideal grego — Liberdade
e m oralidade — A vontade de poder.
Capítulo X X X — A Integração Política das Massas na Atualidade 339
A s quatro ideologia^ do século — Fascism o — N acional-socialis-
mo — Comunismo russo-chinês — Industrialism o americano.
INTRODUÇÃO

P ODEMOS, à guisa de introdução e antecipadamente, escla­


recer o sentido com que são empregados neste livro os três
conceitos: “ história”, “ idéia” e “ social” .

1) Não se compreende a palavra “ história”, em nosso


título, no sentido de “ relato”, de “ narrativa” . Uma narrativa
visa ao divertimento; ocupa o espírito e satisfaz a curiosidade.
Para ser científica, deve apoiar-se em fontes. Isto significa
que não deve incluir nenhum fato que não corresponda ao
esquema e que não possa ser interpretado em função da
narrativa.
Nada disso interessa aqui. A “ história” , antes de ser
um simples relato, é , em primeiro lugar, o próprio passado
do homem. O que hoje lhe acontece, o que ele representa,
faz, sofre e pensa é superficial ou profundo. À narrativa
só interessa o instante presente, é isolada e não tem relação
com ò passado nem com o futuro; é uma repetição contínua,
um círculo vicioso, porque o homem é incapaz de aprender
alguma coisa a partir de suas experiências. Ou então ela
ocorre em função do que existiu outrora, certamente está
carregada de passado, mas se prolonga no futuro.
Por superficial que seja, uma vida não está menos vin­
culada ao passado. Ela sofre, e de maneira muitas vezes
intempestiva, as investidas dele; não pode libertar-se dele,
perdendo, assim, o seu futuro. Para arrancar do passado um
futuro útil é preciso que este passado esteja consciente em
nós no presente da ação, do sentimento, da representação
e do pensamento. Ê preciso ainda que seja todo o passado
em seu valor específico, e não apenas o passado mais recente,
8 H is t ó r ia das I d éias S o c ia is

.simplesmente oposto ao presente. Somente se alcança a vi­


tória sobre o passado dessa maneira, como seu desenvolvi­
mento em um futuro. É somente pela consciência do pas­
sado que o presente adquire sua própria profundeza e o
futuro, sua virtualidade. Destartey a história é também uma
consciência atual do que nos aconteceu, consciência mobi­
lizável para o presente, justamente sem fazer do futuro uma
repetição cegamente exata do passado. Ê a este sentido que
a história deve chegar, em nossa vida e em nosso pensa­
mento sociais.

2) O homem é, segundo a tradição, um ser “ social”,


zoon politikon, em grego, que se traduz, em latim, por ani­
mal sociale. Mas gue significa isso?
Desde que a Biologia trata das plantas e dos animais,
ficou estabelecido que existem nesses dois reinos comuni­
dades, ora reduzidas à vida em comum de dois seres da
mesma espécie ou de espécies diferentes (associação ou sim­
biose), ora cuidadosamente organizadas pela própria nature­
za, em uma escala maior e, aparentemente, com divisão do
trabalho e hierarquia, como as que vemos nos rebanhos de
mamíferos ou nas sociedades de térmitas, formigas e abelhas.
As próprias plantas, nas florestas ou nos prados, formam,
de alguma maneira, com os animais que as protegem ou as
destroem, comunidades onde reina um equilíbrio, onde um
ser serve ao outro da mesma maneira que lhe limita e lhe
impede um crescimento desmesurado. Aqui também os se­
res vivos, em toda parte e de variadas formas, depende de
seus companheiros e pereceriam se estivessem sozinhos. As­
sim, a formação de grupos sociais não seria, então, um cri­
tério característico da existência humana? Não serão os ani­
mais e as plantas seres sociais em maior ou menor escala?
Uma determinação genérica, differentia specifica, deve
discernir sem equívoco, no quadro da espécie, um objeto dos
outros. Quando, com Aristóteles, o homem foi pela primeira
vez chamado, com consciência, de zoon politikon, animal
sociale, essa afirmativa foi imediatamente completada e es­
clarecida por uma segunda qualidade que, à primeira vista,,
parece enunciar alguma coisa inteiramente diferente: zoon
logon echon, em latim: animal rationale. O homem, en­
quanto animal social, deve ser simultaneamente o animal
Introdução 9

falante, racional. O animal não tem linguagem. Os gritos-


-sinais, os gritos de prazer ou de dor, o canto nos períodos
de cio ou ao ensejo de outras manifestações do mesmo gê­
nero não são uma linguagem. A comunidade dos homens
só é comunidade porque ela se forma na linguagem. Isto
deve distingui-la claramente de qualquer comunidade de
animais ou de plantas, de qualquer combinação de Seres
vivos.
Que é então a linguagem, no sentido de uma aptidão
de criar uma comunidade humana? De modo algum signi­
fica ela uma simples compreensão. Não existe, talvez, com­
preensão entre as plantas, mas já a encontramos, bastante
diferenciada, entre os animais. Os próprios homens se en­
tendem, freqüentemente, sem linguagem. A linguagem tátil
de duas formigas, a maneira de as abelhas se informarem,
por meio de uma dança, sobre o lugar onde irão recolher
néctar, a maneira pela qual uma manada de cervos põe-se
sob as ordens de um chefe e segue suas instruções, tudo
isso constitui um entendimento muito preciso, como a com­
preensão entre dois seres humanos através de um olhar. Mas
não é uma linguagem. Ê por isso que a comunidade mais
eminentemente especializada dos animais ditos sociais (certos
insetos e certos animais gregários), comunidade baseada
nesse tipo de entendimento, é totalmente diferente da comu­
nidade humana.
Se almejamos saber o que a comunidade humana real­
mente é, não temos o direito de aprender ou repetir irre-
fletidamente a opinião que tradicionalmente se tem do ho­
mem como ser social Ê necessário, em primeiro lugar, sur­
preender-se que o homem não vive com os animais que se
compreendem entre si, perguntar-se em que èle se diferencia
destes últimos, e o que, nessas condições, constitui a comu­
nidade humana. A noção de “ ser social” não deve, em Filo­
sofia, ser considerada como evidente ou mesmo como uma
hipótese útil.
O animal é dirigido em sua vida pela teia de suas rea­
ções inatas que penetram mais ou menos isoladamente o
campo de sua consciência, sem lhe perceber as relações ou
o sentido. Ao aparecer, no mundo sensível do animal, certa
imagem concebida de maneira diferenciada, surge um movi­
mento apropriado, já esboçado em' seu organismo. Assim,
10 H is t ó r ia das I d é ias S o c ia is

por exemplo, o movimento que o patinho recém-nascido faz


para flutuar, o do pintinho para debicar o grão, ou então
(segundo as experiências de Lorenz) as tentativas que os
gansos cinzentos fazem para fugir, mesmo os incubados arti­
ficialmente, ao verem uma silhueta em cartão da grande
águia do mar, sua inimiga hereditária. Isso não carece ser
aprendido e ocorre mesmo sem o exemplo de companheiros
mais velhos da mesma espécie. A vida dos animais se com­
bina partindo dessas reações individuais, em que, na maior
patte do tempo, o cumprimento de uma reação resolve a
seguinte, conforme o entomologista Fabre demonstrou com
numerosas experiências. A relação entre essas reações e o
fio condutor da sucessão das excitações e das imagens no
mundo da percepção e da ação (sucessão dos fenômenos de
nutrição, de repouso, de copulação, de ataque, de fuga e de
proteção, de criação da prole, de envelhecimento e morte)
é também estabelecida em um meio determinado, visando
ao objetivo da conservação da espécie. Mas o animal mesmo
nada sabe dessa relação. Segue seu instinto que somente
lhe dita no instante, pelo impulso que sofre e a satisfação
que sente, o que ele precisa fazer naquele lugar e ncquele
momento. Não há absolutamente objetivo algum que per-
mita ao animal fazer planos. Mésmo aquilo a que se chama
“ aprender” não passa, para falar corretamenté, de um exer­
cício que busca maior facilidade dos movimentos.
A linguagem, ao contrário, enquanto particularidade
humana formadora de comunidade e constitutiva de seu ser,
é sempre uma consciência do mundo. Não existe linguagem
de uma palavra, que significa somente um objeto preciso:
casa, homem ou perigo. Tampouco existe linguagem de di­
versas palavras que não tenham qualquer relação entre si.
Cada palavra indica o que significa unicamente pelo fato
de não indicar nenhuma outra coisa mais, de ser uma distin­
ção expressa, de estar em certa dependência de correlação
ou de exclusão com outras palavras. Isso já mostra que a
linguagem é sempre uma consciência tôtal do mundo, inde­
pendentemente de o sistema por ela representado ser pobre­
mente organizado ou, ao contrário, sê-lo de forma infinita­
mente rica. Mas o homem, tomado isoladamente, que apren­
de uma linguagem (toda linguagem, ao contrário das rea­
ções inatas do instinto, deve inicialmente ser aprendida) par-
In t r o d u ç ã o 11

ticipay falando essa linguagem, aplicando-a a objetos, de um


sistema completo de linguagem em cada ato isolado. Toda
designação, todo reconhecimento de qualquer coisa como tal
somente é possível com o apoio do sistema de linguagem. Ê
deSte sistema que a palavra isolada ou a ftase se destacam
e surgem sob certa luz, da mesma forma que o objeto ex­
presso pela palavra se destaca por si próprio e atesta sua
presença, referindo-se ao mesmo tempo de perto ou de lon­
ge a tudo o que existe, exceto ele. Ê sobre essa base que
se constrói a comunidade humana.
Observemos mais uma vez o animal. À comunidade,
entre os animais e as plantas, da mesma forma que seu en­
tendimento, jamais se produz partindo de um todo; ela é
sempre singular. A organitação minuciosa das sociedades
de formigas ou de abelhas certamente existe como um todo.
E é também reconhecida como um todo, em suas relações
funcionais, pelo espírito humano que a examina do exterior
como observador estranho. Mas em nenhum momento ela
vive na consciência de um de seus membros tomado isola­
damente. Não foi criada ou projetada pelas formigas. Qual­
quer participação no trabalho, no prazer, na formação de
uma reserva de provisões, na criação dos filhos jamais foi o
alvo ou o objeto do interesse de qualquer animal.
Trata-se, portanto, de uma comunidade de animais. Po­
deríamos mesmo, por analogia com a condição animal de
nossa própria existência, desde já atribuir ao animal encarado
isoladamente certo sentimento obscuro e indispensável de
segurança na companhia de sua espécie organizada. No en­
tanto, nenhum animal pode ser qualificado como ser social,
posto que sua comunidade (tanto o vínculo que o liga a
ela como a distância que o separa dela, pois esse afastamento
também existe no reino animal) não decorre de si mesmo, mas
da natureza, pois elá foi produzida por meio da adaptação, da
evolução, da seleção, como criação de um criador suprater-
restre, ou de qualquer outra forma por que desejemos expri­
mir esse fato afinal inconcebível.
O homem não se criou ele próprio com suas aptidões
e suas possibilidades, tampouco. Contudo, ele mesmo criou
suas comunidades na linguagem e com a linguagem. E ele
também participa (na linguagem e com a linguagem) dessas
comunidades, ainda que de maneira mais ou menos sensível.
12 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

Ê por esta rizõo que o homem, enquanto indivíduo isolado


e ao mesmo tempo participante da comunidade, é denomi­
nado um ser social, o que jamais se poderá dizer do animal.
Pode afirmar-se que a dualidade sujeito-objeto está ex­
tremamente reforçada no homem, em comparação com o ani­
mal e a planta. Precisamente por ter, ao contrário do animal,
recuado em face de seu universo, visto que não está mais
tão estrita e imediatamente relacionado aos objetos? é que
o homem é, em um grau mais elevado, um ser social, que
peftence a uma comunidade consciente. Ê o isolamento da
consciência humana (pela repressão das tendênciasy o retro­
cesso da consciência diante do universo e o recurso a uma
denominação das coisas pela linguagem) que provoca e pos­
sibilita a verdadeira comunidade consciente, somente adqui­
rida pela participação dos indivíduos.
Precisamos representar mais claramente como esta comu­
nidade humana pode ser concebida. Escusado é dizer que
ela de certo modo surgiu da formação de rebanhos de animais
e que, por isso, pôde parecer em sua origem bastante seme­
lhante ao que são atualmente os rebanhos de bois selvagens
ou os bandos de macacos. Não seria de modo algum conce­
bível que as comunidades humanas buscassem sua origem
em seres que, já no estado animal, vivem de preferência
isolados e apenas aos pares, como certas aves de rapina. Tam-
bém é claro que as transições que levaram, a partir da horda
animal, à comunidade' humana, tiveram de se realizar no tem­
po, ora impercepttvelmente9 ora aos saltos, como a transição
do corpo animal para o corpo humano. As etapas mais im­
portantes dessas transições são mais ou menos conhecidas gra­
ças aos descobrimentos de esqueletos e instrumentos. O nas­
cimento espiritual da comunidade humana, em compensação,
é um fenômeno que não pode ser revelado, a não ser de
maneira muito vaga, partindo dessas características exteriores
e de seu significado. Não é nosso propósito falar dessas
transições nem de suas etapas. Se se almeja apontar a dife­
rença de maneira abstrata, é preciso deixar de lado as tran­
sições e ater-se à noção das formas evoluídas. Em primeiro
lugar, é preciso determinar o caráter humano da comuni­
dade; somente partindo das formas de comunidade humanas
é que nasceu a história dos Estados, foi somente nos Estados
Introdução 13

que nasceu o pensamento social em sua verdadeira acepção.


Não existe história no mundo animal, mas uma sucessão de
gerações ou uma nova formação de espécies.
A comunidade humana originou-se sempre ante tarefas
específicas, por projetos expressos pela linguagem e pelo in­
teresse que têm os homens. Essas tarefas, em princípio, de­
vem ser tais que só possam ser enfrentadas com a colabora­
ção consciente de um grupo humano. Este ê também o
caso rias sociedades de animais. Entre os insetos (<sociaisy9
a vida, enquanto realização, somente é possível com a coope­
ração de todo o “ povo” . Enigmática é a forma como se
desenvolveu instintivamente essa cooperação. A cooperação
humana é inteiramente diferente da dos animais, talvez mais
apta a adaptar-se em um prazo menor e mais maleável. Foi
com este sentido que, já em 1935, eu tinha situado esta no­
ção das tarefas no início da formação das comunidades hu­
manas. Esta noção é um pouco semelhante ao método de
challenge and response de Toynbee.

3) A terceira palavra de nosso título é idéia. Podemos


empregá-la com um duplo sentido: geral ou particular, sendo
o sentido geral o fundamental. Somente ele torna possível
o sentido particular, que é o que utilizamos aqui.
Em sentido geral, pode-se chamar de “ idéia social” o
projeto por meio do qual um grupo de homens se reuniu
para em comum resolver seus problemas. De forma tal que
um membro desse grupo, ou vários deles, ou todos, de uma
maneira ou de outra, possam participar conscientemente do
conjunto. Esta seria uma primeira definição. Com este sen­
tido, pode falar-se da idéia de Estado no antigo Egito, na
China ou na Grécia, da idéia de Império Romano, de im­
pério da Idade Média, da idéia do Absolutismo ou de Es­
tados nacionais do século XIX dos tempos modernos, da idéia
do Terceiro Reich de Hitler, da idéia de Estado soviético
russo ou de Estado americano contemporâneo. As idéias de
Estado ou de império, neste sentido, não são naturalmente
projetos isolados, como, por exemplo, a regularização dos
cursos de água no antigo Egito e na China, ou os planos
qüinqüenais de hoje em dia. A idéia é, em face de projetos
isolados, o dufaidouro, não o aparelho, mas a organização
que permite novas soluções para os problemas da comuni­
14 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

dade. A idéia de Estado é, ei tão, aquilo que marca os ho


mens de uma forma tal que eh;$ se tornam capazes de garan­
tir em comum sua autoconserx>ação, de uma maneira sempre
nova e adaptada ao ambiente. Essa idéia torna-se, como
condição da conservação dè cada membro do grupo, o obje­
tivo de uma existência que supera o indivíduo, tanto crono­
lógica quanto hierarquicamente.
Uma história das idéias sociais, neste sentido amplo e
fundamental, não seria outra coisa senão a história dos Es­
tados na sua formação em comunidades, isto é, pura e sim­
plesmente uma história política. Ê óbvio que não é este o
nosso tema.
Pode ainda empregar-se a noção, de idéia social em um
sentido mais restrito,. Significaria então ou a reflexão sobre
uma comunidade social já formada ou o projeto puramente
especulativo, filosófico, de uma nova ordem social no interior
de uma comunidade social já existente, com o desígnio de
consolidá-la, de realizar aí correções ou então de substituí-la
por outra. Ê claro (mas é preciso frisar) que toda reflexão
consciente sobre as diferentes ordens sociais (isto é, a idéia
social em um sentido estrito) pressupõe uma ordem social
existente, chegada à maturidade e em estado de crescimento,
a ordem social real (isto é, a idéia social em um sentido
amplo). Em nossa obra, a história é, naturalmente, a das
idéias sociais em um sentido estrito. Para ser considerada
de conformidade com os fatos, sua característica determi­
nante deve basear-se em um exame em função das idéias
sociais no sentido mais amplo, quer dizer, em função da
realidade. Deve ser assim, mesmo quando transcende a rea­
lidade e parece desligar-se das contingências, assumindo um
sentiãu mtelectual e geral
Uma filosofia social, com efeito, só surge na história
quando uma comunidade social já existente se acha amea­
çada, quer porque já não pode mais resolver integralmente,
em sua forma tradicional, os problemas que lhe são colo
cados, no interior ou no exterior, quer porque a hierarquia
ali estabelecida e o direito que ali impera não mais corres­
pondem às necessidades, ou porque jiovas camadas buscam
o poder. Não é preciso dizer que deve existir ainda certa
dose de meditação e de reflexão, suscitada por outras ques­
tões (a natureza, o ser ou os deuses), e aplicada metodióa-
Introdução 15

mente às dificuldades e aos problemas da vida em comum


de seres humanos. Veremos, durante nossa exposição, gue,
na história, essa foiy sem excesso, a situação típica em que
as idéias sociais (em sentido estrito) se originaram, e que
assim essas idéias sociais são sempre respostas da própria
vida a uma situação problemática. Descobre-se assim ime­
diatamente o que não pode ser uma verdadeira idéia social.
Em primeiro lugar, não se trata, como se tem o hábito
de dizer, de uma “ utopia” . Utopia significa atualmente, por
uma derivação um pouco desdenhosa de seu sentido, a visão
fantástica de uma comunidade humana demasiado bela para
ser verdadeira. Não só todos os partidos classificam de uto­
pias as idéias sociais de seus adversários, como ainda os po­
líticos praticantes qualificam igualmente de utopias as idéias
dos pensadores. Fala se da utopia de Platão e de outros fi­
lósofos. O termo é certamente formado do grego, mas não
é uma palavra de linguagem usual. Ê a criação artificial de
um humanista do século XV da era cristã: Thomas More.
Ele chamou de “ Utopia” uma ilha onde imaginou um Es­
tado romanesco, como não existe nem pode existir. Já en­
contramos algo parecido na antiguidade, e Shakespeare con­
fronta essa idéia com a realidade no drama feérico de sua
velhice, A Tempestade. A palavra é formada, de maneira
tecnicamente correta, com a negação ou mais topos ( = lu­
gar). U-topia deve portanto significar uma sociedade imagi­
nária que não tem lugar histórico. Ê precisamente esta defi­
nição que eu não quero conferir (a não ser com um sentido
bastante diverso) à verdadeira idéia social. Esta é, sem dúvi­
da, enquanto reflexão e projeto, uma imagem não real. Mas
tem, contudo, e de forma decisiva, um lugar histórico. Este
lugar histórico é a necessidade que surge em um momento
dado, da qual nasce a idéia social que deseja tentar alcançar
sua solução. Qualificar de utopia uma idéia social é, na
maior parte das vezes, exemplo de uma difamação mais ou
menos malévola.
Em segundo lugar, pode afirmar-se que uma idéia social
jamais significa um simples programa de reformas para re­
mediar certos inconvenientes. Não se pode ainda falar de
idéia social quando, por exemplo, a população de um Es­
tado se acha endividada por hipotecas ou compras a prazo,
a um ponto em que a vida econômica reduziu a marcha e
16 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

que é preciso projetar um plano que permita uma liquidação


satisfatória das dívidas. Assim foi muitas vezes na polis grega
e pode ser igualmente necessário em nossos dias. Esses pla­
nos são medidas governamentais, apresentadas eventualmente
sob a forma de uma legislação. Não são idéias. Podem,
quando muito (como o comunismo dos bens, de Platão ou
de Marx), apresentar-se no quadro das idéias. Uma idéia, ao
contrário de uma medida administrativa ou legislativa, per­
tence sempre à Filosofia, e Filosofia quer dizer reflexão sobre
as causas.
O retorno às origens9 onde a realidade se manifestou em
um tempo determinado, é uma condição indispensável ao
emprego judicioso da palavra idéia. Um acontecimento par­
ticular é sempre a realização de uma das possibilidades ori­
ginais, em número tanto maior quanto mais voltamos às ori­
gens (e não apenas no plano cronológico). Ê claro que o
retorno às fontes, cada vez em que se é obrigado, no curso
da história por uma situação perigosa, inclui outras possi­
bilidades, mais numerosas do que as que realmente foram
utilizadas até então. Como, por exemplo, em Platão e Aris­
tóteles, a hierarquia das diferentes constituições da polis.
Mas esse retorno ocorre sempre sob a forma de uma per­
gunta: o que é, de fato, uma comunidade? Qual o seu sen­
tido para a vida humana? Basta esta pergunta para levar
à fonte que é a idéia. Se, ao refletir, encontrei uma resposta,
posso então comparar a realidade do momento com essa idéia
e nisso encontrar indicações visando ao saneamento dessa
realidade. Essa, porém, é uma questão secundária, ainda que
de modo algum insignificante. A própria idéia, a origem
descoberta, contém, como fonte de todas as possibilidades,
uma significação ampla, que não é limitada somente ao tem­
po e ao espaço que fizeram surgir a questão. Eis a razão
por que a história das idéias sociais possui para o presente
um significado verdadeiramente atual.
A idéia social é, em última análise, conhecimento ou
transformação da vida? Em ciência, pode dar-se ênfase ao
fator teórico, da mesma maneira que Marx, em oposição à
contemplação absolutista de Hegel, retornou ao significado
prático da Filosofia. Na realidade, a discussão é ociosa. Teo­
ria e prática não são senão conseqüências da origem e do
encaminhamento do pensamento em direção a essa origem.
Introdução 17

Somente ela permite tanto a cura prática dos males como


a compreensão puramente teórica de uma noção geral, válida
em numerosos domínios e aplicável a um caso histórico
preciso.
A história das idéias sociais é não só uma parte da hisz
tória da Filosofia, como é ao mesmo tempo a história das
experiências empreendidas por povos e Estados em sua re­
flexão sobre a origem das diferentes ordens sociais. Neste
sentido, começa com os sofistas, Sócrates e Platão. Se, entre­
tanto, começo muito mais cedo é por causa da relação que
existe entre as idéias sociaisf em sentido amplo, as ordens
sociais efetivamente criadas e a reflexão sobre a comunidade.
Assim como não podemos compreender Platão e Aristóteles
sem a o estoicismo sem o Império Romano, Santo Agos­
tinho sem o cristianismo, São Tomás de Aquino sem o sacrum
imperium da Idade Média, Hobbes sem o absolutismo e a
guerra civil, Marx ou Nietzsche sem a era industrial, assim
também não podemos hoje interrogarmo-nos conveniente­
mente sobre a comunidade e a sociedade sem lançar um
olhar sobre os primórdios da evolução humana e sem inter­
pretar os dados que a Antropologia, a Etnologia, a Psicologia,
a Lingüística, a Pré-História e a História da Arte têm colo-
cado à nossa disposição. O que nos interessa acima de tudo
nos princípios da humanidade é a origem da consciência9
pois é por meio dela que a comunidade humana tanto pode
ser reconhecida como dirigida, perturbada, consolidada, re­
novada ou transformada pelo pensamento.
P r im e ir a P a r t e

ANTIGUIDADE
CAPÍTULO 1

A Formação dos Primeiros Grupos Humanos

O s p r im e ir o s testemunhos da civilização humana são as


pinturas do período glaciário que se situa por volta de 10 000
e 30000 anos antes de nossa era. Trata-se de relíquias mais
artísticas que políticas, mas, no entanto, delas podem tirar-se
algumas conclusões referentes à comunidade humana que as
produziu.
Conforme já dissemos, podemos imaginar a comunidade
humana como oriunda da horda animal. Em uma manada
de animais (por exemplo, um bando de macacos ou mesmo
um grupo de galinhas) já existe uma hierarquia social decla­
rada. A força física ou psíquica, a atividade, etc., determi­
nam rigorosamente quem deve morder e oprimir os outros,
quem tem direito de comer antes dos outros, quais os animais
que pelejam e quais os que se acasalam, qual o que deve
conduzir o conjunto do rebanho, isto é, decidir o que deve
ser feito, onde se deve dar combate ou suspendê-lo, onde se
deve buscar o alimento ou o abrigo. Do mesmo modo, cada
um isoladamente, inclusive o animal fraco ou os jovens,
encontra proteção no interior do rebanho. O zelo da mãe
por seus filhos, que pode chegar até o sacrifício da própria
vida, num combate contra inimigos mais fortes, é igualmente
uma forma social freqüente entre os animais, como a forma­
ção de famílias em casais ou a constituição de um harém para
um único macho. Só excepcionalmente um indivíduo idoso
se separa do bando, para tornar-se um solitário, como pode
acontecer entre os homens. A psicologia animal tem cada
vez mais demonstrado que, no fundo, toda hierarquia social,
22 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

inclusive a da família, ou ainda o individualismo não são um


fenômeno especificamente humano, mas uma particularidade
da formação gregária tanto entre os animais como entre os
homens. Eu gostaria de acentuar este fato, pois se trata de
uma premissa para a compreensão das idéias sociais. Mas é
precisamente ao reconhecermos isso que devemos perguntar:
em que reside a diferença entre a formação da comunidade
e sua hierarquização nos bandos de animais e á formação
da comunidade e sua hierarquização nos primeiros agru­
pamentos humanos?
Citei as pinturas rupestres do período glaciário. É pro­
vável que nessa época os homens vivessem em pequenos ban­
dos: sua economia consistia na caça e na coleta de frutos
silvestres ou raízes. Refugiavam-se das intempéries nas ca­
vernas naturais e, sem pouso fixo, retiravam-se, conforme
as estações e as variações climáticas à margem dos glaciares
em regressão, à cata de suas presas. O povoamento era pro­
vavelmente muito pouco denso. A caça era praticada em
comum, com instrumentos primitivos, pedras brutas, achas,
lanças, flechas e arcos, ou com armadilhas. Faltava muito
para que o homem isolado estivesse à altura de se medir com
os grandes animais de caça perigosos (bisão, mamute, urso
das cavernas, etc.) e fosse capaz de ganhar na corrida com
animais de menor porte (veado, cabrito montês, etc.). Já
devia possuir certa constituição de reservas, uma partilha
metódica e uma preparação engenhosa do alimento, recor­
rendo ao fogo. Mas tudo isso não ultrapassava muito as
possibilidades de um bando de animais, excetuando-se os
instrumentos e a utilização do fogo. Ao contrário dos hábitos
animais, deparamos bruscamente com esses notáveis desenhos
e gravuras de animais que eram caçados, desenhos e gra­
vuras que se conservam até os nossos dias em cavernas fe­
chadas. Lá está o testemunho decisivo de uma existência
humana conforme às concepções que dela temos. Que sig­
nifica isso para a formação da comunidade?
Não se trata naturalmente de falar aqui de seu sentido
artístico. Não resta nenhuma dúvida de que os autores desses
desenhos eram os chefes desses bandos humanos. Não os
encontramos nas cavernas destinadas à -moradia, mas somente
nas destinadas ao culto. Uma série de signos, em cujo de­
talhe não posso entrar, mostra que eles serviam à magia da
A F orm ação dos P r im e i r o s G rupos H um anos 23

caça, à defesa e ao domínio dos animais perigosos. A imagem


traduzia as intenções de toda a comunidade. Não era apenas,
o animal que devia ser mais tarde abatido que era assim
cercado pela imagem. O próprio pavor do homem era ven­
cido pela contemplação cultural da imagem, quando ele con­
seguia representar a criatura temida em uma cópia inofen­
siva que ousava arrostar. A magia representativa não é senão
a tradução dessa consideração íntima. Os desenhos contêm
numerosos traços de flechas e lanças; é natural que não se
tratava de um exercício de tiro ao alvo. Do mesmo modo
que o homem contemplava a imagem do animal, imitava
seus movimentos na dança ritual (pondo-se em pensamento
em seu lugar, guardando contudo suas distâncias) e o arros­
tava simbolicamente com sua arma, assim também deveria
ele mais tarde afrontá-lo na realidade da caça.
O que para nós é importante é que essa ação ritual seja
um dado da consciência. O feiticeiro ou curandeiro do grupo
humano, que é muitas vezes representado nas pinturas rupes­
tres, não é apenas o pintor dessas figuras. Visto que as criou,
precede os outros no domínio do perigo e do medo que ele
sente diante desse perigo. E quando todos, durante o culto,
desfecham golpes de lança contra a imagem, sua consciência
orienta-se, pelo do modelo, para um objetivo comum. A obra
que levam a cabo faz deles uma comunidade que se realiza
no mundo como uma unidade, participando o indivíduo na­
quilo que todos desejam na comunidade. O objeto, na qua­
lidade de fim consciente representado no prolongamento da
imagem, o indivíduo, na qualidade de participante da comu­
nidade, e a própria comunidade, na qualidade de unanimida­
de de seus membros em tomo desse fim, são os elementos
independentes, embora ligados uns aos outros, da primeira
humanidade. Neste sentido, as pinturas rupestres do período
glaciário são os testemunhos mais pretéritos de “ idéias so­
ciais” , segundo o significado restrito do termo. Aí podemos
ler o que é uma comunidade.
Essas relações tomar-se-ão mais complexas durante a
evolução da humanidade. A situação típica pela qual uma
comunidade humana, pela participação consciente de vários
em uma tarefa, se realiza diante de um símbolo de sua cria­
ção, será em toda parte semelhante, ainda que freqüente­
mente nem tão plástica nem tão simples.
24 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

Esta diferença entre o grupo humano e a horda animal


pela passagem de uma hierarquia social instintiva a uma
comunidade, fazendo de seus membros participantes indivi­
duais, poderia ser completada pelo material reunido pela
Etnologia contemporânea a respeito dos povos primitivos.
Disso ocupou-se recentemente Gehlen. Aí poderíamos dis­
cernir numerosos elementos bastante semelhantes, caracte­
rísticos da evolução do homem. Assim, por exemplo, o fato
de dedicar-se à fabricação de utensílios, ou então de subs­
tituir a procriação natural por prescrições bem precisas so­
bre o casamento (impedindo o incesto), o matriarcado e o
patriarcado: enfim o aparecimento de instituições autônomas,
que, na sua qualidade de cerimônias rituais conscientes, subs­
tituem as organizações instintivas dos animais. Ê assim, por
exemplo, que a antropofagia — absorção de um ser por
outro ser da mesma espécie ( que é pouco observada no reino
animal, mas se encontra entre os homens) — é reprimida.
Tudo isso, e sobretudo a objetivação do mundo pela lingua­
gem, poderia ilustrar de forma ainda mais clara os primórdios
do universo cultural do homem. Mas não é necessário esten­
der-nos demasiadamente sobre este assunto.
A civilização e a técnica humana desenvolvem-se cons­
tantemente desde a utilização do primeiro instrumento pelo
homem de Neandertal até a época da máquina. Os proble­
mas da formação de grupos ajustam-se a essa evolução à
medida que se transformam as tarefas que têm de ser resol­
vidas. Na evolução geral das formas de economia podem
distinguir-se três etapas. A primeira é a da caça e da coleta
da qual esboçamos em linhas gerais a forma comunitária.
Caracteriza-se por uma técnica “ destruidora” , pela utilização
da natureza, as cavernas, a arte atectônica, a alimentação
por meio da caça e dos frutos silvestres, e, no plano social,
pela formação de pequenos grupos em uma terra muito pou­
co povoada, por sua existência errante, nem mesmo ligada
(com o entre os nômades) a um rebanho de animais do qual
tivesse de cuidar.
A passagem à agricultura e à pecuária transforma ra­
dicalmente o caráter do homem. Ele se transforma igual­
mente no plano intelectual, desejoso que está de conservar
e proteger, de dominar e apropriar-se da natureza. Logo se
torna sedentário. Sedentarismo, agricultura e criação de ani~
A F orm ação dos P r im e i r o s G rupos H um anos 25

mais são as premissas econômicas e espirituais daquilo que


chamamos de “ grandes civilizações’ : egípcia, babilónica, chi­
nesa, indiana, grega, árabe e ocidental, que Spengler, e depois
dele Toynbee, descreveram morfologicamente em suas ori­
gens, prosperidade e decadência. Se o primeiro grande perío­
do, o da caça e da colheita, estende-se desde cerca de 30 000
(e mesmo antes) até por volta de 5000 anos antes de nossa
era, a segunda vai, aproximadamente, do século V ou IV
antes de nossa era até o ano 1700 ou 1800 de nossa era.
Depois, começa, após um período de conservação da nature­
za, o do domínio técnico da natureza, cujos problemas so­
ciais surgem pela primeira vez nos séculos XVIII e XIX de
nossa era. Pelo fato de a evolução ser lenta no começo e
parecer acelerar-se sempre mais, o primeiro período é, com
seus 30 000 anos aproximadamente, o mais longo. O. segundo,
com seus 6 000 ou 7 000 anos, é sensivelmente menor. O ter­
ceiro, ainda que só tenha 200 ou 300 anos, já se acha no meio
de sua evolução.
Quase toda a história humana, e com ela a história das
idéias, é ocupada pelas grandes civilizações que, como os ve­
getais, nasceram, floresceram e morreram. Só na última de­
las, a ocidental, é que surge na Europa a era industrial, em
que vivemos. Considerando-se, porém, que a formação das
comunidades humanas no âmbito desses três períodos varia
somente na forma de colocar os problemas e na estrutura
da consciência, e não na participação do homem em geral,
a primeira comunidade dos grupos da época glaciária poderia
ser também para nós o primeiro exemplo da formação de
grupos sociais. Todo sistema teórico de idéias sociais foi
edificado em uma ou outra das grandes civilizações asiáticas
e européias. (A filosofia social, muito importante, dos chi­
neses e indianos deve infelizmente ser posta de lado, devido
a que o autor não domina os idiomas em que ela se exprime,
e que nos comprometemos a apresentar aqui uma reflexão
a partir de textos originais.)
Trataremos sucintamente da nova forma de economia,
porque ela é a premissa tanto do nascimento das grandes
civilizações como de uma nova forma social mais humana,
isto é, mais consciente.
A passagem ao sedentarismo marca fortemente a própria
terra. Ela é cultivada e transformada. É preciso cuidar e
26 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

proteger os animais e as plantas. A natureza torna-se sócia


do homem e se distingue em natureza doméstica aliada e
em natureza hostil fora de seu terreno cultivado. Os primei­
ros grupos que se desenvolveram a partir dos que pratica­
vam a caça e a colheita não eram provavelmente mais nume­
rosos que os pequenos grupos humanos do período glaciário.
Mas sua nova forma de vida, entretanto, continha em si a
possibilidade de um desenvolvimento cultural superior. Foi
partindo da comunidade camponesa que a grande civiliza­
ção se desenvolveu. Se se leva em conta o que se sabe do
surgimento das grandes civilizações mais antigas, as dos egíp­
cios, sumerianos e acadianos, dos indianos e chineses, obser­
va-se que a sua situação geopolítica é sensivelmente idêntica.
Aí encontramos sempre uin problema semelhante, que só
pode ser resolvido por meio de uma planificação e um tra­
balho em comum, e que deu impulso à formação dos gran­
des Estados civilizados.
Encontramos, com efeito, sempre, no Egito, na Meso-
potâmia, na China e na Índia, grandes vales fluviais cercados
de desertos ou de florestas virgens, que só podem tornar-se
habitáveis para uma população humana crescente se os cursos
de água forem regularizados, organizados com o fim de irri­
gar e fertilizar os campos, de forma tal que não possam, após
as intempéries, inundar ou secar as terras aráveis. O próprio
cultivo dos campos é o encargo de famílias ou de pequenos
grupos, de clãs totêmicos, de aldeias, etc. A regularização
dos rios envolve muitas famílias, aldeias, tribos e mesmo re­
giões. Deve ser encarada em seu conjunto e ser objeto de
um acordo coletivo. Na raiz da palavra chinesa que signi­
fica “ governar” , subsiste a etimologia: Tegularização dos rios.
A situação geopolítica do Egito é ainda hoje semelhante à
de 5 000 anos passados. Trata-se de um problema por assim
dizer imanente, decorrente da situação geográfica, e que
exige a formação de grandes aglomerados e de projetos cole­
tivos em grande escala, durante gerações.
Na grande oposição do século XVII (Locke e Hobbes)
quanto ao tema do “ Estado primitivo” , pacífico e laborioso,
ou, ao contrário, guerreiro (oposição de que iremos tratar
mais adiante), decidir-me-ia, no fim das contas, pela pri­
meira. Sem dúvida, ao seu lado, ou depois dela, a forma
guerreira, tanto ofensiva quanto defensiva, pode criar alguma
A F orm ação dos P r im e i r o s G rupos H um anos 27

coisa de parecido. Se imaginamos, por hipótese ou ficção,


como o fez P. Laviosa-Zambotti, as primeiras populações
como comunidades camponesas mais ou menos reduzidas,
organizadas de maneira patriarcal ou democrática, dissemi­
nadas e independentes, escusado é dizer que uma criação
política mais importante pode originar-se, mesmo sem pro­
blema geopolítico, por meio do combate e da opressão de
vários por um único. Uma vez que uma dominação existe
e se desenvolve, tudo o que se acha em sua órbita não pode
subsistir senão com uma nova coesão e uma defesa comum
em face do perigo. Destarte, toda formação de grupos em
grande escala se estende pela própria força das coisas e é
limitada apenas pelo estado de sua civilização e de suas téc­
nicas de organização.
Não resta dúvida de que existe, desde esse segundo es­
tádio da civilização, certo antagonismo entre os pastores
(nômades) e os lavradores sedentários. Os lavradores têm
precisão de planícies férteis, e alcançam, graças à utilização
do solo e à exigência de instalações mais sólidas, uma rique­
za que cresce facilmente, que acumulam e armazenam. A
riqueza dos pastores é representada por rebanhos muitas ve­
zes inumeráveis, mas a tarefa que consiste em cuidar e con­
duzir os rebanhos pode despertar instintos guerreiros e domi­
nadores (doçura e prudência no interior, rudeza e atitude
defensiva no exterior, como dirá depois Platão). Se o pastor
vem a perder seus rebanhos ou se suas pastagens tornam-se
improdutivas, ele facilmente se transforma em depredador,
penetrando nas aldeias fechadas dos lavradores para se apro­
priar, pela força, das provisões que encontra, o que força o
camponês a lhe responder com os meios de que dispõe. Tal
oposição entre as tribos agrícolas e os saqueadores do deserto
é testemunhada desde os inícios da história e sobretudo na
Suméria e na Acádia. Encontramo-la, mais tarde, em diversas
variantes, inclusive nas campanhas dos mongóis e dos turcos
contra o Ocidente.
Seja como for, o ataque e a defesa de grupos humanos,
ou mesmo os combates de indivíduos no interior de um grupo
(a guerra civil), existem desde que as comunidades se cons­
tituíram, assim como as exigências geopolíticas constituem
tarefas que levam ao nascimento da civilização e à formação
de comunidades mais importantes. Na maior parte do tempo
28 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

diversos fatores agem de acordo, e seria um contra-senso


colocar, por princípio ou amor à teoria, uma causa acima das
outras. Como já afirmei, considero, contudo, entre as causas
que contribuem para o surgimento da civilização os proble­
mas geopolíticos pacíficos (os quais são resolvidos por meio
de uma organização do trabalho, como, por exemplo, o da
regularização de um rio) como os que pelo menos atuam
mais profundamente e com mais conseqüências. Isto certa­
mente não exclui, e sim inclui, uma organização guerreira
ofensiva e defensiva.
Com que se parece então uma comunidade humana no
início da era da agricultura e da criação (aproximadamente
entre 5 000 anos antes de nossa era e o ano 1700 de nossa era)?
Podemos dar uma resposta mais exata a esse respeito graças
às fontes históricas. Gostaria de fazê-lo tomando o exemplo
do Egito.
O império egípcio dos tempos históricos formou-se, sem
nenhuma dúvida, de maneira mais ou menos coercitiva pela
reunião do Alto com o Baixo Egito e de uma série de dis­
tritos no interior dessas regiões. A autonomia dos distritos
é ainda reconhecida por muito tempo devido a seus símbolos
e à sua qualidade de unidades administrativas subordinadas.
Ê provável a existência de uma divisão mais acentuada com
elementos ainda menores. A tarefa dominante era a irrigação
das terras pelas cheias regulares do Nilo. A água levava à
terra o rico humo que, combinado com o clima quente, pos­
sibilitava grandes colheitas e, poTtanto? uma população que
crescia sem cessar. Se, nos tempos pré-históricos, as condições
geográficas eram tais (segundo recentes teorias meteorológi­
cas) que a terra fértil estendia-se bem mais longe, só lenta­
mente tendo o deserto conquistado terreno em direção do
rio, empurrando as populações, a coerção exterior de uma
proteção comum das terras cultivadas teria de ser mais ma­
nifesta.
O que é certo é que desde o Antigo Império, devido ao
trabalho em comum para a regularização do rio, trabalho
organizado, planificado e dirigido pelo poder central, a gleba
de cada habitante, de cada família, de cada aldeia era irri­
gada e fertilizada pelo humo do Nilo, de tal forma que o
trabalho individual nessa gleba podia ser coroado de êxito.
Era preciso então que os trabalhos de pequenos grupos como
A F orm ação dos P r im e i r o s G rupos H um anos 29

as famílias e as aldeias se misturassem aos trabalhos comuni­


tários, projetados em grande escala: regularização do rio,
construção de diques e canais. Ê o equivalente de toda idéia
social: o conjunto formado pela existência individual e a da
comunidade. Não se trata de arbitrariedade ou de coerção
brutal, nem de fantasia ou de ambição pessoal. Trata-se
antes da resposta criadora do homem às exigências que
a natureza lhe impôs no estado de necessidade em que
se encontra. Elas o obrigam a conciliar sua fantasia com
seu espírito inventivo ou perecer.
A idéia social está estruturada na origem do império
egípcio da mesma forma que na horda animal ou nos grupos
humanos da época glaciária. No entanto, essa estrutura não
é mais instintiva, mas ritual e conscientemente fixada. Ê ao
mesmo tempo ordenada em função da grande tarefa geopo-
lítica. É preciso considerar isso um pouco mais de perto.
Inicialmente, o aparelho do Estado, em sua forma pura­
mente funcional. À sua frente acha-se o faraó, cuja missão
econômica é, antes de tudo, a regularização do Nilo. De­
sempenha-a através de um sistema feudal hierarquizado pela
base ou então através de funcionários, que diferem segundo
os períodos da história. Outras missões também incumbem
ao poder central: a proteção, no interior e no exterior, pela
polícia e o exército, a instituição do direito e do comércio, o
desenvolvimento do artesanato, a construção de cidades e a
missão não menos importante de distribuir o produto social
de acordo com a hierarquia existente.
O essencial é que, já nas premissas econômicas de uma
situação como essa, o indivíduo, a família e até o pequeno
grupo não podem viver se os problemas gerais em cujo qua­
dro a vida decorre não são primeiramente solucionados de
uma maneira geral. Assim, mesmo que a supremacia do im­
pério sobre o indivíduo surja pela violência, conquista e su­
jeição, sua permanência não é justificada apenas pela violên­
cia. Ela é, muito mais, motivada de maneira puramente ra­
cional, antes de o ser sob uma forma mítica, pelas exigências
da natureza no que toca ao homem. Não é senão ao preço
da satisfação dessas exigências que a vida pode continuar.
Em conseqüência, a dominação, como idéia social, não é
mais opressão e exploração dos homens, mas responsabilidade
30 H is t ó r ia das I d é ias S o c ia is

em face do povo dominado e em face de cada indivíduo.


Somente devido a um abuso posterior e ao fato de domi­
nadores e dominados tornarem-se livres uns em relação aos
outros é que surgem freqüentemente na história a opressão
e a exploração.
É por intermédio da linguagem que a vida se .conforma
à exigência (já estipulada de forma racional na situação geo­
política) de uma forma de comunidade projetada em suas
grandes linhas. Eíh lugar das pinturas rupestres da época
glaciária existe agora um mito historicamente discemível. A
comunidade é aí representada como sendo dominada pelos
deuses, porque a idéia de um acordo acerca de certas tarefas
é inexplicável se se refere somente ao homem e à natureza.
No Egito, o faraó é o filho dos deuses. O que nele é divino
é o Ka, a própria força vital, inexaurível, superior a tudo.
Ê dela que brota sua criação, é com ela que ele é responsá­
vel pela felicidade e pela prosperidade da comunidade.
Esse Ka, segundo a crença, estendia-se, a partir do faraó e
através de sua administração e sua jurisdição, aos príncipes
e aos funcionários e até aos últimos escribas, camponeses,
servos e operários. Cada um, no fim das contas, recebeu
sua condição do rei, quer dizer, recebeu dele a parte de
Ka divino de que precisa. Executa assim, no posto que lhe
é designado, seu trabalho em nome do faraó. É indiferente
saber como a administração desse tipo era constituída nas
diferentes épocas da história.
O que é determinante não é a Tepresentação como tal,
não é o mito da origem divina do soberano, nem a genea­
logia nem as histórias dos deuses. O que é muito mais im­
portante é o culto que assim se torna possível. O faraó era
naturalmente único; era imortal e, quando morria, logo re­
nascia do novo faraó, da mesma forma que os deuses podem
morrer e ressuscitar. A fórmula segundo a qual ainda no
século XVII, na França, se anunciava a morte do rei: “ Le
roi est mort, vive le roi!” , mostra que essa noção conservou-se
durante todo o tempo em que houve reis autênticos. É a
expressão da unidade divina da comunidade, personificada
no plano cultural e mítico pelo rei. Na veneração do faraó,
nas cerimônias de sua ascensão ao trono e de seu governo,
na conservação de seu cadáver e seu sepultamento em monu­
mentais pirâmides, em cuja construção o povo devia trabalhar
A F orm ação dos P r im e i r o s G r u p o s H um anos 31

gratuitamente durante dezenas de anos, não era o homem


individual e acidental,' que em sua época fora o soberano,
que se venerava. A própria comunidade se representava
nele, consciente de ser uma comunidade no faraó. Assim
o povo não trabalhava senão para si, para sua própria indi­
vidualidade divina. No culto, cada indivíduo participava
conscientemente da comunidade. No faraó, a parte divina,
imortal, de cada indivíduo transitório da sociedade era obje­
tivamente real e presente na Terra.
Na comunidade, portanto, o homem é e permanece sendo
um indivíduo, e um indivíduo isolado. Tem suas misérias,
suas inquietações, suas alegrias, seus encargos, seus problemas
e suas atividades próprias, sua tranqüilidade e seu repouso;
nasce e morre para si mesmo. O isolamento da existência é
universal, sendo que já o encontramos entre os animais e
as plantas, mas só se torna consciente no homem, em seu
medo diante da existência. É a este propósito que surgem,
na comunidade, o culto e o mito, que dizem ao indivíduo:
Como tu és, nõo és tudo, és somente parte. Olha à tua
volta e considera que não podes viver senão entre os outros
e de acordo com eles. Veja a vida como um todo, a própria
comunidade e seus membros. Eles estão personificados na
cabeça imortal da autoridade que se desdobra acima de to­
dos, que te sustenta e para a qual tu existes. Desvia teus
olhares de ti apenas. Participa do todo, do modesto posto
que é o teu, e compreende para que existes: uma parte de
um todo muito mais amplo, que te supera e que te sobrevi­
verá, e a partir do qual somente podes voltar a ti. Não existe,
nos mitos das grandes civilizações (e todo mito é ao mesmo
tempo religioso, ligando-se ao divino, e político, formando a
comunidade), nada mais que isso, expresso diferentemente
segundo as narrativas. É o núcleo vivo das narrativas, que
de fábulas fantasistas faz mitos. Quando se lhes retira a fé
nesse núcleo, transformam-se em contos e narrativas dis­
cutíveis.
O mito não se limita aos homens. O país que o povo
habita é uma região de cultivo; ele colocou a grande tarefa
pela qual a comunidade se formou e se reforma incessante­
mente. Ele se divide em terra fértil que restitui, graças aos
cuidados de que é cercada e o trabalho que ocasiona, aquilo
de que o homem precisa para sua existência, e em deserto
32 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

hostil, de onde vêm os perigos. As grandes construções,


pirâmides e templos, as estradas, as cidades e o sistema dos
canais de irrigação marcam a paisagem. Isso não quer dizer
que essas grandes construções sejam simplesmente a expres­
são de uma habilidade técnica. A marca deixada no país
pela construção é antes de tudo uma santificação do terreno
conquistado, que ela inclui no mito e de que faz uma parcela
integrante da idéia social. O homem ou o grupo, sozinhos,
não são aqui o conjunto vivo, mas somente o homem e seu
povo na sua terra, delimitada diante dos estrangeiros, e in­
serida no ritmo alternado das estações, onde ocorrem as co­
lheitas, no despontar e no ocaso cotidianos do Sol, cuja luz
faz crescer e prosperar, na noite envolvente e na ordem de
suas estrelas. O culto está em relação imediata com tudo
m o . A orientação exata de um monumento sagrado segundo
o ocaso do Sol ou das estrelas em determinadas épocas san­
tas (orientação que se perpetuou até o século XVI de nossa
era e terminou de forma característica precisamente nessa
época) prova-o suficientemente. Além de sua comunidade,
o homem está inserido na vida e no mundo que contém todas
as coisas, e não é senão por meio dessa inserção que cada
indivíduo está em seu lugar, pleno de sentido.
Os impérios orientais, antes dos gregos e até depois da
China e da Índia, são, pelo menos em seu começo, conce­
bidos como o do Egito, que serviu de exemplo. Mas, no
Oriente Próximo, pelo menos, a maioria é, desde seus pri­
mórdios, organizada de maneira bem mais guerreira que o
Egito, que se achava protegido pelas suas fronteiras natu­
rais, os desertos. Degeneram assim mais facilmente em um
despotismo guerreiro e arbitrário; e sem dúvida alguma, mais
que qualquer outro, a Assíria. O aparelho de que o soberano
dispõe para exercer seu poder estende-se sobre o país que
ele imobiliza, a cultura entra em regressão em proveito das
únicas preocupações da técnica militar e da civilização. Vê-se
surgir, então, diante da representação sagrada e mítica de
todo o povo no rei, um despotismo oposto ao povo sob a
forma de uma tirania. Ele se separa do povo e explora sua
função sagrada de representação da comunidade para opri­
mir o povo e utilizá-lo para fins egoístas e satisfazer sua
sede de poder. É naturalmente difícil discernir na realidade
em que momento se produziu essa conversão, sendo a transi­
A F orm ação dos P r im e i r o s G r u p o s H um anos 33

ção imperceptível. A distinção é, entretanto, patente e fun­


damental.
Diante dos persas, esse domínio se desmorona facilmente
em virtude de debilidades intrínsecas. Os persas são sem
dúvida mais tolerantes em seu império, em que o direito de­
sempenha um papel infinitamente maior. Contudo, e embora
o povo primitivo possuísse uma organização quase aristo-
crato-liberal, a formação do império, pelo que sabemos, não
vai muito além do despotismo oriental. Uma idéia social fun-
darnentalmente nova só se forma com o aparecimento dos
gregos na bacia do Mediterrâneo.
CAPÍTULO II

Os Gregos

O s gregos eram tribos nômades à procura de terras, que,


vindo do norte pelos Balcãs, invadiram a bacia do Mediter­
râneo. Na Tegião onde se estabeleceram já vivia uma po­
pulação primitiva que podemos denominar, com os próprios
gregos, segundo os grupos remanescentes mais importantes
que até subsistiram até épocas posteriores, de carianos ou
pelasgos. Este povo alcançou uma civilização florescente
em Creta.
A ocupação das terras pelos helenos realizou-se em duas
grandes investidas, primeiro por volta de 2000 e depois por
volta de 1200. Convencionou-se chamar a última de migra­
ção dórica. Devido a isso surgem entre os gregos duas ca­
madas, a mais antiga delas sendo a dos jônios, que parece
ter precedido a dos dórios, tanto em sua ascensão à civiliza­
ção como, mais tarde, em sua decadência. Esses dois movi­
mentos, ocorrendo um em seguida ao outro, oferecem-nos
um excelente apanhado das condições políticas, pois podemos
aí observar ainda as formas originais dos últimos imigrantes
em faoe das dos primeiros imigrantes, mais adiantados na
estrada da civilização.
Entretanto, só se pode tirar uma conclusão a posteriori
a propósito desses primórdios. As tribos imigrantes natu­
ralmente devem ter tido chefes, reis ou príncipes, à maneira
dos germanos do tempo das invasões. Na constituição ul­
terior de Esparta, por exemplo, encontram-se, com efeito,
dois, o que permite concluir que devia haver uma aliança
talvez já desde a época das migrações de duas tribos de
Os G regos 35

igual categoria. Mas, ao lado da realeza militar, a assembléia


de homens livres em condição de pegar em armas ou da
nobreza deve ter formado sempre uma força não negligen-
ciável. Talvez assim tenha sido no início de certos impérios
orientais, principalmente entre os persas. Entretanto, nesse
país a evolução tomou o rumo de um desenvolvimento do
poder real, transformando-se em despotismo em virtude do
enfraquecimento da nobreza e do povo, enquanto na Grécia
ela levou a uma forma política que se pode denominar, para
distinguir das constituições democráticas modernas e tam­
bém das variantes ulteriores nos partidos gregos, de “ governo
dos governados” .
Em Homero, encontramos ainda a realeza militar, a de
Agamenon, por exemplo, e, ao lado, uma assembléia onde
quase só a nobreza toma a palavra. Mas o rei é, no círculo
dos que o seguem, um primus inter pares, o primeiro entre
seus iguais. Diríamos talvez, na categoria dos partidos, que
se trata de uma aristocracia; como forma de constituição,
falaríamos de feudalismo: no plano econômico, diríamos:
estabelecimento autônomo, em pequenos burgos, de cavalei­
ros com acompanhantes e formando na escala da província (e
conforme a língua) uma associação frouxa e sob a hegemo­
nia de um deles. Nas primeiras formas de Esparta, em
compensação, até onde remontam as memórias históricas, a
realeza hereditária já está, como órgão rudimentar, subordi­
nada a outras forças. Trata-se de um regime miiltar contro­
lado, mas não enfraquecido devido unicamente ao fato de
que tinha tradicionalmente dois reis. O verdadeiro soberano
do Estado (se se nos permite utilizar esta noção anacrônica-
mente, a épocas anteriores ao século XVI de nossa era) era
a assembléia dos espartanos livres, que escolhia por aclama­
ção a gerúsia e os éforos, ou, segundo a expressão romana,
o senado (os anciãos) e os cinco guardiães. Esses cinco
guardiães eleitos eram os verdadeiros dirigentes do Estado.
Em Atenas, a realeza, que lá também sempre existira, des­
moronou-se, desde os tempos míticos, inicialmente em pro­
veito dos nobres (os eupátridas, os bem-nascidos), depois
da tirania, e enfim da democracia de partidos, passando a
ter uma função cultural, sem significado político. A tendên­
cia à diminuição do poder do monarca hereditário legítimo
era geral e mais ou menos pronunciada.
36 H is t ó r ia das I d é ias S o c ia is

Em seu lugar aparece o que podemos chamar de “ go­


verno dos governados” , de “ dominação dos dominados” . A
democracia grega dos partidos é, como a aristocracia de
partido, a oligarquia ou mesmo a tirania, simplesmente uma
modificação dessa nova forma política. Que é preciso com­
preender-se por essa noção?
Depois da imigração, a população primitiva foi certa­
mente subjugada, mas nunca aniquilada. Novas formas nas­
ceram desse estado de coisas. A constituição de Esparta c
exemplo disso. Ela sem dúvida só foi conhecida por nós em
uin período bastante tardio, mas manteve suficientemente,
em seu conservadorismo, as condições que se desenvolveram
no momento da ocupação do país. Cada espartano possuía
(ainda na época histórica) um lote de terra, em conseqüên­
cia da nova repartição do solo. O hilota, proprietário pri­
mitivo, continuava morando aí. O espartano torna-se por
assim dizer um proprietário de terras, enquanto os hilotas
cultivam o solo. E'e pagava, de suas colheitas, uma quota-
-parte para as sissítias, isto é as refeições em comum. Os
espartanos, que viviam desde a idade de sete anos sob a
égide de instituições estatais em um sistema de educação
extremamente severo, efetivamente não ficavam nas proprie­
dades de seus pais, mas em uma espécie de comunidade de
homens onde se entregavam continuamente ao exercício da
guerra. Só os espartanos formavam o povo dos cidadãos.
Eram livres e, em sua comunidade, soberanos para eleger
por aclamação a assembléia dos anciãos e os éforos que cons­
tituíam o governo. Se nos atemos somente aos espartanos, for­
çosamente devemos reconhecer nesse sistema uma verdadeira
democracia, enquanto se considerarmos os hilotas, submissos,
e os periecos (livres, mas sem influência política), habitantes
das cidades vizinhas em território espartano, deveríamos en­
tão faTar de aristocracia. Na verdade, tanto uma quanto
outra dessas denominações são falsas, porque o demos (por
exemplo, em Atenas) era diferente e porque a dominação
dessa elite dos espartanos não é idêntica à da nobreza feudal.
Esse sistema dificilmente é comparável às formas políticas
similares ou de mesmo nome da Idade Média, dos tempos
modernos ou contemporâneos.
Esparta é apenas um exemplo da “ dominação dos domi­
nados” na polis grega e, sem dúvida, um exemplo bastante
Os G regos 37

isolado. A situação certamente não foi idêntica em toda


parte, no entanto foi bastante parecida. Podemos mostrar
isso estudando dois pontos: o nome do Estado e a etimologia
de nomos (== direito).
O Estado grego era a polis, o que não quer dizer (como
muitas vezes se lê) cidade, ou “ cidade-Estado‘\ Só mais
tarde é que a polis passa a ser a cidade. Na origem, ao
contrário, a polis é a fortaleza dos homens livres capazes de
se defender e vivendo nas cercanias imediatas do domínio.
O polîtes, cidadão de posse de todos os seus direitos, é impen­
sável sem a posse de terras e sem os meios de defesa, e isso
quase até à época de Aristóteles, isto é, no fim da evolução
da idéia social grega. Isso é claramente indicado pela etimo­
logia de nomos que é, na época clássica, o direito da polis,
isto é, sua estrutura social interna. O termo tem a mesma
raiz de nemein, com o duplo significado de repartir e apas­
centar. Na época da ocupação do território, as pastagens
foram repartidas em lotes entre os membros da comunidade.
O direito dessa comunidade baseava-Se na repartição pouco
mais ou menos igual da terra, que decorria de uma partici­
pação igual no combate e na vitória. O reino do direito
(nomos) é, ainda no tempo de ArL kSteles, plenamente o
domínio dos proprietários médios, semi.) estes capazes, em
virtude de sua posição independente na administração de
sua propriedade, de assumir o controle dos assuntos políticos.
Isso o comerciante não podia fazer, devido a sua mobilidade,
nem o trabalhador manual, que devia concentrar-se em uma
atividade especializada, nem as profisso?s dependentes, por­
que elas são exercidas para obedecer c não para comandar
e decidir. Ademais, cada ofício .exigindo daquele que o
exerce todo o seu tempo, somente o proprietário tem o tempo
disponível de se consagrar à política e ao serviço militar.
A idéia social grega de “ governo dos governados” não é
conhecida em sua origem como uma liberdade senão no sen­
tido de que os que têm os meios de defesa (habituados que
estavam, depois da imigração, à independência) permanecem
independentes em sua forma de colonização e, por isso, se
mostram aptos a conceber uma constituição política da co­
munidade. Quando, na formação de uma democracia de
paTtidos, a plebe infiltrou-se no círculo, a política sucumbiu
à fantasia. A liberdade grega do “ governo dos governados”
38 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

está em total oposição a um regime do “ homem da rua” ,


visando apenas à segurança econômica, sem independência
e aconselhado por especialistas igualmente pouco indepen­
dentes.
A independência do indivíduo que, na sua qualidade de
homem livre e de votante, participava nesse “ governo dos
governados” nasceu assim, de forma natural e feliz, na rea­
lidade histórica da polis da Grécia antiga. Isso significa que
a .atividade “ privada” do indivíduo, o serviço militar e a
responsabilidade por certa parcela do gado, dos campos, dos
servos e da parentela, preparavam-no muito naturalmente a
uma atividade igualmente livre no autogoverno da polis.
Um camponês que, atualmente, em sua aldeia mantém sua
propriedade em ordem, poderá a qualquer momento tomar-se
o prefeito da aldeia, e sua atividade não será muito dife­
rente nos dois casos. Se a isso acrescentamos o poder de
se defender livremente e a soberania, encontramos aí a única
analogia possível com a polis, igualmente muito pequena
quanto ao número de seus habitantes. Uma vez que cada
particular é livre e independente em sua atividade, não é
de estranhar que na maioria das vezes os cargos na polis
sejam preenchidos ao acaso. Nessas circunstâncias, todo in­
divíduo podia, sem preparo, tornar-se juiz, dirigente da as­
sembléia do povo, embaixador e até geheral. Desempenhava
todas essas missões como um encargo acessório (como Marx
voltará a exigir mais tarde).
É também a partir dessa noção da independência natu­
ral de cada cidadão da polis que se compreenderá como Platão
procurou, conforme veremos, salvar a polis, no momento de seu
fim histórico, através da idéia de um “ governo dos homens cul­
tos” . Estes “homens cultos” são simplesmente os cidadãos que
se tornatam independentes por intermédio da Filosofia, em
uma situação em que a independência natural, que o particular
aufere de sua atividade, não basta, devido à complicação das
relações econômicas e à ampliação do campo da política. O
que se chamou de “ Utopia” de Platão não passa assim da
conseqüência natural dessa antiga independência (surgida
muito antes de toda Filosofia, inclusive a pré-socrática), exi­
gida pela constituição da polis. Já está esboçada na criação
da polis e era preciso, infalivelmente, que ela surgisse na­
quele instante e, somente nele, “ Platão” , tendo ou não exis­
tido.
Os G regos 39

O caráter de liberdade da polis manifesta-se da mesma


forma no nome que essas cidades se davam e com o qual
firmavam seus acordos políticos- Um rei do tipo dos dés­
potas sagrados do Oriente não o poderia fazer, pois não re­
presentava, como pessoa, a comunidade. Essa comunidade não
tirava seu nome da raça ou da região (como, atualmente, a
França, a Alemanha, a Espanha, a Itália). Não o tirava,
como seria mais tarde o caso entre os romanos, do aparelho
do Estado na sua qualidade de instituição objetivada: res
publica. Antes chamava-se pura e simplesmente: os ate­
nienses, os coríntios, os espartanos, etc. Todas as pessoas
livres que dispusessem de meios de defesa e todos os pro­
prietários de terras eram independentes e constituíam a pes­
soa jurídica e cultual que firmava tratados com outras comu­
nidades similares ou com reis bárbaros, dirigia a guerra, etc.
Decidiam eles mesmos, na assembléia do povo, tudo o que se
referia à comunidade. Não podiam fazer-se representar por
um parlamento, o que não teria sido considerado como uma
liberdade política. A afirmação de Ésquilo é válida apenas
para a assembléia soberana e onipotente dos cidadãos: “ Ne­
nhum soberano tem o direito de chamá-los de servos ou de
súditos” . Não encontramos essa fórmula em nenhum outro
lugar. A conseqüência inevitável era portanto que o Estado
devia permanecer de pequena dimensão, mesmo quando aspi­
rasse o maior poderio, de uma extensão tal que a voz de um
arauto, como disse Aristóteles, pudesse dominar a assembléia
de todos os cidadãos habilitados a servir na guerra.
É preciso compreender, desde já, que nessa nova idéia
social de “ governo dos governados’’ a comunidade é dirigida
de maneira radical; nós a chamaríamos hoje em dia de Es­
tado totalitário. A despeito da independência de cada cida­
dão, tomado individualmente, e embora na assembléia cada
um tivesse o direito ilimitado de discutir, o que é deliberado
pela maioria é válido sem reserva. Politicamente, portanto,
somente é livre na polis o Estado, a comunidade, e nunca
o particular (apesar de sua independência). O particular
não passa de um membro, sacrificado sem vacilação pelo
bem da comunidade. Qualquer golpe desferido contra essa
supremacia espiritual da comunidade acarretaria ameaça ime­
diata à polis em seu conjunto. Isso se verifica abertamente
na época da imigração (que a constituição espartana reflete)
40 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

na oposição diante da população primitiva subjugada, e, mais


tarde, nas hostilidades contínuas entre as cidades vizinhas,
rivalizando entre si, no perigo persa, na colonização e enfim
nas pretensões hegemônicas das cidades maiores. Jakob
BuTckhardt escarneceu, certa feita, das idéias de seus coevos
liberais sobre os gregos, afirmando que com seu individua­
lismo não teriam podido passar vinte e quatro horas em uma
polis verdadeira. Contudo, esse totalitarismo de uma comu­
nidade de independentes deve ser cuidadosamente distin­
guido do totalitarismo que faz dos indivíduos sob seu guante
uma espécie de rebanho.
Dentro mesmo dessa nova e importante idéia soeial de
“dominação dos dominados” podemos distinguir todas as
formas políticas tradicionais (variantes de partidos), cujos
nomes têm sua origem na história grega, mas que ainda hoje
desempenham certo papel: aristocracia, oligarquia (pluto­
cracia), democracia e mesmo tirania (ditadura). Apenas a
verdadeira monarquia, a realeza sagrada oriental, a encarnação
santa de todo um povo em seu rei não encontra lugar aí.
O que interessa é saber quem pertencia ao círculo dos cida­
dãos livres e independentes. Como já dissemos, na origem
tratava-se sem dúvida de todos os membros da comunidade
que dispusessem de meios de defesa e a quem tivessem sido
concedidas terras: em Esparta, todos os espartanos livres.
A isso se poderia chamar com o nome atual de democracia
(pondo na mesma categoria demos e povo, ou mesmo grupo
de homens). Lembremos, no entanto, que os hilotas e os
periecos não fazem parte do povo. Do ponto de vista do
conjunto da população do Estado, o termo apropriado seria
então arisiocfacia, domínio de uma elite que remonta aos
imigrantes, ou por pessoas de qualidade (os “ bons e os be­
los” ) ou ainda por pessoas em condições de servir na guerra.
Com efeito, o círculo dos que se governavam a si próprios
esteve, nos tempos históricos, e em todas as formações polí­
ticas gregas, submetido a flutuações.
Foi só mais tarde que isso levou a uma divisão à qual
devemos a nomenclatura do direito público. A idéia social
de “ dominação dos dominados” permanece, nessa divisão,
inalterada, como idéia dirigente, assim como a particulari­
dade, remontando às origens históricas, segundo a qual so­
mente os proprietários agrários e aqueles que dispusessem
Os G regos 41

de meios de defesa deviam formar as classes dirigentes. No


partido dos aristocratas, o círculo deve ser mantido bem fe­
chado e limitado às famílias bem-nascidas ( eupátridas e ou­
tros). Na oligarquia ou plutocracia, os negociantes, as pessoas
que se instruíram e as que fizeram fortuna se introduzem
nesse círculo. Na democracia, esse círcu1© deve ampliar-se
o máximo possível, para incluir (por exemplo, em Atenas)
a plebe da cidade, o demos no sentido mais estrito. No
entanto, meémo aqui, não se inclui todo mundo: dela jamais
participaram os escravos, metecos e estrangeiros.
Essa ampliação da idéia de “ governo dos governados”
não era arbitrária. A eqüidade residia em uma repartição
igual dos encargos e dos direitos políticos. É assim que,
em Atenas, por exempío, se a população da cidade participa
da defesa da comunidade contra os persas, na medida em
que os homens trabalham como Temadores nos vasos de guer­
ra, forçoso é reconhecer-lhe o direito de voto. Como a posse
de terras e a dos meios de defesa andavam lado a lado, a
aristocracia na Grécia era habitualmente pacífica, enquanto
a democracia era antes agressiva, em sua reivindicação de
propriedades fundiárias para aqueles que chegavam à con­
dição de cidadãos em gozo de todos os direitos políticos.
(E isso principalmente nas cidades menos importantes. O
demos de Atenas era, em conseqüência, recompensado em
dinheiro, por sua participação na assembléia do povo. Mas
isso já era um sintoma de decadência.)
A própria tirania acha-se incluída nessa idéia social. Um
tirano, originalmente, não passava de um homem eminente
entre os homens livres, designado pela comunidade para
proceder a uma reorganização do círculo dos cidadãos, de
seus encargos e direitos, ou para protegê-los em época de
complicações (nomothètes). Isso se verificou de forma aná­
loga sob a ditadura limitada no tempo que encontramos em
Roma até Sila. O tirano não podia jamais representar de
forma sagrada a comunidade ou todo o povo, como o sobe­
rano oriental ou o da Idade Média. Até na tirania, a comu­
nidade continuavá como o motivo sagrado do culto e, por­
tanto, tomava se soberana. Quando o tirano ultrapassava
sua missão, conservando o poder com o auxílio de sua guarda
real, pu por medidas irregulares ( é assim que em Platão a
tirania nasce da democracia), tratava-se de uma degeneres-
42 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

cência do “ governo dos governados“’ para formas de poder


de fato. Essa possibilidade de degenerescência também per­
tence (como caso limite) à idéia social específica, da mesma
forma que a aristocracia, a plutocracia, a democracia. Apesar
disso, nem todos os tiranos e organizadores abusaram de suas
prerrogativas para uma dominação ilegal e egoísta. Por exem­
plo, Sólon de Atenas. Vários tiranos velavam pela prospe­
ridade de todos os cidadãos, mesmo quando tomavam deci­
sões em virtude de sua autoridade suprema e, por assim
dizer, por procuração.
Em grandes traços, são essas as formas políticas dos
gregos, que fundam a primeira reflexão sobre o Estado (suas
primeiras idéias sociais).
CAPÍTULO III

Primeiras Reflexões sobre a Sociedade

KJ primeiro tema da reflexão filosófica, entre os gregos,


não era o Estado, a comunidade humana; também não era
o homem. Era, sobretudo, a natureza em seu todo, physis
ou cosmos, que despertava a curiosidade e a admiração. A
Filosofia não é por isso (como se diz e repete) uma “ Filosofia
da Natureza” . Uma Filosofia da Natureza, no sentido de
uma disciplina especial, a “ Física” , só existe onde também
há uma Lógica e uma Ética, como em Aristóteles e os estói­
cos. Interroga-se, de início, sobre a origem e não sobre á
matéria de todas as coisas, sobre as metamorfoses da pri­
meira existência, sobre a ordem do universo, sobre o nasci­
mento e a morte, sem fazer distinção entre as pessoas e as
coisas, entre o animado e o inanimado. Uma coisa, contudo,
é característica da primeira Filosofia: considerando a ordem
da natureza, sua origem eterna e divina, as transformações
de todas as coisas e de todas as condições, o homem desco­
briu desde o começo (e mesmo anteriormente à Filosofia,
como, por exemplo, em Hesíodo e Arquíloco) as hierarquias
necessárias à sua existência. Isso também é válido para a
idéia social de “ governo dos governados” . A comunidade
nunca foi exclusivamente uma simples associação utilitária
decorrente da necessidade, mas sempre uma comunidade
santa, que se curvava à ordem do universo e ao ritmo das
estações. Nesse sentido, Heráclito já dizia que todas as leis
humanas (os nomoi como a repartição das terras, obrigações
e direitos da comunidade) “ nutrem-se da única lei divina’',
e que esta lei divina consiste em uma ordem da natureza
( logos). Como já se acentuou, todos os edifícios cultuais
44 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

da comunidade (templos), estavam orientados segundo o des­


pontar do Sol ou das estrelas, o que constitui um indício disso.
É só depois do esgotamento das possibilidades desse
primeiro período do pensamento pré-socrático, quando o ho­
mem e a comunidade estavam alinhados no cosmos, que
surge no terreno da reflexão a subjetividade do homem, como
nos chamados sofistas, por exemplo. Poder-se-ia, comparando
esse movimento com outros movimentos análogos, aparecidos
mais tarde, falar de “ humanismo” ou de “ iluminismo” . O
homem, como tal, toma- se, por força de sua essência, um pro-
bSema, no momento em que suas comunidades começam a
se desagregar.
Encontramos no primeiro sofista, Protágoras, a célebre
fórmula: “ O homem é a medida de todas as coisas; das que
são, medida de seu ser; das que não são, medida de seu
não-ser” (Platão: Teeteto, 152 a). Esta fórmula marca logo
de início a conversão que assinalamos na consideração do
homem: esta consideração não se baseia mais, como em Par-
mênides, na natureza objetiva e eterna ou, como em Hera-
clito, na lei do mundo, mas na própria subjetividade do ho­
mem. Essa passa a ser daí em diante a medida tanto de
si mesmo como das coisas. Esse passo abre na Filosofia uma
nova possibilidade de pensamento e de conhecimento; para
a polis, a comunidade humana, é uma transferência de sua
hierarquia espiritual. Na qualidade de idéia social essa nova
hierarquia deve resultar de uma interrogação sobre o homem.
A resposta a essa indagação deve ser no futuro a fonte do
que na comunidade é justo ou injusto. No fundo, essa inter­
rogação já estava presente no começo da polis. Pois se todo
indivíduo era independente e dispunha de seu destino polí­
tico, era preciso interrogar-se sobre a essência do homem no
instante em que sua posição tradicional no cosmos começava
a se abalar. Tal foi o caso inicialmente em Atenas, no co ­
meço da Guerra do Peloponeso. O transe da polis nas guer­
ras pérsicas, em sua qualidade de “ governo dos governados'5
tradicional, situava se na retaguarda dessa geração, como a
transposição poética desse fato na tragédia ática de Ésquilo
e de Sófocles. A vida política de Esparta estagnara-se em
formas antigas, a democracia de Atenas ameaçava degenerar
em demagogia, depois que Péricles a tivera mais uma vez
firmemente nas mãos.
P r im e ir a s R eflexões Sobre a S o c ie d a d e 45

O próprio Protágoras não contradiz a interpretação dessa


indagação sobre a essência do homem como fonte inteira­
mente nova da ordem social, quando responde a essa inter­
rogação recorrendo inicialmente à tradição antiga. De fato
quer ele dizer que Dikè e Aidos, a justiça e o respeito, as
antigas virtudes, devem conduzir o homem e marcar com
seu selo a hierarquia de sua comunidade. A reflexão do
homem sobre si mesmo começa pelo conhecimento daquilo
que ele era até então. Foi isso mesmo que nesse momento
se tornou incerto. O exame retrospectivo do que fora e
devia ainda ser não torna entretanto o homem mais seguro
em sua vida. Ao contrário, a insegurança pode aparecer
mais manifesta à luz do que fora, do que ainda devia ser,
mas não existe mais: a justiça e o respeito.
Se se coloca em princípio que o homem é a,medida de
todas as coisas, isso pode ter um duplo significado: 1) o
homem conforme a tradição o mostra, subordinado à comu­
nidade e alinhado no cosmos; 2) ou então o homem afas­
tando-se da comunidade, na sua qualidade de indivíduo in­
dependente, autônomo. Esse indivíduo se volta contra a
comunidade dentro dela mesmo, só procurando vantagem
para si mesmo e não para todos. Enfim, o indivíduo inde­
pendente procura dominar a comunidade, considerada como
um simples objeto, explorá-la para seu proveito pessoal e
para o de uma minoria que o ajuda a agir com esse sentido.
Isso já aparecia no caso-limite da idéia social tradicional:
a tirania. Ao lado de Protágoras, o primeiro sofista que
ainda recorre à tradição, logo surgem outros, que respondem,
a propósito da essência do homem, que não é a comunidade
que deveria ser sua substância, mas o indivíduo, a saber, o
indivíduo elevado à categoria de tirano. Também eles se
atêm ao princípio sofístico do homem medida de todas as
coisas. A idéia social e seu contrário, comunidade e indiví­
duo, como possibilidades da existência humana, surgem pela
primeira vez no pensamento. Tratemos de ambos.
Comecemos pela idéia de sociedade. Já é encontrada em
Protágoras, não em seus próprios trabalhos, que só chegaram
até nós fragmentàriamente, mas em um diálogo de Platão sob
a forma de um mito narrado por Protágoras. Este aí res­
ponde ao problema de saber o que é o ser que vive em
sociedade, explicando como e por que a sociedade surgiu
46 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

entre os homens. A razão pela qual o homem vive ou deve


viver em sociedade é justificada, na forma de um conto, ex­
plicando como a comunidade sé formou historicamente. Tal
projeção no passado dos anseios do presente é freqüente e
nós a encontraremos ao longo de toda a história das idéias
sociais, até Rousseau e Marx.
Os homens, conforme Pròtágoras explica, foram criados
pelos deuses a partir da terra e do fogo, mas, como todas as
criaturas, foram dotados por Prometeu e Epimeteu de certas
qualidades. Prometeu incumbiu seu irmão desse trabalho.
Este primeiramente ocupou-se dos animais, concedendo a
uns a velocidade, a outros a força, e a outros ainda armas
particulares, ou o tamanho reduzido, ou a qualidade de pas­
sar despercebidos, enfim, a cada um algo de particular, de
forma que toda espécie pudesse afirmar-se à sua maneira
na existência. Dota assim cada espécie do que é preciso à
alimentação, à reprodução e à proteção contra as influências
do clima. Quando chega finalmente o momento de dar al­
guma coisa aos homens, ele já distribuiu todos os seus dons
e nada mais lhe resta. O homem vê-se então completamente
nu, sem armas nem proteção, quando surge Prometeu para
examinar a obra de seu irmão. É por esse motivo que ele
tem, a fim de salvar o gênero humano, de roubar a Héfaistos
e a Atena o conhecimento das artes ( entechnon sophian, o
fogo e a técnica), a fim de que o homem pudesse substituir
pela inteligência os órgãos que lhe faltavam.
O homem, entretanto, não pode ainda, em seu isola­
mento, medir-se com a força natural dos animais. Para que
sua raça não pereça, já que era a única que começara a
honrar os deuses, Zeus envia Hermes aos homens, levando-
-lhes a justiça e o respeito. Somente assim foi que os homens
puderam unir-se em uma comunidade política, apta a enfren­
tar, por sua coesão, os animais, quando já estavam anterior­
mente extenuados em hostilidades e disputas. Essas virtudes
cívicas deviam ser concedidas a todo homem, e não ser, como
os talentos, o quinhão de apenas alguns poucos.
A idéia social bastante característica que aqui encontra­
mos deve ser analisada resumidamente segundo as posições
que ela suscita.
Inicialmente, a noção da falta de proteção do homem
e de sua inadaptação à luta pela existência, ao contrário do
P r im e ir a s R eflexões Sobre a S o c ie d a d e 47

animal adaptado a seu meio. A Antropologia moderna deu


ênfase a esse elemento e o confirmou por meio de suas pes­
quisas em todos os domínios. Falta de proteção e inadaptação
forçam o homem primeiramente a um domínio técnico de
sua existência por uma habilidade que substitui a adaptação
dos órgãos, e depois por uma associação. Encontra aí uma
ajuda tanto para seu trabalho como para a divisão das fun­
ções que é uma conseqüência do domínio técnico-social da
existência.
Mas, desde então, o homem, na sociedade, torna-se peri­
goso para o homem. Em seu egoísmo tende apenas para o
que garante sua existência, e isso mesmo no seio da comuni­
dade. Vemos então surgir no seio da comunidade o tipo do
criminoso, que deseja usufruir as vantagens que ela lhe pro­
porciona, mas que não quer cumprir as obrigações que ela
lhe impõe. Opõem-se a isto, conforme Protágoras observou,
a humildade e o respeito ao direito, sendo esses dois senti­
mentos disposições sociais que cada homem deve desenvolver
sob peria de ver a sociedade perder sua coesão.
A justificação de toda ação visando à associação pelo
isolamento do homem na natureza e os perigos que o amea­
çam é uma óptica correta dessa primeira idéia social. Platão
e outros repetiram a mesma coisa mais tarde. Mesmo hoje
em dia, em nosso mundo técnico, ninguém poderia vivei
sem uma colaboração organizada e a “ previdência” conse­
qüente. Ninguém poderia viver sem água, luz, calefação,
abastecimento, estradas, circulação, etc. Contudo, os riscos
da existência não são um motivo suficiente para justificar a
formação de uma sociedade humana. Esse motivo, se o ob­
servamos mais de perto, não justifica a comunidade senão
em sua qualidade de associação com fins determinados. Ela
é isso, certamente, mas deve ser mais, se se quer que o sacri­
fício consentido para o seu florescimento não seja em vão.
Associações com objetivos determinados são politicamente
vulneráveis e de um equilíbrio instável. Isso se mostrou cla­
ramente quando outros sofistas procuraram determinar de
maneira nova, a partir de Protágoras, a essência do homem e
da sociedade.
O domínio técnico da existência e demonstrado, por
exemplo, por Hípias, sofista posterior (no diálogo de Platão
do mesmo nome), que mostra a seu auditório que ele pró­
48 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

prio fabricou tudo o que traz consigo, que ele mesmo fez o
que é e o que tem, desde seu calçado e suas roupas e o
anel que leva 110 dedo até as realizações espirituais, como
a aquisição do poder pela arte de discorrer, ou a estratégia
e a tática militares. O homem, segundo a fórmula de Pro-
tágoras, medida de todas as coisas, poderia ser aqui definido
como o ser que reina sobre a natureza e seus se m e lh a n te s e
os submete a suas leis. Eis uma interpretação que procura
extrair o homem, em sua qualidade de ser dotado de poder
e de saber, da tradição e da sociedade, para colocá-lo diante
dessa sociedade. Esta autocracia lécnica, habilidade que per­
mite dominar a natureza e o próximo, também tem, em úl­
tima análise, seu fundamento na liberdade do cidadão da
polis. Mas não sendo superior senão por seus meios, ela se
libertou da responsabilidade que tinha em relação aos outros
e que era originariamente seu objetivo essencial.
Se é assim, é preciso certamente continuar com esta ques­
tão: que fará então o homem de seu poder, que empreen­
derá, se pode não só dominar a natureza por meio de seu
conhecimento prático, como também persuadir os outros ho­
mens pela técnica de seus discursos e torná-los dóceis a seus
planos?
A resposta está contida nas premissas dessa teoria. Toda
técnica, toda habilidade na arte de dispor da natureza e dos
homens, nunca são objetivos em si. Somente podem existir
em função dos objetivos que permitem ao homem realizar
sua existência. Não constituem, diremos, senão uma “ supe­
rioridade dos meios” . O objetivo a alcançar através de tal
superioridade dos meios deve vir de outro lugar: este pode ser
naturalmente, como em Protágoras, a sociedade e a prosperi­
dade de todos. Mas não é a única possibilidade. Comu-
mente, esse objetivo surge preferencialmente e de maneira
natural no prazer do homem, sem que este se preocupe com
a prosperidade dos outros, ficando mesmo, se for preciso,
contra a sociedade. Esta pode então tornar-se um objeto
indiferente, que explora o poder de que dispõe o indivíduo
que domina os outros pela retórica, pela coerção da cons­
ciência ou pela violência.
A idéia social por excelência desses últimos sofistas tor­
na-se assim o grande caso-limite da polis grega: a tirania.
O tirano brutal aí explora finalmente a comunidade tradi­
P r im e ir a s R eflexões Sobre a S o c ie d a d e 49

cional dos homens livres, pela violência e pela astúcia, em


seu proveito e em proveito do séquito particular por meio
do qual garante seu poder. A justiça e o respeito não lhe
convêm: ele passa simplesmente ao largo. Ou ainda, como
Calicles e Trasímaco expressaram em Platãô, a justiça e o
respeito tomam-se para o tirano o atalho por meio do qual
ele conquista, consciente e premeditadamente, as multidões.
Para a própria multidão esses sentimentos transformam-se
em preconceitos inexplicáveis que não pode — ainda — su­
perar e pelos quais pode ser facilmente enganada pelo ti­
rano. O direito que essa idéia social dos sofistas implica é
portanto o que hoje se chama de “ direito do mais forte” :
quem se considera o mais forte pode impor-se sem que sua
consciência se incomode com justiça, pudor ou moral. Os
sofistas chamavam a isso de “ direito da natureza’' ( physei),
para distinguir da simples convenção ou da tradição (nomo
ou the&ei). Partindo dessa distinção, transformou-se (por
uma transferência de sentido, pela qual o estoicismo é respon­
sável) no que denominamos direito “ natural” e direito “po­
sitivo” .
O ideal tirânico decorre assim de forma natural da deca­
dência da comunidade totalitária e de sua transformação em
indivíduos isolados, não só politicamente livres e goveman-
do-se a si próprios na comunidade, mas também separados uns
dos outros e livres uns contra os outros. Esses indivíduos
independentes, mas isolados, são logo arrastados à disputa.
Essa disputa, mais tarde denominada por Hobbes de bellum
omnium contra omnes, é a luta pela posse dos bens terrestres
e pela preservação de cada um na multidão dos indivíduos.
Para o indivíduo, somente submetendo os outros por meio
da violência ou da astúcia é que pode ser coroada de êxito.
O tirano, portanto, é apenas o indivíduo que foi até o fim
das conseqüências do individualismo e dos seus métodos de
defesa. Sua segurança, com efeito, não é possível senão pela
dominação dos outros. Essa dominação torna o indivíduo
isolado (o tirano) realmente livre e independente no plano
individual, mas ela propaga ao mesmo tempo um novo tota­
litarismo sobre o rebanho dos seres que ele domina, com
fins puramente egoístas. Já não é mais o totalitarismo polí­
tico de uma verdadeira comunidade de seres independentes,
mas o totalitarismo ditatorial exercido sobre a massa domi­
50 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

nada. Ê a conseqüência imediata do individualismo que sus­


cita o ideal do tirano, a degradação da comunidade de seres
independentes. Se não se faz uma diferenciação correta en­
tre essas duas formas de totalitarismo, não se poderá com­
preender as condições de uma verdadeira comunidade polí­
tica, e se cria uma falsa alternativa entre duas posições socio­
lógicas (individualismo e tirania) que, de fato, andam juntas.
Eis o essencial: esse ideal sofístico do tirano, que se
desenvolveu a partir do desmoronamento dos vínculos mo­
rais e tradicionais, não é somente válido para a tirania em
sentido restrito, mas para todo partido, qualquer que seja
a forma pela qual realize seus objetivos e seu programa,
desde o instante em que seu comportamento coloca, por me­
nos que seja, o interesse do partido acima do interesse do
Estado. A divisão do Estado ocorre imediatamente, e toda
comunidade verdadeira desaparece. Como afirmou Spengler
a propósito da situação contemporânea: “ Compete ao sentido
político profundo de uma classe dirigente tratar as oposições
cívicas de tal forma que as energias e o pensamento da nação
não fiquem ligados à luta dos partidos e que a alta traição
não se apresente como a ultima ratio ( Untergang des
Abendlandes) . *
Não se pode estabelecer com certeza se a sofística pos­
terior expressou realmente essa teoria, da forma em que a
acompanhamos nos diálogos de Platão, seu adversário. Os
discursos ou outros escritos não foram conservados até nós,
mas isso não é fundamental. Basta que Platão tenha ex­
pressado de forma tão radical essa conseqüência da doutrina
dos sofistas. Se, com efeito, uma teoria não é justa, se chega
mesmo a ser considerada perigosa e ofensiva, não se poderá
nunca bani-la da face da Terra pelo simples fato de nós a
condenarmos, combatermos ou não a mencionarmos, porém
somente levando-a até suas conseqüências extremas. É en­
tão que ela se reduz à sua justa medida. A apologética de
sua própria erudição, a “ defesa” de um “ ponto de vista;\ da
mesma forma que o ataque ao adversário pela propaganda
ou a difamação atuam na maioria das vezes como se fossem
um bumerangue na mão de quem não soubesse utilizá-lo e

(*) Traduzido para o português e publicado sob o título A


Decadência do Ocidente, por Zahar Editores, Rio, 1964.
P r im e ir a s R eflexões So b r e a S o c ie d a d e 51

que acabasse decapitado pelo seu próprio instrumento. É


preciso que tenhamos sempre uma confiança tal na razão
que admitamos que o falso cai por si mesmo em contradição,
precisamente por ser falso.
Os sofistas não apenas ensinaram pela primeira vez uma
idéia social como foram ao mesmo tempo os criadores da
Pedagogia, na medida em que sua teoria social devia ser
conscientemente realizada pela educação. Não deixaremos
de encontrar, sob os aspectos mais diversos, essa combinação
da teoria social com a Pedagogia.
De que é feita essa educação sofística? Em primeiro
lugar, deveria tratar-se de uma educação que visaria à forma­
ção do polites, do cidadão. Mas sem o sentido moderno de
“ educação cívica” . Tratava-se antes de uma educação com
o propósito de fazer de cada cidadão um homem influente,
superior. A educação grega tradicional do período clássico
consistia em educar o jovem no Estado, em ensinar-lhe o
uso das armas e a maneira de se incorporar à falange; em
Esparta, fazia ginástica com seus camaradas, fazia a refeição
em comum e alimentava sua fantasia segundo os modelos
da poesia. Fazia o aprendizado da independência em sua
terra. Sua origem era a garantia de seu direito de partici­
par das decisões da polis, quando alcançasse a idade. À
medida que a idéia partidária de democracia avançava, a
coisa principal torna-se para ele saber influenciar, graças a
seus dotes oratórios, uma assembléia de cidadãos cada vez
maior e cada vez menos independente. Os sofistas tentaram,
então, ensinar a retórica, a liderança dos homens, a oratória,
com as quajs poder-se-ia conquistar influência sobre seus
concidadãos e ganhá-los para seus projetos.
Isto já é, obviamente,» uma “ superioridade dos meios” .
Os sofistas, além disso, exigiam pagamento pelo seu ensino,
q que não era hábito dos filósofos na Grécia. Os seus alunos
tinham, pela habilidade que lhes era ensinada, de tornar-se
superiores aos outros. Deveriam estar situados no lado bom
da vida: o dos exploradores e não o dos explorados; por isso
é que o ensino tinha de ser “ pago’\ Como o conhecimento
era sempre colocado em primeiro plano, eclipsando o sentido
e o objetivo da polis, o ideal do tirano e do demagogo era
assim favorecido. O usufruto egoísta de bens facilmente
adquiridos por uma superioridade técnica torna-se sempre,
52 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

em situações instáveis, o fim supremo que subsiste quando


se perde a visão mais profunda do sentido da vida (como,
por exemplo, a representada pela poesia de Ésquilo e de
Sófocles).
Ê óbvio que os sofistas não levaram à derrocada do Es­
tado grego. Não foram, como se ouve dizer freqüentemente,,
“ corruptores do povo” . Na época da decadência foram, con­
tudo, os primeiros a levantarem uma questão fundamental,
isto é, a do que é a comunidade política; não por um in­
teresse teórico, mas a fim de garantir sua existência e a de
seus discípulos. A intenção prática estava em primeiro plano.
Mas sua resposta, o conselho que davam a seus alunos, no
sentido de se garantirem, na queda da polis, uma existência
dourada, como demagogos ou tiranos, às custas da massa
dos imbecis, era problemática. Na verdade, o indivíduo só
pode fugir por um período muito curto à queda geral. É
aí que surge, mais do que em todas as doutrinas, que o homem
é um ser verdadeiramente social, dependente da sociedade.
Foi o que Platão e Aristóteles procuraram descobrir em sua
oposição à sofística. Haverá ensejo de mostrar até que ponto
suas idéias foram menos unilaterais, teoricamente mais pro­
fundas e praticamente mais duradouras do que as dos so­
fistas.
Em toda idéia social, a intenção prática de melhorar as
condições da existência deve ser distinguida do conhecimento
teórico da essência do homem e do Estado. Ambos estão
desde o princípio ligados entre si. O objetivo prático de
melhorar as condições de vida deve ser atingido pelo conheci­
mento de sua essência real. Mas, enquanto o pensamento
remonta às fontes, ele pode não só aí encontrar novos expe­
dientes, como fizeram os sofistas com a doutrina da superio­
ridade dos meios e o ideal do tirano, como também pode
alcançar os próprios princípios. Essa compreensão da essên­
cia pode então tornar-se um fim em si. Há, na origem e
na essência, outras possibilidades além das exigidas pelo sa-
neamento da situação do momento.
CAPÍTULO IV

Definição de Comunidade e Sociedade

jA lntes de nos adiantarmos muito, definiremos mais exata­


mente duas noções fundamentais: comunidade e sociedade.
Poderíamos tê-lo feito desde o princípio. Mas só agora é
que temos em mãos dados suficientes para impedir que as
idéias gerais se tomem muito abstratas ou sutis. Se a histó­
ria que vimos tratar pode aclarar os novos termos que agora
introduzimos, sua luz pode por sua vez precisar o que já
foi tratado aqui.
Um Estado, um corpo social, pode ser ou uma comu­
nidade ou uma sociedade. Até o presente, empreguei esses
dois termos de maneira geral e alternativa, mas, de agora
em diante, diferenciá-los-ei ao máximo possível. À distinção
remonta ao sociólogo Tõnnie$, e trata-se, em meu entender,
de uma das mais impoTtantes deSsa ciência, se se consegue
empregá-la corretamente. A Sociologia moderna, muito mais
zelosa de defender a liberdade de seus julgamentos e o ca­
ráter geral dos dados da estatística, colocou-a habitualmente
de lado (em minha opinião, com desvantagem para si).
Comunidade designa qualquer corpo social mais ou menos
importante (matrimônio, família, parentesco, tribo, povo, Es­
tado, associação, Igreja, seita e até uma fábrica ou uma em­
presa) somente quando os vínculos de seus membros, uns
em relação aos outros, são de tal forma primordiais e sólidos
que qualquer litígio que a vida possa ocasionar entre seus
membros se eleva além desse vínculo que nunca é posto em
dúvida. Sociedade é um corpo social em que os membros
54 H is t ó r ia das I d é ias S o c ia is

são originariamente independentes uns dos outros, mas que,


com o propósito de consolidar sua existência ou de realizar
certos anseios individuais (que podem ser ultrapassados),
se ligam por vínculos de diferentes espécies (por meio dos
quais permutam vantagens), mas que podem em princípio
ser dissolvidos quando seus objetivos são alcançados. Ilus­
tremos isso com dois exemplos.
Consideremos o vínculo que liga mutuamente dois seres
no matrimônio e o que liga um indivíduo à sua pátria. Por
mim mesmo posso decidir estabelecer o primeiro desses vín­
culos, enquanto o segundo me é imposto pelo náscimento.
No entanto, tanto um quanto o outro estão na base de uma
comunidade. Assim, diariamente apresentam-se no casamen­
to novos encargos: o dinheiro que é preciso ganhar, o com­
portamento e a organização do casal, a procriação e a edu­
cação dos filhos, o repouso, os lazeres. São objetivos isola­
dos. O casamento não é originalmente uma associação cria­
da para a realização desses fins. O vínculo do matrimônio
não enuncia as tarefas que deverão* ser realizadas. Afirma
somente que todos os problemas que a vida apresentará
doravante àqueles dois seres deverão ser resolvidos em co­
mum, sem prejuízo da divisão do trabalho e da desigualdade
das funções. A comunidade como tal está e permanece acima
de qua]quer fim particular e de todos os fins reunidos. Neste
sentido, como comunidade autêntica, o casamento seria (já
segundo sua definição) indissolúvel.
Já o mesmo não se dá com a pátria. Esta pode ser con­
siderada como uma comunidade na qual busco, mais ou me­
nos voluntariamente, escolhendo uma profissão e constituindo
uma família, certo lugar, ao qual me adapto e que defendo
com risco de vida, pois representa premissa de minha pró­
pria existência. Aqui a comunidade se concretiza em uma
escala maior, mas também é indissolúvel.
As comunidades são sempre alianças totalitárias, no sen­
tido não-individualista do termo. Isso não significa que aí
o indivíduo não usufrui qualquer independência ou que não
possa muitas vezes fazer algo que não tenha relação com a
comunidade, quer seja em seu trabalho, em seus lazeres ou
alhures; isso não significa que o problema indivíduo-comu-
nidade seja simplesmente eliminado em favor da comuni­
dade. Mas a independência do indivíduo não deve eximir-se
- D e f in i ç ã o de C o m u n id a d e e S o c ie d a d e 55

da comunidade, seus objetivos não devem prejudicá-lo. Se


for preciso, cada membro da comunidade deve colocar à sua
disposição todos os seus bens e até a própria vida, Não se
trata de uma coerção exterior n^rn de um imperativo da
razão; assim é porque a existência da comunidade é a con­
dição precípua da existência de cada um. O indivíduo não
tem (segundo sua definição nominal) nenhum direito prio­
ritário em face da comunidade, posto que sua própria vida
é a vida da comunidade.
Pode-se muito bem, sociologicamente falando, definir a
noção de comunidade unicamente pelas formas de compor­
tamento dos homens, que são» empiricamente controláveis.
Em um comportamento, pode parecer que a dissolução do
vínculo dominante não apenas modifica sua finalidade, como
em toda união social, mas também destrói o indivíduo. Po­
dem-se imaginar situações em que este seria o caso, como,
por exemplo, a autodefesa de um pequeno grupo, quando é
aparente que ninguém pode fugir e que a derrota acarretaria
a morte de cada um. Uma situação dessas encontra-se talvez
na origem da guerra crônica dos espartanos, numericamente
inferiores, contra os hilotas e os periecos, da constituição
e do tipo de vida dos cidadãos de Esparta. Comunidades
duradouras não se elevarão na história acima das relações
sociais efêmeras, senão quando seu vínculo venha a se basear
na fé absoluta em sua união e não apenas em considerações
utilitárias ou racionais. O vínculo deve ser então, no sentido
de tal fé, metafísico, como, por exemplo, o amor no casa­
mento, com o compromisso que ele implica.
Eis agora, em oposição à comunidade, um vínculo de
sociedade: alguns indivíduos, por exemplo, associam-se para
explorar uma mina de ferro. Um fornece o capital, outra
seus conhecimentos técnicos, um terceiro é comerciante. Con­
tratam-se operários e funcionários. À associação tem um fim
determinado: a exploração e a valorização da mina de ferro.
Cada um dos participantes, inclusive os operários e funcio­
nários, aufere dela certas vantagens, e tem de proporcionar
trabalho, ao fornecer recursos. O vínculo só existe en­
quanto perduram esse fim e essas vantagens, não diz respeito
à existência dos participantes, e pode ser desfeito quando as
finalidades forem alcançadas. Além disso, cada participante
pode, à sua maneira, participar de outros negócios ou de
56 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

outras associações. Isso não lhe acarreta, em princípio, ne­


nhum conflito, enquanto seja esse o caso quando de uma par­
ticipação em comunidades diferentes. O casamento feito
entre pessoas de nacionalidades ou confissões diferentes,
a união de Estados com Igrejas ou seitas diferentes, a união
de Igrejas distribuídas em diferentes Estados, abrigam sempre
— a história ensina — matéria de conflito; uma das diferen­
tes comunidades deve subordinar as outras, e isso já entra
em contradição com a noção de comunidade. Na mesma
categoria da empresa ou sociedade anônima, pode-se citar
como exemplos de laços de sociedade, em oposição aos laços
de comunidade: uma associação de estímulo aos movimentos
musicais, um contrato d e . trabalho firmado por um prazo
determinado, uma coalizão de Estados a fim de se protege­
rem das ameaças de um terceiro, ou mesmo toda compra
ou troca.
Pode-se exprimir o sentido tanto de uma comunidade
quanto de uma sociedade, de forma jurídica, por contrato-mo-
delo. Toda comunidade seria um contrato existencial per­
manente com finalidades variáveis, toda sociedade um con­
trato com objetivo determinado, limitado em princípio no
tempo, como, por exemplo, uma convenção coletiva entre
empregadores e operários. Poder-se-ia representar simbolica­
mente isso do seguinte modo:

a) b)

# XX
As linhas representam a duração da existência dos dois
ou mais sócios; as setas, seus objetivos e seus propósitos. Em
um caso, a), o vínculo envolve as linhas que representam a
duração da existência, e não pode ser suprimido. Os obje­
tivos, em compensação, são sempre ligados no tempo às li­
nhas de vida reunidas; eles são, em relação ao vínculo da
comunidade, abertos e se pode fazê-los variar. No outro
caso, b ) y as linhas da existência encontram-se em um tempo
preciso a propósito de fins precisos e juridicamente definí­
veis (à esquerda), ou então em um trajeto determinado, para
poder em seguida separar-se quando surjam outras ocasiões.
D e f in i ç ã o de C o m u n id a d e e S o c ie d a d e 57

“ Sociedade” e “ comunidade” são, no sentido de Max


Weber, noções ideais, ou tipos. São, como conceitos, defi­
níveis em seu caráter próprio e exclusivo; qualquer que seja
a maneira por que se as defina, elas se diferenciam absolu­
tamente uma da outra. Nessa diferenciação, servem de mo­
delos ao conhecimento da realidade, isto é, do caso isolado,
passado ou presente. Mas esse caso da realidade não pre­
enche absolutamente as condições do conceito-modelo. Este
é, e permanece, diante da realidade, como uma simples defi­
nição nominal. A realidade é sempre mais que o puro con­
ceito, situando-se de fato entre as distinções, ou deslocan­
do-lhe o signifiQado. O conceito-tipo não é contudo des­
tituído de valor; ele é necessário se se quer que a ordem
intervenha na realidade. Mas seria exagero pretender que
em dado fenômeno, que temos diante dos olhos, seja uma
comunidade ou uma sociedade, conforme indiquem seu con­
ceito e sua definição.
A distinção entre comunidade e sociedade só é exclusiva
no que diz respeito à noção do vínculo. No interior do grupo
social ou se subordinam entre si ou se entrecruzam. Todos
os vínculos sociais podem ser, de fato, considerados como
sendo unicamente vínculos de sociedade. Mas isso é um caso
extremo, possível apenas na teoria. Por outro lado, nem todas
as relações de um grypo podem jamais ser interpretadas
como sendo Telações de comunidade. A regra é que uma
ou várias comunidades mantêm um grupo unido, como, por
exemplo, o vínculo político, e que no seio dessa criação fun­
damental se estabeleça uma multiplicidade de relações e de
contatos sociais efêmeros entre os membros desse grupo, su­
jeitando-se ao quadro da comunidade.
Em sua origem, associações como o casamento e a pátria,
e também a Igreja, o Estado ou o Império, tendem, sempre,
na história, a verdadeiros laços de comunidade, enquanto as
empresas econômicas, as compras, os contratos de trabalho
ou as alianças defensivas tendem a laços de sociedade. Isso
porém não é absoluto. O casàmento, por exemplo, pode
também entender-se, sob o efeito de diferentes tendências e
de diferentes pontos de vista, como uma união sexual ou
como uma união com a finalidade de utilizar certos bens
e que se pode dissolver, e cujo vínculo não é profundo
a ponto de estar acima dos objetivos essenciais e dos an­
58 H is t ó r ia das I d éias S o c ia is

seios dos sócios. O casamento não é portanto uma co­


munidade, mas, da mesma forma que uma empresa ou
um contrato de trabalho, uma associação dependente da
sociedade e limitada no tempo. Igualmente, a pátria pode
ser considerada como o lugar mais ou menos indiferente e
intercambiável onde vivo e me beneficio da proteção das
leis. Ubi bene, ibi patria é uma divisa que existiu não so­
mente nos Estados gregos e no Império Romano, mas em
épocas bem diferentes. Não se trata portanto de comuni­
dade, mas de sociedade, da mesma forma que um clube de
futebol ou uma sociedade de criadores de coelhos a que me
filio e que abandono quando suas finalidades não mais me
convêm, ou da mesma forma que uma sociedade anônima
da qual posso comprar ou vender ações conforme sua cota­
ção e minhas necessidades.
Por outro lado, um vínculo que depende em sua origem
da sociedade, e que é rescindível, como um contrato de tra­
balho, pode, devido a que as relações entre as partes se tor­
nam mais estreitas e se transformam em uma relação de res­
ponsabilidade recíproca ligando toda a vida, assumir o cará­
ter de um laço de comunidade. Foi esse o caso, por exemplo,
do serviço militar recompensado com a concessão de uma
propriedade, no último período da Antiguidade e na Idade
Média, quando se delineava paulatinamente uma relação de
fidelidade e de lealdade entre o senhor e sua corte, relação
que em muito se assemelhava à comunidade. Isso seria pos­
sível ainda hoje, mas seria preciso que a explotação ou a
empresa se tornassem realmente um negócio em que patrões
e operários aprendessem, na busca de seus fins, por mais
particulares que fossem, a se sentirem responsáveis reciproca­
mente. E responsáveis capazes até de empenhar toda a sua
existência.
Nas relações dos indivíduos, as fronteiras entre comuni­
dade e sociedade serão sempre frouxas, acentuando-se uma
ou outra característica. Trata-se? na história, de reconhecer
cada vez seu grau, que não poderia ser percebido sem a
distinção dos extremos. Nas teorias sociais, em compensação,
é característica a maneira pela qual dividem “ comunidade“’
e “ sociedade” , isto é, os vínculos, para os quais elas reque­
rem a indissolubilidade e a durabilidade, e aqueles, para os
quais se contentam com uma simples permuta utilitária, limi­
D e f in i ç ã o de C o m u n id a d e e S o c ie d a d e 59

tada no tempo. Existe, por exemplo, uma diferença entre a


família como comunidade de importância bem secundária
e aquela dissolvida em proveito de uma espécie de “ associa­
ção” ou de “camaradagem’’ de guardiães masculinos e femi­
ninos (como em Platão). Também existe diferença se, ao
contrário, todas as relações políticas são sistematicamente
reduzidas a relações referentes pura e simplesmente à socie­
dade, e que somente seja considerada como verdadeira comu­
nidade (como em Epicuro) a relação “ privada'’ de amizade.
A determinação dessa distinção permite precisar o caráter da
idéia social.
É nesse sentido que os dois conceitos-tipos devem ser
aplicados aqui com referencia às idéias sociais. Se> assim
fazendo, certas relações, como o casamento e a pátria, tive­
rem sido chamadas em vista de sua natureza de “ relações
de comunidade” , e somente por uma mutação das “ relações
de sociedade” , se outras relações, como as das empresas, entre
patrão e empregado, como a compra e a troca, tiverem sido
chamadas de “ relações de sociedade ’, e somente por uma
mutação das “ relações de comunidade” , essa “ mutação'’ não
deve ser'em princípio um julgamento de valor. As coisas não
são tais que toda mutação signifique degenerescência por si
só. A evolução da comunidade para sociedade é tanto uma
desvalorização deplorável quanto a evolução dos vínculos de
sociedade para vínculos de comunidade uma revalorização
desejável. O que é degenerescência, o que é de desejar ou
deplorar, deve ser pesquisado e estabelecido (sem temor dos
julgamentos de valor) pàra cada caso histórico isolado, a
partir de seu contexto geral. O puro conceito-tipo é, por
isso, muito abstrato e muito pobre. Assim, por exemplo, a
fidelidade acrescentada a uma empresa pode ser antes mo­
tivo de satisfação, enquanto, em compensação, o fanatismo
intolerante de um partido, que acredita dever esmigalhar a
cabeça de seus adversários, é ridículo ou maligno.

Voltemos às idéias sociais que a história nos deu a co­


nhecer até aqui e procuremos defini-las, uma vez mais e mais
exatamente, à luz de nossos conceitos-tipos.
Falamos de três idéias sociais em sentido amplo (isto é,
formas de organização de grupos): os grupos do período
glaciário, começo da evolução humana, o império egípcio,
60 H is t ó r ia das I d é ias S o c ia is

exemplo da realeza sagrada oriental, e a polis grega, “ go­


verno dos governados” . E tratamos de uma idéia social em
sentido estrito: a dos sofistas. Que dizer desses quatro
casos?
Os grupos do período glaciário, o império egípcio e a
polis grega eram comunidades não subordinadas, com, obvia­
mente, diversas relações internas dependentes da sociedade
(sobre as quais não nos estendemos). O critério de uma
comunidade autêntica, considerado como absoluto, metafísico,
superando a individualidade de seus membros, aparece nos
três casos, sem equívoco, ainda que cada vez de maneira
diferente. Trata-se nos três casos de um vínculo simultanea­
mente político e religioso (o Estado e a Igreja não estando
ainda separados, como mais tarde no cristianismo).
Nos grupos do período glaciário, consideramos a magia
pictórica do curandeiro como o meio fundamental da forma­
ção da comunidade. Somente essa magia podia unir indiví­
duos em um grupo e ensinar-lhes a enxergar além deles mes­
mos, a se reconhecer na comunidade. Na realeza sagrada
orienta^, o rei era a personificação cultural, religiosa e polí­
tica do Estado, da comunidade enquanto tal. O bem do
rei era o bem de todos e de cada um. O rei era deus, por­
tanto imortal, isto é, vivendo através de todas as suas mortes
e suas ressurreições. E no tei, a comunidade era também
imortal, acima dos indivíduos que nascem e morrem, com
suas tarefas e suas relações sociais.
Quanto à polis grega, não era regida por um homem, e
seu bem não era representada pelo bem de um rei. Os
homens proprietários de terras e de meios de defesa ali eram
livres e se governavam através de decisões tomadas pela
maioria na assembléia dos cidadãos (não era essencial que
seu círculo fosse pequeno ou grande, aristocrático ou demo­
crático). A polis era também, na idéia e na intenção de
sua fundação, uma comunidade e não uma sociedade. Pra­
ticamente, seus vínculos eram tão indissolúveis e preponde­
rantes quanto os dos dois exemplos anteriormente citados.
A liberdade dos que se governavam a si próprios não podia
ser mantida se não se situasse acima da existência de cada
indivíduo. A polis também foi não só uma comunidade po­
lítica, mas uma comunidade cultual, santificada diante de
todo indivíduo. O indivíduo isolado podia, naturalmente,
D e f in i ç ã o de C o m u n id a d e e S o c ie d a d e 61

para além das decisões da comunidade que o vinculavam


e das quais participava, estabelecer no exterior ou no qua­
dro dessa comunidade relações sociais diversas, Mas, em
caso de necessidade, sacrificava de imediato sua vida à co­
munidade e à liberdade desta última (como freqüentemente
celebraram os ^poetas gregos e Tomanos).
Que podemos dizer sobre a idéia social dos sofistas?
Vimos que os vínculos de comunidade da polis come­
çaram a se afrouxar depois de sua primeira grande prova,
nas guerras pérsicas. Um afrouxamento da comunidade sig­
nifica sempre que seus vínculos sociais tendem a tornar-se
autônomos, independentes. Na sociedade pura, o indivíduo
basta-se a si mesmo, apesar ou contra a comunidade; dispõe
de tratados que celebra ou anula. A subordinação do Estado
a grupos poderosos, como os partidos, e a ascensão destes
partidos a formações que se substituem ao Estado são um
sinal da dissolução de uma verdadeira comunidade. A ten­
tação, para os homens, de colocar o interesse do partido
acima da prosperidade do Estado é grande. Toma-se então
o partido um instrumento de poder, cujo objetivo é a ocupa­
ção dos postos de comando e a outorga dos cargos públicos
aos membros do partido. Isso se compara com a estrutura
da tirania, quer se trate de chefes isolados que dominam os
partidos ou de uma súcia de mentores colocados na retaguar­
da. Assim aconteceu na Atenas de Cléon, no século IV, e
isso após o julgamento de Aristóteles, a favor do partido
democrático.
Duas coisas surgem na teoria social dos sofistas: a deca­
dência da polis, sua passagem de uma situação ligada à idéia
de comunidade a uma situação em que os objetivos egoístas
da sociedade se tornam autônomos levam os sofistas a se per­
guntarem o que é, em suma, a formação de grupos sociais
humanos, qual seu sentido e por que ocorre. A primeira
resposta é a doutrina do nascimento da idéia social na fábula
de Protágoras de que tratamos. Seu apelo à justiça, à humil­
dade e à responsabilidade nas relações humanas coloca como
necessária a existência de uma verdadeira comunidade.
Mas isso é abertamente pronunciado contra a decadên­
cia da polis que estava começando. Sabe-se que Platão con­
sidera o regime democrático de Péricles, em Atenas, do qual
Protágoras foi contemporâneo, entre essas formas de deca­
62 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

dência. Onde não existe mais verdadeira comunidade, o


indivíduo é constrangido a garantir sua existência contra os
outros, aos quais estivera até então ligado. A defesa radical
do indivíduo contra os outros é a tomada do poder absoluto,
isto é, a tirania. O tirano nada é mais no plano social que
o indivíduo independente, não mais subordinado aos outros
nem à comunidade, mas que subjuga e explora outrem, para
não tomar-se dependente. A doutrina do tirano, que Platão
apresenta como a intenção final da idéia social sofística, em
figuras como Calicles e Trasímaco, é uma conclusão lógica,
quando são reconhecidas as condições instáveis da polis, após
as guerras pérsicas, e se indaga sobre seu sentido: trata-se
então de uma comunidade que se decompõe em sociedade.
Somente os gregos, na história, tiveram a coragem moral de
expressar assim, sem véu nem hipocrisia, o ideal do tirano
pelo que ele é, e, ao mesmo tempo, de mostrar sua necessi­
dade em tal situação histórica.
CAPITULO V

Sócrates

E m Atenas, na época dos sofistas, havia movimentos qile


não aceitavam a dissolução da antiga comunidade e não con­
cluíam que o indivíduo agora tinha como tarefa proteger sua
existência contra a comunidade. Desejavam restabelecer a
antiga polis como fora outrora. Empregando uma expressão
moderna, poder-se-ia encará-los como “ reacionários” . Deviam
naturalmente chegar ao oposto da teoria social dos sofistas,
de seu ideal do tirano e de sua educação do homem visando
a uma independência pela superioridade dos meios. O poeta
Aristófanes pertence a esses movimentos. Autor de comédias
eminentemente políticas, é ainda hoje o que está mais ao
nosso alcance.
Na história, uma reação jamais é coroada de êxito. Se
ela consegue restabelecer a ordem antiga para a qual tende,
é somente às custas de uma opressão violenta das idéias no­
vas. A coisa é possível quando de modo muito temporário
e sob formas limitadas, como a Esparta do século IV. A
vida está submetida à mudança: uma verdadeira conserva­
ção não pode realizar-se através da manutenção ou do resta­
belecimento das formas antigas, mas somente através da
manutenção dos vínculos originais nas formas novas criadas
por uma situação nova. Sócrates não pertencia à reação de
seu tempo. Aristófanes é dela um exemplo (um exemplo
que, devido a sua arte, faz-nos olvidar os lados ruins)! Mas
em Aristófanes, Sócrates, o vencedor da doutrina social dos
sofistas e de seu ideal da tirania, é considerado também entre
esses sofistas.
64 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

De fato, Sócrates situa-se, como os sofistas, no terreno


dos homens esclarecidos de sua época. Indaga, como os
sofistas, o que é o homem. E também é de opinião, como
eles, de que o conhecimento, que se adquire pela indagação,
é o único meio de mostrar ao homem seu propósito de
conduzi-lo na vida ou, conforme a expressão platônica, de
torná-lo “ melhor” . Assim Sócrates não pode e não quer
retornar à antiga comunidade natural. Em lugar de se inse­
rir, sem hesitação, em uma polis cuja existência é évidente,
coloca ele, da mesma forma que os sofistas, a questão que
exige uma justificação de toda comunidade. E afirma, ao
mesmo tempo, uma confiança absoluta na razão, consideran­
do que para uma interrogação lançada suficientemente longe,
tudo se aclara e que o caminho correto pode assim ser des­
coberto. O ideal do tirano não passava de uma expressão,
sob a forma de uma doutrina, das condições sociais que então
existiam em Atenas (e em graus diversos nas outras cidades
gregas).
Consciência da razão, reflexão social, indagação, tudo
isso Sócrates retoma dos sofistas. Mas ele se inquire tam­
bém sobre eles mesmos e leva assim as conseqüências da
reflexão até o absoluto. Indaga, com efeito, se o ideal do
tirano da doutrina sofística é, nesse ponto, conseqüente e
possível de ser aplicado sem que se destrua a si próprio. Vai
assim ao cerne do problema. E é a esse respeito que ele
realmente confia na razão: quer dizer que, se uma coisa nao
é realizável na vida e leva a um fracasso, é que então sua
concepção teórica deve conter contradições. Assim é sua
dialética e sua afirmação de que o “ conhecimento” , isto é,
a reflexão conseqüente, liberdade de qualquer contradição,
pode tornar os homens “ melhores” .
Sócrates não escreveu um livro, não ensinou qualquer
doutrina. Se se lhe atribui ainda a criação do conceito como
método e da Ética como disciplina, trata-se de uma lenda
inextirpável. Historicamente, só se pode dizer de Sócrates
duas coisas: como se desenvolveu sua vida e como sua exis­
tência influenciou sua época, o que se infere dos diálogos
de seu discípulo Platão. Todas as outras fontes são insufi­
cientes: Xenofonte e Aristófanes porque o viam à luz defor-
mante do espírito e do partido deles, Aristóteles porque ar­
ruma a história conforme seu sistema: Platão somente teve
Sócrates 65

a grandeza de deixá-lo tal como ele era e de distinguir sua


própria doutrina da figura de Sócrates.
Eis o que encontramos em seus primeiros diálogos: o
essencial de Sócrates reside na interrogação que ele faz aos
homens, indagando-lhes o que são, o que fazem, como o fa­
zem, o que querem e porque o querem. Não é preciso de
modo algum acreditar que Platão tivesse pretendido que
Sócrates, apenas e exclusivamente, passeasse por Atenas, in­
terrogando os homens de forma indiscreta, como aparece na
imagem de seus diálogos.
O próprio Sócrates — e isso é demonstrado sem equi­
voco em Platão — ateve-se à interrogação, que leva ao ex­
tremo, e que repete sem cessar. Em sua essência, essa inter­
rogação nada mais é senão o apelo à razão dos homens.
Devem justificar-se a seus próprios olhos, justificando-se
diante da pergunta de Sócrates ou diante da questão que
significa a existência de Sócrates. Sócrates não lhes apre­
senta nenhuma doutrina, não coloca nenhum princípio ou
dogma; ele afirma: se viveis em conformidade com isso, está
bem; se não, está mal. A razão, como questão levada até
o fim, não é senão uma conseqüência. Se o motivo de minha
ação me aparece claramente, tudo o que é falso e ruim deve
desmascarar-se como uma contradição. Mas preservar-me-ei
da contradição se confio realmente na razão. Assim, posso
não fazer o mal, ou melhor: não farei o mal se estou cons­
ciente dos motivos e das conseqüências de meus atos,
Isso é demonstrado de modo polêmico nos primeiros
diálogos socráticos de Platão, inicialmente na repetição da
questão sofística sobre as relações do homem com a comuni­
dade e no exame da doutrina social daí decorrente: a dou­
trina do tirano como finalidade da existência, no diálogo de
Górgias. A questão de saber se o tirano é feliz, ou não, é
resolvida negativamente. Certamente, ele triunfou sobre ou­
tros e é, como indivíduo, independente deles, que exploTâ
em seu proveito pessoal e em proveito dos seus. Aparente­
mente, conseguiu-se a preservação de um indivíduo separado
da comunidade. Mas só na aparência. Na verdade, o tirano
vive sem moderação, continuamente receando conspirações,
escravo de seus vícios e de seus desejos. Mesmo que não
inorra de morte violenta, não estará satisfeito com sua vida.
Sua alma deperece. A vida feliz, em um sentido profundo e
66 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

duradouro, diante do prazer efêmero, é portanto o topos que


tem a preferência tanto de Sócrates como dos sofistas; ela
é considerada por todas as doutrinas sociais como o único
objetivo digno de ser alcançado. Sócrates demonstra que o
ideal do tirano, e tudo que a isso conduz, está em contradição
com essa moderação.
Sócrates pode descobrir essa contradição por meio de
perguntas, invocando aquilo em que seus inimigos crêem,
aquilo a que visam: precisamente a preservação, na derro­
cada da comunidade, do indivíduo autônomo contra a comu­
nidade. Mas nada mais pode ele com suas questões. Não
pode nem quer impor nada de novo ou antigo por meio da
ditadura, a formação de um partido, a demagogia, a educa­
ção ou a fé. Se os homens não desejam ver claramente as
conseqüências de seus atos e por elas regular sua conduta,
é-lhes necessário aprender, através das conseqüências e dos
sofrimentos, a contradição de seu comportamento, e even­
tualmente perecer. Nesse sentido, a Filosofia, que é inter­
rogação, permanece impotente, e com ela a razão. Tornar-se-
-ia infiel a si própria se se manifestasse pela violência, e pela
injustiça ligada a toda violência, sob a forma de uma dita­
dura. A salvação dos homens a qualquer preço é impossí­
vel, porque a santificação de meios ruins através de uma
boa finalidade destrói a qualidade dessa finalidade. A polis
grega, aliás, pouco depois de Sócrates sucumbiu às contra­
dições em que caíra sua idéia social, por não ter ouvido
aquele que a interrogava e a alertava.
O que, além disso, é decisivo na indagação de Sócrates
é a maneira como ele próprio se comportou diante de sua
pátria. Lançou assim os alicerces de toda a doutrina social
posterior, de Platão e Aristóteles, até Epicuro e o estoicismo,
que só puderam triunfar sobre a sofística apoiando-se no
destino de Sócrates.
Sócrates, como Platão o representa em seus primeiros
diálogos, cumpriu seu dever como se ainda vivesse numa
comunidade íntegra. OpÕe-se inabalavelmente, por exemplo
(de conformidade com a idéia social de “ governo dos go­
vernados’ ), à condenação injusta dos generais das Arginusas,
ainda que a populaça, excitada pela demagogia, tivesse de­
sejado que a decisão fósse outra, e impusesse sua vontade.
Durante o regime aristo-reacionário dos Trinta Tiranos, re­
Sócrates 67

peliu igualmente as exigências dos homens no poder, ainda


que isso lhe pudesse ser perigoso. Enfim, deu provas de
sua capacidade como soldado, numa situação que para todo
soldado é a mais difícil, a retirada depois de uma derrota
geral. Representava, portanto, realmente, nesses tempos de
decadência, o cidadão livre que assumia seu lugar no con­
junto da comunidade. E quando a ele se constrangiu que
declarasse quais tinham sido seus méritos em vida, tinha o
direito de reclamar para si uma veneração particular. Ê
assim que Platão apresenta os fatos na Apologia.
E apesar disso, 011 talvez precisamente por causa disso,
Sócrates indispôs-se com todos os partidos da cidade de seus
antepassados e foi, no fim da vida, acusado de ter corrom­
pido a juventude. No processo, apresentou-se sozinho, por­
que sempre dera primazia à razão medida pelo direito do
Estado e à comunidade, mais que aos interesses particula­
res dos partidos (democráticos ainda que reacionários e dita­
toriais). E porque estava sozinho (como cidadão autêntico
de uma comunidade que, na verdade, não mais existia), foi
condenado à morte por pretextos fúteis. Mas os que se acha­
vam no poder tinham a consciência pesada. Talvez não ti­
vessem visto com maus olhos a sua fuga, livrando-se do
castigo. Deram-lhe ensejo para isso e Sócrates tinha bastan­
tes amigos para lhe ajudarem. Foi precisamente nessa situa­
ção que Sócrates tentou mostrar, na prática, o que é uma
comunidade e até que ponto sua crítica da teoria sofística
(preservação do indivíduo autônomo contra a comunidade)
era baseada em sua personalidade.
Teria tido a possibilidade de emigrar e de combater sua
pátria, do exterior, visto que estava errada e agira errado
com ele. Muitos tinham agido assim outrora (e, entre esses,
estavam homens da eminência de um Temístocles ou Alci-
bíades). Partiam para terra inimiga, para Esparta ou para
junto do rei dos persas, a fim de aconselhá-lo contra a pátria
deles. Sócrates não os imitou. As razões disso Platão deu-as
de forma muito sóbria no Críton.
A razão lhe dizia que sua pátria, Atenas, o criara, lhe
conservara até na velhice a possibilidade de viver e a liber­
dade de agir. Aceitara tudo isso e tinha procurado, no qua­
dro da constituição, obter uma audiência para suas opiniões.
Se as condições em que vivia não lhe tivessem convindo,
68 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

teria podido, na idade adulta, sair da cidade (tratava-se de


um direito liberal, particular a Atenas). Certamente, o Es­
tado e seus representantes atuais condenaram-no agora, em
um último processo e por violação da justiça, Mas visto que
desde sua juventude aceitara os benefícios da comunidade,
forçoso ser-lhe-ia considerar-se como um traidor, se se se­
parasse dessa comunidade. A comunidade, na medida em
que ainda é uma verdadeira comunidade, não subsiste so­
mente para além de suas ações isoladas, ela permanece mo­
ralmente o mesmo objeto, qualquer que seja a maioria que
a represente. Permanece a mesma ainda quando comete
uma injustiça. Portanto, Sócrates deve aceitar a pena que
ela lhe inflige, sob pena de tornar-se traidor àquilo que é
superior a ele, indivíduo. Não pode aproveitar a oportuni­
dade do exílio.
Isso significa algo diferente de uma aprovação da in­
justiça que a comunidade comete, ou mesmo de uma par­
ticipação nessa injustiça. Sócrates poderia lembrar que du­
rante toda sua vida opôs-se, dentro das leis, a uma injus­
tiça dessas. Foi o que fez ao tomar sua defesa durante o
processo. As próprias leis dão-lhe a possibilidade de resis­
tir à injustiça. Não fugir significa apenas que é preferível,
para o indivíduo inocente, despedaçar a injustiça com seu
sofrimento do que remediar essa injustiça pela violência.
Resistir pela força, e do exterior, à comunidade é prejudicar
o vínculo preponderante da comunidade e, dessa forma, o
direito mais elevado; é cometer uma nova injustiça. A vio­
lência é a resistência à injustiça com uma nova injustiça. Ê
com esse sentido que, no Górgias, Platão faz dizer a Sócra­
tes, que se defronta com a morte, que “ sofrer a injustiça é
melhor do que cometê-la” .
Pode então afirmar-se que Sócrrates agiu como se o
Estado de seus ancestrais ainda fosse uma comunidade. Mas
não agiu mais como qualquer bom cidadão de outrora, em
virtude de um vínculo religioso, primitivo e natural, mas
em virtude do novo princípio “ sofístico” (mas pensado ate
seus extremos), da razão isolada, autônoma. Na forma de
sua ação, ele era inteiramente moderno. No conteúdo, já
estava desatualizado. Enquanto, com efeito, ele procedia
dessa forma tradicional, com um senso eminente da justiça,
enquanto se submetia de bom grado à comunidade, sacrifi­
Sócrates 69

cava-se a ela a exemplo dos heróis políticos, e ainda que


devesse para isso ter de morrer, manifestava em sua pessoa
que sua pátria, dilacerada pelos partidos, não era mais uma
verdadeira comunidade. A comunidade, como tal, não pode
cometer injustiças. Se, contudo, as comete e se é preciso que
aquele que a colocou acima de seus interesses pessoais morra,
ela não é mais uma verdadeira comunidade de cidadãos li­
vres e independentes. Ela contradiz sua essência por sua
conduta. A intenção dos primeiros diálogos platônicos é
mostrar isso, e é por esse motivo que SócTates é sua figura
principal. Com a morte de Sócrates começa o fim da polis,
enquanto comunidade, porque ela se tomou, no processo in­
tentado contra o filósofo, infiel a si própria, porque contra­
disse fundamentalmente a idéia social que nela residia.
Todas as teorias sociais gregas ulteriores, de Platão e
Aristóteles até Epicuro e o estoicismo, não se mantêm mais,
enquanto filosofias, de forma tão simples e natural no Es­
tado como a de Sócrates. Não refletem mais sobre o Estado,
como Sócrates, no interior do Estado. Já tentam saívar a
comunidade social, restabelecê-la ou modificá-la, colocando-
-se, por assim dizer, no exterior. Nesse sentido, não têm
nenhum topos histórico, nenhum vínculo historicamente defi­
nível, como ainda havia em Sócrates, de onde pudessem ao
mesmo tempo pensar e viver a comunidade. O pensamento
delas seria antes “ utópico” . O “ lugar” de onde esboçam
suas idéias sociais é agora o valor geral da própria Filosofia,
que não se situa mais, desde a morte de Sócrates (e somente
depois dessa data, 399 a. C.), na realidade social grega, com
a qual não compartilha mais o destino.
CAPITULO VI

Platão

JP l a t ã o (427-347) deve ser caracterizado historicamente como


o adversário da dissolução sofística da comunidade social e
como o teórico do princípio socrático de uma integração
racional no Estado do cidadão socialmente isolado, após a
degradação da idéia social pré-sofística da polis grega.
Isso corresponde à sua própria concepção da origem e
do desenvolvimento de seu pensamento social, concepção
que, chegado a uma idade avançada, ele expõe em uma visão
retrospectiva sobre sua vida. Diz na sétima de suas Cartas:
“ No tempo longínquo de minha mocidade, experimentei um
sentimento semelhante ao de muitos outros: tinha a intenção,
tão logo mandasse em mim, de orientar-me para os negócios
públicos. Surgiram então complicações em meio a meu ca­
minho” . Ele narra duas tentativas. Durante o governo dos
Trinta Tiranos, foi solicitado por a^uns parentes a partici­
par na direção do Estado. Aguardava por novos homens
no poder que pusessem paradeiro à injustiça que reinava. Mas
decepcionou-se amargamente: a situação piorou. O próprio
Sócrates, a quem o ligava uma grande afeição, devia tomar-
-se cúmplice dessa injustiça ao receber ordem de prender
um cidadão, apesar de sua inocência. Com risco de vida,
Sócrates recusou-se a fazer isso. Platão também se afastou
dessa gente e se retirou.
Ainda não renunciara a sua intenção depois da queda
dos Trinta, o que se deu logo depois. Teria podido, então,
na tradição da família de seu sogro, participar na democracia
P latão 71

restaurada por Trasíbulo. De fato, os democratas de volta


ao poder deram prova, em sua opinião, “ de uma dose não
desprezível de eqüidade” . Referia-se certamente à anistia
decretada por Trasíbulo. Mas o destino interpôs-se mais uma
vez. Sócrates, que de outra feita se opusera à prisão injus­
tificada de um democrata, foi acusado por alguns dos ho­
mens no poder e condenado. “ Se no princípio fui possuído
do desejo de me dedicar a uma atividade política, acabei
finalmente sendo presa de uma vertigem à vista de tudo
isso, à vista dessa agitação geral e sem objetivo. Não deixei
de continuar refletindo sobre os meios pelos quais se poderia
um dia alcançar uma melhoria, tanto no que se refere às
circunstâncias como em relação ao regime político em geral.
Mas eu esperava sempre pelo momento propício para come­
çar; e, finalmente, a propósito de todos os Estados que
existem atualmente, concluí que todos, sem exceção, têm um
regime Tuim. Suas leis são imperfectíveis, a não ser que um
feliz acaso venha a contribuir para que esforços extraordi­
nários surjam em seu socorro. Vi-me assim reduzido a cul­
tivar a verdadeira Filosofia, com a qual eu podia pretender
que somente a partir dela é que a vida dos Estados e dos
indivíduos poderia ser orientada para a justiça. Ora, o gêne­
ro humano não verá cessar seus males antes que a raça dos
que praticam a Filosofia correta e autenticamente tenha as­
cendido aos cargos do Estado, ou então que, em virtude de
uma disposição divina, a Filosofia seja realmente praticada
pelos que detêm o poder nos Estados” . (Esta última frase
é uma repetição. Ela já se encontra na obra de Platão, A
República.)
Ele justifica então o afastamento da vida pública em que
deseja manter-se da seguinte maneira: “ O homem sensato
certamente fará ouvir sua voz, quando lhe parecer que o
Estado não está no bom caminho; só o fará se puder fazê-lo,
nem em vão nem se expondo a ser morto. Mas ele não cau­
sará qualquer mudança brusca no regime político de seu
país. Antes, manter-se-á tranqüilo e pedirá aos deuses pelo
seu bem pessoal e pelo bem da Cidade” . As duas viagens
posteriores de Platão à casa de Dionísio da Sicília, feitas con­
tra sua vontade, não constituem uma participação política,
participação que não teria sido possível para ele a não ser
em Atenas, mas uma espécie de arbitragem no estrangeiro,
corno não era raro acontecer na Grécia.
72 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

O “ sucedâneo” de uma atividade política foi para Platão


a função da Academia. Esta tinha como único objetivo for­
mar alunos procedentes de todas as cidades gregas e deles
fazer reformadores políticos para essas cidades. Os diálogos,
dos quais retiramos hoje em dia a filosofia social de Platão,
são, por assim dizer, apenas o subproduto irônico dessa pe­
dagogia prática e política. A Academia não mantinha qual­
quer relação com o Estado ateniense ou com outro Estado.
Era uma escola puramente privada, conservando-se igual­
mente afastada dos partidos políticos de seu tempo. É es­
sencial a diferença entre essa posição e a participação de
Sócrates no Estado durante sua vida e até a morte.
Das três obras políticas de Platão: Politeia: A República,
Politikos: O Político, e Nomoi: As Leis, a primeira é a mais
importante. O político é um suplemento que assimila as
experiências de Platão no contato com a tirania siciliana e
as doutrinas dos pitagóricos. As Leis, última obra, interrom­
pida pela morte do autor, caracterizam-se por constituírem
uma “ segunda via” , pois a autoridade da religião já começa a
substituir o livre julgamento socrático baseado na razão. Elas
levam ao helenismo.
Não é por acaso que Platão expõe seu pensamento em
forma de diálogos, ou porque esse gênero de exposição lhe
agradasse particularmente. A razão, o livre pensamento, li­
gado somente pelo princípio de contradição, deve solucionar
os problemas políticos. Filosofia qüer dizer literalmente:
aspiração à sabedoria, que já era em Heráclito a lei do uni­
verso (logos). Entre os homens, sujeitos ao erro, a razão
surgirá melhor no curso da conversação, onde as opiniões de
cada um completam-se mutuamente, mas somente se os inter­
locutores, evidentemente, se põem de acordo, não pelo amor
à honra sofística de ter razão, mas por um exame coletivo do
problema. Assim, o diálogo nunca se transforma em uma
doutrina que p o d e r i a ser apreendida, um dogma em que se
pudesse a c r e d i t a T ; não se toma uma “ discussão” e uma “ con­
trovérsia” a partir de “ pontos de vista” diferentes ou a i n d a
um mito, mas um debate isento de p r e c o n c e i t o s ou analisando
e vencendo esses preconceitos, como fazia Sócrates por amor
à objetividade. Sócrates, figura principal dos diálogos pla­
tônicos, exatamente não era um mestre (com o Epicuro, por
exemplo).
P latão 73

O tema da obra fundamental, A República, é a jus­


tiça (dikaiosynè) . E isso com dupla relação: a justiça da
alma individual e a justiça social na comunidade. A alma
justa dos homens, dos homens que formam a comunidade, é
a condição prévia da justiça social que se baseia na consti­
tuição do Estado e sua hierarquia. A alma é qualquer coisa
de íntimo, de invisível e que só se faz reconhecer por suas
ações, seu comportamento. A hierarquia social de uma co­
munidade, em compensação, sua constituição, é um objeto
articulado, visível.
Inicialmente Platão deixa que se exprimam as opiniões
correntes. Eis mais ou menos o que o homem da rua pres­
crevia em Atenas: a justiça consiste em dizer a verdade e
restituir o que se recebeu. E isso de tal forma que os amigos
dali retirem um bem e os inimigos um mal. Mas a essa
opinião superficial e tradicional, que talvez tivesse signifi­
cado algo antes na boca dos poetas, o sofista opunha logo a
tese moderna: a justiça é, no ressentimento das classes infe­
riores exploradas, o triunfo dos poderosos. Ou, indo mais
longe, a justiça é de fato — se somente as classes dirigentes
exprimissem livremente sua opinião — uma máxima, um sub­
terfúgio (diríamos, com Destutt de Tracy e Marx, uma “ ideo­
logia” ) pelo qual os homens do poder enganam a multidão
e sobretudo os imbecis, para que se deixem explorar sem
resistência. A injustiça é assim a verdadeira “ justiça” , isto
é, a política das classes dominantes; em suma, a justiça não
passa de uma aparência.
Essa tese é refutada por Platão como ele fizera porme­
norizadamente no Górgias: a longo prazo o ideal do tirano
dos sofistas não consegue realizar seu objetivo: a preserva­
ção e a felicidade do indivíduo autônomo contra a comuni­
dade. Está, desse modo, em contradição consigo mesmo.
Se é assim, é preciso então mostrar o que é na realidade a
justiça, até que ponto ela não leva a contradições, como pode
ser estabelecida e como satisfaz os homens. Platão tenta isso,
superando a existência política crítica de Sócrates pela cons­
trução de um Estado em pensamento, em imagem. Essa
imagem, a aparência (ideay eidos) da comunidade, nasce em
virtude de que o princípio socrático da razão livre, sem con­
tradição, faz parte da idéia social tradicional da polis, re­
criando assim de forma nova essa idéia social. Essa nova
74 H is t ó r ia das I d éias S o c ia is

criação baseia-se no fato de que a independência, tradicio­


nal e natural, do cidadão que se governa livremente na as­
sembléia, deve ser instaurada, segundo o princípio socrá­
tico da razão, pela educação visando à independência e que
só aqueles que receberam essa educação devem dominar.
O falso ideal sofístico do tirano está ultrapassado.
Forma-se assim em Platão — como em Protágoras e De-
mócrito — uma comunidade, pois o homem individual na
natureza não é autônomo, independente. A primeira associa­
ção nascida de uma necessidade e limitada ao estritamente
necessário (que Platão chamou de “ Estado dos porcos5), logo
se transforma, pela divisão do trabalho, a especialização e
a arte, num Estado de luxo, um Estado em que as necessi­
dades crescem artificialmente ao mesmo tempo que aumen­
tam os produtos do trabalho. Em virtude da especialização
inevitável do ofício das armas e da utilização da força, é
justo admitir a possibilidade de um uso nocivo do poder
do Estado com finalidades egoístas. Surge uma questão que
é fundamental em toda formação de comunidade: como le­
var cada indivíduo, e particularmente aqueles que em dado
momento detêm o poder, a conceder à prosperidade da
comunidade a preeminência sobre os interesses dos grupos e
dos particulares, que abusam egoisticamente dessa prosperi­
dade da comunidade?
A resposta de Platão a essa questão contém duas pala­
vras: constituição e educação. A essência de toda idéia so­
cial é a hierarquia dos homens na comunidade. Três varian­
tes de partidos eram possíveis na polis grega: a aristocracia,
a plutocracia, a democracia, isto é, a dominação dos eupátri-
das, dos ricos ou do demos; a isso se acrescentava em quarto
lugar a tirania. Platão rejeita todas essas variante por
serem corrompidas e impróprias à conduta política. Subs­
titui-as pelo “ governo dos e d u c a d o s Com essa indepen­
dência instaurada e filosófica, diante da independência na­
tural do antigo cidadão, com a dominação dos que tiverem
recebido uma educação visando à independência, Platão acres­
centa uma quinta variante política da idéia grega tradicional,
que se poderia chamar de “ paideumenocracia” . Ela é com­
pletamente diferente de uma aristocracia reacionária. Com
referência às outras quatro, formadas na vida política, é uma
variante filosófica. Isso significa que ela é a única que ainda
P latão 75

se mostra nessa época, pelo exame racional de suas possi­


bilidades, realizável e estável, sem contradição, não desti­
nada a uma degradação próxima. Mas não passa na realidade
de um (o quinto) subgrupo da idéia social tradicional da
polis, “ governo dos governados” , da qual Platão, como Aris­
tóteles (ao contrário de Epicuro e do estoicismo), jamais
superou os limites.
A disposição da República é tal que já se disse de
início o que era preciso entender sobre a nova constituição
do governo dos educados e por sua educação, o que é ao
mesmo tempo um ensaio de definição antecipada da jus­
tiça. Depois, à luz dessa definição, entrasse no pormenor
da constituição e da educação que devem conduzir à justiça
social e às condições de equilíbrio, uma e outra sendo pos­
tas em relação com a natureza que abrange todas as çoisas.
Diz-se, enfim, em uma última parte o que acontece se as
condições necessárias à felicidade da polis não são satis­
feitas, e tira se então a conclusão teórica da seqüência das
idéias.
Platão começa a primeira parte com uma crítica da edu­
cação tradicional dos gregos pelos poetas. A arte e o culto
são os primeiros fatores de educação de um povo! A arte
e o culto apõem sua marca, desde a mocidade, no universo
do homem, agindo sobre seus sentidos e sua fantasia, e fa­
zem-no descobrir seu fim. A música, pela harmonia e o
ritmo, dirige seus movimentos; as artes plásticas, pela cons­
trução e o ornamento, emolduram a paisagem onde vive;
a poesia'insere seu dom d ç imaginação do devir e no depe-
recer, na vida e na morte no seio do cosmos, ensinando-lhe
a encontrar seu lugar na evolução e a mantê-lo. Não é isso
que é objeto da crítica de Platão, mas a arte que é libertada
desse cunho mítico e cultural, a arte em sua qualidade de
simples conto, ou de trecho musical, destinado somente ao
aprimoramento do*ouvido e ao gozo dos sentidos, ou ainda
de dramaf que imita qualquer acontecimento desprovido de
significado moral. À educação por meio de uma arte liber­
tada desse modo ele quer opor não um retorno ao culto
arcaico, mas a intervenção da inteligência. Isto seria uma
“ conversão” : do abandono às paixões pássar-se-ia à razão.
A razão e a inteligência devem então realizar aquilo que o
culto e a arte antes realizavam: a inserção do homem em sua
76 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

comunidade e da comunidade no devir e deperecer do


cosmos.
A definição provisória da constituição nesta primeira
parte baseia-se essencialmente na exclusão de todo desin­
teresse pelo Estado. O perigo de toda constituição é sempre
os não-participantes; dir-se-ia mais tarde em Roma: os no-
varum rerum cupidi. Karl Marx, no Estado moderno burguês
baseado na propriedade, conclamou os proletários, isto é, os
que nada possuem, à revolução porque “ eles nada têm a
perder, exceto suas cadeias” . Platão alcança esse objetivo
por meio de um Estado de três classes, em que cada classe
pode participar diversamente, à sua maneira, do Estado.
Por esses simples pontos de vista, é possível uma defini­
ção provisória da justiça, que nos serve de orientação. O
Estado, a comunidade, o homem, o indivíduo, acham-se em
boa condição quando são inseridos na ordem do cosmos
por meio de uma participação correta. A alma humana tem
três partes: 1) Logistikon. Não é a razão, a habilidade in­
telectual que sabe encontrar para cada fim o meio de rea-
lizá-lo; não é também um saber técnico, prático ou teórico.
Poder-se-ia traduzi-la por sabedoria ou entendimento, pelo
qual o homem se subordina ao todo na comunidade e no
universo. 2) Thymoeides. É a parte corajosa da alma, que
não só aprende a afrontar o perigo, como sabe sobretudo
permanecer firme na luta contra a sedução das paixões. 3)
Epithymetikon. São as necessidades humanas cuja satisfa­
ção moderada também é necessária. A essas três partes da
alma correspondem três classes no Estado: os governantes
esclarecidos, os defensores da liberdade (que Platão chama
de “ guardiães” ) e os camponeses, artesãos, comerciantes e
empreiteiros, que satisfazem as necessidades econômicas. A
justiça da alma da comunidade é simplesmente a hierarquia
dessas três partes da almà no homem e dessas três classes
no Estado. Quando a sabedoria e o entendimento governam,
o Estado é administrado visando à prosperidade coletiva e
não a interesses pessoais ou de grupos. A coragem deve
permitir que a liberdade da comunidade seja mantida, deve
fazer o homem resistir à sedução e à escravização das paixões.
As necessidades devem ser satisfeitas, mas os homens devem
manter a temperança e permanecer subordinados à inteligên­
cia. Destarte, a justiça reside no fato de que cada parte da
P latão 77

alma, cada classe cumpre sua tarefa e não invade as esferas


alheias.
A justiça, na idéia social do reino dos cidadãos educa­
dos para a independência, será desenvolvida de forma mais
exata, na medida em que os dois elementos de sua ordem
nova, constituição e educação, são cuidadosa e isoladamente
examinados no meio da obra.
O Estado grego tradicional, a polis, fora o autogoverno
dos cidadãos livres. Os cidadãos eram ao mesmo tempo
proprietários de terras e homens de armas. Cada cidadão
devia portanto conhecer tudo: a administração de seu domí­
nio, o ofício das armas e mesmo, em virtude de o chefe mi­
litar ser muitas vezes escolhido ao acaso, a estratégia e a
tática; e naturalmente a política, pois era ele quem decidia
sobre cada problema. Devia conhecer igualmente o cargo
de juiz, muitas vezes também escolhido ao acaso. Sua liber­
dade, sua independência, era a de que podia fazer tudo isso
simultaneamente. Foi nesse ponto que Platão empreendeu
a correção mais decisiva (cuja significação foi raramente
conpreendida) da idéia tradicional. E isso porque já desde
sua época a vida se especializara ao ponto em que apenas
um número cada vez menor conseguia fazer tudo e saber
tudo. O que, em sua opinião, na idéia tradicional de “ go­
verno dos governados não resiste à prova, é o humor habi­
tualmente caprichoso, a estreiteza de espírito e o egoísmo
próprios do ser não-educado. A idéia tradicional de “ governo
dos governados” é especificamente uma idéia social não-es-
pecializada; o Estado de Platão, em compensação, é um Es­
tado articulado em classes e especializado, em que a liber­
dade política e a independência são limitadas aos que rece­
beram uma educação, sendo-lhes retirada a economia para
ser confiada a um terceiro que não tem mais nenhuma par­
ticipação livre na política. Veremos que Karl Marx tenta,
de maneira curiosa, em uma época altamente especializada
no plano técnico, inverter a corrente e substituir a revolução
platônica pela instauração da liberdade e da independência
para todos.
Somente são educados os guardiães, a classe interme­
diária e naturalmente a classe superior da hierarquia, que
é escolhida entre os guardiães. A classe inferior, a dos cam­
poneses, artesãos, operários e comerciantes, não precisa rece­
78 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

ber uma educação, pois não vai à guerra e não se vê portanto


submetida à tentação de abusar da força. Só lhe toca a virtude
da sobriedade e da moderação, onde reside o último vestígio
de sua independência. A independência das outras duas
classes baseia-se, em compensação, na coragem e na sabedoria.
Contudo, não existem nesse Estado barreiras de classes.
Os filhos da classe inferior podem a qualquer momento as­
cender às classes mais altas, se são educados e dão provas
de suas capacidades, os das classes superiores podem retroce­
der, se não resistem à prova. As moradas das classes superiores
estão permanentemente abertas aos egressos das classes
inferiores. A participação da terceira classe no Estado
reside em que este assegura a vida e a propriedade de
todos e que ela só contribui com impostos ínfimos para a
alimentação extremamente frugal das classes superiores. Es­
tas têm a responsabilidade pela segurança e a ordem do
Estado, no exterior e no interior, e pela prosperidade da clas­
se inferior.
Para as duas classes superiores — guardiães e governan­
tes — Platão assume, de empréstimo a alguns costumes espar­
tanos, uma disposição um tanto curiosa, que sempre causou
escândalo, desde Aristóteles até hoje. Ele retira, com efeito,
daquelas classes não somente toda propriedade, mas dissolve
a família e estabelece uma espécie de comunidade de mu­
lheres e crianças baseada em princípios de eugenismo e de
seleção natural. A igualdade de situação e de direitos dos
homens e das mulheres e a comunidade dos dois sexos são
portanto precedidas por uma completa igualdade dos dois
sexos na educação. Como Platão chega até lá e qual o sen­
tido disso?
Ele vê no Estado a unidade de uma comunidade verda­
deira e total. Na vida política de seu tempo, em compen­
sação, a degradação partia do esfacelamento das famílias po­
derosas em partidos e grupos de interesses, dos demagogos
educados pelos sofistas com a finalidade de uma utilização
tirânica e egoísta do poder. A primazia concedida aos inte­
resses privados mais do que à prosperidade comum era a
raiz do mal; mas foram à família e a propriedade os princi­
pais responsáveis por isso. A polis era desde sua origem uma
espécie de liga de homens. Platão acrescenta-lhe as mu­
lheres, sem lhe modificar o caráter. Talvez ele se aproxime
Platão 79

assim, inconscientemente, das condições que existiam no mo­


mento da imigração e da ocupação das terras. Família e
propriedade são, por natureza, opostas à camaradagem da
liga de homens, são instituições da vida sedentária. A con­
seqüência da reflexão e do esforço platônicos no sentido de
excluir toda contradição levam Platão desde o início à su­
pressão dessa^ oposição.
Ê evidente que não faltam motivos que autorizem a se
contestar esse princípio hipercomunista. Platão não sabia
menos sobre o assunto do que os que o têm criticado há dois
mil anos. Posso, em conseqüência, desistir tanto de citar as
objeçoes ao princípio platônico quanto de fazer-lhe' a apo­
logia. Carece lembrar que Platão não esboça a constituição
de um Estado verdadeiro, mas de um Estado em pensamento,
em que o princípio da unidade e da comunidade pode ser
exposto com traços carregados (da mesma forma que um
retrato, que não é uma fotografia do natural). Platão mesmo
disse que seria preciso considerar insensato quem, sem ironia,
atribuísse a um texto a mesma seriedade das decisões ncrais
tomadas na vida.
A constituição do Estado em três classes, com o comu­
nismo existencial dos guardiães e dos governantes, como ex­
pressão estilizada de uma comunidade verdadeira, não é se­
não uma das partes da grande idéia soc ial platônica. A
segunda, mais importante, é a da nova educação.
Platão não entende por educação nem uma formação
humanista por meio de um patrimônio histórico-filológico,
nem a concessão de um conhecimento técnico útil na prática,
quer no domínio da Matemática, da técnica, das Ciências
Naturais, da estratégia, do Direito, da Economia Política, da
Sociologia, da lingüística ou do artesanato. Se a concessão
de tal conhecimento é para ele qualquer coisa vil para uso
dos escravos, recusaria igualmente a “ cultura” humanista
como sendo perigosa e a baniria do Estado em que pensa,
como fez com a arte; só serviria para diminuir a coragem
com que seus cidadãos devem estar a todo instante prontos
para morrer pela liberdade da polis. O fim único da educa­
ção em Platão é a conversão da alma (métastrophè) , do
estado de dependência frente aos sentidos e às paixões paia
o estado de razão. Esse é bem o objetivo de seu programa
de educação, que começa pela correção moral das fábulas
80 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

contadas às crianças e leva, passando por uma música esco­


lhida, pela ginástica, a Matemática e a Astronomia, à dialé­
tica, à indagação filosófica de tudo o que é evidente e a uma
organização racional da existência. Quando certas disciplinas,
como a Matemática e as Ciências Naturais, parecem ser
também úteis no p]ano técnico (em escala ainda muito mo­
desta para a construção de cidades, a Economia e a direção
da guerra), Sócrates, o animador da discussão, põe-se a sorrir
na defensiva.
De resto, o fato de se voltar para a vida da razão, finali­
dade exclusiva da educação, não é a lógica abstrata de uma
simples ausência de contradição. A razão, em Platão, é a
ordem eterna da realidade, que começa pelo Bem (agathon)
“ além do ser” e que dirige o mundo das idéias. Nessa rela­
ção, o que hoje chamamos de “ realidade ’ (e que Aristóteles
também, em certa medida, já denominara) não é para Platão
um ser, mas, para retomar a expressão de Parmênides, uma
simples mistura de ser e de não-ser, isto é, de devir ou de
aparência. A idéia é certamente, em sua origem, de acordo
com seu nome, o “ aspecto” das coisas; mas somente na me­
dida em que é um símbolo de restabelecimento, eterno, imu­
tável, único, contínuo como o ser esférico de Parmênides ou
o logos, a lei do mundo, de Heráclito. Mais tarde, no Timeu,
o próprio Platão denominou de símbolo, da alma humana
o curso imperturbável das estrelas. Isso se desenvolveu,
ampla e profundamente, em seu discípulo Aristóteles, como
em todo o helenismo. Para Platão, a abóbada celeste “ real”
e visível é para ele algo de semelhante ao teto de um apo­
sento, enquanto não pode servir de exemplo didático da
ordem matemática. O mundo das idéias é, precisamente, na
sua racionalidade, sua imaterialidade, sua representação pelo
pensamento e sua eternidade, aquilo em que não só o homem
mas a comunidade política devem inserir-se; aquilo que os
contém à maneira de uma moldura. Mas o “ Bem” é o prin­
cípio que reside além do ser, e do qual o mundo das idéias
recebe sua ordem e seu ser, pois, então, pela primeira vez,
o divino não é mais discernido (como ainda era no mundo
grego tradicional dos Deuses e entre os pré-socráticos) como
ser que possui o poder, mas como aquele que decida sobre
a moral. A limitação do tema da Filosofia ao domínio do
homem (que era comum a Sócrates e aos sofistas) é de novo
P latão 81

modificado (aproximando-se de Parmênides) em benefício


do ser que contém todas as coisas; de tal forma que a rela­
ção do homem com esse ser não é perdida de vista. Aristó­
teles persistirá n e s s e sentido, aí incluindo a natureza, tal
como a viam os milênios e os filósofos da natureza no sécalo V.
A terceira parte da República começa eom uma interro­
gação: que acontece quando as exigências dessa idéia social
de “ governo dos educados na razão” não são atendidas?
Platão justifica-se até num sentido histórico. Cada Estado
resvala então insensivelmente para sua decadência. Ele pro­
cura apresentar os sinais típicos de tal decadência.
Inicialmente a parte da alma corajosa alcançará a domi­
nação sobre a parte que possui inteligência. Surge a “ timar-
quia” , dominação do militar ambicioso. Platão não menciona
os perigos dessa constituição no plano da política exterior.
Mas, no interior, pagar-se-á a subordinação da inteligência
à coragem com uma escorregadela mais grave: a subordi­
nação das duas partes superiores da alma aos simples dese­
jos de conquista e às necessidades. Os oficiais ambiciosos
tomam-se, com o passar da idade, amantes do conforto e
avaros, o que abre o caminho do poder aos mercadores e
aos artesãos cobiçosos. Em lugar da ambição dos nobres
surge o desejo de poder e de propriedade dos que se eleva­
ram a uma classe superior. É a “ oligarquia” , a dominação
de alguns ricos, diante dos quais se ergue uma massa que
aumenta incessantemente com indivíduos cada vez mais po­
bres. Devido a estarem privados dos bens da existência,
esses pobres adquirem um caráter bem parecido com o dcs
ricos, pois aquilo que não possuem transforma-se no objeto
de seus desejos. Vê-se, assim, afirmar-se entre eles, da mes­
ma forma que entre os ricos, uma subordinação da inteligên­
cia e da coragem à cupidez e ao gozo. A única diferença
entre ricos e pobres é a diferença entre inveja e orgulho; é
um erro dos mais difundidos e dos mais fatais julgar que a
dominação dos pobres, nascida da inveja, poderia ser melhor
do que a dos ricos, nascida do orgulho.
Destrói-se então definitivamente a ordem da comunida­
de, com a dominação da parte mais baixa da alma entre os
ricos e entre os pobres; os ricos tomam-se os proprietários
privados do Estado, os pobres são excluídos da propriedade
e da comunidade. Considerando-se, porém, que os pobres
82 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

permanecem fortes e majoritários, logo tentarão derrubar o


regime e instituir a “ democracia” . Com esse termo Platão
entende a repartição e o esbanjamento inútil da riqueza pela
plebe no poder (ele conhecera isso em sua época, em Ate­
nas). A própria desordem dessa democracia, a luta dos par­
tidos e dos grupos de interesses, prova sua instabilidade e
seu caráter perigoso, e a necessidade de uma ordem, qual­
quer que seja; isso vai ter começo quando um homem supe­
rior e astuôioso adular de maneira “ demagógica” o d&mos,
até que ele lhe transmita o poder. Provavelmente Platão
pensa em indivíduos como Alcibíades, ou nos discípulos dos
sofistas, educados para conquistar uma superioridade dos
meios. Esse condutor do povo torna-se assim um “ tirano” .
Logo que tem o poder em suas mãos, despreza por completo
o demos, explorando-o, no entanto, em seu proveito pessoal
e em proveito de seus asseclas.
Entretanto, esse pólo extremo, que é o oposto do “ gover­
no dos educados” , pode oferecer a única possibilidade de
uma derrubada do movimento de decadência. De fato, Pla­
tão realizou sua própria tentativa de reforma por meio de
uma tirania, na Sicília, e não por meio de uma aristocracia,
de uma oligarquia ou de uma democracia. Isso é determi­
nado pelo fato de que somente a completa decadência leva
a própria natureza a favorecer a derrubada radical da situa­
ção. Até aí as outras possibilidades não estavam ainda es­
gotadas.
A tese còm a qual Sócrates concluiu e com a qual Platão
volta no começo de sua obra é que somente a justiça no
Estado e na alma torna os homens capazes de viver felizes,
de se manter, em todas as vicissitudes, constantes e con­
formes com a condição humana. Isso nos é mostrado mais
uma vez por uma lembrança das características negativas
que se ligam à existência sempre ameaçada do tirano segundo
o ideal dos sofistas. Mas a tese da decadência dos Estados
gregos, no século III, torna-se duvidosa, isto é, torna-se con­
testável que felicidade e justiça, desgraça e injustiça estejam
sempre e necessariamente ligadas entre si. A história do
mundo não é um tribunal que estende sua jurisdição sobre
os homens, os Estados e os povos. Platão é, assim, o primeiro
dos gregos, ao lado dos pitagóricos, a ousar o que será mais
tarde o conteúdo da religião cristã: um salto no além. Se
Platão 83

não é nesta vida que o homem justo e o Estado justo recebem


sua recompensa, e os injustos sua pena, é certamente na con­
tinuação da existência humana em um outro mundo, depois
da morte. Ele conta a esse respeito o mito de um guerreiro
de Panfília, de nome persa, que voltou do outro mundo.
Aquilo que Dante verá mais tarde em sua grandiosa pere­
grinação ao inferno, ao purgatório e ao céu, a recompensa
de nossos atos no além, é antecipado por Platão com a esco­
lha transcendente do destino humano.
Evidentemente, em Dante como em todo o cristianismo,
trata-se de uma crença concebida de forma realista (que
provavelmente remonta, da mesma maneira que esse conto,
ao patrimônio do pensamento persa). Em Platão, em com­
pensação, mito quer dizer literalmente conto, e significa
narrativa de um estado de fato que não pode, tal como é
contado, ser conhecido de modo exato, e no qual não se
deve acreditar. A oposição entre a vida baseada na Ta^zão,
o entendimento (logos), de um lado, e a vida baseada nas
paixões (pathos), de outro lado, permanece a característica
fundamental da grande idéia social socrática da República.

O diálogo do Político (o homem de Estado) contém


uma análise das doutrinas sociais pitagóricas, cujas fontes
em sua maior parte se acham perdidas, e talvez ao mesmo
tempo uma análise das experiências pessoais de Platão em
suas relações com a tirania siciliana. Os pitagóricos conce­
biam a comunidade segundo o exemplo do Oriente, de modo
reacionário e patriarcal, como a dominação de um pastor
divino-real, soberanamente sábio, sobre o rebanho humano
(uma imagem que ainda encontraremos no estoicismo). No
entanto, não existe pastor divino, porque Deus não nos ge-
verna, e um homem que exercesse essa função seria muito
imperfeito para o encargo de uma ditadura sem limitação
nem controle. Foi precisamente dessa experiência que se
originou, em face do despotismo sagrado do Oriente, a polis
grega como autogoverno dos governados.
Se fossem ditadas com uma liberdade total por seu sa­
ber perfeito ( epitaktiké epistémé) e para o bem de todos,
as vontades de um ditador poderiam, entretanto, servir de
critério da justiça. Em compensação, outro critério seria a
fidelidade absoluta às leis e às organizações tomadas tradi­
H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

cionais. De acordo com isso Platão diferencia três consti­


tuições históricas, relativamente boas, de três tuins, avalian­
do os diferentes partidos do governo dos governados em
função de sua justiça. As constituições boas são a realeza,
a aristocracia e a democracia legal; as ruins são a tirania, a
oligarquia e a democracia ilegal. Neste sentido, a Tealeza
diferencia-se da tirania pelo fato de que o soberano reina
através de seu discernimento e visando à prosperidade de
seus súditos, e porque não os explora para sua vantagem pes­
soal. Excluem-se, entretanto, nos dois casos, a autodetermi­
nação e o discernimento dos súditos. Platão dá prioridade
à aristocracia, em relação à oligarquia, porque tem mais
confiança no sentido da responsabilidade dos indivíduos de
categoria elevada do que na dos empreiteiros e mercadores
enriquecidos, que muitas vezes tratam da pior maneira aque­
les que eram seus iguais. A diferença entre a democracia
legal e a ilegal está no fato de que, na primeira, nenhuma lei
é promulgada somente por grupos determinados de cidadãos
( como isso acontece ainda hoje em nossas constituições, pelo
menos quando leis particulares ali são camufladas juridica­
mente sob o pretexto de leis válidas para todos os cidadãos)
e a assembléia do povo não toma decisões limitadas a alguns.
Platão finalmente acrescenta, de maneira irônica: “ Desde
que num regime Teine a indisciplina, é na democracia que
mais comodamente se vive” .

A obra inacabada de sua velhice, As Leis, publicada por


seu discípulo Filipe de Opus, é denominada pelo próprio
Platão de “ segunda via” . Essa expressão, tomada em seu
sentido exato, significa a substituição provisória, pela legis­
lação dogmática da religião, do “ governo dos governados” ,
garantida por guardiães e governantes aos quais a educação
proporcionou o conhecimento e a independência. O antigo
pensamento socrático da livre Tazão entretanto não é aban­
donado; a substituição da razão livre pela religião já se
exprime na forma da obra, devido a que não mais é Sócrates
o animador do debate, mas um “ velho ateniense” , isto é, a
tradição antes do risco que corre na época dos sofistas. Ele
julga a nova constituição para uma colônia que deve ser fun­
dada não considerando a cidade de seus antepassados, mas
segundo as constituições dóricas de Esparta e de Creta, ainda
mais próximas da fonte da idéia social grega. O pensamento
P latão 85

ateniense, cheio de brio, somente precisa destravar a língua


dos dois outros participantes, o velho dório e o velho cre­
tense.
O novo “ Estado em pensamento’’ é encontrado na crítica
que faz a razão ( attique) ao Estado dórico histórico. Já
existia em Esparta uma educação estatal que consistia no
exercício das armas e no enrijecimento pelo sacrifício; a co­
munidade já se baseava na participação de todos os cidadãos
nas refeições comunitárias, as sissítias. O objetivo do Es­
tado era uma condição de guerra crônica devida à situação
da minoria dos espartanos em relação aos hilotas e periecos
(raramente em relação a inimigos externos). Inicialmente,
Platão logo substitui radicalmente a guerra, como fim polí­
tico, pela simples disposição para a defesa eventual contra
um atentado à liberdade, e dá um objetivo pacífico à vida
da comunidade. Em lugar de um simples enrijecimento
corporal surge uma educação visando à firmeza de caráter,
principalmente frente às seduções e às paixões: ambição,
cupidez e libertinagem. Renova a crítica que fazia na Re­
pública à educação pelos poetas.
Mas de início encontra-se uma nova teoria sobre as
origens da sociedade. Embora enfeitada pela fantasia, essa
teoria já é muito mais empírica se se leva em conta a de
Protágoras e os enunciados anteriores do próprio Platão. Ela
é, não sem intenção, inserida no giro eterno da natureza,
do cosmos. Também a esse respeito, a legitimidade eterna
do cosmos, do próprio mundo, substitui na “ segunda via” a
ordem puramente espiritual do reino imaterial das idéias,
culminando no Bem do além. A origem e a evolução da
sociedade até a época presente são divididas em quatro
etapas.
A primeira é a dominação patriarcal do pai ou do pri­
mogênito sobre a parentela, como hierarquia natural, sem
lei nem divisão do trabalho. A segunda é o synoikismos, a
co^nização em comum, tal como ainda existia na lembrança
dos gregos, como primeira etapa da polis. O essencial é
que Platão não faz emanar as leis existentes das decisões
do soberano, não as interpretando portanto como leis in­
contestáveis, admitindo-as porém como uma seleção, codi­
ficada em forma jurídica, dé regras do Direito Consuetudiná-
rio. A terceira etapa é a edificação das cidades segundo
86 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

as narrativas de Homero sobre a fundação de llio. A cons­


tituição de Esparta serve a Platão de exemplo da quarta
etapa, a última antes da época presente: é a obra dos guer­
reiros que retornam da Guerra de Tróia. Ele procura mos­
trar que, antes mesmo que seu ideal socrático de “ governo
dos educados” , somente a harmonia da inteligência, da cora­
gem e da paixão leva por sua natureza a uma vida estável
e feliz.
Mais importante é sua crítica de dois casos históricos
extremos (sempre considerados de maneira típica e esque­
mática). Com efeito, ele afirma que o excesso tanto de liber­
dade quanto de unidade leva à decadência. Atenas é mo­
delo de um excesso na liberdade dos cidadãos. O resultado
disso é uma democracia de demagogos desenfreada e a ruína
da comunidade com a luta dos partidos. Em compensação,
a Pérsia, à qual atribui uma constituição provavelmente li­
beral em sua origem, outorgou à unidade da comunidade
um peso mais importante que à liberdade dos cidadãos. Mas
a unidade absoluta da comunidade pode ser instaurada mais
facilmente (e não mais duradouramente) por meio da auto­
ridade e do despotismo. Nisso Platão não se deixou enganar
pelo excesso de liberdade em sua cidade natal, para excluir
a liberdade ou desejar a ditadura, mas viu de forma bern
penetrante os inconvenientes dos dois casos extremos.
Para a fundação de sua “ cidade em pensamento” pro­
cura, como todos os colonizadores gregos desde Tales e
Anaximandro de Mileto, uma situação geopolítica favorável.
Para ele, entretanto, “ favorável” não se refere ao ponto de
vista militar ou econômico, mas ao plano ético e pedagó­
gico. A cidade não deve ficar no litoral, pois o comércio
corrompe o caráter, mas em uma região montanhosa, que
facilita a defesa; deve ser moderadamente próspera, a fim
de que o trabalho e o esforço não arrefeçam mais rapida­
mente. Não existe a dominação de um partido subordinando
a suas necessidades a prosperidade do Estado, mas uma es­
pécie de “ constituição mista” . A expressão ganhou fama
mais tarde graças a Aristóteles é ao historiador Políbio. A
repartição das terras e a legislação presidem à fundação do
Estado, de conformidade absoluta com a tradição grega. As
leis são simplesmente outorgadas e consolidadas pela auto­
ridade religiosa tradicional. Mas é preciso tomá-las fami­
Platão 87

liares à compreensão dos cidadãos sem educação, ao homem


da rua, por meio de preâmbulos explicativos (e é isso tudo
o que resta do Estado dos homens educados para lhes propi­
ciar a conquista de uma razão livie!).
Em lugar da guerra, objetivo do Estado na Esparta his­
tórica, em lugar também da ética ( ethos) do trabalho, que
não existe nem na economia grega escravista, nem em Pla­
tão, vê-se surgir algo que logo nos parece bastante singular.
Trata-se de uma vida que, no essencial, é consagrada às
festas e aos jogos religiosos. Não exatamente corno à ma­
neira moderna, quando trabalhamos seis horas e aos domin­
gos vamos à igreja ou praticamos esportes, ou ainda fazemos
as duas coisas sem que exista uma relação entre ambas as
atividades. O trabalho não existia: no apogeu da polis his­
tórica, a administração da propriedade e a política estavam
no lugar do trabalho. No Platão que envelhecia, essas duas
ocupações descem progressivamente à categoria de uma ati­
vidade acessória. O objetivo da vida não é mais o conheci­
mento puramente intelectual, como na República, mas (na
“ segunda via” ) o esporte compreendido como um exercício
cultual, o festival. Geralmente, costuma-se dar pouca aten­
ção ao fato de que Platão introduziu, nas Leis, 365 dias de
festas no ano, que ele entende, como jogos cultuais, e que
viu no jogo (como Schiller e Huizinga) a melhor atividade
humana, em seguida ao entendimento e à razão. Guerra,
economia, política, justiça e medicina são despojadas de
tudo o que têm de sério em uma vida consagrada aos deuses
por jogos cerimoniais, e tornadas destarte inofensivas para
as paixões humanas. Este é o sentido da nova idéia social.
Nos livros II e XII das Leis encontra-se um código de
Direito Criminal amplamente desenvolvido, ditado pelo pes­
simismo. Mas os pilares que sustentam esse edifício de pen­
samentos já se encontram no livro X. É a grande apologia
da religião contra as teorias iluministas dos sofistas e contra
a Filosofia pré-socrática que imitou de modo absurdo a Filo­
sofia sofística. Na segunda via a religião constitui o ponto
de apoio da nova idéia social; substitui agora a inteligência
independente da primeira via, resultado de uma educação
pela razão e a Filosofia. Desse modo, Platão supera pela
primeira vez a idéia social da polis, para desembocar no hele-
nismo, como mais tarde e de forma mais sensível o estoicismo
88 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

e Epicuro. Razão e inteligência tinham sido o grande prin­


cípio de SócTates e é nessa direção que se desenvolve toda
a espiritualidade do mundo grego, para se dissolver de novo
depois dele; ainda mais que depois de Platão vem Aristó­
teles, o grande fundador da ciência, e posteriormente da
pesquisa especializada. Pode-se afirmar que o helenismo,
que por fim levou à ruína de toda a ciência (no fim da
Antiguidade e no cristianismo), começa já com a conversão
de Platão que, nas Leis, se volta para a religião.
Para nosso propósito, a tentativa de Platão de recriar a
comunidade social sobre o princípio da religião é importante
por três motivos: 1) Ê aqui que começa a série das apolo­
gias da religião, “ defesas da existência de Deus” , como são
então chamadas, “ teodicéia’, como se dirá mais tarde. É
uma defesa contra o novo racionalismo e contra a ciência,
que se estende até os tempos presentes e se diferencia essen­
cialmente de toda religiosidade anterior ao racionalismo, re­
ligiosidade que tinha estado livre de qualquer prevenção e
que não tivera necessidade de nenhuma defesa. 2) Platão
Tecriou a religiosidade grega, purificando-a de forma ra­
dical no plano ético e fazendo do paganismo, da religião da
natureza, uma criação um tanto artificial, que, de fato, está
mais próxima do que mais tarde será a teologia cristã do
que dos deuses de Homero e dos trágicos. 3) A religião
é, para Platão, uma autoridade que promulga leis políticas,
bastante intolerantes, o que até então não existira entre os
gregos, ao contrário do Oriente e do judaísmo. Em com
pensação, poder-se-á omitir o fato de que é nas Leis que
Platão se torna, em muitos aspectos, para as pessoas cultas
dos séculos seguintes e até o cristianismo, o fundador da
veneração helenística dos astros.
A doutrina de Platão é fundamental para o conjunto da
teoria social grega, embora seja nos detalhes muito mais
radical e efêmera que a de Aristóteles (que retorna à com-
munis opinio e em que a ação terá um desenvolvimento
ulterior). Aristóteles somente modifica a idéia social grega
tradicional em consideração ao saneamento prático da polis,
saneamento, na verdade, bastante improvável, em virtude
da dominação macedônica. Epicuro e o estoicismo são então
para o pensamento um eco do helenismo e do socratismo,
eco importante porque deve conformar-se a uma situação
histórica absolutamente nova.
CAPÍTULO VII

Aristóteles

jA lristóteles (384-322) nasceu em Estagira, colônia jónica


da Calcídica, sendo filho de médico. Durante duas décadas,
da idade de 18 a 38 anos, isto é, até a morte de Platão, foi
membro da Academia; de início, como aluno, mais tarde,
ensinando e publicando trabalhos. A evolução de sua própria
tese social ocorre em estreita relação com as experiências
de sua vida.
Para livrar-se da tutela de Espeusipo, novo escolaroa
depois da morte de Platão, partiu para Asso, na Ásia Menor,
onde se realizara, pela associação de dois cidadãos dessa
cidade, discípulos de Platão, e do tirano Hérmias, da cidade
vizinha de Atámea, aquilo a que o próprio Platão aspirara
em vão, vinte anos antes, em Siracusa: a aliança da inte­
ligência guiada pela razão (nos dois moços educados por
Platão) com o poder de uma tirania (embora esta fosse
apenas local). O próprio Platão, em uma carta, aprovara
essa forma de colaboração. Depois de ali ter ensinado du­
rante três anos e haver desposado a sobrinha e filha adotiva
dê Hérmias, Aristóteles vai-se embora para Pela, para a corte
de Filipe, provavelmente a pedido de seu sogro, aliado dos
macedônios. Para ali foi enj parte como embaixador, em
parte como preceptor do príncipe real Alexandre (mais t a T d e
Alexandre, o Grande). Sobreviveu assim à destruição d e
Asso pelos sátrapas persas.
Embora Aristóteles pareça ter permanecido, em traba­
lhos da juventiide que não foram conservados, fiel à reforma
90 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

política de Platão, baseada na razão, não pôde dar a Alexan­


dre a educação de um rei-filósofo platônico. Suas relações
com Hérmias tinham-lhe propiciado, entrementes, a opor­
tunidade de ampliar seu horizonte e ter uma visão mais
nítida das possibilidades políticas da época. No que diz res­
peito a Alexandre, era-lhe preciso sem dúvida contentar-se
em lhe indicar os deveres gerais de um soberano no quadro
de uma reflexão pessoal e a missão civilizadora do mundo
grego. Qualquer que tenha sido essa diferença, já estabe­
lecida em sua pedagogia prática, entre a Filosofia platônica
e o futuro histórico, ela terá motivado seu acentuado afasta­
mento da política.
Depois da ascensão de seu discípulo ao trono, Aristóteles
voltou a Atenas, passando por Lesbos. Aí se tornou amigo
do poderoso monarca e filósofo independente. Funda uma
nova escola, ao lado da Academia que continuava existindo,
que é algo de absolutamente diferente do que fora, pelo
menos com Platão: não é mais uma escola para futuros re­
formadores políticos, mas um estabelecimento de puro en­
sino e sobretudo de pesquisa. Aristóteles consagrou-se à sua
escola, o Liceu, até a morte. Mantém-se manifestamente à
parte da política prática, tanto do partido nacional ateniense
de Demóstenes, no qual não podia mesmo de modo algum
desempenhar qualquer papel, devido à sua condição de es­
trangeiro, como da política de seu antigo discípulo, visando
à fundação de um império e a miscigenação de povos e
raças. Distanciou-se mais tarde dessa política em um escrito
não-conservado. Alexandre não mais lhe permitiu, depois
de sua ascensão ao trono, a menor influência na sua política,
mas não lhe poupou, e até morrer, estímulos em suas pes­
quisas teóricas, propiciando-lhe, durante suas campanhas, ma­
terial histórico e científico, levando consigo alunos de ciên­
cias do Liceu, que deviam reunir e descrever toda a documen­
tação posçível. O pTÓprio Aristóteles não considera o im­
pério de Alexandre como um verdadeiro Estado segundo a
idéia tradicional grega de “ governo dos governados” , mas
como uma simples organização de povos ( ethné), a exemplo
dos bárbaros, e como um mal necessário, mas desprovido
de espírito. Na sua qualidade de grego e de platônico, não
podia imaginar uma verdadeira comunidade que não fosse
no quadro limitado da polis.
A r is t ó t e l e s 91

Mas, por isso, ele não dispunha mais de terreno onde


pudesse colocar o problema da política. Sem dúvida deve
existir, do tempo em que pertencia à Academia platônica,
um protreptikos (não conservado), escrito visando a uma
espécie de ensino e de exortação política. É contudo sur­
preendente (embora em minha opinião não se dê a isso o
justo valor) que a pedagogia política, que em Platão era
uma disciplina de base, não se encontre em Aristóteles entre
todas as ciências que ele mais tarde desenvolve. O que en­
contramos no que ele convencionou chamar de escritos didá­
ticos (os únicos conservados), nas aulas que dava em sua
escola, é, ao lado da Ética, a Política teórica. E esta é, sem
dúvida, a disciplina em que Aristóteles mais se afasta de
Platão. Não porque ele refute o comunismo dos bens, das
mulheres e das crianças existente na República (um comu­
nismo desses não se encontra mais nas Leis de Platão), mas
porque sua política é no fundo conforme a seu destino, um
ser híbrido. Ela abandona o caminho de Platão, que con­
sistia em ligar aos diferentes partidos sua própria idéia social
de “ governo dos cidadãos educados pela razão” ; em lugar
disso, vacila continuamente entre dois pontos de vista. Em
primeiro lugar, considera o conhecimento puramente teórico
do Estado, da associação em geral, como um objeto na
mesma categoria dos outros objetos: o tempo, o movimento
do universo, a arte, as classes, etc. Em segundo lugar, ten­
ta alcançar, pelo conhecimento teórico da polis como idéia
social grega tradicional (mas não socrático-platônica) de “ go­
verno dos governados” , medidas particulares visando a um
saneamento das condições existentes.
Essas tentativas permaneceram débeis porque Aristóteles
era um observador bastante preciso para não saber que o
tempo histórico da polis tinha terminado, e porque o que
devia ser curado por algum tempo, com maior ou menor
felicidade, não merecia ser misturado à Filosofia. Ele de­
monstra isso de rnaneira inequívoca com seu comportamento,
não seguindo o exemplo de Sócrates ( que, por uma motivação
baseada na razão, se inserira sem restrições num Estado,
como se este ainda estivesse intacto), nem o de Platão (que
considerava como a tarefa de sua vida salvar a polis do ex­
terior, com a razão e a Filosofia). Em lugar disso, Aristó­
teles, depois de ter terminado sua atividade prática e peda­
gógica junto a Alexandre, ficou à margem tanto da polis
92 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

quanto do novo império. Utilizou a forma platônica de fun­


dação de uma escola apenas para se consagrar com seus
alunos à pesquisa solitária, totalmente apolítica, ao conheci­
mento e à contemplação do mundo.
Eis por que devemos, na exposição da teoria social de
Aristóteles, partir da Antropologia. Na Êtica de Nicômaco
distinguem-se cinco atividades ou aptidões do homem
( hexeis): a experiência ( empeiria), a habilidade ( techné),
o bom-senso prático ( phronésis), a ciência ( épistémé), a ra­
zão (nous). É uma graduação ascendente em que o homem
começa com o animal e termina com Deus. Ele se situa,
de fato, enquanto homem, entre o animal e Deus. Com o
animal tem de comum a faculdade sensitiva, a locomoção
e a experiência, com Deus, a razão. Trata-se agora da pura
percepção, não é mais a tentativa socrática de ter como único
propósito na vida os argumentos motivados e despidos de
contradição; não se trata mais da pura espiritualidade pla­
tônica do mundo das idéias e do Bem. O homem participa
igualmente da pura percepção, ainda que raramente e em
momentos privilegiados. O homem, como ser que vive em
sociedade, que fala e se entende com seus semelhantes (zoon
politikon e logon echon), mantém-se, em compensação, entre
o animal e Deus e se distingue, em sua existência especifica­
mente humana, pelo bom-senso prático (phronésis).
O animal e Deus são isolados em sua consciência; não
são sociais. Constituem assim os extremos da existência hu­
mana. Os elementos da alma humana, que são do domínio
animal ou do domínio divino, constituem igualmente as con­
cepções limites do homem. Somente o homem, como tal,
precisa, na natureza, de uma associação com seus semelhan­
tes. Mas quando a esfera social está, como naquela época,
a tal ponto deteriorada que não mais subsiste nenhuma ver­
dadeira comunidade de seres livres e independentes, quando
os partidos se combatem mutuamente e a defesa da polis
contra Alexandre se tornou impraticável, quando um homem
forte deve então fundar um império para manter a paz, o
homem certamente vive, exteriormente, na comunidade, mas
é cada vez menor o interesse que os liga. Um substituto
dessa comunidade lhe é então oferecido pelo puro conheci­
mento do cosmos, sem intenção prática ou política. Pará o
homem é sua única possibilidade divina, seu limite em sua
A r is t ó t e l e s 93

aspiração na direção de Deus, o nous, a pura percepção*


porque, segundo Aristóteles, (o motor) ou os motores imó­
veis das esferas (Deus) vivem, percebendo-se eles próprios
de maneira puramente contemplativa. Na percepção, o ho­
mem participa da atividade divina, estando nautralmente so­
litário entre seus semelhantes, mas tornando-se mais que um
homem.
Platão já tinha feito valer na segunda via das Leis o
conhecimento do movimento eterno dos astros, pelo menos
como um substituto do puro conhecimento espiritual da Re­
pública. Isso se transforma agora no conteúdo essencial da
Filosofia aristótelica. A pura percepção, a theoria, é em si
uma atividade divina, fonte de satisfação; não tem jamais
propósito prático tecnicamente utilizável, tanto quanto em
Platão a Matemática e o conhecimento das idéias e do Bem.
Mas, em sua pura contemplação, ela é uma atividade do ho­
mem, que não requer nenhuma comunidade. Ê a ela que
a ciência leva, como inferência metódica do objeto da con­
templação. Ela é ainda, em certa medida, um trabalho de
comunidade, não de uma comunidade política, mas apenas
da comunidade privada de uma escola como a de Aristóteles
precisamente.
A contemplação, a theoria, religa por certo tempo o ele­
mento divino da alma humana ao próprio Deus, ao propulsor
ou aos propulsores dos astros, sem ter de passar pelo Esta­
do, pela comunidade política. Isso ainda não tinha ou quase
hão tinha existido em Platão, para quem o Estado sozinho
estava em princípio inserido na ordem do mundo das idéias,
baseado na razão e abrangendo tudo, inclusive o homem,
pelo caminho do Estado. É uma nova possibilidade de vida
que surge: o individualismo espiritual. Não se trata mais
do individualismo do ideal do tirano dos sofistas, mas é en­
fim também anti-social ou associai, como todo individualismo,
minando e desvalorizando a comunidade. Isso ainda se de­
senvolverá e se transformará no helenismo, na doutrina de
Epicuro e no estoicismo.
Em Aristóteles, a associação dó homem permanece in­
ferior à possibilidade divina da theoria pura (e superior à
animal); não se compreende mais, como em Platão, como a
comunidade dos cidadãos criados na razão, mas, ainda, em
sua forma grega tradicional, como o “ governo dos gover­
94 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

nados” da polis. Resta mostrar como Aristóteles concebe


essa idéia social tradicional, quer no simples conhecimento,
quer na vontade de saneá-la.
Da mesma forma que Demócrito, a sofística e Platão,
Aristóteles parte das possibilidades do homem na natureza.
Como já vimos, o homem, como tal, não pode ser autônomo,
não pode viver por si mesmo, em total independência. Re­
ferindo-se às etapas sociais tais como resultam das Leis de
Platão, Aristóteles articula-as da seguinte maneira: a pri­
meira comunidade é a família, a segunda a aldeia, a terceira
a cidade, a polis. Està surgiu do synoikismos, da colonização
coletiva, enquanto comunidade de defesa, jurídica e cul­
tual, de seres livres e independentes, com divisão do tra­
balho e necessidades aumentadas. Somente a polis é total­
mente autônoma, sendo também, segundo a expressão de
Aristóteles, “ anterior” ao homem; isso significa que o homem
não passa de um dos seus membros.
Foi partindo daí que Platão chegou à negação de todas
as variantes de partidos da polis: aristocracia, oligarquia,
democracia e tirania, e à exigência do domínio e da comu­
nidade dos cidadãos educados pela razão e para a razão,
enquanto última possibilidade. Isso é negligenciado por Aris­
tóteles que se volta para a consistência histórica da polis.
Nela reside spm dúvida uma certa tendência ao companhei­
rismo e a uma comunidade completa, com um comunismo
dos bens, mas ao mesmo tempo aí se encontra uma tendência
à propriedade, à economia baseada na troca e no comércio,
e à família. E é precisamente no helenismo, em cujo início
se encontra Aristóteles, que a família adquire, da mesma
forma que a economia, um significado novo e aumentado.
Aristóteles chega assim a considerar de maneira totalmente
diferente esses dois fatores no Estado (que não existiam, por
assim dizer, em Platão): a família e a economia. É sobre
sua organização, não mais sobre a educação, que ele baseia
sua nova concepção da justiça.
De início opina que a unidade do Estado não é menos
porém mais conservada quando os subgrupos, isto é, as fa­
mílias, estabelecem um estatuto independente. (É o “prin­
cípio de subsidiaridade?’, conhecido pelas encíclicas sociais
de Leão XII no século XIX e que tem origem em Aristó­
teles.) Isso também é válido quanto à propriedade: um
A r is t ó t f x e s 95

homem terá mais interesse pelos bens, cuidará deles e os


aumentará se forem seus. E isso será sempre em proveito
da comunidade. Se os bens são comuns a todos, cada um
rejeita a responsabilidade sobre um “ nós” coletivo inapre-
ensível, mais ou menos longínquo.
Em um Estado onde existem família e propriedade, mes­
mo quando é a idéia social tradicional de “ governo dos go­
vernados” que domina, a f justiça social somente reside na
ordem econômica. É escusado dizer que Aristóteles, tanto
quanto Platão, aspira à justiça; aí está, embora já atenuada,
sua herança de Sócrates. De conformidade com a ordem
econômica, ele distingue agora a justiça distributiva e a jus­
tiça comutativa. Ele é assim, muito tempo antes de Adam
Smith, o pai da Economia Política. Os primeiros passos
nesse rumo são, em Xenofonte e outros, ainda muito pouco
universais. Platão jamais teria tido a idéia de procurar na
ordem econômica a justiça de uma comunidade. É por isso
que seu comunismo é totalmente diferente do de Marx.
Na troca, o que se dá deve igualar o que se recebe.
( Era em Platão a opinião corrente da justiça antes da razão.)
Por si sós os bens não têm nenhum valor fixo, que somente
é determinado pela avaliação feita pelo homem. O critério
de valor dos bens é o dinheiro. No dinheiro, o valor quali­
tativamente diferente de todo bem é convertido em quantia,
sendo determinável pelo numero das unidades adotadas
dessa quantia. O dinheiro é, para Aristóteles, um uso, uma
disposição, uma instituição do Estado ( nomisma). É na
troca que deve de princípio reinar a justiça social, a saber,
a que remunera, equilibra. Isso significa que toda superes-
timação dos bens, porque se tenham tomado, por exemplo,
depois de colheitas ruins, em “ gêneros raros” , deve ser ex­
cluída como uma especulação ilícita e uma intromissão do
Estado no domínio da economia. A troca e a economia ba­
seada na moeda são, em face da autonomia primitiva da
família, formas de economia serôdias, artificiais. Por essa
razão, o Estado deve, o que só se daria por meio de uma
vigilância, aí manter a justiça. A justiça comutativa consiste
assim na determinação do valor em dinheiro dos bens por
meio de sábias medidas políticas. Dessa forma, não podem
surgir diferenças excessivamente gritantes entre ricos e po­
bres. O que importa a Aristóteles é essa repartição dos bens,
96 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

regulada pela oferta e a procura (então livre), mas não pas­


sando de uma determinada medida.
A justiça distributiva almeja sem dúvida a mesma coisa,
porém mais perto da fonte. Já lembrei aqui a etimologia de
nomos = direito, que remonta a “ pastar” e a “ repartir” . A
autoridade das leis, dos nomoi, significa no ideal, em Aris­
tóteles (pelo menos em alguns de seus primeiros escritos
sobre a política), quase simplesmente a autoridade dos pro­
prietários fundiários médios e a exclusão de todo ato arbi­
trário por parte da assembléia dos cidadãos. Em particular
sob o domínio dos proprietários fundiários médios, os bens
(neste caso, os bens rurais) são outorgados aos cidadãos
de tal sorte que ninguém os possua nem de mais, nem de
menos, e que assim todos satisfaçam ao fundamento da eco­
nomia que é a igualdade dos direitos políticos. Devido a
sua atividade, em conseqüência da administração de suas
propriedades, os proprietários médios habituam-se a tomar
decisões com toda a responsabilidade e independência, como
a política exige na assembléia dos cidadãos.
O polites, o cidadão, é definido em Aristóteles pela sua
participação nas decisões políticas. Devido a isso a extensão
da polis limita-se a um número que “ a voz de um arauto
possa dominar” , mas também, desde o princípio, àqueles eco­
nomicamente independentes, que têm tempo para participar
nas assembléias onde tudo é apresentado, discutido e deci­
dido pela maioria. Para isso é preciso que o cidadão se deso­
brigue do trabaho utilizando escravos e que conserve apenas
a administração de sua propriedade. Assim acontecia certa­
mente na origem da polis histórica, mas não mais na época de
Platão e de Aristóteles. A imagem do Estado é portanto aqui
um retomo (vão) às fontes históricas.
Em Aristóteles, somente o cidadão livre, de acordo com a
conservação da idéia social tradicional de “ governo dos go­
vernados” , é um homem. Por nascimento e por herança é
um heleno, enquanto os “ bárbaros” são, por sua natureza,
dependentes e têm vocação de escravos. O sistema represen­
tativo, como em nosso parlamentarismo eleitoral, existia
naturalmente nessa época (por exemplo, nas alianças en­
tre cidades). Mas nenhum grego teria considerado como
uma atividade política livre a participação no voto (mes­
mo no voto secreto) e a representação na assembléia
A r is t ó t e l e s 97

por deputados. É por isso que os antigos despotismos orien­


tais, com representação hereditária do povo pelo rei, ou as
ditaduras do mundo helenístico e do Império Romano, que
mais tarde serão freqüentemente escolhidas por aclamação
do exército, são inteiramente banidos da idéia social de Aris­
tóteles. Não havia lugar ali para uma participação do cida­
dão nas decisões políticas, das quais só o rei ou o ditador se
incumbiam.
Mas não é a dominação dos proprietários médios senão
um ideal vacilante e que se faz variar de inúmeras maneiras.
A este respeito, Aristóteles caracteriza, em ligação com o
Político de Platão, três “ boas” constituições e três formas
degeneradas. A realeza, a aristocracia e o que ele chama
de politie, um democracia moderada, são as boas; a tira­
nia, a oligarquia e a democracia degenerada, as ruins. Nas
boas, os direitos e os deveres, e sobretudo a propriedade
agrária e o dever militar, são divididos equanimemente, as
leis sendo válidas para todos, sem consideração de pessoa.
A razão de ser do Estado é procurar que cada cidadão, na
posição que é a sua, tenha uma vida digna do homem. Nas
constituições ruins reinam o arbítrio e a luta entre grupos,
partidos e classes; as diferenças entre ricos e pobres são gra­
ves e injustas. É assim, julga Aristóteles, que não somente
a tirania, como também a democracia, se pode tomar um
despotismo, com suas coerções e seu terror. Pois o demos,
a massa, é ele próprio um tirano: “ aliás, um tirano de muitas
cabeças” .
Certa antecipação da idéia da divisão dos poderes, cujo
conhecimento travaremos mais tarde com Locke e Montes-
quieu, já existe em Aristóteles. Demais, encontramos tanto
nele como em Platão os princípios de uma “ constituição mis­
ta” , isto é, de uma constituição que contém ao mesmo tempo
elementos da monarquia, da aristocracia e da democracia.
Essa idéia foi mais tarde desenvolvida pelo peripatético Di-
cearco, cujas obras não se conservaram. Por seu lado, o his­
toriador Políbio, amigo dos Cipiãos, aplica-a à constituição
de Roma; desejava ele atribuir-lhe os êxitos romanos e a
relativa estabilidade da situação política nesse Estado, Os
cônsules (dois, como os reis de Esparta) são aí, durante seu
consulado, quase monarcas. Contudo, são eleitos apenas por
um ano pelo povo, que tem, nas diferentes assembléias e por
98 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

seus representantes (os tribunos), amplos direitos democrá­


ticos, enquanto o senado personifica, com suas prerrogativas,
o princípio aristocrático. A unidade do Estado e a vontade
política formam-se pela colaboração desses três elementos, e
certamente com sucesso, tanto tempo quanto as contendas
entre eles não excedem a vontade de dar a primazia
ao bem-estar geral e não paralisam a vida política (como
freqüentemente foi o caso depois). Mas aí se trata de um
desenvolvimento histórico e não de uma construção filosó­
fica. Ê possível, aliás, interpretá-lo pe]o pensamento dos fi­
lósofos, surgido independentemente desse desenvolvimento
histórico.
O que é ainda mais importante do que essas diferenças,
que permanecem na prática um tanto doutrinárias, é que
Aristóteles coordena as diferentes constituições e certas situa­
ções geopolíticas consideradas como situações exemplares.
Aqui sua idéia social se toma concreta e histórica. Ele é,
com efeito, de opinião que as constituições aristocrato-oligár-
quicas são mais apropriadas às cidades do interior, devido
a que a guerra é conduzida por uma nobreza a cavalo ou
por hoplitas que se enfrentam em combates singulares; as
constituições democráticas, em compensação, convêm às ci­
dades marítimas ou às que adotaram a tática do combate
em falanges, porque aí os mais pobres também podem parti­
cipar do combate em uma formação disciplinada, tanto como
remadores quanto como combatentes nas fileiras. A parte
de sacrifício concedido ao Estado delimita sempre para o
grego a medida de sua participação no poder. É aí que
residia a justiça tradicional de sua idéia social, que Aristóteles
não faz senão ressaltar de forma abstrata. Não há dúvida
de que ele chegou a tal coordenação mandando reunir, por
seus alunos, as constituições de 158 cidades gregas, que se
acham perdidas, à exceção da constituição de Atenas, recen­
temente descoberta.
A decadência das constituições começa com a instabili­
dade crescente das hierarquias sociais existentes, levando às
contendas e à revolução. Aristóteles discerne a fonte disso
na insatisfação de certas classes ou de certos grupos, que
se viam excluídos de uma participação no Estado. É por
essa razão precisamente que a moderação, uma repartição
igual de direitos e deveres, diferenças que não sejam
A r is t ó t e l e s 99

muito gritantes entre ricos e pobres, em suma, tudo o


que se denominou de “ a política do meio-termo, é a
receita infalivelmente pertinente (embora um pouco escle-
rosada e não mais despertando entusiasmo) da preservação
dessa idéia social, como, aliás, de toda idéia social tradicio­
nal Aristóteles viu essa receita Tealizada na constituição que
Sólon criou para Atenas no século VI.
É muito lógico que Roma — diga-se de passagem — na
sua qualidade de verdadeira polis (isto é, de uma polis em
que havia um governo republicano liberal dos governados),
em sua tentativa de fugir à ditadura, tenha tomado quase
o mesmo caminho traçado pelo ideal aristotélico tradicional:
a dominação dos proprietários médios. Os Gracos, sobretudo
Tibério Graco, almejavam,* ainda no século II, regenerar essa
classe dos proprietários médios com uma redistribuição da
propriedade agrária da Itália aos cidadãos de Roma, essa
classe em que se baseia, segundo a definição conservadora
tradicional de Aristóteles, a justiça da polis. Isso nos mostra
quanto o filósofo tivera razão em sua teoria. A obra dos
Gracos fracassou porque os especuladores fundiários roma­
nos insuflaram a plebe e porque Tibério Graco foi assassina­
do durante um levante. Foi somente pela evicção dessa
classe dos médios proprietários agrários, pelo empobrecimen­
to das massas, que perdem progressivamente sua indepen­
dência, e pelo acúmulo de fortunas por um pequeno número,
que a ditadura definitiva, de Mário e Sila até César e Augus­
to, se tomou possível.
Um único elemento da idéia social de Aristóteles pro­
paga-se de modo decisivo além da tradição grega e da origem
da polis até o futuro: é o preço inteiramente particular que
concede à amizade em toda Telação política. É possível que
ele tenha chegado a essa concepção graças às heterias de
Pelópidas durante a breve hegemonia de Tebas ou ao espí­
rito que imperava entre os discípulos de Platão, ou ainda a
outras causas. Com esse significado, a amizade não é nem
a marca da antiga polis, com tendência à camaradagem de
uma “ liga” , nem a da comunidade platônica, sem nenhum
caráter privado, dos guardiães educados pela razão.
A amizade tem sempre um caráter privado, íntimo, não-
-público, e o homem privado (idiotes) é o contrário do ci­
dadão (polites) na polis. Um pouco mais tarde, como ve-
100 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

remos, a amizade desempenhará um papel ainda mais impor­


tante em Epicuro. Ela serve então de substituto à comuni­
dade política, desvalorizada de propósito e convencionalizada
em proveito da alma e <3o indivíduo pretensamente autôno­
mo. Não se enganará absolutamente quem vir nesse elogio
tão surpreendente de Aristóteles à amizade (ainda que a
mesma esteja em certa medida a serviço da polis) um ele­
mento que será ignorado na época seguinte e o único ele­
mento moderno dessa teoria social tão pouco atual apesar
de seu valor geral. O outrotraço essencial é a subordina­
ção fundamental da esfera política ao ideal sublime, próxi­
mo ao divino, puramente individualista, da contemplação
solitária do movimento eterno do cosmos.
CAPITULO VIII

Fim da Antiguidade

O propósito de Platão de uma dominação dos cidadãos


educados pela razão, da mesma forma que o retomo, que
Aristóteles prega, à idéia social grega tradicional e a defini­
ção que ele dá dessas relações, são tentativas feitas com o
desígnio de sustar a decadência da polis ( decadência essa que
já era manifesta na época dos sofistas). Eles amadureceram
contudo novos conhecimentos sobre a comunidade e a socie­
dade humanas, sobre o Estado e o direito. Empreenderam
o caminho filosófico, que vai à origem dos fenômenos, mas
fracassaram em suas tentativas de salvamento da polis. As
idéias sociais do fim da Antiguidade, sobretudo as de Epicuro
e do estoicismo, não constituem uma continuação dessas ten­
tativas de salvamento; logo elas se acomodam a esse declí­
nio. Em compensação, tentam ordenar as formações políti­
cas recém-nascidas em função de seus objetivos. Se se en­
contram nelas incessantemente os elementos e os meios do
pensamento platônico-aristótelico, se o princípio socrático da
razão acha-se igualmente apreendido por elas, essa doutrina
social do fim da Antiguidade está, no fundo, mais próxima
do ideal sofístico do tirano do que de Platão e Aristóteles.
Para compreender essas novas idéias sociais é preciso
observarmos rapidamente o Estado no fim da Antiguidade.
Trata-se de uma monarquia desenvolvida inicialmente no
império de Alexandre, a partir da realeza macedônica meio
bárbara, que era uma realeza de tribo; depois, nos sucessi­
vos Estados helenísticos, orientando-se cada vez mais para
102 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

as formas do despotismo oriental, renovando-as; enfim, de­


vorando tudo no cesarismo romano que se desenvolvera a
partir da ditadura de Sila, do principado de Pompeu à mo­
narquia de César, mas que se toma a partir de então um
curioso despotismo oriental, renovado e retocado pela razão
grega e o Direito Romano.
Sua característica constitucional é a aliança da ditadura
militar, da grande realeza oriental, do culto do imperador
com uma multiplicidade de cidades autônomas no plano admi­
nistrativo interior. Essas cidades tinham uma tarefa técnica
muito importante: deviam pagar tributos (funcionários im­
periais cuidavam disso) e formar bases militares. Eram, de
resto, relativamente livres em sua vida comunal. ETa um
compromisso entre a polis realmente soberana, capaz de se
defender e tendo um pensamento jurídico, e o despotismo
militar, que garantia a paz. Esse compromisso tomava ainda
possível a conservação dos restos de vida espiritual, de formas
e concepções gregas da vida, do direito e da justiça. Ainda
hoje, a administração autônoma, com prefeitos e conselheiros
municipais, é uma decorrência desse compromisso.
Já Alexandre, segundo as informações de PlutaTco, tinha
"semeado mais de 70 cidades gregas na Ásia” e, desse modo,
afirmado seu domínio sobre os territórios conquistados. Seus
sucessores Tepetiram isso em grande escala. O historiador
Edouard Meyer escreveu: “ A forma pela qual a monarquia
absoluta foi assegurada, nos Estados diádocos, é a mesma
de Alexandre: a elevação do rei à categoria de Deus. É
somente assim que a liberdade da cidade autônoma é com­
patível com a unidade do império e ao mesmo tempo com
o princípio segundo o qual não é a arbitrariedade, mas o
direito que deve imperar. O Rei-Deus criou e protegeu o
direito, seus mandamentos são semelhantes aos de Deus e,
como eles, obrigatórios para todos os súditos” .
Apesar disso, o império não era, como tinham sido a
polis ou mesmo os antigos despotismos orientais, uma ver­
dadeira comunidade. Tratava-se de uma unidade econômi­
ca e administrativa, a unidade de uma soberania militar, na
qual uma multidão de súditos viviam uns ao lado dos outros.
Esses súditos não participavam do governo e não eram mais,
como no Oriente Antigo, representados pelo rei ou o impe­
rador. As formas de representação não passavam de apa-
Imm da A n t ig ü id a d e 103

rencia, propaganda e hipocrisia. Era assim que todo o mun­


do e cada um por si podia ocupar-se com seus interesses
econômicos, culturais ou religiosos, mas sobretudo entregar-se
aos prazeres da vida sob todas as suas formas. O aparelho
político do soberano garantia a paz por meio de uma polícia
remunerada e de soldados profissionais (e isso já no próprio
interesse do soberano). Por esse motivo é que o Tei ou o
imperador era realmente o soter, o salvador, como é sempre
chamado nas efígies das moedas ou nas inscrições. Era ele
que salvava seus súditos da miséria, da insegurança das guer­
ras civis e das inúteis lutas de partidos, mesmo quando go­
vernava rigorosamente, quando os coletores de impostos tra­
balhavam não somente para ele, mas também para si próprios
e pilhavam as províncias.
O Direito do império era o Direito Administrativo do
monarca e o Direito Privado dos súditos. O Direito Admi­
nistrativo era um mal necessário, o preço que se pagava, em
suma, pelo Direito Privado. O Direito Privado não era uma
verdadeira hierarquização social da comunidade, podendo
satisfazer o espírito e as aspirações dos homens, mas o Di­
reito Econômico, Comercial ou Criminal de uma simples so­
ciedade. Nas operações jurídicas, as massas, reduzidas a
átomos isolados e sem peso, reuniam-se por ocasião da cir­
culação, da troca das mercadorias e dos produtos, em função
de uma situação continuamente mutável e da único interesse
que cada um dos dois partidos pudesse disso obter, e somente
pelo tempo em que cada um a isso fosse constrangido exte­
riormente, separando-se de novo após cada operação jurí­
dica. A ordem formal da Tealização da justiça, santificada na
origem no sentido da comunidade e do culto e legalizada em
uma fórmula significativa, não passava agora de um meio
de instaurar a ordem pública e de visar, pelo processo, a
objetivos privados. Mas devido a que o homem não pode
viver sem comunidade, e que a prosperidade econômica pura­
mente material é o que, com o tempo, menos o satisfaz, era-
-Ihe preciso buscar seu interesse alhures. A família, a ami­
zade, as seitas e os cultos adquirem então, como substitutos
da comunidade política, uma nova dimensão. Era preciso
que a nova teoria social levasse em conta esse fato novo, não
somente como uma justificação ideológica das condições exis­
tentes, mas também examinando, em tais situações, as possi­
104 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

bilidades que oferecem à existência do homem, prevendo-lhes


e esclarecendo de modo abstrato os fins e os meios.
Ao contrário da doutrina clássica, a Filosofia de Epicuro
e dos estóicos orienta-se para o indivíduo, não para a comu­
nidade. Wilamowitz disse: “ O estoicismo parte do homem
isolado e chega ao sábio, para quem o isolamento é necessá­
rio. Ê a oposição diametral ao antigo princípio helénico
que sempre parte da comunidade, da comuna. A imagem
ideal de Platão é uma comuna, a de Zenão um indivíduo” .
Mas, para sermos exatos, o que é a Filosofia em Epicuro e
nos estóicos? Certamente não é mais, como nos pré-socrá-
ticos, uma metafísica do ser. Também não é mais, como em
Platão, uma doutrina de reforma político-filosófica ou, como
em Aristóteles, o estabelecimento da ciência e da política a
partir da metafísica, tendo como objetivo a pesquisa teórica
e a vida contemplativa. Enfim, não é mais uma verdadeira
pesquisa científica, como em Demócrito, nos peripatéticos, na
Filologia alexandrina, na Matemática de Euclides e de Ar-
quimedes ou na Medicina ensinada nas escolas. Na verdade,
a Filosofia era, segundo a expressão antiga: medicina mentis,
um remédio, um apoio do espírito ou, como se diria hoje,
uma concepção do mundo” . Poder-se-ia comparar seu papel
com a psicanálise e a psicoterapia na América atual. A razão
pela qual, no helenismo e no Império Romano, o homem
tinha necessidade da Filosofia como de uma medicina mentis
era que ele perdera os objetivos de sua existência na ocupa­
ção ditatorial do governo, afastava-se, desiludido, da polis e
procurava um guia que lhe pudesse ensinar de novo o sentido
de sua existência.
Como se trata de duas dessas medicinae mentis, de dois
meios diferentes de curar a alma, que querem atingir o mesmo
fim de modos diversos e mesmo rigorosamente contrários,
poder-se^ia ainda falar aqui de “ variantes partidárias” , e de
um caráter comum que as abrange como o “ governo dos go­
vernados” abrange a idéia de polis. A relação precisa entre
as posições fundamentais de toda idéia social (indivíduo,
comunidade, sociedade), em cada uma das duas escolas, cons­
titui os pontos de vista dos partidos extremos em que se si­
tuam Epicuro e o estoicismo. “ Concepção do mundo ou
medicina mentis não passam de nomes diferentes para a
mesma idéia. Só falta aqui o aparelho do poder, que tinham,
F im da A n t ig ü id a d e 105

na polis, a aristocracia, a oligarquia, a democracia ou a tira­


nia, e que também possuem, em certa medida, as primeiras
seitas cristãs e sobretudo os diferentes partidos da Idade
Média e dos Tempos Modernos. Esse aparelho era excluído
pela ditadura do monarca, que abrangia tudo. Por esse mo­
tivo, esses dois “ partidos” deviam limitar-se a uma influên­
cia política na sua qualidade de movimentos espirituais. E
isso eles (particularmente o estoicismo) conseguiram realizar
muito mais do que qualquer outra Filosofia Social da An­
tiguidade, da Idade Média e dos Tempos Modernos antes
de Marx,
Epicurismo e estoicismo propõem como remédio da alma
um ideal em virtude do qual tentam orientar os homens.
Trata-se do sophos, do sábio. Difere apenas o caminho
que leva a esse ideal. O que, em compensação, é semelhante
nas duas escolas é que o sábio é caracterizado pela tranqüi­
lidade ( apatheia ou ataraxia) e pelo fato de que é um indiví­
duo. Isso significa que, como o sábio deve ser intangível,
inabalável, sem necessidades, autônomo, é preciso que êle
seja um indivíduo na mais perfeita acepção do termo. Visto
que o indivíduo não é autônomo, sem necessidades, os sofis­
tas, Platão e Aristóteles tinham começado sua doutrina como
uma associação. Na herança socrática, essa comunidade de­
via ser alcançada em Platão pela educação pela razão, em
Aristóteles por um retorno consciente à idéia social tradicio­
nal. Também EpicuTo, e sobretudo o estoicismo, participa­
vam ainda da herança socrática. Como em Platão, para eles
o homem só é um ser homem quando é educado. Mas essa
educação não intervém mais em função da comunidade, po­
rém em função do indivíduo autônomo, liberto de necessi­
dades e inabalável, que é precisamente o sábio.
As escolas do fim da Antiguidade fazem assim uma expe­
riência das mais significativas com seus planos de organiza­
ção da existência, seus medicinae mentis. Convém saber que
o homem, na natureza, não é e nem pode ser, pelo menos
exclusivamente, um indivíduo, uma existência autônoma iso­
lada. Isso já fora afirmado pela doutrina clássica e a expe­
riência do fim da Antiguidade confirma assim a teoria clás­
sica; mas ela não faz apenas isso, completa também essa
teoria. Se o homem, com efeito, na doutrina clássica não
era um indivíduo senão como participante da comunidade e
106 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

da sociedade, essas três posições separam-se agora umas das


outras. O homem toma-se um indivíduo, em outros domínios
como em sua participação na comunidade, na sociedade. A
própria experiência filosófica mostra agora que as três posi­
ções (indivíduo, comunidade, sociedade) devem ser ocupa­
das de uma forma qualquer na totalidade da vida de uma
época, que nenhuma delas não pode nem deve faltar. De
fato, os planos de organização da vida podem então dife­
renciar-se fundamentalmente pela forma com que ocupam
sucessivamente essas três posições e com que ei es distribuem
a tônica. No fim da Antiguidade, como já dissemos, o ponto
de partida situava-se na esfera individual; as duas outras
acrescentaram-se à anterior sob a pressão da objetividade e
da totalidade. Temos assim uma espécie de questionário que
nos permite caracterizar e interrogar as doutrinas das escolas.
Temos apenas que examinar como cada uma delas ocupou
as três esferas (do indivíduo, da comunidade e da sociedade)
com objetivos ou seus sucedâneos. É nesse “ como” que as
doutrinas se diferenciam.

Vejamos, de início, Epicuro (341-271), ateniense, filho


de funcionário. Ao contrário do estoicismo, sua escola deu
importância à conservação de seu ensino na forma que lhe
deu seu mestre, sendo transmitido nessa forma e sem se
modificar por todo o tempo ém que a escola existiria, isto é,
por muitos anos, penetrando até na era cristã. Mas convém
assinalar aqui desde o início: o epicurismo e o estoicismo
eram certamente sistemas de ensino e “ concepções do mun­
do” , mas não apenas isso; representavam ainda tipos de
homens opostos. Como estóico ou epicurista (e ainda mais
neste último caso), podia viver-se decentemente sem aju­
da da esco^. Por isso é que é preciso pensar que o estoi­
cismo e o epicurismo, primeiro na Antiguidade, mas, no fun­
do, até nossos dias, transbordám grandemente do âmbito
da escola. ^A educação da Europa moderna, do século XVI
ao século XIX, por exemplo, orienta-se de preferência para
o estoicismo, a da América do Norte atual, em relação com
a psicanálise e após a secularização do puritanismo, de pre­
ferência para o epicurismo.1

1 O norte-americano Thornton Wilder não podia, em seu livro


Os Idos de Março , interpretar César como um monarca no espírito
F im da A n t ig ü id a d e 107

O sábio, o homem enquanto indivíduo, é, em Epicuro,


imperturbável em virtude da paz serena de sua alma. Como
na maioria das vezes e e!e não é isso por natureza, a educa­
ção na razão e o dogma da escola devem ajudá-lo a tomar-se
assim. O que correntemente se chamava, em particular no
fim do século XIX, de um “ epicurista” , amante da boa vida,
nada tem a ver com Epicuro. O sábio epicureu conquista
a paz serena de sua alma renunciando de modo conseqüen­
te a tudo o que o perturba, lhe causa prejuízo, a tudo que
lhe é fonte de dissensões, mas ele permanece inabalável em
todas as coisas, permitindo-se tudo o que lhe traz uma alegria
permanente, que não tenha de pagar mais tarde com sofri­
mentos ou remorsos. Entre tudo o que pode perturbar o
homem na paz serena de sua alma, existem três causas prin­
cipais: a política, o temor aos deuses e a angústia da morte.
Para libertar o homem dessas três angústias, Epicuro procura
provar que de fato não existem deuses nem morte e que a
política é indiferente.
Entre os gregos, os deuses são forças ou formas da natu­
reza, o próprio cosmos no helenismo, com o movimento eter­
no de suas constelações. Epicuro retoma, em sua concepção
do mundo, uma Física puramente mecanicista herdada das
pesquisas de Demócrito, que arrebata, por assim dizer, aos
deuses e à morte seu lugar de existência. Os deuses são
postos de lado, como seres bem-aventurados que não se preo­
cupam com os homens, em um longínquo reino situado entre
as eras do mundo. A morte perde seu aspecto terrificante
ao mesmo tempo que se mostra que o eu não passa de uma
reunião de átomos cuja dissolução não é dolorosa nem terrí­
vel, mas evidente. Trata-se até certo ponto do ateísmo, mas
não da irreligiosidade, pois a verdadeira piedade não faz
senão concentrar-se na alma do homem e na sua alegria de
viver. Essa alegria de viver, profundamente religiosa, que se
sente em toda parte, como, por exemplo, na poesia didática

da doutrina de Epicuro (da mesma forma que Marco Aurélio é um


monarca estóico), em função da psicanálise de Freud, a não ser
porque se pode ver nas doutrinas de Freud uma mudança do Oci­
dente, talvez elevado de forma muito exclusivamente estóica, às
possibilidades de vida epicurista, e que o estoicismo e Epicuro, por
serem atualmente ainda opostos, formam entretanto na natureza
dois caminhos que se completam.
108 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

de Lucrécio, o epicurista romano, era libertada pela razão


de todo medo de castigo após a morte, do inferno e coisas
semelhantes (que já tinham existido antes do cristianismo,
e mesmo, de forma mítica, em Platão, mas sobretudo no
Oriente).
O que é determinante, para nosso propósito, é que o
sábio epicureu permanece, antes de tudo, na paz serena e
solene de sua alma, sendo um homem privado. “ Viver às
ocultas” era um imperativo decisivo dessa escola. Contudo,
mesmo como homem privado, o ser humano não pode viver
senão no Estado. Ele carece da proteção da polícia, precisa
comprar e vender, ter servidores, pagar ou receber um salá­
rio. Em certas circunstâncias precisa da ajuda dos outros ou
é por esses chamado em auxílio. Como contribuinte, ele é
dependente do governo da ocasião, pode ser implicado em
ações jurídicas, na guerra ou em sublevações. Pode ganhar
ou ainda mais facilmente perder mesmo todos os seus bens,
seus parentes e sua vida. Epicuro teria sido um fantasista
pouco sério se não tivesse levado isso em conta em sua dou­
trina. E ele é mesmo a esse propósito um realista profundo.
Diz ele: tudo isso é, é um dado e é fatal; toma-o como algo
que não podes mudar, ainda que isso seja inteiramente indi­
ferente, e isso não poderá perturbar a tranqüilidade de tua
alma. Em sua grave doença e até a sua morte, ele próprio
confirmou esse princípio; outros confirmaram-no na prisão
e nas vicissitudes da vida.
Disso resulta para todas as relações sociais algo de muito
importante. Carece compreender essas relações em seu sen­
tido ideal, como acordos entre indivíduos independentes e
que dispõem de si próprios. Esses acordos somente são
concluídos com a condição de que seu conteúdo seja provei­
toso para ambas as partes. O Estado e a sociedade são assim
para Epicuro, em toda a sua extensão, instituições puramente
convencionais, que se baseiam em um acordo e nas quais
os homens se garantem reciprocamente paz, proteção e pro­
veito com a condição de que e na medida em que recebem
dos outros as mesmas garantias. Isso representa, do ponto
de vista sociológico, o tipo puro de uma sociedade diferen­
ciada da comunidade. Assim, segundo essa doutrina, o Di-
reito do Estado não é uma hierarquia social eqíiitativa ou
uma ordem econômica, mas, como ordem humana, um Di­
F im da A n t ig ü id a d e 109

reito Comercial, um Direito de Circulação, um Direito Admi­


nistrativo e um Direito Criminal. É um estatuto (thesei),
que não existe por natureza (physei) como já dizia a doutrina
sofista. Ao contrário do estoicismo, não há em Epicuro um
direito natural ao lado do direito positivo.
O Estado e o Direito não passam, no fundo; de um mal
necessário. É por isso que é mais prudente levar em consi­
deração as leis, os mandamentos e os costumes do que ir de
encontro a eles, o que nos levaria a dissabores ainda mais
graves e intermináveis, diante da coesão do poder da polícia
e da justiça e diante da opinião pública eminentemente tirâ­
nica. A afirmação pública do egoísmo, tanto no crime e no
delito quanto na opinião geral, perturbaria muito mais a paz
da alma, isto é, a existência privada do homem, que sozinha
é essencial, do que a estrita observância, desdenhosa e des-
prezadora, de todo regulamento como de algo de indiferente
ao qual não se pode subtrair, e do que o fato de se con­
formar com ironia a todas as convenções.
É evidente que não se edifica assim nenhuma verdadeira
comunidâde, quanto mais um sentimento político (comuni­
dade e sentimento de que a antiga polis helénica, Platão e
Aristóteles tinham tido necessidade). Mas fazia muito tempo
que a polis não mais existia e que as cidades eram, como
hoje acontece freqüentemente, centros administrativos comu­
nais desprovidos de espírito sob a dependência de um im­
pério oíu impérios ainda mais insignificantes que era o mo­
tivo das disputas de indivíduos ávidos de poder e que ma­
nifestavam sua suntuosidade, sua glória e suas liberalidades
em representações teatrais e espetáculos sanguinários. Em
seu jardim, o sábio epicureu de alma serena não concedia
senão um sorriso e a reverência indispensável a esse teatro,
mesmo quando os atores freqüentemente pisoteavam seus
canteiros de flores.
Todavia, o homem não pode, e o sábio epicureu não
podia viver sem verdadeira comunidade. Epicuro encon­
trou então um substituto equivalente da verdadeira comuni­
dade desaparecida da polis na vizinhança íntima, na qual a
amizade aproxima os homens em pequenos círculos. É ne­
cessário entender aqui por amizade a simpatia desinteressada
de dois ou de alguns homens que se ajudam a suportar a
vida por meio de uma conversa e uma compreensão mútuas.
110 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

Trata-se, porém, na verdade, de toda relação de parentesco


ou outra, além da relação de sangue, de Taça ou de simples
relação econômica. Em Epicuro a amizade é um vínculo
já próximo de nosso “ amor” . A amizade, com esse sentido
independente, absoluto e privado, não existiu na antiga polis
helénica nem na realeza sagrada do antigo Oriente. Aristó­
teles descobriu-a, em compensação, no começo do helenismo,
e Epicuro, sem dúvida alguma, segue aqui os passos de Aris­
tóteles. Tanto um quanto o outro deram-lhe em seus sis­
temas um vínculo filosófico. Trata-se de algo notável, embora
a necessidade absoluta de amizade no epicurismo mostre
claramente que o sábio, inabalável na paz serena de sua
alma e curvando-se desdenhosamente a todos os mandamen­
tos e a tocjas as relações exigidas pela Sociedade e o Estado,
não era contudo, como homem, tão autônomo quanto deveria
ser, e não se bastava a si próprio.
A amizade e o amor entre os ricos e entre os pobres em
grupos que ainda se pode abranger com um olhar, entre
homens, entre mulheres, entre homens e mulheres, no casa­
mento ou fora dele, tudo isso constitui, e por um longo perío­
do ainda, a verdadeira realidade social desse tempo. É o
“ cálido clima espiritual” de que fala Nietzsche com certo
desdém, como do terreno nutriente do cristianismo, e ao qual
ele opõe a grandeza pública, mais fria e mais estrita, da
polis.

Quanto ao estoicismo, tudo isso (indivíduo, sociedade e


comunidade) era dividido e interpretado de modo absoluta­
mente diferente. O que nos mostra que ele não pode ter,
ainda que em uma única e mesma época e no mesmo Estado,
um único modo de vida, um único sentido da vida e uma
única idéia social.
O estoicismo foi fundado por Zenão de Cítio (336-264).
Ele era fenício por parte de pai, mas ensinava em Atenas.
Sua escola, ao contrário da de Epicuro, sofreu diversas mu­
danças (distinguem-se um estoicismo antigo, um intermediá­
rio e um mais recente). Seus principais escolarcas e discí­
pulos são Crisipo (281-208), Panécio e Posidônio, o ministro
Sêneca, o Imperador Marco Aurélio e o escravo Epicteto.
As modificações da escola não são muito importantes para
a idéia social e pode-se deixá-las de lado.
F im da A n t ig ü id a d e 111

O estoicismo começa também pelo indivíduo e o deno­


mina, como Epicuro, o sábio (sophos). O sábio estóico, de
igual modo que o sábio epicureu, deve ser autônomo, sem
paixão, e bastar-se a si próprio. Não mais, contudo, em uma
paz serena da alma, pela aceitação pura e simples do que
acontece e por uma alegria de viver solene e religiosa, mas
por um domínio sobre si mesmo em todas as emoções ou pai­
xões. São as paixões que, no mundo, nos prendem em suas
redes e nos toinam, pelas necessidades que temos, dependen­
tes dos homens e das coisas. Se posso, pela força de minha
vontade, vencer realmente todas as paixões, serei livre e in­
dependente. A vontade é a novidade trazida pelo estoicismo
(talvez em virtude de sua origem semítica) e que causou o
êxito de suas doutrinas no Império Romano, isto é, fora do
território grego. Para ser exato, não existe palavra grega
para designar a vontade compreendida nesse sentido, mas
existe uma palavra latina: voluntas.
O estoicismo, em sua “ concepção do mundo” , como me­
dicina mentis, afasta-se do mundo para alcançar a liberdade
sublime, conquistada pela força da vontade sem paixões. Aí
está seu modelo socrático e é com esse propósito que quer
educar os homens. Mas não pode permanecer aí. Precisa
dar ao homem um objetivo para sua existência. Que não
podia naturalmente ser a paz serena da alma de Epicuro,
nem sua alegria religiosa e solene, profundamente grega.
A vontade estóica já se desvencilhara dessa possibilidade.
A Filosofia grega, em compensação, isto é, Parmênides, Pla­
tão e Aristóteles, já tinha ensinado que o homem apreende
a natureza com sua razão (nous)y que ele pode teoricamente
substituí-la pela razão. O estoicismo faz isso agora com sua
concepção da vontade. O objetivo do homem, o sentido de
sua vida toma-se: fazer e ser conscientemente, com razão,
intenção e vontade, o que outros seres fazem e são sem disso
se aperceberem; curvar-se à natureza, integrar-se nela como
membro que tem plena consciência de si, e por esse meio
perfazer harmoniosamente a totalidade da natureza e adqui­
rir uma participação espiritual nessa totalidade. É o famoso
“ viver conforme a natureza” estóico. Da vida voluntaria­
mente dominada, em harmonia com a natureza, surgem então
as outras concepções estóicas da função, da atitude e do
dever ( officium). Elas conservaram, através dos séculos e
quase até nossos dias, sua significação primeira. A natureza,
112 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

segundo a qual o estoicismo queria viver voluntariamente,


conscientemente e de conformidade com o dever, sem pai­
xões, nada mais era senão o cosmos aristótelico concebido
de forma teleológica.
A grande diferença em relação à idéia social de Epicuro
é que o sábio estóico não permanece um homem privado.
Vimos, ao imaginar a constituição política dessa época, que
já Alexandre, mais tarde seus sucessores e enfim o Império
Romano, tinham instaurado de novo o culto do soberano do
Oriente Antigo a fim de manterem subjugadas as cidades
que, em seus territórios, tinham autonomia administrativa.
Nauralmente, já não era a mesma coisa de outrora, antes da
liberdade política dos gregos: uma representação de todo
o povo na figura do Tei. Isso não deveria ter sido de outra
forma, mas era de fato uma atitude hipócrita diante da força
puramente militar e policial do tirano. As camadas sempre
maiores de homens educados no helenismo, mesmo quando
eram apenas superficialmente atingidas por essa nova situa­
ção, acreditavam naturalmente tão pouco nessa mistificação do
Rei-Deus quanto o próprio rei. Já quando Alexandre tinha
exigido a proskunésis (adoração) dos embaixadores das ci­
dades gregas, desencadeara-se feroz resistência. Mais tarde
não se dará, geralmente, uma importância tão séria ao fato,
contentando-se em fazer um gesto (uma solução epicurista!).
A doutrina estóica preenchia, graças à sua noção do
sábio livre de toda emoção e capaz de compreensão, um
lugaT vago na consciência da época. A princípio, o estoicismo
tentara mesmo construir uma comunidade de sábios. Isso,
porém, era uma aberração ligada ao modelo dos guardiães
platônicos educados na razão. Muitos “ sábios” são, segundo
sua definição, indiferentes entre si devido ao fato de não
terem necessidades. Em compensação, o sábio estóico, em
geral (no singular), é o soberano predestinado, libertado
que é, por um lado, dos homens, em razão de sua intangibi-
lidade, de outro lado, das tentações de egoísmo, e podendo,
por sua razão, dirigir com toda a superioridade os homens,
conduzindo-os paTa o Bem. A autarquia estóica e a ausência
de necessidades por parte do sábio vão ao encontro da fór­
mula político-jurídica do soberano e do ditador, no sentido
de que o sábio se coloca acima das leis, dispondo-as, promul­
gando-as ou anulando-as de modo que convenha a seu en­
F im da A n t ig ü id a d e 113

tendimento, sendo portanto legibus solutus, “ absoluto” . As­


sim, para os homens oultos e os filósofos, o rei (que para
o povo sem cultura devia ser Deus) se toma um sábio estóico
(e mais tarde todo alto funcionário).
Naturalmente, todo soberano ou funcionário não corres­
pondia a esse ideal e freqüentemente faltava-lhe muito, em
virtude de sua sede de poder e de sua ambição. Mas isso
tinha somente importância secundária. O essencial era que
uma nova justificação teórica da monarquia e de seu ideal
social pudesse substituir o ideal do tirano egoísta dos sofis­
ta::. A coisa tornou-se possível graças ao estabelecimento
de um critério com o qual o soberano devia conformar-se
e em virtude do qual ele era avaliado. Como mostra o
exemplo de Marco Aurélio, o grande imperador estóico, e
também o de muitos outros, houve ao lado de casos enga­
nadores, como em todo domínio humano, casos que se apro­
ximavam desse ideal. A imagem pastor-rebanho ou o termo
grego kédestai (uma palavra empregada outrora a propósito
da preocupação com as divindades protetoras), isto é, “ tomar
sob seus cuidados” , aplicava-se agora à condição do sábio
em relação aos homens naturais, ainda prisioneiros de seus
instintos, insensatos, do soberano em relação aos seus súditos.
Encontramos assim uma resposta para nosso questionário,
no que concerne ao “indivíduo” . E talvez mesmo parte
da segunda, no que concerne à “ sociedade” , pois o direito
outorgado unicamente pelo soberano certamente permanece
útil para seus súditos, mas imposto, não podendo ser inter­
pretado no sentido da comunidade e continuando em última
análise um direito puramente “ positivo” . Mas esse direito
positivo outorgado pelo soberano, essa ordem estabelecida
soberanamente para o bem real ou fictício dos súditos, que
ainda era em Epicuro inteiramente arbitrário e mal neces­
sário ao qual era preciso submeter-se, esse estatuto e, nos
casos mais favoráveis, essa convenção trocada reciprocamente
com objetivos práticos, adquirem no estoicismo uma signifi­
cação ideal completamente diferente. Para melhor compre­
ender isso, façamos um pequeno rodeio.
No estoicismo, o conhecimento das coisas é possível em
virtude de uma simpatia intelectual com o mundo, com o
cosmos, depois de ter desprezado cuidadosa e consciente­
mente tudo o que pode perturbar essa relação. A razão do
114 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

homem reconhece na ordem do mundo a razão do mundo e


participa assim do conjunto do mundo e da razão. A razão
é a região na qual o sábio se refugia por sua vontade, a
fim de se libertar de suas paixões. A Tazão não estaria assim
somente na alma do homem, mas seria um estado objetivo
do mundo, isto é, sua ordem. O estoicismo retoma da Filo­
sofia grega, sobretudo de Aristóteles, essas relações, do mes­
mo modo que a divinização da razão subjetiva e objetiva.
Dito isto, já não é mais motivo de espanto ver os estóicos
tomar como modelo de seu sábio não um homem, mas o
próprio mundo, o cosmos. O mundo é mesmo independente
de extrema e fatal contingência do homem, a morte, porque
ele pode compensar a morte com o nascimento. Torna-se
assim o sábio absoluto, “porque ele tem em si tudo o de
que precisa” (Plutarco).
O mundo, em sua Tazão e sua ordem, existe como legar
lidade. Não se trata, como na ciência natural moderna ou
em Epicuro, de uma mecânica moralmente indiferente, que,
permite uma dominação da natureza tecnicamente calculável
ou que pode fazer desaparecer o temor aos deuses e à morte;
em seu conjunto, trata-se de uma hierarquia teleológica, isto
é, criada em função de um fim. Já encontramos isso em Aris­
tóteles, e o estoicismo retomou-o, embora de maneira'" mais
grosseira. Partindo da hierarquia da natureza, na qual cada
existência tem seu próprio lugar, sua vocação e sua finalidade,
vê-se surgir uma quantidade de deveres mais ou menos lon­
gínquos, um direito natural para uso do homem. Esse direito
é tanto dever — o que é exigido no officium, o cargo, o
posto em que se é colocado (como em Platão) — quanto
um direito à participação, livremente consentida pela von­
tade, na ordem do universo. Em Fichte, isto é a “ determi­
nação do homem”, em Goethe, o “direito que nasce conosco” .
Não se trata de um estatuto ou convenção, como em Epi­
curo. Não se trata mais da decisão' de uma livre assembléia
do povo governando-se a si próprio, como na polis (nomos).
Não se trata mais da autoridade de um rei ou de um ditador,
embora pudesse tornar-se tudo isso. É, antes de tudo, a ver­
dade que nasce do conhecimento racional da ordem do mun­
do. Esse direito chama-se então, segundo o termo estóico,
conservado até nossos dias, “ direito natural”, em oposição
a todo direito outorgado, decidido, convencionado ou impos­
to. Em termos modernos, é o direito “ positivo” .
F im da A n t ig ü id a d e 115

Ê fácil estabelecer a aliança desse direito natural com


o sábio autárquico. O sábio outorga positivamente o direito,
graças à sua autoridade; nem todos os seus súditos podem com­
preender a verdade e o sentido dessa autoridade porque não
são todos sábios. Isso permanece para eles uma autoridade
e um direito positivos. Mas a autoridade propriamente dita
dessas ordens, leis e ordenações reside no fato de que são
promulgadas em função da verdade do direito natural, isto
é, do entendimento superior do sábio em Telação a tudo o
que diz respeito à razão e à ordem do mundo. Destarte,
no plano ideal, mandamento e verdade, direito natural e
direito positivo são idênticos. Devem sê-lo. Onde não o
são é porque a sabedoria do soberano ou dos funcionários é
ainda insuficiente. De qualquer forma, a verdade do direito
natural, resultante da ordem do mundo, permanece, enquanto
hierarquia concreta de todo ser e de toda coisa, como a
medida e o critério racional do direito positivo, outorgado de
maneira autoritária, e da lei promulgada.
As duas noções “ comunidade” e “ sociedade” recebem,
por isso, em relação à sofística, uma nova precisão e o seu
relacionamento.
Outrora, na antiga polis, a comunidade baseava-se no
connubium e no commercium, e tomara-se consciente por
meio do mito e do culto. Era sempre comunidade de um
grupo determinado: a família, a parentela, a tribo, a aldeia,
a cidade, o povo. Agora a comunidade se baseia numa sim­
patia intelectual com o cosmos, único valor da vida que sub­
siste ainda quando se venceram as paixões. Ela é não somente
a comunidade de todos os homens (povos, indivíduos da
mesma língua e da mesma raça), mas também de todos os
seres vivos e de todas as coisas do mundo. De fato, o próprio
iriundo, com todos os seres e todas as coisas, é concebido
como a mais sábia existência. A dependência de um grupo
social determinado: família, cidade, comunidade de língua
ou de educação, ou de uma raça ou classe, é caracterizada
como um simples “ acaso do nascimento” . O cidadão tor-
na-se, em um sentido imediato (de modo inteiramente di­
verso do que se usa e abusa atualmente), “ cidadão do mun­
do” , colocado em seu lugar no cosmos vivo. A palavra que a
isso se refere: “ cosmopolita” , cidadão do cosmos, como se
dizia antes do cidadão de Atenas, de Roma, etc., foi retomada
116 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

de Antístenes pelo estoicismo e se encontra já em Demócrito


sob formas variadas. Contudo, foi só no estoicismo que
adquiriu seu sentido e seu valor universal.
Em Epicuro, tudo era s e p a T a d o em função dos domínios:
a comunidade era a amizade dos pequenos círculos, a socie­
dade a organização indiferente das cidades e dos impérios,
como mal necessário e condição tolerada em compensação
pela paz da alma do sábio e do homem privado, colocado
acima da mecânica do mundo. Isso não tem mais curso na
idéia social do estoicismo. Da mesma forma que o sábio
não é mais um homem privado, mas o ordenador e o sobe­
rano poderoso e racional que exerce no mundo sua ativi­
dade, o Estado não é mais um mal necessário desprovido de
espírito. É antes, na simpatia intelectual do homem com o
cosmos, um ‘ Estado do mundo” , na acepção literalmente
exata dessa palavra e m direito natural: tudo, desde os deuses
e os homens, até os mais ínfimos seres viventes e as coisas,
tem o lugar que lhe convém e eventualmente também seus
direitos e seus deveres ou sua determinação divina. Conside­
rando-se a imensa corrupção, a carência total de espírito, a
violência, a opressão e a exploração, as lutas selvagens pela
conquista do poder e a pura e simples aspiração aos prazeres
dos Estados helenísticos e do Império Romano, isso constitui
de fato uma grande ilusão e uma mentira. E, contudo, as
ilusões são, às vezes, no domínio da Sociologia e alhures,
medicinae mentis, por pouco que sejam representadas de
modo suficientemente sugestivo.
Assim, na prática, o sábio estóico ou participa com todas
as suas forças do lugar que é o seu, da vida do mundo, ou
então, quando isso não é possível, se retira, como o epicurista,
para a sublime impassibilidade de uma vida privada de onde
é banida toda emoção. Mesmo então, a fria simpatia com
o universo substitui para ele o comércio íntimo da amizade,
que se encontrava em Epicuro. Uma terceira possibilidade
era de que o direito natural fosse considerado como o cri­
tério do direito positivo, promulgado pelo soberano, e esta
foi a mais importante em todos os casos nos séculos ulteriores.
Se o direito natural torna-se o critério do direito positivo,
este deve ser como aquele, mas de fato não o é, por causa
da imperfeição do soberano ou do legislador, não importa
qual seja (as paixões levando a pre^cupar-se mais com seu
F im da A n t ig ü id a d e 117

interesse pessoal do que com a prosperidade de todos), por


causa de sua falta de compreensão da razão do universo,
ou por causa de uma execução insatisfatória por funcionários
não suficientemente sábios. Essa diferença entre o direito
natural e o direito positivo pode ser interpretada de modo
conservador ou revolucionário, mudando conseqüentemente
a idéia social de base.
Em geral, o estoicismo era, no fim da Antiguidade e
conforme o espírito da época, conservador e não-revolucio-
nário. Isolava-se no passado, numa “ idade de ouro” , segundo
a velha expressão de Hesíodo, o Estado ideal em que o
direito natural tinha um valor efetivo. O presente surgia
como uma época de decadência, senescens saeculum, o fim
e a velhice do mundo. Devia-se acomodar com sua injus­
tiça “ positiva” , como já em Epicuro; não valia mais a pena
mudá-la. Mas pode também interpretar-se de modo revolu­
cionário a diferença entre direito positivo e direito natural,
isto é, tentar fazê-la desaparecer no futuro. Ê o que se pro­
duzirá de certa forma no cristianismo, onde, é verdade, esse
“ futuro” é concebido de maneira transcendente, como a vida
depois da morte, e onde se acomoda — ainda que por outros
motivos — à mediocridade do presente. Mas, em conse­
qüência, o valor de um verdadeiro direito natural será des­
locado em um futuro que o homem possa alcançar aqui em
baixo. O pensamento do direito natural toma-se então o
objetivo do progresso, da idéia de progresso em geral (moral
e não técnico) na história, que desempenha um papel tão
importante no iluminismo do século XVIII e em Marx. Aqui
o direito natural se torna estopim revolucionário, em favor
da instauração voluntária de um direito melhor e de Estados
melhores. Deve sobretudo mudar a hierarquia social como
ordem econômica. Não devia ainda fazê-lo no estoicismo.
Na Antiguidade, sobretudo no Império Romano, a idéia
do direito natural teve, para a ordem social, outra significa­
ção importante.
Esse império estendeu-se, partindo da polis de Roma,
à Itália, depois à bacia .do Mediterrâneo, da Espanha à Síria,
da África do Norte à Cália é à Germânia. Abrangia o que
foi denominado por seus habitantes de “ todo o mundo civili­
zado” . Os germanos e os persas em suas fronteiras, como
tudo o que estava ainda mais afastado, passavam por “ bár­
118 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

baros” . Um direito comum, qualquer que fosse ele, devia


finalmente impor-se nesse império. O Direito Romano eTa. a
organização jurídica de uma polis; nas províncias vigoravam
inicialmente para os naturais (não para os cidadãos romanos)
o Direito local e o privilégio de deixar-se dominar e explorar
pelos prefeitos romanos. Essa existência paralela de diversos
Direitos, Direito das Gentes, Direito das Cidades e Direito
das Províncias, com o tempo e a circulação entre uma pro­
víncia e outra, devia levar à unificação. Isso se produziu
por uma espécie de polimento do Direito Civil Tomano em
contato com outros Direitos. No próprio Direito Romano,
o jus gentium, o “ Direito das Gentes” (de modo algum no
sentido atual, mas como Direito dos diferentes povos) con­
quistou pouco a pouco a prioridade sobre o Direito das Ci­
dades e o Direito do cidadão da polis. Ocorreu isso em
virtude de uma noção específica do direito natural: a da
eqüidade ( aequitas), em oposição ao Direito rigoroso. A
eqüidade é no fundo o espírito dá justiça do pensamento
orientado para a humanidade; é o primeiro estádio da mi­
sericórdia cristã. Os juristas do Império tomaram esse pen­
samento à doutrina estóica do direito natural.
A idéia social do estoicismo, razão e ordem do cosmos
para todas as coisas e para todos os homens, que são coisas
do murido e cidadãos do mundo, é assim o fundo sobre o
qual se efetua a passagem da oTdem e do Direito da polis
de Roma à ordem e ao Direito do Estado mundial dominado
pelo imperador. Aqui todos os homens, como cidadãos do
mundo, são iguais e não mais diferentes conforme sua ori­
gem, sua língua ou sua classe. O estoicismo também propi­
cia com esse objetivo uma formação e uma educação impos­
tas a todo o mundo, embora fossem bem amortecidas e super­
ficiais. Educação e direito natural tornam-se o fundamento
filosófico do novo Direito do império, como o sábio estóico
se toma o substituto racional do culto do imperador. Dio-
cleciano considerou com muita reflexão a nova constituição
do império e logicamente elaborou-a com sucesso. Ele fixou
a subordinação de todos os habitantes em uma organização
relativamente imutável das classes, taxou rigorosamente os
preços e regulamentou metodicamente as profissões. A luta
pela vida devia cessar de uma vez por todas, bem como o
livre movimento dos indivíduos, a flutuação das classes, dos
grupos e das pessoas. A economia, a hierarquia e a paz
F im da A n t ig ü id a d e 119

deviam ser mantidas artificialmente pelo aparelho do Estado.


Era o equivalente sociológico do pensamento (muito relativo,
e, evidentemente, de conformidade com as escassas possi­
bilidades técnicas da época). A liberdade, para os habitantes
desse império, não era mais suportável e era bastante natural
que por si mesmos se privassem dela. Em compensação,
aspiravam à segurança e à paz que eles obtinham através do
aparelho de dominação dos imperadores.
É assim que o pensamento social grego se consuma no
Império Romano. Ele tinha esgotado todas as suas possi­
bilidades. Uma nova idade do mundo, a era cristã, Tecebe
por sua vez a herança dessas idéias sociais.
Segunda P arte

CRISTIANISMO E IDADE MÉDIA


CAPITULO IX

Origem da Idéia Social Cristã

F i evidente que o cristianismo, em sua doutrina e em seu


significado geral, está tão distante do tema de nosso tra­
balho quanto estava, páginas atrás, alheia ao pensamento
social a Filosofia propriamente dita de Platão, de Aristóteles
e de outros pensadores. Somente na medida em que o cris­
tianismo se tomou importante para as diferentes idéias so­
ciais é que devemos falar resumidamente de sua doutrina
da salvação. A doutrina cristã da salvação, com efeito, subs­
titui totalmente no seio da civilização e do pensamento do
fim da Antiguidade clássica as doutrinas filosóficas estóica
e epicurista na sua qualidade de medicinae mentis ou “ psico-
terapias” .
Podemos partir do fato de que a mensagem de Jesus
no Novo Testamento consiste, antes de tudo, no anúncio do
“ reino de Deus” . Como reino, trata-se desde logo, de uma
maneira ou de outra, de uma forma social. Como se chega
a essa idéia do reino de Deus? De que é feito esse reino?
Quais são as características que o distinguem dos impérios
reais, das repúblicas e de outras criações sociais dos homens?
Onde o encontramos?
Em certos aspectos, as doutrinas de Epicuro e do estoi­
cismo tinham sido grandes ilusões; passam por cima da es­
trutura social, decadente, tal como ela era na realidade no
fim da Antiguidade clássica: o estoicismo concebendo ainda
a relação entre o homem e o Estado e o mundo como uma
verdadeira relação jurídica à qual ele atribuía, no direito
124 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

natural, a simpatia e a verdade como meios de ligação, en­


quanto fazia muito tempo que já não mais existiam. Epicuro
apreendera melhor o problema ao interpretar o Direito e o
Estado de sua época como um simples contrato baseado no
egoísmo, ligando fragilmente os homens à maneira das socie­
dades, e encarando-os como um mal necessário. Sua ilusão,
em compensação, estava em que ele acreditava que o homem,
na sua qualidade de sábio, podia afastar-se da sociedade (e
até de suas paixões) e refugiar-se em seu jardim sem se
deixar perturbar, para aí usufruir um círculo íntimo de ami­
gos e estar ao abrigo do sofrimento, da miséria e da culpa.
A razão dessa ilusão baseava-se, enfim, no ideal presunçoso
do sábio que superestima a natureza dependente, corruptível
do homem e considerando-se já, como indivíduo, como um
ser autônomo.
O cristianismo põe fim a todas essas ilusões. Em primei­
ro lugar, admite que aqui em baixo reinam a discórdia, a
injustiça, o sofrimento, a infelicidade e a violência e que o
homem está ameaçado do começo ao fim de sua vida, e não
apenas por todas as coerções externas, mas também por suas
paixões e os abismos que se acham nele mesmo. Com suas
próprias forças e de sua própria vontade não pode libertar-se
de tudo isso. Não pode viver como um sábio absolutamente
autônomo.
O caráter negativo do mundo é logo posto por terra.
Outro mundo existe, em pensamento, no qual não deve mais
imperar a discórdia, mas a paz, não a injustiça, mas a eqüi­
dade; não a desgraça, mas a felicidade, não o sofrimento e as
dores, mas a alegria e a satisfação, não a maldade, a violên­
cia, a sedução das paixões, mas a bondade recíproca, o amor
e a integração no todo, não a morte, mas a vida eterna. Esse
mundo invertido (comparável ao “ Estado em pensamento”
de Platão) é a representação do “ reino de Deus” . Não se
trata de uma invenção cristã, pois já o encontramos nos
Salmos do Antigo Testamento (XLVI, XCVI). Chama-se
“ reino de Deus’: porque, em oposição ao mundo presente,
ele deve começar pela ascensão de Jeová ao trono. Esse
pensamento do Teino de Deus encontrava-se vivo na pTece
cotidiana dos judeus dos tempos de Jesus. Não foi retomada
pelo próprio Jesus senão como uma crença tradicional per­
tencente ao patrimônio judeu.
O r ig e m da I d é ia S o c i a l C r is t ã 125

Como se chegou a esse pensamento no judaísmo? Sa­


be-se que já na legislação mosaica a justiça consistia na
recompensa das boas ações e na punição das más ações. O
Bem é a observância dos 10 mandamentos considerados como
o código da moral; o Mal é a desobediência a esses manda­
mentos. Quem recompensa e castiga é Jeová, o Deus de
Israel. Mais tarde, o Estado de Moisés e sua época, certa­
mente, passaram a ser considerados pelos judeus não como
o “ reino de Deus” , mas como uma imagem ideal e român­
tica do passado. E isso precisamente na relação entre a
moral exigida por Deus e os êxitos exteriores, a felicidade e
a “ terra que mana leite e mel” . O infortúnio do Estado
judeu a partir daquele momento, todas as peripécias de sua
vida política tornam-se por esse motivo como uma espécie de
castigo histórico infligido por Deus por causa das desobe­
diências a seus mandamentos. Em virtude dessa concepção,
os grandes profetas empreenderam, no começo e na conti­
nuação do processo de decadência, a reforma do Estado, da
religião e da moral. Essas reformas são tentativas de salvar a
idéia social religiosa dos judeus, do mesmo modo que o
Estado de Platão foi uma tentativa de salvar a polis grega.
A diferença entre Platão e os profetas está apenas no fato
de que Platão emprega, como Sócrates, o instrumento filo­
sófico da razão, da educação racional, enquanto os profetas
apelam para a consciência religiosa e se valem da ameaça
do castigo divino na história. Tratava-se, segundo essa con­
cepção, de uma predição da história, apoiando-se na degra­
dação moral presente e nos mandamentos de Deus (donde
seu nome de “ profetas” ).
A esperança histórica de uma Tealização desse “ reino
de Deus” com suas qualidades positivas em um Estado judeu
nacional, em uma espécie de teocracia, foi, durante o exílio
babilónico, definitivamente frustrada, do mesmo modo que a
esperança greco-platônica de uma restauração da polis o
fora com a fundação do império de Alexandre. Assim, a
esperança política e messiânica no futuro foi transformada
— talvez também sob a influência do pensamento persa —
em uma representação profundamente transcendente (Eze-
quiel). É um fato que tem sua correspondência absoluta
no livro X da República de Platão, com a única diferença
de que em Platão somente um mito (concebido em grande
parte de forma irônica) sobre a recompensa das boas ações
126 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

no além e a punição das más ações (lá ainda, sem dúvida


num empréstimo às representações persas) termina os enca­
deamentos filosóficos e pedagógicos, enquanto entre os
judeus se tratava de uma fé real, levando a uma nova dog­
mática religiosa.
É dessa dogmática, como representação tradicional da
fé, que parte a pregação de Jesus no Novo Testamento.
A correção espontânea suscitada por Jesus dirige-se, do
ponto de vista de nosso tema, somente em dois sentidos: em
primeiro lugar, elevando a transcendência até o absoluto; em
segundo lugar, atualizando essa antiga idéia do reino de Deus
em um novo apelo. Ambas essas correções tiveram influência
sobre a realidade social cristã.
O “ reino de Deus” , como justiça realizada em um Es­
tado de paz, de alegria, de felicidade em comunhão com
Deus, não é em Jesus um objetivo intencional ou social-re-
volucionário, como o Estado contratual em Hobbes, ou a ins­
tauração de uma sociedade sem classes pela ditadura do
proletariado em Marx. Tampouco se pode chegar, como em
Platão, a uma nova polis, ao Estado dos cidadãos educados
na razão livre. De igual modo não se pode provocar seu
advento pela observação escrupulosa de prescrições rituais,
de conformidade com a opinião dos fariseus judeus contem­
porâneos de Jesus, ou por meios cultuais, intelectuais, mís­
ticos, como o renascimento do homem nos mistérios helenís-
ticos da época. Esse reino não pode ser instaurado pela ação
humana, e menos ainda pela moral e os bons costumes. So­
mente- se pode esperá-lo pela graça de Deus, como um acon­
tecimento que deve ocorrer. Esse acontecimento não é pre­
visível. “ E, interrogado pelos fariseus sobre quando havia
de vir o reino de Deus, respondeu-lhes e disse: O reino de
Deus não vem com aparência exterior. Nem dirão: Ei-lo
aqui, ou, ei-lo ali; porque eis que, quando vier, o reino de
Deus estará subitamente entre vós” ( Lucas XVII, 20-21).
Viria a propósito comparar uma afirmativa análoga de Platão
a respeito do conhecimento, em sua Carta VII. Essa idéia
do reino de Deus é assim elevada em uma transcendência
absoluta, acima do humano, ou, como dizem os teólogos,
em uma representação “ escatológica” .
Ainda que os homens nada possam fazer pela realização
do reino de Deus, Jesus anuncia: “ O tempo está cumprido,
O r ig e m da I d é ia S o c i a l C r is t ã 127

e o reino de Deus está próximo” ( Marcos I, 15). No que


toca à transcendência absoluta, este “ próximo” não pode
naturalmente ser uma medida de tempo, embora assim te­
nha sido freqüentemente compreendido por seus contempo­
râneos. Mas qual o sentido de pronunciar semelhante coisa?
Os homens devem estar prontos para o advento do reino de
Deus, embora esse advento não possa ocorrer graças à pre­
paração deles. Eis por que essa afirmação da “ aproximação”
do reino de Deus se transforma em um apelo moral: “ Arre­
pendei-vos, pois o reino de Deus está próximo” . A prepa­
ração dos homens é a conduta razoável na espera do reino
de Deus. Poder-se-ia compará-la com a relação que Kant
estabelece entre o cumprimento do dever e a felicidade, que
em si é independente.
A transcendência da idéia social do reino de Deus tem
ainda outra conseqüência: a de superar a idéia judaica da
justiça. Já em Moisés compreendia-se a justiça como uma
punição idêntica à ofensa ( “ olho por olho, dente por dente” )
e, no que concerne às relações entre Deus e o homem, como
um encadeamento histórico de boas ações e de recompensas,
de más açoes, desobediências aos mandamentos e de castigos
impostos por Deus. Isso é agora abolido pela graça de Deus
em uma fé na transcendência absoluta do reino de Deus.
Esse novo processo de pensamento é representado, do ponto
de vista da Filosofia da História, em Paulo, da seguinte ma­
neira: o ser humano não pode por si próprio satisfazer à
justiça, pois ele é corrompido em sua natureza devido à
queda. Não pode satisfazer nem à lei moral natural ates­
tada pela consciência (aos pagãos), nem à lei moral situada,
conforme entende Paulo, em um grau mais elevado, lei outor­
gada por Deus (aos judeus). Essa lei moral outorgada tor­
nou o homem pior, devido a que realizou ele a vã empresa
de adaptar-se a ela por sua própria vontade, como o fizeram
os fariseus, e tomou o pecado positivo e manifesto. tSe se
quisesse aplicar esse pensamento à concepção do mundo
estóica e epicurista, ele levaria à conclusão de que a idéia
do sábio autônomo, intangível e bastando-se a si próprio é,
na qualidade de ideal humano almejado, uma presunção.
Mas se o homem, conforme à doutrina cristã, perdoa seu
próximo, arrepende-se e prepara-se para o advento do reino
de Deus, Deus o perdoará no dia do julgamento. Assim,
diz ele: “ Perdoai-nos nossas ofensas assim como nós per­
128 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

doamos aos que nos ofenderam” . Na religião cristã, isso tem


relação com a fé em Jesus Cristo, filho de Deus.
Decorre daí uma nova idéia do “ reino de Deus” , que,
segundo o evangelho de João, “ não é deste mundo” . Segun­
do Paulo trata-se de um Estado, uma comunidade no céu
( politeuma en ouranoís). Podem ainda dizer-se que para
essa polis celeste o direito natural estóico guarda todo o seu
valor. Este direito natural não é, com efeito, o direito posi­
tivo de um Estado, estabelecido pelos homens por meio de
convenções ou de mandamentos, mas a verdade em si
( dtetheia mais do que veritas), na ordem regulada do mundo
em que cada um tem o lugar natural que convém a sua
categoria. Esse mundo não é mais o daqui, corrompido, mas
o de além, a polis transcendente no céu. É transportado em
um tempo ou em um estado posterior à morte da carne e
ao juízo final, após a separação dos bons dos ruins, como o
fizera Platão na narrativa final de sua República. A ativi­
dade dos membros dessa polis era imaginada como uma
comunhão espiritual com Deus (fruitio D ei), pois com efeito
fora a corrupção do sentido do homem, de sua relação com
a natureza, a causa da decadência do mundo cá de baixo
e de seus Estados.
Em conseqüência existia, pela segunda vez, uma comu­
nidade verdadeira, pública, totalitária, de cristãos indepen­
dentes na fé e diante de Deus, como já existira na polis
grega dos antigos tempos o governo em comum dos gover­
nados independentes. Ela não estava neste mundo, mas na
esperança religiosa e na fé no advento prometido do reino
de Deus. Mas que vínculos sociais existiam aqui em baixo?
Representavam uma comunidade ou uma simples sociedade
segundo o sentido de nossa concepção sociológica? E em
que foram alterados pela crença no anunciado Teino de
Deus?
Aqui em baixo ainda subsistia o Império Romano com
seu direito imperial, sua paz pela coerção e a exclusão de
todos os súditos do governo devido à dominação do impe-
rotor que se colocava acima das leis que ele outorgava (le-
gibus solutus). Jesus, segundo o Novo Testamento, não
somente determinou de forma precisa perante Pilatos a po­
sição de seu reino em face do Império Romano, como quan­
do, interrogado sobre sua Tealeza, respondeu que seu reino
O r ig e m d a I d é ia S o c i a l C r is t ã 129

"não era deste mundov. Anteriormente, na passagem que


trata das moedas com a efígie do imperador, ele já dividira
firmemente os limites dos dois impérios: “ Dai pois a César
o que é de César, e á Deus o que é de Deus” ( Mateus
XXII, 21). Trata-se no fundo da mesma separação que
Epicuro já havia feito. O objetivo de Epicuro era a paz da
alma do sábio no círculo íntimo de seus amigos, à margem
do Estado reconhecido e aceito. O objetivo de Jesus é a pre­
paração para o advento do reino transcendente de Deus, quer
dizer, algo diferente. Mas de qualquer modo, também à
margem do Estado reconhecido. Se tomo pura e simples­
mente a realidade desse Estado tal como ela é, como um
constrangimento sobre o qual não tenho qualquer influência,
quer eu me conforme escrupulosamente com suas leis, se­
gundo Epicuro, quer, segundo Jesus, eu pague ao imperador
impostos que lhe pertencem de acordo com a efígie de sua
moeda, o Estado e a sociedade não perturbarão a paz de
minha alma ou minha preparação — a única coisa que im­
porta — para o advento do reino de Deus. Dessa forma, o
Estado, o imperium romano, é reconhecido pelo que êle se
tomou nessa época de decadência: uma criação de compe­
tência da sociedade, tendo por objetivo a proteção e a paz
dos homens nas questões de economia e abastecimento, e
que não se pode considerar naturalmente como uma verda­
deira comunidade da qual todos os membros participem. Mas
é, ao mesmo tempo, como Estado, como criação social, com­
pletamente desvalorizado do interior de si mesmo, tanto em
Epicuro como no Novo Testamento. O conceito, sem dúvida
mais positivo em Paulo, da “ autoridade” temporal não pode
ser de grande peso com Telação a esse veredicto.
Não se pode, entretanto, aqui em baixo ficar apenas nisso.
Vimos que em Epicuro, após o precedente de Aristóteles, a
amizade privada surge, em lugar da verdadeira comunidade
política, deficiente após a decadência da polis. Algo de in­
teiramente análogo irá ocorrer nos pequenos círculos da cris­
tandade nascente.
Em lugar da amizade epicurista surge com efeito o amor
(privado, pelo menos no quadro do Estado, mas sem bar­
reiras) ao próximo, do ser humano para o ser humano (cari­
tas). É resultante dos grandes preceitos sobre o amor do
Sermão da Montanha, que exige uma perfeição absoluta nas
130 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

relações dos homens entre si, uma perfeição tal que só é


possível na esfera do divino. A caritas que se desenvolveu
a partir daí era uma assistência tanto material quanto espi­
ritual, desprovida de egoísmo, brotando do amor ao gênero
humano. Mas essa caridade já tinha, em oposição a Epicuro,
uma relação definível com uma grande comunidade pública,
o reino de Deus depois da morte (que permanecia transcen­
dente). Tratava-se, por assim dizer, de uma imagem inte­
rior, provisória, privada, uma antecipação do reino de Deus,
na esperança de seu advento. É dessa forma que o amor
ao próximo, comunidade terrestre com todo ser que encontro,
qualquer que seja sua origçm, sua classe, sua nacionalidade,
seu talento ou sua confissão, é ordenado pelo próprio Jesus
no Novo Testamento: “ O que fizestes a um destes meus
pequeninos irmãos, a mim o fizestes” ( Mateus XXV, 40).
Esse novo vínculo de comunidade, o amor ao próximo
(caritas), permanece, no cristianismo, sempre privado. Não
era considerado senão como o meio de realizar sua passa­
gem, aqui em baixo, até o advento do único reino público
e perfeito, o reino de Deus, do amor. Não era o substituto
definitivo desse reino transcendente de Deus. Por esse mo­
tivo, não se tomou o princípio de uma transformação revolu­
cionária da ordem social. Isto surge em fatos dificilmente
compreensíveis do ponto de vista moderno, como, por exem­
plo, o tratamento humano dos escravos ou sua libertação,
que eram considerados na Antiguidade cristã como atos de
caridade, recomendados pela Igreja: mas os escravos dos
gigantescos domínios desta não deviam ser libertados, por­
que isso representaria uma dilapidação do patrimônio da
Igreja. Contudo, esses escravos da Igreja não eram certa­
mente mais bem aquinhoados nesses grandes domínios do
que nas propriedades de indivíduos particulares. A supres­
são da miséria das massas nas grandes cidades jamais foi
empreendida metodicamente ou de forma revolucionária pela
Igreja no plano social, mas somente no plano privado, sob
a forma da caritas, do amor ao próximo,, da preocupação
com a velhice, os doentes, os prisioneiros, etc. Isso estava
de acordo com a espera constante, na idéia social cristã, pelo
reino de Deus. O homem não devia preparar-se senão em
função de seu advento; não lhe cabia instaurá-lo artificial­
mente no mundo, por meio de medidas sociais e atos huma­
nos voluntários.
O r ig e m da I d é ia S o c i a l C r is t ã 131

Foi dessa caritas privada que sem dúvida saiu o que se


denomina “ comunismo” das primeiras comunidades. Disso
já fala o Novo Testamento. Freqüentemente, os primeiros
cristãos, na sua confiança em Deus, vendigm todos seus bens
e remetiam o produto dessa venda aos apóstolos ou aos an­
ciãos. Esses utilizavam-no na modesta manutenção de fra­
des e freiras que não tinham com que se prover. Muitas
vezes os bens eram comuns a todos. Ainda mais tarde, no
seio da suntuosa corte cristã de Bizâncio, o grande pregador
Crisóstomo, no século IV, exortou seus ouvintes a agirem da
mesma forma, naturalmente sem êxito. É um sinal de que
esse chamado comunismo das comunidades primitivas não
era uma idéia social da mesma categoria do comunismo dos
guardiães de Platão e de certas utopias do Renascimento, ou
ainda do comunismo de Karl Marx. Trata-se, enfim, de uma
caritas puramente privada. Julgava-se então que o retomo
do Cristo e o advento público de seu reino transcendente
eram uma questão de dias, de meses ou de alguns anos.
Ninguém pensava no estabelecimento sobre a Terra de uma
comunidade social permanente, isto é, que durasse gerações.
É por esse motivo que a tentativa de uma Tepetição desse
comunismo privado não podia ter qualquer êxito numa .época
em que o cristianismo de há muito tempo se instalara como
religião. Teria sido preciso então que essa tentativa se tor­
nasse uma verdadeira idéia social com o propósito de triun­
far sobre a miséria terrestre. Mas não havia no cristianismo
nenhum fundamento espiritual disponível para isso. É pre­
ciso, para que essa pura caritas permaneça autêntica, que
haja uma relação de ser para ser, enquanto ela inevitavel­
mente morre nas associações e grupos que almejam organizar
tecnicamente a repartição do produto social. A contribuição
para tais associações não passa de uma evasão diante da
exigência feita a cada um pelo mandamento do amor, que
faz nascer a liberdade do cristão diante de Deus.
Conhecemos agora três posições dessa nova idéia social:
a comunidade pública do reino de Deus no além, que o
homem só'pode esperar da graça de Deus e que ele não
pode instaurar. A organização egoísta da paz e da economia
do Estado, que é aceita em seus dados justos ou injustos,
contra a qual não se opõe resistência, kias que precisamente,
como sociedade, é desvalorizada devido a essa submissão.
E o amor ao próximo, puramente privado, que pode prepa­
132 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

rar os homens para o advento do reino de Deus e ao mesmo


tempo ajudá-los a suportar o peso da existência, por uma
nova espécie de amizade, aprofundada pela religião, duTante
a sua passagem relativamente curta sobre a Terra. Na medida
em que a pregação e a fé em Jesus se tomam a religião
cristã, existe ainda uma quarta posição. É a Igreja na qua­
lidade de corpus Christi mysticum. Qual o seu significado
para essa nova idéia social?
A primeira forma do cristianismo era a simples crença
na ressurreição de Jesus, na sua qualidade de filho de Deus,
e na distribuição da graça por seu sacrifício. Tal era o
conteúdo da “boa nova'’ que os discípulos, os apóstolos e
as primeiras testemunhas propagaram. Quando o jovem cris­
tianismo se separou do judaísmo, disso resultou uma con­
fissão, uma dogmática e uma associação jurídica, segundo o
modelo do “ pacto” , já concebido de forma bem jurídica, de
Jeová com Israel. Fora disso (de modo análogo na passa­
gem da polis grega ao cosmopolitismo do estoicismo e do
Império Romano) uma instituição universal e confessional
surge da comunidade nacional judaica, de religião e de povo,
ligada pelo sangue. Já o autor desconhecido da Epístola
aos Hebreus tinha concebido em suas grandes linhas esse
pensamento da Igreja como uma nova comunidade na Terra,
puramente confessional, anterior ao reino de Deus, ao lado
do Estado romano, ao lado mesmo de uma caritas que per­
manece privada no interior da Igreja.
Essa concepção se confirma cada vez mais pela evolu­
ção do cristianismo no sentido de uma religião de massas.
Era preciso que a mensagem cristã se modificasse em uma
doutrina das inovações e das inspirações flutuantes dos in­
divíduos, que as festas e comemorações fossem fixadas, que
o sacrifício do Cristo fosse celebrado na repetição quoti­
diana de um novo culto, que a moralidade dos crentes fosse
sistematizada. Em suma, o cristão devia diferençar-se niti­
damente do não-*cristão. Isso necessita, como todo Estadó,
dé um aparelho de ministros do culto, de mestres, de vigi­
lantes, de administradores, de guias espirituais. No interior
de um aparelho desses, a hierarquia é então fundamental.
Define-se aqui religiosamente pela santa dominação do sacer­
dócio. O substantivo da nova denominação da Igreja, corpus
Christi mysticum, que já se encontra em São Paulo: corpus
O r ig e m da I d é ia S o c i a l C r is t a 133

(soma), é tomado da terminologia jurídica romana, que cha­


ma de “ corpo” todo grupo administrado de pessoas definível
juridicamente.
Historicamente* a formação da Igreja acha-se estreita­
mente ligada à autoridade da primazia do Bispado de Roma.
Sabe-se que ela foi fundada sobre o charisme da função
(herdada de São Pedro) do bispo romano. Mas nem a for­
mação da Igreja como comunidade institucional nem a pri­
mazia do bispado romano podiam impor-se à cristandade
sem encontrar resistência. Tertuliano, por exemplo, pronun­
ciou-se violentamente contra um edito peremptório do Papa
Calisto, que concede aos bispos — e não simplesmente de
forma imediata a Deus — o direito de remissão dos três
pecados reputados anteriormente mortais (abandono da fé,
crime, adultério), em função da penitência e do arrependi­
mento.
O reino de Deus no além é naturalmente uma comuni­
dade absoluta, mas, como comunidade de paz, ele existe
sem a força e sem a coerção. O Estado, o Império Romano,
não era mais, ao lado do cristianismo, uma comunidade, mas,
como organização da sociedade, um mal de fato, porém ne­
cessário. A caritas, amor e assistência ao próximo, era uma
disposição de espírito privada dos indivíduos. A Igreja era
uma nova comunidade autêntica e, nessa qualidade, totali­
tária, e isso tanto como instituição quanto em relação à fé.
Cipriano estabeleceu-a sem a menor dúvida: extra ccclesiam
nulla salus, não existe salvação cristã para o homem fora da
Igreja. Mas devido a que a Igreja, ao contrário do reino de
Deus, era uma comunidade terrena e que neste mundo ne­
nhuma comunidade pode organizar-se e subsistir sem a coer­
ção nem a autoridade, os meios necessários deviam pela se­
gunda vez ser postos em ação. Consistiriam eles inicialmente
da excomunhão e das penas eclesiásticas mais lèves, em sua
qualidade de ameaça e de pressão sobre a consciência dos
homens, prevendo as penas eternas depois da morte. Mais
tarde, ao contrário do cristianismo primitivo, a Igreja tam­
bém utilizou os meios policiais do poder político.
Eu gostaria de que não houvesse equívoco, quando dis­
tingo no interior da idéia social cristã essas quatro posições.
É evidente que na realidade elas não estão separadas. A
Igreja somente existe, como organização confessional, em
134 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

função do reino de Deus no além, sendo a caritas uma ativi­


dade cristã e humana também no interior da Igreja. O Es­
tado temporal deve, como organização da sociedade, conti­
nuar existindo mesmo no cristianismo, a fim de garantir a
vida e a proteção dos homens. Isso resulta logo do fato de
que nunca no cursa da historia subsistiu um ao lado de
outro ou um com o outro sem que disso resultassem tensões.
Voltaremos a isso com pormenores. Mas precisamos
ainda em último lugar mostrar o significado do cristianismo,
como Igreja e como religião, para o Estado temporal.
Depois de terem sido inicialmente perseguidos no Im­
pério Romano, os cristãos viram concedida, no século IV,
por Constantino, a igualdade de direitos, e mais tarde seus
sucessores transformaram sua religião na Teligião do Estado.
O próprio Constantino apelou para uma inspiração compre­
endida de forma ainda quase pagã e helenística, fora da
Igreja. Ele só ingressou em seu seio já no leito de morte.
A verdadeira razão da atitude dos imperadores foi absoluta­
mente política. Tudo o que tem prioritariamente o caráter
de sociedade é instável em comparação com uma verdadeira
comunidade. O império, como o culto do imperador, a con­
cepção estóica do mundo e uma multiplicidade de re-igiões
pagãs e de cultos de mistérios, estava sempre ameaçado.
Ao transformar-se em religião do Estado, o cristianismo pro­
porcionava-lhe uma comunidade ou — como disse Eduard
Schwartz — dava uma alma ao aparelho do Estado. Os
monarcas podiam recorrer, em certa medida, aos bispos e
aos papas para decidir quanto aos caminhos que levam à
salvação da alma, mas eles precisavam estar atentos para
que as controvérsias sobre a fé não levassem a uma cisão
da Igreja, pois esta somente tinha valor aos olhos do Estado
se unificada. Também o fizeram com todos os seus meios
de pressão durante os diferentes concílios. E o partido es­
piritual que em determinada época triunfava não se utilizava
sem desprazer do poder secular para impor suas idéias.
Isso acarretou por muito tempo, no Império Romano do
Oriente, um cesaropapismo bastante acentuado. A Igreja tor­
nava-se sempre mais dependente da Corte. Na metade oci­
dental do império, a autoridade do imperadoT era mais dis­
tante, sendo menos predominante a técnica de seu poder,
tendo em vista as condições da época. Os assaltos das in-
O r ig e m da I d é ia S o c i a l C r is t ã 135

vasoes germânicas quebraram freqüentemente os vínculos


políticos de partes isoladas do império, tomando-as relati­
vamente independentes. Com esse fáto a Igreja ganhava não
só em autoridade espiritual, mas também em autoridade tem­
poral. Não era raro o caso de bispos terem de ocupar os
cargos políticos da ordem, da proteção e da vida econômica
da população. Um homem como Ambrósio de Milão tor­
nou-se diretamente bispo, em sua qualidade de alto funcio­
nário da administração, quando nem chegara até então a ser
um cristão batizado. As Telaçoes entre a Igreja e o Estado
permaneciam portanto bastante diferenciadas, até serem re­
constituídas — em um sentido absolutamente diferente do
império bizantino com sua tradição pagã, independente —
pelo Império cristão romano-germânico da Idade Média.
CAPITULO X

Santo Agostinho

O grande representante do pensamento social do cristia­


nismo antigo é Santo Agostinho. Ocupar-nos-emos apenas
dele, deixando de lado várias manifestações de menor im­
portância. Da mesma forma que o objeto da justiça social
da polis grega não era a economia e a repartição do produto
social, mas a participação no governo e o encargo do serviço
militar, também aqui ele não é econômico. Reside muito
mais na relação entre a salvação da alma humana, o Teino
de Deus no além e o Estado terrestre. Encontramos entre
os gregos quatro variantes de partidos: a aristocracia, a oli­
garquia, a democracia e a tirania, bem como quatro inter­
pretações da justiça da polis. Também existem variantes no
cristianismo, representadas por seitas particulares: pelágios,
arianos, marcionitas, donatistas e outras. Mas sua diversidade
é mais importante no domínio espiritual do que no do pen­
samento social. Não precisamos considerá-las mais de perto,
ainda mais que não têm importância para o próprio Santo
Agostinho.
Da mesma forma que Platão e Aristóteles, a carreira de
Santo Agostinho é rica de ensinamentos para a formação de
seu pensamento social.
Romano da África, nasceu em 354 em Tagaste, na Numí-
dia. Seu pai era pagão e sua mãe cristã, tendo ela educado
cristãmente seu filho amado. Já na infância era de um ca­
ráter apaixonado e ambicioso; queria ser orador e lançou-se
irrefletidamente na voragem dos prazeres de sua época. Isso
logo o saturou. A conversão veio depois da leitura do Hor-
Sa n to A g o s t in h o 137

tensius de Cícero, uma espécie de exortação à Filosofia, que


o tomou de imediato estranho ao cristianismo que sua mãe
lhe inculcara. A sujeição à autoridade da Igreja devia ser
substituída, no sentido socrático, pela razão. O Velho Tes­
tamento pareceu-lhe chocante no plano moral, e por isso
aderiu como auditor (ainda não como electus) à seita meio-
-cristã, meio-persa dos maniqueus, na qual acreditava poder
alcançar seus objetivos espirituais melhor do que na Igreja
católica. Somente nove anos depois é que se desliga dela.
Sob a influência da Academia, em certa época, toma-se quase
cético. Venceu isso graças à leitura da tradução latina das
obras de Plotino, o grande filósofo neoplatônico do século
III da era cristã; a partir daí continuou a venerar Plotino
profundamente, depois de ter ingressado na Igreja católica.
Encontrou em Plotino o que procurara em vão desde a sua
mocidade: uma concepção supratèrrena e puramente espiri­
tual de Deus, capaz de oferecer-lhe um apoio em sua vida
terrestre inconstante. Esse Deus, de certo modo, já tem em
Plotino uma forma trinitária: como pai ou unidade ( hen),
filho (espírito ou Logos) e alma do mundo.
Entretanto, Santo Agostinho não se tomou neoplatônico,
como antes fora cristão, ciceroniano, maniqueu, cético. O
que lhe faltava agora na Filosofia de Plotino era a confirma­
ção dessas doutrinas místicas pela autoridade de uma comu­
nidade terrestre, de uma instituição sagrada como a da Igreja.
Talvez ele não desejasse, depois de tantos caminhos falsos,
confiar unicamente na razão socrática. Por isso colocou em
lugar do neoplatonismo o cristianismo, que se apresentava
para ele na pessoa do Bispo Ambrósio de Milão, sob uma
foTma fortemente neoplatônica (tendo sido Ambrósio influen­
ciado por Orígenes) e recorrendo a métodos de interpre­
tação alegórica.
Algo devia ainda somar-se a isso. Santo Agostinho não
renunciara à ambição de ser oTador profissional e já conquis­
tara êxitos consideráveis em Tagaste, Cartago e Roma. Essa
ambição foi negada por uma doença que de início parecia
incurável (pulmão ou estômago). Foi assim que se viu re­
duzido à última esperança do homem neste mundo terreno:
o Deus do além, que não se modifica. Em 387 faz-se batizar
por Ambrósio. Inicialmente retira-se para Cassiciacum, para
um círculo monacal, onde escreve. Em seguida toma-se
138 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

paâre, depois bispo da cidade de Hipona, na África do Norte.


Foi lá que ele adquiriu logo uma notoriedade que ultrapas­
sou de longe a Igreja latina graças a seus escritos filosóficos
e apologéticos. Depois de numerosas controvérsias dogmá­
ticas com m^niqueus, donatistas, pelágios e após uma ativi­
dade infatigável em seu ministério, morreu em 430, duTante
o sítio de sua cidade pelos vânda^s.
Santo Agostinho escreveu muito. De suas obras, a mais
importante por sua idéia social é De civitate dei, na qual
trabalhou durante 13 anos, com numerosas interrupções, em
virtude dos deveres de seu ministério. Os livros são publi­
cados isoladamente, uns após os outros, sem serem revistos.
Por esse motivo, mas também devido à complexidade das
quatro noções da idéia social cristã (reino de Deus, caritas,
Estado secular e Igreja), devido também à que as relações
entre essas quatro posições não são, nesse período de tran­
sição do paganismo para o cristianismo, absolutamente cla­
ras, devido enfim às relações entre a Igreja e o Estado e à
desconfiança recíproca entre ambos, verificam-se certas con­
tradições e certos exageros na idéia social de Santo Agostinho.
Não queremos nivelá-los em nossa interpretação, mas dei­
xá-los como tais, como uma característica válida de seu pen­
samento sobre o problema do indivíduo, da comunidade e
da sociedade.
Santo Agostinho aponta o objetivo de sua obra nas Re­
tratações, uma espécie de exame retrospectivo de seus tra­
balhos. Esse objetivo é: a apologia e a Filosofia da História.
A destruição de Roma por Alarico em 410 causara forte im­
pressão no mundo mediterrânico. Os pagãos afirmavam que
se tratava de castigo dos antigos deuses por causa da apos­
tasia do povo e dos imperadores que se tinham voltado paTa
o cristianismo. Santo Agostinho quer anular a opinião dos
que acreditam que o culto dos antigos deuses é a condição
do sucesso terrestre. Em sua opinião, a felicidade na vida
não é conseqüência do paganismo nem do cristianismo. Se
em muitas ocasiões os monarcas cristãos alcançam êxitos, é
porque Deus assim decidiu, a fim de que não suTja a opinião
de que a felicidade na Terra está ligada ao culto dos deuses
pagãos. Mas muitas vezes também (e trata-se igualmente da
vontade de Deus) ocorre o inverso, a fim de que não se
aceite o cristianismo por causa de seu êxito. Felicidade e
S anto A g o s t in h o 139

infelicidade não dependem em nenhum caso da retidão da


religião, nem mesmo de uma maneira de viver virtuosa ou
desregrada. É para afastar o olhar dos homens da felicidade
ou da infelicidade fortuitas e para mostrar nos grandes acon­
tecimentos a mão de Deus, a salvação e a justiça, que Santo
Agostinho escreve seu livro.
Existem, no mundo metafísico, dois impérios: a civitas
dei e a civitas diaboli, que não são absolutamente idênticas
à Igreja e ao Império Romano. No começo do mundo, a
civitas dei é a comunidade dos espíritos que Deus criou e
que, antes do pecado, o veneram e o adoram em comum.
Mas desses alguns decaíram. Formam a base da civitas dia­
boli, sob a égide de Lúcifer. Deus quis então restabelecer
o número dos espíritos bem-aventurados de seu Teino. Por
isso é que elegeu por sua graça (a lex aeterna, a lei eterna
de seu decreto insondável) alguns homens que, depois da
morte e do juízo final, serão admitidos na comunidade dos
bem-aventurados, a fim de restabelecê-la conforme seu esta­
do original. A civitas dei é assim o reino de Deus invisível,
original e escatológico; não é a Igreja invisível, menos ainda
a Igreja visível. O primeiro conceito metafísico da justiça
social em Santo Agostinho consiste no grau em que se parti­
cipa desse reino de Deus, como a noção de justiça da polis
grega consistia no grau em que se participava do “ governo
dos governados” . É evidente que, nesse sentido, a civitas
dei é uma verdadeira comunidade.
A civitas diaboli é então a soma daqueles que se afasta­
ram de Deus, quer sejam os espíritos do além ou os homens
pecadores daqui de baixo. Não formam nenhuma comuni­
dade, porque não possuem nenhum elo que os ligue, pois
cada um segue sua própria vontade pecadora e todos dis­
cutem entre si. Em certo sentido, poder-se-ia defini-los como
uma sociedade. De qualquer modo, o próprio emprego da
noção de “ civitas” é bem impróprio.
A oposição entre civitas dei e civitas diaboli não forma
senão o pano de fundo metafísico da própria idéia social de
Santo Agostinho. Ela se baseia na história que decorre entre
a criação do mundo, a queda, a encarnação e o juízo final.
Provavelmente Santo Agostinho achava-se, nessa concepção,
sob a influência de certos movimentos de sua época, sobre­
tudo sob a influência do comentário que Ticônio escrevera
140 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

sobre o Apocalipse, na geração precedente. Ticônio era


donatista. Os donatistas formavam uma seita cristã que se
separara da grande Igreja. Para eles a Igreja católica era
muito frouxa, aceitava com muita complacência em seu seio
um povo que só acreditava pela metade e não levava sufi­
cientemente a sério os mandamentos religiosos e morais. Os
donatistas desejavam ser uma Igreja de santos extremamente
rigorosa, por menoT que fosse, e não uma Igreja do povo.
Todos aqueles que pecavam após o batismo deveriam ser
excluídos dela. Ticônio queria quase ir mais longe nesse
ideal. No interior da austera Igreja dos santos, só formavam
a civitas dei os que permaneciam realmente voltados para
Deus desembaraçando-se de todo critério terrestre. Santo
Agostinho nunca foi donatista, mas essa noção da civitas dei,
concebida como a comunidade exclusiva dos santos em Deus,
convinha muito bem ao esquema de sua doutrina da pre­
destinação, que tomara de São Paulo. Por isso utilizou-a
como a base transcendente de sua Filosofia da História.
Com efeito, na história terrestre civitas dei e civitas dia-
boli (isto é, os membros de ambos os Teinos) acham-se mis­
turadas sem que se po$sa reconhecê-las. No início somente,
antes da criação do mundo, elas estavam separadas e estarão
de novo no juízo final. A história, entretanto, está cheia da
oposição dos dois reinos, que é o único sentido dela. Santo
Agostinho dividiu essa história (não é o primeiro a fazê-lo,
mas é o herdeiro de uma série de pensadores que remontam
à epístola de Bamabé), segundo uma síntese da revelação
bíblica e das idades tradicionais, em cinco períodos: infan­
tis, a infância da humanidade, de Adão até o dilúvio; ado-
lescentia, a primeira juventude, de Abraão a Davi; juventus,
a segunda juventude, de Davi até o Exílio babilónico; aetas
senior, a idade do homem maduro, do Exílio babilónico até
o nascimento do Cristo; senectus, a velhice, do nascimento
do Cristo até o fim do mundo. Já no paganismo, a época
do fim do Império Romano tinha sido reconhecida como uma
época moribunda. Essa concepção não foi suprimida pelo
cristianismo nascente. Conservou-se a ambiência de fim do
mundo, reforçando-a mesmo, mas mudando de significado e
estrutura devido à esperança de um além. Somente quando
os germanos, com um dinamismo ainda não embotado, abra­
çaram o cristianismo foi que isso se modificou. Esse fato é
muito importante para um julgamento correto da história e
Sa n t o A g o s t in h o 141

da diferença, facilmente escamoteada, entre o primeiro cris­


tianismo do fim da Antiguidade e o da Idade Média, na
perspectiva das idéias sociais de ambas as épocas.
A comunidade da civitas dei consiste na fruitio dei, o
gozo contemplativo de Deus. Isso é válido não apenas para
os anjos, mas também paia os homens (mas somente após
sua morte). A vida terrestre não passa de uma prova preli­
minar; a fruitio dei não pode consumar-se senão com o corpo
renovado depois do juízo final. Em compensação, a felici­
dade do homem consiste na esperança, garantida pelos sa­
cramentos da Igreja, desse gozo. No corpo Tenovado, não
há mais agitação dos sentidos como na humanidade terres­
tre depois da queda. Não é facultado ao homem individual
determinar definitivamente quem é eleito. O critério geral
dessa eleição é o seguinte: os filhos do século querem ape­
nas servir-se (uti) de Deus para gozar (frui) do mundo e
de seus bens; entre os filhos de Deus dá-se o inverso: .ser­
vem-se do mundo para mais tarde poder fruir de Deus.
Antes do pecado, os homens ainda estavam isentos de paixões.
Depois da queda, corromperam-se todos, sem exceção, o que
aparece na agitação de seus sentidos, na curiosidade (con-
cupiscentia oculorum) e nessa perversão do uti e do fruL
Somente pela graça, Deus elegeu alguns desses.
O essencial desse acontecimento metafísico está em que
a história terrestre se torna transparente, em que a oposição
dos dois reinos se acha de algum modo esclarecida pela
história e Jhe dá assim seu sentido. Por essa razão, a posição
de Santo Agostinho em face do Estado secular toma-se bas­
tante complexa e não está de modo algum isenta de contra­
dições.
A civitas diaboli, o Estado metafísico do diabo, toma-se
o pano de fundo transparente do Estado secular, que consiste
no gozo comum dos bens terrestres pelos filhos do século
reunidos em sociedade. Isso torna-se agora problemático e
ameaça destruir-se a si próprio da mesma forma que em
Platão o ideal sofístico do tirano à luz da razão socrática.
Um gozo realmente comum dos bens terrestres, o Estado
autêntico e a justiça terrestre somente são possíveis se os que
se beneficiam não discutem a respeito. Mas eles discutem
precisamente porque, em seu egoísmo, todos desejam os mes­
mos bens e porque os desejam ao máximo possível. O Estado
142 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

secular, como tal, não pode assim jamais tomar-se uma ver­
dadeira comunidade, como é o reino de Deus graças à parti­
cipação, isenta de ciúme e socialmente eqíiitativa, de cada
um de seus membros na comunhão de Deus. A luta no in­
terior mesmo do Estado terrestre e de um Estado terrestre
com out.ro é portanto a manifestação do Estado metafísico
do diabo destruindo-se a si próprio. Querelas internas e
guerras externas nascem da cobiça desviada de Deus. É com
este sentido da transparência da civitas diaboli no Estado
terrestre que Santo Agostinho, em uma passagem em que
leva as coisas ao extTemo (e que não nos autoriza a gene­
ralizar), definiu todos os Estados terrestres, na medida em
que tendem constantemente a se enriquecerem às custas dos
outros e a explorarem seus súditos com impostos, como
magna latrocinia, grandes bandos de facínoras.
Mas não é preciso por isso contestar a importância do
Estado, que continua a se manter e é utilizado não só por
todos os homens para garantir sua existência, como também
pela Igreja e pelo próprio Santo Agostinho contra os heréti­
cos. Embora seja um Estado secular e, apesar da atividade
de Constantino, ainda um instrumento de poder pagão, o
cristão deve acomodar-se a ele.
A solução desse problema parece em sua forma com a
de Epicuro. Com efeito, de início ele se refere a São Paulo
e à opinião deste de que a autoridade secular, como tudo
o mais, é permitida por Deus e deve portanto ser aceita pela
cristandade tal como é. Mas o Estado não atinge seu obje­
tivo, a paz terrestre, senão dificilmente por meio de sua estru­
tura social, servindo-se do constrangimento, através das in­
justiças de seus tribunais, após um combate incessante den­
tro e fora (como através de um armistício provisório). So­
mente essa compreensão permite a tolerância (submissa à
vontade de Deus). Diante do reino de Deus no a^m, o
único perfeitamente pacífico e sem violência, diante da caritas
privada ordenada pela Igreja, trata-se já de uma desvalo­
rização do Estado, que se realiza ademais na idéia da utili­
zação do Estado (uti no sentido definido linhas atrás) pelos
cristãos. O cristão, com efeito, segundo Santo Agostinho,
deve “ utilizar5 a paz terrestre, a pax romana, e a ordem do
Estado, para aí procurar a salvação de sua a!ma, salvação
puramente privada em relação ao Estado e dependendo ape­
Sa n t o A g o s t in h o 143

nas da graça de Deus. Epicuro já “ utilizara” de modo análo­


go o Estado decadente para permitir ao sábio alcançar, no
círculo privado de seus amigos, a paz da alma e a autono­
mia. Santo Agostinho diz: “ O povo de Deus [os cristãos e
a Igreja, pelos quais a civitas dei se mostra pelo menos do
modo que a civitas diaboli se mostra através do Estado]
faz que a paz de um povo afastado de Deus [a pax romana]
sirva à verdadeira adoração de Deus, por todo o tempo de
sua peregrinação terrestre. [Esse intervalo da peregrinação
terrestre é muito curto para que valha a pena constituir sua
sociedade de acordo com regras sociais eqüitativas.] Por isso
é que o apóstolo [São Paulo] exortou a Igreja a orar pelos
reis e princípes da Babilônia com a necessária ressalva: a
fim de que nós [os cristão?] tenhamos uma vida calma e
pacífica, feita de piedade e de amor ao próximo*’ (D e civ.
dei, XIX, 26). É o correspondente da “ vida oculta” de Epi­
curo, naturalmente com objetivos e esperanças diversos. A
amizade privada, como substituto da comunidade, corres­
ponde aqui a caritas, também privada.
Santo Agostinho chega por outro caminho a um fim aná­
logo, ainda que não totalmente idêntico.
Ele começa, em outro ponto, com uma definição de Cí­
cero. Cícero era um eclético, que buscara nas doutrinas
políticas de Platão, de Aristóteles, do estoicismo e de Epicuro
aquilo de que podia valer-se, dando coesão própria a essa
mistura. Caracterizava o Estado com uma espécie de defi­
nição etimológica, que interpretava a res publica como a
res populi, a coisa do povo, a coisa de todos. Em Cícero, o
povo é uma multidão de homens ligados por uma comunida­
de de direitos e de interesses (coetum multitudinis juris
consensu et utilitatis communione sociatum). A definição
tende mais para a noção de sociedade do que para a de
comunidade. Mas Santo Agostinho aliou a isso o ideal pla­
tônico de justiça, segundo o qual cada um devia receber o
que lhe é devido. Eis o que ele pensa: se um Estado desse
a cada um o que lhe fosse devido, ele seria justo no sentid,o
do cristianismo. O problema então é saber até que ponto
este pode ser o caso. O Estado pagão, romano, de qualquer
modo, não dá o devido a cada um, pois escamoteia a seus
cidadãos o Deus verdadeiro. A esse “ devido” pertence, com
efeito, em primeiro lugar, a possibilidade para o homem de
144 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

levantar seus olhares para Deus. Em virtude de isso faltar,


segundo Santo Agostinho, no Estado pagão e também no
Estado platônico, nem a polis nem seu ideal platônico podem
conformar-se à sua exigência de justiça. (O correspondente
platônico da religião cristã, a integração do Estado na ordem
espiritual do reino das idéias e no Bem, é negligenciado neste
julgamento.) Além disso, o fato de que no Estado secular
(o Império Romano em sua fase final mais que a polis)
nenhuma justiça social e nenhuma verdadeira comunidade
pudessem imperar, porque cada um inveja os bens do outro,
não é senão a conseqüência de que os “ bens” (Locke dirá
mais tarde: a propriedade) são concebidos como o que é
“devido” ao homem e não como o próprio Deus. Conside­
ra-se então de maneira errônea a justiça como uma repar­
tição determinada do produto social (o que naturalmente não
é o caso em Platão). É somente no gozo de Deus que pode
reinar entre os homens uma verdadeira comunidade de onde
seja banida a inveja.
Há entretanto em Santo Agostinho uma hierarquia natu­
ral no Estado terrestre, que ele toma, passando por Cícero,
das representações estóicas e que faz evoluir no sentido do
cristianismo: “ A paz, no domínio do corporal, consiste na
reunião dos elementos; a paz da alma não-racional na pon­
deração das tendências; a paz da alma racional na harmonia
entre o conhecimento e a ação; a paz entre o corpo e a
alma em uma vida bem regrada e na prosperidade do ser;
a paz entre o homem mortal e Deus na obediência à lei eter­
na, manifestada na fé; a paz entre os homens na concórdia.
É a paz na família pela concórdia de seus membros, no que
conçerne à autoridade e à obediência; a paz no Estado pelo
acordo dos cidadãos para saber quem comanda e quem obe­
dece; a paz do Estado celeste pela comunidade perfeita­
mente regrada e unida do gozo de Deus e do gozo em Deus;
a paz enfim para todas as coisas que se assentam na boa
ordem. Entende-se por ordem uma distribuição das coisas
semelhantes e dessemelhantes, que designa para cada um
seu respectivo lugar” (D e civ. dei, XIX, 13).
O dualismo contrastante entre o aqui e o além, o Estado
e a Igreja, que brota da transparência metafísica da civitas
dei e da civitas diaboli na história, é posto para trás em
favor da bondade de Deus, que abarca o mundo na criação
Sa n t o A g o s t in h o 145

e na redenção. Tudo isso e os conselhos à consciência de


um soberano, imagem ideal do monarca cristão, no fim do
livro V da Cidade de Deus, são os elementos que, a partir
da idéia social de Santo Agostinho (ainda totalmente inte­
grado no mundo antigo), continuaram a agir até à Idade
Média, levando-lhe os frutos de uma nova concepção do
Estado e uma nova idéia da justiça.
A posição de Santo Agostinho em relação ao Império
Romano permanece, em compensação, dúbia até o fim. De
um lado, esse império (como último dos quatro impérios
mundiais) entra no sistema de classificação de sua Filosofia
da História: é a esse respeito justificado em sua grandeza,
“ pela injustiça daqueles contra os quais ele empreendeu guer­
ras justas” (D e civ. dei, IV, 1 5 ).1 A centralização do grande
império, como condição preliminar de uma extensão limitada
do cristianismo poT suas vias de comunicação, e a supressão
por esse Império das comunidades menos importantes que
repeliam toda influência sempre desempenharam um papel
na literatura cristã. Mas, por outro lado, o pequeno grupo,
à moda da polis grega, estava mais perto do ideal ciceroniano
de Santo Agostinho, pois só ele podia, na verdade, formar
uma comunidade unida “ pelas coisas que ela ama” . Mas,
na realidade de então, não era preciso sonhar isso. No con­
junto, a idéia social de Santo Agostinho é, em sua comple­
xidade, uma expressão de sua época moribunda, voltada mais
para o passado do que para o futuro. Apenas alguns de seus
elementos poderiam ser retomados mais tarde a favor de
uma mudança, quase inconsciente, do conjunto.

i Não existe na história noção sociológica mais perigosa do


que essa de guerra "justa”. As guerras têm sido em toda parte
empreendidas de forma tanto mais cruel e impiedosa quanto aqueles
que as empreendiam estavam persuadidos de que sua guerra era
“justa” e que o fim justifica todos os meios desumanos.
CAPITULO XI

Os Germanos

J ^ J as migrações dos povos, as tribos germânicas conside­


radas como as mais dotadas (godos, lombardos e vândalos)
misturaram-se em um fermento de novas nações. Em toda
parte no mundo latino ocidental, uma camada mais ou menos
espessa de germanos vem recobrir a antiga população. So­
mente os francos conseguiram formar no reino merovíngio
um império estável condizente com os novos tempos. A ra­
zão disso foi, principalmente, que seu catolicismo era com­
patível com a religião dos dominados. Os outros germanos
eram na maior parte arianos; permaneceram por isso mais
tempo e mais fortemente separados dos restos das nações
antigas e também em uma oposição nefasta a Bizâncio. Os
anglos e os saxões na Inglaterra, como os vikings e os nor-
mandos na Escandinávia, mantêm-se inicialmente à margem.
As tribos menos importantes no território da Alemanha atual:
suábios, bávaros, turíngios, saxões e frisoes são pouco a pouco,
com maior ou menor coerção, absorvidos pelo império mero­
víngio e carolíngio. A foTma política deste último é tomada
dos Estados sálio e saxão, sendo renovada. Na qualidade
de sacrum imperium torna-se politicamente, na defesa contra
os sarracenos e os hunos e, depois da disputa iconoclasta,
em sua diferenciação religiosa com o império grego de Bi­
zâncio no Oriente, o novo reino ocidental da Idade Média.
No plano sociológico o império constitui-se principalr
mente de três elementos: as tribos germânicas que tomam
as terras, apoiando o Estado e a civilização, o império que
Os G erm an os 147

lhes foi transmitido como instituição política, o cristianismo


em seu conteúdo religioso. Por sua aliança, esses três ele­
mentos herdados do mundo antigo sofrem modificações que
acarretam inúmeras conseqüências, daí surgindo uma nova
era histórica. Ela se estende inicialmente até o Renascimento
que, lentamente, entre 1200 e 1500, com a desagregação da
unidade medieval, faz surgir novas formas sociais. Mas essas
formas estendem-se parcialmente quase até os tempos atuais,
pois os tempos modernos antes da era industrial ainda são
determinados por essa nova estrutura social. A própria Idade
Média atingiu seu apogeu, entre Carlos Magno e Henrique
V; seu prelúdio sendo o império merovíngio e a época final,
embora brilhante, a época dos Hohenstaufen. O último im­
perador da casa dos Hohenstaufen, Frederico II, é quase o
primeiro príncipe moderno absolutista em seu país hereditá­
rio, a Sicília, 250 anos antes do absolutismo europeu dos
séculos XVI e XVII.
Os germanos converteram-se ao cristianismo, mas conser­
varam, em sua maior parte, a vitalidade juvenil que não tinha
sido ainda usada na história. A religião deles tinha sido o
culto da natureza, certamente bastante semelhante à religião
dos gregos que, dois mil anos antes, tinham invadido a
região mediterrânica. Não tinham portanto a$ mesmas
razões para trocar seu paganismo pelo cristianismo, como
os povos historicamente gastos do Império Romano, com
sua degenerescência, a coríupçao de sua natureza e de
seus sentidos. O antigo culto pagão da natureza não po­
dia portanto constituir simplesmente o oposto ético de nova
crença, como a mundanização dos romanos no fim da Anti­
guidade. Entretanto, a cristianização dos germanos não foi
um ato de pura coerção ou um acaso. Eles próprios consi­
deraram a nova crença como sendo espiritualmente superior
e sobretudo mais poderosa. O antigo mundo religioso de
seu passado foi simplesmente disciplinado pelo universo cris­
tão da graça. Não foi destruído em sua substância (não era
necessário que o fosse), mas santificado por uma força re­
ligiosa sobrenatural.
Temos um testemunho disso em inúmeros detalhes do
culto, que se conservaram no catolicismo até nossos dias: as
ladainhas, a conjuração da tempestade, a bênção dos animais,
das armas, etc., elementos que são tanto antigos quanto no­
148 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

vos: antigos à maneira pagã em sua santificação do mundo,


novos pela força sobrenatural e não mais pagã que realiza
essa santificação por intermédio do padre. Existe igualmente
uma concordância entre as características de mais de um
santo e certas figuras dos antigos deuses; ou ainda a nova
interpretação cristã, que só foi criada com finalidades polí­
ticas, de antigas festas e de seus ritos: o solstício de inverno
transforma-se no Natal, o começo da primavera na Páscoa; a
conservação também, até o século XVI, da orientação das
igrejas segundo as regiões do céu onde nascem o Sol e as
estrelas; essa orientação, em cuja oportunidade se realizava
uma festa cristã em lugar da dos deuses, somente tem sen­
tido como uma santificação do mundo. Do ponto de vista
filosófico isso pode ser demonstrado na representação do
mundo pagão aristotélico (particularmente a ciência da natu­
reza) por Alberto, o Grande, e São Tomás de Aquino e pela
elevação da ordem existencial deste mundo pela da graça
agostino-cristã.
Os próprios germanos, segundo elemento da nova época,
tinham invadido o velho mundo, em sua peregrinação à pro­
cura de terras, conduzidos por seus soberanos. Onde che­
gavam como aliados protetores e hóspedes que se faziam res­
peitar pela força, a instalação ocorria na maioria das vezes da
seguinte forma: o germano recebia um terço da casa, dos
móveis, do gado e da terra; o italiano, o gaulês ou outro an­
tigo ocupante conservava os dois terços restantes. O fenô­
meno estendeu-se a todo o país e acarretou misturas que não
eram mais controláveis e que só eram freadas por diferenças
de população e eventualmente diferenças de religião. Depois
da conquista ou da penetração em regiões já abandonadas, os
germanos também se instalavam sozinhos e segundo sua pró­
pria organização. De qualquer forma, a sedentarização foi
um fator determinante; ela punha fim ao período transitório
das invasões.
A isso acrescenta-se algo mais. As cidades antigas, em­
bora bastante T e d u z i d a s e e n f r a q u e c i d a s pelas mudanças de
proprietários, pelas guerras, o s saques e as requisições sub­
sistiram. Nem o comércio, nem a circulação, nem mesmo a
navegação pelo Mediterrâneo cessaram durante as invasões.
Foi somente com a irrupção do Islã, durante o século VII,
que as margens este, sudeste e oeste do Mediterrâneo foram
Os G erm an os 149

fechadas para a Europa. O mar Tirreno, a oeste da Itália,


caiu por fim inteiramente sob o domínio sarraceno, que se
tomou um perigo constante para o litoral. Somente o mar
Egeu e o mar Adriático foram preservados graças à frota de
Bizâncio, permitindo assim uma estreita ponte comercial com
o Ocidente através de Veneza. Mas para o resto, o comércio
e a circulação nos territórios da Itália, da França e da Ale­
manha atuais diminuíram progressivamente a partir do século
VIII. O império de Carlos Magno era uma força puramente
continental sem a menor proteção de seu litoral
No plano econômico, a passagem do reino merovíngio
para os impérios carolíngio, saxão e sálio representa, apesar
dos progressos da civilização e da arte (igrejas romanas), uma
verdadeira regressão. A vida toma-se quase unicamente agrá­
ria, mesmo onde as cidades tinham conquistado, devido a
uma continuidade da tradição antiga, uma importância cada
vez maior na Itália. O dinheiro, certamente, não é abolido
totalmente, mas só preenche sua função de troca no quadro
dos distritos locais. Os bens rurais dos senhores (tanto dos
grandes como dos pequenos, dos seculares como dos religio­
sos) tomam-se em sua maioria bens que servem somente às
necessidades pessoais, no local. A propriedade agrária é a
única riqueza, a única fonte de subsistência do impe­
rador, dos príncipes espirituais e laicos, dos senhores, dos
monges, dos camponeses e dos servos. Os mercados ser­
vem apenas para as trocas locais. As fomes consecuti­
vas às colheitas ruins de certas regiões são freqüentes.
A agricultura é, devido à fraca densidade populacional, bas­
tante extensiva; é uma lavoura de três plantios alternados,
sem emprego de adubos, que não permite a constituição de
reservas apreciáveis. Mesmo no fim da Idade Média, entre
os séculos XII e XV, quando já existia, havia muito, cidades
famosas, artesanato, comércio, navegação, grandes feiras na
Champanha e até primícias de indústria nosf Países Baixos e
no norte da Itália, a população citadina é avaliada, em rela­
ção com a população rural que vivia de modo puramente
agrário, em 10% no máximo (Pirenne).
O que é mais decisivo no plano sociológico são as idéias
econômicas em que se baseia o trabalho. Pirenne diz
que a idéia do lucro, a simples eventualidade mesma
de um lucro, é inconciliável com a existência do pro­
150 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

prietário fundiário da Idade Média. O proprietário, devido


à falta de pontos de escoamento, não tem nenhuma possi­
bilidade de produzir para o consumo. Portanto, não se dá
ao sacrifício de tirar do solo e dos homens excedentes dos
quais não saberia o que fazer. É-lhe inevitável consumir sua
produção, que ele limita conseqüentemente a suas necessida­
des. Ademais, o trabalho é na maior parte das vezes coletivo,
pois os campos são cultivados em comum; a pecuária tam­
bém é praticada em comum. O servo é obrigado a pagar
ao senhor diferentes impostos em espécie. Somente com o
desbravamento de grandes faixas de terras inexploradas en­
tre as terras de povoamento é que o caráter dessa economia
se modifica pouco a pouco. De um lado as florestas são
arroteadas pelos conventos de cistercienses, que já trabalha­
vam de modo bastante Tacional e viam na ética do trabalho-
uma forma religiosa da santificação do mundo. De outro
lado, surgem vttlae novae, novas colonizações que são a obra
das segundas, terceiras ou quartas gerações de filhos de cam­
poneses, vindos de diferentes regiões. Tomam-se, nessas no­
vas terras de uma região inculta, livres como, mais tarde, os
colonos na América. Com seus filhos mais novos, a cidade
se repovoa pouco a pouco. Tratava-se muitas vezes de aven­
tureiros que tinham tido sorte em algum lugar e se aprovei­
tavam para instalar-se em um ofício ou no comércio. O ar
da cidade tomava-os também mais livres.
A Igreja tem, nesse mundo rural, uma prioridade espi­
ritual inconteste, além de uma prioridade econômica. Pos­
sui em toda parte, em virtude de doações e de testamentos,
vastos domínios. Somente nela é que se encontra gente capaz
de redigir inventários, de manter livros contábeis, de calcular
as receitas e as despesas, antes de se ter formado de novo
uma classe de mercadores laicos. No começo da Idade Mé­
dia, a Igreja considera, no plano moral, o trabalho do cam­
ponês e do senhor como o único desejado por Deus e digno
do homem. Ela combateu a usura e com ela todo lucro co­
mercial ou outro, como uma coisa proibida, ou, quando muito,
tolerou-os tacitamente. Mutuum date nihil inde sperantes já
era o princípio do Evangelho. Os assuntos de dinheiro afas­
tam a alma de sua salvação religiosa. Homo mercator vix
aut nunquam potest deo placere. Quando São Geraldo de
Aurillac (falecido em 909) mostra a dois mercadores um pálio
que comprara e se vê felicitado pelo preço módico que pagara
Os G erm an os 151

sem regatear, censura-se por ter talvez prejudicado o mer­


cador e lhe envia uma diferença (Pirenne). Ainda que isso
seja uma lenda, mostra o espírito de uma época em que tais
lendas puderam nascer e tornar-se exemplares no plano social.
Um pensamento desses não ocorreria hoje a ninguém depois
de uma compra a preço módico.
Entretanto, mesmo nesse mundo, o comércio, o artesa­
nato e os assuntos de dinheiro progrediram lentamente, e
com eles as cidades cuja população vivia em contato com os
países vizinhos para fazer trocas pagas em numerário.
O terceiro elemento sociológico dessa época é o novo
Estado. Suas formas jurídicas são em parte romanas, em
parte germânicas, em parte cristãs. Não são reunidas de
modo artificial, mas alcançam uma verdadeira unidade e do­
minam em um sentido novo as tarefas econômicas atribuídas
às relações humanas. Tal é o fundamento histórico do pen­
samento social dessa época, que temos agora de considerar
mais de perto.
O último Estado do mundo antigo, o Império Romano,
não fora senão uma sociedade administrada de maneira dita­
torial. Devido à sua aliança com o cristianismo, só poderia
levar a um cesaropapismo corrompido, como em Bizâncio, ou
a uma desconfiança em relação ao Estado, apesar da utiliza­
ção que dele fazia a Igreja (como se vê na idéia social de
Santo Agostinho). A Igreja, que na metade ocidental do im­
pério se tomara cada vez mais livre, devia agora fazer uma
experiência bastante séria: estava, em princípio, e com ela
os crentes e sua fé, sem proteção se não existisse um poder
secular suficientemente forte para lhe retirar a preocupação
com a ordem terrestre. Trata-se de uma experiência nascida
da falta de proteção de seres isolados na natureza e do cará­
ter sobrenatural do pensamento social cristão (o reino de
Deus não é deste mundo). A Igreja protestante da Reforma
refará essa experiência. Na Idade Média, o primeiro pro-
tetorado ao qual a Igreja aspirou foi o dos lombardos, mais
tarde o dos francos e dos alemães; isso se exprime no que
se denominou a translado irnperu, a transmissão do império
a Carlos Magno e a seus sucessores.
Tomar o novo Estado cristão não era, do estrito ponto
de vista da religião, a única possibjlidade. Ê importante re-
152 H is t ó r ia das I dé ias S o c ia is

conhecê-lo se quisermos compreender bem o caráter do Santo


Império da Idade Média. Toda civilização nasce de uma si­
tuação humana extrema. A Igreja cristã e seus fiéis teriam
podido pela segunda vez, e numa extensão muito maior, so­
frer o martírio e banir por princípio todas as preocupações
políticas, como sob os imperadores romanos, de Nero a Cons­
tantino. Foi somente pelo protetorado que exerceram em
relação à IgTeja que o império carolíngio e mais tarde o im­
pério alemão se tomaram uma criação santificada. Um Es­
tado verdadeiramente cristão é necessariamente uma tenta­
tiva de antecipação neste mundo do reino de Deus, de sua
justiça, de sua paz e de seu direito. Em lugar da caritas
puramente privada surge — pelo menos parcialmente — uma
ordem social terrestre verdadeiramente nova. A transcendên­
cia adquire com esse fato a significação de um simples pano
de fundo metafísico do reino cristão terrestre. Por trás desse
reino não se encontra mais a civitas diaboli, mas a civitas dei.
Jamais passa disso em oposição à espera puramente religiosa
do reino de Deus e de seu advento por obra divina, depois da
morte e do juízo final, tal como existia no cristianismo pri­
mitivo. Nada de semelhante encontramos no Evangelho.
A distinção feita na frase: “ Dai pois a César o que é de
César, e a Deus o que é de Deus” , não tem mais cabimento
aqui. Naturalmente não se trata de um juízo de valor sobre
a religião, mas unicamente do reconhecimento de um fato
histórico. A revelação cristã pode ser considerada, precisa­
mente em seu desenvolvimento (Newman), como voltando
sempre à sua origem.
O Império da Idade Média é cristão desde o começo,
como jamais o fora o Império da Antiguidade clássica. O
próprio imperador é cristão, como o povo. Isso significa que
o cristianismo foi abraçado até nas altas esferas do poder.
Os preceitos de Santo Agostinho para a educação de um
príncipe (em sua época uma utopia) passam a ser a leitura
favorita de Carlos Magno e de seus conselheiros. Aliavam-se
a isso ao mesmo tempo os caracteres próprios do germanismo.
O imperador era, tanto segundo a concepção germânica como
na tradição que remontava à polis da Antiguidade, um mo­
narca eleito. Precisava da livre aprovação de seus súditos,
pois só a sucessão não o legitimava de modo suficiente. Isso
foi mantido, mesmo depois que o círculo dos eleitores se
estreitou, para se limitar finalmente à “ aristocracia” dos sete
Os G ermanos 153

Príncipes Eleitores; o que nunca chegou a ser, no plano polí­


tico, vantajoso para a unidade e a força do Estado. Qual­
quer que fosse, a comunidade livre, mesmo em suas formas
feudais, achava-se garantida.
Devido ao caráter agrário da economia, um Estado com­
posto de funcionários assalariados, como o Império Romano,
não era possível. O pTÓprio imperador não podia viver senão
percorrendo o país com seu séquito e alimentando-se alter­
nadamente à custa de seus vassalos. O recrutamento de
tropas era incumbência dos proprietários de terras que po­
diam proporcionar armas e animais de combate e garantir
as despesas de manutenção. A justiça, a administração e a
polícia estavam também, em tempos de paz, nas mãos dos
proprietários territoriais, que exerciam suas funções entre
sua gente. O único bem era a terra, por isso era por ela que
o Estado devia remunerar os serviços prestados. Decorre
daí o regime feudal: concessão de terras feitas pelo imperador
a cada um segundo sua categoria, desde os príncipes espi­
rituais e temporais e os senhores até os camponeses e os
servos.
O vínculo dessa forma política era a fidelidade pessoal.
Tratava-se portanto de uma relação dependente da comuni­
dade e não de uma relação de sociedade, onde cada um
busca sua própria vantagem. Nessa noção de fidelidade,
que dava sua coesão ao conjunto do Estado, o velho pensa­
mento germânico do tempo das invasões, que consistia em
seguir o príncipe até a morte, uniu-se à idéia cristã da fé.
A palavra que exprimia essa idéia era latina: fides. Do
ponto de vista das normas de nossa jurisprudência, isso seria
uma preparação curiosa do Direito Público por meio do
Direito Privado. Muitas vezes na Idade Média ocorrem con­
flitos quando o vassalo devia pôr à disposição de seu senhor
todos os seus bens, que eram contudo, em certo sentido, sua
propriedade adquirida. Muitas campanhas dos imperadores
na Itália fracassaram por isso.
Entretanto, lá encontramos a passagem das condições de
sociedade do antigo mundo, baseadas em fundamentos egoís­
tas, para as condições de comunidade e de associação. O
direito que todo vassalo tinha dè opor uma resistência em
caso de injustiça (direito baseado em sua independência espi­
ritual, religiosa, militar e econômica) garantia a liberdade
154 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

política dos indivíduos, sem que, contudo, essa liberdade


dos indivíduos se transformasse em uma liberdade de uns em
relação aos outros, de uns contra os outros, como no con­
trato baseado em razões puramente utilitárias (Epicuro e os
sofistas). A fidelidade feudal era moralmente absoluta e
tinha precedência sobre todo cálculo mercantil e egoísta ( que
ela não excluía nos contatos individuais que os homens man­
tinham entre si na sociedade).
A outorga do senhorio é juridicamente imaginável como
um contrato, como um vínculo puramente social em Epicuro
e. nos sofistas. Mas, nos dois casos, o esquema do contrato
é de um caráter totalmente diferente. O pensamento sofís-
tico-epicurista do contrato é concebido segundo nosso es­
quema b anteriormente citado, o do feudalismo segundo a
forma existencial a. No caso b os dois indivíduos só estão
próximos, em princípio, em virtude de um fim utilitário. O
contrato existencial a, em compensação, é uma associação
para a vida. É comparável à promessa solene de fidelidade
no casamento, pois a fé devida ao senhor no feudalismo tem
também precedência sobre todos os objetivos individuais. Ela
é moral e religiosamente absoluta e não apenas baseada na
utilidade. A propriedade e a utilização dos bens, ao lado
do vassalo, e sua obrigação de servir ao seu senhor, da mes­
ma forma que a fidelidade deste último e sua obrigação de
proteger seu vassalo, não passam de elementos desse vínculo
absoluto de fidelidade e lhe permanecem, segundo os casos,
subordinados, como os objetivos comuns de duas pessoas
casadas.
Esse caráter existencial da idéia feudal de contrato apa­
rece bastante bem na concepção do direito que tem o Es­
tado medieval. Ele determina o direito em seu todo. Re­
sulta daí, pelo menos em princípio, que todo o direito seria
considerado como indissolúvel. Ao contrário dos Estados mo­
dernos e contemporâneos, reinava o princípio de que o direito
antigo derrubava o novo. O direito antigo era o privilégio
adquirido uma vez por todas pelo compromisso da fidelidade.
Não se podia quebrar esse compromisso unilateralmente; o
Estado, ou o soberano, não podia promulgar nenhuma lei
quando outras já existiam; o soberano não era mais legibus
solutus (absoluto). Mas, como no compromisso de fidelidade
recíproca entravam também vínculos e relações materiais sob
Os G erm an os 155

a forma dos privilégios, o Estado feudal toma-se cada vez


mais imóvel e pesado, de modo que lhe foi pTeciso final­
mente rejeitar o bom e o mau, tendo o absolutismo afastado,
por sua vez, em Bodin, os privilégios materiais e o vínculo
de fidelidade, em proveito do absolutismo do soberano com
relação às leis que ele promulga (legibus absolutus). Tra­
taremos disso mais adiante.
O império era representado por sua cabeça; esta, para
ser correto, só era uma em idéia, pois na realidade havia
dois poderes independentes um do outro. Em idéia, com
efeito, o próprio Cristo era rei (o Cristo na cruz como o
representa, por exemplo, o crucifixo de Altenstadt, perto de
Landsberg, com uma coroa de rei e não de espinhos). Como
rei do universo, aliava em si na terra o poder espiritual e
o poder temporal. Na idéia do Cristo-Rei, transpõe-se o
abismo que separa o mundo cá de baixo do do além; o reino
do Cristo não está mais “ fora deste mundo” , isto é, sem
poder aqui em baixo, mas ele já começa aqui em baixo. A
organização do império era, desde Deus até os homens e o
país, santificada como uma unidade. A antiga idéia estóica
do direito natural como organização do mundo estava já
cristianizada em Santo Agostinho e prolongada até Deus no
além. Agora essa representação está verdadeiramente atua­
lizada. Mesmo onde o Teino é considerado como “ retar­
dando” simplesmente o fim do mundo e o advento do anti-
cristo (poT volta do ano 1000), o cidadão desse reino sen­
te-se um guerreiro cristão, e um guerreiro, como os ho­
mens do fim da Antiguidade, não pensa em seu fim, mas na
vitória.
A organização santificada do mundo, sob a direção do
Cristo-Rei, é, em sua antecipação terrestre, dividida no do­
mínio político em duas partes: o imperador e o papa. Para
o pensamento moderno suas funções poderiam ser diferença­
das em poder temporal e poder espiritual; isso estaria con­
tudo longe do espírito da Idade Média. A história medieval,
em sua harmonia como em seus conflitos, só é compreensí­
vel na base de uma confusão desses dois poderes. Os con­
flitos, com efeito, não são tão evidentes e sua solução tão
simples quanto nos parece. O imperador não é apenas o
monarca temporal. Ele possui seu poder de Deus, de forma
tão imediata quanto o papa, pois agora ele é um monarca
156 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

cristão. Ê certamente eleito e só reina com a aprovação de


todos, mas seu cargo é santificado como tal. Sem dúvida
que não há mais culto do imperador, nem sob a forma trans­
ferida para o plano político, como em Alexandre, os diádocos
e os césares. Entretanto, o verdadêiro e único monarca é
Deus, isto é, o Cristo, como rei e senhor do mundo inteiro,
cá em baixo e no além. E é por ele diretamente que o
cargo do imperador é consagrado; o imperador é invulnerável
porque, apesar de todo o direito de resistência, é o represen­
tante do Cristo na Terra, do verdadeiro rei do universo.
O papa é igualmente o representante direto do Cristo na
Terra, na sua qualidade de sucessor de São Pedro. Seu poder
estende-se ao domínio temporal da mesma foTma que o do
imperador se estende ao domínio espiritual A fidelidade,
como vínculo essencial dia comunidade do império, é ao
mesmo tempo uma virtude da fé cristã, e se acha assim sob
a jurisdição do papa. Contudo, os cargos do imperador e
do papa diferenciam-se em poder temporal e em po­
der espiritual, mas somente se sua unidade foi posta
de realce desde o início. Somente então se podem ver
numa luz correta os conflitos da história medieval e suas
“ guerras civis” . Somente então é que se pode compreender
que nenhuma solução definitiva era possível. Todas as de­
marcações no domínio do Estado feudal cristão nunca pas­
sam de compromissos provisórios, ou, melhor ainda, de um
retrocesso das usurpações políticas dos dois partidos invo­
cando a ordem cristã única do mundo.
De conformidade com essa característica bicéfala, o con­
junto do reino é também, e antes dele toda a sua elite, se­
parado em dois. A cabeça consiste tanto de religiosos (pa­
dres) quanto de seculares (cavaleiros), e não apenas, como
se pensou erroneamente, de religiosos. Os religiosos são, pelo
menos em sua maioria, proprietários de terras e mesmo guer­
reiros, e os seculares não são somente guerreiros, mas, da
mesma forma que os religiosos, fiéis e cristãos. Ê preci­
samente aí que reside o caráter dessa ordem social.
CAPITULO XII

Santo Tomás de Aquino

o q u a d r o da idéia social da Idade Média, a doutrina de


Santo Tomás de Aquino (1225-1274) não chega a ser, nem
de longe, tão representativa quanto o foi a de Santo Agos­
tinho para o fim da Antiguidade clássica e o começo do
cristianismo. Sua vida situa-se já no fim da Idade Média,
na época de Frederico II e de São Francisco de Assis. Por
outro lado, não se ocupou de maneira tão detalhada dos
problemas da sociedade como os do conhecimento de Deus,
a ordem do mundo ou a ética. É preciso, no entanto, falar
dele de modo mais preciso, porque nenhum autor resumiu
melhor as idéias de sua época. Estas acham-se expressas em
parte na realidade, como, por exemplo, nas fórmulas de co­
roação dos imperadores, em parte ao ensejo de outros pro­
blemas como os da Filosofia da História, em parte nos di­
ferentes partidos, de que trataremos mais adiante, mas que
São Tomás resume já até certo ponto.
A Filosofia de São Tomás (e a de seu mestre Alberto,
o Grande) é caracterizada por uma retomada do pensamento
de Aristóteles no domínio do método e das Ciências Natu­
rais, elevando-o à categoria da teologia para o universo agos-
tiniano da graça. São Tomás procura, por meio do conceito
da contingência do movimento intrínseco do mundo e da
hierarquia aristotélica do ser, chegar pura e simplesmente
pela lumen naturale da Filosofia, e antes de toda revelação
cristã, ao actus purus do Deus criador cristão. Daí resulta
uma síntese muito harmoniosamente equilibrada, mas na ver­
dade instável, da transcendência de Deus, da redenção e da
158 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

salvação cristã, por um lado, com a santificação do mundo


de Aristóteles, por outro lado. É evidente que se trata, na
Idade Média, de uma solução limitada da escolástica, limi­
tada à duração da vida de São Tomás, muito categórica,
revolucionária mesmo, e que não é a communis opinio da esco­
lástica. Mas, como São Tomás conseguiu de modo abstrato
aliar santificação do mundo e transcendência, é o modelo
do pensamento de todo esse período. Depois de São Tomás,
essa síntese desagregou-se imediatamente em nominalismo,
em mística e em voluntarismo, em ciência política e em uma
teologia concebida segundo um modelo jurídico. Era então a
passagem aos tempos modernos com Duns Escoto, Occam e
sua escola e outros.
No domínio limitado da teoria social, no interior desse
grande sistema, a inovação de São Tomás em relação com
Santo Agostinho Teside sobretudo em uma mudança de ati­
tude diante do mundo. O mundo ( mundus), ser humano e
natureza unidos, foi sempre compreendido no cristianismo
como uma creatura, uma criação de Deus. Seria possível,
contudo, concebê-lo de forma diferente: ou como essencial­
mente corrompido pelo pecado, afastado de Deus, ou então,
considerando que tem sua origem em Deus, que é sua obra,
não como inteiramente mau, mas como trazendo ainda em
si de uma forma ou de outra (ainda que obscurecida) a
marca de seu caráter, de sua bondade e de sua perfeição.
Ambos não se contradizem no quadro do cristianismo. É
uma trahsferência de acento. O cristianismo da Antiguidade
alegara a corrupção do mundo em conseqüência da decre­
pitude da natureza humana. A época podia agora conside­
rar cada vez mais o mundo em sua ordem criada, de modo
puramente objetivo, isto é, bom. O próprio homem estava
até certo ponto incluído neste esquema.
No domínio da cosmologia, na qual o antigo cristianis­
mo não estava mais interessado, isso é bem discemível. Che­
ga-se agora à sua expressão pela fórmula aristótelica da
ordem do mundo santificado. Não é o mundo como obra
de Deus que está corrompido pelo pecado, mas somente o
homem. Mas o homem também tem, pelo menos na origem,
uma boa natureza. Na medida em que essa natureza boa
se abre ainda uma passagem, a idéia social grega toma-se
importante para São Tomás. Ele se apropria da forma, am­
Sa n to T om ás de A q u in o 159

pliada pelo direito natural estóico, da política e da ética aris-


totélicas. As organizações sociais boas e as ruins, corrom­
pidas, podiam opor-se umas às outras como o estado original
do homem antes da queda que o separa de Deus. As duas
noções podiam mesmo até certo ponto aproximar-se. Mas
tudo devia afinal ser elevado pela esperança, ensinada e
atestada pela Igreja, na redenção no além, pela noção cristã
da graça. Nisso consiste a tarefa de São Tomás.
O mundo é criação de Deus. Se o homem não tivesse
sido pervertido pela queda, na verdade não teria nem dese­
jos culpáveis nem cobiça vil, nem sofrimento nem morte.
A natureza procura de início sua lei racional; criada por
Deus, essa lei é boa. Enquanto boa, tem dado ensejo a todas
as organizações sociais dos estratos, que se baseiam na fide­
lidade (fides), e que deveriam reinar, no Santo Império.
São organizações do direito natural com um caráter de comu­
nidade. O Estado seria aqui quase supérfluo, pelo menos
se se obedecesse absolutamente a essas organizações. Por isso
é que a idéia social de São Tomás, malgrado a retomada
de qaase todas as particularidades da doutrina política de
Aristóteles, toma-se uma organização de comunidade por
assim dizer apolítica, baseada no direito natural dos estra­
tos, com uma solidariedade dos grupos no interior (Troeltsch).
Nessa teoria o Estado conserva quase unicamente a aparên­
cia da independência política.
São Tomás retoma a organização social, ao mesmo tempo,
de Moisés e de Aristóteles. A comunidade dos homens é
um reino sob a dominação de Deus, cujos princípios jurídicos
são os dez mandamentos de Moisés e na qual o homem, “ ser
social por natureza” , vive como em Aristóteles. Se o homem
permanecesse bom como foi criado por Deus, só Teinaria em
suas comunidades a justiça, e não o pecado, a violência, as
disputas, o sofrimento e a morte. À medida que ele conhece
essa perfeição (e conhece-a de fato, até certo ponto, no
império cristão), toda organização jurídica e hierárquica da
comunidade social é desejada por Deus, como por exemplo
a organização em estratos dos domínios locais com seus laços
recíprocos de fidelidade. Malgrado a ênfase dada à domi­
nação dos príncipes, todos acham-se, contudo, incluídos nessa
organização, não estando o príncipe, como acontecerá mais
tarde no absolutismo, separado de seus “ súditos” por um
160 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

abismo. A própria guerra e os conflitos nada mais são, no


seio dessa organização social (como na maior parte do tempo
na Idade Média), que uma forma legal da realização do
direito. De fato, as guerras. exteriores deveriam, pelos mes­
mos motivos, ser empreendidas de modo cruel e destruidoT,
porque o Infiel, para sermos precisos, não é um ser humano,
pelo menos não se achando na mesma categoria do crente
no cumprimento da justiça.
Ao lado do direito natural do estado primitivamente bom
da humanidade, encontra-se o “ direito natural do estado de
pecado'’. Origina-se, como em Santo Agostinho, do fato de
que o homem se afastou de Deus por orgulho e inveja, o
que é então a fonte de toda a luta. A tendência ao mal
leva à cobiça e esta por sua vez à hostilidade, pois todos
querem ter para si os bens do mundo. A noção posterior
da guerra de todos contra todos, o que em Hobbes repre­
sentava o estado natural, teria tido necessariamente, segundo
São Tomás, sua origem na queda. Mas o combate, posto
que laz muito não é o cumprimento cavalheiresco da justiça
em um combate combinado, permanece contudo à margem
na organização do direito natural desejada por Deus. A an­
tiga oposição cristã entre este mundo e o reino de Deus não
tem a mesma acuidade que em Santo Agostinho.
Parece, entretanto, que já na época de São Tomás a
Idade Média ultrapassara seu apogeu. Assinalamos anterior­
mente que a Igreja no começo considerara a vida rural e
tudo que a ela concernia como a ocupação humana desejada
por Deus, enquanto se opunha, com suspeita, ao dinheiro, ao
comércio e conseqüentemente à cidade, onde ambos pros­
peravam. Agora isso se modifica até certo ponto, em parte
sob a influência da doutrina aristotélica, mas em parte já
por causa do progresso por que então passavam as cidades da
França e da Itália, e São Tomás empreende uma transferên­
cia de valores cheia de conseqüências. De fato, ele qualifica
como natural a vida citadina, desejada por Deus, enquanto
em compensação a vida rural é originária da infelicidade, da
miséria e do pecado.
As cidades italianas da Idade Média certamente nunca
foram livres como a polis grega. Achavam-se sempre sob a
soberania do imperador, mas este se encontrava freqüente­
mente distante. Desenvolveu-se assim uma vida política que
Santo T omás de A q u in o 161

não só se aproximava bastante da polis grega, como bem


merecia mais do que esta o nome de “ Cidade-Estado” . Cer­
tamente existia nessas cidades uma diferença entre nobreza
e povo, mas o elemento mais importante era o autogoverno
das corporações privilegiadas. Poderia ter resultado disso
uma idéia social análoga à da poli# grega. São Tomás não
chegou a isso, a despeito de seu conhecimento de Aris­
tóteles. Para ele, no sentido habitual da Idade Média,
o poder continuou sendo a dominação por parte dos príncipes
e não o governo autárquico dos governados. Durante a
Idade Média, porém, o autogoverno das corporações foi, cada
vez mais, sendo substituído pela dominação absoluta dos
Signori, os príncipes da cidade, cujas formas de governo
eram em todos os pontos semelhantes às dos príncipes rei­
nantes. Por isso essa preferência que São Tomás dá à cidade
permaneceu apenas como um primeiro passo notável.
Segundo a organização do império pelo direito natural,
na medida em que este ainda foi compreendido no sentido
do reino de Deus sob a direção do Cristo-Rei, o imperador
consagrado e coroado devia representar-lhe a cabeça; sua
preocupação com os homens enquanto partes de seu reino
se torna comparável às precauções que tem com os membros
de seu corpo. Visto porém que a humanidade não constitui
realmente o reino de Deus, mas que se afastou de Deus e
deve voltar a ele graças ao ato redentor do Cristo e à repe­
tição constante de seu sacrifício no culto da missa, vê-se sur­
gir, ao lado do cavaleiro, o padre; ao lado do imperador,
o papa, enquanto representante do Cristo na Terra. Não
se encontra ainda em São Tomás doutrina elaborada da
Igreja, por mais que se tenha procurado (Grabmann). Mas
como homem de Igreja e contemporâneo da disputa entre o
papa e o imperador, ele colocou abertamente o papa acima
do imperador (D e reg. princ, I, 14). Poderia quase ver-se
nisso sua opinião particulaT, na medida em que ele ainda
encara, para uni-las, as diferentes possibilidades da Idade
Média. Depois dele, contudo, essas duas possibilidades (a
da primazia do papa em relação ao imperador e a do impe­
rador em relação ao papa) foram desenvolvidas por seus
discípulos como duas possibilidades opostas da idéia do Cris­
to-Rei.
CAPÍTULO XIII

Decadência da Idéia do Cristo-Rei

idéia social da Idade Média pode tomar-se mais clara


em seus caracteres distintivos se examinarmos as experiências
dessa idéia feitas por essa época.
A fundação do Estado medieval através da propagação
no Ocidente da idéia de império cristão, em virtude da
necessidade de proteção que tinham os papas, o que se deno­
minou de translatio imperii, ocorreu por ocasião da coroação
de Carlos Magno em Roma. As primeiras etapas merovín-
gias e lombardas podem ser desprezadas. Com essa coroação
e ainda mais pelas maneiras muito diversas como foi mais
tarde interpretada pelos adeptos papistas e imperiais, tor­
nou-se evidente o caráter bicéfalo desse Estado. É o papa
quem faz a coroação, mas também pode ser o rei ou o im­
perador designado. Ele não é escolhido pelo papa, mas pelo
povo, os grandes ou os romanos. Enquanto durar para o
imperador a plena posse de seu poder, é evidente que não
ocorre nenhum conflito. Numerosos imperadores colocaram
no Trono de Pedro papas de sua escolha, fossem ou não
atacados por ocasião dessa escolha, e governaram o império
de comum acordo com eles. Mas nas controvérsias acerca
da sucessão de um imperador ou nos conflitos dos impera­
dores com seus poderosos vassalos, o papa era de início uma
autoridade moral a quem se apelava de bom grado, e que
podia por ordem num debate e restabelecer a paz. Somente
a fraqueza de muitos imperadores deu aos papas o ensejo
de tomarem-se perigosamente independentes no plano tem­
poral, ajudados que eram em Roma por uma população
urbana sempre em movimento, ambiciosa e dividida.
D e c a d ê n c ia da I d é ia do C r is t o - R ei 163

Entretanto, após a morte de Carlos Magno e mesmo


durante a agonia do império carolíngio, nenhum go!pe fun­
damental atingiu a hegemonia dos imperadores e a comuni­
dade social. Quando mais tarde a dignidade real passou
para os saxões, o perigo representado pelos hunos e a re­
construção do império estavam no primeiro plano. Mas em
Roma os papas estavam envolvidos em complicações locais e
tinham passado para a dependência de facções da oobreza.
Por isso, quando a realeza germânica foi novamente consoli­
dada com Oto I, a aliança entre o imperador e o papa se
fez pela segunda vez como uma necessidade histórica. Oto,
abstraindo-se das diferenças tribais dos habitantes de seu
império, edificou-o como um Estado feudal, dotando mesmo
cada vez mais os eclesiásticos de terras deixadas vazias depois
das disputas interiores. Isso era politicamente oportuno,
devido à cultura superior dos eclesiásticos, com o que lu­
crava a administração, e também devido ao menor apego
que tinham para com a terra deles. Os príncipes temporais
aspiravam sempre (como o próprio imperador) a tornar seu
feudo hereditário. Tomavam então mais estreitamente o
partido dos interesses locais sem a menor preocupação com
a terra deles. Os príncipes temporais aspiravam sempre
(como o próprio imperador) a tornar seu feudo hereditário.
Tomavam então mais estreitamente o partido dos interesses
locais sem a menor preocupação com a prosperidade do im­
pério. Um feudo clerical podia, com a morte de seu pos­
suidor, ser de novo concedido pelo imperador, o que conso­
lidava seu poder.
O Estado feudal fundado por Oto permaneceu, apesar
de crises inevitáveis, no máximo de sua força sob os impe­
radores saxões e sálios até Henrique III, enquanto Santo
Império Romano-Germânico. Naturalmente seus membros não
eram cidadãos livres e iguais como na polis grega, mas já não
eram mais súditos, como mais tarde no absolutismo do sobe­
rano. Existia uma verdadeira comunidade de homens livres,
participando do governo e capazes de se oporem com total
independência à injustiça e à escravização, cuja categoria
estava de acordo com a justiça social reinante, desde o im­
perador, passando pelos príncipes espirituais e temporais e
os senhores, até o menor proprietário de uma gleba e até
o último vassalo. Os servos eram considerados pouco mais
ou menos como os hilotas e os periecos em Esparta, e os
164 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

metecos e escravos em Atenas. Era, ainda que de modo


bem diferente, uma comunidade autêntica como a polis gre­
ga na sua época de florescimento. A grande produção ar­
tística da época ilustra este fato: na arte e com a aTte o
homem situa-se no mundo. A igreja romana é algo bem
diverso do templo grego; é um espaço interior e, com tudo
o que encerra (altares, fachadas, estátuas, etc.), é um sím­
bolo do reino sobrenatural de Deus, da Jerusalém celeste,
em pleno mundo terreno. Mas a igreja romana, que se ex­
pande através do império, é talvez a única obra da história
que, em sua grandeza arquitetônica e em sua perfeição, se
iguala áo templo grego. Segundo sua orientação, estava san­
tificada a região até onde chegasse o som de seus sinos.
A problemática dessa idéia social toma-se manifesta sob
o reinado de Henrique IV. Havia nele uma perigosa asso­
ciação de presunção e fraqueza. E os germes do conflito
continuam a Tesidir na antecipação cá em baixo do reino trans­
cendente de Deus por um sacrum impenum cristão. Os de­
talhes da Questão das Investiduras são conhecidos. Do lado
da Igreja (sobretudo no movimento de Cluny, estimulado
pelo próprio Henrique III) contestava-se a investidura por
mãos laicas (e portanto pelo imperador) de senhorias espi­
rituais, porque nessa investidura aliam-se a escolha do cava­
leiro e sua entronização em seu cargo espiritual. Desenca­
deia-se o conflito entre Henrique IV e Gregório VII, e o
papa, graças a seu poder sobre as almas cristãs, isenta muitas
vezes os vassalos do imperador de sua fé jurada.
É preciso dizer que o que se chama de “ simonia” era
do ponto de vista cristão certamente contestável. A ocupação
de funções espirituais é da competência do poder espiritual,
não do poder temporal, e elas devem ser concedidas sem
compensação. Mas, por outro lado, o Estado feudal basea­
va-se em grande parte no fato de que os abades e os bispos
eram senhores que dominavam o país. Da mesma forma,
o papa, num império cristão, tem a autoridade sobre as almas
e é o responsável por sua salvação. Mas se ele pode (e
freqüentemente chega a fazê-lo) dispensar os vassalos do im­
perador de seu juramento de obediência, sobre o qual se ba­
seia contudo a comunidade política do império, a idéia social
desse império é naturalmente posta em risco. Imperador e
papa, através de-um endurecimento de sua posição, suprimi­
D e c a d ê n c ia da I d é ia do C r is t o - R ei 165

ram assim os fundamentos do duplo caráter terrestre e ultra-


terrestre do Santo Império, sob o estandarte do Cristo-Rei.
A Concordata de Worrns (1122) certamente restabeleceu
a unidade dessa idéia social, que viverá de novo no espírito
e nas ações dos homens. Um homem como Bernard de Clair-
vaux, que não era nem papa nem imperador, baseou somente
nesse grande pensamento sua autoridade pessoal em relação
mesmo aos papas e imperadores. Entretanto, depois que a
Questão das Investiduras abalou a estrutura do Império,
destruindo esse vínculo de fidelidade, só houve compromis­
sos políticos entre os dois poderes, imperador e papa tor­
nando-se cada vez mais autônomos e independentes um do
outro. A unidade não podia mais ser restaurada. O Império
torna-se progressivamente um quadro frouxo no qual os rei­
nos nacionais e os principados evoluem para Estados inde­
pendentes puramente temporais; a Igreja passou a ser, além
de suas funções puramente espirituais, a imagem de um poder
jurídico e moral que se mantinha ao lado dos Estados e ata­
cava cada vez mais sua estrutuTa social. As competências e
os interesses entreehocavam-se e só se harmonizavam parcial­
mente, o que deu origem a conflitos.
A primeira separação visível do Estado, da Igreja e da
religião verifica-se durante a geração do Hohenstaufen Fre­
derico II, dos papas Inocêncio III e Inocêncio IV e de São
Francisco de Assis. Também era a época de São Tomás de
Aquino.
Pode considerar-se Frederico II (1194-1250) como o
precursor do absolutismo. Em sua terra de herança, a Sicília,
na encruzilhada das três grandes civilizações de Bizâncio, do
Islã e do Ocidente, onde todas as hierarquias se tornam fa­
cilmente Telativas, ele criou o primeiro Estado de funcioná­
rios que se apoiava não mais na fidelidade pessoal e na fé
cristã dos vassalos, mas num aparelho administrativo com
funcionários remunerados. O modelo era a ditadura pagã
de Roma, o império pré-cristão. Como mais tarde, no século
XVI, na teoria de Bodin e na prática dos reis da França, o
direito é a lei outorgada ou anulada segundo as necessidades
dos príncipes e da administração, e nãó mais o privilégio
adquirido de uma vez por todas, que encontra sua recompensa
na fidelidade, sobre o fundo da criação e da hierarquia cris­
tãs, conforme ao direito natural. Ainda era, nessa época,
166 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

uma antecipação. Mas ao mesmo tempo, em 1231, Frede­


rico II, em sua qualidade de imperador, fundou na Dieta
de Wôrms a soberania dos príncipes, abrindo-lhes assim o
caminho para uma imitação de sua façanha.
Já fazia muito tempo que os papas tinham reivindicado
(numa interpretação parcial da idéia feudal do império t>icé-
falo) a suserania sobre todos os príncipes e sobre o próprio
imperador. O combate foi travado, com êxitos alternados,
como uma guerra civil específica dessa idéia social. A fun­
dação dos Estados da Igreja entre os outros Estados ocorrera
igualmente desde muito tempo. Inocêncio III (1161-1216)
já atingira amplamente esse objetivo e aumentara sensivel­
mente os Estados da Igreja. Em 1231, a codificação do Di­
reito Canônico nos decretos papais foi concluída. Inocêncio
IV é, segundo a opinião de Gierke, o criador da nova noção
puramente jurídica de corporação. Em conseqüência, Dante
acusou essa evolução como sendo uma desagregação da ver­
dadeira idéia social e religião medievais. Alegava ele que
em toda parte, em sua época, nos conventos, chancelarias
e escolas, Graciano e os decretos eram lidos até gastar o
papel, enquanto a Bíblia e os Pais da Igreja permaneciam
nas estantes das bibliotecas. Da mesma forma que o abso­
lutismo do século XVI realiza por toda parte o Estado de
funcionários de Frederico II, o Concílio de Trento (1545-
-1563) concluiu essa transformação da Igreja e da dogmática
cristãs com um sistema jurídico e uma organização adminis­
trativa do poder.
Finalmente, São Francisco de Assis (1182-1226) abriu a
terceira brecha decisiva na idéia social medieval. Opôs ao
feudalismo espiritual do império e da Igreja (em sua época,
bastante secularizada) o ideal da imitação da própria vida
do Cristo, da pobreza e do amor cristão para com irmãos e
irmãs, para com toda a natureza, obra de Deus, mesmo para
com os animais. É uma renovação dos primeiros tempos do
cristianismo em sua serenidade. De fato, São Francisco es­
tava mais perto dos cátaros, perseguidos de modo sanguiná­
rio como heréticos, do que da organização do Império no
começo da Idade Média. No século XVI, inúmeros de seus
pensamentos foram retomados pelos reformadores que, no
entanto, os transformaram bastante. Mas o fato mais carac­
terístico dessa época é que Frederico II e os seus adeptos
D e c a d ê n c ia da I d é ia do C r is t o - R ei 167

puderam utilizar, em 1240, o ideal franciscano de pobreza,


de humildade e de perdão, em sua luta contra o papado, com
uma intenção puramente polêmica e política. É assim que
se torna manifesta a desagregação definitiva do antigo pensa­
mento do Império, tomando-se independentes seus três ele­
mentos.
Se a idéia social grega da polis foi em seu fim ilustrada
por uma série de variantes dessa idéia social, o mesmo se
dá nessa época.1 Há, na formação da elite do Santo Im­
pério medieval situado sob o reino do Cristo-Rei, de con­
formidade com seu caráter bicéfalo, três variantes que dele
derivam, mas que só têm verdadeiro significado nesse tempo
e com relação a essa idéia social: a reivindicação imperial à
supremacia, a reivindicação papal a uma mesma supremacia,
e a vã aspiração à restauração da unidade dos dois extremos.
Todas essas três variantes estiveram representadas nos planos
teórico e polêmico. Ê num exame demorado de suas posi-
çòes que se poderá esclarecer definitivamente o que as abarca
e isso de modo mais rigoroso que na realidade, e na exposi­
ção feita por São Tomás de Aquino.
A ideologia da supremacia imperial (tanto quanto a ideo­
logia da supremacia papal) tem naturalmente suas raízes nos
panfletos, manifestos e atas diplomáticas da Questão das
Investiduras. Ela será representada mais tarde de modo
radical por um discípulo de São Tomás, Jean de Paris (Jean
Quidort), e sobretudo por Marcílio de Pádua (cerca de 1290-
-1342). Sua obra principal, Defensor pacis, concebida em
colaboração com Jean de Jandun, é uma defesa de Luís da
Baviera, junto a quem procurará proteção depois de sua
excomunhão por parte de João XXII.
É evidente que Marcílio sofreu também a influência da
política aristotélica. Como os gregos, baseia o Estado na

i Quando hoje se empregam, sem o devido cuidado, os nomes


dessas variantes gregas: aristocracia, oligarquia, democracia e ti­
rania, generalizando-as e desligando-as do contexto da polis, tra-
ta-se de uma transferência de sentido que não aproveita nem ao
conhecimento histórico nem à compreensão sociológica do presente.
Depois de muito tempo a história da arte libertou-se desse precon­
ceito do classicismo, segundo o qual as cópias ruins romanas das
estátuas gregas representavam o tipo do homem em geral.
168 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

necessidade do homem e na discordância de suas aptidões.


Somente a comunidade pode proporcionar aos indivíduos a
segurança e a proteção. A finalidade do Estado é (como mais
tarde em Hobbes) a paz, donde o título “ Defensor pacis” .
A estrutura do Estado é feudal, não antiga, e compreende
seis estratos: os camponeses, os artesãos, os comerciantes, os
juizes, os guerreiros e os sacerdotes. Como se deve estabelecer
a autonomia do Estado (como mais tarde em Maquiavel),
o cristianismo é tratado apenas como uma religião entre ou­
tras e a Teligião torna-se quase exclusivamente um assunto
pessoal. Naturalmente a organização do Estado baseia-se no
direito natural, como no estoicismo, mas sua realização requer
a autoridade coercitiva de um poder. O príncipe é eleito
pelo povo e precisa de sua aprovação para exercer o governo.
Permanece continuamente responsável diante do povo perso­
nificado em seus estratos. Por isso essa idéia social diferen­
cia-se bastante do absolutismo ulterior. Mantém-se integral­
mente no quadro da associação medieval.
Marcílio teve o ensejo, depois da coroação imperial de
Luís da Baviera em Roma, em 1328, de pôr em prática sua
doutrina da eleição dos príncipes pelo povo (os cidadãos de
Roma). Com esse fim criou as cerimônias apropriadas, mas
isso não passava naturalmente de encenação. Um antipapa,
Nicolau V, chegou mesmo a ser nomeado na ocasião.
A doutrina de Marcílio mostra-se negativa em sua polê­
mica contra o domínio temporal do papado e da Igreja. Ne­
nhum sacerdote deve, nas questões temporais, possuir um
poder acima daquele dos leigos; só lhes compete o bem-estar
espiritual. Não conseguira resolver esse grande problema,
na realidade insolúvel, que consistia em- separar nitidamente
os domínios espiritual e temporal. Mas a fim de que. a Igreja
seja despojada de seu poder, ele qjuer arrebatar ao papa seu
primado em relação aos outros bispos e padres. A decisão em
matéria de fé deve pertencer a um concílio geral no qual
todos os fiéis estejam representados e cuja convocação se
ache nas mãos do poder temporal. Trata-se de um pensa­
mento que, mais tarde, quando dos concílios de antes da
Reforma, adquirirá uma importância prática.
No conjunto, o centro de gravidade desloca-se do domí­
nio temporal que> no próprio Marcílio, ainda é construído
D e c a d ê n c ia da I d é ia do C r is t o - R ei 169
segundo a maneira antiga, com seu caráter de estratos e de
associação. Em compensação, nos manifestos e panfletos dos
homens de Estado franceses, Pierre Flote, Guillaume de No-
garet e outros, essa doutrina assume já um caráter moderno
e absolutista, de acordo com a evolução da realeza francesa,
que se mantinha na época afastada do Império.
A variante doutrinária a favor da supremacia papal em
Telação ao imperador e aos príncipes começa, na Questão das
Investiduras, pelas pretensões de Gregório VII (Hildebrando)
contra Henrique IV. No curso da história, ela alcançou os
maiores êxitos com Inocêncio III; a teoria é estabelecida por
Inocêncio IV e fixada por Bonifácio VIII em sua bula Unam
sanctam. Dante, que era profundamente católico, colocou esse
papa em seu Inferno entre os seres cúpidos, porque ele se
preocupou muito mais com o poder da cúria do que com a
religião. O que foi mais decisivo nesse acontecimento está
no fato de que as formas jurídicas romanas (muito tempo antes
de se imiscuir, no domínio temporal, no Direito Civil e no
Direito Político e de ajudar na conversão da Idade Média ao
absolutismo) penetram toda a dogmática crista, racionalizan­
do-a, e no fato de que a Igreja mediadora da fé, partindo do
conteúdo da fé, toma-se uma força temporal, que não se ba­
seia mais na religião.
Egídio de Roma (1247-1316), outro discípulo de São To­
más de Aquino, tornou-se o teórico dessa doutrina. Em lugar
do vínculo feudal de fidelidade que existia na antiga comuni­
dade, surge nele a obediência que o burocrata do absolutismo
exige dos vassalos, tomados sujeitos (ao papa). A edificação
da própria Igreja, que antes se efetuava de baixo para cima
por uma livre aprovação, é substituída pelo poder absolutista
do papa (plenitudo potestatis). Este é agora (como mais
tarde em Hobbes o poder político) legislativo, mais em vir­
tude de sua autoridade e de sua vontade que em virtude dos
conhecimentos gerais que ele tem do direito natural. Sohm
chamou isso de uma substituição da ordem religiosa dos sa­
cramentos pela ordem jurídica coercitiva de uma instituição
humana. Augustinus Triumphus, discípulo de Egídio, já atri­
buía ao papa o mesmo legibus solutus, a liberdade pessoal
em relação às leis (que tem sua origem no direito ditatorial
romano), igual àquele sobre o qual Bodin baseará, no século
XVI, o absolutismo dos príncipes.
Mas isso não passou de teoria e tentativa, como a dou­
trina da supremacia política. A administração pontifical rea­
lizou, com o tempo e em primeiro lugar, aquilo que só con­
seguira com Frederico II, na Sicília, e a que todos os prín­
cipes e reis aspiraram até o século XVII, em lutas constantes
com seus vassalos e as diferentes camadas; um poder cen­
tral cuidadosa e juridicamente organizado e burocratizado.
As funções eclesiásticas podiam facilmente ser tratadas e es­
tabelecidas como cargas. A Igreja torna-se assim (uma vez
mais em oposição formal à concepção que prevalecia no co­
meço da Idade Média) a primeira e a mais importante po­
tência financeira da Europa, o que colocou o papado em um
estado de dependência em relação ao domínio temporal. A
França, onde o espírito dos novos tempos foi compréendido
mais cedo, foi o primeiro Estado a interditar a exportação
do dinheiro. Foi precisamente por esse motivo que ela em
seguida colocou o papado sob o controle dos reis franceses
em Avinhão. Por outro lado, a Inglaterra, por essas e outras
razões, foi perdida pela Igreja católica depois da Reforma.
Ê evidente que essa evolução no sentido de um absolu­
tismo clerical e temporal não se fez sem resistência. Pode-se,
a esse respeito, lançar um olhar sobre a doutrina social e so­
bre a poesia de Dante (1265-1321), que ilustrará o fato de
que o antigo sistema ainda estava vigoroso, mesmo em seu
declínio, e que encontrava eminentes representantes. Em
princípio, com respeito à idéia social da Idade Média, Dante
assume urtia posição similar à de Platão frente à polis mo­
ribunda da Grécia. Se desejo tratá-lo como romântico em
um sentido infinitamente mais forte que Platão, não é por
causa do insucesso que tiveram suas aspirações enquanto vi­
via. Compartilha esse insucesso com os filósofos gregos. Mas
Platão opos ou acrescentou aos diferentes partidos do “ go­
verno dos governados'’ uma idéia; ele trouxe à aristocracia,
à oligarquia, à democracia e à tirania algo de novo: a domi­
nação por parte dos cidadãos educados na razão, com a justiça
social específica dessa dominação. E isso lhe era possível
porque a razão socrática tomara conscientes a essência mesma
da polis e a independência natural dos governados. Em com­
pensação, Dante apenas renovou teórica e poeticamente a
imagem do antigo Santo Império, modificando-o mais ou
menos levemente com traços trazidos por São Francisco de
D e c a d ê n c ia da I d é ia do C r is t o - R ei 171

Assis, com seu ideal de pobreza e seu espiritualismo, e que


eram então modernos e não antigos. Faltam-lhe assim, até
certo ponto, meios de pensamento, que são substituídos pela
força imaginativa de sua fantasia.
Nas lutas de partidos dos Estados italianos, Dante de
início fora um adepto do ghelfismo popolare e de suas aspi­
rações a uma independência local. Mas, da mesma forma
que Platão, logo se desiludiu com os procedimentos egoístas
dos partidos. Ê então que surge a seus olhos, como subs­
tituto de uma política prática no quadro restrito da pátria
(como a Academia de Platão), a imagem do santo poder do
imperador e do império cristão, que sozinho (como em Pla­
tão o rei filósofo) podia pôr paradeiro à luta destruidora.
Ele tentou representar essa imagem inicialmente de modo
teórico e como publicista, em suas cartas políticas e na Mo-
narchia, escritas em latim, e mais tarde em italiano, de ma­
neira mais grandiosa e em forma poética, nos versos da Di­
vina Comédia. A esperança que alimentava de ver o impe­
rador alemão Henrique VII restaurar o antigo império estava
(pelo menos quando escreveu o poema) desde muito definiti­
vamente enterrada.
O império é a paz cristã universal ( pax universalis). Sua
justiça social está em que cada homem, em seu lugar na
ordem divina do mundo, pode desenvolver suas qualidades
morais, que lhe foram dadas por Deus, em suas relações com
Deus, com o mundo e com seus semelhantes. Não é possí­
vel, no domínio da religião cristã, transferir totalmente o “ rei­
no de Deus” para a realidade daqui de baixo, ainda mais por­
que o Estado não pode ser considerado (como o era em
Santo Agostinho) somente como um magnum latrocinium e
o representante da civitas diaboli. Assim o reino terreno,
santo e santificado, é considerado em analogia com o reino
de Deus. Do mesmo modo que no reino de Deus o Cristo
é rei, o imperador deve, no reino terrestre, reinar em sua
qualidade de representante do Cristo, aqui cumprindo tanto
quanto possível a justiça da criação divina na hierarquia do
Estado. A liberdade cristã, que o imperador cristão tem de
preservar, reside nessa hierarquia, na possibilidade que os ho­
mens têm de fazer também o bem, se o desejam.
Nas três partes da Divina Comédia — Inferno, Purgató­
rio e Paraíso — Dante criou uma imagem da hierarquia mo­
172 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

ral definitiva no além que ele percorre. Por meio de uma


inversão da analogia entre a hierarquia terrena e a do além,
os castigos, penitências, recompensas são aí simbolizados de
forma precisa pelos lugares e seu afastamento de Deus, em
sua qualidade de fonte da vida e do verdadeiro gozo. O
homem é transportado depois de sua morte para o lugar cor­
respondente à vida que levou. Mas se Dante considera o
reino ultraterreno de Deus, com seu paraíso, seu inferno e
seu purgatório como o objetivo do reino terreno isso signi­
fica apenas o seguinte no plano político: a mesma hierarquia
moral já deveria reinar no Santo Império terreno e na reali­
dade uma medida em que as condições sejam corretas. Essa
hierarquia só pode ser obscurecida individualmente pelo erro
e o pecado dos homens. Assim pode ocorrer que persona­
lidades como certos papas ou imperadores, que aqui ocupa­
ram os postos mais elevados, lá irão para o inferno. E, inver­
samente, que indivíduos pobres, obscuros, desprezados e in­
felizes subam ao céu. O que se manifesta no além de modo
definitivo e infalível não é senão a hierarquia social e moral,
que já deveria existir no Santo Império.
Nessa grande “evocação” do império medieval, o lugar
dado por Dante à Igreja ao lado do império é importante
para nosso propósito. (Enquanto São Tomás, apesar de sua
posição ainda deste lado das “ variantes de partidos” , tende
para a supremacia do papa, Dante é em princípio pela su­
premacia do imperador.) Certamente a unidade residia no
caráter bicéfalo, mas este era o ponto vulnerável na concep­
ção dessa idéia social.
Deixarei de lado aqui a Filosofia da História, na qual
se baseia a doutrina da Igreja. De qualquer forma, a velhá
Igreja feudal surge em Dante quase tão secularizada e dege­
nerada quanto o será mais tarde em Lutero. Os papas polí­
ticos são verdadeiros inimigos; no poema acham-se o mais
distante possível de Deus, no inferno, de cabeça para baixo
e com o corpo todo ardendo. A diferença em relação à difa­
mação desses papas por Frederico II está somente em que
ela intervém aí com uma intenção de propaganda a favor do
Estado temporal e absolutista, e em Dante com uma preo­
cupação autêntica pela verdadeira salvação da Igreja. A
Doação de Constantino (embora ainda não reconhecida como
uma falsificação), da mesma forma que a fundação dos Es­
D e c a d ê n c ia da I d é ia do C r is t o - R ei 173

tados da Igreja, é representada como grande erro. Dante


ainda acredita entretanto, o que não farão mais tarde os re­
formadores, numa mudança de opinião da Igreja seculari-
zada e em sua transformação pelos dois grandes fundado­
res de ordens do século XIII: São Francisco e São Domin­
gos. Uma resistência violenta contra a Igreja, do mesmo
modo que uma cisão reformadora, ter-lhe-ia sido tão pouco
imaginável quanto o exílio para Sócrates, ou a revolução
contra a polis_para Platão.
Na Divina Comédia o novo ideal franciscano da Igreja
apolítica e pobre está estreitamente ligado à visão de Beatriz
na Vita Nuova. O próprio Cristo-Rei conduz o carro da Igreja
ao paraíso. Seu timão é a cruz. Os 24 livros do Velho Tes­
tamento, na forma de anciãos, e os quatro evangelistas mar­
cham à frente. Mas isso não é senão a Jerusalém celeste.
Seu símbolo na Terra é o destino da Igreja no império, sua
história. Inicialmente a Igreja, no seio do paganismo, acha-se
totalmente abandonada e miserável. Somente a encarnação
do Cristo anima sua forma existindo em Deus desde o comê-
ço e lhe imprime seu desenvolvimento sobre a Terra. Mas
sua peregrinação terrestre está em perigo: no antigo Impé­
rio romano primeiro pela perseguição aos cristãos, mais tarde
pelas heresias. Depois do que Constantino a enriquece de
bens temporais, assim obscurecendo sua luz. O dragão do
Islã também a ameaça, arrancando-lhe no Oriente partes do
corpo. Por fim, o próprio carro da Igreja torna-se a grande
cortesã do Apocalipse, que faz a corte aos príncipes tempo­
rais. O rei francês “ muito cristão’'’ (como ele próprio se
denomina por ciúme do imperador) arrasta-a mesmo, sob a
forma de um gigante (portanto de um demônio pagão), para
a floresta de Avinhão.
Encontra-se assim, depois de todas essas provas, sua pu­
rificação e sua transfiguração terrestre. Beatriz anuncia o
advento próximo do “ terceiro reino” de Joaquim de Flore,
no qual o novo DUX (uma combinação simbólica dos alga­
rismos romanos D = 500, V = 5, X = 10) renascerá, como
guia, das cinzas da antiga águia imperial e restabelecerá o
Santo Império da Idade Média. Salvo isso, em lugar dos
feudos clericais da reforma do império por Oto, encontra-se
agora a nova Igreja franciscana reformada pela pobreza, sem
a mínima tarefa polítièa ou jurídica. Dante atém-se à sua
174 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

visão poética, apesar de ter abandonado, de longa data, qual­


quer esperança terrena. Embora o Império medieval seja
tão pouco resuscitado quanto a polis grega com a esperança
que punha Platão em seu rei filósofo educado na razão, po­
demos com isso ganhar em compreensão, não só em compre­
ensão da história de uma época terminada, mas também, se
bem que não haja recomeço, em compreensão do que é, na
vida, possível e necessário.
T e r c e ir a P abte

OS T E MP OS MODERNOS
Premissas

A l polis grega (e também Rom a).foi destruída em função


de sua própria situação interna. E isso porque seus cidadãos
perderam gradativamente sua autarquia, imanente ao auto­
governo. A partir daí, as decisões políticas se tornaram tão
complicadas e difíceis que não podiam mais ser compreen­
didas por todos, caindo também esta condição necessária da
democracia. É somente em face da necessidade colocada
por esta situação que surge o pensamento social dos sofistas
e de Platão. E mesmo o aparecimento das idéias sociais do
cristianismo primitivo e da Idade .Média é um processo que,
não obstante não se possa fazer derivar anonimamente do
povo (mais ou menos da mesma forma que o romantismo
faz derivar as canções populares), se encontra em relação
direta com a necessidade social dos indivíduos, do próprio
homem. Não há quem possa sentir-se desobrigado em rela­
ção à tentativa de reintegração social por meio de novas con­
cepções teóricas.
A idade moderna (aproximadamente 1500-1800) não
pertence ainda à era industrial. Trata-se de um período his­
tórico absolutamente independente, com suas próprias idéias
sociais. Não pode ser medida a partir de critérios da Idade
Média ou da era industrial moderna. Épocas análogas po­
dem ser encontradas igualmente em outras civilizações: na
China, no chamado período dos Estados em luta; na índia
anterior à dinastia Maurya; na antiguidade, no período que
se situa entre a decadência da? polis na guerra do Pelopo-
neso e a formação do império romano no mundo helénico

12
178 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

do império dos sucessores de Alexandre o Grande. A evo­


lução silenciosa da técnica, como ciência natural, durante
essa época no mundo ocidental é um processo que tem muito
pouco a ver com a verdadeira vida dos homens desse tempo,
com suas idéias sociais próprias e sua estrutura social predo­
minante. Existem duas premissas históricas para essa época,
bastante relacionadas entre si e que se referem aos domínios
econômico e religioso.
1. O princípio econômico que se acha na origem da
idéia social feudal do Império medieval era, como na polis
grega, a atividade agrícola. Somente durante a Idade Média
(mais no sul e no oeste do que no norte e no leste) é que o
comércio, o artesanato, as cidades tomam um novo impulso.
Mas, também então, a economia vê-se de início fortemente
ligada pela organização das corporações. Apenas em certos
pontos, como, por exemplo, na tecelagem flamenga e italiana
do norte, surge, lentamente, em oposição à corporação, a in­
dústria livre. Formam-se então as primeiras grandes fortu­
nas, cujas vantagens foram logo compreendidas pelos papas
e príncipes. Estes estabelecem estreitas relações com os
bancos nascentes e os grandes negociantes, os únicos que
podiam satisfazer suas necessidades financeiras. As rea­
lezas e os principados, que se tornavam cada vez mais inde­
pendentes em um Império que somente subsistia como um
quadro, começaram por isso a se isolar economicamente, uns
contra os outros.
Isso ocorre no início dos tempos modernos, naquilo que
se denominou mercantilismo. Este estimula a indústria nas­
cente, mas também os ofícios e a agricultura, e os protege
contra os Estados vizinhos por meio das taxas aduaneiras.
O objetivo dos príncipes é o aumento das reservas de di­
nheiro em seu próprio país. Podem então pagar, graças aos
impostos, seu aparelho militar, administrativo e policial, sobre
o qual se baseia agora o poder político. Conforme já acen­
tuamos, a cúria, durante muito tempo, graças à exploração
de seus recursos em impostos nas propriedades clericais, e
mesmo em países estrangeiros, foi a primeira potência fi­
nanceira do Ocidente. Os príncipes buscam por isso atingir
um objetivo similar por meio de uma economia exportadora,
não fechada, mas proibindo ao máximo possível as evasões
de dinheiro pelo filtro alfandegário. O princípio mercantilista,
P r e m is s a s 179

segundo o qual em economia a vantagem de um Estado não


pode surgir senão às custas de outro, isola os Estados entre
si e os prepara para a guerra e para a extensão de um poder
puramente egoísta. Somente mais tarde esse princípio será
anulado pelos princípios econômicos de caráter totalmente
diferente baseados na propriedade, por Locke, e que Adam
Smith formulará em sua Economia Política.
Com esse acontecimento o destino do homem, e sobre­
tudo o símbolo moral de seu trabalho, desloca-se cada vez
mais da terra para a cidade. Ao lado dos camponeses e do
vassalo nobre que (como o polites grego) era sempre um
proprietário fundiário, surge o comerciante sem nenhum elo
com a terra, empresário e citadino. A nobreza atua junto ao
príncipe como cortesã, chefe militar 011 funcionário. Mas seu
vínculo com aquele e com a pátria continua até o século XIX,
originando-se a antiga fidelidade no feudalismo. Ela é tam­
bém retomada como ética pela classe burguesa dos funcioná­
rios, ainda não substituída (o que, para ser preciso, estaria
conforme à nova estrutura social) por um funcionalismo re­
munerado, baseado na utilidade social. A propriedade agrá­
ria continua sendo, até a Revolução Francesa e depois dela,
a fonte dos privilégios; e o campesinato, com suas famílias
numerosas, a fonte principal a que recorrem as cidades e a
indústria para atender suas necessidades.
2. Embora o absolutismo dos príncipes no começo pou­
co tenha modificado a estrutura social no plano econômico,
a secularização do papado transformada em uma força jurí­
dica e política teria golpeado a religião do povo, se a reforma
de Calvino e de Lutero não tivesse acontecido. Finalmente,
porém, a separação feita pela Reforma é bem mais determi­
nante para a reorganização futura da estrutura econômica e
social do que a secularização do Estado no absolutismo.
Lutero arranca o homem da comunidade cultural do
Santo Império que sempre subsistia em pensamento. Colo­
ca-o em uma relação pessoal com Deus, que se realiza em
cada consciência, diante da Palavra puramente espiritual do
Evangelho. Assume em determinado sentido uma posição
análoga, por um lado, à de Marcílio de Pádua, e, por outro
lado, à do cristianismo primitivo, separando a Teligião pessoal
do Estado temporal. Por isso é que a fé reformada tem de
passar pela mesma falta de proteção e uma nova aliança com
180 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

o Estado (agora o principado absoluto) de antes em Bizâncio


e no começo da Idade Média. Conhece-se o princípio abso­
lutista bem pouco cristão resultante da Guerra dos Trinta
Anos: cujus regio, ejus religio.
Não é objeto de nosso trabalho o verdadeiro princípio
religioso de Lutero, a justificação do homem diante de Deus
unicamente pela graça e a fé, não por seus méritos, pelos
meios dos sacramentos e as boas obras (sola fide). Trata­
mos é de suas conseqüências. Uma vez que o homem encon­
trou na fé êsse apoio em Deus, sua existência não deve ser
um repouso hostil à ação, uma negligência, ou uma fuga
diante do mundo, mas a vida no mundo alegre e forte, apoia­
do pela certeza da salvação que a graça propicia. Aí temos
algo de totalmente diferente da caritas privada e provisória
dos cristãos no senescens saectdum do antigo mundo.
A execução da vontade de Deus é agora compreendida
como o cumprimento do dever na profissão temporal. Essa
profissão podia ser de uma diversidade crescente devido à
complicação das relações econômicas. Poderia ser tanto o
trabalho dos campos e a administração de uma propriedade
agrária (estes trabalhos do começo da Idade Média ainda
existiam em grande escala) quanto o artesanato, o comércio,
a indústria nascente, uma vida operária ou patronal, da mes­
ma forma que o serviço administrativo do príncipe, na quali­
dade de funcionário, juiz, ministro, ou até o serviço militar,
como soldado ou oficial. Õ trabalho não tinha mais, certa­
mente, o significado de uma santificação quase mágica do
mundo, como na vida monástica do início da Idade Média,
mas de uma experiência moral e espiritual numa matéria cria­
da, concedida ao homem em virtude dessa experiência. Rea­
lizado ná profissão, no lugar consignado ao homem por Deus,
esse trabalho unia assim os indivíduos em suas atividades bem
diversas. Sem essa nova ética social do trabalho, o Estado
dos tempos modernos, sua cultura, sua civilização, sua ciên­
cia, sua arte, e mesmo a época industrial, que se desenvolveu
a partir desse Estado, não teriam sido possíveis. A ética do
trabalho e do cumprimento do dever, enquanto nova cons­
ciência de uma comunidade, reúne muitas vezes as diferentes
classes. Naturalmente isso não se limitou nos tempos moder­
nos aos países protestantes. A partir da dogmática de Lutero,
esse fato só podia tornar-se mais expressamente visível.
P r e m is s a s 181

O mesmo se dá com Calvino, em quem o fenômeno se


acentuou até se tornar, como mostrou Max Weber, uma das
causas determinantes da forma econômica particular do ca­
pitalismo. O centro da dogmática de Calvino é a força ili­
mitada e incompreensível de Deus, e a doutrina da graça.
Embora o homem, enquanto cristão, não saiba nunca de mo­
do definitivo se faz parte dos eleitos ou dos danados, o êxito
exterior de sua atividade é um sinal certo, ainda que não
infalível, de que a bênção de Deus está sobre si. Deve por­
tanto esforçar-se para provocar esse êxito com seu esforço
pessoal se não quiser abandonar-se ao desespero. O fatalismo
da doutrina da graça levava certamente a uma determinada
calma, mas não à inatividade e à passividade; ele não deixa
nenhum lugar à negligência na espera do advento do reino de
Deus, mas provoca, outros.sim, um progresso constantemente
controlado pela consciência, no qual o trabalho que consiste
em estabelecer relações pessoais com Deus se alia ao trabalho
executado no mundo; cada revés devendo ser vencido por
novos esforços, até a morte.
Os frutos do trabalho não devem contudo ser saborea­
dos e utilizados de forma egoísta. Isso seria com efeito um
sintoma de que o homem está abandonado por Deus e que
voltou ao Estado do demônio. Que deve fazer então da for­
tuna adquirida? Ou ajudar seu próximo, sem no entanto in­
citá-lo à mendicância, mas com o interesse pela salvação de
sua alma, educando o e inserindo-o no trabalho da comuni­
dade. Ou então aplicar na própria empresa o lucro auferido,
aumentando dessa forma as possibilidades de trabalho e o
êxito para todos.
Destarte, o trabalho pessoal e a bênção de seu produto
aliam-se cada vez mais a uma assistência ativa e educadora do
próximo e à sua promoção moral e material. Foi daí que
resultou a forma econômica do capitalismo com um princípio
ético e religioso. De fato, o capitalismo não é simplesmente
riqueza acumulada, mas riqueza constante e metodicamente
crescente graças ao trabalho, permanecendo unida ao traba­
lho. A riqueza (e a pobreza) sempre existiram no mundo;
mas o capitalismo com este sentido exato só o encontramos
aqui (não o encontramos nem na Antiguidade, nem na Idade
Média, nem no Oriente, nem na China, nem na índia, nem
no Islã). Bacon é um dos poucos pensadores cuja idéia
182 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

social — pelo menos como sonho — ultrapassa sua época e


se reporta à era industrial.
O calvinismo não pôde manter-se na França, pátria de
seu fundador, mas não se limitou a Genebra onde o próprio
Calvino o introduzira; criou raízes nas regiões fronteiras à
Alemanha e mais ainda nos Países Baixos e nas regiões anglo-
“saxônicas do antigo e do novo mundo. O resto da Alemanha
tomou-se ou permaneceu, no norte, luterano, no sul, cató­
lico. A França retornou, em sua preocupação de unidade
nacional e política, ao catolicismo e expulsou com sérios pre­
juízos uma grande parte da população, os huguenotes. A
Itália e a Espanha permaneceram ligadas ao catolicismo. Este
afirmou-se definitivamente no Concílio de Trento, como sis­
tema jurídico e religioso submetido a um dogma, sob o domí­
nio político do papado, e se opôs com novas exigências ao
protestantismo e lao calvinismo protegidos pelos príncipes
absolutos e transformados muitas vezes, com finalidades pura­
mente políticas, em Igrejas nacionais. O sistema econômico
e a estrutura social, em sua evolução, não levavam em conta
fronteiras nacionais e confissões. Mas não foi por acaso que
as regiões calvinistas assumiram abertamente a liderança no
caminho da era industrial (mantendo-a quase até nossos
dias).
No conjunto, a religião cristã, em suas três grandes con­
fissões e diferentes seitas de menor importância, permaneceu
intacta nos tempos modernos e não foi atingida pelas con­
trovérsias políticas. Mas devido à existência de três confissões
cristãs diferentes que lutavam entre si, a Filosofia adquire
um lugar nos espaços intermediários que as separam, não
somente para a edificação da ciência, mas também para criar
um pensamento social absolutamente independente tanto do
Estado quanto das Igrejas.
CAPÍTULO XV

Prelúdio Utópico

fato de começarmos não pelas idéias sociais sérias, mas


colocando a utopia antes do pensamento social dos tempos
modernos, poderia quase parecer curioso, mas essa utopia
mostra precisamente a incerteza da situação e a procura que
se fazia de novos objetivos. Essa situação não é comparável
àquela, clara e inequívoca, da realeza sagrada do antigo
Oriente, da polis, do cristianismo primitivo ou da Idade Mé­
dia. A razão disso não é somente a complicação própria da
estrutura social e a lembrança das possibilidades anteriores,
mas sobretudo o comprometimento de tudo o que a época
carecia pelo desejo brutal de poder das mais altas autoridades
da Igreja, dos Estados e do Império. Compreendo pelo t e T -
mo “ utopia” o romance político do mesmo nome de Thomas
More, mas também A Cidade do Sol, de Campanella, e a
Nova Atlântida, de Bacon.

Thomas More (1478-1535) era amigo do humanista Eras­


mo de Roterdã. Desempenhou, no reinado de Henrique VIII,
altos cargos políticos e foi finalmente decapitado por não
ter querido, coma católico, apoiar a política antipapal desse
rei. Leão XIII beatificou-o em 1886.
O romance político da ilha da Utopia (que, portanto,
não existe em lugar algum) é uma imitação clássico-huma-
nista da idéia social platônica, isto é, ele se vale de uma ficção
para fazer uma crítica acerba das condições sociais da época
na Inglaterra. Escandaliza-se principalmente com as dife­
renças entre ricos e pobres. Tomando uma idéia de Platão,
184 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

diz que os ricos deviam ser suprimidos pela abolição total


da propriedade, sem que o autor leve muito a sério as con­
seqüências dessa proposição. Ao contrário de Platão, a comu­
nidade familiar deve ser mantida. Como, junto com a pro­
priedade também desaparece o dinheiro, a economia passa
a ser uma economia natural e de troca, enquanto a principal
fonte de aquisição é o cultivo dos campos e a criação de
animais. Thomas More era, pelo seu estilo pessoal de vida,
um asceta religioso. Por isso ele volta, em oposição absoluta
a seu compatriota Bacon, a uma espécie de limitação medie­
val, pela supressão da indústria e da técnica, de todas as exi­
gências que ultrapassem num mínimo a satisfação das neces­
sidades.
Nesse estado, onde a técnica não existe, a cada homem
bastam seis horas de trabalho diário. O resto do tempo deve
ser utilizado para a cultura universal do espírito — de modo
absolutamente similar ao que será mais tarde em Marx o
tempo poupado graças à técnica e a repartição do produto
social feita pelo Estado. De fato, isso não é possível sem es­
cravos, que são recrutados entre os condenados, os prisio­
neiros de guerra e outros. A concepção da guerra é tipica­
mente anglo-saxônica. Em princípio só são permitidas as
guerras defensivas e as guerras travadas com o propósito de
libertar outros povos de seus tiranos; também o são, con­
tudo, as guerras que servem para a obtenção de terras de
colonização para atender ao aumento populacional e as guer­
ras que são para proteger interesses comerciais, para garantir
a liberdade dos mares e garantir os mercados. As guerras não
devem ser feitas pelos cidadãos, o que seria por demais la­
mentável, mas por mercenários. A esse respeito, também uma
espécie de moral interna se observa na ilha da Utopia.
Liberdade de pensamento e tolerância, que na época não
eram encontradas em parte alguma, deviam imperar. A fim
de que a comunidade não se deteriore completamente é pre­
ciso que todos concordem com algumas verdades religiosas
fundamentais, que são evidentes e que cada um pode modifi­
car à sua vontade. Elas já são concebidas da mesma maneira
como mais tarde o farão Herbert de Cherbury, o deísmo, o
século das Luzes, e Rousseau: existência de Deus, imortali­
dade da alma, recompensa no além pelas boas ações e puni­
ção das más ações. No seu todo, segundo o humanista More,
P r e l ú d io U t ó p ic o 185

a ordem social e a justiça devem tornar-se, à maneira estóica,


uma imagem da harmonia do mundo enquanto criação de
Deus.

A Cidade do Sol do italiano Campanella (1568-1639)


tenta a mesma coisa, com a diferença de estar adaptada às
circunstâncias de seu ambiente. É sintomático de que nessa
época os sonhos quiméricos fossem necessários em sua função
de válvula da fantasia contra a pressão da realidade. Uma
vez, Campanella tentara em sua pátria um levante bastante
utópico contra o absolutismo pontifical e espanhol. Foi então
metido a ferros durante 27 anos, só vindo a gozar da liber­
dade perto do fim de sua vida, depois de se ter refugiado
em um convento perto de Paris sob a proteção de Richelieu.
A Cidade do Sol se apoia também na comunidade dos
guardiães de Platao. Ao lado do comunismo dos bens ins­
taurou-se o comunismo das mulheres. A unidade do Estado
se baseia na dominação absoluta de um príncípe-sacerdote
denominado Sol ou Metaphysicus, cujas funções reúnem de
modo utópico, sem nenhuma sombra de problema, as do rei
e do papa na Idade Média. A seu lado estão três auxiliares
alegóricos: Poder, Sabedoria e Amor, que personificam e
dirigem as forças essenciais da alma humana.
Isso adquire uma tonalidade quase moderna quando se
observa que nesse Estado tudo, até às coisas mais insignifi­
cantes, é regulado pela autoridade, desde o trabalho e sua
remuneração, passando pela habitação, o vestuário, a cópula,
a fé, os prazeres, a que se chama de “ organização dos ócios” ,
até o ensino, a educação e a legislação Apesar das tristes
experiências de Campanella, não existe qualquer tolerância.
O ensino e a educação já são modernos. Aprende-se menos
pelos livros, o saber e as leis são simbolizados nas imagens
e conceitos e (como nos países totalitários modernos ou na
publicidade industrial) pintados em tecidos, quadros e pare­
des das casas. Assim todos os têm continuamente diante dos
olhos, sendo obrigados a se lembrarem dos mesmos para
sempTe As matérias ensinadas são menos orientadas para
os domínios filológicos históricos, humanistas e das ciências
do espírito do que para o domínio da Matemática e das Ci­
ências Naturais. Túdo isso se apresenta desligado da tradi­
ção e impregnado de uma fé no progresso, como só se verá
186 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

mais tarde na época das Luzes. Também o modo de cons­


trução da cidade é racionalmente concentrado à volta de um
templo gigantesco que simboliza a idéia dominante da comu­
nidade. Trata-se menos de uma antecipação das construções
de cidades modernas nas colônias do que de uma retomada
histórica da reflexão arquitetônica dos gregos (Hipódamo e
outros).
No conjunto, o que permanece notável nessa fantasia de
um período transitório é a combinação de métodos moder­
nos absolutamente Tacionais com um objetivo que, nos pri­
meiros tempos da Idade Média, quando se confiava no desen­
volvimento das coisas e na ajuda de Deus, existia na reali­
dade sem a participação do homem e sem constnição arti­
ficial: o reino de Deus começando já cá em baixo na criação.
Essa combinação é certamente exagerada; é talvez precisa­
mente isso que lhe confere, diante do racionalismò autêntico
do século XVII e da fé da Idade Média, um caráter moderno,
não satisfatório e um tanto superficial.

O mesmo se pode dizer da terceira utopia do Renascimen­


to, do fragmento inacabado, a Nova Atlântida, do inglês Bacon
de Verulam (1561-1626). Em Filosofia, Bacon é um empi-
rista. Ele definiu de forma correta e decisiva para os tempos
modernos a essência da técnica — na Tealidade aliando-se a
Maquiavel. Sua utopia é também, corno indica o título, uma
imitação de Platão. Mas sua finalidade não é mais uma re­
volução social no plano ético, como em Thomas More, ou
uma reforma pedagógica no plano confessional, como em
Campanella; trata-se de uma finalidade puramente técnica.
A natureza deve ser submetida ao homem e, através dessa
dominação do homem sobre a natureza, todos os anseios e
todas as necessidades devem ser realizados. Não é senão
dessa maneira que devem ser resolvidos os problemas sociais.
Bacon é um dos poucos pensadores cuja idéia social — pelo
menos sob a forma de sonho — vai além de sua própria
época indicando elementos próprios à era industrial.

Tudo o que Bacon propõe no século XVII parece pos­


suir um aspecto de atualidade para os séculos XX e XXI.
Ele imagina, com efeito, um Estado no qual sobretudo as
ciências e a indústria estão organizadas, onde tudo gira em
P r e l ú d io U t ó p ic o 187

loruo das invenções, das instalações e obras de toda espécie.


O ponto central não é, como em Campanella, o ministério
político-religioso da propaganda, mas a “ casa de Salomão” ,
um vasto local de pesquisas sobre Ciências Naturais e a téc­
nica, centralizado e equipado com recursos ilimitados. Aqui,
o de que o homem carece é inventado metodicamente, atra­
vés de uma divisão do trabalho e repartido para a fabricação.
Desde a organização da saúde humana e da doença em fun­
ção do clima e do tempo, desde a criação racional dos ani­
mais e dos homens até às coisas que ainda não existiam, mi­
croscópios, telescópios, submarinos, máquinas, fábricas para
a produção de artigos de consumo a preço baixo e de mer­
cadorias em série de todo tipo, enfim, até o perpetuum mo­
bile que fornece continuamente e sem avareza energia mais
prática que a de um reator nuclear. Tudo isso é, como entre
nós, aperfeiçoado incessantemente em laboratórios, academias,
por grupos de especialistas, em um progresso infinito e in­
sensato.
Bacon acredita seriamente — e é este o princípio filosó­
fico de sua invenção — que através do domínio que exeTcem
sobre a natureza e a satisfação ilimitada de suas necessidades
os homens não se tomam apenas mais exigentes, mais agres­
sivos e mais poderosos, como também mais justos, mais feli­
zes e mais pacíficos. Parece assim não ter absolutamente ne­
cessidade de idéia de justiça social, até então o princípio e
o fim de todo pensamento social. Sua opinião é que essa
justiça se instalaria por si mesma, devido à possibilidade ili­
mitada de satisfação das necessidades através do domínio da
natureza pelo homem. A técnica sozinha, ou na melhor das
hipóteses uma superioridade dos meios, como o saber e o
poder dos sofistas na Grécia, se tomam a finalidade e o sen­
tido da existência. Mas, enquanto a superioridade sofística
dos meios concernia sobretudo à dominação sobre o homem
e era neste sentido mais humana e podia fazer mais facil­
mente a experiência do caráter errôneo do ideal do tirano
mantendo-se na retaguarda, a superioridade dos meios de
Bacon é em primeiro lugar domínio sobre a natureza. Não
passava na época de uma imagem-da fantasia. Em nossos
dias, 300 anos depois, foi atingida amplamente e sentimo-nos
perplexos diante do fato de que esse domínio se tornou um
fim absoluto em si.
CAPITULO XVI

Maquiavel e Bodin

JP ode c o n sid e r a r - s e a utopia em suas três variedades ( a


variedade ética e social-revolucionária, a variedade pedagó­
gica e confessional e a variedade técnica e industrial) quer
como um prelúdio à era industrial, quer como uma pura
fantasia. Contudo somente um pensamento que se referisse
imediatamente à realidade política da época e se baseasse
nela poderia preparar a passagem da Idade Média para os
tempos modernos. É em Maquiavel (146&-1527) que en­
contramos isso pela primeira vez. Era um humanista e diplo­
mata. Aprendeu por si mesmo, na qualidade de embaixador
de sua pátria, Florença, o jogo da política de sua época na
Itália e fora dela. Mas também passou por algumas expe­
riências dolorosas. Quando a República foi suprimida em
Florença pelos Médicis, perdeu seu cargo e teve de se reti­
rar para um pequeno domínio. Foi somente aí que teve tempo
e desejo para refletir sobre a natureza do homem e da polí­
tica. A lembrança de suas próprias experiências aliou-se ao
estudo das fontes antigas suprindo para esse citadino força­
do à solidão a atividade prática perdida. Conheceu natural­
mente as obras de Aristóteles; mas os historiadores gregos e
romanos tinham para ele mais importância, sobretudo Políbio
e Lívio, pois uniam os pensamentos dos filósofos à história.
Sua primeira obra importante foi os Discorsi, considerações
sobre os dez primeiros livros da história romana de Tito Lívio.
A essa somou mais tarde o Opuscolo dei principati ( O Prín­
cipe) com o qual procurava, mas em vão, reconquistar o fa­
vor dos Médicis.
M a q u ia v e l e B o d in 189

A independência do Estado temporal é para ele natural


e não precisa de modo algum extraí-la das doutrinas de Mar­
cílio de Pádua. O que, além disso, o separa da Idade Média
é a perda de uma crença no além. Para ele, a religião é não
somente um assunto pessoal, mas muito friamente um meio
político, ao lado de outros, de garantir a sobrevivência do
Estado. Em lugar da Teligião cristã não se encontra nem ma­
terialismo puro nem (como ele próprio talvez acreditasse) um
retomo à verdadeira religião da natureza da antiguidade gre-
co-romana, com a solidariedade do homem na sucessão das
gerações e sua inserção no cosmos. O ideal da Renascença
era naturalmente a Antiguidade. Mas do retomo a esta não
resultava senão o isolamento do homem e a transfiguração
estética de sua beleza, de sua glória e de sua grandeza de
alma, em seu isolamento cá em baixo.
Maquiavel não elaborou nenhum sistema político bem
distinto. O que lhe interessava, em primeiro lugar, era a
observação lúcida da dependência mútua das paixões, das
instituições e das condições humanas, da sabedoria, do grau
de obstinação e de versatilidade, da ambição de poder, da
docilidade, da necessidade e segurança, etc. Com a análise
disso, almejava avaliar com certa verossimilhança o seu enca­
deamento e sua interação, através de uma espécie de cálculo
político. Procurava adquirir luzes com os exemplos (pouco
lhe importando que fossem fictícios ou históricos) da história
romana antiga e da história italiana que ele mes no vivera.
Essas luzes deviam fornecer uma série de proposições e de
regras gerais do comportamento humano. Queria, com essas
regras, avaliar o futuro partindo de situações dadas e cons­
tatadas, que precisava comparar com os exemplos do passado.
O objetivo era a aquisição, por meio de uma análise inteli­
gente dessas estruturas de evolução, de meios que permitis­
sem o domínio e a orientação da política.
Trata-se, em resumo, de uma antecipação perfeitamente
clara dos métodos da técnica nos tempos modernos. Certa­
mente Bacon não é o verdadeiro fundador das Ciências Na­
turais e da técnica, pois ele julgava a Matemática como su­
pérflua e como um ídolo. Em compensação, Galileu já em
seu tempo pusera a Matemática a serviço das Ciências Na­
turais, sendo bem sucedido. Entretanto, a fórmula de Bacon
sobre a técnica em geral é uma afirmação clássica, válida até
190 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

os dias de hoje. Em sua opinião, devemos, no conhecimento,


obedecer à natureza para poder dominá-la pelo mecanismo
de nossas experiências (pelo arranjo das condiçoes de par­
tida de forma a levarem por si mesmas aos resultados alme­
jados). Isso é sempre aplicado, na técnica, no domínio inor­
gânico, na construção de máquinas, etc. E é assim que Bacon
o entendia. Mas a definição que nos dá disso não passa de
uma transposição literária para a natureza inorgânica da aná­
lise que Maquiavel fez do comportamento humano natural,
da avaliação e da conduta dos homens em política. Técnica,
cálculo e domínio das situações políticas já existiam bem
antes da técnica própria das máquinas, e eram o modelo bem
antes de Galileu (1564-1642) ter tornado possível, pelo mé­
todo matemático, uma aplicação científica à natureza inorgâ­
nica. O pintor Leonardo da Vinci (1452-1519), contempo­
râneo de Maquiavel, foi também a esse respeito um pre­
cursor de Galile.u.
A análise das paixões humanas, de seus modos de com­
portamento e de suas motivações, com o propósito de ava­
liá-las e dirigi-las no plano político, exige certa concepção
do homem, a saber, que em seu comportamento para com
seus semelhantes ele permaneça o mesmo em todas as épocas,
que ele não aprenda senão poucas coisas pela experiência e
que em suma ele se repita sem cessar. Isso corresponde exa­
tamente, no domínio da Física, à hipótese (que não pode ser
provada cientificamente) da constância das leis naturais. A
analogia mostra que aqui o homem é concebido pura e sim­
plesmente como um ser natural que é possível medir e ava­
liar. Maquiavel disse a esse propósito: “ É fácil reconhecer,
examinando os acontecimentos [da história] presentes e pas­
sados, que em todas as cidades, entre todos os povos e sem­
pre, os mesmos desejos e os mesmos estados de espírito im­
peraram. De forma que aquele que estude cuidadosamente
o passado pode igualmente prever os acontecimentos que se
produzirão em cada Estado e utilizar os mesmos meios que
os empregados pelos antigos. Ou então, se não acha meios
já utilizados, pode, em caso de semelhança nos acontecimen­
tos, criar novos instrumentos” ( Discorsi, I, 39). Essa frase
não se tornou apenas o símbolo da compreensão clássica da
técnica em Bacon, já mencionada, como também o funda­
mento da concepção do homem e da história por David Hume
M a q u ia v e l e B o d in 191

e mesmo, de modo bem amplo, passando por Vilíredo Pareto,


da Sociologia modema, principalmente da ocidental. Ela
relega de princípio todos os acontecimentos para um deter­
minado plano bem delimitado onde os homens de todos os
tempos, impelidos por instintos naturais, se assemelham pro­
fundamente. Ela não seria válida nem para a Antropologia
medieval nem para a concepção alemã da história desde
Hegel.
Com que, então, se assemelha o homem, em Maquiavel,
enquanto ser social em seu isolamento cá em baixo, em opo­
sição à transparência medieval do além? Ele não é inteira­
mente bom nem inteiramente mau, nem santo nem diabo,
mas nada faz por sua própria vontade. Somente a miséria,
a fome e a injustiça tornam-no laborioso e impelem-no —
como já em Demócrito, os sofistas gregos e Platão — à asso­
ciação. Mas na sociedade ele logo busca o desentendimento,
quer abusar dos outros em vantagem própria, agora que só
pode subsistir com eles. Não quer conceder-lhes aquilo mes­
mo que deles espera. Por isso é preciso que a política en­
contre os meios, os caminhos e os objetivos que vençam essa
situação desesperadamente destruidora. Esses objetivos ainda
estão situados completamente aquém da moral. Maquiavel
(independentemente da propensão literária que tem paTa com
o paradoxo o escritor do Renascimento) não suprimiu nem
inverteu a moral, nem — como muito bem assinalou Meinecke
— denominou moral o imoralismo e misturou o bem e o mal
de maneira modema e relativista. Sua natureza era muitas
vezes rude e violenta, muitas vezes mesmo vulgar, jamais in­
sincera. Mas, na maioria dos casos, e em particular no campo
da política, não acreditava na eficácia da moral na vida.
Afirma ele de modo bem significativo: “ Existe uma di­
ferença tal entre o que a vida é e o que deveria ser, que
aquele que abandona o que se faz pelo que se deveria fazer
provoca antes sua queda do que sua sustentação. Um ser
humano que não desejasse sempre senão o bem deveria por
isso desmoronar-se sob a pressão de tantos seres sem bon­
dade. Por isso é preciso que um príncipe que deseje afir­
mar-se [poder-se-ia acrescentar: e que tem a responsabilidade
por tantos outros] esteja também à altura de não agir bem
e de fazer ou negligenciar o bem de acordo com as circuns­
tâncias” (O Príncipe, 15). O mesmo estilo de raciocínio —
na verdade com outra conclusão — encontrar-se-á mais tarde
192 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

na elaboração da teoria social de Hobbes. Incontestavel­


mente ela tem sua origem no abandono da confiança abso­
luta em Deus que é substituída pela fé na possibilidade de
instaurar boas condições de existência. Mas não se origina
na vontade de fazer o mal nem mesmo no ideal individualista
do tirano da sofística grêga, egoistamente baseado em obje­
tivos utilitários, fugindo às responsabilidades e visando a um
simples gozo da vida.
Qual é então o objetivo de Maquiavel no cálculo polí­
tico e no domínio da vida? Nem dominação pelos príncipes
nem república. Quanto a ele, servira inicialmente à Repú­
blica de Florença, depois oferecera seus préstimos aos Médi-
cis e chegara mesmo às vezes a pôr suas esperanças no con-
dottiere César Bórgia, cujas proezas tinha celebrado. Têm-se
censurado sem razão essas suas hesitações diante dos parti­
dos. Um dia ele respondeu aos seus detratores que não tinha
somente apontado aos príncipes os meios de se manterem no
poder e de oprimir os povos, mas que mostrara também aos
povos os meios para se libertarem de seus tiranos. Isso lhe
parecia irrelevante.
Ao contrário, considerava que, se o Estado não é forte,
os homens, lançando-se uns contra os outros, em suas paixões,
só fazem aniquilar-se mutuamente. A corrupção dos Esta­
dos não deteriora apenas os Estados, mas também os homens.
Mas seu alvo é: grandeza delVanimo e fortezza dei corpo, gran­
deza da alma e força e beleza do corpo. Certamente isso não é
um verdadeiro ideal antigo, como ele crê quando compara a
virtu de sua época com a virtus romana, e muito menos ainda
um ideal cristão. É, no entanto, o autêntico ideal da Renascen­
ça na Itália, com suficiente liberdade para permitir ao homem
libertar-se de si mesmo e de seus prazeres e para elevá-lo aci­
ma de si mesmo.1 Esse ideal não exige nenhuma guerra que
chegue até a autodestruição, mas aceita a guerra em sua forma
sde meio de crescimento da força humana. É somente sob esse
aspecto que o conjunto do mecanismo de avaliação e de domí­
nio dos instintos humanos e das situações sociais se toma com­
preensível em sua função de meios.

i Diz Shakespeare no Hamlet: "Ser verdadeiramente grande,


isso significa não se comover nunca, a não ser por um grande mo­
tivo" (cf. meu Shakespeare, 1953, pp. 142 e seguintes).
M a q u ia v e l e B o d in 193

Em resumo, só o Estado forte e poderoso pode impor aos


homens tarefas que valham a pena. Pode orientar suas pai­
xões por caminhos tais que colaborem e alcancem qualquer
coisa na Terra, e não aniquilam a si próprios. Unindo as
paixoe em vez de reprimi-las, o Estado aumenta a força e
a beleza humanas, ensina aos homens a dominar em comum
o destino (fortuna) e a conquistar a glória histórica. É assim
que em sua violência, sua injustiça e sua imoralidade, ele
favorece também a regeneração da vida do povo no sentido
dos objetivos da Renascença. As virtudes cristãs e pacíficas
da humildade, da obediência, da aceitação da injustiça nada
mais significam e devem ser repelidas.
Que é então o Estado de Maquiavel? Comunidade ou
sociedade? É, como sempre, ao mesmo tempo, uma coisa e
outra, mas a relação dessas duas noções é determinada de
maneira nova.
Os homens que a teoria social de Maquiavel integra no
Estado são indivíduos, pessoas isoladas. Não são senão seres
sensuais em busca de sua própria vantagem que só conhecem
mal. Trata-se de certo aspecto do homem que se encontra
em todos os tempos, mas não é quase nunca (inclusive nos
séculos XV e XVI) todo o homem. Maquiavel pode, com
razão, considerar em sua doutrina os homens como sendo
sempre semelhantes, pelo único motivo de que ele se atém
a esse aspecto natural do homem e deixa o resto na sombra.
No paganismo antigo as paixões achavam-se precisamente
inseridas na continuidade das gerações e religiosamente ro­
deadas pelo cosmos. O indivíduo aí já era por sua natureza
um membro desse cosmos. No cristianismo isso cessa, mas o
homem é, como ser natural, realmente transparente em face
do reino de Deus e do inferno do além. Num e noutro caso,
esse homem não se assemelha e não se parece mais com a ima­
gem que dele fazia Maquiavel. Na Renascença a fé cristã
certamente se encontrava em regressão. E^ quando se des-
trói de início a relação dos pagãos com o universo a favor
da crença no além e em seguida a crença no além desapa­
rece, só resta naturalmente o homem isolado em suas paixões
egoístas, naturais; e é isso que Maquiavel considera. Esse
homem isolado, com seus instintos, sempre existiu, mas se
apresenta geralmente mascarado e modificado.

13
194 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

Sem dúvida os homens da Renascença em sua maioria


estavam a caminho de tomaT-se isso. Mas ainda lhes faltava
muito para chegar ao mesmo ponto alcançado por Maquiavel
e os círculos que o diplomata e humanista tinha freqüentado.
O cristianismo continuava a existir e era, apesar de tudo, para
a maioria do povo, uma realidade moral infalível. Reafir­
mou-se mesmo bastante depois da Renascença graças à Re­
forma e à Contra-Reforma, tanto do lado protestante quanto
do lado católico. Somente as Luzes do século XVIII e, de­
pois do romantismo, o fim do século XIX e o começo do XX
voltam a atingir em relação à perda da fé um nível compará­
vel ao da Renascença. Maquiavel desenvolve assim sua dou­
trina social para uma época posterior. Ou, melhor ainda,
escreve-a apenas para uma camada bem reduzida, aquela que,
em sua época e nas épocas posteriores, é determinante para
o Estado temporal e sua organização. Eram então os prín­
cipes absolutos, seus cortesãos e conselheiros, e também cer­
tos círculos mais amplos das cidades italianas. Isso não con­
cerne absolutamente ao feudalismo e ao patriarcado, que con­
tinuavam existindo, particularmente no Norte. É importante
assinalar isso. Os oytros homens, o povo, não precisavam
de modo algum dessa nova integração política. Certamente,
eram, no campo temporal, governados pelo Estado, sem no
entanto serem por ele dominados, mas antes pela autorida­
de mais próxima ou pela religião. Os Estados e as Igrejas
serviam-se.sem dúvida de modo “ maquiavélico” da religião
como de um instrumento de poder, mas o povo acreditava
nessa religião.
Assim a idéia social de Maquiavel seria a integração' de
homens sem vínculo com a natureza e sem crença no além,
isolados em seus objetivos egoístas e utilitários e em suas
paixões, em uma comunidade totalitária de um Estado pura­
mente temporal com amplas tarefas de política interna e ex­
terna. Mas ela só pode existir na intenção de seu autor, su­
pondo que o conjunto do povo seja conforme em sua estru­
tura social à imagem que essa teoria faz do homem. Como
não é este o caso, essa doutrina ou permanece como uma
hipótese para tempos futuros em que suas condições sejam
realmente preenchidas, ou então torna-se um “ arcano” polí­
tico, como se dizia então, uma doutrina secreta de modo al­
gum concludente é de utilização duvidosa, para uso dos prín­
M a q u ia v e l e B o d in 195

cipes absolutos do futuro. Enquanto arcano da política, tor­


na-se então o fantasma do “ maquiavelismo” que encontrou
sempre adversários, em nome da moral e da humanidade:
Frederico o Grande, Fichte e inúmeros outros. O maquiavelis-
mo é tudo menos Maquiavel. É a idéia social de Maquiavel,
concebida unicamente como uma “ superioridade dos meios”
sofística, porque os verdadeiros objetivos de uma integração
do conjunto do povo ainda não eram aplicáveis no espírito
da Renascença e porque na verdade esse povo não precisava
ainda dessa integração.

Pelas razões acima expostas, a idéia social de outro ho­


mem não alcançou um sucesso maior (a importância e a
influência de Maquiavel, qualquer que seja a incompreensão
de que foi e ainda será alvo, ainda não foram superadas),
mas esteve contudo mais integrada em sua época. Trata-se
da idéia social do francês Jean Bodin que nasceu dois anos
depois da morte de Maquiavel (1529-1596). Era um jurista
e humanista, que estava longe de ter um raciocínio tão pe­
netrante quanto o de Maquiavel, mas que estava mais conso­
lidado na tradição política do grande Estado formado por
sua pátria. O que Maquiavel tentara fazer como diplomata e
como político (procurar para o novo Estado seu lugar no
mundo em sua qualidade de potência) Bodin realiza juridi­
camente na tradição nacional e política de seu país. As cate­
gorias do pensamento são aqui completamente diferentes,
bem menos profundas no plano humano, mas o objetivo não
é uma simples quimera, estando já presente na realidade*, o
novo Estado absolutista e seu direito. Em seu objetivo e
apesar de sua realidade nessa época, ele é muito mais super­
ficial do que a idéia social, de Maquiavel de um povo que
ainda não existia. O papel desempenhado pela Antiguidade
nesse novo pensamento político é tão eficaz em Bodin quanto
em Maquiavel.
O princípio jurídico fundamental do novo Estado, no
qual se baseia sua pretensão à força e ao direito, é a sobe­
rania. Bodin coloca-o no centro dos seis livros de sua Re­
pública. O império medieval foi no plano jurídico um en­
trelaçado de direitos e de privilégios criados por um contrato
vitalício mantido indissoluvelmente pelos vínculos de vassa­
lagem. Se se entendesse isso como uma construção de Es­
196 H is t ó r ia das I d é ias S o c ia is

tado puramente temporal, os direitos e os privilégios dos


membros independentes da comunidade, fixados de uma vez
por todas, freariam naturalmente o Estado em seu floresci­
mento, na solução de seus problemas internos e externos.
A noção de soberania inverte portanto a interpretação geral
do direito dos Estados. A soberania, na sua qualidade de
característica essencial do Estado, coloca desde o começo e
a cada momento de sua existência a preponderância do pró­
prio Estado em face de todas as leis e de todos os direitos.
Por isso o direito torna-se uma lei promulgada e ab-rogada
por uma instância política superior à lei e livre em face dela.
Em Bodin essa instância política é naturalmente o príncipe.
Bodin define sua soberania como o poder absoluto e perpétuo
de uma república (livre de toda lei particular). Ê neces­
sário que as leis dependam da boa-vontade do príncipe, como
o leme do piloto, pois esse próprio leme seria supérfluo se
não pudesse ser manobrado da forma exigida pelas condições
meteorológicas e a situação.
A origem de toda a legislação positiva no Estado dos tem­
pos modernos está no fato de que uma fonte das leis deve
existir antes das leis, promulgando-as e, conseqüentemente,
independente em faee delas, se o direito é concebido como
uma ordenação positivamente dada. A soberania é assim o
jus majestatis e, segundo a fórmula do direito ditatorial ro­
mano: legibus solutus, independente das leis, mantendo-se
acima das leis. Donde o termo “ absolutismo” . Como assina­
lamos, o Imperador Frederico II já o utilizara na Sicília no
século XIII; os reis da França e Bodin apenas retomam seu
caminho. Com essa fórmula criaram o Estado de funcioná­
rios, centralizado, dos tempos modernos, combatendo a 'in­
dependência de seus grandes vassalos, das classes, das cida­
des e outras corporações medievais, no interior, e a Igreja e
o Santo Império, no exterior, em proveito, no plano temporal
e no plano nacional, da força e da unidade do Estado. O
problema da França no século XVI, a divisão confessional,
também foi resolvida dessa forma, proibindo às minorias o
livre exercício do culto e expulsando toda uma parcela da
população, os huguenotes.
A pretensão mais profunda de Maquiavel de integrar o
povo de modo puramente temporal e através de grandes ta­
refas em uma verdadeira comunidade composta de indiví-
M a q u ia v e l e B o d in 197

duos antes isolados foi relegada a segundo piano, esfuman-


do-se diante da unidade administrativa da realeza. O mo­
vimento que leva ao Estado nacional (que já se acha muito
nitidamente baseado na idéia social de Maquiavel) aqui en­
contra seu ponto de partida. Mas para atingir esse objetivo
teria sido necessário que o Estado em seu todo fosse colo­
cado claramente e em sua continuidade acima da pessoa do
príncipe. De início, domina a frase atribuída a Luís XIV:
“ UÊtat c’est moi”, e a opinião de Leibniz: “ Paris prospera,
a província passa fome” . Tratava se de um Estado cujos
limites coincidiam com os da nação e da língua, isto é,
onde a prosperidade do’ Estado desempenhava um papel im­
portante mesmo em face da realeza absoluta. A miséria que
imperava na Alemanha dos pequenos Estados da época abso­
lutista, onde os príncipes chegavam até a vender como sol­
dados, para aventureiros estrangeiros, os filhos de “ seu” país,
como se fóra uma verdadeira propriedade pessoal, era ainda
maior.
Jaime I, rei da Inglaterra, dizia em 1609 em sua fala do
trono: “ Deus tem o poder de criar e de destruir, de dar a
vida e a morte. A alma e o corpo obedecem-lhe. Os Teis
possuem o mesmo poder. Eles criam e aniquilam seus súdi­
tos, dispõem da vida e da morte, decidem sobre todas as
coisas, eles mesmos não são responsáveis diante de ninguém
a não ser diante de Deus. Podem tratar seus súditos como
pedras de xadrez, aumentar ou baixar o povo como uma
moeda” . Era forçoso portanto à realeza européia pagar o
preço desses excessos nas revoluções inglesas, na Revolução
Francesa de 1789, na entrega do poder legislativo aos parla­
mentos. Mesmo a “ educação” dos príncipes pelos filósofos,
tendo em vista um absolutismo “ esclarecido” , não podia im­
pedir o processo geral. Em todo cáso, num país como a
Prússia, graças a um monarca ilustrado e responsável como
Frederico o Grande, a fidelidade ao rfei durou mais tempo
do que na França, por exemplo.
No entanto, a justa crítica que Jellineck endereça a Bo­
din, afirmando que ele misturou de modo inadmissível a so­
berania do Estado com a soberania no Estado, é superficial.
Os excessos do absolutismo talvez pudessem ter sido evitados
por meio de uma moralidade e uma responsabilidade mais
rigorosas dos monarcas, mas nunca apenas por uma doutrina
198 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

juridicamente mais exata da representação do Estado nos


príncipes. Para tornar o Estado independente em relação
ao Império e à Igreja e para dar à legislação positiva a prece­
dência sobre os privilégios do direito natural, era preciso que
os principados fossem declarados maiores no plano temporal.
Sua maioridade era sua soberania política. Mas, por isso,
somente um poder central forte podia, graças a sua unidade,
exercer a soberania. Por isso é que Bodin, com toda a razãb
nessa época (como também Hobbes mais tarde), recusou
todas as constituições “ mistas” nas quais a nobreza, as classes
e o povo teriam direito a voto. Se ele se digna ainda con­
servar aos súditos o direito de votar os impostos, isso nada
mais é do que um rudimento originário da Idade Média e
que logo será suprimido. Se é sempre fácil abusar de um
poder absoluto no mundo dos homens, é porque, no entanto,
em certas situações, isso foi historicamente indispensável. E
esse poder não foi, nos tempos modernos, nem teórica nem
praticamente transformado em um ideal sofístico de tirano
individualista e egoísta; o poder de direito divino, em cuja
tradição os príncipes representam o Estado, opunha-se a íssq.
Dessa forma, Bodin não mais fez príncipes absolutos,
isentos de tutela, puros déspotas e tiranos. Onde em Maquia­
vel o novo pensamento político de uma regeneração da vida
do povo se verifica por meio de grandes objetivos em polí­
tica externa e interna e onde o caminho se acha aberto para
o Estado nacional, em Bodin somente se encontra uma remi­
niscência cristã-humanista bastante débil do direito natural.
Recusou expressamente o maquiavelismo, isto é, a doutrina
segundo a qual o monarca a serviço do Estado deve pojder
até cometer injustiças. Entendia ele que o poder legislativo
e a poder autoritário absolutos dos príncipes deviam estar
subordinados à razão ao direito natural. Mas, para tanto,
baseou-se simplesmente na religião; na religião, é verdade,
enquanto assunto pessoal, que ocupa um lugar diminuto na
doutrina da soberania de direito divino dos Estados tempo­
rais isentos de toda tutela.
Já não havia mais instância eficaz que pudesse, como o
papa anteriormente, limitar realmente a soberania do Esta­
do e de seu representante. A religião não podia mais, no
Direito Público, ter precedência sobre os Estados; nessa épo­
ca de reivindicações papais feitas ao poder temporal, isso
M a q u ia v e l e B o d in 199

teria significado a ingerênca de uma potência estrangeira e


destruído a soberania dos Estados. Os jesuítas procuraram,
então, através de uma interpretação pertinente da situação,
alcançar seu objetivo por meio de caminhos privados, en­
quanto confessores pessoais de monarcas temporais absolutos,
mas católicos. Assim o retomo ao direito natural permanece,
pelo menos no próprio Bodin, sendo uma inconseqiiência que
não poderá realmente ser inserida no sistema senão mais tarde
com Grotius e Hobbes. A comparação entre Maquiavel e
Bodin não será favorável ao último.
Koselleck recentemente chamou a atenção para o fato
de que o mérito particular do absolutismo foi ter finalmente
desarticulado e posto fim à cruel guerra civil que travavam
as confissões cristãs. Isso é historicamente indiscutível. Mas,
a não ser de forma muito limitada, quando defende essa tese*
pode ele apoiar-se nas idéias sociais dos filósofos. Menos
que todas as outras, nas de Hobbes, para quem a relação
Igreja-Estado não passa de um acessório e o império de paz
cristã é na realidade considerado ao mesmo tempo cristão e
polítiço. Mais que todas as outras, talvez, nas de Bodin, que
experimentara diretamente as tensões confessionais de sua
pátria. Mas Bodin inclinava-se a atribuir ao príncipe (sem
substituir, como Maquiavel, o cristianismo por um ideal anti-
cristão puramente temporal) o poder absoluto que era poli­
ticamente neutro e impunha assim a paz, embora pessoalmen­
te fosse e continuasse sendo cristão.
CAPÍTULO XVII

Althusen e Grotius

. A lBsolutamente diferente é o pensamento social, datando


da mesma época, de Johann Althusen ou Althusius (1557-
-1638), na Alemanha. Também ele é de origem jurídica e
não política como Maquiavel. Mas nessa época a idéia do
império medieval ainda era nesse país mais ativa do que na
França, não tendo o nacionalismo e o absolutismo dos Es­
tados (dos príncipes reinantes) deitado raízes tão profun­
das quanto na França. Isso dá ao pensamento de Althusen,
pelo menos em parte, uma coloração um tanto romântica e
anacrônica. Durante toda essa época, seu nome não tem
nenhuma importância, sendo mais tarde esquecido. Foi so­
mente em 1880 que ele foi redescoberto por Gierke, o his­
toriador do direito das comunidades medievais. Por outro
lado, Althusen pôde, graças àquela tradição longínqua de
suas doutrinas, antecipar-se, em sua concepção da soberania
do povo, sobre certas coisas que mais tarde foram renovadas,
ainda que com um espírito mais moderno, pelo maior filó­
sofo social dos tempos modernos, Jean-Jacques Rousseau.
Althusen tenta uma formação jurídica do Estado segundo
a antiga idéia do contrato. Mas não concebe esse Estado à
maneira dos sofistas ou de Epicuro como uma simples socie­
dade. Nem tampouco no sentido feudal da Idade Média. A
comunidade também não é para ele “ anterior” ao indivíduo no
sentido de Aristóteles e da polis grega. O contrato deve antes
fazer de indivíduos isolados em pensamento uma comunidade
integrada. Óu seja: não se trata naturalmente de uma idéia
histórica, que seria neste caso tão insensata e pueril como a
A lth usen e G r o t iu s 201

polêmica dos positivistas do sécula XIX a ésse respeito. A


comunidade existente, ao contrário, não deve ser considerada
senão concebida como baseada em seu direito por um con­
trato fictício, devido a que o direito da comunidade pode ser
definido de modo preciso pelo conteúdo desse contrato. Ê
sempre assim que, do século XVI ao fim do século' XVIII, é
compreendida a idéia de contrato.
Nesse sentido, Althusen chega até a distinguir dois con­
tratos: o contrato de sociedade, ou, antes, o contrato de co­
munidade, em geral, e o contrato de dominação e submissão,
em particular. Sua superioridade em relação ao absolutismo
está precisamente nessa diferenciação e na predominância
daquele designado em primeiro lugar.
O contrato de comunidade, que goza de prioridade, torna
os homens, representados ficticiamente como isolados, com­
panheiros de vida (symbiotici). Como tais, não são força­
dos a não ser a um auxílio recíproco e a uma repartição do
trabalho. A comunidade estende-se aos objetos, aos serviços
e aos direitos. É regulada, em primeiro lugar, pelas leis fun­
damentais da associação comunitária ( leges consociationis ou
communicationis). Devido porém a que em toda comunidade
uma hierarquia é necessária a fim de que subsista como uni­
dade, existe, ao lado do contrato de comunidade e depois
dele, o contrato de dominação e d e ,submissão. Em virtude
de seu conteúdo, a obediência e o reconhecimento da domi­
nação são, no interior da comunidade, a compensação da pro­
teção concertada. Não se é portanto compelido a oferecer
tal obediência a menos que seja compensação de uma pro­
teção. O contrato de dominação e de submissão é a origem
das leis administrativas e governamentais ( leges directionis et
gubernationis). A causa de toda formação de comunidade
entre os homens ( causa efficiens) é em suma a prosperidade
de todos os participantes. Essa prosperidade é o objetivo
final e não deve de modo algum ser perdida de vista.
Ademais, segundo Althusen, ambos os contratos carecem,
para que sejam válidos, da aprovação expressa e permanente
de todos, um consènsus. Ao tomar sua fórmula legibus solutus
do direito ditatorial romano, Bodin tornou-a contudo abso­
luta, negligenciando o fato de que ela era na origem um di­
reito de exceção que correspondia a uma época conturbada.
Esse “ erro'’ é aqui corrigido em proveito da idéia romana
202 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

precedente, segundo a qual o ditador era, no final das con­


tas, responsável perante a livre assembléia do povo. Na subor­
dinação do contrato de dominação e de submissão ao contrato
de comunidade, o monarca torna-se o agente de negócios do
povo de mais elevada posiçãò, nomeando-o e executando-o.
Não tem majestade. Não pode existir aí, ao lado do jus ma-
jestatis inalienável do povo, majestade autônoma do monarca.
Os diferentes partidos da Antiguidade (monarquia, aristo­
cracia, democracia) não representavam portanto para Al­
thusen (síndico da cidade livre de Emden) uma diferença
nas formas do Estado, mas nas formas de governo do ma­
gistrado supremo (que um só tivesse direito a voto, ou vá­
rios ou todos). Ela também não é uma diferença na estru­
tura da soberania do Estado. Disso resulta a faculdade de o
povo destituir qualquer magistrado, até o príncipe, e a obri­
gação assumida com o magistrado de prestar contas sobre o
emprego dado ao poder a serviço e pela prosperidade de
todos.
Essa doutrina da soberania do povo, que levou Althusen
a festejar entusiasticamente, na época do absolutismo, a liber­
tação dos Países Baixos do jugo espanhol, foi repetida em
Rousseau e na Revolução Francesa de 1789. Mas em Al­
thusen, o povo é colocado (como o príncipe em Bodin) sob
a tutela do direito natural divino e humano. Ele sabe que
o povo também pode tomar-se um tirano (“ um tirano de
muitas cabeças” , como dizia Aristóteles). Nele, exatamente
da mesma forma que em Bodin, trata-se de um elemento
que tem suas raízes na Idade Média, só que ainda mais forte­
mente baseado no direito do império do que no direito pú­
blico. É somente em Rousseau que se encontra nesse lugar
a noção moderna da moralidade da vontade gerah Mais
adiante trataremos disso.

O holandês Huig de Groot, ou em latim Grotius (1583-


-1645), tentou com bastante êxito limitar o absolutismo. Era
um humanista erudito e jurista. Em sua obra célebre, De
jure belli et pacis, segundo o exemplo do italiano Gentili e
de autores espanhóis como F. de Vittoria, ele transformou o
Direito Natural medieval em Direito Internacional. É consi­
derado o fundador dessa disciplina no Direito moderno. A
esse respeito é importante saber que ele não era católico
A lth usen e G r o t iu s 203

nem luterano nem calvinista, mas que pertencia à pequena


seita dos arminianos que deu prova de conciliação na luta
confessional.
O princípio de Grotius é a noção moderna da razão tal
como foi formulada por Descartes e defendida por Kant,
Fichte e em último lugar por Hegel. O direito natural do
homem não é mais para ele somente a ordem religiosa no
sentido da revelação. Também não é o privilégio puramente
temporal e ateu brotando da necessidade, que imaginava o
século das Luzes. Deus é antes atestado tanto na razão hu­
mana criada por ele, trazendo em si os traços dele, quanto
na revelação. E mesmo que tivesse de ocorrer um conflito
aí, somente a razão pode provar a revelação, porque, se se
quisessem inverter os fatores, a razão tornar-se-ia dependente
de uma interpretação desarrazoada da revelação, isto é, de
uma interpretação humana e arbitrária, de uma interpretação
somente suposta.
A legislação positiva e a organização do poder dos Es­
tados não podem servir simplesmente de autoridade. Não
podem senão Tealizar à sua maneira, mais ou menos perfei­
tamente, o direito natural do homem enquanto possibilidade
que Deus lhe dá. Trata-se de um pensamento que Grotius
retoma ao estoicismo. Em lugar do universo divino e da
parte divina da almá em sua relação recíproca, só se encontram
agora a criação do mundo e a razão do homem criada por
Deus como nas Ciências Naturais (Física e Matemática) em
Kepler ou na harmonia preestabelecida dç Leibniz. Somente
com isso é que o direito natural, nos tempos modernos, além
da simples reminiscência da Idade Média, adquire em sua
racionalidade religiosa o vigor e a independência que ainda
lhe faltavam em Bodin e em Althusen. Somente a partir
dessa posição é possível opor-se com êxito ao maquiavelismo,
ao demônio do poder temporal e político, comprometido
somente em face das idéias estéticas e terrenas de força, de
beleza e de grandeza da alma humana.
Os pensamentos de Grotius baseados no direito natural
tomam-se então fundamentais para o caso limite da associa­
ção humana em geral: a guerra entre Estados. Se eles devem
dar prova de seu sentido e de sua significação prática é aqui
então que têm de mostrá-los.
204 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

A situação histórica dos tempos modernos é a seguinte:


os Estados no interior do mundo europeu e cristão tornaram­
-se independentes devido ao enfraquecimento do Império
que os abarcava, devido também a que os imperadores da
Casa dos Habsburgos deviam limitar-se a seus domínios pri­
vados. Antes de tudo também eles tinham sido libertados,
no plano exterior, pela doutrina da soberania de Bodin e, no
plano econômico, pelo mercantilismo. Mas essa liberdade
significava, para ser exato, que as hostilidades que até então
existiam entre grandes vassalos, garantindo no interior do
Império a execução do direito, tornavam-se verdadeiras guer­
ras em virtude da destruição do mais fraco e da extensão do
poderio do mais forte (extensão limitada, no máximo, pelo
estado da^técnica guerreira). A mais alta instância da arbi­
tragem pela paz, o Império bicéfa!o, imperador e papa, não
existia mais. A guerra dos homens entre si (a guerra de
todos contra todos de Hobbes), detida no interior dos Es­
tados pelo absolutismo que organizava o poder e a legislação
e orientada para caminhos pacíficos, imperava manifestamente
ou de forma latente (garantindo a diplomacia do equilíbrio)
entre os próprios Estados enquanto personalidades ambiciosas.
Entretanto, o conjunto do mundo ocidental representa
ainda certa unidade devido a seus costumes, suas crenças, sua
arte, sua ciência, sua economia e sua maneira de viver. E
mesmo mais do que entre os gregos antes de Alexandre.
Somente em seus limites ou nos mares longínquos, onde as
guerras dos Estados europeus revestiam-se de uma crueldade
diferente, é que começava a terra bárbara, o mundo não-
-cristão, o dos ímpios. Mas também o mundo cristão acha­
va-se agora ameaçado em sua coesão pela divisão das con­
fissões (as guerras de religião já são mais desumanas do
que as simples guerras de interesses dinásticos ou a guerra
travada para vingar uma honra conspurcada). Por isso é ca­
racterístico ver Grotius procurar restaurar a unidade do mun­
do cristão como fundamento da paz. E isso (porque ele não
era católico) não como na Idade Média na idéia do Cristo-
-Rei realizada na Império, munido dos meios do poder, mas
como uma unidade puramente espiritual e cultural, sob a
autoridade do direito natural baseado no cristianismo e na
razão.
No quadro do direito natural, a guerra permanece, como
a controvérsia, uma forma de realização jurídica. Mas, para
A lth usen e G r o t iu s 205

isso, no plano prático e racional é preciso que mesmo em


seu curso o direito não desapareça. E isso é possível por
dois motivos.
Primeiro. A finalidade da guerra não deve ser o ani­
quilamento do inimigo enquanto Estado individual indepen­
dente, mas somente uma limitação de suas usurpações. Mes­
mo durante a guerra, não se deve perder de vista, um instante
sequer, o objetivo que é a paz futura e a coexistência leal
dos Estados. A paz, enquanto estado jurídico válido mesmo
entre os Estados, continua assim colocada acima da guerra
e de uma desenfreada vontade de vitória.
Segundo. O ódio político deve tornar-se no mundo cris­
tão tão pouco implacável quanto o ódio entre irmãos. Todas
as regras humanitárias da guerra: respeito da pessoa e da
propriedade dos civis do campo contrário, das mulheres e
das crianças, tratamento humano dos prisioneiros de guerra
e sua libertação logo após a suspensão das hostilidades, trata­
mento dos feridos, respeito aos mortos, referem-se a essa
concepção. Foram amplamente observadas no período que
vai depois da Guerra dos Trinta Anos até antes da Segunda
Guerra Mundial. Somente quando as guerras se transformam
em ações de extermínio ideológicas ou “ cruzadas” é que o
direito cede lugar na guerra a uma crueldade impiedosa.
Isso certamente tem uma razão. Se mesmo na guerra o
direito e a humanidade, o reconhecimento do inimigo e a
idéia de uma reconciliação, numa palavra, a paz deve ainda
ter um sentido, é preciso que um elemento de verdadeira
comunidade, no sentido de nossa definição, me ligue a esse
inimigo: para Grotius isso era o direito natural enquanto
unidade espiritual. Estava racionalmente baseado na frater­
nidade cristã universal, no amor ao próximo. A humanidade
coincidia na Europa com a religiosidade cristã sempre viva
e aprofundada ainda mais pela Reforma e a Contra-Reforma.
Mais tarde, no século das Luzes, esse pensamento foi secula-
rizado e estendido a todos os homens. É verdade que êle
foi muitas vezes solapado e esvaziado de seu conteúdo, ba­
seado na religião e na razão. Por isso ocorre que a partir
do século XIX, e de modo apenas perceptível no interior dos
Estados nacionais com seus conflitos de interesses de caráter
relativamente inofensivo, constituem-sé novas frentes, um novo
ódio entre classes, partidos e grupos ideológicos. Assim, a
206 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

partir de 1914, em meio de uma opinião pública mundial


que fazia retumbar seus discursos sobre a humanidade, veri­
fica-se, no momento mesmo em que se tratava de cumprir
na guerra o que os discursos prometiam, que já há muito
tempo uma crueldade sem paralelo substituíra a humanidade
nos sentimentos dos homens, e que só fez crescer até os nossos
dias.
Nesse aspecto deveria hoje lembrar-se uma frase de
Nietzsche bastante desacreditada, embora esteja escrita se­
gundo o espírito de Grotius: “ Dizeis que é a boa causa que
santifica mesmo a guerra? E eu vos digo: é a boa guerra
[isto é, a guerra honesta, cavalheiresca, travada com huma­
nidade e tendo em conta a paz e o reconhecimento do adver­
sário] que santifica toda causa” (Zaratustra, I, 10). Nenhuma
causa pode ser boa a ponto de justificar não importa qual
crueldade. E se o fosse, tomar-se-iá em todo caso má* de­
vido à sua desumanidade.
CAPÍTULO XVIII

Hobbes e Spinoza

T homas H obbes (1588-1679), um pouco mais jovem que


Grotius, é o filósofo que reuniu os princípios e as concepções
da teoria social que tivera origem nos tempos modernos (o
sentido da vida social, da soberania e da independência dos
Estados bem como de sua limitação) desenvolvendo-os em
um grande sistema. Sob esse aspecto duas coisas são impor­
tantes: a estrutura lógica e o método de representação sobre
o modelo da Matemática e das Ciências Naturais da época,
sobretudo o modelo de Galileu, e a situação histórica da
guerra civil na Inglaterra na qual Hobbes vivia e que dá
sobretudo aos seus pensamentos seu caráter de necessidade
concreta.
Hobbes nasceu nos arredores de Malmesbury; era filho
de um vigário do interior sem nenhuma cultura. Fez seus
estudos em Oxford onde se conservavam desde a Idade Mé­
dia restos da tradição nominalista de Occam. Após isso
torna-se preceptor do Conde de Devonshire. Depois de
curta atividade intermediária como secretário de Bacon, com
cujo empirismo não concordava, voltou para junto do Conde
de Devonshire, realizando em companhia de seu pupilo gran­
des viagens pelo continente onde travou conhecimento com
Galileu e o círculo que gravitava em tomo de Descartes.
Mais tarde, quando seu aluno cresceu, permaneceu a seu
serviço como secretário particular. Nesse emprego familiari­
zou-se com a tradição monarquista da alta nobreza. No espí­
rito dessa tradição suas simpatias políticas e históricas toma­
ram certa direção que não era das mais felizes. Se tivesse
208 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

sido, como seu contemporâneo Milton, educado na tradição


puritana, a história teria talvez tomado outra direçáo, em
vista da energia de seu pensamento. Talvez então o Estado
acumulador de propriedade de Locke não tivesse podido in­
filtrar-se tão facilmente no lugar da idéia de liberdade.
Em sua juventude traduziu também para o inglês a his­
tória da Guerra do Peloponeso, de Tucídides. Pelo fato de
ter também se ocupado em boa hora com a Geometria e a
Mecânica e de admirar o novo método de Galileu, esses es­
tudos aliavam-se muito naturalmente para a grande preo­
cupação de sua vida: reconhecer a essência do Estado e da
sociedade humana de modo tão exato no plano lógico e tão
certo no plano do método quanto Galileu o fizera para os
problemas de Física.
A própria vida propiciou-lhe a matéria que lhe permite
colocar essa questão. Na época, a monarquia inglesa era
fraca. Carlos I tinha tendência muito absolutista, mas não
podia, no jogo dos grandes, dos partidos e das confissões, im­
pô-las contra a independência do Parlamento. O país estava
dilacerado e a arbitrariedade do monarca e de seu ministro
Strafford tornava ainda mais acerbas as oposiçoes interiores.
Isso levou à revolução de 1640 e à execução do rei. Por fim
Cromwell saiu vitorioso sobre todas as facções parlamentares
que não chegavam a se entender.
Nesse combate, Hobbes mantém-se ao lado da monar­
quia. Isso não era, na verdade, por causa de uma fidelidade
cega ao rei. Já em 1640, e!e procurara estabelecer em um
pequeno trabalho que o poder do rei era indivisível e que
não devia ser limitado e controlado pelo Parlamento. So­
mente a soberania absoluta podia garantir a paz no país.
Destarte, quando o rei não pôde mais proteger seus fiéis,
Hobbes fugiu da Revolução e seguiu para Paris. Durante
onze anos viveu nessa cidade, como emigrado, servindo com
intervalos como professor de Geometria ao pretendente do
trono, o futuro Carlos II. O que lhe importava antes de
tudo era a paz, o poder forte, e que terminassem os desacordos
e as divisões. Por isso voltou ele à Inglaterra quando Crom­
well consolidou seu regime revolucionário e instaurou com
uma nova autoridade a paz interior, melhor do que tivera con­
seguido até então a monarquia.
H obbes e Sp in o z a 209

Esses anos parisienses são principalmente consagrados


à elaboração tranqüila de sua obra filosófica. Trata-se de
um sistema em três partes que se sobrepõem: De corpore
(do corpo, ou melhor, do objeto em geral enquanto é racio­
nalmente definível), De homine (do homem), De Cive (do
cidadão). O fato de que este último é o objetivo do sistema
já o prova o ter sido escrito e publicado em primeiro lugar.
A idéia social aí desenvolvida é uma vez mais apresentada
numa obra da velhice sob o título de Leviatã.
Hobbes viveu ainda no fim de sua vida a restauração da
monarquia e a volta de Carlos II, seu antigo discípulo. Nin­
guém melhor do que ele conhecia a inaptidão do mesmo
paTa o trono. No fundo, Hobbes foi um realista sem rei.
Recebeu então uma pequena pensão da corte, mas se retirou
para a propriedade do Conde de Devonshire, casa à qual
permanecera ligado toda a sua vida. Aí faleceu com a idade
de 91 anos.
A idéia social de Hobbes decorre da situação em que se
encontrava o país: a guerra civil. Havia então um poder
fraco, arbitrário e caprichoso, todos disputando contra todos
com uma aparência de direito. Nenhuma paz é possível, o
país vê-se ameaçado de fora, enquanto no interior os homens
vivem sem segurança nem proteção. A grande experiência
desse estado de oposições latentes antes da revolução e o
desencadeamento sangrento da própria revolução, o sofrimen­
to geral resultante das oposições e da luta formam indiscuti­
velmente o pano de fundo de sua idéia social: o estado na­
tural do homem interpretado como a guerra de todos contra
todos ( bellum omnium contra omnes). A idéia social que
ele desenvolve deve pôr um paradeiro a esse estado, com
uma paz instaurada metodicamente e com a coerção da ra­
zão. A paz é o objetivo declarado dessa doutrina, precisa­
mente porque não existe. E não somente porque não existe
na época, mas porque em geral não é evidente ou porque,
entre os homens, está sempre ameaçada.
A isso acrescenta-se ainda o que já era questão em Ma­
quiavel. Se o “ estado natural” dos homens é a guerra de
todos contra todos, isso supõe que todos são por natureza
isolados, que são indivíduos em toda a acepção do termo e
que não são na origem grupos sociais (famílias, tribos, ban­
dos, descendências, povos). Essa hipótese é errônea: o ho­
210 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

mem não cai do céu isoladamente para depois associar-se


com seus semelhantes. Ele já é de nascimento membro de
um grupo, de uma família, de uma raça, de um povo. Sob
esse aspecto, portanto, a teoria de Hobbes foi sempre contes­
tada, lembrando-se Aristóteles em quem o homem é precisa­
mente chamado de “ ser social por natureza” , onde família e
Estado devem ser “ anteriores” ao indivíduo. Já vimos que
“ anterior” não é entendido no sentido cronológico e que “ por
natureza’’ quer dizer algo inteiramente diverso de “por si
próprio” , “ sem esforço” , “ no começo” (sentido que se lhe
atribui muitas vezes erradamente).
Não cabe dúvida de que o vínculo do homem com sua
espécie era mais acessível a Aristóteles e a toda a Antigui­
dade do que a Hobbes. Mas isso decorre da diferença das
situações históricas: vimos como os vínculos tanto naturais
quanto políticos do homem no fim da Antiguidade se tinham
reduzido em uma sociedade mais ou menos atomizada de
indivíduos, só vivendo em conjunto à base do proveito pes­
soal. O cristianismo também não conhecia no fundo verda­
deira comunidade senão no além, cultivando aqui em baixo
um novo individualismo, decerto transparente, mas preocupa­
do essencialmente com a salvação da alma, e uma caridade
privada. No Santo Império da Idade Média, isso foi posto
de lado em proveito de novos vínculos de comunidade ver­
dadeira nesse mundo. Mas, na época de Hobbes, fazia 300
anos que esse império estava em vias de desagregação. Mes­
mo a fé cristã era então posta em dúvida e se dividia em
confissões que se combatiam entre si. Assim é que já a
Renascença foi para Maquiavel (talvez mais na Itália do que
na Inglaterra) uma era de individualismo. São os indivíduos,
os seres isolados, entregues a si mesmos, que devem pro­
curar novos objetivos. É óbvio que, no conjunto, a desagre­
gação da estrutura social residia, na época, nos Estados, onde
as poderosas linhagens de nobres se digladiavam, nas classes,
cidades, corporações, partidos, confissões, de uma maneira
geral no domínio político. Não se achava ainda, como atual­
mente, nas famílias, nem mesmo na hierarquia natural: no­
breza, cidadão, camponês, servo. Do ponto de vista dessa
relação, a família e a hierarquia estavam ainda quase tão
intactas quanto na Idade Média. Ainda não havia terceiro
ou quarto estado almejando o poder, pelo menos num sen­
tido tão pronunciado quanto mais tarde na Revolução Fran­
H obbes e S p in o z a 211

cesa. Subsistia a mesma situação que aquela já mencionada


por Maquiavel: a idéia social de Hobbes enquanto reintegra­
ção consciente do conjunto da sociedade humana a partir da
base compreende-se em uma sociedade e para uma deca­
dência tão radicais quanto a teoria as imagina na concepção
da “ guerra de todos contra todos” , que de fato ainda não
era real. Por não ser historicamente real, tudo isso não é
contudo menos ameaçador. E este era o verdadeiro sentido
dessa idéia social.
Na guerra civil, independentemente da profundeza da
ruptura em suas fases sucessivas, o que sapa todos os vínculos
humanos de sociedade ou de comunidade manifesta-se então
abertamente: a luta è a destruição total que pia implica. A
guerra de todos não é apenas uma visão pessimista do homem,
como já dissera Ovídio: homo homini luptis (o homem é um
lobo do homem). Hobbes certamente era pessimista, donde
tal conclusão, mas isso não esgota de modo algum a verdade
geral, isto é, que a paz, a comunidade e a sociedade estão
sempre ameaçadas e que mesmo os vínculos naturais, como
os da família, raça, povo, não podem ser mantidos e garan­
tidos a não ser com a condição de ter sempre presente no
espírito o móvel profundo do conflito e de triunfar politica­
mente sempre de novo.
Talvez por i$so é que Hobbes, ao encontro da experiên­
cia natural de uma segurança no seio da família ou do povo,
coloca o ser individual, isolado, como elemento de sua cons­
trução Tacional. A vida desse ser é feita de necessidades
constantes; as necessidades naturais são a alimentação, o ves­
tuário, o abrigo, o parceiro sexual, etc. É assim indiferente
que essas necessidades sejam satisfeitas de modo simples (o
“ Estado dos porcos” de Platão) ou com maior ou menor
luxo. Se a simples satisfação é obtida facilmente e sem sa­
crifício, as exigências aumentam ainda mais. Em facé do ani­
mal que se contenta sempre com coisas determinadas o ho­
mem é feito de tal forma que não somente se preocupa com
o que é preciso de imediato como teirj, necessidade ao mesmo
tempo de garantir a satisfação de suas necessidades futuras,
que ele já procura prever. Hobbes diz que: “já a fome fu­
tura [não apenas a presente] lhe dá fome” .
Mas se o homem é um ser que não pode viver a não
ser na satisfação de suas necessidades, possui um direito na­
212 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

tural àquilo que satisfaz suas necessidades. Isso são os bens


do mundo, tudo o que é útil à sua existência. Por natureza,
cada homem tem direito* aos bens do mundo, mas se cada
homem tem esse direito natural com relação aos bens do
mundo, entra então em conflito com todo aquele que tenha
esse mesmo direito e essas mesmas necessidades. A conse­
qüência do direito natural aos bens do mundo é assim a luta
dos homens pela aquisição desses bens. Visto que essa luta
tem necessariamente sua origem na natureza dos homens,
não sendo nem arbitrária nem um acaso, Hobbes chama-a
de “ estado natural” . Como quem tem as melhores oportu­
nidades nessa luta é quem ataca em primeiro lugar, o homem
torna-se, no estado natural, um lobo do homem.
A guerra de todos contra todos não é somente o começo
da história (como tem sido muitas vezes mal compreendida).
É muito mais, enquanto estado natural de todos os tempos,
tão atual quanto no começo. É o móvel permanente de toda
a história. Se não importa em qual época ou em qual lugar
a guerra de todos contra todos não impera, isso significa
que de algum modo ela é superada pelas condições de paz.
O que não quer dizer contudo que tenha cessado a indigên­
cia geral da natureza humana, e com ela o perigo real e atual
de ver essa guerra irromper de novo, se não for impedida
por medidas artificiais. A luta local de indivíduos isolados
ou de grupos, ou as guerras civis, como a que Hobbes pre­
senciou, não são outra coisa senão o estado natural entre os
homens, que ameaça todo estado de paz. Hobbes não .con­
cebe essa noção através de um passado interpretado de ma­
neira errônea e utópica, mas com a profundeza real de nosso
presente, de nosso presente para todos.
Mas eis o que é importante. A luta tem lu gar para a
posse e o usufruto dos bens do mundo, mas o objetivo dessa
luta — a segurança e a certeza da satisfação das necessidades,
a proteção diante do perigo incessantemente am eaçador de
ver os bens caberem a outros e não a m im — ninguém , para
d ize r a verdade, jam ais o alcançou. Isso é o que sente toda
vez o in divíd uo nessa luta, a menos que não o compreenda
de um a vez por todas pela Tazão. Só então Tefletirá sobre
os meios de rem ediar fundam entalm ente essa luta inútil, de
triun far e alcançar a paz. D o mesmo m odo que a guerra de
todos contra todos é a conseqüência necessária da indigência
H obbes e S p in o z a 213

natural dos homens, o desejo de paz, na qual eu possa atin­


gir o alvo de minhas aspirações, pacificamente, sem temer
ataques alheios, é a conseqüência necessária da guerra de
todos contra todos.
Como então posso conquistar a paz sem renunciar àquilo
de que preciso para minha existência, aos bens do mundo?
Unicamente com uma distribuição eqüitativa e acatada por
todos dessas riquezas. É nesse exame da maneira pela qual
as riquezas podem ser distribuídas sem disputas, de forma
que cada indivíduo possa satisfazer suas necessidades naturais
e assim alcançar a segurança, que consiste a nova idéia social
de Hobbes.
A agressão contra os outros não é no estado natural um
objetivo, mas apenas um meio. Com esse meio o homem
procura sustentar seu direito aos bens do mundo. Não se
pode renunciar aos bens, mas se pode muito bem renunciar
à agressão enquanto melhor meio de obter a satisfação de
suas necessidades. Na verdade, não de modo imediato, mas
somente com a condição de que todos os outros renunciem a
esse direito à agressão que lhes pertence no estado natural.
Por isso é que precisamos representar essa renúncia como
sendo ratificada sob a forma de um contrato de cada um
com cada um. Já vimos em Althusen a idéia de contrato em
sua significação lógica. Hobbes concebe o contrato de tàl
forma que não somente se renuncia a qualquer emprego da
força como também cada indivíduo deve em sua renúncia
delegar seu direito ao emprego da força a outra pessoa de­
terminada. Essa outra pessoa é o soberano, que reúne assim
em suas mãos a força de todos os homens sob a forma de
sua assistência em suas ações. E isso naturalmente com o
único propósito de garantir a todos a repartição pacífica dos
bens, de sorte que não seja ameaçada pelas rivalidades. Cada
um deve usufruir seu bem em segurança e satisfazer assim
súas necessidades. O soberano é o poder supremo do Estado,
implanta a paz com o poder conjugado de todos e garante
a repartição dos bens para todos. O poder do Estado, su­
perior a cada indivíduo, não é assim arbítrio nem tirania.
Deve ser antes considerado como resultando unicamente da
delegação racional e voluntária dos poderes individuais dos
cidadãos com o objetivo de instaurar artificialmente a paz.
É nisso que consiste aqui o sentido da idéia de contrato. A
214 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

coerência da noção é simples, mas se impõe devido ao cará­


ter necessitado da natureza humana e ao desejo ardente de
paz resultante.
Duas perguntas devem agora ser feitas: de que forma
Hobbes imagina essa distribuição dos bens, e qual a idéia
precisa que êle tem do poder do Estado?
Quantitativamente, a distribuição das riquezas (isto é,
conforme uma expressão moderna, do “ produto social” ) pode
ser feita de tal forma que cada um receba exatamente o
mesmo tanto que o outro, ou que, em virtude de uma hierar­
quia, um receba mais do que o outro. Essa hierarquia pode
ser imaginada segundo diferentes pontos de vista: o nasci­
mento (de uma categoria elevada ou inferior), o trabalho
produzido (para mais ou para menos), a dedicação (gran­
de ou medíocre), o caráter (moralmente bom ou ruim), a
coragem (existente ou não) ou outros critérios semelhantes.
Essa repartição só pode referir-se ao consumo, quer dizer,
à satisfação cotidiana das necessidades, às rendas correntes,
ou então à posse permanente (propriedade) e aqui de novo
à propriedade do indivíduo (alienável ou inalienável) ou da
descendência (transmissível ou não por herança). Quanto
à forma pode igualmente ser muito diferente: por exemplo
(expresso de forma moderna) através de uma economia de
mercado livre e uma concorrência atuando sem entraves na
oferta e na procura, ou então através de uma planificação
dirigida pelo Estado e uma distribuição dos bens a cada
consumidor, de alto a baixo na escala. Hoje nos parece que
é precisamente aí que reside o problema da justiça social.
Contudo, não era esse o caso de Hobbes. Para ele, a paz,
enquanto condição peremptória de uma distribuição, não im­
porta seu conteúdo nem sua forma, contanto que se faça de
modo regular e pacífico, é mais importante que a maneira
ou o esquema dessa distribuição. E isso justamente porque
ele sabe que na ocasião do esquema e do método da distri­
buição dos bens a luta nunca deixa de desencadear-se e que
essa luta impossibilita todo usufruto pacífico desses bens.
Assim põe ele anteriormente entre parênteses toda dis­
cussão sobre o modo de distribuição, quanto a seu conteúdo
(quantum) , a sua hierarquia, e a sua forma, e define o Es­
tado como sendo apenas o instaurador da paz na hierarquia
existente. Do ponto de vista moderno da aquisição dos bens
H obbes e Sp in o z a 215

poder-se-ia ver aqui a fuga diante de uma tarefa, a da jus­


tiça social. Cojltudo é preciso lembrar duas coisas: em
primeiro lugar, a justiça social não consistia então, como hoje,
na forma e conteúdo da distribuição das riquezas, mas muito
mais freqüentemente na medida da participação no poder
terreno ou no gozo de Deus 110 além. Na polis, por exemplo,
os que detinham o poder não eram sempre os mais ricos:
em Platão o .que lhes cabia voluntariamente era muito pouco.
Em Dante, as hierarquias terrenas e do além não coincidem.
Porém, em segundo lugar, a estrutura social na época de
Hobbes não era tão desorganizada quanto hoje em dia e
não carecia como hoje de uma nova integração. Ao contrário,
como muitas vezes salientamos, essa hierarquia e com ela a
repartição das riquezas mantinham-se bastante firmemente,
sem ser postas em dúvida, desde a Idade Média, e não foram
atacadas no essencial. A luta de todos contra todos tinha
sido entretanto desencadeada pela participação no poder e
não pelo usufruto dos bens. Por isso Hobbes não se preocupa
mais com a repartição dos bens. Ela tem no entanto o seu
lugar lógico em seu sistema e podia aí ser a qualquer instante
inserida, se se tomasse importante no decorrer da história
(como atualmente por exemplo).
Há ainda na teoria de Hobbes outra lacuna de muito
maior peso. Ele considera os bens do mundo como algo
de existente por si, dado, sem se preocupar com sua produção.
Isso seria quando muito válido para um estádio econômico
no nível da coleta, ou no paraíso! Mas os bens do mundo
de que o homem precisa não estão simplesmente ali, prontos
para serem utilizados: a luta de dois indivíduos que dese­
jam apossar-se deles ao mesmo tempo não é o único pro­
blema; trata-se, antes disso, de sua produção. E produzir
só é possível com o trabalho, mesmo no estádio da caça e
da coleta, sendo ainda mais evidente no período das grandes
civilizações em que a agricultura se desenvolve e acima de
tudo na era industrial, que só começava na época de Hobbes.
Mas a noção de .trabalho falta à idéia social de Hobbes.
Locke cedo a inserirá no sistema; concebendo a noção de
trabalho como anterior ao Estado e somente como um meio
de aquisição da propriedade, chegará, com um enfraqueci-
mento simultâneo da noção de paz, a uma idéia social intei­
ramente diferente da de Hobbes.
216 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

A segunda questão é a seguinte: Como imagina Hobbes


a soberania do Estado? Ele era, segundo a tradição de seu
pensamento, um monarquista inglês da mesma forma que Ma­
quiavel era um republicano italiano. Também era de opi­
nião que a unidade pessoal do soberano podia mutito bem
garantir a paz. Assim é que mais tarde reconheceu Cromwell
e seu poder republicano-ditatorial quando este se achava con­
solidado; de modo algum por oportunismo, mas porque sabia
que todo poder de facto tem uma origem Tevolucionária e
que a única coisa importante é que o Estado seja forte e não
que um ou vários reinem. O que ele repele, da mesma forma
que Bodin, são os governos “ mistos” , nos quais dois ou mais
poderes se controlam reciprocamente; neste caso assiste-se a
uma recaída no estado natural pelo desencadeamento de uma
nova luta. O que significa que o temor à guerra civil era
nele mais forte que o temor do abuso egoísta e tirânico do
poder por parte do soberano. Aí estão de fato os dois pontos
vulneráveis de todos os Estados. Aquele que enfraquece o
poder do Estado por meio da repartição dos cargos e seu
controle está sempre ameaçado por lutas internas e por agres­
sões externas. Aquele que em compensação o fortifica por
meio da unificação do poder de decisão está ameaçado de
ver a tirania fazer mau uso dele, quer se trata de um só
tirano ou de um tirano “ de muitas cabeças” .
Mais importante ainda é o significado da paz enquanto
objetivo supremo do Estado. Com efeito, esse objetivo não
é de nenhum modo a única e exclusiva garantia da satisfa­
ção das necessidades, por mais essencial que seja essa sa­
tisfação.
A paz social é sempre, com relação ao estado de guerra
natural, uma criação artificial na qual os homens triunfam
sobre o carácter inelutável de sua existência natural e de
sua autodestruição. O ser humano é em Hobbes tanto um
ser de natureza quanto um ser de razão. Ele participa, em
potência, dos dois domínios, exceto que precisamente o reino
da razão deve ser sempre instaurado de modò artificial, por­
que não é dado de si próprio. Falaríamos, portanto, em civi­
lização. Hobbes coloca isso na mesma categoria do cristia­
nismo. Por esse motivo, com razão, e sem ela, ele tem sido
censurado por camuflar uma doutrina puramente ateia e
naturalista, porque se confundia sua obstinação contra os
H obbes e S p in o z a 217

homens da igreja, que se baseava em penosas experiências


pessoais, com um verdadeiro anticristianismo. Mas seu pen­
samento é muito mais profundo'. Indaga ele com efeito o
que aconteceria se, no mundo natural da guerra, da inveja,
do ódio recíproco dos homens, da luta pela existência, e pelo
melhor lugar, num mundo baseado no utilitarismo e na frieza
do coração, um ser humano seguiria realmente os preceitos
do Sermão da Montanha, se amaria o próximo mais que a
si mesmo, se não se defenderia e não buscaria sua vantagem
pessoal.
A resposta é clara. Ele logo se transformaria na vítima
do egoísmo dos outros, isto é, de quase todo mundo. O
“ reino de Deus” onde não existe nem injustiça, nem sofri­
mento, nem destruição, nem opressão, nem luta, não é na
realidade “ deste mundo” . Mas ele é, contudo, também neste,
mundo, o sonho de todos os homens, mesmo dos que não
querem ou não podem conformar-se com seus mandamentos.
Por esse motivo não é ele apenas — como Hobbes afirma
com o mesmo azedume de Nietzsche — a religião não cum­
prida, nem a fundação e a promessa do Homem-Deus prega­
do por isso na cruz, mas o sonho da razão de todos os ho­
mens. Com esse sonho, eles se elevam acima de sua na­
tureza simplesmente necessitada e se diferenciam do animal.
Toda essa segunda parte da idéia social de Hobbes é quase
sempre escamoteada.
Eis o que é dito: “ A maioria dos seres humanos são
pouco propensos, devido a sua falsa aspiração à vantagem
do momento, a seguir os mandamentos [o que ele suben­
tende é o direito moral do reino de Deus, surgido da aspira­
ção à paz], embora reconheçam esses mandamentos. Se
alguns indivíduos, mais moderados do que outros, quisessem
valer-se dessa justiça e dessa consideração oferecidas pela
razão, não seguiriam isso usando de modo a^gum a razão,
pois os outros não fazem a mesma coisa. Não se prepara­
riam para a paz, mas somente para um fim mais certo e
prematuro e, por uma observação das leis [do reino de Deus],
tomar-se iam a presa dos que não os seguem. Não se pode,
conseqüentemente, admitir que ôs homens sejam por natu­
reza, isto é, pela razão, obrigados a observar todas essas leis
[morais] em um estado onde isso não é feito pelos outros
[quer dizer no estado de natureza]” . (D e Cive, III, 27).
218 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

Somente quando se tiver triunfado sobre o estado de


natureza com a instauração da paz e da segurança é que o
homem terá a possibilidade de por sua vez ser bom em seu
comportamento. Somente então é que poderá seguir sua
consciência ou os preceitos cristãos sem arriscar ime­
diatamente sua destruição. Racionalmente essa paz nasce
naturalmente do contrato aceito e da transferência do
poder de todos os indivíduos ao soberano, sendo então ins­
taurada pelo soberano de maneira autoritária com o auxílio
da polícia, da jurisdição e do poder militar, em virtude
da procuração de direito natural que lhe é dada. Ao con­
trário do estoicismo, Hobbes diz : auctoritas, non veritas facit
legem. O sentido e o objetivo dessa paz coercitiva não são
o funcionamento em si do aparelho do poder, nem tampouco
apenas a satisfação organizada das necessidades naturais do
homem, ainda que essa seja a condição preliminar de tôda
existência; é, mais do que isso, a possibilidade de ser bom,
de poder impunentemente seguir sua consciência ou o pre­
ceito cristão do amor ao próximo. Trata-se de algo que
não existia absolutamente em Maquiavel e que não se en­
contrará mais em Locke. Nessas duas idéias sociais o sen­
tido e o objetivo do Estado não eram a realização em comum
já na Terra do reino de Deus, mas a elevação e o cresci­
mento terrestres da força e da beleza do homem pela vitória
alcançada sòbre seus egoísmos autodestruidores e pela in­
tervenção de grandes propósitos na guerra e na paz, ou pela
simples regulamentação da satisfação das necessidades e pelo
acúmulo das riquezas pelo trabalho. O ponto de partida é
sempre o mesmo, inclusive o acordo formal, sendo o conteúdo
e o objetivo inteiramente diferentes.
Em cada uma das três concepções de sua idéia social,
Hobbes desenvolveu a organização humana da paz como
reino de Deus na Terra e justificou-a com citações das Sagra­
das Escrituras ( Elements of Law, cap. XVI e XVII; De Cive,
I, 3; Leviatã, I, 14 e 15). Representada de modo não-siste-
mático, consiste no seguinte: limitar voluntariamente através
de contratos a liberdade ilimitada. Permanecer fiel aos con­
tratos concertados. A confiança Tesponder com confiança.
Mostrar reconhecimento, isto é, sentir-se obrigado pelos be­
nefícios recebidos. Ser serviçal para cada um, sobretudo per­
doar incondicionalmente ao inimigo arrependido a falta come­
H obbes e Sp in o z a 219

tida, jamais prejudicá-lo por vingança ou castigá-lo. Avaliar


a punição unicamente com relação ao futuro (com o pro­
pósito de fazer hesitar diante da injustiça e de impedir o
crime), não punir pelo que passou por amor ao passado. Não
considerar outrem pior do que a si próprio, não ofender.
Ser modesto, moderado e respeitar a igualdade dos homens.
Ser imparcial e incorruptível em seu julgamento, respeitar
o bem alheio. Submeter-se aos tribunais. Jamais pertur­
bar seu raciocínio pela embriaguez, e tc ... Não se trata,
naturalmente, do estabelecimento de uma religião como o
Sermão da Montanha, nem tampouco de uma moral dogmáti­
ca cristã, nem de uma “ metafísica dos costumes” desenvolvida
sistematicamente, partindo da fé fundamental da razão prática
como mais tarde em Kant. Mas é uma moral cristã, ainda
que livre e imperfeita, empiricamente tomada à ordem social
cristã ainda intacta da época.
Em Hobbes, o Estado não passa da tentativa de instau­
rar, através do contrato e da força, um estado de paz no qual
cada um possa seguir os preceitos da moral crista sem ser
logo aniquilado pelos outros. Por isso é que o denominará,
ironicamente em sua velhice, de Leviatã, o deus mortalis,
que realiza pela violência o “reino de Deus” já na Terra.
É claro que essa idéia social se distingue consideravelmente
de três outras idéias sociais cristãs: I) a simples espera do
reino de Deus “ próximo’, considerado como mero ato divino,
e a simples preparação moral dos primeiros cristãos para o
advento desse reino; 2) a esperança e a garantia (tomadas
na Igreja uma instituição e regulamentadas no culto) da
existência desse reino depois da morte e do juízo final; 8)
a realização política na Idade Média do reino de Deus come­
çando na terra e prosseguindo no além pela santificação de
todas as organizações naturalmente desenvolvidas e pelos
instrumentos da graça proporcionados pela Igreja e por in­
termédio do imperador em sua qualidade de representante
do Cristo-Rei na Terra. Essas três idéias sociais e a de Hobbes
são interpretações diferentes das possibilidades sociais do
cristianismo. É evidente que no plano religioso não se pode,
até onde a época permite a escolha, decidir-se a não ser por
uma só dessas idéias, mas não procurando experimentar a
correção de seu próprio cristianismo pelo extermínio dos par­
tidários das outras tendências! Tratava-se, já na época de
Hobbes e das cnieldades da Guerra dos Trinta Anos, de
220 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

uma Tecaída no “ estado de natureza” , exatamente da mesma


form a das diversas lutas atuais dos partidos pelo triunfo de
sua doutrina.
Resta como último problema o do Estado e da Igreja.
Hobbes resolve-o quase da mesma maneira que Marcílio de
Pádua, ainda que seu pensamento não seja uma simples va­
riante da idéia medieval do Cristo-Rei. A natureza e a Tazão,
o Estado e a moral já determinaram esse problema. Ele
sabe muito bem que a questão de saber qual, entre o poder
temporal e o poder espiritual, tem a primazia, é desde a
Idade Média uma fonte de conflitos, que participa assim de
forma topológica em seu sistema, no estado natural da guerra
de todos contra todos e atiça mesmo essa guerra devido à
quantidade de idéias sobre o mundo e sobre a vida que se
esboçam no horizonte. Por isso é preciso que nesse ponto
a decisão seja, se possível, ainda mais radical e mais absoluta
do que qualquer outra. E posto que somente o Estado todo-
-poderoso garante a paz na qual o homem pode enquanto
cristão cumprir sem risco a vontade de Deus, Hobbes subor­
dina simplesmente a Igreja e mesmo a interpretação da fé
ao Estado. A este os cidadãos devem submeter-se porque
renunciaram a favor da comunidade, ao mesmo tempo que
ao seu poder de execução, à sua independência e à possibili­
dade de c}ivergência nas decisões de sua consciência.
A razão disso? A paz vale mais do que a melhor dou­
trinando que a liberdade e do que a luta por essa liberdade.
O simples amor ao próximo é mais cristão do que um com­
bate mortal com seu vizinho com o propósito de descobrir
o melhor caminho para a salvação da alma.
Mas a fim de que a religião não se torne para o indiví­
duo uma ditadura insuportável da consciência, Hobbes quer
ater-se a dois dogmas: fé e obediência. A fé é a fé no Cristo,
filho de Deus e redentor dos homens. A obediência é a
obediência para com seus mandamentos de uma conduta
realmente moral na Terra e interpretados pelo Estado.
Hobbes sabe de resto que a religião não é um problema
sobre o qual se possa decidir cientificamente e que por con­
seqüência a discussão nunca pode ser fechada pelos argu­
mentos da teologia. Mas ele também sabe que para o cristão
somente duas possibilidades entram em consideração: ou
viver em um Estado cristão ou então suportar o martírio
H obbes e Sp in o z a 221

por sua fé. O mau compromisso com as forças temporais,


compromisso no qual via as confissões de seu tempo sempre
prontas a consentir (D e Cive, XVIII, 13), foi sempre evi­
tado por este filósofo, até hoje acusado de ateísmo.

Spinoza apoia-se em quase todos os elementos de sua


doutrina social sobre as concepções de Hobbes, cuja idéia,
entretanto, transformou totalmente. Nada contribuiu mais
para a incompreensão do pensamento de Hobbes do que sua
aproximação com o de Spinoza ou de Locke.
No sistema filosófico de Spinoza, Deus é natureza em
um sentido exatamente definido (deus $ive natura). A Na-
tureza-Deus não é representável para o homem senão por
dois de seus atributos infinitos, mas de nós desconhecidos:
o movimento mecânico dos corpos e o pensamento dos espí«
ritos. O movimento e o pensamento, enquanto atributos di­
ferentes de um Deus único, são certamente separados rigo­
rosamente, mas paralelos em sua marcha (ordo et connexio
idearum idem ést ac ordo et connexio rerum). Essa marcha
é uma lei necessária ao mundo interior. Contudo não pode­
mos deter-nos nesse ponto.
Se se utiliza essa idéia na conduta prática dos homens,
cada indivíduo adquire um direito a tudo que é possível em
sua natureza, o direito toma-se o igual do poder. No poder
manifesta-se a lei da natureza. Mas como a natureza ba­
seia-se na conservação pessoal e como o poder e o direito
de cada indivíduo entram, como em Hobbes, em conflito
com o poder e o direito de qualquer outro indivíduo, e como
de qualquer modo os homens aniquilar-se-iam mutuamente,
cada um deve então limitar seu poder e transferi-lo ao sobe-
Tano. Este somente é responsável perante Deus e sua
própria natureza (o que coincide em certa medida). Tam­
bém é inteiramente incontrolado. Não tem noção de uma
origem de todo poder na revolução nem direito à resistência,
como existia na Idade Média, entre os monarcômacos ou em
Althusen, nem afinal repartição do poder como em Locke.
O “ reino de Deus” que se toma Teal na paz terrestre como em
Hobbes não é o reino da liberdade moral cristã e da possi­
bilidade de fazer o bem sem risco. Deus e a natureza são
antes a mesma coisa em sua lei e sua necessidade. A subor­
dinação às leis do Estado significa por sua forma uma des­
222 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

valorização de toda comunidade, como em Epicuro, e uma


pura naturalização do Estado, em estrita oposição a Hobbes.
Isso só é plenamente compreensível se consideramos o
próprio objetivo de Spinoza. Com efeito, ele próprio vive
à margem da sociedade de seu tempo, tratado, por sua qua­
lidade de judeu, com desconfiança pelos cristãos, excluído,
enquanto filósofo, da comunidade judaica de seu lugar e per­
seguido. Em lugar de todà comunidade humana, em lugar
então da amizade epicuréia, vê-se surgir nele a mística do
amor intellectualis dei, do amor puramente espiritual da Na-
tureza-Deus em sua necessidade. Ela é quando muito com­
parável ao pensamento silencioso e solitário do movimento
do cosmos em Aristóteles. A subordinação absoluta ao poder
do Estado e a estrita observância de suas leis proporcionam
não somente o espaço restrito necessário a esse objetivo de
contemplação solitária de Deus, mas ensina também a com­
preender o poder em si em sua qualidade de parte da natu­
reza ou de Deus, e assim em sua necessidade puramente
natural. Tudo isso estaria muito distante do pensamento de
Hobbes que tinha por objetivo a formação de uma verdadeira
comunidade. A doutrina política de Spinoza é na verdade
radicalmente baseada na sociedade e no indivíduo, como a
de Epicuro. Mas como a existência do seu autor não foi tão
típica do espírito e da sociedade de seu tempo quanto a de
Epicuro para o fim da Antiguidade, ela permaneceu, em sua
significação singular, um intervalo sem seqüência e mal com­
preendido.
CAPÍTULO XIX

A Comunidade Religiosa : Milton

N a d o u trin a política de Maquiavel surge a primeira pos­


sibilidade do absolutismo, na de Hobbes, a segunda. Em
Maquiavel as idéias são isoladas, secundariamente ligadas
umas às outras. Em Hobbes, trata-se de uma idéia válida,
rigorosamente pesada, composta de duas partes: o estado
natural e o reino da paz na Terra. Essas dúas possibilidades
não surgem no fim (como a tentativa de Platão para salvar
a polis), mas no começo, no ponto culminante de sua época.
Mas os monarcas absolutos não compreenderam nem reali­
zaram a grandeza dos objetivos terrestres de Maquiavel nem
a profundeza da idéia de paz Tacional e cristã de Hobbes.
Por isso só subsistirá na prática política dessas idéias sociais
dos tempos modernos o poder ilimitado do Estado, despojado
de eus objetivos morais, representado pelos soberanos (“ o
Estado sou eu” ). Trata-se de um abuso das possibilidades
humanas, tendo por base o absolutismo, um abuso que está
bem perto do ideal sofístico do tirano. Não há lugar conse­
qüentemente para estranhar que o pensamento social não
tenha podido, depois de Hobbes, encontrar novos impulses
a não ser na oposição ao absolutismo dos príncipes. Como
o Estado nos tempos modernos não era a única comunidade
histórica, como não era, da mesma forma que na Antiguidade,
uma unidade simultaneamente política e Teligiosa, a resis­
tência contra o poder do monarca de dispor do Estado e
de seus súditos devia sobretudo partir da comunidade reli­
giosa, que não desaparecera com o absolutismo dos príncipes.
224 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

Um dos primeiros em quem esse problema se toma pa­


tente no coração mesmo da era absolutista é o contemporâneo
de Hobbes, John Milton (1608-1674). Milton era poeta, pu­
blicista e político, mas de modo algum filósofo. É discutível
do ponto de vista histórico querer encontrar nele, conforme
Saurat tentou fazer, uma idéia sistemática, isenta de contra­
dições e coerente. Com seu jeito desdenhoso, Hobbes afirma,
e não sem razão, a respeito de Milton e de seu inimigo Sal-
masius, que não sabia ainda em qual dos dois se encontrava
a linguagem mais bela e os piores motivos. No entanto, é
extraordinária sua importância histórica como representante
(não como tipo) da idéia puritana da soberania do povo,
particularmente em ligação com a ulterior constituição da
comunidade americana. Ela vai muito mais longe do que a
de Hobbes que ficou incompreendida.
A origem da idéia que Milton tem da liberdade é incon­
testavelmente o dogma da predestinação de Calvino. O eleito
é justificado em tudo o que faz, pois não passa do instru­
mento de Deus. Isso precisamente lhe retira qualquer livre
escolha no sentido do liberum arbitrium ou da definição
do niilismo dada por Nietzsche: “ nada é verdadeiro, tudo é
permitido” . Sua ação acha-se antes ligada moralmente em
toda liberdade, mas superior, em sua livre moral orientada
segundo Deus, a toda autoridade política, responsável so­
mente perante sua consciência e perante Deus. É evidente
que esse paradoxo religioso devia parecer um disparate em
comparação com as exigências rigorosas e lógicas de Hobbes.
Segundo a natureza de Milton, esse paradoxo somente podia
ser vivido dé modo exemplar, não podendo ser concebido
racionalmente. Mas ele dava a seu representante uma segu­
rança e uma confiança em si inquebrantáveis. Milton, afas­
tando-se da religião para a política, transmitiu isso ao povo
inglês e americano, quase até nossos dias. O grande Crom-
well, amigo de Milton, disse certa vez, com uma concepção
análoga do sçntimento da liberdade “ Ninguém vai mais lon­
ge do que quem não sabe aonde vai” .
A partir daí, quase tudo em Milton se acha ligado sim­
plesmente por esse sentimento pessoal do eleito, não mais
em virtude de motivos racionais, tais como os exige Hobbes.
Ê sempre o indivíduo sozinho (ou os indivíduos) que é
eleito. Mas o Estado, o povo preciso da comunidade, não
A C o m u n id a d e R e lig io sa : M il t o n 225

a civitas dei, que também é, no calvinismo, supraterrena e


desconhecida na terra, mas a cidade terrestre da organização
moral e política. Por um lado, ele a encontra na autodeter­
minação absoluta dos eleitos, independentemente de toda
autoridade política ou espiritual, por outro lado, com todo
o seu século, na razão (reason). Somente na razão é que
se ligam de novo na unidade e na comunidade do “ Paraíso
reconquistado” os egoísmos que se achavam dispersos no
“ Paraíso perdido” . O “ Paraíso reconquistado” é ao mesmo
tempo a segunda aliança de Deus com seu povo, o cristianis­
mo em geral e, no Estado, a ação moral comunitária dos
editos de Deus em sua liberdade, ou do povo inglês eleito,
servindo de exemplo à humanidade. Milton, naturalmente,
um verdadeiro calvinista, justifica o caráter exemplar de
seu próprio povo pela aceitação de sua obra: a libertação da
monarquia absoluta e da hierarquia da Igreja católica. Por
isso, quando mais tarde, no curso de sua vida, o absolutismo
de Carlos II levanta de novo a cabeça, só lhe resta fugir em
pensamento no sacrifício da vida e no refúgio do martírio,
como mostra seu último drama lírico Samson Agonistes,
talvez seu poema mais notável.
Existe, sem dúvida, uma linha contínua desde a indepen­
dência e a liberdade pública do indivíduo nas antigas tribos
germânicas, passando pelo direito medieval de resistência à
autoridade, quando esta ofende a justiça, pela doutrina de
Althusen da soberania do povo, pela idéia de Milton sobre
a liberdade, até os direitos fundamentais do homem entre
os norte-americanos. A aproximação de Milton com a idéia
medieval do Cristo-Rei é superficial, sendo já mais nítida
com a liberdade pública dos antigos germanos, ou, para eles,
dos saxões contra a construção de um Estado normàndo-feu-
dal da Inglaterra. Mas ainda mais importante é a maneira
pela qual e!e tenta renovar e defender a liberdade da nação.
Milton estabelece muito bem a diferença entre o povo
e a populaça. Devido a que a liberdade é primitivamente
religiosa, ninguém é verdadeiramente livre, mas em princípio
somente os eleitos da fé calvinista. Eles têm de provar sua
liberdade por sua ação moral e pela cristianização do mundo
e sobretudo do Estado. Mas a moral é, exatamente como
no estoicismo (que influencia Milton quase tanto quanto o
calvinismo), ao mesmo tempo verdade e razão. Ao contrá-

19
226 H istó ria das I déias S ociais

rio de Hobbes, a fórmula vinha a ser: Veritos, non auctoritas


facit legem. Ê com efeito na razão e na verdade que se ba­
seia a livre comunidade, a passagem do individualismo dos
eleitos para um Estado autêntico. A comunidade e o livre
acordo dos homens são então garantidos em uma espécie de
harmonia preestabelecida. Ninguém pode, se age conforme
a moTal, agir de outra forma que não seja segundo a verda­
deira, mas a verdade é uma só, é a verdade de Deus. Por isso
é que é preciso que todos estejam mutuamente de acordo, se
agem conforme a moral, porque não existe senão uma razão
ou verdade, proveniente de Deus. Ê no seu livre acordo que
reside sua comunidade. O objetivo não é no fundo diferente
do de Hobbes: o reino de Deus na Terra. Mas nele se
crê de maneira totalmente diferente, e ele se realiza na livre
comunidade moral dos eleitos, não sendo somente inferido
logicamente e instaurado artificialmente de forma autoritá­
ria e absolutista, como em Hobbes.
Todas as liberdades políticas decorrem em Milton da
liberdade religiosa e não são justificadas senão por ela. Logo
de início a liberdade da imprensa, ou melhor a liberdade de
publicação, que ele defende em seu escrito intitulado Areo-
pagitica como sendo um direito soberano fundamental. Cer­
tamente ela não surgiu, como hoje, da curiosidade sem limite
ou do prazer sentido diante de cada escândalo que se inventa
ou se amplifica; tampouco está a serviço do controle pela
nação dos funcionários do Estado. Ê em primeiro lugar um
direito fundamental, devido a que a verdade enquanto tal
é o testemunho de Deus e a única comunidade possível dos
homens. Afirma ele: “ Quem mata um homem mata um ser
racional, imagem de Deus. Mas quem destrói um bom livro
mata a própria razão, mata a imagem de Deus no espelho” .
Seria difícil secularizar essa concepção e defender assim a
liberdade da imprensa como o direito de exercer uma curio­
sidade sem limite em relação a seus semelhantes; isso seria
alterar seu sentido.
A segunda liberdade política baseia-se na igualdade dos
indivíduos, em sua independência e em sua participação no
governo. É característico que Milton, da mesma forma que
Aristóteles fizera para a polis grega e Tibério Graco para
Roma, reclama uma nova repartição das terras, em oposição
ao princípio normando de concentração da propriedade agrá-
A C o m u n id a d e R e lig io sa : M il t o n 227

ria em algumas mãos somente. O que deve realizar-se é a


dominação dos cidadãos livres antigos saxões, de uma classe
média (middle sort) ôamponês-burguesa, na qual a moral
é realizada assim como são realizados os conhecimentos, as
capacidades e a liberdade de ação. A liberdade e. a igual­
dade desses eleitos nunca se apoiam, nele, como mais tarde
em Loçke, na propriedade (property) e na aquisição das
riquezas, mas unicamente na participação no governo (go-
vernment).
As idéias de Milton sobre ? liberdade acompanharam e
justificaram intelectualmente a primeira revolução inglesa e
a decapitação de Carlos I, da mesma forma que mais tarde
as de Locke a segunda revolução, a ascensão ao trono de
Guilherme de Orange e a soberania do Parlamento no século
XVIII. É evidente que também aqui os pensamentos vão
mais longe do que a realidade; são mais conseqüentes ou
pelo menos mais extremos. Mas o espírito é contudo cada
vez o mesmo, só ele é a causa histórica tanto da realidade
quanto da idéia. Não se pode fazer unilateralmente da idéia
a causa da realidade, nem da realidade a causa da idéia.
Mas o pensamento e o acontecimento esclarecem-se alterna­
tivamente um ao outro. Foi assim que Milton inicialmente
protegeu a dominação republicana de Cromwell, que mais
tarde veio a criticar severamente. O pensamento é tão pouco
a causa de seu abuso na ação quanto a ação o é do extre­
mismo possível do pensamento e de seus exageros.
O Estado dos eleitos, no sentido de Calvino, que, apesar
de sua liberdade moral, estavam ligados em uma comunida­
de, teve duração muito curta na Inglaterra. Atingiu o seu
fim já com a morte de Cromwell e a restauração de Carlos
II, o discípulo de Hobbes. O pensamento social de Milton
também desmoronou com ele. Seu testamento é, conio dis­
semos, a representação poética do sacrifício de sua vida pela
nação, em Samson Agonistes. Suas idéias sobre a liberdade
continuaram no entanto a atuar na Inglaterra da Restauração.
Elas levaram, num paciente combate do Parlamento contra a
Coroa, ao famoso Bill of Rights, uma espécie de repetição
da Magna Charta> e finalmente à supressão definitiva do
absolutismo da realeza na segunda revolução de 1689 quando
Milton não mais existia. Foi somente o poder soberano do
Parlamento e as idéias novas de Locke sobre a liberdade,
22 8 H istó ria das I déias S ociais

inteiramente diferentes das de Milton, que criaram então o


Estado inglês do liberalismo burguês e da aquisição indivi­
dual das riquezas no século XVIII e no sécu'o XIX. Volta­
remos a isso.

As idéias sociais de Milton exerceram, além disso, depòis


da queda definitiva da República na Inglaterra, uma gran­
de influência sobre a formação da comunidade norte-ameri­
cana, mais nas províncias do norte, isto é, nos estados da
Nova Inglaterra, do que no centro e no sul. Nesses estados,
com efeito, a emigração proveniente da Inglaterra é muitas
vezes causada por razões de fé, isto é, num espírito de hos­
tilidade à Igreja episcopal anglicana e a seu aliado, o absolu­
tismo real. A comunidade religiosa e moral de colonos li­
vres e independentes foi mais tarde, a partir do século XVIII,
secularizada na Guerra de Independência e pela fundação
da União, ampliada em uma comunidade mais temporal.
O historiador inglês Trevelyan disse: “ O puritano in­
glês dessa época precisava de uma comunidade que fosse
bastante grande e unida para garantir a existência particular
que desejava levar e que exigia que seu vizinho levasse” .
Os primeiros colonos americanos da Nova Inglaterra eram
homens e mulheres de elite que tinham confiança em si e
entre si, sendo que todos ainda tinham um grande objetivo.
“ Na Nova Inglaterra, por toda parte, reinava o espírito da
democracia. Trazia-se da East Anglia a comunidade saxô-
nica, mas a aristocracia permanecera lá. Terra abundante,
repartida entre todos os que estavam prontos a desbravar a
floresta e cultivar os campos, tal foi o fundamento da primeira
democracia norte-americana. A aristocracia podia continuar
prosperando numa ilha onde os bens de raiz eram limitados
e muito procurados, onde os homens existiam em massa e
eram por conseguinte menos apreciados, enquanto na Nova
Inglaterra a situação era exatamente a oposta. O feudalismo
tivera êxito na Idade Média porque a sociedade devia orga­
nizar-se para se proteger, sob a liderança de senhores va­
lentes no combate. Na Nova Inglaterra, em compensação, a
comunidade funcionava como entidade; a colônia e a comuna
organizavam a luta contra os peles-vermelhas, e a mãe-pátria
ajudava-as a vencer franoeses e holandeses. Sobretudo a
Igreja era democrática, pois tinham sido motivos religiosos
A C o m u n id a d e R e lig io sa : M il t o n 229

que levaram à fundação da colônia. No velho Massachusetts,


a Igreja democrática imperava em proporção mesmo superior
à Escócia de então. Apenas os membros da Igreja, que cons­
tituíam uma parcela importante da população total, gozavam
de plenos direitos políticos. Não se concebia, no interior da
colônia, qualquer tolerância religiosa. Os que não desejavam
essa variedade particular de puritanismo que existia em Mas-
sachusetts foram embora e fundaram nas proximidades, sob
a direção de Roger Williams, Rhode Island, a colônia da
tolerância puritana. A Nova Inglaterra abrangia tanto a va­
riedade liberal quanto a variedade rígida do puritanismo” .
A liberdade política nos Estados Unidos formou-se a
princípio simplesmente devido a que em toda parte, de uma
forma análoga à constituição da mãe-pátria, diante do go­
vernador real britânico, encontrava-se uma representação dos
cidadãos locais, isto é, dos colonos europeus, como na In­
glaterra se encontrava o Parlamento em face do rei. Os go­
vernadores foram suprimidos depois da Guerra de Indepen­
dência, e desse modo as representações de cidadãos já exis­
tentes foram soberanas à maneira republicana, como teria
sido o Parlamento na Inglaterra na primeira revolução se
Cromwell não tivesse imposto sua ditadura. O acontecimento
mais notável, e que se repetiu mais taTde com maior ou
menor analogia na Revolução Francesa, foi o que se denomi­
nou Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Ela
se manifesta, antes de qualquer outro lugar, na Virgínia, em
12 de junho de 1776. Esses direitos são: liberdade de reli­
gião e liberdade de consciência (primitivamente em certos
limites cristãos e mesmo com exclusão do catolicismo), liber­
dade de opinião e de imprensa, anulação da penhora do Es­
tado sobre a propriedade privada sem o assentimento dos
interessados ou de seus representantes políticos, segurança
pessoal (já preparada na Inglaterra pela chamada lei de
habeas corpus de 1679). Que significam no fundo esses di­
reitos fundamentais? Trata-se de reservas que o indivíduo
assume em face do Estado? Ou formas de realização de
uma verdadeira liberdade coletiva, no sentido de um “ go­
verno dos governados” da polis grega adaptado às condições
dos tempos modernos? Trata-se em minha opinião de uma
questão decisiva e que constitui o tema de uma verdadeira
análise da idéia política norte-americana.
230 H istó ria das I déias S ociais

Não se pode, em meu entender, como no caso da Revo­


lução Francesa, dar uma resposta inteiramente precisa. As
liberdades da idéia social miltoniana eram compreendidas
num sentido absolutamente político e em benefício da cole­
tividade, não como restrições pessoais do indivíduo em opo­
sição ao Estado, como em Locke, mais tarde. Certamente
Milton influenciou os Estados do norte da Nova Inglaterra,
mas de modo algum a Virgínia, que não era puritana, mas
anglicana e que era uma colônia onde quase somente os
interesses econômicos (a cultura do fumo) e não os inte­
resses religiosos eram preponderantes. O sufrágio também
não era universal e livre. Não apenas as pessoas de côr
(negros, índios e mestiços) foram desde o início excluídas,
como também estava o sufrágio limitado, entre os emigrantes
brancos, a '‘toda pessoa que tenha suficiente conhecimento
dos interesses comuns da comunidade e que mantenha com
os mesmos vínculos bastanle fortes” (Virginia Bill of Rights,
Seção 6). Pode praticamente afirmar-se que era de novo a
camada superior dos proprietários Turais (plantadores de
fumo) que se governava a si própria no plano local, como
a aristocracia na polis da antiga Grécia. Nos estados da
Nova Inglaterra, a liberdade religiosa e a comunidade esta­
vam fundamentalmente ligadas, confbrme o espírito de Mil­
ton, a esse autogoverno. Essa liberdade conferia toda a sua
substância metafísica ao indivíduo independente, enquanto
súdito da comunidade. Tal substância religiosa e com ela
a independência dos indivíduos eram tão necessárias ao go­
verno quanto o foram na antiga Grécia à polis e ao seu cul­
to pagão. Em Nova Jersey, por exemplo, a liberdade de
crença foi reconhecida 100 anos mais cedo que na Virgínia
(1676): “ That no men nor number o f men upon the earth
has power or authority to rule over men's conscience in reli­
gious matters99 (Salander). Isso deve agir sobre a forma­
ção da comunidade (ainda que mais no sentido da comuni­
dade religiosa do que do Estado), porque a liberdade do
calvinismo é uma moral cristã entre homens ligados entre si
e responsáveis uns perante os outros, e não simplesmente
um meio de salvação individual ou mesmo a simples liber­
dade de adquirir a propriedade.
Outras formulações, em compensação, entendem-se sem
equívoco, na declaração virginiana dos direitos do homem,
como restrições, sobretudo de caráter econômico, em oposi­
A C o m u n id a d e R e lig io sa : M il t o n 231

ção ao Estado, e portanto desfavoráveis à comunidade. As­


sim, por exemplo, a primeira: “ Todos os homens são por
natureza igualmente livres e independentes e têm certos di­
reitos inatos que não podem, depois de seu ingresso numa
condição de sociabilidade, arrebatar nem reter seus descen­
dentes por um contrato: a saber, o gozo da vida e da liber­
dade ao mesmo tempo que a aptidão de adquirir e possuir
a propriedade, do mesmo modo que desejar e alcançar a fe­
licidade e a segurança” . (Grifado por mim.) O fato de que,
nesta formulação a substância religiosa do indivíduo (de cunho
calvino-iniltoniana) é substituída pela afirmação de que a
aquisição da propriedade e a posse constituem a verdadeira
substância do indivíduo demonstra de modo inequívoco que se
trata de restrições liberais contra o Estado, e, somente em
segundo plano, de sua preservação na comunidade. A idéia
de aquisição da propriedade é a idéia social liberal de Locke
com que travaremos conhecimento mais adiante, e mesmo
em sua expressão essa frase da declaração virginíana lembra
Locke sem dúvida alguma.
CAPITULO XX

Locke e Montesquieu

N a restauração de Carlos
a In g la te r r a , (1660) pôs fim
II
momentaneamente à idéia social de Milton. De fato, sua
concepção da liberdade continuava subterraneamente seu ca­
minho, exatamente como se mantivera desde a Magna Charta.
Foi então substituída, depois da segunda Revolução, pela
idéia social de Locke. Nesta idéia o indivíduo não possui
mais a substância que era sua na consciência de sua eleição
religiosa: ele não possui mais uma liberdade que seja um
vínculo moral, tomando-o na sociedade co-responsável em
relação, aos outros. Sua própria substância está na proprie­
dade já adquirida anteriormente ao Estado por seu trabalho
e pelas vias da economia. A noção de liberdade devia por
isso adquirir uma significação completamente diversa.
John Locke (1632-1704) é, como filósofo, um empirista,
que, no mais, não possuía, como seu compatriota Bacon, uma
confiança ilimitada e utópica na utilidade da experiência e
da técnica e que começava já a perceber os limites do co­
nhecimento humano. Ao contrário do modo por que é tra­
tado nos manuais de História da Filosofia, sua idéia social
é na verdade mais importante do que sua sistemática, carac­
terizada não sem razão por Kant como uma “ fisiologia do
entendimento” . As obras mais importantes representativas
dessa idéia social são os dois Tratados sobre o Governo (Ttvo
Treattees of Government), de início publicados anonimamen­
te, e em segundo lugar as Cartas sobre a Tolerância e o
Tratado sobre a Racionalidade do Cristianismo. Qualifica-se
tudo isso habitualmente como obras secundárias. Na verda-
L ocke e M o n t e s q u ie u 2 33

de, a obra filosófica principal, o Essay Concerning Human


Understanding, contém também inúmeras noções sociológi­
cas fundamentais, como, por exemplo, a do trabalho ou a
da propriedade. Mas o ensaio é sobretudo determinante
para o fundamento da independência da razão humana em
geral, que se apoia precisamente no trabalho e na aquisição
da propriedade.
Locke nasceu em Wrington, perto de Bristo], filho de
um adepto de Cromwell, tendo sido educado sçgundo a tra­
dição republicana. Inicialmente, graças a uma borsa de es­
tudos obtida por intermédio do partido de seu pai, estudara
Filologia Clássica, Química e Medicina, tendo travado rela­
ções de amizade com o Conde de Shaftesbury, estadista
liberal e avô do futuro filósofo de mesmo nome. Locke cuida
da educação de seus filhos e netos. Shaftesbury era o chefe
do partido dos whigs, o líder da oposição parlamentar a
Carlos II. Por duas vezes, Locke teve de emigrar com ele
para a Holanda. Só retoma à pátria com Guilherme de
Orange, depois da segunda Revolução de 1689, denominada
a “ gloriosa” , ( Ele representou teoricamente, na qualidade
de propagandista, as idéias que tinham feito retomar o trono
ao novo rei (principalmente no segundo tratado sobre o go­
verno civil; o primeiro lança-se contra o absolutismo dos
Stuarts defendido por Filmer como um patriarcado religioso).
Guilherme III só pôde tomar-se o sucessor de Carlos II
porque reconheceu integralmente a soberania do Parlamen­
to. Locke desejava, em seus tratados, esclarecer a situação
difícil que disso resultava para o rei. A privação da posse
quase total do poder pelo soberano era já uma premissa de
seu pensamento social; somente então, pela penetração nesse
fato, é que Locke se aprofundou mais, em ligação (que ele
mesmo não confessava de bom grado) e em oposição à
Kobbes, até as fontes da comunidade e da sociedade.
Como o quer a ordem das coisas, a noção de estado
natural encontra-se na idéia no começo. Locke apreende-a
de forma totalmente diferente de Hobbes, e não mais como
uma guerra de todos contra todos; trata-se de início de um
estado de inocência e retidão, de livre coabitação, geral­
mente isento de conflitos. O conflito só existirá raramente
onde a terra ainda é vasta. Assim, a paz, a bem-aventurança,
o auxílio mútuo levam a melhor, numa situação determinada,
234 H istó r ia das I déias S ociais

sobre a satisfação momentanea das necessidades. Locke des­


creve esse estado como uma idade de ouro literalmente anár­
quica, sem governo, mais em virtude de sua disposição de
espírito otimista do que por motivos racionais.
Uma coisa contudo é essencial, nessa descrição aliás bas­
tante utópica: no estado natural, o homem, segundo Locke,
não é somente um simples consumidor, apoderando-se de
produtos acabados, mas também o seu produtor, o que quer
dizer que ele é um trabalhador. A natureza fornece somente
a matéria-prima dos bens. O homem deve de início colher,
caçar, conservar, preparar essa matéria-prima para poder ser­
vir-se dela a fim de satisfazer suas necessidades naturais.
O trabalho é a essência, a substância do homem enquanto
tal. O instinto de conservação, o medo da miséria e da
morte incitam-no ao trabalho; o homem não é por natureza
assíduo e trabalhador. O trabalho tem apenas uma finali­
dade: protegê-lo da miséria. Mas o que adquire em bens
graças ao seu trabalho é, anteriormente ao Estado, sua pro­
priedade natural. A noção de propriedade é anterior à noção
de Estado, fazendo parte já do estado natural.
À primeira vista, a oposição a Hobbes é grande. Pode­
ria dizer-se sobre essa concepção do homem que ela é oti­
mista, e sobre a de Hobbes que é pessimista. Na realidade,
otimismo ou pessimismo são aqui, em ambos os casos, bem
pouco essenciais. O fato de completar os dados de Hobbes
pela noção de trabalho e de propriedade em sua qualidade
de bem fabricado (objeto da satisfação das necessidades),
que, por meio de meu trabalho, pertencem-me com exclusi­
vidade, é decisivo. Aliás, é totalmente indiferente que a no­
ção de estado natural seja ilustrada por uma criação da ima­
ginação ou por outra. Isso surge no fato de que Locke é
obrigado a se servir das mesmas noções e das mesmas conse­
qüências de Hobbes no que diz respeito à passagem do estado
de sociedade burguesa.
Se se pergunta, com efeito, porque os homens não per­
maneceram nesse estado de natureza descrito com aparên­
cias tão paradisíacas, Locke também só pode dar uma res­
posta: porque não existe qualquer garantia. Nem para o
corpo e a vida, nem para a propriedade, para os bens que
são adquiridos (pelo trabalho). Essa noção de falta de se­
gurança, de vigilância e de autodefesa, que se impõe a todo
L ocke e M o n t e sq u ie u 235

instante, significa no fundo exatamente a mesma coisa que


as palavras de Ovídio em Hobbes: homo homini lupus. O
estado de natureza não é contudo tão paradisíaco quanto
inicialmente descrito. Na idéia social de Hobbes essa “ falta
de segurança” enquanto fundamento realista da guerra existe
realmente, mas em Locke é na maior parte do tempo obs­
curecida pela visão utópica e convencional de uma idade de
ouro. É preciso de início suprimir essas imagens se se quer
descobrir o verdadeiro fundamento da sociedade burguesa.
Esse próprio fundamento é em sua concepção exatamente a
mesma coisa tanto em Locke quanto em Hobbes. (Ele o
toma mesmo a Hobbes sem confessá-lo.)
Assim o Estado é concebido, como em Hobbes, como
tèndo nascido para impedir os conflitos, através de uma re­
núncia contratual ao direito de se defender a si próprio e
pela transferência ao soberano da força e do poder necessá­
rios à autodefesa. A forma é a mesma, o conteúdo é eviden­
temente muito diferente. Locke não compreendeu melhor
do que a maioria dos críticos que ate nossos dias expuseram
as idéias de Hobbes o sentido cristão da noção de paz em
Hobbes, a instauração artificial na Terra da esfera da possi­
bilidade da bondade. Em seu lugar aparece a]go que já é
preparado pelo fato de completar o estado de natureza pelas
noções de trabalho e de propriedade. Trata-se de uma nova
concepção burguesa da paz, cuja essência consiste simples­
mente na transformação do trabalho e da propriedade amea­
çados em um trabalho e em uma propriedade garantidos.
O único papel do Estado, quando tem o poder nas mãos,
é com efeito a proteção do indivíduo, de seu trabalho e
sobretudo de sua propriedade. O indivíduo, o trabalho e a
propriedade existiam no estado natural, como premissas da
associação. O que se acrescenta aqui não é senão a seguran­
ça e a proteção garantida por todos em lugar de uma prote­
ção pessoal; quando cada um é, ele próprio, juiz e executor
do julgamento, não se chega senão a conflitos, à perda da
propriedade e à ruína.
Mas uma fronteira é assim fixada no Estado a toda asso­
ciação. Se, com efeito, o contrato social só é concertado ten­
do em vista a segurança, ele deve pàrar diante do indivíduo,
de seu trabalho e de sua propriedade. Não deve atacá-los,
pois é o meio de preservá-los. A antiga situação, tantas ve-
236 H istó ria das I déias S ociais

zes celebrada na literatura antiga, do dom da vida e de seus


bens para a comunidade, que se torna então um fim absoluto,
anteriormente ao indivíduo, seria impossível em Locke. Isso
já revela a mudança radical de sua idéia social em relação
por exemplo com Platão, e mostra que o Estado se compõe
certamente de pessoas que possuem nelas mesmas uma es­
pécie de independência, devido a seu trabalho e à aquisição
de bens, mas que em suma ele não pode ser, como em Epi-
curo, senão uma sociedade e não mais uma comunidade. A
noção de comunidade consistia na subordinação absoluta dos
indivíduos ao todo, no sentido metafísico de sua existência.
Á sociedade era caracterizada pela utilidade pessoal de cada
contato social e por sua limitação no tempo. Que a' comu­
nidade venha a desaparecer e que a existência de uma idéia
social consista unicamente em relações de sociedade, e o Es­
tado se torne um quadro invadindo tudo, mas que em princí­
pio é somente limitado e um simples meio de contatos exte­
riores econômicos e comerciais entre os homens. Esse ainda
não é o caso em Hobbes, em quem a instauração de uma
esfera na qual o homem pode ser bom sem estar contudo
ameaçado tem um sentido metafísico-moral. Mas é bem o
caso em Locke.
Uma mudança cheia de conseqüências intervém então
na idéia social, e que não é visível à primeira vista. As pes­
soas tornam-se agora livres umas em relação às outras tam­
bém no Estado, e não somente antes da reunião em Estado
como na noção do estado natural. Segundo Locke, já no
estado natural é fixado um limite ao trabalho e à formação
das riquezas, pelo único motivo de que a acúmulação das
riquezas perniciosas é considerada imoral. Isso seria um des­
perdício, e o desperdício estaria em contradição com o sen­
tido do trabalho. Como só o instinto de conservação pre­
valece, a constituição de uma propriedade em maior escala,
que fosse necessária à vida do homem, não é injusta. Mesmo
a entrega do excedente ao seu próximo na indigência não é
exigida, partindo desse princípio. A propriedade não é in­
teiramente a mesma coisa no estado natural e na sociedade
civil. Como a fundação do Estado ocorre sobretudo em fun­
ção da proteção da propriedade adquirida pelo trabalho, esta
é agora uma posse que se origina da exploração das condições
legais que permitem protegê-la e adquiri-la. A posse pode
L ocke e M o n t e s q u ie u 23 7

aumentar além da medida da necessidade natural, como no


estado natural; ela pode mesmo mais que isso, porque o au7
mento é regulado e garantido legalmente. Ao mesmo tempo
vê-se crescer, pelo aumento d a , propriedade, a essência, a
substância social, o peso do homem. Se não era esse até então
o caso de nenhuma idéia social, é em compensação urna
característica do Estado burguês desde Locke.
Não existe mais, depois da fundação do Estado, obriga­
ção política ou social de entregar o excedente ao próximo
ou de praticar atos de beneficência. Ao contrário, as esmolas
desbastam as riquezas e a prosperidade (econômica) da so­
ciedade em seu conjunto porque liberam os mandriões da
coerção do trabalho. O acúmulo da riqueza em poucas mãos
na sociedade burguesa torna com certa razão os bens mais
raros e força assim os preguiçosos a um trabalho mais tenaz,
se querem fugir à necessidade e à miséria (Leo Strauss).
No capitalismo, em que Locke se atém ao termo da fase
espiritual e ao começo da fase secularizada e temporal, a
riqueza acumulada sob a forma de capital por indivíduos em
proveito próprio aumenta ao mesmo tempo o bem-estar de
toda a sociedade, se aí se inclui a criação (e a obrigatorie­
dade) de novas possibilidades de trabalho para todos. Mas
a religião tornou-se aqui o assunto pessoal dos indivíduos
tomados isoladamente; a liberdade do homem no estado na­
tural como no Estado está em que ele é seu mestre e o mes­
tre de seus bens, sem limitação e sem ter de responder por
isso perante quem quer que seja. No Estado, o homem não é
mais responsável pela salvação da alma de seu próximo, po­
dendo, no plano pessoal, preocupar-se ou não com isso. Tho-
mas Hodgkin disse, mais tarde, a respeito e de forma bas­
tante justa: “ Considero o direito de propriedade, o direito
que têm as pessoas individuais de receber o produto de seu
trabalho, de possuí-lo para seu próprio uso e seu próprio
prazer, particular e egoísta, ao mesmo tempo que o poder
de dispor de tudo livremente e da maneira mais agradável,
como essencial à prosperidade e mesmo à manutenção da
sociedade... e creio... com Locke que a natureza estabelece
esse direito” . ( The Natural and Artificial Right of Froperty
Contrasted, 1832). Já antes, Mandeville (1670-1732) pro­
curara demonstrar a mesma coisa, conforme o espírito de
Locke, com sua famosa “ fábula das abelhas” . Baseara a
238 H ist ó r ia das I déias S ociais

prosperidade da sociedade no egoísmo, na inveja, no inslinto


de força dos indivíduos.
O primeiro motor que leva os homens a adquirir a ri­
queza pelo trabalho e a satisfazer as necessidades com a
riqueza não é, em Locke, o gozo dos próprios bens, mas o
medo da pobreza, da miséria, da morte, o que é examinado,
no plano psicológico, de modo bastante pertinente. Falta-
-lhe no fundo a representação do reino da paz na Terra de
Hobbes, como esfera onde o comportamento mútuo dos ho­
mens, marcado pela afeição e o espírito de comunidade, é
possibilitado pela proteção toda-poderosa do Estado. Já se
disse, não sem razão, com a linguagem do materia^smo dia­
lético, que por esse motivo o trabalho se torna nele “ um
sofrimento que suprime o sofrimento*’. Trata-se evidente­
mente de uma marca de fantasia que Leo Strauss pretende
que, em suma, não é mais o gozo dos bens que é o objetivo
e a maior felicidade do homem, mas unicamente a posse das
coisas que lhe causam mais inveja, que ele encontra em uma
riqueza que cresce sem parar uma espécie de finalidade
absoluta, e faz assim da vida uma “ busca sem alegria da
alegria” . Nãò se encontra isso ainda em Locke ( Essay, II,
21). Em compensação é exato que isso é uma conseqüência
necessária de seu hedonismo. Também é exato que essa con­
seqüência necessária da aquisição da propriedade, da “ busca
sem alegria da alegria” se tornou amplamente em nossos dias,
partindo de Locke, a idéia social capitalista.
Os gregos, em suma, consideravam o trabalho e a aqui­
sição da propriedade como vis e se mantinham à distância
tanto quanto possível. A finalidade da vida era quando muito
a guerra, o combate; era, de fato, o jogo e a festa, onde o
homem se tornava o camarada dos deuses (Platão) ou então
a contemplação divina da natureza (Aristóteles). No cris­
tianismo, o próprio trabalho era considerado de forma mais
positiva, não contudo como um meio de aquisição da pro­
priedade, mas como uma santificação do mundo. Ê também,
em Marx, um mal necessário; não é o objetivo absoluto e
muito menos o é a propriedade. A propriedade é mesmo
aos seus olhos uma “ auto-alienação” do homem, portanto
desumana e indigna. Locke fundamentou essa noção de “ au­
to-alienação” , enquanto Hegel só'lhe fez dar o nome. Mas
a influência de Locke é tão grande até hoje que sua con­
L ocke e M o n t e s q u ie u 239

cepção do trabalho ( “ a busca sem alegria da alegria” ) não


somente permaneceu fundamental para o capitalismo secula-
rizado como também estendeu sua influência sobre o marxis­
mo enquanto adversário do capitalismo. A evolução, que
levou em nossos dias ao niilismo da sociedade, profetizada
por Nietzsche como sendo irresistível, teve sua origem na
idéia social de Locke.
Locke, no fundo, muito mais ainda do que Maquiavel,
completou a ruptura com a idéia social do cristianismo e
com a sua concepção da justiça. Mas ele nunca afirmou isso
tão abertamente quanto Maquiavel, e provavelmente ele
mesmo não reconheceu o alcance de sua concepção. Tem
havido no curso da história uma série de compromissos com
a crença cristã na comunidade absoluta do reino de Deus no
além, no gozo de Deus e na simples utilização dos bens do
mundo (frui e uti) : a caridade privada ao lado da simples
sociedade do Estado secular ou do império em Bizâncio, o
desprezo de toda riqueza e a obrigação de restituir todo o
excedente, no cristianismo primitivo ou na alta Idade Média,
a Hgação do aquém e do além, Estado e Igreja, na idéia do
Cristo-Rei, a santificação do mundo e a confirmação em Cal-
vino da eleição pelo sucesso terrestre, a tentativa de instau­
ração na Terra do reino de Deus através da criação em
Hobbes de uma esfera pacífica em que se pode ser bom.
Com o Estado sob o signo da aquisição da propriedade o
cristianismo não pode mais, se quiser permanecer fiel a si
próprio, consentir em qualquer compromisso, ao mesmo tem­
po que o Estado, sob o signo da aquisição da propriedade,
não pode admitir compromisso com o cristianismo. Sebastian
Franck afirma com razão: “A maldade começou a distinguir
no cristianismo o meu e o teu, chegando mesmo a estabe­
lecer aí a propriedade” . Mas “ a propriedade não tem sua
origem em Deus, mas na infidelidade dos homens” . Em um
meio inteiramente diferente (o dos estados da Nova Ingla­
terra), o bisavô do filósofo americano Emerson ainda rogava
“ cada noite para que nenhum de seus descendentes jamais
ficasse rico” . O gozo cristão de Deus, do além de Deus,
visto que existe ainda em Locke ao lado do aquém, é de
fato a fruitio dei, enquanto prolongamento da fruitio cibi et
vini aqui em baixo; a moralidade é para ele (de modo dife­
rente de Hobbes) desprovida de sentido sem recompensa e
castigo grosseiramente hedonistas ( Essay, II, 21).
240 H istória das I déias S ociáís

Para que a posse e a propriedade se tornem, enquanto


“ felicidade” suprema do homem, o objetivo absoluto, i^ocke
precisa conceber um Estado que proteja a segurança das
pessoas e sua liberdade de aquisição da propriedade, mas
que por isso mesmo se limita a isso. Já é quase uma con­
tradição interna. Não se pode conceber tal Estado de modo
correto, com a razão, pois quem diz razão diz conseqüência
lógica. Locke não chegou a tanto. Mas o acaso quis que
em sua pátria tal Estado há muito tivesse amadurecido rea­
lizando-se em vida de Locke com Guilherme III. Locke
não tinha senão que copiar esse Estado na particularidade
de sua constituição. Era-lhe preciso 110 entanto substituir»
-lhe seus novos objetivos, isto é, transformá-lo, em pensa­
mento, em um “ Estado que garanta legalmente a aquisição
da propriedade” . Foi somente esse encontro da imaginação
com a realidade em sua idéia social que lhe deu sua imensa
influência sobretudo nos países anglo-saxões.
Na Inglaterra o absolutismo também tinha, como na
França, reinado intermitentemente nos séculos XV, XVI e
XVII. Mas já bem antes, desde a Magna Charta (1215),
os germes de uma liberdade do indivíduo, que existiam em
toda parte no antigo Direito germânico, tinham adquirido
também um valor político. Essa liberdade do indivíduo não
era, até Locke (e mesmo durante muito tempo depois dele),
interpretada simplesmente como a forma de adquirir a pro­
priedade. Ao contrário, era, em sua origem, uma conseqüên­
cia da independência dos indivíduos, que tinha levado na
polis grega ao “ governo dos governados” . Tornara-se mais
tarde, na Idade Média feudal, a soberania dos barões em
face da Corte. Essa liberdade aparecia ainda, na primeira
grande Revolução e na idéia de Milton, de uma maneira lar­
gamente puritana e religiosa, como a escolha dos indivíduos
de serem pessoalmente responsáveis perante Deus (compre­
endendo naturalmente a co-responsabilidade em relação ao
próximo). Somente com a Revolução chamada de “ gloriosa” ,
que colocou no trono Guilherme de Orange, é que foi fun­
dada definitivamente a constituição inglesa, com este sentido
de confirmação da independência dos indivíduos (não ainda
no sentido de Locke de um Estado sob o signo da aquisição
da propriedade). Locke só fez apossar-se disso de passagem,
transformando-o no sentido de sua Antropologia. Mas essa
Antropologia avalia a essência e a grandeza da existência
L ocke e M o n te sq u ie u 241

humana em relação à grandeza do trabalho realizado pelo


homem e à grandeza da propriedade por ele adquirida ou
por sua descendência. Mas pode-se dizer a este respeito,
como em Maquiavel, que essa idéia social não foi criada
tanto para a sociedade que a viu surgir quanto para o futuro.
Contribuiu então, através do esboço de seus quadros antro­
pológicos e sociais, para fazer nascer esse,futuro.
A constituição política inglesa da época em que Locke,
idoso, voltava do exílio, era um compromisso entre o Parla­
mente e a Coroa. Mas um compromisso pelo qual o Parla-
meiito abocanhara a parte do leão. O pretendente ao trono,
para tornar-se rei, deu contudo prova de docilidade, isto é,
limitou-se desde o início a um papel de representação “ glo­
riosa” . É evidente que, nos períodos de luta das facções
parlamentares, esse papel compreendia certa autoridade e
um peso a cujo respeito se pode falar de um “ balance of
p o w e r s Assim todo rei, por pouco que fosse prudente e
paciente, como o era Guilherme, podia esperar com confiança
pelo futuro. Locke formulou esse estado de coisas do ponto
de vista do Direito Constitucional, em sua famosa concepção
da “ divisão dos poderes” .
O direito de legislar permanecia reservado ao Parla­
mento em sua qualidade de representante do povo, e mais
tarde também o controle do Governo (Legislative). O rei e
seu aparelho administrativo (que tinha sua origem no abso­
lutismo) possuíam apenas o direito de fazer executar as leis
promulgadas pelo Parlamento e de dirigir a política externa
(Executive) . A jurisdição dos juizes, como terceiro poder
separado dos outros, só veio a ser acrescentada pelo espírito
construtivista de Montesquieu. Assim o Parlamento é sobe­
rano através de seu intermediário, o povo. Como ele não
pode tomar resoluções particulares, mas somente promulgar
leis gerais, sua função limita-se quase por si mesma a um
controle (sem dúvida independente e discricionário) das
“ prerrogativas” do Executivo. Locke viu isso de modo cor­
reto. Trata-se no conjunto de uma constituição “ mista” , como
o tinham desejado Aristóteles e Políbio, e como o tinham
recusado Bodin e Hobbes.
O sentido da divisão dos poderes, na idéia social de
Locke, não é senão o enfraquecimento e a limitação do po­
der político perante a pessoa individual ocupada com a aqui­
242 H istó ria das I déias S ociais

sição da propriedade. Ê o método constitucional, pelo qual


o Estado se toma o meio desse objetivo absoluto, pelo qual,
poder-se-ia dizer, o Estado é degradado. A divisão dos po­
deres não é ainda uma forma de autogoverno dos governa­
dos independentes reunidos numa comunidade, como na polis
grega. A eleição dos deputados não é de forma alguma par­
ticipação no governo, mas quando muito um controle indireto
deste. Na idéia social de Locke, os deputados somente em
parte são designados pela maioria e em parte por um recen­
seamento das fortunas, como mais tarde na França burguesa
do século XIX, sob Guizot. Na realidade o Parlamento era
então uma assembléia das classes. Somente aos poucos é
que se foi formando o que se denominou sufrágio livre, se­
creto e universal.
Mas a realidade da divisão dos poderes nos séculos XVII
e XVIII consistia na Inglaterra nos freqüentes compromissos
entre dois “poderes” que não se achavam tão separados
quanto na idéia de Locke e que só eram caracterizados pela
diferença de suas competências como Legislativo ou Exe­
cutivo. Além disso, os resquícios dos vínculos medievais
de vassalagem entre o monarca e os cidadãos ainda eram
bastante fortes. Ainda o são na Inglaterra atual. Isso dava
ao rei uma autoridade que excedia de muito a função exe­
cutiva (execução das leis poT um empregado do Estado).
Mas ele dava igualmente aos cidadãos e particularmente à
nobreza, precisamente em sua fidelidade ao rei, uma liber­
dade e uma independência fora do trabalho, da aquisição
das riquezas e da propriedade, que eram realmente uma
co-direção, isto é, muito mais do que a simples legislação
e o controle por deputados eleitos. É nisso que se baseia a
evolução de personalidades dotadas que, oriundas de todas
as classes, puderam ascender ao poder, e com as quais a
Inglaterra edificou nos cinco continentes seu imperium, hoje
defunto, mas que nos séculos XVIII e XIX só tinha compa­
ração com o império romano. Ele forneceu durante muito
tempo à ilha um poderio e uma riqueza que superavam de
longe seu tamanho.
Entretanto tal divisão dos poderes tem sempre um re­
verso negativo. Em meio de Estados governados de modo
rigorosamente absolutista, só podia permitir-se o enfraqueci­
mento do poder político no interior e no exterior, um Estado
L ocke e M o n te sq u ie u 243

que, com um mínimo de força naval tendo em conta a téc­


nica militar dos séculos XVII, XVIII e XIX, estivesse tam­
bém incomparavelmente protegido por uma situação insular
como a Inglaterra. Isso não teria sido possível na primeira
Revolução, na época de Hobbes. O fenômeno teria levado
os Estados continentais, com suas fronteiras abertas, à ruína
no interior e ao esmagamento no exterior. Por isso é que
somente na Inglaterra e em determinado momento essa idéia
poderia ser coroada de êxito. Em geral, permaneceu como
um artigo de importação um tanto quanto duvidoso no con­
tinente europeu ou alhures. E mais ainda: uma ideologia
que podia enfraquecer todo inimigo se a Inglaterra lhe con­
seguisse impor sob a aparência de um total desinteresse.
O grande filósofo inglês Hume (1711-1776) examinou
de modo bastante inteligente, embora um pouco sinuoso, os
problemas que colocava o liberalismo ao dividir os poderes
de forma ainda independente da Antropologia da proprie­
dade e do trabalho: “ Em todas as formas de governo impera
uma luta contínua — aberta ou secreta — entre autoridade
e liberdade: nenhuma das duas pode vencer esse combate.
É preciso sacrificar em todo Estado muita liberdade. Mas
a própria autoridade, que limita a liberdade, não pode nunca
— e não deve talvez nunca — tomar-se, numa constituição,
absoluta e incontrolável... A forma de govemo que se clas­
sifica habitualmente como livre é feita de maneira que divida
o poder entre diversos membros. Sua autoridade reunida
não é menor do que a de um monarca, chegando algumas
vezes mesmo a ser maior. Mas é-lhe preciso no curso habi­
tual de seu desenvolvimento político tomar todas as medidas
à base de leis gerais e iguais para todos, que devem anteci­
padamente ser conhecidas dos particulares e de todos os que
lhe estão submissos. Com este sentido é preciso convir que
é na liberdade que reside a perfeição da sociedade burguesa.
Mas carece contudo reconhecer que a autoridade é essencial
à existência dessa sociedade. No combate que tantas vezes
ocorre entre uma e outra, a autoridade pode, deste ponto
de vista, reivindicar a primazia ( Essay on the Origin of Go­
vernment, u i ) .
Isso de fato somente é valido para a divisão dos pode­
res enquanto método de integração política que tem outras
raízes que as do tipo puro do Estado segundo Locke, o Es­
244 H istó r ia das I déias S ociais

tado burguês sob o signo da aquisição da propriedade. Os


objetivos humanos, o conteúdo dessa própria idéia social
enquanto “ busca sem alegria da alegria” , são muito mais du­
vidosos e são dissimulados pelas possibilidades de uma sepa­
ração constitucional dos poderes, que só é utilizada com o
propósito de chegar à liberdade pessoal pelo enfraquecimento
do poder político.

Essa idéia de separação dos poderes, mais de uma gera­


ção mais tarde, no século das Luzes, foi apreendida, repen­
sada pelo francês Montesquieu, que lhe deu uma forma ra­
cional mais conseqüente, mas menos prática. A Antropologia
de Locke, segundo a qual o trabalho e a aquisição' da pro­
priedade passavam por ser a essência do homem, estava
muito afastada das idéias de Montesquieu, formado na es­
cola da Antiguidade. Ele era jurista e historiador, escreveu
obras sobre as causas do esplendor e decadência dos roma­
nos e sobre o Espírito das Leis (em sua relação com as
condições históricas, morais, culturais, econômicas e geográ­
ficas).
Montesquieu não separa mais o poder político em ape­
nas duás instâncias, o Executivo e o Legislativo, mas acres­
centa-lhe uma terceira: a instância judiciária. Os domínios
dessas três partes do poder são, no jurista Montesquieu, mais
rigorosamente delimitados do que no químico, médico e ho­
mem do mundo, Locke. Também aqui a instância legislativa
é 5oberana na constituição do Estado. E como Montesquieu
só lhe deixa o direito de legislaT e não a possibilidade de
tomar resoluções, o Estado consiste nele em um “ domínio das
leis (gerais)7. O Executivo (levando em consideração o apa­
relho administrativo desenvolvido pelo absolutismo) é quase
mais administração do que governo, mais ou menos livre da
fidelidade ao rei e posto ao serviço puramente prático do
Estado. Quanto ao poder judiciário, como subordinador de
casos particulares às leis gerais, Montesquieu qualifica-o: “ de
qualquer forma nulo” . É evidente contudo que é indispen­
sável, sendo definido como uma “ autoridade” própria, não
porque possua um poder real, mas porque deve permanecer
independente dos outros poderes.
Ê muito importante considerar o modo pelo qual Mon­
tesquieu chegou a essa idéia social. Ele vê quase um obje­
L o tK li E MONTESQUIEU 245

tivo absoluto no método de Locke de limitação do poder


político, isso não em consideração da constituição de sua
pátria, a França, onde o absolutismo ainda reinava. Mesmo
a vida intelectual na época das Luzes somente se libertava
desse absolutismo graças a algumas personalidades literárias
ambiciosas, e procurava logo unir-se à sociedade da Corte.
Assim o sistema de Montesquieu é em primeiro lugar um
desejo de suprimir o absolutismo. Mas ele também realizou
grandes viagens na Inglaterra (como mais tarde seu compa­
triota Tocqueville na América) onde estudou a vida política
em comparação com a de seu país. Tratou a constituição in­
glesa menos em seu espírito efetivaipente muito complexo
do que em sua qualidade de homólogo do absolutismo.
Montesquieu morreu muito tempo antes da Revolução
de 1789. É certo que essa Revolução causou o fim do abso­
lutismo na França, sem no entanto substituir esse absolutis­
mo pelo liberalismo do Estado jurídico construtivo de Mon­
tesquieu. Ao invés da realeza absoluta surge uma democracia
plebiscitária segundo a idéia social de Rousseau, o absolu­
tismo do povo, da maioria, no sistema eleitoral. A idéia social
de Montesquieu, em compensação, não leve grande iníluên-
cia no século XVIII, mas somente no século XIX. Então
aliou-se de novo com o Estado burguês de Locke, afligido
já, é verdade, pelas sombras que anuncia\ am a era industrial
e o reino da classe operária. Ela concorreu, com algum
atraso, para despojar, no continente, &.realeza do poder, sem
efusão de sangue e (talvez não inteiramente no sentido de
Montesquieu, mas antes no de Locke) para transferir a direção
do Estado aos proprietários e às pessoas instruídas. A isso
se chamou com uma expressão um tantc singular de “ estabe­
lecimento da monarquia constitucional” . Esse estabelecimen­
to ocorreu sob a pressão da opinião pública e da imprensa.
O Estado jurídico descrito de forma clássica em 1872 por
Rudolf Gneist é, no fundo, a realização da idéia social de
Montesquieu.
CAPITULO XXI

Rousseau

P a s s a n d o de Montesquieu a Rousseau, ficamos quase na


mesma época. Rousseau viveu entre 1712 e 1778, sendo por­
tanto somente 25 anos mais novo do que Montesquieu. Mas
sua idéia social não é de modo algum a continuação da
linha liberal de Locke, Hume e Montesquieu. Também não
é uma manifestação do espírito iluminista como todo libera­
lismo, nos tempos modernos, mas uma vitória sobre esse
espirito. Em sua pedagogia, Rousseau Tetomou algumas coi­
sas de Locke. Em seu pensamento social ele se inspira em
suas próprias fontes, sendo de todos os filósofos dos tempos
modemos o que se mantém mais próximo da polis antiga.
Na verdade seus pensamentos surgiram um pouco como uma
antítese plebéia não tanto ao absolutismo quanto à frivoli­
dade da sociedade da época do rococó decadente. (O espí­
rito do período das Luzes estava bastante acomodado a esse
rococó.) A isso se acrescenta a experiência de sua juven­
tude na comunidade citadina de Genebra onde nascera no
seio de uma antiga família de artesãos.
Rousseau viajou muito pelo mundo e levou uma vida
aventureira e bastante desregrada, apresentando certos tra­
ços patológicos. Deve sua celebridade literária à sua resposta
negativa (talvez por instigação de Diderot) à pergunta apre­
sentada em concurso pela Academia de Dijon, sobre se as ciên ­
cias e as artes contribuíram para depurar os costumes. As
idéias que desenvolveu nessa ocasião constituíram os funda­
mentos de sua Filosofia. Erguem-se em uma oposição cate*
R o u s se a u 247

tfórica às Luzes. Sua obra filosófica mais importante é o


segundo Discurso sobre a origem da desigualdade entre os
homens. Encontra-se sua idéia social antes de tudo no Con­
trato Social. Mas deve-se acrescentar, para compreendê-lo
mais profundamente, os romances  Nova Heloísa e o Emí­
lio (com o “ Vigário saboiano” ), as Confissões, o artigo da
enciclopédia sobre a Economia Política e os Devaneios de
um Caminheiro Solitário.
Rousseau remonta ainda mais longe sobre as idéias caras
a Hobbes e a Locke de um estado natural anterior ao Es­
tado, ao qual se poderia chamar o “ estado primitivo” . Nele
se conserva, de fato, o estado natural, como o de uma guerra
de todos contra todos, na passagem do estado primitivo à
sociedade civil. Quanto ao estado primitivo, trata-se de uma
vida natural sem previdência nem recordação, puramente
presente, com um mínimo de necessidades simples e naturais,
facilmente satisfeitas, uma vida de felicidade interior. Não
é no entanto um sonho romântico-idílico à maneira da poesia
arcádica, como lhe censura uma civilização decadente. Não
falta a esse estado primitivo nem a dureza nem a crueldade,
mas talvez a indiferença, que reinam também entre os ani­
mais. Quem é doente ou ruim é eliminado tão naturalmente
quanto no reino animal. Mas ainda falta ao homem a covar­
dia humana, a dissimulação e a deformação da civilização, o
exagero de suas necessidades; falta-lhe, em suma, ter bens não-
-naturais. Por isso ele era foTte, independente e feliz; por­
tanto, bom e livre.
É claro que Rousseau utilizou, para traçar esse quadro,
os estudos etnológicos de seus contemporâneos. Mas isso
tem ou teria tão pouco valor quanto em Hobbes, se não
existisse por trás uma razão existencial presente. Ê em Hobbes,
conforme vimos, a guerra civil sempre latente e aberta. Não
pode tratar-se em Rousseau, em sua idealização do estado
primitivo, de uma sociedade, mas de uma comunidade, apesar
de ou por causa da liberdade e da independência do indiví­
duo. Assim, só lhe resta então uma possibilidade: o senti­
mento de segurança, de uma proteção natural, que não era
ainda oriunda de uma autoridade, quando os homens não
estavam ainda separados por fronteiras, o sentimento de fe­
licidade que a criança usufrui em família corn toda a liber­
dade. É aqui que reside a atualidade da idéia de Rousseau
248 H istó ria das I déias S ociais

de um estado primitivo da humanidade, anterior portanto


aos conflitos.
Partindo desse estado primitivo venturosamente prote­
gido, livre, sem deformação e onde reina o bem, é que Rous-
seau parece de início recusar absolutamente toda reunião arti­
ficial dos homens em sociedade. Aquele que primeiro cercou
um pedaço de terra, excluindo dali os outros, afirmando:
isto é meu, provocou a luta pela posse desse terreno. Mas
essa luta devia levar, se não à ruína, pelo menos ao Estado.
Entretanto, o Estado e a civilização (e finalmente também
ésse primeiro ato de tomada de posse, que funda a proprie­
dade) têm corrompido até hoje a humanidade. Antes, tudo
era comum a todos; poderia mesmo dizer-se era propriedade
da associação ou da ordem instaurada pela natureza ou por
Deus (hierarquia também, por exemplo, no patriarcado da
família). O isolamento e os conflitos só se originaram com
a propriedade privada que exclui os outros de certos bens,
aos quais têm o mesmo direito do proprietário do momento.
Poderia dizer-se, do ponto de vista de Rousseau: a guerra
hobbesiana de todos contra todos pelos bens do mundo é cer­
tamente uma representação correta, mas ela não recua sufi­
cientemente longe. Não é senão a conseqüência social da
primeira ação de um homem, que procura colocar com a
propriedade privada barreiras entre os homens. São barreiras
que existem somente numa sociedade, em oposição à comu­
nidade e levam naturalmente a um conflito, que só pôde ter
fim pela coerção do contrato “ social” e pela onipotência do
Estado. Mas no sentido de Locke o contrato social é de
início concebido sobre bases egoístas: reconhecimento da
propriedade do Outro com a condição de que este, em com­
pensação, reconheça minha propriedade. Aquêles que, nesse
contrato, nada ou pouco possuem são sempre os desfavoreci­
dos que devem trabalhar para os outros. São os “despossuí-
dos” , os proletários do Estado burguês de Locke, aos quais
Marx procurará dirigir-se mais tarde no Manifesto Comunista.
Rousseau não vai tão longe. Ele critica somente o Es­
tado existente enquanto expressão dessa oTdem social absur­
da e não natural da propriedade privada de homens separa­
dos uns dos outros e que não se sentem mais responsáveis
pelo seu próximo. Nesse ponto é o adversário de Locke e
o precursor de Marx. Pretende ele que no Estado existente
R o u s se a u 249

(com a propriedade privada), em vez da natureza primitiva


do homem e de sua comunidade, surge a sociedade, que “ não
oferece mais aos olhos do sábio do que uma assembléia de
homens artificiais e de paixões artificiais que são a obra des­
sas novas relações e não têm nenhum verdadeiro fundamento
na natureza” ( Segundo Discurso, 2). Encontramos assim,
como já em Locke, a noção de uma auto-alienação, mas
desta vez com sinais negativos e inteiramente conforme o
sentido de Marx. O sentimento -natural de amor a si mu­
dou para um sentimento de amor-próprio e de egoísmo. Daí
resulta uma ausência de liberdade humana, uma hierarquia
pervertida da autoridade natural, a saber, a dominação (dos
possuidores) e escravização (dos que nada têm); quer dizer,
precisamente o Estado sob o signo da aquisição da proprie­
dade de Locke. Tudo isso se originou como uma conseqüên­
cia da perda do estado natural primitivo, de sua substituição
artificial por uma propriedade. Trata-se por isso (não entra­
remos em detalhes neste assunto) de uma conseqüência do
advento das ciências. As ciências substituem com efeito o
instinto natural por um encadeamento lógico baseado em
certas hipóteses. Elas são, por meio da técnica, responsá­
veis pelo trabalho da indústria.
Se examinássemos cuidadosamente essas conseqüências
da propriedade, da reunião em sociedade, da submissão do
instinto primitivo à ciência, à técnica e à indústria, só nos
restaria declarar: terminemos isso e voltemos à vida primi­
tiva nas florestas. Aí o homem era notoriamente mais feliz
do que na sociedade civilizada. Pregando essa vida primi­
tiva conforme à natureza, Rousseau passa como sendo o pre­
cursor de todo o romantismo, o filósofo do “ retorno à natu­
reza” em um sentido primitivo e banal. Nada seria mais
absurdo. A grandeza filosófica de Rousseau surge precisa­
mente do fato de não tirar esse tipo de conclusão tão super­
ficial. Ele responde com efeito às imagens da felicidade, da
liberdade e da bondade da natureza e da corrupção da civi­
lização e da sociedade com uma pergunta positiva: como se
pode, no interior da cultura, do progresso técnico, das ciên­
cias e da propriedade individual (que não se pode fazer re­
cuar), Teencontrar a felicidade, a liberdade e a bondade do
homem no estado primitivo? Como podemos evitar os defei­
tos e as anomalias da civilização, isto é, fugir às paixões fa­
250 H istó ria das I déias S ociais

laciosas e artificiais que destroem a felicidade para a qual


nascemos?
Esse quadro da felicidade futura da humanidade encon­
tra-se em Rousseau no mesmo local em que, em Hobbes, se
acha o pensamento do “ reino de Deus” na Terra, onde o
homem pode sem risco mostrar-se bom no sentido da ordem
moral cristã. Rousseau adquire assim uma profunda seme­
lhança com o Estado reformado de Platão. Exceto que seu
pensamento é muitas vezes mais cortante, mais mordaz na
crítica e mais conforme ao perigo a que se expòe o homem
nos tempos modernos. Sua visão retrospectiva da comuni­
dade dos primórdios da humanidade não permanece uma
nostalgia passiva, contém uma tendência agtessiva de aposi­
ção à sociedade moderna. Daí resulta uma conseqüência
imediata: a Revolução Francesa. A ligação do passado e do
futuro na imaginação, a ligação da reação e da revolução
na realidade são comuns a Platão e a Rousseau.
Qual é então o aspecto dessa nova associação humana
que é preciso realizar no futuro segundo o modelo esboçado
pelo estado primitivo, mas conservando a realidade de uma
civilização avançada? Quais são os meios e os métodos para
reinstaurá-la no mundo presente corrompido pela civilização?
Rousseau também constrói, segundo o antigo esquema,
um Estado, por intermédio de um contrato, com a condição
de que este possa realizar-se voluntariamente. De fato, esse
contrato tem nele uma forma algo diferente e também outro
conteúdo em relação aos de Hobbes ou Locke. Todo cida­
dão deve, enquanto se subordina ao poder do Estado, perma­
necer contudo livre no Estado. Ele tem essa possibilidade
na medida em que reconhece como um todo, em seus obje­
tivos internos e externos, a si mesmo na vida política, sua
substância moral aumentada pela comunidade, elevada e tem-
poralmente ampliada mesmo em face da vida e da morte do
indivíduo. Assim a vontade mora], (e não mais o trabalho
e a propriedade) torna-se a essência e a substância do
homem, e essa vontade moral de cada cidadão tomado iso­
ladamente deve ter sempre por objetivo o bem comum. O
que provoca, na sociedade, o isolamento em relação aos ou­
tros não é senão a vontade egoísta do indivíduo isolado, vi­
sando à aquisição da propriedade. Ê com este sentido que é
concebida a diferença entre a volonté généfale e a volonté
R o u s se a u 251

de tous. A vontade geral é a da verdadeira comunidade


social, do Estado, isto é, onde a vontade do todo e ao mesmo
tempo a vontade moral de cada cidadão, não-sub missa ao
jugo do egoísmo, não-alienada na propriedade privada, coin­
cidem formalmente. Vontade de todos (careceria aqui em­
pregar o plural) são as vontades de todos os homens, von­
tades egoístas, isoladas, sem laços entre elas, deslocando
reciprocamente suas esferas de propriedade segundo o di­
reito privado. Na limitação de seu egoísmo a uma medida
natural e na subordinação ao bem comum, o indivíduo liber­
ta-se de sua alienação. Liga-se à sociedade e dela se utiliza
de forma mais prudente, participando de seu lugar e segundo
suas aptidões nas grandes tarefas. Em seu egoísmo, em com­
pensação, cada um é privado de liberdade, ligado a suas pro-
pensões, inconsistente e abandonado à arbitrariedade e aos
caprichos.
Como, por outro lado, essa vontade geral não possui,
do ponto de vista social, senão a forma do livre acordo de
cada homem independente, a soberania do Estado, segundo
Rousseau, Teside de modo inalienável no povo. Isso já fora
o caso, como vimos, em Althusen. Não tem importância
saber se Rousseau, direta ou indiretamente, teve conheci­
mento disso, pois essa idéia era fácil de conceber. Em Bodin
e em Hobbes, a soberania do monarca provinha também do
povo. Ela era, em Bodin, semelhante à que existia na dita­
dura romana ou no cesarismo; em Hobbes, era transferida
de uma vez por todas ao soberano em um contrato dos in­
divíduos entre si. Em Locke, só o Parlamento controlava o
governo e impedia as faltas em relação às regras pacíficas
da aquisição da propriedade e da liberdade da pessoa envol­
vida nessa aquisição. Em compensação, em Rousseau, aquele
que detém o poder, quer se trate de príncipe ou governo,
permanece simples mandatário do povo, um mandatário pro­
visório, substituível a qualquer momento e precisando inces­
santemente do acordo de todos. Rousseau critica o sistema
eleitoral inglês porque os cidadãos aí só são realmente livres
no momento da eleição do Parlamento, perdendo de novo
sua liberdade durante toda a duração do mandato dos eleitos.
Ele almeja, ao contrário, um plebiscito permanente, não se
limitando o voto a uma eleição, mas com o povo pronuncian­
do-se sobre as questões importantes (como acontece nos can­
tões da Confederação Helvética). È evidente que isso é
252 H istó ria das I déias S ociais

concebido segundo o modelo da polis antiga. Os cidadãos,


livres e independentes, proprietários de terras aptos a garan­
tir a defesa, eram convocados pessoalmente, na assembléia
geral, a debates e a decidir em toda ocasião.
A grande questão é saber até que ponto, no entanto, a
vontade de todos, instaurada na prática da maioria, tem o
direito de passar pela vontade moral geral. Em cada escru­
tínio ou eleição procede-se como a maioria quer, em oposi­
ção à minoria. Sabe-se, através de inúmeras experiências,
que na maior parte das vezes, ou pelo menos assaz freqüen­
temente, não é a maioria, mas a minoria que quis o que era
melhor e mais pertinente, freqüentemente mesmo um só
homem contra todos. No plano político só é ativa a minoria.
Seria uma mera superstição deduzir, de modo positivista, da
experiência da história a superioridade da vontade da maioria.
Em primeiro lugar o que é preciso perguntar-se é sob
quais condições a vontade da maioria pode em princípio
representar a vontade moral comum, a vontade geral de Rous
seau? Resposta: somente quando cada cidadão é realmente
independente, quando domina em todos os seus aspectos as
questões que se lhe apresentam ç segue, para tomar suas
decisões, sua consciência. Isto é, quando cada um se decide
pela reflexão, colocando-se no lugar do conjunto da nação
e não em obediência a seus caprichos. Então e somente
então poderia considerar-se a opinião da minoria como um
erro e como uma vontade incorreta, submetendo-a sem inco-
veniente à maioria. A minoria então poderia curvar-se vo­
luntariamente às decisões da maioria, porque ela é a maioria.
São condições ideais que se antecipam à idéia de que a von­
tade da maioria depende de um “ imperativo categórico” ,
como em Kant: “ Aja sempre de modo que possas considerar
a máxima de tua vontade como uma lei nalural universal” .
Nem todo indivíduo satisfaz essas condições, e é muito
difícil que a maioria o faça mesmo de maneira aproximada.
A opinião da maioria é muitas vezes obscurecida peTas pai­
xões, orientada por demagogos sem consciência, e ainda mais
incompetente no plano prático à proporção que a vida polí­
tica se torna mais complicada, que apresenta detalhes téc­
nicos e problemas precjsos. Dificilmente podemos atualmen­
te encontrar uma questão para a qual os especialistas não
tenham reservadas duas ou mais opiniões contraditórias. A
R o u s se a u 253

influência do que se chama de forças anônimas, dos financia­


dores da imprensa e de todos os fabricantes da opinião pú­
blica, partidos e grupos de interesses egoístas unindo-se no
Estado contra o Estado e combatendo-se numa espécie de
guerra fria de todos contra todos, é imensa e falseia toda
decisão moral do indivíduo, de seus representantes e da
maioria. A minoria que está em desvantagem estará sempre
propensa a crer que esses defeitos não lhe dizem respeito,
mas apenas à maioria vitoriosa.
Mas se o ressentimento da minoria, devido à sua posi­
ção subalterna, torna-se mais forte do que a submissão e se
a maioria não deixa mais à minoria a possibilidade de uma
submissão honrosa em que não sacrifica nem sua personali­
dade nem sua independência, isto é, se ambas põem o inte­
resse de seu partido acima do bem comum, a ação resultante
da decisão da maioria não é mais moral, não é mais a von­
tade geral segundo o sentido de Rousseau. Antes de sua
supressão pela T e v o lu ç ã o , as democracias, no curso da his­
tória, pereceram pelo fato de que a maioria se tornava into­
lerante p tirânica e a minoria não podia mais superar seu
ressentimento. Sempre há motivo de ruptura, que leva à
ruína, quando não é mais possível submeter a qualquer preço
(mesmo ao preço do processo eleitoral) sua própria opinião ao
controle de uma formação livre da opinião e ao risco possível
de deixá-la tornar-se a opinião da minoria.
Se se considera com isenção de ânimo a experiência feita
pela Antiguidade no que toca ao princípio da maioria, pode-se
afirmaT que esse princípio se conservou — nos limites da
imperfeição humana — durante todo o tempo em que cada
um dos cidadãos com direito a voto (preparado que estava
graças à sua capacitação para ir à guerra e graças à adminis­
tração de sua propriedade territorial) era independente a
ponto de poder colocar sua inteligência da coisa pública acima
de seus caprichos, e por todo o tempo em que a vida política
ainda não era muito complicada e a maioria das questões
e das decisões não excediam o limite do entendimento médio.
Sem dúvida alguma Péricles já reinava em Atenas com os
mesmos meios demagógicos da persuasão (sob as simples
formas da democracia) e como uma espécie de tirano não-
-sanguinário, ao contrário, mais tarde, de Cléon e dos que
condenaram Sócrates à morte. A única diferença entre os
254 H isto ria das I déias S o ciais

simples demagogos democratas e Cléon residia nó fato de


que ele baseava essa tirania em sua concepção, amadurecida
na solidão, de que era bom para Atenas, quando esses dema­
gogos não possuíam mais tal entendimento. Em Roma, depois
do fracasso da tentativa de reforma de Tibério Graco, a
democracia não foi mais possível, porque não havia mais
cidadãos livres e independentes, mas somente uma massa
anônima deixando-se levar por qualquer argumento ad homi-
nem. Shakespeare mostrou-o na oração fúnebre de Marco
Antônio em sua tragédia Júlio César.
Independentemente de Roussèau, uma coisa é certa: uma
volonté générale autêntica e moral pode existir em princípio
no Estado, segundo o princípio da maioria tanto quanto se­
gundo a representação sagrada do povo pelo soberano (Egito
antigo), ou por uma elite, uma nobreza de nascimento, de
merecimento ou de educação (Platão). Na verdade (e tam­
bém para a volonté générale de Roussèau), é preciso somente
que seja satisfeita a seguinte condição, a saber, que os ho­
mens que Tepresentam o Estado em seu conjunto sejam, pelo
menos no fundamental e nos limites da perfeição humana,
um modelo moral no sentido de que cada um possa aí reco­
nhecer o melhor de si mesmo.
A democracia parlamentar moderna, que se utiliza tam­
bém do sistema majoritário para formar a vontade política,
acusa entretanto, ainda que se Tefira de bom grado a Rous-
seau, diferenças consideráveis com a idéia social deste filó­
sofo. Isso não deve ser aqui um julgamento de valor, mas
somente um esclarecimento sem equívoco. Numa constitui­
ção que se aproximasse da de Roussèau, o deputado eleito
pela maioria só poderia ser, em princípio, o Tepresentante
de todos os eleitores sem exceção, nunca o representante ou
o membro somente de um partido. Ele deveria discernir
a vontade geral, concebida em seu sentido mais estrito, a
vontade moral comum, de modo algum na opinião mutável
de todos, mas na sua própria razão exemplar (a razão “ prá­
tica” , o imperativo categórico de Kant) independentemente
de seu interesse ou do de seus eleitores. Qualquer vínculo
com a linha de um partido, qualquer interesse particulàT,
qualquer filiação a um partido seria uma traição, a substi­
tuição da vontade moral comum, da vontade geral pela opi­
nião e interesses de grupos (vontade de todos). Ainda no
R o u s se a u 255

historicismo do século XIX, suavizado em relação à abstração


rigorosa do século XVIII, Emest Renan, conforme o espírito
de Rousseau, era de opinião que a maioria não tinha qual­
quer direito a impor-se, se essa maioria não representava
a razão (O Futuro da Ciência).'
Ao contrário disso, todo deputado eleito é, na democra­
cia de partidos modernos, o representante eleito de seu par­
tido. Mas os partidos representam os interesses de grupos
particulares (confissões cristãs que, não coincidindo com o
Estado, como era o caso na idéia medieval do Cristo-Rei,
se estendem além dos limites do Estadp; classes sociais de
operários ou de empregadores, tendo igualmente interesses
internacionais; visões filosóficas do mundo, como o libera­
lismo, a tradição ou o progresso). O sistema majoritário
tem aqui um sentido inteiramente diferente. Seu propósito
é determinar de cada vez a participação numérica desses
grupos, para um período determinado de 3, 4 ou 5 anos, e
experimentar ou empregar aos olhos dos eleitores do próxi­
mo Parlamento as opiniões do partido. A formação da von­
tade política no Parlamento, e no governo que ele controla,
é então em princípio um compromisso que se estabelece
progressivamente entre os diferentes partidos. Ele forma a
trama da ação política, no mais das vezes sob a pressão da
ameaça de ver, no interior, o Estado desagregar-se em gru­
pos particulares, ou de ver, a partir do exterior, esmagados
os interesses comuns dos partidos que compõem a maioria.
Essa pressão é, por assim dizer, seu princípio de seleção e
de constituição.
A doutrina de Rousseau é uma idéia social e de modo
algum um Estado histórico real. Com nossas considerações
sobre o princípio da maioria desviamo-nos, para chegar a
um julgamento da realidade. É evidente que isso não foi
sem razão. Foi menos o caso para o próprio Rousseau, que
procurou resolver esses problemas de outro ponto de vista
e em seu princípio.
Para poder considerar a vontade da maioria como a
vontade moral comum, ele coloca desde o início como prin­
cípio (por assim dizer como hipótese lógica e como condição)
que o povo é sempre bom por natureza, que o que mais
importa é restabelecer, eventualmente por meio da educação,
essa natureza essencialmente boa na origem. Ele se apro-
256 H istó ria das I déias S ociais

xima aqui até certo ponto do pensamento platônico de um


Estado onde reinem as pessoas educadas. Essa idéia da na­
tureza sempre boa do povo, dessa natureza pelo menos indes­
trutível em sua essência, toma-se no interior dessa idéia so­
cial uma crença que se pode, como toda crença, aceitar ou
recusar, que se pode mesmo até certo ponto fazer surgir, e
em que somente a ação decide em última análise. É essen­
cial, em nosso contexto, reconhecer que ela faz parte absolu­
tamente dessa idéia social e que sem ela o princípio da maio­
ria de Rousseau perderia todo o sentido.
Mas se a vontade da maioria é realmente a vontade
moral geral, as vontades individuais divergentes e os egoísmos
podem a todo instante (e se necessário pela coerção) ser
reduzidos àquilo que é seu próprio objetivo moral e que foi
perdido de vista, obscurecido ou traído. A liberdade do
indivíduo não consiste em uma tomada de posição pessoal
contra a comunidade, ou em sua intocabilidade, como em
Locke, ou nos direitos naturais dos homens na América do
Norte. Consiste exclusivamente em que, como na polis an­
tiga, o indivíduo particular pode adquirir uma influência
política sobre a formação da vontade geral, justamente no
sistema majoritário, pelo voto e o escrutínio. Exatamente
como na polis antiga não existe em Rousseau liberdade em
relação ao Estado. O Estado é assim uma verdadeira co­
munidade e, como tal, totalitário. Não é uma sociedade de
pessoas privadas, segundo o sentido de Epicuro ou de Locke,
colocando-se sobre a base do egoísmo, segundo as regras da
paz da alma ou da aquisição da propriedade.
Há certamente em Rousseau um direito natural, que se
baseia na organização universal das coisas por Deus. É
assim veritas, de modo algum voluntas ou auctoritas, mas
também não simples convenção, nomos ou thesis no sentido
epicurista. Mas a verdade universal do direito natural deve
ser aplicada às associações humanas por leis e preceitos, deve
ligar essas associações. A auctoritas que realiza isso é natu­
ralmente a vontade comum da maioria, isto é, as decisões
e as leis da nação. Adquire-se por esse fato, do mesmo modo
que em Hobbes, uma compreensão nova e autêntica do di­
reito outorgado, do direito positivo, que atualmente cai de
bom grado em plano secundário para dar lugar a discursos
sobre o direito natural de uma tendência política que é fácil
de conceber.
R o u s se a u 25 7

Como já mencionamos, a soberania do povo, de todos


os cidadãos moralmente livres, é intransmissível e inaliená­
vel; cada governo não passa do mandatário provisório, sem­
pre mutável. A separação dos poderes, tal como existia na
idéia social liberal de Locke e de Montesquieu é categori­
camente rejeitada (da mesma forma que no absolutismo de
Bodin e de Hobbes), porque aboliria o Estado, a comunida­
de, e quebraria a vontade moral comum, em princípio sem­
pre unívoca e incondicional. Isso só é válido de fato para
quando há realmente separação e controle recíproco dos
poderes a favor dos indivíduos sociais, que não são ainda
determinados pela moral. No interior do governo, sempre
dependente da vontade moral comum da maioria, pode na­
turalmente existir, por razoes de oportunidade puramente téc­
nica, um Legislativo diferente de um Executivo (acrescentan­
do-se ainda o Judiciário). Pode também, como em Platão
e Montesquieu, deixar-se às circunstâncias históricas a ques­
tão de saber qual é a forma de governo: monarquia, aristo­
cracia ou democracia, que convém no momento (sempre
preservando a soberania do povo). Rousseau, em virtude de
sua origem genebresa, tinha inclinação pela democracia, como
Hobbes tinha uma propensão pessoal pela monarquia. A
estrita noção de universalidade das leis e de sua aplicação a
todos, abstração feita de todo privilégio, é contudo mantida
em todos os casos. Não por razões formais de procedimento
jurídico, mas porque é precisamente nessa universalidade
absoluta que reside seu caráter de mandamento moral.
O último problema é, como em Hobbes, o do Estado e
da Igreja, de suas relações recíprocas. Visto que a comuni­
dade é em Rousseau majoritária, moral e totalitária, ou que
deva tomar-se assim, é evidente que ambos não devem ser
separados (como em Locke), tomando-se a religião um as­
sunto pessoal e o Estado tomando-se “ laico” . Poderia sus­
citar-se a questão de saber se a idéia social de Rousseau é
ainda cristã como a da Idade Média ou, se não mais o é, se
nele a vida política e a visão do estado primitivo feliz cons­
tituem já um sucedâneo da religião, de maneira tão com­
pleta quanto antes deje a grandeza e a beleza do homem
em Maquiavel e, depois dele, a idéia marxista de uma socie­
dade sem classes. A resposta não é tão fácil como o fora
no caso de Hobbes, onde concluí sem hesitação (contra a
opinião geral) pelo caráter cristão da idéia social do último

17
258 H istó ria oas I déias S ociais

(caráter cristão naturalmente particular), mas não podemos


responder a essa questão a propósito de Rousseau; isso exi­
giria uma interpretação de seus pensamentos, que nos afas­
taria muito de nosso tema. De um ponto de vista puramente
prático, o próprio Rousseau recomenda, em vista da condição
dos Estados europeus modernos, divididos em inúmeras con­
fissões, que o Estado se declare, num deísmo cristão muito
vago, para um Ser supremo, para a fé na Providência cá em
baixo, a Tecompensa e o castigo no além, o caráter santo e
intangível do vínculo político no sentido cultual antigo. Isso
resulta, como em Kant, de uma clara visão dos limites de
toda vida aqui em baixo. Ao contrário, a tolerância deveria
reinar; mas se trata de um conselho político, de modo algum
uma decisão. Já a piedade pessoal de Rousseau, ainda que
oscilando talvez entre o paganismo antigo e o cristianismo,
situa-se à margem disso.
CAPITULO X X II

Visão Retrospectiva e Perspectivas

O p e n s a m e n t o social original dos tempos modernos ter­


mina com Locke e Rousseau. O que não fora ainda possível
em Maquiavel e Hobbes, a conformidade das idéias sociais
moldando o mundo em pensamento com a realidade da estru­
tura social, realiza-se agora na Europa. O Estado sob o
signo da aquisição da propriedade de Locke realizou-se na
Inglaterra sem derramamento de sangue; a democracia ple­
biscitaria de Rousseau conhece, onze anos depois de sua
morte (1789), sua primeira tentativa de realização, revolucio­
nária e violenta, na França.
A Filosofia alemã de Kant a Hegel não é senão, no
domínio do pensamento social, a combinação e a variante,
aprofundando-se nas minúcias, das quatro idéias sociais clás­
sicas dos tempos modernos: as de Maquiavel, Hobbes, Locke
e Rousseau. Iremos considerá-lo, portanto, como um apên­
dice da época moderna, que já atinge o início da era indus­
trial, mas que não trata ainda de seus problemas específicos.
Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau aproximam-se
enquanto quatro possibilidades diferentes da idéia social dos
tempos modernos. Correspondem nesse aspecto às pinturas
rupestres da época glaciária, à representação sagrada do
monarca, à polis do governo dos governados, à idéia medie­
val do Cristo-Rei A unidade das quatro idéias sociais clás­
sicas dos tempos modernos seria (para nós pelo menos) bem
mais difícil de definir do que a unidade das variantes parti­
dárias gregas ou medievais; não é também assim tão acentua­
260 H istó ria das I déias S ociais

da. Por isso procuraremos logo, ainda uma vez, representar


suscintamente essas quatro possibilidades e ver até que ponto
são as fontes das variantes de partidos do Estado dos tempos
modernos.
1. A idéia de Maquiavel realizaria na comunidade o
absolutismo secular e político daqui de baixo, e mesmo so­
bretudo um absolutismo republicano popular que integra uma
multidão de homens que participam no governo por obje­
tivos de política exterior e assim os eleva e os liga para um
destino glorioso, isto é, no ideal da Renascença. Somente
quando o governo do povo não é possível, por motivos his­
tóricos, é que ele confia a mesma tarefa ao príncipe, funda­
mentando assim o absolutismo da realeza e os meios de sua
política, como mostra a história de seu século e dos séculos
seguintes. Bodin acompanhou Maquiavel na segunda tarefa.
Se se olha mais para frente no tempo, a variante do
nacionalismo nos Estados nacionais não é certamente um
“ maquiavelismo” superior a toda diplomacia (o “ maquiave­
lismo” não é, ao contrário de Maquiavel, senão um meio em
política, e de nenhum modo um objetivo da vida). Mas os
objetivos terrestres do nacionalismo na Europa dos tempos
modernos, assim como superam o egoísmo dos indivíduos, a
aquisição da propriedade, a aspiração ao gozo, o que se
chama de materialismo, podem muito naturalmente ser redu­
zidos aos ideais da Renascença e de Maquiavel compreen­
didos mais profundamente e mais autenticamente. Esse na­
cionalismo dos Estados nacionais pode, com efeito, exatamen­
te como a idéia social de Maquiavel, aliar-se à república ou
à dominação de uma elite, como à monarquia absoluta e cons­
titucional. O republicanismo, tal como se exprimiu, por exem­
plo, no nacionalismo do comêço da Revolução Francesa, está
mais próximo dele; a monarquia, em parte por necessidades
de representação visível, em parte em ligação com restos do
feudalismo medieval é, na história, mais freqüente e mais
eficaz.
2. Em Hobbes,*o absolutismo dos príncipes é tanto um
objetivo próximo quanto o fora no Príncipe de Maquiavel.
A própria idéia social não exclui, na noção de soberania do
Estado concebida de forma rigorosa e indivisível, as formas
de constituição aristocrática, republicana e democrática. Mas
o objetivo da existência da comunidade é pura e simplesmente
V isã o R e t r o spe c tiv a e P e rspe ctiv a 261

a paz. Isso difere inteiramente da idéia social de Maquiavel,


que não impede a guerra, mas se fortifica mesmo nela, e da
variante do nacionalismo. Trata-se a esse respeito, como
reconhecemos depois de um exame aprofundado, da paz en­
quanto estado instaurado racionalmente, em que o homem po­
de ser moralmente bom, sem perigo, è realizar já na Terra
(tanto quanto lhe permite uma natureza imperfeita) os man­
damentos cristãos do reino de Deus. Isso está em oposição
com os objetivos da existência de Maquiavel, na maioria das
vezes também com os do nacionalismo como partido.
Poderia, contudo, de início, com relação ao século XVII,
considerar-se os príncipes absolutos de todas as confissões,
enquanto eram menos nacionais do que confessionais e leva­
vam a sério (não necessariamente de maneira fanática) essa
ligação, como uma espécie de partido que procura realizar
os objetivos de Hobbes na instauração de um Estado cristão
(confessional), de sua moral e de sua vida religiosa. Na rea­
lidade, o Estado era muitas vezes aquele-que interpretava e
realizava a religião cristã como o desejava Hobbes ( cujus
regio, ejus religio), e isso tanto nos Estados calvinistas e lu­
teranos quanto nos Estados católicos. O clero em questão
ou o papado não estão mais, como na idéia do Cristo-Rei
da Idade Média, ligados abertamente ao conjunto do Estado,
mas em primeiro lugar de forma puramente privada ao prín­
cipe e somente pelo intermediário desíe ao Estado.
Uma ligação estrita da idéia social de Hobbes com o
puritanismo, com Cromwell e finalmente mesmo (o que con­
tradiz fundamentalmente a opinião comum atualmente, mas
que seria contudo possível) com os princípios da comunidade
americana não é muito provável, em virtude do realismo de
Hobbes. O verdadeiro sentido da idéia social de Hobbes
foi completamente velado desde o fim do século XVIII, sendo
imposta a moralidade exigente da volonté généralc de Rous-
seau, preterindo-se os objetivos de paz de Hobbes. Ela teve
um papel semelhante ao que estes teriam podido desem­
penhar.
3. Quanto à fornia, não existe em princípio, na idéia
social de Locke, absolutismo, nem do príncipe nem do povo,
nem do Estado em geral. O homem particular é livre em
face do Estado na possibilidade de trabalhar que lhe é con­
cedida anteriormente ao Estado e na propriedade que ele
262 H istó ria das I déias S ociais

adquire com seu trabalho. O Estado limita-se a conceder


um mínimo de proteção, segundo um contrato baseado na
utilidade e que permite assegurar os contatos sociais dos
indivíduos. Só resta garantir a cada um sua propriedade e
um trabalho livre, não-planificado em comum. Cada um
o reconhece com a condição de que os outros também o
réconheçam e sempre que o faça. O nacionalismo e a re­
ligião são, enquanto esferas totalitárias, excluídos em prin­
cípio, ainda que permitidos, de fato, mas enquanto assunto
privado e a serviço da economia e da sociedade.
Ê claro que aí está a raiz da variante do liberalismo nos
tempos modernos e até nossos dias. É evidente que esse
liberalismo se estende muito mais longe do que os paTtidos
que lhe usam o nome. Assim é, por exemplo, na Inglaterra,
ofide o partido dos liberais, outrora considerável, é hoje de
importância desprezível. Mas os dois outros partidos, os tra­
balhistas e os conservadores, baseiam-se inteiramente em
idéias sociais liberais, a que só fazem dar uma coloração
variada. Nos outros países, o liberalismo, como variante da
idéia social dos tempos modernos vinculando-se em última
aná!ise a Locke, tem exercido igualmente a maior influência.
Reinou no século XIX em todos os países da Europa através
do que se chama de estabelecimento da monarquia consti­
tucional, ligando-se a um nacionalismo geralmente mais fraco
no Leste, mais forte no Oeste, e limitado pelo socialismo que
ganhava terreno lentamente.
Hoje a economia em grande escala e o passado do na­
cionalismo, fortemente comprometido no plano político, re­
duzem cada vez mais este último ao desaparecimento. Atual­
mente só funciona historicamente como artigo de importação
européia e como um meio à disposição dos povos coloniza­
dos não-europeus para se desenvolverem e se tomarem in­
dependentes.
4. A idéia social de Rousseau ç absoluta e totalitária,
não sendo mais liberalismo. Mas é, de maneira muito mais
fundamental do que as de Maquiavel e Hobbes, não absolu­
tismo dos príncipes, mas democracia plebiscitária absoluta.
Se se vincula esse pensamento à sua essência, torna-se indi­
ferente que a democracia seja instaurada por um processo
eleitoral e pela decisão da maioria ou então pela propaganda
de uma minoria ativa, de uma elite partidaria em meio a
V isã o R e t r o sp e c t iv a e P e r spe ctiv a 263

massas passivas. Além disso, o caráter livre e secreto do


processo eleitoral pertence somente à idéia do liberalismo
privado de Locke e de modo algum ao socialismo. Os vo­
tos dos cidadãos que se governavam a si próprios na assem-
bléia-geral da polis grega nunca eram secretos, mas eram de­
clarados sempre por aclamação depois de um debate. Mesmo
nos Parlamentos do mundo ocidental atual o escrutínio se­
creto raramente é utilizado.
O fundamento intelectual e moral bem mais imporiante
da democracia plebiscitária de Rousseau baseia-se na crença
na bondade do homem e em sua inocência imperdível ou que
se pode, se necessário, restabelecer pela educação ou mesmo
pela força. Só essa natureza moralmente boa do homem (e
por conseqüência independente e em princípio infalível) pode
govemar-se a si própria em comunidades totalitárias. Mas
sua moralidade não é apenas, na idéia social de Rousseau,
o fundamento que permite determinar a formação da opinião
e a do governo; ela é um objetivo em si. Não é privada e
particular como pode sê-lo em modificações da idéia social
liberal, mas fundamentalmente e sempre comunitária.
As variantes de uma idéia social são possibilidades que
podem desenvolver-se a partir da modificação de uma uni­
dade pressuposta. Os partidos que se formam na história
possuem em compensação programas (sendo indiferente que
se realizem ou que sirvam simplesmente de armadilha elei­
toral), que podem ser modificados das mais diversas maneiras
em virtude da situação dos Estados e dos dados da política
interna e externa, ou sendo misturados a elementos de outros
partidos. As variantes de uma idéia não são portanto par­
tidos, mas puras concepções, conseqüentes consigo mesmas.
Os partidos não precisam de modo algum de ser formados
de modo lógico e conseqüente; é preciso que as concepções
o sejam. Foi assim que muito freqüentemente o nacionalismo
foi misturado, além de rudimentos feudais, com rudimentos
cristãos, a variante cristã com rudimentos conservadores ou
socialistas, sendo mesmo que se encontram, em variantes tão
contrárias quanto o liberalismo e o socialismo, certas relações
no seio de partidos históricos. Isso não é um argumento con­
tra a dedução que fizemos das variantes de partidos enquanto
puras concepções. Estas servem na realidade para a análise
da situação histórica e são indispensáveis à sua compreensão
264 H istó ria das I déias S ociais

intelectual. Dá-se exatamente o mesmo na ciência da na­


tureza. A lei da inércia ou a exata proporcionalidade da
força e da aceleração jamais foram verdadeiramente verifi­
cadas experimentalmente e, em princípio, não podem sê-lo,
mas as leis da natureza são determinantes para a compre­
ensão da natureza.
CAPÍTULO X X III

Kanty Fichte e Hegel

F iix )So f ia alemã de Kant a Hegel é, na História da Fi­


losofia dos tempos modernos, a última tentativa de uma reins-
tauração e de uma nova concepção da Filosofia clássica de
Parmênides a Descartes, Leibniz e Berkeley, sobre o terreno
de uma metafísica pessoal. Sua importância é grande como
Filosofia e método transcendental. No pensamento social,
em compensação, as antigas matérias são somente combina­
das de forma nova, postas em uma Telação mais estreita, que
faz surgir mais claramente inúmeros aspectos, e aplicadas aos
problemas da sociedade burguesa por volta de 1800. Três
nomes sobretudo são importantes para as idéias sociais: Kant,
Fichte e Hegel. O grande número de pensadores menores,
que surgem aqui e ali nessa época, poderia certamente en­
riquecer ainda o quadro, mas tornaria menos nítida a linha
de evolução; por esse motivo, deixaremos de lado esses auto­
res secundários

Kant (1724-1804), em Filosofia, como Rousseau na Fran­


ça e Hume na Inglaterra, supera o iluminismo. Ele traçou
os limites do conhecimento e da ciência, deu lugar, além
desses limites, à religião e distinguiu o conhecimento da mo­
ralidade e da arte. Além disso constituiu de forma nova a
independência desses dois últimos domínios. Em seu pen­
samento social, combina os elementos totalitários com um
pequeno número de elementos liberais. Como Rousseau,
que o influenciou fortemente, ele concebe os elementos tota­
litários como elementos morais.
266 H istó ria das I djêias S ociais

O que é mais importante é o método que emprega para a


exposição de sua idéia social. Apega-se, com efeito, desde
o princípio, a dois pontos distintos: a natureza e a moral
do homem. Procura mostrar como, por essas duas vias, as
disposições humanas forçam à associação e como ambos os
caminhos se combinam em um Tesultado dos mais complexos.
O caminho da natureza leva à formação de um Estado coer­
citivo, tal como Hobbes ensinara na primeira parte de sua
teoria. O caminho da moral leva, em compensação, ao direito
e à vontade moral do indivíduo. Esses dois caminhos devem
combinar-se em um Estado constitucional. O desenvolvimen­
to das idéias é bastante análogo ao de Hobbes e poderia
servir para esclarecer e confirmar a idéia de paz deste último.
São sobretudo as “ frias” paixões de ambição, de cupidez,
o desejo imoderado de dominar que, na origem, dirigem o
homem. Essas paixões impelem-no certamente à associação,
pois não se pode dar-lhes curso senão na sociedade, mas elas
levam a uma associação constantemente em perigo por­
que, ao mesmo tempo, sua utilização só é possível como
exceção em relação à sociedade. Todos aspiram a ter
importância em relação a seus semelhantes, a possuir um
poder sobre os outros, a ter propriedades que os distingam
dos outros* isto é, a beneficiar-se de uma sociedade que os
serve, da qual abusam tiranicamente e cuja existência colocam
em questão em virtude desse mesmo abuso. De forma que a
hostilidade permanente e o conflito surgem entre os homens,
como em Hobbes a guerra de todos contra todos. Kant diz:
“ O homem é um animal que, quando vive entre outros de sua
espécie, precisa de um senhor. Pois abusa certamente de
sua liberdade em relação a outros, seus semelhantes. E,
embora almeje, como criatura racional, uma lei que limite a
liberdade de todos, sua tendência animal egoísta impele-o,
onde pode, a excetuar-se a si próprio” (Ideen z. e. allgem.
Gesch. [Idéias sobre a História Universal] ) .
Nessa natureza dividida, que tende à associação e des-
trói ao mesmo tempo toda comunidade mal ela começou, o
Estado como senhor e soberano toma-se necessário. Como
em Maquiavel e Hobbes, aprisiona pela força as paixões auto-
destruidoras do homem e instaura a paz. Por isso é que Kant
pode continuar: “ Ele [o homem] precisa de um senhor que
destrua sua vontade e o obrigue a submeter-se a uma vontade
K a n t , F ic h t e e H egel 267

válida para todos, onde cada um possa ser livre. Mas de


onde toma esse senhor? Em nenhuma outra parte senão
entre a espécie humana” . O Estado e seu direito são, por
esse caminho, a condição da conservação do homem. Somente
a definição da vontade soberana ( “ cada um pode ser livre” )
parece retornar à idéia social liberal. Mas “ livre” não é
interpretado, como em Locke, como a liberdade de adquirir
a propriedade, mas como a liberdade moral, da mesma forma
que na volonté générale de Rousseau.
O caminho que, em virtude do perigo de destruição que
lhe fazem correr suas disposições naturais, leva o indivíduo
a um Estado que garante a paz de maneira coercitiva, é
exigido por Kant, de modo diferente de Maquiavel e Hobbes,
até a relação entre si dos Estados isolados, isto é, até à huma­
nidade em seu conjunto. No estado natural, os Estados com­
portam-se tão pouco racionalmente uns em relação aos ou­
tros quanto os homens. Em suas relações persiste até o pre­
sente o estado natural. Ainda que precisem uns dos outros
(pense-se no comércio mundial que começava), lançam-se
uns contra os outros com desconfiança e prontos para a guerra
da mesma forma que os homens. É assim que são constran­
gidos com o tempo a pôr fim à sua guerra permanente, fria
ou quente, através de uma “ paz perpétua” , se é que desejam
manter-se e não aniquilar em sua luta a humanidade inteira.
(Essa situação, hoje em dia, 150 anos depois que o filósofo
concebeu essas idéias, tomou-se bastante atual em face da
existência das armas atômicas.)
A paz entre os Estados pode ser instaurada, da mesma
forma que a paz entre os homens, autoritariamente por um
império mundial unificado ou então de maneira contratual e
federativa. Kant era nos dois casos um partidário da idéia
de contrato. Isso levou em sua idéia social à famosa propo­
sição de uma “ sociedade das nações” e de uma corte inter­
nacional. Ambas só viriam a ser concretizadas no fim do
século XIX e no começo do X X — ainda que até hoje de
forma insuficiente. Pelo .primeiro caminho, o Estado assim
como a sociedade das nações são concebidos logicamente
como condições naturais da conservação da humanidade. E
ainda o são, mas não são apenas isso. O outro caminho que
leva à comunidade e à sociedade passa em Kant pela liber­
dade, a moralidade e o dever. No primeiro caminho o Es­
268 H istó ria das I déias S ociais

tado tem a prioridade, no segundo o direito. O primeiro


caminho corresponde à idéia de contrato de Hobbes, o se­
gundo à sua idéia moral de paz.
Deveríamos começar aqui pela doutrina moral de Kant.
Seu imperativo categórico é a expressão da razão humana,
enquanto pode tomar-se prática. A razão era expressamente
em Aristóteles a faculdade divina; Schiller denomina-a, em
um sentido kantiano, a última substância “ demoníaca” do
mundo moderno, em oposição à razão superficial e à técnica
que produz. Na razão prática, uma autêntica responsabili­
dade do homem existe na consciência, e é somente por isso
que a liberdade existe, apesar da dependência do mecanismo
natural da motivação. O mandamento do imperativo cate­
górico significa: Aja por dever, e de conformidade com o
dever. (Também há em Kant outras formulações.) É pre­
ciso para tanto que a liberdade seja postulada teoricamente,
enquanto possibilidade, e praticamente na formação de con­
dições sociais legítimas. Não podemos tratar aqui do fun­
damento da Filosofia transcendental.
A virtude e o direito são rigorosamente distinguidos e
separados em Kant, ainda que se referindo um ao outro.
A virtude ordena que só se aja por dever. Na virtude tra­
ta-se do sentimento moral do indivíduo. Para Kant, toda ação
humana realizada sem sentimento moral (por exemplo, so­
mente com a esperança de uma recompensa ou pelo medo
de um castigo aqui em baixo ou no além, como em Locke) é
moralmente sem va^r. Ela se situa ao nível da amestragem
de um cão. Inversamente o sentimento pode, mesmo só (em
casos excepcionais), bastar para o cumprimento do dever,
mesmo quando a ação não alcança êxito neste mundo devido
às circunstâncias; por exemplo, a vontade de ajudar alguém
que fracassa por motivo de sua obstinação. Ao contrário
da virtude, o Direito não exige absolutamente que se aja
por sentimento moral, mas somente “ legalmente” , de con­
formidade com o Direito. Não se pode nunca constatar de
forma definitiva esse sentimento nem em si nem em outrem.
Só Deus lê no coração dos homens, e não os teólogos ou
psicólogos, nem o próprio homem. Somente a virtude, que
nasce da responsabilidade, pode garantir a moralidade. O
Direito não é senão a soma de regras positivas fixadas obje­
tivamente que indicam as condições que permitem aos ho*
K a n t , F ic h t e e H e gel 269

mens viver pacificamente juntos. O Direito separado da


moral tem portanto sua origem em Kant na natureza do
homem (a auctoritas do soberano em Hobbes) e não em sua
moralidade (a idéia de paz em Hobbes).
Mas o homem (como em Hobbes) não pode ser virtude
sem perigo se não houver uma organização jurídica que es­
tabeleça a paz. Este rumo do pensamento de Kant só se
desvia de Locke porque a organização da justiça é transpor­
tada para um estado concebido quase ainda como pré-esta-
tal. Qualquer que seja ela, a existência da organização jurí­
dica é também a condição necessária da aceitação moral da
responsabilidade e do dever. Kant, naturalmente, sabe que
um Direito sem Estado não pode existir efetivamente. Mas
nele, contudo, esse Direito não tem raiz apenas na simples
auctoritas de um estatuto político, mas também, como para
o estoicismo, numa ordem existente ou projetada (veritas).
“ O Direito é o conjunto das condições nas quais o livre-ar-
bítrio de um pode ser conciliado com o livre-arbítrio do
outro segundo uma lei geral da liberdade” ( Einleitung zur
Rechtslehre [Introdução à Teoria do Direito]). Em conse­
qüência, o Direito Privado teria mesmo, como no liberalismo,
a prioridade sobre o Direito Público. A diferença em rela­
ção a Locke é (e nunca é demais insistir) que a liberdade
em Kant é concebida, até um determinado limite, de modo
individualista, mas de forma alguma simplesmente como as
regras do jogo de aquisição da propriedade, fixadas pelo
Estado. A liberdade é mais exclusivamente a liberdade mo­
ral, isto e, a liberdade de cumprir com seu dever, de podeT ser
bom (H obbes), a liberdade da volonté générale (Rousseau).
Ela é contudo absoluta, totalitária, suprapessoal, de nenhum
modo arbitrária nem privada.
É somente a partir dessa posição que Kant transpõe o
caminho que leva ao Estado. Do mesmo modo que o Di­
reito é a condição de uma realização moral da virtude, o
Estado, com seu poder coercitivo, é a condição da existência
do Direito no mundo real. O trabalho e a propriedade exis­
tem em Kant, da mesma forma que em Locke, já no estado
natural anterior à associação formal do homem e ao Estado
(exatamente como o Direito, os contratos particulares, etc.).
A única coisa que falta no estado natural pré-estatal é a
proteção da lei. Não se encontra qualquer juiz que julgue
270 H istó r ia das I déias S ociais

autoritariamente nem uma polícia que execute pela força o


julgamento feito. Isso só existe no Estado. O objetivo ca­
pital do Estado, no caminho que leva a ele, a partir da mo­
ralidade e passando pelo Direito, é por conseqüência a pro­
teção da lei, da propriedade, dos contratos, da segurança do
indivíduo. Isso, quanto à forma, é semelhante a Locke, mas
com um conteúdo moral e não simplesmente econômico.
O próprio Estado nasce então idealmente por intermé­
dio de um contrato político como quase sempre nos tempos
modernos. O teor desse contrato é a Tenúncia à ofensiva e
à defesa pessoais em troca da proteção da lei. O contrato
político não é mais um ato histórico, mas a “ idéia segundo
a qual a legitimidade da constituição [existente] do Estado
deve ser verificada” . Já a idéia do Direito (e nela a idéia
da moral) exige dos homens que imponham a realização da
justiça e assim a possibilidade de um comportamento moral
por intermédio do contrato político. Nesse sentido do Di­
reito em um Estadô (Direito Público e Direito Privado) o
Direito está, em Kant, ligado de modo inseparável ao poder
coercitivo (enquanto “ impedindo um entrave à liberdade” ).
Neste ponto unem-se os dois caminhos que trilhamos
até agora: o da natureza e o da moral. A natureza exigia
(a experiência mostrando que os homens se destroem a si
próprios) a associação no Estado e mesmo a associação da
humanidade inteira numa sociedade das nações, garantindo
a “ paz eterna” . A moral mostra que isso na verdade não é
possível, a não ser sob a idéia da liberdade, portanto do
direito, portanto da virtude. Em nossa terminologia: a na­
tureza exige do homem uma associação como uma verdadeira
comunidade sob o domínio da justiça e da liberdade moral
de pessoas independentes. O vínculo metafísico dessa nova
idéia, não natural, mas moral, de uma comunidade jurídica
é então a razão (sob a forma da razão prática, da moralidade,
do imperativo categórico). Trata-Se precisamente, segundo
Schiller, do último elemento “ demoníaco” nos tempos moder­
nos. Pode constatar-se que Kant se encontrava, em suas
idéias, sob a influência de Rousseau. Contudo, ele sistema­
tizou o que em Rousseau ainda não passava de idéias sem
coesão. Carece dizer que inúmeros problemas práticos im­
portantes, como, por exemplo, o da maioria e o da demo­
cracia plebiscitária, passam paTa segundo plano devido a
K a n t , F ic h t e e H egel 271

que Rousseau se interessa sobretudo pelo aspecto teórico das


questões.
É em ligação direta com Rousseau e a respeito de sua
Filosofia prática, da qual participa a idéia social, que Kant
dizia certa vez: “ Se existe uma ciência de que o homem
precisa, é a ciência que eu ensino, a de ocupar como se deve
o lugar que foi designado para o homem na criação e na
qual se pode aprender o que se deve para ser um homem” .
Aqui, “ criação e a totalidade do mundo, isto é, sob uma
fórmula cristã, a mesma coisa que em Platão e Aristóteles
a ordem eterna da natureza. Segundo Kant, não é mais atra­
vés da simples contemplação (a theoria aristotélica) na qua­
lidade de “ espectador” e “ voluntário” que o homem encontra
esse lugar, mas somente na ação prática, no cumprimento
de uma integração moral na comunidade de seus semelhantes.

Fichte (1762-1814) é o sucessor de Kant na concepção


do imperativo moral e na dedução que tira daí de uma idéia
social. Já abandonou mais ou menos o outro caminho, que
Kant tomara a Hobbes^ o caminho “ natural” qU e leva ao
Estado e à associação. O imperativo categórico, em com­
pensação, é concebido como uma exigência absoluta motivan­
do-se a si própria (causa sui) e que ele toma o fundamento
metafísico da Filosofia. O mundo (natureza) depende dela
em sua existência assim como em sua maneira de ser, e é
dela “ deduzido” num sistema.
Fichte separa de novo a moral e o direito. O direito
é ao mesmo tempo a política, isto é, a idéia social. A moral,
no sistema, acha-se à frente. [Os primeiros trabalhos, em
compensação, apareceram numa ordem inversa: Grundlagen
des Naturrechts (Princípios de Direito Natural), 1796, Sys­
tem der Sittenlehre (Sistema de Moral), 1798.] Segundo nos
mostra um de seus primeiros escritos, Beiträge zur Berich­
tigung der Urteile des Publikums über die franzözische Re­
volution (Contribuições à Reparação dos Julgamentos do Pú­
blico sobre a Revolução Francesa), 179S, Fichte é influencia­
do tão fortemente por Rousseau quanto por Kant. Ele o
julga nesse trabalho de forma bem pertinente. Rousseau,
nos anos posteriores, após a queda e a restauração da Prús­
sia acompanhou a mudança de Fichte do individualismo mo­
ral e do cosmopolitismo para o socialismo e o nacionalismo.
272 H istó ria das I déias S ociais

Na moral, Fichte coloca em primeiro plano o postulado


baseado segundo ele imediatamente e antes de qualquer Fi­
losofia na consciência de todo homem: devo agir livremente,
isto é, moralmente. O mundo (por assim dizer enquanto
resistência e, como ele dirá mais tarde, “ material de meu
dever” ) é para isso necessário. O mundo, isto é, a natureza,
do mesmo modo que á existência de outros homens, não tem
outra significação senão esta: proporcionar a situação de
resistência (e de acordo) pela qual a ação moral pode tor­
nar-se possível, pela qual somente o caráter do homem pode
tomar-se manifesto. É claro que ainda existe aqui, apesar
de um aprofundamento do eu moral no eu que abrange tudo
de Deus, apesar da obtenção mística de Deus, muito de indi­
vidualismo (embora seja um individualismo moral, não egoísta
e tirânico ou liberal). Os outros homens só servem de iní­
cio para excitar ou invocar o eu empírico a fim de que ele
se recolha e limite voluntariamente seus egoísmos. A Tela-
ção do eu libertado de si mesmo com os outros indivíduos
é então a moralidade. Somente a razão prática com suas exi­
gências de verdade e de moralidade garante em Fichte a ver­
dade de nossa crença na existência, fora de nós, de seres
independentes e numa natureza onde vivemos juntamente
com eles.
Ao lado da moral encontra-se o direito natural. Da
mesma forma que em Kant, o direito não é ainda moral em
si, mas é a premissa da concretização da moralidade Fichte
contudo o deduz de modo independente do eu e de suas
exigências, enquanto condição de uma comunidade de seres
livres. Assim expõe ele seu princípio: “ Preciso em todos os
casos reconhecer como tal o ser livre fora de mim [o seme­
lhante], isto é, limitar minha liberdade pela concepção da pos­
sibilidade de sua liberdade,? ( Princípios de Direito Natural).
O “ direito natural” poderia em conseqüência ser chamado
com uma significação mais correta de “ direito racional” .
O direito é tratado em Fichte em três partes: 1) O direito
primitivo da pessoa. Consiste em que a pessoa no mundo é
sempre a causa, não o que é causado (como dizia Kant: fim,
não meio). Daí resulta, como em Locke, o direito pré-estatal à
liberdade pessoal, corporal, e à propriedade. Mas tarde, Fichte
relegará a segundo plano esse pensamento liberal (ou pelo me­
nos ainda eivado de liberalismo) e suas prevenções pessoais
contra a comunidade, a favor de um socialismo absoluto. II)
K a n t , F ich te e H egel 273

Um mecanismo coercitivo serve para garantir o cumprimento


desse direito primitivo e dos direitos que dele decorrem,
mecanismo que reprime aquele que viola o direito pela amea­
ça das leis penais, de preferência antes que ponha em exe­
cução suas intenções, ou pelo menos, se necessário, depois
da ação, para impedi-lo de continuar causando prejuízo. Kant
igualmente dissera: “ O direito está sempre ligado ao poder
de coagir” . III) Pela constituição de tal mecanismo de coer­
ção (isto é, um aparelho estatal com tribunais, polícia, pri­
sões e outras coisas semelhantes), é necessário um contrato
que estabeleça o Estado nas suas funções de legislação, de
justiça, de governo e de administração. Esse contrato tem
três graus: 1) um contrato livre de cada cidadão com outro
cidadão, ou de todos garantindo-se mutuamente os direitos
primitivos à liberdade da pessoa e da propriedade; 2) a le­
gislação civil enquanto expressão da vontade geral estabele­
cendo-se pelo sistema majoritário, isto é, as leis positivas
como regras da aquisição da propriedade pelo trabalho; 3)
a execução dessa legislação pelo poder do Estado, isto é,
judiciário executivo. Mas a finalidade do direito permanece
sendo, como em Kant, a de tornar possível a moralidade, a
propriedade não se transformando em fim absoluto.
Por volta de 1800, ocorre a importante conversão de
Fichte ao socialismo. É evidente que esse socialismo é intei­
ramente diferente do dos franceses da primeira metade do
século XIX ou do de Marx. Está ainda mais afastado do
liberalismo do que este último, pois não é um socialismo
econômico. Essas três variedades têm no entanto a mesma
raiz em Rousseau. Em Fichte, com essa passagem ao socia­
lismo, e sobretudo sob o efeito das conquistas napoleônicas
(ele dizia: da traição de Napoleão à revolução e a Rousseau)
desaparece também o cosmopolitismo, que constituía ainda
o fundamento da Moral de 1798 e do Direito Natural de
1796. É substituído por um novo nacionalismo, que não re­
monta a Maquiavel, mas se alia ao socialismo. Em lugar
do eu empírico surge o nós empírico da nação. Vê-se assim
acenluar-se a oposição ao espírito dos tempos novos. O tra­
balho decisivo dessa mudança é o Geschlossene Handelsstaat
( Estado Mercantil Fechado), de 1800. Depois, seguem-se,
num aprofundamento constante do pensamento, os Grundzuege
des Gegenwaertigen Zeitalters ( Caracteres Principais dos
Tempos Presentes), 1806, os Reden an die deutsche Nation

18
274 H istória das I déias S ociais

( Discursos à Nação Alemã), o Naturrecht von 1812 ( Direito


Natural de 1812), etc.
Em lugar dç direito natural pré-estatal à propriedade,
de Locke, encontra-se aqui como ponto de partida o direito
imprescritível de todo homem a uma esfera onde pode rea­
lizar sua moral. É o retorno de Loeke a Hobbes e a seu
império de paz onde se pode ser bom sem risco. Somente
depois é que vem a passagem ao socialismo. O Estado deve
garantir esse direito a uma livre existência moral, mas como
a existência moral (não a propriedade) baseia-se no trabalho,
o Estado deve em primeiro lugar garantir a cada um de seus
cidadãos um trabalho que lhe permita viver. O trabalho,
que era ainda em Locke “ o sofrimento pelo qual o sofrimento
(a miséria) é vencido” e servia como meio de adquirir a
propriedade, torna-se aqui, em sua significação moral, um
fim absoluto . O socialismo de Marx, ao contrário, conside­
rá-lo-á com os olhos de Locke. O trabalho é em si uma bên­
ção no sentido moral para o homem, como entre os benedi­
tinos dos primeiros tempos da Idade Média, em Lutero e
Calvino, e não uma maldição como no Velho Testamento,
na Antiguidade grega ou em Marx. Fichte, assim (por sua
concepção do trabalho, primeiro direito do homem, e a do
Estado distribuidor desse trabalho), antecipou-se sobre a
concepção segundo a qual é dever do Estado proteger os
desempregados. E isso no meio de uma burguesia liberal
que não conhecia mais a responsabilidade pelo próximo. Isso
feito, sublinha com razão: “ Ninguém pode pretender a ajuda
do Estado antes de ter provado que, em sua esfera, fez todo
o possível paTa subsistir sem no entanto consegui-lo” ( Di­
reito Natural de 1812).
Exatamente ao contrário do liberalismo de Locke, que
deduz o direito ao trabalho do direito à propriedade, o di­
reito à propriedade é, no socialismo de Fichte, a conseqüên­
cia do direito moral ao trabalho. Não há mais nesse direito
restrição particular ao Estado. Fichte conclui: Todo traba­
lho precisa de instrumentos, isto é, em termos modernos, de
meios de produção (que ele concebe ainda naturalmente
como os dos artesãos: bancas, martelos, forjas, e não fábri­
cas, máquinas e sistemas de distribuição). Os meios de pro­
dução são portanto no Estado a única propriedade legítima
do cidadão, justificada no trabalho enquanto noção moral
fundamental. Em compensação, não são propriedade (ao
K a n t , F ichte e H egel 275

contrário do que afirma Loeke) os frutos do trabalho


acumulados sem que o supérfluo seja entregue a seu
próximo: a riqueza dos particulares no Estado. A res­
peito dessa riqueza, Fichte é um comunista tão radical
quanto Platão no que concerne aos guardiães. Os meios de
produção são para Fichte propriedade dos indivíduos, por­
que ele é de opinião (como Aristóteles e com toda a razão)
de que cada um se ocupará melhor do que lhe pertence do
que quando pode lançar a responsabilidade sobre um nós
coletivo, sendo preciso nomear um vigilante que tome conta
da conservação dos instrumentos e de sua limpeza depois
do trabalho.
Três diferenças são essenciais: O socialismo de Marx
passa para a administração do Estado exatamente os meios
de produção. O marxismo deixa ainda subsistir em certa
medida a riqueza individual sob a forma da posse do dinheiro
adquirido. Locke pretende que é somente pela riqueza dos
indivíduos, pela propriedade privada, que o Estado pros­
pera em seu conjunto.
Trata-se, em parte, de questões de interesse econômico
e que não nos interessam aqui. Mas só parcialmente; Fichte
naturalmente não chegou a perceber em sua época a depen­
dência e a espoliação dos trabalhadores assalariados ineren­
tes à propriedade privada (fábricas, etc.), dependência e
espoliação que Marx quis suprimir através da estatização
dos meios de produção. Fichte não compreendeu em geral
o problema do capitalismo. Não compreendeu nem o capi­
talismo segundo Calvino, baseado na religião, nem o capita­
lismo secularizado como acumulação de propriedade, segun­
do Locke. Sua concepção da economia é em parte agrária,
em parte artesanal e précapitalista. Nos séculos XVIII e
XIX é uma situação inoportuna e utópica. Essa concepção
impediu contudo que Fichte se tornasse tão dependente dos
fins capitalistas quanto o marxismo que procura triunfar sobre
o capitalismo somente por meio de uma repartição do pro­
duto social. O socialismo de Fichte não é somente livre em
face da propriedade que cria divisões, mas também em face
da inveja social e da concepção benthamista da maior “ fe­
licidade* ’ do maior número de homens.
A opinião de Locke e do liberalismo, segundo a qual a
sociedade em seu conjunto produz mais quando a riqueza
276 H istó r ia das I déias S ociais

adquirida permanece sendo a propriedade de particulares (os


empresários) e quando o Estado não faz senão proteger as
regras pacíficas da aquisição da propriedade, talvez seja
justa. Trata-se de uma questão que não podemos debater
aqui. De qualquer forma, Fichte teria, apesar disso (ou
precisamente por causa disso), recusado o liberalismo. A
propriedade econômica da sociedade, a elevação do nível de
vida, tanto para uns quanto para todos, são para ele não
somente sem importância, mas perniciosas em si. Essa pros­
peridade não é admissível a não ser que não acarrete prejuízo
à moralidade do trabalho. Não é portanto nunca um fim
absoluto. É precisamente nisso, isto é, na fixação desse
objetivo à economia, que o marxismo permaneceu até nossos
dias e de forma insuspeita dependente de seu adversário
liberal. E ele não perderá essa fraqueza com relação ao
seu adversário enquanto não realizar, néssa fixação de seus
objetivos, uma “ conversão da alma” no sentido de Platão e
de Fichte.
A propósito da moralidade do trabalho enquanto fim
absoluto, Fichte acrescenta: “ A fim de que o Estado possa
garantir a cada membro da comunidade ó direito à existên­
cia pelo trabalho, é preciso que ele controle a produção e a
repartição dos bens” . É óbvio que no plano econômico tra-
ta-se de uma concepção bastante retrógrada, como uma ma­
neira de absolutização do antigo sistema mercantil e da tu­
tela dos cidadãos pelo poder público, na Prússia de Frede­
rico. A economia liberal do mercado e o comércio interna­
cional são substituídos por uma economia planificada e pelo
isolacionismo dos Estados. As más experiências feitas atual­
mente com esse sentido só são realizadas tomando a condição
primordial da prosperidade econômica como fim absoluto
do homem, isto é, aceitando como um axioma indiscutível
os fins que Fichte recusava. Por isso é que os argumentos
deste último em favor dessas hipóteses diferentes não são
dependentes dessas experiências. Ele é antes de tudo de opi­
nião de que a conseqüência de toda economia livre “ seria
uma guerra sem fim de todos contra todos, guerra entre
compradores e vendedores, etc., e essa guerra tomar-se-ia
tanto mais violenta, injusta e perigosa quanto mais o mundo
se povoasse” .
O que ele considera aqui no plano econômico é a crise
a que chega todo Estado reduzido à importação e à expor-
K a n t , F ic h t e e H egel 277

taçao quando não encontra mais nas regiões subdesenvolvidas


suas matérias-primas e seus mercados. Torna-se então obri­
gado moralmente a proporcionar a seus cidadãos um trabalho
que lhes arèsegura meios de subsistência, dependente de fa­
tores externos sobre os quais não decide. Por isso é que
são proibidas por razões morais importação e exportação no
“ Estado mercantil fechado” . Trata-se naturalmente do ex­
tremo oposto da idéia social liberal do comércio internacional
livre na Inglaterra.
Existem com certeza a esse respeito dois problemas nos
quais Fichte não pensou e que, aliás, pertencem mais à estru­
tura social da era industrial do que à estrutura artesanal e
agrária em que ele ainda pensa: 1) A população de seu
Estado mercantil fechado deveria, através de meios artificiais,
ser mantida em uma quantidade fixa, não tendo o direito de
aumentar sob pena de não ter mais bastante lugar. O mesmo
problema existia na colonização grega e nas criações sociais
de Platão, numericamente constantes e compostas de cerca
de 5.000 homens. É verdade que o comércio livre acaba
também um dia por atingir os limites, devido ao espaço
fechado da Terra. 2) No interior da era industrial, em que
as guerras se baseiam na técnica dos armamentos, cada Es­
tado já é por isso forçado a um aperfeiçoamento a qualquer
preço de sua indústria e de sua técnica e também a um
aumento de sua população, porque sua própria existência,
em face dos outros Estados que agem da mesma forma,
depende disso. (Chega-se ao ponto em que esse curso dege­
nera em uma destruição geral inevitável, como nos mostra
atualmente a técnica do átomo.)
No seio do Estado mercantil fechado de Fichte, a comu­
nidade moral é organizada segundo uma divisão dos cida­
dãos em classes. Há os produtores (exploração do solo e
do subsolo), os fabricantes (artesãos, operários e empresá­
rios), os comerciantes, os mestres, os funcionários, os so1da­
dos. As cinco últimas camadas citadas transformam, conso­
mem e repartem os bens que a classe dos produtores produz.
Precisamente pelo fato de o Estado ser fechado é que o núme­
ro de seus membros deve ser tal que os produtores possam,
com a terra de que dispõem, alimentá-los. Para sermos
precisos, trata-se, no plano econômico, de uma concepção
fisiocrática. Para repartir os bens, Fichte encontra um di­
nheiro “ natural” . O valor de cada bem é calculado segundo
278 H istó ria das I déias S ociais

o tempo de trabalho necessário à sua fabricação, em com­


paração com o tempo de trabalho que a produção de um
quintal de trigo sequer, e segundo o tempo que um homem
pode com ele subsistir. Isso também está em oposição ao
valor de apreciação e de troca dos bens em Aristóteles e em
Adam Smith. O mais importante é que a prata e o ouro,
como meios de acumular a propriedade, tanto para o par­
ticular como para o Estado, acham-se excluídos.
Fichte introduz sua idéia social na história. Por trás
dos fatos que se sucedem acidentalmente, que se tornam
transparentes devido à determinação moral da humanidade,
como no cristianismo, a marcha necessária da história, cau­
sada pela razão, faz-se de maneira geral em cinco etapas.
A medida da liberdade humana reside na maneira de rea­
lizar a razão. As etapas são: a do instinto de razão; a da
autoridade baseada na razão; a que se libertou de toda razão
e se dedica ao perfeito egoísmo; a da ciência livre baseada
na razão e a da arte livre baseada na razão. 1) A razão co­
meça entre os gregos sob a forma do instinto como realização
inconsciente. 2) Ela se enrijece em seguida na Idade Média
em um dogma incompreendido opondo-se ao homem do
exterior, 3) Esse dogma rígido é destruído na Revolução
Francesa em arbitrariedade, em subjetivismo e em egoísmo.
4) Aqui começa, a partir do “pecado consumado” , um re­
torno, isto é, a recuperação pelo saber da ligação natural,
outrora inconsciente, do instinto de razão. Fichte pensa aqui
em sua própria teoria da “ Doutrina das Ciências” . 5) O que
se deve de início saber e aprender, a liberdade da morali­
dade, deverá ainda ser desenvolvido em ujma última era do
“ poder fazer”, isto é, da realização prática. Isso seria o
futuro enquanto objetivo de toda a história. O esquema con­
vém mais ao desenvolvimento individual do homem e é so­
mente a partir daí (talvez como uma analogia entre ontogê-
nese e filogênese) que é preciso transportá-lo ao desenvol­
vimento da humanidade. Os conhecimentos históricos de
Fichte eram bem poucos e suas interpretações, na medida
em que se afastavam do essencial, eram freqüentemente pou­
co felizes.
A última fáse da idéia social de Fichte surge somente
na Teoria do Estado de 1813. O direito e a moral são aí
reunidos pela noção de educação do homem. O direito tem
sido uma coerção, a moralidade deve ser a liberdade. Isso
K a n t , F ic h t e e H egel 27 9

subsiste, mas, em virtude da noção totalitária da comunida­


de do socialismo, Fichte reclama agora o famoso “ senhor que
impõe a liberdade” (é novamente um pensamento que re­
monta a Rousseau), que recebe o nome estóico de “ sábio” .
É um sábio enquanto precede cs outros na moralidade, en­
quanto desperta entre eles, após ter-lhes imposto pela coer­
ção as regras que lhe convêm, a inteligência dessas coisas
pela educação. O Estado platônico de filósofos é o modelo
disso. A respeito da coerção Fichte diz que ela se torna
“ legitima somente pela compreensão posterior [por parte
dos coagidos]” . É a conclusão do pensamento que via na
história a realização, em curso e impossível de verificar-se
instantaneamente, da liberdade humana e com ela do direito,
da idéia de justiça social enquanto moralidade, sem tomar
em consideração o econômico. Essa realização seria levada
a efeito na imagem platônica do “ reino pela inteligência de
todos” .
Fichte não viu de nenhuma forma a problemática da
era industrial, cuja auTora lhe estava contudo próxima. P o r
isso é que sua idéia social pertence ainda à era moderna,
nao à contemporânea. Contém, no entanto, precisamente
devido a seu caráter abstrato, utópico no plano econômico, e
devido à f a lt à de relação c o n c T e ta com o Estado burguês
(chegando mesmo a uma oposição indiferente em relação ao
Estado), elementos, possibilidades e pontos de vista que orien­
tam muito mais para o futuro do que as idéias sociais de
Hegel, mais concretas e ligadas ao Estado de sua época.

Schelling já tinha procurado fazer valer, em oposição à


idéia social puramente “ moralista” de Fichte, outros pontos
de vista “ organicistas” . Hegel (1770-1831), de início, consi­
dera a vida social de modo muito semelhante a Schelling.
Na verdade ele elaborou sua Filosofia em outro caminho, o
caminho histórico (os escritos que se convencionou chamar
de Theologische Jugendschriften [ Escritos Teológicos da Ju­
ventude]). Se se pode comparar a doutrina social de Fichte
com as idéias de reforma de Platão, todos dois querendo
de fato salvar, reinstaurar e realizar o Estado, a comunidade
pela moralidade, a educação e a razão, pode-se fazer o mesmo
com a doutrina social de Hegel em relação a Aristóteles.
Este e Hegel realizam com efeito a passagem da reforma
280 H istó ria das I déias S ociais

prática do Estado a uma pura consideração .da associação


humana como um fenômeno ao lado de outros no interior
do cosmos ou da história. Hegel exprime isso com toda a
clareza desejável no prefácio de uma de suas últimas obras,
Rechtsphilosophie ( Filosofia do Direito): “ Quando a Filo­
sofia pinta seu cinzento de cinzento, uma figura viva vê-se
envelhecida; ela não Tejuvenesce misturando-se cinzento com
cinzento, mas deixa-se somente reconhecer” . Marx e outros
compreenderam isso como uma característica geral da Filo­
sofia e levantaram a exigência de que a Filosofia se tornasse
afinal prática. Como vimos, isso contudo só seria uma novi­
dade a propósito de Hegel. O tom decisivo do enunciado
deixa além disso pensar que foi somente depois de longas
hesitações que ele adotou esse ponto de vista. O conheci­
mento das obras da juventude não pode senão confirmar
essa suposição.
Precisamos portanto iniciar-nos no ponto de vista e no
método desse conhecimento (contemplativo, mas justificando
ao mesmo tempo o existente) da comunidade humana, depois
no objeto do conhecimento* social enquanto caminho que
leva do indivíduo ao espírito universal, enfim na aliança
singular que a idéia social de Hegel contraiu com a Prússia
em que viveu. Não se pode compreender sua Filosofia do
Direito sem se levantar de antemão esses problemas.
A consideração filosófica do mundo em' Hegel não é um
conhecimento humano comum por meio da comparação e
da classificação das experiências, como nas ciências parti­
culares. Ele procura logo, como Schelling, colocar-se no ponto
de vista de Deus. Quer perceber como, considerado pela
inteligência arquétipo, tudo se representa em uma coesão
absolutamente necessária. Chega a isso (ao contrário de
Schelling) através de um método que denomina de “dialé­
tico” . Ele tem três etapas. Em primeiro lugar, a da expo­
sição do particular denominada tese. Aqui as coisas mantêm-
-se umas ao lado das outras, como o entendimento comum
as apreende e percebe. Em segundo lugar, a da oposição.
As coisas aqui já entram em relação umas com as outras,
nlas somente enquanto é o contrário ou a contradição; é a
antítese. Afinal, em terceiro lugar, a da unidade dos con­
trários, que supera a contradição. É a síntese como conclu­
são, a coincidentia oppositorum, a coincidência dos contrários
e portanto o ponto de vista absoluto de Deus, da mais alta
K a n t , F ic h t e e H egel 281

razão contemplativa. Desse ponto de vista tudo toma-se


metafisicamente transparente (isto é, não mais moralmente
transparente como em Fichte ou transparente no plano da
salvação Teligiosa como no cristianismo). Exemplos muito
gerais seriam: o ser, o nada, o devenir na lógica, o senhor,
o escravo, a livre consciência de si, e a servidão na Fenome-
nologia.
Aristóteles estabelecera, em lugar da doutrina de reforma
de Platão, a theoria, a contemplação pura, muda, do cosmos
e de sua ordem. Tratava-se já de um substituto da comu­
nidade da polis, passando de modo diferente do que em
Platão por cima da comunidade. Trata-se de início da mesma
coisa para Hegel, salvo que o universo das coisas não e tanto
a ordem divina da natureza quanto a ordem divina da his­
tória É assim que na sua primeira grande obra, a Fenome-
nologia do Espírito, ele leva o homem de sua época, do ano
de 1800, a partir de sua consciência isolada e momentânea,
do “ isto que aqui está” , pela reminiscência, a evocação da
memória enquanto lugar de toda história, até a consciência
atualizada de todos os conteúdos ao mesmo tempo. O que
significa: o filósofo examina, por assim dizer, como na marcha
em três tempos da dialética a consciência limitada do homem
passa, a partir das contradições das experiências isoladas para
a consciência divina do espírito do mundo. O espírito do
mundo abrange como presente e de imediato o que, no de­
correr temporal da história, tem existido de fato de forma
particular, de criação da experiência determinada e limitada.
Hegel pode então finalmente dizer que em seu sistema o
verdadeiro não é a conformidade da opinião e do objeto,
mas o conjunto em toda a sua diferenciação. Nesse con­
junto, o caráter limitado e parcial de todo ponto de vista
jamais adotado foi “ superado” pela totalidade presente e
divina da inteligência.
Geralmente não se dá atenção, quando se expõe a idéia
social de Hege1, ao fato de que o homem já está (exatamen­
te como em Aristóteles, no momento supremo de sua con­
templação) desligado da comunidade e elevado à solidão e
ao contentamento em Deus. Mas isso significa que ele é, na
contemplação dos elementos que percebe, associai. É pre­
ciso dizer que a esse respeito a exposição posterior da Filo­
sofia do Direito representa um acréscimo anacrônico. Tra­
ta-se naturalmente de uma exposição muito profunda (como
282 H istó r ia das I déias S ociais

tudo em Hegel) e que se eleva ao domínio geral do Estado


prussiano, burguês, onde Hegel viveu e ensinou até o fim
de sua vida. Mas se queremos inseri-la no sistema, surgem
contradições imprevistas. Na Fenomenologia de 1807, a
polis grega, o império da Idade Média, os novos Estados
nacionais, mas também o estoicismo, o individualismo de
Epicuro, etc., eram formas determinadas vividas no caminho
que leva ao espírito do mundo que, em sua própria profun­
didade, relembra-se atualmente de tudo. Na Filosofia do
Direito, de 1820, observa-se, com o Estado e o direito, a for­
mação de uma idéia social quase abstrata. Ela tenta conce­
ber dialeticamente a comunidade como uma criação por as­
sim dizer isolada e contudo confiante em si mesma, embora
seja em sua organização concreta um tanto quanto intem-’
pestiva. É a mesma diferença que se encontra entre as pres­
crições de Aristóteles com o propósito de salvar a polis, e a
fuga na contemplação divina solitária e no conhecimento,
em função da desilusão que se experimenta aoconstatarque
a perpetuação da polis não é possível.
Mas consideremos de início, resumidamente, a idéia so­
cial da Filosofia do Direito em si mesma.
O ponto de partida de Hegel é aqui, comoem todo o
direito natural dos tempos modernos, a vontade livre do
indivíduo. De conformidade com o método dialético, não
vale enquanto realidade para si mesma, mas enquanto pri­
meiro elemento nãd-autônomo. Ela é elevada, através de
uma série de separações e de uniões, até a comunidade e
mesmo, na história, até o espírito uniyersal. Aqui reside
uma aparente semelhança estrutural com a marcha da feno­
menologia. No entanto, a ordem concreta da comunidade
perdeu progressivamente seu caráter de simples degrau de
acesso, tornando-se o fim absoluto (pelo menos da exposi­
ção). A prática e a teoria são misturadas, mas não unifi­
cadas.
As relações exteriores da vontade livre dos homens com
outras vontades engendram de início o direito, enquanto re-
lação abstrata recíproca das pessoas. Suas relações recíprocas
são: 1) A propriedade. 2) O contrato. 3) A injustiça. Faz-se
assim a articulação segundo a qual a propriedade e o con­
trato são esferas que, quando violadas, engendram a possi­
bilidade de injustiça. O mundo dessas relações jurídicas é
K a n t , F ic h t e e H egel 283

o Direito Privado que surge sempre antes do Estado — em­


bora não apareça mais como em Locke enquanto realidade,
antes do Estado. O liberalismo é somente o primeiro mo­
mento da comunidade, que mais tarde é superado a assimi­
lado.
A falta subjetiva já se fez valer na injustiça. Toma-se
o resultado da primeira parte e o ponto de partida da se­
gunda. Essa segunda parte da idéia social trata da mora­
lidade. Se o direito não era senão as relações exteriores das
pessoas enquanto sujeitos da vontade, a moralidade é o sen­
timento interior que completa esse momento abstrato. Três
fenômenos morais surgem agora: 1) o propósito e a falta;
2) a intenção e a felicidade; 3) o Bem e a consciência. Em
oposição a Kant e a Fichte, Hegel trata portanto o direito
e a moral como dois aspectos não-autônomos, de uma única
coisa, relacionados um ao outro: a moralidade.
Somente a unidade das relações jurídicas exteriores com
os sentimentos interiores produz a realidade do mundo social
na terceira parte, a da moralidade. Não foi sem razão que
foi denominada “ ordem concreta” (Binder). Seus três mo­
mentos são: 1) a família; 2) a sociedade civil; 3) o Estado.
Trata-se de uma articulação que de fato corresponde ampla­
mente à estrutura do mundo social na consciência das pes­
soas cultas, à estrutura, não de qualquer Estado, não importa
quando nem onde, mas do Estado dessa época (mais exata­
mente do Estado pmssiano em 1800). As estruturas desse
Estado são de fato aprofundadas e concebidas como insepa­
ráveis da moral e do direito na ordem concreta de seus mem­
bros. A diferenciação objetiva do conjunto, em suas rela­
ções aparentes e em sua vida interior, brota da espiritualidade
harmoniosamente equilibrada de Kant e de Fichte, de Schiller
e de Goethe, que foi a alma da Prússia na época das guerras
de libertação.

A esse respeito, é necessário ainda que se dê atenção


especial ao antagonismo dialético do último termo desses
três momentos: “ sociedade civil” e “ Estado” . Já conhecemos
as fontes dessas duas posições. A “ sociedade civil” é, na
realidade, a Economia, da forma em que Locke a estabeleceu
como fim em si mesmo, e que será elaborada posteriormente
na Economia Política inglesa de Adam Smith e Ricardo. O
Estado, por sua vez, é a volonté générale de Rousseau. Ou-
284 H istó ria das I déias S ociais

trossim, a sociedade civil está subordinada ao Estado, a Eco­


nomia à moralidade, embora estes termos guardem uma re­
lativa independência entre si. Com isto, entretanto, são
reconciliados do ponto-de-vista do método filosófico. Ao lado
da pura compreensão do Estado e, em geral, do mundo em
sua totalidade, pela contemplação, que predominou durante
a fase intermediária do pensamento de Hegel, aparece então
esta conciliação puramente prática entre as duas grandes for­
ças no domínio do Estado de seu tempo, ou seja, a “ socie­
dade civil’’ (Economia) e o “ Estado” (moralidade) como a
motivação da fase tardia de sua evolução filosófica, repre­
sentada pela última versão de seu pensamento sobre a Filo­
sofia do Direito. Esse aspecto não foi nem compreen­
dido nem justamente avaliado por Marx, como elemento
que vivia à margem da sociedade de seu tempo. Ele separou
novamente e com todo o vigor aquelas duas forças que Hegel
pretendia reconciliar ou que, segundo sua opinião, haviam
sido reconciliadas dentro do Estado prussiano de seu tempo.
E a nova tentativa de superação de sua contradição, que
Marx procura colocar no lugar da de Hegel, é a destruição
do Estado pela revolução proletária e a elevação da socie­
dade civil burguesa à situação de sociedade sem classes, isto
é, moral. Ainda voltaremos a este ponto.
A continuação dessa grande tentativa de conciliação en­
tre o “ Estado” e a “ sociedade civil” , realizada à margem
do socialismo no século XIX por Lorenz von Stein e Rueme-
Un, entre outros, permaneceu pobre e insatisfatória. Con­
tudo, a Filosofia de Hegel, em última análise, tornou-se atuan­
te historicamente apenas em função daquela “compreensão”
do Estado e do mundo no início da era industrial e não em
função de sua nova conformação ou rejuvenescimento.
A vida acomoda-se mal ao cinzento do conhecimento,
tão mal quanto a theoria e o conhecimento da polis em Aris­
tóteles aos conselhos de saneamento de uma crença enfra­
quecida em sua permanência. O Estado exposto na Filosofia
do Direito pode certamente ser inserido teoricamente na his­
tória; mas, na verdade, não tem nenhum futuro. Não ape­
nas na realidade, mas já na teoria, no conhecimento dos
filósofos. O conhecimento é de novo aqui, como em Aris­
tóteles, um individualismo solitário, a teoria do Direito um
substituto para o Estado nacional burguês do século XIX.
Mas esse Estado nacional burguês chega ao seu fim na hora
K a n t , F ic h t e e H egel 285

em que vai ter início a era industrial, como a polis grega à


época do reino de Alexandre.
As disposições aristotélicas em função de uma nova
forma de vida puderam* depois dessa Filosofia, desenvol­
ver-se livremente: a doutrina da amizade no epicurismo, a
theoria, a contemplação solitária da natureza num sentimento
do universo entre os estóicos com referência ao cosmos. De­
pois de Hegel teve lugar o desmoronamento bem mais dra­
mático de seu sistema, sua crítica feita por Marx e por um
mundo mais intolerante: a era industrial. Não foi dado aos
tempos modernos ter uma saída aparentemente tão pacífica
quanto a Antiguidade. No capítulo seguinte voltaremos às
tentativas posteriores de uma formação do individualismo
filosófico (num sentido que se afasta de Hegel). A posição
delas em face de Hegel está em uma relação inteiramente
semelhante à de Epicuro em relação a Aristóteles.
Aristóteles aliás disse a respeito de si mesmo: “ Quanto
mais me tornei solitário e me bastando a mim mesmo, tanto
mais aprendi a amar as lendas” . No fim da vida de Hegel
encontra-se a mesma resignação diante da realidade da época
que começava. É mais trágica nele que no grego, porque ele
colocou a história como terminada na consideração de todos
os elementos, isto é, porque literalmente não mais havia lugar
para sua perpetuação. Assim não permite a fuga na divina
theoria da natureza pura, abrangendo também a história, como
em Aristóteles. Por isso é que o desmoronamento do sistema
hegeliano antes da nova época teve conseqüências fatais que
paralisaram a Filo^pfia até os nossos dias.
O próprio Hegel, contudo, em seu gênio, ainda fez alu­
são em algumas passagens de sua obra (mas sem lhe dar
uma importância sistemática) às duas potências que determi­
nariam o futuro: a América e a Rússia, na qualidade de
forças realmente novas com próblemas novos, os quais sua
Filosofia ainda não emprestara. Esses problemas não se aco­
modam à representação dialética^ do Estado burguês de sua
época nem à perfeita visão da história do ponto de vista
divino da inteligência arquétipo que a fenomenologia tinha
desejado. Essa fenomenologia fora na verdade uma presun­
ção do homem na mesma categoria dos postulados dos sábios
estóicos ou epicuristas.
Q uarta P ahte

A ERA INDUSTRIAL
CAPITULO X X IV

Premissas

P ODEMOS observar em todas as civilizações que a forma


de existência dos homens se transforma cada vez mais, nos
estágios mais avançados, de rural em urbana. Isto ocorreu
na antiguidade, em que a polis de início era apenas um local
de refúgio dos proprietários de terras dotados de meios de
defesa das comunidades vizinhas e se transformou em cen­
tro de uma “ Cidade-Estado” , na qual a assembléia do povo
governava a si mesmo. Na última fase desse desenvolvi­
mento, contudo, surgiram as grandes metrópoles como Roma,
Bizâncio, Alexandria, Antioquia e muitas outras. Eram co­
munidades relativamente apolíticas em impérios ditatorial­
mente governados. Nelas se concentravam o comércio e as
riquezas. Contudo, abrigavam também a plebe que vivia
de trabalhos ocasionais e não-autônomos e os desocupados.
Essa gente poderia tornar-se politicamente perigosa de tem­
pos em tempos e tinha que ser satisfeita com “ pão e circo”
( panes et circenses). Coisa semelhante ocorrera antes no
Oriente antigo, na China, na índia e no Islã. Apesar disso,
a vida das populações das antigas civilizações permanecera,
de modo geral, orientada para a terra. Os camponeses que
viviam em torno das cidades e as grandes propriedades tra­
balhadas por escravos tinham que garantir o abastecimento
das cidades com alimentos. A partir daí, de sua vida árdua
e calma, corria um fluxo permanente de natureza e de concep­
ções naturais e primitivas em direção às cidades em parte
refinadas, em parte corrompidas por meio da civilização e
das necessidades artificiais, do gosto e da perversão. A vida
no campo não era apenas bucólica para os habitantes das

13
290 H istó ria das I déias S ociais

cidades como também representava uma fonte de energias


não-utilizadas por meio da assimilação de novas gerações, à
medida que as anteriores iam sendo liquidadas pela vida nas
cidades. Esta situação permaneceu nos tempos modernos
até os séculos XIX e XX sem perder seu significado ou sua
força. Depois disso, ela se transforma pela primeira vez na
história da humanidade desde o advento do estado sedentário.
A revolução industrial iniciada no século XVIII só pode
ser comparada, em seu significado para o desenvolvimento
humano, com outro evento que ocorreu vários milênios antes:
o aparecimento das grandes civilizações no Elam, Egito, Chi­
na, índia, Pérsia e na Europa em geral. Anteriormente, o
homem tinha vivido, durante o período glaciário, em pequenos
grupos ou em cavernas. Ainda não se sentia em casa na
terra. No início deste livro procuramos analisar a idéia so­
cial que está à base dessa forma de vida. A partir desse
momento, no entanto, o homem começou a sentir-se em casa
na terra. Não apenas trabalhou o solo, e criou animais,
garantindo com isso sua alimentação. Todas as formas sociais
que passaram a surgir a partir desse momento traziam a ca­
racterística desse modo de vida: a familiarização com os
cuidados da natureza, a posse, o conhecimento do tempo e
da terra, a dependência fatal em relação às suas injunções,
o aprisionamento pelo espaço celeste. Mesmo o domínio das
coisas por meio do artesanato, o fabrico dos instrumentos e
das casas como meios de proteção, e mesmo as artes, onde
quer que tenham ultrapassado a simples utilidade para trans­
formar-se em culto ou puro sonho, tudo isso, em última aná­
lise, servia à vida do homem em meio à natureza dominada
por seus movimentos próprios. Somente a invenção da má­
quina a vapor vai além desses limites. É possível que tenha
existido em grau reduzido uma técnica mais do que simples­
mente artesanal nas antigas civilizações da Assíria, Egito,
Babilônia, China, índia, etc., em função das necessidades
de guerra dos períodos maduros dessas civilizações. Mas to­
das essas tentativas marcaram passo e terminaram por fra­
cassar. Somente no século XVIII, na Europa, é que atingi­
ram uma perfeição tal que as levaram no caminho do pro­
gresso intensamente rápido e ilimitado.
Referimo-nos, ao tratar do início da idade moderna, à
utopia sócio-política e técnica de Bacon. Tratava-se, então,
P rem issas 291

apenas de um sonho, a que faltavam todos os meios de con­


cretização, especialmente no que diz respeito ao seu próprio
autor. Não foi o inglês Bacon, com seu empirismo, o cria­
dor das Ciências Naturais, e sim o italiano Galileu, por meio
da utilização do métpdo quantitativo da Matemática à me­
cânica terrestre e celeste. Isso foi então desenvolvido, nos
séculos XVI, XVII e XVIIII por Kepler, Leibniz, Gassendi,
Descartes, Huygens, Nevyton e inúmeros outros pesquisado­
res de maior ou menor importância. Foi um trabalho si­
lencioso, que de início não teve qualquer significado para a
vida: nerq no que se refere à realidade social, à história da
época, nem quanto à formação das idéias políticas que pu­
demos observar em Maquiavel e Bodin, Hobbes, MiJton,
Locke, Rousseau e mesmo em Kant, Fichte e Hegel, destituí­
das de qualquer influência da técnica que, ainda que não
tivesse prosseguido em seu desenvolvimento independente
da evolução das idéias políticas, não teria isso qualquer in­
fluência sobre elas. Já existia sem dúvida certa técnica nas
Ciências Naturais. Contudo,-ela estava a serviço do próprio
conhecimento, e não da produção industrial, como pode
ver-se claramente por meio do exemplo da invenção do te­
lescópio e do microscópio. A vida social continuava sendo,
nos tempos modernos, agrária, ainda que com um início de
formação de cidades, da mesma forma que ,em todas as civi­
lizações anteriores. A própria indústria, em seus princípios,
era, do ponto-de-vista técnico, uma espécie de artesanato
organizado em escala maior.
A revolução que levou a humanidade, há cerca de
5.000 anos, ao estado sedentário certamente precisou de mi­
lhares de anos para concretizar-se. A revolução técnica e
industrial é muitíssimo rápida. De qualquer forma, deve ser
incluído como parte integrante desse processo o aparecimento
das Ciências Naturais a partir do ano de 1300 depois de
Cristo como pré-história essencial. Como se sabe, Galileu teve
precursores: a escola occamista de Paris (Nicolau deX)resmo,
Marcílio de Inghen, Buridan, etc.) e o genial pintor Leonardo
da Vinci. O início da era propriamente técnica é fixado, não
sem razão, em função do ano de 1785: a invenção da máquina
a vapor por James Watt. Naturalmente, trata-se aqui de ape­
nas um acontecimento importante e representativo entre mui­
tos outros ocorridos no mesmo século. A partir desse momen­
to, a técnica se desenvolveu de forma permanente e sistemá-
292 H istória das I déias S ociais

tiea. Contudo, é possível afirmar que só a partir dos anos


que se situam no período intermediário entre as duas gran­
des guerras é que a técnica estabelece definitivamente seu
domínio sobre a terra e sobre os homens e encerra a era ainda
em grande parte agricola que reinara até então. Hoje, a era
agrícola já chegou de fato a seu fim. É certo que o homem
ainda se alimenta principalmente de produtos de origem agro­
pecuária. Entretanto, a forma social de sua produção, ao lado
da produção puramente industrial dos bens do consumo, em
toda parte, se afasta inteiramente da agricultura propriamente
dita, transformando-se em industrialismo e mercantilismo al­
tamente tecnificados da agricultura e da pecuária. E isso é
muito significativo inclusive e particularmente do ponto-de-
vista político. O campesinato, na medida em que ainda existe,
se encontra, por assim dizer, sob uma proteção romântica,
como se fosse um patrimônio artístico ou cultural. As pro­
priedades agrícolas, tanto as grandes como as pequenas, trans­
formaram-se em fábricas de cereais ou de carnes, dirigidas
por mão-de-obra qualificada de especialistas técnicos e co­
merciais. Não é sem motivo que se procura concentrar a pro­
dução agrícola, pelo menos teoricamente, em “ cidades agrí­
colas’' na Rússia de hoje.
Nos 5.000 anos da era agrícola, o homem finalmente se
acostumou aos movimentos próprios da terra. A natureza
era o seu destino. E, na medida em que ele se entregava
à terra, mesmo quando acreditava numa vida no além depois
da morte, reconhecia a existência de algo mais forte de que
ele e do qual dependia. É claro que, mesmo na era agrícola,
o campo não era lavrado pelo simples prazer que isto poderia
proporcionar, como no caso de plantas que se possuem den­
tro de casa, da mesma forma que os animais não são criados
na pecuária com o mesmo objetivo que se cria, por exemplo,
um cão de estimação. As plantas e os animais servem à ali­
mentação do homem. Existe, contudo, uma grande diferença
entre o homem que lavra seu campo, alimenta seu gado e
tem que esperar que a natureza cuide do resto e aquele que
fabrica coisas a partir de procedimentos científicos que domi­
na por meio de métodos técnicos aprendidos. Nos dois casos,
a atitude inteiramente diferente diante do mundo no trabalho
diário determinará o caráter do homem. Isto pode ser visto
com grande clareza no fato de que as plantas e animais já não
são considerados como seres independentes, mas — da mes'
P remissas 293

ma forma que o carvão, o petróleo e o aço — como uma es­


pécie de matéria-prima para experimentos, e de que as socie­
dades protetoras de animais, como recordação de tempos an­
teriores, apenas mantêm uma atividade altamente duvidosa
quanto aos seus resultados, geralmente misantrópica e, de
qualquer modo, limitada pelos negócios.
Não é sem razão, portanto, que se disse que o homem
atualmente só pode aceitar como parceiros no mundo seus
semelhantes. A ciência e a técnica ensinaram a submeter-se,
segundo a fórmula de Bacon, ao mundo animado e inanima­
do, na medida em que, por seu conhecimento, obedece às
lèis naturais, para poder então dirigi-lo e explorá-lo em fun­
ção de seus objetivos meramente comerciais e econômicos.
Isso é válido para a terra como o espaço social vital dos
homens. Mas vale também, e por isso mesmo, para a inédita
invasão do cosmos pelo homem, partindo dos elementos atô­
micos até chegar ao espaço sideral, corno ocorre em nossos
dias.
A era industrial possui uma pré-história relativa às Ciên­
cias Naturais, pré-história essa em que a técnica não teve
qualquer influência sobre a vida social. Do ponto-de-vista
social, trata-se aqui da época do absolutismo, cujas idéias so­
ciais foram analisadas anteriormente, iíouve, então, um pe­
ríodo de transição que se estende, grosso modo, desde a
Revolução Francesa até o fim da Primeira Guerra Mundial.
Aqui, a técnica já é aplicável e de fato é aplicada à produção
industrial. Ao lado disso, contudo, ainda se encontra a agri­
cultura no sentido antigo. Em meio a várias oscilações e
crises, formou-se, então, o mundo burg iês. Suas formas de
domínio foram destruídas pela Primeira Guerra Mundial, 120
anos depois de seu aparecimento, do mesrno modo que o
absolutismo ruiu em 1789 com a Revolução Francesa. E é
preciso que se note que isso se verificou tanto entre os ven­
cidos como entre os vencedores da Primeira Guerra Mundial.
A partir desse momento, a técnica e a indústria passam a do­
minar.
Idéias sociais propriamente ditas só existem nos 120 anos
do período de transição da agricu-tura para o domínio com­
pleto da técnica sobre toda a superfície da terra. Trata-se
de uma época bastante agitada. Schopenhauer, um obser­
vador imparcial, que a examina, por assim dizer, de fora, diz
294 H istó ria das I déias S ociais

a seu respeito: “ O que ocupa e mantém em movimento os


homens é a aspiração à subsistência. Contudo, não sabem
o que fazer com a existência quando conseguem assegurá-la.
Por isso, a segunda coisa que os mantém em movimento é o
esforço no sentido de livrar-se da existência, torná-la imper­
ceptível, matar o tempo, isto é, escapar ao tédio. Da mesma
fortna que as necessidades constituem o açoite do povo, o
tédio é o açoite das classes superiores. Na vida burguesa,
esse tédio é representado pelo domingo, assim como a ne­
cessidade é representada pelos seis dias da semana” ( Welt
ais Wille und Vorstellung) .
É possível distinguir quatro idéias sociais e políticas nesta
época, que procuíam atacar suas necessidades de maneiras
diferentes: 1) O individualismo puro, que só considera a
comunidade e a sociedade como instrumentos para a felici­
dade solitária, da mesma forma que Epicuro na antiguidade.
Não deve ser subestimado historicamente e tem uma força
tranqüila que decorre da renúncia e, portanto, é por defini­
ção inatingível e desvaloriza toda as formas sociais. 2) O
liberalismo burguês que se desenvolve a partir da concepção
de Locke sobre o Estado como garantidor da acumulação
da propriedade e determina, além da Inglaterra, onde teve
origem, as formas constitucionais da Europa e da América.
3) O socialismo de Saint-Simon até Marx, que se opõe a esse
mundo social dominante e desenvolve uma extraordinária
força revolucionária em função da desumanidade do período
de transição à era industrial. O precursor de sua idéia social
é Rousseau. 4) Nietzsche como um profeta original meio rea­
lista, meio romântico, da era das massas. Cada uma dessas
quatro idéias é filha de seu tempo, do período de transição.
Isto quer dizer que se assemelham à nova era industrial e
procuram antecipar uma nova organização social em função
do novo homem. Contudo, nenhum desses pensadores com­
preendeu a técnica em seu significado de coisa separada da
terra. Por isso, ficam reduzidos às insuficiências e unilate-
ralidades da época de transição. E, como será visto mais
adiante, cada um em seu lugar próprio. Não obstante, a
realidade da nova época não pode ser apreendida, ainda
para nós, de modo muito diferente do que o fora por aqueles
quatro sistemas. As tentativas realizadas nos últimos 60 anos
e que procuraram ser independentes deles não passam de
literatura e jornalismo, não se referindo à própria vida.
CAPITULO XXV

Schopenhauer

E p i c u r o concebera a sociedade como uma instituição pura­

mente egoísta, criada pelos indivíduos com o propósito de


satisfazer suas necessidades. Mas a própria satisfação das
necessidades não era para ele senão a condição sine qua non
não-subordinada ao único objetivo válido: a serenidade da
alma e a alegria de viver do homem. Não há nele portanto
a “ busca sem alegria da alegria” , como em Locke, mas a
alegria presente todo o tempo no instante que passa, qual­
quer que seja. É por amor a essa alegria que os manda­
mentos de qualquer Estado e as convenções da sociedade são
escrupulosamente observados a contragosto (e, por isso mes­
mo, desvalorizados). A amizade (simpatia, amor), as rela­
ções privadas que dois ou alguns indivíduos mantêm entre si,
é o único substituto da comunidade. Dificilmente pode su­
perestimar-se, em sua significação humana, essa posição in­
dividualista em oposição a todas as idéias sociais, que se acei­
ta ou que se rejeita. Ela é sempre, para um grande número
de pessoas, um refúgio inalienável.
Poderia, de início, considerar-se o solipsismo teórico de
Max Stimer (Caspar Schmidt,*1806-1856) como estabelecendo
esse individualismo. O título de seu livro fala bem do que
pretende dizer: Der Einzige und sein Eigentum ( O Único e
sua Propriedade), e contém as seguintes frases: “ Quero ser
e ter tudo o que posso ser e ter. Que me importa que outros
sejam e tenham a mesma coisa?” Esse individualismo radi­
cal provocou em diversas épocas do século XIX certa sensa­
ção entre liberalismo e socialismo. Não somente despreza de
296 H istó ria das I déias S ociais

modo bastante inconseqüente a natureza humana, que sempre


depende em todas as estruturas sociais dos outros homens,
com a qual não se preocupa, como só muito pouco pode
oferecer de conteúdo humano ao “ único” que procura isolar;
de sorte que essa afirmação é a expressão de um individua­
lismo pueril, irrefletido e sem significação real.
Quem em compensação criou na época moderna uma
doutrina realmente profunda, correspondendo exatamente à
de Epicuro com Tespeito aos problemas sociais, foi Schopen-
hauer (1788-1860). É superficial o paradoxo que existe
ao atribuir-se a mesma significação ao “ filósofo da alegria
de viver” e ao do “ pessimismo” . Só pode isso causar espanto
a quem não tem conhecimento do homem nem compreensão
do encadeamento das idéias.
Logo de início verifica-se um paralelismo, também evi­
dente para os leigos, entre a obra tardia de Schopenhauer,
os Aforismos, extraídos dos Parerga e Paralipomena, e a dou­
trina de Epicuro. Schopenhauer mesmo recorda aqui, ao lado
de Aristóteles, a Epicuro e a Metrodoro (discípulo de Epi­
curo). Os Aforismos são já definidos na introdução de ma­
neira epicurista como “ a arte de tomar a vida tão agradável
e tão feliz quanto possível” . Mas são também, e ainda de
maneira epicurista, dispostos em três partes: “ O que se é,
o que se tem, o que se representa” . O que se tem é a pro­
priedade; o que se representa é o crédito social de que se
goza junto aos outros, consideração, honra, glória. Schopen­
hauer não desprezou a propriedade, nem teoricamente nem
na prática de sua vida. Considerou-a e tratou-a, tanto quanto
o crédito social, como um meio útil, que só existe para
“ o que se é’\
Locke talvez não tivesse contestado essas idéias, se ti­
vesse sido indagado a respeito. No entanto, a prosperidade
da sociedade, e isso do ponto-de-vista econômico, mantém-se
sem equívoco no primeiro plano de suas preocupações, antes
da felicidade presente e da alegria de viver do indivíduo.
Somente Schopenhauer ousa inverter essa relação, contra toda
convenção, moral © simpatia. No interior do domínio do “ que
se é” , concebido de maneira rigorosamente individual, o gozo
da vida a qualquer preço não é mais agora a finalidade. Ao
contrário, Schopenhauer é bastante perspicaz para não saber
que precisamente todo gozo instintivo e o desejo que se tem
Sch openh au er 297

déle põem o homem na dependência dos bens e de seus se­


melhantes, que por natureza ele não é absolutamente capaz
disso e que depois de todo gozo vem o amargor. Por isso
ele molda os objetivos da vida para “ o que se é” num autên­
tico espírito epicurista, de tal forma que levem a uma alegria
de viver sem sombras, à libertação igua^ente serena do
sofrimento, da dor e dos desejos irrealizáveis. Diz, exata­
mente como Epicuro: “ Só o presente é verdadeiro e real, é
o tempo realmente realizado e é exclusivamente nele que
repousa nossa existência... É insensato rejeitar uma hora
presente agradável ou perder a alegria do coração por arre­
pendimento do passado ou por preocupação com o futuro” .
Epicuro tinha mostrado mais intensamente ainda que não
existe nenhum momento na vida de um homem, quer seja
aparentemente indiferente, quer seja preenchido de sofrimento,
do qual não se possa tirar uma verdadeira alegria de viver.
Mas também esse pensamento desvaloriza toda sociedade e
toda comunidade, porque estas se baseiam nos vínculos e nos
objetivos que se estendem no tempo e porque exigem que
se faça uma grande abstração do presente.
Schopenhauer põe mulher e filhos (como Demócrito, pre­
cursor de Epicuro também em Ética) entre o que “ se possui” ,
ou mesmo, mais exatamente e mais maliciosamente, entre
“ aquilo que é possuído” . E mesmo o sucedâneo de Epicuro
para a comunidade social, as relações individuais de amizade,
é para ele uma participação duvidosa na alegria de viver, por­
que “ aqui o possuidor (da amizade) deve, na mesma medida,
ser a posse do outro” . De tal forma ele radicaliza o princí­
pio de Epicuro: “ viver às escondidas” , até voltar-se inteira­
mente para dentro de si, onde se basta a si mesmo. Pois
“ ninguém pode estar em perfeita harmonia a não ser con­
sigo mesmo, nunca com seu amigo, nunca com sua amada” .
Por esse motivo, “ o estudo primordial da juventude deve
ser aprender a suportar a solidão, porque ela é uma fonte
de felicidade, de serenidade da alma” . Em compensação, “ a
sociabilidade faz parte das tendências perigosas, perniciosas
até, pois nos coloca em contato com seres que são moralmente
maus e, no plano intelectual, tacanhos ou absurdos. O ser
associai é um ser que não precisa deles” . Epicuro disse:
“ um sábio se basta a si próprio” .
O próprio Schopenhaeur utilizou essa felicidade autô­
noma no que se é, para ensinar aos. homens o que o mundo
298 H istó ria das I déias S ociais

e a vida na verdade são. Pode dizer-se que um objetivo


social ou altruísta se torna aqui novamente essencial. Tam­
bém, buscando-se as razões psicológicas profundas, pode exa­
minar-se com cuidado qual a parte real que aqui tem a ale­
gria solitária que se procura compreender, até que ponto
(com respeito ao renome futuro) o orgulho de usufruir na
sociedade o papel de grande filósofo solitário teve ocasião
de se manifestar. Mas isso não é importante; Schopenhauer
sabia de todo modo que: “ Aquele que veio ao mundo para
ensinar aos homens seriamente e sobre as coisas mais impor­
tantes pode considerar-se feliz quando consegue salvar a pele” .
Nossa tarefa não é descrever isso em detalhe. Como os Afo­
rismos pertencem aos Parerga (isto é, a suas obras secundá­
rias) a doutrina de Schopenhauer é certamente, em muitos
aspectos, muito mais pertinente para o leitor moderno do
que a de Epicuro, sendo, contudo, no conjunto, mais dispersa
e menos sistemática.
Poderia argumentar-se que Schopenhauer, na introdução,
caracterizou toda essa “ arte de tornar a vida tão agradável
e tão feliz quanto possível” , essa arte epicurista, como es­
tando em contradição com sua própria Filosofia. Pretende
ele que lhe foi preciso “ livrar-se totalmente desse ponto de
vista ético-metafísico mais elevado” . Mas isso é precisamente
uma aparência falsa.
Schopenhauer ensina — como já o diz o título de sua
obra principal Die Welt ais Wille und Vorstellung (O Mun­
do como Vontade e como Representação) — que o mundo,
tal como nós o pensamos e o vemos, não passa de uma re­
presentação, de um sonho. A vontade enquanto vontade
(ou melhor, impulso) de viver é certamente uma substância
verdadeira, mas nos une no sofrimento e deve portanto ser
negada para atingir-se a tranqüilidade. Se se examina isso
com cuidado, vê-se que não passa na verdade de uma maneira
moderna de radicalizar e agravar o abandono epicurista de
toda a natureza em uma mecânica sem sentido, a fim de
libertar os homens, do medo dos deuses e da angústia da
morte. É evidente que “ mecânica” seria para nós hoje, de
forma totalmente diferente do que era para Epicuro, precisa­
mente a mais Teal, a mais dura realidade. Mas de nenhum
modo para os gregos. Jamais pensaram em fazer da mecâ­
nica na técnica uma realidade significativa para o homem.
Sc h o p e n h a u e r 299

O sonho, em compensação, teria sido antes uma realidade


para eles, a qual podia aterrorizar o homem e causar prejuízo
a sua alegria de viver e a seu contentamento consigo. Epicuro
não teria alcançado, em sua época, seu objetivo ético-indivi-
dualista se tivesse, como Schopenhauer, interpretado o mun­
do como não sendo senão um sonho mau. Pode, portanto,
considerar-se a mecânica sem sentido da natureza e o sonho
como concepções topologicamente equivalentes e que desva­
lorizam o múndo, em Epicuro e em Schopenhauer.
Resta ainda como diferença o nirvana, concebido, supos­
tamente, de modo “ pessimista“ em Schopenhauer, como o
repouso ao qual se aspira na morte, em Epicuro como a
alegria de viver absolutamente terrestre, que nada mais aguar­
da da morte. Naturalmente existe nisso -uma diferença, que
Nietzsche também fez valer contra Schopenhàuer. Não é
entretanto tão grande quanto se admite geralmente. Não é
mais do que uma conseqüência do espírito mais dinâmico dos
tempos modernos. A descrição de sua vontade de viver dessa
época exigia representações mais radicais do que o gênio
piedoso dos helenos, inclinados já por natureza (em Homero,
por exemplo) para a contemplação e o abandono ao destino.
Em todo caso é decisivo para nosso propósito que ambos os
objetivos sejam essencialmente, e não somente na forma, indi­
vidualistas, que isolem os homens, que não sejam formadores
de comunidade, isto é, que desvalorizem todo contato social
para dele fazer uma relação egoísta de sociedade, necessária,
sem dúvida, mas posta rigorosamente a serviço do indivíduo
autárquico. Se assim não fosse, o filosofo da negação da vida
não teria podido escrever os Aforismos, aparentemente em
contradição com sua doutrina, mas completando-a de modo
muito conseqüente.
O homem comum é o que ele faz e aquilo com que se
ocupa. Se, portanto, ele é dependente, em sua atividade e
em seu consumo, na sociedade industrial, ele também o é
em sua vida. Mas pode, a qualquer instante, como indivíduo,
retirar-se da sociedade pelo “ que ele é” , para expressarmo-nos
como Schopenhauer. É necessário, sem dúvida, para isso
certa dose de inteligência, mas não de educação. Amónio,
o carregador, foi, na Antiguidade, o mestre do filósofo Plo-
tino, do filólogo Longino e do teólogo Orígenes. A única
coisa exigida para isso é a independência com a qual ele pode
300 H istó r ia das I déias S ociais

enfrentar o mundo e seus semelhantes, sem se deixar desviar


de seu caminho e renunciar às vantagens que lhe são ofere­
cidas. Se isso lhe é possível, sua profissão ou suas reíaçòes
tomam-se então totalmente indiferfentes. A Filosofia de Scho­
penhauer pode ensinar essa independência individual. Em
suma, ela coloca o homem acima de toda a história. A dou­
trina de Schopenhauer é, no século do historicismo, consciente
e radicalmente a-histórica. A independência individual fora
da sociedade compensa assim de modo individual a depen­
dência essencial do homem na era industrial. Mas ela é
também acessível ao homem sem essa doutrina, por um espí­
rito vigilante, pela atenção que se dá às experiências da vida.
O resultado de tais esforços assemelha-se sempre, com maior
ou menor clareza, ao que Schopenhauer ou Epicuro querem
ensinar metodicamente em sua Filosofia.

Outro fato esclarece o rigoroso individualismo dessa idéia


social e ao mesmo tempo sua significação prodigiosa, esten­
dendo-se bem além dos conventículos schopenhauerianos e,
de maneira geral, do conhecimento schopenhaueriano, tanto
quanto o epicurismo antigo a!ém da escola epicurista. É a
filosofia da arte, tratada no terceiro livro do Mundo como
Vontade e como Representação. O homem, na apreciação
da arte, na fruição artística, liberta-se, pelo menos proviso­
riamente, segundo Schopenhauer, do instinto cego que o
impulsiona na vida e que só faz estorvá-lo no sofrimento.
Ele se eleva ao ponto-de-vista do espectador desinteressado.
O mundo não se mostra mais para ele como um encadea­
mento de causas, mas aprende-o em sua qualidade de idéias
puras, existentes, na própria música, como a forma da von­
tade do mundo. A contemplação, a fruição da arte, enquanto
afasta do presente e, portanto, dos vínculos sociais em geral,
confirma para o homem o contentamento solitário consigo,
inerente à sua verdadeira natureza. Schopenhauer diz: “ A
duplicidade de sua consciência atinge então no espectador
imperturbável dessa cena a mais alta nitidez: ele se sente
ao mesmo tempo, como indivíduo, como aparição frágil da
vontade, que o menor golpe dessas forças pode aniquilar,
desarmado diante da natureza poderosa, dependente, aban­
donado ao acaso, um nada dissipando-se diante de forças
prodigiosas [e também em sua dependência persistente na
era industrial] e ao mesmo tempo, em sua qualidade de su­
Sc h o p e n h a u e r 301

jeito eterno, tranqüilo [independente] do conhecimento, pes­


soa que, enquanto condição do objeto é o apoio da totalidade
deste mundo, o terrível combate da natureza [e da socie­
dade] não sendo senão sua representação, na compreensão
tranqüila das idéias, livre e estranho a toda vontade e a toda
necessidade” . A arte faz aqui exatamente o que fazia em
Epicuro o abandono do mundo enquanto mecânica sem sen­
tido, abandono que concentra o valor da vida, somente ligada
anteriormente ao mundo, na alma do homem solitário. A
fruição da arte é de fato a realização continuamente repetida
da idéia de que o mundò não passa de um sonho, uma ima­
gem, e que na verdade a vida do indivíduo não passa desse
sonho feito livremente, independentemente e se bastando a
si próprio.
Representada dessa forma, a arte torna-se o meio mais
radical e o único real de isolar o homem e de colocá-lo, per­
feitamente satisfeito que se acha em tòdos os instantes de
sua existência, em um presente sempre imediato e que se
esgota sempre, mas solitário. Tal foi a finalidade inequívoca
de Schopenhauer, mas não é de nenhum modo a significa­
ção da arte em todos os tempos da história.
Pode logo distinguir-se, do ponto de vista sociológico,
quatro níveis na posição do homem com respeito à arte, em­
bora a obra seja a mesma nesses quatro níveis e que seja
portanto transponível de um para o outro. Abordamos ante­
riormente as pinturas rupestres da época glaciária como idéias
sociais. Tratava-se de meios mágicos que permitiam a inte­
gração social de uma comunidade colocada diante de tarefas
vitais, com o propósito de superação e objetivação do medo.
Então, no começo das grandes civilizações, o edifício sem
imagem do culto e a música são, de forma semelhante, meios
de inserção do homem, de seu sentimento imediato do espaço
e do tempo, no mundo em seu conjunto ou em seu país.
Os megálitos proto-históricos de Stonehenge, as pirâmides
egípcias, o templo grego, a igreja cristã, prestam esse emi­
nente serviço de criação da comunidade de seu tempo. De­
pois a arte (por exemplo, a tragédia grega, o drama de
Shakespeare, de Racine, de Schiller ou de Goethe) torna-se o
livre modelo moral de um povo que atingiu sua maioridade
e adquire de novo uma significação social. Somente em
parte, na Renascença (Leonardo da Vinci), mas sobretudo
302 H istó ria das I déias S ociais

em Kant na Kritik der Urteilskraft ( Crítica do Juízo) e de


modo peremptório em Schopenhauer, é que a obra de arte
é qualificada como objeto de uma fruição livre e solitária,
não servindo mais para a integração social, mas para uma
individualização radical das finalidades do homem. Man­
tém-se nos tempos modernos exatamente no lugar da alegria
de viver serena e contemplativa do sábio epicurista ou da
theoria de Aristóteles.1
Mas, no século XIX, isso só subsistiu na doutrina teórica
de Kant e de Schopenhauer. O que era formulado de ma­
neira conceptual nessas doutrinas era somente o que tem
sido ao mesmo tempo e em todos os países (e em grande
parte também sem o conhecimento dessa Filosofia) a reali­
dade da vida. O isolamento e o individualismo epicurista
adquiriram, na fruição solitária da arte, na fruição da arte
de todos os tempos e povos, um desenvolvimento prodigioso.
Essa fruição torna-se o conteúdo propriamente dito da vida,
a arte da verdadeira alegria de viver epicurista libertada do
sofrimento, dos homens em uma sociedade que se divide sem­
pre mais em contratos econômicos limitados convencional­
mente no tempo, uma sociedade que não conhece mais comu­
nidade e portanto torna-se cada vez menos satisfatória em
seu constante progresso técnico.
Ao lado da Filosofia radicalmente associai de Scho­
penhauer encontra-se uma série de outras manifestações de
menor importância que, por outros caminhos, aspiram à mesma
coisa. Por exemplo, na França, Maine de Biran. A fruição
da arte é em todas as partes, de modo semelhante, o meio
de uma pura individualização. Nesse sentido, o artista tor­
na-se também uma figura típica opondo-se enquanto artista
à “ sociedade’' de seu tempo. Permanece, contudo (embora
proporcione a numerosos indivíduos o conteúdo supremo de
sua vida, sua alegria de viver), em sua atividade, diferente
do que era outrora, fundamentalmente fora de toda socie­
dade e de toda comunidade. A trágica existência de nume­
rosos artistas desde a Renascença tem sua causa nisso.

1 Acompanhei minuciosamente essa gradação das diferentes ma­


neiras possíveis de considerar a arte, desde os tempos mais remo­
tos, em meu livro Die Kunst, Entstehung und Entwicklung, Wesent
Gattungen (A Arte, Origem e Desenvolvimento, Essência, Gêneros),
1961.
CAPITULO XXVI

A Economia Política Inglesa

í\ Inglaterra dos séculos XVIII e XIX não precisava


mais de revolução. A abolição da'monarquia absoluta reali­
zara-se mais cedo do que em qualquer outra parte com as
duas revoluções do século XVIL Existia no Parlamento, que
era agora, ainda que não sem limite, o verdadeiro soberano,
uma plataforma que permitia remediar todas as modificações
da estrutura social através de uma discussão racional e de
um compromisso intervindo por um caminho orgânico legal.
A situação política da Inglaterra no século XIX distingue-se
ademais por três caracteres: em primeiro lugar, ela é, pelo
espírito calvinista de sua religiosidade e pelo empirismo tra­
dicional de sua filosofia, o mais industrializado de todos os
países da Europa. Já se disse não sem razão que em lugar
da revolução política se operou aí uma “ revolução indus­
trial \ É, em segundo lugar, o país mais rico da Europa,
em parte como conseqüência de suas possessões coloniais
gigantescas, exploradas muitas vezes de maneira brutal, e
que superam em muito, em extensão e população, a metró­
pole. É, em terceiro lugar, o país que procura resolver, se­
gundo a idéia social de Locke, todos os problemas de ma­
neira essencialmente liberal.
Por causa disso é que a Inglaterra atacou muito * )do,
antes mesmo da Revolução Francesa, e pela primeira vez
no espírito e à base da teoria de Locke, as dificuldades e
os problemas novos da era industrial. Trata-se sobretudo
de Adam Smith (1723-1790), o amigo do filósofo Hume e
o fundador da Economia Política científica. Sua obra leva
304 H istó ria das I déias S ociais

o título Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth


of Nations (1776). Até hoje a Inglaterra e a Améiiea do
Norte nao saíram, em princípio, desse quadro. Depois dele,
Jeremy Bentham (1748-1832) continuou a desenvolver o li­
beralismo em uma direção singular que mistura de modo
notável, muitas vezes inconseqüente no plano teórico, mas
mais utilizável na prática, elementos do domínio do indiví­
duo e da sociedade com elementos políticos de Direito Pú­
blico. Deve citar-se igualmente o jovem Mill. Aquele que
aperfeiçoa a Economia Política Liberal de sua época, ainda
que com ceticismo, é Ricardo (1772-1823).

O trabalho é para Adam Smith, exatamente como para


Locke, a única atividade humana produtiva. “ O trabalho
anual de cada nação é o recurso que lhe proporciona origi­
nariamente as necessidades e os benefícios que ela consome
anualmente” . Não se trata portanto somente da reserva mo­
netária dos mercantilistas, nem do trabalho agrícola dos fisio-
cratas, mas de todo trabalho, e sobretudo da indústria, da
manufatura e do comércio. O trabalho executa-se natural­
mente no Estado, mas é uma atividade amplamente autôno­
ma, uma atividade que é da competência da sociedade e que
precisa da proteção do Estado, sendo que essa proteção não
intervém em princípio senão fora de tempo. Por esse mo­
tivo, em oposição ao antigo mercantilismo ou ao “ Estado
mercantil fechado” de Fichte, e se bem que ele descreva a
riqueza das nações, em Smith o trabalho, a indústria, o comér­
cio (enquanto economia de troca), levam de início além do
Estado, ao ideal do comércio livre. Essa ou aquela declara­
ção que se encontra nele freqüentemente, por exemplo, quan­
do assinala que a defesa tem precedência sobre a riqueza,
não são em teoria inconseqüentes. Só valem, por assim di­
zer, provisoriamente para a economia autônoma ainda per­
turbada pela política e servindo-se necessariamente dela, pa­
ralisando a política com política. Adam Smith mostrou que
a antiga teoria comercial do mercantilismo, segundo a qual
o benefício de um (homem ou Estado) só poderia ser al­
cançado em detrimento .de outro, era incorreta.
Por esse motivo a civilização não é mais, como em
Hobbes e (de modo já um pouco inconseqüente) em Locke,
uma situação regulada politicamente em oposição a um es­
A E c o n o m ia P o l ít ic a I nglesa 305

tado de natureza pré-estatal, porém a economia é delimitada


em oposição a um sistema econômico pré-civilizatório. Mas
existe fundamentalmente em Smith uma sociedade autô­
noma, no sentido de nossa definição (não uma comuni­
dade). Ele mesmo^diz: “ Uma sociedade pode também subsis­
tir entre diversos homens (como uma sociedade entre diversos
comerciantes) partindo do sentimento de sua utilidade e sem
amor nem apego Tecíprocos. Então mesmo que nenhum
homem, nessa sociedade, seja obrigado perante outro ou li­
gado por um sentimento de gratidão, essa sociedade pode
contado ser mantida por uma espécie de intercâmbio comer­
ciai de bons serviços.. . ” Encontra-se isso em sua primeira
obra de juventude redigida sob a influência de Hume, Theory
of Moral Sentiments (tomo I, pp. 127-8), e não na Inquiry.
A simpatia enquanto relação humana se acrescenta à autono­
mia puramente social da economia, que sua obra posterior ex­
põe. E isso como uma espécie de amizade epicurista estendida
ao universal. A economia permanece apesar disso autônoma
e não é nunca dependente dos vínculos de comunidade. Ela
tem em princípio se m p r e a possibilidade, e coTre sempre o
perigo, de tomar-se o Moloque de uma empresa, que é inde­
pendente em relação à esfera humana e a devora, que a
todos explora, tanto aos proprietários quanto aos o p e r á r io s
(trata-se precisamente da “busca sem alegria da alegria” ).
Somente a fé otimista (ou superficial) de Adam Smith em
particular e da maioria dos ingleses e dos americanos em
geral alia as duas esferas independentes do trabalho social e
da simpatia humana. Carlyle mais tarde zombou das cren­
ças decorrentes dessas idéias, nas harmonias de Bastiat, e
nas promessas de Cobden, como representando o “ reino mi­
lenário do caixeiro” . A teoria de Marx provém de que nunca
lhe ocorreu, em função de suas experiências, que economia e
simpatia concordam entre si, que além disso “ todos os inte­
resses legítimos [dos proprietários e dos operários] se harmo­
nizam” .
Ê evidente que, na autonomia da economia liberal, a justa
repartição do produto social não é assunto do Estado. Este
só faz estabelecer com sua legislação as regras do jogo da
aquisição da propriedade. Daí resulta um equilíbrio da ofer­
ta e da procura no pagamento do trabalho e dos bens. O
Deus da escolástica tornou-se a “ mão invisível” que alcança
o que o interesse pessoal, Sem o saber, providencia do me-
306 H istó ria das I déias S ociais

lhor modo possível para a prosperidade geral. “ Cada ho­


mem (acredita Smith) tem a absoluta liberdade de procurar
à sua maneira seu próprio interesse*’ (E. Salin). A natureza
do homem é determinada pelo “instinto de troca” . Um pTeço
médio equânime estabelece-se então por si mesmo para o
trabalho e todas as mercadorias fabricadas. Inclui uma quota-
-parte média de, lucro para o operário e para o fabricante.
O próprio trabalho e o instinto de troca são mantidos
pela necessidade natural e pelo esforço do homem, que ex­
cede a mera satisfação dessas necessidades no sentido de
melhorar continuamente sua situação. Mas como a economis
é autônoma, não pode parar nos limites do Estado. É óbvic
que precisa sempre de uma organização política qualquer
para protegê-la. Esse é o último resquício do pensamento
de Hobbes. E onde ainda existem Estados nacionais, a se­
paração na afirmação de si mesmo e na defesa é igualmente
necessária. Nenhum inglês (pelo menos naquela época) teria
perdido de vista essa separação por amor a doutrinas estran­
geiras. Mas naturalmente essa idéia social precisa de uma
coexistência pacífica dos Estados e mesmo de uma divisão
internacional do trabalho.
Adam Smith certamente não foi, por sua disposição de
espírito, um capitalista, isto é, um partidário dos empregado­
res contra os operários em uma luta de classes. A verdadeira
miséria dos trabalhadores na Inglaterra só aparece depois de
sua epoca. Êle definiu ao contrário a “ riqueza” das nações,
cujas causas quer examinar, precisamente como “ esse bem-
-estar geral que se estende até as classes inferiores” (Inquiry,
tomo I, p. 14). Pensava que os trabalhadores podiam tam­
bém obter o máximo pelo livre jogo da oferta e da procura
no mercado de trabalho, sem organização especial (sindica­
tos) que os protegesse e interviesse na economia livre. Con­
tudo a Inglaterra era, já na época de Thomas More, um país
de contrastes prementes entre ricos e pobres, que se agrava­
ram ainda mais no século XIX com a industrialização. Abriu-
-se caminho, no que se chama de “ liberalismo mancheste-
riano”, à falta de responsabilidade dos proprietários, sob o
pretexto de forçar os pobres ao trabalho pela miséria, embora
o otimimo dessa doutrina liberal fosse já desmentido até
certo ponto por Ricardo e Malthus. O capitalismo avançado
de todos os países aderiu a essa forma de liberalismo. Se
A E c o n o m ia P o l ít ic a I nglesa 307

bem que a economia livre, autônoma, ofereça em princípio


uma série de vantagens, as quais não nos compete debater
aqui, o socialismo tem mostrado, não sem razão, desconfiança
em relação à idéia liberal de justiça no livre jogo da oferta
e da procura.
Existe, tanto na ética quanto na teoria econômica de
Adam Smith, uma idéia central, segundo a qual cada homem
busca por natureza sua vantagem, mas que ao mesmo tempo
e sem contradição éssa vantagem bem compreendida é a
vantagem dos outros, de todos em geral. É evidente que lhe
seria preciso então fazer uma nova distinção entre o egoísmo
imediatista e essa vantagem “bem compreendida” . Ele a faz
introduzindo, enquanto critério ético, o “ observador impar­
cial” . O ponto de vista deste último está naturalmente acima
do simples interesse pessoal. Não nos é inato, mas se forma
de modo um tanto misterioso na sociedade, à vista dos outros:
“ Colocai o homem em companhia de outros homens e ime­
diatamente ele estará equipado com o espelho de que antes
estava desprovido. Esse espelho repousa no comportamento
daqueles com quem convive, que lhe fazem sempre saber se
compartilham de seus sentimentos ou se os desaprovam. So­
mente aí é que descobre pela primeira vez a conveniência
ou inconveniência de seus próprios sentimentos” ( Theory of
Moral Sentiments). Seguramente não se trata de uma mo­
ral como em Kant, mas da tirania das convenções e da opi­
nião pública. Apóia-se na necessidade absoluta de obter a
.consideração dos outros. Foi sempre muito forte na Ingla­
terra e na América do Norte e tem naturalmente suas van­
tagens e seus inconvenientes.

Sobre a base da aspiração natural à felicidade, inata em


todo homem e sustentáculo deste em sua existência, Bentham
desenvolve em seguida o famoso princípio moral da maior
felicidade possível para o maior número possível de homens.
Trata-se nele do fim supremo de toda vontade e de toda
ação. Mas a questão é saber o que se entende aqui concre-
tamente por “ felicidade” ( happiness). Em Epicuro, tíata-
va-se não de uma disposição passageira, mas da paz serena
da alma, isto é, em última análise e de modo bastante pes­
simista: um estado isento de dor. Seu valor absoluto en­
quanto finalidade de ioda aspiração humana residia na ceie-
bração religiosa e solene do instante, mesmo pobre ou per­
turbado pela dor, o que só se obtém renunciando-se a viver
impetuosamente, renunciando-se à duração ilimitada.
Também há em Bentham equivalentes a essas renúncias.
Residem mais no bom senso que nos ensina a calcular as
conseqüências de nossos atos e a evitar por cálculo o sofri­
mento inevitável quando nos abandonamos de modo impre­
vidente a um prazer momentâneo. Sua felicidade torna-se
assim de início quantitativamente um cá^ulo racional em
que os momentos que se seguem devem ser sempre leva­
dos em consideração: intensidade, duração, certeza, proxi­
midade, fecundidade, pureza e número das pessoas partici­
pantes. Mas como, finalmente, a felicidade ou a alegria não
são determinadas analiticamente senão como aquilo a que
o homem aspira por sua natureza, o desprazer como o que
ele tende a evitar, não se pode jamais decidir teoricamente
se o indivíduo preferiria, por exemplo, uma vida curta, toda
de prazeres, ou uma vida mais longa, relativamente isenta
de sofrimento. Sua superficialidade reside mais nisso do
que em sua tentativa um pouco ridícula de uma avaliação
quantitativa da felicidade.
O que, em compensação, é mais decisivo, é o resultado
que nele, de modo inteiramente semelhante ao que se passa
em Adam Smith, conduz da aspiração egoísta a um prazer
exclusivamente pessoal à felicidade de todos. Com efeito
somente o egoísmo é de início ostensivo. Mill dizia um pouco
ingenuamente: “ Encontramos nos preceitos de Jesus de Na­
zaré o verdadeiro espírito utilitarista: ‘Faz a teu próximo o
que queres que ele te faça. Ama teu próximo como a ti
mesmo’. Como a ti mesmo: é preciso portanto de início
começar por se amar a si mesmo, antes de poder amar os
outros” . É mais exato pretender, como o faz Kant, que já
o egoísmo leva o homem a querer uma sociedade organiza­
da«, porque ele só pode gozar de sua alegria em companhia
dos outros. Cada um procura entretanto ao mesmo tempo
excetuar-se da sociedade, usar e abusar dela, porque isso
significa mais prazer, embora seja afinal uma contradição
lógica: que é que impede o indivíduo de aceitar tranqüila­
mente essa contradição e daí tirar (provisoriamente pelo me­
nos) uma vantagem pessoal? Que é que cria obstáculo ao
antigo ideal sofístico do tirano sempre tão fixado no coração
do homem, se bem que leve com o tempo à sua ruína?
A E c o n o m ia P o l ít ic a I n glesa 309

Ê somente nessa questão que surge sob uma luz correta


a idéia muito curiosa que o liberalismo faz da justiça, do
mesmo modo que sua fé otimista no homem. Trata-se de
fato de uma mistura, na idéia social, de individualismo, co­
munidade, sociedade, esses três elementos reunidos de ma­
neira muitas vezes contraditória. Pode naturalmente dizer-se
que precisamente a teoria — filosofia, inteligência, razão —
tem por missão mostrar que a fuga para fora da sociedade,
construída sobre o ideal do tirano, não tem com o tempo
nenhuma oportunidade de êxito. É a posição que tinha Pla­
tão e que se encontra em outros depois dele, como, por exem­
plo, em Fichte. É preciso considerá-la como conduzindo à
crença otimista de Benlham. Contudo Platão já mostrara
que a inteligência poderia ser o verdadeiro meio de salvação,
mas que ele não acreditava mais em sua eficácia. A história
diz que ele tinha razão: ela não confirmou no século XIX
o otimismo de Bentham. E se a inteligência não se afirma
em algum lugar, em algum momento, permanece sempre a
indiferença ou a violência, o “déspota da liberdade” de Rous-
seau e de Fichte, uma liberdade aliás moral e não econômica.
A restrição ou a definição da “ felicidade” do homem,
limitada ao prazer pelo argumento puramente formal segun­
do o qual é prazer aquilo a que os homens aspiram por na­
tureza, desprazer o que tendem a evitar, é no fundo insufi­
ciente. Já a combinação do egoísmo e do altruísmo, enquanto
é inerente à natureza, e o “ observador imparcial” de Smith
são ampliações ulteriores da definição original. Mas essas
ampliações são insuficientemente radicais. Todo prazer é
seguido de desencanto, a própria felicidade não poderia abso­
lutamente ser suportada pelo homem se fosse ilimitada. Isso
não exclui, a não ser em certas circunstâncias, que uma orga­
nização econômica, amplamente construída sobre a aspira­
ção natural dos homens ao prazer ou ao lucro, possa ser
muito oportuna. Corre um perigo imediato se é concebida
de forma autônoma e se ela subordina os verdadeiros vín­
culos. Mas é a isso que toda ciência tende.
CAPITULO X XVII

O Socialismo Pré-Marxista

í\ segunda solução possível do problema da repartição


dos bens na era industrial é o socialismo, e, em primeiro
lugar, o socialismo pré-marxista. É quase totalmente origi­
nário da França. O pensamento social é aí determinado
pela herança da Revolução e da aventura napoleônica. Á
sociedade foi, depois desses acontecimentos, fortemente de
sintegrada e a tarefa de uma reintegração do organismo so­
cial devia parecer das mais urgentes. Edgar Salin diz, não
sem razão, que o socialismo “ é não menos racional, não
menos civilizador, não menos inicialmente atento à felicidade
e à riqueza em bens do que a grande burguesia triunfante'
do capitalismo nascente” . Mas, “ onde o liberalismo promete
a harmonia à base da propriedade privada, o socialismo, seu
irmão e inimigo em espírito, promete a harmonia pela aboli­
ção da propriedade pessoal; onde o liberalismo prega a bên­
ção da livre concorrência, o socialismo desmascara a anar­
quia das forças que nenhum vínculo submete; onde o libe­
ralismo celebra a utilidade da divisão do trabalho, o socia­
lismo grita contra a exploração” .
Devem ser citados: o inglês Robert Owen (1771-1858),
Charles Fourier (1772-1835), P. J. Proudhon (1809-1865), o
Conde de Saint-Simon (1760-1825), Auguste Comte (1798-
-1857), Bazard (1791-1832). O mais importante e o mais
original é sem dúvida Sainf-Simon. É óbvio que não é pos­
sível mencionar aqui as diferentes variedades do pensamento
desses homens. Três elementos somente devem ser subli­
nhados, porque é sobre eles que se baseia a marcha da evo-
O S o c ia l is m o P r é - M a rx ista 311

lução: 1) A crítica da idéia social liberal. 2) As tentativas


(na maioria das vezes utópico-racionais) feitas com o pro­
pósito de eliminar na prática a miséria dos trabalhadores,
miséria decorrente inicialmente da indústria. 3) As idéias
fundamentais de uma reintegração da sociedade na era in­
dustrial à base do conhecimento de sua estrutura social e da
evolução da história. É evidente que este último ponto é
para nós o mais importante.
1. Proudhon e Fourier foram os primeiros a perceber,
e da forma mais perspicaz, os dois pontos fracos da idéia
social liberal, tornando-os também, do modo mais unilateral,
o centro de sua crítica. Em sua luta partidária, não chega­
ram a produzir uma consciência verdadeiramente histórica e
amp]a de sua origem e de sua importância.
O que mais se conhece de Proudhon é, em virtude de seu
caráter paradoxal, a frase: “ A propriedade é roubo (la pro-
prietê c’est le vol). É evidente que ela tem sua origem na teo­
ria do estado natural de Rousseau. A propriedade e a aquisi­
ção da propriedade foram em Locke o sentido e o objetivo
do Estado, e como tal permaneceram em todo o liberalismo.
Proudhon acerta portanto o inimigo no coração, ainda que
quase somente como num sonho. Seus motivos são em com­
pensação insuficientes.
O solo não pode tomar-se propriedade, a não ser por
meio de uma apropriação coercitiva ilegal, porque a nature­
za o coloca continuamente à disposição de todos. Quem
cultiva e semeia a terra tem talvez um direito limitado sobre
ela, não aquele que só a possui e dela retira um lucro, arren­
dando-a. Ele “ rouba” precisamente a possibilidade outorga­
da a todos pela natureza, isto é, ele se torna possuidor con­
tra seu direito e a retém injustamente em relação aos ou­
tros. No pensamento de Rousseau, seria necessário um retor­
no imediato ao estado natural.
Mas a propriedade industrial, quer dizer, a dos meios
de produção, é também, segundo Proudhon, um roubo por­
que, abstração feita do ganho legal do fabricante por seu
trabalho de fabricante, ela priva o trabalhador do pleno sa­
lário em sua qualidade de simples proprietário. O que Prou­
dhon aí vê, muito justamente, é uma esclerose da organização
da propriedade, que consolida definitivamente a diferença
entre ricos e pobres e desenvolve na sociedade oposiçôes in-
312 H istó ria das I déias S ociais

superáveis. Dessas oposições é que provém a miséria huma­


na. Proudhon não pôde nunca chegar a uma crítica da
origem do Estado sob o signo da aquisição da propriedade
na idéia social de Locke.
A crítica de Fourier desenvolve-se, como muitas vezes
se verifica na história, partindo de uma anedota. Rapazola
ainda, no negócio de seu pai, teria informado a um cliente
sobre a má qualidade de uma mercadoria vendida e por
causa disso teria recebido de seu pai (preocupado em ven­
der seus artigos) uma boa sova. Que mundo é este — per­
gunta mais tarde — onde o preceito do cristianismo é de só
dizer a verdade e onde contudo, na prática, os homens são
em toda parte iniciados “ na nobre profissão da mentira ou
do comércio’?
O direito à propriedade foi atacado em prim eiro lu gar
pelo socialism o. Pode, do ponto de vista da ciência econô­
m ica, discutir-se (o que não é nosso objetivo) da utilidade
de um regim e social onde reina a propriedade. Só F o u rie r
viu na verdade o m al imenso causado ao hom em pela p u b li­
cidade mentirosa (e toda pub licidad e é por definição menti­
ro sa). M as muito Tapidam ente esquecemo-nos de sua visão
dessas coisas e de sua vontade apaixonada porque esse mal
é menos perceptível, mais profundo, porém m ais persistente
e destruidor do que o dano que pode causar uma consoli­
dação do Tegim e da propriedade.
Fourier, posteriormente, atacou de maneira geral o lucro
auferido pelo comércio, argumentando que o mesmo produz
um encarecimento das mercadorias, prejudicial ao produtor
e ao consumidor. Ê evidente que isso é uma ingenuidade
econômica. O que, em troca, permanece essencial do ponto
de vista humano é o conflito com a verdade, considerado
como uma bagatela pela economia e a ciência econômica.
Ele chama o comércio de uma troca em virtude da qual o
vendedor tem o direito de mentir impunemente e de deter­
minar sem arbitragem objetiva o lucro que lhe deve ser
concedido; quer dizer que o vendedor é juiz e parte, en­
quanto o comprador não tem nenhuma garantia contra a
capacidade e a trapaça do vendedor. Os judeus distingui­
ram-se no comércio, no Ocidente, devido a que sua religião
era exótica e porque o comércio era considerado no início
da Idade Média como indigno de um cristão. Por esse mo-
O S o c ia l is m o P ré - M arx ista 313

tivo é qiíe se encontra em Fourier certa tendência ao anti-


-semitismo (que aliás não tinha nada a ver com o anti-semi­
tismo racista).
Segundo Fourier, não somente o comércio enquanto pro­
fissão independente, qúe se estende a todas as grandes civili­
zações e já existe nas relações primitivas, mas também a in­
dustria tem necessariamente nesse sentido um caráter mer­
cantil, quer dizer que ela é por natureza mentirosa. A
natureza do hòmem é mesmo muitas vezes considerada pela
idéia social liberal (Adam Smith) como sendo baseada no
“ instinto de troca” . A indústria vive da venda das merca­
dorias produzidas, venda que depende das necessidades do
homem. Cada moral tenta ensinar o homem a ser senhor de
suas necessidades, a se limitar ao que é natural e a não
ceder à tendência inata a um aumento imoderado das neces­
sidades e dos desejos e a sua inconstância desregrada. Se
existe algo de claro em moral é o fato de que o abandono
desenfreado às necessidades e sua renovação têm sempre
por conseqüência o desencanto e provocam a ruína da natu­
reza humana. Mas sem o aumento artificial das necessida­
des e dos desejos, sem sua mudança, contínua, a indústria
jamais pode prosperar, e nada lhe interessa a não ser isso.
Assim, ela desenvolveu métodos rigorosamente científicos que
lhe permitem despertar no homem necessidades sempre no­
vas, muitas vezes contra a natureza, a fim de poder com
isso sobreviver. Como abusa afinal- da ciência e da psico­
logia! As necessidades artificialmente suscitadas são mesmo
para a indústria muito mais rentáveis do que as necessida­
des naturais, porque ela as domina racionalmente. Pode-se,
na apreciação correta das necessidades naturais, enganar-se;
elas podem muitas vezes esgotar-se e modificar-se sem que
conheçam as razões dessa mudança.
É provável que Fourier não tenha conhecido Rousseau
de forma suficiente e se o conheceu não o compreendeu neste
sentido. Trata-se nele de um pensamento crítico que provém
da experiência de sua vida e de sua própria época. Encontra-se
no entanto o germe desses princípios já em Rousseau se bem
que ainda sem relação direta com a propaganda e os mercados
da indústria na nova era. Rousseau, com efeito, dissera que
o homem se tinha tornado, devido à civilização (as ciências
e as artes), um ser que tinha necessidades artificiais e, por
314 H istó ria das I déias S ociais

esse motivo, era infeliz. Ê o fenômeno que mais tarde Marx


descobre de jiovo na concepção hegeliana da “ alienação”
do homem. Este não pode encontrar sua felicidade e sua vo­
cação sem suprimir essa alienação. O aparecimento do mesmo
pensamento em diferentes regiões, em um século, sem inter­
venção da literatura, mostra mesmo ao homem menos infor­
mado sua profunda necessidade.
O meio pelo qual, nos dias que correm, a indústria des­
perta no homem necessidades artificiais, de que ela precisa
para a venda de seus produtos, é a publicidade. Desse ponto
de vista, o comércio ainda era, na época de Fourier, uma
puerilidade. Uma sagacidade muito maior era então necessá­
ria para perçeber seus danos. É bem sabido que se chama
o despertar artificial de necessidades ilimitadas “ elevação do
nível de vida” . Nenhum partido político, sem exceção (nem
os que se chamam cristãos nem os socialistas, que se consi­
deram reciprocamente como opositores do liberalismo), ousa
realmente em seu programa analisar essa “elevação do nível
de vida” . Ela é considerada por cada um deles como evidente.
Acrescente-se ainda algo mais: ninguém pode realmente
observar com exatidão as fronteiras entre a descrição objetiva
de um produto e a apologia que dele se faz como de um
objeto de consumo absolutamente necessário. A própria lin­
guagem desliza da verdade para o exagero e a mentira. Va­
leria mais a pena que tudo fosse mentira, pois se poderia
pelo menos assim chamá-la sem equívoco. Enquanto dessa
forma verdade e mentira, descrição pertinente, falsificação e
exagero imoderado se tornam sempre menos discerníveis. A
linguagem como tal perde seu valor para o homem. Somente
quem ainda sabe o que significa a afirmação de que o homem
é -um zoon logon echon, ser vivo essencialmente dotado de
linguagem, pode compreender o que isso quer dizer. A men­
tira e o exagero corroem a vida pela publicidade que nos é
dispensada todos os dias, a todas as horas do dia, aniquilam
a linguagem enquanto material da poesia, invadem a política
e a vida de todos os dias sob o nome de “ regras da lingua­
gem” . Nada mais pode ser chamado por seu nome, porque
cada palavra está desgastada há muito tempo. Mesmo a pro­
paganda de todos os partidos políticos só pode ser feita atra­
vés da propaganda industrial. O que vale dizer precisamente:
exagerando e mentindo, sem que se possa discernir o que
resta de verdade. Mais tarde, se as coisas saem mal, esse
O S o c ia l is m o P r é - M a r x ista 315

resto, aliado à faculdade de esquecer do homem moderno,


permite aos autores sair disso incólumes.
É óbvio que Fourier, no começo do século XIX, não viu
as conseqüências de seu pensamento da mesma maneira que
nós nos meados do século XX. Basta que ele tenha realmente
refletido e que tenha seguido esse pensamento com inteli­
gência e paixão, embora em vão. Atualmente é muito mais
difícil chegar a uma crítica semelhante, porque as disciplinas
particulares, como por exemplo a ciência econômica ou a
Sociologia, só podem discutir as coisas de seu ponto de vista
particular, como por exemplo determinar que em certo sistema
de propriedade a economia prospera mais ou menos. Quan­
to à Filosofia, que se interroga sobre as finalidades da yida
e sobre as possibilidades do homem, de modo geral, tornou-
-se rara.
2. A idéia social liberal, desde Locke, substituíra a ordem
social feudal que existia desde a Idade Média, inicialmente
na Inglaterra e na América do Norte, na França depois da
Revolução. Se essa Revolução se fez com a ajuda do quarto
estado, foi' a burguesia que lucrou com isso de início, em
sua luta contra a nobreza e o clero. A Alemanha, no começo
do século XIX, achava-se mais atrasada porque a ordem
social feudal e patriarcal estava aí menos comprometida. A
burguesia estava certamente um pouco afastada do mundo,
mas consolidada intelectual e moralmente pela literatura e
Filosofia clássica da época de 1800. Os primeiros danos in­
fligidos pela idéia social liberal surgem na Inglaterra, o país
mais adiantado industrialmente. É aqui portanto que começa,
com o industrial Robert Owen, os primeiros ensaios de corre­
ção teóricos e práticos. A França vem em seguida com os
nomes já citados: Fourier, Saint-Simon, Proudhon, partindo
aliás de outra situação, determinada pela herança da Revo­
lução e com premissas bem mais amplas. Coloquemos logo
de início de lado Saint-Simon e consideremos sucintamente
Owen, Proudhon e Fourier, não em sua qualidade de críticos
da idéia social liberal, mas como criadores de novas idéias
socialistas.
A característica do pensamento desses três homens é que
êles mergulham na utopia. Owen era um filantropo: quis
inicialmente ajudar simplesmente os trabalhadores na gran­
de miséria em que os via em sua próspera empresa de New
316 H istó ria das I déias S ociais

Lenark. Proudhon era originário das classes inferiores e


Fourier, que tivera fortuna no começo, perdera sêus bens por
causa da Revolução; ademais sentia-se mal com o fato de se
ver forçado à odiada profissão de comerciante.
Os três homens buscavam no fiíndo uma nova comunidade
na humanidade transformada, ípor causa da idéia ‘social libe­
ral, numa simples sociedade. Além disso, a substância do
homem e seu sustentáculo estavam ameaçados pela dissolução
da estrutura social. Mas ao contrário de Marx, não viam
ainda a cisão das classes da sociedade, característica da era
industrial, em empregados e empregadores. Ao contrário de
Saint-Simon, em geral ainda não reconhecem a significação
de que se reveste a era industrial para a estrutura social.
Pensam então na formação de pequenos grupos de caráter
comunitário, onde a pequena indústria, o artesanato e so­
bretudo a agricultura se acham de novo no primeiro plano.
O objetivo de uma reconquista das antigas estruturas sociais
da comunidade na sociedade liberal da burguesia, ela própria
ameaçada pela civilização industrial, faz já dessa idéia um
socialismo,- mas um socialismo que precisamente não tem
futuro, é utópico. Por esse motivo é que não é necessário que
nos ocupepios mais, embora elementos particulares desse
pensamento, como a idéia de um contrato livre entre em­
pregados organizados e empregadores, tenham ingressado no
socialismo propriamente dito e se tenham tomado importantes
no movimento sindical.
3. O Conde de Saint-Simon, entre os socialistas anteriores
a Marx, tem uma grande importância, porque foi o primeiro
que reconheceu a mudança total da estrutura social do homem
causada pelo trabalho industrial e que partiu de fatos ba­
seados na história e não de um simples anseio filantrópico.
Comte, Bazard, Pecqueur e outros deram mais tarde uma
forma a suas idéias não por ele sistematizadas. O próprio
Marx, a esse respeito, foi seu discípulo.
Saint-Simon era de natureza instável. Julgava-se desti­
nado a grandes coisas, mas não via de início qual o campo
de atividade que devia abraçar. Primeiramente foi oficial,
chegando rapidamente, na guerra de Independência norte-
-americana, à patente de coronel. Isso não o satisfez. Queria
construir grandes Canais, primeiro na América, depois na Es­
panha. Quando, entrementes, sobreveio a Revolução Franr
O SociÀ LisM b P ré - M ar x ista 317

cesa, saudou-a de início com entusiasmo, mas logo depois


afastou-se dela. Perdeu a fortuna que herdara, vindo a adqui­
rir outra através de especulações. Utilizou-a, depois de ter
passado um ano na cadeia como suspeito político, paTa reunir
em torno- de si os homèns mais célebres de seu tempo e manter
uma casa suntuosa. Mas logo assistiu ao fim de sua fortuna,
caindo numa vida de privações. Primeiramente ajudado por
seu antigo criado, e depois por amigos, escreveu e publicou,
a partir de 1802, seus pensamentos, vivendo a maior parte
do tempo muito parcamente, mas com fé em sua missão.
Thierry e Comte foram por algum tempo seus secretários e
colaboradores.
Ele precedeu a Marx na tentativa cfe determinar o fu­
turo baseando-se no curso seguido até então pela história, e
isso levando em consideração fatos sociológicos. Já dissera
em 1814: “A idade de ouro da humanidade não está atrás
de nós, mas à nossa frente” . Tais pensamentos orientados
para o progresso técnico e econômico já existiam no século
das Luzes, ao lado de pensamentos orientados para o pro­
gresso moral, como, por exemplo, em Condorcet e Turgot
(e é natural que Saint-Simon tenha tomado muita coisa a
esses dois homens). Esse é o caso da famosa “ lei dos três
estados” , habitualmente atribuída a Comte. Essa lei enuncia
que a um estado teológico sucede um estado metafísico e a
este um estado “ positivç” , isto é, baseado na ciência e na
experiência. Foi Saint-Simon quem relacionou esse esquema
proveniente do século das Luzes com a Revolução Francesa
e com a nova era industrial.
Ele liga diretamente o feudalismo medieval à sua época,
saltando por cima de todos os problemas dos tempos mo­
dernos. Se não se consideram as formas políticas (absolu­
tismo e Estado nacional) nem o pensamento social, mas
somente a estrutura social, ele não está errado. Já tivemos
ocasião de mencionar, ao falar de Maquiavel, que a deca­
dência da idéia do Cristo-Rei e o surgimento dos príncipes
soberanos não tinham ainda abalado nos tempos modernos
os alicerces da estrutura social. Mas Saint-Simon (mais justo
nisso no plano humano do que o século das Luzes e a Re­
volução) julga que o feudalismo da Idade Média foi uma
integração grandiosa e verdadeira da sociedade. Sem que­
rer reinstaurá-la de qualquer forma, a hierarquia judiciosa
da comunidade dos homens da Idade Média torna-se contudo
318 1H istó ria das I déias S ociais

para ele um modelo. Modelo que lhe interessa (de modo


semelhante ao estado natural da humanidade em Rousseau)
reconquistar no futuro, tendo em conta novas condições da
civilização industrial.
A sociedade' de sua época está, tal como ele a vê, des­
truída. O feudalismo e sua hierarquia foram postos de lado
pela Revolução Francesa, a agricultura não é mais o trabalho
“ natural” preponderante nem a fonte predominante de ri­
queza. Em seu lugar surgiu a indústria com suas desco­
bertas, sua fabricação em série e sua dominação intelectual
da natureza. Esta tornou-se na técnica a serva do homem
por meio da antiga fórmula de Bacon que só então vem a
ser utilizada realmente: reconhecer cientificamente o curso
dos acontecimentos para poder, obedecendo-os, dominá-los,
servindo-se de suas próprias leis. A ciência torna-se assim
dominante. Mais tarde, Comte, dando forma aos pensamen­
tos de Saint-Simon, classificou as ciências, em relação à téc­
nica, na seguinte ordem: Matemática, Astronomia, Química,
Biologia, Sociologia. O saber mais antigo e mais geral man­
tém-se aqui em primeiro lugar, o mais recente e o mais
especializado no fim. Mas a Sociologia, que, enquanto
ciência, é criação de Comte, já é na idéia social de
Saint-Simon esse saber novo que .deve organizar tecnica­
mente as relações dos homens e integrá-las da mesma forma
que as Ciências Naturais, na indústria ê na técnica, subme­
teram a natureza ao homem tomando-a utilizável. Essa
noção da Sociologia científica enquanto novo meio de inte­
gração da sociedade, depois da supressão revolucionária do
feudalismo (teológico) e após a dissolução de todos os vín­
culos sociais, é o fundo da idéia social de Saint-Simon, à
qual Comte mais tarde deu forma. . É neste último que as
noções da lei dos três estados e da necessidade da evolução
histórica se encontram com a organização sistemática e téc­
nica das ciências no positivismo.
O que é determinante na idéia sopial de Saint-Simon,
e ao mesmo tempo o diferencia de Marx, é que ele vê em
princípio na indústria, determinada de modo técnico-cientí-
fico e “ positivo” , a união do homem de ciência, do traba­
lhador e do empresário. Não viu absolutamente, no começo,
separação correspondente a classes e, mais tarde, nenhuma
que lhe parecesse fundamental. Os novos vínculos comuni­
O S o c ia l is m o P r é -M a r x ista 319

tários que a nova ciência da Sociologia deve elaborar para a


sociedade e que deve controlar tecnicamente (em oposição
aos antigos vínculos do período teológico, desenvolvidos de
forma natural, mas que se achavam desfeitos) nunca foram
concebidos por Saint-Simon de maneira muito concreta. Ele
os considera, no curso de seu desenvolvimento, de modo
muitas vezes diferente. Mas são sempre reuniões de homens,
em função da indústria que se baseia na divisão do trabalho,
e que teoricamente incluem igualmente os homens de ciên­
cia, os empregadores e os empregados, como cidadãos da
nova era, numa nova comunidade.
O que é essencial neste ponto é que toda comunidade
do futuro é industrial, sendo também instaurada de forma
técnica e científica segundo o modelo da dominação do mun­
do pelas Ciências Naturais. Saint-Simon certamente notou
que a hierarquia desenvolvida pela economia liberal e pelo
sistema de propriedade, juntamente com restos de feudalismo
na vida política dos Estados nacionais de seu tempo, não
era satisfatória sob todos os aspectos. Contudo, a esse res­
peito, não esperava a salvação da humanidade por uma nova
revolução ou por uma cisão de classes, mas (de modo quase
semelhante à utopia de Bacon) unicamente pelo estabeleci­
mento universal do “positivismo” da ciência, da técnica e
da indústria. Isso leva normalmente, em oposição aos socia-
lismos pequeno-burgueses de Proudhon, Fourier, Owen e
outros, à grande indústria, à concentração dos capitais e até
à formação dos trustes, como seu discípulo Pecquer mais
tarde assinalou.
CAPITULO X X V III

Karl Marx

í\ diferença entre Marx e os socialistas franceses está de


início em que Marx parte da derrocada do sistema cristão-
-absolutista de Hegel, derrocada que ele e Feuerbach tomam
manifesta. Essa diferença reside sobretudo na separação de­
cisiva dos trabalhadores e dos empregadores (capitalistas)
em duas classes, e portanto em um retorno mais nítido a
Rousseau. (Pouco importa a esse respeito saber até que
ponto essa afinidade com Rousseau era clara para ele ou
se foi uma semelhança inconsciente, provocada pela situação
histórica). Mas um grande número de idéias são comuns
a Marx e aos socialistas franceses; em particular Saint-Simon
e Fourier.
Karl Marx (1818-1883), cujo pai, advogado em Trèves,
convertera-se ao cristianismo, inicialmente estudou Direito.
Bem cedo foi para Berlim, atraído pela influência, de Hegel,
que estava por volta de 1820 no auge de sua glória. Marx
apresentou então em Iena, com êxito, sua tese de doutorado
sobre Epicuro. Depois de projetos de tornar-se livre-docente,
começa a trabalhar como redator da Gazeta Renana. Expulso
da Prússia, fundou em Paris, em colaboração com Ruge, os
Anais Franco-Alemães. Travou por essa época conhecimento
com Friedrich Engels, a quem se ligou por estreita amizade
até o dia de sua morte. Após anos agitados na França,
Alemanha e Bélgica, instalou-se definitivamente em Londres,
em parte porque aí podia entregar-se a seu trabalho e a suas
aspirações sem ser importunado pela vigilância policial dos
Estados continentais, em parte porque a Inglaterra era o país
K a rl M arx 321

industrialmente mais adiantado e, por conseqüência, o que


lhe era mais interessante. Seus primeiros trabalhos nos quais
se desenvolve seu pensamento acham-se espalhados em di­
versas publicações; alguns apareceram em revistas e jornais
e por ocasião de controvérsias com alguns de seus contem­
porâneos, como, por exemplo, sua resposta à Filosofia da
Miséria de Proudhon. Sua obra-prima é O Capital, cujo
primeiro tomo foi publicado em 1867, o resto aparecendo
postumamente. É somente a primeira parte de um sistema
projetado que devia ainda tratar mais particularmente da
propriedade, do salário, do Estado, do comércio exterioT e
do mercado mundial. O Manifesto do Partido Comunista,
1848, que lançou em colaboração com Engels por solicitação
da “ Liga dos Comunistas” , está diretamente voltado para
a política, assim como sua ação ulterior.
A crítica da Filosofia do Direito de Hegel, que Marx
empreende e da qual ele parte, não constitui, como em
muitos de seus contemporâneos, a tentativa de uma refutação
de certas posições e de certas noções. É muito mais a pas­
sagem para uma política pTática, uma vez aniquilados a con­
templação absolutista, a theoria aristotélica e seu compro­
misso com o Estado dos cidadãos esclarecidos da Prússia.
Mas essa passagem tinha como conseqüência, para Marx, a
perda de qualquer crença em Deus ou num além metafísico,
e de maneira geral a perda de qualquer transparência da
situação terrestre do homem. Hegel fora o último repre­
sentante filosófico do cristianismo. De algum modo ele ten­
tara, na participação subjetiva do ponto de vista absoluto de
Deus, reconhecer o mundo e a história, isto é, reconhecen­
do-os como manifestações do indivíduo, integrar-se de novo
neles e reconciliar-se com eles. Sua Filosofia como pura
theoria (contemplação) semelhante à theoria aristotélica fora
nele tanto uma conseqüência desse ponto de vista quanto
a sua incorporação ulterior no Estado de seu tempo, após
os conflitos interiores de sua juventude.
Na interpretação de toda religião como uma ilusão e
no retorno filosófico de Deus ao homem, Marx mantém-se
inicialmente no mesmo terreno de Feuerbach. A busca enér­
gica do ateísmo na crítica das relações sociais e a ação polí­
tica são o novo caminho que ele empreende e que lhe é
próprio: “ A tarefa da história é então, depois do desapare­
32 2 H istó ria das I déias S ociais

cimento do Além da verdade [Deus em Hegel segundo a


crítica de Feurbach), estabelecer a verdade deste mundo.
É em primeiro lugar, tarefa da Filosofia, que se mantém a
serviço da história, uma vez denunciada a forma sagrada
da auto-alienação do homem, desmascarar a auto-alienação
em suas formas não-sagradas. A crítica do céu transforma-
-se assim em crítica da terra, a crítica da Teligião em crítica
do Direito, a crítica da teologia em crítica da política” ( Zur
Kritik der hegelschen Rechtsphilosophie [Contribuição à Cri­
tica da Filosofia do Direito de H egel]).
Essa conversão da teoria à política e à história dos ho­
mens serve de base também para a conhecida transformação
do método de Hegel, a dialética das idéias, para o que se
chama de materialismo dialético. Habitualmente cita-se ape­
nas a última frase, o que tem o efeito de simplificar o acon­
tecimento. Marx afirma no contexto: “ Minha pesquisa con­
cluiu que as condições jurídicas assim como as formas polí­
ticas não são compreensíveis por si mesmas, nem em virtude
da pretensa evolução geral do espírito humano, mas que
têm antes suas raízes nas condições materiais da vida, que
Hegel, após o precedente dos ingleses e dos franceses do
século XVIII, abrange no todo sob o nome de “ sociedade
civil, mas que é preciso procurar a anatomia da sociedade
civil na Economia Política... Na produção de sua vida em
sociedade, os homens estabelecem relações políticas determi­
nadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações
de produção que correspondem a certo nível de desenvolvi­
mento de suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas
relações de produção forma a estrutura econômica da socie­
dade, a base real sobre a qual se edifica uma superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem formas determina­
das da consciência social. Não é a consciência dos homens
que determina o seu ser, mas, ao contrário, o seu ser social
que determina sua consciência” ( Zur Kritik der politischen
Ökonomie [Contribuição à Crítica da Economia Política]).
É escusado dizer que há também em Marx, e sobretudo
nele, a crença em uma força transformadora da Filosofia.
Hegel tampouco encontrara a determinação do ser do homem
em sua consciência, mas na consciência absoluta de Deus.
O essencial.é que o ser terrestre deve agora ter em si mesmo
sua necessidade, como já em Saint-Simon a história em sua
K arl M arx 323

evolução da idade feudal para a era industriai. Mas por


“ ser” compreende-se, como em Locke e Adam Smith, a rela­
ção determinada pelo econômico. De sorte que o novo pen­
samento da Filosofia pode limitar-se a demonstrar que da
alienação dos homens, em suas formas econômicas, deve ne­
cessariamente nascer a revolução. A alienação é então elimi­
nada' e se instaura uma verdadeira comunidade como no
estado primitivo de Rousseau e também em suas finalidades
políticas. É esse o significado que tem, no Marx posterior,
o estudo aprofundado das leis imanentes do capitalismo.
Pelo termo “ auto-alienação” entende-se algo que se en­
contra de maneira totalmente semelhante em Rousseau: a
produção das mercadorias como tais. Embora elas sejam,
do mesmo modo que sua repartição, uma criação humana,
os homens tomam-se dependentes dessas mercadorias, por­
que elas despertam sempre novas necessidades artificiais.
“ Cada homem visa a provocar no outro uma nova necessidade,
para forçá-lo a um novo sacrifício, para submetê-lo a uma
nova dependência, para extraviá-lo numa nova forma de
gozo e portanto levá-lo à ruína econômica. Cada um procura
impor aos outros entidades estranhas para aí encontrar a sa­
tisfação de suas próprias necessidades egoístas. Com a massa
dos objetos cresce em conseqüência o império das entidades
estranhas que colocam o homem sob seu jugo, e cada novo
produto é uma nova potencialidade de engano e de explora­
ção recíprocos” (Nationalökonomie und Philosophie [Econo­
mia Política e Filosofia]).
As necessidades artificiais prendem assim os homens aos
bens. Elas os separam ao mesmo tempo pela posse e a pro­
priedade privada. Essa separação acarreta a desunião entre
ricos e pobres, os antagonismos de classes e finalmente a
luta de classes como forma econômica da antiga guerra de
todos contra todos. Essa guerra é, em Marx assim como
e m Rousseau, decorrente do e s t a b e l e c i m e n t o da propriedade
(na forma burguesa de Locke). É a conseqüência necessária
da civilização, da produção dos bens e de maneira geral do
mundo humano civilizado. Exatamente c o m o Maquiavel e
Hobbes, Marx não parte portanto de uma comunidade origi­
nal, ou então a T e l e g a a uma distância por assim dizer pré-
-histórica (como Rousseau). O presente é para e l e já uma
sociedade, a multidão atomizada de indivíduos isolados, avas-
324 H istó ria das I déias S ociais

salados pelos bens que produziram. A substância humana


desses indivíduos isolados é determinada pelo que possuem
e é por isso que se combatem por amor a essas posses. Tra-
ta-se de um estado ilusório, um estado artificial e negativo
em todas as suas características. Mas é precisamente em
seu caráter negativo, dialeticamente necessário ao homem,
porque ele é o único motor humano que, sem uma assistên­
cia divina, pode alçá-lo a um estado mais eleyado.
Daí a explicação: “ A classe possuidora e a classe do
proletariado representam a mesma auto-alienação humana,
Mas a primeira sente-se, nessa alienação, à vontade e con­
firmada; ela sabe que essa alienação faz sua força e possui
nela a aparência [!] de uma existência humana. A outra
sente-se aniquilada, sofre com essa alienação a impotência
e a realidade de uma existência inumana. Para empregar
uma expressão de Hegel, ela é, na depravação, a indignação
que se manifesta por causa dessa depravação à qual é neces­
sariamente levada pela contradição entre sua natureza hu­
mana e suas condições de existência, sendo estas a negação
patente, decisiva e total dessa natureza” ( Die heilige Familie
[A Sagrada Família]). A separação temporal entre um ho­
mem não-corrompido no estado de felicidade natural e a
corrupção da natureza humana pela propriedade e a civiliza­
ção, estabelecida por Rousseau, é em Marx logo de início
concentrada no presente. O proletariado não é certamente
o homem feliz no estado primitivo. Mas a esse respeito ele
não é corrompido em sua natureza, capaz que ainda é de
sentir, com indignação, na miséria da separação e da alie­
nação de sua natureza humana, a perversão da evolução
social, não se sentindo aí “ à vontade’. Pode, portanto, a
partir do caráter negativo de seu estado, libertar-se para
sempre, “ e com ele toda a sociedade, da exploração, da
opressão e das lutas de classes [portanto da desunião social,
da submissão aos bens e da guerra hobbesiana de todos
contra todos]” ( Manifesto Comunista).
Ou então de modo mais exato e que define detalhada­
mente essa situação: “ A propriedade impele-se a si mesma
em seu movimento poHtico-econômico no sentido de sua
própria dissolução, mas somente por uma evolução indepen­
dente dela, inconsciente, uma evolução que se faz contra
sua vontade e que é determinada pela natureza das coisas,
K a rl M a r x 325

exatamente na medida em que produz o proletariado, a mi­


séria consciente de sua miséria moral e física, a alienação
consciente de sua alienação e, portanto, abolindo-se a si
mesma... O proletariado executa [na revolução] a sentença
que a propriedade privada pronuncia contra ela mesma ao
produzir o proletariado, do mesmo modo que ele executa a
sentença que o trabalho assalariado pronuncia contra si mes­
mo ao produzir a riqueza alheia e sua própria miséria” ( Die
heilige Familie).
Apesar da diferença das épocas, pode comparar-se o que
Marx tem em vista, através de um exame independente dos
tempos em que viveu, com a tentativa platônica de reforma
da polis grega. O que se salienta de início é a diferença
que existe no fato de que Marx considera que a revolução
e a violência são os meios da restauração, enquanto Platão
vê esse meio na nova educação da juventude. Platão recusa
expressamente a violência (Carta VII). Na imagem do fu­
turo encontram-se também semelhanças e diferenças. A visão
da sociedade comunista sem classes que surgirá após a revo­
lução e a ditadura do proletariado aboliu toda cisão decor­
rente da divisão do trabalho, da propriedade privada e-da
família e deve ser uma nova comunidade autêntica e respon­
sável de todos os homens. Isso assemelha-se a Platão e
ao retorno de Rousseau à polis. Apenas duas diferenças são
importantes. A comunidade dos homens é em Platão inse­
rida ria ordem do cosmos, da terra e dos astros e por con­
seguinte santificada e ligada aqui em baixo pelo culto. A
santificação da natureza já estava arruinada antes e no cris­
tianismo, tendo sido substituída neste pela santificação do
além. A partir daí, ela foi, na Idade Média e nos tempos
modernos, reconquistada também para a vida aqui em baixo,
tendo sido a legitimidade de direito divino do soberano, até
os abusos cometidos, seu último sinal. A terra santificada
enquanto criação também é agora com a abolição da fé cristã
desvalorizada, e o homem é o único e último parceiro do
homem no mundo despojado de sua alma. A sociedade hu­
mana é como tal absoluta, autárquica, não há mais nenhuma
ordem aqui em baixo ou no além pela qual possa orientar-se.
A segunda diferença específica das duas idéias quanto
a suas finalidades está em que se encontra em Platão uma
repartição das classes e uma especialização do trabalho, do
326 H is t ó r ia das I déias S ociais

poder e da participação no governo. E isso em oposição


expressa à prática histórica de seu povo, numa época em
que a polis ainda era uma verdadeira comunidade. Marx
pelo contrário aspira (em oposição expressa à divisão do
trabalho e à especialização existente na era industrial de sua
época) ao retorno a uma comunidade que, a esse respeito,
assemelha-se até certo ponto com a polis grega antes de
Platão. Deseja mesmo que a divisão do trabalho seja abo­
lida, enquanto fator de desunião da comunidade.
As seguintes frases talvez assumam hoje um tom sur­
preendente: “ Ninguém tem, na sociedade comunista, uma
esfera exclusiva para o exercício de sua atividade, mas cada
um pode formar-se no campo de sua escolha, a sociedade
regulamenta a produção em seu conjunto e me permite pre­
cisamente por isso fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar
de manhã, pescar à tarde, cuidar da criação ao entardecer,
fazer crítica depois do jantar, segundo minha vontade do
momento, sem que por isso venha a tomar-me caçador, pes­
cador, pastor ou crítico” ( Deutsche Ideologie [A Ideologia
Alemã]). Pelo fato de a substância do homem não residir
mais na propriedade, também sucumbe sua identificação com
sua profissão. Ele deve, segundo sua natureza, ser somente
um ser humano. O sentido mais profundo, raramente per­
cebido, dessa exigência está em que, com a abolição da
especialização da era industrial, se fosse possível, a depen­
dência humana seria também abolida. O homem poderia
de novo, como na polis da antiga Grécia, ser independente
enquanto homem e govemar-se diretamente.
Isso ainda é posteriormente repetido em O Capital, já
sendo quase aplicado ao domínio privado: “ O reino da li­
berdade só começa de fato onde cessa o trabalho determi­
nado pela necessidade e as circunstâncias exteriores. É en­
tão na natureza das coisas que ele reside, além das esferas
da produção material. O civilizado deve, como o selvagem,
lutar contra a natureza para satisfazer suas necessidades, para
conservar a vida e reproduzi-la. Èle está sujeito a isso em
todas as fornias de sociedade e entre todos os modos de
produção possíveis. Esse reino da necessidade natural es­
tende-se à proporção de sua evolução, porque as necessi­
dades crescem, mas ao mesmo tempo crescem as forças de
produção que satisfazem essas necessidades. A liberdade
K a rl M arx 327

nesse domínio só pode consistir em que o hoiíiem em socie­


dade, os produtores associados Tegulam racionalmente suas
trocas orgânicas com a natureza; que eles as controlam em
comum, em lugar de se deixar dominar por elas como por
uma força cega; e qüe as realizam com um mínimo de es­
forço, nas condições mais dignas de sua natureza e mais
adequadas. Mas isso permanece sempre como um reino da
necessidade. E além desse Teino começa o desdobramento
das forças humanas, desdobramento que se apresenta como
objetivo em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade que,
contudo, só pode prosperar à base desse reino da necessidade.
A diminuição da jornada de trabalho é a condição funda­
mentar5 (III, 7, 48).
Qual é então esse “ desdobramento das forças humanas
que se apresenta como objetivo em si mesmo?” Em que
consiste a nova comunidade sem classes? De nenhum modo
no trabalho como em Locke. A organização comunista do
trabalho não é senão a premissa, a condição sine qua non,
para que a substância do homem não se torne a propriedade,
para que o próprio homem não se tome a mercadoria, deter­
minada e classificada, que deve vender-se. Mas então em
que consiste ela? A diferença entre comunismo e liberalismo
não se torna secundária e por assim dizer uma simples ques­
tão de oportunidade econômica atenuando-se por si mesma,
se o trabalho do homem diminui sem cessar por causa da
automatização da técnica? O objetivo da vida do homem
consiste aqui então simplesmente na “ maior felicidade do
maior número de homens” de Bentham? Será aqui a feli­
cidade mais ou menos identificada com o gozo material?
Ou será que também aqui como no Platão das Leis o homem
é finalmente concebido como um homo ludens? Não passará
a organização do trabalho de um meio, que se trata então
de organizar racionalmente em função dos objetivos a atin­
gir, como o querem os economistas de opiniões contrárias?
Estas questões continuam em aberto.
Se quisermos, conforme o sentido da idéia social de Marx,
superá-lo, poderemos talvez dizer o seguinte:
O proletariado dirigido pela Filosofia (marxista) é uma
comunidade, ou pelo menos pòde tornar-se uma, na medida
em que, em sua qualidade de partido, aspira à revolução.
Isso seria uma espécie de comunidade de combate com um
328 H istó ria das I déias S ociais

alvo a atingir e a ultrapassar. O proletariado representaria


então (tanto na maioria quantõ na minoria) uma classe no
sentido da vontade geral de Rousseau. Sua voiitade comum
seria moral enquanto ela é a comunidade ainda não corrom­
pida, segundo a concepção de Marx, pela formação social
da propriedade ou subtraindo-se no sofrimento a essa cor­
rupção.
A socialização econômica da propriedade, a famosa “ ex­
propriação dos expropriadores” permanece no fundo tam­
bém çomo um procedimento social Trata-se de um meio
de impedir a auto-alienação do homem, não um objetivo.
É atribuído, nas frases citadas de O Capital, ao “ reino da
necessidade”, opondo-se este ao novo “ reino da liberdade” .
O trabalho industrial é simplesmente, em sua falta total de
independência, o “ intercâmbio orgânico do homem com a
natureza” , de modo nenhum seu fim absoluto. Assim, tóda
a economia planificada é um meio e condição da sociedade
sem classes ou o que faz parte do “ reino da necessidade” ,
e não o seu sentido. Não é em Marx o conteúdo comunitário
do “ reino da liberdade” .
Se desejamos descobrir o verdadeiro conteúdo desse
“ reino da liberdade” , temos precisamente de ir além do con­
junto do trabalho industrial, deixar atrás de nós sua falta
de independência e lançar nossos olhares sobre o tempo da
vida do homem que não é preenchido com o trabalho. O
fato de precisamente no consumo, na organização de seus
prazeres, etc., o homem poder carecer no mais alto grau de in­
dependência e tomar-se estranho a si próprio pela atividade
industrial, era uma experiência que ainda não tinha sido
feita na época de Marx e com a qual ele tampouco sonhou.
Deveríamos pensar sempre nesse fato (embora ele não possa
desse modo ser suprimido). Assim “ reino da liberdade”
do homem, depois do “ intercâmbio orgânico com a natureza” ,
regulado de forma socialista e planificada, isto é, após o
trabalho industrial dependente na sociedade sem classes, é
o aperfeiçoamento de todas as aptidões ‘'do homem, de ma­
neira geral a educação do classicismo alemão por volta de
1800, çomo se diz em nossa citação. Mas essa educação é,
enquanto tal, comunitária ou individual? Se ela não quer,
em seu domínio, tomar também o homem dependente, não
pode, na verdade, ser senão individual e não comunitária.
K arl M arx 329

Estaria então próxima de Epicuro e de Schopenhauer e não


da polis grega ou de Rousseau. Além disso Testaria a ques­
tão de saber se, tal como é concebida, essa idéia social não
encerra uma contradição irremediável.
Platão e a democracia grega clássica podiam mais facil­
mente libertar-se da maldição do trabalho. Reinava então a
economia escravista e a qualidade de ser humano só começa­
va no cidadão livre, que conhecia e exercia apenas o ofício
das armas. Ele se governàva a si próprio na cidade grega,
estava a par de tudo e podia fazer tudo. Era, segundo Pla­
tão, educado enquanto classe para o autogoverno e toma­
va-se, nas cerimônias comuns do culto, como homem em
face do divino, o companheiro dos deuses e ele mesmo.
Mais tarde, no cristianismo, o trabalho não foi concebido
como uma maldição, uma escravização ou uma ocupação
vil, como entre os gregos, no Velho Testamento e em Marx.
Os monges beneditinos cultivaram a terra no trabalho e na
preçe; sua atividade era uma forma de santificação do mun­
do por Deus. Calvino via nos êxitos alcançados no trabalho
a única e exclusiva garantia terrestre do eleito. A concepção
luterana da profissão fundou uma nova ética do trabalho.
Em Fichte também é a moralidade, não a aquisição da pro­
priedade, que reside no trabalho. Em toda parte o trabalho
é uma bênção e não uma maldição. O trabalho industrial tec-
nicizado de modo insensato de fato não passa de uma “ alie­
nação” , o círculo diabólico que, produzindo sempre novas
necessidades e novos desejos, acorrenta o homem a uma ati­
vidade embrutecedora e a uma existência feita de exigências
monstruosas. Essa alienação é, em Marx, ao contrário das
grandes interpretações metafísicas do mundo, de São Tomás
de Aquino a Hegel, a forma pela qual o mundo se tornou
atualmente insensato. Nesse aspecto está no mesmo nível
do sofrimento em Schopenhauer que não é mais concebido
nem santificado de maneira cristã, no mesmo nível também
do paradoxo do mundo tomado estranho, de Kierkegaard,
da depreciação e do niilismo de Nietzsche. É uma forma
(e uma forma sornente) da perda de sentido contra a qual
o homem deve agora afirmar-se.
É somente além dessa perda de sentido da realidade
que começa em Marx (como em Schopenhauer, Kierkegaard
e Nietzsche) o que se chama o “reino da liberdade” , isto
330 H istó ria das I déias S ociais

é, a sociedade sem classes, relativamente libertada do tra­


balho, na qual o indivíduo faz sempre o que deseja e onde
isso se torna o fim de sua vida. Marx aprovou e estimulou
a técnica moderna, a especialização e a industrialização, o
estado onde todo homem não apenas sabe cada vez mais em
um setor cada vez mais Testrito, mas possui também cada
vez melhor habilidades manuais e operações de raciocínio
cada vez mais insignificantes. Mas apenas na medida em
que esse estado deve levar ao objetivo próximo, à revolução,
porque é a condição primordial do surgimento do proleta­
riado e do capitalismo, enquanto no objetivo longínquo, a
sociedade sem classes, esse estado é rechaçado. Ali o homem
enquanto tal tornou-se de novo um diletante, quase com o
sentido com que Goethe já falava de si, que não pertencia
“ a nenhuma corporação”, mas que permaneceu “ até o fim
um amador” . Se no entanto se considera isso mais de perto,
forçoso é confessar que se trata de apoliticismo (ou até de
antipoliticismo) e de individualismo, e que se acha inteira­
mente nas vizinhanças de Epicuro (que o próprio Marx pro­
cura em sua tese justificar em relação a Aristóteles) e de
Schopenhauer, mas não da polis grega, nem de Platão, nem
de Rousseau.
A idéia social de Marx atingiu no socialismo, enquanto
partido político, e sobretudo no Estado soviético russo, uma
importância mundial que não foi dada a nenhuma outra idéia
da história. Essa era desde o início a intenção metódica de
seu autor que se opunha à contemplação de Hegel. O mar­
xismo é também, enquanto movimento político, algo diferente
da idéia do próprio Marx. Acha-se, em sua qualidade de
acontecimento histórico, a ponto de concretizar-se tão pouco
quanto a idéia social atual da América do Norte é a conse­
qüência das idéias de Milton, de Locke e de Bentham,
CAPÍTULO XXIX

Nietzsche

idéia social de Nietzsche (1844-1900) se relaciona di­


retamente com Schopenhauer, isto é, onde começamos a evo­
lução da última idade da história. E isso não a seguindo,
mas a -ela se opondo. Encontra-se em Nietzsche, por volta
da metade de sua vida (“'Menschliches, Allzumenschliches”
[Humano, Demasiado Humano]), uma correspondência es­
treita com Epicuro que ainda não foi corretamente cotejada
com os Aphorismen zur Lebensweisheit (Aforismos sobre a
Sabedoria de Viver), de Schopenhauer. É a possibilidade
humana de renunciar em parte ao Estado e à sociedade.
Encontra-se esse fenômeno em cada período tardio, mesmo
em retornos à vida pública e à sociedade, tão radicais quan­
to no estoicismo e, no século XIX, em Marx. Mas essa possi­
bilidade não se tornou em Nietzsche tão determinante quanto
em Epicuro ou em Schopenhauer. Há no conjunto, na linha
de sua evolução, uma tendência já em sua juventude, apesaT
de toda a influência exercida por Schopenhauer, que pro­
cura opor à negação decisiva do querer-viver deste último
uma afirmação da vida igualmente decisiva. Ela leva mais
tarde, passando pela metafísica do eterno retomo e Zaratustra
à Vontade de Poder e, nesta obra, à problemática da massa
e do guia.
A vitória sobre a negação schopenhaueriana da vida pro­
voca em primeiro lugar em Nietzsche uma metafísica da
arte onde a vida deve justificar-se pela aparência que ela
mantém, apesar do sofrimento. É também sob esse aspecto
que ele considera os gregos. Embora tenha sido filólogo
3 32 H istória das I déias S ociais

clássico de profissão e que se encontre mesmo nele, nas obras


póstumas datadas dessa época, um fragmento sobre o Estado
grego, nunca, no entanto, levou em conta problemas deter­
minantes da polis, nem os de Platão ou de Aristóteles. Seu
mal-entendido (ou melhor a transformação do pensamento
em seu próprio espírito) vai mesmo tão longe que ele não
sabe dizer nada sobre o “ Estado perfeito” de Platão a não
ser aproximando-o do ideal sofista do tirano. Seria contudo
falso considerar em qualquer momento sua Filosofia como
um esteticismo antipolítico. O fato de no fragmento citado
eie caracterizar o “ Estado como um meio necessário da rea­
lização da arte” não está em contradição com isso. Para
ele a arte também não é senão um meio, não o fim abso­
luto, bastando-se a si mesmo, do homem particular. Resta
o sentido, já em sua mocidade, de aprender “ a vida helénica
em suas manifestações mais importantes [isto é, também a
arte] enquanto preparação para as expressões mais elevadas
desses instintos, para o nascimento do gênio” (ibid). A única
coisa que ele compreende realmente na vida política grega
é a idéia de combate, o agôn.
Se se compreende isso no contexto das idéias sociais dos
tempos modernos, torna-se manifesta sua afinidade com Ma-
quiavel e não com o maquiavelismo usual, em sua qualidade
de simples arte (ou técnica) política amoral. Compara-se
hoje facilmente Nietzsche com essa idéia, o que é falso. Neste
sentido, Nietzsche quase sempre considerou o Estado como
“ o mais frio dos monstros” . Sua idéia aparenta-se muito
mais com as tentativas de regeneração do povo, em Maquia-
vel, pela restauração da virius da antiga Roma, com seu ideal
da fortezza dei corpo e da grandeza d eWanimo. Ê bastante
conhecida a estima em que, sob êsse aspecto, Nietzsche tinha
a Renascença. No entanto, não haveria nada de novo a
notar nisso. Esa idéia não vai em sua época além de uma
renovação intempestiva de Maquiavel. Ela se torna impor­
tante unicamente pelo fato de que essa posição de Nietzsche
formou desde sua mocidade o ponto de partida de onde mais
tarde, nas obras posteriores, Zaratustra e a Vontade de Poder,
aprendeu os problemas de sua época e propôs uma solução
precisa.
Vimos antes que, para Maquiavel, ao contrário de Hobbes,
a guerra não era considerada como nociva e a paz como
necessariamente desejável. A guerra é pelo menos um meio
de despertar e de pôr à prova no homem a coragem, o desa­
pego à vida, os sentimentos nobres. Por isso pertence ela
essencialmente às relações sociais dessa idéia. O elogio da
guerra, com esse sentido “ maquiavélico” , encontra-se como
princípio direto em todas as manifestações de Nietzsche
desde sua juventude até a sua maturidade. Sua frase, que
citamos anteriormente, a respeito de Grotius e de sua ma­
neira de conceber a guerra, convém perfeitamente, enquanto
aplicação desse pensamento, a este contexto.
Nietzsche torna-se com a idade um crítico, tão duro
quanto Marx, da idéia social liberal dos ingleses, e em par­
ticular do Estado lockiano sob o signo da aquisição da pro­
priedade, com a ressalva de que ele parte de outro aspecto.
Considera esse Estado em sua forma moderna, industrial (o
que naturalmente, no plano cla análise histórica, é falso).
Pois ele é de opinião que essa “ cultura industrial é a forma
de existência mais grosseira que já houve até o presente” .
A repartição desigual dos bens só lhe parece humanamente
revoltante porque não são “ os melhores” que têm entre as
mãos a força e a riqueza, mas uma camada “ sem esses signos
distintivos da raça superior, que, só eles, tornam as pessoas
interessantes” ( “ raça” sendo entendida não no sentido bio­
lógico do nacional-socialismo, mas no fato de pertencer a
uma elite, cujos membros podem ser de origem diferente).
A verdadeira injustiça social não reside portanto numa re­
partição desigual dos bens e dos encargos do trabalho, que
sempre existiu, mas “ na sujeição [dos trabalhadores] a pes­
soas desconhecidas e desinteressantes, como o são todos os
grandes da indústria. O empregado habitualmente só vê no
empregador um cão astuto que especula sobre a miséria e o
explora e de quem o nome, o rosto, os costumes e a reputa­
ção lhe são absolutamente indiferentes” . A indignação dos
trabalhadores, que é também decisiva no marxismo, em vir­
tude da obrigação em que se acham de vender sua força
de trabalho e, portanto, de vender a si próprios, é uma con­
seqüência das regras do jogo e das leis do Estado liberal
sob o signö da aquisição da propriedade. A desumanidade
deste último reside em que o empregador não é em sua subs­
tância senão o proprietário privado (dos meios de produção
de que o trabalhador precisa), não o membro de uma elite,
334 H istó ria das I déias S ociais

como o era a nobreza nas formas econômicas anteriores,


baseadas na agricultura. Ele não está assim munido, em seu
poder de mando, de uma autoridade humana e política ver­
dadeira.
Ao contrário de Marx, que sempre reconheceu, apesar
de sua hostilidade de princípio, o austero papel de guia, con­
cedido, na indústria, à grande burguesia, Nietzsche pretende
que o marxismo não pôde encontrar tal eco, nas massas da
era industrial senão porque, na maioria dos casos, é o acaso,
a arbitrariedade da propriedade, a sutileza na exploração da
situação, e não o valor (a virtú de Maquiavel) nem a cate­
goria humana que elevaram um, enquanto empregador, acima
do outro, enquanto trabalhador. Diante de tal acaso cada
um deve ansiar por uma inversão, que aliás só faz sempre
substituir por outra, que não é melhor, a antiga divisão do
poder. “ Ora, vamos!, diz [o homem comum] para si mesmo,
tentemos nós também a sorte e a felicidade, lancemos tam­
bém os dados! E o socialismo começa” . Fröhliche Wissen­
schaft [Ciência A legre]).
Nietzsche quer além disso ser, em sua época, o profeta
da grande catástrofe em marcha: “ O que conto é a história
dos dois séculos que virão... Desde hoje pode contar-se
essa história, pois é a necessidade que se vê aqui atuando. . .
Toda a nossa cultura européia, num estado de espera an­
gustiada, encaminha-se de década em década para a catás­
trofe, em um movimento inquieto, irresistível, acelerado:
como um rio que corre para seu fim, que não reflete mais,
que tem medo de refletir” ( Vontade de Poder). Com isso
entende ele o niilismo que se aproximava então e que hoje
é na maior parte realidade, o nivelamento de toda a hierar­
quia dos valores, a ausência de grandes objetivos na vida.
Já Maquiavel queria regenerar o povo atribuindo-lhe finali­
dades verdadeiras. Exatamente do mesmo modo em que,
em Marx, o caráter negativo da miséria do proletariado e
sua indignação por sua própria miséria se tornam de fato
a condição primordial necessária à revolução, enquanto su­
peração da auto-alienação do homem, o caráter negativo do
niilismo moderno é para Nietzsche a condição necessária de
um novo estado que esboçou, filosoficamente, no Zaratustra,
como uma “ conversão da alma” ; e, como idéia social, nos
planos e fragmentos da Vontade de Poder. O mesmo para­
N ie tzsc h e 335

lelismo observa-se em ambos os casos como na República


de Platão, sendo diferente, evidentemente, o objetivo.
Marx caiu, depois da derrocada do sistema absolutista
de Hegel, no ateísmo de Feuerbach. É isso que aproxima tão
fortemente seus objetivos finais dos de seus adversários Locke
e Bentham, embora desejasse afastar-se deles e vencê-los, e
que torna esses objetivos tão obscuros. Nietzsche não é cer­
tamente um adversário menos conseqüente do cristianismo.
Mas procura opor a ele uma nova “ demonização” daqui de
baixo. Trata-se no Zaratustra da metafísica do eterno re­
torno; Zaratustra é precisamente designado como sendo
“ aquele que ensina o eterno retorno” . (A doutrina aliás tor-
na-se ela mesma mais clara nas obras póstumas do que aqui
nos enigmas intencionais.)
O eterno retorno de todas as coisas e portanto de toda
a vida do homem até em suas particularidades individuais
é, em primeiro lugar, para Nietzsche, do domínio das Ciên­
cias Naturais. Infere-o da idéia (de Eugen Dühring) de
uma limitação do espaço, do infinito atuai do tempo e das
leis de conservação da energia e do movimento. Mas esse
fato tem ou adquire agora uma dupla significação moral; é
o “peso maior” tanto no que oprime o homem, e o paralisa
em sua ação, quanto no sentido de que é ele que dá a essa
ação todo seu peso, sua substância humana. Isso se for pos­
sível inseri-lo na vontade, — suportá-lo a não se deixar ani­
quilar por ele. No segundo caso, tornar-se-ia para o homem
um imperativo moral semelhante ao imperativo categórico
de Kant: viver de tal forma que possa desejar reviver eter­
namente ( Vontade de Poder, XII, 125/126). Ou então: Non
alia, sed haec vita sempiterna, não numa vida no além, mas
essa vida compreendida como eterna. O simples “ deves”
(ou melhor, precisas) deve tornar-se o “ quero” e mais longe
ainda o “ sou” , lúdico. Ele compara isso com outro aspecto
na existência dos deuses gregos. A natureza deve assim,
precisamente enquanto é desvalorizada nas leis insensatas das
Ciências Naturais, causa definitiva do niilismo moderno, re­
cobrar um novo valor, a vida tornar-se de novo para o ho­
mem digna de ser vivida e plena de sentido.
Zaratustra tenta no livro que leva seu nome conceber
pela primeira vez de maneira exemplar para os homens esse
“pensamento mais profundo” , de ensinar esse pensamento e
336 H istó ria das I déias S ociais

com isso criar na educação o novo homem transformado.


Não é ainda esse novo homem (mas é o jovem pasior que
realiza a encarnação desse pensamento, não se contentando
em refletir simplesmente; Zaratustra, III Parte, “ Da Visão
e do Enigma” ). Mas toda essa tentativa de dar ao mundo,
após a derrocada do absolutismo hegeliano, um sentido novo
parece ser de início* um acontecimento muito privado. Até
que ponto não é um simples esteticismo, mas a base de uma
idéia social?
O “prólogo” de Zaratustra contém uma Antropologia e
com ela o tema da idéia social. O homem é aí definido como
uma ponte, uma passagem, uma corda estendida sobre o
abismo. Ele vem do animal e visa ao “ super-homem” . Mas
o perigo está naquilo que Nietzsche chama o “ último ho­
mem” . O último homem é no plano sociológico e no contexto
da história aquele que se instalou confortavelmente no Es­
tado de Locke. Ele “inventou a felicidade [de Bentham]” ,
mas perdeu todo o sentido de sua existência. A sociedade é
assim caracterizada: “ Nenhum pastor e um só rebanho! To­
dos querem a mesma coisa, todos são iguais: quem tem ou­
tros sentimentos vai voluntariamente para a casa dos loucos” .
O “ super-homem” , em compensação, é definido antropolo-
gicamente pela exortação de Zaratustra: “ Permanecei fiéis
à terra!” Somente o pensamento do eterno retorno permite
em última análise essa atitude de Nietzsche.
No Zaratustra, o homem de sua época, o homem enve­
lhecido é abandonado. Ele se lança, quando dança sobre
uma corda, no abismo e perece nos braços de Zaratustra de
uma morte para a qual não existe despertar. O tolo, a filo­
sofia utópica, saltou por cima dele e pôs fim à sua vida
“ perigosa” . A multidão que se mantém em volta mostra-se
como se estivesse no caminho que leva ao último homem.
Zaratustra afasta-se dela e procura amigos e companheiros
para sua obra. Depois ele morre (segundo os planos ina­
cabados das obras póstumas) tragicamente como mais taTde
o próprio Nietzsche, quando vê sua obra malograr. Mas a
separação dos homens' em dois grupos, aqui chamados o
“ último homem” e o “ super-homem” , já está realizada no
plano sociológico. Isso será continuado na última obra ina­
cabada e mal publicada A Vontade de Poder. Os últimos
homens são aí os “ homens do rebanho” , os “ super-homens” ,
N ie tzsc h e 337

a elite dos guias. Essa devia ser a idéia social filosófica de


Nietzsche. Ela só é apreensível em suas grandes linhas.
Nietzsche não entendera ainda de modo absolutamente
claro o ambiente da era industrial e as condições que aumen­
tavam a falta de independência do homem. Ele apenas
conhece o fato e o leva em conta. Sua nova sociedade é
a direção autoritária de uma espécie de rebanho de homens.
Ela é sob muitos aspectos semelhante à idéia social do estoi­
cismo no fim da Antiguidade, com a única diferença da
situação histórica. Não é mais, em todo caso, uma comu­
nidade de cidadãos livres e independentes como na cidade
antiga ou em Milton ou em Rousseau ou ainda como na
utopia futurista de Marx que, por trás de seu objetivo ime­
diato da revolução e da ditadura do proletariado, tem con­
tudo sua origem no ideal alemão da cultura clássica da época
de Goethe. O que se encontra em Nietzsche é ainda a tipo­
logia antropológica das duas espécies de homens, o dirigente
e os dirigidos, rigorosamente separados uns dos outros. Ela
corresponde muito amplamente à do sábio estóico e do re­
banho de homens imaturos. A obra não se desenvolveu
mais.
Primeiro os dirigidos. Por eles Nietzsche não tem um
sentimento muito elevado, embora se esforce por ser abso­
lutamente justo. Ele observa sobretudo a falta de indepen­
dência de sua vontade, qiíe os torna (como os escravos em
Aristóteles) servos por natureza. Mas vê ao mesmo tempo
sua utilidade no novo processo, de trabalho da indústria e
lhes permite sua felicidade ( “ um prazerzinho de dia e um
prazerzinho de noite” ). Declara sob o título “ O Futuro
Europeu” : “ O povo de escravos mais inteligente, muito tra­
balhador, no fundo muito modesto, curioso ao excesso, varia­
do, pobre de vontade, um caos de inteligência cosmopolita” .
Não se trata da evocação do proletário que, na sua quali­
dade de ser incorrompido, somente poderia ser aquêle que,
numa aliança com a Filosofia, reedifica o futuro pela indig­
nação diante de sua miséria. Mas não se trata mais de um
ensaio de caracterização do operário em oposição ao capi­
tão da indústria, como se poderia falsamente crer. Está pro­
vado que Nietzsche pensa de modo inteiramente diverso a
respeito do operário enquanto tal, colocando-o mais alto, à
sua maneira, quando fala dele e o compara por exemplo ao
338 H istó ria das I déias S ociais

soldado. Trata-se, antes, do homem que se torna, em todas


as classes da era industrial, cada vez mais dependente, tal
como ele o é.
A esse rebanho de homens médios, próprios para a pro­
dução e o consumo das mercadorias, úteis e diligentes, ele
opõe agora o pequeno número de homens “ bem feitos’, como
os chama, enquanto guias do rebanho. Certamente já são
“ bem feitos” por uma disposição natural. Não podem, entre­
tanto, da mesma forma como em Platão, chegar na sociedade
ao papel de guia a não ser pela educação. Com a diferença
de que a educação não é mais, como no socratismo de Pla­
tão e no estoicismo, uma educação pela razão no sentido de
uma conversão da alma, da vida terrestre ao além ( epekeina
tes ousias) ou então de uma impassibilidade diante das pai­
xões. Trata-se mais, por um lado, de uma educação por
meio do sofrimento, das humilhações que a vida lhes prepara
( “ o que não me mata me fortalece” ), e por outro lado de uma
educação por meio do rigor da doutrina do eterno retorno
em que devem suportar a verdade e pela qual devem adqui­
rir* um novo sentido, um sentido terreno, para sua vida.
Mas num e noutro caso, pensa Nietzsche, nascerá uma nova
elite que, na situação criada pela técnica e a indústria, está
em condições de assumir a “ dominação da terra” , e que só
pode fazer com que a vida enquanto tal valha a pena de
ser vivida. É evidente que ela pode e deve assumir de ma­
neira equânime a responsabilidade humaná do rebanho, como
os “ sábios estóicos” .
CAPITULO XXX

A Integração Política das Massas na Atualidade

N IETZSCHE morreu em 1900. Na última década do século


XIX teve início a Sociologia científica. A primeira edição
da obra de Toennis Gemeinschaft und Gesellschaft ( Coletivi­
dade e Sociedade) apareceu em 1887, os Elementi di scienza
politica de Gaetano Mosca em 1895, Les lois de Vimitation
de Tarde em 1895, Les règles de la méthode sociologique
de Durkheim em 1895. Na América, em 1898, foi fundado,
sob a direção de A. W. Small, o primeiro Department of
Sociology. As concepções básicas desta ciência surgem, então,
na geração seguinte: o Tratato di sociologia generale de
Vilfredo Pareto, em 1915-1916, e Wirtschaft und Gesellschaft
( Economia e Sociedade) de Max Weber, em 1921. A partir
daí tem início a infindável pesquisa em torno dos detalhes.
A Sociologia é uma ciência empírica. Seu objeto, como
já foi assinalado, é o reconhecimento do que permanece e
do que se transforma, e não a manutenção, justificação, cor­
reção ou destruição de relações sociais por meio de idéias
filosóficas que se antecipam ao desenvolvimento. Assim,
ela não mais faz parte da história filosófica das idéias.
Seria possível considerar-se que já a política aristotélica,
Maquiavel, a Filosofia do Direito de Hegel ou, pelo menos,
Comte e Spencer, tendem para a ciência pura neste sentido.
Histórias da Sociologia costumam considerá-los, ao lado de
outros, como precursores. Isto por si só já constitui um erro.
É certo que para Aristóteles o conhecimento da polis e de
suas diferentes constituições também representa um objetivo,
ao contrário do que ocorre com os planos reformistas de
340 H istó ria das I déias S ociais

Platão. Mas isto ainda não corresponde a uma posição es­


sencial puramente científica, e sim — como jâ vimos — à
resignação meditativa diante da decadência do autogoverno
livre dos governados e a uma visão retrospectiva. Aristóteles
jamais procuraria pesquisar as formas sociais de comunida­
des não-gregas, comparando-as com a polis nem mesmo no
que se refere à constituição da Macedônia ou do império
de seu discípulo Alexandre, constituição esta, contudo, que
ele conhecia muito bem. A vontade filosófico-política se­
creta da Filosofia do Direito de Hegel, outrossim, era a
conciliação entre a “ sociedade civil” e o “ Estado” , exata­
mente aquilo que Marx depois separou com tanto ardor. Fi­
nalmente, o objetivo de Comte, em relação manifesta com
Saint-Simon, é a reintegração da sociedade depois de sua
dissolução na Revolução Francesa, sendo esta reintegração
concebida, em sua velhice, por meio da intervenção de algo
semelhante a uma religião social. Savoir pour prévoir (saber
para prever) é o seu lema. Seu imitador Spencer, em con­
traposição a isso, tentou fazer o mesmo, mas sob o funda­
mento do liberalismo, em continuação a Bentham e, mais
tarde, a Locke. A Sociologia enquanto ciência, pelo con­
trário, é o conhecimento pelo conhecimento, utilizando-se de
métodos puramente empíricos. E, aliás, inicialmente, de mo­
do muito mais marcado do que na Física. O velho objetivo
técnico-político de Maquiavel, que consistia em conseguir
impor-se aos homens a partir do conhecimento de seu com­
portamento regular, e que Bacon transplantou para a ciência
natural, foi muito afetado pela moderna Sociologia. Por
outro lado, aquilo que depois da Segunda Guerra Mundial
começou a aparecer, ao lado da Sociologia propriamente cien­
tífica, como “ ciência política” ou “ instrução cívica” não é
nem teoria legítima nem Filosofia, e sim justificação jornalís­
tica de determinadas formas de Estado do ponto-de-vista de
seus partidos dominantes. E tudo isto, na maioria das vezes,
mediante grande adulteração dà verdade histórica.
Ê exatamente por meio da teorização e “ cientização”
do pensamento político e social e por meio de sua libertação
da Filosofia legítima e independente em relação ao Estado
que se fez lugar para o aparecimento das ideologias dos Es­
tados de massas modernos. Não são nem ciência nem Filo­
sofia, mas a realidade na consciência dos homens no pre­
sente. Nenhuma Filosofia, assim como nenhuma Sociologia
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu alid ad e 341

enquanto ciência, vai além desse ponto. Daí, a Sociologia


talvez possa descrever de forma puramente científica as for­
mas de dominação e de sociedade dessa nova realidade. Para
isso, Vilfredo Pareto já elaborou seu conceito de “ resíduos” .
A Filosofia, em contraposição, terá que considerá-las criti­
camente como “concepções do mundo” ou “ ideologias” e
de separá-las de seu próprio pensamento apartidário.
O objetivo que estas ideologias se colocam é a integra­
ção política prática dás massas na idade industrial segundo
determinadas palavras-de-ordem do poder e dos interesses.
E isto exatamente porque as velhas formas de Estado não
mais conseguem cumprir tal objetivo. Essas velhas formas
de Estado foram a monarquia absoluta e constitucional e a
democracia parlamentar liberal. Sua debilidade ficou de­
monstrada sobretudo depois da Primeira Guerra Mundial.
E isto, aliás, em grau idêntico tanto entre os vencedores
como entre os vencidos, sendo que entre estes últimos, como
é natural, de modo mais crítico. Esse fato, contudo, não
foi uma decorrência da guerra, vencida ou perdida, como
freqüentemente se acredita. A guerra, como situação ex­
traordinária, apenas tomou manifesto aquilo que mais cedo
ou mais tarde teria que ocorrer mesmo sem ela: a transfor­
mação das formas de vida dos homens e, com isso, a trans­
formação de seu caráter e das relações sobre as quais se
fundamenta a vida em comum entre os homens.
A autarquia econômica das formações sociais mais sim­
ples, da família ou da aldeia, se é que de fato jamais existiu,
é sempre muito primitiva. Pelo menos nas culturas agrícolas
superiores a regra já é a divisão do trabalho e a especializa­
ção. Isto leva então à transição já assinalada por Platão
entre o “ Estado dos porcos” e o “ Estado do luxo” e junta­
mente com ela à problemática político-social propriamente
dita. Não obstante, com isso não se põe em questão uma
possível independência e responsabilidade própria dos ho­
mens em sua comunidade. E, menos ainda, o conteúdo da
vida da comunidade.
A vida se torna compreensível para cada um por meio
de seu próprio trabalho. Isto não é possível com a divisão
do trabalho. Evidentemente, existem diferenças de grau.
O camponês tem que adotar decisões independentes. Dele
é que depende, como ele, sua família; seu gado e sua cria-
342 H istó ria das I déias S ociais

dagem atravessarão o tempo bom e o mau. Essas decisões


constituem uma escola prévia natural para o governo de um
grupo maior ou menor de pessoas. O mesmo ocorre com a
vida do nômade em seus deslocamentos das pastagens de
verão para as de inverno. Em toda parte, no antigo Oriente,
encontramos pastores como pretendentes ao reino, da mesma
forma que os romanos procuravam seus ditadores entre os
agricultores. Mas tampouco o servo é aqui essencialmente
diferente do senhor, tomando igualmente parte nesta vida.
O próprio artesão mal se separou do modo de vida agrícola.
A especialização e o conhecimento técnico que ele exige é
perceptível e compreensível. a qualquer aprendiz. Nas cul­
turas mais avançadas desenvolvem-se então as classes supe­
riores, a partir daquela base, cujo espírito e cujas possibi­
lidades não se perdem nelas. Da mesma forma que os ho­
mens que se transformaram em proprietário de terra, guer­
reiro, médico, juiz, professor, funcionário, padre ou artista
trouxeram consigo e desenvolveram a independência das de­
cisões de sua vida anterior, sua atividade também pefmaneceu
compreensível para as classes inferiores. Em última análise,
tratava-se da mesma moral que ligava a todos e fornecia
um mesmo ideal de vida do homem laborioso, ao qual cada
um poderia corresponder mais ou menos em seu círculo pró­
prio. Somente a partir dêsses fundamentos é que se toma­
ram possíveis dominação e comunidade social.
O operariado, em sua forma normal, só apareceu com
a introdução da máquina. Em relação à máquina, de início,
apenas o inventor e o engenheiro são humanamente indepen­
dentes. O operário é “ colocado” . Assim, ele vem de fora
em direção a alguma coisa que ele não fez e sim conserva
em movimento por meio de algumas operações manuais pri­
mitivas aprendidas e sempre repetidas. A progressão do
artesanato ao trabalho industrial consiste em que o conjunto
de um processo de produção individual é analisado e divi­
dido ern processos isolados. Esses processos isolados podem,
então, ser realizados mecanicamente, o que só compensa
quando se trata de uma produção em .massa. Ao operário
só resta, por isso, manter-em-funcionamento a máquina e,
eventualmente, a junção de partes já prontas segundo indi­
cação previamente dada. A mercadoria padronizada e pro­
duzida em grande escala que resulta daí não é, portanto, o
produto de seu trabalho, e sim o produto projetado pelo
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu a l id a d e 343

engenheiro. Com efeito, hoje em dia todas essas operações


são substituídas em escala cada vez maior pela automatiza­
ção. Isto já basta para mostrar que o trabalho do operário
como tal era, pelo menos no fundamental, dependente e que
não há q u a lq u e T d ife r e n ç a entre o trabalho do operário e o
dos autômatos. Logo no início da era industrial, quando
ainda não havia qualquer automatismo, as máquinas exigiam
em grande escala operários que realizavam, em sua maior
parte, operações facilmente aprendidas. Necessitavam ape­
nas, em escala muito reduzida, de destreza, habilidade arte-
sanal e visão ou juízo independente. Por isso, no próprio
trabalho industrial é que se perderam a hierarquia e o res­
peito de si mesmo por parte da pessoa humana, e não so­
mente em função do mísero pagamento e de uma vida de
pobreza não mais humanamente condigna fora do trabalho.
A isto se acrescenta a impessoalidade da Telação do operário
assalariado com o empresário em fábricas cada vez maiores,
que excluiu uma ligação de confiança recíproca como a que
anteriormente tinha enobrecido trabalhos semelhantes e hu­
manamente não-satisfatórios.
A problemática humana mais profunda reside, portanto,
na transição para a idade da técnica, em primeiro lugar na
dependência e falta de conteúdo do trabalho assalariado.
Anteriormente, isso constituía um fenômeno marginal dentro
do organismo social; agora, é a regra geral.
Com efeito, isso se estende a toda a humanidade, apesar
de que o trabalho dependente diminui, a atividade do operá­
rio se torna novamente especializada e exige uma nova capa­
cidade técnica. A própria técnica, na medida em que domina
tão exclusivamente a vida como ocorre hoje em dia, se trans­
forma em um mecanismo totalmente incompreensível, por
sua divisão em processos isolados uns dos outros. E isso não
apenas para o operário, mas também já para o próprio cien­
tista, inventor ou engenheiro. Cada qual só pode enfrentar
com êxito este mecanismo na medida em que sabe cada
vez mais sobre um número cada vez menor de assuntos, na
medida em que domina com virtuosismo cada vez maior um
número cada vez menor de habilidades.
A problemática do antigo trabalho assalariado, que Marx
teve diante dos olhos, hoje não mas existe, em sua maior
parte. A divisão de classes entre o proletariado e a burguesia
344 H istó ria das I déias S ociais

já é, desde muito, artificial e ultrapassada. Não somente


por meio das oportunidades de ascensão e possibilidades de
queda entre estas duas camadas, mas sobretudo mediante
a participação ativa e independente do trabalho especializado
da dominação da natureza pelos engenheiros e empresários.
O operário propriamente dito é o operário especializado, e
os operários especializados constituem a maioria. Poí outro
lado, eles são, em sua maioria, suficientemente bem remu­
nerados, muito melhor do que a pequena burguesia e as pro­
fissões intelectuais no tempo de Marx. Não há dúvida de
que esta situação não foi obtida sem a organização sindical
dos trabalhadores, e não é conservada voluntariamente e pelo
senso de responsabilidade dos empresários. Mas o fato é
que ela existe. E onde ela ainda não existe, nos chamados
países subdesenvovidos, pode ser atingida sem dificuldades.
A verdadeira problemática da comunidade humana reside
hoje em um ponto diferente, em comparação com ç>s tempos
de Marx.
Por mais paradoxal que pareça: a própria dominação
da natureza toma o homem dependente, retira-lhe a capa­
cidade de julgamento assim como conteúdo de sua vida.
Com efeito, exatamente nos países inteiramente industriali­
zados, essa vida já não é compreensível, em seus contextos
econômicos, a qualquer pessoa. A ciência que procura pes­
quisá-la, com efeito, fornece ao especialista, e somente a
ele. uma visão desses contextos apenas em domínios cada
vez mais restritos. Assim, ele se encontra dentro de um
grande organismo científico-econômico-social que ele não está
em condições mesmo aproximadamente, de apreender quer
por seu trabalho, quer por seu consumo, quer por seu co­
nhecimento. Isto representa uma diferença essencial em
relação a períodos anteriores.
No fundamental, esse fato é evidente. Ele se toma ainda
mais claro em relação a profissões como as de professor, mé­
dico ou juiz. Não se trata aqui nem mesmo de profissões
manifestamente técnico-industriais, que desde o início sejam
altamente especializadas. Médicos, professores e juizes já
existiam antes da idade industrial, freqüentemente inclusive
como leigos não-instruídos. Antigamente já eram profissões
especializadas, que exigiam certo conhecimento e certa ha­
bilidade aprendidos. Contudo, como qualquer um sabia o
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu alid ad e 345

que um médico, professor ou juiz fazia, da mesma forma


os que exerciam essas profissões podiam confiar, em sua
atividade cotidiana, ao lado de seu conhecimento especiali­
zado, também em seu conhecimento não-especializado sobie
o homem e a sociedade. Hoje, na melhor das hipóteses,
somente um professor das primeiras turmas do primário pode
ensinar todas as matérias às crianças e, com isso, educá-las
como pessoas humanas. A partir desse momento, todo o
ensino é repartido. Matemática, Física, Línguas, História,
Esportes, Desenho e Música, embora façam parte do ensino
geral e não do especializado, são ministrados por especia­
listas diversos. No lugar da educação geral surgiu o ensino
de matérias distintas, que torna problemática a educação do
homem como tal. Da mesma forma, existem médicos espe­
cialistas que dividem entre si os doentes segundo seus órgãos.
E é inegável que freqüentemente a cura do homem em con­
junto sofre com isso. Antigamente, um juiz podia pronunciar
um julgamento a partir de seu conhecimento da lei e de
sua visão geral sobre os contextos da vida. Hoje, mesmo
quando se trata de questões criminais ou disputas econômi­
cas ou de trânsito, ele depende em primeiro lugar do pa­
recer dos peritos. O julgamento se faz sem que o juiz possa
ir além de simplesmente comparar superficialmente a lei com
os pareceres, em cuja exatidão tem que confiar. Sua sentença
freqüentemente não mais resulta de seu próprio conheci­
mento.
A vida humana consiste em trabalho e consumo. Da
mesma forma que o trabalho na cidade industrial é especiali­
zado e em seus contextos ulteriores é incompreensível para
os seres isolados, assim também é o consumo. Exatamente
sobre este aspecto, o julgamento do homem, por exemplo no
que diz respeito à participação de seu proprio gosto inde­
pendente, se torna cada vez menos possível. Por consumo
entendo não apenas o dispêndio de gêneros de primeira ne­
cessidade, mas também habitação, descanso, divertimento,
esporte, prazer, segurança e assim por diante. Na época
agrária, era possível, não somente aos ricos, mas também
aos pobres, conformar sua vida de maneira independente
em relação a todas essas coisas. Havia certa hierarquia e
diferenciação, mesmo dentro de cada camada e profissão,
segundo a maneira pela qual cada um utilizava esta possi­
bilidade. Ele podia relacionar-se diretamente com as coisas
34 6 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

com as quais tinha çontato, apesar de toda a divisão do


trabalho e da economia de trocas regulada pelo dinheiro.
Hoje, ele recebe a domicílio os produtos acabados da indús­
tria e só pode consumir coisas cada vez mais artificialmente
poduzidas, padronizadas, cujo valor interno não conhece e
não pode julgar, que lhe são atribuídas para seu consumo.
Se por acaso, no futuro, a chamada livre utilização da ener­
gia atômica e automatização facilitarem para as massas de
tal forma a sua subsistência que nada mais tenham o que
fazer durante a maior parte do dia, não precisaremos preo­
cupar-nos com sua ocupação. Surgirão, então, indústrias
enormes, seja em bases capitalistas ou socialistas, que for­
necerão sempre os artigos mais procurados já completamente
montados ou com instruções para a montagem pelo próprio
consumidor, de modo semelhante ao que ocorre hoje com os
brinquedos para crianças. Desse modo, é claro, a depen­
dência humana não será abolida de forma alguma.
Não constitui objeção a isso o fato de que o consumi­
dor, de fato, pode escolher livremente no mercado e que a
indústria utiliza vários testes no sentido çle orientar-se pelo
gosto da maioria, em interesse próprio e em virtude da con­
corrência. A moda sempre foi casual e arbitrária. Apesar
disso, o consumidor está cada vez menos em condições de
julgar as coisas que compra. E isso nem mesmo em relação
a pontos-de-vista tão simples como os de preço e qualidade.
A embalagem pronta e os pesos e formatos constantemente
alterados nas mais diversas latas, garrafas e caixas dificul­
tam o julgamento, o que, por parte do fabricante, natural­
mente é feito de propósito. A dona de casa média e mesmo
a mais hábil se sairia mal se quisesse constatar realmente o
que de fato compra e escolher segundo o seu próprio julga­
mento ou critério.
Mas, isso nem parece ser necessário. A indústria for­
nece tudo e, além disso, tem alguns especialistas com o co­
nhecimento suficiente para distinguir as qualidades. O con­
sumidor pode confiar nisso, evidentemente na medida em
que a ambição dos lucros, nos países do Ocidente, e os in­
teresses do Estado e do Partido, nos países do Oriente, não
prejudiquem a produção aferida apenas segundo normas de
qualidade. De qualquer forma, ele pode — ou tem de —
confiar nas normas estabelecidas. E isso desde a compra
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas na A t u à l id a d e 347

de gêneros alimentícios, roupas, móveis, habitação, aparelhos


domésticos, ou as diferentes formas de ocupação do tempo
livre, os eventos musicais, as exposições de pintura, os livros,
a escolha do cônjuge segundo métodos científico-psicológi-
cos, as viagens de férias organizadas em grande escala e
todas as outras diversões até os hospitais, sanatórios, seguros
contra incêndios, acidentes ou de vida, pensões para a velhi­
ce e sociedades funerárias. Mas que ganharia ele com isso,
mesmo (ou exatamente quando) tudo fosse perfeito? O
que ele perde, da mesma forma que o trabalhador manual
ou intelectual em seu trabalho, é a independência humana
para decidir sobre si mesmo e a capacidade de determinar
o seu próprio destino, a liberdade interior essencial. Ele é
um autômato do consumo e da felicidade, da mesma forma
que o trabalhador é um autômato do trabalho e o cientista
um autômato do conhecimento. Ou seja, o automatismo do
trabalho, do consumo e do conhecimento são os três lados
de sua vida. O que romances utópicos como Admirável
Mundo Novo de Huxley (seguindo uma frase da Tempestade
de Shakespeare) ou os livros de Alexei Tolstoi na Rússia
da década de 1920 ou a literatura de ficção científica des­
crevem já se tornou realidade em nossos dias por todos os
cantos. O que, no Oriente, é feito pelo mecanismo do Estado,
é feito no Ocidente pelo mecanismo industrial privado. E
a diferença, na realidade, é pequena.
Ora, o homem é um ser independente por sua própria
natureza. Quando sua independência no trabalho e no con­
sumo é reduzida, ele procura reconstituí-la em outros ter­
renos. A dependência reside exatamente em que éle, em
qualquer profissão, é apenas uma pequena parte de um enor­
me mecanismo técnico e não pode ter sobre o que trabalha,
sabe ou consome a apreensão do conjunto, a compreensão
do sentido e do contexto deste conjunto. Contudo, se isto
lhe é retirado no próprio e independente manejo com as
coisas, então ele procura reconstituí-lo de forma indireta.
A indústria que hoje abre essa possibilidade para os sêres
humanos é a imprensa, desde os jornais diários, passando
pela revistas e livros de bolso, até o rádio e a televisão. A
imprensa o esclarece em relação a tudo o que ocorre, tanto
no que diz respeito aos pequenos males ou bens nas regiões
mais distantes ate a política interna e externa de todos
348 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

os Estados, desde o progresso da ciência e da técnica em


todos os terrenos e as mais diversas formas de sociedade e
de costumes em todos os pontos da Terra até os mais Tecentes
ditames da moda. Existe hoje uma coação quase irresistível
sobre toda e qualquer pessoa no sentido de ler jornais e
revistas, ouvir rádio e ver televisão. E isso tanto para os
habitantes de regiões que ainda se encontram quase que na
Idade da Pedra no interior da África até os intelectuais alta­
mente ilustrados na Europa, Rússia, América, China e Índia.
E esta é hoje igualmente a forma característica segundo
a qual cada um vai do meio limitado e padronizado de seu
trabalho e de seu consumo até a participação nos aconteci­
mentos mundiais.
Contudo, essa forma de participação no todo é, por sua
vez, de um tipo todo especial. Era de pensar-se que, na
idade da técnica, na qual a produção se baseia na análise
e no cálculo rigorosos do curso dos acontecimentos e na
experiência própria, essa forma de participação fosse tão
segura e fidedigna quanto o mito ou a filosofia e a concep­
ção do mundo oralmente transmitidos nas culturas anterio­
res. E, de fato, isto ocorre, em certo sentido. O que as
pessoas recebem de segunda, terceira, quarta ou quinta mão
não é experiência própria. É, inclusive, difícil de relacionar
com a experiência própria.
Em comparação com a experiência própria de uma pes­
soa quàlquer, o mundo tecnificado da imprensa apresenta a
seguinte particularidade: os relatos são, na maioria das ve­
zes, fugazes e imprecisos. São feitos segundo clichês pre­
viamente estabelecidos. Trata-se aqui de uma imensa quan­
tidade de material que ninguém mais é capaz de apreender
realmente, mas que, na melhor das hipóteses, apenas se toma
conhecimento para se esquecer imediatamente. A inexatidão
do relato aumenta ainda várias vezes quando é reproduzida
para que dela se tome conhecimento. Trata-se não somente
de relatos sobre fatos objetivos como também de visões ver­
dadeiras ou inventadas e enfeitadas quanto à esfera íntima
de determinadas pessoas, desde o assassino famoso, o in­
ventor, o artista, político, astros do cinema e mandatários
até soberanos antigos e o próprio Papa. Despertam uma
curiosidade sem sentido e não-participante e aguçam toda
a simpatia humana.
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas na A t u a l id a d e 349

Qualquer visão de um acontecimento ou qua^uer rela­


to a propósito já são subjetivamente coloridos por meio da
personalidade de quem vê ou relata, do repórter. Isto, por
si só, não seria muito mau. Se eu próprio vejo, então posso
corrigir uma visão qualquer pela seguinte. Para isso existe
a experiência, e cada um se transforma em uma personalidade
na medida em que consegue ir adiante com esse processo.
A própria subjetividade de um relato ouvido essencialmente
não apresentaria perigo, pois eu posso ajudar aquele que
relata — se o conheço — em sua fidelidade em relação aos
fatos. Somente o ingênuo e inexperiente pode ser sempre
iludido por artimanhas. Ao contrário, aquilo que é impresso
nos jornais ou absorvido pelo consumo de massa apresenta,
em parte por seu caráter público, em parte por seu anoni­
mato, uma aparência de objetividade e de coisa definitiva.
E isso mesmo quando se conhece e se experimentou várias
vezes a sua inverdade e se sabe que os jornais, no funda­
mental, fazem aquilo a que se referia Aristóteles, falando
dos poetas: “ Muito mentem os poetas” . Quase ninguém
consegue escapar a isso, porque na verdade consegui-lo equi­
valeria a renunciar a estar informado e participar dos acon­
tecimentos mundiais. A isto se acrescentam ainda todas
aquelas coisas sobre as quais nada se sabe ou, então, é pos­
sível ter-se opiniões muito distintas e que perturbam e em­
botam o caráter das pessoas, na medida em que é formado
pelo conhecimento, no turbilhão de diferentes sensações.

Tudo isso constitui o mundo artificial da opinião9 na


qual vive o homem, por meio da imprensa, Tádio e televisão,
na idade da técnica. É uma ilusão muito fantasmagórica, se
for tornada presente em sua própria existência. Naturalmen­
te, também neste terreno é impossível ao homem como tal
“ voltar à natureza” ; e hoje ainda menos que anteriormente.
Ele não pode nem mesmo — como foi exigido de forma
bastante aguda certa vez por A. Gehlen — “ voltar à cultura”,
ou seja, à cultura antiga, na qual ele tivera um campo livre
para a formação de .uma opinião uniforme e coerente e para
a condução independente da vida. Ele simplesmente não
consegue sair da jaula em que foi cercado pela imprensa,
rádio e televisão. Na melhor das hipóteses, pode reconhecer
que está dentro de uma jaula.
Desse modo, se se analisar despreconcebidamente o ho­
mem da idade indusfrial como um todo, da maneira como ele
se desenvolve por meio do trabalho, profissão e consumo, então
terá que reconhecer-se que as oportunidades para a forma­
ção independente do caráter são escassas. Já são escassas
do ponto-de-vista objetivo porque a opacidade das relações
econômicas, técnicas e culturais se toma cada vez maior. Mas
são também escassas do ponto-de-vista subjetivo porque nem
a atividade especializada em alto grau desde o operário até
o diretor da fábrica, nem o consumo e a ocupação padroni­
zada do tempo livre, nem as opiniões prontas e acabadas,
em grande número e contraditórias unias com as outras, ofe­
recidas pela imprensa o educam com o objetivo de obter
uma visão do conjunto do mundo em que vive. O caracte­
rístico para o homem da massa da idade industrial é a de­
pendência e a segurança, e isto em todas as camadas, tanto
as ilustradas como as incultas, o operário tanto quanto o
diretor ou o especialista técnico, o cientista como o político,
o rico tanto quanto o pobre. Contudo, essa dependência
não é compatível com a incorruptibilidade que, no século
XVIII, Rousseau atribuía ao “povo” e Marx, depois, ao “ pro­
letariado” . Quanto a isto não pode haver a menor dúvida.
Naturalmente, é possível definir conceitos de maneira
arbitrária. Contudo, se “ democracia” conservasse seu sentido
antigo, o sentido de “ governo dos governados independentes”
que teve na polis grega, nas cidades italianas do fim da
Idade Média, na sociedade puritana da Inglaterra e da Amé­
rica nos séculos XVII e XVIII, como vimos anteriormente,
então as massas da idade industrial não seriam constituídas
de homens tão independentes em sua compreensão e caráter
que pudessem governar de fato a si mesmos. Eles nem
mesmo podem ter uma compreensão suficiente a Tespeito
disso, pois lhes falta o conhecimento, e a chamada “ educação
cívica” produz Tesultados deploráveis. Tampouco estão pre­
parados para isso por seu trabalho inteiramente dependente
e por seu consumo igualmente dependente. É assim que
homens de visão tão larga como Gaetano Mosca e Max
Weber, entre outros, viram que hoje se trata não de confiar
às massas, em eleições com voto universal e igual, as decisões
políticas que devem ser tomadas, e sim de formar minorias
como elites políticas, pelas quais o govemo poderia ser con­
trolado de tal forma que sua atividade não derive para o
A Integração P o l ít i c a das M assas na A t u a l id a d e 351

arbítrio. Também Lênin, por exemplo, substituiu a opinião


política de Marx sobre o proletariado como detentor da re­
volução pela doutrina do partido como elite ou vanguarda
da revolução em caráter substitutivo ou por representação.
Em realidade, isso é tão evidente por si mesmo que só pode
ser posto em dúvida no interesse do domínio de poderes
anônimos que exerçam uma influência incontrolável sobre as
massas só aparentemente livres nas eleições universais e de
voto igual.
A monarquia constitucional ou a democracia liberal do
século XIX se baseava no parlamento. Nos parlamentos
sempre existiram partidos, os Tories e Whigs na Inglaterra,
na Alemanha sobretudo os partidos de concepção do mundo,
na Itália e na França os progressistas, conservadores, liberais
e outros. De início, também dentro dos partidos, o par­
lamentar individual — quer tivesse nascimento inferior ou
superior, fosse rico ou pobre, tivesse origem em camadas
ilustradas ou incultas — era uma personalidade indepen­
dente. Ainda não era o funcionário de seu partido, sofren­
do uma imposição quase incondicional no que diz respeito
à votação de questões fundamentais. A Constituição de
Weimar do império alemão, de 1919, ainda incluía uma cláu­
sula que dizia: “ O deputado é independente de seus eleito­
res e não está obrigado a seguir indicações” (de partidos,
associações de classe, credos, financiadores ou coisa que o
valha) (Cari Schmitt, Verfassungslehre [Teoria das Consti­
tuições], 1928, pp. 204 e ss.). Em outras constituições ocor­
ria a mesma coisa. Cada deputado tinha que procurar em
sua própria consciência, em véz de voltar os olhos para o
povo, e decidir independentemente o que, segundo sua opinião,
era melhor para todo o povo que ele representava. Com
isso, e na medida em que cada deputado realmente era in­
dependente, o parlamento do século XIX se aproximava, na
realidade, apesar da censura que lhe fora feita por Rous-
seau, de uma simples representação do povo, da democracia
grega no sentido de autogoverno dos governados.
Há uma frase penetrante de Oswald Spengler sobre o
limite que nenhuma dominação partidária deve ultrapassar
se não quiser destruir inevitavelmente a si mesma. Diz Spen­
gler: “ Faz parte do tato para a política interna de uma ca­
mada dominante, quer pertença ao primeiro ou ao quarto
352 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

estado, tratar de tal forma as contradições permanentes que


as forças e pensamentos da Nação não sejam comproaietidos
pela luta partidária e a tradição nacional não apareça como
ultima ratio” (razão ou princípio supremo). Este limite foi
ultrapassado pelos partidos europeus em alguns casos já an­
tes da Primeira Guerra Mundial e, depois dela, de forma
incontrolável. E isto tanto em política interna como em
política externa. Na política interna, os deputados se trans­
formaram em simples representantes de interesses de de­
terminados grupos* empregados.e empregadores, camponeses
e proprietários de terras, artesãos, funcionários, inquilinos
e proprietários de casas, católicos, protestantes, ateus, etc.
Os interesses de grupos se contrapõem sempre e, com isso,
qualquer compromisso parlamentar se transforma em sim­
ples trégua provisória no bellum ofnnium contra omnes (guer­
ra de todos contra todos) de Hobbes. Neste conflito, por
exemplo, foi destruída a República de Weimar, na Alema­
nha, em 1932. Por mais que hoje não o queiram aceitar, o
fato é que os partidos que pela última vez foram eleitos de
forma inteiramente livre e secreta entregaram, em 1933, pela
famosa “ lei de delegação de poderes” , o poder total a Hitler
para resolvei esse conflito. De forma semelhante, De Gaulle
chegou ao poder na França em 1958. Do ponto-de-vista ex­
terno, o velho parlamentarismo será incapaz de representar
o povo quando nele tiverem assento partidos que aceitam
ordens de potências extra-estatais ou estrangeiras. Também
isto ocorreu e ainda ocorre nas democracias parlamentares.
Assim, fica evidentemente demonstrada sua decomposição
e corruptibilidade enquanto detentor da vontade coletiva,
quer se condene isto ou não.
Todas as quatro ideologias do século X X — fascismo,
nacional-socialismo, comunismo e também o industrialismo
americano — se diferenciam em pontos fundamentais do par­
lamentarismo clássico do século XIX na Europa. Onde este
parlamentarismo antigo ainda parece existir hoje em dia,
só é possível por apoiar-se em uma das três potências domi­
nantes da atualidade: América, Rússia e China. O fascismo
e o nacional-socialismo sucumbiram, provavelmente para
sempre. Trata-se, então, não somente de determinar as ba­
ses de seu aparecimento, como também as de sua queda.
Por isso, eu gostaria de começar por eles, apesar de que o
industrialismo americano e o comunismo russo sejam mais
A I ntegração P o l ít ic a da s M assas Na A t u a l id a d e 353

velhos. Nesta análise, espero que o leitor me permita evitar,


sempre que possível, expressões hoje muito em voga como
“ progresso” , “ liberdade” , “ totalitarismo” e outras semelhan­
tes. Elas contribuem muito pouco para a compreensão dos
contextos reais.

Mussolini foi na itália um homem do poder. Ele veio


do socialismo marxista e, mesmo, de seu setor revolucioná­
rio. Não se pode realmente dizer que ele tenha fundado o
Estado fascista segundo um programa ou uma idéia política.
Ou seja, o próprio programa partidário do fascismo em 1919,
por exemplo, contradiz em pontos fundamentais — monar­
quia e república, ateísmo e igreja, direito de voto, armamen­
tos, confisco de propriedades, dissolução da nobreza e mui­
tos outros — a realidade posterior. Ao contrário, ele con­
seguia adaptar-se muito bem à situação da época, podia im­
provisar e não continha muitos preconceitos. Dez anos de­
pois do programa partidário de 1919 e sete anos depois da
tomada do poder, em 1929, afirmou ele em um discurso re­
trospectivo sobre a criação do fascismo: “ O Estado, como o
fascismo o encara e concretiza, é uma realidade espiritual e
ética, pois incorpora a organização política jurídica e eco­
nômica, e esta organização é, em seu nascimento e desen­
volvimento, uma expressão do espírito. O Estado é fiador
da segurança interna e externa, mas é também guardião e
portador do espírito do povo, do modo em que se formou
no curso dos séculos na língua, nos costumes e na crença.
. . . É o Estado que, a partir da curta duração da vida indi­
vidual, exprime a consciência imanente da Nação. É o Es­
tado que incute nos cidadãos as virtudes cívicas, que lhes
dá a consciência de sua missão, que os conduz à unidade.
Equilibra os seus interesses na justiça. Transmite as con­
quistas obtidas nas artes, no direito, na comunidade humana.
Eleva o homem até a mais alta expressão humana do poder.
Transmite aos séculos os nomes daqueles que morreram por
sua integridade ou por suas leis. Mostra como exemplo e
indica como modelo para as próximas gerações os coman­
dantes que o engrandeceram e os gênios que fizeram bri­
lhar a sua glória” .
Evidentemente, não se trata aqui de determinar histo­
ricamente quão grande ou quão pequena foi a herança do­
354 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

lorosa da concretização daquilo que foi cantado nesse hino


durante os 23 anos de Estado fascista na Itália. Trata-se,
isto sim, da própria ideologia e, em seguida, de seu signifi­
cado histórico-mundial.
E aí é claro que o gume está apontado contra o libera­
lismo, o capitalismo e o comunismo.
Tanto o capitalismo quanto o comunismo são, em última
análise, antiestatais. O capitalismo espera, desde Locke,
Adam Smith e Ricardo a salvação da economia pela ação
da lei baseada no equilíbrio quase que mecânico dos inte­
resses individuais de cada um. Para o comunismo, o Estado
tem apenas o significado de um poder defensor do predo­
mínio e da ambição de lucro das classes dominantes de pro­
prietários. Ele deve ser abolido como o objetivo final da
sociedade sem classes. O comunismo quer, afinal de contas,
ocupar “cada um segundo sua capacidade” e remunerar cada
um “ segundo suas necessidades” sem opressão por parte do
Estado (MaTX, Kritik der Gothaer Program [Critica do Pro­
grama de G ota]). Aqui, pelo contrário, o Estado constitui
um objetivo em si mesmo. O que representa isto enquanto
idéia política?
Maquiavel também era italiano. E não estaremos come­
tendo qualquer erro se estabelecermos analogia entre os ob­
jetivos do fascismo indicados na citação anterior com as ex­
pressões de Maquiavel fortezza dei corpo e grandezza dei
animo. Mas, não de cada: um, e sim de grupos solidamente
organizados. Vimos anteriormente que Maquiavel também
pretendia desviar o indivíduo como tal de seus interesses par­
ticulares, dando-lhe objetivos bem mais amplos que iam mui­
to além de seu egoísmo. Esses objetivos deveriam unir a
todos, ensinando-os a incluir-se ativamente no grupo a que
pertenciam. Maquiavel assimilou esses objetivos do renas­
cimento em função de seus estudos humanísticos, sobretudo
dos escritores romanos. Nesta época a Itália ainda não era
um Estado nacional, só conseguiria sua unidade no século
XIX. Também Mussolini iria procurar no faseio, o feixe dos
litores, símbolo do poder e da soberania do antigo império
romano, o nome e o símbolo de seu partido e de seu Estado.
O caráter moderno, acima da concepção de Maquiavel, desta
organização consistiu, então, exatamente em que o Estado
como tal foi superposto claramente à economia, diversamente
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas na A t u a l id a d e 355

do que ocorre com o capitalismo e o comunismo. Era justa­


mente a economia, em primeiro lugar, que não devia ser
livre, e, em seguida, a imprensa, a formação da opinião pú­
blica, a cultura e a ciência, na medida em que, no liberalismo
dependem em grande escala da economia. Somente a partir
deste ponto-de-vista é que podemos apreciar seriamente o
fenômeno do '“ fascismo'’ dentro do quadro da ideologia his-
tórico-mundial, e somente assim podemos criticá-lo com
êxito. O fato de que (e tom o) o Estado depois se tornou
corporativo e, da mesma forma que no comunismo, foi cons-r
truído sob controle de um partido e dominado autoritaria­
mente por um homem — juntamente com todos os seus males
— é apenas uma conseqüência e não mais interessa aqui.
Decisiva, do ponto-de-vista histórico mundial, é a contra­
dição com o liberalismo, que Mussolini freqüentemente de­
nominava “ cadáver em decomposição” . Ele nunca mudou
seu julgamento. Como se sabe, ele foi um discípulo de Pa-
reto e admirador de Nietzsche. Mais decisiva, contudo, pa­
rece ter sido a influência que sofreu do francês Georges* So-
rel, sobretudo de seu livro Réflexions sur la violence, de
1908. Sorel, da mesma forma que Saint-Simon, era engenhei­
ro e literato sem opinião definida, mas decidido a libertar o
progresso técnico, compreendido de modo bem mais intui­
tivo e orgânico do que propriamente racional, da decadên­
cia burguesa da Europa. Nem mesmo seria importante in­
vestigar como Mussolini pôde ligar a indicação de Sorel a
propósito da elite operária com a doutrina de Pareto sobre
a circulação das elites, fundamentando aí a dominação de
seu partido político. Mais importante é uma comparação com
tempos muito anteriores que nem Sorel nem Mussolini co­
nheceram.
Em toda a China, pouco antes da instauração do império
da dinastia de Tsin Shi Huang-Ti, os legalistas Han Tei Tse
e Li Tse opuseram ao Estado confuciano edificado a doutrina
da “punição rigorosa” e a utilização autoritária do poder do
Estado para o bem do povo. O mesmo ocorre na índia,
onde a tradição atribui ao Ministro Chandragupta I, o brâ­
mane Kautilya, a supressão da “ regra do peixe” , da luta de
todos contra todos, que era o preceito político decisivo. Cons­
ta que ele realizou, da mesma forma que na China, uma
administração, rigidamente centralizada, carregada de des­
356 H istó ria das Idéias S ociais

confiança e controlando permanentemente o povo dependen­


te. Chandragupta I foi o fundador da dinastia Mauiya, re­
presentando na índia antiga o mesmo papel de primeiro
grande unificador, desempenhado na China antiga por Shi
Huang Ti. É possível estabelecer analogias entre as Réfle-
xions de Sorel e a literatura legalista da China ou os textos
Kautilya da índia, da mesma forma que a instauração do
Estado fascista por Mussolini é um processo semelhante à fun­
dação dos impérios dos Tsi ou de Chandragupta. É claro
que a época tecnificada do Ocidente não corresponde intei­
ramente às formas finais das civilizações agrícolas da China
e índia. No entanto, ela coincide, em seu início, com o fim
da civilização ainda inteiramente agrícola. Esta civilização
agrária ocidental começou na Europa aproximadamente com
Carlos Magno e terminou entre os séculos XIX e XX. Mus­
solini, a princípio, fez algo muito semelhante ao que fize­
ram todos os fundadores de um poder dominante rigoroso e
definitivo depois de uma “ época de Estados em luta” : Shi
Huang Ti na China, Chandragupta na Índia, Alexandre
na Grécia, César em Roma, Napoleão na Revolução Francesa.
Simplesmente restabeleceu a ordem de forma autoritária.
Também em relação aos seus antecessores isto não foi possí­
vel sem crueldade, injustiça e opressão. Os dos últimos pri­
meiros-ministros ânteriores ao fascismo, Francesco Nitti, anti­
fascista e ardente defensor do liberalismo, escreveu certa vez,
após ter aplaudido entusiasticamente as idéias da Revolução
Francesa, que hoje só passamos por cima daquele terror “por­
que ele já está, historicamente, muito distante” ( Bolchevis-
mus, Faschismus und Democratie, 1926). Não queremos es­
quecer o terror do fascismo, tanto quanto não os do comunis­
mo e do nacional-socialismo, ou a crueldade, a frieza e a
pobreza espiritual do industrialismo americano. Mas, histo­
ricamente, não é certo atribuí-lo de forma moral a um ho­
mem e seus seguidores e contentar-se com a simples cons­
ternação a esse respeito. A analogia bastante exata com
a China e a índia antigas e com a Revolução Francesa nos
mostra que tal forma de dominação em determinadas cir­
cunstâncias históricas bem definidas sempre se repetirá. Tra-
ta-se de duas coisas distintas, se determinadas pessoas em­
preendem determinadas ações em determinadas situações
históricas, ou se estas ações têm um fundamento não apenas
A I n t e g r a ç ã o P o l í t i c a das M a ssa s n a A t u a lid a d e 357

pessoal como também histórico. O juiz sempre condenará o


criminoso porque pressupõe seu livre arbítrio de fazer ou não
fazer, porque tem que pressupor isso. O psicólogo que ti­
vesse conhecimento completo sobre as disposições, educação
e ambiente do autor do crime não mais poderia contar com
o livre arbítrio. Desse modo, aqui só poderemos tratar das
conexões históricas e, portanto, definidas, entre as doutrinas
e as ações.
O fascismo não sucumbiu diante de dificuldades inter­
nas nem, tampouco, diante de exageros de política externa.
A guerra colonial de Mussolini foi encerrada com êxito em
um momento favorável, a resistência interna não era perigosa,
A ditadura italiana foi destroçada muito mais porque teve
que se ligar ao Estado nacional-socialista de Hitler e, por
isso, talvez mesmo em grande parte a contragosto, integrar-se
em sua tentativa fracassada de instauração de um império
mundial. É claro, contudo, que mesmo sem isso ela não
teria qualquer futuro. Da mesma forma que o industrialismo
desenvolvido por meio da técnica obrigou os impérios agrá­
rios russo e chinês a industria!izar-se violentamente como um
imperativo de autoconservação, assim também qualquer es-
tatismo tem sua vida limitada, á longo prazo. A industria­
lização do mundo tende, por meio da técnica militar, ao
domínio mundial de um império unificado, exatamente da
mesma forma que os grandes impérios da China, Índia e do
Mediterrâneo, na fase final dessas civilizações, só encontra­
ram um limite espacial na técnica do exercício do poder da
época.

Hitler, ao voltar para casa no fim da Primeira Guerra


Mundial, fundou seu partido sem dúvida alguma por motivos
semelhantes aos de Mussolini, mas de início sem receber dele
qualquer influência. Mais tarde, naturalmente, ele se orien­
tou pelo modelo italiano que conseguiu êxito antes. Contudo,
depois que fracassaram a marcha insurrecional de Munique,
em 1923, e as tentativas de golpe de Estado após os primei­
ros distúrbios que se sucederam ao fim da guerra, ele pre­
cisou de dez anos para atingir o mesmo objetivo. O fato
de que isso. lhe tenha sido possível em época bem mais
tardia mostra, de início, a inevitabilidade histórica daquele
caminho. Ainda podia pensar-se, em relação à “ marcha a
358 H istó ria das I déias S ociais

Roma” decidida com audácia e rapidez por Mussolini, num


simples e casual assalto ao parlamentarismo liberal, como
de fato o fez F. Nitti em 1925. Em relação à tomada do
poder por Hitler, em 1933, dez anos depois de seu primeiro
golpe fracassado, isso já não é possível.
Os motivos mais próximos para o sucesso, de Hitler em
1933 são conhecidos, embora hoje sejam esquecidos ou man­
tidos em segundo plano com indisfarçável contentamento.
É evidente que a Alemanha, de todos òs países contendores,
foi o que teve que sentir mais rudemente as conseqüências
da guerra, depois da derrota em 1918. E, nos primeiros cinco
anos, de 1918 a 1923, sua situação política e econômica se
tomou cada vez pior, como Rathenau previra com exatidão.
Depois disso, entretanto, as reparações impostas pelos vence­
dores obrigaram a uma industrialização de tipo americano e
até com capitais trazidos dos Estados Unidos e da França,
principalmente através da Inglaterra. Um professor de Eco­
nomia da época descreveu este fato da seguinte maneira:
“ Em lugar do individualismo [econômico] antes reinante
[na Alemanha], no qual um grande número de capitalistas
pequenos e médios administravam seu p T Ó p r io capital, cresce
de modo excepcionalmente rápido a série considerável de
grandes consórcios privados. Eles monopolizaram a parte
restante da economia; tanto os produtores como os consumi­
dores, em grande escala, foram estimulados pelos dirigentes
(socialistas) do Estado, porque desejavam (segundo a teoria
expressa de Marx) ser os precursores da socialização pos­
terior, sendo finalmente apoiados por eles em toda a linha.
Somente alguns poucos dirigentes de empresas e banqueiros
situados no cume desses consórcios gigantescos tinham idéia
clara de que as conseqüências perigosas da guerra ainda não
tinham sido ultrapassadas de modo algum, compreendiam o
que representava para a economia da Alemanha, a longo
prazo, o peso das reparações” (Ch. Eckert, Staat und Wir-
schaft [Estado e Economia], Weltwirtschaftliches Archiv
[Arquivos de Economia Mundial], 1932, p. 374). A demo­
cracia parlamentar reconstituída, entretanto, não pôde sal­
var-se, de início com as constantes e súbitas coalizões de
acaso ou de interesse, e, mais tarde, com as medidas cons­
titucionais da ditadura presidencial do Estado de emergência
e com o apoio da população trabalhadora.
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu al id ad e 359

De 1928 a 1932 aumentou o número dos que se torna­


ram desempregados em virtude da racionalização técnica im­
posta, até atingir cifras incontroláveis. O mundo ocidental,
contudo, não estava pronto a ajudar, pelo menos de maneira
suficiente ou a tempo. Reinava ainda entre os Estados a
“ regra do peixe” , como na Índia antiga, a “ época dos Estados
em luta” , como se dizia na China. Em 1933, a única alter­
nativa política real para a Alemanha era Hitler ou o comu­
nismo. Hoje, somente os profetas post festum podem ter
dúvidas em relação a esse fato. O comunismo, entretanto,
já era naquela época a ditadura de Stalin, perfeitamente
conhecida desde muito tempo. Hitler era, no essencial, a
incógnita, ou o grande desconhecido. Ao mesmo tempo, con­
tudo, ele significava o legítimo imperialismo. Enquanto na
Itália fascista — como mais tarde ficaria claro — esta pa­
lavra permaneceu apenas uma palavra, e Mussolini deve ter
sabido perfeitamente, na realidade, que a partir de suas bases
econômicas e nacionais nunca poderia apresentar a pretensão
ao domínio mundial, mas apenas à “ ditadura em um só país” ,
na melhor das hipóteses com colônias legítimas como a Abis­
sínia, na Alemanha — como a Segunda Guerra Mundial o
demonstrou — o imperialismo do domínio mundial era um
objetivo que poderia ser de fato atingido, por mais teme­
rário que fosse. Isso pode ser afirmado a posteriori com*
tanto maior clareza quanto se sabe que todas as armas mo­
dernas se baseiam em descobertas alemãs. Assim, de início,
Hitler pode ser considerado, analogamente a Mussolini, como
o homem que queria, como Shi Huang Ti ou Chandragupta,
pôr fim à “ regra do peixe” internamente e à “ época dos Es­
tados em luta” externamente. Isto não correspondia nem à
sua concepção nem à sua personalidade, e sim à determina­
ção da própria situação histórica. Se ele não o tivesse feitò,
então outro teria que fazê-lo. Contudo, não havia qualquer
outro. Somente durante a guerra, pouco antes da derrocada,
é que, como se sabe, seus partidários (sem dúvida alguma
com sua aprovação) começaram a fazer a comparação, sur­
preendente na ideologia nacional-socialista, mas correta, com
Napoleão. Naturalmente, o reconhecimento não atingiu, para
trás, até a Índia e a China. Seria historicamente ocioso in­
dagar o que poderia ter ocorrido se Hitler não tivesse sido
Hitler, um aventureiro demoníaco, mas, ao mesmo tempo,
360 H istó ria das I déias S ociais

tivesse sido um homem de grande visão humana e politica­


mente inteligente.
Sabe-se que a formação política de Hitler foi muito mais
pobre do que, por exemplo, a de Lênin ou de Musso-
lini. Como se sabe, entre os filósofos foi Schopenhauer e não
Nietzsche que ele conheceu e apreciou ( Tischreden [Sau­
dações], editado por Gerhaxd Ritter). Apesar disso, seria
uma visão inteiramente equivocada dos contextos históricos
descrever a ideologia nacional-socialista como simples tolice,
o que vem ocorrendo com freqüência a partir de 1945. É
preciso aqui fazer comparações inteiramente diversas e, se
necessário, fazer como Kant disse certa vez, isto é, “ compre­
ender melhor do que ele próprio: compreendeu a si mesmo” ,
um pensamento combatido. É este é o único sentido da com­
paração feita com Lênin. Teremos que considerar o bolche-
vismo russo em separado. Não por sua genialidade, e sim
pela circunstância fatal de que Lênin, lidando desde sua
juventude com o pensamento de Marx, teve que introduzir
uma transformação enorme, com o novo poder, num império
quase que inteiramente agrícola, ou seja, do período agrí­
cola para o industrialismo. Pode lamentar-se isso, romantica­
mente, ou saudar o evento por amor à tecnificação. É in­
dubitável que a Rússia, como Estado camponês, estaria po­
liticamente perdida na era da técnica. Isso ficou claramente
demonstrado pelo destino da China e do Japão, que foram
violentamente transformados em regiões fornecedoras de ma­
térias-primas e consumidoras de produtos acabados. A Rús­
sia, como povo e como Estado, só poderia sobreviver por
meio de sua industrialização. Contudo, como nação indus­
trializada, tinha, então, que aspirar imediatamente ao domí­
nio mundial, por sua extensão e situação geográfica. En­
quanto Lênin, já em 1917, abria o caminho do Estado in­
dustrial moderno para um povo camponês, Hitler, em 1933,
quis, de início, fazer com que o povo que tinha sido, ao lado
da América, o mais industrializado do mundo, entre 1923
e 1930, voltasse a ser um povo camponês. Não se trata aqui
de disparates isolados, mas da visão desse contexto.
A vergonhosa teoria racial nacional-socialista, como ideo­
logia publicitária, foi uma construção elaborada a partir de
fatores muito distintos. De início, introduziu-se nela um
anti-semitismo popularesco, como sempre existiu em todos os
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu a l id a d e 361

países, não somente em Viena, onde Hitler cresceu, como


também, por exemplo, na América de Henry Ford, da in­
dústria automobilística, e em muitos outros. Maior peso espi­
ritual era apresentado pelo legado mental do romantismo
alemão ou pelas doutrinas do nobre francês Gobineau. Am­
bos levavam de volta às origens da civilização agrícola eu­
ropéia, que então chegava ao fim. Mas não levavam apenas
para antes da nòva era da técnica, então em seus primórdios
e agora, de fato, em seu ponto culminante. Encontravam-se
em total oposição tanto à economia iitilitarista capitalista dos
anglo-americanos quanto às novas formas dè economia russo-
-comunistas. Em contradição com o capitalismo da concep­
ção de Locke, Adam Smith e Ricardo, a economia não devia
ser livre, nem o Estado devia ser um objetivo em si mesmo
como para Maquiavel e no fascismo, e sim o povo devia pos­
suir, como formação orgânica que era, um espaço vital que
lhe proporcionasse, ao lado de sua indústria, em primeiro
lugar uma existência agrícola em grandes extensões da terra.
Na realidade, isto correspondia muito mais aos sonhos dos
cristãos de camponeses russos analfabetos que ainda eram,
na verdade, “ fiéis à terra” sob o domínio corrupto dos gran­
des proprietários tzaristas. Um sonho que Lênin e Stalin
destruíram violentamente sem vacilar diante de enormes sa­
crifícios humanos, em benefício da industrialização.
Em um império agrícola, contudo, a concepção de que
o homem é determinado pela he- viça natural de sua raça
não é falsa nem inútil. Naturalmente, a hereditariedade não
é tudo. Mas é um fator que tem certo peso. Existem raças
humanas da mesma forma que existem raças de animais e
nenhum zoólogo irá negar isto. Evidentemente, é preciso
levar em conta duas coisas:
As plantas e animais domésticos são aprimorados pelo
homem como raças com um objetivo determinado: a galinha
em função do número de ovos que põe, os porcos em função
da riqueza em banha ou carne, o cavalo como animal de
tração ou de sela, o cão como guarda ou animal de caça.
O homem constitui um objetivo em si mesmo e não se deve
educá-lo ou criá-lo com objetivos inferiores. Contudo, a
própria natureza criou os povos das distintas regiões e zonas
para a vida nessas regiões e zonas por meio da mutação e
seleção naturais. Isto e as formas de vida e de relações em
362 H istó ria das I déias S ociais

grande parte condicionadas constituem o fator determinante


na formação de raças humanas na época sedentária e agrí­
cola. Evidentemente, uma miscigenação das Taças não so­
mente é possível como, de fato, tem ocorrido sempre na his­
tória. Praticamente em lugar algum existe hoje uma raça
realmente pura. Mas essa miscigenação é sempre proble­
mática. Em primeiro lugar, perturba o tipo de conteúdo,
a adaptação natural à vida nas Tegiões ainda muito diversas
e, portanto, com exigências também diversas, da terra. Con­
funde os impulsos naturais do comportamento e do senti­
mento em sua concordância com a natureza e a forma de
vida. Portanto, na medida em que o mundo industrial não
confunde todas essas diferenças e, sobretudo, na medida em
que o homem, como ser natural, como ser relacionado à
natureza, e não um ser padronizado artificialmente pelo auto­
matismo da indústria, leva uma vida significativa, a conside­
ração das diferenças raciais não é insignificante. O fato de
que um povo tão eminentemente agrícola como o chinês se
tenha desenvolvido a partir de diferentes raças e tenha sem­
pre assimilado outras raças estranhas não contradiz essa opi­
nião. Em seus 3.000 anos de história, ele conservou, apesar
disso, um tipo humano bastante homogêneo, não somente
em decorrência da educação como também pelo acasalamento
e a seleção.
Por outro lado, algo inteiramente diverso é a doutrina
Tacial enquanto concepção do mundo. Aí ela sucumbe a uma
crítica penetrante ou, pelo menos, a uma restrição séria. En­
quanto homem, o homem não é um ser tão exclusivamente
natural como os animais e as plantas. Está obrigado, acima
de sua natureza, à moralidade e eticidade. E as exigências
rigorosas da moralidade são colocadas a todo homem como
tal, independentemente da raça a que ele pertence ser pura
ou miscigenada, independentemente do fato de seus impulsos
naturais facilitarem ou dificultarem o cumprimento dessas
exigências. Sabe-se perfeitamente que algumas pessoas, por
suas disposições, destino ou ambiente, têm a vida mais fácil,
enquanto outras levam vida difícil. Nem o mais feliz nem
o menos são, por isso mesmo, moralmente superiores um
ao outro. Em relação a isso, o que decide muito mais é a
própria vontade de cada um. “ Podes e, portanto, deves” ,
disse Kant. Ninguém é capaz de saber, por si mesmo ou por
meio de outros, se até que ponto teve êxito a este respeito.
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu alid ad e 363

Só Deus — segundo a doutrina cristã — vê o interior do


coração humana A vontade não é natural nem herdada,
nem mesmo é condicionada pela raça ou pela miscigenação
racial. Por isso, uma análise do homem exclusivamente do
ponto-cie-vista natural ou de raça o rebaixa ao nível inferior
dos animais. E aqui reside o limite ultrapassado de forma
tão fatal pela ideologia do nacional-socialismo e que lhe
facilitou o caminho no sentido do crime contra a humanidade.
Por outro lado, o homem permanece, mesmo em sua
qualidade de ser moral, sendo parte da natureza. Ele é tão
inconcebível sem corpo como sem as qualidades inatas, her­
dadas e condicionadas por sua raça ou miscigenação racial.
Quando analisarmos o industrialismo americano, entraremos
em contato com uma “concepção do mundo” não menos
dogmática e unilateral que transforma o homem em um nada
volitivo e espiritual, cujo legado é indiferente e que pode
ser formado, pela educação e pela experiência, até tomar-se
o indivíduo que se quiser: da mesma forma que a Química
moderna “ fabrica” e “ forma” novos materiais artificiais a
partir de determinadas matérias-primas. A comparação não
representa apenas uma imagem. Contudo, constitui um pon­
to de importância decisiva o fato de que na América a varie­
dade secularizada da crença cristã mais enrijecida e concen­
trada na vontade é o puritanismo. Como religião, o puri-
tanismo é de um valor humano inestimável, quer se creia ou
não em dogmática. Existem, igualmente, várias outras for­
mas de crenças cristãs e outras religiões. Como fundo secula-
rizado e ideológico do industrialismo, podem elas assumir
formas não menos fatais e destruidoras do que o seu contrá­
rio, a teoria racial não crítica enquanto concepção do mundo.
Finalmente, o último aspecto do nacional-socialismo é
representado pela elevação incondicional da germanidade
ou da chamada “ raça nórdica” — com seu significado algo
ampliado em função da doutrina racial — em contraposição
a outras. Por si só, isso não está fundamentado diretamente
na teoria racial. Não se pode dizer, tampouco, que uma
raça pesada de cavalos de tração seja “ melhor” ou “ pior”
do que um puro-sangue leve de equitação. Em seu ambiente
próprio, toda e qualquer raça — inclusive humana — se adap­
ta à natureza e está de acordo com ela, a partir do momento
em que dela surgiu. O nacionalismo alemão teve como fonte
36 4 H istó ria das I déias S ociais

imediata a total subestimação da germanidade na primeira


década depois da Primeira Guerra Mundial, dentro e fora
da Alemanha. Por outro lado, esse nacionalismo não se limi­
ta à Alemanha. Os chineses encararam o seu Estado durante
milênios como o “ império central”, e ainda hoje o fazem.
Os americanos só apreciam um não-americano na medida
em que se aproxima de seu ideal de vida higiênica. Os
franceses têm sua gloire e os italianos sua italianitá. A In­
glaterra, em seu hino nacional, reina sobre todos os mares
do mundo, de uma forma que, no fundamental, não difere
daquela pela qual os alemães colocavam a “ Alemanha, Ale­
manha acima de tudo” . O reconhecimento não invejoso de
outros povos ou pessoas é, sem dúvida alguma, uma virtude.
Contudo, raramente ela é encontrada, e, quando isto ocorre,
certamente não em relação a todo o povo. É claro que os
alemães, como povo de antiga civilização, não têm porque
subestimar-se. Por isso mesmo, poderiam estar em condições
de reconhecer as conquistas e a forma de vida de povos es­
tranhos sem preconceitos e, apesar disso, diferenciar-se deles.
Portanto, apesar de que a verdadeira conseqüência da
concepção do mundo do nacional-socialismo fosse um império
de camponeses livres e independentes com sua cultura pró­
pria, naturalmente limitada e fechada dentro de si mesmo,
de modo análogo a várias civilizações anteriores, Hitler, po­
liticamente, teve que fortalecer o processo de industrializa­
ção e, ao mesmo tempo, entrar pelo caminho do imperialismo.
E isto porque tal era necessário ao aparelhamento do país na
era industrial. Lênin ou Mao Tsé Tung fizeram o mesmo.
A América do Norte só não precisou fazê-lo porque, mesmo
sem isso, já era um continente com bastante terra, matérias-
-primas e uma indústria desenvolvida, protegida por oceanos.
Sem guerra não era possível conseguir terras para a utopia
de Hitler. Toda propaganda política é falaciosa, pois tem
que colocar tudo em função de um objetivo parcial. Con­
tudo, em contraposição a várias outras ideologias de nosso
século, o nacional-socalismo possuía um germe imanente de
contradição desde o seu início. Essa contradição costuma pas­
sar despercebida em relação a coisas bem menos importantes.
Trata-se da contradição realmente trágica entre o esforço
romântico no sentido de voltar à origem agrária do Ocidente,
na forma em que se encontra nas fases finais de civilizações
antigas (por exemplo, na China dos legalistas, de Shi Huang
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu alid ad e 365

Ti e da dinastia Hán), e a necessidade de fomentar o indus-


trialismo e o tecnicismo de uma época nova, únicos capazes
de conseguir, por meio da guerra, o domínio agrário mun­
dial, mas que, ao mesmo tempo, viria destruir esse objetivo,
por mais que fosse entendido como um meio para atingi-lo.
Confesso que essa contradição não se mostrou claramente
durante o curto tempo de poder de Hitler. Ainda hoj'e, não
foi devidamente compreendida pelo “ domínio do passado” ,
quer na Alemanha, quer em outra parte. Não obstante, eu
gostaria de apontar nela o fundamento para todas as desu­
manidades e crimes contra os que pensavam de forma di­
versa ou se ocupavam de outras coisas, cometidos durante
os 13 anos do chamado terceiro império (drittes Reich).
Sobretudo, o fundamento para os excessos surpreendente­
mente obstinados contra os judeus, dos quais Hitler não se
livrou. Desse modo, eles se transformaram, durante a Se­
gunda Guerra Mundial, em vítimas “ entre carrascos e calu­
niadores” , como o indica o nome de um livro de autor judeu.
Onde quer que exista uma contradição insolúvel e mesmo
desconhecida, ela freqüentemente leva a um comportamento
errado e desnecessário.
Sperigler disse certa vez que o campesinato é sempre
o mesmo em qualquer parte da terra, e que somente com
as cidades é que aparecem as diferenciações entre as civi­
lizações, mesmo no período agrícola. Isso só é verdade
em parte. O campesinato é, em todas as civilizações do pe­
ríodo agrícola, a base e fonte de energias dos povos, desde
o início até o fim. Quando, portanto, o nacional-socialismo
pretendia conservar de modo especial esse patrimônio, indu­
bitavelmente estava certo do ponto-de-vista de sua concepção
do mundo. Mesmo a língua, a arte e a literatura, o artesa­
nato, por mais que tudo isto seja produto das cidades, cres­
cem sobre aquela base. Não se pode proteger ou difundir
a cultura de um povo se não se parte daí. Por outro ladò,
a ciência, a técnica e a indústria não estão ligadas a um povo
determinado. É possível ensiná-las a qualquer povo, como
ocorre hoje em dia.
Portanto, havia sentido e fundamento na consideração
pelo nacional-socialismo da “ cultura alemã” e em sua ten­
tativa de opor-se a qualquer penetração estranha. Se isso
ainda é possível em épocas posteriores é outra questão. Con­
tudo, trata-se de evidente contra-senso a tentativa feita no
36 6 H istó ria das I déias S ociais

sentido de construir uma Física, técnica e indústria “ alemãs” .


É claro que pode ocorrer um número maior de descobertas
e invenções técnicas, científicas e industriais em um povo
do que em outro. Não obstante, no que se refere aos cri­
térios científicos, só pode haver a veracidade ou a falsidade,
segundo o conceito analítico da contradição e uma noção
falsificável de leis e teorias, e, no que se refere à técnica,
apenas o sucesso ou o insucesso, mas, de qualquer forma,
não pode haver nacionalismo em nenhum desses terrenos. Na
medida em que o nacional-socialismo pretendeu levar a ger-
manidade a esse domínio, ao mesmo tempo que não se deci­
dia, no terreno cultural, por uma conservação própria de seu
patrimônio, necessariamente perdeu uma série de personali­
dades que, então, lhe faltaram no campo de batalha ou, mes­
mo, começaram a trabalhar contra ele.
Além disso, existe ainda outro aspecto.
Neste mesmo livro, tratando de Hugo Grotius, já fiz a
seguinte citação de Nietzsche: “ Dizeis que é a boa causa
que santifica a guerra (isto é, a guerra decente, cavalheiresca
e humana, travada com vista a uma paz igualmente possível
para o adversário) que santifica a causa” . A história mun­
dial, evidentemente, não é um tribunal da história. Sempre
houve “ bons” e “ maus” vencedores, “ bons” e “ maus” venci­
dos, da mesma forma que sempre houve guerras. Apesar
disso, é possível dizer que os dois motivos para a derrota
da Alemanha na Segunda Guerra Mundial foram, primeiro,
as contradições histórico-mun diais internas da propaganda e
ideologia nacional-socialistas, que procurei indicar brevemente,
e, segundo, a guerra “ má” , isto é, desumana travada tanto
no interior do país contra seus adversários, como fora dele,
sobretudo na Rússia e na Europa meridional. Os erros e
diletantismos técnico-estratégicos, em comparação com isso,
ocupam um plano secundário.

Após a queda do fascismo na Itália e do nacional-socia­


lismo na Alemanha, permaneceram dois e, talvez, mais re­
centemente, três pretendentes ao domínio mundial: a Amé­
rica do Norte, a Rússia soviética e a China comunista. Mas,
uma vez que a China, sob a direção de Mao Tsé Tung
seguiu o mesmo caminho que a Rússia sob a direção de
Lênin, o caminho da industrialização forçada de um império'
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu alid ad e 367

bastante antigo e, por si mesmo, inteiramente agrícola, em


princípio pelos mesmos motivos de Lênin, aqui apenas re­
petidos, cujas pecularidades, contudo, não são bastante co­
nhecidas na Europa, pela falta de fontes suficientes, podemos
limitar-nos aqui a uma breve caracterização da ideologia do
comunismo russo e do industrialismo americano. Esse tema,
aliás, pertence mais à história do espírito do que propria­
mente à história política. Há apenas um ponto que precisa
ser previamente estabelecido: os problemas que a situação
política objetiva coloca hoje em dia para a formação das
idéias sociais possuem, do ponto-de-vista histórico-mundial,
duas fontes absolutamente heterogêneas. Uma é a instaura­
ção do domínio sobre o mundo acessível e conhecido, em
geral, hoje representado por toda a Terra, da maneira pela
qual e encontrado no final do curso histórico de tôda grande
civilização: na China antiga durante a época de Shi Huang
Ti e da dinastia Han, na índia durante o período de Chan-
dragupta Maurya, na cultura mediterrânica com Alexandre,
César e Augusto, no Ocidente, pela primeira vez e, a rigor,
ainda antes da era da técnica, com Napoleão. Essa instau­
ração do domínio mundial tem a missão histórica de pôr fim
à desordem, à “ guerra de todos contra todos” , à “ regra dos
peixes” . A segunda fonte, que a isto se relaciona e tudo
transforma, é a nova era industrial com as formas sociais que
lhe são próprias de massificação dos homens e da extensão
de seu domínio sobre toda a Terra. Tomamos rapidamente
contato com esses dois aspectos no início deste capítulo. Sò-
memte quando levamos em consideração esse fato é que
podemos formar um juízo sobrp o nosso próprio presente,
embora ainda de forma provisória e que exigirá, certamente,
correções durante as próximas gerações.
Este não é o lugar mais indicado para expor o nascimento
e a história do partido revolucionário russo desde meadõs
do século XIX até hoje. Isto já foi feito, entre outros, por
L. Shapiro ( The Communist Party of the Soviet Union, Lon­
dres, 1959). A nós interessam apenas alguns aspectos.
De início, em meados do século XIX, a antiga e tradicio­
nal comunidade de aldeia russa permaneceu, para as novas
idéias revolucionárias, em primeiro plano como símbolo tam­
bém do socialismo agrário (A. Herzen, Tschemyschewski, os
chamados Narodniki, “Amigos do Povo” , e Semlja i Wolja,
368 H istó ria das I déias S ociais

“Terra e Liberdade” ). A estes movimentos pertencia tam­


bém, de início, Plekhanov. Em seguida, ele foi o primeiro
a trazer o socialismo revolucionário de Marx e Engels para a
Rússia e a romper com as idéias antigas. Até hoje, no essen­
cial, a difícil adaptação teórica das teorias elaboradas por
Marx tendo em vista os Estados industriais da Europa —
Alemanha, França e Inglaterra — para a situação inteiramen­
te diversa da Rússia permanece, intelectualmente, sendo obra
sua. O próprio Marx, aliás, em seus últimos anos, considerou
isso, muito superiormente, como um “ salto mortal no sentido
do milênio anárquico-comunista” (carta a Sorge, em 5/11/
1880). Não havia na Rússia — analogamente à China entre
1920 e 1949 — um socialismo proletário significativo em
comparação com o número total de habitantes, sobre o qual
pudessem ser concretizadas as leis econômicas marxistas, nem
capitalismo e liberdade burguesa, nem mesmo desejava a
maioria absoluta do povo, Tepresentada pelos camponeses,
algo que não fosse a terra como propriedade particular ga­
rantida. Isso, aliás, permanece até hoje, ou seja, o Partido
Social-Democrata, depois Bolchevista e finalmente Comunista
se sente como uma pequena minoria conspirativa, que tem a
missão de levar a maioria absoluta no sentido daquilo que
segundo a teoria marxista é a determinação própria da hu­
manidade, mas que esta própria maioria não quer de modo
algum e que nem mesmo sabe o que é. Esta situação já
existia nas últimas décadas do século XIX. Portanto, já exis­
tia quando o jovem Lênin entrou no partido e começou a
sobressair rapidamente, por força de sua energia espiritual e
agudeza mental.
Lênin, e não Plekhanov, tomou-se, então o verdadeiro
fundador do partido. Como tal, ele permanece até hoje como
o modelo de todo aquéle que persegue o mesmo objetivo:
a revolução e a tomada do poder. Como ele próprio foi mui­
to mais um dirigente partidário do que um teórico, tomou
como modelo de idéia social marxista a direção totalmente
inescrupulosa do Partido Comunista na segunda metade do
século XIX por Marx contra Lassale, Bakunin, Weidling e
outros. Assim, éle imediatamente ridicularizou o movimento
sindical, que se preocupava em primeiro lugar com a me­
lhoria do nível de vida dos trabalhadores, tachando-o de
trade-unionismo e carente de consciência política. Apesar
disso, integrou-se, de início, no grupo de Plekhanov e Martov.
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu alid ad e 369

Esse grupo, por conseguinte, não fazia parte dos “ Amigos do


Povo” nem dos chamados “ marxistas legais” como Struve,
Bulgarov, Berdiaev, e outros. Era constituído por conspira-
radores legítimos. No segundo congresso do partido, em
1903, em Bruxelas, já conseguia — ainda que utilizando mé­
todos bastante condenáveis — a maioria para seu limitado
grupo de 24 seguidores contra Plekhanov e Martov. Deno­
minou este grupo, até muito depois da tomada do poder,
bolchevique (maioria), em contraposição aos mencheviques,
que, naquela época, ficaram em minoria contra os 24 na
votação final. Esse grupo de Lênin que, aliás, logo ficaria
novamente em minoria, mas que foi conservado por seu cria­
dor como grupo revolucionário absolutamente fechado mes­
mo dentro da social-democracia, finalmente se tornou vi­
torioso, durante a Primeira Guerra Mundial, em 1917, na luta
travada pelo poder e o domínio no império russo em decom­
posição. Nos 14 anos transcorridos até esse momento, Lênin
o formou e consolidou de todos os meios possíveis e sem
quaisquer reservas, como o instrumento de seu poder pessoal.
Qualquer outra pessoa teria sido destruída pelos golpes, de­
cepções e inimizades que ele teve que enfrentar no meio do
caminho, pela crueldade, as intrigas e artimanhas que fre­
qüentemente tinha que empregar contra seus próprios com­
panheiros. Mesmo o dinheiro que ele precisava para a con­
solidação de seu grupo dentro do partido e para o trabalho
revolucionário ilegal de seus agentes na Rússia, como se sabe,
teve que ser obtido às custas das famosas “ expropriações” ,
assaltos a bancos e agências postais, etc., meios esses moral­
mente condfenados com a maior energia dentro do próprio
partido. (Hoje em dia, aliás, esses métodos se tornaram cos­
tumeiros e evidentes por si mesmos, como o demonstra a
experiência da OAS na França e vários outros movimentos.)
Isso constitui uma escola para o futuro dono do poder^ de
forma bastante diversa da direção do partido por meio de
discursos como Hitler a desempenhou até 1933.
Quando, em 1917, o poder na Rússia foi tomado pelos
mesmos métodos e não somerite os antigos funcionários e
autoridades locais, o tzarismo e a oficialidade, como também
os outros grupos revolucionários burgueses e socialistas e os
mencheviques, a minoria dentro do partido (que, contudo,
na época possuía um número bem maior de partidários) foram
afastados, ficou apenas o Partido. Bolchevista como minoria

24
370 H istó r ia das I déias S ociais

ínfima dentro de um império imenso, ainda que vencido e


em decomposição. Para Lênin, isto constituiu um ponto de
partida ao qual estava acostumado desde os dias da juven­
tude e para o qual se tinha preparado durante anos de difi­
culdades. A forma de marxismo como filosofia social que ele
tinha concebido para isso era, no essencial, a idéia da indus­
trialização e tecnificação desse império. Era preciso conseguir
seu lugar no mundo tecnificado do Ocidente e, com isso,
afirmar sua própria existência. Quanto à problemática cam­
ponesa, Lênin só tinha podido encontrar soluções superficiais,
freqüentemente trocadas e de caráter meramente tático. Não
há duvida, entretanto, de que ele tinha claro em sua mente
um ponto: também a pequena classe dos operários industriais
da Rússia tinha que ser, de início, muito mais radicalmente
“ explorada” do que no capitalismo ocidental, uma vez que
a própria indústria tinha que ser construída ainda. O capital
necessário para isso, a “ mais-valia” , não podia, portanto, ser
desapropriado dos consórcios e “ capitalistas” , como nas con­
cepções sócio-econômicas do verdadeiro marxismo ele tinha
que ser primeiro gerado pelo trabalho dos operários e campo­
neses. A missão do pequeno Partido Bolchevista como elite
era, portanto, convencer os camponeses e operários do pa­
raíso utópico e infinitamente distante de seu próprio poder
e, ao mesmo tempo, obrigar todo o povo a suportar os enor­
mes sacrifícios que se colocavam no caminho desse futuro.
Esse foi o primeiro estágio da revolução, o chamado co­
munismo de guérra. Fracassou inteiramente com a fome.
Como sempre, Lênin não se desencorajou de forma alguma,
dando, então, volta ao leme. O próprio país lhe ofereceu,
por sua extensão, o campo para todas as suas manobras. Ele
percebeu que o capital necessário para a criação da indústria
e a formação de um proletariado só poderia ser fornecido,
em um país agrícola, pelos camponeses. Estes, contudo, não
se deixavam sugar. Queriam produtos industriais e ferra­
mentas em troca dos gêneros alimentícios exigidos nas cida-
dades. A segunda fase da Revolução Russa foi, portanto, a
chamada “ nova política econômica” . O domínio do partido
continuava, contudo, de pé, apesar das agressões das potên­
cias ocidentais e dos antigos generais, fixados no estrangeiro.
Tendo que escolher entre os bolchevistas, de um lado, e os
grandes proprietários feudais e generais, juntamente com os
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu alid ad e 371

inimigos da pátria, do outro, o próprio camponês se decidiu


a favor dos comunistas. Os camponeses agora tinham suas
terras. A ânsia de obter remuneração suficiente, assim como
a possibilidade, ainda que limitada, de adquirir bens de
consumo os levou imediatamente de volta aos trabalhos do
campo e à produção de cereais e carne. Até hoje, a Rússia,
diferentemente da China, conservou a remuneração por tra­
balho então introduzida, que só pode ser, na melhor das hi­
póteses, uma fase de transição para o comunismo teórico. Com
isso, o poder bolchevista foi, pelo menos provisoriamente,
consolidado de forma comercial tradicional. Seu objetivo, a
industrialização e a tecnificação da Rússia, contudo, ainda
não podia ser tão rápida e facilmente atingido, já que não
havia a possibilidade de obter empréstimos estrangeiros.
Desde 1922/23, entretanto, Lênin não mais se encontrava
em condições de trabalhar e, finalmente, morreu em 1924.
Não há dúvida de que, em seus últimos anos de vida, êle
vinha seguindo um curso muito mais suave do que no período
de formação do partido, entre 1903 e 1917. Seu sucessor e
continuador de sua obra até o fim foi Stalin, como todos
sabem. Como secretário-geral do partido nos últimos anos
da vida de Lênin, ele já tinha construído o aparelho com
o qual ele, da mesma forma que seu mestre e com os métodos
que tanto ele como Lênin aprenderam de Marx, segundo
os quais os fins justificam os meios, afastou todos os seus
adversários reais e possíveis. Isso inclui o afastamento de
Trotski, a liquidação dos camponeses, que causou milhões
de vítimas, a depuração da indústria, da técnica e da oficiali­
dade, do corpo de oficiais do Exército Vermelho da época
da guerra civil, e, até, do próprio partido, onde quase todos
os velhos bolchevistas> inclusive Bukharin, foram assassina­
dos. Em 1937, Stalin ocupava sozinho o poder e podia uti­
lizar à vontade os instrumentos da administração, do partido
e dos serviços de segurança. Aquilo que, nos tempos de
Marx e Lênin, à falta de instrumentos de poder, representava
apenas violações contra o companheirismo dentro do partido
se transformou então em luta real pelo poder em uma escala
jamais conhecida em toda a história do mundo. Apesar disso,
nem mesmo as grandes derrotas sofridas no início da Se­
gunda Guerra Mundial puderam abalar o predomínio de
Stalin.
372 H istó r ia das I déias S ociais

A questão reside, de início, em saber como foi possível


que uma tão reduzida minoria, enfrentando toda sorte de
resistências internas e externas, em meio à luta entre seus
dirigentes, pôde conservar o poder e dirigir-se obstinada­
mente no sentido de objetivos tão distantes.
Trotski, que, depois da morte de Lênin e de seu cha­
mado testamento e outras circunstâncias favoráveis, talvez
ainda tivesse a possibilidade de colocar-se contra Stalin, va­
cilou durante tanto tempo em fazê-lo que, quando o fez, já
era muito tarde. Na realidade, a própria insignificância
numérica do partido terminava sempre por consolidar sua
unidade. Quando os acusados dos grandes processos-farsas
da década de 1930 reconheceram que estavam errados e que
o partido, como elite, estava com a razão, isto não se deve
apenas às torturas. Trata-se do grande mito do partido, que
Lênin forjou nos anos da ilegalidade e, em relação ao qual,
o própTio conteúdo marxista ficava em segundo plano ou,
de acordo com as circunstâncias, era trazido de vo!ta para a
frente. O partido era o único instrumento possível, e a mis­
são consistia na preservação histórico-muridial da Rússia por
meio da industrialização. O indivíduo representava algo in­
diferente. O partido, contudo, só podia ser esse instrumento
mediante uma direção absolutamente unificada. Essa uni­
dade foi, inicialmente, obtida pela personalidade de Lênin
e, mais tarde, pelo aparelho de Stalin. Shapiro escreveu certa
vez: “ O mais importante (do terror) foi que ele aniquilou
toda e qualquer possibilidade de solidariedade dentro e fora
do partido. Sob esse fluxo desencadeado de pânico, de de­
núncias, calúnias e intrigas, ninguém mais podia confiar em
seu próximo ou se sentir seguro sob a proteção de institui­
ções ou indivíduos nos quais tinha confiado até então. A
atomização da sociedade, na qual foi visto o traço carac­
terístico desse poder totalitário, foi completada nos anos do
terror” .
Aquilo que foi criado dentro da própria elite ou no
seio d o povo, por meio da ideologia, é uma “ comunidade”
ou uma “ sociedade” , nos termos dos conceitos fundamentais
definidos no início deste livro? Eu o consideraria, de início,
como “ sociedade” , apesar de sua solidariedade inevitável e
incondicional. E isto em virtude da “ atomização” , do isola­
mento dos homens. É claro que cada objetivo isolado é
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A t u al id ad e 373

sempre subordinado à unidade do partido. E isto, em última


análise, inteiramente de acordo com o ponto-de-vista de què
cada indivíduo que pertence ao partido estará perdido se
seu domínio for destruído. Além disso, porque também o
povo deixa de atingir seu objetivo, a industrialização, e, por
meio dela, a auto-afirmação e a própria vida, se o poder
monolítico vier a ruir. Na guerra contra Hitler, então, essa
concepção foi ainda mais fortalecida em vista ,do vigoroso
patriotismo russo, um traço autenticamente comunitário. Ori­
ginalmente, contudo, o poder dominador de Stalin constituía
purae simplesmente sociedade. Aliás, uma sociedade imen­
samente ampliada, culturalmente levada até o seu período
final por meio do terror e da desconfiança de cada um em
relação ao próximo, como o poder da dinastia Maurya na
índia, segundo a descrição do grego Megástenes.
Isso também é confirmado por outro aspecto. Na Rússia,
o partido se situa acima das leis. Aliás, todo Estado nasce
da revolução, da subversão das leis. Quem outorga as leis
e a constituição tem sempre que estar acima daquilo que
outorga. Depois da subversão, contudo, em geral a desordem
é legalizada e transformada pelas forças revolucionárias em
uma constituição a que elas mesmo se submetem. “ Acima das
leis” , “ livre das leis” , significa legibus solutus, absoluto. Foi
isso que encontramos na ditadura romana como uma institui­
ção legal e na teoria de Jean Bodin como idéia sòcial parti­
cular. O comunismo russo, desde os seus primórdios até
hoje, é um “ absolutismo” , exatamente como o absolutismo
dos príncipes depois do Santo Império, da Idade Média. O
predomínio do partido sobre a justiça formal que, no Oci­
dente, de fato se encontra em decadência e dificulta o desen­
volvimento, serve aqui, em última análise, aos interesses do
Estado em uma situação anoTmal e à liquidação dos pri­
vilégios adquiridos pelo indivíduo da mesma forma que, no
século XVII, o absolutismo dos principados serviu à liqui­
dação dos direitos e privilégios das corporações, estratos e
potentados do império. Só que o interesse do Estado não
constitui um objetivo em si mesmo, mas serve à economia do
capitalismo de Estado e ao seu desenvolvimento. O nome
“ capitalismo de Estado” , como se sabe, foi utilizado — para
o período de transição — pe!o próprio Lênin. A economia
aqui, no entanto, é compreendida como economia industrial
e não como economia agrária. Veremos adiante como este
374 H istó ria das I déias S ociais

objetivo se aproxima, de forma inteiramente surpreendente,


do industrialismo americano. De qualquer forma, trata-se
aqui daquele ponto em que na idéia social de Marx havia
uma lacuna que ele não pôde superar. Ainda hoje, no comu­
nismo tusso, a teoria do perecimento do Estado continua
abandonada como objetivo. (Aliás, Kruschev recentemente
afirmou expressamente a imortalidade do partido como orga­
nização. )
Isso nos leva à última questão importante, neste contexto,
no que se refere a essa ideologia. Trata-se da questão de
saber onde é que reside a comunidade, quando o individua­
lismo (contrariamente ao objetivo distante de Marx) não
mais pode ser levado em consideração. Na verdade, o povo
russo, exatamente nas condições do desenvolvimento recente
sob a direção de Kruschev, é dissolvido cada vez mais em
pequenas comunidades (Boris Meissner, Russland unter
Chruschtschow [Rússia de Kruschev], 1960). Aqui é que
deve formar-se uma legítima vontade geral (volante générale,
segundo Rousseau). Não é inteiramente falsa a afirmação
do comunismo russo, segundo a qual a vontade popular de­
mocrática aí se exprime diretamente em pequenas reuniões,
enquanto os cidadãos no Ocidente só têm a possibilidade de
escolher entre dois ou mais partidos que lhes são apresen­
tados já em sua forma pronta e acabada.
Mas como são essas pequenas comunidades? Existem
em diversas formas: comunidades de empresa e fábrica, de
conjuntos residenciais, dè estudos e dos diversos grupos pro­
fissionais, de kolkhoses, ou seja, comunidades dos que tra­
balham nas propriedades agrícolas, e comunidades de repouso
e divertimentos, clubes. Nelas, as pessoas não somente vivem
em comum, mas as comunidades também têm o direito e a
possibilidade bastante real de controlar e corrigir a vida dos
indivíduos até o seu próprio foro íntimo, que no Ocidente
é coisa privada. Assim, é possível encará-las como a expres­
são ideal da formação da volonté générale moral de Rous­
seau, na qual os egoísmos da volonté de tous se equilibram
e compensam reciprocamente. Essa possibilidade, sem dúvi­
da, existe. A realidade, contudo, se apresenta geralmente
de forma diversa. O livro de Nowak, Homo Sowjeticttf,
1962, é, aparentemente, uma compilação do serviço secreto
americano e, por isso, de valor duvidoso. Mas, em alguns
A I n t e g r a ç ã o P o lític a das M assas na A tualid ad e 375

episódios típicos e isolados, mostra, de fato, de forma clara


como essa “vontade geral” se reflete de modo opressivo, como,
em lugar da solidariedade humana, do interesse comum, do
entusiasmo pela causa, surgem a inveja, o desejo vulgar de
vingança, a desconfiança e o rebaixamento do homem. E
isso é imediatamente seguido de conseqüências ponderáveis,
uma vez que a decisão da maioria nessas comunidades exerce
uma influência determinante sobre o destino dos indivíduos.
Assim, a famosa “ autocrítica” freqüentemente é obtida à for­
ça nessas comunidades. Ela quebra toda dignidade humana
e respeito próprio e, com isso, se transforma exatamente
no contrário daquilo que Rousseau pretendera: a criação
da verdadeira moralidade à base da reciprocidade. Con­
tudo, é exatamente a este respeito que o Ocidente mais teme
— e com toda a razão — o comunismo oriental, e é isso que
o leva a acreditar que deve defender o que considera como
sendo a “ liberdade” , expressão duvidosa e de significado
ambíguo.
Como é possível isso?
A formação de uma legítima volonté générde nas inúme­
ras pequenas comunidades não é autônoma e imune a in­
fluências externas. Em cada uma delas está o partido com
seus funcionários, com seu direito de apresentar todos os
candidatos, controlando cada discussão, jamais permitindo
que a desconfiança desapareça. O partido, e só ele, detém
o poder. Esse é que é, de fato, o grande aparelho, dirigido
de maneira absolutamente autoritária de cima para baixo, o
aparelho criado por Stalin. E é exatamente Kruschev que
agora fortalece novamente esse aparelho do partido, depois
que ele, nos últimos anos de vida de Stalin, se transformara
em apenas um dos instrumentos de poder do ditador, jun­
tamente com a administração, os serviços de segurança e as
forças armadas.
Neste ponto, é preciso esclarecer um aspecto que, na
maioria dos livros sobre a Rússia, é esquecido ou relegado a
segundo plano: tais controle e coordenação das pequenas
comunidades populares são absolutamente necessários ao ob­
jetivo da industrialização planificada, internamente, e da
autoconservação do império, externamente. Na polis grega,
essas pequenas comunidades eram realmente autônomas do
ponto-de-vista econômico e político. Não necessitavam de
376 H istó ria das I déias S ociais

qualquer controle ou coordenação e podiam — pelo menos


de tempos em tempos — levar a cabo o pluralismo de sua
existência. Na idade da técnica, isso é inteiramente impos­
sível. Um grande número de células sindicalistas anárquicas
ainda podia constituir, na época de Proudhon, um sonho
utópico. Hoje, na era técnica, não se pode sequer pensar
nisso. Este é o grande problema no Oriente e no Ocidente
— como veremos adiante — ainda que de outra forma, pro­
blema que até hoje não foi resolvido quer teórica, quer pra­
ticamente, e que faz com que todos os discursos sobre a de­
mocracia se transformem em um desejo mais falacioso do
que propriamente ingênuo. Quando analisarmos a América
ainda voltaremos a este ponto. Onde quer que se encontre,
nos bastidores das comunidades, o funcionário do partido
que, na realidade, tem o poder de decisão, aí, então, se
reúnem em tomo de seu poder os instintos inferiores da
inveja e da indignidade e fazem com que a formação de uma
volonté générale, por si só já bastante difícil dentro de uma
atmosfera humano-egoísta, freqüentemente se transforme em
seu contrário. Aquilo que em princípio e segundo a vontade
devia ser uma legítima comunidade se transforma agora em
uma sociedade sem dúvida coordenada e unificada, mas, por
causa da desconfiança de todos contra todos, isoladora e
opressiva, atomizada, e à qual já nos referimos antes.
Essa problemática ainda não foi resolvida na Rússia,
mas certamente já é vista pelo menos em seu contexto geral
(o que no Ocidente ainda não ocorreu). No romance de
Daniil Granin, Iskateli, Leningrado, 1956 (citado em K.
Mehnert, Der Sowjetmensch [O Homem SoviéticoJ, 1961,
p. 313), se encontra a seguinte cena relativa a uma reunião
do partido em um instituto científico, que merece ser citada
na íntegra. Trata-se da eleição dos candidatos apresentados
pelo partido e que lhe são agradáveis, mas nã.o contam com
o apoio dá legítima vontade geral da reunião. Dolgin é o
funcionário do partido e dirige a Teunião, Viktor é o preten­
dente ao seu lugar e Polyalcov é aquele que deve apresentar
o candidato que convém ao partido.

Os dois primeiros candidatos foram imediatamente


apresentados. O terceiro a ser apresentado deveria ser
Viktor. Mas, antes que Polyakov tivesse tempo para
pedir a palavra e apresentar o nome de Viktor, levan-
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu al id ad e 377

taram-se alguns braços em diferentes pontos da sala.


Dolgin passeou pela àala um olhar distante e conce­
deu a palavra a Polyakov. Dolgin estava visivelmente
nervoso. Mais uma vez, Viktor teve uma sensação de
fraqueza e intranqüilidade.
— Inacreditável — disse alguém perto dele — eu
pedi a palavra antes.
Polyakov, entretanto, já se dirigia para a tribuna.
Viktor respirou aliviado. Depois de Polyakov, Borissov
pediu a palavra. Sem prestar atenção a ele, Dolgin
chamou apressadamente alguns outros nomes. Os que
eram chamados dirigiam-se à tribuna e apresentavam
outros candidatos. Enquanto isso, contudo, a irritação
tomava conta da sala.
— Borissov está pedindo a palavra. — Borissov
quer falar — gritaram Andrei e Maja Ustinova quase
ao mesmo tempo, trocando, então, um olhar ao mesmo
satisfeito e tímido.
Os olhos de Dolgin se dirigiram mais uma vez ra­
pidamente para a sala e, em seguida, para um papel
em sua mão.
— O camarada Martchenko tem a palavra! — disse
êle apressadamente.
Martchenko, que nem sequer havia levantado o
braço, levantou-se bastante confuso. Em alguns luga­
res ouviram-se risos. Borissov ficou pálido. Em se­
guida, levantou-se e dirigiu-se à tribuna, passando por
Martchenko, sem esperar que lhe fosse concedida a pa­
lavra. Apanhou a lista de oradores, que agora se en­
contrava sobre a mesa, e subiu à tribuna....................
— Camarada Martchenko — disse Borissov com
voz estridente, olhando para o papel. — Não se apresse,
pois eu posso ler em seu lugar. O camarada tinha a
tarefa, de apresentar o nome de Styopin, não é verdade?
Martchenko parou, coçou a orelha e resmun­
gou:
— É.

— Você o conhece bem?


— De vista — disse Martchenko e sentou-se em
um lugar vazio, dando de ombros.
H istó ria das I diéias S ociais

— Camarada Vinogradova — chamou Borissov.


Uma jovem operária se levantou.
— E você, camarada Vinogradova, você devia apre­
sentar o nome de Dolgin? Você por acaso já trabalhou
com ele? Ou você o conhece dos tempos da escola?
— perguntou Borissov, ao mesmo tempo em que se
curvava do alto da tribuna.
Vinogradova enrubesceu, olhou em volta em bus­
ca de ajuda e moveu os lábios sem que ninguém pu­
desse compreender o que estava dizendo.
Borissov continuou lendo a lista. O barulho na sala
crescia a cada instante. Borissov disse então no micro­
fone:
— O camarada Dolgin parece ter estabelecido tudo
previamente: toda a composição do comitê do partido
e ainda quem deveria apresentar a quem.
— Uma reunião muito bem preparada — gritou
ironicamente uma voz jovem e cortante. Nas últimas
filas várias pessoas se levantaram.
Um murmúrio de decepção correu pelas filas e foi
abafado subitamente por uma ovação„ Borissov voltou
para seu lugar com a infeliz lista na mão.
O ambiente dentro da sala se transformou inteira­
mente. Enquanto antes ainda havia nervosismo e in­
tranqüilidade, agora todos se preocupavam com o as­
sunto e estavam conscientes de sua responsabilidade.
A lista de candidatos crescia lentamente. Vez por
outra, a assembléia caía em completo silêncio, entre­
gue à meditação.
Foram apresentados quinze candidatos. Em parte,
eles já estavam na liste de Dolgin. Agora, contudo,
esses candidatos tinham sido apresentados pela própria
assembléia. Entre eles se incluía também Borissov. Des­
ta vez, todas as propostas foram discutidas calorosa e
prolongadamente. Sorin foi afastado quase que por
unanimidade. Dolgin nem mesmo foi apresentado. Ape­
sar disso, o engenheiro-chefe pediu a palavra e disse:
—■ Camaradas, eu era membro do comitê do par­
tido e sou responsável por aquilo que aconteceu. Nos
últimos tempos, o comitê do partido, a rigor, era inteira-
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu al id ad e 379

mente dominado por Dolgin. Todas as questões eram re­


solvidas por ele mesmo, de forma operacional, por assim
dizer, afastando-nos completamente do 1assunto. Sorin,
por sua inérciaynada tinha contra isso. Desse modo, Dol­
gin começou a dirigir sem qualquer controle. Ê claro que
nós também somos responsáveis por isso. Deixamos
que ele assim fizesse, abandonamos o campo para que
ele o ocupasse. Supostamente, ele agia em nosso nome,
mas, na realidade, fazia apenas o que bem entendia.
O que aconteceu hoje representa uma boa lição para
nós. Se cada um de nós disser aqui, diante de todos,
o que Se diz nos corredores ou depois das reuniões,
então pessoas como Dolgin jamais tomarão lugar nova­
mente na direção.
A própria assembléia cuidou de que reinasse a
maior disciplina. Ela destruiu com desprezo todo o
plano elaborado até os últimos detalhes por Dolgin e
Potapenko. Por trás de todas essas maquinações, os
participantes da assembléia descobriam a intenção de
comandár-los, o desprezo à vontade, aos desejos e à
iniciativa dos simples membros do partido.
Jã não era mais indiferente pata eles quem esco­
lhiam, a quem confiavam a direção.

Isso está reproduzido em um romance russo moderno,


não é a descrição da Tealidade cotidiana. Contudo, o livro
foi escrito e publicado na Rússia sob a censura do partido.
Assim, a cena como elemento típico é muito rnais importante
do que qualquer caso real isolado. É indiferente saber com
que freqüência ela se repete, se teve lugar, em geral, ou não.
Mostra a possibilidade muito mais significativa e importante
da formação de uma legítima volonté générete de baixo
para cima. Por outro lado, não mostra como essa vontade
geral moral, formada “ democraticamente” , no sentido grego,
de baixo para cima, pode ser integrada sem violência e men­
tira até atingir o governo de um imenso império e, mesmo,
do mundo industrializado. A tese continua sendo de que
nem na Rússia, nem — como veremos adiante — nos Estados
Unidos existem condições aceitáveis para isso. Este é o fun­
damento de minha afirmação de que o pensamento sócio-fi-
losófico da história até o momento morreu com Nietzsche.
380 H istó ria das I déias S ociais

De qualquer modo, é essencial considerar esse fato e o obje­


tivo a ser atingido de forma conjunta.
O senhor da Rússia e pretendente ao domínio mundial,
contudo, é escolhido no círculo restrito da elite do partido.
Digo “ escolhido” e não, é claro, “ eleito” com votação ins­
titucionalizada e princípios regulamentados de eleição e de­
terminação da maioria exigida. O próprio Lênin, antes da
Primeira Guerra Mundial, se tornou chefe do Partido Bolche-
vista por força de sua personalidade, sua inteligência e suas
intrigas. Da mesma forma, Stalin chegou ao p o d e T d e p o i s
da morte de Lênin e, finalmente, Kruschev, ou Mao Tsé Tung
na China. A elite superior do partido é a base sóbre a qual
se fundamenta o poder. Aí, entretanto, reina uma luta pelo
poder sem quaisquer reservas. Cada um tem que jogar
diariamente com todas as suas forças e com a sua própria
existência e somente o mais forte entre eles é que consegue
triunfar, utilizando-se sempre de meios diferentes. Dêsse
modo, a luta pelo poder na elite do partido constitui-se em
escola para os futuros chefes do império, uma escola de vida
realmente impiedosa. Trotski, Kamenev, Zinoviev e Bukha-
rin foram destruídos da mesma forma que Plekhanov e Mar-
tov, antes, e Beria, Malenkov e Molotov, depois. As verda­
deiras regras dessa escola devem ser encontradas mais na
Vontade de Poder, de Nietzsche, do que no Capital, de Marx.
E que dizer do marxismo enquanto concepção do mundo,
crença e ordem econômica?
Ele não perdeu de modo algum o seu valor no que se
refere à situação política. E isso tanto na política externa
como na política interna. Só que os dogmas devem ser
compreendidos de modo menos literal e apenas como sinais
inofensivos de aprovação ou rejeição.
O seu valor na política externa contra o mundo bur­
guês ocidental para a Rússia não deve ser facilmente subes­
timado. Com efeito, o m a T x i s m o cria, de maneira colateral,
um grupo de partidários do Oriente dentro do próprio campo
do adversário. E isso, em parte, entre os operários, mas, em
número bem maior, entre os intelectuais. Isto já ocorreu e
ainda ocorre na França, Inglaterra, América do Norte e do
Sul. Por outro lado, foi isso que obrigou os primeiros adver­
sários perigosos da Rússia, Hitler e Mussolini, a aniquilar
esses grupos dentro do país ou a forçá-los a emigrar. Com
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu alid ad e 381

isso, a Itália e a Alemanha não só foram diretamente atingi­


das em seu poderio como também esse fato provocou em
todo o mundo ocidental uma animosidade antialemã e anti-
italiana que, pelo menos no caso da Alemanha, até hoje ainda
não fõi superada e que, desde logo, favorece a Rússia sem
custar-lhe qualquer esforço. Pode ser perfeitamente que no
futuro, por exemplo, a problemática da convivência entre
negros e brancos nos Estamos Unidos provoque um enfra­
quecimento do Ocidente na hora do perigo e forneça um
ponto fraco para a penetração do comunismo. Somente as
recentes contradições entre a Rússia comunista e a China em
tomo da direção espiritual e sobretudo política é que vieram
enfraquecer esse valor do marxismo na política externa gra­
ças à sua divisão.
Quanto à política interna, não discutimos aqui o valor
do marxismo como ordem econômica. O esmagamento da
liberdade de pensamento e crença no mundo moderno, liga­
do à sua concretização, significa, sem dúvida, unia atrofia
da personalidade de todo e qualquer ser humano. Não é
possível esquecer, a esse respeito, que com a liquidação da
liberdade de opinião e com o disciplinamento do pensamen­
to e da ação não é somente a liberdade moral e a persona­
lidade que são atingidas, como também a enorme exploração
dos sentimentos, a defesa meramente formal e propagandís-
tica de determinados pontos-de-vista, as mentiras do alicia­
mento econômico até no que se refere aos domínios espiri­
tuais e, com isso, o embrutecimento e nivelamento da pes­
soa humana no mundo ocidental. Até hoje o Ocidente não
conseguiu resolver esse problema, e somente agora é que
ele começa a ser visto em todas as suas proporções. O pró­
prio Platão, quando da decadência da polis, não possuía
qualquer outro expediente para combater manifestações se­
melhantes e comparativamente inofensivas da sofística e do
helenismo nascente.
Apesar de tudo, permanece de pé a problemática que o
marxismo, a partir do próprio Marx, não resolveu e que se
refere à maneira pela qual devem ser integrados o homem
multilateralmente educado e com todos os seus sentidos vol­
tados para a natureza e a empresa industrial que exige o seu
aperfeiçoamento contínuo. Essa questão, portanto, perma­
nece aberta aqui da mesma forma que na tradição liberal-
382 H istó ria das I déias S ociais

-democrática oposta da América do Norte. O “ instruinenta-


lismo” , a “ indústria intelectual” de John Dewey, só tem
cabimento aqui e só se aproxima do marxismo por seu fra­
casso comum.
Naturalmente, não é missão do historiador propor solu­
ções possíveis. Isso seria, muito mais, a missão de uma nova
Filosofia, da qual ainda não se possui qualquer pista na lite­
ratura ocidental ou oriental. Só terá sucesso se conseguir
reunir o conhecimento sobre o passado da era agrícola com
as particularidades da nova çultura industrial. Evidentemen­
te, não se trata de tarefa fácil.

Se quisermos compreender corretamente o industrialismo


americano, temos que começar com Calvino e Milton. A
indicação corrente da influência de Locke sobre os direitos
fundamentais americanos é inteiramente insuficiente e dá
uma falsa impressão. Somente numa fase posterior e para a
secularização, em parte mesmo diretamente para a decadên­
cia da comunidade americana é que é responsável o surgi­
mento da aspiração à felicidade lockiana, sob a forma da
tentativa, a longo prazo sem sentido, de melhoria do nível
de vida. A teologia de Calvino, por outro lado, se encontrava
desde o início sob uma influência muito maior do Antigo
Testamento do que qualquer outro reformador. Isto signifi­
ca que a espiritualidade pura do Deus absconditus, como
ser volitivo, era determinante, ao passo que a natureza como
tal era, desde o início, afastada ao máximo possível. No
puritanismo inglês, isso ainda não se podia verificar de modo
tão claro como no americano, porque tinha que ser elimi­
nada tanto a tradição bem mais antiga quanto a relação ín­
tima com a terra natal. Os puritanos emigraram por causa
de suas crenças. Renunciaram à terra e à pátria. Somente a
fé e o que dela pudesse retirar é que conservaram. Jamais
se integraram ao novo solo como pátria. É exatamente a
esse respeito que se estabelece a grande oposição entre o
puritanismo e o catolicismo. O seu reconhecimento está ex­
cluído da constituição clássica dos direitos do homem e do
cidadão na América.
A única possibilidade de apreciar este mundo para o
puritanismo — e mais ainda para a forma de puritanismo
que abandonou o lar e a pátria por amor à liberdade de
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu alid ad e 383

crença — é considerá-lo como material para a afirmação


voluntária do homem aos olhos de Deus. Já o Gênesis, I,
28, afirma: “ Ocupa a terra e domina-a!” Ou seja, não se
trata de apreciar e honrar o mundo como natureza, como
criação de Deus, como ocorria na Europa medieval, e sim
apenas de utilizá-lo como coisa. Na utilização, contudo, somen­
te o sucesso em tomá-lo útil pode ser considerado como
critério de um comportamento certo ou errado. Contraria­
mente a todos os povos da Europa — mesmo os protestantes,
e não apenas os católicos — a América do Norte e, dentro
dela, sobretudo os estados puritanos da Nova Inglaterra es­
tavam destinados, desde o início, ao domínio da natureza
e à fabricação de bens de consumo, ou seja, por seu próprio
espírito, estavam destinados a ser o país do industrialismo.
Isso, entretanto, significa que ela nunca foi um país
agrário como a Rússia au a China até o século XX e a
Europa pelo menos até o século XVII ou XVIII. Não obs­
tante, a primeira leva de colonizadores naturalmente cons­
tituiu uma “ tomada de terra” , como vimos na citação de
Trivelyan anteriormente analisada. Nos estados do Sul, prin­
cipalmente sob as formas pseudofeudais da grande proprie­
dade territorial, na Nova Inglaterra de início para o consu­
mo próprio e freqüentemente em pequenas parcelas. Mas
em lugar algum surgiu um novo campesinato como o da
colonização grega no Mediterrâneo. Em ambos os casos,
apenas o solo foi “utilizado” pelos fazendeiros. Os “ fazen­
deiros” não são camponeses. O que o diferencia do cam­
ponês ou do legítimo senhor de terras feudal é sua relação
com o solo como pátria, com o mundo animal e vegetal
e mesmo com seus semelhantes como natureza. O america­
no, em geral, só se comporta de maneira moral em relação
a seus semelhantes ou a coisas, mas não em relação à natu­
reza viva como tal. E isso de tal modo que utiliza as coisas,
as aproveita e mesmo explora sem levar em conta a própria
natureza material delas. Quanto a seus semelhantes, pode
também explorá-los como coisas ou, então, compreendê-los
com base em suas próprias condições — suas, isto é, dele,
mas nunca as deles mesmo.
Ora, é exatamente isto que constitui o fundamento do
industrialismo. Só na América e, de forma menos Tadical,
na Europa é que ele se encontra realmente em seu terreno
384 H istó ria das I déias S ociais

próprio. Por isso é que teve de ser imposto de modo vio­


lento, com enorme crueldade, a povos manifestamente cam­
poneses como o russo e o chinês, enquanto atrofiava a cul­
tura de outros como o japonês e o indiano. Não se trata,
portanto, de mera coincidência que ele tenha tomado como
ponto de partida países marítimos calvinistas como a In­
glaterra, a América e a Holanda e, somente de forma secun­
dária, países protestantes como a Alemanha setentrional. A
Europa meridional, católica, só veio a recebê-lo daqui. Tal­
vez o caráter apátrida dos povoadores europeus da América
do Norte tenha outro fundamento secundário na natureza
hostil aos europeus (com exceção da Califórnia), com suas
variações extremas de temperatura, suas tempestades, ani­
mais ferozes, etc.
A fundamentação da coletividade americana estabele­
ceu-se, então, com a Declaração dos Direitos do Homem,
que analisamos anteriormente. Na França da revolução,
esses direitos do homem ficaram sob a influência decisiva
de Rousseau, que, na América, jamais desempenhou qualquer
papel. (Contudo, deve considerar-se que Rousseau e exa­
tamente aquele seu conceito de volonté générale provêm de
Genebra, a cidade de Calvino.) Que eu saiba, entretanto,
a maioria dos historiadores leva muito pouco em considera­
ção que, entre as formas iniciais da comunidade americana
com seus direitos humanos e civis nos estados da Nova In­
glaterra e a formulação posterior da Virgínia (1776) ou mes­
mo a forma adotada pela constituição federal, ocorreu a ir­
rupção da influência de Locke. E essa irrupção por menos
que dela tenham consciência os americanos como fato his­
tórico que é — e talvez por isso mesmo — significa uma
revolução de enormes proporções. A substância da antiga
coletividade americana do século e de seus direitos humanos
na Nova Inglaterra era a pura liberdade espiritual do culto
a Deus na consciência individual de cada um, liberdade
essa que era negada aos ancestrais dos colonizadores pela
Igreja anglicana. Na afirmação de seu trabalho neste mun­
do — seja como fazendeiro, artesão ou, mais tarde, de modo
bem mais intensivo, como empresário ou operário na indús­
tria — e nos entendimentos com os semelhantes, esse sucesso
terreno de cada um significava apenas o sinal visível da elei­
ção divina, como Max Weber demonstrou. A substância dos
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu al id ad e 385

direitos humanos secularizados por Locke estabelecia, em


vez disso, a aspiração incontível no sentido da felicidade e
da posse, como é declarado expressamente na Declaração da
Vírgínia e na Constituição dos Estados Unidos (Jefferson,
Thomas Paine). É fácil compreender que aí reside uma
diferença. Contudo, os americanos até hoje não compreen­
deram claramente essa diferença. Com isso, vacilam até
hoje, em sua política externa, entre o imperialismo do dólar
e a busca secularizada da felicidade humana, entre o espí­
rito negocista sem escrúpulos e atividades inteiramente de­
sinteressadas e dentro do espírito de comunidade, em polí­
tica interna. Para o estrangeiro, naturalmente, o espírito
negocista egoísta e que não admite objeções com o qual os
americanos exigem liberdade de ação sobressai mais. Mas
o pai daquele que talvez seja o único grandç pensador ame­
ricano, Emerson, ainda escrevia em seu diário, muito tempo
depois da irrupção de Locke, que todas as noites pedia a
Deus que seus filhos não ficassem ricos. E no próprio pen­
samento de Emerson existe uma ética religiosa e semiterrena
do sucesso indubitavelmente ligada à influência calvinista-
-miltoniana, inteiramente livre da influência de Locke que,
contudo, só se conservou sob a forma de fragmentos petrifi­
cados.
Os direitos humanos americanos, na medida em que fo­
ram determinados pela aspiração à felicidade e à posse locki-
ana, e nao por Calvino e Milton, foram submetidos por Marx
a uma crítica tão impediosa como justa em seu ensaio Zur
Judenfrage ( Sobre o Problema Judeu). Ele denunciou que
esses direitos são apenas os do homem como bourgeois com
sua propriedade, seu sucesso e sua felicidade e separado da
comunidade em prejuízo de seus próprios semelhantes, e não
os verdadeiros direitos do citoyen, da “ espécie” humana sacra­
mentada pela natureza. Nesta crítica, Marx se apoiou em
Rousseau e sua volonté générale. O fator puritano-calvinista
bem anterior na comunidade americana lhe escapou tanto
quanto a inúmeros trabalhos que se dedicam hoje em dia
a esse tema e que, sem exceção, começam “ muito tarde” .
Marx, contudo, considerava com toda a razão que o obje­
tivo vital desse bourgeois privado nada mais era do que ga­
nhar dinheiro de forma incontida e impiedosa à custa de seus
semelhantes. Isso pode ser mais correto para o Estado pura­
mente acumulador de propriedade da Europa, na medida em
386 H istó ria das I déias S ociais

que estava sob a influência da idéia social de Locke, do que


em relação à América. No que diz respeito à sociedade ame­
ricana, perde-se de vista que entre o Estado, aqui tao forte­
mente reduzido e, de fato, limitado à proteção da proprie­
dade, e o indivíduo isolado como homem pjivado, proprie­
tário e ganhador de dinheiro existe esse elemento específico
e eminentemente comunitário que é a comunidade local. Não
é necessário que se trate aqui de uma comunidade religiosa.
Tôda a Filosofia de Emerson e de vários outros pensadores
americanos foi dedicada exclusivamente ao objetivo de reco­
nhecer e consolidar essa forma de comunidade representada
pela comunidade local (e não tanto do Estado como um
todo, dos Estados Unidos) em todas as formas de contato
entre as pessoas ( E. Baumgarten, Das amerikanische Gemein-
wesen [A Coletividade Americana]y 1938). De qualquer mo­
do, o puritanismo foi muito deslocado ou petrificado, e Locke
hoje predomina inteiramente. A esse respeito iremos ainda
tecer algumas considerações.
Somente no início de sua história consistiu a forma pre­
dominante de vida dos americanos na exploração eficaz da
terra. No século XVIII e, naturalmente, mais ainda no século
XIX, surgia a seu lado a indústria, que não demorou muito a
ultrapassá-la. A indústria é tornada possível, por um lado,
pela técnica e, por outro, pela existência de riquezas natu­
rais inorgânicas (carvão, metais, petróleo, etc.) Tornou-se
rapidamente claro que o solo americano era muito rico nesses
recursos. A técnica, contudo, nem surgiu na América, nem
foi aí aperfeiçoada. Com toda a razão, já se chamou a aten­
ção para o fato de que até hoje as grandes descobertas e
invenções técnicas foram realizadas nos velhos países da Eu­
ropa, e ainda o são. Os americanos se limitaram a adaptá-las
e aproveitá-las industrialmente.
O mundo é constituído por coisas e por nossos semelhan­
tes. O homem estabelece uma relação diferente segundo
se trata dos primeiros ou dos últimos. As coisas são feitas
e refletidas. São transformadas em um mundo artificial novo.
A esse respeito quase nada é impossível, pois o sucesso, o
resultado eficaz desse processo de formação ou transforma­
ção, constitui a única prova de que Deus está presente à ati­
vidade humana. A afirmação de que a América é o “ país
das possibilidades ilimitadas” , em um sentido mais preciso
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A tu alid ad e 387

do que o corrente, tem aqui sua razão de ser. A formação


ou transformação das coisas não é mais, como antes, entre
os beneditinos na Idade Média, por exemplo, o trabalho ze­
loso do homem sobre a natureza que, por si mesmo, continua
sendo criação de Deus, e sim produção e reprodução. Esta
produção nada mais é do que a indústria possibilitada pela
técnica. À medida que a consciência de início autênticamen-
te religiosa do puritanismo desaparecia, nos séculos XIX e
XX, então só restou a forma secularizada desse modo de
vida da indústria como o trabalho incessante com vista à
elevação permanente do nível de vida. Nenhum americano,
nem mesmo aquele que acaba de chegar da Europa, é capaz
de procurar saber se a elevação do nível de vida constitui de
fato um objetivo humanamente digno e compensador. A
inclinação para a pobreza e a dor, não somente no sentido
terreno, como também segundo a própria crença calvinista,
fica inteiramente excluída. Isto só pode residir em uma de­
cisão religiosa inconsciente e não-confessada, mas na rea­
lidade já encoberta em sua medula. Trata-se da decisão do
puritanismo contra a natureza que, ainda agora, quando já
desapareceu, produz essa entidade fantasmagórica, inteira­
mente sobrenatural. Aliás, aqui se dá uma identificação mui­
to restrita entre o homem e a matéria-prima à qual êle im­
põe sua vontade. É algo de inteiramente diverso do autên­
tico artesanato de todas as civilizações agrícolas da Ásia e
da Europa. Não obstante, trata-se ainda de um resto secula-
rizado da antiga religião desaparecida a “ atitude do ame­
ricano diante das coisas ser imune a qualquer dilaceramento
interno, atitude serena, clara, confiante, inteligente e cria­
dora em proporções não atingidas em qualquer outro lugar”
(Goffrey Gorer, The Americans, 1949). O inverso disso é,
contrariamente, a dissipação e destruição impiedosas da na­
tureza, como hoje finalmente é reconhecido nos próprios Es­
tados Unidos (Vance Packard, The Waste Makers, 1958; ver
também minha nota sobre esse livro em Deutsches Verwal-
tungsblatty 1961).
A relação do americano com seu semelhante, natural­
mente, é muito diversa de sua relação com as coisas. Mas,
em primeiro lugar, nem todos os seus semelhantes, ainda e
exatamente hoje em dia, são considerados por ele como pes­
soas humanas. “ E se não são seres humanos, então são, de
fato, coisas, e não é possível simpatizar com coisas, não é
388 H istó r ia das I déias S ociais

possível apoiá-las, só se pode aprovéitá-las ou destruí-las” ,


escreve o inglês Gorer. Semelhantes não são ainda as pes­
soas que possuem a mesma raça que nós — a discriminação
racial, aliás, hoje é combatida não somente no estrangeiro
como também no Sul pelos yankees. Mas são semelhantes
na medida em que são americanos ou, pelo menos, americanos
in spe em outros pontos da Terra. Como a América não é
a pátria do americano, o país é menos importante do que
o modo de vida higiênico. E esse modo de vida pode ser
tecnicamente estabelecido tanto nos trópicos como na Groen­
lândia, por exemplo, por meio de um aparelho de ar condicio­
nado. É ainda Gorer que observa, com seu testemunho in­
suspeito: “ Uma vez que ser integralmente humano e ser ame­
ricano são identificados, não se reconhece a condição humana
a povos que se situam na série negativa — como, por exem­
plo, os japoneses da II Guerra Mundial — e eles perdem, com
isso, os direitos do homem. Até que sua rendição e a pos­
terior ocupação transformaram os japoneses em americanos in
spe, os soldados americanos que estavam na frente de guerra
contavam a seus patrícios prontos a acreditar histórias pavo­
rosas sobre a crueldade e a perfídia com que foram trata­
dos pelos soldados japoneses (e não ao contrário, portanto!),
coisa que seguramente teria despertado desconfiança se se
tratasse de feras e não de homens” . Temos aqui uma
analogia perfeita com a discriminação contra raças estranhas
praticada pelo nacional-socialismo. Só que aqui a decisão
de ser ou não “ americano” é considerada como dependendo
do fato da pessoa ser boa ou má, de sua vontade religiosa
ou secularizada e terrena, ao passo que, no caso do nacional-
-socialismo, era o “ acaso” (ou o destino e a necessidade na­
tural) que determinava qual a “ raça” a que se pertencia.
Isso, contudo, como já foi dito antes, é o comportamento
em relação ao homem enquanto coisa. O comportamento
em relação ao homem enquanto homem é inteiramente di­
verso. E somente aqui é que pode ser encontrado aquilo
que se denomina “ liberdade” .
Já em Locke, o homem inicia sua vida como “papel em
branco” , no qual somente a “ experiência” deixa suas mar­
cas. Mesmo o conjunto próprio de leis racionais do inte-ecto
como tal é esquecido, como Leibniz imediatamente percebeu.
Para os americanos, mesmo a determinação natural e heredi­
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas na A tu al id ad e 389

tária da alma dos filhos por seus pais e seu povo, que Locke
ainda cita de resto, é empurrada para o segundo plano.
Quando, por exemplo, o sociólogo David Riesman distingue
o tipo “ dirigido de dentro” do tipo “ dirigido de fora” , não
chega à conclusão de que essa “direção interna'’ possa re­
pousar sobre instintos inatos hereditários; pelo contrário, para
ele aqui se trata de algo “ aprendido” na primeira infância.
(Supostamente, então, Bach ou Mozart apenas tiveram me­
lhores lições de música em sua infância do que o Sr. Maier
ou o Sr. Hubert.) Mais uma vez encontramos aqui uma
contrapartida completamente digna no “ legado” , inclusive
espiritual, de que falava a ideologia nacional-socialista. Evi­
dentemente, ambas as concepções são unilaterais e equivo­
cadas. Contraditada ou passível de sê-lo nenhuma das duas
é ou foi, pois concepções do mundo não são algo que possa
ser contraditado e porque em ambas existe uma essência ver­
dadeira, ainda que tão mal compreendida. A concepção ame­
ricana, contudo, não deriva de Locke, e sim do puritanismo,
no qual o único elemento decisivo era a relação da alma com
Deus e sua afirmação no mundo, e no qual não se perguntava
sequer pela natureza. Na verdade, a moralidade tem que
ser exigida em grau idêntico de todos os homens, como Kant
já dissera: como imperativo categórico, independentemente de
seu poder, capacidade ou situação. Essa concepção só se
transforma em caricatura ideológica quando a fé em Deus
ou a moralidade caem por terra e essa suposta neutralidade
qualitativa da criança é considerada como simples material
para a educação caseira ou científica.
Assim, para a mãe, trata-se de urna prova para sua pe­
dagogia e mesmo seu amor aos filhos o fato de terem eles, ou
não, “ sucesso” na vida. E para os próprios filhos a questão
decisiva também é a de saber se são ou não “ um sucesso” .
Por sua vez, esse sucesso pode ser tanto uma simples ques­
tão de vontade como também da escolha dos “ métodos” cer­
tos e corrigidos. A crença nesses métodos “ científicos” , sem­
pre novos e substituindo-se uns aos outros, para criar os
filhos, desde a alimentação, vestuário e ocupação até a psico­
logia e a pedagogia é extremamente difundida e se apresenta
aos não-americanos como ingênua e artificial. Supostamente,
contudo, o sucesso desses métodos já começa a aparecer no
jardim da infância, por meio da popularidade dos pequeni­
nos entre seus companheiros e prossegue, da mesma forma,
390 H istó ria das I déias S ociais

na escola, nos estudos, na profissão e na empresa. De modô


geral, esse sucesso é reconhecido em função da submissão
da matéria ao espírito na indústria e — certamente não me­
nos — pelo volume da renda, pela quantidade de dinheiro
que se ganha e pelo que se consegue acumular em proprie­
dades pelo esforço próprio.
Goethe disse certa vez, em relação ao amor intelectualis
dei de Spinoza: “ Se eu te amo, não me importa então se
tu me amas” . Para Kant, a felicidade na vida é casual, e a
questão se resume em saber se a pessoa é moralmente “ dig­
na” 'de si mesma. Gorer relaciona estas duas concepções, ao
analisar detidamente a opinião do americano: ‘Tara ser ama­
do não é preciso que também se ame, e sim que se seja digno
do amor do outro” . Isso é aceitável e significativo, quando se
trata de uma expressão extremamente rigorosa da religiosidade
puritana da alma em relação a Deus. Em sua forma secula-
rizada de simples afirmação no mundo, transforma a vida
em um agon frio e sem paixão, na luta sem reservas pelo
domínio da matéria e na força de atração egoísta da persona­
lidade sobre outros seres humanos. O que de mais elevado
poderia surgir daí, o amor aos outros, é deixado inteiramente
de lado.
É preciso que se diga, contudo, que o esbanjamento ar­
rivista de dinheiro que se observa na maior parte da Alema­
nha Federal assim como da Europa ocidental americaniza­
das nao constitui um traço peculiar do caráter americano.
A começar pela caridade sistemática e a promoção interes­
sada da ciência ( “ aplicada” , “ ú t i l” ) nas fundações univer­
sitárias particulares até a ajuda a toda uma série de povos
e a tentativa de impor a eles o bem-estar da América, quer
queiram ou não, quer sejam capazes ou não de sustentá-lo:
“ Em geral, tT a ta -s e da idéia de que a América deve mo-strar-se
digna do amor dos povos por meio da filantropia ( “ ajuda
para o desenvolvimento” ), de boas obras, escolas, hospitais,
farmácias, missões, ensino técnico, know how. Os estrangei­
ros, por sua vez, só entrarão còm o seu amor quando for
dissipada sua ignorância quanto ao fato de que a América
é digna de ser amada” (Gorer). Ao contrário da ajuda russa,
a americana não é somente um instrumento no sentido de
conseguir o domínio mundial, mas também uma necessidade
real e desinteressada. Como, no entanto, e la conduz um amor
“ assimétrico” , unilateral, que é exigido sem que seja retri-
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M assas n a A t u al id ad e 391

buído, amor que se reflete, então, na americanizaçao dos es­


trangeiros, esse comportamento da América, na maioria dos
casos, produz resultados decepcionantes para ela em todo o
mundo. O próprio americano freqüentemente sabe quão
pouco ele é amado, na realidade (Lederer e Burdick, The
Ugly American, 1949). Ele dá exatamente o que de melhor
poderia ter porque não pode deixar que os outros sejam
constituídos de modo diferente, assim como ele julga que é.
A alma se perdeu com a ética do sucesso secularizada
e desUmanizada, e mesmo na concorrência coletiva o homem
se transformou em máquina de trabalho, que deve ser arbi­
trariamente substituída por outros. A idéia da morte é com­
pletamente ignorada. “ Um número crescente de filmes e his­
tórias tem como tema a substituição de uma pessoa levada
pela morte por uma outra de igual valor” (Gorer). A igual­
dade indiferente do homem, não somente como autômato
para o trabalho, mas também em sua aparência física, por
meio da moda e. cosméticos, que Emst Juenger percebeu
muito cedo ( Der Arbeiter [O Operário], 1932), é o ponto
de partida para a quantificação e mensurabilidade de seu
desempenho por meio do sucesso em uma comunidade de
indivíduos inteiramente iguais uns aos outros.
O que é, então, que faz com que a vida, em geral, ainda
seja possível nessas circunstâncias? É o resto da educação
puritana, que se difundiu por todo o país juntamente com
as professoras. Gorer escreve: “ Sem elas poderíamos estar
diante de um subcontinente do cinismo e do hedonismo, de
uma civilização na qual tudo é permitido, na qual cada um
cuida de si mesmo, na qual os negócios e a política, o direito
e a ordem se transformam em tráficos inescrupulosos, na qual
o único objetivo na vida consiste em ajuntar o máximo de
dinheiro possível mediante quaisquer meios, em expulsar a
felicidade e só procurar o prazer, na qual a sobriedade é con­
siderada como fatigante e sem sentido e o álcool indica o
caminho dos amigos desprovidos de verdadeira alegria. Na
maioria das grandes cidades do país esse quadro já se apro­
xima bastante de sua concretização, e seria perfeitamente
possível que todo o país fosse ocupado por ele. O único obs­
táculo que se coloca nesse caminho que leva ao nada é
constituído pela presidenta da liga de mulheres, apertada
em seu espartilho e a professora fanática. Elas representam
392 H istó ria das I déias S ociais

o mais forte bastião contra o caos” . Enquanto todo livro


teórico ou técnico assim corno todo filme americano tem que
ter um happy end, e o americano comum traz sempre
consigo uma máscara de otimismo aparente, a literatura sé­
ria, desde Thomas Wolf e Faulkner até o suicídio de Heming­
way, confirma inteiramente esse quadro ameaçador de niilis­
mo e pessimismo. Essa é a variante tipicamente americana
do niilismo europeu das idéias de Nietzsche na fase final de
sua vida.
A religião e a economia são inteiramente privadas na
América e, somente nesta medida, inteiramente “ livres” . Ou
seja, ali reina a concorrência coletiva pelo sucesso. A eco­
nomia é apenas a religião secularizada, a religião, entretanto,
é para a economia secularizada a superstição parcialmente
refinada e levada a sério numa série de seitas e igrejas. A
pessoa individual, como Tocqueville já havia mostrado, não
é “ livre” . Isto quer dizer: ela tem a mesma probabilidade
de sucesso em meio a seus semelhantes se puser em ação
sua vontade, assim como educação e aprendizado suficien­
tes. O Estado é apenas uma instituição raramente levada a
sério e que garante as condições mais ou menos justas de
concorrência. Neste sentido algo modificado, o Estado é a
garantia do bem supremo: a liberdade da economia como
campo de atividade e afirmação ilimitadas dos indivíduos.
A imprensa desempenha o papel essencial de crítica e de
observação atenta, para ver se o próprio Estado não perturba
o desenvolvimento da economia e o sucesso dos indivíduos
isolados. Mesmo isso nada mais é do que a forma seculari­
zada da liberdade de imprensa autêntica e honesta, que en­
contramos em Milton. A confiança depositada no Telato de
um jornalista é ainda hoje ,muito maior do que aquela que
se confere a declarações oficiais de funcionários do próprio
Departamento de Estado.
O sociólogo americano David Riesman, que encara essa
situação de modo otimista, encontra mesmo no mecanismo de
opressão da indústria um campo de expressão da autonomia
humana, para a existência própria dos indivíduos ( The Lo-
nely Crowd, 1950). Em primeiro lugar, ele é um adversário
da tentativa de instauração da relação ao mesmo tempo de
comunidade e de luta no próprio trabalho, na empresa, entre
empregados e empregadores, etc., processo que na América
A Integração P o l ít ic a das M a ssa s na A t u a l id a d e 393

é muito mais intenso que na Europa. Ele crê, sobretudo,


que seria benéfico tanto às capacidades como às necessidades
do homem se reinassem mais objetividade e sobriedade no
sentido do estabelecimento de relações meramente de negó­
cios. Aliás, a automatização pressiona nesse sentido. Tam­
pouco acredita ele que o homem seja prejudicado seriamente
em sua independência pelos bens de consumo em massa e
pela propaganda, porque isso, segundo sua opinião, é cada
vez menos levado a sério. Se isso de fato ocorre, ou não, é
algo que deixaremos em suspenso. O campo livre para a
autonomia humana e a verdadeira liberdade, para Riesman,
reside não mais no trabalho e sim, exclusivamente, no terreno
do consumo e da ocupação das horas de lazer. Constituiria
exatamente o traço característico da industrialização progres­
sista o fato de que a sociedade do trabalho se transforma ou
tenha já se transformado numa sociedade do consumo. Aí o
homem poderia tornar-se novamente um ser que joga e ga­
nhar a si mesmo, sua liberdade e diferenciação no jogo com
e contra seus semelhantes.
Vimos anteriormente que isso já havia sido uma possibi­
lidade na história das idéias sociais em Platão e sua obra
da velhice, As Leis. Riesman não cita (e provavelmente não
conhece) essa concepção. É possível também pensar-se no
“ reino da liberdade” de Marx, no qual o verdadeiro sentido
da humanidade se encontraria, na sociedade sem classes, de­
pois que a “ assimilação da natureza” tiver sido estatizada e
igualmente repartida. E é aí que reside a fonte desse pensa­
mento de Riesman, pois ele cita a afirmação de Marx como
paráfrase de seu capítulo final. A diferença entre Platão e
Marx reside em que para Platão esse “ jogo” era, ao mesmo
tempo, um culto, ao passo que para Marx trata-se não apenas
do simples consumo, mas do ideal (algo difuso em vista da
concepção classista, como já foi dito) do desenvolvimento
livre da personalidade que dominou a época de Goethe. Ne­
nhuma dessas duas situações do “ homo ludens'’ (como o
denomina Huzinga, seguindo uma idéia de Schiller) se tor­
nou rêalidade até hoje na história. A utopia dos nomoi pla­
tônicos tinha, mais do que qualquer outra concepção, a visão
da satisfação das necessidades humanas, pois o culto traz a
seriedade exigida ao jogo. Na América, entretanto, nenhuma
das duas concepções tem qualquer atualidade, pois o “ jogo”,
é uma forma de ocupação, uma forma de simples capacidade,
394 H i s t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

aquilo que eles chamam de “hobby” e pelo qual sempre


perguntam logo de início a qualquer pessoa que se lhes apre­
senta. Não me parece que em grau considerável a perspec­
tiva de assegurar ao homem um campo de verdadeira auto­
nomia no tempo de lazer secularizado americano — mesmo
sem pensar no fundo clássico da grande literatura e música
alemãs, que Marx ainda teve, e, naturalmente, em um culto
legítimo. Mas talvez se trate ainda da última possibilidade
dentro da época industrial. Na conhecida obra de Herman
Hesse, Glasperlenspiel (O Espelho de Contas), aparece a
mesma possibilidade, ainda que com um final quase que to­
talmente sem esperança (ver a esse respeito meu comentário
em Zeitschrift fuer Philosophie und Forschung, vol. III, 1949).
Deve ainda ser considerado como a sociedade ameri­
cana da concorrência livre é integrada em um Estado. Com
efeito, os Estados Unidos se tomaram um Estado — quase
que poderia dizer-se: um Estado a contragosto — a partir
das duas guerras mundiais. Antes disso, eram um conti­
nente fechado para fora pela natureza, sem muito interesse
de seus habitantes, no qual vivia a sociedade da concorrência
dividida segundo as “ comunidades locais” . Hoje, a Terra foi
tomada pequena por meio dos transportes e da técnica mi­
litar, e a América tem que afirmar-se, da mesma forma que
anteriormente as potências continentais da Europa, como um
Estado entre outros Estados.
E é exatamente aqui que se localiza a pressão incon-
tível no sentido da instauração de um domínio mundial uni­
ficado, do qual já se falou muito neste livro. Naturalmente,
todo homem que ocupa o poder tende a estendê-lo à história,
e isto sempre ocorreu. Não existe ainda para a humanidade
uma pressão incontível nesse sentido. Talvez o leitor até o
momento tenha estranhado que eu considere essa tendência
ao domínio mundial como um objetivo evidente de todos os
pretendentes, no correr deste capítulo. Não existe, de fato,
algo que hoje se denomina “ coexistência” como alternativa?
Talvez o domínio do mundo rião fosse o objetivo de qualquer
povo da Terra, se se deixasse que ele vivesse como deseja,
e isso talvez fosse a melhor solução. Instituições como as
“ Nações Unidas” (ONU) e, já antes dela, a Liga das Nações
têm exatamente este objetivo. Mas, tão logo foram fundadas,
transformaram-se em instrumentos do fortalecimento de ter­
A I n t e g r a ç ã o P o l ít i c a das M assas na A t u a l id a d e 395

ceiros e das alianças na guerra de todos contra todos. É per­


feitamente possível que a Rússia e a China se contentem com
o que já têm e mesmo um Hitler só quisesse terra para o
excedente humano de seu povo, da mesma forma que as
poleis gregas em sua colonização no Mediterrâneo, ou os
germanos e arianos com a migração dos povos e na Índia.
A própria indústria, por si mesmo, pressiona no sentido da
integração de territórios que absorvam sua produção, e a
América com sua indústria altamente desenvolvida tem que
fazer essa experiência — quase que pode dizer-se: a contra­
gosto. Apesar disso, a América não conseguiu ter qualquer
clareza de que, exatamente por isso mesmo, forçou a Rússia
e a China à industrialização forçada, se não quisessem ter
o mesmo destino que o Japão antes de Pearl Harbor. Mas,
com isso, e somente aí, produziu os adversários com os quais
tem que se bater agora na luta pelo domínio mundial. Isto
se choca inteiramente com sua tradição. Acresce ainda que a
América está mal preparada para isso. Contudo, não tem
outra escolha, se quiser sobreviver. Sua possibilidade de es­
colher é tão inexistente quanto a da Rússia, que, como vimos,
teve que coordenar suas pequenas e ínfimas comunidades
celulares pelo partido e concentrar-se em um império dita­
torialmente governado.
Como é organizada a sociedade industrial americana?
Segundo sua constituição, a América reconhece o voto
universal, igual e secreto, por meio do qual são eleitos a câma­
ra de deputados, o senado e os eleitores do presidente da
república. Isto está de acordo com as concepções do século
XVIII. Na verdade, o interesse da população na política é
muito pequeno, o mesmo ocorrendo com o patriotismo cen­
trado no Estado. O próprio número dos que tomam parte
nas eleições é relativamente menor do que na Europa. “ A
política americana, em geral, é feita por pequenas minorias
bem organizadas que, na maioria dos casos, são minorias ‘in­
visíveis’ ligadas pela esperança comum em determinadas van­
tagens” (Gorer). É claro que o voto é livre. Contudo, a
maioria esmagadora da população ou não tem qualquer in­
teresse pela política ou, então, não está de forma alguma
em’ condições, da mesma forma que o resto do mundo, de
julgar o que os eleitos fazem ou o que é que elegem quando
votam. As decisões mostradas por instituições especializa­
396 H is t ó r ia das I d é ia s S o c ia is

das em sondagens de opinião pública (Gallup), por exem­


plo, muito raramente expressam aquilo que as pessoas, por
sua própria natureza, deveriam pensar, se é que de fato pu­
dessem chegar a uma conclusão por si mesmas. Os dois
partidos que, nos Estados Unidos, disputam o privilégio ex­
clusivo de poderem ser escolhidos alternadamente não se
diferenciam apenas por suas cores distintas (verde ou azul)
como na antiga Bizâncio, mas também por seus símbolos ani­
mais (elefante ou jumento), assim como por aquilo que Go­
rer chama de “ pequenos grupos de interesses” . Trata-se ape-
mas do “ outro” em relação ao “ um” , e quando se está insa­
tisfeito, pelos mais diferentes motivos, na maioria das vezes
meramente superficiais, com o “ um” , tem-se a liberdade de
recorrer ao “ outro” . A campanha eleitoral propriamente dita
é levada a efeito por meio de revistas musicais e outros meios
“ cientificamente” elaborados de idêntico valor, como anún­
cios de sabonete, dentifrícios e cigarros, que o americano
isolado é contra qualquer forma de governo em seu próprio
país, não importa a qual partido pertença. Mas isso não
deriva de um desejo de melhoria apaixonado e politicamente
produtivo, e sim de um ceticismo fundamental. Ele não
considera seu próprio governo como representação legitima,
a não ser raramente, da essência de sua sociedade industrial,
e sim como “ os de cima” , diante dos quais deve manter-se
desde o início uma atitude de reserva. Isto naturalmente
vem do tempo em que a América ainda não era um Estado
entre outros Estados, e sim uma sociedade quase anárquica,
defendida pela natureza e pelos oceanos, ou uma reunião de
“ comunidades locais” . “ Democracia” , só por isso, não pode
significar aqui “ autogoverno dos governados” como significava
entre os gregos da polis ou para Rousseau, porque falta o
verdadeiro patriotismo enquanto amor ao Estado. De qual­
quer forma, os nomes são sempre convencionais e não tem
qualquer sentido estabelecer uma discussão sobre palavras.
A questão — e quase que poderia dizer-se: a questão
vital — consiste apenas em saber como é que o governo
americano assim formado está em condições de afirmar seu
Estado entre outros Estados. Esta é a questão vital porque
o mundo se tomou muito pequeno e porque hoje existem
dois outros contendores para o domínio mundial: a Rússia e
a China. Esses dois países só concretizaram o industrialismo
— como vimos anteriormente — para afirmar-se diante da
A I n t e g r a ç ã o P o l ít ic a das M a ss a s na A t u a l id a d e 397

América e da Europa. Contudo, não o introduziram em sua


forma comunitária puritana ou capitalista privada, mas em
sua forma marxista política. O leitor desse livro é que deve
opinar se um governo assim formado está em condições de
conservar o patrimônio de seu país. O autor não considera
sua missão desempenhar o papel de profeta. A história de­
pende de vários fatores, de constelações de poder, que po­
dem mudar a cada instante. A técnica e a indústria da Amé­
rica decidiram já o curso de duas guerras mundiais, mas tam­
bém obrigaram os outros povos a industrializar-se para não
se tomarem simples objeto de exploração de sua indústria.
Atualmente, a América chega inclusive a ajudar quem quiser
atravessar esse processo. Fica, assim, em suspenso a questão
de saber se a América com esse método está assegurando
seu futuro ou se, como o Crono da mitologia grega, produz
o filho que virá destruí-la.
Contudo, na medida em que a industrialização é o des­
tino essencial de toda a humanidade, pode não ser nada essen­
cial saber quem finalmente obterá o domínio mundial. Em
1934, em meu livro Der Staat (O Estado) , eu já havia ma­
nifestado esta opinião. Vimos que para o americano David
Riesman, da mesma forma que para Marx, só restava o “ homo
ludens”, só resta o tempo livre, finalmente considerado como
o único objetivo dessa nova “ revolução” industrial. Já se
observou freqüentemente que as diferenças entre a América
e a Rússia em última análise não são tão grandes quanto a luta
partidária dá a entender. A industrialização partiu da Améri­
ca. O fato de que a América pode hoje oferecer muito mais
desse objetivo final do desenvolvimento humano, a pura so­
ciedade do consumo, do que a Rússia ou a China, que apenas
dá os primeiros passos nesse caminho, é indiscutível. A Amé­
rica não somente começou primeiro, como também não ne­
cessitou de pressão estatal para transformar uma sociedade
agrícola em industrial. A pressão no sentido da auto-afirma­
ção na concorrência econômica, que se coloca aqui no lugar
da pressão estatal, não deve ser subestimada e freqüente­
mente é tão impiedosa quanto a estatal.
A questão real é saber se o homo faber da indústria, com
sua variante utópica, o homo ludens secularizado e inteira­
mente entregue ao arbítrio do tempo livre, constitui hoje
a única possibilidade, o único sentido da vida humana na
terra. Na América, a própria religião — qualquer que seja
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a Igreja, seita ou conventículo — é atualmente considerada


como uma ocupação do tempo livre, ao lado de muitas ou­
tras, fora da indústria e dos negócios.
Nem a forma social de existência humana americana,
nem a russa, nem a chinesa moderna constituem uma comu­
nidade. A forma russa foi, como vimos anteriormente, uma
sociedade, que foi domjnada por uma elite que é mantida
unida pela desconfiança e dependência recíproca de seus
membros. Na China ocorre o mesmo em proporções mais
acentuadas e variadas. A forma americana, pelo contrário,
foi uma sociedade mantida em unidade por exigências ex-
temas, dominada pelo equilíbrio dos grupos de interesse in­
dustrial e publicitários e com a obrigação posterior de defen­
der seu modo de vida em um mundo que se tomou pequeno.
Internamente, porém, tratava-se de uma sociedade de con­
corrência na qual o dinheiro representa o principal critério
do sucesso. A questão, hoje, residiria para todas essas for­
mas sociais em um retorno a formas autênticas de comuni­
dade e a verdadeiros individualismos. Na sociedade indus­
trial não há lugar para nenhum dos dois. Na América, a
comunidade puritana autenticamente religiosa está, de há
muito, secularizada e degenerada. Na Rússia, as comunida­
des previstas em dispositivos constitucionais foram aterrori­
zadas pelo partido e permanecem apenas como um sonho em
romances como o de Daniil Granin, anteriormente citado.
Na China, as comunas que deveriam concretizar o comunismo
representaram uma experiência fracassada (Klaus Mehnert,
Peking und Moskau [Pequim e Moscou], 1962).
A terceira possibilidade, contudo, que Epicuro na an­
tiguidade e Schopenhauer no século XIX indicaram, a de
um individualismo que desvalorizasse a comunidade política
em geral, tornou-se hoje bastante reduzida. As possibilida­
des técnicas da economia ou do poder total <3o Estado, a
pressão no sentido do automatismo do trabalho, da especia­
lização, do consumo padronizado e da formação da opinião
pública por meio da propaganda uniformizada, e, finalmente,
a falta de lugar em um mundo que se tornou pequeno, para
o número de habitantes que nele vivem excluem cada vez
mais o “ Viver às ocultas” . Em lugar desse individualismo,
surgiu o isolamento da pessoa humana nas massas. Na me­
lhor das hipóteses, poderia surgir desse estado de necessidade
uma verdadeira satisfação, pela qual todos anseiam.
*
Este liv ro f oi co m p o s t o e
i mpr es so p e la EDIPE Ar t es
Gr áf ic a s . Rua Domingos
P a i va , 60 — São Paulo.
HISTÓRIA SOCIAL E ECONÔMICA
DA IDADE MÉDIA

O mito da Idade Média como “ idade obscura” , difundido pelos histo­


riadores liberais do século X IX , foi totalmente derrogado pela historiografia
contemporânea. Com ampla riqueza de argumentos, esteados em fatos in­
controversos, mostraram eles que a história da Idade Média é de funda­
mental importância para a compreensão orgânica do mundo moderno.
Tampouco é o Medievo “ uma fase de transição” entre a Antiguidade
Clássica e o mundo contemporâneo. Isso porque a sua história é a própria
história da Europa em suas bases romano-cristãs: o Ocidente, como hoje o
consideramos, foi elaborado nas retortas sociais, culturais, econômicas e
políticas do Medievo, e ali nasceram as instituições e os valores que tor­
naram possível a nossa civilização. Está hoje comprovado que com O c c a m ,
O r é s m i o e outros, os séculos X III e X IV elaboraram o espírito da ciência
moderna. Também está comprovado que o próprio Renascimento, por longo
tempo apontado como a contraface do Medievo, começou com F r a n c e s c o
D 'A s s is i , quer dizer, na própria Idade Média. Isso para não falar da eclosão
das várias “ renascenças” no próprio contexto medieval, como a carolíngia
no século IX , a “ franciscana” nos séculos X II e X III, a francesa no século
X III e a nominalista no século X IV , das quais a Renascença foi apenas a
natural e lógica conseqüência.
Voltar, portanto, ao estudo da Idade Média é debruçar-se sobre esse
fato histórico supremo que se chama a fundação da Europa, a unidade que
ela transmitiu à Europa. Com o fechamento do Mediterrâneo pelos árabes,
o Ocidente, tendo perdido a principal via de seu comércio marítimo, foi
obrigado a autarquizar-se. A Europa agrarizou-se. Os latifúndios conver­
teram-se em únicos centros de atividade econômica. A sociedade hierarqui­
zou-se em barões e servos. A organização política que correspondeu a essa
estratificação econômica e social foi o feudalismo. O capital imobilizou-se
nas mãos dos senhores rurais. Também feudaliza-se a Igreja. Nos quadros
dessa economia sedentária e dessa hierarquização social, instala-se uma con­
cepção fechada do mundo. Mas esse imobilismo é uma muralha com fendas:
aquelas que foram abertas pelas Universidades. Começa, então, a “ meta­
morfose medieval” : surgem inovações técnicas, organiza-se o crédito, esta­
belecem-se as corporações, ensaiam-se indústrias, expandç-se a urbanização e,
com ela, a secularização.
A rapsódia desse ciclo histórico, eis o que é esta História Social e
Econômica da Idade Média, do Professor G e r a l d H o d s e t t , do King’s
College, de Londres, verdadeiro corte transversal numa época que foi uma
das matrizes da cultura e do espírito ocidentais.

ZANA K

125
EDI TORES
A c u ltu ra a se rv iço d o p ro g re s s o s o c ia l

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