Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Grupo I
A
Lê o seguinte excerto do conto «George», de Maria Judite de Carvalho.
O rosto da jovem que se aproxima é vago e sem contornos, uma pintura clara, e quando os
tiver ele será o rosto de uma fotografia que tem corrido mundo no fundo de uma mala qualquer,
que tem morado no fundo de muitas gavetas, o único fétiche de George. As suas feições ainda são
incertas, salpicando a mancha pálida, como acontece com o rosto das pessoas mortas. Mas, tal
5 como essas pessoas, tem, vai ter uma voz muito real e viva, uma voz que a cal e as pás de terra e a
pedra e o tempo, e ainda a distância e a confusão da vida de George não prejudicaram. Quando
falar não criará espanto, um simples mal-estar.
A outra está perto. Se houve um momento de nitidez no seu rosto, ele já passou. George não
deu por ele. Está novamente esfumado. A proximidade destrói ultimamente as imagens de
10 George, por isso a vai vendo pior à medida que ela se aproxima.
Gi fá-la [a pergunta] por fazer e sorri o seu lindo sorriso branco de dezoito anos. Depois
ambas dão um beijo rápido, breve, no ar, nem se tocam, começam a mover-se ao mesmo tempo,
devagar, como quem anda na água ou contra o vento. Vão ficando longe, mais longe. E nenhuma
delas olha para trás. O esquecimento desceu sobre ambas.
•
15 Agora está à janela a ver o comboio fugir de dantes, perder para todo o sempre árvores e casas da
sua juventude, perder mesmo a mulher gorda, da passagem de nível, será a mesma ou uma filha igual
a ela? Árvores, casas e mulher acabam agora mesmo de morrer, deram o último suspiro, adeus. Uma
lágrima que não tem nada a ver com isto mas com o que se passou antes – que terá sido que já não se
lembra? –, uma simples lágrima no seu olho direito, o outro, que esquisito, sempre se recusa a chorar.
20 É como se se negasse a compartilhar os seus problemas, não e não.
•
A figura vai-se formando aos poucos como um puzzle gasoso, inquieto, informe. Vê-se um
pedacinho bem nítido e colorido mas que logo se esvai para aparecer daí a pouco, mais nítido ainda,
mais esfumado.
À sua frente a senhora de idade, finalmente completa, olha-a atentamente. De idade não,
25 George detesta eufemismos, mesmo só pensados, a mulher velha. Tem as mãos enrugadas sobre
uma carteira preta, cara, talvez italiana, italiana, sim, tem a certeza. A velha sorri de si para
consigo, ou então partiu para qualquer lugar e deixou o sorriso como quem deixa um guarda-
-chuva esquecido numa sala de espera. O seu sorriso não te nada a ver com o de Gi – porque havia
de ter? –, são como o dia e a noite.
Maria Judite de Carvalho, «George», in Maria Isabel Rocheta & Serafina Martins (coord.),
Conto Português (Séculos XIX-XXI) 3. Antologia crítica, Porto, Caixotim, 2011.
3. Refere três aspetos linguísticos ou estilísticos típicos da prosa de Maria Judite de Carvalho.