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A Espécie Fabuladora
de Nancy Huston, Ilana Heineberg
85 destaques
Não se nasce alguém, mas passamos a sê-lo. O eu é uma construção custosamente elaborada.
Não há lembranças da primeira infância, pois ainda não há um eu onde se possam colar as ficções.
A nossa memória é uma ficção. Isso não significa que ela seja falsa,
Então, para me fazer entender quem você é, para me contar “a história de sua vida”, não apenas você esquece
milhares de coisas como também deixa de lado outros milhares. Necessariamente, você escolhe os
acontecimentos que considera mais notáveis, ou pertinentes, ou importantes... E os arranja numa narrativa. Você
fabula inocentemente.
mesmos procedimentos empregados pelos romancistas, você cria a ficção da sua vida.
Todos nós arquitetamos romances para contar a nossa estadia na terra. Melhor ainda: nós somos esses romances!
Eu é o modo de conceber o conjunto das minhas experiências.
Destaque (Amarelo) | Posição 194
Para nós, humanos, a ficção é tão real quanto o chão em que pisamos.
Elaboradas ao longo dos séculos, essas ficções se tornam, pela fé que depositamos nelas, a nossa realidade mais
preciosa e a mais irrecusável.
Ser é fazer, como disse Sartre. Em outras palavras, é escrevendo que uma pessoa se torna escritor.
O dogma marxista segundo o qual os humanos devem a identidade que têm à atividade econômica que exercem
abre novas possibilidades de existência fictícia e coerente... e, quando essas atividades desmoronam, novas
possibilidades de loucura.
O que faz Sentido, não é o sonho, mas a narrativa do sonho, que já é, por si só, uma interpretação.
Pode-se ensinar uma criança pequena a falar qualquer língua do mundo, a cantar qualquer canção, a amar
qualquer alimento e a acreditar em qualquer deus.
As primeiras marcas – língua materna, histórias, canções, impressões gustativas, olfativas, visuais – serão as
mais profundas. Elas são, como vimos, a própria matéria do nosso eu.
O conjunto dessas primeiras marcas forma a nossa cultura. Para todos e cada um de nós, essa cultura se tornará o
próprio mundo.
Você é dos nossos. Os outros são os inimigos. Esse é o Arque-texto da espécie humana, arcaico e arquipoderoso.
O nós instaura e se reforça pela narrativa do passado coletivo, pela memória, ou seja, pelas ficções.
Cada país conta tanto a sua História como todas as outras histórias pela versão que lhe convém e que o mostra
do modo mais lisonjeiro. Alguns fatos marcantes serão silenciados para sempre, outros, ao contrário, vão se
tornar ficções oficiais e serão incansavelmente destacados, comemorados, ensinados.
Os fatos foram cuidadosamente selecionados e dispostos para resultar em uma narrativa coerente e edificante.
Ser civilizado é reconhecer a identidade como uma construção, é se interessar por mil textos e, através deles,
aprender a se identificar com seres que não se parecem com a gente.
As más ficções engendram o ódio, a guerra, os massacres. Podemos torturar, matar, morrer por uma má ficção.
Para os bonobos, para os chimpanzés, a realidade basta. Eles a transformam em sentido. Para os humanos, não.
Precisam de algo além da realidade, de um algo a mais ou de um além, de um acima ou de um abaixo: o Sentido.
nossa imaginação supre a nossa fragilidade. Sem ela – sem a imaginação que confere ao real um Sentido que ele
não possui em si mesmo – já teríamos desaparecido, como aconteceu com os dinossauros.
A fé que milhares de seres humanos têm em uma realidade transcendente os inspira, os sustenta e os transforma
no dia a dia. Pode incitá-los a ajudar os pobres, ou a amarrar bombas em torno da cintura para explodir em um
ônibus lotado. Na nossa espécie, como já sabia Rousseau, o melhor e o pior brotam da mesma fonte.
Mesmo na União Soviética ateia, o governo sabia que a população era incapaz de se abster desse tipo de
comunhão. Onipresentes, os rostos de Marx, Engels, Lênin e Stálin substituíram os ícones de Jesus e Maria.
É por isso que, no mundo ocidental a partir do século XVIII, desenvolveu-se toda uma cultura paralela que trata
do mal e da desgraça: a arte moderna, do romance até os jogos violentos de videogame, passando pelos filmes
sangrentos, pela ficção científica, pela pornografia.
Elas não são verdadeiras, mas isso é secundário. São eficazes – na medida exata em que os adeptos a elas
aderem e em função delas se comportam.
duas espécies de verdade: a objetiva, cujos resultados podem ser confrontados com o real (ciências, técnicas,
vida cotidiana) e a subjetiva, que acessamos apenas pela experiência interior (mitos, religiões, literatura).
O que a pertença (a uma família, a uma tribo, a uma nação etc.) nos confere é uma certa compostura.
As ficções religiosas e políticas, dizia Améry, com as ilusões que veiculam e as esperanças que favorecem, são
mais úteis para a sobrevivência do que os estudos de filosofia que pretendem destruí-las.
Contanto que, através dos textos e Arque-textos, os eles tenham sido constituídos em seres inferiores ou
subumanos, a guerra não nos colocará problemas morais particulares. Jesus, e depois dele os filósofos do
Iluminismo, ao exporem o valor igualitário de cada vida humana em relação às outras, perverteram essa forma
de pensar, mas não a superaram.
Nas suas múltiplas formas, o amor é uma história que contamos para tornar a vida vivível.
Uma vez mais, dizer que é uma história não é dizer que isso não existe (as histórias existem), nem que é uma
mentira (pois acreditamos nela). Como tantas outras ficções humanas, o amor é fonte de narrativas que se
tornam a nossa realidade.
Destaque (Amarelo) | Posição 1291
Nos lugares do mundo em que valorizam demasiadamente o destino individual, dois fatores vêm transformando
radicalmente os comportamentos sexuais dos humanos na época moderna: o surgimento do romance e o controle
de natalidade.
Nesses mesmos lugares, os humanos escolheram dissociar progressivamente sexualidade e reprodução. Para o
bem (erotismo mais animado, tanto para os homens quanto para as mulheres) e para o mal (aumento da
pornografia e da prostituição).
seria absurdo descrever a opressão das mulheres pelos homens como efeito de um complô universal. Na nossa
espécie, isso mais se parece com uma segunda natureza.
Decreto que a minha ejaculação no corpo dela significa não o começo de uma nova vida, mas o fim da vida dela:
que ela nunca mais poderá formular para si mesma belas histórias de amor.
Se as ficções com personagens são onipresentes na nossa espécie, é porque nós próprios somos personagens da
nossa vida – e, diferentemente dos chimpanzés, precisamos aprender o nosso papel. Personagem e pessoa vêm
de persona: palavra bastante antiga (os romanos a tomaram dos etruscos) que significa “máscara”. Um ser
humano é alguém que usa uma máscara.
O nosso cérebro, mesmo o de um filósofo racionalista misantropo e monacal, pulula literalmente de presença
alheia.
Os romancistas se orgulham muitas vezes de terem se libertado das ilusões religiosas que prejudicam o comum
dos mortais. Mas o espírito deles é habitado ou mesmo possuído pelos seus personagens,
Destaque (Amarelo) | Posição 1477
Os grandes textos culturais – livros sagrados, Bíblias e Corões, mitos, epopeias guerreiras – permitem que cada
um se identifique com a história dos seus.
O romance surge na Europa no século XVII e ganha terreno realmente no século XVIII, quando as certezas
religiosas foram abaladas pela ciência.
Daí vem o casamento por amor em vez do casamento arranjado; a literatura e a filosofia em vez da religião. O
indivíduo é o resultado dessa evolução. O advento do romance está ligado de maneira necessária ao advento do
indivíduo.
É com esse processo automático de preenchimento que o romancista conta quando engendra em algumas frases
um personagem. As suas palavras suscitam no espírito do leitor lembranças, associações, signos de
reconhecimento – e, ao final de algumas páginas, se ele é talentoso, pronto: o leitor se põe a seguir as aventuras
do protagonista como se o conhecesse intimamente.
A “liberdade total” não poderia fazer surgir um indivíduo. Os seres realmente sem família, sem ascendência,
sem tribo e sem nação não são indivíduos, menos ainda escritores; são crianças selvagens. Mudas, loucas ou
ambas as coisas.
O indivíduo moderno oscila em uma tensão permanente entre o desejo de liberdade e a necessidade de laços. O
terreno do gênero romanesco é justamente essa tensão, e as inúmeras histórias que ela engendra.
Destaque (Amarelo) | Posição 1550
Ninguém jamais resolverá a seguinte contradição (e felizmente, pois, sem ela, o romance desapareceria): para
praticar a sua arte, os romancistas devem conhecer o mundo e, ao mesmo tempo, se retirar dele.
diferença de estatuto
Portanto, não existe fronteira estanque entre “vida verdadeira” e ficção; uma alimenta a outra e dela se alimenta.
Entrar na literatura é deixar o Arque-texto. Ultrapassar as narrativas primitivas. Ser primitivo é colar-se à sua
identidade como se esta fosse uma realidade inamovível e se identificar exclusivamente com aqueles que se
parecem com você.
Quanto mais uma pessoa se acha realista, mais ela ignora ou rejeita a literatura como um luxo ao qual não tem
direito, ou como distração para a qual não tem tempo, e mais essa pessoa tem chances de cair no Arque-texto, ou
seja, na veemência, na violência, na criminalidade, na opressão do próximo, das mulheres, dos fracos, ou até de
um povo inteiro.
Concretamente, isso quer dizer: a escola não deve mais se contentar em inculcar nas crianças o “cânone” do seu
país, enaltecendo a literatura nacional por uma questão de patriotismo e massacrando-a com análises. Mais do
que isso: ensinar as crianças a simplesmente se apaixonar pela leitura.
Se as crianças não enxergam de que forma ler pode lhes fazer bem, elas não se interessarão pela leitura; é bom
que saibamos, então, por que ler é bom.
Destaque (Amarelo) | Posição 1687
o modo como encena a tensão entre o indivíduo e a sociedade, entre a liberdade e o determinismo, a maneira
como encoraja a identificação com seres que não se parecem com a gente
Porém, o que o leitor deve buscar reconhecer nos personagens de um romance não é o autor. É ele próprio.
nos dar outro ponto de vista sobre essas realidades. Ajudar-nos a colocá-las à distância, a esmiuçá-las, a ver as
suas astúcias, a criticar as ficções subjacentes.
sentido do conto deve ser buscado não no seu desfecho, mas no seu encadeamento... Assim como o Sentido da
vida.
Eis o que apresentei como esboço de resposta à perturbadora pergunta da presidiária: Já que a realidade humana
está repleta de ficções involuntárias ou pobres, é preciso inventar ficções voluntárias e ricas.
participando dessa prerrogativa divina que é a criação. Sim, por meio da literatura, podemos experimentar o que
há de divino em cada um de nós (e em nenhum outro lugar!). Através dela, em segredo, em silêncio, de maneira
efêmera, mas muito real, nos tornamos deuses.
Apresentando-se como uma ficção, nos dando a oportunidade de escolhê-la, a literatura nos libera, por um
tempo, das obrigações e das pressões das inúmeras ficções a que somos submetidos.
ela não conta histórias: ela capta instantes, estados de alma e do mundo.
Destaque (Amarelo) | Posição 1756
Apenas o romance combina os elementos narração e solidão. Abraça a narratividade de cada existência humana,
mas exige tanto do autor quanto do leitor silêncio e isolamento, autoriza a interrupção, a reflexão e a repetição.
Não é possível, nem desejável, eliminar as ficções da vida humana. Elas nos são vitais, consubstanciais. Criam a
nossa realidade e nos ajudam a suportá-la.
eles concluíram que ela não tinha Sentido algum, que era apenas tragédia, horror e derrisão, e se puseram a
bradar contra a própria vida.
A vida tem Sentidos infinitamente múltiplos e variados: todos aqueles que lhe conferirmos.
Tzvetan Todorov.
espécie fabuladora / Nancy Huston ; tradução de Ilana Heineberg. – Porto Alegre, RS : L&PM, 2012.