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DEMAIS
O livro está (é) correto em seu “trabalho avaliador”: o que se perdeu, para além de
gestos compensatórios, foram coisas cuja magia as fastidiosas palavras nomeiam ...
quintais, o rio, ente vivo, indígena, os lugares favoritos onde Julietas e Romeus
construíram, suspiro a suspiro, o amoroso, os locais onde xibius foram arrancados ao ventre
do cascalho e consumidos, uma mangueira, um balanço, o chão sagrado onde pecados
foram arrependidos e medos endereçados pela Palavra do Senhor, tudo significando vida,
afinal igual a toda outra, vida besta. Na fazenda do São Domingos, do primo Tunico, a água
(não o pó) levou o frutuoso pé de limão galego, as mexeriqueiras ‘enredeiras’, o solitário
marmeleiro reservado às sobremesas que a traquinagem assaltava, o curral onde me deitei
olhando as estrelas de junho, e a dimensão do universo, afinal justa, me recebia em silêncio
impassível. O que perdi quando o progresso inundou parte de Cascalho Rico, e o que se
perdeu em Irapé, são as mesmas coisas: que uma palavra mais indômita denota por
ontologia - aquilo que diferente de nós nos reafirma e realoca no centro. Tudo o que aquela
paisagem endereçava: uma faina quase sempre escaldante e mal paga, cânticos de banzo e
liberdade, primevos bichos, paus e frutos silvestres, um lar, o meu centro do mundo. Tenho
dificuldades, as palavras exatas pelo vernáculo são frágeis substitutos ... O camarada John
Berger aduz:
Lar era o centro do mundo porque era o lugar onde uma linha vertical
cruzava uma horizontal. A linha vertical era um caminho levando acima para o céu
e abaixo para o submundo. A linha horizontal representava o tráfego do mundo,
todas as possíveis estradas levando ao longo da terra até outros lugares. Assim, no
lar, estava-se mais próximo dos deuses no céu e dos mortos no submundo. Essa
proximidade prometia acesso a ambos. E ao mesmo tempo, estava-se no ponto de
partida e, esperançosamente, de retorno de todas as jornadas terrestres.
(John Berger, And our faces, my heart, brief as
photos)
Incompreensíveis para algumas tribos urbanas, jogando os jogos do/no irreal. É por
isso que, talvez em suspeita ou intuição do lúgubre e do medonho, as estatísticas foram
barradas, as palavras próprias dos eventos funestos, preferidas e proferidas para
comparações entre coisas tangíveis, o jargão dos sempre, sempre, sempre equivocados
jornalistas aqueles “aflitos e aborrecidos profissionais, em vigília, calculando ...”. E a eles
juntados os urubus do direito, a oratória dos políticos - todos surdos e incapacitados para a
desordem dos sentimentos. Para a consonância sonoramente selvagem da bandinha ...
transformada, irremediavelmente - outrificada ...