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Em nome da filha
de Sulamita Esteliam
42 destaques | 15 notas
livro. E sofri ainda mais por ter de esperar mais de uma década para vê-lo publicado, malgrado a busca insistente
por editora. Foi uma longa jornada: cinco anos de investigação, de busca de elementos, inspiração e alguma
imaginação para preencher as lacunas, várias, dos relatos e documentos.
Imaginação
Não É ficção
Revela como a inoperância histórica de um Estado que, de tão incapaz de proteger a vida das mulheres, acaba
por colaborar com a perpetuação da violência de gênero.
No caminho de volta, fora seguida por um soldado. Ficara nervosa. Tentou despistá-lo, mas ele fora atrás dela
até a pracinha, na esquina, à direita da casa.
Pudera avistar, então, um soldado, parado na esquina junto à praça. Parecia ser do Corpo de Bombeiros, pois
trazia um cinto vermelho na farda.
Destaque (Amarelo) | Posição 223
Então, a senhora o conhece...!? - Sim, eu conheço. Para a minha, para nossa desgraça, eu conheço o tipo. Vou
lhe contar tudo. Mas acho bom que você tenha tempo e paciência. É uma longa história.
Mônica acabara de completar 13 anos, cursava a sétima série do ensino fundamental no Colégio Arnaldo
Carneiro Leão, em Maranguape. Não
Numa madrugada de sábado para domingo, porém, a vizinhança acordou com gritos e choro de mulher e
crianças. Vinham da casa do soldado.
Um homem puxou ela pelo braço e levou num táxi. Mandou que eu corresse sem olhar pra trás, que senão me
matava... Eu não tive culpa maiinha, eu juro...
Ele tem me espancado amiúde, vocês sabem, já devem ter ouvido. Tem bebido cada vez mais. Fica violento e
me bate; em mim e nas crianças. Está louco por sua filha, e já me disse, em meio à pancadaria, que se não puder
ter Mônica, vai matá-la.
Gercina já voltara da Delegacia de Peixinhos, onde registrara queixa do rapto da filha, quando Mônica chegou,
noite já caindo. Trazia o semblante assustado, estava pálida, ressabiada; parecia uma autômata.
O laudo do IML saiu meses depois: constataram que a relação não havia se consumado.
O soldado Callou a acusa de, na noite passada, ter rondado a casa dele madrugada adentro, ameaçando-o com
palavras de baixo calão, riscando o portão e o muro de sua residência com um facão - disse o sargento
encarregado do constrangimento. Gercina não pôde conter o riso nem o sarcasmo: - Ele raptou minha filha, uma
criança, levou-a a um motel. Fui à delegacia para defendê-la, e eu é que estou ameaçando!!!? Isso é filme de
Trapalhões ou o quê?
uma arma que costuma funcionar em casos como este, em que a família torna-se personagem involuntária: levar
a história à imprensa.
urbanas dos grandes centros, sobretudo aquelas que constituem a periferia, onde o Estado, quando presente,
revela seu avesso.
Recorrera às autoridades, à polícia, e nelas não encontrara guarida. Todavia, ousou ameaçar: se não tomassem
providências para frear Callou, botaria a boca no mundo, através da imprensa.
Um episódio, ocorrido em julho daquele ano, corrobora para o labirinto que aqui se tenta desvendar.
Este homem perseguia sua menina há sete anos, desde quando ela era apenas uma criança. Não permitiu
Bom resumo
O fogo atingira parte do rosto, das coxas, do abdômen – do umbigo ao tórax e, deste, até a base do pescoço;
Fogo
intuição
15 de novembro de 1991,
Data da morte
atestado de óbito
Estranho
Destaque (Amarelo) | Posição 1664
Gercina quer me destruir. Ela quer botar a opinião pública contra mim porque tem a consciência pesada. Mônica
ateou fogo em seu próprio corpo porque descobriu que eu e sua mãe tivemos um caso. Ela, Gercina, jamais me
perdoou por tê-la trocado pela filha.
O Júri Popular de Paulista considerou Carlos Antônio de Assis Callou culpado pela tentativa de assassinato
contra Mônica e Gercina.
fizeram com que a infeliz Mônica conseguisse, de uma vez por todas, desligar-se dessa paixão maligna que
tomou toda a sua personalidade, tornando-lhe a vida um tormento, com raros impulsos de paixão.”
“posto não ter (a sentença) se baseado em fatos concretos e devidamente provados, não havendo prova da
existência de crime, nem circunstância da ação do acusado nesse sentido”. A argumentação que se segue, em
seis páginas tamanho ofício, desqualifica as testemunhas, execra a mãe da vítima e acusa as autoridades de
serem coniventes com a “histeria” de Gercina.
Artigo 121, parágrafo 2º, inciso III, combinado com o Art. 61, inc. II, letra “f”, ambos do Código Penal. Ou seja:
homicídio com emprego de fogo, com agravante de ter sido cometido “com abuso de autoridade ou
prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”.
- Não se preocupe, ele vai ser condenado. – Gercina responde “que Deus lhe ouça e os anjos digam amém” e
vira-se para ver o rosto daquela voz caridosa... Não há ninguém. “Acho que estou ficando louca”, murmura para
si.
Por diversas vezes sentiu-se tentada a escrever uma estória, assumindo o arbítrio de fazer das personagens aquilo
que faz uma escritora: atribuir-lhes personalidades, definir-lhes caráter; além de moldar-lhes atitudes, decidir
seus destinos. Por outro lado, ser-lhe-ia muito mais fácil se pudesse agir apenas como jornalista, e guardar a
devida distância dos fatos. Contudo, acreditava, sequer era este o seu papel. Embora tenha pesquisado,
entrevistado, sondado, especulado, bisbilhotado, testemunhado, decidira ser apenas a contadora daquela história,
terrível, cujo curso não poderia interferir, apenas dar forma; o que não a impedia de interpretar, emitir opinião,
tomar partido. Violência, de qualquer natureza, é algo incompatível com a inteligência humana, com a
dignidade, com a liberdade, com a vida. Não obstante, existiam muitas névoas a dissipar, almas e mentes a
desvendar, sobretudo das personagens centrais. Inclusive, no que se referia à Gercina, vértice fundamental num
triângulo que terminou por revelar-se polígono estrelado, e, a princípio, ângulo único do seu campo de visão e de
acesso. Além disso, de alguma maneira intuía que daquela toca outros coelhos sairiam. E quantos coelhos havia!
A cada novo acontecimento, ou a cada avanço na compreensão dos fatos, lembrava a Gercina como o tempo
revelava-se aliado na construção do enredo: escrever um livro não é como tirar caldo de cana; está mais para
cultivar a terra. E, naquele caso, uma terra árida e cheia de armadilhas.
a sucessão de desgraças que atravessaram seu caminho terminara produzindo certa neurose, que a fazia enxergar
perigo em tudo e em todos, e exagerar acontecimentos e circunstâncias - o que seria perfeitamente
compreensível;
Eles confessaram que saíram do segundo encontro com dúvidas sobre a veracidade de toda aquela história de
perseguição, violência e morte que ela relatara, inclusive no que se referia ao derradeiro episódio, do homem
desconhecido que invadira sua casa, à procura de uma tal Gercina.
Muitas dúvidas