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Neide Gondim

YCEi.WO' :A

Editores: Maria José Silveira, Felipe Lindoso,


Márcio Souza

Capa: Douglas Canjani

Produção gráfica: Mirian Cunha


A Invenção
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C]P)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) da 'Amazónia
Gondim, Neide
A invenção da Amazônia / Neide Gondim. —
São Paulo: Marco Zero, 1994.
Bibliografia.
ISBN 85-279-0169-2
1. Amazônia — Descrição e viagens 2. Amazônia (INIEFl5II3ADE F&D £R
História I. Titulo. ALDflPA+x^;

94—1351 CDD—918.11
BIBLIOTECA C ENTRAL
Índices para catálogo sistemático: 1`
1. Amazônia: Descrição e viagens 918.11

Copyright ° 94 Neide Gondim


Direitos adquiridos péla Editora Marco Zero,
!viária Amônia 108, Sâo Paulo, SP,

CEP 01220-010.
Fone: (011) 257-2144
Fax: (011) 257-2744
A primeira edição deste livro foi publicada em
agosto de 1994
Neide Gondim nasceu em Manaus.
Incomodadá com a pecha de que o
amazonense epreguiçoso — o, que não
considera nenhum desdouro — começou
a procurar a origem desse anátema
quando fazia o mestrado em Porto
Alegre. Não" -descpbriu o que buscava em
'A repetição da conquista da Amazônia
em Simá, Beiradão e Galvez, Imperador
do Acre." Parece que encontrou essa tal
gênese neste trabalho.
Leciona Teoria da Literatura e Do oferecimento que se faz
Literatura Amazonense na Universidade ao professor Octavio Ianni
do Amazonas. e a Renato Mezan.
Relato resumido e uma viagem no interior da
América Meridional desde a costa do Mar do Sul até
a costa do Brasil e da Guiana descendo o Rio
das Amazonas 106

Capítulo III
DE COMO A AMAZÔNIA É REVISITADA PELOS
FICCIONISTAS EUROPEUS 139

OITOCENTAS LÉGUAS PELO RIO AMAZONAS 140


Em que o trabalho enraíza o homem 142 INTRODUÇÃO
Da natureza errática 148
Da punição para quem perde a identidade 159
Da louvação á mata que permanece 161
Da narrativa de viagem 163 C ontrariamente ao que se possa supor, a Amazônia não foi
De como a tensão se estabelece entre a permanência descoberta, sequer foi construída; na realidade, a invenção da Ama-
e o avanço 168 zônia se dá a partirsla,çonstrução.da . Índia, fabriçada_pela historiografia ,
grecoromana, pelo relato dos peregrinos, missionários, viajantes e co-
O MUNDO PERDIDO 170 merciantes.
As maravilhas e as monstruosidades Nesse bojo inclui-se, ainda, a mitologia indiana que, a par de
índicas reencontradas no reino de Curupira 195 uma natureza variada, delicia e apavora os homens medievais. A tal
conjunto_de_,maravilhas anexam-se as monstruos_idades.._animais e çór-
A ÁRVORE QUE CHORA 211 poráis., incluídas tão-somente enquanto oposição ao homem çonside-
rado como adamita normal e habitante de um mundo delimitado por
De como o capital destrói as ilusões 218
fronteiras orientadas por tradições religiosas.
De como o capital altera o movimento da vida 242 A primeira viagem ao Novo Mundo fez-se acompanhar por esse
Onde os homens se deixam escravizar imaginário e influenciou a visão do europeu sobre aquelas terras jamais
pela aparência quimérica do capital 254 vistas. A descoberta de terras que completavam as secularmente conhe-
De como as ilusões se perdem 262 cidas originou tensões que acarretaram especulações, as quais, aos pou-
De como as ilusões renascem 266 cos, vão sendo aglutinadas em temas que se cristalizam em torno de
uma expressão: a raça humana. Motivo de enormes controvérsias, essa
expressão acompanha os séculos, oriundas dela constroem-se ciências,
Capítulo IV especula-se a natureza para atingi-la, aceitá-la ou refutá-la a partir do
EM QUE O TRABALHO CHEGA AO FIM 271 prisma da sociedade que conheciam, ou seja, a dos próprios questiona-
dores, atitude que origina nova visão desfocada.
DAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 275 Pressionados por adversidades comuns á época, os homens so-
nham encontrar o Paraíso e a fonte da eterna juventude. A tradição
religiosa dizia que um grande rio nascia naquele local aprazível, cujas

9
águas encobriam riquezas, e não muito longe, uma fonte convidava
para a total supressão dos males sociais, onde a fome, as doenças e as
pestes continuamente dizimavam respeitáveis contingentes humanos.
Esse local foi encontrado pelos expedicionários de Orellana e se loca-
lizava na região amazônica. Sucessivamente visitada, principalmente
depois de liberada a navegabilidade do rio das Amazonas pelo governo
português, para aquela região composta de enormes rios e florestas
compactas, dirigem-se as atenções e erigem-se verdades; confrontam-se
teorias e refutam-se ou confirmam-se hipóteses. Como justificar a pre-
sença de animais pequenos em meio a tão prodigiosa natureza, se na
África esturricada animais gigantescos ali tinham seu habitat? Possi-
velmente havia gigantes entre o intrincado vegetal; não havia, outros-
sim, homens com rabo? E as mulheres brancas, altas e guerreiras, não
guardavam a prodigiosa cidade de ouro, próxima a um lago dourado, Capítulo 1
onde se banhava um rei muito rico? Certamente, o clima deveria ser o
responsável pelos atos bestiais, endurecimento do caráter e envelhe-
cimento precoce do autóctone. Essas perguntas geralmente acompa-
nhavam os viajantes, e as respostas ora encaixavam-se na vertente infer- COMO A CONSTATAÇÃO DA HABITABILIDADE DO ANTI-
nista, ora na edênica, ou ainda justificavam a catequese. MUNDO MODIFICA .A CIÊNCIA E O IMAGINÁRIO EUROPEUS
Este trabalho quer demonstrar de que maneira e por quais artifí-
cios a Amazônia é inventada pelos europeus. Nele destacam-se Mon-
taigne e Buffon, Montesquieu e Hobbes e ainda Locke, por haverem
incluído em suas reflexões o homem americano, á partir dos quais,
outros pensadores dialogam.
Entrelaçando-se ao primeiro capítulo, a visão inaugural da Ama- A s convulsões e transformações sociais que vinham se proces-
zónia oferecida pelos cronistas viajantes vai fundamentar, enquanto sando desde o final da Idade Média, na Europa que envelhecia, tornam-
matéria-prima, as deduções teóricas e, inversamente, estas servem de se mais nítidas no século XVIII, alcunhado de o Século das Luzes. Foi
estofo aos sucessores, cujo estoque de informações impedem e/ou ini- o século-limite para que a Europa repensasse a Ciência e destruísse
bem a apreensão da variedade, da multiplicidade, da diferença, em velhos conceitos, ecos tardios de uma mentalidade pós-medieval. Afi-
suma, caem na cegueira da confirmação de verdades científicas. nal, as pestes ainda grassavam, os campos se esvaziavam, inchando as
A temática racial, as maravilhas e monstruosidades índicas, a cidades com as ondas migratórias. Questionava-se a existência de Deus,
natureza e o progresso, a guerra, a inclusão da Amazônia enquanto for- a autoridade papal, a imortalidade da alma, o poder dos monarcas. O
necedora de produtos regionais a borracha — no mercado de con- séculoXVIII foi um período marcado pela certeza e, paradoxalmente;
sumo europeu e norte-americano, são assuntos utilizados por prosa- pela dúvida. Q saber assume outro estatuto: quem,.o detivesse, deteria
dores na terceira e última parte desta pesquisa. Jules Verne, Conan o poder.. As experimentações cientificas, a proliferação das Academias
Doyle e Vicki Baum são autores europeus que vêem a Amazônia com de Ciências, a mania pelas coleções de insetos, as viagens científicas ou
os olhos do artista, perspectiva que vai se contrapor às percepções sedi- de aventura a países distantes — Oriente e Américas — dão o tom e o
mentadas pelo dualismo inferno/paraíso, freqüentemente projetados sabor nesse século que contou com o brilhantismo e a erudição de
nas obras teóricas e nas narrativas dos viajantes. Voltaire e Diderot. Voltaire conseguiu popularizar o debate filosófico e
científico. Todos tomavam partido instigados pelos artigos escritos em

10 11
um francês elegante e sem rebuscamentos estilísticos do popularizador A obsessão portuguesa quanto ao acesso às terras asiáticas, aliada
do Iluminismo. O século XVIII foi o depurador das superstições reli- à expansão da religião católica, tinha aspectos políticos e econômicos
giosas e foi o século que viu ser extinta a Companhia de Jesus, fundada visíveis, pois a ocupação das ilhas e as descobertas da costa africana
em 1540, na Espanha inquisitorial. No entanto, a raiz desses questiona- . proporcionariam o estabelecimento de senhorios, os transportes de colonos,
mentos, certezas e inseguranças teve como um dos detonadores os des- lutas, guerras, trabalhos e saques4. Loteadas — o Tratado de Tordesilhas
cobrimentos marítimos e, obviamente, a série de modificações eco- exemplifica — antes de constatada a existência de terras situadas no 74
nômicas, sociais e políticas carreadas em seu bojo. Acresça-se, ainda, clima (ou zona tórrida), como diria Vespucci, alcunhadas como
que a iniciativa dessas viagens maravilhosas e funestas teve Portugal Mundus Novus segundo Iocondo, intérprete e tradutor da discutível
como o seu mais ilustre representante, vindo a tornar-se, no século quarta carta do florentino, a descoberta do que é hoje a América se
XVIII, juntamente com seu vizinho, a Espanha, uma figura apagada, deixa envolver pela aura do lendário, pela incerteza da paternidade do
formada por um corpo político de homens com mentalidade retró- empreendimento; foi e continua sendo um veio rico para especulações
grada, que não acompanhava a pretensão européia — capitaneada pela .históricas, literárias, antropológicas, sociológicas etc. Para a Europa
França de uma revisão filosófica e científica do Ocidente civilizado. mediterrânica que se equilibrava entre a incerteza do abastecimento de
A busca de novas rotas para o comércio das especiarias e, gêneros substanciais como o trigo, a incidência das .pestes (inclusive a
sobretudo, o início das viagens ao desconhecido pode ter como marco malária), a escassez de madeiras (já no século XV, resultado do des- .
o dia 20 de agosto de 1415, com a tomada de Ceuta pelos portugueses. matamento) 5 e a descoberta de terras novas representou o acirramento
A partir dessa experiência, o templário D. Henrique deixa-se cercar por entre Hólanda, Inglaterra, França, Espanha e Portugal, todos querendo
eminentes cartógrafos, geógrafos, capitães, entre eles Luís Cadamosto, a hegemonia does mares. Para os povos que viviam na outra metade do
em um p o ontnri.o_na._pen nsula._de_Sagres, , ór d..funda urna escola Ix mundo, significou o contato com uma nova ética e costumes estranhos
naval, começo de toda a moderna navegação cientifica i . Quanto à Espa- — do traje à alimentação, organização social e construção de cidades
nha, somente em 1562 organiza um programa de construção naval, abstratas6 — traçado arquitetônico desvinculado de uma ancestralidade
durante o reinado de Felipe II e, ainda assim, depende da Itália para a clânica e/ou divina.
fabricação dos barcos e importação de especialistas dos estaleiros de Também eram guerreiros como eles, aqueles homens'que diziam
Gênova2 . Dom . ,H,enrique, o Navegador, não só dispunha de pessoal ter vindo do céu. O espanto inicial foi mútuo, mas a primeira pegada
especializado como ele próprio financiava sua indústria naval, prática fincada na areia marcou o encontro entre culturas e civilizações dis-
incomum entre outras nações européias, onde semelhantes empreen- tintas e o extermínio quase total do nativo pelas armas, doenças e
dimentos eram realizados por mercadores ricos, com frota particular, escravidão. O filho de Manco II, Titu Cusi Yupanqui, que governou os
necessitando somente da permissão real para efetuar viagens diferentes incas em Vilcabamba de 1557 a 1570, descreve 'os conquistadores espa-
das habituais rotas de cQmércio, ou através de financiamentos ban- nhóis como certas pessoas muito diferentes de nosso costume e vestuário,
cários, como os executados pela filial dos Medici, em Sevilha. Assim vistos como "viracochas", o Criador de todas as coisas, gente de sem-
sucedeu a Cristóval Colón, que viajou na caravela Santa Maria, pro- blante diferente porque andava em uns animais muito grandes, os quais
priedade de Juan de La Cosa, o mesmo ocorrendo com Américo tinham os pés de prata. Eram homens diferentes também porque os
Vespucci que, de funcionário da casa bancária dos Medici, decidiu-se a viram falar sozinhos em uns panos brancos como uma pessoa falava com
deixar as mercadorias e pôr o meu fim em coisas mais louváveis e firmes, outra, e isto era porque liam livros e cartas. Foram ainda chamados de
que foi que me dispus a ir ver parte do mundo, e as suas maravilhas 3 . "Huiracochas" porque tinham yllapas, nome que nós temos para os
trovões, e isto diziam por causa dos arcabuzes, porque pensavam que eram
1 Martins apud, Ure, John. Dom Henrique, o navegador. Brasília, UnB, 1985, p. 31.
4 C. Simonsen, Roberto. História econômica do Brasil (1500/1820). 8 ed., São Paulo,
2 Cf. Braudel ,Fernand. O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II.
Nacional, 1978, p. 37.
Lisboa, Dom Quixote, 1983, p. 170, v. I. 5 Cf. Braudel, op. cit., pp. 74 ss. e 165.
3 VespúcioAmérico. Novo mundo, cartas de viagens e descobertas. Porto Alegre, L&PM,
6 Holanda, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento e
1984, p. 106. colonização do Brasil. 4 ed. São Paulo, Nacional, 1985, p. 62.

12 13
matéria, ódio e bondade 14 . Era como se o céu e o inferno se tocassem
trovões do céu... 7 Esses homens chegaram em espécies de torres ou
pequenos morros que vinham flutuando sobre o mar 8 , fatos que iam e dos dois pólos brotassem e para eles mesmos fluíssem e refluíssem a
concretizando a série de augúrios pressagiados anos antes no reino de concepção de vida, o misticismo, o ideal cavalheiresco, formalmente
Motecuhzoma. Essa visão mágica inicial dos habitantes da outra metade acomodados em alicerces abstratos que apontavam para o abandono e
da terra é modificada posteriormente pelos cronistas incas, como melhoria do mundo. A fuga das pestes, da violência, da cobiça, dos
Guamán Poma, ao relatar que os estrangeiros sonhavam acordados com demônios, das injustiças; o medo do inferno, do fim do mundo e das
o ouro e a prata do Peru e se matam os espanhóis e desterram os pobres dos bruxas teria pelo sonho a via que possibilitaria uma vida mais bela. O
índios, e por ouro e prata já ficam despovoados parte deste reino, as aldeias conteúdo deste ideal [c „s„avho] é um desejo de regresso ;àsperfeição de,u.m
dos pobres índios, por ouro e prata... 9 possádo,kmaginário (..) Mais forte e mais duradoura de todas é a ilusão de
Se a entrada maciça de ouro na Espanha beneficiou, em 1524, a um regresso à natureza e aos seus inocentes prazeres pela imitação da vida
França, que . pagava aos seus soldados com o ouro que retirava de pastoril. Desde Teócrito ela nunca deixou de dominar as sociedades
Espanha 1ó, por outro lado foi um dos fatores que intensificaram a civilizadas. l5
inflação, já existente antes de Colombo, pois afinal éyó. dese nvolvimento O idealismo medieval estava ligado a um princípio geral, que
s\ dzopa e as suas exigências que conduzem, teleguiam. o trabalho dos não necessitava encontrar as realidades individuais das coisas — não era
\lpesquisadores de ouro e dos índios das minas de prata 11 . O movimento importante a constatação das diferenças. O que prevalecia era a procura
incessante do capital comercial concretizado na importação super- de um seu, do.....u.n.iuersal. -que ..funcionava_ . com . nórma...e.modelo , de
valorizada de produtos (miçangas, por exemplo) pela Espanha, e de- concpção: todas as coisas serão absurdas se o seu significado se limitar à
pois, exportados para a América, processo acompanhado pela entrada sua função imediata e à sua fenomenalidade e se, pela sua essência, não
contínua de ouro, posteriormente de prata, fabricação de embarcações, alcançar um mundo para além deste 16 . A procura de um significado
soldo dos marujos, investimento nas viagens de descobrimento e colo-
comum que ultrapassasse a exterioridade do objeto, conectando sua
nização, foi efeito da circulação monetária estimulada pelo metal da
essência a uma idéia que indicasse finalidade e não efeito, independente
América, que desempenhou o papel de um multiplicador 12. Marx enfatiza
ou descolada do sofrimento ou da virtude individual, não só caracteriza
que o descobrimento da América e a circunavegação da África ofereceram
burguesia em ascensão um novo campo de atividade. Os mercados da o pensamento simbolista medieval como foi um salutar contrapeso ao
Índia e da China, a colonização da América, o intercâmbio com as colô- forte individualismo religioso, inclinado à salvação pessoall7 . O realismo
nias, a multiplicação dos meios de troca e das mercadorias em geral im- do medievo — assim alcunhado o idealismo pelos escolásticos — tendia
primiram ao comércio, à navegação e à indústria um impulso até então a concretizar os conceitos, inclinava-se a transformar em imagem o
desconhecido e aceleraram, com ele, o desenvolvimento do elemento revo- pensamento e, por esse motivo, quando o homem da Idade Média quer
lucionário da sociedade feudal em decomposição. 13 conhecer a natureza ou a razão duma coisa, não a observa para lhe analisar
A Idade Média viu desenvolver-se o gênio de Petrarca, Boccaccio a estrutura íntima, nem para inquirir sobre as suas origens; olha antes .parq
e Dante, mas eles eram ilhas iluminadas no universo imóvel do o céu, onde ela brilha como idéia. Quer se trate duma questão política,
medievo, dominado pela vingança, paixão e aventura, pelo orgulho, mo á o social"- , prámëiro passo a dar é r du a_seznpre_ao_seu.princípi.2
insegurança, sofrimento, miséria e pessimismo, ascetismo e apego à ._universal 18 . Esse princípio fundmentál_emanáva..de....Deus, que dá
sentido àquilo que é vazio. Quando vemos todas as coisas em Deus e com
Ele nos relacionamos, poderemos ler nas coisas vulgares uma significação de
7 Le6n-Portilla, Miguel. A conquista da América Latina vista pelos índios. Relatos astecas,
maias e incas. 2 ed. Petrópolis, Vozes, 1985, pp. 120-1.
ordem superior l9
8 Id. A visão dos vencidos. A tragédia da conquista narrada pelos astecas. Porto Alegre, 14Cf. Huizinga, Johan. O declínio da Idade Média. Lisboa, Ulisseia, 1924, pp. 10 ss.
L&PM, 1985, p. 32.
15 Huizinga, id., p. 39.
9 Id. A conquista da América..., p. 99.
16 Id., p. 208.
10 Merriman apud Braudel, op. cit., p. 591.
11 Braudel, op. cit., p. 571.
17 Id., p. 212.
12 Id., p. 571
18 Id., p. 221.
19 James W. apud Huizinga, op. cit., p. 208.
13 Marx, C. & Engels F. Obras escogidas. Moscú, Progresso, 1973, T. 1., p. 112

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14
Relação profunda do espírito ou relação misteriosa entre duas idéias, confluíam a síntese dos climas, dos acidentes geográficos, da flora, da
o simbolismo medieval foi um obstáculo ao desenvolvimento do pensa- fauna e da religião. Lugares quentes e frios, vales e montanhas, rios e
mento causal, visto que as relações causais e genéticas deviam parecer in- mares, aves e elefantes, verdor eterno das árvores, mitologia, metempsi-
significantes ao pé das ligações simbólicas 20 . Embora a concretização dos cose, vegetarianismo, sensualidade, ascetismo, luxo e despojamento.
conceitos levasse o homem do medievo a buscar relações simbólicas Talvez somente através de comparações ou a partir da verdade das
com Deus — origem e fim de todas as coisas —, essa mentalidade ainda Escrituras ou, ainda, com a ajuda do imaginário de cada um, fosse
vai permanecer em obras como a preparada entre 1645 e 1650 pelo possível falar ou escrever sobre ela. Nem descoberta, nem inventada, mas
licenciado Antonio León Pinelo, que vê as insígnias da Paixão do Se- construída, fabricada, obra constantemente refeita sobre o ofício de ingênuos
1
nhor, na flor do maracujá, símbolo do fruto proibido e tentação de Eva 21 . ou engenhosos artífices e traficantes do imaginário, a India nos lembraria, se
Se a rígida estruturação social fortemente hierarquizada da Idade assim fosse necessário, que a observação é filha da memória e que o
3 Média refletia-se nos conceitos_.e...irnagens•-relativos,.aQAlta e_aa..baixo, na espantoso retira seu sabor da repetição insaciável do ouvir dizer. 24 A cons-
sua expressão espacial e na escala de valores 22 , o imaginário do homem trução da India teria como arcabouço a soma das Realia e das Mirabilia
medieval estava povoado, por outro lado, pelas . lenda que descreviam Indiae, no horizonte das quais se inserem a mitologia indiana como a
y o mundo fantástico oriental, retratado nas viagens de Marco Polo fornecedora dos arquétipos das mirabilia e a realidade observada sob o
(1251- c. 1323), nas Maravilhas do mundo de Jehan de Mandeville (1300- prisma do maravilhoso, sendo agrupada nos relatos dos argonautas da
1372), na Imago Mundi (1410) do cardeal francês Pierre d'Ailly (1350-
frota do conquistador macedônico, penetrada na Europa através da
1420), livro de cabeceira de Cristóbal Colón, 23 nas Etimologiae (sec. historiografia greco-romana. Fundindo-se nas duas, acrescente-se ainda
VII) de Santo Isidoro de Sevilha ou ainda na Navigatio Sancti Brendani as Maravilhas da India de Heródoto — que talvez tenha se inspirado em
(séc. X). Hécato de Mileto (séc. VI a.C.) e este, provavelmente em Scylax
Essas histórias maravilhosas falavam de povos estranhos, gro- (c. 515) —, popularizadas pelos repetidores e/ou coletadores de Ctésias
tescos, monstruosos. A natureza não menos fantástica era povoada por de Cnido 25 .
animais não menos estranhos: unicórnios passeavam por entre ve- Estava fortemente enraizada na Idade Média a doutrina da
getação encantada, composta por ervas capazes de curar qualquer doen- unidade fund¢mental.dó._gênera humuno. 26 Além das fronteiras geogra-
ça, podendo ser encontradas próximas á fonte da eterna juventude. ficas conhecidas, nem os doutos da Antigüidade, nem os escolásticos
Eram histórias construídas, coletadas ou reproduzidas a partir de admitiam a idéia da existência de antropóides adamitas normais. Temas
relatos de _homens que viveram na Antigüidade, como Heródoto, almi- como o da inabitabilidade da zona tórrida, do antimundo, do Paraíso
rantes que comandaram a expedição de reconhecimento do Rio Indo a terrestre, do inferno, dos antípodas, do mar tenebroso, do movimento
mando de Alexandre, o Grande, padres missionários que visitaram o das águas, da grandeza da Terra, da anunciação do Evangelho a todos
reino do Grão Khan, peregrinos em busca dos lugares santos, co- os povos eram conhecidos, discutidos e aceitos como verdades inquesr
merciantes árabes e judeus. Muitos viajavam á procura do berço da hu- tionaveis. A dóutriná_da unidade humana postulavaaimpóssibilidade _
manidade descrito na Sagrada Escritura ou em busca da história de sua a.. existência de adamitas fora do circuito judeu-arábico-cristão e
raça. rperiferia27 . Somente como hipótese ilustrativa desse universalismo
De todos os lugares visitados pelos antigos e medievais, houve cristão, Santo Agostinho em sua Civitas Dei (413-426) admitia a exis-
um que os impressionou mais vivamente: a IrrlClia_misteriósa, para onde tência de adamitas fora da oikoumené, mas antropóides não normais28 .

24 Weinberger-Thomas, Cathérine (org.) et alii. L 'Inde et l'imaginaire. Paris, École des


20 Huizinga, id., ib., p. 218. Hautes Études en Sciences Sociales, 1988, p. 11.
21 Holanda, op. cit., p. XXII. 25 Cf. Idem, p. 15.
22 Bakhtin Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de 26 Dias, op. cit., p. 148.
François Rabelais. São Paulo/Brasília, Hucitec/UnB, 1987, p. 319. 27 Cf. Dias, op. ci., p. 148. Ï
23 Cf. Dias José Sebastião da Silva. Influencia de los descobi-inzientos en la vida cultural del 28 Cf. Id. p. 148.
siglo XVI. Mexico, Fondo de Cultura Económica, 1986, p. 149.

16 17
Com o passar dos séculos e o respectivo fortalecimento do da costa ocidental da África, descreve a abundância de árvores odoríferas
catolicismo, essas anomalias humanas foram se apresentando cada vez e plantas balsâmicas 32 e confunde gorilas com selvagens peludos numa
mais nas obras dos viajantes, nas prédicas religiosas ou nos textos pu- ilha próxima ã embocadura do rio do Ouro. Com vinte anos de idade,
ramente ficcionais, mas sempre distantes daquele círculo geográfico Heródoto parte de Halicarnasso, em 464 a.C. Discutia-se a confor-
conhecido, cada vez mais localizando-se na India. A conformação da mação da terra e os pitagóricós ácredit_avam que era redonda. Heródoto
terra e seus acidentes geográficos adquiriram tal requinte no medievo não participa das discussões dos sábios e iníciãüma grande viagem de
que cartas náuticas localizavam com precisão ficcional os pontos onde aventura pelas terras conhecidas. Pinta, como naturalista fiel, o crocodilo
o mar desaparecia, tragado por imenso buraco. As delicadas iluminuras do Nilo, a sua estrutura e os seus costumes, a maneira como se apanha,
que ornavam os textos manuscritos retratavam e contavam a história depois o hipopótamo, o tupinambis, a fênix, o íbis, as serpentes consagradas a
daqueles entes extraordinários extraídos dos relatos de viagens ou da Júpiter. 33 Na Líbia descreve áspides, jumentos cornígeros (..), macacos
geografia de Ptolomeu. Autores haviam que falavam pela boca de ere-' cinoce'falos, animais sem cabeça, que têm olhos no peito 34 . O jovem
mitas ou que afirmavam terem pessoalmente estado nesses lugares Heródoto percorre a Arábia, a Assíria ou Babilônia, a Pérsia, a India
extraordinários. Copiar textos dos outros não era uma atividade
que às extremidades da terra coube, até certo ponto, em sorte, o que ela tem
inédita. As narrativas mesclavam o fantástico pagão e cristão — o
de mais belo, como a Grécia tem a mais agradável temperatura das
Jardim das Hespérides e o Gênese confirmam 29 — muito tempo antes
estações. 35 Ao norte do Ponto Euxino, no país dos Citas, mostra como
que o homem ocidental se lançasse em viagens mais arrojadas pelo
se fez a aliança e em seguida a união dos Citas e das Amazonas, o que
oceano desconhecido. Buscava-se „-Pa que representava o sonho
explica porque é que as raparigas daquele país não podem casar sem ter
sempre perseguido de viver eternamente, longe das pestes e da fome,
morto um inimigo. 36
sem necessidade de trabalhar, pois aquele lugar prodigioso, com uma só
Século e meio depois, o médico Ctésias de Cnido 37 , companhei-
estação perdurando o ano inteiro, tinha árvores que produziam sem
ro de Xenofonte, um grego que viveu na Pérsia, reuniu em um texto
cessar e eram banhadas por rios perenes.
que se perdeu, todas as histórias que falavam dos tesouros, da flora e da
Séculos depois de Santo Agostinho aceitar hipoteticamente ada-
fauna maravilhosas da India, da conformação física extraordinária dos seus
mitas na oikoumené, São Tomás de Aquino (1225-1274) já admite, na
habitantes38 . Bakhtin diz que Luciano (120-180) utilizou esse texto em
Suma Teológica, que o jardim do Gênese poderia eventualmente estar em
alguma `região tórrida'. Com isso parecia de algum modo canonizar a sua A história verdadeira; procedimento semelhante fez Plínio (13-179) e
opinião formulada por outros doutores, de que a misteriosa zona tórrida Santo Isidoro de Sevilha, entre outros 39 .
O marselhês Pythéas, geógrafo e astrônomo, viajou em 340 a.C.
inhabitabilis et impérmeabilis, banhada pelas águas de um mar que
ninguém viu, devido ao seu, escaldante calor — o `Oceanus quem nemo com um só navio, para além das colunas de Hércules, tomando a
vidit hominum propter zonam torridam' de alguns mapas — correspondia, direção norte, diferentemente de seus antecessores, que navegaram para
em significado encoberto, àquela mesma espécie de chamas com que o
Senhor esperara impedir qualquer acesso dos homens ao Paraíso Perdido. 30 32 Verne Júlio. A descoberta da terra. Lisboa, Bertrand, s.d., v. 1, p. 10.
33 Id., p. 14.
Aos poucos, a localização do Paraíso toma rumos novos, até mobilizar-
34 Ib., p. 14.
se totalmente no relato de São Brandão, onde o situa em uma ilha que 35 Heródoto apud Verne, op. cit., p. 16.
se locomove... 31 36 Verne, op. cit., p. 17. V. Heródoto in História. Rio de Janeiro, W.M. Jackson, 1952,
Os relatos de viagem sempre exerceram seu fascínio e muitos vol. 7, pp. 336 ss.
não envelheceram. Ulisses, em sua epopéia marítima; viu sereias e 37 Veja também Weinberger-Thomas, op. cit., p. 10.
38 Bakhtin, op. cit., pp. 301-2. Grifo do autor.
ciclopes. Hannon, o cartaginês (c. 505 a.C.), colonizador das possessões
39 "As tradições fabulosas herdadas de Ctésias, afiançadas por Plínio, difundidas por
Solinos, reprisadas por Martianus Capella (séc. VII), depois por Gervais de Tilbury,
29 Cf. Holanda, op. cit., p. 131. Gauthier de Mete (séc. XIII), Pierre d'Ailly (1410) e tantos outros, com ricas iluminuras
30 Aquino, Tomás de, apud Holanda, op. cit., pp. 157-8. da arte medieval e renascença, encontraram sua hipóteses nas "realidades" da iconografia
31 Existem mais de oitenta versões segundo Holanda, op. cit., p. 167. indiana. " Weinberger-Thomas, op. cit., p. 15.

18 19
o sul 40 .
Chegando em Thulé (Verne diz que talvez fosse a Noruega ou quel, etc. Assim ocorreu com o bispo francês Arculfo, no século VII, e
a Jutlândia), não pôde ir mais adiante, pois já não havia mar, nem terra, com o inglês Willibaldo, morto em 746 e canonizado por Leão VII em
nem ar41 . Esse viajante foi o primeiro a reconhecer a influência de luas nas 938.
marés e a observar que a Estrela Polar não ocupa exatamente o ponto por Um negociante de Baçorá; Soleimão, descreve sua viagem feita
onde se supõe que passe o eixo do Globo 42 . em 851 até os confins da Ásia. Entre descrições de peixes inimagináveis,
O texto perdido da viagem de reconhecimento do rio Indo do fala de duas ilhas entre as mil e novecentas situadas no mar de Herkend
cretense Nearco foi resgatado por Arrian, na História Indica. Na India, — governadas por uma mulher —, Ceilão e Sumatra, ricas em pérola e
a frota esfaimada do almirante de Alexandre, o Grande atacou a mi- minas de ouro48 .
serável cidade dos ictiófagos, em 326 a.C., apossando-se dos poucos Ali se ergue a torre que os dispersos construíram. É feita de tijolos; a
víveres de seus habitantes 43 . Seqüenciando Ctésias, Calístenes (séc. III largura dos seus alicerces é de perto de seis milhas; a sua largura é de
a.C.) recolhe essas lendas que irão aparecer nas versões latinas de Júlio duzentas e quarenta braças e a sua altura de cem canas; de dez em dez
Valério (300) e, no século X, na História das guerras de Alexandre o braças há caminhos que vão ter aos degraus de uma escada de caracol, que
Grande. Calístenes exercerá sua influência ainda nas obras dos car- chega até acima. Desta torre descobre-se o espaço de vinte milhas, porque o
tógrafos da Idade Média através de adaptações de Bruneto Latini e país é largo e plano; mas o fogo do céu, tendo caído na torre, aplanou-a e
Gauthier de Metz 44. arrasou-a até o fundo. 49 E dessa forma que o judeu espanhol Benjamin
Traduzida por Abel de Remusat, a viagem ao ocidente da Chi- de Tudela descreve a torre de Babel, encontrada na viagem que fez a
na, feita pelo monge chinês Fa-Hian, em fins do século IV d.C., des- quase todo o mundo conhecido durante treze anos (1160 a 1173). Nesse
creve dragões venenosos em meio às neves eternas das montanhas do documento, que gozou de enorme reputação até o século XVI 50, há
Afeganistão. Após mil contratempos, o monge atravessa o Indo, depois descrições minuciosas de palácios sustentados por colunas do mais
um deserto salgado e finalmente chega à India, o reino central, cujos puro ouro em Constantinopla; viu em Damasco uma parede cons-
habitantes, honrados e piedosos, sem magistrados, nem leis, nem suplícios, truída por arte mágica, toda em vidro; nessa cidade extasiou-se com a
sem pedir o seu sustento a nenhum ente vivo, sem açougues nem tabernas, muralha-relógio, possuidora de tantos buracos quantos são os dias do ano
vivem felizes, no meio da abundância e da alegria, num clima em que o solar-51 .
frio e o calor mutuamente se temperam 45 O viajante fala da estátua de sal da mulher de Lot, que se refaz
No século VI, Cosmas Indicopleustas, negociante egípcio" magicamente, apesar das milhares de lambidas dos rebanhos que por ali
assegura que a terra é quadrada e encontra-se, juntamente com os passavam; no túmulo de Raquel deixa seu nome; um espelho de vidro,
astros, fechada em um cofre oblongo. Nessa Topografia cristã do uni- encimando uma alta torre construída no final de um dique, permitia
verso, Cosmas escreve a história natural dos animais da India e do ver, a uma distância de cinqüenta dias de caminho, todos os navios que
Ceilão. Entre outros, cita o unicórnio e o carneiro almiscarado, caçado vinham da Grécia ou do Ocidente para guerrear ou prejudicar de qualquer
para a extração do sangue perfumado 47 . modo a cidade. Benjamin de Tudela constatou que o gigantesco farol
Júlio Verne fala das viagens aos Lugares Santos, desde os pri- servia ainda até hoje de sinal a todos os que navegam para a Alexandria,
meiros tempos do cristianismo. Os peregrinos buscavam nesses lugares porque se descobre, a cem milhas de distância, de dia e de noite, por causa
o túmulo de Nossa Senhora, de Adão, de Jesus Cristo, de Isaac, Ra- de um facho aceso 52. O viajante registra a afluência de sábios, mágicos e
filósofos hábeis em todas as ciências, para Bagdá, cidade onde residia o
califa Mostatdjed, segundo apuraram alguns anotadores 53 .
`° Cf. Verne, op. cit., p. 18.
41 Pythéas apud Verne, op. cit., p. 19.
48 Cf. idem, p. 37.
42 Verne, op. cit., p. 19.
49 Tudela, Benjamim de, apud Verne, op. cit., p. 47.
43 Cf. idem, p. 21.
50 Cf. Verne, op. cit., p. 40.
44 Cf. Bakhtin, op. cit., p. 302.
51 Tudela, Benjamin de, apud Verne, op. cit., p. 45.
45 Fa-Hian apud Verne, op. cit., p. 28. 52 Id., p. 50.
46 G. Bouchon diz que Cosmas era bizantino. L'Inde et l'imaginaire., p. 71.
53 Cf. Verne, op. cit., p. 47.
47 Cf. Verne, op. cit., p. 31.

20 21
Benjamin ensina o meio seguro de escapar da travessia marítima um lendário rei de grande fortuna e imenso poder, dono de um reino
perigosa da ilha.do Ceilão para a China: Leva-se consigo (..) um grande muito procurado pelos viajantes, cujo nome em nossa língua vem a ser
número de peles de bois; se o vento ameaça o navio, aquele que quer escapar Prestes João55 , e explica como surgiu a dinastia dos tártaros. Desmis-
mete-se numa dessas peles, cose-a por dentro para a água não a penetrar, e tifica uma série de lendas, como a das salamandras, a dos homens
depois atira-se ao mar; então, alguma dessas grandes águias, chamadas grifos, diminutos e56 a dos macacos, onde habitantes costumam matá-los e tirar-
vendo-o e julgando que é um boi, desce, agarra-o e leva-o para terra, para lhes a pele deixando-lhe as barbichas e os pêlos das partes genitais. Depois, são
alguma montanha ou algum vale, para devorar a sua presa; então o postos a secar, colocados em fôrmas, temperados com açafrão e outras
homem, metido dentro do coiro, mata prontamente a águia com a sua faca, especiarias, dando-se-lhes o aspecto humano 57 , Essa lenda era grandemente
e em seguida, saindo para fora do seu invólucro, caminha até encontrar disseminada pelo Ocidente — a dos homens-macacos —, apesar das
algum sítio habitado. Muitas pessoas foram salvas dessa maneira. 54 explicações detalhadas. Na província de Caragia anotou o costume do
Do feixe de viajantes da Antigüidade e da Idade Média Marco povo — rico ou pobre , — comer peixe cru ou qualquer outro tipo de
Polo é citado como exemplar, devido à veracidade dos dados geográ- carne; 58 de, no cortejo fúnebre de um dos Khan, transpassarem com
ficos veiculados em sua narrativa e que facilitaram, grandemente as espadas os viandantes encontrados no percurso da montanha Alatia,
expedições comerciais que se destinavam à China, à India e ao centro mausoléu dos imperadores. Justifica o costume em Maabar, na India
da Asia. Viajante do século XIII, até aquele momento a Europa já Maior, das viúvas dos assassinos se atirarem ao fogo e o de ser admi-
passara por várias cruzadas, e Veneza, a terra de Marco, dominava o rada, na província de Manar, a pele escurecida com azeite de sésamo 59 .
Mediterrâneo Oriental já no início daquele período. O movimento do Mas não é_somente. ..isso.-o-que mais;interessava o viajante, e sim.
comércio de produtos raros da Ásia permitiu o acesso aos portos do rubis, diamantes, ametistas, pérolas, tafetás, brocadps, se_das.c.om „apli-
Oriente Próximo e do Mar Negro. Vários emissários apostólicos se- caçoes em ouro, porcelanas, papel-moeda, casas bancárias, palácios,
riam encaminhados pelos papas ao reino do Khan visando a estabelecer casas portáteis, pontes recobertas de mármore, madeiras perfumadas,
uma aliança contra os povos do Islã e assim realizar o sonho de vales cultivados, piscosidade dos lagos, desertos, mercadores (honestos
estender o cristianismo sobre todo o orbe. Ditando a história de suas e desonestos), religião, vestuário, alimentação, ritos fúnebres, an-
viagens no cativeiro em Gênova, no ano de 1298, ao pisano Rusticiano, tropofagia — pessoas comidas pelos sábios Tebot depois de terem sido
Marco Polo fala que seu pai Niccoló é seu tio Matteo foram os executadas pelos soberano, ou após a morte por doença ou degustadas
portadores de uma mensagem de Kublai Khan ao papa Clemente IV, por costume 60
solicitando o envio de cinco sábios em missão evangelizadora à China. O relato das viagens maravilhosas de Marco Polo desnuda
Por esse motivo os Polo retornaram à Europa, e na volta levaram o muitas lendas correntes no medievo, que se estenderam até muitos sé-
jovem Marco até o reino de Kublai Khan, o sexto descendente do culos depois, mas, por outro lado, o autor afiança e cria outras his-
tórias que vão ser reproduzidas ou alteradas em inúmeros outros
Grande Imperador Gengis Khan.
Chama a atenção do leitor das maravilhas do Oriente descritas relatos subseqüentes. No reino de Lámbri, na Índia, o viajante
por Marco Polo a leveza do relato e a alegria que ponteia cada peque- encontra homens de rabo comprido, que vivem nas montanhas, longe da
cidade. Os rabos são grossos como os do cachorro. Encontram-se muitos
no capítulo didaticamente exposto. Tudo é admirável nessa história da
grandeza do império do Grão Khan, do pujante comércio de espe- unicórnios (.)61 . Os habitantes da ilha de Agama, na India, têm todos
ciarias, dos costumes de outros povos; mas, se é admirável, é igual-
mente possível de acontecer. O viajante não se surpreende com nada, 55 Polo Marco. As viagens de Marco Polo. São Paulo, Clube do Livro, 1950, p. 59.
pois estava no 'reino das possibilidades e a ele se integra e se entrega 56 Id., p. 56 e 144.
com ímpeto. Marco não se contenta com a descrição anônima, mas 57 Id., op. cit.
historiciza, insere os povos que visitou em seu próprio contexto, elogia 58 Cf. Polo p. 109.
o governo de Khan, abre espaço para relatar a história dos tártaros com 59 Cf. id., pp. 62, 151 e 155.
.60 Cf. id., pp. 145, 147 e 71.
54 Tudela, Benjamin de, apud Verne, op. cit., pp. 48-9. 61 Polo, op. cit., p. 146.

23
22
cabeça de ,cachorro e dentes e narizes parecidos com os de um grande quatorze anos, depois vão para Male, com os pais, e as meninas ficam a
mastim. E uma terra onde medram as árvores das especiarias, mas os vida inteira em Femelle, esclarece o autor.
habitantes são maus, pois comem todos os forasteiros que podem agarrar 62 . Marco Polo mostra como . foi , inventada, a,, lenda,,dq_.araíso
A descrição da fauna é requintada. Os unicórnios têm pêlo de terrestre. Aloodyn, o Velho da Montanha, mandou fazer, entre duas
búfalo e pés de elefantes; no meio da testa, possuem um chifre preto e grosso, montanhas, o maior e o mais belo jardim do mundo, plantando nele todas
mas não é com ele que atacam a presa. Têm a língua toda cheia de grandes as qualidades de frutas e construindo os mais belos e ricos palácios, todos
espinhos. Um animalzinho do tamanho de um gato (..): tem pele de pintados a ouro, e criando animais e aves. Construiu canais pelos quais
veado, grossa, os pés de gato, quatro dentes, dois em cima e dois em baixo, corriam água, mel e vinho 68 . Nesse local fascinante, colocou donzelas
três dedos, compridos, finos, sendo que os debaixo vão para cima e os de lindas e belos rapazes, depois de tê-los opiado, impedindo assim o
cima para baixo. E um bichinho bonito, o almiscareiro b3 . As cobras me- conhecimento da via de acesso àquele jardim das delícias e criando a
dem dez passos bem largos e são grossas dez palmos. São estas as maiores; ilusão nos jovens sarracenos de que o Paraíso descrito por Maomé era
possuem duas pernas na frente, perto da cabeça, e nos pés têm garras de leão; real. Um obstáculo é colocado por Aloodyn: só permaneciam no
o focinho é grande como um pão, a boca é de tal tamanho que bem pode Paraíso aqueles que matassem as pessoas que o estorvavam. Em 1277,
engolir de um só trago um homem! Têm dentes enormes 64 . Animal intei- depois de três anos de cerco, o Paraíso terrestre sucumbiu ao cerco do
ramente aproveitado pelos nativos, o fel, vendidq por alto preço, servia tártaro Alau.
para curar mordidas de cachorros bravos, ajudava no parto, eliminava Viajam no dia seis de abril de 1245, a mando de Inocêncio IV,
excrescências da pele e a carne saborosa era aproveitada na alimentação. rumo à Tartária, os franciscanos Jean du Plan de Carpin e Estevão da
Leitor das Maravilhas d de Alexandre, o Grande (através de Calís- Boêmia, em missão diplomática. Seis anos depois é a vez do monge
tenes? Foi aqui que Alexandre mandou construir...) 65 , não desdiz as_his- Rubruquis 69 , enviado por são Luís ao reino do Grão Khan. Em Cara-
tórias que falavam_dos.grifos,edas amazonas. Dá sua versão. Os grifos corum, Rubruquis horrorizou-se ao ver os nativos comerem os cadá-
que viu em Madagascar não eram os mesmos que certos mercadores veres de seus pais 70. Entre 1324 e 1354 um viajante árabe empreende
dizem terem visto nesta ilha, pássaros lendários chamados grifos, que uma viagem tão extensa quanto a de Marco Polo, e o relato chega a ser
costumam aparecer em certas épocas do ano, mas esses não são os conhecidos tão importante quanto o do veneziano 71 . Trata-se do teólogo Abdal-
nas descrições, isto é, metade pássaro e metade leão. Estes grifos são mais lah-El Lawati, celebrizado com o sobrenome Ibn-Batuta. 72 Palmilhou o
parecidos com águias de grande tamanho e força. Eles agarram elefantes e os Egito, a Arábia, a Anatólia, a Tartária, a India, a China, a Bengala e o
levantam para o ar, para depois os largarem e espatifá-los, pois os elefantes Sudão. Depois de minuciosos estudos do Nilo, foi para a Asia Menor.
constituem o seu pasto favorito. As pessoas que viram estes pássaros dizem Conheceu os túmulos de Abrahão, em Caza, e no monte Líbano viu
que as suas asas são tão grandes que chegam a medir vinte passos. As penas eremitas esperando pacientemente a morte; em Mesched, passou pelo
mais longas alcançam doze passos e a espessura está em proporção ao túmulo de Ali, cuja atmosfera milagrosa curava paralíticos se lá per-
comprimento". No capítulo CLXIV — De algumas ilhas ao longo da manecessem durante a noite em orações, milagre conhecido como a
Índia, Male, no sul, é habitada somente por homens cristãos, batizados, noite do restabelecimento 73 . Atravessa o mar Vermelho, chega a Zafar,
que procuram as mulheres da ilha Femelle, distante trinta milhas, no mar das Indias, e extasia-se com a magnificência da floresta de
somente durante três meses. Marco Polo justifica a separação através do bétele, coqueiro e incenso.
Velho Testamento, que manda não tocar em mulher grávida, até após O "audacioso explorador" e o "mais célebre viajante do século
quarenta dias do parto 67 . Os filhos permanecem çom as mães até os XIV", como o alcunha Verne 74 , descansa um pouco em algumas

68 Id., ib., p. 43.


62 Id., ib., p. 147. 69 Abeydeera grafa Rubruck. L 'Inde et l'imaginaire, op. cit., p. 58.
63 Id., ib., pp. 144 e 67. 70 Cf. Verne, op. cit., pp. 51-61.
64 Id., ib., p. 110. 71 Assim o afirma Verne, op. cit., p. 108.
65 Id., ib., p. 31. 72 Veja também L'Inde et l 'imaginaire, op. cit., p. 21.
66 Id., ib., p. 165. 73 Batuta apud Verne, op. cit., p. 109.
67 Id., ib., p. 165. 74 Verne, op. cit., p. 113.

24 25
cidades, mas ei-lo novamente a caminho. Sempre bem recebido aonde carbono e a safira, e também certos frutos tendo virtudes curativas. Dizem
quer que vá devido à sua condição de sábio, sua viagem não deixa de também que essas gemas vêm das lágrimas de Adão, mas isso parece ser pura
ter lances perigosos, mas vai em frente, ora como acompanhante da fantasia. 78
caravana da princesa Bailum, ora como juiz em Delhi, nomeado pelo No afã de interpretar, atualizar e autenticar o relato bíblico, Ma-
imperador Moamede, ora fazendo-se passar por faquir ou ainda como rignolli substitui a figueira edênica pela bananeira, pois no fruto corta-
embaixador do imperador da China. Com a mesma facilidade com que do viu o rosto de um homem crucificado, como se tivesse sido gravado com
ganha bens, perde-os. Encanta-se com as plantações de gengibre e le- a ponta de uma agulha79 . Em vez de mantos de pele (pelliceas) das
gumes cultivados sobre juncos flutuantes de Calicut. Casa-se com três Escrituras, é melhor ler mantos de ffiliceas) 80, assim designa a malha
habitantes das ilhas Maldivas, governadas por uma mulher, tenta fugir rendada que cresce ao pé dos coqueiros como a primeira roupa usada
para Choromándel, mas é impelido pelos ventos para Ceilão. Então so- por Adão e Eva. O franciscano deixa-se impressionar pelo modo de
be a montanha sagrada de Serenid, onde se encontra impressa a pegada vida dos monges pagãos e acredita que houve no passado um desvio
de Adão para os maometanos, e de Buda para os indianos, e conta que que os retirou do caminho da verdade bíblica.
tem onze palmos de comprimento. Vê uma população de macacos bar- Marignolli não estava cometendo qualquer apostasia ao des-
budos governados por um rei cinocéfalo. Admira os costumes, rique- cobrir a morada bíblica em solo pagão, pois aqueles homens se diziam
zas, indústria e civilização dos chineses. Acompanha o enterro de um filhos de Adão, descendentes de Noé, distribuídos em territórios dife-
dos Khan75 , passa pela Espanha e, finalmente, estabeleceu-se em Fez. rentes da terra após o dilúvio e, se cultuavam superstições, conheciam
Acatando a ordem do papa Benedito XII, o franciscano Gio- as bases preconizadas pela Igreja. Sobre esta muito alta montanha, talvez
vanni de Marignolli partiu no ano de 1339 para Pequim, ao encontro depois do Paraíso a mais alta da superfície da terra, alguns mesmo pensam
do Grão Khan. Após quatro anos na China como núncio do papa, que o Paraíso se encontra lá. Mas é um erro pois o nome mostra o contrário.
detém-se, depois, mais um ano na India, em Columbum, e dali vai Os nativos do país o chamam Zindan Baba; Baba significando `pai' em
conhecer o túmulo de São Tomé e o reino da rainha de Sabá. Na volta todas as línguas do mundo, enquanto que Zindan é a mesma coisa que
à Índia, é surpreendido por forte temporal, mas escapa milagrosamente 'inferno', então Zindan Baba é a mesma coisa que `inferno de nosso pai',
daquele mar tenebroso. E que maravilha nós vimos! O mar como em implicando que nosso Pai, quando foi colocado lá em cima depois da
chamas, dragões cuspindo fogo em nossa direção; passando, eles matavam as expulsão do Paraíso, sentiu-se como no inferno. 81
pessoas que estavam nos outros juncos, enquanto que os nossos permaneciam O franciscano não encontra o Paraíso terrestre, mas tem certeza
intactos. (..) Assim conduzidos pela misericórdia divina (..) nós nos de que ele se localiza na terra. Viu os rios bíblicos que atravessavam o
encontramos a salvo em bom porto, em uma enseada de Seyllan, chamada Ceilão, mas não o local de onde se originavam.... o Paraíso existe sobre
Pervilis, diante do Paraíso. 76 a terra,.ele é cercado pelo oceano, do outro lado da India Columbina no
Nó Ceilão, o franciscano percebeu que as histórias daquele povo Oriente, pela montanha de Seyllan. (..) Uma montanha se erguendo até à
sobre a morada de Adão e Eva depois da queda não contradiziam em esfera da lua, de uma grande beleza, afastada de todos os conflitos, longe de
nada a Santa Escritura 77 . Encaixavam-se perfeitamente, só necessitando todas as coisas terrestres, de onde jorra uma fonte que se divide a seus pés em
de adaptações purificadoras. Sobre a mesma montanha, na direção do quatro grandes rios. O Fison cerca a terra de Hevilath, onde se encontram o
Paraíso, há uma grande fonte cujas águas são visíveis a uma distância de ouro, o bdélio e a pedra ônix; o Geon cerca a região de Chus; o Hiddegel
uma boa dezena de milhas italianas. Se bem que ela brote do alto, eles (os (Tigre) corre a oriente da Assíria; enfim o Eufrates. 82 E é nesse jardim das
nativos) dizem que esta água provém da fonte do Paraíso. Eles alegam delícias que crescem as árvores que produzem os frutos mais suculentos,
como prova que surgem, às vezes do fundo, folhas de uma espécie
desconhecida, em grande quantidade, e aloés e pedras preciosas tais como o 78 Id., ib., p. 62.
79 Abeydeera, op. cit., p. 63.
80 Id., p. 63.
75 Contradizendo o que afirmara Marco Polo na obra citada, p. 62.
76 Marignolli apud Abeydeera. L 'Inde et l 'imaginaire. Op. cit., 81 Marignolli apud Abeydeera, p. 60.
p. 59. 82 Abeydeera, op. cit., p. 59.
77 Id., p. 60.

26 27
da cristandade após terem comido do fruto da bananeira. Por esse
uma maravilha para os olhos, um encantamento para o paladar do
motivo o quadro do Éden de Marignolli é exemplar, é completo;
homem 83 .
convivem próximos, lembrando sempre que apenas uma linha tênue
As contradições entre a realidade presenciada e o que dizia a
separa os espaços sagrado e profano, o bem e o mal, o alto e o baixo, o
Escritura são minimizadas por fatos mais plausíveis que os consagrados
esplendor e as trevas, o perfume e a podridão, antíteses tão condizentes
na cristandade. O jardim de Adão no Ceilão não foi encoberto pelas
com a moral, o simbolismo e a hierarquia social enraizados na mente
águas do dilúvio, apesar de a tradição afirmar o contrário. O fran-
do homem medieval, estimulados pela Igreja Católica.
ciscano supera o impasse justificando que os nativos se diziam des-
As dificuldades que acompanham o acesso ou mesmo a saída da
cendentes de outros filhos de Adão e não de Caim ou Seth, mas acres-
ilha de Ceilão é o ponto em comum que aproxima os relatos do
centa: como é contrário à escritura santa, eu não diria mais nada a respeito
florentino Marignolli, do espanhol Benjamin e do árabe Ibn-Batuta. De
disso. 84 Nesse jogo de negar afirmando, Marignolli oferece uma ge-
família nobre da Toscana, Marignolli foi conferencista durante anos na
nealogia cristã aos monges budistas, enquanto aos nativos reserva um
Universidade de Bolonha e sua viagem pelo Oriente durou quatorze
outro espaço nessa construção de seu paraíso: E os filhos de Adão em
anos. Benjamin era filho de um rabino de Tudela, reino de Navarra.
Seyllan trazem numerosas provas ao fato de que o dilúvio não os atingiu.
Possivelmente, sua viagem de quatorze anos ao Oriente teve como
Uma das principais é a de que na parte leste da região há um certo número
objetivo realizar um censo entre os membros de sua etnia, e o relato
de vagabundos errantes que eu mesmo vi e que se chamam filhos de Caim.
manuseado por Verne forma um monumento importante da ciência
Seu rosto é enorme, hediondo e tão pavoroso que terrifica qualquer um.
geográfica, no meado do século XII, e, pelo emprego do nome atual de cada
Entretanto Santo Agostinho e os outros teólogos pensam que é um absurdo
cidade citada na relação, tornamo-la fácil de seguir nas cartas modernas".
supor que alguns deles tenham podido escapar do dilúvio e mesmo estar
O objetivo inicial de Ibn-Batuta — uma peregrinação a Meca — trans-
dentro da arca. 85 Nessa crônica Thearchos ou história do mundo,
formou-se verdadeiramente em viagem de aventura desse sábio durante
Marignolli localiza em Kota, na costa do Ceilão, o local fundado pelos
longos vinte e nove anos. A travessia para o Ceilão, cercada de perigos,
filhos de Caim, representantes, pela genealogia, dos Vedas.
aproxima esse relato do de Marignolli: ambos foram salvos mila-
Abeydeera reconhece no franciscano Marignolli a síntese do que
grosamente; ambos aportaram à ilha tangidos por forças sobrenaturais
representava para o homem medieval encontrar o local do Paraíso na
e ambos reconheceram no Ceilão o local onde habitara Adão.
terra, e a descrição do autor, rica em detalhes, sobressai das repre-
O espanto, o entusiasmo, o êxtase, a novidade presenciados por
sentações edênicas de seus antecessores, não mais que esboço de um
cada um desses viajantes, registrados em suas notas, .articulam-se com o
quadro sumário 86. Por outro lado, a descrição reforça também a
imaginário de cada um deles, sem deixar de ter como moldura a
imagem mítica da configuração cartográfica de Taprobana (nome antigo do
veiculação da tradição cultural representativa de sua origem étnica e/ou
Ceilão), que se situa na proximidade do Paraíso em numerosos mapas-
religiosa. Mas os três entusiasmaram-se diante da India, sentimento
mundi medievais como os de Ebstorf e de Hereford. Ela concretiza, por esse
igualmente registrado pelo monge chinês Fa-Hian, por Heródoto por
meio, a representação ideológica do mundo cuja ilha faz parte integrante e a
Nearco e por Marco Polo, que intitula o capítulo CXXXVI de Aqui
inscreve em um horizonte onírico para o homem medieva/ 87 .
começam todas as coisas maravilhosas da Índia.
O inferno que Marignolli articula na construção do jardim das
Paralelamente às veleidades oníricas da bem-aventurança edênica,
delícias tem dupla significação: é inferno pelas regalias que o casal dei-
as monstruosidades corporais eram o contraponto apavorante do
xou de usufruir, mas há outro inferno, o habitado por demônios
homem nesse incessante jogo imagístico de ouvir, ver, reproduzir,
hediondos e fedorentos, localizado no mesmo espaço físico, no sopé da
contar, reescrever. O Physiologus, texto do século II a.C., que se perdeu,
altíssima montanha, em cima da qual o anjo colocou os primeiros pais
era um tratado! de história natural misturado com histórias de lendas e
83 Marignolli apud Abeydeera, p. 60. milagres, que descreve os minerais, plantas e animais 89 , utilizado por
84 Marignolli apud Abeydeera, op. cit., p. 65.
85 Marignolli apud Abeydeera, op. cit., pp. 65-6. 88 Verne, op. cit., pp. 50-1.
86 Abeydeera, p. 66. 89 Bakhtin, op. cit., p. 302.
87 Id., p. 66.

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Santo Isidoro de Sevilha no século VII e muito popular no medievo no E az' existem homens de dois côvados que combatem
texto Etymologiae. Neste, Isidoro descreve e localiza fora da oikoumené cotidianamente contra grous, que dão à luz aos três anos e
agostiniana os antropóides adamitas não normais: envelhecem aos oito. Existem aí homens que são chamados
macróbios, que têm dez côvados e que combatem contra os
Assim como, em cada nação, existem certos monstros de grifos. Existem agraras e baracinos que por amor de outra
homens, assim no universo há certos povos de monstros, tal vida se lançam ao fogo. Existem aí outros que imolam os pais
como o de gigantes, os cinocéfalos, os ciclopes, etc. Os gi- desprotegidos, pela velhice, e que preparam a sua carne para
gantes... dizem que foi a terra, com sua imensa massa quem banquete, afirmando ser ímpio quem se nega a tal feito.
os gerou... Alguns não peritos nas Sagradas Escrituras, Existem pois outros que comem peixes crus e bebem a água
asseguram facilmente que os anjos prevaricadores travaram salgada do mar. Existem aí certos monstros que se asse-
conhecimento com as filhas dos homens antes do dilúvio e melham aos animais, como aqueles que têm patas lisas e sete
dali nasceram os gigantes... Os cinocéfalos são assim cha- dedos em cada pé. Existem aí os que têm um só olho e
mados porque têm a cabeça de cão e em seu latido ma- arimaspos e ciclopes que têm somente um pé com o qual
nifestam ter mais de bestas que de homens: são naturais da andam e aqueles que ao deitarem no chão se cobrem intei-
Índia. Os ciclopes viviam na India, sem cabeça, tendo os ramente com a planta dos pés. Existem aí outros que têm
olhos e a boca no peito. Outros, sem nuca, tinham os olhos focinho de cachorro, esporões no dorso, pêlos de carneiro e
nos ombros. Descreve-se a existência, no Extremo Oriente, de ladrar de cachorro. Existem aí mulheres que dão à luz mais
raças de homens com rostos monstruosos: uns sem narizes, de cinco filhos como em partos caninos. Existem outros sem
com toda a cara chata; outros com o lábio inferior tão cabeça que possuem os olhos no dorso e em lugar do nariz e
proeminente que para dormir e defender-se dos ardores do sol, da boca têm duas aberturas no peito e têm cerdas como os
cobrem toda a cara com ele; outros têm a boca tão pequena, animais. Existem outros perto das fontes de Gagatos que
que só ingerem a comida com um talo de aveia; outros, sem vivem alimentando-se somente do aroma de uma certa
língua, usam só senhas ou movimentos para comunicar-se árvore. 91
com os outros. Os panócios? afirma-se que os há na Cítia,
sendo suas orelhas tão grandes, que lhes cobrem todo o corpo... O cardeal francês Pierre d'Ailly, um dos sábios mais respeitados
Os artabatitas parece que vivem na Etiópia: andam do seu tempo, tem como fonte as Sagradas Escrituras, Ptolomeu e
inclinados, à maneira das bestas, e não chegam aos quarenta outros antigos. Empurrando os adamitas não normais para longe do
anos. Os sátiros são homens pequenos, de nariz curvo, chifre Velho Mundo, no Oriente localiza
na frente e pernas de cabra. Assim os viu na solidão do
deserto o abade Santo Antônio... Os antípodas consta que pigmeus de dois cotovelos de altura, que se dedicam à caça
povoam a Líbia, e têm a planta dos pés voltada para cima e dos grous. Esta gente tem três anos de gestação e morre aos
oito dedos em cada pé... 90 oito anos de vida... Encontram-se também nessas regiões os
macróbios, homens de onze cotovelos que combatem os grifos.
Outro autor que recolhe as lendas medievais e antigas é o Há ainda os agrates e os brâmanes que, por amor, se lançam
italiano Cecco d'Ascoli, nascido em 1257 e morto pela Inquisição em ao fogo. Vêem-se, igualmente, bárbaros que matam os pais já
1327. O In spheram mundi enarratio, com a primeira edição saída pela velhos e os comem: quem se recusa à prática deste costume é
imprensa de Veneza em 1499, mais parece uma ladainha, ao reunir toda considerado por eles ímpio. Outros comem o peixe cru e
uma série de deformidades físicas quando fala que: bebem a água salgada do mar. Certos monstros humanos têm

91 D ' Aséoli Cecco apud Dias, op. cit., p. 149. Tradução do latim feita pelo professor
90 Sevilha Isidoro de apud Dias, op. cit., p. 151. Giancarlo Stefani, da Universidade do Amazonas, a quem agradeço.

30 31
L.!
os pés no sentido contra' -id para .trás e com oito dedos; outros derado por Ad. outeiro comoo romance a aventura
têm cabeça de cachorro e pés de besta, latindo como cachor- portuguesa de quinhentos9 .
ros. Há mulheres, nessas paragens, que procriam uma só vez, Em Pavel, na India, os mercadores falaram de homens com pés
e os filhos, brancos no nascimento, tornam-se negros na redondos; os que gemiam nas noites de inverno, outros que se alimen-
velhice, a qual não ultrapassa a duração de um estio. Outras tavam de cobras, lagartos crus, e caçavam esses animais montados em
bichos do tamanho de cavalos — os banazas — que têm três cornos ou
há, sem dúvida, que ficam prenhes cinco vezes, cujos filhos,
pontas no meio da testa, e os pés e as mãos muito curtos e grossos, e no meio
porém, não vivem mais de oito anos. Há homens com um só
do lombo têm uma ordem de espinhos com que feriam quando se
olho, chamados arimaspos, e cinocefalos chamados ciclopes.
assanhavam, e todo o resto do corpo é conchado da cor de um sardão, e no
Tendo só um pé, correm com a velocidade da brisa, e quando
pescoço em lugar de crina, têm outros espinhos muito mais compridos e
se sentam no chão abrigam-se do sol levantando a planta do grossos que os do lombo, e nos encontros dos ombros têm umas asas curtas
pé. Outros, acéfalos, têm os olhos nos ombros; no lugar do como barbatanas de peixe, com que dizem que voam à maneira de salto de
nariz e da boca, têm dois buracos no peito; e tal como o de 25 e 30 passos 94
algumas bestas, seu corpo está coberto de pêlo comprido. Perto Em Fubau, na Índia, Mendes Pinto encontra portugueses da
do lugar de onde nasce o Ganges, há homens que vivem ape- Fortaleza de Gileytor, senhores absolutos de toda a terra, contudo se não
nas do cheiro de um determinado fruto, o qual por isso mes- haviam por satisfeitos nela, por ser aquilo desterro e não pátria sua 95 . Foi
mo o levam consigo quando viajam; se acaso sentem um mau apresentado por Anrique Barbosa, nesse local, à princesa, mãe de Preste
cheiro, morrem logo. 92 João. Alegre, a princesa saudou a comitiva, proclamando que a vinda
de vós outros, verdadeiros Cristãos, é ante mim agora tão agradável, e foi
Se a semelhança com o texto de Ascoli e deste com o de Santo sempre tão desejada, e o é todas as horas destes meus olhos que tenho no
Isidoro de Sevilha surpreende, apesar de publicados em diferentes rosto, como o fresco jardim deseja o borrifo da noite, venhais embora,
momentos, esse dado confirma a e rmepopularidade que a temátic venhais embora, e seja em tão boa hora a vossa entrada nesta minha casa,
1 das monstruosidades corporais e da fauna prodigiosa. gozou no como a da Rainha Ilena na terra santa de Jerusalém 96 . Após as boas-
medievo, revitalizada através das cópias dos manuscritos passados de vindas, perguntou à comitiva de quarenta portugueses o motivo de os
)mão em mão ou veiculada pela tradição oral. São temas que não têm príncipes cristãos se descuidarem na destruição dos turcos; quis saber
idade porque se entrelaçam com os sonhos, ..os desejos, os medos, as ainda a extensão do poder do rei de Portugal na India, quantas eram e
expectativas, os anseios, as possibilidades do homem; e o Oriente, onde se localizavam as fortalezas portuguesas.
principalmente a India, apresentava=se como fonte inexaurível, conse- Ajusca-de---r-eixto._de_Préste Joãq_é um tema obsessivo para os
qüência de sua diversidade cultural e geográfica. O desconhecimento , ou viajantes e coletadores de histórias fabulosas, apesar de Marco Polo ter
a incapacidade de percepção da religião indiana, do inusitado de sua desfeito as lendas sobre essa personagem, contando várias histórias,
arte estatuária sacra, pela ótica dualista medieval ou mesmo renas- uma delas mostrando a diferença da mentalidade de um rei oriental —
o próprio Preste João — quando subjugou outro rei, Dor, utilizando
centista ou ainda dos antigos, foi um véu que se superpôs a camadas
mais antigas, modificando-as, realçando-as, tornando-as mais verossí-
93 Pinto, Fernão Mendes. Peregrinação. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983,
meis com o apelo do testemunho ocular.
p. 756. Em 1537 Fernão Mendes Pinto viajou 'com Dom Pedro da Silva, o Galo, filho do
Era comum o autor de uma relação de viagem inserir histórias Almirante de Vasco da Gama e Dom Fernando de Lima, durante vinte e um anos, pela
contadas pelos viajantes das caravanas, autores invisíveis na construção India, Etiópia, Arábia, China e Tartária e redigiu sua relação de viagem quando já estava
do imaginário ocidental. Tal procedimento aparece em uma das velho, como herança aos filhos, somente publicada em 1614, em Lisboa. Peregrinação, até
1983, foi editada dez vezes.
passagens de Peregrinação, do português Fernão Mendes Pinto, consi- 94 Id., op: cit., pp. 507-8.
95 Id., op. cit., p. 21.
92 D ' Ailly Pierre apud Dias, op. cit., pp. 149-50. 96 Id., op. cit., p. 22.

32 33
-2,B opa
métodos diametralmente opostos aos possivelmente utilizados por um Especulava-se sobre a existência do antimundo. Confirmadas,
mesmo, desde Platão, somente a Asia (Asu, por onde sai o sol), Europa
ocidental 97 . O importante é que Marco Polo mostrou que esse rei e
seu imenso reino existiram de fato e que os tárt ros pagavam-lhe (Ereb, por onde o sol se oculta) e África (Afar, a seca, por onde o sol
caminha), que os gregos chamavam Líbia 100 . Havia a crença que a terra
tributo antes de 1187, ano em que escolheram Genngis Khan como
era mais extensa que o mar-oceano, como dissera Aristóteles, e os
líder9 8 . Trezentos e cinqüenta anos depois, já em pleno Renascimento, limites, eram fixos: Sídon na Fenícia e o Ponto Euxino no mar Negro em
Pernão Mendes Pinto dialoga com a mãe desse homem lendário, cujo
reino foi perseguido até por Pantagruel. Nesse reino, localizado na direção Leste, as colunas de Hércules e o Mar Tenebroso para o Oeste, a
India, situavam-se as entradas para o alto e o baixo, ou seja, o paraíso e Trácia para o Norte e Típia e Abissínia ao sul. Ao todo, simplificando em
o inferno. Mas Rabelais modifica o acesso pelo Oriente e faz Panta- termos geométricos, é um disco plano cujas bordas eram formadas pelo rio
Oceano, que rodeava as três partes. 101 Ainda em 1457 o mapa de
gruel seguir a rota do Ocidente, onde sempre estivera situado o país da
morte', isto é, o inferno. Segundo Rabelais, ele passava pelas ilhas de Perlas, Toscanelli — celebrizado por ter sido utilizado por Colón —
conservava os três continentes banhados por um oceano único. .0
ou Brasil 99.
rú t
O tema da localiza ção do p araíso e do inferno mafr
n noas formato redondo da terra era questão há muito resolvida pelos doutos,
principalmente árabes, mas o imaginário ainda estava povoado pelas
dos viajantes. Em Thearchos, Marignolli retira a'última fronteira
que separava esses dois locais e afiança que o paraíso de Adão, tornado histórias de um mar tenebroso que subitamente cessava e nessa zona
inferno sem contudo perder o caráter de delícia, existia sobre a face da limítrofe habitavam monstros que engoliam as caravelas dos arrojados
Terra e estava na India. A fauna e a flora extraordinárias, os lugares viajantes. Especulava-se acerca da existência dos antípodas — pois Santo
sagrados das histórias bíblicas também foram constitutivos na Agostinho e Lattanzio negaram os antípodas por argumento e por
opinião(...) 102 — e se os houvesse, não seriam tidos como impuros pelo
construção do imaginário. A água miraculosa que impedia o enve-
lhecimento e a fartura de ouro e pedras preciosas acalentaram o sonho fato de serem pagãos, pois desconheciam o cristianismo 103 , assim
de gerações de ter riqueza sem desgaste físico e viver eternamente. As estabelecera são Tomás de Aquino. Especulava-se se a zona tórrida era
monstruosidades corporais — homens ou animalias e ainda as mulheres habitável, apesar de as viagens dos consorciados descendentes do In-
solitárias, as Amazonas e a raça de gigantes — eram temas recorrentes fante Henrique à África já o terem comprovado, mas ao lado dessa
nesse arcabouço imagístico, que não se encerra com o descobrimento teoria formou-se outra que explicava a cor escura dos nativos como
da América, apesar de a India ou mesmo o Oriente serem uma região conseqüência da maior incidência do sol na pele. Essas teorias ao lado
bastante familiar no medievo, haja visto a enorme popularidade das de outras, como o movimento das águas, a grandeza da terra e mesmo
histórias contadas pelos viajantes recém-chegados, transmitidas oral- a anunciação do Evangelho a todos os povos, de há muito angustiavam
mente, ou mesmo lidas, representadas nas feiras, retratadas nas ilu- os teólogos, os geógrafos, os cartógrafos, os viajantes, os ficcionistas 104 .
minuras, nos vitrais ou pintadas nos tetos das catedrais.
100 Ainsa, Fernando. De la Edad de Oro a "El Dorado " . Metamorfosis de un mito. Revista
Rabelais narrou o desmoronamento do mundo medieval com o
Universidad de Antioquia. Medellín, Universidad de Antioquia, 53 (205): 9, jul-set., 1986.
riso antropofágico. Ressaltando as partes do corpo humano consi- 101 Id., op. cit., p. 9.
deradas imundas pelo pensamento oficial, virou o mundo de cabeça 102 Campanella, Tommaso apud Dias, op. cit., p. 119.
para baixo e o desestabilizou ao inserir o homem na horizontalidade 103 Cf. Gerbi, Antonello. La naturaleza de las Índias Nuevas. De Cristóbal Colón a Gonzalo
sem limites espaciais, injetando um novíssimo tema que foi o de Fernández de Oviedo. México, Fondo de Cultura Económica, 1978, p. 21.
104 "A superstição e o zelo religioso excessivo e cego são um adversário funesto e de todo
deslocar o trajeto de Pantagruel pelo Ocidente, mesmo percurso uti-
irredutível. Aqueles entre os gregos que fizeram soar primeiro nos ouvidos apenas
lizado por Colón na sua quimera de descobrir um caminho para atingir habituados dos homens as causas naturais do raio e das tempestades, foram condenados em
a China e a India. nome da impiedade. E levados ante o mesmo tribunal, não foram mais bem tratados por
sua reputação, por alguns dos antigos padres, mesmo que lhes cortassem a cabeça, os
97 Cf. Polo, Marco, op. cit., pp. 99-101. cosmógrafos que, por demonstrações certíssimas (as que nada em seu são juízo contradiria
98 Cf., idem, p. 59. agora), estabeleceram a forma redonda da terra e asseveraram a existência conseqüente dos
antípodas." Bacon, Francis apud Dias, op. cit., p. 119.
99 Bakhtin, op. cit., p. 348.

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Clássicos da Antigüidade demonstram a extensão das inquietações que ani da mesma forma que pode tornar-se anjo e filho de Deus, (...) o
acompanharam durante muito tempo os antecessores que fizeram corpo do homem reúne em si todos os elementos e todos os reinos da
questionamentos semelhantes. natureza: animal, vegetal e propriamente humano. O homem não é
A viagem de Colón ao Mundo Novo confirmou o que somente algo fechado e acabado; ele é inacabado e aberto 109
era especulado, rompeu com o estabelecido, estimulou questiona- Essa mudança de perspectiva, (úcleO ,,,do_ . .Humanismo, renas
mentos novos de cunho naturalista e antropológico, foi o marco da Era cëntistá conjuga-se com a incomensurabilidade espacial experimentada
Moderna e colocou em xeque o conhecimento geográfico legado pelos pelas viagens marítimas, mas acarreta, em seu significado psicológico,
antigos. Os descobrimentos (..) não atuaram isoladamente sobre a cultura implicações que se opõem: o homem é dignificado pela responsabili-
européia inserida no capítulo da filosofia da história. Suas águas se juntaram dade que lhe cabe enquanto ser histórico, mas também seu conhe-
com as repercussões do humanismo, a invenção da imprensa, a revolução da cimento, até então restrito ao diminuto espaço familiar e geográfico, é-
arte militar e o desenvolvimento do comércio e da indústria, para despertar lhe demonstrado na prática através da notícia de que outros mundos
no europeu a intuição da realidade histórica do progresso. 105 existiam e eram povoados por adamitas iguais a ele. A natureza era
A supremacia do humanismo sobre o pensamento escolástico e uma só, mas a variedade animal e vegetal autóctone leva a conceitos
o respectivo desmoronamento dos feudos que vão se rearranjar em objetivos, que estão na base das noções de etnia e de meio, subentendidas
nações, incitados pelos fatores econômicos e políticos, são molas- na geografia e na biogenética posteriores 110 . Então, de que maneira o
mestras na constituição do novo e do moderno. ) <?ó,tugl é um exem- olhar do habitante do Velho Mundo veria o Novo se entre os dois
plo europeu isolado que construiu sua consciência nacional em torno ainda persistia a crença da inabitabilidade da zona tórrida, da ine-
dos descobrimentos, e a incorporação da América nas reflexões xistência de uma raça única com suas variáveis culturais e étnicas, fauna
filosóficas vai se dar em fins do século XVI com Montaigne e Giordano não embarcada na arca de Noé, flora não alagada pelo dilúvio, rios
Bruno 106 . As novidades trazidas também pelas outras expedições que jamais citados pela Bíblia?
sucederam a de Colón, em espaços curtos — a de Vespucci, Vasco da A existência do antimundo revelada pelas viagens ultramarinas
Gama, Cabral, Cortez, Pizarro e Fernão de Magalhães — incorporaram destacou a ignorância em que estivera mergulhado durante séculos o
e acumularam os problemas que vão se exprimir em tensionamentos conhecimento do homem. A quarta parte que completou a esfera
psicológicos, culturais, econômicos, políticos e sociais. O Velho terrestre sempre existira e constatá-la conturbou mais ainda as relações
Mundo reconhece pelo comentário do humanista Giovanni Francesco internacionais na corrida pela hegemonia dos mares e posse das "terras
Pico della Mirandola, no Examen vanitatis gentium et veritatis de ninguém". Descobriram que o centro de gravidade da Terra teria
christianae disciplinae que "muitos povos são desconhecidos, como ficou que ser deslocado devido ao surgimento daquele imenso pedaço que
claro nas navegações que aconteceram em nossa época quando, no ocidente, veio desarmonizar o já existente. Não se deve dar ouvidos — diz
uma grande terra desconhecida nos séculos anteriores e povoada de Copérnico em 1566 — àqueles peripatéticos que nos ensinaram que a
numerosos povos foi descoberta por uma frota espanhola e, em nossos dias, superfície aquática é dez vezes maior que toda a terra, e que um é o centro
também um navegante lusitano, guiado pelas estrelas da Antártida, de gravidade e outro o centro da extensão do globo. (..) O ensino oposto das
navegou rumo à Europa e penetrou na India, viu os antropófagos e contou navegações se faz mais vidente se se levar em conta as ilhas descobertas em
muitas coisas que séculos anteriores desconheciam. 107 A semelhança de nosso tempo, sob os auspícios dos reis de Portugal e da Espanha e sobretudo
F3 pócratës) que viajo ,.,çor. o humano conexões com a natureza, — o da América, assim chamada pelo nome do capitão de navios que a
Tratado sobre os Ventos 108 -;' ohomem para Pico delia Mirandola, na encontrou, a qual, por sua grandeza, até agora desconhecida, se crê um novo
Oratio de hominis dignitate, pode tornar-se simultaneamente vegetal e orbe terrestre. E isto, sem falar de muitas outras ilhas antes ignoradas, faz
que nos admire menos a existência de antípodas ou antíctones. O cálculo
105 Dias, op. cit., p. 135. geométrico obriga a considerar a América oposta pelo diâmetro à Índia
106 Cf. Gerbi, op. cit., p. 21.
107 Mirandola, Pico della apud Dias, op. cit., p. 153. Agradeço tradução do latim feita pelo
prof. Giancarlo Stefani da Universidade do Amazonas. 109 Bakhtin, op. cit., pp. 319-20.
110 Dias, op. cit., p. 165.
108 Cf. Bakhtin, op. cit., pp. 311-18.

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gangética. Por tudo isto, reputo manifesto que a terra e a água repousam em antinômico que poderá estigmatizar ou reconhecer a diversidade. A
um único centro de gravidade, e que não há outro da extensão da terra. 111 natureza não será comparada com alguma coisa já existente no velho —
A descoberta da outra metade aguçou, por outro lado, o espírito de o que não deixará de ser uma dádiva deste traduzida pela oferenda da
superioridade bíblica oferecida por Deus a Adão ao autorizá-lo a identidade ao novo, como ocorre com a similitude europocentrista —,
nomear o desconhecido, mesmo que aquele adamita descendente de mas na diferença muitas vezes vem embutida a idéia de superioridade,
Noé desconhecesse o nome da fauna e flora de seu próprio local de captada nas expressões de debilidade ou pujança, degenerescência ou
origem 112 . Mas nomear é também exorcizar. Reconhecer naquele imaturidade, indolência ou diligência, inferno ou paraíso, traição ou
imenso território o novo em certa medida significou o reconhecimento fidelidade, nomadismo ou sedentarismo, poligamia ou monogamia,
da decrepitude do velho; daí as resistências psicológicas e culturais. A nudez como sensualidade ou inocência sem malícia, antropofagia,
inevitável oposição do Mundo Novo ao Mundo Antigo está na raiz de todas alcoolismo; belicosidade, inimizade, fetichismo, inconstância etc. etc., e
as sucessivas antíteses e polarizações e de todas as indevidas confrontações e o parâmetro de avaliação é o olhar dos que descobriram a totalidade de
comparações. De uma indiscutível relação cronológica que era, que fazem parte. Até então, formavam uma parte sem todo 117, mesmo que
transformou-se demasiado freqüentemente em uma sofística relação lógica, resistam em aceitá-la.
em uma ideologização ou denegrição deste ou daquele mundo. 113 As maravilhas e monstruosidades da Índia carreiam para si os
O olhar para aquilo que seria o novo poderá traduzir a simi- olhares tradutores da diversidade, que tanto podem exprimir o enlevo
litude, a diversidade 114 e ainda a permanência das maravilhas e mons- quanto o desapontamento. De uma forma quase sempre parecida, o
truosidades índicas transladadas com matizes mais atenuados. A simi- delumbramento inicial ante a pujança da natureza é seguido por um
litude ou a semelhança significarão a placidez da permanência do como que descontentamento pela não comprovação de, talvez, uma
mundo familiar. O novo é filtrado pelo antigo, assegurando a este sua imagem idílica ou paradisíaca — figura arquetípica — de um mundo
supremacia. A prática de comparar as novidades vistas pela primeira natural que não recebe o viajante, o navegador, com as comodidades
vez com algo pretensamente conhecido, sendo domesticado, fortalecerá que ele gostaria que acontecessem. O estrangeiro é sufocado pela
e documentará a estabilidade do antigo. Não é só o mundo antigo que se natureza que o martiriza com sua fauna e flora aérea ou rasteira.
projeta assim sobre o novo: é o mundo de casa que se anexa pacificamente Depois desse rito de passagem profano — o cerimonial é solitário, não
aos descobrimentos ultramarinos. 115 Utilizar a analogia é familiarizar o comunal —, uma quase familiaridade com a natureza o autoriza a
exótico 116 . transferir para o nativo a sua amargura, que se traduz na incapacidade
Por outro lado, a constatação da diferença franqueia o avanço ao de sobrevivência em local tão exótico sem a ajuda do homem da terra.
desconhecido e o conhecimento se alarga com o leque de possibilidades Sua incapacidade de abarcar a totalidade, de exercer seu domínio — é
que o contato com o novo pode oferecer. Essa atitude faz avançar o um Adão destronado e decaído — é minimizada pela procura de traços
pensamento, porque o estimula a criar conceitos novos referentes a diferenciadores nos nativos, que lhe anularão a humanidade; de elemen-
uma natureza que era considerada estática na sua uniformidade e ao tos da terra, passam a usufruir o estatuto de agentes perturbadores
homem que era um só naquela redondeza terreal cristã. A existência, daquela ordem natural. Encaixados na categoria antiga e medieval de
no entanto, da variedade racial e cultural, forçou a abertura de novos adamita não normal, já modernizada, na grande maioria das vezes
rumos da reflexão sobre o homem e a natureza, alargada e enriquecida motivada pelos emblemas tatuados nas peles ou mesmo pela procura de
pela visão diferenciadora. Mas dentro dessa ótica aparece o qualificativo monstruosidades corporais, os usos e costumes dos nativos seguem essa
ótica inicial e são elementos de reforço na construção da imagem dife-
111 Copérnico Nicolás, apud Dias, op. cit., p. 118. renciada do outro.
112 Os estudos dos fundadores da ictiologia — Guillaume Rondelet e Pierre Belon —
Não poderia ser outro o ponto de partida do europeu no
somente aparecem em 1553-1554. Cf. Bakhtin, op. cit., p. 403. contato inicial com o Novo Mundo, principalmente em se tratando de
113 Gerbi, op. cit., p. 314.
114 Cf. id., pp. 19-20. 117 Todorov, Tzvetan .
A conquista da América. A questão do outro. São Paulo, Martins
115 Gerbi, op. cit., p. 18. Fontes, 1983, p. 6.
116 Cf. Gerbi, id., p. 18.

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Portugal e Espanha, os iniciadores da corrida marítima de além-mar. O chegarem depois ao conhecimento dos cristãos, mesmo que estejam fora da
pano de fundo português e espanhol é a formação de um Estado auto- lei de Cristo, não estão privados, nem devem sê-lo, tanto de sua liberdade,
ritário centrado na figura do monarca sob o manto da Igreja de Roma. como do domínio sobre suas coisas. 121
O pé que calcou as terras jamais vistas foi o do colonizador e o do A não aceitação do modus vivendi do nativo é que vai funda-
missionário, fundidos em uma mesma pegada. A anunciação do Evan- mentar a escravidão que emerge com o nome novo de guerra justa,
gelho a todos os povos foi um dos motes para a legalização da antiga concepção da cruzada medieval. Em nome da ausência de uma
conquista. O fincamento das bandeiras em solo estrangeiro foi acom- sociedade estruturada ao modo europeu, este será absolvido de todas as
panhado pela legitimação discursiva de louvor a Deus, a Jesus Cristo e incursões efetuadas ao longo dos séculos em território dos nativos do
sua Madre Igreja. Acompanhando esse ato inicial, instalou-se também a Novo Mundo. O "viver conforme a natureza" difundido em inúmeras
-dicotomia diferenciadora sobrecarregada de adjetivações. Ante a cartas trocadas entre provinciais, entre o clero e a Coroa, entre os
ineficiência do método catequista nos contatos iniciais, foi oferecida colonizadores e seus dirigentes, entrava em choque frontal com o
outra justificativa que conciliasse com a Coroa o usufruto das partes Estado autoritário que, para viger entre os nativos, teria que esfacelar
interessadas. São tanquam tabula rasa para que se lhes imprima todo o os belicosos, os nômades, os antropófagos. Na realidade, o conceito de
bem, nem há dificuldades em tirar-lhes rito nem adoração de ídolos, porque sociedade para o europeu tinha suas raízes na obra de Heráclito, ou
não os têm 118, diz José de Anchieta em 1585, depois de enumerar as seja, a representação da sociedade como tal deve encarnar-se numa figura de
dificuldades encontradas pelos missionários na tarefa de conversão, Um exterior à sociedade, numa disposição hierárquica do espaço político, na
depois também de defender o uso da força para reprimir os costumes função de comando do chefe, do rei ou do déspota: não existe sociedade que
que impediam o avanço colonizador, como a antropofagia, a poligamia escape ao signo da divisão entre Senhores e Súditos. Desta visão do social
e as guerras. Os nativos convertidos, rearrumados em- povoados resulta que se um agregado não apresenta o caráter de divisão não pode ser
organizados e erigidos sob a ordem e a administração dos inacianos, considerado como uma sociedade. Ora, que é que os descobridores do Novo
comporiam o quadro ideal para o, esfacelamento dos costumes tidos Mundo viram surgir nas praias atlânticas? 'Homens sem fé, sem lei, sem
como não naturais pelo europeu. O princípio da `sujeição' e `obediência' rei', nas palavras dos cronistas do século XVI. A causa era evidente: esses
do índio, isto é, sua integração em uma ordem política de estrutura auto - homens em estado de natureza não tinham ainda ascendido ao estado de
ritária, em que os cristãos figuravam como elemento dominante, constituía sociedade. Quase unanimidade, perturbada apenas pelas vozes discordantes
para Manoel da Nóbrega uma lei suprema de ação colonial e mis- deMontaigne e La Boétie, nesse julgamento sobre os índios do Brasil. 122
sionaria. 119 A atividade marítima portuguesa, desenvolvida em função da
Não se pode deixar de aludir, por conseguinte, à trajetória da expansão mercantil e conseqüente colonização de povos subjugados a
antiga teoria da inexistência de adamitas normais fora da oikoumené, fogo de canhões, foi esmaecendo as histórias fantásticas herdadas dos
depois de confirmada a existência da igualdade universal da raça antigos, coloridas e vivificadas pelos viajantes da era cristã, ao mesmo
humana, com o tratamento comprometedor dos missionários em terras tempo em que confirmava alguns dados das velhas teorias dos geógrafos
do Brasil, considerando os nativos "inábeis para a fé católica", e cartógrafos e acumulava conhecimentos adquiridos na prática náutica
justificativa tida como suficiente para submetê-los como "bestas" e do trabalho expansionista. Assim foi a rota portuguesa nessa bifurcação
reduzi-los à servidão, deixando-os quase com maior opressão que aos do imaginário, oriunda das descobertas dos viajantes provenientes de
próprios animais brutos de que se servem, 110. A bula Sublimis Deus, , Sagres. O caminho espanhol pautou-se pela tradição sintetizada nos
expedida em dois de junho de 1537 por Paulo III, restringe a prática ensinamentos de Santo Isidoro de Sevilha, guardadas as distâncias que
escravagista, proíbe qualquer medida contrária à exposta no texto papal os separavam na época do Colón, apesar de a possibilidade de existir o
e determina que os referidos índios, como todos os povos cuja existência Paraíso terrestre não ser apenas uma sugestão metafórica ou uma

118 Anchieta, José de apud Dias, op. cit., p. 240. 121 Id., ib., p. 154.
119 Dias, op. cit., p. 247. 122 Clastres, Pierre et alii. Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas in
120 Paulo III apud Dias, op. cit., p. 154. Guerra, religião, poder. São Paulo, Martins Fontes, (c) 1977, p. 12.

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passageira fantasia, mas uma espécie de idéia fixa, que ramificada em nume- A morosidade da travessia é mimetizada nas anotações do diário
rosos derivados ou variantes, acompanha ou precede, quase indefecti- de bordo, ambos — travessia e diário — encobrindo a tensão da espera
velmente, a atividade dos conquistadores nas Indias de Castela" 123 . de ver surgir a India. O encantamento diante daquela natureza nunca
vista pelo europeu é o intermezzo placentário entre os momentos de
sofreguidão, de busca incessante, tenaz, de ouro, e encontrá-lo
significaria ter sido atingida a meta da viagem. Nesses momentos, a
DE COMO A EXISTÊNCIA DO ANTIMUNDO É REGISTRADA narrativa é frenética, rápida: o ouro tem que ser encontrado. E é uma
NO DIÁRIO DE COLÓN E NAS CARTAS DE VESPUCCI luta contra o tempo. De ilha em ilha Colón questiona os nativos sobre
o local em que nascia ouro. Não o encontra na quantidade desejada —
só pequenas amostras —, mas oferece aos reis a contrapartida que
As imagens do Paraíso Terrestre, a fonte da eterna juventude, a justificasse o fracasso da viagem, que vem a ser a proximidade daquele
riqueza adquirida sem esforço físico, as monstruosidades corporais, as local com o Paraíso terrestre e a grande quantidade de homens
fantásticas descrições da flora e fauna, as amazonas solitárias e mesmo o disponíveis para a servidão e para receber os ensinamentos de
reino de Preste João, em muitos casos sinônimo de Grão Cã, de uma Cristo 125 . O almirante entrou com os barcos por um grande rio, e viu
certa maneira, acompanharam os marujos, grumetes e almirantes na algumas casas e a várzea grande onde estavam os povoados, e disse que
travessia das fronteiras líquidas do antimundo. Dois textos repre- nunca tinha visto coisa mais linda. E mais, que essa gente deve ser muito
sentativos e inaugurais das viagens experimentais para além do mar- perseguida, pois vive morta de medo. Denominou a várzea de 'Valle del
oceano são o Diário de Viagem e a Carta da terceira viagem (1498-1500) Paraíso' e o rio de `Guadalquivir, porque diz que aqui é tão largo como o
de Cristóbal Colón e as Cartas de Américo Vespucci. As preocupações Guadalquivir quando passa por Córdoba 126
que norteiam o Diário de Colón e a primeira Carta de Vespucci (1500) Mas viu também o inferno, bem próximo, atestado pela
resultam em visões diferenciadas que, na maioria das vezes, vão exercer presença do belicoso canibal, bem disforme de semblante, mais que os
seu fascínio para as impressões de viagens posteriores no enrique- outros até agora vistos. Tinha o rosto todo tisnado de carvão, ao passo que
cimento do imaginário europeu. em todos os lugares costumam pintar-se de várias cores. 127 Procura a ilha
Motivo de enormes controvérsias, a vida de Colón pauta-se pelo das mulheres sem homens, cuja tradição, confirmada pelos nativos,
mistério de sua origem étnica, e até hoje é motivo de discussão o local dizia que onde elas estivessem haveria ouro 128 . Colón registra a beleza
de seu nascimento. Chamado de poeta, charlatão, romântico, vaga-
dos nativos, sempre enfatizando o uso de adereços em ouro, já
bundo, estulto, sábio, ególatra, cruel, mentiroso, virou personagem de'
romance, 12 4 enfim, transformou-se em figura lendária! calculados o peso e o valor monetário. Os frutos, as aves, os peixes, o
clima, os rios, são socorridos na descrição pelo artifício das com-
A preocupação que acompanha o relato de Colón é pautada
parações com os assemelhados da Espanha ou da India 129 . O que é
pelo formalismo. O almirante deveria justificar diante dos reis de
Aragão e Castela que o envolvimento da Coroa não fora um empreen- diferente, quer raptar ou manda salgar para levar aos reis. As três
dimento sem retorno. Católicos extremados, Fernando e Isabel sereias que viu no Rio del Oro não eram tão bonitas como pintam, e que,
oneraram as finanças da Coroa ao expulsarem os mouros e judeus do
solo ibérico naquele mesmo ano em que Colón partira rumo à India. 125
(..,)devem ser bons serviçais e habilidosos, pois noto que repetem logo o que a gente
diz e creio que depressa se fariam cristãos." Cristóvão Colombo. Diários da descoberta da
123 Holanda, op. cit., pp. 12-3. América. As quatro viagens e o testamento. Porto Alegre, L & PM, 1984, p. 45.
124 Os romances que articulam 126 Id., p. 155.
a biografia de Colón — As memórias de Cristóvão 127 Id., op. cit., p. 88.
Colombo, com a colaboração de Marlowe Stephen. São Paulo, Best Seller, (c) 1987, e Em
128
busca do Grão Can (Cristóvão Colombo). Blasco Ibanez. Lisboa, Peninsular, 1929 — Na ilha de Martinino, "a determinada altura do ano apareciam por ali homens da ilha
mostram-no como cristão novo. Para Marlowe, Colón nasceu a bordo de um navio entre de Caribe, e assim, se elas pariam filhos, mandavam para a ilha dos homens, e se fossem
Valência e Gênova, enquanto que Ibafiez não precisa o local de seu nascimento, pendendo meninas, deixavam para se criarem por lá mesmo." Colombo, op. cit., pp. 90-92.
129 Entre outras, veja as pp. 62-3 e 70
entre Portugal e Espanha. Trata-o de estrangeiro. in op. cit.

42 43
de certo modo, tinham cara de homem 130 . No comunicado sobre a fronteiriça do lado do Poente, bem montanhosa, mas não
localização do Paraíso terrestre (Carta de 1498-1500) na região do Ore- distante; me aconselharam, porém, a não ir até lá porque é
noco, navegado na terceira viagem, enumera os indícios que fun- um lugar onde comem gente e então entendi que queriam
damentam sua certeza: mar de água doce, 131 mudança climática, céu e dizer que havia canibais, (..) e depois me lembrei que poderia
estrelas diferentes; barco atraído para o Oriente por força das correntes, ser que dissessem isso porque ali existiriam feras. Também
rio larguíssimo, temperatura amena, terras e árvores muito verdes e tão perguntei de onde vinham as pérolas e também responderam
bonitas como as hortas de Valência em abril. O nativo daquele local é de que era do lado do Poente e do Norte, por trás dessa terra em
estatura muito imponente e mais branco do que outros que vi nas Indias, e que se encontravam. 133
com cabelo bem comprido e liso, sendo gente mais astuta, de maior engenho
e nada covarde 132 . Colón não se refere a essa descendência com alguma Colón faz uma revisão crítica dos antigos que haviam falado
registrada na Bíblia; alude, no entanto, à proximidade do Paraíso como sobre a esfericidade da terra, sem terem passado, como ele, pela prática
fator modificador dos costumes e da raça: da experiência:

Logo que os barcos chegaram à margem, vieram duas pessoas Agora vi tanta desconformidade (..) que passei a considerar o
importantes acompanhadas por todo o povoado; acreditam mundo de maneira diferente, achando que não é redondo do
que uma fosse o pai e a outra o filho, e os conduziram a uma jeito que dizem, mas do feitio de uma pêra que fosse redonda,
casa enorme, construída a duas léguas dali, e não redonda menos na parte do pedículo, que ali é alto, e que essa parte do
como tenda de acampamento, como costumamos encontrar, e pedículo seja mais elevada e mais próxima do céu, e se
onde havia muitas cadeiras. Fizeram com que sentassem, localize abaixo da linha equinocial, neste mar Oceano, nos
ocupando as restantes; e mandaram trazer pão e muitas confins do Oriente. Eu chamo de confins do Oriente o ponto
variedades de fruta e de vinho, branco e tinto, mas que não é onde acabam toda a terra e as ilhas (..), que, ao passar dali ao
feito de uvas; (..) Os homens estavam todos juntos a uma Poente, já vão os navios èrguendo•se suavemente para o céu, e
extremidade da casa, e as mulheres na outra.(..) Esta gente, então se goza da temperatura mais branda e se muda a
como já disse, é toda de estatura imponente, altos de corpo e bússola de navegação por causa da brandura dessa quarta de
de gestos muito harmoniosos, (.) e trazem as cabeças cingidas vento; e quanto mais se avança e se ergue, mais noroesteia, e
por panos bordados, como já expliquei, lindíssimos, que de essa altura causa a alteração do círculo que a estrela do Norte
longe parecem de seda e gaze; usam outro, maior, atado à descreve com a constelação da Ursa Menor; e quanto mais eu
cintura, cobrindo-se com ele em lugar de tangas, tanto os me aproximar da linha equinocial, mais alto subirão e maior
homens como as mulheres. (..) todos usavam no pescoço e nos será a diferença entre as referidas estrelas e seus respectivos
braços alguma coisa à maneira destas regiões e muitos círculos. E Ptolomeu e os outros sábios que descreveram este
traziam peças de ouro penduradas ao pescoço. As suas canoas mundo acreditavam que fosse esférico. 134
são grandes e mais bem-feitas do que as outras, e também
mais leves, e no meio de cada uma tem uma repartição feito A dificuldade de acesso ao Eden, o comportamento inédito da
câmara, onde notei que andavam as pessoas importantes com natureza circundante, a eterna juventude dos nativos — não há velhos
as suas mulheres. Dei a esse lugar o nome 'jardins', por ser o entre eles —, a proximidade de elementos perturbadores da ordem — os
que lhe convém. Muito me esforcei para descobrir de onde demônios canibais a estrutura social incipiente, com indivíduos que
tiram o ouro, e todos me indicaram uma terra que lhes fica andam mais vestidos que os outros, pessoas importantes, casas dife-
renciadas, nativos mais belos e inteligentes — os bons selvagens — são
130 Op. cit., p. 87.
131 " (...)esse rio emana do Paraíso Terrestre e de terra infinita", op. cit., p. 147. 133 Id., op. cit., pp. 140-1.
132 Id., op. cit., p. 145. 134 Id., op. cit., pp. 143-4.

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indícios narrativos que permitem enfileirar esse relato ao lado dos surpreende, é uma surpresa contida, como se lá estivesse em sua
antigos o jardim das Hespérides — e dos medievais — o parentesco própria casa. Aceita a diferença com naturalidade. O jamais visto é
imagístico com o jardim de Marignolli torna-se evidente. A cor- registrado sem comparações nem confrontos com o familiar 139 . Não
nomeia, diz que não conhece ou utiliza a nomenclatura do nativo. Não
respondência descritiva desse local com o bíblico leva Colón a afirmar
se intimida nem se justifica ao relatar a venda, em Cádiz, dos duzentos
que abaixo do equinócio, na parte mais alta, está o Paraíso terrestre,
nativos sobreviventes dos duzentos e trinta e dois que trocou por
aonde ninguém consegue chegar, a não ser pela vontade divina. 135
espelhos ou pentes. Era um mercador insatisfeito com o pouco lucro
Assim, a inacessibilidade ao Eden retoma o curso do imaginário obtido, uma vez que tratado todo o gasto que se havia feito nas naus, que
nessa história sem fim; semelhante processo ocorre com as amazonas. sobrou obra de 500 ducados, os quais se tiveram de repartir em 55 partes, e
Ambos fazem parte de temáticas perseguidas por outros viajantes em foi pouco aquilo que tocou a cada um 140.
terras do Novo Mundo, na tentativa incansável de preencher essa Viajante que partira com a explícita pretensão da aventura e da
lacuna imagística. O verdor eterno da deslumbrante natureza — que na fama 141 , é com informalidade que relata ao amigo Lorenzo de Pier
visão de Colón se civiliza pela comparação familiar com Valência — Francesco de Medici, as coisas mais surpreendentes que viu. Preocupa-
ensejará discussões que tenderão ao confronto com a natureza do do constantemente em evitar a prolixidade, pede que o destinatário leia
Velho Mundo, nela subjazendo a relutância européia na aceitação da a carta quando mais desocupado estiver, ou como fruta, depois de tirada a
diferença do outro. Em momento algum Colón chama os nativos de mesa 142 , esclarecimento que combina com o ludismo intrínseco ao
antípodas — acreditava ter chegado aos confins da India —, mas o relato de aventuras. Descompromissado com regimes políticos ou seitas
retrato que pinta no diário e na carta sobre a terceira ' viagem atesta a religiosas, suas cartas oferecem dados etnográficos, geográficos e as-
variedade racial, confirmada inclusive pela variedade lingüística entre os trológicos preciosos pela ousadia das afirmações. Em diversas passagens
habitantes das diversas ilhas. patenteia sua irritação pelo descrédito de algumas informações terem
Há um embranquecimento, um embelezamento gradativo dos sido recebidas com reticências, como é o caso do costume da guerra e a
nativos — a bondade e a coragem também vão num crescendo á falta de apreço pelo ouro não ter paralelo com os motivos europeus.
proporção que os aproxima do Eden. E uma europeização racial. A Diz: e o que mais me maravilha nestas suas guerras, e crueldades, é que não
estrutura da sociedade européia e a respectiva moralidade dos costumes pude saber deles porque fazem guerra um ao outro, uma vez que não têm
são repassados para os nativos do Valle del Paraíso 136 e da foz do bens próprios, nem senhorio de Impérios, ou Reinos, e não sabem que coisa
Orenoco como uma espécie de perdão antecipado — não eram cristãos seja cobiça, isto é propriedades, ou avidez de reinar; a qual me parece que
—, que justificasse a proximid de de tal presença inoportuna naquele seja a causa das guerras, e de cada desordenado ato. Quando a eles pedíamos
que nos dissessem a causa, não sabem dar outra razão, exceto que dizem que
local descoberto por um europeu. Este, na visão colombina, é uma
antes começou entre eles esta maldição e querem vingar a morte dos seus
dádiva ao nativo, que, só de ver os cristãos, consideravam-se bem-
Pais antepassados. 143 E essa outra passagem: todas as suas riquezas
aventurados 137 . consistem em plumas, em ossos de peixe e em outras parecidas; não como
A visão de Américo Vespucci nas três primeiras cartas 138 difere riquezas, mas para se ornarem quando vão para os seus jogos ou à guerra.
em muitos pontos do diário de bordo e da terceira carta de seu
contemporâneo Colón. Na primeira, é um olhar repousado. O que
estava vendo pela primeira vez — natureza e homem — parecia 139 "Vimos cristais e uma infinidade de sabores, e odores de especiarias, e drogarias, mas

confirmar o que em latência já existia em sua imaginação. Quando se não são conhecidas " , p. 73. "(...)mas navegam em certas embarcações que têm, que se
dizem canoas (...) e nos deram muitas outras frutas, todas diferentes das nossas, e de muito
135 Id., op. cit., p. 145. sabor, e todas de sabor e odor aromático " , in Vespúcio, op. cit., pp. 56-7.
140 Id., p. 61. Primeira carta.
136 "E estes índios são dóceis e bons para receber ordens e fazê-los trabalhar, semear e
tudo o mais que for preciso, e para construir povoados, e aprender a andar vestidos e a 141 "(...)mas de todas as coisas mais notáveis que nesta viagem me ocorreram, numa minha
seguir nossos costumes. " Op. cit., p. 74. modesta obra recolhi, para que quando estiver de repouso nela me possa ocupar, para
137 Op. cit., p. 77. deixar de mim após a morte alguma fama." Op. cit., p. 69. Segunda carta.
138 A carta de 1500 sobre a primeira viagem de 1498, a de 1502 (?) sobre a segunda viagem 142 Op. cit., p. 49. Primeira carta.
143 Op. cit., p. 72. Segunda carta.
de 1499-1500 e o fragmento de 1502 (?) sobre a terceira viagem de 1501-1502.

46 47
Porque digo que guerreiam um povo com o outro e que se aprisionam, não normal, um estranho ser, na percepção do nativo, que conheceu que
poderá parecer ao detrator que eu me contradiga,' porque o guerrear e o éramos gente desconforme da sua natureza 150. Como não poderia deixar
aprisionarem-se não podem proceder se não da vontade de dominar ou da de ser, a antropofagia o repugna e o leva a denominar, na segunda
cobiça de bens temporais. Saiba que por nenhuma dessas fazem-nas. 144 carta, aquele ato como bestia1 151 ; no entanto, o que se lê na primeira,
Cristóbal Colón refutou as antigas teorias baseando-se na prática é uma aceitação tácita da diversidade cultural:
do que viu para a construção de seu Paraíso terrestre; Vespucci tam-
bém critica os filósofos em nome da prática, mas para reconhecer as e assim pela diversidade da cor, que eles são de cor como
diferenças climáticas, raciais, culturais,. astrológicas, geográficas, ani- parda, ou leonada, e nós brancos; (..) e descobrimos que eram
mais, interpretando a dilatação do orbe como uma riqueza descoberta de uma descendência que se dizem Canibais, que quase que a
pelo homem. Sem outras pretensões que não fosse o relato fiel do que maior parte desta descendência ou toda ela vive de carne
vira, ouvira, apalpara, degustara e cheirara, não aceita que duvidem das humana, e isto o tenha por certo Vossa Magnificência. Não se
informações colhidas, pois se algum invejoso ou maligno não o crê, venha comem entre eles (..), e vão buscar presas nas Ilhas, ou terras
a mim que com razão o declararei com autoridade e com testemunhos (..) comarcãs de uma descendência inimiga deles, e de outra
mas não quero entrar em tanta mistura: que isto me parecia uma dúvida de descendência que não são eles. Não comem mulher alguma,
literato, mas não nenhuma daquelas que me dirigistes. 145 Alinhando-se ao salvo as que têm como estranhas. (..) São gente de gentil
grupo dos viajantes considerados ignorantes, mas que fizeram avançar o disposição, e de bela estatura. (..) 152
pensamento científico, confirma os graus longitudinais já estipulados
por Ptolomeu e Alfragano, mas por outro lado, assevera que a maior A variedade e a quantidade de animais que viu na zona tórrida é
parte dos filósofos nesta minha viagem seja reprovada, que afirmam que o mote para ironizar as Escrituras e os teólogos, que creio com
dentro da zona tórrida não se pode habitar por causa do grande calor; e eu dificuldade tantas espécies entrariam na Arca de Noé 153 . A diversidade
vi nessa minha viagem ser o contrário; que o ar é mais fresco e temperado lingüística e a densidade populacional que encontra no antimundo
naquela região do que fora dela, e que é tanta gente que dentro dela habita, deixam-no extasiado, prendemos deles cerca de vinte, entre os' quais havia
que de número são muitos mais que aqueles que fora dela habitam; (..) que sete línguas, que não se entendiam uma a outra; diz-se que no mundo não
mais vale a prática que a teoria 146 . E um homem maravilhado, e existem mais do que 77 línguas, e eu digo que existem mais de 1.000 que só
entusiasmado que assegura ter ido 'a região dos Antípodas"147 e nela as que eu ouvi são mais de 40 154
constatado a existência de 'animais racionais" 148 . O que não viu não Esse viajante fascinado vê indícios paradisíacos antes de atra-
confirma: Julgamos ser toda a terra habitada de gente toda nua, assim os vessar o limite lendário para o antimundo. Não consegue aportar, por-
Homens, como as Mulheres, sem se cobrirem vergonha nenhuma. São de que é tão cheia de árvores, que era coisa maravilhosa não somente a gran-
corpo bem dispostos e proporcionados, de cor branca, e de cabelos pretos, e de deza delas, mas o seu verdor(..) 155 . Navega durante dois dias por um des-
pouca barba, ou de nenhuma. Muito me esforcei em entender a sua vida, e ses rios na tentativa de encontrar um local apropriado para atracar e vê
costumes, porque 27 dias comi, e dormi entre eles. 149 Diferente de Colón
que considerava sua presença entre os nativos uma dádiva celestial, uma feíssima coisa de pássaros de diversas formas, e cores, e
Vespucci inverte a posição do olhar ao colocar-se como um adamita tantos papagaios, e de' tantos tipos diversos, que era ma-
ravilhoso;(..) As suas árvores são de tanta beleza e de tanta
144 "Idem me caluniam porque eu disse que aqueles habitantes não estimam nem ouro
nem outras riquezas que por nós são estimadas e tidas em grande apreço". Op. cit., p. 82.
150 Op. cit., p. 56. Primeira carta.
Carta fragmentada.
145 Op. cit., pp. 79-80. Carta fragmentada. 151 Cf. op. cit., p. 72.
146 Op. cit., pp. 55-6. Primeira carta. 152 Op. cit., p. 56.
147 Op. cit., p. 69. Segunda carta. 153 Op. cit., p. 69. Segunda carta.
148 Op. cit., p. 69. Idem. 154 Op. cit., p. 60. Primeira carta. V. também nota 146.
155 Op. cit., p. 50. Primeira carta.
149 Op. cit., pp. 69-71. Idem.

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suavidade que pensávamos estar no Paraíso terrestre, e ne- impediu de levar para a Espanha' pérolas, ouro, esmeraldas, ametistas
nhuma dessas árvores nem as suas frutas tinham confor- etc. Visita os gigantes — Pentasiléas e Anteus —, as mulheres de tão
midade com as próprias desta região, e pelo rio vimos muita grande estatura, que não havia nenhuma que não fosse mais alta que eu um
gente pescar e de várias deformidades. 156
palmo e meio. O roubo de duas como oferenda ao rei da Espanha foi
obstaculizado pela chegada dos gigantes, tão imensos que cada um deles
A quinze léguas desse local encontra água doce no meio do mar era mais alto estando ajoelhado, que eu ereto 161 . Foi a vez do estrangeiro
e, ao longo da costa, vê crescerem da terra dois grandíssimos rios, e um
sentir medo, mas, nesta carta, os gigantes eram pacíficos.
vinha do poente, e corria para o levante, e tinha de largura quatro léguas
Na segunda carta (1502 ?) os temas imagísticos familiares apa-
que são 16 milhas, e o outro corria do meio-dia para o setentrião e era largo
recem aos poucos. O número de animais é maximizado e sua loca-
três légúas, e esses dois rios creio que causavam ser o mar doce por causa da
lização especificada, não nesse caso da Espanha, mas dos antípodas162. A
sua grandeza 157.
descrição dos nativos é mais fotográfica, mais detalhada 163 ; os com-
A lacuna, que sempre em nome de uma possível prolixidade
parativos já se apresentam como recurso para justificar a anormalidade.
pretende evitar, dessa gente de "várias deformidades", será, talvez,
A juventude eterna — que levou Ponce de León, décadas depois, a
preenchida pelo imaginário dos copistas — locondo verte para o latim
procurar a fonte, descobrindo em seu lugar a Flórida — é encontrada
a Mundus Novus —, apesar de, nessa mesma carta de 1500, o autor
entre um dos nativos que talvez tivesse 132 anos, contando 13 lunados ao
descrever os nativos como adamitas normais e encarar com natu-
ano 164, o que não o impedia de agraciar os outros homens com os
ralidade a preferência gastronômica deles, justificada pela diversidade
qualificativos de esbelteza, beleza e juventude corporais. No fragmento
dos costumes.
da terceira carta, Vespucci alcunha de selvas e bosques às árvores, cuja
De volta à caravela, é surpreendido por uma forte corrente
marítima que por pouco não o leva a pique. Já na zona tórrida, verifica maioria dá de si ou licores ou gomas e azeites e são de odores aromáticos 165 .
que os instrumentos náuticos não tinham serventia para ler os astros, e Nesta, é minimizada a atitude dos estrangeiros no preamento dos
então socorre-se de Dante, a poesia talvez explicasse as coisas novas nativos: tentamos muitas vezes dar a eles crucifixos de ouro, anéis com
surgidas no firmamento 158 . Superados os primeiros impasses no pedras e não os quiseram 166 , mas a opção dos nativos foi por espelhos e
contato inicial com os nativos, visita suas casas, onde tinham tudo muito pentes, escolha que ressaltava o desprendimento por riquezas materiais
bem aparelhado para as refeições 159 . Almoça, degusta três tipos de vinho como expressões da ingenuidade e pureza do antípoda do antimundo.
de frutas saborosas, recebe pérolas de presente dos canibais. Vespucci Na segunda carta ainda está patente o compromisso de Vespucci com a
conclui que aquela terra confinava com a Asia pelo Oriente e aventura: Fomos em nome de descobrir e com tal comissão partimos de
principiava ao Ocidente, tal a quantidade de leões, cervos, cabras, Lisboa, e não de buscar algum lucro, de modo que nela não ouvimos de
porcos selvagens, coelhos 160 , fauna impossível de existir em ilhas. coisa que fosse de alguma utilidade, não porque eu não creia que a terra não
Retorna ao mar depois de ver uma cobra de tamanho descomunal. E produza riquezas de todo o gênero pela sua admirável disposição, e ser nas
atacado muitas vezes pelos nativos, mas sempre vencia, apesar da
desproporção de dois mil contra dezesseis europeus, o que não o 161 Op. cit., p. 59.
162 Op. cit., p. 69.
163 "Os homens costumam furar os lábios, as bochechas, e depois nesses furos metem
156 Op. cit., p. 53. Idem.
157
ossos e pedras, e não as creia pequenas; e a maior parte deles, ao menos o que têm são
Op. cit., p. 50. furos, e alguns sete, e alguns nove, nos quais metem pedras de alabastro verde e branco
158 "(...)segundo me parece que o Poeta queira nestes versos descrever através das estrelas que são longas meio palmo, e grossas como uma ameixa Catalã, que parecem coisa fora do
o pólo do outro Firmamento, e não duvido até aqui que aquilo que ele diz não se eleve á natural. " Op. cit., p. 71.
verdade." Op. cit., p. 54. Idem. 164 Op. cit., p. 72.
159 .0p. cit., p. 57. 165 Op. cit., p. 81.
160 Cf., op. cit., p. 57.
166 Op. cit., p. 82.

50 51
paragens climáticas nas quais está situada 167 ,atitude que não o impediu aquele costume tão-somente aos despojos de guerra. Há outras
de olhar a terra também como mercadoria rentável, para a coroa informações inéditas sobre os costumes de homens de liberal e formosa
lusitana 168 . face, que viviam segundo a natureza, isto é, sem rei, sem império, e cada
Sobre a Mundus Novus (1503 ?) e a Lettera (1504) recaíram, com um se manda, é senhor, é que essa liberdade de ação forjava o
ênfase maior que sobre a segunda carta (1502 ?) e a fragmentada (1502 ?), envilecimento dos hábitos, transformando o campo de ação em
as suspeitas de documentos apócrifos. Esse dado não será levado em Sodomas e Gomorras, com a prática da poligamia e do filho que se
consideração, mas o fato de que ambas foram impressas e reimpressas mistura com a mãe, e o irmão com a irmã, e o primo com a prima, e o
em várias línguas, muitas delas ainda estando vivo Vespucci. O im- encontrado com a que encontra, hábitos incrustados em uma natureza
portante é a grande popularidade que os textos gozaram em várias épo- paradisíaca. A libidinagem das mulheres forçava os homens a engrossar
cas, auxiliando a construção do antimundo pelo imaginário europeu. anormalmente o pênis com a mordida de animais venenosos; e por causa
A Mundus Novus é diferente das outras cartas — inversão de dessa coisa muitos deles o perdem e ficam eunucos. O perigo que essas
períodos. frasais, invocação maior do nome de Deus. Dividida em Evas tentadoras representava para os homens sem leis era a beleza física
pequenos capítulos intitulados, é também endereçada a Lorenzo de
saudável, independemente de serem virgens ou mães, e o asseio
Medici; trata da viagem lusitana ao que seria o Brasil e nomeia as terras
visitadas de Novo Mundo. E atribuído a Deus o milagre da descoberta corporal, motivo pelo qual com os cristãos se unir podiam, pela sua
e quem participa dessa experiência é um grupo renascido de deses- demasiada libido conduzidas, toda sua pudicícia contaminavam e deita-
perados já quase sem água e lenha, até então perdidos em um mar vam. A fauna são adicionados ursos e aquelas horríveis e disformes
tenebroso. Surgindo das trevas de terríveis tempestades do mar e do céu feras 172 , sem que nada mais seja dito sobre elas. O antropófago, que na
quis o Altíssimo diante de nós mostrar o continente e novos países e um segunda carta comera mais de duzentos corpos, degusta mais de
outro incógnito mundo 169 . O fascínio da visão inaugural completa-se trezentos na Mundus Novus. Na segunda carta um nativo aparece com
com o prodígio da terra e a temperança do ar. Terras e céus — o alto e talvez tendo cento e trinta e dois anos de idade, longevidade aumentada
o baixo — se encontram na diversidade do espetáculo novo e se unem para cento e cinqüenta na Mundus Novus173 .
em um todo harmonioso de vales, rios, montes, selvas, fontes, colinas, Uma carta que atribui a Deus o milagre da descoberta do Novo
distribuídos em espaços ilimitados, ocupados por homens, feras, raízes Mundo não poderia aceitar monstruosidades corporais em adamitas
curativas e alimentícias, mares piscosos, árvores frutíferas, ouro, como criação divina. E um corpo destruído, enfeiado, animalizado,
pérolas. A ante-sala do Éden tem sua antítese no Velho Mundo 170. uma vez que se furam as faces e os lábios e as narinas e as orelhas; (..) e
Nas primeiras linhas da Mundus Novus é atestada a supremacia mutilam eles estes furos com pedras azuladas, marmóreas, cristalinas e de
populacional e avariedade racial e animal do Novo Mundo sobre a
alabastro belíssimas e com ossos branquíssimos (..) a qual coisa (..) tão
Europa, Asia e África. A descrição dos nativos assemelha-se à da se-
insólita e a um monstro símile, isto é um homem o qual tem nas faces
gunda carta, mas sobre o costume da antropofagia há acréscimos; o
autor viu o pai comer os filhos e a mulher e a carne do inimigo era somente e nos lábios VII pedras, das quais muitas são do tamanho de meio
saborosíssima 171 , quando, na realidade, na outra carta o autor restringira palmo (..) sem contar que em cada orelha de III furos furados têm outras
pedras pendentes f.m anéis; e este costume só é dos homens 174. A decadência
167 Op. cit., p. 73.
das mulheres dá-se em outro nível. A nudez feminina não recebe mais
168 " Encontramos aqui uma infinidade de pau-brasil e muito bom para carregar quantos
o atributo que aparecia nas outras cartas — a inocência, a naturalidade;
navios existam hoje no mar, e sem custo algum, e do mesmo modo de Cássia fistulosa.'
Op. cit., p. 73. aqui é colocada como tentação dos homens, o que em última análise
169 Op. cit., p. 91. pode significar a remissão do pecado cometido pelos europeus ao se
170 "E descobrimos nela muita gente e povos e todo gênero de animais silvestres que nos
deitarem com as ameríndias.
nossos países não se encontram, e muitos outros por nós nunca vistos (...) E certamente se
o paraíso terrestre em alguma parte da terra existir, não longe daquelas regiões estará
distando estimo. (...) o lugar (...) é para o meio-dia, em tanta temperança de ar que lá nem 172 Op. cit., pp. 93-4-5.
invernos gélidos nem verões quentes jamais existem. ' Op. cit., pp. 92 e 96. 173 Cf. op. cit., pp. 72-3 e 95
171 Op. cit., p. 94. 174 Op. cit., pp. 93-4.

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Os significados diferentes e gradativos atribuídos à expressão aparelhado para as refeições 177 , assim está escrito na primeira carta de
Paraíso Terrestre vão se dar em contextos estáticos de uma natureza 1500, em flagrante descompasso com o resumo da Lettera. Naquela
perenemente verde, de ar puro e bonançoso. Estão nas cartas de 1500, também está dito que os nativos foram roubados, preados e vendidos;
na de 1502 e na Mundus Novus. Inexistem no fragmento da terceira nesta, ao mesmo ato é dado o nome de despojos de guerra 178 . Reitera
carta e na Lettera. Confronte-se pensávamos estar no Paraíso terrestre na Lettera e faz o mesmo nas outras, que eram gente que não formava
com em mim pensava estar perto do Paraíso terrestre e ainda E certamente um grupo social regido por leis, dirigentes, religião, mas aqui adiciona
se o paraíso terrestre em alguma parte da terra existir, não longe daquelas que não se pode dizê-los Mouros, nem Judeus, e piores que Pagãos 179 , o que
regiões estará distando estimo 175
significaria dizer, principalmente se se atentar à gradação étnica, racial,
A visão inaugural do primeiro documento transmite a idéia de ir do pior à anulação total na concepção ibérica da época. Esse
entrega, enlevo e união com algo talvez perdido na infância do mundo, acréscimo vai permitir supor que os antípodas eram adamitas normais
e que é resgatado naquele momento epifânico de estar no Paraíso
fisicamente, mas anormais enquanto gênero humano — era uma raça
Terrestre. A substituição do estado de beatitude pelo distanciamento
sem qualificativos —, conteúdo que embute as concepções medievais
ocorre à medida que o viajante ou copista se familiarizam com o novo,
e então o delimitam com barreiras espaciais. Mas o distanciamento tem das monstruosidades indicas, encobertas agora pela inexistência
também outro significado. A proporção que as diversidades raciais e formalizada de uma sociedade constituída aos moldes europeus,
culturais se tornam presentes, o estrangeiro perde o referencial familiar, gradação que permite reconhecer o mouro, o judeu e o pagão como
o paradigma norteador que lhe possibilitaria a compreensão do novo, grupos societários. Ou, em outros termos, o europeu objetivamente
instalando em seu lugar o estranhamento de tais costumes bárbaros, reconhece a existência dos antípodas, mas subjetivamente a renega, in-
isolando-se, enquanto raça, de tais selvagens e afastando dali o local clusive a alcunha inaugural de selvagem coloca-o à margem do processo
paradisíaco, bíblico, familiar. E o novo é o outro. E a procura por um de humanização pelo qual estava passando a Europa renascentista.
jardim de delícias perdido, in illo tempore, recomeça. Inegavelmente, a riqueza dos dados etnográficos deste do-
O documento que resume as quatro viagens é a Lettera, dirigida cumento sobrepuja as informações sucintas contidas na primeira
ao gonfaloneiro de Florença, Piero Soderini, que chefiou a derrubada viagem, mas no resumo dessa mesma viagem na Lettera, outra vez o
dos Medici. Nesta, o autor solicita que a leitura seja feita como autor se socorre da expressão "bárbaros costumes" ao referir-se à
passatempo nos intervalos dos negócios públicos ou como digestivo antropofagia dos autóctones 180 . Muitos outros fatos são narrados pela
após as refeições. Desculpa-se antecipadamente se o documento apre- primeira vez nessa carta: é o exemplo da emboscada armada pelos
sentar prolixidade e justifica o motivo de haver optado pela aventura, nativos; o das mulheres oferecidas, em sinal de amizade, para o deleite
que na realidade vem a ser um bem perene, porque a experiência não sexual dos europeus; o dos visitantes europeus transportados em
pode ser roubada ou perdida pelos azares do comércio, atividade que redes 181 ; o das mulheres mais fortes que os homens, carregando
Vespucci considera ultrapassada e defasada diante das possibilidades que mantimentos em período de guerra, uma carga, que não leva-la-á um
se abriam para o homem com a descoberta do antimundo. O autor se homem, trinta, ou quarenta léguas; os diversos modos de bárbaro e
coloca como um homem dos tempos novos, modernos, ante a tran- inumano enterro; o da guerra com os europeus, em que os vencidos,
sitoriedade do poder material. Opta pelo enriquecimento cultural que pintados e emplumados, e era coisa bem estranha vê-los; o dos fetos
poderá se solidificar pela eternidade da fama. abortados pelas mulheres desafeiçoadas e cruéis, que se aborrecem com os
A Lettera trata da alimentação, do nascimento, da morte, da seus maridos (..) e por essa causa se matam infinitas criaturas; o do
guerra, da medicina do autóctone, da cosmografia e da geografia. Na batismo dos nativos, que passam a chamar o europeu de Carabi, que
primeira jornada, o autor critica o modo "bárbaro" de comer dos
nativos — sem horário estipulado, sem local apropriado, sem mesas,
sem toalhas 176. E nos levaram às suas casas, onde tinham tudo muito bem 177 Op. cit., p. 57.
178 Cf. op. cit., p. 119.
179 Op. cit., p. 110.
175 Op. cit., pp. 53-69-96, respectivamente. Grifos meus.
180 Op. cit., p. 112.
176 Cf. op. cit., p. 109.
181 Cf. op. cit., pp. 113 e 115

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quer dizer Homens de grande sabedoria 182 ; as ervas curativas, o Há uma mudança de significado na relação homem e natureza.
sangramento, o banho frio para baixar a febre 183 e ainda outras Em nenhum dos textos escritos ou atribuídos a Vespucci, excetuado o
informações sobre as danças, higiene corporal etc. da primeira jornada da Lettera, vai aparecer a frase vivem, e se
A fauna do antimundo, nessa carta, não é muito diferente da contentam com aquilo que lhes dá a natureza) . " Este é o primeiro
índica. Ora é um animal que parecia uma serpente, salvo que não tinha indicativo da preguiça, da indolência do nativo no Novo Mundo. A
asas, assado para servir de alimento, ora serpentes vivas amarradas pelos indolência é um dos pontos constitutivos da teoria do determinismo
pés, e tinham .uma corda em torno do focinho, que não podiam abrir a geográfico desenvolvida posteriormente. A preguiça será também usada
boca, como se faz aos cães alanos, para que não mordam; eram de tão como uma das justificativas da empresa colonialista em terras bra-
veemente aspecto, que nenhum dos nossos ousava tocar uma, pensando que sileiras, amazônicas, vista como um dos entraves de transformação
eram venenosas; são do tamanho de um cabrito e de comprimento braça regional. Trará também a idéia da inferioridade racial do norte
uma e meia; têm os pés longos e grossos e armados com fortes unhas; têm a brasileiro. Na Lettera, o olhar mercantilista está justificando a falta de
pele dura, e são de várias cores; o focinho e cara têm de serpente; e do nariz cobiça pelas riquezas que nesta nossa Europa e noutras partes usamos, como
sai deles uma crista como uma serra, que passa pelo meio do dorso até a ouro, jóias, pérolas e outras divisas, não as têm em coisa alguma, e ainda
ponta da cauda; em conclusão julgamo-las serpentes e venenosas, e comiam- que nas suas terras as possuam, não trabalham para as ter, nem as estimam.
nas. A cobra da carta de 1500 não é colocada no espaço familiar, como São liberais no dar, que por maravilha negam alguma coisa, e em
a serpente da Lettera; foi vista rym dia terra adentro e era longa obra de compensação liberais no pedir. O que a Lettera quer passar é a noção de
oito braços, e grossa como eu na cintura 184 um nativo que não merece ter como usufruto pessoal as dádivas
Nas maravilhas e monstruosidades da Índia as feras estavam naturais oferecidas pela terra. E na construção da natureza pela mente
restritas aos espaços da natureza. Pode-se presumir que o convívio Com renascentista não faltam o alimento e o enlevo, a placidez e a beleza, a
esse híbrido ameríndio é quase uma transferência, sem ser explicitada, é temperança e a salubridade, a saúde e a longevidade, antíteses do Velho
uma alusão à natureza mostruosa do "selvagem", de seus costumes Mundo ironizado por Vespucci na carta de 1502. Ele diz: em 10 meses,
"bárbaros", fundidos — homem e besta — no mesmo espaço familiar. não só nenhum de nós morreu, mas poucos se adoentaram; como disse, eles
O que não deixa de ser uma imagem dupla do europeu diante do vivem muito tempo e não sentem enfermidade, ou pestilência, e de cor-
outro. Julgando, ou melhor, nomeando e qualificando o animal de rupção no ar, senão de morte natural ou causada pelas suas mãos, ou culpa,
" serpentes e venenosas", exorcizava o novo, o que o amedrontava, o
e em conclusão, os médicos teriam uma má estadia em tal lugar. 186
que o obrigava a reconhecer a inoperância de seu conhecimento, a sua As cartas anteriores à Lettera mostram um nativo que pesca, que
inferioridade; por outro lado, a localização da fera que é domesticada e constrói sua morada, que prepara sua comida e os comentários que
que servirá de alimento — "e comiam-nas" -- dentro da habitação, do
acompanham cada uma dessas atividades são, muitas vezes, tentativas
nativo, é aproximar a natureza do outro, nivelando-a ao animalesco; ao
de entendimento da variedade dos costumes 187 . O pouco consumo de
mesmo tempo em que o estrangeiro se distancia, pelo confronto
carne de origem animal é conseqüência da falta de armas e de cães que
constrói a supremacia de sua raça.
auxiliassem o nativo a penetrar nos bosques que são cheios de feras
A introdução da antropomorfia, a recorrência ao envilecimento
cruéis 188 . Esses homens moram em comum em casas feitas à moda de
da natureza feminina na tessitura imagística dessa primeira jornada,
cabanas muito grandes, e para gente que não tem ferro, nem outro metal
aliada ainda à domesticação das serpentes, pode levar à suposição de
qualquer, se pode dizer as suas cabanas, ou casas maravilhosas. (..) Dormem
que o autor estava construindo a imagem bíblica do Paraíso depois do
em redes tecidas de algodão (..), as suas comidas, raízes de ervas, e frutas
pecado cometido por Eva, em co-autoria com a serpente, simbolizada
pela luxúria e prevaricação dos costumes e elemento desordenador do
185 Op. cit., p. 111. Grifos meus.
que poderia ter sido um viver [saudável] segundo a natureza. 186 Op. cit., pp. 111 e 73.
187 " Muito me esforcei em entender a sua vida, e costumes. " Op. cit., p. 71.
182 Op. cit., pp. 109, 111, 119, 110, 117. 188 op. cit., p. 71. "Não são caçadores, penso, porque havendo ali (...) animais silvestres,
183 Cf. op. cit., pp. 111-2. (...) inumeráveis serpentes (...), selvas grandíssimas (...), e sem garantia alguma e armas
184 Op. cit., pp. 114, 57-8. exporem-se a tantos perigos. » Op. cit., p. 95.

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muito boas, inúmeros peixes, grande abundância de mariscos; (..) quando À gradativa animalização dos nativos corresponde o progressivo
podem ter outras carnes de animais, e de pássaros, comem-nas 189 . Mesmo endeusamento dos europeus nos embates bélicos, no resgate de nativos
na primeira jornada da Lettera, o autor provou dos pães de peixe pacíficos das mãos dos canibais. Estes, principalmente, pois se recu-
confeccionados pelos mesmos nativos que se alimentavam daquela savam a contactar com os estrangeiros ou, quando o faziam, a seguir
monstruosidade índica 190 . fugiam, o que nos pareceu inteiramente bárbaro ato, que julgamo-los gente
A relação europeu e nativo, na Lettera, passa por alterações de pouca fé e de má condição. Os outrora pacíficos gigantes agora atiram
substantivas. Muitos dos grupos visitados tornaram-se amigos dos flechas nos europeus, e nos meteram em tanta perturbação que melhor
estaríamos por vontade nas naves a nos encontrarmos com tal gente. (..) e
europeus, mas a grande maioria recebe uma interpretação estigma-
falavam entre si de um som, como se quisessem nos meter as mãos.
tizadora. O primeiro contato — e descobrimos ser habitada de gentes, que
Três "cristãos" são emboscados e os nautas presenciam a morte
eram piores que animais — vai gerar o modelo para avaliações
de um deles, traiçoeiramente abatido a pauladas por uma mulher. As
posteriores — da mesma cor e feição que os outros passados -191, ou será
outras rapidamente o esquartejaram e a um grande fogo que tinham feito,
uma descrição que ressalta a monstruosidade corporal: em uma ilha
o estavam assando sob a nossa vista, mostrando os muitos pedaços, e os
comendo; e os homens nos fazendo sinais com seus acenos de como tinham
encontramos nela a mais bestial gente e a mais feia que morto os dois Cristãos, e lhes comido 193 .
jamais se viu, e,era desta sorte. Eram de gesto e rosto muito Cento e quarenta léguas adiante, os estrangeiros permanecem
feios; e todos tinham as bochechas cheias por dentro de uma durante cinco dias em um local onde achamos a gente ser de melhor
erva verde, que continuamente ruminavam como animais, condição que a passada; e ainda que nos tenha sido trabalhoso domesticá-la,
que mal podiam falar, e cada um tinha no colo duas cabaças não obstante nos fizemos, amigos. Dali são levados para Portugal dois
secas, que uma estava cheia daquela erva que mantinham na nativos como intérpretes, e mais três como voluntários. Agora, os
boca, e a outra de uma farinha branca, que parecia gesso em nativos se maravilhavam da nossa efígie e da nossa brancura194 e
pó, e de quando em quando com um fuso que tinham, acreditavam que os europeus tinham vindo do céu, inclusive para
molhando-o com a boca, o metiam na farinha; e depois o protegê-los dos inimigos antropófagos.
metiam na boca de um e outro lado das bochechas, enfa- A descoberta da América, assevera Todorov, ou melhor, dos
rinhando-se a erva que tinham na boca; e isto faziam muito americanos, é sem dúvida o encontro mais surpreendente de nossa história.
amiúde; e maravilhados de tal coisa, não podíamos entender Na `descoberta' dos outros continentes e dos outros homens não existe,
esse segredo, nem a que fim assim o faziam. Esta gente logo realmente, este sentimento radical de estranheza. Os europeus nunca
que nos viu, veio a nós tão familiarmente, como se hou- ignoraram totalmente a existência da África, ou da Índia ou da China, sua
véssemos tido com eles amizade: (..) a água que bebiam era lembrança esteve sempre presente, desde as origens. A Lua é mais longe do
de orvalho que caía de noite sobre certas folhas, que pareciam que a América, é verdade, mas hoje sabemos que aí não há encontro, que
esta descoberta não guarda surpresas da mesma espécie. Para fotografar um
orelhas de asno (..). Não tinham povoados nem de casas nem
ser vivo na Lua, é necessário que o cosmonauta se coloque diante da
de cabanas, exceto que habitavam debaixo de caramanchões
câmara, e em seu escafandro há um só reflexo: o de um outro terráqueo. No
(..); quando estavam no mar pescando, todos tinham uma
início do século XVI, os índios da América estão ali, bem presentes, mas
folha muito grande e de tal largura, que aí estavam debaixo
deles nada se sabe, ainda que, como é de se esperar, sejam projetadas sobre os
dentro da sombra, e fincavam-na na terra. 192
seres recentemente descobertos imagens e idéias relacionadas a outras
populações distantes. 195
189 Op. cit., p. 71. Segunda carta.
190 Cf. op. cit., p. 114. 193 Op. cit., pp. 121, 124, 128.
191 Op. cit., pp. 126 e 127. 194 Op. cit., pp. 128 e 117.
192 Op. cit., pp. 122-3. 195 Todorov. Op. cit., pp. 5-6.

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EM QUE SUCINTAMENTE SE MOSTRA COMO O EUROPEU partido diante de questões mais delicadas. Vale-se das notícias americanas
para tornar mais aceitáveis e compreensíveis os textos clássicos. A América
CULTO RECEBEU AS NOTICIAS SOBRE A NATUREZA E O
HOMEM DO ANTIMUNDO lhe serve para colocar apostilas marginais nos textos da literatura grego-
latina. 199 Pesquisador de gabinete, utilizou o método comparativo — já
tinha estado no Egito — e o empirismo experimenta1 200 . De
O canal irradiador das notícias do Novo Mundo foi a Espanha, "etnógrafo " é alçado a "Tito Lívio da historiografia americana". As
apesar de, só tardiamente, os espanhóis virem a tomar conhecimento histórias que' ia imprimindo nas páginas de suas Décadas eram
do que se passava nas Indias Espanholas. Durante decênios depois do depuradas das hiperbólicas descrições dos viajantes. Pesava os absurdos,
regresso da `Nina' a Palos — até 1535, o ano em que se publicou a História confrontava com os textos familiares eruditos, questionava a ume a
general y natural de las Indias de Oviedo —, a única relação da navegação outro, como ocorre com as Amazonas, onde externaliza seu ceticismo.
e dos descobrimentos. de Colón, estampada em uma edição acessível aos Os índios o interessam como curiosos exemplares da natureza, o
espanhóis, se encontrava nas Décadas latinas de Pedro Mártir. 196 As cartas entusiasmam como paradigmas de ingênua virtude, porém, ao mesmo
tempo, o movem a sincera comiseração quando são vítimas, e os elogios
dos recém-chegados geralmente tinham como destinatário alguma
pessoa culta na Itália. Lorenzo de Medici foi o interlocutor atento e imparciais quando saem vitoriosos dos espanhóis. 201
Oviedo, à semelhança de Martire, teve suas obras — Sumario de
curioso de Vespucci e um grupo de escritores e estudiosos, entre eles
Ramusio, residentes em Veneza, Pádua e Verona, varões cheios de la natureza historica de las índias (1525) e Historia general y natural de las
curiosidade, mais ainda, de um ardente interesse científico pelos fenômenos índias (1535) — traduzidas em diversos idiomas. Lidas e/ou citadas por
físicos e as surpreendentes populações do Novo Mundo 197 , estimularam Darwin, Humboldt, Diderot, De Pauw 202 , a tese de Martire difere da
Oviedo a dar prosseguimento à sua primeira obra Sumario de la natural dos naturalistas que diziam que a América se caracterizava pela antítese
historia de las índias (1526). As cartas, as relações que tratavam do Novo de uma flora exuberante e uma fauna exígua; ele, pelo contrário, via
Mundo eram avidamente lidas por um público cada vez mais sequioso nisso a mais feliz natureza do Novo Mundo203 , visão que foi aceita por
Darwin; Humboldt diz que Oviedo e o padre Acosta fundaram o que
de notícias. Foi a partir dos dados oferecidos por Gonzalo Fernández
de Oviedo que Ramusio publicou um mapa do Novo Mundo que não só hoje se chama física do globo; De Pauw, um dos que polemizaram com
era um dos mais perfeitos desse século, mas apresenta uma novidade Buffon, assegura que a notícia da descoberta de um outro hemisfério
sensacional para a época (..): a divisão do mundo em dois hemisférios, um espantou extremamente a Europa... Cada um quis ver as relações... mas
Acosta e Oviedo se distinguiram entre os primeiros que as publicaram,
para o Velho e um para o Novo Mundo. (.) pela primeira vez se reconhecia
no continente americano uma dignidade geográfica comparável à do Velho porque eles deram observaões sobre o reino animal. 204
Mundo(..) 198 Funcionário das Indias Novas, como alcunha Gerbi às Índias
Ocidentais espanholas, Oviedo viu no mundo recém-descoberto um
Pietro Martire d'Anghiera e Gonzalo Fernández de Oviedo
complemento e não a antítese do Velho Mundo. A natureza é magni-
foram os dois historiadores, segundo Gerbi, mais importantes do Novo
Mundo. Anghiera nunca esteve no Novo Mundo, mas foi o cronista ficada por ele em suas obras muito lidas por médicos, naturalistas,
por excelência das Índias Novas. O distanciamento entre Pietro Martire geógrafos e historiadores. Graças a Oviedo, a Europa tomou conhe-
e o Novo Mundo apresenta-se como um fator importante na avaliação cimento das primeiras descrições científicas das árvores produtoras do
dos relatos dos recém-chegados. Conversou com Colón, Vespucci, os látex, do tabaco, de essências medicinais e dos vegetais comestíveis. O
irmãos Pinzón, Ovíedo e quem chegasse, questionava, provava dos método de classificação do reino animal é o de aproximações sucessivas:
frutos trazidos, analisava os animais, as pedras, avaliava as histórias 199 Id., op. cit., pp. 79-80.
narradas e apresentava sua versão. Extremamente cético, não tomava 200 Cf. op. cit., pp. 80-83.
201 Op. cit., pp. 66 e 74.
202 Cf. op. cit., pp. 72-84 e 155.
196 Gerbi. Op. cit., pp. 143-4.
203 Op. cit., p. 92.
197 Id., op. cit., p. 194.
204 Op. cit., p. 155.
198 Id., op. cit., p. 196.

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primeiro uma grosseira assimilação, depois uma distinção particularizada — recém-chegados, nem sempre coincidem, principalmente quando se
que não só servia de eficacíssimo estímulo à curiosidade européia (a qual no trata da natureza ou dos nativos. São visões utilitaristas, edênicas,
primeiro momento se mostrou lenta em interessar-se pelas particularidades europocentristas, ambíguas, benevolentes, infernistas. A carta-relação
do Novo Mundo, inclinada como estava a vê-lo in toto, como natureza (1493-4) da segunda viagem de Colón escrita pelo médico Alvarez
virgem e prodigiosa opulência), e que não só era o único possível para Chanca, lida e aproveitada por Andrés Bernáldez, ficou inédita até o
representar às mentes européias a fauna e a flora de tão novas regiões, mas século passado 212 . Ela realça a pujança da flora e a vileza dos nativos,
que antecipa (..), em forma empírica e grosseira os métodos mais modernos inquilinos de casas insalubrés "bestialmente edificadas", comedores de
e rigorosos de classificação por afinidades genéricas e diferenças quantas cobras e lagartos e aranhas e quantos vermes encontram no solo,
específicas. 205 assim me parece que é maior sua bestialidade que de nenhuma besta do
Oviedo deslumbra-se com a floresta virgem cheia de mis- mundo 213 .
térios 206 e a doçura sempre igual do clima primaveril. Diversas vezes Outro que também participou da segunda viagem de Colón,
fala da umidade, sem deprecia-la, como o será no século XVIII, se Michele de Cuneo, endereça uma carta (15-18.10.1495) a Gerolamo
encontra na repetida, insistente afirmação da extremada umidade das Annari, onde a tônica recai na utilidade das plantas e no realismo às
Indias207. Sobre a natureza, as plantas, especificamente, o que é mais de vezes cru, como interpreta Gerbi, ao retratar o nativo, praticante da
espantar é que nenhuma coisa vemos inútil nem que deixe de ser necessária, sodomia, vício adquirido dos canibais. Todos falam a mesma língua,
só aquelas de que os homens ignoram seus segredos e a força da natureza são imberbes, têm a mesma predileção alimentar que os nativos do Dr.
nelas, ou para que são apropriadas todas estas coisas 208 . A obra de Gonzalo Chanca, motivo de não serem libidinosos e, por tudo isso, não valem
de Oviedo é, na realidade, uma suma naturae, onde estão especificadas, grande coisa mais que como escravos214 . Os poucos animais, a variedade
entre outras, a natureza do solo, dos minérios, das plantas, sua vegetal e os nativos são grosseiramente sistematizados na carta que tem
utilidade terapêutica. a singularidade de ser a primeira manifestação de história geral das
Oviedo se vale várias vezes do testemunho de Plínio para fazer mais Índias 215 .
críveis a seus leitores a natureza que ele tem ante seus olhos 209 , e admite a Os espanhóis vindos do Novo Mundo forneceram as infor-
geração espontânea, acredita nas histórias fantásticas, como a das fontes mações para a carta De insulis meridiani atque Indici maris nuper
termais que cozinham o peixe tanto como se tardará em dizer duas vezes inventis (13.12.1494), do médico Nicola Scillacio a Ludovico di More.
o credo, e os ovos antes que se diga a metade da ave maria se cozem 210 . O destaque fica para a geografia, a cosmografia e a potamologia. Saber
Gerbi chama a atenção para o fato de que como nas questões de história a origem dos rios era ainda um problema irresolvido, daí o apelo
natural Oviedo se destaca de seus contemporâneos sobretudo por aquilo que bíblico dos cronistas para explicar o fenômeno. Scillacio se impressiona
não disse pela escassez de histórias prodigiosas de animais, ou virtudes com a natureza que não viu, com as plantas aromáticas que não
prodigiosas de ervas, em uma palavra, por sua sã desconfiança científica, cheirou, com o sabor das frutas que possivelmente não provou e
assim também, no que se refere a temas místico-religiosos, Oviedo se certamente com o mutismo dos cães que não ouviu. A natureza é débil
distingue por uma atitude de reserva raiando a incredulidade. 211 e os homens imberbes se dividem em pacíficos e canibais. A finalidade
Os textos produzidos na Espanha após Colón e Vespucci pelos prática acompanha a Suma de geographia (1519) de Fernández de Enciso.
viajantes de outras expedições ao Novo Mundo ou, ainda, a exemplo Redigida em espanhol, devia servir de guia aos pilotos e navegantes, e de
de Martire d'Anghiera, os que escreveram a partir do relato oral dos instrução ao jovem e ignorante Carlos 1/ 216. Enciso era um homem
letrado. Jurista, combateu sob as ordens de Hojeda nas Indias.
205 Op. cit., p. 338.
206 Cf. Gerbi, op. cit., p. 350.
207 Op. cit., p. 349. 212 Cf. Id., op. cit., p. 37.
208 213
Oviedo apud Gerbi, op. cit., 336. Chanca apud Gerbi, pp. 39-40. Grifos no original.
209 Op. cit., p. 79. 214 Gerbi, op. cit., p. 48.
210 Oviedo apud Gerbi, op. cit., p. 371. 215 Salas Alberto M. apud Gerbi, op. cit., p. 46.
211 Gerbi, op. cit., p. 371. Grifado no original. 216 Gerbi, op. cit., p. 98.

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uma regulamentação racional do fluxo mineral e cultivo da terra 222 .
Benevolente, os nativos são boa gente, ainda que desnuda 217 , no entanto Foi gerado um clima de controvérsias, principalmente devido à nomea-
defendeu a posse legítima das terras conquistadas. A Suma de geographia ção equivocada da fauna e flora; acrescente-se, ainda, as descrições dos
é o inventário de quanto pertence a Carlos, de fato e de direito, e o
costumes dos nativos serem contraditadas nas Memórias, nas Relações
programa particularizado de suas próximas conquistas e anexações. 218 A
etc., de pessoas que haviam estado lá ou que teorizavam sobre os textos
visão da natureza equinocial ombreia com o fantástico da antiga e
largamente difundidos em solo europeu. Teorizar sobre o Novo
medieval, pois há muitos monstros e homens com cabeças de cães, porém Mundo, em uma certa medida, significou estar refletindo sobre o
não é de crer 219 . Apresentar, negando, é o artifício que Enciso utiliza ao
tratar a natureza. Fala das Amazonas, da árvore que incha o rosto, dá mundo contemporâneo, um mundo que ainda não esgotara a possi-
dor de cabeça e até cega quem aproveitar sua sombra para dormir. bilidade de aventar novidades. O Renascimento avivou o que era por
Os pontos em comum das diversas cartas-relações que per- demais conhecido na Antigüidade, ou seja, a teoria climática, que
correram a Europa falavam do clima invariável, doce e primaveril, da pressupunha uma conexão entre clima e caráter ou humores corporais,
umidade do ar, da enorme quantidade de insetos e répteis gigantescos, entre clima e animais. O clima podia explicar a bravura, a preguiça, a
dos metais preciosos, da flora magnífica e da falta de animais de porte tendência para a meditação de certos povos. Jean Bodín — Methodus ad
grande como os africanos, das Amazonas, das guerras, da inexistência facilem historiarum cognitionem, 1566, e La République, 1579 — iniciou,
de pêlos no corpo dos nativos, da antropofagia, da frigidez e/ou sen- com os teóricos franceses, a moda da idéia do determinismo geo-
sualidade, vigor e/ou debilidade do autóctone. São temáticas variadas, gráfico 223 . Gerbi adianta que Bodin não estigmatizou nem mitificou o
com pujança descritiva capaz de atender a todos os gostos. Eis aí as Novo Mundo. Simplesmente reconheceu a unificação do mundo. Pelo
informações, novíssimas algumas, auxiliadas por descrições inéditas, comércio, todos os homens são ligados entre eles e participam maravi-
outras forjadas ainda na tradição escolástica, e ainda outras onde rever- lhosamente da República universal, como se não formassem senão uma só e
beravam as vozes distantes do classicismo greco-latino. No fundo, o que mesma cidade. Se Bodin ironizou em sua República os que acreditavam
isto reflete é o paradoxo histórico de que a tarefa de dar o passo decisivo para que o gênero humano não pare de degenerar 224 , por outro lado, suas
a difusão mundial da civilização da Europa haja caído por acaso em um dos observações incidentais sobre a degenerescência de animais, plantas e
países menos avançados do Ocidente europeu. (..) Bem pouco era o que homens, ao serem transladados para ambientes não autóctones, exerce-
vibrava a massa do povo, miserável, cansado, ignorante. Os aventureiros ram enorme influência posteriormente, sobremodo nas reflexões de
emigravam ao Novo Mundo para fugir da pobreza da Espanha: eram uns Buffon acerca da natureza do Novo Mundo.
evadidos na mesma medida que uns conquistadores. 220 Michel de Montaigne não foi propriamente um apólogo do
Os pensadores europeus não ficaram imunes á descoberta do Novo Mundo. No ensaio Dos canibais (1580), questiona a visão dos
antimundo. As investidas dos apologistas, os críticos contra-argu- memorialistas, pessoas dotadas de finura observam melhor e com mais
mentavam; outros houve que simplesmente viam na unificação do cuidado as coisas, mas comentam o que vêem e, a fim de valorizar sua
mundo as possibilidades que se abriam para o alargamento das relações interpretação e persuadir, não podem deixar de alterar um pouco a verdade.
comerciais. Em certa medida, isso era contraditado pelo espírito das Nunca relatam pura e simplesmente o que viram, e para dar crédito à sua
leis que atribuíam ao ouro e á prata uma riqueza de ficção ou de maneira de apreciar, deformam e ampliam os fatos. A informação objetiva
símbolo 221 , pois o grande afluxo de um metal desvalorizava-o e o nós a temos das pessoas muito escrupulosas ou muito simples, que não
manipulador é escravizado pelo objeto se, concomitantemente, não há tenham imaginação para inventar e justificar suas invenções e igualmente

217 Enciso apud Gerbi, op. cit., p. 104. 222 Cf. idem, ibidem, pp. 328-9.
218 Gerbi, op. cit., p. 100. 223 Antonello, Gerbi. La disputa del Nuevo Mundo. História de una polémica 1750.1900). 2'
219 Encisa apud Gerbi, op. cit., p. 106. Grifado no original. ed., México, Fondo de Cultura económica, 1982, p. 49. A letra "b" acompanhará a citação
220 Gerbi, op. cit., p. 143. ao ser utilizada esta obra de Gerbi.
221 Montesquieu, Charles-Louis Secondat de. O espírito das leis. São Paulo, Abril Cultural, 224 Bodin apud Gerbi (b), op. cit., p. 51.
1973. Os Pensadores, v.XXI, p. 328.

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que não sejam sectárias. 225 A seguir, calcando-se nas informações de um que elegeram a si próprios como modelo de sociedade perfeita. No
homem recém-chegado do Novo Mundo, simples e grosseiro de espí- entanto,
rito 226 , faz digressões sobre o qualificativo de bárbaro ou selvagem
atribuído ao nativo do antimundo. Compara os costumes, os frutos, e é natural, porque só podemos pregar da verdade e da razão
elege as leis naturais como o modelo ideal de constituição social: de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes
do país em que vivemos. Neste a religião é sempre a melhor,
(..) pois sou de opinião que o que vemos praticarem esses a administração excelente, e tudo o mais perfeito. A essa
povos selvagens, não somente ultrapassa as magníficas gente chamamos selvagens como denominamos selvagens os
descrições que nos deu a poesia da idade de ouro, e tudo o que frutos que a natureza produz sem intervenção do homem. No
imaginou como suscetível de realizar a felicidade perfeita entanto, aos outros, àqueles que alteramos por processos de
sobre a terra, mas também as concepções e aspirações da cultura e cujo desenvolvimento natural modificamos, é que
filosofia. Ninguém concedeu jamais uma simplicidade deveríamos aplicar o epíteto. 230
natural elevada a tal grau, nem ninguém jamais acreditou
pudesse a sociedade subsistir com tão poucos artifícios. E um Montaigne constrói sua República utópica acreditando que a
país, diria eu a Platão, onde não há comércio de qualquer sociedade viciada européia abastardaria a pureza da sociedade natural; o
natureza, nem literatura, nem matemática; onde não se contato com o velho já a contagiaria. A República de Montaigne,
conhece sequer de nome um magistrado; onde não existe superior em diversos pontos á utópica República platônica, é o Paraíso
hierarquia política, nem domesticidade, nem ricos e pobres. Terrestre sem deidades, é a pureza sem o contágio da sociedade cor-
Contratos, sucessão, partilhas aí são desconhecidos; em roída pelos vícios da européia. O contato que mantém com um ca-
matéria de trabalho só sabem da ociosidade; o respeito aos cique, em Rouen, impressiona-o, pela altivez, dignidade e sabedoria
parentes é o mesmo que dedicam a todos; o vestuário, a agri- inatas do nativo, mas o pessimismo se instala imediatamente ao ver três
cultura, o trabalho dos metais aí se ignoram; não usam vinho gentios, na mesma cidade, ignorando quanto lhes custará de tranqüilidade
nem trigo; as próprias palavras que exprimem a mentira, a e felicidade o conhecimento de nossos costumes corrompidos, e quão rápida
traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a calúnia, o será a sua perda, que suponho já iniciada... 231
perdão, só excepcionalmente se ouvem. Quanto a República O elenco de delícias que registra lembra as primeiras cartas de
que imaginava lhe pareceria longe de tamanha perfeição! 227 Vespucci. E quase dialogam. O clima emoldura as delícias do lugar e o
livra das doenças; o que enternece Montaigne é a liberdade vivida por
No diálogo travado com os antigos e os míopes e vaidosos aquela sociedade e, sobretudo, o ócio. Montaigne apresenta sua Re-
autores contemporâneos que dissertaram sobre o Novo Mundo, o pública racionalmente. Nada é de estranhar, tudo tem um motivo,
realce fica para a exemplar e novíssima República dos homens sel- assim como os inquisidores tinham o seu, muito mais bárbaro que o
vagens, gente que não usa calças 228 , desses homens que saem das mãos dos cerimonial antropofágico dos nativos. Montaigne não faz a apologia do
deuses22 . Na construção de sua utópica República, Montaigne deixa Novo Mundo, como muitos o fizeram, infantilizando o homem novo
transparecer sua descrença por um mundo envelhecido regido por leis — Adão nascido sem mácula —, sem vontade própria, sem consciência
e costumes envilecidos devido ao caráter de seus usuários, os mesmos de seu papel no mundo; O autóctone de Montaigne tem dignidade, tem
tradição, tem cultura. E uma sociedade diferente da européia. Nada na
natureza é único; e somente o é em face dos nossos conhecimentos restritos,
225 Montaigne, Michel de. Ensaios. São Paulo, Abril Cultural, 1972. Os Pensadores, v. XI, p. 105. os quais constituem a base defeituosa que estabelecemos e nos levam a uma
226 Id., ib., p. 105. idéia muito falsa das coisas. Assim, julgando-o pela nossa própria debilidade
227 Id., ib., p. 106.
228 Id., ib., p. 110. 230 Montaigne, op. cit., p. 105.
229 Séneca apud Montaigne. Op. cit., p. 106. 231 Op. cit., p. 109.

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e decrepitude, erroneamente deduzimos que o mundo caminha para a somente enquanto adamita não normal e utilizado como exemplo
decadência, diz no ensaio Dos coches 232 . Neste ponto Montaigne se apenas para que ficasse evidenciada a perniciosidade de um Estado não
aproxima de Bodin, como viu Gerbi, pois simplesmente aceita o outro autoritário e não centralizador.
com um olhar novo, aceita a diferença e a constata ao confrontar os Em 1690 a guerra é um assunto que volta a ser utilizado por um
costumes também bárbaros dos europeus. Não me parece excessivo julgar outro pensador, John Locke, ao discorrer sobre a diferença que existe
bárbaros tais atos [o tratamento dispensado aos prisioneiros de guerra do entre o estado de natureza e o estado de guerra. Locke prefigurou a
autóctone] de crueldade, mas o fato de condenar tais defeitos não nos leve à atitude que o século pretendia tomar frente ao problema do ser. (..) E dele a
cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem noção segundo a qual o que não nos é útil não nos é necessário; o
vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar entre suplícios e marinheiro não precisa mergulhar nos abismos do oceano, bastando que os
tormentos e o queimar aos poucos, ou entrega-lo a cães e porcos, a pretexto mapas lhe indiquem os recifes, as correntes e os portos. (..) E dele a idéia de
de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre que o conhecimento não é mais que a relação entre os dados por nós
vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que apreendidos, de que a verdade é a coerência dessa relação. E dele a redução
assar e comer um homem previamente executado. 233 do homem ao homem. Ele está na base do empirismo. 235
Aos poucos os pensadores europeus seguem o exemplo de No século XVIII, Locke foi um dos filósofos mais lidos pelos
Montaigne, incluindo o Novo Mundo em suas reflexões, retirando dali enciclopedistas. A ilustração do europeu passava necessariamente por
o material necessário para sustentações ou exemplificações teóricas. Locke, que saiu das escolas, das Universidades, dos círculos da sabedoria,
Hobbes, por exemplo, em 1651, interpreta a constância das guerras das academias, para ir até junto aos profanos; tornou-se um dos acessórios
interétnicas como produto da inexistência de um Estado centrado na indispensáveis da moda intelectual 236. Locke não somente reconhece no
figura de um dirigente responsável pela manutenção da ordem e da lei autóctone o homem, mas, sobretudo, vê na razão a identificação do
de grupos embrutecidos, irascíveis e irracionais. homem. E é em torno desse núcleo que sua conceituação se distancia
da reflexão de Hobbes sobre a guerra:
(..) não tinham prazer algum da companhia uns dos outros
(..) quando não existe um poder capaz de manter a todos em E nisto temos a clara diferença entre o estado de natureza e o
respeito. Porque cada um pretende que seu companheiro lhe estado de guerra que, muito embora certas pessoas tenham
atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio (..) confundido, estão tão distantes um do outro como um estado
Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal de paz, boa vontade, assistência mútua e preservação está de
exemplo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito um estado de inimizade, malícia, violência e destruição
que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro; mútua. Quando os homens vivem juntos conforme a razão,
mas há muitos lugares onde atualmente se vive assim. Porque sem um superior comum na Terra que possua autoridade
os povos selvagens de muitos lugares da América, com para julgar entre eles, verifica-se propriamente o estado de
exceção do governo de pequenas famílias, cuja concórdia natureza. Todavia, a força, ou um desígnio declarado de
depende da concupiscência natural, não possuem qualquer força, contra a pessoa de outrem, quando não existe qualquer
espécie de governo, e vivem em nossos dias daquela maneira superior comum sobre a Terra para quem apelar, constitui o
embrutecida que acima referi. 234 estado de guerra; e é a falta de tal apelo que dá ao homem o
direito de guerra mesmo contra um agressor, embora esteja
O espanto que o pensador deseja transmitir aos leitores é a em sociedade e seja igualmente súdito. (...) A falta de juiz
medida ideal para que se infira ter havido a aceitação do autóctone comum com autoridade coloca todos os homens em um
232 Op. cit., p. 416.
233 Op. cit., p. 416. 235 Hazard, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. (De Montesquieu a Lessing). 3•
234 Malmesbury, Thomas Hobbes de. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado ed., Lisboa, Presença, 1989, p. 49.
eclesiástico e civil. 2. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1979. Os Pensadores, pp. 75-6. 236 Id., ib., p. 48.

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estado de guerra não só quando há como quando não há juiz matemáticas), apenas se apóiam sobre fatos... Em matemática,
supõe-se; em física, verifica-se e estabelece-se. Ali temos de-
comum. 237
finições, aqui fatos. Nas ciências abstratas vai-se de definição
em definição; nas ciências reais caminha-se de observação em
Locke demole, com seus argumentos, a idéia arcaica que atribuía
observação. Nas primeiras chega-se à evidência, nas últimas à
somente aos descendentes de Adão a primazia do exercício da auto-
certeza. 240
ridade. 238 E, em nome dessa descendência, a emanação do poder. O
estado de natureza para Locke não significa estado de selvageria. E um
Paul Hazard diz que esse trecho extraído da obra De la manière
sinônimo de liberdade que goza o homem racional, que não lhe dá,
de traiter l'histoire naturelle (1747) indicava uma revolução 241 O mais
porém, o direito de destruir a si ou a quem estiver sob sua posse. Esse
representativo gênio científico de sua época, brinda Hazard, 242 autor
estado tem suas leis implícitas que é a razão, atributo humano, tão
da "debilidade" ou "imaturidade" do continente americano, crítico
somente: conseqüente de toda rigidez sistemática, adepto de uma filosofia causalista
da Natureza, antecipador das teorias da variabilidade das espécies,
Pergunta-se muitas vezes como objeção relevante: 'Onde estão
acrescenta Gerbi 243 , e um dos que mais influências exerceu sobre
ou onde estiveram algum dia homens em tal estado de os viajantes e ficcionistas no modo de verem a Amazônia, acres-
natureza?' (..) Referi-me a todos os governantes de comu- centar-se-ia.
nidades independentes, estejam ou não em liga com outros; A História natural de Buffon, êxito imediato logo que publica-
porque não é qualquer pacto que faz cessar o estado de do, se alinha ao pensamento aristotélico e ao escolástico 244 , que
natureza entre os homens, mas apenas o de concordar, mu- apregoava a superioridade do invariável sobre o mutável. A teoria
tuamente e em conjunto, em formar uma comunidade, fun- buffoniana sintetiza o que havia de esparso nas notícias sobre a
dando um corpo político. (..) As promessas e trocas para natureza e o homem do Novo Mundo, e procura resolver questões que
intercâmbio entre dois homens em uma ilha deserta, angustiaram a quantos se debruçaram sobre o problema de um mundo
mencionadas por Garcilaso de la rega, na'história do Peru, tão vasto não ter a correspondência populacional, de o gigantismo das
ou entre um suíço e um índio nas florestas da América, os árvores não corresponder ao dos animais, e o da origem do homem
vinculam, embora estejam perfeitamente em estado de americano. O modelo comparativo não poderia ser outro que o Velho
natureza entre si; visto como a confiança e a manutenção da Mundo.
palavra pertencem aos homens como homens e não como Assim, a teoria de Buffon nasce da necessidade de eliminar a
membros da sociedade. 239 insatisfação provocada pela imperfeita aplicabilidade de conceitos e tipos
zoológicos do Velho Mundo à realidade natural do Novo Mundo. O
Questionando, polemizando, pesquisando, dissecando animais, naturalista francês constata que as espécies animais são diferentes entre
viajando, o homem do século XVIII procura a felicidade e a verdade. os dois mundos, os dois mundos são dessemelhantes e a causa era a
Buffon procura a verdade na física, até então suplantada pela mate- umidade, a temperatura quente e o solo desfavorável que só produzia
mática, herança cartesiana. árvores gigantescas que, por sua vez, impediam que o sol o penetrasse
e a umidade, combinada com o calor, produzia répteis gigantescos e
As verdades físicas (..), não são de modo algum arbitrárias insetos vorazes. Essa natureza hostilizava os animais transplantados da
nem dependem de nós; em vez de se fundarem sobre Europa, debilitando-os, dificultando a aclimatação. A única exceção foi
suposições por nós feitas (como ocorre com as verdades
240 Buffon apud Hazard, op. cit., pp. 136-7.
237 Locke John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo, Abril Cultural, 1973. Os 241 Hazard, op. cit., p. 136.
Pensadores, v. XVIII, p. 47. 242 Cf. id., p. 136.
238 Cf. id., p. 39. 243 Gerbi (b), op. cit., pp. 7-30-45-44, respectivamente.
239 Locke, op. cit., p. 45. 244 Cf. id., p. 31.

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o porco. Gerbi chama a atenção para essa debilidade dos animais não se sobrevivência, enquanto que as espécies superiores, os animais corpulentos,
referir às teorias do progresso do imperfeito ao perfeito, do inferior ao formosos e robustos, sabem defender-se com seu nobre valor, com sua força
superior, mas as que falam de uma degeneração das espécies, de um possível serena247 . Na construção da história do Novo Mundo, o clima nefando
debilitamento destas em circunstâncias ambientam adversas 245 . O motivo é o responsável pela geração dos animais inferiores. O clima, o solo, a
dessa inadaptabilidade residia no fato de aquele mundo ter ficado umidade, o descomunal tamanho dos rios, a exuberância das florestas
muito tempo sob as águas do mar. Era um mundo realmente novo, nm diziam que o mundo era imaturo, porém a vida animal que o povoava
mundo genesíaco, débil, porém. Sua origem, sua história, fora inter- mostrava, por outro lado, que esse mundo já nascera imperfeito, mo-
rompida pelo avanço das águas, o presente ainda estava muito próximo tivo pelo qual era fraco, enfermiço e débil 248 . A influência desses fa-
à matéria putrefata deixada pelas águas e o futuro seria escrito pela tores agia sobre o temperamento do homem, modulando sua história e
dominação da natureza, se o homem conseguisse executar essa tarefa seus costumes.
hercúlea, no cultivo do solo, com a derrubada das árvores, abrindo
caminho aos raios solares. Esse não deixa de ser o processo de passa- Há, então, na combinação dos elementos e das outras causas
gem da natureza para a cultura. E Buffon fornece os dados: físicas, alguma coisa em contrário ao engrandecimento da
natureza viva neste novo mundo: há obstáculo ao desen-
Tudo leva, então, a indicar, que os Americanos sendo volvimento e talvez à formação dos grandes germes; aqueles
homens novos, ou, para dizer melhor, homens tão anti- mesmos que, pelas doces influências de um outro clima,
gamente expatriados, que perderam toda noção, toda idéia receberam sua forma plenária .e sua extensão total, se limi-
deste mundo do qual descendem. Tudo parece concordar tam, se encurvam sob este céu avaro e nesta terra vazia, onde
também para provar que a maior parte dos continentes da o homem, em pequeno número, estava disperso, errante;
América era uma terra nova, ainda fora da mão do homem, onde; longe de usar como senhor deste território como de seu
e na qual a natureza não teve tempo de estabelecer todos os domínio, ele não tinha nenhum império; onde, não estando
seus planos, nem o de se desenvolver em toda sua extensão; jamais submetido nem os animais nem os elementos, não
que os homens lá são frios e os animais pequenos, porque o tendo nem domado os mares, nem dirigido os rios, nem
ardor de uns e a grandeza dos outros dependem da salu- trabalhado a terra, ele não era em si mesmo senão um ani-
bridade e do calor do ar; e que em alguns séculos, quando se mal da primeira categoria, e não existia para a natureza
tiver roçado as terras, abatido as florestas, dirigido os rios e senão como um ser sem conseqüência, uma espécie de
contido as águas, esta mesma terra será a mais fecunda, a autômato impotente, incapaz de reformá-la ou de secundá-la:
mais sadia, a mais rica de todas, como ela parece ser em todas ela o havia tratado menos como mãe que como madrasta,
as partes que o homem a trabalhou. 246 recusando-lhe o sentimento de amor e o desejo vivo de se
multiplicar; pois ainda que o selvagem do novo mundo tenha
Mundo intacto, é assim que Buffon visualiza ou imagina o aproximadamente a mesma estatura que o homem do nosso
Novo Mundo, onde o homem é um intruso. E um mundo ainda em mundo, isto não é suficiente para que ele possa constituir uma
formação. Buffon constrói, pela razão, a gênese, visão que se coadunava exceção ao fato geral da repetição da natureza viva em todo
com o século racionalista, empirista e deísta como foi o XVIII, período este continente. O selvagem é fraco e pequeno pelos órgãos de
que se estribou na verdade e não na fé, na procura da causa, dos geração; ele não tem pêlo nem barba, e nenhum ardor pela
motivos de existir um mundo que era habitado pelas espécies mais vis, sua fêmea; ainda que mais ligeiro que o Europeu, porque tem
mais abjetas, mais minúsculas (..) as que se multiplicam com mais pavorosa mais hábito de correr, é entretanto muito menos forte de
fertilidade. A enfermiça fecundidade das formas inferiores assegura sua corpo; é também bem menos sensível e entretanto mais crente

245 Gerbi (b), op. cit., pp. 39 e 44. 247 Buffon apud Gerbi (b), op. cit., p. 15.
246 Buffon apud Gerbi (b), op. cit., p. 21. 248 Cf. Gerbi (b), op. cit., p. 193.

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e mais covarde; não tem nenhuma vivacidade, nenhuma mas acrescenta: Em geral, todos os habitantes da América setentrional e os
atividade na alma: quanto ao corpo é . menos um exercício, das terras elevadas da parte meridional, como o Novo México, o Peru, o
um movimento voluntário, que uma necessidade de ação Chile, etc., eram homens talvez menos ativos, mas tão robustos quanto os
causada por uma vontade; tire-lhe a fome e a sede, vós Europeus. 251 Ressalvada a preguiça inata do nativo do Novo Mundo,
destruireis ao mesmo tempo o princípio ativo de todos os seus Buffon não estende os novos atributos históricos ao nativo do Ama-
movimentos; ele permanecerá estupidamente em repouso zonas. Atém-se às causas geográficas:
sobre suas pernas ou deitado durante dias inteiros. 249
É verdade que há algumas regiões da América meridional,
Autômato, achatado sob um clima adverso, nômade, sem sobretudo os países baixos do continente, como a Guiana, o
vontade própria, sem sociedade, o nativo não é anão, é um híbrido, Amazonas, as terras baixas do istmo, etc., onde os naturais do
algo intermediário entre o réptil e o vegetal que o camufla, apesar de país parecem ser menos robustos que os Europeus: mas é por
ter sido produzido por obra divina. Tarefa para um Hércules, dominar causas locais e particulares. 252
a natureza era trabalho para portentos. Floresta virgem, madrasta para
os inertes, é a personagem principal nesse cenário onde o homúnculo Montesquieu, amigo e admirado por Buffon, pretendia que o
imberbe é gerado da mesma larva que os insetos, parido sobre o espírito das leis fosse um só, o qual deveria se estender a todo o orbe.
mesmo leito aplainado pelo rastejar das serpentes imensas. Mal No entanto, rebuscando no princípio aristotélico da servidão natural,
constituído, não tem o tamanho nem a vitalidade da fauna que o sufoca ressalva que nos
porque é um híbrido, quase que produzido espontaneamente.
Diante dos ataques ao Novo Mundo pelo enciclopedista Cor- países em que o calor enerva o corpo e enfraquece tanto a
neille De Pauw250 , Buffon responde em 1777 com Epoquer de la nature, coragem, (..) os homens só efetuam um dever penoso por
[obra em que minimiza as observações estampadas em] De la maniére temor do castigo: a escravatura, portanto, choca menos a
de traiter l'histoire naturelle. Da indecisão entre a imaturidade e a dege- razão (..). Mas, como todos os homens nascem iguais, cumpre
neração da natureza do Novo Mundo, Buffon esmiúça suas análises, dizer que a escravidão é contrária à natureza, apesar de que,
fazendo distinções entre os povos, retirando-os do anonimato gene- em certos países, ela esteja baseada num motivo natural e é
ralizador e inserindo-os na história. Antes dos Incas, os peruanos eram, necessário distinguir precisamente esses países daqueles em que
pois, `selvagens' como os demais, parafraseia Gerbi o pensamento de os próprios motivos naturais os rejeitam, como nos países da
Buffon. Selvagens, sim, diz Buffon, porém não débeis nem degenerados. Europa, onde ela foi tão felizmente abolida. 253
Ignora De Pauw, quando nos vem dizer que os americanos eram fracos e
caíam por terra sob o peso mais insignificante, que os caribes, os iroqueses, os O Século das Luzes modernizou conceitos clássicos, acom-
hurones, os índios da Flórida, os mexicanos, os tlaxcaltecas, os peruanos, etc., panhando o progresso da ciência; no entanto, as raízes que os pen-
eram homens de nervo e de músculos, e valerosíssimos não obstante a sadores quiseram seccionar transmitia a vetustez dos ensinamentos
inferioridade de suas armas? Ignora que na América do Sul, onde todos os aristotélicos e a mecânica cartesiana, e o Novo Mundo foi matéria
animais são pigmeus, se encontram verdadeiros gigantes entre os homens? utilizada nesse processo. A tentativa de abarcar a história da huma-
'Pois não se pode duvidar que não se tenha encontrado na América nidade proposta pelos enciclopedistas incluiu o homem americano nos
meridional homens em grande número' — no continente `muito pouco seus pressupostos teóricos sem que a rejeição ao novo fosse inteira-
povoado', os únicos numerosos eram os gigantes [da Patagônia] —, `todos mente descartada. Assim, volta-se ao ponto inicial de que o reco-
maiores, mais espadaúdos, mais volumosos e mais fortes, que não o são todos nhecimento do novo implicaria automaticamente o envelhecimento do
os outros homens da terra. Buffon resgata a identidade daqueles povos,
251 Buffon apud Gerbi (b), op. cit., p. 194.
249 Buffon apud Gerbi (b), op. cit., p. 10. 252 Buffon apud Gerbi (b), op. cit., p. 194.
250 Cf. Gerbi (b), op. cit., pp.193 ss. 253 Montesquieu, op. cit., p. 224.

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velho. Com Buffon, após a querela com De Pauw, invertem-se os pólos
e do velho surge o novo que, por motivos extrínsecos, climáticos,
geográficos, degenerou-se. Gerbi esclarece que Buffon é vago sobre as
causas da degeneração. 254 Mundo Novo, mundo intacto, mundo
aquático e verdejante — o Amazonas e a Guiana; mundo insalubre para
os povos civilizados e os animais superiores. A causa: o povoamento
pelas espécies vivas deu-se muito mais tarde devido às águas, enquanto
o Peru e o México, localizando-se entre montanhas, eram, segundo
Buffon, o atestado inequívoco de um solo mais antigo, demonstrativo,
também, daqueles povos terem sido os únicos a constituírem uma
sociedade. Mesmo assim, não era tão antigo que se igualasse ao Velho
Mundo. 255

Capítulo II

COMO O MAR 'DE ÁGUAS DOCES E SUAS DILATADAS


PROVÍNCIAS SÃO PERCORRIDOS PELO IMAGINÁRIO DOS
CRONISTAS VIAJANTES

O s séculos podem variar e os cronistas serem originários das


mais diferentes nacionalidades, no entanto, diante do rio e da mata
amazônicos, quase genericamente, nenhum se isentou de externalizar
sentimentos que variavam do primitivismo pré-edênico ao infernismo
primordial. Ainda que familiarizados com a região ou mantendo o tom
frio e distanciado dó pesquisador, esse objeto móvel, essa natureza
grandiosamente avassaladora, em algum momento fez com que esses
homens parassem e a escutassem, e a sentissem, muitas vezes deixando
para trás olhares já estruturados, visões já vividas, para pousarem os
olhos renascidos na contemplação extasiada da grandiloqüência natural.
São momentos que destacam quase unicamente a natureza, muitas
vezes explicitando seu edenismo, outras somente aludindo à sua
primordialidade, mas cada um registrando imagens particulares ou
quase arquetípicas, extraídas da Idade de Ouro ou mesmo das
maravilhas e monstruosidades índicas l .

I Em 1800, o olhar do sábio Humboldt percebeu a contradição entre o edenismo e o


254 Cf. Gerbi (b), op. cit., p. 38.
infernismo no rio Negro, próximo ao Cassiquiari: "Vêem-se aparecer em grupo as mais
255 Cf., id., p. 193.

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