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DEMAIS

Um é pouco, dois é bom, três é

Millor Fernandes expôs os acidentes luminosos na história do homem exaltando o


instante em que os senhores Rolls & Royce toparam. Minha geração fixaria o encontro dos
senhores Lennon & McCartney. Momentos tais são cometas no céu do hemisfério sul.
Privilégio tê-los, dádiva vivê-los da primeira fila, ao alcance da mão. E é disto que se trata
aqui: entra oficialmente em fruição pública o trabalho-livro Paisagem Submersa. De
imagens fotográficas, comungado por João Castilho, Pedro David e Pedro Motta, indagado
da experiência desumana imposta a sete municípios naufragados pela Hidroelétrica de
Irapé.
Anunciações anteriores – entre outras, o festival de Noorderlicht (Holanda, 2005),
premiação no 5º Prêmio Porto Seguro Brasil de Fotografia (2005), 5ª Bienal de Fotografia e
Artes Visuais de Liége (Bélgica, 2006), lançamento de site na Galeria Pace (2006),
exposição no Palácio das Artes (2006) – nos prepararam, sabemos agora, apenas
timidamente para o resplendor da coisa finda. Impecável em sua singeleza, modesto mas
próprio em sua presença física, cuidadosamente curado do começo ao fim pelos autores,
endereça produtivamente vários aspectos da produção cultural, em particular a fotográfica.

O livro está (é) correto em seu “trabalho avaliador”: o que se perdeu, para além de
gestos compensatórios, foram coisas cuja magia as fastidiosas palavras nomeiam ...
quintais, o rio, ente vivo, indígena, os lugares favoritos onde Julietas e Romeus
construíram, suspiro a suspiro, o amoroso, os locais onde xibius foram arrancados ao ventre
do cascalho e consumidos, uma mangueira, um balanço, o chão sagrado onde pecados
foram arrependidos e medos endereçados pela Palavra do Senhor, tudo significando vida,
afinal igual a toda outra, vida besta. Na fazenda do São Domingos, do primo Tunico, a água
(não o pó) levou o frutuoso pé de limão galego, as mexeriqueiras ‘enredeiras’, o solitário
marmeleiro reservado às sobremesas que a traquinagem assaltava, o curral onde me deitei
olhando as estrelas de junho, e a dimensão do universo, afinal justa, me recebia em silêncio
impassível. O que perdi quando o progresso inundou parte de Cascalho Rico, e o que se
perdeu em Irapé, são as mesmas coisas: que uma palavra mais indômita denota por
ontologia - aquilo que diferente de nós nos reafirma e realoca no centro. Tudo o que aquela
paisagem endereçava: uma faina quase sempre escaldante e mal paga, cânticos de banzo e
liberdade, primevos bichos, paus e frutos silvestres, um lar, o meu centro do mundo. Tenho
dificuldades, as palavras exatas pelo vernáculo são frágeis substitutos ... O camarada John
Berger aduz:

Originalmente lar significou o centro do mundo – não em um sentido


geográfico, mas ontológico. Mircea Eliade demonstrou como o lar era o lugar do
qual o mundo podia ser fundado. Um lar era estabelecido, como dizia, “no coração
do real.” Nas sociedades tradicionais, tudo que fazia o mundo ter sentido era real;
o caos circundante existia e era ameaçador, mas era ameaçador porque ele era
irreal. Sem um lar no centro do real, não se estava apenas sem teto, mas também
perdido na não existência, na ‘irrealidade’. Sem um lar tudo era fragmentação.
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Lar era o centro do mundo porque era o lugar onde uma linha vertical
cruzava uma horizontal. A linha vertical era um caminho levando acima para o céu
e abaixo para o submundo. A linha horizontal representava o tráfego do mundo,
todas as possíveis estradas levando ao longo da terra até outros lugares. Assim, no
lar, estava-se mais próximo dos deuses no céu e dos mortos no submundo. Essa
proximidade prometia acesso a ambos. E ao mesmo tempo, estava-se no ponto de
partida e, esperançosamente, de retorno de todas as jornadas terrestres.
(John Berger, And our faces, my heart, brief as
photos)

Incompreensíveis para algumas tribos urbanas, jogando os jogos do/no irreal. É por
isso que, talvez em suspeita ou intuição do lúgubre e do medonho, as estatísticas foram
barradas, as palavras próprias dos eventos funestos, preferidas e proferidas para
comparações entre coisas tangíveis, o jargão dos sempre, sempre, sempre equivocados
jornalistas aqueles “aflitos e aborrecidos profissionais, em vigília, calculando ...”. E a eles
juntados os urubus do direito, a oratória dos políticos - todos surdos e incapacitados para a
desordem dos sentimentos. Para a consonância sonoramente selvagem da bandinha ...
transformada, irremediavelmente - outrificada ...

Se o mau amador vive roído de dúvidas, o que dizer do calejado profissional


treinado, documentarista, fotojornalista, repórter fotográfico? Ora, ele desempenha para
balcões e numeradas – não o podem acometer dúvidas; ele espetaculariza – imagens sem
mercê; ele mostra avaliadoramente as lacerações – mas significar não promove a
experiência do conotado; ele soberbamente produz – ao preço de anular nosso julgamento:
“a legibilidade perfeita da cena, sua formulação, nos dispensa da recepção da imagem em
todo o seu escândalo” (Roland Barthes, Mythologies). Os grandes fotojornalistas não nos
têm deixado lacunas, incompletudes. Nenhuma fissura, fenda, brecha, nenhuma penetração,
danado gozo gabiru. É claro, a um custo alto, inafiançável:

Me parece curioso, para não dizer obsceno e totalmente aterrorizador, que


possa ocorrer a uma associação de seres humanos reunidos em uma companhia,
por necessidade e sorte, e por lucro, um órgão de jornalismo, espiar intimamente as
vidas de um grupo de seres humanos indefesos e consternadoramente injuriados,
uma família rural ignorante e indefesa, para o propósito de exibir a nudez,
desvantagem e humilhação dessas vidas diante de outro grupo de seres humanos
em nome da ciência do ‘jornalismo honesto’ (o que quer que seja que esse
paradoxo signifique), da humanidade, de bravura social, por dinheiro e por uma
reputação de fazer uma cruzada e por falta de preconceito que, quando bem
competentemente qualificado, é cambiável em qualquer banco por dinheiro ... e que
essas pessoas possam ser capazes de meditar esse prospecto sem a menor dúvida
sobre suas qualificações para produzir uma peça de trabalho ‘honesta’, e com uma
consciência melhor do que clara, e na certeza virtual de aprovação pública quase
unânime.
(James Agee, Let Us Now Praise Famous Men,
1939)
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Tratam, eles, de escancarar o privado ao público, da promiscuidade amuletada em imagens,


da remoção, cirúrgica mas bárbara, de um evento de seu contexto histórico. Erradicado,
dessignificado, descontextualizado, despido, desassombrado, estetizado, politicamente
emasculado, eles nos brindam estórias sem estrondos, história muda, silente, história
esteticamente memorizada. Não importam as dúvidas óbvias do preço dos sucessos destes
homens nobres. Importa é que sua persistência histórica foi algo reconhecida e em seu todo
recusada. A recusa deve ter indicado direções que levaram à rica história-estória
representando um algo submerso. Parece que, costas dadas à cooptação mais pura e simples
do establishment, colocou em movimento esta recusa gerando tentativas, erros, tentativas,
erros, e encontros com algumas fotografias novas, frescas, sem culpa, demarcando um
futuro, ou apenas uma saída lateral, para um espaço arejado, bafejado pelo ideal construtivo
dos jovens.
Em trocados, somos apresentados a um esboço de uma versão não instrumental, não
funcional da prática do registro e do documento. A nenhum fato, nenhum fatídico. Entre
nós isto é notável. Em Minas, e talvez nas Gerais, a utopia gastou-se prematuramente por
ouro e nos danou, nos pariu pedras e consciências ocas ... Como o foi três jovens dedicarem
seis anos a um despropositado propósito! Daí minha suspeita de que o andamento escapou
do contemporâneo olhar vertiginoso visto do automóvel, ditado pelo computador, imposto
pela economia que teima em nos transformar em gigolôs americanos. O andamento em
Paisagem Submersa parece pastoral, silvestre, noturno, crepitante, um rock rural - como se
consome um pito, como se enrola um pito, como se contempla a espiralada azul esvaindo
em azul.
Blue Remembered Hills!
O que nunca se acomoda em nós é uma certa presença da parteira da morte. A
fotografia a tudo naturaliza, eterniza, conserva e embalsama, memoriza em um arquivo
morto a que se chama acervo. A máquina mais mortífera, mais mortal, gestos em sua
maioria investidos a fundo perdido, em tecidos desidratados, superfícies calcinadas. ‘Com
que fim perturbam elas’ o trigoso da luz da manhã, o azul dos dias e o rubro do ocaso?
Recusado o espetáculo e a geléia geral, o fim é o homem e suas coisas. Da criança
ao escafandrista, na água andando. As observações feitas pelos três jovens reclamam o
homem e suas coisas. Cartier-Bresson entendia a fotografia com uma verdade furtada, à
espreita, o indesculpável flagrante. Aqui uma outra verdade, forjada com a vontade, a
ciência e a anuência dos observados. Isto significa fotografias domésticas – poderia o livro-
trabalho ser apropriado por seus sujeitos como um álbum coletivo?
As coisas dos homens estão diferentes aqui. Somos educados pela pedra, pelo
frêmito esvoaçar de libélulas, pela sonata do rio azul, cipós tecelões, trilhas, vestígios.
Somos educados por uma narrativa inconsútil, circular, sem ponto de entrada, nenhum
seqüente lógico. E um deus estranho que desgeometriza... Somos educados por prendas
insuspeitas, pela roupa de ritual, e cores pré-anteriores ao pantone, azuis e rosas humildes
como tudo visto e revisto. Aprendemos o ponderado reciclar, o útil, e que as palavras,
lembretes devolvidos à terra, são meras tentativas de serventia frágil.
Indícios certos da loucura da visão, do barroco, palimpsestos imperceptíveis,
invisíveis erguendo ou tecendo o sublime que aqui submerge o belo. Compelidoras
descrições de superfícies que recusam a congelar o chamado real, propõem o toque e o tátil
como uma segunda visão, de um mundo e coisas opacas, de espaços incertos e/ou
ambíguos. Este mundo não é belo, é sublime. Teriam os autores re-encarnado o olho
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cartesiano, reincorporado o prazer à visão às expensas do pecado carnal, caducando a


analítica?
E, afinal, redimiria a alvenaria estranha, a cor industrial, o poste de cimento ou tudo
isto, a que chamamos progresso, resume-se a apenas conforto para a fadiga física? Um sino
por um alto-falante? Um jegue por uma motocicleta? Uma estrada por uma trilha? O caos
pelo eucaliptal? Sasazakis pelas madeiras açoitadas pelo vento e aliviadas em azul? Espera-
se que no fim, neste fim está o princípio...
Em outras palavras, o trabalho-livro balsama algum peso da história da fotografia,
suas dores. Redime o retratar dos feitos do Crystal Palace, da Opera de Paris, do teste de
carga da ponte metálica - o preço e afetação que estas empresas cobraram, cobram,
cobrarão. O instrumento de perscrutar para conquistar o tridimensional foi ociosamente
aproveitado em outras dimensões. Evadiu da memória e do acervo e foi morar entre
avatares sem rosto, indômitos. A duvidosa questão do autor vividamente, pois fora do
acadêmico e do espetáculo, transmutada em indagação coletiva. Não se trata de um pé-de-
página para as teorias pósmodernistas que infestaram o ar, empestaram o desejo de produzir
apodrecendo-o em citações dos palavreadores, revelando segredos apenas mortos. Aqui
posso, à maneira de Barthes, somar ao que já está ali, somar-me ao que já está ali...

Vai disse o pássaro, porque as folhas estão cheias de crianças,


Maliciosamente escondidas, a reprimir o riso.
Vai, vai, vai, disse o pássaro: o gênero humano
Não pode suportar tanta realidade...
(T. S. Elliot, Burnt Norton, em Quatro Quartetos)

Rui Cezar dos Santos


Bhte 09/04/2008

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