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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE LETRAS
LICENCIATURA EM LETRAS - INGLÊS

KELY SILVA DE CARVALHO

Memória, Testemunho e Esquecimento na


distopia feminista O Conto Da Aia de Margaret Atwood

Goiânia
2021

KELY SILVA DE CARVALHO


Memória, Testemunho e Esquecimento na
distopia feminista O Conto Da Aia de Margaret Atwood

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


curso de Letras - Inglês da Universidade Federal de
Goiás, como requisito parcial para a obtenção do
título de licenciatura em letras.

Orientadora: Profa. Dra. Tarsilla Couto de Brito

Goiânia
2021
KELY SILVA DE CARVALHO
Memória, Testemunho e Esquecimento na
distopia feminista O Conto Da Aia de Margaret Atwood

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


curso de Letras - Inglês, da Universidade Federal de
Goiás, como requisito parcial para a obtenção do
título de licenciada em Letras - Inglês.

Aprovado em ____ de ___________de 2021

Banca examinadora

___________________________________
Profa. Dra. Tarsilla Couto de Brito - UFG
Orientadora

___________________________________
Dedico este trabalho à minha bisavó, Rosulina, índia forte,
destemida e poeta. A minha avó materna, Ana, amorosa e
corajosa. A minha avó paterna, Júlia, que serviu café a
Lampião. E a minha mãe, Maria, que me ensinou a buscar
independência e a não esmorecer diante de nenhuma
dificuldade. Eu sou porque vocês foram, porque vocês são e
porque vocês correram para que eu hoje pudesse caminhar.

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a ex-presidenta


Dilma Roussef por terem contribuído com o processo de democratização das universidades
públicas.
Agradeço à minha orientadora, pela paciência, paixão e esforço em ensinar, minha
admiração e gratidão serão eternas.
As minhas professoras e professores, que com paciência e amor ressignificam o
processo de ensinar.
Ás minhas colegas pelo companheirismo e amizade.
A meus pais por acreditarem em mim.
A meu companheiro nesta vida, Luiz, pelo amor, afeto e por estar presente.
Por fim, agradeço a meus gatinhos, Carlitos e Veneza, pelos ronrons que auxiliaram
para que eu não enlouquecesse no processo de escrita de um trabalho acadêmico em meio a
uma pandemia que, infelizmente, dizimou várias vidas e várias famílias.
“Quando aniquilaram o Congresso, não acordamos. Quando
culparam terroristas e suspenderam a Constituição, também
não acordamos. Disseram que seria temporário. Nada muda
instantaneamente. Você seria fervido numa banheira de
aquecimento gradual antes que percebesse”.
(O conto da Aia - Margaret Atwood)

RESUMO

Esta pesquisa intenciona analisar o romance O Conto da Aia, da escritora canadense,


Margaret Atwood, ressaltando as características que fazem da obra uma distopia feminista.
Pretende-se também compreender o livro enquanto uma narrativa memorialística, na qual as
lembranças e rememorações da personagem principal é que conduz e guia o nosso olhar sobre
a trama. Desta forma, o trabalho pretende analisar os aspectos fundantes do gênero distópico,
descrevendo a formação e as principais características que definem este modo literário, além
de analisar a relação entre literatura e memória a partir da narrativa do romance.

Palavras-chave: Distopia, Utopia, Memória, Testemunho, Literatura


ABSTRACT

This research aims to analyze the novel The Handmaid’s Tale, writing by the Canadian
writer, Margaret Atwood, highlighting the characteristics that make the book a feminist
dystopia. We also intended to understand the book as a memorialistic narrative, in which the
main character's memories and recollections lead and guide our view of the plot. Hence, we
propose to analyze the founding aspects of the dystopian genre, describing the formation and
the major characteristics that define this literary mode, in addition to understanding the
relationship between literature and memory based on the novel's narrative.

Keywords: Dystopia, Utopia, Memory, Testimony, Literature.


SUMÁRIO

1- INTRODUÇÃO------------------------------------------------------------------------------------- 10
2 - CAPÍTULO I - UTOPIAS, DISTOPIAS, RELATOS DO CAOS------------------------ 12
2.1 - A Utopia Literária a partir de Morus----------------------------------------------------------- 12
2.2 - Definições e princípios da utopia literária----------------------------------------------------- 15
2.3 - Da ilha de Morus às utopias feministas: o gênero utópico enquanto variável histórica- 18
2.4- As mulheres na Utopia---------------------------------------------------------------------------- 25
2.5- As distopias---------------------------------------------------------------------------------------- 28
2.6 - Distopias feministas------------------------------------------------------------------------------ 34
2.7 - O conto da aia enquanto distopia--------------------------------------------------------------- 39
3- CAPÍTULO II- MEMÓRIA, NOSTALGIA E TESTEMUNHO------------------------- 49
3.1 - A narrativa memorialística de Offred---------------------------------------------------------- 49
3.2- “A memória é do passado”----------------------------------------------------------------------- 50
3.3- A memória do passado em O conto da Aia---------------------------------------------------- 53
3.4- O testemunho da Aia: relatos de opressão, identidade e experiência---------------------- 60
4- CONSIDERAÇÕES FINAIS-------------------------------------------------------------------- 65
5- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS-------------------------------------------------------- 68
INTRODUÇÃO

Um dos motivos que me levaram a cursar a graduação em Letras foi a minha paixão
pela literatura. Desde criança o meu contato com os livros foi o que me ajudou a socializar e
a desenvolver um pensamento crítico em relação às problemáticas sociais e à própria natureza
humana. Os livros contribuíram para que eu me formasse uma cidadã consciente das
injustiças sociais, nesse sentido, no decorrer do meu desenvolvimento, a desigualdade de
tratamento em relação às mulheres em todos os âmbitos da vida social, me fez questionar os
motivos do tratamento opressivo legado à nós, meninas, no escopo da nossa sociedade.
Através do contato com estudos feministas, de escritos teóricos à narrativas pessoais,
fui conhecendo autoras, ideias e projetos que procuram compreender e analisar a opressão
feminina e seus desdobramentos, além de movimentos políticos e culturais que conclamam
um maior reconhecimento da produção feminina no mundo das artes, um desses movimentos
foi o projeto Leia Mulheres.
O Leia Mulheres, ou Read Women, foi criado em 2014 pela escritora inglesa Joanna
Walsh. O projeto tem por objetivo promover a visibilidade do trabalho editorial de mulheres,
através de ações de incentivo à leitura de livros de autoria feminina. No Brasil, o Leia
Mulheres criou raízes a partir de 2015, espalhando-se através da formação de clubes de
leituras em diversas cidades pelo país. Esses clubes reúnem-se uma vez por mês para debater
a produção de autoras diversas.
Foi por meio desta iniciativa que tive a oportunidade de conhecer e ler o romance O
Conto da Aia, da escritora canadense Margaret Atwood, pela primeira vez. Lançado em
1985, o livro é um dos mais conhecidos romances da autora. A história, narrada em primeira
pessoa pela aia Offred, passa-se na República de Gilead, país localizado no que era antes
conhecido como os Estados Unidos da América. Gilead formou-se após uma série de golpes e
revoltas, arquitetados por um grupo religioso, patriarcal e homofóbico que assumiu o poder e
implantou uma ditadura teocrática. Neste novo país, as mulheres são divididas em espécies
de castas, cada uma responsável por uma função na nova sociedade.
Após esse primeiro contato, logo depois participei de um projeto de Prática como
Componente Curricular (PCC) da Faculdade de Letras da UFG, o qual visava também fazer
um estudo do romance. A partir de então minha paixão pela escrita política, analítica e
consciente de Atwood se intensificou, uma vez que, em suas obras a autora procura sempre
trazer a perspectiva feminina à tona, construindo mulheres que são muito mais que objetos de

10
fundo para o desenvolvimento de um personagem masculino. Em Atwood as mulheres, o
tratamento dado a elas pelo pensamento patriarcal, são expostos como forma de crítica social.
Pensando nisso, a pesquisa aqui empreendida procura analisar o romance de Margaret
Atwood, compreendendo-o enquanto uma distopia, explicitando as características
determinantes desse modo literário. Além disso, objetivou-se compreender de que forma o
romance é construído tendo por base uma narrativa memorialística em que, as rememorações,
nostalgia e lembranças da personagem-narradora, desvela as subjetividades, opressões e
identidades que formam a sociedade Gileadiana, sendo a memória aqui, ferramenta utilizada
para a construção do sujeito feminino na trama. Numa perspectiva que parte da crítica
literária feminista e de uma análise interpretativa, neste estudo analisamos estruturalmente a
obra de Atwood, tendo por base bibliográfica os autores Tom Moylan (2000), Lyman Tower
Sargent (s.d), Ildney Cavalcanti (2003), além de pesquisadores como Paul Ricoeur (s.d), Joel
Candau (s.d), Patrícia de Cássia Pereira Porto (2011), Márcio Seligmann-Silva (2018) e
Beatriz Sarlo (2007), entre outros, que analisam os conceitos de distopia, teoria da memória e
narrativa memorialística, foram investigados e contextualizados na análise desse livro.
O Conto da Aia foi escolhido porque levanta questões que hoje respaldam a
problemática social, ou seja, a sociedade que a autora criou em 1985, encontra reverberação
no avanço do pensamento conservador hoje vigente. Desta forma, a obra explora questões
tangentes relativas à exploração das mulheres enquanto engrenagens e objetos que
movimentam um sistema teocrático, representando a violência e a repressão enquanto crítica
à contemporaneidade.

CAPÍTULO I - UTOPIAS, DISTOPIAS, RELATOS DO CAOS.

11
2.1- A UTOPIA LITERÁRIA A PARTIR DE MORUS.
A utopia é um gênero literário que possui uma longa história de resistência e crítica
política. O gênero deriva seu nome e estrutura da obra A Utopia de Thomas Morus, lançada
no ano de 1516 (FUNCK, 1998).O neologismo, criado pelo autor e que descreve este modo
literário, é uma junção dos termos gregos eu-topos e ou-topos. Assim, o projeto utópico se
define por apresentar essa “ambiguidade entre ser algo distante (ou-topos) e um lugar feliz
(eu-topos)” (SELIGMANN-SILVA, 2009, p. 308) e como nos traz Fátima Vieira (2010,
p.04, tradução nossa) “utopia é, portanto, um lugar que é um não-lugar, simultaneamente
constituído por uma movimento de afirmação e negação”1. Em outras palavras, o que o
gênero utópico propõe é a construção e a descrição de um lugar imaginário, numa trama, que
se propõe também política, no qual o escritor/escritora molda um sistema societário
idealizado de forma a incorporar um modelo de perfeição (SELIGMANN-SILVA,2009;
FUNCK, 1998). Como encontrado em Moylan (2010, p.72, tradução nossa), o neologismo
que nomeia o gênero literário traz já em seu cerne o objetivo de ser um texto que descreve
um lugar imaginado, mas que encontra ressonância em nosso mundo
O imaginado bom lugar não pode ser encontrado em lugar nenhum deste
mundo que existe atualmente e, desta forma, está além e ao mesmo tempo
conectado ao momento histórico - permanecendo, assim, como uma crítica,
mas também como um sinalizador.2

Portanto este não lugar é ao mesmo tempo, uma crítica às sociedade existentes, bem
como um projeto do que poderia existir caso as ações humanas se dirijam a favor dos
valores de bem comum definidos em cada época histórica.
Nestes termos, a obra de Morus inventa e inaugura uma gênero literário, porém a
essência deste gênero, ou deste desejo por transformações sociais, podem ser encontradas já
nos textos bíblicos de tradição cristã, que trazem a ideia de uma paraíso localizado em um
mundo aquém da nossa realidade vivida, que somente pode ser alcançado através da
evolução espiritual humana. Morus incorpora esse desejo cristão e o mescla às ficções
políticas de séculos anteriores como A República, de Platão, e Cidade de Deus, de Santo
Agostinho, que propunham um projeto de criação de modelos alternativos de organização
social, mais justos e igualitários (VIEIRA, 2010), às narrativas de viagens e à estrutura
romanesca (POHL,2010). No entanto, enquanto que em A República, Platão não vai além da
1 Utopia is thus a place which is a non-place, simultaneously constituted by a movement of affirmation and
denial. (VIEIRA, 2010,p.04)

2 The imagined good place is nowhere to be found in the world as it presently exists and is therefore both
beyond and yet connected to the historical moment-thus standing as a critique but also as a signpost.”
(MOYLAN, 2010, p.72)

12
confabulação do que para ele seria uma sociedade ideal, Santo Agostinho vê a possibilidade
de melhora tão somente no além vida, Morus amplia o desejo utópico, incorporando a estes
pensamentos a possibilidade da ação humana em prol da transformação social (VIEIRA,
2010).
Como nos traz Fátima Vieira (2010), o conceito de utopia desenvolvido por Morus é
fruto do pensamento moderno e inspirado nas possibilidades de existência de outros
“mundos”, novas organizações sociais, que veem com a era das navegações e das
colonizações. E é por isso que nas utopias do período que segue do século XIV ao início do
século XVIII, as narrativas são centradas em ilhas, cidades, mundos localizados em algum
lugar distante. São narrativas de viagens geográficas, que integram o literário e o político à
ideia do paraíso que pode estar localizado em um novo mundo (POHL, 2010). A obra de
Morus, por exemplo, narra a história de uma ilha, governada por um sistema republicano
racional, onde justiça, liberdade e igualdade são imperativos sociais. Esta ilha paradisíaca é
conhecida por Utopia. O livro, que é dividido em duas partes, descreve este não lugar,
usando o relato do viajante português Rafael Hitlodeu. Essas descrições de Hitlodeu são
inspiradas em relatos verídicos de viajantes que participaram dos ciclos de colonizações,
como Américo Vespúcio, Cristóvão Colombo e Angelo Poliziano (BARBOSA, 2003;
VIEIRA, 2010). Segundo Jorge Luiz Barbosa (2003), as situações narradas pelo personagem
principal da obra baseiam-se num discurso memorialístico, uma vez que Rafael relembra e
reconta situações vivenciadas por ele naquele lugar ideal, detalhando a experiência vivida
em um relato pormenorizado que quer ir além da fantasia.
Motivado pela perspectiva histórica do Renascimento, que crê na capacidade humana
de moldar-se e de evoluir, e na euforia das possibilidades das viagens aos continentes recém-
descobertos, Morus imprime em sua utopia uma ideologia que, partindo de observações
acuradas da realidade que o cerca, cria mecanismo que propõe um novo projeto de
civilização, que não se pretende perfeito, mas ao menos melhor do que a realidade vivida
(VIEIRA, 2010). A descrição da natureza e dos sistemas políticos e econômicos da ilha-
paraíso, assim como as exemplificações da organização social do lugar, retiram sua
verossimilhança nas inspirações do mundo pré-existente. Embora seja um lugar imaginado,
a ilha de Utopia é narrada com todas as nuances, como se de fato pudesse ser encontrada.
Tais particularidades persistem nas utopias que viriam depois, fazendo com que
Uma das principais características da utopia enquanto gênero literário é esta
relação com a realidade. Os utopistas partem da observação da realidade em
que vivem, fazem anotações dos aspectos que precisam ser mudados e

13
imaginam um lugar onde estes problemas tenham sido resolvidos (VIEIRA,
2010, p. 07, tradução nossa)3.

Portanto, parte-se de uma análise das instituições do presente, das dinâmicas humanas do
vivido, para se construir um projeto de futuro em que o que não cabe mais à evolução
humana possa ser renovado.
Partindo deste ponto, a descrição utópica é uma construção discursiva plausível, que
opera por princípios de exemplificação e demonstração, ou seja, descreve-se a sociedade
imaginada, relatando as diversas nuances de seu funcionamento, bem como dando
indicações de situações em que essas relações sociais, econômicas e políticas se fazem
presentes (SUVIN apud MOYLAN, 2000). Desta forma
A Utopia não é uma fantasia inconseqüente ou extravagância, mas
imaginação concreta, como relembra Teixeira Coelho (O que é Utopia),
cujo lastro de plausibilidade é dado pela realidade da própria antecipação
visada. A Utopia como gênero é um modo de manifestação da razão e não
somente uma mera insatisfação com o mundo real que corresponderia à
criação de situações ideais. (BARBOSA, 2003, p.27)

O gênero nos convida então a um agir histórico, ao contrastar dois mundos distintos, o local
distante, imaginado e idealizado, e a sociedade vivida. O que está no intertexto das utopias é
o despertar do desejo por mudanças e por um pensamento crítico, conforme Fátima Vieira
(2010, p.07, tradução nossa) “a Utopia deve então ser vista como um questão de atitude,
como um tipo de reação a um presente indesejável e uma anseio para superar todas as
dificuldades através da imaginação de realidades possíveis”4. O gênero seria uma espécie de
literatura engajada, não panfletária, não dedicada a criar e propor mistificações, ao contrário,
baseia-se em conceitos e perspectivas de seu tempo histórico, conforme Barbosa (2003,
p.29) “o discurso utópico é a-histórico, pois sua existência é condicionada socialmente
através de valores, juízos, tradições e representações culturais”. Assim, as utopias são forças
sociais que geram mudanças, ou seja, para além de serem literatura, história, política, ou etc,
as utopias literárias, principalmente aquelas precursoras do gênero, baseiam-se em relatos
que se querem ferramentas para pensar o mundo e propor mudanças.

3 One of the main features of utopia as a literary genre is its relationship with reality. Utopists depart from the
observation of the society they live in, note down the aspects that need to be changed and imagine a place where
those problems have been solved. (VIEIRA, 2010, p.07).

4 Utopia is then to be seen as a matter of attitude, as a kind of reaction to an undesirable present and an
aspiration to overcome all difficulties by the imagination of possible alternatives. (VIEIRA, 2010, p.07)

14
2.2 - DEFINIÇÕES E PRINCÍPIOS DA UTOPIA LITERÁRIA
Ao pavimentar a estrada de uma nova tradição literária, Thomas Morus, como
dissemos anteriormente, canaliza as crenças e aspirações de seu tempo e mais que isso, ele
parte do princípio de que, o anseio de evolução por lugares e futuros melhores é parte do
desejo humano. Do Jardim do Éden à Shangri-lá, os indivíduos aspiram a transformações e
mudanças e criam paraísos alternativos que canalizam esses desejos (POHL, 2010),
portanto, não é uma construção imaginativa que emerge de um impulso subjetivo, ao
contrário é uma resposta construída socialmente, conectada à seu tempo, que vem atender as
necessidades e anseios dos momentos históricos em que se desenvolvem (MOYLAN, 2000).
Essas aspirações são utilizadas por Morus e é um dos princípios que caracterizam o novo
gênero. Além de alimentar o paradoxo encontrado na ideia de ser um lugar feliz, ainda que
distante, como poderíamos definir então as utopias?
Para Darko Suvin (2015) embora uma definição clássica do gênero considere a utopia
como “a construção de uma comunidade singular onde instituições sociopolíticas, normas e
relações entre as pessoas estão organizadas de acordo com um princípio radicalmente
diferente que o da comunidade do autor” (p.468), tal caracterização estaria ligado
principalmente as primeiras utopias. De lá para cá, as mudanças históricas foram muitas e,
além disso, a questão das chamadas “relações mais perfeitas” tornaram-se ineficazes, uma
vez que, a perfectibilidade dessas relações são definidas se comparadas a que, quem ou em
qual época histórica?. Se tomarmos como ponto de referência, por exemplo, os primeiros
textos utópicos, pouco é feito em razão da construção de relações melhores para as
mulheres. (FUNCK, 1998; FERNANDES et all, 2017).
Kenneth M. Roemer (2010), ao pensar numa definição do gênero utópico menciona que
esse tipo de literatura trata-se de uma narração que descreve em detalhes uma cultura
imaginada mas que também tem conexões com a própria percepção dos leitores sobre o
texto, para o autor essa narrativa é ainda
Uma ficção que convida os leitores a experimentar vicariamente uma
realidade alternativa que critica a deles, abrindo espaços intelectuais e
emocionais que incentivam os leitores a perceber as realidades e
potencialidades de suas culturas de novas maneiras. Se o autor e / ou leitores
percebem a cultura imaginária como sendo significativamente melhor do
que sua realidade "presente", então a obra é uma eutopia literária (ou mais
comumente, uma utopia); (ROEMER, 2010, p.79, tradução nossa) 5

5 A fiction that invites readers to experience vicariously an alternative reality that critiques theirs by opening
intellectual and emotional spaces that encourage readers to perceive the realities and potentialities of their
cultures in new ways. If the author and/or readers perceive the imaginary culture as being significantly better
than their ‘present’ reality, then the work is a literary eutopia (or more commonly, a utopia); (ROEMER,
2010,p.79)

15
Lyman Tower Sargent (2005), como Darko Suvin, não acredita numa definição clara e
única sobre o gênero. O estudioso afirma que, embora ao longo dos anos, pesquisadores e
pesquisadoras diversos, tenham se dedicado a buscar delineações precisas para o gênero,
essa urgência em caracterizar em uma única, clara e límpida definição é um trabalho
complexo, primeiro porque há variados desacordos entre os estudiosos/estudiosas e o
próprio nome é ambíguo, como já mostrado anteriormente. Segundo, o gênero é, por vezes,
híbrido e evolui constantemente, de acordo com as urgências históricas em que se
desenvolvem. Terceiro, o termo Utopia passou a definir não apenas uma forma literária, mas
também modos de pensar. E por fim, este fenômeno das letras é complexo, e sua definição é
dada por estudiosos baseando-se em um limitado conjunto de textos literários.
Nesse sentido, o que podemos compreender a respeito das definições de utopia é que,
estes textos engajam-se nas descrições de sociedades, de futuros, que são imaginados por
uma/um autora/autor e que, segundo os valores de seu tempo histórico, são narrados como
sendo melhores, como se tratando de evolução se comparado à sua realidade. Portanto, os
textos utópicos são mais descritivos que narrativos, embora exista ali o desenvolvimento de
uma história com início, meio e fim, são as descrições que guiam a narrativa. Essas
descrições de mundos, ou futuros, são semelhantes às sátiras, segundo Suvin (2003), pois
ironizam as instituições do presente, com o intuito de causar um desejo por mudança. E
ainda, as utopias baseiam-se na lógica do princípio de estranhamento (estrangement), que
representa
uma estratégia cognitiva de percepção-cum-avaliação baseada no desejo
crítico radical. Ele comporta múltiplas possibilidades de anamorfose e
reversão de aspectos salientes no mundo do autor e possui como propósito o
reconhecimento de que o leitor realmente vive num mundo de valores às
avessas. (SUVIN, 2015, p.468-469)

O estranhamento se daria, em linhas gerais, quando no desenrolar da utopia o viajante se


depara com novas possibilidades e organizações que se diferem daquelas presentes em seu
mundo, fazendo com que o personagem comece a imaginar modos diferentes de conceber
também a sua terra natal. Embora Suvin utilize o termo principalmente no seu processo de
estudo da ficção científica, ele também o elabora no entendimento das utopias.
Partindo deste ponto, a definição da utopia perpassa a compreensão de características
que demonstram como o gênero opera. Para Lyman Tower Sargent (2005), esta é a forma
mais interessante e eficaz de entender as utopias. Fátima Vieira (2010) menciona quatro
características fundamentais que historicamente ajudam a compreender as utopias, estas

16
seriam: 1- o aspecto da sociedade imaginada, ou seja, é preciso identificar esse não lugar
como um bom lugar; 2- a forma literária que compreende a imaginação utópica, isto é, a
maneira com que a narrativa é estruturada ajuda a defini-la; 3- a função da utopia,
estabelecida como sendo essa literatura engajada que impacta o leitor e o convida a uma
ação política; 4- o desejo de uma vida melhor, assim, o descontentamento com a realidade
vivida gera esse desejo de buscar maneiras alternativas de viver. A autora critica algumas
dessas categorias. Segundo ela, a ideia de um bom lugar é subjetiva, nesse sentido pensar a
utopia enquanto o teor da sociedade imaginada é frágil, bem como pensá-la enquanto uma
estrutura cristalizada ou esse chamado à ação (que não se encaixa perfeitamente com os
primeiros exemplos de utopias). Fátima Vieira menciona então que, ao se pensar neste
gênero literário deve-se levar em conta principal e essencialmente a sua energia primordial,
que seria a esperança. Desta forma, a utopia poderia ser vista “como uma questão de
atitude”, ou seja, uma reação motivada pela desilusão com o presente social e o desejo de
propor mudanças.
Retomando o pensamento de Sargent, Ruth Levitas (1990 apud MOYLAN, 2000)
procura estudar a significação do gênero, não para estabelecer caracterizações limitantes e
ortodoxas, mas ao contrário, para permitir a sobrevivência dos estudos da utopia e o
entendimento de sua história e prática. A autora também busca analisar esse modo literário
focando nos três aspectos primordiais no qual suas definições se encaixam, ou seja, forma,
função e conteúdo, sendo que, embora Ruth considere o estudo da função uma das melhores
bases para se definir as utopias, a mesma sozinha não consegue abranger, por vezes a
complexidade desta forma literária. A pesquisadora compreende que a natureza do texto
utópico é melhor caracterizada levando-se em conta a estratégia da educação do desejo
(education of desire). Segundo Ruth, este desejo estaria ligado à aspiração humana de
melhores condições de vida e tais aspirações são variáveis históricas, isto é, transformam-se
com o passar dos anos, o que no passado se entendia como indícios de uma vida mais digna,
hoje talvez possa não fazer mais sentido. Desta forma, o papel da utopia seria o de contribuir
para que as pessoas tivessem um entendimento maior e mais crítico da realidade a sua volta
para que assim pudessem
trabalhar em favor da compreensão do que é necessário para a realização
humana, um alargamento, aprofundamento e elevação de aspirações em
termos bastante diferentes daqueles da sua vida quotidiana (...). Entendida
desta forma, a função utópica deve ser "simultaneamente educativa e

17
transformadora” (LEVITAS, 1990, p.22 apud MOYLAN, 2000, p.85-86,
tradução nossa)6

Portanto, enquanto uma variável histórica, a utopia acompanha o desenvolvimento social de


sua época, criando mundos imaginários que ressoam no mundo real, fazendo com que os
indivíduos pudessem despertar em suas aspirações de mudança para que se criasse um
desejo de transformação social, por isso sua função educativa e transformadora.

2.3- DA ILHA DE MORUS ÀS UTOPIAS FEMINISTAS: O GÊNERO


UTÓPICO ENQUANTO VARIÁVEL HISTÓRICA
A ilha de utopia, proposta e delineada por Thomas Morus, lançou base e forma para
todo o desenvolvimento de um gênero literário. No entanto, embora Morus seja creditado
como pai do utopianismo literário, ao longo da história de seu desenvolvimento, o gênero foi
modificando-se e adaptando-se às perspectivas e anseios históricos das épocas, ele não
estagnou ou desapareceu, ao contrário moldou-se aos novos pensamentos e perspectivas do
que seria então um mundo melhor para viver, acompanhado a própria transformação e a
busca pelo desenvolvimento, evolução e o desejo de acessar melhores lugares para se viver,
persistentes na história humana.
Desta forma, as primeiras utopias, desenvolvidas no século XVI, inspiram-se nos ideias
reinantes à época, os quais viam possibilidades de novos paraísos advindos com a conquista
das Américas. As utopias do período eram marcadas então pelas viagens geográficas, pelas
descrições de um paraíso que encontra-se não no futuro, mas em algum lugar até então
desconhecido, mas provavelmente nesta mesma terra. Assim, com o furor dos então
chamados descobrimentos de novos mundos, ou seja, com o processo de colonização, vinha
também a esperança do que poderia haver ou do que se poderia construir nestes novo locais,
que eram também locais distantes e não locais, uma vez que fugia à visão fundante do que
era considerado civilização para os europeus de então. Nicole Pohl (2010, p.53, tradução
nossa) comenta que “A Utopia é inseparável das viagens imaginárias” 7, por isso, textos que
desenhavam viagens a outros países, outros planetas, outros mundos, eram as expressões da
imaginação e ressonâncias do desejo utópico, que mantinha acesa a esperança de um mundo
melhor (ou outros mundos melhores) para além do vivido e conhecido.

6 To work towards an understanding of what is necessary for human fulfillment, a broadening, deepening and
raising of aspirations in terms quite different horn those of their everyday life’ (...). Understood in this way, the
utopian function must be ‘simultaneously educative and transformative’ (LEVITAS, 1990,p.22 apud
MOYLAN, 2000, P. 85-86)
7 Utopia is inseparable from the imaginary voyages. (POHL, 2010, p.53)

18
Inspirados pelos mapas, desenhos, descrições cosmográficas, gravuras, relatos dos
viajantes (SCHIAVINATTO, 2009), os utopistas criavam seus novos mundos, que
carregavam em suas descrições a crença em uma socialização progressiva, isto é, seus
discursos definiam a socialização, como um processo evolutivo que transformava a barbárie
em civilização, como era a tônica do pensamento colonialista das sociedades européias à
época. Como cita Nicole Pohl (2010), no livro II da Utopia de Morus, por exemplo, os
habitantes de Abraxa (que viria a se tornar a ilha de Utopia) eram rudes e somente puderam
se desenvolver e alcançar um nível de civilidade graças às ações de um bom sistema de
governo. No entanto, paradoxalmente a essa visão, que pensava o mundo europeu como o
civilizado, Morus também transmitia em seu projeto de sociedade uma visão de que era
possível estabelecer relações harmônicas e produtivas entre colonizadores e colonizados
(POHL, 2010), propondo um processo de integração entre os povos.
Transitando entre os discursos do bom selvagem e do mau selvagem, as utopias
seiscentistas eram gênero híbridos que, segundo Nicole Pohl (2010), integravam ideais
políticos a ficções literárias, característica que persistiram, de certa forma, no posterior
desenvolvimento do gênero, assim como os paradigmas de descrição da organização social e
política das civilizações utópicas. Tais escritos idealizam dois tipos de sociedade, que seriam
aquelas que alcançaram um avanço através da regulação estrita por meio do estado e das
instituições (como é o caso da obra de Morus), que controlavam cada aspecto da vida
humana, e as utopias que defendiam a maximização da liberdade, com a possibilidade de
autorregulação social (POHL, 2010). Ambas as formas ainda podem ser encontradas nas
utopias modernas.
Das viagens geográficas partimos para as viagens futurísticas do século XVIII. Se a
partir do século XVI os ideais utópicos de inspiração renascentistas percebiam a razão como
catalisadora de bem estar, acreditavam no indivíduo como elemento decisivo do
desenvolvimento histórico, e viam alargar-se as barreiras geográficas do mundo, durante os
oitocentos, o Iluminismo era a corrente teórica que movia as aspirações e inspirações
utópicas, por isso acreditava-se que a ciência, o método científico, comandados pela razão é
que poderiam levar o progresso às civilizações. Diante deste cenário, as viagens no tempo
tornam-se importantes características da literatura utópica do período. Fátima Vieira (2010),
entre outros pesquisadores, irá chamar essas novas utopias de eucronias, pois o bom lugar
aqui não está em um mundo distante, mas em algum momento do futuro. Em obras como as
de Willian Morris e Edward Bellamy, o devir vem acompanhado de uma ideia de mudança,
que só pode ser alcançada num outro tempo. Segundo Iara Schiavinatto (2009, p.365)

19
A utopia estreitava seus liames com a história na chave iluminista, pois a
sociedade perfeita passava a inserir-se no tempo histórico do futuro, sendo
desencadeada pelo presente do narrador-viajante e do leitor. Ao partilhar o
mesmo presente, passavam a ter o mesmo futuro. A utopia antecipava o
devir, designando-o. Fiada na crença racional do progresso, a utopia
prometia a sua realização.

Sendo assim, ao designar a sociedade perfeita como localizada no futuro, os utopistas


propunham a ideia de progresso como um fator linear, de modo que, as problemáticas
sociais de então, poderiam ser sanadas, por meio do desenvolvimento da ciência e da
história, através do avanço do tempo, que também implicaria um avanço nas mentalidades,
pois a história é um processo evolutivo e de melhorias infinitas e sincrônicas. (VIEIRA,
2010).
Fugindo da perspectiva das viagens imaginárias, que exigiam a criação de outros
mundos históricos, no século XVIII “a utopia transcendia a sua condição insular e se erigia
em uma história universal.” (SCHIAVINATTO, 2009, p. 365), criando mundos que
ressoavam a ideia de que, a busca pela sociedade ideal seria possível a medida que, pela
ação humana e sua capacidade de influenciar nas mudanças históricas, através da ciência e
da razão, uma nova possibilidade de existência haveria de surgir. É a noção de causalidade
que advém nos discursos utópicos de então que, projetando a sociedade ideal no futuro,
pressupunha que “certas ações (nomeadamente aquelas de natureza política) poderiam
permitir as mudanças necessárias que tornariam real a sociedade imaginada. Desse modo, as
utopias se dinamizam e promovem a ideia de que o homem tem um papel a cumprir.”
(VIEIRA, 2010, p.10, tradução nossa) 8. Outro ponto essencial na perspectiva dinâmica da
utopia deste século, é o desenvolvimento da ciência. Conforme Fátima Vieira (2010), este é
um dos fenômenos que permitiu a humanidade alargar as perspectivas de mundo, abrindo-se
à inovação, evolução e desenvolvimento que só seria possível através do método científico,
sendo que a crença no progresso, aliada à teoria da evolução, permitiu aos indivíduos,
pensarem o devir como uma aura brilhante de boas novas, que não é tão somente planos e
imaginações, mas possibilidades.
Com a crença na ciência e o avanço do conhecimento, novas técnicas surgem, o que
permite a criação de instrumentos que potencializam a ação humana. É o desenvolvimento
da tecnologia, que permite ampliar os horizontes de possibilidades, de materiais, de novas
formas de relações, pensamentos e imaginações (CHAUÍ, 2008). A tecnologia é resultado

8 The revolutions themselves provided powerful evidence that utopian ideals could change history and be put
into practice on earth” (p.81)

20
do progresso da ciência, e ela influencia a forma como os utópicos pensavam as sociedades
ideais. Segundo Marilena Chauí (2008, p.11)
Se em Utopia é a política o elemento decisivo - isto é, a figura do legislador
e do governante justo que guia a democracia direta - , com a Nova Atlântida,
o racionalismo e o experimentalismo científicos passam a integrar o
discurso utópico, articulando intrinsecamente a cidade ideal e a ciência , isto
é, o progresso do saber é o elemento decisivo e determina as obras utópicas
posteriores.

Portanto, não são mais os sistemas políticos que tão somente define o avanço de um
civilização, o bom lugar, que agora é no futuro, deve prover a humanidade de instrumentos e
técnicas que permita aos indivíduos ampliar suas capacidades e ter tempo (uma vez que o
trabalho duro é confiado as máquinas) para o desenvolvimento intelectual. E, a partir daqui,
as utopias começam também seu trabalho de aproximar-se da ficção científica.
No século XIX, portanto, irão florescer as utopias que se aproximam de uma
cientificidade que se quer realista e pragmática, ainda que desenvolvidas também no futuro.
Para além das barreiras do imaginado, o gênero literário adquire aspectos de projeto político,
que, no entanto, aproxima o tempo futuro idealizado do tempo real vivido, criando
estratégias narrativas que procuram encadear possibilidades de mudanças reais na sociedade.
Marilena Chauí (2008, p.11) nos traz que “agora, a utopia é deduzida de teorias sociais e
científicas, sua chegada é tida como inevitável porque a marcha da história e o
conhecimento de suas leis universais garantem que ela se realizará.” . Mais que um trabalho
da imaginação fértil de autores e autoras, que querem propor caminhos para o
desenvolvimento de um pensamento crítico de busca de mudanças, as utopias deste século
procuram ser, de fato, uma receita de como essas mudanças serão alcançadas, por meio do
trabalho da ciência e da racionalidade.
A confiança no desenvolvimento científico, no progresso da história e a ênfase na razão
humana, são palavras chaves que definem a produção do século XIX, produção esta que se
voltava para a crença na capacidade do ser humano de evoluir e transformar, na maior parte
das vezes para melhor, o mundo a sua volta. Tal visão, da história como progresso, foram
inspiradas pelas revoluções nas colônias americanas que se tornaram independentes, abrindo
precedentes para a celebração de que os indivíduos poderiam lutar e conseguir libertar-se
das amarras da opressão, caminhando para a democracia e para a liberdade. Para Kenneth
M. Roemer (2010, p.81, tradução nossa) “as revoluções em si mesmas fornecem poderosas
evidências que os ideais utópicos poderiam mudar a história e ser colocado em prática na

21
terra”9, em outras palavras, estes ideais não eram mais, tão somente, narrações fantásticas
localizada no campo das ideias, em um tempo distante, aliás, aqui, o “em outro lugar”
(elsewhere) torna-se o “tempo que virá” (time to come) (ROEMER, 2010, p. 82). A utopia é
agora uma estratégia, uma ficção com possibilidades de materialização real e evidente,
assim como o desenvolvimento linear e evolutivo da história.
Esta noção, da história como “um processo de crescimento da humanidade, até que se
alcance um estado de maturidade, através do qual a sociedade ideal poderiam finalmente
emergir" (VIEIRA, 2010, p.13, tradução nossa) 10, está enraizada na base do pensamento
Marxista, o qual as utopias deste século, em especial das últimas décadas, absorveram,
inclusive com a adesão de pensadores socialistas à ficção utópica. Assim, se no século
XVIII os textos utópicos transmitiam a esperança de que os indivíduos fossem capazes de
construir seus destinos e transformá-los para melhor, o século XIX incorpora a ideia de que
o futuro é a evolução e a mudança.
Tal crença vai cair por terra com a chegada do novo século e o ciclo de destruição e
desesperança que o acompanha. No século XX, como nos traz Fátima Vieira (2010), o ciclo
de otimismos encontrados nos escritos utópicos anteriores começa a declinar, muito devido
aos horrores trazidos com as grandes guerras, as injustiças sociais provocados pelo sistema
capitalista, suas relações de trabalho e o desenvolvimento de uma sociedade em que “a
mudança está acontecendo, mas sobretudo sob a direção e nos termos da ordem social
dominantes” (WILLIAMS, 2011, p.277), fazem com que a crença numa racionalidade
humana construtiva e justa, que irá criar um futuro também igualitário, se desmantele.
Conforme Raymond Williams (2011), o cenário de guerras e catástrofes transforma as
utopias, que deixam de projetar a ideia de uma sociedade melhor e racional, que caminha
para o desenvolvimento, proporcionado pelo fortalecimento das instituições, onde a
harmonia entre os povos prospera, e passam a figurar a revolução e a ação humana prática,
ou seja, os protestos e as lutas, como imperativo para as mudanças sociais, uma vez que “O
doce mundo aconchegante no fim de tudo isso é, simultaneamente, um resultado e uma
promessa; uma garantia oferecida de ‘dias de paz e descanso’, após a batalha ter sido
vencida” (WILLIAMS, 2011, p.277). Williams (2011) define essa nova modalidade utópica
como “utopia heurística”, que se caracterizam por apresentar um discurso mais aberto em

9 A process of growth of humanity, until it would reach a mature state, from which the ideal society would
finally emerge.” (VIEIRA, 2010,p.13)
10 The critical utopia is part of the political practice and visions shared by a variety of autonomous oppositional
movements that reject the domination of the emerging system of transnational corporations and post-industrial
production and ideological structures. (MOYLAN, 2014, p. 10)

22
que as mudanças são narradas como possíveis e desejadas, e podem vir a existir, desde que
haja ações efetivas de transformação social, que não estão relacionadas tão somente às
questões organizacionais, de mudanças de leis, governos e sistemas. Assim, não há certezas
absolutas, não há um “ordem superior que ilumina” (p.277) e guia a evolução humana, há
apenas uma “luz no fim do túnel” (p.277) que se encontra na revolução, na luta, nos
conflitos.
Desta forma, se após 1850 e, principalmente, a partir do início do século XX, pela
influência das teorias marxistas e o pensamento social da época, as utopias adquirem uma
face mais contestadora, a partir dos anos 1960, ela se subverte, torna-se um corpo ativista
movida pela crítica social, inspirada pela luta dos novos movimentos sociais identitários
(feminismo, movimentos ecológicos, movimento negro, etc) e aproximando-se da
linguagem das ficções científicas. São as chamadas utopias críticas que, segundo Moylan
(2014, p.10, tradução nossa),
é parte da prática política e visões compartilhadas por uma variedade de
movimentos autônomos de oposição que rejeitam a dominação do
emergente sistema de corporações transnacionais, a produção pós-industrial
e as estruturas ideológicas.11

Essa nova geração utópica utiliza-se de sua estrutura narrativa para denunciar as injustiças e
preconceitos, nesse sentido, mais que fantasias de entretenimento
as utopias críticas tiveram e ainda têm seu lugar na promoção dos processos
de crítica ideológica, conscientização e sonho / planejamento social que
necessariamente informam a prática daqueles que estão politicamente
comprometidos em produzir uma realidade social melhor e além daquela
que atualmente oprime e destrói a humanidade e a natureza (MOYLAN,
2000, p.82, tradução nossa).12

Essa utopias são então artefatos oposicionais, que não tem por objetivo central, tão somente
construir modelos de organizações sociais vistos como perfeitos ou ideais, mas ao contrário,
através da sátira, da construção de mundos figurados, transformar os textos utópicos em
plataformas de conscientização social e de ferramentas de oposição ao sistema.

11 Certain actions (namely those of a political nature) might afford the changes that were necessary in order to
make the imagined society come true. In this way, utopias became dynamic, and promoted the idea that man had
a role to fulfil. (VIEIRA, 2010,p.10)
12The critical utopias had and still have their place in furthering the processes of ideological critique,
consciousness-raising, and social dreaming/planning that necessarily inform the practice of those who are
politically committed to producing a social reality better than, and beyond, the one that currently oppresses and
destroys humanity and nature (MOYLAN, 2000, p.82)

23
2.4 - AS MULHERES NA UTOPIA
As utopias críticas surgem em uma época de intensa mobilização social e em um
período em que o texto utópico encontrava-se em declínio e descrédito, tendo sua estrutura
sido incorporada e ligada ao desenvolvimento do pensamento motivador para o surgimento
de regimes totalitários. Conforme Moylan (2014, p.7, tradução nossa)
a utopia tem sido absorvida pelas ideologias afirmativas do sistema
Stalinista totalitário Russo, pela Alemanha nazista e pelo corporativismo dos
Estados Unidos. Cada uma dessas formações têm contido e cooptado a
utopia na manutenção do sistema dado. 13

Para resistir e recriar a tradição utópica, aqui ela surge enquanto resistência,
promovendo um revival subversivo e ativista. Este retorno à utopia se dá pelas mãos de
escritoras como Ursula K. Le Guin, Marge Piercy e Joanna Russ, que irão discutir em suas
narrativas, além de outras coisas, o espaço legado às mulheres neste mundo ideal. Mas antes
dessas utopias, onde se encontravam as mulheres na história deste gênero literário?
Desde A Utopia a presença do feminino é encontrada nas narrativas utópicas, no
entanto, esta presença, bem como o papel reservado às mulheres nos primeiros textos eram
condizentes com o ideal vigente à época, ou seja, embora procurassem pensar e propor uma
nova sociedade, mais justa e igualitária, este ideal não incluía tão democraticamente as
mulheres. Luisa Bérgami Fernandes et all (2017) menciona que Morus, embora queira
empreender um novo projeto de civilização, este projeto está intimamente conectado às
estruturas antigas no que tange ao espaço das mulheres, segundo as autoras “More continua a
carregar o estigma da criação de um novo mundo sob o velho olhar masculino, enraizado pelo
contexto social em que está inserido” (FERNANDES et all, p.263). Assim sendo, nestes
primeiros textos utópicos, em especial aqueles escritos por homens, a divisão social do
trabalho, o cuidado com as crianças, a definição da mulher como o sexo frágil, bem como a
ascensão feminina à esfera política, não eram abordados com grandes diferenças das
sociedade reais. Embora fosse advogado um lugar às figuras femininas nesses textos, e lugar
este que pudesse ser ligeiramente de igualdade, a noção que se tinha das mesmas era
contaminada pelo essencialismo latente e pela percepção de então de que as mulheres eram
inferiores aos homens.
Segundo Susana Borneó Funck (1993) a mulher era ainda o outro, que embora ajudasse
a construir o mundo novo utópico, não podia assumir posições de poder em pé de igualdade

13 Utopia has been absorbed into the affirmative ideologies of the totalizing systems of Stalinist Russia, Nazi
Germany, and the corporate United States. Each of these formations has contained and coopted utopia into the
maintenance of the given system. (MOYLAN, 2014, p.7)

24
com sua contraparte masculina pois “o poder continua nas mãos de quem o detém no mundo
real; a alteridade é reprimida ou eliminada. Como protótipo do Outro, a mulher continua a ser
apresentada como apêndice social e psicológico do homem” (FUNCK, 1993, p.33). A mulher
como o outro, ou como aquela sobre a qual recai o cuidado do lar e da família e a manutenção
desta instituição, era também encontrada em utopias escritas por mulheres, isso porque,
enquanto um bem cultural, as utopias comungam com os valores das épocas em que foram
escritas (FUNCK, 1993). Lyman Tower Sargent (1973, p.306, tradução nossa) comenta que
A maioria dos utopianistas simplesmente assumem que o papel dos sexos, o
status das mulheres e as atitudes em relação a elas, continuaria o mesmo na
futura sociedade ideal como são na presente sociedade ruim. Há
frequentemente, várias invenções para tornar a vida da mulher mais fácil,
mas ela permanece essencialmente a mesma, exceto, talvez, pelas melhores
oportunidades educacionais e o voto. E em muitas das utopias preocupadas
em mudar diretamente este aspecto, um número significativo de autores
propõe papéis sexuais mais rígidamente definidos e um status inferior,
embora visto como superior, para as mulheres. 14

Portanto, o papel e o lugar das personagens femininas eram construídas sob a égide da
heterossexualidade branca, européia e masculina, que percebia o mundo novo e justo para
aqueles que comungavam da universalidade do papel dos homens, em outras palavras, .que
apresentassem um gênero e uma sexualidade condizentes com os valores patriarcais que
perduravam e resssoavam nos textos útopicos. Às mulheres o novo continuaria similar ao
antigo na maioria dos aspectos.
No entanto, a partir do século XIX, principalmente, a escrita de autoria feminina
começa a pensar a situação das mulheres nas utopias. Em textos como Herland (1915), de
Charlotte Perkins Gilman, a nova sociedade é governada por mulheres, em um regime
matriarcal que se desenrola em uma colina, no meio de uma floresta tropical, habitada
apenas por mulheres. Neste local “as contradições enfrentadas pela mulher são totalmente
eliminadas” (FUNCK, 1993, p.123), o trabalho é dividido igualmente entre todas, que têm
pleno conhecimento de suas capacidades físicas e mentais, não há um ideário de amor
romântico nem a submissão das mulheres à instituição patriarcal do casamento, e a
maternidade é compartilhada por todas (BERGAMI et all, 2017, p.265). Esta narrativa de
Gilman é considerada uma das primeiras utopias feministas e, de acordo com Susana Borneó

14 Most utopianists simply assume that sex roles, the status of women and the attitudes toward them, will
remain the same in the future good society as they are in the present bad society. There are often various
inventions to make woman's lot easier, but it remains essentially the same, excepting perhaps improved
educational opportunities and the vote. And in many of the utopias concerned directly with changing that lot, a
significant number of authors propose more rigidly defined sex roles and a lower, though seen as higher, status
for women. (SARGENT, 1973, p.306)

25
Funck (1993), o livro é paradigmático para a construção do subgênero que viriam a partir
dos anos 1970.
Se com a chegada do novo século as narrativas utópicas se diversificam para uma
modalidade mais combativa e ativista, nas primeiras décadas do século XX, os romances
utópicos escritos por mulheres ainda não tocavam a fundo as relações de gênero, eram
conservadores, embora com cunho socialista (FUNCK, 1993). É com o contexto do
surgimento do feminismo moderno que as narrativas se diversificam, exploram questões de
sexualidade, de preconceitos em relação às mulheres (claro, pensando-se no recorte colonial
de então) de raça e também de classe social. Atacando o capitalismo e as diversas formas de
opressão, “tais narrativas negam a validade dos discursos e instituições hegemônicos ao
mesmo tempo em que promovem uma redistribuição e reconceituação do poder” (FUNCK,
1993, p. 123), criando, desta forma, espaços imaginários que são inclusivos em relação à
figura feminina, e que exploram a crítica e a luta contra a misoginia e a exploração machista.
Em obras como A Mão Esquerda da Escuridão (1969), de Ursula K. Le Guin, ou The
Female Man (1975), de Joanna Russ, as barreiras de gênero e sexualidade são contestadas,
reconstruídas e até mesmo eliminadas. Na obra de Joanna Russ, por exemplo, há uma
diversidade de versões de feminino, que são figuradas nas protagonistas Janet, Jeannine,
Joanna e Jael, que, na verdade são diferentes versões de uma mesma mulher, vivendo em
universos paralelos distintos (FUNCK, 1993). Ao explorar as histórias e conflitos dessas
personagens, Russ extrapola as barreiras de tempo, espaço, gênero e formas da narrativa,
articulando sua utopia com os princípios da ficção científica, criando uma nova sociedade
em que as sexualidades e a fluidez destas são debatidas e modificadas. Em consonância, Le
Guin, ao criar um novo mundo, onde os indivíduos são homens e mulheres, e nenhum nem
outro ao mesmo tempo, a autora também amplia as discussões sobre papéis de gênero na
sociedade ocidental.
Portanto, seguindo uma linha histórica do desenvolvimento das narrativas utópicas,
podemos perceber a extrema ligação desse gênero com os desejos, tabus e necessidades
históricas de cada século, ou década. Ao criar um mundo imaginário, seja ele num futuro
distante, num planeta inventado, indo além do tempo-espaço, extrapolando os limites do
corpo, pondo à baila discussões fundamentais sobre opressão, igualdade e justiça, tais
narrativas pretendem, muito mais que se render ao entretenimento de criar outras realidades,
agir como um catalisador de mudanças sociais, criticando, através da ação de mostrar uma
sociedade ideal, o mundo e suas relações sociais, com o intuito de desenvolver uma
consciência que percebe as mazelas e luta por modificá-las.

26
2.5 - AS DISTOPIAS
As utopias, como dissemos, são gêneros literários que, ao utilizar uma ficcionalidade
que cria uma sociedade melhor num futuro e mundos distantes, procura pensar criticamente a
sociedade do presente, de maneira que, ao expor a visão de sua/seu autor/autora do que seria
um agrupamento social mais bem desenvolvido e justo, tem por objetivo agir como uma
ferramenta de práxis social, fazendo com que leitoras e leitores pensem, repensem e se
engajem em reverter os males do mundo vivido. Os romances utópicos acompanham, como
vimos, as variáveis históricas e filosóficas dos séculos em que se desenvolveram, neste
sentido, se até o século XVIII, a crença na capacidade da razão como motor da evolução
humana era a tônica dessas narrativas, a partir do século XX os terrores sociais advindos com
as guerras, o aumento da desigualdade, entre outros problemas que se agravam com o
capitalismo e a revolução industrial, a crença na racionalidade humana como facilitadora do
surgimento de uma harmonia entre os povos, decai. E é neste contexto, de terrores, misérias e
desconfianças, que as distopias emergem.
As distopias, são as filhas rebeldes do romance utópico que tem por objetivo pensar
sobre as problemáticas cotidianas, mas, ao contrário do que podemos encontrar nestes, as
distopias elaboram uma crítica negativa e problematizadora sobre as instituições sociais e
políticas. Segundo Tom Moylan (2000, p.11, tradução nossa)
A narrativa distópica é em grande parte o produto dos terrores do século
XX. Cem anos de exploração, repressão, violência estatal, guerra;
genocídio, doença, fome, ecocídio, depressão, dívida e a constante detecção
da humanidade por meio da compra e venda da vida cotidiana forneceram
terreno fértil mais do que suficiente para este fictício lado ruim da
imaginação utópica.15

Para o autor, as distopias são produtos do pensamento social e político da modernidade, ou


seja, “do capitalismo eficiente e abastado contrastado a uma pobreza e desordem capitalista
anterior; do socialismo contra o capitalismo em cada uma dessas fases; e das divisões
profundas, dentro do próprio socialismo(...)” (WILLIAMS, 2011. p.281), que legou à
sociedade um rastro de miséria, fome e guerras e ao pensamento contemporâneo uma certa
descrença em relação ao próprio futuro.
Assim, num mundo que se percebia antes estável, autoajustável, em que a confiança nas
instituições persistia duradouras e fortes, partimos para o caos das máquinas que substituem
15 Dystopian narrative is largely the product of the terrors of the twentieth century. A hundred years of
exploitation, repression, state violence, war; genocide, disease, famine, ecocide, depression, debt, and the steady
detection of humanity through the buying and selling of everyday life provided more than enough fertile ground
far this fictive underside of the utopian imagination. (MOYLAN, 2000, p.11)

27
trabalhadoras e trabalhadores, de homens que oprimem, dividem e escravizam, e da falência
de regimes que deveria criar mundos melhores, mas que na prática continuaram no ciclo de
repetição da miséria social. O mundo, assolado pelos horrores modernos, volta-se para
análise de que é preciso exagerar as mazelas sociais, com o intuito de criar um senso de luta
e rejeição ao caos contemporâneo.
Nessa configuração social, surgem narrativas sombrias que darão origem à tradição
distópica. Para Gregory Claeys (2010) é H.G. Wells que lança bases para o desenvolvimento
do gênero. Em suas narrativas que conversam também com a ficção científica - gênero que
segundo Peter Fitting (2010), tem uma ligação forte com as distopias, uma vez que vários
dos romances distópicos, em especial nos últimos cinquenta anos, carregam uma conexão e
ressonância com os ditos sci-fi e canaliza várias das características que viriam em romances
seminais do gênero distópico, focando no controle científico, nos experimentos malucos
para falar sobre os limites da ciência e a ganância humana.
Wells influenciou a escrita de Yevgeny Zamyatin (CLAEYS, 2010) que lançou em
1924 o romance Nós, livro que inaugura a tradição das distopias modernas. A obra, contando
a história de uma civilização em que os humanos, chamados de números e não mais por seus
nomes, são regidos por um estado totalitário, o Estado Único, que limita toda a possibilidade
de demonstração de sentimentos e liberdades. É um estado que se fia na lógica e na intensa
racionalização para controlar o indivíduo. A partir de Nós, em 1932, Aldous Huxley conta
sua história de um estado totalitário. Em Admirável Mundo Novo (1932), o que oprime os
indivíduos é na verdade a ciência, que controla, através de modificações genéticas e drogas
potentes, corpo e mente dos seres humanos, objetivando manter a ordem, a disciplina e
eliminando qualquer traço de individualidade, fator que também é a constante em 1984
(1949), romance famoso de George Orwell. Nesta obra orwelliana, o controle do cidadão e
de suas individualidade é comandada pelo Grande Irmão, personificação do estado
totalitário que pune, vigia e controla todos os aspectos da vida e do pensamento nessa
sociedade futurística. Desta forma, se em Nós e Admirável Mundo Novo, os abusos e limites
da ciência são preocupações centrais (claro há várias outras), em 1984 o poder, nas mãos de
opressores é o que preocupa, principalmente, Orwell.
Todos esses romances serão precursores dessa tradição distópica que Lyman Tower
Sargent (1994, p.09, tradução nossa) define como sendo uma uma sociedade não-existente
que é descrita “em detalhes consideráveis e normalmente localizada em um tempo e espaço
que o autor pretendia que um leitor contemporâneo visse como consideravelmente pior do

28
que a sociedade em que esse leitor vivia”16. Portanto as distopias desenham futuros
negativos, criando narrativas de impacto, com o objetivo de levar à reflexão, que poderá, em
consequência permitir a mudança. Os romances distópicos são obras analíticas que, ao
contrário das utopias e que, através do olhar negativo do porvir, pretende levar-nos a pensar
sobre nossos próprios atos, pois “no momento que apresenta um futuro negativo, faz
refletir sobre que caminhos seguir para um mais positivo, em relação ao mundo
empírico” (CAMARGO, 2015, p. 19). A educação do desejo no romance distópico é uma
lição que ensina por meio da dor e do terror, como traz Lyman Tower Sargent (1994, p.08,
tradução nossa)
A distopia tradicional era uma extrapolação do presente envolvendo um
aviso. A eutopia diz que se você se comporta assim e assim, você será
recompensado com isto. A distopia (...) diz que se você se comportar assim
e assim, você será punido desta forma. 17

Com isso, as distopias ao pensarem em futuros perversos, não são, no entanto, ficções
fatalistas que não veem caminhos possíveis para humanidade, ao contrário ao expor as
mazelas sociais que cometemos, ela quer trazer à reflexão, quer também evidenciar os males
da modernidade, dos regimes totalitários e dos pensamentos fascistas,
Conforme Tom Moylan (2010, p.175, tradução nossa)
Embora todos os textos distópicos ofereçam uma apresentação detalhada e
pessimista do pior das alternativas sociais, alguns se afiliam a uma tendência
utópica por manterem um horizonte de esperança (ou pelo menos convidam
a leituras que o façam), enquanto outros apenas parecem ser aliados
distópicos da utopia, pois eles mantêm uma disposição antiutópica que
exclui todas as possibilidades transformadoras, e ainda outros negociam
uma posição mais estrategicamente ambígua em algum lugar ao longo do
continuum antinômico.18

Embora algumas narrativas distópicas possam carregar resquícios de uma anti-utopia -


gênero definido como sendo uma reação crítica e uma recusa aos princípios dos textos
utópicos que também mostram condições extremas de vida, mas que não permitem
16 A non-existent society is described in considerable details and normally located in time and space that the
author intended a contemporaneous reader to view as considerably worse than the society in which that reader
lived (SARGENT, 1994, p.09)

17 The traditional dystopia was an extrapolation from the present involved a warning. The eutopia says if you
behave thus and so, you will be rewarded this. The dystopia (...), says if you behave thus and so, this is how you
will be punished. (1994, p.8).

18 Although all dystopian texts offer a detailed and pessimistic presentation of the very worst of social
alternatives, some affiliate with a utopian tendency as they maintain a horizon of hope (or at least invite readings
that do), while others only appear to be dystopian allies of Utopia as they retain an anti-utopian disposition that
forecloses all transformative possibility, and yet others negotiate a more strategically ambiguous position
somewhere along the antinomic continuum. (MOYLAN, 2010, p.175)

29
condições para a esperança ou para ação humana em prol de mudanças - as distopias
engajam-se na proposta de ação política, de mobilização que começa já a partir das utopias
críticas. Mas, ainda segundo Moylan (2010), mesmo que as utopias críticas possam ser
consideradas narrativas sociais, isto é, que tratam sobre mudanças que partem de um
mecanismo social, de um agrupamento de indivíduos institucionalizados, elas ainda contam
histórias que tem como base a crença no poder institucionalizado ou na força de um ente
social, enquanto que nas distopias as histórias geralmente são individualizantes, ou seja,
um/uma personagem que consegue perceber as tragédias das sociedade imaginadas e contam
seus dissabores provocados pelas instituições dos estados totalitários.
O gênero distópico utiliza-se muito mais da narrativa do que da descrição, para contar
histórias politicamente engajadas (MOYLAN, 2010) a partir da perspectiva de um
personagem isolado, que “acorda” para as injustiças que o cercam. Na sua estrutura, tais
histórias podem ser definidas por uma hibridização literária, conforme Jane Donawerth
(2003), a narrativa distópica absorve muito das características de outros gêneros, como a
sátira, a comédia, a ficção científica e a tragédia. Sendo filha mesma do século XX, onde as
barreiras são transponíveis, fluídas e variadas, as distopias transformam, reinventam formas
de narrar já consagradas, assim
formas conservadoras são transformadas ao se fundir com a distopia, uma
fusão que força a reconsideração política, e as formas tradicionalmente
conservadoras podem transformar progressivamente o gênero distópico de
modo que seu pessimismo passe de resignado a militante (DONAWERTH,
2003, p.29, tradução nossa)19

Pensando nessa hibridização, podemos encontrar elementos das narrativas citadas


acima e, embora tais elementos podem legar às distopias características do fantástico, as
distopias puras e simples, que, como traz Gregory Claeys (2010) retratam estados
totalitários, são romances factíveis, e por factíveis podemos entender que se baseiam nas
mazelas e fatos de alguma forma já presentes ou já ocorridos na realidade vivida. Como
exemplo, o fato de em Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury, as pessoas não poderem
ler ou ter acesso a livros, não é algo do domínio do fantástico, encontramos relatos de
situações semelhantes durante vários regimes totalitários em nossa sociedade.
Desta forma, da resignação e desesperança, à militância reativa, assim se estruturam as
distopias, que partem de uma narrativa que começa já no mundo abjeto, com conexões
possíveis com o chamado mundo real, e acompanha a descrição da organização política e

19 Conservative forms are transformed by merging with dystopia, a merge that forces political reconsideration,
and traditionally conservative forms can progressively transform the dystopian genre so that its pessimism shifts
from being resigned to being militant.(DONAWERTH, 2003, p.29)

30
social deste local, feita por um personagem dissidente, que consegue perceber a opressão
latente nesta sociedade, em outras palavras, enquanto nas utopias há um/uma viajante que se
desloca através do tempo e/ou espaço para um paraíso, nas distopias o indivíduo já acorda
dentro de um inferno (BACCOLINI, MOYLAN, 2003). Acompanhamos então a trajetória
deste/desta personagem que conta seu processo de descoberta das agruras em que vive e que
se revolta de alguma forma com a situação ali estabelecida. No romance distópico, assim
como sua contraparte utópica, ainda permanece o fator de estranhamento e educação dos
desejos, que se estabelece por meio do medo e da raiva que o/a personagem dessas
narrativas e seus/suas leitores/leitoras enfrentam (DONAWERTH, 203; MOYLAN, 2010).
Nesse sentido, as distopias operam acompanhando “o que acontece com um assunto ou
personagem específica” (BACCOLINI, MOYLAN, 2003, p.05), partem de um indivíduo
para explicar um todo social, ao contrário das utopias que descrevem um mundo, onde os
personagens, por vezes, são constructos que servem para narrar a história de uma sociedade
perfeita, falando a partir do todo social. Segundo Raffaella Baccolini e Tom Moylan (2003)
o texto distópico é estruturado em dois modelos de narração literária, o romance começa sob
a perspectiva de uma narrativa da ordem hegemônica deste mundo de pesadelos, na qual o
sujeito daquela sociedade conta seu funcionamento, até que parte para uma contra-narrativa
de resistência, que se inicia quando o/a dissidente enxerga o regime de injustiças e opressões
em que vive. Assim, "esta estratégia estrutural de narrativa e contra-narrativa na maioria das
vezes se desenvolve por meio do uso social e anti-social da linguagem.” (BACCOLINI,
MOYLAN, 2003, p.05, tradução nossa)20. Conforme os autores, a linguagem é um dos
principais fatores que culminam no governo totalitário que desencadeia os horrores da
distopia.
O discurso hegemônico ao tomar o controle do que pode ou não ser dito, do que pode
ou não permanecer como memória e fato histórico, bem como sobre quem pode ou não falar,
desencadeia todo o sistema de opressão sobre o qual narra os romances distópicos. Da
mesma forma, a contra-narrativa se dá no momento em que o/a protagonista resiste ao
“poder discursivo” do estado opressor, através da reapropriação linguística que é o
combustível que irá nutrir o processo de confronto estabelecido entre os membros
dissidentes da sociedade narrada e o poder de estado. E aqui temos mais um ponto de
diferenciação entre anti-utopia e distopia. Enquanto que na primeira não há caminho, não
escapatória ou possibilidade de revolta , ou, se há, são esmagadas pelo poder do estado, na

20 This structural strategy of narrative and counter-narrative most often plays out by way of the social, and
anti-social, use of language (BACCOLINI, MOYLAN, 2003, p.05)

31
segunda há sempre a possibilidade de reação, de caminhos de mudanças e esperanças
(MOYLAN, 2000). Desta forma, em seus caminhos tortuosos, que expõe opressões,
torturas, limitações de liberdade e todo tipo de comportamento totalitário, embora à primeira
vista as distopias possam parecer negativistas, na verdade elas apresentam graus variados de
pessimismo que, não são fatalista a ponto de não acreditar numa mudança possível (como
são as antiutopias). Para Baggesen (apud MOYLAN, 2000), o pessimismo no romance
distópico tradicional é o que ele chama de pessimismo militante que acredita na
possibilidade de enfrentamento em relação ao poder hegemônico.
O que podemos compreender a respeito do romance distópico, que é gerado a partir dos
horrores que chegam com as guerras, o aumento da desigualdade e da desesperança a partir
do século XX é que, textos clássicos e seminais para o gênero como o são Nós, Admirável
Mundo Novo e 1984, embora apresentem visões de futuros que a primeira vista tendem a nos
levar ao desespero, pois o que está ali sintetizado são as agruras humanas em suas piores
formas, esses textos não pretendem nos fazer aceitar ou crer que não há caminho, que o
amanhã é tortuoso, ao contrário ao apresentar uma sociedade pior do que a que vivemos, as
distopias são chamados para ação, são textos com uma forte carga política e de militância
que pretendem que reflitamos sobre as ações que tomamos no hoje para que o devir não seja
tão pavoroso como o que parece estar caminhando para ser.

2.6 - DISTOPIAS FEMINISTAS


Se dentro do gênero utópico, a partir da década de 1960, há uma retomada e uma
revolução do gênero, com o surgimento das chamadas utopias críticas, obras que, em linhas
gerais apresentavam narrativas mais combativas e engajadas, a modalidade distópica
também acaba por apresentar a sua própria vertente de modalidade crítica. Jane Donawerth
(2003) cita que a literatura mais engajada no gênero distópico, começa a sua história de
influências a partir de textos como The Day of the Drones (1969), de A. M. Lightner,
Dhalgren (1974), de Samuel Delany e All My Darling Daughter (1985), de Connie Willis.
Segundo a autora, essas narrativas em suas similaridades e diferenças, se aproximam, em
termos ideológicos, na forma com que lidam com os problemas que retratam, esses textos
Apesar das diferentes décadas em que foram escritos e dos diferentes
propósitos políticos dos escritores, cada um oferece ao leitor uma educação
do desejo que concentra a raiva, uma visão do presente como
desfamiliarizado e histórico e uma esperança radical por uma vida melhor.
(DONAWERTH, 2003, p. 30, tradução nossa)21

21 Despite the different decades in which they were written, and the different political purposes of the writers,
each offers the reader an education of desire that focuses anger, a view of the present as defamiliarized and

32
Portanto, ao tornar o familiar, estranho, o que as distopias críticas procuram fazer está
conectado com o criticismo utópico, ou seja, propor discussões, reflexões e estratégias de
ações que procurem contestar modelos hegemônicos de pensamento, de acordo com Moylan
(2000, p.189, tradução nossa)
à medida que as distopias críticas dão voz e espaço a tais sujeitos
despossuídos e rejeitados (...), eles passam a explorar maneiras de mudar o
sistema atual para que essas pessoas cultural e economicamente
marginalizadas não apenas sobrevivam, mas também tentem se mover em
direção à criação de uma realidade social moldada por um impulso para a
autodeterminação humana e saúde ecológica, em vez de ser restringido
pela lógica estreita e destrutiva de um sistema que visa apenas aumentar a
competição a fim de obter mais lucro para uns poucos selecionados. 22

Ao abordar as problemáticas sociais através do ponto de vista das minorias, trazendo


questões da causa feminista, negra e LGBTQI+, o que essas narrativas propõem, e aqui
pensando principalmente naquelas desenvolvidas a partir da década de 1980, é desconstruir
ideologias conservadoras e excludentes, e propor reconstruções de modelos sociais
alternativos, que sejam mais justos e igualitários. Conforme Raffaella Baccolini e Tom
Moylan (2003) as distopias críticas retêm em seus escritos o potencial (e o chamado) para a
mudança, pois “(...)com seus desastres e representações de realidades piores, retém o
potencial de mudança, para que possamos descobrir em nossos tempos sombrios atuais uma
dispersão de esperança e desejo que surgirá para nos ajudar na transformação da sociedade”
(BACCOLINI; MOYLAN, p.235, tradução nossa)23. E essa proposição é feita através do
medo, do exagero das injustiças, que nos leve a pensar e agir em prol de uma mudança, em
prol de tentar evitar os horrores imaginados.
As narrativas críticas são política e militantemente engajadas, elas procuram incluir e
diversificar os discursos, abrindo portas para expor visões de mundos mais includentes. Nesta
dinâmica, elas começam com descrições de um mundo que é, para parafrasear Lyman Tower
Sargent (1994), ligeiramente pior do que o nosso mundo vivido, para então propor um
historical, and a radical hope for better livings. (DONAWERTH, 2003, p. 30)

22 As the critical dystopias give voice and space to such dispossessed and denied subjects (...) they go on to
explore ways to change the present system so that such culturally and economically marginalized people not
only survive but also try to move toward creating a social reality that is shaped by an impulse to human self-
determination and ecological health rather than one constricted by the narrow and destructive logic of a system
intent only on enhancing competition in order to gain more profit for a select few. (MOYLAN, 2000, p.189)

23 As a critical or open dystopia, with its disasters and representations of worse realities, retains the potential
for change, so we can discover in our current dark times a scattering of hope and desire that will arise to aid us
in the transformation of society. (BACCOLINI, MOYLAN, 2003, p.235)

33
horizonte utópico de esperanças por dias melhores que só pode ser alcançado por meio de
uma autorreflexão que gere uma vontade por transformações. Nas palavras de Sargent (apud
MOYLAN, 2000), as distopias críticas carregam em seu cerne um horizonte utópico, no
sentido de que, as mazelas sociais podem ser superadas, as distopias podem ser superadas e
podem se transformar numa utopia, mas isso só é possível através do discurso da contra-
narrativa distópica que mostra que, através de ações políticas e de lutas pode-se chegar à uma
sociedade que é não perfeita, porém melhor. No entanto, ela mostra essas ações não como
receitas facilmente alcançáveis, mas como um processo dialético e de luta, por vezes longo e
doloroso. De acordo com Moylan (2000, p.1999, tradução nossa)
As distopias críticas não são simplesmente próximas de uma não-
problemática Utopia ou de uma Anti-Utopia resignada e triunfante. Embora
geralmente, e teimosamente, utópicas, elas não caminham tão facilmente em
direção a esse mundo melhor. Em vez disso, elas se demoram nos terrores
do presente, mesmo quando exemplificam o que é necessário para
transformá-lo.24

É lentamente, contando a história do desenvolvimento de cada um dos terrores narrados que


as distopias criam seus mundos medonhos e é nesses terrores que muitos romances colocam
em pauta a situação feminina, o que dá origem às chamadas distopias feministas.
A pesquisadora Ildney Cavalcanti (2003) lembra que as distopias feministas contém o
elemento autorreflexivo, típicos do criticismo distópico, e contribuem com a criação de uma
massa crítica, isto é, as distopias procuram formar e consolidar um público de leitores
engajados e capazes de compreender as mazelas sociais (CAVALCANTI, 2003). Assim,
embora as distopias, em sua maior parte, surgem como uma contraposição a um pensamento
hegemônico que é patriarcal, classista e racista, elas, por vezes, exploram essas discussões
identitárias integradas a outras questões próprias de cada título. As distopias críticas
feministas, por outro lado, estão mais centradas na exploração feminina e seu principal
objetivo é refletir substancialmente sobre essa exploração, trazendo para a narrativa situações
que figuram os preconceitos, as questões de gênero e a misoginia.
Em linhas gerais podemos compreender essa derivação das distopias críticas enquanto
obras que recontam a história de mulheres no patriarcado de forma exagerada, desvelando
opressões com o intuito de levantar reflexões e críticas à sociedade, assim
as distopias feministas desenham infernos patriarcais de opressão,
discriminação e violência contra mulheres, mapeando assim a sociedade
contemporânea. Ao mesmo tempo, e revelando sua natureza ambígua, essas
24 The critical dystopias do not simply come down on the side of an unproblematized Utopia or a resigned and
triumphant Anti-Utopia. Albeit generally, and stubbornly, utopian, they do not go easily toward that better
world. Rather, they linger in the terrors of the present even as they exemplify what is needed to transform it.
(MOYLAN, 2000, p.199)

34
ficções expressam de forma importante desejos e esperanças utópicos
pertinentes às mulheres” (CAVALCANTI, 2003, p.338).

Ildney Cavalcanti (2003), ao explorar a categorização e descrição dessas distopias,


lembra que as mesmas começam a adquirir uma inflexão feminista a partir de romances como
Man’s World (1926), de Charlotte Haldane e Swastika Night (1937), de Katharine Burdekin,
assim “de formas bastantes diferenciadas entre si, esses textos delineiam o ‘mau lugar’ no
futuro para as mulheres” (CAVALCANTI, 2003, p.342) e ainda, conforme Cavalcanti (2003,
p.338) eles agem em prol de uma reciclagem e contestação da história do patriarcado por
meio da ficção.
Esse subgênero distópico, procura ser um catalisador que expõe as agruras da
discriminação de gênero. Ao construir narrativas de opressão feminina, autores e autoras,
expõem um futuro aterrador para as mulheres, criticando radicalmente as atuais relações de
poder que ainda as colocam como menores e inferiores. Ildney Cavalcanti (2003) lembra
ainda que, ao explorar personagens femininas em situação de marginalização, ao contar
histórias a partir de uma perspectiva que parte das mulheres e narrar episódios de
autoritarismo e perda da liberdade, as distopias feministas agem também como um
instrumento de resistência entre as mulheres no mundo real. Conforme Cavalcanti (2003,
p.348)
ao metaforizar a sujeição histórica (e as lutas feministas de resistência),
esses textos podem inspirar ações e interferências, por parte das
mulheres(...). Lê-los pode ser comparável a enxergar as fendas e rachaduras
da cultura hegemônica através de uma lente de aumento, descobrindo assim
estratégias utópicas gendradas e multifacetadas de resistência e
sobrevivência.

Reflexão e combatividade, as distopias feministas trazem a debate as opressões de


gênero enquanto geradores de conflito, e essas opressões são analisadas e pensadas
historicamente, isto é, as distopias feministas baseiam-se nas conjunturas históricas e sociais
para criar seus mundos de pesadelos. O que vemos nessas narrativas é a “compressão, ou
condensação, de formas de opressão marcadas por gênero e pertinentes a diferentes histórias
e geografias em determinados espaços ficcionais” (CAVALCANTI, 2003, p.346), assim,
embora no universo de um ficção que, como dito, exagera as opressões, o que está posto
nestas distopias não são meramente invenções de um gênio criativo e sim a ficcionalização de
preconceitos e injustiças que já existiram (ou ainda existem), em países, momentos históricos
e sociedades diferentes.

35
Outro fator estrutural nestes textos, conforme traz Cavalcanti (2003), é que os mesmos
apresentam diferentes grupos de mulheres, sujeitas de diferentes formas e graus de
intensidade à exploração e misoginia, de forma que as personagens femininas não são vistas
homogeneamente como uma categoria definida de forma essencialista e inferiorizada, ao
contrário, explora-se aqui uma visão não uniforme das mulheres, salientando questões de
hierarquia de gênero e expondo graus de tratamentos diferenciados (mesmo em situações de
exploração) de acordo com o lugar em que se encontra cada uma das personagens no sistema
social.
Expondo as complicadas relações de gênero estabelecidas na história, o texto distópico
de configuração feminista, aproxima-se e afasta-se da realidade social, no sentido de que,
embora encontre relações de ressonância com a cultura, os valores e o pensamento histórico
da realidade social, o mesmo desvia-se, exagera e fantasia o futuro ficcional. Tais distopias
evocam portanto a figura da catacrese, função que Cavalcanti (2003), utilizando Foucault,
define como concernente a “uma ligação entre uma coisa e um signo que é caracterizada por
analogias e semelhanças ocultas, possuindo, a partir das próprias raízes etimológicas do
termo, conotações de ‘mau uso’ ou abuso''' (CAVALCANTI, 2003, p.350). Assim, as ficções
feministas do gênero (e o gênero em si) definem-se por essa aproximação e afastamento da
realidade e tal característica é necessária, pois, segundo Ildney Cavalcanti (2003, p.355)
Formadas a partir da reciclagem de materiais originários desta história, essas
narrativas aumentam a nossa percepção com relação aos nossos complexos
papéis enquanto sujeitos feministas e, ao mesmo tempo, oferecem-nos a
oportunidade de vislumbrar possibilidades utópicas alternativas.

Portanto, as distopias críticas feministas são obras análiticas que, ao exagerar a opressão das
mulheres, ao aproximar e fantasiar a história, propõem um alerta que possa, inspirado nos
discursos das figuras da contra-narrativa dos textos distópicos, gerar um impacto social que,
permita uma reflexão sobre o comportamento humano e suas ações, plantando a sementinha
que ponha em pauta novos rumos e possibilidades para o mundo em negativo até agora
vivido.

2.7- O CONTO DA AIA ENQUANTO DISTOPIA


Levando-se em conta o gênero distópico como sendo esse conjunto de narrativas que se
definem por serem obras que imaginam futuros terríveis, baseando-se nas configurações
sociais do real vivido, com o intuito de levantar reflexões, embates e, por vezes, chamados à
ação, e pensando as distopias feministas enquanto essas narrativas que desenham esses

36
cenários de pesadelos principalmente para as mulheres, tendo nas questões de gênero o mote
para seu desenvolvimento, chegamos ao estudo do romance distópico O conto da Aia, da
autora canadense, Margaret Atwood.
Atwood, nascida no ano de 1939 é um dos grandes nomes da literatura mundial. A
autora é bastante prolífica, já lançou mais de 40 livros, entre poesias, romances, contos e
crítica literária. Seu primeiro livro foi A mulher comestível, lançado em 1969. Ao longo de
sua carreira a escritora ganhou diversos prêmios, entre eles os importantes Booker Prize,
Prêmio Princípe da Astúrias e, pela obra aqui analisada, Atwood foi laureada com o Arthur
C. Clarke Award, importante premiação destinada à ficção científica.
O conto da Aia, foi lançado por Margaret Atwood no ano de 1985, desde sua
publicação o romance foi sucesso de crítica e público, tendo sido adaptado para as diversas
mídias como rádio, cinema, teatro, televisão e, em 2017, foi transformado em série pela rede
de streaming, Hulu, o que retomou o culto ao livro, principalmente porque com o advento de
governos cada vez mais voltados para políticas conservadoras e de desrespeito aos direitos
humanos e das mulheres, como foi o caso do governo Trump, nos Estados Unidos e é o caso
do governo Bolsonaro aqui no Brasil, a narrativa, que conta a história de um país
comandado por um política totalitária e misógina, encontra correspondência com
pensamentos opressivos perpetrados pelos governantes citados.
O livro, segundo a autora, começou a ser escrito no ano de 1984, à época o mundo
ocidental vivia um período de retrocessos sociais, políticos e econômicos, que gerou um
contra-ataque ao pensamento e desenvolvimento progressista. Esta ofensiva conservadora
foi motivada pela crise econômica e também pelo avanço da AIDS durante a década, o que
provocou um aumento do preconceito, da exclusão e ódio em relação à população
LGBTQI+ e às mulheres. Susan Faludi (2001, p.21), nomeia estes ataques aos avanços
sociais e às conquistas do movimento feminista e gay, como backlash e assim o define:

Nos anos 80, o backlash andou pelos subterrâneos secretos da cultura,


circulando pelos corredores da bajulação e do medo. Ao longo do caminho
usou vários disfarces: desde a máscara de uma condescendente ironia até a
expressão sofrida da “profunda preocupação”. Os seus lábios demonstram
piedade por qualquer mulher que não se enquadre na moldura, enquanto
procura prendê-la na moldura. Professa uma estratégia de cizânia: solteiras
contra casadas, mulheres que trabalham fora contra donas-de-casa, classe
média contra operárias. Manipula um sistema de punição e recompensa,
enaltecendo as mulheres que seguem as suas regras, isolando as que
desobedecem. O backlash revende velhos mitos sobre as mulheres fazendo-
os passar por fatos novos, ignorando qualquer apelo à razão. Acuado, nega a
sua própria existência, levanta um dedo ameaçador contra o feminismo e
procura desaparecer nos subterrâneos.

37
Embora não saibamos ao certo se a autora se inspirou nas políticas de retrocesso do
período, compreendemos que sua narrativa dialoga não apenas com a conjuntura que se
desenrolava à data de lançamento da obra, mas também podemos perceber ressonância com o
contexto social atual. Margaret Atwood escreveu a história em um período da sua vida em
que morou na Alemanha Ocidental dividida pelo muro de Berlim e essa paisagem de um
autoritarismo latente inspirou sua obra, como ela mesma diz:
Todos os domingos, a Força Aérea da Alemanha Oriental emitia ruídos
sônicos para nos lembrar de quão próximos estavam. Durante minhas visitas
a vários países atrás da Cortina de Ferro - Tchecoslováquia, Alemanha
Oriental - experimentei a cautela, a sensação de estar sendo espionada, os
silêncios, as mudanças de assunto, as formas oblíquas pelas quais as pessoas
podem transmitir informações, e isso tinha uma influência no que eu estava
escrevendo. (ATWOOD, 2017, p. 1; tradução nossa)25

Neste sentido, o romance, que definimos aqui como sendo uma distopia crítica
feminista, apresenta uma das primeiras características o qual utilizamos para defini-lo
enquanto tal. O conto da aia baseia-se no pensamento conservador repressivo de sua época e
mais, a escritora constrói esta sociedade que, embora pareça apenas fruto de uma mente
imaginativa, é baseado em reproduções de explorações que já aconteceram antes na história
da humanidade e continuam a acontecer, como a autora relata “tantas vertentes diferentes
alimentaram "O conto da Aia" — execuções em grupo, leis suntuárias, queima de livros, o
programa Lebensborn da SS e o roubo de crianças dos generais argentinos, a história da
escravidão, a história da poligamia americana [...] a lista é longa” (ATWOOD, 2017,p.02)26.
Portanto, se os autores aqui estudados definem as distopias enquanto a narração de um
mundo descrito de maneira ligeiramente pior que aquele em que se vive, de forma a propor
um pensamento que considere o “e se” continuarmos a agir assim, este será nosso futuro, no
romance de Atwood este fator fundante é o que move a obra. O autoritarismo de Gilead, o
país descrito no romance, baseia-se em situações que de fato já aconteceram antes no mundo,
como a autora mesmo cita “não há nada [naquele] livro que não tenha acontecido ou não
esteja acontecendo em algum lugar. [...] Tudo o que acontece às mulheres é meticulosamente
baseado na história.” (ATWOOD apud CAVALCANTI, 2003, p. 345), e ainda, enquanto

25 Every Sunday the East German Air Force made sonic booms to remind us of how close they were. During
my visits to several countries behind the Iron Curtain — Czechoslovakia, East Germany — I experienced the
wariness, the feeling of being spied on, the silences, the changes of subject, the oblique ways in which people
might convey information, and these had an influence on what I was writing.

26 So many different strands fed into “The Handmaid’s Tale” — group executions, sumptuary laws, book
burnings, the Lebensborn program of the SS and the child-stealing of the Argentine generals, the history of
slavery, the history of American polygamy . . . the list is long.

38
vertente feminista, a distopia tem como foco central a opressão que as mulheres enfrentam
neste novo país.
O livro de Atwood é dividido em dezesseis capítulos, que são caracterizados por serem
curtos e fragmentados. Dentre esses capítulos, sete deles são nomeados pelo título Noite.
Estas seções, assim chamadas, são definidas por serem narrativas mais reflexivas, que se
desenvolvem durante o período de descanso da Aia, que é a personagem central que nos
conta esta distopia. Ao longo dos capítulos, a obra apresenta o relato desta mulher
descrevendo o presente da República de Gilead, um novo país localizado nos que era antes os
Estados Unidos. Este presente é o presente em que a personagem viveu, mais tarde, no
capítulo final intitulado Notas Históricas, iremos descobrir que Gilead e seu Estado totalitário
já não existem mais.
Este aspecto do romance o difere de outras distopias conceituadas, segundo Juliana
Zanezi (2018), se em obras como Nós, Admirável Mundo Novo e 1984, se “estabelecem um
noção aparentemente eterna, infindável e contínua dos terrores causados e o inexorável poder
da estrutura totalitária e opressiva na qual se ambientam, [...] O Conto da Aia já concretiza,
dentro do romance, o final do sistema de Gilead.” (ZANEZI, 2018, p.13). Portanto, a história
que temos contato, trata-se de uma narrativa dentro de um outra narrativa, isto é, ao final
saberemos que este relato é a nós apresentado por um grupo de cientistas que no ano de 2195
estão estudando historicamente como se deu a ascensão e queda deste país, queda esta que
não chegamos a saber, oficialmente, como se deu.
Ainda sobre a estrutura da obra, cada capítulo transita entre este presente da vida da
personagem narradora, suas lembranças a respeito do passado antes de Gilead, e o próprio
passado da república. A Aia vai tecendo sua narrativa, nos mostrando aos poucos de que
forma se organiza essa sociedade, seus mecanismos de opressão, seus sistemas de resistência
e toda a liturgia que alicerça a Gilead fundamentalista. Sabemos aquilo que nossa narradora
mostra, vemos o que ela vê e decide nos relatar, porém, de seu próprio nome não sabemos. A
Aia é chamada de Offred, a alcunha é a junção da preposição of, que indica posse neste
contexto, com o nome do homem a quem a mulher agora pertence, Fred, ou seja, Offred quer
dizer De Fred. Nenhuma Aia pode portar seu próprio nome, todas são denominadas pelo
nome do Comandante que as possui e sim, possuem, enquanto propriedade, que é o que
representam essas mulheres. Este fator, da perda do nome, significa, na obra, a perda da
identidade e desumanização das mulheres (FUNCK, 1990) que cumprem a função de úteros
emprestados na nova sociedade. As Aias são, portanto, tratadas como meros objetos com
função utilitarista, ou seja, o seu propósito de vida em Gilead é gerar filhos.

39
Sobre Gilead, esta nova república se formou através de um golpe de estado. Grupos
paramilitares religiosos dominados por um pensamento branco, heteronormativo, cristão e
patriarcal, desejosos de criar um mundo em que se pudesse “pôr as coisas de volta no lugar,
de acordo com as normas da natureza” (ATWOOD, 2017, p.261), foram aos poucos se
infiltrando no governo e nas políticas públicas até o apogeu e ascensão de Gilead
Foi depois da catástrofe, quando o Presidente foi morto a tiros e o
Congresso metralhado. O Exército decretou estado de emergência. Na época
botaram a culpa nos fanáticos muçulmanos. [...] Como é que eles tinham
entrado, como é que tinha acontecido? Foi então que suspenderam a
Constituição [...].” (ATWOOD, 2017, p. 41)

Caça às Bruxas às Guerras Santas, passando por ministra de Estado que se definem como
“terrivelmente evangélica”, sabemos como o fundamentalismo religioso, aliado a uma
vontade por poder, pode ser crucial no surgimento de regimes totalitários de base religiosa,
com isso podemos inferir mais uma característica do romance enquanto distopia, suas
elucubrações, como dissemos, fundam-se em fatos existentes, exagerando-os para gerar
reflexão.
Não obstante, não se sabe qual foram exatamente os anos iniciais do estabelecimento
ditatorial. Aqui encontramos uma diferenciação da distopia Atwoodiana em relação aos
outros textos famosos do gênero, se em 1984, por exemplo, somos levados a conhecer essa
sociedade já bem estabelecida e delimitada, no universo do O Conto da aia, o regime
gileadiano ainda encontra-se em suas primeiras décadas de implantação definitiva. Conforme
aponta Juliana Zanezi (2018) a República de Gilead tem um caráter frágil e delimitado, no
livro acompanhamos o seu apogeu e derrocada, embora, ainda assim, saibamos pouco do seu
processo de implantação, bem como de seus limites territoriais. Como aponta Zanezi e a
leitura do livro, o território da nova república se estende por uma grande parte dos Estados
Unidos, porém sabemos pouco onde termina e onde começa,em termos de espaço
Onde ficam os limites não sabemos, ao certo, eles variam, de acordo com os
ataques e contra-ataques; mas este é o centro, onde nada se move. A
República de Gilead, dizia tia Lydia, não conhece fronteiras. Gilead está
dentro de você. Houve uma época em que aqui moravam médicos,
advogados, professores universitários. Não existem mais advogados, e a
universidade está fechada. (ATWOOD, 2006, p.27).

Gilead foi pensado para suprir os descontentamentos que fanáticos religiosos, aliados
a políticos e grupos paramilitares com pensamentos semelhantes, tinham a respeito das novas
mudanças pelo que o mundo passava. Para essas pessoas, homens e mulheres brancos,
cristãos e heterossexuais (ZANEZI, 2018), que fundaram a organização denominada Filhos

40
de Jacó, responsável pela governo desta república, as políticas progressistas e os movimentos
identitários é que levaram às catástrofes ambientais, violência e baixa taxa de natalidade, no
discurso da organização “Aqueles anos foram apenas uma anomalia, historicamente falando
[...] apenas uma feliz casualidade. Tudo o que fizemos foi por as coisas de volta, de acordo
com a norma da Natureza” (ATWOOD, 2017, p.261). Os Filhos de Jacó implantam uma
teocracia no qual a existência de um Estado Laico é visto como o motor das catástrofes
sociais, econômica, políticas e ambientais, e como aponta Zanezi (2018), o discurso religioso
da organização serve para justificar as opressões e angariar aderência por parte de todos e
todas. Aliás, toda a estrutura social de Gilead é formada pensando-se no discurso religioso e
na interpretação da Bíblia, que é feita pelos homens mais poderosos (as mulheres são
proibidas de ler). É por isso que os carros que os Comandantes dirigem são chamados de
Tormentas, termo que remete à passagem bíblica presente em Oséias 8:7 27. O nome do país
também está no texto bíblico, Gilead era uma cidade localizada na região da Jordânia, o nome
significa “monte de testemunho” e aparece em Gênesis 31:21 (e também em outras
passagens), sendo a região para onde Jacó foge.
O regime se estabelece sendo justificado como uma forma de moralizar a nação, a
partir destes preceitos que se baseiam em ideias essencialistas em relação ao gênero, ou seja,
as mulheres nascem pré-programadas para gerar filhos e atender as demandas do lar,
enquanto o homem, identificado com a cultura é capaz de criar e transcender (BEAUVOIR,
2016). Seus precursores dizem que todas as proibições, decretos ditatoriais e autoritarismo
seriam temporários, até que aos poucos os costumes foram sendo mudados, pessoas
contrárias ao regime começaram a ser perseguidas e, em especial as mulheres, foram
proibidas de trabalhar, de manter e ganhar seu próprio dinheiro, uma vez que “Eles
congelaram as contas [...] Qualquer conta com um F em vez de um M” (ATWOOD, 2017,
p.213) e mesmo lhes foi negado seus direitos políticos e sociais.
Este aspecto de controle financeiro das mulheres, controle este que também já foi
utilizado ao longo da história, como forma de sujeição feminina, mostra-nos, mais uma vez,
que um dos temas principais do romance é a opressão feminina. Enquanto distopia feminista
crítica, aqui, como analisa Ildney Cavalcanti (2003), a “subordinação das mulheres pelos
homens é total” (p.343), além de controlar cada aspecto da vida delas, o regime também vigia
suas roupas e maneiras de agir proibindo, até para aquelas de dentro da cúpula política, ou
seja, as Esposas, o pensamento livre e o exercício de suas individualidades. E ainda, é

27 Porque semearam ventos e segarão tormentas; não há seara; a erva não dará farinha; se der, tragá-la-ão os
estrangeiros (Oseias 8:7)

41
importante destacar que, como nos traz Susana Borneo Funck (1990), o centro social por
excelência nesta República, é a família, tudo gira em torno do que se desenrola no seio
familiar, que tem por chefe supremo o Comandante, ou seja, uma figura masculina.
Segundo Funck (1990), o Comandante é esta figura ao redor da qual as castas de
mulheres servem e se estratificam, cada uma responsável por uma função na sociedade.
Temos então, além das Aias, que sempre usam roupas na cor vermelha, as Esposas, mulheres
casadas com os Comandantes, que trajam sempre vestimentas da cor azul ; as Tias, que são
responsáveis pela formação, por assim dizer, das Aias, utilizando sempre as cores marrom; as
Marthas, mulheres que cuidam dos afazeres domésticos, vestidas de verde; e temos também a
casta de mulheres que são pouco retratadas na história, mas que pairam pela narrativa, como
as que se encontram à margem dessa sociedade, e não tem nenhum status, que são as
trabalhadoras das colônias (espécie de locais onde se pratica o trabalho forçado) e aquelas
que trabalham na chamada Casa de Jezebel, um bordel que pela lei de Gilead não pode
existir, mas funciona na marginalidade, e as Econoesposas, mulheres pobres que não fazem
parte da elite e do alto comando gileadiano.
Os homens também são divididos e recebem títulos conforme sua posição na escala
social, sendo os Comandantes os chefes políticos, são estes que fazem as novas leis e regem a
dinâmica da sociedade. Os Guardiões, são empregados nas casas dos Comandantes e são
espécies de seguranças particulares dessas famílias; os Anjos são a força policial de Gilead,
são eles que mantêm a ordem e a lei; e os Olhos são os espiões que controlam e vigiam os
habitantes do país. No entanto, apesar dessa hierarquização, estes homens não são sujeitos ao
mesmo nível de controle, estratificação e opressão de que são vítimas as mulheres, isso
porque ainda são considerados seres humanos e cidadãos, não apenas peças descartáveis de
uma engrenagem. Além destes tipos citados, a trama é atravessada também pelo tipos
desviantes, as Não-Mulheres, os traidores do gênero (população LGBTQI+), fazedores de
anjo (médicos e enfermeiras, além de outras pessoas que ajudaram a realizar/realizaram
aborto) e as pessoas que professam outra religião que não aquela do regime (católicos,
judeus, espíritas, etc), esses tipos não são se quer considerados sujeitos para o país, portanto,
ou são enforcados ou enviados para campos de serviço forçado.
A necessidade da existência das Aias na história se justifica pelo fato de que, como o
país (e o mundo) passa por uma crise no que tange às taxas de natalidade, devido à poluição e
outros agravantes ambientais, são poucas as mulheres que conseguem ter filhos e aquelas
ainda férteis são utilizadas como uma máquina de gerar crianças. Os homens não são
considerados inférteis jamais, “Existem apenas mulheres férteis e mulheres infecundas; esta é

42
a lei.” (ATWOOD, 2017, p.79). Assim, a maternidade é a peça chave do sistema opressivo,
uma vez que a concepção tem uma centralidade primordial. O processo de procriação e
nascimento afeta e influencia a cadeia comportamental e moral gileadiano (FUNCK, 1990),
tanto é que, para angariar a adesão de Esposas, Comandantes e outros envolvidos no processo
de concepção, é criado um ritual justificado pelo discurso religioso encontrado em Gênesis
(30:1-5)
Vendo Raquel que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã, e disse a
Jacó: Dá-me filhos, se não morro. Então se acendeu a ira de Jacó contra
Raquel, e disse: Estou eu no lugar de Deus, que te impediu o fruto de teu
ventre? E ela disse: Eis aqui minha serva Bila; coabita com ela, para que dê
à luz sobre meus joelhos, e eu assim receba filhos por ela. Assim lhe deu a
Bila, sua serva, por mulher; e Jacó a possuiu. E concebeu Bila, e deu a Jacó
um filho.

Neste ritual, Esposa e Aia, após as orações iniciais, que contam com a participação de todos
que moram na casa, deitam-se na cama do casal, a Aia apoia sua cabeça sobre a barriga da
esposa, que segura as mãos da Aia. Enquanto isso, o Comandante exerce o ato sexual. O ato
não é considerado estupro, ao contrário, ali, com a participação da Esposa, conectada à Aia, é
como se fundissem em uma só carne, é como se o homem apenas estivesse realizando um
dever moral para com sua sociedade.
Presa à concepção de mulher enquanto natureza, enquanto imanência, que tem o poder
de procriar, mas não da criação ou transcendência (BEAUVOIR, 2016) ou seja, que tem o seu
sentido de vida e existência possível apenas quando atada às funções de seu gênero, Gilead
organiza a opressão, desumanizando e polarizando as mulheres através deste ritual, e nele a
mulher é apenas “um corpo, não tendo direito à educação ou à comunicação com membros
das outras castas” (FUNCK, 1990, p.100), sendo descartada a partir do momento em que não
servem mais ao propósito da nação, afinal, se os homens, como relata Sherry Ortner (2017)
identificados com a cultura, dotados da capacidade de criação submetem a natureza a seus
caprichos, dominando-a e modificando-a, as mulheres, identificadas por Gilead como
pertencentes ao domínio da natureza, poderão também serem subordinadas.
Distantes entre si, vivendo em ambientes autoritários, extremamente hierarquizados,
a parte de cima da pirâmide feminina, ou seja, as Esposas, são motivadas a odiarem, ou
tratarem como simples objetos utilitários para uso a seu bel prazer, as Aias, que, por sua vez,
são motivos de sentimento de inveja por parte das Marthas, uma vez que na visão das últimas,
as Aias ganham seu sustento gratuitamente, ou o ganham sendo coniventes com a exploração
perpetuada em Gilead, como se elas tivessem escolhas e tivesse escolhido o abjeto, como nos

43
explica Offred ao descrever a “cara de poucos amigos” com a qual Rita, a Martha da casa em
que reside, lhe olha
Por vezes fico escutando do lado de fora de portas fechadas, algo que nunca
teria feito no tempo de antes. Não escuto por muito tempo, porque não
quero ser apanhada fazendo isso. Mas certa vez ouvi Rita dizer para Cora
que não se rebaixaria dessa maneira. (ATWOOD, 2017, p.18) .

Assim, a estratificação entre as mulheres é uma via de mão dupla dentro da trama.
Com a hierarquização, que coloca as mulheres no topo do poder também como opressoras e
coniventes com o regime, Margaret Atwood tanto faz sua crítica ao feminismo hegemônico,
quanto expõe a forma como os discursos feministas podem ser pervertidos para serem
utilizados em situações repressoras e como justificativa à dominação e exploração. Em
relação ao feminismo hegemônico, este movimento pensa todas as mulheres como vítimas
dos mesmos preconceitos e sujeições, “colocando ainda as mulheres brancas em posição
hierarquicamente superior em relação a todas as outras” (ZANEZI, 2018, p.316) e
entendendo o patriarcado como sendo, segundo Karina Bidaseca (2019, p.261, tradução
nossa) “[...]uma forma de dominação masculina universal, ahistórica, essencialista e
indiferente a respeito da classe ou raça” 28, ou seja, este feminismo branco ocidental, tem por
tese a universalidade das mulheres e das opressões e não leva em conta os recortes classistas
e raciais que estão envolvidos no sistema de sujeições que nós mulheres somos submetidas
em diferentes graus.
Como exemplo, Tia Lydia, amenizando a natureza do “trabalho” das Aias, discursa
que “para as gerações que vierem depois [...], será tão melhor. As mulheres viverão juntas em
harmonia, todas numa única família; vocês [as Aias] serão como filhas para elas [as Esposas]
[...]Poderão existir verdadeiros laços de afeto.” (ATWOOD, 2017, p.195). O argumento da
personagem é que Gilead abriu caminhos para as mulheres eliminando determinadas
opressões, como ser humilhada nos ambientes de trabalho, a pressão estética, o estupro, o
assédio, unindo-as na mesma casa em prol de uma atividade e objetivo em comum. O que ela,
e Gilead tenta esconder, no entanto, é que o discurso feminista foi cooptado e pervertido. É
por isso que Offred, ao comentar sobre essa pretensa união entre as mulheres, desejo de sua
mãe que era feminista, ironiza “Mãe, penso. Onde quer que você possa estar. Pode me ouvir ?
Você queria uma cultura de mulheres. Bem, agora existe uma. Não é como a que você queria,
mas existe. Dê graças a deus pelo pouco que tem.” (ATWOOD, 2017, p.155). A pretensa
igualdade total entre as mulheres não existe, uma vez que quem tem relativa posição de poder
28 [...] una forma de dominación masculina universal, ahistórica, esencialista e indiferencia a respecto de la
clase o la raza. (BIDASECA, 2019 , p.261)

44
nesta sociedade é apenas a Esposa, que influencia e comanda a vida de todas as outras em sua
casa.
Portanto, considerando O conto da Aia como esta narrativa distópica, no qual a autora
busca na história as problemáticas que serão criticadas, tendo por mote principal, a forma
como as sociedades sujeitavam e ainda sujeitam as mulheres, percebemos ainda que, é
através de uma narrativa não linear, permeada de construções de uma memória e relato de
sua experiência do agora em Gilead, que a Aia nos traz pedaços do seu passado e reflete
sobre as mazelas sociais para também nos fazer refletir sobre muito do que está na trama e
que também pode ser visto na nossa realidade. A partir dessa mistura de devaneios e
lembranças que passeiam entre passado e presente e que, por vezes, faz asserções que
transitam entre a esperança de um futuro melhor e medo do devir é que percebemos que O
Conto trata-se de uma narrativa distópica.
Assim, acompanhamos uma teocracia nos seus primeiros anos de fundação, no
período áureo em que as leis e opressões vão sendo armadas e fortalecidas, e é nesse cenário
de um Estados Unidos desolado que as lembranças de Offred nos conduz. Através de uma
narrativa memorialística ficcionalizada, que é cheia de lacunas, extrapolações e
reconstruções, entramos no universo distópico da vida da Aia e sua relação com esse novo
meio de vida e suas sensações, o que ela fala e deixa de falar o que ajuda a construir em
nossa cabeça a República de Gilead. O tempo, a memória e a subjetividade de uma
personagem feminina que nos leva pelos caminhos tortuosos da ditadura são os elementos
que constroem a trama da narrativa de Margaret Atwood. Pensando nisso, no capítulo a
seguir discutiremos a importância e o papel da memória para o estabelecimento dessa
distopia.

45
3- CAPÍTULO II - MEMÓRIA, NOSTALGIA E TESTEMUNHO

3.1 - A NARRATIVA MEMORIALÍSTICA DE OFFRED


Em sua obra A espécie fabuladora, Nancy Huston (2010) nos conta que
diferentemente de outras espécies animais, os seres humanos somente apreendem o mundo
através das narrativas, são elas que dão sentido à existência humana e ao universo e, sem
essas ficções que organizam o caos da realidade em nossas cabeças, a vida humana seria o
vazio e o silêncio. “Real-real: ele não existe, para os humanos. Real-ficção apenas, por todos
os lados, sempre, uma vez que vivemos no tempo. A narratividade se desenvolveu em nossa
espécie como uma técnica de sobrevivência. Ela está inscrita nas próprias circunvoluções do
nosso cérebro.” (HUSTON, 2010, p.19)
Não quer dizer que este poder de narrar e que as ficções com as quais entrelaçamos
passado e presente sejam todas histórias de um não-real; ao contrário, é por essas histórias
que o “real humano” existe, e é através delas que conseguimos ordenar o mundo. Nesse
sentido, como a autora traz, a nossa própria memória é uma ficção, não significando que seja
falsa ou mentirosa, mas sim que ela seleciona, exclui, inclui, remonta acontecimentos que
ajudam a construir a identidade dos sujeitos humanos com aquelas informações que fazem
mais sentido para cada um e cada uma, é ela que constrói a história de todos nós.
Mitos fundadores, literatura, histórias de vida: é pela articulação da narrativa que
acessamos o real, e é por meio da reconstrução das lembranças, essas que seriam uma
(re)apresentação do vivido, pequenos episódios significativos, que reproduzem uma imagem
de situações do passado e que se agrupam num memória que, por sua vez representa essa
“presença do ausente” (RICOUER, 2007), ou, conforme Gayle Greene (1991, p.293, tradução
nossa) diz: “A memória é nosso meio de conectar passado e presente, construindo a nós
mesmo e versões de experiência com as quais podemos viver.”29
Mãe das musas, guardiã da poesia, a deusa Mnemosyne é a personificação da
memória, ela é a “fazedora de histórias — histórias com as quais construímos significados
através da temporalidade e asseguramos a nós mesmos que o tempo que passou não é um
tempo perdido”(GREENE, 1991, p. 294, tradução nossa)30. Dessa forma, a memória participa
da construção da identidade e dessa ficção de vida, que perpetua o tempo e nos garante
imortalidade. A literatura amplia a capacidade do lembrar e nos resguarda da transitoriedade

29 Memory is our means of connecting past and present and constructing a self and versions of experience we
can live with.
30 [...] maker of stories-the stories by which we construct meaning through temporality and assure ourselves
that time past is not time lost.

46
do passado, além de construir, pela articulação das memórias coletivas e individuais, essa
ficção que é o que somos e que só pode ser alcançada pelas lembranças de vida, construídas e
evocadas no contato com o outro e com nós mesmos.
Narrativa e memória estão conectadas, seja na construção do discurso histórico, seja
na ficção literária. O ato de contar histórias é também o ato de organizar o nosso passado,
para que assim possamos compreender o presente. E os discursos de memória muitas vezes
são os mecanismos utilizados para construir e reconstruir, de forma sistemática, aquilo que já
passou, fazendo o passado reverberar ainda no momento atual. Nesse sentido, como
poderíamos então definir a memória e seus mecanismos, e de que forma através do
testemunho da Aia e suas rememorações podemos compreender o ethos de existência de
Gilead, fora dos discursos “oficiais” dos comandantes desta nação?

3.2 - “A MEMÓRIA É DO PASSADO”31


Para entender o que é memória precisamos compreender de início que as teorizações a
respeito deste mecanismo se diferem de acordo com as disciplinas que o estudam, isto é, a
biologia pensa a memória enquanto em seus aspectos fisiológicos apenas, de redes neurais e
mecanismos de lembranças, já para a psicologia, para a filosofia, a memória é analisada em
uma perspectiva que considera o significado desta capacidade, para além de sua característica
meramente fisiológica, considerando a dimensão simbólica do ato de lembrar. Paolo Rossi
(2010, p.15) considera que “a memória parece referir-se a uma persistência, a uma realidade
de alguma forma intacta e contínua”, e esta persistência refere-se a busca por manter vivo
esse passado que irrompe no presente e que permite-nos recuperar a imagem daquela história,
daquele acontecimento que tenha sentido em nossas trajetórias de vida, daí a ligação da
memória com a construção da identidade, que veremos adiante.
Segundo Rossi (2010) a memória traz de volta à vida aqueles que se foram,
ampliando a existência humana, ela reconceitualiza o passado, trazendo-o de volta,
ressignificando-o e reelaborando as lembranças daquilo que já se foi. O passado, através da
memória, reverbera no presente de forma que “os costumes modernos repousam sobre antigas
camadas que afloram em mais de um lugar” (HALBWACHS, 1990, p.65), ou seja, o passado

31[...] nostalgia has different meanings for men and women. Though for one perspective, women might seem to
have more incentives than men to be nostalgic-deprived of outlets in the present, they live more in the past,
which is why they are the keepers of diaries journals, family records, and photograph albums-from another
perspective, women have little to be nostalgic about, for the good old days when the grass was greener and
young people knew the·place was also the time when women knew their place, and it is not a place to which
most women want to return.

47
deixa um rastro que se inscreve na memória. Este vestígio é articulado na história, explicando
o presente e fazendo elucubrações sobre o futuro. Segundo Jeanne Marie Gagnebin (2009,
p.44) “a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se
lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua
irrupção em um presente evanescente”. Assim, a fragilidade da memória e do rastro do
passado definem que, um dos trabalhos da memória é manter vivo essa presença-ausência, é
lutar contra o esquecimento que simboliza, não apenas a perda da capacidade fisiológica do
lembrar mas, sobretudo, a perda das narrativas que contam aquilo que somos. Para Danielle
Ramos (2011), também a memória, para além da sua conexão com o passado, é plural e
labiríntica, de forma que ela relaciona o ontem e o hoje numa articulação que requer uma
recomposição dos fatos que se foram.
Se os seres humanos são mortais, a memória permite a imortalidade simbólica da
humanidade e seus feitos, por isso o mito grego de Mnemosine, a musa que desvela o tempo
e inscreve nos/nas poetas a capacidade de lembrança (RAMOS, 2011). Lembrar-se é
reconstruir o tempo e é também uma arte, que inscreve imagens do passado no presente. Para
os gregos, a memória ocupava um lugar central, de forma que a reminiscência é retratada e
valorada na mitologia e nos mitos de origem destes povos (CANDAU, 2002), e também a
luta de Ulisses para retornar a sua Ítaca, em A Odisséia (1729), representa, segundo Jeanne
Marie Gagnebin (2009) essa busca pela manutenção das histórias, das palavras, em suma, da
importância dada à memória como definidora de um povo e guardiã de uma cultura.
Em uma civilização marcada pela tradição oral, a função da memória, mais que
manter vivo o passado, definia a perpetuação do conhecimento ancestral e formação das
identidades coletivas e individuais. Pensando nisso, a partir dos gregos é possível elencar
quatro correntes de pensamento que ajudam a compreender os usos e estudos da memória. De
acordo com Joel Candau (2002), a primeira corrente está ligada a Homero e Hesíodo, aqui o
discurso de memória tem a ver com as atividades dos poetas e os relatos míticos que
organizam, através de narrativas, o passado, os mitos de origem, a história de deuses e heróis.
Lembrar, para estes filósofos é decifrar e manter vivo o pretérito. A segunda corrente, tem
como base o pensamento de Píndaro, Ésquilo e Empédocles, no período, a civilização grega
abandona o ideal heróico e reflete sobre a transitoriedade do tempo. Aqui, Mnemosine canta a
morte, os fatos de vida passada que, ao serem lembrados, nos ajudam a superar o tempo e
alcançar a imortalidade da alma. Por fim, a terceira corrente é marcada pelo platonismo, com
a memória significando conhecimento, ligada às técnicas de memorização e de retórica, a
rememoração é tida como a busca pela verdade, por ampliar a capacidade de reter

48
informações e, segundo Paul Ricoeur (2007), em Platão a memória representa a presença de
uma ausência.
As correntes citadas acima referem-se, como relata Candau (2002), ao período arcaico
da filosofia da memória. A partir de Aristóteles, que define a quarta esfera de pensamento
sobre a temática, lembrar não é mais permitir que os indivíduos evadam do tempo, que
prolonguem e cantem seus feitos, alcançado a imortalidade, ao contrário, a concepção
aristotélica inaugura a modernidade dos estudos de memória que agora “abandona o tempo e
simultaneamente força o homem a fazer representações do tempo que passa” 32 (CANDAU,
2002, p.24, tradução nossa). Tomando por base o pensamento de Paul Ricoeur (2007, p.36), a
memória, para Aristóteles é “a memória do passado”, ou seja, nos lembramos após
transcorrido a passagem do tempo e, em linhas gerais, para o filósofo grego, a memória, é a
marca do tempo em nossos corpos e em nosso espírito. Ela é também uma imagem que se
imprime em nossas almas e que traz à vida um objeto, um fato de existência que tivemos
contato mas que não é o objeto em si, daí sua ligação com a idéia de representação, com a
eikôn, termo que pode ser compreendido, de forma simplificada, como a imagem semelhante
à essa inscrição. É também através da metáfora do sinete e da cera que o filósofo exemplifica
a definição da memória e é semelhante metáfora, do tempo como um entalhe, que deixa seus
traços, que encontramos no relato de Offred no livro de Margaret Atwood
Esses hábitos de tempos passados agora me parecem pródigos, quase
decadentes, imorais, como as orgias de regimes bárbaros. M. ama G., 1972.
Esse entalhe, feito com um lápis cravado muitas vezes no verniz gasto da
carteira, tem o páthos de todas as civilizações desaparecidas. É como a
impressão de uma mão na pedra. Quem quer que tenha feito aquilo algum
dia esteve vivo. (ATWOOD, 2017, p.138)

Neste sentido, a partir de Platão e Aristóteles, a memória é uma fato da alma,


profundamente conectada à passagem do tempo, ela ainda se distingue entre a mnemê, a
lembrança, que resguarda os fatos do passado e os conserva, e a anamnêsis, a recordação, que
se difere da lembrança por ser uma busca ativa do passado (RAMOS, 2011; RICOUER,
2007). Lembrança, recordação, têm todas uma ligação dialética com o passado de forma que,
o lembrado é diferente da forma como existia e, ao trazê-lo ao presente, ele também se difere,
isso porque a memória é lacunar e essas lacunas são preenchidas pela percepção que temos
hoje daquilo que passou.

32 Women especially need to remember because forgetting is a major obstacle to change.

49
3.3- A MEMÓRIA DO PASSADO EM O CONTO DA AIA
A memória tem como objeto o passado, que nos afeta e marca, como vimos
anteriormente. Esta característica liga o fenômeno ao tempo e consequentemente à percepção
histórica que os indivíduos têm deste fato. Neste sentido, conforme Paolo Rossi (2010), se na
Antiguidade, as sociedades eram marcadas pela oralidade, por uma percepção do tempo como
cíclico e pelas dificuldades para se armazenar informações, a memória torna-se também uma
arte que, ligada à retórica, permite prolongar o tempo e a capacidade de armazenamento e
salvaguarda das imagens e fatos do passado, conforme Rossi (2010. p.69) “A memória como
arte serve para introduzir ordens e regularidades na mente, tem o escopo de organizar os
pensamentos e os discursos”. Na modernidade, entretanto, o tempo é entendido como linear
(ROSSI, 2002) e, nessa linearidade, a memória se apresenta como fragmentária. O
desenvolvimento da escrita e de novas tecnologias aumentam a capacidade de
armazenamento do passado de forma que as técnicas de memorização não são mais tão
utilizadas para manter o pretérito no presente.
O passado se entende por construção, como uma narrativa, que organiza as nossas
lembranças, preenchendo as lacunas, de forma que sejam dotadas de sentido e dêem sentido a
nossa história. Conforme Joel Candau (2010) analisa, são as narrativas que ordenam o tempo
e a “lembrança do passado não é a lembrança do tempo que passa nem a lembrança do tempo
que passou” (CANDAU, 2010, p.65), a memória é este artefato que se articula em histórias,
construídas, reconstruídas, dotadas de sentido e significação. Assim, se a memória é também
narração, qual sua ligação com a literatura? Como vimos, desde A Odisseia, o processo de
escrita também esteve ligado em prolongar o tempo e resguardar as recordações dos heróis e
deuses, da mesma forma, literatura e memória se entrelaçam na luta contra o esquecimento,
de forma que
Textos escritos em pedra, couro, papiros, papéis ou na tela anunciam essas
tentativas e revelam as intensas vinculações entre a memória e a escrita,
frente a uma dinâmica transgressora do vivido, em meio ao aludido jogo
incessante do enfrentamento entre a lembrança e o esquecimento. (RAMOS,
2014, p.347)

Se conhecemos o mundo e a nós através das narrativas, a literatura, em função da memória,


amplia a capacidade de conhecimento e traz a tona, através das biografias, autobiografias,
ficções biográficas, literatura de testemunho, os relatos de experiência e as recordações do
nosso passado e história, de forma a articular, não apenas a memória dos vencedores, ou seja,
da classe dominante que tem o poder de decisão sobre o que merece ou não ser

50
narrado/preservado, mas também as histórias de vida de quem está à margem. E é através da
memória de uma excluída que em O conto da Aia, conseguimos adentrar na vida de Gilead.
No livro, que se define também por ser uma narrativa memorialística, são os discursos
de memórias da personagem principal que nos apresentam o modo de vida deste país.
Offred, ao nos contar as vivências e histórias de Gilead, organiza o caos vivido e guarda os
rastros da opressão que testemunhou, tentando evitar que esta opressão se repita em um
futuro, afinal, de acordo com Gayle Greene (1991, p. 298, tradução nossa): “As mulheres
especialmente precisam lembrar, porque o esquecimento é o maior obstáculo para a
mudança.”33 Lembrar é evitar que as dores se repitam. A narrativa de Offred, mais que um
testemunho de um horror ficcionalizado, é um ato de esperança que se projeta na figura de
um possível leitor no futuro que acredite e aprenda com o testemunho apresentado
Mas continuo com esta história triste e faminta e sórdida, esta história
manca e mutilada, porque afinal quero que você a ouça, como ouvirei a sua
também se algum dia tiver a chance, se encontrar você ou se você escapar,
no futuro ou no Céu ou na prisão ou na clandestinidade, em algum outro
lugar. (ATWOOD, 2017, p. 315)

A Aia conta uma narrativa fragmentada, como a memória, e no seu diálogo com um
possível leitor ou leitora, ela narra sua visão e suas dores, perguntando-se sempre se aquilo
aconteceu ou é truque da mente. Afinal, uma narradora memorialística é uma fingidora, como
diz Patrícia Porto (2011), uma vez que são os fatos interpretados e organizados pelas suas
lembranças, que compõem o quadro de imagens desse presente vago que chega até nós.
Assim:

Fazendo da escrita um fluxo imanente e analítico da própria constituição


mnemônica daquilo que narra, o narrador memorialista cria uma espécie de
metamemória literária, pensada sob a estrutura do rememorar e a partir do
próprio discurso memorialístico num jogo espelhar, num jogo de linguagem
onde as entrelinhas são as linhas e vice-versa, onde o profundo e a superfície
interagem para compor o ato de criação. É diferente da tentativa de escrita
(auto)biográfica, quando se pretende escrevê-la unicamente como registro e
“ilusão” histórica, como se a existência humana e a memória ou até mesmo
os documentos dessa existência fossem lineares. (PORTO, 2011, p.433)

Não há linearidade, há um fluxo de lembranças, fragmentos daquilo que melhor


descreve a vida e a morte em Gilead e que tiveram um significado na trajetória pessoal de
Offred nesse mundo novo que ela enfrenta, como podemos encontrar no livro: “Lamento que

33 Con Aristóteles la memoria se abandona al tiempo y, simultáneamente, obliga al hombre a elaborar


representaciones del tiempo que pasa. (CANDAU, 2002, p.24)

51
haja tanto sofrimento nesta história. Lamento que esteja em fragmentos, como um corpo
apanhado num fogo cruzado.” (ATWOOD, 2017, p.315).
Evocações, reminiscências e recordações, através desses recursos da memória que
passeamos entre passado e presente em Gilead. Segundo Paul Ricoeur (2010) a evocação é
uma afecção, que através do “aparecimento atual da lembrança”, nos ajuda a lutar contra o
esquecimento. São as sensações, os cheiros, as cores, as comparações, que trazem à mente a
imagem de algo que já foi. Ao descrever o Centro Vermelho, local em que as aias são
mantidas e educadas até poderem ir para um Comandante, a narradora evoca o passado,
descrevendo imagens do que era e já não é mais. É como a narração de um fantasma, o
fantasma da liberdade que paira agora num lugar onde a subjetividade de mulheres é
reprimida.

Nós dormimos no que outrora havia sido o ginásio esportivo. O assoalho era
de madeira envernizada, com listras e círculos pintados, para os jogos que
antigamente eram disputados ali; os aros para as redes das cestas de
basquete ainda estavam em seus lugares, embora as redes tivessem
desaparecido. Uma arquibancada cercava o aposento para os espectadores, e
imaginei que podia sentir, muito ligeiramente, como uma imagem evocada,
o cheiro pungente de suor, mesclado com a doçura latente de goma de
mascar e o perfume das garotas assistindo aos jogos vestidas com saias de
feltro, como eu tinha visto em fotografias, mais tarde de minissaias, em
seguida de calças, depois com um brinco só, os cabelos espetados com
mechas pintadas de verde. Bailes teriam sido realizados ali, um palimpsesto
de sons jamais ouvidos, um estilo seguindo-se ao outro, como subcorrente,
uma cadência de tambores, um lamento desesperançado, guirlandas feitas de
flores de papel de seda, máscaras de cartolina, uma esfera giratória coberta
de espelhos, salpicando os dançarinos com uma neve de luz. (ATWOOD,
2017, p. 8)

É com sentimento de nostalgia que Offred traz a afecção deste passado em que a
liberdade era vivida e não valorizada. A nostalgia é também um recurso da memória que
Gayle Greene (1991) define como esse sentimento de querer voltar à casa, é um desejo de
regressar a um passado visto como mais acolhedor e significativo. Segundo Greene (1991),
enquanto a memória em si, olha para o passado para entendê-lo e seguir em frente, a nostalgia
opera como uma regressão e, por isso, esse tipo de sentimento é mais comum na ficção de
autoria masculina, isso porque para as mulheres o passado nem sempre foi bom ou
confortável.
[...] a nostalgia tem significados diferentes para homens e mulheres.
Embora, em uma perspectiva, as mulheres possam parecer ter mais
incentivos do que os homens para serem nostálgicas — privadas de saídas
no presente, elas vivem mais no passado, é por isso que elas mantêm diários,
registros de família e álbuns de fotos — por outro lado, as mulheres têm
pouco do que sentir nostalgia, pois os bons e velhos tempos, quando a

52
grama era mais verde e os jovens conheciam o seu lugar, era também o
período em que também as mulheres conheciam seu lugar, e não é um lugar
para o qual a maioria deseja retornar. (GREENE, 1991, p.296; tradução
nossa)34

No universo de Gilead, a personagem narradora, embora não pense no antes sob uma
perspectiva sentimentalista e acrítica, sente saudades de um tempo em que, apesar dos
pesares, existia espaço para as mulheres exercerem suas liberdade individuais, ainda que
limitadas
É estranho, agora, pensar em ter um trabalho, um serviço. É uma palavra
engraçada. Isso é serviço para homem. Já fez o serviço, diziam para crianças
quando estavam sendo ensinadas a usar o banheiro. Ou cachorros: ele fez o
serviço no tapete. Você devia bater neles com um jornal enrolado, minha
mãe dizia. Lembro-me de quando havia jornais, embora nunca tenha tido
um cachorro, só gatos. O Livro de Job, a Bíblia, o livro do serviço de Deus.
Todas aquelas mulheres tendo emprego fazendo seu serviço: difícil de
imaginar, agora, mas milhares delas tinham empregos, milhões. Era
considerado uma coisa normal. Agora é como lembrar dinheiro em papel-
moeda, quando eles ainda tinham isso.(ATWOOD, 2017, p. 207)

O sentimento de nostalgia atinge até mesmo os Comandantes. Reclusos em seus escritórios,


dotados do poder de mandar, desmandar e gerir a vida em Gilead, até mesmo essas figuras de
poder se voltam ao passado com sentimentos de saudades, é por isso que recorrem ao
mercado negro para buscar itens que fizeram parte de suas vidas antes do novo regime e é por
isso que, principalmente o Comandante Waterford, tutor da nossa narradora, utiliza as Aias
como peças em sua reconstrução do tempo vivido anteriormente. Desta forma, ao chamar a
Aia para jogar Scrabble (uma espécie de jogo de montar palavras), ao presenteá-la com
revistas e objetos proibidos, ele tenta reviver, com nostalgia, a liberdade anterior.
— Você sabe como são os garotos na escola — diz ele. Sua risada é
nostálgica, vejo agora, o riso de indulgência para com uma pessoa que um
dia foi. Ele se levanta, cruza a sala até as estantes, tira um livro de sua
coleção de tesouros; não o dicionário, contudo. É um livro antigo, um livro
de ensino, parece, com as páginas marcadas com dobras e manchas de tinta.
Antes de me mostrar ele o folheia, contemplativo, rememorando; então: —
Aqui — diz ele, pondo o livro aberto sobre a escrivaninha na minha frente.
(ATWOOD, 2017, p.223)

É para minar os desejos nostálgicos e construir uma nova versão do passado que
Gilead se utiliza de novos mitos e comemorações como, por exemplo, a própria formação das
Aias e da criação de cerimônias rituais, como os Salvamentos e as relações sexuais entre Aias
e Comandantes, que dê um sentido bíblico e sagrado à violência. Segundo Paul Ricoeur
(2010) os acontecimentos fundadores, que unificam uma sociedade e criam uma identidade

34 Paul Ricoeur (2010)

53
cultural que servirá para moldar identidade individuais, são baseados em acontecimentos
violentos que legitimam quem terá o direito de contar a história e qual/quais memórias
merecem ser lembradas e comemoradas.
Em Gilead, certamente às mulheres ou aos dissidentes não é dada a possibilidade de
participar da criação da memória oficial do país; ao contrário, Gilead trabalha pela reescrita
da história que inclua, tão somente, a visão dos agora vencedores, através da manipulação da
memória. E a manipulação inclui utilizar a opressão às mulheres no passado para justificar a
mudança do regime, como se agora elas fossem livres.
É claro, algumas mulheres acreditavam que não haveria futuro,
pensaram que o mundo explodiria. Essa era a desculpa que usavam, diz tia
Lydia. Diziam que não havia sentido na procriação. As narinas de tia Lydia
se estreitam: tamanha maldade. Eram mulheres preguiçosas, diz ela. Eram
mulheres vagabundas. (ATWOOD, 2017, p. 138)

Para as gerações que vierem depois, dizia tia Lydia, será tão melhor. As
mulheres viverão juntas em harmonia, todas numa única família; vocês
serão como filhas para elas, e quando o nível da população voltar a subir de
acordo com as expectativas, não precisaremos transferir vocês de uma casa
para outra porque haverá mulheres suficientes para todas. Poderão existir
verdadeiros laços de afeto, dizia ela, pestanejando para nós de maneira
insinuante, sob condições como essas. Mulheres unidas para um fim
comum! Ajudar umas às outras em suas tarefas cotidianas enquanto
percorrem o caminho da vida juntas, cada uma desempenhando sua tarefa
determinada. Por que esperar que uma mulher desempenhe todas as funções
necessárias à administração serena de um lar? Não é razoável nem humano.
Suas filhas terão maior liberdade. (ATWOOD, 2017, p. 195)

Demos-lhes mais do que tiramos, disse o Comandante. Pense nas


dificuldades que tinham antes. Não se lembra dos bares de solteiros, a
indignidade dos encontros entre desconhecidos no colégio? O mercado da
carne. Não se lembra do terrível abismo entre as que podiam conseguir um
homem com facilidade e as que não podiam? Algumas delas ficavam
desesperadas, passavam fome para ficar magras, enchiam os seios de
silicone, mandavam cortar pedaços do nariz. Pense na infelicidade humana
(ATWOOD, 2017, p. 260)

Joel Candau (2019) nos traz que o processo de manipulação de uma memória perpassa
a tentativa da criação de novas identidade coletivas, que condizem com a ideologia vigente,
de modo que o passado mesmo possa ser deformado, por meio da criação de narrativas outras
que sejam permitidas e conectadas às estratégias de poder. Como traz o pesquisador “aquele
que manipula o passado pessoal, familiar e regional cria-se a si próprio ao mesmo tempo em
que cria seus adversários” (CANDAU, 2010, p.166). Gilead ao, criar-se e criar seus
monstros, começa a tentar redefinir o passado a partir das lembranças íntimas de cada um,
exterminando famílias, matando memórias individuais e coletivas em benefício do Estado e

54
do novo direcionamento que ele dá às novas identidades possíveis. Assim, no romance aqui
analisado, a manipulação da memória começa pela “formação” das Aias.
No Centro Vermelho as Tias trabalham com um processo que envolve violência
psicológica e corporal, de forma a fazer com que as mulheres percebam que o antigo modo de
existir e o “excesso de liberdade” é que as faziam vítimas de dores e sofrimentos. Em resumo,
as Tias culpabilizam as mulheres pelo mal no mundo, tentando fazê-las ver que tudo que
acontece em Gilead é para protegê-las de um mundo que as matava, estuprava e esgotava,
reformulando memórias e criando passados alternativos, para então perpetuar um sistema que
deve ser aceito.
A manipulação da memória em O Conto da Aia também advém com o apagamento de
identidades individuais e mesmo com o apagamento de existências que se encontram a partir
do momento em que às Aias é proibido portar seus nomes próprios; aliás, as personagens
femininas no romance são raramente conhecidas por seus nomes, mesmo em castas mais
abastadas, as mulheres Esposas dos comandantes, por exemplo.
Assim, caracteriza-se a dependência de uma identidade feminina à uma autoridade
masculina. Além disso, ao nomear alguém, dotamos aquela pessoa de um sentido de
existência e de uma primeiro sentido de identidade, uma vez que o nome “é sempre uma
questão identitária” (CANDAU, 2010, p. 68). Ao negarmos a alguém a nomeação, negamos
sua existência e sua subjetividade, uma vez que “a nominação, a memória e a identidade
estabelecem relações muito fortes. Todo dever de memória passa em primeiro lugar pela
restituição de nomes próprios” (CANDAU, 2010,p.168). É por isso que no romance de
Atwood, muitas vezes Offred começa a questionar a própria existência e o próprio passado. É
como se, privada de ser chamada pelo seu nome, ela também tenha sido privada de
resguardar suas memórias e sua própria vida.
Digo a mim mesma que isso não tem importância, seu nome é como o
número de seu telefone, útil apenas para os outros, mas o que digo a mim
mesma está errado, tem importância sim. Mantenho o conhecimento desse
nome como algo escondido, algum tesouro que voltarei para escavar e
buscar, algum dia. Penso nesse nome como enterrado. Esse nome tem um
aura ao seu redor, como um amuleto, um encantamento qualquer que
sobreviveu de um passado inimaginavelmente distante. (ATWOOD, 2017,
p.103)

Toda a sociedade descrita em Gilead trabalha a favor da supressão das identidades


individuais das mulheres e em favor da manutenção dos papéis sociais femininos definidos
pelo patriarcado, e ainda, essa sociedade distópica mantém as mulheres juntas e separadas ao
mesmo tempo. Juntas no espaço doméstico que a maioria habita, já que não há a

55
possibilidade de trabalhar fora de casa ou ter independência financeira, e separadas porque
pelo regime do medo e opressão, a rivalidade feminina é incentivada. E é através do medo e
da objetificação de mulheres que essa sociedade mantém seu discurso e estrutura. Onde não
há espaço para a expressão de subjetividades, e onde se impera o processo de apagamentos
de memórias e histórias em favor de uma estrutura que se mantém pelo medo e pela
intolerância.

3.4- O TESTEMUNHO DA AIA: RELATOS DE OPRESSÃO, IDENTIDADE


E EXPERIÊNCIA.
Segundo Márcio Seligmann-Silva (2018, p.139), a memória é a “tradução da imagem
em palavras, empenhada em reativar via palavra as imagens que foram congeladas no
tempo”. Traduzir o passado pode compreender, ressignificar ou interpretar, em uma nova
perspectiva, aquelas imagens que pairam em nossa mente, e remetem a um tempo que se foi.
A literatura, assim como a memória, também pode traduzir essas imagens do passado,
narrando as experiências vividas e suas significações, o que nos auxilia a compreender a
história, para assim entender o presente.
Para além de ser um objeto da cultura, a literatura também carrega memórias, segundo
Márcio Seligmann-Silva (2018), as formas literárias tem um caráter testemunhal, no sentido
de que encontramos em seu cerne a lembrança, as perspectivas e os modos de vida de um
tempo que passou, elas refletem conceitos, formas e possibilidades das eras em que foram
escritas, analisando o presente e significando o passado. A literatura, as narrativas em si,
ajudam também a elaborar os traumas e a reconstruir subjetividades e identidade perdidas em
tempos de crise, uma vez que, “em situações de rupturas sociais e crises históricas resultantes
de regimes ditatoriais, devem ser consideradas as limitações a que a subjetividade está
exposta.” (UMBACH, 2010, p.106), os relatos testemunhais narram experiências de vida, não
apenas daqueles que estão no poder, mas das vítimas que tiveram suas identidades negadas,
de forma que, se as situações de catástrofes negam a humanidade daqueles que são atingidos,
os testemunhos, segundo Beatriz Sarlo (2007) recuperam a subjetividade e preenche as
lacunas da memória.
Se os traumas, de acordo com Seligmann-Silva (2018, p.71) geram uma “falha na
capacidade de representação interna”, o testemunho ajuda a libertar o sujeito das imagens de
terror, ainda que os discursos testemunhais sejam fragmentários, uma vez que a experiência
do trauma gera opressões, encriptam as imagens da tragédia e torna difícil a representação
objetal em nossa mente. A modernidade e sua era de catástrofes, às vezes torna impossível a

56
descrição das memórias do terror, no entanto, é pelo testemunho que as imagens das dores
vividas, da memória da experiência podem ser libertadas pois, se a literatura trabalha com o
simbólico, é pelo simbólico que libertamos as imagens da cripta da dor.
Neste sentido, se os traumas geram opressões que dificultam elaborar a dor e
representar o passado, as narrativas testemunhais constroem esse passado, e não mais o
representam, através do presente. Construir o passado seria então elaborar os relatos de
experiência, preenchendo as lacunas fragmentárias, o que acontece no romance aqui
trabalhado. A nossa personagem principal funciona na trama como uma testemunha que tenta
elaborar os traumas vividos ao mesmo tempo que os sente em sua pele, por isso a obra, em
sua estrutura, é construída em capítulos curtos, em que se entrecruzam fragmentos de
memórias do passado, com as dinâmicas do presente. É através da experiência da catástrofe
que Offred reconstrói o passado, o elabora, tentando entender o vivido, ela mesma define o
seu relato como uma reelaboração
Isso é uma reconstrução. Tudo, cada detalhe é uma reconstrução. É uma
reconstrução agora, em minha cabeça, enquanto estou deitada estendida em
minha cama de solteiro, ensaiando o que deveria ou não deveria ter dito, o
que deveria ou não deveria ter feito, como deveria ter feito meu jogo. Se
algum dia eu jamais sair daqui…[...] Quando eu sair daqui, se algum dia
conseguir registrar isso, de qualquer modo, mesmo sob a forma de uma voz
para outra, será uma reconstrução também, em um grau ainda mais distante.
É impossível dizer alguma coisa exatamente da maneira como foi, porque o
que você diz nunca pode ser exato, você sempre tem de deixar alguma coisa
de fora, existem partes, lados, correntes contrárias e nuances demais; gestos
demais, que poderiam significar isto ou aquilo, formas demais que nunca
podem ser plenamente descritas, sabores demais, no ar ou na língua,
semitonalidades, quase cores, demais. (ATWOOD, 2017, p.163)

Embora a literatura de testemunho tenha sido estudada e pensada a partir,


principalmente, da Segunda Guerra, com os relatos dos sobreviventes do Holocausto, aqui
consideramos o relato de Offred como testemunho, mesmo que parta de uma memória
imaginativa pois, se os relatos de memória na ficção são discursos imaginativos, os próprios
relatos testemunhais verdadeiros, são também reconstruções, como traz Ana Vera Raposo de
Medeiros e Sheila Dias Maciel (2007, p.16)
As memórias, portanto, são uma reconceitualização do passado a partir do
momento presente. Uma versão construída a partir do presente e de suas
necessidades. As memórias não são uma narrativa alicerçada sobre fatos
comprovados, mas, antes de tudo, uma forma, talvez a melhor forma, de
passar o passado a limpo. Sob esta ótica não existem, no âmbito da
narrativa, distinções significativas entre as narrativas de memórias genuínas,
ditas “verdadeiras”, e as memórias essencialmente imaginativas; ambas são
a volta por parte de um “eu-narrador” em busca de um passado, com ou sem

57
referência explícita a uma realidade extratextual comprovada. Ambas são
narrativas, são discursos, são ficções.

Portanto, se os relatos testemunhais de não-ficção, surgiram como uma forma de contar a


experiência do terror advindos com a era das catástrofes na modernidade, na ficção de
Margaret Atwood, o discurso narrado é testemunhal, de forma que apresenta a experiência
vivida, os horrores sentidos por uma personagem e, nos relatos históricos ao final do livro,
podemos compreender ainda mais, que o texto apresentado serve para embasar os estudos
gileadianos, reconstruindo o passado de uma nação que não mais existe e denunciando os
abusos e a desumanização da ditadura que se findou. Assim, o conto de Offred, que não foi
escrito, mas narrado, conforme sabemos no final (uma vez que as mulheres não podiam
escrever na época do regime), junta-se a outros relatos, que servem como documentos para
entender a história de Gilead
Quero recordá-los de que não foi o primeiro achado desse tipo. Os senhores
sem dúvida estão familiarizados, por exemplo, com o objeto conhecido pelo
nome “As Memórias de A.B”. localizadas numa garagem em um subúrbio
de Seattle e com o “Diário de P.”, escavado acidentalmente durante a
construção de um novo templo quaker nas vizinhanças do que outrora foi
Syracuse, Nova York (ATWOOD, 2017, p.354)

De acordo com Márcio Seligmann-Silva (2018), a noção de testemunho são tipificados


em duas grandes vertentes, uma delas, de origem alemã, tem por base os estudos dos Zeugnis,
aqui se trabalha, principalmente com o estudo das memórias da Segunda Guerra Mundial,
partindo de um evento que é a Shoah, ou o massacre do povo judeu durante o Holocausto. Na
tradição do Zeugnis, o testemunho é pensado e analisado à luz da psicanálise, da teoria e
história da memória. A segunda vertente, pensada no contexto da América Latina, tem como
objeto de análise os testimonios. Aqui, os relatos testemunhais partem das experiências das
opressões ditatoriais, por isso, o testimonio é ligado a uma política de memória, como traz o
autor, de forma que os relatos devem ser útil na busca por uma verdade, em sua função de
denúncia, os testemunhos, para essa tradição, funcionam como resgate também da memória
dos excluídos.
Em O Conto da Aia, podemos compreender que o testemunho, ainda que ficcional, se
liga à tradição do Zeugnis, isso porque, enquanto os testimonios partem de um discurso
coletivo, que se pretende fiel e real ao fato acontecido, aproximando-se mais do documento
histórico, a tradição alemã explora, sobretudo os discursos individuais de sobreviventes, que
descrevem uma catástrofe singular, no qual o relato é baseado na reconstrução de fragmentos
de memória. Desta forma, embora não podemos de fato dizer que Offred, nossa testemunha,

58
tenha sobrevivido a Gilead, nas Notas Históricas é o seu conto que integra os documentos que
reconstroem a vida desta sociedade, e este conto é oral, como muitos relatos da Shoah e,
como estes, o testemunho dos horrores gileadianos é fragmentário e reunido em um título
único pelos estudiosos desta nação. Conforme apreendemos do discurso do professor
Pieixoto, estudioso do grupo que tenta compreender, no futuro ano de 2195, a ascensão e
queda desta nação
Mas permitam-me falar sério. Desejo, conforme o título de minha pequena
palestra subentende, considerar alguns dos problemas associados com o soi-
disant manuscrito com o qual agora todos os senhores já estão bastante
familiarizados, e que é conhecido pelo título de O conto da aia. Digo soi-
disant porque o que temos diante de nós não é o objeto em sua forma
original. No sentido exato da palavra, não era absolutamente um manuscrito
quando foi descoberto, e não tinha nenhum título. O sobrescrito O conto da
aia foi anexado a ele pelo professor Wade, em parte como uma homenagem
ao grande Geoffrey Chaucer; (ATWOOD, 2017, p. 353)

Diante do citado, se as experiências do terror, das ditaduras, massacram a subjetividade


e matam identidades, transformando as pessoas em coisas outras que não seres humanos, o
testemunho ajuda a recuperar a humanidade perdida, por isso Beatriz Sarlo (2007) salienta
que o discurso testemunhal tem a função de autodefesa no sentido em que atribui sentido a
tudo que narra, mesmo que não consiga explicar certas ausências e não consiga preencher
lacunas que são características do testemunho, ao contrário do discurso histórico. Segundo
Márcio Seligmann-Silva (2018), isso se dá porque o testemunho parte, antes de tudo, do
particular e através deste particular que se pretende tipificar o universal. Assim é que, no
livro aqui analisado, a Aia narradora conta suas experiências vividas de maneira a dar rosto e
forma às opressões sofridas no âmbito pessoal e pelo seu relato compreendemos as dinâmicas
sociais de Gilead, de forma que, mesmo através do singular, podemos juntar os fragmentos e
entender o todo histórico deste sociedade. É pelo relato da sua experiência que sabemos como
se organizava hierarquicamente a nação, é pelo seu discurso também que entendemos mesmo
aqueles aspectos e organizações que não poderiam ser mencionadas na história oficial de
Gilead como, por exemplo, a Casa de Jezebel e o mercado negro que abastecia o país de
artefatos proibidos.
Para Seligmann-Silva (2018), a poética do testemunho, enquanto arte, enquanto este
vértice de ligação entre literatura e história, resgata o ideal romântico da noção de herói, de
forma que o/a autor/a do relato testemunhal assume essa aura de “ser embebido de ‘cultura’,
de símbolos” (SELIGMANN-SILVA, 2018, p.94). No entanto, podemos compreender Offred
como nossa anti-heroína, embora seja seu olhar que conduza a trama, embora ela assuma esse

59
aura do ser dotado dos símbolos, suas lembranças são lacunares, o terror fragmenta suas
recordações, a conduz ao esquecimento. Offred desconfia do que conta, de suas lembranças e
luta para continuar resgatando a sua subjetividade mesmo diante das experiências do abjeto
que a massacra e desumaniza. Por isso, enquanto uma heroína que não é heroína,
desconfiamos, as vezes do seu relato, condenamos algumas de suas ações mas, assumindo o
papel dessa personagem complexa, o que aprendemos é que a Aia não se ancora numa
subjetividade e na descrição de subjetividades que são universais, ou românticas demais,
aqui, todos e todas lutam com suas sombras e, nas memórias da personagem sem nome,
percebemos que, mesmo em uma nação que se diz perfeita, há rachaduras, vieses e
corrupções.

60
4- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o desenvolvimento da linguagem, seja ela oral ou escrita, a sociedade


humana especializou-se em contar histórias, para Antônio Cândido (2011, p. 174) “a mola
da literatura em todos os seus níveis e modalidades, está presente em cada um de nós,
analfabeto ou erudito”. Nesse sentido, do simples ato de contar a trajetória de uma ida ao
dentista, até escrever um romance de amor, as narrativas são as formas pelas quais nós
entendemos o mundo e o tornamos inteligível para nós e para o outro. Podemos entender
as narrativas, e aqui em especial as narrativas literárias, como mecanismos com as quais
os indivíduos podem compreender a natureza humana, além de serem obras artísticas que
falam aos nossos sentidos, nos trazendo prazer e satisfação.
Como encontrado em Perrine (1998), podemos dividir as obras literárias em duas
categorias, aquelas definida pelo autor como literatura escapista, ou seja, obras que tem o
intuito de fazer com o que o leitor se desprenda por alguns instantes das complicações da
realidade cotidiana, tratando-se de textos de entretenimento, que levam o leitor a um
mundo imaginativo, sem muitas críticas e asserções, e o que o autor define por literatura
interpretativa, que trata-se das obras que nos permitem compreender e analisar a natureza
humana e as configurações sociais.
Assim, diferentemente dos textos escapistas, que tendem a ser superficiais em
termos de estrutura e de discussão crítica a respeito das demandas humanas e sociais, a
literatura interpretativa conecta-se com o que Antônio Cândido define por ser a função
social da literatura. Segundo o autor, a literatura tem um caráter humanizador, uma vez
que ela tanto organiza o caos do mundo real e o conhecimento humano, os tornando
entendíveis, como nos traz asserções sobre a realidade que nos cerca.
A literatura portanto “(...)confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate,
fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.” (2011, p.177). Ela
ainda exagera, comprime e espetaculariza as problemáticas sociais, criando mundos e
sistemas que, embora ficcionais, encontram ressonância na realidade cotidiana. E é,
através dessa exposição analítica das configurações sociais que surgem as distopias.
Entendidas como narrativas críticas que, ao exagerar as agruras sociais e políticas,
criando sociedades e tempos históricos imaginados, as mazelas e as desigualdades são a

61
tônica que comandam, esse modo literário pretende, sobretudo, levantar reflexões sobre
os horrores e os dissabores sobre o qual nos encontramos.
Tais características do romance distópico são facilmente encontradas na obra aqui
analisado. E ainda, enquanto uma obra que se baseia principalmente em denunciar a
opressão legadas às mulheres, classificamos a narrativa Atwoodiana enquanto uma
distopia feminista, neste sentido, esse subgênero distópico, age como um catalisador que
expõe as agruras da discriminação contra as mulheres. Ao construir narrativas de
opressão feminina, autores e autoras, expõem um futuro aterrador para as mulheres,
criticando radicalmente as atuais relações de poder, que ainda colocam mulheres como
menores e inferiores. Mas, ao explorar personagens femininas em situação de
marginalização, ao contar histórias a partir de uma perspectiva que parte das mulheres e
narrar episódios de autoritarismo e perda da liberdade, as distopias feministas agem
também como um instrumento de resistência entre as mulheres no mundo real
Portanto, O conto da Aia é facilmente identificado como uma distopia feminista.
No universo do romance vemos a desumanização das mulheres e a sua sujeição ao
universo patriarcal, e ainda, podemos compreender as armadilhas de discursos que se
dizem acolhedor com as mulheres, mas que na prática se configuram por opressões, que
as sujeitam hierarquicamente, explorando seus corpos e sua força de trabalho. O romance,
enquanto uma obra interpretativa, distópica feminista, cria um mundo de ódio disfarçado
para com as mulheres, onde as mesmas são confinadas ao seu papel de objetos,
dominadas pelos homens e subjugadas por eles. Portanto, através do exagero da violência,
da opressão, a autora nos expõe a perspectiva de futuro que a modernidade, atravessada
por políticas sexistas lega às mulheres.
E ainda, Margaret Atwood nos apresenta uma narrativa essencialmente subjetiva,
baseando-se em um discurso que parte das memórias de Offred, nossa personagem
narradora. É pelas lembranças da Aia, suas rememorações e reflexões que
compreendemos o dia-a-dia, a vida por trás dos muros de Gilead. Assim, a narrativa
memorialista de Offred é constituída pela relação dela com a sociedade que a sequestrou e
a sociedade em que ela costumava a viver. Para tanto, as lembranças, ainda que falhas,
distorcidas e cheias de lacunas, são ferramentas essenciais para que a narrativa aconteça.
Observamos, assim, a importância da memória enquanto elemento que não apenas
compõe a subjetividade como também possibilita nossa relação com o presente e o
passado da humanidade.

62
Por fim, se as distopias nos fazem pensar sobre as nossas ações no hoje, que geram
impacto no futuro, em tempos de avanço da extrema direita, de aclamação de discursos de
ódio, como aqueles proclamados por políticos como Donald Trump e Jair Bolsonaro, a
narrativa de Atwood se faz cada dia mais atual, de forma que podemos perceber que as
previsões e antecipações da distopia, infelizmente, encontram respaldo no que agora vivemos.
No nosso país, onde homens discutem e legislam sobre o corpo das mulheres, onde querem
obrigar meninas de dez anos a ter filhos de estupradores, onde a polícia constantemente
promove o genocídio da população negra, ler este romance da autora canadense é embarcar
num misto de medo, apreensão, ódio e perplexidade.
Claro, Atwood baseou seu livro em pesquisas, observações das opressões de regimes
totalitários, ali não há tanto que já não tenhamos visto relatado na história. Mas a narrativa
crua de uma violência de gênero e de sexualidade, nos faz pensar cada vez mais criticamente
sobre o regime fundamentalista-religioso e pró-arma o qual estamos sendo inseridos.
Terminamos a leitura perplexos e também desesperançados, o que é algo bom, uma vez que a
função das artes, da literatura e, sobretudo, das distopias é olharmos criticamente para nós
mesmos, nossa política, nossa projeção de futuro, tentando verificar erros que podem gerar
resultados catastróficos, não para causar furor ou depressão, mas para percebermos que
precisamos mudar o agora para termos um amanhã mais promissor.
Por fim, Margaret, enquanto mulher que escreveu uma ficção científica de referência,
junto a Ursula Le Guin, abre espaço e ajuda a empoderar ainda mais o caminho para as
mulheres nesse gênero literário dominado, por vezes, por homens, e, ao tratar, muito
principalmente a respeito do cerceamento de liberdade das mulheres em Gilead, a autora dá a
nós material para conhecermos e reconhecermos o desrespeito que nós mesmos sofremos
diariamente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

63
ATWOOD, Margaret. What ‘The Handmaid’s Tale’ Means in the Age of Trump. In:
ATWOOD, Margaret. What ‘The Handmaid’s Tale’ Means in the Age of Trump. Nova
Yorque: New York Times, 10 mar. 2017. Disponível em:
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trump.html. Acesso em: 6 jul. 2020.
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